Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A SENHA
Segunda Parte
Foi um dia longo e fatigante e, às onze e vinte da noite, Steve Randall sentia-se feliz por poder voltar aos seus aposentos do Arristel Hotel.
Mexendo-se no assento traseiro da «limousine» Mercedes-Benz, Randall teve consciência do farfalhar da folha de papel que meteu no bolso interior do casaco. Uma folha de papel onde estavam escritos os nomes dos doze apóstolos que serviram para a redação do memorando, em que fora auxiliado por Jessica Taylor. A frente do nome de cada discípulo encontrava-se o nome de cada um dos membros da Ressurreição Dois a quem o documento fora endereçado.
Pensou no tempo que levaria o traidor a enviar o memorando ou entrega-lo em pessoa ao Dominee Maertin de Vroome, ignorando a ratoeira que lhe fora armada. O memorando anterior levara cerca de três horas, depois de publicado, chegando até ao Reverendo. O novo documento, do qual cada uma das versões fora datilografada por Jessica Taylor, começara sendo distribuído quarenta e cinco minutos depois que ele saíra da reunião com os editores. As cópias foram enviadas em mão própria por elementos dos serviços de segurança de Heldering, a destinatários ainda trabalhando nas instalações do KrasnapoIsky ou àqueles que se encontravam nos seus hotéis ou apartamentos em Amsterdã, terminado o dia de trabalho. Fora também preparado um protocolo sendo assinado por cada uma das pessoas que recebessem o memorando, para não haver dúvidas sobre a posse.
Randall encontrou-se de novo tentando deduzir quais os motivos daquela traição: foi por amor ou por dinheiro?
Em geral eram os mais fortes motivos que costumavam provocar a traição. Bom, o melhor era não se deter em qualquer dos doze indignados. O melhor era rezar para que o impostor fosse apanhado antes de poder deitar as imundas mãos ao segredo mais precioso: a edição especial do Novo Testamento Internacional que Herr Hennig em breve expediria de Mairiz.
Enquanto ainda se encontrava no seu gabinete de trabalho, Randall telefonara à Angela para convidá-la a jantar com ele. Embora muito fatigado, não resistira a vê-Ia nessa noite. Tinham jantado no elegante restaurante do Hotel Polen, permutando reminiscências da vida anterior um do outro. Depois, até sentindo-se cansado, custou-lhe deixar aquela mulher querida, embora consolado com a idéia de que a veria de novo pela manhã. Acabara por deixá-la à porta do Victória Hotel. Naquele momento em que se aproximava do Amstel ainda sentia nos seus lábios o perfume delicioso dos lábios dela.
O carro voltou à esquerda. Um minuto depois, tendo dado as boas-noites a Theo, Randall ficou por momentos parado no passeio em frente do edifício. Quando se preparava para entrar, ouviu que alguém o chamava. Parou, voltou-se e o homem que o chamara começou a emergir das sombras em que estava mergulhado o parque de estacionamento.
- Mr. Randall! - chamou o homem de novo. - Só um momento, por favor!
Caminhando ao seu encontro, o homem foi de repente iluminado pelo halo de luz que emanava a jorros da entrada do Amstel.
Cedric Plummer.
Mais zangado do que surpreso, Randall preparava-se para lhe dar as costas, quando Plummer o agarrou pela manga do casaco.
Randall deu um violento puxão para se libertar.
-Quero que fique bem esclarecido, de uma vez por todas, que não temos nada para dizer um ao outro, hem!?
A voz de Cedric Plummer adquiriu um tom suplicante.
-Não se trata de mim. De modo nenhum o incomodaria, mas, estou aqui enviado por alguém... alguém muito importante que o deseja ver.
Randall estava decidido a não se deixar comover.
-Tenho muito pena, Plummer, mas não me lembro de ninguém que você possa conhecer que eu esteja interessado em ver.
Deu uns passos na direção da entrada. O jornalista inglês, com um ar de aflição seguiu-o.
- Mr. Randall... espere...ouça. Trata-se do Dominee Maertin de Vroome...foi ele que me enviou.
Randall parou.
-De Vroome? -Olhou desconfiado para o jornalista. -Foi de Vroome que o mandou procurar-me?
- Foi... Pode ter certeza absoluta - respondeu Plummer, abanando a cabeça repetidas vezes afirmativamente como um boneco animado.
- E como é que eu sei, que você não está mentindo, com quaisquer outros desígnios em mente?
-Juro que é a pura verdade. Porque raio havia de estar mentindo? Que ganharia eu com isso?
Randall hesitou entre a desconfiança pelo inglês e o excitado desejo de que fosse verdade.
- E porque é que de Vroome pretende encontrar-se comigo?
-Não faço a mínima idéia.
- Já sabia que não tinha - disse Randall, sarcástico. E porque razão o Reverendo de Vroome o utilizaria, um jornalista estrangeiro, como seu mensageiro? Não seria mais simples que me fizesse um telefonema?
Um pouco encorajado pela pergunta, Plummer respondeu prontamente:
-Porque ele costuma fazer tudo por vias indiretas, oblíquas. É um homem circunspecto em todos os seus contatos. Um homem na posição dele tem que ser precavido, astuto, cauteloso. Não correria o risco de lhe telefonar, tal como não alimenta quaisquer desejos de ser visto consigo em público. Se conhecesse o Dominee de Vroome compreenderia o seu comportamento.
-E você conhece-o?
-Bastante bem, Mr. Randall. Sinto orgulho em lhe poder chamar amigo.
Randall lembrou-se da sensacional entrevista de Plummer com de Vroome para o London Daily Courier. Fora uma longa entrevista, em primeira mão e exclusiva. E lembrando-se dela, Randall apressou-se para acreditar que a reivindicação de Plummer era verdadeira a respeito da amizade que o ligava ao clérigo reformista holandês.
Randall considerou a hipótese de um encontro com de Vroome. Era coisa que oferecia perspectivas mais de artimanhas do que vantagens. Todavia, um fator irresistível impelia Randall para defrontar o homem. A única sombra negra, que se interpunha entre o futuro de Randall e o êxito da Ressurreição Dois, era a daquele enigmático Reverendo de Vroome. Não é muito frequente que uma pessoa tenha a oportunidade de se encontrar, frente a frente, com um inimigo que habitualmente escolhe a sombra para se acobertar. Na verdade, a oportunidade era irresistível...Dominee de Vroome era caça grossa...muito grossa mesmo...a maior peça daquele safari.
Randall fixou o ansioso inglês, perguntando:
- E quando é que de Vroome me deseja ver?
-Já, precisamente agora, se for conveniente pra você.
-Deve ser um motivo muito urgente para pretender um encontro em hora tão tardia.
-Não lhe posso dizer se é ou não urgente, mas posso assegurar-lhe que o Reverendo é uma espécie de filho da noite.
-Onde é que ele está?
-No seu gabinete de Westerkerk.
- Muito bem, vamos lá descobrir o que quer o grande homem.
Minutos depois seguiam no carro de Plummer, um coupé Jaguar, ao lado do Prinsengracht - Canal dos Príncipes – imerso em escuridão. O canal serpenteava em volta da parte ocidental do centro de Amsterdã e ao longo da Dam. Sentado no fofo lugar do carro de desporto, Randall estudava o perfil de Plummer -o seu cabelo fraco, os olhos pequenos, a cor macilenta da pele, que só parecia viva devido ao tufo de barbicha à Van Dike - e especulava qual o motivo que seria capaz de aproximar o jornalista inglês e o poderoso líder de um movimento religioso radicalista.
-Plummer, sinto-me curioso a seu respeito e a respeito de de Vroome. Você chamou-lhe amigo...
- Exatamente - Plummer não desfitou os olhos do caminho em frente.
- Que espécie de amizade? Será você o propagandista das idéias dele através da imprensa, e fará parte do rol de pagamentos do Reverendo? Trabalhará você para o movimento reformista? Ou será apenas um dos seus muitos espiões?
A mão de Plummer largou o volante por momentos e agitou-se repetidas vezes num movimento negativo, o que lhe conferia um ar peculiar de efeminado.
- Oh, céus, não, nada disso, meu caro rapaz, nada de tão melodramático como isso. Para lhe ser franco, digamos que entre mim e o Dominee existem interesses comuns...nomeados: a vossa nova Bíblia, o grande segredo que está sendo mantido tão fortemente por trás das muralhas do KrasnapoIsky. Ambos temos razões diferentes, para desejarmos saber o máximo que pudermos desse segredo, antes que o vosso Dr. Deichhardt lance o Livro às massas como quem alimenta pombinhas num jardim. Achei que podia ajudar o Reverendo de Vroome a esse respeito, de muitas e variadas maneiras, recolhendo pequenas informações, tagarelices, segredos, enfim, tudo aquilo que geralmente está ao alcance de um bom profissional da imprensa. Em troca, espero que o Dominee - auxilie compensando-me, fornecendo-me a história exclusiva que escreverei para o mercado mundial de notícias, elites que vocês consigam lançar o pregão da vossa obra -Voltou para Randall um sorriso hipócrita, repugnante, pelos dentes apodrecidos. - Lamento, velho companheiro, se isto o pode privar da glória, mas c'est Ia guerre.
Randall sentiu-se mais divertido do que aborrecido com a franqueza do homem.
- Você está seguro de que o seu amigo de Vroome lhe possa servir as nossas cabeças numa bandeja, hem?
Plummer sorriu de novo com aquele seu jeito dissimulado.
- Sim, estou seguro disso.
-Bom, pelo menos, você teve a cortesia de nos avisar.
- É verdade, um sentido de jogo franco à maneira de Eton e de tudo o mais...- Depois, mas já sem sorrir, acrescentou:- Seja lá o que for que pense de mim, Mr. Randall, sou um gentleman. E o mesmo acontece com o Dominee de Vroome.
-É verdade, de Vroome... Sei pouquíssimo a respeito dele. Oficialmente o que é que ele é? Chefe da Igreja Reformada Holandesa?
-Não existe chefe oficial da Nederlands Hervorrnd Kerk... a Igreja Reformada Holandesa. Os quatro ou cinco milhões de protestantes deste país, nas 1466 paróquias espalhadas por onze províncias, elegem cinqüenta e quatro representantes, uns pastores outros leigos de destaque. Poderia dizer-se que o sínodo governa a Igreja Holandesa, mas na verdade não é assim. Os membros do sínodo são testemunhas e não bispos. Dominee de Vroome costuma dizer que o sínodo não é a autoridade, mas sim a consciência da Igreja. A Igreja aqui é uma comunidade demasiado centralizada, de um tipo que se afigurará quase anarquista a um inglês ou a um americano. O Dominee foi eleito pelo conselho da Igreja dessa comunidade para chefiar uma Igreja local individual. Disse-me, repetidas vezes, que não tem qualquer autoridade especial mesmo na sua própria Igreja. O seu poder deriva exclusivamente da personalidade. Os seus únicos deveres são de falar bem e escutar melhor, e de nunca se esquecer que a sua Igreja é realmente a Igreja do povo. Menciono-lhe estas coisas para que compreenda o homem com quem encontrar-se-á.
-Essas palavras apresentam-no como se fosse um humilde pastor da vizinhança - disse Randall. - Ouvi dizer que ele é o líder do Movimento Radical da Reforma Cristã, com legiões de partidários, eclesiásticos e leigos, em todo o mundo.
- Lá isso é verdade - concordou Plummer – Todavia, não invalida o que eu disse. A nível local, não tem mais peso na Igreja do que um vulgar camponês. E esse fato importante - que é na prática o que ele prega: a encarnação de uma relevante fé popular -faz dele um verdadeiro rei no estrangeiro. Quanto a mostrá-lo como um radical, a maneira como a palavra é proferida, tem um som sinistro. Um radical é simplesmente alguém que deseja fazer modificações imediatas, drásticas e fundamentais na ordem existente. Sim, nesse sentido o Dominee de Vroome é um líder radical da Igreja.
Pouco depois, Plummer apontou para a frente, tirando uma das mãos do volante.
-Cá está...Chegamos ao quartel general de de Vroome. Westerkerk, consagrada em 1631, edificada em forma de cruz ao estilo neoclássico, provavelmente com a torre mais alta de Amsterdã. Um tanto compacto e feio, hem? É a primeira Igreja da Holanda-lugar de casamentos da casa real holandesa-e a presença de de Vroome transforma-a na primeira Igreja do Protestantismo.
Estacionaram o carro na Westermarkt, e Randall aguardou na praça, enquanto o inglês fechava o seu Jaguar.
Para Randall, a casa de oração que lhe ficava em frente, parecia-se com uma casa holandesa de tamanho desproporcional, coroada por um rígido campanário que procurava atingir as alturas do céu. Tal relação fazia com que a construção parecesse, ao mesmo tempo, amigável e ameaçadora, exatamente como o seu principal habitante, segundo Randall suspeitava. Examinando a fachada, com mais cuidado, à luz dos candeeiros de iluminação pública, Randall observou que o edifício era construído de pequenos tijolos que, com o tempo, transformaram-se em vermelhos, um tom que com aquela luz se parecia com manchas de sangue seco. Randall decidiu que o aspecto total era na realidade ameaçador, tal como o próprio Dominee Maertin de Vroome.
- O que é que quer dizer Dominee? - perguntou Randall a Plummer.
- Senhor, Mestre - respondeu o jornalista inglês. - Vem do latim dominus, e é aqui o equivalente a Reverendo. Incidentalmente, quando se dirigir a de Vroome, chame-lhe também Dominee.
Quando começaram a caminhar para a Igreja, Randall disse:
- De Vroome enviou-o para me convidar. Não sabia se eu aceitaria. Pensa que estará à minha espera?
-Sim. Está à sua espera.
- Como é que pode ser tão positivo a respeito disso, se nem sequer sabe do que me pretende falar?
- Nem esperava que ele dissesse. É consigo que ele pretende falar e a seu tempo lhe dirá. - Plummer fez uma pausa. - Claro está que posso supor.
- Não me diga que tentará obter de mim qualquer informação. Seria arrojo demasiado.
- Meu caro camarada, o Dominee não é assim tão rude. Pode ser persuasivo, mas é um pacifista. Receio que você se tenha deixado intoxicar por esses filmes de violência que a televisão americana transmite sem cessar. Ou será que já ouviu falar a respeito dos cadáveres que estão ocultos por baixo de Westerkek?
- Quais cadáveres?
- Oh, então não sabe? Nos velhos tempos, os paroquianos eram enterrados em criptas por baixo da Igreja. Por causa disso desenvolvia-se um cheiro de tal ordem que os fiéis eram obrigados a munir-se de frascos de Água de colônia quando assistiam aos serviços religiosos. De fato alguns dos fiéis mais velhos ainda continuam a trazê-la, embora o cheiro há muito tenha desaparecido. Não, Mr. Randall, não tema que vá parar no mesmo local que esses corpos. - Sorriu sarcástico. - Pelo menos penso que não terá essa sorte.
Randall teve vontade de lhe falar nos dois malfeitores que o atacaram na primeira noite em que chegara a Amsterdã, num dos setores daquele mesmo canal que passava junto da Westerkerk, mas pensando bem no caso resolveu calar-se.
Contornaram o templo, passando para além das enormes portas de carvalho chapeado, à moda espanhola, que constituíam a principal entrada, e caminharam na direção de um pequeno bangalô, em perfeito estilo holandês, pintado de verde, com as janelas tapadas por cortinas de pano branco, residência incrustada, por assim dizer, no corpo da Igreja. Subiram os quatro degraus até a porta que arvorava uma tabuleta: COSTERIJ.
-A porta principal está trancada -explicou Plummer.- Aqui é a casa do sacristão.
A porta não estava fechada com trinco, e os dois homens penetraram numa espécie de vestíbulo.
-Vou ver onde é que está o Dominee-disse Plummer, que continuou a penetrar nas dependências da casa, desaparecendo num corredor. Pouco depois Randall ouviu a voz dele e uma voz feminina conversando algumas palavras em holandês. Logo a seguir Plummer reapareceu e fez um gesto na direção de uma grande porta quase em frente.
-De Vroome está na ala principal da Igreja.
Randall seguiu o jornalista para o interior da Igreja. Era uma coisa tremendamente vasta e cavernosa. Só um dos quatro candelabros de bronze que pendiam do alto teto em abóbada estava aceso, o que deixava quase todo o corpo da Igreja mergulhado na escuridão. Com exceção da faixa vermelha de uma passadeira que se estendia pela ala central da Igreja, e que formava uma cruz com a outra faixa de passadeira estendida pela igreja, uma pessoa tinha imediata impressão de severa austeridade. Em vez de bancos, viam-se filas de cadeiras, estufadas em veludo verde e ligadas umas às outras, que faziam face a um estrado, no centro do qual se via um púlpito em madeira. Randall concluiu que devia ser a tribuna do pastor.
Plummer examinava o interior, habituando os olhos à obscuridade, e naquele momento apontava para o centro do templo, em meio a floresta de colunas que sustentavam a abóbada.
-Está ali. Na primeira fila em frente do púlpito. Randall fixou os olhos, perscrutando a escuridão, e conseguiu ver a solitária figura de um clérigo, todo ataviado de negro, como uma mancha de escura no meio da escuridão, inclinado para a frente, numa das cadeiras, com os cotovelos apoiados nas pernas e a cabeça metida entre as mãos.
- Está a meditar - disse Plummer num murmúrio respeitoso. A distante figura moveu-se. A cabeça ergueu- se na direção em que Randall e o jornalista se encontravam. Mas a claridade era fraca e Randall não pôde ter a certeza que de Vroome os visse.
Plummer deu uma ligeira cotovelada em Randall.
- Ele sabe que você se encontra aqui. Vamos esperá-lo no gabinete. Não demorará mais de um ou dois minutos.
Voltaram até junto do vestíbulo da casa do sacristão, subiram alguns degraus de uma pequena escada. No patamar lateral viam-se duas grandes portas com duas tabuletas. Na da esquerda lia-se: WACHT KAMER. E na direita: SPREEK KAMER.
-A Sala de Espera e a Sala de Recepção -disse Plummer, impelindo Randall para a direita. -A Sala de Recepção é o gabinete do Reverendo. Vê aquele globo sobre a porta? Acende-se uma luz vermelha quando o Dominee não quer ser incomodado.
O gabinete surpreendeu Randall. Apesar do que Plummer lhe dissera, esperara encontrar um gabinete que se ajustasse a um príncipe da Igreja internacionalmente conhecido. Mas o escritório nada tinha de pretensioso, embora fosse confortável. Possuía um divã, uma mesa baixa para café, duas poltronas, uma lareira, uma escrivaninha muito simples com uma cadeira de alto espaldar, duas fileiras de livros espalhados por estantes, alguns quadros representando brasões, um enorme quadro a óleo, de concepção moderna, da Última Ceia. Finalmente, era iluminado por meia dúzia de abajur.
Randall recusou a poltrona que lhe fora apontada por Plummer. Agora a tensão tomara conta de todo o seu ser. Estava preocupado pelo pensamento de que uma tal entrevista viesse sendo considerada e interpretada de maneira errada por Deichhardt e pelos outros editores se soubessem... e com certeza que saberiam. Com antecipação, o inspetor Heldering nunca teria permitido semelhante coisa. Randall não fazia a mais leve idéia daquilo que o Dominee sabia sobre a Ressurreição Dois, mas era óbvio que, através do seu, ou dos seus espiões, de alguma coisa tinha conhecimento. De qualquer modo, o que continuava sendo um fator desconhecido era se sabia o conteúdo do Novo Testamento Internacional, ou alguns pormenores dos achados do Professor Monti em Ostia Antica. Um dos perigos contra o qual Randall se devia manter em guarda era que o eclesiástico lhe quisesse passar uma rasteira, levando-o a fazer qualquer revelação involuntária.
Perturbado, lamentando ter-se ido meter no covil do inimigo, Randall foi até à janela situada do lado direito da escrivaninha. Nesse momento a porta rangeu e Randall voltou-se rapidamente, como que reagindo a um choque.
O Dominee Maertin de Vroome encontrava-se no limiar da porta, trazendo ao colo dois gatos siameses aos quais afagava o pêlo.
Era um homem alto, talvez de um metro e oitenta e relativamente novo para a elevada posição que ocupava, talvez quarenta e cinco a quarenta e oito anos - seguramente menos de cinqüenta. Envergava uma longa veste batina, que lhe caía direto pelo corpo seco. Tinha o cabelo espesso, crespo e comprido, de uma cor indefinível parecida com o açafrão. As feições, cadavéricas, revelavam o asceta ou o fanático. Sobrancelhas espessas e em linha contínua, olhos afundados nas órbitas, mas de um penetrante azul, faces chupadas, uma boca em que era difícil adivinhar os lábios, que não passavam de um traço severo.
Plummer, que tomara uma posição servil, como um escravo, resolveu fazer as apresentações.
- Dominee... eis Mr. Randall. Mr. Randall... apresento-lhe o Dominee de Vroome.
Sem cerimônias, de Vroome colocou os gatos no chão, deu um passo a frente, estendeu a mão, apertou mole e fugidio a destra apresentada por Randall, dizendo com voz cava:
- Bem-vindo a Westerkerk. Foi grande generosidade da sua parte anuir a vir a esta hora tardia. Sem preâmbulos escusados, é evidente que ouvi falar muito de si, e por isso pensei que um encontro só seria vantajoso para ambos. -A sua voz continuava sendo cava, mas à medida em que ia falando tomara uma sonoridade vibrante, arrastadora. - Sugiro que se sente no divã, é o lugar mais confortável do aposento. Poderá até servir para vencer a sua resistência.
Um cliente frio, pensou Randall enquanto se afundava no sofá. Frio, urbano, grandiloquente e formidável.
-O que é que o faz pensar que eu tenha qualquer resistência a vencer? -perguntou Randall.
Dominee de Vroome não respondeu, mas fez um gesto na direção de Plummer dizendo-lhe que podia ficar no gabinete. Plummer, nervoso, sentou-se numa das poltronas junto das estantes com livros e pareceu ficar como mais um dos objetos inanimados da sala. Dominee de Vroome lançou uma olhada para o tampo da escrivaninha, como para certificar-se de que estava tudo em ordem. Depois, satisfeito, dirigiu-se para a poltrona que ficava em frente do sofá, enrolou a batina em volta das pernas e sentou-se, dirigindo-se a Randall:
-Julgo que, como novo membro da Ressurreição Dois, seja o que for, tal nome idiota possa significar, embora conjecture qual seja a resposta certa para esse código-, o senhor foi já devida e cuidadosamente informado a meu respeito, acerca do meu papel como adversário da ortodoxia religiosa, representada pelos seus patrões. Por conseguinte, tendo ouvido a parte mais tendenciosa a meu respeito e através uma lealdade natural para com as pessoas com as quais trabalha e para quem trabalha, considera-me certamente como a verdadeira encarnação do Diabo. A sua guarda mantém-se rigidamente levantada. O senhor mostra-se, compreensível, com resistência.
Randall não se pôde furtar a esboçar um sorriso.
-Dominee, no meu caso não se comportaria da mesma maneira? A minha profissão leva-me a uma total manutenção do sigilo, enquanto o senhor está precisamente devotado, tentando arrancar-me o cioso segredo.
A boca, quase sem lábios, do Reverendo rasgou-se talvez, pretendendo dar um sorriso.
-Mr. Randall, tenho outros meios a recorrer sem ser o de o utilizar para me revelar os fins da Ressurreição Dois e o conteúdo exato do Novo Testamento recentemente traduzido.O senhor é meu convidado, e não me passa sequer pela cabeça perturbá-lo com sondagens a respeito daquilo que jurou manter secreto.
- Agradecido - disse Randall. - Tranqüilizado a esse respeito, poderei tomar a liberdade de perguntar o que pretende então de mim?
-Principalmente, que me escute. Emprestando-me, solícito, seus atentos ouvidos poderá aprender alguma coisa. Em primeiro lugar, é vital que saiba aquilo porque luto e aquilo porque lutam os seus patrões e os lacaios deles. Julga que já sabe tudo, mas na realidade nada sabe.
-Tentarei ser receptivo -prometeu Randall.
De Vroome fez estalar os ossudos dedos.
-Ninguém pode ser totalmente receptivo. A mente humana é uma selva de preconceitos, de tabus, de histórias da carochinha e de dolos. Não, não espero que abra por inteiro sua mente para absorver com verdade aquilo que tenho para lhe dizer. Tudo quanto peço é que não a feche por completo.
-Não está fechada - garantiu Randall, pensando que diferença faria a de Vroome que fosse assim ou assado.
-Aquilo em que creio, aquilo em que milhões de pessoas, em todas as terras do mundo acreditam, e insistem em tornar realidade, é uma nova Igreja. Uma Igreja com significado e adaptada à sociedade de hoje e às suas básicas necessidades. Ora, antes de tudo, tal reforma requer uma nova compreensão das Escrituras, que devem ser lidas à luz dos nossos conhecimentos atuais e do progresso científico. O Dr. Rudolf Bultmann, o teólogo alemão, lançou o primeiro apelo às armas na nossa revolução não-violenta. Para ele, era pura perda de tempo procurar um Jesus ligado às coisas da terra. O que lhe interessava era procurar a essência, os significados profundos, as verdades contidas na fé da Igreja primitiva, limpando de todos os mitos o Novo Testamento; despojando, tal como ele disse, a mensagem do evangelho dos seus elementos inconcretos, não positivos. Para reunir o homem moderno dentro da religião, segundo a crença do Dr. Bultmann, devemos afastar do Novo Testamento o Nascimento do ventre de uma Virgem, os milagres, a Ressurreição, as promessas pueris e não científicas de uma vida excelsa no Céu, ou as ameaças de tremendos castigos no Inferno. Como orgulhosos herdeiros de todos os investigadores honestos, desde Galileu e Newton, a Mendel e Darwin, achamos pouco plausível aceitar, tal como Allan Watts sublinhou, «a herança do Pecado Original desde Adão, a Imaculada Conceição de Maria, o Nascimento de Jesus de um ventre Virginal, a Crucificação para Remissão dos nossos pecados, a Ressurreição física de Cristo, o Regresso de Jesus dentre os mortos, a sua corpórea Ascensão ao Céu e a nossa ressurreição dentre os mortos no dia do juízo Final; um julgamento que nos amarra física e espiritualmente, ou à bem-aventurança eterna, ou às eternas penas infernais». De modo que acreditamos, que o homem moderno precisa e aquilo que aceita como plausível é a mensagem de um homem sábio ou um mestre, que poderá ter-se chamado Jesus, uma mensagem que ajude o homem moderno enfrentar a realidade da existência-ou, tal como um teólogo de Oxford resumiu o pensamento do Dr. Bultmann, levar a cada pessoa uma mensagem «por meio da qual viva em harmonia com o seu ser, um ser que sabe que morrerá e cuja certeza o leve, por conseguinte, a viver com autenticidade». Para encurtar, parece-me não descabido parafrasear algo dito por Renan, esclarecendo que temos que produzir, uma pessoa que não seja possuída pela fé, mas, sim que possua fé. Fui suficientemente claro, Mr. Randall?
-Plenamente, Dominee.
-Atingimos uma fase na qual julgo necessário, a fim de estarmos de acordo com o nosso tempo, fazermos uma revisão mais radical às Escrituras, se quisermos que o evangelho seja um instrumento de utilidade para ajudar e para salvar o homem moderno. Crer em Jesus Cristo como um Messias, ou como um ser histórico, já não tem importância vital para a religião. O que assume a máxima importância é o reler, com uma nova dimensão, a mensagem social dos primitivos cristãos. Não importa quem proferiu a mensagem, ou quem a escreveu. O que interessa é o significado da mensagem hoje, especialmente quando ela se libertar dos seus elementos míticos e sobrenaturais; espremida e purificada, para deixar os seus resíduos de amor do homem pelo homem e da sua crença na fraternidade. E tudo isso me leva de encontro aos conservadores, aos defensores do velho Cristo e dos velhos mitos, aos quais o vosso plano se prepara para representar...
- Como é que sabe que eles são conservadores? - interrompeu Randall. -Como é que pode ter certeza de que eles não estejam também prontos para uma modificação drástica?
- Porque os conheço pessoalmente, a todos eles, e sei muito bem aquilo que defendem, Não falo dos vossos cinco editores, os promotores da nova Bíblia. Esses são apenas desprezíveis. O interesse deles é meramente comercial. As únicas Escrituras que lhes interessam estão nos livros do haver, dos lucros fáceis, e a única religião que professam é a do evangelho das contas bancárias. Para sobreviverem, precisam do apoio dos vossos Trautmanns, Zacherys, Sobriers, Riccardis, Jeffries, bem como, dos conselhos da Igreja ultrapassada, retrógrados, e das Sociedades Bíblicas. São esses homens, cuja crença em Cristo, cuja administração e proteção do Deus deles, embruteceu e retardou a verdadeira religião e a verdadeira Igreja durante séculos. Eles sabem muito bem que está morta a razão básica para a religião que professam. Todavia, continuam pregando falsos temores e esperanças falsas; abaixando uma cortina de ritual e dogma que os oculta dos verdadeiros problemas dos seres humanos reais. Tillich disse-nos que a verdadeira teologia ensinaria a respeito daquilo que nos interessa: o significado da nossa existência, da nossa vida. Não obstante, esses teólogos ortodoxos ignoram deliberadamente tais coisas. Tal como dizem os meus amigos do Centro pro Unione, em Roma, esses teólogos são os que querem preservar o velho clube religioso, o «status quo» ortodoxo do inevitável processo da dissolução. A menos que eles reformem, ou que se rendam a nós para reformarmos, o mundo passará a consistir de novas gerações sem religião, sem fé, sem espírito para a sobrevivência humana o qual só se adquire e desenvolve por meio da fé.
- O senhor falou de uma depuração da Bíblia - notou Randall. - Mas como é que pensa reformar a organização da própria Igreja?
- Quer dizer, de uma maneira prática?
- De uma maneira prática.
- Para ser conciso.. . - e de Vroome deixou a frase em suspenso, fazendo uma festa, distraído, no gato siamês que se lhe roçava pelas pernas, como se avaliasse o que dizer. Logo a seguir, retomou o fio à meada. - ... Bom, a nova Igreja que eu advogo será uma Igreja única, tanto protestante como católica. Deverá ter uma unidade cristã. Prevalecerá nela um espírito ecumênico um mundo numa Igreja. Essa Igreja não promoverá uma fé cega, nem milagres, nem celibato, nem uma autoridade irrefutável para o seu clero. Será uma Igreja que rejeitará as riquezas, que gastará o seu dinheiro com as pessoas, e não com a construção de catedrais maciças como a Westerkek, a Abadia de Westminster, Notre Dame ou São Patrício, em Nova York. Funcionará em comunidade, por meio de pequenos grupos que não serão submetidos a sermões. Mas que desfrutarão de celebrações espirituais. Integrará minorias, funcionará dentro do reconhecimento da igualdade feminina, promoverá ação social. Apoiará o controle da natalidade, o aborto legal, a inseminação artificial, o auxílio psiquiátrico, a educação sexual. Opor-se-á aos governos e indústrias privadas, dedicados ao negócio de matar, de oprimir, poluir e explorar. Será uma Igreja de compaixão social, seu clero e membros agirão e viverão consoante os ensinamentos do Sermão da Montanha, não se limitando apenas a seguí-lo como um ideal inatingível.
-E não pensa que os teólogos e editores da Ressurreição Dois queiram da mesma maneira essa espécie de Cristianismo?
As comissuras da boca de de Vroome, arquearam-se, mais uma vez, ameaçando sorrir.
- Pensa que eles querem o mesmo que eu, o mesmo que deseja a grande massa do povo? Se assim é, interrogue-os. Pergunte-lhes se não é apenas para manterem as vias tradicionais e a hierarquia, que eles se opõem ao meu movimento. Pergunte-lhes porque é que em assuntos de ética cristã, se mostram sempre vacilantes entre o compromisso e o mais acirrado fanatismo. O compromisso é igual a indolência e o fanatismo excesso de zelo -o que significa ausência de amor. Atualmente temos outra alternativa: solucionarmos as imediatas necessidades dos nossos companheiros e vizinhos. Pergunte aos seus associados se estão prontos a acabarem com a sua Igreja de ensinamentos dogmáticos, em troca de debates livres. Pergunte-lhes o que é que eles estão fazendo - agora - a respeito de relações entre raças, pobreza, distribuição desigual de riquezas. Pergunte-lhes se estão prontos, para acabarem com as suas rançosas instituições, para se integrarem numa comunidade cristã universal, onde o ministro ou o sacerdote não são pessoas especiais, onde perdem a categoria de dignitários, sendo humildes servidores para ensinarem a vida espiritual ao povo que os emprega e a quem a Igreja pertence. Mr. Randall, faça-lhes estas perguntas e quando obtiver as respostas, compreenderá aquilo que eles não conseguem compreender: que o principal problema da vida não é a preparação para o que virá depois da vida terminada... é instaurar o reino do Céu aqui na Terra, fornecê-lo já.
Dominee de Vroome fez uma pausa, fixou os olhos em Randall durante alguns segundos e prosseguiu, medindo, cauteloso, cada palavra proferida.
-Quanto a essa Bíblia secreta que os seus amigos fabricam - seja lá o que for que ela contenha, sejam quais forem as coisas boas que tenha para oferecer, seja qual for a sensação que possa criar-não é um produto de amor. Os motivos que apóiam a sua publicação são repugnantes, condenáveis e pecaminosos. Para os editores, o motivo é o puro lucro. Para os teólogos, é essencialmente, desviar milhões de pessoas da reforma da religião sadia e sã, hipnotizá-las, ou levá-las pelo medo a regressarem ao velho desespero de uma Igreja transportada para o país dos sonhos, uma Igreja mítica, ritualizada. Asseguro-lhe que com a nova Bíblia eles esperam matar o meu movimento e varrer de uma vez por todas a Igreja clandestina. Com essa Bíblia, esperam reviver a religião da vida futura, num outro mundo, ideal e impraticável, pondo termo à religião do presente, do agora, da vida terrena. Sim, Mr. Randall, os motivos deles são insulsos e pecaminosos...
Randall tinha que interromper aquela torrente de palavras.
-Dominee desculpe, mas, tenho que interrompê-lo. Penso honestamente que o senhor está indo longe demais. A sua razão de queixa a respeito dos editores pode ser válida, embora pense que os julgue com demasiada severidade. Seja como for, nem tentarei garantir, se são ou não são os motivos que os impelem. Todavia, sem dúvida, que tenho de saltar em defesa do resto do pessoal envolvido no projeto. Acredito que essas pessoas são defensoras devotas, honestas e sinceras daquilo que consideram como um produto da revelação divina. Tomemos o exemplo do Dr. Bernard Jeffries, de Oxford. Foi o primeiro dos teólogos com quem me encontrei. Creio sinceramente na dedicação dele ao projeto, derivando, tão somente, da devoção incontestável que o arrasta para a erudição e para o espiritualismo...
Dominee de Vroome levantou uma das mãos.
-Mr. Randall, não profira nem mais uma palavra. Disse para tomarmos como exemplo o Dr. Bernard Jeffries... pois bem, tornemo-lo como um perfeito exemplo no que diz respeito à apreciação global que eu fazia. Não negarei que é um homem dedicado à erudição e um perito na matéria. Nem sequer, porei em dúvida que seja um homem de profunda convicção religiosa. Mas não são esses os principais motivos que o levam a participar na produção da nova Bíblia. Existe um outro motivo, e esse totalmente de foro político.
- Político? - espantou-se Randall. - Não posso acreditar.
-Não pode? Talvez possa. Já ouviu falar do Conselho Mundial das Igrejas?
-Já. Meu pai é um pastor. Foi ele que ouvi falando nisso.
-Mas conhece alguma coisa a respeito do Conselho?- insistiu tenazmente de Vroome.
Randall hesitou.
-É... se bem me lembro... é uma organização internacional que engloba os mais importantes grupos protestantes. Não me recordo de outros pormenores.
-Permita-me avivar sua memória, e ao fazê-lo, que lhe pinte, ao mesmo tempo, um retrato claro do seu abnegado e altruísta Dr. Jeffries. -A medida em que ia falando, conforme Randall notou, o semblante do clérigo holandês tornara-se mais frio e a vibrante voz mais implacável. - O Conselho Mundial das Igrejas, com sede em Genebra, é composto por 239 Igrejas protestantes, ortodoxas e anglicanas, pertencentes a noventa países. Essas Igrejas agrupam em todo o mundo 400 000 000 de membros. O Conselho Mundial é a única organização religiosa, fora de Roma, com um controle e potencial autoridade capaz de constituir um desafio para o Vaticano. Todavia, desde a sua fundação nesta cidade, em 1948, até agora, de nenhuma forma manteve, sob qualquer hipótese, espécie de semelhança com o Vaticano. Tal como o primeiro secretário geral anunciou na primeira assembléia: «Nós somos um Conselho de Igrejas, não o Conselho de uma Igreja indivisível». E, tal como, se disse no terceiro congresso, realizado na Índia: «O Conselho Mundial das Igrejas, é uma associação de Igrejas, professando o credo, o qual de acordo com as Escrituras, Nosso Senhor Jesus Cristo é Deus e o Salvador». Resumindo, o Conselho é um corpo formado por várias Igrejas ligadas entre si pelos laços mais livres possíveis; Igrejas com diferentes ambientes sociais e raciais; procurando uma comunicação entre elas; buscando uma unidade cristã; lutando para estabelecer um consenso de fé e ação social comuns. No espaço entre os seus congressos, realizados de cinco em cinco, ou de seis em seis anos, a sua política é incrementada por um comitê Central e por um comitê Executivo. Ora, as duas posições mais ativas e responsáveis dentro da organização são os cargos de secretário-geral - um trabalho permanente e compensado monetariamente - e de presidente - que é um posto meramente honorário. Dos dois, o de secretário-geral é de grande influência - por governar as duzentas pessoas do pessoal agregado à sede de Genebra e funcionando, como um oficial de ligação entre as Igrejas membros, sendo o porta-voz do Conselho para todo o mundo.
-Entretanto, não é uma figura designadamente autoritária, segundo julgo, ou é?
-Tal como as coisas hoje estão, não, absolutamente não. O secretário-geral não possui poderes judiciais. Repito, possui grande influência e um poderio potencial para manejar os cordeirinhos. É aqui que vamos pois, enquadrar o seu espiritual e altruísta, Dr. Bernard Jeffries. A hierarquia da Igreja ortodoxa - os bispos e eclesiásticos de maior projeção, os entrincheirados conservadores - possuem um plano bem arquitetado, para uma votação maciça na próxima assembléia geral do Conselho Mundial das Igrejas, a fim de instalarem o Dr. Jeffries como próximo secretário-geral em Genebra. Através dele, planejam reestruturar o Conselho Mundial para o transformarem num Vaticano protestante, o qual terá Genebra como centro tentacular. Uma vez o Dr. Jeffries eleito, os conservadores passarão a governar, por édito e promulgação, levando os aderentes de todas as Igrejas de volta ao redil da fé cega, pondo termo para sempre às esperanças de uma fé viva, vital, popular, livre. E como é que a cabala ortodoxa levará a efeito tal programa? Por meio da excitação, da propaganda e alarido engendrados pela nova Bíblia que está sendo preparada pelo pessoal da vossa Ressurreição Dois.
Escutando aquela verborréia incisiva, Randall teve uma vaga idéia de ter já ouvido, anteriormente, o nome do Dr. Jeffries ligado ao Conselho Mundial. Tentou recordar-se quem fez a citação, e de repente lembrou-se. Em Londres, da boca de Valerie Hughes, a noiva do Dr. Knight. Mas, nessa anterior referência, à candidatura do Dr. Jeffries a secretário-geral do Conselho, houvera uma certa lógica. Naquele momento, segundo a versão do Reverendo de Vroome, os motivos para a candidatura eram apresentados a uma nova luz com seu quê de sinistra. Randall, perturbado, fez a pergunta a qual lhe queimava o pensamento:
-E o Dr. Jeffries tem conhecimento desse plano?
- Se tem conhecimento? Pertence à primeira linha do esquema, da trama, colaborando ativando e politizando, em segredo, para ser promovido a secretário-geral. Possuo documentos -cópias da correspondência trocada entre Jeffries e seus conspiradores apoiando tudo aquilo que lhe disse.
-E pensa que ele poderá ascender ao cargo?
-Ascenderá se a vossa nova Bíblia lhe der suficiente publicidade, lhe conferir distinção e o projetar para uma nova estatura difícil de desafiar.
-Volto de novo, fazendo-lhe a mesma pergunta e pretendo que me responda diretamente - disse Randall. - Pensa que o Dr. Jeffries poderá ascender ao cargo?
- Não - respondeu de Vroome seco. Voltando a esboçar o seu sorriso. -Não, não o conseguirá. E eles também não conseguirão levar as suas intrigas a bom termo.
- Porque não?
- Porque eu os impedirei. Fa-los-ei parar por meio da demolição do trampolim através do qual o Dr. Jeffries pensa pular para o poder - a vossa nova Bíblia - Desacreditando-a e destruindo-a antes de anunciá-la e pôr em circulação entre o público. Uma vez feito isso , haverá outro secretário-geral para o Conselho Mundial das Igrejas. Fixe bem, Mr. Randall, estou disposto a ser o futuro secretário -geral.
Randall não pôde esconder o seu espanto.
- O senhor? Mas pensava que era contra a autoridade eclesiástica e...
- E sou - interrompeu de Vroome brusco. - É essa a razão porque é imperativo que seja o próximo secretário-geral do Conselho Mundial. Precisamente para proteger a organização da fome pelo poder. De modo a preservá-la para a unidade cristã. Tornando-a ainda mais sensível à modificação social.
Randall sentia-se confuso. Não discernia bem, se o Dominee era honesto nas virtudes que apregoava, ou se não passava de um ambicioso. Tão politiqueiro como aqueles aos quais se opunha com tanta tenacidade. Havia mais, de Vroome acabara de falar na necessidade de destruir a nova Bíblia. Randall sentia-se impelido a entrar em confrontação com o Dominee, em relação à irracional determinação mostrada, para a destruição de um documento tão excepcional.
- Quando a mim, nem sequer tenho disposição para comentar quem deverá, ou não, ser o próximo secretário-geral do Conselho Mundial das Igrejas. Todavia, é meu dever, tecer comentários à atitude tomada contra a versão revista do Novo Testamento. Documento nunca lido e do qual sabe tão pouco, ou nada. Pondo de lado as vantagens, ou desvantagens políticas, na verdade não vejo como é que poderá destruir - foi exatamente a sua palavra, destruir - uma Bíblia a qual levará conforto a milhões de pessoas, às quais impregnará de uma nova fé e de uma nova esperança. Uma obra que poderá ser promotora de fraternidade e amor, os verdadeiros fins que o senhor procura através do seu movimento. Como é que pensa ser moralmente defensável destruir o Verbo uma vez que nada sabe sobre a sua mensagem?
De Vroome franziu o cenho.
-Não preciso saber antecipadamente o conteúdo da mensagem, dado que conheço muito bem os seus mensageiros.
-Que quer dizer?
-Sei tudo o que é preciso saber a respeito das pessoas envolvidas na descoberta, na autenticação, na produção e na promoção da vossa Bíblia.
Pela primeira vez Randall perdeu o domínio dos seus nervos.
-O que é que pretende insinuar com isso?-perguntou com uma ponta de azedume. -Já conheci o pessoal mais importante ligado ao projeto. Algumas dessas pessoas conheço-as agora excelentemente. A maioria, sou positivo a respeito do fato, são gente decente, sincera, honesta. A maior parte dessas pessoas possui manifesta integridade e os propósitos que as guiam são perfeitamente sãos. E o senhor de modo nenhum pode conhecer essas pessoas tão bem como eu.
-Na verdade?-disse de Vroome em tom divertido. Levantou-se. -Nesse caso, vamos lá ver aquilo que o senhor sabe... e aquilo que eu sei... a respeito do vosso devotado rebanho.
Enfurecido pela segurança manifestada pelo pastor, Randall fez um esforço para se conter, enquanto observava o Dominee de Vroome dirigindo-se à escrivaninha. Metendo as mãos nas profundidades da batina, o clérigo tirou uma chave com a qual abriu uma das gavetas, extraindo uma pasta de arquivo, que abriu e colocou em cima da escrivaninha.
De Vroome sentou-se, tirou um maço de papéis de dentro da pasta, folheou-o deliberadamente durante um segundo, depois ergueu o maço no ar para Randall ver.
-Aqui o meu dossiê sobre o pessoal ligado à Ressurreição Dois. Demasiado longo para o senhor poder ler. -Colocou o maço dentro da pasta de arquivo, colocou os cotovelos em cima do tampo e repousou o queixo sobre as mãos.-Posso dizer-lhe em poucos minutos tudo o que precisar a respeito do vosso fiel rebanho.
-E se for mentira?
-Basta procurar cada um deles para verificar se é verdade ou mentira aquilo que lhe disser. De fato, até o convido a proceder dessa maneira.
- Continue - disse Randall cáustico.
-Já falamos do seu abnegado Dr. Bernard Jeffries. - O seu tom continuava calmo, como quem fala de assuntos de somenos importância. - Vamos lá então passar em revista alguns outros do vosso círculo. Bom, falemos, por exemplo, do vosso George L. Wheeler, o poderoso e rico editor religioso americano, o qual contratou a si para fazer a publicidade do projeto. O que é que o senhor sabe a respeito dele? Sabe que esse grande capitão da indústria, esse tubarão do capital estava à beira da falência quando foi obrigado a entrar em negociações de venda da editorial a Mr. Towery, presidente do cartel Empresas Cosmos? Sim, não faça essa cara de espanto porque é a pura verdade. Mas, o negócio ainda não está concluído. Depende do êxito da publicação da vossa nova Bíblia. Para Wheeler, a nova Bíblia terá de ser um sucesso se quiser sobreviver no negócio e manter a sua posição social de escalão. Quanto a Towery, o seu único interesse ao tomar a casa editorial de Wheeler cifra-se em adquirir prestígio à custa da nova Bíblia, a qual o projetará para as alturas no seu destacado círculo Batista. Foi essa a razão porque Wheeler resolveu contratar a si - para satisfazer Towery e para salvar a si próprio com a certeza de que a nova Bíblia se tornará a mais famosa na história.
- Não me disse nada que eu já não soubesse - disse Randall, imensamente aborrecido com a arrogância de de Vroome, e sem querer admitir que tinha ouvido algo de novo. Entretanto, a verdade é que desconhecia, que a sobrevivência de Wheeler como editor dependesse essencialmente do êxito do Novo Testamento Internacional.
-Não lhe disse nada que não soubesse já?-repetiu de Vroome.-Talvez, melhore os meus cadastros. Vamos lá, falaremos da vossa nova Bernardette de Lourdes, a sua simplíssima secretária Miss Lori Cook. O senhor esteve esta manhã no Hospital da Universidade Livre, e testemunhou os resultados de um milagre, não é verdade? A vossa Miss Cook que desde a infância era uma estropiada dos membros inferiores, teve ontem uma visão, recuperando-se, voltou a andar. Vejam lá! Lamento imenso em relação a si e à moça, porque a verdade é simples como a água - Miss Cook sempre pôde locomover-se normalmente. Mas, posso dizer-lhe, como consolo, que ela não é uma traidora, nem uma especuladora materialista com o vosso projeto. Somente uma mistificadora doentia, neurótica, patética. Com sentido prático da realidade, tornou-se fácil verificar a história dela na América. Bastou uma chamada telefônica, para um pastor do nosso movimento, de uma Igreja situada nas vizinhanças do local onde nasceu e vivia Miss Cook, para revelar-se a verdade. A documentação legal está a caminho. Temos provas das proezas atléticas de Miss Cook no liceu, exigindo pernas firmes. A verdadeira aflição dela cifrou-se sempre no fato de não ser atraente, de nunca receber atenção, nem amor. Por isso, quando pretendeu juntar-se ao vosso projeto fingiu ser coxa para conseguir afeto e piedade. Recentemente, viu que ainda obteria mais atenção e indulgência, brincando às Bernardettes, de modo que enveredou decidida pelo desempenho de tal papel. Ela está curada, sendo objeto de extrema atenção, de cuidados especiais e de consideração. Amam-na. Em breve, será uma legenda viva. Mas, Mr. Randall, não faça dela uma lenda para exaltar a publicidade da nova Biblia, ou então, seremos forçados a expo-la em público. De modo nenhum quereria ferir a pobre e desamparada criança. Nem sequer, peço-lhe para acreditar nas minhas palavras...
-Não acredito...- murmurou Randall, abalado pela revelação de de Vroome.
-...Só peço-lhe: não seja, completamente tolo, para utilizar o caso de Lori Cook na sua campanha de promoção. Se o fizer, creia-me, lamentará. - De Vroome apanhou um dos siameses do chão e colocou-o no colo, depois estendeu a mão para o maço de papéis. - Quem quer que seja o próximo, a citar do seu rebanho? Ah, talvez, aqueles com os quais se encontrou na viagem feita na semana passada. Pensa também, serem pessoas de confiança e devotas? Quer que lhe fale deles?
Randall ficou calado.
- Quem cala consente - disse de Vroome. - Pois bem. O senhor esteve em Mainz, na Alemanha. Passou o dia com Karl Hennig. Um companheiro franco, aberto; excelente pessoa esse impressor alemão, hem? Um devoto de Gutenberg e de livros raros, não é verdade? É mais do que isso. Trata-se do Karl Hennig, que na noite de 10 de Maio de 1933, se juntou a milhares de outros estudantes nazistas, para a monumental parada à luz de archotes, pelas ruas de Berlim. Manifestação em massa, que terminou na praça da Unter den Linden, onde Karl Hennig e os seus camaradas, grandes admiradores e admirados por Goebbels, queimaram numa pira monumental milhares de livros, livros escritos por Einstein, Stefan Zweig, Thomas Mann, Freud, Zola, Jack London, Havelock Ellis, Upton Sinclair, etc. Sim, precisamente o mesmo bem-humorado Karl Hennig, devotado impressor alemão e queimador nazista de livros. Quanto a esta informação, devo-a ao meu amigo aqui presente, Mr. Cedric Plummer - e a mão de de Vroome apontou para o sumido jornalista inglês.
Atônito pelo que ouvia, Randall quase se esquecera da presença de Plummer. Olhou então para o local onde ele estava e viu-o corar, como se recebesse um excelso elogio, ouvindo-o também murmurar com voz de falsete:
- É a pura verdade. Tenho o negativo de uma velha fotografia do jovem Henning lançando livros para a fogueira.
Nesse momento os recentes acontecimentos de Mainz e Frankfurt começaram a delinear-se para Randall, uma espécie de ajustamento de peças do quebra-cabeça. É provável, Hennig recusar-se a ver Plummer, até saber a razão da visita do jornalista. Depois disso, encontrara-se com Plummer em Frankfurt. Agora estava clara a razão para o encontro: chantagem.
- Porque raio essa pretensão de lançar o descrédito sobre Hennig? - perguntou Randall a Plummer em tom verberativo. - O que é que você ganhará com isso?
-Um exemplar antecipado da vossa nova Bíblia - respondeu Plummer, com os lábios arreganhados. - Um preço baratíssimo, para recuperar o negativo de uma velha fotografia, pouco edificante.
Dominee de Vroome moveu a cabeça num gesto de assentimento. -Exatamente – disse- O nosso preço é um exemplar da nova Bíblia.
Randall afundou-se no sofá, incapaz de falar.
-Vamos agora falar do curriculum de mais dois dos vossos colaboradores e terminaremos -continuou infatigável, o eclesiástico.-Avaliaremos o vosso notável e objetivo cientista, o Professor Henri Aubert, do processo de estabelecimento de datas pelo carbono-14. O senhor esteve em Paris com ele, e ele contou-lhe, com certeza, como a descoberta autenticada, restaurou-lhe a fé, a humanidade, e o seu desejo de dar à esposa, o filho que ela há tanto desejava, não foi? Contou-lhe que a mulher já transporta no ventre o filho dos dois, não é verdade? Mentiu-lhe. O Professor Aubert mentiu-lhe. Ele é fisicamente incapaz de dar à sua mulher o almejado filho. Perguntará porquê? Porque há anos se submeteu a uma vasectomia com êxito total. Acreditava firmemente no controle da natalidade e preferiu ser esterilizado por um hábil cirurgião, tem os canais deferentes que transportam o esperma dos testículos para as cavidades seminais cortados, obstruídos. É óbvio, que dessa forma inexistem quaisquer possibilidades de se desencadear o processo de procriação. O vosso Professor Aubert não é digno de confiança. Enganou-o. É impossível poder ter dado um filho à mulher.
-Mas fê-lo! - exclamou Randall. - Fui apresentado a Madame Aubert e vi que estava grávida.
De Vroome arvorou de novo o seu indulgente sorriso. -Mr. Randall, eu não disse que Madame Aubert não podia engravidar. Só disse que nunca estaria grávida do Professor Aubert. Está grávida? Claro que sim, está grávida...Engravidada pelo amante dela, por Monsieur Fontaine ... Não faça essa cara, de espanto... Sim, exatamente o mesmo Monsieur Fontaine editor francês da vossa Bíblia, o homem sem mancha. Quanto ao Professor Aubert, torna-se óbvio, que ele fecha os olhos a tal coisa, mas não devido ao seu desejo de ter um filho, ou de manter junto de si a esposa. Simplesmente, porque era contraproducente um escândalo, na altura em que ele e um colega foram nomeados candidatos a um Prêmio Nobel da Química, pela descoberta do processo de datação pelo carbono, o qual desenvolvia há tantos anos. O seu Professor Aubert coloca as honras acima do orgulho... e da veracidade. Com certeza, não espera que acredite na palavra de um homem como ele, seja em que assunto for. Quanto a si, estaria disposto a acreditar?
Randall não queria dar crédito a de Vroome, entretanto, deixara de ter forças para poder desafiar o advogado do Diabo. Aguardou.
- Guardei para o fim a mais pessoal e significativa informação - disse de Vroome. - Por muito doloroso que seja para ambos, tenho que falar agora de Miss Angela Monti, de Roma, a sua nova apaixonada.
Randall sentiu um impulso dizendo-lhe para levantar e ir embora. Todavia, por outro lado, sabia ser preferível ouvir aquilo que ia ser dito.
-Evidentemente, que o senhor teve um encontro com o pai dela, o Professor Augusto Monti, fornecendo-lhe todas as informações necessárias relativas à nova Bíblia, não é verdade? -perguntou de Vroome. Não esperou pela resposta. -Talvez, não o tenha conseguido ver, tal como outras pessoas não conseguiram recentemente. Será? Bem, inclino-me pensando que de fato não se encontrou com ele. E porque não? Porque o professor está sempre sendo enviado para escavações longínquas, para o Médio Oriente e para outros locais. Enviado por superiores que se sentem invejosos da sua descoberta, hem? Não é o que, Angela diz a toda a gente, incluindo-o? Perdoe-me a rudeza, porém, Miss Monti mente. Onde estará então o Professor Monti? Está em Roma, algures num subúrbio de Roma, escondido, caído em desgraça, em aposentadoria compulsória ordenada pelo governo. Porquê? Porque o governo italiano soube que o Professor Monti, nos preparativos para as escavações que levaram à descoberta, comportou-se de maneira imprópria. Em vez de arrendar o local para a escavação, enganou os pobres camponeses que eram os donos do terreno e comprou-lhes o título de propriedade, por nada, de modo a tirar proveito pessoal, ficando com cinqüenta por cento do valor do seu achado, em vez de o dividir com os verdadeiros proprietários. Enganou deliberadamente os camponeses. Depois do Professor Monti ter feito a descoberta, os antigos donos do terreno dirigiram-se ao Ministério da Educação Pública e contaram a história. Foram reembolsados. O escândalo foi abafado. O Professor Monti foi silenciosamente retirado do seu cargo na Universidade e forçado a manter-se na sombra, oculto numa aposentadoria compulsória.
Randall empertigou-se, procurando conter a ira que o avassalava.
-Não passa de um acervo de mentiras. Não acredito numa só palavra do que disse.
Dominee de Vroome encolheu os ombros.
-A sua fúria não se deve voltar contra mim. Angela Monti é a única pessoa com quem deve estar zangado. É ela quem lhe tem ocultado a verdade, não apenas para proteger o miserável progenitor, mas, também para que o senhor ajude a promover internacionalmente o nome do pai. Se ela o puder seduzir, para transformar o pai, no nome mais destacado do projeto, então o professor emergirá da sombra, terá poder para desafiar o governo e sairá a terreiro para colher os louros da glória. Em tal caso o governo italiano sentir-se-á tão intimidado, que não terá vontade de revelar o mau procedimento do Professor Monti, terminando a sua punição Miss Monti mente-lhe. Está utilizando-o em proveito do pai. Sinto muito, mas a verdade é esta.
-Continuo não acreditando.
-Se é essa a sua atitude, então pergunte diretamente a Miss Monti.
-É precisamente o que penso fazer.
-Não vale a pena se dar ao trabalho de perguntar-lhe, ou pedir confirmação do que acabei de lhe contar. Ela continuará mentindo. Em vez disso, peça-lhe com insistência, para que ela lhe arranje um encontro com seu pai. Não vacile.
-Não procederei assim com esse ardil - indignou-se Randall.
-Então nunca saberá a verdade.
-Existem muitas verdades, tal como existem muitos pontos de vista e muitas interpretações diferentes sobre aquilo que por vezes se vê ou ouve.
Dominee de Vroome abanou a cabeça.
- No caso de cada uma das pessoas que eu mencionei só existe uma verdade. No velho mito, Pôncio Pilatos perguntou a Nosso Senhor: Quid est veritas? -Qual é a verdade?- No caso exposto, se tivesse que dar uma resposta a Pilatos, converteria as letras da pergunta dele num anagrama: «Est vir qui adest»-o que traduzido significa: «É o homem que está diante de vós». Sim, Mr. Randall, aquele que está na sua frente neste gabinete, Maertin de Vroome, possui a verdade. Se o senhor investigar como eu investiguei, se buscar a verdade como eu busquei, aprenderá a confiar e a crer em mim. Se o fizer, poderá então avaliar porque lhe solicitei esta entrevista.
-É isso mesmo, estou à espera de saber. Porque é que me pediu que viesse esta noite aqui?
- Precisamente para tentar mostrar-lhe a sinceridade da nossa causa e a insinceridade das pessoas ligadas à Ressurreição Dois. Para dar conhecimento ao senhor de que está sendo mal informado. Utilizam-no para fins indignos. Para o fazer compreender que o empregaram para ser o instrumento, a alavanca que forçará as portas do êxito-o senhor e muitas outras pessoas de boa-fé na Ressurreição Dois - em favor de um sindicato comercial de editores e de um bando de sectários religiosos inflexíveis e de pensamentos completamente errados. Pedi-lhe para vir aqui a fim de procurar conquistá-lo para a nossa causa, para que se junte a nós. Mas, nos meus esforços para lhe abrir os olhos, para lhe fazer ver a luz, julgo, pelo contrário, que só consegui antagonizá-lo.
-O que é que o senhor na verdade pretende de mim? perguntou Randall com uma nota de violenta insistência.
- Os seus serviços e o seu gênio profissional. Necessitamos do senhor aqui, ao nosso lado, para nos ajudar a contradizer a propaganda da Ressurreição Dois e a promover o nosso esforço para restaurarmos a religião e a fé entre o povo de todo o mundo. Faço-lhe uma oferta generosa, Mr. Randall - a oportunidade de abandonar um barco prestes a afundar-se por uma embarcação segura, em perfeitas condições de navegabilidade; a oportunidade para preservar o seu futuro e a sua integridade; a oportunidade para acreditar em algo. Quanto a dinheiro, os meus associados e eu podemos oferecer-lhe tanto, ou mais, do que aquilo que lhe pagam Wheeler e as suas coortes. Terá tudo a ganhar e nada a perder.
Randall levantou-se.
-Por tudo aquilo que ouvi, nada terei a ganhar, pelo contrário será tudo a perder. Possuo fé nas pessoas com as quais estou trabalhando. Não tenho fé em si. Tudo o que ouvi não passou de mexericos, nada de fatos essenciais. Ouvi coisas falando de chantagem, não palavras de decência. Quanto à sua causa, não passa de uma promessa. Quanto à Ressurreição Dois, trata-se de uma verdadeira realização. Quanto a si, propriamente dito- Randall olhou para o homem que estava na sua frente imóvel. O rosto do pastor não tinha o mínimo movimento, como se se tratasse de uma máscara de ferro que tivesse afivelada. Randall pensou se ousaria continuar, mas decidiu-se. -...Não o julgo menos ambicioso, ou egoísta, do que aqueles para quem trabalho, mas penso, isso sim, Dominee, é mais um fanático. Poderá encarar isso como uma necessidade fundamental e para um fim bom, mas o fato é que nunca poderia trabalhar para um homem tão justo, tão inflexível, tão certo de que é a única pessoa detentora da verdade. Não me podia transformar num vira-casacas e ajudá-lo a destruir a única coisa na qual, até agora, fui capaz de crer: a Palavra... Sim, a Palavra que vamos transmitir ao mundo. É uma mensagem a qual o senhor nada conhece e, se depender de mim, nem uma só frase saberá dela até que, a salvo de ataques perniciosos, esteja entregue ao mundo a que pertence. Boa-noite, Dominee. Posso desejar-lhe boa-noite, mas não boa-sorte.
Suspenso, sem se atrever a respirar, à espera que a tempestade se desencadeasse, Randall sentiu-se desapontado por verificar que a calma era absoluta. De Vroome limitava-se a abanar a cabeça num movimento oscilatório. Por momentos sentiu-se como um mau ator que tivesse recitado mecanicamente uma tirada melodramática. Ter-se-ia julgado um tanto pateta se não existissem razões para as suas palavras de crítica. De Vroome fustigou pessoas que não se podiam defender - Jeffries, Wheeler, Lori Cook, Hennig, Aubert, até Angela e o pai. Dominee mostrara-se uma pessoa rude e vingativa, daí Randall não se sentir envergonhado por perder o controle.
- Basta, basta - pronunciou de Vroome. - Nem sequer tentarei convencê-lo, mostrar-lhe como se engana a meu respeito e a respeito da minha causa, nem o erro em que persiste a respeito daqueles que tão lealmente defende. Esta noite dissemos tudo quanto havia a dizer. Deixemos as coisas no pé em que estão. Mas lembre-se do que lhe vou dizer: estou longe em relação a certos fatos a respeito dos seus colegas e daquilo que eles representam. Pedi-lhe para verificar a verdade por si próprio. Se buscar essa verdade, desejará então encontrar-se outra vez comigo. Será possível que então me considere a mim e aos meus fins com mais caridade, seja mais compreensível. Se isso ocorrer antes da vossa Bíblia ser publicada, como acredito que aconteça, quero que saiba que a minha porta continuará aberta pra você... e que a nossa causa poderá utilizar os seus serviços.
- Obrigado, Dominee.
Randall voltara-se para sair quando ouviu de novo soar a voz de pastor de Westerkerk.
- Mr. Randall, quero dar-lhe um último conselho.
Já perto do limiar da porta, Randall voltou- se e viu que de Vroome havia colocado o gato no chão e que se encontrava de pé, tal como Plummer, escondido parcialmente atrás da negra batina.
- É um conselho pra você e uma advertência pra você e os seus colegas. - De Vroome desdobrava um papel qualquer. - Não percam o vosso precioso tempo com truques tolos e infantis num esforço para me fazerem cair numa ratoeira. Agitou uma folha de papel azul. - Refiro-me a este memorando, que ainda não há muito tempo o senhor pôs em circulação entre o seu pessoal e corpo de consultores.
Randall engoliu em seco e aguardou.
- O senhor pretendeu que isto fosse, tomado como um memorando sério e urgente a respeito dos seus esforços de promoção -continuou de Vroome. -Não há a mais leve dúvida que pretendeu apenas experimentar o pessoal a fim de saber qual dos que o rodeiam é a pessoa desleal que me tem entregue todas as informações acerca das vossas operações. Esperava que quando eu visse este memorando, como de fato aconteceu, agisse num primeiro impulso para me antecipar publicamente às medidas que consiga, revelando-lhe assim o ponto nevrálgico, a brecha no vosso aparelho de segurança, de modo que Heldering saiba qual o pessoal a eliminar a fim de diminuir a brecha por onde as revelações se escoam. Mas o senhor cometeu um erro - na verdade
dois - porque é um amador em teologia sendo os seus conhecimentos sobre o Novo Testamento deficientes. O que o seu memorando contém relativamente ao cumprimento do programa é de tal modo impossível que um erudito na matéria, uma pessoa versada com segurança nos evangelhos, no foro cristão, tal como eu sou, teria que à viva força dar imediatamente pela insensatez. Nem por um momento poderia aceitar o documento como sério, para cair inocentemente na sua ridícula armadilha. Não volte jogando comigo estes jogos pueris. Ou, se quiser na verdade apanhar-me em falso, deixe então que sejam os peritos a agirem sob a sua orientação.
Randall sentiu que o sangue lhe corria pelas veias e artérias com desusada força. De Vroome não detectar a verdadeira ratoeira, Ainda ficava de pé uma oportunidade.
-Não faço a mínima idéia daquilo a que se refere...
- Ah, não faz a mais leve idéia? Ora deixe-me ser mais explícito e refrescar-lhe a memória. -De Vroome fixou os olhos na folha de papel. - Vejamos aquilo que o senhor escreveu: «Confidencial. A declaração pública no Palácio Real da nossa publicação será um dia dedicado a consagrar a Ressurreição de Jesus Cristo. Foi decidido que os doze dias seguintes serão sucessivamente dedicados aos doze discípulos cujos nomes estão mencionados no Novo Testamento». - Depois o senhor menciona os doze discípulos, incluindo Judas Iscariotes. -De Vroome abanou a cabeça. Em estado de grande tensão, Randall ficou à espera que o Dominee continuasse, que lesse a última frase, a frase com o nome de código que revelaria o traidor da Ressurreição Dois. Mas de Vroome nada mais leu. Pousou o documento em cima da escrivaninha e voltou a abanar a cabeça. -Rematada tolice.
Randall sentiu-se em pulgas, desesperado, mais do que isso, intrigado com as palavras do Dominee.
-Mas não compreendo... -balbuciou.
-Não compreende qual foi a sua tolice? Esperava então que se pudesse acreditar que estaria sendo sério a respeito de uma promoção destinada a consagrar uma nova Bíblia ao dedicar doze dias a doze discípulos e mencionando Judas Iscariotes como um deles? Judas... o sinônimo histórico que designa um traidor, o homem que atraiçoou Cristo?
Randall ficou perturbado. Eis o que foi tolice. Não havia debatido o nome de cada discípulo com os editores. Mencionara-os de moto próprio e ditara o danado memorando a grande velocidade, mandando-o distribuir sem consultar nenhum dos peritos na matéria para verificação.
Inexoravelmente, de Vroome continuou:
-O seu segundo erro foi declarar que o Novo Testamento faz menção aos nomes de doze discípulos, quando qualquer teólogo de meia tigela-com suficiente atenção-logo verificaria que os nomes invocados são treze, dado que, depois da traição de Judas, Cristo substituiu-o por Matias, que é o décimo terceiro discípulo nomeado. Se o seu memorando tivesse creditado Cristo com treze discípulos, sugerindo que se dedicassem doze dias a doze apóstolos, com a substituição de Judas por Matias, talvez me tivesse enganado, obtendo êxito com o truque. Mas isto... -olhou para a folha de papel azul com desprezo - este jogo infantil nada podia resultar. - Sorriu friamente para Randall. - Não nos subestime. Respeite-nos, e acabará por se juntar a nós.
Zangado consigo mesmo, Randall lançou uma olhada para o documento. A última frase. Tinha que ver a última frase.
O coração galopava-lhe no peito, quase que teve medo que o som se propagasse, como o bater de um tambor, pelo gabinete. Procurou desesperadamente lembrar-se de qualquer pretexto que fizesse de Vroome revelar-lhe a última frase. Tentando manter controlado o tom da voz, disse:
- Dominee, apreciei imenso a sua preleção a respeito de relações públicas e erudição bíblica, mas receio não lhe ter apreendido o sentido. Não fui eu quem escreveu esse memorando.
O pastor fez um gesto de impaciência, resmungando:
- É uma pessoa obstinada. Continua com as suas brincadeiras. Será capaz de reconhecer a sua assinatura?
-Com certeza.
-Então é ou não a sua assinatura?
O Dominee de Vroome estendia a folha de papel azul por cima da escrivaninha, na sua direção. Quase que mal se podendo mover, com as pernas trementes, Randall aproximou-se da escrivaninha.
Olhou para o memorando. A última frase, logo acima da assinatura, saltou-lhe à vista.
O primeiro dos doze dias será dedicado ao discípulo Mateus. Randall levantou a cabeça, tentando disfarçar o sentimento de triunfo que se apoderara de todo o seu ser. Fez com que as feições tomassem um ar de envergonhada desculpa.
-Venceu, Dominee. É de fato a minha assinatura. Já me tinha esquecido que esse memorando estava destinado sendo hoje entregue.
O Reverendo de Vroome fez um aceno, satisfeito, ao mesmo tempo que voltava a agarrar no documento e o dobrava cuidadosamente.
-Esqueça tudo aquilo que quiser, mas peço-lhe que se lembre pelo menos de uma coisa: saberemos tudo o que houver para saber acerca da nova Bíblia antes que o senhor possa hipnotizar o povo com ela. Prepararemos o público para se opor ao vosso assalto e para repelir o ataque. Se pretender estar ao lado da parte vitoriosa, venha para junto de nós e trabalhe conosco em pé de igualdade... Bom, Mr. Plummer vai agora conduzi-lo ao Amstel.
- Muito grato, mas prefiro apanhar sozinho um pouco de ar fresco para aclarar as idéias - disse Randall apressadamente. -Como queira.
De Vroome conduziu Randall até à porta e, sem pronunciar mais nenhuma palavra, foi indicar-lhe a saída.
Minutos depois, já com a casa do sacristão e a mole do templo deixados para trás, Randall atravessou as séries de vetustas árvores que lançavam uma espessa sombra nas vizinhanças de Westerkerk, apressando o passo até chegar à solitária praça, iluminada pelos abajur públicos.
Sentia zumbir-lhe nos ouvidos um nome, um nome que lhe latejava nas fontes como baquetas a zabumbarem insistentemente num tambor.
Mateus. Nem sentia paciência para procurar um táxi numa ocasião daquelas. Era o momento da verdade. Só uma das pessoas a quem fora distribuído o memorando estaria designada pelo código de Mateus. Quem teria recebido o documento incriminador com o nome de Mateus?
Quem?
Encostado a um dos abajur de iluminação pública, que espalhava uma mancha de luz amarelada, Randall, com as mãos tremendo de impaciência, meteu a mão no bolso interior do casaco para tirar a lista dos doze discípulos e das dozes pessoas que se encaixavam na distribuição. Pronto. Ali estava a lista. Abriu-a. Os olhos percorreram ávidos a folha de papel
Discípulo André - Dr. Bernard Jeffries
Discípulo Tomás - Reverendo Zachery
Discípulo Simão Pedro - Dr. Trautmann
Discípulo João- Mons. Riccardi
Discípulo Filipe - Helen de Boer
Discípulo Bartolomeu - Mr. Groat
Discípulo Judas - Albert Kremer
Discípulo Mateus - Angela Monti.
Fora uma noite em claro. Noite de pesadelo. Naquele momento a manhã daquela sexta-feira ia em mais de meio, a mais negra manhã que em toda a sua vida Randall conhecera.
Havia dado ordens a Theo para o conduzir, não para o Grande Hotel KrasnapoIsky, mas sim ao edifício de cinco andares que se alongava pela Dam - o Bijenkorf, os maiores armazéns da cidade de Amsterdã.
Vinte minutos antes, ainda no Amstel, telefonara a Angela Monti. Não a conseguira encontrar no Victória Hotel, mas a chamada feita a seguir localizara-a na sala pegada ao seu próprio escritório, onde ela se preparava para substituir Lori Cook no cargo de secretária.
A conversa telefônica fora curta.
-«Angela, tenho uma coisa urgentíssima para te dizer. Aí no escritório não. Em qualquer parte fora do KrasnapoIsky. Disseste-me que já estiveste muitas vezes em Amsterdã. E se nos encontrássemos nos grandes armazéns da Dam? Haverá lá um «snack-bar» ou um café, um local qualquer onde possamos estar sentados durante alguns minutos?» -Tinha um café no andar térreo e outro no quarto e último andar. - Ok, iremos para o último andar. Vou já para lá. Não te demores».
Entrara nos armazéns Bijenkorf pelo lado da Dam. Dado ser uma hora bastante matinal, o monumental empório ainda não estava cheio de pessoas fazendo compras, como era hábito. Junto ao balcão de uma seção de bolsas e chapéus de senhora, perguntou a uma das vendedoras, que falava inglês, onde ficavam os elevadores.
Seguindo as indicações, atravessou com toda pressa por entre balcões e vitrines cheias de jóias de fantasia, flores artificiais, discos e toalhas, quase sem nada ver, sem se importar com o que o cercava, concentrado em sua próxima confrontação com Angela Monti.
Possivelmente ela era uma mentirosa. Era quase com certeza uma traidora. Primeiramente duvidara das informações de de Vroome a respeito do Professor Monti se encontrar em desgraça, e de Angela ter mentido para o utilizar como um meio de elevar o pai. E mesmo depois de possuir a prova de que Angela colaborava com de Vroome: para destruir a Ressurreição Dois, Randall recusara-se acreditar. Aliás, as premissas pareciam não se encaixar bem. Afinal de contas porque iria ela ajudar a arruinar um projeto quando essa destruição significaria, por seu turno, a ruína total do bem amado progenitor? A não ser que...e isso era uma forte possibilidade a considerar... a não ser que, afinal o Professor Monti, não fosse o bem amado pai que ele supunha. Por tudo o que Randall sabia, parecia na realidade possível que Angela odiasse o pai, procurando o ensejo para arruinar o projeto que se construíra a partir da descoberta de Ostia Antica.
De qualquer modo, quaisquer que fossem os motivos dela, o que permanecia de pé amargamente era o fato da sua armadilha ter funcionado e demonstrado inegavelmente que era Angela a informante do Dominee de Vroome, a traidora da Ressurreição Dois. Ora uma vez tendo digerido essa verdade premente, deixara de duvidar que ela fosse uma mentirosa que o estivesse simplesmente a desfrutar como uma pessoa útil aos seus malévolos propósitos. Sim, não podia duvidar das palavras do Reverendo de Vroome. Todavia, na tarde do dia anterior e na noite que a antecedera, a sua intimidade com Angela fora total, uma entrega como nunca tivera com outra mulher. Em tão curto espaço de tempo, fora levado a amá-la e a confiar nela como jamais confiara noutra qualquer mulher. Era-lhe impossível crer que ela tivesse não só traído o projeto como ainda o seu amor por ela. No entanto, era também impossível explicar a prova provada da revelação que tivera em Westerkerk.
Bom, de qualquer maneira, dentro de alguns minutos saberia a temerosa verdade. Receava-a, mas tinha que a conhecer custasse o que custasse.
Sentia desejo de estrangular Angela por sabotar a recente fé que adquirira. Mas, se o fizesse seria como cometer um suicídio. Era uma confrontação sem esperança. Uma luta onde não haveria sobreviventes.
Todos os elevadores estavam cheios. Alguns metros mais além, viu que alguns clientes se serviam de uma escada rolante. Não podia esperar. Apertou o passo até lá. Pôs o pé no primeiro degrau e segurou-se ao corrimão.
Deixando o último lance da escada rolante no quarto andar, procurou à esquerda e à direita o seu caminho, até deparar com um aviso que dizia: EXPRESS BAR/EXPRESS BUFFET.
Passou por uma roleta, para entrada controlada de uma só pessoa de cada vez, aceitando um bilhete amarelo de uma ocupada empregada-o bilhete ou conta onde depois a máquina registradora faria o furo adequado para avaliação daquilo que encomendaria. Em frente, num comprido balcão onde se encontravam as comidas, viu Ângela sossegada, com uma bandeja na mão. Olhava o cardápio suspenso na parede por trás do balcão: warme gerechten, koude gerechten, limonade, koffie, thee, gebak.
Aproximou-se dela pela parte de trás e pediu-lhe:
-Encomenda-me apenas chá, sem mais nada. Vou arranjar um lugar para nos sentarmos.
Antes que ela o pudesse cumprimentar, Randall voltou-lhe as costas para não ter que enfrentá-la. As bonitas mesas em fórmica colorida do centro do «snack» estavam cheias. Do outro lado havia um balcão recurvado, provido de bancos altos, onde não faltava lugar. Elevou-se até ficar sentado num dos bancos, de costas voltadas para o bar onde a comida era servida.
A espera pareceu-lhe interminável.
-Bom dia, meu querido-era Angela.
-Bom dia -respondeu friamente.
Tirou-lhe a bandeja, onde se encontrava o chá para ele e café e torradas com manteiga para ela, segurando-o entre os dois para não beijá-la, até que ela trepou para o banco. Depois colocou a bandeja em cima do balcão e manteve-se ocupado colocando açúcar no chá e a mexer desesperado o líqüido dentro da xícara, incapaz de olhar de frente.
-Que se passa Steve? Estás muito estranho esta manhã.
Randall resolveu-se finalmente olhando aquele lindo rosto, sondando aqueles belos olhos verdes, que nas suas profundezas escondiam a traição, olhos que naquele momento exprimiam a desorientação.
Sentiu-se doente, nauseado, sem saber o modo como começar o que tinha para lhe dizer.
- Steve, porque é que me fitas dessa maneira?
-De que maneira?
- Assim, friamente.
O tormento só terminaria quando despejasse o que havia para dizer. Com voz tremente, começou:
-Angela, soube ontem à noite uma coisa a teu respeito, que preciso esclarecer. - Respirou profundamente e lançou depois a acusação direta. - Mentiste-me a respeito de teu pai.
O rosto de Angela coloriu-se.
- Menti-te? Quem é que disse que eu te menti? Que loucura te contaram?
- Fizeste-me acreditar que teu pai estava impedido de poder trabalhar para a Ressurreição Dois por políticas e ciúmes de superiores. Contaste-me que ele não podia se encontrar comigo, nem cooperar com outros membros do nosso projeto devido a esses superiores o manterem constantemente ocupado em escavações remotas, em Pella, no Egito. Convenceste-me que teu pai era obrigado a curvar-se às ordens para manter a cátedra na Universidade de Roma. Mas ontem ouvi algo que contraria completamente as tuas versões.
-E o que foi que ouviste? Podes fazer o favor de me dizer? - A voz dela tremelicava, tal como a dele tremera no início da conversa.
- Ouvi que o teu pai não foi enviado para proceder nenhumas escavações arqueológicas. Teu pai foi demitido da Universidade de Roma, isto é, impuseram-lhe uma aposentadoria compulsória e vive agora escondido, em semi-reclusão, algures num dos subúrbios romanos. E essa situação mantém-se quase desde a descoberta de Ostia Antica.
Randall hesitava em dizer o resto, mas ela insistiu.
- Steve, que mais ouviste dizer?
- Que teu pai foi obrigado a aposentar-se por ter lesado os interesses de uns pobres camponeses. Comprou dolosamente o terreno das escavações da Ostia Antica para guardar a totalidade dos cinqüenta por cento sobre a descoberta. Se tivesse alugado apenas os terrenos só receberia vinte cinco por cento. A verdade só se tornou conhecida depois das escavações quando os antigos donos se dirigiram ao ministério para se queixarem de serem burlados. O ministério abafou o caso para não ser pasto das revelações da imprensa, reembolsando os camponeses a suas próprias expensas para eles não falarem. Teu pai teve que se sujeitar, pedir a aposentadoria para não perder, pelo menos, a pensão do Estado. Suponho que concordou em não se associar ao projeto da Ressurreição Dois, mantendo-se afastado. De modo a protegê-lo, na tua qualidade de filha, passaste mentindo a respeito das ocupações dele. Todavia, ainda consigo compreender essa parte da tua mentira, a outra parte que não compreendo é que se torna a meus olhos imperdoável, Angela.
-Que outra parte?
-Até eu aparecer, evitaste sempre cooperar com o projeto. Logo que eu surgi, consideraste que eu era o grande agente de publicidade contratado pela Ressurreição Dois. Viste em mim alguém capaz de dar celebridade e fama ao Professor Augusto Monti, promovendo-o de tal maneira aos olhos do mundo inteiro, que fosse impossível o governo italiano mantê-lo no exílio virtual em que se encontra, de tal modo, que as competentes autoridades jamais se atrevessem tocando no escândalo de Ostia Antica. A publicidade e a fama limpariam por completo o nome de teu pai, restaurando-o em todos os títulos. Para atingires esse fim não hesitaste em servir-te deliberadamente de mim, mentindo-me e utilizando-me como um fantoche.
Separou-os uma imensidão de silêncio, mas os olhos de Angela não paravam de o fitar.
-Acreditas que me servi de ti?-perguntou.
-Nem sei bem em que acreditar. Tenho de procurar a verdade.
-Acreditas então que fiz amor contigo, na tua cama e no meu quarto, que deixei que penetrasses o meu corpo só porque queria aliciar-te, seduzir-te de forma a que fosses um fantoche ao serviço da minha família?
-Escuta Ângela...
-Quem te disse que menti, que me servi de ti? Quem te contou que meu pai foi aposentado compulsoriamente por ter cometido uma fraude, um crime? Quem, quem te disse tais coisas?
-Estive ontem à noite com o Dominee Maertin de Vroome. Olhou-a cuidadosamente para ver a reação do rosto dela àquela revelação. Mas na cara dela só se revelou a surpresa. Talvez surpresa por saber que se encontrara com de Vroome.
-De Vroome?- murmurou Angela.
- Sim, encontrei-me com ele ontem à noite. O Reverendo mandou-me buscar. Bem, mas o resultado da nossa entrevista pode esperar um momento. O ponto fulcro é o fato de Dominee nos querer destruir. Para esse fim, coligiu arquivos sobre certas personalidades essenciais da Ressurreição Dois. Possui um cadastro muito completo sobre o teu pai e sobre ti. Divulgou-me certo conteúdo desses arquivos. Angela, agora que já sabes o que se passou, acredita que não teria dado crédito a essas coisas se não fora algo mais grave que soube.
-Algo mais grave? O quê?
-Já lá vamos. Primeiramente, preciso obter uma resposta que ainda não me deste. Angela, o que de Vroome me contou... é ou não verdade?
-Mentira, completamente mentira-disse Angela com a voz tremendo.-Se é que te menti, as mentiras foram de somenos importância, mentiras incapazes de causarem mal, que esclareceria quando te conhecesse melhor. Mas, o que de Vroome te disse de meu pai... que meu pai cometeu uma fraude... é uma descarada mentira. Não passa de uma difamação.
- Se o que ouvi não é verdade, Angela, qual é então a verdade?
- Conheces as leis italianas sobre arqueologia. Muito embora o governo fosse proprietário da maior parte do terreno demarcado de Ostia Antica, os terrenos ao longo da faixa litoral não lhe pertenciam, nem estavam sob o seu controle, precisamente as terras onde meu pai queria proceder a escavações. Essa área, constituída por alguns hectares era propriedade privada. Meu pai ofereceu aos proprietários, dois irmãos e uma irmã uma alternativa - alugar as terras ou comprá-las.
- E teu pai contou aos proprietários aquilo que andava procurando? - perguntou Randall.
- Evidentemente. Os donos pensaram que ele era maluco. Não quiseram arriscar-se a entrar num jogo que lhes parecia insensato, vão, incapaz de produzir dividendos. Manifestaram-se desejosos de vender as terras estéreis, sem uso e não hesitaram. O que fizeram foi especular aumentando o preço, de tal maneira que meu pai encontrou dificuldades para conseguir a soma suficiente para obter o título da propriedade.
-Então onde é que de Vroome: conseguiu arranjar a idéia de que a ação de teu pai foi de natureza irregular?
-Do Dr. Fernando Tura, claro. Quando meu pai fez a descoberta, o Dr. Tura ficou louco de ciúmes. Então informou os antigos donos da terra sobre o que tinham perdido com a venda do título de propriedade. Convenceu-os a queixarem-se às autoridades, protestando que foram enganados, que meu pai não lhes contara nada sobre a verdadeira utilização das terras, falando, pelo contrário, de um uso muito diferente. Os membros do ministério foram obrigados a proceder a uma investigação cuidadosa, realizando uma acareação à porta fechada, onde se provou que tudo o que meu pai fizera fora correto, não havendo fundamento para as acusações. Existem provas escritas do caso, se o governo aceder a revelá-las, poderei mostrá-las.
-E quanto a teu pai, Angela?
-Ficou satisfeito de ser ilibado. Mas, é uma pessoa extremamente sensível. A pressão das investigações, principalmente, o fato de alguns dos seus amigos terem dado crédito às acusações constituiu para o meu pai o cúmulo das provações. Mesmo antes de ser ilibado, resignou do cargo que ocupava na universidade e recolheu-se num isolamento voluntário. Não quis ter mais nada a ver com as políticas profissionais. Havia atingido o grande objetivo da sua vida e bastava-lhe.
-Ainda se encontra retirado?
-Sim. Vive a vida de um recluso, devotando-se a estudar e escrever. Continua a manifestar a sua amargura a respeito do círculo acadêmico, e também não manifesta interesse em entrar em contato com as pessoas que desenvolveram a sua descoberta. Pensa que o anúncio mundial do seu achado será uma prova concludente. Mas o Dr. Tura, a fim de justificar sua conduta, seu procedimento, nunca cessou de dar voz às suas atordoadas difamações, aproveitando-se para murmurar em toda a parte o escândalo. Parece não haver dúvidas que de Vroome ouviu esses boatos e se dirigiu ao Dr. Tura, aceitando como verdades as difamações para o seu arquivo, como se se tratasse de verdades irrefutáveis. E porque não? Como tu próprio disseste, Steve, de Vroome pretende destruir o nosso projeto e todas as pessoas a ele ligadas. Porque é que eu me incomodei a um encontro contigo em Milão depois de ter recusado avistar-me com outros membros do teu pessoal? Simplesmente para ter a certeza de que possuías a história fidedigna do papel que meu pai representou na descoberta arqueológica de Ostia Antica. Se, tal como meu pai acredita, o anúncio mundial da descoberta falará por si mesmo, nesse caso eu, como sua filha, tinha que me certificar que as declarações fossem completas e corretas.
-Porque é que anuíste a vir para Amsterdã como consultora?
Pelos lábios de Angela passou um pálido sorriso.
-Não foi para me utilizar de ti. Não existe a menor necessidade de me servir de ti. Convidaste-me e eu aceitei. Aceitei não para me assegurar de que meu pai obtivesse mais publicidade. A que terá, e a que já tem, são mais do que suficientes. A posição dele é inamovível. Aceitei porque... porque me afeiçoei a ti imediatamente... e desejei estar junto de ti.
Randall sentiu-se comovido, mas não podia deixar embalar-se assim. Ainda estava por fazer a mais grave das acusações. A partir do momento em que proferisse o que se tornava necessário, as relações entre os dois acabariam para sempre. O nome de Angela Monti correspondia ao código do apóstolo Mateus. Era ela a traidora, e tinha que ser informada daquilo que ele descobrira antes do caso ser revelado ao inspetor Heldering, ao Dr. Deichhardt, George Wheeler e aos outros.
O que ela acabara de dizer? Ah, sim, que se deslocara para Amsterdã para estar junto dele.
-Angela, haverá qualquer outra razão que te tenha levado a juntares-te ao projeto?
-Qualquer outra razão? Não, não houve outra. -Levantou uma das sobrancelhas com uma expressão intrigada -Que outra razão poderia haver?
-Realizares alguma coisa por alguém, fora de teu pai e do afeto por mim.
-Por alguém? O que é que...
Não. Não havia qualquer processo de amortecer o choque. O golpe tinha que ser direto.
-Angela, porque é que trabalhas dentro do nosso projeto como uma informante do Dominee de Vroome? Porque é que forneces os segredos da Ressurreição Dois ao nosso maior inimigo?
Randall nunca tinha visto um rosto expressando maior espanto. Não era pânico nem receio, apenas espanto. Os lábios dela movimentaram-se durante momentos sem que a voz fosse capaz de os acompanhar. Mas por fim as palavras conseguiram soltar-se-lhe da garganta.
-Como? O que é que disseste?
Repetiu o que havia dito, acrescentando:
- Possuo provas irrefutáveis de que estás ao lado de de Vroome.
-Steve, querido, de que raio estás falando? Enlouqueceste ou quê?
Randall não podia deixar-se convencer assim.
- Ontem à tarde enviei um memorando confidencial a doze pessoas que fazem parte do nosso projeto. Uma dessas cópias do memorando chegou às mãos de de Vroome. Foi precisamente o teu exemplar que chegou às mãos do Dominee. É um fato incontestável, Angela, sei exatamente o que digo e não pode ser negado.
O espanto dela cada vez parecia mais genuíno.
-Memorando? Que memorando é que eu dei a de Vroome? Bem digo eu que enlouqueceste. Não conheço de Vroome. Nunca o vi mais gordo ou mais magro na minha vida. E também não estou nada interessada em conhecê-lo. Que interesse teria? Diz-me, que interesse teria em conhecer esse homem? Steve, deves ter perdido a razão. Que trapalhadas estás tu dizendo?
-Vou-te explicar sucintamente as coisas. Ouve com atenção. Rudemente, Randall contou-lhe o que se passara com o primeiro memorando que fora entregue ao Dominee de Vroome, do segundo documento que dispusera como uma armadilha, e do modo como vira um exemplar do memorando com o nome de código que lhe destinara a ela, Mateus, em cima da escrivaninha do Reverendo de Vroome.
-O memorando com o nome de código Mateus foi-te entregue em mão própria, Angela. Tenho um protocolo assinado por ti. Lembras-te agora?
-Sim, lembro-me. Recebi o documento... deixa-me pensar bem... sim, estou a recordar-me. Depois de teres saído do meu quarto adormeci e quando acordei vi que já era muito tarde. Fiquei aborrecida com o tempo perdido e corri para KrasnapoIsky a fim de realizar algum trabalho que me distraísse. Dirigi-me ao gabinete que Miss Dunn me tinha primeiramente destinado e comecei a mudar os meus arquivos para o outro gabinete. Depois chegou um guarda da segurança interna... sim...agarrei no memorando que ele me entregava e lancei-lhe um olhada para ver se era importante. Não me pareceu de consideração prioritária. Coloquei-o numa das pastas de arquivo e levei-o para o gabinete de Lori. Na segunda gaveta do arquivo havia espaço e eu coloquei a pasta, juntamente com os outros documentos que trouxe, nessa gaveta. Lembro-me perfeitamente de ter feito exatamente isso. Ainda deve lá estar.
Randall avaliou o que ela lhe tinha dito. Ou Angela seria de uma impecável honestidade ou era a mais consumada mentirosa que jamais encontrara na vida. Contudo a explicação da sua honestidade parecia fraca.
- Angela, só havia uma cópia do memorando com o nome de Mateus. Estás dizendo-me que se encontra no fichário do escritório, mas eu garanto-te que a vi no gabinete de de Vroome.
Parece-me óbvio que o documento não se pode encontrar ao mesmo tempo no teu arquivo e na posse de Dominee.
- Lamento, mas não te posso explicar as coisas de outra maneira. Posso ir mostrar-te já o meu exemplar.
-Muito bem, vamos lá ver.
Quando desceram dos bancos altos do bar, Angela fitou-o abertamente.
-Não acreditas em mim, pois não?
-Só te posso dizer aquilo que vi... e vi de Vroome mostrar-me esse exemplar do memorando.
-Steve, não serás capaz de pensar que a minha ligação com esse horrível de Vroome não faz qualquer sentido? Ele pretende arruinar a Ressurreição Dois e desacreditar o Novo Testamento Internacional. Pelo contrário, eu só desejo auxiliar o projeto a singrar para que o mundo aceite a nova Bíblia. Pelo menos, se não por amor de ti, com certeza para ver que o nome de meu pai e a sua descoberta sejam coisas devidamente honradas. Porque é que iria colaborar com um homem que pretende destruir o meu pai juntamente com toda a outra gente?
-Não sei. Haverão imensas coisas que eu desconheço a respeito do Professor Monti ou de Angela Monti. Por tudo o que posso saber, talvez afinal de contas desprezes o teu pai.
- Oh, Steve! -exclamou ela com o desespero a vibrar-lhe na voz. Angela agarrou na bolsa, enquanto Randall agarrava nos tickets para ir pagar à caixa. -Bom... vou-te mostrar que continuo a ter o meu memorando no fichário.
Em silêncio, meteram-se no elevador até ao piso térreo dos armazéns Bijenkorf. Atravessaram o Dam e dez minutos depois encontravam-se no gabinete que fora destinado a Lori Cook e que Angela ocupava.
Enquanto Randall ficava encostado à escrivaninha com o rosto fechado, sombrio, Angela dirigiu-se a um dos dois fichários metálicos, destravando-o e puxou para fora a segunda gaveta, começando a passar as pastas do arquivo.
-Arquivei na letra M... Memorandos do Serviço de Relações Públicas.-Abriu os dois batentes metálicos que marcavam a letra M, desfolhou qualquer coisa lá dentro, e depois com voz profundamente desapontada disse: -Mas não está nada dentro da pasta. Tenho a certeza que... - Freneticamente começou procurando em todas as letras. - Talvez me tenha enganado e tenha colocado a pasta noutra letra qualquer. Espera um bocadinho, encontrarei o documento num instante.
Passaram alguns minutos, e o documento sem aparecer. Angela endireitou-se, tendo estampado no rosto o pânico pela perda sofrida.
Randall não perdera as suspeitas sobre a honestidade daquela mulher amada.
-Tens a certeza que arquivaste o documento?
-Penso que sim-disse, já com uma nota de insegurança na voz - Depois de me mudar do antigo gabinete estes arquivos estavam todos espalhados em cima da escrivaninha e eu comecei a arrumá-los...
-Entrou alguém no escritório antes de fechares o fichário à chave?
-Se alguém en ... ? Sim! Sim! Não te mencionei as visitas ontem à noite ao jantar porque não me pareceram importantes. -Encaminhou-se para a escrivaninha -Vieram várias pessoas procurar por ti. Eu... Deixa-me assentar idéias... tentei ser o mais eficiente possível e por isso escrevi o nome de todas as pessoas que vieram aqui ou que fizeram chamadas telefônicas. -Abriu uma das gavetas, tirou um bloco-notas e dobrou a capa. - Jessica Taylor entrou durante breves segundos. Disse que vinha realizando um trabalho para ti e vinha ver se precisavas de mais alguma coisa. Informei-a que tinhas saído e que não sabia onde te encontravas.
-Estava no andar de baixo com o inspetor Heldering examinando se todos os exemplares do memorando foram entregues.-Fez um gesto na direção do bloco-notas.-Quem foram as outras pessoas que vieram?
Angela percorreu a lista com o dedo.
- Elwin Alexander e... - Suspendeu abruptamente o que ia dizendo e a consulta ao bloco. -Agora me estou me lembrando! Que estúpida fui em me ter esquecido! O seu nome está aqui, escrevi-o. Olha, Steve, olha aqui... O dedo voltou-lhe correndo pela página do bloco-notas até ao fim, onde tinha um nome escrito a lápis: Dr. Florian Knight.
- Knight? - espantou-se Randall.
-Sim, foi o Dr. Knight -disse Angela com evidente alívio. Graças a Deus que posso esclarecer as coisas. Agora vais acreditar-me. Sim, o Dr. Knight entrou quando eu arquivava. Queria falar-te. Disse-me que estava numa conferência publicitária contigo e que tu havias prometido entregar-lhe certo material para o orientar a respeito do tipo de informações que desejavas dele. Prometeste-lhe alguma coisa?
- Sim.
- Como tu não te encontravas, o Dr. Knight viu os arquivos e disse que talvez tivessem alguma coisa que lhe interessasse. Mostrou-me o seu cartão de segurança de primeiro plano, como o meu e o dos outros consultores, de modo que pensei não haver qualquer razão para recusar o que pedia. Começou a remexer nas pastas e declarou-me que o material que queria talvez estivesse no teu gabinete, mas pediu então que lhe emprestasse o último memorando, porque tendo-se deslocado para Amsterdã à última hora pretendia estar a par dos teus planos. Garantiu-me que de manhã, quando te viesse de novo procurar, me entregaria o documento, junto com uns outros que levou e que lhe serviriam de orientação.
-E entregou o documento de manhã?
Angela deu uma olhada pelo tampo, perturbada.
- Ao que parece, não. Deve ainda ter o memorando em seu poder.
-Não, não o deve ter-murmurou Randall firme.
- Quem o tem é o Reverendo Maertin de Vroome. - Fechou um dos punhos e deu uma pancada seca na palma da outra mão. -O Dr. Florian Knight! Maldição! Eu já devia saber que era assim.
- Saber o quê? -Não importa agora.
- Cometi qualquer erro em emprestar-lhe o memorando?
-Isso agora também já não tem importância. Não poderias compreender o que estava ou não errado.
- Steve, mas agora já sabes que nada tenho a ver com o Dominee Maertin de Vroome. Com certeza que acreditas em mim. Vem, irei contigo ao gabinete do Dr. Knight. Ele dir-te-á na minha frente o que se passou e talvez dê qualquer explicação sobre o assunto.
-Não necessito das explicações dele-disse Randall amargamente.
Interiormente, Randall amaldiçoava o seu sentimentalismo. A partir do momento em que ouvira dizer que Knight odiava o Dr. Jeffries e a Ressurreição Dois, confissão tanto mais fidedigna porque lhe fizera por Valerie Hughs naquela taverna londrina, não devia ter autorizado o pedante erudito de Oxford a juntar-se ao projeto. Desde o princípio devia ter sabido que Knight era uma ovelha ranhosa, o único com probabilidade de se vender para recuperar o dinheiro que julgava ter perdido com o lançamento da nova Bíblia. Randall lembrou-se de ter pensado nele no dia anterior, lembrou-se de não lhe ter precisamente enviado um memorando, por exclusão na lista, na vã esperança de que o sabotador fosse outra pessoa qualquer. Mas, afinal de contas, o sabotador era sem dúvida o Dr. Florian Knight. Maldição.
Angela aguardava.
-Vamos ao encontro do Dr. Knight?
-Não há necessidade que tu vás.-tentou sorrir.-Angela, perdoa-me por não ter confiado em ti. A única coisa que te posso dizer é que... que te amo muito.
Ela refugiou-se nos braços que ele lhe abria, fechou os olhos e premiu os lábios desesperadamente contra os dele. Quando o longo beijo terminou, murmurou:
- Steve, eu amo-te mais, muito mais do que o amor que tu serás capaz de me dedicar.
Randall sorriu.
- Isso é o que veremos. - Desprendeu-se a custo dos braços dela. - Agora vou conversar com o Dr. Florian Knight. Tenho que ter uma entrevista com ele a sós.
Em passos rápidos, seguiu pelo corredor e entrou, depois, no gabinete do Dr. Knight.
Não estava.
A secretária disse como quem pede desculpa:
-Lamento, mas o Dr. Knight telefonou dizendo que não vinha hoje.
-Onde é que está.
-A trabalhar no hotel onde se hospeda. O Hospice San Luchesio.
-Hospice quê?
-Vou escrever-lhe a direção. San Luchesio. Fica em Waldeck Pyrmontlaan, número nove. Quase todos os clérigos e teólogos do nosso projeto se encontram lá hospedados. É um hotel muito estranho.
Randall não tinha tempo para lhe perguntar onde é que estava a estranheza do local. Limitou-se a agarrar no papel com a residência e encaminhou-se para o porta.
Mas, antes de chegar ao limiar, ouviu a voz da secretária perguntar:
-Quer que telefone ao Dr. Knight a anunciar a sua visita?
-Não. Prefiro fazer-lhe uma surpresa.
Era na verdade um estranho hotel.
A primeira vista, o San Luchesio decepcionava. Parecia-se com um vulgar prédio de apartamentos, um prédio moderno, de cinco andares, edificado numa ampla rua.
O San Luchesio era algo de que Randall nunca ouvira falar -um pequeno hotel construído exclusivamente para eclesiásticos católicos e pastores protestantes com as respectivas famílias que estivessem em trânsito por Amsterdã. Servia também de alojamento a várias freiras.
Theo, que como sempre conduzia Randall, provara-se um centro informativo precioso. Durante os doze meses anteriores, Theo fora uma espécie de ponte móvel de transporte para vários eclesiásticos, bem como para teólogos seculares, entre o KrasnapoIsky e o San Luchesio. Conhecia pois muito bem o local, e a pergunta de Randall desencadeou um verdadeiro dilúvio de pormenores.
O San Luchesio -nome adaptado em honra do primeiro seguidor de São Francisco de Assis, foi construído em 1961. O hotel clerical tinha trinta e quatro quartos e cinqüenta camas. O custo de um quarto com café da manhã incluído, era de catorze florins por dia. Theo explicara-lhe que a sala logo a seguir ao saguão servia como sala de comer às horas das refeições e como sala comum de orações durante o resto do tempo. Para o efeito, ao longo das paredes existiam uns compartimentos em madeira com um pequeno oratório e uma cadeira. Quando das refeições as cadeiras eram conduzidas para a longa mesa central, o que lhe conferia o aspecto de uma espécie de refeitório monástico. Do outro lado do saguão, segundo a explicação de Theo, encontrava-se a capela privativa do hotel. À entrada da porta estavam suspensas duas batinas especiais, para os celebrantes católicos e protestantes. Num pequeno gabinete lateral, que funcionava como sacristia, encontravam-se os paramentos e apetrechos destinados à celebração da missa.
Theo parara o Mercedes-Benz em frente do hotel e Randall, em passadas vigorosas, atravessara o passeio e entrara no San Luchesio.
O saguão não oferecia nada a aparência de um vulgar saguão de hotel, pelo contrário, parecia-se com a sala de estar de uma residência particular, uma sala tornada confortável pelos extremos cuidados de uma dona de casa irrepreensível. As paredes circundantes tinham pequenos painéis de ripas de madeira, em castanho, onde se dispunham almofadas de couro acolchoadas. Randall observou que serviam para encostos quando os visitantes se sentassem nos banquinhos dispostos por baixo. Nas paredes viam-se quadros com cenas bíblicas, uns em tela outros de pano bordado, como nas tapeçarias, que davam um maravilhoso efeito colorido ao ambiente. Em frente do saguão ficava a recepção-uma simples mesa atrás da qual se sentava muito empertigada uma garçonete que tinha lá seus cinqüenta e tantos anos.
O ambiente exsudava por todos os poros um ar de asseio, pureza, bondade.
Não, na verdade não se adequava ao propósito feroz que ali o conduzira, pensou Randall, ao propósito de defrontar um teólogo para o desmascarar. Para lhe dizer que não passava de um reles filho da puta e de um nojento traidor.
Randall dirigiu-se à secretária.
-Precisava ver o Dr. Florian Knight. Trabalhamos os dois juntos.
A grave e altiva recepcionista levou a mão ao telefone.
-O Dr. Knight espera-o?
-É provável.
-Vou ligar para o quarto. Diz-me o seu nome, faz favor.
Depois de ter dado o nome, Randall dirigiu-se nervoso para o limiar do salão que servia de local de oração e de sala de jantar, observando distraído a enorme mesa central, as cadeiras e as divisórias de madeira. Depois voltou para junto da recepção, precisamente quando a garçonete colocava o fone do telefone no descanso.
-O Dr. Knight está no quarto. Fica no piso quatro. Esperá-lo-á à porta do elevador.
De fato o Dr. Knight encontrava-se no corredor quando Randall saiu no quarto andar. Olhou-o e considerou que não obstante o seu aspecto fosse o mesmo daquele homem que encontrara numa cama em Londres e que ainda na véspera vira na conferência com o seu pessoal, tinha contudo um ar diferente. Pela primeira vez, desde que Randall o conhecera, não exibia aquele rosto fechado, façanhudo, irado, de pessoa permanentemente contra o mundo. Mostrava-se calmo e senhor de si. Enquanto se dirigiam para o quarto, Randall pôde também notar que o homem manifestava um senso de preocupação bastante profundo.
O quarto de Knight no San Luchesio era ainda menor do que o do apartamento de Londres. Mas estava impecavelmente limpo e tinha um aspecto austero, muito semelhante ao da cela de um monge num convento. Tinha uma cama estreita, uma mesa dobrável, um armário para guardar ternos e, num canto, uma bacia para lavar as mãos. Por baixo da alta janela estava uma cadeira solitária.
-Aproveite a cadeira- ofereceu Knight, com um tom relativamente hospitaleiro e menos brusco do que era hábito.- Oferecer-lhe-ia, de boa vontade, uma bebida se não fora o caso do álcool ser expressamente proibido neste hotel franciscano. Se não fosse tal proibição acharia o lugar decentemente confortável. Os bons irmãos hospitaleiros gerentes do hotel como se São Francisco de Assis fosse o diretor executivo. E dado que o santo se preocupava mais em fazer sermões aos passarinhos, do que em falar com os bípedes humanos, os garçons, num arremedo, resolvem também tratar os hóspedes de uma maneira chilreante. É tudo muito encantador.
Depois, quando já se tinha sentado na beira da cama, acrescentou:
- Lamento muito que se tenha deslocado até aqui, Mr. Randall. Estava na disposição de ir amanhã até ao KrasnapoIsky, pondo-me incondicionalmente ao seu serviço. Seja como for, está aqui. Em que posso ser-lhe útil? Algo de especial?
- Sim, muito especial até - respondeu Randall martelando as palavras.-E é um assunto que lhe diz essencialmente respeito.
-Muito bem. Pois aqui estou às suas ordens, meu caro.
Randall decidiu não desperdiçar palavras. Dir-lhe-ia sem rodeios. - Dr. Knight, ontem, no termo de uma dia de trabalho, o senhor pediu certo material de arquivo emprestado a Miss Monti, a minha secretária. Entre esse material encontrava-se um memorando confidencial escrito por mim. Ora, algumas horas mais tarde o mesmo memorando estava nas mãos do Dominee Maertin de Vroome, inimigo declarado do nosso projeto.
Calou-se, esperando qualquer reação do Dr. Knight, reação de surpresa ou negação, mas o erudito oxfordiano não deixou transparecer qualquer emoção. Tirou calmamente do bolso uma caixa de pastilhas para refrescar a boca, oferecendo a Randall, depois de ter aberto a tampa. Perante a negativa do publicitário, metendo na boca um dos pequenos comprimidos de menta, Knight disse:
- Lamento ouvir-lhe dizer isso, mas também lhe posso garantir que em nada me surpreende.
Randall, apanhado de chofre, olhou-o aturdido.
- Não se sente surpreso?
- Bom, embora não esperasse que de Vroome tivesse o documento, a verdade é que não excluía também a hipótese de lhe poder ir parar às mãos. A minha surpresa é em saber que o senhor descobriu a tramóia. Tem certeza de que é o Reverendo de Vroome quem tem o memorando?
-Absoluta. Tive ontem à noite uma entrevista com de Vroome e vi-lhe o documento na mão.
-E não tem dúvidas de que fosse o memorando que eu pedi emprestado a Miss Monti?
-Nenhuma. Era exatamente o mesmo memorando-disse Randall um pouco desconcertado pela forma natural com que Knight aceitava o seu papel de traidor. - Vou-lhe revelar a forma como pude determinar com exatidão a veracidade do documento e a forma como a pista do roubo me conduziu até si.
O mais rapidamente que pôde, Randall revelou os nomes de código utilizados na elaboração dos exemplares do memorando, com alguns pormenores sobre a conversa que tivera com de Vroome e o que se passara com Angela Monti. Quando terminou, o seu olhar continuou fixado no Dr. Knight. O teólogo inglês continuava a chupar calmamente a sua pastilha de menta, mas Randall reparou que a mão pousada na borda da cama tremia ligeiramente.
- Vamos lá ver agora o que tem a dizer do caso.
- Muito inteligente da sua parte - disse Knight com admiração.
- E muito pouco inteligente da sua. De fato posso até dizer que a sua atitude foi sumamente estúpida. Desde o momento em que soube que o seu livro deixava de ser publicável devido ao aparecimento do Novo Testamento Internacional, considerei-o um perigo, mas um perigo que se poderia correr. Mas eu devia ter compreendido que uma pessoa tão amargurada contra o nosso projeto e tão necessitada de dinheiro seria capaz de tudo para nos derrubar.
O pequeno tique nervoso da mão de Knight acentuou-se. Tremia agora visivelmente.
- Soube então tudo a meu respeito, hem?
- Sim, desde o princípio. Desde Londres. Mas fiquei tão impressionado pelas suas credenciais, pelo seu valor potencial para o projeto... que... juntamente com o pedido de Valerie...
-Ah! Valeríe...
-...que...pus de lado quaisquer dúvidas e persuadi-me que o senhor, apesar de tudo seria uma pessoa de inteira confiança, incapaz de uma traição. Estava enganado. Traiu-nos. Vou voltar ao KrasnapoIsky e relatar tudo o que sei.
-Não-disse o Dr. Knight com rapidez, quase com frenesi.
O seu frio exterior britânico começara a desintegrar-se, a abrir fendas. Aos olhos de Randall começou a deparar-se um espetáculo como o do retrato de Dorian Gray; ainda em vida aquele rosto começou enchendo-se de rugas, a mostrar um evidente aspecto de envelhecimento gradual.
-Não, não lhes diga- suplicou. -Não permita que eles me ponham fora do projeto!
- Que não os deixe porem-no fora? - inquiriu Randall espantado. -Mas o senhor admitiu que entregou o memorando a de Vroome...
-Não entreguei nada diretamente a de Vroome, nada, acredite no que lhe digo. Se fui fraco, se de qualquer maneira trai as suas esperanças, foi em pequenas coisas, de maneira quase inofensiva. Mas tudo isso já passou, modificou-se. Agora já podem confiar em mim absolutamente. Sou inteiramente devotado à Ressurreição Dois. O projeto é a minha vida. Não posso permitir que me separem deste trabalho. Tenho que continuar.
Levantou-se e começou a medir o pequeno aposento, torcendo as mãos nervosamente.
Estupefato pela reação, Randall observava-o de boca aberta. As contradições do comportamento e das palavras do Dr. Knigth não faziam sentido. Randall decidiu que o homem era um doente, um histérico. Tinha que o levar para um caminho racional.
-Vejamos, Dr. Knight, como pode o senhor dizer que é inteiramente devotado à Ressurreição Dois, quando ainda não passou muito tempo depois de ter admitido que entregou os nossos segredos a de Vroome? Espera então que nós mantenhamos um traidor no nosso seio?
-Não sou nenhum traidor! -exclamou com veemência o Dr. Knight. Chegou-se para Randall e ficou-lhe na frente dominando-o com a sua magra figura de asceta.-Então não é capaz de compreender? Pretendi ser um traidor. Comecei dando o primeiro passo nessa senda, mas depois não pude... foi-me impossível logo que a verdade me foi revelada... Foi-me impossível. E agora têm que me deixar continuar no trabalho. Matar-me-ei se não me permitirem que fique!
- Mas de que raio está o senhor falando? Nada disso faz sentido. É completamente ridículo. Basta de o aturar...
Fez um gesto para se levantar, mas as mãos de Knight, como garras, fizeram-lhe pressão sobre os ombros.
- Não... não... espere, Randall, tem que me dar uma oportunidade. Vou-lhe explicar tudo. Vou-lhe despejar tudo o que sei e então fará sentido. Estava com receio, mas afinal vejo que é
necessário ou tudo estará perdido. Por favor, ouça o que tenho para lhe dizer.
Só depois de Randall se ter de novo ajeitado na cadeira é que o Dr. Florian Knight se retirou de junto dele, voltando a sentar-se na borda da cama, tentando dominar a agitação que o tomara, tentando pensar na maneira de transformar os pensamentos em palavras. Finalmente, com certos sinais de calma, fixou os olhos no chão e começou:
-Logo que o senhor chegou aqui, tentei ocultar o que se passa. Pensei que a minha franqueza nua e crua o desarmaria e abriria caminho para um entendimento... bem uma confissão que fosse capaz de o satisfazer sobre a minha participação num erro, numa coisa má, mas sem ser um traidor. Pensei que lhe poderia provar que estava modificado a respeito da minha forma de encarar o projeto e da minha necessidade de continuar na Ressurreição Dois. Mas afinal vi que o senhor me continuava a julgar um vira-casacas, o que me levaria sendo demitido. Sim, considero agora que não pode haver maneira de evitar confessar-lhe toda a verdade. De resto, penso que também não existe qualquer razão sólida para proteger os outros...
Os outros. Randall apurou o ouvido.
-... E que já não há qualquer razão para ter medo de lhe revelar o que se passou ontem à noite e esta manhã.-Olhou para Randall.-Se ainda pensa que não faz sentido...
- Vamos, continue.
- Obrigado. A respeito da minha amargura, da minha zanga contra o Dr. Jeffries, não posso desmentir que seja verdade. Foi uma indiscrição da querida Valerie falar-lhe no caso, mas não posso perfeitamente perdoar-lhe. A maior vocação de Valerie são os esforços que tem feito, quase sempre, para me salvar do meu próprio mau gênio e... -sorriu como que envergonhado -...e salvar-me por amor dela também. Mas nunca deixei de lhe ser devotado. Sim, foi ela que me pediu para que me juntasse à Ressurreição Dois. Concordei, mas não pelas razões que ela pensava. Vim para aqui, tal como o senhor suspeitou, com sentimentos que me tomavam indigno de confiança. Sabia que a Ressurreição Dois tem inimigos. E sabia perfeitamente quem eles eram. Li a entrevista de Plummer com Maertin de Vroome, e os dois artigos que ele publicou dentro da mesma linha de opiniões. Não tinha planos definidos, mas, cá bem no fundo da minha mente pensava que como membro da Ressurreição Dois encontraria modo de me salvar.
- Salvar... Quer dizer obter dinheiro?
- Bem... sim. De certa maneira sim. Bem, já que temos de usar de franqueza, pensava que o dinheiro seria a minha única salvação. Recusaram-me dinheiro por causa do Novo Testamento Internacional, dinheiro que me restauraria a audição, dinheiro que me permitiria casar com Valerie e poder sustentá-la, vivendo a minha vida com propriedade e de harmonia com o que um estudioso merece.
-E vai daí procurou Cedric Plummer?
-Não foi necessário. Foi Plummer quem me procurou. Ou, para ser mais exato, foi alguém era representação de Plummer.
Randall ergueu uma das sobrancelhas.
-Alguém? Do KrasnapoIsky?
-Sim.
Randall procurou no bolso do casaco e tirou o gravador miniatura.
- Se não se importa?...
- Vai gravar as minhas palavras? Para quê?
- Se houve outras pessoas envolvidas no caso...
- Vejo. Ajudará a me inocentar, não é?
- Não posso garantir isso, Dr. Knight. Mas se na verdade tem uma defesa legítima, será de toda a vantagem em que eu grave a nossa conversa, para o caso de se tomar necessário. Se não ficar satisfeito com a história, limparei a gravação à sua frente... e poderá então contar as coisas aos editores em primeira mão.
- Acho justo. - Esperou que Randall ajustasse o volume e colocasse o aparelho no chão, entre a cama e a cadeira. Knight olhou para o gravador. - O meu júri. Ajudar-me-á a inspiração
para me confessar e defender tão completa e desapaixonadamente quanto possível.
-Estava-me contando a maneira como quando chegou a Amsterdã, depois das verificações no KrasnapoIsky, foi abordado por outra pessoa sem ser Plummer...
-Sim, alguém que, não sei como, sabia tudo a respeito da minha situação, acerca do meu livro não publicável sobre Cristo, sobre o meu defeito auditivo, enfim sobre a minha ira, necessidades e falta de dinheiro. Esse alguém sugeriu-me que talvez houvesse um meio de reaver o dinheiro que me devia ter cabido. Dessa vez não anui. Todavia, durante o meu curto tempo de estadia em Amsterdã, tomei o hábito de copiar todo e qualquer material secreto recebido, ou que passava ao meu alcance. Tornei-me cuidadoso em ouvir tudo o que pudesse, tomando notas e ocultando-as. Não dei um passo na minha vingança a não ser quando de novo fui abordado. Quis saber quanto valeriam os meus serviços. Em troca, perguntaram-me o que tinha para oferecer. Impulsivamente, numa experiência, mostrei o meu pequeno arquivo de material da Ressurreição Dois à pessoa que me abordara. Quase logo a seguir proporcionaram-me uma entrevista com Plummer, que me informou graciosamente ser perfeitamente útil o material cedido.
-Foi então dessa maneira que eles souberam da data da nossa declaração pública e dos nossos planos para a transmitirmos ao mundo via satélite, não é verdade?
- Sim. Tudo útil, segundo Plummer me disse, mas não era suficiente. Queriam que eu continuasse a obter mais notas e memorandos para os servir, mas, o mais importante de tudo, desejavam um exemplar da nova Bíblia ou pelo menos um sumário do conteúdo da nova Bíblia, isto é, do Pergaminho Petrônio e do Papiro Jacob, coisas em que eu trabalhara mas que não conseguira ver totalmente. Plummer disse-me que havia uma outra maneira de o material ser obtido...
-Por Hennig! -exclamou Randall.
- Como?
-Não importa. Continue.
-Mas, não queriam correr riscos. Pretendiam ter uma dupla certeza. Foi então que Plummer me anunciou o preço que estavam dispostos a pagar. Era... era uma quantia esmagadora. Uma soma que seria a solução para todos os meus problemas. Verdadeiramente irresistível. Concordei em lhes entregar a nova Bíblia, ou pelo menos transcrições das novas descobertas que ela contivesse. Prometi-lhes a entrega da Bíblia para ontem.
Mais uma vez Randall manifestou a sua surpresa e confusão.
- Como é que esperava colocar as mãos num exemplar? O livro encontra-se fechado a sete chaves e na maior segurança no cofre-forte do impressor. Todas as páginas de provas da edição especial antecipada estão em cofre.
O Dr. Knight agitou um dedo em discordância.
- Nem todas. Mas não nos afastemos da minha cronologia. Anteontem tentei obter uma cópia da nova Bíblia, mas falhei. Claro que não a pude entregar conforme o combinado, e tive que convencer o meu contato, provando a minha boa-vontade. Assim, fiz uma busca nas minhas notas e em documentos obtidos, entre eles figurava o seu memorando com o código do apóstolo Mateus.
-Vejo.
-Claro está que não ficaram satisfeitos. Queriam a Bíblia. Fui positivo em que poderia obter um exemplar nessa mesma noite, isto é, quanto a nós, ontem à noite.
-Mas não pôde...
- Pelo contrário. Pude e apanhei.
Randall estremeceu.
- Obteve o Novo Testamento Internacional?
- Sim, com poucas dificuldades. Veja bem, Mr. Randall, nem todas as páginas de provas da edição se encontram em cofre. Cada teólogo chefe tem o seu exemplar. O Dr. Jeffries tem uma cópia. Não se esqueça, as nossas relações continuam ainda sendo íntimas. Jeffries possui um enorme quarto no primeiro piso, quarto a que eu tenho acesso para poder consultar os seus livros de referências. Sabia que ele tinha o exemplar do Novo Testamento numa pasta que tem um cadeado que só se abre por meio de relação de letras, tal e qual como um cofre-forte. Mas o Dr. Jeffries; é um homem distraído, tornando-se um hábito comum escrever todas as coisas para lhe ajudarem a memória. Passei uma busca sutil ao quarto dele para obter a relação. Tal como esperava estava escrita numa pequena agenda. Decorei-a. Ele projetava sair anteontem à noite, mas à última hora cancelou o encontro que tinha. Mas a saída ficou adiada para ontem. Esperei que ele saísse, depois entrei-lhe no quarto. Abri a pasta e tirei as provas encadernadas do Novo Testamento Internacional. Levei o livro para fora do hotel e fui direto a uma loja de fotocópias, uma loja que descobrira antes e que sabia estar aberta à noite. Mandei fotocopiar as páginas com o material anotado, com a tradução do Pergaminho Petrônio e do Evangelho Segundo Jacob. Voltei ao quarto do Dr. Jeffries e coloquei as provas na pasta. Depois regressei a este quarto com as minhas fotocópias.
Randall sentiu-se vacilar.
-E entregou-lhes o material?
O Dr. Knight mais uma vez agitou o dedo espetado em ar de reprovação.
- Estive quase... cheguei a levantar o telefone para fazer uma chamada para o meu contato, entregando as fotocópias por trinta moedas. Mas, como sabe, sou aquilo que sou e não me posso furtar a esse destino... sou um estudioso, um erudito muito curioso, acima de poder ser um negociante prático. De modo que não fui capaz de resistir lendo primeiro o Evangelho Segundo Jacob antes de lhes entregar o documento.
- Leu-o então... - pronunciou Randall pausadamente. E que aconteceu depois?
- O milagre - disse o Dr. Knight com simplicidade.
-O quê?
- Aconteceu a minha comunicação com o Senhor e o milagre que se seguiu, Mr. Randall, se me conhecesse bem saberia que sou um homem profundamente interessado na religião, sem ser todavia um homem intensamente religioso. Encarei sempre Cristo, a Sua Missão, a partir de um ponto de vista exterior, objetivamente, como um estudioso. Nunca me aproximei d'Ele suficientemente, nem O admiti dentro do meu coração. Mas na noite passada li o Jacob neste quarto, sentado exatamente nesta cama e chorei, vi o Cristo verdadeiro pela primeira vez, pela primeira vez senti a Sua fé e misericórdia. Fui apanhado pela tempestade mais violenta que desde sempre experimentei. Poderá compreender-me?
Randall fez um gesto positivo com a cabeça, incapaz de pronunciar qualquer palavra.
Com palavras cada vez mais fluentes e mais veementes, o Dr. Florian Knight continuou:
- Depois de ler deixei-me cair de costas sobre a cama e fechei os olhos. Fiquei positivamente sufocado de amor por Cristo, de uma fé esmagadora da Sua pregação, e avassalado pelo desejo de Lhe ser útil. Devo ter adormecido. No meu sono, ou talvez em certo interlúdio em que despertei durante a noite... não sei bem... vi Jesus, toquei-lhe a fímbria da túnica, ouvi-O falar-me...dizer-me algumas das palavras que Jacob, irmão do Senhor, registrou para a posteridade. Roguei-lhe que me perdoasse os pecados cometidos e os por cometer até em pensamento. Prometi a Nosso Senhor devotar-lhe a minha vida. Jesus, na sua infinita misericórdia, lançou-me a Sua bênção, dizendo-me que, a partir de então, tudo seria justo na minha vida. É possível que veja em tal episódio, em sonho dormindo, ou em sonho acordado, uma espécie de alucinação, de loucura... Também pensei que estaria sendo louco ou lunático, se não fora aquilo que se seguiu.
Dr. Knight, possivelmente mergulhado na introspecção calou-se.
Randall, observando a forte emoção que se apoderou do seu interlocutor, e ávido de conhecer o que se tinha passado, instigou-o:
-O que foi que se seguiu, Dr. Knight?
- O inacreditável - murmurou a pestanejar. - Bom, acordei esta manhã muito cedo, embora a luz do sol já penetrasse por esta janela, que está por cima de si. Eu estava todo molhado de suor, mas senti-me expurgado de toda a mesquinhez. Sentia-me em paz. Deixei-me ficar na cama saboreando essa paz... foi nessa altura que ouvi distintamente um som doce, meigo, extraordinário, um passarinho a chilrear no peitoril da janela. Um passarinho, ouvi um passarinho a trinar a sua canção, eu que em muitos anos nunca ouvira, nunca fora capaz de poder ouvir semelhante coisa... eu que durante anos mal podia ouvir a voz de um ser humano, mesmo que ele estivesse junto de mim, se não me gritasse... eu que era surdo há tempo imemorial, ouvia um passarinho a cantar e sem ter o aparelho auditivo nos ouvidos... porque nunca durmo com o aparelho posto. Olhe para ele, ali está na mesinha de cabeceira, precisamente no local onde ontem à noite o deixei... já não preciso dele... o senhor não notou... mas o fato é que ouvi todas as palavras que pronunciou neste quarto. Ouvi-as claramente, facilmente, sem ter que fazer o mínimo esforço. Esta manhã fiquei positivamente doido de contentamento. Depois de ouvir o passarinho, saltei da cama e liguei o meu rádio, deliciando-me com a música que me inundava o ser. Abri a porta do quarto e ouvi as garçonetes que estavam lá fora no corredor, conversando, e eu podia-as ouvir perfeitamente. Tinha-me oferecido de corpo e alma a Cristo e Jesus tinha-me ouvido, escutara as minhas preces e curara-me. Eis o milagre. Acredita-me agora, Randall?
-Acredito, Florian - respondeu Randall, profundamente comovido. Pensou no que ouviria a seguir e não teve que esperar muito.
- Quando consegui recompor-me totalmente, fiz a chamada telefônica. Falei ao meu contato, disse-lhe que estava pronto a vê-lo, em vez de ir trabalhar. Encontrei-me com ele na oculta residência que possui em Amsterdã, avisando-o de que me foi impossível obter a cópia da nova Bíblia para lhe entregar. Lamentei que lhe tivesse feito essa promessa e que me arrependia até do material que já lhe entregara. Pedi-lhe que me entregasse aquilo que lhe dei, o seu memorando com o nome do discípulo Mateus. Respondeu-me que era impossível, que se encontrava já noutras mãos. Presumivelmente, chegado ao conhecimento de de Vroome, embora eu não tenha a certeza.
- Sim, já estava na posse do Dominee.
- Depois, essa pessoa... o meu contato... instigou-me a continuar a fim de obter um exemplar da Bíblia para lhe entregar. Disse-lhe que a idéia se me tornara repugnante. Respondeu-me que me pagariam mais do que foi combinado. Retorqui-lhe que não estava interessado no negócio. Tornou-se então ameaçador, garantindo-me que a não ser que cooperasse procederia à minha denúncia. Frisei-lhe que não me importava nada com as ameaças e dei-lhe as costas. Regressei aqui ao hotel e destruí as fotocópias que mandara tirar do Novo Testamento Internacional, para ter a certeza de que o conteúdo ficaria fora do alcance de de Vroome. Pouco depois, anunciaram-me sua visita. Pode pois, ajuizar agora o quanto devo ao novo livro, ao projeto e porque roguei para não consentir que me despedissem. Tenho que ficar, para ajudar nesta obra tão extraordinária.
Enquanto ouvira, Randall refletira. Não estava em causa, a maneira como – se por meios miraculosos ou psicológicos - o aparelho auditivo do Dr. Knight fora restaurado. Em certo sentido, na verdade, acontecera um autêntico milagre. Se o milagre de Lori Cook foi ou não uma fraude, era coisa que já não interessava. O milagre do Dr. Knight era prova suficiente do poder da mensagem contida na nova Bíblia. Mas, segundo garantiu a si mesmo, era um milagre que nunca revelaria pessoalmente aos editores. Não deixaria que explorassem o caso para obtenção de maiores vendas do Novo Testamento Internacional. Estava disposto a aconselhar o Dr. Knight a manter também segredo, a continuar a usar o seu aparelho auditivo até que a Bíblia fosse apresentada ao público com todo o êxito. Tornava-se mais do que evidente que o Dr. Knight passara a ser uma pessoa a quem se poderia confiar totalmente. A sinceridade do homem não oferecia a mais leve dúvida. Só faltava uma coisa.
-Florian, se deseja ficar conosco e ajudar à nossa obra, deve denunciar-me agora quem é o traidor que se encontra entre nós, a pessoa que contatou consigo e que colabora com de Vroome.
- Não, essa pessoa na verdade não colabora diretamente com de Vroome, nem sequer tenho a certeza de que o conheça pessoalmente. É um íntimo amigo de Cedric Plummer. Foi uma coisa que me saltou à vista a primeira vez que me levou à presença do jornalista. Encontramo-nos no clube noturno Fantasio. Os dois tipos fumaram cachimbos de haxixe. Pareceram-me mais do que íntimos. Tenho a certeza que o meu contato deu os nossos segredos a Plummer e que foi este, por sua vez, quem os levou a Maertin de Vroome.
- Talvez tenha razão. Agora o nome do homem que colabora com Plummer... Quem é o traidor da Ressurreição Dois? Tem que me dizer.
- Pergunta-me quem é o Judas? - Knight parou por breves momentos. - É Hans Bogardus, o bibliotecário do projeto. É ele o homem que deve ser corrido como um leproso. Não quero ver o nosso Cristo crucificado de novo e para sempre.
De regresso ao primeiro andar do Grande Hotel KranapoIsky, Steve Randall foi direto ao seu gabinete.
No escritório a recepcionista, Angela Monti levantou inquisitorial os olhos das teclas da máquina de escrever, perguntando-lhe:
-Foi o Dr. Florian Knight?
- Não.
- Sinto-me contente. Então quem é o traidor?
- De momento não discutamos isso, Angela. Falamos mais tarde. Por favor, faz-me uma ligação para o Dr. Deichhardt. Se não o encontrares, liga-me para George Wheeler.
Randall entrou em seu gabinete. Tirou o gravador do bolso, ligou-o, voltou a fita durante alguns minutos, em seguida apertou o botão para ouvir a gravação. Voltou a fita pra trás, escutando com mais atenção. Parando a fita de vez em quando, para apagar certas informações secretas. Finalmente, satisfeito, desligou a máquina, meteu-a na pasta e esperou que Angela tocasse o telefone.
Por fim, demasiado impaciente para agüentar a espera agarrou a pasta e entrou no escritório de Angela, precisamente no momento em que esta pousava o fone no gancho.
- Lamento, Steve. Nenhum deles se encontra no Kras. Ambos saíram de Amsterdã. A secretária do Dr. Deichhardt disse-me que os editores partiram para a Alemanha, para Mainz, a fim de terem esta manhã uma reunião com Hennig.
- Ela disse quando é que estarão de volta a Amsterdã?
- Perguntei-lhe isso mesmo. Não sabe. Possivelmente não lhe disseram nada.
Randall, entre dentes, proferiu uma maldição. Teria que realizar sozinho todo o trabalho sujo. Sabia perfeitamente que o crítico encontro com Bogardus não podia esperar. Estavam em causa coisas de extrema importância.
- Obrigado, Angela. Até logo.
Saiu do corredor, virando à direita ao fundo, e acabou por parar diante de uma porta marcada Kamer 190. No painel superior da porta estava pintada a palavra BIBLIOTECA em cinco línguas e logo por baixo em cursivo, Hans Bogardus.
Randall rodou a maçaneta e entrou.
Hans Bogardus estava sentado a uma imensa escrivaninha, onde se empilhavam um monte de livros. Estava atentamente debruçado sobre um volume e, de vez em quando tomava umas notas. O seu comprido cabelo loiro, cor de palha, caía-lhe para a frente ocultando parcialmente o rosto. Ao som do abrir e fechar a porta, levantou vivamente a cabeça. Os seus traços jovens e de natureza efeminada manifestaram surpresa. Principiou um movimento para se levantar, mas um gesto imperioso de Randall impediu que consumasse a ação.
- Não vale a pena levantar-se - disse Randall, sentando-se sem cerimônias na cadeira a frente dele, no outro lado da escrivaninha.
Quando Randall começou a colocar a pasta em cima da atravancada mesa e a abri-Ia, olhou diretamente para o jovem bibliotecário holandês. Como sempre, Steve achou Bogardus repulsivo. Com exceção dos olhos protuberantes de rã e dos lábios carnudos e salientes, a cara do bibliotecário era quase plana, com os buracos das duas narinas representando um nariz. A cor da pele era de um branco pálido, deslavado, quase albino.
-Como está, Mr. Randall? -perguntou Bogardus na sua voz de falsete.
Randal, sem perder tempo a responder, apontou para a pasta.
- Tenho uma coisa pra você.
Bogardus olhou inquisitivo para a pasta.
-A Bíblia final impressa em Mainz... Será que já chegou?
-Não, ainda não chegou. Mas posso desde já dizer-lhe, Hans, que quando chegar não será você quem lhe porá a vista em cima.
As pálidas pálpebras de Bogardus abriram-se e fecharam-se várias vezes. Passou a ponta da língua pelos proeminentes lábios.
- Como... Eu não... Que raio quer dizer com isso?
- Precisamente isto - disse, Randall, tirando o gravador da pasta e colocando-o em frente de Bogardus, ao mesmo tempo que apertava a tecla play. -A primeira voz que ouvir é a do Dr. Florian Knight. A outra pertence-me. A gravação foi feita há menos de uma hora.
A voz do Dr. Knight começou a ouvir-se com inequívoca fidelidade. Randall inclinou-se para frente, ajustou o volume, e recostou-se depois na cadeira cruzando os braços, enquanto observava as reações do bibliotecário.
Gradualmente, nos dolorosos e lentos segundos decorridos, enquanto a confissão do Dr. Knight enchia a sala abarrotada de livros, a cara descolorida de Hans Bogardus começou a tingir-se de uma cor indecisa. Pinceladas de cor-de-rosa apareceram-lhe nas chatas maçãs do rosto, mas sem que ele fizesse o mais leve movimento. Como em contraponto ao discurso do Dr. Knight só se ouvia o seu respirar apressado, penoso.
A fita estava quase no fim e ouviu-se então a concludente acusação final. A voz do Dr. Knight soou cheia de solenidade.
“O nosso Judas? É Hans Bogardus, o bibliotecário do projeto. É ele o homem que deve ser corrido, como um leproso. Não quero ver o nosso Cristo crucificado de novo e para sempre.”
Depois do arranhar final da fita rebobinando, indicando o fim da gravação, Randall inclinou-se, tocou no botão marcado stop e guardou o gravador na pasta.
Foi com frieza que fitou o olhar parado do bibliotecário.
- Importa-se de desmentir o que acaba de ouvir em frente do Dr. Knight, perante a junta reunida dos editores e na presença do inspetor Heldering?
Hans Bogardus não respondeu.
- Muito bem, Bogardus, você foi apanhado. Felizmente para nós aquilo que você entregou ao seu amigo Cedric Plummer, com destino às mãos do Dominee de Vroome, foi de pouquíssimo valor. Mas, claro que não obterá mais nada, e muito menos ainda, um exemplar da edição especial da Bíblia. Farei com que Heldering envie aqui um guarda do serviço de segurança para o vigiar... Até conseguir contatar Deichhardt ou Wheeler, hoje mesmo, em Mainz de modo a que eles o despeçam.
Randall ficou à espera de uma histérica ejaculação de desmentido, de uma demente cena de defesa, ainda que a prova fosse insofismável.
Todavia, o homem não abriu a boca.
Pouco depois, começou a esboçar-se um sorriso no rosto chato do holandês, sorriso que tinha algo de satânico.
- O senhor é maluco, Randall. Esses seus patrões... essa gente não se atreve a despedir-me.
Estava para acontecer algo inesperado, totalmente deslocado em relação a tudo o que se passara.
-Pensa então que não o despedirão? Suponha que nós...
- Sei que não me despedirão - interrompeu Bogardus com decisão. - Não, não se atreverão despedir-me quando ouvirem aquilo que descobri. Continuarei no meu emprego até que queira ir-me embora de livre vontade. E posso dizer-lhe que não tenho intenção de partir sem levar um exemplar da Bíblia comigo.
Randall decidiu que o jovem holandês perdeu o juízo. Não valia a pena gastar saliva com aquele imbecil. Levantou-se.
-Muito bem, vamos lá procurar saber se o despedem ou não. Farei uma ligação telefônica para Deichhardt ou Wheeler em Mainz...
Hans Bogardus inclinou-se para frente, continuando a sorrir para Randall com o ar desaforado.
-Sim, vá lá telefonar, mas quando falar com eles não se esqueça de uma coisa. Diga-lhes que Hans Bogardus, com o seu gênio, descobriu na Bíblia deles aquilo que todos os cientistas, eruditos de textos comparados e teólogos foram demasiado cegos para verem. Diga-lhes que Hans Bogardus descobriu uma deficiência fatal, uma falha, na nova Bíblia, um deslize que pode destruí-la, revelando-a como uma falsificação. É um deslize que se for revelado ao mundo lançará toda a obra completamente por terra. Será a ruína total do projeto. E sem dúvida que revelarei essa brecha vulnerável no tremendo edifício se me forçarem a deixar o cargo que ocupo.
O tipo era completamente doido, não havia dúvida. No entanto, o jovem holandês falava com convicção absoluta; tanta convicção que Randall sentou-se de novo na cadeira. Recordou-se de Naomi lhe ter dito certa ocasião que Hans Bogardus tinha um cérebro de computador, que detectava qualquer coisa.
-Uma deficiência fatal na nova Bíblia? Como pode ser isso se se trata de uma obra que ainda não o autorizaram ler, que nem sequer viu?
- Pode crer que já li o suficiente, Durante um ano mantive-me sempre alerta. Olhei, investiguei, ouvi, reuni todas as peças de interligação da obra. Não se esqueça que sou o bibliotecário, que sou eu quem referencio os livros de texto. Chegaram-me pedidos para investigar uma palavra, um período, um parágrafo, uma citação. A parte de leão está guardada, mas não se esqueça, vi muitas partes do quebra-cabeças. É verdade que certas partes essenciais me foram vedadas, a mim e a outros. Não é menos verdade que desconheço o conteúdo exato da descoberta de Ostia Antica. Não sei noventa por cento do texto, mas sei que diz respeito a material até agora desconhecido acerca de Cristo, com pormenores do seu ministério alargado na terra. Sei no entanto, com certeza, que a nova obra apresenta Jesus como tendo estado em vários lugares fora da Palestina, e que um desses lugares foi Roma.
Randal sentia-se impressionado, ao mesmo tempo, experimentava um certo respeito pelo bibliotecário.
-Muito bem, Hans. Vamos supor que o pouco que conhece é exato. Pretende que eu acredite, que esse pouco contém informações suficientes para poder ter descoberto algo de errado, aquilo a que chama um lapso...
-Um lapso fatal.
-...perfeitamente, um lapso fatal que escapou aos maiores peritos do mundo, aos homens que leram o texto total, traduziram e estudaram atentamente durante anos?
- Precisamente. Esses homens possuem uma visão de funil, só vêem aquilo que querem ver, porque consideraram o texto com a estreita visão da fé. Posso dizer-lhe que casos desses aconteceram já antes em Amsterdã. Entre 1937 e 1943 descobriram seis novos, e até então, desconhecidos, quadros pintados por Vermeer, um pintor do século XVII. Descobertos por um homem chamado Hans van Meegeren e vendidos por oito milhões de florins - cerca de três milhões de dólares - aos maiores museus e colecionadores de arte do mundo. Os críticos e os peritos louvaram os Vermeers como autênticos, sem sequer verem que as mãos do Cristo de uma das telas eram a reprodução das próprias mãos de Meegeren, que as cadeiras de uma outra tela eram as cadeiras do moderno estúdio dele, que os óleos utilizados nas telas continham resina sintética, que antes de 1900 não existia. Ora Vermeer tinha morrido em 1675. Os quadros eram falsificações, que mais tarde vieram a lume. Qualquer um que tivesse olhos para a verdade não necessitaria ver toda uma tela dos Vermeer forjados para encontrar o deslize. Foi suficiente um quarto de centímetro para analisar a resina sintética. Pois bem, eis o paralelo, a mim, sem estar obcecado, bastou-me um quarto de centímetro do quadro da vossa Bíblia para ver que se tratava de uma falsificação.
Uma vez que o ouvira até ali, Randall decidiu ir um pouco mais longe.
- E tendo descoberto esse...chamado deslize, apressou-se a desvendá-lo a Plummer e a de Vroome?
Bogardus hesitou.
-Não, não revelei nada. Ainda não revelei.
- Porque não?
- Trata-se de... de um assunto pessoal.
Randall apoiou as mãos abertas no tampo da mesa e, com um súbito impulso, levantou-se.
- Muito bem, agora tenho a certeza que mente. Se tivesse encontrado algo de errado na Bíblia, iria direto fazer a revelação a Plummer. Não é verdade que ele lhe costuma pagar substancialmente o preço da traição?
Bogardus saltou da cadeira como se fosse impelido por uma mola. O seu rosto chato era uma massa congestionada de um cor-de-rosa pálido e nos olhos fuzilava-lhe a ira de uma pessoa que fosse ultrajada na sua honra.
- Cedric não me paga nada! O que lhe faço é por amor!
Randall sentiu-se estarrecer de nojo. Bom, de qualquer modo ali estava a ligação dos fatos. Considerou Bogardus e Plummer a viverem um romance de amor. Tinha tocado sem dúvida um nervo de alta tensão carregado de homossexualidade.
Bogardus voltou à posição inicial.
-Mantive até agora em segredo aquilo que descobri, não revelando sob qualquer hipótese a Cedric. Sei perfeitamente o valor que teria para ele. Seria até mais importante do que a nova Bíblia. Se o Cedric pudesse escrever sobre o lapso, se a tornasse pública, seria... famoso e rico... mas eu mantive o caso em segredo porque... como é que se costuma dizer?... Ah, ponho as barbas de molho. Porque ultimamente o Cedric não se tem mostrado tão carinhoso comigo como no início, e... eu sei... pressinto que me foi infiel, com alguém que é mais jovem e mais atraente. Cedric tem-me dito que quando tudo isto estiver acabado me levará numa viagem de férias ao Norte de África. Uma viagem que se fará depois de eu lhe ter entregue a nova Bíblia. Sim, a nova Bíblia foi suficiente para que de momento o possa conservar para mim. Todavia, caso as coisas se passem de forma diferente, continuo a ter um trunfo na manga, com aquilo que descobri pessoalmente e que será o bastante para demolir todo este edifício.
Randall sentira-se enojado e, ao mesmo tempo, tocado pela piedade perante o desespero que vibrava na voz do holandês, desespero de alguém que receia perder o ente amado. Mas começava também a imaginar que validade teria a reivindicação do bibliotecário sobre seu conhecimento de algo errado no Novo Testamento Internacional, algo que pudesse ser uma matéria de descrédito. Bogardus estaria mentindo, jogando com uma coisa que amedrontasse os editores, impedindo-os de o despedirem e forçando-os a entregarem-lhe o texto do livro. Não havia outra possibilidade a não ser lançar um desafio direto ao traidor.
- Hans...
O holandês, ainda imerso no seu desespero de amor pela possível traição de Plummer, abstraiu-se como alguém fechado numa concha, esquecido de que não se encontrava sozinho.
- Hans, você não me forneceu nenhuma razão para que eu não relate o que sei aos editores e para que eles não o ponham imediatamente na rua. Você gabou-se de encontrar uma discrepância numa passagem da nova Bíblia. Julgo que é o que pretende insinuar com seu lapso. Se na verdade encontrou tal prova, chegou o momento para a revelar, ou então, para calar essa boca. Naquilo que me toca, penso que você não encontrou nada que me impeça de fazer com que o ponham no olho da rua.
- Ah, pensa então que não? -perguntou Bogardus com ar feroz.
Mas não acrescentou mais nada.
Randall hesitou.
-Continuo à espera.
Hans Bogardus, passando a língua pelos lábios secos, continuava silencioso.
-Muito bem, agora tenho a certeza que você não só é um traidor como um mentiroso. Acabou-se. Vou tomar providências para que o ponham na rua como um cão.
Deu meia volta e começou a caminhar para a porta.
- Ouça! - gritou subitamente Bogardus, que se levantou com a rapidez do raio, indo em direção a Randall. -Pode dizer-lhes para me porem na rua, mas não deve dizer-lhes só isso. Não interessa nada que eles saibam ou não. Seja como for já é muito tarde para eles. Diga-lhes que verifiquem o papiro número 9, a quarta linha começando de cima. Ainda ninguém conseguiu ver o que isso significa exceto eu. Se eu entregasse este segredo ao Cedric seria o fim da Ressurreição Dois. Mas... -parou para respirar ruidosamente -...prometo nunca revelar o que sei se eles me entregarem a Bíblia imediatamente. De outra forma estarão completamente perdidos.
-Hans, o que eles vão fazer é escorraçarem-no daqui para fora ainda hoje.
-Fale-lhes no papiro número 9, quarta linha... E verá.
Randall afastou o homossexual do seu caminho, abriu a porta e saiu.
Perfeitamente, ia ver.
Uma hora depois já tinha visto.
Randall estava sentado à sua escrivaninha, colocou o telefone no ouvido, preso pelo ombro, esperando que a telefonista dos escritórios de Karl Hennig, em Mairiz, localizasse George Wheeler.
Enquanto esperava, de novo olhava às folhas de papel datilografadas com as notas que obtivera. Representavam o que conseguira saber sobre o «lapso fatal» de Bogardus no papiro número 9, linha 4, do Evangelho Segundo Jacob.
Foi difícil adquirir as informações. Por um lado, Randall não era um erudito nem um estudioso. Por outro lado, não tinha acesso aos fragmentos originais guardados no cofre forte do subsolo. E ainda pra piorar todos esses empecilhos, não sabia ler aramaico. A última coisa que constituíra o principal impedimento, visto lembrar-se, de repente, que possuía um jogo completo de fotografia tiradas por EdIund dos papiros, o único jogo de fotografias existentes. O material encontrava-se bem fechado no seu arquivo privativo.
Estudara atentamente o perfeito close-up do fragmento marcado com o número 9, todavia, indecifrável e desprovido de significado com os seus rabiscos, pontos e caracteres cheios de arabescos, a maioria ainda por cima pouco nítidos. Mas, a impressão estava acompanhada por uma lista dos títulos dos capítulos, pelos respectivos números dos parágrafos, designando onde cada uma das linhas em aramaico, figurava nas traduções do Evangelho Segundo Jacob. O Papiro Número 9, linha 4, correspondia a Jacob 23:26 na edição inglesa do Novo Testamento Internacional.
Uma vez que não lhe permitiram ficar com uma cópia da Bíblia que lera, Randall concentrou idéias para ver quem teria um exemplar à mão. Os editores estavam longe de Amsterdã. O Dr. Knight destruiu as suas fotocópias. Nessa seqüência, Randall lembrou-se que o Dr. Knight utilizou as páginas das provas contidas na pasta do Dr. Jeffries.
Localizou o professor de Oxford no seu gabinete e o teólogo mostrara-se encantado em cooperar. Ummm... Jacob 23:66... Ummm, vamos ver. Randall retirou-se do gabinete com a linha traduzida: «Na sua fuga de Roma, Nosso Senhor, juntamente com os discípulos caminhou durante toda essa noite através das abundantes terras de cultivo do Lago Fucino, um imenso pantanal que fora mandado secar e dragar por Cláudio César e que os romanos cultivavam e lavravam com os maiores cuidados».
Simples, fácil de compreender, perfeitamente inocente.
Onde é que estava o fatal lapso que Bogardus tinha descoberto e mencionado?
Os judeus foram escorraçados de Roma em 49 D.C., e Jesus com eles. Aquilo tinha-se passado no ano da morte de Cristo, o último ano da sua vida, segundo Jacob. O que é que havia de errado naquilo?
Sem revelar aquilo que procurava, Randall recrutara Elwin Alexander e Jessica Taylor para lhe descobrirem tudo o que houvesse a respeito do Imperador Cláudio, da expulsão Judaica de Roma em 49 D.C. e sobre aquelas terras de cultivo que outrora foram os pantanais do Lago Fucino, próximo de Roma. Os seus investigadores tinham rebuscado as obras dos antigos escritores - Tácito, Suetônio, Dion Cássio, o grupo que traçara a História Augusta, bem como os historiadores modernos, tanto anteriores como posteriores a Gibbon. Em resumo, a equipe de publicitários de Randall, acabara por lhe entregar fotocópias de todo o material investigado.
Catando, minuciosamente, por entre todo aquele material, de repente, Randall sentira os olhos ficarem presos a uma data. Abalado, reconheceu de imediato qual o deslize fatal a que Bogardus se referia.
O Lago Fucino, perto de Roma, foi uma grande bacia de água sem saída para o mar. Regularmente, quando chegava a estação das chuvas na antiga Roma, as águas do Fucino elevavam-se acima do nível do leito, transbordavam e empapavam as terras circundantes, transformando-as em pantanais.
O Imperador Cláudio contratara engenheiros para dragarem e secarem o lago permanentemente. Esses engenheiros desenvolveram um colossal plano. Fora uma tarefa formidável. Foi escavado um túnel de 4 827 metros a partir do Lago Fucino, através da rocha viva de uma montanha adjacente, para canalizar a água até ao rio Ciris. O Imperador Cláudio deslocara trinta mil trabalhadores que, durante um decênio, escavaram e construíram o túnel de drenagem. Logo que ficou completado, as águas do lago foram totalmente despejadas no rio e depois do lago seco a depressão, bem como as terras pantanosas circundantes, converteram-se em belíssimas terras de agricultura.
Segundo o Evangelho de Jacob, Jesus caminhara por essas terras agrícolas, que outrora foram o Lago Fucino, em 49 D.C. Ora, segundo os historiadores romanos, Cláudio César só
mandara escoar as águas do lago, transformando as terras pantanosas em terras de cultivo no ano 52 D.C.
O lapso, o lapso descoberto por Bogardus.
Jesus, fugitivo, passara pelas terras secas do lago em 49, apesar do fato irrefutável do lago existir ainda nessa data, só sendo esvaziado da sua água três anos depois de Cristo ter morrido.
O anacronismo, a discrepância no Evangelho Segundo Jacob ali estava, bem à vista para quem quisesse ver. Possivelmente ninguém ainda se dera conta do deslize com exceção do bibliotecário. No entanto, se a passagem fosse sublinhada, mostrada a todo o mundo, sem a mínima sombra de dúvida que as pessoas ficariam tão perturbadas, como Randall estava naquele momento. Devia haver uma explicação para aquele deslize.
Ainda à espera da chamada para Mainz a fim de falar com George Wheeler, Randall pensava que o editor não teria dificuldades em resolver o problema com justiça. E uma vez o caso sanado, Bogardus seria despedido de imediato e a Ressurreição Dois estaria, finalmente, a salvo das garras de Dominee de Vroome.
A telefonista alemã do complexo impressor de Hennig estava de novo falando:
-Herr Wheeler já foi avisado. Em breve atenderá o telefone.
Depois ouviram-se uma série de arranhadelas e clicks e, logo a seguir, a voz de Wheeler chegando aos tímpanos de Randall como um trovão.
-Alô! Quem fala daí... Steve Randall?
-Eu mesmo, George. Tenho que...
-Arrancaram-me precisamente de uma reunião importantíssima. Disseram-me que era uma chamada de urgência. Que raio pode haver que seja assim tão importante? Não será coisa que possa esperar até eu regressar?
Não obstante a irritação manifestada por Wheeler, Randall persistiu:
-Não, George, não é coisa que possa esperar. É na verdade importantíssimo. Deparou-se-nos aqui um problema tremendo a resolver.
-Se se trata de algo ligado à publicidade...
-É uma coisa que diz respeito a todo o projeto em si, que se relaciona com a Bíblia. Vou informá-lo rapidamente. Ontem à noite encontrei-me com o Reverendo Maertin de Vroome.
-Como? Você encontrou-se com de Vroome?
-Exatamente. Foi ele que me mandou procurar. Senti-me tão curioso que fui.
- Foi um passo perigoso. O que é que o homem queria?
- Contar-lhe-ei os pormenores quando você voltar. A coisa que interessa...
- Steve, escute, amanhã falaremos sobre o caso. - A voz de Wheeler tinha uma entoação de pressa. - Agora tenho que me juntar aos outros editores e a Hennig. Estamos numa reunião de emergência. Ocorreu um caso insólito. Falamos depois...
- Parece-me que sei perfeitamente o que é essa emergência - interrompeu Randall. -Descobri que Plummer e de Vroome estão tentando fazer chantagem com Hennig. Possuem provas de que ele foi um dos nazistas queimadores de livros em 1933.
Do outro lado do fio veio uma exclamação de surpresa.
-Como é que descobriu isso?-perguntou Wheeler.
-Fui informado por de Vroome..
- Esse filho da mãe...
-O que é que vocês vão fazer a respeito do caso? - perguntou Randall, curioso.
- Ainda não temos certeza. De Vroome possui os negativos e algumas fotocópias, mas a verdade é que as fotografias podem mentir. Neste caso particular as fotografias deslustram a verdade dos fatos. Nessa altura Karl Hennig era ainda uma criança, mal acabara de entrar para a escola preparatória. Para ele, os outros divertiam-se nas ruas e quis juntar-se à diversão. Que rapaz não se sentiria tentado a atirar ao fogo as obras maçudas que figuravam nas seletas? De nenhuma maneira foi um nazista, nem sequer fez parte da juventude Hitleriana. Mas se a coisa for revelada, distorcida, tornada objeto de sensacionalismo... Bem, você que é um homem da publicidade sabe muito como é...
-Bem sei. O quadro apresenta-se negro. Prejudicará as vendas.
- Bom, mas nada será revelado - garantiu Wheeler em tom convicto. - Temos vários planos para amordaçar os nossos inimigos. Uma coisa é certa: de modo nenhum pagaremos o preço exigido por de Vroome. Não lhe entregaremos antecipadamente o nosso segredo seja porque preço for.
- Foi precisamente por isso que lhe telefonei, George. Acabo de descobrir uma situação similar de chantagem precisamente aqui no KrasnapoIsky. E pretendo saber até...
- Qual situação de chantagem? O que é que se passa por aí?
Resumindo, Randall contou-lhe como, durante a reunião com de Vroome, acabara por ser levado a descobrir a identidade do traidor ao projeto.
-E quem é ele? -quis saber avidamente o editor.
- O nosso bibliotecário. Hans Bogardus. Estive com ele ainda não há uma hora. Confessou. Mas está disposto a...
- Está despedido!-urrou Wheeler.- Você disse-lhe que estava despedido, não é verdade?
- Não... um momento, George.
- Vá procurá-lo e diga-lhe imediatamente que vai para o olho da rua. Diga-lhe que a autorização lhe foi dada, pessoalmente, pelo Dr. Deichhardt e por George Wheeler. Mande chamar Heldering e os seus guardas e atire para a valeta esse filho da puta do Bogardus com um bom pontapé no cu.
- Não é assim tão simples como isso, George. Foi essa a razão porque lhe telefonei.
-O que é que quer dizer com essas palavras?
- Está tentando fazer chantagem pessoalmente. Afirma ter descoberto uma prova insofismável que desafia a autenticidade do Evangelho Segundo Jacob. Diz que entregará essa prova ao seu amante, Cedric Plummer... não se admire são essas relações que os ligam... e diz que fará explodir a Ressurreição Dois como um barril de dinamite se o despedirem.
- Que raio está você para aí dizendo, Steve? Que prova é essa?
Randall agarrou no seu maço de notas e leu a Wheeler a passagem de Jacob sobre o Lago Fucino e as investigações feitas aos historiadores romanos e aos mais modernos sobre o mesmo caso.
- Ridículo! - explodiu Wheeler. - Temos os maiores peritos que existem no mundo... peritos na datação dos documentos, em crítica aos textos, em língua aramaica e eruditos na história romana e do povo judaico. Foram anos de trabalho. Cada uma das palavras, frase, período, parágrafo de Jacob estudados através de lentes de aumentar, foram analisados pelos olhos mais sabedores do globo terrestre, pesados pelos cérebros mais evoluídos do mundo. E todos eles, unanimemente, sem uma única exceção, aprovaram o Evangelho Segundo Jacob, autenticaram-no sem vacilações. Por isso, quem é que acreditará num bibliotecário maricas falando de um erro impossível?
- George, é possível que não acreditem, nem ouçam um bibliotecário maricas e minhocas, apagado, mas com certeza que todo o mundo acreditará e ouvirá o Dominee Maertin de Vroome, se for ele a obter o segredo.
-Pois bem, o Dominee não obterá nada, porque não há nada a obter. Não existe qualquer erro. O achado de Monti é real. A nossa Bíblia é à prova de todas as contingências.
- Então, como é que você explica o caso do nosso Novo Testamento descrever Jesus passeando através de um lago seco perto de Roma, que na verdade só foi drenado três anos depois da data apontada no nosso Evangelho?
- Tenho a certeza que você ou Bogardus devem estar errados. Enganaram-se. Não há a mínima dúvida quanto a isso. - Fez uma pausa. - Está bem, está bem, só para lhe sossegar o espírito, leia-me novamente esse material...devagar. Um momento...Vou procurar um lápis e um pouco de papel. Leia-me lá essa coisa sem pés nem cabeça.
Randall leu o mais lentamente possível, destacando bem as palavras.
- É tudo, George - disse quando terminou.
- Obrigado. Vou mostrar aos outros. Mas isto não nos levará a parte alguma. Pode esquecer o caso. Continue a proceder como habitualmente. Primeiro vamos resolver o nosso problema aqui.
- Ok - proferiu Randall, sentindo-se tranqüilo. - Então vou prosseguir com a dispensa de Bogardus. Farei com que o inspetor Heldering o escolte até fora do hotel, para nunca mais entrar.
Do outro lado do fio fez-se silêncio, um silêncio curto. Logo a seguir, aos ouvidos de Randall chegou uma voz vacilante:
-A respeito de Bogardus...evidentemente, que o vamos correr daí para fora. Mas, depois de refletir, julgo que essa atitude deve ser assumida por nós. Isto é... um empregado como Bogardus não está sob a sua alçada. O Dr. Deichhardt gosta, que em tais assuntos, as coisas se façam o mais corretamente possível. Sabe como são os alemães. Vou dizer-lhe o que fazer. Por hoje esqueça-se do que há a respeito do Bogardus. Continue fazendo o seu trabalho. Amanhã, quando regressarmos, cumpriremos o nosso dever. Penso que é a melhor maneira de agir. Pronto, agora é melhor voltar para a reunião a fim de resolvermos este problema mais imediato com Hennig... Ummm... a propósito, Steve, grato pela sua vigilância. Em Amsterdã diminuiremos essa brecha no dique. Merece um bônus. E quanto a esse... esse lago... como é o nome dele... ah, Fucino... bom, esqueça-o. E Wheeler desligara.
Randall desligou também o telefone.
Todavia, cinco minutos depois, sem se ter mexido da sua cadeira rotativa, Randall não fora ainda capaz de esquecer o Lago Fucino.
Tentou determinar o que é que o perturbava.
Descobriu.
Fora a modificação no tom de voz de George Wheeler e a mudança de atitude do editor, quanto a despedir Hans Bogardus. Em termos rudes, Wheeler quisera, primeiramente, o bibliotecário imediatamente posto fora do Krasnapolsky. Mas, depois de saber da descoberta e da ameaça de Bogardus, Wheeler tornara-se de súbito menos insistente a respeito de despedi-lo imediatamente.
Estranho. Havia algo que perturbava ainda mais Randall: a maneira casual como Wheeler pusera de parte o anacronismo que Bogardus descobrira. Wheeler não o refutara com quaisquer fatos novos e concludentes. Simplesmente, levantara a ponta do carpete e varrera o lixo incômodo pra baixo. Evidentemente, Wheeler não era um teólogo, ou um erudito, por isso, não esperava dele respostas fidedignas. Mas, pensou Randall, melhor seria que alguém descobrisse muito depressa uma explicação para tal discrepância.
Endireitou-se na cadeira. Ele, Steve Randall, era em si mesmo um dos guardiães da Fé, da nova Fé. Tanto na sua qualidade de ser humano, como de homem da publicidade, não podia vender, sob qualquer hipótese, ao mundo (ou que fosse contrário ao senso do seu espírito de verdade) se não tivesse respostas exatas dadas a todas as perguntas que se levantassem.
Ora ali, na sua escrivaninha, estava uma pergunta. O lapso de Bogardus. A credibilidade do projeto seria destruída se não lhe fosse dada resposta.
É verdade que era um detalhe sem importância. Todavia...
Pela mente passou-lhe um velho, muito velho, adágio. De quem era? De George Herbert... ou talvez, de Benjamin Franklin. “Por falta de um prego, perde-se a ferradura; por falta de uma ferradura, perde-se o cavalo; por falta de cavalo, perde-se o cavaleiro.”
Pois bem, aquele cavaleiro não se perderia.
Começaria por verificar a solidez de todos os pregos que seguravam a ferradura.
Randall lançou mão do telefone.
- Angela, faz uma ligação para Naomi Durin. Diz-lhe que pretendo uma passagem de avião para Paris dentro das mais próximas duas horas. Diz-lhe para me arranjar uma entrevista, ainda esta tarde, com o Professor Henri Aubert no laboratório dele.
- Outra viagem? É alguma coisa importante, Steve?
- Apenas investigações. Mais umas pesquisas.
Randall estava mais uma vez em Paris, no Centre National des Recherches Scientifiques da Rue Ulm, onde o Professor Aubert tinha o seu gabinete e os seus laboratórios.
Naquele momento, sentados nos extremos opostos de um sofá Louis XVI, enfrentavam-se, enquanto Aubert abria a pasta de arquivo que um contínuo lhe acabava de entregar.
Antes de considerar o conteúdo da pasta, Aubert coçou uma das suas bastas sobrancelhas, refletindo-se-lhe no rosto uma certa contrariedade.
- Não compreendo, Monsieur Randall, porque é que quer que reveja, uma segunda vez os resultados dos testes dos papiros Monti. Não lhe posso dizer nada de diferente, sobre as anteriores explicações que lhe facultei quando o recebi pela primeira vez.
-Apenas pretendo ter a certeza de que não descurou nada.
O professor continuou a não se mostrar satisfeito com a explicação.
-Nunca poderia descurar, sob qualquer hipótese, especialmente, a respeito dos papiros Monti.-Olhou atentamente para Randall, estudando-o. -Haverá qualquer coisa que o preocupe particularmente?
Randall admitiu:
-Para lhe ser franco, existe uma certa confusão à cerca da tradução de uma folha designada como Papiro Número 9.- Randall agarrou na pasta que tinha pousado no chão junto ao sofá, abriu-a e tirou a fotografia feita a partir do negativo de Oscar EdIund ao Papiro Número 9. - É esta precisamente disse, estendendo a fotografia ao Professor.
-Um belo espécime. -Aubert encolheu os ombros, resignado, num gesto autenticamente gaulês.-Pois muito bem. Vou então rever os nossos testes sobre os papiros.
Randall colocou a fotografia na pasta, encheu o cachimbo e foi puxando lentas fumaças, enquanto, observava o professor percorrendo, atento, os relatórios das experiências. Aubert retirou da pasta duas folhas de papel amarelado e leu-as com cuidado. Depois de um intervalo, encarou de novo Randall.
- Os sumários aos nossos testes com o carbono-14 confirmam aquilo que o senhor já sabe. Os papiros em causa são absolutamente autênticos. Derivam do século 1 e podem com lógica ser localizados em 62 D.C., altura em que Jacob escreveu sobre a fibra prensada chamada papiro.
Randall tinha que ter uma dupla certeza. Durante a viagem para Paris documentara-se.
- Professor, têm havido certas autoridades na matéria que se mostram altamente críticas quanto as experiências com o carbono-14. Por exemplo, G. E. Wright mandou analisar por três vezes um pouco de madeira muito antiga, obtendo três datas diferentes, tão distantes, como de 746 A.C. a 289 A.C. E depois que o Dr. Libby anunciou os testes feitos aos Documentos do Mar Morto em 1951, alguém escreveu, um ano depois, em The Scientific American, julgar que haviam muitas «contradições perturbadoras e fraquezas» a respeito do sistema de datação pelo radiocarbono, e que o processo estava ainda, longe de ser «tão funcional como uma máquina de lavar pratos». O senhor considerou todas as margens possíveis de erro?
O Professor Aubert sorriu.
-Claro que sim. Considerei. Evidentemente, os críticos tinham razão, pelo menos, aqueles mencionados pelo senhor, e que falaram de largas margens de erro no decênio dos anos cinqüenta. Naquele tempo, através dos nossos testes, podíamos determinar a datação de um objeto num espaço de cinqüenta anos, desde a verdadeira data. Mas, gradualmente, com melhoramentos introduzidos, com condições mais favoráveis, conseguimos determinar a data de um objeto antigo com uma ligeira margem de vinte e cinco anos desde a origem. -Pôs a parte a pasta de arquivo. -Se tem quaisquer apreensões a respeito da autenticidade do Papiro Número 9, pode pô-las de lado. Tenho os meus relatórios sobre as experiências e a minha longa experiência em conseguir interpretá-los. É mais do que suficiente. De fato, modéstia à parte, a minha palavra deve ser suficiente para o sossegar. Monsieur Randall, pode confiar em mim.
-Poderei? -perguntou Randall de chofre. Não pensara deliberadamente em expor cruamente as suas dúvidas, mas estava demasiado em causa para que tentasse camuflar a verdade. - Tem a certeza que posso confiar completamente em si?
O Professor Aubert, que principiara a levantar-se, preparando-se para dar a entrevista por finda, voltou a deixar-se cair no sofá. As suas feições aquilinas tinham enrijecido.
- Monsieur, quer-me explicar o que é que está insinuando?
Randall viu que tinha ido longe demais para recuar, por isso, prosseguiu:
- Insinuo que o Professor poderá não ser completamente honesto para mim.Principalmente naquilo que me contou de si próprio da primeira vez que nos encontramos.
O Professor Aubert fitou Randall durante um segundo. Quando voltou falando fê-lo cauteloso, perguntando:
- Posso saber ao que pretende referir-se?
- Empenhou muito da sua nova fé no futuro. Nessa altura, disse-me que conseguira finalmente, dar a sua esposa o filho que ela tanto desejava. Mas, desde então, soube por certa fonte secreta que o senhor se submeteu a uma vasectomia; que voluntariamente, há já vários anos, se tornou estéril por meio de uma operação aos testículos, de modo que... não pode... seria incapaz de engravidar uma mulher.
Aubert mostrava-se visivelmente abalado.
-A sua fonte, Monsieur... Quem lhe deu tal informação?
-O Dominee Maertin de Vroome, que parece ter procedido investigações íntimas, sobre muitas pessoas relacionadas com o nosso projeto. Foi ele quem me deu semelhante informação a seu respeito.
-E acreditou nele? Afinal de contas, Monsieur, viu a minha mulher, Gabrielle. Viu com os seus olhos que ela estava em adiantado estado de gravidez.
A conversa tornava-se cada vez mais melindrosa e difícil para Randall. Não obstante, estava decidido a prosseguir.
-Professor Aubert, eu não disse que a sua mulher não podia dar à luz um filho. Disse que, segundo de Vroome, o senhor não lhe podia dar um filho, embora me tivesse dito que podia. -Hesitou, mas acabou por acrescentar: -Acredite que só lhe menciono isto devido discutirmos o grau de confiança.
O Professor Aubert abanou a cabeça, quase como se fosse pra si mesmo, e pareceu perder algo da sua rigidez.
- Pois muito bem. Tem razão. Se o que pretende, no entanto, tiver de depender a minha palavra, pode confiar nela sem a mais sombra de dúvida. E essa confiança não pode admitir exceções. O que o seu informante lhe disse é verdadeiro. Submeti-me à operação chamada vasectomia há muito tempo, foi uma besteira da minha parte. Sou na verdade estéril. Incapaz de engravidar uma mulher. No entanto, trata-se de uma coisa que geralmente uma pessoa não gosta de propalar publicamente, e que nada tem a ver com a integridade da minha palavra de honra.
O que é importante e se mantém, é a verdade do que lhe disse sobre a influência que o Petrônio e o Jacob tiveram sobre renovar a minha fé. Quer quanto à autenticidade do pergaminho e dos papiros, quer quanto à fé, fui-lhe franco e verdadeiro. Posso acrescentar, que foi também, verdade ter informado Gabrielle, que desejava um filho, tanto ou mais do que ela. E por isso... disse-lhe para buscar a maneira de engravidar.
Randall sentiu-se envergonhado de ventilar tal assunto e foi tomado de um sentimento de asco quanto ao Dominee de Vroome por o obrigar a desconfiar dos seus colegas.
- Professor Aubert, peço-lhe desculpa. Lamento profundamente ter duvidado da sua palavra.
O cientista francês tentou sorrir, mas não conseguiu mais do que um esgar doloroso.
-Foi perfeitamente compreensível a sua atitude dadas as circunstâncias especiais. Agora já se sente satisfeito?
- Sim, inteiramente satisfeito - respondeu Randall, preparando-se para partir. - Queria ter a certeza que a escrita do papiro era do tempo de Cristo, e o senhor garantiu-me aquilo que desejava saber.
Mais uma vez o Professor Aubert endireitou-se e tomou um tom estritamente profissional.
- Pardon, Monsieur Randall, mas julgo que não me compreendeu. Eu não lhe garanti que a escrita nos papiros fosse do tempo de Cristo, mas, apenas que os papiros remontam a esse tempo. O nosso processo de datação por intermédio do radiocarbono autentica os papiros, mas não o que neles se contém. Os nossos testes mostraram que o material utilizado para o Evangelho Segundo Jacob – incluindo, nesse exemplo, o que se encontra representado no Papiro Número 9 - remonta na verdade a esse período. Quanto à mensagem escrita no papiro... embora tenha a certeza de que é também autêntica, devo contudo informá-lo que não pertence ao meu setor de estudos, não faz parte da minha especialidade científica.
Tal distinção nunca até então ocorrera a Randall. Apanhara-o completamente de surpresa.
- Bem... então a que setor, a que especialidade pertence? Quem é que autentica a grafia, o processo de escrita?
-Trata-se de um processo que requer grande número de especialistas. Com notoriedade para o trabalho de dois cientistas especializados. Um deles, examinara o papiro à luz de uma lâmpada ultra-violeta, para ver se contém antigos sinais de outros símbolos gráficos, evidentemente, para determinar se alguém utilizou um velho papiro eliminando-lhe a antiga escrita. Outro cientista, um químico, fará uma análise química dos pigmentos da tinta. Por exemplo, no caso particular de que falamos, Jacob usou um cânhamo cortado em diagonal para obter uma ponta aguçada. Molhou o cânhamo em tinta noir de fumée – pó de sapato - secular processo de obtenção de tinta da qual se conseguia a ligação por meio de qualquer forma de aglutinante. Essa tinta pode ser analisada para se saber se pertence ao período geral de 62 D.C.
-Mas quem é que procede à análise da escrita propriamente dita, ao estilo concordante?
- Eruditos de grande experiência, teólogos, comentadores especializados. Esses homens comparam os fragmentos de aramaico com outros escritos na mesma linguagem que já foram autenticados. Examinarão se o texto foi escrito no lado certo do papiro e não no verso ou na contra-folha. Mas, claro que o critério mais importante será a qualidade e estilo - ou uso corrente - da antiga linguagem, sem que possa haver um deslize. Deve saber com certeza que cada época fornece um estilo peculiar que a torna sui generis textualmente. - O Professor Aubert ensaiou um sorriso. -Está claro que tudo isso foi já feito por perfeita equipe de peritos, para verificarem a escrita. Não vejo nenhuma razão pela qual se possa duvidar desses homens.
-Tem toda a razão. No entanto, digamos que eu sou pouco razoável e teimoso. Suponhamos que eu tenha ainda uma pequena dúvida. Como poderia eu vê-la dissipada?
-Muito simples. Teria de ir consultar o mais proeminente perito do mundo em aramaico. Só assim as suas dúvidas poderiam desaparecer por completo.
-E quem é o maior perito do mundo em aramaico?
-Existe um que leva na palma todos os outros. Claro que há muitos outros excelentes e de confiança, como o Dr. Bernard Jeffries, da Ressurreição Dois, ou o Reverendo Maertin de Vroome, da facção oposicionista. Mas, bem acima deles, ergue-se a figura ímpar do Abade Mitros Petropoulos do mosteiro de Simopetra no Monte Athos.
-Abade Petropoulos... - Randall franziu a testa num evidente esforço para se lembrar de qualquer coisa. -O nome não me é familiar. E o Monte Athos ainda menos. Onde fica?
-Um dos últimos lugares, verdadeiramente exóticos, que ainda existem no nosso mundo moderno. Athos é uma comunidade monástica independente, que se ergue numa península remota da Grécia, cerca de 300 quilômetros a norte de Atenas, através do Mar Egeu. Trata-se de um território diminuto e com autogoverno que engloba vinte mosteiros de religião, grega ortodoxa, governado por um Santo Sínodo, em Karyes, composto por um representante de cada mosteiro. A comunidade religiosa do Monte Athos foi estabelecida há cerca de mil anos, provavelmente no século IX, por Pedro o Athonita, e foi a única comunidade cristã que sobreviveu ao domínio islâmico ou turco. No começo do nosso século haviam, segundo creio, quase oito mil monges nos montes da península de Athos. Hoje, poucos mais haverão do que três mil.
Tudo aquilo era novidade para Randall e tinha um estranho som bizarro, exótico.
-Esses monges... que raio fazem eles nesse local?
-O que é que fazem os monges em qualquer lado? Rezam. Procuram o êxtase, a unicidade com Deus. Buscam a revelação divina. Presentemente, no Monte Athos existem duas seitas. Uma cenobítica, ortodoxa, austera, rígida, conforme os votos de pobreza, castidade e obediência total às regras da disciplina. A outra seita é idiorrítmica, mais flexível, mais democrática, permitindo o dinheiro, os haveres pessoais, o conforto. Claro que o Abade Petropoulos é um monge cenobita. No entanto, a sua grande reputação em aramaico tornou-o uma pessoa mais mundana. Estuda tanto quanto ora; tal como muitos outros monges, ensina, pinta ou devota-se à jardinagem quando não está ocupado nas suas devoções.
-Já se encontrou com o Abade? - perguntou Randall.
-Não, nunca o vi pessoalmente, mas falei com ele em certa ocasião pelo telefone-parece uma incoerência, mas muitos dos mosteiros têm telefone-e de vez em quando correspondo-me com ele. O Monte Athos é um perfeito armazém de manuscritos antigos-pelo menos existem nas suas bibliotecas dez mil manuscritos de grande antigüidade-e por várias vezes, quando acontece serem descobertos pergaminhos medievais esquecidos, o Abade Petropoulos recorre a mim para lhes fazer os necessários testes. Sim, sei perfeitamente, por tudo o que tenho ouvido, às mais altas autoridades na matéria, que o Abade é a maior autoridade em aramaico do primeiro século da era cristã.
Durante aquela última parte da exposição do Professor Aubert, Randall vasculhou sua pasta e localizado a lista do pessoal especializado que tinha trabalhado, ou que ainda trabalhava no Hotel KrasnapoIsky em Amsterdã. Percorreu a lista reservada aos peritos e tradutores de nomeada internacional empregados no projeto. Entre os nomes não figurava o do Abade Mitros Petropoulos. Randall olhou para o professor.
-É estranho, mas, o nome do abade não figura na lista dos consultores passados, ou presentes, que trabalharam para a Ressurreição Dois. Ora aqui temos nós a descoberta arqueológica religiosa mais importante de toda a história, escrita precisamente em aramaico.
O professor fala-me do maior perito do mundo em aramaico, e, todavia, ele nunca fez parte do nosso projeto. Tem alguma idéia conclusiva sobre o fato de nunca consultarem o abade?
-Tenho certeza que o consultaram em qualquer altura -disse o Professor Aubert, mas revelando pouca convicção no tom de voz.-Seria inconcebível, para uma descoberta como o Papiro Jacob, que o abade não visse os originais. Deve haver qualquer explicação.
-Mas que explicação, pergunto eu?
-Fale com Dr. Deichhardt ou Monsieur Wheeler. Foram eles que contrataram os tradutores. Devem saber alguma coisa. Ou então, procure o Professor Monti. Esse com certeza será a fonte informativa mais segura.
- Claro que sim - respondeu Randall devorado pela incerteza. Lembrou-se de repente que seria impossível poder falar com Wheeler, ou com qualquer outro dos editores, que se encontravam em Mainz. Quanto ao Professor Monti, no seu retiro em Roma, era também difícil de conseguir. Outra idéia repentina lhe passou pela mente. - Professor Aubert, acabo de ter uma idéia que pode ajudar a esclarecer o caso relativamente ao Abade Petropoulos. Posso servir-me do seu telefone?
O Professor Aubert levantou-se do sofá e indicou-lhe o telefone.
-Pode usar o meu telefone e ficar à vontade. Tenho que entregar esta pasta ao arquivo geral e ver o que se está passando no laboratório. Dentro de dez minutos estarei de volta. Quer que peça à minha secretária para lhe fazer a chamada?
-Se não se importar... queria falar com nossa sede em Amsterdã, mais particularmente com Miss Angela Monti.
Randall estava falando com Angela ao telefone havia já alguns segundos. Presumira que queria saber se houvera qualquer problema no escritório que requeresse a sua atenção. Naquele momento, como que por casualidade, lançara a pergunta que lhe queimava a língua.
-A propósito, Angela, há mais uma coisa que te quero perguntar. Depois de teu pai ter realizado o achado levou-o para consultar a qualquer perito destacado em aramaico - ou isso foi coisa, que os editores tivessem apenas feito após a concessão do governo italiano?
- Claro que sim, meu pai fez examinar o papiro por peritos em aramaico. Meu pai sabe suficiente aramaico para avaliar o valor da descoberta, mas claro que não confiou apenas nele. Tinha que saber a opinião dos mais proeminentes eruditos em línguas semitas.
- Só em Roma? Ou resolveu consultar eruditos noutras partes do mundo?
- Fez consultas em toda a parte. Era uma coisa necessária. Sabes bem os resultados. - Ocorreu um curto silêncio. - Porque perguntas isso, Steve?
- Apenas curiosidade.
- Apenas curiosidade? Conheço-te melhor do que pensas, Steve. Diz-me porque é que estás preocupado a respeito do aramaico?
Decidiu que não havia nenhuma razão para lhe ocultar o segredo. Naquela mesma manhã ela provara ser uma pessoa de absoluta confiança.
-Bem, não tenho tempo para entrar em pormenores. Consegui encontrar o traidor do nosso projeto. Não, não era o Dr. Knight. Foi outra pessoa. Soube da boca dessa pessoa que parece haver... bem... uma tradução errônea do aramaico... algo que poderá criar uma discrepância inexplicável no texto.
-Não! É impossível! Não pode ser! O texto dos papiros foi analisado por muitos especialistas em aramaico, os melhores do mundo.
-Pois bem, é isso precisamente que me preocupa-disse Randall.-Parece que não foram consultados os melhores especialistas do mundo. Acabei de saber aqui em Paris pela boca do Professor Aubert, que o erudito em aramaico mais destacado do mundo é o Abade Mitros Petropoulos, dirigente de um dos mosteiros do Monte Athos, na Grécia. Pois, não fui capaz de encontrar o nome dele na lista das pessoas que trabalham para a Ressurreição Dois. O seu nome diz-te alguma coisa?
- O Abade Petropoulos? Evidentemente que sim. Conheci-o pessoalmente. Meu pai sabia muito bem que ele era o mais proeminente erudito em aramaico e por isso, há cinco anos, fomos, eu e meu pai, ao Monte Athos pedir a opinião do Abade. Foi da maior hospitalidade e bondade para nós.
-O teu pai mostrou-lhe os papiros?
-Exatamente. Foi uma experiência inesquecível. O mosteiro... não me lembro do nome... era tão pitoresco... Bem, o Abade levou muito tempo examinando e analisando a escrita. Tivemos que ficar no mosteiro durante uma noite... comendo aquela horrível comida- penso que era polvo cozido... até o Abade completar, no dia seguinte, o seu exame. O monge ficou totalmente esfuziante com a descoberta. Disse que nada havia sobre a terra comparado com o Evangelho Segundo Jacob, assegurando-lhe a mais completa autenticidade.
-Ainda bem. Podes crer que foi muito bom ouvir-te essas palavras-disse Randall, com evidente alívio. -A única coisa que me intriga, é a razão que levou Deichhardt a escolher o Dr. Jeffries em vez de preferir o Abade Petropoulos para fiscalizar a tradução final do documento. Penso que se o abade é o mais erudito dos eruditos, devia ser ele a pessoa ideal para o serviço.
-Eles tentaram, Steve. Meu pai recomendou o Abade Petropoulos, e os editores quiseram contratá-lo, mas ele entrou num prolongado período de jejum e com a ajuda da dieta muito limitada do mosteiro, das condições insalubres, da água poluída, etc., enfraquecera de tal maneira que adoeceu gravemente. Quando eu e meu pai fomos vê-lo, ele ainda mostrava sintomas de fraqueza. Bom, em suma, quando o indicaram ao trabalho de tradução, o abade estava demasiado doente para poder deixar o Monte Athos e vir para Amsterdã, e os editores também não podiam esperar que melhorasse. Tiveram que se satisfazer com a verificação dos papiros pelo Abade Petropoulos. Não hesitaram em recorrer a outros tradutores, tidos aliás mundialmente como distintas autoridades em aramaico.
- Isso explica tudo - rematou Randall.
- Pronto. Diz-me agora quando é que deixas de te preocupar desnecessariamente e voltas para os meus braços?
- Podes apostar que vou voltar direto para os teus braços. Até logo à noite, querida.
Depois de desligar, Randall sentiu-se melhor. Se o Abade Petropoulos autenticou a escrita do papiro, tal como, o Professor Aubert autenticara o material para determinação da data, não havia mais problemas a levantar, nem perguntas. Se Hans Bogardus encontrou uma discrepância no texto, devia ser coisa sem importância, resultante de qualquer obscuridade de tradução. Randall tinha que deixar exames ulteriores para a competência dos editores e dos respectivos teólogos consultores. Quanto a si, tinha realizado trabalho suficiente e experimentava uma sensação de segurança de que o Novo Testamento Internacional - e a sua nova fé - estivesse bem protegido dos ataques inimigos.
Cinco minutos depois, pasta debaixo do braço, esperava à porta do gabinete do Professor Aubert para agradecer ao cientista sua generosa perda de tempo e prestimosa colaboração.
Logo que avistou o Professor, agradeceu-lhe efusivo.
- Vou voltar para Amsterdã. Já está tudo esclarecido.
- Ah, bon, sinto-me satisfeito - disse o cientista. - Permita-me acompanhá-lo até à porta. - Quando começou a caminhar pelo comprido corredor, o Professor voltou-se para Randall.-Soube por Mademoiselle Monti que o Abade Petropoulos trabalhou no projeto para os editores?
- Não, não exatamente para o projeto - respondeu Randall. -Mas há cinco anos, o abade viu e examinou os papiros contendo o Evangelho Segundo Jacob, autenticando a escrita. De fato o Professor Monti e a filha, Angela Monti, fizeram uma viagem à Grécia e passaram dois dias juntos do Abade Petropoulos no mosteiro do Monte Athos, enquanto ele examinava o texto em aramaico.
O Professor Aubert olhou vivamente para Randall:
-Disse-me: que Mademoiselle Monti foi com o pai visitar o abade ao mosteiro do Monte Athos?
-Exatamente.
- Visitaram juntos o Monte Athos?
- Sim Miss Monti e o pai estiveram lá juntos? Foi Miss Monti quem lhe disse isso? -perguntou o Professor Aubert com incredulidade.
- Sim, foi ela quem me disse.
O Professor Aubert atirou a cabeça para trás e soltou uma vigorosa gargalhada.
- Pas possible.
Randall olhou atônito para o cientista,
- Que raio de tanta graça há no que eu disse?
O Professor Aubert tentou conter a vontade de rir. Acabou por passar o braço pelos ombros de Randall.
- Tem graça porque Mademoiselle Monti quis pregar-lhe uma peça. Esteve... como é que se diz em inglês?... fez o senhor de bobo...desfrutando.
Randall mantinha-se de cenho fechado.
-Não compreendo.
-Vai já compreender. Quem quer que conheça alguma coisa a respeito do Monte Athos lhe dirá que seria completamente impossível Miss Monti visitá-lo. Nem há cinco anos, nem nunca poria o pé na península. Não lhe falei no caso antes? Essa é uma das razões porque o Monte Athos é um único no mundo. Jamais foi permitido que alguma mulher atravessasse a fronteira daquela comunidade monástica. Em mil anos, nunca nenhuma mulher, obteve autorização para visitar o Mosteiro.
- Como?
- É a pura verdade, Monsieur Randall. Desde o século nono, devido aos votos de castidade, de modo a reduzir-se a tentação sexual, as mulheres foram proibidas no Monte Athos. Na verdade, com exceção dos insetos, borboletas e aves selvagens, que não se controla, foram até proibidas as fêmeas de qualquer espécie. No Monte Athos existem galos, mas não galinhas; bois, mas não vacas; carneiros, mas não ovelhas. Há gatos e cães, mas não fêmeas da sua espécie. A população é totalmente masculina. Nunca lá nasceu nenhuma criança. O Monte Athos é uma terra sem mulheres. Por isso, asseguro-lhe que se Mademoiselle Monti lhe disse que esteve lá, só podia estar brincando, a desfrutá-lo.
-Pelo contrário, falava-me com toda a gravidade-disse Randall com voz quase sumida.
Observando o rosto de Randall, o Professor Aubert deixou de rir.
- Talvez não tivesse ouvido bem. Talvez ela quisesse dizer que foi com o pai até à Grécia e o Professor Monti foi depois sozinho ao Monte Athos...
-Nenhum deles viu o abade-disse Randall firme -e o abade nunca pôs os olhos no aramaico traçado nos papiros. -Fez uma pausa.- Mas garanto-lhe, que verificará os documentos, porque serei eu quem vai ter com ele. Professor Aubert, como é que se consegue chegar ao Monte Athos?
Cerca de dois dias depois, incrivelmente, Steve Randall encontrou-se de súbito projetado praticamente para a Idade Média. Era um princípio de tarde banhado pelo glorioso sol grego. Havia acabado de chegar ao seu destino, o mosteiro de Simopetra, um velho, vetusto edifício construído em pedra e madeira, com galerias e balcões salientes, como que suspensos à beira de penhascos, a mil e duzentos pés acima do Mar Egeu.
Transportava uma bolsa de mão, leve, cheia com uma muda de roupas interiores e alguns artigos destinados aos seus arranjos de «toilette», comprados à pressa em Paris, sem esquecer, claro está, a sua preciosa pasta. Nesse momento, atravessava um pátio poeirento e servia-lhe de guia o irmão-porteiro, Padre Spanos, um monge de meia idade, vestindo uma batina púrpura.
O irmão-porteiro recebeu-o montado no burrico, em que se fizera conduzir até ao cimo do monte por um guia nativo, o jovem Vlahos, sempre cercado por um forte cheiro a alho e queijo cabreiro.
- Siga-me, siga-me - cantava-lhe ao ouvido a voz de tenor do Padre Spanos no seu rude inglês.
E Randall, já sem fôlego, seguia o ágil monge para o interior do mosteiro de Simopetra, subindo arrastado os desconjuntados e íngremes degraus de madeira.
Lá ao longe soou algo como um martelo batendo contra uma bigorna, mas um som que tinha algo de cana rachada ou de sino com uma brecha.
Randall parou, admirado com o som, perguntando:
-Que é isto?
Tendo já chegado ao cimo das escadas, o Padre Spanos disse para baixo:
-A segunda chamada para o semandron. É um martelo de madeira batendo contra uma prancha de cipreste, convidando os nossos cem irmãos à oração. A primeira chamada faz-se à meia-noite. A segunda agora, depois da refeição do meio-dia. Agora é para as vésperas. A terceira congregação de orações é feita pouco antes do anoitecer.
Randall chegou, finalmente, ao cimo da escadaria.
- Quanto tempo demora este período da liturgia?
-Três horas. Mas não tenha medo. Não terá que esperar tanto pelo Abade Petropoulos. Ele espera-o. As suas devoções serão abreviadas. - O monge descerrou os lábios num sorriso. - Está esfomeado, não é verdade?
- Bem...
- Tem a refeição preparada. Quando acabar de comer o abade já despachou-se. Venha.
Randall percorria agora atrás do Padre Spanos um comprido e largo corredor, desagradavelmente úmido, com as paredes caiadas. A distância certa, a monotonia do corredor era quebrada por colunas bizantinas, e, por um ou outro afresco, representativo de qualquer santo com os seus perscrutadores olhos protuberantes como em todos os ícones. Entraram finalmente na sala de recepção, ou de hóspedes, pouco diferente de uma cela, embora muito mais ampla. No centro via-se uma comprida mesa e dois bancos um de cada lado, de madeira bem polida. No meio da mesa estava colocado um prato de estanho, na frente um jarro do mesmo metal que, como tampa, usavam uma maçã. De um lado do prato havia um garfo de ferro, de limpeza duvidosa, e do outro uma larga colher de madeira.
O Padre Spanos indicou a Randall o lugar à mesa que estava posto.
-Agora coma descansado. Depois da refeição, o abade recebê-lo-á em seu gabinete, que fica na porta ao lado.
- Como está o Abade? Ouvi dizer que está bastante doente nestes últimos cinco anos.
- Sim, tem andado adoentado. Perturbações intestinais. Teve um período de febre tifóide. Mas é muito rijo e resistente. O clima, a vida espiritual, as ervas secas medicinais, e o poder derivado do toque dos sagrados ícones têm feito voltar a força ao corpo do Abade Petropoulos. Já está praticamente curado.
- Nestes anos mais recentes fez alguma viagem fora do Monte Athos?
- Não. Bom, quer dizer, foi duas vezes a Atenas. Mas projeta muito em breve viajar para além da Grécia. -O Padre Spanos, voltou-se e bateu as mãos com vigor. -Um acólito vai servi-lo.
- Padre, antes de ir embora, mais uma pergunta. Ouvi dizer que é vedada a entrada a mulheres nas santas comunidades da península. É verdade?
O Padre Spanos, fez um sinal confirmando com a cabeça e disse num tom cheio de solenidade:
-O édito foi decretado há dez séculos. Nenhuma fêmea, humana ou animal, conspurcou jamais as nossas comunidades. Houve três exceções. Certa vez, em 1345, um rei Sérvio trouxe a sua mulher até a praia. Em tempos mais recentes, a Rainha Isabel da Romênia aproximou-se de um mosteiro, o mesmo fazendo Lady Strafford de Recliffe, mulher de um embaixador inglês, mas ambas foram expulsas. Para além de tais tentativas instigadas pelo Diabo, nunca uma mulher esteve no Monte Athos. Posso apresentar-lhe um exemplo. Em 1938 faleceu neste mosteiro o nosso venerável irmão Miahilo Tolto, com a respeitável idade de 82 anos. Viveu e morreu sem nunca ter posto os olhos numa mulher em toda a sua vida.
-Como é que isso foi possível?
-A mãe do Padre Tolto morreu ao dar à luz. Foi trazido em bebê, com quatro horas de existência. Foi crescendo e aqui atingiu a idade varonil, a idade madura e a velhice, sem nunca ter visto uma mulher. Mais um exemplo. -O sorriso de dentes cerrados do monge reapareceu. -Um ginecologista grego, saturado das suas doentes, quis ter a certeza de que podia fugir à perseguição delas, para poder repousar e conseguir a paz. Veio passar as férias em Monte Athos. Sabia muito bem que aqui estaria a salvo de qualquer mulher. Profunda verdade. Não sofremos as tentações de Eva. Somos nós apenas, os irmãos e Deus. Espero que aprecie a sua humilde refeição.
Logo que o padre Spanos se foi embora, surgiu um acólito, envolto numa longa batina, que principiou servindo o almoço a Randall. A comida era simples: papas de aveia, peixe cozido, queijo de ovelha seco, hortaliça, pão negro, café turco e uma laranja. Tanto Angela como o guia Vlahos, haviam-no preparado para o polvo cozido, mas Randall sentiu-se contente de não ser contemplado com semelhante prato. O jarro, cheio de um forte vinho tinto, conferiu mais sabor a tudo aquilo que comia.
No entanto, o pensamento de Randall não estava posto na comida, mas sim em tudo aquilo que acontecera em Paris dois dias antes.
Angela Monti voltara-lhe a trair a confiança. Mentira-lhe. Contara-lhe que visitara o Monte Athos, que era talvez o único lugar do mundo onde nunca poderia ter posto os pés.
Durante toda a sua árdua viagem, sentira-se cheio de uma raiva interior, dirigida principalmente contra Angela. Aprendera a amá-la e acreditou naquela italiana. Na semana anterior, quando pensara que ela era uma mentirosa e uma traidora, Angela provara-lhe que nenhuma das acusações era verdadeira. Fora imensa a satisfação sentida, passando a amá-la e a confiar nela ainda mais do que antes. De repente... aquela mentira estúpida.
Nos seus piores momentos, em viagem da França para a Grécia, nos diálogos íntimos que travara com ela, chamara-lhe selvaticamente mulher sem escrúpulos, traidora descarada. Normalmente seria incapaz de tratar qualquer mulher, ainda que fosse uma prostituta, em termos tão cruéis, mas não podia conter a raiva pelo enorme desapontamento. Fora principalmente, através de seu amor por Angela, que mais se radicara numa nova fé de essência religiosa, que o levara a crer devotado aos outros.
Quando a sua viagem terminara - por ironia numa terra onde as mulheres não eram admitidas -aquela particular mulher, ainda lhe dominava o pensamento. Se fisicamente Angela nunca estivera naqueles lugares, espiritualmente conseguira ultrapassar os mil anos de proibição dos monges e estava presente através dos pensamentos que lhe dedicava. Gradualmente, invocando-a com os olhos da memória, Randall sentiu que a ira se desfazia. Tentou inventar desculpas para a mentira dela, porque continuava a amá-la... mas não foi capaz de encontrar a mais leve desculpa.
Decidiu afastá-la do pensamento, varrê-la da idéia.
Passou em revisão os acontecimentos daqueles últimos três dias que o conduziram àquela península isolada do Egeu onde só o sexo masculino imperava.
Recordou a tarde da passada sexta-feira em Paris, depois da mentira de Angela... diacho, livra-te dela, arreda-a do teu pensamento, procede como um homem livre, concentra-te... quando, num súbito impulso, resolvera submeter o anacronismo descoberto por Bogardus ao julgamento final do maior perito do mundo em aramaico.
Depois, passara a manhã de sábado tratando das formalidades de conseguir um convite, depois uma licença, para visitar o Monte Athos. Sem o prestígio e o peso político do Professor Aubert, tal solicitação demoraria semanas e ser conseguida. Com os telefonemas feitos por Aubert, a licença demorara poucas horas. A Repartição Eclesiástica do Ministério dos Negócios Estrangeiros, concedera-lhe o seu diamonitirion, passaporte especial para visitar a República Independente de Athos, prometendo que o documento o esperaria em Salônica. Aubert entrara em contato com um seu colega da Universidade de Salônica, que, por seu turno, entrara em contato com o Abade Petropoulos em Karyes, na península de Athos, para uma entrevista. O Abade concordara em receber Randall no mosteiro de Simopetra. Depois de tudo tratado, os complexos arranjos para a viagem realizaram-se a toda a velocidade.
Uma vez estabelecido o seu itinerário, Randall fizera duas chamadas telefônicas para Amsterdã. Telefonara para o Hotel Victória a fim de deixar recado a Angela Monti que estaria ocupado durante cinco ou seis dias numa missão especial. A seguir ligara para George L. Wheeler no Hotel KrasnapoIsky, mas fora informado que o editor ainda se encontrava em Mainz, muito ocupado em tratar tudo com Hennig. Randall deixara apenas uma mensagem quase em código dizendo que visitaria o Abade Petropoulos a respeito da discrepância de Bogardus e que voltaria dentro de dois dias, a fim de preparar a campanha publicitária para o dia no qual anunciaria ao mundo o grande acontecimento.
Nesse mesmo sábado, entrara no aeroporto de Orly, em Paris, a bordo de um jato da Olimpic Airways com destino a Salônica, na Grécia. O avião percorrera a distância em menos de quatro horas. Percorrendo as largas avenidas de Salônica, ladeadas por casas de tipo greco-mourisco e com inumeráveis igrejas bizantinas de permeio, pegou seu passaporte no Consulado Americano, fizera reservas finais para o resto da viagem e passara uma noite de insônia no Hotel Mediterrâneo.
De manhã cedo, entrara a bordo de um sujo barco de cabotagem movido a óleos pesados, que deixava um cheiro nauseabundo, para a viagem de oito milhas até Daphni, o porto oficial que servia o Monte Athos. Em Daphni, numa esquadra policial de pitoresco telhado de telhas vermelhas, um oficial, vestindo uma capa de veludo tendo bordada a águia bicéfala bizantina, saia branca gomada e borlas na ponta dos revirados sapatos, carimbara-lhe o passaporte. Depois, ao abrigo do telhado que servia de alfândega, monges de longos cabelos haviam-lhe inspecionado a bagagem. A porta, um monge - parecia-lhe ainda incrível! - apalpara-lhe com vigor os peitos e as partes pudendas, explicando: «Para termos a certeza de que não é uma mulher disfarçada de homem.»
Tendo passado pela alfândega com a bagagem e o sexo aprovados, Randall encontrara-se com o guia, avisado com antecedência para o esperar em Daphni. O jovem grego, Vlahos, guia e muleteiro ao mesmo tempo, vestia-se sumariamente, nos pés calçava uns cômicos sapatos feitos de tiras de pneu, facilitando escalar quase a pique. Vlahos tinha já alugado um engaze, embarcação particular, para os transportar durante a curta distância marítima até ao desembarcadouro de Simopetra. O tal barco particular acabara por se mostrar ser um ligeiro esquife de duvidoso poder de flutuação. No entanto, com o patrão ao leme, em adiantado estado de embriaguez, ele e Vlahos abrigados do sol, pesado como chumbo, sob um incrível toldo de pano encerado, que devia ser contemporâneo da guerra greco-turca, lá conseguiram chegar a salvo até ao embarcadouro de madeira situado entre ameaçadores rochedos, mesmo no sopé acima, onde se erguia o mosteiro, semelhante aos mosteiros budistas da cidade sagrada de Lhasa no Tibete, quase debruçado sobre o mar.
Vlahos encetara então uma prolongada discussão para o aluguel de dois machos. Montados no dorso das mula, lá foram subindo a árdua escalada montanha, pelo trilho precário que contornava o abrupto penhasco. Após vinte minutos de ascensão, descansaram um pouco numa capelinha, onde havia um ícone representando a Virgem ladeada por São Joaquim e Santa Ana. Enquanto enchiam os cantis de água fresca caindo em cascata pelo flanco da montanha, Vlahos explicara-lhe que Simopetra significava Rochedo de Prata e que o mosteiro lá no cimo, para onde subiam, foi fundado em 1363 por um eremita que teve uma visão divina.
A única visão de Randall, fora escapar ileso, da perigosíssima viagem pelo estreito caminho rochoso, talhado face ao abismo, balançado pelo passo de uma mula caprichosa, a sofrer o enervante sol, que o mordia com os seus penetrantes raios. Visão de encontrar a solidez e a segurança do mosteiro, espécie de paraíso perdido, que o esperava ao cimo do caminho. Cinqüenta cansativos minutos mais tarde chegaram ao cimo, e para além de verdes hortas em declive, lá estava, finalmente, a aprumada parede do mosteiro, com os seus balcões e galerias salientes. No limiar daquilo que parecia uma ponte movediça medieval encontrava-se o irmão-porteiro apressando-se ao encontro dos visitantes.
Durante todo aquele exótico pesadelo, Randall pensara e tornara a pensar, que ia finalmente, saber como é que Jesus, segundo Jacob alegou, pudera ser capaz de passar pelas terras de cultivo de um lago romano, que só fora esvaziado do seu conteúdo de água três anos após a segunda crucificação!
Tratava-se de uma busca maluca, quixotesca. Afinal porque diabo empreendera aquela viagem? Não lhe fora difícil responder à interrogação: procedera assim por desejar conservar viva a sua nova fé, uma fé que mal acabara de nascer e que era ainda tão periclitante.
- Mr. Randall...
Voltou-se repentinamente, como que acordado de um sonho, para se dar conta de que o padre Spanos estava ao lado dele.
-...se quiser fazer o favor, o Abade Mitros Petropoulos vai agora recebê-lo. É hábito tratá-lo por Padre.
Randall entregou ao acólito a mala de viagem e, conservando a pasta, seguiu o padre Spanos até ao gabinete do Abade.
O aposento no qual entrara era surpreendentemente espaçoso e recebia luz a jorros. As paredes estavam cobertas por afrescos religiosos que, embora de presença vigorosa, tinham algo de rudes. Abundavam os ícones representando o arcanjo Gabriel, Cristo e a Virgem. Do teto pendia um impressionante candelabro de estanho e, por toda a parte, viam-se lampiões de óleo, metálicos. A uma mesa redonda, onde se viam espalhados alguns papéis e abertos alguns volumosos livros medievais, estava uma figura patriarcal, que decerto teria setenta anos ou mais.
Na cabeça tinha um chapéu típico, parecido com um fez, utilizado pelos monges ortodoxos. Envolvia-lhe, o corpo magro, uma pesada túnica negra, decorada com várias caveiras e tíbias costuradas ao hábito, conjunto que se completava, por umas pesadas botas de camponês. Era um sacerdote grego, relativamente baixo e frágil. Não obstante, o alvo cabelo comprido, as volumosas barbas e imponente bigode, ainda se lhe via a pele fina como pergaminho. O abade usava umas exóticas lunetas de lentes quadradas, como Randall nunca fora capaz de ver.
O padre Spanos apresentou o patriarca e retirou-se sem fazer ruído.
Aquele septuagenário decrépito era o Abade Mitros Petropoulos.
-Bem-vindo a Simopetra, Sr. Randall. Espero que a viagem não tenha sido muito fatigante.-A voz do patriarca era amável, bondosa, repousante.
- Sinto-me honrado por ser recebido neste mosteiro, Padre.
-Prefere que conversemos em francês ou italiano, ou o meu inglês será suficiente pra você?
Randall sorriu.
- Evidentemente em inglês... embora neste momento sinta enormes desejos de saber aramaico.
- Ah, o aramaico... acredite que, não é assim tão formidável, como muita gente imagina. Claro que me é difícil ser juiz em tal matéria, porque devotei toda a minha vida ao estudo dessa linguagem. Peço-lhe que se sente. - O Abade sentara-se, entretanto, numa cadeira de espaldar liso como que a convidar Randall fazendo o mesmo, e este não se fez rogado, tomando lugar noutro assento ao lado do patriarca. O Abade prosseguiu: - Espero que nos dê a honra de descansar esta noite entre nós antes de regressar a Salônica.
- Se não for incômodo...
- Sentimo-nos sempre contentes com os nossos hóspedes, que não são muito freqüentes. Claro, que irá achar as nossas acomodações um tanto desconfortáveis. Para já quero avisá-lo, que as banheiras são desconhecidas no nosso mosteiro. Costumamos dizer: «Quem se lavou uma vez no espírito de Cristo não precisa mais se lavar.» Mas, verá que os nossos colchões são limpos e que as camas não têm pulgas, nem percevejos.
- Padre Petropoulos, digo-lhe que o meu único interesse reside no aramaico.
- Sim, evidentemente. A linguagem falada por Nosso Senhor. A humilde linguagem, sem beleza própria, todavia, se mostra como a mais sábia do mundo na sua articulação. Sim, o aramaico. Uma língua semita. Deriva de Aram, nome das terras altas da Síria e Mesopotâmia, onde era falada pelo povo aramaico. Era um povo nômade, que começaram a estabelecer-se como colonos no norte da Palestina, incluindo a Galiléia, depois do quinto século antes de Cristo. Quando Cristo nasceu, cresceu e se fez homem era a linguagem comum do pobre povo galileu.
O hebraico, era mais uma língua falada pelas pessoas de instrução. No tempo de Cristo, o hebraico era falado pelos sacerdotes, estudantes, doutores e juízes, ao passo que o aramaico era a língua das massas, e também usada pelos comerciantes. Todavia, o hebreu e o aramaico são línguas interligadas, poderíamos dizer que são primas.
-De que modo diferem uma da outra?
-Não é de fácil explicação -disse o Abade Petropoulos, cofiando a longa e alva barba. -Como é que hei de dizer?...O hebraico e o aramaico, possuem o mesmo alfabeto de vinte e dois caracteres, ou sinais escritos. Mas, apenas consoantes. Nenhuma das línguas têm caracteres para as vogais. Entretanto, quando faladas, as línguas contêm mais sons fonéticos do que os permitidos no alfabeto. De modo que, quando da fala as línguas passam à escrita, os sons desaparecidos, ou vogais, passam sendo indicados por marcas ligadas às seqüentes consoantes. Uma pessoa escrevendo em hebreu e outra em aramaico traçarão as mesmas consoantes para as mesmas palavras – mas, cada uma acrescentará marcas diferentes, ligeiramente diferentes, para cada vogal. Por exemplo, se Jacob escrevesse Senhor, ou Meu Deus em hebreu, a palavra
seria figurada como Eli, ao passo que em aramaico escreveria Elia. Fiz-me entender?
- Bem... sim, julgo que consegui compreender.
- No fundo não tem importância. Segundo penso, o que o trouxe aqui foi o antigo aramaico, não é verdade?
-Exatamente.
- Ora, vamos lá saber. Sr. Randall, digo- lhe que além da limitada informação recebida de Salônica, sobre a sua visita, para que eu examine um papiro com caracteres escritos, pertencendo ao aramaico do século 1, nada mais sei a respeito das razões que o trouxeram até nós.
-Padre, já ouviu falar na Ressurreição Dois?
- Ressurreição Dois?
-É o nome de código, para uma empresa destinada à publicação de uma Bíblia, com sede em Amsterdã. Um grupo de editores juntou-se para, apresentação ao mundo, de uma nova versão do Novo Testamento, baseado num momentoso achado arqueológico, feito nos arredores de Roma, há cerca de meia dúzia de anos...
- Sim, evidentemente - interrompeu o Abade Petropoulos. Estou agora coordenando idéias. Um erudito bíblico da Grã-Bretanha... Jeffries... Dr. Jeffries... fez-me um convite para colaborar na tradução de um achado em língua aramaica. Não foi muito explícito, mas no pouco que me contou por carta havia uma nota bastante intrigante. Se nessa ocasião não estivesse doente, talvez me tentasse a aceitar. Mas, foi impossível. Sr. Randall, poderá revelar-me do que se trata? Garanto-lhe que a sua confidência não ultrapassará estas paredes.
Sem a mínima hesitação, nos cinco minutos seguintes Randall desvendou ao patriarca os pontos principais do Pergaminho Petrônio e do Evangelho Segundo Jacob.
Quando se calou, os olhos do Abade brilhavam.
-Será possível? - murmurou. - Será verdade ter acontecido tal milagre?
-Sim, Padre. É verdade, mas uma verdade que depende essencialmente da sua avaliação de um fragmento intrigante dos papiros encontrados na escavação de Ostia Antica.
- Trata-se de obra de Deus, e eu sou Seu humilde servidor.
Randall colocou a pasta em cima dos joelhos, abriu-a e procurou a fotografia ampliada tirada por EdIund do Papiro Número 9. Logo que a teve em mãos, disse:
-A descoberta foi feita em Ostia Antica, uma antiga estância marítima perto de Roma, pelo Professor Augusto Monti, o célebre arqueólogo italiano. Julguei que o Professor Monti e uma sua filha tinham vindo a Simopetra há cinco anos para que lhes autenticasse a descoberta. Só anteontem, soube que foi impossível a filha do Professor Monti visitar o Monte Athos...
- Absolutamente impossível.
- ...Mas pensava que talvez o Professor Monti, sozinho, tivesse consultado-o, Padre.
A comprida barba branca do Abade moveu-se de um lado para o outro.
-Não, ninguém com esse nome me consultou. Pelo menos...- quedou-se pensativo, como se lembrasse de algo. Foi Monti que disse? Um arqueólogo da Universidade de Roma?
- Precisamente.
- Sim, lembro-me agora de uma troca de correspondência. Talvez, há quatro ou cinco anos. Talvez antes. Esse professor de Roma convidou-me, pagava-me todas as despesas para eu me deslocar a Roma, a fim de autenticar certo papiro aramaico. Estava demasiado ocupado para vir ao Monte Athos. Depois, lembro-me também agora... quando o Dr. Jeffries me convidou para colaborar na tal tradução, referiu-se a um arqueólogo italiano que descobrira dois documentos notáveis do século 1. Mas, quanto a encontrar-me pessoalmente com o Professor Monti aqui em Athos, ou em outro lugar... não, nunca tive a boa fortuna de o conhecer.
- Vejo que não - disse Randall, tentando ocultar o seu azedume. - Só queria ter certeza. - Pousou de novo a pasta no chão, mas exibiu a fotografia do Papiro 9, bem como, uma cópia da tradução inglesa definitiva do texto em aramaico. -Foi isto que me trouxe a Athos para lhe mostrar. Padre, permita-me que lhe explique o problema que envolve este fragmento, estou certo poderá resolver.
Omitindo os pormenores sobre Bogardus e sobre o papel que desempenhava na Ressurreição Dois, Randall explicou o mais sucintamente possível que certa pessoa, na altura em que o Novo Testamento Internacional estava já nas máquinas de impressão, descobrira por acidente um anacronismo, uma discrepância, na tradução da passagem descrevendo a fuga de Jesus através de um vale fértil, onde outrora existira o Lago Fucino. -No entanto, segundo os historiadores e romanos -concluiu Randall-o Lago Fucino, só três anos mais tarde, foi drenado.
O abade compreendera a explicação, pedindo:
-Permita-me ver a tradução.
Randall entregou-a.
-Veja a quarta e quinta linhas.
O Abade leu primeiro a tradução para si e voltou depois a lê-Ia a meia-voz.
-«Na sua fuga de Roma, Nosso Senhor... ummm... juntamente com os seus discípulos... ummm... caminhou durante toda essa noite, através das abundantes terras de cultivo do Lago Fucino, um imenso pantanal que fora mandado secar e drenar por Cláudio César e que os romanos cultivavam e lavravam com os maiores cuidados.» - Ficou pensativo. - Bom, se me permite, verei agora o aramaico de onde foi feita esta tradução.
Randall entregou a fotografia ao abade. O idoso sacerdote grego olhou a fotografia, fez uma careta e fitou Randall.
-Isto é apenas uma reprodução. Tenho que ver o papiro original.
-E é isso justamente o que eu não tenho. Os editores nunca me permitiriam, nem a ninguém, viajar com o documento original. O papiro é de um valor incalculável. Mantêm-no bem seguro num cofre-forte especial em Amsterdã.
O Abade Petropoulos mostrou o seu desapontamento.
-Então a tarefa que me destina torna-se duplamente difícil. Ler aramaico, esses caracteres minúsculos, já oferece muita dificuldade, mas, examiná-los numa reprodução e tentar traduzi-los acuradamente, é quase impossível.
-Mas esta fotografia foi tirada com infravermelhos, para fazer realçar os caracteres mais apagados e...
- Não importa, Sr. Randall. A reprodução é uma coisa de segunda mão. Constitui uma perturbação para os meus olhos já cansados.
-Padre, não poderá pelo menos, tentar ler o que a fotografia mostra?
-Sim, tenho intenções de tentar. Com certeza que tentarei -levantou-se com um resmungo, abriu uma gaveta, de onde tirou uma grande lente de aumentar e aproximou-se de uma lâmpada.
Randall observou atento o Abade curvar-se mantendo a fotografia do papiro voltada para a luz e observando-a com a lente. Durante vários minutos, o sacerdote ortodoxo grego, ficou concentrado no exame da fotografia, parecendo esquecido da presença de Randall. Finalmente colocou a lente em cima da mesa e recostou-se na cadeira, para voltar a agarrar na tradução e lê-Ia mais uma vez.
Sem pronunciar palavra, estendeu a tradução a Randall e, cofiando a barba, avaliou mais uma vez a fotografia.
- Como sabe, o Dr. Jeffries e os seus colegas tiveram a enorme vantagem de trabalhar com o documento original. Tendo isso em conta, a excelência da tradução parece-me inegável. Se assim for, então o códice, ou pergaminho deste fragmento deve ser legitimamente considerado como a mais extraordinária e tremenda descoberta da história cristã.
- A respeito disso não tenho a menor dúvida - concordou Randall. - A minha dúvida reside no seguinte: será exata a tradução do aramaico?
Perdido em obscuros pensamentos, o Abade Petropoulos continuava a cofiar a barba.
-Tanto quanto posso avaliar pela fotografia, a tradução é absolutamente exata. Mas claro que não posso jurar, não posso empenhar a minha palavra em garanti-Ia. Muitos dos caracteres em aramaico, como pode observar, estão bastante sumidos, quase desaparecidos, manchados pelo decorrer dos séculos. Várias palavras, precisamente nas linhas em questão, são pouco legíveis.
-Bem sei, Padre, no entanto...
Ignorando as palavras de Randall, o Abade prosseguiu:
-É sempre assim com documentos muito antigos. Um leigo não compreende tais problemas. Primeiramente, lidamos com a matéria física: o papiro. Qual o papiro que foi usado num manuscrito como este? Este papel para escrita era manufaturado da medula formada pelo caule da planta chamada papiro, encontrada na região egípcia do Nilo. O caule era cortado em tiras, e duas camadas dessas tiras eram coladas juntas transversalmente. O papiro resultante não era mais durável do que o nosso moderno papel de linho vulgar, e certamente não se destinava a durar dezenove séculos. Em climas úmidos, o papiro desintegrava-se. Em climas secos, podia sobreviver mais, mas tornando-se extremamente quebradiço, prestes a desfazer-se em fragmentos, ou em pó, mal se tocasse com um dedo. O fragmento de papiro que me mostrou em fotografia está provavelmente tão quebradiço, tão gasto que a escrita deve estar quase obscura. Além disso, no século I, o aramaico era escrito numa caligrafia de forma quadrada, cada letra ou caracteres escritos separadamente. Em resultado disso, as letras não estavam individualmente ligadas. O leigo será levado a pensar que isso as tornará mais fáceis de distinguir e ler. Pelo contrário, é mais fácil ler uma palavra cuja letras estejam unidas numa caligrafia cursiva. Mas infelizmente, as palavras interligadas e a caligrafia cursiva só apareceram no século IX. Tais são os obstáculos que se levantam, ainda mais avolumados, quando a avaliação tem de ser feita através de uma reprodução.
- No entanto, esse aramaico foi lido, completamente traduzido.
-Sim, tal e qual como os três mil e cem fragmentos e antigos manuscritos do Novo Testamento que existem espalhados pelo mundo - oitenta em papiros e duzentos em caracteres unciais, ou seja, em letras maiúsculas - e que também foram traduzidas com êxito. Mas foram traduzidos depois de superadas dificuldades gigantescas.
Randall insistiu.
-Aparentemente, nestes papiros, as dificuldades foram superadas. O evangelho Segundo Jacob foi traduzido. Disse-me estar crente em se tratar de uma tradução cuidada. Como explica então a discrepância no texto?
-Existem várias explicações possíveis. Não sabemos se em 62, Jacob seria suficientemente instruído para poder escrever o evangelho por seu próprio punho. É possível que fosse. Mas provavelmente, para ganhar tempo, ditou o documento a um escriturário, um dos escribas de grande prática no tempo, apondo apenas a sua assinatura. Este papiro pode representar aquilo que o escriba escreveu originalmente, ou pode ser um exemplar extra, uma cópia-uma das duas outras cópias que Jacob disse ter enviado a Barnabé e Pedro-traçado por qualquer outro escriba. Ouvindo o que lhe seria ditado, o escriba pode ter percebido alguma coisa mal, interpretando mal, escrevendo o erro no papiro. Lembre-se que em aramaico, um simples ponto por cima, ou por baixo de uma palavra, ou um ponto colocado em posição errada, pode mudar por completo o sentido da palavra. Por exemplo, há uma palavra em aramaico que pode querer significar «morto» ou «aldeia», dependendo unicamente do lugar em que seja colocado um ponto. Um erro de tal teor pode ser muito bem a causa do anacronismo. Ora, na verdade, ao escrever ou ditar a biografia de Cristo, treze anos depois da morte do Senhor, a memória de Jacob pode ter falhado sobre por onde e como Nosso Senhor partiu de Roma.
-Acredita em tal?
- Não - respondeu o Abade. - Este material era demasiado precioso, mesmo naquele tempo, para poder permitir um erro humano de tanta negligência.
- Então que pensa que possa ter acontecido?
- Julgo que a explicação mais provável poderá ser que os modernos tradutores - com o devido respeito pelo Dr. Jeffries e e pelos seus colegas - cometeram um erro ao verterem o aramaico em inglês e noutras línguas contemporâneas. Tal erro pode ser derivado de duas razões fundamentais.
- E quais são essas razões?
- A primeira é muito simples, porque não conhecemos hoje todas as palavras em aramaico que Jacob sabia em 62. Não sabemos o completo vocabulário aramaico. Não existe nenhum dicionário para tal língua e até nós não nos chegou nenhum. De modo que, temos definido com êxito muitas palavras, cada papiro que vai sendo descoberto nos apresenta palavras desconhecidas, que ainda não havíamos visto antes. Lembro-me de uma descoberta feita na gruta de Murabba'at, no deserto da Judéia que me pediram para ajudar a traduzir. O achado consistia em contratos legais traçados em aramaico e escritos em 130 D.C., bem como duas cartas escritas em aramaico pelo chefe judeu rebelde, Bar-Kokhba, que foi responsável pela revolta de 132 D.C. contra o domínio de Roma. Continham numerosas palavras aramaicas que nunca tinha visto anteriormente.
- Como pôde então traduzi-Ias?
- Da mesma maneira como o Dr. Jeffries e os colegas dele traduziram algumas das palavras desconhecidas, que com certeza encontraram no papiro Jacob: por comparação com as palavras do texto conhecidas, tentando compreender o significado e sentido que o escritor do texto original, pretendeu instilar na obra e também por similaridade com formas gramaticais familiares. O que digo é que por vezes se torna impossível exprimir uma língua antiga em palavras modernas. Em certa altura, a tradução torna-se mais um caso de interpretação. Mas essa espécie de interpretação pode levar a cometer erros, enganos.
O Abade confiou a barba pensativo, para logo a seguir continuar.
- A segunda ratoeira, Sr. Randall, é que cada palavra aramaica poderá ter vários significados. Por exemplo, existe uma palavra em aramaico que significa «inspiração», «instrução» e «felicidade». Qual a definição, segundo o verdadeiro uso da palavra pelo autor, é precisamente o que um tradutor tem que decidir. Ora a decisão do tradutor tem que ser ao mesmo tempo subjetiva e objetiva. Subjetivamente, deve pesar a justaposição das várias palavras numa linha ou em algumas linhas. Objetivamente, deve tentar ver que um ponto ou um traço, outrora inseridos, hoje sumiu por completo. É tão fácil passar por cima, julgar erradamente, cometer um erro. Os seres humanos não são infalíveis. Pelo contrário, são suscetíveis de cometerem erros. Os tradutores da Versão do Novo Testamento do Rei Jacob trabalharam a partir de antigos textos gregos e contudo, referiram-se a Jesus como «seu Filho», quando na verdade o antigo grego não tinha palavra como «seu». Procedeu-se a uma correção na Versão Modelo Revista, passando lendo-se «um Filho». Tal modificação foi provavelmente mais exata, todavia, alterou o significado da referência relativamente a Jesus.
-Poderá uma coisa dessas ter acontecido nesta tradução?
-É possível. O aramaico foi traduzido para se ler que Nosso Senhor «caminhou através das abundantes terras de cultivo do Lago Fucino, que fora mandado secar ... » Se substituir «abundantes terras de» por «abundantes terras em redor» ou «terras próximas» e «fora mandado secar» por «seria mandado secar», o o significado transforma-se por completo.
-Julga possível que as palavras fossem mal traduzidas?
-Julgo que é a explicação mais provável.
-E se não estiverem mal traduzidas? Se se tratar de uma tradução fiel?
-Nesse caso consideraria com suspeita a autenticidade do Evangelho Segundo Jacob.
-Mas se for na verdade apenas um erro de tradução?
-Considerarei o novo evangelho como exato e como a mais momentosa descoberta da história humana.
Randal inclinou-se para a frente na sua cadeira.
-Padre, não pensa que valerão a pena todos os esforços que se fizerem para que na verdade se saiba se o novo evangelho é ou não o achado mais momentoso da história humana?
O Abade Petropoulos mostrou um ar de confusão.
-O que é que está tentando dizer-me?
- Sugiro que amanhã de manhã se desloque comigo a Amsterdã a fim de examinar o papiro original e para nos dizer, de uma vez por todas, se será uma descoberta verídica ou, na pior das hipóteses, um achado espúrio.
-Quer que eu vá consigo para Amsterdã?
-Amanhã. As suas despesas serão pagas. O mosteiro será contemplado com uma generosa contribuição. Mas, mais importante do que tudo, a autenticação de um perito mundialmente consagrado como o Abade Petropoulos colocará o Novo Testamento Internacional acima de toda a suspeita.
O Abade, com ar pensativo, acenou positivamente com a cabeça.
-Sim, o último ponto é o mais importante. Será na realidade um trabalho de Deus. Sim, Sr. Randall, a viagem a Amsterdã é possível. Mas não amanhã.
- Magnífico! - exclamou Randall. - Quando poderá então encetar a viagem?
-Há muito tempo que projeto assistir, como representante da nossa república monástica de Monte Athos, a um conselho ecumênico da Igreja Ortodoxa Grega, que será presidido pelo meu superior e amigo, Sua Santidade o Patriarca de Constantinopla. É imperativo que esteja presente às sessões juntamente com os metropolitas da igreja. Devemos fazer todos os esforços possíveis para mantermos unidos os nossos oito milhões de fiéis. A sessão inaugural do conselho terá lugar em Helsínquia de hoje a sete dias. Está marcado que eu parta de Atenas para Helsínquia de hoje a cinco dias.
O velho Abade levantou-se com lentidão. Randall teve a certeza que por detrás da mata pilosa que escondia as feições do sacerdote havia um rasgado sorriso de satisfação.
-De modo que, Sr. Randall -continuou o Abade-, estou a considerar partir daqui um dia antes, isto é dentro de quatro dias, e fazer um pequeno desvio. Afinal de contas, penso que Amsterdã pode também ser considerado como um caminho para HeIsínquia, não é verdade? Sim, lá estarei para verificar com os meus olhos o vosso papiro original e para lhe dizer se fomos visitados por um verdadeiro milagre divino, ou se se trata de uma mistificação... Sr. Randall, agora creio que prefere repousar um pouco antes de jantar. Vamos-lhe preparar a nossa iguaria favorita. Já alguma vez comeu polvo cozido?
Randall esperava, após regressar a Amsterdã e ao seu trabalho no Hotel KrasnapoIsky três dias depois, encontrar George L. Wheeler e os outros editores furiosos com ele devido à vadiagem.
Em vez disso, a reação de Wheeler apanhou-o completamente desprevenido pela surpresa.
Randall regressara a Amsterdã na noite anterior - partiu de Monte Athos ao alvorecer de segunda-feira e chegou a Amsterdã na terça à noite - com a intenção de se defrontar imediatamente com Wheeler, seguindo-se a cena mais penosa com Angela Monti. Mas a viagem de regresso, a desconfortável e traiçoeira descida da montanha sobre o dorso de um macho, o desconjuntado bote alugado, o sebento e ronceiro «ferry» de cabotagem, o jato de Salônica para Paris, a mudança em Orly para o avião de Amsterdã, a corrida de táxi desde o aeroporto de Schiphol até ao hotel onde estava hospedado, haviam-no massacrado por completo.
Entrara em seu quarto e completamente abalado de fadiga resolvera adiar o confronto com Wheeler e Angela. Ficara tão exausto que nem sequer fora capaz de tomar banho, limitara-se a estender-se em cima da cama e dormira ininterruptamente até de manhã.
Dirigindo-se ao seu gabinete no KrasnapoIsky, resolveu que ainda não estava pronto para ajustar as contas com Angela. Existiam outras prioridades. Haviam dois testes de fé: o da validade da Palavra e o da honestidade de Angela. E a Palavra tinha prioridade.
Fez uma ligação interna para Angela da sala de recepção dos editores, anunciando sua presença, cortando cerce as palavras calorosas que ela lhe disse, ao mesmo tempo explicando que estaria ocupado com os editores durante todo o dia (e como não passava de um subterfúgio e não queria encará-la quando fosse para o escritório, pedira-lhe para proceder determinada investigação na Natherlands Bijbelgenooschap, a Sociedade Bíblica Holandesa). Quanto a um encontro para a noite, foi evasivo. Seria possível que os editores quisessem a sua presença, segundo disse, mas veria o que podia fazer e avisava-a depois.
Uma vez arrumado, de momento, o caso com Ângela, dirigira-se ao gabinete privativo de Wheeler, preparado para o pior, e ficara verdadeiramente surpreso.
Impulsivamente, Randall desatara imediatamente falando, sem dar ao editor tempo para o interromper, revelando onde estivera e o que andara fazendo nos últimos cinco dias.
Wheeler escutara-o com um interesse cheio de benevolência, respondendo de uma maneira congratulatória:
-Não, meu caro Randall, de modo nenhum me senti preocupado por você ter negligenciado o seu trabalho de promoção. Aliás, nenhum de nós ficou aborrecido. Penso de longe que é mais importante que se convença de que não há nada de errado. Afinal de contas, não poderíamos, nem quereríamos, que se entregasse de corpo e alma ao lançamento de um produto sem acreditar nele cem por cento.
-Obrigado, George. Logo que o Abade Petropoulos vir o fragmento e o aprovar, ficarei totalmente convencido.
-Isso é uma outra coisa em que lhe estamos gratos. Desde início pretendemos poder deslocar Petropoulos do seu retiro, para apor o duplo selo da autenticidade na tradução do documento, mas as nossas diligências malograram-se sempre. Você conseguiu aquilo que para nós foi impossível, e só podemos agradecê-lo por sua iniciativa. Não que tenhamos quaisquer dúvidas a respeito dos papiros, mas porque constituirá para nós uma honra ter o Abade associado a este projeto. Será também uma satisfação enorme podermos libertá-lo a si de qualquer ulterior dúvida ou preocupação.
-É muita bondade da sua parte, George. Começarei trabalho e posso, desde já, garantir-lhe que estará pronto para o dia do anúncio ao mundo.
- O dia do anúncio ao mundo... Bem, sentir-nos-emos aliviados quando isso tiver acontecido e passado. Entretanto, embora tenhamos que nos manter vigilantes, julgo que agora poderemos respirar fundo.
- Como diacho poderemos respirar com tantas complicações à nossa volta? - perguntou Randall.
- Quanto a Hennig, penso que arquitetamos um plano praticável para o proteger da chantagem de Plummer. Quanto ao Judas entre nós, esse bastardo do Hans Bogardus, despedimo-lo. Pusemo-lo no olho da rua logo que regressamos de Mainz.
- Despediram-no?
- Oh, fez um escarcéu dos demônios, deu por paus e por pedras, ameaçou-nos revelar tudo, como já havia feito consigo, avisou-nos que iria expor a lapso fatal a Plummer e a de Vroome e que nos arruinaria desde o momento em que lançássemos a nossa Bíblia ao público. Respondemos-lhe que o caminho estava livre para proceder como quisesse, mas que os esforços dos seus amiguinhos não lhes valeriam de nada. Uma vez que vissem a Bíblia, ficariam logo crentes que era invencível. Seja como for, pusemos o Bogardus na rua.
Randall nunca se sentira tão impressionado. O fato dos editores não terem medo das revelações de Hans Bogardus e estarem prontos a facilitar ao Abade Petropoulos o exame dos papiros, quase que restaurava por completo a fé de Randall no projeto. Havia contudo uma última pergunta.
- George, tenho a fotografia do papiro número 9 na minha pasta...
- Você não devia transportar por toda a parte uma coisa tão preciosa. Devia manter essa fotografia fechada na segurança do seu fichário.
-É o que farei a seguir. Mas desejava compará-la com o fragmento do papiro original que se encontra no cofre-forte da subsolo. Pretendo ver se o original é na verdade tão fácil de ler. Por outras palavras, gostaria de conhecer aquilo em que o Abade trabalhará.
-Pretende então dar uma olhada no original? Com certeza estará à sua disposição, se isso o fizer feliz. Não há problemas. Farei um telefonema para Groot, no cofre-forte do subsolo e dir-lhe-ei para retirar o original, de forma a poder lê-lo. Depois poderá descer e ver com os seus próprios olhos. Aviso-o, desde já, que não há muito que ver. Tentar perceber alguma coisa de um fragmento de papiro com tantos séculos de existência é quase impossível, a não ser que seja um perito como Jeffries ou Petropoulos. Todavia, olhando-o sempre terá uma idéia do que é um manuscrito de 62 D.C.; as verdadeiras palavras escritas pelo irmão de Jesus. Será uma coisa que no futuro terá orgulho em contar aos seus netos junto à lareira. Muito bem, vou ligar para Groat, depois desceremos ao subsolo.
Tudo aquilo ocorrera antes das dez da manhã.
Naquele preciso momento, oito minutos depois das dez, Randall e Wheeler entraram no elevador e descerem às entranhas do KrasnapoIsky, onde, num porão, fora construído um cofre-forte especial para segurança dos tesouros, que fariam com que a Ressurreição Dois e o Novo Testamento Internacional fossem uma realidade para o mundo.
O elevador especial interno parou suavemente, as portas automáticas deslizaram nas suas calhas, e Randall seguiu Wheeler pelo subsolo. À porta foram saudados pelo rasgado cumprimento de um guarda de segurança, sentado numa cadeira, tendo atravessada nos joelhos uma carabina de precisão,
O subsolo tinha algo de soturno e os ruídos dos passos reverberavam em eco pela abaulada abóbada. Acabando de voltar a esquina de um segundo corredor, ficaram praticamente ofuscados pela intensa luz que brilhava lá no fim.
-O cofre -explicou Wheeler.
Já à porta, Randall pôde observar a tremenda aparência da blindagem de aço, cheia de manivelas e volantes, do gigantesco cofre-forte, avultando o dial dos números de registro e relação em brilhante metal cromado. A espessa porta de aço estava escancarada.
Subitamente, dos arcanos do cofre, saiu quase correndo a figura pesadona e maciça de um homem, projetando-se com se fosse uma catapulta humana.
Surpresos, Randall e Wheeler detiveram-se e ficaram de boca aberta ao reparar que, a peruca do homem estava às três pancadas, mexia-se-lhe a escovinha do bigode num tique de excitação, e tinha o casaco escuro aberto deixando ver o brunido cabo de uma revólver saindo. Era Mr. Groat, o curador do cofre-forte.
O curador escorregou mesmo na frente deles, e o martelar dos seus sapatos para conseguir manter-se de pé foram empecilhos às palavras que tentava proferir.
Wheeler agarrou-o pelos ombros.
-Groat, que diabo aconteceu?
- Mijnheer Wheeler. - gritou Groat. - Help! Ik ben bestolen! Politie!
Wheeler abanou-o com rudeza.
- Diabo, homem, fale inglês! Spreek Engels!
- Socorro ... precisamos de ajuda - arquejou o volumoso holandês. - Eu ... nós... nós fomos roubados... A polícia... temos que chamar a polícia!
-Diabo, Groat. Lembre-se que todo este lugar está cheio com a nossa própria polícia - disse-lhe Wheeler irado. - O que é que sucedeu? Recomponha-se e conte-nos o que aconteceu.
Groat foi atacado por um espasmo de tosse, que finalmente conseguiu controlar.
- O papiro... o papiro número 9... perdeu-se... desapareceu! Foi roubado!
-Está doido! Não pode ser! -berrou o editor,
-Procurei por toda a parte... por toda a parte-murmurou Groat. -Não se encontra na gaveta que lhe foi destinada... nem nas outras gavetas... não está em nenhuma delas... não se encontra em lado nenhum.
-Não acredito nisso - disse Wheeler ríspido. - Vou eu próprio procurar.
Wheeler dirigiu-se com rapidez para o interior do cofre-forte, levando colado aos seus calcanhares o atarantado curador. Randall seguiu-os vagaroso, tentando compreender, juntar todos os fragmentos daquele quebra-cabeças.
Chegando à entrada do cofre-forte, Randall observou atento aquele gigante de aço à prova de fogo e à prova de roubo. Tinha pelo menos seis metros de comprimento por três de largura. As paredes laterais eram construídas de cimento armado e lâminas de aço, vendo-se nelas uma vasta disposição de gavetas metálicas. Quatro lâmpadas fluorescentes no teto de cimento iluminavam brilhantemente uma comprida mesa retangular metálica, onde se viam uma dezena ou mais de placas de vidro perfeitamente lisas.
Depois a atenção de Randall voltou-se para as atividades a que se entregavam Wheeler e o curador do cofre.
Groat tirava uma das amplas gavetas metálicas, enquanto Wheeler examinava o conteúdo. Daquela gaveta o par deslocou-se para a mais próxima e à medida que a busca decorria, o editor parecia cada vez mais frustrado e apoplético.
Imaginando se haveriam quaisquer outras áreas na câmara onde o papiro se pudesse encontrar fora do seu lugar habitual, ou até escondido em qualquer local escuso. Randall continuou examinando o cofre. Na parede da esquerda estavam dois ventiladores, muito no alto, e por baixo deles, ao nível dos olhos, uma série de mostradores e mesa telefônica, sem dúvida destinados ao controle da umidade destinada aos valiosos papiros de pergaminho. O chão de cimento estava escrupulosamente limpo.
Randall recuou-se, enquanto o editor, com a cara fechada e de aspecto preocupado, ombro a ombro com o estarrecido curador, depois das suas buscas se dirigiram para junto dele.
- É impossível, mas na verdade não se encontra-disse Wheeler com voz rouca de emoção. - O Papiro Número 9, desapareceu.
- Só esse? - perguntou Randall incrédulo. - E quanto aos outros. Ainda lá estão?
- Foi o único que desapareceu - disse Wheeler, tremendo numa mistura de raiva e frustração. -Tudo o mais está no seu lugar. - Brusco, abriu caminho entre Randall e Groat para inspecionar a fechadura e as trancas da espessa e maciça porta.
- Nenhuma marca, nenhum arranhão na pintura. Não foi forçada.
Randall interveio para perguntar ao curador:
-Quando é que viu pela última vez o papiro número 9?
- Ontem à noite - respondeu o estupefato Groat. - Ontem à noite, quando fechei o cofre-forte para ir para casa. Todas as noites, antes de sair, faço uma inspeção no material, em todas as gavetas, a fim de ter certeza de que está tudo em ordem e também para verificar as condições gerais, para saber se o umidificador funciona como deve ser.
-Desde essa altura até há pouco esteve aqui alguém visitando o cofre?- perguntou Wheeler.
-Ninguém, nem uma só pessoa, até que os senhores chegaram aqui -respondeu Groat.
-E quanto aos guardas que Heldering mantém aqui de serviço? -quis saber Randall.
- Ser-lhes-ia impossível - respondeu o curador. - Não possuem quaisquer meios para poderem entrar no cofre. Não lhes é fornecida a relação para abertura.
-E quem é que possui essa relação a não ser o senhor? - inquiriu Randall.
Wheeler meteu-se de permeio naquela parada de perguntas e respostas.
- Posso dizer-lhe as pessoas que têm acesso ao cofre-forte. São apenas sete. Groat, evidentemente. Heldering. Os cinco editores - Deichhardt, Fontaine, Gayda, Young e eu. Mais ninguém.
- Poderia alguém ter roubado os números que servem à relação do cofre? - perguntou Randall.
- Não - respondeu Wheeler sem vacilar. Os números da relação nunca foram escritos. Todos nós os decoramos. Abanou a cabeça. - Impossível... é daquelas coisas que não podem ter acontecido. Incrível. É o mistério mais danado encontrado em minha vida. Tem de haver uma solução simples para o caso, porque volto a repetir, é daquelas coisas que não podem ter acontecido.
-Mas aconteceu-disse Randall-, e, por coincidência, a um fragmento de papiro em que estamos tão interessados, precisamente aquele que vínhamos observar.
-Não importa o fragmento que é - uivou Wheeler. - O fato é que não nos podemos dar ao luxo de perder seja qual for. Meu Deus, poderá ser um autêntico desastre. Os materiais nem sequer nos pertencem. São do governo italiano. São tesouros nacionais. Logo que termine o contrato de empréstimo, a concessão que nos foi dada, temos de entregar os documentos na íntegra. Mas isso ainda não é o pior. O pior de tudo é que precisamos de todas as partes dos papiros originais para apoiarem publicamente a autenticidade do nosso Novo Testamento Internacional.
-Especialmente o Papiro Número 9 - disse Randall calmo.-É esse precisamente o que está em causa.
As sobrancelhas de Wheeler encresparam-se.
-Não está nada e está tudo em causa. Porque raio fazermos exceções?
- Porque Plummer e de Vroome denunciarão ao mundo o lapso nesse particular fragmento, e toda a Bíblia estará em causa, a menos que o Abade Petropoulos veja o fragmento e nos dê a resposta que desejamos.
Wheeler deu um palmada na testa.
-Petropoulos! Tinha-me esquecido dele. Quando é que ele vem fazer a verificação?
-Amanhã de manhã.
- Inferno! Bem... você tem que o fazer adiar a viagem. Envie-lhe um telegrama. Diga-lhe que o exame tem de ser adiado. Diga-lhe que nos manteremos em contato com ele em HeIsinqui. Randall sentiu um baque no coração.
-George, isso não está ao meu alcance. O Abade já está a caminho de Amsterdã.
-Diacho, Steve, é necessário que o detenha. Não temos nada para lhe mostrar. Agora não percamos mais tempo. Tenho que comunicar o caso a Heldering, bem como, a Deichhardt e aos outros. O nosso principal trabalho será sabermos onde se encontra o fragmento e recuperá-lo.
- A polícia de Amsterdã - titubeou Groat - temos que a avisar.
Wheeler voltou-se para o curador com a ira estampada no rosto.
- Você está doido? Se permitíssemos que a polícia se misturasse nisto estávamos liqüidados. Seria o fim do nosso sistema de segurança. De Vroome viria a conhecer tudo e mais alguma coisa. Perderíamos a corrida. Todos os bípedes da Ressurreição Dois serão submetidos a um interrogatório de terceiro grau, mas será estritamente um trabalho interno. Não haverá nenhum gabinete, nenhum escaninho, nenhuma escrivaninha, fichário e armário que não seja voltado de pernas para o ar. Mesmo os aposentos onde vive o nosso pessoal, tudo será investigado minuciosamente, até recuperarmos o documento. Groat, você fique aqui, no cofre.
O guarda de segurança também não deve se mexer do seu lugar. Vou subir para dar o alarme. E você... você Randall... tem que contatar Petropoulos, não o podemos receber, pelo menos por enquanto.
Dez minutos depois, quando Randall regressou ao seu escritório, ainda profundamente perturbado devido aos acontecimentos, encontrou um envelope junto ao calendário em sua escrivaninha. Era um radiograma enviado de Atenas.
Estava assinado Abade Mitros Petropoulos.
O Abade estava já a caminho de Amsterdã e desejoso por examinar o fragmento. Chegaria na manhã seguinte às 10h50.
Randall soltou um gemido, O perito dos peritos, o restaurador da fé, estava a caminho. Já não podia ser detido. E não havia o lapso de Bogardus para se lhe mostrar, não havia nada para lhe apresentar, absolutamente nada.
Randall sentiu-se doente. Não de frustração... mas de desconfiança.
Na manhã seguinte, chegando ao Aeroporto de Schiphol meia hora antes, Steve Randall sentou-se no balcão do «snack» fazendo hora para esperar o Abade Mitros Petropoulos do mosteiro de Simopetra, no Monte Athos, que chegaria no vôo da Air France.
Bebendo a sua xícara de café - a terceira daquela manhã - Randall contemplou pensativo e sombrio um ponto perdido para além dos espelhos do balcão.
Sentia-se mais deprimido do que nunca. Não fazia a menor idéia daquilo que diria ao Abade, com exceção da verdade sobre o desaparecimento do Papiro Número 9, uma verdade que os editores pretendiam ocultar. Randall não conseguia pensar em qualquer desculpa e muito menos em mentir. Decidiu contar a verdade e desfazer-se em desculpas, por ter feito o idoso sacerdote deslocar-se a Amsterdã para nada. Imaginava, perfeitamente, como seria a decepção do Abade quando lhe contasse o que havia a respeito da perda do fragmento. Imaginava também se o velho eclesiástico, não alimentaria alguma suspeita, tal como, desde o dia anterior, acontecia a ele, Randall, suspeitas que lhe devoravam a mente.
Sim, a verdade é que a tremenda busca, do dia anterior para recuperação do fragmento, redundara em fracasso.
Heldering e os seus homens interrogaram todas as pessoas que trabalhavam na Ressurreição Dois. Esmiuçaram todos os escaninhos nos aposentos dos dois andares do KrasnapoIsky que pertenciam ao projeto. Organizaram uma longa lista de cada uma das pessoas ligadas ao empreendimento que não viviam no Kras, procedendo também a busca nos respectivos quartos e casas, desde o quarto do Dr. Knight no Hotel San Luchesio, até o suntuoso quarto de Angela Monti no Victória. Procederam buscas no apartamento do curador Groat, e Randall, por sua conta e risco, introduzira-se no quarto de Hans Bogardus enquanto o bibliotecário estava ausente.
O inspetor Heldering e os seus agentes nada sabiam e nem vestígios encontraram do Papiro Número 9. Os editores, que se recusaram entrar em pânico ou desistirem, fecharam-se com Heldering na sala de conferências até à meia-noite. O mistério adensara-se ainda mais para toda a gente ligada ao projeto. Para Randall, só as suspeitas adensaram-se.
Na noite anterior retirara-se sozinho para a sua «suite» do Amstel. Angela telefonara-lhe. Trocara-lhe as voltas a todas as perguntas sobre o que sucedera, mentindo que tinha gente à espera dele, para uma conferência, na sala de espera. Finalmente, prometera-lhe encontrar-se com ela na noite seguinte. O encontro com Angela, nessa mesma noite, era mais um acontecimento penoso a acrescentar a todos os outros, um acontecimento que sabia não poder adiar por mais tempo.
E toda a noite refletira. Continuava ainda a cismar ali sentado ao balcão do «snack» do aeroporto de Schiphol. Era demasiado para poder ser uma coincidência. O fragmento desaparecera, precisamente, na altura em que se procederia sua autenticidade. Mal ousara conjecturar como é que o fragmento desaparecera. Recordara-se a si mesmo persistente que a perda do papiro constituía um tremendo prejuízo para os cinco editores, prejudicava-os tanto como, prejudicava a fé dele, Randall, numa religião renovada. Sem aquele fragmento eles seriam homens perdidos, vulneráveis, tal como, para ele a perda significava o ruir da fé. O desaparecimento do importante documento não podia ser um trabalho interno... mas, de qualquer maneira, não podia ser também, um trabalho lançado do exterior.
Em desafio a toda lógica, a sombra da desconfiança e da suspeita devorava Randall.
Subitamente, de um alto-falante disfarçado no teto, saiu uma voz que dizia insistente:
-«Mr. Steve Randall! Solicitamos sua presença no Inlichtingen... no balcão do serviço informativo. Mr. Steve Randall ... »
O que seria?
Apressado, Randall pagou a conta e saiu em largas passadas do «snack», dirigindo-se para o balcão das informações no saguão do Schiphol.
Deu o nome a uma das simpáticas holandesas que estavam atrás do balcão.
A moça procurou num escaninho e surgiu depois com uma mensagem, que lhe entregou.
Randall leu: «Mr. Steve Randall. Telefone imediatamente para Mr. George L. Wheeler no Grande Hotel KrasnapoIsky. É urgente.»
Segundos depois, Randall estava ao telefone, esperando que a secretária de Wheeler ligasse para o editor.
Randall conservou o fone bem encostado ao ouvido, sem saber o que iria surgir dali, mas sabendo, com toda a certeza, que o vôo da Aír France nº 912, precedente de Paris, onde vinha o Abade Petropoulos, chegaria dentro dos mais próximos quatro minutos.
A voz profunda de Wheeler chegou-lhe do outro extremo da linha. Mas, estranhamente, não era uma voz severa e quase selvagem, era, pelo contrário, uma voz alegre, saltitante, cheia de júbilo.
- Steve?... Está aí? Tenho grandes novas para lhe transmitir! Formidáveis novas! Encontramos a coisa...localizamos o papiro perdido!
O coração de Randall saltou dentro do peito.
- Encontraram?
- Parece uma coisa inacreditável, mas a verdade é que não foi roubado, nem sequer tirado do cofre. Esteve sempre lá dentro enquanto andávamos todos à procura dele. Que me diz a isto? Sabe bem como a procura do documento se transformou num verdadeiro desespero. Já não sabíamos para onde nos voltar. Há cerca de uma hora, sugeri que voltássemos a procurar no cofre. Mas dessa vez, quis que todas aquelas gavetas de metal e lâminas de vidro fossem retiradas, completamente desmontadas. Empenhamos dois serralheiros civis no trabalho. E quando a gaveta 9 foi retirada e colocada no chão, encontramos o desaparecido, encontramos o nosso Papiro Número 9! O que aconteceu foi o seguinte: a retaguarda da gaveta ganhou uma folga e a chapa subiu uns milímetros na calha. O fragmento do papiro, dentro das folhas protetoras de acetato de celulose, não sabemos bem como, deslizou pela fenda e ficou em posição fora do alcance da vista entre a armação e a parede de cimento armado. Foi em tão crítica posição que encontramos a preciosidade, e, graças a Deus, estava intacta, sem sofrer qualquer acidente. Que tal, Steve? Que pensa disto?
- Que penso? - disse Randall atônito. - Bom, penso que foi uma coisa maravilhosa.
-De modo que pode trazer-nos o seu Abade Petropoulos. O Papiro está aqui à espera dele. Estamos prontos para a sua decisão final.
Randall desligou o telefone e apoiou a cabeça por momentos contra a parede da cabine, sentindo-se aliviado, mas ao mesmo tempo confuso.
Lá fora soavam os alto-falantes.
«Voo número 912 da Air France. O avião acaba de aterrissar, vindo de Paris.»
Apressou-se a ir para a área de espera por onde os passageiros passariam depois de saírem da alfândega.
Estava preparado para enfrentar o Abade, para enfrentar a verdade, e... mais uma vez... para se refugiar na nova fé.
Era uma cena curiosa aquela assistida e refletiu Randall.
Estavam dentro do cofre-forte, todos eles, no subsolo do Hotel KrasnapoIsky, e reunidos ali, numa atenção muda, há mais de vinte minutos. O foco de atenções da assembléia era a única pessoa naquele aposento sentada: o Abade Mitros Petropoulos, superior do mosteiro de Simopetra, no Monte Athos.
O Abade, com o seu chapéu eclesiástico quase em forma de fez, com a sua ampla batina negra e a branca barba quase roçando a borda da mesa, debruçado para a folha de papiro, de cor marrom, que fora retirada da pasta protetora de acetato de celulose e estava naquele momento prensada entre duas lâminas de vidro. Encontrava-se completamente embrenhado na sua análise, aos quase apagados caracteres em aramaico, escritos em espessas colunas no papiro. De vez em quando, quase com um gesto ausente, lançava mão da poderosa lente de aumentar e estudava mais em detalhe determinada palavra. Por várias vezes, pôs de lado o papiro, para consultar uns livros raros dispostos sobre a mesa, depois agarrava na caneta de tinta permanente e rabiscava qualquer nota no bloco que se encontrava ao seu lado direito.
Atrás do abade, a respeitosa distância, o Dr. Deichhardt George Wheeler, Monsieur Fontaine, Sir Trevor Young e Signore Gayda observavam-no tensos. Ainda atrás dos editores, o curador Groat mantinha-se com um ar solene e algo protetor.
Randall, cercado pelo Dr. Jeffries, Dr. Knight, Professor Sobrier e Monsenhor Riccardi, encontrava-se no interior do perímetro da casa-forte, absorvido naquele espetáculo que comportava um só ator.
Randall pensava se todos os espectadores não passariam, de repente, finda a análise, a serem participantes de uma verdadeira tragédia. Passados vinte e cinco... vinte e seis tremendos minutos que pareciam uma eternidade.
De repente, o Abade Petropoulos mexeu-se. O frágil dorso do eclesiástico ortodoxo grego endireitou-se, encostou-se para trás na cadeira. Cofiou a barba e voltou-se olhando firme para os editores.
-Pois muito bem, estou satisfeito.
O silêncio foi quebrado, e contudo mais ninguém se atrevia a pronunciar palavra.
O abade sintetizou:
-A discrepância pode perfeitamente ser explicada. Foi cometido um pequeno erro, um erro compreensível, mas não obstante, um erro, quando da leitura do original aramaico e, por conseqüência, incidindo na tradução. Uma vez feita a necessária correção, mais ninguém poderá duvidar do texto. É de fato autêntico, para além de qualquer dúvida.
As tensas feições dos cinco editores, onde se viam rostos contraídos, distenderam-se como se lhes tivessem tirado dos ombros um peso de cem arrobas de martírio.
Logo se apressaram correndo para o Abade, cada um querendo apertar a mão àquele ancião que acabava de os salvar da ruína.
- Excelente, excelente! - exclamou Dr. Deichhardt. Padre Superior, e agora quanto ao erro que descobriu ... ?
O Abade Petropoulos pegou o bloco-notas.
-O perturbante período em aramaico foi originalmente lido pelos vossos tradutores com o seguinte significado: «E na sua fuga de Roma, Nosso Senhor, juntamente com os discípulos, caminhou, durante toda essa noite através de abundantes terras de cultivo do Lago Fucino, um imenso pantanal que fora mandado secar e dragar por Cláudio César e que os romanos cultivavam e lavravam com os maiores cuidados.» Vários dos quase invisíveis traços rabiscos e pontinhos foram sem dúvida negligenciados, mas corretamente interpretados e inseridos no texto como mandam as regras, dão-nos a oportunidade de vermos a existência de palavras diferentes que, por conseguinte, modificam o sentido. Lidas corretamente as palavras aramaicas formam a seguinte oração: “E na sua fuga de Roma, Nosso Senhor, juntamente com os discípulos, caminhou durante toda essa noite através as abundantes terras de cultivo perto do Lago Fucino, que seria mandado secar e dragar por Cláudio César e que os romanos cultivariam e lavrariam com os maiores cuidados.” Estão vendo, «caminhou através das abundantes terras de cultivo perto», foi lido e traduzido por engano como «caminhou através das abundantes terras de cultivo do», e «que seria mandado secar», foi lido por engano como, “que fora mandado secar”.
O Abade pôs de lado seu bloco.
-De modo que temos o mistério esclarecido. Tudo está bem quando acaba bem, meus senhores. Devo acrescentar, que considero o fato de ter podido ver este papiro de Jacob como um dos mais comoventes momentos de toda a minha já longa vida. Toda a descoberta em si representa o ponto mais alto da história espiritual do homem. O texto irá alterar, para melhor, o rumo de toda a cristandade. Agradeço-lhes a oportunidade que me deram para me sentir mais próximo da pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo.
-Nós é que lhe estamos muito agradecidos! -exclamou o Dr. Deichhardt, enquanto, juntamente com Wheeler, ajudava o idoso sacerdote e levantar-se da cadeira.
Pouco depois o editor alemão anunciou:
- Agora vamos para o andar de cima comer um digno e alegre almoço comemorando este momento histórico que acabamos de viver. Padre Superior, peço-lhe o favor de aceitar o nosso convite, antes de seguir para o conselho ecumênico, em HeIsinqui.
- De boa-vontade e sentindo-me muito honrado por tão amável convite - respondeu o Abade.
Wheeler pegou o bloco de notas abandonado pelo Abade Petropoulos.
-Terei de chegar à mesa um pouco atrasado, tenho que telefonar urgentemente para Herr Hennig em Mairiz. Temos que mandar parar todo o trabalho das oficinas de encadernação. Temos que mandar corrigir todas as traduções com essa página impressa de novo em cada uma das edições.
- Sim, sim, é uma coisa que deve ser feita de imediato.- concordou o Dr. Deichhardt. - Diga a Hennig que não podemos sofrer atrasos. Pagaremos horas extras aos operários e subsidiaremos os gastos extras do complexo impressor.
Quando começaram a sair do cofre-forte, Randall e seu grupo afastaram-se para deixar passar o Abade e os editores. Ao passar junto de Randall, o Abade fez uma breve paragem.
- Mr. Randall, agora pode verificar por si aquilo que lhe disse quando em Simopetra me mostrou a fotografia do papiro. A fotografia nem por sombras é tão clara como o original. De resto falta-lhe a dimensão de profundidade, não revelando, por isso mesmo, marcas de identificação impressas no papiro. É frequente, para uma pessoa como eu, que vivo há tanto tempo entre documentos antigos, os originais oferecerem o que nenhuma reprodução poderá oferecer.
- Padre, sinto-me muito satisfeito por ter tido oportunidade de verificar o original. Sem dúvida que ajudou a resolver um tremendo problema.
O Abade sorriu.
- Os méritos sobre o caso são partilhados por nós dois.
Depois, o Abade e os editores foram-se embora, seguidos por Sobrier e Riccardi. Finalmente, Randall encontrou-se dentro do cofre com um perturbado Dr. Jeffries, um beatífico Dr. Knight e um afadigado curador Groat, que se preparava para arrumar todas as coisas em seus lugares.
Quando o volumoso curador se preparava para meter o papiro na sua capa de celulose, o Dr. Jeffries deteve-o.
- Um momento, Mr. Groat. Antes de arrumar esse papiro deixe-me dar mais uma olhada a essa confusa coisa.
O Dr. Jeffries dirigiu-se à mesa, colocou o papiro entre as lâminas de vidro, observado atento pelo Dr. Knight e por Randall.
Obviamente, o Dr. Jeffries mostrava-se aborrecido. A responsabilidade pela equipe de tradutores que procederam à final solução dos documentos pertencera-lhe inteiramente. Ter sido apanhado num erro tão crasso, fora sem dúvida um grave golpe para o seu ego. Jeffries colocara o pince-nez olhando atentamente para o papiro.
Randall, que ainda não tinha conseguido ver o controverso papiro, debruçou-se para dar uma olhada mais de perto. Tratava-se de uma larga folha de papel marrom, enrugado, cheio de manchas, tênue, quebradiço, com as margens desfazendo-se. Tinha dois buracos desiguais como se fossem feitos pelas traças, mas, o mais surpreendente era a clareza da escrita em aramaico. A olho nu, e sem ser uma pessoa treinada no estudo de tais documentos, Randall podia perfeitamente abranger porções completas das espessas colunas cheias de traços e rabiscos.
-Ummm...ummm...não compreendo - murmurou o Dr. Jeffries. -Nunca conseguirei compreender como pude enganar-me na leitura deste período. Agora, que tenho oportunidade de o ver de novo, parece-me tão claro, tão fácil de traduzir, como aconteceu ao Abade, que até me espanta. Existem umas quantas manchas duvidosas, claro, mas mesmo assim posso ler as palavras corretamente. - Abanou zangado a cabeça. - Deve ser da minha idade e dos meus olhos cada vez mais fracos...
- Foi o senhor quem traduziu esta parte? - perguntou Randall,
-Sim - suspirou o Dr. Jeffries.
-Mas no seu grupo houve mais quatro pessoas que verificaram a tradução depois de completada. Eles também erraram na leitura do período.
- Hum... é verdade. Todavia, o erro...
-O erro coletivo deve-se a que, colegas trabalhando com uma pessoa possuindo a reputação do Dr. Jeffries, estão sujeitos a deixar-se intimidar -interrompeu o Dr. Knight, com um certo ar crítico. - Se o Dr. Bernard Jeffries emite uma opinião, ela torna-se decreto, lei, ordem, que poucos eruditos se atreveriam a contestar. Tudo depende do imenso respeito devido à erudição do Dr. Jeffries.
O Dr. Jeffries fungou.
-A erudição e o estudo requerem vista apurada. A minha vista deixou de ser apurada. Não quero empreender mais projetos deste modo. De fato - voltou-se para o seu protegido - chegou a hora de dar lugar aos jovens. Pessoas com olhos jovens e mentes mais ágeis. Florian dentro em breve devo abandonar a minha cátedra em Oxford. Devo deslocar-me para Genebra a fim de assumir responsabilidades completamente diferentes. Quando me demitir procurarão sem dúvida saber a minha opinião e recomendação para o preenchimento do lugar. Florian, lembrar-me-ei da promessa que lhe fiz porque, além de tudo o mais não conheço ninguém com mais aptidões.
O Dr. Knight baixou a cabeça.
- A boa opinião que tem a meu respeito é tudo o que quero e desejo, Dr. Jeffries. Este foi um dia auspicioso - disse indicando o papiro. - O que na verdade interessa é a maravilha e portento deste achado. Tal como disse o Abade Petropoulos, mudará o rumo do cristianismo.
Randall apontou para a folha de papiro.
- Dr. Jeffries, são então estas as linhas que o Abade acabou de traduzir, não é verdade?
- As linhas completivas? Sim, são estas mesmas.
Randall curvou-se aproximou os olhos do papiro, examinando atento os tênues caracteres.
- Espantoso, são muito mais distintas e fáceis de ler do que a fotografia tirada. - Endireitou-se. - A que é que se deve tal fenômeno? Pensava que a fotografia a infravermelhos se destinava precisamente a restaurar antigos manuscritos que não podiam ser decifrados com facilidade, tornando-os muito mais claros do que os originais. Não é assim?
- Eu hesitaria em generalizar essa opinião - respondeu o Dr. Jeffries com manifesto desinteresse.
- Julgo que ouvi afirmar o caso a EdIund. Se assim for, então o negativo tirado a infravermelhos tem de ser mais fácil de ler do que o original em cima desta mesa.
- Para exatidão, o erudito recorre sempre ao original disse o Dr. Jeffries impaciente.- Não há possibilidade de distorção. Bom... já basta deste maldito negócio. Vamos para cima participar no almoço para esquecermos as mágoas de um mau trabalho numa boa refeição.
Subiram os três no elevador até o primeiro andar onde Randall, desistindo de assistir ao almoço, deixou a companhia dos dois eruditos e se dirigiu ao seu gabinete. Ao penetrar no gabinete de recepção, sentiu algo de desconfortável ao pensar que nessa noite teria de enfrentar Ângela. Mas, naquele momento, a escrivaninha estava vazia e Randall lembrou-se que na noite anterior a encarregara de outro trabalho de pesquisa na Sociedade Bíblica Holandesa.
Confortado pelo pensamento de que poderia, pelo menos estar só, livre de momento de Angela, Wheeler e todos os outros. Entrou no gabinete, tirou o casaco, aliviou o colarinho, acendeu o cachimbo e começou a passear lentamente de um lado para o outro.
Na Zaal G, na sala de jantar, os editores e os seus convidados comemoravam. Sozinho, no seu escritório, Randall não se sentia com a mínima disposição para celebrações, pelo menos por enquanto.
Havia algo de escrupuloso, algo de errado, que ainda o preocupava, e queria definir melhor qual eram as suas dúvidas.
Hans Bogardus lançou o espectro de nuvens sombrias, de tempestade sobre o projeto ao ameaçar a revelação de uma discrepância no Evangelho de Jacob, mas há pouco, no cofre-forte do subsolo, um perito inatacável, acima de toda a suspeita, um sacerdote vindo de um canto remoto da Grécia, de uma península do Mar Egeu, explicava tudo claramente, afastando o anacronismo, e proclamando a nova Bíblia absolutamente prístina e autêntica. Sim, é verdade. Mas, o que na realidade preocupava Randall era o que teria acontecido entre a descoberta de Bogardus e a autenticação do Abade Petropoulos.
No Monte Athos, o Abade mostrara-se relutante, reticente em avaliar uma fotografia tirada do papiro em questão, mas, nessa altura, parecera ficar também convencido de que o documento fora excelentemente traduzido por uma equipe de eruditos chefiada pelo Dr. Jeffries. Ora alguns dias depois, o Abade debruçara-se sobre o original do papiro e, sem a menor hesitação, avaliara que o aramaico não fora traduzido com exatidão, e que o Novo Testamento era por conseguinte um documento para além de toda e qualquer suspeita.
O que é que modificara a avaliação do Abade? Uma nova visão do papiro... ou... um novo papiro para ver?
Sim, era aquela a parte diabólica de todo o caso, o desaparecimento, o incrível desaparecimento do Papiro Número 9, no momento exato em que se tornara vital fosse examinado pela maior autoridade mundial em aramaico. Coincidência? Talvez. Bem, mas depois seguira-se o não menos espantoso reaparecimento do papiro, a sorte incrível da sua recuperação, precisamente na altura da chegada do Abade. Outra coincidência? Talvez.
Bem... talvez.
Talvez.
Era estranho quanto ao delido aramaico num antigo papiro, estranho como um simples milímetro de um rabisco deslocado mais à esquerda ou mais à direita, aqui ou ali, podiam estabelecer a diferença entre uma mistificação profana e uma verdade divina. A simples localização de um pequeno rabisco, que não fora visto anteriormente. Todavia, os olhos do Abade encontraram, ressurgindo a fortuna e boa-sorte para os cinco editores religiosos. De quão pouco dependiam as fortunas e os futuros dos homens.
Entretanto, a fotografia era o que mais preocupava Randall. Se o Abade fora incapaz de distinguir os caracteres que na fotografia formavam as palavras do texto, devia, normalmente, ter ainda mais dificuldades em fazer a avaliação pelo original. Randall disse para com seus botões que nada daquilo fazia sentido. Estava quase certo, de que um negativo infravermelho, conferia a qualquer fotografia, mais clareza do que a um original apagado pelo tempo. No entanto, as palavras na fotografia decalcada do negativo a infravermelhos eram infinitamente mais tênues do que no original que acabara de observar.
Não, aquilo não fazia sentido. Ou, possivelmente, até talvez fizesse sentido demais.
Randall aproximou-se do seu fichário à prova de fogo e abriu-o. Destrancou a barra de segurança e puxou a gaveta, onde arquivara finalmente a fotografia, sob insistência de Wheeler.
A pasta de arquivo contendo as fotografias tiradas por EdIund à descoberta do Professor Monti - o único jogo de reproduções existentes no edifício - estava mesmo na sua frente. Randall abriu a pasta e tirou a primeira fotografia da fila. Não era a Número 9, mas sim a Número 1. Desconcertado - pensava que quando procedera ao arquivo da controversa fotografia a colocara em primeiro lugar-, começou a catar todas as fotografias apressadamente: a pertencente ao Papiro Número 9 era a última da fila - a primeira contando inversamente.
Pensou que não era caso para suspeita. Anteriormente, já se enganara várias vezes na ordem de arquivar documentos. O mais provável, pois, seria ter metido a fotografia do Papiro Número 9 na pasta sem ter visto onde a colocara.
Levou a fotografia do papiro para cima da mesa e sentou-se para observar melhor.
O Dr. Jeffries, quando tinham ficado a sós no cofre-forte, indicara-lhe quais as linhas em aramaico do original que haviam desencadeado a controvérsia. Randall percorreu a fotografia com os olhos e localizou-as facilmente. Os seus olhos não se podiam afastar delas, como se estivesse hipnotizado.
Aquelas linhas eram as mesmas de antes, mas, de certa maneira, não pareciam as mesmas.
Piscou os olhos. Apresentavam-se-lhe muito mais claras do que quando as examinara no Monte Athos. Pelo menos pareciam-lhe mais claras. Diacho, eram de fato tão ou mais legíveis do que o papiro original que ainda há momentos vira na casa-forte. Se aquela fosse a fotografia que tinha mostrado ao Abade Petropoulos no Monte Athos, o sacerdote teria sem dúvida podido ler os caracteres com facilidade, na verdade muito mais facilmente do que fora capaz de decifrar o original.
Randall atirou a fotografia para cima da escrivaninha e esfregou os olhos.
Estariam os olhos a enganá-lo? Seria aquela a mesma fotografia que sempre foi? Ou seria o seu velho cinismo, aquele cinismo que Bárbara, a sua mulher, que o seu infortunado pai, que ele próprio sempre odiaram, aquele cinismo, descrença auto destruidora em qualquer coisa de valor, que estava a regressar, que de novo se espalhara por todo o seu ser como um cancro em desenvolvimento? Pesava os seus sentimentos.
Seria a dúvida que persistia no seu ser, um desejo honesto de encontrar a verdade, ou um hábito enraizado de rejeitar a fé? Teria razão para a renovação das suas suspeitas ou estava
a viciar-se no seu ceticismo sem fundamento que acabava por se tornar um hábito de desvirtuar todas as coisas, por mais sagradas que fossem?
Inferno! Havia um meio de saber a resposta.
Levantou-se impulsivo da cadeira, agarrou na fotografia e vestiu o casaco.
Havia uma pessoa que tinha a resposta. Uma pessoa, a única que tirara a fotografia, Oscar EdIund, o fotógrafo da Ressurreição Dois. E era Oscar EdIund a quem ele procuraria de imediato.
Hora e meia depois, Randall desceu do táxi que o conduziu à residência de EdIund, encontrando-se olhando para um típico prédio holandês do século XIX, de três andares, situado no cais conhecido como Nassaukade.
Randall foi informado que era aquela a casa alugada pela Ressurreição Dois, para alojamento de alguns dos seus homens trabalhando no projeto. Albert Kramer, Paddy O'Neal e Elwin Alexander, entre outros, partilhavam os oito quartos da residência, sendo também, habitada por Oscar EdIund, que dispunha igualmente de certos compartimentos onde montara a câmara escura.
O táxi que transportara Randall não pudera levá-lo mesmo até à entrada da porta. O espaço para estacionamento estava ocupado por um «sedan» vermelho de aspecto oficial, tendo ao volante, à espera, um motorista uniformizado. A medida em que se aproximava da moradia, Randall observava o «sedan» pintado de vermelho, conjecturando o que diziam as palavras pintadas na carroceria: Heldhaftig, Vastberaden, Barmhartig.
O motorista pareceu adivinhar os pensamentos de Randall, porque na altura em que ele passou junto da porta, lhe perguntou cortes:
- O senhor é americano?
Como Randall tivesse feito um aceno afirmativo com a cabeça, o homem prosseguiu:
- Bom, as palavras que o intrigam pintadas no veículo querem dizer em inglês: «Heróica, Decidida, Prestimosa». São a divisa da brigada de incêndios de Amsterdã. Este é o carro oficial do comandante dos bombeiros.
- Muito obrigado pela explicação - agradeceu Randall, preparando-se para entrar na porta da escada, ao mesmo tempo que pensava qual a razão do carro do comandante de bombeiros se encontrar naquele local.
Randall acabava de ultrapassar o limiar, quando viu a porta interior abrir-se e surgir EdIund, com o rosto mais melancólico do que nunca, na companhia de um homem uniformizado. Embora absorvido numa troca de palavras com o comandante de bombeiros, EdIund viu logo Randall e fez-lhe um gesto para esperar um pouco.
Randall ficou no último degrau, à espera, ainda mais intrigado, até que finalmente, Edlund trocou um aperto de mão com o comandante da brigada de incêndios. Ao passar por Randall, o oficial levou a mão ao quepe num cumprimento, desceu os degraus e tomou lugar no «sedan» vermelho.
EdIund apressou-se ao encontro de Randall, que lhe disse:
-Desculpe, eu devia ter telefonado primeiro para saber se estava muito ocupado. -Depois, apontando para o «sedan» que iniciara a marcha, perguntou: - Há alguma novidade?
EdIund passou a mão pelo cabelo cor-de-cenoura e respondeu desconsolado:
- Complicações, nada mais do que complicações. Desculpe se estou mal-humorado. O cavalheiro que viu sair daqui, é o comandante da brigada de incêndios de Amsterdã. Veio-me entregar o relatório sobre o sinistro. O onderbrandmeester dele...
-O quê?
- Um dos chefes de grupo de incêndios e alguns bombeiros estiveram aqui até de madrugada e realizaram uma investigação.
- Olhou para Randall interrogativamente. - Não sabia? Desculpe, ser tão precipitado. Ontem à noite, nas traseiras da casa, declarou-se um breve foco de incêndio...
- Ficou alguém ferido?
- Não. Felizmente ninguém. Nessa altura, afortunadamente, não havia viva alma aqui. Estávamos todos no Kras para uma especial reunião noturna que foi convocada.
- Uma reunião noturna especial? Com que fim?
- Foram os editores que nos convocaram, mas quando chegamos estavam apenas representados pelo Dr. Deichhardt e por Miss Dunn. Pregaram-nos um sermão sobre a necessidade de trabalharmos com mais rapidez. Nada de importante, apenas conversa barata.
-E foi enquanto vocês estavam no Kras que o incêndio se alastrou?
- Sim -respondeu EdIund firme. - Um vizinho viu fumaça saindo da casa e fez uma chamada de alarme para a estação de Nieuwe Achtergracht. Em poucos minutos chegou uma bomba de incêndio e um carro auxiliar. Na altura em que eu, Paddy e Elwin regressamos o fogo já dominava, mas tive que me conservar de pé até tarde para assistir à investigação às origens do incêndio.
Randall deu uma olhada inquisitiva pelo edifício.
-A vossa casa não me parece muito afetada.
- Não, o fogo foi confinado ao lugar onde se originou. O foco de incêndio deu-se na minha câmara escura e na outra dependência fotográfica, mas foi apagado antes de se poder propagar. Todavia causou prejuízos grandes nas minhas instalações fotográficas.
-Então os únicos locais afetados foram as suas instalações fotográficas?
- Apenas elas. Queimada mais da metade da câmara escura e alguns prejuízos no resto das instalações. Vou-lhe mostrar.
Passaram por um pequeno «hall» de entrada, onde se manifestava um intenso cheiro de comida vindo da cozinha, seguiram por uma sala de teto alto, aparentemente a sala de estar, com os cortinados verdes e sofás de veludo, onde pairava um aroma distinto de tabaco, e chegaram a um aposento da retaguarda, onde predominava um cheiro a coisas queimadas, a fumo.
Via-se uma sólida porta de carvalho arrombada à machadada, uma enorme e complicada fechadura de batentes, e volantes semelhante à da casa-forte do Krasnaplosky. Uma outra porta interior apresentava-se semi carbonizada.
-Eis as minhas instalações fotográficas, ou tudo o que resta delas - disse EdIund. - Não se pode divisar grande coisa até reparação da instalação elétrica, mas esta parte das instalações destinava-se à ampliação das fotografias, emulsões, secagem, etc. As paredes são de mosaico, e é sobre aquela mesa de fórmica que abro os rolos de filmes. E aquelas tinas e covilhetes... bem, isto pra você já não interessa. Vê aquele canto? A parede da direita e o equipamento estão carbonizados. A parede do fundo foi bastante afetada e as cortinas de separação do outro quarto arderam completamente. Se quiser fazer o favor de me acompanhar...
EdIund passou para outro quarto, levando Randall. A um canto via-se uma prensa metálica de metal, com as peças quase fundidas devido às chamas. O outro quarto, espécie de arquivo, fora o que sofrera mais danos: viam-se restos contorcidos de câmaras de filmes, refletores descamados e um fichário semi-derretido. Era um nota trágica de devastação.
Com um trejeito de impotência perante a calamidade EdIund lançou um olhar pelo quarto.
- Ao que parece o sinistro começou por aqui. Que bagunça. Além de tudo o mais foi realmente uma má altura para este estúpido fogo. Terei que trabalhar vinte e quatro horas por dia para compensar as perdas.
-Qual foi a origem do sinistro? -perguntou Randall?
- A princípio, o subchefe, de bombeiros insistiu que foi um ato de vandalismo. Mostrei-lhe que era impossível. Estas instalações foram desenhadas e construídas, na parte da residência que sofreu uma completa remodelação, com o fim expresso de arranjar uma área de segurança. Como pode observar seria impossível alguém entrar por aquela porta especial, que aliás, os bombeiros tiveram que arrombar à machadada para conseguirem passar com as mangueiras. Os vândalos não poderiam ter penetrado, nem nenhum piromaníaco conseguiria abrir a porta salvo conhecendo a relação.
- E quantas pessoas conheciam a relação?
-Eu, claro está. Mais ninguém pode utilizar estes quartos...- deteve-se, aparentemente a refletir. - Bom, suponho que haverá outras pessoas na Ressurreição Dois que conheçam a relação, uma vez que mandaram construir as instalações para eu utilizar. Penso que o inspetor Heldering deve ter os números que aciona o dispositivo do disco. Talvez a relação fosse também conhecida pelo Dr. Deichhardt: e pelos outros editores. Por fim, acabei por convencer o subchefe dos bombeiros que não podiam ser vândalos. Seria impossível que pudessem penetrar nestes quartos.
- E se os vândalos conseguissem entrar com a ajuda de alguém da Ressurreição Dois?
EdIund olhou atentamente para Randall.
-Também levei isso em consideração. Mas é uma coisa sem pés nem cabeça. Porque é que alguém do projeto havia de querer destruir o fruto do nosso trabalho?
- Sim, na verdade porque é que alguém da Ressurreição Dois teria interesse em fazer uma coisa dessas?... - repetiu Randall, mais pra si do que para ser ouvido por EdIund.
-De modo que os peritos dos bombeiros prosseguiram a investigação às causas, e há pouco o comandante trouxe-me o relatório. Embora não esteja absolutamente conclusivo, o comandante está convencido que o sinistro se deu por um curto-circuito. -Edlund tapou o nariz com a ponta dos dedos.- Cheira muito mal aqui. Vamos embora.
Deixaram as carbonizadas instalações fotográficas de EdIund e passaram para a sala de estar. O fotógrafo tirou do bolso um maço de cigarros e ofereceu a Randall. Este declinou a oferta e Edlund tirou um cigarro, meteu-o na boca e acendeu-o com um isqueiro.
-Lamento aborrecê-lo com este drama, principalmente quando o senhor veio hoje aqui pela primeira vez para me dar o prazer da sua visita. As circunstâncias obrigam-me ser um mau anfitrião. Bom, precisa alguma coisa de mim, Steve?
- Sim. Uma coisa sem importância maior. - Apontou para o envelope que tinha na mão. - Pretendo que me deixe dar uma olhada pelo negativo que fez do Papiro Número 9.
Edlund reagiu de maneira verdadeiramente desanimadora.
- Mas... isso constituiu precisamente uma das partes da perda que sofri. Bem viu lá dentro as máquinas e o fichário completamente arruinados. Todo o meu jogo de negativos se desfez em cinzas e fumo. Nem um só ficou para amostra. Lamento muito, mas como vê não posso atender o seu pedido, por muito simples que seja. Mas claro que o caso não é grave, tomei já disposições para fazer um novo jogo de negativos aos papiros e pergaminho. Amanhã vou estar muito ocupado na casa-forte do Kras. Depois de amanhã terei já os filmes revelados, para lhe mostrar tudo o que quiser ver. Não se trata propriamente de uma perda irremediável para os nossos serviços. Não se preocupe.
- Não estou preocupado - respondeu Randall cautelo. -O fato é que tenho um jogo de fotografias relativas aos seus primeiros negativos. Queria apenas comparar esta fotografia que aqui tenho com o negativo do Papiro Número 9... para verificar se na fotografia não terá qualquer falha em relação ao negativo original.
EdIund mostrou-se espantado.
-Mas claro que sim, tudo o que havia no negativo tem que estar na fotografia. Porque raio havia de haver qualquer diferença? Fui eu próprio quem fez a revelação e as ampliações, e costumo tomar sempre muito cuidado para que...
-Oscar, não me interprete mal-atalhou rapidamente Randall. - Não coloco em dúvida a técnica e honestidade do seu trabalho. Bom, acontece que ao passar revista a todas as cópias houve uma que não me pareceu da mesma qualidade... bem... isto é, tão nítida, tão precisa como as outras.
- Qual delas? A Número 9? Não pode ser. São todas iguais, da mesma qualidade, com o mesmo papel, o mesmo grão, a mesma intensidade de luz, a mesma exposição, tudo da mesma maneira. Tem a fotografia aí consigo, não é verdade. Deixe-me ver.
Randall tirou a fotografia ampliada do envelope e passou-a a EdIund.
-Aqui está.
O sueco examinou brevemente a fotografia.
-Nada vejo de errado. A mesma qualidade das outras. Tudo nesta cópia é claro. Lamento, Steve, mas esta não é diferente em nada das outras cópias que fiz.
-Você usou a técnica dos infravermelhos nesta cópia, não foi assim?
-Com certeza.
-Diga-me, porquê infravermelhos?
-Julgava que sabia a razão. Uma vez que se tenha de fotografar um objeto que esteja, pelo menos em parte, ilegível, terá que se proceder à técnica dos infravermelhos. Os métodos ordinários não conseguem fazer realçar o que não pode ser visto com clareza, mas os infravermelhos arrancam tudo das profundidades. Os papiros refletem a radiação de infravermelhos que os ilumina e assim, tanto o negativo, como a cópia tornam-se mais legíveis.
-Foi dessa forma que fez a fotografia que tem aí nas mãos? -havia uma nota de hesitação na voz de Randall.-Oscar, examine bem a fotografia. Foi na verdade você que a fez? Será capaz de jurar que é obra sua?
Em vez de olhar para a fotografia que tinha nas mãos, EdIund fitou gravemente Randall.
- Steve, do que é que está falando? Claro que sim, fui eu que fiz esta fotografia. A quem mais é que permitiriam fazê-la? Sou o único fotógrafo contratado pela Ressurreição Dois, o único com absoluta aprovação e com passe de segurança, o único contratado para realizar os trabalhos de arte para o departamento de publicidade que você comanda. O que é que o leva a pôr em dúvida que fosse eu o autor desta fotografia?
-Precisamente porque ela se me afigura diferente das outras. Não possui a mesma qualidade ou... ou estilo.
- Qualidade? Estilo? Nem sequer sei o que pretende com essa conversa. - Com gestos de aborrecimento, EdIund levantou a fotografia examinando, voltando-se para aproveitar melhor a luz. A verificação era agora mais prolongada e cuidadosa.
- Oscar, veja bem as linhas quatro e cinco da primeira coluna - recomendou Randall.
- Muito bem. Estão excelentes. Perfeitamente legíveis.
-Ora aí é que bate o ponto -retorquiu Randall, pensando se devia revelar a EdIund o verdadeiro motivo da sua preocupação, se lhe havia de dizer que na primeira vez que o Abade Petropoulos examinara a cópia fotográfica aquelas linhas se apresentavam mais indistintas, tal como as do próprio papiro. Mas que a partir do exame feito pelo eclesiástico grego na casa-forte do subsolo do KrasnapoIsky, tanto o papiro como a fotografia - estranhamente fora de ordem no seu arquivo - haviam adquirido uma nova clareza fenomenal. Contudo decidiu não fazer de momento nenhuma revelação, fazendo apenas crer ao fotógrafo que já vira o papiro anteriormente. - Oscar, quando vi o papiro pela primeira vez essas linhas eram as mais difíceis de ler, estavam quase indecifráveis. Tornava-se impossível divisarem-se os traços e rabiscos em aramaico à vista desarmada. Mas agora, nessa fotografia, pode ver-se tudo com a mesma nitidez. É uma coisa que não faz sentido.
- Para si não faz sentido, mas faz para um fotógrafo experimentado. Quando me fornecem algo como o fragmento de um papiro que possua duas ou três áreas na superfície que estejam muito ilegíveis, embaçadas ou manchadas, emprego uma técnica especial, a que se pode chamar de bloqueio, isto é, se utilizar uma grande exposição para dar realce a linhas ou zonas ilegíveis também darei uma exposição excessiva ao resto do texto legível. Para evitar isso, concentro luz em certos setores e bloqueio as restantes zonas. Assim, as partes que necessitam de um terço da exposição de luz, relativamente aos pontos sobressaem, são dispostas de modo a que recebam exposição normal. Com tal técnica consigo obter um negativo uniforme e legível, com a conseqüente aplicação dessas qualidades na cópia. Vou-lhe mostrar.
Ergueu a fotografia e aproximou-se de Randall.
-Aqui - apontava com o dedo - pode ver perfeitamente o que consegui com a minha técnica de maior exposição, fazendo destacar a quarta e quinta linhas para que se vejam claramente.
Havia uma outra zona deste papiro, segundo me recordo, que estava bastante enegrecido e ilegível até que eu... -a voz morreu-lhe na garganta, e ele fitou de olhos arregalados a parte inferior da coluna em caracteres aramaicos.-É estranho -murmurou.
- O que é que tem de estranho? - perguntou Randall.
- Esta outra zona aqui ao fundo. Tem demasiada exposição... o processo de bloqueio para gradação da luz é deficiente. A proteção plástica transparente para bloquear a luz tem a função de cortar a intensidade da iluminação das zonas onde não há necessidade de exposição em demasia... não parece um trabalho meu... uma coisa assim tão tosca. Tenho a certeza... ou pelo menos tinha a certeza, de ser mais equilibrado em tal gênero de trabalho. Verifiquei centenas de vezes as fotografias e sempre me senti satisfeito. Sim, eis aqui uma zona com demasiada exposição e sem necessidade disso. Isto é, a olho nu, para qualquer leigo, a coisa passará despercebida, mas para mim tem uma clareza extraordinária. Não compreendo.
Randall, suavemente, tirou-lhe a fotografia das mãos.
- Oscar, talvez você não fosse o autor desta reprodução, quem sabe?
- É minha, porque fui eu que fiz todo esse trabalho - respondeu canhestro Edlund, como quem se procura convencer. - E no entanto, um trabalho tão pobre não parece meu. É estranho que tal coisa tenha acontecido.
- Sim, ultimamente no projeto têm acontecido coisas muito estranhas.
Randall queria acrescentar que era estranho como algumas linhas da reprodução fotográfica, muito ilegíveis à vista no Monte Athos, transformaram-se, milagrosamente, em Amsterdã, em linhas perfeitamente legíveis. Que era estranho que certo papiro tivesse desaparecido no mesmo dia em que o desejara ver, para reaparecer convenientemente no dia seguinte. Que era estranho como um negativo que ele queria comparar com a cópia fotográfica fosse consumido pelo fogo horas antes. Que era estranho como a perfeita técnica fotográfica de EdIund, fosse tão mal aplicada naquela fotografia, justo na Número 9 da série dos papiros relativos ao Evangelho Segundo Jacob.
Para Randall levantaram-se todas aquelas perguntas, mas, sem conseguir obter respostas satisfatórias. Evidentemente, que Oscar EdIund, sem o crucial negativo, e com a inabalável convicção de ser o único fotógrafo da Ressurreição Dois, jamais lhe poderia fornecer a resposta de que precisava.
Randall viu que a não ser que alguém, em qualquer local, apoiasse as suas dúvidas ou as afastasse de uma vez para sempre, teria de se devotar à Ressurreição Dois com uma fé cega. Mas, também sabia que seria difícil, senão impossível, possuir essa fé cega, quando os olhos teimavam em abrir-se-lhe. Mas a abrirem-se para quê?
Naquele mesmo instante, absorveu um pensamento, um pensamento que lhe atravessou o cérebro como um relâmpago, e os seus olhos arregalaram-se para uma possível solução que até então lhe passara completamente despercebida, a mais óbvia de todas as soluções.
-Oscar, importa-se que utilize o seu telefone?
-Há um no corredor, atrás dessa parede à direita. Telefone à vontade. Bom, e agora, se me desculpar e der licença, tenho muita limpeza a fazer.
Randall agradeceu ao mestre-fotógrafo, esperou que ele saísse da sala e dirigiu-se depois ao telefone situado em cima de uma mesinha no corredor, marcando o número da Ressurreição Dois.
Disse à operadora do P.B.X. que queria falar com o Abade Mitros Petropoulos. Poucos segundos depois estava ligado à secretária do Dr. Deichhardt.
-Aqui fala Steve Randall. O Abade Petropoulos ainda se encontra aí?
- Está sim, Mr. Randall. Acaba precisamente de almoçar com os editores e estão agora todos reunidos em conferência no gabinete do Dr. Deichhardt.
- Pode fazer a ligação lá para dentro? Queria falar com o Abade.
-Lamento muito, Mr. Randall, mas recebi instruções para não fazer ligações telefônicas para o gabinete nem consentir interrupções sejam de que ordem forem.
-Espere, julgo que quanto a mim é um caso diferente. Fui eu quem trouxe o Abade a Amsterdã. Faça a ligação. Trata-se de um assunto importantíssimo.
-Não posso, Mr. Randall. A ordem do Dr. Deichhardt: foi sem exceções.
Exasperado, Randall deu um novo rumo à conversa.
-Está bem. Quanto tempo mais estará o Abade aí?
-O Dr. Deichhardt acompanhará o Abade Petropoulos ao aeroporto dentro de quarenta e cinco minutos.
-Perfeito. Estarei aí dentro de trinta minutos. Pode fazer o favor de tomar conta de um recado e entrega-lo ao Abade logo que ele saia do gabinete?
-Ás suas ordens.
- Diga-lhe... - pensou bem no recado, e depois ditou-o lenta e distintamente: - Diga-lhe que Steve Randall gostaria de lhe falar por breves minutos antes de ele partir para o aeroporto de Schiphol. Diga-lhe que lhe agradecia muito se fosse ao meu gabinete. Diga-lhe que pretendo... agradecer-lhe de novo pessoalmente e despedir-me dele. Tomou conta?
A secretária respondeu que sim. Randall, satisfeito, desligou o telefone. Depois, apressadamente, saiu da moradia para apanhar um táxi.
Vinte minutos mais tarde estava de novo em seu escritório no Krasnapolsky, desejoso de mostrar ao Abade Petropoulos a intrigante fotografia do Papiro Número 9.
Entrou no escritório preparado para esperar a entrada do Abade, quando viu que não se encontrava sozinho.
No meio do aposento estava George L. Wheeler, mas um Wheeler que Randall nunca antes tivera oportunidade de conhecer. A rude cara de lua-cheia do editor não arvorava o seu disfarce de caixeiro viajante cheio de urbanidade. Pelo contrário era de ira. Ao ver entrar Randall avançou, dominando-o com o seu maciço arcabouço, plantado na sua frente.
- Onde é que você está? - rugiu.
Um pouco intimidado pela inesperada agressividade do homem que o contratara, Randall hesitou.
- Bem, pretendi obter algumas fotografias publicitárias e...
- Não me embale com essa conversa. Sei muito bem onde é que está. Foi procurar o EdIund. Saiu de lá agora mesmo.
-Exatamente. As instalações fotográficas de EdIund, foram devoradas por um incêndio e nós...
- Sei tudo a respeito desse estúpido incêndio. O que eu quero saber é o que você cheirava por ali. Você não foi lá para obter quaisquer fotografias publicitárias. Foi lá porque continua bisbilhotando por toda a parte como um rafeiro a respeito dessa coisa disparatada do Papiro Número 9.
- Ainda alimentava algumas dúvidas e por isso pretendi verificar determinada coisa.
-Junto ao EdIund. E como ele não o pôde auxiliar, você decidiu -voltar a agarrar-se às saias do Abade Petropoulos. -O tom de voz de Wheeler era colérico. -Muito bem, estou aqui para lhe dizer que hoje não terá oportunidade de ver o Abade, nem hoje, nem nestes tempos mais próximos. Partiu para o aeroporto há dez minutos. E se você alimenta quaisquer idéias de contatar com ele em Helsinqui ou no Monte Athos, perca-as de uma vez por todas. O Abade foi sabiamente aconselhado para não ver ninguém, não falar com quem quer que seja, incluindo o nosso próprio pessoal, a respeito de tudo o que possa envolver o Evangelho Segundo Jacob. Devo acrescentar que ele concordou com todo o coração, porque também ele deseja preservar a obra de Deus daqueles que no interior, tanto quanto do exterior, querem solapar o projeto Ressurreição Dois.
-George, um momento, eu não quero solapar seja o que for. Quero somente estar certo de que tudo o que apoiamos é autêntico.
-O Abade ficou satisfeito com a autenticidade que verificou, e nós estamos também satisfeitos. Posto isto, que raio de coisa pretende você fazer?
-Tento apenas satisfazer a mim mesmo. Afinal de contas, também faço parte desta operação...
-Então, com um milhão de diabos, proceda justamente como uma pessoa que faz parte da organização! -berrou Wheeler, com o rosto lívido de ira contida. -Proceda como um dos nossos e não como uma pessoa pertencente à brigada de demolição de de Vroome. Foi você que trouxe aqui o Abade Petropoulos para verificar o papiro, e ele observou os documentos originais e deu-os como genuínos. Que raio pretende você mais?
Randall não respondeu.
Wheeler avançou mais um passo na direção de Randall.
-Vou-lhe dizer o que nós pretendemos: substituí-lo! Simplesmente substituí-lo, mas sabemos, no entanto, que essa substituição criaria demoras que não podemos suportar. De modo que concordamos que se você cumprir o seu serviço estritamente, sem andar a meter o nariz nos nossos assuntos, continuaremos a alinhar consigo. Contratamo-lo, e por uma boa soma, para você lançar a nossa Bíblia ao público em condições ideais, mas não o contratamos para andar fazendo investigações sobre a obra. A nova Bíblia foi já objeto de milhares de investigações pelos homens mais qualificados do mundo, homens que sabem muito bem aquilo que fazem. Não o contratamos também, para andar a desempenhar o papel de Advogado do Diabo. Lá fora existem já de Vroomes demais para esse trabalho, sem ser preciso que você lhes dê uma ajuda. Você está aqui com um único fim: vender a nossa Bíblia ao público por meio de uma publicidade excelentemente orientada. Fui pois escolhido para lhe recordar qual é o seu verdadeiro trabalho no nosso projeto, e parece-me melhor que o faça... que nos dê o préstimo do seu trabalho especializado e nada mais.
-É isso mesmo que eu pretendo também-disse Randall sem se alterar.
- Não estou interessado naquilo que você pretende ou não. O que me interessa são os resultados. O que queremos são resultados positivos. Ouça-me bem. Sabemos perfeitamente quem destruiu as instalações fotográficas de EdIund. Sabemos perfeitamente que foram certos desordeiros de de Vroome...
-De Vroome? Como é que ele ou algum dos seus homens podiam entrar nas instalações?
- Não importa como, o que interessa é que o fizeram. Foi de Vroome, tem que aceitar a nossa palavra a respeito do caso. A partir de agora não vamos correr mais riscos com esse miserável radicalista. O homem está desesperado e é capaz de tudo e mais alguma coisa. Decidimos vibrar-lhe o golpe final. Resolvemos pela última vez modificar a data da nossa declaração ao mundo. Daqui a oito dias, na sexta-feira dia 5 de julho. Reunimo-nos com o seu pessoal nesta passada hora. Mudamos já as datas para a declaração no Palácio Real e para a transmissão via satélite. Mandamos recolher, ajustar os telegramas e convites à imprensa. Estamos a dispor as coisas para que sejam publicados artigos ante declaração pública de modo que o público possa estar alertado e atento a observar um grande acontecimento dentro de uma semana, a partir de amanhã. Ordenamos a Hennig que envie Bíblias mesmo sem encadernação para o seu pessoal logo que estejam prontas com a devida retificação. Queremos que o departamento de publicidade-o que o abrange a si também-passe trabalhando dia e noite na preparação do dia em que a obra for anunciada. Queremos ter tudo pronto na altura exata em que seguirmos para o Palácio Real a fim de falarmos ao mundo da nossa Bíblia. Está ouvindo, Steve? Que nada mais interfira com o seu trabalho a partir deste momento.
-Muito bem, George.
Wheeler deu uma rápida volta e dirigiu-se para a porta do gabinete, mas logo que lá chegou voltou-se para trás.
- Steve, seja o que for que você busca, acredite que não encontrará, porque o que você procura não existe. Acredite na minha palavra. Portanto, deixe de andar a caçar fantasmas e
confie em nós.
Desapareceu.
E Randall ficou com as suas interrogações, mas, sem as respectivas respostas. Todavia, repentinamente, viu que Wheeler o havia deixado ficar com mais alguma coisa: com um fantasma.
Um a mais. Aliás, o último que poderia fornecer as respostas.
Pela primeira vez sentia-se ansioso de estar nessa noite com Angela Monti.
Randall trabalhara até tarde com o pessoal do seu departamento e só às dez horas da noite pôde finalmente sair do Krasnapolsky para o seu encontro, por tanto tempo adiado, com Angela Monti.
Ansiava tanto quanto temia aquele encontro. Desde que soubera em Paris como Angela o enganava -desde a sua viagem ao Monte Athos, durante a qual todo o seu ser se revoltara profundamente contra ela - muita água correra sob as pontes, os acontecimentos multiplicaram-se e ao mesmo tempo, a sua ira fora cedendo, sem contudo, ceder um sentimento de desconfiança. Se pudesse escolher continuaria a adiar aquele momento vital em que a verdade iria ter predominância. Mas infelizmente não tinha alternativa, tornava-se imperativo que a defrontasse. Daquela reunião dependia muita coisa.
Quando Randall, relutante, fez soar os nós dos dedos contra a porta do Quarto 105 do Victória Hotel, preparou para se encontrar com ela fria e desapaixonada, num confronto direto até ao âmago do problema. Todavia, quando a porta se abrira para revelar aquela figura vincadamente feminina, com o seu cabelo bem penteado, negro como as asas de um corvo, os seus sedutores olhos verdes como as ondas do Mediterrâneo, a linha do voluptuoso corpo moldada pelo penteador, quase que se esquecera de todas as suas resoluções. Correspondera com ardor ao abraço e beijo dela, perturbado pelo perfume a evolar-se daquela mulher querida, sentindo um bem estar indizível ao contato com aqueles seios eretos, pontudos que pareciam querer-lhe penetrar no peito com desejo. Correspondera-lhe com todo o calor, mesmo tentando dominar-se. Finalmente conseguira desvencilhar-se, com rudeza, do terno amplexo de Angela e entrara no confortável aposento.
Seguira-se uma conversa banal - as investigações que ele lhe mandara fazer e os novos prazos para o programa de apresentação ao mundo que o obrigavam a dobrada atividade - e ela arranjara-lhe um uísque duplo, com água e colocara para ela um conhaque. Randall sentira-se incapaz de enveredar sem mais preâmbulos no Taccuse, e cada momento que ia passando tornava mais difícil de começar o ataque direto contra a honestidade moral dela, com todas as implicações que o caso englobava.
Randall tentara manter o tom da conversa centrado sobre matéria profissional. Nada fácil. Finalmente abordara um tema dedicado a fotografias, à grande variedade de que se necessitava para a campanha de promoção. Disse que aguardara que EdIund pudesse haver-se com tais requisitos, mas infelizmente o fotógrafo sueco sofrera um acidente quanto ao seu material. Randall contou a Angela o incêndio nas instalações fotográficas de EdIund e o atraso que aquilo representava para o projeto. Finalmente lembrara-lhe que durante o primeiro encontro dos dois em Milão ela prometera mostrar-lhe uma coleção de cópias fotográficas que possuía relacionada às escavações do pai em Ostia Antica.
- Tens essas fotografias contigo? - perguntara-lhe. - Estou especialmente interessado em ver algumas fotos que o teu pai possa ter tirado aos papiros de Jacob na altura em que fez o achado, ou melhor ainda, se for possível, grandes planos e ampliações dos papiros depois de devidamente tratados e colocados nas lâminas de vidro.
Sim, ela fizera-se acompanhar para Amsterdã por uma coleção variada de fotos. Dirigira-se depois a um armário e dele tirara uma pasta com umas dezenas de fotografias que espalhara no centro do carpete verde.
Naquele momento, tendo já decorrido meia hora desde o momento fatal do encontro, estavam os dois sentados no chão, lado a lado, ele sem casaco, examinando as séries de fotografias.
Para Randall, o registro visual da escavação representava algo de fascinante. Entre outras coisas, aquelas reproduções ofereciam-lhe a primeira oportunidade de ver o Professor Monti, um homem baixinho, mas bem entroncado, com uma espécie de rosto querubínico que é normal ver-se em todos os italianos tocadores de realejo. Viam-se alguns trabalhadores italianos, posando ao bom sol romano, junto das trincheiras das escavações. Passou umas quantas fotos que representavam Angela e sua irmã Claretta, alta, magra, menos bela do que Angela-junto ao pai, no local das escavações, depois do triunfo da grande descoberta. Haviam umas quantas fotografias do Professor Augusto Monti mostrando os seus achados, mas o aramaico dos papiros perdia-se na distância, carecendo de clareza. Sim, havia ali de tudo um pouco, exceto aquilo que Randall procurava com tanto afã,
Passou a última fotografia e olhou para Angela.
- Excelente, Angela, muitas delas servem perfeitamente aos fins da nossa campanha publicitária. Voltaremos a examiná-las no final da semana e reproduziremos algumas que se apresentem de melhor qualidade e sejam mais representativas.
Os verdes olhos de Angela observaram-no.
- Na verdade não me pareces muito entusiasmado.
-Não, nada disso. São na verdade fotografias aproveitáveis. Bom... a verdade é que tinha esperança de que houvesse algumas ampliações e primeiros planos dos papiros.
- Lembro-me perfeitamente que existiam uns grandes planos dos papiros. Meu pai costumava examinar com atenção algumas dessas fotografias no remanso do seu gabinete de trabalho. Mas isso foi antes do achado ser autenticado e concedido, mediante contrato, pelo governo italiano aos editores. Meu pai é habilitado em aramaico, de modo que era capaz de interpretar os papiros tal como podia perfeitamente ler italiano, alemão ou inglês. Posso até dizer que praticamente gravou na memória cada uma das linhas, cada um dos caracteres, tal era o orgulho e o amor pela descoberta ímpar.
-E onde é que se encontram agora essas reproduções em grande plano?
-Não sei. Procurei para as trazer comigo quando vim para Amsterdã. Mas não, fui capaz de encontrar uma única. Perguntei a meu pai, mas ele é daquele tipo de sábios distraídos. Não se lembrava do que foi feito de tais reproduções. No fundo julgo que também não se interessava muito por elas. Tinha-as gravadas de cor e salteado. Julgo que as tenha dado ao ministério e que este provavelmente, as tenha cedido ao Dr. Deichhardt. -Teve um vislumbre de esperança, a transparecer-lhe no olhar e na voz: - Porque é que não perguntas, ao Dr. Deichhardt?
- Sim, vou ver se lhe pergunto.
- Bom, mas de toda a maneira penso que possuis um jogo de fotografias dos papiros tiradas por EdIund.
- Apenas tenho... bem, trata-se de uma coisa sem importância. Queria ver algumas outras reproduções.
Ela contemplou-o interrogativa. Randall evitou encontrar-lhe os olhos, ocupando-se afadigador reunir as fotos espalhadas no carpete e a metê-las na pasta.
Depois de ter completado a tarefa, viu que Angela ainda continuava a estudá-lo atenta.
- Steve, porque é que me tens evitado? - perguntou-lhe calmamente.
- Tenho-te evitado?
-Sim. Alguma coisa aconteceu. Quando é que voltas a amar-me como dantes?
Randall sentiu que um frio lhe percorria a espinha, uma sensação dolorosa que lhe tolhia todos os músculos do corpo. Com idêntica calma, embora forçada, respondeu:
- Quando puder acreditar em ti de novo, Angela.
-Não acreditas em mim agora?
- Não, Angela, não posso acreditar em ti - respondeu-lhe francamente.
Finalmente aquilo tinha sucedido. As perigosas palavras foram proferidas. Sentia-se aliviado, como se lhe tivessem tirado de cima arrobas de peso incômodo, mas mais uma vez se sentia possuído pela cólera, uma cólera tanto mais exacerbada quanto era justa.
Angela manteve-se silenciosa, sem qualquer ação visível.
O seu belo rosto, com exceção das pálpebras que batiam em movimentos regulares, continuava imóvel.
-Muito bem, foste tu que quiseste saber, de modo que agora é melhor prosseguir, despejar o saco todo.
Ela aguardou em silêncio.
-Não acredito em ti, pela razão muito simples de não poder acreditar, é impossível continuar a crer em ti. Angela, mentiste-me na semana passada. Já antes me havias mentido, mas então uma mentira sem importância, talvez uma mentira piedosa. Mas desta vez a tua mentira é imensa e de uma importância de que nem sequer te dás conta.
Randall esperou que ela dissesse alguma coisa, que se defendesse, que o interrogasse, mas Angela parecia mais desgostosa do que perturbada.
Randall prosseguiu:
-Mentiste-me a respeito do Monte Athos. Disseste-me que tinhas ido lá com teu pai para verem o Abade Petropoulos. Contaste-me que o Abade tinha examinado e autenticado os papiros. Recordas-te? Pois bem, foram umas mentiras descaradas, Angela. Descobri porque eu próprio fui ao Monte Athos. Sabes que estive na semana passada no Monte Athos?
-Sim, Steve, sei perfeitamente.
Tinha que acabar com aquilo de uma vez por todas.
- É verdade, eu estive no Monte Athos, mas tu é que nunca estiveste. Num espaço de mil anos nunca uma mulher, nunca uma fêmea, estivera na Península de Athos. As mulheres são proibidas no local. Tu nunca lá estiveste, tal como o teu pai, nunca lá pôs também os pés. O Abade Petropoulos nunca viu teu pai - sem sequer havia tido o mínimo vislumbre dos papiros até esta manhã. Serás capaz de negar o que digo?
-Não, Steve, não posso. -A voz dela era coisa, um murmúrio imperceptível. -Na verdade menti-te.
-Nesse caso como esperas que eu possa acreditar em ti, confiar em ti... acreditar em mais alguma coisa que me digas?
Angela fechou os olhos e passou a mão pela testa, depois fitou angustiada os olhos em Randall.
- Steve, eu... eu não sei como me aproximar de ti. Há tanto de ti que é só intelecto e não alma, coração. Só o teu coração compreendia que às vezes uma mentira é a coisa mais leal, mais salvadora que se pode dizer à pessoa que se ama. Steve, quando me telefonaste de Paris, o meu coração compreendia-te, adivinhando o que se passava contigo, sentindo-te na tua natureza inquisitiva, uma natureza que é a minha maior preocupação e a parte que menos aprecio em ti.
- E então, que parte detestável de mim será essa? - perguntou ele agressivo.
- O teu cinismo. O teu cinismo irracional, defensivo, auto protetor. Sim, talvez ele te sirva de escudo e te proteja de seres ferido. Mas sem dúvida que é também um sentimento contrário à vida, uma coisa que te impede de atingires a plenitude da vida, porque fica de permeio entre ti e ela, uma coisa que te impede de aceitares, ou de ofertares um amor profundo. Um verdadeiro amor. Uma coisa sem fé não pode amar. Ouvi-te a voz quando me telefonaste de Paris e percebi que de novo estavas envolvido em dúvidas a respeito da autenticidade de meu pai. Imaginei-te a perderes a pequena parcela de confiança que tinhas conseguido obter. Estavas de novo a transformar-te no Steve Randall, a quem se torna impossível uma identificação com os pais, com a mulher, com a filha, com toda a gente. Bom, adivinhei que ali estavas tu, frente a cem por cento de provas da autenticidade, conferida pelos mais respeitados e experientes eruditos e peritos do mundo sobre motivos bíblicos, tentando de novo lançar ao descrédito sobre o milagre que meu pai desenterrou das entranhas da terra em Ostia Antica. Ali estavas tu em Paris... no Monte Athos... sempre à procura de alguma coisa, de alguém, ainda que fosse o Diabo, que pudesse concordar contigo e justificar a razão do teu cinismo. A verdade é que não podia agüentar mais esse teu estado de espírito. Queria parar com as dúvidas de uma vez para sempre. Não por amor de meu pai, podes crer, mas por amor de ti. De modo que disse a primeira coisa que me veio à cabeça. Recordava-me do nome do Abade Petropoulos num mosteiro do Monte Athos, eu escrevi à máquina as cartas que meu pai lhe enviou. Mas, nada sabia sobre o Monte Athos e as suas regras, de modo que me envolvi numa mentira descarada. Gato escondido com o rabo de fora. Sim, menti-te, estava pronta mentindo, dizendo-te que havíamos estado no Monte Athos, dizendo-te qualquer coisa, para te impedir de arruinares a única coisa, que podia dar um sentido à tua existência. Como se tu estivesses neurótico, obsedado pela idéia de realizar aquilo que o Reverendo de Vroome não tem conseguido fazer - destruir a Ressurreição Dois; toda uma vida de trabalho e a grande obra da vida de meu pai; uma nova esperança para a humanidade; as nossas relações de amor e destruíres-te até a ti próprio. Foi o que eu tentei impedir com a minha inocente mentira, Steve. Obviamente, falhei. Foste ao Monte Athos, prosseguiste impulsivo e quando o Abade discordou de ti e apoiou a nós e à grande obra, mesmo assim, ainda não estás satisfeito. Mesmo que os fatos te mostrem, onde está a verdade, e onde se encontra o erro, mesmo assim tens que prosseguir na tua dúvida. Desta vez desconheço aquilo de que andas à procura, mas vejo perfeitamente que não estás nada interessado nas fotografias que te mostrei. Andas à procura de qualquer outra coisa... seja o que for... algo que te diga que tens razão para a tua descrença, para não confiares. Mesmo agora, podia mentir outra vez, para te fazer parar essas buscas negativas, mentiria, se fosse preciso, um milhão de vezes para te impedir dessa autodestruição.
Falara ininterruptamente, em torrente, e mostrava-se sem fôlego, fraca, desanimada. Angela procurou as mãos de Randall sem palavras, afagou-as, levou-as ao peito e olhou-lhe para o rosto para tentar compreender o que ele ocultava.
Finalmente, mais calma, voltou falando.
- Steve, amo-te. Faria qualquer coisa para fazer com que me amasses... para te dar fé, fé em mim e naquilo que eu creio... no projeto. Com uma tal fé poderias finalmente conhecer o amor... mas não só por mim, mas amor por ti mesmo. Ser-te-á possível?
Randall sustentou-lhe firmemente o olhar.
-Sim, é possível.
- Como? Que posso eu fazer? Já te disse que estou disposta a fazer aquilo o que for que me peças.
- Tudo? - perguntou ele suavemente. - Pois muito bem, quero que amanhã me leves para Roma.
-Para Roma?
- Quero conhecer o teu pai.
- Meu pai... - repetiu ela sumindo a voz. - É importante para ti?
-Quero conhecer o homem que descobriu a Palavra. Quero mostrar-lhe uma fotografia, fazer-lhe uma pergunta. Ele é a última ligação. O fim da linha. Depois de me encontrar com ele serei obrigado a parar. É o que pretendes, não é verdade? Queres que eu pare, não é? Queres que eu tenha fé?... Pois bem, Angela, depende de ti, está nas tuas mãos. Levas-me até junto de teu pai?
-Isso... isso resolverá quaisquer dúvidas que alimentas a meu respeito?
- Sim.
-Muito bem, Steve. É... é um erro, mas também é uma coisa que tem de ser feita. Iremos amanhã para Roma de avião. Vais conhecer o Professor Augusto Monti. Encontrar-te-ás com ele frente a frente. Talvez isso solucione tudo.
Naquela sexta-feira, quase ao fim da manhã, quando o avião a jato da Alitália, procedente de Amsterdã, parara finalmente numa das pistas do aeroporto Leonardo da Vinci, situado a certa distância da Cidade Eterna, e enquanto caminhavam pela rampa de cimento que levava à alfândega dominada pelos carabinieri, indicada por uma placa com uma seta onde se lia Controllo Passaporti, Randall sentia-se avassalado por um sentimento de grande satisfação.
Angela rendera-se finalmente aos seus desejos.
Seguiram o carregador, impecável no seu terno azul, que transportava as bagagens (Steve não renunciara contudo em levar a sua preciosa pasta) pelo grande saguão envidraçado que levava ao exterior, «hall» gigantesco atravancado por uma multidão ruidosa de passageiros e visitantes. Entraram num dos táxis que esperavam o fluxo de passageiros, passaram junto à gigantesca estátua de Leonardo da Vinci, deixando para trás as placas que indicavam ROMA e que arvoravam o brasão da grande metrópole italiana, os grandes cartazes publicitários da Pepsi-Cola, Linhas Aéreas Etíopes, Visitem Israel, Telefunken, Olivetti. Passaram por verdes pinheirais e por campos não menos verdes, hortas onde enormes os vegetais que fazem o orgulho dos romanos. Passaram pelo mercado de comestíveis conhecido como Cassa del Mercato, pelos apartamentos moderníssimos do subúrbio de San Paolo, pelo Cinodromo, pista para corridas de galgos e pelas ruínas do Forum e do Coliseu. Durante aquela meia hora de corrida do táxi até ao Hotel Excelsior, Randall sentira-se invadido por um senso crescente de excitação.
Aquele local, simultaneamente antiqüíssimo e moderno, era o local onde tudo começara. Em Roma, muitos séculos depois, o povo lembrar-se-ia ainda, que fora ali que a Ressurreição Dois começara e onde se iniciara o renascimento da fé. Sim fora ali que a esperança, mais uma vez, se sobrepusera a um mundo materialista e sórdido. Tudo isso seria possível - Randall orara para que fosse possível - se a última dúvida negra fosse finalmente afastada pela única pessoa pertencente ao projeto, que até essa altura estivera escondida de tudo e de todos.
Deixou Angela, segurando a sua pasta no parque privativo de carros no Hotel Excelsior, Randall apressara-se a entrar no saguão do complexo, a fim de se registrar para a estada de uma noite. Uma vez colocada a sua bagagem na «suite», quarto nº 406, que lhe designaram, descera as escadas para se juntar a Angela e acompanhá-la à villa da família Monti, onde o Professor Augusto Monti, o recluso, os esperava.
Saindo do Hotel, atravessando o parque privativo ao encontro de Angela, que se encontrava agora a esperá-lo na Via Vittorio Veneto, Randall sentiu-se como se caminhasse dentro de um alto-forno. Era meio-dia e Roma era uma autêntica fornalha batida pela intensidade do sol de Verão.
Angela alugara um carro com motorista. Este era um italiano sem idade, compacto, que se apresentara a si mesmo como Giuseppe. O carro era um Opel de quatro portas, estilo «sedan», que felizmente possuía instalação de ar condicionado, imune ao calor exterior por ter as janelas todas cuidadosamente fechadas.
Sentados no lugar traseiro, Angela olhou atentamente para Randall, sem o mínimo sorriso no lindo rosto, perguntando-lhe:
- Estás pronto? Agora vamos ao encontro de meu pai.
-Mais uma vez, Angela, muito obrigado.
Ela falou rapidamente em italiano ao condutor, acabando de lhe dar a direção em inglês.
-Para a Villa Bellavista, que fica logo a seguir da Via Belvedere Montello.
O carro integrara-se a seguir no trânsito da Via Veneto, seguindo o seu rumo ao encontro do Professor Monti.
Randall respirou fundo e pensou: «Finalmente».
A corrida levou quarenta minutos, talvez quarenta e cinco. Randall teve um vislumbre das praças e ruas atravessadas: Piazza Barberini, Via del Tritone, Piazza Vavour, Viale Vaticano, que levava à cidade do Vaticano. Logo a seguir a Via Aurélia, deixando Roma. Depois a Via Boccea, o campo, vendo-se apenas algumas casas espalhadas, por aqui e por ali, ou pequenos aglomerados que formavam lugarejos campestres.
Uma curva apertada para a direita. A Via Belvedere Montello. O Opel afrouxava, até parar.
-Pronto, chegamos, Villa Bellavista -anunciou Angela.
Randall olhou pela janela do carro. Por trás de uma grade de ferro, pintada de verde, montado sobre um pequeno muro pintado a ocre, cercada por verdes maciços ajardinados, parcialmente oculta por séries de ciprestes e pinheiros, via-se uma mansão de dois andares.
Angela falou ao condutor e este seguiu ao longo das grades até chegar a um grande portão, que prestativo foi escancarado por um porteiro já idoso. O porteiro levou a mão ao boné num cumprimento, que Angela retribuiu, enquanto Giuseppe seguia pela área onde os pneus chiaram. Segundos depois pararam em frente da porta principal da residência, a que dava acesso uma escadaria.
Giuseppe saíra rapidamente do carro e apressara-se abrindo-lhes a porta traseira.
Randall, agarrando na sua pasta, levando consigo a grande mistura de emoções diversas- antecipação, apreensão, subiu os degraus da escadaria com Angela. Na grande porta, ela nem sequer se preocupou em tirar quaisquer chaves da mala, o batente estava aberto, foi só empurrar. Randall seguiu-a.
Encontraram-se num amplo saguão com o chão de mosaicos artísticos em losangos. A direita via-se uma escada. A esquerda uma sala de espera, um aposento enorme de teto em abóbada. O mobiliário incluía dois pianos de cauda, vários sofás e muitos abajur de pé alto.
Randall pensou que se tratava de uma residência demasiado pomposa para um professor aposentado.
Angela conduziu-o até junto do sofá mais próximo da porta, mas Randall não se sentou, ficou de pé, rígido olhando para duas coisas que se confundiam.
Em frente via-se uma janela, rasgão de luz entrando no ambiente, uma vez que estava armada de sólidas grades de ferro. Ao mesmo tempo, duas pessoas penetraram na sala: eram duas mulheres, ainda jovens, vestidas em uniformes azul-marinho, com toucas de enfermeira e aventais brancos por cima dos uniformes.
Espantado Randall voltou-se para Angela, olhando-a interrogativo. Ela acenou-lhe com a cabeça.
- Sim, é aqui que meu pai vive. Esta casa é um asilo para pessoas com desarranjos mentais.
Quinze minutos depois, sozinho e medindo a sala em largas passadas, Steve Randall ainda não se recompusera completamente da revelação de Angela.
Até àquele dia parecera-lhe sempre, perfeitamente lógico, pensar que o Professor Augusto Monti se aposentara e tivera de viver em semi-reclusão nos arredores de Roma por motivos políticos. Até mesmo na altura em que ali chegara, a Villa Bellavista se lhe afigurara uma residência privada, o perfeito e luxuoso retiro para um arqueólogo eminente que tinha feito uma descoberta fabulosa. De fato a Villa foi outrora a mansão dos arredores de Roma de uma rica família, vendida, alguns anos antes, a um grupo de psiquiatras italianos e convertida numa casa di cura, um sanatório para pessoas mentalmente afetadas. Os médicos mantiveram a casa dentro do seu estilo e mobiliário tanto quanto possível, por pensarem que uma tal atmosfera de intimidade caseira só seria benéfica para as pessoas aos seus cuidados.
Todavia, apesar de todos os disfarces, continuava sendo, em linguagem contundente, um manicômio, o local onde o Professor Monti se encontrava há mais de um ano – talvez, como o seu mais destacado paciente, muito embora, sumido na sombra de uma das mais terríveis doenças.
Tudo aquilo revelado a Randall por Angela, nos primeiros momentos, carregados de emoção, seguidos à revelação inicial.
Angela havia-lhe dito:
-Agora poderás compreender todas as minhas evasivas e mentiras. Não faz um ano, meu pai estava perfeitamente bem de saúde e era uma pessoa normal, principalmente, com uma mente completamente lúcida. De um dia para o outro, sofreu um tremendo colapso mental. Tornou-se um introvertido, desorientado, desinteressando-se, desde então, de todas as coisas. Não podia fazer tal revelação a ninguém, nem aos editores, e a ti também não. Se soubessem tal notícia, distorceriam-na os inimigos de meu pai, ou os inimigos do nosso projeto e eu não podia deixar que tal acontecesse. Foi por isso que me mantive sempre como uma barreira, entre meu pai e aqueles que queriam contatar com ele. Finalmente, na noite passada vi que não te podia deter sobre aquilo que procuravas. Pensei em contar-te tudo imediatamente, evitando esta viagem, mas receei, talvez pensasses que estava de novo mentindo. De modo que fiz como desejavas, trouxe-te a Roma, à Villa Bellavista, para veres com os teus próprios olhos. Steve, confias agora em mim?
-Para sempre, minha querida. -Tomara-a nos braços carinhoso, comovido e envergonhado. -Angela, lamento muito, podes crer que ninguém lamenta mais do que eu. Espero que me possas desculpar.
Já o perdoara, porque conseguira compreender as suspeitas que ele alimentara, mas ainda acrescentara:
- Além disso, trouxe-te aqui para que te encontrasses com meu pai, obedecendo ainda a uma outra razão. Habitualmente, ele costuma encontrar-se naquilo que parece ser um estado de abstração total, mas, por vezes, muito raramente, mostra uns breves intervalos de lucidez. Quase sempre, quando eu e minha irmã o visitamos, meu pai se encontra fora de qualquer realidade. Todavia, de vez em quando, surge uma centelha de entendimento, um rápido relâmpago do seu antigo ser normal. Tenho esperança, para teu descanso, que quando lhe mostrares a fotografia e lhe fales, talvez consigas tocar-lhe nalguma corda sensível que lhe recorde o passado. Dessa forma, isso poderia remover a tua última incerteza a respeito do Evangelho Segundo Jacob, e fazer algum bem ao meu pobre pai.
-Muito obrigado, Angela. Mas na verdade não esperas nenhum reconhecimento por parte de teu pai, não é?
- Infelizmente, será o mais provável. Contudo, nunca se sabe. Existem tantos mistérios acerca da mente humana. Bom, agora vou subir sozinha para o ver a sós. Espera aqui, não demorarei muito. Depois, vou pedir a alguém que te leve até junto dele.
Angela retirou-se.
Randall continuava meditando o aposento em largas passadas, de um lado para o outro tentando imaginar, porque é que um professor como Augusto Monti - com um inteligência tão viva toda a sua vida - pudera, da noite para o dia, mergulhar na escuridão da loucura. Para si constituía um grande embaraço, nunca antes tivera que lidar, sob quaisquer hipóteses, com uma pessoa mentalmente doente. Não fazia a mínima idéia, do que devia esperar, nem de como se comportar. Entretanto, invadido por uma ligeira esperança de que o Professor pudesse - através de qualquer palavra, qualquer sinal - despertar para um reconhecimento do Papiro Número 9. Randall sabia que tinha que prosseguir com aquele encontro.
De repente, viu que Angela entrou na sala, mas não estava só, era acompanhada por um enfermeira, alta, ossuda, mas, ainda jovem.
Enquanto a enfermeira permanecia à porta, Angela encaminhou-se para ele, com o rosto invadido pela tristeza quase chorosa.
-Como está o teu pai? - quis saber Randall.
- Completamente calmo, sereno. - Afogando um soluço, acrescentou: - Mas não me reconheceu.
Fazia um tremendo esforço para não chorar, mas as lágrimas acabaram por rebentar dos seus olhos. Randall passou-lhe um braço pelos ombros, tentando confortá-la. Angela, perturbada, procurou um lencinho na bolsa e secou os olhos, para depois fitar Randall, forçando um sorriso:
- Está... está sempre assim. Pronto, não te preocupes querido, isto passa. Steve, podes ir agora vê-lo. Não tenhas medo, ele é inofensivo. Calmo. Tentei falar-lhe de ti, mas não sei se ele compreendeu. Mas deves tentar. Vai com a enfermeira, a Signora Branchi, que te ensinará o caminho. Vou estar ocupada enquanto espero por ti. Tenho que fazer uma chamada para casa para dizer à Lucrezia... é a nossa governanta... que a minha irmã chega hoje de Nápoles, com os filhos para me ver.
Randall, depois de Angela ter feito as apresentações, seguiu a enfermeira, caminhando os dois por um corredor asséptico. No meio do caminho a Signora Branchi tirou de um dos bolsos da bata um volumoso molhos de chaves.
-Este é o quarto do Professor Monti - anunciou detendo-se junto de uma porta. Depois reparando que esta estava escancarada, mostrou-se repentinamente preocupada.-A porta estaria fechada.-Meteu a cabeça dentro do quarto e voltou-se depois para Randall com evidente alívio. -Está lá uma das garçonetes, que veio recolher a louça do almoço.
Segundos depois, a servente, com uma bata de cor diferente da da Signora Branchi, saiu do quarto transportando uma bandeja com louça. A enfermeira fez-lhe uma pergunta em italiano, a que a garçonete respondeu respeitosa, seguindo depois, muito aprumada, pelo corredor.
A Signora Branchi olhou para Randall.
- Perguntei-lhe como está o Professor. Respondeu-me que se encontra como é costume, sentado em frente da janela, olhando. Agora o senhor já pode entrar. Vou apresentá-lo e depois deixá-los-ei sozinhos. De quanto tempo precisa para falar com ele?
-Francamente, não sei -respondeu Randall nervosamente.
-O Dr. Venturi prefere que as visitas não excedam dez a quinze minutos.
-Muito bem, então conceda-me quinze minutos.
A Signora Branchi abriu a porta e introduziu Randall. Para surpresa de Randall o aposento não tinha em nada, o aspecto de um quarto hospitalar. Esperava um quarto semelhante àquele que seu pai ocupara no hospital de Oak City. Em vez disso, observava um aposento que era um combinado de quarto, biblioteca e sala de estar de um apartamento privado.
A imediata impressão de Randall foi a de uma clausura, ensolarada, confortável, mesmo acolhedora, equipada com ar condicionado. Num dos lados do quarto estava um leito, tendo ao lado uma mesinha de cabeceira provida do respectivo abajur.. Uma portinha parcialmente aberta revelava um amplo banheiro, cujo chão era de azulejos azuis. No canto oposto do quarto, por baixo de um moderno quadro a óleo pendurado na parede, via-se uma decorativa escrivaninha, com a sua cadeira de couro. Em cima dela estavam várias molduras com fotografias, uma delas mostrando uma senhora de idade com as orelhas adornadas por compridos brincos (provavelmente a falecida esposa do professor), mais dois retratos das filhas, Claretta e Angela e um dos netos. No centro do aposento encontrava-se um cadeirão de braços, estofado, uma mesinha onde estava um vaso com uma planta decorativa, e duas outras cadeiras simples. Pela ampla janela podia ter-se um vislumbre dos jardins. Somente as estreitas barras de ferro do lado exterior, perturbavam a serenidade da paisagem, ao mesmo tempo, que as paredes brancas, denunciavam o toque de clínica psiquiátrica.
Junto da janela balançando-se mecanicamente, quase perdido nas profundezas da ampla cadeira de balanço, via-se um homem baixo, de idade, todavia, com um rosto ainda fresco, onde enormes tufos de cabelos brancos, das espessas sobrancelhas, um homem de olhos quase líqüidos fixados num ponto distante do horizonte: com ligeiras modificações, o mesmo homem que Randall tivera ocasião de observar, na noite anterior, quando Angela lhe mostrara as fotografias de Ostia Antica.
A Signora Branchi dirigiu-se à cadeira de balanço, tocando levemente na manga da camisa de desporto usada pelo ocupante.
- Professor Monti - disse ela baixinho e carinhosamente, como se estivesse falando com uma pessoa adormecida, que pretendesse acordar - tem aqui um visitante que veio da América.
A enfermeira fez um sinal a Randall, que rodeou a cadeira de balanço e se colocou em frente do professor.
- Professor Monti, este é o senhor Randall. Está interessado no seu trabalho.
O Professor Monti observou o mover de lábios da enfermeira com certo interesse, mas sem se dar conta da presença de Randall, tanto pela sua expressão parada como pelo silêncio que manteve. A Signora Branchi afastou-se, dizendo:
- Mr. Randall, agora vou deixá-los a sós. Se precisar de mim, há uma campainha ao lado da cama. Se não me mandar chamar, voltarei dentro de quinze minutos.
Randall aguardou que ela saísse, ouviu a porta fechar-se e a lingüeta correr na fechadura, e finalmente, sentou-se numa cadeira sem braços em frente da pequena figura de homem sumida na cadeira de balanço.
Entretanto, o Professor Monti dera-se conta da presença do visitante e estava agora a olhá-lo silencioso, mas sem curiosidade.
Randall voltou a apresentar-se.
- Chamo-me Steve Randall e sou de Nova York. Sou amigo de sua filha Angela. Creio que ela já lhe falou de mim.
- Angela -repetiu o Professor Monti, sem aparentar qualquer espécie de reconhecimento na realidade daquele nome. Limitara-se, simplesmente, a repetir um nome como uma criança aprendendo um novo jogo.
Randall, algo impotente, prosseguiu:
-Estou certo que a sua filha lhe explicou a minha ligação com a Ressurreição Dois e o trabalho que realizo para promover o seu achado.
Sentia-se como se falasse à parede de límpida alvura que se encontrava por trás do professor no outro extremo do quarto. Teve um impulso em direção à cama para tocar para a Signora Branchi e sair correndo daquele local. Não obstante, compulsivo, manteve-se falando, relatando a maneira como o editor George L. Wheeler o contratara e levara para Amsterdã. Falou da excitação que ele, o outro pessoal do projeto, sentiam com a aproximação do dia no qual a descoberta seria revelada ao mundo, através da palavra impressa do Novo Testamento Internacional, a enorme felicidade, que os documentos encontrados pelo professor em Ostia Antica, proporcionaria a toda a gente pelo Globo.
À medida que Randall falava o Professor Monti tornava-se mais atento. Embora absorto, incapaz de falar, parecia responder de certa maneira ao discurso de Randall. Parecia tão alerta como estaria qualquer ancião, em rápido processo de senilidade, a um monólogo de um estranho, numa língua da qual não percebesse metade das palavras.
Randall animou-se. Aquele podia muito bem ser o momento lúcido há tanto esperado, despertado, por levá-lo a um campo familiar. Talvez fosse ainda um dia de sorte, um dia feliz.
- Professor, vou dizer-lhe exatamente porque me encontro aqui.
- Sim?...
- A sua descoberta foi autenticada. O Novo Testamento, revisto e corrigido, foi traduzido em quatro línguas principais. A Bíblia está quase pronta para ser entregue ao público, com exceção... - hesitou, para logo a seguir continuar com decisão.-Só existe ainda um problema e eu tenho esperança que o professor me ajude a resolvê-lo.
- Sim.
Randall observou a cara do professor, onde transparecia uma genuína curiosidade, ou pelo menos parecia.
Randall sentiu-se definitivamente encorajado. Para resumir, Randall agarrou na pasta, acionou o botão do gravador e tirou a fotografia crucial.
-Entre nós, várias pessoas encontraram um erro desorientador na tradução. Agora, vou dizer-lhe aquilo que me perturba. -Randall avaliou a fotografia. -Tenho aqui uma fotografia tirada ao Papiro Número 9, um dos papiros que o senhor encontrou em Ostia Antica. O que me perturba é que esta fotografia é de certa maneira diferente da primeira que vi do Papiro Número 9. A minha preocupação é de que alguém tenha alterado o Papiro, ou substituído por outro qualquer papiro.
O Professor Monti debruçou-se, com aspecto compreensivo, na cadeira.
- Sim?...
Satisfeito, Randall continuou:
-Agora, não temos maneira de saber se esta fotografia, representa o papiro original que o senhor descobriu ou se representa um papiro alterado. O negativo original foi consumido pelo fogo. No entanto, Professor Monti, Angela disse-me, que o senhor viveu tão intimamente com cada um dos preciosos fragmentos, que tem impressos na mente, os mínimos pormenores, todos os pontinhos, traços e rabiscos. Angela pensa que o senhor poderá saber de imediato, se esta fotografia será na verdade uma reprodução exata do papiro que descobriu em Ostia Antica... ou se representa apenas, uma folha alterada ou substituta. É um caso da mais elevada importância, Professor Monti, sabermos a verdade. Pode dizer-me se esta fotografia representa o papiro que descobriu em Ostia Antica?
Estendeu a fotografia ao professor, que lhe pegou cuidadoso, mas com mãos trementes. Durante vários segundos o professor ignorou a fotografia que tinha nas mãos, olhando fixo para Randall, enquanto se balançava sem parar.
Finalmente, parecendo lembrar-se daquilo que tinha nas mãos, os seus olhos moveram-se para a fotografia. Lentamente, levantou a reprodução, ajustou-a em determinado ângulo, de modo que os raios do sol escoando-se pela janela gradeada, pudessem banhá-la por completo. Na cara redonda esboçou-se a sombra de um sorriso gradual, e Randall fitou-o, sentindo um baque de esperança renovada.
Decorreram segundos do mais completo mutismo. O Professor Monti abaixando a fotografia, até colocá-la nos joelhos, sem deixar de olhá-la. Os seus lábios começaram a mexer-se, e Randall esticou-se para não perder nem um som. A voz saiu pouco audível, aos arranques, balbuciante:
- É verdade, verdade, fui eu que escrevi isso. - Levantou a cabeça e contemplou Randall. -Eu sou Jacob, o Justo. Fui testemunha desses acontecimentos. - Parou. Depois, os lábios de novo moveram-se e a voz saiu-lhe mais alta e clara. -Eu Jacob de Jerusalém, irmão de Nosso Senhor Jesus Cristo, herdeiro do Senhor, o mais velho dos irmãos sobreviventes do Senhor e filho de José de Nazaré, em breve serei levado perante o Sinédrio e perante o Sumo Sacerdote Ananias, eu acusado de comportamento sedicioso devido à minha chefia dos seguidores de Jesus na nossa comunidade.
Randall deixou-se cair para trás, pesadamente, na cadeira.
- Meu Deus - gemeu pra si mesmo - o velhote julga-se Jacob de Jerusalém, irmão de Jesus Cristo.
O Professor Monti erguera os olhos para o teto, prosseguindo com uma voz rouca, que se tornava mais fervorosa à medida que falava:
- Os quatro outros filhos de José o carpinteiro, irmãos sobreviventes do Senhor e meus, são Judá, Simão, Josias e Judas, e todos estão para lá das fronteiras da Judéia e Iduméia, resta eu para falar do filho primogênito e mais amado.
O Professor Monti recitava, no seu inglês com sotaque, uma das primeiras partes do papiro em aramaico que foi incluído no Evangelho Segundo Jacob, do Novo Testamento Internacional. Mas existia algo de inesperado, quase fantástico na recitação, e Randall detectou aquilo que era estranho, o elemento novo no texto. O Professor Monti, ao discriminar os nomes dos irmãos de Jesus e Jacob, preenchia uma parte perdida do terceiro papiro, uma parte que se desintegrara ou dissolvera, acabando por desaparecer depois de quase dois mil anos.
Era inexplicável, excetuando uma possibilidade: que o Professor tivesse tão enfronhado no âmbito bíblico que se lembrasse dos nomes dos irmãos do Senhor por intermédio de outras fontes, do Evangelho Segundo S. Mateus, dos Atos dos Apóstolos, de primitivos historiadores da Igreja como Eusébio, englobando-os no seu recital.
-Eu, Jacob, o Justo, irmão de Nosso Senhor...
O Professor Monti continuava sem parar com a sua demente declamação.
Esmagado de pena por aquele velhote para o qual não existiam esperanças, condoído da pobre Angela, Randall ficou ali grudado à cadeira ouvindo cheio de tristeza.
As palavras do Professor Monti tornaram-se indistintas. Por fim, calou-se, e os seus olhos fixaram-se de novo sem expressão na janela, no jardim, na imensidão ignorada...
Suavemente, quase com carinho, Randall tirou a fotografia do colo do velhote e voltou a metê-la na pasta. Desligou o gravador, e viu as horas no relógio de pulso. A Signora Branchi voltaria dentro de um ou dois minutos.
Levantou-se, agarrando na pasta.
-Obrigado, Professor Monti, pelo tempo que me concedeu e pela sua prestimosa colaboração.
Para completa surpresa de Randall, o professor levantou-se da cadeira de balanço. Ainda aparentava menos altura. Passou em frente de Randall e dirigiu-se à escrivaninha, onde se sentou, parecendo momentaneamente esquecido daquilo que se propusera fazer, para logo a seguir abrir uma gaveta de onde tirou uma folha de papel branco e um toco de lápis.
Fez vários traços no papel, examinou o trabalho feito, avaliando-o, e pareceu ter ficado contente consigo próprio. Depois agarrou na folha de papel e estendeu-a a Randall.
-É pra você-disse.
Randall aceitou o papel, pensando sobre o que o Professor poderia ter desenhado naquela folha.
- É um presente - murmurou o Professor Monti. - Uma coisa que o salvará. Um presente de Jacob.
Randall olhou para a folha de papel, onde se via um desenho rudimentar.
Tanto quanto Randall podia ver, tratava-se de um esboço infantil, primitivo e enigmático de um peixe atravessado por um dardo.
Era aquele o presente de Jacob, um talismã que salvaria Randall, como o professor prometera, Randall tentou imaginar qual seria o significado na mente conturbada do Professor Monti. Suspirou. Nunca saberia e de resto era coisa que parecia já ter deixado de interessar.
Randall ouviu a porta do quarto abrir-se, depois da lingüeta correr.
Meteu rapidamente a folha de papel dobrada, no bolso do casaco, agradecendo de novo, gentilmente, ao Professor a colaboração e o dispêndio de tempo, depois deixou o pai de Angela sentado à escrivaninha e foi ao encontro da enfermeira Branchi, que o esperava no limiar.
Ao chegar no corredor, ficou olhando enquanto a enfermeira fechava cuidadosamente a porta à chave. A seguir, a Signora Branchi voltou-se para ele e disse:
-Agora vou levá-lo até junto da Signorina Monti.
Mas Randall ainda não estava pronto para se ir embora. Pela cabeça passara-lhe mais uma idéia.
- Signora Branchi, penso se haverá na clínica qualquer médico... qualquer psiquiatra que assiste à evolução da doença do Professor Monti. Isto é, um médico que se devotou ao caso do Professor. Haverá algum em exclusivo?
-Evidentemente que sim. Na nossa clínica temos sete médicos privativos e o diretor clínico é o Dr. Venturi, precisamente quem tem observado o Professor Monti desde que ele foi admitido em Bellavista. O gabinete dele fica próximo.
-Seria possível vê-lo por alguns minutos?
-Aguarde um pouco. Vou ver se ele está livre.
O Dr. Venturi podia recebê-lo.
O diretor clínico era um homem quase calvo, do tipo absolutamente italiano, com um rosto simpático, olhos escuros, límpidos, nariz arqueado e umas mãos que nunca estavam quietas. Não tinha aparência de um médico, mas, Randall pensou que o fato se explicava pelo traje, um esportivo paletó xadrez, em vez do tradicional avental branco.
Quando Randall o interrogou a respeito do avental branco, o Dr. Venturi explicou:
- O habitual avental branco da clínica marca uma distância entre médico e doente, e quanto a mim essa separação não é desejável. Pretendemos, que os nossos conturbados clientes se sintam em pé de igualdade com os médicos que os tratam. É importante para nós que todos os doentes, inclusive o Professor Monti, não se sintam diferentes relativamente aos seus médicos. Queremos que os nossos doentes confiem em nós, que nos vejam como amigos.
O gabinete do Dr. Venturi oferecia um aspecto, tão pouco médico, quanto a sua pessoa. Sentado numa cadeira de retorcidos, figurando flores, do outro lado da escrivaninha estilo Império. Randall encontrou-se no meio de um aposento mobilado com sofás modernos, luxuriantes plantas e quadros abstratos.
Num último e desesperado esforço para conseguir obter qualquer pista que o ajudasse a resolver o mistério do Papiro Número 9, relatara ao Dr. Venturi o encontro, sem êxito, com o Professor e a mania deste se julgar Jacob, o Justo, irmão de Jesus Cristo; acabando por perguntar:
-Antes da minha visita, o Professor alguma vez se comportou assim?
O Dr. Venturi, mexendo nos variados objetos que se encontravam em cima da mesa para ter as mãos ocupadas, respondeu:
-Freqüentemente, e posso dizer-lhe que é comportamento muito intrigante para nós. Aliás perfeitamente inconsistente com os sintomas gerais dele. Normalmente, uma pessoa perturbada que se julga um Messias - ou o irmão de Jesus, como é o caso - é habitualmente um paranóico, com complexo de superioridade. Por outro lado, o Professor Monti, tem perda de memória e sintomas catatônicos, relacionados com a histeria e baseados em sentimentos de culpa. O fato de sofrer alucinações seria clinicamente compreensível, mas, normalmente um doente no seu estado não se imbuiria na identidade de uma pessoa exaltada como Jesus ou Jacob. Seria mais ajustável que tivesse um sentimento de culpa forjado, em qualquer mal feito, precisamente a qualquer dessas duas personagens religiosas, Jesus e Jacob, dada a sua habitual depressão e pacifismo. O comportamento dele hoje para consigo, atuando como o irmão de Jesus, continua sendo incompreensível para mim. Mas, evidentemente, nós sabemos muito pouco do passado interior do Professor Monti, da sua psique, e é pouco provável, que tenhamos oportunidade de saber mais.
Randall remexeu-se na sua cadeira.
- Pretende dizer-me que não sabe nada a respeito do ambiente profissional do Professor Monti e sobre as suas escavações arqueológicas?
- Ah, Mr. Randall, sabe então tudo a respeito da descoberta de Monti em Ostia Antica? Não podia falar no caso a não ser...
-Faço parte do projeto, Dr. Venturi.
-Não sabia. Jurei à filha nunca falar do caso a estranhos e sempre fui fiel à palavra dada.
-O que é que sabe sobre o trabalho do Professor?-perguntou Randall.
-De fato, muito pouco. Quando me chamaram para me ocupar do caso, claro, que o nome do Professor Monti era já familiar. É um nome, aliás, muito conhecido na Itália. Pelas filhas soube que realizou escavações perto de Ostia Antica, que tem uma magna importância nos setores da história bíblica e da teologia. Disseram-me que o achado constitui a pedra angular de uma nova Bíblia.
- Mas o senhor desconhece a substância do achado do Professor, não é verdade ?
- Sim, desconheço. Está tentando dizer-me que se tivesse conhecimento poderia compreender melhor as suas alucinações em julgar-se Jacob, irmão de Cristo?
- Doutor, talvez ajudasse a iluminar o problema com uma nova luz. Sem dúvida que o achado de Ostia Antica serviu de base única para uma nova Bíblia completamente diferente.
- Já suspeitava isso. Recentemente, no nosso matutino romano Il Messaggero, li um artigo dividido em três partes, da autoria de um jornalista inglês... não me lembro do nome...
- Cedric Plummer?
- Exatamente, Plummer. Os artigos eram vagos, longos e carentes de fatos. Diziam a respeito de preparativos secretos, em Amsterdã, para a publicação de uma nova Bíblia, uma versão baseada em novos achados e apoiada pelos conservadores da Igreja de modo a manterem o status quo. Era uma coisa deveras intrigante, mas, tão carregados de especulações que achei difícil levá-los a sério.
-Mas, pode levar o caso a sério - garantiu Randall.
-Ah, então essa futura Bíblia, é na sua maior parte, responsabilidade do nosso doente, hem? -Distraído, Dr. Venturi mudou a data do seu calendário, para em seguida voltar a corrigir a posição da folha.- Que infelicidade, o Professor Monti não poder gozar dos frutos do seu trabalho. Quanto às suas alucinações, pra nós, acho que essa Bíblia esclareceria melhor sobre elas. Todavia, duvido que para ele tenha qualquer significado do ponto de vista médico. Durante o seu encontro com o Professor aconteceu mais alguma coisa digna de menção?
- Não, mais nada digno de nota. - De repente, lembrou-se do peixe desenhado e levou a mão ao bolso. - Exceto isto - desdobrou o desenho e mostrou-o ao médico -o Professor Monti fez este desenho e ofereceu-me antes de sair, dizendo que era um presente que seria a minha salvação.
-Ah, o peixe! - exclamou o Dr. Venturi, com ar de quem está a par do caso.
Nem sequer pegou a folha de papel que Randall lhe estendia, em vez disso, abriu uma das gavetas, mexeu numa pasta de arquivo da qual tirou seis folhas de papel, colocando em cima da escrivaninha, à vista de Randall. Todas, aquelas folhas exibiam a mesma variante do peixe atravessado pela seta, iguais ao esboço que Randall tinha em mãos.
- Como vê, possuo a minha coleção pessoal da arte do Professor Monti. Sim, ele fez estes desenhos como prendas ocasionais, dedicadas a mim ou às enfermeiras que o tratam. Parece-me que o seu instinto artístico se limita a um único objeto: o peixe. Está obcecado por ele. Desconhecemos, desde que está aos nossos cuidados, que tenha feito qualquer outro desenho com tema diferente. Somente o peixe.
- Deve ter qualquer significado - murmurou Randall. - Tem alguma teoria sobre o que o professor tenta comunicar com esta forma?
- Com certeza! Mas, não posso imaginar com precisão, exceto que o peixe se relaciona intimamente com as alucinações do Professor, a respeito de viver no século I da nossa era. Como sem dúvida saberá, os primeiros seguidores de Cristo, os cristãos primitivos, quando perseguidos e acossados, empregaram o símbolo do peixe para se identificarem secretamente uns aos outros. A origem dessa senha visual é interessante. Para os discípulos de Cristo, os pioneiros do cristianismo, o Messias era conhecido como «Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador», o que traduzido em grego, a língua usada pelas forças de ocupação romanas, ficava: Iesous Christos, Theou, Uios, Soter. As iniciais dessas cinco palavras gregas, em conjunto soletravam-se I-CH-TH-U-S, por corruptela popular ICTHYS-a palavra grega peixe. Hoje mesmo, chamamos ao estudo dos peixes ictiologia. De modo que, como pode apreciar, as iniciais do nome de Jesus Cristo e os seus títulos dão a correspondência de peixe - o símbolo da identificação do culto entre os cristãos perseguidos pelas autoridades para se darem a conhecer entre si.
-Fascinante -concordou Randall, que examinou mais uma vez o desenho. -Mas quanto ao dardo... não faz parte do símbolo, não é?
-De fato não - respondeu o Dr. Venturi, apressando-se a guardar os seis desenhos na gaveta. -Parece ser um acréscimo devido à personalidade artística do Professor Monti. A lança, seta, dardo, arpão, o que quer que seja, afigura-se um símbolo negativo. No entanto, quem pode saber o que na verdade se passa na mente do Professor? Ao julgar-se Jacob, o irmão, revela a fraternal rivalidade para com Jesus -o peixe - atravessando-O com um dardo? Ou pensará se a lança ou seta, atravessando o símbolo de seu irmão, constitui uma arma espetada no seu próprio ser? Não sabemos. Na verdade, julgo que tal símbolo, como muitas outras relacionadas com o Professor Monti, continuarão um profundo mistério.
O Dr. Venturi localizou um artístico cachimbo e uma bolsa de tabaco, perguntando cortês:
-Importa-se que fume cachimbo?
Randall tirou também do bolso o cachimbo e o tabaco. Depois de trocarem as qualidades do tabaco e de tirarem, algumas apreciativas fumaças, voltaram ao Professor Monti. Mas então Randall recuou no tempo para perguntar.
-Há quanto tempo o Professor encontra-se na sua clínica? Se não constituir uma violação da palavra empenhada, será possível que me diga também, quais as circunstâncias que levaram a sua internação nesta casa de saúde?
-As circunstâncias? -repetiu o Dr. Venturi, soltando uma pensativa baforada de fumo.-Bem a verdade é que a história do caso é confidencial, mas, quando Angela Monti me avisou que traria o senhor aqui, pediu-me, ao mesmo tempo, que tanto eu como o pessoal fôssemos claros e francos a respeito do estado mental do pai...
Randall apressou-se dizendo:
- Angela encontra-se lá embaixo na sala de espera. Se desejar podemos falar com ela?
- Não há necessidade. Ora deixe-me ver... o meu envolvimento no caso começou, mais ou menos, há um ano e dois meses. Nessa altura, notificado por um colega meu, por acaso, médico pessoal da família Monti, requerendo urgente meus serviços de psiquiatra para um dos doentes dele, que se encontrava no Policlínica, um hospital no complexo da universidade. O doente era o Professor Augusto Monti. Sofrera um súbito colapso nervoso, revelando-se agudo. Fui vê-lo, examinei-o cuidadosamente e fiz o meu diagnóstico.
-Exatamente, o que foi que levou o professor a ser hospitalizado?
Distraído, o Dr. Venturi colocou o cachimbo no cinzeiro, voltou a pegar nele, tornou a pousá-lo, depois pegou um lápis e começou a fazer rabiscos num livro de receitas.
- Quer saber com exatidão quais foram as circunstâncias que levaram a internação do Professor Monti, não é verdade? Dois dias antes do colapso sofrido pelo professor, como soube depois, o arqueólogo ainda estava com excelente capacidade física e mental em seus deveres de rotina na Universidade de Roma. Ensinava os seus alunos na classe de arqueologia, procedendo as normais reuniões do curso e consultas com os elementos ligados à Aula di Archeologia. Preparava um requerimento, para a concessão de empreendimento numa nova escavação em Pella. Nesse dia, como em muitos outros dias da sua carreira, mantinha um programa de entrevistas e de recepção de visitantes.
- Que espécie de visitantes?
-A espécie habitual, normalmente recebidos por um arqueólogo famoso. Por vezes recebia colegas e professores de arqueologia estrangeiros, ou até mesmo entidades governamentais. Talvez, vendedores de equipamentos científicos ligados ao setor arqueológico; de receber estudantes em vias de completarem os cursos; ou editores de jornais e revistas dedicadas à arqueologia. Não sei quais foram as suas exatas atividades nesse dia específico; é possível que a filha, Signorina Monti, lhe possa dar mais pormenores. Tudo o que sei é que o Professor Monti se manteve na universidade durante quase toda a manhã desse dia. Por uma, ou duas vezes, saiu por ter entrevistas marcadas. Regressou, logo a seguir, ao complexo universitário, para continuar trabalhando no remanso do seu gabinete. Ao cair da noite, como não chegasse ainda em casa para jantar, a Signorina Monti telefonou para um dos contínuos, pedindo-lhe para lembrar ao Professor que eram horas de ir para casa. O contínuo subiu as escadas e dirigiu-se para o gabinete do Professor Monti, no departamento de arqueologia. Bateu na porta, mas não obteve resposta. Admirou-se uma vez que no interior do gabinete havia luz. Resolveu entrar. Encontrou o Professor Monti sentado à escrivaninha - num estado de desordem incrível - balbuciando coisas incoerentes, isolado num mundo perdido, proferindo palavras sem nexo, dizendo absurdos, o tipo de conversa que o senhor acaba de ouvir dele. Pouco depois Monti calou-se e caiu num tremendo estado de estupor. O contínuo, assustado, dirigiu-se ao telefone e avisou a Signorina Monti, que mandou seguir para a universidade uma ambulância.
Randall sentiu um estremecimento ao imaginar a cena; calculando a dor de Angela quando encontrou o pai naquela situação.
-Depois do choque, o Professor mostrou-se alguma vez coerente ou, antes, as coisas que dizia formavam algum sentido?
- Nunca durante este ano e dois meses em que dura a doença. Para usar de uma figura de retórica -um sopro apagou-lhe repentinamente a luz da razão. Desde então perdeu qualquer elo de ligação com o mundo real.
-Não há esperanças de o poder fazer voltar à normalidade?
-É impossível dizer uma coisa dessas. Quem sabe o que o futuro nos trará em matéria de ciências, de medicamentos psiquiátricos, para obtenção de curas, ou quais as evoluções que surgirão, em matéria de bioquímica, relacionada com as anormalidades mentais? Presentemente nada possuímos que possa justificar termos esperanças de cura. Pode ter a certeza que tentamos tudo o que foi possível no caso. Vários dias depois, consegui a transferência do Professor Monti para aqui, iniciando logo várias formas de tratamento -psicoterapia, medicação farmacológica e eletrochoques sob anestesia. Sem resultados práticos. Atualmente nossos esforços destinam-se a mantê-lo confortável, em paz, sem problemas no que se refere ao sono. Encorajamo-lo a manter-se ocupado, convidando-o a freqüentar a nossa oficina de terapêutica ocupacional, a participar em artesanato, utilizar-se da nossa piscina; mas, o professor revela pouco interesse. Na maioria das vezes senta-se perto da janela olhando para o exterior ou, a ouvir música. Vê também televisão, embora tenha dúvidas se absorve o que vê.
- Angela...isto é, Miss Monti, pensa que o pai tem, por vezes, momentos de lucidez.
O Dr. Venturi encolheu os ombros.
- É filha... consola-a tal pensamento e nós não estamos interessados em contradizê-la.
- Percebo - disse Randall pensativo. - E quanto a visitas? O Professor Monti tem recebido outras visitas sem ser as filhas?
- Não. Quer dizer, as suas visitas são as filhas, os netos, quando estão em férias e, no aniversário do doente, a governanta da sua casa.
- Ninguém estranho?
- Não. Ninguém estranho pode ser admitido - garantiu o Dr. Venturi. - Algumas pessoas pediram licença para visitá-lo, mas foi-lhes negada. As filhas do Professor tomaram a decisão de que a presença do pai aqui, bem como, a sua infeliz perturbação mental, deviam ser objeto de segredo, tanto quanto possível. Só os familiares diretos do Professor, ou pessoas que acompanham a família, têm licença para visitar o nosso doente.
-Mas, quanto a estranhos... - persistiu Randall. - O senhor falou-me há pouco de alguns que pediram licença para visitar o Professor. Lembra-se quem eram eles?
O Dr. Venturi tirou o cachimbo da boca.
- É difícil lembrar-me de nomes. As pessoas que se dirigiram à clínica solicitando autorização para visita, eram uns amigos íntimos e colegas da universidade. Dissemos-lhes, simplesmente, que o Professor sofria de uma depressão nervosa e que era fundamental o mais restrito repouso. Foram várias as pessoas que se nos dirigiram nos primeiros meses e que não obtiveram licença de visita. A partir daí nunca mais fomos importunados.
- Mais ninguém?- perguntou Randall. - Não houve quaisquer tentativas de visita recentes?
-Bom, já que menciona isso... houve alguém e recordo o fato por se tratar de uma pessoa muito conhecida.
-Quem? -perguntou Randall, não escondendo o seu interesse.
-Um clérigo eminente, o Reverendo Maertin de Vroome. Fez-me um pedido por escrito para visitar o Professor. Devo dizer-lhe que fiquei impressionado. O Reverendo invocou relações de amizade com Monti. Todavia, pouco depois, informaram-me não se tratar de amizade entre as duas celebridades. Tive esperanças que uma visita de Maertin de Vroome estimulasse o doente, de modo que enviei o pedido às filhas. A Signorina Angela e a Signora Claretta recusaram firmemente a permissão, assim, informei o Reverendo que o Professor não podia receber visitas. Na verdade o senhor é o primeiro estranho obtendo licença para visitá-lo, desde sua internação nesta clínica. - O psiquiatra lançou um olhar para o relógio-calendário em cima da mesa.-Tem mais perguntas que queira fazer, Mr. Randall?
- Não - respondeu Randall, levantando-se. - Muito obrigado. Nada mais há que queira perguntar... ou saber.
A viagem de volta a Roma, no Opel de Giuseppe: com ar condicionado, foi sombria.
No assento traseiro, com Angela bem agarrada a ele, um relutante Randall foi forçado a repetir o que ocorrera durante a entrevista com o Professor e depois com o Dr. Venturi.
Angela, sem se alargar muito, recordou com saudade os belos tempos nos quais o pai era um homem mentalmente saudável, falando da sua apurada inteligência e do gosto, do seu intelecto, pelas coisas superiores da vida. Rematou dizendo, com palavras de mágoa, que era pena o pai não desfrutar da maravilha que o seu achado produziria na humanidade.
-Ele já teve a alegria de vibrar com a descoberta que fez, porque avaliou aquilo que ofereceria ao mundo.
- És um amor - disse Angela beijando-lhe o rosto. - Um autêntico amor cheio de ternura.
Angela convidou-o a jantar na casa dela, juntamente, com a irmã e os sobrinhos. Randall sentiu-se quase tentado em aceitar, mas depois reconsiderou.
- Não, obrigado. Penso que será melhor que te reunas com a tua família em absoluta intimidade. - Depois disto teremos tempo de sobra para estarmos juntos. Além disso, tenho que voltar para Amsterdã. Começou a fase final para o lançamento. E a propósito, Wheeler deve estar a soprar de raiva por não ter comparecido hoje no gabinete.
-Partes de avião esta noite?
-Talvez, ao fim da noite. Colocarei em dia alguma correspondência pessoal e aproveitarei enquanto estou em Roma. Logo que regresse a Amsterdã já não terei tempo para me coçar. Devo cartas aos meus pais e à minha irmã. Também tenho correspondência de negócios privados, tal como, arranjar as coisas definitivas com Jim McLoughlin, o tipo do Instituto Raker de que te falei. O meu advogado ainda não o localizou. Pensei, pois, que era melhor escrever pessoalmente a McLoughlin, talvez, a carta lhe seja entregue. Sim, tenho alguns assuntos de correspondência para arrumar. Seguirei para Amsterdã no último vôo da noite.
- Bom, parece-me que será melhor que Giuseppe te leve primeiro ao Excelsior, depois levar-me-á a casa.
Randall deu instruções ao motorista, e voltou-se depois para Angela.
-E tu, partes amanhã de manhã para Amsterdã? Ela contemplou-o com um sorriso travesso.
-Não, vou amanhã à noite, se o meu patrão não me despedir. Pretendo fazer umas compras com a minha irmã, quero levar os meus sobrinhos aos jardins Borghese e talvez faça umas visitas a algumas pessoas amigas. Se não te importas, terás a tua secretária amanhã à noite, está bem?
-Não. Está tudo muito bem. Mas, estarei à tua espera impaciente.
Angela estudava-o agora com atenção, já sem sorrir.
- Steve, há uma coisa que quero saber...
- Diz.
-Logo que chegues em Amsterdã, o que é que vais fazer?
- O que farei? Lançar-me ao trabalho, claro. Trabalharei como um doido, para pôr o projeto em funcionamento.
Olhou-a melhor, vendo-lhe o ar de preocupação estampado no rosto, compreendeu onde ela queria chegar.
- Oh, queres saber se eu vou... insistir em saber o que há com o fragmento do papiro... com a fotografia? Não, Angela, parou. Teu pai era a derradeira pista. Cheguei a um beco sem saída. Ainda mesmo que quisesse continuar, desconheço qual o caminho a seguir. Arrumarei, definitivamente, minha caracterização à Sherlock Holmes e voltarei ao trabalho de promoção da nova Bíblia. Devotar-me-ei, por completo, a vender ao mundo a Palavra.
-Mesmo alimentando dúvidas?
- Angela, foi isso que me trouxe à Roma. Sempre alimentei dúvidas a respeito dos mistérios, tal como, sempre tive latente um pedacinho de fé. Conheces a oração de Ernest Renan? «ó Deus, se é que Deus existe, salva a minha alma, se é que tenho alma.» Assim estou eu exatamente hoje.
Angela soltou uma gargalhada cristalina.
- E podes viver com isso?
-Tenho que viver. Não tenho escolha.-Deu umas pancadinhas nas costas da mão de Angela. - Não te aflijas. Prosseguirei meu caminho. Pronto, chegamos ao Excelsior. Bem, querida, mais um beijo, até amanhã.
Depois de sair do Opel, sempre mantendo segura a pasta, observou o carro a confundir-se com o trânsito geral e penetrou no saguão do hotel, onde a temperatura era amena. Parou, por momentos, no balcão da recepção, para receber a chave. Dirigiu-se a seguir para os elevadores.
Uma das máquinas acabava de chegar ao piso térreo e desembarcava os passageiros. Ficou ao lado da porta até o elevador esvaziar-se. Entrou e quase tocou o botão que indicava o quinto andar, quando percebeu mais alguém dentro. Alguém estendeu-lhe o braço, por cima de seu ombro, para apertar o botão do quarto andar. O braço estendido estava envolto naquilo que parecia a fazenda preta e brilhante de uma batina.
Quando as portas automáticas se fecharam, o elevador começou lentamente a sua ascensão. Randall voltou-se e encarou o seu companheiro de viagem.
Suspendeu a respiração.
Na sua frente, ultrapassando-o com a imponência da sua altura, envolto na mesma batina negra, via-se a cara cadavérica e quase sem lábios de Dominee Maertin de Vroome.
O Reverendo dirigiu-lhe o arremedo de um sorriso.
-Voltamos então a encontrarmo-nos, Mr. Randall. Confio que a sua visita desta tarde ao Professor Monti tenha sido proveitosa.
Desconcertado pelo descaramento do homem, Randall perguntou áspero:
-Como diabo sabe que visitei o Professor?
- Veio a Roma para o ver, tal como, eu pretendi antes. Muito simples, como vê. Além disso, tomei como um dos meus mais sagrados deveres, mantê-lo em observação constante, Senhor Randall. Desde a nossa entrevista, observo seus movimentos cada vez com mais interesse e também cada vez com mais respeito. O senhor é, tal como eu imaginei desde o principio, um investigador da verdade. Não existem muitas pessoas preocupadas em procurar a verdade. Mas o senhor é um dos poucos preocupados com essa busca. Quanto a mim, também sou, como sabe, um ardente investigador da verdade. Sinto-me encantado por saber que a nossa busca, neste especial caso, é a mesma e que os nossos caminhos convergem. Talvez, chegou para nós o momento, aqui na Cidade Eterna, de termos mais uma conversa pessoal.
Randall sentiu-se enrijecer. Todos os seus sentidos vibraram em alerta.
- Conversarmos a respeito de quê?
- A respeito da falsificação do Evangelho Segundo Jacob e da falsificação do Pergaminho Petrônio.
-O que é... que lhe dá tanta certeza tratar-se de falsificações?
-Porque acabo de ver o próprio falsificador e soube pormenores da falcatrua... Bem, Mr. Randall, estamos no meu andar. Confio em que queira também sair aqui...
Randall estava sentado, em profundo estado de espanto, no esplendor da vasta e luxuosa sala de estar, ocupada por Dominee de Vroome, no Hotel Excelsior.
Autenticamente estupefato pela declaração objetiva do clérigo, Randall trotara dócil atrás dele, no quarto andar, percorrendo o atapetado corredor até entrar na sala de espera.
Randall quisera acreditar que se tratava de qualquer truque, de um jogo que o Reverendo quisesse jogar com ele. Mesmo pensando na sua disposição céptica a respeito do projeto, das suas dúvidas e reticências, Randall queria naquele momento duvidar das palavras do inimigo da Ressurreição Dois. Infelizmente não podia. Algo no tom de voz do Dominee, quando lhe falara no elevador dissera a Randall que, finalmente, estava à beira de alcançar a tão procurada verdade.
Continuava sentado, silencioso, absorto, no seu cadeirão de braços, forrado de veludo, sem tirar os olhos, como que hipnotizado, de Dominee.
O clérigo, em seguida, depois da entrada no aposento, perguntara-lhe se queria que desse ordem ao snack para trazer alguma coisa para comer, por exemplo, hors-doeuvres, recomendando-lhe até o caviar Beluga, ou o prosciutto di Parma.
Randall abanara a cabeça negativamente, incrédulo com a calma e descontração do sacerdote.
Finalmente, Dominee de Vroome, perguntara-lhe:
- Então aceitará certamente uma bebida, não é verdade?
Sem esperar resposta, o Reverendo encaminhara-se silencioso como um felino até o frigorífico embutido num artístico móvel, que fazia parelha com o resto da mobília rococó, examinando os rótulos das garrafas que estavam numa prateleira.
Continuando de costas voltadas para Randall perguntara com toda a naturalidade.
-O que é que deseja tomar, Mr. Randall? Quanto a mim vou beber um pouco de conhaque misturado com água mineral.
- Para mim, se quiser fazer o favor, Scotch-on-the-rocks.
-Muito bem.
Enquanto preparava as bebidas, de Vroome prosseguira com a conversa:
- Tal como o senhor me apontou na nossa entrevista, Mr. Randall, reconheço agora que a maior parte das pessoas, o pessoal, que trabalha na Ressurreição Dois, são criaturas decentes, homens de profunda espiritualidade. Pessoas que acreditam na essência da Palavra, tal como eu creio. Mas, encontram-se de tal maneira famintos por uma renovação universal da fé, que se submetem, por completo, àqueles que os manipulam, puxando os cordeiros. Permitiram que os comerciantes, mercantilistas, os cegassem; colocando-lhes uma venda nos olhos; dobrando-se sem raciocinar, aos famintos do poder religioso, pessoas que são capazes de usar todos os meios para sobreviverem. - Fez uma longa pausa, para depois concluir: - Sim, capazes de utilizarem todos os meios, até mesmo a falsificação.
De Vroome voltou-se finalmente para Randall, atravessando de novo o carpete oriental com dois copos nas mãos.
- Não tenha dúvidas, Mr. Randall. O senhor segue a pista certa. Existe um falsificador. Ouvimo-lo. Vimo-lo.
Chegou junto à mesinha de café e colocou o copo de uísque em frente de Randall. Depois sentou-se confortável no sofá ao lado de Randall, erguendo o seu copo de conhaque numa espécie de brinde.
- Bebamos à vontade.
Bebericou o conhaque, notando que Randall não tocara em seu copo. Acenou a cabeça num gesto de compreensão.
Colocou o copo que tinha na mão em cima da mesinha, arranjou as dobras da batina em volta das pernas, e olhou firme para Randall.
-Quer os fatos, não é verdade? Como é que descobrimos o falsificador? Não tínhamos meios de o localizar, embora tivéssemos a certeza de que ele existia, ou que pelo menos existira. Não, não fomos nós que o encontramos. Pelo contrário, foi ele que nos procurou. A isca, involuntária, foi a série de artigos publicada por Cedric Plummer sobre o cisma entre as igrejas cristãs, falando dos seus esforços para uma reforma, artigos que esmiuçaram os preparativos da hierarquia ortodoxa para publicação de um Novo Testamento drasticamente revisto e com base em certa descoberta, não anunciada publicamente, feita em Itália. Os artigos de Plummer, como sabe, foram publicados internacionalmente, e um dos principais jornais a publicá-los na tradução italiana foi o Il Messaggero, jornal romano de grande circulação.
Randall pensou, até então, tudo aquilo soava verdadeiro. Ainda não havia uma hora que o Dr. Venturi lhe mencionara os artigos do Il Messaggero.
Dominee de Vroome prosseguiu.
- Como deve imaginar, Plummer recebeu um considerável número de cartas em resposta aos seus sensacionais artigos. Uma dessas cartas, escrita num papel barato e sem referências especiais, foi enviada a Plummer; aos cuidados do jornal romano, juntamente com muitas outras, para o London Daily Courier, onde Plummer é correspondente. Por seu turno, o diário londrino enviou automaticamente para o hotel de Plummer em Amsterdã, um tremendo maço de missivas. Ao passo que o nosso amigo jornalista Plummer tem muitas outras limitações e falhas, o desrespeito pelo público não é uma das suas fraquezas, pelo contrário, lê todas as cartas que lhe são endereçadas. Foi com particular atenção, que devorou uma missiva em especial, com selos e carimbos dos correios de Roma. Leu-a e releu-a. Tratava-se de uma carta, um tanto provocadora, escrita por um cavalheiro que se dizia francês, morando há vários anos exilado em Roma. Não assinava a carta com o seu nome verdadeiro, mas sim com um divertido e auto depreciativo pseudônimo: Duca Minimo. Mr. Randall, a língua italiana é-lhe familiar?
- Não - respondeu Randall.
- Bom, Duca Minimo, equivale literalmente a Duque de Nada ou, mais precisamente, em linguagem popular, significa Zé Ninguém. Um contraponto excelente ao conteúdo da carta que representava algo de muito positivo. Devo acrescentar que o autor da carta não forneceu endereço a Plummer, com exceção de indicar Fermo Posta, Posta Centrale, Roma - Caixa Postal
Geral, ou Posta Restante da Estação Central dos Correios de Roma. Agora vamos ao conteúdo da missiva...
Como que fazendo aumentar o suspense, Dominee levou de novo o copo aos lábios antes de prosseguir:
- ... que parecia bom demais para ser verdadeiro. Esse expatriado francês em Roma escrevia que havia lido os artigos de Plummer com grande interesse. Exatamente as suas palavras: com grande interesse, sem tirar nem pôr. Uma afirmação ímpar, mas sem contestação. Seguia dizendo que quanto à nova Bíblia - o Novo Testamento Internacional, como o homem pensava que se chamaria – baseava-se numa escavação feita pelo arqueólogo italiano, Professor Augusto Monti, da Universidade de Roma, no perímetro da velha cidade de Ostia Antica, escavação que foi levada a efeito há seis anos. Os trabalhos do Professor Monti levaram a uma descoberta extraordinária, um novo evangelho escrito em aramaico por Jacob, o Justo, irmão de Jesus e implicando ser um evangelho anterior em data a qualquer outro evangelho dentro dos cânones existentes. Juntamente com esse novo quinto evangelho, Monti tinha também encontrado fragmentos de um antigo pergaminho romano oficial, enviado de Jerusalém para Roma; documento contendo um conciso relato sobre o julgamento de Jesus. Duca Minimo, escrevia que fora com base nesse achado que o Novo Testamento Internacional tomara forma. Todavia, dizia também, que toda essa base para a nova Bíblia não passava de uma mentira. Garantia que a descoberta do Professor Monti, nada mais era do que uma falsificação cuidadosa e erudita, que levara muitos anos preparando. Duca Minimo, garantia que a nova descoberta arqueológica era uma falsificação, por ser ele o falsificador e dizia orgulhoso que a autenticação e aceitação dos documentos o colocavam na primeira fila dos mistificadores literários; excedendo tudo o que no passado fora feito no capítulo por Ireland, Chatterton, Psalmanazer ou Wise.
Os calmos olhos de Dominee de Vroome procuraram observar qualquer reação em Randall, reação que não transpareceu em seu rosto.
-Sem dúvida que o nosso correspondente se mostrava uma pessoa sabedora -acrescentou de Vroome.
Absorvido como estava, Randall manteve-se calado na ânsia de ouvir o que se seguiria.
-Para concluir o conteúdo da carta, o exilado francês dizia a Plummer, que estava pronto a revelar todo o seu papel de mistificação e a tornar a falsificação pública na véspera do anúncio da nova Bíblia ao mundo. Escrevia que se Plummer quisesse saber pormenores sobre a falsificação e conhecer o preço em que ele avaliava as provas da sua habilidade, estava pronto a encontrar-se com Cedric e a negociar com ele em terreno neutro. Para esse encontro preliminar, preparou para receber Plummer sozinho, numa dada data e num certo local de Paris, se Plummer lhe enviasse um bilhete de avião de Roma para Paris, ida e volta, à Cidade Eterna; juntamente com uma determinada quantia para passar a noite e se alimentar. Era deste teor, Mr. Randall, a carta que Cedric Plummer me entregou.
Randall agarrou seu copo de uísque. Finalmente precisava de um trago. Depois perguntou:
-E o Dominee acreditou naquilo que a missiva dizia?
- A princípio não. Claro que não. O mundo está cheio de maníacos religiosos. Normalmente, eu teria até ignorado uma tal carta. Todavia, quanto mais a estudava, mais admitia a possibilidade, que talvez, o seu autor estivesse falando verdade. Raciocinei que a missiva continha algo que lhe conferia um aspecto de veracidade. O autor dizia que a descoberta do Professor Monti fizera perto de Ostia Antíca. Até então, embora soubéssemos o papel desempenhado pelo Professor, desconhecíamos o local exato do achado, um segredo cuidadosamente guardado pela Ressurreição Dois. Todos nós, que estávamos fora do caminho tomado pela nova descoberta, sabíamos que o achado fora feito na Itália, entretanto, desconhecíamos por completo a exata localização. Era um caso sugestivo e impressionante, algo que valia a pena ser verificado, e que estava perfeitamente apto a verificar de imediato, por meio de certos associados que tenho aqui em Roma. Logo que forneci a esses informantes o nome da escavação - perto de Ostia Antica - essas pessoas confirmaram-me que na verdade fora nas vizinhanças de Ostia Antica, que o Professor Monti realizara uma importante descoberta bíblica, ainda que mantida em segredo. Pude igualmente verificar, pela primeira vez, que até o título da nova Bíblia era da maior precisão. Pelo menos, o título foi, até então, mantido em exclusivo pela chefia do vosso projeto. Seria possível que certas pessoas de influência, mesmo fora do sancta sanctorum da Ressurreição Dois, soubessem o segredo, mas isso seria impossível a um obscuro exilado francês na cidade de Roma. Não, não podia ignorar um tal pormenor. Mesmo que o chamado Duca Minimo, não fosse o falsificador, mesmo que tivesse obtido a sua informação por outras vias, sem dúvida, que o seu conhecimento do assunto devia ser tomado a sério. Se ele não fosse a imediata fonte do conhecimento da falsificação, certamente, mantinha contato com a pessoa, ou pessoas, que a conceberam. Impossível ter duas opiniões, valia bem a pena travar conhecimento com o homem, atendendo até ao modesto investimento financeiro que comportava. De modo que instrui Cedric Plummer para lhe escrever à Posta Restante de Roma, manifestando interesse em ouvir o alegado falsificador, concordando com a data, o dia, hora e o local do encontro; enviando-lhe, ao mesmo tempo, o bilhete de avião ida-e-volta e o dinheiro para as despesas de alojamento e de alimentação. Plummer assim fez, e na data acordada partiu para Paris de modo a estar presente ao encontro.
- Quer dizer... que Plummer se encontrou realmente com esse homem?
- Sim, encontrou-se com ele.
Randall bebeu um grande gole de uísque.
- Quando?
-Faz hoje uma semana.
- Onde?
- No Père-Lachaise em Paris.
-Onde é que isso fica?
-O cemitério du Père-Lachaise... não ouviu falar do local? - perguntou de Vroome com surpresa. - É o cemitério mais célebre de Paris onde estão sepultadas tantas grandes figuras do passado, como Heloisa e Abelardo, Chopin, BaIzac, Sarab Bernhardt, Colette... O nosso falsificador escreveu que estaria à espera de Plummer, exatamente, às duas horas da tarde, em frente da escultura de Jacob Epstein que domina o sepulcro de Oscar Wilde. Admito que todo o caso parece rodeado de um cenário teatral. Todavia, a escolha teve também a sua razão de ser. Para uma pessoa notória, um falsificador confesso, o lugar afigura-se o mais conveniente para uma entrevista íntima e sem ouvidos indiscretos. Visitei o Père-Lachaise, em certa ocasião, um local imenso, calmo, isolado, feito de colinas, veredas, florestas de choupos e de acácias. Perfeito e verdadeiramente intrigante para um sensacionalista como Plummer.
-E eles encontraram-se então nesse local, Plummer e o falsificador? -apressou Randall.
- Sim, encontraram-se - respondeu de Vroome - mas não junto à sepultura de Oscar Wilde como fora previamente combinado. Quando Plummer chegou ao cemitério, um guarda perguntou-lhe se se chamava Cedric Plummer e entregou-lhe um envelope que alguém deixara para lhe ser entregue. Dentro do envelope havia uma folha de papel com uma nota rabiscada por Duca Minimo. O homem mudara o local da entrevista, avisando Plummer para seguir até junto da sepultura de Honoré BaIzac. Parece que havia muita gente junto do sepulcro de Oscar Wilde. Plummer achou aquele pormenor excepcionalmente poético. BaIzac descrevera com a sua pena magistral imensos trapaceiros e malfeitores. Naquela altura, ainda conseguira chamar até junto da sua última residência, um homem que, possivelmente, seria um dos maiores falsários de toda a história. Plummer comprou um mapa turístico do cemitério, marcou o caminho até à tumba de BaIzac e não teve dificuldade em encontrá-la. E no local encontrou-se também com o falsificador,
Dominee de Vroome parou, acabou o seu conhaque e considerou o seu copo vazio, bem como o de Randall, nas mesmas condições.
-Mais um uísque, Mr. Randall?
-Nada de nada... com exceção da sua história. O que é que aconteceu?
-Como sempre, o devotado jornalista, Plummer, escreveu extensas notas do encontro. Eu li-as. Em essência falavam do verdadeiro nome do falsário, ou do homem que a si próprio assim se proclamava: Robert Lebrun. Plummer, descreveu-o como um homem de idade-avaliou cerca de oitenta e três anos-mas, sem vestígios de senilidade, perfeitamente alerta, de cabeça fria e esclarecida, cabelo castanho já ralo, olhos cinzentos, com uma catarata num deles. Óculos. Nariz pontiagudo, queixo prógnato, boca quase sem dentes, rosto profundamente marcado por fundas rugas. Provavelmente de altura média, segundo avaliação de Plummer, mas parecendo baixinho devido a curvatura para a frente. O andar do homem tem um jeito estranho, mais arrastado do que coxeante, devido a ter uma perna artificial, coisa em que não gosta nada de falar. A sua origem e ambiente conferem certo fundamento à história contada.
-E qual é essa origem?
-Paris. Nascido e criado em Montparnasse. Não disse muita coisa a Plummer. Ficaram ali, junto do túmulo de BaIzac, ao sol e Lebrun manifestou-se fatigado a breve trecho. Contou que na sua juventude trabalhara como aprendiz de gravador. Era pobre e queria ganhar dinheiro para ele, para a mãe, irmãos e irmãs; e, por isso, começou a fazer imitações. Acabou por ver que tinha um certo jeito para falsificações e, por isso, começou a forjar passaportes falsos. Deslocou-se depois para falsificar pequenas notas, formou-se em imitador de cartas históricas, manuscritos raros, fragmentos de bíblias medievais com iluminuras e, finalmente, atreveu-se a forjar um documento governamental, sem a necessária preparação para tal espécie de coisas. Desconheço os pormenores, mas, sei que foi descoberto, preso, julgado e, devido a possuir já no cadastro uns quantos crimes, embora menores, do mesmo teor, foi considerado incorrigível e condenado a prisão na notória colônia penal da Guiana Francesa. A vida em tais paragens tornou-se um inferno vivo para o jovem Lebrun. As autoridades nada fizeram para o reabilitar e ele tornou-se mais rebelde e recalcitrante do que nunca, sofrendo os efeitos dessa rebeldia. O exílio em paragens tão nefastas desarticulou-o. Em dada altura, depois da reclusão numa das três ilhas ao largo da costa da Guiana, que mais tarde se tomaram conhecidas como o arquipélago da Ilha do Diabo, Lebrun esteve à beira de se suicidar. Foi nessa ocasião que passou a ter a proteção de um cura católico francês, um padre da ordem da Congregação do Espírito Santo, que se deslocava a St. Jean para visitar as colônias penais das ilhas, duas vezes por semana. O sacerdote interessou-se por Lebrun, levou-o lentamente para a religião e a fé, facultando-lhe leituras espirituais edificantes. Gradualmente, a vida de Lebrun, ganhou propósito e alcance de conhecimentos, verdadeiro escopo. Finalmente, depois de passar três anos na colônia penal da Guiana, deparou-se a Lebrun certa espécie de oportunidade para receber o almejado perdão. Plummer não obteve muitos pormenores sobre o caso, mas soube, todavia, que tal oportunidade acabou por se malograr, a sua fé foi traída e Lebrun tornou-se cada vez mais irritadiço, mais amargurado e anti-social do que nunca. Especialmente contra a religião.
Randall estava confuso.
-Não compreendo.
-Desculpe por não esclarecer ponto tão crucial, mas na verdade sei muito pouco a respeito disso. Tudo o que Lebrun revelou foi que o sacerdote em quem confiara, esse clérigo, fora portador de uma proposta do governo francês. Se Lebrun se oferecesse para certa empresa perigosa, ou para determinada experiência, conseguindo sobreviver, ser-lhe-ia concedida anistia e libertação da colônia penal. Lebrun mostrou-se relutante em oferecer-se como voluntário, mas fê-lo encorajado pelas palavras do padre. Sobreviveu ao empreendimento à custa de perder uma perna. Todavia, considerou, que mesmo a tal preço, merecia a pena a liberdade. Sucede que a anistia que o clérigo prometera a Lebrun, em nome do governo francês não foi concedida. Lebrun foi de novo atirado para o seu inferno tropical. A partir desse dia negro da traição, Lebrun devotou-se à vingança. Contra o governo europeu? Não. Contra o sacerdócio, contra o clero, contra toda a religião – por causa da decepção sofrida por meio da religião em que acreditara. Foi assim que consumido pelo ódio, devotado de alma e coração à vingança, concebeu o seu tortuoso plano, um plano que se destinava a transformar em escárnio os crentes em Cristo e a vibrar um golpe fatal contra o clero, fosse qual fosse a sua fé.
- A falsificação de um novo evangelho - murmurou Randall.
- Sim, isso. Uma falsificação, arranjando uma fonte pagã para dar testemunho do julgamento de Cristo, que ele passara a detestar. Devotaria todo o resto da sua vida, preparando a mistificação, levando o público a acreditar nela. Acabando, finalmente, por expor a mentira, mostrando assim a falsidade da fé religiosa, a credulidade e facilidade com as quais os fiéis são enganados. Entre 1918, quando foi atirado de volta para a sua cela na colônia penal da Guiana, e 1953, altura em que os franceses puseram termo ao terrível inferno tropical, Robert Lebrun preparou a sua tremenda vingança. Embrenhou-se profundamente na Bíblia, na erudição bíblica e na história do cristianismo do primeiro século. Finalmente, depois de 38 anos de reclusão, a sua prisão terminou com a eliminação da colônia penal da Guiana pelo governo francês. Lebrun regressou à França, libertado, um homem livre, ao mesmo tempo, um ex-condenado obcecado pela vingança contra a Igreja.
-E empreendeu então a sua genial falsificação?
- Imediatamente, não - respondeu Dominee de Vroome. Antes de mais, precisava de dinheiro. Reatou a sua vida clandestina de falsário, transformando-se numa autêntica fábrica de passaportes falsos. Continuou também com os seus profundos estudos das Sagradas Escrituras, de Jesus, dos primitivos tempos cristãos, iniciando-se na aprendizagem do aramaico. Sem dúvida que mostrou ser um autodidata brilhante, verdadeiro gênio em erudição bíblica. Finalmente, conseguiu juntar dinheiro suficiente, para adquirir os materiais antigos de que necessitava. Com tais materiais, os seus conhecimentos e o seu ódio, abandonou a França, estabelecendo residência em Roma e para se desenvolver secretamente em aperfeiçoamento de papiros e pergaminhos, para aquilo que devia ser a falsificação de maior êxito em toda a história. Foi com enorme satisfação que, há doze anos, completou o seu trabalho.
Randall estava totalmente hipnotizado, demasiado intrigado para manifestar, por mais tempo, qualquer desconfiança.
- E Monti? - perguntou. - Onde é que o Professor Monti entrou no caso? Esse Lebrun conheceu Monti em Roma?
- Não. No início Lebrun não conheceu pessoalmente o Professor Monti. Entretanto, no curso dos seus estudos sobre arqueologia bíblica, Lebrun familiarizou-se com o nome de Monti. E então, certo dia, depois de ter finalizado a sua falsificação, e quando se debatia com o problema magno de saber onde e como iria enterrar os documentos, deparou-se-lhe de súbito, um artigo radical, escrito pelo Professor Monti, para um jornal versado em problemas arqueológicos.
Randall fez um aceno positivo com a cabeça.
- Sim, o artigo controverso, escrito pelo Professor Monti, sobre a possibilidade de se encontrar o perdido documento Q, na Itália, em vez de na Palestina, ou no Egito.
-Exatamente -disse o Dominee de Vroome, impressionado. - Vejo que tem tirado sério proveito do seu trabalho, Mr. Randall. É evidente que tem tido a boa influência da filha do Professor Monti. Bem, prosseguindo, certo dia, quando estava na Biblioteca Nacional, Lebrun leu o artigo de Monti e de imediato, juntou todos os fios soltos da sua meada. Dos lugares sugeridos por Monti, para uma possível futura descoberta, um deles era o local de velhas ruínas soterradas ao longo da linha do litoral perto de Ostia. Depois de um estudo meticuloso do local, Robert Lebrun, arranjou a maneira de sepultar sua falsificação, profundamente, debaixo da terra entre as ruínas de uma vila romana do século I.
O ceticismo de Randall veio acima.
-Como é que lhe foi possível, fazer tal coisa, sem ser descoberto?
- Fê-la - respondeu o clérigo com firmeza. - Não sei como, e o homem não revelou a Plummer os meios de que se serviu. Porém, continuo pensando que Lebrun era e é capaz de tudo e mais alguma coisa. Acima de tudo, como já observou, foi sempre um homem de paciência infinita. Uma vez enterradas as falsificações do papiro e do pergaminho, deixou que passassem alguns anos, a fim de permitir que, o vaso selado e o suporte de pedra, se tornassem parte integrante das ruínas, de modo a absorverem as devastações do tempo, parecendo tão velhas como o conteúdo do seu interior. Durante esse período, o governo italiano autorizara escavações em Ostia Antica. Lebrun manteve-se com esperança de que o seu trabalho de falsário, fosse desenterrado por acidente. Mas essas escavações não foram suficientemente amplas. Entretanto, o Professor Monti continuava a publicar os seus artigos radicais, fazendo publicidade das suas opiniões a respeito do documento Q encontrar-se na Itália. Em virtude destes, seria severamente criticado e ridicularizado pelos seus colegas mais conservadores. Sabendo de todas as polêmicas e críticas; conhecedor de todas as controvérsias intestinas; Lebrun pensava que o Professor Monti se mostrasse suficiente louco pelos ataques dos seus colegas, atirando-se para as ruínas de Ostia Antica, a fim de provar que as suas projeções, em matéria arqueológica, não eram simples fantasias. Lebrun decidiu então, que chegara o tempo de agir. De modo, que há sete anos, tal como, o homem revelou a Plummer no cemitério parisiense, resolveu fazer uma visita ao Professor Monti, na Universidade de Roma. E, depois dessa iniciativa, a artimanha psicológica de Lebrun alcançou os mais positivos resultados.
-Quer dizer que Monti se mostrou receptivo? -perguntou Randall espantado. - Mas receptivo e reativo a quê?
-A um pequeno fragmento de papiro, com caracteres aramaicos, que Lebrun levou consigo -respondeu Dominee de Vroome. Não subestime Lebrun. É diabolicamente inteligente. Retirou dois pedacinhos do Papiro Número 3 do Evangelho Segundo Jacob, material de partes diferentes, com aspecto corroído, para fazer com que a folha de papiro enterrada, parecesse gasta pelo tempo, ou pelos bichos e, por conseguinte, mais verdadeira. Um dos dois pedaços estava praticamente intacto e o outro, embora mais envelhecido e deteriorado ainda apresentava caracteres visíveis. Foi precisamente esse fragmento que mostrou ao Professor Monti. Claro que Lebrun previa que o Professor lhe perguntaria como é que o fragmento chegara à sua posse. Explicou que era um estudioso amador da história romana do século I. Há muito tempo preparando um livro a respeito de Roma e das suas colônias asiáticas, nesse particular período. Relatou ainda que costumava, durante os fins de semana, visitar os locais antigos envolvidos no primitivo comércio romano com o mundo exterior. Dado que Ostia, fora um porto de mar ativo, no tempo de Tibério e de Cláudio; Lebrun passara, incontáveis fins de semana, passeando pelas redondezas, tentando visionar o porto como ele fora dois mil anos antes. Lógico, tudo isso a fim de recolher dados concretos, para o seu livro, pelo menos foi o que ele disse ter contado a Monti. Explicou ao Professor que, devido à sua assídua freqüência da área, passara a ser uma figura popular entre as pessoas de Ostia, por isso mesmo, certo domingo ao entardecer, fora abordado por um garoto italiano que lhe mostrava um souvenir para venda: precisamente o fragmento do papiro apresentado ao Professor.
- Mas... e o Professor não manifestou curiosidade em saber como é que o rapaz obtivera o fragmento? - interrompeu Randall.
-Claro que manifestou. Porém, meu caro, lembre-se: Lebrun tinha resposta pra tudo. Disse que a criança, juntamente com outros amigos, brincavam de escavar cavernas nas colinas e montes da região. Uma semana antes acharam um pequeno pote de barro, que se desfez em pedaços ao abri-lo. Dentro do pote viam-se alguns papéis velhos. A maior parte dos fragmentos de papel desfizeram-se em pó quando lhes tocaram. Entretanto, salvaram-se alguns, utilizados pelos moços, como notas de banco para brincarem de mercado. Depois de se fartarem de brincar atiraram os fragmentos fora. Todavia, o pequeno vendedor de recordações resolvera ficar com o fragmento, exibindo-o para venda. Pensando obter uns tostões com ele, pois, habituara-se às várias pessoas comprando as coisas mais disparatadas. Lebrun contou ao Professor que comprou o papiro por uma soma irrisória, sem ter a certeza do valor do objeto. Ao regressar ao seu apartamento de Roma, examinara então detalhadamente o fragmento. Deu-se conta do possível significado dado seu profundo conhecimento em antigos manuscritos. Depois resolvera apresentar o pedaço de papiro ao Professor Augusto Monti, autoridade arqueológica da Universidade de Roma, de modo a obter uma autenticação. De acordo com o relato de Lebrun, Monti mostrou-se céptico, ainda que manifestasse interesse. Pediu a Lebrun que deixasse ficar em sua posse o fragmento durante uma semana, de modo a poder estudá-lo. A partir daí, pode perfeitamente imaginar o que aconteceu em seguida.
Randall ouviu a exposição do clérigo com toda a atenção. Tal como, durante tanto tempo pusera sérias reservas à história da Ressurreição Dois, antepunha também, naquele momento as mais sérias reservas à história de Lebrun. Ambas tinham os seus pontos fracos e fortes. Mas só uma das versões devia ser a verdadeira.
- Dominee, o meu único interesse é saber o que é que Lebrun imaginou a seguir.
Os olhos de de Vroome consideraram-no.
- Bom, mostra-se tão céptico como o Professor Monti se mostrou no início. - Sorriu. - Mas acredito que se convencerá, tal como ele se convenceu, na semana seguinte depois de confiarem-lhe o fragmento do papiro. Quando, na data combinada, Lebrun se dirigiu de novo à universidade, Monti recebeu-o com toda a cortesia e fechou-se com ele no seu gabinete. Monti não escondeu a sua exaltação. Lebrun contou a Plummer que o Professor estava fora de si verdadeiramente, anunciando-lhe que estudara cuidadosamente o fragmento e que estava mais do que satisfeito sobre a sua autenticidade. O fragmento aparentava ser pertencente a um códice de um Novo Testamento primitivo, antecedente a qualquer outro existente e conhecido. Sem dúvida que era anterior aos mais antigos evangelhos conhecidos, anterior ao evangelho escrito por Marcos por volta do ano 70 D.C., e ao evangelho escrito por Mateus por volta do ano 80 D.C. Se aquele fragmento sobrevivera, outros deveriam ter sobrevivido também. O Professor disse a Lebrun, caso fossem encontrados mais fragmentos, representar-se-ia a mais incrível descoberta bíblica de toda a história. Se Lebrun estivesse pronto a levá-lo ao local, Monti obteria as autorizações necessárias e iniciaria as suas pesquisas. Lebrun mostrou-se pronto a cooperar, impondo duas condições: primeiro caso as escavações provassem ter êxito, o Professor Monti entregar-lhe-ia metade dos proventos obtidos; a outra condição foi de que seria mantido como um sócio na sombra, a sua intervenção no caso seria mantida em segredo e o seu nome nunca seria pronunciado, nem registrado por Monti. Para acalmar a estranheza manifestada pelo Professor, contou-lhe ser um exilado na Itália, possuindo na França um cadastro não muito desejável, devido a certos crimes praticados na mocidade. Claro que não revelou a Monti a verdadeira amplitude do seu cadastro criminal, disse-lhe apenas não querer publicidade em torno do seu nome. Com medo das autoridades italianas sabendo do «curriculum» policial na França expulsarem-no da Itália como persona non grata. O Professor concordou com as duas condições impostas, firmando-se o acordo da sociedade secreta entre os dois.
-E Monti iniciou as suas escavações em Ostia Antica?
-Exato, no local indicado por Lebrun. Após um ano de preparativos, o Professor Augusto Monti começou as escavações. Três meses depois tropeçou, positivamente, no suporte de pedra escavado, oco, contento o segundo pote, ou vaso de cerâmica selado, aquele no qual se encontrava o Evangelho Segundo Jacob e o Pergaminho Petrônio. E hoje, seis anos depois, o mundo está prestes a ser contemplado com o seu quinto evangelho e com o seu Jesus Histórico através do Novo Testamento Internacional.
- Dominee, penso afinal querer beber mais um uísque. Aceito a sua oferta de há muito - disse Randall respirando fundo. -Penso também, precisar mais um conhaque.
Enquanto de Vroome pegava os dois copos vazios, dirigindo-se para o frigorífico; Randall, nervoso, carregou o fornilho do seu cachimbo com tabaco da bolsa de couro. Procurara durante algum tempo aquela porta para a verdade, mas, naquele momento, tendo-a escancarada diante de si, ainda não via as coisas muito claramente do outro lado. Confuso, exprimiu seu desapontamento em voz alta.
-Reverendo, essa não pode ser a história toda. Falta alguma coisa. Há tantas coi...
Sem se voltar, enquanto manipulava as bebidas, Dominee de Vroome replicou:
-De forma nenhuma lhe contei a história toda, ainda falta o desfecho - na verdade dois desfechos - um relacionado com Lebrun e Monti; outro com Lebrun, Plummer e eu próprio.
O sacerdote acabou de colocar as bebidas e regressou com o scotch-on-the-rocks para Randall e com o seu conhaque misturado com água mineral. Depois pousou os copos na mesa, ajeitou-se confortavelmente no canto do sofá e prosseguiu o seu relato.
- Segundo Robert Lebrun, após a descoberta ser autenticada e vendida aos editores da Ressurreição Dois, o Professor Monti entregou-lhe religiosamente metade dos lucros provenientes do achado. Lembre-se, porém, qual o objetivo primevo de Lebrun. Não era o dinheiro. O seu principal objetivo era ver a descoberta reconhecida pela Igreja; expondo depois, a mistificação de modo a gozar sua vingança final. Ano após ano, esperou pela publicação do Novo Testamento Internacional. Sempre à beira de perder algo da sua infinita paciência, acalmava-se pela certeza dada pelo Professor Monti de que o achado seria traduzido e preparado para livro, obra que muito em breve apresentar-se-ia ao mundo. Era esse o momento que Lebrun esperava com tanto afã. Logo que a descoberta fosse tornada pública; Lebrun sairia da sombra, para provar também publicamente, que não passava de uma mentira e que a Igreja não era mais do que uma gigantesca fraude. No ano passado, entretanto, algo muito significativo sucedeu a Lebrun. O falsário gastou a maior parte do dinheiro recebido do Professor. Gastara-o principalmente com prostitutas das ruas, estando muito perto da penúria. Todavia, habituado à miséria, não foi essa a razão do seu ato seguinte. Aquilo que o levou a marcar uma nova entrevista com o Professor Monti alicerçou-se num verdadeiro caso de amor. Na sua idade tão avançada, Lebrun apaixonou-se violentamente por uma das prostitutas que povoam os jardins Borghese. Era uma mulher ainda nova, pateta e venal, com certeza não teria qualquer outro interesse no velho sátiro, a não ser, dele fornecer-lhe certos confortos, mesmo satisfazer-lhe luxos. Lebrun confessou francamente a Plummer, seu desespero em possuí-Ia, vendo só uma solução no caso: fazer chantagem.
-Chantagem? Fazer chantagem com quem? Com o Professor Monti?
-Claro. A passagem dos anos não apagou sua obsessão em desmascarar a religião como tolice viva e a Igreja como um engano, mas essa mania cedera lugar a um vulcão, talvez, mais rugidor: a necessidade de dinheiro, dinheiro para poder comprar amor. E assim, em certa data do passado ano, arranjou um encontro privado com o Professor Monti...
-Em que altura do ano passado?
-Não tenho a certeza.
Randall fez rápidos cálculos, talvez há um ano e dois meses.
- Poderia ser em Maio do ano passado? - perguntou.
-Julgo que sim, talvez a data confira. Seja como for, encontrou-se com o Professor Monti algures fora da Universidade. Insistiu em saber quando é que o achado de Ostia seria publicado. Nessa altura, a tradução estava na segunda leitura, a ser enviada às tipografias de Hennig em Mainz. Monti assegurou Lebrun da publicação da Bíblia no ano seguinte, ou seja, este ano. Revelou até a Lebrun o nome da Bíblia. Satisfeito, Lebrun lançou então o seu ataque. Disse a Monti precisar desesperadamente de dinheiro, uma grande quantia, o mais cedo possível e que esperava do Professor o montante do qual precisava. Ao que parece, Monti não se deixou comover. Não tinha dinheiro disponível, mas mesmo que o tivesse, não via qualquer razão para ter que o dar a Lebrun. Fizeram uma relação e Monti cumpriu a sua parte no negócio, pagando a Lebrun o combinado. Não via nenhuma razão para lhe dar mais dinheiro. Lebrun retrucou que existia uma razão de peso, «se não me der mais dinheiro, arrasá-lo-ei e arruinarei a Bíblia que esses editores têm em preparação. Exporei ao mundo a sua descoberta como aquilo que ela realmente é... uma falsificação... um embuste, e uma fraude inventada pelo meu cérebro e executada pelas minhas mãos». Será capaz de imaginar o efeito que tais palavras produziram no pobre Professor Monti?
Randall tirou o cachimbo da boca.
-Decerto que Monti não acreditou no homem.
-Claro que Monti não acreditou. Além disso, como é que ele poderia acreditar? Mas Lebrun contou a Plummer que também preparou para tal contingência. Fazia-se acompanhar por uma prova inegável da sua falsificação.
- Que prova?
-Não revelou isso a Plummer -respondeu Dominee de Vroome.-Mas ao que parece tinha na verdade uma prova incontestável da mistificação, porque quando o Professor Monti a viu ficou assombrado, apoplético, quase em estado de choque. Lebrun, acrescentou: «Se me der o dinheiro que pretendo, entregar-lhe-ei esta prova da falsificação. A sua carreira e a sua reputação manter-se-ão intactas, impolutas e permanecerá a autenticidade do Novo Testamento Internacional. Se recusar, tornarei a prova pública e mostrarei que os documentos Jacob e Petrônio não passam de falsificações habilidosas. O que é que diz?» O que Monti disse... foi que encontraria maneira de arranjar o dinheiro, sob qualquer hipótese, onde fosse.
-E arranjou?
-Nunca teve essa possibilidade, Mr. Randall, como de resto o senhor sabe perfeitamente. Voltou ao seu gabinete privado na universidade. Pode imaginar os seus pensamentos ao ficar ali sentado à sua escrivaninha, só, num estado de pessoa petrificada. Sabendo que foi mistificado e que o trabalho de toda uma vida estava à beira de arruinar-se. Estava prestes a cair em desgraça, sendo arrastado na lama, arrastando consigo à bancarrota os organizadores da Ressurreição Dois e a Igreja mundial. Acabou sofrendo um completo colapso mental, perturbou-se-lhe o entendimento e apagou-se-lhe a razão da luz. Quando Lebrun alguns dias depois, tentou contatar com ele, para o pagamento da chantagem, soube que o Professor estava demasiado doente para poder falar fosse com quem quer que fosse. Lebrun não confiou naquilo que lhe foi dito, de modo que realizou ulteriores investigações na universidade e foi informado que Monti se encontrava com licença ilimitada. Não muito certo ainda, Lebrun, uma tarde, seguiu as filhas de Monti até à Villa Bellavista, nos arredores de Roma. Quando descobriu que o destino delas era um sanatório para perturbados mentais, foi forçado a aceitar o fato que Monti deixara de lhe poder ser útil.
- Fez qualquer tentativa para falar às filhas do professor?
- Que eu saiba, não - respondeu de Vroome. - Depois disso, tal como contou a Plummer, Lebrun considerou várias outras vítimas para a chantagem. Pensou em dirigir-se ao ministério italiano da Educação para extorquir dinheiro jogando com o peso do escândalo, mas acabou por ser suficientemente sensato para ver que não tinha força para desafiar o governo. Limitar-se-ia a prendê-lo, confiscar-lhe-ia a prova da falsificação e abafaria tudo. Pensou em dirigir-se a Amsterdã e apresentar aos editores a prova da sua fraude, sentindo que eles fariam tudo e mais alguma coisa para protegerem os milhões de dólares investidos no projeto. Mas temeu-lhes também a potência, tirando-lhe a prova e lançando-o para uma cela. Concluiu que o seu extremo recurso seria encontrar alguém, alguém possuindo credenciais sem mácula, que desejasse tanto quanto ele destruir a Ressurreição Dois. E foi então que tropeçou com os artigos de Cedric Plummer, calculando que encontrara o homem e a sua única esperança. E tinha razão. Na verdade escolhera o caminho certo, batera à porta indicada.
Com a mão tremendo, Randall levou o copo aos lábios e bebeu profundamente.
-Bem, qual foi a conclusão dessa reunião entre Plummer e Lebrun no cemitério de Paris? O senhor pagou-lhe e conseguiu obter a prova da falsificação?
O Dominee de Vroome franziu o nariz, levantou-se, procurou um charuto na caixa que se encontrava numa mesa de pé alto, dizendo enquanto o acendia:
-Chegamos ao segundo desenlace, muito mais bizarro do que tudo o que o antecedeu.
Calou-se e ficou, pensativo, rolando o charuto entre os dedos, para prosseguir depois:
-Sim, Plummer negociou com Lebrun. Enquanto passearam no cemitério de Père-Lachaise. Lebrun deixara a prova da falsificação escondida em certo lugar seguro nas vizinhanças de Roma. Concordou em voltar a Roma para recolher a evidência e esperar que Plummer, provido do dinheiro o procurasse na Cidade Eterna. Combinaram um segundo encontro-Lebrun marcou a data, a hora e o local, um café obscuro, fora de mão, que frequentava ocasionalmente. Quando desse segundo encontro, seria permitido a Plummer que examinasse à sua vontade a prova da mistificação e por ela, um relato escrito de toda a trama, entregaria a Lebrun uma quantia em dinheiro relativamente modesta.
- Quanto?
Antes de responder, Dominee, imponente na sua estatura, tirou uma grande fumaça do charuto e expeliu depois uma densa nuvem de fumo azulado.
- Lebrun queria cinqüenta mil dólares, ou o equivalente em dinheiro inglês, ou suíço. Plummer regateou com ele. Lebrun acabou por fixar a quantia em vinte mil.
-Bom, o encontro efetuou-se?
-De certa maneira, sim. Mas, primeiro deixe-me colocar uma mudança nos planos. Quando Plummer regressou a Amsterdã e me contou o que se passara entre ele e Lebrun, fiquei - deixe-me usar esta imagem - extremamente esperançado e hilariante. Logo a seguir reconheci que a transação era demasiado vital para a nossa causa, para deixar que Plummer fosse sozinho tratar do caso. Cedric é um entusiasta e um jornalista, mas não é um perito em papiros, em aramaico, em crítica e avaliação de textos bíblicos. Eu sou um perito em todas essas coisas. Estava certo que a prova da falsificação de Lebrun seria o outro fragmento recortado do vosso Papiro Número 3 e mantido intacto. Ou algo similar. Esperava também que a prova contivesse evidência inegável de ser não genuína mas falsificada. Ninguém mais do que eu estava apto a avaliar tal prova em última instância, de longe com mais rigor de que Plummer. Por isso resolvi acompanhá-lo a Roma.
-Quando foi isso?
- Há três dias. Dirigimo-nos ao ponto do encontro.
-Em que local da cidade?
Pacientemente, de Vroome satisfez a curiosidade de Randall.
-Num pequeno café de estudantes, muito pobre, uma espécie de bar, situado na via que se dirige à Piazza Navona. Na verdade, o café fica na esquina da Piazza di Cinque Lune -Praça das Cinco Luas-e da Piazza di S. Appollinare. Um estabelecimento de longe muito menos pitoresco do que os nomes dos locais sugerem. O café chama-se Bar Fratelli Fabri - Bar dos Irmãos Fabri. Um local pouco atraente. Quatro mesas no passeio, em frente, com uma cadeira de vime e um toldo caindo de podre para proteger os clientes habituais dos raios do sol. Duas entradas protegidas por tiras de plástico para as moscas não entrarem - bom aquela espécie de cortinas com contas barulhentas, geralmente associam-se a uma casa de má reputação nos bizarros bairros argelinos ou que ainda, guardam as portas dos talhos em certas cidades latinas. Plummer e eu devíamos encontrar-nos com Lebrun à uma hora da tarde. Chegamos quinze minutos antes, levando os vinte mil dólares, ocupamos uma das mesas aqui fora, mandamos vir Carpanos e esperamos pela chegada do falsário com a impaciência que bem se pode imaginar.
-Ele apareceu? -perguntou Randall ansiosamente.
-Cinco minutos depois da uma, quando já nos começávamos a preocupar, surgiu um táxi na Piazza delle Cinque Lune e os pneus chiaram para uma paragem do outro lado da rua em que o café estava situado. A porta do veículo abriu-se e vimos sair um homem de idade, arrastando a perna, que se dirigiu à janela da frente a fim de pagar ao motorista. Lembro-me de Plummer me tocar no braço, dizendo: «É Robert Lebrun, ei-lo» Plummer levantou-se impetuosamente gritou: «Lebrun! Estou aqui!» Lebrun voltou-se, quase caindo devido à perna artificial, fixou um olhar de míope, semicerrando as pálpebras, na nossa mesa e a sua expressão transformou-se por completo. Pareceu ficar agitadissimo, congestionado de ira. Fechou um das mãos e agitou o punho na nossa direção, gritando colérico para Plummer: «Você não cumpriu a palavra dada! Afinal não queria publicar nada, pretendia apenas vender-me a um desses diabos!» E apontava um dedo na minha direção. Foi então que me dei conta vestia a minha batina, o uniforme do meu ofício de sacerdote. Um erro idiota. Esteve num serviço religioso e não me lembrara de tirar. O velhote pensava que Plummer fizera um pacto com a Igreja, que tentara obter a prova de falsificação para a Igreja. Plummer tentou desfazer o engano, tentou vencer a corrente de trânsito e chegar até junto de Lebrun, mas era demasiado tarde. O velhote meteu-se dentro do táxi, e o veículo partira a toda a velocidade. Nenhuma esperança havia de o apanharmos. Nunca mais o vimos, nem conseguimos localizá-lo. Nas listas telefônicas de Roma não existe nenhum Lebrun, nem nenhum registro de bairro indicativo desse nome. Evaporou-se como o fumo. Desapareceu por completo.
-De modo que nada conseguiu - disse Randall.
- Com exceção daquilo que acabo de contar. Todavia, revelei-lhe tudo o que aconteceu, exatamente como aconteceu, contei-lhe todos os nossos segredos, porque sei que alimenta as mesmas suspeitas que eu, a respeito da nova Bíblia, e porque o senhor, Randall, conseguiu uma coisa que a mim me está vedada. Mr. Randall, foi hoje visitar o Professor Augusto Monti, e Monti é a única pessoa que saberá o verdadeiro nome do falsário e a sua residência. Só Monti, e mais ninguém, poderá conduzir-nos até Lebrun, e até à prova concludente da falsificação. Julga que ele nos ajudará?
Randall tirou o cachimbo da boca, agarrou na pasta e levantou-se.
- Sabe bem que Monti sofreu um colapso nervoso. Sabe que se encontra numa clínica para doentes mentais. Que ajuda nos poderá prestar?
-Mas os seus colegas na universidade informaram-nos que sofre apenas de um distúrbio mental temporário.
-Foi isso que lhes fizeram crer. Não é verdade. Estive com o Professor Monti. Tentei conversar com ele de forma racional, mas falhei redondamente. O Professor Monti está irremediavelmente louco.
O Dominee de Vroome pareceu acusar o golpe de uma tal revelação.
-Nesse caso, estamos irremediavelmente perdidos, desamparados. - Os seus olhos fixaram-se em Randall. - A não ser que haja mais qualquer coisa que o senhor saiba e que nos possa ajudar. Se assim for, ajudar-nos-á?
-Não!-respondeu Randall. Começou a atravessar o aposento, dirigindo-se para a porta, mas ao passar junto de de Vroome parou.-Não, não o posso ajudar, e se pudesse não tenho a certeza se o faria. Não estou certo que exista uma pessoa como Robert Lebrun. Mas se na verdade existe, não tenho certeza se merece credibilidade. Obrigado pela sua gentileza e pela confiança que depositou em mim, Dominee, mas vou regressar a Amsterdã. Minha busca da verdade terminou aqui, em Roma. Não tenho fé no seu Robert Lebrun nem na existência dele. Boa noite.
Mas ao deixar a suite de de Vroome, percorrendo o corredor daquela ala do quarto andar e ao começar a subir o lance de escadas até ao seu quarto, no andar de cima, Randall tinha a pesar-lhe na consciência o fato de não ser honesto com o clérigo holandês.
Randall tinha consciência de que mentira deliberadamente. Não tinha a mínima sombra de dúvida que, algures na cidade, existia um homem chamado Robert Lebrun, e que esse Lebrun possuía determinada prova da falsificação. Era uma coisa lógica, ajustava-se perfeitamente à seqüência dos acontecimentos já descobertos.
O que restava era procurar Lebrun e obter a prova. Não voltaria ainda a Amsterdã, ainda não. Estava disposto a fazer um esforço final para desenterrar a verdade. De momento, possuía uma pista, uma pista que talvez o levasse até Lebrun.
Só dependia de uma coisa: do êxito da chamada telefônica que faria à Angela Monti.
No fim da manhã do dia seguinte, na sufocante atmosfera romana, Steve Randall, sentado na fresca sala de espera da casa dos Monti, esperava que a governanta lhe trouxesse aquilo que tão ardentemente procurava.
Tudo o que pudesse seguir-se dependeria do telefonema que na noite anterior fizera a Angela. Não fora capaz de apanhá-la em casa, pois saíra com a irmã, mas depois da meia-noite ela telefonara-lhe para o Excelsior ao ser informada do telefonema dele.
Randall decidira ocultar-lhe o encontro inesperado que tivera com o Dominee de Vroome, bem como, a revelação do clérigo sobre a extraordinária descoberta de Augusto Monti poderia não passar de uma fraude. Pensou que não havia razão para preocupar Angela com a chocante revelação de de Vroome, tanto mais que não fora ainda provada.
Angela perguntara-lhe:
-Partes então para Amsterdã pela manhã?
- Provavelmente só à tarde - respondera. - Há mais uma coisa que pretendo ainda fazer na parte da manhã. Uma coisa que, requer a tua colaboração.- Naquele ponto hesitara, prosseguir tão casualmente quanto possível: - Angela, no dia em que o teu pai adoeceu... isto é, no período imediatamente posterior a levarem-no ao hospital... o que é que fizeram dos seus papéis, de todos os documentos que ele tinha no gabinete da universidade?
- Uma semana depois do meu pai ser internado na Villa Bellavista, Claretta e eu dirigimo-nos ao seu gabinete da universidade... ainda me recordo como foi doloroso tratando-se de alguém muito querido de repente doente... e tiramos tudo de pessoal das gavetas da escrivaninha e fichários e metemos os objetos em caixas de cartão.
-Guardaram então tudo?
-Sim, todos os papéis e outros objetos pessoais de meu pai. Com o pensamento animoso de que um dia viesse a precisar das coisas, embora saibamos agora ser pouco provável, transferimos tudo para nossa casa. De fato não tivemos ânimo para proceder a qualquer escolha, limitamo-nos a meter tudo dentro das caixas de cartão e, juntamente com o fichário de mão, guardamos as caixas numa arrecadação vaga. Ainda estão lá, tal e qual, vieram da universidade, nunca tive coragem de lhes mexer, parece-me que seria reabrir uma ferida dolorosa.
- Compreendo perfeitamente, Angela. Olha, importar-te-ias que eu fizesse uma busca aos objetos guardados na escrivaninha de teu pai? Gostaria de dar uma olhada pelos seus pertences de manhã, antes de partir de Roma.
-Não, não me importo. Não há muita coisa para procurar, mas está tudo à tua disposição. -Fizera uma longa pausa. Steve, afinal o que é que procuras?
- Bem, uma vez que o teu pai figurará em destaque nas cerimônias do dia em que o Novo Testamento Internacional vai ser anunciado ao mundo, pensei que pudesse encontrar algumas notas que pudessem falar por ele, dar uma idéia concreta da sua personalidade e idéias.
Angela manifestara-se encantada:
-Que excelente idéia. Mas há só um empecilho, não estarei em casa de manhã, eu e a minha irmã sairemos com as crianças. Se preferires esperar até que regresse...
Randall interrompera apressado.
-Não, acho melhor não perder mais tempo. Posso procurar entre as coisas de teu pai se houver alguém em casa que me deixe entrar.
-Vou dar ordens à Lucrezia para te deixar entrar. Lucrezia é a nossa governanta, desde sempre trabalhando à serviço da família. Mas há um problema...
- Qual, Angela?
-...não poderes ler as notas de meu pai. Apesar de dominar muitas línguas, escrevia sempre as suas notas em italiano. Estou pensando que se eu estivesse em casa ... mas tu preferes não atrasar o teu regresso, não é verdade? Bom... ah!... é verdade, a Lucrezia é capaz de traduzir perfeitamente do italiano para o inglês, de modo que se vires alguma coisa de importância, que te interesse ou desperte atenção podes pedir-lhe que verta para a tua língua. Mas se preferires leva o que quiseres para Amsterdã e quando eu regressar ajudar-te-ei. A que horas vens a minha casa?
- Pode ser às dez horas. Está bem?
- Excelente, A Lucrezia estará à tua espera e irá buscar à arrecadação as caixas com os papéis de meu pai. Queres ver também o fichário?
- Tens alguma idéia do que o fichário contém?
- Os textos das conferências, discursos e artigos publicados na imprensa da especialidade.
- E o que foi feito da correspondência particular?
- Meu pai fez uma limpeza semanas antes de adoecer. Precisava de espaço e rasgou tudo o que não tinha importância. Mas o resto encontra-se no fichário, especialmente artigos que podem ser úteis para a campanha de publicidade.
- Penso que sim. Mas de momento penso que esses artigos e súmulas de conferências e discursos levarão muito tempo a consultar. Será melhor deixá-los para mais tarde, depois de ter anunciado o Livro ao mundo, quando pudermos apreciar esses papéis os dois juntos.
-Sentir-me-ei imensamente feliz por poder ajudar-te. De modo que amanhã queres apenas ver o que está dentro das caixas?
-Exatamente. Só quero as coisas que estavam na mesa de teu pai.
Ao desligar o telefone sentiu-se penalizado pela mentira dita a Angela, mas consolou-se dizendo a si mesmo que não lhe podia revelar aquilo que procurava, pelo menos por enquanto. De momento só uma coisa importava: encontrar Robert Lebrun.
No dia anterior, enquanto escutara de Vroome, pensara em todas as eventualidades, na possibilidade de haver de verdade um Robert Lebrun e uma pista que o ajudasse a localizar o homem.
O Dr. Venturi, involuntariamente, fornecera-lhe a primeira pista ao dizer-lhe que o Professor Monti tinha freqüentes encontros com pessoas fora da universidade e que no dia em que sofrera o colapso mental acabara precisamente de regressar de uma entrevista com alguém.
A segunda pista fora-lhe fornecida por de Vroome ao contar que no dia fatal do seu colapso Monti tivera uma entrevista com alguém chamado Robert Lebrun.
Ligadas as duas peças, começavam dando um certo sentido figurativo ao quebra-cabeças. Era uma pista tênue, construída em palavras alheias e produto de conjetura, mas sob qualquer hipótese, constituía uma pista que era possível seguir para localizar o paradeiro de Lebrun.... e chegar à possível verdade.
Naquele momento, na quente manhã, mas gozando a frescura da sala de estar da residência dos Monti, situada perto da Piazza del Popolo, Randall sentia-se bem mais perto de qualquer revelação.
Era uma residência antiga, remodelada e decorada com gosto. A sala de estar estava mobiliada com peças da escola veneziana, em tons verde-ouro, mobílias preciosas e que lhe conferiam um formidável senso de conforto. Lucrezia, a governanta, já idosa e com aqueles seios desenvolvidos, produto exclusivo das mulheres latinas em idade canônica e maternal, com um aspecto de irrepreensível asseio, recebera-o falando um inglês esquisito, mas muito funcional. Servira-lhe café com bolo caseiro e entregara-lhe um dicionário italiano-inglês e um vocabulário comparado que Angela havia deixado. Depois apressara-se em buscar as caixas de cartão com os pertences do professor.
Randall deslocou-se até junto da mesa redonda onde Lucrezia colocara a bandeja com o café e serviu-se. Ao mesmo tempo, saboreando a negra bebida, pensou que beneficiava já da vantagem de Angela e a irmã terem preservado, sem lhes tocar, os objetos pessoais do pai. Mas logo a seguir surgiram as perguntas íntimas críticas: Teria o Professor Monti, naquele longínquo dia de Maio há um ano e dois meses, deixado na verdade o seu gabinete da universidade para se encontrar com Lebrun? E se na verdade tivesse ido, um homem tão ocupado como o Professor Monti teria escrito qualquer apontamento do encontro? Como todos os sábios distraídos não se esqueceu de tomar nota? Ou não teria tido receio, dado o melindre do caso, de registrar tal entrevista?
Randall acabara de beber o café quando Lucrezia surgira com uma grande e pesada caixa de cartão. Randall correra a ajudá-la, mas antes que o conseguisse já ela colocara a caixa no chão.
-Por favor, procure nesta caixa, enquanto eu vou buscar outra.
Logo que ela desapareceu, Randall sentou-se no carpete, cruzou as pernas e, depois de tirar a tampa da caixa, começou a retirar o conteúdo.
Pôs de lado as pastas azuis, cheias de papéis relativos a esquema de pesquisas, o pesado tinteiro de ônix e vários outros objetos funcionais de escrivaninha.
Um professor com tantas entrevistas pessoais cumprindo, com tantos compromissos, devia normalmente tomar quaisquer apontamentos, talvez numa agenda ou num bloco notas.
Randall não fazia a menor idéia do material utilizado na Itália para tais fins - não quisera perguntar a Angela - mas devia haver alguma coisa, qualquer registro, qualquer nota solta, a não ser que Monti detivesse tudo no seu cérebro, o que devia ser o mais improvável.
Tirou mais documentos, as últimas cópias datilografadas para conferências e discursos que nunca chegara a pronunciar, correspondência que parecia requerer resposta e que jamais a obteria.
Randall, cuidadoso, mergulhou a mão nas profundezas da caixa, rebuscou e tirou depois a mão onde pegou uma agenda, com uma capa de couro marrom, com um grande «clip» que apanhava a capa frontal e um certo número de páginas interiores. Na capa lia-se, em italiano, em letras douradas, gravadas: Agenda.
As pulsações do coração de Randall aceleraram-se. Abriu a agenda na página marcada pelo «clip» e leu a data: 8 Maggio.
Nas pautas das páginas marcadas as horas da manhã, tarde e noite do dia. Várias linhas preenchidas, aparentemente com a caligrafia do Professor Monti.
Os olhos de Randall percorreram lentamente as linhas da agenda, estudando atento cada uma das anotações feitas.
10h00. . .Conferenza con professori
12h00. . .Pranzo con professori
14h00. . .Visita del Professore Pirsche alla Facoltà
Verificou o sentido das principais palavras por intermédio do dicionário italiano-inglês. Não fornecia qualquer pista: uma conferência com professores, um almoço com alguns professores da faculdade e Monti aguardando a visita de um professor estrangeiro (aparentemente alemão-pelo nome) em seu gabinete.
Os olhos de Randall continuaram a seguir a página e, subitamente, parou:
16h00...Appuntamento com R.L. da Doney. Importante.
Randall ficou petrificado.
Com lentidão, traduziu.
16h00 significa quatro horas da tarde.
Doney... era com certeza Donney's, café-restaurante mundialmente famoso - o gran caffè de Roma - situado na Via Vittorio Veneto, perto do hotel Excelsior.
Appuntamento con R.L. da Doney. Importante. Em outras palavras - Encontro com Robert Lebrum no Doney. Importante.
Impressionado, Randall compreendeu que descobrira aquilo que procurava.
Naquela tarde de Maio do ano precedente, o professor anotou seu encontro com Robert Lebrun no café Doney. Precisamente naquele local, segundo de Vroome, Lebrun revelara ao Professor Monti sua alegada falsificação, a partir desse momento Monti começara a resvalar para a névoa da demência.
Uma tênue indicação do passado recente, mas uma indicação fidedigna.
Randall colocou a agenda na caixa, lançou apressado as outras coisas por cima, e levantou-se.
Lucrezia entrava na sala de estar transportando uma segunda caixa.
-Esta caixa só tem livros científicos, jornais, nada mais - anunciou.
Rápido, Randall atravessou a sala ao encontro da governanta.
-Obrigado, Lucrezia, já não preciso ver o conteúdo dessa caixa. Encontrei aquilo que buscava. Mil agradecimentos.
Deu um sonoro beijo na face da governanta e deixou-a, de boca aberta, enquanto se precipitava para a porta.
Randall saiu do táxi em frente à porta do Excelsior, mas não entrou, passou para além do suntuoso pórtico, para além do grupo de motoristas, sem nada a fazer, conversavam animados ao sol e parou, depois, no passeio observando o local onde Robert Lebrun, há um ano e dois meses atrás, fizera a tremenda revelação ao Professor Monti.
O café Doney dividia-se em dois setores. A parte do restaurante era lá dentro, projetando-se por uma extensão que formava parte do andar térreo do Hotel ExceIsior. Quanto ao café, cujas mesas estavam colocadas fora, formando uma esplanada, ocupavam o resto do comprimento do passeio da Vittorio Veneto, desde o parque de estacionamento do hotel até à mais próxima esquina.
O café Doney consistia em duas longas filas de mesas e cadeiras. De um lado mesas encostadas às grandes vidraças formando o corpo principal do restaurante. Depois uma passagem no meio, não muito larga, do outro lado mais mesas quase encostadas aos carros estacionados, projetando-se para o cimento da Vittorio Veneto, onde o trânsito tem uma intensidade mantida quase durante as 24 horas do dia. A passarela entre os dois corpos de mesas do café servia de passagem aos pedestres e estacionamento dos garçons.
Contemplando o célebre ponto de reunião romano exposto ao calor impiedoso do sol, Randall sentiu-se grato que o Doney tivesse dois soberbos e amplos toldos dando uma sombra convidativa. Aquela hora, pouco antes do meio-dia de sábado, o café revelava-se um local convidativo, quase propício à caçada a qual Randall desenvolvia.
Pelas mesas, espalhados, viam-se poucos clientes e na sua maioria turistas, pelo menos com aparência disso. O cenário constituía quase uma natureza morta, e até mesmo aqueles que se movimentavam o faziam de uma maneira estudada, lenta. Sim, pensou Randall, tratava-se daquele inferno tórrido, Roma em fins de junho, uma atmosfera anulando tanto a ambição, como a iniciativa de uma vida dinâmica.
Com a limitada informação que possuía, Randall considerou qual a melhor forma de proceder. Há um ano e dois meses atrás, lembrou-se, fora Robert Lebrun quem marcara o local de encontro com o Professor Monti, logo o falsário devia ser freqüentador do local. Se a sua dedução estivesse certa, era muito possível que Lebrun fosse uma figura conhecida dos garçons que serviam no Doney.
Randall observou vários dos sonolentos garçons. Todos eles usavam um casaco curto branco, espécie de jaqueta, com dragonas azuis, franjas, calças pretas com uma lista de veludo lustroso, camisas brancas e gravatas pretas. Junto à primeira fila de cadeiras da esplanada, na parte de dentro do passeio, vislumbrou um homem com um tom de autoridade na figura. O homem usava uma jaqueta azul e tinha um lacinho preto, em vez da gravata dos outros garçons, para além de um ar de energia como quem estivesse habituado a chefiar. Randall deduziu que devia ser o chefe dos garçons da esplanada.
Randall atravessou a faixa de passagem, sentindo imediato alívio na sombra do toldo, e foi-se sentar numa das mesas de esquina, voltado para o trânsito. Após um ligeiro compasso de espera, um dos garçons deu fé da sua presença. Apressou-se chegando junto à mesa que ocupara, apresentando-lhe a colorida lista que trazia na mão.
Ao abrir a ementa, Randall perguntou casualmente:
-O chefe-de-mesa está perto?
-Si.
O garçon voltou-se para o local onde se encontrava o homem de jaqueta azul e chamou:
-Júlio!
O chefe, Júlio, avançou para o local com tanta rapidez quanto lhe permitiam as suas pernas, trazendo já em riste a caneta e o bloco de apontamentos.
-As suas ordens, senhor.
Randall, com ar distraído, percorreu a lista. Todas as coisas figuravam em duplicado, um dos lados para os menus em italiano e o outro em inglês. Os olhos de Randall foram atraídos pelo título de Gelati, e logo abaixo Granita dí limone - limonada - 500 liras.
-Quero uma limonada - pediu Randall.
Júlio tomou nota.
-Mais nada?
- Não.
Júlio tirou a folha anotada, estendeu o pedido ao garçon e apressou-se a retirar a lista.
-Para dizer a verdade - disse Randall casualmente - queria mais uma coisa, se fosse possível. Mas não tem nada a ver com vossa lista. - Randall levou a mão ao bolso interior do casaco, tirou a carteira e puxou três enormes notas de 1000 liras. - Sou um escritor americano e necessito de certas informações. Talvez possa dar.
A imperturbável face profissional do chefe dos garçons manifestou vincos de interesse. Os olhos cravaram-se nas liras que Randall tinha na mão.
-Talvez seja possível, Signor. Sentir-me-ei contente se puder ajudá-lo.
Randall dobrou as notas e meteu-as na mão do chefe.
-Júlio, há quanto tempo trabalha no Doney?
-Há cinco anos, Signor. -Ao mesmo tempo meteu apressadamente as notas no bolso, murmurando: - Grazie.
-Trabalhava aqui em Maio do ano passado? Ou estaria nessa altura em férias?
-Estava trabalhando aqui... um pouco antes da verdadeira estação de turismo, mas mesmo assim uma altura em que estamos sempre cheios -respondeu, agora com um sorriso amigável nos lábios.
-Vou dizer-lhe aquilo que procuro saber. Realizo um trabalho de investigação e pretendo encontrar uma pessoa a qual não vejo há muito tempo e que, segundo me disseram é freqüentadora do Doney. Um amigo meu encontrou-se com essa pessoa aqui, em Maio do ano passado. Foi através desse amigo que obtive a informação, disse-me ser cliente deste café. Você conhece normalmente os freqüentadores assíduos?
Júlio gabou-se.
-Claro que sim. Não por se tratar do meu trabalho, mas porque também se torna inevitável ter relações e conhecer os nossos devotados clientes. Conheço-os, quase todos pelo nome e até sou capaz de descrever o caráter e a vida de cada um deles. É precisamente isso que torna a minha ocupação tão compensadora. Quem é a pessoa que o senhor procura?
- Um francês, mas que reside em Roma há muito tempo. Não faço a menor idéia do ritmo da sua freqüência no Doney. Mas, meu amigo disse-me que costuma vir aqui, ou pelo menos costumava.-Randall, tomou fôlego, depois rogando mentalmente, que as palavras proferidas fosse o seu «abre-te sesamo»: - Chama-se Robert Lebrun.
O chefe não reagiu.
Lentamente repetiu:
- Lebrun...
- Robert Lebrun - insistiu Randall.
O chefe franziu a testa, vasculhando seu cérebro.
- Vejo se me lembro... - Calou-se, aparentemente receoso de ter que voltar a desembolsar a gorjeta. - ...Mas não funciona. De fato não temos nenhum cliente regular com esse nome. Se tivéssemos com certeza que me lembraria.
Um véu de tristeza obscureceu a alma de Randall. Tentou lembrar-se da descrição de Lebrun feita pelo Dominee de Vroome.
-Se eu lhe disser como ele é talvez se lembre...
-Diga, por favor.
- Deve ter mais ou menos oitenta anos. Usa óculos. Tem uma cara muito enrugada. É quase corcunda. Mais ou menos a sua altura. A descrição ajuda alguma coisa?
Júlio manifestava o mesmo ar de ignorância e apreensão.
- Sinto muito, mas bem vê, são tantos...
De repente, Randall lembrou-se de outra coisa importante.
-Espere, há uma coisa que você notaria à viva força. O homem coxeia ao andar por ter uma perna artificial.
Imediatamente a cara de Júlio se iluminou.
- Sim, temos um cliente assim. Não sabia que ele era francês devido ao seu italiano ser tão impecável, digo até que é um perfeito espelho de cavalheiro romano. Mas o nome dele não é Lebrun. Na verdade, não sei qual seu verdadeiro nome dele, exceto aquele que ele nos dá. Depois de tomar demasiados cálices de Pernod ou Negroni, desata a brincar e diz que o seu nome é Totí, Enrico Toti. Trata-se de uma graça romana. Não compreende?
- Não.
Júlio apontou com o dedo para além da Via Vittorio Veneto.
- Nos jardins Borghese, entre muitas estátuas que adornam as áreas, há uma enorme escultura de um homem nu, numa atitude heróica, colocada sobre um suporte de mármore quadrado. O homem nu só tem uma perna, está encostado num rochedo e o coto da perna que lhe falta confunde-se com o rochedo. Na base da estátua há uma inscrição onde se lê: Enrico Totí. Diz também que morreu em 1916. Esse Toti, embora tendo uma só perna, apresentou-se como voluntário ao exército italiano durante a guerra contra o Império Austro-Húngaro. Mas claro que foi rejeitado. No entanto, voltou a apresentar-se, vezes sem conta, até que os superiores do exército deixaram de lhe recusar o alistamento. Pois Toti, com a sua perna e o seu coto, lutou bravamente e foi considerado como um grande herói italiano. Por isso, nosso cliente brincalhão, quando está já um pouco alto, gosta de dizer que o seu nome é Toti e que foi um herói de nome. Para nós, aqui no Doney, é o único nome pelo qual o tratamos.
-Toti? Bom, não se parece nada com Lebrun, pois não?-Claro que ele pode ter os nomes que quiser.
De repente, Randall viu que o chefe, pensativo, exibia um rasgado sorriso, como alguém lembrando-se de uma coisa engraçada.
-Alguma novidade, Júlio?
-Lembrei-me agora de um outro nome. Parece uma tolice, mas...
-Um outro nome? Refere-se a esse Toti?
-Uma coisa tonta, muito tonta. Mas, as moças da vida, que andam pelas ruas, em volta dos jardins Borghese... Compreende, hem... ? deram-lhe um outro nome, puseram-lhe uma alcunha, por ele ser tão intelectual e pretender ser tão elegante, quando na verdade é um pobre de Deus merecedor de compaixão. Chamam-lhe... -Júlio, não pôde conter um risinho-Duca Mínimo, que significa Duque de Nada. É com essa alcunha que elas o arreliam.
Randall, excitado, agarrou o braço de Júlio.
- É ele sem dúvida, o homem que eu procuro! Toti, aliás, Duca Mínimo, aliás, Roberto Lebrun.
- Sinto-me contente, Signor - disse Júlio, sentindo que as suas 3000 liras estavam a salvo.
- Ele continua ainda frequentando o Doney? - quis saber Randall.
- Continua. É um dos nossos mais fiéis clientes, quase todas as tardes quando o tempo está bom. Vem aqui tomar o seu aperitivo todas as tardes às cinco horas, manda vir o Pernod 45 ou o Negroni, diz umas quantas graças e entretém-se lendo o jornal.
-Esteve aqui ontem?
- Ontem não trabalhei no turno das cinco da tarde. Hoje é que estou nesse turno. Mas um momento que vou já saber...
Júlio dirigiu-se a três garçons que estavam um pouco afastados e fez-lhes uma qualquer pergunta. Os homens riram-se e acenaram as cabeças vigorosamente.
O chefe regressou até junto de Randall sorrindo.
-Sim, Toti... ou Lebrun como o senhor lhe chama... esteve aqui ontem à hora habitual. É muito provável que hoje também venha, tomar o seu aperitivo às cinco.
- Excelente - exclamou Randall - melhor do que bom. Levou de novo a mão ao bolso interior, extraiu a carteira e tirou dela uma nota de 5000 liras. Meteu a nota na mão do espantado Chefe, dizendo:
- Júlio, trata-se de uma coisa muito importante para mim...
-Obrigado, Signor, muito obrigado. Se puder fazer mais alguma coisa, creia que estou ao seu dispor.
-Bom, virei aqui quando faltar quinze para às cinco. Quando Toti chegar, mostre-me. Eu tratarei do resto. Se acontecer do homem vir mais cedo do que o costume, telefone para mim, estou hospedado no Excelsior. Meu nome é Steve Randall. Não se esquece? Steve Randall.
-Não esquecerei o seu nome, Sir... Steve Randall.
-Só mais uma coisa, Júlio. Como é que o nosso comum amigo, Toti ou Lebrun, chega aqui todos os dias? Vem de táxi ou a pé?
- Chega sempre a pé.
- Então deve viver nas vizinhanças. Não conseguiria percorrer grande distância com uma perna artificial, pois não?
-Com certeza que não.
- Muito bem-disse Randall, levantando-se. - Obrigado por tudo, Júlio. Até logo às cinco horas.
- Então, Sir, não toma a sua limonada?
- Não, ofereço-lhe, com os meus cumprimentos.
Teve que esperar umas inquietas cinco horas nos seus aposentos do quinto andar do Excelsior.
Tentara concentrar-se no pensamento daquilo que se seguiria. Quando chegara ao quarto lançara a pasta para cima da cama e extraíra dela a correspondência carente de resposta mais imediata. Depois instalara-se à mesa de tampo de vidro, situada junto da janela e lançara-se ao trabalho.
Escrevera uma carta de rotina, como o pode fazer um filho afetuoso, ao pai e à mãe, incluindo saudades à irmã, Clare, e ao tio Herman, endereçando-a para Oake City. Rabiscara uma curta missiva, mais de caráter turístico, descrevendo paisagens e ambientes, do que propriamente paternal a sua filha Judy, em São Francisco. Iniciara uma carta para entregar a Jim McLoughlin (onde quer que ele estivesse), explicando que a firma Randall Associates o tentara localizar durante várias semanas para lhe fazer saber que circunstâncias imperativas e ponderadas (não mencionando a venda às Empresas Cosmos, de Towery) forçavam a firma a não poder tomar conta dos serviços acordados com o Instituto Raker. Todavia, não fora capaz de finalizar a carta, acabando por rasga-la em pedaços.
Devido não responder as últimas cartas do seu advogado, considerara fazer um telefonema para Thad Crawford, em Nova York, mas imediatamente se dera conta de que lhe faltava paciência. Embora não sentisse apetite, telefonara para o serviço de refeições aos quartos e encomendara um almoço ligeiro, mas o almoço ligeiro transformara-se numa refeição - cannelloni com cogumelos e frango estufado, ao molho de tomate e pimentões que comera compulsivamente, devido ao aumento de ansiedade, à medida que as horas passavam.
Pensara também fazer saber a Angela que continuava em Roma, mas acabara por se decidir contra tal telefonema, por não querer dizer-lhe mais mentiras, nem ir enchê-la de apreensões. Considerara ligar para Amsterdã explicando os motivos da sua vadiagem, uma vez que faltavam apenas seis dias para o anúncio do Novo Testamento Internacional, mas acabara por resolver adiar a chamada - e o desencadear da inevitável ira de George Weeler- até ter-se encontrado com Robert Lebrun.
Por mais que tentasse não pensar em Lebrun, não conseguira afastar o homem dos seus pensamentos. Percorrera, em largas e impacientes passadas, o espaço do seu quarto, até saber de cor todos os pormenores do desenho fabuloso do carpete oriental que revestia o chão, os objetos existentes e todas as cores que o cercavam. E cada vez que voltava as costas à janela e percorria o aposento em sentido inverso, via o seu rosto cheio de vincos de preocupações refletir-se no espelho da parede fronteira.
Pouco mais de duas semanas, chegara a Amsterdã, para realizar um trabalho vital e para aprender, por si mesmo, o significado da fé. Todavia, passou metade desse tempo deslocando-se a Roma naquele momento dramático - realizando esforços tendentes a aniquilar a única coisa em que seria possível crer com todo o seu ser.
Tudo começara com o lapso de Bogardus. Talvez, aquela ânsia de extermínio fosse mantida viva por causa do lapso Randall. Randall, como Angela lhe apontara, como todas as pessoas relacionadas com ele, por isto ou por aquilo, já várias vezes, chamaram-lhe a atenção... Um lapso, uma falha fomentada por um cinismo inflexível. De modo que a sua perseguição era loucura, a menos que o seu racionalismo fosse honesto. E o seu racionalismo repousava no fato substancial de uma pessoa ter fé, sem se subordinar a uma crença mística absoluta, cega, sem objeções. Sim, acreditava que uma pessoa devia considerar uma realidade tangível.
E todo aquele ciclo vicioso o conduzira de novo a Robert Lebrun, sob qualquer hipótese, em Lebrun repousava a derradeira resposta.
Naquele momento, sentado a uma das mesas da esplanada do Doney- preocupado e inquieto -continuava devorado pelos mesmos pensamentos. Já não sabia bem se desejava que Lebrun aparecesse ou não. Só tinha uma certeza, desejava que se o encontro tivesse de se dar, pelo menos, que tudo terminasse o mais breve possível.
Durante todo o tempo decorrido, desde que se sentara na esplanada, quando faltava um quarto para as cinco, Randall consultava o relógio, de minuto a minuto, exasperado do porquê o ponteiro percorria tão lentamente no mostrador.
Passavam seis minutos das cinco. Inclinou-se para pegar no copo e beber mais um trago do seu Dubonnet e, nesse preciso momento, viu que Júlio, o chefe de mesa, se dirigia em sua direção.
Em voz baixa, mantendo o rígido perfil, Júlio disse-lhe:
-Signor Randall, ele está aqui.
- Onde?
-Atrás de mim, nesta mesma fila de mesas, na terceira contando do fundo, nas minhas costas. Pode com certeza reconhecê-lo. Olhe.
Júlio afastou-se um pouco e Randall olhou.
Era exatamente como de Vroome o descrevera, mas de certa maneira todo o seu conjunto se manifestava ainda mais carregado.
O homem afigurava-se ainda mais baixo e mais curvado do que Randall esperava. Cabelo castanho, ralo, o rosto sulcado por uma rede de rugas formando profundos vales e escavadas ravinas. Os óculos redondos, de aros de tartaruga e grossas lentes. Usava um terno claro, de verão, mas com o casaco apenas colocado sobre os ombros, no estilo tão peculiar dos italianos e dos jovens aspirantes à atores de cinema. Tinha um ar de pessoa envelhecida, porém, não de fragilidade. Absorvido na leitura de um jornal e na mesa, em frente dele, via-se um copo.
Randall levantou-se impulsivamente.
Ao chegar ao seu destino, afastou um pouco a cadeira em frente do ocupante da mesa e sentou-se sem cerimônias.
-Monsieur Robert Lebrun, espero que me dê o prazer de aceitar uma bebida e permita apresentar-me.
Lebrun baixou um pouco o jornal e fixou Randall com uns olhos mostrando uma sombra de impaciência. Os seus lábios úmidos movimentaram-se, mostrando uns dentes postiços mal fixados, removendo-se dentro da boca, e foi numa voz rouca, como o crocitar de um corvo, que perguntou:
-Quem diabo é você?
- Chamo-me Steve Randall. Ocupo-me de publicidade e sou escritor. Americano, de Nova York. Estou aqui só para conhecê-lo.
-E o que é que pretende? Chamou-me Lebrun... Onde é que ouviu esse nome?
Os modos do francês eram tudo menos cordiais, e Randall viu que tinha de apressar as suas explicações.
-Soube que o senhor foi em tempos amigo do Professor Augusto Monti, isto é, foram uma espécie de sócios numa empresa arqueológica.
- Monti? O que é que sabe de Monti?
- Sou amigo íntimo de uma das filhas dele. Na verdade, ainda ontem mesmo, estive com o Professor Monti.
Lebrun mostrou-se imediatamente interessado, mas cauteloso.
-Diz que viu Monti? Se assim foi, quer ter a bondade de me dizer em que local.
Tudo Ok, pensou Randall. Começava o primeiro teste.
-Na Villa Bellavista. Visitei-o, falei com ele e falei depois com o médico que o trata, o Dr. Venturi. - Randall hesitou, mas resolveu lançar em jogo o seu trunfo para o segundo teste. - Sei umas coisas da sua colaboração com o Professor Monti com respeito ao achado, de Ostia Antica.
Os encovados olhos do homem fixaram-se duramente em Randall.
-Ele falou-lhe de mim?
-Exatamente., não. Não diretamente. Acontece até que a memória do professor está, de certo modo, arruinada.
- Continue.
-Mas foi-me dado acesso a verificar os papéis pessoais do professor, todos as anotações tomados quando ele se encontrou consigo, faz um ano, aqui mesmo, no Doney.
- Ah... então também sabe esse pormenor.
- Sei, Monsieur Lebrun. Isso, e mais alguma coisa. Fiz um grande esforço para descobrir o seu paradeiro, Monsieur Lebrun. Pretendo falar-lhe amigavelmente, na esperança de que o que o senhor tenha para me dizer redunde em nosso mútuo benefício... meu e seu.
Lebrun levantou os óculos para a testa, afagou a ponta do seu longo queixo prognato, querendo chegar a qualquer conclusão e decisão, a respeito daquele estranho colocado à sua frente. Mostrava-se impressionado, mas sem baixar a guarda.
- Como posso eu ter a certeza que o senhor não mente?
- Mentir a respeito de quê?
- A respeito de ter visto Monti. Existem tanto charlatões por toda a parte. Como posso eu ter a certeza?
A pergunta transformava-se num obstáculo imprevisto.
-Não sei que prova lhe posso fornecer para acreditar em mim. Estive com o Professor Monti. Falamos os dois – embora, nossa conversa não tivesse nenhum senso - e... mas então que devo eu dizer para que me acredite?
-Tenho que ter a certeza que esteve com ele - insistiu o teimoso velhote.
-Mas estive com ele. O professor até me deu... Repentinamente lembrou-se daquilo que havia metido no bolso do casaco ao deixar o seu quarto e, metendo a mão, tirou a folha de papel e alisou-a em cima da mesa. Não fazia a menor idéia do significado daquilo à Lebrun, mas era tudo o que possuía de Monti. Empurrou o desenho para diante do francês.
-O Professor Monti desenhou-me isto, um peixe atravessado por uma seta. Foi uma oferta de despedida. Não sei se para o senhor significa alguma coisa, mas é tudo o que possuo do Professor Monti para lhe mostrar, Monsieur Lebrun.
Ao ver o desenho, pareceu exercer um efeito salutar sobre Lebrun. Levantando a folha de papel até colocar a alguns centímetros dos olhos... na verdade de um dos olhos, porque Randall deu então fé, que a outra vista estava obscurecida pela película esbranquiçada de uma catarata... Lebrun, examinou o desenho e devolveu-o, depois, a Randall.
-Sim, esse desenho é-me familiar.
-Está então satisfeito?
-Sim, satisfeito porque se trata de um desenho que eu costumava fazer com freqüência.
-O senhor?
Randall fora apanhado de surpresa pela declaração do velhote. Enrolando as palavras, numa espécie de ruminação, Lebrun murmurou:
-Sim, eu. O peixe. O cristianismo. O dardo. A morte do cristianismo. O meu desejo. Não me surpreendo de Monti fazer este desenho. A última recordação dele. Eu traí o cristianismo e Monti. reflete o desejo da minha morte. O desejo ardente dele. Se é que foi ele quem fez esse desenho.
- Como podia mais alguém saber disto? - perguntou Randall, implorando.
-Talvez a filha do Professor Monti.
-Ela nunca mais o viu em seu perfeito juízo perfeito, desde o último encontro que Monti teve consigo.
O francês mostrou-se carrancudo e obstinado.
- É possível. Se é que viu Monti... ele referiu-se a mim... ou à minha obra?
Randall sentiu-se impotente.
-Não, não me falou de si. Quanto à sua obra... refere-se ao Evangelho Segundo Jacob e ao Pergaminho Petrônio?
Lebrun não respondeu.
Apressadamente, para que o impacto da revelação não se perdesse, Randall continuou.
- O professor julga-se Jacob, o irmão de Jesus. Recitou-me, em inglês, palavra por palavra, aquilo que está escrito em aramaico no Papiro Número 3, a primeira das páginas com palavras escritas. - Randall parou, tentando lembrar-se do conteúdo da gravação que fizera na Villa Bellavista, o qual várias vezes ouvira no gravador durante a noite passada. Preencheu até a porção desaparecida do terceiro papiro.
Lebrun manifestou sinais de aumentado interesse.
-Sim? Como é isso?
- Quando Monti descobriu o Evangelho Segundo Jacob, o papiro apresentava um certo número de buracos. No terceiro fragmento existe uma frase incompleta onde se lê: «Os outros filhos de José, os irmãos sobreviventes do Senhor e meus, são» - a parte seguinte perdeu-se, mas o texto prossegue assim: - «Resta eu para falar do primogênito e mais amado Filho». Bom, Monti recitou-me essa parte, mas também recitou a parte perdida.
Lebrun inclinou-se para a frente.
-Como? Como é que ele completou o texto?
-Vamos lá ver se consigo lembrar. - Randall fez um esforço para desbobinar a gravação na sua mente. - Monti recitou-me: «Os outros filhos de José, os irmãos sobreviventes do Senhor e meus, são Judá, Simão, Josias ...»-«... e Judas, e estão todos para além das fronteiras da Judéia e da Iduméia e só resta eu para falar do primogênito e mais amado Filho»-rematou.
Lebrun, interrompendo Randall, ao mesmo tempo que se encostava pesadamente às costas da cadeira.
Randall fixou o velhote surpreso.
-O senhor... conhece essa parte do texto...
-É natural- respondeu Lebrun. Os seus lábios arreganharam-se num sorriso que ainda lhe vincou mais as rugas. -Fui eu que o escrevi. Monti não é Jacob. Eu é que sou Jacob de Jerusalém, irmão do Senhor.
- Nesse caso... Jacob, Petrônio, toda a descoberta... tudo isso não é mais do que uma mentira.
-Uma brilhante mentira-emendou Lebrun. Olhou atento para a direita e para a esquerda, acrescentando depois: Uma falsificação, a mais magnificente em toda a história. Agora já sabe a verdade. -Estudou Randall durante uns momentos. Estou satisfeito que se tenha encontrado com o Professor Monti, mas não estou satisfeito sobre aquilo que deseja de Robert Lebrun. Afinal de contas, o que é que quer de mim?
- Os fatos - respondeu Randall. - A prova da sua falsificação.
- E o que é que fará com essa prova?
- Publicá-la-ei. Exporei àqueles que pretendem pregar uma falsa esperança a um público crédulo.
Estabeleceu-se um longo silêncio, provocado deliberadamente por Lebrun. Finalmente, o francês falou.
- Têm havido outros - disse brandamente, quase como que pra si próprio - outros que têm pretendido a prova da mistificação e que também fizeram a jura solene de revelar ao mundo a podridão interna da Igreja e o lado sórdido da religião. Acontece porém, que acabaram por se revelar agentes do clero, tentando obter provas da verdade para a enterrarem bem fundo, onde não possa encontrar, de modo a preservarem para sempre os seus mitos. O dinheiro deles não bastou para me convencer, por me faltar a confiança neles para fazerem a revelação da verdade ao mundo. Corno posso pois confiar em si?
- Confiará em mim quando souber que fui contratado para dar o máximo de publicidade à Ressurreição Dois e para promover a nova Bíblia, e estive quase a fazê-lo até que comecei a ter dúvidas - respondeu Randall com toda a franqueza. - Confiará porque as minhas dúvidas me levaram a buscar a verdade... uma verdade que talvez tenha encontrado em si.
- Encontrou a verdade em mim - disse Lebrun. - Eu é que não tenho a certeza de encontrar a verdade em si. Não posso entregar a verdade a respeito da obra de toda uma vida, a não ser que tenha a certeza... absoluta... de que essa verdade possa ver a luz do dia.
Randall encontrava pela primeira vez, além de de Vroome, outra pessoa cujo ceticismo ombreava com o seu, ou ainda, o ultrapassava.
Aquele homem transformara-se num ser exasperado e frustrado que não se deixava convencer. Desde o desagradável incidente com Plummer, Lebrun era provavelmente incapaz de confiar em qualquer ser humano. Quem, num mundo tão traiçoeiro, possuiria a força de caráter suficiente e as credenciais sem mácula necessárias, para convencer aquele velhote de que o seu investimento de uma vida seria compensado, que a designada prova seria apresentada ao povo de toda a terra? Vasculhando na sua mente, quase como o filósofo grego Diógenes percorrendo as ruas de Atenas, com uma lanterna acesa em pleno dia, à procura de um homem. Randall acabou por pensar em Jim McLoughlin. Se Jim, ali estivesse a seu lado, o Jim com a sua feroz integridade, com a sua admirável história de investigar, onde quer que se encontrasse, a hipocrisia e a mentira, o Jim do Instituto Raker devotado procurando a verdade para além de todas as conseqüências possíveis e imaginárias... sim, se Jim ali estivesse com certeza que conseguiria obter a confiança de Robert Lebrun...
Repentinamente, Randall sentiu um estremecimento de esperança.
Afinal Jim McLoughlin e o Instituto Raker estavam ali à mão, em Roma. A alguns metros de distância.
Com muita confiança, Randall voltou-se para o velhote.
-Monsieur Lebrun, julgo que o posso convencer a depositar confiança em mim. Peço-lhe que suba comigo ao meu quarto do Excelsior para lhe apresentar a minha prova. Depois de lhe mostrar o que tenho, não terá dúvidas em me fornecer a sua prova.
Encontravam-se os dois no quarto de Randall, no quinto piso do Hotel Excelsior.
Robert Lebrun, com o seu andar irregular, evitava a estofada cadeira de braços, com o seu banquinho para repousar os pés, e fora sentar-se na cadeira dura de espaldar reto colocada junto à mesa de tampo de vidro, que Randall utilizara como mesa. Uma vez alojado, os seus olhos começaram a seguir todos os movimentos de Randall com curiosidade.
O publicitário tinha naquele momento a sua pasta de couro aberta em cima da cama e procurava algo nos seus arcanos. Finalmente, endireitou-se e encaminhou-se para junto de Lebrun, exibindo na mão a pasta de arquivo onde a enorme etiqueta com o título: The Raker Institute.
- Sabe ler o inglês coloquial? - perguntou.
- Quase tão bem como leio o antigo aramaico - respondeu Lebrun.
- Ainda bem. Por acaso, ouviu falar de uma organização existente nos Estados Unidos, que se chama Instituto Raker?
- Não, nunca ouvi.
- Sim, suponho que não tenha ouvido. Até agora ainda não mereceu as honras da grande publicidade. - Estendeu a pasta de arquivo a Lebrun. -Nesta pasta encontra-se correspondência trocada entre mim e um homem chamado Jim McLoughlin, diretor do Instituto Raker, anteriormente a um encontro que tivemos em Nova York. Também aí estão notas relacionadas à nossa entrevista. Em meses vindouros irá ouvir, com certeza, falar substancialmente de McLoughlin. Trata-se do último exemplar de uma grande tradição de cruzados e dissidentes americanos, sempre prontos a atacar e a revelar o mal onde quer que ele se encontre, homens semelhantes ao vosso Zola...
- Zola... - murmurou Lebrun numa voz que era quase uma carícia.
- A nossa tradição americana tem tido sempre homens desses, embora poucos e crucificados às mãos dos poderosos da terra. Mas, apesar disso, nunca se calaram nem se deixaram extinguir, porque foram sempre as vozes da consciência pública. Homens como Thomas Paine e Henry Thoreau. E, mais recentemente, cruzados como Upton Sinclair, LincoIn Steffens, Ralph Nader, que expuseram os atentados praticados pelos grandes capitães da indústria contra um público confiante. Bem, Jim McLoughlin e os seus investigadores do Instituto Raker são os últimos na linha dessa tradição democrática de demanda da verdade e revelação impiedosa do mal.
Robert Lebrun escutara Randall atentamente.
- E o que é que faz esse homem e o seu Instituto?
- Recentemente, investigam uma conspiração secreta, levada a efeito, por certas indústrias e firmas americanas, para sonegarem ao conhecimento do público, determinados inventos e produtos. Desenterraram provas de que os grandes monopólios- a indústria petrolífera, a indústria automobilística, a indústria têxtil e indústria do aço, para não nomear muitas outras com culpas no cartório - têm subornado, cometido até violências, para sonegarem do público uma tabela a preços módicos, capaz de substituir com vantagem a gasolina, um pneu que praticamente nunca mais se gastaria, um tecido que agüentaria uma vida inteira de uso, um fósforo eterno. E isto é só o começo. Ainda neste decênio, revelarão conspirações de cartéis, contra o público praticadas pelas companhias telefônicas, por bancos e companhias de seguros, trabalhando de parceria, por fabricantes de armamentos, por militares e certos outros setores governamentais. McLoughlin acredita que o público está em permanente perigo de ser enganado pelas empresas livres não regulamentadas. Crê também que o povo, não só na democracia como sob o comunismo, possui um governo representativo... mas não tem representação eficaz. É um homem que nunca pára, que anda sempre à procura de descobrir toda e qualquer conspiração perpetrada contra o público. E, como verá pela documentação nessa pasta, fui eu o único publicitário, para quem ele apelou a fim de ajudá-lo.
Randall, colocou a pasta de arquivo na mesa, em frente de Lebrun.
-Aqui estão, Monsieur Lebrun, as únicas credenciais válidas que possuo como homem pronto a revelar a mentira e procurando a verdade. Leia os documentos e decida depois se deve ou não confiar em mim.
Lebrun agarrou na pasta e abriu-a. Randall dirigiu-se para a porta.
-Vou deixá-lo sozinho durante os próximos quinze minutos. Vou lá embaixo ao bar, tomar uma bebida. Posso oferecer-lhe também uma?
- Poderei já não estar aqui quando regressar - avisou Lebrun.
- Correrei esse risco.
- Bom, traga-me um uísque simples. Bem forte.
Randall saiu do quarto.
Levou consigo a sua bravata, tão pouco segura de si, para o bar junto ao saguão, rezando intimamente para que Lebrun não desaparecesse.
Passaram-se cerca de vinte minutos quando Randall voltou ao quarto.
Ao entrar, seguido por um garçon transportando o uísque simples e um uísque com gelo. Randall imaginava se só tomaria a sua bebida, ou teria que engolir as duas.
Mas Robert Lebrun ainda lá estava. Continuava sentado junto à mesa, tendo a seu lado a pasta de arquivo fechada.
Randall mandou o garçon embora, depois de lhe meter uma nota na mão, e levou o uísque simples ao velhote. Lebrun agarrou no copo.
-Já me decidi - disse numa voz estranha e distante. Aliás, você é a minha derradeira possibilidade. Contar-lhe-ei como escrevi o Evangelho Segundo Jacob e o Pergaminho Petrônio. Não é uma história muito longa, mas posso garantir-lhe que nunca houve antes uma história como essa. Trata-se de uma história que deve ser conhecida... e cabe-lhe, Randall, o papel de apóstolo para impor a verdade sobre a mentira, para revelar a todo o mundo, a mentira da nova vinda de Cristo.
Curvado para a frente, sentado na cadeira junto à mesa, falando para Randall numa voz despida de emoção e monótona, Robert Lebrun contou os acontecimentos da sua mocidade antes de ser condenado ao desterro para a colônia penal da Guiana francesa.
Durante meia hora falara da sua pobre infância em Montparnasse, na descoberta da sua habilidade para as falsificações e nas suas fraudes criativas que o haviam conduzido a uma vida de pequenos crimes em Paris. Falara das suas numerosas prisões e condenações. Do seu esforço para conseguir um pé-de-meia confortável e a independência por meio da falsificação de um documento governamental. Falara da sua final detenção pelos agentes da Súreté e da sua condenação à deportação para a Guiana pelo Tribunal Correcional.
Embora Randall, já antes, tivesse ouvido uma súmula daquelas aventuras, manteve uma atenção fascinada por se tratar da própria fonte dos acontecimentos. Randall nem por indícios quis mostrar, que menos de vinte e quatro horas antes, desde que escutara parte da história de Lebrun, contada pelo Dominee de Vroome, ouvida por seu rumo a Cedric Plummer depois do encontro com o falsário no Père-Lachaise. Mostrou-se interessado e absorvido como se ouvisse o relato pela primeira vez, esperando com toda a paciência ouvir o que ainda desconhecia e tão ardentemente desejava.
Nesse momento, Robert Lebrun dizia:
- E assim, por ter sido quatro vezes preso na França por crimes menores, fui automaticamente classificado como incorrigível, sem possibilidades de perdão ou reabilitação e condenado a passar o resto da vida na colônia penal da Guiana francesa. A colônia tornou-se globalmente conhecida pelo nome de Ilha do Diabo,-mas na verdade continha cinco prisões separadas. Três estadeavam-se em ilhas, mas só a menor dessas ilhas, uma ilhota com cerca de mil metros de circunferência, é que era na realidade a Ilha do Diabo, seu nome. Uma ilha reservada unicamente aos presos políticos-como o capitão Alfred Dreyfus vítima de uma conspiração de elementos militares, que o acusaram erradamente de vender segredos militares franceses à Alemanha. Em nenhuma ocasião essa ilhota teve nas suas cabanas mais de oito presos ao mesmo tempo. As outras duas ilhas do grupo, situadas a nove milhas das costas da Guiana, eram a Royale e a St. Joseph. As duas prisões no continente, situadas a certa distância da cidade de Caiena, eram St. Laurent e St. Jean. Quanto a mim fui enviado para a St. Joseph.
A voz seca de Lebrun começara a destrambelhar-se, e o homem levou o copo de uísque simples aos lábios e bebeu um bom trago, pigarreando a seguir para aclarar a garganta.
- Em que ano é que o enviaram para a Guiana? -perguntou Randall.
-Muito anos antes de você ter nascido. Em 1912.
- O presídio era uma coisa assim tão má como foi escrito?
- Muito pior - garantiu Lebrun, em tom grave. - Os condenados que fugiram para escreverem sobre o caso, falaram das crueldades praticadas e dos seus sofrimentos, mas sempre com tendências a dar um ar romanesco, como se se tratasse de uma aventura. Mas a Guiana nunca foi nada disso, nunca foi um inferno encantador. Nenhum dos clichés conhecidos é capaz de descrever exatamente aquele inferno vivo. Um tormento muito pior do que a morte. Talvez o espectro da guilhotina forneça a idéia mais aproximada, dentro do sentido revelador de todos os dias executar-se sem nunca, todavia, a execução pôr termo à vida. Tortura e dor infindáveis, conforme aprendi por experiência pessoal, são muito piores do que a morte. Por isso mesmo, penso que Prometeu foi um mártir muito maior do que São Pedro. Fui embarcado para a Guiana em 1912 a bordo da barca La Martitúère, confinado não numa cabine, mas sim dentro de uma gaiola de ação, juntamente com mais nove degredados, a bom bordo do porão. Originalmente, a colônia penal tinha um significado de local onde os condenados se poderiam reabilitar e redimir pelo seu comportamento. Será capaz de acreditar que o nome oficial dessas ilhas era Res du Salut- Ilhas da Salvação? No entanto, tal como todas as organizações manejadas pelas mãos do homem, o fim para o qual foi criado, corrompeu-se. Quando eu fui enviado para a Guiana, a filosofia penal estava assim estabelecida: uma vez que um homem lançado na vida do crime, torna-se para sempre um criminoso, está para além de qualquer redenção, transforma-se num animal, de modo que deve deixar-se sofrer e apodrecer até à morte para que nunca mais volte dando preocupações à sociedade.
-E todavia o senhor encontra-se aqui.
-Encontro-me aqui porque a minha vontade foi mais forte do que a desgraça, porque tinha que estar aqui-disse Lebrun, ao mesmo tempo com orgulho e amargura. -Tinha uma razão para sobreviver, como em breve observará. No início, quando pensava que era ainda um homem, e tentei agir como tal, eles obraram de maneira a lembrar-me, que eu não passava de um animal, menos do que isso. Como explicar os meus dois primeiros anos no degredo? Dizer que a vida era brutal ou desumana... meras figuras de retórica, eufemismos. Escute bem: de dia mosquitos, chusmas de mosquitos, alimentando-se nas chagas que cobriam todo o espaço de pele de um homem que estivesse à mostra, com mutucas entranhadas nas unhas e formigas vermelhas a morderem os pés. De noite, morcegos, morcegos vampiros, a sugarem-nos o sangue.- E sempre, mas sempre, desinteria, febre, escorbuto. Olhe.
Abrindo a boca, Lebrun, com os dedos, arranhou os lábios e mostrou as gengivas cheias de cicatrizes, descoloridas que se viam por cima da má dentadura postiça.
- Como é que eu perdi os meus dentes? Apodreceram, caíram devido ao escorbuto. Fui-os cuspindo, pouco a pouco, aos dois e três de cada vez. Com mais de quatro condenações, como forçado para toda a vida, classificado entre os relégués, entre um daqueles que jamais sairiam da colônia. Na ilha de St. Joseph encarregaram-me de partir pedras, desde o alvor do dia até cair a noite, e se protestasse, lançavam-me na solitária ou cela disciplinar. Sabe o que é que significava a solitária na ilha de St. Joseph? Existiam três blocos regulares-a prisão regular, a solitária e o asilo dos lunáticos-mas o mais desumano era o bloco das solitárias. Seria atirado para um buraco de cimento, mais ou menos, com três metros e meio, por dois e meio. Cobertura nem vê-Ia, por cima apenas barras de ferro cruzadas. Na cela existia um banco de madeira, um balde servindo de latrina e um cobertor trocado de dois em dois anos.
“O cheiro que se desprendia daquela atmosfera carregada, poluída com intensa mistura de urina e excrementos humanos fa-lo-ia com certeza desmaiar de nojo. Na solitária, teria de passar vinte e três horas e meia dentro do poço de cimento, apenas com meia hora no exterior, no pátio murado, para apanhar um pouco de ar fresco e fazer exercícios. A prisão regular não era muito melhor. Por vezes até era pior, especialmente à noite, quando os invertidos, os homossexuais resolviam lançar seus ataques vampirescos. Fizesse sol ou chuva, a comida era sempre a mesma, nunca variava. Ao café, um púcaro de folha com uma coisa negra a que chamavam café. Ao almoço, um pouco de água quente com umas folhas de couves podres boiando, uma fatia de pão e uma minúscula carne pútrida. Para o jantar, feijões cheios de gorgulho ou um pouco de arroz de goma, que mais parecia grude. Convertido quase a um saco de ossos, era sovado a murro, chicoteado, torturado a pontapé, de muitas outras formas pelos guardas, que na maioria eram corsos selvagens, antigos componentes da Legião Estrangeira, brutais ou ex-flics. Não alimentava sonho mais caro do que o suicídio, do que o alívio que me adviria da morte, podendo então repousar em paz e descanso entre os Bambus - o cemitério dos forçados em St. Laurent. Então, certo dia, aconteceu um milagre -nessa altura, seja como for, foi assim que pensei - e passei a ter uma razão para viver.”
O padre, lembrou-se, Randall. De Vroome mencionara um sacerdote francês que havia protegido Lebrun no momento mais negro do degredo.
- A cerca de dezesseis quilômetros de St. Laurent-du-Maroni, perto do rio Maroni, a colônia penal tinha instalações, numa clareira cercada por pântanos, onde imperava a malária e por densas florestas insalubres. Nesse local ficavam as repartições administrativas, as cabanas dos guardas, uma serração, um hospital, uma prisão de cimento e uma cabana especial, e essa área chamava-se o Campo de St. Jean ou Prisão de St. Jean. Para os trezentos condenados que lá se encontravam confinados, cheios de chagas abertas, de lesões de toda a espécie e de olhos vazios, cegos, aquilo era um lugar terrível. Dormiam sobre o chão de cimento das celas, cobertos de pústulas, pus e excrementos. Eram somente alimentados com sopa de farelos e com bananas verdes. Eram escravizados desde as seis da manhã às seis da tarde, derrubando árvores na terrível selva, e jungidos a zorras, com arreios e tudo, como bestas de carga, para transportarem os troncos para a serração. Foi para um tal lugar, para St. Jean, que me enviaram, e foi esse o milagre que me forneceu razão para acreditar ainda na vida, para viver.
-Encontrou uma razão para viver num inferno como aquele?
- Sim. Por causa da cabana especial que havia na clareira disse Lebrun. - já mencionei a cabana, não é verdade?
- Mencionou.
-Tratava-se da igreja do campo-a única igreja que conheci na colônia penal, sem contar com a capela da Ilha Royale, que não era utilizada - disse Lebrun. - Essa igreja, conhecida como a cabana, erguia-se sobre pilastras de sustentação. Com exceção do telhado, de traves de madeira e folhagem, era construída em sólida pedra, com cinco janelas em forma gótica abertas em cada uma das duas paredes principais. Claro que não era para uso dos forçados. Fora construída como local de orações para os guardas e para os administradores e suas mulheres. Tinha também um dedicado padre... - Lebrun ficou silencioso durante algum tempo, pensativo, como que tentando recordar o sacerdote, e depois voltou à sua narrativa. - Chamava-se Paquin, Père Paquin, um padre francês magrinho, débil, anêmico, mas muito devoto, natural de Lion. O Padre Paquin tinha a seu cargo a capela de St. Jean. Visitava também os forçados do hospital e, ocasionalmente, fazia viagens a outras instalações no continente e também nas ilhas.
-Está me dizendo que era o único sacerdote que havia em toda a colônia penal?
- Sim, o único - respondeu Lebrun. Refletiu durante um segundo e corrigiu: - Não, quando eu cheguei à Guiana havia outros sacerdotes. Bom, a colônia penal tinha já um século de existência, e no princípio estava a cargo dos Jesuítas, que mais tarde foram, no entanto, suplantados pela Ordem francesa da Congregação do Espírito Santo, com sede em Paris. Quando cheguei à Guiana havia lá um Vigário Apostólico, uma espécie de bispo, que residia em Caiena, a capital, responsável perante o Vaticano. O Vigário era uma espécie de administrador de curas que realizavam atividades religiosas nas onze paróquias da Guiana Francesa. Mas três anos depois, isto é, na época a que me reporto, foram todos expulsos, exceto um. Só o Padre Paquin permaneceu.
- E porque é que os padres foram expulsos?
- Porque, como o cura me disse uma vez, estavam decididos a ajudar o pobre rebanho de deserdados da Guiana - como nos chamavam - iniciando uma cruzada internacional de orações de modo a chamarem as atenções para a situação dos condenados. O governo francês mostrou-se hostil à idéia e procedeu à convocação dos religiosos, opondo-se a todas as atividades do culto na Guiana, apenas permitindo a estada de um cura.
-O seu Padre Paquin?
- Sim - respondeu Lebrun. - Que oficiava na sua capela de St. Jean. Dado que essa igreja não se encontrava decorada e também não tinha outro mobiliário além do altar-mor, do púlpito e de alguns bancos para os fiéis, o cura decidiu, certo dia, melhorar o templo. Pretendeu colocar vitrais nas janelas e pinturas sagradas nas paredes para tornarem o santuário mais espiritual e mais atraente. O cura pretendia um artista para executar a obra e ouviu dizer que eu era o único artista que se podia encontrar entre os oito mil condenados da colônia penal. Desse modo, requisitou a minha transferência da ilha de St. Joseph para a prisão de St. Jean, no continente, Claro que eu não era artista nenhum, nem nunca fui, limitara-me a gravar o busto de La Belle France em notas falsificadas. Mas o fato de eu ser conhecido por ter falsificado uma Bíblia medieval iluminada, fez com que as autoridades do presídio me recomendassem. A mudança de estar sob a custódia dos guardas brutais da ilha para o meu cargo de prestar serviços àquele cura teve tal repercussão que cheguei a pensar que era incrível.
-De que maneira?
-Bom, o Padre Paquin, a parte o fato do seu fanatismo religioso, era um homem razoável, bom para mim e apreciador dos meus talentos criadores. Deixara de me sentir aterrorizado. Era tratado com bondade. Fui submetido a cuidados médicos, deram-me um novo uniforme prisional e roupas interiores limpas, comia uma comida ligeiramente melhor. Embora não sendo um verdadeiro artista realizado, sugeri que os vitrais fossem decorados com citações gregas e latinas tiradas do Novo Testamento. As paredes da capela fossem pintadas com primitivos símbolos cristãos, tais como, o peixe e o cordeiro, e com muitos outros. O cura, entusiasmado, conseguiu obter uma considerável biblioteca de livros para investigações, variadas versões da Bíblia, gramáticas latina, grega e aramaica, histórias ilustradas da Igreja primitiva e outros volumes do gênero. Debrucei-me por todos os livros, absorvi cada uma das palavras contidas, não uma vez nem duas, mas vezes sem conta. Passei um ano a decorar a igreja, obra que mereceu os louvores unânimes dos visitantes, e o Padre Paquin estava orgulhoso da obra e de mim. Durante todo esse período quase imperceptível, fora-me convertendo a Cristo. Sob a orientação do cura, ensinaram-me que a única esperança e paz para mim se encontravam em Deus, no Seu Filho Unigênito, na bondade e no amor. Pela primeira vez, em três anos de injustiça naquele inferno vivo, tive um vislumbre de haver decência na terra e senti o forte querer de me manter vivo para de novo voltar à pátria e voltar a tornar-me outra vez um ser humano. Todavia eu estava ligado à colônia penal até que a morte me arrebatasse... e no entanto, devido aos ensinamentos daquele padre, desejava viver. Foi então que surgiu a grande oportunidade.
- Oportunidade para quê?
-Para ser perdoado. Para ser livre.
Lebrun fez uma pausa, sorveu mais um gole do seu uísque puro e recomeçou o relato.
-Estava-se em 1915 e toda a Europa se encontrava envolvida em luta, durante a primeira fase da Grande Guerra-a Primeira Guerra Mundial. O diretor da colônia penal reuniu os condenados com sentenças de mais curta duração, e alguns dos relégués, os condenados a prisão perpétua, os incorrigíveis, mas só aqueles que tinham demonstrado bom comportamento, e eu entre eles, uma vez que me encontrava sobre a influência e patrocínio do sacerdote. Foi-nos dito que se nos alistássemos como voluntários para incorporação num batalhão especial do Exército Francês, um batalhão de infantaria destinado a combater na frente ocidental da Europa contra os Hunos, seríamos, depois da guerra, tomados em consideração para clemência do governo. Tudo aquilo se mostrara muito ambíguo, falho de especificação, e poucos foram os condenados que se ofereceram. Quando o meu amigo cura mostrou não compreender a razão porque eu não aproveitara aquela oportunidade, contei-lhe que discutira o caso com os outros condenados e que nenhum de nós se arriscaria a morrer crivado de metralhadora, como carne para canhão, sem uma garantia de recompensa. O Padre Paquin consultou as autoridades e voltou com uma oferta positiva. Se me oferecesse como voluntário para combater pela França, e se conseguisse persuadir os meus companheiros de degredo a fazerem o mesmo, o Ministério da Guerra nos garantiria anistia e liberdade, uma semana depois da guerra acabar. Mais ainda, o Padre Paquin prometeu-me solenemente que «como servo de Nosso Senhor Jesus Cristo, em nome do Salvador, tens a minha promessa pessoal de apoiar a promessa do governo. Dou-te a minha palavra que se te apresentares como voluntário para combater, serás perdoado e restaurado dos teus direitos de cidadão e na liberdade. Dou-te a minha palavra não só pelo governo francês, mas também em nome da Igreja.» Aquilo bastava-me...em parte, devido ao meu poder persuasivo, bastou também aos meus companheiros de desgraça. O governo era uma coisa, mas o cura e a Igreja eram coisas muito diferentes no conceito da infalibilidade e de absoluta confiança. De modo que, juntamente com outros condenados, apresentei-me como voluntário para o exército.
A Randall, aquela parte da narrativa afigurava-se inacreditável.
-Monsieur Lebrun, está a querer dizer-me que na colônia Penal da Ilha do Diabo se formou uma unidade especial que foi enviada para França para lutar contra os alemães?
-Exatamente.
- Mas então porque é que eu nunca li semelhante coisa nos livros de história?
- Compreenderá imediatamente porque, é que o caso não teve uma grande publicidade - respondeu Lebrun. Coçou a coxa no local onde o coto estaria ligado à perna artificial (pelo menos segundo pensou Randall), voltando seguidamente à narração. Inspirados pela promessa solene do nosso cura, apresentamo-nos como voluntários para um corpo de infantaria. Embarcamos em Caiena e desembarcamos em Marselha no mês de junho de 1915. Embora em condições especiais, voltávamos a pisar o solo da nossa bem-amada França. O nosso regimento foi formado. Os nossos oficiais eram os guardas da Ilha do Diabo. Possuíamos todos os privilégios dos verdadeiros soldados, salvo um: enquanto fizéssemos parte do exército nunca poderíamos ter uma licença. Fomos designados como Força Expedicionária da Ilha do Diabo e colocados sob a chefia dos corpos de exército comandados pelo general Philippe Pétain.
-E chegaram a entrar em combate?
-Fomos enviados na verdade para a frente? -diretamente para as linhas de combate nas trincheiras de Flandres. Estivemos na frente, consecutivamente durante três anos. O nosso batalhão sofreu tremendas baixas naquele espantoso banho de sangue, mas sempre era melhor do que o inferno que deixáramos para trás, principalmente devido à garantia que nos fora dada pelo cura. Batemo-nos como verdadeiros leões. Devido a estarmos sempre na vanguarda, e sem podermos ser rendidos, ficaram nos campos de batalha dois terços dos mil e oitocentos homens pertencentes à Força Expedicionária da Ilha do Diabo. Os que sobreviveram ficaram em parte mutilados. A seis meses do Armistício, a minha perna esquerda ficou crivada de estilhaços pela artilharia alemã. A perna teve de ser amputada, mas eu salvei-me. Era um gigantesco preço a pagar pela liberdade, mas quando acordei no hospital depois da amputação decidi que valia bem a pena. Assim que o coto cicatrizou, aprendi a andar com uma perna artificial primitiva, uma perna de pau muito rudimentar. Veio então o Armistício e a almejada paz. Eu era ainda um jovem e pensava que estava prestes a começar uma nova vida. Com cerca de seiscentos outros sobreviventes do nosso corpo expedicionário, celebrei na mais ruidosa alegria o nosso regresso a Paris, onde devíamos esperar a proclamação da nossa anistia. Logo que chegamos à capital fomos levados para a prisão de La Santé. A ida para a prisão era uma coisa que não esperávamos e apelei para o meu cura-o Padre Paquin fora capelão do exército num posto de comando das linhas de reserva -e perguntei-lhe o que é que se passava. Ele abençoou-me e agradeceu-me o sacrifício, até me abraçou como se eu fora um filho pródigo voltando ao lar, e assegurou-me em nome do Salvador que a estadia na prisão constituía uma espécie de alojamento temporário antes da nossa libertação. Garantiu-me que a nossa liberdade seria concedida no espaço de uma semana. Fiquei tão aliviado e contente que até chorei de alegria. Passou uma semana. Então, certa manhã, chegaram subitamente à Santé os nossos antigos guardas corsos da Guiana, reforçados por uma multidão de novos guardas, armados de espingardas de baioneta calada, arrebanharam-nos como gado, levaram-nos à ponta de baioneta até vagões de gado e fomos conduzidos a Marselha. Naquele porto, substituíram-nos os uniformes por outros de prisioneiros e informaram-nos que, por razões de segurança nacional, devíamos regressar todos a le bagne, às instalações de degredo na Guiana, para continuarmos cumprindo as nossas condenações. Impossível uma revolta. Tínhamos demasiadas armas apontadas contra nós, foi um autêntico suicídio. Vi de relance o Padre Paquin. Chamei-o em voz alta, mas o rosto dele manteve-se impassível, limitou-se a encolher os ombros. Recordo-me perfeitamente que o último gesto que fiz antes de embarcar foi mostrar ao cura o punho fechado e gritar-lhe: «A Igreja não passa de fumier et ordure (monte de esterco)! Merde para o teu Cristo! Hei de me vingar!»
Randall abanou a cabeça cheio de descrença.
-Isso ocorreu de verdade?
- Sim, aconteceu. Não tenha a mínima dúvida. Tudo se encontra registrado nos arquivos, em Paris, dos Ministérios da justiça e da Defesa Nacional. E assim, nós que tínhamos dado o nosso couro na defesa da França voltamos como recompensa, para os mosquitos, para as mutucas, para os morcegos-vampiros, para o monstruoso calor, para os pântanos, a malária, os trabalhos forçados, os espancamentos e toda a brutalidade da Ilha do Diabo. Mas dessa vez eu tinha ainda uma razão para viver, para sobreviver. Não existe para um homem motivo mais forte do que a vingança. Eu queria vingar-me. Vingar-me do duro governo sem coração e sem palavra? Contra o padre perjuro e traidor? Não. Queria ter oportunidade de me vingar de maneira estrondosa de todo o dolo representado pela religião, verdadeira inimiga da vida, veneno e ópio que em vez de salvar, só oprime o homem com as suas falsas falinhas mansas a respeito de um bondoso Salvador. A minha antiga fé estava tão mutilada, tão coxa como o meu corpo. E foi durante a viagem no navio que nos levou a St. Laurent-du-Moroni que eu concebi o meu golpe de mestre -golpe de graça contra todos os vendilhões do Cristo, contra a própria hierarquia da Igreja pela decepção que um dos seus membros me impusera da forma mais perjura e cruel, numa jura que me fizera pela sua própria fé. Concebi, na sua forma rudimentar, o Evangelho Segundo Jacob e o Pergaminho de Petrônio. Desde 1918, ano em que regressara à colônia penal da Guiana Francesa, até 1953, quando a colônia foi finalmente fechada e abandonada pela Comissão de Liqüidação francesa devido à má reputação que as suas péssimas condições desencadearam em todo o mundo, com constantes protestos, fiz cuidadosos preparativos para o meu golpe.
Horrorizado e fascinado, sentindo-se, ao mesmo tempo, chocado e cheio de simpatia por aquele homem submetido a tais provações, Randall continuou ouvindo a estranha história descrita pelo velhote.
Como preso exemplar, as autoridades da colônia haviam conferido a Lebrun mais latitude do que aos outros condenados. Por meio de fazer gravações artísticas em cascas de coco, de realizar vários trabalhos de artesanato e pergaminhos sobre obras religiosas que eram bem vendidos em Caiena, por meio de falsificação de manuscritos medievais (enviados pelo correio para Paris por um guarda colaborador, que metia ao bolso uma percentagem de trinta por cento), vendidos a negociantes de arte através contatos criminosos. Lebrun conseguira obter o dinheiro necessário à compra de livros sobre religião para as suas investigações. Pôde também comprar material para fazer notas falsas, vendidas a preços irrisórios aos passadores oficiais, o que aumentou as suas potencialidades de obter livros raros destinados ao seu projeto.
Durante os trinta e cinco anos do seu segundo degredo, Lebrun, à custa de enormes esforços, tornara-se um autêntico perito sobre Jesus, sobretudo o que existe relativo ao Novo Testamento, ao aramaico e grego, a papiros e pergaminhos. Em 1949, devido ao seu excelente cadastro no degredo, a sua posição fora mudada de condenado a prisão perpétua, para liberto condenado que saía do confinamento da colônia penal, mas que tinha de permanecer nas vizinhanças das instalações de degredados. Mudando o seu uniforme de riscas de preso pelo de ganga azul de liberto. Lebrun fora viver num pobre aldeamento perto do Rio Maroni, a curta distância de St. Laurent, continuando a fazer souvenirs e da falsificação de manuscritos. Em 1953, quando acabara a colônia penal da Guiana, os relégués foram enviados para França a fim de continuarem cumprindo as suas condenações em prisões governamentais, e Lebrun, com outros libérés regressara finalmente a Marselha a bordo do cargueiro Athesli, sendo posto em completa liberdade em solo da França.
Estabelecendo outra vez a sua casa em Paris, Lebrun reatara a sua falsificação clandestina de notas de banco e passaportes, de modo a obter o dinheiro preciso para se sustentar e para adquirir os caríssimos materiais necessários para perpetrar a sua mistificação há tanto tempo planejada. Logo que tudo preparou, voltara para sempre as costas à França. Depois de ter enviado de contrabando para Itália um caminhão com os materiais para a fraude. Lebrun estabelecera residência em Roma e começara a criar a sua tremenda e pavorosa falsificação bíblica.
Chegado a essa parte da narrativa, Randall quis saber pormenores.
-Mas como é que o senhor pôde começar a aspirar enganar os peritos e os teólogos? Posso compreender que pudesse ter aprendido grego suficiente, mas segundo me têm dito o aramaico é na verdade um quebra-cabeças para além de ser uma língua atualmente extinta...
- Não, ainda não está completamente extinta garantiu Lebrun com um sorriso. - Na sua forma presente ainda é falada por muçulmanos e cristãos na área fronteiriça do Curdistão. Quanto ao aramaico do tempo de Jesus, na verdade um quebra-cabeças, como disse, lembre-se que lhe dediquei quarenta anos da minha vida, de longe muito mais que dediquei a todos os refinamentos da minha língua nativa, o francês. Estudei o aramaico através de revistas especializadas em filologia, etimologia, lingüística; revistas que publicavam os artigos publicados pelas maiores autoridades mundiais em aramaico como o Abade, Petropoulos de Simopetra e Dr. Jeffries de Oxford. Consultei muitos livros de estudo sobre o assunto, incluindo uma Gramática do Aramaico Bíblico, de autoria do filólogo alemão Franz Rosenthal, livro que encontrei em Wiesbaden depois de muitas pesquisas. Mais importante ainda, obtive e estudei em reprodução-que copiei à mão centenas de vezes de modo a que pudesse escrever facilmente a linguagem-os primitivos manuscritos aramaicos do Livro de Enoch, do Testamento de Levi, da Apócrifa Geral do Genesis. Na verdade uma linguagem difícil, mas com aplicação acabei por dominá-la.
Impressionado, Randall quis ainda saber mais detalhes.
-Monsieur Lebrun, o que me intriga mais é a autenticidade dos papiros. Como é que conseguiu fabricar papiros que fossem capazes de passar pelos complicados testes científicos?
-Não tentando sequer fabricá-los -disse Lebrun com simplicidade. -Tentar reproduzir o antigo papel foi uma coisa tola. Na verdade, os papiros, bem como o pergaminho, foram os elementos menos difíceis da falsificação. Talvez os mais perigosos, mas os mais fáceis. Como muito bem sabe, Randall, eu não fui somente um falsário mas também um habilidoso ladrão. Os meus amigos do mundo clandestino eram criminosos e ladrões. Atuando em conjunto, durante um período de dois anos, conseguimos adquirir os materiais antigos para eu poder escrever. Devido aos meus intensivos estudos, conhecia a localização de todos os documentos e códices catalogados pertencentes ao século I, além de saber também, por meio de contatos especializados, onde se encontravam as descobertas ainda não catalogadas. Conhecia a fundo os museus públicos e as coleções particulares, bem como as bibliotecas onde os documentos se encontravam expostos. Nunca descurei o conhecimento dos milionários com coleções privadas. Muitos documentos têm páginas em branco no princípio e no fim da obra, ao passo que a maior parte dos códices possuem folhas não utilizadas. Foi essas folhas em branco que roubei ou mandei roubar.
A audácia do sujeito espantava Randall.
- Pode especificar? Isto é, que coleções escolheu? Onde se encontravam?
Lebrun abanou a cabeça negativamente.
- Prefiro não lhe dizer os lugares exatos onde me apropriei, contra a vontade dos donos, de um certo número de papiros e pergaminhos, mas não me importo de lhe falar de um certo número de coleções que tivemos debaixo da mira, entre os quais algumas que visitamos depois, eventualmente, com intenções mais sérias. Posso falar-lhe da Biblioteca Vaticano e do Museu de Turim na Itália, da Biblioteca Nacional na França, da Biblioteca Nacional de Viena, na Áustria, da Biblioteca Bodmer situada perto de Genebra, na Suíça, e de numerosos locais na Grã-Bretanha, como a Coleção Beatty em Dublin, a Biblioteca Rylands em Manchester e o Museu Britânico em Londres.
-Praticaram na verdade roubos nesses locais?
- Sim, praticamos roubos em alguns deles, não em todos... principalmente porque nem todos possuíam papiros e pergaminhos datando exatamente do século 1. O Museu Britânico foi particularmente frutífero em tal matéria. Uma fonte fascinante, a mais completa no assunto, de fato o museu ofereceu-me um rolo de papiro do século I com bastantes áreas em branco, um papiro de Samaria com uma grande porção sem nada escrito, mas melhor ainda, grande parte dos papiros do museu, com grande quantidade de porções em branco, não se encontravam catalogados por falta de pessoal e carência de fundos de manutenção. A seguir, deixe-me ver, encontrei um verdadeiro tesouro na Biblioteca Nacional do meu querido Paris nativo-milhares desses manuscritos em armazém, não traduzidos, não publicados, sem figurarem nos catálogos.
Que pena um tal desperdício. De modo que, apoderei-me de algumas folhas de papel de pergaminho em branco, de documentos do século I, e dei-lhes o melhor uso possível. Compreende?
- Claro que sim - respondeu Randall. - Mas como raio é que conseguiu praticar essas coisas?
- Ora, praticando-as, fazendo o melhor trabalho possível com as minhas próprias mãos - respondeu Lebrun com um ar perfeitamente ingênuo. - Procedendo com o maior cuidado, mas objetivamente. Entrei em certo museu de madrugada, noutros escondi-me até à hora de fechar. Em ambos os casos, uma vez desligados os sistemas de alarme, levei eu próprio a cabo os roubos. Para os museus mais protegidos, utilizei os serviços de colegas mais práticos no assunto, pagando-lhes bem. Em dois exemplos, empreendia negociações. Bem sabe como os pobres guardas dos museu e bibliotecas são mal pagos. Alguns têm famílias numerosas, muitas bocas a alimentar. Uns modestos subornos fazem abrir muitas portas. Não, Randall, de fato dão foi muito difícil obter a soma de papiros e pergaminhos de que necessitava. E, se não se importa, tudo peças autênticas, os pergaminhos não anteriores ao ano 5 antes de Cristo e os papiros não posteriores a 90 da nossa era. Como tinta utilizei uma fórmula usada desde 30 D.C. até 62 D.C., que reproduzi com um ingrediente especial-bastante idoso, juntamente com negro-de-fumo e um fixador vegetal, a verdadeira tinta empregada pelos escribas dos primeiros séculos da nossa era.
-Mas o conteúdo do seu relatório Petrônio e o Evangelho de Jacob... Como é que ousou inventá-los como fez? Como é que pôde pensar que aceitariam tais documentos pelos mais esclarecidos teólogos e eruditos do mundo?
A boca de Lebrun entreabriu-se numa careta de troça.
-Em primeiro lugar, porque existia uma desesperada necessidade de tais documentos. Aqueles, dentro do meio religioso, ávidos de dinheiro, ou de poder, que desejavam com todo o seu ser que uma tal descoberta fosse feita para os beneficiar. Os líderes religiosos prepararam para um achado de tais repercussões, desejavam que fossem descobertos tais documentos. A época e o clima estavam amadurecidos para uma nova ressurreição de Jesus. Também porque nenhuma das idéias, ou ações que invoquei em nome de Petrônio ou de Jacob, foram completamente inventadas por mim. Quase tudo o que aproveitei havia já sido antes sugerido pelos patriarcas da Igreja, pelos historiadores religiosos, ou por primitivos escritores de outros evangelhos das épocas que se seguiram ao século I. Tudo estava feito, à espera de moldagem, tudo negligenciado ou completamente ignorado, exceto pelos teóricos da história do cristianismo.
-Pode dar-me alguns exemplos? Comecemos pelo Pergaminho Petrônio. Houve realmente um centurião chamado Petrônio?
-O perdido Evangelho de São Pedro diz que houve.
-O perdido Evangelho de São Pedro? Nunca ouvi falar de semelhante coisa.
-Mas existe-garantiu Lebrun.-Foi encontrado numa antiga necrópole perto da cidade de Akhmim, no Alto Nilo, Egito, em 1886 por arqueólogos franceses. O Evangelho de Pedro é um códice em pergaminho escrito por volta de 130 D.C. Difere dos evangelhos canônicos de muitas maneiras diferentes. Diz que foi Herodes -não os judeus, nem Pilatos mas Herodes o responsável pela execução de Jesus. Também diz que o homem que comandava a centúria de legionários encarregados da execução da sentença se chamava Petrônio.
-Macacos me mordam! -exclamou Randall sem se poder conter. - Quer-me dizer que o Evangelho de Pedro é fidedigno?
- Não só fidedigno, como, segundo Justino o Mártir – que se converteu ao cristianismo em 130 D.C. -, o Evangelho de Pedro, nessa altura, era mais respeitado do que o são presentemente os quatro evangelhos conhecidos. No entanto, quando se procedeu à coletânea do Novo Testamento no século IV, o Evangelho de Pedro não foi admitido, foi posto de lado e relegado para os Documentos Apócrifos - isto é, os escritos de autoridade e autenticidade duvidosa.
- Percebo - disse Randall. - Mas, no seu Pergaminho Petrônio, coloca Jesus sendo julgado como revolucionário e subversivo, um homem que se considera acima da autoridade de César. O que é que o levou a pensar que os peritos engoliriam tal isca?
- Simplesmente porque a maior parte dos eruditos bíblicos acreditavam no fundo que essa rebelião e subversão foram coisas verdadeiras - respondeu Lebrun. - Para apoiar o que lhe digo basta-me que lhe cite uma passagem, que é um desafio, da obra iconoclástica. O Evangelho Nazareno, Restaurado, por Graves e Pedro: «Não há dúvida que Jesus foi ungido e coroado Rei de Israel; mas os editores do Evangelho empenharam o melhor dos seus esforços, e com êxito, para ocultarem o fato devido a meras razões políticas.»
-E quanto à sua falsificação do Evangelho Segundo Jacob... os variados discursos que atribui a Jesus, constituem fatos ou trata-se de ficção?
Os olhos de Lebrun brilharam por trás das grossas lentes.
- Mon cher Monsieur Randall, acertemos numa coisa: o fato constituiu a base para a minha ficção. O Logos, o Verbo do Senhor, apresentou-se como coisa de somenos, não me levantou praticamente problemas. Para isso consultei os documentos apócrifos, os documentos antigos de duvidosa exatidão. Tomemos como exemplo um antigo documento achado numa escavação arqueológica, a Epístola Yacobi Apocrypha - documento Apócrifo de Jacob, uma coletânea de dizeres atribuídos a Cristo. Ora eu pedi emprestado alguns desses discursos, tendo apenas que os rever ou compondo-os para os melhorar ou aumentar. No documento, também chamado Apoeryphon, quando Jesus se despede de Jacob, lê-se: «Depois de pronunciar semelhantes palavras, o Senhor foi-se embora. Mas nós caímos de joelhos em terra e eu e Pedro, agradecemos de todo o coração e os nossos corações elevaram-se para o Alto.» na Versão Revista Segundo Lebrun, pus a coisa assim: “E o Senhor despediu-se de nós, lançou-nos a sua bênção e perdeu-se na neblina e na escuridão. Então, caímos de joelhos e agradecemos ao céu elevando Para ele os nossos corações.”
Com ar de satisfação, Lebrun lançou uma olhada para Randall, esperando a reação dele.
Mais uma vez Randall abanou a cabeça admirado pela audácia do homem.
- Vejo o que quis dizer com o fato servir à ficção. Mas gostaria de saber ainda mais coisas. E quanto à descrição de Jesus por Jacob? Não esperava um tal Cristo, com olhos pequenos, nariz grande e adunco, rosto desfigurado por cicatrizes e deformidades, encontrasse resistência em serem aceitas?
-Não. Existem antigas insinuações, sugestões da aparência pouco atraente de Cristo. Clemente de Alexandria quando verberava os fiéis preocupados com as suas boas aparências exteriores, lembrava-lhes que Jesus tinha «um semblante feio, deformado». André da Creta escreveu que Jesus «tinha sobrancelhas hirsutas e que se ligavam». Cirilo de Alexandria recordou que Cristo possuía «um semblante muito feio», acrescentando, no entanto, que «comparada à glória da divindade, a carne não possuía qualquer valor». Será preciso continuar?
- Não. Mas o que é que o induziu a escrever que Jesus sobreviveu à crucificação?
- Ora, existe uma longa tradição que Jesus não morreu quando foi crucificado. Inácio, que foi bispo de Antioquia, na Síria, em 69 D.C., declarou que Jesus estava «em carne» depois da Ressurreição. Segundo Irineu, o respeitado Papias - que foi bispo de Hierápolis - conheceu pessoalmente o discípulo João, e esse Papias declarou que Jesus não morreu antes dos cinqüenta anos. Os rosa-cruzistas sempre reivindicaram possuir antigos documentos a provarem que Jesus escapou à morte da Cruz de Jerusalém. Um historiador rosa-cruz escreveu o seguinte: «Quando os discípulos entraram no túmulo foram dar com Jesus repousando tranqüilamente, recuperando com rapidez, força e vitalidade». Essas mesmas fontes declararam também que a seita dos Essênios ocultou Jesus. Incidentalmente, essênio não significa só «santo» como também «curandeiro», médico. Um essênio pode muito bem ter curado Jesus. Foi esse o pomo de discórdia arremessado para a arena das discussões religiosas por Karl F. Bahrdt e Karl H. Venturini, que escreveram uma vida de Jesus nos últimos anos do decênio começado em 1700. Teorizaram que os essênios foram os promotores dos milagres de Cristo, os promotores da Ressurreição, e disseram que Jesus foi descido da Cruz não morto, mas, apenas inconsciente, sendo depois reanimado, voltando à vida por um curandeiro ou médico essênio.
-E esse caso de fazer Jesus andar por Roma?
- Sim... Roma - proferiu Lebrun, repetindo a palavra arrastada, quase com amor. - Esse, foi o meu maior risco... mas afinal porque não? Os judeus fariseus do século II acreditavam que o Messias se revelaria em Roma. Pedro viu Jesus, em carne, na Via Apia. O historiador romano Suetônio, responsabilizou Cristo por fomentar desordens em Roma. De fato, existe uma tradição reportando Jacob dizendo aos seus partidários que se qualquer deles imaginasse onde estaria Deus, ele podia garantir-lhes que «o vosso Deus está na grande cidade de Roma».-Lebrun fez uma pausa, considerando aquilo que tinha dito. Pareceu ficar satisfeito.-Penso que Roma foi uma coisa bastante lógica.
-Aparentemente foi.
-Vê, Monsieur Randall, quase todos os conceitos da minha falsificação foram baseados em qualquer antiga indicação. Precisamente as mesmas indicações e pistas que têm levado os teólogos dos tempos modernos e os eruditos do Novo Testamento a tentarem reconstituir a vida de Cristo, preenchendo os espaços vazios, por meio de dedução e de lógica, por meio de interpretação do ambiente do tempo e com a aplicação de teorias. Os modernos eruditos bíblicos sabem, que os atuais quatro evangelhos, não constituem a história concreta, verídica. Os quatro evangelhos canônicos não passam de uma série de mitos reunidos muito juntinhos, muito embora esses mitos tenham sido baseados em ocorrências verdadeiras. Isso tem desafiado muitos peritos modernos a especularem sobre aquilo que realmente poderá ter acontecido nos primados do século I. Esses peritos de nada gostariam mais, do que virem a constatar, que a razão estava com eles por meio da descoberta de um perdido evangelho-um evangelho que sempre se acreditou que existisse como a fonte primeva para os quatro evangelhos aceitos -preenchendo todos os buracos em aberto. De modo que, fosse qual fosse, a resistência que o Jacob e o Petrônio pudessem encontrar, continuariam a haver centenas de teólogos e eruditos vivos para clamarem: «Finalmente, a prova daquilo que durante tanto tempo teorizamos afinal aconteceu!»
- Bom, a sua suposição saiu certa, Monsieur Lebrun. Os peritos internacionais mais respeitados estudaram o seu Jacob e o seu Petrônio e aprovaram os documentos como verdadeiros.
- Nem um só minuto duvidei que isso viesse a acontecer - garantiu Lebrun complacente. - Depois de conseguir enterrar a minha falsificação -e digo que, de certo modo, esse segundo e último passo foi o mais difícil...
- O mais difícil porquê? - interrompeu Randall.
-Porque fui forçado a utilizar a área de Ostia Antica como o local para a descoberta, apoiando as idéias descritas pelo Professor Monti e para o envolver mais tarde no assunto, e porque tive então de enfrentar problemas dificílimos de resolver.
-De que maneira?
-Ocultando o meu trabalhinho em qualquer caverna de Israel ou da Jordânia, ou em qualquer subsolo poeirento de mosteiro no Egito, foi mais fácil e mais lógico. A maioria das descobertas bíblicas realizaram-se nessas áreas secas. Mas em Ostia Antica... pavoroso. Ninguém poderia imaginar um lugar mais improvável para um papiro sobreviver dezenove a vinte séculos. Pôs-se o problema da água. Nos antigos tempos a elevação dos terrenos de Ostia era tão pouca que as águas do Tibre inundavam a zona com freqüência. Nenhum papiro, nem pergaminho, resistiria a essas constantes inundações. Tive então que me apoiar noutro fato histórico. No século II, o Imperador Adriano mandou demolir Ostia e reconstruiu-a numa elevação, com cerca de mais um metro de nível, de modo a neutralizar as inundações. Dominei o problema tomando a decisão de meter os manuscritos num bloco de pedra.
- E isso não seria imediatamente um caso para despertar suspeitas?
- De modo nenhum - respondeu Lebrun. - Sabia que muitos mercadores abastados tinham outrora vivido em Villas situadas no Litoral, perto de Ostia Antica... e se um desses mercadores, um judeu que fosse em segredo um cristão, tivesse desejado preservar manuscritos valiosos trazidos da colônia da Palestina, seria precisamente essa a maneira que utilizaria.
- De modo que para preservar os documentos teve de se servir de um bloco de pedra antiga?
- Mas não foi assim tão fácil - garantiu Lebrun. - As pedras italianas não garantem proteção suficiente contra as infiltrações do elemento líqüido. A argila apropriada ao clima seco do Mar Morto, era demasiado frágil para uma área marítima como Ostia. A tufa calcária, muito comum, provava-se demasiado porosa. Até mesmo os mármores são sujeitos a fragmentar-se por ação da água. Finalmente fixei-me em uma das vinte e cinco variedades de granito cinzento, um granito durável, uma qualidade de granito sem mistura de feldspato que incha e se enfola debaixo da água. Consegui arranjar um grande bloco desse granito antigo, dei-lhe a forma quadrada para assemelhar-se a um suporte de pedra que tivesse servido para manter qualquer peça de estatuária, depois serrei o bloco ao meio no sentido horizontal e modelei um côncavo em cada uma das partes. Seguidamente meti os papiros e o pergaminho em bolsas protegidas com óleo, coloquei-os dentro de um vaso de olaria, selei o vaso e enfiei-o dentro do buraco cinzento do bloco de granito. Selei também o bloco com breu, envelheci os materiais e enterrei tudo numa área ainda não sujeita a escavações, onde se pensava que houvessem em camadas, enterradas, ruínas do segundo século e possivelmente também do primeiro. Esperei alguns anos para que o bloco enterrado se confundisse com a terra e ganhasse a cor necessária e foi então que abordei o Professor Monti com um fragmento que detivera e que pretendi fosse descoberto num outro vaso enterrado na área. Logo que tive Monti do meu lado, nunca mais me preocupei.
Randall pensou que tudo aquilo que ouvira era diabólico. Para ter realizado semelhante trabalho, aquele velhote que estava na sua frente, ou era um louco, ou um gênio pervertido. Ou ambas as coisas, se na verdade levara tal obra a cabo e não fantasiava.
-E agora está pronto a revelar ao mundo a sua mistificação do Evangelho de Jacob e do Pergaminho de Petrônio?
- Estou pronto.
- Julgo que disse que já antes, uma ou duas vezes, tentou fazer a revelação.
- Sim. No ano passado encontrei-me com Monti, porque necessitava de dinheiro urgente. Ameacei-o de tornar conhecida a fraude se não me entregasse mais dinheiro, aliás plenamente merecido por mim. Confesso, no entanto, que se ele me tivesse entregue a massa só manteria a palavra dada de nada revelar por um período muito curto. Mas teria que continuar a possuir parte da minha prova de falsificação para mais tarde revelar a mistificação ao mundo. Isso porque, com dinheiro ou sem ele, nunca poderia deixar que a Igreja escapasse à minha vingança. Depois, mais recentemente, entrei em negociações com outra parte interessada. Mas, as coisas ficaram em águas de bacalhau, quando vi que essa parte agia como intermediária a soldo da própria Igreja, que pretende a todo o custo adquirir as minhas provas a fim de as suprimir, de modo a salvar a falsa fé e a Bíblia mentirosa, forjada.
- Está pronto a vender-me essa prova se eu revelar ao mundo toda a história?
- Estou, mas de acordo com uma compensação monetária adequada - disse Lebrun com delicadeza.
- E o que é que considera como uma compensação monetária adequada? - perguntou Randall, acrescentando rapidamente: Isto é, tendo em consideração que eu sou um mero indivíduo e não uma instituição bancária.
Lebrun acabou de beber o seu uísque.
- Serei razoável se o pagamento for em dólares americanos...
- Será em dólares americanos.
- Vinte mil dólares.
-É uma grande quantia.
- Pode ser dividida em duas prestações - disse Lebrun. No fim de contas aquilo que lhe darei torná-lo-á rico e famoso.
- E o que é que me dará em troca do dinheiro?
- Uma prova - respondeu Lebrun. - Uma prova da minha falsificação irrefutável e indiscutível.
-Que prova é essa?
- Em primeiro lugar um fragmento de papiro que preenche uma lacuna, o que falta e que constitui o buraco do Papiro Número 3 a que se referiu no Doney. Esse fragmento consiste na seção desaparecida que Monti lhe recitou na casa de saúde, aquela em que Jacob fala dos irmãos de Jesus e seus. Mede mais ou menos 6,5 por 9,2 centímetros e ajusta-se perfeitamente ao buraco do chamado original.
-Mas os peritos poderão dizer que se trata de um fragmento autêntico, tão autêntico e verdadeiro como o resto dos papiros que se encontram em Amsterdã?
Lebrun arreganhou os lábios num sorriso malicioso, arqueando ao mesmo tempo uma das sobrancelhas.
-Há muito tempo que previ essa possibilidade, Monsieur Randall. Esse fragmento, por mim mantido, posta na folha de papiro comprimida, desenhada com tinta invisível, sobre o texto que é visível, metade de um peixe atravessado por um dardo ou arpão. A outra metade está no Papiro Número 3. O fragmento que mantenho oculto tem também a minha assinatura e um pequeno texto escrito pela minha mão dizendo que a obra não passa de uma falsificação. Não, não pense que poderá tornar legível essa tinta invisível por métodos infantis - não é feita de leite para poder tornar-se passível de aparecer quando exposta ao calor. Não, nada disso. A tinta baseia-se numa fórmula usada por Locusta...
- Por quem? - interrompeu Randall?
-Nunca ouviu falar de Locusta? Era a envenenadora oficial do Imperador Nero pouco depois da época que eu arranjei para Jesus ser expulso de Roma. Locusta ensinava aos alunos as suas receitas de venenos e costumava experimentar as mistelas nos escravos. Por ordem da mãe de Nero, Locusta misturou veneno numa iguaria de cogumelos estufados comida pelo Imperador Cláudio. Diz-se que matou dez mil pessoas com as suas poções. Naturalmente, tornava-se necessário à envenenadora comunicar freqüentemente em segredo com Nero, de modo que se tornou adepta das tintas invisíveis. Acontece que acabei por descobrir uma das melhores, e menos conhecidas, fórmulas de Locusta.
- Pode dizer-me em que consiste?
Lebrun hesitou durante um segundo, depois mostrou os seus descoloridos dentes.
-Vou dizer-lhe nove décimos da fórmula. O décimo restante só será revelado depois de o nosso negócio estar concluído. Na realidade, Locusta apreendeu a fórmula, melhorando-a depois, a partir dos escritos de um tal Philon de Bizâncio, um cientista grego. Philon, por volta de 146 A.C., inventou uma tinta invisível feita de um ácido confeccionado com bagas de centáurea. Escrevendo com essa tinta, os caracteres não podiam ser vistos. Para tornar visível a escrita devia aplicar-se aquilo a que agora se chama sulfato de cobre misturado com um outro ingrediente. Muito exotérico. Se tudo for cumprido como esperamos, terá conhecimento da fórmula completa e poderá então fazer revelar o meu nome, texto e desenho que agora são invisíveis no papiro, denunciando a autenticidade de todo o evangelho de Jacob. Para a minha entrega dessa fórmula e do fragmento desaparecido, que acabei de descrever, será preciso obter a primeira metade dos vinte mil dólares em que assentamos o pagamento. Se estiver satisfeito, dar-lhe-ei depois a parte restante e a prova mais concludente da minha falsificação a troco dos outros dez mil dólares.
-E que prova concludente será essa?
Lebrun continuou a sorrir.
-Fragmentos adicionais que preenchem todas as lacunas do evangelho de Jacob. Monsieur Randall, conhece com certeza os jogos de paciência, os chamados quebra-cabeças, não é verdade? Como sabe, cada uma das pequenas peças, recortadas da forma mais extravagante, têm que se ajustar para completar a final figura. Ora aí está: os editores em Amsterdã possuem vinte e quatro papiros, alguns dos quais com um ou dois desaparecidos, ao todo nove pequenos fragmentos perdidos; pois eu tenho essas nove peças do quebra-cabeças. Cada um dos fragmentos irregulares, tirados dos papiros da Ressurreição Dois, se ajustará perfeitamente ao conteúdo que falta para completar o puzzle. Quando esses fragmentos desaparecidos forem utilizados para preencher as falhas, a prova da fraude e da mistificação será óbvia e irrefutável. Tenho oito desses fragmentos. Uma das peças foi a que mostrei a Monti, mas as outras oito estão bem protegidas numa caixa de ferro bem oculta. Serão as coisas que acabo de descrever suficientes para o convencer que o Novo Testamento Internacional se baseia num embuste?
-Sim-respondeu Randall. Sentia a pele dos braços arrepiar-se, como se fosse pele de galinha.-Julgo que sim. E quando é que me pode fornecer as provas?
-Quando é que as quer?
-Esta noite - respondeu Randall.- Agora mesmo.
-Não, possivelmente não poderei...
- Então amanhã.
- Amanhã também não. Claro que tenho tudo muito bem escondido. Voltei a ocultar as provas no ano passado depois do meu encontro com Monti. Muito recentemente, quase que estive tentado a ir buscar as provas ao lugar onde estão para as mostrar a um eventual comprador... mas depois tive sérias dúvidas a respeito das intenções dele. Resolvi não ir buscar os artigos até ter a certeza da honestidade da pessoa interessada. As minhas suspeitas acabaram por justificar-se. De modo que, Monsieur Randall, essas provas continuam escondidas no lugar onde as ocultei há mais de um ano. Em resultado disso... bom, não me posso explicar melhor... levará algum tempo para buscar os fragmentos. O local é fora de Roma, não muito longe, mas ainda assim necessito de um prazo mais largo do que até amanhã para ir buscar os artigos.
Pensando qual seria o lugar em que o homem ocultara as provas e que complicava a entrega, Randall decidiu não mostrar pressa, nem forçar mais explicações.
-Pois muito bem, já que não pode ser amanhã, em vista das circunstâncias que me expôs, digamos então que me trará as coisas depois de amanhã, na segunda-feira, está bem?
-Certo-garantiu Lebrun.-Depois de amanhã posso entregar-lhe aquilo que tenho.
-Dê-me a sua residência. Irei ter consigo.
-Não-disse Lebrun, ao mesmo tempo que se levantava com lentidão. - Não, não seria prudente, nem aconselhável. Encontramo-nos no café Doney às cinco horas da tarde. Procederemos então à nossa permuta. Se quiser, viremos depois aqui, ao seu quarto, para ver se fica satisfeito.
Randall levantou-se.
-Ok, no café Doney, às cinco de segunda-feira.
Enquanto se encaminhavam para a porta, Lebrun, de viés, contemplou atentamente Randall.
-Desde já, posso prometer-lhe que não ficará desapontado. Au revoir, mon ami. Este é um dia glorioso e feliz.
Observando Lebrun coxeando a caminho do elevador, Randall perguntou a si mesmo porque é que para ele, apesar de ter alcançado os seus objetivos, aquele dia não lhe parecia nem glorioso nem feliz.
Depois, vendo o falsário entrar no elevador, encontrou subitamente a resposta.
A fé tinha voado.
Havia ainda um dever a cumprir, uma tarefa obrigatória e pouco confortável a desempenhar antes de Randall começar a sua vigília de quarenta e oito horas. Tinha que fazer uma ligação telefônica de longa distância. Randall pediu a ligação para o Grande Hotel KrasnapoIsky de Amsterdã, diretamente para falar com George L. Wheeler.
O editor ainda se encontrava em seu gabinete da Ressurreição Dois, e a secretária dele estabeleceu rapidamente a ligação.
-Steve? - rosnou Wheeler.
-Olá, George, pensei que era meu dever...
-Onde raio é que você está desta vez? -interrompeu Wheeler.-Ouvi a minha secretária dizer...
-Estou em Roma. Deixe-me explicar o que se passa.
-Em Roma?-explodiu Wheeler. -Macacos me mordam! Em Roma?... E porque é que você não se encontra sentado à sua escrivaninha trabalhando? Não o esclareci suficiente, que agora precisava de todas as pessoas trabalhando, vinte e quatro horas por dia, a fim de estarmos prontos para a conferência de sexta-feira no palácio real? Já não fiquei muito satisfeito quando Naomi me disse que você escapara ontem de Amsterdã, para fazer umas pesquisas não sei onde, mas esperava que voltasse ontem à noite...
-Eu também contava poder voltar a noite passada, mas aconteceu uma coisa de suma importância...
-Não existe nada de mais importante que o nosso trabalho, por isso mesmo espero vê-lo, de uma vez por todas, sentado à sua escrivaninha, e não se levantar da cadeira sem completar o seu trabalho. Temos que estar prontos para anunciarmos...
- George, ouça-me com atenção - implorou Randall. Talvez não haja qualquer declaração para fazer ao mundo. Tenho a certeza que lhe será difícil ouvir isto, mas no final, acabará agradecendo-me. Penso que será melhor adiar a notícia ao mundo... adiar até mesmo a publicação do Novo Testamento Internacional.
No outro extremo da linha, em Amsterdã ocorreu um período tenso de silêncio, mas logo a seguir ouviu-se a arrepiante voz de Wheeler:
-Que raio está você aí dizendo?
Randall sentiu o peso da tremenda responsabilidade. Sabia que seria muito duro, mas tinha que contar tudo até o pormenor, não havia outra alternativa.
-George, vocês não podem publicar a Bíblia. Soube a verdade a respeito dela. O achado do Professor Monti... O Pergaminho Petrônio... o Evangelho Segundo Jacob... não passam de descaradas falsificações.
Mais uma vez um silêncio de morte. Depois chegou-lhe, aos ouvidos a voz espantada e dura de Wheeler.
- Está doido?
- Neste momento, gostaria de fato estar. Acredite-me, nunca estive tanto na posse de todas as minhas faculdades mentais. Encontrei o falsificador dos documentos. Falei com ele e ele contou-me das provas insofismáveis que possui. Agora quer ouvir-me com atenção?
-Perde seu tempo e perco o meu também. O tom de voz de Wheeler denotava grande irritação. -Apesar disso, se isso lhe dá qualquer conforto, despeje lá o que tem a dizer.
Randall quis dizer ao homem que o tinha para dizer não o fazia sentir-se mais confortável, pelo contrário, fazia-o sentir-se miserável, perdido; entretanto, não era momento para se deter explicando os seus sentimentos pessoais. Tratava-se do momento crítico da verdade em que o editor teria que enfrentar os fatos.
-Muito bem, -disse Randall firme - Aí vai aquilo que descobri em Roma...
Contou-lhe tudo sem parar. Falou-lhe de sua ida à Roma, forçando Angela a levá-lo até junto do pai. Disse-lhe onde e como encontrara o Professor Monti e alongou-se até a entrevista posterior com o Dr. Venturi. Depois revelou o encontro com Dominee. A longa conversa no quarto do Reverendo no Excelsior. Repetiu detalhes que ouvira da boca de de Vroome.
Nessa altura foi interrompido pela voz do editor, dizendo em tom furioso.
-Logo vi, trata-se então de de Vroome e desse bastardo do Cedric Plummer... surgindo para sua conveniência, com uma história de um falsário... E você caiu nessa? Eu já devia saber que eles tentariam um golpe de última hora. De modo a contratar um falsificador para sabotar o projeto, hem?
- Não, George, nada disso - protestou Randall. - Não se trata de uma manobra de de Vroome. Quer fazer o favor de me ouvir com atenção?
Prosseguiu sem dar tempo ao editor responder. Explicou como Plummer se encontrara com o falsário em Roma, para adquirir a prova da mistificação, e o modo como o falsificador arrepiara-se, no caminho, ao ver o Dominee de Vroome com a sua batina.
-Foi então, que decidi fazer uma tentativa, para ver se na verdade existiria o tal falsário, para ouvir da boca dele a história da falsificação.
Relatou como lhe surgira a idéia de verificar os papéis do Professor Monti. Como encontrara a agenda contendo a data e lugar da entrevista com o mistificador, ocorrida há um ano e dois meses. Revelou como se dirigira ao café Doney e como finalmente, se encontrara cara-a-cara com o autor da falsificação.
-George, o falsário deixou o quarto do hotel no qual falo com você ao telefone, não faz meia hora. Trata-se de um francês, um parisiense, Robert Lebrun que vive há vários anos em Roma sob o nome de Enrico Toti. É um octogenário que devotou uma vida inteira à criação da maior mentira do século e da história da religião -os papiros Jacob e o pergaminho Petrônio. Quer ouvir como ele o fez?
Mas Randall não deu tempo a Wheeler para esboçar sequer uma resposta. Lançou-se na história de Robert Lebrun. Contudo, não revelou todos os pormenores. Instintivamente, Randall decidiu não fornecer quaisquer informações sobre o passado de Lebrun. Não falou de sua mocidade de crime em Paris; nem sobre a condenação dele; o envio para a colônia penal da Guiana; subseqüente desilusão com a Igreja e obsessão de se vingar de uma forma estrondosa. Randall percebeu que se contasse tais pormenores a Wheeler, serviriam apenas para reforçar a recusa do editor em acreditar nos fatos essenciais.
Por conseguinte, manteve-se dentro do quadro daqueles fatos. Revelando como Lebrun, motivado por um azedume inexplicável contra a Igreja, se tornara num perito em tudo o que pertencesse ao foro do Novo Testamento e história do primitivo cristianismo. Randall falou dos quarenta anos dedicados por Lebrun, preparando a mistificação; substanciando a história com a qual o francês levara o Professor Monti a realizar a escavação em Ostia Antica e a sensacional descoberta.
Com verdadeira pena, pensando que o editor estaria num estado de desespero atroz, Randall concluiu:
- Lamento muito ter que lhe contar isto, George. Mas no fundo sei perfeitamente que você, o Dr. Deichhardt e todos os outros só queriam a verdade.
Esperou pela resposta de Wheeler, mas ela não surgiu. A linha, de Amsterdã para Roma, estava muda.
Randall insistiu:
- George! George... Que pensa fazer agora?
De repente surgiu a voz do editor, uma voz tremendo de raiva.
- O que penso fazer?...Sei o que devia fazer...Devia despedi-lo... aliás, como já devia tê-lo despedido muito antes.-Fez uma pausa.-Sim, devia despedi-lo de uma vez para sempre por ver o louco que você é. Mas não o farei. O tempo é limitado. Precisamos de si. Mas quanto a toda essa trama, tem que voltar de novo ao seu perfeito juízo, o mais rápido possível, logo que medite bem em todas as besteiras contadas por de Vroome.
O comandante disposto a deixar-se afundar com o seu navio por uma questão de orgulho e tradição, pensou Randall. Era a última coisa esperada.
- George, não ouviu o que eu contei? Apesar de tudo o que está em causa, não está bem claro pra você que toda a obra não passa de uma fraude... uma mistificação engendrada por um gênio maléfico? Sei muito bem o que é que você, especialmente, perderá com o abandono do projeto. Porém, acho que é melhor pensar em toda a perda de crédito e de dinheiro, se quiserem levar avante a publicação da Bíblia e depois desmascarada em público, como uma mentira.
- Não haverá nenhuma revelação dessas, idiota! De Vroome arquitetou todo esse cenário para o apanhar nas malhas dele. Quis utilizá-lo, lançando pânico entre nós, para causar dissenções no seio do nosso projeto.
-Pois bem, se não acredita, ponha-se em contato com de Vroome para ele lhe dar a confirmação.
-Nem sequer me rebaixaria para escutar esse filho da mãe. Você é que foi apanhado numa ratoeira, numa hipócrita mentira. Seja suficientemente homem para admitir que foi enganado e liberte-se de todos esses macaquinhos que lhe encaixaram dentro da cabeça, depois volte depressa a completar o seu trabalho, enquanto estamos nesta disposição favorável.
Randall fez um tremendo esforço para se conter.
-Na verdade não acredita naquilo que lhe disse?
- Nem numa única vírgula. Tudo o que penso é que se trata de qualquer mentiroso psicopata a soldo de de Vroome... Espera que acredite em tal mentira?
- Muito bem, na verdade não é obrigado a acreditar. - Randall lutou para que a sua voz não se alterasse. -Sim, não é obrigado a acreditar até que eu obtenha as provas para lhe mostrar.
- Que provas?
- Depois de amanhã - segunda-feira à tarde - Lebrun encontrar-se-á comigo no Doney para me entregar a prova da sua falsificação.
Foi como se Wheeler não tivesse ouvido a declaração de Randall. De repente ali estava a voz do editor falando de novo, num esforço aparente para dominar a sua ira, enveredando por uma nova tática conciliatória, exprimindo-se quase como o faria um pai tentando chamar um filho à razão.
- Steve, deixe-me que lhe diga uma coisa. Sabe bem que eu sou homem emente a Deus. Sabe bem que sempre aceitei Jesus como meu Salvador. Toda a minha vida tenho pensado bastante em Nosso Senhor e naquilo que Ele pode fazer por nós. Pois bem, paralelamente, tive também sempre a sensação que se Jesus regressasse de novo à Terra, tal como agora irá regressar por obra, graça e milagre do evangelho escrito pelo irmão d'Ele, também de novo surgiria alguém disposto a trair uma segunda vez o Salvador por trinta sujas moedas de prata. Esse Roberto Lebrun não passa de um maníaco que odeia Cristo. Se Cristo se sentasse entre nós, seria mais uma vez inspirado dizendo:«Em verdade vos digo que um de vós me há de trair»; e quando lhe perguntassem quem seria o traidor, Nosso Senhor responderia de novo: «O que meter comigo a mão no prato, esse me há de trair». E Cristo molharia a sopa e dá-la-ia ao seu Robert Lebrun... talvez a de Vroome e a você próprio.
Era coisa completamente absurda, ouvir as palavras e atos de Cristo na “Última Ceia”; pronunciadas por um capitalista americano, um vendilhão de bíblias, por meio de uma chamada de longa distância desde Amsterdã.
Entretanto, Wheeler prosseguira:
- Steve, siga o meu conselho, não queira fazer parte dessa traição imunda. O Cristo verdadeiro está entre nós. Deixe-O viver. Não permita que um tal Lebrun se converta num Judas do século vinte. E quanto a si, Steve, não queira ser o Pilatos do Senhor. Não pergunte outra vez o que é a verdade... quando tem a verdade ao seu alcance.
-...Mas, e se a verdade pertencer a Lebrun? O que acontecerá se na segunda-feira ele me aparecer com...
- Lebrun não irá ao encontro marcado - disse o editor peremptoriamente - nem na segunda-feira, nem nunca mais. Apóia-nos a autoridade das maiores sumidades do mundo em matéria bíblica. E você, o que é que você tem? A história da carochinha de um ex-condenado maluco determinado a assassinar Deus e o bem-amado Filho. Pense bem nisto, Randall.
O ruído do desligar do telefone foi como que uma explosão para o ouvido de Randall, e ele seguiu o conselho do seu «patrão», pensou em tudo o que tinha escutado.
Mas o seu pensamento devotou-se, essencialmente, a rememorar as últimas palavras proferidas por Wheeler: E você, o que é que você tem? A história da carochinha de um ex-condenado maluco...
Ex-condenado.
Como é que Wheeler sabia que Robert Lebrun fora um condenado? Randall pusera o máximo cuidado em não lhe revelar essa faceta da vida de Lebrun. Não proferida a mais leve palavra do passado do falsificador...
Não obstante, Wheeler sabia que Lebrun era um ex-condenado. Era estranhamente sinistro, e Randall estremeceu. Naquele momento teve um pressentimento de algo que desconhecia mas que poderia representar uma ameaça, um perigo diabólico.
Finalmente segunda-feira à tarde. O sol começava a declinar e o dia mantinha-se quente sem estar abrasador, enquanto Randall se encontrava sentado no café Doney, da Via Veneto, esperando por Robert Lebrun.
Distraído, brincava com a taça de campari colocada na sua frente. A cabeça voltava-se instintivamente, para a esquerda e para a direita, para a direita e para a esquerda-como se assistisse a um jogo de tênis -observando o passar incessante dos transeuntes cruzando para cima e para baixo, através a passagem entre as mesas.
Era cansativo manter-se naquela tensão constante. Randall pensou que Lebrun se apresentaria como prometera e tentou descontrair-se. Passou a mão, numa massagem, pela parte anterior do pescoço, sentindo os músculos tensos como cordas de violino. Depois deu-se ao luxo de se recostar na cadeira de vime e começar a devanear.
O espaço de tempo entre a partida de Lebrun, no sábado ao fim de tarde, e aquela espera no Doney na segunda-feira, talvez fosse difícil suportar se Randall não tivesse ocupado todos os seus momentos com trabalho. Diga-se em abono da verdade, que não conseguira trabalhar no sábado à noite. Depois de Lebrun sair do quarto, mas, particularmente, depois do conflito telefônico com George L. Wheeler, sentira-se demasiado agitado para trabalhar com calma. No entanto, enquanto comia uma rápida refeição que mandara servir no quarto, ponderara todos os pontos essenciais do futuro imediato. O que é que aconteceria se... apesar do desprezo, ridicularizante de Wheeler, sobre as possibilidades da falsificação... Lebrun, entregasse de fato provas absolutas e irrefutáveis da mistificação? Qual seria o próximo passo a dar? Dirigir-se-ia a Wheeler, a Deichhardt e aos outros editores, apresentando-lhes as provas e obrigando-os a aceitarem aquilo que era impossível negar? Por outro lado, que fazer se eles continuassem irredutíveis na rejeição da verdade? Sim, que fazer? Seria improvável tal atrevimento de ignorar a existência das provas verdadeiras de uma falsificação, mas, se pretendessem ignorá-las?
Existiam outras alternativas, que Randall ponderava como possibilidade a levar em consideração. A única coisa que não divisara claramente era o que é que tudo aquilo representaria pra si, excetuando a satisfação de descobrir a verdade. Uma sombria satisfação, essa perspectiva de verdade, acompanhada pela destruição de uma fé revivida. Sombria ou não, de certa maneira, emprestava uma nova dimensão ao seu ser mais recôndito.
No dia anterior, domingo, durante quase todo o dia e parte da noite, trabalhara com afinco. Continuava a vigorar o seu contrato com a Ressurreição Dois e a constar das folhas de pagamentos e sentia-se no dever de retribuir essa afinidade. Todavia, o trabalho parecia não querer andar, tratava-se de um trabalho arrancado a ferro, operar a coletânea de pesquisas feitas e esquematizar informações para a imprensa, revelando o milagre do Novo Testamento Internacional. Trabalho cansativo por se tratar de preparativos para glorificar aquilo que considerava uma causa perdida e uma mistificação que nunca veria a luz do dia.
Também no dia anterior, apesar de ser domingo, fizera muitos telefonemas para Amsterdã, pelo menos seis ou sete telefonemas, colaborando com o seu pessoal de relações públicas. Sim, todos estavam no Krasnapolsky, apesar de ser domingo, dedicados e dando o melhor do seu esforço...O'Neal, Alexander, Taylor e Boer. Homens e mulheres, os fiéis da Ressurreição Dois, leram-lhe as muitas prosas para a campanha publicitária. Sugeriu-lhes correções ou retificações e fornecera-lhes diretrizes de última hora. Em troca, ditara-lhes os seus principais pensamentos para publicação final, notas destinadas imediatamente ao copiador.
A certa altura, Jessica Taylor, como que por acaso, dissera-lhe do regresso de Angela Monti de Roma, perguntara por ele, ficara surpresa de não estar em Amsterdã e mostrara-se preocupada. Randall pedira a Jessica, para transmitir a Angela, que ainda se encontrava em Roma fazendo umas anotações, ocupado numas tentativas úteis, voltando na terça-feira. Jessica perguntara-lhe se era tudo o que queria que transmitisse a Ângela. Sim, era tudo, excetuando dizer-lhe, para tomar conta do seu gabinete e atender todas as chamadas telefônicas.
A não ser Wheeler, nenhum outro componente do pessoal da sua seção lhe perguntara que raio é que ele fazia em Roma nesta altura de trabalho tão intenso.
No dia anterior fizera mais duas coisas importantes: a primeira, vital; a segunda, de certa maneira, crucial.
A vital fora telefonar ao seu advogado Thad Crawford. Ligara para casa dele em Nova York, acordando-o e ordenara-lhe para ir ao banco na segunda-feira logo de manhã, utilizando todos os poderes de homem de leis, para que o banco enviasse para a sua filial de Roma uma transferência de 20000 dólares. Recomendou-lhe que a ordem especificasse: pagamento feito em dinheiro e na moeda padrão americana.
A crucial apenas porque Wheeler o enervara quanto à veracidade da história de Lebrun, ou carência de verdade - procurara certificar-se, relativamente ao ex-condenado, com quem estava disposto a negociar. Um velho amigo de Randall - os dois andaram juntos no negócio de publicidade - desistira das relações públicas, há muitos anos, para voltar ao seu primeiro amor, o jornalismo, fixando-se em Paris. Trabalhava como correspondente da Associated Press, situada na Rue de Berri. Tratava-se de Sam Halsey, um homem duro, franco, bom profissional e imune à rotina, cuja amizade com Randall se mantivera pelos anos a fora com encontros em Nova York, para beberem juntos e darem uma volta, sempre que Halsey ia aos Estados Unidos de licença.
A tarefa consistiria em localizar Sam Halsey na cidade luz através do telefone. Por sorte, Randall encontrara imediatamente o amigo, trabalhando solitário a noite, em sua escrivaninha da Associated Press, tão folgado e profano como sempre.
Randall dissera-lhe que precisava de um favor urgente, um trabalho de investigação, com necessidade das respostas no início da tarde de segunda-feira, o mais tardar. Haveria possibilidade de Sam ter alguém disponível, para encarregar-se daquele trabalho? Sam perguntara-lhe do que se tratava. Randall explicou sua necessidade em saber se o Exército Francês formou um regimento em 1915 chamado Força Expedicionária da Ilha do Diabo. Pretendia também, saber se nos arquivos do Ministério da Justiça haveria cadastro referente a um jovem francês chamado Robert Lebrun, que foi preso e julgado por falsificação em 1912, sendo condenado a ir para o exílio da Ilha do Diabo. Intrigado, Sam Halsey oferecera-se para fazer ele próprio a investigação, prometendo telefonar-lhe dizendo qualquer coisa, no dia seguinte de manhã.
Naquele dia, segunda-feira, Randall, tanto de manhã como o meio da tarde, não trabalhara para a Ressurreição Dois. Pelo contrário, como Wheeler muito bem frisara, Randall trabalhara contra a organização do KrasnapoIsky.
Thad Crawford manobrara de maneira a transferir-lhe aquilo que Wheeler - outra vez Wheeler, maldição! - caracterizava como as trinta moedas de prata. Randall fora ao banco American Express, da Piazza di Spagna, buscar os 20000 dólares. O dinheiro, em notas de fácil transação, encontrava-se no cofre alugado no Excelsior, pronto a ser entregue a Lebrun em troca das provas da falsificação.
Antes de levantar o dinheiro, Sam Halsey fizera dois telefonemas de Paris. O primeiro informara que depois de várias diligências; usando o poder da imprensa e algumas influências fortes lançadas em cheio; na seção de relações públicas do Ministério da Defesa Nacional; conseguira, embora relutante, licença para examinar alguns documentos classificados do Serviço Histórico do Exército, em Vincennes. No arquivo, o diretor mostrara-se camarada e cooperativo. Procurando entre velhos documentos, Sam tivera a confirmação de ter na verdade sido estabelecido um regimento de condenados voluntários da Guiana Francesa em 1915. Regimento que combatera sob a designação da Força Expedicionária da Ilha do Diabo e circunscrito ao comando do general Pétain. Todavia, surgira um desapontamento. Na lista dos voluntários não constava qualquer «Robert Lebrun». O nome mais parecido encontrado na lista entre os condenados relativos à letra L, fora o de um tal «Laforgue, Robert»; Sam não repousara sobre aqueles primeiros louros. Deu garantia de dirigir-se ao Ministério da Justiça para fazer umas sondagens e telefonaria a Randall algumas horas depois.
Menos de uma hora depois, de fato, Sam Halsey telefonara para Roma. Os poeirentos arquivos do Ministério da Justiça relativos ao ano de 1912 não continham o cadastro de nenhum criminoso com o nome de «Lebrun, Robert». Porém, com o seu sexto sentido de jornalista, como um cão de caça, seguindo uma pista pelo faro, Sam Halsey, acabara de encontrar o cadastro de um tal “Laforgue, Robert”.
-E Steve, acertei em cheio... um falsificador de documentos e falsário, operando sobre cinco outros nomes diferentes. Aperta bem o cinto, meu rapaz, um dos nomes que figuravam no registro era «Lebrun, Robert», condenado por toda a vida à deportação na Guiana francesa em 1912.
De modo que Lebrun não mentira. Apesar das advertências de Wheeler, Lebrun não fora ainda apanhado em nenhuma falsidade, pelo menos, no que se referia à sua personalidade. A crença de Randall na história da mistificação, e em que as provas seriam apresentadas, restabeleceu-se completamente.
Fora com a maior confiança, que Randall se dirigira ao Doney, dez minutos antes das cinco horas, a fim de esperar a chegada de Robert Lebrun.
Naquele momento, Randall regressou daquela revisão do passado, olhando nervoso para o relógio de pulso. Exatamente cinco e vinte e cinco. Olhando para toda aquela gente que ia e vinha. Viam-se muitos rostos estranhos, todos diferentes uns dos outros, mas a cara que estava tão bem gravada na memória de Randall, não figurava entre aquela multidão desconhecida,
Passavam trinta minutos da hora determinada por Lebrun para o encontro.
Randall concentrou-se, cada vez mais nervoso, na observação daquela gente; esperando o excitante momento no qual visse o velhote, coxeante, quase corcunda, com as madeixas de cabelo ralo, os óculos de lentes escuras e grossas. Duras feições corroídas por profundas rugas, como um campo arado, o homem que lhe entregaria dois objetos em troca de dinheiro: primeiro uma pequena entrega, com os devastadores fragmentos perdidos, portando o grito da fraude traçado em tinta visível e depois, a outra entrega mais volumosa de um pequeno cofre de ferro, contendo as terríveis partes desaparecidas de um antigo quebra-cabeças, que representava a missa de réquiem para o Evangelho de Jacob e para o Pergaminho de Petrônio, o centurião.
Escoaram-se os minutos, minutos como a eternidade, e ninguém à vista que tivesse a mínima semelhança com Lebrun.
A taça de campari em cima da mesa, a qual Randall ainda não tocara, foi finalmente esvaziada de um trago.
E nada de Robert Lebrun.
O ânimo e a confiança de Randall foram-se desvanecendo. As grandes esperanças principiavam a ruir como um castelo de cartas soprado por uma criança. Premonição de um desastre total, como que apanhado pelo princípio de uma avalanche esmagadora. Cinco minutos depois das seis atingiu o ponto máximo do desânimo. Tudo se desmoronara até o fundo do abismo.
Wheeler avisara-o: Lebrun não irá ao encontro marcado...
E de fato, faltara.
Randall sentiu-se esmagado e logo a seguir enganado, indignado. Afinal que acontecera ao velho filho da mãe? Acabara por recear entregar os seus pergaminhos e mudara de opinião? Teria decidido que não devia confiar naquele novo sócio, acabando com o negócio? Entrara em negociações com qualquer outra pessoa por uma oferta maior?
Fosse qual fosse a resposta, Randall sentia-se obrigado em saber a razão porque Robert Lebrun desistira da relação feita. Se Lebrun não vinha ao seu encontro, nesse caso, diabos levassem todo aquele sujo assunto, iria ele ao encontro de Lebrun. Ou, pelo menos, tentaria ir ao encontro de Lebrun.
Randall colocou uma nota de 500 liras e uma gorjeta em cima da mesa. Levantou-se e foi à procura do seu “especialista em Lebrun”, seu orientador pessoal do Doney, Júlio o chefe-de-mesa.
Júlio estava precisamente no limiar da porta que dava para o restaurante, ajustando seu lacinho. Ao ver Randall, acolheu-o com entusiasmo e calor.
-Está tudo correndo bem, Mr. Randall?
-Não muito bem, Júlio - disse Randall -Combinei encontrar-me aqui com o nosso comum amigo, aquele a quem vocês chamam Toti ou Duca Minimo, o meu Robert Lebrun. Combinamos encontrar-nos aqui, na esplanada, às cinco horas. Já passa das seis e ele ainda não apareceu. Teria vindo antes das cinco?
Júlio abanou a cabeça negativamente.
-Antes dessa hora havia pouca gente na esplanada, eu teria inevitavelmente dado por ele.
-Anteontem você disse-me que ele às vezes vinha a pé até ao Doney. Concordamos que com a sua perna artificial não percorreria grandes distâncias, o que provavelmente significará que deve morar nas redondezas, hem?
- Sim, também penso que ele deve morar perto.
-Júlio, reflita bem. Alguma vez ouviu dizer onde é que ele mora?
O chefe de mesas enrugou a testa, acabando por declarar com ar desalentado:
-Não, nunca ouvi dizer onde ele morava. Não faço a menor idéia. Afinal de contas, Signore Randall, são tantos os clientes, mesmo os mais regulares...- Tentava ser prestativo. Por outro lado, nas vizinhanças mais imediatas não há muitas residências privadas e aquelas existentes nunca estariam ao alcance da bolsa de Toti... de Lebrun... do Signore Lebrun. Tenho impressão de que ele é pobre.
-Sim, é pobre.
-De modo que também não se pode dar ao luxo de viver permanentemente num hotel. Nestas redondezas existem umas pensões menos dispendiosas -principalmente utilizadas pelas moças de vida fácil que andam pelas ruas... mas até mesmo tais pensões seriam demasiado caras para o nosso amigo. Tenho a impressão que ele deve viver num pequeno apartamento. Ora, não muito longe daqui, existem uns quantos desses apartamentos para as classes menos beneficiadas. É possível que ele viva num desses apartamentos... mas onde? É isso que eu não sei.
Randall procurou a carteira no bolso interior do casaco. Até mesmo na Itália, onde os naturais são em geral, mais gentis e amigos para ajudarem os estrangeiros, do que em nenhuma outra parte da Europa, a lira continuava servindo como uma espécie de estímulo para uma cooperação mais eficaz. Randall meteu três notas de 1000 liras na mão de Júlio.
- Júlio, por favor, preciso que me auxilie mais...
- É muita bondade sua, Mr. Randall - agradeceu o chefe de mesas, metendo rapidamente as notas no bolso.
Randall continuou:
-É possível que você conheça alguém que possa ajudar neste caso. Anteontem fez com que acabasse por encontrar Lebrun. Talvez possa novamente dar um jeito se pensar bem...
A testa de Júlio enrugou-se e passando um momento em concentração disse:
-Existe uma pequena possibilidade, mas não posso prometer nada. Vou ver o que posso fazer. Se quiser ter a bondade de esperar.
Encaminhou-se rápido para a passarela central que dividia as duas partes da esplanada, fez um ruído imperioso por meio da fricção de dois dedos para vários garçons, chamando:
-Per piacere! Facciamo, presto!
Os garçons apressaram-se, convergindo para o chefe. Randall observou que Júlio lhes falava animado, gesticulando, imitando um passo rígido, para descrever a perna artificial de Lebrun. Quando acabou a sua mímica, vários dos garçons reagiram encolhendo os ombros. Dois ou três coçaram as cabeças, como quem pensa, mas continuaram calados como ratos. Finalmente, Júlio, com um gesto, mandou-os para os seus postos. Seis dos garçons voltaram para os locais que anteriormente ocupavam, mas um deles ficou estático, pensativo, com o queixo apoiado numa das mãos.
Júlio principiara a encaminhar-se para Randall, com uma expressão de desapontamento, quando de repente o garçon que ficara pensativo chamou:
- Júlio!
O homem correu positivamente atrás do chefe e puxou-lhe pela manga. Júlio inclinou um pouco a cabeça como para ouvir em segredo aquilo que o outro lhe dizia. O garçon apontou um dedo para o outro lado da rua, ao mesmo tempo que Júlio acenava com a cabeça, alargando a boca num sorriso.
- Bene, bene, Grazie! - exclamou finalmente o chefe, dando um pancadinha amigável nas costas do subordinado.
Randall continuava no limiar da porta do restaurante, com ar de espanto, quando Júlio chegou perto dele com uma expressão radiante.
-Talvez seja possível, Mr. Randall, embora com tais mulheres nunca se possa saber ao certo. Os garçons, os nossos criados, conhecem perfeitamente a maior parte dessas moças italianas que vagueiam pelas ruas, bandos de jovens prostitutas. Tal como, em muitas outras cidades da Europa, elas andam por toda a Roma, principalmente pelos Jardins do Pincio, pelo Parque Caracalla e pela Via Sistina. Junto da Piazza di Spagna, mas as mais bonitas e engraçadas freqüentam a Via Veneto para brindarem os transeuntes com os seus sorrisos fatais e fazerem o seu negócio. A esta hora há muitas que se sentam para tomarem o aperitivo, algumas aqui mesmo, no Doney, mas com mais freqüência do outro lado da rua, no Café de Paris, o nosso principal competidor. De modo que Gino, aquele garçon me falou, lembrou-se que Toti... o seu Lebrun... tem muitas amizades entre as prostitutas. Gino disse-me que até já quis casar com uma.
-Sim, sim, já ouvi dizer isso mesmo -corroborou Randall, apressado.
- Gino disse que aquela com quem Lebrun tencionava casar, quando tivesse muito dinheiro, tem uma amiga com quem partilha o mesmo quarto e que essa amiga quase todos os dias se senta à mesma mesa do Café Paris, mais ou menos a esta hora. Chama-se Maria. Eu também a conheço. Gino pensa que ela saberá onde Toti vive.-Júlio coçou a cabeça.- Talvez ela não queira dizer... mas, vendo dinheiro...bem, o dinheiro costuma soltar as línguas, não é verdade? Gino julga que ela esteja agora no Paris. O melhor é darmos uma olhada. Eu vou consigo.
-Será capaz de fazer isso, Júlio?
Júlio mostrou toda a dentadura num largo sorriso.
- Para um italiano deixar o trabalho para falar a uma moça bonita não constitui problema... pelo contrário, é um prazer.
E Júlio começou a caminhar pelo passeio, seguido por Randall. Passaram o Hotel Excelsior e detiveram-se na esquina imediata à espera que abrisse o sinal para passagem de pedestres. Do outro lado da rua, paralela ao Doney, Randall pôde ver uma tabuleta em letras vermelhas onde se lia: CAFÉ PARIS - RESTAURANTE. As mesas da esplanada estavam parcialmente ocultas por enormes vasos com plantas, e o local parecia ter ainda mais freqüência do que o Doney.
No semáforo acendeu-se a luz verde e eles atravessaram pela zona demarcada da zebra. Enquanto caminhavam, Júlio voltou-se para Randall e disse-lhe:
-Vou apenas apresentá-lo como um amigo americano que pretende travar conhecimento. Depois deixo-os. É a melhor maneira. Pode explicar-lhe diretamente o que pretende. Todas essas moças falam o seu inglês, e a Maria também.
Logo que chegaram ao quiosque, de venda de revistas na outra esquina, Randall segurou Júlio por um momento.
-Quanto é que lhe devo oferecer?
-Para os italianos, uma moça como a Maria, uma prostituta de certa classe, leva cerca de dez mil liras, ou quinze dólares. Mas para um turista, especialmente para um americano, habitualmente mais endinheirado, e que em regra não discute preços, é possível que ela peça vinte mil liras, cerca de trinta dólares... com um pouco de discussão, talvez o preço desça... Esse dinheiro dá direito a um máximo de meia hora na cama, possivelmente em alguma pensão escusa. O tempo é escrupulosamente contado. Se apenas quiser falar, a importância é a mesma, mas - Júlio piscou malicioso o olho - pode-se perfeitamente falar e fazer amor ao mesmo tempo. Estas moças orgulham-se de despacharem depressa os clientes, de modo que a meia hora transforma-se usualmente em dez minutos. São umas espertalhonas, dão conta de um homem nesse tempo. Ora vamos lá ver se ela se encontra aqui.
Júlio abriu caminho à cotovelada por entre os curiosos que rodeavam o quiosque para lerem as revistas, parou por baixo do toldo berrantemente vermelho e deu uma olhada pelas mesas. Randall tinha-o seguido, mas mantendo-se a curta distância.
Júlio continuava a observar os ocupantes das mesas, quando de repente o rosto se lhe iluminou com um ar de satisfação. Acenou, deu uma cotovelada de cumplicidade em Randall e enfiou-se por entre as mesas a caminho da fila encostada à parede. Randall trotou atrás dele como um cachorrinho perdido.
Tratava-se de uma coisinha jovem e bonita, que nesse momento extraía a azeitona, espetada num palito, que lhe adornava o copo de martini, ao mesmo tempo, fazia um gesto de cumprimento para Júlio. Tinha o cabelo negro e comprido emoldurando um rosto de Madonna, um quadro de pureza e inocência, apenas desmentido pelo vestido leve de verão, generosamente decotado para lhe expor uns seios grandes e rijos e generosamente curto e apertado, expondo umas pernas e parte das coxas bem torneadas e tirando partido de um traseiro bem lançado e abundante.
- Maria - murmurou Júlio, fazendo o rápido gesto de lhe beijar a mão como se ela fosse uma grande dama.
-Signore Júlio- correspondeu a moça, agradavelmente surpresa.
Júlio ficou de pé, inclinando-se para a jovem para lhe murmurar algumas rápidas palavras em italiano. Ouvindo-o atenta, ela acenou com a cabeça duas vezes e olhou francamente para Randall rígido, em pé, sentindo-se com ar de pateta.
Júlio fez um sinal a Randall para se aproximar.
-Maria, aqui está o meu amigo americano, Signore Randall. Peço-te que sejas boa para ele.-Voltou-se para Randall com um sorriso.-Ela será camarada pra você. Por favor, sente-se. Arrivederci.
Júlio desapareceu com a maior rapidez e Randall ocupou uma cadeira de vime ao lado de Maria, sentindo-se ainda pouco à vontade e pensando se algum dos clientes das mesas próximas
estaria olhando. Deu uma olhada de viés e teve a consolação de verificar que ninguém se preocupava com ele.
Maria deslocou-se mais para perto dele e os montículos parcialmente à mostra dos seus seios tremeram provocadores. Ela cruzou novamente as pernas e dirigiu-lhe um sorriso.
-Mi fa piacere di vederlo. Da dove viene?
-Tenho pena de não falar italiano -desculpou-se Randall.
- Perdoe-me - disse Maria. - Estava dizendo que tinha muito prazer em conhecê-lo e perguntei onde é a sua casa.
- Sou de Nova York e também tenho muito prazer em conhecê-la, Maria.
- Júlio disse-me que era amigo do Duca Mínimo - alargou o sorriso - é verdade?
- Sim, somos amigos.
- Um velhote simpático. Quis-se casar com Gravina, a minha melhor amiga, mas faltou-lhe o dinheiro. Pouca sorte.
- É possível que em breve tenha muito dinheiro - disse Randall.
- Sim? Verdade? Espero que sim. Hei de dizer a Gravina.
Os olhos da moça, captaram o olhar apreciador de Randall.
-Gosta de mim? Pensa que sou bonita?
-É muito bonita, Maria.
- Bene. Quer ir já fazer amor comigo? Farei tudo o que quiser consigo. Amor bom. Amor regular. Amor francês. O que desejar. Ficará satisfeito. São apenas vinte mil liras. Não é muito para passar um bom momento. Quer ir já com Maria?
-Escute, Maria, ao que parece Júlio não lhe disse... mas há uma coisa mais importante que preciso.
Ela pisou os olhos e considerou-o como se Randall fosse maluco.
-Mais importante do que o amor?
-Neste momento, sim. Maria, sabe onde Lebrun... o Duca Mínimo mora?
A moça pôs-se imediatamente em guarda.
-Porque é que quer saber?
- Tinha a residência dele e perdi-a. Devia ter-me encontrado com ele há uma hora no Doney. Júlio pensou que você podia ajudar-me.
- E foi por isso que me procurou?
- É uma coisa muito importante.
- Importante pra você, mas não para mim. Tenho muita pena. Sei a residência dele mas não lhe posso indicar. Tanto eu, como a minha amiga Gravina, juramos nunca dar a ninguém a residência do Duca. Não posso quebrar a minha jura. De modo que agora talvez tenha tempo para ser amado por Maria.
-Só me sobra tempo para vê-lo, Maria. Se o Duca Mínimo é seu amigo, posso dizer-lhe que pretendo saber a residência para o ajudar.- Subitamente lembrou-se e levou a mão ao interior do casaco, tirando a carteira.-Você disse que faria amor comigo por vinte mil liras. Ok, ganhará vinte mil liras se me quiser fazer feliz de outra maneira.
Randall tirava da carteira as grandes notas de mil liras, quando ela olhou em volta nervosa e lhe empurrou a mão com a carteira.
-Por favor, aqui não.
- Desculpe - disse Randall, metendo a carteira no bolso, mas mantendo um punhado de notas fechadas na mão. - Você não tem que fazer nada de especial para obter o dinheiro, apenas mostrar-me onde ele vive.
Maria contemplou o dinheiro semi-oculto na mão de Randall
-Jurei não dizer... mas o senhor quer realmente ajudá-lo. Quer fazê-lo rico?
- Quero - respondeu Randall, disposto a concordar com tudo o que ela quisesse.
-Nesse caso, para bem dele, indicar-lhe-ei onde mora.
O apartamento dele fica aqui perto.
- Obrigado.
Sem demora, Randall pagou a despesa da moça, levantou-se ao mesmo tempo que ela e saíram juntos da esplanada do Café de Paris. Passaram pelo quiosque da esquina, pelo sinal de pedestres aberto e seguiram pela Via Veneto até à esquina do Hotel Excelsior.
Maria indicou a larga rua que corria ao longo da ala lateral do hotel, dizendo.
-Via Boncampagni. Ele vive nesta rua, não muito longe, a três ou quatro quarteirões de distância. Podemos ir a pé.
Maria enfiou o seu braço no de Randall e começaram a seguir os dois pela Via Boncampagni. A moça à medida que caminhava, cantava em surdina, mas, no fim do primeiro quarteirão, parou abruptamente e estendeu a mão aperta para Randall.
-Agora pode pagar-me.
Randall colocou-lhe na mão o monte de liras dobradas. Maria, cuidadosamente, contou as notas. Satisfeita, enfiou o dinheiro na bolsa.
-Vou levá-lo ao seu amigo.
Maria reatou a caminhada, sempre a cantar em surdina, acompanhada por Randall.
Ao passarem pelo terceiro quarteirão, Randall perguntou.
-Como é que sabe onde é que o Duca Mínimo mora?
-Vou dizer-lhe, mas não conte ao seu amigo. O Duca é um homem muito orgulhoso, mas em certas ocasiões, quando Gravina ou eu, ou mais uma, ou duas moças do nosso círculo, não podemos encontrar lugar nas pensões por estarem cheias, entramos num arranjo com ele para satisfazermos os nossos clientes, utilizando o quarto dele para fazer amor. Cada vez que usamos o quarto damos-lhe metade do que ganhamos, mas não nos importa. È um homem gentil e bondoso para nós, além disso, o dinheiro serve para o ajudarmos a pagar o aluguel.
- E quanto é que ele paga de aluguel?
-Cinqüenta mil liras por mês, por um quarto, uma pequena cozinha e um banheiro.
- Cinqüenta mil? Equivale a cerca de oitenta dólares. E ele pode pagar tanto?
-Ele diz que já vive ali há muitos anos. Desde que era rico.
Atravessaram um cruzamento, a Via Piemonte. Percorreram o quarto quarteirão.
- Desde que era rico? E quando é que ele foi rico - perguntou Randall.
-Talvez há quatro ou cinco anos, segundo ele diz.
Randall pensou que se ajustava um novo dado do problema. Cinco anos antes, Lebrun recebera parte, do bolo de Monti pela descoberta de Ostia Antica.
-Pronto, chegamos- anunciou Maria.
Pararam em frente de um edifício de apartamentos de seis andares, edificação de idade indeterminada, com a pintura da fachada num estado pouco agradável. A entrada do edifício situava-se entre a Iranian Express Company e uma loja com uma tabuleta dizendo BARBIERE, onde se via à entrada o poste colorido dos barbeiros.
Por cima do quadrado de mármore que formava a porta de entrada, via-se uma placa de pedra com a palavra CONDOMINIO.
Por baixo ficavam duas maciças metades de uma porta de madeira, abertas de par em par, logo seguido de porta em vidro. Para além divisava-se um saguão e aquilo que parecia ser uma casinha ou um balcão, vendo-se ainda mais além, a sugestão do que devia ser um pátio.
Maria estendeu a mão.
-Vou deixá-lo aqui, tenho que voltar ao trabalho.
Randall apertou-lhe a mão.
-Obrigado, Maria. Mas onde é que...
- Entre por aquela porta. O cubículo que se vê à direita é onde o portiere guarda a correspondência. À esquerda há um elevador e também uma escada. Mas deve primeiro encontrar-se com o portiere para lhe dizer que quer ver o Duca Minimo. Se ele não estiver no cubículo, vá até ao pátio. Num dos lados vêem-se umas janelinhas cheias de flores onde vive o portiere e a mulher. Chame-o e ele leva-o até ao seu amigo. Buona fortuna - Começou a caminhar para ir embora, mas voltou atrás dados alguns passos, para dizer: - Mr. Randall, quando vir o Duca não lhe diga que foi a Maria quem o trouxe até aqui.
- Prometo que não direi, Maria.
Ficou a vê-Ia caminhar para a Via Veneto, com as opulentas nádegas a ondularem em compasso com a bolsa, branca.
Subiu o lance de escadas que levava à entrada, abriu o porta e entrou no saguão. O cubículo do portiere estava vazio. Randall dirigiu-se então para o sombrio pátio.
O centro estava ocupado por grandes vasos providos de plantas de borracha, com as suas largas folhas de um verde escuro. À esquerda, numa janela aberta de par em par, via-se um homem ainda jovem, muito moreno, com todo o tipo de siciliano, que regava uns vasos de flores alinhados no peitoril.
O homem parou de regar e olhou curioso para Randall.
- Boa-tarde - cumprimentou Randall. - Fala inglês?
-Si. Um pouco.
- Onde é que posso encontrar o portiere?
- O portiere sou eu, Deseja alguma coisa?
- Um amigo meu vive neste prédio. Queria...
-Só um momento.
O portiere desapareceu da janela e reapareceu momentos depois a uma porta lateral que dava para o pátio. Era um homem baixinho, de aspecto desenvolto e comunicativo, que vestia uma blusa azul e umas calças do mesmo tecido, manchadas. Confrontou Randall de mãos nas ancas, perguntando:
- Procura alguém?
- Sim, um amigo meu. - Randall conjecturou que nome havia de utilizar. Lamentou não ter perguntado a Maria o nome porque o velhote era conhecido. O mais provável era ter dado o nome italiano. - O Signore Toti.
- Toti? Lamento, mas não temos nenhum inquilino que se chame Toti.
-Tem uma alcunha. Chamam-lhe Duca Mínimo.
- Duca ... ? - O portiere abanou vigorosamente a cabeça. Não, não há aqui ninguém com esse nome.
Nesse caso devia ser Lebrun, decidiu Randall.
- Bem, na verdade trata-se de um francês... a maior parte dos amigos conhecem-no pelo nome de Robert Lebrun,
O portiere fitou Randall.
-Temos um inquilino chamado Robert, um francês, mas não é Lebrun. Talvez quisesse dizer Laforgue.
Robert Laforgue, hem? Laforgue, evidentemente. Era o mesmo nome obtido por Sam
Halsey, da Associated Press de Paris, nos registros do Ministério da Justiça e nos Arquivos Históricos do Exército, O verdadeiro nome de Lebrun.
- Sim, Laforgue! É esse mesmo. Troco sempre o apelido dele. Justamente, Robert Laforgue, é a pessoa que pretendo visitar.
O porteiro olhava agora para Randall de um modo estranho.
-É da família dele? -perguntou.
-Sou um amigo íntimo. Laforgue espera-me. Aguarda a minha visita para tratarmos de um importante negócio.
- Mas isso é impossível - murmurou o portiere. - O Signore Laforgue foi ontem vítima de um desastre grave em frente da Stazione Ostiense, era meio-dia. Foi atropelado por um carro que fugiu. Morreu imediatamente. As minhas condolências, signore, mas o seu amigo já não pertence ao número dos vivos.
Um jovem graduado da polícia, simpático e cooperativo acompanhara Randall até à porta da Questura, a central da polícia romana, chamara-lhe um táxi e instruíra o motorista:
-«Obitorio, Víale dell'Universitá».
Dissera mais qualquer coisa em italiano, repetindo a palavra «Obitorio» e especificara o endereço exato, «Piazzale del Verano, 38».
O motorista do táxi fizera rapidamente o sinal da cruz, agarrara-se ao volante e arrancara, e naquele momento dirigiam-se, a razoável velocidade, para o imenso complexo universitário de Roma, onde ficava situado o necrotério da cidade.
Sacudindo de um para outro lado do assento do táxi, quando este seguia ao sabor das curvas e contra curvas do caminho. Randall sentia-se ainda entorpecido pelo rude golpe que sofrera, de que começava lentamente a recuperar.
Refletiu que embora muitas pessoas, durante a vida, estejam sujeitas a vários abalos e decepções, com certeza, poucas eram tão afetadas como ele em tão breve espaço de tempo. Em pouco mais de um mês fora presa de emoções intensas e violentas. Primeiro a apoplexia do pai, depois o caso de Bárbara e o divórcio, ligado ao fato de saber da filha, Judy, ligada a um caso de entorpecentes. A seguir toda a tensão vibratória da Ressurreição Dois, os sentimentos arrasadores de desconfiar da lealdade de Angela e o terrível momento em se inteirara do lapso descoberto por Hans Bogardus. Mais recentemente o choque de encontrar o Professor Monti numa clínica de doenças mentais, na altura em que o Dominee de Vroome lhe revelara a existência de uma mistificação e de um falsificador nos documentos Jacob e Petrônio. Os momentos alternados de temor e esperança em procurar localizar Lebrun, como se os choques violentos se tornassem uma constante da sua existência.
Todavia, em nenhuma outra ocasião se lhe afigurava o sofrimento da emoção mais forte do que no momento fatídico em que o portiere lhe anunciara a morte violenta de Robert Lebrun.
Fora tão inesperado o golpe que ficara meio louco. No entanto, o homem é um animal estranho com grande capacidade de sobrevivência, pelo menos, quando tem uma missão a cumprir que o manda sobreviver, e ele, aliás, acostumara-se já a um sem número de vicissitudes bruscas desde que se juntara à Ressurreição Dois.
Lembrava-se, como se fosse num sonho, o modo como o portiere lhe relatara os acontecimentos do dia anterior, domingo. A polícia apareceu no prédio da Via Boncampagni para se certificar se morava lá um Signore Robert Laforgue. Uma vez informados que vivia de fato um Laforgue no prédio, os agentes participaram ao portiere que o inquilino fora morto num acidente de viação três horas antes.
A vítima ia atravessar a praça da Pirâmide de Caio Cestio para a Porta de San Paolo, onde se situava a pequena estação de trem-de-ferro chamada Stazione Ostiense, quando um grande carro preto - uma das testemunhas dissera tratar-se de um Pontiac americano, enquanto outra contestara ser um Aston Martin inglês - entrara a toda a velocidade na praça, apanhara a vítima em cheio, lançando o corpo a dez metros de distância, e, na confusão que se seguira, com as pessoas correndo de todos os lados, acabara sumindo num abrir e fechar de olhos, sem sequer reduzir a velocidade. A vítima do brutal choque morrera instantaneamente.
Os agentes explicaram ao portiere que os pertences encontrados nos bolsos da vítima revelaram tratar-se de Robert Laforgue e indicavam o seu endereço. Entre esses haveres não se encontrara nada que revelasse a existência de familiares ou amigos, nem qualquer cartão de seguro. Conheceria o porteiro, qualquer pessoa da família, ou amigo íntimo, a quem a polícia notificasse ou que, pudesse encarregar-se de fazer o funeral ao morto? Não, o portiere não sabia de nenhuma pessoa da família, nem tinha conhecimento de qualquer amigo da vítima. Por questão rotineira, os agentes subiram ao apartamento de Lebrun à procura de qualquer indício. Mas, ao que parecia nada encontraram de positivo para resolver a situação.
Randall recordava que pedira licença ao porteiro para visitar o apartamento de Lebrun. Como um sonâmbulo, seguira o prestável siciliano até ao elevador, onde se lembrava ter visto uma maquineta que acionava o censor por intermédio da introdução de uma moeda na ranhura -o porteiro murmurara algo, de que quem queria comodidades, tinha que pagar por elas, mas depositara uma moeda de 10 liras na ranhura e premira o botão para o terceiro andar.
Chegando ao terceiro piso, à esquerda do elevador, o porteiro abrira uma porta. No interior, passado um pequeno hall, via-se logo uma sala única, simultaneamente servindo de sala de estar e quarto. Entre as paredes, que outrora foram verdes, mas que agora apresentavam uma cor desbotada e suja, havia um divã de molas servindo de cama, dois abajur de pé alto incrivelmente feios, uma cômoda disforme, um rádio, um espelho rachado, um frigorífico pequeno do qual se projetava ainda o ruído da ligação elétrica (o portiere desligara-o imediatamente). Algumas prateleiras toscas onde se viam uns livros, brochados, com a aparência de muito manuseados (na maioria romances e livros sobre política, mas nem um exemplar que falasse de teologia, arte antiga, ou que versasse a história da Palestina ou de Roma). A meio do teto uma lâmpada protegida por um globo imundo. A seguir um aposento que parecia servir de cozinha, recheado de uma quinquilharia dificultando a circulação, uma enorme pia de zinco, e um poial de pedra com um fogão. Mais além, um banheiro minúsculo.
Com relutância, sob a vigilância do porteiro, Randall percorrera a pobre moradia, procedendo a uma busca entre os miseráveis haveres de Lebrun - dois ternos bastante maltratados, apresentando o peso dos anos e um sobretudo roto; algumas roupas interiores nas gavetas da cômoda. Com exceção de contas da mercearia, ainda não liqüidadas, não existiam ali documentos pessoais ou cartas que fornecessem qualquer pista de contato ou associação de Robert Lebrun (ou Laforgue) com qualquer ser vivo no globo terrestre.
-Nada, absolutamente - lamentara-se Randall - nem fotografias, nem notas, nem qualquer coisa escrita pela mão dele.
O portiere respondera que Lebrun, a não ser umas amigas da rua, vivera praticamente como um eremita.
- É como se alguém estivesse aqui e procurasse eliminar qualquer possível identificação - admirara-se Randall.
-Exceto os agentes da polícia, e agora o signore, com o meu conhecimento, não esteve aqui mais ninguém.
- De modo que tudo o que resta de Robert Laforgue é o seu cadáver. Bom, onde é que está o corpo?
-A polícia avisou-me que se descobrisse qualquer pessoa da família ou amigo, o corpo ficava depositado durante um mês no Obitorio...
-Necrotério?
- Si, necrotério... o corpo ficará lá depositado durante um mês à espera de alguém que pague o funeral. No caso de ninguém aparecer, o corpo será enterrado no Campo Comune...
- Campo Comune? A vala comum, onde são enterrados os corpos dos desgraçados que não têm ninguém, não é?
O portiere fizera sinal que sim.
-Penso que é meu dever ver o cadáver para ter a certeza de que é Robert Laforgue.
A polícia encontrara documentos de identificação no corpo, mas outra pessoa podia transportar documentos com o nome de Lebrun. Randall tinha que se certificar, tinha que ter a certeza.
-Como é que devo proceder para ver o corpo?
-Tem que se dirigir primeiro à Questura, a central da polícia, para obter a licença de ver o corpo e fazer a identificação.
E fora assim que Randall se dirigira à Questura, pedindo para ver o cadáver de Robert Leforgue. Tratando com um jovem graduado da polícia, Randall fornecera-lhe os vários nomes do francês morto, a idade da vítima, e uns quantos sinais particulares. Dera ao oficial da polícia o seu nome, idade e profissão e contara uma história de ter travado amizade com Laforgue em Paris, sendo seu hábito visitá-lo sempre que vinha a Roma. Preenchera quatro copiosas páginas do Processo Verbale, uma espécie de relatório oficial sobre o desastre, e o policial fornecera-lhe um passe para ver o corpo, para o identificar e reclamá-lo, se assim desejasse. O jovem graduado levara a sua amabilidade ao ponto de lhe chamar um táxi e de orientá-lo para o necrotério da cidade.
O táxi diminuiu a velocidade e Randall espreitou pela janela. Seguiam por entre os maciços edifícios do complexo universitário, a Cittá Universitaria. Ao atingirem a Piazzale dei Verano, o motorista parou o carro e apontou o dedo para um compacto edifício, num conjunto de três alas, por detrás de um muro de pedra, a que dava acesso um portão de ferro.
- Obitorio - murmurou o motorista com respeitoso temor.
Randall pagou a corrida ao homem, dando-lhe uma generosa gorjeta.
Depois do táxi desaparecer na sombra, Randall empurrou o portão de ferro, semi-aberto e penetrou num pequeno pátio. Por cima da entrada do edifício mais compacto, via-se um letreiro, iluminado por uma lâmpada, que dizia:
UNIVERSITÀ DI ROMA;
ISTITUTO DI MEDICINA LEGALE
E DELLE ASSICURAZIONI,
OBITORIO COMUNALE
Obitorio Comunale, que lugar mais incrível para finalmente se encontrar com Robert Lebrun.
No interior do edifício encontrou um guarda vestindo um uniforme indescritível. Para o vasto saguão davam várias portas. Randall mostrou o passe ao guarda e este indicou-lhe uma das portas à direita. Encostado a um comprido balcão de mármore polido via-se um funcionário de bigode examinando alguns documentos.
Formal como todos os funcionários públicos do mundo, o bigode levantou a cabeça dos documentos e perguntou qualquer coisa em italiano.
-Lamento mas só falo inglês -respondeu Randall.
-Embora não muito bem, falo qualquer coisinha de inglês.
O tom do homem era pouco menos de murmurante e respeitoso comum a gatos-pingados e a funcionários dos necrotérios em todas as cidades do mundo.
-Chamo-me Steve Randall e vim para identificar o cadáver de um amigo meu. Chamava-se em vida Robert Lebrun... não, Robert Laforgue. Foi trazido para aqui ontem.
-Tem algum documento passado pela polícia?
-Tenho -respondeu Randall, entregando-lhe o documento passado pela Questura.
O funcionário agarrou um microfone telefone que se encontrava por baixo do balcão e falou rapidamente, em italiano, dando a volta ao balcão para chegar perto de Randall.
-Faça favor de me seguir -disse.
Saíram para o vasto saguão e encaminharam-se para outra porta, com dois painéis de vidro fosco com o seguinte dizer: INGRESSO È VIETATO - que Randall conjecturou que quereria dizer proibida a entrada. O funcionário abriu a porta, e logo chegou às narinas de Randall um cheiro nauseabundo. Era o cheiro inegável da morte e teve que parar subitamente possuído por tremenda náusea. O seu primeiro instinto foi voltar-se e fugir daquele local a sete pés. Aquela identificação não tinha nenhum objetivo concreto. A sobrevivência era tudo o que importava, mas o funcionário tinha-o agarrado firmemente por um braço e arrastava-o ao longo de um comprido corredor.
No extremo do corredor, via-se um policial de sentinela em frente de uma porta com os dizeres: STANZE DI RICONOSCIMENTO.
- Que quer dizer - perguntou Randall, apontando.
- Sala de reconhecimento - traduziu o funcionário. - É aqui que pode proceder à identificação do cadáver.
A polícia abriu a porta e Randall, tapando o nariz com o lenço, obrigou-se a entrar. Tratava-se de uma pequena sala iluminada com luz fluorescente indireta. Duas portas de vidro no extremo oposto da sala foram abertas e um servente entrou empurrando uma maca de rodas onde se desenhavam as formas de um corpo coberto por um lençol branco.
O funcionário encaminhou-se para junto da maca e Randall, como um autômato, aproximou-se também. O homem pegou numa das pontas do lençol e ergueu-a parcialmente.
-Será este o seu... Robert Laforgue?
Randall sentiu que as tripas lhe vinham à boca ao inclinar-se para espreitar. Bastou um olhar para se certificar que aquele rosto marcado por fundas rugas, agora na morte amarelo como
um pouco de pergaminho, um rosto pisado, intumescido, pertencia sem dúvida a Robert Laforgue, aliás, Robert Lebrun.
-É sim - respondeu, procurando dominar a náusea.
-A sua identificação é positiva?
-Positiva.
O funcionário abaixou o lençol e fez sinal ao servente para levar a maca embora. Depois voltou-se para Randall.
- Obrigado signore. Daqui estamos despachados.
Quando saíram da sala de reconhecimento, andando pelo sombrio corredor, Randall sentia nas narinas não só o fétido cheiro da morte, mas também um odor de estranha coincidência.
Era essa a última sensação de cheiro que o avassalava. Quando pretendera ver o original do Papiro Número 9 em Amsterdã, ele desaparecera por coincidência. Quando procurara analisar o negativo de EdIund tirado ao papiro, por coincidência todos os negativos do fotógrafo foram devorados por um incêndio providencial. Há pouco, quando preparou para receber a prova da fraude, o falsificador, por coincidência, fora atropelado fatalmente por um carro desconhecido na véspera da entrega.
Atropelado ou assassinado? Coincidência...ou propósito minado?
O empregado do necrotério estava falando.
-Signore, sabe de alguém da família que possa reclamar o corpo?
- Duvido que tenha família.
-Nesse caso, como o senhor foi a única pessoa que procedeu ao reconhecimento do corpo, todas as disposições a seu favor são perfeitamente legais. - Lançou um olhar esperançado para Randall. -Claro, se o desejar.
-Que quer dizer?
-Uma vez que foi feita a identificação, já podemos dar destino ao cadáver. Se o senhor não tiver intenção contrária, o corpo será enterrado no Campo Comune...
- Ah, é verdade! Ouvi falar nisso. A vossa vala comum.
- Mas se quiser responsabilizar-se, poderemos arranjar modo de uma agência funerária se encarregar de fazer o funeral, colocá-lo em câmara ardente na capela do cemitério católico, o Cimiticro Verano, com todos os serviços religiosos inerentes. A campa terá uma pedra funerária e será enterro respeitoso, se o senhor quiser pagar.
Chegaram ao saguão e voltaram para a sala do grande balcão de mármore polido. Randall não hesitou. Sob quaisquer hipótese, Lebrun procurou cooperar. Ainda que não tivesse tido oportunidade de levar até ao fim a sua promessa, merecia sem dúvida algo em troca dos seus préstimos. Além de tudo o mais, tratava-se não de uma obra piedosa, mas do respeito devido a todo o ser humano.
-Sim, pagarei todas as despesas para que o cadáver tenha um funeral como deve ser. Apenas com uma retificação... - não se pôde impedir de sorrir levemente ao recordar as idéias de Lebrun. - Não pretendo serviços religiosos e não quero que o corpo seja enterrado no cemitério católico. O meu amigo era... um agnóstico.
O funcionário do necrotério fez um gesto de compreensão e ocupando seu lugar por trás do balcão.
-As coisas serão feitas com o senhor desejar. Depois da agência arranjar o corpo, o enterro far-se-á no cemitério não católico... no Cimiticro Acatolico. Existem muitas pessoas não crentes, principalmente poetas estrangeiros que repousam nesse cemitério. Tudo se fará de maneira correta, fique descansado. Quer pagar já, signore?
Randall pagou a quantia que o homem lhe pediu, aceitou um recibo, assinou um documento oficial da transação e sentiu-se felicíssimo por poder finalmente partir.
Quando se preparava para partir, o funcionário chamou-o.
- Signore! Um momento...
Pensando no que poderia haver mais, Randall voltou até junto do balcão de mármore. O funcionário mostrou-lhe um saco de plástico.
-Uma vez que reclamou o corpo para enterrar, tem direito aos haveres da vítima.
-O quê, às coisas que se encontram no apartamento? Pode oferecer tudo a qualquer instituição de caridade não religiosa.
- Assim se fará... mas não se trata disso, trata-se do que está dentro deste saco, os pertences pessoais do morto, encontrados na altura do acidente.
O funcionário soltou o laço que prendia a boca do saco, voltou-o ao contrário e deixou cair no balcão o conteúdo.
-Escolha aquilo que quiser como última recordação... -
Ouviu-se uma campainha tocar insistente num departamento interior.
- Desculpe-me - disse o homem, precipitando-se para atender o telefone.
Randall ficou encostado ao balcão, contemplando tudo o que restava da memória de Lebrun.
Era pouca coisa e o que via fazia-lhe doer a alma. Agarrou nos pertencentes um a um, pondo-os de lado à medida que os observava. Havia a caixa metálica retorcida e amoldada de um relógio de bolso, com os ponteiros parados nas doze e vinte e três. Um maço de cigarros franceses da marca Gauloises. Uma caixa de fósforos. Algumas moedas de 10 liras. Finalmente uma imitação barata de uma carteira de couro, em plástico.
Randall levantou a carteira, abriu-a e começou tirando o que estava dentro.
Uma carteira de identidade.
Quatro notas de 1000 liras.
Um pouco de papel muito enrugado e dobrado em várias partes.
E um bilhete de trem, em cartão cor-de-rosa.
Randall atirou a carteira de identidade e as quatro notas para o balcão, junto da carteira. Desdobrou o pedaço de papel. No meio via-se desenhado um peixe com uma seta a atravessá-lo. Era semelhante ao que lhe fora ofertado, desenhado pelo Professor Monti, com a diferença daquele peixe ser mais redondinho e ter um outro traço distinto, possivelmente desenhado por Lebrun. No canto inferior direito, numa letra firme e bem desenhada, numa tinta azul viam-se as palavras: Cancello C, Decumanus Maximus.Porta Marina. 600 m. Catacomba.
Agora o bilhete de trem. Estava dividido em duas seções dobradas. As partes exteriores estavam numeradas de um a trinta e um, o que representava, obviamente os dias do mês. No meio da primeira seção lia-se: ROMA S. PAOLO / OSTIA ANTICA. O outro lia-se: OSTIA ANTICA / ROMA S. PAOLO.
Randall sentiu as frontes a latejarem.
O funcionário do necrotério estava outra vez no balcão.
-Mil perdões -disse. -Encontrou alguma coisa?
Randall mostrou-lhe as duas partes em cartolina cor-de-rosa.
-O que é isto?
O funcionário examinou.
-Um bilhete de trem, de ida e volta. Tem a data de ontem. A primeira seção é da estação de S. Paolo em Roma e para Ostia Antica, onde existe uma estância balnear e umas ruínas antigas. O outro pedaço representa o regresso, de Ostia Antica para Roma. Foi comprado ontem, mas não utilizado, uma vez que não está picado nenhum dos dias do mês.
As frontes de Randall continuavam a latejar e no seu cérebro instalava-se um caos tentando reconstruir o que sucedera no dia anterior, domingo: Robert Lebrun dirigia-se à estação de S. Paolo, comprara um bilhete de ida de volta para Ostia Antica. Como era ainda cedo dirigira-se com certeza, a coxear, para a praça, a fim de apanhar um pouco de sol antes de partir. Mais tarde, atravessando a praça de volta à estação, fora atropelado e morto, tendo na carteira o bilhete para Ostia Antica e volta que nunca mais utilizaria.
Ostia Antica, o local onde o Professor Augusto Monti fizera a sua extraordinária descoberta... Lebrun quisera ir a Ostia Antica para recuperar as provas de que esse grande achado não passava de uma falsificação.
Randall meteu o bilhete no bolso do casaco e analisou o desenho do peixe e as palavras escritas no canto inferior direito. Randall olhou para o funcionário.
-Onde fica a Porta Marina?
-Porta Marina? É também em Ostia Antica. No extremo das ruínas romanas de Ostia Antica... as Termas de Porta Marina.. muito interessante muito antigo, verá.
Sim, podes apostar que verei, pensou Randall.
Dobrou o papel com o desenho e meteu-o no bolso, perto do bilhete do trem.
-Pode ficar com o resto-disse ao funcionário.
-Obrigado, muito obrigado, e as minhas condolências pela perda de um amigo, signore.
Randall pensou: sim, condolências pela morte de um amigo, mas ao mesmo tempo graças a esse mesmo amigo pelo pequeno legado, por aquela pequena esperança.
Randall saiu do necrotério para o ar quente da noite exterior. Sabia que tinha que terminar a viagem que Lebrun procurara iniciar. O bilhete de trem não fora utilizado. Mas no dia seguinte na sua mão haveria um outro bilhete de ida e volta para Ostia Antica... Roma / Ostia Antica e Ostia Antica / Roma... e aquele bilhete seria usado sem dúvida.
E depois? O dia seguinte diria.
Quanto custara a noite a fazer-se dia. Que lentidão no ontem se tornar hoje.
Randall tinha um bilhete cor-de-rosa no seu bolso, um bilhete marcado pelo alicate do revisor no número 2. Chegara finalmente a manhã do dia 2, terça-feira.
Ao ritmo do balanço do trem elétrico que o conduzia cada vez mais perto da antiga estância. Porto marítimo romano, semi-enterrado pelo decorrer dos séculos e onde a pá do Professor Monti iniciara a história da Ressurreição Dois, por meio do testemunho de Robert Lebrun. Randall pensava que talvez a sua viagem representasse o fim da Ressurreição Dois... morreria onde nascera.
A noite anterior fora muito ocupada para Randall. Pelo porteiro do Hotel inteirara-se do horário matinal dos trens para Ostia Antica. Fora-lhe dito que o trem não levava mais de vinte cinco minutos de viagem desde Roma. Depois de se informar do horário, Randall percorrera as ruas em volta da Via Veneto para bisbilhotar em algumas livrarias, que normalmente se mantivessem abertas até às oito horas, ou mais tarde, para servirem os turistas. Encontrara duas lojas e numa delas, com uma seção de língua inglesa, descobrira aquilo que pretendia: exemplares usados de livros definitivos sobre Ostia. Um de autoria de Guido CaIza, que orientara e dirigira explorações nas ruínas no início do século vinte. Outro de autoria de Russel Meiggs, que escrevera o registro mais histórico do apogeu e decadência da antiga cidade do litoral, porto franco da grande metrópole que fora a Roma imperial.
Para substanciar os volumes comprados, como apoio, Randall adquirira também um mapa turístico com a planta de Ostia, nos primitivos tempos romanos e na era atual; e uma monografia que descrevia as ruínas trazidas à luz do dia desde o século passado. Em nenhuma das obras figurava o nome do Professor Augusto Monti, coisa aliás compreensível, visto que todas aquelas orientações eram anteriores à descoberta feita por Monti seis anos antes. Além disso, segundo Randall se recordou, a descoberta de Monti mantivera-se um segredo bem guardado, que só no fim daquela mesma semana viria em pleno a sua publicidade mundial.
Depois de jantar e até às duas horas da manhã debruçara-se sobre os livros e o mapa, estudando com afinco, como nunca se lembrara de estudar, nem nos tempos do liceu. Conseguira quase memorizar o traçado e a história de Ostia Antica e dos seus arredores. Enfronhara-se na descrição de uma típica villa romana patrícia do século I, como aquela cujas ruínas foram objeto das escavações do Professor Monti. A residência típica tinha um vestíbulo; um atrium,ou pátio descoberto; um tablinum, ou biblioteca; um trictinium, ou sala de jantar; uma oecus, ou sala principal da casa; uma cozinha monumental; alojamentos para os escravos que serviam a casa; um certo número de latrinas...e, claro, por Júpiter Capitolino, até mesmo uma catacomba.
No pedaço de papel com o desenho do peixe arpoado que metera na carteira, Robert Lebrun escrevera, depois de Porta Marina, e de 600 m., a palavra catacomba. Durante a noite passada, Randall procurara o significado daquilo e soubera que numerosas escavações feitas na Itália revelaram que determinadas Villas, propriedades de um converso cristão, em segredo, possuíam em regra a sua catacomba, o subterrâneo privado servindo de jazigo à toda família.
Depois do esgotante estudo dos livros e do mapa, Randall abrira a pasta, retirara um dos arquivos, desfolhara as notas tiradas, e as notas fornecidas por Angela, sobre as escavações feitas pelo Professor Monti seis anos antes. Procurando lembrar de todas as palavras proferidas por Lebrun durante o encontro, juntara-as às notas anteriores já tomadas. Finalmente, com os olhos ardendo, fatigado física e intelectualmente, deitara-se e adormecera.
Nessa manhã, apenas armado e equipado com o mapa; a folha de papel com o desenho do peixe atravessado pelo dardo; e com as notas criptográficas inseridas no canto inferior direito, tomara um táxi até à Porta San Paolo.
A estação Ostiense parecia-se mais com uma estaçãozinha provinciana. Colunas de mármore sem definição de estilo no exterior, saguão com chão em mosaicos e para lá do café e loja de venda de jornais, revistas e tabaco, as fileiras de guichês para venda de bilhetes.
Com o bilhete na mão, dirigira-se para a plataforma entrando no vagão. Naquele momento, olhando para o mostrador do relógio viu que já tinham decorrido dezessete minutos de viagem e faltando apenas oito para chegar ao seu destino.
Noutras circunstâncias, teria achado a viagem insuportável. Os bancos de madeira eram incômodos. Os vagões repletos de passageiros, pessoas pobres regressando às suas aldeias. Cruzavam-se conversas em todos os tons, na maior parte lhe pareciam queixumes. A atmosfera estava sufocante e quase todas aquelas pessoas transpiravam abundantemente, enquanto o sol impiedoso batia nas janelas. De vez em quando, o trem entrava num curto túnel, mas sem que o calor diminuísse, porque nessa altura acendiam-se as luzes interiores.
Observando a paisagem, Randall não via nada de interessante. A beira da linha viam-se blocos em mau estado de conservação, ostentando o espetáculo de roupas estendidas nas varandas. Aqui e além, a visão rápida de algumas residências de veraneio, ou raros projetos de desenvolvimento interurbano incompletos. O trem parava em todas as estações. Primeiro detivera-se em Magliana, depois em Tor di Valle, a seguir em Vittinia.
Naquele instante acabavam de deixar para trás Acilia. A paisagem melhorava, oferecendo à vista o desenrolar de vastas oliveiras, quintas, campos cultivados, pequenos cursos de água que iam engrossar a corrente do Tibre. A espaços, por entre as clareiras de madeira demarcando a linha férrea, Randall observava a linha cimentada de uma auto-estrada moderna, a Via Ostiensis, paralela a um caminho vicinal, feito de lajes cobertas de musgos.
Randall pensou que aquele caminho devia ser outrora a majestosa estrada que de Roma levava ao porto de Ostia, estrada mandada fazer por Júlio César, continuada por Augusto e melhorada por outros imperadores. A partir de Cláudio e Nero o porto passara a ser uma fortaleza contra eventuais invasores, e os celeiros rudimentares de Ostia absorviam o trigo desembarcado de vários pontos do império para abastecimento da capital.
Todavia, Randall pouco se importava com a paisagem que demarcava um dos momentos mais altos e mais baixos da história da humanidade, ao mesmo tempo, quase não sentia o calor e as penosas condições em que a viagem decorria, porque o seu pensamento estava voltado, exclusivamente, para o esperado lá adiante. Pensava na possibilidade de que Robert Lebrun, embora em espírito, o guiasse até a prova da mistificação, que obviamente se devia encontrar algures nas escavações controladas pelo governo do antigo porto marítimo na embocadura do Tibre. Sim, provavelmente a prova não se devia encontrar muito longe do local, onde Lebrun plantara a sua falsificação para Monti encontrar.
Randall tinha o pressentimento de que seria difícil alcançar as provas e que, praticamente, era como procurar agulha em palheiro. No entanto, tinha uma pista, um indício, transmitindo-lhe uma confiança ilimitada, impelindo-o para aquele final de ato. Nada lhe parecia agora mais importante do que saber se a mensagem contida no Evangelho Segundo Jacob e no pergaminho do centurião Petrônio – a qual dentro de poucos dias iria ser fornecida ao mundo pela Ressurreição Dois - era a Palavra salvadora...ou uma tremenda mentira.
O trem diminuiu a velocidade e os freios produziram um ruído arrepiante em contato com os trilhos de ferro, até que toda a composição imobilizou. Randall mirou o relógio. Desde que, partiram de Roma, vinte e seis-minutos decorridos. Olhou para fora a tempo de ver, um alpendre e um nome escrito numa das faces: OSTIA ANTICA.
Levantou-se e juntou-se aos outros passageiros que se dirigiam para a saída. Seguiu fielmente as pessoas, no fim da plataforma, dirigiram-se para um lance de escadas, engolfando-se um pequeno rio, viaduto de passagem, sob a via férrea. Novo lance de escadas e encontrou-se na pequena estação de Ostia um edifício pitoresco em tijolo vermelho. Finalmente a rua.
Procurando fugir do intenso calor Randall - acabou por ficar, agradavelmente surpreso ao avistar uma praça afigurando-se-lhe um autêntico oásis, sombreada por palmeiras e de figueiras. Para além da praça, o esboço de uns degraus que levavam a uma ponte sobre um viaduto, com certeza paralelo à estrada. A multidão, que saíra com ele do trem, desapareceu como que por encanto e Randall parecia estar só naquele lugar pacífico. Mas essa sensação de solidão durou pouco. Em frente via-se um táxi, um veículo com todo o aspecto de ser contemporâneo dos primitivos dinossauros, encostado nele, sorrindo comicamente, via-se o motorista vestindo um anacrônico guarda-pó e com um chapéu muito semelhante ao usado pelos gondoleiros de Veneza.
O motorista levou a mão ao chapéu, respeitoso, interceptou o passo de Randall e disse-lhe com uma rasgada vênia:
-Buon giorno, signore. Chamo-me LuPo Farinnaci. Toda a gente em Ostia me conhece. Tenho um táxi, um Fiat. O signore quer um táxi?
- Julgo que não é preciso - disse Randall. - Vou só visitar as escavações...
- Ah, scavi, scavi, escavações, si. Pode ir a pé, não é muito longe. Sobe o viaduto, atravessa a auto-estrada e vê logo o local.
- Muito obrigado.
- Não deve ficar lá muito tempo. Está muito calor. Talvez depois precise se refrescar. Se quiser Lupo leva-o no táxi até Lido de Ostia, a praia que serve Roma.
-Julgo que não terei tempo para isso.
-Talvez tenha, depois logo vê. Se precisar de um táxi, Lupo anda por aqui... Lupo costuma estar perto do restaurante chamado local Onde Enéias Desembarcou... também costumo estar junto do lugar que vende fruta, um pouco adiante. Talvez precise de mim.
- Obrigado, Lupo. Se precisar de si, procurá-lo-ei.
Randall subiu as escadas que levavam à ponte do viaduto e atravessou a auto-estrada. Na altura em que descia o pequeno declive, que levava a um campo aberto, onde se via um pinheiral, a camisa ensopada de suor se lhe colara à pele. Mapa na mão, identificou o castelo, construído no século XV, por Giuliano della Rovere, mais tarde nomeado pelo Papa, com o nome de Júlio II. Em seguida localizou um restaurante ostentando na fachada um estranho nome, Allo Sbarco di Enea - local Onde Enéias Desembarcou, como lhe traduzira Lupo. Sob a fresca sombra via algumas mesas, onde várias pessoas almoçavam em mangas de camisa.
Mais adiante lá estava a entrada principal para as ruínas, que o mapa indicava como Cancello A, Porta Romana.
Mais uns passos e avistou o amplo portão de ferro, aberto de par em par, com um poste onde se via a seguinte indicação: SCAVI DI OSTIA ANTICA.
Mal passara o portão e eis que tudo de novo se transformava à sua vista como que por obra de magia. O terreno subia ligeiramente, em suave declive. A sua frente ficava um parque, ou aquilo parecia-lhe um parque, cheio da fresca sombra de verdes pinheiros, da qual uma brisa imperceptível lhe trazia às narinas o cheiro tão agradável. Dali avistava-se o magnífico mar banhado pelo sol, misturando ao cheiro da resina, um odor de sal e iodo.
À esquerda avistou um pavilhão miniatura, num pequeno balcão, uma mulher gorda o observava atenta. A mulher tinha na mão um maço de bilhetes.
-Bisogno comprare un biglieto per entrare, signore! Para entrar tem que comprar um bilhete, senhor!
Randall aproximou-se e comprou um bilhete para ter o direito de ver as ruínas. Procurando o dinheiro certo no bolso, Randall viu uma outra placa com alguns dizeres e olhou interrogativo para a vendedora de bilhetes.
Ela correspondeu à solicitação e explicou:
-É um aviso da diretoria para os visitantes não se aproximarem das escavações. É proibido, Só as ruínas é que são para ver, não as escavações. Diz também para os visitantes terem cuidado com os desníveis de terreno ao caminharem, de modo a não caírem em nenhuma cova.
-Terei o máximo cuidado - garantiu Randall.
Voltando de novo ao mapa, Randall procurou a Decumanus Maximus, a antiga via que levava a tudo aquilo que fora descoberto nas ruínas de Ostia Antica. Não teve dificuldade em encontrar a estrada, mas, logo ao dar os primeiros passos, reconheceu que não era nada fácil caminhar por ali.
A via, tal como na altura do século II em que fora construída, estava pavimentada com seixos redondos e escorregadios, separados por intervalos. Caminhar por aqueles lajedos demandava um autêntico prodígio de equilíbrio que levou Randall a desistir e a preferir a beira da estrada invadida pela erva. Seguiu por entre as altas ervas, onde por vezes se viam clareiras pejadas de destroços, mármores e materiais de construção, locais que outrora haviam formado a cidade de Ostia, estância marítima que fora abastecedora de trigo a Roma e lugar de veraneio dos orgulhosos patrícios.
Consultando o mapa, inteirou-se que naquele local estavam as paredes derrocadas de um celeiro do século II. Mais adiante, colunas quebradas e umas lajes em socalcos, tudo o que restava de um anfiteatro do ano 30 antes de Cristo, onde os romanos e ostienses assistiram à grandes representações das tragédias e comédias da época. Além, o Templo da Fortuna e mais adiante os Banhos do Forum. Impaciente com os detalhes do mapa, que lhe roubavam uma vista do conjunto das ruínas, Randall, a breve trecho, desistiu de o consultar para deliciar a vista por aquelas soberbas ruínas de uma civilização morta. As camadas expostas revelavam umas de mármore com as suas elaboradas gravações, todo um setor de uma casa, com as paredes, interiores pintadas, fontes quebradas e piscinas, onde outrora, a água cantara alegremente enchendo o ambiente de frescura. Imponentes restos de arcos, e um comprido socalco onde se lia Decumanus Maximus.
Percorrera mais de dois terços das ruínas de Ostia Antica e a área revelava-se cada vez mais deserta. Nem sombra de outro ser humano à vista e Randall já sentindo-se perdido naquela imensidão de mármores quebrados.
Caminhou até junto da sombra de um pinheiro, sentou-se na beira de um grande bloco de pedra, resto da parede de uma villa, e tirou do bolso à folha de papel que encontrara na carteira de Lebrun.
Voltou ler a inscrição criptográfica no canto inferior direito: Cancello C, Decumanus Maximus, Porta Marina. 600 mtrs. Catacomba.
Estudando as palavras pela centésima vez, Randall sentiu-se naquele momento menos certo de que elas quisessem dizer aquilo que no dia anterior pensara. Julgara que fosse aquele o destino de Lebrun no domingo em que morrera, que significasse um registro da área onde o velhote escondera a prova da sua falsificação. Mas começava a ter dúvidas desse pensamento prévio estivesse a par da realidade.
Contudo, não havia outra alternativa senão prosseguir. De acordo com o seu mapa, Cancelo C (que segundo o seu dicionário italiano-inglês queria dizer Portão C) ou Porta Marina ficavam adiante, numa curva da estrada, no extremo da Decumanus Maximus e para além dos limites exteriores das ruínas de Ostia Antica.
Meteu no bolso do casaco o papel e o mapa, levantou-se da pedra, voltou para o sol esmagador para lá da sombra do pinheiro e encaminhou-se para a curva que a via desenhava mais adiante.
Em cinco minutos chegou ao fim da estrada pavimentada pelos seixos escorregadios. Diante dele estavam agora as termas ou Banhos da Porta Marina. À sua direita, para além de casas e jardins da era de Adriano, produtos de recentes escavações, onde a terra marrom, com vestígios de feno recentemente ceifado, reverberava aos intensos raios do sol, pesado como chumbo.
Pondo as mãos em pala nos olhos, a perscrutar a zona entre o campo de cultivo e os Banhos da Porta Marina, Randall observou uma pequena cabana, com um balcão rudimentar para venda de fruta e refrescos aos turistas. Viu também uma figura humana correndo para o lugar onde ele estava, acenando com a mão, uma figura que ia crescendo a olhos vistos.
Esperou até ver a figura correndo ao seu encontro era um rapaz, talvez de treze ou catorze anos, de encaracolado cabelo preto, uns olhos pretos como contas, de tronco nu, onde se podiam contar as costelas uma a uma, vestindo apenas um calção de cáqui e uns sapatos de lona, muito rotos e sujos.
- Eh, signore! - gritou percorrendo os últimos metros que o separavam de Randall e colocando as mãos nas ancas procurando controlar a respiração. - Lei é inglese, vero? É inglês, não é verdade?
- Americano - respondeu Randall.
- Eu falo inglês - anunciou o rapaz. - Aprendi na escola e com os turistas que aqui vêm. Vou-me apresentar. Chamo-me Sebastiano.
- Pois muito bem, olá, Sebastiano.
-Quer um guia? Sou um bom guia. Tenho ajudado muitos americanos. Mostro-lhe tudo o que há para ver em Ostia Antica durante uma hora por mil liras. Quer que lhe mostre as ruínas principais?
-Já vi as ruínas principais. Agora procuro outra coisa. Talvez me possas ajudar, hem?
- Sim, posso ajudá-lo -disse Sebastiano entusiasmado.
-Disseram-me de uma outra escavação por estes lados, feita há uns seis anos numa propriedade privada que fica perto. Ora se...
-Scavi de Augusto, Monti? -interrompeu o rapaz.
Randall manifestou a sua surpresa.
- Sabes onde é? Ouvi dizer que era uma coisa muito secreta.. .
- Sim, muito secreta - corroborou Sebastiano. - Ninguém ouviu falar dela, e nunca veio cá ninguém para ver. A tabuleta diz que a área é reservada porque ainda existem buracos e trincheiras e as autoridades não dão licença aos turistas para visitarem as escavações. O governo proclamou o terreno de interesse histórico e fiscaliza tudo. Mas, eu e os meus amigos vivemos aqui perto, brincamos pelos campos e conhecemos tudo o que existe em redor. Quer visitar a scaz de Augusto Monti?
-Mas então não é uma zona proibida?
Sebastiano encolheu os ombros.
-Não há ninguém de vigia. Ninguém está lá para ver. Quer ir lá por mil liras?
- Quero. - Lembrou-se do criptograma de Lebrun que tinha no bolso. - O local que eu quero visitar fica a seiscentos metros da Porta Marina.
- É fácil - disse o rapaz. - Venha comigo. Contarei os seiscentos metros quando chegarmos. O signore é arqueólogo?
- Sou geólogo. Quero examinar o... terreno.
- Não há problemas. Podemos começar. Contarei os seiscentos metros de cabeça. O local fica antes dos pântanos e das dunas. Sei muito bem onde é.
Dez minutos depois, estavam à entrada de uma profunda trincheira, uma escavação central de onde partiam muitas ramificações de trincheiras e onde se viam, de vez em quando buracos, em parte tapados com grandes pranchas de madeira, em regra apoiadas sobre as grossas traves servindo de escoras transversais.
Ao lado da trincheira central, descoberta, via-se um poste de madeira com uma tabuleta já bastante deteriorada pelo tempo, ostentando uma mão fechada com o indicador espetado e umas palavras em italiano.
-Que quer dizer? -perguntou Randall.
- Diz ... é difícil para mim traduzir...Scavi... bom, agora me lembro... diz: «Escavações de Augusto Monti. Perigo. Área proibida. Não entrar.» Cá está o que lhe tinha dito.
- Muito bem. - Randall debruçou-se para a trincheira, olhando lá para dentro. - Para descer viam-se quatro ou cinco degraus de madeira que levavam ao túnel debaixo do chão. - Lá embaixo existe alguma luz?
-Só a do sol. Mas é suficiente. As traves das zonas tapadas deixam entrar a luz. Esta trincheira leva a uma grande escavação de uma antiga villa, apenas meio desenterrada. Quer que lhe mostre?
-Não-disse Randall rapidamente- Não, parece-me que não será necessário. Só estarei lá embaixo alguns minutos. -Tirou do bolso uma nota de 1000 liras e colocou-a na palma da mão do rapaz. - Aprecio imenso a tua boa-vontade em me ajudares, mas prefiro não ter ninguém a meu lado enquanto procedo ao exame do solo. Compreendes.
Imponente de solenidade, o rapaz levantou a mão.
-Juro que não contarei a ninguém. O signore é meu cliente. Se voltar a precisar de mim para ver mais alguma coisa, estou lá embaixo na barraca da fruta e dos refrescos.
E Sebastiano voltou-se, lançou-se correndo e aos saltos através do campo. Voltou-se para trás acenando com a mão, e perdeu-se de vista por trás de uma elevação cheia de mato. Randall esperou até que ele desapareceu e encaminhou-se depois para a boca da trincheira, onde se viam os degraus de madeira.
Hesitou. Repentinamente, aquilo parecia-lhe uma aventura quixotesca, louca, ridícula. Que diabo fazia ele, um dos mais destacados homens de relações públicas americanas, diretor de publicidade da Ressurreição Dois, naquele lugar, algures na Itália, junto daquela escavação isolada e abandonada?
Mas, era como se uma mão invisível o empurrasse... a mão de Robert Lebrun. Dois dias antes Lebrun, não estava disposto a dirigir-se para aquele local?
Imediatamente colocou o pé direito no primeiro degrau e começou a descer com cuidado até colocar os pés no chão de terra batida do fundo da trincheira. Deu alguns passos e viu a boca da estreita escavação a uns vinte passos. A escuridão subterrânea, cortada aqui e ali, pelos raios de luz do sol, filtrados pelas pranchas mal ajustadas, formando uma espécie de teto.
Começou a avançar cauteloso. A intervalos regulares as altas paredes de terra estavam escoradas, para evitar desmoronamento. Viam-se toras de madeira, como colunas, apoiando as vigas e pranchas formando o teto parcial. Em certo local, a terra abaulava-se revelando um chão formado de mosaicos, num corredor lateral. Logo a seguir viam-se vários caixotes cheios de pedras vermelhas, muitos de mármore e tijolos de cor amarelada.
Aproximando-se do extremo da trincheira, antes desta se ramificar para outras escavações, Randall observou as traves por cima, estavam ligeiramente deslocadas, até com certas pranchas parcialmente de lado, de modo que aquele lugar recebia sensivelmente mais luz.
Inspecionando atento as redondezas, encontrou-se repentinamente frente a um setor da parede da escavação que parecia curiosamente diferente - formava uma espécie de vão, parecia formada de certa espécie de calcário pouco consistente e apresentava a configuração dos restos de uma espécie de gruta... e Randall parou, sentindo um baque no coração.
Naquele vão à sua direita, o calcário apresentava sinais de grafite.
Seria aquele estranho lugar a catacomba familiar? O antigo subterrâneo que servia de jazigo para a família? Demarcações traçadas na rocha porosa, conhecida como tufa granulare, viam-se desenhos primitivos, do século I, os traços feitos pelos primitivos cristãos perseguidos nos tempos apostólicos.
Não eram muitos e também não eram muito distintos, mas podiam divisar-se perfeitamente as suas formas.
Randall deslocou-se para junto da parede de tufa. Observou um desenho em forma de âncora. A secreta e primitiva âncora cristã que servia para disfarçar o sinal da Cruz de Cristo. Viu as letras gregas X e p, as primeiras duas letras da palavra grega Cristo. Logo a seguir via-se o desenho rudimentar de uma pomba com um ramo de oliveira no bico, símbolos do primitivo sinal cristão para a paz.
Randall pôs-se de cócoras. Limpou com a mão aquilo que se assemelhava a... sim... a uma baleia, sinal dos pioneiros cristãos para designarem a Ressurreição. E a seguir, na rocha vermelha e porosa como ardósia o vago delinear de um peixe, mais outro peixe e ainda um terceiro peixe primitivo, gravados como pequenos peixes anões, os símbolos da palavra I-CH-TH-U-S, cujas letras eram as iniciais das palavras gregas para Jesus Cristo, Filho de Deus e Salvador.
Sem dúvida que a parede de tufa escondia uma sub câmara, ocultava uma espécie de subterrâneo, uma catacumba onde uma família romana convertida ao cristianismo enterrara os seus mortos e deixara pela parede sinais da sua crença e da sua fé.
Randall pôs-se em pé, esquadrinhando cuidadoso a superfície para ver se descobria mais grafites. Os seus olhos desceram ao longo da parede, tornaram a subir e depois, quando seguiam pela terceira vez o sentido descendente, talvez a uns cinqüenta centímetros do solo da trincheira, viu aquilo que procurava.
Deixou-se cair positivamente de joelhos para observar melhor o desenho, para ter a certeza de que era o que procurava com tanto afã. Entre os vários sinais desenhados, um deles apresentava um traço de longe mais recente.
Na parede de tufa foi gravado o desenho de um peixe redondo atravessado por uma seta.
Randall levou a mão ao bolso e tirou o papel de Lebrun, desdobrando-o e com ambas as mãos ajustou-o contra a parede.
O peixe atravessado pelo dardo que Robert Lebrun desenhara no papel era a cópia exata daquele que se via na parede da escavação realizada pelo Professor Augusto Monti.
Randall ficou com a respiração suspensa. Levantou-se a custo e murmurou:
-Deus do Céu, encontrei... Santo Deus, posso estar em cima do túmulo da Ressurreição Dois...
Que deveria fazer a seguir?
Encostou-se à parede e refletiu cuidadosamente. Logo que a sua elaboração mental lhe pareceu satisfatória, começou apressado a seguir o caminho inverso para o boca da trincheira.
Saindo do fresco túnel para o braseiro da tarde, percorreu com rapidez o campo em frente, trepou o montículo até a barraca dos refrescos estar ao alcance da sua voz. Viu o rapaz que há pouco lhe servira de guia, Sebastiano, brincando com uma bola, perto de uma outra pessoa que bebia qualquer coisa encostada ao balcão - era o motorista do sorriso perpétuo, do chapéu à gondoleiro e do Fiat ante diluviano.
Randall chamou o rapaz, tentou chamar-lhe a atenção agitando os braços, e finalmente Sebastiano viu-o, deixou a bola e correu para ele. Randall pretendeu pedir a Sebastiano que lhe arranjasse tantas ferramentas quantas possível - uma picareta, uma pá e um carrinho de rodas-mas decidiu que tais coisas deviam estar muito além dos recursos imediatos do moço e que forçá-lo a arranjar-lhe todo esse equipamento seria perigoso e levantaria suspeitas.
Randall esperava-o com três notas de 1000 liras fechadas na mão. Quando se aproximou mostrou-lhe duas notas.
- Sebastiano, gostavas de ganhar duas mil liras?
Os olhos do rapaz arregalaram-se.
-Necessito examinar melhor certa porção de terra da trincheira e levar comigo algumas amostras. Preciso de uma pá bem afiada. Uma pá que seja forte. Preciso dela talvez por uma hora. Sabes onde posso arranjar uma emprestada?
-Eu posso arranjar-lhe uma boa pá- prometeu Sebastiano rapidamente. -Temos uma no quintal da nossa casa que serve para a horta.
- Só a quero emprestada - repetiu Randall. - Volto a entregar-te quando partir. Demoras muito para buscá-la?
- Quinze minutos, nem tanto.
Randall entregou ao rapaz as duas mil liras e depois exibiu a terceira nota.
- Aqui tens mais mil liras se mantiveres tudo isto em segredo, só entre nós.
Sebastiano agarrou na terceira nota. Jurando, como se fosse um conspirador:
-É il iostro segreto, lo prometo, lo giuro. Fica tudo entre nós, é o nosso segredo. Prometo-lhe, juro.
-Então vai num pé e vem no outro.
Sebastiano, como um cavalico veloz, começou a trotar pelo campo, não em direção à barraca de fruta, mas, na direção do lado direito da estrada.
Randall ficou impaciente à espera, chupando o seu cachimbo e olhando para as ruínas de Ostia Antica, esforçando-se por não pensar nas escavações de Augusto Monti que ficavam nas
suas costas.
Em menos de um quarto de hora Sebastiano reapareceu com uma pá pontiaguda, não muito grande, parecida com as picaretas usadas pelos soldados para abrir trincheiras. Randall agradeceu ao moço, murmurou-lhe algo de novo sobre o manter segredo e prometeu-lhe voltar a entregar a pá, na barraca dos refrescos dentro de uma hora.
Depois do moço ir embora, Randall encaminhou-se apressado para as escavações Monti, desceu os degraus da trincheira principal e, seguiu com cuidado até ao extremo do túnel, onde os raios de sol, passando por entre as pranchas desviadas, continuavam a iluminar a parede de tufa, revelando os antigos desenhos e aquele mais recente, do peixe arpoado, que fora com certeza traçado pela mão de Lebrun. Tirou o casaco, colocou-o no chão juntamente com a pá e foi até o lugar onde tinha visto os caixotes de madeira, uns cheios e outros vazios. Escolheu três dos vazios e levou-os, um a um, até ao local onde se encontrava o desenho do peixe atravessado pela seta.
Traçando um amplo círculo em volta do peixe de Lebrun, principiou a atacar a tufa, abrindo um caminho com a ponta da pá, demolindo o peixe arpoado (o que afinal não representava a destruição de nenhuma antigüidade), definindo e aprofundando o círculo. A superfície era mais rija e menos penetrável do que imaginara, e foi preciso empregar toda a solidez dos seus músculos para abrir caminho. No entanto, mal aquela superfície mais sólida cedeu, desintegrando-se positivamente, a tufa foi-se tornando cada vez menos resistente, esfarelou-se mais facilmente, e tornando mais encorajadora a sua tarefa. Cavando com firmeza e retirando os pedaços de pedra calcária para dentro dos três enormes caixotes, sentiu que fazia verdadeiros progressos.
Prevendo o que iria encontrar no interior, foi enterrando a pá cada vez mais fundo na pedra porosa.
Decorrera uma hora, durante a qual Randall não cessara de cavar com a pá e de retirar terra do buraco.
Sentia correrem rios de suor que lhe inundavam o rosto, o peito e as costas e doíam-lhe os bíceps e a coluna vertebral devido à posição. Voltou mais uma vez a enterrar a ponta da pá na parede da catacumba e depois colocou a terra e os pedaços de calcário dentro do caixote a seus pés.
Sem fôlego, parou para descansar, encostando-se no cabo da pá e tirando o lenço do bolso para limpar o suor que lhe inundava a testa e lhe corria para os olhos.
Por toda a parte existiam pessoas malucas - refletiu Randall encostado no cabo da pá - malucos fanáticos como os que geriam o projeto em Amsterdã, sem dúvida o Professor Monti, encerrado numa clínica romana para dementes, malucos como Lebrun, quer estivesse no céu ou no inferno, mas, parecia-lhe que o mais tolo de todos era ele próprio, metido ali naqueles trabalhos.
Que pensaria seu pai, doente em Oak City, se o visse naquele momento? Que diriam George L. Wheeler e Naomi? Pior ainda, o que diria Angela Monti?
O veredicto deles seria unânime: ou na verdade estaria louco, ou tinha o diabo metido no corpo.
Não obstante, não pudera ignorar a pista fantástica que lhe fora oferecida pela sombra de Robert Lebrun-o peixe arpoado no pedaço de papel e o peixe gêmeo da parede da escavação.
Após semelhante descoberta, um dos seus primeiros pensamentos foi entrar em contato com o Alto Conselho para as Antigüidades e Belas-Artes, em Roma, explicando tudo o que sucedera e pedindo-lhes auxílio. Acabara pôr de lado tal idéia. Com toda a lógica, temera que os altos poderes italianos estivessem em conluio com os altos poderes da Ressurreição Dois. Sim, o mais provável era que as autoridades romanas, tal como o trust de Amsterdã, só quisessem lucros e êxito fácil. Randall experimentou pela primeira vez uma pontinha da paranóia que perseguira Lebrun a respeito dos seus inimigos-os homens da Igreja e as autoridades governamentais, formando uma frente unida para defenderem a hipocrisia.
E por isso mesmo, fora de tal sentido de mania da perseguição-embora a sua decisão pudesse ter algo de criancinha, de imaturidade e até de romantismo impraticável-Randall decidira-se fazendo o que podia e devia ser feito para chegar à verdade.
O peixe arpoado desenhado na parede da catacumba fora um convite para escavar e Randall não hesitara.
Aprendera que aquela parede de tufo calcário, tinha a excelente qualidade, principalmente quando oculta da luz do sol e exposta à umidade, de ser facilmente escavável. Por essa mesma razão, os cristãos primitivos haviam escolhido tais formações rochosas para nelas construírem as suas catacumbas. Por outro lado, a tufa quando exposta aos raios do sol e ao ar endurecia automaticamente e tornava-se impraticável de demolir, tão resistente como o mármore. Eram fatos que haviam chegado ao conhecimento de Randall e que tornaram possível a sua empresa de amadorismo arqueológico.
Uma hora depois de ter começado o trabalho, podia já observar um buraco formidável na parte inferior da parede, mas, um buraco onde não descobria outra coisa além de barro e partículas de rocha.
Ora a parte mais desanimadora do seu aturado trabalho residia no fato de não saber com exatidão, aquilo que esperava encontrar.
Coberto de suor e dolorido, descansando encostado no cabo da pá, Randall tentou lembrar-se do que Robert Lebrun prometera, como prova insofismável da sua mistificação, no quarto do Hotel ExceIsior:
Primeiramente um fragmento de papiro que se ajusta perfeitamente à parte que falta no Papiro Número 3... a parte desaparecida que Monti lhe recitou, aquela onde Jacob revela os irmãos de Jesus e também seus. Tem uma forma irregular e mede pouco mais ou menos 6,5 por 9,2 centímetros e ajusta-se perfeitamente ao buraco do chamado original... Esse fragmento porta o desenho de um peixe atravessado por uma seta traçado com tinta invisível... metade de um peixe. A outra metade encontra-se no próprio Papiro Número 3. O fragmento que guardei tem também a minha assinatura e umas palavras escritas pelo meu punho dizendo que se trata de uma falsificação...
Depois entregar-lhe-ei a prova restante e mais concludente da minha falsificação... os editores possuem vinte e quatro pedaços de papiros, alguns com uma ou duas partes desaparecidas, ao todo nove pequenas partes. Tenho em meu poder essas partes... oito estão protegidas dentro de um pequeno cofre de ferro bem escondido.
Arranjar-lhe as provas leva um pouco de tempo. Estão escondidas fora de Roma -não muito longe...
Com mais vírgula, menos ponto, foi a revelação feita por Robert Lebrun.
Fora de Roma, não muito longe... A mensagem parecia suficientemente clara. Arranjar provas leva um pouco de tempo... Sim, inferno. Um pouco de tempo bem bom.
A segunda parte das provas, ocultas num pequeno cofre de ferro... era sem dúvida uma mensagem clara.
Mas a primeira parte, aquela que Lebrun prometera entregar a troco da primeira prestação do pagamento, o fragmento de papiro de forma irregular e com cerca de 6,5 por 9,2 centímetros... em parte é que não se mostrava clara, Lebrun esquecera-se de descrever a espécie de receptáculo em que se encontrava escondida e Randall esquecera-se também de lhe perguntar, naquele momento era tarde para retificar as coisas.
No entanto, essa parte da prova estaria dentro de algo que lhe oferecesse a maior proteção e por certo seria um receptáculo facilmente identificável no caso de ser encontrado. Randall contemplou os tufos calcários dentro dos caixotes. Não havia deixado passar nenhum objeto estranho. Desfizera cada pedaço daquela espécie de argila a fim de certificar de que não havia nenhum objeto estranho. Começava a pensar se na verdade tal prova existia fora da delirante imaginação do ex-condenado da Ilha do Diabo.
Endireitou-se agarrou com firmeza o cabo da pá e recomeçou a escavar.
Mais tufo calcário, mais detritos, mais... nada.
À medida em que prosseguia, enquanto os minutos se iam escoando, começou a ver que o seu obstáculo principal não era o passar do tempo mas o esgotar das suas forças.
Mais uma pá... calcária fora.
De novo, pá dentro do buraco e... um som oco, o bater da pá contra um objeto mais duro... um pedregulho? Maldição, se tivesse encontrado um veio de granito, então a escavação tinha terminado. Ajoelhou-se com um gemido e olhou para dentro do buraco, por entre as bagas de suor que lhe obscureciam a visão. Lá no fundo tinha a aparência de mais uma camada de tufa... mas, olhando bem não era tufa, nem calcária, era diferente. Pôs a pá de lado e meteu as mãos no buraco, apalpando o obstáculo, percorrendo-o com os dedos para lhe avaliar a forma e o tamanho. Teve a imediata percepção, através da sensação tátil, que era um objeto feito pela mão do homem. Talvez um antigo artefato. Mas...
Talvez não fosse.
Os seus dedos apertaram-se no objeto tentando desalojá-lo da sua posição entre as camadas de tufa amolecida. Os movimentos tornavam-se difíceis. Agarrou de novo a pá, com cuidado, manipulando-a em volta do súbito obstáculo, utilizando-a como uma alavanca.
Novamente com as mãos. Aquilo estava a soltar-se... e finalmente encontrava-se nas suas mãos.
Era uma espécie de cerâmica, um jarro ou vaso de barro, achatado, com cerca de 24 centímetros de altura e uma circunferência de 36 centímetros. A boca estava selada por uma substância preta, espessa e sólida, provavelmente piche. Randall tentou quebrar aquele selo, mas sem resultados práticos. Apressado, limpou a sujeira do vaso e descobriu a meia altura, na sua parte mais bojuda, via-se um veio do mesmo material que tapava a boca. Aparentemente o vaso fora separado em duas partes e consertado depois com piche.
Randall pousou o objeto de cerâmica no chão da trincheira, agarrou no cabo da pá e atirou uma pancada seca no meio do vaso, separou-o em duas partes, com a parte superior praticamente em cacos.
Randall debruçou-se para os fragmentos de barro e viu imediatamente entre a parte inferior do vaso aquilo que procurara com tanto afã: uma bolsa feita numa pele acinzentada.
Deteve-se com aquilo, quase incapaz de se atrever a abrir. Com movimentos lentos, abriu a boca da bolsa e os seus dedos procuraram com cuidado o que haveria no interior. A sensação tátil provou-lhe que se tratava de um objeto aveludado, começou a puxar para cima. Tratava-se de uma espécie de papel protegido por uma camada de azeite vegetal, um papel que estava cuidadosamente dobrado em várias partes.
Era um fragmento de papiro - o precioso papiro de Lebrun. Estava coberto com caracteres aramaicos, várias linhas de um aramaico esmaecido escrito com tinta antiga. A parte desaparecida do Papiro Número 3, tal como Lebrun descrevera, a primeira parte das provas que prometera entregar em troca da primeira prestação do pagamento.
Pronto, ali estava aquilo, talvez, a prova de uma falsificação moderna que faria estourar a validade do Novo Testamento Internacional e impediria o ressurgir da fé em todo o mundo, quer de um antigo e autêntico papiro que Monti não conseguira descobrir, ou que fora parar às mãos de Lebrun e com o qual ele ficara; um pouco que poderia também ser um ponto de apoio para a Ressurreição Dois e que revelaria Lebrun como um mero fanfarrão, um mentiroso psicopata.
Todavia, sob qualquer hipótese, orientara-o até aquela descoberta e lembrara-lhe que aquele papiro inseria uma prova invisível a provar que o Evangelho Segundo Jacob não passava de uma intrujice bem consumada.
Randall estava demasiado esgotado para experimentar qualquer emoção forte.
Sim, ali estava aquele objeto, capaz de revelar a verdade. Com cuidado, Randall voltou a dobrar o fragmento e entalá-lo entre a camada protetora de azeite vegetal, metendo tudo direto na bolsa de pele.
O seu primeiro ímpeto foi de fugir dali com aquele pequeno tesouro, mas a lembrança da segunda parte das provas, o pequeno cofre de ferro contendo os fragmentos adicionais, constituía um desafio a que não era fácil renunciar. Uma vez aquela primeira parte descoberta, talvez a segunda não estivesse muito longe. Se o cofrezinho existia de fato estaria oculto nas redondezas, talvez nas profundidades daquele mesmo buraco.
Vacilando, Randall pôs-se de pé, servindo-se da pá como arrimo, e olhou para dentro do buraco. Pensou como é que um homem idoso como Lebrun encontraria forças para operar semelhante tarefa... a não ser que fosse mais vigoroso do que Randall imaginava ou, que se tivesse servido de algum cúmplice mais jovem. Bom, naquela altura as especulações de nada adiantavam. Fosse como fosse, Lebrun conseguira realizar a proeza. Randall pesou as probabilidades de ser capaz de repetir o feito, presumindo que muito mais haveria a escavar.
Apelando para as últimas reservas de energia, Randall decidiu continuar com o trabalho. Mais uma vez cravou a pá no interior do buraco, procurando aprofundá-lo e alarga-lo, ao mesmo tempo, pensando se Lebrun ocultara todas as provas no mesmo local, ou se resolvera enterrar o cofrezinho de ferro noutro local.
O fato é que naquele momento de nada valiam as especulações e o melhor era prosseguir na tarefa.
Acabava de retirar mais uma pá de tufa, quando aos seus ouvidos chegou o som de vozes. Pousou a ferramenta e escutou atentamente.
Sim, tratava-se de vozes humanas, com predominância de uma voz feminina, voz que flutuava à distância, presumivelmente para além do terreno fronteiro à escavação Monti.
O seu primeiro movimento foi dirigir-se para a boca do túnel e chegar depressa aos degraus existentes na trincheira aberta, mas um forte instinto de conservação impediu-o desse gesto de pânico, lembrando-se que ficaria completamente exposto junto da única entrada.
Todavia, tinha que saber o que se passava no exterior. Olhou para cima, para a trincheira com o seu teto de pranchas, cuja borda ficava meio metro acima da sua cabeça. Depois o olhar desceu-lhe para os caixotes cheios daquele calcário poroso. Sim, era a única solução. Com esforço, colocou-os uns em cima dos outros de forma a formarem uma espécie de degraus, depois, cauteloso, subiu até ficar com os olhos ao nível da borda, após ter afastado duas pranchas para arranjar um buraco suficiente.
Naquela posição gozava de uma ampla perspectiva do campo, do pequeno montículo, que descia em suave declive para o lado de Ostia Antica, da estrada e do lugar de fruta e de venda de refrescos.
Ao primeiro olhar localizou logo a origem das vozes: três pessoas, esbracejando, desciam o declive da colina e dirigiam-se para a escavação Monti. Uma delas era uma matrona com ar de decidida, caminhando entre um homem e um rapaz. A mão da amazona fechava-se tenaz no braço da criança...nada mais, nada menos, que o solícito Sebastiano. Com a outra mão a mulher de armas ameaçava surrar o pequeno, verberando-o numa voz aguda, cujos termos não podiam ser ouvidos àquela distância. Sebastiano parecia protestar, mas a mulher, com todo o ar de ser mãe dele, arrastava-o firmemente para as escavações Monti.
A atenção de Randall concentrou-se essencialmente no terceiro comparsa daquela tragicomédia, e o que observou, alarmou-o. A terceira personagem tinha todo o aspecto de um agente da autoridade. Embora não usasse o chapéu de opereta dos carabinieri, envergava umas calças e uma camisa esverdeadas, um boné de pala preta e ostentava não só uma braçadeira vermelha, como um coldre branco ameaçador à cintura. Era sem dúvida um agente da polizia, talvez um rural.
O trio aproximava-se a olhos vistos.
A mulher devia ser sem dúvida a mãe de Sebastiano. Dera com certeza por falta da pá e acabara por extrair a verdade do filho. Depois dirigira-se à polícia local e denunciara Randall. Claro que o problema transcendia a mera perda de uma pá. Um estranho, um estrangeiro, invadira em segredo propriedade privada e estava a escavar sem licença num local arqueológico controlado pelo governo. Pericolo! Perigo, perigo para o estado! Fermi quell'uomo! Detenham o homem!
Ali vinha aquela gente, possivelmente para o prender.
Randall saltou da sua escada improvisada. Se o que pensava era ou não exato, estava agora fora de toda a especulação. O que importava é que aquilo, sob qualquer hipótese, representava um perigo real, uma ratoeira, estava prenhe de complicações. Não podia ser apanhado com a bolsa contendo o fragmento de papiro. A bolsa! Baixou-se e apanhou-a juntamente com o casaco. Para o diabo o resto.
Dominava-o um único pensamento: fugir. Se fosse apanhado ali e com a bolsa nem num milhão de anos conseguiria explicar as coisas cabalmente às autoridades.
Voltou a subir para cima dos caixotes, espreitando para fora. O trio tinha-se desviado ligeiramente, não se encaminhavam diretamente para o local onde se encontrava, mas sim para a boca da trincheira. Para lá chegarem tinham que dar a volta por uma curva do caminho, em desnível com a zona demarcada das escavações. Na altura em que chegassem à entrada, seria o momento propício para ele escapar. Ou então, nunca.
A mãe de Sebastiano dizia, puxando o filho:
-Lei dice che lo straniero, à sceso da solo qui?
E voltando-se para o policial rural:
-Dovete fermarlo! È un ladro!
Randall desesperado, pensou naquilo que ela dizia. Com certeza algo a respeito de um estrangeiro estar sozinho nas escavações, utilizando-se de uma pá que lhe pertencia. Devia estar dizendo à polícia para o prender, para prender o ladrão.
Estavam agora desaparecendo do raio de visão de Randall. Primeiro o policial, depois Sebastiano e a seguir a irada matrona.
Podia ouvir as palavras ressoarem pelo túnel.
Randall movimentou-se com rapidez. Subiu em cima dos caixotes e colocou a bolsa e o casaco na borda da trincheira. Depois, com todo o vigor que lhe restava, apoiando-se com os cotovelos nas traves, içou-se até o parapeito, deixando-se rolar pelo declive relvado. Agarrou no casaco e na bolsa e desatou correndo com toda a presteza que lhe consentiam as pernas. Subiu a vertente do montículo e parou um segundo para observar a estrada e o lugar de fruta que lhe ficavam em frente, e logo a seguir projetou-se para diante com uma velocidade que só a noção de perigo podia explicar.
À medida que se aproximava da barraca onde se vendia fruta e refrescos, observou a figura conhecida com o famoso chapéu de gondoleiro, que se despedia do dono do lugar e se dirigia para o seu anacrônico Fiat.
- Lupo! - gritou. - Lupo, espere por mim!
O motorista do táxi voltou-se, admirado, mas ao ver Randall que se dirigia ao seu encontro correndo como uma lebre, sorriu, levando a mão ao chapéu e olhando esperançoso para o americano.
- Lupo, preciso de si. Quero alugar o carro.
- Quer ir para a estação? - perguntou Lupo, verificando pela primeira vez com admiração a aparência descomposta do seu potencial cliente.
Randall apresentava o rosto e as mãos sujas de terra e a camisa era uma mancha de suor e de calcária.
-Não, para a estação não! -exclamou Randall agarrando com firmeza o braço de Lupo e arrastando-o para o táxi. - Quero que me leve diretamente a Roma, o mais depressa possível. Pagar-lhe-ei bem por me levar. Pago-lhe a gasolina e também a corrida de regresso a Ostia. Pode dar toda a velocidade?
- Signore, estamos praticamente em Roma! - garantiu o motorista.
Enquanto abria a porta traseira do Fiat, Lupo perguntou:
-Então, signore, gostou das ruínas de Ostia Antica? Foi um dia de repouso e boa disposição, hem?
Estava finalmente a salvo no seu quarto do Hotel Excelsior.
No saguão, onde fora alvo de olhares de surpresa, dirigira-se à recepção e pedira para lhe marcarem um lugar no primeiro avião que partisse para Paris. Completamente alheio às atenções despertadas pela sua extravagante aparência, fizera, do balcão da recepção, uma chamada para o Professor Henri Aubert, para a capital francesa. Aubert não se encontrava em seu gabinete, tinha saído, mas a secretária dele tomou cuidadosamente conta do recado. Monsieur Randall estaria em Paris antes da hora do jantar. Oui. Monsieur Randall tinha urgência em se encontrar com o Professor Aubert no laboratório a essa hora. Oui. Monsieur Randall telefonaria para confirmar o encontro quando da sua chegada ao aeroporto de Orly. Oui.
Naquele momento, já no seu quarto, Randall verificou que mal tinha tempo para fazer mais uma chamada telefônica, tomar um banho, pagar a conta do hotel e ir-se embora.
Mais uma chamada telefônica.
Presumindo que Aubert viesse a provar que o fragmento de papiro na bolsa era genuíno, um produto do século I, necessário se tornaria dar um último passo, procurar um derradeiro teste. Como o próprio Professor Aubert lhe dissera, a autenticidade do papiro não garantia a autenticidade do documento por si. No fim, o que importava era o texto em aramaico. E em tal foro, como Randall sabia, havia ainda um outro pormenor a esclarecer: a tinta invisível que Lebrun tinha mencionado,
Com quem falar?
Teve uma tentação, quase uma devoção filial, em contatar George L. Wheeler ou o Dr. Emil Deichhardt e revelar-lhes o que tinha em seu poder, pedindo-lhes para convocarem o Dr. Jeffries e o Dr. Knight, os peritos em aramaico da Ressurreição Dois, bem como alguns entendidos em história romana. Não obstante, por mais tentador que o caso lhe parecesse, não obstante toda a aparente facilidade, Randall resistiu a tal idéia.
A menos que Wheeler e Deichhardt tivessem estímulos suicidas ou fossem masoquistas, jamais colaborariam num assunto que poderia provar a falsificação de Lebrun. Eram pessoas que não mereciam confiança. Do mesmo modo, era impossível confiar no Dr. Jeffries, que tinha os olhos postos na chefia do Conselho Mundial das Igrejas, um lugar ao qual ascenderia por obra e graça da sua colaboração fiel com o Novo Testamento Internacional. Quanto ao Dr. Knight, havia o milagre de ter passado a ouvir. Como seria possível convencer alguém a agir contra aquilo que lhe deu um legítimo ímpeto de renovada fé? Não, não existia ninguém na Ressurreição Dois passível de ser convencido a auxiliá-lo, para todos havia demasiado em causa ligado ao êxito do projeto.
Chegou à conclusão de que precisava de alguém de características cépticas, alguém de natureza objetiva, que procurasse a verdade, com tanto afã como ele a buscara, por todos os meios ao seu alcance.
Só conhecia uma pessoa que preenchia tais requisitos.
Randall pegou o telefone e disse à operadora:
- Pretendo fazer uma chamada de longa distância para Amsterdã. Desconheço o número, mas sei que o local se chama Westerkerk, na capital holandesa. Trata-se de uma Igreja e a ligação é para o Reverendo de Vroome, tendo grande urgência.
A operadora respondeu:
-Por favor desligue. Vamos providenciar para descobrir o número que deseja. Daqui a pouco ligaremos para o seu quarto.
Apressado, Randall esvaziou as gavetas e meteu todos os pertences, que tinha espalhados por cima da escrivaninha de vidro, dentro da pasta. Em cima da cama deixou apenas uma camisa e uma muda de roupa interior. Depois de ter enrolado a camisa e o resto da roupa suja e colocado tudo dentro do saco de viagem, pôs o maior cuidado em esconder a bolsa com o precioso papiro no fundo da pasta, fechada a chave.
Tocou o telefone. Era a operadora do hotel.
-Localizamos a pessoa com quem desejava falar em Amsterdã. Pode começar.
A linha estava desimpedida. Instintivamente, Randall baixou a voz.
-Dominee de Vroome? Aqui fala Steve Randall. Estou falando-lhe de Roma...
- Sim...A telefonista disse que era de Roma. - A voz do clérigo era suave e atenciosa como sempre.- É muita bondade da sua parte lembrar-se de mim. Pensei que me tivesse voltado as costas definitivamente.
- Não. Embora tivesse acreditado em tudo aquilo que me contou, o fato é que tinha que descobrir as coisas por mim mesmo. Procurei descobrir Robert Lebrun e encontrei-o.
-Encontrou-o? Falou com ele?
-Sim, falei com ele frente a frente. Ouvi a história da própria boca dele, em essência foi, mais ou menos, a que Plummer lhe transmitiu. Claro, que o relato que obtive é de longe muito mais completo. De momento não posso demorar-me em pormenores. Estou prestes a apanhar um avião, mas cheguei num acordo com Lebrun.
-Ele entregou-lhe as provas?
- Sim. O que interessa... é que tenho comigo, aqui no meu quarto, a prova da falsificação.
Do outro lado da linha ouviu-se um prolongado assobio de admiração.
-Excelente, excelente. É a parte desaparecida de um dos papiros?
-Exatamente. Um fragmente com palavras em aramaico. Vou levar o fragmento comigo para Paris. Chegarei ao aeroporto de Orly às cinco horas, num avião da Air France. Vou direto ao laboratório do Professor Aubert. Quero que ele verifique o papiro.
-Para mim Aubert não se reveste de nenhuma importância -disse o Dominee de Vroome.-Mas compreendo que seja importante pra você e para os seus «patrões». Evidente que ele declarará o papiro genuíno. Parece-me que essa foi a parte mais fácil para Lebrun. O que está escrito no fragmento é que poderá ou não oferecer a prova da falsificação.
-É por isso mesmo que lhe telefono. Conhece alguém em quem possamos confiar?
-deu-se rapidamente conta de ter usado a palavra nós - alguém que tenha a perícia suficiente para examinar o aramaico e dizer-nos...
-Mas, eu já lhe disse anteriormente, Mr. Randall, que devem haver poucas pessoas tão familiares com o aramaico como eu sou - interrompeu o clérigo.-Num assunto tão delicado, julgo que o melhor será confiar inteiramente em mim.
-Com todo o prazer - disse Randall, aliviado. -Esperava seu auxílio. Só mais uma coisa, já ouviu falar sobre uma mulher chamada Locusta?
-A envenenadora oficial do Imperador Nero? Claro que sim.
-Dominee, o senhor está tão familiarizado com a história da antiga Roma, assim como, com o aramaico?
-Talvez mais, até.
-Bem, para ter a certeza de não haver dúvidas a respeito da falsificação, o nosso comum amigo Lebrun conseguiu aprender uma antiga fórmula grega usada por Locusta para fabricar tinta invisível e aplicou essa fórmula ao fragmento o qual prova a sua mistificação e que eu tenho em meu poder.
O Dominee de Vroome emitiu uma risadinha.
- Positivamente um gênio do mal. Ele forneceu-lhe a fórmula?
- Não completamente - respondeu Randall. - Sei que a tinta invisível é composta de bagas de uma planta chamada centáurea. Para fazer aparecer a mistura tem que se utilizar uma mistura de sulfato de cobre e de outro ingrediente... mas não sei qual é o outro ingrediente.
-Não importa. Essa coisa não constituirá um problema. De modo que, Mr. MandalI, devo dar-lhe os meus parabéns. Temos finalmente nas mãos aquilo que sempre suspeitamos que existisse. Muito bem, excelente. Os meus mais profundos agradecimentos. Agora podemos pôr termo ao logro. Partirei imediatamente de Amsterdã e estarei em Paris quando lá chegar. Disse cinco horas, não foi? Lá estarei pronto para levar a efeito o exame. Sabe bem que temos que trabalhar com a máxima velocidade, não temos tempo a perder. Sabe que os seus editores prepararam para anunciar ao mundo a nova Bíblia na sexta-feira de manhã? A declaração será feito do salão principal do Palácio Real de Amsterdã.
- Sim, sei isso perfeitamente - respondeu Randall. - Penso, no entanto, que o programa não se realizará, nem no Palácio Real nem em qualquer outro local, pelo menos se o barril de pólvora que tenho na minha pasta explodir na quinta-feira. Até logo às cinco horas.
Randall não se sentiu seguro, senão quando o avião em que viajava aterrizou numa das pistas do aeroporto de Orly.
A experiência na Itália foi perturbadora e carregada de ameaças. Mas tudo isso ficava agora para trás. Os passageiros desciam do avião para solo francês, e embora o aeroporto de Orly estive envolvido em neblina e caísse uma chuva miudinha, tratava-se da França e tudo era maravilhoso. França significava liberdade. Randall, pela primeira vez no período de alguns dias, sentia-se livre, aliviado de um grande peso.
Agarrou a preciosa pasta (não a perdera de vista, enquanto entrava no avião em Roma e tinha-lhe sido concedido mantê-la como bagagem de mão) e juntou-se aos outros passageiros que saíam.
Dentro de minutos estaria junto de Dominee de Vroome, um aliado, de quem dependia de certa maneira. Os dois iriam ao laboratório do Professor Aubert. Com a bolsa contendo o fragmento, as forças da luz, da claridade, possuíam uma arma contra as recentes e dominantes forças da escuridão e da superstição.
Rápida e eficientemente, Randall foi transportado à sala de desembarque e orientado pela aeromoça francesa para o andar superior. Em fila com os outros passageiros, colocou-se na esteira rolante que transportava toda aquela gente pelo longo corredor, saindo onde se via um sinal luminoso que dizia: PARIS.
Ali, a atividade era intensa. Viam-se as secretárias e os balcões de fórmica que já tivera oportunidade de examinar antes, cada seção governada por um police de l'air, um policial do aeroporto com o peculiar boné de pala, marcado por um emblema que representava um par de asas. Os uniformes eram constituídos por uma camisa e calças azuis-claras. Era aquilo que os franceses chamavam a seção de controle de passaportes ou seção de Filtragem Policial. Logo a seguir, mais balcões compridos, também de fórmica, por cima dos quais se lia: Dowanes. As alfândegas. Os balcões estavam divididos em seções separadas por anteparos, como as caixas dos bancos, e atrás de cada balcão encontrava-se um funcionário vestindo um elegante uniforme. Quepe de pala preta e casaco azul-marinho com botões de metal. Para além das alfândegas, viam-se as portas giratórias, onde a multidão de visitantes aguardavam os desembarques.
Ao aproximar-se da seção de controle de passaportes, Randall estendeu o pescoço para ver se avistava a dominadora figura de Dominee de Vroome, envolto na sua batina negra. Mas a multidão era demasiado compacta. Pelo menos àquela distância não podia avistar nada de parecido com o Reverendo.
Estava agora junto do balcão e um police de l'air, de rosto fechado e aspecto aborrecido, estendia-lhe a mão. Randall, por breves instantes, pousou a pasta e procurou o passaporte no bolso interior do casaco, apresentando-o juntamente com a carte de débarquement. O policial voltou uma ou duas páginas do passaporte, considerou a fotografia de Randall (quando tirara aquela foto tinha mais seis quilos e tal, por isso não gostava de a exibir), e comparou-a com o exemplar humano que tinha na sua frente. Depois consultou um molho de misteriosos papéis que estavam em cima de uma mesinha. Olhou para Randall uma segunda vez e fez um gesto afirmativo com a cabeça. Ficando com a carte de débarquement, entregou o passaporte a Randall e apontou-lhe para a alfândega. Uma vez realizado tudo aquilo, o policial saiu da sua seção, perante os protestos de toda a outra gente que estava na fila.
Com a pasta de novo bem segura na mão, e com a mão livre exibindo as declarações de bagagem, Randall encaminhou-se para a mais próxima seção aduana, ao mesmo tempo que olhava para a porta na esperança de ver a figura tão peculiar do Dominee Maertin de Vroome.
Sempre mantendo a pasta bem agarrada, entregou ao funcionário os papéis, desejoso de que tivessem acabado todas as formalidades e pudesse finalmente lançar-se ao seu crítico trabalho. Mas, o funcionário, ao aceitar os papéis, parecia distraído, falando com um colega que se encontrava atrás dele. Finalmente, concentrou a sua atenção no balcão, pronto para prestar toda a atenção ao serviço que fazia. Olhou para Randall.
-Não tem mais nenhuma bagagem declarando, Monsieur? É tudo quanto tem?
- Sim, senhor. É tudo. Estive ausente pouco tempo. Odiou-se por estar dando aquelas nervosas explicações, mas os funcionários das alfândegas, em todas as partes do mundo, possuíam a ingrata particularidade de fazerem sentir uma pessoa nervosa e culpada, mesmo sem haver culpas nenhumas. - Trata-se apenas da minha bagagem de mão-acrescentou mostrando a pasta.
- Não excedeu o limite de importação de 125 francos? Não comprou quaisquer artigos, recebeu quaisquer presentes ou outros objetos de valor adquiridos na Itália durante a sua estadia?
- Tudo exatamente como declarei nos papéis que preenchi- disse Randall, num ligeiro tom de aborrecimento. - Só tenho isto comigo, onde estão coisas de natureza pessoal.
- Então não tem nada declarando? - insistiu o funcionário.
- Nada. - A irritação de Randall começava a aumentar.- Já apresentei a declaração. Está tudo explícito. Responsabilizo-me pelo que escrevi.
- Muito bem - disse o funcionário levantando-se e chamando:
- Maurice - Esperou que um colega o fosse render dentro da sua repartição, saiu e voltando-se para Randall disse: - Monsieur, queira fazer o favor de vir comigo.
Surpreso, Randall seguiu o funcionário da alfândega. Passaram a porta giratória, abrindo caminho por entre as pessoas que aguardavam. Randall tentou de novo localizar Dominee de Vroome, mas não viu nem vestígios de uma batina.
O funcionário olhou impaciente para Randall, que principiava a estar seriamente zangado com tudo aquilo. De repente, Randall reparou que era flanqueado por um outro funcionário, reconhecendo o fleumático police de Pair a quem apresentara o passaporte para verificação.
- Eh, que raio se passa agora aqui? - protestou Randall.
- Vamos simplesmente ao andar superior - explicou o funcionário alfandegário sucinto.
- Uma simples formalidade.
- Que formalidade?
-Verificação rotineira da bagagem.
-E porque é que não fazem a verificação aqui?
- Impediríamos todo o tráfego. Possuímos salas especiais perto dos depósitos de bagagens. - Apontou a escada rolante a Randall -por aqui, por favor.
Randall hesitou ligeiramente, olhando de soslaio para o aduaneiro e depois para a impressionante massa do policial, e desistiu de resistir. Sempre agarrado à sua pasta, encaminhou-se para a escada rolante no meio dos dois funcionários. À medida que caminhava sentia uma sensação de perigo. A apreensão que se começara a apoderar dele enquanto na Itália, começava agora a produzir os mesmos efeitos em solo francês.
Quando atravessaram o gigantesco saguão do terminal, dirigindo-se para um sinal onde se lia SORTIE, Randall protestou de novo.
-Julgo que os senhores estão cometendo um grosseiro erro.
Os dois funcionários não se dignaram responder. Guiaram-no até uma vastíssima sala onde os passageiros recuperavam as bagagens pesadas, que iam chegando por sistema de correia de transmissão, conduzindo-o para uma série de pequenos compartimentos vazios, de portas abertas que se alinhavam discretamente junto da parede mais distante. Junto de uma dessas portas abertas, encontrava-se um gendarme - Randall não conseguiu distinguir se se tratava de um agent de police ou de uma homem da Súreté Nationale -de guarda, com o seu bastão e a coronha do revólver bem visível. O guarda fez um sinal enquanto o funcionário da alfândega e o policial do aeroporto escoltavam Randall para dentro da sala.
-Agora podem me informar porque é que eu me encontro aqui? - perguntou Randall.
- Coloque a pasta naquele balcão - disse calmamente o homem da alfândega. - Agora abra-a para procedermos a uma revista, Monsieur.
Randall colocou a pasta em cima do balcão, levando a mão ao bolso para procurar as chaves, ao mesmo tempo que insistia:
-Já lhes disse que não tenho nada para declarar.
-Abra a pasta, por favor.
A polícia do aeroporto havia-se chegado para trás, como quem se alheasse de um serviço que não lhe dizia respeito, enquanto os funcionários da alfândega continuavam ao lado de Randall observando-o atentamente a abrir a fechadura, não só do saco de mão como da pasta.
- Pronto. Faça lá a revista e veja com os seus olhos que nada tenho de anormal.
O funcionário parecia não o escutar. Abriu a bolsa, a tampa e o fundo da pasta para ver se teria fundos falsos. Depois passou em revista as camisas, roupa interior e pijamas. Tirou para fora algumas pastas de arquivo, que abriu, voltando a arrumar tudo como estava. Finalmente, a sua mão, foi até ao fundo e levantou-a, exibindo um objeto que mostrava a Randall.
Era a bolsa de pele escondida por Lebrun em Ostia Antica.
-O que é isto, Monsieur?
-Uma recordação de Roma, sem importância -respondeu Randall apressadamente, tentando ocultar a sua apreensão. -É uma coisa que só tem valor para mim. Trata-se de um fac-simile de um manuscrito bíblico. Sou colecionador.
O funcionário, com eficiência profissional, começou a apalpar extraiu o pedaço de couro envolto em azeite virgem e retirou o encarquilhado e dobrado pedaço de papiro. O olhar dele dirigiu-se para o policial do aeroporto, que se encontrava no outro extremo do balcão, perguntando:
- C'est bien ça, inspteur Queyras?
O policial aproximou-se e fez um sinal com a cabeça.
- Je le crois, Monsieur Delaporte.
O policial a quem o funcionário tratara por inspetor Queyras, exibia na mão um dos papéis cor-de-rosa que Randall observava na escrivaninha da seção de controle de passaportes.
-Monsieur Randall-disse o inspetor-, é meu dever informá-lo de que o nosso Serviço de Investigações foi alertado pelas autoridades italianas para o vigiarmos. As autoridades judiciárias italianas notificaram-nos que o senhor se apropriou, indevidamente, de um documento de grande valor pertencente ao tesouro de arte italiana. O senhor apoderou-se deste objeto sem estar autorizado a fazê-lo. Trata-se de uma ação proibida pela lei italiana e ficará sujeito a pagar uma enorme multa, se alguma vez regressar a Itália. Todavia...
Randall escutava as palavras do inspetor como se estivesse petrificado. Como é que as autoridades italianas poderiam saber que ele transportava o pedaço de papiro na sua bagagem?
-...os princípios da lei italiana não são exatamente os mesmos inerentes à lei francesa -prosseguiu o oficial do aeroporto no mesmo inglês defeituoso e mal articulado. Naquilo que nos diz respeito, o senhor cometeu um flagrant délit ao esconder este objeto de valor na sua bagagem sem o declarar nos formulários alfandegários. Sem dúvida que tal ato só pode ser interpretado como uma tentativa de contrabando ilegal. É um ato que viola as nossas leis, Monsieur, sendo punível com todo o rigor...
- Eu não escondi nada - explodiu Randall. - Nada declarei porque não tinha nada de valor a declarar!
- O governo italiano parece ter uma opinião diferente a respeito deste papiro -retorquiu calmamente o inspetor.
-Uma opinião diferente? Não pode haver outra opinião. O que podem eles saber a respeito deste fragmento de papiro? Eu sou a única pessoa que sei da sua existência. Escutem, não queiram representar o papel de patetas... esse fragmento dentro da bolsa não tem qualquer valor monetário; é uma imitação, uma falsificação que pretende passar por um original. Não tem valor para ninguém, exceto para mim. Posso acrescentar que intrinsecamente esse fragmento não vale nem um centime.
O oficial da polícia encolheu os ombros.
-Isso é o que falta ver, Monsieur. Existem peritos em tais assuntos, e já contatamos com um deles para proceder a um estudo e fornecer-nos a sua abalizada opinião. Entretanto, até que isso esteja esclarecido...
Passou pela frente do espantado Randall e agarrou na bolsa contendo o papiro, que funcionário da alfândega lhe estendia.
-O objeto fica confiscado.
E preparou-se para abandonar a sala.
Randall gritou, desesperado:
- Espere! Onde é que vai com isso?
Antes de chegar à porta, o inspetor parou, respondendo:
- É uma coisa que só a nós diz respeito.
Randall sentiu-se possuído por uma ira incontrolável perante o papiro, a sua preciosa prova, a testemunha da tremenda mistificação, para ficar na posse daqueles detestáveis burocratas! Era impossível. Não podia ser!
-Não! -insistiu. Precipitou-se subitamente para a frente e agarrou o inspetor por um braço, obrigando-o a voltar.- Não! Diabos me levem, vocês não se podem apoderar assim disso sem mais nem menos!
Randall deitou a mão à bolsa. O inspetor tentou livrar-se dele, mas Randall, apoiou o antebraço contra a garganta do oficial da polícia e fez pressão, apoderando-se da preciosa bolsa na altura em que o inspetor, para se livrar do braço, abriu a mão para a levar à garganta.
O inspetor, aflito, deu um passo atrás, cambaleando e gritou:
-Bon Dieu, attrape cet imbécil!
Randall tinha agora a bolsa na mão, mas nesse momento, depois de refeito da surpresa, o funcionário da alfândega correu para ele. Freneticamente, Randall, como um bom jogador de râguebi, esquivou-se à placagem e empurrou-o com a mão livre. O alfandegário proferiu um palavrão e voltou à carga, agarrando um dos braços de Randall.
Repentinamente, eis que chegaram mais dois homens. O inspetor, que se recompusera do ataque, e o guarda que se encontrava à porta. Os três levaram-no de roldão contra a parede e procuraram imobilizá-lo.
Cegamente, tentando tudo para se ver livre daquelas garras, Randall viu que um joelho se preparava para lhe vibrar uma pancada. Tentou esquivar-se, mas quatro braços tinham-no manietado e a joelhada explodiu-lhe contra as partes. Dos seus testículos pisados escapou-se-lhe por todo o corpo uma dor cruciante, acima dos limites do suportável, e Randall, largando a bolsa, caiu no chão, ficando a revolver-se como um animal ferido.
Os seus ouvidos ainda conseguiram captar as seguintes palavras em francês:
- Ça y est, il ne nous embétera plus. Ele está liquidado. Não causará mais complicações.
Dois dos homens agarraram-no por baixo dos braços arrastando-o.
Gradualmente, os olhos de Randall de novo perceberam as imagens ao redor. O inspetor da polícia exibia outra vez a bolsa na mão, dirigindo-se para a porta.
Randall seguiu-o com os olhos e detectou outra figura, mas essa familiar, postada a uma certa distância. A figura de um homem alto, austero, envolto numa batina negra. Finalmente, ali estava Dominee Maertin de Vroome. Randall gritou:
-De Vroome! De Vroome, estou aqui!
Mas o clérigo holandês parecia estar totalmente alheio da sua presença. Randall viu-o dirigir-se ao oficial da polícia, que lhe dizia algumas palavras e lhe mostrava a bolsa. De Vroome escutava atentamente o que o outro lhe dizia, abanando a cabeça cadenciadamente. Depois, ao lado do inspetor, começou a afastar-se.
-Esperem, deixem-se ir ter com ele-disse Randall com desespero aos dois homens que o seguravam. -De Vroome está à minha espera. Eu telefonei-lhe.
-Ah, sim?-perguntou o funcionário da alfândega com ar divertido. -Parece que não posso acreditar nessa versão. Nós é que pedimos a presença do Reverendo.
Randall olhou para o homem com um ar confuso.
-Não compreendo o que é que está dizendo. Tenho que ver o Dominee! Fez um esforço para se libertar e, nesse momento, sentiu o frio aço de um par de algemas prendendo-lhe os pulsos. - Preciso ver Dominee... - implorou Randall.
O funcionário da alfândega dirigiu-lhe um gesto de assentimento.
- Pois vê-lo-á amanhã quando o senhor comparecer perante o juge dinstruction de Paris, o magistrado que vai examinar o seu caso, monsieur Randall. A partir de agora está sob detenção por infração aos deveres alfandegários, por não preencher a sua declaração de bagagem como devia ser, tentando contrabandear para França um objeto de grande valor. Além disso está preso por perturbar a ordem pública e por ter tentado agredir um agente da lei. Vamos levá-lo para a prisão.
-E quanto ao papiro... -protestou Randall.
-Não vale a pena pensar nele. Trata-se de uma prova, e o seu futuro será decidido amanhã num tribunal da Galerie de Ia St. Chapelle, no Palácio da Justiça.
Era finalmente manhã, uma manhã parisiense sombria e proibitiva vista através as grades da cela.
Pelo menos, refletiu Randall amargamente, sentado na beira do seu catre e a abotoar a camisa lavada, pelo menos não foi tratado como um criminoso comum.
Naquele momento, completamente desperto e refrescado, apesar da insônia que o perturbara durante quase toda a noite naquela cela desolada do Dépôt de detenção ligado com o Palais de Justice, Randall tentava analisar o que lhe acontecera, ao mesmo tempo que procurava prever o que se seguiria.
Ainda se sentia perplexo. Tinha sido preso por ter tentado contrabandear para França um objeto de valor do patrimônio arqueológico italiano, além de ser acusado de resistir à autoridade e ter batido num policial, o que era na verdade certo. Depois do episódio louco do aeroporto de Orly, na tarde anterior, fora transportado numa panier à salade gíria francesa para designar um transporte de presos - e transportado para o complexo de edifícios conhecidos como Palais de Justice, na Île de Ia Cité.
A toda a velocidade, fora praticamente arrastado para um dos edifícios chamado Le Petit Parquet. Aí, numa sala brilhantemente iluminada, confrontara-se com um rígido homenzinho francês, de cara fechada, que se apresentara como le substitut de procurateur de Ia république título pomposo e ameaçador, até que um intérprete, também na sala, explicara tratar-se simplesmente do substituto do procurador da república, ou acusador público.
Houve um curto interrogatório e finalmente estabelecidas as acusações formais. Ele tinha cometido um outrage à fonctionnaire dans l'exercice de ses fonctions (traduzido pelo intérprete como um ultraje contra um funcionário público durante o exercício das suas funções) e tentara contrabandear para França mercadorias não declaradas. O substituto assinara um mandato, tornando oficial a sua detenção.
Devido à circunstâncias especiais (Randall bem puxou pela cabeça para ver se descobria que circunstâncias especiais seriam essas) o Ministério do Interior arranjara maneira de se proceder sem demora à instrução do processo. De manhã compareceria perante um juge d'instruction para um completo exame do caso. Até lá, teria de ser mantido como preso preventivo nos cárceres do Palácio da Justiça. Mas antes do encarceramento, uma última coisa: podia solicitar os serviços de um advogado para o inquérito do dia seguinte. Quereria telefonar para um advogado ou para qualquer amigo que lhe arranjasse um defensor?
Randall pesara tais particularidades. Não conhecia advogados em Paris. Pensou, para logo rejeitar a idéia, em solicitar os serviços da Embaixada Americana. Tudo aquilo que o envolvia era humilhante e difícil de explicar, de tal modo, que Randall não se queria expor sendo atendido por um dos seus altivos compatriotas, que poderia, imediatamente, espalhar a história antes dos fatos estarem destrinçados. Pensou em Sam Halsey, da Associated Presse na Rue de Barri. Com certeza Sam lhe arranjaria um advogado competente. Mas, por outro lado, havia a possibilidade de qualquer entusiasta da Associated, colega de Sam, saber do dilema de Randall e espalhá-lo deformado pela imprensa, sem ter absoluto conhecimento dos fatos, criando-lhe uma situação absurda. Além disso, ponderando bem, a idéia de convocar um advogado de defesa para um caso breve como aquele (podia provar-se com toda a facilidade que o fragmento de papiro não passava de uma falsificação) afigurava-se pretensioso e ridículo.
Quando Randall inquirira qual a legítima necessidade de possuir um conselho de defesa, disseram-lhe: em virtude de ter a maior proteção possível. Todavia, o fato de requerer um advogado demoraria três ou quatro dias e o julgamento sumário do seu caso adiado. Tal resposta ajudara-o a resolver-se. Uma vez que a Ressurreição Dois iria ser oferecida ao mundo dentro de quarenta e oito horas, não podia pois, adiar o exame do caso e, por conseguinte, não havia hipótese para um advogado. Afirmou-se satisfeito em poder defender-se pessoalmente.
Um vez o assunto resolvido, Randall tivera de atravessar um largo pátio do Palácio da Justiça, fora conduzido pelo Boulevard du Palais até à Prefeitura da Polícia. Levado à repartição antropométrica, fora de novo interrogado sobre se já tinha antecedentes criminais. Inquirido sobre a sua versão do acontecimento no aeroporto de Orly, tiraram-lhe as impressões digitais e fotografando-o de frente e de perfil.
Uma vez tudo pronto, enfrentara a chuva miudinha no meio de dois agents de police, reentrara no Palais de Justice e fora finalmente encerrado numa cela do Dépôt. Era uma cela solitária, tudo menos confortável; conhecera contudo locais de pernoite mais desagradáveis durante certas noites negras da sua vida, quando andava perdido de bêbado.
A cela e sua clássica janela com grades, a porta chapeada de ferro, rangendo, apenas com um pequeno orifício para vigilância dos guardas, oferecera-lhe as faustosas instalações de: um catre com um duro colchão de palha, um lavatório onde só corria água fria, um vaso sanitário cuja descarga de água não funcionava, visto descarregarem, automaticamente, todas as celas de hora em hora. No entanto, concederam a Randall alguns números do Paris Match e Lui para ler, o cachimbo, a bolsa de tabaco e fósforos. Randall não se sentira interessado em mais nada, a não ser aproveitar a oportunidade para coordenar idéias. Procurando descobrir um modo de chegar as coisas ao conhecimento de de Vroome e de Aubert, a fim de conhecerem os fatos da falsificação, antes que o mundo, a menos de dois dias, tivesse a declaração pública do Novo Testamento Internacional.
Entretanto, fora incapaz de conciliar idéias, de pensar. O dia fora tão longo e tão carregado de emoções, desde Ostia Antica, Roma, Paris, Orly, até àquela cela do Dépôt!...Por outro lado, não conseguira também conciliar o sono, por causa de uma fadiga excessiva, não lhe permitindo repouso, e pelas imagens fantasmagóricas que lhe perpassavam pela mente: Wheeler e os outros editores, Angela e de Vroome, e sempre a lembrança de Lebrun. Conseguira, apesar de tudo, adormecer, um sono inquieto, povoado de sonhos terríveis; mas dormira.
Chegara finalmente a manhã, cinzenta. O carcereiro fora gentil com ele, não tivera do que se queixar. Ao que parece, gentileza por se tratar de um caso especial. Além do habitual café da cadeia, constituído por café e pão escuro, o carcereiro trouxera suco de frutas e dois ovos. Mais adiante, levara-lhe à cela (objetos tirados da sua pasta de viagem) a lâmina de barbear, pente, uma muda lavada de roupa interior, meias, camisa e uma gravata limpa. Finalmente, lavado, barbeado e penteado, Randall podia pôr em ordem as suas idéias.
Tentou lembrar-se o que lhe disseram sobre o que o esperava nessa manhã. Um julgamento formal ou um inquérito judicial? Não se recordava bem. Na noite anterior a confusão fora tanta. Lembrou-se do delegado do ministério público falando-lhe de um exame perante um juge d'instruction. Que diabo seria um exame daqueles? Pensando bem, recordou que lhe haviam dito algo sobre um processo de inquérito, feito por um juiz, com as devidas testemunhas, ele sendo réu e seu próprio defensor. Quando perguntara quais eram as testemunhas, obtivera um desenvolvido relatório: acusado de perturbação da ordem pública, resistência à autoridade e tentativa de agressão o qual constituía um crime de natureza menor. O mais importante no caso era o contrabando de um tesouro do patrimônio nacional italiano para França (nessa altura gritara de novo não se tratar de nenhum tesouro, mas sim de uma falsificação, nada mais do que uma mistificação) e, por isso, as testemunhas seriam peritos para determinarem a autenticidade e valor do fragmento de papiro.
O que se tornava mais confuso para Randall era o papel desempenhado por de Vroome em toda a questão. O clérigo holandês aparecera no aeroporto de Orly conforme prometera, estava lá para prestar assistência a Randall. Contudo, o homem, idiota, da alfândega insistira que a presença de de Vroome: fora a instâncias das autoridades francesas. Uma coisa que, para Randall, não fazia qualquer sentido.
Um outro mistério, talvez o mais ameaçador de todos: Quem fornecera a informação à alfândega francesa?
Evidentemente, alguém armara-lhe uma cilada. Então, quem diabo saberia do perdido fragmento de papiro o qual estava em seu poder? Bom, recolhendo dados, havia o rapaz, Sebastiano, a mãe do moço e o policial rural de Ostia. Todavia, nenhum deles sabia a sua identidade, ainda que soubessem, que tirou algo da escavação Monti. Outra hipótese era Lupo, o motorista do táxi que o conduzira de Ostia à Roma, entretanto, o fato é que o motorista não podia saber quem ele era, nem o que tinha consigo. Não era de desprezar a hipótese do Professor Henri Aubert, para quem enviara de Roma uma mensagem telefônica urgente. Mas, Aubert não podia adivinhar a razão que o levara a pedir-lhe uma entrevista. Finalmente, chegava ao Dominee Maertin de Vroome, a quem telefonara também de Roma, e o único que tinha conhecimento de tudo. Não obstante, de Vroome era a última pessoa no mundo, sabendo o que se passava com a mistificação da Ressurreição Dois; a única que não tinha, nem o mais leve motivo, para o trair, pelo contrário, todo o interesse dele era derrubar, esmagar ferozmente o sindicato de editores do Novo Testamento Internacional. Afinal de contas, trazendo de Ostia a prova da falsificação, Randall fornecia a de Vroome a única arma disponível para destruir a Ressurreição Dois e ascender ao poder.
Não havia explicação lógica, salvo uma.
Se Robert Lebrun não fosse morto por acidente, se fosse assassinado deliberadamente, então a pessoa, ou pessoas, conhecedoras daquilo que Lebrun estava disposto a dar a Randall, foram também capazes de saberem o que ele Randall, andara fazendo em Roma e Ostia Antica.
Era essa a única possibilidade, muito embora, fosse uma possibilidade tênue, fugidia, visto que os suspeitos não tinham nomes, nem rostos.
Um beco sem saída.
Acabara de fazer o nó da gravata, quando a porta da cela rangeu.
Um homem ainda jovem, com um quepe de pala, e uniforme azul-marinho, apresentando uma leve semelhança com um cadete da Academia Militar de St. Cyr, entrou na cela.
-Passou bem a noite, Monsieur Randall? Sou o inspetor Bavoux, da Garde Républicaine. Encarregado de o escoltar ao Palais de Justice. O inquérito começará dentro de uma hora. Nessa altura já estarão reunidas as testemunhas. Vai ter a oportunidade de ser ouvido.
Randall levantou-se do catre e enfiou as mangas do casaco.
- Pedi a presença de Reverendo Maertin de Vroome, de Amsterdã, para depor a meu favor. Estará entre as testemunhas chamadas?
- Com certeza, Monsieur.
Randall soltou um suspiro de alívio.
-Graças a Deus... Muito bem, inspetor, estou pronto, podemos ir.
Estavam reunidos numa pequena sala, funcional, localizada na Galeria dos Juízes de Instrução, no quarto piso do Palácio da justiça.
Ao ser conduzido para o edifício do Palais, voltando à esquerda para a Galeria da Santa Capela, Steve sentiu um restauro na sua abalada confiança ao ler a inscrição na placa à entrada: LIBERTÉ, ÉGALITÉ, FRATERNITÉ.
Enfim, justiça - pensou, enchendo o peito de ar.
Naquele momento, mantendo-se ainda numa posição rígida, no banco dos réus, encostado numa da paredes, Randall notou que passaram vinte e dois minutos desde o início surpreendente do inquérito informal. Sabia que a altura de ser ouvido estava próxima. Sentia-se calmo e cheio de confiança. Seria chamado a prestar declarações, meramente, para determinar a sua crença que o papiro que trouxera da Itália à França, era apenas uma falsificação sem qualquer valor monetário. Uma vez o seu depoimento corroborado pela opinião autorizada e inatacável de Dominee Maertin de Vroome, tudo estaria esclarecido. Com o depoimento de se tratar de uma mistificação pronunciado por de Vroome, Randall sabia que o magistrado nada mais poderia fazer, do que multá-lo pela resistência à autoridade e tentativa de agressão a um agente, mandando-o em liberdade.
Randall, de soslaio, avaliou mais uma vez as testemunhas. Randall não se surpreendera com a presença daquela gente quando fora introduzido na sala. As vidas daqueles homens, bem como, as suas fortunas em dólares, libras, francos, liras e marcos estavam em causa e dependiam daquele inquérito.
A sala tinha cinco filas de bancos. Na primeira fila, como figuras esculpidas em granito, encontravam-se Wheeler, Deichhardt, Fontaine, Young e Gayda. Atrás deles, solene e atento, estava de Vroome, tendo ao lado Aubert e a seguir o inspetor Heldering. No banco imediato, sentava-se Naomi Dunn, impassível, com os finos lábios apertados. As primeiras testemunhas já não estavam presentes, depois de prestarem os depoimentos foram dispensadas pelo juiz.
Não havia público, nem elementos da imprensa. No início do inquérito, o magistrado esclarecera bem este ponto, dizendo que o julgamento sumário seria efetuado à porta fechada devido «à discrição requerida pelo assunto a ser debatido»-como se exprimira eufemisticamente.
Era um tribunal de «estrelas», pensou Randall.
Imaginou quem procedeu todo o arranjo para que o julgamento fosse à porta fechada. Evidentemente, ali a mão toda poderosa da cabala de editores, com todo o concerto das tremendas relações que estendiam os seus tentáculos ao Vaticano e ao Conselho Mundial das Igrejas. Afinal de contas, a França, como país católico por excelência, responderia aos desejos da Igreja. Pois ali estavam Monsieur Fontaine, e o seu alter ego, Professor Sobrier, bem como, o Signore Gayda e sua eminência influente, Monsenhor Riccardi. Homens como aqueles não pesavam só na religião, como estavam também, fortemente envolvidos na política... e a igreja e a política eram duas forças de poder avassalador, para o bem e para o mal. Aqueles homens queriam segredo e os seus desejos foram atendidos.
Randall não se importava, porque tinha de Vroome do seu lado, e com de Vroome, em breve, seria imposta a verdade e seria montada uma via para que ela chegasse ao conhecimento do público.
Escutando, mas quase sem interesse, o depoimento da testemunha que ainda seria interrogada, Randall passou em revista os acontecimentos ocorridos antes daquele momento.
O juge d'instruction (chamava-se Le Clere) entrara na sala; sentara-se a uma das grandes escrivaninhas metálicas cheias de papéis, colocadas em frente da teia das testemunhas, dos bancos onde se sentava a seleta e reduzida assistência. Inesperadamente, o magistrado não se apresentara com a respeitável toga, mas vestindo um terno marrom, de corte conservador. Mostrava o ar anêmico, de típico funcionário público, do consumado burocrata, com um cabelo de estopa lembrando a cabeleira dos juízes ingleses, exibindo uma voz sumamente aguda e desconcertante.
O juiz iniciara as matérias processuais pedindo a leitura do documento de acusação contra o réu e logo, por detrás de uma escrivaninha, colocada de viés em relação à da presidência do tribunal, erguera-se o greffier, escrivão do tribunal, para ler em voz alta, primeiro em francês e depois em inglês, o documento de pronúncia, segundo o interrogatório a que Randall fora submetido no dia anterior juntamente com os depoimentos das partes contrárias. Impaciente, o juge d'instruction declarara que tinha dispensado os serviços de um intérprete (excetuando para as testemunhas que falavam somente francês), para poupar tempo precioso. Tal coisa tornara-se possível porque, além da justiça administrar o réu, o inquérito judicial seria feito em inglês. Depois de declarar aquilo, o digno magistrado começara a movimentar toda a articulação do processo, como se o tempo fosse na verdade dinheiro, ou como se tivesse marcado encontro para um almoço que por nada deste mundo desejaria perder.
O depoimento de abertura foi prestado pelo funcionário da alfândega do aeroporto de Orly, Monsieur Delaporte, que pormenorizava o horroroso comportamento do réu. A segunda testemunha chamada a depor fora o guarda da Súreté Nationale, chamado Gorin, que proclamando-se um humilde protetor do bem público e da sua segurança, disse que foi alertado antecipadamente, pela força de segurança de Orly, de que haveria um contrabandista sendo revistado e que seria pessoa violenta. Gorin declarou que fora convocado para ajudar a subjugar o réu.
A terceira testemunha fora o inspetor da police de l'air, o oficial da polícia do aeroporto, chamado Queyras, depôs que foi informado, pelo chefe dos carabinieri de Roma, sobre um americano, um tal Steve Randall, havia adquirido ilegalmente um tesouro cristão de grande antigüidade e que o transportara de Roma sem licença para o tentar introduzir em Paris. Queyras
preparara em pormenor um dos seus documentos -descrevendo criminosos procurados pela polícia -e quando Randall surgira na sua seção confiscara-lhe a bolsa com o fragmento de papiro, tendo que se unir aos outros funcionários para subjugar o intratável visitante. Queyras fora dispensado pelo magistrado juntamente com as testemunhas anteriores.
A testemunha seguinte, uma cara nova para Randall, fora o Dr. Fernando Tura, antigo superintendente da região de Ostia Antica e elevado recentemente a membro do Alto Conselho de Antigüidades e Belas-Artes de Roma. O Dr. Tura deslocara-se a Paris em representação do Ministero della Pubblica Istruzione. Um italiano peso galo, oficioso, de olhos furtivos e bigodes parecidos com a barra de um trapézio. Randall antipatizara imediatamente com o homem, e com uma excelente razão: segundo Angela era aquele o indivíduo que levantara obstáculos e difamara o Professor Augusto Monti desde princípio.
O juiz interrogara o Dr. Tura.
Não, o arqueólogo italiano nunca antes vira o réu. Só soubera da existência do Signore Randall no dia anterior: tivera conhecimento de que aquele estrangeiro, aquele americano, por meios ilícitos e sem licença do Ministério, obtivera um fragmento de papiro desaparecido, pertencente ao códice do Evangelho Segundo Jacob, uma descoberta feita em Ostia Antica seis anos antes pelo Professor Augusto Monti, da Universidade de Roma, com a cooperação dele, Dr. Tura. O réu esforçara-se por deslocar esse tesouro nacional de solo italiano. Não, o Dr. Tura não tinha qualquer idéia definida sobre a maneira como o Signore Randall obtivera o valioso fragmento, nem sabia se fora roubado ou encontrado por acaso, mas em qualquer dos casos violara sem dúvida a lei.
Apoiando as suas declarações, o Dr. Tura citara a lei italiana relativa ao assunto que estava em causa:
- «Os objetos arqueológicos encontrados na Itália pertencem ao Estado, com base no princípio de que qualquer coisa de procedência subterrânea constitui propriedade do Estado. Só o Ministério da Instrução Pública pode conceder licença para execução de pesquisas arqueológicas, sendo proibida toda e qualquer escavação sem uma licença.»
Ultrajantemente, o réu entrou em contravenção com os princípios da lei italiana, não só não reportando o caso como tentando ainda contrabandear para fora de Itália o fragmento.
O governo italiano queria pois recuperar o citado fragmento de papiro de modo a poder entrega-lo a um sindicato de editores, conhecido como Companhia do Novo Testamento Internacional, visto que o sindicato em causa tinha a concessão dos documentos descobertos pelo Professor Monti. Ora, sem dúvida que o fragmento em causa formava parte integral para os devidos efeitos da publicação de uma versão revista desse Novo Testamento.
O pomposo Dr. Tura havia terminado o seu depoimento, retirando-se do banco das testemunhas com um ar de grande dignidade. Nessa altura, ainda a seguir o arqueólogo com os olhos, Randall deu fé de que o magistrado se dirigia a ele próprio.
-Monsieur Randall, estou agora em condições de escutar o seu depoimento. Queria fazer o favor de me declarar a sua profissão.
- Sou diretor de uma firma de relações públicas de Nova York.
- Que circunstâncias o levaram a Roma?
- Bem, Excelência, trata-se de uma longa história.
- Monsieur Randall, agradecia-lhe o favor de nos contar os fatos essenciais, encurtando a história-pediu o juiz Le Clere destituído de qualquer senso de humor. - Peço-lhe que vá direito até ao momento do seu aparecimento, ontem, no aeroporto de Orly.
Randall ficou aturdido. Como é que poderia transformar uma montanha num ratinho? Bom, tentaria. De resto queria o mais breve possível, ceder a vez ao depoimento pericial de de Vroome.
- Tudo começou quando fui convocado, em Nova York, Para uma entrevista com um bem conhecido editor de livros religiosos, Mr. George L. Wheeler - lançou um olhar na direção de Wheeler, que começou a contemplar a biqueira dos seus sapatos, recusando-se a tomar conhecimento de ter ouvido a menção ao seu nome. - Mr. Wheeler pretendia contratar os meus préstimos para publicação de uma nova Bíblia. Representava um sindicato internacional de editores de livros religiosos -pessoas que estão todas presentes nesta sala-que preparavam a revisão do Novo Testamento com base numa excepcional descoberta arqueológica. Se deseja saber pormenores a respeito dessa descoberta ... ?
-Não é necessário -disse o juiz Le Clere.-Possuo já um depoimento de Monsieur Fontaine resumindo o conteúdo do Novo Testamento Internacional.
O bom juiz foi já aliciado numa conferência antecipada pelos cavalheiros da Ressurreição Dois. Excelente trabalho de previsão, pensou Randall.
-O senhor foi então contratado para dirigir a publicidade dessa Nova Bíblia? -perguntou o magistrado,
- Sim, Excelência, fui.
-E o senhor acreditava na autenticidade da publicação? -Acreditava, Excelência.
- E continua a considerar os documentos do Novo Testamento Internacional como autênticos?
- De modo nenhum, Excelência. Muito pelo contrário. Considero agora os documentos do Novo Testamento como descaradas falsificações, como se pode provar pelo conteúdo da bolsa de pele que ontem me apreenderam no aeroporto de Orly.
O magistrado tirou do bolso um lenço e assoou-se estrondosamente.
- Muito bem. E como é que o levou a ficar desencantado com a obra?
- Se me for possível explicar...
- Pode explicar, mas sem se desviar dos fatos relevantes para este inquérito e relativos à pronúncia.
Havia tantas coisas que Randall queria relatar, um tremendo complexo de tantas suspeitas, o desenrolar de tantas coincidências... mas sabia, no entanto, que as suas palavras não seriam aceitas como provas para apoiar a defesa. Rebuscou então a memória em demanda de fatos explicativos diretos... sentiu-se surpreso, mesmo desalentado, por ver como eles eram poucos e de peso tão ligeiro.
- Bem, Excelência, para abreviar, no hotel em que estive hospedado em Roma reuni-me com o declarado falsificador dos manuscritos Jacob e Petrônio. Tratava-se de um súdito francês chamado Robert Lebrun. Ele...
- Como é que o senhor o conseguiu descobrir?
- Primeiro soube da existência do homem por intermédio de Dominee de Vroome.
- O Dominee de Vroome tinha-se encontrado com esse falsificador?
-Bom, encontrar não se encontrou, Excelência.
- Não estou entendendo. Em que ficamos? Encontrou-se ou não?
- O Dominee disse-me que viu o homem, mas não conseguiu encontrar-se com ele, falar-lhe. Aliás, o Dominee soube da existência de Robert Lebrun por intermédio de um jornalista.
- Mas quanto a si, encontrou-se com o alegado falsário, hem?
- Encontrei-o. Por meio de um indício encontrado em documentos que procurei na casa do Professor Augusto Monti. Certo papel levou-me até Lebrun. Persuadi depois Lebrun a contar-me o modo como falsificara o Evangelho Segundo Jacob e o Pergaminho Petrônio. Contou-me que passou longos anos preparando a sua mistificação. O homem era um erudito bíblico incomparável e um verdadeiro gênio na falsificação de documentos antigos. Relatou-me tudo o que fez, passo a passo, na preparação da grande fraude. Fiquei plenamente convencido de me ter contado a verdade.
-E o senhor obteve o fragmento, encontrado na pasta, desse Lebrun?
- Não.
- Não? Então ele não lhe vendeu o fragmento?
- Estava preparado para me vender as provas, tal como, eu preparado para as comprar, a fim de mostrar aos editores que o novo evangelho não passava de uma fraude, um dolo, de modo a impedi-los de levarem avante a publicação do Novo Testamento Internacional. No entanto, Lebrun foi impedido de me entregar as provas da falsificação... de me dar em mãos aquilo que prova a mistificação, esse precioso fragmento que a polícia ontem me apreendeu indevidamente no aeroporto de Orly.
- Impedido? Como é que o impediram?
- Foi morto, convenientemente, silenciado numa coisa a que se convencionou chamar um acidente de viação... precisamente no dia em que ia buscar as provas para entregar-me.
O juiz Le Clere fitou Randall intensamente.
- Se compreendo bem as suas palavras, parece ter querido dizer que esse Lebrun não pertence já ao número dos vivos para poder corroborar o depoimento que o senhor presta a este tribunal de inquérito. Expliquei-me bem?
- De fato, Excelência, Lebrun morreu.
- De modo que temos só a sua palavra, não é verdade?
- Excelência, tem mais do que a minha palavra. Possui a prova da falsificação nesse fragmento que as autoridades me apreenderam no aeroporto. Por vezes, Senhor Doutor juiz, os mortos podem servir de testemunhas. De certo modo, não obstante ter morrido, Lebrun, mesmo na sepultura conseguiu fornecer-me indícios suficientes para eu achar a sua prova.
Randall contou como as posses pessoais de Lebrun depositadas no necrotério romano o guiaram à escavação Monti, perto de Ostia Antica, concluindo:
-Uma vez desenterrada a prova de Lebrun passei a ter certeza de que os documentos da Nova Bíblia eram na verdade uma mistificação. Telefonei de Roma para o escritório do Professor Henri Aubert para marcar uma entrevista. Queria que o professor realizasse um teste de radiocarbono ao fragmento. Telefonei a seguir para o Dominee de Vroome e pedi-lhe a cooperação para determinar se o texto em aramaico - e o desenho e dizeres escritos em tinta invisível pelo punho de Lebrun - apoiavam a confissão de falsificação feita por Lebrun. Quanto a mim, não tinha a mínima dúvida a respeito da fraude, mas sabia perfeitamente que tinha que buscar a opinião de peritos para convencer os editores tratar-se de uma fraude e para os obrigar a abandonarem a publicação do Novo Testamento Internacional. Desse modo, parti de Roma para Paris com o fragmento em minha posse, sabendo que não se tratava de um tesouro nacional italiano, mas sim de um pouco de papiro sem valor, com exceção da sua valia para deter a continuação do projeto da Ressurreição Dois. Porque a polícia do aeroporto me confiscou a única prova que possuía, tentei instintivamente recuperá-la. Não tive a intenção de cometer qualquer violência. Pretendia, tão somente, manter em meu poder uma prova que podia salvar o público de uma descarada mentira e salvar os editores de cometerem um erro grave.
- Acabou?
- Sim, Excelência,
- Pode sentar-se. Vamos chamar as duas testemunhas que faltam. - Olhou para os documentos que tinha na frente. - Se o Professor Henri Aubert se encontra na sala, queira fazer o favor de se sentar no banco das testemunhas.
O Professor Aubert, com o seu habitual aprumo, impecavelmente vestido e com um ar de cortesão do tempo de Madame Pompadour, levantou-se do seu lugar e dirigiu-se para o banco das testemunhas. Passou junto a Randall sem sequer lhe dedicar um olhar e aprontou-se para ler ao tribunal o relatório que escrevera antecipadamente.
O depoimento do homem foi breve, não durou mais de dois ou três minutos, e o seu resumo de modo nenhum constituiu qualquer surpresa para Randall.
-Os testes normais com radiocarbono requerem um prazo de uma a duas semanas para serem efetuados. Mas por meio da utilização de um novo aparelho de contagem, tanto eu como os meus assistentes, trabalhando durante a noite, pudemos no espaço de catorze horas proceder verificações relativas ao fragmento do papiro que ontem nos foi apresentado para análise. Eis os resultados.
Exibiu uma folha de papel datilografada, começando a ler:
-«Segundo as nossas medições ao fragmento de papiro em questão, após os devidos testes na nossa aparelhagem para determinação de datas por meio de radiocarbono, a data da vida desse papiro pode, razoavelmente, ser determinada por volta do ano 62 D.C. Em resultado do que acabo de expor, o fragmento de papiro que nos foi submetido para exame ontem à noite pode ser considerado autêntico pelos padrões científicos. Assinado, Henri Aubert.»
O magistrado pareceu ter ficado impressionado por aquela peça de oratória científica.
-Nesse caso, o fragmento trazido à França pelo réu é de uma autenticidade incontestável, não é assim?
- Absolutamente - respondeu Aubert, que todavia se apressou a acrescentar: - Devo no entanto dizer, em abono da verdade, que apenas me limitei a verificar a idade do fragmento de papiro. De modo nenhum posso falar da autenticidade do texto. Essa é uma decisão que deixo inteiramente à avaliação de Dominee de Vroome.
- Muito obrigado, Professor.
Enquanto Aubert se levantava e ocupava o seu lugar anterior, Dominee de Vroome estava já levantado e à espera de ser convocado para o banco das testemunhas.
O magistrado dirigiu-se a ele.
- O tribunal sentir-se-á muito honrado e grato se o Reverendo Maertin de Vroome quiser vir prestar o seu depoimento neste inquérito.
Randall observou com evidente interesse os movimentos felinos de Dominee ocupando sua posição no banco das testemunhas, enrolando, como era seu hábito a batina. Esperou por um olhar do Reverendo na sua direção, mas o teólogo não se dignou olhar e ficou sentado numa posição de perfil que não permitia a Randall observar-lhe as expressões de sua fisionomia.
O juiz Le Clere iniciou imediatamente o interrogatório.
-Dominee Maertin de Vroome, é verdade que o réu tal como declarou em seu depoimento, lhe telefonou de Roma pedindo-lhe para emitir uma douta opinião sobre uma parte perdida do Papiro Número 3, a qual reivindicou ser a prova de uma falsificação?
- Sim, é verdade.
-É verdade que o Reverendo recebeu também um pedido de uma das organizações de Segurança Nacional, por intermédio dos bons ofícios do laboratório especial do Museu do Louvre, para proceder a um estudo desse fragmento a fim de determinar o seu valor?
-Sim, também é verdade.
O magistrado manifestou-se satisfeito.
- Nesse caso a pronúncia de avaliação satisfará tanto a acusação como a defesa, não é verdade?
O Dominee de Vroome esboçou um dos seus sorrisos tão característicos, em que a boca, quase sem lábios, emitia apenas uma ligeira contração.
- Quanto a isso, duvido que a minha avaliação possa satisfazer as duas partes. Só poderá satisfazer uma delas.
O magistrado também sorriu.
- Bom, peço, explique melhor o caso. Tanto a acusação como a defesa estão de acordo com as suas credenciais para emitir julgamento em matéria tão melindrosa.
- Segundo parece, assim é.
- Nesse caso renuncio a levar a efeito qualquer outro inquérito às suas aptidões como um perito em língua aramaica, como perito em textos relativos à história do cristianismo e à história romana. As partes em causa aceitam tacitamente o seu julgamento abalizado. Reverendo, estudou o fragmento de papiro confiscado de Monsieur Randall?
- Estudei. Examinei-o com o maior cuidado e minúcia durante parte da noite de ontem e por toda a madrugada de hoje. Estudei o fragmento dentro do contexto de toda a coleção dos papiros Monti, que me foram facultados pelos proprietários do Novo Testamento Internacional. Estudei-o também à luz da informação dada por um certo Robert Lebrun e pelo réu, Steve Randall, com respeito ao texto em aramaico ser uma falsificação. Quanto a folha de papiro conter algo escrito em tinta invisível, bem como, um desenho-texto e desenhos traçados com uma tinta preparada segundo uma antiga fórmula romana-feitos pela mão do tal Lebrun de modo a provar que o novo evangelho não passava de uma mistificação genial.
O magistrado Le Clere inclinou-se para a frente, olhando com firmeza para o depoente.
-Dominee de Vroome, será capaz de emitir uma decisão concreta e justa sobre o valor do fragmento do papiro?
- Perfeitamente. Cheguei a uma conclusão absoluta.
- Então, Dominee de Vroome, transmita-nos essa conclusão.
Dominee de Vroome, com o seu imponente aspecto de um apóstolo de Deus, deu tempo a impor-se um ligeiro intervalo dramático, antes da sua vibrante voz soar por toda a sala, pronunciando bem as sílabas.
-Não há dúvidas na conclusão a que cheguei: posso dizer com toda a verdade, que o fragmento de papiro trazido pelo réu da Itália não é uma falsificação... trata-se, pelo contrário, acima de toda a suspeita, de uma obra autêntica e inspirada, saída da pena de Jacob, o Justo, irmão de Jesus... e assim, não só é uma preciosa obra do tesouro nacional italiano como pertence também à herança cultural de toda a humanidade. Posso dizer, que faz parte integrante da maior descoberta feita em dois mil anos da saga cristã. Devo até cumprimentar os proprietários do Novo Testamento Internacional, por poderem acrescentar o fragmento à obra inspirada que estão prestes a oferecer ao mundo!
E com tais palavras solenes, sem sequer esperar a resposta do magistrado, o Dominee de Vroome levantou-se e foi com passo decidido ocupar o lugar anterior. Na sua fila os editores levantaram-se como que impelidos por uma mola e dispensaram ao eclesiástico uma ruidosa ovação.
O julgamento de de Vroome abalou Steve Randall, como o deflagrar de uma granada. Ficou esmagado, estupefato, sem encontrar palavras perante aquele súbito e inesperado volte-face nos acontecimentos.
Quando o Dominee passou junto dele, Randall quis levantar-se e gritar: «De Vroome, seu sujo traidor, seu vendido filho da puta!» Mas da boca não lhe saiu o mínimo som. Ficou ali encostado à parede, estarrecido como se uma espada invisível o tivesse trespassado e não o deixasse mover-se.
No meio da confusão que seguiu e do vozear que se levantou, quase que não pôde compreender aquilo que se seguiu.
O Juiz Le Clere estava dizendo:
- O tribunal está pronto a emitir o seu veredicto, a não ser que haja qualquer outra testemunha que pretenda ser ouvida. Alguém, dentre as pessoas presentes quererá prestar depoimento neste caso?
Uma mão se levantou: a de George L. Wheeler, que chamava a atenção dos seus colegas reunidos em volta de Dominee Maertin de Vroome, e pedia licença para falar.
-Senhor Doutor juiz, peço uma breve interrupção neste julgamento para poder falar a sós com o réu antes de ser pronunciado o veredicto.
- Defiro o seu pedido, Monsieur Wheeler. Tem permissão do tribunal para falar ao réu em privado. - Deu três pancadinhas sacramentais no tampo da mesa com o martelinho. - O inquérito é interrompido. O tribunal voltará a reunir-se dentro de trinta minutos para pronunciar a sentença.
- Raios me comam - berrou George L. Wheeler - nem eu próprio sei porque é que me preocupo consigo.
Randall, com a maior calma, replicou:
- Preocupa-se comigo porque pretende que a sua Bíblia apareça imaculada, acima de qualquer dúvida mortal; porque sabe muito bem, que eu represento uma fonte de defecção, de potencial dissidência; e você não quer, não pode tolerar tal coisa.
Encontravam-se os dois a sós numa salinha, desprovida de janelas, adjacente à sala onde se realizara o inquérito.
A ira sentida por Randall devido à traição do de Vroome acalmara-se e acabara por se transformar na sua habitual e cínica desconfiança por todos os homens. Naquele momento estava sentado, ou estiraçado, numa cadeira, fumando, imperturbável, o seu cachimbo e observando pelo canto do olho a figura de Wheeler em ciranda de um para o outro lado, como um leão numa jaula.
Não obstante a aversão que sentia pelo editor americano, considerava agora o homem com uma espécie de ressentido respeito. Afinal de contas, aquele mercador de bíblias, aquele de fala barata conseguira, sob qualquer hipótese, atrair para o seu lado um inimigo infinitamente superior em intelecto: o Dominee Maertin de Vroome. Aquele truão de feira levara de Vroome a transformar-se num lacaio subserviente da capelinha religiosa ortodoxa. Pensava, com verdadeira mágoa, que subestimara as potencialidades daquele vendilhão do templo. E pensando nas convincentes potencialidades de conversão do homem, interrogava-se para que raio quisera ele uma entrevista a sós. Estaria o repelente feiticeiro tentando envolvê-lo em qualquer encanto?
Entretanto, Wheeler terminara o seu passeio e parara de chofre em frente da cadeira onde Randall se encontrava estiraçado.
-É então isso o que você pensa, que eu o trouxe aqui para tentar convertê-lo de modo a que não haja nenhum dissidente, hem? Steve, não há dúvida que você é um rematado asno, um louco com pretensões a esperto. Escute bem: a sua oposição nada significa para nós, todo o berreiro que você possa fazer, pouco mais será do que o coaxar solitário de uma rã num imenso tanque. Não, na verdade você está mil por cento enganado a respeito das minhas intenções. Considerando a maneira como você nos tentou sabotar, devia na verdade, não me ralar nada consigo, deixá-lo escorregar à vontade para a valeta. Mas não posso. Não posso porque-e já sei que não acreditará naquilo que vou dizer por se julgar muito esperto e não passar de um louco-acontece ter-me afeiçoado a si. Sim, acabei por gostar de si, não posso abandonar, ver seguir um mau caminho uma pessoa a quem me dediquei e em quem depositei confiança. Há outra coisa que me move também a proceder assim-e não me sinto envergonhado de admiti-Ia- porque sou acima de tudo um comerciante, um homem de negócios e tenho orgulho de ser assim, e você entra no quadro dos meus préstimos. Posso utilizar as suas faculdades. Não apenas para a cerimônia da declaração. Isso é uma coisa que já está sob controle. Neste mesmo momento, as estações de rádio, de televisão; os jornais de todas as partes do mundo, estão já a alertar o público de que será feita uma transmissão internacional na sexta-feira anunciando a descoberta bíblica da mais momentosa natureza. Essa é uma das partes do programa que já está em movimento. No entanto, não posso esquecer-me, de que a nossa campanha de vendas só começará a partir da cerimônia de anúncio ao mundo, que se realizará depois de amanhã. Ora eu quero que você dê continuidade à campanha, porque você conhece o projeto como poucas pessoas, sabe perfeitamente o que nós pretendemos e poderá dar tremendo auxílio à nossa promoção. Estou aqui falando-lhe desta maneira, dado estar convencido que você já aprendeu bem a lição. Tenho a certeza disso.
-Qual lição, George? -perguntou Randall complacente.
- De que estava redondamente enganado a respeito da autenticidade dos documentos Jacob e Petrônio e que a razão está do nosso lado. Que deverá estar pronto a admitir o erro, juntando-se à nossa equipe. Penso que é homem suficiente para isso e pode crer que o receberemos como um filho pródigo, matando o mais gordo bezerro. Escute bem, Steve, se uma personalidade tão importante, um clérigo tão famoso e um erudito tão excepcional como o Dominee Maertin de Vroome, cujo ceticismo ultrapassava todos os outros, pôde ser suficientemente homem para ver a luz, admitir o erro e oferecer-se para nos auxiliar, não vejo porque é que você não lhe seguira o exemplo.
Randall tirou o cachimbo da boca.
- Estava precisamente pensando em de Vroome. Como raio é que você conseguiu voltá-lo do avesso?
Wheeler, com ar ofendido, empertigou-se.
-Você não tem emenda, Steve, não é? Para si todos são uns safados...
-Eu não diria que são todos...
-Claro que não. Você excetua-se a si mesmo. -Apontou um dedo ameaçador para Randall. - Deixe de armar-se em espertinho e ouça-me com atenção. Ninguém, mas mesmo ninguém, poderá subornar ou comprar um homem com a integridade de de Vroome. Foi a própria consciência dele que o levou a pronunciar-se, finalmente, sobre o nosso projeto, da forma mais favorável, e não hesitou, precisamente por ser um homem reto e íntegro. Até agora o Dominee tentava arruinar-nos, subverter-nos, mas sem saber com exatidão o que fazia e desconhecendo os pormenores sobre os magníficos documentos que tínhamos em nossa posse. Mas quando ele veio até nós para lhe mostrarmos os documentos - uma vez que estávamos em vésperas da declaração ao mundo, pensamos que podíamos deferir a sua pretensão - imediatamente desapareceu o antagonista e a resistência que antepunha ao nosso projeto. Sentiu que a verdade estava conosco, que possuíamos o verdadeiro Cristo e que a humanidade só beneficiaria em receber Jesus através do Novo Testamento Internacional. De Vroome capitulou imediatamente. Quis estar do lado dos anjos do Espírito Santo, tal como o demonstrou há poucos minutos perante o tribunal de inquérito.
-De modo que agora está em casa apoiando vocês, hem? - perguntou Randall.
- Sim, Randall, o Dominee está conosco. Estará junto de nós na tribuna montada no palácio real de Amsterdã, quando a Boa Nova for transmitida a todos os cantos do Mundo. Steve, não foi fácil para um homem como de Vroome confessar o seu erro e modificar a sua forma de pensar. Mas tal como já disse, Maertin de Vroome foi suficiente homem para realizar o que lhe pareceu justo. Ora tanto o Dr. Deichhardt como nós, os editores compreendemos quão difícil seria para um homem como de Vroome reconhecer que estava errado, por isso, a fim de amenizarmos as coisas também nos manifestamos caridosos e compreensivos. Na verdade, para lhe provarmos que não somos quaisquer vilões com pelos no coração, posso dizer-lhe que fomos ao encontro das aspirações do Dominee Maertin de Vroome.
-Ao encontro das aspirações dele? O que quer dizer com isso, George?
- Que elaboramos uma maneira de homens adultos resolverem suas diferenças, operando em conjunto para formarem uma frente sólida. Uma vez que de Vroome se mostrava preparado para nos apoiar, nós tínhamos também de o apoiar. Retiramos o nosso auxílio à candidatura do Dr. Jeffries para apoiarmos, unânimes pela nomeação de Dominee de Vroome como próximo secretário-geral do Conselho Mundial das Igrejas.
-Compreendo -disse Randall.
Sim, compreendia. Bateu com o cachimbo na beira do cinzeiro para despejar a cinza. Sim., compreendia tudo muito bem.
- E quanto ao Dr. Jeffries? - perguntou Randall. - Onde é que o colocam?
-Tem já outro cargo, presidente da Comissão Central do Conselho Mundial das Igrejas.
-Um cargo meramente honorário. Está dizendo-me que ele se conforma em não ser a figura suprema?
- Steve, tanto o Dr. Jeffries, como nós todos, temos uma opinião muito diferente da sua sobre tais assuntos. Não nos preocupamos com vaidades mesquinhas, pessoais. Possuímos uma causa em comum para defender. Unidade acima de tudo. Ora é natural que façamos certos sacrifícios pelos nossos ideais. A coisa mais importante, é que temos unidade com de Vroome ao nosso lado.
- Ah, claro que têm - anuiu Randall, tentando dominar o seu timbre de voz.
Como se o não tivesse ouvido, Wheeler prosseguiu.
- Agora, depois de tudo resolvido, com um dínamo como de Vroome a chefiar o Conselho Mundial e com o unânime apoio eclesiástico ao Novo Testamento Internacional, temos garantido o maior regresso à religião e a um renascimento da fé desde à Idade Média. O próximo século tornar-se-á conhecido como a Idade da Paz.
Ocultando a sua aversão, Randall empertigou-se na cadeira.
-Muito bem, grande George, excelente trabalho. Mas, gostaria que me explicasse mais uma coisa. Ainda não há muito tempo falei com de Vroome. Sei muito bem qual é a posição dele... ou qual era a posição dele. Só quero que me diga, como é que um reformista radical como ele, renunciou a todos os seus pontos de vista para concordar com a vossa ortodoxia conservadora?
Wheeler pareceu sentir-se ferido pela pergunta.
-Você tem uma opinião errada a nosso respeito. Não nos julgue uns seres rígidos fundamentalistas mesquinhos. Estamos e sempre estivemos preparados para nos adaptarmos a todas as mudanças necessárias que possam preencher as necessidades humanas, quer de natureza espiritual, quer de natureza temporal. Foi esse o milagre do homem da Galiléia. Jesus era flexível, compreensivo e transigente. E nós somos os seus filhos. Também nós somos flexíveis de modo a servir da melhor forma o bem comum. Steve, sabemos perfeitamente que a transigência não pode ser unilateral. Quando de Vroome aceitou a nossa descoberta, preparando-se para terminar com a sua revolta e oposição, nós também nos preparamos para fazer dele o presidente do Conselho Mundial das Igrejas com tudo o que esse cargo significa. Isto é, preparamos para o acompanhar em certo montante de reforma, não só nas interpretações das Sagradas Escrituras, como nas formas litúrgicas, em certos setores de reformas sociais e em esforços destinados a tomar a Igreja mais permeável às necessidades humanas. Como resultado desse compromisso, que terminou com um cisma perigoso, não só vamos avante com uma nova Bíblia, como estamos, igualmente, dispostos a seguir a trilha que conduzirá a uma nova e mais dinâmica igreja mundial.
Randall continuou sentado, sem se mexer, contemplando aquele hipócrita, capaz de negociar com tudo o que pudesse servir os seus interesses.
Pensou que tinha à sua frente um dos ilustres membros do clube do Poder. Uma liga poderosa, como uma gigantesca ventosa, aspirando tudo e cedendo as coisas de menor importância; capaz de utilizar a tremenda arma dos compromissos, para conseguir os seus fins de domínio; servindo-se dos mais sujos truques, para acabar com toda a resistência. Gigante invencível, tal como, as Empresas Cosmos; como os quartéis de armamentos e munições; as grandes organizações governamentais; a liga de bancos mundiais; exatamente, como uma fé ortodoxa regida pelos números. Estava pela primeira vez a ter uma visão exata como todo aquele amálgama podia subsistir. E fora ele, Randall, quem agira como involuntário catalisador. Tinha descoberto a arma capaz de destruir aquilo que representava uma coisa enganadora para o povo e de natureza verdadeiramente cínica, a prova que liquidaria a Ressurreição Dois como uma farsa. Confiante, passara a arma para as mãos de Dominee Maertin de Vroome. Ora com aquela arma ao seu dispor, de Vroome ficara com a alavanca capaz de forçar os chefes da Ressurreição Dois a entrarem numa solução de compromisso. Reconheçam-me que eu vos reconhecerei. Resistam-me e, com a arma encontrada por Randall, lutarei contra vós e acabarei, em última análise, por destruí-los. No final das contas, de Vroome preferira não alargar a guerra civil até chegar à vitória final, que poderia demorar muito tempo e desgastar os combatentes de ambos os lados, trocara a luta por um compromisso imediato, que lhe conferia uma semi-vitória. Uma vez instalado como secretário-geral do Conselho Mundial das Igrejas, passaria a ser o Judas capaz de levar as inocentes ovelhas fiéis ao aprisco de Wheeler & Cia.
E naquele tremendo esquema, como podia perfeitamente ver, só ele se isentava da podridão, mas relegado para uma posição de bode expiatório. Só ele era o grande vencido de uma causa perdida.
As perspectivas eram óbvias. Resistir sozinho era impossível. Vencer em conjunto ou perecer sozinho. Juntar-se à hoste vitoriosa, significava uma violência espiritual, um perpétuo sofrimento da alma; ficar sozinho, era a morte.
Voltando-se para Wheeler, perguntou com toda a calma:
- George, o que é que pretende de mim? Quer que eu seja um homem como de Vroome, não é verdade?
-Pretendo que enfrente os fatos como de Vroome fez. Os fatos e nada mais. Você envolveu-se em jogos temerários e precipitados, seguindo suspeitas tolas, bandeando-se com criminosos e falsários... ora tal atitude só o levou a um beco sem saída, não foi capaz de encontrar nada, fora mais uma outra afirmação do valor do Novo Testamento Internacional... e uma multidão de complicações pessoais. Agora deve admitir o seu erro.
-E se eu admitir, o que acontecerá em seguida?
-Talvez possamos salvá-lo - respondeu Wheeler cauteloso. - Deve ter a consciência de como está enterrado até aos olhos perante o tribunal. Tenho a certeza de que o juiz atirará contra si todo o rigor da lei. Irá apodrecer para a prisão, Deus sabe por quanto tempo, em total desgraça e, o que é pior, sem ter lucrado um centavo. Num futuro muito próximo o mercado para mártires dissidentes deixará de ter qualquer valor. Quando voltar à sala de audiências para escutar o veredicto final, peça para fazer uma declaração. Arranjaremos maneiras do magistrado anuir seu pedido. Monsieur Fontaine tem grande influência junto da justiça francesa. Além do nosso projeto merecer o maior respeito.
- E que declaração é que deverei fazer, George?
- Muito simples, contanto que seja feita convicta e humildemente, retrate-se do seu depoimento anterior. Declare que ouviu dizer que, em Roma, foi encontrado um fragmento autêntico de papiro, uma das partes perdidas do Evangelho Segundo Jacob. Como membro devotado da Ressurreição Dois, lançou-se imediatamente a caminho para recuperar o fragmento e devolvê-lo aos seus legítimos proprietários. Em Roma, viu que o fragmento se encontrava na posse de um criminoso endurecido, Robert Lebrun, que o roubara do Professor Augusto Monti. Você acabou por comprá-lo por ninharia, sem fazer a menor idéia, de que o governo italiano objetaria ao fragmento sair da Itália. Você apenas considerava, que ele fazia parte dos papiros de Jacob, de Amsterdã. Garanta que não teve qualquer intenção para praticar contrabando de um objeto de arte. Quando os inspetores do aeroporto começaram as suas investigações você entrou em pânico, assustou-se. Diga, que declarou que o fragmento era uma falsificação, sem valor, apenas, para provar que não se encontrava na posse de tesouro nacional. História arquitetada para se proteger, em face das acusações que lhe eram feitas. Diga que foi um erro ocasionado pela ignorância da lei e motivado por um entusiasmo sem limites para com o nosso projeto. Declare que lamenta o incidente e que pede a clemência do tribunal. É tudo que terá a dizer.
- E se eu contar isso tudo, essa história da carochinha, o que é que o juiz responderá.
-Entrará em consultas conosco, os cinco editores, e com o representante do governo italiano, e não subsistirão mais problemas. O juiz aceitará aquilo que lhe recomendarmos. Reduzirá a multa imposta e suspenderá a sentença, permitindo que você saia do Palácio da Justiça como um homem livre, de cabeça erguida, e que se junte a nós para realizar a maior e mais espetacular conferência de imprensa de toda a história, um inesquecível espetáculo que será levado a todo o mundo depois de amanhã de manhã, transmitida da tribuna no Palácio Real de Amsterdã. Steve, Steve, você entrará para a história, não se esqueça!
-Devo admitir que isso soa bem. Apesar disso, que acontecerá se eu recusar retratar-me.
O sorriso desapareceu do rosto de Wheeler.
-Lavamos as nossas mãos. Abandonamo-lo ao juízo do tribunal. Deixaremos de manter o seu comportamento em segredo, mesmo de Ogden. Towery e das Empresas Cosmos. Esperou um momento, para logo em seguida perguntar: -Steve, então que diz?
Randall encolheu os ombros.
-Não sei.
-Depois de tudo, ainda não sabe?
-É verdade, simplesmente não sei que dizer.
Wheeler franziu o cenho e deu uma olhada ao seu pomposo relógio de ouro.
- Tem dez minutos para resolver - disse firme. Talvez seja melhor você passar esses dez minutos com alguém que deve ter mais influência sobre si do que eu. - Encaminhou-se para a porta, abriu-a, fez sinal a alguém que estava no exterior e olhou depois para Randall. - Steve, vai ter a sua última oportunidade. Aproveite-a.
Saiu, um segundo depois, hesitante, surgiu à porta a figura de Angela Monti.
Lentamente, Randall levantou-se. Parecia-lhe que havia decorrido uma vida inteira desde que a vira pela última vez. Ela parecia-se desconcertada com a primeira imagem viva que dela tivera - pelo calendário da sua emoção tinham decorrido séculos naquele dia em Milão, quando lhe batera à porta do hotel. Vestia uma blusa de seda, suficientemente transparente para revelar a sombra do sutiã rendado. A blusa ligava com uma pregueada saia e entre as duas coisas, a cintura era marcada por um largo cinto de couro. Angela tirou os óculos de sol e estudou-o com preocupação, como se esperasse uma palavra de boas-vindas.
O primeiro instinto de Randall fora de correr para ela, tomá-la nos braços, beijá-la e abrir-lhe o coração.
Mas o coração dele estava corroído pela desconfiança. Wheeler dissera que podia passar os últimos dez minutos com alguém que poderia exercer alguma influência sobre ele. E ali estava Angela para o influenciar.
Como único cumprimento, Randall baixou-lhe a cabeça e disse:
- Que grande surpresa...
- Olá, Steve. Não temos muito tempo. Mas deram-me licença de te ver.
Ângela atravessou o sombrio aposento. Dado que não o viu fazer o mais leve movimento para receber de maneira carinhosa e expansiva, aproximou-se de uma cadeira postada em frente de Randall e sentou-se.
- Quem é que te enviou aqui? - perguntou Randall com rudeza. - Foi Wheeler e o resto da Máfia galiléia?
Os dedos dela contraíram-se contra a pega da bolsa.
-Pelo que vejo nada mudou, com exceção de que te encontras ainda mais refinado no azedume. Não, Steve, ninguém me mandou aqui. Vim de Amsterdã para te ver por iniciativa própria. Ouvi contar o que aconteceu. Ontem à noite, depois de teres sido preso, Naomi telefonou-me por causa de certa informação e nessa altura contou-me as tuas complicações. Ao que parece, foi o Dominee de Vroome quem convocou os editores a Paris. Naomi disse-me que eles partiriam e perguntou-me se não queria utilizar o mesmo avião que eles.
- Mas não te vi na sala de audiências.
- Não, não quis ir lá. Não tenho pretensões a Maria, nem sinto um gosto particular por assistir chorosa a martírios e gólgotas. Suspeitei aquilo que poderia suceder. Ontem à noite, Wheeler, depois de ter finalizado a sua entrevista com de Vroome, fez-me uma visita e contou-me tudo o que os editores ouviram da boca do Reverendo. E ainda há pouco, quando Wheeler veio falar contigo, Naomi relatou-me tudo o que se passou na audiência.
Randall sentou-se.
- Sabes então que eles estão tentando crucificar-me. Não só Wheeler e o seu bando como também de Vroome.
- Sim, Steve, como já disse, receava aquilo que pudesse acontecer. E pelo que Naomi me contou parece que as minhas previsões estavam certas.
- Sabes que Wheeler apelou para mim, o herege, a fim de me retratar, de dar o dito por não dito, para voltar de novo a juntar-me à Ressurreição Dois?
- Não me surpreende - respondeu Angela. - eles precisam de ti.
-Precisam de opiniões unânimes. Não querem formadores de complicações.
Reparou que ela tinha um ar desconsolado, desconfortável, e quis desafiá-la.
-E quanto a ti? O que é que tu pretendes?
- Para já quero que saibas que, seja o que for que decidas, os meus sentimentos para contigo não modificarão.
-Mesmo que eu continue a atacar a descoberta de teu pai? Mesmo que tenha êxito em expor ao mundo a mentira e destruir o projeto... e com ele a reputação de teu pai?
O belo rosto italiano enrijeceu.
- A reputação de meu pai deixou de constituir problema. O problema agora é a vida ou a morte da esperança. Sei que tu encontraste Robert Lebrun e que te juntaste a ele, tal como de Vroome já havia feito. Mas isso não me forçará a voltar-te as costas. Como vês continuo aqui a teu lado.
-Porquê?
-Para que fiques sabendo que mesmo que não tenhas fé - que não tenhas fé naquilo que meu pai encontrou, naqueles que apóiam essa descoberta, ou até mesmo, que não tenhas fé em mim podes ainda encontrar o caminho justo, reto e bom.
- O caminho justo? - repetiu Randall irado, elevando a voz. - Queres dizer o mesmo caminho seguido por Vroome? Pretendes então que eu me venda como fez de Vroome?
- Como é que podes ter a certeza que de Vroome se vendeu, como tu dizes? - Angela tentava ser razoável. - Não crês que de Vroome seja um homem decente e de fé?
- Pode ser sim, que seja isso tudo - concedeu Randall. Mas de qualquer modo manteve o preço dele: o Conselho Mundial das Igrejas. Claro, podes continuar a chamar-lhe decente se sentires que quaisquer meios são justificados para se atingir um fim, seja ele qual for.
- Steve, então tu também não pensas assim? Não acreditas que o fim é realmente o que conta, os meios utilizados para lá chegar não prejudicam ninguém?
-Não-disse ele com firmeza- não acredito se o fim a atingir for uma mentira. Seja o que for que se atinja será um prejuízo para toda a gente.
- Steve, Steve, mas tu não possuis a mais leve prova, nem o menor átomo que leve a concluir que os relatos de Jacob e Petrônio a respeito de Cristo sejam uma mentira. Alimentas apenas suspeitas. Estás sozinho nessas dúvidas.
Randall começou a agitar-se no seu lugar.
- Angela, se eu não tivesse ficado sozinho em Roma - se nestes últimos dias tivesses estado junto de mim - também agora alinharias do meu lado. Se pudesses ter conhecido e ouvido falar Lebrun, se tivesses passado por tudo o que a seguir aconteceu, os teus olhos já estariam abertos e não poderias manter essa cegueira. Se tivesses estado comigo, farias a ti própria perguntas difíceis e duras e acabarias por receber respostas duríssimas. Perguntarias como é que um homem como Lebrun, que conseguiu sobreviver a toda a espécie de brutalidades para atingir os oitenta anos sempre alerta e ainda cheio de vigor; um homem que vivia há tantos anos em Roma, poderia descuidar-se de tal maneira, atravessando uma praça; que se metesse debaixo de um carro que o matou; e veículo que fugiu a toda a velocidade, precisamente no mesmo dia em que buscaria a prova da sua falsificação para me entregar? Agora já posso pensar como o «acidente» foi possível. Wheeler e os editores, ou de Vroome, agora posso falar deles como de um todo - mantinham-se sob vigilância. Tal como, de Vroome sabia que eu visitei o teu pai à clínica para doentes mentais, tinha todos os meios à sua disposição, para saber perfeitamente que eu tentaria tudo para encontrar Lebrun. Possivelmente mandaram alguém espiar-me. Provavelmente o meu encontro com Lebrun no café Doney e a nossa entrevista no meu quarto do Excelsior foram reportados. Não duvido que Lebrun, fosse seguido até sua casa. E, no dia seguinte, foi liquidado sem piedade. Angela, nós não vivemos num mundo de contos de fada, onde os valores da vida humana são todos igualmente altos. Nem vivemos num mundo encantado, em que os bons triunfam sempre e os maus são sempre castigados. Não, estamos num mundo cruel, cínico, impiedoso, mundo em que a vida de um pobre diabo, de um ex-condenado nada vale se a sua morte servir para promover uma maior glória de Cristo, para salvar a igreja e para melhorar a venda de milhões de bíblias e até para instalar um novo conspirador no mais alto lugar da hierarquia protestante.
- Steve...
- Não, espera, ouve o que tenho a dizer, mais uma pergunta- de fato, uma pergunta que engloba muitas outras. Quem é que sabia que eu tinha ido a Ostia Antica; quem sabia que eu tinha descoberto o fragmento de papiro; e quem é que forneceu ao governo italiano, o indício para telefonar à alfândega do aeroporto de Orly, dizendo que eu transportava comigo essa prova da mistificação? Agora as respostas já não oferecem dúvidas. Só de Vroome sabia que Lebrun possuía um tal fragmento. Depois, por mim, de Vroome soube que o fragmento estava em minha posse. De Vroome dirigiu-se a Wheeler, Deichhardt, Fontaine e aos outros e entrou em negociações, apresentou exigências e uniram-se todos para me mandarem apanhar no aeroporto de Orly a fim de eliminarem a prova da falsificação e, de uma assentada, eliminarem-me também. Pensa bem nestas perguntas, Angela, e não me digas que elas não te preocupam também.
Durante alguns segundos, Angela deu voltas nas mãos à bolsa, nervosa.
- Steve, como é que hei de falar contigo? Falamos dois idiomas diferentes-a tua linguagem é a do ceticismo, a minha é a da fé -de modo que as nossas respostas às mesmas perguntas traduzem-se diferentes. Quanto à morte de Lebrun no dia em que te ia ajudar? Será assim tão raro para um velho, com mais de oitenta anos, passeando distraído pelas ruas de Roma ser atropelado por um carro? Steve, eu sou uma romana. Leio e ouço o que se passa diariamente na nossa cidade. Os motoristas de Roma são os mais descuidados e selvagens da Europa. Existe lá um carro para cada quatro pessoas. O caso do condutor atropelar um velhote e fugir? Uma ocorrência vulgar, nem uma conspiração, nem um crime. De Vroome, Wheeler e o Dr. Jeffries assassinos? Só imaginá-lo já é absurdo. Quanto a tu teres sido apanhado na alfândega? O governo italiano possui muitos agentes em volta dos seus tesouros nacionais. Foste visto fugindo de Ostia Antica, o que seria uma coisa suficiente para despertar as atenções. Mas mesmo que fossem os homens da Ressurreição Dois que elaborassem a tua prisão. Seria uma maldade deliberada, ou uma coisa ilógica? Eles tinham que ver, saber aquilo que havias descoberto, antes que tu chegasses a conclusões e fizesses mau uso do fragmento. Tinham que mandar confiscar, submeter a experiências e examinar o papiro. Tivesse o fragmento mostrado a prova de uma falsificação, estou convencida que te mandariam entregar o fragmento e que adiariam ou parariam com a publicação do Novo Testamento Internacional. Mas quando souberam, através precisamente, daquele que tu tinhas escolhido como perito, que o fragmento era afinal um dos papiros já descobertos por meu pai, claro que tinham que te fazer parar, deter-te, que se queixarem de ti e impedirem um escândalo imerecido. Steve, então não vês? A linguagem da fé fornece respostas diferentes.
- Muito bem, então poderá a fé fornecer resposta cabal a uma pergunta que ainda não fiz?
Angela manifestou-se intrigada.
- Que pergunta é? Vamos, diz.
- Como é que um certo Professor Augusto Monti resolveu escavar em Ostia Antica?
Ela pareceu ter ficado confusa.
- Porque uma pessoa encontrou um pedaço de papiro fora das ruínas, há seis anos, e mostrou-o ao Professor.
- Não sabias que foi Lebrun quem forneceu a pista a teu pai?
-Não. Nunca ouvi pronunciar esse nome até Wheeler mencioná-lo na noite passada.
- Não sabias que Lebrun se encontrou com o teu pai no Doney no ano passado, no dia em que o teu pai perdeu a consciência?
- Não. Nada sabia até ontem, altura em que Wheeler me contou que tu afirmas ter visto uma anotação na agenda de meu pai a marcar tal encontro.
-E não vês nada de raro nisso? Nada de suspeito?
- Não. Meu pai lidava com a mais variada casta de pessoas. Aconteceu ter uma certa entrevista com determinada pessoa como já tinha tido tantas em dias anteriores.
- Muito bem, Ângela, deixa-me experimentar a tua fé. Estarias pronta a dizer ao juiz que o teu pai se encontrou com Lebrun, no ano passado? Seria uma coisa que estabeleceria uma relação entre teu pai e Lebrun. Lançaria dúvidas no caso, e poderia levar uma nova busca da verdade definitiva. Tens suficiente fé para fazeres isso?
Ela abanou a cabeça.
- Steve, já revelei ao juiz tudo o que sabia, juntamente com os depoimentos feitos pelos diretores do projeto. Ontem à noite telefonei para Roma, para a Lucrezia e mandei-a ler-me a anotação na agenda. Toda a gente, incluindo o próprio magistrado, achou que as iniciais «R. L.» seriam uma prova muito pouco conclusiva. Mas mesmo que as iniciais quisessem dizer Robert Lebrun, o que é que isso de fato poderia provar? Seja como for, quis que o juiz soubesse do caso. Como vês, Steve, não devo, nem temo. Quando uma pessoa tem fé, não tem medo da verdade.
Até aquela possibilidade se perdia. Sentiu esmagador peso das circunstâncias. Perdera. Mas ainda restava uma tábua para se agarrar.
- Serias capaz de dar essa informação a uma outra pessoa?
- A quem?
-A Cedric Plummer. Serias capaz de confirmar aquilo que Plummer apenas soube pela boca de Lebrun: que na verdade teu pai se encontrou com Lebrun no Doney?
Ela levantou as mãos.
- Steve, Steve, basta! Plummer também já sabe esse pormenor. Plummer já sabe tudo. E não vê nada de suspeito nesse fato. Quando o Dominee de Vroome se juntou à Ressurreição Dois, Plummer seguiu-lhe o exemplo. Converteu-se, pôs de lado a sua venenosa caneta, e agora escreverá, em exclusivo, a história de todo o projeto, desde a descoberta de meu pai há seis anos até hoje.
Randall afundou-se positivamente na sua cadeira. Era demasiado. Cada palmo de território inimigo estava guarnecido, fora invadido e bem ocupado. Significava que Herr Hennig já nada tinha a recear. A chantagem de Plummer com Hennig para obtenção antecipada de um exemplar do Novo Testamento Internacional, para desvendar a fraude ao mundo, terminara em beleza, com todos amiguinhos de todos. Exemplar.
Voltou a cara para o lado. Bateram à porta e ela abriu-se.
O oficial de diligências meteu a cabeça pela fresta:
-Monsieur Randall, chegou a hora do veredicto.
Randal levantou-se.
-Só mais alguns segundos-pediu.
Angela também se levantara. Mais uma vez ele defrontou-a.
-Queres que me desminta, hem?
Ela pôs os óculos de sol.
-Quero que tu faças aquilo que deves fazer, sem tirar nem pôr.-Parou, parecendo querer dizer algo que se tornava difícil, mas finalmente concluiu.-Na verdade vim aqui para te dizer, quem quer que tu sejas, e quem quer que venhas ser, que te podia amar... se tu em troca aprendesses dando amor: primeiro amando-te a ti mesmo, depois amando-me. Mas, isso é uma coisa que nunca conseguirás aprender enquanto não tiveres fé, fé na humanidade e no futuro. Lamento por ti, Steve, mas ainda lamento mais por nós. Seria capaz de sacrificar tudo por ti, tudo... com exceção da fé. Tenho esperança que virás a compreender algum dia. Agora faz aquilo que te parecer, justo.
Angela saiu correndo do aposento.
Randall ficou só.
-Monsieur Randall, deseja fazer qualquer declaração antes de pronunciar o veredicto?
-Desejo, Excelência -respondeu Randall à solicitação do magistrado. -Passei em revista todo o depoimento que fiz a este tribunal. Pretendo dizer que fui a Roma sem intenção de prejudicar a Ressurreição Dois ou o Novo Testamento Internacional, mas somente com o motivo de verificar, de investigar, tanto por mim, como por conta dos diretores do projeto. Pretendia que tudo funcionasse, sem que pudesse haver, a mais leve sombra de dúvida a manchar a descoberta de um novo, mas, verdadeiro Jesus Cristo.
Reparou que Wheeler, os seus colegas editores e até Angela, esticavam os pescoços para ouvirem melhor a sua declaração. Randall olhou com firmeza para o juiz.
- Aquilo que ouvi em Roma, aquilo que vi com os meus olhos, tudo o que se passou contribuiu para me radicar no convencimento de que o fragmento de papiro que trouxe para Paris, bem como, todo o resto da coleção de papiros que servem de base ao Novo Testamento Internacional, além do pergaminho, correspondem a uma mistificação moderna, uma mentira, uma fraude, tudo fabricado pela mão de um falsário genial. Acredito que os produtos do achado do Professor Monti não valem um centavo e que o Jesus apresentado pelo suposto Jacob, o Justo, pelo inventado Petrônio, constituem uma imagem falsa de um Cristo espúrio. Não obstante, anteriores depoimentos em contrário, continuo a manter que a prova que tinha comigo quando entrei na França, é uma falsificação sem qualquer valor, volto a repetir, e que, por conseguinte, eu não cometi qualquer crime contra o disposto pela lei. Confio que o tribunal, tendo em consideração tudo aquilo que sei de fonte fidedigna e com o único intuito de investigar a verdade das coisas, investigações que não foram motivadas por qualquer lucro pessoal, considere-me inocente. Além disso, rogo ao douto tribunal que me confira a posse do fragmento do Papiro Número 3, o qual, em certo sentido, constitui um legado que me foi feito por Robert Lebrun. E pretendo esse documento para poder mandar examinar o seu conteúdo por peritos mais objetivos e mais verdadeiros que existam no mundo. Nada mais tenho a dizer.
-Terminou a sua declaração, Monsieur Randall?
- Terminei.
- Muito bem. O réu falou em sua defesa. Vou agora proferir a sentença do seu caso. -O juiz Le Clere folheou alguns papéis que tinha em cima da mesa. - O réu estava pronunciado por dois atropelos à lei. Ora no caso de ser julgado por distúrbios públicos, resistência à autoridade e agressão a um agente da polícia, com respeito a essa acusação o tribunal resolveu tomar em consideração o fato do réu possuir um cadastro criminal limpo no seu país, tomando também em linha de conta as circunstâncias especiais de que se revestiu a sua prisão. Quanto à pronúncia de ter tentado introduzir na França, sem declaração adequada, um documento antigo de valor inestimável, que constitui um tesouro sem preço do país de onde foi contrabandeado...
Randall segurou a respiração.
-...declaro que o tribunal, em face de depoimentos de peritos do maior valor, tem o documento como verdadeiro e que, por conseguinte, o réu é culpado tal como o apontado na acusação que o trouxe a este tribunal.
Randall aguardou o resto, rígido. Pensou que estava só.
O magistrado continuou:
-O réu, Steve Randall, é multado em cinco mil francos e condenado a três meses de prisão. Todavia, em vista da afirmação, que nos pareceu sincera, do réu dizer que não cometeu deliberadamente atropelos à lei, e tendo em consideração certo pedido feito a este tribunal pelos empregadores do réu, a multa e a condenação a prisão ficam em suspenso. No entanto, de modo a oferecermos adequada proteção aos queixosos e para impedir novas perturbações da ordem pública, o réu voltará temporariamente para a sua cela onde cumprirá dois dias de cárcere até que seja feita a declaração pública do Novo Testamento Internacional. Daqui a quarenta e oito horas-na sexta-feira à tarde, ou seja, depois de amanhã - o réu será escoltado pela polícia até o aeroporto de Orly onde, por sua própria conta, tomará lugar num vôo em direção aos Estados Unidos, sendo pois, expulso da França como persona non grata.
O magistrado pigarreou para aclarar a garganta.
- Quanto ao pedido que fez a este tribunal, Monsieur Randall, para lhe ser entregue o fragmento de papiro que originou este julgamento, o tribunal indefere o pedido. Uma vez que foi
estabelecida a necessária autenticidade, o papiro confiscado será entregue, por incumbência do governo italiano, aos diretores da Companhia do Novo Testamento Internacional, também conhecida como Ressurreição Dois, para que eles façam do fragmento aquilo que muito bem entenderem.
Bateu uma palmada em cima do tampo da escrivaninha.
Terminou o julgamento de inquérito e instrução.
Vindos de algures, surgiram dois agents de police.
Randall sentiu o frio de um objeto metálico nos pulsos e viu que foi algemado.
Os seus olhos dirigiram-se para os bancos em frente, evitando Angela, mas observando os jubilantes Wheeler, Deichhardt e Fontaine, que formavam um cacho humano em volta de Dominee de Vroome.
Enquanto observava aquele quadro, Randall sentiu-se dominado por um pensamento. Sacrílego ou não, tal pensamento dominava-o por completo, acendendo-lhe letras de fogo no cérebro.
Pai, perdoa-lhes; porque eles não sabem o que fazem.
Impunha-se, todavia, uma emenda:
Pai, perdoa-lhes não pelo que fazem, mas pelo que vão fazer ao Espírito Santo, pelo mal, que irão fazer a uma humanidade crédula e inocente em todo o vasto mundo
Meia hora depois, quando voltou para a cela, Randall passou por outro momento crucial-não tão mau como o anterior, mas de certa forma chocante e quase inacreditável.
Tinha sido condenado à expulsão da França, como pessoa indesejável, tendo de pagar as despesas do próprio bolso. O inspetor Bavoux, da Guarda Republicana, pedira-lhe o dinheiro para lhe comprar o bilhete de avião com destino a Nova York. Randall pesquisara a carteira e os cheques de viagem e dera-se conta que não tinha consigo a soma necessária. O inspetor avisara-o que seria melhor arranjar o dinheiro o mais depressa possível.
Randall lembrara-se que não trouxera consigo os 20 000 dólares que havia colocado nos cofres do Hotel Excelsior em Roma. Antes de partir para Paris arranjara maneira do hotel lhe transferir a quantia para a sua conta de Nova York, pagando ele todas as despesas. Não tendo o dinheiro necessário, o seu primeiro pensamento fora telefonar para Thad Crawley ou para Wanda, mas logo a seguir recordara-se que possuía um amigo íntimo em Paris.
E assim, do gabinete do carcereiro, telefonara para Sam Halsey na Associated Press.
Sem entrar em todos os pormenores complicados da Ressurreição Dois, do Novo Testamento Internacional e dos negócios com o defunto Lebrun, Randall disse a Halsey que fora preso no dia anterior no aeroporto de Orly por ser portador de um objeto de arte que não declarara à alfândega. Tratara-se de um erro, mas a verdade é que estava preso no Depósito de presos do Palácio da Justiça.
-Sam, preciso de algum dinheiro. Neste momento não o tenho. Logo que chegue aos Estados Unidos envio-te o dinheiro.
-Precisas de dinheiro? Quanto? Fala homem.
Randall mencionou a importância.
-Vou-te enviar imediatamente o que pedes-garantiu Halsey. - Eh, Steve, espera um bocadinho, ainda não me contaste tudo... Declaraste-te culpado ou não culpado?
-Não culpado, evidentemente.
-Bem, e quando é que é o julgamento?
- Já fui julgado. Fui a julgamento esta manhã e o juiz declarou-me culpado. Fui condenado a prisão e a uma multa, mas a sentença ficou suspensa. Aquilo que trouxe da Itália foi confiscado e vou ser expulso da França. É por isso que preciso do dinheiro.
Do outro lado do fio houve uma longa pausa.
-Vamos lá ver as coisas com calma, O.K., Steve? Foste preso... quando?
-Ontem à noite.
- E julgado e condenado esta manhã?
- Exatamente, Sam.
- Agüenta um pouco, Steve...um de nós deve estar maluco... É impossível, isso não pode ser... as coisas na França não correm assim. Parece melhor que me contes tudo o que sucedeu esta manhã.
Com simplicidade e numa exposição breve - tendo consciência dos guardas que o cercavam- Randall relatou a Halsey tudo o que se passara na sessão perante o juge d'instruction, falando do veredicto e da condenação final.
- Mas... isso não pode ser... não pode, é uma coisa sem pé nem cabeça. Steve, tens a certeza de que sucedeu exatamente como me contas?
-Sam, por amor de Deus, foi precisamente o que aconteceu. Tudo isto se passou nestas últimas horas. Qual seria o meu interesse em te mentir?
- Meu Deus! - exclamou Halsey. - Meu Deus, em todos os anos que tenho vivido em Paris claro que já me chegaram aos ouvidos rumores de julgamentos fictícios, julgamentos de intimidação... só rumores... mas agora foi a primeira vez que ouvi falar claramente de semelhante abuso.
Randall ficou espantado pelas palavras do amigo.
-Eh... que raio queres tu dizer? O que é que houve de errado?
-Steve, escuta, meu inocente e tolo americano, foste enrolado como um anjinho. Então não sabes nada a respeito do funcionamento da lei na França? Evidentemente que podes ser preso e incriminado por determinado crime. Claro, que terás de comparecer perante um juge d'instruction para seres ouvido, mas tratar-se-á apenas de um exame preliminar. O juiz de instrução não tem o mínimo poder judicial para pronunciar qualquer sentença nem para emitir veredictos finais. O juiz de instrução tem como dever manter, ou não, as acusações segundo o crime e, no caso da pronúncia ser mantida, passar o caso às instâncias superiores. No caso da pronúncia mantida levar-te-ia, pelo menos, seis meses a um ano a compareceres em tribunal perante uma junta de três juízes do Tribunal Correcional. Aí, sim, nesse tribunal coletivo explanar-se-á um julgamento com todos os requisitos, advogados de defesa, de acusação, ata de registro, etc., até à decisão do veredicto final. Um julgamento rápido, só pode ser possível, quando uma pessoa é apanhada em flagrante delito, sem que haja a mais leve sombra de dúvida para o crime cometido. Só apanhado com a boca na botija é que alguém poderá ser levado a julgamento imediato, mas um julgamento onde se responde perante um tribunal coletivo e com a assistência de advogado de acusação e defesa, etc. Mas, ao que parece, tu não foste apanhado em flagrante delito, pois não?...
- Não. Na verdade não foi isso que sucedeu.
- Bom... aquilo que te aconteceu, parece uma mistura coxa e bastarda das duas formas processuais de julgamento... mas, uma coisa que nada tem a ver com as leis francesas, pelo menos segundo aquilo que aprendi.
Randall lembrou-se que a polícia lhe oferecera uma oportunidade de mandar chamar um advogado, provavelmente para o desarmarem, para lhe impedir qualquer suspeita. Mas, logo a seguir, os agentes haviam-lhe mostrado as coisas difíceis, dizendo-lhe que o julgamento teria que ser demorado se solicitasse conselho de defesa legal. Mas... e se tivesse arranjado um advogado, alguma coisa teria modificado? Não, obviamente não; tudo teria então sido arranjado de modo a que as coisas se passassem dentro de um aspecto de legalidade conforme às leis, mas sem dúvida, que as pessoas de poder ilimitado, teria feito com que fosse à mesma condenado.
-Steve, não há dúvida que te armaram uma armadilha e caíste como um patinho - disse Halsey do outro lado. - Por tudo o que contaste afigura-se-me, que alguém influente, mas muito bem situado mesmo, muito lá no alto, tenha usado da sua influência para, desesperadamente, te tirar do caminho, mas afastar-te de uma maneira calma, silenciosa, sem muito alarido público. Desconheço aquilo em que estás envolvido, mas, certamente, que isso deve ter afetado alguém muito importante.
-Tens razão. Os meus assuntos abalaram alguém muito importante... ou melhor vários alguéns muito importantes.
- Steve, queres que eu me misture nessa coisa?
Randal considerou por momentos a intervenção do amigo no caso. Finalmente perguntou:
- Sam, gostas de trabalhar na França, na Europa?
-Porque é que fazes essa pergunta? Sabes bem que gosto do trabalho que faço aqui, adoro-o.
-Então não te metas no meu assunto.
-Mas, Steve, e quanto à justiça?
- Deixa isso a meu cargo, Sam. - Fez uma pausa. - Aprecio imensamente, o que tentaste fazer, acredita. Agora envia-me o dinheiro faça o favor.
Desligou.
Justiça...
Liberté, Égalité, Fraternité...
Mas, de repente, teve a noção que tais palavras constituíam uma promessa somente relativa à França e ele não foi julgado pela França nem pelo poder de um simples governo. Fora julgado e condenado por um poder superior, por algo que se elevava acima das meras formalidades da justiça humana - a Ressurreição Dois.
Naquela sexta-feira, dia da sua libertação, tudo parecia efervescente. Era a história mais grandiosa que Randall conhecera em toda a sua vida.
Em verdade, embora vasculhasse lá no fundo da memória, não se podia lembrar de nada que pudesse ultrapassar aquilo em cobertura, atenção e desenvolvimento.
Recordava-se de coisas emotivas e momentosas, tais como, o ataque japonês a Pearl Harbour; a queda de Berlim e a morte de Hitler; o lançamento do sputnik para o espaço exterior; o assassinato do presidente Kennedy; e o primeiro passo dado pelo homem na Lua, por intermédio, do astronauta Neil Armstrong; mas, nada que se comparasse ao ambiente eletrizante produzido pela declaração do Palácio Real de Amsterdã, de que Jesus Cristo vivera, indiscutivelmente, na terra, não só como um ser humano, mas também, como um mensageiro espiritual do Criador.
Randall andara absorvido durante tantos dias por problemas de conceitos processuais e dilemas sobre verdade e autenticidade, andara tão preocupado pela sua própria sobrevivência que quase esquecera o impacto que o Evangelho Segundo Jacob e o Pergaminho Petrônio poderiam ter sobre milhões e milhões de seres humanos permeáveis ao milagre e às soluções religiosas de salvação.
Entretanto, durante todo o tempo que o Citroën da polícia, levara em percorrer a distância entre o Palácio de Justiça e o aeroporto de Orly, tivera oportunidade de observar a prova da reação pública a esse milagre histórico, prova evidente em cada esquina das ruas, em cada café, em cada vitrine de loja. Tanto franceses como turistas estrangeiros, sem distinções, saíram às ruas de Paris. As pessoas, ávidas, devoravam os jornais, escutavam os transistores ou congregavam-se, em frente aos locais onde havia aparelhos de televisão para poderem seguir o desenrolar do grande acontecimento.
No carro da polícia em que seguia juntamente com três agentes, Randall sentia-se como que um comparsa menor e olvidado do drama representado.
Sentado no banco traseiro do carro ladeado pelos agentes Gorin e Lefèvre, ambos completamente absorvidos na leitura das edições especiais de Le Figaro, Combat, Le Monde, L'Aurore, que ocupavam grande parte dos jornais à declaração de Amsterdã. Randall deu uma rápida olhada nos cabeçalhos.
CRISTO VOLTA PARA JUNTO DE NÓS!
CRISTO RESSUSCITADO
DEVIDO A UMA NOVA DESCOBERTA!
Por baixo das gigantescas letras, garrafais, viam-se fotografias de três dos papiros originais dos documentos e Jacob, do pergaminho de Petrônio, do local da escavação em Ostia Antica e do retrato revisto de Jesus Cristo, tal como, Ele era descrito pelo irmão e como figurava na capa do Novo Testamento Internacional.
No banco da frente, o agente que guiava o carro, absorvido, escutando o rádio. Alguém de Amsterdã fazia comentários preliminares, antecedentes, a principal declaração. Ocasionalmente, os dois policiais que ladeavam Randall, liam um ao outro em voz alta, certas notícias que lhes pareciam mais importantes e significativas e, por vezes, conscientes do inadequado francês de Randall faziam rápidas e livres traduções para inglês. Por aquilo que Randall pôde entender, o relato dos jornais a respeito do Novo Testamento Internacional, com a sua história de Jesus Cristo escrita por seu irmão Jacob e a história do julgamento de Cristo escrita por um centurião romano, baseava-se em notícias antecipadas, embora limitadas, liberadas na noite passada para a imprensa mundial. Os pormenores completos seriam apresentados a partir de uma tribuna erguida no Bugerzaal - salão nobre - do Palácio Real de Amsterdã. À revelação assistiriam dois mil jornalistas dos principais órgãos de informação distribuídos no mundo civilizado, mas, além disso o impacto seria levado diretamente a bilhões de telespectadores, nos quatro cantos do globo, por meio do satélite-5, um satélite provido de 1900 circuitos, independentes, em funcionamento, com toda uma rede de rastreio em nível mundial.
Em certa ocasião da viagem ao aeroporto, o agente chamado Lefèvre trocara algumas palavras pessoais com Randall. Pousara repentinamente o jornal, olhara para Randall com incredulidade e perguntara-lhe:
- Então o senhor não fazia parte de tudo isto?
- Sim, pertenci à Ressurreição Dois.
-Mas então, porque é que o deportam?
- Porque são malucos - respondeu Randall, que acrescentou: -E porque eu não acredito na obra deles.
Lefévre arregalou os olhos.
-Nesse caso, o senhor é quem deve ser.
Pararam diante do terminal do aeroporto de Orly. Lefévre abrira a porta e saíra do veículo a fim de ajudar Randall. Devido a estar preso a Gorin, Randall ao fazer um movimento em falso aleijara o pulso. A dor fizera com que se lembrasse da sua condição.
O piso térreo do terminal do aeroporto, sempre barulhento, estava no mais absoluto silêncio. Para servir passageiros, visitantes e até o seu próprio pessoal, a Air France colocara vários aparelhos de televisão pela principal área de recepção. Junto desses aparelhos as pessoas aglomeravam-se. Até mesmo nos balcões de controle de bilhetes e informações, tanto clientes como pessoal tratavam dos seus assuntos, um pouco alheados, enquanto prestavam atenção aos aparelhos portáteis.
O agente Lefévre, foi buscar a marcação de Randall para o vôo transatlântico, confirmando ao mesmo tempo a tabela horária. Enquanto ele se dirigia para um dos balcões, Gorin, o outro agente, chegara-se junto de um denso aglomerado para dar uma olhada às imagens que apareciam na televisão. Randall, ligado a ele pelo pulso, foi obrigado a segui-lo.
Estendendo o pescoço por entre as cabeças dos espectadores, Randall tentou ver as imagens que se projetavam na pequena tela, ao mesmo tempo, ouvindo a voz do comentador, primeiro falando em francês e depois em inglês, os dois idiomas oficiais adaptados para fazer a declaração ao mundo civilizado.
Uma das câmaras vasculhava o interior do salão nobre do Palácio Real de Amsterdã, mostrando, fila por fila, a aglomeração dos homens da imprensa e dos vários dignitários convidados para a cerimônia. As imagens das pessoas que enchiam a sala eram alternadas com as imagens das belezas arquitetônicas e decorativas do salão. As típicas janelas, formando uma espécie de vãos abobadados, fechadas por tabuinhas marrons, cada uma exibindo uma magnífica flor dourada no centro, foram percorridas em pormenor nos close-ups. Depois foi, a vez dos seis gigantescos lustres de cristal suspensos do teto por correntes de ouro, que pertenceram ao Imperador Luís Napoleão, e a seguir o maravilhoso piso de mármore cintilante como um espelho.
Do ambiente as câmaras desceram aos motivos humanos e a tribuna foi focada, mostrando cada um dos homens de destaque da Ressurreição Dois como se fossem os bonzos detentores da verdade fundamental, da pedra filosofal. Ali estavam todos os próceres sentados nas suas suntuosas cadeiras de veludo vermelho. Formavam um semicírculo e a voz do apresentador foi-os identificando respeitosamente: Dr. Deichhardt, Wheeler, Fontaine, Sír Trevor, Gayda; depois o Dr. Jeffries, o Dr. Knight, Monsenhor Riccardi, o Reverendo Zachery, o Dr. Trautmann, o Professor Sobrier, o Dominee de Vroome, o Professor Hubert, Hennig e, finalmente, como a bela entre os monstros, Angela Monti (representando seu pai doente, o Professor Monti, o arqueólogo italiano, segundo explicou a voz do comentador).
Eis o Dr. Deichhardt que se encaminhava para o primeiro plano da plataforma, subindo à tribuna, ornamentada com panos de cetim, onde se via tecida uma enorme cruz.
O Dr. Deichhardt lia em voz alta a pormenorizada declaração da descoberta do Evangelho de Jacob e o relato do centurião Petrônio sobre o julgamento de Cristo. Fornecia uma notícia resumida do conteúdo dos dois documentos, exibindo na mão (primeiro plano) um exemplar do Novo Testamento Internacional que seria oficialmente publicado a partir daquele dia histórico.
Randall sentiu que lhe puxavam pela manga. Era o agente Lefévre que lhe mostrava o bilhete.
- Não o perca, ou terá de voltar para a cadeia - avisou. Enfiou o bilhete no bolso do casaco de Randall e voltou-se depois para o colega, murmurando:-Temos quinze minutos antes de o metermos no avião. Vamos ver a televisão na sala de espera onde ao menos nos podemos sentar.
Minutos depois, entrando na sala de espera da primeira classe situada no terceiro piso, Randall ficou espantado com o que observava. Nunca foi testemunha de nada como aquilo. A sala estava completamente apinhada, viam-se espectadores não só sentados nas mesas do bar, nos bancos corridos, como também, sentados no chão. Algumas pessoas choravam, comportando-se precisamente como Peregrinos de visita à gruta de Lourdes ou a Fátima. Viam-se os lábios a murmurarem orações e rostos pios, como que transfigurados, fixos à tela dos aparelhos de televisão. Num canto, houve uma súbita agitação, alguém pedia socorro para uma mulher que desmaiara de comoção.
Não se via um único lugar disponível, mas um dos garçons do bar arranjou modo de os conseguir. Randall lembrou-se que para a polícia acabavam sempre por aparecer lugares.
Como que entorpecido por todo aquele espetáculo deprimente, Randall sentou-se alinhado com o seu “siamês” forçado, o agente Gorin, e lançou um olhar em volta de si perguntando-se se alguém daria fé das suas algemas. Mas, o fato é que ninguém ali em redor estava interessado noutra coisa que não fosse o pequeno «écran» dos receptores.
Randall lançou um olhar para um dos aparelhos mais próximos e viu imediatamente aquilo que motivava a reação emocional que engolfava toda aquela gente.
O aspecto ascético do Dominee Maertin de Vroome, envolto nas suas vestes talares, imponente na sua magreza e rosto cheio de religiosidade, enorme no «écran». Da tribuna do Palácio Real de Amsterdã, de Vroome lia em francês, as páginas do Novo Testamento Internacional, do livro que abriu diante de si, sublinhando com voz prenhe de emoção as grandes passagens do Evangelho Segundo Jacob (enquanto uma bateria de intérpretes traduzia instantaneamente as suas palavras noutros idiomas principais destinados à compreensão dos bilhões de espectadores em todo o mundo). A sua sonora recitação da Palavra ressoava pela sala como se se tratasse da voz do próprio Senhor, de tal maneira que até as orações e os soluços se suspenderam.
A certa distância, ouviu-se o sistema interno de comunicações, abafando por momentos a declaração televisiva, anunciando um vôo prestes a partir. O agente Lefévre esmagou a ponta do cigarro no mais próximo cinzeiro e fez um sinal a Randall.
-Chegou o momento.
No caminho, vindo de todas as direções, chegavam os sons zumbidores das televisões e dos rádios com uma persistência alucinante.
Na rampa de embarque, viam-se os passageiros que se preparavam para entrar a bordo do grande jato intercontinental. Enquanto Gorin se afastava um pouco com Randall, Lefévre entrou numa consulta sussurrante com um funcionário da companhia de aviação. Regressou pouco depois explicando:
- Monsieur Randall, temos instruções para que seja a última pessoa a entrar a bordo. Temos que esperar ainda uns quantos minutos.
Randall fez um gesto aquiescente com a cabeça e olhou para a esquerda. Até mesmo ali, quase à beira da partida, estava em funcionamento um televisor portátil, com a sua assembléia de seguidores, a maior parte deles passageiros em trânsito entre dois vôos, que engoliam a última refeição em terra, enquanto não embarcavam de novo. Randall acompanhava as várias cenas que se seguiam com rapidez, numa sucessão de imagens.
Grandes planos de dirigentes mundiais a proferirem breves comentários, a congratularem a humanidade em geral, por poderem ter oportunidade maravilhosa de receberem o Cristo na verdade Ressuscitado, o Cristo Regressado ao grêmio dos homens. O Papa da sua varanda com vista à Praça de S. Pedro abençoando os peregrinos, o presidente da França nos jardins do Eliseu, a família real britânica no palácio de BucIdngham e o presidente dos Estados Unidos da América no seu gabinete oval da Casa Branca. O apresentador prometia para mais tarde as opiniões de presidentes e primeiros-ministros em Bona, Roma, Bucareste, Belgrado, Cidade do México, Brasília, Buenos Aires, Tóquio, Melbourne e Cidade do Cabo.
O cenário voltava a focar-se no interior do Palácio Real de Amsterdã, e a câmara principal deslocava-se para os teólogos sentados na plataforma, enquanto o porta-voz daqueles eruditos bíblicos, Monsenhor Riccardi, falava dos doze dias que celebrariam -um dia determinado para cada um dos discípulos de Cristo (evidentemente Matias em vez de Judas) -o aparecimento do Cristo corpóreo nas páginas do Novo Testamento Internacional.
Monsenhor Riccardi anunciava que no Dia de Natal os púlpitos de todas as igrejas da cristandade, tanto protestantes, como católicas, seriam dedicados à maior glória do Cristo Ressurgido, enquanto os pregadores e sacerdotes pronunciariam os seus sermões aos fiéis com base no novo quinto evangelho que passaria a ser o primeiro e o de maior esperança para a humanidade.
Natal... Randall pensou no Dia de Natal, o dia em que ele costumava (com exceção dos últimos dois anos) deslocar-se a Wisconsin, a Oak City para assistir ao sermão proferido pelo Reverendo Nathan Randall do púlpito do seu templo pintado de branco. Rapidamente o seu pensamento deteve-se no pai e no ajudante, e seu amigo, o pastor Tom Carey. Pensou que naquele particular momento deviam estar a observar o programa transmitido via satélite. Seria como se fosse Natal para aquela gente simples, e Jacob, o Justo, passaria a fazer parte da veneração da família.
O olhar de Randall voltou a fixar-se no «écran» do aparelho. Grandes planos de Angela Monti, do Professor Aubert, do Dr. Knight e de Herr Hennig, enquanto o apresentador explicava que aquelas pessoas envolvidas na descoberta, autenticação, tradução e impressão da nova Bíblia, em breve, estariam à disposição dos homens dos jornais para responderem a todas as perguntas.
A câmara voltou-se outra vez para Monsenhor Riccardi que finalizava a sua preleção.
Randall deu de repente fé que o agente da companhia fazia-lhe sinais desesperados do portão que levava à rampa de embarque.
- Voilà, já está toda a gente a bordo - disse Gorin. - Monsieur Randall será o último e nós vamos agora escoltá-lo até lá dentro.
Os dois policiais impeliram Randall para o portão, enquanto Lefévre tirava do bolso um molho de chaves e abria as algemas que prendiam Randall ao seu colega Gorin. Randall ao sentir o pulso livre fez-lhe uma massagem com a outra mão.
Chegaram à rampa de embarque.
-Bon voyage-desejou Lefévre.-Lamento que tenha de ser desta forma.
Randall, sem pronunciar palavra, acenou um adeus com a cabeça. Também ele lamentava que as coisas tivessem que ser daquela forma.
Esticou o pescoço para dar uma olhada final ao espetáculo de Amsterdã. Já não conseguia ver o «écran» do televisor, mas podia ouvir o som. Randall afastou-se dos seus guardas, enquanto a voz de Monsenhor Riccardi perorava nas suas costas :
-Tal como João escreveu «vós não acreditareis se não virdes sinais e prodígios», temos agora Jacob que escreve: «Eu, com os meus olhos, vi os sinais e os prodígios e posso acreditar». Agora toda a humanidade pode clamar: Cremos! Christos anesti! Cristo ressuscitou! Alithos anesti! Cristo na verdade ressuscitou! Amém.
Amém.
Entrou na cabine do gigante dos ares e, nas suas costas, a aeromoça do ar, com um aspecto solene, fechou a porta.
Agora só ouvia o rugir dos motores a jato.
Sentou-se no lugar que a aeromoça lhe designou.
Estava pronto a voltar de novo para a pátria.
Tinham-se passado cinco meses e meio. Incrível... estava de novo em casa.
Mais outro dia de Natal em Oak City, Wisconsin, e contudo, diferente de todos os outros natais anteriores, bem o sentia no fundo do seu coração.
Steve Randall estava sentado, descontraído, na primeira fila de bancos da Primeira Igreja Metodista, rodeado por aqueles que eram do seu sangue e que pertenciam ao seu passado, aqueles a quem ele estremecia e que o estremeciam. Do púlpito de madeira negra que se alcandorava à sua direita, o Reverendo Tom Carey proferia o seu sermão natalício, um sermão que falava da visão de Cristo, do Calvário e de tudo o que continha o Novo Testamento Internacional; sermão que se ampliaria como um eco em milhares de outros púlpitos de milhares de outros templos espalhados pelo globo naquela quadra de Natal-um símbolo do Cristianismo de sempre. O sermão de Tom Carey, tal como toda a sua pessoa, haviam adquirido uma nova confiança, uma nova convicção e nova força, refletindo a revivescência e o esforço da sua crença devido à nova esperança encontrada na nova pessoa, no novo ministério e nas parábolas sociais e espirituais do Cristo Ressureto.
Prestando relativa atenção à história e à mensagem que já se lhe tornaram tão familiares-mais familiares a ele em particular, entre as centenas de pessoas que enchiam a velha igreja de seu pai-Randall olhou furtivamente em ambas as direções de banco.
Estava sentado entre a mãe, Sarah, com o seu rosto rechonchudo e feliz a seguir embevecida todas as palavras que eram proferidas no púlpito, e o pai, o pastor Nathan, com o seu rosto de velho fidalgo de aldeia parcialmente restaurado no seu antigo vigor, cujos olhos azuis, seguiam, como contas buliçosas, a cadência das palavras que o seu protegido e sucessor proferia daquele púlpito onde outrora ressoara a sua própria voz de pregador. Somente a bengala que tinha entre as pernas e um pouco de dificuldade pastosa no falar relembravam a apoplexia que o abatera e à qual tinha sobrevivido. Ao lado do pai, Randall podia ver sua irmã, Clare, e a seguir dela a mandíbula proeminente do sueco Ed Johnson. Inclinando-se um pouco, Randall examinou as pessoas sentadas do outro lado da mãe. Primeiro Judy, a sua filha de olhos claros, com a manta de cabelos louros a cobrirem-lhe o rosto de anjo; depois o tio Herman, mais gordo mas menos apatetado e indolente do que nos velhos tempos da sua infância.
Estavam todos atentos, inteiramente devotados ao sermão do Reverendo Tom Carey, todos ouvindo de almas ao alto aquilo que ainda era novidade para eles, o sinal e o prodígio seguro da Ressurreição de Cristo.
Mas Randall já ouvira aquilo, já vivera aquilo, duvidara daquilo, combatera aquilo e foi derrotado por aquilo, e por isso, o seu espírito vagueava. Nenhuma das pessoas que ali estavam tinha conhecimento de que ele, o filho pródigo, fizera parte da Ressurreição Dois, pelo menos até então não o sabiam. Randall resolvera contar-lhes tudo depois do serviço religioso, primeiro faria saber ao pai e depois aos outros. Contar-lhes-ia o que o levara ao estrangeiro. Mas não tinha a certeza ainda sobretudo o que lhes poderia revelar. Ainda tinha que resolver até que ponto lhes contaria.
Randall, por cima daquelas cabeças, lançou uma olhada para os vitrais da igreja, observando as sombras projetadas dos ramos de árvores, ramos despidos de folhas, mas ainda testemunhas constantes da última nevasca de Inverno. Tentou voltar atrás, ao passado, aos seus anos de criança e inocência, mas estavam já muito distantes. O pensamento não se podia despregar do passado mais recente, daqueles últimos cinco meses e meio incansáveis, agonizantes, cheios de ira e desespero.
Mergulhou profundo numa rude introspecção, de tal maneira que, na sua memória torturada, tudo aquilo passou a ter mais acuidade do que o momento presente.
Voltou a viver de novo aquelas semanas depois que se separara da Ressurreição Dois e fora deportado da França.
De regresso a Nova York, recordou os escritórios da firma de relações públicas Randall Associados. Rememorou a presença confortável de Wanda, a sua devotada secretária, de Joe Hawkins, o seu mexido assistente, e Thad Crawford, o seu esperto advogado, e do resto dos seus colaboradores, pessoas de quem dependia para o impulso enérgico e criador que deram fama à firma.
Randall voltara aos movimentos de rotina, rotina em que o telefone se transformava num quinto membro sempre em manejo. Mas falhava-lhe a energia, porque o seu interesse se alheara, a sua atenção não conseguia fixar-se, porque carecia de objetivo.
Pretendera fugir de tudo aquilo que o esgotava e durante três dos últimos cinco meses e meio conseguira-o. Thad Crawford tinha uma casa de veraneio em Vermont, um sítio com um guarda, com gado, com uma varanda aberta para os campos cultivados e com uma casa confortável, datando dos tempos da guerra da Sucessão, mas restaurada; residência que não tinha ninguém a ocupá-la. E Randall fora para Vermont para ver se se desfazia do fantasma, do pesadelo que criava um fantasma, que tinha memórias de Amsterdã, de Paris, de Roma, de Ostia Antica, de Wheeler, de de Vroome, de Lebrun, de Jacob, o Justo. Possuía as gravações que fizera, as notas que tomara, as memórias dos acontecimentos recentes e uma máquina de escrever portátil. Tentara viver como um recluso e quase o conseguira. O telefone mantivera-o em tênue contato com o mundo exterior, estabelecendo-o em ligação com os seus subordinados no escritório, a respeito de decisões a tomar, em ligação com a filha, Judy, em S. Francisco, e com os seus pais em Oak City. Mas quase todas as suas horas eram dedicadas ao livro que queria escrever; o livro anti-Bíblia, cujo conteúdo lhe fervilhava no cérebro.
Na maior parte do tempo sentia-se confuso, irado, chorando consigo mesmo em gestos de auto compaixão. Escrevia e bebia, encharcava-se em álcool para tentar levar o ser do veneno que se lhe tinha entranhado no espírito. Escrevia páginas e páginas onde mostrava os podres da Ressurreição Dois, onde contava o seu envolvimento no projeto, o que passara em Roma com Lebrun, a nojenta traição do poderoso de Vroome, a expulsão da França, tudo... tudo menos Angela. A ela poupava-a.
Ao traçar aquelas palavras parecia-lhe, por vezes, que escrevia a maior história policial de todos os tempos. Outras vezes, parecia-lhe certo que nunca houve uma revelação de mentira religiosa, de traição e de duplicidade como aquela, que os seus dedos flagelados como o marquês de Sade batiam nas teclas da máquina. Noutras ocasiões ainda, tinha a certeza de que produzia o mais cônscio auto-retrato, até então, lançado no papel, de uma criatura atacada da paranóia mais cínica.
Bebia e escrevia e o livro aproximava-se da sua conclusão, flutuando num rio de uísque.
Quando acabou, a catarse ecoara dele a menor gota de veneno. O que restou foi a concha da sua vacuidade e uma confusão que parecia ter aumentado ainda mais.
Saindo do sítio de Vermont, quando o Outono começava a enregelar a erva e a terra, Randall regressara a Nova York com o seu manuscrito dentro da pasta. Depusera-o no cofre do seu gabinete, cofre de que só ele e Wanda conheciam a relação. Não sabia se o deixaria ali como uma parte, sem publicação, do corpo que representava o seu esforço para exorcismar as forças satânicas que haviam residido dentro dele, ou se acabaria por publicar o manuscrito para combater o monstro Frankenstain que lançara os seus tentáculos por todo o país e por todo o mundo civilizado.
Na longa saga da literatura moderna, estava certo, nunca houve um êxito tão completo como o do Novo Testamento Internacional. Para onde quer que uma pessoa lançasse o olhar, aquele Livro dos Livros aparecia-lhe à frente dos olhos, tentava uma obra de proselitismo, de envolvimento e conquista. Dia e noite, as estações de rádio e os programas de televisão não falavam noutra coisa. Afigurava-se a Randall que não existia qualquer outro assunto no mundo para ser falado. Raro era o dia em que os jornais diários e as revistas não viessem cheios, de cabo a rabo, de histórias, de fotografias ou até de colossais anúncios. Se uma pessoa resolvia fazer compras, se visitava um bar, se jantava num restaurante, se assistia a uma festa particular, fosse onde fosse, o Novo Testamento Internacional era objeto de discussões, tinha entrada em toda a parte.
Os tambores de guerra batiam o seu compasso e o novo Cristo reunia almas de novo, conquistava inumeráveis almas. O decréscimo na violência seria atribuído por algumas pessoas ao regresso à Cristo. Outras pessoas atribuíam ao Salvador a melhoria na economia mundial. O baixar do consumo de entorpecentes era devido a Cristo. O fim daquela guerra, o início daquelas conversações de paz, o bem-estar geral, a euforia e a fraternidade que engolfavam a terra inteira eram apregoados pelos recém-catequizados como a obra de Cristo.
Segundo as últimas estatísticas, o Novo Testamento Internacional vendera três milhões de exemplares brochados nos Estados Unidos e cerca de quarenta milhões de exemplares em todo o mundo. E tudo aquilo em menos de três ou quatro meses depois da declaração de Amsterdã.
Pensou que devia publicar o seu livro revelador. Poderia representar um mero beliscão no monstruoso Golias, ou então, tal como a pedra do surrão de David, por meio de uma campanha de propaganda bem dirigida, podia representar para o monstro o golpe fatal que o derrubasse, cortando a cabeça da mentira.
Foi nessa altura, enquanto considerava como devia agir, que Randall recebeu o telefonema há muito esperado de Ogden Towery III, diretor das Empresas Cosmos, um cartel, um conglomerado empresarial. Os contratos estavam já prontos para a mudança de mão da firma e para a segurança do seu próprio futuro, esperando somente as assinaturas que selariam definitivamente o negócio - a assinatura do fabuloso Towery e a sua própria assinatura. Tinha-se estabelecido uma demora inesperada nas negociações. Crawford tentara chegar a Ogden Towery através das suas cortes de advogados, mas falhara nos seus intentos. Crawford não compreendia o que estava passando nos bastidores, mas Randall suspeitava que sabia muito bem o que se passava. Wheeler, amigo de Towery avisara Randall em Paris: Alinha conosco sem desvios da Ressurreição Dois ou sofre-lhe as conseqüências.
De repente, Towery tinha telefonado, ligara diretamente para Randall, numa conversa estritamente pessoal.
Uma conversa breve, sem perda de palavras, pouco amistosa, direta ao ponto nevrálgico.
-Randall, George Wheeler contou-me tudo. Ele obtém um êxito notável e disse-me que não ficou a dever nada a si. Contou-me que você fez tudo o que pôde para lhe torpedear o êxito, que lhe tentou sabotar o projeto. O que é que me diz sobre o caso?
-Nada. Tentei impedir o projeto porque tinha provas de ser uma fraude.
- Também ouvi falar disso. Randall, o que é que o preocupa? Será você um ateu ou um comunista... ou alguma coisa parecida com isso?
- Não posso aprovar aquilo em que não creio, nem posso vender aquilo em que não confio.
- Ouça-me bem, Randall, deixe aquilo que deve ser acreditado, ou não, à pessoas como Wheeler, Zachery e o Presidente, e realize apenas o seu trabalho. Tenho neste momento os contratos em cima da minha escrivaninha, mas antes de os assinar, antes de o receber na família Cosmos, preciso primeiro saber qual é a sua posição.
- Qual é a minha posição?
-O que irá fazer no futuro a respeito do Novo Testamento Internacional? Vai arranjar mais complicações, tentar sabotar de novo o projeto, ou realizar mais algum movimento subversivo? Quero dizer, estará com disposição de fazer quaisquer conferências ou terá idéias de publicar qualquer coisa porca contra o novo Livro Sagrado? Pretendo saber e Wheeler pretende também saber com aquilo que podemos contar. Se forem essas as suas intenções, devo declarar-lhe, desde já, que não quererei mais nada consigo. Se você resolver comportar-se como uma pessoa decente e temente a Deus, como um digno filho de um clérigo que possa ter orgulho de si, nesse caso o negócio far-se-á. Mas primeiro preciso que isso seja posto em forma escrita, como um adendo ao contrato. Por esse adendo, provaremos para que você não diga, nem publique nada que possa ser prejudicial ao Novo Testamento Internacional. Se você estiver disposto dando-me essa garantia, tem, desde já, a minha palavra de que a sua firma será absorvida pelas Empresas Cosmos segundo as condições previamente acordadas. Qual é a sua resposta: sim ou não?
- Talvez.
- Que raio quer isso dizer?
- Mr. Towery, quer dizer que, talvez sim, ou talvez não. Quer dizer que nunca tomo decisões importantes sem primeiro refletir a respeito delas.
-Pois bem, meu jovem, terá que pensar com rapidez. Espero a sua resposta até o último dia do ano.
O «tubarão» desligara e Randall sentira-se gelado de medo. Ter sido posto de lado pela Ressurreição Dois era uma coisa, mas permitir-se perder o negócio com as Empresas Cosmos era outra coisa completamente diferente, porque a venda, as condições de contrato eram o último rumo seguro de escapar à corrida de ratos, representavam a sua futura segurança e independência. Todavia, a nova condição imposta, era simplesmente enojante e sentia-se doente e deprimido. Tentou pesar o contrato Towery contra o manuscrito revelador que se encontrava fechado no seu cofre, sem saber bem, qual pesaria mais nos pratos daquela balança da verdade.
Várias semanas depois, surgiu um outro telefonema que contribuiu ainda mais para acentuar a confusão de Randall. Durante meses tentara encontrar Jim McLoughlin para o informar de que, por razões que não podiam ser reveladas (novamente Towery e a Cosmos), não lhe podia ser possível entrar em negociações de promoção com o Instituto Raker. McLauglilin ausentara-se, numa das suas famosas viagens secretas, e tornara-se impossível entrar em contato com ele.
Foi Wanda quem o informou pelo telefone interno: -Jim McLoughlin está na outra linha, com uma chamada de Washington. Diz que ao regressar encontrou uma tonelada de recados e entre eles cartas que lhe foram enviadas por si e por Iliad Crawford. Informa lamentar ser tão negligente, mas que esteve fora, num local remoto, trabalhando vinte e quatro horas por dia. Está agora desejoso de entrar em contato consigo e fazem planos para que o patrão lhe promova o primeiro «livro branco» contra o grande capital. Quer que faça a ligação?
Randall sentiu-se sem coragem para dizer a McLoughlin o que havia para ser dito.
-Não, Wanda, hoje não. Não estou com disposição para lhe falar. Wanda, diga-lhe que acabo de seguir para o aeroporto, que parto para a Europa outra vez para um assunto de emergência. Diga-lhe que estarei de volta no próximo mês e que então entrarei em contato com ele. Telefonar-lhe-ei antes do fim do ano.
Naquele dia decidiu que a melhor maneira de resolver problemas era ignorá-los. Se uma criatura não os enfrentar, talvez que eles acabem por desaparecer. E se desaparecerem, acabarão por não existir. Pelo menos até ao fim do ano.
Sim, a melhor maneira de resolver problemas era ignorá-los e diluí-los em álcool. E, por isso, começou a beber, beber por todo o resto de Outubro, pela totalidade de Novembro e durante largos dias de Dezembro, bebendo como nos velhos tempos. Catimpuera de álcool como um antídoto contra os problemas de consciência e os negócios, contra a confusão e contra a desolação. O único problema residia no acordar. Nessa altura chegava a sobriedade e com ela a solidão, a profunda solidão.
Randall nunca na sua vida se sentira tão só, tanto na cama como fora dela.
Bem, recordava-se também do velho remédio contra essa solidão, um remédio que nos seus tempos heróicos tomara em grandes doses.
Aquelas moças, as mulheres, aqueles seres cuja melhor aparência era em posição horizontal e nuas... encontravam-se por toda a parte e eram fáceis de conquistar por um tipo com uma certa reputação e com a carteira recheada. As coristas com os seus desenvolvimentos mamários, as neuróticas ninfomaníacas da sociedade, as mundanas encontradas em bares e discotecas... todas elas bebiam juntamente com ele como esponjas, desnudavam-se com ele, copulavam com ele, mas no momento crucial de dormir ou no mais crucial ainda de acordar, Randall sabia que se sentiria ainda mais terrivelmente só.
Tais mulheres não ofereciam o desejado envolvimento. Randall, cheio de desespero, procurou algo mais do que o sexo, procurou a compreensão, o envolvimento.
Certa noite, afogado em álcool, decidiu fazer uma chamada telefônica para S. Francisco, para Bárbara, para ver o que poderia sair de tudo aquilo. Mas quando a governanta respondera: «Fala de casa da família Burke», Randall recordou-se, por entre os fumos do álcool, que Bárbara se casara com Arthur Burke há cerca de dois meses. Sem dar resposta pousou o telefone.
Outra noite, de novo perdido de bêbado, sentindo a terrível solidão a pesar, resolveu fazer uma chamada para a sua última amiguinha, para Darlene - Darlene Nicholson - sim, onde raio é que ela se encontrava?... Ah, em Kansas City, claro. Iria pedir-lhe desculpa e fazer com que ela voltasse de novo para a cama com ele. Não tinha dúvidas que ela abandonaria o tal Roy Ingram e que viria correndo para os seus lençóis. Mas, quando levava a mão ao telefone, recordou-se que a estúpida Darlene queria casar e que essa loucura fora a causa de terem rompido em Amsterdã. Por isso, em vez de lançar a mão ao telefone lançara a mão à garrafa.
Naquela procura doentia arriscou-se até ficar sem a luxuriante e alegre secretária que já o aturava há três anos, a esplêndida Wanda, convidando-a a ir para a cama com ele em certa tarde antes de sair do escritório. Sentia-se mais só e abandonado do que nunca e queria ir para a cama com alguém... naquela noite com a camaradona Wanda. E ela, aquela moça negra de imenso peito aquela pequena que o conhecia tão bem, e que não o receava, respondera-lhe:
-Está bem, patrão. De resto já tinha pensado quando é que me faria esse pedido.
Aquela magnífica mulher de longo corpo de ébano enfiara-se na sua cama, abrira-lhe generosamente os braços, com os vermelhos mamilos a apontarem para o teto, abrira-lhe as bem torneadas pernas para ele se aninhar no meio delas e fizera amor com ele, durante muitas noites a fio. Wanda copulara com ele, não por desejo de reter o seu emprego, porque era uma garota laboriosa, mas, por profunda e tocante compreensão humana do período de depressão que ele atravessava, amara-o sem piedade, por sentir a solidão dele. Um mês depois, Randall, percebendo os sentimentos dela, envergonhado, mas, cheio de gratidão, resolvera libertá-la de sua companheira de cama e retê-la apenas como sua secretária e amiga.
Finalmente, uma semana antes, chegara-lhe um envelope com a indicação posta aérea e com um selo italiano e o carimbo de ROMA. Dentro encontrou um delicado e artístico cartão de boas-festas - Feliz Natal e Alegre Ano Novo - e no outro lado do cartão uma nota. Os olhos dele procuraram a assinatura. Simplesmente «Angela».
Dizia que pensara nele constantemente, queria saber o que é que ele estaria fazendo naquele momento e pedia a Deus que estivesse bem e com o espírito em paz. Falava do pai, dizendo que estava na mesma, vivo e morto ao mesmo tempo, completamente inconsciente, daquilo que a sua espada escavadora produzira para a humanidade. Contava que a irmã e os sobrinhos se encontravam de boa saúde. Quanto a ela, tinha sempre que fazer. Acabados os preliminares da apresentação da Bíblia, ocupava-se respondendo a centenas de cartas dirigidas de todo o mundo ao pai, ocupada em escrever artigos e dando entrevistas em nome do pai. A propósito dizia que iria a Nova York por uma semana, convidada por Wheeler para um programa de televisão. Chegaria na manhã do dia de Natal. Ficaria hospedada no Plaza.«Se julgares que isso te possa ser agradável, Steve, ficarei muito contente por te ver.» E a assinatura, sem mais nada, «Angela».
Sentira-se impotente para encontrar uma resposta que lhe desse, por isso, não lhe respondera, nem sequer para lhe explicar que não estaria em Nova York, que prometera visitar os pais na semana entre o Natal e o Ano Novo, e que visitaria a filha, que viajaria da Califórnia para se encontrar com ele em Wisconsin.
O cartão de Angela fora a primeira coisa que contribuíra para o despertar, para o pôr sóbrio, no espaço de cinco meses e meio. A segunda coisa, fora a viagem à casa na noite anterior, a viagem até Oak City, para estar junto da família em volta do tradicional e simbólico pinheiro, enfeitado luxuriantemente e cheio de embrulhinhos de presentes. Na noite anterior ouvira com Judy um grupo de crianças catando as bolas de Natal de neve, em frente da porta da casa.
A terceira coisa plena de sobriedade fora o sermão na Primeira Igreja Metodista de Oak City.
Subitamente Randall deu-se conta que estava sentado ali naquele banco, entre a família, e que o sermão do Reverendo Tom Carey terminara. As pessoas começavam a levantar-se.
O que ele observou naquele particular momento foi que os olhos dos seus entes queridos brilhavam iluminados de uma nova esperança-sua mãe, agradecida e feliz, e o pai como que transportado pela fé renovada, ambos com um aspecto muito mais rejuvenescido, como já não lhes via há muito tempo. Sim, seus pais pareciam sentir-se felizes por lhes ser permitido viver o suficiente para ouvirem a Palavra. Sua irmã, Clare, apresentava um ar mais resoluto, mais confiante, como nunca, até então, se percebera, com uma fé renovada na sua decisão de se desligar do amante e patrão, um homem casado, seguindo o seu caminho ao encontro de algo novo e de alguém a quem pudesse amar sem pecado. A filha, Judy, com um ar recatado, pensativa, verdadeiramente transformada interiormente em virtude da Palavra contida no sermão de Tom Carey. Randall sentia nela uma maturidade e uma compenetração que nunca observara antes.
Olhou para trás, considerando aquele magote de paroquianos que, em grupinhos, ia abandonando o templo. Nunca vira seres humanos tão cheios de calor, tão dóceis, com um aspecto tão confortado e cheio de segurança-uma segurança que era pessoal, mas, que contava também com a bondade e receptividade dos outros.
Angela dissera-lhe, da última vez que estavam juntos, que aquele começo era o fim que justificava o emprego de quaisquer meios. Os meios não importavam. O fim era tudo. Era o que ela havia dito.
Mas, ele respondera-lhe que Não.
Contudo, naquele momento particular - porque era Natal, porque estava em casa, porque atravessava o momento mais sóbrio em vários meses, porque testemunhava um vislumbre de paraíso refletido em todas aquelas centenas de pares de olhos - naquele momento, sentia-se inclinado a dizer a Angela: Talvez... Talvez o fim de tudo é o que interessava.
Mas nunca, nunca teria a certeza.
Inclinou-se e beijou meigamente a mãe, perguntando:
- Foi maravilhoso, hem?
- Sim, filho, sinto-me feliz por poder ter vivido este dia. Se nunca mais voltar a haver um dia como este de felicidade para teu pai e para mim, o momento que acabamos de atravessar será suficiente.
-Também creio, mãe. Feliz Natal. Olhe, volte para casa com a Clare, com o tio Harry, com Ed Johnson e com a Judy. Tenho lá fora um carro que aluguei e vou levar o pai para casa. Daremos um grande passeio. Será como quando eu era miúdo, lembra-se? Quando o pai dava longos passeios comigo. Mas, não demoraremos muito mãe. Estaremos em casa antes da comida esfriar.
Voltou-se para o pai, apoiado na bengala, e deu-lhe o braço para ele se apoiar melhor.
O pai fitou-o com um sorriso.
-Devemos ao Senhor a paz nos nossos corações, a felicidade nas nossas almas, a confiança que nos deu a Sua revelação neste dia memorável. Devemos-lhe o estarmos juntos e termos juntos recebido a Sua mensagem de Amor.
-Sim, pai -respondeu com respeito, contente de ver que o pai já conseguia falar quase tão bem como antes da doença que o afetara.
O Reverendo Nathan Randall, com uma centelha do seu velho espírito, voltou-se para Steve.
-Bem, meu filho, penso que agora já chega de igreja para um dia de festa. Será divertido ir para casa contigo de carro. Será como nos velhos tempos.
Era como nos velhos tempos aquele passeio de carro. Randall sentia, todavia, que se tratava de um momento novo, um momento de verdade e intimidade que nunca se repetira.
O longo caminho até a casa, pela estrada vicinal cheia de covas, mas, naquele momento com a alfombra da neve recém-caída, ao longo da margem do lago, a que toda a gente dos arredores chamava a banheira, uma caminho que levava cerca de quinze minutos mais do que pelo centro da cidade. Randall guiava devagar para saborear aquele nostálgico interlúdio.
Pensou que tinham ambos um aspecto cômico, como dois esquimós metidos nos seus agasalhos. No vestíbulo da igreja, consciente de que a temperatura descera bastante e que o clarão do sol, parcialmente oculto pelas nuvens baixas, era decepcionante, tinham enfiado os sobretudos, posto cada um deles o seu tufado cachecol e as grossas luvas de lã. Ali, no carro alugado (cujo aquecimento interior não funcionava, claro) sentiam-se, no entanto, confortáveis, quentinhos, contemplando a neve que caía lá fora.
Como em tempos idos, o pai falava sem parar. De vez em quando, notava-se uma ligeira hesitação na sua voz que acusava a recente doença, no entanto, manifestava uma energia desusada e Randall sentia-se contente de poder ficar calado, escutando-o.
-Filho, olha para além para o lago. Haverá no mundo uma paisagem mais repousante e natural do que esta? Já disse mais do que uma vez ao Ed Johnson, que Thoreau gostaria mais das margens do nosso lago do que das margens de Walden Pond, se tivesse vindo aqui. Mas, ao mesmo tempo, estou contente de que isso não tivesse acontecido, porque agora teríamos que sofrer a invasão dos turistas; deixariam por toda a parte os seus papéis sujos de comida e as suas latas de cerveja vazias. Ainda bem, porque aqui as coisas se mantêm calmas, como quando tu eras um rapaz de dez ou doze anos. Lembras-te desses dias, Steve?
- Muito bem, pai - respondeu Randall calmamente, olhando para o lago cercado por moitas de arbustos e por salgueiros onde a neve formava cama. O gelo tinha formado uma camada que ocultava a água. - Agora está quase gelado.
- Quase gelado - repetiu o Reverendo Nathan. - Quando ele gela completamente a camada atinge a maior solidez. Lembras-te quando tínhamos que abrir buracos no gelo para pescarmos? - Não esperou pela resposta. - Cada um de nós cavava vários buracos no banco de gelo, depois lançávamos as nossas linhas e iscas, cinco por pessoa conforme a lei. Passou muito tempo desde a última vez que pesquei assim. Lembras-te? Lançávamos a linha com a isca, amarrávamos um guiso na ponta e colocávamos uma bandeira vermelha para assinalar o local. Depois voltávamos para junto do carro para nos aquecermos um pouco, corríamos para restabelecer a circulação. Fazíamos uma fogueira e ficávamos ali cantando contentes, observando as bandeirinhas. De repente, ouvia-se um guiso tocar e lá íamos nós como doidos, escorregando no gelo, aos berros como Peles Vermelhas, para apanharmos uma perca ou um lúcio. Tu chegavas sempre primeiro, principalmente quando as tuas pernas começaram a crescer.
Randall, com um baque de tristeza no coração, lembrou-se vivamente do passeio.
- Papai, devia voltar a vir à pesca de vez em quando.
-Nunca mais. No Inverno não. Há coisas que não poderei voltar a fazer no Inverno. Mas, o Dr. Oppenheimer, disse que já estou, suficientemente, bom para poder voltar a pescar quando o tempo melhorar. Na semana passada, eu e o Ed, até estivemos a discutir o caso. Quando vier a Primavera combinamos uma pescaria em volta de Dells. É também um local muito bonito.
Fez-se silêncio entre eles. Lentamente, Randall guinou o volante e afastou-se das margens do lago pela estreita estrada vicinal.
Passado um pouco, o Reverendo Nathan voltou a falar.
-Tenho pensado em como o passado nunca se afasta por completo, em como faz sempre parte do presente. A matutar, em como o meu passado, tomou mais realce e mais significado
- a minha mocidade, a minha vida com a tua mãe, o meu serviço a Deus - por causa da nova Bíblia. Essa descoberta continua a manter-me preso à sua maravilha, sinto o extraordinário poder do novo evangelho. A tua mãe e eu já o lemos e relemos pelo menos uma dúzia de vezes. A revelação é notável. A ternura de Jesus pelo Seu rebanho. Jesus junto da campa de José, proferindo palavras ao mesmo tempo tão humanas e tão divinas. Nunca ouvi, nem li nada que pudesse ter tanto significado humano. Mesmo não sendo um crente, o novo evangelho obriga a acreditar. Sabe-se que Deus está entre nós e ganha-se alento e fortaleza. Transmite um significado à vida.
- Se assim é, pai, nada mais importa.
- Sim, filho, nada há de mais importante - disse o Reverendo com fervor. Para citar Coleridge - Acredito em Platão e em Sócrates. Eu creio em Jesus Cristo. Vou-te dizer o que estava pensando na igreja, enquanto Tom proferia o sermão. Nunca vacilei na minha fé, por isso não interpretes mal aquilo que vou dizer. Tenho vindo a sofrer nos últimos anos, a sofrer por ver como os jovens... e não só os jovens, também os pais... vinham a abandonar a igreja e a alhearem-se das Sagradas Escrituras. Estavam a voltar aos falsos ídolos, a radicarem-se num racionalismo do Ver para Crer, da crença única na Ciência como prova comprovada, como se só o visível pudesse conter a verdade, como se a própria ciência não fosse cheia de abstrações e de mistérios. As pessoas faziam profissão de fé de tudo aquilo que pudessem tocar e ter nas suas mãos... Todavia, por muito estranho que parecesse, nos momentos de verdadeira reflexão toda a gente começava a sentir que faltava um fim à vida humana, um propósito definido, um significado. Meu filho, não tens a impressão que era isso mesmo que acontecia?
-Estou de acordo.
-Jovens e velhos não podiam encontrar uma resposta em Deus e no Seu Filho, porque não podiam ver Cristo apenas através da fé, de modo que, não podia aceitar a mensagem de alguém em quem não acreditavam, Steve. Julgo que foi precisamente o que te aconteceu. E, na mais variada escala, foi precisamente o que sucedeu à maior parte das famílias da nossa paróquia.
-Papai, conheço o problema. Discuti-o com Tom quando o papai estava doente.
-Bem, sinto-me pessoalmente abençoado por saber que tudo isso já terminou. Na verdade julgo que Cristo sabia o que acontecia com a fé e, por isso mesmo, fez uma reaparição no momento exato. A descoberta de Ostia Antica pode não ser um puro acidente, mas sim divinamente inspirada.
Ostia Antica... pensou Randall. Não, não foi um acidente. Como seria difícil contar ao pai a verdade sobre o caso.
Entretanto, o Reverendo Randall prosseguiu:
- A partir de agora, para satisfação de todos, podemos dar resposta às duas perguntas fundamentais do nosso credo. Consideramos Cristo como o nosso Salvador e Senhor e prometemos a nossa fidelidade ao Seu Reino? Recebemos e professamos a fé cristã, tal como, está contida no Novo Testamento de Nosso Senhor Jesus Cristo? Aqueles que antes não podiam responder afirmativamente, podem agora fazê-lo em perfeita consciência. Sim, graças a Jacob o Justo, podem hoje responder Sim. Para eles, existe - através um total critério científico - a prova visível da existência do Salvador. Para mim, o meu julgamento egoísta está terminado. Vejo a minha igreja salva. Vejo Tom Carey, novamente, em toda a posse dos seus recursos e da sua fé e vejo que o meu púlpito está em boas mãos e restaurado em toda a imponência do seu respeito tradicional. Antevejo um paraíso na terra para os jovens errantes, como a minha neta Judy como a minha filha Clare. Reparaste na diferença, não reparaste, Steve?
Randall acenou gravemente.
-Sinto-me feliz por elas. Nem lhe sei dizer o quanto me sinto feliz.
-Quanto a mim, já não sinto o mínimo receio de partir quando chegar a minha hora. Mantive sempre uma profunda fé num céu lá em cima... não um céu de ruas douradas e altas espirais de ouro, mas um céu onde as almas redimidas fossem recebidas no seio de Deus e do Seu Filho Bem Amado. Foi esse sempre o céu que imaginei, mas agora foi-me dada a consolação de poder ter vivido até o dia em que antevejo também um céu na terra, um tempo em que a bondade se sobreporá à pobreza e acabe com a violência e a injustiça. Daqui em diante a bondade do seu sentido ecumênico, o sentido de paz e amor envolvendo todo o mundo, prevalecerá para todo o sempre. A nova Ressurreição, unificará num só corpo, as nossas duzentas seitas protestantes, fará com que sejamos um só corpo e uma só alma com a igreja católica, aproximar-nos-á dos nossos irmãos judeus, porque cada um de nós, tal como o próprio Cristo, será na essência e antes de tudo o mais judeu. - Calou-se por momentos, para aliviar um pouco o cachecol. - Deixaste-me falar muito meu filho. A intimidade do Inverno parece que nos faz ser mais faladores. Agora basta de falar de mim. Steve, quero saber de ti. Disseste que me ias contar como tinhas passado o Verão.
-Nada de importante, pai. Falaremos disso noutra hora.
- Sim, temos que voltar a falar em todas estas coisas. Randall voltou a cabeça para observar o pai e viu que ele tinha recostado a cabeça no assento e que tinha os olhos fechados. Pensou que não estava ali Spinoza, mas sim o Reverendo Nathan Randall, o verdadeiro homem intoxicado de Deus.
-Papai, deve sentir-se cansado-disse, enquanto voltava numa das ruas do centro.-Tem que repousar um pouco. Diminuiu a velocidade antes de chegar a esquina.
- Filho, apenas me sinto em paz - ouviu o pai murmurar. Nunca antes senti esta paz divina. Espero que tu venhas também a encontrar uma paz assim.
Randall passou em frente da casa e voltou na pequena ruela de cascalho que dava para a traseira. Parou e fechou a ignição do motor. Voltou-se para dizer ao pai que acreditava que acabaria por encontrar a sua paz algures, sob qualquer hipótese. Queria também anunciar-lhe que chegou ao lar.
Mas os olhos do pai continuavam fechados como se dormisse profundamente. Em toda a atitude do progenitor havia uma infinita quietude.
Mesmo antes de pegar a mão do pai para lhe apalpar o pulso, Randall teve a premonição de que o Reverendo já não era deste mundo, que estava morto. Chegou-se mais para junto do corpo, como se fosse impossível o seu alarmante pensamento.
O pai não parecia morto. O suave sorriso no seu rosto repousado estava mais vivo do que nunca.
Randall puxou o corpo para si, tomou-o nos braços, encostando aquela cabeça nevada ao peito.
-Não, papai-murmurou-, não se vá embora, não me deixe sozinho. -embalou o pai nos braços e do mais fundo do seu ser saiu a voz da sua infância a rogar: «Papai, por favor, fique, não vá embora, não me deixe sozinho.»
Apertou ainda mais o corpo do pai, recusando-se a aceitar aquilo, tentando fazê-lo voltar à vida com a sua vontade.
O velhote não podia estar morto, não podia, era impossível. Mas, passado um pouco sentiu dentro de si que o pai só tinha morrido em corpo, mas que a sua alma estava mais viva do que nunca, que era uma memória imperecível, e finalmente libertou o corpo do amplexo em que o estreitava.
O serviço religioso na câmara ardente montada na capela tinha terminado. O último dos muitos amigos do Reverendo acabara de desfilar perante o esquife, e os acompanhantes iam-se reunindo lá fora, na nave. Randall, amparando a mãe, depois entregou-a nos braços do tio Herman e de Clare. Deu-lhe um respeitoso beijo na testa.
- Mamãe, não chores mais. Papai está finalmente em paz. Ficou um momento parado à porta, vendo o tio e a irmã conduzirem a mãe até um lugar, para além da carreta fúnebre, onde se encontrava Judy, Ed Johnson e Tom Carey.
Sozinho, de novo na capela, Randall olhou em volta para aquele santuário no derradeiro adeus. Os bancos estavam vazios; o púlpito do celebrante não tinha ninguém; o órgão estava silencioso. Mas na sua memória ecoavam os momentos do serviço religioso. Ainda tinha nos ouvidos o eco do salmo de abertura: «Deus de Misericórdia, Deus de Graça, Deus de Glória ... » Ouvia ainda a voz de Tom Carey lendo a Bíblia: «Jesus disse: eu sou a ressurreição e a vida eterna; aquele que crê em mim, embora morto, continuará a viver, e onde quer que viva e creia em mim nunca morrerá.» Ouvia todos os presentes a cantarem em coro: «Glorificado seja o Pai, e o Filho, e o Espírito Santo; tal como era no princípio, assim é agora e assim há de sempre ser pelos tempos dos tempos. Amém.»
Os seus olhos voltaram-se para o esquife, em cima desse, coberto de flores.
Quase involuntariamente como que hipnotizado, deslocou-se para junto do esquife e ficou ali a contemplar os restos mortais do pai, do Reverendo Nathan Randall, que lá dentro jaziam no seu sono eterno.
A mente acudiu-lhe um pensamento: Não podes ser um verdadeiro homem até que teu pai morra. Quem é que dissera tais palavras? Lembrou-se subitamente: foi Freud.
Não podes ser um verdadeiro homem até que teu pai morra. Olhou para o esquife. Ali estava o pai morto, completamente morto e contudo, de modo nenhum, se sentia como um homem, sentia-se como um filho, um filho que foi um rapaz, um rapazinho perdido na vida.
Lutou contra tais pensamentos e sentimentos, lembrando-se que era um homem, mas as lágrimas deslizaram-lhe pelo rosto abaixo, sentiu na boca aquele gosto a sal e a chocante sofreguidão que lhe tomava as vias respiratórias e desatou a soluçar incontrolavelmente.
Alguns minutos depois os soluços começaram a esmaecer e Randall limpou os olhos. Sabia que já não era um rapazinho perdido, que era um homem, quisesse ou não, mas, inexplicavelmente, impregnado do mesmo calor de esperança, de crença e de segurança que havia sentido quando deixara, há longo tempo para trás, o estranho rapaz que foi.
Um último olhar. Repouse em paz, papai, repouse aí nesse céu de pensamento e espírito, de corpo e alma, na paz de Deus e de Jesus Cristo que conhecia tão bem na sua inocente fé. Vou deixá-lo, papai, mas não ficará sozinho até o dia em que voltarmos de novo reunidos juntos.
Depois, após um momento de hesitação e de temor, Randall afastou-se deste e foi-se juntar lá fora, na neve, aos outros que aguardavam o funeral.
Durante os sessenta minutos seguintes, no cemitério, viveu como que entre um estranho nevoeiro.
A beira da sepultura, perante uma fechada que ia descer à terra, recitou a oração dos mortos pela alma -de seu pai.
- Pai Nosso Todo Misericordioso, olhos que tudo vêem e ouvidos que tudo ouvem, oh, escuta a minha prece por Nathan e envia o arcanjo Miguel, chefe das tuas hostes celestes, e o arcanjo Gabriel, teu mensageiro de luz, para que conduzam a alma de meu pai, Nathan, para as tuas altas mansões de paz.
Só depois de abandonarem o cemitério, em dois grandes carros negros, voltando para casa para receberem os parentes e amigos, que iam prestar os respeitos à viúva e filhos, é que Randall se lembrou da oração que rezara à beira da sepultura do pai.
Fora a mesma oração que, de acordo com o Evangelho Segundo Jacob, Jesus rezara junto da campa de seu pai José.
Uma oração segundo Jacob, o Justo, ou segundo Robert Lebrun. Fosse como fosse, para Randall aquilo já não interessava nada, não tinha o mais leve significado. As palavras confortariam o pai na sua derradeira jornada e, qualquer que fosse a origem, eram sagradas e apropriadas a momento tão solene.
O nevoeiro acabara por se esfumar da sua cabeça e já não sentia aquele peso horrível no peito. A quinhentos metros de casa, pediu ao condutor do grande carro funerário, para parar a fim de sair da viatura.
- Não se preocupe, mamãe - disse. - Apenas quero apanhar um pouco de ar fresco. Dentro de minutos vou-me juntar a si, à Clare e à Judy.
Ficou no passeio, a acenar para a mãe até que o veículo se perdeu de vista, depois, dando um salto para o lado para evitar um rapazinho que deslizava numa espécie de trenó, Randall tirou as pesadas luvas, meteu profundamente as mãos nos bolsos do sobretudo e começou a andar.
Caminhou um pouco, quando a casa familiar estava já à vista, a neve começou de novo a cair de mansinho, levemente, com os cristais a flutuarem no ar, uma neve que lhe arrefecia o rosto e que era como um cântico de vida e de beleza.
Ao chegar ao jardim em frente da casa, todo branco da neve, já se sentia plenamente restaurado e pronto a voltar, integrar-se na comunidade dos homens. Havia um negócio por acabar para todo aquele ano prestes a despedir-se, um negócio que tinha que ser completado. Encaminhou-se para a porta e, pela grande janela frontal, pôde ver a sala de visitas cheia de gente que cercava a mãe e a irmã. Observou Ed Johnson servindo o ponche e o tio Herman a andar de um lado para o outro com uma bandeja cheio de sanduíches. Sabia que a mãe estava bem entregue. Iria para perto dela daqui a pouco. Mas primeiro, como um filho que se tornava um homem, devia resolver os seus assuntos.
Afastou-se da porta da frente e dirigiu-se pelo caminho lateral que corria paralelo à residência e que levava à porta de trás. Apressando o passo, chegou à porta do quintal, atravessou a cozinha e subiu para o primeiro andar, onde ficavam situados os quartos.
Foi encontrar Wanda no quarto de hóspedes, arrumando seus pertences numa pequena mala de mão. Havia-lhe telefonado para Nova York no dia anterior para lhe contar o sucedido e para lhe dizer que não voltaria ao escritório até o dia seguinte ao Ano Novo. E ela aparecera na noite anterior, não na qualidade de secretária mas como uma amiga, para poder estar junto dele e auxiliá-lo em tudo que pudesse. Naquele momento estava-se preparando para voltar a Nova York.
Randall aproximou-se dela pelas costas, agarrou-a voltou-a para ele, deu-lhe um sonoro beijo na face e agradeceu-lhe.
- Obrigado, Wanda, obrigado por tudo.
Wanda afastou-se um pouco e estudou-lhe as feições com ar preocupado.
- Sente-se bem? Já mandei chamar um táxi para me levar ao aeroporto de O'Hare, mas se precisar de mim posso ficar o tempo que quiser.
-Preciso de si em Nova York, Wanda. Há uma coisa especial que quero que faça, e outras coisas que tem de me resolver antes do dia de Ano Novo.
-Amanhã já estarei no escritório. Quer que escreva um memorando dessas coisas?
- Não é preciso, julgo que se lembrará perfeitamente de tudo. Para começar, lembra-se do livro que eu lhe disse que escrevi em Vermont, aquele que meti no cofre?
- Lembro.
-As folhas estão dentro de uma pasta de cartão e tem uma etiqueta com o título Ressurreição Dois.
-Sei muito bem, patrão. Fui eu que fiz a etiqueta.
- Muito bem, você sabe a relação do cofre. Amanhã tire a pasta de cartão e mantenha-a à mão. Vou ver-me livre dessa coisa.
- Como?
- As velhas pontes são para queimar, Wanda. Não necessito delas. Vou voltar atrás. Quero seguir sempre em frente...
-Mas depois de todo o trabalho que teve com o manuscrito, patrão?
-Nada de precipitações, Wanda. Ainda não lhe disse como é que me vou ver livre do manuscrito. Dentro de alguns minutos saberá. Passemos agora a outro assunto. Quero que me faça um telefonema para o Thad Crawford. Ele sabe que Ogden Towery e a Cosmos estão à espera de uma resposta minha antes do dia de Ano Novo. Diga ao Thad para fazer ciente a Towery que já tomei a minha decisão. A resposta é Não, que diga ao Sr. Towery que ele perdeu a aposta. Não vou vender a firma às Empresas Cosmos. Penso numa coisa muito melhor.
- Oba, patrão! - exclamou Wanda, abraçando-o. Por vezes, até as orações dos pecadores são ouvidas.
- Agora mais uma coisa. Pode fazê-la mesmo daqui. Sabe onde é que pode localizar o Jim McLoughlin?
- Falei com ele na semana passada. Queria saber quando é que o patrão voltaria.
- Muito bem, localize-o - Randall apontou para o telefone que estava na mesinha de cabeceira. - Diga-lhe que voltei. Que lhe quero falar imediatamente.
Naquele momento estava envolvido numa chamada de longa distância, falando com Jim McLoughlin, que se encontrava em Washington D. C.
A voz de McLoughlin chegou-lhe aos ouvidos.
- Já não era sem tempo, Mr. Randall. Pensei que só chegaríamos à fala um com outro quando fosse já demasiado tarde. As coisas estão realmente aquecendo em nossa volta. Obtivemos fatos essenciais sobre todos aqueles gatunos e aldrabões de que lhe falei. Vamos fazer com que a empresa volte na realidade a ser de novo livre, e acredite que não há um minuto a perder. O próximo passo compete-lhe dá-lo. Está pronto a falar ao mundo a respeito do Instituto Raker? preparou para marchar objetivamente em frente?
-Imponho apenas duas condições, Jim. E a propósito o meu nome de batismo é Steve.
- Steve... tomo nota. -Mas a voz do outro extremo da ligação manifestava-se algo preocupada. - Quais são as condições, Steve?
- Primeira. Enquanto estive na Europa tive pouca oportunidade para jogar o vosso jogo. Envolvido em sondar, tentar seguir a pista, de um certo assunto... de certo modo, um assunto de negócios. Estive tentando saber se certa coisa... chamemos-lhe um produto de consumo... seria uma fraude, uma mentira apresentada ao público, ou se seria um empreendimento honesto. Tinha razões para crer que se tratava de uma fraude, mas, não fui capaz de provar nada. As pessoas envolvidas nas vendas desses produtos, na sua maioria, acreditam que ele é honesto. Talvez tenham razão. No entanto, o caso está cercado de dúvidas razoáveis, racionais. Seja como for, escrevi um longo relatório sobre o meu envolvimento em tal projeto. Amanhã a minha secretária enviar-lhe-á o relatório de que falo. Você receberá uma pasta de cartão cheia de folhas de papel datilografadas com o título Ressurreição Dois...
-Ressurreição Dois? -interrompeu McLoughlin-O que é que você tem a ver com isso? Quer me contar o que se passou?
-Agora não, Jim. Além disso o manuscrito dir-lhe-à tudo o que necessita saber sobre a história, pelo menos por hora. Depois, conversaremos. De qualquer maneira, se você decidir seguir o caso onde eu o abandonei - se quiser um dia entrar no âmago da coisa e reatar a busca da verdade, se pensar que está em linha com o interesse do público e onde quer que a coisa possa levar - será excelente. A minha única preocupação é que venha considerar aturadamente o caso. Chamei-lhe a atenção para ele, depois disso faça o que quiser.
-A primeira condição foi apresentada e aceita. -A voz de McLoughlin tornou a hesitar. - Steve, e qual é a segunda condição para promover o Instituto Raker?
-Juntar-me-ei à vocês se vocês se juntarem a mim -disse Randall com simplicidade.
- E o que é que isso significa?
- Significa que eu também decidi entrar no negócio da verdade. Vocês têm os meios, os braços de trabalho para investigarem, mas não têm voz. Eu não tenho o aparelho de investigação, mas, possuo uma voz retumbante para me fazer ouvir. De modo que estou pensando porque é que não juntamos forças, porque é que não havemos de nos fundir, trabalharmos juntos para tentarmos limpar o país e tonarmos a vida melhor para toda a gente? Uma vida melhor aqui mesmo, nesta terra onde suamos?
Jim McLoughlin deu um berro selvagem.
-Steve, estou ouvindo bem? É realmente isso que você quer?
-Puxa, vida, claro que é.Tem razão e os seus ouvidos funcionam bem, é isso realmente o que quero. Ou vamos para a frente juntos ou então desisto. Você pode ficar como presidente e eu como vice-presidente. Eu serei a voz. Está ouvindo?
-Estou ouvindo, homem de Deus! Estou escutando muito bem. Temos o negócio fechado! Mas que belo presente de Natal!
-Também para mim, Jim-disse Randall calmamente.- Pronto, voltaremos a nos ver nas barricadas.
Quando se voltou para Wanda e lhe tirou a mala da mão para a levar até o taxi, pôde ver que as faces dela estavam ainda molhadas de lágrimas e que a esplêndida negra tinha um ar felicíssimo.
- Oh, Steve, Steve... -e não pôde dizer mais nada porque a emoção lhe embargou a voz.
-Menina, parece-me melhor voltar para a sua máquina de escrever e deixar as coisas loucas para mim-disse Randall em ar de quem está brincando.
Randall foi acompanhá-la até ao taxi. Quando o carro se pôs em movimento, Wanda baixou o vidro da janela, meteu por ele a cabeça e disse:
-Patrão, queria dizer-lhe que gostei muito das suas duas pequenas, muito mesmo. Talvez me antecipe à jogada de surpresa da sua italiana, mas as duas estão no pátio do outro lado da rua a fazendo um boneco de neve. Feliz Ano Novo, patrão!
O táxi arrancou a toda a velocidade.
Randall voltou até junto da porta. Pensou em entrar, mas havia tempo de se juntar às pessoas na sala.
Havia ainda um assunto para terminar, o último assunto e a solução estava no pátio de trás.
Deu a volta lentamente à casa, limpando os suaves flocos de neve que lhe pendiam das sobrancelhas e do cabelo.
Sabia que tinha finalmente encontrado para si próprio a resposta à clássica pergunta de Pôncio Pilatos, uma pergunta que o perseguira desde o verão.
Pilatos fizera a pergunta: Quid est veritas? O que é a verdade? Randall pensara que era uma pergunta para a qual não haveria resposta. Mas já estava convencido que se tinha enganado. Havia uma resposta.
Gozando a carícia de sentir a neve fundir-se ao contato com o calor do seu rosto, murmurou a resposta pra si mesmo: Verdade é amor.
E para amar, uma pessoa tem que acreditar em si mesmo, nos outros, na razão de viver de todos os seres vivos e no plano situado para além da própria existência.
É essa a verdade -disse para com os seus botões.
Chegou ao grande pátio atrás da casa, sentindo-se pela primeira vez como o pai sempre desejara que ele se sentisse: em paz, sem temores, e sem se sentir sozinho.
Divisou adiante o gigantesco boneco de neve, com a concepção de formas de uma mulher e viu a filha a moldar um pouco de neve entre as mãos para aplicar como nariz do boneco.
-Olá, Judy!
A moça voltou a cabeça e acenou alegremente, dizendo:
-Olá, papai!
E voltou ao seu trabalho de escultura.
Depois viu outra figura feminina, a outra pequena como dissera Wanda, com um engraçado chapéu de borla sobre os cabelos como a asa de um corvo, uma figura que nem a espessura do terno de neve conseguia esconder as esplêndidas formas, uma figura que se afadigava tentando transformar a boneca de neve, num boneco com a aparência de um homem.
- Olá, Angela! - gritou. - Quero que saibas que te amo.
Angela correu para ele, quase aos tropeções devido à neve fresca que a impedia de se movimentar livremente, gritando:
- Querido! Meu querido!
Finalmente atingiu os braços que ele lhe estendia e Randall naquele momento teve a certeza, a certeza absoluta de que nunca mais a deixaria sair daquele abraço, que nunca mais a deixaria partir.
Irving Wallace
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