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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A SENHORA DAS NOITES E DAS BRUMAS / Inês Botelho
A SENHORA DAS NOITES E DAS BRUMAS / Inês Botelho

 

 

                                                                                                                                   

 

 

 

 

O céu estava brilhante, totalmente coberto por nuvens cinzentas, tão cheias de água que, sem dúvida, não tardaria a chover. O vento soprava com uma fúria devastadora. Os ramos das árvores, carregados de folhas, chocavam uns com os outros produzindo um som simultaneamente deslumbrante e assustador. Mas Ailura não estava preocupada. Era uma fada, e para ela a impetuosidade do vento era como uma doce carícia. Os seus cabelos voavam alegremente atrás de si, o vestido branco brincava divertidamente com o ar irado, a sua pele estava agradavelmente fresca. Era como se ela própria fizesse parte do ar e isso... isso era maravilhoso.

No entanto, a casa de campo onde abandonara o Mundo dos Homens erguia-se à sua frente, e ela sabia que tinha de lá entrar. Assim, um tanto ou quanto relutantemente, avançou para a porta de entrada.

O seu corpo não encontrou qualquer resistência por parte do vento. Ailura estava habituada a voar pelos céus de Caladmiron, mesmo debaixo da mais furiosa das tempestades (embora raramente chovesse nas Terras da Luz), e sabia exactamente como colocar o seu corpo de modo a que nada a afectasse.

 

 

 

 

Abriu a porta e entrou naquela casa que cheirava a madeira e chocolate quente, e onde se respiravam recordações. Sem que tivesse pensado sequer nisso, deu por si a encaminhar-se para a sala de estar.

Há muitos anos atrás, ela teria encontrado uma extensa lista de perguntas sobre a maneira como estava a comportar-se e, certamente, teria colocado muitas delas. Mas isso fora, realmente, há muitos anos, há mais de mil anos! E, tal como Elianor previra, ela tornara-se sábia. Aprendera e compreendera muitas coisas, entre as quais que existem algumas que não têm, não precisam e não devem ter explicação. Aquela era apenas uma dessas coisas.

A lareira da sala estava acesa, a lenha era lentamente consumida pelo fogo e ouviam-se suaves estalidos. Sentada no sofá verde, em frente à lareira, estava a sua mãe. Os cabelos longos e negros pousavam suavemente nos seus delicados ombros, cobertos por uma bonita camisa vermelha e preta, e os seus olhos verdes olhavam- na serenamente. Estava tão bela quanto Ailura se lembrava dela durante a sua infância, e o seu olhar era tão profundo e sábio como da última vez que tinha olhado para ele, pouco tempo antes dela morrer em Omnirion.

E então, subitamente, Ailura apercebeu- se da presença de uma outra pessoa. Mesmo ao lado da sua mãe, de pé, estava um homem, ou melhor, um elfo. O seu pai: alto, sereno e belo, exactamente como ela se lembrava dele.

Estavam novamente os três juntos. Ao fim de tantos anos, estavam finalmente juntos. Uma alegria enorme apoderou-se dela, porque já não havia saudade dentro de si. Encontrara a única coisa que durante tanto tempo lhe faltara para que a sua felicidade fosse completa, e agora nunca mais a iria perder.

Correu até ao pai e, como se fosse ainda a criança que o vira desaparecer, afundou-se nos seus braços.

Ailura sentiu-se a despertar daquela calma profunda

e aconchegante que sempre a envolvia quando os sonhos lhe traziam a Visão. Quando pela primeira vez, em Aquilad, tivera um daqueles sonhos, de certo modo, tinha ficado assustada. E muitas vezes temera as revelações que eles lhe faziam, assim como desejara não ser portadora daquele dom. Mas com o tempo habituara-se à ideia e aprendera a interpretá-los e a usufruir da sua dádiva. Alguns eram demasiado complexos ou difusos para que ela conseguisse descobrir o seu significado; outros revelavam algo tão surpreendente, por vezes mesmo absurdo, que era difícil acreditar neles e muitos permaneceriam para sempre um mistério inacessível. No entanto, o significado daquele sonho era para si claro e ela sorriu ao que estava prestes a acontecer.

Ao seu lado, Edínmtor dormia, calma e profundamente. O cabelo dourado caía-lhe ligeiramente para o belo rosto, as mãos estavam abertas, levemente arqueadas, perdidas no meio dos lençóis, a sua respiração era suave e inebriante. Ailura estendeu a mão para o rosto dele, os dedos tensos a serem percorridos por um pequeno formigueiro de ansiedade, como se tivessem uma vontade própria e única: tocar a face lisa e branca de Edínmtor.

Os seus olhos fecharam-se, a sua respiração parou de uma forma tão imperceptível quanto aquela com que todos os dias respirava. Toda ela esperava, ansiava por aquele toque, os seus sentidos estavam despertos para captarem o mais ínfimo dos pormenores daquele contacto, como tinham feito milhares de vezes. Mas então, quando os seus dedos estavam prestes a tocar aquela face tão doce e querida, ela parou, abriu os olhos, susteve a mão no ar por uns momentos e, por fim, recolheu-a tímida e fechada.

Com o maior dos cuidados para não o acordar, Ailura saiu da cama. Vestiu um roupão belo, suave e esvoaçante, como o eram todas as suas roupas, e dirigiu-se para as duas portas de vidro que davam para a varanda.

O dia começava a amanhecer. O céu estava profundamente azul, tão azul como o Oceano Atlântico que Ailura não via há tantos anos, e o sol começava a brilhar em toda a sua glória por entre a folhagem densa e magnificente das Terras da Luz. Uma brisa agradavelmente fria e rodopiante bailava pelo ar, com os pássaros, as borboletas e as folhas das árvores de Caladmiron que tanto a amavam. Os ramos da velha árvore, que caíam para o banco de pedra branca da varanda, ensaiavam uma bela dança, convidando Ailura a sentar-se ali. E, envolvida por aquele amanhecer primaveril, Ailura deixou-se cair no doce mundo das recordações.

O dia estava quente, o Sol erguia-se calmo e pachorrento no céu, a sua luz difusa por entre as profundidades de Caladmiron irradiava paz e serenidade. Os pássaros chilreavam suavemente, os animais passeavam serenamente por entre a floresta. Toda a Grande Floresta era um abundante mar de tranquilidade e sabedoria. Era um daqueles dias que os Elfos e as Fadas das Terras da Luz louvavam em cânticos.

Mas naquele dia havia outro som nas profundidades de Caladmiron. O som claro e cristalino do riso de uma criança.

Galaduinne corria por entre as árvores, tentando esconder-se dos pais. Podia ouvir a mãe a aproximar-se, a respiração dela ligeiramente ofegante devido à perseguição a que ela a obrigara. Galaduinne escondeu-se atrás de um arbusto, à espera que a mãe passasse. E, assim que a ouviu afastar-se, correu no sentido oposto, com a cabeça virada para trás a ver se a mãe a seguia. Mas então, alguém a agarrou pela cintura e a fez sair do chão. Era o pai; os olhos tinham um ar divertido e ele sorria. Inclinou a cabeça e roçou o seu nariz no dela. Galaduinne riu baixinho.

- Finalmente, Edínmtor, apanhaste-a.

- Sim, Ailura. Mas não foi fácil - disse ele enquanto pousava Galaduinne no chão. - Foi tão difícil como apanhar uma folha que é levada pelo vento veloz.

Galaduinne riu novamente, naquele riso puro e maravilhosamente vivo das crianças.

- Faz-me voar, mamã - pediu ela, os olhinhos verdes a olharem para o rosto ligeiramente corado de Ailura, cheios de esperança.

- Não, agora não - respondeu Ailura. - Estou cansada.

- Mas tu nunca estás cansada! - disse a pequena elfo.

- Hoje estou.

- Por favor - voltou a pedir. - Só um bocadinho!

- Não.

Fora um "não" doce, sem qualquer rigidez, mas Galaduinne sabia que era definitivo e por isso sentou-se no chão, também ela exausta pela corrida.

Ailura lembrava-se bem daquele dia de pura felicidade

e brincadeira, quando Galaduinne tinha apenas cinco anos. Podia ainda sentir o cheiro intenso e agradável da floresta, das folhas das suas árvores, das suas flores, da sua terra. A respiração acelerada e misturada com o riso alegre de Galaduinne ressoava na sua cabeça com o mesmo vigor daquele dia. O rosto divertido e sempre calmo de Edínmtor estava gravado no seu espírito como se tivesse sido desenhado a fogo.

Tinham saído muitas vezes para brincarem na floresta, mas por alguma razão fora aquele dia que permanecera na sua memória, tão vivo como se se tratasse de uma labareda de fogo.

Ela lembrava-se de alguns episódios da sua vida como se eles tivessem acabado de acontecer. Recordava, com estranha precisão, tudo o que fizera, o que pensara, como estavam os rostos das outras pessoas, o que elas tinham dito ou a maneira como tinham agido. Nunca esqueceria a noite em que descobrira que o seu pai era um elfo, a maneira como ele estava deitado dentro do túmulo de cristal em Aquilad, a história de Edínmtor, a maneira como ficara abalada e descontrolada, a fúria e o medo que se tinham apossado dela, o choro agradável e ininterrupto que não conseguira evitar. E muito menos se apagaria da sua memória o primeiro beijo trocado entre ela e Edínmtor, no meio de Caladmiron, nessa mesma noite tão fatídica. Também se lembrava muito bem de apertar Galaduinne nos seus braços, a aconchegar contra o peito e sentir o seu pequenino coração a bater ligeiramente acelerado de encontro a si, num dia, quando Galaduinne era ainda muito pequena, em que ela fugira demasiado para o interior da floresta e se perdera do olhar sempre atento e vigilante de Ailura. Mas geralmente o que ficava eram as sensações causadas por algo, que mais ou menos rapidamente, era aparentemente esquecido. Essas sensações permaneciam intrínsecas nos seus nervos, na sua memória, na sua alma, na sua pele, e quando elas se repetiam, Ailura lembrava-se daquilo que noutras ocasiões lhes tinha dado origem. A sensação sempre única e inesquecível que tivera ao ler um determinado livro ou ao ouvir uma dada música; a sonolência calma e pachorrenta que se apoderava do seu corpo quando viajava sentada com o sol a bater-lhe levemente no rosto; a alegria orgulhosa e vitoriosa de ver a sua filha a conseguir algo que queria; a sensação estranha e levemente desagradável, na sua barriga, quando pressentia uma carícia de Edínmtor. Era por tudo isso, por essas coisas tão pequenas, mas tão maravilhosamente belas que valia a pena viver. Ou se não era, pelo menos era o que ela pensava.

Olhou para dentro do quarto. Edínmtor ainda dormia calma e completamente alheado da alegria e nostalgia que se apoderara de Ailura, ou, talvez, apenas levemente ciente disso. Ele ainda dormiria mais um pouco. Havia ainda tempo para o fazer, mas tinha de ser rápida.

Fechou os olhos e descontraiu-se. Imediatamente os seus sentidos se apuraram. A brisa era agora um pequeno vento, talvez ainda mais agradável, que roçava o seu corpo em suaves carícias e frenéticos apelos.

- Vem, Ailura. Faz parte de mim - pedia ele. – Sê tudo e sê nada.

Todo ele a chamava, a tentava naquele jogo de sedução tão rápido e desnecessário quanto maravilhoso, e imperceptível para tantos. E, de facto, como podia ela resistir quando o próprio Ar, de todos os Elementos o que ela mais amava, a convidava para se lhe juntar?

Mais uma vez sentiu nas suas costas um leve aperto, seguido de um pequeno tremor, e novamente a sensação de que uma flor desabrochava por entre as omoplatas. Olhou para trás, embora não tivesse necessidade disso, para confirmar que as suas asas estavam abertas. E lá estavam elas: um par de grandes asas de borboleta de um dourado translúcido, tão belas e brilhantes como no primeiro dia em que as vira. Pareciam-lhe sempre infinitamente frágeis, como se fossem quebrar-se assim que ela tentasse levantar voo. No entanto, ela sabia-as fortes e resistentes, feitas de algo tão indestrutível como o próprio Mundo.

Deu um ligeiro, quase imperceptível, impulso com os pés e elevou-se no ar.

Novamente aquela sensação incrível de fazer parte de um todo, de ser tudo e ser nada. Era a confirmação de que a vida existia, não só a sua, mas também, e principalmente, a do Mundo e a de todos os seres que o habitavam. Ela fazia parte daquele Mundo, de uma quase microscópica parte dele. E isso era ser tudo, por se fazer parte do Mundo, e nada, por se ser tão pequeno comparado com ele.

Subiu mais alto e girou no ar, roçando as folhas com as suas mãos, acompanhando um pássaro. A camisa de noite e o roupão esvoaçavam levemente por entre o ar, envolvendo-a por vezes na sua suavidade escorregadia. Como era bom voar! Ailura fazia aquilo uma vez por outra para clarificar ideias e se acalmar. Talvez não fosse muito correcto voar pelo simples prazer de o fazer. Ou talvez fosse por isso mesmo que as Fadas conseguiam voar: por amarem o Ar e por terem necessidade de o atravessarem e de se sentirem soltas nele. Ela nunca compreendera efectivamente como conseguira voar pela primeira vez. Provavelmente não havia sequer uma resposta que pudesse ser dita ou escrita, apenas sentida.

Sorriu. Ainda restava nela um pouco da Ailura que questionava tudo. Era bom saber que ela não se tinha apagado totalmente, muito bom mesmo!

Desceu suavemente para a varanda do seu quarto, mas parou. Os seus olhos estavam fixos na janela do quarto de Galaduinne. Tinha a certeza de que ela compreenderia. Fora sempre de natureza mais calma e etérea que Ailura, a paz e a sabedoria faziam parte do seu ser. Amava-a tanto! Uma das coisas que Ailura descobrira desde que viera viver para as Terras da Luz era a infinidade do amor. Não podia dizer que amava mais Galaduinne do que amava Edínmtor, ou que o amava mais a ele. Amava- os apenas de maneira diferente. Quando regressara a Caladmiron pensara que todo o seu amor estaria dividido entre o seu povo e Edínmtor, mas depois Galaduinne nascera e ela descobrira que tinha tanto amor para lhe dar quanto quisesse. Para ela o amor era assim, infinito e sem qualquer limite ou medida. Podia amar com toda a intensidade que desejasse o que quer que fosse, que teria sempre mais amor dentro de si. Os seus pés descalços pousaram na pedra branca da varanda

do seu quarto. Edínmtor ainda dormia. Finalmente aceitou o convite dos ramos da velha árvore e sentou-se no banco de pedra.

Estava cansada, mais cansada do que alguma vez estivera. Ela sabia que não era um cansaço temporário, que passaria ao fim de algumas horas de sono. Era algo maior, que se tinha infiltrado sorrateiramente no seu ser e se recusava a sair. No entanto, era estranho!... Com a fadiga parecera chegar também uma maior clarividência. Ailura podia ver coisas que nunca antes vira, mas que sabia que sempre lá tinham estado. Formas de cores leves e brilhantes, com rostos tão claros e definidos como o seu e que terminavam suave e indistintamente, de tal forma que os seus corpos se misturavam com o próprio ar, esvoaçavam por entre as árvores, o céu e Omnirion.

Ailura sorriu. Afinal não era propriamente estranho que as conseguisse ver, era até muito natural.

Do quarto chegou o ruído ténue e sussurrado dos lençóis a mexerem-se. Edínmtor estava a acordar.

Levantou-se, sabendo exactamente o que tinha de lhe dizer e o que se sucederia. Mas mesmo assim estava calma, sempre soubera que um dia, mais cedo ou mais tarde, teria de acontecer; era inevitável. De qualquer modo não havia razão para estar receosa.

Caminhou devagar até chegar à cama. Era impressionante como algo tão simples quanto andar lhe era penoso, quase impossível. Travava uma luta consigo própria, porque uma parte de si queria ficar leve e escapar-se para o ar, enquanto a outra tentava ainda caminhar um pouco mais, agarrada ao seu corpo agora tão estranhamente pesado.

Sentou-se na cama. Edínmtor estava deitado, o seu tronco levantado e apoiado sobre o antebraço direito. Tinha ainda os olhos fechados, mas sorriu assim que a sentiu. Abriu os olhos de repente e Ailura viu que ele estava uma vez mais muito divertido, embora ela não percebesse com quê. Mas depressa descobriu. Ele esticou o braço livre e com um movimento rápido puxou-a para si. Ailura caiu desequilibrada para cima da cama e dele. Ele envolveu a sua cintura com um braço e com a mão livre afastou-lhe os cabelos da sua face ebúrnea, num gesto doce.

- Bom dia - disse ele.

Ela ficou algum tempo a olhá-lo nos olhos, naqueles olhos de um verde-líquido brilhante e de uma profundidade repleta de sabedoria.

- Edínmtor... O meu tempo chegou ao fim - disse Ailura, tão suavemente quanto conseguiu. - Vou morrer.

- Agora? - perguntou Edínmtor, e ela sentiu o braço dele a estreitá-la mais.

- Sim. Tive um sonho...

Ele fechou os olhos, novamente. Ela sabia que ele não tinha medo, ou dúvidas. Afinal, Edínmtor era um elfo. Não, ele estava apenas a despedir-se, a preparar-se.

- Então eu vou contigo, como prometi há tantos anos em Ranthlin, antes de a batalha começar.

E ficaram os dois a olharem-se. Até que, inesperada e suavemente, se beijaram, tão profundamente como há mil quinhentos e vinte anos antes, na Grande Floresta, numa noite tépida e clara.

Ailura sentiu-se, por fim, a escapar para o ar, e Edínmtor, sem separar os seus lábios dos dela, deixou que a sua alma a seguisse, deixando também ele o seu corpo.

Os cabelos de Galaduinne ondulavam suavemente atrás de si. Sentia ainda um ligeiro aperto no peito, mas sabia que ele ficaria sempre lá. De facto, não fora uma surpresa quando encontrara os seus pais mortos, pois também ela o tinha visto em sonhos. Além disso, era uma elfo, com mais de mil e quinhentos anos de existência, e sabia que, um dia, todos os que vivem têm de morrer.

Não, não era a morte dos pais que a angustiava. Era um sentimento terrível e enorme que a invadira e que ela não conseguia explicar.

Pegou no archote que um dos elfos lhe estendia e avançou para a pira de pedra branca onde os corpos de Ailura e Edínmtor jaziam. Baixou o archote e, rapidamente, o fogo correu pelos corpos. Então, o Povo da Luz ergueu as suas vozes melodiosas num belo cântico.

 

As estrelas brilham no céu de veludo,

Os olhos abrem-se às maravilhas do Mundo.

Natureza tão bela,

Tão magnificamente singela,

Ai Os meus olhos já te viram,

Não mais de ti se despediram.

As estrelas brilham no céu de veludo,

Os olhos abrem-se às maravilhas do Mundo.

Os espíritos vivem eternamente,

Voando pelo Mundo docemente.

Nunca os seus olhos deixarão de ver

A beleza que só tu,

Natureza, podes conter:

As estrelas brilham no céu de veludo,

Os olhos abrem-se às maravilhas do Mundo.

 

Enquanto os Elfos, as Fadas e os Duendes cantavam, os corpos de Ailura e Edínmtor ardiam. De repente, um fumo negro ergueu-se da pira em direcção ao céu e envolveu o topo da torre de pedra branca. Galaduinne foi percorrida por um terrível pressentimento. Era como se aquele fumo negro que envolvia o cume da torre do Palácio do Ouro e do Verde pressagiasse uma outra escuridão que em breve viria submergir Omnirion.

 

                           A FUGA

O fumo negro estava a tornar-se numa massa viscosa, cada vez mais negra, que descia lenta e assustadoramente pelo Palácio do Ouro e do Verde, até que o cobriu totalmente. No entanto, ela não parou. Infiltrou-se na terra e continuou a avançar, cobrindo casas e árvores.

Galaduinne corria o mais rápido que podia para não ser apanhada por ela, mas uma parte de si não queria avançar. Havia algo que a massa estava a engolir e que ela amava muito. Parou e voltou-se para trás, na tentativa de descobrir algo familiar no meio daquele caos de terror. Perto do palácio uma cabeleira ruiva emergia da massa viscosa. Galaduinne sabia que era aquela cabeleira que a impedia de continuar a fugir, mas não conseguia lembrar-se de quem era. E então, quando tentava desesperadamente lembrar-se, a massa apanhou-a. Em poucos segundos Galaduinne caiu e foi engolida pela massa. Teve ainda consciência do seu toque frio e demoníaco, dela a percorrer-lhe todos os membros, a prendê-la numa forma horrível e, por fim, a entrar pela sua boca e a sufocá-la.

Galaduinne acordou sobressaltada. Estava deitada na sua cama ao lado de Ogueimion e a noite continuava a abraçar o Mundo na sua escuridão. No entanto, ainda conseguia sentir aquela massa viscosa a escorrer para dentro da sua boca e a roubar-lhe a vida.

Desde o dia em que os seus pais tinham morrido, e da pira onde eles tinham sido entregues ao fogo sagrado se erguera aquele fumo negro, Galaduinne tinha o mesmo sonho todas as noites. Mas, de cada vez, a massa viscosa ficava mais perto de a engolir na sua escuridão, até que, por fim, o conseguira fazer. Este era um sinal que não podia ser ignorado.

Levantou-se e subiu até ao topo da torre de pedra branca do palácio. Para o lado do mar e mais para o interior de Caladmiron a noite era azul e protectora, como era costume. Mas para o lado de Ranthlin, Brumívium e também Morniran, ela era mais escura, mais negra, mais terrível. E, tal como no seu sonho a massa viscosa se aproximava, também ela estava cada vez mais próxima de Omnirion.

Um vento gelado, vindo de Brumívium, ergueu-se de repente e correu veloz em direcção a Galaduinne. Afastou-lhe os cabelos cor de terra molhada das suas orelhas pontiagudas e murmurou-lhe uma única palavra, fria e cruel.

- Morgrif.

E Galaduinne soube quem causava a escuridão da noite e teve a certeza do significado do seu sonho.

Desceu até ao seu quarto e, enquanto descia, sentiu movimento dentro dos outros quartos. O Povo da Luz também já tinha pressentido a vinda de Morgriff.

No seu quarto, Ogueimion estava atarefado a arrumar vestidos e objectos pessoais de Galaduinne dentro de uma mochila.

- O que estás a fazer? - perguntou.

- A arrumar as tuas coisas - respondeu ele, calmamente.

- Tens de sair daqui.

- Não podemos ir simplesmente embora. Alguém tem de ficar a defender Omnirion.

- Não estamos preparados para lutar contra as tropas de Morniran.

- Mas Ogueimion...

Ogueimion parou de arrumar e aproximou-se de Galaduinne. Lentamente, afastou-lhe os cabelos desalinhados da cara e, numa voz muito baixa e suave, disse-lhe:

- Desta vez Omnirion cairá. Temos todos de sair daqui; e tu, Iruvienne, Athilya e Aran, antes de qualquer um de nós. Eu fico a orientar a fuga dos outros, mas tu vais primeiro com as crianças, Liduvine e um pequeno grupo que se está a formar.

Galaduinne abanou um pouco a cabeça, como se fosse uma menina pequenina e teimosa. Mas Ogueimion obrigou-a, docemente, a olhá-lo nos seus olhos castanhos e brilhantes.

- Numa outra altura... Num outro tempo, quando estivermos preparados, lutaremos por Omnirion. Mas agora tens de fugir para Nielirian.

Galaduinne ficou séria. Sabia que tinha de o fazer, mas lembrou-se do sonho e da pessoa de cabelos ruivos que era engolida pela massa viscosa e, de repente, soube quem ela era.

- Ogueimion... Não posso. No meu sonho...

- Nem sempre os sonhos acontecem - disse ele, lendo-lhe nos olhos o resto da frase. Mas Galaduinne também pôde ver que ele não estava a ser verdadeiro.

- Eu posso tentar combatê-lo - disse, numa derradeira tentativa. - Posso usar o Ceptro, como a minha mãe fez.

- Ainda não estás preparada - respondeu Ogueimion abanando, suavemente, a cabeça. - És mais calma do que Ailura era, por isso, não tens a força impulsiva que ela teve quando o usou. E ainda não aprendeste o suficiente para transformares essa calma numa energia suficientemente poderosa que te permita utilizar o Ceptro sem morreres.

Eu também queria que houvesse outra solução. Mas não há. Tens de ir para Nielirian. Lá estarás protegida... Eu depois vou ter contigo.

Galaduinne tinha um pouco do espírito contestatário de sua mãe, e essa parte de si queria continuar a contra- argumentar. Mas ela sabia que Ogueimion tinha razão; afinal, ele era um sábio. No entanto, não conseguia esquecer o sonho e tinha a certeza de que se se despedisse dele não o voltaria a encontrar.

Levantou os olhos molhados para ele e esboçou um leve sorriso.

- Já guardaste o Ceptro?

- Já - disse ele, beijando-a na testa como se ela fosse

Iruvienne ou Athilya.

Galaduinne vestiu rapidamente umas roupas de viagem escuras e pouco trabalhadas, calçou as botas altas e justas e cobriu-se com a velha capa de viagem. Pegou na mochila, pô-la às costas e olhou uma última vez à sua volta. Estava certa que só voltaria ali ao fim de alguns anos.

Ogueimion já estava junto à parede, os seus dedos longos e finos estavam pousados sobre uma das pedras que tinha uma pequena racha, quase imperceptível. Galaduinne olhou para baixo e, através do chão de vitral, viu vultos que se mexiam silenciosa e agilmente. Depois, colocou a mão em cima da de Ogueimion e juntos empurraram a pedra. A parede abriu-se, revelando um caminho, todo de pedra branca, escuro e estreito que avançava para o interior do palácio.

Galaduinne fixou os seus olhos nos de Ogueimion, e deixou que as lágrimas corressem pela sua cara. Sentia-se como uma criancinha assustada. Ele apanhou uma das lágrimas e levou-a aos lábios. Depois beijou-a.

- Enquanto o Mundo existir, aconteça o que acontecer, estaremos juntos.

- Eu sei, Ogueimion - respondeu Galaduinne. - Adeus. E com um último sorriso entrou na passagem secreta. Imediatamente a parede se fechou, deixando-a sozinha.

A passagem avançava sempre, cada vez mais para o interior do palácio, até que começava a descer. Galaduinne caminhava já há algum tempo e, tendo em conta o lugar em que a passagem terminava, calculava que quando saísse dali o dia deveria estar a nascer.

De repente, estacou o passo. As suas orelhas pontiagudas agitaram-se imperceptivelmente e ela ficou à escuta. Não se tinha enganado. Alguns metros mais acima, um pequeno grupo descia apressadamente o túnel. Podia distinguir uns passos leves e curtos, e outros mais pesados e largos.

Por precaução tirou a sua adaga comprida da bainha em que a guardava e que tinha amarrado à cintura. Mas eram apenas as suas filhas, Iruvienne e Athilya, acompanhadas por Liduvine e Aran.

Galaduinne lembrava-se muito bem do dia em que Aran chegara àquele Mundo, dez anos antes.

Elianor tinha morrido há pouco e Galaduinne e Ailura

tinham ido visitar Aminalin, uma jovem fada que Elianor tinha criado e ensinado durante os seus últimos anos de vida.

Estavam as três a conversar sobre Elianor quando ouviram um barulho vindo da zona dos quartos. Levantaram-se e seguiram o som das batidas, acabando por ir ter ao antigo quarto da fada, onde estava o espelho.

Lá dentro, um menino humano, de três anos, batia com as mãozinhas na superfície lisa do espelho. Ailura pestanejou e sorriu.

- A moda mudou muito desde a última vez que eu estive no Mundo dos Homens - murmurou, ligeiramente divertida. Depois, agarrou no menino. - Pede para ele te levar de volta.

O rapazinho encostou as mãos pequeninas e rosadas ao espelho e, com alguma dificuldade, pediu-lhe que o levasse de volta. Mas nada aconteceu. Ailura encostou a sua mão à superfície do espelho e Galaduinne viu a sua expressão tornar-se séria.

- O espelho fechou-se - disse simplesmente.

- Fechou-se? Mas o espelho nunca se fechou! - disse

Aminalin, surpreendida. - Como pode ter a certeza de que ele se fechou?

- Está frio e duro, como um qualquer vulgar espelho

- respondeu Ailura. - Não vai voltar a abrir-se até que ele próprio assim o entenda.

- Mas porque é que ele se fechou, mãe?

- Não sei, Galaduinne. Mas talvez este rapaz tivesse de vir viver para este Mundo.

Galaduinne e Ailura levaram a criança para Omnirion e deram-lhe um nome élfico: Aran. Durante as primeiras duas semanas Aran chorou, mas, por fim, calou-se e aceitou o seu destino. Foi criado como se fosse filho de Galaduinne e Ogueimion, mas nunca ninguém lhe escondeu a sua identidade. Dava-se particularmente bem com Iruvienne e, embora fosse apenas alguns meses mais velho do que ela, Aran gostava de agir como se fosse seu irmão mais velho. Cresceram e foram educados juntos, quase como se fossem gémeos, e entre eles criou-se uma enorme relação de amizade, até que se tornaram inseparáveis.

- Onde está o pai? - perguntou Iruvienne, arrancando Galaduinne às suas recordações.

- Ele vai ter connosco a Nielirian - respondeu, mas algo no olhar de Iruvienne a inquietou, como se também ela não acreditasse que isso fosse acontecer. - Agora temos de ir.

Beijou as filhas e Aran no cabelo, olhou Liduvine nos olhos por alguns segundos e continuou a caminhar.

O túnel parara de descer e continuava, em linha recta, num plano perfeitamente horizontal. Estava escuro, mas elas viam bem e avançavam com naturalidade. Apenas Aran tinha um pouco mais de dificuldade. Embora os seus olhos humanos já se tivessem habituado à escuridão, ele receava não ver alguma pequena alteração no caminho e, por isso, caminhava perto de Iruvienne.

Ao fim de algum tempo, Galaduinne pressentiu uma ligeira luminosidade vinda do fim do túnel. O pequeno grupo acelerou o passo e, em pouco tempo, chegaram ao fim da passagem.

Uma espessa cortina de raízes e diversas plantas, pela qual escoava um pouco da luz ainda fraca do sol, tapava a saída. Galaduinne afastou-a e o grupo passou para o exterior. À sua espera estavam alguns cavaleiros élficos e o grupo de guerreiras que protegiam a Rainha. Montaram nos cavalos que os esperavam e partiram a toda a brida para Norte, em direcção a Nielirian.

Pouco tempo depois de ter ido viver para Omnirion,

Ailura tivera a ideia de construir uma cidade, capaz de alojar todo o Povo da Luz, num local sagrado que existia um pouco a sul das Heniunel. E assim nascera Nielirian, a primeira cidade construída pelos Elfos e as Fadas.

O local sagrado que protegia Nielirian era guardado por sete enormes sequóias e três carvalhos intercalados com elas e de menores proporções. Os lugares sagrados, como a floresta de Brumívium e aquele que protegia Nielirian, eram impenetráveis pelo mal. A sua essência era tão pura e a magia aí existente tão forte que nenhuma criatura das trevas, por mais poderosa que fosse, se atrevia a lá entrar. De facto, quanto mais poderoso se fosse, pior era, pois podia sentir- se melhor a pureza que de lá emanava, o que era, para aqueles que pertenciam à escuridão, insuportável. Para os Elfos, as Fadas, os Duendes e os Gnomos eram lugares de paz, onde se podia descansar e meditar.

Galaduinne nunca estivera em Nielirian, mas podia imaginar a sua beleza e, principalmente, a segurança que oferecia. De mais a mais, era por essa razão que se dirigia para lá e, durante o dia, todo o Povo da Luz que vivia espalhado por Caladmiron, também deveria procurar aí protecção.

O dia tinha amanhecido claro e radioso, cheio de luz dourada como era habitual em Caladmiron. Mas Galaduinne podia ver a escuridão em que Omnirion tinha sido mergulhada e as árvores que a ladeavam a perderem as folhas, a beleza e, por fim, a vida a um ritmo assustador. No entanto, parecia que a própria floresta tinha impedido o avanço daquelas tropas tenebrosas e, assim, mantinha a sua luz e aparência normais.

- Omnirion caiu - pensou Galaduinne -, mas, pelo menos, a Grande Floresta não foi tomada.

E, um pouco mais descansada, continuou a avançar até que a floresta se pareceu fechar e eles tiveram de parar. À sua frente estavam sete gigantescas sequóias, que se perdiam no ar, e três magníficos carvalhos. As árvores formavam um semicírculo que impedia a passagem dos cavaleiros. Mas ninguém fez o menor gesto para as contornar. Em vez disso, dez dos cavaleiros, entre os quais Galaduinne, desmontaram e colocaram as suas mãos direitas, abertas, de encontro a cada um dos troncos das dez árvores. Suavemente, os elfos identificaram-se e aos seus companheiros e murmuraram palavras que os ouvidos de Aran não conseguiram perceber. Lenta e quase imperceptivelmente, as árvores aumentaram o espaço que as separava, de forma a que o grupo pudesse passar.

Depois de ultrapassarem o semicírculo de árvores, cavalgaram ainda durante algum tempo. Mas já podiam sentir um ar mais leve a envolvê-los e, ao longe, ouvia-se o som profundo e suave do Uliron, um dos afluentes do Enyel, a cair por entre as montanhas onde Nielirian tinha sido construída.

Quando chegaram a Nielirian, o espanto de todos foi enorme. A cidade fora construída entre as duas montanhas, nas suas encostas, nas árvores que as recobriam e por cima do Uliron, que corria muito lá em baixo, a grande velocidade, por entre as rochas redondas e lisas do seu leito, emitindo suaves gorgolejos. Ao nível do solo as casinhas eram baixas (no máximo com dois andares) e, tal como o palácio, de pedra branca, mas trabalhada em suaves relevos e imponentes arcadas entrelaçadas. No entanto, Nielirian estendia-se em direcção ao céu, pois tinham sido construídos grandes quartos e outras divisões por entre os ramos das árvores mais resistentes. Cada uma destas divisões ocupava uma árvore e algumas estavam ligadas. Para lá chegar subia-se uma escada de pedra que se enrolava à volta do tronco da árvore sobre a qual a divisão tinha sido construída. Estas divisões não tinham paredes e também não eram feitas de pedra, mas sim de uma madeira de um azul muito escuro e extremamente resistente: anuliss. A madeira fora, tal como a pedra, trabalhada em finas e primorosas arcadas, de pelo menos três metros, que se entrelaçavam umas nas outras e se estendiam até formarem uma cúpula fechada, a qual constituía o tecto. Algumas tinham, em determinados sítios, vitrais azul-claros que lhes conferiam uma estranha, mas encantadora luminosidade.

Galianar, um elfo amigo de Ogueimion e Senhor de Nielirian, estava à sua espera. Ele próprio conduziu Galaduinne, Iruvienne, Athilya e Aran aos seus quartos, que eram três das divisões construídas nas árvores. Iruvienne e Athilya ficavam no mesmo quarto; Aran tinha uma divisão mais pequena só para si que ficava ao lado da delas, numa árvore mais pequena, mas as duas não tinham ligação; e Galaduinne ficava numa outra divisão, da qual podia ver os quartos das crianças e que estava ligada a estes.

O quarto de Galaduinne era uma das maiores divisões e uma das poucas que tinha vitrais entre as arcadas, excepto na zona da entrada. Estava decorado com mobília feita a partir da mesma madeira azul-escura. O armário, o toucador e a cadeira de costas altas eram trabalhadas no mesmo estilo de linhas ora rectas ora curvas das arcadas, assim como a larga cama de casal. Esta tinha uma colcha branca bordada, com ramos finos carregados de pequeníssimas folhas, a fio azul-claro.

Depois de uma visita rápida por Nielirian, Galianar deixou Galaduinne sozinha no seu quarto para que ela pudesse descansar. Galaduinne não estava cansada, mas ainda se sentia intranquila e o ar fresco que corria por entre as árvores altas e frondosas embalava-a. Por isso, deixou-se cair em cima da cama e fechou os olhos, deixando- se transportar para aquele lugar onde nem o sonho começou, nem a realidade terminou.

Ogueimion estava de pé, virado para o trono onde Morgriff estava sentado com uma expressão de triunfo. Morgriff tinha colocado a coroa de ouro com os três diamantes na cabeça e auto proclamara-se, por entre os grunhidos dos Magdul, Senhor de Morniran e Rei das Terras da Luz (embora só tivesse conseguido tomar Omnirion). Ogueimion ainda lamentava não se ter lembrado de guardar a coroa na mochila de Galaduinne.

Ouviu as portas do salão a fecharem-se atrás de si, mas manteve a sua posição. Alguns dos Duendes mais jovens, que não se tinham apercebido da vinda de Morgriff, jaziam por entre os ramos das árvores mortas e no meio das ruas de Omnirion, à mercê dos passos desajeitados dos Magdul, mortos pela tristeza e o horror que a vinda deles lhes causara. Os poucos Elfos, Fadas e Gnomos que não tinham fugido a tempo tinham sido cruelmente mortos ou aprisionados e Ogueimion não esperava ter um fim diferente do deles.

A criatura de aspecto humano que viera com Morgriff inclinou-se sobre ele à espera de instruções. Ogueimion podia sentir que, apesar do seu aspecto, ele não era humano como Aran, mas, provavelmente, uma das criações demoníacas de Morgriff. Toda a sua figura era maléfica. O seu rosto esguio, magro e encovado era de um branco pálido e macilento. Trajava do mais profundo preto, os seus olhos eram escuros e inexpressivos e os seus cabelos pretos e extremamente longos estavam entrelaçados em tranças largas que pareciam serpentes a ondular. Por fim, acabou de receber as ordens de Morgriff e foi colocar-se atrás de Ogueimion.

- Obrigado, Ogueimion - disse Morgriff, como alguém que acabasse de ser presenteado com um espectáculo engraçado.

- A vossa insignificante resistência foi uma exibição muito divertida. Os meus sinceros parabéns.

Ogueimion manteve-se sério, mas Morgriff continuou.

- Lamento imenso o estrago que as minhas tropas causaram na vossa companhia. Mas tu percebes. Aqueles brutos não têm o mínimo respeito pela boa arte! - disse, soltando um suspirozinho sarcástico e depois uma sonora e malvada gargalhada. - Ogueimion, meu sábio Ogueimion, devias ter fugido com Galaduinne e as vossas filhas para Nielirian enquanto podias. Mas agora, infelizmente para ti, é demasiado tarde.

Ogueimion não conseguiu evitar que um ligeiro assombro se tornasse visível na sua cara. Nunca pensara que Morgriff tivesse conhecimento da existência de Nielirian. Afinal ele estivera durante mil quinhentos e vinte anos a tentar recuperar as forças que perdera no confronto com Ailura! Mas não era assim tão estranho; ele tinha formas de conhecer e ver das quais nem os povos sábios suspeitavam, e, de mais a mais, Nielirian era um lugar sagrado e ele nunca conseguiria lá entrar.

- Eu sou paciente - disse Morgriff, enquanto se encostava às costas do trono. - Galaduinne, mais cedo ou mais tarde, sairá de Nielirian. E nessa altura, eu estarei à espera para a defrontar e me apoderar do Ceptro - fez uma pequena pausa. - Quanto a ti, Ogueimion, não tens mais utilidade para mim.

Ogueimion ouviu a criatura de aparência humana a aproximar-se e soube o que ia acontecer. Sorriu, estava preparado.

De repente, sentiu o contacto gelado de uma lâmina no seu pescoço e a dor fria e fina da sua carne a ser rasgada. O sabor do seu próprio sangue invadiu-lhe a boca, a sua cabeça comprimiu-se e ele começou a não conseguir respirar. Tentou acalmar-se o suficiente para que a sua alma pudesse esquivar-se do corpo e voar para junto de Galaduinne, Iruvienne e Athilya. Teve consciência do riso petrificante de Morgriff, mas este parecia vir de muito longe. E, finalmente, soltou- se.

Olhou durante algum tempo para o seu próprio corpo que caiu com um som abafado. O seu sangue espalhou-se sobre o chão de vitrais e manchou os seus cabelos ruivos, dando- lhes uma cor mais vermelha do que em qualquer outra altura.

 

                     NA FLORESTA DAS BRUMAS

Galaduinne abriu os olhos, sobressaltada. Uma dor fria e aguda, como o corte de uma adaga, percorrera a zona lateral do seu pescoço e mantinha-se como se fosse um ferimento mortal.

Com uma vaga esperança, levou os dedos trémulos ao pescoço, mas, tal como receava, não havia ali qualquer ferida, a sua pele estava lisa e imaculada, como sempre. E então, uma dor maior que a de qualquer ferimento assolou-a. Era como se uma mão gelada e impiedosa tivesse entrado no seu peito e tivesse arrancado um bocado enorme do seu coração. Galaduinne chorou de dor, mas, principalmente, de sofrimento e, lentamente, sentiu-se cair num mundo de tristeza e melancolia. Desejou ser como os Homens, que amavam, mas não conseguiam sentir com a mesma intensidade dos Elfos e das Fadas a perda daqueles que amavam. Os Homens sentiam e amavam, mas para eles a dor desaparecia com o tempo e eles conseguiam continuar a viver. Como os Mundos eram simples para eles! Não podiam, nem sentiam a dor das árvores que eram queimadas ou cortadas; os animais eram seres distantes e em tudo diferentes deles, que, segundo eles, não podiam sentir; e até o amor, que eles procuravam com tanto fervor e ansiedade, se tornava numa mera conquista que perdia rapidamente o interesse e cuja perda lhes era, passado algum tempo, suportável. Para eles tudo era uma simples questão de tempo! A dor daquilo que vivia era-lhes visível, mas eles não conseguiam senti-la e por isso, quando o tempo parecia curar essas dores, eles pensavam que tudo tinha ficado perfeitamente bem. Não era culpa deles. E contudo... eram tão ingénuos! Mas Galaduinne não era assim! Era uma elfo e se era delicioso compreender a Natureza, também podia ser doloroso. No entanto, não era a Natureza que lhe causava angústia. Era a certeza indubitável de que Ogueimion morrera.

Havia uma parte de si que queria soltar-se e voar para junto dele. Mas a maioria do seu ser, embora também chorasse de dor, gritava que não podia, não queria e não iria elevar-se. Iruvienne e Athilya ainda precisavam dela, assim como o Povo da Luz. E Galaduinne, como mãe, jamais poderia abandonar as suas filhas, porque se há amor maior que o de dois amantes, é o amor de mãe.

Ao decidir que não deixaria a sua alma voar para junto de Ogueimion, toda a sua esperança de ficar com ele se dissipou, e ela afundou-se numa tristeza e num desespero tão profundos que se sentiu tonta e enjoada.

Não podia ficar ali, entregue a pensamentos tristes e devastadores, sentindo a crueldade e frieza da morte de Ogueimion, a falta dele. O seu ser estava cada vez mais oco, como se fosse um corpo sem vida, uma mera carcaça de tristeza e melancolia irracionais. Tinha decidido viver. Iria viver. Não permitiria que aqueles sentimentos a destruíssem.

Levantou-se e desceu a escada de pedra. Quando chegou ao solo, os seus pés descalços pousaram na erva fresca e elástica e ela sentiu-se melhor. O crepúsculo caíra e a noite aproximava-se. Uma luminosidade azul-clara-acinzentada envolvia Nielirian e os seus céus estavam repletos de cantos simultaneamente de uma beleza e tristeza indescritíveis. Eram lamentos por Omnirion, entoados nas vozes límpidas e musicais dos Elfos e das Fadas.

Galaduinne caminhou lentamente até ao Uliron. Quando lá chegou, curvou-se e percorreu a água fria e escorregadia com os seus longos dedos. O contacto era bom e ela deixou-se deslizar, lentamente, para dentro de água, até que ficou totalmente coberta por ela.

Ali sentia-se bem. Estava protegida. E aos poucos foi-se acalmando, até que, por fim, conseguiu ouvi-la.

- Isso, Galaduinne, acalma-te - dizia a Água. - Deixa-me afundar as tuas mágoas. Deixa que a tua tristeza flua para as minhas águas e nelas se desvaneça. Aqui nada te fará mal. Não temas, estás segura.

- Eu sei - respondeu Galaduinne. - Mas gostava que ele estivesse aqui.

Sentiu uma ligeira agitação nas águas, como se a Água tivesse soltado um pequeno suspiro de desapontamento.

- Enquanto o Mundo existir, aconteça o que acontecer, estaremos juntos. - disse a Água. - Foram estas as últimas palavras de Ogueimion para ti e estavam certas. Quando o vento te afastar os cabelos da cara serão as mãos dele que o fazem e quando nadares num rio serão os braços dele que te envolvem.

Nunca estarás sozinha. Mas agora tens de continuar. Tens...

- De libertar Omnirion.

- Sim, um dia, mas ainda não. Primeiro tens de aprender.

- O que mais posso eu aprender?

As águas do Uliron agitaram-se novamente, mas desta vez com mais força. A Água estava a rir.

- Nem mesmo os Elfos e as Fadas têm o conhecimento total - disse ela. - Nem mesmo nós, os Elementos, o temos, pois ele é infinito e não está destinado a nenhum ser na totalidade. Há sempre mais qualquer coisa que podemos aprender, algo que desconhecemos e espera ser conhecido. E a tua ignorância deste facto só prova que tens, realmente, ainda muito a aprender.

- O que queres então que eu aprenda? - perguntou

Galaduinne suavemente.

- Tu compreendes o dia. Eu quero que compreendas também a noite.

- Mas como?

- Agora vai.

- Deixa-me ficar mais um pouco.

- Vai - disse a Água e, suavemente, empurrou o corpo de Galaduinne para a superfície.

- Só mais um pouco...

- Tens de ir.

- Galaduinne.

Galaduinne abriu os olhos. Nas margens do Uliron estava Galianar. Galaduinne levantou-se e Galianar estendeu uma mão para a ajudar a sair da água. Depois, cobriu-a com uma capa grossa e quente. Anoitecera e o ar estava frio. Nielirian cobrira-se de pontos de luz branca e azul: eram velas que ardiam cobertas por cúpulas transparentes ou pintadas de azul. Sentaram-se os dois na margem do rio.

- Lha falou contigo? - perguntou Galianar e Galaduinne pestanejou. Era muito raro os Elfos e as Fadas falarem em Lissanin, a sua língua sagrada, pois as suas palavras eram tão profundas e cheias de significado que não podiam ser utilizadas despreocupadamente. De facto, ela pouco conhecia dessa língua tão antiga quanto os Povos Sábios e esquecida por muitos. E no entanto, Galianar dissera o nome da Água em Lissanin: Lha.

- Sim - respondeu, por fim, Galáduinne.

- Ela deu-te alguma indicação do que devia ser feito a

seguir?

- Ela quer que eu compreenda a noite.

- É um pedido estranho, mas não questionável. Pelo menos para nós.

- Referes-te aos Homens?

- Mas claro. Haverá algum outro povo mais casmurro e que tenha mais relutância em cumprir ordens?

- Penso que te enganas - respondeu Galaduinne. - Os Homens têm as suas leis e, de uma forma geral, obedecem-lhes. Por vezes, consideram que uma delas, ou mais frequentemente muitas delas, não são boas leis e então, organizam aquilo a que chamam uma revolução, para deporem o Governo. Depois, instituem um novo governo e tudo recomeça. Eu sei que é uma visão simplista do Mundo dos Homens, mas eu não compreendo bem a sua natureza, assim como eles não compreendem a nossa. No entanto, os Homens são o que são por serem como são, tal como nós somos o que somos por sermos como somos.

- E achas que eles são um povo para ser admirado?

Galaduinne não respondeu. - A tua mãe viveu lá durante alguns anos, conheceu bem a sociedade em que eles vivem e...

- Teve dificuldade em abandonar aquele Mundo.

- Não era isso que eu ia dizer.

- Eu sei - respondeu Galaduinne com um pequeno sorriso. - Mas tens razão, Galianar, a minha mãe viveu lá durante uma pequena parte da sua vida e conheceu-os bem. No entanto, ela sempre os achou cheios de qualidades, e o seu Mundo repleto de beleza. Ela dizia que uma das coisas mais belas da natureza humana é a sua ânsia e necessidade de liberdade.

Galianar ficou algum tempo a olhar para o rio, como se lhe fosse difícil aceitar a ideia de que pudesse haver algo de bom na raça humana.

- Tens de compreender, Galianar - continuou Galaduinne -, que os Humanos não são nem melhores nem piores do que nós. São apenas diferentes.

Galianar olhou-a com uma expressão severa e Galaduinne deixou escapar uma pequena risada.

- Sim, talvez um pouco mais casmurros. Mas eu não deixo de achar que isso até não é mau, pelo menos tentam pensar por eles próprios. De qualquer forma, não nos compete a nós julgá-los.

- Como pensas aprender a compreender a noite?

- perguntou Galianar ao fim de algum tempo.

- Não sei. Mas penso que não poderei aprender sozinha.

- Brumívium é um lugar sagrado e as sacerdotisas de Névila honram a noite, que era a altura do dia que Valindra mais amava. Elas conhecem os segredos da noite e ninguém a compreende melhor do que elas. Talvez devesses ir até lá e pedir a sua ajuda.

Galaduinne olhou durante algum tempo para o outro lado da margem, agora quase totalmente encoberto pela escuridão da noite. Compreender a noite e os mistérios que ela encerra seria um desafio interessante, mas, sem dúvida, demoraria muito tempo. Aceitar ir até Névila era decidir que Omnirion só seria libertada ao fim de alguns anos, talvez de uma parcela insignificante para os Povos Sábios, e no entanto... Morgriffpodia destruir muito em tão pouco tempo! Mas a Água dissera-lhe para compreender a noite e ela não podia desafiar os Elementos.

- Como pensas que poderia chegar até lá em segurança? - perguntou por fim.

- Um grupo pequeno: tu, Liduvine e algumas das guerreiras que te protegem, deve ser o suficiente. Se partirem ao amanhecer e cavalgarem a toda a brida sem parar devem chegar a Brumívium ao entardecer.

- Tenho de falar com Iruvienne e Athilya. Elas poderão decidir depois se querem ir ou ficar.

- Mas tu preferias que elas fossem.

- Elas são livres de escolherem e eu sei que ficarão bem aqui, entregues aos teus cuidados.

- E quanto ao rapaz humano, Aran?

- Tenho a certeza de que a decisão dele será a mesma de Iruvienne.

Galaduinne sentara-se na cama de casal, com as pernas estendidas. Athilya deitara-se com a cabeça de cabelos ruivos escuros apoiada nas pernas de Galaduinne e os olhos castanhos fixos no rosto da mãe. Iruvienne estava sentada ao fundo da cama, o nariz ligeiramente vermelho e várias lágrimas silenciosas a escorrerem-lhe pela face. Galaduinne acabara de lhes dizer que o pai morrera.

- Devagar, Iruvienne - disse Galaduinne. - Respira. Tem calma. Ele ainda está aqui.

Estendeu uma mão para a filha, mas Iruvienne olhou para trás, na direcção de Aran. Ele mantivera-se à entrada do quarto de Galaduinne, como se fosse um pequeno guarda silencioso, vestido em tons escuros como era seu costume. Mas assim que Iruvienne olhou para ele, avançou e segurou-a com ambas as mãos nos ombros.

- O que vamos fazer agora? - perguntou Iruvienne, na sua voz calma, melodiosa e um pouco aguda de mais.

Galaduinne sorriu tenuemente. Podia ver que Iruvienne não estava ainda totalmente calma e, por breves momentos, lembrou-se da expressão nos olhos da filha quando se tinham encontrado no túnel da passagem secreta do palácio de Omnirion. Mas a suspeita passou e ela disse:

- Eu tenho de aprender a compreender a noite. Os olhos de Athilya pestanejaram.

- Como? - perguntou.

- Como, não sei. Mas sei onde - fez uma pequena pausa.

- Tenho de ir até Névila e ficar lá o tempo suficiente para que conheça e perceba a noite tão bem quanto o dia.

- E nós ficamos aqui, com Galianar? - perguntou Aran. A sua voz era ora rouca ora estranhamente aguda e Athilya não evitou uma risadinha.

- Vocês são livres de escolherem. Podem ficar aqui ou irem comigo.

- Eu quero compreender aquilo que poucos compreendem - respondeu Iruvienne. - Quero conhecer os mistérios da noite e continuar a aprofundar os do dia. Eu irei contigo.

Athilya não respondeu. Em vez disso levantou-se e olhou através dos vitrais das arcadas.

- Dizem que Brumívium é um lugar de brumas, onde quase sempre chove - disse ao fim de alguns minutos de silêncio.

- Eu sou apenas um ano e meio mais nova do que Iruvienne, mas acho que ainda desconheço muitos dos mistérios do dia. Preferia ficar aqui e compreendê-los melhor - virou-se para a mãe. - Creio que ainda tenho medo da noite e, sem dúvida, amo mais o sol do que a chuva.

Galaduinne sorriu e anuiu com a cabeça.

- Eu percebo. Disse que vocês seriam livres de escolher, manterei a minha palavra. Fica, se assim o preferes. - Virou-se para Aran. - E tu, Aran? Queres ficar ou ir?

- Eu vou com Iruvienne.

- Então preparem-se os dois. Partimos ao amanhecer.

Galaduinne não dormiu nessa noite. Preparou a sua mochila e vestiu novamente as roupas de viagem.

Athilya passou a noite com ela e as duas conversaram

muito. Galaduinne tinha dificuldade em se separar da filha, mas prometera respeitar a sua decisão e fá-lo-ia. Além disso, ela tinha quase treze anos, já não era propriamente uma criança. Tinha idade suficiente para estar longe da mãe.

Quando o amanhecer se aproximava, Galaduinne desceu com Athilya até à entrada de Nielirian, onde um pequeno grupo das suas guerreiras, Liduvine, Iruvienne, Aran e Galianar a esperavam. Despediu-se de Galianar e agradeceu-lhe por tudo, beijou Athilya na cara e sorriu-lhe, depois montou no cavalo e o pequeno grupo imitou-a.

Foi um dia cansativo, especialmente para Aran. Cavalgaram durante todo o dia, sem pararem para descansar ou comer. Galaduinne podia sentir o cansaço dos cavalos, mas não podiam parar. Morgriff já devia saber que ela abandonara Nielirian e não tardaria a enviar tropas para os perseguir. Era imperioso que chegassem o mais rapidamente possível à segurança de Brumívium.

A travessia de Ranthlin foi longa, mas eles conseguiram encontrar algum conforto na paisagem. O Sol brilhava alto e quente no céu e a relva parecia ainda mais verde e fresca do que era habitual. Havia um cheiro ligeiramente adocicado no ar e apetecia, verdadeiramente, saltar do cavalo e correr por aqueles campos, de pés descalços. Mas não podiam. Ranthlin não era um lugar seguro. Iruvienne acelerou e distanciou-se durante algum tempo do grupo para poder sentir o vento a bater- lhe na cara e a afastar os seus longos cabelos. Galaduinne sorriu e também ela se afastou um pouco do grupo para sentir o efeito da velocidade no seu corpo.

Finalmente, quando o Sol se começava a pôr, cobrindo a relva verde de tons rubros, eles chegaram à entrada da floresta de Brumívium. As árvores dali eram mais altas do que as de Caladmiron. De facto, eram tão altas que Galaduinne teve a impressão que elas se perdiam no céu até que, por fim, acabavam por se fundir com ele. As suas folhas eram de um verde-molhado muito escuro e o interior da floresta era escuro e nebuloso, totalmente envolto em brumas. Parecia que o próprio ar que vinha de lá de dentro era frio, sombrio e misterioso como as brumas. Era, sem dúvida, muito diferente da Grande Floresta com as suas árvores de folhas alegres e luminosidade dourada do sol.

Uma ou duas das guerreiras olharam Galaduinne com uma mistura de medo e desaprovação, mas ela incitou o seu cavalo a continuar e todo o grupo a seguiu.

A floresta era densa e era necessário conduzir os cavalos num percurso ziguezagueante, um pouco como se se tratasse de uma gincana. As brumas também dificultavam o avanço, pois cobriam o chão, ocultando os obstáculos. Estava frio ali e muitas das elfos soltaram suaves murmúrios de lamentação e desaprovação que Galaduinne ignorou. Ela viu Aran estender a Iruvienne uma capa mais grossa do que aquela que ela tinha e ele próprio enroscar-se mais na sua. No entanto, nenhum deles disse absolutamente nada. Também Galaduinne se enroscou mais na sua capa.

Ao fim de algum tempo, Liduvine aproximou o seu cavalo, com alguma dificuldade, do de Galaduinne.

- Está a anoitecer - disse ela -, e em breve será impossível avançar mais. Fazes alguma ideia da distância a que estamos de Névila?

Galaduinne não respondeu logo. Há muito que via as grandes montanhas onde o Enyel nascia e onde Névila fora construída. Mas não fazia ideia de quanto tempo ainda demorariam a lá chegar.

- Só mais um pouco - respondeu por fim. - Já não deve

faltar muito. Cavalgaram ainda durante algum tempo, até que, quando já era quase impossível ver o caminho que percorriam e uma chuva miudinha começou a cair, chegaram a uma pequena clareira. À sua frente estava uma das grandes montanhas de Brumívium e, na sua base, erguia-se um castelo de granito escuro com cinco andares que parecia irromper de dentro da montanha, pois parte das suas paredes estavam cobertas de relva escura ou ocultas pela própria montanha. Tinham chegado a Névila.

 

           A SENHORA DA NOITE E DAS BRUMAS

Um vulto branco rodeado por dois vultos negros (estes indetectáveis para os olhos de Aran) esperava-os. Galaduinne desmontou e dirigiu-se-lhes. A chuva caía com mais intensidade e ela ficou rapidamente encharcada, mas avançou sem se importar com o facto.

- Mianon, Senhora da Noite e das Brumas, nós pedimos-te a protecção de Névila e Brumívium - disse Galaduinne.

- Sê bem-vinda, Galaduinne, Rainha das Terras da Luz

- respondeu Mianon.

Galaduinne inclinou a cabeça, em sinal de agradecimento e respeito. Depois olhou para trás e o seu grupo desmontou e aproximou-se. As duas sacerdotisas que rodeavam a Senhora de Brumívium avançaram para os cavalos e levaram-nos.

- Entrem - disse Mianon. - Devem estar cansados e com fome. É uma longa viagem desde Nielirian até Névila.

O grupo encabeçado por Galaduinne seguiu-a.

O interior do castelo era estranhamente quente e acolhedor. Galaduinne podia sentir o conhecimento e sabedoria que as grandes pedras de granito escuro encerravam, bem como a forte protecção que elas ofereciam. As janelas eram altas e elegantes, feitas de vários rectângulos de vidro liso e transparente, presos a barras de ferro. Os corredores, largos e extremamente altos, eram iluminados por fogos que ardiam em pratos de ferro e todas as portas eram de anuliss primorosamente trabalhado.

Por fim, depois de caminharem muito, chegaram a uma espécie de hall onde desembocavam duas escadas, uma de cada lado, e que terminava em duas grandes portas de anuliss. Mianon empurrou-as e elas revelaram um amplo refeitório com três grandes mesas de anuliss que formavam um "U", voltadas para uma quarta mesa, igualmente grande e de anuliss. Todas as mesas tinham delicadas cadeiras de costas baixas, feitas da madeira azul-escura.

Contudo, a quarta mesa possuía, exactamente no meio, uma cadeira, feita da mesma madeira, mas de costas altas e imponentes onde tinham sido esculpidas uma lua em quarto crescente rodeada por três estrelas. Era a cadeira da Senhora da Noite e das Brumas.

As três paredes do refeitório tinham janelas e Galaduinne percebeu, pelo que viu através delas, que eles estavam do outro lado da montanha. Tinham, de facto, caminhado muito. Do seu lado esquerdo havia uma porta que, provavelmente, tinha ligação com o exterior.

- Não tínhamos a certeza de quantos vocês eram - disse Mianon -, por isso peço-vos que aguardem um pouco. Mas, por favor, sentem-se - e, com um pequeno gesto das suas mãos brancas e delgadas, indicou-lhes as cadeiras de anuliss.

O grupo sentou-se e, em pouco tempo, entraram três sacerdotisas, vestidas de azul-claro, com pratos, copos e talheres que distribuíram à frente deles. As sacerdotisas saíram e Mianon manteve-se imóvel no seu vestido branco a olhá-los. Quando as sacerdotisas regressaram com travessas cheias de comida e jarros

de água e vinho, Mianon saiu, silenciosamente.

Galaduinne serviu-se de pandlê e água, pois o vinho era demasiado forte para ela, após um dia tão cansativo, e que ela suspeitava ainda estar longe do seu fim. Pandlê era uma comida élfica, feita com pequenos pedaços de carne, misturados com bocadinhos de couve-galega, couve-branca, feijão vermelho, cogumelos, amêndoas, nozes e maçãs, tudo envolto numa massa feita a partir de pão. Era uma receita simultaneamente nutritiva, leve e saborosa, à qual podiam sempre adicionar-se novos ingredientes, e de que os Elfos e as Fadas gostavam muito.

Quando acabaram, as três sacerdotisas trouxeram-lhes taças, colheres e uma taça grande de pêra cozida com mel quente.

Galaduinne nunca comera aquela sobremesa, mas achou-a deliciosa. Embora simples, era quente e apetecível depois do frio com que se tinham confrontado na floresta. A pêra cozida parecia desfazer-se na sua boca e o sabor doce e intenso do mel aquecia-a.

No fim da refeição, as três sacerdotisas voltaram a entrar e levaram tudo para dentro. Quando Galaduinne se levantou duas novas sacerdotisas estavam de pé, imóveis, atrás dela. Estas tinham vestidos de tecidos leves e flutuantes azul-escuros que, quando elas finalmente se mexeram, mudaram a sua cor escura para prateado, conforme os seus movimentos.

- Eu conduzirei o seu grupo aos quartos que lhes foram destinados - disse uma delas. Galaduinne fez sinal a Liduvine para que seguissem a sacerdotisa e sorriu a Iruvienne quando ela passou.

- A Senhora de Brumívium espera-a - disse a outra e saiu.

Galaduinne acompanhou-a.

Subiram uma das escadas até ao último andar e caminharam através dos corredores silenciosos durante vários minutos. Galaduinne tinha a certeza de que estavam a atravessar, uma vez mais, a montanha.

Este andar era um pouco diferente. Os fogos não ardiam em pratos, mas dentro de altas colunas de vitrais em tons de verde e azul e havia ali uma grande zona com janelas, estranhamente voltadas para o interior da montanha e, no entanto, também vinha de lá luz, embora pouca, uma vez que era noite. Do outro lado, havia uma série de portas fechadas donde chegavam, ocasionalmente, murmúrios e risos.

O corredor terminava numa janela, mas elas pararam um pouco antes e bateram à última porta.

- Entra, Galaduinne - disse a voz de Mianon. Galaduinne abriu a porta e entrou. A sacerdotisa ficou do outro lado e ela ouviu os seus passos leves a afastarem-se.

O quarto de Mianon era amplo, luminoso, apesar da frieza das pedras, e todo em tons de azul. A cama larga e espaçosa de anuliss era parcialmente coberta por um dossel alto feito de um tecido leve e profundamente azul, salpicado por minúsculos pontos prateados a imitarem estrelas, e na sua colcha, igualmente azul-escura, tinham sido bordadas borboletas a ouro branco. Aos pés da cama havia uma arca e, ao lado da cama, um armário, ambos feitos da mesma madeira azul-escura trabalhada em suaves desenhos e com incrustações de vidro azul muito claro. Na parede do lado direito estava um toucador de pernas altas, esculpidas como se fossem troncos de árvores cujos ramos se estendiam do tampo até à parede, onde emolduravam um espelho em forma de arco. Uma lareira, naquele dia apagada, e ladeada por duas colunas de vitrais onde ardiam fogos, dividia o quarto. Voltada para a janela aberta havia uma mesa de trabalho, com delicadas gavetas, onde repousavam algumas folhas de papel e um tinteiro com uma bonita pena branca. E no outro canto perto da janela estava um espelho alto e estreito, à frente do qual Mianon penteava os seus longos cabelos dourados.

Era um quarto bonito, mas Galaduinne sentiu-se como se estivesse presa e a sufocar. Era aquele castelo tão fechado, tão escuro, tão triste apesar de toda a sua beleza, que a fazia sentir-se assim. O Palácio do Ouro e do Verde também era um edifício fechado, mas lá o ar corria mais livremente e respirava-se felicidade e alegria ou, pelo menos, assim costumava ser. E Nielirian, a maior comunidade construída pelos Elfos e pelas Fadas, era tão bela, tão próxima da Natureza que era impossível ficar-lhe indiferente.

- Sim, é um pouco triste - disse Mianon, que estivera a olhá-la com os seus olhos azuis. - Aquilad, Omnirion e, principalmente, Nielirian são bem mais ao gosto dos Elfos e das Fadas, em contacto directo com a Natureza e cheias de luz. Mas Névila não foi construída por nós. Quem a construiu foi Valindra que gostava da noite e das pedras, do calor e, em parte, da escuridão dos castelos de que, mais tarde, os Homens tanto gostaram. E no entanto, a beleza de Névila não são as suas paredes, mas a floresta que a protege e o coração de ambas. Mianon percorreu o quarto, com passos silenciosos, até ao toucador. Abriu uma caixa forrada a veludo, tirou qualquer coisa de lá de dentro e fez sinal a Galaduinne para que se aproximasse.

Nas mãos de Mianon estava um delicado colar de ouro branco com três discretas estrelas de diamantes centradas e uma lua em quarto crescente, de topázio azul-claro, que pendia da estrela central por um finíssimo fio.

- Este é o Colar da Lua - disse Mianon -, feito há muito tempo para Valindra por alguém, de quem nós desconhecemos a identidade, em sinal de agradecimento, e que representa o símbolo dela. - Pousou o colar em cima do toucador e esticou a sua mão para que Galaduinne pudesse ver um anel, igualmente de ouro branco, onde brilhava uma bonita turmalina azul. - O Anel da Noite Pertenceu a Valindra desde que ela chegou a este Mundo e até que desapareceu dele.

Fez sinal a Galaduinne para que se sentasse no banquinho rectangular do toucador e ela própria se sentou na borda da cama.

- O Colar da Lua e o Anel da Noite são para a Senhora da Noite e das Brumas o mesmo que a coroa e o Ceptro de Aerzis são para a Rainha de Caladmiron.

Mianon fez uma pausa e Galaduinne permaneceu silenciosa. Não percebia muito bem a atitude de Mianon. Por vezes parecia estar simplesmente a recebê-la como uma visita bem-vinda, mas noutras alturas era como se a estivesse a testar. E então, Mianon sorriu jovialmente.

- Mas não é nada disto que te traz aqui. Principalment agora. É algo maior e mais profundo do que cortesia ou respeito -fez novamente uma pausa. - Fico contente por ver que recebeste o nosso aviso e fugiste a tempo.

Foi a vez de Galaduinne sorrir e olhou Mianon directamente nos seus olhos azul-claros. Por momentos pareceu-lhe que era uma velha quem olhava para ela. Esquecera-se que Mianon era muito mais velha do que ela e que, subtilmente, jogavam as duas um complexo jogo de avaliação.

- Conhecimento - disse a voz suave de Mianon. - Foi isso que vieste procurar.

- Compreender a noite - respondeu Galaduinne. Mianon levantou- se e foi até à janela aberta. Galaduinne continuou sentada no banco do toucador.

- Consegues olhar para a noite e não encontrar nela menos beleza do que a que encontras no dia? - perguntou Mianon, enquanto olhava para o exterior.

- Sim - disse Galaduinne após alguns segundos.

- Sabes as vidas que ela protege?

- As mesmas que o dia.

- Compreendes ou conheces os seus mistérios?

- Não.

- Uma sacerdotisa diria sim.

- É essa a tua sugestão? - perguntou Galaduinne.

Mianon virou-se e caminhou novamente até à cama.

- Ora, Galaduinne, não me digas que ainda não tinhas pensado nisto.

- Já, já tinha. Mas é difícil aceitar essa ideia. Tornar-me uma sacerdotisa tem outras implicações. Aceitar a tua proposta é aceitar o domínio de Morgriff sobre Omnirion durante aquilo que eu sei ser pouco tempo, mas que pode ser o suficiente para ele destruir tudo.

- Omnirion não é Caladmiron. - Disse Mianon, e a sua voz era mais severa do que seria normal. - Omnirion é uma cidade. As cidades caem e erguem-se novamente. Hoje de pé, amanhã em ruínas pelo chão, no mês seguinte uma vez mais de pé. É um ciclo como qualquer outro.

- O que dirias se fosse Névila? - perguntou Galaduinne num sussurro.

- Névila é diferente.

- Não, não é - disse Galaduinne, suavemente. - E tu sabe-lo. Brumívium talvez seja, mas Névila não. Névila não passa, também, de um aglomerado de pedras. No entanto, tu tens razão. Isto é mais importante.

- Muito bem - disse Mianon a sorrir. Parecia contente.

- Reparaste, com certeza, que algumas sacerdotisas se vestem de azul-claro e outras de azul-escuro. As de azul-claro são as Conhecedoras do Crepúsculo, que compreendem o dia e conhecem a noite. Por isso as mangas interiores dos seus vestidos são azul-escuras, exactamente a simbolizar esse pequeno conhecimento da noite. Uma sacerdotisa pode estar um ano, dois anos, cinco anos, uma década, um centenário nesta fase. Tudo depende da rapidez com que aprender. No final desta fase ela torna-se uma Conhecedora da Noite e passa a usar o vestido azul-escuro. Só elas podem assistir às cerimónias.

Nesta altura deve optar-se por algo parecido com uma especialização. Algumas aprendem mais sobre as plantas, os povos, os animais, a história ou os rituais, outras tornam-se mestras na arte da luta e outras aprofundam os mistérios. São estas que se sentam à minha mesa.

Galaduinne reprimiu um sorriso infeliz. Parecia-lhe desprestigiante que entre as sacerdotisas mais sábias fosse feita uma distinção tão acentuada. Pelo menos uma sacerdotisa de cada grupo das Conhecedoras da Noite devia poder sentar-se à mesa da Senhora.

- Parece-me óbvio que não passo de uma Conhecedora do Crepúsculo - disse Galaduinne e Mianon sorriu. - Mas se vou ficar aqui durante um tempo... indefinido, quero saber o que acontecerá ao meu grupo.

- A tua filha, Liduvine e mesmo o rapaz humano são, evidentemente, bem-vindos. Quanto às outras penso que o melhor será regressarem a Nielirian. A floresta dá-te toda a protecção de que precisas e se, por acaso, precisares da escolta de um grupo de guerreiras, existem suficientes guerreiras aqui, em Névila, para o fazerem.

Galaduinne assentiu com a cabeça. Mianon levantou-se, abriu a porta e olhou na direcção de Galaduinne.

- Segue-me - disse ela num tom suave e alegre que fez Galaduinne lembrar-se de Ailura.

Percorreram o corredor silencioso em sentido inverso e, algum tempo antes de chegarem à zona das janelas, viraram à direita para um novo corredor, também ele com portas do lado direito e janelas do esquerdo. Este terminava num outro corredor em tudo semelhante aos anteriores. Era claro que aquele andar se destinava aos quartos das sacerdotisas.

Mianon abriu a sétima porta, a contar do sítio onde tinham virado para o terceiro corredor, e sorriu a Galaduinne como que a encorajá-la a entrar.

- Boa noite - disse por fim, e regressou ao seu quarto. Galaduinne entrou. Estava escuro e frio dentro do quarto, mas ela pôde ver a sua mochila pousada em cima do banco redondo do toucador. Aproximou-se, abriu-a e tirou de lá de dentro uma camisa de noite. Enquanto se vestia, observou o quarto. Não era muito grande. Apenas uma cama de solteiro encostada à parede oposta à da porta; uma janela alta sem cortinas ao lado da cama e com uma arca por baixo, a qual tinha umas almofadas bordadas em cima, servindo também de banco, um toucador encostado à parede da porta e uma lareira apagada na parede do lado direito. Toda a mobília era de anuliss.

Deitou-se, rapidamente, para não apanhar muito frio, e fechou os olhos. Ia começar uma nova etapa da sua vida, tinha de descansar. Lá fora a chuva fustigava as janelas.

Um homem de longos cabelos pretos entrançados como serpentes. O seu pai na sua frente. O brilho de um punhal no meio da escuridão. O seu pai a cair morto e ela não o podia ajudar, não podia fazer nada. O homem dos cabelos como serpentes a rir, o divertimento e o deleite gravados na cara. Fechou os olhos.

Podia ouvir o ranger de uma porta a fechar muito longe. Abriu os olhos. A porta para a luz, para a liberdade fechava-se. Desatou a correr. Só mais um pouco, estava quase lá. Ia chegar a tempo. E então o homem dos cabelos como serpentes apareceu novamente. Sorria com um desdém inacreditável e empurrou a porta que se fechou com um estrondo.

Estava encurralada, não podia sair. Tinha sido apanhada como um animal numa armadilha. Enroscou-se no chão, calada e extremamente quieta até que o fogo irrompeu por todos os cantos da sua pequena prisão. E ela dançava no meio dele. Dançava sempre, sem se queimar.

Iruvienne acordou, encharcada em suor e simultaneamente confusa e assustada. Porque tinha de ter a Visão? E principalmente porque é que a tinha tão nova e tão estupidamente confusa? Tinha apenas treze anos, feitos muito recentemente, e já tinha aqueles sonhos! Ao menos podiam ser um pouco mais explícitos. Ela sabia que a maioria dos sonhos da mãe, e já antes os da avó, eram quase tão reais como se fossem acontecimentos de um dia normal, que decorriam enquanto se estava acordado. No entanto, os seus eram uma confusão de imagens impossíveis de ocorrerem por aquela ordem e onde não era apenas o que se via que contava, mas também o que se sentia. Geralmente passavam-se no escuro; mas ela pressentia o tipo de sítio onde se passavam: aberto ou fechado, pequeno ou grande, escuro ou luminoso.

Virou-se de lado e fixou os olhos na parede de pedra. Tinha de arranjar outra coisa qualquer na qual se pudesse concentrar. Respirou lentamente: para dentro, para fora; para dentro, para fora.

A chuva caía com força e o vento soprava com impetuosidade, atirando-a repetidamente contra as janelas. Às vezes, o ataque era tão forte que a janela parecia estar prestes a quebrar. As folhas das árvores batiam umas contra as outras produzindo um burburinho intenso e contínuo. O vento uivava.

Era uma música natural, sem maestro, que tocava cada vez mais depressa, mais intensamente.

Iruvienne sorriu. Tal como a sua avó, ela gostava do Inverno e das tempestades. E agora estava mais calma e descontraída. O seu nariz estava gelado, mas ela não se importava.

Enfiou a cabeça debaixo dos cobertores e aconchegou-os mais ao corpo. Fechou os olhos, pronta para dormir.

O homem dos cabelos como serpentes...

Abriu novamente os olhos. Não adiantava, não conseguia tirar a imagem dele da cabeça. Precisava de algo mais, para além da chuva, para se acalmar definitivamente. Levantou-se, calçou umas pantufas quentes, enrolou-se na sua capa grossa de viagem e saiu do quarto.

O corredor estava totalmente escuro e silencioso. Era impossível ver fosse o que fosse, por isso, caminhou com a mão contra a parede, a contar as portas que ia passando. A sua expressão era séria, como habitualmente, mas também um pouco aborrecida. Quem era aquele homem que lhe atormentava os sonhos? Não podia ser Morgriff. Ela sentia- o. E no entanto, os dois estavam ligados. Tinha o mesmo sonho desde que os avós tinham morrido, umas vezes mais longo, outras mais curto, mas a ideia era sempre a mesma: aquele homem matara o seu pai e, um dia, ela seria sua prisioneira. Mas qual era o papel do fogo naquela trama, isso ela não sabia.

Terceira porta, o quarto de Aran. Abriu a porta e entrou. Estava mais claro dentro do quarto (embora não muito) e ela conseguiu ver melhor. A lareira na parede esquerda, perto da porta, estava apagada, a cama tinha sido encostada à parede direita, de forma a criar um espaço livre, relativamente grande, no meio do quarto. O toucador, encostado à parede da porta, fora transformado numa secretária repleta de livros, mapas, um tinteiro com uma pena e algumas folhas brancas. Encostadas à arca por baixo da janela estavam as botas altas de Aran que já tinham sido limpas e secas da cavalgada. Aran dormia virado para a parede.

Iruvienne sorriu. Ele já tinha arranjado o seu quarto de forma a ser-lhe o mais cómodo possível. Nunca perdia tempo. E como conseguira ele ir à biblioteca do palácio buscar todos aqueles livros e mapas? Ela mal tivera tempo para empacotar todas as coisas que queria e, mesmo assim, algumas ainda tinham ficado para trás!

Aproximou-se da cama e sentou-se na borda. Ele dormia profundamente, ou pelo menos assim parecia. Os cabelos pretos e ondulados cortados um pouco abaixo do queixo cobriam-lhe parcialmente a cara onde uma ligeira penugem começava a aparecer: a barba. Iruvienne rira quando ele ficara todo entusiasmado por começar a ter barba, porque os elfos e as fadas não têm barba. Mas Aran gostara e continuava a deixá-la crescer, recusando-se a cortá-la. Havia ainda outra coisa no aspecto dele que a fazia rir: as pequenas ou, por vezes, grandes borbulhas com cabecinhas brancas que lhe apareciam nas costas e, principalmente, na cara.

- Aran - murmurou ela.

Ele virou a cara, imediatamente, e abriu os seus olhos cinzento-azulados para ela.

- Iruvienne! O que estás a fazer aqui? - perguntou com voz rouca. - Sonhaste outra vez com o homem de cabelos como serpentes?

Iruvienne assentiu, suavemente, com a cabeça.

- Queres ir dormir lá para fora? - perguntou ele. Aquele era um velho hábito deles. Quando tinham dificuldade em dormir, ou simplesmente lhes apetecia, iam dormir para a floresta. E tanto dormiam no chão como num ramo de uma velha árvore.

- Está a chover - disse Iruvienne.

- Vamos ter que nos habituar.

- Mm... Mas não hoje. Está frio. Chega-te para lá.

- E, tirando a capa e as pantufas, enfiou-se dentro da cama com Aran.

Ficaram algum tempo em silêncio. Iruvienne encostou a cabeça ao peito dele e sentiu-o a mover-se lentamente com os movimentos da respiração. Ele estava quente e ela agarrou-se mais a ele, como se tivesse medo de o perder.

- Então, pequenina? - perguntou ele e ela riu.

- Porque me chamas isso?

- Porque és a minha pequenina - a sua voz era fina e estridente.

- Pára com isso.

- Com o quê?

- Com essas mudanças repentinas do tom de voz.

- Não posso. É inevitável à minha espécie, assim como a barba e as borbulhas.

- A barba não é propriamente inevitável. Podias cortá-la.

- Podia, mas não quero - estiveram algum tempo calados.

- Iruvienne... Será que aqui está sempre a chover?

- Nem sempre, acho eu, mas quase. Dizem que é raro o Sol aparecer aqui.

- Vamos ter de explorar a floresta, com chuva ou sem ela, para encontrarmos um bom sítio para os treinos.

- Sim. Mas também vamos ter de continuar com as lições e eu quero aprender a compreender a noite.

- Está bem. Enquanto tu tentas compreender a noite eu aprendo mais sobre as plantas curativas.

Iruvienne fechou os olhos e preparou-se para dormir.

- Achas que a tua irmã, um dia, vem cá ter?

Iruvienne reprimiu uma risada.

- É provável. Um dia... Mas o que é que isso te interessa?

- Tu sabes!

- Pois sei. Boa noite.

- Boa noite, pequenina.

Iruvienne fechou uma vez mais os olhos. Devia ser muito tarde e os últimos dias tinham sido muito longos; precisava de dormir... E se o sonho voltasse? Tanto pior. Tinha de se habituar. Por que razão não dissera nada a ninguém? No entanto, a mãe também sabia. Vira-o nos olhos dela, no dia da fuga, no túnel da passagem secreta. Mas isso não era suficiente para que ficasse mais calma. Não era justo. Tinha apenas treze anos. Não devia ter que ver a morte do pai todas as noites, antes e depois dela acontecer.

- Aran... - a sua voz estava estranhamente descontrolada.

- O que foi, pequenina? - a sua voz era aparentemente calma, mas havia nela um ligeiro tom de preocupação mal disfarçado.

- Não consigo mais vê-lo a morrer.

- A culpa não foi tua. Ninguém o podia ter evitado.

- Isso não é verdade. Eu podia ter dito algo a alguém.

- A tua mãe também.

e ele tinha vindo connosco e ainda estaria vivo.

- Isso nem parece teu! És uma elfo ou não? Não és tu que estás sempre a dizer que o Mundo está repleto de espíritos?

- Iruvienne não respondeu. - O teu pai pode estar aqui connosco agora mesmo.

- Não é assim que funciona.

- Talvez não - admitiu Aran. - Mas além disso...

- Sim, eu sei. Nada acontece por acaso. Mas às vezes é difícil aceitá-lo.

- Ora, Iruvienne. O que te aconteceu? Pareces uma humana a falar, e eu é que sou o humano aqui.

- Devíamos ter sido irmãos.

- Talvez um dia sejamos. Agora dorme. Estás a precisar - e beijou-a nos cabelos.

Iruvienne adormeceu passado pouco tempo.

Algo brilhava no meio da escuridão. Uma grande teia de aranha. A aranha estava lá, muito quieta, maior do que seria normal, uma forma estranha e exótica, com o corpo peludo amarelo e as patas às riscas amarelas e pretas.

Iruvienne aproximou-se com os olhos fixos na aranha. Era tão raro ver aranhas! Como seria tocar-lhe?

Então, quando estava mesmo a tocar-lhe, ouviu o riso trocista do homem dos cabelos como serpentes. Olhou para cima e viu-o a soltar a teia para cima dela. Iruvienne ficou presa debaixo da teia ligeiramente viscosa. A aranha deslizou pelo seu braço até à escuridão e Iruvienne gritou de medo e desespero.

Iruvienne despertou e descobriu que não tinha de facto gritado. Ainda tinha a cabeça encostada ao peito de Aran e ele deixara o braço a envolvê-la. Permaneceu muito quieta, com os olhos abertos a perscrutarem a escuridão. Era como se tivesse medo que a aranha ou o homem dos cabelos como serpentes estivessem ali, à espera para a apanharem. Mas isso era uma estupidez e ela sabia-o. Eles não podiam estar ali. O mal não conseguia entrar em Brumívium ou Nielirian. Contudo, não era inteiramente verdade. A aranha podia estar ali. Ela fazia parte da Natureza, podia estar ali escondida num buraco de uma qualquer pedra ou por cima da sua cabeça. Mas também podia, e muito provavelmente estaria, muito mais assustada do que ela. Era inofensiva, tão inofensiva quanto estranha. Tinha de ser.

Deslizou, suavemente, para fora da cama, de forma a não acordar Aran. Calçou, novamente, as pantufas e cobriu-se com a capa. Foi até à janela e sentou-se no parapeito com as costas encostadas à pedra fria. Impediu-se de olhar para cima a verificar se havia ali alguma teia com a respectiva aranha. Em vez disso olhou para o exterior.

O vento parara de soprar e a chuva diminuíra. As árvores estavam silenciosas e quietas. Apenas se ouvia um ocasional e suave ping, ping, plonk, ping" resultante da fraca chuva que teimava ainda em cair nas janelas e nas folhas. A tempestade acabara e, embora ainda estivesse escuro, já havia uma ligeira claridade.

Encostou a sua cara ao vidro gelado. Estava prestes a amanhecer. Talvez o novo dia lhe reservasse alguma surpresa, alguma descoberta, uma passagem secreta talvez, ou o lugar ideal para os treinos com Aran. Ninguém sabe o que o novo dia lhe traz dissera-lhe o pai quando ela era muito pequena.

- Bom dia, pai - sussurrou.

Afinal talvez sempre fosse acabar o pouco que restava da noite lá fora, na protecção de algum ramo de uma alta árvore.

Mas estava tão cansada! Os seus olhos fecharam-se sem que ela o pudesse impedir e adormeceu. A Visão não a procurou no resto dessa noite e durante as seguintes. E por alguns meses, mas apenas alguns, não lhe trouxe mais sonhos com homens de cabelos como serpentes, teias ou aranhas.

Quando Aran acordou, pouco tempo depois, encontrou-a profundamente adormecida no parapeito da janela, com a cabeça encostada ao vidro e completamente gelada. Gentilmente levou-a até à sua cama, tirou-lhe as pantufas e cobriu-a com o cobertor. Iruvienne só acordou muito mais tarde.

 

                   GALADUINNE E LIDUVINE

Quando Galaduinne acordou na manhã seguinte descobriu um vestido azul-claro-acinzentado, com mangas à boca-de-sino presas a meio do braço e uma outra manga, esta azul-escura e estreita, por baixo, e uma capa azul-escura, com capuz, que se prendia de lado com um alfinete de prata em forma de lua em quarto crescente, pousados aos pés da cama. Vestiu o vestido, calçou uns sapatos, sem cordões, de camurça tingida da mesma cor do vestido, que estavam ao lado das suas botas de viagem e saiu para o refeitório.

Não estava tão atrasada quanto pensara. As sacerdotisas - estavam todas sentadas nos seus lugares: as mais novas na mesa virada para a de Mianon e no início das laterais, as mais velhas na ponta das laterais, Mianon sentada na sua cadeira e rodeada pelas suas sacerdotisas, e Iruvienne, Aran, Liduvine e o resto do seu grupo no mesmo sítio da noite anterior. Iruvienne ainda cabeceava ocasionalmente para o ombro de Aran e Liduvine observava-os com ar juvenil. Galaduinne sentou-se entre eles e as sacerdotisas mais novas, que a olharam no seu traje de Conhecedora do Crepúsculo, discretamente, mas admiradas.

- O que se passa, Iruvienne? - perguntou, enquanto se

servia de pão e doce.

- Dormi pouco - disse Iruvienne, enquanto Aran lhe punha pão e fruta no prato.

Galaduinne olhou para ela. Era óbvio que lhe escondia qualquer coisa, e já há algum tempo, mas o quê, isso ela não sabia. Iruvienne era ainda mais calada e reservada do que Athilya, excepto, era claro, com Aran. Contudo, Galaduinne acabava sempre por descobrir o que se passava. Conhecia a filha muito bem e sabia quando e como descobrir uma coisa. Além disso, eram mais parecidas do que elas próprias julgavam.

- Iruvienne tem a Visão através dos sonhos - disse, inesperadamente, Aran.

Iruvienne olhou para ele com uma mistura de surpresa fúria, mas ele enfrentou-lhe o olhar. Galaduinne sorriu.

- Durante quanto tempo pensavas escondê-lo de min?

- perguntou suave e ligeiramente divertida.

- Eu não o estava a esconder - respondeu Iruvienne. só...

- Eu compreendo. Fiz exactamente o mesmo quando me aconteceu. Se precisares de alguma coisa, diz.

Iruvienne não respondeu, limitou-se a comer um pouco de pão.

- Aran fez bem em dizê-lo – acrescentou ao fim de algum tempo.

- Eu sei - respondeu Iruvienne e sorriu para o amigo.

Para Galaduinne a frase simples de Aran foi como a peça que faltava num puzzle. O olhar de Iruvienne na passagem secreta, a impressão que tivera no seu quarto em Nielirian, tudo se explicou. A filha, tal como ela, soubera através dos sonhos que Ogueimion ia morrer. E, no entanto, ela era tão nova para ter a Visão. Era demasiado nova.

Os dois primeiros anos passaram depressa e, durante esse tempo, Galaduinne aprendeu muito. O seu grupo partiu, tal como Mianon sugerira, e ela passou a levantar-se um pouco mais tarde do que habitualmente, pois ficava grande parte da noite acordada a estudá-la. Descia até ao refeitório na companhia de Namali, uma das Conhecedoras do Crepúsculo mais velhas, que dormia no quarto ao lado do seu, e se tornou uma boa amiga. Liduvine, Iruvienne e Aran levantavam-se muito mais cedo, mal havia uma claridade azulada no céu, para os seus treinos e lições, por isso Galaduinne só estava com eles ao jantar e algum tempo depois dele.

Durante o dia, Névila funcionava um pouco como uma escola humana. As Conhecedoras do Crepúsculo eram divididas em três grandes grupos e a cada um desses grupos era dado uma espécie de horário que incluía várias actividades, desde a limpeza do castelo (algo a que Galaduinne não estava muito habituada e que lhe custou um pouco no início), passando por uma ajuda à sacerdotisa responsável pela cozinha (que era de todas as actividades a mais divertida e aquela em que se aprendia mais), até à lavagem da roupa (Galaduinne encontrou várias peças de roupa de Iruvienne, Aran e, por vezes, Liduvine cobertas, entre outras coisas, com lama). Tudo isto acontecia durante a manhã. À tarde, os grupos mantinham-se para as lições. Galaduinne desenvolveu os seus conhecimentos sobre plantas curativas, mas Namali tinha mais jeito para isso do que ela ou qualquer outra das sacerdotisas; estudou e compreendeu as rochas, os minerais e os animais e, principalmente, aprendeu a falar fluentemente Lissanin, embora, evidentemente, quase nunca usasse essa língua. As outras sacerdotisas tinham ainda lições sobre os povos e história, mas ela foi dispensada dessas aulas, pois elas tinham sido parte intensiva da sua educação enquanto criança. Ao final da tarde ou, quando as lições se prolongavam demasiado, logo após o jantar, elas saíam para ajudarem as Conhecedoras da Noite, que sabiam mais sobre plantas, a cuidarem das árvores de Brumívium, algo para que Galaduinne tinha muito jeito e perícia, devido aos longos anos em que o fizera, por amor e prazer, com as árvores de Caladmiron.

Contudo, era à noite que a verdadeira aprendizagem tinha lugar. Os grupos desapareciam e todas as sacerdotisas seguiam com uma ou duas das sacerdotisas mais velhas, envoltas nas suas capas que as protegiam eficazmente do frio das noites de Brumívium. Era frequente estar a chover, mas ninguém se importava. Às vezes, percorriam a floresta e observavam os animais nocturnos ou o comportamento das plantas. Aprendiam pequenos truques que em tempos tinham deixado os Humanos maravilhados: invocavam as brumas, provocavam um dilúvio a partir de uma ou outra gota ocasional, incentivavam uma semente a desenvolver-se mais rapidamente. Mas estes truques eram possíveis tanto de dia como de noite, desde que se soubesse falar correctamente Lissanin, e não faziam propriamente parte do processo de compreensão. Este era um processo subtil, quase invisível, que Galaduinne rapidamente compreendeu não ser muito diferente do da compreensão do dia. Era preciso deixar a noite entrar dentro da própria pessoa, tinha-se que a sentir. De certo modo, era ouvi-la. E, evidentemente, saber e aceitar que ela precede e sucede o dia, assim como ele sucede e precede a noite. Eram ambos um ciclo indissociável, uma das mais antigas regras da Natureza. Algo que todas sabiam de forma mais ou menos intuitiva. No fundo, tomavam apenas plena consciência desse conhecimento. E era exactamente isto que elas geralmente faziam. Subiam até ao topo das grandes montanhas de Brumívium onde o Enyel nascia e ficavam todas juntas, perto da nascente, a ouvir os sons da noite ou as sacerdotisas mais velhas a falar. Por vezes, embora raramente, elas repetiam o que uma delas já dissera. Nessas alturas Galaduinne treinava-se a si própria. Respirava lentamente, esvaziava a sua mente e concentrava-se nos sons que não eram normalmente ouvidos e que estavam vedados aos Humanos.

Era isto que as Conhecedoras do Crepúsculo aprendiam, mas Galaduinne suspeitava que havia algo mais. Quando elas subiam até à nascente do Enyel, todas juntas e sem a companhia de uma das Conhecedoras da Noite, nos solstícios e equinócios, por vezes, Galaduinne tinha um vislumbre de uns pontos de luz brilhante e prateada a escaparem-se rapidamente por entre a folhagem. Algo lhe dizia que havia uma parte da compreensão da noite que estava confinada às sacerdotisas mais velhas.

No terceiro ano, pouco depois do solstício de Inverno ter passado e Namali se tornar uma Conhecedora da Noite, ela apareceu depois do jantar, como de costume, no quarto de Galaduinne. Não ia haver qualquer saída nessa noite. Mianon tinha de falar com as sacerdotisas dos mistérios e Namali que decidira, sem qualquer tipo de surpresa, aprender mais sobre as plantas, fora dispensada.

- Vais fazer alguma coisa? - perguntou jovialmente. Galaduinne, que estava sentada na arca, parou de ler e olhou-a curiosa e divertidamente.

- Não - respondeu. - Liduvine, Iruvienne e Aran saíram de manhã cedo para passarem dois dias na floresta. Só devem regressar amanhã à noite.

- Então vem comigo. Quero mostrar-te uma coisa.

- Onde?

- Perto da nascente do Enyel.

- Mas já lá estivemos tantas vezes!...

- Mm... Isto é diferente - disse Namali e deu uma risadinha. - É o meu segredo, o meu pequeno esconderijo desde que aqui cheguei.

Galaduinne riu e fechou o livro. Namali olhou-a com uma expressão inquisidora nos seus olhos azul- acinzentados.

- Desconfio que o teu esconderijo deixou de ser secreto desde que eu aqui cheguei - respondeu Galaduinne. - Iruvien e Aran têm uma tendência e um jeito especial para descobrir o que é secreto.

Namali sorriu. Galaduinne calçou as suas botas altas de viagem e cobriu-se com a capa.

- Vamos então? - perguntou, e Namali apressou-se a cobrir os seus cabelos cor de trigo e a segui-la.

Estava muito frio lá fora e Galaduinne pensou que

Iruvienne, Aran e Liduvine tinham escolhido uma má altura para passarem dias ao relento. Mas essa era provavelmente a intenção deles. Quando o Inverno do primeiro ano chegou, Galaduinne percebeu rapidamente por que razão as lareiras não estavam acesas quando ela chegara a Névila. Com o tempo habituara- se ao frio da maioria do ano, mas no Inverno, preferia muito mais estar dentro do castelo, onde todas as lareiras e fogos estavam acesos, do que no exterior.

Caminharam as duas pela montanha acima até à nascente. Nesse dia nevara no topo da montanha e o Enyel estava rodeado de um manto fofo de neve branca. O Enyel nascia entre um conjunto de pedras que havia quase no topo. No início era apenas um modesto fiozinho de água, mas rapidamente engrossava até se tornar no grande rio que percorria as Terras da Luz. No entanto, um pouco mais abaixo, depois da concentração de pedregulhos onde elas às vezes se sentavam durante as lições nocturnas, ele dividia-se em dois e o novo braço corria, durante alguns metros, perpendicularmente ao braço principal até que entrava novamente dentro da montanha.

Namali seguiu esse ramo do Enyel até ele desaparecer e depois contornou um pouco a montanha. Parou à entrada daquilo que parecia ser uma toca de um qualquer bicho, olhou para Galaduinne e, sem uma palavra, entrou. Galaduinne seguiu-a através de umas escadinhas naturais, não muito regulares, até uma gruta húmida e coberta de fungos onde havia uma lagoa para a qual escorria um fio de água: o desvio do Enyel. Namali acendeu algumas velas que estavam espalhadas pelo chão da gruta e nalgumas saliências da rocha, tirou o capuz e ficou a olhar para ela.

A lagoa ocupava quase toda a gruta, deixando apenas uma área maior ao fundo das escadas e dois pequenos carreiros dos seus lados, embora o da esquerda fosse um pouco mais largo, o suficiente para que elas se pudessem sentar confortavelmente.

- É lindo - disse Galaduinne. - É pena estar frio.

- Oh! Aqui está sempre frio.

Galaduinne riu.

A água da lagoa era extraordinariamente límpida e criava uma sensação estranha. Parecia que havia duas águas na lagoa. Uma, mais profunda, de um tom entre o castanho e o verde, devido às rochas cobertas de limo que revestiam o chão da lagoa; e outra, mais à superfície, perfeitamente transparente.

Galaduinne inclinou-se, um pouco intuitivamente, para a água e percorreu-a com os dedos, criando pequenos círculos e ondulações. A água estava gelada, mas não deixava de transmitir uma sensação de frescura. Galadùinne tirou as botas com as mãos molhadas e levantou-se.

- O que estás a fazer? - perguntou Namali, admirada. Galaduinne não respondeu e tirou a capa. Entrou calmamente dentro de água. A lagoa era funda e no meio a água chegava-lhe ao queixo.

- Galaduinne, sai daí - disse Namali, preocupada. – Vais ficar gelada.

Mas Galaduinne não saiu. Em vez disso, deitou-se na água e soltou o ar que tinha nos pulmões até que ficou submersa.

- Galaduinne... - disse a voz de Namali, um pouco mais longe do que seria normal.

Galaduinne agitou as mãos debaixo de água, como se estivesse a acariciá-la.

- Lha...

- Muito bem, Galaduinne - respondeu a Água. - Já compreendes a noite e sabes também outras coisas: línguas sagradas, esquecidas até por muitos dos Povos Sábios.

- É então tempo de regressar a Nielirian e lutar por Omnirion?

- Não consegues esquecê-la, pois não?

Não, não conseguia. Omnirion era mais do que um aglomerado de pedras, era a sua casa, o sítio onde todos os acontecimentos importantes da sua vida tinham ocorrido. E as pedras também sentiam, menos do que as árvores, mas sentiam.

- Ainda há mistérios da noite que tu não conheces - disse a Água.

- Os pontos brilhantes...

- E não só. Há mais, muito mais. Mas tu já percebeste a maneira correcta de atingir esse conhecimento.

- O conhecimento é infinito.

- Exactamente e nada acontece por acaso. Não me voltes a perguntar quando podes regressar.

Galaduinne sentiu a Água a levá-la para a superfície.

- Não! Espera.

- O que foi, Galaduinne?

- Tu jogas um jogo comigo. Qual é o meu lugar no tabuleiro do teu jogo?

As águas da lagoa agitaram-se quando a Água riu com

gosto.

- Eu não jogo nenhum jogo, nem tu és um peão no meu tabuleiro. Eu apenas te preparo para aquilo que terás de enfrentar e, sem dúvida, enfrentarás.

- Morgriff.

- Também.

E, rapidamente, Galaduinne apareceu à tona. A conversa tinha acabado e ela estava, naturalmente, encharcada e gelada. Namali estava de pé na margem com a capa de Galaduinne nas mãos. Galaduinne apressou-se a sair da lagoa, calçou as botas, Namali envolveu-a com a capa e as duas regressaram ao castelo o mais rapidamente possível.

Quando chegaram ao quarto de Galaduinne, Namali pôs mais lenha na lareira, enquanto Galaduinne tirava as roupas encharcadas, vestia uma camisa de noite quente, calçava as pantufas e secava o longo cabelo com uma toalha seca. Namali levou as almofadas da arca para perto do fogo e sentaram-se.

- Porque fizeste aquilo? - perguntou Namali.

- Queria voltar - respondeu Galaduinne e havia alguma tristeza na sua voz.

- Eu às vezes também tenho saudades.

- Porque vieste para aqui?

- Curiosidade - disse Namali, encolhendo os ombros.

- Bem, está a ficar tarde. É melhor eu ir.

- Vai. Vemo-nos amanhã e desculpa se te assustei.

Namali riu. Estava sempre a rir ou a sorrir. Achava graça a tudo. Tudo a divertia. E quando estava prestes a pregar uma partida (sempre inofensiva) a alguém, sorria com uma expressão de divertimento antecipado: Por vezes, fazia com que Galaduine se lembrasse de Edínmtor, o seu pai.

Arrumou as almofadas, pendurou a toalha a secar em frente à lareira, onde já estavam as botas, a capa e o vestido, e deitou-se.

Galaduinne estava sentada num dos grandes pedregulhos. Devia estar quase a amanhecer porque estava tudo envolto numa luminosidade de um azul-claro electrizante. Então, ouviu-se o piar de um pássaro que ela reconheceria em qualquer lado. Virou a cabeça em todas as direcções. Era impossível e contudo... Ogueimion surgiu à sua frente, com uma expressão adorável no rosto.

- Como é que isto é possível? - perguntou Galaduinne. Ele pousou um dedo nos lábios dela.

- Chiu... Não estragues o momento.

- Mas como? Estou a dormir.

- Precisamente. Existem muitos tipos de Visões. Não sabias, aprendiz de sábio?

- Quase me esquecia.

Ogueimion pegou-lhe na mão e desceu-a para a relva verde e brilhante que, estranhamente, não estava oculta por brumas. Galaduinne sentou-se e ele ajoelhou-se à sua frente.

- Esquecias a forma como nos conhecemos? Esquecias assim as lições do sábio, nas margens do Enyel, à sua jovem aprendiz? As lições que o deixaram de ser? - perguntou ele.

- Oh, elas continuaram a ser lições, só que o tema era diferente. Muito diferente - disse Galaduinne. - E eu não me esqueci. Eu disse "quase" - fez uma pausa. - O que vieste aqui fazer?

- Dar uma lição à minha aprendiz, nas margens do Enyel.

- Ogueimion envolveu-a nos seus braços e Galaduinne fechou os olhos. - Eu nunca te abandono, nem nunca o farei, aprendiz de sábio.

As suas cabeças aproximaram-se. Ela podia sentir o calor do corpo dele.

- Galaduinne... - esta não era a voz de Ogueimion. As brumas começaram a erguer-se e a envolvê-los.

Os seus lábios tocaram-se, suave e delicadamente.

- Mãe...

As brumas ocultaram tudo e Ogueimion desapareceu.

- Mamã...

- Mamã.

Galaduinne despertou, simultaneamente embriagada na suavidade do sonho e zangada por a terem acordado. Mas quando viu Iruvienne sentada na sua cama com as botas de cano alto enlameadas, a capa grossa de viagem ainda posta e o cabelo molhado assustou-se.

- Iruvienne, o que estás aqui a fazer? Não era suposto regressarem só amanhã à noite?

- Liduvine está estranha... Acho que ela está a morrer. Galaduinne levantou-se, rapidamente, calçou as pantufas e vestiu o roupão.

- Vamos - disse a Iruvienne, enquanto saíam em direcção ao quarto de Liduvine. - Tiveste algum sonho?

Iruvienne manteve-se séria, os olhos na escuridão e o corpo muito direito. Tinha dezasseis anos e estava a ficar uma mulher. Já era quase da altura de Galaduinne. Tinha os olhos do pai, tal como Athilya, os seus cabelos eram uma mistura dos do pai, da mãe e de Ailura, com quem era muito parecida.

- Eu estava a ver uma batalha que, tenho a certeza, se passou há muito tempo, pois Edínmtor, Ailura e Glordil estavam lá - disse por fim. - Vi Liduvine a lutar com a sua estranha arma muito ao longe. De repente, ficou tudo escuro e a única figura visível era ela a girar com a sua arma. Aproximei-me para a ver melhor e então reparei que já não era Liduvine, eras tu que estavas lá e tinhas a sua arma nas mãos. Uma troca. Uma pela outra. Mas o significado pode não ser aquele que eu encontrei.

Galaduinne não respondeu.

O quarto de Liduvine ficava numa zona mais escura do castelo, quase do outro lado da montanha, onde não havia janelas no corredor. Quando lá chegaram, Iruvienne seguiu para o seu quarto e Galaduinne entrou no de Liduvine.

Liduvine estava sentada de pernas cruzadas na cama, com um velho fato azul vestido e os longos cabelos pretos presos num rabo-de-cavalo alto. Tinha a sua elegante arma pousada nos joelhos e limpava as suas duas lâminas com cuidado e dedicação.

Ao ver Galaduinne sorriu. Parecia tão jovem como há mil anos atrás. Era uma guerreira, não uma sábia e a sua atitude era tão ou mais juvenil do que a de Iruvienne. Os seus olhos brilhavam, mas Galaduinne viu que ela estava muito cansada. Infelizmente, a sua filha não se enganara: Liduvine estava a morrer.

- Oh! Não te preocupes assim tanto - disse ela descontraidamente. - Em breve vou juntar-me a Ailura e...

- suspirou teatralmente - enfim, também ao insuportável do Edínmtor.

E riu como uma criança. Ambas sabiam que as suas querelas com Edínmtor há muito que tinham acabado.

Liduvine fechou os olhos e uma expressão de esforço e cansaço evidenciou- se no seu rosto. Galaduinne apressou-se a apoiá-la, mas Liduvine afastou-a com um gesto imperativo.

- Não devias fazer isso - disse Galaduinne. - Cansa-te

demasiado.

Liduvine abriu os olhos, com dificuldade.

- Sou mais velha do que tu. Não te esqueças disso - disse com voz zangada, mas depois continuou calmamente. - Além disso não tenciono despedir-me da vida com uma expressão sisuda. Não sou assim.

Galaduinne sentiu-se estranhamente diferente de si própria. Não conseguia encontrar palavras para lhe responder. Liduvine era para si mais do que uma das guerreiras que a protegia, fora sua professora quando era criança e tornara- se numa amiga. Fora difícil perder Ogueimion. Perder também Liduvine não ia ajudar a que se sentisse melhor e faria com que desejasse ainda mais regressar a Omnirion.

- Usei esta arma há muitos anos, na última grande batalha que o Povo da Luz travou - disse Liduvine, pousando a mão no punho da arma. - Foi uma boa batalha. Vencemos - acrescentou com um sorriso. - Lamento que Ailura não tenha conseguido vencer Morgriff. Eu pensava que ela era a pessoa certa. Estava enganada. Mas eu não conheço a profecia. Talvez sejas tu. Talvez seja Iruvienne ou, quem sabe, Athilya. Também pode ser que tudo não passe de um erro, cometido há muito por Valindra e a pessoa da profecia nunca chegue - disse com voz triste. - É pouco provável. Vai acontecer. Pode demorar mais ou menos tempo, mas vai acontecer. Eu sei que vai. Não podemos perder a esperança.

- Nós jamais a perdemos. Embora, às vezes, seja difícil continuar - disse Galaduinne.

- Tem sido difícil para ti continuar, não tem?

- Tem. Não consigo esquecer Omnirion.

- Eu também não. Gostava de estar lá, morrer lá. Mas não se pode ter tudo. E o que tu estás a fazer é maior. Maior do que tu ou Omnirion. Pode ser o fim que o Povo da Luz espera quase desde o começo dos tempos.

Galaduinne não respondeu. Ogueimion dissera-lhe que precisava de aprender mais antes de ser capaz de utilizar o Ceptro sem morrer, a Água estava a prepará-la para enfrentar algo, e, mesmo assim, ela iludira-se pensando que tudo aquilo se destinava simples e estupidamente a recuperar um punhado de pedras brancas! Como fora estúpida.

- Queria que ficasses com a minha arma - disse Liduvine.

- Não me serve para mais nada quando morrer e tu sempre foste a mais talentosa dos meus alunos. De facto, dos que eu ensinei, és a única que a maneja com a agilidade e elegância que ela merece - sorriu com uma expressão nostálgica. - Ailura tinha muito jeito com a espada e manobrava a minha arma relativamente bem, muito melhor que a maioria. Tal como Iruvienne, embora a tua filha seja ainda mais dotada com a espada. No entanto, Ailura nunca foi capaz de usar o arco e flecha correctamente - Liduvine começou a rir. - Era o Edínmtor que lhe dava aulas. Ela ficava demasiado nervosa. Ou olhava para o chão por corar de mais e falhava o alvo porque não o via, ou os seus braços ficavam tão moles que ela mal conseguia segurar o arco.

Galaduinne riu com Liduvine. Sabia que a mãe nunca usava o arco, mas desconhecia a razão pela qual ela fora incapaz de aprender a manejá-lo.

- Lamento deixar-te sozinha, Galaduinne. Ailura gostaria que eu ficasse a ajudar-te, mas, infelizmente, não consigo mais, sorriu juvenilmente. - E afinal tu não estás propriamente sozinha. Tens Namali, Iruvienne e Aran.

Liduvine inspirou profundamente e fechou os olhos.

- Queres que saia?

- Sim. Não te esqueças de levar a arma.

Galaduinne pegou na arma, foi até à porta e abriu-a.

- Galaduinne.

- Sim?

- Quando eu morrer, não me enterres. Eu não sou uma sacerdotisa, pertenço ao Povo da Luz, quero ser queimada. Quero que as minhas cinzas voem pelo Mundo comigo.

- Não te preocupes - disse Galaduinne e saiu. Liduvine ficou sozinha. O seu corpo estava tão pesado, e ela tão leve! Abriu os olhos. À sua frente estava uma forma: transparente e brilhante, com leves tons de dourado e verde; na roupa que se confundia com o ar. Ailura sorriu e Liduvine sorrindo também, sentiu-se, finalmente, muito leve. Tão leve que se escapou para o ar e voou com Ailura para sítios conhecidos

e desconhecidos.

 

                 AS BORBOLETAS DA LUA

Liduvine foi cremada numa pira, construída por Aran, de ramos entrelaçados com grinaldas de flores que Iruvienne entrançara. Galaduinne entoou na sua voz grave e cheia um cântico sobre guerreiras élficas e sobre a amizade. Namali e Mianon assistiram silenciosamente à cerimónia. No fim, Iruvienne pediu aos ventos que levassem Liduvine de volta a Caladmiron.

Galaduinne sentiu que a morte de Liduvine era como o fim da vida que tivera até ali. Agora tudo ia mudar. Já não havia qualquer ponto de ligação com Omnirion. Iruvienne gostava da floresta de Brumívium, da chuva, da neve, do frio e das brumas e Athilya não estava ali. Tinha saudades da filha. Queria tanto estar novamente com ela! Mas não havia tempo. Liduvine falara a verdade. Aquilo era maior do que qualquer um deles. Tinha de continuar a fazer o que a Água dissera: descobrir e conhecer os mistérios da noite.

Os meses seguintes passaram devagar e sem novidades. Nevou muito e Brumívium ficou coberta com um manto branco e brilhante. Galaduinne e Namali regressaram várias vezes à lagoa da gruta, mas Galaduinne não voltou a tentar falar com a Água. Não era preciso. Quando pudesse sair dali, se algum dia pudesse, tinha a certeza que saberia.

Quase no fim do Inverno, Mianon chamou, novamente, Galaduinne à sua presença. Estava na altura de ela se tornar uma Conhecedora da Noite. Foi- lhe dado o vestido azul-escuro com reflexos prateados e Mianon perguntou- lhe o que é que ela desejava aprender mais profundamente. Galaduinne sabia que tinha de conhecer melhor os mistérios da noite, mas também queria continuar a estudar as plantas. Assim, disse a Mianon que queria aprofundar os seus conhecimentos de ambas as coisas. Mianon ficou surpreendida, pois nunca ninguém fizera essa escolha. No entanto, não negou a Galaduinne a oportunidade de tentar estudar melhor ambas as coisas. A Primavera chegou antecipadamente. O tempo aqueceu um pouco, o suficiente para a neve desaparecer das folhas das árvores e o chão de relva verde ser novamente visível por entre as brumas, e a chuva recomeçou. As pequenas flores brancas, cor-de-rosa e brancas salpicadas por tons de rosa e lilás desabrochavam em abundância, nas margens da nascente do Enyel. Galaduine começou a dar algumas lições às Conhecedoras do Crepúsculo mais novas e Mianon passou a estar mais tempo dentro do seu quarto do que seria normal.

Era uma noite fria e chuvosa. Galaduinne estava sentada no chão, com as costas apoiadas contra o tronco de uma velha e gigantesca árvore e os joelhos enlaçados pelos braços. Com o capuz da capa azul-escura posto e completamente envolvida nela, Galaduinne era praticamente invisível. Chovia muito, mas debaixo da protecção dos ramos daquela árvore de folha perene estava-se bem. O equinócio da Primavera aproximava-se e ela começava a ficar ansiosa. Tinha a certeza de que descobriria o que eram aqueles pontos brancos brilhantes.

A chuva estava a parar e outro som começou a ser audível. Um pouco mais perto do castelo, algo ou alguém gemia desesperadamente. Galaduinne levantou-se e seguiu o som. Ainda chovia o suficiente para que ela ficasse encharcada.

Galaduinne não demorou a encontrar a origem do som.

Um pequeno coelho jazia no chão, meio escondido num arbusto.

Tinha o peito aberto e estava mortalmente ferido. Não havia dúvida que fora vítima de um qualquer predador e, embora Galaduinne não conseguisse imaginar como, fora capaz de fugir.

Não lhe servira de muito! O coelho continuava a gemer, numa agonia terrível, e tinha agora espasmos de tempos a tempos. Só havia uma coisa a fazer: acabar com o sofrimento do animal de uma vez por todas.

Galaduinne aproximou-se com a sua adaga de cabo de anuliss trabalhado, escondida no interior da capa, mas o animal pressentiu o perigo e tentou fugir. Galaduinne baixou-se e pousou uma mão na cabecinha do jovem coelho.

- Nie navwe - disse Galaduinne em Lissanin. O animal sentiu o significado das palavras a encherem-no, como sempre acontece a todos aqueles a quem é falado em Lissanin, mesmo se estes não conhecem a língua sagrada dos Elfos e das Fadas. No entanto, ainda tentava fugir. - Is nhar nie manarim drilur.

O coelho ficou finalmente calmo, apenas perturbado pelos espasmos, e Galaduinne, com um gesto rápido da sua faca, cortou-lhe a garganta. A frágil criatura morreu imediatamente. O seu sofrimento tinha acabado.

Galaduinne levantou-se. Não gostava de fazer aquele tipo de coisas, mas às vezes era preciso. Fora melhor matar o jovem coelho do que deixá-lo morrer indefeso e numa agonia horrível.

Estava cada vez mais frio; até parecia que o Inverno se estava a aproximar e não a afastar. Agora que a chuva parara definitivamente, as brumas começavam a subir e a encobrir a floresta. Galaduinne enterrou a sua adaga na terra molhada para limpar o sangue do animal e depois passou-a pela sua capa para a limpar.

Já não estava ali a fazer nada. O melhor era regressar

a Névila, acender a sua lareira e passar algum tempo a ler ou conversar com Iruvienne e Aran.

E então ouviu-as. Ao início pareciam as folhas das árvores a chocarem umas com as outras por causa do vento. Mas não havia vento naquela noite. Apenas frio e brumas. O som aproximava-se a uma velocidade espantosa e ela viu-as. Uma miríade de pequenas borboletas de um branco-prateado voava velozmente na sua direcção vindas das profundezas de Brumívium.

Galaduinne ficou muito quieta a olhá-las. Eram lindas. Mas como tinham aparecido ali?

'Acalma-te!

'Eu não te vou magoar.

As borboletas rodearam-na e voaram por entre os seus cabelos castanhos, os seus braços abertos, as suas roupas e à sua volta, como um rasto de luz. Por entre o estranho ruído das suas asas a baterem ouvia-se um outro som que elas produziam. Um som tão suave quanto inebriante. Galaduinne não percebia porque é que aquilo estava a acontecer. Tinha a certeza, que elas eram os pontos brilhantes que, por vezes, vislumbrava nos equinócios e solstícios. Mas ainda faltavam alguns dias para o equinócio da Primavera! No entanto, não estava muito preocupada em perceber. Aquilo era tão bom, tão estranho e tão maravilhoso!

Namali chegou nessa altura e o que viu deixou-a sem palavras. Era como se Galaduinne se tivesse transformado em pura luz. Tinha os olhos fechados e toda ela parecia reflectir a luz da lua. Os seus braços, roupas e cabelo brilhavam estranhamente e atrás dela havia um maravilhoso e enorme, quase interminável, rasto dessa luz brilhante e única.

Galaduinne abriu os olhos e viu Namali a olhar incredulamente para ela. E mal teve consciência da sua presença, as borboletas, tão depressa quanto tinham surgido, desapareceram. Galaduinne olhou à sua volta, triste por elas terem desaparecido.

- O que se passa? - perguntou a Namali, um pouco irritada.

- Mianon mandou chamar-te - respondeu Namali, ainda um pouco espantada.

Galaduinne seguiu Namali pelos corredores iluminados por luzes quentes que projectavam estranhas sombras nas paredes. Devia ter passado muito tempo lá fora, mais do que calculara, porque estava tudo silencioso e parado. Talvez até demasiado. De repente, sentiu-se muito cansada. Não queria falar com Mianon. Queria ir para o seu quarto, acender a lareira e passar o resto da noite sentada em frente dela a conversar com Namali.

Percorreram o corredor do quarto de Mianon, silenciosa e discretamente.

- Namali.

- Hum.

- Sabes o que Mianon quer? - perguntou Galaduinne.

- Não faço ideia. Mas uma repreensão por passares o teu tempo molhada era capaz de não ser má ideia.

Galaduinne riu e Namali fez-lhe um sinal rápido para que se calasse. Não era boa ideia rir tão alto, quase no final da noite, no andar dos quartos e, ainda para mais, no corredor do quarto da Senhora. Mas também Namali continha o riso a custo. Era difícil imaginar a correcta, altiva e demasiado tradicional Mianon a repreender Galaduinne pelas repetidas vezes em que ela ficava encharcada.

Chegaram ao quarto de Mianon e Galaduinne bateu, levemente, à porta. - Entra, Galaduinne - disse a voz suave de Mianon, do outro lado.

Namali murmurou uma jocosa Boa sorte e desapareceu na direcção do seu quarto. Galaduinne entrou.

O quarto de Mianon estava estranhamente iluminado por uma luz de um azul-claro que era em tudo natural e, contudo, não provinha de nenhum fogo ou candeeiro visível. Antes parecia vir do exterior, embora ainda estivesse muito escuro.

Mianon vestia, mais uma vez, de branco, os cabelos caíam-lhe soltos pelas costas e ela estava sentada muito quieta e direita no banco do toucador. Uma das pequenas borboletas brilhantes estava delicadamente pousada nos seus cabelos, como se fosse uma restiazinha da luz que há momentos atrás envolvera Galaduinne.

- Sabes, pensei que elas nunca se iriam decidir - disse enquanto erguia uma mão branca, com o indicador ligeiramente levantado, para onde a borboleta passou. - Eu já não aguentava muito mais tempo. Vais mudar muito as coisas aqui, não vais, Galaduinne?

Galaduinne não respondeu. Não tinha a certeza de estar a compreender. Pensava que sim, mas não sabia ao certo. Certamente não podia ser o que ela estava a pensar e por outro lado... parecia ser exactamente isso. Mas não, não podia ser.

- Tu achas que eu obedeço de mais às regras, que não sou justa, que privilegio as sacerdotisas dos mistérios e, principalmente, que tenho segundas intenções para ti. - A borboleta pousou no colo de Mianon e esta olhou-a. - Quanto à última tens razão. Sempre tive outras intenções para ti. Tenciono, desde o dia em que chegaste aqui e me pediste protecção, que me sucedas como Senhora da Noite e das Brumas. Mas não dependia só de mim. São elas que escolhem a nova Senhora de Brumívium. Sabes o que elas são?

Galaduinne permaneceu silenciosa. Mianon não podia estar a falar a sério. Aquilo só podia ser uma brincadeira, uma brincadeira de muito mau gosto, principalmente para uma elfo. Ela era Rainha das Terras da Luz, não podia ser também a Senhora da Noite e das Brumas! Não podiam fazer aquilo. Ela tinha de regressar a Omnirion, mesmo que fosse só passados muitos anos.

- Eu sou Rainha das Terras da Luz - murmurou, mas Mianon ignorou-a.

- Elas são as borboletas da lua, que voam por Brumívium para escolherem uma nova Senhora, saudarem a chegada da Primavera e do Verão e fecharem o ciclo no Outono e Inverno.

Abriu a caixa forrada a veludo e tirou de lá o Colar da Lua. Avançou até Galaduinne e colocou-o na sua cabeça, de forma que a lua de topázio azul-claro pendia para a testa de Galaduinne.

- Vês como te fica bem? - disse, enquanto colocava Galaduinne em frente ao espelho do toucador. - É assim que a Senhora deve usar o Colar da Lua, como se fosse uma coroa.

- Mianon voltou a sentar-se e tirou o Anel da Noite, colocando-o em cima do toucador. - Brumívium é um lugar, de certo modo, isolado. Desde que a primeira das sacerdotisas aqui chegou e as normas foram estabelecidas, nunca ninguém se atreveu a mudá- las. Nós acreditamos que elas estão de acordo com aquilo que Valindra acharia mais correcto, pois ela era assim: parcial, por vezes até um pouco injusta, e não admitia que ninguém a contestasse. Mesmo assim, há já muito aqui que eu tenho certeza de que não seria do seu agrado. - Mianon dissera tudo aquilo com os olhos fixos na pequena borboleta e passando os dedos, ao de leve, pelas asas dela. Olhou para Galaduinne e sorriu, como se visse algo novo, estranho e, contudo, aprazível. - Mas tu não és assim. Tu achas que se as velhas regras são injustas, vale a pena ignorar a maneira como, provavelmente, Valindra gostaria que se passasse tudo, assente em estabelecer novas regras. Tu pensas que somos um povo suficientemente antigo para decidir o melhor para nós, sem estarmos à espera dos conselhos de uma sacerdotisa dos Filhos dos Elementos que, quase de certeza, morreu. Galaduinne sorriu. Era, de facto, assim que ela pensava.

Tal como o faziam a maioria dos Elfos e Fadas das Terras da Luz. Mas tanto Aerzis como Nessya, que dos Filhos dos Elementos foram os únicos a ficarem em Caladmiron, tinham morrido quase no começo do tempo dos Elfos e das Fadas. O Povo da Luz habituara-se a decidir o que era melhor sem qualquer tipo de ajuda. No entanto, ali era diferente. Ninguém tinha a certeza se Valindra morrera ou não. Era natural que as sacerdotisas mais velhas tivessem alguma dificuldade em aceitarem e, muito menos sugerirem uma mudança da qual Valindra, presumivelmente, não gostaria.

- A tua mãe era uma fada - disse Mianon -, tinha sangue élfico e humano, tal como tu. Os Humanos são conhecidos por quererem mudar os males do Mundo, embora, geralmente, sejam pouco bem sucedidos ou façam, efectivamente, alguma coisa para isso. Os Elfos fazem tudo para que os Mundos sejam mais justos e melhores lugares para se viver. Contudo, há leis antigas que alguns de nós têm dificuldade em mudar, mesmo que isso constitua uma melhoria. Tu tens as duas partes em ti. Fazes tudo para mudar aquilo que achas estar mal, e não te importas de passar por cima de antigos costumes ou leis. Vais fazer isso aqui, tenho a certeza.

- Mianon olhou, sorridente, para Galaduinne que tinha ficado atrás dela a olhar para o espelho. - Talvez seja melhor assim. Tudo muda, nada fica eternamente igual. A partir de amanhã vai soprar um vento novo em Névila. Esperemos que seja um vento amigo.

- Vai ser, Mianon - disse Galaduinne, conseguindo por fim, admirar a Senhora de Névila. - Prometo-te.

Mianon levantou-se, passou por Galaduinne a sorrir e foi sentar-se no parapeito da janela aberta. A borboleta seguiu-a.

- Oh! Mais uma coisa, Galaduinne - disse, olhando novamente para Galaduinne. - Tenho a certeza de que vais conseguir recuperar Omnirion, tal como queres. Mas não esperes derrotar Morgriff. Não és tu a pessoa certa. A guerra ainda não será ganha por ti.

- Por que dizes isso? - perguntou Galaduinne, não conseguindo deixar de se sentir intrigada. - Conheces a profecia?

- Uma parte muito pequena - respondeu Mianon. - Tão pequena que, de facto, não sei se se pode dizer que a conheço. Mas tenho a certeza de que interpretei a parte que me foi revelada correctamente. E isto posso dizer-te: não és a pessoa da profecia.

Mianon virou-se para a noite que, durante toda a sua vida tanto amara. Recomeçara a chover, mas as brumas continuavam a envolver Brumívium. Mianon acariciava as folhas verde-escuras de uma árvore próxima da sua janela. Começou a trovejar, o vento soprou com uma força extraordinária, atirando os ramos das árvores uns contra os outros, e a chuva transformou-se num autêntico dilúvio. As asas da borboleta, que estava pousada nos joelhos, ligeiramente levantados, de Mianon, começou a ser, cuidadosamente, acariciada por ela, reflectiam as assustadoras e fantasticamente maravilhosas cores da tempestade. Galaduinne ficou parada a meio do quarto. Tinha pena de só ter conhecido Mianon melhor naquela noite. Talvez se tivesse tentado antes, se tivessem tornado amigas e ela teria aprendido muitas coisas com a Senhora da Noite e das Brumas. Ou talvez fosse exactamente assim que tudo tinha de se passar. Não podia esquecer-se de dizer a Namali o quanto se tinham enganado relativamente a Mianon.

A brilhante borboleta, que talvez fosse a líder das borboletas da lua, voou na sua direcção, arrancando- a aos seus pensamentos. Galaduinne olhou para Mianon. Ela ainda olhava para o exterior onde a tempestade acalmara, mas o seu braço direito estava flacidamente caído ao lado do seu corpo, sem vida. A borboleta da lua pousou nos cabelos de Galaduinne e ela foi buscar o Anel da Noite que Mianon deixara em cima do toucador e colocou-o no dedo anelar da mão esquerda.

Passado pouco tempo, quando o dia nasceu e uma das sacerdotisas mais velhas entrou no quarto para ajudar Mianon a arranjar-se, encontrou Galaduinne, junto da janela aberta, com os ornamentos da Senhora postos e Mianon morta, deitada na cama, com uma expressão muito suave.

- Ladli - disse a sacerdotisa.

Galaduinne desviou o olhar da Natureza que começava a despertar e olhou-a.

- Mianon morreu - disse à sacerdotisa. - É necessário tratar dos preparativos para o seu funeral. Agradecia se pudesses tomar conta disso. Eu preciso de ficar um pouco só. Não vou tomar o pequeno-almoço; não tenho fome.

A sacerdotisa saiu, com uma pequena vénia. Regressou pouco depois com mais quatro sacerdotisas que levaram o corpo de Mianon e os seus objectos pessoais, bem como as suas roupas.

Entraram, novamente, com os haveres de Galaduinne, que arrumaram rápida e eficientemente.

Quando elas saíram, Galaduinne sentou-se no banco do toucador e ficou algum tempo a ver a sua imagem reflectida no espelho.

Viu uma elfo de cabelos castanho-escuros, lisos e fartos, olhos de um adorável verde-líquido, pele muito branca e lisa e orelhas fina e ousadamente pontiagudas. Um rosto jovem, mas mudado. Era a mesma rapariguinha, calma e alegre, que se apaixonara pelo sábio que lhe dava lições. A mesma mulher que Ogueimion amara tão suave e intensamente. E era também Rainha das Terras da Luz e a Senhora da Noite e das Brumas que, ironicamente, tinha mais dúvidas e perguntas dentro da sua cabeça do que alguma vez tivera.

Tirou o Colar da Lua e guardou-o dentro da caixa forrada a veludo. Olhou para o anel. Era um pouco grande para si e parecia deselegante na sua mão, como se a forma não tivesse sido feita para ela. Sorriu. Não era estranho que o anel não lhe ficasse bem. Ele representava a Senhora de Brumívium e esse não devia ter sido o seu papel. Tirou o anel e guardou-o juntamente com o colar.

Sorriu para o seu reflexo no espelho.

- Não podes esperar que o Mundo seja imutável. E muito menos a tua vida - disse em voz alta.

Alguém abriu a porta e Galaduinne olhou na sua direcção. Era Iruvienne que vestia um vestido, de um tecido fino e brilhante azul-claro, com pequenas figuras, ligeiramente parecidas com estrelas, bordadas a preto. Os seus cabelos caíam completamente soltos, pelas costas.

- Vim ajudar-te - disse, alegremente. – Namali contou-nos o que se passou e eu pensei que preferias a minha ajuda à de uma sacerdotisa um pouco desconfiada. - Iruvienne sorriu docemente, como era seu costume quando achava que dissera algo verdadeiro, mas menos próprio. - Está tudo praticamente pronto. Só falta a parte mais desagradável que, como sempre, calhou a Aran. Ele está a cavar a sepultura.

Iruvienne foi até ao armário, abriu-o e olhou cuidadosamente os vestidos da mãe. Por fim, decidiu-se por um branco, com uma pequena cauda, onde tinham sido bordadas a fio de ouro, uma linha curvilínea que descia, pela manga esquerda, desde o decote até ao punho e, ocasionalmente, ao lado dessa linha, pequeníssimas flores douradas.

- Não podes ir com o teu traje de Conhecedora da Noite - disse Iruvienne, enquanto tirava o outro vestido da cruzeta e o estendia em cima da cama.

- Tratas-me como se eu fosse a filha e tu a mãe. Galaduinne levantou-se e começou a vestir-se. - Tem acontecido muita coisa e eu sinto-me um pouco cansada. Por isso, hoje agradeço-te que me orientes.

- Também não o voltarei a fazer.

Quando Galaduinne acabou de se vestir, Iruvienne entrançou-lhe parte dos cabelos numa trança longa que partia do cimo da sua cabeça e que prendeu com uma fita dourada.

Galaduinne colocou, um pouco relutantemente o Anel da Noite e o Colar da Lua, tal como Mianon lhe mostrara.

- Aran ainda deve demorar a acabar a cova – disse Iruvienne. - Podíamos passear um pouco pela floresta. Está agradável.

Galaduinne sorriu, em sinal de consentimento, e as duas saíram para o exterior.

Passearam em silêncio. Galaduinne observou a filha a roçar as mãos pelas folhas das árvores: umas de formas redondas, outras de formas recortadas, outras ainda tão estreitas que se tornavam num finíssimo rolo de verdura. Gostou de passear assim algum tempo, a observar a filha mais velha. Iruvienne era ainda, em tantas coisas, uma criança inocente que se assemelhava mais às elfos dos contos de fadas dos Humanos do que ao seu próprio povo. Mas era bom que ela fosse assim, que conseguisse encontrar beleza nas coisas mais ínfimas e conservasse a ingénua crença dos jovens de que os males do Mundo podem ser fácil e definitivamente resolvidos com uma ou duas ideias brilhantes.

Iruvienne só tinha dezasseis anos; esperava-a uma longa vida. Tinha muito tempo para descobrir que nem tudo acontece como se prevê e que o mesmo caminho pode levar a muitos fins. Havia uma luminosidade prateada e o dia estava, como habitualmente acontecia em Brumívium, cinzento. Mas parecia a Galaduinne pouco provável que chovesse. As brumas não tinham ainda aparecido e talvez não o fizessem até ao fim do dia. O ar estava fresco, mas ali aquilo não podia ser considerado anormal. Galaduinne olhou para as Heniunel, que se erguiam muito ao longe. Do outro lado delas, devia ser ainda mais frio do que em Brumívium, mas Galaduinne, que estava ainda habituada ao Sol eao calor de Caladmiron, tinha dificuldade em imaginar algo tão frio como os Invernos daquela floresta de brumas.

O dia aproximava-se do seu meio e Galaduine e Iruvienne dirigiram-se para o local onde o funeral decorreria.

Completamente do outro lado das montanhas onde o Enyel, e já um pouco perto das Heniunel, havia uma zona de árvores de anuliss. Era uma zona tão densa que, se as árvores tivessem espaço para crescerem, e por mais que isso tivesse custado aos Elfos, arrancar algumas delas. A madeira dessas árvores fora usada para fazer as mobílias de Névila e, depois, construir Nielirian. Era nessa zona que as sacerdotisas de Névila eram sepultadas.

Chegaram ao lugar da cerimónia e Iruvienne estendeu a sua mão para passar os dedos pelas folhas, de um azul muito claro quase branco, das árvores de troncos e ramos azul- escuros. Aquele era um lugar onde parecia ser sempre crepúsculo ou noite, devido à cor das árvores, mas onde, simultaneamente, a relva era ainda mais verde e brilhante.

As sacerdotisas que viviam em Névila estavam também a chegar e reuniram-se à volta da cova que Aran escavara cuidadosamente, e ao lado da qual estava o corpo de Mianon deitado numa padiola forrada a flores. Mianon fora vestida com o mais bonito dos seus vestidos brancos, as suas mãos brancas e esguias estavam cruzadas sobre o seu ventre, os cabelos louros tinham sido dispostos em forma de leque e coroados com uma coroa de flores brancas entrançadas. Ela sorria como se fosse uma menina.

Iruvienne colocou-se ao lado de Aran, que se mantinha aos pés da cova com o cabo da pá entre as mãos e a pá assente no chão.

Galaduinne deixou que a sacerdotisa, que a encontrara de manhã, conduzisse a cerimónia, com cânticos e palavras à Noite e aos Elementos, especialmente à Terra. Quando a sacerdotisa acabou, Galaduinne baixou-se e cobriu Mianon com um véu azul-escuro transparente. Depois, Aran desceu, com a ajuda de outra sacerdotisa, a padiola até ao fundo da cova e cobriu-a novamente com terra.

 

                     I O Z

A pequena multidão começou a regressar ao castelo, às suas tarefas ou lições, mas Galaduinne deixou-se ficar para trás.

Parecia-lhe triste ser-se enterrado, entregar o corpo à fome dos bicharocos e vermes que viviam debaixo de terra. Quando morresse não queria ser enterrada. Queria que o fogo sagrado corresse pelo seu corpo até o transformar em cinzas, tal como acontecera com os seus antepassados.

Havia tanta coisa ali, naquela floresta chuvosa e envolta em brumas, de que ela não gostava!... Mas agora, era a sua Senhora. Era a Senhora da Noite e das Brumas.

A noite do equinócio da Primavera chegou, finalmente.

As Conhecedoras do Crepúsculo subiram, logo após o jantar, até à nascente do Enyel, onde ficariam toda a noite. Galaduinne viu Iruvienne e Aran a saírem pela porta lateral do refeitório. Eles honravam a chegada da Primavera à sua própria maneira; faziam-no de acordo com os antigos rituais de Caladmiron.

Galaduinne foi até ao quarto para, com a ajuda de Namali, se arranjar para a cerimónia. Elian, a sacerdotisa que encontrara na manhã a seguir à morte de Mianon, explicara-lhe o que devia fazer durante a cerimónia, mas Galaduinne não tinha a mínima ideia de como tudo se ia processar e, muito menos, o que ia realmente acontecer.

Escolheu um vestido azul-arroxeado de mangas, cada uma presa por dois lacinhos, um ligeiramente abaixo do ombro e o outro do cotovelo. O vestido tinha como único enfeite um desenho de linhas elegantes, mas simples, bordada a fio verde-claro à volta do decote. Colocou os ornamentos da Senhora e Namali fez-lhe duas tranças largas no cabelo, cada uma partindo, exactamente, do cimo das orelhas, que, além de criarem a ilusão de uma coroa, escondiam o fio do Colar da Lua, de forma que só eram visíveis as três estrelas e a lua que pendia para a testa de Galaduinne.

Assim que ficaram as duas prontas, desceram até à porta do refeitório, onde as restantes Conhecedoras da Noite as esperavam. Elian conduziu o grupo até uma porta, igual a todas as outras, um pouco mais para o lado da entrada de Névila.

Galaduinne abriu a porta e, seguida pelas outras sacerdotisas desceu as escadas, relativamente largas e iluminadas por fogos que ardiam em pratos, até uma plataforma. Esta plataforma era iluminada por um fogo que ardia num grande prato pendurado por cima das suas cabeças, e só dava acesso às escadas que elas tinham acabado de descer ou a um túnel, do lado esquerdo.

Galaduinne virou à esquerda e começou a descer o túnel.

Era um túnel largo e longo, extremamente bem iluminado por grandes archotes pendurados nas paredes, mas era também húmido. De facto, Galaduinne podia ouvir o suave som de gotas a caírem e, uma ou outra vez, foi mesmo molhada por elas.

Havia luz natural ao fundo do túnel, tanta luz como a da noite. Galaduinne gostaria de ter acelerado o passo para desvendar mais rapidamente aquele mistério, mas não lhe pareceu apropriado.

No entanto, quando chegou ao fim do túnel não conseguiu evitar olhar para cima, e o que viu, além de lhe ter explicado muita coisa, deixou-a maravilhada. Era lindíssimo.

Tão belo como Aquilad ou Nielirian, e tão natural e magnífico como Caladmiron.

Estavam dentro da montanha que, tal como um vulcão, se abria, muito lá em cima, para o exterior. As suas paredes estavam tão cobertas de plantas verdes, com pequenas gotas de água a repousarem em cima delas, que o interior da montanha parecia ter sido forrado com um manto fofo verde brilhante. A maioria dessas plantas eram fetos, hepáticas-das-fontes e musgos tão grandes que se assemelhavam a pequenas folhas viscosas de fetos anões. Um pouco acima delas, mas, comparado com a altura da montanha, não muito, Galaduinne viu as janelas de Névila que davam para o interior da montanha e através das quais já tivera pequenos vislumbres daquela maravilhosa natureza. A verdade era que as janelas estavam tão rodeadas de vegetação que era quase impossível abri-las, e a imagem que se tinha do interior da montanha era tão diminuta que, comparada com o que ela estava a ver, se tornava irrisória.

Namali tocou-lhe, levemente, no ombro e Galaduine desviou o seu olhar daquela paisagem húmida e luxuriante. ao olhar para a frente, deparou-se com mais uma coisa que a deslumbrou. Mesmo no meio do interior da montanha, erguia-se, a partir da relva tão verde e brilhante quanto o resto das árvores daquele lugar, uma árvore branca, sem qualquer tipo de folhas, coberta de pontos de luz. A árvore não era muito alta. Não devia ter mais de dois metros e meio de altura. Os seus ramos nus e de madeira tão lisa e suave quanto o tronco prolongavam-se elegantemente numa posição horizontal, relativamente ao chão, criando uma ligeira sensação de abóbada.

- Esta é Blandulez, a Árvore Branca - disse Elian, que entretanto, se aproximara de Galaduinne. - A árvore sem semente que raramente dá fruto e encerra muitos mistérios.

Elian afastou-se e ocupou o seu lugar no grande círculo que as sacerdotisas tinham formado à volta da Árvore Branca. Galaduinne inspirou suavemente, olhou para cima, ergueu os braços para o céu (o que fez com que as suas mangas escorregassem até ao fundo dos seus braços, deixando-os nus) e começou a cerimónia.

- Noite - chamou -, que inicias e completas o ciclo, nós te saudamos. - As sacerdotisas, que tinham erguido os braços ao mesmo tempo que Galaduinne, inclinaram-se um pouco numa vénia discreta. - A Primavera aproxima-se, a Natureza está pronta para despertar para o seu tempo fértil. Aler Lha, Dral, lad! Niod olasturim.

- Olasturimz - disseram as sacerdotisas em coro.

- Noite, que segues e antecipas o dia, inicia o ciclo - continuou Galaduinne. - Elementos, acordem a Natureza adormecida. - Galaduinne baixou os braços e encostou a palma da sua mão direita ao tronco de Blandulez. - Rimni - disse, quase num sussurro.

Galaduinne sentiu a árvore a tremer ligeiramente, mas manteve a sua mão encostada ao tronco. Então, algo começou a fazer cócegas na sua mão, como se uma coisa frágil e suave tentasse sair do tronco. Galaduinne retirou a mão e uma das borboletas da lua, que ela quase podia jurar ser a mesma que estava com Mianon na noite em que ela morrera, saiu de dentro do tronco. Ficou alguns momentos parada em frente a Galaduinne, como se a estivesse a observar. Galaduinne afastou-se um pouco da árvore e todas as borboletas da lua saíram do tronco em direcção à abertura da montanha, muito acima delas, como uma enorme luz brilhante.

'Ar, Água, Terra, Fogo! Ouçam-nos. Ouçam. Acordai.

 

             A CHEGADA DE UMA ESTRANHA

Efectivamente muita coisa mudou em Névila a partir do momento em que Galaduinne se tornou Senhora da Noite e das Brumas.

No primeiro dia a seguir ao equinócio da Primavera

Galaduinne reuniu todas as Conhecedoras da Noite, no refeitório, e comunicou-lhes que a maioria das sacerdotisas dos mistérios passariam a sentar-se à mesa, juntamente com as outras sacerdotisas. Na sua mesa, ficariam três representantes de cada grupo, escolhidas pelo próprio grupo. O passo seguinte foi autorizar que as Conhecedoras do Crepúsculo assistissem às cerimónias. Algumas das sacerdotisas mais velhas exprimiram, de forma não muito correcta, o seu descontentamento por esta medida. Para elas o poder assistir às cerimónias devia ser um empenho que recompensa pela sabedoria que cada Conhecedora do Crepúsculo tinha de mostrar para se tornar uma Conhecedora da Noite. Contudo, Galaduinne foi, como geralmente acontecia inflexível na sua decisão. E mudou ainda uma série de pequenas coisas. Determinou que as Conhecedoras da Noite deviam ajudar as do Crepúsculo nas tarefas domésticas. Ela própria continuaria a fazer algumas das suas tarefas, como dar as suas lições, e, lentamente, foi deixando de usar os ornamentos da Senhora, excepto nas cerimónias. Igualmente, não autorizou que alguém a impedisse de mudar algo que lhe parecia injusto usando o argumento de que Valindra não gostaria que isso se mudasse".

O facto de se tornar a Senhora de Brumívium permitiu-lhe uma maior liberdade de tempo que ela rapidamente preencheu.

Continuou a ir com Namali até à lagoa da gruta, deu mais passeios com Iruvienne e Aran e conversaram mais, principalmente ela e Iruvienne. Galaduinne não demorou muito a descobrir que a filha e o amigo já sabiam da existência das borboletas da lua muito antes de ela saber. Pouco tempo depois de chegarem á Névila, Iruvienne e Aran tinham subido a montanha dentro da qual Névila tinha sido construída e descoberto a abertura do topo. Da mesma forma, decidiram espiar uma das cerimônias e descobriram o "mistério" dos pontos brilhantes dos equinócios e solstícios.

"Eu sei que foi irresponsável e incorrecto - disse Iruvienne, por entre risadas de puro divertimento que podiam muito bem pertencer a uma criança. - Mas Galaduinne, nós somos curiosos. Tu própria dizes que nenhum segredo está guardado comigo e Aran por perto.

Galaduinne riu também. Iruvienne tanto lhe chamava mãe como a tratava pelo seu nome, o que raramente acontecia com Athilya.

- Mesmo assim, Iruvienne - disse, tentando adoptar uma posição ligeiramente reprovadora. - Não o deviam ter feito. As borboletas da lua são um mistério que não devia ser descoberto pelo espírito aventureiro de duas crianças irrequietas e temerárias.

- Nós já não éramos crianças - disse Iruvienne, parando de rir, mas ainda visivelmente divertida. - Eu já tinha a Visão há algum tempo.

- Sim, é verdade. Mas não eram muito mais do que crianças, mesmo pelos conceitos dos Homens.

- Talvez. No entanto, Ailura teria feito o mesmo.

- Isso não quer dizer que tu o fizesses.

- Só porque tu não o farias, não quer dizer que eu não o faça. Além disso, sempre disseste que eu sou muito parecida com ela.

Galaduinne não respondeu.

E o primeiro ano como a Senhora passou. As borboletas da lua entraram no tronco de Blandulez no equinócio do Outono, saíram novamente no equinócio da Primavera e voltaram a entrar no Outono. Galaduinne tinha muito que fazer e a verdade é que começou a gostar muito mais de tudo aquilo do que gostava antes. Mas mesmo assim, não conseguia esquecer Omnirion.

O Inverno do sexto ano em Brumívium aproximava-se. Galaduinne era a Senhora da Noite e das Brumas há mais de dois anos e meio, mas não podia esquecer que era também Rainha das Terras da Luz. Os sonhos visitavam-na por vezes com visões de caos e destruição em Omnirion, mas, como todos os sonhos, não eram claros, nem podiam ser interpretados exactamente como se davam a conhecer. E Galaduinne ansiava por notícias exactas, por saber como estava, efectivamente, Omnirion. No entanto, essas notícias não chegavam, pois Morgriff continuava lá e nenhum Elfo ou Fada se atrevia a aproximar de Omnirion. Todos eles permaneciam na segurança de Nielirian. O que ela precisava era de conseguir ver exactamente o que estava a acontecer em Omnirion. Tinha de conseguir controlar os seus sonhos. Por isso, um dia, resolveu falar com Namali e ver se ela a conseguia ajudar.

- Os Humanos, na altura em que ainda confiavam em nós, bebiam uma mistura de ervas que lhes aumentava a Visão - informou Namali. - Se um dos do nosso povo, que possui, naturalmente, a Visão, beber essa mistura fica com a capacidade de a controlar. Isto é, pode ver o que se passa ou passou num determinado tempo e lugar. - Namali fez uma pausa e desviou os olhos das plantas que estava a tratar para fazer um remédio natural. - Não vale a pena dizer-te que tentar ver o futuro é, praticamente, impossível. Tudo o que estarias a ver seria uma mera possibilidade do que poderá vir a acontecer.

- Como tu disseste, Namali, não é preciso dizeres-me isso - respondeu Galaduinne. - E eu não tenciono ver o futuro, mas sim o presente.

Consegues preparar-me essa poção?

- Consigo - disse Namali, resignadamente. – Mas não acho boa ideia que a uses. Ela é perigosa. Pode mostrar-te aquilo que queres ver, mas não só. Podes ver coisas que não desejas nem nunca pensaste sequer ver.

- Eu não sou nenhuma criança - disse Galaduine - Além disso preciso de saber como estão determinadas coisas e pessoas. - Sorriu para Namali. - Se vir algo mais para além daquilo que queria ver, está visto. Não te preocupes e ajuda-me.

- Não tenho outra hipótese, pois não?

- Hum... Podes não me ajudar e então eu vou ter de ficar novamente encharcada a pedir que uma outra pessoa me ajude.

- É melhor não. Eu vou preparar a mistura e levo-ta ao teu quarto assim que estiver pronta.

- Obrigada - disse Galaduinne e seguiu para o seu quarto.

Não estava muito preocupada com o que pudesse ver para além daquilo que queria. Fosse o que fosse, ela aguentaria. De mais a mais, os sonhos também eram assim. Eram sempre assim: mostravam aquilo que muito bem lhes apetecia, com lógica ou sem ela, referentes à pessoa que visitavam ou não, passados, presentes ou futuros, às vezes uma mistura dos três. Não interessava. Tudo valia e tanto eram coisas boas como terríveis, reais ou irreais.

Chegou ao seu quarto, abriu a porta e entrou. Felizmente, alguém tinha acendido a sua lareira e o quarto estava quente e acolhedor.

- Galaduinne sentou-se à mesa de trabalho virada para a janela. Lá fora começava, uma vez mais, a chover. Ia ser outro daqueles dias chuvosos e, como diriam Ailura e Iruvienne, melodiosos. Era um bom dia tanto para se trabalhar como para reflectir; e ela precisava de fazer ambas as coisas.

Molhou a ponta da pena no tinteiro e começou a escrever, numa letra alta e bem desenhada, uma carta a Galianar. Pediu-lhe que dissesse a Athilya que ela continuava à sua espera e, na resposta à sua carta, enviasse notícias de Caladmiron. Tencionava acabar a carta depois de ver o que quer que fosse que a beberagem que Namali estava a preparar lhe permitisse ver. Assim, podia também dar notícias de Omnirion a Galianar.

Bateram à porta. Galaduinne levantou-se e foi abrir. Tal como suspeitara, era Namali que trazia a bebida num elegante copo de vidro tapado com um pano branco bordado a azul-claro. Galaduinne pegou no copo. A bebida tinha uma cor transparente, ligeiramente rosada.

- Fiz mais do que será necessário - disse Namali. - Dois goles devem chegar. Mas podes guardá-la para o caso de voltares a precisar dela.

- Obrigada - disse Galaduinne com um ligeiro aceno de cabeça.

- Talvez seja melhór eu ficar contigo. Não conheço ninguém que tenha usado esta poção, mas sei que ela é muito forte e eu conheço o efeito inicial desse tipo de bebidas. Galaduinne afastou-se para a deixar passar e fechou a porta.

- Não te devias preocupar tanto comigo, Namali.

- Faria isto por qualquer outra pessoa. Bem, talvez não. Porque se fosse qualquer outra pessoa, eu não teria sequer feito a bebida. Mas tu tornas-me irresponsável!...

Galaduinne sorriu e destapou a bebida. Cheirava a plantas secas, levemente perfumadas. Bebeu dois goles, tal como Namali dissera. Tinha um sabor neutro, mas criava uma sensação esquisita ao descer pela garganta.

Nos primeiros minutos Galaduinne não sentiu absolutamente nada de diferente. Olhou para Namali que se tinha sentado na borda da sua cama e lhe sorriu, e depois para o anel pousado no toucador. Nada aconteceu. Então, o seu abdômen retraiu-se e ela pensou que ia vomitar. Começou a ter suores frios e sentiu-se a perder o equilíbrio. Tentou agarrar-se ao toucador mas falhou. No entanto, Namali amparou-a, mantendo-a em pé. Galaduinne levantou, a custo, a cabeça e olhou em frente, mas descobriu que não conseguia distinguir um ponto. Todo o quarto girava à sua volta e, se ela se mexesse, era ainda pior. As cores das paredes, dos móveis e dos seus objectos misturavam-se num turbilhão de cor indefinida que girava a uma velocidade louca à frente dos seus olhos, deixando-a ainda mais enjoada do que já estava.

- Deita-me - conseguiu pedir a Namali.

Estava toda transpirada. O seu vestido tinha-se colado ao corpo, os cabelos estavam empapados em suor e ela sentia-se cada vez mais tonta e maldisposta. Ainda bem que Namali estava ali. Se alguma coisa corresse mal ela era a pessoa indicada para a ajudar. Mas não se podia dar já por vencida. Tinha de tentar. Fechou os olhos.

Já não via o turbilhão de cores a girar à sua frente, mas continuavam a passar muitas imagens diferentes à sua frente. Talvez fossem imagens de várias coisas que se passavam ou tinham passado em diversos lugares. Galaduinne não tinha a certeza, pois elas eram tão rápidas que ela não tinha tempo de distinguir coisa alguma naquela confusão.

Tinha de se concentrar. Manter os olhos fechados e, de algum modo, escolher uma delas. Omnirion tinha de estar ali algures.

Abstraiu-se das imagens o mais que pôde e deixou-se cair num estado mais profundo. Um estado onde seria fácil ter a Visão.

Agora sentia-se mais calma, diferente. Atreveu-se a olhar daquele estado profundo para o mais superficial das imagens. Elas pareciam correr mais lentamente e Galaduinne começou a distinguir alguns objectos concretos: uma árvore, uma pedra, uma janela, uma mesa com pessoas sentadas à volta, uma espada. As imagens pareciam passar uma a uma à sua frente, parar um pouco como que a dar-lhe tempo para a escolher ou não e, se não, dar lugar à seguinte.

Era isso! Tudo o que precisava de fazer era escolher a imagem que queria, como se aquilo fosse um enorme catálogo ou, no mundo moderno dos Homens, uma televisão com imensos canais. Bastava pensar naquilo que queria ver.

Omnirion. Hoje e neste preciso momento. As imagens lá em cima rodaram todas juntas, um pouco como as cores do seu quarto.

As imagens pararam, lenta e quase imperceptivelmente de rodar, revelando um lugar escuro e sombrio onde o ponto mais claro era o topo de uma torre de pedra branca. Estava ali Omnirion. Estava a ver a cidade que mais amava e era o lugar mais horrível e desolador que alguma vez vira em toda a sua longa vida.

Galaduinne tentou subir um pouco mais, para o espaço superficial onde a Visão estava a ocorrer. Mas descobriu que não era preciso. A Visão aproximou-se e encheu todo o local. Era como se estivesse novamente nas ruas, outrora brancas, de Omnirion.

Muitas casas tinham sido totalmente destruídas, as ruas estavam sujas e cobertas de ervas daninhas, as árvores, que outrora se erguiam altas e belas por entre a brancura de Omnirion, tinham morrido e secado, mas mesmo assim ela viu um Magdul a arrancar maldosamente a carcaça de uma delas. E o Palácio do Ouro e do Verde não ostentava mais as suas verdes trepadeiras, que tinham também morrido, nem mostrava os seus enfeites de ouro, pois todo ele, com excepção do topo da torre, estava coberto por uma massa negra e viscosa. Ela conseguira escapar a essa massa, graças aos sonhos e ao aviso de Mianon, mas Omnirion não. O lugar repleto de sol e cânticos onde brincara com os seus pais, onde vira tantas vezes aquela luz mágica, repleta de amor e preocupação, nos olhos de Ailura e Edínmtor, o lugar em que casara e onde as suas filhas tinham nascido não existia mais. Desaparecera, morrera abafado pelo manto de terror que Morgriff não resistia a arrastar consigo.

Não queria ver mais. Já chegava. Era pior que tudo o que vira nos seus sonhos. Era horrível! Queria sair dali. E então a imagem avançou, com uma velocidade louca, e ela deu por si a entrar no palácio. Percorreu as suas salas, os seus quartos, a biblioteca e ficou mais calma. Morgriff não tinha conseguido entrar ali! A maioria do interior do palácio estava intacto e embora tristemente iluminado, conservava toda a beleza e conhecimento que sempre tivera.

A imagem avançou novamente, até à sala do trono onde Morgriff estava sentado, com a coroa, também ela enegrecida, na cabeça. As suas feições jovens e bonitas apresentavam uma estranha mistura de contentamento e aborrecimento. Ele estava, sem dúvida, feliz com toda a destruição que conseguira criar, mas também devia estar zangado por não poder entrar na maioria das divisões do palácio e não conseguir apoderar-se do Ceptro. Galaduinne não deu muita importância ao aparente estado de espírito de Morgriff. Não lhe interessava. Considerava Morgriff um pouco como uma criança mimada que, quando não consegue o que quer, inferniza a vida de todos até o conseguir. A paciência e compreensão de Galaduinne eram, como as detodos os Elfos e Fadas, consideravelmente grandes, mas no que se referia a crianças mimadas eram perfeitamente inexistentes.

Já vira o suficiente. Sabia como Omnirion estava, embora não tivesse gostado do que vira. Era altura de tentar ver a próxima coisa que queria. Concentrou-se em abandonar aquela Visão e a imagem afastou-se lentamente. As várias imagens recomeçaram a deslizar à sua frente.

Athilya. Agora.

As imagens voltaram a girar.

Depois de rodopiarem durante algum tempo pararam, revelando uma sala ampla, bem iluminada por janelas, apenas cobertas por translúcidos véus verdes que àquela hora esvoaçavam invadindo a privacidade da sala. A sala era de pedra branca e duas das suas paredes estavam forradas a livros de capas grossas e lindamente trabalhadas, que tinham sido cuidadosamente arrumados em estantes de madeira esculpida em baixos e altos-relevos. A meio da sala, havia uma mesa de madeira clara, como a das estantes, onde repousavam vários livros, uns abertos outros fechados. Duas pessoas, sentadas em cadeiras de costas altas e elegantes, da mesma madeira das estantes, trabalhadas em esguias arcadas entrelaçadas, observavam um mapa antigo que tinha sido delicadamente estendido sobre a mesa. Uma dessas pessoas era Galianar, que percorria o mapa com os seus dedos tão longos e magros que se tornavam estranhos. A sua cabeça de cabelos lisos de um castanho dourado estava ligeiramente inclinada, numa atitude um pouco paternal, sobre a segunda pessoa. Galaduinne reconheceu imediatamente a segunda pessoa, embora ela estivesse bastante mudada. Athilya olhava atentamente o mapa de Caladmiron que Galianar lhe mostrava. O seu rosto alongara-se e os cabelos de um vermelho-fogo-acastanhado, exactamente iguais aos de Ogueimion, tinham perdido aquele ar extremamente liso e caíam agora pelas suas costas com uma suavidade e elegância encantadoras. Estava mais adulta, o seu corpo também se alterara e ela tornara-se uma mulher, o que não era muito estranho, uma vez que Athilya tinha quase dezoito anos. Mais algum tempo e o seu aspecto não mudaria muito. Mas uma coisa nela se mantinha inalterável. O seu nariz continuava pequenino, delgado e levemente arrebitado. No entanto, enquadrava-se perfeitamente no seu rosto.

Athilya levantou a cabeça e perscrutou a sala com os seus olhos brilhantes castanho-claros, iguais aos da irmã e do pai.

- O que foi, Athilya? - perguntou Galianar.

- Nada - respondeu Athilya, despreocupadamente, mas olhou ainda durante alguns segundos à sua volta e, particularmente, para o sítio onde Galaduinne estaria, supostamente, a observá-la.

Galaduinne ficou contente. A sua filha estava bem e, sem dúvida, muito bonita. Não precisava de ver mais, podia deixar Athilya em paz com os seus estudos. Concentrou-se e abandonou aquela Visão.

Vira tudo quanto queria, era tempo de abrir os olhos e acabar a sua carta para Galianar. Mas, antes que tivesse tempo de fazer fosse o que fosse, as imagens recomeçaram a rodar.

As imagens estacaram e ela viu-se a si própria, sentada nas margens do Enyel, muitos anos mais nova. Tinha um vestido de veludo verde- escuro com pequenas folhas verde-claras finamente bordadas e uns sapatos verde-escuros calçados. Os seus dedos brincavam distraidamente com a erva coberta de orvalho e estava invulgarmente séria.

Galaduinne lembrava-se bem daquele dia. Não precisava de ficar ali a recordá-lo, muito embora a ideia não lhe fosse de todo desagradável. Mas tinha outras coisas a fazer, entre elas sossegar Namali e dizer-lhe que correra tudo bem. Por isso, tentou recuar e abandonar aquela Visão, mas descobriu que não conseguia: Aquilo devia ser uma das Visões inesperadas de que Namali falara e que, aparentemente, tinha vontade própria. Muito bem, se até então não podia sair dali também não se cansaria a tentar, pois era muito agradável rever aquele dia.

Ogueimion chegara e ela viu-se a olhar para ele com brilho nos olhos um pouco evidente de mais.

- Não deve ser muito agradável estar sentada nessa erva molhada, num dia frio como este - observou ele.

Galaduinne não o viu, mas sabia que tinha falado debilmente.

Ogueimion sentou-se ao seu lado.

- Talvez não seja assim tão desconfortável - disse ele.

- Qual vai ser a lição de hoje, aprendiz de sábio?

Olhou para longe, para as profundezas da floresta, do outro lado do rio. Durante algum tempo nenhum deles disse o que quer que fosse. Galaduinne viu que, enquanto estivera a olhar para a floresta, Ogueimion não desviara os olhos dela.

- Ogueimion... - disse a Galaduinne do passádo.

- Eu sei, aprendiz de sábio. - Ogueimion afastou-lhe uma longa madeixa de cabelo do rosto, a sua mão desceu até aos lábios de Galaduinne e os seus dedos finos acariciaram-nos.

Galaduinne viu-se a afastar a mão de Ogueimion e a levantar-se. Virou-se para Ogueimion e sorriu, esticando uma mão para o ajudar a levantar. Ele tinha uma ligeira expressão de incompreensão no rosto.

- É desconfortável fazê-lo sentada - disse e soltou uma risadinha muito suave.

Ogueimion levantou-se. Galaduinne viu-se a passar a mão pelo rosto suave dele e a aproximar a sua cabeça da dele. Ogueimion enterrou a mão no meio dos cabelos dela e os seus rostos aproximaram-se.

A Galaduinne que estava a ter a Visão fechou os olhos e foi como se estivesse realmente a ser beijada pela primeira vez.

Quando abriu novamente os olhos a imagem estava a rodar a uma velocidade incrível e ela sentiu-se a passar para uma outra Visão, sem qualquer tipo de paragem.

Estava numa floresta de pinheiros altos, cobertos, assim como o chão, de neve. Galaduinne tinha a certeza de que nunca estivera ali, mas também não fazia a mínima ideia que lugar poderia ser aquele. De repente, tal como acontecera na Visão de Omnirion, avançou rapidamente, por entre a floresta e, quando começou a abrandar, deu por si sentada nos ramos de um dos pinheiros. Dali podia ver algo parecido com um enorme casarão de madeira, no meio de uma clareira branca. Havia fumo a sair de uma das chaminés.

Galaduinne tentou aproximar-se para ver melhor que lugar era aquele ou admirar aquela espécie de palácio, pois estava muito longe e não conseguia, efectivamente, ver grande coisa. Mas a Visão não o permitiu. Em vez disso, começou a afastar-se, como se tivesse medo que Galaduinne visse o suficiente para perceber onde estava. Galaduinne sentiu-se a regressar.

Galaduinne abriu os olhos. Namali estava debruçada sobre ela e passava-lhe um pano húmido na testa.

- Então? - perguntou Namali. - Viste tudo o que querias?

Galaduinne acenou afirmativamente com a cabeça.

- E viste também o que não querias?

- Não propriamente - respondeu Galaduinne. - Vi coisas que não esperava ver e outras que não sei sequer o que eram.

Levantou-se e tirou um vestido limpo de dentro do armário.

- Preciso de tomar um banho - disse a Namali.

- Se quiseres vir comigo conto-te tudo.

Saíram as duas. Viraram à direita antes de chegar à zona das janelas e novamente à direita, no fim do novo corredor. Percorreram o terceiro corredor até chegarem às escadas da entrada do castelo, que davam acesso aos restantes andares, e da entrada até ao andar de baixo. Aí entraram na primeira e única porta à esquerda.

A casa de banho era um lugar amplo dividido em duas zonas. A primeira tinha a meio uma série de elegantes lavatórios cada um com o seu pequeno espelho, uma delicada prateleira, um lindíssimo jarro de vidro trabalhado, cheio de água, e uma toalha de rosto azul. Nas duas paredes laterais estavam os sanitários que eram divisões individuais e fechadas. Esta primeira zona era iluminada por grandes fogos que ardiam em dois gigantescos pratos de ferro, suspensos do tecto. A segunda era a zona de banhos.

Cada banheira tinha ao seu lado um cabide para pendurar a roupa limpa, um cesto para a suja e uma prateleira com um lugar para o sabonete e a toalha de banho da mesma cor das de rosto. Aos pés de cada banheira havia também um tapetezinho para que, ao entrar e sair do banho, não se tivesse que calcar directamente o chão de pedra fria. Esta divisão era maior e, por isso, os fogos ardiam não em dois, mas em três pratos de ferro; além disso, como era a zona dos banhos, havia uma grande lareira ao fundo, para que nunca estivesse ali muito frio.

Àquela hora não estava ali ninguém e Namali e Galaduinne escolheram uma banheira bem perto da lareira.

Galaduinne tirou o seu vestido e pô-lo dentro do cesto da roupa suja que, no final do dia, uma sacerdotisa viria esvaziar. Entrou dentro da banheira, que entretanto Namali enchera com água quente, a qual fervia num suporte por cima do fogo da lareira e um pouco de água fria de um grande jarro ao lado da lareira.

Começou a lavar-se e contou a Namali mais ou menos tudo o que vira nas suas Visões.

- Nessa tua última Visão podias estar a ver o que existe para lá das Heniunel - disse Namali que se tinha sentado ao fundo da banheira.

- É possível - respondeu Galaduinne -, se a lenda do Povo Branco for de facto tão real quanto nós. Talvez devesse mandar lá alguém para descobrir, mas não agora.

Galaduinne levantou-se e Namali estendeu-lhe a toalha para que ela se limpasse. Vestiu o vestido lavado, feito num tecido quente de dois fios, um azul-claro e outro ligeiramente esverdeado, o que fazia com que o vestido mudasse de cor conforme ela se movimentava, e regressaram as duas ao quarto de Galaduinne. Quando lá chegaram, Namali ajudou-a a desenriçar os seus longos cabelos e secou-os um pouco mais com a ajuda de uma toalha.

- Obrigada, Namali - disse Galaduinne. - Agora, se não

te importas, sais para eu acabar o que estava a fazer.

- Claro que saio - respondeu Namali com um sorriso e foi-se embora.

Galaduinne levantou-se e foi até à mesa de trabalho acabar a sua carta para Galianar. Falou-lhe de Omnirion e da sua Visão do palácio na neve, sobre a qual lhe pediu que desse a sua opinião. Quando acabou a carta, colocou-a num envelope e lacrou-o. Tivera, como sempre, o cuidado de não ser explícita, nem dizer algo que Morgriff já não soubesse è lhe pudesse interessar, para o caso de a carta ser interceptada.

A chuva começou a cair com intensidade e o céu tornou-se mais escuro. Não ia demorar muito a que se formasse uma tempestade. Iruvienne deve estar contente. Ela adora tudo quanto seja chuva, tempestade ou paisagens que lhe recordem o Inverno, pensou.

Abriu um caderno de capa grossa verde-escura, onde brilhava uma árvore dourada coroada por um sol, igualmente dourado: o símbolo de Omnirion. O caderno tinha sido um presente do seu pai e destinava-se ao registo que ela, como Rainha das Terras da Luz, teria de fazer de Caladmiron. Galaduinne registou a data, deixou um pequeno espaço e começou a descrever o que vira em Omnirion.

Havia uma série de cadernos semelhantes àquele na biblioteca do Palácio do Ouro e do Verde. Cada um deles continha o registo de tudo o que se passara nas Terras da Luz, ou se relacionava com elas, durante o reinado de cada rei ou rainha. Galaduinne estudara, na sua infância, como preparação para o seu futuro como Rainha, os cadernos correspondentes aos anos mais importantes. Depois, tinha analisado alguns, ou determinadas passagens, por interesse próprio ou necessidade. No entanto, o primeiro desses cadernos não fora escrito por nenhum rei ou rainha élfica, mas sim por Aerzis e correspondia ao período em que os Elfos, as Fadas, os Gnomos e os Duendes ainda dormiam nas profundezas da terra e da água. Galaduinne reparara que esse caderno tinha sido uma das coisas que Aran trouxera da biblioteca do palácio.

Quando estava quase a acabar o seu registo, bateram à porta.

- Entre - disse Galaduinne, molhando a pena no tinteiro e continuando a escrever.

- Chegou uma nova rapariga - disse a voz de Namali atrás de si.

- E eu tenho de ir lá abaixo recebê-la, não é Namali? Namali, que entretanto se tinha colocado à frente de Galaduinne, sorriu.

- É. Elian já está a falar com ela e espera-te na entrada - fez uma pequena pausa. - Galaduinne, esta rapariga é estranha.

- Porque dizes isso?

- Vais compreender quando a vires.

Galaduinne desceu até à entrada onde Elian falava com alguém. Aproximou-se e a sacerdotisa afastou-se para lhe dar espaço para falar com a rapariga. Galaduinne percebeu imediatamente porque Namali dissera que a rapariga era estranha.

A jovem, que permanecia muito direita e infantilmente sorridente à sua frente, era uma mulher pequena, principalmente tendo em conta a altura normal dos Elfos e Fadas, mas muito elegante. Usava um vestido, com bordados prateados, azul muito escuro, tão escuro que quase parecia preto, e uma capa com capuz do mesmo azul-escuro. As roupas davam-lhe a aparência de uma das sacerdotisas mais velhas e ela ostentava o ar de quem sab tanto ou mais que qualquer uma delas. Os seus cabelos eram negros e, embora fossem lisos na raiz, encaracolavam no fundo, formando uma espécie de cachos. Os seus olhos eram de azeviche brilhantes. Galaduinne nunca vira uns olhos simultaneamente tão bonitos e desconcertantes.

- Como te chamas? - perguntou à rapariga.

- Lunam - respondeu ela e a sua voz soou melodiosa.

Galaduinne estranhou aquele nome, que significava lua, mas não disse nada. Lunam sorriu para ela.

- Sê bem-vinda a Névila e Brumívium - disse Galaduinne. - Elian, por favor, leva Lunam até um dos quartos livres. - Virou-se para a rapariga. - Descansa. Deves estar cansada. Espero ver-te hoje ao jantar.

- Sim, Ladli - disse Lunam.

Lunam seguiu Elian pelas escadas, sempre com o seu porte altivo. Galaduinne ficou a observá-las. Namali tinha razão: aquela rapariga era estranha e escondia qualquer coisa. A sua atitude era a de alguém que, sendo extremamente perigosa e autoritária, tentava parecer a todos tímida e afável, e talvez, em parte, até o fosse. Mas quem era ela? Galaduinne tinha a certeza devido às suas orelhas, que ela não era uma elfo, mas também não lhe parecia que fosse uma fada. Nenhuma fada teria um nome em latim. Quem lhe teria dado aquele nome? E mais importante, se não era nem elfo, nem fada como é que soubera da existência de Névila e aprendera a falar Lissanin? Pelo menos uma coisa deixava Galaduinne um pouco mais sossegada. Se ela conseguira entrar em Brumívium não podia ser má ou, no mínimo, não muito.

 

              A ENTRADA DA MONTANHA

Galaduinne estava parada em frente a Blandulez que brilhava intensamente no meio da noite. Estava tudo sereno, não se ouvia nada, nem mesmo o som da natureza nocturna. Então alguém a chamou, muito baixinho, quase imperceptivelmente. A voz fazia eco e parecia o gorgolejar da água.

- Lha!. - perguntou Galaduinne.

A voz soltou uma risadinha juvenil e irritante.

- Galaduinne... - continuou a chamar a voz. - Não me consegues encontrar, se não procurares.

Galaduinne subiu o túnel, percorreu todos os andares de Névila, todos os quartos, espreitou em sítios onde nunca entrara e que não se lembrava de existirem, saiu do castelo e percorreu a floresta com uma rapidez perfeitamente impossível.

- Quem és tu? - perguntava às vezes, mas a voz continuava a mandá-la procurar.

- Era uma vez - dizia ela -, quatro irmãos. Dois morreram um tornou-se muito mau e a outra desapareceu. Era uma vez... A voz continuou com aquela lengalenga durante muito tempo, num tom monocórdico e incomodativo, acrescentando às vezes uma das suas risadinhas. Por fim, Galaduinne cansou-se e, ainda a correr, embora sem saber muito bem porquê, dirigiu- se novamente para perto de Blandulez.

- Muitos acham que ela morreu - disse a voz, mudando a letra da lengalenga, mas continuando com a mesma expressão.

- Talvez não... talvez sim... Provavelmente não.

Calou-se e Galaduinne chegou ao fim do túnel que abria para o interior da montanha. Um vulto pequenino e elegante estava parado junto da Árvore Branca. O vulto virou-se e ficou a olhar para Galaduinne com um sorriso infantil. Era Lunam.

Galaduinne acordou. Esperou um pouco antes de se levantar, para que tivesse tempo de abandonar totalmente o estado de sono e ficar perfeitamente lúcida. Por vezes, ao acordar de repente, a Visão prolongava-se, sem que fosse de facto Visão, mas sim uma confusão de imagens sem nexo ou significado. Quando isso acontecia, era melhor esperar muito quieta e relaxada até que as imagens acabassem e ela ficasse totalmente acordada.

Levantou-se e olhou para fora. Ainda era muito cedo e a noite nem sequer acabara totalmente. Mas ela tinha a certeza que não conseguiria voltar a adormecer.

Abriu a arca, tirou o seu vestido de Conhecedora da Noite e a capa e vestiu-se. Era muito cedo para tomar o pequeno-almoço ou para acordar Iruvienne. No entanto, não havia grande problema em acordar Namali. Ela já estava habituada.

Saiu do seu quarto e dirigiu-se para o de Namali. Ao passar pela zona das janelas que davam para o interior da montanha, não conseguiu evitar espreitar através delas para ver se via alguém junto a Blandulez, mas não conseguiu ver nada para além dos contornos da vegetação.

Abriu a porta do quarto de Namali e entrou. O quarto dela era em tudo parecido com o seu primeiro quarto em Névila, apenas com a ligeira diferença que certas partes das paredes do quarto da amiga estavam forradas a plantas curativas, frescas, secas ou a secar. Namali dormia. Galaduinne aproximou-se da cama e chamou-a suavemente.

- Galaduinne? - perguntou Namali, abrindo os olhos muito rapidamente. - O que fazes aqui?

- O habitual - respondeu Galaduinne com um ligeiro sorriso. - Não consigo dormir.

- Mais uma das tuas Visões - disse a elfo enquanto se levantava e vestia.

Em pouco tempo, estavam as duas lá fora, sentadas num dos pedregulhos perto da nascente do Enyel, a ver o novo dia nascer. O dia amanhecia já cinzento e prateado e, embora elas estivessem bem agasalhadas, podiam sentir o vento e o ar gelado a cortar-lhes as faces. Ia ser mais um dia frio e tempestuoso, como todos os dias em Brumívium e, em especial, aqueles que antecediam o Inverno.

Durante muito tempo, nenhuma delas falou. Galaduinne tinha-se perdido nos seus pensamentos e Namali observava atentamente uma pequena flor de caule pegajoso com espinhos pequeníssimos e quase invisíveis.

Lunam chegara a Névila há sete dias e a verdade era que o seu comportamento fora sempre extremamente correcto e irrepreensível. No entanto, ela parecia afastar as outras sacerdotisas mais do que aproximá-las. E Galaduinne sabia que isso não era bom sinal. Já tentara descobrir quem ela era, mas, relativamente ao lugar donde viera, ela limitava-se a responder que viera do Norte e, logo a seguir, com uma pequena vénia e um dos seus sorrisos infantis, afastava-se para fazer outra coisa qualquer. Galaduinne já percebera que teria de descobrir a identidade de Lunam sozinha e sem qualquer tipo de ajuda. Mas até há pouco tempo, não tinha a menor pista a não ser a muito vaga indicação de que ela viera do Norte, e que Galaduinne não tinha sequer a certeza de ser verdadeira. Agora, com aquele sonho, começara a formar uma hipótese na sua cabeça que, apesar de perfeitamente improvável, parecia plausível. O problema era prová- la.

- Diz-me, por favor, que não vais voltar a usar aquela mistura de ervas - disse, por fim, Namali.

- Não - disse Galaduinne, sorrindo. - Uma vez chegou-me. Não tenho intenção de a usar novamente, a menos que esteja completamente desesperada por descobrir algo e já tenha esgotado todas as outras opções.

Namali começou a rir e Galaduinne juntou-se-lhe.

- Então, Galaduinne, talvez seja melhor ires arranjar-te para podermos tomar o pequeno-almoço.

Regressaram a Névila, com muita atenção e cuidado para não se perderem. O nevoeiro encobrira tudo o que havia abaixo da montanha e, mesmo elas, tinham muita dificuldade em ver o caminho. Quando, ao fim de algum tempo, chegaram ao castelo, Namali subiu com Galaduinne para a ajudar a arranjar-se.

Galaduinne pôs um vestido de um tecido leve e quente cinzento-claro-prateado, com várias e discretas folhas bordadas a azul-escuro. Namali entrançou os seus cabelos da zona das têmporas em duas tranças, uma de cada lado, que se juntavam na parte de trás da cabeça de Galaduinne, formando uma única trança que caía sobre o resto dos cabelos. Quando Galaduinne ficou pronta, desceram para o refeitório.

Durante o pequeno-almoço, Galaduinne observou, atentamente, Lunam, na vã tentativa de descobrir algo sobre ela que ainda não soubesse. Mas, evidentemente, não conseguiu. Uma coisa era certa, Lunam não era nem elfo, nem fada, e de certeza que não era nenhum duende ou gnomo. Muitos acham que ela morreu. Talvez não... talvez sim... Provavelmente não, A sua ideia assemelhava-se cada vez mais à única hipótese possível, por mais inverosímil que parecesse. Como é que alguém podia desaparecer durante tanto tempo? E porque é que aparecia justamente agora? Qualquer que fosse a resposta para as suas perguntas, se é que havia sequer uma, tinha primeiro de confirmar a sua teoria. E para isso precisava de um registo dos tempos antes dos Povos Sábios, o que, graças a Aran, ela tinha. Por isso, no fim da refeição, foi ter com ele.

- Aran - disse-lhe -, preciso da tua ajuda.

- Claro, Senhora. Do que precisais?

- Do caderno com o registo de Aerzis. Aran inclinou ligeiramente a cabeça.

- É mais vosso do que meu - respondeu, e os dois saíram do refeitório.

Galaduinne sentou-se à sua secretária e olhou para o caderno que Aerzis escrevera há muito tempo. Era um caderno de capa branca com um único e intricado desenho verde brilhante ao centro. As folhas eram de um tom entre o bege e o amarelo e estavam escritas com tinta preta numa letra elegante, bem desenhada e consideravelmente pequena. Com excepção de um espaço de cinco centímetros logo no início e um ou outro desenho ao longo do registo, as páginas estavam totalmente escritas do princípio ao fim. Começava assim:

Este é o registo de Aerzis, filho dos Elementos, feito no começo dos tempos, antes de os Elfos, as Fadas, os Duendes e os Gnomos acordarem do seu sono, nas profundezas da terra e da água.

Eu e os meus irmãos vivemos numa grande floresta de árvores altas e belas, com folhas em tons de verde, vermelho e castanho. Este Mundo está, pelo que nós vimos até agora, coberto de florestas, que deverão ser o ambiente em que seres que dormem melhor se sentirão. A parte deste Mundo onde nos encontramos é delimitada por uma grande cordilheira de montanhas e pelo mar. Dentro destes limites, existem espaços. Dois deles são florestas, aquela onde vivemos e outra, envolta em brumas e mais escura, onde geralmente chegamos. Entre estas duas há uma longa extensão de erva muito verde; um longo campo ondepraticamente não existem montes.

Galaduinne parou um pouco. Ela lera a parte do registo de Aerzis que falava do grande fogo que se erguera desde o princípio e devastara grande parte da floresta de Brumívium, até que ele tinha conseguido, com a ajuda de Valindra e Nessya, pará-lo. Brumívium tinha ficado reduzida àquilo que era agora e algumas das suas antigas árvores, que tinham conseguido resistir um pouco mais ao fogo destruidor, mas que ficaram, inevitavelmente, queimadas, ainda a rodeavam. Brumívium tornara-se assim, devido à protecção que os três filhos dos Elementos lhe tinham dado, um lugar sagrado onde o mal não conseguia entrar. No entanto, Galaduinne nunca se apercebera até então que Brumívium fora em tempos uma floresta muito maior que Caladmiron, que ia desde o fim de Ranthlin até depois de Momiran.

Virou algumas páginas, nas quais Aerzis fazia uma descrição pormenorizada e interessante de como aquele Mundo era antes de eles construírem fosse o que fosse, mas que Galaduinne não tinha tempo para ler. Pelo menos, não naquela altura. Parou ao fim de oito ou nove folhas e continuou a ler.

Falei, logo no início do registo, nos meus irmãos que são três: Morgriffe e duas raparigas, Valindra e Nessya.

Deixo aqui a descrição de cada um deles, pois não sei o que terá acontecido quando os seres que esperamos acordarem.

Morgriff é belo de rosto como, infelizmente, tenho de concordar que não sou nem nunca serei. Tem cabelos de um castanho muito escuro, quase negro, os seus olhos são profundamente pretos, o seu rosto tem beleza e forma linhas bem definidas e ele é impressionantemente alto (sem dúvida, no minimo um metro e oitenta). Épena o seu carácter não ser tão nobre quanto as suas feições. O meu irmão é um grande líder, mas parece querer usar o seu dom para os propósitos errados. Já tentei explicar-lhe o bem que ele podia fazer aos seres que estão prestes a acordar. No entanto, ele zanga-se comigo ou, como ultimamente tem acontecido, ri-se de mim, chama-me pobre e coitado escravo de criaturas adormecidas e desaparece por períodos mais ou menos prolongados. Como se isto não bastasse, tem-se-lhe metido na cabeça uma ideia maluca e que vai contra tudo aquilo que é suposto nós fazermos aqui. Não sei como isto vai acabar, mas parece-me que não se avizinha um futuro muito risonho para os povos que aí vêm. Espero poder fazer algo para, no minimo, os ajudar.

Valindra é um pouco diferente, mas também tem algumas ideias que me inquietam. Ela não partilha as ideias megalómanas de Morgrif, no entanto, à sua maneira, também ela gostava de poder decidir e comandar o futuro dospovos que ainda nem sequer acordaram. A minha irmã tem mais respeito pelas coisas vivas e compreende que existem poderes acima dela, os quais estão para além do seu alcance. Contudo, ela joga o seu próprio pequeno jogo e tem tendência a considerar todos os outros meras peças do seu tabuleiro. Com o tempo também ela compreenderá o quanto está errada, pois as nossas estratégias podem ser muito facilmente mudadas e o mesmo caminho leva a muitos fins diferentes. Valindra admira a noite, acima de qualquer outra coisa, e é também uma pessoa de aparência estranha, mas inegavelmente bonita. Embora muito pequena (cerca de um metro e cinquenta). tem um porte altivo e digno que é capaz de desconcertar muitas pessoas que a vejam pela primeira vez. Os seus cabelos são completamente pretos e começam muito lisos, para acabarem perfeitamente encaracolados, formando incriveis cachos de cabelo negro que lhe caem pelas costas. Mas a sua maior beleza são, provavelmente, os olhos. Têm a mais incrível das cores, azul-turquesa, e são tão brilhantes que parecem poder ver seja o que for.

Nessya é a mais doce e justa das criaturas, mas é também uma inocente.

Galaduinne parou de ler. Não precisava de mais nada. Lera o suficiente para confirmar a sua ideia. Por mais estranho que lhe pudesse parecer, Valindra continuava viva e, naquele momento, chamava-se Lunam. Tudo o que tinha a fazer era encontrá-la e perguntar-lhe quais as suas intenções. Mas antes de sair do quarto abriu o caderno na última página e leu o seu fim.

Estou muito cansado. Morgrifftornou-se mais poderoso e doido do que eu alguma vez imaginei ser possível. Amanhã, ou talvez ainda hoje, vou morrer. Não tenho quaisquer dúvidas disso.

Entreguei o Ceptro ao Rei Fiman e espero que ele ou alguém do seu povo descubra a maneira como ele funciona, porque eu já não tenho forças para lho explicar.

Termino aqui a minha tarefa para com os Elfos, as Fadas, os Duendes e os Gnomos. Espero que os meus registos lhes sejam proveitosos, pois em tudo o resto falhei.

Que os Elementos ajudem os Povos Sábios nos tempos negros que eu não consegui evitar.

Galaduinne fechou o caderno, deixou-o na sua mesa de trabalho para, mais tarde, o ler do princípio ao fim e saiu. Tinha a impressão que encontraria Valindra junto a Blandulez.

Aerzis tinha, de facto, falhado na sua missão. Mas ditara-lhes um bizarro destino: lutar por um estranho ceptro de ouro maciço que era, simultaneamente, a única coisa que podia destruir o mal que eles enfrentavam e tudo o que esse mal precisava para os dominar de uma vez por todas.

Valindra estava, de facto, no interior da montanha, muito pequena e direita a olhar para a Árvore Branca.

- Olá, Valindra - disse Galaduinne, e ela virou-se para a encarar.

- Começavas a desapontar-me, Galaduinne. Estava a ver que nunca mais descobrias. O que foi que te mostrou a verdade? Os sonhos? O registo do meu irmão? Ambos? Ou foi outra coisa qualquer?

Galaduinne não respondeu. Em vez disso, sorriu. Valindra era de facto, sem a máscara de Lunam, um pouco desagradável e arrogante.

- Devia estar numa qualquer das vossas lições – continuou ela. - Não me lembro bem qual. Mas também não interessa.

Certamente que amanhã, ou mesmo hoje, vais ordenar-me que seja uma das vossas Conhecedoras da Noite, porque eu não preciso de lições e elas limitam-me demasiado os movimentos.

- Ninguém se torna uma Conhecedora da Noite uma semana depois de cá chegar. O conhecimento leva o seu tempo.

- Mas eu não sou nenhuma das vossas Conhecédoras do Crepúsculo e há muito que sei tudo o que aqui possa ser ensinado. - Valindra olhou Galaduinne directamente nos olhos e retribuiu-lhe o sorriso. - Além disso, eu sou Valindra, filha dos Elementos.

- Sim, é verdade, por mais estranho que isso soe:

No entanto, o conhecimento é infinito. Mesmo para ti...

Valindra aproximou-se dela e parou mesmo à sua frente.

Galaduinne sentiu-se estranhamente desconfortável, porque era muito mais alta do que Valindra o que a obrigava a inclinar a cabeça para a olhar, e ela não queria fazer isso. Não lhe interessava muito o que Valindra desejava pois, tal como Mianon dissera ela achava que pertencia a um povo suficientemente antigo e sábio para tomar as suas próprias decisões. Contudo, Valindra continuava a ser uma dos filhos dos Elementos e Galaduinne não a queria desrespeitar.

- Gostas de me enfrentar ou achas apenas que sou demasiado parecida com o meu irmão Morgriff.

- Acho que és em parte uma criança mimada, tal como ele.

- Talvez - respondeu Valindra e soltou uma gargalhada

cristalina. - É defeito de família. - Para grande espanto de Galaduinne, a sua voz soou suave e verdadeiramente divertida.

- Não me orgulho do que ele fez e faz. Ele matou os meus irmãos e ter-me-ia morto também se eu não tivesse fugido. Isso é algo que eu não lhe posso perdoar.

- O que vieste aqui fazer? - perguntou, muito suavemente Galaduinne.

- Morgriff levou o jogo longe de mais. Está na altura de

o parar e vim cá para te ajudar a levares essa tarefa até ao fim.

- Fez uma pausa, durante a qual voltou para perto de Blandulez e se voltou novamente para Galaduinne. - Percebes agora por que razão preciso de liberdade de movimentos?

Galaduinne não respondeu, ela não era a pessoa de quem a profecia falava. Mas a profecia tinha sido feita por Valindra e Valindra estava ali para a ajudar a derrotar Morgriff. Quereria isso dizer que...

- Esquece a profecia! - disse de repente Valindra. - Eu não me lembro de uma única coisa do que ela diz e ela está muito bem guardada dentro desta árvore. É algo que acontece com frequência com as profecias. A pessoa que as faz acaba por esquecer tudo ou quase tudo o que elas dizem. De facto, deve haver uma boa quantidade de pessoas do teu povo que sabe mais sobre ela do que eu.

De uma maneira ou de outra, as profecias não acontecem sozinhas. Precisam sempre de uma pequena ajuda, e é exactamente isso que eu pretendo fazer. Vou preparar-te para defrontares o meu irmão e garanto-te que quando o fizeres ele não te vencerá. - Parou novamente e ficou a olhar Galaduinne com uma expressão mais suave do que a que tivera até ali. - Então? Vais ou não fazer algo para resolveres o meu pequeno problema com a vossa hierarquia?

- Farei aquilo que puder, sem levantar suspeitas:

respondeu Galaduinne. - Eu não sou a única a desconfiar que és mais do que aparentas ser.

Valindra sorriu e virou-se para a Árvore Branca.

- Aproxima-te Galaduinne. Vê como esta árvore é magnificente.

Galaduinne aproximou-se, lentamente. Estava a ficar gelada. O interior da montanha com a sua faustosa vegetação e o ambiente húmido tornava-se, durante o Inverno, verdadeiramente frio. Devia ter levado uma capa quente para se aquecer. Valindra tinha a sua posta, fora mais cuidadosa do que ela.

- Só existe uma outra árvore como esta. E, por incrível que te possa parecer, essa outra árvore está no Mundo dos Homens. Nasceu lá muito depois de esta aqui ter nascido. O lugar onde está a árvore gémea desta é, para os Homens, também um local protegido e sagrado, ou pelo menos costumava ser. O nome desse local é Avalon e é uma terra de sabedoria e conhecimento. Avalon tinha, e penso que ainda tem, tal como Brumívium, as suas sacerdotisas.

Blandulez não tem folhas e os seus ramos estão quase sempre nus. Não é algo que, numa árvore, se considere bonito ou agradável. E, no entanto, Blandulez é, provavelmente, a mais bela árvore que vi até hoje. Os seus frutos são raros e extraordinariamente belos. Têm a forma de uma maçã, da mais banal das maçãs. No entanto, a sua cor é deslumbrante, tão deslumbrante que eu não me atrevo a descrever-ta. Se algum dia a vires perceberás porque não o faço. O interior do seu fruto não é sólido, mas líquido. E esse líquido tem a capacidade de devolver a vida a uma planta que secou ou murchou, como se fosse o mais natural dos processos, assim como limpa a sujidade que o mal cria. Mas o fruto não nasce quando nós queremos, apenas quando ele acha que deve.

Valindra parou e olhou para Galaduinne.

- Vocês nunca descobriram como o Ceptro funciona, pois não? - perguntou ao fim de algum tempo.

- Não - respondeu Galaduinne. - Mas Angus e Ailura usaram-no.

- Sim - disse Valindra com alguma amargura na voz. - O teu avô morreu ao fazê-lo, sem que conseguisse afastar Morgriff por muito tempo, e a tua mãe, tão talentosa que muitos acharam que seria ela a pessoa certa, limitou-se também a afastá-lo por mais algum tempo do que aquele que Angus conseguiu. No fim, tudo o que fizeram foi falhar. Mas não é de admirar. Afinal eles não passavam de Elfos e Fadas. Tal como tu. Como todos vocês, que nem sequer conseguem ser aquilo que é a vossa verdadeira essência sem que primeiro morram.

Galaduinne olhou-a perfeitamente espantada, mas sem que o deixasse transparecer. A seu modo, Valindra era, de facto, tão terrível quanto Morgriff. Ela podia dizer o que quisesse, mas o que Ailura, e mesmo Angus, tinham feito fora fantástico e todo o Povo da Luz os admirava por isso.

- Não te preocupes - disse Valindra, novamente num tom calmo. - Eu ensino-te o que for preciso. Mas primeiro tens de fazer outra coisa, antes que Morgriff o faça. Tens de ir até àquela que é a montanha das Heniunel mais próxima de nós e lá chamar o Senhor dos Anões. Morgriff ainda não se lembrou desse povo pequeno pelo qual ele tem ainda menos consideração do que por vós. Mas eu conheço-os bem e sei que, se fores lá de boa vontade, eles se tornarão bons aliados vossos. Leva-lhes presentes e vai com alguém por quem eles fiquem encantados. Alguém que seja simultaneamente divertido e sábio, alguém que os respeite e não os afaste pelos seus modos um pouco... rudes.

Galaduinne não gostou muito da ideia. Nunca vira Anões mas, como a maioria dos Elfos e Fadas, ela achava-os desagradáveis e grosseiros. Havia, em todos os escritos de Omnirion, uma ou outra passagem referente aos Anões. Dizia assim:

Os Anões chegaram um dia, vindos talvez do fim da terra, com os seus machados, pás, picaretas e modos bruscos. Partiram aspedras, escarafuncharam a terra, comeram e beberam tudo quanto encontraram e criaram uma desordem terrivelmente insuportável. Por m, tão depressa quanto tinham surgido, partiram e, felizmente, nunca mais foram vistos em Caladmiron ou Brumí vium.

Era uma pequena passagem, praticamente insignificante, mas fora o suficiente para fazer com que as Fadas e, principalmente, os Elfos não tivessem qualquer interesse em se relacionarem com eles. Assim, simplesmente, esqueceram esse povo amante de rochas e minerais, que talvez tivessem vindo da terra e à qual pareciam ter regressado.

Galaduinne anuiu com a cabeça.

- Muito bem - disse. - Mas que tipo de presentes lhes devo levar?

Valindra sorriu e pareceu a Galaduinne que ela estava

levemente contente e divertida com a falta de conhecimento que Galaduinne acabava de revelar, relativamente aos Anões.

- Rochas e minerais, naturalmente. Pede às sacerdotisas.

Elas devem arranjar-te algumas rochas fora do comum e, com sorte, alguma pedra preciosa especialmente bonita. – Valindra parou novamente e, ainda com um ténue sorriso nos lábios, inclinou ligeiramente a cabeça para o lado direito, continuando sempre a olhá-la. - Vai, Galaduinne. Deves ter muito que fazer. E

não te esqueças de escolher bem a pessoa com quem vais.

Galaduinne olhou-a durante alguns momentos, tentando decidir se devia ou não procurar uma resposta suficientemente adequada à atitude de Valindra. Mas, por fim, resolveu não se deixar envolver no esquema dela e virou costas.

- Galaduinne... - chamou Valindra, quando ela já estava à entrada do túnel. - Mais uma coisa. Já que não usas o Anel da Noite, agradecia que mo devolvesses. Como deves saber ele é meu e cada um deve guardar aquilo que lhe pertence. Eu depois empresto-to para as cerimónias.

Galaduinne nem sequer se virou para a encarar. Assim

que ela acabou, limitou-se a continuar o seu caminho até chegar ao quarto. Aí sentou-se em frente à lareira, para se aquecer. No fundo, Valindra pretendia usá-la para atingir os seus próprios fins. Muito bem. Ela que fizesse como queria. Para já fingiria ser apenas mais uma das peças no tabuleiro do seu jogo. Mas no fim, Valindra perceberia que quem tinha sido usada fora ela e não Galaduinne. Valindra jogaria o seu jogo e Galaduinne também.

Galaduinne não demorou muito a encontrar a pessoa perfeita para ir consigo. Iruvienne tinha todas as qualidades que Valindra referira. Por um lado, era mais sábia do que parecia ou queria parecer, e por outro, tinha uma maneira de ser naturalmente divertida, tal como Edínmtor. Mas acima de tudo, era uma das poucas que ainda não lera a passagem referente aos Anões e, como tal, não tinha qualquer razão para, logo à partida, não gostar deles.

Partiram no outro dia, de manhã bem cedo, acompanhadas por Aran que, como sempre, não quisera deixar Iruvienne ir a um lugar desconhecido sem protecção. Levavam, numa mochila que Aran insistiu em transportar, alguns mantimentos, mantas e os presentes para o Senhor dos Anões.

As sacerdotisas tinham conseguido encontrar um pouco de tudo nos armazéns de Névila, o que deixara Galaduine bastante satisfeita. Um cristal de olivina transparente e consideravelmente grande fora desencantado no meio da palha de uma caixa que continha várias amostras de diferentes tipos de rochas, infelizmente todas elas um pouco banais de mais para o que se pretendia. E tinham ainda encontrado, numa das prateleiras dos grandes e bem organizados arrumos, uma delicada caixinha de anuliss trabalhada, forrada a veludo azul muito escuro. Lá dentro estava uma safira azul, com a forma de uma perfeita esfera, com quase cinco centímetros de diâmetro, e uma singela, mas perfeita obsidiana floco de neve". Galaduinne embrulhara a olivina num bocado de veludo e colocara-a, assim como à caixa com os outros dois presentes, cuidadosamente na mochila, entre as mantas.

Caminharam durante um bom bocado do dia. Estava frio e Galaduinne rapidamente lamentou ter levado um vestido em vez de uma túnica quente, umas calças e umas boas botas de cano alto. O seu vestido era quente, feito a partir de um veludo azul-noite com suaves linhas prateadas bordadas de forma a, por momentos, criarem a ilusão de formarem borboletas. Calçava uns botins de um preto suave, quase azul, forrados com um tecido quente, e levava a sua capa de sacerdotisa. Mas mesmo assim, ela tinha preferido o conforto da outra roupa, mais quente e, principalmente, mais prática para caminhadas. Iruvienne estava vestida com cores outonais. O vestido tinha um corte simples, mas muito elegante. Era de uma cor um tanto ou quanto indefinida, algures entre a cor de laranja e o vermelho, e na zona a meio do braço, a partir da qual a manga alargava, no decote e no cinto tinham sido bordadas linhas curvas e graciosas num fio castanho-escuro. A sua capa era larga e esbelta, igualmente castanho-escura, mas de um tecido que, por vezes, criava reflexos dourados. Tinha um capuz largo que lhe encobria os cabelos e caía suavemente pela sua cabeça, assentando nos ombros. Não era uma capa de viagem, era a capa de uma dama. Aran seguia ao seu lado, como sempre vestido em tons escuros e com umas velhas botas de cano alto, ligeiramente largas, um pouco mais à moda dos Homens que dos Elfos e Fadas. Galaduinne pensou que estava na altura de lhe mandar fazer outras. Ele e Iruvienne conversavam animadamente e nem ela se queixava de estar de saias, nem ele do peso que levava.

O dia amanhecera cinzento, como era habitual em Brumívium. No entanto, a luminosidade era um pouco mais clara, parecendo mais prateada do que cinzenta. Não havia praticamente vento e, felizmente, mal chovia. Mas o chão estava húmido e a terra soltava-se com facilidade o que, rapidamente, fez com que as bainhas das suas roupas ficassem molhadas e com vários bocadinhos de terra agarrados.

Galaduinne seguiu as instruções que Valindra lhe tinha

dado. No entanto, elas revelaram-se desnecessárias, uma vez que tanto Aran como Iruvienne conheciam muito bem o caminho para essa parte das Heniunel, assim como para a maior parte dos diversos lugares de Brumívium.

Iruvienne não perguntara absolutamente nada a Galaduinne quando esta lhe dissera o que iam fazer. No entanto, Galaduinne tinha quase a certeza de que Iruvienne também conhecia a verdadeira identidade de Lunam. Não o tinha, com certeza, revelado a ninguém, exceptuando a Aran para quem não guardava segredos, mas sabia-o. Provavelmente soubera-o através dos sonhos e, quando Galaduinne lhe pedira que a acompanhasse numa visita a um povo praticamente esquecido pelos Sábios, ela confirmara a sua ideia.

Por fim, chegaram à montanha mais interior das Heniunel em Brumívium. Era uma montanha perfeitamente banal, igual a tantas outras que havia naquele Mundo e no Mundo dos Homens. Alta e imponente, coberta de erva verde e fresca e salpicada por várias árvores. Tal como quase todas as montanhas que formavam as Heniunel, parecia erguer-se abruptamente do solo. Galaduinne observou-a atentamente, mas não lhe encontrou qualquer entrada ou algo que se pudesse parecer com isso. A montanha era tão uniforme quanto uma montanha pode ser.

Colocou a sua mão num plano um pouco inclinado e murmurou:

- Mis olasturim, vhardeL Niod aterserim camner!

Não aconteceu absolutamente nada. Galaduinne tentou novamente, mas a montanha manteve-se inalterável. Iruvienne aproximou-se e encostou também a sua mão à montanha.

- Vhardel, olasturim ess ylae delina. - A sua voz suave tornou-se mais profunda e as palavras saíram como se fossem ditas pelo vento. - Olasturim ess iemoe delina.

- Niod aterserim camner - disseram as duas juntas. O interior da montanha pareceu agitar-se e elas afastaram-se.

Lenta e suavemente tornaram-se visíveis, no meio da relva, uma ou outra pedra preciosa. Três topázios amarelos de um dos lados, outros três iguais do outro, mais três em cima, a formarem um arco. Depois, começou a aparecer, mais ou menos no centro, o desenho de uma bela montanha sobre a qual estavam um machado e uma picareta cruzados, todo ele feito com topázio azul. Até que, finalmente, apareceram duas portas, enormes e imponentes. Eram de uma pedra, provavelmente vulcânica, quase.

Ouve-me, montanha. Deixa-nos entrar. Montanha ouve o meu apelo. Ouve o nosso apelo.

As portas abriram-se pesadamente, mas sem emitirem o mais leve dos rangeres. Davam para um grande túnel, muito bem iluminado, que se perdia no interior da montanha e a meio do qual estava um vulto pequeno e atarracado. A figura moveu-se na direcção do exterior.

 

                 O MESTRE DWARLER

O anão aproximou-se. Estava vestido com roupas singelas. Tinha umas calças castanhas enfiadas dentro das botas simples de pele também castanha e uma túnica larga e bege com um complicado bordado dourado por baixo dos atilhos do decote.

O seu rosto era redondo e um pouco enrugado. A sua boca estava coberta por uma espessa e farfalhuda barba castanha que lhe chegava à altura dos ombros e onde tinham sido feitas pequenas tranças seguras por argolas de ouro. O cabelo castanho tal como toda a sua figura, tinha a mesma altura da barba e misturava-se com esta. Um bonito machado trabalhado pendia-lhe do cinto.

Avançou com as mãos rechonchudas abertas, como se estivesse na presença de velhos amigos, e quando chegou à beira do grupo inclinou-se ligeiramente numa pequena venia.

- Sejam bem-vindos a Monterar - disse numa voz grossa e rouca. - Eu sou o Mestre Dwarler, Senhor dos Anões.

Galaduinne, Iruvienne e Aran inclinaram-se também, em respeitosas vénias.

- Eu sou Galaduinne, Rainha das Terras da Luz e Senhora da Noite e das Brumas. Esta é a minha filha mais velha, Iruvienne. E este é Aran que veio do Mundo dos Homens.

- Estás muito longe de casa, rapaz - disse o anão e Aran sorriu com um ligeiro aceno de cabeça.

- Esperamos não os ter incomodado - continuou

Galaduinne.

- Não - disse imediatamente Dwarler. - Nós ouvimos as

vossas vozes, e que belas vozes eram! Mas ficamos intrigados. Há muito que os Elfos nos esqueceram e... bem, nós fizemos o mesmo relativamente ao vosso povo. Sem ofensa, é claro. Ou pelo menos não mais do que a vossa. - Soltou uma gargalhada roufenha.

- Também estranhamos a vossa linguagem, embora, para nosso grande espanto, a tenhamos compreendido. De qualquer maneira

é indelicado não receber visitas quando elas nos procuram deliberadamente. Por isso, aqui estou para as receber.

Galaduinne sorriu, docilmente. Se todos os Anões fossem como aquele, eles falavam efectivamente de mais, e sem preocupações, mas não deixavam de ser corteses.

- Obrigada, Mestre Dwarler - disse.

- É uma honra, Senhora - disse o anão e, mais uma vez, inclinou-se. - Mas falo em receber visitas e esqueço-me de as mandar entrar. Imperdoável, não é? - perguntou, virando-se para Iruvienne que riu suavemente. - Entremos. Entrem em Monterar onde os Anões vivem e está quente.

Galaduinne, Iruvienne e Aran seguiram-no para o o interior da montanha. A porta fechou-se atrás deles com um ligeiro som abafado.

Percorreram o longo corredor, que tinha, por vezes, aberturas de um dos lados, seguindo em silêncio atrás de Dwarler que tagarelava sobre a história dos Anões na sua voz roufenha, mas agradável.

- Nós gostamos das montanhas - dizia ele -, porque elas estão cheias de rochas e minerais. Os nossos túneis estendem-se por grande parte desta serra e ainda mais para lá, até meio da Terra Negra, como nós lhe chamamos. Cada um chama às coisas o que quiser. Mas o nosso povo tem crescido e estamos a ficar sem espaço. Não podemos escavar mais fundo nas montanhas, se não com tanto buraco, elas ainda acabam por cair. Nós temos respeito por elas, e principalmente pelos seus tesouros: rochas, minerais pedras preciosas e alguns metais. Não somos como esses gnomos amantes de metais, mas pronto, também os usamos. E afinal, eles não nos fazem propriamente mal, não é?

Mas como eu estava a dizer, estamos a ficar sem espaço.

Ainda há Anões no Mundo dos Homens. - Virou-se para Aran.

- Aposto que não sabias, hem? - E soltou mais uma das suas gargalhadas. - Alguns de nós têm ido para lá. Mas não é a mesma coisa, para além de não ser seguro. Os Homens parecem ter um pouco de nós: gostam das pedras. Mas vão longe de mais para as conseguirem. De qualquer modo é ridículo. Sabem como eles nos retratam? Aposto que não. Para eles somos homenzinhos estúpidos de barrete vermelho. E ainda para mais têm o desplante de encherem os seus patéticos jardinzinhos com figuras de barro dessas aberrações. Absolutamente ridículo. E aqueles que ainda têm uma imagem, hum... digamos, aceitável de nós, dizem que, com o passar dos anos, nos transformamos em pedra. Em pedra?

Imaginem o impropério. Pedra! Balelas. Estamos vivos, bem vivos, é o que estamos. Embora com pouco espaço, vá lá.

Continuou no mesmo discurso, sempre seguido e um pouco desconexo. Galaduinne começava a ficar admirada com a quantidade de palavras que ele conseguia dizer em tão pouco tempo. Olhou para Iruvienne. Ela parecia divertida, dir-se-ia mesmo que estava a gostar da conversa ou, mais correctamente, do monólogo.

Quando o túnel acabou, eles desembocaram numa espécie de estrada rochosa que corria pelo interior da montanha. Aquela zona era uma espécie de mina gigantesca que se perdia no interior da terra. Por cima e por baixo deles, havia muitas outras estradas que se cruzavam, roldanas enormes com cordas que puxavam baldes e pedregulhos e vários anões a picarem as paredes rochosas com as suas picaretas. Subiram um pouco e viraram à direita, para um novo túnel.

- Bom dia, Mestre Dwarler - disse um anão que encontraram a meio desse túnel.

- Bom dia, meu rapaz - respondeu Dwarler para o outro anão que não parecia ser muito mais novo do que ele. – Como eu estava a dizer, nós vivemos durante bastante tempo. Menos do que os Elfos e as Fadas, é certo. Mas, na minha opinião, eles também vivem de mais. Eu fartava-me. Viver é bom, mas sem exageros. Senão é preciso ter demasiados cuidados. Não, prefiro viver menos tempo e comer e beber à minha vontade do que viver mais de dois mil anos e passar o tempo a comer hortaliça. Além disso, sempre é mais tempo do que os Homens, acho eu. Continuou:

- Nós vivemos entre quatrocentos a quinhentos anos, mais século menos século. O que é mais do que suficiente para ver tudo quanto há para ver, se bem que nós fiquemos geralmente pelas montanhas. É mais sossegado e já sabemos com o que contamos. E aqui dentro não temos problemas com o Senhor da Terra Negra. Ninguém se lembra de nós. Bem, vocês lembraram-se, mas são boa gente, por isso não faz mal. Também se não fossem, não tinham entrado. Estou a cansar-vos com o meu palavreado?

- Não, Mestre Dwarler - respondeu Iruvienne. - Está a ser muito interessante. Por favor, continue.

- Têm a certeza, não têm?

- Claro - respondeu Galaduinne que começava também ela a gostar da tagarelice do anão.

- Bem, sendo assim... Ah, é verdade, aquilo da hortaliça não foi por mal. É só que eu gosto mais de carne. Compreendem, não é?

Galaduinne sorriu.

- E nós, mais de vegetais - respondeu.

- Claro, claro. Cada um gosta do que gosta. Bem, cá estamos.

Tinham chegado à entrada daquilo que devia ser a casa, ou talvez o palácio, de Dwarler. Mas Galaduinne não podia ter a certeza porque só conseguia ver as portas, felizmente suficientemente altas para eles entrarem, que eram, tal como toda a montanha, da mesma pedra das magnificentes portas da entrada.

Dwarler bateu e, passado pouco tempo, alguém veio abrir. Por trás das portas estava um amplo salão à volta do qual havia muitas portas.

- Não sei como são os vossos palácios - disse Dwarler. - Mas nós aqui achamos este muito bonito. Também não é propriamente um palácio, é mais uma casa grande. Bem, é um bocadinho mais do que uma casa grande. Enfim, é uma boa casa ou palácio ou seja lá o que for que lhe queiram chamar. Foi construída pelos meus antepassados há muito tempo, por isso deve ser respeitada. A memória dos antepassados também. Estou novamente a perder-me em divagações. Vamos lá.

Seguiram Dwarler que entrou numa das muitas portas do lado esquerdo do salão. O novo compartimento era uma ampla sala de jantar com uma longuíssima e baixa mesa de madeira, à volta da qual estavam imensas cadeiras também elas proporcionais ao tamanho dos Anões. As paredes estavam enfeitadas com vários machados, todos eles requintadamente trabalhados e com os cabos incrustados de pedras preciosas. Curiosamente, preso ao cabo de cada machado estava uma trança, daquilo que parecia cabelo, a qual terminava numa argola de ouro. Ao fundo da sala, atrás da cadeira da cabeceira da mesa e semi-escondida por um cortinado castanho, havia uma porta que, muito provavelmente, dava acesso à cozinha.

- Há sempre muita gente à mesa - explicou o mestre anão. - Muitos anões e anãs vivem aqui: familiares, amigos, intrometidos, e, é claro, "bem-falantes". Sabes o que são "bem- falantes?

- perguntou virando-se para Iruvienne. - Não, é claro que Não devem existlr Elfos "bem-falantes". Não é que vocês falem mal. Falam todos muito bem. Muito melhor do que eu. - outra das suas gargalhadas. - Mas não é isso que "bem-falante quer dizer. Um "bem-falante" é uma pessoa que passa o tempo na tua casa, come a tua carne e bebe a tua cerveja e o teu vinho, faz-te enormes elogios, tantos que se torna patético, mas a verdade é que és a pessoa que ele mais odeia e inveja em ambos os sentidos.

Interessante, não é? E, para mim, extremamente frequente. Topo-os à légua. E porque é que os deixo comer à minha mesa? Porque não? Ao menos sempre os obrigo a fazer algo criativo. Têm de desenvolver a imaginação para não me repetirem os elogios.

Dwarler soltou mais uma gargalhada rouca e um menino pôs a sua cabecinha redonda fora da porta da cozinha.

- Balein, vem cá - disse Dwarler, e a criança avançou. Era pequeno e rechonchudo, com um cabelo castanho comprido e já alguns sinais de barba, que disseram a Galaduinne que ele não devia ser tão novo quanto parecia. O jovem anão avançou direito em direcção ao anão mais velho, com um olhar que, provavelmente, ele pretendia que fosse duro.

- Pai - disse Balein - preciso que me empreste o seu machado. É para fazer uma coisa de guerreiro.

Dwarler riu durante algum tempo. Balein manteve-se direito e expectante.

- Nem penses - respondeu o mestre anão. - O mais certo era caíres para trás com o peso dele e ainda te magoavas. Arranjavas-me um belo sarilho. A mim e à tua irmã. Uma coisa de guerreiro... Fazes-me rir miúdo. Mal tens idade para ter barba, quanto mais para seres um guerreiro. Volta lá para a cozinha e entretém-te com qualquer coisa que te aconchegue o estômago. Mas Balein manteve-se no mesmo lugar. Galaduinne viu Iruvienne trocar um olhar com Aran e depois baixar-se, levantar um pouco a saia e tirar qualquer coisa de dentro do botim direito.

- Balein - chamou Iruvienne e ele aproximou-se. - Podes usar a minha adaga.

O jovem anão ficou algum tempo a olhar para Iruvienne e, por fim, aceitou a bonita adaga que Iruvienne lhe estendia.

- Obrigada, Senhora - disse ele. - Eu devolvo-lha assim que terminar.

- Não é preciso - respondeu Iruvienne. - Considera-a um presente.

Balein olhou-a com uma enorme satisfação no rosto redondo.

- Muito obrigado, Dama...

- Iruvienne. Não me agradeças, mas promete que terás cuidado.

- Eu sou um guerreiro, Dama Iruvienne.

Galaduinne notou que ele teve uma certa dificuldade em pronunciar o nome da filha.

- Sem dúvida - respondeu Iruvienne. - Não achas,

Aran?

- Muito promissor - disse Aran.

Balein desapareceu novamente pela porta da cozinha.

- Foi um gesto muito bonito, aquele que vocês acabaram de ter - disse Dwarler. - Ele ficou muito contente. Deve ter ido a correr contar ao irmão. Só tenho três filhos. Este, o Bali, o meu filho mais velho, esse sim um grande guerreiro, chamado Dwafer; e a minha filha que me ajuda em tudo e mais alguma coisa, a Sarel. A mãe deles morreu quando o pequenito nasceu. São coisas que acontecem. Não há nada a fazer, é mesmo assim. Se nascemos, um dia morremos. Os dramas são desnecessários. Mas eles eram pequenitos e foi duro. Eu não sou muito dotado para tratar de crianças. Já devem ter percebido. Pedi ajuda à minha irmã, uma mulher extraordinária. Mas também não está para aturar tudo. Enfim, lá vai sendo uma figura maternal e ensina à Sarel aquilo que ela precisa saber.

O anão sentou-se na cadeira da cabeceira que tinha a porta da cozinha por trás e fez-lhes sinal para que o imitassem. As cadeiras eram, evidentemente, pequenas de mais para eles e Galaduinne viu-se obrigada a estender as pernas para se sentir mais confortável.

- Lamento - disse o anão numa voz um pouco apagada.

- Não temos cadeiras para o vosso tamanho.

Ficou calado durante alguns momentos, o que nele era realmente estranho. Galaduinne sabia a razão pela qual ele estava assim, pois também ela conhecia aquele tipo de dor. No entanto nunca pensara que um anão a pudesse sentir.

- A minha mulher era muito bonita - disse por fim Llwarner, ainda num tom ligeiramente abalado, mas que rapidamente abandonou. - As anãs não são lá muito bonitas. Bem, não são feias, mas são um bocadinho parecidas de mais connosco. Vão perceber quando virem a minha irmã. A minha mulher era diferente. Mais parecida com o vosso povo do que com o nosso, mas em ponto pequeno, é claro. Uma criatura lindíssima. A Sarel e o Dwafer são mais parecidos com ela do que comigo. O

pequenito, esse sim, sai a mim.

- Eu percebo o que quer dizer, Mestre Dwarler - disse Galaduinne. - O meu marido também morreu. O seu nome era Ogueimion e ele era sábio entre os do nosso povo. Foi morto por Morgriff, aquele a quem vocês chamam o Senhor da Terra Negra.

- Lamento ouvir isso - respondeu o anão. - Nenhuma Senhora deve ficar sozinha. Mas vá lá, tem a sua filha para lhe fazer companhia, como eu tenho os meus. Tem mais filhos, Dama Galaduinne?

Galaduinne sorriu.

- Mais uma filha, um ano e meio mais nova do que Iruvienne. O seu nome é Athilya.

- Ah, muito bem. Se for tão bonita e simpática como esta terei todo o prazer em conhecê-la. - Dwarler olhou à sua volta.

- Aquilo ali nas paredes são os machados dos meus antecessores. Cada machado tem uma das tranças da barba deles presa ao cabo. É um velho costume anão.

E perdeu-se em divagações sobre os costumes do seu povo. Galaduinne aproveitou para tirar da mochila a caixinha de anuliss e a olivina, embrulhada no pano de veludo.

- O que é isso? - perguntou o anão, quando reparou nos objectos pousados em cima da mesa.

- Estes são os presentes da Rainha das Terras da Luz e da Senhora da Noite e das Brumas para o Senhor dos Anões

- respondeu Galaduinne.

- Oh, não. Agradeço o gesto, mas não posso aceitar. A sua filha já deu um presente ao Balein.

- Mas eu ainda não lhe dei nada - disse Galaduinne.

- A vossa visita é um presente mais do que suficiente. Galaduinne sorriu docilmente.

- Terei de rectificar os registos da minha cidade. Os anões são, afinal, gente cortês.

Dwarler sorriu, um pouco embaraçado.

- Ora, ora - titubeou. - Apenas bem-educados. Todo o contrário ficava mal, não é?

- E são também modestos - acrescentou Galaduinne e o seu rosto iluminou-se com um sorriso muito suave e puro.

- Ficava-me mal se recusasse um presente de álguém que teve a amabilidade de nos visitar - disse Dwarler.

Desembrulhou a olivina transparente e verde, abriu a caixa de madeira azul-escura trabalhada e tirou de lá de dentro os outros dois presentes. A cada um deles soltava exclamações de admiração e murmurava Não deviam, não deviam ter-se incomodado. Não deviam mesmo. Arrumou cuidadosamente cada um dos presentes e desfiou uma longa história sobre a formação-das melhores gemas e cristais. Galaduinne seguiu-a com atenção pois, embora fosse contada na linguagem um pouco atabalhoada dos anões, representava um tipo de conhecimento sobre o qual os Elfos e Fadas não sabiam muito.

- Muito obrigada por tudo o que nos ensinou hoje – disse Galaduinne, quando Dwarler acabou. - Temo que esteja na hora de nos despedirmos.

- Insisto em que passem cá a noite. Nós, os Anões, gostamos de camas um bocadinho maiores do que nós. Por isso, como temos quase todos um metro e quarenta, as nossas camas devem ser suficientemente

grandes para que vos sejam só um bocadinho pequenas. E se dormirem encolhidos até não devem ficar lá muito mal. Uma noite um bocadinho mais apertados também não será grande problema. Além disso, não quero que se vão embora sem provarem um bom jantar anão. - Olhou para as caras deles e como ninguém se opôs disse, batendo com a mão na mesa: - Então pronto. Está combinado. Vou falar com a Sarel para vos preparar uns quartos e tenho de falar com o Mestre Buluen para ele me arranjar por aí um sítio para fazer uns quartos para o vosso tamanho. Na vossa próxima visita quero estar prevenido.

Abriu a porta que dava para a cozinha e deu algumas ordens. Fechou-a novamente e voltou-se para eles.

- Tenho também de arranjar umas prendas bonitas para vocês levarem de Monterar. Pedras preciosas para as duas damas. Uma espinela malva para a Dama Galaduinne, provavelmente. E para a Dama Iruvienne algo único que esses gnomos amantes de metais desconhecem totalmente. Uma opala de fogo, sem dúvida. Aqui para o nosso amigo humano também tem de se arranjar qualquer coisa.

- Para mim - disse Aran na sua voz bem modelada -, não é preciso absolutamente nada. Fico contente se arranjar a pedra ideal para Iruvienne.

Dwarler olhou-o durante alguns segundos.

- Muito bem, rapaz - disse por fim. - Então que sejam duas prendas para a Dama Iruvienne, que as merece inteiramente.

Outra opala de fogo, ou outra coisa um pouco diferente. Logo se verá, logo se verá.

Uma anã de feições delicadas entrou na sala. Tinha um vestido simples cinzento-claro sobre o qual usava uma espécie de túnica cor-de-rosa até aos pés, sem mangas, e apertada a cintura com dois lacinhos, um de cada lado da cintura. Os seus cabelos, de um castanho dourado, estavam presos numa única trança que lhe caía quase até ao fim das costas.

- Esta é a minha filha Sarel - disse Dwarler. - Deixo-os com ela. Tenho de ir. O jantar aproxima-se e eu ainda tenho muito que fazer.

Saiu e eles ficaram sozinhos com a bonita anã que, depois de lhes sorrir e fazer uma pequena vénia, foi até à porta da cozinha.

- Balein - chamou numa voz suave, embora um pouco rouca. - Vem cá.

O jovem anão reapareceu e, desta vez, presenteou-os com uma vénia.

- Leva o Senhor Aran até ao quarto dele e ajuda-o a arranjar-se se ele quiser - disse Sarel.

Aran saiu escoltado por Balein que parecia muito orgulhoso da tarefa de que tinha sido incumbido.

- Dama Galaduinne, Dama Iruvienne - disse, voltando-se para elas. - O vosso quarto ainda não está pronto, mas se me quiserem acompanhar até ao meu quarto, terei todo o prazer em as ajudar a arranjarem-se.

- Muito obrigada - agradeceu Galaduinne.

Seguiram até ao quarto da jovem, que depressa se revelou tão faladora quanto o pai.

- As notícias aqui correm depressa - dizia ela. - Por isso por favor, não estranhem que eu já soubesse os vossos nomes. Além disso, o meu irmão Balein também é muito rápido com a língua e não demorou muito a contar-nos a novidade. Sarel ajudou-as a pentearem os cabelos e depois desfez a sua trança para a entrançar de novo, desta vez com um fio repleto de pedras preciosas. Iruvienne ajudou-a enquanto Galaduinne as observava sentada na borda da cama.

Quando estavam as três prontas, regressaram à sala de jantar, já repleta de anões barulhentos. Aran conversava com um anão parecido com Sarel que devia ser o seu irmão mais velho, Dwafer, e se sentava em frente a Dwarler, na outra cabeceira da mesa. Sarel levou-as até ao outro lado da mesa onde elas se sentaram, uma de cada lado de Dwarler, e regressou para junto do irmão, sentando-se ao seu lado esquerdo, uma vez que Aran estava sentado à direita. Balein chegou pouco depois, vestido com roupas bege bordadas a ouro e a adaga que Iruvienne lhe oferecera a pender do cinto, como se fosse um machado. Os anões que repararam nele soltaram sonoras gargalhadas, mas Balein sentou-se muito calma e dignamente ao lado da irmã. Assim que estavam todos instalados, Dwarler virou-se ligeiramente para trás.

- Sirvam - disse muito alto. - Já estamos todos sentados com fome.

Os anões e anãs riram novamente e vários criados anões começaram a entrar com grandes travessas de carne, canecas cheias de cerveja. Galaduinne reparou então, que à sua frente, estava apenas um prato, um copo de vidro e uma caneca relativamente pequena. Rapidamente percebeu porquê.

Os convidados e, como Dwarler dissera, os intrometidos e os "bem-falantes" pegaram nas facas, cortaram grandes pedaços de carne e, sem qualquer cerimónia, enfiaram-nas na boca, mastigando ruidosamente e, muitas vezes, com a boca aberta.

Ao fim do primeiro prato e das primeiras canecas de cerveja, das quais Galaduinne mal bebeu, os anões tinham um aspecto inacreditável. As barbas estavam repletas de comida e espuma de cerveja, as suas roupas estavam cheias com a cerveja que lhes escorria da boca quando eles a abriam rapidamente e a maioria arrotava audivelmente.

O mestre aborreceu-se com os arrotos, os quais ele classificou como um comportamento inadequado para se ter à frente de visitas.

- Entre nós tudo bem - disse ele. - Estamos em família, ou quase, e ninguém leva a mal. Mas à frente das visitas!

Querem que digam o quê de vós? Que são malcriados e incivilizados.

- Quando acabou de dizer isto, alguém arrotou alto. e Que alguns de vocês são, já eu sei. Mas temos duas Damas à mesa. Por isso sejam cavalheiros e comportem-se ou vão comer lá para fora, nem que eu fique aqui sozinho. Estão avisados. - Olhou à sua volta com uma cara furiosa a que ninguém teve coragem de fazer frente.

- Ora muito bem. Eu sabia que, como povo civilizado que somos nos havíamos de entender. Sirvam - berrou uma vez mais, virado para a cozinha.

- Esta jà está toda comida. E vejam lá se desta vez se comportam como deve ser. Os criados entraram novamente com mais carne, cerveja e um jarro do vinho que Dwarler acabara de pedir.

A refeição seguiu como devia ser habitual ali: barulhenta e com muita carne, vinho e, principalmente, cerveja. Galaduinne comeu pouco porque, ao fim da primeira vez, já estava praticamente cheia e na segunda tinha a certeza de que não podia comer muito mais. Iruvienne, que comeu um pouco mais do que ela das duas primeiras vezes, nas cinco que ainda se seguiram não conseguiu comer mais nada.

- Já está cheia? - perguntou o mestre anão.

- Hortaliça e vegetais, é o que é.

Galaduinne conheceu a irmã de Dwarler e efectivamente percebeu o que ele dissera. Ela era, como todas as outras anãs ali presentes, com excepção de Sarel, redonda, quase gorda, e de feições bastante masculinas. Comia com a mesma desenvoltura de um anão e não tinha o menor dos problemas em beber uma caneca de cerveja de uma só vez.

- Eu prefiro umas gordurinhas a mais, do que ser uma elegância como a Senhora e mal comer - disse-lhe ela quando, ao fim da quarta rodada, Galaduinne não conseguia sequer olhar para a carne que lhe punham à frente. - Nós aqui somos assim. Vivemos a vida em pleno, porque não se vive duas vezes. Não temos grandes preocupações o que nos mantém jovens durante muito tempo. As preocupações são para os povos do exterior. Em Monterar as únicas preocupações são respeitar a montanha e não deixar nada no prato ou, no caso daqueles ali - disse apontando para um grupo de anões especialmente barbudos -, na barba.

No fim da sétima dose de carne, foram servidos vários bolos. E foi então que começaram os vários elogios a Dlwarlet e à sua família. Alguns eram um pouco rebuscados, outros efectivamente sentidos e muitos de gosto algo duvidoso. A refeição prolongou-se ainda durante muito tempo, foram servidas mais duas doses de sobremesas e, no final de tudo, pão com chouriço, presunto e salpicão. Tudo aquilo se prolongou até que, por fim, Galaduinne perdeu a noção do tempo.

O quarto que os Anões arranjaram para Galaduine e Iruvienne era uma divisão rectangular, com bonitos desenhos que se entrelaçavam, esculpidos nas paredes rochosas. As camas eram duas aberturas, com um tecto abobadado, escavadas na parede rochosa, uma na parede em frente à porta e outra na do lado direito. Cada uma delas estava oculta por um véu ligeiramente azulado. Na parede do lado esquerdo encontrava-se uma mesa de madeira com duas cadeiras, onde Galaduinne e Iruvienne pousaram os vestidos.

Galaduinne deitou-se na cama e, embora ela fosse efectivamente, muito pequena, adormeceu imediatamente.

No outro dia de manhã, foram acordadas por Sarel que as conduziu novamente à sala de jantar, onde tomaram um pequeno-almoço igualmente farto. Quando acabaram, e depois de se despedirem de Dwafer, Sarel e Balein, Dwarler levou-os de volta à entrada da montanha, mantendo ao longo de todo o caminho a sua tagarelice.

- Pronto, cá estamos - disse quando chegaram ao exterior.

- Bolas, está frio. E diabos me levem se isto no chão não é neve. Há muito tempo que não vejo neve. Também é raro vir cá fora, por isso... Enfim, ou se vive dentro da montanha ou se vive fora. As duas é impossível. E eu, como é lógico, vivo dentro, na grande cidade dos Anões, Monterar. Ó bela e grande Monterar, das gemas de mil cores, morada dos Anões... - Parou e olhou-os.

- Bem... Lá voltei eu a divagar. Mas gostaram da vossa estadia em Monterar, não é? E, por favor, não vão por aí dizer que Monterar é uma mina, porque se há coisa que me ofende é chamarem mina à minha casa.

Galaduinne sorriu.

- É evidente que gostámos, Mestre Dwarler - respondeu-lhe.

- Ainda bem, ainda bem. E agora vamos aos meus

presentes.

Tirou dois saquinhos de pele dos bolsos da túnica e abriu um deles, deixando o conteúdo cair numa das mãos. Estendeu a mão, revelando uma pedra preciosa azul-turquesa, com cerca de três centímetros de altura e um centímetro e meio de largura, e várias outras mais pequenas de um lilás ténue.

- Uma água-marinha e doze espinelas malva para fazer um diadema bem bonito, talvez em ouro branco - informou Dwarler.

- No outro está uma opala de fogo para fazer um bonito anel para a Dama Iruvienne e uma opala negra iridescente, talvez para um colar. Eu dou-vos as pedras, mas o resto deixo ao vosso critério. Disseram-me que os Elfos são hábeis artífices, por isso... Tenho certeza de que vão fazer bonitas jóias, melhores que qualquer uma que nós pudéssemos fazer.

Dwarler abanou várias vezes a cabeça e fez algo esquisito com os lábios, como se os estivesse a tentar comer.

- Bem, adeus, Dama Galaduinne. Até uma próxima visita.

- Até uma próxima visita, Mestre Dwarler - respondeu Galaduinne com um dos seus bonitos sorrisos.

- Adeus, Dama Iruvienne. Espero que volte mais vezes e se torne uma amiga do nosso povo.

- Voltarei com certeza, Mestre Dwarler.

- Meu rapaz, até um dia. O Dwafer disse-me que és um grande guerreiro. Talvez quando a Dama Iruvienne cá vier nos possas ensinar algumas coisas.

- Terei muito gosto - respondeu Aran. Aran guardou os presentes do mestre anão na mochila, pô-la às costas e os três prepararam- se para partir.

- Esperem - disse o anão, demasiado alto.

Esqueci-me de uma coisa. Tanto vos pedi para cá voltarem e não lhes dizia como me chamarem. Basta colocarem uma mão ali naquela rocha no meio da relva e chamarem por mim. A montanha tem bons ouvidos e nós, os Anões, somos rápidos a percorrer distâncias relativamente longas em pouco tempo. Mas só em pouco tempo. Coisas rápidas. Caminhadas longas não é connosco.

E voltei a divagar. Bem, então adeus. Não me esquecerei de vós. Adeus e até breve.

Fizeram o caminho de volta com calma. Nevara durante a noite e o chão estava coberto com um fino manto branco que aqui e ali começava a derreter. Fora a primeira nevada daquele Inverno.

Galaduinne ficara surpreendida com os Anões. Embora fossem, de facto, barulhentos, de modos boçais e gostassem de comer e beber, eram também um povo simpático e acolhedor. Tinha de deixar isso bem claro nos seus registos.

- São um povo engraçado, não são? - perguntou Iruvienne.

- Não tenho a certeza que "engraçado" seja a palavra ideal para os definir - respondeu Galaduinne.

- Concordo contigo. Mas não consigo encontrar uma que me satisfaça. Penso que não existe termo correcto para os classificar. Talvez tenha simplesmente de ser inventado.

- São um povo estranho - disse Galaduinne. - Vivem sem preocupações e são capazes de comer mais numa só noite do que eu num mês inteiro. E no entanto, à sua maneira muito peculiar, são um povo sábio. O seu conhecimento sobre rochas, gemas e minerais ultrapassa em muito o nosso.

- Surpreendente, é capaz de ser um bom termo. – Iruvienne ficou pensativa por alguns momentos. - Desde que se siga algo do género "mas têm um discurso e uma gramática impossíveis"!

Galaduinne e Iruvienne riram alto e Aran, que seguia um pouco mais à frente, virou-se para trás com um sorriso nos lábios.

 

             OS ENSINAMENTOS DE VALINDRA

Passaram-se dois anos sem que nada de especial, para além das aulas com Valindra, acontecesse.

Durante o primeiro ano, tudo o que Galaduinne fez, relativamente à necessidade de liberdade de movimentos de Valindra, foi dispensá-la de algumas das lições. Por isso, Valindra limitou-se a atormentá-la com longos sermões sobre o começo dos tempos. Galaduinne tentou explicar-lhe que já lera os registos de Aerzis, mas ela disse que eles eram incompletos e insuficientes, para além de não contarem muitas das coisas que os Elfos e as Fadas desconheciam. No entanto, todos esses supostos factos dos quais os Povos Sábios não tinham conhecimento continuaram por revelar, uma vez que Valindra não lhe contou nada que não constasse dos registos de Aerzis.

No segundo ano, Lunam tornou-se uma Conhecedora da Noite e tudo se alterou, uma vez mais, para Galaduinne. Valindra exigia-lhe todos os bocadinhos do seu tempo. As únicas actividades que lhe permitia eram aquelas que se relacionassem com Névila ou Brumívium. Tudo o resto foi absolutamente proibido. Galaduinne deixou de poder ir com Namali até à lagoa da gruta, as suas noites de leitura terminaram e o tempo que se tinha habituado a passar com a filha foi reduzido a umas patéticas horas por semana. Em vez disso, passava longas horas na floresta a tentar passar para a terra, o ar, a água ou o fogo. Mas era sempre inútil. Ela achava tudo aquilo absurdo e não lhe via qualquer tipo de propósito. Valindra também não era uma professora muito motivante. Limitava-se a ordenar-lhe que fizesse aquilo que ela lhe mandava e, quando Galaduinne insistia em saber por que tinha de o fazer, desaparecia durante o resto do dia e só voltava no outro dia de manhã cedo para a obrigar a levantar-se e recomeçar tudo outra vez.

Por fim, a meio do nono ano em Brumívium, Galaduine decidiu que um ano e meio de ensinamentos severos e

nos quais ela não via qualquer propósito era suficiente. Já perdera demasiado tempo a fingir que jogava o jogo de Valindra. Era a Senhora da Noite e das Brumas e, acima de tudo, era Rainha das Terras da Luz. Vencer Morgriff era importante, mas aquela lição de Valindra, fosse ela qual fosse, não estava a resultar. Precisava de falar com ela, e não podia demorar muito.

Estava um daqueles dias de sol estranhamente brilhante, algo muito raro em Brumívium, e Valindra parecia incapaz de se concentrar até na mais pequena repreensão ao desinteresse de Galaduinne por aquilo que lhe tentava ensinar. Por isso, depois de cerca de meia hora, Galaduinne e Valindra regressaram a casa onde, certamente, estava mais fresco.

- Tenho de falar contigo - disse Galaduinne quando chegaram ao andar dos quartos.

- Hum, já calculava - respondeu Valindra.

Iruvienne e Aran passaram por elas, com as bainhas das espadas presas aos cintos e roupas muito leves. Aran inclinou a cabeça respeitosamente e Iruvienne sorriu-lhes.

Nesse momento, uma única palavra, muito simples e discreta, pareceu formar-se, ou reformar-se, dentro de Valindra:

Nalamin. Mas Valindra varreu-a do seu espírito e, no momento seguinte, ela já lá não estava, não tendo deixado sequer o mais ínfimo dos vestígios. Valindra esqueceu completamente o que se passara e seguiu Galaduinne até ao seu quarto.

- Senta-te - disse Galaduinne, indicando-lhe o banco do toucador e sentando-se à sua frente, na borda da cama.

- Queres desistir, não é? - perguntou Valindra com um sorrisinho irónico.

Galaduinne manteve-se calma e olhou-a directamente nos olhos.

- Não tenciono desistir de recuperar Omnirion, e sei que para isso tenho que defrontar Morgriffe e vencê-lo.

- Óptimo - respondeu Valindra. - Ainda bem que é isso que queres. Talvez agora o possas começar a mostrar.

- No entanto - continuou Galaduinne como se Valindra nunca a tivesse interrompido -, não creio que o teu método seja o indicado. Por isso, a menos que me expliques o que estás a tentar fazer e me comeces a tratar como uma igual, não te voltarei a seguir para uma das tuas lições.

Valindra inclinou ligeiramente a cabeça para o lado direito e sorriu, como era seu costume quando lhe queria mostrar que se considerava muito superior a ela.

- Como uma igual - disse calma e docemente. – Mas minha querida Galaduinne, Senhora da Noite e das Brumas e Rainha das Terras da Luz, eu sou Valindra, filha dos Elementos.

Fui um dos primeiros seres a calcarem o chão destas florestas.

Vocês só vieram muito depois. Nós nunca poderemos ser... iguais.

- Inclinou novamente a cabeça e olhou-a com uns olhos tristes. Os Elfos e as Fadas desiludiram-me muito. Deixaram de respeitar aqueles que lhes construíram as casas e lhes ensinaram muitas das coisas que sabem. Talvez o meu irmão Morgriff tivesse razão.

Talvez nós vos devêssemos ter governado. Mas se o tivéssemos feito, vocês ter-nos-iam combatido. Todos os povos gostam da sua liberdade... Vocês conseguiram criar um sistema no qual vivem em harmonia com dois outros povos. Respeitam-nos, têm em atenção os seus desejos e as suas ideias, integram-nos no vosso sistema de sociedade perfeita que vive em harmonia com tudo e todos. Fizeram um bom trabalho, mas não conseguiram vencer o meu irmão.

Parou e ficou alguns minutos completamente a olhar o vazio.

- Nós respeitamo-vos. - Disse Galaduinne. - As sacerdotisas admiram-te pelo teu conhecimento sobre a noite e ainda não reparaste, porque tens estado muito ocupada a ensinar-me algo que eu não compreendo e tu não me queres explicar. Em Caladmiron honramos Nessya e Aerzis por terem sido capazes de nosajudarem nos primeiros tempos e nos terem começado a explicar os mistérios da Floresta. O único de vocês por quem não temos respeito ou outra coisa qualquer é Morgriff. Odiamos tudo o que ele arrasta e que nos impede de ter a certeza de que o Sol brilhará todos os dias. Mas mais nada.

Valindra levantou-se e foi até à mesa de trabalho de Galaduinne, onde estava pousado o caderno com os registos de Aerzis. Pegou nele, folheou-o e parou numa determinada página. Voltou a sentar-se no banco do toucador e entregou-o a Galaduinne.

- Lê esse parágrafo - disse-lhe, apontando com o dedo um parágrafo, já nas últimas folhas do caderno.

Galaduinne começou a ler, silenciosamente.

Nós somos um povo estranho, com apenas quatro seres. Conhecemos muitos dos mistérios do Mundo, somos belos e, aparentemente, imortais. No entanto, não conseguimos amar como os Elfos e as Fadas. Sabemos o que é justo e o que não é, distinguimos o bem do mal; mas os nossos olhos não brilham como os deles quando vêem aqueles de quem gostam. Esse estado superior parece ser-nos negado. Com o tempo, os Elfos e as Fadas conhecerão tanto como nós. Por isso, talvez seja este o caminho certo. No final, serão eles que prevalecerão, pois serão eles a estar mais perto da totalidade que nos foi vedada. Olho para eles e vejo aquele brilho nos seus olhos e as suas faces iluminadas por algo parecido com uma luz interior e invejo-os. Também eu gostaria de saber o que é amar"

- Ele enganou-se - disse Valindra quando Galaduinne levantou a cabeça. - Enganou-se duas vezes. Não somos imortais e o amor não nos está vedado. Ri-me dele quando li esse parágrafo. Sempre achei o amor uma idiotice vossa. Mais tarde, quando Morgriffos matou, percebi que não. Era já tarde de mais. Durante muito tempo odiei-o pelo que fez. O amor e o ódio são duas faces da mesma folha, mas eu não sabia.

Galaduinne viu uma lágrima escorrer pela face pequenina de Valindra.

- Sempre gostei muito dos meus irmãos e eles de mim. Nunca me ocorreu que o amor pudesse ser isso. Que estivesse ali, mesmo à minha frente, todos os dias. Só percebi o que tinha, quando o deixei de ter. Tão típico que se torna estúpido.

Eu sei que tu não entendes o que eu quero que faças.

Vocês nunca perceberam até que ponto podem chegar, o quão superior podem ser em relação a tudo o que vos rodeia. É pena, ter-vos-ia ajudado muito. Embora, provavelmente, vocês jamais o usassem como eu o usaria. Tentei mostrar-to, mas não podemos aprender uma coisa se não a compreendermos. A tua mãe era muito talentosa, talvez ela o tivesse aprendido.

- Sempre soube que não tenho as capacidades de Ailura - respondeu Galaduinne. - Escolheste a pessoa errada, Valindra. Devias ter tentado com Iruvienne. Ela é um pouco como o reflexo de Ailura na superfície de um lago: muito parecidas e, contudo, subtilmente diferentes. Mas estou contente por não o teres feito. Iruvienne é minha filha e eu não gostaria que ela passasse aquilo que eu tive de fazer no último ano e meio.

- Concordo contigo - respondeu Valindra. - Fiz-te perder tempo um ano e meio e continuaria a fazer-te perder tempo se tu não tivesses um carácter tão forte. Mas a partir daqui acabou. Limitar-me-ei a ser Lunam e tentarei voltar a cuidar de Brumívium, como fiz há muitos anos atrás.

- Tu - Galaduinne soltou uma gargalhada suave.

Valindra, filha dos Elementos. Jamais te conseguirás limitar a ser uma simples sacerdotisa.

- Farei um esforço. E esperarei que não te esqueças de mim, que me venhas pedir conselhos quando tiveres dúvidas e me chames quando fores defrontar Morgriff. Porque, se o quiseres derrotar, vais precisar de mim. Podes ter a certeza.

- Não te preocupes, Valindra - respondeu Galaduinne.

- Eu sei que vou precisar de ti. De facto, não acredito que o consiga fazer sozinha. Agradeço-te por tudo o que fizeste, mesmo aquilo que não consigo compreender. Graças a ti, conheci um povo extraordinário. - Fez uma pausa, ajoelhou-se à frente dela, agarrou-lhe ambas as mãos e sorriu abertamente. - Nós lembrar-nos-emos sempre dos filhos dos Elementos, aconteça o que acontecer. Tu, Aerzis e Nessya serão sempre honrados por nós. E, um dia, quando.

Bateram à porta e Galaduinne ficou subitamente gelada. Levantou-se sem acabar a frase e ficou parada em frente à porta. Tinha um mau pressentimento. Algo terrível tinha acontecido ou estava a acontecer.

Era um dia de sol e brumas. Desde2 manhã cedo que estava quente, muito quente mesmo, sem dúvida mais do que era habitual em Caladmiron. O sol inundara a floresta de Brumívium e as suas árvores altas de folhas verde-molhado e a erva verde brilhante pareciam estranhamente deslocadas no meio daquele mar de luz ofuscante e esquisitamente reluzente. Para completar aquela atmosfera irreal, as brumas tinham subido mais do que era costume, ocultando tudo o que estivesse a menos de cerca de um metro e vinte do chão. Era um dia estranho, em que muitas coisas podem acontecer e o que temos por certo pode alterar-se subitamente. E esses dias são, acima de tudo, perigosos.

Iruvienne sabia disso, o que, mais do que o calor, a irritava. Mas tentava não pensar nisso e descontrair-se um pouco.

Um dia de sol, por mais quente que fosse, apresentava algumas possibilidades que um dia de chuva não podia. Uma delas era nadar numa lagoa de águas muito frias, vestida apenas com uma túnica comprida muito leve.

Ela e Aran saíram do castelo quase depois do pequeno-almoço. Aran vestira umas calças e uma túnica muito leve, cinzento-claras e extremamente simples, mas calçara, como sempre, umas botas de cano alto, um pouco largas. Iruvienne usava uma túnica branca com um decote preso por atilhos, que ela não apertara, à volta do qual estavam pequenas flores e minúsculas folhas bordadas a verde- claro, e umas calças verde-claras que ela cortara por baixo do joelho e cosera com linha da mesma cor. Tinha uns sapatos confortáveis e elegantes, sem atacadores, de camurça castanha. Levavam com eles duas túnicas largas que lhes davam pela altura dos joelhos e que eles próprios tinham feito com bocados de vários tecidos de roupas que lhes tinham deixado de servir.

Subiram a montanha até à gruta, calma e cuidadosamente, por causa das brumas, e desceram as escadas irregulares da gruta, que estavam totalmente encobertas por elas, mas que, felizmente, eles conheciam tão bem que nem sequer precisavam de olhar quando as desciam ou subiam. Uma vez lá dentro, descobriram que as brumas se tinham entranhado na gruta e parte da lagoa estava coberta por um fino véu branco, como se as águas estivessem a soltar vapores.

Iruvienne e Aran tiraram as túnicas que tinham vestidas e vestiram as de remendos que tinham trazido. Depois descalçaram-se, despiram as calças e entraram na água sempre muito fria da lagoa.

Durante um bom bocado divertiram-se a nadar na lagoa, onde as réstias das brumas do exterior pareciam descobertas. Quando se cansaram da brincadeira, praticaram verdadeira natação, nadando de um lado para o outro da lagoa, tentando ultrapassarem-se, até que ficaram ambos exaustos e saíram da água. Aran estendeu-se no chão de pedra, com os braços cruzados atrás da cabeça, e fechou os olhos. Iruvienne sentou-se ao seu lado a observá- lo.

Ele estava muito diferente do rapazinho humano que fora em tempos. Continuava discreto e silencioso à frente de toda a gente, menos dela; as suas roupas eram ainda todas em tons escuros e os cabelos pretos fortemente ondulados tinham o mesmo corte. No entanto, ele crescera. Tinha mais ou menos a altura dela, o seu corpo ficara musculado devido aos longos e consecutivos treinos, e a sua pele ganhara um tom moreno e brilhante, como se o sol a estivesse continuamente a tocar. O seu rosto tornara-se magro, mas bem definido por linhas firmes e rectas. A barba engrossara e Aran deixava-a crescer toda, embora a cortasse curta. Os olhos mantinham a mesma cor cinzento-azulada, mas estavam mais encovados nas órbitas e, sempre que os tinha abertos, ligeiramente semicerrados. As suas mãos de dedos relativamente pequenos, tinham ficado calosas e um pouco dobradas, como se estivessem sempre a agarrar o cabo da espada e, de tanto o fazerem, tivessem acabado por tomar a sua forma. Aran era, sem dúvida, uma figura estranha naquele mundo de lindos e delicados elfos. De facto, parecia até um pouco selvagem, mas era sem dúvida belo.

- O que foi, pequenina? - perguntou ele, abrindo os olhos.

- Estás diferente - respondeu Iruvienne, como se só naquele momento se apercebesse dos anos que tinham passado e que ambos tinham mais de vinte e dois anos.

- Também tu, pequenina. Estás tão diferente que, às vezes, me assustas. Por vezes, até parece que já nem és a minha pequenina.

- Eu sou a mesma, Aran. Serei sempre a tua pequenina, mesmo quando tiver mais de mil anos.

Aran ficou sério e desviou o seu olhar dela para o tecto da gruta.

- Quando tu tiveres mais de mil anos, eu já não estarei aqui - disse por fim.

- Ninguém vê o fim do caminho que percorre - respondeu-lhe Iruvienne. - É provável que isso aconteça, mas não podes ter a certeza.

- Eu sei. Se quando fiz três anos me tivessem dito que o meu quarto aniversário seria festejado entre o Povo da Luz eu nunca teria acreditado ou, mais provavelmente, nem teria ouvido, já que era muito pequeno. E no entanto, aqui estou eu aos vinte e dois anos, quase vinte e três, a falar com a minha melhor amiga, uma princesa élfica, e criado pelos sábios Elfos e Fadas de Caladmiron e Brumívium.

- Aran... - disse Iruvienne hesitantemente, como alguém que está prestes a tirar a sua sorte.

- Diz, pequenina.

- Qual era o teu nome no Mundo dos Homens? Aran olhou para ela e teve um dos seus sorrisos torcidos,

em que mostrava muito ligeiramente os dentes. Aquela fora a única pergunta de Iruvienne à qual ele nunca respondera e era o único segredo entre eles.

Levantou-se rapidamente, vestiu as calças, tirou a túnica molhada e vestiu o resto da roupa seca.

- Vamos buscar as espadas a Névila - disse simplesmente

- Está na hora do nosso treino.

Desde que Liduvine morrera que a educação deles ficara totalmente a cargo das sacerdotisas de Brumívium. Assim, tal como elas, eles tiveram aulas sobre os mais diversos temas. Aran aprofundou muito os seus conhecimentos sobre plantas curativas e, tanto as sacerdotisas mais velhas como a própria Galaduinne, satisfizeram a curiosidade de Iruvienne relativamente aos mistérios da noite. Deste modo, eles acabaram por ter uma educação muito semelhante à das sacerdotisas. Mas havia certas coisas que eles tinham aprendido sozinhos. Liduvine ensinara-lhes muito sobre o manuseamento da espada, do arco e flecha e da sua estranha arma.

Quando ela morrera, Aran encarregara-se muito simplesmente dessa parte da aprendizagem de Iruvienne. Assim, quase todos os dias, eles saíam com as suas espadas e praticavam o seu uso nos seus locais de treino ou em toda a floresta de Brumívium por vezes durante horas. Aran sempre fora muito talentoso com a espada, mas ao fim de dois anos de treinos com ele, nas mais variadas condições atmosféricas, Iruvienne conseguira igualá-lo.

Agora era praticamente impossível que um vencesse o outro.

Geralmente desistiam quando estavam ambos exaustos e já mal tinham forças para agarrar as espadas (o que demorava muito tempo). Como tinham aprendido juntos, a maneira de lutar era muito idêntica, embora Iruvienne fosse mais elegante nos seus movimentos. Tinham também aprendido sozinhos a interpretar os sons e sinais da Natureza, a reconhecer as folhas das árvores, a seguir um rasto, mais ou menos oculto, deixado por alguma criatura e a sobreviver sozinhos nas mais diversas condições. Subiram as escadas de Névila até ao último andar e cada um deles foi buscar a espada ao quarto. A de Iruvienne era a velha espada que Liduvine mandara fazer para Ailura e que ela lhe emprestara para os treinos. Iruvienne nunca mais a devolvera pois nunca tivera oportunidade de o fazer. Era uma bonita espada, mas não era a sua espada. A de Aran era diferente. Fora feita propositadamente para ele, pouco tempo antes de terem de abandonar Omnirion. Na altura, era um pouco grande. Mas agora, parecia efectivamente feita para ele, como se alguém o tivesse visto no futuro. O cabo tinha o comprimento certo para ele o agarrar com ambas as mãos e a lâmina, larga e comprida, permitia-lhe fazer todos os movimentos conhecidos e que ele próprio inventava. Além disso, era suficientemente leve para que ele a pudesse transportar durante longas caminhadas.

Iruvienne apertou o cinto com a bainha da espada já afivelada e saiu do quarto. Aran estava também a sair do seu.

Dirigiram-se novamente para as escadas e, a meio do caminho, encontraram Galaduinne e Lunam. Aran inclinou a cabeça e Iruvienne sorriu-lhes. Embora Galaduinne não lho tivesse dito, Iruvienne sabia que Lunam era Valindra pois também ela tivera sonhos que o mostravam e lera os escritos de Aerzis.

Saíram do castelo e caminharam durante um tempo por entre a floresta, ainda parcialmente oculta pelas árvores na direcção nordeste. Lentamente Aran deixou-se ficar para trás. Iruvienne ficou mais atenta, as suas orelhas pontiagudas arrebitaram-se um pouco mais e os seus sentidos apuraram-se, mas continuou normalmente, como se Aran estivesse a apanhar algo que deixara cair. Ouviu o ligeiro tinir de uma espada a ser retirada da bainha e, rapidamente, girou sobre si mesma, ao mesmo tempo que desembainhava a espada. A sua espada e a de Aran chocaram no ar com toda a força.

Durante um bom bocado jogaram um jogo de investidas e recuos; ataques, contra-ataques e defesas, movimentos ousados novos ou habituais, dissimulações e agilidade. A única coisa proibida era magoarem-se um ao outro. Se um deles caía, o outro estendia uma mão para o ajudar a levantar-se e continuavam.

Mas se ficavam cobertos de arranhadelas causadas pelas plantas espinhosas, ou as roupas se rasgavam, nenhum deles se importava.

As arranhadelas cicatrizavam para darem lugar a novas e as roupas cosiam-se. De qualquer forma, eles eram suficientemente rápidos a pararem os golpes possivelmente perigosos e, por isso, a única coisa em que, geralmente, as espadas tocavam era nelas próprias.

De repente, Aran desapareceu por entre umas árvores.

Iruvienne sabia o que aquilo significava, por isso, correu numa direcção, relativamente perpendicular àquela por onde Aran parecia ter fugido. Correu durante algum tempo, com a espada na mão e os ouvidos bem atentos. Por fim, parou numa pequeníssima clareira, já muito perto da fronteira nordeste de Brumívium. Podia ouvir o barulho de alguém a aproximar-se muito levemente.

Preparou-se para atacar Aran assim que ele saísse de trás das árvores, mas algo a fez inquietar-se.

Havia mais do que uma pessoa atrás daquelas árvores, mais do que uma figura a aproximar-se. De facto, Iruvienne parecia estar cercada por seres, relativamente silenciosos, que se aproximavam furtivamente. Manteve-se quieta e estática no meio da clareira, com a espada bem segura na mão direita e os olhos a perscrutarem o interior da floresta, na tentativa de perceber o que a cercava. Mas foi inútil. As criaturas, fossem o que quer que fossem, eram esquivas e sabiam como se dissimular na vegetação da floresta.

Iruvienne deu um passo atrás e imediatamente dez criaturas de forma animalesca surgiram de entre as árvores. A sua pele era de uma cor mesclada verde-escura e preta; os seus enormes olhos eram vazios e pretos, sem qualquer expressão; os dedos espalmados das mãos e dos pés tinham algumas semelhanças com os das rãs e sapos; e as suas cabeças eram calvas e redondas. Estavam completamente nus e caminhavam meios curvados, como se estivessem algures entre os animais e a forma humana. Traziam facas de lâminas largas e duplas, com cerca de trinta centímetros de comprimento. Os seus olhos estavam fixos em Iruvienne e elas avançaram na sua direcção, com as facas estendidas.

- Aran - berrou Iruvienne.

As criaturas avançaram rápida e desequilibradamente, prontas a combatê-la. Iruvienne defendeu-se, girando e atacando, tentando esquivar-se aos seus golpes. Não percebia como tinham conseguido entrar em Brumívium. Se eram maléficas, devia ser- lhes insuportável estarem num local sagrado como aquela floresta, tão insuportável que não o conseguiriam fazer. Mas então, como estavam ali?

O golpe de uma das criaturas rasgou-lhe a manga do vestido e cortou, superficialmente, a pele de Iruvienne. As criaturas estavam a fechar um círculo à sua volta, impossibilitando-a de se mexer. Iruvienne atacou-as e feriu-as, mas elas não pareciam sentir qualquer dor ou saber sequer o que isso é.

- Aran - gritou, novamente, Iruvienne.

Estava a ficar desesperada. As criaturas prosseguiam, independentemente de todos os ferimentos que ela lhes provocava. Iruvienne afastou uma delas com um golpe rápido e seco, de forma a conseguir sair daquele círculo e tentou correr para o interior da floresta, mas elas seguiram-na. Não ia conseguir livrar-se delas, tinha de lutar e, se não tivesse outra hipótese, matá-las. Porque estava Aran a demorar tanto! Ele nunca a deixava sozinha. Teria corrido na direcção errada?

- Aran - berrou uma última vez. - Ajuda-me.

Escolheu uma das criaturas que a perseguiam e lançou-se para a frente, com a espada levantada e pronta a atacar. Fez com que a faca saltasse da mão do estranho ser e, quando ele tentou saltar para cima de si, enfiou-lhe a espada na barriga, matando-a. Iruvienne viu o sangue viscoso e de cor indefinível do bicho a escorrer pela lâmina da espada. As outras criaturas pararam durante alguns segundos, talvez um pouco espantadas com o que acabara de acontecer, mas não perderam tempo a saltarem para cima de Iruvienne. Ela conseguiu matar mais uma e feriu outra com alguma gravidade, embora essa tivesse continuado a tentar derrubá-la.

Por fim, quando Iruvienne já estava quase estendida no chão, Aran chegou e combateu as criaturas, tentando expulsá-las dali, mas sem as magoar muito.

- Elas não desistem - disse Iruvienne, que se tinha conseguido levantar e estava ao lado de Aran a ajudá-lo.

Juntos lutaram contra os seres até que, quando já só restavam quatro, todos eles bastante feridos, Iruvienne viu os vultos de algumas fadas das sacerdotisas guerreiras no ar. Cada uma delas tinha um arco com uma flecha ajustada à corda e apontada aos seres esverdeados.

- Aran, olha - disse Iruvienne, apontando para o ar. Rapidamente, Aran agarrou-a e estendeu-a no chão, cobrindo-a com o seu próprio corpo. Iruvienne sentiu sangue a escorrer-lhe pela cara, mas não era ela que se tinha magoado ali. Aran tinha um golpe profundo na face direita que ia desde o meio da bochecha até ao queixo, muito ligeiramente abaixo da boca.

As sacerdotisas dispararam os arcos e as flechas silvaram pelo ar, atingindo as criaturas e caindo à volta dos dois amigos estendidos no chão.

 

                           O NENNALM

Namali abriu a porta do quarto de Galaduinne e deparou-se com a sua figura estática e séria, parada a meio caminho da porta.

- Galaduinne, vem comigo - disse Namali, sem olhar sequer para Lunam; o seu tom era de urgência.

- O que aconteceu? - perguntou Galaduinne num murmúrio, recusando-se a sair da posição que assumira.

- Está tudo bem - respondeu Namali, com um ligeiro sorriso. - Aconteceu algo perfeitamente imprevisto e Iruvienne e Aran tiveram a aventura que há muito desejavam. Mas estão ambos bem.

Galaduinne descontraiu-se, mais aliviada. Tivera a nítida

sensação que algo não estava bem com Iruviennne, mas, desta vez, o seu elo com a filha só dera sinal depois de o perigo ter passado.

- E que tipo de aventura foi essa que parece ter agitado Névila, mais do que eu própria consegui? - perguntou Galaduinne enquanto seguia Namali até ao primeiro andar.

- Eles deviam estar os dois num dos seus treinos e separaram-se. Iruvienne foi interceptada por uns seres estranhos que, aparentemente, a tentaram raptar.

- Como é que isso é possível? - perguntou Galaduinne após ter passado o choque inicial de saber que a sua filha mais velha estivera prestes a ser raptada. - Brumívium é um lugar sagrado. O mal não consegue entrar aqui. Como conseguiu Morgriff que as suas hediondas criaturas aqui entrassem?

- Não foram os Magdul que entraram em Brumívium, mas sim outras criaturas. Nunca vi seres assim. O seu aspecto é estranho; como se eles fossem animais que irromperam dos pântanos da terra. E os seus olhos são enormes e vazios. Parece que não há nada do outro lado, que eles não passam de uma carcaça onde foi implantado um mecanismo qualquer que lhe permite deslocarem-se.

Dos dez que conseguiram entrar em Brumívium sobreviveu um. Uma das fadas, que fazia parte do grupo das sacerdotisas guerreiras que encontraram Aran e Iruvien, trouxe-o para cá, para tu o veres. Iruvienne e Aran vêm a pé com o resto do grupo, ainda devem demorar algum tempo a chegar, mas assim que chegarem vêm ter connosco.

Entraram numa ampla divisão, sem qualquer tipo de móveis, onde as sacerdotisas guerreiras costumavam ficar quando chovia torrencialmente. Valindra, que as seguira, entrou com elas e fechou a porta atrás de si.

Encolhida a um canto, encontrava-se a última das criaturas que tinham atacado Iruvienne. As suas mãos estavam atadas atrás das costas com uma corda fina, mas ela não se debatia ou expressava qualquer sinal de se sentir presa. Limitava-se a uma apatia impossível a qualquer ser vivente. A sacerdotisa que a trouxera estava sentada com as pernas cruzadas à sua frente e o seu rosto tinha uma expressão que ostentava uma certa tristeza e talvez, desânimo.

- Ladli - disse, levantando-se. - Tentei tudo para comunicar com ela. Mas parece que não existe qualquer tipo de vida dentro desta criatura, muito embora ela se movimente.

Galaduinne aproximou-se daquele estranho ser acocorado a um canto da sala de treinos e olhou-o directamente nos olhos. O que viu deixou-a não só boquiaberta, mas principalmente horrorizada.

- Este ser - disse, enquanto se levantava e regressava para perto das outras sacerdotisas -, não tem, de facto qualquer vida dentro dele.

Durante alguns minutos as outras três olharam-na, silenciosas e incrédulas. Foi Valindra quem, com um pequeno riso abafado, quebrou o silêncio.

- Nennalm - disse ela. - Sem alma. Essa criatura é um ser sem alma. Uma das muitas criações demoníacas de Morgriff. É um ser sem vontade, não conhece medo, dor, tristeza ou alegria. Tudo o que faz na sua miserável existência é cumprir, ou tentar cumprir, as ordens que Morgriff lhe dá. Fará tudo o que puder e não puder para realizar os desejos dele. Só desiste quando morre.

- Como é que sabes isso? - perguntou Namali.

- Há, certamente, coisas que tu sabes e eu não - respondeu Valindra e Galaduinne sorriu. - Isto é algo que eu sei e tu não. Não é vulgar isto acontecer aqui?

- Claro - disse Namali. - Mas nós nunca tínhamos ouvido falar nos Nennalm e, por isso, é estranho que tu saibas tanto sobre eles.

- Eu viajei por muitos lugares onde tu, de certeza, nunca foste. Devo ter ouvido falar deles numa das minhas viagens.

- Foi então por isso que eles conseguiram entrar em Brumívium - disse Galaduinne, cortando a conversa antes que Valindra revelasse mais do que queria. - Como não têm alma, não conseguem sentir, o que lhes permite entrar num lugar sagrado como este. No entanto, a mera ideia de tirar a alma a um ser é terrível. Como é que Morgriff o conseguiu fazer, mesmo sendo ele quem é?

- Não penso que ele tenha tido problemas de consciência com isso. Mas não sei qual o processo que ele utiliza para fazer essa... tarefa.

- Talvez eles já nasçam assim - sugeriu a guerreira.

- De uma maneira ou de outra - disse Galaduinne, lentamente -, é uma atrocidade que eu não desejo nem ao Morgriff.

Bateram à porta.

- Entrem - disse Galaduinne.

Aran abriu a porta. Tinha encostado à face direita um bocado de pano ensopado em sangue, que Galaduinne reconheceu ser uma das mangas da outrora bonita túnica de Iruvien. As suas roupas estavam imundas e cobertas por manchas de sangue viscoso. Iruvienne vinha logo atrás dele. A sua túnica pendia em duas mangas; uma fora cortada e a outra nitidamente amputada. Das cores claras das suas roupas havia apenas pequenos vestígios, tanta era a terra e o sangue que as cobriam. Os seus cabelos tinham o aspecto miserável de quem andou a rebolar pela terra e os seus braços e pernas ostentavam vários pequenos cortes. Atrás dos dois, vinha o resto das sacerdotisas guerreiras que os tinham ajudado. Todas elas tinham um aspecto impecável, o que realçava ainda mais o ar desgrenhado dos dois amigos.

Assim que Iruvienne entrou na sala, o nennalm pareceu despertar. Num ápice, levantou-se e, mesmo com as mãos atadas correu precipitada e cambaleantemente na sua direcção. Valindra tentou agarrá-lo, mas ele deu-lhe uma espécie de coice com os pés, que quase a derrubou, e continuou na direcção de Iruvienne. Galaduinne agarrou-o. Ele emitiu um som vazio e estridente e pontapeou-a árdua e consecutivamente até que se conseguiu libertar. Galaduinne esticou a mão para o reter novamente, mas falhou. Rapidamente, Aran deixou cair o pano que lhe tapava a ferida, desembainhou a espada e, com uma frieza impressionante, enterrou-a na barriga do nennalm. A criatura parou a sua correria desenfreada e, sem um único som, morreu, deixando finalmente a existência macabra que Morgriff lhe destinara. Aran retirou a espada do corpo do nennalm, limpou-a às roupas já muito sujas e voltou a embainhá-la.

Durante alguns minutos ninguém falou. As sacerdotisas ficaram perfeitamente imóveis, Valindra olhou Aran demoradamente e Galaduinne fitou o corpo do nennalm, que nunca chegara sequer a ter vida, sem saber muito bem se devia sentir compaixão ou raiva por aquela criatura que atacara a sua filha mais velha. Apenas Iruvienne e Aran pareciam não estar absolutamente nada preocupados com o que acabara de acontecer. Iruvienne baixou-se e apanhou a manga da sua túnica que ela própria arrancara, entregando-a novamente a Aran. Ele sorriu- lhe, contorcendo logo de seguida a cara devido à dor.

- Galaduinne - chamou Iruvienne e ela olhou-a. - Aran tem um golpe profundo na face. Precisa de cuidados.

Galaduinne sorriu docemente à filha e a Aran.

- Evidentemente - disse e voltou-se para Namali. - Leva Aran para que tratem dos seus ferimentos e quando ele estiver pronto vem chamar-me. Preciso de falar com ele.

Namali saiu, levando Aran consigo e Valindra e as restantes sacerdotisas seguiram-nos.

- Iruvienne - chamou Galaduinne, estendendo uma das mãos na direcção da filha. - Estás bem?

- Apenas imunda.

- E com alguns cortes - disse Galaduinne sorrindo.

- Sim - reconheceu Iruvienne. - Um pouco mais do que é habitual.

- Vai tomar um banho, para ficares mais limpa. Eu acompanho-te e depois trato desses cortes. Alguns deles são mais graves do que tu queres admitir.

- Mas não tão graves quanto o de Aran.

- É verdade.

Abriu a porta e Iruvienne seguiu-a até à casa de banho. Galaduinne limpara cuidadosamente os ferimentos da filha, aplicara-lhes um unguento apropriado e uma compressa nos mais profundos. Iruvienne mantivera-se sempre calma e nunca se queixara. Enquanto trabalhara, Galaduinne perguntou-lhe o que a criatura era, mas, relativamente a isso, Irovien não se pronunciara. Namali batera à porta, anunciando que Aran estava quase pronto, e Galaduinne deixou a filha entregue a um livro de poesia élfica.

Aran estava deitado num acúbito, na ampla e luminosa sala de trabalho das sacerdotisas que estudavam as plantas, com os olhos abertos fixos no tecto, o golpe da face direita cosido com pequenos pontos e uma expressão um pouco lânguida, devida à bebida que lhe tinham dado para, em parte, o anestesiarem.

- Aran - chamou docemente Galaduinne e ele fez menção de se levantar, mas ela fez-lhe um sinal com a mão, indicando-lhe que permanecesse deitado. - Deixa-te descansar. Queria apenas agradecer-te por teres protegido Iruvienne.

- Agradece-me por uma coisa que eu fiz tardiamente

- respondeu Aran. - Quando lá cheguei, já muito se tinha passado.

- Tenho a certeza de que foste assim que a ouviste.

- De qualquer forma, devia ter lido melhor os sinais.

- Ajudaste-a e ela está sã e salva, em parte graças a ti. Devias estar orgulhoso e não triste.

- Estou orgulhoso dela. Provou ser uma boa guerreira e isso deixa-me contente, pois ela é minha amiga e também porque fui eu quem a treinou.

Aran parou durante alguns momentos, mas Galaduinne não disse nada, pois sabia que ele ainda tinha qualquer coisa para dizer.

- As sacerdotisas disseram-me o que eram aquelas criaturas - disse Aran. - Nós tentámos não as magoar. Pensámos que elas teriam medo, depois de verem como as espadas as podiam magoar, mas evidentemente estávamos enganados. Pareciam tão frágeis, tão desgraçadas, que nenhum de nós conseguia deixar de sentir que estava a fazer mal a criaturas inocentes. E afinal, elas não eram inocentes, mas também não eram outra coisa qualquer. Como pode alguém viver se no interior é apenas vazio?

- Não pode, Aran. Vive biologicamente, mas não vive verdadeiramente.

Ele voltou a olhar para o tecto.

- Queria dar-te um presente - disse Galaduinne, ao fim de algum tempo. - Algo que tu aprecies, como forma de agradecimento pelo que fizeste hoje. Gostaria que fosses tu a escolher.

- Agradeço-lhe, Senhora. Mas não quero nenhum presente. Como já disse, hoje quem merece recompensas é Iruvienne. - Ficou calado durante alguns segundos, ao fim dos quais se sentou no divã. Galaduinne não o tentou impedir. - há algo de que, efectivamente, eu gostava.

- Nomeia-o. Aran sorriu.

- Não é para mim que o quero, mas sim para Iruvienne - disse ele. - Ela usa a espada de Ailura e, embora se sinta honrada, eu sei que ela gostava de ter uma espada a que pudesse chamar sua. Uma espada feita propositadamente para ela.

- Compreendo.

- Teria de ser uma espada suave, bela e elegante como a própria Iruvienne, pois as espadas devem ser prolongamentos das pessoas a que pertencem. Mas acima de tudo, teria de ser funcional. O cabo suficientemente grande para ela o agarrar com ambas as mãos e a lâmina estreita, ecomprida. Se pudesse acompanhar o presente uma bainha com o tamanho da espada, então ele seria perfeito.

- E qual será o nome da espada, Aran?

- Fucolem.

A noite, tal como o dia, estava quente e brumosa. No entanto, o ar era mais leve e já não se sentia aquela atmosfera perigosa. Galaduinne subiu a montanha até à lagoa da gruta. Levava consigo uma toalha para se secar quando saísse da lagoa. Tinha de falar novamente com a Água.

Os degraus que davam para a gruta estavam ainda cobertos pelas brumas, mas Galaduinne, tal como Iruvienne e Aran, conhecia bem o lugar e desceu sem dificuldade. Pousou a toalha num sítio seco, descalçou-se e entrou dentro de água.

As águas da lagoa estavam límpidas, lisas e, como sempre, geladas. Galaduinne brincou um pouco com elas até que, por fim, se deixou mergulhar.

- Lha, preciso de falar contigo.

- Fala, Galaduinne. Eu estou sempre atenta - respondeu a Água.

- Os caminhos estão a fechar-se e eu não sei o que hei-de fazer mais.

- Continua a ser quem és. Cumpre as tuas obrigações como Senhora da Noite e das Brumas e a resposta virá ter contigo.

Isto é um pouco como procurar algo que se perdeu. Quanto mais procuras, menos consegues encontrar. Tens de parar. Deixa que as coisas tomem o seu próprio curso. Há forças externas a ti e até a nós. Forças que criam os seus próprios padrões. Tudo seguirá o seu rumo. Talvez aconteçam coisas que nem nós, nem vós tínhamos previsto. Mas, no fim, tudo se desenrolará como previsto, quer demore um ano ou um milhão de anos.

A Água calou-se e Galaduinne preparou-se para ser enviada para a superfície, mas não foi isso que aconteceu. A Água criou pequenas ondas que roçaram a cara de Galaduinne, como se a estivessem a acariciar, e continuou a falar.

- Fico contente por ver que não deixaste a Valindra dominar-te. Ela não tem propriamente más intenções, nem partilha as opiniões do Morgriff. Mas julga-se omnipotente e isso, mais do que patético, é perigoso. Aquele que é omnipotente não constitui nenhum perigo, porque, de facto, ninguém o é. Mas aquele que o julga ser é o maior dos perigos, para os outros e até para si. Talvez desta vez ela tenha finalmente aprendido o quão longe está da omnipotência. - Fez uma pequena pausa. - Agora vai, Galaduinne. E não te esqueças de cumprir as tuas obrigações para com Brumívium.

- Cumpri-las-ei até ao dia em que regressar a Omnirion - respondeu Galaduinne.

- Se algum dia puderes, efectivamente, regressar - disse a Água e empurrou Galaduinne, abruptamente, para a superfície.

 

                         A VINDA DE ATHILYA

Galaduinne caminhava lentamente por entre a floresta de Brumívium. O dia começava a amanhecer e, desta vez, não trazia as brumas consigo. De facto, estava tudo tão claro e luminoso, sem qualquer obstáculo a uma boa visão, que Galaduinne conseguia ver, lá muito ao longe, as lindíssimas árvores de Caladmiron. E vinha alguém de lá: um alto e esguio vulto de cabelos flutuantes. Galaduinne aproximou-se dele e ele dela. Então, reparou que os cabelos do vulto eram de um vermelho acastanhado, o seu nariz era pequenino e arrebitado e o seu rosto era o mesmo da sua filha mais nova.

- Athilya - murmurou.

As letras daquele nome tão querido pareceram pairar à sua frente durante breves segundos. Depois, foram graciosamente levadas por uma brisa dançante e indetectável até à rapariga que continuara a avançar até chegar muito perto dela. Lenta e suavemente, a jovem olhou-a directamente nos olhos sorriu e acenou afirmativamente. Galaduinne abraçou-a de uma forma que só as mães sabem fazer: sem apertar, mas transmitindo todo o seu amor e preocupação.

Quando, por fim, se separaram, Galaduinne beijou a filha na testa e, olhando à sua volta, viu que já não estava em Brumívium, mas sim em Omnirion. Uma vozinha fininha chamou-a.

Galaduinne acordou com Din ajoelhado na sua almofada. Sentou-se na cama e estendeu uma mão para a qual o duende passou algo.

- O que se passa, Din?

- Galianar enviou-vos uma mensagem.

- Obrigada por me avisares, Din - agradeceu Galaduine sem perceber muito bem a razão da insistência do duende.

Din sempre lhe trouxera as cartas e mensagens de Galianar e quando chegava de noite, nunca a acordara. Limitava-se a deixá-las em cima da mesa de trabalho ou do toucador. Excepto no Inverno, quando Galaduinne deixava a janela fechada, esperava que ela acordasse, abrigado algures na floresta.

- É importante. Ele disse que gostaríeis de a saber o mais cedo possível. Fiz o meu melhor.

- Agradeço-te - disse Galaduinne, levantando-se apressadamente.

- Deixei-a na mesa de trabalho - disse o duende, exausto. Fiz a viagem toda de noite e quando aqui cheguei estava a começar a chover. Condições terríveis para todos. Principalmente para um ser tão pequeno como eu.

- Claro - disse Galaduinne, pegando na carta e fazendo estalar o lacre. - Deves estar muito cansado. Porque não desces até à cozinha e pedes qualquer coisa para comer e um pouco de vinho. Sem dúvida que os mereces. Diz que fui eu quem te mandou.

- Obrigada, Rainha - disse Din, saindo pela janela entreaberta.

Galaduinne retirou uma folha dobrada a meio do envelope e abriu-a. O papel continha uma pequena mensagem na letra bem definida e levemente inclinada de Galianar. Dizia assim:

Athilya parte para Brumivium hoje de manhã cedo, altura pela qual deves receber esta mensagem. Ela deseja fihcar a viver aí, contigo e com a irmã. verás que se tornou uma elfo de grande sabedoria e erudição, tal como Ogueimion, e que te contará coisas muito interessantes.

Galaduinne voltou a guardar a folha dentro do envelope e colocou-o numa das gavetinhas da secretária.

Estavam no fim do décimo mês de Agosto que passava em Brumívium. Tinham passado dez anos desde que chegara a Névila. Dez anos sem ver a outrora bela cidade de Omnirion, sem ver a magnificente Caladmiron, principalmente, sem ver, abraçar ou beijar a sua filha mais nova. Athilya tinha quase vinte e dois anos e desde os doze que só comunicava com ela por carta. Era verdade que eram cartas longas e sobre os mais variados assuntos, mas também nunca podiam ser muito explícitas. Isso era um problema, porque certas coisas tinham de ser ditas por meias palavras ou, mais frequentemente, nem sequer serem referidas. E Galaduinne sentia-se constantemente preocupada com Athilya. Sabia que ela estava em segurança com Galianar e que ele se encarregara pessoalmente da sua educação. No entanto, como mãe, gostaria de estar com ela, pentear-lhe o cabelo, cuidar das suas feridas e arranhadelas e escolher com ela os tecidos e modelos das suas roupas, tal como fazia com Iruvienne. E agora, ao fim de tantos anos para os Homens e uma insignificância para os Elfos, ia finalmente rever a sua filha.

Vestiu um vestido prático e relativamente quente, porque o tempo em Brumívium já começava a arrefecer, e desceu até à casa de banho para se lavar.

O dia começava a amanhecer e Névila acordava lentamente. Quando Galaduinne entrou na casa de banho; deparou-se com o burburinho habitual das manhãs do castelo.

As sacerdotisas conversavam animadamente enquanto lavavam a cara ou tomavam banho e, à sua passagem, inclinavam suavemente a cabeça e sorriam, numa saudação bem-disposta.

Namali aproximou-se dela e as duas dirigiram-se para os lavatórios vagos. Galaduinne verteu um pouco da água doa seu jarro no lavatório e lavou a cara, secando-a de seguida com uma toalha seca.

- Athilya chega hoje a Névila - disse a Namali, que a olhou e sorriu.

- E tu estás extremamente contente.

- É claro que estou. Não a vejo há dez anos! Tenho tantas saudades que não existe, em ambos os Mundos, uma balança com capacidade suficiente para as pesar. A porta foi aberta e Iruvienne entrou na casa de banho.

Estava num estado lastimável. As roupas apresentavam uma cor que variava entre o castanho da poeira da terra e um outro castanho de lama seca, os cabelos estavam desalinhados e completamente emaranhados e a cara tinha uma cor ligeiramente amarelada. Parecia que ela tinha andado a rebolar pela terra.

Iruvienne avançou até Galaduinne, sorrindo a todas as sacerdotisas e desejando os bons-dias àquelas que a olhavam mais insistentemente, claramente chocadas com a sua aparência.

- Athilya está a caminho. Chega hoje ao final da tarde - disse simplesmente, quando chegou perto da mãe.

- Chegaste tarde de mais - respondeu Galaduinne. - Eu já sei que Athilya está a chegar. Os sonhos mostraram-mo e recebi, hoje de manhã, uma mensagem de Galianar que o confirmava.

- Então, se não sou de nenhuma utilidade, retiro-me para tomar um banho. Pode não parecer, mas estou imunda - acrescentou com um ligeiro sorriso.

Galaduinne e Namali viram-na afastar-se para a zona de banhos, ambas contendo o riso a custo.

- É impressionante como Iruvienne e Aran continuam com os seus treinos às mais variadas horas e ocasiões – disse Namali.

- Desconfio que isto seja o resultado de um treino - respondeu Galaduinne. - É mais provável que tenham decidido passar algum tempo na floresta a sobreviver sozinhos. Isso explicaria porque não os vejo há mais de três dias.

Sorriu. Aran e Iruvienne recusavam-se a desistir dos seus treinos com a espada ou das longas estadias na floresta sem mais nada para além das espadas e algumas provisões. Iruvienne estudava com interesse e dedicação tudo aquilo de que precisaria quando, um dia, se tornasse Rainha das Terras da Luz. Mas essa parte da sua vida parecia-lhe muito distante e, efectivamente, ela não se preocupava muito com ela. Preferia passar os dias a correr e a escutar os sons da floresta, sentada com Aran no grosso e forte tronco de uma árvore anciã, do que passear calmamente com as sacerdotisas mais velhas a recolher as matérias-primas que depois transformariam, longa e pacientemente, em tecidos élficos de uma leveza e tonalidades inigualáveis. Um dia, sem dúvida que o faria, mas esse dia parecia-lhe distante, suficientemente distante para não lhe reservar mais do que alguns minutos de pensamento por ano.

- Quero organizar uma pequena festa de boas-vindas a Athilya - continuou Galaduinne. - Espero que ela goste.

- Oh! Ela vai, de certeza, adorar. As sacerdotisas mais velhas é que são capazes de ficar um pouco... surpreendidas com a tua iniciativa.

Galaduinne encolheu os ombros, fechou os olhos e deu um ligeiro suspiro.

- Já estou habituada. Se eu tivesse recuado de cada vez que elas não aprovavam uma das minhas ideias, Névila não tardaria a estar mergulhada numa decrepitude assombrosa e doentia. Sabedoria de um povo antigo, mas até os velhos costumes devem, por vezes, ser alterados para que possa haver progresso. Sem progresso e sem mudanças, o Mundo envelhece e torna-se num fruto enrugado. Felizmente, ele próprio não deixa que isso aconteça e está constantemente a alterar-se.

Eu respeito os velhos costumes e tradições. Fui criada no meio deles e honro os seus ensinamentos e valores. Mas alguns deles, pura e simplesmente, deixam de fazer sentido à medida que o tempo avança. São esses que têm de ser postos de lado, de forma a darem lugar a novas e mais proveitosas ideias.

Fez uma pequena pausa. Namali sorria.

- É melhor ir ajudar Iruvienne. Aquele cabelo vai dar problemas para se desenriçar. Até já, Namali.

Durante o dia, Galaduinne preparou uma verdadeira festa para comemorar a chegada da sua filha mais nova.

As mesas de anuliss do refeitório foram cobertas com enormes toalhas de um azul-claro, ligeiramente acinzentado, e enfeitadas a toda a volta com arranjos de folhas das árvores de anuliss, folhas verdes e pequenas flores brancas. Foram colocadas ao longo das mesas várias taças de cristal baixas, delicada e minuciosamente trabalhadas, onde boiavam diversas pétalas brancas e velas flutuantes da mesma cor das toalhas. O refeitório foi também ele todo decorado com véus de cores suaves e bonitos arranjos de variadas plantas e flores. E os lugares à mesa das sacerdotisas foram redistribuídos, para que Iruvienne, Athilya e Aran se pudessem sentar na mesma mesa da Senhora de Brumívium.

As sacerdotisas mais talentosas foram buscar os seus

instrumentos. Umas tiraram as suas harpas, liras e outros instrumentos de sons suaves dos sítios onde habitualmente os guardavam e praticaram durante toda a tarde, enchendo Névila com uma harmonia, verdadeiramente, deleitante. As outras sacerdotisas afinaram os seus instrumentos de sons mais agudos e, de certa forma, mais naturais.

Nas cozinhas, elas atarefaram-se a preparar diversos pratos de sabores suaves e frescos, com algum peixe e carne e, principalmente, muita fruta e verduras, tal como os Elfos e as Fadas mais gostavam. E até os pratos de louça azulada, com pequenas borboletas brancas pintadas, foram adornados à volta com finas grinaldas de flores brancas.

Galaduinne e Namali prepararam o antigo quarto de Liduvine, que ficava ao lado do de Iruvienne, para Athilya e mais outros seis para as pessoas que a escoltassem. E enquanto elas trabalhavam, o dia, que

estava solarengo, ficou cada vez mais escuro. Primeiro apareceu uma ligeira neblina, depois as nuvens escureceram e começou a chover e, por fim, estava tanto nevoeiro que era difícil ver a mais de dois metros de distância. Além disso, a temperatura desceu e no exterior ficou frio e húmido. Por isso, Iruvienne e Aran, a quem não tinham sido dadas nenhumas tarefas, entretiveram-se a acender todas as lareiras do castelo para que a temperatura interior continuasse quente e agradável.

O dia começava a escurecer e Din, sentado num dos ramos das árvores do interior da floresta, bebericava deliciado um pouco de vinho, servido num minúsculo copo, enquanto esperava a passagem da companhia de Athilya. Assim que viu os cavalos a aproximarem-se voou cuidadosa e velozmente entre as ramagens das árvores e o nevoeiro cerrado, até Névila. Quando lá chegou procurou Galaduinne que estava calmamente sentada no parapeito da sua janela a ler um livro de histórias élficas. Din bateu com a sua mãozinha minúscula no vidro da janela fechada. Galaduinne olhou-o com um sorriso e abriu a janela para o deixar entrar, apressando-se a fechá-la logo a seguir. O duende voou até à mesa de trabalho e pousou com cuidado o copo de dimensões diminutas.

- Elas estão a chegar - disse, esfregando os braços para se aquecer. - Daqui a meia hora estarão às portas de Névila.

- Muito obrigada - agradeceu Galaduinne.

- Isto aqui é muito frio - disse o duende como quem pensa alto.

- É, sem dúvida, muito mais frio que Caladmiron. O Inverno das Terras da Luz aqui não passa de um dia de Outono um pouco mais frio. Mas com o passar do tempo habituamo-nos. De qualquer forma, dentro de Névila está quente.

Din esboçou um sorriso tímido, mas Galaduinne percebeu que ele considerava o castelo ainda demasiado frio.

- Gostaria de te pedir mais um favor - disse Galaduinne.

- Certamente, Rainha.

- Por favor, avisa Iruvienne que a sua irmã está a chegar.

- Vou imediatamente - respondeu o duende. - Agradecia apenas que tivésseis a delicadeza de me abrir a porta. Receio que ela seja demasiado pesada para um frágil duende como eu.

- Claro que a abro, Din. Quando tiveres dado o recado a Iruvienne, e se não quiseres ficar a fazer-lhe companhia, podes descer até à sala onde as plantas são guardadas e descansar lá, se assim o desejares. Foi-te preparada lá uma cama adaptada ao teu tamanho.

- Obrigado, Rainha - disse Din e apressou-se a sair pela porta que Galaduinne entretanto abrira.

Galaduinne fechou a porta e olhou à sua volta. Não havia nada que pudesse ser feito. Apenas o velho livro a chamava, com as suas páginas de tom amarelado e cheiro característico. Aquele era um cheiro tão agradável! Completamente típico dos livros élficos. Pertencia, seguramente, a lugares inalcançáveis para uns e extremamente familiares para outros; lugares antigos, mágicos, como aquele Mundo e os próprios Elfos e Fadas. Galaduinne inspirou aquele cheiro por algum tempo, acabou a história que estava a ler e desceu, um pouco impaciente, até à entrada de Névila.

O tempo pareceu passar muito devagar. Galaduinne manteve- se em pé, muito direita e com as mãos delicadamente unidas sobre a barriga. Passado algum tempo, Iruvienne veio colocar-se ao seu lado direito e adoptou uma posição idêntica. Aran permaneceu silenciosamente atrás delas, com uma expressão muito séria e um porte um tanto ou quanto rígido. Namali; Elian e as outras Conhecedoras da Noite, que normalmente se sentavam na mesma mesa de Galaduinne, chegaram pouco depois. E, silenciosamente, o grupo esperou a chegada de Atília durante o que pareceu a Galaduinne uma eternidade. De facto aqueles minutos pareceram-lhe mais penosos e longos que todos os anos que a tinham separado da filha mais nova.

Por fim, o séquito de Athilya tornou-se visível entre a folhagem. Ela vinha à frente, montada num cavalo esplendorosamente branco com uns arreios muito finos e, praticamente, desnecessários. O seu porte era direito e altivo, muito diferente do da criancinha tímida e, em parte, pouco sábia que Galaduinne deixara em Nielirian. Trajava em tons de claro. As calças muito justas e a túnica eram de um verde parecido com o das folhas das árvores de Caladmiron no Verão, e as botas de cano alto e o casaco comprido com capuz de um verde brilhante. Os seus cabelos ondulavam livremente atrás de si como chamas de uma fogueira.

Galaduinne conhecia quase todos os membros do séquito, pois ele era maioritariamente composto pelas guerreiras que a protegiam. Mas ela não conhecia três das raparigas que acompanhavam Athilya. Deviam ser as suas damas de companhia.

Elas cavalgaram calmamente até chegarem à entrada de Névila. Athilya desmontou com uma elegância maravilhosa, fez um ligeiro sinal ao seu grupo para que a imitassem e caminhou leve e serenamente em direcção à mãe.

Galaduinne desceu as escadas e aproximou-se da sua filha. Agarrou-lhe ambas as mãos e beijou-a nos cabelos. Não era costume dos Elfos e das Fadas abraçarem-se, mas naquele dia Galaduinne fê-lo. Sentia tantas saudades da filha que queria ter a certeza de que ela estava mesmo ali, que não era apenas um sonho prestes a terminar. Athilya não estranhou o gesto, pois embora não fosse esse o costume do seu povo, também eles por vezes o faziam. E a verdade era que ela há muito desejava sentir o abraço de uma mãe.

Galaduinne separou-se da filha e sorriu-lhe.

- Sê bem-vinda a Brumívium e Névila.

- Obrigada, mãe - respondeu Athilya.

Athilya subiu com Galaduinne a escadaria da entrada e parou em frente a Iruvienne.

- Iruvienne!... - disse suavemente, como alguém que recorda uma memória agradável. - Estás tão diferente! Tão parecida com a mãe. Serás a perfeita rainha das Terras da Luz.

- Duvido - respondeu Iruvienne. - Tu é que devias ser a próxima rainha das Terras da Luz. Leio nos teus olhos a sabedoria e a calma que eu não tenho.

- Enganas-te, Iruvienne. Vês em ti menos do que és. Os teus gestos e atitudes têm uma juventude que eu já perdi e que tu conservarás sempre. Mas também há em ti a mesma calma e sabedoria que julgas ver em mim. És uma elfo e, embora não o aches, tens em ti a essência do teu povo.

Iruvienne sorriu docemente e Galaduinne reparou que o sorriso dela era um reflexo mais jovem do seu. Athilya tinha razão. Iruvienne era muito mais do que via, ou queria ver, em si própria. As duas irmãs abraçaram-se demoradamente. Por fim, afastaram-se, ambas com sorrisos no rosto. E então, Athilya encarou Aran. Ele fechou os olhos e inclinou profundamente a cabeça, em sinal de respeito e admiração. Mas ela encostou a sua esguia mão direita ao peito de Aran, no sítio onde o seu coração batia, e depois encostou-a ao seu próprio coração. Esse é o gesto que os Elfos e Fadas fazem para mostrarem que se preocupam com a pessoa a quem o dirigem e que essa pessoa lhes é querida.

- Pensei muito em ti nestes últimos dez anos.

- Obrigada, Dama Athilya.

- Dama? - admirou-se Athilya, soltando uma risadinha abafada. - Brincámos tantas vezes juntos quando éramos crianças, que títulos como Dama não podem ser usados entre nós.

Aran sorriu e inclinou novamente a cabeça, mas, desta vez, não tão acentuadamente. Galaduinne, Athilya, Iruvien e Aran entraram no castelo, seguidos pelas sacerdotisas e o séquito de Athilya.

Galaduinne vestira um esvoaçante vestido azul-escuro de mangas extremamente largas que lhe encobriam as mãos. Era um vestido simples, mas bonito, que tinha como único adorno um cinto de ouro branco, profusamente trabalhado para dar a sensação que eram finos e delicados ramos de árvores que lhe enlaçavam a cintura. Os seus cabelos caíam soltos pelas costas, apenas cingidos pelo diadema que fizera com a água-marinha e as doze espinelas malva que Dwarler lhe oferecera.

Athilya escolhera um vestido branco sem mangas e com um decote largo. Também o seu vestido tinha como único adorno um cinto de ouro branco, mas este fora trabalhado com a forma de minúsculas e maravilhosas flores. Athilya colocara no cabelo vermelho-acobreado um diadema de ouro branco, igualmente trabalhado com motivos florais e com minúsculos e cintilantes diamantes como olhos das flores. Galaduinne entrançara-lhe os cabelos, de forma a que eles estivessem afastados o mais possível da cara.

Iruvienne tinha vestido um lindíssimo vestido vermelho-fogo, de mangas rasgadas, apenas presas ao braço por uma fina tira antes do cotovelo, que esvoaçava à sua volta criando a ilusão de que ela estava, de facto, envolta em labaredas.

Galaduinne observava, sentada na sua cama, o olhar sério com que Athilya analisava Iruvienne.

- Não é preciso nada de especial - disse Iruvienne, descontraidamente -, basta entrançar os cabelos da zona das têmporas.

- Isso seria demasiado banal - respondeu Athilya. Olhou para a mãe e, novamente, para Iruvienne. - Tinha pensado guardá-lo para outra ocasião, mas provavelmente é melhor dar-to agora.

Foi até ao seu saco donde tirou um estojo quadrangular que abriu em frente à irmã. Lá dentro estava um magnífico diadema de ouro amarelo com o feitio de graciosos ramos salpicados por delicadas e soberbas folhas. Alojadas entre os ramos, estavam pequenas hessonites de um vermelho-líquido e brilhante. O diadema formava um desenho de linhas intricadas que pendiam para a testa onde formavam uma oval coroada por duas folhas rendadas, que tinham ligeiras semelhanças com um par de asas abertas. A oval era preenchida pela mais bela e brilhante das hessonites do diadema.

Athilya pousou-o nos cabelos de Iruvienne e olhou-a com um sorriso de satisfação nos lábios.

- Fica-te ainda melhor do que eu tinha imaginado. Iruvienne olhou o seu reflexo no espelho do toucador, durante alguns segundos.

- É lindíssimo. Mas eu não precisava de um diadema.

- Todas as mulheres devem ter um - respondeu Athilia.

- Hum... Eu um dia terei a coroa.

- É verdade - disse Galaduinne. - Mas isso pode ser,

como tu esperas, só daqui a muitos anos. E mesmo que não seja, nós usamos a coroa tão raramente que acabarás por usar mais vezes o diadema.

Iruvienne sorriu e fez menção de se levantar, mas a mãe colocou-lhe a mão no ombro e obrigou-a a sentar-se novamente.

- Ainda não acabei. Fica quieta - disse, e entrançou-lhe parte do cabelo num bonito penteado que ajudava a beleza do diadema.

Quando Athilya terminou, Galaduinne abriu a porta para que as filhas saíssem.

- Mãe... - disse Athilya. - Tenho um recado importante de Galianar para ti.

- Muito bem - disse Galaduinne. - Iruvienne vai até ao quarto de Namali e avisa-a que estamos prontas. Depois regressa aqui para descermos todas juntas.

Iruvienne assentiu, ligeiramente, com a cabeça e saiu. Galaduinne fechou a porta e voltou a sentar-se na borda da cama.

- Estou a ouvir.

Athilya uniu as mãos na zona do ventre e sorriu.

- Os Magdul regressaram a Morniran. Apenas Morgriff ficou em Omnirion. Galianar diz que é a altura ideal para regressares e o defrontares. O que pretendes fazer, mãe?

Galaduinne olhou na direcção da porta que, entretanto, Iruvienne tinha aberto e onde permanecia com uma expressão extremamente séria, o que nela demonstrava alguma preocupação.

- Foste muito rápida, Iruvienne - disse Galaduinne.

- Pressupus que o recado de Galianar seria algo do género; por isso pedi a Aran, que estava cá fora à nossa espera, para avisar Namali - respondeu Iruvienne, calmamente. - O que tencionas fazer?

- Descer convosco para o jantar, divertir-me, dançar e regressar ao meu quarto para dormir uma noite repousada.

Iruvienne sorriu, mas Athilya olhou a mãe com uma expressão de incredulidade no rosto delicado.

- Hoje estou muito contente - disse Galaduinne. Demasiado contente para me preocupar. As preocupações fizeram parte de mim todos os dias destes últimos dez anos. Durante dez anos Omnirion sofreu os tormentos das criaturas de Morgriff e eu nada fiz. Vou conceder-me uma noite de descanso e felicidade. Uma noite livre de preocupações e tristezas. Amanhã de manhã, levanto- me com o sol e preocupo-me mais do que alguma vez me preocupei. Mas por agora, descansarei e serei feliz.

Caminhou levemente até à porta e abriu-a.

- Vamos. Somos esperadas.

E as três desceram para jantar.

Galaduinne sentou-se na sua cadeira, Athilya do seu lado esquerdo, Iruvienne do seu lado direito e Aran ao lado de Iruvienne. Aran trajava um fato preto e cinza, elegante e estranho, pois não era uma roupa nem humana, nem élfica, mas sim uma mistura de ambos, que lhe dava um certo ar de um cavaleiro da Idade Média.

As sacerdotisas mais novas serviram os diversos pratos que tinham sido dispostos em bandejas enfeitadas com folhas e flores, e sentaram-se. Então, as sacerdotisas que tinham ensaiado toda a tarde, entraram e sentaram-se nas cadeiras que tinham sido colocadas dentro do grande quadrado formado pelas mesas.

Uma delas dedilhou as cordas da halua, um instrumento que soa como a água dos rios a correr, e as outras seguiram-na, durante toda a refeição, por melodias suaves e encantadas.

No fim do jantar, elas levantaram-se e ocuparam os lugares à mesa. Então, as outras sacerdotisas foram buscar seus instrumentos, que estavam cuidadosamente pousados ao fundo do refeitório, e começaram a tocar uma música alta e rápida. -Iruvien e Aran levantaram-se e foram até ao meio do quadrado livre, transformando-o num diminuto salão de baile.

Iruvienne dançou com uma graciosidade e energia inigualáveis e Aran acompanhou-a, embora não tão elegantemente. Em breve, quase todas as sacerdotisas bailavam por entre os espaços livres da sala, até que Galaduinne mandou parar a música para que se encostassem as mesas às paredes e, assim, o espaço de dança fosse maior. E dançaram pela noite dentro, músicas alegres e tristes, rápidas e lentas, com movimentos pequenos e saltitantes ou largos e de uma beleza incrível.

Galaduinne divertiu-se como há muito tempo não o fazia e, efectivamente, naquela noite não se preocupou e foi feliz. Ela lembrava-se de algumas festas do género que tinham ocorrido em Caladmiron, por entre as suas árvores, em que os Elfos, as Fadas e os Duendes bailavam até o Sol nascer e, por vezes, muito depois disso. Lembrava-se de ver Edínmtor dançar com Ailura até ambos perderem o fôlego e de Ogueimion a conduzir por entre as árvores, em danças que pareciam nunca mais acabar e que ela desejava fossem eternas. Naquela noite, ela não teve um par, mas as suas filhas dançaram com ela e ela desejou igualmente que a noite jamais desse lugar ao dia.

 

               CONFRONTO COM MORGRIFF

Galaduinne caminhava pausadamente por Caladmiron.

Os ramos das árvores agitavam-se ligeiramente com uma brisa suave e as folhas caíam consecutivamente para, logo de seguida, nascerem uma e outra vez. E enquanto Galaduinne caminhava, os anos iam passando, a uma velocidade impossível de acontecer na vida real. Por fim, Galaduinne encontrou Ailura à sua frente. Aproximou-se dela e mãe e filha deram as mãos. Morgriff olhava-as com uma expressão trocista. A sua imagem era umas vezes totalmente nítida e outras indistinta e quase imperceptível.

As folhas continuaram a cair dos seus ramos para voltarem a nascer e os anos passaram por elas rapidamente, até que Iruvienne surgiu ao seu lado e tudo ficou calmo e sereno. O tempo parou de correr e Galaduinne foi conduzida por Ailura até Iruvienne. A sua filha deu-lhe a mão e as três olharam para Morgriff. Ele permanecia à sua frente, com a mesma expressão desagradável, mas o seu rosto estava mudado e toda a sua aparência era medonha. Durante alguns segundos, ele olhou-as como se fossem apenas vermes microscópicos e depois, simplesmente, desapareceu.

Galaduinne acordou de repente. Tinha dormido uma hora ou duas, não mais, e estava exausta. A festa durara até ao amanhecer e ela estivera ainda a conversar com Athilya e Iruvienne durante, pelo menos, uma hora.

O castelo estava perfeitamente silencioso, pois as sacerdotisas ainda dormiam e, certamente, dormiriam dúrante, pelo menos, mais duas ou três horas. Não haveria pequeno-almoço naquele dia e, noutra ocasião qualquer, Galaduinne virar-se-ia para o outro lado, fecharia os olhos e voltaria a adormecer. Mas, naquele dia, não. Tal como prometera, agora preocupar-se-ia mais do que alguma vez o fizera, em toda a sua longa existência. Durante dez anos desejara, ansiosamente, que aquilo acontecesse. Agora, que tinha finalmente a oportunidade por que tanto esperara, não ia perder tempo a dormir.

Levantou-se, vestiu um roupão azul-escuro, que apertou, saiu do quarto e percorreu os corredores silenciosos até ao quarto de Valindra.

A figura pequenina de Valindra estava parada a meio do quarto, voltada para a janela e perfeitamente imóvel, quase como se ela não estivesse ali.

- Valindra... - chamou Galaduinne, fechando a porta atrás de si.

- Foste mais rápida do que eu esperava - respondeu a outra, ao fim de algum tempo. - Parabéns, surpreendeste-me. Pensei que fosses dormir profundamente durante toda a manhã, uma vez que dançaste quase toda a noite - virou-se para ela.

- Mas se tu dormisses toda a manhã, a tua filha Iruvienne teria de dormir todo o dia.

- Eu estou habituada a dançar, assim como as minhas filhas. Além disso, tenho assuntos importantes a tratar, como tu pareces saber. Nestas alturas, dormir ou comer não é importante.

Valindra sorriu como era seu costume e sentou-se na arca por baixo da janela.

- Tens toda a minha atenção, Rainha das Terras da Luz. Galaduinne permaneceu de pé, mas aproximou-se um pouco mais de Valindra.

- Morgriffestá só, em Omnirion - disse. - Chegou a altura de eu regressar e lutar pela minha cidade. No entanto, não quero comandar um exército que marche pateticamente para a nossa cidade, na irreal tentativa de o derrotar. Quero apenas confrontá-lo, usando o Ceptro, e, se possível, vencê-lo.

Tal como te prometi, estou a pedir-te ajuda.

- Mm... - fez Valindra num tom que Galaduinne conhecia muito bem e que detestava. - Um excelente discurso, Galaduinne. Muito correcto, muito élfico, mas não isento de falhas.

Qualquer confronto com o meu irmão não se trata apenas de um mero acontecimento. À sua maneira é mais perigoso e destruidor que uma guerra. Mas concordo contigo. Qualquer guerra, única e exclusivamente, contra Morgriff é não só impossível como patética. Por isso, terás a minha ajuda e vontade do teu lado.

Neste último ano, tenho- me preparado para a chegada deste dia. Tudo o que terás de fazer será deixares os acontecimentos desenrolarem-se, por mais estranhos que eles te possam parecer, e, evidentemente, levares o Ceptro.

- O que vais fazer? - perguntou Galaduinne, um pouco desconfiada.

- Ajudar-te a segurar o Ceptro - respondeu Valindra, como se fosse óbvio.

Galaduinne não respondeu. A verdade era que não percebera qual a ideia de Valindra.

- O que foi, Galaduinne? Não gostas de surpresas?

- Gosto tanto de surpresas como outra pessoa qualquer. Mas quando se trata de algo tão sério como Morgriff, prefiro saber com o que conto.

- Ora, Galaduinne! Enfrentar o meu irmão é sempre uma surpresa, embora um pouco peculiar. De qualquer forma, não precisas de te preocupar. Vencê-lo-ás. Podes confiar em mim.

Galaduinne ficou parada a olhá-la, tentando perceber o que Valindra estava a preparar. Mas, ao fim de algum tempo, desistiu e preparou-se para sair.

- Galaduinne - chamou Valindra, quando ela já se preparava para abrir a porta. - Gostaria de te pedir que me emprestasses o Colar da Lua. Ele foi feito para mim, há muitos anos, pelos anões. Incontáveis gerações antes de Dwarler nascidas num tempo em que eu os visitava e ajudava frequentemente. Representa o meu símbolo e eu quero usá-lo, bem como ao da Noite, no dia em que defrontares Morgriff. Quero que ele me reconheça, que saiba quem eu sou e que perceba que está perdido. Fazes isso por mim? - perguntou numa voz suave, como uma criança que implora à mãe que lhe dê algo que decidiu desejar.

- Claro, Valindra. Eles pertencem-te, tal como disseste, pouco tempo depois de aqui chegares. - Abriu a porta, e deu um passo em direcção ao corredor. - Valindra, posso perguntar-te uma coisa?

- Certamente.

- Onde estiveste durante todos estes milénios?

- No Norte.

Os pequenos problemas de que era preciso tratar antes da partida, foram rapidamente resolvidos e, no primeiro dia do décimo mês de Setembro em Brumívium, Galaduinne partiu para Nielirian. O grupo das guerreiras que a protegiam, algumas das sacerdotisas guerreiras, Namali, Valindra, Iruvienne e Aran acompanharam-na.

Quando saíram de Névila, ainda era noite e estava frio. Mas à medida que se aproximavam de Caladmiron, a noite desapareceu, revelando um dia solarengo e de agradáveis temperaturas amenas. Galaduinne teve vontade de descer do cavalo e correr pela verde erva de Ranthlin. Mas isso atrasá-los-ia, e ela não podia, nem queria, perder tempo. Por isso, cavalgou a toda a brida durante toda a manhã e grande parte da tarde, até que, por fim, chegou a Nielirian.

Galianar estava à sua espera, com um pequeno grupo de elfos, já montados em belos corcéis, atrás de si. Galaduinne mal parou para o cumprimentar ou para lhe agradecer a educação que dera a Athilya. E, rapidamente, dirigiu-se para Omnirion.

O grupo chegou à entrada de Omnirion quando a noite descia sobre o Mundo e a natureza nocturna despertava para a vida. A noite era, tal como os Elfos e as Fadas sabiam, tão bela quanto o dia. No entanto, pareceu ao grupo de Galaduinne que aquela noite era, pelo menos dentro de Omnirion, triste, sombria e cheia de trevas.

Galaduinne sentiu frio, mas não apertou mais a capa contra si. Aquele frio não passaria. Não se tratava de um reflexo da sua parte biológica à temperatura exterior. Nada o poderia expulsar, nem mesmo a maior e mais quente das fogueiras, pois ele estava dentro de si.

Omnirion tinha um aspecto miserável. Os Magdul tinham partido, mas não antes de destruírem tudo o que ainda pudesse conter o mínimo laivo de beleza. As casas tinham sido todas destruídas, tudo o que restava eram as suas pedras brancas, agora com um aspecto sombrio, atiradas um pouco por toda a parte. Por entre as pedras atiradas ao acaso, jaziam as carcaças das árvores que outrora tinham salpicado aquela cidade branca de tons verdes. Em toda a grande clareira não havia um único sinal de vida, por mais pequeno que fosse. Apenas o Palácio do Ouro e do Verde, com a sua forma, um tanto ou quanto, de castelo de contos de fada, resistira ao ódio destruidor e à força demolidora dos Magdul. E mesmo ele parecia agora um reflexo sinistro e desolador de si mesmo, quase totalmente coberto por uma qualquer hedionda substância negra. Omnirion, a bela e branca cidade do Povo da Luz, não passava de uma cidade destruída e horrível, mergulhada num cenário de caos.

Galaduinne sentiu-se tão triste que as lágrima lhe correram pela face e, por momentos, achou que não conseguiria entrar ali. Pensou que, assim que desse o primeiro passo, o seu ser se partiria como uma frágil peça de vidro que cai de uma prateleira alta.

- Esperei tempo de mais - disse numa voz triste, profunda. - Dez anos parece-nos tão pouco e, no entanto, é tanto tempo. Pode acontecer tanta coisa numa minúscula parte da vida dos Mundos!

- Mãe... - chamou Iruvienne, surpreendendo-a. - O passado não nos pertence. Nada podemos fazer para o alterar. Mas o presente e, de certo modo, também o futuro, estão nas nossas mãos. Temos a possibilidade e a capacidade de fazer aquilo que achamos melhor no tempo que nos é concedido. Se alguma das nossas decisões passadas nos parece errada, podemos ainda tentar melhorar os seus efeitos. Ainda tens essa possibilidade. E, de qualquer forma, o tempo que esperaste destinava-se a preparar-te para o que tens de fazer hoje. Eu tenho a certeza de que não foi em vão. Eu, todos nós, confiamos em ti. Até Valindra.

Galaduinne olhou para Iruvienne com um sorriso nos lábios. Todo o grupo, incluindo Valindra, a observava. Mas ela permaneceu calma e altiva. Olhou, apenas por um segundo, para Aran e depois virou-se para Valindra, fechando os olhos e inclinando-se profundamente.

Eu sei que vai ajudar a minha mãe - continuou Iruvienne. - Seja o que for que se vai passar a seguir não será só devido à minha mãe. Peço-lhe desculpa por ter revelado a sua identidade tão abruptamente e talvez, na opinião de alguns, irresponsavelmente. No entanto, creio que devemos ser conhecidos por aquilo que somos e nos devemos orgulhar disso. Compreendo porque não disse a ninguém quem era, mas julgo que agora é o momento certo para todos saberem a verdade. Não vejo qualquer desonra em se ser Valindra, uma das filhas dos Elementos. Se estou errada, peço-lhe que me perdoe.

Valindra sorriu e, como habitualmente, inclinou a cabeça ligeiramente para o lado direito. Contudo, Galaduinne viu que este não era um gesto de desdém. De facto, Valindra parecia contemplar Iruvienne.

- És uma jovem curiosa, Iruvienne, Princesa do Povo da Luz - disse Valindra. - Pareces não te preocupar com mais nada para além dos teus treinos com a espada. O teu melhor amigo é um Homem criado pelos Elfos e as Fadas. És tão capaz de usar uma roupa quase de mendigo, como o mais deslumbrante dos vestidos. E acabas de revelar uma sabedoria precoce, mas em nada menos correcta e adulta que a do mais velho dos sábios élficos.

Além disso, tens razão. Eu sou Valindra, filha dos Elementos, e orgulho-me disso.

Durante alguns momentos fez-se silêncio. Ninguém parecia capaz de falar. Galaduinne estava também ela surpreendida. Há muito que sabia que Iruvienne era capaz de agir como uma sábia, se quisesse. Mas nunca pensara que ela se revelasse assim, à frente de tanta gente. Iruvienne era uma pessoa surpreendente. Em parte, era alegre e divertida como uma criança. Mas era também uma Dama, calma e altiva, de decisões ponderadas. Athilya tinha um esplendor raro. No entanto, Iruvienne também era assim, quando queria. Só que ela preferia rir e correr pelas florestas com umas calças curtas e as pernas completamente arranhadas, a usar diariamente extraordinários vestidos, enquanto tecia ou bordava.

- Vamos, Valindra - disse Galaduinne ao fim de algum

tempo, tirando o Ceptro do pano de veludo que o envolvia. Valindra tirou o capuz e o Colar da Lua brilhou nos seus cabelos pretos. A seguir olhou à sua volta, retendo o olhar um pouco mais em Iruvienne, e, juntamente com Galaduine, avançou pela destruída Omnirion para a entrada do castelo. Galaduinne caminhava num passo calmo e altivo. Não tinha medo do que se iria passar, mas não conseguia esquecer algo que Mianon lhe dissera, pouco tempo antes de morrer. Não és a pessoa da profecia, fora isso que ela dissera, e se estava certa então tudo aquilo era em vão.

- Não te preocupes - disse Valindra. - Já te disse para esqueceres a profecia. Vai correr tudo bem.

Galaduinne não respondeu. Ela sabia, tal como o seu povo, que as profecias têm de acontecer, que acontecem sempre, quer se queira, quer não. Mas agora, não era o momento para se preocupar. Faria o que tinha a fazer e, depois, logo se veria.

- Galaduinne - chamou Valindra, quando chegaram à entrada do castelo. - Tens de regressar a Brumívium, quando isto terminar. Não podes deixar Névila sem alguém que cuide dela. Promete-me isso.

- Prometo, Valindra. Não me esquecerei de Névila.

- Óptimo. Mais uma coisa, Galaduinne. Antes de regressares a Omnirion para ajudares a reconstruí-la, despede-te de Blandulez. - Olhou para cima e sorriu como alguém que vê concretizado algo pelo qual há muito espera. - Chama-o.

- Morgriff - chamou Galaduinne, num tom alto e, para sua própria surpresa, autoritário.

Durante alguns momentos nada aconteceu. Mas, por fim, as portas do Palácio do Ouro e do Verde abriram-se pesadamente e Morgriff surgiu à sua frente. O fato e o manto que tinha vestidos eram ambos de um negro profundo, onde brilhavam estranhos desenhos bordados num vermelho, desagradavelmente, parecido com sangue. Trazia o bastão na mão direita e a coroa enegrecida na cabeça. Galaduinne achou que ela lhe ficava pateticamente mal. As coroas élficas eram delicadas e elegantes, feitas para serem usadas subtilmente e não como símbolo de um triunfo.

Morgriff parou a olhar Galaduinne. Não sorriu, nem falou, mas apontou o seu bastão, ligeiramente, para ela.

- Boa noite, Morgriff - disse Valindra e ele olhou na sua

direcção.

- Valindra - disse como alguém que reencontra um velho amigo. - Que surpresa inesperada. Passaram-se muitos milénios. Mas vejo que não vieste como a irmã ou amiga que já foste.

- Foste tu quem alterou a situação - respondeu Valindra.

- Sim, sem dúvida. Mas dificilmente estás agora do lado dos vencedores. - Virou-se para Galaduinne. - Escondeste-te muito bem, nestes últimos dez anos, Galaduinne. Nielirian e Brumívium são dois sítios onde eu tenho dificuldade em entrar. - Fez uma pausa, mas nem Galaduinne, nem Valindra responderam. Morgrif olhou para o Ceptro e os seus olhos brilharam. Aproximou a sua cabeça da de Galaduinne e sussurrou. - Pretendes defrontar-me, Senhora da Noite e das Brumas? Não te vou impedir, mas serias mais sábia se simplesmente mo entregasses.

- Considerar sábio alguém que te entregasse o ceptro seria um insulto à sabedoria. E eu não tenciono fazê-lo

- respondeu Galaduinne, calma e pausadamente.

- Muito bem, Galaduinne. Comecemos. Morgriff recuou um pouco e apontou-lhe, firmente, o bastão. Galaduinne ergueu o Ceptro e virou-o para Morgrif.

Nunca tinha usado o Ceptro. Ailura apenas lhe contara o que sentira e pensara das duas vezes que o usara, e dissera que tudo o que vira fora apenas um enorme clarão.

Galaduinne inspirou fundo e concentrou-se. Pensou em Morgriff e no mal que ele lhe fizera a si e à sua família, pensou em...

Ouviu o som abafado de um corpo a cair, mesmo ao seu lado e, de repente, sentiu alguém a tentar entrar dentro de si. Abriu os olhos.

- O que foi, Galaduinne - perguntou Morgriff. - Queres desistir?

Olhou para o seu lado esquerdo. O corpo pequeno e elegante de Valindra jazia estendido no chão. E então percebeu qual era o plano de Valindra, o que ela fazia parada a meio do quarto naquela manhã há alguns dias atrás, e quem estava a tentar entrar dentro de si.

Fechou novamente os olhos e concentrou-se em diminuir de tamanho até se poder encolher dentro de si própria, de forma a que Valindra conseguisse entrar. A sensação de um outro espírito a entrar dentro do seu corpo foi estranha, mas não dolorosa.

- Valindra deslizou pelos braços de Galaduinne até chegar às mãos e, tal como tinha dito, a ajudar a segurar o Ceptro.

Galaduinne podia sentir o pensamento de Valindra divagar pelos tempos em que Aerzis e Nessya ainda eram vivos. E, também ela, se lembrou de tempos serenos em que passeava alegremente com Ogueimion por entre Caladmiron. Pensou como o Povo da Luz seria feliz quando a sombra de Morgriff deixasse de ameaçar o Mundo, e a esmeralda do Ceptro começou a brilhar até que uma enorme luz branca jorrou dela. Mas então, Galaduinne sentiu o ódio crescer dentro de Valindra, sentiu encher-se de raiva e fúria.

- Não, assim não - ouviu-se dizer. Algo como chamas de um fogo vivo e destruidor que alastra rapidamente, misturou-se com a luz branca e brilhou intensamente.

Galaduinne pensou que iria cair numa imensa escuridão de vazio, tal como a sua mãe. Mas nada aconteceu. Ela assistiu, como qualquer outra pessoa do seu grupo, ao imenso clarão branco com reflexos vermelhos que se alastrou por todo o seu campo de visão, e muito para além dele. Quando, por fim, o clarão desapareceu, Galaduinne olhou à sua volta.

Omnirion conservava o ar negro e deplorável que Morgriff e as suas criaturas lhe tinham imposto, e o corpo de Valindra continuava estendido no chão. Galaduinne baixou-se e colocou dois dedos no pescoço dela. Não sentiu qualquer movimento.

O sangue deixara de correr nas veias dela e o seu corpo estava gelado. Valindra morrera.

Galaduinne levantou-se. Lamentava a morte de Valindra, mas provavelmente ela sabia que seria isso que aconteceria ; ao defrontar Morgriff. Quando ele matara Aerzis e Nessya, Valindra fugira a tempo. No entanto, acabara também ela por morrer em confronto com o irmão. Seria possível que Morgriff não tivesse qualquer consideração por quem quer que fosse, para além de si próprio? Provavelmente era. Olhou para o lugar onde Morgrif a defrontara, esperando não encontrar nada, para além do ar e do Verde. No entanto as paredes do Palácio estavam negras e estavam estendidas no chão de pedra suja, e havia qualquer coisa por entre elas com a qual o vento brincava: parecido com poeira, mas mais negro. Galaduinne aproximou-se das roupas e revolveu-as com os belos dedos. O seu interior onde poucos minutos antes o corpo de Morgriff estivera, estava agora repleto de cinzas.

- Que quer isto dizer, Galaduinne? - perguntou a voz de Iruvienne atrás de si.

- Não sei - respondeu ela. - É um enigma para o qual eu não tenho resposta. Mas uma coisa é certa: Mianon tinha razão. Eu não sou a pessoa da profecia. - Olhou para a filha e pareceu-lhe ver algo que não conseguia definir muito bem. Algo parecido com o brilho de uma estrela. - Esta história ainda não terminou, mas não serei eu a escrever o seu fim. No entanto, ele está próximo. Tão próximo, que é possível que sejas tu a pessoa certa.

Iruvienne olhou para o corpo de Valindra, como se a ideia não lhe fosse de todo agradável.

- Mas, é claro, posso estar enganada - disse Galaduinne e, só então, reparou que todo o grupo estava atrás de si. Apanhou a coroa, que estava perto das roupas de Morgriff e que, misteriosamente, recuperara o seu brilho e encanto originais, colocou-a na cabeça e levantou-se. - Há muito trabalho a fazer. Omnirion demorará a ser reconstruída, mas nós fazê-la-emos mais bela e magnificente do que alguma vez foi. No entanto, primeiro Valindra tem de ser enterrada em Brumívium, e eu tenho de cumprir uma promessa que lhe fiz.

 

             A RECONSTRUÇÃO DE OMNIRION

Galaduinne regressou a Brumívium, acompanhada pelo mesmo grupo com que partira. Valindra foi cuidadosa e respeitosamente transportada numa padiola recoberta por folhas e flores.

Quando chegaram a Névila, Galaduinne reuniu todas as sacerdotisas e explicou-lhes quem era realmente Lunam, e o que acontecera em Omnirion. Elas receberam a notícia com espanto e admiração. As mais velhas lamentaram a sua morte e não terem tido a possibilidade de aprender com ela. Galaduinne preferiu não lhes contar alguns dos aspectos mais desagradáveis da personalidade de Valindra. Não vale a pena criticar aqueles que já morreram e, muito menos, quando eles lutavam pelos princípios certos.

Quando a noite desceu sobre o Mundo, as sacerdotisas saíram de Névila, num lindíssimo cortejo. Todas elas, mesmo as Conhecedoras do Crepúsculo, usavam vestidos cerimoniais, de um azul-noite, bordados com linhas prateadas, apenas visíveis em determinadas situações. Os seus cabelos flutuavam livremente atrás delas e das coroas de flores brancas que usavam na cabeça pendiam véus azul-escuros, que lhes encobriam os rostos. Algumas delas transportavam archotes que brilhavam intensamente no meio da escuridão. Valindra seguia no meio delas, deitada na padiola magnificamente decorada, com o Colar da Lua nos cabelos e o Anel da Noite no dedo anelar da mão direita. Era transportada por Galaduinne, Iruvienne, Athilya e Namali que trajavam de forma exactamente igual a todas as sacerdotisas. Aran fechava o cortejo, vestido também ele com um fato azul bordado a prateado e transportando o maior e mais brilhante dos archotes.

As brumas rolavam suavemente pelo chão de erva verde, também elas parecendo solenes e nostálgicas, enquanto o cortejo subia, num passo leve e flutuante, até um lugar numa das montanhas, donde era possível ver Névila e onde Valindra seria enterrada.

Galaduinne, Athilya, Iruvienne e Namali pousaram a padiola de Valindra perto da cova funda, já cavada, que lhe serviria de túmulo. O cortejo formou um grande círculo à volta da sepultura. Aran colocou-se atrás da cova, com o enorme archote apontado para o céu. As sacerdotisas que transportavam os outros archotes, mais leves e pequenos, acenderam as várias velas que tinham sido espaçadamente dispostas em redor.

Na sepultura, regressaram aos seus lugares e inclinaram os archotes de forma a que apontassem para o céu numa posição oblíqua. E, assim, formaram dois círculos de fogo. Galaduinne cantou sozinha um cântico sobre a formação daquele Mundo e a dos filhos dos Elementos. Iruvienne e Athilya entoaram uma bela e ancestral música sobre a noite da floresta de Brumívium. E, quando elas terminaram, as sacerdotisas ergueram as suas vozes, em melodias que falavam das árvores, do vento, da noite, de Valindra, da sua graciosidade e sabedoria, dos rios, da erva verde e das brumas daquela floresta.

A noite encheu-se das suas vozes e, tal como elas pediram, recebeu Valindra, sua senhora e servidora. Até que, por fim, o dia começou a nascer.

Galaduinne, Namali, Iruvienne e Athilya avançaram uma vez mais. Passaram entre as velas que delimitavam o círculo mais pequeno e, com a ajuda de belas e sedosas fitas azul-escuras, onde tinham sido bordadas discretas borboletas prateadas, desceram a padiola onde Valindra jazia. Quando a padiola atingiu o fundo da cova, elas largaram as fitas. Galaduinne teve a sensação que as fitas caíam lenta, mas inexoravelmente, como se, simultaneamente, marcassem o fim de um tempo e o início de outro. As quatro cobriram a cova com a terra fofa e húmida. Aran, que durante toda a noite permanecera extremamente quieto, avançou e colocou o archote que transportava, exactamente, no centro da sepultura de Valindra.

Lentamente, o cortejo regressou a Névila, tão solenemente como quando de lá saíra. O archote, trabalhado com o símbolo de Valindra e minúsculas borboletas que voavam por entre altas árvores, brilhou durante muito tempo, assinalando o lugar onde Valindra, filha dos Elementos, dormiria eternamente.

Uma semana depois do funeral de Valindra, durante o pequeno-almoço, Galaduinne levantou-se e olhou à sua volta. As sacerdotisas pararam de comer e olharam-na.

- Como todas vocês sabem, eu sou, para além da Senhora da Noite e das Brumas, Rainha das Terras da Luz. E, agora que Morgriff desapareceu uma vez mais, tenho de regressar a Caladmiron para reconstruir Omnirion. Não desejo abandonar Névila, mas eu nasci e vivi nas Terras da Luz e é lá que o meu coração está. - Fez uma pequena pausa e olhou para Namali que lhe sorriu. - Esperava que uma nova Senhora fosse escolhida antes de eu ter de partir. Mas isso não aconteceu. Não nos cabe a nós escolhermos a próxima Senhora, e eu não o farei. No entanto, nomearei alguém que deverá desempenhar as suas funções, até que ela seja escolhida. É meu desejo, enquanto Senhora da Noite e das Brumas, que a tratem com o mesmo respeito e dedicação com que me tratam a mim. - Virou-se para Elian e estendeu a mão direita na sua direcção. - Elian, por favor levanta-te e ocupa a minha cadeira.

Elian levantou-se, mas não saiu do seu lugar. - Todas as Senhoras de Névila e Brumívium sempre

o foram desde o dia em que foram escolhidas, até ao dia em que morreram - disse Elian. - A vossa cadeira estará sempre livre, à espera do vosso regresso, a menos que outra Senhora seja escolhida.

Galaduinne inclinou a cabeça e fechou os olhos.

- Que um vento ameno e agradável sopre sempre em Brumívium e Névila - disse, saindo da sala.

Atravessou o corredor e parou em frente à porta que dava para as escadas de acesso ao longo túnel, que dava para o interior da montanha. Abriu-a, desceu as escadas e percorreu a montanha, tal como lhe acontecera da primeira vez que ali estivera, contemplou demoradamente a vegetação luxuriante que recobria o seu interior. Ainda era cedo, e, àquela hora, todas as plantas estavam cobertas por minúsculas gotas de orvalho que brilhavam tão intensamente quanto o mais perfeito dos diamantes. Galaduinne roçou a sua mão pelas plantas macias e molhadas, tão maravilhada quanto Iruvienne teria ficado. E só então se virou para Blandulez, a Árvore Branca. O seu espanto foi enorme.

Os ramos lisos e brancos, cobertos de pontos de luz, de Blandulez, estavam repletos de frutos com a forma de maçãs. No entanto, estas maçãs não eram vermelhas, amarelas ou verdes. De facto, era difícil definir a sua cor. Talvez o mais correcto fosse dizer que elas eram feitas de pura luz, pois pareciam emitir um brilho entre o branco e o dourado. Galaduinne aproximou-se da Árvore Branca e colheu uma. O fruto era suave e liso, e o seu toque idêntico ao da água.

Valindra dissera que o fruto só nascia quando achava que devia. Dissera também que o seu interior era líquido e tinha a capacidade de limpar a sujidade criada pelo mal e fazer crescer as plantas que já tinham morrido. Aquele fruto podia limpar toda a imundície que Morgriff criara em Omnirion e devolver a vida às belas árvores de Caladmiron que tinham sido cruelmente mortas.

Galaduinne encostou a sua mão direita ao tronco da árvore e, com a outra mão, colheu outra das maçãs. A árvore não se manifestou, mas do outro lado um dos frutos caiu suavemente na erva macia. Galaduinne apanhou-o. Estava em perfeitas condições. E então, caiu outra maçã, e mais uma, e outra, e outra ainda, até que os ramos de Blandulez ficaram novamente nus.

Os frutos de Blandulez foram abertos e, de lá de dentro, escorreu um líquido com o mesmo brilho e cor da casca da maçã, que foi armazenado em vários baldes, taças e jarras. O Palácio do Ouro e do Verde foi meticulosamente lavado com ele, assim como as pedras das casas desfeitas. E quando o Povo da Luz terminou esse trabalho, Omnirion, embora desfeita, brilhava com a mesma intensidade e magnificência de sempre. Depois, os solos foram regados com o líquido e, lenta e gradualmente, as árvores e outras plantas, que tinham secado e morrido, recuperaram a sua vida. Os troncos e ramos tornaram-se mais castanhos e a casca que os revestia alisou-se, as folhas recomeçaram a nascer, tímidas e de um lindíssimo verde, e, por fim, apareceram as primeiras flores.

Quando já tudo tinha sido limpo e só restava uma taça, não muito grande, do conteúdo etéreo das maçãs de Blandulez, Galaduinne foi até ao Enyel e verteu o líquido nele. Lentamente, iniciou-se um ciclo. As águas do rio infiltraram-se nos solos, levando consigo o líquido, que alimentou as raízes das plantas e lhes acelerou o crescimento. As nuvens escureceram e quando, finalmente, libertaram toda a água que as carregava a chuva caiu como um enorme lençol de água, estranhamente brilhante, que lavou os últimos restos da sujidade que Morgriff deixara em Caladmiron e reavivou as verdes trepadeiras do palácio.

O Povo da Luz começou então a reconstrução de Omnirion. As casas de pedra branca foram reerguidas por meio dum fenomenal arvoredo que voltara a salpicar a clareira. No entanto, foram feitas num estilo de linhas mais suaves e altas, bem perto dos Povos Sábios, e com grandes janelas e arcadas que criavam a sensação de que o exterior e o interior se misturavam, um tanto ou quanto, indistintamente. A cidade foi reconstruída com maior beleza e elegância, interagindo mais com a Natureza, quase como se fosse um prolongamento dela, e de forma a que as casas e o castelo formassem um todo. O Palácio do Ouro e do Verde tinha ligação com as casas, todas elas também interligadas. E, tal como Nielirian, Omnirion prolongava-se em direcção ao céu, pois foram construídas, por entre os grandes e fortes ramos das árvores, varandas que as folhas encobriam e pequenas divisões cobertas e com bancos, onde se podia ler ou conversar sossegadamente, às quais chamaram eluan. Galaduinne foi até Monterar, a cidade dos Anões e pediu ajuda a Dwarler. E assim, ao fim de muitos anos, as figuras pequenas e curiosas dos Anões voltaram a pisar o chão de folhas douradas de Caladmiron. Eles ajudaram o Povo da Luz a trabalhar a pedra com bonitos desenhos e construíram as sumptuosas escadas e pontes que ligam as árvores umas às outras.

Assim que todos os edifícios ficaram construídos, o Povo da Luz dedicou-se a outras actividades. Os Elfos e as Fadas fizeram bonitos móveis de madeira no mesmo estilo dos de Nielirian, mas com mudanças subtis, e teceram belos tecidos com os quais fizeram colchas, toalhas, cortinas e véus que, posteriormente, bordaram. Os Duendes bordaram os desenhos mais pequenos dos vários tecidos, com agulhas feitas propositadamente para eles, e enfeitaram Omnirion com bonitas taças repletas de flores secas multicolores e outro tipo de arranjos. Os Gnomos fizeram lindíssimos candelabros com os metais de que mais gostavam, armazenaram víveres e retomaram as suas contagens e distribuições. As sacerdotisas de Névila enviaram centenas de lindíssimas velas, feitas especificamente para cada divisão. E, lentamente, Omnirion reergueu-se, tal como Galaduinne dissera, mais bela e magnificente do que alguma vez tinha sido. Até que, ao fim de cinco anos, os antigos habitantes da cidade saíram de Nielirian e regressaram às suas casas.

Pouco tempo depois de o Povo da Luz ter regressado a Omnirion, no início do Outono, Namali chegou à cidade reconstruída. Trazia um recado de Elian para Galaduinne. Ela abriu a carta lacrada e leu-a:

Aqui a vida corre normalmente, mas sem novidades ou um verdadeiro rumo a seguir, pois eu não sou, de facto, a Senhora da Noite e das Brumas. Já passaram cinco anos e as borboletas da lua ainda não apareceram para escolherem uma nova Senhora. Não creio que elas o façam, pois acredito que consideram que Névila tem uma Senhora: tu. Tal como te disse no dia em que nos deixaste, a Senhora da Noite e das Brumas é-o desde o dia em que as borboletas a escolhem, até ao dia em que morre. Tu ainda não morreste, pelo que és ainda a única e verdadeira Senhora. Peço-te que regresses. Omnirion foi reconstruida e o teu papel para com o Povo da Luz terminou, mas para connosco não.

Galaduinne dobrou calmamente a carta e voltou a guardá-la. Estavam sentadas num banco de um dos eluan. Namali observava, atentamente, as folhas da velha árvore que entravam por entre as arcadas abertas.

- Sabes qual o recado que Elian me enviou? – perguntou Galaduinne.

Namali desviou a sua atenção das folhas douradas que começavam a cair e olhou-a.

- Elian não ma deu a ler. Mas parece-me óbvio o seu assunto. Não há uma nova Senhora em Névila, pelo que tenho a certeza de que ela te pede que regresses.

Galaduinne ficou calada durante algum tempo, olhando distraidamente para as folhas e ramos das árvores que a circundavam.

- Pensei que poderia regressar a Omnirion e ser, simplesmente, Rainha das Terras da Luz - disse, por fim. - Queria caminhar por entre as belas árvores de Caladmiron e recordar os momentos felizes que passei com Ogueimion. Julguei que me seria permitido manter o meu pequeno mundo. Mas nada, nestes últimos quinze anos, se desenrolou como eu previ ou alguma vez imaginei. O Mundo muda constantemente, e nós temos de acompanhar as suas mudanças. Sou a Senhora da Noite e das Brumas, e não posso negar as minhas responsabilidades. O Mundo não gira à minha volta. Os meus desejos não significam nada. Só um tolo se negaria a fazer o que deve, por querer continuar, estupidamente, agarrado aos seus caprichos e anseios. - Olhou para Namali e sorriu. - Coroarei Iruvienne Rainha das Terras da Luz e regressarei a Névila, como é meu dever.

- Fico contente por ser essa a tua decisão - disse Namali.

- Névila precisa de ti e, como nada acontece por acaso, talvez Caladmiron também precise que Iruvienne seja sua rainha.

Galaduinne encontrou Iruvienne no eluan que a filha escolhera. Estava deitada numa espécie de banco de madeira largo e acolchoado, com a cabeça apoiada numa almofada rectangular encostada a uma das bonitas e elegantes testeiras. Tinha os olhos fechados e parecia divagar por aquele lugar onde o sonho e a realidade se misturam tão frequentemente.

- Iruvienne... - chamou Galaduinne, suavemente. A sua filha abriu os olhos e sorriu-lhe. - Namali veio visitar-nos.

- Eu sei, Galaduinne. Aran disse-me.

- Ela trazia um recado de Elian para mim. As borboletas da lua ainda não escolheram ninguém para me substituir e...

- Não o vão fazer - completou Iruvienne. - Por isso, tens de regressar a Brumívium e ocupar o teu lugar como Senhora da Noite e das Brumas. Eu sei - disse ela, e Galaduinne detectou- lhe alguma tristeza na voz. - Sei que dentro em breve me tornarei Rainha das Terras da Luz; que a minha juventude e rebeldia têm poucos dias de vida e que não posso negar as minhas responsabilidades. Não as negarei, mas gostava que tudo fosse diferente. - Iruvienne levantou-se e, subitamente, pareceu a Galaduinne muito frágil. - Porque é que os humanos dizem que as nossas histórias são contos de fadas, em que tudo acaba bem tal como todos queriam, mãe? Não verão eles que jamais é assim, nem para nós, nem para eles?

- Os Mundos parecem-lhes simples - respondeu Galaduinne. - E, de certo modo, talvez sejam.

Passou a mão pelo rosto macio de Iruvienne e sorriu.

- O teu pai costumava dizer que ninguém sabe o que o novo dia lhe reserva.

- Eu sei, mãe - disse, debilmente, Iruvienne.

- E eu digo que nada acontece por acaso. Tu serias rainha das Terras da Luz, mais tarde ou mais cedo. Mas eu acredito que esta é a altura certa. Por isso, prepara-te. Amanhã, ao nascer do Sol, serás Rainha e os ventos deste Mundo mudarão novamente de direcção.

Mas, por hoje, corre livremente por entre as árvores de Caladmiron. Faz os teus treinos com Aran e nadem os dois nas águas do Enyel. De qualquer modo, não te preocupes. Tal como a tua irmã disse, tu encerras em ti a essência do teu povo. Tenho a certeza de que serás uma rainha sábia e justa. Quanto à tua juventude, ela é parte de ti. É algo que, sem dúvida, ainda conservarás depois dos teus dois mil anos. Tu és quem és. Não serão os títulos que mudarão isso.

Iruvienne sorriu. Galaduinne pôde ver que a ideia continuava a desagradar-lhe, mas que estava novamente confiante. Por isso, deixou-a sozinha com os seus pensamentos e os últimos momentos de total liberdade.

Iruvienne não dormiu nessa noite. Não sentia qualquer necessidade de o fazer. Parecia-lhe que uma parte sua estava prestes a morrer e queria aproveitar, o mais possível, as últimas horas. Dormir, comer... Tudo isso era supérfluo e ela não perderia tempo com esse tipo de coisas.

Vestiu um vestido, muito fino e leve, de tecido branco flutuante, afivelou ao cinto a bainha onde Fucolem estava guardada, apertou-o à cintura e saiu para a Grande Floresta, com os pés descalços. Aran acompanhou-a.

Durante algum tempo, lutaram um com o outro por entre as altas árvores de Caladmiron. Quando se cansaram, sentaram-se nas margens do Enyel, cada um deles mudo e perdido nos seus próprios pensamentos. Por fim, Iruvienne levantou-se e desapareceu por entre as sombras. Aquela era uma noite de lua cheia, e o vestido de Iruvienne brilhava, dando-lhe o aspecto de um espírito que se passeava pela noite das Terras da Luz. Iruvienne sabia-o e brincou com a sua imagem, girando e imaginando-se um desses seres sem corpo, capaz de atravessar a matéria sólida e voar para os lugares daquele Mundo onde nunca ninguém fora. Fechou os olhos e sentiu uma delicada brisa a acariciar-lhe o rosto. Acima dela, as folhas roçaram umas nas outras, criando uma música bela e natural. A noite estava agradavelmente amena para um dia de Outono e Iruvienne sorriu.

Havia tanta beleza no Mundo, uma beleza tão infinita que era impossível não a admirar. Que interessava se ela tinha de crescer, assumir responsabilidades e deixar de rolar pelo chão dourado de Caladmiron, a erva verde de Brumívium ou uma qualquer poça de lama, em treinos com Aran! Tudo o que interessava era conservar aquela beleza de dimensões incomensuráveis, que o Mundo ostentava de forma tão singela. Apenas as folhas, as árvores, os rios, os animais, o vento, a Natureza, eram importantes. Só eles podiam não ser efémeros. Mas para isso era preciso alguém que cuidasse deles. A sua mãe não podia ser mais Rainha das Terras da Luz. Por isso, tinha de ser ela a cuidar de Caladmiron e dos seus habitantes. E, sem dúvida; fá-lo- ia.

Iruvienne encaminhou-se lentamente para uma árvore à qual ela, Galaduinne e Ogueimion tinham atado uma bonita fita vermelha com bordados dourados. Nessa altura Athilya não era nascida, nem Aran chegara ainda àquele Mundo. Cada um deles tinha dado um nó à fita e, assim, ela ficara presa ao tronco com três fortes nós (embora Galaduinne tivesse apertado um pouco mais o de Iruvienne, para que não se destruísse. Quando acabaram, Ogueimion dissera-lhe que todas as coisas vivas crescem, até as árvores. Iruvienne rira-se, pois naquela altura era muito pequena e as árvores pareciam-lhe algo imutável e que, provavelmente, já nascia assim. No entanto, Ogueimion dissera-lhe que o poderia confirmar pois, se ali fosse passados alguns anos, veria que a fita já não estava no mesmo sítio, mas sim um pouco mais acima. Isso provaria que o tronco da árvore crescera. E, efectivamente, quando lá voltaram, já Athilya era nascida e tinha três anos, a fita estava um pouco mais acima. Com o passar do tempo, a fita rebentou. Mas Iruvienne prendeu-a a um dos ramos mais baixos e continuou a visitar a velha árvore, pela qual ganhara um carinho especial.

Quando chegou à árvore, encontrou Aran sentado no chão, com as costas encostadas ao tronco, as pernas dobradas e abertas, e os braços apoiados nos joelhos. Iruvienne olhou-o, sorridente, e ele presenteou-a com um dos seus sorrisos torcidos.

- Pensei que te encontraria aqui - disse ele. - Subimos? Iruvienne inclinou ligeiramente a cabeça, em sinal de afirmação. Aran levantou-se, e os dois treparam agilmente a grande árvore, até um dos ramos mais altos e fortes, onde se sentaram. Ela roçou uma das mãos pela folhagem que os encobria e ele observou-a, ainda com os vestígios do sorriso.

- A minha bisavó era humana, tal como tu - disse Iruvienne. - E eu transporto em mim essa herança. Talvez Athilya tenha razão e eu encerre a essência do meu povo. No entanto, sinto um pouco como os Homens, pois também eu, por vezes, gostaria de ser criança para sempre. Estou pronta para ser Rainha das Terras da Luz. Mas uma parte de mim deseja ficar agarrada a uma idade em que se pode passar dias a ouvir histórias, onde não existem responsabilidades e o Mundo é ainda uma incógnita à espera de ser revelada. Uma idade onde pudesse ser para sempre a criança completamente livre e cheia de energia que teimo em não deixar partir.

- Mas, pequenina, ela não tem, efectivamente, de partir. Tu és responsável e correcta como qualquer Elfo. No entanto, és tão alegre e pura como uma criança, exactamente porque jamais a deixaste partir. Não o faças. Ninguém quer que o faças, pois ninguém deseja que deixes de ser quem és.

Iruvienne sorriu e olhou para o lado.

- Não é só isso que me faz desejar que a manhã que se aproxima não chegue - disse ela. - Creio que há algo mais. Algo que se prende com aquilo que eu desejo fazer e ser.

- E o que é que tu queres ser, Iruvienne, Princesa do Povo da Luz e Dama de Caladmiron?

- Quero ser uma guerreira, tal como tu. Quero percorrer os caminhos desconhecidos deste Mundo, ao teu lado, e ver contigo aquilo que ninguém antes de nós viu.

Aran sorriu, com o seu sorriso tão característico.

- Mas isso não te será vedado, Iruvienne. Tal como o teu pai dizia, ninguém sabe o que o novo dia lhe reserva. Talvez, um dia, percorramos juntos os caminhos que ainda não nos foram revelados e, nessa altura, veremos e conheceremos o que ninguém jamais soube existir.

Iruvienne levantou-se e equilibrou-se ágil em cima do ramo. Estendeu as mãos, agarrou o ramo superior, tão forte como aquele em que estavam, e com um ligeiro impulso, passou para ele. Sentou-se com as costas apoiadas ao tronco e ajeitou a saia do vestido, que caiu, ligeiramente, para cima de Aran.

- Aran... O que tencionas fazer agora?

- O que queres dizer, pequenina?

- Eu falei com Athilya - disse Iruvienne. - Ela tenciona regressar a Névila, para se tornar uma sacerdotisa.

- Eu sei - respondeu Aran. - Ela disse-me.

Iruvienne inclinou-se, para que ele a visse, ergueu as sobrancelhas e olhou-o com uma expressão inquisidora, mas divertida.

- Não te contei porque não valia a pena. Ela dir-to-ia mais cedo ou mais tarde.

Iruvienne esperou que ele dissesse mais alguma coisa, mas ele permaneceu silencioso.

- Athilya vai-se embora e tu reages como se ela fosse apenas dar um passeio pela floresta? - perguntou Iruvienne. - Sou a tua melhor amiga, Aran. Mas parece que, durante mais de dez anos, interpretei mal os teus sentimentos para com a minha irmã.

- És a minha melhor amiga, pequenina. Assim como tu és para mim um livro aberto, pronto a ser lido, também eu o sou para ti. E tu sempre leste muito bem.

A tua irmã era uma rapariguinha curiosa, de nariz arrebitado e cabelos cor de fogo, com gestos delicados e subtis. Eu gostava dela e, durante o tempo que estivemos em Brumívium, idealizei-a como se de um sonho se tratasse. Mas, de certo modo, conservei sempre a imagem da jovem pequena e franzina de doze anos que ficara em Nielirian. Contudo, a Athilya que chegou a Névila era em tudo diferente daquela de que eu me lembrava.

Os seus gestos permaneciam suaves, mas tinham ganho uma elegância que os das crianças não podem ter. E toda a sua figura era tão bela, tão suave e, ao mesmo tempo, arrebatadora, que eu me assustei. Até as suas palavras eram diferentes. - Aran fez uma pausa e puxou Iruvienne para baixo. - Athilya cresceu, tal como nós. Tornou-se uma elfo adulta, e uma sábia. É sem dúvida a tua irmã, e eu continuo a gostar dela. Mas já não é a mesma coisa.

Ouvi-la elogiar-me já não é suficiente, pois eu desejo outras coisas. Coisas que não gosto de sentir... Eu desejo beijá-la. - Ele olhou para Iruvienne e teve um dos seus sorrisos. - A inocência e, em parte, o encanto perderam-se. Athilya é ávida de conhecimento e eu quero que ela seja feliz. Prefiro que ela se torne uma sacerdotisa e o meu amor por ela viva apenas dentro de mim, do que privá-la dos seus desejos.

Iruvienne sorriu, o seu peito agitou-se com as risadas que ela tentava conter e que, por fim, soltou.

- Aran, meu grande tolo. É natural que desejes beijar Athilya. Ela é muito bonita, sempre foi. E até os Elfos e as Fadas gostam e desejam beijar-se. - Fez uma curta pausa e acrescentou:

- Todos eles.

- Tu não - respondeu ele, também a rir.

- Eu sou diferente. Para começar sou, segundo os conceitos élficos, ainda muito jovem, pelo que conheço pouca gente. Ainda não me apaixonei e talvez nunca o faça.

- Não, pequenina. Também tu, um dia, amarás alguém como Ailura amava Edínmtor e a tua mãe o teu pai. Ténho certeza disso, pois tu amas tudo o que te rodeia e, embora ainda não o saibas, descobrirás como o amor é belo. Mas não te preocupes, pequenina. Eu saberei quando esse dia chegar e, como sempre, estarei ao teu lado.

Iruvienne sorriu e encolheu os ombros. Era-lhe indiferente se um dia amaria alguém ou não. Tal como sempre lhe parecera que o dia da sua coroação estava longe, também aquele lhe parecia infinitamente longínquo. Por isso, não valia a pena preocupar-se. Se ele tivesse de chegar, simplesmente chegaria.

- Que vais, então, fazer? - insistiu Iruvienne. Aran simulou um ar enfadado e soltou um suspirozinho.

- O mesmo que tenho feito até agora. Cuidar de ti. Iruvienne soltou uma gargalhada, alegre e divertida, e encostou a sua cabeça ao peito dele. Aran rodeou-a com os dois braços, e ficaram assim, a ouvir os sons da Natureza nocturna e, ocasionalmente, dizendo algumas palavras sussurradas, como se, de repente, as suas vozes pudessem quebrar a beleza que os rodeava.

Quando o dia começou a nascer, Aran e Iruvienne desceram, calmamente, da velha árvore para o chão, onde as folhas douradas e avermelhadas se começavam a amontoar, e encaminharam-se para a reconstruída, e ainda mais bela, Omnirion. A manhã estava pálida e fresca, anunciando os dias solarengos e frios do Inverno de Caladmiron. Iruvienne olhava à sua volta, como se quisesse conservar na sua memória todos os pormenores, mesmo os mais pequenos e insignificantes, daquela manhã outonal.

- Eu adoro a chuva - disse Iruvienne. - Amo as suas melodias, a maneira como cai, a tonalidade que dá ao dia. No entanto, ela não se ajusta às Terras da Luz. A chuva faz parte de Brumívium, assim como o sol faz parte de Caladmiron. De vez em quando há sol lá e chuva aqui e, embora seja bonito, parece estranhamente deslocado. Como se os Elementos estivessem a brincar e, ao fazerem-no, tivessem trocado o lugar das coisas.

Iruvienne fez uma pausa. Estavam a entrar em Omnirion.

Alguns Elfos e Fadas passeavam por entre as ruas da cidade, mas tudo permanecia tranquilo e sereno.

- A verdade é que eu também gosto dos dias de sol. Mas apenas dos de Caladmiron, pois aqui, a sua luminosidade não é branca e agressiva. Aqui os dias são dourados, mesmo quando apenas o chão apresenta o seu manto de tons vivos e outonais e as árvores estão cobertas de folhas verdes e flores multicolores.

Parou e olhou para Aran. Ele ostentava um ar calmo e

descontraído, mas, subitamente, o seu rosto iluminou-se com um sorriso, muito diferente do que era habitual em si. Ele sorria tal como os Elfos e as Fadas fazem ao contemplarem a Natureza.

- Tens razão, pequenina. Sempre tiveste. O Mundo está repleto de uma beleza tão grande que não pode ser medida e que até os Povos Sábios têm dificuldade em passar para palavras. Enquanto transpunham as portas de entrada do palácio ele virou a cabeça, ligeiramente, para ela. - Também eu tenho a certeza de que serás muito feliz, Iruvienne. Quer sejas uma rainha, uma sábia, uma guerreira, ou as três ao mesmo tempo.

Iruvienne soltou uma gargalhada cristalina, que ecoou pelas paredes de pedra branca, e os dois subiram até ao seu quarto. Tomaram banho e mudaram de roupa. Aran vestiu umas calças pretas e uma túnica comprida e justa, feita de um tecido leve e preto brilhante, onde sobressaía um desenho de linhas altivas e prateadas. E Iruvienne escolheu um vestido escarlate. As mangas, extremamente largas, e a saia do vestido eram feitas de vários véus que esvoaçavam à sua volta, criando uma sensação lindíssima quando ela se movimentava. O vestido fora ainda trabalhado com minúsculas contas douradas que subiam, elegante e discretamente, pelo braço direito, formando três linhas curvilíneas que se separavam para salpicarem o peito e as costas do vestido com pontos brilhantes, que se perdiam por entre as saias.

Aran penteou delicadamente o cabelo dela. Depois, puxou os cabelos da zona das têmporas para trás e entrançou-os numa longa trança, enfeitada com uma fita vermelha, que caía sobre o resto do cabelo.

Iruvienne levantou-se e olhou para o seu reflexo no espelho emoldurado por um caixilho de madeira trabalhado com motivos de folhas e flores.

- Pareço uma rainha? - perguntou.

- Sem dúvida - respondeu Aran. - E, no entanto, acima de tudo, pareces tu própria.

- Ainda bem - disse ela, aproximando-se dele. Passou um dos dedos finos e brancos pela cicatriz que marcava toda a face direita de Aran e sorriu. - É engraçado! Não acho que ela te desfigure o rosto. De facto, parece completá-lo!... Como se reafirmasse quem és.

- Sim - disse Aran num tom divertido. - Sou um homem, não um elfo.

- É verdade. Mas és também um guerreiro e um sábio.

- Ele olhou-a com um dos seus sorrisos torcidos. - Podes não ser um elfo de rosto ou porte, mas em parte pensas como um. Gostas tanto do saber e do conhecimento como o mais sábio de nós e as tuas atitudes são justas e correctas, tal como tu dizes que as nossas são. Devias ter sido um elfo. Devias ter sido meu irmão... Talvez seja por isso que escorregaste pelo espelho e ele se fechou.

- O que queres dizer, pequenina?

- Que tu pertences aqui, como a água pertence aos rios e ao mar.

Aran sorriu docemente e acariciou a face de Iruvienne

com as costas da mão esquerda.

Nesse momento bateram à porta e Galaduinne entrou. Trazia um vestido azul-claro, muito bonito e simples.

- Estão todos à tua espera, Iruvienne - disse ela. – Vocês têm muito tempo para conversarem. Devias descer.

- Claro, Galaduinne - respondeu Iruvienne, num tom descontraído e alegre.

Aran desceu primeiro e, alguns minutos depois, também elas saíram.

O Povo da Luz reunira-se em frente à entrada do palácio, envergando belos trajes que eram, embora de alguma cerimónia, simples. Todos pareciam contentes com a coroação de Iruvienne, como se também eles vissem nela uma nova luz, pronta a iluminar o Mundo. Aran estava entre eles, mesmo ao lado de Athilya e Namali.

- Qualquer que seja o caminho que percorramos ele é feito de alegrias, tristezas, perigos e surpresas - disse Galaduinne.

- Nenhum de nós vê o fim a que ele conduz e, por vezes, acontecem-nos coisas que não esperávamos. Eu pensava regressar a Omnirion, ajudar a reconstruí-la e ficar aqui a reinar durante o resto da minha vida. No entanto, não foi isso que aconteceu. Durante os dez anos em que Morgriff ocupou Omnirion, eu tive novas responsabilidades a meu cargo, às quais não posso faltar. Sou, e continuarei a ser, a Senhora da Noite e das Brumas. É esse agora, o meu dever. - Fez uma pausa e olhou, serenamente, à sua volta. - Contudo, não esqueci, nem esquecerei, os muitos que aqui vivem e que eu amo; os belos anos que aqui passei; a beleza de Caladmiron, a Grande Floresta, e o povo que tão calorosamente me acolheu desde o dia em que nasci. Não abandonarei as Terras da Luz, pois o meu coração repousará sempre por entre o verde e o dourado desta floresta. - Galaduinne fez sinal ao pajem, que transportava a coroa numa almofada, para que se aproximasse.

- Cabe agora à mais velha das minhas filhas ocupar o seu lugar como Rainha das Terras da Luz.

Iruvienne aproximou-se da mãe e ajoelhou-se, com as costas muito direitas e um porte extremamente digno. Galaduinne virou-se para o pajem e retirou a coroa da almofada onde ela repousava.

- Iruvienne, Dama de Caladmiron e muito adorada filha, que o teu reinado espelhe a beleza do teu espírito e se prolongue por muitos e belos anos - disse Galaduinne, enquanto lhe pousava a coroa na cabeça.

- Que, mais do que uma rainha, eu seja uma amiga e uma nova esperança para o meu povo. E que faça com que um novo vento sopre em Caladmiron e expulse para sempre a sombra que ameaça os nossos céus - disse Iruvienne, sem hesitar.

E, naquele dia ameno de Outono em que Iruvienne foi coroada Rainha das Terras da Luz, os corações do Povo da Luz encheram-se de uma nova esperança.

 

       O REGRESSO À FLORESTA DAS BRUMAS

Galaduinne estava sentada no telhado da torre do castelo. Era raro alguém sentar-se ali, pois o telhado era íngreme e, um pouco mais abaixo, havia uma agradável varanda com banquinhos. No entanto, ela gostava daquele lugar. Podia sentar-se ali a pensar, sossegadamente, e ver toda a Grande Floresta estender-se à sua frente.

O céu estava vermelho e as nuvens douradas fragmentavam-se por ele, completando a sua beleza. As pedras brancas de Omnirion brilhavam com reflexos dourados e vermelhos. Ocasionalmente, uma ou outra folha, nos mesmos tons, caía do seu ramo para o chão. Tudo estava calmo e sereno.

Omnirion recuperara a sua paz e, como sempre, resplandecia ao pôr do Sol com uma luminosidade estranha e, inegavelmente, maravilhosa.

Um vento suave acariciou a face de Galaduinne, fez com que os seus cabelos esvoaçassem, delicadamente, e murmurou-lhe uma música harmoniosa e alegre. E ela soube que era Ogueimion quem cantava com a voz do vento para, mais uma vez, lhe dar coragem e a acalmar.

Tinha desistido de voar com ele pelo Mundo para poder proteger as suas filhas e, embora isso lhe tivesse custado muito, não o lamentava. Parecia-lhe que nesses últimos dez anos, sem a protecção e a sabedoria de Ogueimion sempre ao seu lado, aprendera mais do que em toda a sua vida. O caminho que percorria tinha virado algures, afastando-a da existência calma e, provavelmente, demasiado linear que pensara ser a sua.

Galaduinne sorriu. Nada acontece por acaso. E ela compreendia agora que esse caminho feito de súbitas dificuldades e estranhos acontecimentos a tinha preparado para se tornar não só a Senhora da Noite e das Brumas, mas também uma sábia.

Lá em baixo, Iruvienne caminhava calmamente em direcção à entrada do Palácio do Ouro e do Verde. Vestia totalmente de vermelho-vivo e, com os seus cabelos de tons acastanhados e vermelhos, parecia completar, definitivamente, aquela paisagem outonal.

Galaduinne virou-se na direcção de Brumívium e ajeitou a saia do seu vestido. Era verdade que o seu traje não se adaptava minimamente àquela paisagem, mas estava, certamente, de acordo com a da floresta das brumas, e fora por isso que ela o escolhera. Era um vestido de corte simples e elegante, ao qual as cores do tecido davam uma beleza muito particular. Este era fino e passava, gradualmente, de um azul-turquesa muito claro para um roxo-escuro. Era um vestido fresco de mais para o clima de Brumívium, mas ela levaria a sua capa de sacerdotisa para se aquecer.

Ouviu o alçapão que dava acesso ao telhado a abrir e olhou na sua direcção. A cabeça de Iruvienne apareceu à superfície e ambas sorriram. A sua filha apoiou as mãos no telhado e, sem qualquer esforço, saiu para o exterior.

- Vi-te lá em baixo e pensei que devias estar à minha procura - disse Galaduinne. - Aparentemente, estava certa.

- Claro que estavas, mãe - respondeu, ternamente, Iruvienne. - Está quase tudo pronto para a vossa partida. Athilya e Namali já estão nas cavalariças a prepararem os cavalos e esperam por ti. Mas antes de ires eu queria despedir-me de ti, não como Rainha das Terras da Luz, mas como tua filha.

Galaduinne sorriu, docilmente, como era seu hábito. Iruvienne há muito tempo que não lhe fazia um pedido daqueles, mas, de certo modo, ela era ainda uma criança. E todas as crianças gostam de carícias e pequenos mimos das mães.

Iruvienne encolheu ligeiramente os ombros e sorriu, infantilmente, como quem não sabe muito bem porque acabou de fazer aquele pedido. Galaduinne beijou a filha nos cabelos e abraçou-a.

- Eu escrevo-te, regularmente, Inzvienne - disse Galaduinne.

- E Caladmiron e Brumívium não estão tão longe quanto isso. Poderemos visitar-nos sempre que quisermos. Assim, tu irás muitas vezes a Névila que, de certo modo, é também a tua casa.

- Irei, com certeza, visitar-vos muitas vezes a Brumívium disse Iruvienne -, pois tornei-me amiga de muitas das sacerdotisas de Névila e é lá que ocorrem as mais belas tempestades.

- Galaduinne riu e Iruvienne sorriu, como quem contém o riso.

- Além disso, Brumívium é um lugar sagrado, onde se pode descansar e reflectir. É em parte, tal como disseste, a minha casa.

E todos nós gostamos de regressar a casa.

- Lamentas não regressar comigo? - perguntou Galaduinne.

- Não. Pois Caladmiron é a minha casa e eu sou sua

Rainha e Dama. Gostaria de pertencer a Brumívium, mas a verdade é que pertenço aqui.

- Provavelmente, pertences mais a Caladmiron do que eu - disse Galaduinne e desceu pelo alçapão. Iruvienne seguiu-a, fechando-o atrás de si.

Percorreram, calmamente, o palácio. Nenhuma delas tinha pressa e ambas queriam prolongar aqueles últimos minutos o mais possível.

Quando estavam mesmo a chegar às cavalariças, Galaduinne virou-se e olhou para a filha.

- Não é algo que tenhas de fazer agora - disse ela -, mas penso que, mais cedo ou mais tarde, deves enviar alguém para descobrir o que há para lá das Heniunel. Não tenho a certeza, mas acho que o Povo Branco existe mesmo.

Iruvienne inclinou a cabeça, para mostrar que tinha compreendido.

- Enviarei Aran, dentro de um ano ou dois - respondeu.

Galaduinne sorriu e continuou a andar. Entrou nas cavalariças, onde Athilya e Namali a esperavam, já montadas nos seus cavalos, e montou também. Os cavalos não iam muito carregados, pois quase todos os haveres de Galaduinne e Athilya já tinham sido enviados para Névila, e eles praticamente só transportavam a comida necessária para a viagem.

Athilya desmontou e despediu-se da irmã com um longo abraço. Namali limitou-se a sorrir, divertidamente, a Iruvienne.

- Até breve, Iruvienne - disse Galaduinne. - E não te esqueças que eu sou tua mãe e que te ajudarei sempre que precisares.

Iruvienne fechou os olhos, indicando que sabia o que ela queria dizer, e Galaduinne incitou o seu cavalo a avançar. Namali e Athilya imitaram-na e as três saíram das cavalariças em direcção ao interior da floresta. Iruvienne ficou sozinha a vê-las partir. O vento agitava os seus cabelos e os véus do vestido, envolvendo-a toda em tons de vermelho, enquanto algumas folhas douradas caíam à sua volta.

A viagem demorou três dias, pois elas fizeram-na calmamente e parando várias vezes para que os cavalos pudessem descansar. Durante o primeiro dia, cavalgaram lentamente, como se estivessem apenas a passear pelas Terras da Luz. E quando, algumas horas depois de terem iniciado a viagem, anoiteceu, escolheram um sítio, relativamente abrigado, e adormeceram deitadas no chão de folhas secas e tons dourados. No dia seguinte, levantaram-se, comeram e montaram novamente. Nesse dia, chegaram a Ranthlin e fizeram um pouco da sua travessia. Galaduinne desmontou do cavalo e, tal como tinha desejado fazer quando se dirigira para Omnirion para defrontar Morgriff, correu pela verde erva daqueles campos. Dormiram no sopé de um pequeno monte, enroscadas nas suas mantas e encostadas umas às outras. Quando acordaram, Galaduinne lavou a cara com a água de um dos cantis e penteou os cabelos, para que eles não tivessem um ar tão desgrenhado. Depois, montaram novamente e prosseguiram a sua viagem. Até que, ao anoitecer do terceiro dia, chegaram, finalmente, à entrada de Brumívium, a floresta das brumas. Galaduinne murmurou algumas palavras à sua montada e o cavalo entrou na floresta.

As brumas roçavam o chão de erva verde de Brumívium, ocultando-o, e as imponentes árvores erguiam os seus ramos, carregados de folhas verde-escuro-molhado, para o céu, no qual pareciam perder-se. Elas avançaram, cautelosas, mas um pouco

mais rapidamente, por entre as árvores, em direcção a Névila.

Quando estavam a meio caminho, começou a chover debilmente, e Galaduinne não conseguiu evitar uma sensação de familiaridade. Quase como se tivesse saudades daquela noites de chuva e brumas. Continuaram a avançar e, de repente, Galaduinne vislumbrou um brilho prateado a avançar, por entre a chuva, na sua direcção. Era uma das borboletas da lua, provavelmente a líder, que a vinha saudar.

A borboleta pousou na sua mão esquerda e Galaduinn

inclinou a cabeça, como que a cumprimentá-la. Ela bateu um pouco as asas, saiu da mão de Galaduinne e esvoaçou até ao seu ombro, onde se manteve.

A noite caiu e, lentamente, tornou-se muito escura. Mas Galaduinne conhecia bem Brumívium e avançou sem dificuldade, seguida por Namali e Athilya. E, por fim, entraram na pequena clareira onde se erguia a montanha através da qual Névila fora construída.

As sacerdotisas estavam todas à sua espera. Tinham vestidos os seus trajes de cerimónia e estavam de pé, nos vários degraus das escadas, com archotes nas mãos. Elian esperava um pouco mais à frente, com a capa de sacerdotisa vestida e as mãos cruzadas sobre o ventre.

Galaduinne sorriu. No fim a Água tivera razão. Ela nunca poderia regressar, definitivamente, a Omnirion. E, no entanto, não se importava. De facto, estava contente por ter de regressar à floresta das brumas. Pois, embora nunca o tivesse esperado ou desejado, Brumívium e Névila tinham-se tornado a sua casa. E ela não queria, nem tencionava abandoná-las.

 

                                                             Inês Botelho

 

 

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