Biblio "SEBO"
A Tempestade
Uálida é a noite, misteriosa e larga e nela dominando Céu e Terra a Lua magnífica electrizando os seres e as coisas.
Da varanda, debruçada sobre o quintal Maya admira-a - redonda tão redonda, a Lua cheia, como o ventre prenhe duma mulher em hora de parto.
A claridade derrama-se sobre a vila, sobre os telhados, sobre a copa das laranjeiras em flor que rescendem no quintal.
Frementes as narinas de Maya sorvem deliciadas o estonteante perfume que erra no ar e fechando os olhos diz de si para si: ”Lua, Lua Cheia, penetra-me com a tua claridade, eleva-me além, acima do que dizem ser real para que enfim possa aflorar uma outra dimensão sem tempo, nem espaço... abre-me caminhos, os indecisos caminhos dos sonhos...”
Calou-se-lhe a voz que dentro, no mais íntimo de si, murmurava estas e outras coisas, porque uma outra voz lhe perturbou o discorrer:
- Maya! Flor de Maio!
A mulher deixou-se ficar entorpecida sobre a cadeira de lona, nem um único movimento, fascinada olhava a Lua vogando no céu, trespassando com a clara luz a ténue nuvem. No quintal, estremece arrepiada a folhagem das laranjeiras como se a mão de uma deusa as acariciasse.
- Maya! Flor de Maio! Que fazes tu? - A voz vem rolando das entranhas da casa e ao chegar à varanda é apenas um terno ciciar.
Maya não ousa, não pode responder, enfeitiçou-a a Lua, prendeu-a em sua mágica teia de luz.
- Flor de Maio, que fazes tu? - Queria responder: Parto. Percorro os caminhos da vida já vivida e procuro outros que se hão-de abrir, mas a Lua já a embalava nos braços emudecendo-a como se tivesse caído no sono... e a viagem começa...
Ainda existe o quadro a atestar memórias de um outro tempo. É um estranho quadro aquele que permanece na parede do vestíbulo, suspenso dum roxo cordão de seda, um tanto puído, desbotado pelos anos.
Sabina admira e receia aquela pintura, diz que só de olhá-la se lhe arrepiam as carnes e afirma com ar jocoso, apenas para disfarçar o seu supersticioso temor que talvez um demónio ou um deus desconhecido tivesse conduzido a mão da tia Filomena quando criou sobre a tela tão estranha figura de mulher.
- Chamar-se-á a Senhora das Sete Luas. Não achas fantástico, minha pequenina. - Dizia a tia Filomena enquanto na paleta se misturavam as cores que seriam o ocre do fundo, o azul ferrete para o manto, o azul claro quase translúcido que daria vida ao casto vestido da mulher que já se sentava em posição de lótus, sobre um árido chão da cor das folhas secas do Outono variando aqui e ali em laivos de amarelo como o das mimosas que na Primavera ladeavam as veredas que conduziam ao ”monte”.
- Vês, Flor de Maio! Aqui está a Senhora das Sete Luas, a deusa que eu própria sagrarei. Sabes o que quer dizer sagrar, Flor de Maio? E uma deusa, o que é, minha tontinha? - E ria quase gargalhava a tia Filomena e o som que soltava era como o do cristal dos copos tinindo, retinindo na alegria duma festa.
- Ah, Flor de Maio! Flor de Maio? - Fez uma breve pausa e acrescentou:
- Que raio de nome te havia de dar meu pai. Nome de índia, de heroína de romance de cordel. É verdade que és uma ”flor” e que nasceste numa tarde dum Maio florido, mas que cheira a ranço romântico, lá isso cheira. - E batendo levemente com a palma da mão na testa como se de súbito aí tivesse surgido uma brilhante ideia declarou: - Maya, de hoje em diante chamar-te-ás Maya. Pronto agora é o momento do teu novo baptismo. - E como quem discorre e cuidadosamente verbaliza. - Maya, Maio, Maya a filha de Atlas, deusa da chuva e do crescimento... Maya, na índia quer dizer Ilusão, a deusa de ilusão, sabias? Claro que não sabias. - E colocando-lhe um beijo na fronte concluiu: - Tudo é ilusão, Maya.
Assim era a tia Filomena, bela, inteligente possuindo uma cultura pouco comum em jovens da sua idade. Falava enquanto as mãos atarefadas prosseguiam o seu mister. O pincel dava forma a um largo manto que se espraiava pelo espaço da tela...
Todos os dias depois do lanche de biscoitos e leite que Sabina lhe servia na cozinha, Maya escapulia-se no seu passo miúdo de criança, bamboleando a sainha rodada e entrava pé ante pé no quarto da tia Filomena e ajuizadamente sentada na carpete, admirava o milagre de cor e forma; assistia com enlevo ao nascimento da Senhora das Sete Luas.
Nunca compreendeu porque Filomena, sua tia, tão jovem, tão fresca, quase sempre vestida de musselina cor-de-rosa - pelo menos era a recordação que dela guardava havia criado tão estranha imagem da Mulher, talvez porque certos actos ultrapassam o nosso entendimento, não pertencem ao mundo do inteligível.
A Senhora das Sete Luas era simultaneamente a serenidade e a dor, a fragilidade e a força, a luz e a sombra. Seis esferas flutuam sobre a orla do seu manto azul ferrete, três de cada lado, redondas, perfeitas, dir-se-ia faiscarem raios de prata.
O ágil pincel da tia Filomena vai dando forma a uma sétima esfera que já paira leve, etérea sobre a palma da sua mão direita.
- É a sétima lua. - Explica. - O olhar triste da mulher parece tombar sobre essa última esfera suspensa sobre a palma da sua mão e deles deslizam duas gotículas que lhe escorrem pela face lentamente, a primeira reflecte o brilho da alegria, a outra é uma pinta vermelha como o sangue. O rosto da senhora é sereno e aflito porque tristes são os olhos, mas nos lábios lhe colocou a pintora um pacífico e esplêndido sorriso.
- Magnífica!... Não achas, Maya?
Os olhos de Maya arredondam-se de espanto. A senhora destaca-se do fundo amarelado da tela, toma forma, tem vida como por milagre.
Sabina costumava dizer: - Há magia no pincel de Filomena... - Mas já este se desloca sobre a face de cada lua e vai traçando minúsculos sinais, que fazem lembrar montes e vales, mulheres de braços erguidos, cavalos alados, pares, homens e mulheres enlaçados, searas ondulando ao vento...
- Cada lua da senhora encerra um pedaço da vida, sobretudo da vida das mulheres. - Comentou a jovem pintora com o espanto de quem faz uma súbita descoberta e acrescentou:
- Por agora fica assim?
- E a sétima lua? Não lhe pintas a cara? - perguntou a criança. - Vai ficar oca, vazia, triste?
- Por agora fica assim- - Repetiu Filomena. - Ainda não sei qual será o seu conteúdo. Um dia hei-de saber e terminar o quadro. Um dia...
Um dia pode ser amanhã ou situar-se algures em tempo indeterminado, na eternidade. Um dia pode ser nunca mais.
Passaram anos, tantos anos e a senhora permanecia absorta de olhar caído sobre o vazio da sétima lua que sobre a palma da sua mão pairava aérea como se não tivesse substância.
A tia Filomena transpôs o portal da luminosa juventude e o quadro tinha ficado por acabar. Tantos anos se tinham esgotado e era como se tudo estivesse a acontecer naquele preciso momento.
Maya de olhos fechados, as longas pestanas filtrando os frios raios da Lua, via-a ali, na sua frente, debruçada sobre a varanda de cantaria; move-se a saia de balão do vestido cor-de-rosa ao sopro leve da brisa, os cabelos castanhos deslizam-lhe pelas costas, beijam-lhe a carnação mimosa dos braços desnudos. Era bela a tia Filomena!
Viram-se pela última vez... Quando? Talvez no funeral do avô Manuel Diogo. Já não era a mesma. O tempo e o desgosto haviam-lhe furtado o brilho radioso da pele e os olhos verdes já não expediam o mesmo intenso fulgor. A vida não passa por nós impunemente. Como seria agora a tia Filomena? Era impossível imaginá-la com o rosto marcado de rugas, sem a espessura da farta cabeleira, sem a esbelteza do corpo e a leveza do passo. Ao deslocar-se era uma aparição, um anjo descido dos céus. Sabina e mesmo o avô assim costumavam chamá-la: - Vem cá, meu anjo... - Em que se teria tornado a bela Fifi de outrora? Amanhã, amanhã o saberia. Talvez...
nada valia chamá-la. Maya não a ouvia; sempre assim tinha sido desde criança, risonha, aparentemente alegre como uma flor sem cuidados; mas havia uma outra Maya que a poucos se revelava. Porém, ela, Sabina bem a conhecia... Quando caía no sonho ninguém a alcançava. Bem podiam chamá-la, gritar, barafustar, Maya não respondia, muito simplesmente porque tinha partido. Ainda muito criança e já assim era, tanto que Filomena costumava dizer: ”Não está aqui. Viaja. É como uma ave que levanta voo e se perde na imensidão”.
Ali estava o seu corpo enrolado sobre si mesmo como um feto; mas ela, Maya, quem poderia alcançá-la?
Mau grado seu nunca conseguiu retê-la e um dia partiu impelida por essa força interior que a desligava dos outros para deles melhor se aproximar. Viajou por muitos caminhos do mundo...
Quando, ao cabo de muitos anos, regressou era como um pássaro de arribação cansado do largo voo.
Era, é assim, Flor de Maio, sempre à procura de novos caminhos no mundo e dos mais escondidos caminhos da alma.
Ninguém a conhecia como ela, Sabina, Bina como ternamente lhe chamava.
Vira-a nascer; caíra-lhe nos braços com um grito terrível perante os olhos atónitos da mãe que já se despediam da vida. Pobre menina Elisinha! Tinha apenas vinte anos... Era uma criança quase quando se casou com Nuno Duarte, dezassete anos apenas, também ele já lá estava. Nunca se conformou com a morte da mulher e partiu talvez para a reencontrar. Só o velho Manuel Diogo resistiu, resistiu sempre às vergastadas da vida, até um dia... Era de força, de ”canelos” aquele homem! Talvez por nunca ter amado verdadeiramente ninguém ou porque amando tão intensamente, o amor nele se transformava em desejo de poder. A Filomena, adorava-a; mas ela não correspondeu às suas expectativas e para não sofrer Manuel Diogo endureceu tanto, tanto, que até a morte parecia temê-lo. Até ao dia em que...
Elisinha que era doce e tímida tremia na sua frente como quem está perante um deus castigador e cruel; mas Manuel Diogo seria incapaz de ferir a mulher de seu filho. Já o mesmo não era possível dizer dos homens, até mesmo os de seu sangue ou fosse quem fosse que o desafiasse, o enfrentasse, lhe desobedecesse. Enfim! Eram tempos cruéis. Sabina sacudiu a cabeça como que para afugentar recordações perturbadoras: ”Ali, ao relento vai de certo arrefecer”. Pensou. Levantou-se da cadeira de balouço, atravessou a sala e foi buscar à arca grande de mogno um cobertor. Lá estava na parede a Senhora das Sete Luas. Desviou o olhar, como sempre receosa do mágico poder que dela parecia desprender-se; sentia sempre um calafrio percorrê-la de alto abaixo quando fixava a pintura. Todos se riam dela e daquele seu supersticioso temor. Afinal não passava de uma imagem que a imaginação desenfreada da Fifi tinha engendrado e a que dera cor e forma pelo seu talento.
No entanto, aquela imagem atraía-a e arrepiava-a só de espreitar pelo canto do olho. Secretamente temia que a envolvesse nas malhas de um qualquer sortilégio.
Franqueou a porta que se abria para a varanda. Lá estava a Maya enrolada na cadeira de repouso, as mãos pousadas sobre os joelhos flectidos, toda ela abandonada à claridade da Lua.
- Flor de Maio, a noite está fresca, não seria melhor ires para a cama? - Advertiu, mas Maya continuou em silêncio, nem um músculo moveu. Não estava ali. Tonta. Pensou a velha senhora. - Era uma mulher já a declinar para os cinquenta anos e teimava em manter aquelas manias de criança.
Pobrezinha! Podia ter tido melhor sorte. Tudo, ou quase havia experimentado - a orfandade, o abandono, a rejeição; mas mantinha sempre a mesma doçura, o mesmo ar de desamparo das crianças. Ao vê-la ninguém diria que também possuía a força leonina dos Valeperdido. Quem a observasse naquele instante nunca seria capaz de imaginar que travara tantas batalhas, sofrera tantas derrotas e alcançara também algumas vitórias... Parecia uma criança adormecida ao luar”.
O disco da Lua continuava a deslizar no céu e mergulhou num farrapo de nuvem. A noite enegreceu um pouco mais. Um automóvel apitou lá fora, um cão ladrou desesperadamente num outro quintal, o motor dum avião atroou os ares...
Em breve chegariam eles: Filomena, Clara, Filipe e o seu querido bisneto que não conhecia. Nem o neto lhe havia sido dado conhecer, Simão se chamava também, porque a morte o arrebatara em plena juventude. Deixava um rebento, Pedro, seu filho, que Filomena criou com tanto carinho...
A única vez que a Fifi viera a Portugal, quando da morte do pai, não trouxera o filho, talvez por pudor...
Em breve conheceria Pedro, o filho do filho de seu filho e nele apertaria em seus braços os três - Simão filho, Simão neto e o bisneto. Quem sabe se não era a esperança desse regresso que a mantinha viva. Já havia dobrado os oitenta, mas ainda ali estava, um tanto cansada, verdade se diga, mas capaz de manter a sua rotina habitual. Orgulhava-se de ser o baluarte daquela família, era ela quem zelava por tudo por todos quem governava aquela casa, outrora com tantos serviçais, hoje reduzidos a Joaquina, quase tão velha quanto ela, mas que por fidelidade, como cão a seu dono foi ficando apesar do magro salário.
Ah! - Exclamou. - Aquela casa! Quantas histórias para contar! A vida da família do ”monte” de Valeperdido estava tão intrinsecamente ligada à sua que com ela se confundia.
Entrou na sala num passo cauteloso como se receasse acordar o silêncio. Sentou-se na velha cadeira de balouço que deslocou para junto da janela por onde, espectacular, entrava a noite, a profunda noite. Fechou os olhos e deixou-se ficar. De súbito invadiram-na imagens de tempos idos e sentiu intensamente a alegria e a dor que os havia colorido ou povoado de sombras. Era como se tudo estivesse outra vez a acontecer.
Aquela casa agora semideserta, tão silenciosa, já havia sido palco de risos e de pranto.
Para ela, Sabina, era no entanto, como se ainda ali circulasse a energia de Manuel Diogo, de Pedro Diogo, pai de Manuel, de Nuno Duarte, da doce Elisinha, da infeliz Maria Helena e até da extravagante bisavó de Maya, mulher de Pedro Diogo, a loira Matilde.
Pressentia-os por todo o lado como se ainda habitassem a casa, todos, Simão também (uma dor aguda como um espinho pareceu trespassar-lhe o coração) e faziam e refaziam os mesmos gestos, mantinham a rotina que fora a sua quando pertenciam ao mundo dos vivos. ”Coisas de velha! Desvarios de uma cabeça que já começou a malucar!”
Suspirou profundamente como que para se libertar do peso que lhe oprimia o peito.
Ia já tão longa a sua vida que, por vezes, ansiava que se extinguisse. Estava cansada. Havia passado por tanto que até a esperança já tinha desistido de lhe bater à porta. Mas Pedro estava prestes a chegar e não havia de morrer sem apertá-lo nos braços. Depois podia partir e, talvez num outro mundo se viesse de novo a envolver com a família de Valeperdido, suportaria uma outra vez os beijos repugnantes de Pedro Diogo e extasiar-se-ia com os do filho, doces como o mel, do belo e garboso Manuel Diogo, o seu o homem, o seu bendito homem, o seu maldito homem que a fizera estremecer de prazer e ternura e afogar-se no mais desesperado dos prantos.
Triste sorte tinha sido a dela, porque fora de dois homens - pai e filho. Fez um trejeito de asco com a boca, um fio de baba, que socorreu com o lenço branco, deslizou-lhe pela comissura dos lábios.
- Mulher dos dois, do pai e do filho... Santo Deus!... Exclamou numa voz quase inaudível não fosse Maya ouvi-la na varanda.
- Que Deus me perdoe se culpa tenho! - Calou-se e tudo era silêncio.
Sabina e Os Outros
- Já chega o meu cavaleiro/no seu cavalo montado,/ duma banda traz a Lua/e da outra o Sol pintado.
Sabina trauteou a quadra, velha, talvez de séculos e debruçando-se no peitoril da janela observou a rua deserta de vozes e gentes. Nem viv’alma, nem um eco vibrando no descampado” para lá da aldeia só o vermelho crepúsculo varrendo o horizonte e a Lua que se ergue, pálido Quarto Crescente, espalmada no solitário céu.
”Já chega o meu cavaleiro...”, mas a rua permanece deserta. ”Será que vem? Será que não vem?” A expectativa põe-na em sobressalto. Nada mais desesperante que a espera, se não vem?” A angústia toma-a de assalto como um milhaíre que se abate sobre a presa. Na garganta um nó avoluma-se, quase a sufoca porque não se desata em pranto.
”Será que não vem!” Sabe que se assim for a noite será de solidão e incerteza, assombrada pelo espectro do abandono e o travesseiro regado de lágrimas, sua única companhia. Não consegue imaginar a vida sem o amor de Manuel.
Tinha catorze anos quando pela primeira vez pousou os olhos negros e brandos como andorinhas sobre o seu vulto airoso, cavalgando pela rua um cavalo baio; aprumado na jaqueta preta e na estreita calça de montar, a mão segurando o chicote - era um cavaleiro antigo empunhando
a eSP”Quem é? Quem não é?” - Perguntava às vizinhas que ao som dos cascos no empedrado acorriam ao postigo.
- É Manuel Diogo. O filho mais velho do lavrador de
Valeperdido. - Respondiam.
Daí em diante mal o Sol empalidecia o coração punha-se-lhe a espinotear no peito e o ouvido atento a todos os ruídos que vinham da rua. Quando ao longe soava o trote do cavalo corria à janela para vê-lo Passar. E ele passava quase rente às casas, olhando em frente, alheado ao que havia em seu redor, aos olhos que> ardentes, nele se pousavam. Tinha uma tez clara, raridade por aqueles sítios e a melena cor de mel fugia-lhe rebelde por debaixo da aba do chapéu de copa de queijo; os olhos eram amendoados e escuros de longas pestanas como os de uma mulher. Sabina estranhava aquele contraste entre a tez clara, o cabelo doirado e a escuridão dos olhos.
”Tem o cabelo e a pele da mãe, a Senhora D. Matilde que o lavrador Pedro Diogo foi buscar lá para as bandas dos galegos. Linda de morrer, mas distante como a Lua. Até nisso o filho sai a ela. Os olhos esses são os do pai.” - Alguém contou. Assim, Sabina ficou a saber que Manuel Diogo era a simbiose entre o Norte e o Sul.
Mas Manuel Diogo não chega... era Lua Nova quando pela última vez soou na rua o eco das patas do cavalo. Era Lua Nova quando o vulto airoso surgiu ao cimo da ladeira, estranha figura de centauro recortando-se na semitreva da noite próxima. Recolheu-se e esperou sufocada de emoção até que a lingueta do trinco da porta perturbou o silêncio perfeito. Não ousou falar, nem teve tempo para dizer: ”És tu, meu amor!” porque já dois fortes braços a envolvem e a boca máscula prendendo-lhe os lábios mimosos lhe cala a palavra; mas o coração a galope de contentamento vai constatando: ”És tu, sim, és tu, Manuel Diogo E é como se os pensamentos se lhe estancassem no cérebro. Não pensa, não discorre, porém sente que se dissolve no corpo amado numa mágica permuta de alegria e angustia. Ambos se perdem um no outro e como numa transmutação alquímica a energia desprende-se dos corpos frementes para flutuar na cúpula estrelada - a individualidade não existe.
Mas já a Lua foi quarto crescente, lua cheia, quarto minguante, lua nova outra vez, e agora avançado quarto crescente, desenhando-se quase em ”plena lua” e Manuel Diogo nunca mais voltou.
Morde-a o abandono no corpo e na alma e não consegue imaginar o que dela será sem o amado, sem aquela paixão clandestina, fogueira crepitando ciúme e remorso, que tenta esconder-se nas escuras pregas da noite.
Talvez se encontre no pátio da casa do ”monte” em companhia da mulher, a jovem e lânguida Maria Helena que o admira com os seus enormes olhos azuis húmidos de ternura, tagarelando baixinho, não vá a noite despertar, não vá o vento arrastar as doces palavras que trocam entre si até à pequena casa de aldeia onde habita a amante, a camponesa apaixonada que o espera em desespero. De certo que a felicidade ruborizou levemente a pálida face de Maria Helena e a esperança de, enfim, guardar só para si o marido infiel faz cintilar o seus olhos azuis e ele pode despertar de novo para a beleza da jovem, sua mulher e deste modo voltar a desabrochar em seu peito a paixão por ela, como uma flor extemporânea e, porque assim são os homens, extinguir-se-lhe-á no coração a imagem de Sabina, a camponesa robusta e sensual, para sempre.
- Pobre de mim. - Gemeu. E maldisse o ter alimentado aquele amor desde tão tenra idade, ainda mal se lhe alteavam os seios se lhe arredondavam as formas. Detestou o desejo que a queimava, lhe percorria o corpo e a alma tal incêndio alastrando desarvorado pela charneca.
Aos olhos dos outros era uma mulher perdida, a quem nada se deve, nem amor nem respeito e talvez por isso, cansado de ditos e mexericos, enfim saciado, ele a abandonara...
Ainda não havia cumprido catorze anos quando fez a maravilhosa descoberta do amor. Ele tinha na altura vinte e quatro.
- Porque corres à porta sempre a esta hora, Sabina?
- Perguntava a prima Romana que a apoiara ”mais mal que bem” na sua orfandade e ralhava:
- Deixa-te de maluquices. Ele não é para o teu bico nem tão-pouco o teu destino. - E entredentes: - Esse já eu tracei.
Na época, Sabina nada entendeu nem suspeitou dos propósitos da prima, tão inocente e pura era; alheia às torpes decisões dos mais velhos, corria para vê-lo passar e iam-se-lhe os olhos na figura dele, erecto sobre o cavalo fixando o horizonte como se alcançá-lo fosse o seu único objectivo na vida. ”Hás-de ser meu, Manuel Diogo, hás-de ser meu... meu... meu...”, repetia baixinho como se pela repetição verbal do desejo fosse mais fácil realizá-lo.
Até que um dia se ergueu na aldeia um grande alarido... Estava próximo o tempo do desamparo total.
Parecia o céu aberto. Pelo portal da igreja jorrava a música, acompanhada de coros - melodia de vozes de crianças como anjos que cantam em louvor da manhã que se ergue afogueada de sol. Alguém disse na aldeia: Manuel Diogo de Valeperdido vai casar. A notícia alastrou como fogo no restolho, o povo acorreu, juntou-se em magotes ao redor da igreja, expectante.
Sabina, entre a multidão apinhada, ruidosa, não desprega os olhos do portal enfeitado de flores por onde a música escorre inundando o adro de harmonias. Em frente uma fila de automóveis lustrosos e negros espera noivos e convidados.
Lá dentro a cerimónia começou já há algum tempo.
De olhos fixos no pórtico engalanado, Sabina adivinha a nave dourada, ’os anjinhos de bochechas cor-de-rosa, os convidados solenes e silenciosos: elas cobertas de sedas brilhantes, eles todos de preto, o peitilho engomado da camisa branqueando sob o cetim dos virados da casaca.
No altar-mor, resplandecente de flores e luzes, os paramentos do sacerdote refulgem à trémula chama das velas. E já os noivos se ajoelham... Ó, meu Deus! Ela é delgada como um vime, pálida e luminosa como a face da lua, é uma clara nuvem de cetim e tule, um pássaro tímido de plumagem branca e ele, a seu lado, alto, forte de casaca preta que tão bem lhe assenta nos poderosos ombros. São a fragilidade e a força de mãos dadas ante o sacerdote, os opostos que se atraem e se fundem... e já se unem as mãos envolvidas na estola de seda ornada de galão doirado.
- Sim.
- Sim. - Respondem, decerto à pergunta do padre e são esposo e esposa. Ele depõe-lhe um casto beijo sobre a fronte alvíssima... e Sabina ali, no adro entre a multidão curiosa, o coração agitando-se de angústia no peito: ”Hás-de ser meu Manuel Diogo, hás-de ser meu.” Mas como? Se ele pertence àquele mundo de carros lustrosos, de salões de luxo, de banquetes servidos em pratas e cristais, de damas de cauda de seda a arrastar por soalhos brilhantes, de homens poderosos, senhores de terras até perder de vista, donos de casas apalaçadas, de herdades sem conta, de rebanhos sem conta, de cavalos sem conta, de criados e ganhões sem conta, donos da planície toda que violam despudoradamente e de mais e de muito mais... donos do mundo. E ela, Sabina que é, mas não existe nem tão-pouco ele a enxerga, perdida que está no formigueiro da arraia-miúda que serve exaustivamente, irremediavelmente desde o princípio dos séculos...
Ondas de música continuam a assaltar o adro da igreja e Sabina perde-se num remoinho de harmonias e de pensamentos...
Já vão desenrolando o tapete vermelho... como um réptil se desenrosca e vem macio e cauteloso pela calçada para estacar de repente junto aos populares. Mostram-se, enfim, os noivos: ela trémula, ligeiramente ruborizada, ele, radiante de força e param para receber os aplausos da multidão como um rei e uma rainha acabados de casar, permitem que os contemplem sob o pórtico florido.
E Sabina na sua saia de chita, Sabina de esplêndidos treze anos que revelam já a bela mulher que há-de vir a ser, sente-se só, insignificante, humilhada pela elegância, a distinção daquela jovem senhora, vestida de brancas sedas, Maria Helena de Valeperdido.
Bagos de trigo chovem sobre os noivos... Terão sorte, abundância, fertilidade... e palmas atroam os ares acordando os montados adormecidos e a terra que placidamente já começou a gestação porque é o fim do Inverno; a Primavera é prestes. Também o ventre da senhora delgada como um vime se há-de arredondar e terão ambos muitos filhos e muitos, muitos moios de trigo...
E Sabina que é, mas não existe. Porquê? A revolta avoluma-se-lhe, cresce-lhe no peito, ameaça submergi-la. Arranca com um gesto sacudido o lenço de riscado que a protege do sol e as tranças negras, grossas como cobras, lustrosas como asas de andorinhas, soltam-se-lhe rebeldes para lhe abraçarem os bem moldados ombros. Uma lágrima assoma-lhe ao canto-dos olhos tisnados e as mãos estreitas, ainda infantis, já ásperas do trabalho precoce, apertam-se nervosamente uma na outra.
Solene, o cortejo vai saindo da igreja e pouco a pouco dispersa-se em grupos que se aproximam dos carros onde fardados a rigor, de boné, na mão os motoristas esperam.
O céu está tão azul e no entanto ela pressente uma nuvem negra que avança ameaçando perturbar a sua limpidez. É então que através da névoa que lhe tolda o brilho dos olhos, distingue o vulto de um homem, alto, de grenha encanecida que, ao passar rente, pára por instantes para observá-la e os olhos negros sombreados por espessas sobrancelhas poisam lascivos sobre as suas negras tranças, deslizam, lambem-lhe o rosto, mordem-lhe os seios pequeninos, espetando sob a blusa vermelha, para por fim lhe lambuzarem a perna nua e bem esculpida. Devoram-na os olhos daquele homem, mas ela não sabe quem é. São olhos de lobo esfaimado ansiando pela presa. Como animal perseguido, Sabina afasta-se apressadamente, rompendo a multidão, nela se esconde como quem se abriga sob as árvores protectoras de uma densa floresta. Quando chega ao extremo dessa compacta massa humana, acelera o passo para longe, para bem longe da igreja não vá o desconhecido persegui-la e alcançá-la.
Enfim o terreiro. Está agora longe do perigo que a ameaçava. O terreiro é o espaço social por excelência, quase circular, rodeado pelo branco casario, é um útero a pulular de vida. Também ali chegam os que vêm de para além da charneca ou mesmo das vilas próximas a pé, de cavalo, de automóvel ou de camioneta. Mas hoje o terreiro está quase deserto, só, no centro, um autocarro de portas abertas varando como um barco no silêncio do meio-dia. O motorista sentado no banco, os braços apoiados no volante, a pala do boné descaída sobre a testa porque o sol brilha intensamente, queima, quase cega, amolece o corpo e a alma, parece, dormitar.
Dois homens fardados, guardas talvez, ladeiam a porta detrás escancarada, segurando um ”instrumento” que parece uma espingarda... Lá dentro há outros homens arrumadinhos uns aos outros como coisas que alguém dispôs no lugar certo. São a própria tristeza; basta observar-lhes a aflição no olhar.
Sabina pára para recobrar o fôlego. Longe ficou a igreja e o homem de olhar guloso, o ”velho alto, enorme, de ”ganfurina” branca e fica-se a olhar o terreiro deserto do bulício do costume, só aquela camioneta no centro desse deserto incendiado de sol.
De repente, abre-se a porta duma casa. Uma mulher de lenço de rebuço sai correndo; pela mão arrasta uma criança, um menino de meia dúzia de anos: ”Anda Manel, vem com a avó, os homens vão tocar. Vês que gaitas tão bonitas. Vem, rapaz, ouvir a música.” E arrasta o pobre menino que lá vai a reboque tropeçando nos pés; cai de joelhos, para de novo se erguer, até que chegam junto da camioneta e dos homens que a guardam como os gigantes que protegem o castelo do dragão... ”Vem, Manel que a música vai começar. As gaitas são lindas. Não são?” Diz a velha plena de entusiasmo. E já estão junto à camioneta e nem repara no olhar vazio dos homens, lá dentro. Mas já a porta da mesma casa se abre de novo e assoma um homem de idade que grita desesperadamente num vozeirão que vai rolando no silêncio: ”Vem daí, Maria” Mete-te em casa.” A velha resmunga; não quer obedecer à ordem do marido: ”Quero ouvir a música. Os homens vão começar a tocar...” E o marido exige com autoridade: ”mete-te em casa, mulher dum cabrão...” E ela que não obedece. Só pensa na música que em breve há-de animar o largo orlado de branco sob a cúpula azul celeste cintilante de sol. O homem corre até à camioneta e empurrando-a à sua frente com o menino a reboque porque ela oferece resistência, segreda-lhe quase ao ouvido: ”Ó minha burra! Não vês que são ”amortalhaderas”. Pode haver tiro de ”criar bicho.” Aflitos entram em casa fechando a porta com estrondo.
Compreende Sabina que algo de extraordinário e terrível aconteceu enquanto o padre casava, abençoava Manuel Diogo e Maria Helena e a voz do órgão se erguia na igreja harmoniosamente.
Na rua direita que desemboca no largo surgem outros homens fardados empunhando espingardas, ”amortalhaderas” ou seja lá o que for que de bom não é de certeza. A frente das espingardas vêm outros homens relutantemente... Sabina reconhece-os. É Chico Catarino que tem voz de cristal e que canta tão bem pelas Janeiras, pelos Reis, pelas noites de lua quando o calor aperta. Lembra-se de vê-lo, rua abaixo de braço dado com outros, cadenciado o passo e tem ainda no ouvido a música inesquecível da voz que se eleva como a dum rouxinol enamorado; e é José Colaço, alto, muito magro que nas ceifas, pela hora da sesta entre um gole de água e uma dentada de pão conta histórias de príncipes e princesas e de gigantes e fadas também. E ele é o conto da princesa ”Magalona” e ”O Cavalo em espuma” e o da ”Maria das Vinte”, aquela Maria a última de vinte irmãs que enamorada pelo filho do rei jurou que teria dele um filho. E o príncipe passava-lhe rente à janela e desafiava-a cumprimentando: ”Adeus, Maria das vinte, filhos meus nunca tu terás.” E ela respondia-lhe sorrindo: ”Esperanças em Deus, meu príncipe e senhor!” E quando o conto acabava o príncipe apaixonou-se por Maria; ela teve um filho e tornou-se numa grande dama vivendo no paço com todo o respeito e grandeza.
”Hás-de ser meu, Manuel Diogo, hás-de ser meu...” Ia repetindo Sabina enquanto se encaminhava para casa. Assim tinha sido com Maria das vinte e assim havia de ser com ela.
Manuel Diogo já estava casado, mas o mundo dá muitas voltas...
Chico Catarino e José Colaço marcham ”de má catadura”, à frente dos guardas. Algo de terrível aconteceu na aldeia. Já entram renitentes na camioneta e atrás os dois guardiões do castelo do dragão empunhando espingardas, ”amortalhaderas” ou seja lá o que for, que de bom não é de certeza. Fecham-se as portas, o motor revolve o silêncio e a camioneta desaparece além, na curva da estrada.
Adeus Chico Catarino, adeus José Colaço, adeus tantos outros de olhar aterrorizado! Que viagem inesperada é esta? Algo terrível aconteceu na aldeia. No terreiro só silêncio e sol.
A Lua espreitou pelo postigo entreaberto qual comadre curiosa a devassar a intimidade alheia e viu um aposento de terra batida, paredes brancas como um lençol bem ”coarado”, um chupão ao canto sem traça de fumo, um pequeno armário de portas de rede, não vá entrar alguma mosca gulosa, e ao centro a mesa de madeira crua, orgulho de asseio, esfregada e resfregada pelo enérgico esticão da velha Romana. Tudo isto vê a Lua de carão redondo e também uma mulher trôpega de anos e cansaço e uma menina de formas airosas, já quase mulher - Romana e Sabina. E elas, nem dão que a Lua dá por elas, cada uma absorta que está em seus pensamentos. Parecem vogar na claridade como num sonho...
Romana coloca sobre a mesa nua um naco de pão num prato de barro e embrulhado em papel de jornal um pedaço de chouriço já seco e rançoso.
- Senta-te Sabina que é hora da ceia. - Sabina olha tristemente as ”iguarias” que se exibem sobre a tábua da mesa e pergunta com um desconsolado suspiro: - Nem uma azeitonita?
A velha senta-se na cadeira, bruscamente cai sobre ela como um saco desamparado:
- Que queres tu? Sempre a resmungar, sempre a exigir!... Vão mal os tempos. Trabalho não o há... comida também escasseia. Se soubesses o que suei para conseguir o que aqui está. Devias recebê-lo como um manjar do céu; mas não. Tu queres faisão, ”biquinhos de rouxinol...”
- O que para aí vai. - Atreveu-se a dizer Sabina.
- E achas que estou errada? Trabalho não o há, trigo também não... Ah! Esta maldita guerra! Na minha mocidade os lavradores sempre nos socorriam, de quando em vez: ele era um naco de toicinho, uma medida de grão... Agora, nada. Tiram-nos couro e cabelo até ficarmos em carne viva. E depois esta guerra lá para Alemanhas, para Franças e ”Araganças”... que temos nós com isso?
Sabina escutava-a de olhos arregalados. Não conhecia aquela prima Romana, assim loquaz, quase eloquente, assim revoltada. A velha continuou:
- Levam o nosso trigo, a nossa farinha, tal e qual como na primeira guerra, ainda tu não eras nascida. - Fez uma pausa. - Foi horrível o que aconteceu naquela altura. Pobre Delfina! Aquilo era uma mulher! - E de olhos semicerrados como quem revive uma cena há muito observada:
- À frente dum ”batalhão” de mulheres, lá na estação, por volta das duas da madrugada. Era lua cheia como hoje. Maldita Lua! Parecia sangrar naquela noite.
Ficámos ali a pé firme à espera do comboio que havia de levar a nossa farinha para alimentar os da guerra, e nós com fome. Pobre Delfina! Aquilo é que era uma mulher. Ali a pé firme encabeçando o grupo de mulheres: ”Não levam todo o nosso trigo, que o semeamos, o mondámos, o ceifámos, o debulhámos. Não levam toda a nossa farinha que a moemos... já chega que tenham levado quase todos os nossos homens...”
- Vinha muito bem guardado o comboio... muitas espingardas. Delfina, soltou um ai e escorregou para o chão, leve, leve como uma pena. Um fio vermelho escorria-lhe pelo canto da boca. Ai que mataram Delfina! - E a velha levava as mãos à cabeça como se presenciasse tudo outra vez. - E a Lua a rir-se, vermelha, cruel ou talvez a chorar... Ai a Lua!
- E correu à porta para fechar o postigo.
- Que é isso, prima Romana? Endoideceu? - Perguntou aflita Sabina, sacudindo a velha pelos braços, chamando-a à realidade. - Isso já foi, já passou.
A velha respirou fundo como quem regressa dum transe inesperado. - Pois sim, mas receio que se repita. Hoje vieram numa camioneta e levaram mais uns quantos. Sabina ficou atenta e como quem por fim compreende:
- Chico Catarino e José Colaço sei eu que os levaram, mas para onde, prima Romana?! - A velha fez um gesto largo que parecia abranger a sala, a aldeia, a planície o mundo longe e disse:
- Para além, para pô-los a ferros, mas também não sei exactamente porquê. Dizem que são ”políticos”.
- O que é ser ”político”, prima?
- Não sei bem filha. Parece-me que são os que estão contra a nossa miséria. Dizem que temos tantos direitos como os lavradores que também somos gente e por isso iguais e pelos vistos não se pode dizer. É proibido... - E concluiu: - Deus nos livre dos ferros d’El-Rei, como costumava dizer minha mãe. Ah! Quem tem saúde e liberdade é rico e não sabe. - Calou-se ofegante, o olhar baço de tristeza fixo no rosto atónito da rapariga. Passados uns segundos, calma, como se tivesse esquecido todas as lembranças que até aí a tinham posto em sobressalto, como que regressada enfim, dum outro mundo comunicou numa voz um tanto melíflua: - Mas não há que ter arreceio, filha. Não passaremos mais fome. Já arranjei a tua, a nossa vida. Verás. Não tenhas medo. É verdade que gostaria de outra coisa para ti, mas já que não pode ser de outra maneira, paciência... fome não passaremos mais. Cada um deve lutar com as armas que tem e as tuas são poderosas, Sabina, só elas nos podem salvar da miséria.
Silêncio. Sabina não entende o enigmático arrazoado e por isso não emite palavra. Foi à porta e abriu o postigo para de novo deixar entrar a claridade da Lua e o sonho absorveu-a completamente.
Àquela hora já Manuel Diogo tinha partido com sua noiva franzina e timorata no seu lustroso automóvel. Ouvira dizer que iam em lua-de-mel lá para as bandas de Lisboa. ”Lua-de-mel”, pensou. ”Porquê lua e porquê mel?” O que quereria isso dizer? Os ricos tinham cada uma!
- Acorda rapariga. Que quebranto é esse? Vai fazer uma voltinha de meia para espaireceres. Os ares estão carregados..., mas mesmo assim vou até casa de comadre Floripes dar dois dedos de conversa. E olhando outra vez a Lua que, agora pela telha de vidro as espreitava comentou:
- A Lua leva círculo. Não tarda cai uma trovoada... Ah! Não te esqueças do que te disse há pouco. Faz o que tem de ser feito. Sou velha, sei o que é melhor para ti.
Sabina não respondeu nem perguntou: ”O quê? O que é que tem de ser feito?” E a velha arrastando o passo saiu para a rua ainda inundada de luar.
A noite avançava pesadamente lenta como mulher que arrasta pelo mundo a tristeza duma vida de trabalhos e canseiras. Avançava a noite... a Lua cobrira-se de um delgado véu de nuvens, Sabina não dava por nada, nem que lá fora se adensava a treva.
Sentada numa cadeira, a meia e as cinco agulhas que lhe repousam no regaço não dá pelo tempo que passa. Parada e muda, é uma estátua absorta no seu sonho de pedra. Lá fora o vento iniciou o seu lúgubre lamento. Uma porta range tímida nos gonzos. O olhar petrificado de Sabina projecta-se sem alegria nem dor, sem o mínimo rasgo de emoção na brancura de cal da parede em frente. Outra porta geme baixinho. Passos cautelosos aproximam-se, cada vez mais e Sabina sente que já não está só. Terá regressado a prima Romana? Que horas seriam? Confusamente desfilam-lhe no cérebro estas perguntas, perdida que está não se sabe em que devaneio ou misterioso universo, mas algo ou alguém perturbou a solidão que até ora reinava e rodeava-a como se traçasse um círculo cada vez mais apertado à sua volta. Estremeceu... Uma lágrima furtiva desprendeu-se-lhe das pestanas escuras e rolou-lhe pela face até ao queixo até ao pescoço como um arroio que não ousava deter. Uma grande aflição apertava-lhe agora o peito como se as costelas se lhe espetassem na carne. Mal conseguia respirar e não compreendia porquê. Juntou as mãos e apertou-as com força com muita força como se pretendesse concentrar nelas toda a sua energia e coragem. Uma presença erguia-se agora, crescia, respirava mesmo atrás de si, debruçava-se sobre ela tal uma sombra fantasmagórica, agigantando-se cada vez mais para decerto envolvê-la num abraço macabro e fatal.
- Quem está aí? - Perguntou num grito, virando-se repentinamente na cadeira.
Ali estava o homem, um homem especado na sua frente, alto como um sobreiro, rolando entre as enormes mãos o chapéu de aba larga. Sem responder o homem puxou uma cadeira e sentou-se, acomodando-se com o à-vontade de quem tudo pode e tudo manda. Só depois se permitiu responder, com naturalidade, como se a sua presença fosse esperada e aquele encontro estivesse determinado desde sempre. - Então, Sabina, então. Sabes bem quem sou. Não me esperavas? Romana não to disse... Pensei que estivesses preparada. Sabina fitava-o boquiaberta e, levantando-se de súbito fez menção de se encaminhar para a porta, mas o homem agarrou-a pelo braço e quase a obrigou a sentar-se junto dele.
- Senta-te aqui, vá lá, acalma-te. Não sou nenhum papão. - Os olhos libidinosos lambiam-lhe o rosto, o corpo todo.
Sabina não diz palavra; fita esses olhos perturbados pela luxúria num desafio; mas só para esconder o terror que a aperta com mão poderosa ameaçando esmagá-la. Imagens fugazes, sobrepõem-se-lhe na mente, confusas, como nos sonhos. A memória é um rio tumultuoso que pouco a pouco vai desaguando num mar quieto, apenas ondulando, de quando em vez.
As labaredas sobem múltiplas e irregulares, línguas de fogo desprendendo-se da brasa incandescente. O estonteante perfume do alecrim é como incenso ungindo o sagrado da noite.
Ardem no terreiro uma dezena de fogueiras cuja luz parece incendiar a cal das paredes em redor. Um círculo formam as fogueiras. À volta delas formando um outro círculo, homens, mulheres, jovens, crianças silenciosos e contritos como quem espera a realização dum ritual. De súbito, vão-se destacando raparigas e rapazes, alguns homens e mulheres para formarem um outro círculo a poucos passos das fogueiras crepitantes e a noite, afogueada de luz, noite de S. Pedro, parece não fazer jus ao santo da cristandade, mas a uma qualquer deusa pagã cujo nome se perdeu na enredada trama dos tempos.
Uma mulher de xaile negro escorrendo-lhe da cabeça aos pés vai colocar-se no centro do terreiro. Ela no centro e em seu redor os lumes erguendo-se no ar adejando como asas de refulgentes pássaros. Teme-se que a envolvam as chamas como num longínquo e macabro auto-de-fé...; mas é noite de S. Pedro ou de uma deusa qualquer e ela o oficiante inconsciente dessa divindade - a sua sacerdotisa.
Sabina próxima das fogueiras também quer saltar porque é noite de Santo e é como se ”espíritos” arrepiassem os céus ruborizados. Tem treze anos feitos e já gulosos a seguem os olhos dos rapazes quando por ela passam. Mas não tem par, mais moço ou mais velho para saltar a fogueira ainda não tem namorado. As outras, os outros colocam-se frente a frente com a fogueira de permeio. Dez fogueiras, nove pares. Sabina também quer elevar-se por cima do alecrim inflamado - ”É uma aventura saltar sozinha sem ninguém para a receber nos braços...” pensa.
A mulher no centro do terreiro levanta a mão e como um árbitro dá o sinal de partida. A brisa da noite enfuna as saias de chita e as de seda também e são balões multicores erguendo-se leves sobre as labaredas para se esvaziarem nuns braços fortes e másculos que do outro lado se estendem.
Sabina decide saltar, assim, sozinha e ousada. Fecha os olhos e com um impulso ergue-se no ar, abre-se-lhe o balão de saia, as labaredas lambem-lhe ligeiramente a perna a descoberto. Entontece-a o perfume a alecrim; é como saltar um precipício; do outro lado o vazio; mas já uns braços enormes como troncos lhe rodeiam o corpo ainda mal liberto da infância que se esmaga contra um peito largo. E o homem, sim, porque era um homem, tinha espessas sobrancelhas e um enigmático sorriso...
Era ele. Bem lho dizia o coração.
O homem tinha-se calado e calado permaneceu por instantes; à volta tudo perdera a voz, nem um ruído na rua, nem passos, nem viv’alma, nem o canto dum grilo perdido nas ervas que brotam entre as pedras, nem o piar da Bia, a coruja costumeira no pináculo do campanário, só o silêncio redondo como uma esfera abraçando o mundo e a Lua de carão largo e olhos piscos tal o rosto do chinês que aos domingos, tocando guizos descia a Rua Direita carregando na trouxa colares multicores, pulseiras de falsos brilhos, leques laçados com exóticas pinturas, belezas nunca sonhadas e tão apetecidas... Só o silêncio e a Lua de sorriso alvar estampada ainda na clarabóia do tecto de cana, gozando aquela cena - um homem na robustez dos seus cinquenta anos e uma jovem que apenas floria suspensos no silêncio que se eterniza.
Quer Sabina falar; mas não sabe o que dizer; quer esbracejar, gritar, expulsar o velho que descaradamente lhe entrou pela porta dentro. Que desacato! Mas os olhos penetrantes de Pedro Diogo mantém-na paralizada, hipnotizada como um encantador à sua serpente.
Lembrou-se então duma passagem da Bíblia que ouvira contar ao padre Armando durante a missa quando lá ia pela Quaresma ou dia de Santo: ”Fujam, fujam de Sodoma e Gomorra, e não voltem nunca os olhos para trás - advertia o anjo - ou em pedra vos haveis de transformar. Uma mulher olhou para trás e tal como havia profetizado o anjo em estátua de sal se transformou”.
Sabina não se mexe, tenta esquecer o perigo que a ameaça, não olha para Pedro Diogo não vá transformar-se em estátua de sal.
Pensava estas coisas disparatadas, talvez para vencer o Medo e esquecer a lua que lhe fazia mumisses pela poeirenta telha de vidro.
”Que pensará ele que tão quieto está?
Coisa boa Não é de certeza”.
Enfim, Pedro Diogo agitou-se na cadeira que de tão desengonçada rangeu Sob a sua corpulência.
A boca arreganhou-se-lhe num sorriso de dentes muito certos e brancos que a arrepiou e disse sem mais nem menos:
- Gostas de contos? -
Sabina olhou-o com estranheza.
Sim, contos, histórias de lobos e lobizomens, de donzelas e jigantes e até de ciganos que raptam lindas meninas, de uma beleza sem par...
Não o ouvia.
Contos... histórias.
A, se gostava!
Pela hora da calma, hora do jantar,
A sombra dos chaparros enquanto o rancho inteiro matava a fome com pão e toucinho ou uma vinagrada refrescante, rodeado do ouro do trigal ondulando à mínima viração, José Colaço contava:
Era uma vez uma menina que nasceu com uma estrela de oiro na testa.
Era uma vez um príncepe que um dia passeava na sua montada.
A menina espreitou ao postigo
E o brilho da estrela quase cegou o olhar azul do príncepe.
Quis o príncepe levá-la para o palácio, mas a madrasta da menina escondeu-a numa tulha e disse ao príncepe que ela tinha fugido,mas ele não acreditou.
Vieram os homens de armas arrancaram a menina ao seu cativeiro elevando-a à garupa do seu cavalo bem ajaesado, o Príncipe partiu a galope com a sua preciosa carga…
José Colaço estendia a mão na direcção do Horizonte e exclamava tão sério que até parecia verdade.
Olhem, lá vão eles a galope...!”
Como acabaria o conto?
«A folha» esperava submissa que a ceifassem.
Já se fazia ouvir o vozeirão do manajeiro:
EH malta! Vamos a erguer. Acabou a sesta, preguiçosos.
O Sol a pino dardejava. Tão fresca era a sombra do chaparro! Mas lá iam eles e elas também.
- Amanhã contarei o fim da história. - Prometia o Colaço. E desfazia-se o sonho...
A voz de Chico Catarino erguia-se, trinava, límpida como água pura, triste como uns olhos negros: ”Lá vai Serpa, lá vai Moura...” E esqueciam o Sol que impiedoso os castigava. Por onde andariam agora? ”Onde estás Chico Catarino? Quem te levou José Colaço?”. Perguntou Sabina num murmúrio como se eles ou alguém pudesse satisfazer-lhe a pergunta.
Tinha esquecido a presença do homem que como numa ladainha repetia: - Gostas de contos? Gostas de contos?
- Sim. - Respondeu peremptória e o tom da sua voz denunciava desafio. Ele aproximou ainda mais a cadeira da de Sabina. As feições distenderam-se-lhe, aplacou-se-lhe o sorriso arreganhado de máscara, uma luz de bondade pareceu assomar por detrás da íris muito negra e, como um avô que por uma plácida noite convive com a neta, contando histórias, ou curiosas experiências, começou por perguntar:
- Sabes como se casam os ciganos?
- Não. - Respondeu algo desiludida, pois não eram histórias de ciganos que correm o mundo de ”déu-em-déu”, de trouxa às costas, filhos choramingando pela mão, burros escanzelados carregando os míseros haveres... não eram histórias de ciganos que nas feiras, para sobreviver, enganavam os incautos. Não eram contos em que reinava a miséria, as misérias, que a libertavam da opressão que tantas vezes sentia na arca do peito - ”Por onde andarás agora, Manuel Diogo?!” - eram histórias de encantar com reis que oferecem tesouros ou metade do seu reino, ou até a própria filha ao mais pobre dos homens se for valente e honesto... e de princesas que o mau olhado da feiticeira encantara e se tornaram pombinhas brancas até ao dia em que chega o príncipe e desfaz o feitiço...
Dessas histórias gostava ela, Sabina, de ouvir porque eram como bálsamo que apazigua a dor de uma ferida e assim se esquecia do mundo que a rodeava, que de bonito e bom nada tinha, para vaguear no sonho...
O homem insistia:
- Sabes como se casam os ciganos?... - E ela não tinha outro remédio senão escutá-lo.
- Nunca por nunca o noivo vê a noiva antes do casamento. Decidem os pais com quem se casará a filha com quem o filho se há-de casar. E assim é que está bem, porque quase tudo sabem os mais velhos a quem a experiência ensinou, enquanto os jovens só pensam no amor que é coisa impalpável que não compra burros nem cavalos nem tão-pouco dá de comer a ninguém. - A atenção de Sabina fora cativada. Escutava agora, atenta, virando para ele o rosto que resplandecia de juventude à luz amarelada do candeeiro. Pedro Diogo respirou profundamente e retomou de seguida: - No dia do casamento, num descampado, a que Deus tenha concedido a bênção dum poço, instala-se a tribo com suas carroças, suas tendas, seus animais, quando os possuem... e é uma gritaria e azáfama: pelos campos, as crianças que correm em despreocupada brincadeira flutuando seminuas à luz solar e os homens que se preparam para sacrificar alguma rês que será cozinhada sobre o braseiro, no caldeirão de ferro e servida depois, à tardinha a todos os convivas instalados sob a folhuda copa de alguma desgarrada árvore.
”O homem sabe contar”, pensou Sabina e já lhe vogam os sonhos nos olhos largos e ternos.
- Preparam as anciãs a noiva. No fundo da carroça enfeitam-na de fitas de variegadas cores, de colares tilintantes... Penteiam-lhe os cabelos, toucam-na de um véu de leve tule, tão leve como a espuma do mar.
- Ah, o mar! - Exclamou Sabina distraidamente. Imaginava-o como uma infinita planície toda azul, orlada com ° branco da espuma e sentia a brisa fresca, húmida... Que saudade tinha do mar e, no entanto, nunca o tinha visto. Fechando os olhos até podia ver as rochas e as velas dos barcos recortando-se no horizonte, como naquele calendário que o ’Alemão” ostentava na parede da sua venda como uma preciosidade. A menina Joaninha, filha do lavrador do ”Monte Papagaio” contava à velha Catarina quando esta lá ia para fazer limpezas que o mar era lindo, por vezes suave como uma rola e outras raivoso como um cão.
Que saudades tinha do mar sem nunca o ter tão-pouco vislumbrado ao longe... já não ouvia o homem que contava aquela insólita história de ciganos.
- Acorda, Sabina. - Exigiu Pedro Diogo sacudindo-a por um braço. E os olhos e a alma apavorados despertavam-se-lhe de novo para a presença que se lhe impunha. A voz um tanto velada do ”gigante” prosseguiu:
- Já se junta o povo, um cântico eleva-se e tão belo é que faz calar os melros e as cigarras.
A noiva mostra-se à entrada da carroça; requebra-se-lhe a delgada cintura ao ritmo das pandeiretas e o pé pequeno calçado com a delicada chinela atreve-se a pisar o esconso degrau. Estende-lhe o noivo a mão - jovem de pele tisnada por andanças, por sóis e vendavais, estende-lhe a mão enternecido.
”Quem és tu que te não conheço?” Parecem dizer os olhos dela que o observam pela nuvem de tule do toucado.
”Que bela és.” Espantam-se os olhos dele e assim, frente a frente, esboçam um passo de dança ao ritmo de pandeiretas e da guitarra que geme baixinho. E bailam... e o mundo tal como é, feio, torturado esfuma-se no horizonte para dar lugar ao requebrar dos corpos, ao bater frenético dos pés no solo, ao estalar das mãos uma na outra e tudo é som, música, cor, movimento, magia...
Sabina olha-o pasmada. ”Quem é aquele homem que assim sabe contar...?”
- De repente, pararam as guitarras, o mágico bailado. Tudo é silêncio, céu azul e sol; mas já no ar se levanta um alarido emitido pelas bocas das matronas. É sinal de que a cerimónia deve começar. A noiva coloca-se junto ao poço e o noivo também. Esboça ele um gesto para a alcançar; ela escapa-se-lhe, corre à volta do poço, ele persegue-a repetindo com voz poderosa, sem cessar: ”Ai que te pilho, ai que te ganfo, ai que te pilho, ai que te ganfo...”, repete o cigano, repete o eco no descampado...
”Ai que te pilho, ai que te ganfo”, repete o vozeirão de Pedro Diogo de Valeperdido enquanto estende a mão descomunal para a manga da blusa de Sabina que se esquiva, se ergue dum salto correndo de imediato, para a porta que fechada está. - Quem fechou esta porta, quem escondeu a maldita chave? - E empurra-a, mas a porta não cede como se por artes mágicas se tivesse transformado num robusto portão de carvalho ou de ferro.
O rosto do Valeperdido arreganha-se num sorriso sardónico e a porta que não cede e ”ai que te pilho, ai que te ganfo...”. A cantilena zune aos ouvidos da pobre menina; é o zumbido duma vespa malvada daquelas que ferram quando o calor aperta e o sol é de chumbo na planície desamparada. Também desamparada se sente Sabina: quatro paredes, uma porta trancada e que em ferro se tornou e o ”gigante” que ri de olhar desvairado, aceso de desejo: ”ai que te pilho, ai que te ganfo...” Roda, rodopia o ”gigante” pela sala de terra batida e o carão da Lua estampado na telha de vidro ri o seu riso distante.
Onde está o teu príncipe de espada reluzente, Sabina princesa, Sabina camponesa? Por onde andará?
A menina encostou-se exausta à parede rugosa. Não havia por onde fugir, não havia quem a pudesse salvar. Duas lágrimas avolumaram-se-lhe nos olhos tristes como a imensa noite e o pensamento voou-lhe para Manuel Diogo: ”Por onde andará?”, para não morrer ali mesmo.
Com uma larga passada o homem chegou até ela, esmagou-a contra a rija parede, rijo também era o corpo dele, áspera a pele da face mal barbeada, o hálito forte, acre bafejava-lhe a face mimosa. ”Vou morrer, quero morrer”, pensou Sabina e porque as pernas lhe tremiam bambas como as de um boneco de trapos, o corpo todo foi-se-lhe escorregando para o chão como se se despenhasse num abismo.
O ”gigante” prendeu-a nos braços fortes como troncos de azinheira, apertou-a como quem deseja esmagá-la, espalmando-a contra a enorme superfície do peito, do ventre ainda achatado e liso, apesar da idade. Sabina crê que vai desmaiar, morrer ali nos braços daquele homem, que a não largará, essa certeza tem, antes de a possuir... e Manuel Diogo estará perdido para ela... para sempre. Num ímpeto ferra a mão pequena na grenha do velho e puxa e grita, grita desenfreadamente. Talvez alguém a possa ouvir, mas na casa só os gritos acordam o silêncio, na rua nem um eco de vozes, nem o som da passada da ronda da patrulha que esquadrinha a aldeia todas as noites. É um túmulo a casa, um túmulo a aldeia... Todos adormeceram por via de um qualquer encantamento. Com as unhas consegue arranhar o pescoço daquele demónio vindo dos infernos e o sangue espirrou e foi macular a casta brancura do colarinho da camisa dele.
- Cabra! - Exclamou enraivecido atirando-a ao chão e já lhe rompe os botões do colete porque o desejo enlouquecido pela recusa com esperas e delicadezas se não compadece e os seios brancos e fartos apesar da tenra idade saltam-lhe lestos como duas brancas pombas de rosado bico que anseiam voar. A rapariguinha compreende que é inútil a luta; de nada valerá debater-se... Fecha os olhos e parte. ”Não estou aqui. Leva-me Manuel Diogo na garupa do cavalo, sinto a quentura de suas costas no meu peito macio, envolvo-lhe a cintura com os braços e o cavalo parte a galope. Ah, voa! Criou asas o cavalo, eleva-se rumo à Lua, rompendo as nuvens.”
Uma dor lancinante atravessa-lhe o ventre e sabe que o seu corpo inteiro de menina nunca mais será o mesmo.
Já se calou o respirar ofegante do homem, já se afrouxam os poderosos braços que a dominam, ergueu-se o peso que lhe oprimia o corpo. Um trovão ribomba longe... Desaba a chuva das alturas, não é chuva fina como cordas de harpa cantando na noite, é água que se derrama generosa do céu, em abundância, porque grande é a sede da terra. Chove tanto e em tão grossas bátegas; é um dilúvio que afoga o mundo.
Sabina ergue-se num ”tem-te-não-caias”, vacilante atravessa a ”casa de fora”. Não dá pela nudez dos seios, pelos farrapos da saia rasgada, como sonâmbula caminha, abre a estreita portinhola que dá para o quintal, trémula, o olhar fixo como se uma espada flamejante a tivesse cegado. Chove ainda, chove tanto. Encharcam-se-lhe as tranças quase desfeitas, os peitos nus, os frangalhos da blusa e o que da saia lhe restou. O quintal é um rio caudaloso, atravessa-o até à oliveira, única árvore, única sombra no Verão inclemente... único abrigo e acolhe-se junto ao tronco sob a farfalhuda copa, pingando, transida. Encosta a cabeça à casca rugosa do tronco abraça-o, com ele se funde. Quer desaparecer nele, na raiz, na seiva, no húmus. Com a mão acaricia a folhagem pingante, como se de um rosto amigo, choroso se tratasse. Escorre-lhe a água pelos cabelos, pelos farrapos, cordas de chuva descem-lhe pelas coxas entreabertas até aos pés nus que patinham nas poças agora tintas de um rosa avermelhado...
Parou a chuva, por fim. No céu resplandece outra vez a magnífica face da Lua e a sua suave claridade desce-lhe como uma bênção sobre a fronte e suspirando profundamente descansa enfim, sob o beijo da Lua entre os braços da oliveira que parece curvar-se para a consolar.
E Manuel Diogo que não vem. Por onde andará?’
- Ah! - Exclamou a velha senhora descerrando lentamente as pálpebras espraiando o olhar pela sala redonda, círculo perfeito a quis Pedro Diogo, quando a mandou construir; estranhou o espaço, estranhou o tempo. Que tempo seria aquele? Era noite, sim, noite de Lua Cheia e o sortilégio pairava no ar. Já não tinha treze nem catorze anos. Onde lá ia isso; mas era como se um misterioso pórtico se tivesse rasgado para o infinito e assim lhe era de novo possível experimentar o que então fora e, pungente, actual era a dor daquela longínqua noite de lua, como no remoto passado.
Pela janela entreaberta penetrava o perfume a flor-de-laranjeira. Para distrair os pensamentos que a solidão entretecia desviou o olhar para a varanda. Lá estava ela na cadeira de lona, a sua querida Flor, a sua Maya, a sua menina. Não viajava como Filomena costumava dizer, parecia-lhe que dormia. Algo de estranho se passava com ela. ”E a princesa adormeceu sob o império da Lua e dormiu uma noite toda, longa de vinte anos...” Que conto era aquele? Contava-o Chico Catarino, José Colaço, um outro ou outra qualquer? Sabina não se recordava.
Um ligeiro ruído sobressaltou o silêncio até aí tão completo. Era como o fru-fru de sedas com que antigamente se confeccionavam saias de longas caudas a arrastar... ”Estou mesmo louca.” - Pensou assustada. De olhos - semicerrados pareceu-lhe divisar a seu lado uma figura alta e magra de mulher, toda vestida de negro. - ”Será a Senhora das Sete Luas?” - Perguntou de si para si. Não conseguia distinguir fantasia e realidade como se milagrosamente ambas apresentassem uma única face.
- Que estranha noite! - Exclamou em voz bem audível, mas uma palma fria de neve começou a acariciar-lhe a fronte, aliviando o delírio e as pálpebras cerram-se-lhe de novo de tão pesadas.
- É a Senhora das Sete Luas. - Sussurrou convicta e permitiu-se circular no tempo outra vez.
”E Manuel Diogo que não chega. Por onde andará?”
Maldito homem! Vinha pela calada da noite fazia deslizar a porta que propositadamente a prima Romana deixava no trinco. - É você, prima? - Ninguém respondia. A cabra da prima escapulia-se à hora combinada que nunca era a mesma e ela ali, indefesa, à beira das lágrimas desejando fugir ou tornar-se invisível, desfazer-se em pranto como uma nuvem que o vento açoita. Ele soltava uma gargalhada perversa, ensandecido de desejo. E repetia-se a tentativa de fuga, o debater-se contra as grades da prisão a que a porca da prima a tinha votado. ”Não mais passarás fome...” Enojava-se de si própria, sentia-se coberta de vergonha. Antes a fome, a morte... As manápulas do homem vasculhavam-lhe a frescura do corpo, maculavam-na para sempre. Depois, exausta, sem forças para lutar contra o inelutável abandonava-se e ei-la inerte sobre o colchão de folhelho enquanto ele executava o seu ”mister” de macho cujo desejo parecia não atingir nunca a saciedade.
Mas porque fértil era a sua imaginação, porque apesar de tudo ainda amava a vida, surgiu-lhe na mente um inesperado estratagema e a partir dessa altura já não era o ”gigante” quem a babujava com aquela boca exalando um odor acre e forte, não era ele quem a possuía, a conspurcava. Quem estava ali era um jovem de olhos ternos e melena cor-de-mel - Manuel Diogo. E a imensa dor pariu um exaltado júbilo. Bizarro poder o da imaginação! Por ela se morre, por ela se renasce. Sabina possuía-a ágil e vivida e descobriu como usá-la em seu proveito porque mulher era. E tão perfeita se tornou a artimanha que já ousava espreitar no espelho a sua figura airosa, esvaiu-se a vergonha, evaporou-se o nojo que de si experimentava e o ódio, o espesso ódio que lhe envenenava a alma diluiu-se para dar lugar à esperança. Tinha a certeza que, um dia, o velho havia de rebentar e seria então de Manuel Diogo. E era-lhe mais suave a escravidão.
Foi no ano da neve. Rigoroso ia o Inverno: zunia o vento no telhado, entrava pelo chupão onde entre estalidos e fumo ardiam alguns galhos húmidos de oliveira porque escassa era a boa lenha de azinho. A geada prateava a planície. Fome e frio espreitavam em todos os olhos. Arrepiados, homens, mulheres e crianças, numa imposta ociosidade aconchegavam-se nos portados das casas quando o olhinho do sol se permitia sorrir e alongavam para a estrada o olhar vazio como se daí pudesse surgir algum socorro ou surpresa, algo que os despertasse do enevoado sonho em que pareciam mergulhados.
A planície esperava que o sol despertasse e como touro no cio engendrasse a abençoada seara. Por ora, só o frio e a fome eram senhores da terra e dos pobres. Os outros, os ricos tinham procurado paragens mais amenas, casas da vila ou da cidade onde à chama rubra dos negros fogões, ou das vastas lareiras, por entre copos de vinhos capitosos e consoladoras iguarias podiam esquecer sem sofrimento nem remorso as inclemências daquele inusitado Inverno.
Janeiro. Cobriu-se o céu de uma poalha esbranquiçada... dir-se-ia que não passavam as horas, apesar de retinidas no relógio da torre sineira. Igual era sempre a cor do céu, branco-cinza sem vestígios de sol. E a neve caiu... Era neve, aquilo, diziam os velhos quase centenários porque não podiam reconhecê-la os mais novos por nunca a terem visto.
Caía do alto como farinha bem peneirada, vinha rodopiando pelos ares, até assentar leve sobre os telhados, a cabeça dos passantes, as parreiras dos quintais... Na rua os meninos, numa algazarra, estendiam as mãos abertas para apanhar a neve - rendas, filigrana, prata.
- É neve. É neve. - Berra entre alegre e receoso Chico Canito, maltês de profissão os pés enregelados enterrando-se na branca fofura que se ia amontoando e, metendo a cabeça pela porta da quitanda de João Tibério pedinchou:
- Dê-me guarida, patrão, tarda não tarda estou morto de frio. - João Tibério resmungou ainda de má catadura: ”Quem boa cama fizer... és como a cigarra...” ou coisa que o valha; mas, depois, atentou no desgraçado, o capote no fio, coberto daquela fina poeira branca, os pés encharcados, porque a biqueira das botas se abria como boca de cão prestes a morder e sentiu piedade do maltês.
Era homem de poucas falas e as emoções para ele as guardava fechadas na arca do peito. Isso de mostrar pena de lagriminha ao canto do olho era para mulheres, meninas e panascas; limitou-se a estender o braço na direcção dum palheiro que seu também era e disse apenas: - É só empurrar a porta... - Chico Canito desapareceu-lhe do campo de visão como que engolido pela feérica brancura, sorveu-o de certo, o portão do palheiro, consolou-o a aspereza da palha e o bafo dos muares que aí habitavam...
Assim foi, no dia em que uma fadazinha brejeira resolveu patentear aos olhos do Alentejo ardente a frieza e o espectáculo de seus bem elaborados cristais e os brancos silêncios do Norte.
Sabina alongou a vista para lá da janela. A planície era um infinito manto de arminho duma alvura estonteante.
Deixou vaguear o olhar num deslumbramento enquanto inconsciente a mão se lhe espalmava sobre o ventre e suspirou. Não lhe jorrara já fazia dois meses a fonte quente da vida. Estremeceu. Tinha só quinze anos; apetecia-lhe partilhar da alegria dos meninos que brincavam na neve, dançando, lutando, esculpindo efémeros bonecos que em breve o Sol havia de derreter. Tinha quinze anos e já não era menina, porém não era mulher. ”Nunca mais terás fome...”, tinha dito a prima Romana. Era alto o preço da tripa cheia e do conforto. Antes a fome; mas ser dona de si.
Amedrontada contou à prima a sua desconfiança. - Estás prenha. - Afirmou a velha rindo de satisfação. - E ainda bem. Pedro Diogo é muito cioso de suas crias. Agora, nada te há-de faltar. - E resmungou: - O amor não enche barriga...
”Velha gananciosa! Só pensava no bem-estar, comer, beber, dormir e tudo a suas custas. Porque não se deitava ela com o velho? Talvez o tivesse feito em tempos.”cogitou Sabina.
- Agora é contar-lhe tudo com doçura, falinhas mansas... - Instruiu Romana. E assim foi. Contou timidamente sobre o folhelho quando Pedro Diogo satisfeito e exausto se abandonava ao sono reparador:
- Sabe, sabe...
- O que foi? - Atalhou ele impaciente. Pedia-lhe descanso o corpo...
- Sabe?! - Retomou ela. - Este mês e já no outro não...
- Não o quê, rapariga?
- Não tive o... incómodo. - Conseguiu concluir.
Ó surpresa! Os olhos do ”gigante” alargaram-se numa desmedida alegria e entre duas gargalhadas perguntou:
- Estás prenha, rapariga? - E pôs-se a bater palmas ufano de sua virilidade. Passada a primeira explosão de júbilo adoçaram-se-lhe as feições, os olhos miraram-na ternos como se pela primeira vez tivesse descoberto que quem ao seu lado se encontrava era pessoa, gente, coração e... chegando-se para ela envolveu-a nos braços com uma doçura que não lhe conhecia.
Sabina perguntou-se quem seria aquele homem que assim a abraçava. Por instantes transformava-se o monstro em pessoa de paz e de bem. Que sabemos nós uns dos outros e afinal de nós próprios. E Sabina chorou. E ele aflito apertou-a mais e mais: - Porque choras, menina? O que há a temer?... Tanta preocupação. És uma mulher e eu sou o teu homem... - Mas o pranto de Sabina redobrou. Tinha quinze anos... e sonhos, esperanças que tão cedo murcharam. De quem era a culpa?
- Que posso fazer Sabina, querida para que não chores? Queres um fio de ouro e umas argolas, o vestido, sim, aquele de crepe da China que tanto desejas. Tudo isso te dou, mas por favor, por Cristo não chores. - Suplicava o ”gigante”.
Sabina ouviu um soluço. O ”gigante” chorava. Não era possível... Só ali entendeu a dimensão do poder que sobre ele exercia e os olhos arregalaram-se-lhe da inesperada descoberta - o ”gigante” era um menino trémulo em seus braços, à sua mercê.
Lá fora o vento arrepiava a telha e ela quentinha sob os cobertores e o armário cheio de pão e conduto: queijos e painhos, saboroso presunto, tudo o que era bom. Para quê um fio de ouro?... E os outros com frio, os outros com fome - nem naco de pão, nem tanganho para acender o fogo.
- Não quero fios de ouro. Deles não preciso. - Disse resoluta. - Queres presentear-me? - Reparou que pela primeira vez o tratava com familiaridade. - Se me queres agradar ordena que amassem alqueires sem conta para fazer pão e que o teu feitor o venha distribuir por quem tanto precisa: por Chico Canito sem eira nem beira, por Rita Palhinha que está entrevada, por Joana da Tábua que tem onze filhos e nem côdea que dar-lhes e... outros que tais.
Pedro Diogo fitou-a boquiaberto; mas como negar. Ela ia ser mãe, mãe dum dos seus filhos. Tinha 50 anos e rejuvenescia; era ela a feiticeira que obrara o feitiço. Havia de concordar...
- Assim se fará. - Disse meigamente, depois de breve pausa, colocando-lhe na fronte um muito casto beijo.
E assim se fez.
Era gostoso poder. Era gostoso ser atendida em suas exigências. - Reflectiu Sabina o olhar deslumbrado pelo espectáculo da neve.
Adocicava-se a amargura que durante tanto tempo a envenenara.
- Tu tens armas... - Tinha afirmado certa noite a prima Romana. A maldita velha conhecia os homens, e suas pendências.
- Talvez nada aconteça por acaso. - Ciciou e... fechando as pálpebras adormeceu placidamente, a mão frágil aflorando o ventre e a vida.
Lá fora a aldeia, a planície toda eram um cenário irreal de conto de fadas, de anões e gigantes...
Era uma vez... Assim principiava Chico Catarino ou seria José Colaço?...
O azul-cinzento da plumagem da ave aveludava de ternura os olhos rasgados e negros de Sabina. Espelhou-se-lhe na pele macia, brilhante do rosto uma imensa doçura que desabrochou num meigo sorriso de enlevo.
Pegando na gaiola doirada deslocou-se até à janela em passo pesado, lento e abriu-a de par em par. Uma chapada de luz rasgou as sombras e a claridade rósea da fresca manhã que se erguia para além do montado preguiçosamente, envolveu-a como um halo destacou-a da penumbra, nítida, o ventre enorme esperando a hora nivelado com os seios volumosos, túmidos. Dir-se-ia uma criança que um qualquer deus traquinas, num desejo de subverter a ordem das coisas decidira transformar em deusa da fertilidade.
Sabina dependurou a gaiola do vão da janela que, por instantes, ficou a baloiçar na luz ainda indecisa da manhã que nascia. Ofuscado o passarinho azul pôs-se a cantar e era trompete afinada, flauta, harmonia de teclas, harpa doirada gemendo... .
Sabina estática, dele não despregava os olhos húmidos de embevecimento. Aquela sinfonia ou glorioso hino penetrava-a repassando-a duma suave tristeza. Pobre passarinho ali confinado, ansiando pelo céu luminoso e infinito. Mão inconscientemente criminosa o fizera cativo e o rápido golpe de asa não era senão um sonho que tomava forma nas notas que ia entoando em louvor da manhã.
O menino que dormia no seu líquido leito despertou sobressaltado e a tristeza que amarfanhava o coração de Sabina transformou-se numa alegria até aí nunca experimentada e com a mão acariciante sobre o ventre tão cheio que ameaçava estoirar, esboçou aquele sorriso de que só a maternidade é capaz...
Sabina observa, atenta o passarinho azul que, de repente se calou. Fora um ”dado” de Pedro Diogo... A ave quer voar e não pode porque grades a cercam, também com amarras a prendeu Pedro Diogo.
- Aqui tens Sabina, para que te alegre os dias. - Disse-lhe apresentando-lhe uma caixa de cartão. Bailava-lhe nos olhos o sorriso de quem quer seduzir, fazer-se perdoar, talvez, porque aquela menina que iniciara no amor por tenebrosas sendas se havia insinuado no seu coração para sempre.
”Perdoa-me Sabina e ama-me também”, parecia dizer o silêncio dele, Sabina, sagaz como era, bem o entendia. Sem sobressaltos desatou o fio da caixa de papelão. Estava curiosa por saber que presente seria, mas não se denunciava. Com aparente indiferença desatou o laço.
- É para ti Sabina, vê só que beleza! - E o passarinho azul na gaiola doirada era triste e lindo como um céu de Verão que nuvens toldaram.
Sabina até aí circunspecta deixou vaguear o olhar pela rua que se animava sob a carícia da branca manhã.
O povo agita-se apinhado como se uma mágica trombeta tivesse exigido a sua presença afastando-o de seus afazeres naquele domingo que se anunciava escaldante. Eram homens que passavam, o burro à arreata, a enxada ao ombro, mulheres possantes de trouxa à cabeça, crianças de rua buscando a aventura. De repente ali ficaram parados ao sol que dardejava gesticulando, tagarelando num linguarejar confuso.
Aos ouvidos de Sabina chega uma ou outra palavra, frases desgarradas: ”Aí vem... nasceu. É um menino!”
Ao topo da rua assoma um grupo de homens fardados de oiro e azul - é a filarmónica. Mestre Pintassilgo de batuta em riste em bicos de pés para se altear rege a sua orquestra. Martelam a calçada os músicos solenes marcando o compasso. Rua abaixo desliza o grupo aprumado no uniforme azul e ei-lo no largo...
Sabina vê tudo da sua janela, mas não compreende o motivo da música e dos foguetes que estalam no céu da manhã: não é dia de santo, nem 5 de Outubro, nem primeiro de Dezembro em que pela madrugada músicos relembram a consciências esquecidas, coisas do passado. É apenas um domingo de um Verão que promete aflitiva secura.
Foi aí que a voz de Toi Raposo, pregoeiro de ofício se ergueu poderosa atroando os ares:
- Manda anunciar o Senhor Manuel Diogo, filho do lavrador de Valeperdido que hoje veio ao mundo o seu herdeiro, de nome Nuno Duarte e por ser são e escorreito ao povo quer brindar e dar conhecimento do acontecido.
Sabina ouve atónita o homem que anuncia o feliz evento, uma, duas vezes... batendo com a ponta ferrada do cajado nas pedras do largo. Estupefacta, não quer acreditar: Manuel Diogo era pai e, dentro dela a criança que se agitava era um Valeperdido, sangue de Pedro Diogo, sangue de Manuel Diogo e do menino que acabava de nascer.
Foi então que ao cimo da rua se destacou a imagem dum homem a cavalo, aprumado na sela e o som da filarmónica começou a atacar uma polca bem batida. O cavalo vem descendo rua abaixo a passo lento, ostentando a elegância dos animais de raça. Sobre ele, jovem, solene, como um rei de lenda Manuel Diogo. Duas mulas ajoujadas à arreata pela mão de dois ganhões seguem o senhor a respeitosa distância.
O coração de Sabina começa a bater desordenadamente, esbugalham-se-lhe de surpresa os enormes olhos; os lábios distendem-se-lhe num arreganho de emoção. Dentro dela agita-se a criança acusando o sobressalto da mãe que, para a acalmar, aconchega o ventre com as mãos espalmadas.
Abrem-se portas e janelas. Derrama-se na rua o povo ansioso de novidade.
O cortejo estacou de súbito, quase em frente à sua janela. Ela não desprega os olhos do vulto airoso sobre o cavalo: o rosto liso e estreito, as feições harmoniosas, os olhos rasgados e pestanudos, sombreados pela melena cor-de-mel, pala doirada espreitando de sob a aba do chapéu. O coração desatou-se-lhe em desenfreada corrida; a criança agita-se cada vez mais no exíguo espaço do seu ventre numa ânsia de liberdade. O pássaro azul na gaiola começou a pipilar tristemente, estendendo as asas, ensaiando o voo impossível. Prendem-se-lhe nas grades as sedosas penas... Era um dó de alma a aflição do menino confinado na estreiteza do seu ventre, do pássaro azul a quem as grades impedem o voo almejado.
Manuel Diogo em frente à janela que nem sabe da sua existência e que em seu ventre há uma vida que sem o saber ajudou a engendrar; pois Pedro Diogo não havia passado de mero instrumento, porque no filho pensava sempre que o pai a possuía.
Manuel Diogo com um gesto lento estendeu o braço direito em direcção aos muares e o criado abriu uma e outra gorpelha e delas retirou pão fresco, ainda morno, bóias de toucinho, sacos de batata, feijão e farinha... e foi distribuindo por este e aquele, por esta e aquela, pelo povo presente que aplaudia no auge do entusiasmo. E o inesperado aconteceu: um rapazinho destacou-se da multidão e, aproximando-se do cavalo baio, colocou a mãozinha sobre o pêlo macio do animal numa carícia e erguendo os olhos para o senhor lá em cima, tão alto, tão forte, tão belo e poderoso, tão distante, pediu: - Dê-me uma moeda, lavrador. - Manuel Diogo desprendeu os olhos do horizonte longínquo para fixá-los na criança que tão meigamente pedia e sorriu por instantes enternecido. Depois, dobrou-se sobre a sela e lançou mão de um pequeno saco de couro, desatou os cordões e a mão desapareceu no seu interior para se retirar de punho fechado. Ergueu o braço e a mão abriu-se, grande, larga, de dedos fusiformes, imensa como a de um deus generoso e próspero e o metal desceu como uma chuva tilintante caindo nas pedras da calçada. Crianças, homens e mulheres, jovens e velhos curvam-se sofregamente, ávidos palpam as pedras, rojam pelo chão ali, junto às patas do cavalo. Quem mais apanha... quem mais apanha...
Manuel Diogo lá no alto, rei absoluto sobre o seu trono, observa displicente o povo que se arrasta a seus pés até que uma gargalhada se lhe solta da garganta e tão sonora é que vai reboando pela aldeia pelos campos para morrer por fim longe, no descampado.
Uma lágrima brotou dos olhos de Sabina e ficou a brilhar pura, lúcida nas sedosas pestanas. O pássaro não pára de adejar e uma nuvem de penas azuis sufoca o acanhado espaço da gaiola. Num impulso Sabina estende a mão, não pensa no que faz; abre a portinha e rápida a ave sai, batendo depois, frenética as asas, para se elevar na límpida liberdade do céu. Cega do sol rodopiou três vezes sobre a cabeça de Manuel Diogo que surpreso, a afugenta, com as costas da mão. Já sobe mais alto o pássaro azul para se perder no azul...
Uma inaudita alegria inundou o coração de Sabina, refrescou-o como se chuva miudinha começasse a cair em tarde de aflitiva calma e liberta desatou a rir um riso cristalino que lhe sacudia os ombros, os seios, o ventre.
Manuel Diogo despregou de novo o olhar do horizonte distante e dirigiu-o para a janela donde jorrava a musical gargalhada e viu uma menina de longas e negras tranças atadas na extremidade por duas fitas escarlate e... oh, maravilha!... rotundo e fértil era o seu ventre, fartos os seios... e o espanto pintou-se-lhe nas feições.
”Quem era? Quem não era?...” Os olhos dela pareciam dizer: ”Sou eu. Não me reconheces?” Invadiu-o o estranho sentimento que a conhecia desde sempre, embora não soubesse quem era e tirando o chapéu cumprimentou aquela menina grávida, a criança que outra criança dentro de si continha. Envolveu-o uma mescla de ternura e desejo porque ela era tão diferente, tão bela que era maravilha de ver.
Sabina sorriu-lhe ao de leve; ele retribuiu com um rasgado sorriso.
Gloriosa era a manhã como se o mundo tivesse acabado de nascer.
E o Rei passava e dizia:
- Adeus Maria das Vinte. Filhos meus nunca tu terás.
- Ela respondia irónica:
- Esperanças em Deus meu Rei e Senhor. Por onde andaria José Colaço?
Repentinamente Sabina retirou-se da janela. Na rua tinha-se recomposto pouco e pouco o silêncio. Campeia o sol do meio-dia no largo deserto, na planície agastada.
Ao longe, ecoa ainda o som dos cascos do cavalo, das mulas. Vai-se esbatendo, diluindo na amplidão da terra e do céu para se perder nas veredas que riscam as courelas louras e se encaminham aos ”cabeços” onde alveja a brancura ofuscante dos ”montes” batidos de sol.
Uma dor súbita, afiada como o inesperado golpe dum punhal trespassou-lhe o ventre. Dobrou-se sobre si própria deixando cair a tigela do café que arrumava no louceiro.
Sabina curvada, abraçando o ventre esperou um segundo, uma eternidade, os olhos desorbitados de aflição e a dor esvaiu-se assim de repente tal como surgira. Parada no centro da sala esperou... dentro dela a criança parecia brincar com as suas entranhas. Refeita, endireitou-se cautelosamente, friccionando com as costas duma mão a zona dorida dos rins, enquanto a palma da outra apoiava a base do ventre já descaído. Suspirou pronta para retomar a tarefa interrompida quando a dor acordou de novo como dentuça aguçada de fera ameaçando esquartejá-la. Olhou em seu redor procurando socorro para constatar o que de sobra sabia - estava só, ela e o seu sofrimento. A dor empalideceu de novo, respirou de alívio, por instantes, só por instantes, pois estava certa que em breve surgiria como predador que simula abandonar a presa para, quase de imediato, sobre ela se abater com fúria maior. Partia para regressar com redobrada violência uma e outra vez...
Gotas dum suor gelado perlavam-lhe as têmperas latejantes; o coração confrangia-se-lhe de medo e solidão.
Os olhos turvavam-se-lhe de lágrimas; respirava ofegante, engolindo curtos tragos do ar que parecia faltar-lhe como se as paredes do aposento se fossem aproximando umas das outras reduzindo-lhe o espaço e o oxigénio. Cambaleante, o rosto, o corpo inundados foi-se aproximando da porta do quintal e saiu para a luz que lhe perfurou os olhos embaciados. Enevoadamente sabia que era a sua hora e tropeçando nos vasos onde as sardinheiras murchavam, agarrando-se aos muros gritantes de brancura aportou, enfim à sombra protectora da oliveira que parecia estender os ramos como que para recebê-la. Apesar das dores contínuas que a desesperavam, sentou-se sob a árvore cuja copa se debruçava para o solo formando uma cúpula fresca e verde, sombria, apenas trespassada por alguns ladinos raios de sol. Encostou a cabeça entontecida ao tronco poderoso e firme como uma coluna de pedra e tragando em largos sorvos o ar puro, límpido preparou-se para o momento que se aproximava. Uma força hercúlea vinda, quem sabe, se da terra negra que a sustinha, do céu que a cobria, da oliveira que a consolava, tomou-a toda e revelou-se-lhe no peito arfante, nos braços que esticados como cordas retesadas, puxavam uma haste da oliveira, com tamanha energia como se todas as forças do universo neles se tivessem concentrado. Uma mão gigantesca parecia revolver-lhe as entranhas, tão profunda era a dor; mas Sabina alheava-se como se lhe passasse ao lado... Presente só aquela força titânica, aquela inexplicável energia... crispava as mãos na haste da árvore puxando, retesados os músculos, contraindo-se o ventre... e a folhagem da oliveira roçava-lhe o rosto inchado do esforço, tal lenço suave que terno socorre o suor aflito e a triste lágrima.
A criança moveu-se bruscamente, Sabina afastou as coxas inundadas de suor e sangue e o ventre e o sexo eram a casca de um ovo que se rompe sob o bico persistente da avezinha que, finda a gestação, resolve surgir no mundo.
Um grito tremendo de dor e de júbilo desprendeu-se-lhe da garganta e ficou planando no ar como a asa dum pássaro cansado do voo.
E o menino chorou.
Era um menino. A jovem mãe arrancou a anágua para nela envolver aquele ser frágil ainda húmido de sangue que se debatia nos seus braços, receoso da luz do sol que através das folhas o espreitava comovido.
- Simão. - Exclamou, exausta num fio de voz. - Simão és, como foi o pai que não conheci. - E, de imediato, uma sensação de alívio e cansaço apoderou-se de todo o seu ser e sentada à sombra da benigna oliveira, o menino nos braços, tal uma deusa-mãe inclinou levemente a cabeça e adormeceu.
Delicada, ajeitou com a ponta dos dedos a aba do chapéu preto de palhinha miudamente entretecida onde, apesar de discreto, ressaltava um bouquet de humildes violetas.
No vidro empoeirado da janela do trem desenhou-se o rosto oval e trigueiro iluminado pelos olhos grandes e pensativos, sombreados pela larga aba do chapéu que ao trote do cavalo, aos solavancos do trem, estremecia num ritmo certo, sacudido como leque que mão nervosa agita sem cessar.
Era ela e não se reconhecia...
Fechou os olhos e viu-se novamente ao espelho como havia pouco, da cabeça aos pés. Quem era aquela mulher?
O negro do corpete do vestido de tafetá envolvia-lhe o busto num estreito abraço esculpindo-o até à elegância da cintura onde nascia em tufos e folhos o brilho negro da saia roçagante.
Era ela, Sabina?
Certa noite, fora a última noite, Pedro Diogo entrara-lhe inesperadamente em casa e com ares de mistério, piscando os olhos de alegria ou brejeirice colocou sobre o largo canapé (sim, ela agora tinha um canapé forrado de brocado verde e bege onde se reclinavam como parras três almofadas de um verde-natureza) uma parda caixa redonda que ostentava na tampa um espampanante laço vermelho e’ um embrulho feito de papel de seda.
- É para ti. - Disse com um sorriso que lhe engelhava as têmporas e as pálpebras, observando a reacção da jovem que, ávida, já desfazia o laço, levantava a tampa, rasgava o papel para de seguida se quedar embasbacada perante o brilho, o luxo do inesperado presente.
Lustroso, o vestido negrejava sobre o verde-malva do canapé como se um bando de corvos tivesse acabado de aí pousar.
Sempre lacónico Pedro Diogo repetiu: - É para ti.
Sem agradecer, Sabina passou lentamente a mão pela sedosa textura e o intenso prazer do contacto revelou-se-lhe na carnação morena do rosto que, de súbito, enrubesceu.
Não se sentia grata, nem feliz, mas o contacto com a macieza do tecido, o negro estampado no verde aveludado, conduziam-na a um mundo novo feito de futilidades e encantamentos.
- Que beleza! - Exclamou, embevecida.
Em frente ao espelho preso numa cercadura cor-de-oiro, oferta também de Pedro Diogo, Sabina admira a elegante desconhecida que sendo ela própria não o é.
Colocam-se-lhe as mãos sobre os redondos seios, descem inconscientes até à cinta estreita para se perderem trémulas nos folhos da saia imensa...
”Pobre Pedro Diogo!” Porque o lamentava agora não o sabia, talvez porque aos mortos tudo se perdoa, todos os males com que macularam a face do mundo parecem dissipar-se e irem tomando a forma dum sorriso lindo ou triste, ocasionalmente esboçado. É assim a memória dos homens.
Naquela última noite o ”gigante” estava triste. Bem se esforçava por estampar no rosto uma máscara de contentamento, enquanto fazia saltitar sobre os joelhos o menino Simão, agora de três anos que por traquinice lhe puxava a guedelha que insolitamente lhe alvejava acima das negras sobrancelhas. Ria Pedro Diogo atirando a cabeça para trás, mas a gargalhada soava a uma elegia, a desesperado cântico quiçá fúnebre. O ”gigante” ria para não chorar. Porque assim era, Sabina não entendia. Era demasiado jovem para penetrar os enredados meandros da alma dum homem como aquele. ”Que se passa?” A pergunta quase lhe aflora aos lábios, mas não ousou formulá-la.
O homem parou de rir, porque o menino cansado da brincadeira adormecera nos braços gigantescos do pai e o senhor de Valeperdido começou então a falar. E disse que se sentia envelhecer e que uma grande tristeza lhe tolhia a alma torturada por inúmeros crimes. - Crimes? - Perguntou Sabina. O rosto de Pedro Diogo crispou-se. Apertava os lábios com veemência para impedir que o pranto jorrasse e assim destruísse a sua imagem de homem que se não deixa vencer pelas emoções. - Um homem não chora. - Quando conseguiu vir à tona da enorme vaga de emoção que ameaçava submergi-lo confessou, numa voz entrecortada pela respiração difícil, que lhe fazia altear a arca do peito, que era um criminoso, e o assassino sem pudor de sua própria esposa, mãe de seus filhos e ladrão também porque a ela, Sabina, havia roubado desavergonhadamente a honra e a meninice...
As palavras saíam-lhe em catadupa com a aflita violência das águas dum rio há muito aprisionadas pela fortaleza dum dique e prometeu ali pelo Sol e pela Lua, pois pressentia que a cada instante a morte o espreitava que, já que não podia modificar o passado, não ia permitir que Simão, seu filho fosse o deserdado da família Valeperdido por ter nascido fora do casamento.
- Ouve, Sabina. Hoje Simão passou a ser legalmente um Valeperdido porque precisamente hoje o perfilhei. Se algo me acontecer exige o que lhe cabe por direito. Não te deixes intimidar... exige...
Uma lágrima rolou incauta pelo rosto ainda liso do ”gigante”, luminosa e pura como água de redenção.
Despede-se o Sol num rasto de fogo, desaparece na linha do horizonte como se a ávida bocarra da terra de um trago o tivesse engolido. A Lua delgada, curva como boca sorrindo, esboça-se num cínico traço na nudez aguada do céu.
O trem avança pelo crepúsculo, rasga a penumbra que se adensa anunciando a noite, mãe do silêncio que começa a envolver o campo aberto, salpicado do escuro das azinheiras que deslizam como espectros, recuando rápidas até se afogarem na escuridão quase total.
A cabecinha loira do menino descaiu suavemente sobre o regaço de Sabina e ela sorriu enquanto atenta ouvia o chiar das rodas calcando a vereda barrenta. Parecia-lhe não ter fim a vereda e ser seu castigo percorrê-la pela eternidade, mas o calor que se desprendia da cabecinha do filho repassando a seda da saia, infiltrava-se-lhe nas coxas, nas veias estabelecendo entre ambos uma tão perfeita união como quando sendo dois eram apenas um e por isso confusamente desejou que a viagem continuasse... para sempre. No entanto, urgia chegar, urgia cumprir o que naquela última noite havia prometido a Pedro Diogo. Ainda recordava a sua voz quando peremptória dizia: ”... exige o que lhe cabe por direito...” O farrapo de frase martelava-lhe os ouvidos com uma ênfase tal e, ela, por mais receosa, tinha que cumprir a promessa que então lhe havia feito: ”Sim. Irei; se me expulsarem, regressarei sempre, sempre. Lutarei para que Simão tenha o que lhe cabe por direito. Simão é um Valeperdido...
Agora, naquele momento, temia a reacção dos outros herdeiros... apesar disso lá ia aprumada e elegante, disposta a enfrentar o que se lhe deparasse. Ao fim e ao cabo ela era Sabina Guerrilheira, bisneta de sua bisavó guerrilheira de quem havia herdado o apelido.
A notícia saltara da boca do pregoeiro, sob a forma de brado que vibrou nas ruas até chegar à sua porta como uma humilhante bofetada. ”O lavrador Pedro Diogo de Valeperdido estando nas ânsias da morte, não consegue morrer por um dia ter comido carne de grou...”
Achou o pregão disparatado, coisa pouco séria, brincadeira de Entrudo, mas não era Entrudo. Veio a prima Romana que tudo sabia e explicou: - Quem come carne de grou não consegue passar as portas da morte se não for apregoado. - Disse-o convicta como se de uma verdade absoluta se tratasse. Verdade ou superstição uma coisa era certa: Pedro Diogo tal como previra, mais depressa do que julgara, estava moribundo.
À tarde, depois de badaladas as quatro horas no relógio da torre da igreja confirmou-se a notícia, andou de boca em boca até entrar pela sua porta, pela sua janela. Não se lembrava como nem quem foi que a informou tal foi a sua perturbação, o alívio, o desespero também. E a frase surgiu-lhe na mente nítida, sonante como se Pedro Diogo tivesse acabado de pronunciá-la: ”Exige o que lhe cabe por direito...” Exigiria... fá-lo-ia com a sua presença em Valeperdido e de seu filho que pela lei dos genes, pela lei dos homens, era um Valeperdido também. Como um autómato lavou o menino, vestiu-lhe o fato de veludo azul onde brilhava a larga e branca gola de renda, calçou-lhe os sapatos de verniz que o pai lhe havia trazido de Lisboa, penteou-lhe os caracóis loiros. O pequeno Simão deixou-se lavar, vestir, pentear sem lágrimas, sem protestos como se percebesse a solenidade da ocasião. Parecia um príncipe pronto a ser retratado, tão quieto estava sobre as almofadas verde-natureza do canapé, enquanto a mãe, numa azáfama, corria do quarto para a sala, da sala para o quarto, enfiando o vestido, compondo os ombros, ajeitando o chapéu, mirando-se no espelho de cercadura doirada, ordenando à prima Romana que se esforçava por acalmá-la: - Sem pressas, rapariga!... - Corra, corra ao João da Rita. Diga-lhe que preciso do trem. Às sete horas em ponto, ouviu?! Preciso que me leve a Valeperdido.
- Estás louca, filha!
- Vá mulher, ou mande alguém. Você não quis assim?... Agora tenho de ir... e depressa. O morto é pai de Simão e meu filho precisa de estar presente no velório. Corra. Que o Rita venha com o trem. Queira Deus que não tenha ido em serviço à vila. - E ajeitava o chapéu com mão trémula.
Descaído para a direita realçava-lhe o perfil, ou talvez para a esquerda lhe desse mais distinção. Hesitava... Romana olhava-a boquiaberta. Então Sabina irritou-se e desabridamente quase gritou: - Corra. Diga ao homem que pago bem. Corra. Corra... - E Romana saiu correndo.
O menino Simão de fato azul de veludo sobre o verde-natureza dir-se-ia uma pintura.
Os guizos da alimária vibram no ar parado anunciando a chegada do trem. Sabina correu para a porta arrastando o menino pela mão e apressada ajudou-o a subir os dois degraus. A portinhola fechou-se com um som cavo de madeira velha. Instalada, correu para um lado a cortina escarlate e espreitou pelo vidro onde se acamava a poeira fina das estradas. Olhos bondosos, maldosos espiavam por postigos e janelas deslumbrados uns, outros destilando a ânsia venenosa de devassar a vida alheia. Diziam: ”Que linda se fez Sabina, que rica se fez Sabina; o Valeperdido perdeu-se de amores por ela.” Desdenhosos outros: ”Lá vai a puta do Valeperdido exigir a herança do bastardo. Ainda o corpo do homem não arrefeceu e já corre o cheiro do dinheiro...”
Tudo isto leu Sabina nos olhos que de relance a fixaram, mas não se afligiu. Que pensassem o que bem lhes aprouvesse. Sozinha estivera no momento da sua desgraça, sozinha se debatera para não morrer de tristeza, sozinha lutaria para que se fizesse justiça. Dissera-lhe o Valeperdido que seu filho era um Valeperdido de pleno direito e como tal havia de o impor à restante família. Ela era Sabina Guerrilheira, bisneta de Antónia Guerrilheira, faria jus à herança que lhe legara essa lendária bisavó cujo retrato altivo e valente lhe traçavam as velhas da aldeia, repositório de histórias antigas que desfiavam pelas tardes morrinhentas, para enganar o tédio e o cansaço, quando no celeiro de um ou outro lavrador escolhiam com dedos ágeis o grão, o feijão... (tira pedrinha daqui, tira pedrinha dali) para que no vasto tabuleiro de madeira que lhes pesava sobre os trémulos joelhos ficasse bem limpo o produto das colheitas, pronto a ensacar e entretanto a história surgia para temperar o tédio, enganar o cansaço, fazendo chispar de encantamento as pupilas no fundo das órbitas. E o tempo era outro e o mundo era outro embora vergastado da mesma violência, da mesma revolta, ensombrado pela mesma persistente tristeza.
- Anda, Guerrilheirinha, não deixes pedra que se veja para o patrão se não zangar... - As mãos ágeis ainda infantis de Sabina pareciam esvoaçar sobre a superfície do tabuleiro; separavam o grão da pedra, a pedra do grão.
- Isso, isso, Guerrilheirinha. - Incitavam-na as velhas.
- A vida é guerra. - Sentenciou uma das mulheres. - E na guerra é preciso batalhar. Mas tu és Sabina, a guerrilheira valente; serás como tua bisavó...
- Quem vai no trem? É a Guerrilheira mais o Bailabem. - Chacotearam duas velhas cantarolando, ufanas de suas virtudes, de sua imaculada honra.
Sabina não entendia...
O trem corre aos solavancos.
Bamboleiam-se-lhe os seios, as ancas opulentas... No assento rígido, o menino embalado pelo ritmo das molas chiando numa áspera lengalenga, dorme a sono solto.
Ao longe, como olhos de gato perfurando a escuridão brilha a luz dos candeeiros dos ”montecos” esparsos na planície rasa, indício de que ali latejava vida, que nem tudo era deserto e desespero.
De repente, à direita, num cabeço, uma mancha mais escura, uma vasta mancha circular surgiu impondo o seu compacto negrume ao diluído negro da noite como uma hirsuta cabeleira que o sopro da brisa ligeiramente descompõe. ”São as árvores do poço das moiras”, pensou Sabina e arrepiou-se toda ao recordar... Contara-lhe Pedro Diogo na sua última visita, quando a morte já o farejava, que o poço das moiras era um lugar secreto, mágico talvez, onde possíveis eram todos os desatinos da alma e onde podia vir à tona a violência’das mais desenfreadas paixões.
Estava perto, muito perto agora e a ansiedade apertou-lhe a garganta e o coração, mas depressa se recompôs. Era da família da Guerrilheira: - Quem vai no trem? É a Guerrilheira com o Bailabem. - Ciciou, uma e outra vez para afugentar o medo.
”Por onde andas Manuel Diogo que não chegas?... Perdeste-te nos caminhos da planície, nas veredas de todos os abandonos?...”
A Senhora das Sete Luas, emoldurada nas quatro ripas de madeira de castanho parecia sondar todos os mistérios, minuciosamente.
Em Vila Marfim, último reduto dos Valeperdido era absoluta a solidão.
”Guarda um segredo, a Maya, um segredo que nega revelar-me; bem a conheço. Engole-o sôfrega com todas as ganas, digere-o secretamente, receosa que eu, sempre perspicaz venha a descobri-lo. O que será?”
Isto pensou Sabina com os olhos ainda cerrados, que medrosa foi abrindo para o presente que se restabelecia reconheceu a sala circular vogando na claridade da lua, ouviu a leve respiração de Maya adormecida na varanda, sentiu o suave perfume da flor-das-laranjeiras, mas era como se flutuasse entre aquele momento e o passado. Era como se o tempo não existisse, impossível distinguir o que vivera do que estava vivendo e, naquela noite eterna, cada instante era tão longo quanto os torturados, os exaltados anos que longe se tinham esfumado.
Era ele Manuel Diogo, bem o reconhecia, ali na parede da sala espiando-a da moldura que ostentava o seu retrato como quem se debruça de uma janela que se abre entre a vida e a morte e sorria-lhe ingénuo tal como quando se conheceram. ”Lembras-te, minha Sabina? Lembras-te, minha guerrilheira...?”, se se lembrava... tremia como varas verdes à medida que o trem ia galgando a última légua. Valeperdido estava já tão próximo... Para afugentar o medo pensou na lendária bisavó enquanto dizia entredentes: ”Tenho o sangue da Guerrilheira; não posso recuar. Se me expulsarem regressarei sempre, com punhos, com paus e pedras, com faca e pistola, se preciso for; às boas ou não hei-de obter o que a Simão pertence tal como o Valeperdido me pediu. Sou Sabina Guerrilheira...”
Valeperdido erguia-se solitário num outeiro, quase despido de árvores, a seus pés desdobrava-se a planície, incomensurável, tapete que se estende aos pés dum trono.
Pelas vidraças, pela porta aberta do edifício central escapulia-se uma terna claridade que, projectando-se em redor destacava na semitreva vultos indecisos de mulheres e homens, ganhões, criados, falando baixinho como quem partilha um segredo.
Reagindo ao esticão das rédeas o cavalo estacou relinchando fazendo parar o trem em frente à porta, que por instantes ficou a estremecer como um monstro no estertor da morte.
Sabina levou a mão ao peito, ali onde se escondia o coração receoso. ”E agora?...”, perguntou-se mentalmente. E sem se decidir permaneceu sentada no duro banco que lhe magoava as nádegas observando com olhar vazio as casas, as pessoas que pareciam vogar na claridade morrinhenta das velas e candeeiros que ardiam no interior, despedindo uma luz espectral de fogo-fátuo.
A portinhola abriu-se de repente e uma mão robusta de larga palma e longos dedos estendeu-se-lhe solícita oferecendo-se num generoso gesto.
Como num sonho Sabina recebeu na sua essa mão generosa, como num sonho se apoiou ao braço forte que se lhe oferecia, como num sonho caminhou até à porta sob o olhar atónito dos outros.
Rasga-se ampla a sala de entrada de tecto longínquo de castanho polido, de espessos muros branquejando à luz de múltiplos candeeiros de cobre, colocados sobre colunas e mesinhas dispersas. A atmosfera densa e quente põe-lhe no peito palpitações e nas mãos incontroláveis tremuras. À direita abre-se uma porta para o silêncio fúnebre de um quarto, câmara ardente onde bruxuleiam as chamas de velas. Um odor adocicado a cera derrama-se no aposento cola-se às paredes, aos móveis, às pessoas que vagueiam naquela atmosfera irreal como num universo de pesadelo - homens esticados em seus fatos de casimira preta, mulheres ostentando a elegância dos ”tailleurs” (casaco cintado e saia justa) comprados em Lisboa ou vindos de Paris...
Sabina de vestido de tafetá preto desliza aérea pela sala pontilhada de luzes, amparando-se ao poderoso braço do ”príncipe”. Olhos pousam-se nele, fixam-se olhos nela que num passo miúdo, levemente cadenciado faz baloiçar ritmicamente a saia rodada como se num salão de baile se entregasse às delícias da valsa.
Ri nos olhos dos presentes uma mal contida mofa. As faces dela incendeiam-se de vergonha, sente-se ridícula ao perceber quão descabido é o seu traje para a fúnebre ocasião.
Através da porta vislumbra o enorme corpo de Pedro Diogo estendido na essa. Acabou de vez Pedro Diogo, acabou o cativeiro... Nem alegria nem tristeza sente, só a constatação duma realidade que talvez venha a modificar para sempre a sua vida.
Sentada num canapé, o menino Simão a seu lado, quieto, mudo, Manuel Diogo em pé, atrás como figura tutelar, anjo protector, por largo espaço assim permaneceu, na pose de quem se coloca sob a indiscreta objectiva do fotógrafo.
Rápido corre o tempo arrastando a sua passagem situações, acontecimentos... entretecendo a vida...
Amou-a Manuel Diogo logo ali, bem o sabia, com um amor impulsivo feito de ternura e violência.
Não ficaria o menino Simão sem a sua herança lhe prometeu de imediato e bailava-lhe nos olhos um grito de desespero, o furor da paixão que se abate inexplicavelmente sobre a alma desprevenida.
Finalmente o príncipe chegou, já tanto tardava que tão longa espera começava a esmorecer Maria das Vinte. Veio numa noite enfeitiçada de lua em que possíveis são todos os sonhos. Arrebatando-a, leva-a agora na garupa do cavalo, pela planície fora pela noite dentro, pelo tempo que nunca se esgota.
Segura-se ela à cinta dele porque rápido é o galope, encosta, sensual o peito ao calor das costas musculadas dele... e... e a energia por anos concentrada no âmago do corpo e do espírito explodiu num caminho de argênteas estrelas...
Percorrem os dois amantes a estrada luminosa, rumo ao espaço sideral... o cavalo a galope transpondo as nuvens... voo... libertação.
Acordou, por fim, Sabina do sonho lunar e o cavalo estacou junto às árvores que protegem o poço das moiras. Já tanto tinha ouvido falar daquele lugar encantado que se sentiu simultaneamente atraída e apavorada.
Esgueiram-se ambos de mãos dadas por entre as árvores; o calor da mão dele trespassa-lhe a pele; o primeiro círculo de árvores é constituído por castanheiros frondosos povoados de muitas mil folhas, abrigo de pássaros inquietos na hora da calma. Distanciado está o segundo círculo de seis metros do primeiro, riscam-no troncos magros de pinheiros de agulhas aguçadas, agressivas. Ei-los que já atravessam os nove metros que separam o segundo do terceiro ornado de laranjeiras. ”Em breve saberei como é o poço das moiras”, pensou Sabina.
Aquele lugar era um santuário permitido só a alguns. Talvez ela tivesse a fortuna de ver com os próprios olhos as três moiras, filhas do vizir penteando as longas cabeleiras com seus pentes de ouro à beira do poço, sob o luar, enquanto pranteavam amores perdidos na poeira do tempo.
Era uma vez um vizir que tinha três filhas: Fátima, Yasmina e... não rezava a lenda o nome da terceira, a mais nova das irmãs.
Tinham o rosto claro como a Lua, os cabelos negros como o ébano.
Um dia quis o ”Fatum” que, debruçando-se nas ameias do castelo adivinhassem ao longe, na vastidão sem rumo da planície os vultos airosos de três cavaleiros.
Levantou-se um vento bravo que sopra do lado de lá do ”Estreito” e arrasta na sua cauda todas as moléstias e todas as paixões.
As capas dos jovens cavaleiros erguiam-se no ar poeirento como asas - era uma asa vermelha, uma asa branca, uma asa negra.
A paixão fulminou naquele instante as três moiras donzelas e perturbou-lhes o entendimento para sempre.
- Quero o cavaleiro da asa vermelha. - Exigia Fátima ao pai.
- Traz-me o cavaleiro da asa branca. - Suplicava Yasmina. - E a terceira, a mais bela das três, mas de cujo nome não reza a lenda, deixando saltar as lágrimas gemia baixinho:
- Para mim o cavaleiro da asa negra, senão morrerei. E o vizir que amava as filhas mais do que ao Sol que tudo alumia, mais do que à clara Lua que inunda de prata os campos desertos não sabia o que fazer.
- Mas se são cristãos, minhas filhas, inimigos de Maomé... Não vos posso socorrer.
- Quero o da asa vermelha...
- Traz-me o da asa branca...
- Para mim, o da asa negra, o mais belo de todos. Repetiam lânguidas, sem cessar, as três meirinhas. E o pranto escorria-lhes dos formosos olhos e do tenro peito se soltava o magoado suspiro, durante dias, durante meses, durante anos...
O pai, que lhes não podia valer, entristeceu até ao silêncio até ao desespero. Veio o vento que sopra do lado de lá do ”Estreito” que com sua mão ardente espalha todas as moléstias... e Alá sorriu-lhe do seu etéreo assento.
Livres ficaram as três meirinhas para espreitar das ameias o rasto dos três cavaleiros, de uma aurora a outra aurora, duma Primavera a outra Primavera e assim escorreram os dias, os meses, os anos; mas na lonjura nunca mais se ergueram as três asas magníficas. E as donzelas moiras abandonaram o castelo, seguidas de aias e escravos e foram de deu em deu, de deu em deu; mas dos cavaleiros nem novas nem mandados.
Ordenaram então que se assentasse arraial junto a um poço de água fresca e que aí se erguesse um rendilhado palácio de rasgadas ”ventanas” e largos pórticos. Nunca se fechavam as ”ventanas”, nunca se cerravam os pórticos dia e noite, noite e dia, não se desse o caso que errando na planície deparassem os três cavaleiros com o esplendoroso palácio e nele procurassem guarida. E elas, pelas noites de Lua Cheia quedavam-se junto ao poço penteando os cabelos para entreter a espera.
E passaram os dias e passaram meses e escorreram anos na amplidão dos séculos e as moiras donzelas fiéis, no seu posto, continuam a esperar...
O dente aguçado da ruína devorou o palácio com seus pórticos, suas ”ventanas”, seus balcões, seus eirados. Ficou o poço no deserto da planície e a lenda do amor das três moiras irmãs por três cavaleiros que nunca chegaram a conhecer.
Um dos Valeperdidos, talvez o primeiro mandou plantar à volta do poço três círculos de árvores. A lenda perdurou; o local envolveu-se de mistério, tornou-se quase tão inacessível como um santuário onde uma pitonisa discorre sobre os destinos dos homens.
Era estonteante o adocicado odor da flor-de-laranjeira. Penetrava-lhe as narinas, navegava-lhe no sangue inebriando-a, conduzindo-a para além do espaço, para lá do tempo.
Revela a luz da Lua o vasto círculo ponteado de árvores com o poço ao centro como um olho gigantesco e líquido que perscruta o visível e o invisível; uma aragem morna e perfumada faz estremecer as folhas das árvores, acaricia o rosto de Sabina, o longo pescoço, os braços carnudos; enfuna-lhe a saia e toca-lhe ao de leve na base do ventre como palma escaldante duma mão sensual.
Ei-la no ”santo dos santos” guiada pela mão segura de Manuel Diogo que a mira nos olhos com a ardência de todos os estios. Um calor intenso percorre-lhe as veias, alastra-se-lhe pelo corpo, queima-lhe o ventre que se contrai. Oscila entre um estranho e obscuro sofrimento e a sensação indescritível de exaltado prazer.
És meu, Manuel Diogo. - Exclamou extasiada.
Não ouve o lamento das moiras nem seus cânticos doridos. Sobre a esteira de alfazema que cobre a tampa do bocal do poço, ali, no centro do templo, no centro do universo sonha estrelas, planetas, constelações e a Lua tão próxima que parece beijá-la pelos lábios de Manuel Diogo.
No rosto da jovem cintilam mil estrelas em seus olhos se reflectem a Ursa Maior e a Menor - toda a Via-Láctea...
O leito de alfazema rescendia. E em Sabina menina, finalmente mulher se cumpre o sonho das três moiras donzelas - Fátima, Yasmina e a terceira de cujo nome não reza a lenda.
Já tantas luas passaram e Manuel Diogo que não chega.
Sabina continua na espera...
Enfim, chegou, cansado do galope, coberto de poeira como que se para a abraçar tivesse atravessado montes e vales, florestas habitadas de fantasmas, desertos escaldantes.
Nos olhos largos assomavam-lhe desencontradas emoções: esperanças, desesperos.
Tantas luas passaram, meu amor e tu ausente. - Lamentou-se Sabina. E ele estreitando-a nos braços, beijando-lhe os olhos luminosos, as narinas palpitantes, contou-lhe da súbita doença de Maria Helena, do corre-corre do Alentejo para Lisboa, das palavras desanimadas dos médicos, da languidez que dela se havia apoderado, da morte que já estugava o passo para a arrebatar. Lamentou a próxima viuvez e sobretudo a orfandade de seus filhos.
Sabina consolou-o como só as mulheres sabem consolar o desgosto de um homem, tomando-o nos braços como se de um filho se tratasse. Ele parecia envergonhado por assim ostentar a sua fragilidade; mas não resistindo a tanta ternura abandonou-se por fim nesses braços maternais e, exausto, deixou descair a cabeça sobre o seio da amada e como uma criança adormeceu.
Veio então outro tempo porque muitos tempos tem a vida e aquele outras tantas.
Uma tarde, depois da morte de Maria Helena, ainda o remorso pungia no coração de Sabina (teria ela sido a causa indirecta dessa morte?), um carro de parelha parou à sua porta. - Vamos, Sabina. É fazer as malas. - Disse-lhe Manuel Diogo. - De hoje em diante serás a minha companheira.
Sabina obedeceu cegamente, como sonâmbula cumpriu a ordem que tão energicamente lhe era dada, sem discutir prós ou contras arrumou numa arca alguns dos seus haveres e seguiu-o.
A partir daí viveu uma época doirada por entusiasmos e esperanças tendo por norte aquele amor arrebatado que nem os estios secavam, nem as copiosas chuvas de inverno conseguiam acalmar.
A paixão ardia como uma fogueira no alto de uma colina constantemente ateada pela brisa e dir-se-ia eterna a sua chama, porque Sabina por ela velava para que se não extinguisse.
E passaram um, dois anos, dez anos... Quem vê passar o tempo quando a vida explode de ternura, se preenche de sôfregos beijos e de risos de crianças? Quem sabe se hoje é segunda ou quinta-feira de um ou de um outro ano quando o sonho se cumpre? Sabina era feliz e a felicidade leva-nos a concentrarmo-nos no nosso universo egoisticamente, por vezes até à perversidade; o tempo passa e não damos por ele, os outros passam e são sombras que mal distinguimos.
Estas coisas ia pensando Sabina vagamente, dispondo com dedos ágeis flores numa jarra: Sabina elegante, Sabina, vestida de seda da China, a massa compacta da cabeleira negra iluminada por um travesso raio de sol; Sabina sensual, Sabina de lábios de carmim, Sabina de discreto sorriso, Sabina distinta deslocando-se pela sala num passo leve de bailarina, Sabina tão diferente de havia anos; perfeita metamorfose operada pela vontade de Pigmalião.
O amor de Manuel Diogo aquecera-a como a capa de S. Martinho que cobre o mendigo, o resto era obra de seu querer e do apoio de Filipe, querido amigo, que lhe havia ensinado que ser mulher não é só amar e servir.
Vinha de tempos a tempos a Valeperdido. Chegava de surpresa, carregado de prendas que distribuía entre sorrisos e o relato de novidades dum mundo distante.
Filipe Diogo de Valeperdido era belo, de uma beleza, nimbada pela inteligência, curioso, desinteressado, culto, algo excêntrico. Repartia a vida por Lisboa e Paris, Londres e Nova Iorque; enriquecia-se no contacto- com artistas e intelectuais, indiferente aos negócios da família assim ia despendendo a sua renda anual sem o mínimo sobressalto. ”Para hoje há, amanhã Deus dará”, costumava observar convicto de que uma divindade benéfica por ele sempre zelava.
Manuel Diogo considerava-o um tresloucado, um irresponsável; mas Sabina não era da mesma opinião: ”Tão delicado o senhor Filipe, tão atencioso, tão sabedor...”, dizia de si para si os olhos brilhantes de admiração.
Por vezes instalava-se em Valeperdido. Levantava-se de madrugada e partia pelos campos para espreitar o nascer do sol, conversar com os camponeses. A todos dirigia a palavra, ao almocreve, ao ceifeiro, ao abegão, à Gertrudes que forneava para os gastos da casa... para todos tinha um sorriso, um gesto amigo porque todos eram homens e mulheres com suas lutas, seus desesperos, suas paixões, como costumava dizer.
Interessou-se também por Sabina; vislumbrou-lhe no olhar uma voraz curiosidade mesclada de tristeza quando, pela hora da sesta, instalado numa cadeira de repouso, à sombra do alpendre se predispunha a entregar-se horas a fio ao voluptuoso deleite da leitura. Foi quando ela lhe perguntou timidamente:
- Que livro é esse senhor Filipe? Tão grande!
- É um livro de Tolstoi, Guerra e Paz.
- E quem é Tolstoi? Não parece nome de gente. - Observou.
- Tolstoi foi um grande senhor, um grande escritor russo que também se interessava pelos camponeses da sua terra e que acabou por morrer como um deles, na extrema pobreza.
- O senhor Filipe também tem pena dos camponeses, não tem? - Ela limitou-se a esboçar um enigmático sorriso.
Pouco a pouco, dia após dia, a conversa entre ambos foi-se estabelecendo, ampliando. Filipe falava-lhe de como se vivia para além da planície, das grandes cidades a pulular de gente, da grande miséria, da extrema riqueza, da injustiça que isso representava. Também lhe falava sobre livros, autores, artistas, pintores, músicos como se desejasse saciar aquele espírito ávido de saber.
- Sabes porque viajo, Sabina? - Perguntou-lhe um dia.
- Ela não respondeu, ficou para ali a olhá-lo como que apatetada.
- Então digo-te porquê. É que estes largos espaços, a aparente liberdade que transmite a vastidão da nossa terra, eu, pessoalmente, sinto-a como grilhões.
- Senhor Filipe, não entendo bem as suas palavras, mas pressinto o que quer dizer. - Balbuciou Sabina e uma lágrima rolou-lhe pela face morena.
- Que pena Sabina, que pena tenho de ti. - Observou o mais jovem dos Valeperdidos.
- Porquê, senhor Filipe.
- Porque tens potencialidades e nunca te permitiram desenvolvê-las.
- Que posso fazer, senhor Filipe? Que mais posso eu querer? Sou a companheira de seu irmão, faço de mãe dos filhos dele. Aqueço-lhe o coração e o dos meninos...
- Isso não chega. - Afirmou Filipe com um semblante muito sério. - Porque... porque tens muito mais para oferecer aos outros e a ti própria que também és gente.
Filipe formulava o que já o coração lhe dizia e foi assim que um desarvorado desejo de conhecer, de aprender mais e mais tomou posse de Sabina. Desejava ler muito, todos os livros se possível, perceber factos, discernir situações, pensar com a sua própria cabeça sobre todas as coisas, sobre o mundo.
- Que queres tu de prenda de anos? - Perguntou-lhe Manuel Diogo em vésperas do seu aniversário.
- Quero aprender, quero instruir-me.
Ele não conseguia disfarçar o espanto; quis recusar, mas não teve coragem para o fazer. Embora contrafeito acedeu.
Daí em diante D. Cacilda, professora, passou a viajar de breque de segunda a sexta-feira, da aldeia para Valeperdido e ao cabo de alguns meses contava pasmada quão brilhante, quão extraordinária era a inteligência de Sabina, que tudo queria aprender que tudo assimilava e de tal maneira que em breve a discípula ultrapassaria a mestra. Tudo lia Sabina, o que a professora aconselhada, o que Filipe aconselhava, enfim, tudo o que estava ao alcance de sua mão. E um dia sentiu-se finalmente pessoa, e questionou-se sobre o que fazer com o que tinha aprendido; sentia a necessidade de transformar em dádiva o que sabia.
- Ouve Manuel Diogo - balbuciou reclinando-se sobre ele quando, como uma tocha ardente o desejo parecia incendiar a treva do quarto. - Quero ensinar os meninos, os filhos dos ganhões que andam por aí perdidos pelas veredas sem eira nem beira, sem brinquedos, sem afecto e nem uma letra conhecem... Gostaria de iluminar-lhes a mente.
- Dá-me uma escolinha .para ensinar os meninos, Manuel Diogo! - Quase suplicava.
Ele carregou o cenho... Embora não soubesse explicar porquê sentia-a escorregar-lhe, deslizar-lhe como uma enguia entre as mãos poderosas:
- Que estranhos desejos tens tu, mulher!
- Mas em breve sucumbiu às mãos que lhe punham fosforescências na pele, aos beijos que de tão profundos lhe roubavam o fôlego e a coragem.
- Que mania! - Ainda disse, embora sem convicção e acrescentou: - Isto são influências de Filipe... - Mas já a vontade de recusar lhe esmorecia...
- Está bem. Se assim o desejas... assim será.
E mais uma vez Sabina ficou ciente do poder que possuía, só porque era bela e mulher.
Passados eram dez longos anos, dez curtos anos, talvez... Fora vendo crescer Nuno Duarte, Filomena, Simão.
Nuno Duarte, o mais velho fez-se homem, enamorou-se da doce Elisinha e, porque o namoro era do agrado do pai, depressa se despacharam papéis se leram os banhos e a festa estalou em Valeperdido.
Passados doze meses, num Maio de seara madura, uma criança caiu no mundo com um extraordinário grito e uma última lágrima desceu dos olhos embaciados da Elisinha. Dia de extrema alegria, de pungente tristeza em que Flor de Maio veio ao mundo... Sabina pressentiu que estava a mudar a roda da fortuna que em breve a desgraça havia de abater-se sobre os telhados de Valeperdido.
Filomena e Simão floresciam; a ela alteiam-se-lhe os seios, arredondam-se-lhe as ancas, alagam-se-lhe de sonhos os olhos claros; um loiro bigode sombreia os lábios finos de Simão que se havia tornado num robusto rapaz de pernas tão longas como as de um gigante.
- É tal e qual o retrato do pai. - Comentava Romana com voz trémula dos muitos anos. Mas não era bem assim. Faltava a Simão a rijeza, a determinação, o brilho, por vezes cruel que cortava os negros olhos de Pedro Diogo. O olhar do filho era aguado, quase diáfano, reflectindo antecipados cansaços, indecisas esperanças, um destino que não controlava. ”Porquê?”, perguntou-se Sabina colocando noutra jarra o esplendor dum ramo de rosas rubras e o perfume alastrou por toda a sala como se a brisa soprasse dum jardim...
O rectângulo da janela emoldura um retalho de planície, fera arqueando, aqui, ali, o dorso eriçado de restolho, até à barra inatingível do poente.
Ao longe, a aldeia, uma mancha branca na paisagem, uma dissonância na monotonia da amarelada vastidão.
Sabina semicerrando os olhos observa a tarde que cai, a azáfama dos criados nas ruas do ”monte” - aqui se caia. uma parede, mais adiante Joana, a mouca, que Manuel Diogo guardava sob sua protectora asa, por ter acompanhado sua mãe vinda de terras do Norte para casar com seu pai, atira pão aos pombos que voltejam inquietos sobre a sua cabeça e ela, assustada ri nervosamente, pois os sons não a alegram, nem afligem por não existirem para ela, só o movimento tem o poder de pô-la em sobressalto; Manuel Joaquim o carpinteiro vai desmontando o palanque onde no dia anterior se instalaram os convidados de Manuel Diogo; suspensos do toldo ainda lá estão os balões oscilantes num festival aéreo de azul e vermelhos, gritando à luz do Sol que se despede.
E Sabina ao olhá-los sentiu-se triste nesse rescaldo de festa e deu-se conta que a alegria era tão efémera quanto um balão que inesperadamente estoira durante uma brincadeira de crianças. ”Que disparate!” Não encontrava razões para tal melancolia porque razões de sobra tinha para estar contente: Filomena havia cumprido dezoito anos no dia anterior e para ela fora extraordinário ajudar a preparar, participar na celebração dessa data, porque ela era a sua menina, a muito amada filha do seu coração...
Ainda ”ontem” caracoleava no triciclo pelas ruas do ”monte” com Simão no seu encalço... agora era uma jovem mulher nos seus esplêndidos dezoito anos. Que orgulho!
Também Simão se tornara um homem e ela, sua mãe, quase não dera por isso. ”Simão e Filomena, Filomena e Simão...” - Repetiu baixinho como se os dois nomes que identificavam dois seres fossem inseparáveis. Na verdade, inseparáveis tinham sido desde a meninice: nas brincadeiras, nos estudos, no riso, no choro, nas zaragatas, que também as tinham.
Assim partilharam a infância.
- Ah, aqueles dois! - Exclamou com alguma estranheza. - Inseparáveis!...
E foram crescendo, entraram na adolescência; eram belos como deuses que curiosos descem ao mundo dos homens para dele provar todo o mel e todo o fel.
O apetite pelo conhecimento em ambos se manifestava com a mesma avidez; ela, entusiasta das artes, amava sobretudo a pintura.
O tio Filipe ateava aquele entusiasmo com livros de reproduções das obras dos grandes pintores.
Debruçava-se, então, absorta, esquecida do mundo sobre o espectáculo de luz e cor que são as obras de Rafael, de Vinci, Renoir, Van Gogh..., o olhar perdido de deslumbramento, o semblante corado de emoção.
Muito cedo começou a manejar a paleta e os pincéis:
- Quero ser pintora. - E era inabalável a convicção com que isto dizia.
- Eu hei-de ser cientista. - Respondia Simão à pergunta que ela só mentalmente formulava.
As orações de Sabina subiam ao seu Deus para que assim fosse.
Empenhou-se Filomena na criação dum quadro, devia andar pelos dezasseis anos; era um óleo, retrato fantástico de uma senhora, espécie de deusa pagã com semblante de Madona.
- Estranho quadro aquele!... - Exclamava Sabina, certa de que estava só e assim não haveria a possibilidade de troçarem dela por falar sem interlocutor.
Cumprira dezoito anos a sua Filomena, menos ano e meio que Simão que se adiantava nos dezanove. Muito em breve teria vinte anos, o seu filho...
94
Ambos haviam concluído o curso dos liceus com notas de meter inveja a qualquer um.
Prometera-lhe Manuel Diogo que Simão continuaria os seus estudos em Lisboa; afastar-se da família, ajudaria a formar-lhe o carácter, torná-lo-ia mais determinado, menos terno, virtude que, para o lavrador do ”monte” de Valeperdido tomava, nos homens, contornos de defeito.
Quanto a Filomena, estudar Belas-Artes isso já fiava mais fino. Considerava o pai que uma mulher deve ter educação esmerada, sim senhor - um pouco de música, um pouco de bordados, de francês, de pintura também (porque não?); talvez algum latim para deslumbrar em sociedade; mas estudos superiores não lhe parecia a ele, Manuel Diogo de Valeperdido, coisa de que sua filha necessitasse. Era rica, havia de arranjar marido que a merecesse, respeitasse e honrasse. Seria dona de sua casa, de seus criados, de seus haveres... Que mais poderia ambicionar uma mulher mesmo nascida na abundância?!
Que pintasse, mas nada de cidade grande, de escolas de arte, de meios boémios; que pintasse por puro prazer, sem ambições de carreira pois não necessitava de ganhar o sustento e que ostentasse orgulhosa a sua obra nas paredes de sua casa e recebesse a admiração de familiares e amigos.
Assim tinha de ser, assim havia de ser, assim traçava firmemente, linearmente Manuel Diogo o destino da sua única filha como quando pegando numa varinha de marmeleiro riscava o lugar propício para a plantação dum renque de oliveiras que haviam de crescer, tornar-se folhudas por sóis e geadas, por séculos fora...
Aquela maneira que Manuel Diogo tinha de dispor da vontade e da vida das pessoas tal como dispunha das léguas de terra que possuía e explorava pelo braço e com o suor dos ganhões e jornaleiros desencadeava em Sabina uma soberana irritação.
Conhecia bem Filomena, aliás ninguém como ela sabia da rebelde força de seu carácter e pressentia a luta que breve se havia de desencadear entre pai é filha. Filomena queria ser pintora, nada nem ninguém a demoveria de tal propósito; a vontade de Manuel Diogo também era inflexível como tronco de azinheira...; se a filha se rebelasse o pai seria inexorável - era assim o homem que ela, Sabina, amara desde menina: ”... hás-de ser meu, Manuel Diogo”. Quisera o destino que assim fosse, que tal acontecesse; mas a paixão que tolda o entendimento tinha-se metamorfoseado com o decorrer dos anos num grande, mas lúcido amor o que lhe permitia conhecê-lo até à mais íntima fibra do seu ser. Quando se sentia traído, Manuel Diogo ficava tomado de uma raiva que o enlouquecia e como um furacão tudo, à sua volta, ia demolindo.
Ainda na véspera do aniversário de Filomena dera mostra desse traço terrível de seu carácter. Pobre Chico Canito!
Andava o maltês rodeando o ”monte”, porque o Estio inclemente queimava o restolho, secava rios e fontes, torturando de sede homens e animais quando Sabina deparou com ele e o abrigou à sombra do alpendre para que se protegesse do sol assassino e lhe matou a secura da goela com uma púcara de água que resumia fresca na porosidade do barro vermelho.
O pobre esvaziou sôfrego o divino líquido e limpando, com um velho lenço encardido, o rosto pingando suor, pediu um tanto mais aliviado: - E qualquer coisa para comer, não se arranja, patroa?!
Trouxe-lhe Sabina metade de um pão e um pedaço de toucinho, que retirou da salgadeira e, por instantes permaneceu suspensa a olhá-lo matar em largas dentadas o bicho da fome que o devorava. Recordou vagamente (tão longe ia isso...) que também um dia sofrera a tortura de não ter que comer. Os pensamentos atropelavam-se-lhe fugidios... outros passavam ainda pelo que já tinha passado. Lançou um rápido olhar para fora, que se alongou para além dos limites do ”monte” e divisou ao longe o branco e silencioso casario da aldeia. Ali viviam os ”seus” e para eles nada havia mudado; continuavam a labuta de seus pais, de seus avós, curvados sobre a terra que lhes não pertencia e que com frequência lhes sonegava o pão quotidiano.
Os ”consertados” ainda tinham comedias: uns alqueires de farinha, de feijão e grão, umas bóias de toucinho, para enganar a fome mesmo quando não havia trabalho de ceifa e debulha... ou quando a terra repousava em ”poisio” como mulher cansada de muitos partos; mas os que viviam da jorna, amargavam a fome por longos estios e chuvosos invernos. E ela, ali, com o seu homem, senhor de tanta terra rodeada de conforto, arrotando fartura. O aguilhão do remorso começou a espicaçar-lhe a consciência. Sentiu-se traidora por ter abandonado os ”seus”.
Sacudiu a cabeça ornada de espessas e lustrosas tranças como que para afugentar pensamentos importunos. Amava Manuel Diogo e em seu entender o amor tudo justifica e lançou um terno olhar ao maltês que, de cócoras ia retalhando com a lâmina da navalha o untuoso toucinho sobre o fofo, esburacado, pão de trigo e foi à sua vida...
Uma hora tinha passado talvez, quando um grito formidável se ergueu no silêncio fazendo vibrar o ar parado.
Sabina, que estendia sobre a mesa de mármore da cozinha a massa já finta para os bolos folhados, num vaivém que lhe punha nos seios e nas ancas eróticos ritmos, largou sobressaltada o rolo de madeira que deslizando pela superfície lisa da mesa, foi estatelar-se no lajedo.
Vozes exaltadas, frases como ”apanha que é ladrão” quebravam a paz da hora da sesta. Sabina acorreu à porta e à crua luz do sol viu Chico Canito dobrado sobre os bebedouros dos muares, enquanto dois criados lhe prendiam atrás das costas as mãos trémulas de susto. A seu lado, hirto, solene como um deus castigador, Manuel Diogo enrolava lentamente na mão uma extremidade da correia das calças. A ira assomava-lhe nos olhos como se tivesse possuído por um demónio cruel, mas os lábios comprimiam-se e nem um som deixava escapar.
- O que aconteceu? - Perguntou Sabina com a voz embargada pela angústia.
Sobre a pedra dos bebedouros sem ousar mexer um único músculo Chico Canito gemia baixinho: - Perdoe, lavrador; perdoe a este pobre...
- Mas não te tinham dado de comer? Não te dão sempre com que matar a fome quando por aqui passas? Não te acoitamos quando precisas? - Questionava-o Manuel Diogo, a voz enrouquecida pela cólera que já lhe toldava o entendimento.
- Sim, lavrador. - Concordou o maltês.
- Então... porquê? Responde. - Exigiu autoritário o senhor de Valeperdido. Numa voz choramingas o homem lá se foi explicando:
- Era para Maria Bonita. Quis roubar o frango para ela... Pariu ontem um menino e nem caldo de galinha, nem ovo para a açorda, nada tem de sustância para comer. - De súbito pareceu surgir-lhe no peito uma inusitada coragem que se lhe revelou no olhar sério e firme com que fixou o lavrador e erguendo a voz perguntou num tom de desafio:
- Se não come, como há-de ter leite para o menino? Diga-me, lavrador?!
Perdoaria o lavrador de Valeperdido a pilhagem da sua capoeira, mas nunca por nunca que um maltês, que frequentemente alimentava o interpelasse daquela maneira, o fixasse nos olhos com tanta ousadia.
- Ah! Não te arrependes, traidor? - E sem mais palavras ergueu o braço e fez estalar o cinto de couro sobre as magras carnes de Chico Canito, repetidamente. A cólera fazia-lhe faiscar os olhos como relâmpago que se acende em céu de trovoada; espuma fervilhava-lhe na comissura dos lábios.
Os criados arredaram-se uns metros formando um semicírculo e, cabisbaixos ficaram, observando em silêncio o exemplar castigo.
Uma onda de indignação avermelhou a face trigueira de Sabina: - Pára Manuel Diogo. Pára - Ordenou galgando a curta distância que a separava da cena e com uma força hercúlea que arrancava, não sabia de que recônditos das entranhas segurou-lhe o braço possante que de novo se erguia, imobilizando-o.
Manuel Diogo olhou-a espantado como se acabasse de acordar dum sonho ruim e deixando cair a correia no chão afastou-se pela rua do monte para se perder na vereda que conduzia ao vasto e achatado ventre da planície...
Era assim, aquele homem - doce como o mel, áspero como as folhas eriçadas das piteiras, capaz de uma extrema ternura e de requintes de crueldade até quase à perversão. Por isso Sabina temia por Filomena e não vislumbrava nenhum futuro para o sonho da sua menina.
Ergue-se na tarde um ventinho matreiro e as ferragens onde se apoiava o tecido azul do toldo que no dia anterior resguardara as ”augustas” cabeças dos convidados para a festa de aniversário de Filomena rangeram como um esqueleto desconjuntando-se... e o vento cresce já um tanto enraivecido, fustiga as copas das árvores, zune no buraco das fechaduras, despedaça os balões coloridos que rebentam como tiros. O sol esconde-se no luto duma nuvem, toldam-se os ares, a planície escurece de susto ,sob os céus conturbados. ”Vem aí chuva”, disse-se Sabina; ”e eles que não chegam”.
Partira Manuel Diogo na charrette para a estação, já lá iam duas horas bem contadas. Fora buscar Filipe, aquele irmão que, segundo ele, nada fazia como os outros. Escusara-se à festa de aniversário da sobrinha porque não tinha feitio nem gosto para tais veleidades. Não tinha, portanto assistido ao desfile que com tanto orgulho o irmão tinha preparado.
Esperando, circunspecta, a tempestade que se anunciava nos silvos do vento Sabina revia a cena: desfilavam cavalos de várias raças em frente ao palanque donde dezenas de olhos os admiravam cobiçosos e também rebanhos lanzudos acompanhados de pastores e cães, e vacas leiteiras de raça holandesa e por fim, ó céus!, o tractor e aquela máquina que por artes de um demónio qualquer uma mente tenebrosa havia inventado - a ceifeira-debulhadora. Todas as bocas se arredondaram num oh! de admiração perante o monstro que se deslocava, solene, ameaçador sobre os rodados. Palmas ecoaram no silêncio fazendo voar de susto os pássaros alcandorados nas árvores próximas; Manuel Diogo cresceu de orgulho e na consideração dos presentes. Só o coração de Sabina se encolhia constrangido; estava ciente de que aquela máquina havia de roubar o pão a muitas bocas, ao substituir muitos braços, muita gente havia de cair no desemprego; mas nisso quase ninguém pensava, de olhos pregados no monstro espectacular bendiziam as maravilhas da técnica, do progresso...
Filipe escusara-se delicadamente a assistir à pomposa celebração dos dezoito anos da sobrinha; participar em tais eventos não estava em seu feitio, avesso que era à ostentação da riqueza sobretudo naquela terra opulenta para alguns e para quase todos tão avara. O seu coração generoso não consentia que partilhasse naquilo que considerava uma afronta aos que nada possuíam. Chegava pois, com um dia de atraso considerando que ”se as festas se fazem das vésperas” também possível é fazê-las no dia seguinte. Vinha não para constatar ou contar os rebanhos, os cavalos..., propriedade dos Valeperdido, mas para abraçar sua sobrinha que tanto se lhe assemelhava e desfrutar do seu alegre convívio, da sua saborosa conversa pelos intermináveis serões.
Sabina afligia-se porque os dois irmãos tardavam a chegar e já a penumbra ia sorrateiramente ocupando o espaço da luz. Lançou o olhar para longe, para a estrada deserta que aos trambolhões descia a colina e onde se adensava a treva varrida de quando em vez pelo clarão dum relâmpago.
De súbito, lembrou-se que Filomena e Simão tinham saído para um passeio a cavalo. ”Inseparáveis aqueles dois!” Mas anoitecia e escusos eram os caminhos da planície.
Estremeceu de receio: - Que Deus os guarde. - Sussurrou em tom de prece.
A noite crescia assustadora como um pesadelo. Ensombrava-se-lhe o coração de presságios e para os afugentar recuou uma vez mais ao dia anterior, ao feérico baile que culminou os festejos do aniversário da Fifi.
Lá estava meio mundo, de Beja, de Évora, de Lisboa. Presentes todos os grandes senhores, os poderosos... Quem daquele meio recusaria um convite de Manuel Diogo?... Quem tal ousaria?
O lavrador de Valeperdido tudo fizera para bem receber e assim, um gerador comprado para o efeito fez acender mil lâmpadas como mil estrelas... Na vasta sala onde floresciam rosas e jasmim, depois do lauto banquete de finas iguarias vindas de Lisboa e do estrangeiro, pares voltejavam ao ritmo embalador da valsa.
Faiscavam as múltiplas cores das sedas dos vestidos das senhoras. A ternura dos azuis, dos rosa, do lilás opunha-se à austeridade elegante dos smokings.
Dir-se-ia Filomena, uma das Três Graças, a mais bela de todas. Deslocava-se aérea como se levitasse, a carnação ebúrnea, o olhar cintilante de secretas paixões... Do cetim rosado do vestido despediam-se reflexos que lhe afogueavam o pescoço elegante, o colo desnudo como quando um tímido raio de sol nascente vem acariciar um busto de alabastro e sorria com um sorriso de espontânea sensualidade numa inconsciência de deusa passeando distraída por entre simples mortais.
Nos braços fortes de Simão que a conduzia, esvoaçava
- era um pássaro embriagado pela vertigem do voo, suspiro de onda morrendo na praia e nem reparava nos olhos dos homens que se incendiavam ao vê-la passar, toda ela ritmo, envolta na música, esquecida de si.
Foi então que Sabina percebeu aquele inconfundível fulgor que se desprendia dos olhos de ambos. Uma espécie de pânico esmagou-a nos braços como se estivesse presenciando antecipadamente uma inevitável tragédia.
O jovem par dançava, dançava noite dentro; só por cortesia Filomena concedeu a graça de uma dança ao filho do Dr. Mateus, para regressar quase de imediato aos braços de Simão.
Em pé, a um canto da sala o lavrador da Quinta Nova, quarentão robusto, bem conservado fingia-se atento à conversa do lavrador do ”monte” da Coruja; mas, de quando em vez relanceava os olhos pelo salão procurando sofregamente o vulto volátil que rodopiava amparado pelos braços atléticos de Simão.
Manuel Diogo esforçava-se em atender todos os convidados e ia percorrendo a sala, sorrindo à direita, à esquerda, dizendo uma palavra simpática a um cavalheiro aqui, ali, um galateio a uma senhora... assim ia desempenhando seu papel de anfitrião para que o sucesso galardoasse aquele dia festivo; por isso não dava por nada...
Um trovão ribombou poderoso e cavo mesmo por cima dos telhados e Sabina acordou sobressaltada do sonho em que se perdia e olhando através dos vidros viu a noite despedaçar-se na mão da tempestade. Tinha começado a chover em grossas bátegas que encharcavam a terra. Um relâmpago ziguezagueou no céu expulsando a treva por instantes... e... e... Sabina viu, mesmo ali, ao alcance de seu olhar, sob o telheiro em frente, resguardando-se da chuva um vulto, dois vultos, um homem e uma mulher que esquecidos nos braços um do outro, nos lábios um do outro se uniam num longo, interminável beijo - Simão e Filomena.
A lâmina do punhal relampejou no escuro o seu clarão sinistro. Crescia-lhe descomunal entre os dedos como se deles fosse o prolongamento e era raiva e era ódio e vingança também.
Sabina levantou o braço, alto bem alto para que fosse mais violento o desferir do golpe. O seu corpo tremia fustigado por desencontrados sentimentos. Balançava-lhe entre o amor e o ódio, o desespero e a comiseração. Por terra o corpo inerte de Manuel Diogo. Ou seria o Bailabem? Confundia-se-lhe o presente com outras realidades: a bisavó Antónia Guerrilheira debruçava-se qual divindade vingadora sobre o corpo do amado que a traíra. A Senhora das Sete Luas passeava-se pela sala circular arrastando pelo soalho a cauda fremente do seu manto azul ferrete e murmurou como num lamento: - Sabina... Sabina... Sabina. Mas Sabina não se reconhecia, confundia-se-lhe a identidade numa amálgama de sonhos e recordações. Um impulso destruidor tomava-a, arrastando-a como um ciclone que arrebata o mundo na palma da mão. A lâmina brilhava o seu reflexo de morte; o corpo do homem expunha-se impotente sobre o tapete à fúria assassina. O braço era uma garra pairando no ar à espera do momento azado para o ataque.
Então, a ”Senhora” interrompeu de súbito o seu passeio sem sentido e encarando-a, fixou-a bem fundo nos olhos, tão penetrantemente que uma dor inaudita a rasgou de alto a baixo levando-a a emitir um grito que se ergueu nos ares tal último lamento de um animal ferido de morte... e a Senhora das Sete Luas segurando-lhe no braço que em breve se havia de abater sobre Manuel Diogo abandonado sobre o tapete despertou-a para o presente: - Não és a Guerrilheira; és Sabina... Sabina... Sabina...
O grito era pleno de intenções; continha todas as mágoas do mundo, todos os desesperos, todas as lágrimas que a vida arrecadou. Apoderou-se da noite; fez explodir o silêncio. Era um grito de mulher de outro tempo, deste tempo, de todas as eras clamando por justiça.
Sobressaltou-se o coração de Maya que ao erguer-se tropeçou na manta que a cobria e num rompante entrou na sala: - Que tens, Bina? Que foi? - Perguntou aflita.
Sabina descerrou os olhos cujo brilho alucinado denunciava uma total desorientação no tempo e no espaço. Foi a Senhora das Sete Luas. - Confidenciou baixinho como que receosa que mesmo presa na sua moldura ela a ouvisse.
- Disparate, Bina. Estavas a sonhar. Foi um pesadelo, nada mais.
- Talvez. - Aquiesceu. - Mas seja como for esta noite é muito esquisita. Têm-me vindo coisas à cabeça... o passado, sabes, o longínquo passado que pensava já esquecido...
- Nada se esquece completamente, Bina. Sabes isso tão bem quanto eu. E assim é que está certo. Se esquecêssemos tudo perder-se-ia a maior parte de nós, não é verdade? Não seria bom. Não achas? - Arrazoou Maya, sentando-se num tamborete de pele de carneiro juntinho a ela e, pegando-lhe na mão insegura, com a outra ia-lhe alisando os cabelos um tanto desgrenhados pela luta que acabava de travar. Ficaram ambas num silêncio cúmplice enquanto a Lua continuava a viajar no firmamento. Foi quando Sabina, já mais calma comentou:
- Esta noite parece não ter fim. Não concordas, Flor?
- Maya um tanto alheada respondeu: - Talvez... - E como quem acaba de fazer uma descoberta acrescentou: - Talvez porque estamos na expectativa da chegada deles, sobretudo de Filomena. Há quantos anos!... - Suspirou porque não ousava verbalizar o que lhe ia na mente.
- O mundo dá tanta volta! - Exclamou Sabina. - Quem diria que a tua filha Clara se havia de casar com o neto de Filomena; o meu bisneto. - E os olhos aguaram-se-lhe, toldaram-se-lhe de uma tristeza que se lhe foi alastrando pelo rosto. - É verdade. - Concordou Maya. - A Clara vai casar-se. Ainda ontem era uma rnenininha... Tudo isto nos tem causado alguma perturbação. - E olhando-a bem de frente perguntou: - Já estás mais calma? Não estás, Bina?
- Sim, um pouco. No entanto também estou preocupada contigo. Andas estranha. Conta à tua velha Bina o que se passa, minha Flor. - Pediu meigamente.
- Coisas... - Murmurou Maya desejando escapar-se à curiosidade de Sabina que insistiu:
- Que coisas?...
- Vi o Rodrigo. Ou penso que o vi.
- O quê?! - Fez a velha senhora entre a dúvida e o espanto soerguendo-se como se tivesse acabado de ouvir referir um nome maldito.
- Sim. Pareceu-me vê-lo... - Confirmou Maya. - ... quando passei aqueles dias em Lisboa para comprar o enxoval da Clara, no mês passado. Lembras-te? De repente surgiu à porta do Hotel Mundial. Era a silhueta dele; o andar um tanto desengoriçado. Era o perfil dele. Aconteceu por várias vezes... segui-o, mas nunca consegui alcançá-lo. Era ele. Ou talvez não fosse? É de loucos!
- Não pode ser Maya. Não pode ser. - Insistia Sabina, perturbada. - Algo de muito estranho se está a passar connosco é o que eu te digo.
Há bocado, por exemplo, tu dizes que sonhei, pois talvez tenha sonhado ou quem sabe, penetrado noutra dimensão. Eu era a minha bisavó Guerrilheira e simultaneamente Sabina. Já tal te aconteceu? Não exactamente o mesmo, mas algo parecido?
- Já. - Confessou Maya numa voz quase imperceptível. - Mas são partidas que a mente nos prega. - Acrescentou céptica.
- Talvez. - E retomando o discurso Sabina continuou:
- Era como se a minha vida e a da avó Guerrilheira se enredassem, se confundissem uma com a outra para serem uma só vida e... e eu era ela, ela era eu... enfim, foi tudo muito estranho.
- É melhor ires para a cama, Bina. Dormir vai ajudar-te a serenar. É preciso afugentarmos os fantasmas. Andas cansada. Funcionas como se tivesses sempre quarenta anos. Vamos para a cama que é mais confortável. - Intimou-a Maya entre a autoridade e o sorriso.
- Perdi o sono, filha. Sabes o que me apetecia?
- O quê?
- Ouvir a história da Guerrilheira. Já me não lembro dos pormenores. Tu que contas tão bem, serias capaz de contar-ma? - Parecia suplicar numa voz que se queria quase infantil.
- Eu?! - Admirou-se Maya. - Mas se eras tu quem sempre costumava contar-me a história’ dessa tua antepassada?!...
- Mas tu sabes contá-la à tua maneira e fica mais bonita. Vá lá. Troquemos de papéis. Faz de conta que sou agora, de novo, menina e tu contas-me uma história, essa história. - E fazia beicinho como uma criança que pede um doce almejado que se lhe recusa.
E Maya contou assim:
- Naquele tempo guerreavam-se sem tréguas dois jovens, dois irmãos, dois príncipes de Portugal, Pedro e Miguel se chamavam.
Era então o Alentejo quase igual ao que hoje é, porque ao longo dos séculos pouco tem mudado no rosto e no destino.- a mesma planura sem fim, regada pelo suor, mergulhada no silêncio, sufocada pelo Sol, amordaçada de fome e de sede, esquecida, agonizando na ausência de toda e qualquer esperança, definhando no desespero.
Não se entendiam os dois irmãos porque, acreditava Pedro que o mundo estava em mudança e que embora reis e príncipes ainda governassem a Terra deviam fazê-lo com o consenso de todos porque o povo era a nação e por isso lhe cabia também o direito e o dever de ajudar o seu rei ou príncipe a conduzi-la.
Miguel queria-se senhor absoluto para poder indiscriminadamente dispor de toda a riqueza e da vida e morte de seus súbditos. E a gente, essa boa gente de Portugal desorientada por esta disputa do poder dividia-se em facções: os mais esclarecidos viam em Pedro o salvador da pátria, os outros apoiavam Miguel, o que recusava a mudança, o que, do púlpito, em dia de sermão, o seu pároco exaltava enumerando virtudes sem conta, tais as de um santo há muito elevado ao altar. Quanto a Pedro consideravam os homens de Igreja que lhe brilhavam nos olhos as luzes de Satã; era o anti-Cristo anunciado e seus sequazes, um exército de espíritos malignos que conduziria a pátria à ruína.
E a guerra ateada como um incêndio envolvia num turbilhão toda a terra de Portugal.
De norte a sul corriam os exércitos digladiando-se e o sangue e a morte enlutavam a alma das mães que perdiam seus filhos e não sabiam muito bem porquê.
Corria o tempo nesta atmosfera de dor e de grito e a sorte hesitava constantemente, bafejando por vezes Pedro e outras Miguel.
Um dia, o tropear dos cavalos dos guerreiros ecoou na planície que despertou do seu letargo para horrorizada deparar com os homens de armas, bandos homicidas de desertores que assolavam as aldeias, violentando mulheres, assassinando homens que, para defender suas casas e famílias os enfrentavam corajosamente opondo à espingarda e baioneta a foice e a enxada.
Vão era o esforço dos camponeses. A enxurrada arrastava-os submergindo-os. Por isso, quando o grito rolava nos campos onde se charruava, mondava ou ceifava - Vêm aí os guerrilheiros! - largavam a charrua, o sacho, a foice e nos barrancos as mulheres abandonavam a roupa que batiam na pedra. Calava-se subitamente, na aldeia o chilrear dos folguedos da criançada; os velhos trôpegos, que ao sol esquentavam os ossos, erguiam-se dos portados num rompante, o pavor reflectido no olhar; as mães arrastavam os filhos pela mão e, precipitadamente, como se alguém tivesse acabado de anunciar o fim do mundo corriam, atropelando-se nos becos, derramando-se nas ruas, alagando a charneca na busca desesperada de um buraco, uma cova onde pudessem acoitar-se.
De sobra conheciam a crueldade que ostentava a máscara do esforço desumano, da fome e da humilhação e que com dolorosa subtileza se insinuava em suas vidas, dia após dia como um veneno bem doseado a que o corpo já se acostumara; mas aquela outra crueldade, a espada em riste, o sangue borbotando na sequência do golpe, a morte pintada com as cores do horror esvaziava-os de toda a coragem e fugiam desordenadamente à cata de esconderijo deixando atrás de si suas casas, seus míseros haveres e, às vezes, os velhos e os fracos que frequentemente não aguentavam acompanhá-los na fuga.
Quando o tinir de ferros, o eco dos cascos dos cavalos, o vozear tremendo se diluíam na noite amedrontada, esgueiravam-se dos buracos cavados nas pedregosas margens do Guadiana, escorregavam da negra copa dos chaparros, surgiam do restolho, ou da seara verde ou madura e, silenciosos como espectros vagueando por uma terra amaldiçoada, regressavam ao que fora a aldeia branca e risonha agora espectáculo de sangue e morte para depararem com os corpos de crianças e velhos que jaziam nas ruas, ainda quentes, trespassados pela baioneta assassina.
E a noite parecia prolongar-se indefinidamente como se horrorizado o Sol receasse nascer.
Maya contava quase de um só fôlego arrastada pelo ritmo veloz da sua própria narrativa, de soslaio ia observando o rosto ainda liso de Sabina que de tão imóvel parecia querer desmentir a emoção que só ousava revelar-se-lhe no olhar brilhante e atento e Maya respirando profundamente uma, duas, três vezes continuou a história pela noite que, também ali, naquele lugar, naquele outro tempo, insistia em eternizar-se.
- Ora...
... naquela tarde levantou-se o vento norte, correu desenfreado pela terra rasa, esbracejando, gritando, guerreando; assustavam-se os pássaros encolhidos nos ninhos e na ramaria das árvores dispersas que resistiam estoicamente às investidas coléricas, fincando desesperadas as raízes na terra como unhas de gavião sobre o corpo da presa. Estevas erguiam-se no ar quais esqueletos sacudidos pelo sopro do diabo.
À porta da casinha de telha vã, mesmo junto ao móínho, cujas velas endoidecidas giravam descontroladamente a cada vergastada do vento, Antónia Moleira de mãos apoiadas na delgada cintura perscrutava o horizonte, o céu toldado de nuvens e de pó. Por todo o lado só solidão... e o pai que não regressava da aldeia onde fora entregar uma encomenda de farinha. E Antónia dos olhos deslumbrantes, a do sorriso sem par pressentiu uma terrível ameaça navegando na solidão, perturbando o silêncio. E Antónia, a dos braços roliços, a do peito de rola tomou pela primeira vez consciência da sua fragilidade e desamparo. Estremeceu de receio e ansiou que alguma alma vivente surgisse para preencher o vazio que se estendia a seus pés. Então, um som tremendo que parecia nascer das entranhas da terra dominou os ares e, à distância, envoltos na poeira que o vendaval levantava surgiram repentinamente vultos. Eram cavaleiros à desfilada, à solta pelo campo aberto como que empurrados pela mão do vento. E ela, Antónia Moleira, encolheu-se toda dentro de si, procurando encontrar no íntimo a segurança que lhe negava a tosca habitação perdida na planura. Entrou a correr para dentro de casa fechando a porta no ferrolho. A escuridão era senhora de tudo. Às apalpadelas, tacteando a parede encontrou a foice no sítio onde habitualmente a pendurava e ficou à coca, de coração estarrecido, atenta ao ruído dos ferros, ao tropear de cavalos, cada vez mais próximo.
”Ai Jesus que são os cavaleiros do apocalipse! Ai Jesus, que são os guerrilheiros! Por certo é o bando do Bailabem.” Dizia de si para si, a foice erguida, pronta a desfechar o golpe.
Era jovem, era mulher, estava sozinha, no entanto e apesar do medo não lhe esmorecia a coragem no coração valente. Havia de bater-se até ao limite de suas forças, porque assim lhe haviam ensinado seu pai e sua mãe, porque lutar lhe estava no sangue que herdara de homens e mulheres habituados a lidar dia após dia com a violência que sempre campeara naquela terra açoitada de cataclismos e injustiças.
- Hei-de enfrentá-los. Tenho de enfrentá-los. - Repetia empunhando a foice com mão segura apesar do perigo tão próximo.
- E depois... e depois? - Perguntou Sabina ansiosa pelo desenlace.
- Depois, já se calcula. - Continuou Maya. - Como poderia Antónia deter aquela força descontrolada, aquele rio fora do leito que lhe irrompia pela casa dentro? Rapidamente a imobilizaram, duas, quatro, oito poderosas mãos. Que pode a coragem contra a força bruta? Bem podia Antónia estrebuchar, debater-se, gritar, vociferar, acabou por cair no chão tal flor que o vento forte despenha no abismo.
Bailabem ao vê-la assim desmaiada, a face pálida contrastando com a espessa massa de cabelos negros, sentiu uma ferroada no coração como se uma lança o atravessasse.
- É linda! - Exclamou perante aquele anjo do céu que inesperadamente se revelava ao seu olhar atónito e arrancando o lenço do pescoço manchado de suor humedeceu-o na água do cantil e, de joelhos, com os cuidados dum amante refrescou-lhe as têmporas, o rosto, a comissura dos lábios...
- É minha. - Afirmou fixando os seus homens com autoridade que logo se arredaram, obedecendo à voz de comando do seu chefe.
- Quem vai no trem? É a Guerrilheira mais o Bailabem. - Cantarolou em voz sumida Sabina antecipando o progresso da narrativa.
- Já lá vamos... - Admoestou meigamente Maya. - Ou eu te conto a história ou tu ma contas a mim. Não é Bina?
- Sabina esboçou um sorriso envergonhado de criança a quem a mãe carinhosamente repreende.
- Antónia descerrou as pálpebras e fixou por instantes o rosto claro onde brilhavam dois imensos olhos nimbados de verde, debruçado sobre o seu, reflectindo uma inexplicável doçura e franziu as sobrancelhas finas e bem desenhadas num trejeito de estranheza, porque aquele rosto não podia ser o de Bailabem, chefe de guerrilha, salteador quase lendário, violador de donzelas, matador de gente indefesa. Ele sorria-lhe deslumbrado, perdia-se no olhar dela, nas finas feições, na rubra flor dos seus lábios e o medo que se tinha apoderado do coração da pobre donzela esvaiu-se como nevoeiro que o Sol dissipa. Antónia ofereceu-lhe também o esplendor do seu rasgado sorriso.
Serenou o vento norte. O Sol faiscou no céu já límpido, uma paz augusta envolveu os campos... Antónia, tomada por um estranho fascínio, como sonâmbula, subiu para a garupa do cavalo e lá foi com o Bailabem no rasto de desconhecidos horizontes correr a sua sina.
Passados meses o grito de terror ”ai Jesus, que vêm aí os guerrilheiros!” foi substituído por um outro onde estalava o júbilo: ”Vem aí a Guerrilheira mais o Bailabem!”
Chegavam inesperadamente anunciados pelo trote dos cavalos ou pelo chiar das rodas dum trem: ”Quem vem no trem?/É a Guerrilheira mais o Bailabem”, perguntavam, respondiam nas aldeias. E assim era, quase sempre em dia de festa, pela Páscoa da Ressurreição ou dia da Padroeira em que explodiam foguetes e se armava, o baile nas ruas...
Tinha-se esgotado o tempo das espadas desembainhadas que faziam jorrar o sangue, estampando no rosto do povo o espanto do juízo final.
O medo tinha-se mudado para outros lugares. Nos ”montes” os lavradores, os feitores, os almocreves observavam a planície de espingarda em riste à espera da investida das hostes dos ”senhores da guerra” que assaltavam rebanhos, arrombavam celeiros, invadiam como um furacão as estrebarias e arrastavam consigo os haveres dos que tantos possuindo deles eram tão ciosos; e na aldeia, nas aldeias espalhava-se o grande riso de alegria, estalava a sonora e trocista gargalhada quando com olímpica serenidade Antónia Guerrelheira e o Capitão Bailabem faziam descer das carroças e das mulas ajoujados sacos de cereal, borregos ”amaneatados”, porcos guinchando, perus redondos como bolas que, de seguida, distribuíam generosamente, por cada um seu quinhão, com o desprendimento de quem possui uma mítica cornucópia. O povo cantava o estribilho que se tornou lendário. Quem vem no trem?/É a Guerrilheira mais o Bailabem. E, numa esfuziante alegria, plenos de entusiasmo, bailavam até de madrugada em louvor aos deuses que pareciam ter descido à terra para lhes oferecer a rodos o seu inesgotável maná.
A fome escondeu a sua face encardida, o desespero sumiu-se envergonhado. No rosto agora corado das crianças surgiu o sorriso contente e os maridos amavam suas esposas como nos esperançosos dias do já longínquo noivado.
A que se devia tal milagre? Bastava observar Antónia Moleira rodopiando nos braços do capitão Bailabem para adivinhar a causa de tão repentinas mudanças. Em redor do jovem par o amor cintilava, espargia-se como gotas duma chuva bendita.
Assim foi andando aquele tempo de abundante ”seara”... até que...
- Ele já me não ama. - Lamentou-se em voz alta a Guerrilheira entrançando o cabelo que de tão longo lhe abraçava a cinta.
As águas do rio rumorejavam quase a seus pés como quem conta tenebrosos segredos e a Lua era um queijo de ouro boiando na líquida transparência.
Antónia mergulhou as duas mãos de dedos bem separados e a solidez daquela quimera doirada que até aí parecia feita de tão compacta substância transformou-se na insubstância dos sonhos. ”Tal como o amor”. Pensou a Guerrilheira. Um reflexo... nada mais...
Eternas eram as estrelas lá no alto; eterna a Lua cravada no firmamento. Tudo o resto era ilusão como o reflexo do ”astro” que seus dedos despedaçavam. Retirou as mãos da água gelada e colocou-as de mansinho sobre o ventre que denunciava já a maternidade futura.
Uma algaraviada de risos e conversas à mistura com o som de castanholas libertava-se pela porta da azenha secular e vinha correndo encosta abaixo até à beira do rio e a solidão cresceu no peito de Antónia e era maior...
O riso de Marília espanhola era a melodia de uma cascata despenhando-se na noite. Não lhe era possível negar que Marília era jovem e bela também. Viu-a o Capitão pela primeira vez sobre um improvisado palco na feira de S. Lourenço, cantando malaguenhas ao som das guitarras. Para os homens a juventude, a beleza são a semente do amor e o Capitão era homem. Fulminou-o o olhar lânguido da cigana que volteando no palco o fixava uma e outra vez e ele erguida garbosamente sobre o cavalo não lhe resistiu.
Agora, como ébrios, amavam-se pela modorra das tardes escaldantes e quando a noite descia com promessas de frescura, deleitavam-se com o delicioso repasto que ela, Antónia, preparava, acompanhado do vinho que jorrava dos odres como de fonte inesgotável. E havia risos, sarapateado, bater de castanholas horas a fio... e ela, Antónia, rainha destronada, tornara-se na serva do novo amor do seu ”amor”. E o pior de tudo foi que a verdadeira natureza de Bailabem veio-lhe de novo à superfície da alma como azeite que água não consegue dissolver.
Pelas manhãs orvalhadas, por sinistros crepúsculos voltou o bando a correr pelas aldeias indefesas deixando à sua passagem o desespero e a morte. Ninguém pode fugir ao que dita a sua verdadeira natureza; Bailabem voltara a ser o homem cruel que sempre fora até ao momento em que tinha sido bafejado pela graça e generosidade de Antónia Moleira, depois Guerrilheira. Tinha durado pouco tempo a pausa pacificadora; o fascínio que Antónia exercera sobre ele esvaíra-se e o Capitão regressava ao que sempre fora um bandido, um assassino sem piedade.
Marília excitava-se com o odor acre do sangue e ele ofertava-lhe esse perverso presente como quem deseja acalmar a ira duma deusa sanguinária. E Antónia perante o tenebroso espectáculo morria-se de impotência. No interior da azenha onde a encerravam para que lhes não fugisse, quando se ausentavam para a sementeira da morte sentia despontar um sentimento até aí nunca experimentado e as mãos tremiam-lhe, apertavam-se-lhe os maxilares; o coração pesava-lhe...
Não sabia que nome dar àquela nova emoção que lhe tornava pastosa a língua na secura da boca e lhe colocava nos olhos cintilações de metal. Era ódio? Desejo de vingança? Ou urgência de repor a justiça?
Inclinou-se para trás e apoiou a cabeça graciosa nos tufos húmidos da erva que orlava a margem. O perfume a hortelã e a poejos impregnando o ar, entontecia-a.
Para ali ficou de olhos abertos, abandonada nos braços da noite. Esperava e não sabia o quê nem porque esperava. Os pensamentos fugiam-lhe na mente como cavalos cuja galopada lhe era impossível refrear. Inspirou profundamente e, de súbito, sentiu-se rainha da noite, senhora do Tempo, tal como a Lua dona de todos os mistérios... e nítida surgiu-lhe enfim a ideia salvadora como a inesperada imagem dum pássaro que se desenha no vazio do céu.
- Que bela és! - Observara a velha cigana, num dia feliz, mas já bem longínquo, quando na sua égua se passeava pela feira de Castro e, encostando-se à barriga do animal insistia em ler-lhe a palma da mão. Sorrindo incrédula abriu a mão. A velha cigana recuou assustada como se aí estivesse lendo toda a má sorte que ameaçava o mundo e disse: - Muitas dores te esperam. Um dia serás traída, mas és valente e hás-de vencer.
Fechou-se o sorriso no rosto claro de Antónia. A velha cigana como que para apaziguar o terror que causava na jovem a perspectiva dum destino ainda por cumprir, mergulhou as mãos no volumoso bolso do avental e retirou um saquinho de pano encardido. - é pó de dormideira. Um dia há-de fazer-te falta; pode até vir a salvar-te. - E sem esperar alvíssaras virou as costas e sumiu-se na multidão.
Preparou a ceia com todo o requinte. Colocou sobre a laje que em tempos moera tanto grão e que agora servia de mesa a quem ali acampava as canecas de barro. No centro, num vaso de argila resplandecia como um sol um ramo de mimosas. No espeto sobre as labaredas chiava o cordeiro.
Penteou com esmero os cabelos negros; enfiou o vestido vermelho e as botinas de verniz dos dias de festa.
Enlaçados Marília e o Bailabem emitiam risinhos de troça.
- Hum! Isto traz água no bico. - Resmungou ele olhando-a com desprezo.
- É o dia dos meus anos. Ou já te esqueceste? - Informou ironicamente Antónia. - Também quero festejar... - E, batendo as palmas: - Vamos lá todos. É comer e beber.
O bando abancou. Comeu, bebeu com uma fome, uma sede insaciáveis. O Bailabem sempre desconfiado resmungava:
- Tu não és de fiar, vaca prenha.
Antónia não respondeu ao insulto que como uma bofetada lhe estalou na alma.
Perdem o brilho os olhos dos homens, os de Marília já se semicerram; tomba-se-lhe o queixo, o busto descai-se-lhe sobre a laje. Sonolento o Bailabem ainda exclama: - Ah, cabra que me enganaste! - E agarra-a com mão já frouxa pela cauda do vestido, pelos cabelos que lhe chegam à cinta. - Ainda tenho fôlego para te estrangular. - Ameaça.
Foi então que um brilho terrível atravessou os sempre mansos olhos de Antónia. Rápida ergue a barra da saia e arranca da liga um punhal. Uma força vinda talvez de uma qualquer desconhecida justiça cósmica ergue-lhe energicamente o braço; mergulhada numa semi-inconsciência, desfere às cegas um dois três golpes sobre o traidor...
- E morreu, o Bailabem? - Perguntou Sabina abrindo repentinamente os olhos entre exaltada e aflita.
- Sabes bem que não. A Guerrilheira atingiu-o no ombro direito. Queres ouvir o resto?
Sabina fez que sim abanando a cabeça. Dir-se-ia ter, de repente, regressado à meninice.
- Antónia rasga o campo, rasga a noite que se fecha atrás de si como uma cortina que encobre o que da vida já se foi. Montada na égua lá vai, o rosto inundado de lágrimas, o coração amarfanhado, apertando os lábios para que não se solte o grito. Devastador é o seu desespero porque sabe que nunca mais será a mesma. Compreendia que não construímos sozinhos o nosso destino e que por vezes são os outros que nos despenham no abismo. Mal consegue conter o grito que a rasga por dentro como uma mandíbula poderosa.
A égua galopa pela noite. Nasceram-lhe asas. Vai talvez erguer-se no ar e pousar na face da Lua e Antónia sentir-se-á a salvo da crueldade dos homens. Mas o grito rasga-lhe a garganta; já não é possível contê-lo, solta-se na noite, desesperado, tremendo, interrogativo:
- Porquê, Capitão? Porquê? Porquê?...
De madrugada os homens de El-Rei chegaram à margem do rio para prender o bando com seu chefe Bailabem que Antónia denunciara.
Ela fechou-se no moinho de seu pai e alí permaneceu dia após dia, lua após lua, até se cumprirem nove meses. Só então com uma criança nos braços saiu à luz do Sol que as ofuscou e abençoou.
Essa criança foi nem mais nem menos a tua avó, minha querida Bina.
E acabado está o meu conto, que, segundo tu costumavas dizer, encerra muito de verdade, embora nimbado pela lenda.
As odaliscas dançam na parede espelhada do quarto que foi do avô Manuel Diogo. Sopros de erotismo erguem a transparência dos véus que tentam ocultar o requebro das formas.
Recusou-se sempre Sabina a dormir naquele quarto para fugir ao abraço do homem que sempre amara... Isso foi anos depois da fatídica noite.
- Que noite aquela! - Exclamou Maya.
Era ainda tão menina, mas a imagem do corpo seminu de Simão, expostas as ”vergonhas” dilaceradas, todo ele manchado de sangue, nunca mais se lhe apagou da memória.
Maya fixa com olhar cego a dança ”estática” que mão hábil gravou na superfície do vidro. Os olhos lúbricos do califa, sentado sobre almofadas, envolve os corpos frementes das dançarinas.
Decidira Manuel Diogo que se colocasse ali aquele painel refulgente talvez para ”erotizar” Sabina que lhe fugia. ”Tê-la-ia ele realmente amado?” Maya sente-se assaltada por um súbito mal-estar como se, sem o querer, tentasse fazer a devassa da vida íntima de ambos. Mas não podia parar de reflectir sobre aqueles dois. Se ele a amava assim tanto não percebia porque nunca a assumira totalmente, casando-se com ela. Se a amava, não entendia porque lhe dilacerou o coração. ”Porquê?” Questionava-se fixando o califa e as dançarinas voláteis como nuvens, fumo ou espuma do mar. ”Vá-se lá entender a natureza dos homens e do amor também!”
Saltitam-lhe na mente desencontrados pensamentos ali, naquele quarto em que Sabina sempre se recusou a dormir e que ela, Maya, agora, ocupava.
A luz da Lua entra pela janela aberta; o espaço é invadido pela noite, pelo ar húmido, primaveril.
O vestido de noiva de Clara, desmaiado sobre o sofá brilha fantasmagoricamente. ”Tão lindo aquele vestido!” Maya imagina a filha cingida de cetim, a graciosa cabeça ornada de tule, diante do altar iluminado, vivendo a ilusão da eterna ventura, do amor que nunca se desgasta. ”Tudo é ilusão”. Ciciava-lhe ainda a sábia voz de Filomena; no entanto, havia momentos na vida em que ilusão e realidade se vestiam com as mesmas roupagens e era impossível destrinçar uma da outra. Também ela, Maya tinha vivido momentos assim. Depois, revoltaram-se os elementos, ergueu-se a vaga alterosa e o raio despedaçou o mundo de maravilha... Bem se debateu e se recusou a obedecer à voz que a expulsava do paraíso, em vão...
Depois dos três filhos criados (Edgar, o mais velho, sonhador e idealista fizera-se arqueólogo e corria mundo. Jorge, o do meio, tinha estudado matemáticas e partido para Inglaterra onde leccionava num ”College” de província; Clara sonhou sempre com Paris, conseguiu uma bolsa e partiu. Frequentava a Sorbonne quando conheceu o neto de Filomena. Roda, roda, a roda da vida e o inesperado acontece), ela, Maya, ficou sozinha e, alongando o olhar para o passado, compreendeu que era urgente regressar. Nada já a prendia àquele país quase sempre revestido dum branco fantástico e gelado. Atravessou o Atlântico. Era Primavera, de que ano, não se recordava. Já lá iam talvez cinco, dez... Ali escapava ao fluir do tempo. Até Rodrigo, quase o esquecera de todo, assim como o amor simultaneamente fabuloso e rocambolesco, trágico-cómico, como num drama romântico, esse amor que por um pouco a não despedaçara, querendo imolá-la na sua ara cruel.
De súbito, Rodrigo surgiu, ou ressurgiu, renasceu das cinzas para vir perturbar a paz que finalmente se fizera senhora do seu agora pacato mundo.
Sabina dorme na sala, serena como uma criança, enleou-a a melopeia da voz de Maya; caiu na inconsciência do sono, dos sonhos... talvez agora vagueie por espaços siderais com a Senhora das Sete Luas.
Maya sentada no tapete desfruta a solidão e a noite, esforça-se por compreender o incompreensível, o que ultrapassa os limites da racionalidade....
Maya admira o milagre da luz que irrompe da opacidade dilacerada da noite. Lúcida se ergue a manhã em tons suaves de azul e rosa. Anuncia-se o Sol na barra vermelha que varre o horizonte. O carro avança. É outra vez Abril.
A estrada aparta a planície em duas metades, rasga-a, condú-la para além de si mesma, do seu secular ostracismo. Passam por ela carroças de ciganos que andam de feira em feira, camionetas, autocarros, carros velozes, outros menos velozes - vai e vem o passado e o presente em estranho convívio pela estrada que separa a planície em duas metades como um largo pano que uma fita atravessa ao meio. Tão longe ainda Lisboa... lá vem Grândola, a morena, já se vislumbram as águas prateadas do Sado - Alcácer do Sal. A planície estanca mesmo ali.
Maya decide passar pela vila. No largo, silêncio, homens silenciosos, lentos, de cá para lá, ou arrimados às esquinas, o chapéu descaído sobre os olhos para os proteger da crueza da luz do sol reflectida na brancura das paredes... Para trás fica Alcácer. Mimosas doiram as bermas, um perfume a eucalipto erra no ar. Lisboa já tão perto; Lisboa magnífica, sensual repousando junto ao Tejo...
Clara tinha-lhe pedido que lhe comprasse o vestido de noiva precisamente em Lisboa. As bizarrias de Clara! Sempre dependente da boa vontade da mãe, do seu bom gosto, como costumava dizer, para disfarçar a inércia que, por vezes, a impedia de lidar com o lado prático da vida, dissera do outro lado, de Paris, ao telefone:
- Tu conheces os meus gostos e que me falta paciência para andar de loja em loja. Com as medidas que já te enviei tornar-se-á fácil... - e perante as reticências da mãe insistiu numa vozinha de mimo: - Vá lá, sê boazinha. Maya imaginou-a do outro lado, longe, a fazer beicinho tal como quando criança. Comoveu-se, mas, mesmo assim, fingiu-se agastada: - Você nunca mais cresce?! Porque não faz as compras aí em Paris? - Ao que Clara respondeu, desculpando-se com a falta de tempo; exames à porta, enfim tudo isto ligado ao desejo de que o seu vestido de noiva fosse confeccionado em Portugal. Maya não conseguiu esquivar-se e acedeu; agora, às ”portas” de Lisboa, já não sabia se o fizera para agradar à filha ou por si mesma. Havia tanto tempo que não punha o pé em Lisboa!... e a cidade surgiu do outro lado convidando, seduzindo com reflexos de azul, rosa e ocre quem de longe a observava.
Correra mundo, até bastante e, no entanto, sempre que chegava a Lisboa experimentava uma peculiar sensação de enternecido deslumbramento. Talvez porque ali passara os exaltados dias da mocidade, talvez porque ali descobrira que o mundo era mais vasto, mais complexo do que o aconchegado casulo em que fora criada, talvez porque ali se desenvolvera a sua consciência social, à mesa dos cafés, na conspiração ingénua dos estudantes, talvez porque ali tinha conhecido Rodrigo, talvez...
- Rodrigo! - Exclamou, absorta, perdida no rodopiar veloz dos pensamentos e era como se tivesse pronunciado uma palavra mágica com o poder de a despertar para uma panóplia de sensações, lembranças que, de repente, esvoaçavam como borboletas ao estímulo da luz.
Já fora do carro, que finalmente conseguira estacionar, ficou, por instantes, parada, a chave na mão, interrompido o gesto que apenas esboçara para fechar a porta.
- Rodrigo!... - Sacudiu levemente a cabeça. Não queria ser perturbada pelo passado, mas este tomava a forma de cada edifício, loja, estátua, vendedeira de flores, café, pastelaria... Praça da Figueira. Pombos esvoaçam aturdidos à volta da cabeça do ”Mestre”, imponente sobre o seu cavalo, perdido no seu sonho de séculos de um Portugal livre e forte, talvez adivinhando já nas águas do Tejo, as caravelas que seu bisavô, o rei poeta, mandou plantar, pressentindo, quem sabe, o perfume futuro a cravo e a canela errando nas ruas de uma Lisboa apinhada das mais desvairadas gentes, Lisboa subitamente cosmopolita... Outros, muitos séculos depois, acalentaram o sonho do Portugal livre e forte, um Portugal de rosto humano que recusava a realizar-se... Maya sorriu tristemente. Um rapaz, um pedinte dos novos tempos, deste tempo em que as sociedades permitem que se perca a sua maior riqueza - a juventude - arengou manhosamente:
- Dê-me uma moeda para uma sopa. - Maya, num relance, repara-lhe nas canelas que as calças demasiado curtas denunciam e lá está a marca da agulha assassina, a pústula da doença.
No seu tempo os jovens agonizavam nas prisões, batiam-se nas ruas contra os gases e a violência da polícia, saltavam fronteiras, morriam revoltadamente, denodadamente em África. No seu tempo, guerreava-se com convicção até à morte, desejava-se com paixão, amava-se com desespero. No seu tempo, a morte nunca se manifestava num sorriso desolado e conformista como o daquele rapaz que, via-se bem, tinha deposto as armas para morrer na indignidade. De quem a culpa? Uma lágrima, outra lágrima assomaram envergonhadas no espelho do olhar de Maya. Passou junto à Nacional. Rodrigo. Rodrigo outra vez de ramo de violetas na mão estendida... Gente entra, gente sai tal como outrora: senhoras de tailleur Dior, executivos de brief-case na mão, empregados de escritório, caixeirinhas aperaltadas, estudantes de jeans e parka que, alguém vindo dum país de muito frio e neve impôs a esta cidade amena e radiante de sol. Eis a Lisboa de ontem, a Lisboa de hoje de mãos dadas...
Rodrigo estendeu-lhe um ramo de violetas; fora há tanto tempo! A imagem mantinha-se porém, nítida e fresca como se seus olhos a captassem ali, naquele instante.
Sentados a uma mesa da Nacional, cercados pelo ruído de loiças, por conversas apenas ciciadas, tomaram chá em silêncio porque a emoção estrangulava as palavras...
Perde-se enlevada no rosto dele, aquele rosto perfeito emoldurado pelo negrume da espessa cabeleira; caracóis descaem-se-lhe sobre a fronte pensativa num harmonioso desleixo; o olhar de tão brilhante ofusca-a até à perturbação. Há naquele olhar o reflexo da espada e o beijo de ternura e é esse contraste, esse paradoxo que a faz estremecer de exaltação, desejar percorrer todas as sendas dos mistérios que nele se anunciam. Tudo à sua volta se esbate, se esfuma; só Rodrigo existe naquele momento em que a Graça a tocou porque ele é a Beleza que irradia em múltiplo esplendor.
A Rua Augusta sofreu pela mão do ”progresso” grande metamorfose. Derrama-se agora, em esplanadas de mesas de alumínio e guarda-sóis coloridos. Percorrem-na os lisboetas que tão bem se distinguem dos turistas de calções e camiseta, estonteados pelo bulício, pela luz tão azul como o rio que espreita pelo majestoso arco. Aqui e ali pintores marginais aplicam-se no seu métier. A exótica harmonia de flautas andinas acompanha o movimento dos passantes que vão e vêm como num sonho, cobiçando nas montras ”tentações” inacessíveis, rodopiando inebriados de luz e de som como gaivotas à beira-rio.
Maya estaca por instantes à esquina da Rua da Conceição, onde um grupo de latino-americanos, de chapéu de gaúcho e manta riscada, extrai das flautas os saudosos sons da pátria longínqua. Mais adiante, instalado sobre um pedaço de cartão, um cego arranca penosamente da roufenha concertina, um fado usado, último eco dum mundo que já não é.
Aérea, Maya retoma a caminhada, sem rumo... Eis a austera igreja da Madalena. Conduziram-na até ali os seus passos e nem deu por isso. ”Rua da Madalena!...” Abrem-se-lhe os olhos, escancaram-se com o espanto de quem acaba de despertar dum insólito letargo. Não sabe o que a trouxe ali. O que ali veio fazer? Parou junto a uma porta e reconheceu o prédio já decadente. ”Rua da Madalena!...” A porta ainda é a mesma, rectângulo alto e estreito de madeira sólida, pintada de castanho escuro, dantes brilhante, agora velho, baço, a tinta descascando-se em crostas, como chagas no lombo dum animal doente. Que vidas palpitam por detrás daquela porta? D. Ermelinda de certo já morreu ou vegeta, talvez, numa daquelas casas a que chamam ”lares” onde encerram os velhos para que não incomodem, nem lembrem com o seu olhar vazio que a decrepitude e a morte também nos espreita a cada passo. Maya recordava-se dela na pujança dos cinquenta anos: alta, de generosos seios e largas ancas, vestida invariavelmente de azul-marinho ou verde-seco, espalhando por todos e em toda a parte a alegria como quem efusivamente oferece flores.
Tinha-a conhecido por intermédio de Maria Eva, uma colega de Faculdade, também alentejana, que trazia consigo o conhecimento dum mundo que a ela nunca fora dado experimentar.
Um dia, Maria Eva convidou-a para ir visitar D. Ermelinda. - Queres vir? Verás que é uma senhora muito divertida. Diferente. - E ela saturada que estava do soturno lar de estudantes, do inquietante olhar das freiras que lhes espiavam todos os movimentos, da futilidade das meninas muito bem, muito ”queques” que com ela coabitavam, ansiosa por descobrir gente diferente, foi. Assim, por Maria Eva conheceu D. Ermelinda e foi ela também quem lhe contou a história dessa excêntrica senhora, tal como tantas outras histórias. Por ela soube que o Alentejo não se resumia a Valeperdido, a Vale-de-Alcaide, ao ”monte” do Paço, à planície dos ”Senhores” que quando criança percorria seguindo no seu pónei o cavalo baio do avô. Via, então, os camponeses debruçados sobre a seara e que à sua passagem se erguiam de chapéu na mão em humilde reverência. Na época, pensava que assim era devido, que tudo estava bem: os senhores passavam olhando distraidamente os que serviam. Estes cumprimentavam humildemente. No mundo tudo estava no seu lugar, uns no reino da abundância, outros no da servidão. ”Uns nasceram para mandar, outros para servir...” Costumava dizer-lhe o avô e ela ainda tão menina, acreditava que cada pessoa nascia com um destino e que nada havia a fazer senão cumpri-lo. Nunca questionou as palavras do avô porque ele, nesse tempo, representava o bom senso e a verdade... ainda então a paz parecia reinar em Valeperdido, pelo menos a seus olhos.
Um dia, os camponeses de foice no ar gritaram bem alto que tinham fome, que a terra era sobretudo de quem a trabalhava; a revolta percorreu os campos, tiros ecoaram na pacatez da tarde escaldante...
Sentada a um canto da saleta azul, em Vila-Marfim, onde passavam, por vezes, alguns dias, fingindo aplicar-se no bastidor, lágrimas saltaram dos olhos de Sabina e foram manchar o pano de linho da toalha que bordava a matiz. Porque choras, Bina? - Tinha perguntado. - Era tão jovem, tão inocente e mataram-na. - Lamentou Sabina.
- Quem? Como? - Mas Sabina não respondeu e desatou a soluçar.
O som das botas do avô ecoou no vestíbulo: - Maldição! - Vociferava. - Pensam que a seara ficará por ceifar?... Querem mais jorna para comerem presunto e comprarem meias de seda para as filhas... Nada já é como antigamente; mas as ”ceifeiras” estão aí. Há-de ceifar-se o trigo e a cevada e a aveia...
Sabina não parava de chorar baixinho. O avô saiu como um furacão tal qual entrara e ela, Maya, não ousou perguntar fosse o que fosse sobre o que estava a acontecer.
Foi Maria Eva que lhe despertou a consciência para as injustiças que todos sempre tentaram camuflar, para que não entendesse. As faces ruborizaram-se-lhe ao tomar conhecimento de uma realidade vergonhosa que sempre lhe esconderam os seus, porque dela eram cúmplices.
A sirene duma ambulância soando perto sobressaltou-a. Pensou no avô Manuel Diogo quando a ruína já aguçava o dente para a soberba de Valeperdido e ele vagueava como um espectro pela casa ou amedrontava os ares com os seus gritos: - Ladrões! Ladrões! Querem levar-me o que é meu.
- Depois esfalfado, sentava-se no chão, a um canto da larga cozinha do ”monte” e choramingando como uma criança pronunciava entre soluços, repetidamente, o nome de Simão: - Simão, Simão, Simão...
Um dia chegou uma ambulância; dois homens vestidos de branco irromperam pela casa... e lá foi Manuel Diogo em camisa de forças.
Observou a rua agora deserta. Naquela casa a sua consciência tinha despertado para a cruel realidade do seu país, nela tinha conhecido Rodrigo. Ali se decidira a sua vida. Os olhos cansados aguaram-se-lhe de lágrimas. Contornou a igreja e foi subindo a rua íngreme que conduz à Sé. Uma indizível tristeza, mesclada de saudade dum mundo perdido abateu-se, de súbito, sobre ela. As pernas recusavam-se-lhe a obedecer. Lá foi subindo penosamente a rua... O eléctrico deslizava nos carris num tilintar de recordações, marcando ainda a sua presença. Tinha sobrevivido às vicissitudes do ”progresso” e lá ia ronceiro, rua abaixo, clamando a sua vitória.
Maya entrou numa leitaria quase em frente à escultura de Santo António que negreja na simplicidade do largozinho rodeado de alguns bancos onde, por vezes, se acomodam pedintes na paciente ”espera da hora da missa.
Desfraldava-se a manhã num escândalo de luz. Maya sentou-se a uma mesinha de tampo de mármore encardido. Pediu uma bica e enquanto esperava deixou vaguear o olhar pelo espaço estreito e mal iluminado: quatro mesas, um balcão, um homem sonolento por detrás deste. Duas moscas esvoaçavam na penumbra alvacenta. Numa mesa perto da porta dois homens de olhar desolado falavam da carestia, declaravam um ao outro num tom fatalista que quase nada mudara e que tudo estava praticamente na mesma porque já ”todos lá” estavam outra vez. O mais magro, de nariz adunco e tez morena, rondando já os sessenta anos, ergueu ligeiramente a voz que a revolta contida esganiçava e disse: - As eleições estão próximas. Aí, é vê-los calcorreando o país, prometendo mundos e fundos à caça do voto do otário. Cá por mim, não tenho intenção de pôr lá os pés. Votar para quê? São todos iguais... - E a voz subitamente enrouquecida atingira o limite da desilusão. Calou-se. O outro fumava um cigarro e com os lábios semidescerrados, deixando sair o fumo que tomava a forma de pequenas esferas que se diluíam no ar...
- A vida é isso mesmo... fumo. - Comentou, dando-se ares de filósofo pouco preocupado com banalidades, enquanto fixava como que hipnotizado a nesga de luz estrangulada na estreiteza da porta entreaberta como quem, longe, pretende alcançar com a vista o horizonte dum mundo desejado, mas inacessível, uma qualquer utópica ilha perdida no mar...
Na sala de D. Ermelinda gargalhavam os enrameados vivos dos cretones. Os vidros das janelas brilhavam sob a invasão festiva do sol. Um cheirinho adocicado a cera recente subia do soalho lustroso, atestando uma preocupação constante de limpeza.
- E esta menina, é sua colega? Também é alentejana?
- E logo procurou investigar quem era e quem não era, sim, porque devia conhecer a família... Porque não? D. Ermelinda conhecia toda a gente, Lisboa inteira, Portugal inteiro do Minho ao Algarve.
Conhecera, por exemplo, o pai de Maria Eva quando jovem. Principiava então a sua carreira na revista. E nostálgica da juventude perdida revirava os olhos: - Que lindo homem era o senhor seu pai! - Exclamou, como quem liberta naquela exclamação as mil lembranças que naquele momento a inundavam. De soslaio ia observando minuciosamente Maya, como quem se esforça por descobrir no rosto miúdo da jovem, algum traço que lhe despertasse a memória dum outro rosto, de outros rostos há muito perdidos no nevoeiro do passado e disse:
- Quase ia apostar que conheço alguém de sua família.
- A sua voz revelava a quase certeza de que não podia ser de outra maneira. E colocando o indicador na fronte perguntou:
- É Maya, não é? A menina chama-se Maya? - Pronunciava o nome com estranheza por achá-lo tão fora do comum.
Maya sorriu: - Sim; sou Flor de Maio Diogo de Valeperdido; mas chamam-me Maya. - Valeperdido? - Interrogou-se D. Ermelinda franzindo os sobrolhos espessos. E, soltando uma gargalhada, bateu uma na outra as palmas das mãos que estalaram, tal uma criança contente.
- Ah! Já sei! Deve ser da família de Pedro Diogo de Valeperdido.
- Era meu bisavô. - Explicou Maya, sem disfarçar o espanto.
- Eu não disse. Eu não disse que conhecia... Pois se eu conheço toda a gente. - E riam-se-lhe os olhos e a boca ainda sensual acentuada pelo bâton vermelho e contou:
- Conheci-o quando trabalhava na Gardénia. Era então mocinha. Tinha talvez uns catorze anos. Fui lá chapeleira. Seu bisavô frequentava a casa. Ia encomendar chapéus para uma jovem de quem parecia gostar muito. Não melembro agora como se chamava. Mas recordo-me que ele falava muito dela; era uma tal... um nome também pouco comum. - Por instantes ficou com o ar absorto de quem esquadrinha todos os recantos da memória:
- Começava por S, S, Sá... Ah, esta minha memória! Lamentou-se.
- Sabina. - Concluiu Maya.
- É isso mesmo. Sabina. - E soltando uma gargalhada plena de segundas intenções, repassada de brejeirice exclamou:
- Que malandreco era o senhor Pedro Diogo! - Maya corou até às têmporas.
Desde esse dia passou a frequentar a casa de D. Ermelinda. Banhava-se na camaradagem que ali se vivia como na límpida água duma fonte. Os estudantes netos, bisnetos, sobrinhos, primos dos amigos com quem D. Ermelinda privara em tempos idos, quando era corista, chapelista na Gardénia, florista na Rua do Carmo e até enfermeira em S. José, enchiam-lhe a casa com a jovialidade dos seus dezoito anos. Ali acorriam para os lanchinhos com torradas e café com leite que D. Ermelinda lhes servia com a ternura duma mãe e também para lhe fazerem confidência de seus desgostos, de suas mágoas ou entusiasmos de amor para discutirem com ela, em particular, seus problemas, ou partilhá-los em grupo na procura de conselho e solução. Muitas vezes durante esses lanches vinham à baila as vicissitudes que atravessava o país, um país de pernas para o ar; mas que pretendia apresentar-se alinhado, nas fardas impecáveis de seus militares de carreira, nas da Mocidade Portuguesa, da Legião Portuguesa e na luz da Praça do Império no dia da ”raça” em que se evidenciava a parada militar, o discurso rançoso no esforço apenas mal conseguido de mostrar a imagem dum país em que imperava o progresso, a harmonia, o equilíbrio, hasteando sempre a bandeira de valores universais, quase nunca postos em prática - Deus, Pátria e Família.
E quando a escaramuça se armava na Baixa porque alguém fora encerrado no Aljube e os estudantes corriam desarvorados sem ter onde acoitar-se para escaparem aos gases e à paulada da polícia de choque, havia os que conheciam o santuário de janelas enfeitadas de cretone, na Rua da Madalena. E D. Ermelinda solícita, embora fingindo-se agastada, abria-lhes a porta, enfiava-os em armários, debaixo de camas, por detrás de cortinados... mais um, mais um, tantos quanto podia e, depois, punha-se à janela, os seios descansando no peitoril e metia conversa com uma ou outra vizinha que assomava:
- Vejam só isto. O que querem estes estudantes? Só fazem barafunda; melhor seria que se agarrassem aos livros.
Se fossem meus filhos dava-lhes umas boas ripadas. Aí sim, haviam de aprender a portar-se como gente. Digo-lho eu, D. Chiquinha, D. Joaquina, o mundo anda às avessas. Não há respeito. A mocidade já não é o que era no meu tempo. Então, sim, respeitava-se a lei, a ordem... - E suspirava como que para aliviar a revolta que lhe provocava aquele desacato.
Era assim D. Ermelinda, generosa e dissimulada, por isso sobrevivera a todos os arremessos da fortuna - corista, chapelista, florista, enfermeira, diziam as más-línguas, prostituta também, amásia de homens endinheirados e pacóvios. Agora, nos seus cinquenta anos, ainda esplêndida, podia dar-se ao luxo de ser quem sempre quisera ser mãe, e era-o, de facto, daqueles ”meninos” assustados, embora corajosos, com a repressão e a guerra, aqueles jovens que sonhavam mudar o mundo, que agiam apesar dos perigos para que assim fosse.
Maya absorta, esquecida do café que arrefecia na chávena. Uma mosca poisou na testa do patrão que a esmagou com uma palmada certeira. ”Sórdido!” Pensou. Alguma coisa mudara naquela cidade, no país que era o seu; mas ainda não o suficiente.
Esvaiu-se a casa de D. Ermelinda. Engoliu-a o tempo. Aquela casa onde tinha aprendido a ser pessoa no convívio de gente generosa; ali tinha conhecido Júlio, o revolucionário, o jornalista desempregado, o comunista, segundo se dizia; fora também nessa casa que, num dia de chuva, vira pela porta entreaberta da sala, no sofá florido, em amena cavaqueira com D. Ermelinda, um jovem alto, esbelto que numa voz melodiosa, mas viril perguntava, pedindo conselho:
- Que fazer, D. Ermelinda? Detesto estudar Medicina; mas meu pai jurou-me que me cortaria a mesada se abandonasse o curso... - Ela aconselhava baixinho com a intimidade de uma amante e a ternura de uma mãe.
Não ousou interromper; não ousou avançar nem recuar, até que ele ergueu os olhos e deu pela sua presença e esse olhar, sentiu Maya, tinha a macieza das pétalas e a crueldade cintilante dum punhal e, talvez por isso, desencadearam-se-lhe na alma as mais desencontradas e opostas emoções.
- Rodrigo! - Exclamou baixinho, como se ele ali estivesse.
Saiu da leitaria para a glória do sol espargindo ouro no azul do céu.
Gente passa apressada. Riem as fachadas das casas e os vidros das montras, um calor intenso electriza a cidade que, ruborizada, plena de energia, atravessa as horas.
Maya esquecida do que viera fazer percorre as ruas sem tino, perde-se no caudal da multidão com o braço do sol sobre os ombros, tão intenso, e acariciante como o do homem que se ama. O sangue corre-lhe apressado nas veias; expande-se-lhe o peito numa comoção nunca experimentada, era um cabrito, saltando num prado, uma corsa deslizando entre troncos e ramos, radiante; um coração palpitando no seio da Primavera. Era tudo e todos, a cidade inteira - a abóbada do céu, o rio cintilante repousando ao Sol, as gaivotas mirando-se no espelho de água; era a esperança que navega na alegria suprema do dia claro e no entanto, era como se não tivesse consciência disso. Vagueava esquecida de si.
Ramos álacres, cravos vermelhos acendem-se ao virar de uma esquina e despertou, enfim do sonho: ”E se fosse visitar o tio Filipe?!” Parou junto à vendedeira de flores como um autómato que de súbito, fica sem corda. A vendedeira, expectante, sorria. Se fosse visitar o tio Filipe? Se o surpreendesse surgindo no patamar de sua casa, à Rua da Esperança, abraçada a um molho de cravos. Cravos para o tio Filipe. Cada corola como uma recordação. Ele havia de sorrir e dizer contente: ”Não esqueceste o teu velho tio, boneca.” Era assim que ainda a tratava. Tão delicado, tão terno, o tio Filipe... tão diferente!... Era já um ancião e ela, uma matrona que ele insistia em tratar por boneca. Invadiu-a uma onda de ternura, de saudade também e com o enorme ramo de cravos entre os braços atravessou o Rossio na direcção do Martim Moniz, levada por um inexplicável impulso e nem se questionou sobre o que ali ia fazer.
Tinha um segredo, o tio Filipe, desde sempre o pressentira, um segredo que se denunciava no largo sorriso de dentes miúdos e brancos, no brilho claro, suave dos olhos. ”Um bon-vivant”. Costumava dizer o avô em tom displicente. Como poderia o avô entender aquele irmão? Como pode um mortal entender a natureza dos deuses?
Lembrava-se de Filipe em Valeperdido, durante as suas tão espaçadas visitas. Era ainda muito pequena e já se lhe arregalavam de admiração os olhos perante o tio-avô que parecia ter todas as idades.
Cinco anos tinha como ela quando pela frescura das manhãs, caçavam borboletas ou, pelos trigais apanhavam papoilas. Esfuziante era a alegria dele:
- Mais uma Maya, mais uma que caiu na rede. Mais uma Maya, mais esta, tão vermelha! - Eram de cetim as asas das borboletas e de cetim eram as pétalas das papoilas belas e frágeis como a própria vida. Esfalfados abrigavam-se à sombra de uma azinheira para admirarem o seu tesouro. E ele dizia, numa voz quase infantil, como se fosse um companheiro da sua idade:
- Pobres borboletas, fizeram-se para voar! - E agitando a caixa de latão ajudava-as a partir, uma a uma que, como um sonho breve se perdiam no azul.
Outras vezes, pelo cair da tarde, quando o Sol já ia declinando e da cozinha vinha um odor gostoso a cabidela ou borrego assado, desafiava Filomena para uma sessãozinha de dança; o disco revólvia-se na grafonola e ambos mergulhavam na harmonia rítmica da valsa.
Dezasseis anos tinha Filomena; dezasseis anos parecia ter Filipe. O avô rabujava: ”Que estarola és...”, ele sorria comprometido como um adolescente apanhado em falta.
Assim era o tio Filipe - de todas as idades, de todas as castas... Falava a linguagem das crianças, dos jovens, dos adultos, das mulheres também, dos camponeses e homens de ofício, dos letrados e dos que letras não tinham, das plantas e árvores, dos pássaros do céu, de todos os seres como se vivesse em harmonia e união perfeita com o universo inteiro. Nele tudo era inocente e autêntico...
Tinha um segredo o tio Filipe...
Lentas soaram as horas no relógio duma igreja - S. Domingos, a Sé, talvez Santa Engrácia - flutuavam vibrantes uma após outra na translúcida claridade. Era meio-dia.
Maya apercebeu-se que nada tinha feito do que se propusera fazer. Limitara-se a deambular... Passou junto a um cauteleiro que lhe cortou, por instantes, o passo com promessas de fortuna; avançou virando a esquina da Barros Queiroz de prédios tristonhos que espreitavam pelos olhos das montras poeirentas. Foi então que o viu. Era ele? Impossível. O coração virou-se-lhe do avesso, embrulhou-se-lhe o estômago em espasmos. Náusea. Era ele. Saía do Hotel Mundial. Era dele o perfil grego, a basta cabeleira, a silhueta esguia, o passo largo e ágil. Quis avançar, correr, mas era como se repentinamente tivesse ficado paralisada. Quis gritar: ”Rodrigo!” Mas o grito prendeu-se-lhe na secura da garganta e para ali ficou como que perdida num remoinho que violentamente a arrastava para trás, para aquém do momento presente.
A Lua deslizou sorrateira pela janela e pálida foi projectar-se na frieza do espelho. A inesperada intromissão acordou Maya para a realidade do aposento em que se encontrava: os móveis pesados de madeira escura, a parede espelhada, onde um incógnito artista tinha gravado um exótico bailado.
Olhou distraidamente o mostrador do relógio de cómoda e eram três horas da manhã, manhã de um dia qualquer, de um qualquer ano, porque os dias, os anos tinham passado por ela e quase sem dar por isso transitou da meninice à juventude e à idade adulta até chegar àquele instante; três horas de uma manhã em que estupefacta se apercebia que tanto tempo passara e saboreava aquele momento depurado de minutos, segundos, numa plenitude quase perfeita, como quem se retira para um deserto e ouve por fim, no silêncio, a voz de Deus a indicar-lhe o caminho do coração de todas as coisas, de todos os seres e dos homens também.
Inspirou gostosamente o ar húmido, fresco, vindo do quintal, respiração serena das laranjeiras que rescendiam e esse ar imbuído dum estonteante perfume arrepiou-lhe a pele, percorreu-lhe as veias, estampou-lhe nos olhos cintilações de esmeralda como quando a larga palma da mão de Rodrigo lhe acariciava o rosto, lhe deslizava pelo pescoço até à saliência dos seios.
- Rodrigo. - Ciciou comovida. Desde a manhã em que o vira surgir à porta do Mundial qual fantasma a quem um deus cruel fechou as portas do paraíso nunca mais tivera descanso. Muitos dias vagueou por Lisboa, da. Baixa às Avenidas Novas, na ânsia de deparar com ele, assim, frente a frente, e poder constatar que não tinha enlouquecido.
Nas vésperas do regresso a Valeperdido, quando distraída subia as escadas, no metro de Alvalade, aconteceu-lhe parecer reconhecê-lo ao cimo. Subiu os degraus num galope doido, mas não conseguiu alcançá-lo, alcançá-los; mas estava quase certa que era ele, ele e ela, magra, alta, vestindo jeans, o cabelo ruivo brilhando ao sol. Não havia sombra de dúvida ou então alucinava...
Regressou a casa, à paz inquieta do seu Alentejo presa numa indescritível perturbação. Como explicar o inexplicável?
Doía-lhe a cabeça, os membros, o corpo todo. Ergueu-se do tapete onde permanecera sentada durante horas; pensou ir para a cama, mas o sono fugira-lhe. Aproximou-se da cómoda; abriu a primeira gaveta devagarinho puxando pela argola de cobre. De repente parou, parecia chegar-lhe ao ouvido um som abafado de passos. Ficou alerta esforçando-se por não fazer barulho. Sorrateiramente, foi até à janela por onde entrava a noite enluarada. Ninguém no quintal, só a poética presença das laranjeiras floridas, e o silêncio imperando... Estava só: estavam sós, ela e Sabina. A gaveta continuava entreaberta oferecendo-se à devassa. Mergulhou as duas mãos tacteando. Lá estava ele. Era um daqueles volumosos cadernos com uma capa de cartão castanho; no rótulo leu: Maya e as palavras e de mansinho abriu-o na primeira página. Um largo sorriso iluminou-lhe os olhos que cintilaram como duas estrelas.
Maya e as Palavras
GÉNESE
Sou uma Valeperdido; por mais que me mire no espelho e pretenda existir independentemente das gerações que me precederam carrego nos ombros o peso de todas as suas lutas e pecados, de seus crimes e generosidades. Por mais que me recuse, sou uma Valeperdido... No entanto, sempre quis existir por mim própria como quem não suporta nome nem responde à voz dos genes, ser EU, Maya, Flor de Maio e desabrochar casta e autêntica como uma flor de amendoeira numa manhã do princípio do mundo. Por isso parti, para isso corri no encalço do que já era, mas não conhecia. Procurei-me num afã desesperado pelos cantos do mundo, do Sul luminoso até às brancas sombras do Norte; tracei o périplo da iniciação como jovem guerreiro antigo em demanda do Graal.
Ai do homem que recusa a busca de si. Ai da mulher que o não fez porque mulher nasceu.
Afastei-me do centro para compreender que existo para além dele; regressei ao Sul, porque ele é a raiz do meu entendimento. E aqui estou. Começo agora a vislumbrar quem sou - Flor de Maio, Maya, existindo por si própria sem deixar de ser uma Valeperdido.
Valeperdido já não existe para a família a quem deu o nome. Resta-nos esta ”Vila Marfim” com janelas rasgadas para nascente e poente e a vasta sala circular que Pedro Diogo mandou construir. Resta-me Sabina, repositório das histórias que urdiram a extensa e tenebrosa gesta dos Valeperdido e ainda a fantástica Senhora das Sete Luas que o génio de Filomena criou.
Ao princípio era a ”terra” esperançada e rica. Sem ela é o Homem um escravo, verme laborioso da ”terra”; mas sempre verme.
Sabia-o José Estêvão Diogo que por mais de uma década servira o seu senhor, Gaspar Moreira e, nem por isso se lhe enchera a arca de grão, nem tão pouco a jorna lhe permitira comprar telha com que se cobrisse da chuva ou da ”calma”.
Gaspar Moreira era dono de léguas sem fim e tinha fama de uma generosidade pouco usual em gente de sua casta. Por isso, a velha Margarida, que já servira o pai e criara as irmãs aos seus fartos seios achou por bem que seu filho ficasse na casa. E, assim foi.
Só conheceu o seu senhor depois da tropa, que serviu em além-mar, sob o sol escaldante dos trópicos, sujeito às azagaias dos pretos, Gungunhanas e quejandos. Tinha, porém, escapado à morte que, constantemente o ameaçou durante dois longos anos. Regressou com o Capitão Mouzinho ao som de trombetas e aclamações. Era um herói; coisa que, entendia agora, pouca valia tinha ou nenhuma por em nada ter mudado a sua vida.
Quando Gaspar Moreira o mandou chamar foi. Entrou tímido na sala, hirto na sua farda lustrosa, fazendo peito para que aí se destacasse a medalha que atestava o seu heroísmo.
O patrão sentado molemente numa poltrona, mesmo junto à janela que se escancarava para a rua do ”monte”, bem varrida pela vassoura de pomposta, ornada de ”caqueiros” onde floriam sardinheiras, levantou distraidamente os olhos que se prendiam nas páginas dum livro e, tirando uma fumaça do cigarro que lhe ardia entre os dedos, perguntou:
- És tu o José Estêvão da Margarida? - Devia andar pelos quarenta anos, mas era franzino, de ombros estreitos e longas pernas que, naquele momento, se cruzavam uma sobre a outra, como dois longos galhos de árvore que se enleiam entre si. O rosto, dir-se-ia o de um menino mimado a quem nada se pode recusar. Destacavam-se na palidez da pele o brilho de dois olhos dum azul terno e os lábios estreitos pareciam desconhecer a alegria do sorriso.
José Estêvão quedou-se por instantes silencioso. Por fim respondeu lacónico:
- Sim, senhor.
- Sei que és um rapaz de brios, que cumpriste o teu dever para com a tua pátria; quero recompensar-te.
José Estêvão olhava embasbacado para aquele homem que lhe falava como um soberano; mas que parecia uma criança gigantesca. Não sabia se cumprira ou não o dever para com a pátria; estava, porém, ciente que a coragem que tinha demonstrado, lá longe, em terras de África a parira o medo que lhe fazia a carantonha da morte. Era ”homem”, e não queria morrer. Quem o quer afinal?... Mas o Moreira continuava na sua voz um tanto aflautada.
- Vais deixar os campos e serás moço de estrebaria e cocheiro quando for necessário. Sei que hás-de tratar bem os meus cavalos. - O jovem concordou. Assim como assim preferia ocupar-se dos animais, a recato do sol e da chuva...
- O José Jorge, o feitor, te dará mais instruções. Acrescentou ainda e para concluir o Moreira e acendendo lentamente outro cigarro voltou ao seu livro esquecido já da presença do criado.
Passados dez anos, homem feito, casado, pai de dois filhos, porque os outros cinco lhos levaram as sezões e a bexiga, compreendia que de nada lhe tinha servido trabalhar destemperadamente nem tão-pouco o ter querido manter a dignidade e honra, o que lhe havia custado tantos dissabores.
Encostado às portadas entreabertas da estrebaria ia esculpindo com a ponta do canivete um pedaço de madeira, onde começava a surgir a figura duma mulher. O sol declinava triste por detrás do montado, calara-se a cigarra que o endoidecia pela ”China da calma”. Foi imaginando o que teria sido a sua vida se tivesse acedido às propostas lúbricas do patrão.
Naquela noite já longínqua, depois de recusar o escândalo que lhe propunha, rebelara-se, explicando-se:
- Que é isso patrão? Sou um homem e macho pede fêmea e não outro macho. - Passou os olhos pela estrebaria entupida de cavalos e éguas. Lá estava a ”Faísca” de pelagem lustrosa, acastanhada e o ”Fogoso”, belo cavalo de raça lusitana, muito quietos e compenetrados como testemunhas daquele desacato e exemplo vivo do que acabava de dizer.
- Veja só. A ”Faísca” vai ter cria do ”Fogoso”... - Calou-se. Entalavam-se-lhe as palavras na garganta. Não sabia que mais dizer sobre tão refinado disparate.
Desencadeava-se nos olhos deslavados do patrão a fúria de todos os vendavais e José Estêvão percebeu que caro pagaria o ter-se rebelado à vontade dele. Ficaram por instantes os dois olhos nos olhos como dois rivais que se desafiam em silêncio. E diziam os olhos de José Estêvão: ”Quem pensas que sou? Sou pobre, mas honrado...” E os de Gaspar Moreira: ”Sou assim. Que queres? És belo como um deus campestre, senhor de colheitas e vinhedos; por isso te quero e hei-de ter-te porque sou rico e poderoso e tu não és ninguém. Estás sob a minha alçada. Se quiser posso até deixar-te morrer de fome. Eu posso, quero, mando. É esse o meu lugar no mundo. Tu obedeces...” Diziam isto os olhos do patrão e aquilo os do criado; mas as palavras, essas recalcavam-se-lhes no ventre, porque há coisas que pensamos, mas não ousamos dizer - feitas palavras transformam-se em monstros que ameaçam engolir-nos.
Pagou alto preço por sua ousadia José Estêvão e, se nos anos que se seguiram lhe não faltou o sustento mínimo, foi só porque a velha Margarida persistia em continuar viva como se pressentisse que de tal dependia a sobrevivência do filho e da família que tinha constituído.
Casou José Estêvão com Rita do Carrasco, moça limpa de carnes, rosto claro e muito desenvolta, que forneava no monte para ”os concertados”. A ela, só a ela se permitiu contar, certo dia aquele vergonhoso episódio da sua juventude. Rita, meneando a cabeça uma, duas, três vezes, com aquele seu jeito de quem nada a escandaliza como se conhecesse todos os pecados do mundo e de quem sabe que para conquistar um lugar ao sol, preciso é quase sempre, atravessar os tenebrosos túneis da desonra disse:
- Fizeste mal. - Então sim, se espantaram os olhos e o coração de José Estêvão. - Porra, mulher, não digas tal coisa.
- Fizeste mal. - Insistiu ela. - Porque a vergonha seria dele e não tua. Ter-te-ias limitado a explorar a sua fraqueza. Quem é pobre não pode ter engulhos.
Lembrava-se ainda da raiva que o verdascou ao ouvir a mulher. A sua mão possante, como se fosse independente do resto do corpo abateu-se pesada como um machado sobre a companheira. Não era homem que se valesse de sua força contra os mais fracos, mas as palavras de Rita puseram-no fora de si e dando um pontapé num banco próximo que se virou no ar, saiu batendo com a porta que estremeceu em sua frágil estrutura.
Nasceram os meninos. Os que a morte poupou lá se foram criando com magras sopas de feijão e migas ”peladas”...
Ano após ano pareciam minguar as ”comedias” e o patrão pagava-lhe como se nada encarecesse - nem mais um vintém de jorna, nem tão-pouco lhe acrescentava uma medida de grão... Pensou procurar trabalho noutro sítio. Mas como? Onde? Se o não havia.
Jaquinito, o filho mais velho ia fazer nove anos em Julho e moía-lhe o juízo havia tempo com a mania de querer aprender, ir à escola, talvez um dia vir a ser doutor. Imaginações de criança! Como se fosse dado ao filho dum camponês tornar-se noutra coisa a não ser camponês. Filho de ganhão ou concertado se nascia; ganhão ou concertado se havia de morrer.
Esmagou com as costas da mão uma lágrima rebelde e rugiu entre dentes:
- Cabra de vida!
Por entre lágrimas que lhe embaciavam os olhos à custa de retê-las avistou a figura do seu menino que corria no terreiro do ”monte” de cá para lá, de lá para cá, como quem não ousa ultrapassar os limites daquele círculo, tal a galinha da história presa pelo risco de giz.
Veio-lhe à mente uma tarde em que foi à cidade levar recados do patrão a D. Efigénia, sua irmã: Jaquinito suplicou-lhe que o levasse também.
Vestiu-lhe a mãe os calções de cotim, uma camisinha bem desencardida. Lá foram os dois aos solavancos na charette de serviço do monte.
Aquecia-lhes as costas um sol de Primavera que ria na verdura das searas... e a cidade revelou-se como a caverna do tesouro cuja porta se abre ao som duma mágica palavra.
As pessoas iam e vinham pelas ruas como uma enxurrada; carregavam cestos de compras, tagarelavam em voz alta. Escancaravam-se as portas das lojas; no café, os homens bebiam cerveja em copos que, de súbito, se douravam como se o dedo de Midas os tivesse aflorado.
Aos magotes, pelas esquinas, de vergasta na mão, os ciganos discutiam o preço de muares com a solenidade e altivez de quem decide o destino do mundo.
Ele, José Estêvão passava com Jaquinito pela mão e eram como sombras que se projectam na calçada e em quem ninguém repara.
Os estudantes invadiam em grande alarido as ruas, as capas voejando no ar, negras como as asas do destino. Foi então que Jaquinito que até aí se tinha deixado arrastar pelo pai ofereceu resistência e estacou por segundos enlevado e, fixando os jovens que passavam rente exigiu numa voz que apesar de tímida revelava uma inabalável decisão: - Quero um capote daqueles quando for estudante.
José Estêvão ficou para ali varado, sem coragem para explicar ao filho que tal sonho era de todo irrealizável.
”Ó senhora, mãe dos pobres, que dor de coração!” A voz da mulher zunia ainda e outra vez aos seus ouvidos: Fizeste mal, fizeste mal, fizeste mal... - E era tão grande a insistência que o punha zonzo levando-o a duvidar da certeza do que tinha decidido havia anos, porque naquela hora lhe pareceu que talvez o sonho de Jaquinito valesse bem o sacrifício de sua honra.
De tal maneira se enfronhava nestes pensamentos que nem se apercebeu que a noite se fechava como uma negra cortina sobre o mundo e que na sua frente estava o patrão com o cavalo à arreata esperando que o acomodasse. Sem saber porquê descerraram-se-lhe os lábios num sorriso que se queria de desculpas pela sua arrogância de tempos passados, de promessa de um melhor entendimento, de libidinosas esperanças. De horror se lhe arrepiava a pele; mas o passo estava dado; não podia voltar atrás. ”Pelo Jaquinito”. Pensou.
Nos olhos dum azul aguado de Gaspar Moreira espelhou-se o júbilo e a noite cerrou-se sobre ambos tenebrosa, solitária como um túnel que sem cessar se percorre na angustiante procura da luz.
Afinal Jaquinito desinteressou-se dos estudos e nunca foi doutor. Delapidou muitos contos de réis do Gaspar Moreira em estúrdias e mulheres, esquecidos os ajuizados propósitos, o sonho dourado da infância e o pai, apesar dos ainda robustos quarenta e oito anos estava cansado da vida por considerar inútil o seu sacrifício. Era como um asceta que anos a fio mortificou o corpo, clamou no deserto esperando ouvir a voz de um deus surdo a todos os apelos.
O patrão, já velho, sem herdeiro directo, nem amigos quisera, porém compensá-lo ou talvez comprar a salvação presenteando-o com a rica herdade de Valeperdido, vasta como o mar, fértil como o ventre de uma mulher. E assim, Rita do Carrasco veio a tornar-se D. Rita de Valeperdido, senhora de sua casa, mandando e desmandando em seus criados, esquecida já da origem humilde; ilustrava com o seu comportamento o ditado: ”Não peças a quem pediu nem sirvas a quem serviu”. Que bem desempenhava ela seu papel de patroa! Tinha adquirido como que por milagre uma tal altivez e importância que parecia não ter na vida desempenhado outro mister senão o de governar e fazer-se obedecer.
Mas, enquanto Rita crescia em autoridade e orgulho José Estêvão apagava-se numa inexplicável tristeza; mergulhava numa abulia pouco costumeira em seu carácter.
Horas a fio permanecia sentado, pelas frescas manhãs anunciando agressivas calmas ou pelas noites de estio forradas de veludo e oiro. Para ali ficava, o olhar que ora viaja pela terra farta ora segue um fiapo de nuvem na asa do vento ora se fixa no redondel pálido da Lua... E D. Rita de Valeperdido que se impacienta: - Sai daí, homem. - Intimava-o. - O almocreve precisa de falar contigo, à espera de ordens está o abegão, o feitor quer fazer contas. - E ele nem a olhava como se nada ouvisse. Tinha a sua herdade com seus trigais, olivedos, montados e rebanhos; que mais queria a sua Rita? Tinha tudo quanto ambicionara; que governasse tudo, ela e Jaquinito, porque Abel, o filho mais moço não queria saber da terra. Desde que em certo dia viu o filho do coronel Batista, que os visitara em Valeperdido a propósito duma caçada às perdizes, pois na herdade pululavam estas estouvadas aves como em nenhuma outra do Alentejo, endoidou Abel Pequenino com o uniforme que o jovem vestia e que tão bem acentuava a sua natural esbelteza. A partir de então passou a sonhar com o toque dos clarins, o troar de tambores, as paradas militares, as armas que refulgiam ao sol com promessas de heroísmo.
- Hei-de ser militar. - Declarou aos pais. - Tarda não tarda tenho dezasseis anos e alisto-me no exército como voluntário.
Andava Rita numa aflição porque ao descampado chegavam rumores da guerra que se preparava lá para ”Franças e Araganças”, ou melhor dizendo Alemanha; mas, o seu Abel não tirava do bestunto aquela obsessão.
- Quero ser militar...
Estes pensamentos e outros deslizavam na mente de José Estêvão como um regato que corre a nossos pés e mal damos por ele.
Ali ficava ouvindo o coração que latia como um cachorro maltratado. A angústia era um pesadelo ensombrando-lhe a alma, entrecortando-lhe a respiração como se duas mãos assassinas tentassem estrangulá-lo. Bem o zurzia a voz irritada de Rita:
- Olha, homem, que ninguém tira esta mania da cabeça de Abel. - E suplicava: - Ajuda-me, que o fardo é demasiado pesado para uma mulher. - E continuava em tom de reprimenda: - Se não fora teu filho Joaquim que graças a Deus enjuizou que seria de nós. Já teríamos perdido o que tão difícil te foi de obter.
Maldita mulher, se foi... Crucificara a alma por causa do filho, por causa da ambição dela. Puta que os pariu. Queria lá saber de Valeperdido, de dinheiro, de fortuna. Tudo lhe fazia lembrar a repugnância que sentia por si próprio, pelo corpo outrora lavado, puro como o dum arcanjo... Ficou-lhe para sempre agarrado à pele o visco das mãos de Gaspar Moreira, a baba dos seus beijos e a alma sempre enrubescida da vergonha, que na altura se instalou dentro de si e lá permaneceria até... até que Deus ou o diabo o levassem.
Bem dizem que a mulher é a encarnação do mafarrico, a sua fora Lúcifer o rei dos infernos... Antes a morte. E o olhar toldava-se-lhe de sinistras sombras.
Não encontrou cura a melancolia de José Estêvão, primeiro senhor da nova dinastia de Valeperdido.
Aconteceu no pino da tarde, quando só o neurótico canto da cigarra perturba o profundo sono da planície.
A voz alterada dum pastor trouxe a fatídica notícia o corpo do lavrador de Valeperdido baloiçava pendurado numa azinheira lá para a banda do barranco das cabras.
Entre a desolação e o alívio, D. Rita vestiu-se de luto como exigia sua condição de viúva, chorou algumas lágrimas sentidas, depois segurando com firmeza as rédeas do governo de sua casa acrescentou terra à terra que já tinha de tal modo que a norte e a sul, a oriente e ocidente quase tudo passou a ser seu.
De quando em vez pedia conselho a Jaquinito, seu filho mais velho porque o outro lá partira ao som dos tambores em demanda de vãs gloríolas na guerra que assolava as Europas; mas entregar a Jaquinito a gestão dos negócios da família, isso é que nunca... e este não lhe perdoava a pouca confiança que a mãe parecia demonstrar nele, talvez por não ter esquecido seus pecadilhos da mocidade... Faminto de poder desejava governar o que por direito também era seu. Desde a morte do pai que se tinha dedicado à lavoura, presente em todos os momentos, apoiando a mãe sempre que necessário numa entrega que considerava merecer recompensa, enquanto o irmão lhes voltara as costas para prosseguir um improdutivo ideal.
Esperava paciente porque convicto de que mais tarde ou mais cedo a morte havia de arrebatar a senhora sua mãe e então Valeperdido com todas as terras em redor havia de ser seu, só seu.
Assim pensava Jaquinito e assim foi.
Jaquinito chorou sinceramente a morte da mãe até ao momento em que o tabelião deu a conhecer o testamento...
- Ai, D. Rita que ingrata que foste! Ai, D. Rita que te leve o diabo! Ai, D. Rita onde está a justiça!... Maldita sejas!
Abel Pequenino que tens tu que eu não tenho? Engendrados fomos no mesmo ventre, criados aos mesmos peitos.
Que tens tu que eu não tenho? - Gemia Jaquinito, o rosto vermelho de cólera escondido entre as mãos. As lágrimas escorriam-lhe quentes por entre os dedos:
- Maldito sejas, meu irmão! Maldito sejas! - Assim se exasperava o primogénito, os soluços agitavam-lhe os ombros como que acometido por uma febre maligna.
Ninguém sabe o que se passou na mente de D. Rita de Valeperdido como também ninguém veio a saber o que lhe ia no coração. O certo é que privilegiou Abel Pequenino retirando a ”tercinha” à herança que a Jaquinito pertencia.
E o ódio envenenou para sempre a alma do primogénito.
Prosperava Valeperdido em searas e montados em opulentos pomares e vinhedos quando Abel Pequenino regressou à casa que fora de seus pais e que, por direito, também lhe pertencia, tal como o guerreiro que cansado da luta recolhe aos seus domínios para aí sarar as feridas da alma e do corpo.
Acolheu-o o irmão com grande festa, no calor dos seus braços tal o patriarca bíblico que recolhe o filho pródigo e como ele, ordenou que se matassem muitas reses, e se oferecesse banquete a amigos e vizinhos e se organizasse também para celebrar grande caçada a perdizes e coelhos porque seu irmão tão dado às artes de Marte muito apreciava esse desporto viril.
O que aconteceu naquela tarde nunca ninguém o soube ao certo ou todos se recusaram a comentá-lo, receosos, talvez, de alguma represália.
Transportaram Abel Pequenino numa maca improvisada de troncos e colmo; um tiro fugira ao alvo a que se destinava e foi estampar-se no peito do jovem crivando-o de chumbo. Quem foi? Quem não foi? Ninguém sabia dizê-lo. Um caçador furtivo? Um ajuste de contas?... A socapa as más-línguas acusavam o irmão que, de tão ganancioso não queria sua terra repartida. E a dúvida maculou como uma maldição o nome dos Valeperdido.
Fosse como fosse, eis enfim, Jaquinito senhor dos domínios que foram de seu pai e sobre eles reinou ainda por muitos anos. Sucedeu-lhe Pedro Diogo, seu filho unigénito que engendrou Manuel Diogo e meu tio-avô Filipe. De Manuel Diogo nasceram Nuno e Filomena e de Nuno nasci eu, Flor de Maio.
Sou uma Valeperdido quer o queira ou não; mas Maya também...
Ergo os olhos para a noite como quem levanta as mãos juntas em adoração: tudo dorme. A noite invade-me; mas só existe porque eu existo e por isso, neste instante é para mim o espectáculo dos astros, olhinhos luminosos piscando no negrume, tranquilamente. - Estrelas! Também as estrelas têm um tempo e uma história, tal como as pedras, as árvores e os rios, os animais e os homens... Também tenho a minha história tecida de alegrias, angústias e expectativas tantas vezes frustradas.
Agora, aqui, no centro da noite, parece ter o tempo estancado de repente e é como se planasse num presente eterno tal como os deuses. Por isso me é dado debruçar-me sobre o que passou, o que se me passou tal narciso que se mira nas águas dum lago... enlevadamente.
PRELÚDIO
São meus os meninos, só meus. Dormem entre as flores dos lençóis, flores de pétalas ao vento e de longas pernas... e fogem, as flores, brincam às escondidas com os palhacinhos brejeiros de nariz escarlate que as perseguem pelos sonhos, todas as noites... dormem os meninos na quentura do quarto decorado de papel azul onde raia o Sol e se esconde a Lua e estrelas nascem a cada momento; sonham sonhos risíveis povoados de sorrisos e de livres gargalhadas ao ar livre.
São assim os meninos; estes são meus porque assim o quis. Germinaram no meu ventre, tomaram conta dele, do meu corpo todo e do meu coração porque os amo para além do possível até ao absurdo. Edgar, Jorge e a pequenina Clara, a plena alegria, dormem e não sabem da minha solidão.
O ”blizzard” inventou na rua uma paisagem de conto de fadas - neve, montes, cordilheiras, abetos perfilados, brancas cavernas onde dormitam gnomos, fadazinhas de asas transparentes, enfim, todas as imaginações do Norte. Reina o frio. Tudo parece inerte como um limbo, lá fora; mas a atmosfera do quarto é morna, suave como os beijos dos meus filhos.
Não sei há quanto tempo aportei a este mundo fantástico, para mim estranho de tão habituada à explosão da luz.
O rodar do comboio interrompe-me o fluxo dos pensamentos, sobressalta na noite a silenciosa brancura. Observo mais uma vez a paisagem fossilizada na sua rigidez de cristal. Ilumina-se a face clara dos meninos... Sonham, tal vez, com um raio de sol, perseguem-no por entre as árvores de ramos pendentes, carregadas de prata, porque o Sol é tudo neste país de nevoeiro e eternos nevões, preenche o imaginário das gentes como um mito antigo; só dele se fala em conversas banais, nas cançonetas da rádio, nos mais eruditos poemas como apelo a um deus ausente... Falar do Sol ,é esconjurar a maldição do Inverno, é antecipar a alegria de vê-lo erguer-se radioso, augusto sobre o cume do Mont-Royal.
Divago porque me recuso a procurar o fulcro... mergulhar no centro, esgravatar a fístula... evito sangrar.
O comboio passa e não sei qual o destino, passa longe e para longe num bramido de vento, anúncio de tempestade.
A luz das carruagens (quem vai lá dentro?), projecta na neve um mágico clarão, rasto luminoso que se perde na distância com o comboio que passa e diz: Trois Rivières, London Ontario ou Québec City. Tudo passa... Mas a voz que vem do outro lado do mundo, da outra margem do tempo ainda ecoa na minha cabeça: ”Tu és Maya. Ilusão. Sabias, Maya? Tudo é ilusão.” Sigo-a.
Rasgam-se véus... a campainha da porta retine, uma, duas, três vezes, como todas as noites ou quase todas e ninguém toca à campainha. Tudo é ilusão. Aqui só eu e os meninos que dormem e a solidão grande preenchendo o vazio.
O comboio passa rasgando a brancura, vou nele ou com ele pelos gelados caminhos ou por artérias palpitantes que conduzem ao coração dos sonhos, às entranhas das sombras.
Faz frio. Ai que saudade do Sol!
A morna claridade dum sol de Dezembro derrama-se sobre a minha cabeça, escorre-me pelo corpo como um chuveiro de luz.
Lá vamos, só eu e Sol, Rua do Carmo acima...
Telefonou-me Rodrigo: a agitação denunciava-se-lhe na tremura da voz:
- Vem ter comigo à Brasileira. Depressa; preciso falar-te. - E antes de desligar revelou: - Foi um alvoroço em casa de D. Ermelinda...
Acelero o passo enquanto penso em Rodrigo, agora meu esposo, tal como desejei e vou recordando, não sei porquê, momentos do nosso namoro urdido de mãos dadas, de flores oferecidas impulsivamente, de beijos trocados em ruas desertas... de carinhos em casa de D. Ermelinda que nos oferecia lanches adoçados de compotas e bolinhos de manteiga para de seguida nos deixar ”arrulhar” à vontade como costumava dizer nem sem primeiro e quase invariavelmente admoestar Rodrigo num jeito maternal a propósito da vida sem norte que levava:
- Então menino, quando ajuíza? Olhe que assim não merece a cachopa. A bisneta de Pedro Diogo de Valeperdido não é para qualquer um. Veja se estuda e arranja modo de vida, que isto de ser governada pelo papá... - Sorria para amenizar o raspanete; Rodrigo retribuía o sorriso como criança que deseja fazer-se perdoar.
Frequentara Medicina, primeiro, depois Direito, de repente decidiu ser marinheiro e matriculou-se na Escola Náutica. Procurava, procurava-se; por isso o que fazia ou não fazia nunca dava fruto.
Vivia sempre e só o momento, pleno de entusiasmo; mas sem projectos de futuro. Eu percebia isso, mas acreditava que havia de mudar; perdoava-lhe todos os desatinos por amor ao sorriso ingénuo, pelos olhos magníficos onde simultaneamente se digladiavam o brilho da ternura e as cintilações do metal. Amava-o pela contradição que nele se manifestava. Amava-o e não sabia bem porquê. Vamos lá explicar as razões do amor! De uma coisa estava segura: por ele iria até ao fim do mundo, até às profundezas das trevas da indignidade. E assim foi.
Agora Rodrigo telefonara-me sem conseguir disfarçar a aflição: - Foi um alvoroço em casa de D. Ermelinda... - O que seria? Uma onda de preocupação abateu-se sobre mim. Estuguei mais o passo...
Sozinho, a uma mesa, virado para a porta, Rodrigo aguardava numa impaciência que se revelava no tamborilar nervoso dos dedos no mármore do tampo.
- Senta-te. - Ordenou. Havia na sua voz uma rispidez desagradável.
Por instantes o silêncio instalou-se entre nós como a espessura dum muro; à volta tomava-se café, conversava-se, discutia-se acaloradamente a peça de teatro de Sttau Monteiro Felizmente Há Luar; de súbito, o tom das vozes desceu até reduzir-se à dimensão do cochicho; vaguearam pela sala olhos inquietos; segundos depois toda a gente regressou à conversa, mas em sussurro.
- E D. Ermelinda? - Perguntei.
Rodrigo foi emergindo do poço de silêncio em que até aí estivera mergulhado:
- Sabes lá... Eu não presenciei. Quem me contou foi o Pedro Aleixo que lhe contou a criada: estava a pobre senhora na sua hora do chá; recebia o doutor Faustino, visita muito antiga lá de casa quando irromperam porta dentro como uma horda e puseram-se a vasculhar tudo, sem respeito nem consideração pela intimidade alheia, tudo, desde as gavetas até à despensa, dos móveis da sala aos guarda-fatos, por detrás dos cortinados, até debaixo das camas espreitaram. Procuravam o jornalista, sabes, o hóspede...
Bem lhes afiançava D. Ermelinda que o homem tinha desaparecido lá de casa fazia perto dum mês. ”Onde está, onde não está?... E a senhora acoita malandros daquela espécie, inimigos de Deus e da Pátria... deve ser da mesma cor.” E lá foi D. Ermelinda e o doutor Faustino e Maria Eva que também lá estava, todos para a António Maria Cardoso.
Fixo o mostrador do relógio: cinco horas da tarde. Não sei porque o faço; o que procuro ao querer certificar-me da hora; talvez pretenda reorganizar as ideias, esquecer por segundos o caos que nos engole.
Pessoas passam na rua; admiram as montras, entram e saem dos cafés, conversam. Não parecem tristes nem alegres; mas há um mal-estar que paira, como se todos tivessem certos duma catástrofe próxima. De vez em quando parece-me ver crisparem-se os rostos de ansiedade; os olhos denunciam uma angústia permanentemente recalcada que lhes frustra o brilho...
O que se passa neste país, hoje, felizmente bem o sei. Ignorar é o pior dos males. Longe vai o tempo da minha inconsciência das coisas, das absolutas certezas - de um lado os que têm e podem, do outro os que nada têm e por isso nada podem. Dividida a humanidade em duas partes: ricos e pobres e assim estava bem só porque sempre assim foi, como se os homens não fossem todos da mesma natureza.
Aquilo tinha que acontecer um dia: o sr. Neto jornalista e comunista hóspede da casa, as reuniões até altas horas, o abrigar perseguidos da polícia política e as vizinhas, a perversa bisbilhotice lisboeta. - Quem é, quem não é? Entrou um desconhecido de chapéu preto e rosto velado por um lenço de xadrez... E pergunta-se ao carteiro e suborna-se a criada com pirinhos de arroz-doce e o marido da porteira do prédio ao lado que é polícia... Passa-se coisa em casa de D. Ermelinda. Lisboa é uma aldeia, tudo se conta, tudo se sabe...
Aquilo um dia tinha de acontecer. - O Neto, segundo consta, mergulhou na clandestinidade. - Confidencia Rodrigo num fio de voz, fazendo um trejeito que lhe arrepanha os lábios, lhe franze o nariz, colocando-lhe dois vincos, como dois trilhos profundos na nobreza da fronte. Deve ser terrível viver assim...
- Assim, como? - Perguntei distraidamente porque o pensamento me fugia para longe, para D. Ermelinda, a folgazona e disponível D. Ermelinda agora encerrada na sinistra António Maria Cardoso, rodeada de esbirros...
- Viver assim na clandestinidade, sempre receosos que nos descubram, que alguém nos reconheça... nos denuncie.
- Explica Rodrigo. E os olhos confessam outros receios que não ousa revelar.
- Nada tens a temer. - Digo-lhe com convicção estreitando entre as mãos os seus longos dedos. - Foste mero observador e... nem sempre, do que se passava em casa de D. Ermelinda. - Rodrigo suspirou aliviado; as minhas palavras sempre tiveram o mágico condão de o acalmar. As feições alisaram-se-lhe, ficou de novo sereno.
- Isto é uma trampa! - Era a minha vez de desabafar. Ele assentiu com um movimento de cabeça.
E era mesmo... um país de exilados... Antes o exílio lá fora, de preferência a distância porque esbate as cores da realidade que se teme encarar.
Olho amoravelmente o jovem tão belo, mas tão frágil de quem fiz meu marido sem pedir conselho ou consentimento a ninguém, talvez nem dele próprio. Quem sabe?...
Já nesse tempo a morte tinha arrebatado o avô aos tenebrosos caminhos da loucura; não havia portanto ninguém a quem pedir consentimento. O tio Filipe? Por onde andaria? Esvaíra-se como fumo... Filomena vivia em Paris e havia muito que não comunicava comigo. E Sabina? Limitei-me a participar-lhe: ”Vou casar com Rodrigo, o rapaz de que já te falei; o tal que nada leva a sério, que brinca com a vida, que não sabe lá muito bem o que quer; mas mesmo assim caso com ele porque o amo, embora não perceba muito bem porquê.” Sabina não gostou e como uma profetiza disse-me entre lágrimas com a voz alterada que era um disparate... que me ia decerto arrepender... que Rodrigo não era homem de fibra... um garotelho... que pensava que tinha mais senso...
Era aquela hora em que o poente tinge de sangue o montado... Fui cruel naquela hora ao dizer-lhe que me limitava a participar-lhe e não a pedir-lhe autorização porque, afinal ela pouco mais era do que uma muito antiga serviçal da família Valeperdido, dedicada sim, de confiança também; amara o avô disso ninguém duvidava; mas apesar de tudo não era uma Valeperdido... Calei-me e corei, já arrependida, já envergonhada...
Sabina endireitou-se um pouco mais no seu metro e setenta e sem uma palavra sem um olhar virou-me as costas e saiu da sala altiva como uma rainha.
Ainda hoje me perturba a profunda dor que nessa hora lhe embaciou o olhar.
Durante muito tempo foi como se o laço de amor e ternura que queríamos inquebrável se tivesse desatado, esgaçado, partido e ambas tivéssemos ficado flutuando frente a frente como se uma mágica força ali nos mantivesse sem nos permitir a aproximação ou afastamento definitivos. Era a consequência das palavras não sentidas, mas desastrosamente pronunciadas por mim nesse dia aziago.
Pela palavra se vive, pela palavra se morre, se mata também. Ela é o alfa e o ómega, princípio e fim de tudo quanto existe.
Eis-me em frente de meu marido, pomo de discórdia entre mim e Sabina, minha amiga, minha ama, minha mãe.
Vou pensando tudo isto enquanto Rodrigo folheia distraidamente o Diário de Lisboa, mal conseguindo conter a ansiedade que se lhe revela no tremor das mãos que seguram as folhas gatafunhadas de negro.
A angústia está sempre presente; cresce como um monstro, tudo e todos envolve com suas negras asas; ensombra a sala onde se toma café, a rua, Lisboa inteira, Portugal inteiro... e para além do mar. Vivemos num país triste de triste sorte e triste sina.
Abafo. Todos abafamos. Um inexplicável repentino desejo de fuga acende-se dentro de mim como um fósforo que riscamos no escuro e faz nascer uma pequena chama de esperança.
Quero respirar livremente a plenos pulmões num mundo sem fome, sem opressão... Loucura. Onde fica esse mundo, esse reino de conto de fadas. Camelot? Utopia? Mesmo que não exista procurá-lo-ei, se necessário inventá-lo-ei, numa exaustiva, demanda pelos caminhos da Terra como incansável cavaleiro andante...
Quando se é jovem tudo se pode. O impossível não existe.
- Vamos embora, Rodrigo. - Propus antes de explicar o que se me passava na mente.
- O quê? - Fez ele sem entender o que pretendia, que tipo de proposta era aquela e informou sem responder ao que eu acabava de dizer:
- Sabes, parte amanhã mais um contingente para o ultramar.
- Vamos embora, Rodrigo. - Repito. E da voz escorre lascívia tal a dum sedutor que convida para um erótico encontro.
E como ele parece não me prestar atenção, deixa passar em branco a minha proposta como se o ouvido não conseguisse captar os sons nem o cérebro interpretá-los parti para o ataque:
- Queres ir para o ultramar, Rodrigo? Queres combater os pretos? Matar quem não conheces e nunca te fez mal? Queres, Rodrigo? - O meu marido parecia ir despertando, compreendendo... Respondeu:
- Não. - Como que saindo dum sonho, como quem sai do fundo de um poço onde toda a gente guarda os seus segredos.
- Então fujamos como outros, tantos... Vamos embora, Rodrigo. - Insisti.
Por instantes, em silêncio, ele ficou a olhar-me com os seus olhos enormes que de súbito se iluminavam como uma estrela que brilha num céu toldado de nuvens.
- Fujamos. - Concordou.
Para além do Oceano
Cheguei a Nova Iorque. Como vim e ao que vim, não consigo agora explicá-lo; só sei que estou aqui... em Nova Iorque, a misteriosa, acenando extravagância, extravasando sedução como uma mulher fatal: Nova Iorque, grito de deslumbramento, de noite recamada de ouro na fachada dos arranha-céus, entrecortada de curtos silêncios, de soluços, da estridência das sirenes e de outros gritos; de dia garrida, plena de promessas de mudança nos ademanes dos ”Flower-People” que pululam na pacatez quase campestre do Village, sonhando novos mundos à sombra do Arco Washington ou, transpirando exotismo nos trajes brancos dos muçulmanos na Rua 14, na cantilena e nos guizos dos Hara-Krischna que calcorreiam os passeios da 5.ã Avenida ou as bermas do Central Park como quem cumpre um destino; Nova Iorque espraiando-se espalhafatosa na alegria dos irlandeses que desfilam em parada em dia de S. Patrício; Nova Iorque sonhando a Idade Média que nunca viveu nas suas catedrais de fisionomia gótica que se erguem altivas no céu conturbado de gases letais; catedrais tão recentes, mas que se querem pesadas de séculos... Nova Iorque onde ingenuamente cremos ser possível a realização de todos os sonhos, porque aqui, mais do que em qualquer outro lugar do mundo, veste a mentira roupagens de verdade. Nova Iorque simulacro...
Porque me encontro aqui e não em qualquer outro sítio do planeta?
Perco-me nas ruas longas largas como o estuário dum rio que se cruzam numa enervante simetria, pejada de gente de todas as cores, de todos os credos. Tudo é extraordinário e desmedido.
Aqui sou Gulliver no país dos Gigantes.
”Rockefeller-Center”. Debruço-me sobre o gradeamento de um dos terraços e admiro lá em baixo os patinadores que deslizam sobre o rectângulo gelado que reflecte cintilações de prata. Concentro-me nas figuras coloridas que, compenetradas se deslocam ao som da valsa, esquecidas por instantes da ”Grande Cidade”, das-tragédias que encerra, da enorme solidão.
Quero também agora esquecer que me encontro nesta estranha cidade onde todos os dias aportam os ambiciosos e os deserdados da terra que não desistiram da esperança e acreditam ainda no El Dorado.
Caminho. Já diviso o triunfal Arco de Washington, pórtico sempre aberto para a serenidade da praça que tem o mesmo nome - Washington-Square.
Ao ultrapassá-lo entra-se noutro mundo, Nova Iorque é outra - é a Universidade de rosto quase rubro, como que transpirando ciência e saber, são as ruelas estreitas e as casinhas arrimadas umas às outras de portas abertas para lojecas onde tudo se vende - bijuterias, artesanato, alguma arte de artistas quase anónimos. Há também livrarias e alfarrabistas e nas ruas alguns pintores que se esforçam por aprisionar na tela o próprio céu, como se ali isso fosse possível e há os italianos e portugueses na azáfama diária, perseguindo o sonho da fortuna; e também Santo António de Lisboa que os italianos afirmam categoricamente ser de Pádua, desfilando em procissão com arcos e andores e velas e dólares que verdejam sobre a sua roupagem, em treze de Junho, seu dia consagrado.
É tudo isto Nova Iorque e muito mais e o que eu não sei ainda, mas de que ouço falar: a máfia italiana e chinesa, a prostituição, o jogo à mistura com os ”shows” da Broadway e do Radio-City e dólares, muitos dólares e racismo de branco para preto e de preto para branco. Nova Iorque é também o Harlem e os desesperados ameaçando lançar-se do topo dos arranha-céus, querendo estatelar-se em baixo, esmagar-se como uma ”pancake”... espalmadinha... e os mirones, sequiosos de espectáculo: ”Atira-te; atira-te”. Em Nova Iorque tudo é espectáculo da ”Broadway” à Wall Street.
Nova Iorque é um tango invulgar dançado ao som da música de Bernstein no Lincoln Center ou Carnegie Hall e do rock que jorra das ”boxes” que os negros transportam ao ombro pela Rua 14, pela 42, no passo ritmado e gingão de caçador astuto que lhe ditam os genes.
Nova Iorque! Múltiplos universos que nascem miraculosamente do tenebroso caos.
E eu lá vou como que arrastada pelo vento, encetando a aventura que sempre desejei.
Sento-me num banco, sob as árvores. A saudade é como uma asa negra ensombrando o rosto claro duma estátua. Saudade dos largos espaços - a planície adormecida ao sol; o Tejo brilhando ao meio-dia; o embalo das ondas num mar de Verão... Saudade do terno abraço de Sabinasaudade do meu país natal que me acena de longe, agora com promessas de paradisíaca felicidade porque este estranho sentimento tal como a paixão encobre o que é ignóbil, sujo frustrante no objecto que o desencadeia para no-lo apresentar com as cores, os atractivos da Perfeição.
Tudo o que de doloroso ficou para trás, esbateu-o a distância, deu-lhe a saudade suaves contornos e a dor é uma agridoce emoção que nos traz aos olhos uma consoladora lágrima.
Penso no avô Manuel Diogo e no seu triste fim; iftas a dor da perda, já não é tão pungente. Penso nele com ternura; vejo-o sobretudo ainda moço e alegre carregando às cavalitas a inocência dos meus verdes anos. Lembro a sua sonora gargalhada que despertava os pássaros sonolentos de calor aconchegados nas ramagens e também os olhares que trocava com Sabina num tempo de inconsciente felicidade. Era um olhar diferente de todos os outros, assim como uma carícia, uma dádiva tão generosa como uma tença real. Que diria ele se soubesse a sua neta, a menina de seus olhos ali, no emaranhado daquela cidade de um tempo futuro. Que teria dito se a tivesse presenciado a trabalhar na fábrica do Jim, o judeu de bigode loiro e olhos pequeninos e astutos que por ter uma amante brasileira contratava todos os que se exprimiam na língua de Camões?
Maria aproximava-se, interpretava o que dizia o ”portuga” e acrescentava numa voz rouca sorrindo dengosa: ”Yes love. Parece-me uma boa aquisição...” e o homem ou mulher começava de imediato a trabalhar na fábrica do judeu sob os sorrisos auspiciosos da brasileira.
Se o avô visse sua neta naquele sítio lúgubre fazendo descer a guilhotina ao longo das horas - uma, duas, três... oito horas sobre rimas e rimas de papel... vincando desdobráveis minuto a minuto... de olhos fixos e respiração suspensa... O que diria o avô Manuel Diogo? E o judeu ”ao alto”, vigiando, apressando, fazendo acelerar o ritmo: ”A encomenda tem de ser entregue hoje sem falta”. A voz dele assobiava nos meus ouvidos como um vento que ameaça e nos dos outros operários que para ganhar o ”green” permaneciam dobrados sobre si próprios, o corpo e a alma sob o chicote da sujeição.
Talvez não conseguisse estabelecer paralelo algum entre o judeu e ele próprio quando ”patrulhava” suas herdades e passava altivo e indiferente ao sofrimento dos camponeses curvados a seus pés.
Mas o avô Manuel Diogo, Sabina, Filomena, Chico Canito, Maria Eva, D. Ermelinda eram personagens de um outro mundo, de uma outra história. Esta, era a minha história e de Rodrigo a história dos que haviam decidido virar as costas e partir para a aventura e começar de novo cautelosamente a trilhar um outro caminho onde de longe nos acenava um futuro que acreditávamos mais risonho.
Jorge agita-se na cama, bate com as suas mãozinhas sobre a dobra do lençol aflitivamente. Afugenta talvez um pesadelo. Esvaem-se as recordações... Permaneço atenta, de orelha afitada como um cão fiel espiando o perigo. O menino inspira profundamente e a placidez de quem se passeia por aprazíveis caminhos espelhou-se-lhe no rosto. Tudo regressa à normalidade.
Edgar, Jorge e Clara, os meus três meninos, os meninos de Rodrigo que é um menino também.
Nasceu Edgar no Outono quando em Lisboa amareleciam as árvores e uma ténue névoa cobria o rio que exalava um forte odor a maresia.
Exultou o meu coração perante aquele pequenino ser tão vulnerável que se debatia no tremor dos meus braços.
Embebi-me da inocente claridade do seu rosto e procurei logo a seguir o olhar de Rodrigo na urgência da partilha desse sentimento tão novo, límpido, até aí desconhecido; mas as pupilas dele só me revelaram a opacidade da pedra que não permite nenhuma transparência. Se os olhos, na verdade, são o espelho da alma, então, de pedra era, naquele momento a alma de Rodrigo.
Apagou-se a alegria que em meus olhos brilhava.
Com alguma estranheza desviei o olhar para o ser tão pequeno que se me aninhava nos braços - o meu filho, o filho de Rodrigo que parecia não reconhecê-lo porque saiu quase de imediato depois de colocar-me na fronte um beijo fugidio.
Durante uma semana não tive novas de Rodrigo. Até hoje ninguém sabe por onde andou.
Nesses dias de abandono instalei-me quietamente, sobressaltadamente em minha casa rodeada dos carinhos de Sabina que, esquecidas as passadas quezílias acudiu ao meu pedido de socorro.
Ele, meu marido, o pai de Edgar, regressou por fim; não deu explicações e nem tão-pouco lhas pedi como se a recordação desse lapso de tempo e de tudo que durante ele se fez e se não fez tivesse desaparecido de nossas mentes, definitivamente apagada por uma súbita amnésia.
Edgar! As longas pestanas sombreiam-lhe a face pálida. O sorriso, quando se lhe desenha nos lábios é denúncia de apreensão, de insegurança, quem sabe se de medo das carantonhas do mundo.
Edgar filho de Rodrigo, filho meu, que sonho ruim te leva a amarfanhar a dobra do lençol com mão nervosa enquanto dormes?!
A vida de Rodrigo é entretecida de fugas, ajustando-se umas nas outras em anéis duma cadeia que dir-se-ia infinita.
Foge Rodrigo indiferente aos outros e à dor que provoca aos que bem lhe querem; foge Rodrigo dos outros ou de si?
Jorge veio ao mundo sob o signo do Carneiro, jovial e enérgico desde o dia em que viu a luz; mas seu pai não deu por nada, não dá por nada...
Clara, a princesinha das neves; nunca saberás, Clara a alegria e a simultânea mágoa que me trouxe o teu nascimento.
O silvo do comboio perdeu-se na noite, ao longe, como um soluço que se esbate na distância. Rodrigo ainda não regressou da viagem a Halifax: hoje Halifax, ontem Toronto, noutro dia Trois-Rivières, Québec-City, Vancouver, Nova Iorque e assim percorre a América acompanhando vagas de turistas... Rodrigo guia turístico. Quem havia de dizer?!... Fui eu quem o lançou nesta carreira. Talvez vagamente pressentisse que isso lhe convinha. Deste modo não necessitava inventar motivos para fugir, porque fuga era o seu modo de vida.
Foi ainda em Nova Iorque. Renato Calabrês, brasileiro, oriundo de italianos e de portugueses (vangloriava-se de seu bisavô transmontano que num dia do fim do século XIX arribou à terra de Santa Cruz e aí fizera fortuna que por estranhos motivos mais tarde se esgotou, e que agora não vem ao caso saber as causas e razões; como tantas fortunas outras que o diabo dá e o diabo leva).
Ora, Renato, herdara do bisavô a fome de aventura e o desejo de enriquecer. Como ele partiu em demanda de outras paragens, no seu caso Nova Iorque e enquanto as portas do palácio da riqueza e prosperidade se lhe não abriam ia dando umas aulitas de Português na Berlitz School of Languages. Foi aí que nos conhecemos.
Nessa época vagueava Rodrigo pelo Village, pelo Central Park, apático, sem projectos nem rumo.
Tinha recusado um lugar na fábrica de Jim, o judeu, outro num supermercado ainda outro nos armazéns Mays... Tudo recusava, porque nada parecia estar à altura de seus interesses; mas eu conheci Renato e Renato era um fura-vidas; tinha sempre um emprego na manga, algo de que pudesse socorrer-se em caso de necessidade ou para um amigo, compatriota ou alguém que despertasse a sua simpatia.
Foi assim que Rodrigo ingressou na ”Turismo Brasileiro”, na agência em Montreal. Para ele tanto fazia habitar Nova Iorque ou Montreal, Toronto ou Filadélfia desde que a fuga lhe fosse possível.
Instalou-se em Montreal ou melhor instalei-me em Montreal com os meninos...
A solidão adensa-se dentro de mim, depois é como se se expandisse na noite, para se fundir com ela; propício é o momento ao surgir inesperado de lembranças.
Vivo em Montreal com os meus três filhos, meus, só meus, porque Rodrigo nunca os desejou. Sonhei-os, concebi-os no ventre, no coração na mente também tal Zeus, o pai dos deuses. Concebi-os no desejo alvoroçado de criar. Rodrigo foi apenas um instrumento... quando lhe propus que constituíssemos família não disse que sim, nem que não; limitou-se a consentir.
Clara, ei-la que dorme regaladamente, a face repousando na palma da mãozinha perfeita. Mal sabes tu, Clara que existes por minha determinação e vontade!
Foi numa noite assim, noite de bruxas, em que o blizzard percorria as ruas enraivecido.
Encontro-me junto à lareira incandescente. Fulvos fantasmas deambulam na semi-obscuridade da sala. Sonho outras lareiras mais consoladoras acesas pela ternura de Sabina, aquecidas pela vaga saudade de Filomena, ateadas pelo sorriso de dentes muito brancos do avô. Sonho outras lareiras noutras noites que já foram... Mas, nesta noite em que a neve se despenha em branco turbilhão, batida, açoitada pelo vento, nesta noite tenho um segredo para contar mesmo junto ao ouvido de Rodrigo que tarda. Impacientemente espero, batendo levemente o pé no soalho num ritmo ansioso. E Rodrigo que não chega! Tenho pressa do minuto abençoado em que depois de lhe contar o meu segredo ele me fará a oferenda que cada mulher deseja do seu homem a expressão sincera do amor que por ela nutre.
O fogo crepita. Lá fora o vento calou-se e a noite é branca - campo coberto de lírios brancos, árvores vergadas ao peso de argênteas jóias lavradas pelo frio intenso, faiscantes à luz pálida da Lua, círculo perfeito como se um cósmico pintor tivesse acabado de traçá-la no negrume do céu.
Penso em Filomena e, vagamente no quadro a cuja criação fui assistindo quando menina - Senhora das Sete Luas.
E, não sei porque me tocou o dedo da superstição; uma prece surgiu nos meus lábios: ”Senhora das Sete Luas, verte sobre ele o filtro do amor para que finalmente possamos ser uma família de verdade”.
Uma gargalhada sarcástica vibrou na sala e dentro de mim.
Como é ridículo o amor quando ingénuo! Expulsa do paraíso, recorria a meios e estratagemas, na ânsia de a ele regressar, como se tal fosse possível.
Ninguém vê, ninguém repara, ninguém sabe; sei-o eu porque no meu rosto se vincaram os seus dedos e essa marca, como que gravada a fogo permaneceu-me no coração para sempre.
A mão dele voou colérica e veio macular a inocência da minha face; ninguém viu, ninguém soube; mas ainda hoje enrubesço de vergonha só de recordá-lo: ”Não quero esse filho, ouviste?!” e fixava-me com os olhos desmesurados, dois abismos ameaçando tragar-me: - Despacha-o...
Se tu soubesses pequenina Clara, se adivinhasses...?!
As lágrimas escorrem, dois líquidos riscos na geografia do meu rosto.
Virou-se-me a alma do avesso, confundiram-se-me os sentimentos como quem agita dados num copo. Qual é qual? O que é o amor? E o ódio? Talvez a face contorcida do amor. Sem resposta fiquei. Até hoje...
”Sou uma Valeperdido”, afirmei baixinho, ”Não consigo esquecer a afronta”, concluí em surdina para disfarçar o desejo de morrer que, de súbito, se abateu sobre mim, naquele instante em que acabava de revelar-se o outro que também era o meu marido, o dos olhos com cintilações de aço.
- Não, não e não. - Grito agora tal como naquela noite.
Vieste ao mundo, Clara porque assim o quis. Sinto-te ainda aninhada na cavidade do meu ventre já atenta aos sobressaltos do coração de tua mãe. Acaricio a pele, o músculo que te cobria, que se distendia no generoso esforço para te conceder espaço, mais espaço para que crescesses.
Sabia o meu corpo das tuas necessidades; inconscientemente se ajusta, se adapta numa dádiva total.
Passados nove meses o meu ventre era como uma esfera celeste pronta a uma explosão de luz.
Assim vivemos, o coração batendo em uníssono desde a tua concepção até ao teu nascimento. Nada nem ninguém conseguirá nunca desfazer esse laço.
E Rodrigo? Difícil falar dele agora. Chicoteou-me com o látego da indiferença; atormentou-me com ameaças de abandono e ainda hoje a isso recorre quando se apercebe que lhe escapo ao controlo que julga exercer sobre mim.
Mas fosse como fosse surgiste no mundo luminosa, como uma clara madrugada e chamei-te Clara, luz da minha vida.
Descai-me a cabeça sobre o peito. Tenho sono, tanto sono...
O Comboio
O comboio parou numa estação desconhecida envolta em bruma, monstro que irrompe dum sonho que se vive intensa e desesperadamente transformando-se em aflitiva realidade.
Acaricio com a mão a fofura da gola do casaco de pele sintética, imitando marta que suavemente parece lamber-me o pescoço.
A estação esfuma-se na distância. O comboio pára e fica a varar no descampado como barco que finalmente ancorou em porto seguro.
Ali e agora só eu e o comboio como se um estranho destino se preparasse para nos arrastar para uma ainda mais estranha aventura.
Uma onda de calor inunda-me o rosto: o coração acelera-se-me numa cada vez mais crescente excitação, tão intensa, mais intensa do que uma noite de amor vivida sob o clarão da Lua.
A neblina fina que envolve o comboio vai-se adensando e é já um espesso nevoeiro. Inesperadamente iluminam-se as carruagens; abrem-se as portas de par em par. Como que impulsionada por uma força invisível entro e, como se levitasse vagueio pela carruagem deserta. Espreito pelos vidros cobertos de pó na procura dum povoado, uma casa, a estação que se esvaiu, uma pessoa, um fantasma. Espreito e só descubro o campo aberto, a perder de vista, infinito. ”Infi-ni-to!” Exclamo na mente, sem me permitir a emissão dum único som. Esforço-me por compreender o sentido da palavra, do conceito - Infinito e é como se a consciência se me tivesse dilatado numa abrangência sem limites até confundir-se com a lúcida alma do mundo. Entendo porque sinto. Entender e sentir fundem-se, encaixam-se, são uma e a mesma coisa. Como num único grito ouço histórias já inventadas, mas ainda por contar, a repetição de outras já vividas e os presságios das que ainda há para viver. Tudo como num filme... E a imaginação é um cavalo enlouquecido que tomou o freio nos dentes e que não consigo deter.
O cortejo arrasta-se triste paralelo ao comboio. Tremeluzem chamas de velas - pequenas línguas de fogo lambendo a escuridão.
Flores brancas ressaltam na escura madeira da urna que encerra os dezoito anos de Clara. Não há lágrimas, só silêncio e revolta mal contida nas pupilas faiscantes e palavras amordaçadas na secura das gargantas.
Aconteceu ou está acontecendo?... Através dos vidros observo o féretro que coleante, sob a chuva, parece não ter princípio nem fim como se a terra recusasse o corpo claro de Clara. Sentado à beira da linha, Jaime esconde o rosto na concha das mãos.
- Tenho medo. - Confessou-me Clara naquele dia... Vem comigo. - E já não se lhe riem os olhos. Uma terrível inquietação estampou-se-lhe nas pupilas como uma nuvem que tolda a luz do Sol, uma argamassa que perturba a lucidez dum vidro. Longe ia a descontraída gargalhada em que brilhava a esperança.
- E Jaime? - Perguntei.
- Oh, Jaime!... - Foi a sua desconsolada resposta.
- Está bem; vou contigo. - Disse eu acariciando-a com o olhar. E acrescentei:
- Isto são coisas de mulheres.
Mulheres, nós? Nós a quem nada tinha sido ensinado e por isso muitas vezes entrávamos na goela hiante do lobo como quem penetra num palácio onde pensamos esperar-nos o príncipe dos nossos sonhos.
Mulheres, nós? Nada sabíamos da vida...
Disse assim: ”Isto são coisas de mulheres”, engolindo um soluço único para me não diluir num mar de pranto, porque sendo as coisas feitas por homem e mulher quase sempre só a elas competia desenredar as meadas que ambos tinham enleado.
Tudo isto pensei, enevoadamente, numa confusão do intelecto e dos sentidos.
Gigantescas eram as mãos, descomunais, de unhas carcomidas, ostentando duas repugnantes verrugas no polegar. Pairavam como dois abutres sobre o corpo de Clara estendida numa improvisada marquesa, coberta por um pano dum branco encardido, manchado aqui e ali de olhos de ferrugem.
Uma pálida réstia de luz trespassava o vidro da janela daquela cave bolorenta e lúgubre e deixou-se tamisar pelo franzido da cortina mole e iluminando, ao de leve o rosto pálido de Clara, de olhos fechados, abandonada à repugnância que parecia escorrer daquelas mãos enormes.
- Fala com a tua mãe, Clara. Conta-lhe o que se passa. - Ainda lhe supliquei antes de entrarmos naquele lugar infecto; mas o sorriso incrédulo, amargo que Clara me ofereceu lembrou-me o que já tão bem sabia: o escândalo, as desesperadas lágrimas maternas, o ser-se relegada para a franja marginal onde vegetam as mães solteiras, mulheres sem honra, condenadas para sempre à solidão, ao desamor, ao riso escarninho da sociedade burguesa. Clara era minha amiga e colega; entrámos...
As mãos numa azáfama repelente continuavam a movimentar-se no ar, atravessavam-no como se tivesse adquirido espessura. Respirei com dificuldade e Clara também.
Só então reparei na morte que espreitava na extremidade duma pinça que, como um bico adunco prolongava a gigantesca mão e soube que iam dilacerar as entranhas de Clara.
- Pare. Pare. Pare. - Grito com urgência. A mão suspendeu o gesto só por um instante.
- Pare. - Ordeno com autoridade.
Clara parecia não dar por nada. Já não era Clara.
Fugi. Lá fora o Sol girou três vezes à volta da minha cabeça entontecida como se desandasse dos céus sugado por um buraco negro e mergulhou num caos de nuvens razando a terra.
Abruptamente a chuva desabou.
Não vejo quem passa; mas sei que passam. E gente arrepiada sob o colorido dos guarda-chuvas, apressada, indiferente, absorta nas preocupações de suas próprias vidas. É outro dia de inverno.
Só eu sei que Clara já morreu.
A criança estremece dentro de mim como que tomada de grande aflição; cruzo os braços sobre o ventre, comprimo-o com as mãos espalmadas para apaziguá-la; falo-lhe suave e ela ouve-me, aquieta-se, sabe que alguém a protege e que no santuário que é o meu ventre ninguém conseguirá magoá-la porque eu, Maya, sua mãe, não permitirei. Nunca.
É uma menina e chamar-lhe-ei Clara, luz que há-de rasgar a treva em que me movo.
Tudo isto vou pensando enquanto observo ao fundo da carruagem Marie-Reine e Rodrigo enlaçados na penumbra. São eles, bem o sei.
Nunca hei-de esquecer o escândalo dos seus corpos nus no meu leito, meu e de Rodrigo, numa tarde ainda recente, quando de regresso a casa, incauta abri a porta do quarto.
Marie-Reine, a egípcia puxou num repelão o lençol amarrotado com pressa de cobrir o espectacular descaro da sua nudez.
Agora, ali estão, ela e Rodrigo abraçados na penumbra, envoltos numa aura de desejo, naquele comboio que parece ter irrompido de uma outra dimensão, dum mundo desconhecido, para que reviva emoções recalcadas nas profundezas do inconsciente.
”Não quero essa criança. Despacha-a. Já te não amo e em breve partirei para sempre”. Exigiu, ameaçou, declarou. Quando foi?...
Mantive-me firme no meu propósito apesar do desamor manifestado, das ameaças, da cruel rejeição e a criança dentro de mim tem agora corpo, membros perfeitos, um coração que palpita ao compasso do meu. Seguro a base do ventre com as duas mãos.
Rodrigo e Marie-Reine beijam-se. O desespero cresce, paralisa-me a raiva. Fuzilo-os com o olhar, mas não ouso intervir. Marie-Reine, a egípcia! Conheci-a pouco depois da nossa chegada a Montreal durante um curso de Inglês para estrangeiros. Quase impossível escapar ao encanto de Marie-Reine, ao sorriso misterioso, ao exotismo dos olhos rasgados que um traço negro de lápis prolongava quase até às têmporas. Quem poderia resistir à beleza que se desprendia da sua figura alta, esbelta, hierática cujos requebros despertavam lembranças dum mundo e dum tempo longínquos em que a mulher e o sagrado se uniam numa quase perfeita simbiose. Era assim Marie-Reine; é assim Marie-Reine, como uma rainha, uma sacerdotisa de volvidas eras. Seduziu-me porque a beleza associava a inteligência e a ternura. Fiz dela minha amiga... e... agora Marie-Reine e Rodrigo; Rodrigo e Marie-Reine. Não quero acreditar no que está a acontecer - Traição.
Lágrimas assomam-se-me aos olhos; não sei se é dor o que sinto ou a urgência de agir, aniquilar quem me sujeita e me abandona. Será ódio? Desejo de vingança? Quem sou eu afinal? Quem? Quem?... A interrogação vai esvoaçando entontecida pela carruagem. E o comboio estacou.
Retine a campainha da porta... Um breve silêncio... e uma chave entra na fechadura. É Rodrigo que regressa de Halifax.
Maya de Valeperdido desperta dentro de mim, ergue-se e como guerreira empunhando a espada, pronta para mais uma batalha corro ao espelho, aliso as faces com as pontas dos dedos; corre célere a escova pelo cabelo. Atravesso a solidão e renasço. Rodrigo está aqui e não pode ver-me chorar.
Desfolhando o Malmequer
Era uma vasta saia de linho verde semeada de malmequeres. O branco das pétalas chilreava no verde-escuro do tecido, pássaros esvoaçando na uniforme verdura de um bosque. Aberta como uma flor dominava todo o espaço da montra, chamava-me, seduzia-me com promessas de metamorfose: «Compra-me; cinge-me na cintura, permite que seja a segunda pele das tuas opulentas ancas e exalarás o perfume de jardins encantados, serás ave pairando nos céus; outra vez princesa serás.» E eu acreditei.
«Na longínqua China onde são possíveis todos os dragões e deusas de todos os nomes, a senhora Wu, sentada à beira do lago olhava distraidamente a flor de lótus e seus negros olhos eram profundos e húmidos como quando a noite desce sobre as águas.
Flor-de-Lótus se chamava também a jovem concubina que seu marido, havia dias, instalara em casa, porque ela, pobre senhora Wu, ia perdendo a elegância da cintura, o acetinado da pele; desgastava o tempo sua esplendorosa beleza; mas o hábito também havia embotado o desejo, carcomido o amor. Seu marido, como homem que era, exigia a quase permanente exaltação dos sentidos e assim surgiu a intrusa, cruelmente imposta por vontade de seu senhor - Flor-de-Lótus; mas a senhora Wu não se conformava com a situação apesar da exigência daquele costume de milénios. Assim tinha sido com sua mãe e a mãe de sua mãe e a mãe de , sua mãe de sua mãe, sua bisavó e a bisavó da bisavó, enfim, com todas as mulheres do seu clã, de todos os clãs. Sempre assim fora na vasta e enigmática China; mas ela convencera-se que havia de mudar o que a tradição mandava. Enganara-se e agora olhava tristemente a flor vogando no líquido elemento, ufana de sua beleza tal Flor-de-Lótus preenchendo com a sua beleza o coração do senhor Wu.
São assim os homens sequiosos de juventude como vampiros ávidos de sangue. Mas a senhora Wu amava seu marido, apesar das rugas, do ventre rotundo, da pele emaciada e achava-o tão belo como no dia em que realizados os ritos do casamento lhe foi permitido erguer os olhos para ele pela primeira vez e contemplar o seu sorriso decidido e franco.
A brisa perpassou por entre as flores da romãzeira e impregnou o ar dum estonteante perfume. Palpitaram as narinas da senhora Wu e um intenso prazer percorreu-lhe o corpo frágil e ainda moço apesar dos seus trinta e oito anos. Fechou os olhos e gozou aquele instante tão absoluto como a eternidade e soube que ainda não era chegada a sua hora de abandono. Estava viva, bem viva.
Foi então que, apesar do céu limpo e do brilhante Sol, se ergueu sobre o lago uma diáfana nuvem que veio pousar suave sobre a flor-de-lótus e dela irrompeu a cabeça aureolada de luz duma mulher, a seguir o tronco e os braços caídos ao longo do corpo. A mulher sorria com condescendência ao espanto que se estampava no rosto da senhora Wu. E a sua voz fez-se ouvir, embora os lábios permanecessem imóveis.
- Sou Quimera e estou aqui para te ajudar. Sou Quimera e habito o mundo da Imaginação; só pela imaginação hás-de resolver o teu problema. - E, enquanto isto dizia e os lábios se não moviam e a voz não vibrava no ar, veio deslizando até junto à senhora Wu que, estupefacta, não mexia um único músculo, não emitia um único som.
Conhecia a senhora Wu o nome de muitos deuses e deusas, senhores da terra e das águas, do céu cristalino e dos homens também, mas nunca daquela deusa tinha ouvido falar, pois deusa seria decerto a estranha figura que ora decidira revelar-se-lhe. Mas Quimera já mergulhava as mãos transparentes na terra negra onde penetravam fundo as raízes da romãzeira e, num punhado do fértil húmus, cuspiu três vezes e espalhou a negra argamassa sobre o rosto mimoso e as acetinadas vestes da senhora Wu e disse:
- Vai para casa. Não te laves nem penteies, nem vistas vestidos novos e faz de maneira que teu marido repare em ti. Não me perguntes seja o que for porque sou Quimera e agora não podes compreender os meus intentos. Mas fica sabendo que tudo isto faço-o por ti.
Perplexa, a senhora Wu obedeceu e não sabia porquê.
O marido ao vê-la assim enlameada achou-a repelente e disse de si para si: «Que bem fiz em ter escolhido Flor-de-Lótus para concubina porque é perfumada como as flores e luminosa como o Sol enquanto minha primeira esposa parece chafurdar nos dejectos dos porcos.»
E passou uma lua e outra e passaram sete luas e a senhora Wu vagueando pela casa, encardida e andrajosa, desprezada pelo marido, apupada pela rival, desrespeitada pelos criados desesperava que Quimera alguma vez regressasse ou quiçá, existisse. Talvez tudo fosse loucura ou apenas um sonho que se desfaz ao raiar do Sol. E o Sol raiou e era um novo dia, tão belo como nunca tinha visto outro e foi então que um raio de luz atravessou as flores da romãzeira e Quimera surgiu na clara manhã e, debruçando-se ao ouvido da mulher, nele depositou um segredo tão ciciado que nem a romãzeira conseguiu entender.
Que faz a senhora Wu encerrada nos seus aposentos, manhã fora? Pelas frinchas da porta escapa o perfume a rosas e a essência de jasmim. Interrogam-se os criados. Sobressalta-se Flor-de-Lótus. Que faz a senhora Wu encerrada toda a manhã em seus aposentos?
O Sol foi subindo no céu, cada vez mais quente, cada vez mais faiscante e chegou o meio-dia. Só então a senhora Wu abriu as portas e o brilho de suas vestes, o lustro de seu cabelo, a luz deslumbrante do seu rosto, o perfume que exalava, petrificou todos os circunstantes como se uma deusa tivesse descido do firmamento. E o senhor Wu caiu de joelhos aos pés da esposa, e seus olhos pequeninos e penetrantes diziam: «Minha amada, perdoa-me. Como pude ser tão cego e cruel».
A esposa envolveu-o com um olhar vago e viu um homem pequenino, de faces flácidas e ventre rotundo. De súbito, sentiu-se de coração liberto. Já não o amava e isso, era bom.»
Assim contava Jeanne. A propósito de quase tudo criava uma história e punha em acção sentimentos como o bonecreiro que coloca em cena os seus bonecos e puxa os cordelinhos, anima-os, torna-os gente. E Jeanne fazia o mesmo, munida da palavra justa, da fantasia, da agilidade verbal e por isso desencadeava a admiração de quem a conhecia e a amizade também. Eu, não fui imune ao encanto de Jeanne... Tornámo-nos amigas.
- Ele já me não ama. - Confidenciei-lhe entre a certeza e a dúvida, receosa que os deuses cumprissem o que aflitivamente pressentia.
- Talvez nunca te tenha amado. - Observou desabridamente Jeanne; mas ao aperceber-se da aflição que de súbito se me desenhou no rosto tentou emendar: - Ou talvez sim; aliás quem sabe o que é o amor?
Jeanne! A sedutora Jeanne! Tudo questionava. Com ela a dúvida vinha sempre beijar a opulenta face da certeza, como todo o francês que se preza; também as suas próprias certezas, a sua verdade eram questionáveis como depois, infelizmente vim a verificar.
- Talvez ainda possas reconquistá-lo ou então deixar de amá-lo. - Alvitrou.
E a história surgiu de seguida como uma porta que se abre sobre um esperançoso prado, onde a liberdade se exibe e um caminho se rasga como solução possível.
Lá fora a neve principiava a derreter-se sob um sol ainda tímido. Insinuava-se a Primavera; em breve desabrochariam as tulipas.
Jeanne! Conheci-a numa festa do Clube Português, festa de Natal com árvore e luzes e Santa Klaus... e prendas, muitas prendas para miúdos e graúdos, amigos e desconhecidos, tudo em nome do Natal à americana. Apresentaram-ma. Não sei já quem foi. Na balbúrdia de coros e rock e de cantos natalícios, de taças de ponche, talvez tenha sido alguém que eu própria não conhecia.
- Esta é Jeanne. - E pronto, já estava...
Simpática aquela jovem mulher. Devia rondar os trinta anos, alta, esguia, cabelo curto ruivo, rosto estreito inundado pela luz duns olhos azul-cinzento um tanto alucinados.
Encadeámos palavras, frases, fizemos conversa:
- Sou de Nanterre.
- Ah! Maio 68! - Exclamei.
- Também vivi isso. - Explicou-me com alguma nostalgia na voz.
- Sou portuguesa. - De nada valia dizer que era alentejana... Para quê?
Quando a festa acabou principiou a amizade, assim como um coup de foudre estabeleceu-se a empatia, a confiança instalou-se, sem sabermos bem porquê.
É quase sempre assim o despontar dos sentimentos: de repente uma pessoa até aí desconhecida integra-se no nosso universo como se desde sempre a ele tivesse pertencido.
Começámos a viver a amizade. Visitávamo-nos com frequência; íamos ao café, ao cinema, ao teatro, partilhávamos a leitura de livros, discutíamos sobre o mundo e a visão que dele tínhamos. Lentamente descobríamo-nos, ou pensava eu que assim era. O certo é que me era menos pesado o exílio.
Sabia quase tudo sobre ela ou julgava sabê-lo: aos dezoito anos tinha casado com Jacques escapando ao pai polícia, ao irmão polícia, a todos os polícias da família e por convicção ou oposição bateu-se em 68 ao lado do marido, estudante de Filosofia em Nanterre, naquele Maio que pretendia mudar o mundo. Depois, para escaparem à desilusão da utopia não alcançada, numa esforçada viagem num «deux chevaux» que ameaçava desconjuntar-se, a cada quilómetro, rumaram à índia. Foi um excitante ano de peripécias na demanda da «sagesse» dos sábios monges budistas... Regressou cansada, angustiada pela miséria que presenciou e que não podia remediar. Finalmente convenceu-se que não valia a pena persistir na luta porque a utopia era mesmo um inalcançável «non lieu», unicamente produto de nossos desejos e aspirações.
Rumaram a ocidente «en quête de mon Canada», o El Dorado dos franceses de que fala Tournier.
Quando nos encontrámos era já divorciada e proprietária duma pequena boutique de artesanato: vendia objectos de terracota, imagens em pedra de esquimós, bijuterias... num estreito espaço duma casinha térrea na «Cote dês neiges», pertinho do oratório S. José.
As senhoras bem de Outremont ou até do Grand-Boulevard visitavam-na com frequência, para comprarem uma pequena escultura, um vidro, uma cerâmica, uma peça em madeira que preenchesse um qualquer recanto vazio de seu chalet junto ao lago. Vinham e permaneciam por vezes meia hora, uma hora trocando impressões e até confidências, recebendo um conselho, saboreando uma história senão de moral pelo menos de exemplo, tal como eu que naquele momento a escutava hipnotizada pelo seu olhar azul, embalada pela sua voz ligeiramente rouca, sensual que ia contando:
«Na longínqua China...»
Comprei a saia de linho verde semeada de malmequeres, bandeira desfraldada apelando à esperança.
Bem-me-queres, mal-me-queres...
Salto para dentro do canteiro salpicado de flores brancas. Bem-me-queres? Se bem me quisesses não amarias Marie-Reine, Marie-Ange e outras que têm nome de pássaros, de flores, de fruta como Marguerite, Clementine e tantas que não conheço e que pertencem ao teu harém de princesas daqui, dali e doutras terras distantes... Se bem me quisesses não me fuzilarias com esse olhar desmesurado quase assassino quando tímida te pergunto pela razão da tua ausência.
Bem-me-queres? Mal-me-queres? Se me quisesses mal não irromperias pela casa, noite velha abraçado a um ramo de tulipas vermelhas mais rubras que os teus lábios cansados dos meus beijos e torturados de outros beijos. «Toma. É para ti». E eu acredito que, apesar de tudo, talvez me queiras bem.
A saia abraça-me os rins, expõe-me as ancas, desce-me até ao tornozelo em ondas de tecido verde, salpicado de branco. Na seda do top preto, salientam-se-me os seios - sou mulher e, mais do que nunca quero o meu homem; tenho de reconquistá-lo senão morrerei.
- Divorcia-te. - Aconselhava Jeanne insistentemente.
- É preferível a viveres como vives. Na realidade já estás só.
A verdade retinia nas palavras dela. Mas como renunciar ao olhar de veludo. Preferível era esforçar-me por conviver com o outro, o ogre que me humilhava e injustiçava... Tudo, menos a ausência total.
- Caíste no conto de D. Juan. Estás enfeitiçada. - Comentava a francesa e eu sabia quão verdadeiras eram as suas palavras. Mas como se liberta alguém dum feitiço se não for por outro feiticeiro?
Acentuo a linha dos olhos achinesados, polvilho o rosto com um pó fino, quase translúcido; aplico-me na maquillage que remato com um bâton cor-de-cereja. Estou bela, sou bela e ele reconhecê-lo-á, reconhecer-me-á finalmente.
A expectativa sufoca-me. Coloco na hora de jantar que se aproxima, todas as esperanças. «Precisamos de conversar...», dissera-me ele ao telefone, «Chego de Vancouver às 7 p.m. Encontramo-nos no Sol-Mar, Rua Saint-Laurent.» Disse tudo dum só fôlego, como quem receia esquecer a mensagem a transmitir. Quão imprevisível era Rodrigo!... e a esperança luziu tímida, mas tenaz por entre os escombros de antigas derrocadas.
- Que saia fantástica! - Exclamara Jeanne espalhando-a sobre o pequeno balcão da sua boutique.
Admiro-me ao espelho. Considero-me irreconhecível.
- Que saia fantástica! - Há-de exclamar decerto Rodrigo.
Vesti-a nessa noite de goradas esperanças e tal como neste instante ela transformou-me como a máscara ao actor; mas ele nem reparou... o olhar ausente, cego para mim...
Comemos com algum desgosto e em silêncio, um bacalhau no forno que a saudade nos ditou que encomendássemos. Estava seco, as batatas ensopadas num azeite reles. Rodrigo referiu-o vagamente: «Bacalhau para estrangeiros...» e calou-se.
Como eu desejava que reparasse, que dissesse depois de tantos dias de ausência: «Estás radiosa. Que saia fantástica! Favorece-te, adelgaça-te...», enfim, estas coisas que requer a sensibilidade feminina e que alguns homens sabem dizer sendo verdade ou porque lhes convém; mas Rodrigo parecia nem me enxergar como se propositadamente me reduzisse a uma sombra. Pagou a conta e saímos. Propôs-me então que subíssemos ao Mont-Royal. Concordei.
O automóvel percorre a estrada sinuosa que abraça o monte do sopé ao cume. A voz de Maria Callas cantando uma ária de Carmen vibra no exíguo espaço.
No escuro a cidade cintila. É uma torrente de luz desabando pela encosta. O ar frio, rarefeito seca-nos os lábios, as mucosas do nariz. Rodrigo estacionou no miradouro.
Por segundos admirámos a cidade cintilante. Aproximo-me dele, com os braços envolvo-o pela cintura, mas só encontro a fria ausência das estátuas. O meu calor já não desperta D. Juan.
Passaram segundos, uma eternidade e por fim, soltou-se no escuro a voz de Rodrigo. Não conseguia ver-lhe com exactidão o jogo fisionómico, mas a voz, magoada, falava-me de dúvida, de conflito, de receio, de expectativas que temia não viessem a realizar-se: «Encontrei finalmente a metade da minha laranja..., mas tu existes e os filhos que desejaste também».
O espanto cresce dentro de mim, toma conta do meu rosto, do meu corpo inteiriçado pela surpresa. Mal ousei perguntar num fio de voz: «Que queres que faça? Afinal que queres de mim?» E ele revoltando-se: «Estou loucamente apaixonado, mas tu, como sempre não entendes...» Mal consigo conter a raiva surda que, de súbito tomou conta de todo o meu ser. Quero dizer-lhe que desapareça, que saia da minha frente, que o detesto. Que tudo aquilo é insuportável, repugnante. Que não permitirei ser imolada no altar do seu egoísmo. Que me recuso ao papel de vítima. Ele lamentou-se: «Julgas que me não é difícil decidir entre vocês e...» Não ousou pronunciar o nome da outra.
Controlo-me, respiro profundamente o ar leve carregado do perfume dos pinheiros. Expandem-se-me os pulmões, o sangue corre-me rápido nas veias como uma nova seiva que circula num tronco quase ressequido. Reúno todas as forças, esconjuro os medos e jogo com os medos dele. A lucidez banha-me como um chuveiro de Primavera. Compreendi: Rodrigo pretendia que abençoasse o seu novo amor, tal como uma mãe... eu era para ele apenas isso - uma mãe que ama incondicionalmente e de cujo amor obsessivo desejamos libertar-nos e o ciúme, como um vendaval, desencadeou-se varrendo todas as outras emoções para se instalar no âmago, no centro de mim. «Não te libertarei; não te libertarei.» Penso confusamente, mas lacónica articulo apenas:
- Que queres? Não sou tua psicóloga para te orientar nem tua mãe para te abençoar. - E nada mais, só o silêncio, a noite, a cidade piscando na encosta e o olhar de ambos estupefacto.
Rodrigo nunca mais falou no assunto e a vida continuou triste como até então.
Os meninos rodopiam à minha volta e eu, dentro da saia semeada de malmequeres rodopio com eles - Bem-me-queres, mal-me-queres...
O sol intenso reflectido nos vidros avisa-nos do frio à solta nas ruas. Mil novecentos e setenta e quatro, Abril. O bafo da Primavera prepara o degelo. Sobre a mesa de tampo de vidro brilha o cetim dum ramo de tulipas deixado por Rodrigo ao partir de viagem para o Uruguai.
é Primavera. É Abril. Algo de bom está a acontecer e de novo verdeja a esperança.
A Explosão dos Cravos
Clara dorme no meu colo... Levantar às seis da manhã; correr para a casa de banho... toilette feita em vinte minutos... rápido pequeno-almoço (um copo de sumo de laranja e uma bolacha, chega, estou a engordar). A minha cintura já não é o que era... não é assim que ele vai voltar a amar-me... erguer os meninos muito ensonados, cabeceando: - Let me sleep mommy; let me sleep mommy. - Nunca dizem na bela língua de Camões: deixa-me dormir.
Pensamentos fugidios que me desfilam na mente e rompem aos poucos o nevoeiro que ainda me cobre o cérebro. Também eu tenho sono; não estou completamente acordada... O estalar dos flocos nas pequenas malgas encharcados no leite: - Vamos meninos; vamos que se faz tarde... - Apresso-os e eles de olhos semicerrados vão enfiando colher após colher na boca redonda, lambuzados de branco os lábios frescos.
Que pena sinto ao vê-los fazer um tremendo esforço para que os olhos se não fechem. Ali estão, obedientes, respondendo às minhas exigências sem compreender...
Que pena sinto por todos os meninos arrancados aos sonhos, à quentura dos cobertores, ainda mal desperta a manhã porque a sua diligente mãe deve picar o ponto antes das nove horas.
Na minha infância, não havia creche nem jardim infantil nem pressas de madrugada. Havia Sabina que vinha até à minha cama com torradas e leite, na manhã já rósea de sol e depois, a liberdade dum dia de folguedos.
Que pena tenho dos meus meninos, de todos os meninos desta sociedade de consumo em que a mãe é ”madame express”, mãe-operária, mãe-escriturária, mãe profissional... que se divide e se subdivide em múltiplas tarefas, o que a impede de ser essencialmente mãe.
Que pena tenho dos meninos de hoje, das mulheres de hoje que vivem a impossibilidade da plena realização.
”Que pena! Que pena! Que pena!” - Repito mentalmente como se pretendesse descobrir o verdadeiro sentido dessa palavra - pena.
Clara dorme num enternecido abandono. Gente entra, gente sai do autocarro, gente triste, ensonada, carrancuda como a manhã para além dos vidros. Gotículas de suor ensopam os caracóis de Clara. Está quente, mas lá fora a manhã ainda é de Inverno apesar do desabrochar da Primavera.
”Quando sair tenho de abafá-la bem, não apanhe pneumonia”. Nesta terra vive-se no terror desta doença, o que é natural: casas e carros a escaldar, lojas, escolas - tudo sobreaquecido e à nossa espera a rua gelada como a garra da morte.
Dentro de minutos chegaremos a Nôtre Dame de Grace e depositarei Clara no amor de Benvinda, em sua casa asseada, acolhedora. Ainda bem que a reencontrei; ainda bem que existe e que está aqui... Clara é tão pequenina, tão frágil para ser abandonada aos frios cuidados de uma qualquer ”nursery”.
Finalmente chegamos...
Bem-vinda sejas Benvinda à minha vida.
Olhou-me com os olhos pequeninos de pupilas inquietas, espertos olhos de camponesa afeita a todas as vicissitudes da vida e falou-me no português desentoado, cantante do meu Alentejo; a sua voz elevou-se no espaço anónimo do shopping-center, fazendo virar cabeças de gente curiosa que fixaram sobre nós os olhos escandalizados. - Quem ousava assim perturbar a paz do excelso templo do consumo?...
- A menina é portuguesa, na ei? Alentejana, na ei? Sorrio-lhe entre o agrado e a surpresa.
- Sou, sim senhora; sou portuguesa e alentejana... Mal acabava de pronunciar esta afirmação e já a mulher, de mãos postas, como se se encontrasse perante a Virgem Maria lamuriava, lacrimejante:
- Ai que é a minha rica menina, a Florzinha de Valeperdido!... Ai, esses olhos pestanudos não enganam...
E assim reencontrei Benvinda, a do seio farto e fofo como a lã das ovelhas e onde tantas vezes, menina quase bebé, adormeci ao som da cantilena que me fazia promessas impossíveis: Dorme, dorme meu menino/que a tua mãe logo vem./Foi lavar os cueirinhos à fontinha de Belém.
A mãe não voltaria da fonte... era apenas o retrato de uma jovem lânguida olhando tristemente como se se despedisse do mundo.
Benvinda, minha ama de leite, foi a mãe da minha primeira infância, e agora, como que por mágicas artes, encontrava-se na minha frente, na cidade das neves tão longe do nosso país de sol.
O homem fitava-me aflito, perseguindo as palavras que, hesitante eu ia pronunciando, num castelhano apenas reconhecível, de tão mesclado de português. Quando lhe pedi que se identificasse tal como exigia o oficial de imigração, respondeu-me que se chamava Juan Almabuena. No Chile, era médico e escritor; uma vítima como tantas da perseguição desenfreada do ”regime”.
Exprimia-se numa voz velada, como quem teme o ouvido do delator. Era alto, esguio e devia andar pelos quarenta Juan Almabuena, bizarro nome o seu; no rosto pálido brilhavam dois olhos negros tão intensamente como se estivesse acometido por uma febre maligna e o sorriso perpetuava-se-lhe na boca onde se vincavam duas leves rugas; era como um grito de denúncia, uma chaga que se recusa a sarar. Aquele sorriso era-me tão mais doloroso quão estrondosa era a alegria que me inundava naquela manhã de explosão de cravos.
- Aqui fica a encomenda. - Gracejei ao depositar Clara nos braços protectores de Benvinda e verificando no relógio o meu atraso, dei um beijo apressado à minha velha ama e dirigi-me para a porta enquanto explicava a repentina pressa:
- Tenho de estar às nove e trinta em Atwater para interpretar uns Chilenos. - A voz imperiosa de Benvinda cortou-me o passo:
- Espere Florzinha... que pressa é essa? Não ouviu na rádio a grande notícia? Está tudo em rebuliço lá para Portugal. Revoltou-se a tropa. Prenderam o Caetano e os outros. O povo está na rua a apoiar os militares. Até dizem que florescem cravos nas espingardas...
Desorbitam-se-me os olhos; o sangue aflui-me às faces; a alma enlanguesce-me de felicidade e surpresa; mas a dúvida permanece:
- Não acredito!
- É verdade. - Insistia Benvinda.
Ficámos por instantes a olhar uma para a outra como quem se desafia: ela que sabe ser verdade e eu que duvido.
Diz o oficial de imigração em francês e eu traduzo em castelhano:
- Ser-lhe-ão atribuídos sessenta dólares por semana, alojamento e roupa necessária para suportar o Inverno. Durante seis meses frequentará uma escola para imigrantes para adquirir alguma suficiência nas línguas do país.
Juan parece-me distante. Quem sabe se já saudoso da luz, do mar, das montanhas azuis do seu Chile.
Em Lisboa desabrocham cravos numa explosão de alegria. Levanto-me da cadeira. Terminada está a tarefa... É urgente regressar a casa. É urgente debruçar-me sobre o receptor de rádio; é urgente, mesmo tão longe, sentir o pulsar da Revolução... É urgente.
Só então reparo em Juan que silencioso me envolve no intenso brilho do seu negro olhar. Estendo-lhe a mão. Ele aperta-a energicamente; retém-na por instantes na sua. Os olhos não se despegam do meu rosto, da minha silhueta, da saia verdejando como a seara em mês de Abril e, na sua voz velada articula com seriedade num castelhano que talvez se queira português:
- A Senhora és bela como la liberdad.
Vejo ao longe o comboio que passa. Faz a curva por entre os ramos dos pinheiros. Hoje não vou nele nem com ele, apenas passa. Fico indiferente; não lhe atribuo importância porque a noite ainda não desceu sobre o lago, ainda não envolveu a terra no mágico abraço que nos conduz à mágica essência das coisas e da vida.
Fui assim pensando, naquele fim de tarde de domingo, fugindo ao que na verdade me preocupava: ”Este será o último domingo com Rodrigo”. Revelava-me uma voz interior, tão convicta que impossível me era contradizê-la.
O fogo crepita na lareira. Não estou triste. Viajam-me os olhos pela estreita sala do pequeno chalet de montanha, à beira do lago que admiro pela estreita janela. Tudo é dormente como um limbo, parado como uma gravura num livro de histórias.
Os meninos adormeceram de cansaço no sofá, depois de brincarem de Daniel Boon ao redor do chalet, A vida parece suspensa.
Também lá estava Juan Almabuena na festa de Solange, que é amiga de Jeanne, que é amiga de Lucas e sendo Juan amigo deste, também foi convidado. É assim que se passam as coisas nestes convívios de emigrantes e exilados: o amigo francês traz o amigo espanhol que com à vontade convida o chileno que convida o brasileiro que convida o português. Encadeiam-se pois elos de várias nacionalidades, das mais díspares origens.
Reencontrei Juan Almabuena pouco depois do dia da explosão dos cravos, numa sala em que se projectava um filme sobre a saída dos presos políticos de Caxias. Vivíamos um tempo de exaltação e esperança: reuníamo-nos no Centro Democrático Português, conversávamos, líamos jornais, comentávamos as notícias: ”Penso regressar em breve”. Dizia um, a lágrima travessa espreitando ao canto do olho. ”E eu também”. Declarava outro. A sala ornamentada de cravos vermelhos expandia-se de esperançosos projectos. E Rodrigo? Continuava com as suas viagens, as suas conquistas... passando ao lado da vida, cego ao que acontecia, indiferente ao entusiasmo dos outros.
Sabina escrevia-me longas e sobressaltadas cartas repassadas de inquietação: ”Nada sei de teu tio. Tua tia de nada quer saber e eu com esta responsabilidade. Cairemos, em breve na ruína. Valeperdido está quase perdido; tarda não tarda, aqui hão-de vir instalar-se e será uma cooperativa ou sei lá... como chamam agora ao assalto e ao roubo”.
Assim contava Sabina. Eu ria-me da sua grande aflição. Afinal, ela, de raiz camponesa, tinha-se tornado bem ciosa da propriedade de seus senhores... Ria-me e pensava que ”ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão”. Ao ler as cartas de Sabina era como se ela estivesse presente; pelas suas palavras regressava a Valeperdido e a todos que se perderam para mim engolidos pela morte ou pela distância - o avô, Filomena,.o tio Filipe. Que seria feito dele? Evadia-me, a mente vagueava, naquele momento, na sala que rescendia a cravos, atulhada de cadeiras e de outras tantas pessoas de olhos fixos no rectângulo branco: íamos assistir à saída dos presos políticos de Caxias e embora com algum atraso participar na Revolução. Que sobressalto! Que saudade! Quem me dera estar presente, lá do outro lado do Atlântico. No entanto só podíamos viver os mágicos momentos pelo simulacro de vida que é a imagem. Apesar de tudo era bom.
De quando em vez levantava-se uma voz de Velho do Restelo - Sócrates, o médico ateniense, exilado havia tantos anos da sua luminosa Grécia. Fixava-nos com aqueles sérios olhos azuis, que dizia ter herdado de sua mãe Georgiana e sorrindo céptico abanava a cabeça, advertia-nos: ”Não hão-de permitir que se cumpra a Utopia...” No fundo sabíamos, temíamos que se cumprissem as suas sábias palavras; mas discordávamos com veemência ou exaltação: ”Por favor não nos roube a alegria deste tempo em que os cravos ainda florescem.”
Mergulhados no escuro da sala vogamos ansiosos na expectativa. Viajamos... regressamos a Lisboa... à marginal... vemos o Tejo e por fim chegamos a Caxias, tão distantes, tão de espírito presentes. De súbito, uma multidão apinhada às portas que durante tantos anos esconderam a injustiça, a tortura, os mais tenebrosos segredos e as portas abrem-se de par em par. Um cordão humano extravasa, desliza pelas portas há tanto cerradas, um a um, um atrás de outro, ei-los estupefactos à luz do sol como quem inesperadamente sai dum profundo pesadelo que se acredita ser eterno.
- Tio Filipe! - Ergo-me dum salto como se uma mola me tivesse projectado na vertical. - Tio Filipe! - Grito agora na escuridão a minha surpresa é agarro-me à pessoa sentada à minha esquerda e conto: de dedo estendido para o ecrã: - É o meu tio. O meu tio Filipe. Finalmente conheço o seu segredo. - Despedaça-se a treva ao acender das luzes e dou comigo soluçante nos braços de Juan Almabuena.
Já caiu a noite. Um relâmpago como uma lâmina dilacera as entranhas do céu que se escancara numa sinfonia de luz e a paisagem revela-se em toda a sua esplêndida nudez qual corpo de mulher que se descobre sob a branca claridade dum holofote.
Aqui fica a casa, para além dela as árvores, o lago aparentemente tranquilo, para lá deste, bordejando-o a velha linha onde corria outrora o comboio puxado pela locomotiva a vapor, guinchando nos carris e, erguendo-se altivo, como um gigante coberto por um manto de arminho, o monte Saint-Gabriel, Sinal onde se pode ainda imaginar o eco da voz de Deus.
Estou aqui por detrás dos vidros da janela, observando este espectáculo e mais uma vez tudo se confunde, como num labirinto, abrem-se portas, franqueio portas, que se fecham atrás de mim para que outras se abram, sobre realidades ou ilusões sem conta.
Estou aqui à janela do chalet e ali no alpendre da casa de Valeperdido ou até de Vila Marfim, debruçada sobre as laranjeiras. Estou à beira da estrada que conduz ao Poço das Moiras, protegido pelo misterioso círculo de árvores, como um templo antigo no seio dum bosque sagrado. Estou em casa de Solange entontecida pelos vapores do ponche e o olhar sereno de Juan Almabuena. Estou em casa no velho bairro de Notre Dame de Grâce, fresco como um pomar, onde os silêncios são tão aterradores como o trovão que ribomba e a ausência de Rodrigo me dói como se um estilete me perfurasse... noite dentro até que a campainha da porta retina uma, duas, mais vezes, misterioso anúncio de que algo de terrível está para acontecer.
E regresso ao ”party” em casa de Solange.
Dobrou cuidadosamente, camisas, calças, camisolas... despejou quase por completo o conteúdo das gavetas e armário; encheu três malas. Parte de novo Rodrigo para mais uma viagem; mas desta vez sei que não regressará. Uma tremenda inquietação tolda-me a luz dos olhos. Tenho vontade de gritar: ”Fica, porque te amo apesar... apesar de tudo.” Ou: ”Vai, desaparece. Quero pôr em ordem a minha vida; saber com o que conto... saber-me amada, partilhar, recomeçar...”
Os convidados deambulam pela sala, conversam, apresentam-se...
- Este é o Marc. É francês, bretão...
- Muito prazer...
Circulo; retiro dum prato um canapé que como distraidamente. Circulo...
Impossível a vida com Rodrigo. Ultimamente estava cada vez mais inquieto e quando regressava das suas prolongadas ausências pedia, exigia-me dinheiro. Para ele o dinheiro escorrega-lhe entre os dedos como água. São as mulheres, as festas, as roupas..., mas pressinto que algo mais terrível se passa desde há algum tempo.
- É você, Maya? Afinal, sempre veio. - Alguém pergunta, alguém... Circulo, estou ali e algures como se me tivesse sido concedido o dom da ubiquidade.
Não sei o que está a acontecer com Rodrigo. ”Não me conheces e nunca me conhecerás”, costumava afirmar com frequência. Tem razão. Não o conheço; não conheço o meu marido; o pai dos meus filhos; o amor da minha vida. ”Solidão... uma grande solidão...” Murmuro para evitar o vazio que toma conta de mim.
Vagueio pela sala como num campo aberto - pessoas pelos sofás, no chão sentadas, gente que conversa, gente que se mostra, gente que se esconde por detrás de uma taça de ponche.
Solange aproxima-se, pega-me por um braço, quase me arrasta; atravessamos a sala até à janela que se rasga de parede a parede emoldurando um rectângulo da paisagem citadina. Um disco roda; ouvem-se os Rolling Stones. Tudo gira... Solange exclama:
- Não serei um botão de rosa na lapela do meu marido!... - Não sei a que propósito diz tal coisa, assim sem mais nem menos, sem explicar que associação de pensamentos a levou a exprimir tal frase. Não compreendo a razão do que diz, mas sei que a frase é de Margueret Trudeau. Construiu-a para a imprensa a propósito do desaire de seu casamento. Pobre Pierre Elliot Trudeau! O melhor de todos os primeiros-ministros que o Canadá já teve; nele se fazia a simbiose entre o canadiano francês e inglês - requintado, elegante, educado, instruído, culto, um cavalheiro; mas muito, muito mais velho que Mick Jager... Esboço um irónico sorriso. - Adiante!
- Exclama Solange. - E acrescenta: - Deixemos de lado as histórias do Primeiro-Ministro e de sua jovem esposa...
A um canto da sala, no chão, sobre almofadas Jeanne fuma, ausente, uma ”joint”. Anda estranha Jeanne, arredia. Como se me lesse o pensamento Solange comenta:
- Anda estranha, Jeanne. - E eu: - Parece evitar-nos, evitar-me.
- Que nos evita, concordo; mas que te evita especialmente, já me parece paranóia. - Diz Solange soltando um risinho trocista. E conta:
- Fuma muito, cigarros, erva e, quem sabe se outras coisas. Parece viver entre a euforia e a depressão. Dizem as boas e as más-línguas dos que costumavam voltejar em seu redor, atraídos pela aura que dela se desprende, que tem graves problemas financeiros e, ser essa, a razão desta mudança. Também bebe muito, sabias?!
Enfim são coisas que se dizem talvez por ser original, um tanto extravagante, para se distinguir da massa bronca do comum dos mortais.
No entanto também me parece que algo se passa, que há alguma verdade escondida nas pregas desses comentários, maldosos uns, outros, reflexo apenas da inquietação de quem como seu amigo se preocupa. E Jeanne tem muitos. Calou-se.
Também nós, Solange e eu, nos preocupávamos com o novo comportamento de Jeanne que a tornava quase irreconhecível. Quem ali estava era uma outra Jeanne que nunca tínhamos suspeitado que existisse ou viesse a existir.
Solange debruça-se sobre o meu ouvido e segreda:
- Também se diz para aí que se meteu em negócios ilícitos e que tem um novo amor, embora ninguém saiba quem é.
- Mas tu sabes? - A minha pergunta soava a provocação.
- Merde. Que se passe-t-il avec toi... Deu-te agora para a desconfiança. - Solange parecia agastada, quiçá comprometida; mas já Juan Almabuena se aproxima no seu passo ritmado de sul-americano; o sorriso franco anima-lhe os olhos negros. Pensei em duas estrelas cintilando na escuridão; mas era um cliché tão gasto que também eu sorri troçando de mim própria.
Almabuena contornou um par que dançava muito enlaçado; em cada uma das mãos segura uma taça de ponche, rubro como a romã, como morangos, como o meu bâton cor-de-cereja, como sangue. ”Clichés.” Penso.
Juan está agora na nossa frente. A noite cúmplice entra pela janela.
- Buenas noches, mês dames. - E estendeu as taças para mim, para Solange que agradece e se retira discretamente.
Sentamo-nos no sofá em frente à janela, Juan e eu. Pressinto que Solange pretendia contar-me algo, mas esmoreceu-se-lhe a coragem. Paranóia. Os outros divertem-se ou limitam-se a esquecer nos vapores do álcool as suas frustrações. Pierre e Richard gesticulam; parece-me que discutem política ou talvez seja mais uma das suas cenas domésticas transplantada para ali.
Pierre lamenta-se:
- Tu ne me comprends jamais... - Enfim, têm suas divergências, suas querelas como qualquer casal heterossexual; discussões muito graves, por vezes. Jeanne, contou-me um dia, que chegam a zurzir-se mutuamente.
Ao meu lado Juan fala; pareço distraída, mas interesso-me sinceramente sobre o que diz e conta. O tempo de Allende descrito por Juan é a pintura de uma sociedade quase perfeita; segue-se o inferno, instalado pelo ”golpe”, a debandada, o exílio. Esqueço-me do que se passa à nossa volta, do ruído, das cenas, da voz ciciada de Sinatra, de Rodrigo que não sei por onde andará. Tudo se esfuma. Embala-me a voz de Almabuena, absorvo as suas palavras que soam seguras, entusiastas, tristes como um néctar. Ah, a voz de Almabuena! Tudo se esbate, se esfuma; só aquela voz existe, a voz que fala de um Chile atormentado. A sua musicalidade restitui-me, por algum tempo a mim mesma, à paz sempre perseguida e nunca alcançada.
O Comboio do Tempo na Imensidão dos Sonhos
Derrepente a cena mudou. Um céu leitoso coalhava-se na janela. Era um nevoeiro cego envolvendo Lisboa, escondendo o rio, enregelando a planície mais ao longe e Montreal também.
Sobre a neve calcada por pés apressados formaram-se crostas, pústulas de gelo...
Saio de casa para regressar a casa. Que casa?
É vasto o campo à minha frente, vago como os sonhos e nele vagueio.
O frio enregela. Desejo um sol incandescente, flamejante. Estou só, mais só do que nunca; mas irrompo pela solidão dentro corajosamente, num esforço para entendê-la, como quem teme a escuridão e, mesmo assim, entra num aposento em que domina à treva.
Ah, a luz de Valeperdido e a saudade do tempo que se foi!
Sabina telefonou-me recentemente e dizia:
- Minha filha, perdeu-se Valeperdido, porque nenhum de vós se esforçou por salvá-lo. Bem tentei eu. Em vão. Afinal não passo de uma pobre camponesa que traiu os seus e, isso, que parecia esquecido, me lançaram em cara, traidora, me chamaram da minha classe, pactuante com os exploradores do povo me acusaram e talvez seja verdade. - A voz lacrimejante chegava, nítida como se entre nós não se interpusesse o oceano.
- Talvez tenham razão. - Repetiu. - Esqueci-me de quem era ao envolver-me com a família Valeperdido, a tua família... a minha família. Vamos lá agora dizer a essa gente que tudo fiz por amor. Que ao fim de tantos anos vocês são os-únicos parentes que me restam e que não são monstros, vampiros sugadores de sangue, que são gente, que também sofrem e choram...
Vá-se lá entender estas coisas, estes conflitos; somos todos homens e mulheres, todos nascemos e morremos... Soluçava. - Por amor de Deus, Bina, não te apoquentes assim? - Consegui articular. Ela respirou fundo e as palavras jorraram de novo em golfadas, hemoptises de sentimentos, havia muito recalcados.
- Não quero pleitar a causa dos Valeperdido, nem de nenhum senhor de latifúndio, seja ele Diogo ou Venda Nova, de ”monte” Fradinhos ou de Convento Alto, de nenhum grande senhor do Alentejo porque bem conheço seus crimes e suas generosidades como ninguém, mas Flor, minha Flor... - Fez outra pausa como que a esforçar-se para engolir o pranto e recomeçou, com voz mais segura, enérgica, ríspida quase:
- Eu não entendo que em revolução tudo seja permitido até profanar o reduto sagrado que é a casa duma família. Sem respeito por nada nem ninguém entraram porta dentro... O Sol do meio-dia foi testemunha de tão grande desacato. E não foram só os criados do ”monte”, nem os camponeses, também outros, de longas cabeleiras e grandes bigodes, barbudos, sujos alguns, marchando à frente... Invadiram as salas, os quartos, indiferentes aos meus gritos e insultavam-me:
- Sai daqui puta velha. Traidora!...
Só Joaquina me não abandonou: ”Não ofendam D. Sabina que é uma santa.”
Mas a revolução não tem pruridos, tudo leva à frente como a enxurrada; tudo despedaça, nada aproveita nem o que era bom para de novo tudo reconstruir.
Em nome da Revolução invadiram as salas, macularam com as manápulas sujas as sedas que foram de Matilda, as pratas de Elisinha, os vestidos de musselina de Filomena.
Os homens sentados por terra fumaram os cachimbos do avô e alguns charutos que ainda restavam. As mulheres exibiam os vestidos da Fifi, colocando-os à frente dos corpanzis disformes. Miravam-se nos espelhos e riam, troçavam de todos, cuspiam-vos na cara mesmo na vossa ausência. E eu, Maya, escondida atrás do biombo, no teu quarto, tiritava de raiva e impotência. Nada pude fazer, ouves Flor? Todos longe - tu, a tua tia e Filipe também. Eu, a guardiã como vocês me alcunharam, nada pude fazer. Chorava outra vez. Doía-me tanta fidelidade.
- Por favor, acalma-te Bina, por amor de Deus!... Sabes que essas coisas acontecem nas revoluções. - Ela abespinhou-se:
- Ah, sim. Pois fica a saber que Valeperdido se tornou numa cooperativa agrícola. Por negligência vossa já vos não pertence e eu tive de fugir e recolher-me em Vila Marfim; e mais não sei que fazer. - E mudando de tom quase suplicava:
- Vem filha, que estou só e Valeperdido está perdido... para sempre.
Pobre Sabina, tinham-lhe arrebatado o seu mundo Valeperdido.
Para mim pouco importava que fosse ou não propriedade da família. Bastava-me recordá-lo em toda a sua violenta beleza e faiscante esplendor.
Uma mulher passou quase rente, quase nos ombreámos; adianta-se-me agora. É uma mulher alta; vai calcando a neve com os botins reluzentes; o longo manto de lã escura orlado de arminho desce-lhe até ao tornozelo. De sob o chapéu de feltro espreita o ouro-cinza dos cabelos. O rosto esconde-o a aba larga; mas eu bem sei quem é.
Chegou o comboio; parece-me ter esperado por ele uma eternidade como quem espera uma mensagem importante que o comboio nos traz.
A mulher subiu os degraus de uma das carruagens e ao fazê-lo é como se tivesse deixado atrás de si uma réstia de luz. ”É a avó Matilda”. Constato sem surpresa. Sigo-a.
Admiro o requinte do interior: bancos de veludo vermelho, passadeira, tal como nos filmes em que a acção se situa durante a ”Belle époque”.
Crime no Expresso do Oriente. O título impõe-se-me e, nítidas também, cenas da película. Divago... A avó Matilda desapareceu. Sumiu-se, de repente.
- Pedro Diogo, teu avô contou-me tudo em vésperas de sua morte, como que pressentindo que em breve partiria deste mundo, e por isso ser-lhe necessário o desabafo, a confissão. - Sabina partilha comigo, já moça feita, quase mulher, ávida por histórias, as muitas passadas histórias da família.
- E a minha bisavó Matilda era bela? - Pergunto-lhe ansiosa por conhecer essa tão peculiar antepassada de que pouco se falava.
- Uma deusa.
- E era, foi feliz? - Sabina não me responde, porque em boa verdade ali não está; mas a sua voz vinda de muito longe, dos recônditos da memória soa ainda na minha mente:
”Como podia Matilda ser feliz naquele ermo, em Valeperdido, gélido no Inverno e no Verão uma tocha incandescente, junto daquele marido boçal que a admirava sempre na adoração lorpa dum pacóvio perante uma divindade? Como lhe seria possível ser feliz longe do mundo requintado onde nascera, crescera, se fizera mulher?
Ela, loira, alta, fina, culta, neta de ingleses com fumos de aristocracia, educada por preceptores, falando línguas, pertencendo à nata da sociedade do Porto, conhecendo Londres, Paris, viu-se, de súbito perdida em Valeperdido. Outra coisa não era possível acontecer quando, por acidente, conheceu Jaime Coutinho, também ele elegante, viajado, ”habitue” dos salões e de tertúlias de poetas e outros artistas. Enfim, tinha de acontecer; direi melhor: era inevitável...
Uma roda do trem presa no barro mole de uma vereda, um cocheiro aflito que não consegue soltá-la e Matilda impaciente, no interior do veículo; ao longe, a galope um cavaleiro...
- Em que posso ser útil, Madame.
Era Jaime, um Adónis descido do Olimpo, socorro providencial, partida do destino, talvez...
Explicou que se encontrava naqueles sítios por acaso, por mero acaso. Era visita dos Corte-Real. De tempos a tempos quando necessitava ”retirar-se” vinha até ao Alentejo...
Os olhos de ambos encontraram-se, ”Para me ’retirar’, sim.” Repetiu.
Foi desatolada a roda. Matilda perdera a pressa. Desistiu da ida à modista. Conversaram durante meia hora de ninharias e de suas origens e, de vez em quando, os olhos encontravam-se e era como se trocassem beijos.
À despedida Matilda convidou:
- Há-de amanhã visitar-nos na vila, precisamente em Vila Marfim; sempre é um pouco mais civilizado do que Valeperdido. Calha bem porque é quinta-feira, o dia em que recebo. - E rindo o seu riso de pérolas, de cabeça deitada para trás:
- É a única diversão que temos neste fim de mundo - receber gente elegante, alguma, porque é espécie rara por estes sítios, para tomar chá. - E estendendo a mão num gesto de despedida concluiu:
- Pronto, está combinado. Amanhã lá o esperamos. Falava no plural como se Pedro Diogo alguma vez participasse em fúteis reuniões sociais; a voz dela era ténue, queria-se segura, neutra, mas denunciava um ligeiro tremor.
E ele foi. E depois... depois foi o que de outra maneira não podia ser.
Matilda nunca aceitou de bom grado a violência dum casamento sem amor.
Iam de mal a pior os negócios de seu pai e Pedro Diogo tinha dinheiro, terras, era muito rico. Considerava que a tinham vendido como a uma vaca para desempenhar os haveres da família. Vivia inconformada e por isso, não sentia dever, àquele labrego, que a tinham obrigado a aceitar por marido, qualquer sorte de fidelidade.
Tinham-na vendido, como a uma escrava, a um homem rico que nem dote exigia. Para Pedro Diogo ela, Matilda, era por si só, um dote principesco. Pobre Pedro Diogo! Pobre Matilda!
Desde o acidental encontro com Jaime Coutinho, Matilda fez do salão circular de Vila Marfim um espectacular espaço de convívio e o luxo dos seus chás, de suas festas era comentado por muitas léguas em redor. Preparava as recepções com esfuziante entusiasmo; pela primeira vez parecia feliz.
Jaime Coutinho aparecia sempre, ora conduzindo pelo braço a viscondessa da Boavista, ora uma das meninas Corte-Real. Chegava um pouco depois das cinco da tarde para tomar chá e, um mal disfarçado rubor nas faces tornava a anfitriã ainda mais radiosa, quando o via entrar elegante e prazenteiro no seu salão, onde tiniam porcelanas, se espargiam discretos sorrisos e ardentes olhares.
Até que, certo dia, enfastiado dos gestos repetidos, da rotina daquele prolongado ”retiro”, aspirando a mais sofisticada aventura, virou costas à planície; rumou para Lisboa e nem da bela Matilda se despediu. Esfumou-se como miragem de água límpida que nos atrai no deserto. Desapareceu, deixando no coração da mulher de Pedro Diogo a quase certeza de que nunca se dessedentaria.
Foi breve a felicidade de Matilda - uma miragem, nada mais.
O pior foi o que veio depois...
O comboio avança cego e seguro como uma toupeira escavando um túnel - a escuridão é maior.
Lentamente, descerro as pálpebras como que receosa de fazer a experiência da luz que continua esbranquiçada, baça, como há pouco. A mesma atmosfera irreal paira no interior da carruagem. Não sei porque aqui estou ou se estou aqui.
Na outra extremidade, na minha frente, um casal não regateia carícias com o à-vontade de quem se crê ao abrigo de olhares indiscretos. Aquela distância é-me difícil destrinçar-lhes as feições. Finalmente, afeitos os olhos à luz, parece-me reconhecer Rodrigo e uma mulher de cabeleira fulva. Sobressalto-me; aplico a vista; mas não consigo perceber o rosto dela, que como numa fotografia antiga, se esbate na sombra. Mas a cabeleira é fulva. Recuso-me a adivinhar quem é.
Sei que durmo e sonho um lúcido sonho. Esfrego os olhos com os punhos cerrados. Desesperadamente quero acordar.
Distraio-me. Já não estão ali. Uma mão leve pousa sobre o meu ombro esquerdo. Levanto-me; obedeço a essa mão... Uma voz murmura-me ao ouvido: ”Vai. É a tua vez”.
Uma mulher passa, de longo manto escuro e um chapéu vermelho que lhe sombreia a fisionomia - é a avó Matilda, outra vez.
A mulher aproxima-se; mas não revela o rosto. Ouço-a que me diz: ”Vai. Esquece. Segue outro caminho.”
Desloco-me como um autómato, conduzida pela mão suave que permanece sobre o meuombro esquerdo. Pergunto-me onde está a lógica de tudo isto e compreendo que a lógica é uma pura invenção que pretende estabelecer a harmonia onde só o reina o caos. Agora vivo o ilógico, a incoerência dos sonhos.
Paro em frente à porta de uma casa vitoriana da Rua Sherbrook, das que se prolongam em meia dúzia de degraus que vêm desaguar no passeio por enquanto ainda coberto de neve conspurcada pelos pés de um e outro que passa. A alguns metros, um bidão incendiado. As labaredas irrompem do bocal. Muitas mãos enregeladas estendem-se na procura do calor dessa lareira improvisada.
Erguem-se palavras... umas apenas articuladas, leves, diluem-se na atmosfera; outras, petardos estoirando no céu.
Não sei que língua, que línguas falam os homens, as mulheres acocoradas junto ao bidão, andrajosos quase todos e talvez famintos; percebo o que dizem sem conhecer os idiomas. Olho à minha volta como que para certificar-me se alguém mais observa a estranha cena; mas branca e deserta é a rua e os que ali estão em grupo não se apercebem da minha presença nem sabem que com eles vivo no mesmo vazio.
Branco é o céu sem estrelas nem Lua; o desespero é branco e a solidão também. Não me venham dizer que o preto é a cor de todos os lutos. Só o branco é - vazio total.
Então, como por encanto, um nome aflui límpido, sem mácula na minha consciência - Juan Almabuena. Pronuncio-o baixinho, separando bem as sílabas como se fosse um mantra, sentida prece, desesperado apelo e o ar anima-se; um frémito de vida faz estremecer as árvores cinzentas e um riso cristalino desprende-se da garganta daqueles ali tão perto que se aquecem à fantasmagórica chama.
Palavras esvoaçam, quentes, numa língua que me é familiar, talvez por ser a única comum a todos os homens. Um grito, uma pergunta velha como o mundo, gasta como ele também, mas sempre renovada rasga a atmosfera, ecoa na cidade:
- Onde fica a Rua da Esperança?
Surpreendida, constato que a placa na parede junto à casa vitoriana que se abre para a rua em saltitantes degraus não indica a Rua Sherbrook; em letras enormes, fluorescentes soletro: Rua da Esperança. ”- Ah, é o nome da rua do tio Filipe!”, digo para mim sem nenhum espanto.
A mão sobre o meu ombro não se retirou, conduz-me... subo os degraus; a porta da casa está aberta; convida-me a entrar. Sinto-me leve, o coração expande-se-me e é do tamanho do universo. Entro. Algo me diz que Juan Almabuena é a minha única esperança.
Vou ao seu encontro para não morrer.
Há flores sobre a mesa e uma explosão de sóis na pedra da lareira. Uma luz tamisada de vermelho toca cada objecto como um erótico beijo. Nunca entrei na intimidade de Juan... Ei-lo sentado na poltrona junto ao lume parecendo vogar na indecisão da luz avermelhada. Reflecte a serenidade de um deus que vive descuidado as horas sempiternas até que ”O Fado” lhe permita uma intervenção definitiva na vida dos mortais.
Assim é Juan. Espera, naquele quieto mundo o momento exacto para arrancar a espada que há-de atravessar o dragão que, por ora, incendeia a belíssima terra do Chile. Por enquanto vai maquinando, organizando, escrevendo, nada de movimentos desordenados, inúteis, nada de desperdícios de energia e por isso mantém aquela pose majestática dos antigos senhores da América do Sul.
Perto dele sinto-me em segurança. Admiro-o.
A nossa amizade desabrochou como todas as amizades autênticas e todas as escaldantes paixões.
O impulso para o outro é quase idêntico na amizade e no amor quando se trata de um homem e uma mulher: um sorriso, uma frase: ”Senhora, és bela como la liberdad”. E o fio vai-se desenrolando para se organizar numa teia de pequenas cumplicidades, marchetada de exaltação no amor, na amizade ternura feita. Por isso, por vezes se confundem,, são quase indestrinçáveis e difícil é dizer: - Isto é amor; isto é amizade.
À mínima desatenção acontece, por vezes, transitar-se dum estado para o outro num enredo de sentimentos.
Será o que se passa entre Maya Valeperdido e Juan Almabuena?
Não ousa ele dizer-me que me ama nem eu tão-pouco o bem que lhe quero; mas no silêncio falam os olhos, os gestos de ternura, a solicitude.
Corremos fatalmente um para o outro como o rio para a foz.
Juan está sentado à lareira; olha-me sem palavras nem surpresa como se me esperasse há muito, certo de que um dia eu havia de chegar.
Sento-me quase a seus pés sobre o tapete. O calor das brasas anima-me a palidez do rosto, recompõe-me os membros tolhidos de frio. Sinto-me reconfortada; cerram-se-me os olhos e sem dar por isso encosto a cabeça aos joelhos de Juan. Como é apaziguante a sua presença!
Inesperadamente a mão dele pousou sobre a minha cabeça, deslizou pelos cabelos até à face esbraseada para se me espalmar sobre os lábios, leve, muito leve.
O coração no peito começou a pulsar-me rápido, mais rápido, desordenadamente, como um potro espinoteando num prado.
Um frémito percorre-me o corpo; contraem-se-me o estômago, o ventre, agitam-se-me os músculos. Sou um oceano sob a tempestade e navego às cegas como barco sem leme no súbito desejo, de me perder nos seus braços. Juan!
Estamos agora em pé, frente a frente, os braços descaídos ao longo do corpo, cerrados os punhos num inaudito esforço para não ceder.
Desvio a atenção para o vulto negro de chapéu vermelho que se recortou no vidro da janela e pensei a medo: ”É a avó Matilda; é ela outra vez. O que faz aqui?” ”É a tua vez...” Incita uma voz vinda não sei donde.
Juan está próximo, cada vez mais próximo como que empurrado por mão invisível para o calor do meu corpo. Quero recuar... mas os pés não cedem nem um só milímetro. Irradio para ele e ele para mim... Não; não pode ser... sou Maya, mulher de Rodrigo... ”Que te abandonou”. Completa a voz vinda não sei donde... e Juan tão próximo...
Esmoreço na luta. ”É a tua vez”. Diz-me a avó Matilda mostrando na janela o seu rosto belíssimo. O meu corpo tomba tal uma pluma descendo do ar; é um cisne vogando na mansidão dum lago; é procura; é entrega e renúncia e remorso também. E, naquele instante sou a avó Matilda, Filomena, Sabina, Maya ou Flor de Maio, mulher de Rodrigo... Não; não pode ser...
”O pior foi o que veio depois...” Continuou Sabina.
Estamos no sótão de Vila Marfim; uma réstia de luz atravessa a clarabóia e vem iluminar o retrato encostado a uma das paredes de uma jovem magnificamente loira, de uma beleza quase angelical. Uma aura de mistério parece envolvê-la...
Tenho dezoito anos; tudo pretendo aprender e entender.
”O pior foi o que veio depois...” Repete Sabina de olhos semicerrados como quem perscruta uma realidade há muito desaparecida, um segredo que agora decide revelar por inteiro.
- E o que veio depois? - Pergunto espicaçada pela curiosidade.
- Matilda mudou. Ah, se mudou! Tornou-se outra depois da partida de Jaime Coutinho.
Caiu num exasperante silêncio, numa tristeza sem lágrimas. Uma raiva surda fervilhava-lhe no peito, expandia-se, tragava-a. Incapaz de dar-lhe expressão encerrava-se no quarto em Vila Marfim sem comer, nem beber...
De nada valiam os cuidados e carinho de Pedro Diogo. Nada resolvia mimá-la com presentes, flores. A sua beleza murchava pouco e pouco. Cercavam-lhe os olhos cansados, roxas olheiras como as de uma abadessa perdida de paixão por um Cristo sempre ausente.
Silenciosa, sempre, Matilda, fechada em Vila Marfim.
Pedro Diogo chegou a considerá-la vítima de um poderoso feitiço, pois nem médicos nem bruxos conseguiam encontrar cura para a dor que tão silenciosamente se exprimia. Desesperava...
Por vezes, durante a noite, observavam do jardim das laranjeiras e o reflexo do rosto dela desenhava-se no vidro; olhava o céu estrelado, embevecia-se na Lua, sondava o nada.
Que desgosto seria aquele que lhe roubava o prazer de viver, embaciando-lhe as cores, minguando-lhe as carnes, sorvendo-lhe a alma? Ninguém sabia.
Passados meses, quando menos se esperava uma mudança de comportamento, saiu do quarto e em grande alarido ordenou a uma criada que lhe fizesse as malas, ao cocheiro que aparelhasse o trem, a outra criada que lhe tecesse ’cuidadosamente a trança e lhe engomasse o vestido verde de tafetá e que lhe preparasse um copioso pequeno-almoço. Vestiu-se, penteou-se, pôs carmim nos lábios e matou o jejum lautamente. Revigorada, renascida, partiu.
Iniciava-se um longo e penoso fadário. Partia para regressar passado um mês, dois, carregada de caixas que encerravam o luxo sumptuoso das peles, dos chapéus de cetim, das rendas de Flandres. E, se Pedro Diogo inquiria sobre a prolongada ausência que tanto o sobressaltara, fazia beicinho como uma criança mimada ou ria-se dele soltando estrondosas gargalhadas, a cabeça deitada para trás fazendo esvoaçar a cabeleira muito loira, solta em desmanchados caracóis.
- Porquê essa aflição? Que há de mal em fugir deste fim de mundo onde me aborreço, uma vez por outra. - E acusava: - Se não fosses tão sovina já terias comprado casa em Lisboa como faz todo o provinciano de classe. Como és um avarento, não esperes que definhe nesta paz lorpa; sendo assim, instalo-me em casa de minha prima Clarisse para poder beber um pouco o ar da civilização. - E, teatral, lamentava-se:
- Essa, sim, tem um marido generoso. Comprou casa no Estoril e aí pode passar todo o tempo que lhe aprouver.
Calava-se Pedro Diogo, julgando-a ainda vítima do mal de espírito que dela se tinha apoderado, esperançoso, apesar de tudo, que recuperasse a antiga compostura que a todos então encantava.
Mas passaram meses, um ano, talvez e as correrias de Matilda, Alentejo, Lisboa; Lisboa, Alentejo não chegavam ao fim.
O ciúme, sendo parte grande da essência do amor, começou a espicaçá-lo. Não ousava segui-la pessoalmente, receoso, sabe-se lá, de vir a descobrir o que tanto temia.
Foi o Palmeia, preguiçoso, vigarista, sempre aos descaídos e ávido por encontrar um trabalhinho sujo, o furão que obrigou o coelho a sair da toca ou melhor dizendo que a troco de cinco mil réis e depois de algumas viagens a Lisboa, descobriu o que para sempre deveria ter ficado encoberto. Coisa, de facto, impossível porque Matilda tinha-se tornado numa das mais intrigantes, personagens da sociedade lisboeta. Todos conheciam Madame Matilda, mas ninguém sabia da sua Origem. Adoravam-na os homens, detestavam-na as mulheres como se fosse uma inquietante Messalina que deslustrava a moral daquela comunidade tão hipocritamente puritana; em boa verdade invejavam-lhe o brilho da carnação e do cabelo, o requebro da cintura, as ancas ondeantes, a aura de sedução que dela emanava, prostrando de joelhos estudantes ingénuos, quarentões instalados, aristocratas decadentes e, milionários. Reinava sobre eles com a cordial majestade de uma deusa.
Madame Matilda era única em Lisboa: sumptuosa em seus vestidos de seda, suas peles que faziam sonhar Rússias e Escandinávias, ostentando a faustosa e loira cabeleira tão rara neste país meridional, dir-se-ia ter chegado num trenó vinda de longínquos países de príncipes e fadas, de costumes exóticos de que ouvimos falar com enlevo e tristeza por só fazerem parte da nossa imaginação.
Enfim, Madame Matilda, como um foguete de lágrimas iluminou o céu de Lisboa despertando com sua beleza, o deslumbramento.
O pior foi o que veio depois...
Esvaiu-se a recordação da voz de Sabina.
O rectângulo da vidraça emoldura ainda o rosto melancólico da avó Matilda sombreado pela aba fulva do chapéu. Rasga-se-lhe no olhar em miríades de farrapos o desespêro. A febre que lhe arde nas pupilas vem até mim, penetra-me, e a dor que nelas fervilha funde-se com a minha, numa tão estranha alquimia que se me confunde a identidade e já não sei se sou Maya ou Matilda. - Não, não e não.
- Grito, esforçando-me por afugentar as alucinantes visões que me avassalam.
Sou agora com toda a certeza Matilda, experimento suas sensações , seu desespero no alpendre da casa do ”monte” de Valeperdido, os braços abertos em cruz, presa pelos frágeis pulsos a duas resistentes argolas de ferro, onde era costume prender os cavalos, nua. A alvura do meu corpo reflecte a intensa luz do Sol tal como a neve. ”Vou morrer!” Penso com mágoa.
Em frente, cabisbaixos os criados. Reunira-os o patrão para que assistissem ao exemplar castigo, ao mais cruel dos espectáculos - não ousam devassar nem com um relance de olhos a nudez da sua senhora.
Cerro os dentes, engolindo as lágrimas.
Ergue-se o azorrague e desce impiedoso sobre a minha pobre carne. Não posso escapar... Fuzilam-me os olhos injectados de sangue de Pedro Diogo e o azorrague vai estalando pela tarde fora. O Sol empalice de horror.
Chegou a noite. Ergo-me meio morta do solo que amparou o meu desamparo.
Entro cambaleante, sangrando, em casa, envolvo-me numa capa e sorrateira escapo-me. Não sei donde vem a força que me permite caminhar.
A luz da Lua reflecte um negro vulto orlado de branco arminho.
Eis-me na paz indizível do Poço das Moiras. Ah, o perfume dos pinheiros, da flor-de-laranjeira! Ah, o ódio de Pedro Diogo, a rejeição brutal de Rodrigo agarrados à minha pele como viscoso e letal veneno!
Como é fresco o rosmaninho e perfumado o alecrim e deliciosa esta sensação de esmorecimento resultante do borbotar do sangue nos pulsos abertos como beiços. Sinto-me leve como se flutuasse. Ouço o cântico melodioso das moiras que penteiam à beira do poço suas cabeleiras pela eternidade.
Ah, a eternidade!
- Não; não pode ser. - Digo peremptória libertando-me do abraço de Juan que se não esforça por reter-me.
Rodrigo. É preciso encontrar Rodrigo. Talvez ainda vá a tempo... Talvez... Talvez... possa encontrar a Rua da Esperança.
A gare está deserta. Paro esfalfada da corrida. Para trás deixei um Juan desiludido e estupefacto e a fantasmagórica Matilda. Creio que acordei dum pesadelo; mas a gare deserta, apenas iluminada por duas frouxas lâmpadas não me agoura nada de bom.
Lembro-me de ter ouvido contar a Sabina que no dia seguinte, pela hora da ”calma” um camponês ousou penetrar na frescura das árvores do Poço das Moiras e foi encontrar sobre um tapete de rosmaninho, encharcado numa poça de sangue o corpo sem vida da senhora D. Matilda de Valeperdido.
Não sei porque me visitou o fantasma de minha bisavó, nem porque percorri tão estranhos caminhos nesta noite sem fim, nem tão-pouco o que procuro nesta estação de comboio afogada no nevoeiro.
Uma gargalhada estalou no silêncio; acertou-me no peito como uma flecha.
Só Jeanne era capaz de rir com aquela provocante frescura. Entro na estação no rasto daquele riso que acabo de reconhecer.
Matilda abriu as veias no segredo da noite, sob o olhar perplexo das moiras encantadas..., mas eu sou Maya, a filha de Atlas, a deusa da Ilusão. ”Tudo é ilusão, sabias, Maya!” Renasço. Quero ardentemente viver.
Na misteriosa sala de espera da estação, parece ecoar o doloroso silêncio de todos os que esperam.
Na penumbra, bem os vejo agora, Rodrigo e Jeanne riem, riem de mim e da minha desesperada luta por um amor sem esperança e igual é a minha humilhação à da avó Matilda, mas eu, Maya, quero viver, hei-de viver.
Sinto na mão o gelado metal de uma pistola. Donde vem esta arma? Como surgiu na minha mão? Não tenho resposta, mas independentemente da minha vontade a arma disparou uma, duas, três vezes. Não. Não pode ser.
O nevoeiro cega-me por instantes, tudo sepulta na sua brancura até a noite de todos os impossíveis, porque irrompe a aurora.
DESPERTAR
A campainha da porta retine ininterruptamente. Acordo sobressaltada. Pela janela espreita a luz alvacenta do dia. Ruboriza-se o céu, prenúncio do sol que nos visita, finalmente...
A campainha não se cala. É um grito que vai ecoando pela casa. Esfrego os olhos com força e abro-os de imediato e penetra-os o mundo que me rodeia. Eis-me no meu quarto, na minha cama em desalinho. Esforço-me mais uma vez para que essa realidade me entre nos olhos, se me estampe no cérebro enevoado de sono. Estou aqui. Acabo de acordar. Nunca daqui saí. Para além da porta entreaberta fica o ”living” e no quarto ao lado dormem os meninos. A campainha não pára. É preciso ir abrir. É urgente. Não é de certeza Rodrigo. Partiu com Jeánne para não mais regressar ou talvez tudo não passe de um pesadelo. Quem será a hora tão matutina? Abro a porta devagarinho.
De fora chega-me o som do comboio de mercadorias que passa perto das traseiras de minha casa, gemendo nos carris. O som afasta-se, desaparece como os pesadelos ao romper da alvorada.
Foi Juan quem me acompanhou para reconhecer o corpo que eu não queria acreditar ser de meu marido, Juan, o amigo que ficou para sempre, até hoje, apesar da distância.
Foi-me difícil confiar nas palavras daquele polícia que de madrugada me tocou freneticamente à campainha para me dizer, que um vagabundo tinha encontrado o corpo baleado de Rodrigo, num apeadeiro de comboio. E, coisa inacreditável!, que na sala de espera da dita estação, sobre um banco, estava uma carteira que continha os meus documentos.
Como acreditar nas palavras daquele homem, assim tão cedo? Talvez ainda sonhasse...
Corri precipitadamente ao telefone para pedir a Juan que viesse em meu socorro, Juan que me amava e a quem eu ”tanto bem queria.
Do horror com que deparei não me permito falar. O rosto dele, não o reconheci, de tão desfigurado, mas era a sua estatura, o seu belo cabelo negro, colado nas têmporas pêlo sangue já seco. No dedo brilhava-lhe ainda a aliança de dezanove quilates, comprada na Rua Augusta quando das alegrias do nosso noivado.
Fiz que sim com a cabeça, que era Rodrigo, meu marido e fiquei viúva como se o não fosse já havia tanto.
Não senti dor, nem tristeza, nem autocomiseração, mas tomei consciência de que tudo para mim estava, de novo, em vias de mudança. Não chorei porque me tomou nos braços a perplexidade e senhora foi, por longo tempo, dos mecanismos que governam as outras emoções.
A polícia submeteu-me a um desagradável inquérito. Em boa verdade eu tinha perdido a carteira com os documentos havia dias, mas não me viessem perguntar por que artes se encontrava naquela estação, perto do corpo de Rodrigo como que para atestar uma hipotética culpabilidade minha.
É certo que, nessa noite num estado entre o sonho e a vigília o espírito de Maya Valeperdido vagabundeou pelo impossível, mas nunca saí de casa como provava o desalinho da minha cama e a camisa de noite que vestia quando a campainha retiniu ao romper da manhã.
Depois de alguns incómodos deixaram-me finalmente em paz, por ter sido capturado o jovem adolescente que me furtou a carteira.
Passados alguns anos de inquéritos e buscas e, não havendo rasto do assassino, o caso foi arquivado. Porque tinham sido encontrados no cadáver vestígios de cocaína, quando da autópsia, ficou no ar a hipótese de que, provavelmente, Rodrigo tinha sido vítima dum traficante com quem não tinha sido de boas contas.
Passado o primeiro choque, resolvi procurar Jeanne para que conversássemos, para tentar compreender, mas dela, nem o rasto - o número de telefone já não era seu, nem a casa, nem a loja de artesanato. Dela nada sabia Lucas. Solange também nunca mais a tinha visto... desapareceu ou talvez nunca tenha existido. ”No mínimo, estranho.” Pensei.
Juan tornou-se no melhor dos amigos, um irmão... enquanto os meninos cresciam e a vida que se não compadece com dramas, sendo ela própria um, foi tecendo a mudança.
Sobre a noite de todos os impossíveis, não sei onde acaba o sonho e a realidade começa, mas sei que não sou culpada da morte de Rodrigo e recordá-lo agora é-me suave como bálsamo sobre uma ferida. Se algum dia Jeanne me traiu não o sei ao certo. De qualquer modo, mesmo se assim fosse, já não tinha importância.
Desapareceu, morreu ou talvez nunca tenha existido, por isso não me dói a traição, se traição houve.
Transporto em meu corpo os genes dos Valeperdido, em toda a sua paixão e violência, mas também os da doce Elisinha, tão frágil que não resistiu à primeira exigência da vida - o meu nascimento. Perdoo-me.
O tempo fluiu, os meninos cresceram e de jovem mulher transformei-me em contemplativa Héstia, debruçada sobre o passado para melhor compreender o que há-de vir.
No entanto, ainda hoje, me pergunto se a realidade é feita da mesma matéria dos sonhos e se estes serão, por vezes, o sémen que a engendra. Pergunto-me e não encontro resposta.
Quedo-me perplexa.
A Terceira Mulher
Vlaya fechou lentamente o livro e a capa de cartão cobriu a última página com um áspero sussurro e foi como se o passado se apagasse, tal chama de uma lamparina a que falta o azeite e se extingue à míngua de alimento.
O espírito de Maya pairou na semi-obscuridade, alheio a memórias remotas e a esperanças futuras. Dir-se-ia que se lhe estancara, por instantes, o rio do pensamento e à tona das quietas águas um nome só, como uma flor, boiava insistentemente - Juan Almabuena.
Via o seu rosto sereno, mas enérgico, iluminado pelo franco sorriso e o olhar resoluto, repassado de bondade e a torrente de pensamentos despenhou-se de novo das alturas da memória.
Fixou as bailarinas no liso espelho, que, em lânguidos requebros seduziam o seu senhor.
Juan amara-a desde aquele longínquo Abril: ”Cravos de Abril... saia semeada de malmequeres”. Pensou. Amara-a para além da noite de todos os impossíveis, noite apenas sonhada ou, quem sabe, se vivida.
Socorreu-se do xaile tricotado por Sabina em que se aconchegava pelos arrefecimentos nocturnos. Envolveu-se no imenso tricot que de tão longo se arrastava pelo tapete e as franjas como línguas lambiam-lhe gulosamente os pés.
Depois da morte de Rodrigo (teria realmente morrido?), tinha quase a certeza que era ele quem se passeava por Lisboa, havia alguns meses acompanhado por uma mulher de cabeleira fulva. Era dele a silhueta, o cabelo, o perfil... Disparate!
A seguir à sua morte, tão súbita e inesperada, o coração petrificou-se-lhe para o amor. Vivia para os filhos, realizava-se como mãe, mas a outra parte de si, a mulher mergulhou numa espécie de limbo. ”És a bela adormecida.” Gracejava Juan e soltava a sua gargalhada franca enquanto os olhos suplicavam o que os lábios não ousavam formular.
Passaram os anos. Os meninos cresceram: adolescentes primeiro, jovens decididos depois, na cabeleira de Juan surgiram alguns fios brancos e na dela também. Foi então que um dia, inesperadamente... Era Julho, Julho das trovoadas repentinas, das chuvas quase tropicais, chegou e disse, sentando-se numa cadeira, sem cerimónias, com a naturalidade consentida pelo convívio de tantos anos:
- Parto para a Califórnia. Vem comigo. - Respirou fundo. - Casa comigo. - Assim tal e qual, sem preâmbulos, pediu Maya em casamento como quem convida para um passeio, para ir ao cinema... e suspirou de alívio.
Finalmente conseguira dizer o que durante tanto tempo temera confessar. Maya gracejou:
- Nós? Havia de ter a sua piada.
Ele não repetiu a proposta; limitou-se a soltar uma tímida gargalhada, disfarce da vergonha que sentia por ter exposto os seus sentimentos e concluiu:
- Pois é. Vou participar num projecto. Patrícios que lá se instalaram, convidaram-me para contribuir na abertura duma clínica para servir emigrantes.
- E dando uma risadinha nervosa:
- É tempo de mudar de ares.
E lá foi para S. Francisco, Juan Almabuena. Fundou a sua clínica, um jornal comunitário, escreveu livros, tudo no frenesim de quem não pode guardar um minuto de ócio, por saber que é no tempo desocupado que nos assombram os fantasmas, para esquecer o que não queria lembrar...
De início escrevia a Maya quase todas as semanas, longas cartas em que reportava os seus projectos e o que ia realizando, mas Maya sentia que nunca era dito o essencial. Depois, rarearam as cartas. De tempos a tempos enviava-lhe uma curta mensagem: Estou bem e vivo. Um abraço. E essas poucas palavras eram para Maya mais eloquentes do que as longas missivas. De quando em vez, ela telefonavalhe no desejo de o sentir mais próximo, mas ele era tão lacónico que indirectamente a obrigava a um discurso curto e quase formal:
- Recebi a tua mensagem.
- Ah, os jovens vão bem? - Perguntava. E ela arrastada por aquele sistema de pergunta-resposta sobre trivialidades respondia sim, não... e ficavam por ali.
Foi assim durante bastante tempo até que Maya regressou a Lisboa, ao Alentejo logo de seguida.
Os meses e os anos correram; o débil fio que ainda os ligava parecia ter-se esgaçado, rompido; mas assim não era.
Quando já não esperava, chegou aquele telegrama informando-a de que brevemente viria a Portugal, a Lisboa, para um congresso de neuro-ciência e Maya sobressaltou-se porque o passado de novo lhe batia à porta insistentemente. Alguns dias antes Rodrigo tinha passado por ela, o seu fantasma, talvez, e foi como se o tempo tivesse recuado para revivê-lo repetidamente.
Pela janela aberta a noite irrompia serena, aureolada de lua, perfumada de flor-de-laranjeira como noiva de outros tempos, como deusa de imemoriáveis eras.
Aquela era uma noite igual a tantas outras e no entanto tão singular.
Saiu para o corredor. De camisa de cassa branca e pés nus, percorreu a passadeira estirada ao centro dos azulejos preto e branco, como um tabuleiro de xadrez; tal uma aparição surgiu no topo da escada que se despenhava sobre a imensa sala circular, a sala de Matilda, ainda decorada pelo exótico gosto de Matilda com cadeiras e bancos vindos das índias, mesinhas baixas de madeira trabalhada, dispersas, ajoujadas de objectos feitos em jade e marfim, sobretudo marfim, muito marfim sonhando exóticas paragens na forma de animais, de caixas e cinzeiros e até dois dentes de elefante se erguiam do tampo envidraçado de uma delas, esculpidos de estranhas figuras, ostensivamente recurvos como dois cornos. Tudo como outrora, indiscriminadamente disposto, sem preocupações simétricas ou de criar uma qualquer harmonia.
O importante era o verde do Jade de mistura com o branco do marfim, fazendo sonhar Áfricas, índias e Chinas, viagens, mundos que, decerto Matilda gostaria de ter devassado.
Ao salão circular como a Terra, a Lua ou outro astro qualquer chamou Matilda sala de marfim e sem se saber porquê o nome alastrou até que o casarão que continha a sala imensa absorveu o nome e se passou a chamar Vila Marfim. São assim as coisas...
Maya sentou-se no primeiro degrau da escadaria que desabava até quase junto à cadeira de baloiço onde, entre verdes almofadas, Sabina dormia um quieto sono.
Assim, de cabeça inclinada sobre o ombro direito, os cabelos brancos ligeiramente despenteados, escorregando-lhe em caracóis sobre a testa, com um inconsciente e leve sorriso nos lábios, dir-se-ia uma menina que cansada de contínuos folguedos adormece, por fim. ”Tão bela e tão frágil!” Reparou Maya. Quem seria capaz de reconhecer naquela Sabina de oitenta anos, adormecida, em pleno abandono, a esplêndida Sabina, a robusta Sabina, a Sabina justiceira traída por Manuel Diogo. Como o tempo passara rápido!
As cortinas de renda da janela esvoaçam levemente ao sopro da brisa da noite como se mão invisível pretendesse afastá-las.
Os lábios de Sabina distendem-se num sorriso mais pronunciado. Maya tem a vaga impressão de a ouvir chamar por Manuel Diogo. Seria possível? Teria ela finalmente perdoado o imperdoável?
Era aquele amor tão obstinado e poderoso que resistia, apesar da morte de Simão?
Tinha sido há tanto tempo! Maya rondava os catorze anos. Na altura Manuel Diogo era já um farrapo do que fora. Bebia muito, tardes a fio fosse Inverno ou Verão, mas aconteceu no Verão... a canícula daquela tarde oprimia os pulmões. Para lá das janelas do ”monte” a planície estremecia de calor e as raras árvores, ao longe eram silhuetas vagas numa indecisa paisagem.
O avô tinha bebido muito: vinho ao almoço, brandy com o café...
Durante a refeição não trocou uma única palavra com ninguém, nem com Sabina, nem com o irmão, Filipe, nem tão-pouco com a neta, Maya, que de repente, tudo revive .e se vê de novo à mesa com todos eles. Filipe, o tio Filipe estava presente quando da patética cena, naquela tarde terrível.
Olha outra vez Sabina, tão vulnerável lhe parecia agora sob a pacífica máscara do sorriso... e tinha acabado de pronunciar o nome de Manuel Diogo; estava certa disso.
Mas que sabemos nós das ternuras ou violências que se escondem por detrás da luz dum sorriso!
Naquela sinistra e já longínqua tarde Sabina também sorria tentando entabular conversa com Filipe, esforçando-se por dissipar a atmosfera de ameaça que pairava na sala até que sem mais nem menos, Manuel Diogo se ergueu da cadeira e empurrando-a, fê-la tombar com grande estrondo, pegou numa garrafa de vinho de sobre a mesa e com um sacão arremessou-a contra a parede em frente, com a violência de quem atira uma granada em campo inimigo.
O líquido despenhou-se do alto e veio encharcar o chão de tijoleira num tilintar de vidros.
Os outros à mesa, petrificados nem pestanejavam. Mas, Manuel Diogo não ficou por aí; desatou aos gritos como que possuído por um espírito ruim e, tropeçando nos próprios pés, aproximou-se de Sabina para lhe gritar a verdade hedionda de que ela suspeitava, mas que se recusava a acreditar: ”Fui eu sim, fui eu que o matei”, e o grito desfez-se em soluços.
Desorbitaram-se os olhos de Sabina; ameaçadora ergueu-se no seu metro e setenta; parecia gigantesca empurrando a faca que pegou de sobre a mesa e avançou para ele como uma fúria. No olhar, quase sempre pacífico, tinham-se desencadeado todas as iras. Avança silenciosa e terrível tal divindade vingadora; Manuel Diogo recuava chamando-a com a mão num gesto provocador, como quem diz: ”Vem, não tenho medo de ti!”
Aquele homem, aquela mulher que tanto se haviam amado eram, de súbito, duas feras, frente a frente, dominadas pelo instinto de destruição.
Paralisado, Filipe observava a cena, até que Manuel Diogo tropeçou no pé de uma cadeira e se estatelou no chão.
Nos olhos de Sabina reflectia-se a loucura do homicida; de braço erguido, quase à altura da cabeça, segurando a lâmina, num ímpeto caiu sobre ele. ”Tal como na história da Guerrilheira que tantas vezes contava”, disse Maya entre lágrimas. Mas já Filipe segurava o braço da Guerrilheira ou de Sabina, que de olhar desvairado abriu a mão. A faca rolou tilintante na tijoleira e, abandonando-se nos braços de Filipe, Sabina soluçou a sua irremediável desventura, finalmente.
Maya como que apatetada saiu da sala para a luz do sol que esconjura todos os pesadelos. Percebeu que não conhecia o avô, nem tão-pouco Sabina...
Afinal, que sabemos nós uns dos outros?
A velha senhora continuava adormecida entre almofadas cor-de-erva. Sempre fora o verde a sua cor predilecta; verde, cor da esperança, mesmo depois dela ter fugido de seus olhos para sempre.
Desde esse dia fatídico, nunca mais dirigiu palavra a Manuel Diogo.
Era como se ele não passasse de uma sombra que à sua volta se agitava querendo agradar-lhe, fazer-se perdoar... pelas flores que lhe trazia, pelos vestidos caros: ”É para ti, Sabina. Vês que lindo colar de pérolas!...” E ela nem sim, nem não, nem os olhos para ele levantava, fingindo-se alheada nas suas tarefas, como se vivesse num mundo impenetrável à imagem dele, ao som da voz dele.
Decidiu então, Manuel Diogo que se redecorasse sumptuosamente o quarto do segundo andar, de largas janelas rasgadas, sobre as laranjeiras. Fez forrar de papel de seda azul as paredes, o chão de um fofo tapete persa e em frente ao vasto leito coberto por uma luxuosa colcha de brocado, mandou que se colocasse um painel de espelhos onde languidamente dançavam odaliscas para gáudio de seu senhor.
Acreditava ainda o pobre Manuel Diogo poder conquistar o perdão de Sabina pela ostentação de sua riqueza, comprar o perdão, cercando-a de luxo, cumulando-a de presentes, tentando atraí-la a um sumptuoso ninho de amor, aquele quarto de Vila Marfim virado a nascente, de janelas debruçadas sobre o perfume das laranjeiras em flor. Velha manigância está, de Manuel Diogo. Truque que quase sempre funcionou desde os princípios dos tempos e assim continua e, infelizmente, há-de continuar nos séculos que hãor -de vir; mas Sabina era bem diferente, não caiu no laço como a pombinha (princesa encantada, do conto popular) que só caiu em laço de ouro: ”Só em laço de oiro cai o meu pezinho.” Dizia para o príncipe que laço lhe tinha já armado de seda e de prata... A pomba era fêmea e só pelo símbolo máximo do poder se entregaria ao príncipe - o oiro.
Além de fêmea, Sabina era mulher e orgulhosa de sê-lo e por isso mesmo, quando Manuel Diogo a assediava, se esforçava por comprá-la com seu ouro, seu poder, olhava-o como se o não visse, nem tão-pouco desse pela sua presença e retomava a leitura do livro que tinha entre mãos ou o bordado que, por segundos, havia interrompido.
Nunca com ele se deitou no leito forrado a brocado muito simplesmente porque, para ela era como se Manuel Diogo tivesse deixado de existir. Pelo menos assim parecia ou pretendia dar a entender.
Aquele desamor assim espelhado na indiferença aguçava em Manuel Diogo a garra do remorso e para entorpecer o desespero bebia cada vez mais; consequentemente, a coerência da personalidade começou a desagregar-se de modo que, tanto suplicava a Sabina que o perdoasse como a cobria de insultos. - Sai da minha vista, cabra. - Gritava por vezes, quando ela lhe passava por perto, mas Sabina parecia não ouvi-lo.
Foi assim durante anos... até que a combatividade, o traço mais forte de seu carácter à força de se digladiar com a gelada indiferença do oponente se estilhaçou como um vidro que a ira atira ao chão e eis um Manuel Diogo no mais frágil dos desampares, vagueando pela casa como um fantasma, cosendo-se com as paredes, choramingando pelos cantos o nome de Simão: ”Perdoa-me Simão, perdoa-me.” E tão grande era o seu sofrimento que a própria morte parecia tê-lo esquecido, receosa de que nem ela fosse capaz de esgotar tão grande angústia. Era como se os deuses o tivessem abandonado, forçando-o assim a expiar em vida o seu crime.
Quando a loucura do senhor de Valeperdido se tornou insuportável, Sabina telefonou a Filipe que se encarregou de internar o irmão.
Maya lembrava-se ainda com profunda dor desse dia: a ambulância estacionada à porta de Vila Marfim e o avô que se debatia nos braços de dois homens de bata branca como um pássaro ferido...
Filipe tentava acalmá-lo: - Vamos Manuel, vamos, meu irmão...
Sabina, de pé, em frente à janela fixava para além dos muros do jardim a mancha branca do casario, envolto no cinzento abraço de um céu de Outono. Não era indiferença o que revelava a fixidez daquele olhar, mas, sim, a própria encarnação do desespero.
- Patético! - Exclamou Maya de si para si soltando um suspiro e sentiu-se um pouco mais aliviada.
Sacudiu a cabeça como se esse gesto bastasse para libertá-la de tão espinhosas lembranças.
O olhar distraído saltitou pela sala e foi de novo, pousar no rosto de Sabina placidamente adormecida.
De quanta crueldade é capaz um ser humano! Quem diria que, num longínquo passado, a dor tinha transformado por instantes a generosa e inofensiva Sabina numa Medeia vingativa?
Vamos lá entender o coração de cada um! Tanto se amaram e tanto mal se fizeram.
Quando Manuel Diogo morreu, Maya era ainda muito jovem. Já então se esboroava a fortuna da família, como torrão que se desfaz em pó por entre os dedos dum camponês.
Filipe era avesso a negócios, Sabina nem sempre hábil a fazê-los; Filomena, ah, Filomena! Parecia ter esquecido que era herdeira, que era uma Valeperdido...
Tinha refeito a sua vida em Paris.
Estudou pintura, casou, teve outros filhos, divorciou-se, viveu dolorosamente a morte de seu filho, o filho de Simão que embora tenha partido cedo deste mundo de desilusões lhe deixou para seu grande consolo um neto - Pedro.
A paixão pela pintura que já se revelava quando adolescente, fortaleceu-se, permaneceu.
Quando da morte de seu pai, Filipe telefonou para Paris suplicando-lhe que viesse, que perdoasse e ela veio.
Apresentou-se envolta em negros véus como quem pretende passar despercebida e quase imediatamente, depois do funeral, entrou no carro que a aguardava e partiu assim como uma recordação, uma sombra do passado que quer tomar corpo e não consegue.
Sabina chorando, lamentava-se por mal ter tido tempo de apertar nos braços a sua querida filha.
Enfim, já nesse tempo os Valeperdido estavam condenados à ruína, o que mais tarde se veio a cumprir: até o ”monte” que lhes dera o nome mudou de mãos.
Corria o sobressaltado ano de mil e novecentos e sessenta e um quando Manuel Diogo descansou.
Maya desceu os últimos degraus da escada e ei-la em plena Sala-Marfim, em pleno luar; chega-lhe ao ouvido a respiração leve, compassada de Sabina como uma repetida melodia de brisa soprando sobre as copas das árvores, sobre o mar... e, algo de extraordinário acontece: pressente o sopro de uma outra vida que não a de Sabina ou a dela própria; respiração agitada por ondas de emoção fazendo vibrar a atmosfera circundante, numa outra bem diferente frequência. Não era o respirar da noite nem das árvores que se adivinhava para além da janela totalmente aberta - era um respirar humano. E pensando nisto desviou de Sabina os olhos para descobrir atónita, projectados no espelho, que no vestíbulo encabeçava a cómoda de mogno, a imagem da Senhora das Sete Luas sorrindo enigmática, qual Gioconda dum De Vinci oriental e a seu lado, o reflexo dum rosto belo e triste, marcado aqui e ali pelo tempo e iluminando-o todo, o brilho quase febril duns olhos inconfundíveis - os olhos de Filomena.
Era ela. Tinha regressado finalmente.
Maya coloca a mão sobre os lábios, as narinas frementes como que para suspender por instantes a respiração e vai recuando cautelosa até ao último degrau da escada e nele se senta.
Poisam-se-lhe os olhos ora no vulto de Sabina adormecida vagueando por sonhos que a vida nunca permitiu que se cumprissem ora no reflexo estampado no espelho; atenta fica ao respirar das duas mulheres - Sabina e Filomena, respiração pausada, num ritmo quase igual, quase em perfeita sintonia e, de lábios apertados e ouvido alerta, percebe o pulsar do coração de ambas e do seu próprio, batendo em uníssono com o delas e assim, por um estranho fenómeno, são uma, sendo três e é como se pensamentos e recordações se materializassem.
E o coração de Filomena dizia assim:
Olho-me no espelho e não me reconheço. Sou uma estranha nesta casa que é minha; a do espelho não é a menina de rosto mimoso, a que fugiu, essa esconde-se sob as rugas, sob a pele emaciada... essa, sim era Filomena, Fifi, a patroinha de Valeperdido que partiu há tantos anos jurando nunca mais regressar. Porém, estou aqui, porque a vida é cheia de surpresas. Quem havia de dizer?... Meu neto noivo da filha de Maya, Clara! Como é que dispersos por tão vários caminhos, separados pelo oceano se foram encontrar, nesse ponto nevrálgico da Terra onde todos os dias gente chega do Norte e do Sul, do Oriente e Ocidente na ansiosa procura de luz, luz, mais luz ainda - Paris.
Assim foi com Clara: atravessou o Atlântico para se instalar na Cidade atraída pelos brilhos da Sorbonne e o renome de seus mestres.
Uma certa tarde Pedro, meu neto, o filho do filho de Simão entrou em casa, por volta das cinco horas, como era hábito e, ele que é de natureza melancólica pôs-se a trautear repetidamente: Au près de ma blonde... au près de ma blonde... Repetia-se numa inconsciência do sentido das palavras, tão ocupada lhe estava a mente por outros pensamentos.
Era a hora do lanche. Cláudia, a empregada italiana que carinhosamente se ocupava de nós, havia tantos anos, trouxe o tabuleiro do chá que colocou numa mesinha baixa.
Nós, sentados em almofadas, espalhadas sobre o tapete, à maneira oriental, no meu atelier, por entre o rebuliço de latas de tinta, pincéis e quadros ainda incompletos uns, outros apenas conseguidos, sonhávamos pelos vidros o céu sonolento, espreguiçando-se sobre o casario de Montmartre. Entre dois goles de chá, Pedro contou: ”Conheci uma portuguesa, veio de Montreal com uma bolsa para fazer um doutoramento em Filosofia.” E acrescentou como se estivesse sozinho: ”Interessante a luso-canadiana! Chama-se Clara.”
Peguei na chávena e sorvi gostosamente, ruidosamente um pouco de chá, tal como fazia, muito jovem, para provocar Sabina e meu pai. ”Não faças isso Fifi. Um dia destes sem dares por isso vais fazê-lo em frente de visitas. Que vergonha!” Era assim exactamente que diziam.
Porque não esquecemos detalhes, gestos pequenos, frases do passado? Talvez porque são as pequenas coisas sem aparente importância que permitem que ele se projecte no presente, que preservemos a memória dos factos, que marcaram para sempre as nossas vidas.
Sinto-me como que debruçando-me numa janela virada para o que já foi e me fosse possível ver meu pai, Sabina... recuo -no tempo. Os lábios distendem-se-me num sorriso que de tão enlevado pode parecer idiota a quem me observar.
- Chama-se Clara. - Repetiu Pedro. - E a mãe dela é do Alentejo como tu...
Fui ficando atenta. A meada foi-se desenredando... De vez em quando perguntava-lhe:
- Como vai a portuguesinha? - Até que em dada altura por um qualquer lapsus linguae se me escapou:
- Como vai a tua portuguesinha? - E pude ver nos olhos de Pedro o brilho inconfundível de quem estava perdidamente enamorado. Aí quis saber mais sobre essa moça, e, disfarçando o meu súbito interesse, fui fazendo uma pergunta aqui, outra ali, cautelosamente até que soube quem era e quais as suas origens - era Maria Clara de Valeperdido Leal, filha de Flor de Valeperdido, melhor dizendo Maya, minha sobrinha e de Rodrigo Leal que nem conhecia e eu, que não acreditava no destino, vi pela primeira vez aí, espalmada a sua mão.
Assim é: o meu neto vai casar-se com a minha sobrinha, neta, seus filhos serão meus bisnetos e sobrinhos-bisnetos, trinetos de meu pai, Manuel Diogo e sobrinhos-bisnetos também. Assim se enredou outra vez a família Valeperdido na mais complicada das genealogias, numa permuta do mesmo sangue, dos mesmos genes.
Noutro tempo não me permitiram que casasse com Simão...
Noutro tempo?... Que tempo foi esse? Eis na minha frente projectada no espelho a imagem a óleo que então pintei - uma mulher envolta num manto azul ferrete rodeada de luas, seis luas são e mais uma que paira sobre a sua palma estendida e, de olhos postos algures numa realidade que desconhecemos. ”É a Senhora das Sete Luas” disse, nesse tempo, a Maya ainda menininha (não teria mais de quatro anos), mas revelando já uma inteligência e sensibilidade pouco comuns e parecendo sofrer da mesma ambiguidade que se manifestava na imagem do quadro. Simultaneamente desperta para o mundo e contemplativa, com olhos que parecem chorar e rir ao mesmo tempo.
Olha-me a Senhora das Sete Luas e parece confidenciar-me: ”Aqui sentada, esperei-te e para sempre continuarei a esperar... sou mulher.”
Ficou incompleto o quadro ou pelo menos assim o considerei então, mas hoje a mulher que representa parece ter adquirido vida própria e fui eu quem a criei. ”E a Senhora das Sete Luas”, disse a Maya ainda criança; não sabia porque lhe atribuíra esse nome, era como se algo ou alguém, exterior a mim, tivesse soprado sobre meus lábios tão belo título para tão ingénua obra.
Neste instante, passados tantos anos, sei que a figura se tornou personagem como se nela tivesse encarnado uma misteriosa entidade.
De facto, é pelo tempo que os objectos tomam alma, uma essência própria, segundo a energia, as energias que à sua volta vibraram. Sem o confessarem, todos se deixaram fascinar pelo retrato de uma mulher que não existia, simulacro apenas duma ideia minha e, deste modo, sendo ela já forma tornou-se ”ser”.
Foi há tantos anos que a concebi! Era então uma adolescente, dezassete anos talvez, vestida de musselina, branca, verde-água, rosa, de todas as cores possíveis, mas só de musselina negra me vesti quando da morte de Simão...
Sobre a mesa de mogno uma profusão de molduras (não me lembro de estarem aqui antes).
Aproximo-me um pouco mais. Eis Manuel Diogo, meu pai, Pedro Diogo o pai de meu pai; Elisinha a jovem mãe de Maya, meu irmão e inesperadamente Matilda sorrindo esplêndida, sensual.
Procuro... procuro e encontro, enfim o belo rosto de Simão que tal como a Senhora das Sete Luas parece dizer-me com o seu olhar doce e magoado:
”Vês, estou aqui... esperava-te.”
Ah, Simão! E o pranto, não consigo contê-lo: pranto silencioso, dorido, como naquele tempo maldito.
Nunca soube que era bela. Foi ele quem mo ensinou. Mesmo assim recusava-me a acreditar...
- És linda, és linda. - Repetia quando sentados sob o caramanchão, jogávamos às damas, quando ávida de saber mergulhava na leitura dum livro, quando, a passo, sobre o dorso de nossos cavalos de pêlo luzidio vagabundeávamos pela planície ao vento, ao sol.
- És linda, és linda! - Gritava à terra, às árvores, às aves do céu, o cavalo à desfilada e a égua baia que meu pai me oferecera quando fiz, quinze anos, no encalço.
Foi a avó Matilda que iniciou na família o hábito de montar a cavalo. Devia-lhe pois, esse privilégio que me dava tanto prazer. Montar a cavalo, no Alentejo, era actividade masculina, as senhoras deslocavam-se em charretes para que se não amachucassem os tafetás e as musselinas. Mas a avó Matilda transformou em normalidade a transgressão, para as mulheres da família Valeperdido.
Meu pai, Manuel Diogo, considerou que não havia nenhum mal nisso, se já sua mãe o fazia e com quanta destreza e elegância.
Ali está, sobre a cómoda, o retrato de uma bela amazona de saia de montar e pingalim na mão - a extravagante Matilda, figura tão controversa quanto misteriosa, sorrindo. Parece-me descobrir algum sarcasmo no seu largo sorriso como quem pretende dizer: ”Algo deixei, afinal, na tacanha vida destes labregos...”
- És linda, és linda. - Gritava-me Simão de cabelos ao vento e as andorinhas riscando o céu levavam consigo o grito para longe, para outras paragens para que o mundo inteiro soubesse da beleza de Filomena.
Ah, quantos anos tinham passado?! Da moldura de prata velha o rosto de Simão, os olhos, interrogavam-me:
- Porquê?...
E eu não sei’ o que responder-lhe.
Fomos crescendo lado a lado, cúmplices, como irmão e irmã, nos folguedos e traquinices: ele rasgava os fundilhos dos calções trepando às árvores, aos mais altos ramos das figueiras, eu, esfarrapava o vestido vaporoso para acompanhá-lo na arriscada missão de colher os figos mais suculentos.
Quantas vezes arranhámos as mãos, as pernas saltando a cerca da horta para fruir a liberdade da planície que nos acenava do outro lado do muro.
Sabína ralhava-nos com frequência. Admoestava:
- Meninos sem juízo. Hoje ficam de castigo. Ninguém sai de casa e, indicando o canapé azul pintado com flores cor-de-rosa: - Aí, sentados, e nem uma só palavra...
Tristonhos, cumpríamos a hora do castigo sem uma centelha de rebelião, juntos, sempre juntos. Juntos também aprendemos as primeiras letras até que um dia, com o pai e Sabina, partimos no velho Ford cabisbaixos, juntinhos um ao outro no banco de trás.
O destino de ambos era o internato: eu, ia ingressar no Colégio do Sagrado Coração, escola feminina de rígidas regras, ele no internato Padre António Vieira; as duas instituições ficavam na mesma cidadezinha em edifícios não muito longe um do outro, mas impossível era encontrarmo-nos, vermo-nos, falarmo-nos e a ausência foi tecendo saudades e imaginações...
Quando nas férias grandes regressávamos a Valeperdido já não nos sentíamos irmão e irmã, tio e sobrinha muito menos, por ser parentesco que nunca tínhamos considerado, visto sermos da mesma idade... Éramos dois jovens esplêndidos, mirando-se estupefactos no fundo dos olhos - Homem e Mulher.
Foi assim que tudo começou:
- És linda, linda, linda. - O grito deslumbrado rolava pelo plaino, perdia-se ao longe, lá onde se levanta glorioso e morre sangrando o astro-rei.
Foi assim que tudo começou...
Tenho quase dezoito anos. Na eira, agora vazia depois dos suados trabalhos da debulha, rodopio nos braços de Simão.
No círculo quase perfeito como terreiro de bruxas ou sagrado espaço de míticos druidas, somos deuses flamejantes, sob o olhar mortiço do sol que se põe.
- És linda. Te amo. - E o primeiro beijo aconteceu num vibrante despertar dos sentidos, chave dourada abrindo a mágica porta a incontroláveis desejos.
Reflectida no espelho a Senhora das Sete Luas parece fixar-me, seguir o fluxo dos meus pensamentos. Já não é a pintura produto fantástico da minha inexperiência. É um ser vivente, sombra protectora de uma divindade que os homens há muito esqueceram. Como os lares na antiga Roma, zela sobre a casa, sobre os Valeperdido, deles conhecendo todas as alegrias e tristezas, crimes e desmandos.
Tornou-se, não sei porquê, na deusa tutelar desta família, açoitada tantas vezes, pelo vendaval da loucura e da tragédia. É a deusa-mulher que um dia inventei e que, nesta noite espectacular de Lua Cheia, parece sobrepor-se ao Todo-Poderoso que, apenas se ocupa dos homens, como se tivesse esquecido que também criou a mulher.
Ainda hoje o meu corpo vibra ao recordar os afagos das suas mãos, explorando timidamente a minha pele, com a curiosidade de quem anseia compreender um universo desconhecido. Atónitas contornam as duas colinas de cumes rosáceos como que batidas pela luz difusa dos primeiros raios do Sol. Lentas, vão descendo até ao vale onde se detêm por segundos, numa indecisão, receio de avançar, de ir mais longe, até que, num ímpeto, deslizam, para enfim se embrenharem no denso bosque que protege a gruta de todos os mistérios, lugar de delícias que, nervosamente começa a explorar...
- Te amo. - E o Sol afogou-se no profundo poço da noite...
Foi assim que tudo aconteceu.
Uma mulher deve sempre qualquer coisa a um homem nem que seja a sua perdição. No nosso caso foi ele quem se perdeu. Excepcional!
Amávamo-nos a um canto do palheiro, sobre o feno...
A paixão, pela sua natureza impulsiva, tolda-nos o entendimento, esquece as cautelas, torna-nos imprudentes. Esfuma-se o mundo ao derredor - os outros, não possuídos por essa loucura momentânea.
Vivíamos plenamente, descuidadamente o nosso amor, frementes de desejo e de ternura e éramos a terra e o céu, o universo inteiro. Ilusões...
Ainda muito jovem pressentia que tudo é ilusão. Recordo-me de tê-lo dito a Maya, enquanto sobre a tela, ia fazendo surgir a Senhora das Sete Luas: ”Serás como a deusa da Ilusão. Tudo é ilusão, sabias, Maya?!” Quando adolescentes acreditamos tudo saber, embora, apenas tenhamos começado a saborear a vida, fruto que só com o tempo se vai tornando amargo. Enfim aos dezasseis anos, porque lia muito, convencia-me que era muito douta... convicção que o tio Filipe tinha ajudado a enraizar-se: ”Esta minha sobrinha é genial.” Costumava declarar com sincero orgulho. Pobre de mim que tão ignorante era do mundo e dos homens!
Ao viver com Simão o alvoroço do amor compartilhado, esvaiu-se a minha sensatez e livresca sabedoria e acreditei que a felicidade poderia ser eterna.
Aconteceu dias depois de ter cumprido dezoito anos. Andava triste porque, em breve, Simão havia de partir para Lisboa, para a Universidade, enquanto eu permaneceria criando mofo em casa.
Impossível convencer meu pai a deixar-me partir.
- Uma menina - dizia ele - não se separa de seus pais para ir viver na capital onde em cada esquina a espreitam perigosas surpresas. Uma menina de família espera, paciente, marido que lhe convenha.
A revolta crescia dentro de mim, afogueava-me as faces ameaçando explodir em lágrimas e gritos, mas que podia eu contra a vontade férrea de Manuel Diogo, meu pai?
Realmente nunca cheguei a cursar Belas-Artes, em Lisboa...
Tenho a garganta seca, secos os olhos que já muito choraram.
Pego carinhosamente no retrato onde sobressaem os olhos de Simão, o nariz estreito de Simão, os lábios carnudos de Simão, a sua melancólica beleza. Simão, Simão, Simão, não és apenas um nome porque preencheste-me a vida com a tua doçura apesar da ausência, apesar da tua morte!
Eras tão jovem. Éramos tão jovens.
A porta abriu-se repentinamente, inesperadamente, desgraçadamente e, surgiu o vulto alto, desempenado de meu pai, no limiar.
Nessa hora sobre o feno, por entre beijos, acabara de dizer a Simão que estava grávida.
O espanto endureceu-lhe o rosto como se de pedra fosse para de imediato se lhe adoçarem os traços e todo ele brilhar resplandecente de alegria, por instantes, só por instantes, porque a razão sobrepondo-se ao sentimento perguntou: ”O que vai acontecer?”
Subitamente abriu-se a porta e a luz indiscreta do pôr-do-Sol rasgou a semitreva e recortada nessa luz impôs-se a figura de meu pai, o todo-poderoso Manuel Diogo, parado, mudo como se um raio se tivesse despenhado sobre ele. Fita de olhos desvairados as minhas pernas nuas, os meus cabelos em desalinho, a nudez do tronco de Simão, quadro mais que elucidativo do que, havia pouco, tinha acabado de acontecer.
A porta fechou-se com estrondo e eu, trémula nos braços de Simão pedia a Deus que a treva nos protegesse para sempre e que nos transformasse em pedra como as estátuas que eternizam o amor. Mas de nada vale ignorar a realidade porque ela acaba sempre por se manifestar em toda a sua crueza; por mais que inventemos refúgios protectores, mil estratagemas de fuga, vivemos num mundo que nunca nos perdoa o facto de termos nascido cada um tão diferente do outro, todos diferentes e únicos.
Sinto-me inocente, injustiçada; sei que o sou, tal como Simão, mas, transgredimos, ultrapassando os limites da regra social lavrado pelos homens ao longo dos tempos.
Para meu pai, o lavrador de Valeperdido somos réus... seremos condenados; transgressores de leis ditadas há séculos, seremos expulsos do paraíso.
É preciso, segundo Manuel Diogo, castigar, mas guardar as aparências camuflando o ”crime”.
- Isto não pode sair daqui.
Aferrolhou-nos num dos quartos sem janela, dos fundos da casa, Sabina, Simão e eu, a filha que o desonrara.
- Isto não pode sair daqui. - Disse em tom categórico, mas baixo, para que o segredo ficasse sufocado entre aquelas quatro paredes e nenhum ouvido, por mais alerta, o pudesse captar.
E a sentença foi ditada sem serem ouvidos os réus.
- O senhor - colérico estendia a mão para Simão - em breve há-de partir para Lisboa... A sua herança, o que lhe cabe da fortuna que nosso pai nos deixou, não lha posso recusar. Viva por lá e bem dos rendimentos... Até então, pode ir instalar-se em Vila Marfim.
Você... - os olhos arregalados exprimiam em simultâneo a cólera e a mágoa. - Você há-de casar com o lavrador da Fonte Nova que há muito a requer para esposa. Como homem maduro que é, vai decerto desculpar este seu deslize da mocidade.
- Mas é velho; tem quase cinquenta anos. - Ainda ousei observar e mais não disse, porque as pupilas de meu pai dardejavam e receei cair ali, fulminada pela cólera de Deus.
Sentada a um canto, Sabina não ousava pronunciar -se.
Como remediar o irremediável? Ninguém pode voltar atrás. No íntimo acusava-se por não ter estado mais atenta... Nada havia a fazer senão esperar que a cólera ”divina” se dissipasse como negra nuvem que paira sobre o mundo para depois se desfazer em chuva, permitindo que o sol de novo brilhe... Talvez assim acontecesse, talvez...
Para mim o sol voltou a erguer-se no cinzento céu da minha vida. Não para Simão; para ele nunca mais.
Outra vez fixo atenta, as imagens reflectidas no espelho: eis a Senhora das Sete Luas radiante de mistério e a minha imagem, o meu rosto, donde se ausentou o brilho da inocência.
Passaram-se vinte, cinquenta, cem anos?... Como cronometrar o tempo de uma vida, o tempo sofrido, o dos entusiasmos, o da profunda alegria e, é como se tudo tivesse acontecido ontem. Nunca se apagam os momentos que determinam o encetar dum novo caminho não planeado; não se cicatriza completamente a ferida quando, por tão profunda, nos atingiu a essência da alma, se alma é isto que nos faz amar, odiar, desejar, querer e não querer, enfim, sentir.
Agora mesmo estou sentindo o que já foi... há vinte, cinquenta anos...
Não é o tempo que passa por nós, mas nós que nele navegamos como num infinito oceano, timoneiros cegos pela tempestade, esforçando-se por alcançar incertas paragens, sempre na esperança que se rasgue a treva e luminosa surja a estrela polar.
É assim a vida!
Ainda me escaldam no peito as lágrimas recalcadas pela exigência de continuar rumo ao futuro, ao desconhecido. Estanquei o pranto para não morrer e, estou bem viva, apesar da ferida que se finge sarada, para se abrir de vez em quando, supurando sempre, ardendo como um ácido que corrói.
Como explicar a dor se impossível é a expressão total do que se sente? A palavra é exígua, deturpa... Partilhar com alguém os sentimentos é quase um utopia, por serem tão mutáveis, tão voláteis que ao dizê-los, se desfiguram ou embelezam pelo efeito da inexactidão da palavra.
Quando o milagre da partilha acontece manifesta-se num gesto delicado como quem estende uma flor, num profundo e límpido olhar, piscina ritual em que nos purificamos...
De resto o todo que somos de alegria e tristeza, de dor e de paixão envolve-nos, arrasta-nos como um tornado e, rodopiando no centro, atingimos a plenitude do abandono, a total solidão do ser.
Assim penso eu, Filomena agora e aqui, em Vila Marfim.
Os pensamentos são um rio secreto em que nos banhamos sem a incómoda presença do outro. Esta é a noite em que esse rio corre mansamente, nele mergulho, me purifico, me liberto.
Depois... Simão mudou-se para a casa da vila; quanto a mim, permaneci confinada entre as paredes do meu quarto, em Valeperdido, por imposição do meu pai, carcereiro sem piedade e nem Sabina, que ele tanto dizia amar, conseguiu que a pena fosse comutada, porque a raiva havia temperado em aço o coração do juiz - Manuel Diogo de Valeperdido.
Nunca esquecerei a luz alvacenta daquela manhã... Oh, o horror de pensar no que se passou então! As sinistras três pancadas na porta, o brado tinto de desespero:
- Ó lavrador, abra, lavrador! - Os passos apressados de Sabina, o lento arrastar dos chinelos de meu pai como quem não tem pressa em acudir a tão aflita chamada.
- Lavrador, depressa lavrador! - E a chave revolvendo-se na fechadura como dentes rangentes de pânico, por fim, o grito, o tremendo grito de mulher em momento de dar à luz, ou na última hora dum filho muito amado. Não era grito, mas uivo de loba ferida de morte...
Salto precipitada da cama, mas a porta está fechada à chave, procuro sem tino um gancho, uma tesoura, desordenadamente procuro algo que me permita escapar da minha prisão. Lentamente a porta abriu-se - Joaquina restituía-me a liberdade.
- Vá, menina, vá. - E como uma sombra sumiu-se na sombra do corredor.
Na sala de entrada uma mulher chora baixinho um choro dorido, como o gotejar de água caindo dos telhados quando a chuva parou - Sabina.
Desmaiado sobre o canapé, o meu Simão esvai-se em sangue que lhe golfa de entre as pernas afastadas. ”Castrado?” Perguntei-me varada de horror.
E mais não sei, porque não me permito lembrar, mais não vi... porque uma tontura, um desmaio me apagou a luz da consciência.
Quando recuperei os sentidos já tinha chegado o doutor Pacheco, médico e amigo da família. Estancada a sangria, Simão, exangue, dormitava no seu leito.
Meu pai percorria o corredor de lá para cá, de cá para lá; parecia galgar léguas com as suas enormes botas tal o gato da história, resmungando continuamente:
- Isto são coisas do maltês. Isto é obra de Chico Canito. Quis-se vingar, o cabrão...
As criadas andavam de um lado para o outro, em bicos de pés, numa azáfama, carregando nos braços panos brancos, frascos, jarros de água...
Manuel Diogo, meu pai, continuava a galgar o corredor com as suas botas de sete léguas:
- Isto foi vingança do malvado do Canito. - E era sincero ao dizê-lo, porque basta repetir vezes sem conta a mais repugnante mentira para que se transforme na verdade mais luminosa.
Observando o rosto dele vi aí estampada a dor do acontecido, a revolta, o ódio pelo homem que, segundo dizia, cometera tão hediondo acto e nada disso era fingimento.
- Foi Chico Canito. Foi ele... - Repetia sem cessar e as lágrimas rolavam-lhe redondas, autênticas pelas faces. Do que é capaz um homem!
Observava-o pela porta entreaberta e as suas palavras lambiam-me os ouvidos como línguas de fogo, devoravam-me o cérebro e o coração. Lágrimas não as chorava eu, por ser demasiado profundo o abismo da dor.
Não fora decerto Chico Canito quem praticara tão refinada crueldade. O maltês era puro como o céu estrelado, inocente como uma criança. Não podia ter sido Chico Canito, bem o sabia eu. Alguém mais sagaz, alguém poderoso, alguém sem piedade ansiando por vingança era o responsável e eu intuía quem era esse alguém; só podia ser meu pai, o lavrador de Valeperdido porque só ele alcandorava a honra acima do amor e da piedade e para lavar a honra só o sangue, ”olho por olho, dente por dente” mesmo que fosse o olho ou o dente de seu próprio irmão.
Simão agonizava no seu leito, estava lavada a honra. E meu pai continuava frenético, em largas passadas pelo corredor:
- Foi o Canito. Há-de pagá-las. - E a terrível mentira ostentava já as roupagens da verdade.
Não se despegam meus olhos de tão patética cena; observo-a até à náusea e sinto, pela primeira vez quão abjecto é o mundo e desprezíveis os homens. Contrai-se-me de nojo o estômago, os lábios entreabrem-se-me para deixar escorrer o vómito, viscoso, verde como a baba venenosa de uma serpente no estertor da morte.
Na grande aflição entendo que fui condenada sem esperança por meu pai, pelos homens... Tenho apenas dezoito inocentes anos e pergunto-me qual é o meu crime.
Afinal Simão sobreviveu e Chico Canito foi condenado a longa pena por crime não cometido - dezasseis anos de cadeia para um homem inocente, amador do sol e da chuva, da liberdade da planície, das madrugadas claras paridas pelas longas noites estreladas...
Mais valia que o tivessem condenado à morte. Disso se encarregou ele. Passados seis meses, encontrou-o o carcereiro a baloiçar de uma corda que fabricara com o próprio vestuário.
A sua nudez oscilante era um grito de escárnio e um hino à liberdade e à justiça, simultaneamente.
E Simão? Não chegou a partir para Lisboa. Ficou em Valeperdido, tornou-se abúlico, obeso, de uma gordura repelente; no rosto balofo só os olhos enormes me diziam que aquele ser quase monstruoso, que se arrastava por dias sempre iguais era Simão, o meu amado Simão.
Entretanto o meu peito crescia, arredondavam-se-me as ancas, o ventre até aí imperceptível já denunciava a minha gravidez.
Meu pai que nunca me dirigia uma única palavra anunciou-me inesperadamente:
- Amanhã à noite o lavrador da Fonte Nova vem pedir a tua mão.
Empalideci, mas não ousei soltar um único som.
E assim foi.
Exigiu o lavrador Manuel Diogo que além da minha
pessoa também participassem nesse jantar Sabina e Simão.
Apesar da angústia Sabina suplicou-me que não perdesse a dignidade e me apresentasse bem cuidada, bela como exigia o evento. Já que não era possível lutar contra o inelutável, que tentasse esquecer e aceitasse por noivo Jesuíno da Fonte Nova.
Gritei: - Sai daqui, bruxa. - Ela escapuliu-se rápida pela porta entreaberta do meu quarto, soluçando.
”Que dignidade!” - Pensei.
Com gestos lentos como se a alma me vagueasse por outras paragens, enfiei um velho vestido de tafetá azul-escuro que a traça já mordiscava.
Olhei-me no espelho: das mangas tufadas saíam-me os braços muito magros sulcados pelo azul das veias. O colo e o rosto surgindo do decote eram de uma palidez de espectro. Nus os braços e o colo sem uma jóia que lhes aquecesse a nívea brancura. Não entrancei o cabelo, nem o prendi com um laço de seda como costumava fazer em ocasiões festivas; penteei-o lentamente, por muito tempo, em frente ao espelho, caía-me escorrido de cada lado do rosto realçando ainda mais a minha palidez e a profunda tristeza do olhar e assim me apresentei a Jesuíno da Fonte Nova.
Fui encontrá-los na saleta mobilada à moda alentejana: canapé e armário azuis semeados de rosas amarelas, duas cadeiras de verga também forradas de azul.
Jesuíno da Fonte Nova olhou-me de alto a baixo com os olhos miúdos com quem avalia uma jovem égua que se pretende comprar.
Era um homem atarracado, de largo peito e ventre saliente. As pernas curtas e roliças pareciam querer rebentar o tecido de casimira das calças. No rosto redondo e vermelhusco, rasgava-se um sorriso imbecil de basbaque em admiração.
Ao observá-lo pensei que preferia morrer a casar com tal homem.
Em frente dele sentava-se meu pai, a melena de um loiro já desbotado sombreava-lhe o olhar vago.
Sabina e Simão sentaram-se no canapé. Ela, de costas muito direitas, quase hirta, os lábios que se comprimiam um contra o outro como quem se esforça por conter um jorro de impropérios. O corpo de Simão parecia derramar-se pelo assento como se fosse de gelatina. Procurei os seus olhos largos, profundos como poços em noites luarentas e só neles li o desespero.
Meu pai e Jesuíno mercadejavam a propósito do meu dote, descaradamente, sem pruridos nem recato como se eu ali não estivesse.
Em pé, de costas viradas para a cena procurei a noite que se colava às vidraças, densa e negra, sem o brilho de uma estrela ou um pálido reflexo de lua e nela mergulhei e me perdi em quase mística contemplação.
Um farrapo de frase arrancou-me ao devaneio, atingiu-me os tímpanos com a violência dum projéctil:
- ... já nem é virgem e há quem diga que está prenha. Ao dar-lhe o meu nome tiro-lha da lama... está a ver?...
Era a voz desagradável de Jesuíno, o homem bronco, boçal a quem meu pai pretendia entregar-me só para me punir.
Virei-me de súbito para ambos e dardejando-os com um olhar disse numa voz potente, vibrante de revolta:
- Sacana! Vá casar com uma das suas vacas... - E saí.
Assim foram as coisas, se a memória me não atraiçoa, porque com frequência nos prega partidas retendo o que não aconteceu e esquecendo ou transfigurando o que realmente foi.
A meu pai tudo perdoei... finalmente.
Agora mesmo me sorri da fotografia colocada sobre o tampo de mármore. Que belo moço era! Restituo-lhe o sorriso e o perdão é uma chuva de pétalas tombando lentamente sobre as nossas cabeças... ”Meu pai, como eu te amava, e como te odiei também.”
É-me penoso recordar a morte de Simão e como não devia sê-lo, tão jovem, sensível e promissor, vítima da crueldade e do preconceito.
Não resistiu à humilhação que lhe infligiram, ao desgosto de pretenderem casar-me com um homem que não me respeitava.
Simão morreu por mim - eis a mágoa que me tem acompanhado vida fora.
Era uma manhã de Setembro, já ensombrada pelo Outono próximo, quando a voz de um rapaz me saltou pela janela dentro:
- Afogou-se o Capadinho. - Sentei-me na cama estremunhada e pareceu-me ouvir morrendo ao longe: - O Capadinho... afogado.
Estremeci de terror. Reagindo, corri ao quarto de Sabina - ninguém. Chamei Joaquina que não me respondeu. Corri até à porta de entrada ainda em camisa de noite, os cabelos em desalinho... A luz branca da manhã bateu-me em cheio nos olhos ofuscando-me, por fim, no terreiro em frente à casa, vi um grupo de pessoas silenciosas. Pressenti o pior... Aproximei-me, espreitei por entre a brecha que se abria na multidão e no centro, vi estendido numa padiola, o corpo disforme de Simão. O rosto de tão inchado era quase irreconhecível, só os olhos muito abertos atestavam a sua identidade. A seu lado, por terra, Sabina observava-o sem uma lágrima, sem um único estremecer de ombros, só os lábios descorados se moviam levemente como quem diz uma oração; os olhos vazios não se despegavam daquele rosto cinzento, tumefacto que dantes fora o belo rosto rosado de seu filho.
- Simão! - Gritei a plenos pulmões e o grito correu planície fora para contar às searas, às árvores, às aves do céu, aos pombos no beiral, a todos os bichos, a todos os homens da terra o desespero de Filomena Valeperdido, o meu desespero, o meu desejo de morrer...
Lembro-me vagamente dum vestido de musselina preta: decote rente ao pescoço orlado por um fitilho de cetim negro, mangas descendo até aos pulsos, fechadas nos largos punhos por três botões. Negro o vestido, negro o ”monte” de Valeperdido por dentro e por fora, negra e vazia a minha alma. Negro!...
Mais tarde contaram-me que fora um esplêndido dia, de céu luminoso... eu, vi negro... Nesse dia Simão foi a enterrar.
A Senhora das Sete Luas está na minha frente, para ela dirijo este desabafo.
Da morte de Simão não quero mais contar...
A vida de cada pessoa resulta da tecitura de muitos episódios, mas apenas um determina todos os outros; foi assim comigo, pelo menos... E esse episódio terrível, fulcral bem queria eu esquecê-lo; sei, no entanto que, se tal acontecesse seria como se nunca tivesse existido.
O sorriso de Simão entre ingénuo e prazenteiro esse, só a morte há-de apagar da minha mente. Ah, Simão!
Depois tudo me pareceu acontecer velozmente. Tornava-se cada vez mais difícil encobrir a minha gravidez.
O senhor de Valeperdido exasperava-se, ameaçava-me por resistir a casar-me com Jesuíno da Fonte Nova. Até que um dia, colérico, os olhos injectados de ódio disse:
- Juro por tudo quanto é santo que o bastardo que carregas, não há-de sujar para sempre o meu nome. Ou casas com Jesuíno ou ficarás encerrada em teu quarto até chegar a tua hora... Depois farei da criança o que quiser. - Não era só uma ameaça, sabia que havia de cumprir o que acabava de jurar. Empalideci de terror, mas nada disse - nem uma palavra, nem um gesto... era como se ali não me encontrasse que a ameaça proferida pelo ser repelente em que se tornara meu pai, nunca poderia atingir-me como se eu e meu filho fôssemos imunes ao desamor e loucura daquele homem.
Coloquei a mão sobre o ventre e nem uma leve dúvida me ensombrou o espírito: sabia dum saber feito do sentir que o filho de Simão, dentro de mim, crescia tranquilo e a paz reflectiu-se nos meus olhos.
Como um fantasma Sabina revelou-se no meu quarto. Era noite profunda. A chama de uma vela tremeluziu no escuro, iluminou a palmatória que segurava e que colocou sem ruído sobre a cómoda. Arregalei os olhos para me certificar de que não viajava num sonho. Era Sabina, sim, alta, esbelta no espaçoso roupão aveludado. Os cabelos, que costumava apertar na nuca num bem arranjado e elegante monho, desenrolavam-se-lhe pelas costas quase até à cintura. Não sabia que Sabina tinha tão belo cabelo...
A expressão do rosto era determinada como se tivesse maduramente reflectido sobre o que ia fazer. Avançava para mim tão silenciosa que, dir-se-ia uma aparição. Pensei na Senhora das Sete Luas... sem saber porquê.
Sabina aproximou-se para se sentar de imediato aos pés da minha cama. Soltou um quase inaudível suspiro e chamou baixinho: - Fifi. - Sentei-me também olhando-a abismada. Muito séria, Sabina retirou do bolso um pequeno saco de veludo fechado por um cordão de seda e uma carta e começou a desatar o nó do cordão sem pressas:
- Está tudo tratado. Deves partir antes de amanhecer, filha. - Olhei-a perplexa. Ela esboçou um sorriso triste e informou:
- Teu pai foi a Évora, tratar de negócios. É a altura propícia... - E abriu-se de todo a boca do pequeno saco donde foi retirando com extrema delicadeza uma, outra jóia...
- São minhas... - Disse simplesmente.
- Algumas, oferta de teu avô, outras de teu pai. - E colocando sobre a colcha uma gargantilha magnífica cravejada de minúsculos rubis como pingos de sangue sobre uma superfície dourada.
- Esta, foi o último presente de teu pai... - Murmurou e uma lágrima assomou-lhe ao canto dos olhos.
- Mas o que vem a ser isto, Bina?! - Inquiri sem compreender...
Sabina pegou na carta, ao lado das jóias que tinha disposto sobre a colcha: anéis, pulseiras, colares... e entregou-ma. Li no envelope: Para a Sr.a Catarina Vilhena... Rua tal, na tal, Lisboa. - Interroguei-a com o olhar e ela explicou:
- É uma carta para a Sr.a D. Catarina que tu mal conheces. Há muito que não nos visita, mas sua mãe era muito amiga de tua avó a Sr.a D. Matilda. Só ela te pode socorrer... encaminhar. É culta, viajada, tem conhecimentos em Lisboa, Paris, Londres...
- E as jóias?
- As jóias são para ti, minha querida Filomena. D. Catarina há-de saber como conseguir delas um bom dinheiro. - E incitando-me: - Vai. Salva-te e ao filho do meu filho. Eu hei-de acalmar a ira de teu pai. - Ergueu-se e, em pé, como que para me apressar: - Há um comboio às seis. O Chico Marreco leva-te de trem até à estação. Está tudo tratado. - E pegando-me na mão: - Coragem, filha, faz uma mala... Vá... Vai...
Era Inverno de copiosa chuva e veredas lamacentas. A planície esperava inquieta o abraço do sol, para que germinasse a semente... Afaguei-a com o olhar até à linha do horizonte onde os céus começavam a tingir-se de rosa como as faces de uma virgem perante o amado. Anunciava-se uma esplêndida manhã e considerei isso um bom presságio e, sem saber porquê, pôs-se-me o coração a pulsar rapidamente no peito, na expectativa do que estava para vir e a criança moveu-se dentro de mim como quem dá resposta ao meu alvoroço! Exultei de alegria...
Recomeçava a vida em múltiplas esperanças.
”Porque olhas para mim Senhora dos olhos serenos, dos olhos magoados, porque assim me olhas Senhora, testemunha que foste do que se passou.
Nesta noite em que a Lua se apoderou dos céus da terra, eu que te engendrei, creio que realmente existes e o teu coração despende uma força anímica, tão intensa, que preenche toda a Vila Marfim, envolvendo-nos num tempo mágico em que o passado nos visita como se presente fosse.
Ouço o solto respirar de Sabina, a contida respiração de Maya. Sei que aqui estão. Somos três nesta casa, regressadas dum tempo indeterminado. Aqui estamos debruçadas sobre o que passou, na ânsia de compreendermos quem fomos e o que agora somos.”
”... quem fomos e o que agora somos.” - Repete automaticamente Maya desviando o olhar das imagens projectadas no espelho.
Sabina ainda dorme, sonha com Manuel Diogo, decerto. Maya ouve-a pronunciar entre-sonos, na viagem dos sonhos: ”... noivos, enfim.”
Pobre Sabina, cujo grande e secreto desejo sempre tinha sido ser recebida pelo homem que amava, mas ele nunca ousou pedi-la em casamento... Agora, passados os oitenta, realiza em sonhos o seu dia de noivado - vai toda vestida de branco coroada de botões de rosa, a caminho do altar pelo braço do amado, do amante, do seu verdugo - Manuel Diogo...
Desmaia cada vez mais, o já pálido disco da Lua... recua a noite para dar lugar à glória do dia em que a ilusão que tudo é, toma contornos de realidade...
Assim o entende Filomena e Maya também.
Em resumo: estava possesso daquela mania característica de quem conta histórias e que a determinada altura não sabe já se as mais belas são as verdadeiramente acontecidas e em relação às quais só o recordá-las é o suficiente para arrastar consigo um oceano de horas passadas, de sentimentos minuciosos, tédios, felicidade, incerteza, vanglória, náusea de si próprio, etc., ou as histórias inventadas, em que tudo pode acontecer segundo a vontade de cada um e todas as coisas aparecem fáceis. Mas depois constata-se que por muito que se invente já se está a falar novamente de coisas que aconteceram ou cuja compreensão existiu na realidade enquanto elas eram vividas.
O Barão Trepador ítalo Calvino
Duas esteiras de luz desvendam a fita argêntea da estrada, larga e recta como um caminho de bem-aventurança.
Maya inspira os múltiplos perfumes que povoam o ar
- cheiro a terra, a eucalipto, a pinheiro, a erva molhada da chuva recente, que indiscretos penetram pela janela aberta do carro e sente-se rejuvenescer.
É Outono outra vez. Fluem as estações... O último Outono do milénio e o mundo é o que sempre foi e Portugal também. Mais de duas décadas passadas, murcharam os cravos e poucos se recordam da já longínqua manhã em que desabrocharam. Agora, Portugal encolhe-se de novo na sua capa de pedinte, esquecido de seus brios e olhando de esguelha para a Europa, sem convicção, se diz europeu, enquanto os abutres ainda se satisfazem em lautos banquetes de cuja mesa tombam migalhas que ”generosamente” oferecem aos que nada têm e os que observam e reflectem sobre as coisas e a vida, os que ainda não perderam a razão, ruborizam de vergonha.
Assim pensa Maya, enquanto a luz dos faróis afugenta a treva.
Deslizou em silêncio por entre os castanheiros e os pinheiros e as laranjeiras. Três círculos transpôs de árvores frondosas como se lhes corresse nos troncos a seiva da juventude, embora antigas fossem, tão antigas, quanto seu longínquo avô que as mandara plantar ali, ao redor do poço das moiras, como que para protegê-lo.
Ei-la no centro do círculo, no tabernáculo, que é o poço, de vetustas paredes de pedra, como uma ara construída para adoração de deuses, há muito esquecidos.
Sentou-se sobre a erva que brotava húmida da terra vermelha. Por cima das árvores, fechava-se o céu em cúpula perfeita, de veludo negro cravejado a ouro. Ficou por largo espaço fitando a cúpula cintilante e depois as árvores em redor com o poço no centro. Sentiu o frio da noite nos braços seminus e envolveu-se consolada no xaile preto como a noite; pela fímbria da vasta saia cujas pregas se abriam sobre a erva espreitavam-lhe os pés descalços, miúdos, de um branco róseo como os das crianças.
Assim estava Maya, naquela noite em que a Lua era uma delgada embarcação luminosa vogando por entre estrelas.
Decidira não partir sem primeiro visitar o poço das moiras como monja que tentada pela paixão dum homem e o brilho do mundo se recolhe, antes da fuga, na igreja do mosteiro...
Estendida na erva fixa deslumbrada o céu onde desordenadas as estrelas pululam e o olhar desloca-se-lhe na ânsia de situar constelações como se precisasse de certificar-se de que tudo é organizado na terra, no firmamento, no Universo todo e que a harmonia se sobrepõe ao caos.
Imperioso lhe é agrupar estrelas, formar constelações como se deusa fosse.
Tinham decorrido dias, não sabia quantos três ou quatro ou talvez um mês desde o casamento de Clara... Que importância tem o tempo? Toda e nenhuma. Situamo-nos no presente, recuamos ao passado, projectamo-nos no futuro. Estas três componentes constituem o todo - o tempo, rosto de estátua triplamente facetado, mas apenas um rosto. Vivemos na ilusão de circular em três dimensões uma após a outra quando só o ”instante” existe... Assim discorria Maya observando o céu estrelado e a delgada Lua.
Tinha sido linda a cerimónia do casamento de Clara, tradicional, mas discreta como em tempos idos.
Maya lembra-se de seu tempo de juventude e de como se ridicularizavam as tradições e rituais, ela e todos os da sua geração ou pelo menos muitos. Opunham-se aos valores da sociedade burguesa, repudiavam-nos pela transgressão, pelo escândalo. Eram outros tempos! De novo os jovens iam regressando aos costumes de seus avós - casamentos de véu e grinalda, muitos com pompa e circunstância, banquetes em luxuriantes quintas alugadas para o efeito. Era evidente a homenagem às aparências mesmo que fosse à custa de empréstimos bancários e dívidas que levariam anos a saldar.
O casamento de Clara tinha sido elegante, mas modesto. Lírios perfumavam a igrejinha singela onde no altar-mor a Virgem vestida de cetim azul parecia presidir à cerimónia.
Clara de branco e Pedro a seu lado, distinto no seu fato preto olhando-a embevecido com os olhos largos, húmidos de ternura - os olhos de Simão.
Maya admira a filha tão serena, ao lado do noivo, os olhos pestanudos, a boca correctamente desenhada o oval do rosto do pai ”no feminino”. ”Rodrigo!” Exclama baixinho, saudosa da sua presença apesar de tudo. Se fosse vivo e ali estivesse talvez, por fim se orgulhasse da filha que rejeitara, dos três filhos que rejeitou. Uma pequena lágrima enevoa-lhe o olhar sério que relança pelo espaço da igreja ornada de lírios - observa a Senhora no altar, os noivos perante o padre, o enlevo no rosto de Sabina e Filomena, os seus dois filhos lado a lado belos e silenciosos como estátuas gregas, o tio Filipe de olhar ausente, tudo observa Maya através do nevoeiro de lágrimas que lhe tolda o olhar; é então que pressente que alguém atrás de si fixa a sua nuca. Vira a cabeça, de repente e o interior da igreja estremece como a imagem pouco nítida dum velho filme. O nome de Rodrigo aflora-lhe de novo à consciência. Perturbada com a estranha sensação de que alguém fixa nela os olhos, vira outra vez a cabeça, projecta o olhar longe até ao pórtico aberto de par em par por onde escorre a crua luz da manhã e lá está ele, Rodrigo, recortada na claridade a sua elegante silhueta, vestido de cinzento, o cabelo já grisalho, mas com aquele olhar de veludo donde definitivamente desapareceram as cintilações do aço.
”Rodrigo? Não pode ser...” Mas era ele, sem um movimento, estático, recortando-se na contraluz.
Nos lábios despontava-se-lhe um sorriso tímido, meigo, triste que falava de um amor que nunca ousará confessar, do orgulho de ser pai que nunca denunciara.
Uma tontura obrigou-a a desviar o olhar, as pernas de tão trémulas pareciam incapazes de sustentá-la na vertical. Sentou-se, fechou os olhos para logo voltar a abri-los. A medo, olhou outra vez para trás em direcção ao pórtico, mas só a luz dele-irrompia agora, alagando o templo como uma fonte ’que jorra inesperadamente. De Rodrigo nem rasto; tinha desaparecido. E o coração até aí sobressaltado aquietou-se-lhe no peito, uma consoladora serenidade envolveu-a como um manto de estrelas.
A cerimónia chegava ao fim. No coro cantava-se a Ave Maria de Schubert. Duas crianças vestidas de branco espalhavam pétalas à passagem dos noivos. E o perdão, sentiu-o definitivo em cada fibra do seu ser. Como quem reza pronunciou uma e outra vez o nome de Rodrigo, sem ódio nem amor como se fosse o nome de uma personagem de um romance muito apreciado em tempos idos, mas cuja trama já esquecera.
As últimas notas de Schubert extinguiam-se no alto como aves que se perdem no horizonte.
Alguns dias depois da partida de Pedro e Clara para a lua-de-mel, Sabina encerrou-se no quarto como que atacada por súbita doença. Não se queixava de dores nem de qualquer incómodo. Permanecia deitada quase todo o dia fechada num mutismo difícil de explicar.
Comia como um passarinho, por gestos, por monossílabos respondia quando a interpelavam:
- Sentes-te mal, Bina? - Perguntava Filomena e ela com um sinal de cabeça assegurava-lhe que não.
- Estás triste, Sabina? - Inquiria meigamente Maya; a velha senhora fitava-a com o olhar vazio e procurando-lhe as mãos apertava-lhas com os dedos trémulos.
Assim estava Sabina como quem se prepara para uma despedida e assim permaneceu por largos dias.
O Sol esvaiu-se na linha do horizonte, o crepúsculo avançou e hesitante foi envolvendo a paisagem, esbatendo os contornos do casario da vila, espreguiçando pelos campos a cauda do seu misterioso manto.
Maya, debruçada no peitoril da janela admira o espectáculo em que a luz e a sombra jogam às escondidas e pensa num véu que cobre e revela as formas nuas de uma mulher e, errante, de pensamento em pensamento associou aquele crepúsculo único ao rodopio da dança de Salomé, nua, sob os sete véus que cobrem e revelam o corpo magnífico... e, imaginou o desejo reflectido no olhar lúbrico de Herodes Antipas... e... e sorria de tão disparatado cogitar quando visto à luz da razão, enquanto admirava o crepúsculo como se fosse o primeiro que jamais havia abraçado a terra.
A seu lado, Filomena partilhava com ela o mesmo delicioso enlevo quando este foi quebrado pelo som de passos de alguém que entrava no aposento e Sabina surgiu aos olhos de ambas, vestida com um robe de chambre de seda lilás que lhe emprestava ao rosto um fulgor de mocidade.
Erguera-se da cama onde durante dias permanecera tomada de uma mórbida languidez, prenúncio de morte próxima e ei-la ali, ainda bela, apesar da palidez das faces, fazendo-lhes a dádiva de um misterioso sorriso.
Chamou-as com um suave gesto da mão e elas seguiram-na sem uma palavra, como que hipnotizadas pelo brilho do seu sorriso.
Saíram as três da Sala-Marfim, atravessaram o vestíbulo e nem repararam na Senhora das Sete Luas que parecia segui-las com os olhos enternecidos.
Em silêncio percorreram o corredor que atravessava a casa em linha recta: Sabina à frente seguida por Filomena e, atrás desta Maya e entraram por uma das inúmeras portas que o ladeavam.
Ei-las numa saleta quase despojada de móveis; apenas uma mesa ao centro coberta por uma toalha onde esvoaçavam exóticos pássaros dum inventado oriente, bordados a linha de seda dourada e algumas cadeiras frágeis de assento de palhinha; a um canto um baú de pele cravejado de botões amarelos. Numa das paredes, totalmente nuas e de uma imaculada brancura, destacava-se o retrato de um homem dos seus quarenta anos, de fartos bigodes e vincadas sobrancelhas sobre uns olhos profundamente tristes com que parecia percorrer constantemente, e de uma só mirada, o espaço circundante.
”Quem é?” Lembrava-se Maya de ter perguntado, ainda menina, a Sabina que lhe havia respondido vagamente: ”Um teu avô...”, mas Maya insistira com a curiosidade nunca satisfeita das crianças: ”E como se chama?” Ao que Sabina respondeu como quem não quer entrar em pormenores: ”José Estêvão, o primeiro dos Valeperdidos.”
Com um aceno de cabeça Sabina propôs às duas mulheres que se sentassem o que de imediato fizeram e enquanto isso dirigiu-se ao baú. Retirou do bolso do robe uma chave com que abriu a fechadura e levantando a pesada tampa disse soltando uma risadinha fresca, quase infantil:
- Abre-te Sésamo!
Com as duas mãos, retirou do interior um volume envolto num lenço de algodão enrameado e colocou-o sobre a mesa.
Sem uma palavra Filomena e Maya trocaram um olhar interrogativo, enquanto Sabina já se sentava entre ambas soltando um suspiro de cansaço como se tivesse acabado de fazer um enorme esforço.
- Este era o aposento preferido de teu pai, de teu avô.
- Lembrou. Não pronunciava o nome de Manuel Diogo, desde o trágico acontecimento, recusava-se a dizer o nome do homem que tanto amara em presença de outrem. E acrescentou:
- Isolava-se aqui para reflectir, quem sabe, se para remoer remorsos... - Endurecia-se-lhe o rosto... Filomena e Maya nem se mexiam. Nenhuma delas respondeu ao comentário da camponesa que se metamorfoseara numa distinta senhora, distinção que a muita idade acentuava.
Com mão leve, desatou o nó da pequena trouxa, desviou as pontas e ao centro mostrou-se um cofrezinho de zinco ”patinado” pelos anos.
As duas mulheres esperavam tentando dominar a curiosidade que se lhes revelava nos músculos tensos da face, no chispar dos olhos.
Finalmente Sabina recomeçou a falar:
- Ah, os sonhos! Quem diz que sonhos são imaginações?! Às vezes, talvez, mas, mesmo assim encerram sempre uma verdade qualquer. - As outras entreolharam-se e cada uma delas considerava de si para si que a velha amiga havia perdido o juízo.
Mas já ela continuava:
- Há um escritor qualquer, um espanhol, creio eu, porque já me atraiçoa a memória... não me recordo do nome. Antigamente lia muito, queria tanto saber... mas, como ia dizendo, esse escritor afirmava que a vida é sonho. Acho que ele não disse tudo, porque, a meu ver o sonho também pode ser vida. Por vezes sonhamos coisas que vêm a acontecer.
Quando era muito jovem, ouvia os velhos contar histórias de tesouros encantados, escondidos no fundo de poços, nas paredes das chaminés, sob a pedra do lar, tesouros deixados pelos mouros... Sonhavam com o ouro, a fartura que sempre lhes faltava. ”Histórias que o povo inventa para não perder a esperança”, pensava eu então; histórias como a do poço das moiras que se penteiam ao luar pela eternidade.
Maya e Filomena não a interrompiam, embora não percebessem onde pretendia chegar. Talvez tresloucasse como o cavaleiro D. Quixote, cujo cérebro perturbado transformava pacíficos moinhos em terríveis gigantes e uma camponesa na nobre Dulcineia...
- ... histórias! Dirão vocês quando vos contar o sonho que tive durante sete dias consecutivos, repetidamente.
Era noite, no meu sonho, e eu perdida na escuridão de um ermo, sem nada enxergar. Vagueava entre o susto e a curiosidade: ”Onde estou?” Perguntava-me. Não conseguia perceber como tinha ido parar àquele deserto, àquele mundo de completa cegueira. Mal tive tempo de discorrer sobre isso porque já um jacto de luz se derramava sobre a minha cabeça iluminando tudo em meu redor.
Era um círculo e eu encontrava-me no centro; reconheci não ser o Poço das Moiras, porque não havia poço algum. E eu ’no centro pus-me a rodopiar sobre mim própria, de olhos fechados e não sabia explicar porque assim me comportava. Era como se uma mão invisível me obrigasse a girar sobre mim própria assim, com a rapidez dum pião enquanto a guita se lhe não acaba. E de repente parei: abri os olhos - encontrava-me num lindo pomar: grandes macieiras, ostentavam pomos de prata e nas laranjeiras, as laranjas eram de ouro que refulgia sob a luz intensa. O mais bizarro é que essa estranha luz só iluminava o pomar. Para além dele o mundo era negro e cego, o que me era totalmente indiferente.
Todos os meus sentidos se concentravam à minha volta: quieta era a noite, duma inexplicável serenidade, um vago perfume a jasmim passeava no ar... Vento? Brisa? Nada, a folhagem duma laranjeira que por trás de outras parecia esconder-se, estremeceu como se a brisa a aflorasse, mas não havia brisa... Apurei a vista e lá estava junto à árvore ainda franzina o vulto curvado de um homem que com uma pá escavava em redor do tronco. Aplicava-se afincadamente na tarefa como se pretendesse desenraizá-la. Desviou-se um pouco e ficou em plena luz. Recuei dois passos assustada e ele como que pressentindo o meu temor parou de escavar, endireitou-se virando-se de imediato para mim. E que vi eu? Ainda sinto calafrios quando nisto penso. Na minha frente, alto, quase gigantesco mostrava-se Pedro Diogo, de rosto resplandecente e sorrindo como quem pretende aquietar-me. Apontou para o solo para logo me virar as costas e recomeçar a tarefa interrompida, esquecido da minha presença... e acordei alagada em suor.
Durante sete consecutivas noites, se repetiu o sonho e era sempre igual até ao mais ínfimo dos pormenores. Sabina calou-se outra vez. As outras duas, atónitas, esperavam. Tudo contara a velha senhora com lúcida convicção. ”Onde quereria ela chegar?” Perguntavam-se no íntimo Filomena e Maya.
Depois de uma breve pausa Sabina continuou:
- À oitava noite o sonho não surgiu. Dormi profundamente até de madrugada quando, sem saber porque razão, como se alguém me soprasse ao ouvido o que tinha a fazer, me levantei e dirigi ao laranjal ainda de camisa e chinelos; passei por entre as laranjeiras sorvendo o ar limpo e fresco. O orvalho gotejava das folhas e associei cada gota transparente à lágrima que brotando escorre pelo rosto de alguém seja ela de alegria ou de tristeza. Afinal uma lágrima é sempre uma lágrima...
Desviava-se do assunto como quem receia concluir e, fixando as duas mulheres que sem pestanejar a ouviam:
- Acariciei os ramos das laranjeiras como que para consolá-las de alguma tristeza ou participar de uma alegria... o orvalho desfazia-se-me na palma das mãos que húmidas rescendiam. A água nas folhas ia desaparecendo como as vidas se evaporam no tempo, deixando porém nele a sua marca por mais leve.
”Está a filosofar e a poetar. Que extraordinária é a nossa Sabina!” Observou Maya intimamente. - Vamos ao resto. - Disse enfim. - Por ali andei durante alguns minutos admirando as laranjeiras com uma minúcia pouco comum, sentia-as pulsar como se fossem gente e inundada de ternura acariciei-as - a folhagem, o tronco... só então reparei na árvore mais pequena por detrás de outras duas robustas, frondosas e tocou-me a sua fragilidade; pareceu- . -me vulnerável como uma criança e foi aí que me dei conta da pá encostada ao tronco e era a mesma do sonho que sete vezes se havia repetido. Peguei no cabo e a mão que lhe pegava sendo a minha não o era. Dir-se-ia que me tinha nascido uma mão poderosa, apêndice engenhoso dum robusto braço. Escavei junto ao tronco e não me era penoso escavar. Passaram minutos, uma hora, talvez; a terra ia-se amontoando ao lado do buraco que se abria como uma boca voraz.
Finalmente a pá bateu num objecto metálico.
O céu tingia-se de rubro, anunciando o sol. - Maya e Filomena começavam a entender o sentido de tão longa história. Os olhos convergiram-se-lhes para o pequeno cofre de zinco sobre o lenço enrameado. O que conteria aquele cofre? Jóias, cartas, títulos, um tesouro? Ou a velha amiga caducava? Mas já ela levanta a lingueta e vai erguendo lentamente, milímetro a milímetro a tampa como um actor em cena que pretende prolongar o ”suspense” no público. As dobradiças iam rangendo tímidas, de súbito, com um gesto sacudido, Sabina expôs aos olhos das duas mulheres... o brilho quente do ouro em moedas e jóias, a riqueza multicor de pedras preciosas - safiras, esmeraldas, rubis, faiscavam à luz eléctrica, ali entre as quatro paredes do aposento sem janelas. Como num túmulo antigo, o tesouro revelava-se em sua luxuriante beleza. ”Onde teria Sabina encontrado tudo aquilo? Seria um tesouro dos que falavam as lendas? Ou teria Pedro Diogo escondido aquela fortuna entre as raízes da laranjeira?” Assim se questionavam Maya e Filomena, cegas pelo fulgor que irradiava de dentro do pequeno cofre, mudas de emoção.
Sabina estalou uma gargalhadinha trocista como o sábio perante o pasmo do discípulo.
- Ora, ora; sei perfeitamente o que vocês estão para aí a pensar: que tudo o que vos disse não passa duma historieta, uma patranha para justificar o conteúdo deste cofre. Mas enfim, seja como for, realidade e ilusão são uma e a mesma coisa. Não era assim que tu pensavas Filomena? Mas adiante: eu sou uma camponesa, por mais que tenha aprendido, convivido com outras classes, por mais que me tenham coberto o corpo de sedas e jóias serei sempre uma camponesa porque está no campo a minha raiz e essa, é a minha essência. Para o camponês a terra é tudo. Por ela se vive e se morre no Alentejo e em toda a parte... Deseja-a como a uma bela mulher pois é ele que a faz fecundar... Mergulhando as duas mãos no cofre levantou-as pouco e pouco - o amarelo das moedas era como gotas de luz escorrendo-lhe por entre os dedos. - Ouro! - Exclamou. - Isto é bem real; com ele se sacia o faminto, se cobre o nu, se erguem monumentos sumptuosos, se constróem cidades. Por ele se matam os homens, se levantam nações umas contra outras, se compra o respeito, se perdem mulheres e homens. Ele é repugnância e atracção. Assim, pelo bendito, maldito ouro se cometem os crimes mais hediondos, se esquece a honra, se preciso for se entrega a alma ao diabo e, quem o serve, se não se acautelar, pode até tornar-se no esbirro de seu próprio irmão. - Lágrimas rolam-lhe silenciosas, vão-lhe sulcando a face num fio húmido que refulge batido pela luz.
Os ombros de Filomena e Maya estremeceram imperceptivelmente, ambas sabiam que se referia a Pedro Diogo, a Manuel Diogo, sobretudo a Simão. - Poder! - Exclamou limpando o rosto com um lenço alvíssimo e prosseguiu:
- Enfim, para aqui estou a repetir o que toda a gente sabe, que o ouro é poder e a quem tem poder, tudo é permitido até a mais requintada malvadez. Mas onde eu queria chegar é que o ouro pode comprar a terra e ela é mãe generosa. Como vêem continuo a ser uma camponesa... uma pobre camponesa violentada, amada e desamada por dois grandes senhores. - Fechou os olhos como que para se projectar longe, no passado. - Ah! Naquele tempo!... ”Tudo Io manda, quem tudo Io pode...” Para um camponês só a terra é importante. Ora, vocês descendem de senhores de terra, embora já não a possuam e são a minha família. Gostaria que a recuperassem. Perdi o meu filho e o filho de meu filho que nem cheguei a conhecer, resta-me Pedro, o meu bisneto e vocês também. Perdi Valeperdido porque vocês o perderam. É preciso recuperar a terra para a nossa família Valeperdido. Agora temos, têm uma última oportunidade. E apontava para o cofre. Este ouro, estas pedras são vossas, de Filipe e Pedro. Reafirmo ser possível recuperar Valeperdido. - E suspirando:
- Acho que isso havia de aliviar a alma de Pedro Diogo, de Manuel Diogo... - E como quem resolve, por fim, responder à pergunta que pairava no ar: - Donde veio este ouro? Já nem eu própria sei. Das raízes da laranjeira? Quem sabe?... Parece-me que sim. Como lá foi parar? Talvez lá tenha estado durante séculos ou Pedro Diogo aí o enterrou com algum propósito e a morte súbita não lhe permitiu contar a ninguém. - E dirigindo-se a Filomena: - Cabe,-te a ti Fifi, a mais velha, cumprir o que tem de ser cumprido depois da minha partida. Quanto a ti Maya, terás dinheiro suficiente para encetar os caminhos que ainda anseias por percorrer.
- Lançou-lhe um olhar simultaneamente cúmplice e enigmático. Maya baixou pudicamente as pálpebras como se sentisse devassada por dentro, assaltada no mais íntimo de si.
Era tudo muito estranho: a saleta sem janelas, de paredes altas e nuas, o retrato do homem de olhar distante, testemunha silenciosa do que acabava de se passar, Sabina agora calada, mas cuja voz vibrava ainda no ar, o cofre escancarado revelando uma fortuna que ninguém sabia exactamente donde viera, qual a sua origem e que ela já havia decidido, antecipadamente, o que com ela fazer.
Maya, fixando o ouro que faiscava considerou quão importante é realmente o dinheiro, embora de pouco sirva a quem procura o crescimento interior. Ela, usá-lo-ia para completar o périplo, permitir-lhe-ia assim descobrir-se e plenamente ser Maya irradiando serenidade, mas ainda não sabia que caminhos trilhar...
Filomena parecia abatida como se lhe pesasse a responsabilidade da incumbência que lhe legava Sabina e que temia ser incapaz de realizar. Acariciou com os olhos a camponesa que se havia tornado senhora sem nunca esquecer as suas raízes e perguntava-se porque tinha permanecido na família que tanto a violentara e porque nunca abandonou seu pai, Manuel Diogo, que lhe tinha trespassado o coração. Era como uma Senhora das Dores perdoando ao algoz de seu próprio filho. Vamos lá entender as contradições dos afectos e os comportamentos que estes determinam!
Um enorme cansaço revelou-se no rosto de Sabina como se as forças de todo a tivessem abandonado. Ergueu-se da cadeira com dificuldade, os olhos pregados nas outras duas mulheres, confessavam o grande amor que por elas nutria. Vacilante, encaminhou-se para a porta sem uma palavra e era como se o peso da vida, intensamente vivida se lhe tivesse abatido sobre os ombros que se curvavam como se a carga lhe fosse insuportável.
Saiu para se recolher de imediato ao quarto onde permaneceu, ora sentada na poltrona junto à janela, ora estendida na cama de olhos muito abertos, fixos no tecto como se nele descobrisse uma verdade até aí perseguida e nunca alcançada.
Filomena e Maya preocupavam-se porque mal bebia e se alimentava, alheada do mundo como se já lhe não pertencesse.
Chamaram o doutor Teodoro que, depois de a auscultar, de lhe tomar o pulso e medir a pressão abanou a cabeça com ar seriamente preocupado. A doente parecia nem reconhecer o velho médico da família.
Era Verão escaldante e no jardim as cigarras cantavam aflitas.
O doutor Teodoro saiu do quarto e já na sala conversou com Filomena. Era sua opinião de que Sabina não estava enferma; era robusta apesar da idade, mas parecia recusar-se viver. - Cansou-se da vida. - Disse como se fosse a coisa mais natural do mundo. - Um psiquiatra, talvez?... - Sugeriu Filomena. O clínico abanou negativamente a cabeça como quem está certo de que até um mestre de doenças da alma nada seria capaz de fazer em tal caso.
Filomena telefonou a Filipe, seu tio para que viesse. Afinal era o grande amigo de Sabina, o Pigmalião que a havia ajudado a transformar-se em. ”Sabina senhora.”
Filipe chegou no dia seguinte a Vila Marfim ainda elegante, distinto, mas já alquebrado pelos anos descansando disfarçadamente o peso do corpo no castão da bengala. Acompanhava-o um psiquiatra seu amigo, um homem baixo de fartos bigodes, rondando os sessenta anos, o rosto muito vermelho como se a gravata que lhe envolvia o colarinho estivesse em vias de estrangulá-lo.
Filomena e Maya abraçaram o tio com a efusão que a presença de alguém muito querido provoca em momentos difíceis. No rosto dele, notava-se uma rigidez provocada pelo esforço que fazia para impedir que as lágrimas brotassem. Mais um instante e os três desatariam a soluçar, então, de imediato, para quebrar a emoção que se avolumava, Filipe apresentou o médico:
- O doutor Fernandes, meu velho e ilustre amigo. E a atmosfera de comoção dissipou-se...
Sabina continuava deitada de olhos fixos no tecto, como se não se tivesse apercebido da chegada do amigo de tantos anos.
O médico perguntou-lhe se lhe doía alguma coisa, se estava triste e porquê, mas ela não respondeu, era como se ali não estivesse, não reagia à voz do médico, nem à de Filipe nem mesmo à de Filomena e de Maya.
- Depressão? - Questionou-se o médico como se reflectisse em voz alta sobre o diagnóstico. Calou-se talvez por não ter certezas. Depois de ter rabiscado o nome dum medicamento numa folha de papel timbrado, concluiu o que todos pareciam já ter percebido:
- Já não quer viver e... - Hesitou. - Em tais casos o que pode a ciência, sobretudo em pessoas da idade de D. Sabina? Se tomar o medicamento ainda pode ser... – Disse isto porque considerava cruel que a esperança morresse de todo no coração dos presentes, mas Filipe percebeu que o que ele queria dizer era: ”Esta senhora vai morrer porque assim o quer e nem eu, nem ninguém, pode fazer seja o que for contra a vontade de uma pessoa.’!
À tardinha, quando uma ligeira brisa se levantava sobre o restolho, o doutor Fernandes despediu-se e lá partiu no seu lustroso Volvo para Lisboa.
Ficaram os três e Sabina que já ali não estava. Decidiram fazer vigília durante toda a noite para que não permanecesse nunca sozinha, revezavam-se. Primeiro foi a vez de Filomena, depois a de Maya para pouparem o tio que também já ia avançado em anos, mas ele recusava deitar-se. Cochilava duas horas num sofá da Sala-Marfim, depois, subia as escadas, entrava no quarto e ia instalar-se na velha poltrona junto à janela que parecia ter marcada no estofo a forma do corpo de Sabina. De vez em quando, de modo quase imperceptível esmagava com a ponta do indicador uma lágrima que teimava denunciar a sua dolorosa partilha com a agonia da amiga.
Foi assim durante nove dias e oito noites - a Lua encheu-se outra vez como o ventre duma mulher no término da gestação. Sabina mexeu-se na cama quando o astro, deslizando no céu pareceu parar, por instantes alinhando-se com a janela aberta de par em par como se pretendesse rolar para o interior do quarto tal uma bola que, impelida por um pé, irrompe pela baliza para alegria de uns e desespero de outros tantos. Assim parecia a Lua, uma bola prateada, um rosto redondo e curioso pronto a invadir a intimidade dos humanos.
Sabina mexeu-se outra vez, inquieta e numa voz quase inaudível pediu:
- Levem-me para baixo, para a Sala-Marfim. Quero ver a Lua entrando pela porta do pátio. Quero ver-lhe bem o rosto... - E mais não disse e foi-lhe feita a vontade.
E era a noite nona...
Estendida no vasto sofá, de rosto virado para a porta que se abria sobre o pátio, Sabina fixava a Lua como se com ela estabelecesse um secreto diálogo.
Assim ficou por algum tempo, o rosto iluminado pela branca claridade tomava outros contornos como se nele se fosse operando uma estranha metamorfose e, nessa nova fisionomia, suspeitava-se a entrega, a resignação, transpirava a serenidade de quem ia ultrapassando os limites do humano para se diluir no misterioso mundo do sagrado.
Assim estava Sabina e à sua volta Filomena, Filipe, Maya vigiando.
Filipe sentado à cabeceira da anciã ia-lhe passando ternamente a palma da mão pelos cabelos ainda sedosos e o seu olhar era profundo, inconfessável como um abismo.
Maya na cadeira de baloiço, entre almofadas cor-de-erva observava toda a cena: a tia Fifi que, no colo, torturava as mãos, torcendo-as uma na outra como um trapo velho e o tio Filipe, pesaroso e enlevado olhando Sabina. Difícil ler nos seus olhos o segredo que ciosamente guardava, mas que ela há muito tinha descoberto - o amor amordaçado ao longo de décadas, nunca a ninguém confessado, nem por ninguém surpreendido. Por mais que tentasse mantê-lo a salvo da devassa dos outros revelava-se ali, naquela altura, como um livro que se abre e não pode escapar à nossa curiosidade de saber.
Filipe amara Sabina, amava Sabina com tal intensidade que nunca lhe fora possível substituir esse amor, e agora Sabina ia morrer sem nunca ter percebido que aquele amigo, aquele homem simultaneamente meigo e enérgico a tinha amado com exaltação e respeito.
Na outra extremidade do diâmetro da sala circular, abria-se um arco que a ligava ao vestíbulo onde, na parede, mesmo em frente, Maya podia ver com nitidez a Senhora das Sete Luas presa no rectângulo da moldura...
Um suspiro libertou-se dos lábios de Sabina para de seguida lhe jorrarem palavras que se atropelavam precipitadamente.
- Estás aí? És tu? Queres casar comigo? Hoje é o dia?...
- Perguntava.
- Delira. - Comentou Filomena tristemente. Mas Maya sabia bem que assim não era.
- Oh, sim. Quero casar contigo de vestido branco de lantejoulas como me prometeste um dia. Depois... aconteceu... mas isso, já não tem importância. - Dialogava com uma sombra, um fantasma, o seu próprio espírito talvez, quase separado do corpo. Vivia entre duas realidades, várias realidades. Na verdade o que dizia parecia não ter nexo por ausência de interlocutor.
- É hoje, não é?... Na garupa do cavalo como a princesa moura e o cavaleiro cristão? - E lamentava-se:
- Sabes, estou cansada da espera... tão longa espera. Calou-se.
Maya alongou outra vez a vista para além do arco da sala até à pintura iluminada pelo clarão da Lua e seus olhos viram o impossível - a figura de mulher, orlada de seis luas e uma sétima que flutuava sobre a palma da sua mão direita tomou relevo, agitou-se levemente na estreiteza do rectângulo. Maya esfregou os olhos cansados por considerar que o que via não passava de mera ilusão de óptica e quando voltou a olhar para o quadro, encontrou-o vazio da imagem que Fifi nele pintara; a tela ostentava um recorte em branco como se a figura de uma mulher sentada em posição de lótus, dele se tivesse ausentado. Maya esfregou ainda os olhos para se certificar que não sonhava, mas quando de novo os abriu pôde nitidamente ver junto ao quadro uma mulher, em pé, envolta num manto azul ferrete e luas, sete luas flutuavam endoidecidas pelo espaço do vestíbulo.
A mulher fez avançar um pé e depois outro e, num passo miúdo, arrastando atrás de si como uma rainha a longa cauda do manto, transpôs o arco que dava para a Sala-Marfim. Havia solenidade, e altivez no seu porte, solene era também a expressão do rosto. Sem pressa, caminha até ao sofá onde Sabina repousava e parou junto dela.
Sabina abriu os olhos e exclamou:
- Ah, é a Senhora das Sete Luas!
- Delira. - Disse Filomena para Filipe que concordou. Só Maya sabia que talvez assim não fosse.
Um sorriso discreto de compaixão esboçou-se nos finos lábios da Senhora e Sabina apercebendo-se observou:
- Ela sorri. Vem anunciar-me que prestes Manuel Diogo vai chegar... - Circunspecta fixava na parede em frente um ponto indefinido...
O espanto emudecia Maya... os outros não davam por nada... Então a mulher do quadro deslocou-se como quem levita até à cabeceira da moribunda e debruçando-se, três vezes lhe soprou sobre os olhos abismados e, coisa nunca vista!, as pálpebras de Sabina foram descendo, até se cerrarem por completo, cobrindo para sempre os seus magníficos olhos negros. Dormia, enfim, o último sono.
Mas já o ouvido de Maya capta para além dos muros do jardim o som de patas de cavalo, a passo, a trote, a galope, perto, muito perto, menos perto; o som foi-se afastando até se calar lá longe e um silêncio asfixiante envolveu a rua, a casa como se uma gigantesca mão tivesse amordaçado tudo quanto vive, a própria alma do mundo.
Maya pensou (porque em tais momentos vive-se na lógica do ilógico): ”Lá vai Sabina na garupa do cavalo de Manuel Diogo, tal a guerrilheira e o Bailabem ou princesa moira levada por cavaleiro de lenda...” Pensou isto e sinceramente acreditava que assim fosse.
- Descansou. - Disse enfemisticamente Filomena com o coração apertado pelas lágrimas.
O tio Filipe suspendeu a carícia que ia continuamente tecendo sobre os cabelos de Sabina, sua amiga, sua amada e encostando à dela a sua cabeça desatou num inconsolável choro.
Dos olhos de Maya escancarados de espanto, nem uma lágrima brotava. De súbito, despertou daquele instante alucinado e perscrutou de longe o quadro donde havia pouco se tinha ausentado a Senhora das Sete Luas. Lá estava ela, sentada em posição de lótus, presa entre as quatro ripas da moldura tal qual Filomena a havia inventado, em idos e longínquos dias.
Sabina foi a enterrar sem bulício nem ostentação. Afinal os Valeperdido já não tinham influência, nem prestígio. Quem deles se recordava? Morto o último dos patriarcas o bolor da ruína foi-se instalando até tudo devorar - casas, terras, gados e por fim Valeperdido arrastado na voragem da revolução que pretendia transformar uma sociedade quase feudal, constituída por meia dúzia de senhores e uma multidão de ”servos da gleba”, maltrapilhos e famintos, numa sociedade regida pela justiça. Mas o que é a justiça dos homens? Desmantelada que foi, a reforma agrária, outros senhores substituíram os antigos e as desigualdades, embora menos escandalosas, permaneceram - algo ia mudando... mas tenuemente.
O desemprego chegou de assalto como lobo que ataca o rebanho desprotegido e a desilusão campeou outra vez na planície.
A debandada recomeçou: partiam os jovens no rasto da miragem de uma mais desafogada vida. Ficaram os velhos, algumas crianças e emigrantes regressados depois de vinte anos de suor e lágrimas. Vinham, por fim instalar-se na terra que os repelira para patentear a realização do sonho de ter casa própria e automóvel à porta.
E assim se ergueram nas aldeias e vilas, novas casas e se compraram as que outrora haviam pertencido à diminuta classe média constituída por seareiros, comerciantes, negociantes de gado e cereais que por uma razão, ou por outra, se haviam instalado em Lisboa ou algures.
Os estrangeiros chegavam, os novos ricos também, em demanda de ares lavados, largos espaços, silêncios mais vastos que o mundo, enfim, fascinados pela mística do Sul. Compravam ”montes” e quintas para fins-de-semana e férias. Traziam os amigos, colegas de trabalho, gente em catadupa para que se certificassem de suas posses e sucesso.
O dinheiro que sempre foi quase tudo, era agora, absolutamente tudo. O Alentejo tornou-se moda, e em breve talvez, mais não fosse que uma estância de férias para os endinheirados dos centros urbanos.
A planície, essa, permanecia inalterável, espreguiçando-se até ao horizonte, enregelada de Inverno, agastada no Verão pelo calor que despedia a bocarra escaldante da fornalha do sol.
De modo que, aos Valeperdido só restara Vila Marfim e o cofre recheado de ouro que por ”mágicas artes” veio parar à mão de Sabina e que ela tinha entregue antes de sua morte; mas essa história era segredo de família, as outras, as de crueldades, vingança, iniquidade, desonra conheciam-nas ainda os velhos já bem velhos que, embora desejosos de transmiti-las aos netos, destes, raramente recebiam a atenção requerida, obcecados que eram pelas imagens no ecrã do televisor que seguiam horas a fio, olhando passivamente, embrutecidos - filmes de violência, notícias de morte, informação e contra-informação, reality shows, onde jovens se vendiam por um punhado de notas e, acima de tudo pela gloríola de terem a fotografia impressa numa capa de revista.
O uoyeurisme instalava-se e como lodo em límpido lago trazia à tona da alma o que de mais torpe existe na natureza humana.
Mas os velhos, relicários de histórias e de lendas sabiam que o nome dos Valeperdido lhes vinha do ”monte” que assim se chamava e que fora José Estêvão quem primeiro o adoptara por não possuir sobrenome de vulto e, talvez para se autopunir e toda a sua descendência que usaria esse nome como um estigma, porque Valeperdido tinha sido para ele uma terra maldita, terra do remorso, da vergonha, pois tinha-a obtido a troco da própria alma.
Sabiam tudo isso os velhos e de Sabina também, camponesa que se tornou senhora por ter sido amante de dois grandes senhores da terra; por isso a desprezaram e por fim, a esqueceram.
Assim sendo, Sabina foi para a cova acompanhada pelos descendentes de seus senhores que não eram de seu sangue, mas que tanto bem lhe queriam e os que a viram nascer nem deram pela sua morte.
Era uma tarde em que o sol jogava às escondidas com o cinzento das nuvens: a terra cobriu Sabina, a guerrilheira e o esquecimento também.
Paz à sua alma.
Maya deitada de costas na erva salpicada de orvalho sente a rijeza da terra húmida, capta o odor peculiar que dela se desprende, odor semelhante ao de uma mãe embalando nos braços, o filho.
- Cheira a terra! - Exclamou numa voz que denunciava o prazer provocado por uma das mais primitivas das sensações.
Recordava-se que em criança as criadas do ”monte” a proibiam de verbalizar tão inocente prazer.
- É de mau agoiro, menina! Não diga isso. - Repreendiam Joana, Francisca... e explicavam-lhe:
- Sabe o que diz de si para si o espírito da terra quando falamos do seu cheiro? - Maya olhava-as com ar de desafio e repetia:
- Que bom, cheira a terra. - E a criada, as criadas:
- Pois aqui fica o que diz de si para si o espírito da terra: ”Tomara-me eu já ter-te cá nela.”
Maya rindo o seu riso cristalino de criança rodopiava à volta das mulheres aflitas, repetindo como quem entoa um cântico de louvor:
- Cheira a terra, cheira a terra, cheira a terra... - e elas persignavam-se para esconjurar a maldição que tais palavras continham.
A superstição é por vezes o espúrio dum conhecimento quase esquecido ou mal interpretado; por isso o povo tem sempre alguma razão e suas crenças encerram alguma verdade. De facto a terra é mãe que nos alimenta e que depois da morte nos devora como as madrastas dos contos populares e tudo para que se cumpra um ciclo e outro recomece.
A cúpula celeste desce quase até ao topo das árvores ali no Poço das Moiras, como se aí assentasse sua estrutura tal a abóbada de uma mesquita repousando sobre múltiplas colunas.
O cheiro a terra molhada penetra pelas narinas de Maya, espelha-se-lhe nos olhos o firmamento povoado de estrelas, e, abandonando-se como alguém que flutua num lago de águas plácidas, Maya sente confundir-se com a própria alma do mundo.
Coloca a mão direita sobre o peito onde o coração pulsa sem parar (o coração nunca adormece), uma estranha lucidez dela se apodera, levando-a a uma outra compreensão das coisas, a um conhecimento para além da lógica comum; sabe que o seu ciclo ainda não se cumpriu, que há ainda um longo caminho, que forçosamente, terá de percorrer para aportar, enfim, a um ”país” qualquer que por ora desconhece.
E pensando estas coisas e outras vai agrupando estrelas como se cada uma fosse peça dum desordenado quebra-cabeças e desenharam-se no céu a Ursa Maior e a Menor e a Cassiopeia... e... e... inesperadamente o firmamento iluminou-se ao derramar-se um chuveiro de estrelas como ouro escorrendo de uma ânfora antiga.
Uma paz infinita toma-a nos braços, afaga-a, aquece-a, qual fogueira que consola das gélidas vergastadas da vida.
Fechou os olhos e teve a sensação que sobre as pálpebras cerradas, a fronte, o rosto, sobre o cabelo espalhado na erva tombava uma poeira fina, refulgente, ”poeira de estrelas”, pensou como se fosse a coisa mais natural do mundo. ”Talvez porque sou Maya e Maya não é só a deusa da ilusão, mas também a filha de Atlas, deusa da chuva e do crescimento, a que amou Júpiter e que o pai dos deuses transformou em estrela para que escapasse à desmedida fúria de Juno. Quem sabe se ’Maya’ pretende lá do alto enviar-me uma mensagem porque de Maya me apelidou Filomena e nada, mesmo nada, acontece por acaso”, e este discorrer era-lhe de uma tão precisa lógica, tão natural, como se ao observar grossos rolos de nuvens soubesse que a chuva era prestes. E chamou baixinho:
- Maya, Maya, Maya. - Sem saber se invocava a deusa da era da criação ou se pretendia certificar-se de que a sua identidade não se diluirá no mágico espectáculo da noite.
- Serás Maya como a filha de Atlas... - Ressoava ainda em seus ouvidos a voz musical da tia Filomena, de vestido de musselina e paleta na mão fazendo surgir na tela pela magia da cor, a figura da Senhora das Sete Luas.
Como a amava então, essa tia de sorriso luminoso, graciosa como uma das Três Graças de uma tão precoce maturidade e brilhante inteligência como se ao nascer tivesse sido fadada por todas as fadas boas que habitam os bosques e os ares. Mas algo embaciou aquele amor que ia de Filomena para ela como uma luz que atravessando um vaso de cristal o incendeia como um sol.
O certo é que sofreu com a indiferença a que a votou a tia a partir de... não se lembrava quando... Sentia ainda no corpo o apertado abraço, a ternura com que a olhou junto à campa de Sabina. Perguntava-se se seria um abraço de reconciliação, mas, reconciliar-se porquê?... Que tinha feito para magoar a tia? Não sabia, não entendia, por mais que descesse dentro de si até às profundezas mal exploradas do eu. Fez um esforço ciclópico para recuar, para trás, cada vez mais para trás no tempo... Viu-se criança brincando nas ruas do ”monte”, fugindo à vigilância de Sabina, penetrando no emaranhado das searas, escondendo-se na infinita cabeleira da planície... Livre.
Lembrou-se de Simão: ”Simão e Filomena que trágica história! Os olhos dele eram distantes como que absorvidos num mundo que nenhum mortal pode alcançar”, e assim foi circulando de lembrança em lembrança, percorrendo incessantemente os caminhos labirínticos da memória, afanosamente como quem precisa de encontrar algo que lhe é absolutamente vital.
- Filomena. Simão. - Murmurou.
Meiga a tarde morria... Maya tem cinco anos, talvez. Vê sair Filomena e Simão. Esgueiram-se pelas traseiras da casa do ”monte”. Maya sente uma ponta de ciúme, porque os dois estão sempre juntos e Fifi já a não leva a passear, já se não encerra no quarto olhando absorta o branco da tela onde pode fazer surgir flores, pessoas... Cores bizarras e inquietas.
Quase todas as tardes Simão e ela saem pelas traseiras, sorrateiramente.
Maya está curiosa, mordida de ciúme porque Simão lhe rouba a tia Fifi. Segue-os à distância com pezinhos de lã. De longe vê que entram no palheiro. Ao lado ficam as cocheiras... Em casa as criadas preparam o jantar sob as ordens de Sabina e o avô está na eira mandando e desmandando - é o tempo da debulha. À volta do ”monte” tudo deserto, a planície também, parece adormecida, assim coberta pela áspera capa de restolho.
Aproxima-se das cocheiras; ouve o som dos cascos batendo no empedrado, empurra o postigo: lá estão eles, o Malino, a Carina, o Ladino, o poney que o avô lhe ofereceu... Fica a admirá-los por instantes. Cheira a palha, a feno, a excremento, a suor. É um cheiro agradável porque natural... Quase já se esqueceu de Simão e Filomena quando um leve gemido se solta da porta ao lado e lhe prende a atenção. Outro gemido se segue e outro consecutivamente...
”O que farão aqueles dois ali encerrados?” Perguntou-se. E é grande a curiosidade. Sabe que eles têm um segredo, aproxima-se pé ante pé, quer descobrir... Coloca o olho direito no buraco da fechadura arregalando-o para ver melhor na semitreva do interior. E vê... Simão envolve Filomena nos braços, o corpo quase nu cobre o corpo dela. Não consegue ver-lhes os rostos, o dele, o dela, mas vê nitidamente as pernas nuas de Fifi envolvendo os rins de Simão. Gemidos, soluços chegam-lhe aos ouvidos como um lamento. ”A tia Fifi está a chorar. Simão está a rnagoá-la”, foi o que pensou na hora. Aterrada, afasta-se correndo... No seu cerebrozinho uma única preocupação: ”É preciso encontrar o avô. O avô é forte, pode socorrer a Fifi...”
- Avô, avô! - Vai gritando...
Tinha chegado o crepúsculo; Manuel Diogo caminha no seu passo largo com a imponência que lhe confere seu estatuto de senhor. Maya agarra-se às suas pernas, soluçando:
- Avô, avô, o Simão está a magoar a Fifi, ali, ali... - E apontava com o indicador esticado o casarão que era o palheiro.
O avô afastou-a bruscamente como se ela tivesse cometido uma travessura e dirigiu-se no mesmo passo largo e seguro para o sítio que Maya lhe indicava.
Abriu os olhos. No céu as estrelas estavam todas no seu lugar, mas a Lua parecia ter crescido - de estreita lâmina passara à forma da letra D.
Maya não desprega os olhos da Lua que vai crescendo prodigiosamente até se tornar num carão pálido, redondo cujo reflexo embaciava ligeiramente o brilho das estrelas.
Levou as mãos às têmporas cobertas de gotas de suor. Arfava como se tivesse acabado de fazer um enorme esforço... Ela, Maya, na sua inocência, tinha puxado o fio que desencadeou a hecatombe. Ela, Maya na sua infantil curiosidade havia revelado os secretos amores de Filomena e Simão e a partir daí tudo se foi desmoronando: morreu Simão, Fifi fugiu... o coração de Sabina entristeceu para sempre, a raiva, o desencontro instalou-se na família; o avô alcoólico, quase louco acabou por morrer e a ruína chegou.
Basta que puxemos um fio da teia da vida para que tudo mude, porque nela todo o equilíbrio é precário.
Estamos condenados à mudança e, por vezes, ainda bem que assim é.
Maya, a criança Maya, apontando para o palheiro com o pequeno indicador esticado foi deusa da destruição...
Uma dor profunda atravessou-lhe o peito, as costas, o coração aflito parecia querer libertar-se das grades que o aprisionavam. Nesse tempo era apenas uma criança, mas também elas, têm o poder de criar ou destruir - de transformar o mundo.
Pela inocente mão de Maya instalou-se o caos em Valeperdido...
Afinal ninguém é inocente e essa é a eterna contradição da vida.
Abriu os olhos, o luar inundava-lhe o rosto fazendo-o resplandecer. Só silêncio no céu e na terra - O silêncio!...
Finalmente Maya entendia o abraço de Fifi à beira da campa de Sabina - era um abraço de reconciliação com ela, com a vida, o mundo, com o passado.
A dor aguda, perfurante desapareceu como se a terra que a sustinha a tivesse absorvido.
Levantava-se uma fresca brisa fazendo rumorejar as árvores em volta. Observou mais uma vez a Lua que do alto parecia também espreitá-la. Espelharam-se-lhe na mente as imagens do avô, de Sabina, de Simão, de Rodrigo e teve a certeza que sendo todos culpados também eram inocentes, porque de culpa e inocência se constitui a essência da humanidade.
Uma grande compaixão inundou-a, refrescou-a como se se purificasse nas águas dum sagrado rio, por ela própria, por todos os homens e mulheres porque compreendeu que tão pouco podemos contra a nossa própria natureza. Perdoou-se, perdoou ao avô, a Rodrigo sabendo agora da impotência de cada um perante o grande mistério da vida. E naquele instante pleno, ali, no Poço das Moiras, palco de amores e tragédia, teve a firme convicção que o Amor e a misericórdia são o único motor de transformação do mundo.
Mas Narciso reinava, encantado com o seu reflexo à flor das águas, esquecido de que, como outros narcisos, também era prisioneiro no maravilhoso planeta azul.
Era urgente redescobrir a ”Ilha” perdida na bruma, percorrendo exaustivamente os caminhos da consciência. Quem sabe se assim o mundo de Narciso feito de ganância, cobiça, ódio, sangue, indiferença fosse progressivamente mudando na medida em que cada ser humano caminhasse para o controlo de suas emoções negativas e, talvez, a Ilha perdida na bruma surgisse pouco a pouco à luz do sol.
Maya de olhos fechados deixava-se avassalar por estas e outras ideias que sabia não serem originais. Eram velhas como o mundo, mas a humanidade que as engendrou parecia tê-las totalmente esquecido.
À beira do terceiro milénio apesar dos avanços da ciência e dos milagres da tecnologia estava longe, era uma miragem ”o progresso verdadeiro” porque o ”Homem” permanecia para si próprio, o maior dos mistérios.
- Utopia?! - Perguntou-se Maya e permaneceu de olhos cerrados e foi como se a corrente do pensamento se lhe estancasse; só sentia o corpo, leve sobre a erva como se a consciência se tivesse ausentado para desconhecidos mundos.
Passados uns minutos, horas (não era capaz de dizer quanto tempo havia permanecido naquela letargia) o pensamento fluiu de novo e trouxe-lhe a imagem de Juan Almabuena, o amigo, a única pessoa que havia encontrado capaz de oferecer sem esperar recompensa. Possuía o dom da dádiva, da entrega total. Juan era o melhor homem que tinha conhecido, talvez o único que a tinha amado e ela, querendo-lhe bem, não fora capaz de retribuir-lhe esse amor.
- Casa comigo. - Havia-lhe pedido num dia longínquo mas, porque Rodrigo havia desfeiteado a esplêndida face do amor, ela não ousara... Sabia, no entanto, que Juan nunca a tinha esquecido. Era disso prova a carta que recentemente lhe enviara contando-lhe que estava instalado em Paris… Pedia-lhe que o visitasse... que quebrasse o ”retiro” ao menos por uns dias.
Covardemente não lhe havia respondido. Maya passou a palma da mão pelos cabelos, pelo rosto, pelos seios, pelo ventre que fértil fora como se quisesse certificar-se de que ainda tinha um corpo... A humidade da noite tinha-a coberto de gotículas como se sobre ela tivesse sido peneirada uma chuva miudinha, mas a mão estancou ao som duma voz apenas ciciada que a chamava.
- Maya! Maya! - Permaneceu de olhos fechados. Donde vinha aquela voz? Decerto a traía o ouvido, ninguém estava ali. Continuou de pálpebras cerradas, mas a voz insistia:
- Maya! Maya! - Era uma voz de mulher, singularmente bela. Então, para calar aquela voz que decerto a sua mente criava foi descerrando as pálpebras até os olhos se abrirem se tornarem largos, redondos de espanto e viu o céu toldado de uma muito diáfana neblina. Estrelas? Nem uma, sumidas que tinham sido pelo intenso clarão da Lua, enorme, agigantada como se por um prodígio qualquer se encontrasse cada vez- mais próxima da terra e, no centro, ia-se rasgando uma fenda, boca ávida, vagina que se vai dilatando para expulsar uma vida. Essa fenda aumentava mais e mais até vomitar uma lua mais pequena e outra e outra e outra e, uma após outra, foram saindo e eram sete vogando no ar. A Lua gigante empalideceu, minguou até tornar-se numa ténue mancha, que a olho nu difícil de distinguir.
”Sete Luas!” - Pensou Maya boquiaberta, estupefacta com o que presenciava. Aplicou a vista e oh, prodígio!, viu destacando-se da neblina uma indecisa e trémula figura, tal como as que se desenham ao longe num deserto sufocado de sol.
A figura ia-se tornando cada vez mais nítida porque mais próxima, cada vez mais próxima, tão próxima que se estendesse a mão conseguiria tocá-la. O espanto petrificara Maya.
Era uma mulher; a negra cabeleira espalhava-se-lhe pelos ombros onde assentava o manto de seda ou de veludo, de uma matéria difícil de identificar. À claridade feérica das sete luas podia distinguir a cauda longa, tão longa cobrindo o círculo que era o Poço das Moiras, estendendo-se longe, tão longe até tocar a cúpula celeste que repousava sobre as copas das árvores atentas. Era como se no céu esbranquiçado Filomena tivesse acabado de pintar uma larga barra azul ferrete.
”Viajo no mundo dos sonhos.” Disse-se Maya embora soubesse que tinha os olhos tão abertos, quase desorbitados no esforço de absorver tão insólitas imagens.
Filomena costumava dizer que realidade e ilusão são duas faces da mesma moeda. Por isso tudo sendo ilusão tudo era realidade.
Silenciosa a mulher permanecia na sua frente fixando-a com os olhos penetrantes cintilando, tão singularmente doces e plenos de compaixão que Maya sentia-se, sem saber porquê, num estado de felicidade inefável até aí nunca experimentado. Era como estivesse vazia de toda e qualquer memória, de quem tinha sido, de quem agora era e nada mais existisse a não ser o olhar luminoso daquela mulher inundando-a duma paz infinita. Quis dizer: ”Navego no universo dos deuses, noutra dimensão...”, mas não disse; incapaz de articular as palavras, continuou presa ao fascínio que se desprendia dos olhos que insistentes a fitavam.
As luas no céu rolaram, desceram rápidas até à estranha figura de mulher; seis delas rodopiando em perfeita harmonia envolveram-na, a sétima ficou por segundos parada no ar, até que a mulher estendeu o braço, abriu a mão e a lua ficou pairando sobre essa mão aberta.
Maya, exclamou numa voz que não reconhecia como sua:
- É outra vez ela, a Senhora das Sete Luas!... - Mal acabava ainda de exclamar estas palavras e já a mulher agitava levemente a mão, Maya estendeu a sua e a lua rolou e sobre a sua palma ficou pairando. Era diáfana como uma enorme bola de sabão que ao menor arrepio de brisa se desfaz. Olhando-a Maya sentiu-se como se estivesse no seu interior, espaço vasto, vazio e por isso mesmo pleno de todas as possibilidades: uma folha em branco onde pode surgir um poema, uma tela onde a imaginação pode pintar o que quiser, um lugar livre para o sonho e em que a vida pode abrir asas esperançosas sem limites e, inesperadamente, descobriu o óbvio, de que estava viva, bem viva, livre para recomeçar, continuar, criar. Percebeu que era o fim do tempo da contemplação porque outro tempo chegava.
Agora respirava pausadamente. No Poço-das-Moiras sóo silêncio e uma grata e harmoniosa solidão e soube como pode ser doce estar só.
A prodigiosa aparição sumiu-se; a Lua num límpido firmamento regressava à sua primeira forma - uma foice, uma lâmina, um pouco mais longa que dantes, e cercando-a, envergonhando-a o majestoso cintilar das estrelas. Aí, Maya decidiu agrupá-las, novamente, organizá-las a seu belprazer e à medida que ia tentando fazê-lo era como se escrevesse na própria abóboda celeste: surgiu-lhe primeiro um P, juntou-lhe um A, depois L e mais um A seguido dê V e de um R e por fim outro A, terminou com um S e soletrou timidamente: P-A-L-A-V-R-A-S. Agora sim, sabia o que ainda faltava cumprir: a partir daquele momento viveria para a ”palavra” e pela ”palavra”.
- Palavras. Criação... - Pronunciou gostosamente como quem pode enfim revelar um segredo guardado havia tempo de mais e que por isso mesmo a oprimia, embora não sabendo que segredo era esse. E a vida preencheu-se-lhe de um novo sentido. Exultou.
Ergueu-se da erva orvalhada e leve, ágil como nos dias da juventude, afastou-se pisando a terra num passo seguro; esconjurados que eram todos os medos, organizadas agora sem rancores nem desgosto, todas as recordações, ei-la Maya, livre de constrangimentos, liberta da dor que durante anos a agrilhoara, limpa da poeira que lhe secava a alma e respirando a plenos pulmões o perfume que exalavam os pinheiros, as laranjeiras encaminhou-se para as árvores que cercavam e protegiam aquele lugar lendário - o Poço-das-Moiras - atravessou o labirinto vegetal e já de costas viradas, chegou-lhe ao ouvido um cântico plangente que mais parecia um desconsolado pranto e pensou que talvez fossem as moiras de que falava a lenda, prisioneiras perpétuas dum amor não correspondido e que reiventavam, noite após noite, pela eternidade fora.... Lamentou-as e a todas as mulheres mal-amadas a quem o amor paralisa impedindo-as de crescer e atingir a plenitude, de renascer uma e outra vez em coragem e valentia para encetar todos os caminhos por mais tortuosos, certas de que cada encruzilhada esconde uma surpresa, uma aventura...
Era Maya, finalmente...
O carro avança na estrada deserta. Profunda é a noite. À luz dos faróis revela-se à direita uma apertada vereda. Maya pára o carro na berma da estrada. Procura no porta-luvas uma pequena lanterna e sai. A luz tímida encaminha-lhe os passos. Pela vereda vai, que bem estreita é, ladeada de vegetação selvagem, de mato. Um rumor de águas chega-lhe aos ouvidos. Irrompe pela vegetação dentro: os picos das figueiras da índia, das pitas, arranham-lhe os braços, o rosto, mas ela nada sente, continua, afastando os eriçados obstáculos, empurrando as estevas que lhe barram o caminho.
O som da água está cada vez mais próximo. Começa a descer uma pedregosa encosta e vê, por fim, à luz da lanterna, lá em baixo, a ribeira, um braço, um afluente do Guadiana, que corre sem detença, rumorejando... A água, ali, é ainda límpida. Nas zonas menos profundas vê-se à transparência o leito coberto de pequenos seixos...
- O Guadiana?! A ribeira dos doutores?! - Exclamou. Aquela era a ribeira da sua infância, tinha quase a certeza.
Dirigiu a luz da lanterna para lá, para a outra margem onde se erguiam ainda os moinhos de pedra e apesar de já um tanto devastados pela ruína reconheceu-lhes a inconfundível fisionomia. Recordava-se que no da direita, no seu interior estava gravada na pedra a data de construção - 1146...
Na sua infância as mós ainda esmagavam o trigo e o açude era um oásis de frescura no imenso e escaldante deserto do Estio.
Todos os anos o avô costumava levá-la para uma pescaria na ribeira. Acompanhavam-no alguns amigos, o tio Filipe, às vezes, e sempre o lavrador do ”monte” verde que a adorava... pescavam à linha, à tarrafa, à rede enquanto ela devassava curiosa os moinhos e as margens em redor, falava com o moleiro, perguntando de seu ofício e de tudo o que via: ”Para que serve isto? E aquilo?” ou com uma ou outra lavadeira que debruçada sobre as águas fazia flutuar uma toalha, um lençol: ”Como se chama esta erva? Olhe além um cardume. São pardelhas?”.
A ribeira continuava a correr para o seu destino, sempre águas, após águas e chegava à foz, mas na verdade nunca a atingia, porque da nascente sempre mais água brotava tal Sisifo empurrando a laje monte acima...
Descalçou as sandálias, mergulhou com um arrepio um pé na água fria e depois outro; avançou um pouco mais, não muito porque amigo e traiçoeiro é o rio...
O avô levantava com a ajuda de outros a rede pejada de barbos debatendo-se entre as malhas... naquele tempo...
Sabina e as criadas escamavam-nos, retalhavam-nos e em cortes miúdos para quebrar as muitas espinhas, depois fritavam-nos ou faziam o típico ”Caldo de Peixe da Ribeira” onde boiava o tomate e o pimento verde e donde se desprendia o perfume a poejo e a hortelã da ribeira porque nas suas margens nascia.
Uma leve brisa fê-la descobrir esses perfumes que a memória guardava e era como se o tempo tivesse recuado e ela, Maya, menina outra vez, voltava a fruir esse prazer único da infância e percebeu que para sempre haveria de guardar essa jóia rara que são os dias de uma meninice feliz e que, nos revezes da vida a retiraria do esconderijo para se deslumbrar com o seu brilho. E isso era bom.
Sentou-se na água, a corrente suave ergueu-lhe a saia que ficou flutuando à tona como um nenúfar: tinha-se despedido de Vila Marfim do Poço-das-Moiras e agora do Guadiana, enfim do Alentejo’ por uns tempos, talvez por muito tempo e quando regressasse o rio seria outro, transformado em parte num enorme lago que como um mítico monstro teria engolido as margens e com elas o mato, as plantas selvagens, o perfume a poejo e hortelã...
Um grilo cantava entre as ervas...
Quando regressasse talvez já não existissem vastas searas, o uniforme manto da planície, esvoaçando à brisa, paisagem sempre igual, repetidamente, até ao infinito... ”Estava tudo bem se para bem fosse.” Pensou, embora uma vaga tristeza, talvez precoce saudade, fosse tomando conta dela. Sabia da necessidade de mudança e que era tempo que o Alentejo alimentasse todos os seus filhos, mas...
Mergulhou um pouco mais. A água já lhe dava pelo pescoço. Em seu redor a ribeira contava histórias num murmúrio. Lá em cima no negro céu navegava a Lua em quanto crescente.
Quando regressasse, talvez tudo tivesse mudado ou talvez na mesma permanecesse porque, aquele ”país” era uma terra encantada, incrustada no sonho e no mito.
- Ah, se todos os homens quisessem... e também as mulheres! - Exclamou em voz bem audível, o som foi bater na encosta que lhe devolveu o eco: ...quisessem! Quisessem!
Fechou os olhos tomada de uma espécie de torpor que a cavalgada dos pensamentos havia desencadeado e só os abriu quando um reflexo tamisado de azul lhe trespassou as pálpebras: em redor o rio, as margens emergiam do escuro. Deitava-se a Lua, e a noite, ia parindo o dia, em múltiplos espasmos de luz.
POST FACTUM
Finalmente tive notícias de Maya, embora continue a desconhecer o seu paradeiro.
Enviava-me também um manuscrito de um romance e pedia-me que tentasse publicá-lo, explicava-me que lhe faltavam algumas páginas que esquecera em Vila Marfim. ”Paciência”, dizia-me, ”por ora não tenho condições para ir buscá-las...” Percebi que indirectamente me incumbia dessa tarefa. E que fiz eu, então?... Afinal Paris não era assim tão longe de Lisboa nem de Vila Marfim, no Alentejo...
Nessa noite mal consegui dormir. Maya estava viva, bem viva... O passado visitou-me e foi como se ela habitasse a minha alma, com os seus olhos imensos iluminados de ternura.
Fiz tudo o que me foi possível por Maya, por ela iria até aos confins da terra e, afinal Paris é tão perto de Lisboa...
Tomei o avião e aterrei nessa bela cidade banhada por um rio largo como o mar. O que mais me maravilhou foi a luz que tudo inundava - uma claridade única recortando as casas, os monumentos, as pessoas... Uma coisa nunca vista.
Atravessei o Tejo para tomar o comboio no Barreiro, cidade poeirenta, afogada em poluição. Contaram-me que fora uma vila fabril e que muitos camponeses alentejanos, em tempos idos, antes da Revolução dos Cravos, ali se instalaram para tentar a sua sorte - fugir à miséria e por ali ficaram transmitindo a seus filhos e descendentes um sotaque cantado que nada tem a ver com o de Lisboa, embora só exista o rio de permeio.
Como ia dizendo, tomei o comboio e a dada altura a planície de que Maya tanto me havia falado, revelou-se ondulante de searas ainda não maduras, verdejando a perder de vista, semeadas aqui e ali de largas manchas de flores silvestres - amarelas, azuis, roxas como desmedidos bouquets arranjados pela natureza, no intuito de quebrar a monotonia daquela terra imensa, plana, estirada ao sol.
Fui admirando a paisagem ao longo de todo o percurso, pensando que isso me ajudaria a melhor perceber Maya e o seu ”fantástico” romance.
Eram seis horas da tarde quando o táxi parou à porta de Vila Marfim, espécie de palacete rodeado por um jardim muito vasto e bem tratado onde resplandeciam rosas de todas as cores’rodeando o laranjal.
O portão de ferro estava aberto, permitindo-me a liberdade de entrar. Toquei à campainha da porta e uma velhinha de lenço cinzento e avental branco veio abrir:
- Buenas tardes. - Cumprimentei em espanhol. - Venho da parte de Maya. - Expliquei num atabalhoado português.
A velhota recuou sobressaltada:
- Si, si, da parte de Maya. - Repeti.
- Um momento. - Disse e desapareceu na penumbra do vestíbulo. Regressou passados minutos; a desconfiança substituíra-se por um rasgado sorriso:
- Faz favor de entrar. - Segui-a, conduziu-me a um enorme salão estranhamente circular recheado dum confuso ”bric-à-brac” e de muitas peças em jade e marfim. Reconheci a sala que Maya tantas vezes me descrevia quando desfiava o seu rosário de recordações.
Recebeu-me uma senhora alta ainda esbelta, os cabelos castanhos semeados pela prata dos seus setenta anos (devia ser mais ou menos a sua idade), de uma correcção de feições e finura de pele que toda ela parecia irradiar como se uma luz interior assomasse nos seus olhos verdes - era a tia Fifi.
Depois de me ter apresentado pediu que me sentasse sem cerimónias, conversámos longamente sobre Maya e, para meu espanto disse-me que também não sabia onde se encontrava desde aquela noite, já lá ia mais de um ano, em que saiu de carro para dar uma volta e nunca mais regressou. Nunca tinha dado novas: nem uma carta, nem um telegrama, nem sequer um telefonema. Nada! Exultou, pensando que eu conhecia o seu paradeiro. Mostrei-lhe o envelope da carta que Maya me tinha enviado. Não havia remetente e o acaso fizera que o carimbo do correio estivesse quase apagado - só era possível ler três letras: IST... depois as contingências do correio haviam apagado o resto. Vi a desilusão nascer nos olhos verdes de D. Filomena, embora continuasse a sorrir. Tentei consolá-la dizendo-lhe que pelo menos, sabíamos que estava bem e que decerto, em breve, daria notícias.
- Tem razão. - Concordou. - Maya sempre assim foi, cheia de segredos. Viaja ou prepara alguma surpresa.
Contou-me depois, que naquela vila perdida no vasto Alentejo, já a imaginação começava a tecer o mito a propósito de Maya.
- Sabe, a vida aqui é lenta, calma e as pessoas gostam de inventar histórias para animarem a solidão. O xaile de Maya foi encontrado num sítio que, aqui é, segundo a lenda, um lugar mágico - o Poço-das-Moiras. Há quem diga que Maya lá ficou encantada e alguns chegam ao ponto de afirmar que a ouviram cantar com as ”moiras” em certas noites de Lua Cheia. Um pastor, um tal Joaquim do Rego, afirma que a viu com os olhos que a terra há-de comer, penteando os cabelos à beira do poço. As pessoas vêem sempre o que desejam para justificarem suas crenças. Não acha? - E continuou:
- Um camponês encontrou à beira do rio sobre uma pedra, umas sandálias que me trouxe por desconfiar serem dela. Eram realmente de Maya. Aí, correu o boato que tinha morrido afogada, mas esta versão não tem lógica nenhuma, porque o carro dela nunca foi encontrado. - Fez uma pausa e concluiu: - Nem calcula o alívio que hoje me traz, porque às tantas quase nos convencemos da veracidade das histórias que o povo vai urdindo. Realidade e ilusão são uma e a mesma coisa. Não acha? - Lá estava a frase lapidar de Filomena que Maya tantas vezes repetia. Por associação de ideias lembrei-me do quadro ”A Senhora das Sete Luas” de que ela também tanto falava. Procurei-o disfarçadamente com o olhar; mas sentado que estava de costas para o arco que se abria para o vestíbulo não o consegui ver.
Continuámos a conversar, Filomena e eu, de política, da crise de valores, da queda das ideologias, da violência que grassava no mundo... e, de Arte, em especial de pintura, enfim, das coisas de que falam as pessoas quando, tendo interesses semelhantes, se impõe entre elas uma empatia instantânea. Ousei perguntar-lhe se ainda pintava, ao que respondeu:
- Claro que sim. Enquanto tiver um sopro de vida continuarei a pintar, mas nunca mais expus. Hoje pinto para a Joaquina, para os amigos íntimos, pinto, porque não sei viver sem isso, preciso dessa forma de expressão e exponho os quadros ao longo dos corredores desta casa, egoisticamente. De vez em quando, observo-os e faço a minha autocrítica. Pretendo fazer Arte; cada vez que começo um quadro isso é tão importante como se principiasse a criar um novo mundo. - Repetiu. - Pretendo fazer Arte, embora nos dias de hoje já ninguém saiba muito bem o que isso é. Tudo se banalizou até a expressão artística: toda a gente escreve, toda a gente pinta, já não há cânones estéticos... E soltando uma gargalhadinha. - A maior parte dos que hoje se dizem artistas nem sabem o que é estética, esses produzem como quem produz em série sapatos, meias, enfim... o importante é vender. No mundo de hoje tudo se vende, tudo se compra até a fama, mas nunca a glória. - Quis despedir-me porque se aproximava a noite.
- Não. É tarde... - Disse. - Hoje será nosso hóspede. E, era tal a sua determinação, que me não foi possível recusar.
E assim passei a noite naquela casa recheada de histórias, de mitos... Imaginei Maya criança, correndo pelos corredores, entrando nas salas; Maya, mulher madura ali, enclausurada em voluntário retiro, até decidir recomeçar... Despontou dentro de mim um estranho e contraditório sentimento feito de mágoa e fruição que só os portugueses dizem conhecer - a saudade. E fiquei mais próximo de Maya.
No dia seguinte, depois do pequeno-almoço, D. Filomena entregou-me um caderno com algumas páginas manuscritas, dizendo que o tinha encontrado numa gaveta, no quarto de Maya. Lancei um olhar pelas páginas e pareceume ser aquilo a que tinha vindo. Despedi-me, agradecendo a hospitalidade e a simpatia e fazendo promessa de que havia de voltar e de dar notícias, logo que soubesse algo sobre Maya. D. Filomena acompanhou-me até à saída. Atravessámos o vestíbulo, a luz da manhã jorrava pela porta aberta e batia em cheio no ”mágico” quadro. E era coisa digna de ver aquela figura de mulher sentada em posição de lótus em cujos olhos perpassava o reflexo de todos os sentimentos, da indiferença ao amor, da alegria à tristeza... como se a vida e o universo neles se manifestassem.
- A Senhora das Sete Luas!? - Perguntei. D. Filomena fez um sinal afirmativo com a cabeça. Saí.
Está agora completo o romance de Maya. Não sei se o texto que me entregou Filomena em Vila Marfim é o seu primeiro ou último capítulo, prólogo ou epílogo. Desconheço a intenção da autora. Resolvi inseri-lo depois destas minhas palavras. O resto deixo à intuição e vontade do leitor.
Joseia Matos Mira
O melhor da literatura para todos os gostos e idades