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Series & Trilogias Literarias
Edimburgo, 1591
Estava um belo dia para uma pessoa morrer na fogueira.
Maidred Brody tinha ouvido os guardas a falarem de si momentos antes do amanhecer. A brisa que soprava do estuário era suave, um mero sussurrar que roçava ao de leve pelas faces. Não era suficientemente forte para impedir que o feixe de galhos secos pegasse fogo, tal como não chegava para que as labaredas fossem sopradas na direção oposta da forragem que deviam consumir.
A forragem. Estavam a falar a respeito dela, da carne demasiado tenra e dos ossos frágeis do seu corpo. Quando as vozes começaram a afastar-se das grades que assinalavam o seu único meio de contacto com o mundo fora da sua cela, Maidred estremeceu. Ocultou-se ainda mais debaixo da palha imunda, como se fosse um ratinho-do-campo a fugir para que não o encontrassem.
Mas era-lhe impossível fugir dos seus pensamentos. Passou os dedos pela protuberância ínfima da cicatriz que tinha no pulso, onde, em tempos, se queimara numa chaleira com água a ferver. A dor fora tão excruciante que ficou lavada em lágrimas até a sua velha ama lhe ter dado um tabefe, ordenando-lhe rispidamente que parasse de fazer tanto alarido. Se Maidred não havia sido capaz de tolerar essa pequena queimadura, como é que suportaria ser queimada em vida, as chamas ávidas a consumirem e a enegrecer a sua pele tão sensível que se desprenderia do seu corpo?
As lágrimas corriam pelas faces de Maidred. Levou o punho fechado à boca para abafar o choro convulsivo, não fosse acordar a sua companheira de cela. Contudo, duvidava de que existisse alguma coisa capaz de perturbar Tamsin.
Embora a velha Tam tivesse sido sentenciada à mesma pena, a idosa toda engelhada dormira como um bebé na noite anterior. O seu ressonar ressoava por toda a cela, se bem que a pálida luminosidade da manhã já se filtrasse por entre as grades. A última manhã da vida de ambas...
Maidred tremeu e embalou-se a si própria, esforçando-se por retornar ao lugar bonito dentro da sua cabeça que a tinha sustido ao longo de grande parte dos últimos
dois anos, desde que a mãe falecera. Um castelo que se perdia nas brumas de uma longínqua ilha.
- Sou uma princesa na corte da Senhora da Ilha Encantada, uma feiticeira que possui grandes poderes e beleza - murmurou a si própria. - Vivo no seu palácio dourado
e uso vestidos de seda diáfana. Temos uma centena de belos cavaleiros ao nosso serviço, que nos protegem e nos salvam de...
O ranger da porta de carvalho maciço despedaçou a ilusão, atirando-a de novo para o chão duro e frio da sua cela. Vinham buscá-la. Tão cedo? Levantou-se atabalhoadamente,
sentindo a cabeça a latejar quando o seu carcereiro empurrou a porta, abrindo-a.
Mestre Galbraith era um homem alto e de ombros largos que teve de se baixar quando passou pelo lintel para entrar na cela. Mas a despeito da sua estatura gigantesca,
a papada dupla dava-lhe a aparência de um cão de caça de expressão bisonha. Tinha sido bom para Maidred desde que a temível sentença que a condenava a morrer na
fogueira havia sido proferida contra ela. O olhar do homem mostrava uma expressão de tanta compaixão quando a olhou que ela sentiu que ficava com os olhos marejados
de lágrimas outra vez.
Maidred abarcou todo o interior da cela num olhar desvairado, procurando, em vão, uma maneira de poder fugir. Inacreditavelmente, Tam continuava mergulhada num sono
profundo, como se não tivesse uma única preocupação na sua mente.
- Por favor... - suplicou Maidred, agachando-se a um canto. - Por favor, não...
- Não, menina - interrompeu-a mestre Galbraith suavemente.
- Não há motivo para vos mortificardes. Ainda não. Só vim para acompanhar uma visita.
Uma visita que Maidred tanto receara como esperara. O padre que rezaria com ela e lhe ministraria a extrema-unção. Devia ser tão malévola
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como o juiz afirmara que era, uma vez que não considerava que a presença daquele clérigo fosse um consolo, considerando apenas que era o mensageiro da morte. Mas
não foi o religioso trajado de negro da Igreja Presbiteriana Escocesa quem entrou na cela. Era a única pessoa que Maidred nunca tinha esperado voltar a ver. O seu
irmão.
Ficou com a respiração suspensa ao ver Robert Brody, um rapaz que não era muito mais alto do que ela e com um cabelo do mesmo castanho-alourado. Mas essa era a única
parecença entre os dois. Embora fossem irmãos gémeos e Maidred fosse a mais velha por uma questão de minutos, Robbie parecia muito mais velho do que os quinze anos
que ambos tinham. Mágoas, preocupações e dificuldades tinham acabado com toda a suavidade pueril das feições emagrecidas do jovem.
As olheiras fundas sombreavam os olhos que em tempos haviam cintilado com um riso tão trocista que Maidred o alcunhara de Robin Goodfellow1, quando ambos brincavam
aos cavaleiros, dragões e fadas à sombra dos salgueiros na margem do rio. Tinham sido dias tranquilos da meninice de ambos havia tanto tempo que Maidred receava
ser a única que ainda se recordava desses tempos.
Mestre Galbraith acompanhou o irmão até ao interior da cela, após o que se pôs de lado.
- Isto pode custar-me o emprego, meu rapaz, por isso, não posso permitir-vos mais do que alguns minutos.
Robbie assentiu com um acenar de cabeça, entregando uma pequena bolsa ao carcereiro. Maidred retraiu-se. O irmão devia ter subornado mestre Galbraith para poder
visitar a irmã, recorrendo ao pouco dinheiro que possuíam e que ele havia auferido a trabalhar duramente nos estábulos de um grande proprietário de terras.
Entretanto, o carcereiro saiu da cela, fechando a porta atrás de si. Maidred ficou com uma postura rígida quando o irmão se aproximou mais. Nunca se tinha sentido
tão contente ao ver alguém, contudo, desejava que ele não tivesse ido à sua cela. Sentia-se tão envergonhada que mal conseguia encará-lo de frente, possuída de um
enorme sentimento de culpa por o ter sobrecarregado, mortificada por ele a ver naquela situação quando tinha o aspeto de uma mulher desmazelada.
1. Também chamado de Pluck, um trasgo, ou duende, travesso que se acreditava ter andado pela região rural de Inglaterra nos séculos xvi e XVII. (N, da T.)
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Como devia parecer patética, com a sua roupa imunda devido às secreções do seu próprio corpo e ao fedor da cela, um cheiro fétido que era um misto de urina, excrementos
e suor. Tinha o cabelo extremamente sujo e despenteado, as bochechas manchadas de lágrimas.
Fez-se um pesado silêncio que era quebrado apenas pelas fungadelas de Tam durante o sono. Robbie soltou a respiração.
- Meu Deus, Maidred...
- Eu... eu sei. Devo estar um pavor - atalhou ela, tentando sorrir pelo irmão enquanto tirava pedaços de palha dos seus cabelos. - Mas as coisas não têm sido assim
tão más. Só tenho de fingir que sou uma princesa que, por agora, tem de andar disfarçada, não vá...
- Pára com isso!
Maidred interrompeu-se muito surpreendida com a rispidez no tom de voz do irmão. Ele agarrou-a pelos ombros, os dedos a marcarem-lhe a pele.
- Até mesmo nestas circunstâncias, continuas a tecer as tuas ridículas fantasias? Que importância é que a tua aparência poderá ter, minha grande idiota? - perguntou-lhe
ele, sacudindo-a com violência. - Vais morrer hoje mesmo. Não compreendes isso?
- S... sim, mas é pouco generoso da tua parte estares a lembrar-me isso. - Maidred ergueu o olhar e viu que aquela explosão era alimentada por uma angústia que ele
mal conseguia conter. O irmão tinha os olhos rasos de água.
Puxou-a para junto de si, abraçando-a com tanta força que ela pensou que lhe fraturaria as costelas. Envolveu-lhe o pescoço nos braços, apertando-o a si tão fortemente
como haviam feito quando eram crianças pequenas, assustadas com a violência de um temporal que açoitava as janelas do quarto. Mas desta feita não haveria um despertar
numa manhã mais calma e soalheira.
O gibão de Robbie cheirava a ar livre, a prados verdejantes e a brisas do lago, caracterizando uma liberdade de que ela nunca mais voltaria a desfrutar.
- Lamento tanto o sucedido, Robbie - murmurou Maidred. - Lamento muito.
Ele afastou a irmã de si, a expressão de cólera nos olhos a dar lugar à dor e à confusão.
- Continuo sem compreender, Maidred. Naquele dia em que admitiste ter participado na assembleia de bruxas à meia-noite, conjurando feitiços
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demoníacos contra o rei, não consegui acreditar nisso. Pensei que era forçoso que te tivessem torturado para te obrigarem a confessar.
- Não, eu era culpada do que me acusavam.
- Mas porquê? O que é que te levou a fazer uma coisa dessas?
Maidred estendeu as mãos num gesto de impotência enquanto procurava as palavras mais adequadas. Em tempos, ela e Robbie haviam sido tão chegados um ao outro que
as explicações eram desnecessárias. Tinham partilhado os mesmos pensamentos, os mesmos sentimentos e as mesmas fantasias.
Mas havia muito tempo que Robbie abandonara o reino dos sonhos de ambos, trocando-o pela dureza e barbaridade do mundo real. Nunca mais fora o mesmo desde a morte
do pai de ambos havia quatro anos.
Thomas Brody era um negociante de lã, suficientemente próspero para poder acalentar esperanças ambiciosas para a sua família, bons casamentos para as quatro filhas,
uma educação digna de um gentil-homem para o filho, o que permitiria a Robert aspirar a uma posição na corte num futuro próximo, não obstante as inclinações para
o catolicismo de Thomas Brody. A Igreja Presbiteriana Escocesa tinha promulgado que a prática da antiga religião era ilegal, no entanto, o jovem rei Jaime Stuart
era conhecido por ser mais tolerante, fingindo que não via as práticas religiosas dos seus favoritos.
Mas a pequena frota mercante do pai havia sido destruída no mar por uma forte tempestade que também ceifara a sua vida. Essa fora a primeira experiência de Maidred
que a fizera ver como um mundo de fantasias podia ser frágil, o que a levara a alhear-se da realidade.
As dívidas tinham consumido a maior parte da fortuna dos Brody, obrigando-os a sair da confortável mansão da família. Todavia, Neve Brody havia sido uma mulher de
caráter forte e determinado, tendo conseguido transformar uma pequena casa humilde num lar acolhedor e confortável.
Começara a aceitar roupa para lavar e remendar, um meio de vida que assegurara a sobrevivência da família. Apesar da exaustão que a mãe devia sentir ao fim do dia,
nunca abdicara do costume, tão apreciado pelos filhos, de os juntar todas as noites à volta do lume para ouvirem uma das suas histórias. A mãe sempre tinha sido
uma dotada tecedeira de histórias, levando Maidred a sentar-se aos seus pés numa grande expectativa que era partilhada pelas irmãs mais novas.
Robbie era o único que se recusava a ouvir essas histórias, considerando que esses contos de fadas eram disparates infantis, mostrando-se demasiado
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circunspecto e cheio da sua própria importância na qualidade de novo chefe da família.
Na maneira de ver de Maidred, a atitude do irmão era como uma traição. Não obstante o grande desgosto que a morte do pai lhe causara e a perda da casa maravilhosa,
tinha chorado ainda mais a perda, figurativamente, do irmão.
Só há dois anos é que compreendera Robbie, quando a população da vila onde viviam foi vítima de um surto de tifo, ceifando as vidas da mãe e da irmã mais nova, Elsbeth.
Mas Maidred não dispôs de muito tempo para fazer o luto, uma vez que havia sido forçada a encarregar-se das tarefas de que a mãe se ocupara. Lavar a roupa, limpar
a casa, coser, cozinhar e fazer o pão, além de ter de cuidar das outras duas irmãs, Annie e Brenna. No entanto, tinha tão pouco jeito para essas tarefas domésticas.
A única coisa em que era competente era na tecedura de histórias.
Ao cair da noite, sentia-se sempre demasiado cansada para fazer outra coisa que não fosse chorar na sua almofada, sem ter ninguém junto de quem procurar consolo
e simpatia, tendo a certeza de que não poderia contar com o irmão para isso, uma vez que ele trabalhava ainda mais esforçadamente do que ela.
Maidred tinha noção de que aquelas infindáveis tarefas eram a sina de qualquer mulher, sem que nunca ninguém lhes agradecesse, mas nem por isso era capaz de se impedir
de chorar a sua pouca sorte. Não era justo. Fora obrigada a ser uma mulher adulta, fazer de mãe antes mesmo de ter tido oportunidade de acabar de ser uma adolescente,
de saber o que era ser cortejada, ser a noiva de alguém, mas sem um dote, estas eram coisas que jamais fariam parte da sua existência.
Naquele momento, o irmão exigia que lhe dissesse por que motivo é que correra um risco tão grande ao envolver-se na prática de feitiçaria à meia-noite daquele dia
frio de novembro. Maidred recordava-se de que tinha sido um dia particularmente difícil. Deixara que as papas de aveia se queimassem, fizera um rasgão impossível
de cerzir no seu melhor vestido, descobrira que a provisão de batatas tinha enegrecido e que não chegaria para o inverno. Annie e Brenna haviam-se lamuriado mais
do que era costume, em especial Annie por estar a ficar com sezões, tendo vomitado para cima do vestido e dos sapatos de Maidred.
Quando, por fim, se deixou cair no seu leito, estava prestes a sucumbir de exaustão. No entanto, era forçada a reunir forças para se levantar
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da cama poucas horas depois, quando a noite ainda estava de um escuro de breu, a Lua a esconder a sua face por detrás de um manto de nuvens. Passara pelo irmão e
pelas irmãs, que ainda dormiam, em bicos de pés, saindo da pequena casa sem fazer barulho e desatando a correr para se juntar aos divertimentos proibidos no interior
da igreja de fé presbiteriana escocesa. E porquê? Pelo motivo mais egoísta e ignóbil.
Quisera apenas sentir um pouco de empolgamento na sua vida, um tudo-nada de magia. Mas era impossível fazer com que Robbie compreendesse isso, para não dizer que
se sentia demasiado envergonhada para tentar. Maidred humedeceu os lábios e disse:
- Em primeiro lugar, deves saber que nunca teria ido nessa noite se tivesse sabido o que aconteceria realmente, qual o objetivo malévolo...
- O que é que pensaste que aconteceria? Uma assembleia de bruxas numa igreja depois da meia-noite!
- Eu não sabia que elas eram bruxas. Pensava que eram mulheres sábias como as que figuram nas histórias que a nossa mãe costumava contar-nos acerca da formosa Senhora
da Ilha Encantada.
- Histórias, Maidred! Não existe nenhuma Senhora da Ilha Encantada mágica, nem tão-pouco mulheres sábias possuidoras de dotes especiais. Somente bruxas ou, pelo
menos, velhas de pele murcha e enrugada, mulheres despeitadas que se iludem a si próprias, acreditando que possuem poderes de magia negra.
- Nem todas. Entre elas, existem algumas genuinamente sagazes com quem é possível aprender muitas coisas acerca de curar e empregar magia branca que é útil a todos,
bem como se pode aprender como conjurar os mortos. Pensa nisso, Robbie. Se pudéssemos entrar em contacto com a mãezinha, voltar a vê-la e a falar com ela - disse
Maidred, olhando para o irmão com uma expressão anelante. - Também não quererias que isso acontecesse?
- Não! - A veemência da resposta do irmão deixou-a perplexa.
- E por que não?
- Porque seria antinatural e contra a vontade de Deus - replicou Robbie, que estremeceu e se persignou. - Ainda que isso pudesse ser feito, pensas que eu seria capaz
de encarar a nossa mãe depois da maneira como quebrei a minha promessa?
- Que promessa!?
- Eu jurei no leito de morte da mãezinha que cuidaria sempre das minhas irmãs, que vos manteria em segurança.
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- Oh, Robbie. Mas é o que tens feito. Trabalhas que nem um mouro para nos sustentares. E naquela ocasião em que o cão enraivecido se atirou a nós na rua, puseste-te
à nossa frente e tu é que foste mordido. Foste tão corajoso, como o mais nobre dos cavaleiros.
Maidred fez-lhe uma festa na face num gesto de ternura, como a mãe lhe teria feito.
- Não é por tua culpa que estou a passar por esta provação, meu querido Robin Goodfellow. Esta situação deve-se à minha própria estupidez. - Mas Maidred via na linha
dura do maxilar do irmão, na dor que se refletia nos olhos dele, que as suas palavras não exerciam efeito nenhum nele. O irmão carregaria consigo o sentimento de
culpa pela morte dela durante o resto dos seus dias. Quanto mais não fosse por esse pecado, Maidred considerava que merecia a morte na fogueira.
Robbie fechou os dedos no pulso da irmã, apertando-o com tanta força, como se nunca mais fosse capaz de a largar.
- Esforcei-me tanto por encontrar uma maneira de poder salvar-te, Maidred. Implorei a toda a gente em que consegui pensar, falei com alguns dos amigos mais antigos
do pai das guildas, com o bispo e com o preboste. Tentei explicar que tinhas sido levada por maus caminhos, que não tiveste a intenção de fazer mal nenhum.
Robbie abanou a cabeça, mostrando uma expressão de desespero.
- Todos disseram a mesma coisa. Não havia nada a fazer, além de rezar pela tua alma; o mestre Galbraith disse que tudo o que eu podia fazer era dar-te... isto. -
Robbie largou-lhe o pulso e tirou uma coisa de dentro do gibão. Maidred estava à espera de ver um rosário ou um outro objeto qualquer religioso. À semelhança do
pai, Robbie perfilhara os dogmas da fé católica.
Qualquer que fosse o objeto que ele lhe trouxera, Robbie parecia detestar ter de lho entregar. Meteu uma pequena bolsa na mão de Maidred, fechando-lhe os dedos em
volta da bolsa.
- Toma isto. Esconde-o por baixo da roupa que tens vestida. Maidred ficou a olhar para a pequena bolsa, apalpando-a um pouco a medo. Dava a impressão de estar cheia
de uma substância granulosa.
- O que é isto?
- É algo que garantirá que não sofras demasiado. Serve... serve para te tirar as dores.
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- Oh! - exclamou Maidred num sussurro. Temia a terrível agonia das chamas, mais do que temia a morte em si. - E o que é que devo fazer com isto? Engulo alguma...
- Não. Só tens de atar a bolsinha à volta do pescoço, mantendo-a junto ao coração.
- É alguma espécie de amuleto? É mágica?
- Sim - respondeu Robbie numa voz enrouquecida, incapaz de a olhar de frente. - É mágica.
As palavras dele suscitaram uma gargalhada esganiçada que sobressaltou os dois. Maidred virou-se para trás de repente e constatou que Tamsin tinha acordado ou talvez
já tivesse despertado há algum tempo. Conhecendo a astuciosa idosa como agora conhecia, não teria ficado surpreendida se Tam tivesse estado a fingir que dormia enquanto
ouvia toda a conversa entre os dois.
- Sim, uma magia poderosa - disse a velha numa voz cacarejada.
- Do género que levará a tua alma direitinha para o Paraíso. Robbie aproximou-se da idosa com cara de poucos amigos.
- Cala-te, bruxa velha! Tu és a responsável pela ruína da minha irmã. Toda esta situação se deve às tuas ações.
- De verdade? - Tam arqueou os sobrolhos hirsutos e grisalhos numa expressão trocista de perplexidade. - Pensei ter acabado de te ouvir dizer que a culpa era tua.
Parece que a culpa é de toda a gente, menos da nossa querida May.
- Foste tu quem encheu a cabeça dela com disparates acerca de feitiçaria, foste tu que a atraíste à igreja nessa noite.
- Deverá o pescador ser culpado se o peixinho idiota gosta do isco? Existem coisas piores que a tua irmã podia ter feito. Ela podia ter saído de casa às escondidas
com a intenção de abrir as pernas para um qualquer rapaz lúbrico.
- Maldita sejas! - vociferou Robbie, cerrando os punhos e dando um passo na direção de Tamsin.
- Robbie, por favor - interveio Maidred, agarrando-o pelo braço. - Não faças caso do que ela diz. "Tal como eu devia ter feito.
- Não és capaz de imaginar o prazer que eu sentirei quando te vir a arder na fogueira. Minha bruxa velha asquerosa! Se já não estivesses destinada a ires hoje para
o Inferno, eu próprio te partiria o pescoço.
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E Robbie estava a falar a sério. Maidred tinha a sensação de que o braço do irmão era feito de aço. O azedume e a cólera que se refletiam no semblante dele alarmaram
a irmã. Jamais teria imaginado que o seu gentil irmão fosse capaz de albergar tanto ódio.
- Robbie - disse num tom de súplica, esforçando-se por o afastar de Tamsin.
Mas a velha não parecia minimamente afetada pela fúria dele nem pelas suas ameaças. Tam pôs-se de pé, sacudindo a basta cabeleira de cabelo grisalho. Bocejou e espreguiçou-se,
arqueando as costas como um gato escanzelado. Sorriu a Robbie.
- Por muito que eu lamente desiludir-te, meu rapazinho, não tenciono ir a lugar nenhum. O Diabo vai ter de esperar por mim durante mais algum tempo. Do mesmo modo,
o Paraíso não acolherá outro anjo na forma da tua formosa irmã. Ninguém vai morrer hoje.
- Se acreditas nisso, isso quer dizer que o teu cérebro está tão podre como a tua alma. Infringiste a lei sagrada contra a prática de bruxaria...
- Lei sagrada! - exclamou Tam interrompendo-o com um fungar de desprezo. - Essa lei está registada nos livros desde o tempo da minha avó e quantas bruxas é que morreram
na fogueira? Nenhuma, o que posso garantir-te. É verdade que já fui levada à presença do magistrado e condenada por feitiçaria. Já fui encarcerada e acorrentada
ao pelourinho. Houve uma ocasião em que até fui açoitada. Mas isso foi tudo o que me aconteceu.
Tam interrompeu-se, encolhendo os ombros.
- Não somos como esses ingleses bárbaros que enforcam as pessoas por praticarem um pouco de magia. Os escoceses têm um sadio respeito pelas suas mulheres sagazes.
- Sim, mas desta vez é diferente - disse Robbie. - O próprio rei estará presente hoje para se certificar de que a sentença é levada a cabo.
- Sim e é isso mesmo que será a nossa salvação. O rei Jaime perdoar-nos-á.
- Achas que sim? - perguntou Maidred. Tam mostrava-se tão confiante que começou a sentir uma centelha de esperança, como se vislumbrasse uma luz muito à distância
numa noite de interminável escuridão.
Robbie apertou a mão da irmã. A sua fisionomia continuava contraída de cólera, mas a expressão nos seus olhos tinha-se suavizado.
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- Não, Maidred, ele não perdoará. Esta bruxa e as amigas fizeram uma efígie em cera do rei para causarem a destruição dele. Isso não é apenas um ato de bruxaria.
Isso é traição.
- O rei acredita que quando viajou de barco para a Dinamarca, a fim de trazer a sua noiva, as bruxas trataram de se reunir em assembleia à meia-noite para conjurarem
tempestades que impedissem o seu regresso à Escócia. Por que razão é que haveria de perdoar as mulheres que considera responsáveis por isso?
- Porque o rei estava presente no tribunal no dia em que fui interrogada - adiantou Tam sorrindo manhosamente. - Segredei-lhe ao ouvido umas palavrinhas em particular,
mostrando-lhe exatamente até que ponto é que sou uma mulher poderosa e ardilosa.
- Se isso for verdade, assinaste a tua própria sentença de morte, velha idiota.
- Nem pensar, o nosso rei é um homem mole que até tem medo da própria sombra. Quantas foram as vezes em que os grandes proprietários de terras deste país conspiraram
e se rebelaram contra o rei? E quantos de entre eles foram executados por ordem do rei? Muito poucos. O rei está sempre pronto a perdoar, ansioso por uma reconciliação.
"Isso é porque o nosso bom rei Jaime não tem estômago para atos de violência - acrescentou Tam, olhando para Maidred com um esgar sorridente. - Portanto, não te
aflijas, menina. Só precisas de olhar para mim e fazer como eu fizer. Quando o rei chegar, deixa-te cair de joelhos e chora umas quantas lágrimas fingidas de arrependimento.
Implora a sua majestade que tenha piedade e ambas sairemos desta situação sem um único arranhão. Vais ver que tenho razão.
Maidred tremia. Chorar, implorar e mostrar-se contrita? Não teria a mínima dificuldade em fazer isso porque as suas lágrimas seriam genuínas e os remorsos sinceros.
Mas seria possível que o rei se comovesse com tanta facilidade?
Maidred queria acreditar em Tam, mas tinha depositado uma confiança excessiva nas afirmações da idosa anteriormente para agora poder sentir-se tranquila. Optou por
olhar para o irmão e foi a expressão no rosto de Robbie que lhe incutiu coragem. As suas feições espelhavam calma, mas os olhos refletiam um desejo ardente, o mesmo
desejo ardente que ameaçava consumi-la.
O desejo ardente da esperança.
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Robert Brody abria caminho por entre a multidão que enchia as ruas. Era sacudido e empurrado de todas as direções, o que levou Robert a começar a fazer o mesmo,
dando uma forte cotovelada na pança de um corpulento comerciante.
- Au! Calma aí, rapaz! - exclamou o homem. - Não é preciso estar com tanta pressa. Deve haver espaço suficiente para que todos possamos ver bem. Estas duas bruxas
são apenas as primeiras a morrerem. Teremos muitos mais julgamentos e muitas mais mortes na fogueira acrescentou o homem com uma sonora gargalhada. - Portanto, se
hoje não conseguires chegar até à frente da multidão, podes vir mais cedo aquando da próxima execução para teres um lugar de onde possas ver melhor.
Rob rangeu os dentes, contendo o impulso de dar um valente murro no rosto pleno de jovialidade do homem. Mas se começasse a dar murros, receava que lhe fosse impossível
parar. Aquele mar de caras risonhas e vozes alegres enfurecia-o e enojava-o.
O ambiente era de festa, como se toda aquela gente se tivesse reunido para celebrar um qualquer dia do final das colheitas, em vez de se terem juntado para verem
uma jovem inocente a morrer na fogueira. Muitos daqueles loucos até tinham levado os filhos para assistirem ao horror.
Robbie tremia devido ao tremendo esforço que fazia para se conter. Andava a morrer por descarregar a fúria em alguém desde que a sentença de morte ditara o destino
de Maidred. Todavia, não podia cometer nenhuma imprudência que talvez o ferisse ou fosse causa para ser preso.
Ainda tinha outras duas irmãs que o aguardavam em casa, as quais dependiam de si. Respirou fundo várias vezes e chamou ao pensamento a imagem de Annie e de Brenna
até conseguir controlar a ira que sentia.
Adorava as duas irmãs mais novas, mas não eram a mesma coisa que Maidred, que era a sua irmã gémea. Nascida à mesma hora, feita da mesma carne e sangue, era a luz
enquanto ele era a sombra, a guardiã dos segredos que ele tinha abandonado havia muito tempo. Como é que conseguiria suportar perdê-la?
Mas talvez isso não viesse a acontecer. Tentara não dar o mínimo crédito ao que Tamsin dissera, mas talvez a velha toda encarquilhada fosse, de facto, uma bruxa.
As palavras dela pareceram apoderar-se da sua mente.
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"Ninguém morrerá hoje. O reiperdoar-nos-á."
Mas Robbie receava acreditar no que ela dissera. Já se couraçara de modo a conseguir aceitar a morte de Maidred, mas agora aquela bruxa velha ameaçava penetrar a
sua armadura, instilando-lhe esperança. Uma esperança tão acentuada que era dolorosa, como a ponta da lâmina de uma adaga junto do seu coração, ameaçando derramar
sangue.
Procurou refúgio no seu bom senso. Existiria algum fundamento racional para pensar que o rei perdoaria Maidred? Rob tentou recordar-se de tudo o que tinha ouvido
a respeito de Jaime Stuart até à data, o sexto rei da Escócia.
O rei de berço, como as pessoas lhe chamavam, que ascendeu ao trono quando ainda era uma criança pequena, depois de a mãe ter sido deposta pelos nobres protestantes
que se haviam sublevado contra a rainha católica.
Maria Stuart fugira para a corte da prima, Isabel Tudor, onde procurara refúgio, mas acabando por ter sido encarcerada durante os dezoito anos seguintes por ordem
da rainha inglesa. Por fim, foi acusada de traição e decapitada pelos ingleses havia quatro anos. Os mesmos escoceses que em tempos tinham injuriado Maria Stuart,
chamando-a de Jezabel e prostituta papista, agora insurgiam-se contra a sua morte, elevando-a ao estatuto de mártir. Todo o país ficara de luto.
Possuído de um grande desgosto pelo falecimento do pai que ocorrera mais ou menos na mesma altura, Rob mal dera por esse acontecimento. Mas agora perguntava-se como
é que o rei seria, qual o efeito que a perda da mãe daquela maneira tão trágica teria tido nele. Talvez o facto de ter sentido na pele o que era ter um membro da
sua família executado tão injustamente fizesse com que o rei Jaime procedesse com mais compaixão.
Era inegável que Robbie tinha ouvido outros, que não Tamsin, dizerem que o monarca tinha a reputação de ser um homem misericordioso, e quem é que não teria compaixão
por Maidred? Era tão novinha, tão inocente, uma rapariga decente.
O rei Jaime teria de ter um coração de pedra para não se sentir comovido perante a encantadora irmã de Rob. No entanto, Robbie também tinha ouvido rumores mais sombrios
a respeito do monarca, que o coração de Jaime se enternecia mais facilmente ao ver um mancebo formoso do que ao ver uma donzela.
com certeza que não passaria de um rumor torpe. Não tinha o rei Jaime acabado de desposar uma encantadora princesa dinamarquesa? Havia
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sido um noivo ansioso ao ponto de ter tido um comportamento inaudito num monarca. Não esperou que a sua amada Ana chegasse, tendo-se arriscado a deixar a segurança
do seu reino para navegar até à Dinamarca a fim de ir buscar a sua princesa.
E foi por pouco que não morreu. A frota do rei foi açoitada por violentas tempestades, tendo sido por um triz que o rei e a sua noiva não morreram no mar. Tempestades
que haviam sido atribuídas à irmandade das bruxas, que as tinham conjurado durante a sua assembleia à meia-noite na igreja presbiteriana, onde os seus maléficos
feitiços tiveram lugar. Que homem é que não haveria de querer vingar-se dos que tinham ameaçado a vida da sua jovem esposa?
Mas dizia-se que o rei era um humanista, um homem de uma extraordinária inteligência. Até o comparavam ao grande rei Salomão. O que quer que a velha Tam afirmasse
ter segredado ao ouvido do rei, seria possível que um homem de tanta sabedoria acreditasse realmente nos seus disparates? Poderia o rei olhar para a irmã de Robbie,
que ainda era uma garota, e considerar que Maidred possuía um poder demoníaco que lhe permitia conjurar tempestades e afundar navios?
Robbie sentia-se entontecido enquanto sopesava as possibilidades, contrapondo o raciocínio com os seus desejos que eram fruto do desespero. Os pratos da balança
do seu pensamento oscilavam, deixando-o dividido entre a esperança e o desespero.
Perdido nos seus pensamentos, foi apanhado despercebido quando a multidão recuou, pouco tendo faltado para que o atirassem ao chão. Endireitou-se e viu o motivo
de tanta agitação. Do castelo saía uma carroça puxada por um cavalo, trazendo duas mulheres amarradas.
- Bruxas! Bruxas! Rameiras do demónio! - gritavam as pessoas.
Enquanto a carroça prosseguia lentamente, as prisioneiras eram atingidas com punhados de lama e couves podres. Rob tentou impedir aquilo, mas as pessoas que procediam
daquela maneira eram em grande número.
O seu único consolo era constatar que a maior parte daquelas injúrias era dirigida a Tamsin, embora tivesse ficado admirado ao ver que havia quem também se perturbasse
com o destino da velha bruxa.
Viu duas raparigas de cabelo ruivo e de aspeto desmazelado que caminhavam ao lado da carroça, estendendo as mãos para a idosa.
- Avozinha! Avozinha! - gritavam num tom pranteado.
Robbie supunha que a dor das duas raparigas devia ter-lhe inspirado alguma piedade quando os guardas as empurraram para trás. Mas endureceu
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o semblante. Tamsin não tinha tido quaisquer escrúpulos em aliciar a sua inocente irmã, colocando-a numa situação de tanto perigo, mas, obviamente, a velha matreira
tivera o cuidado de não expor as netas ao mesmo perigo. Aquelas duas rameiras não tinham estado entre as que foram presas na igreja, contudo, com certeza que estariam
tão envolvidas em práticas de bruxaria como a avó. Se houvesse alguma justiça, deviam ter estado amarradas na carroça juntamente com Tamsin, em vez da dócil irmã
de Robbie.
Tal como Tamsin, Maidred tinha sido despida, tendo ficado apenas com a camisa interior e o seu cabelo... aqueles caracóis de textura sedosa e indomáveis que Rob
puxara tantas vezes, troçando da irmã por ser tão vaidosa. Aquela basta cabeleira de um castanho-dourado havia sido rapada, o que dava a Maidred a aparência de uma
ovelha tosquiada. Tão novinha, tão apavorada e perdida.
Abrindo caminho em frente, Robbie levantou o braço e acenou para que ela pudesse vê-lo, para que ela soubesse que se encontrava ali. Os lábios de Maidred esboçaram
um pequeno sorriso tão corajoso que lhe deixou o coração dilacerado. Ela tocou na frente da camisa de dentro, por baixo da qual escondera a bolsinha que ele lhe
dera. Apesar da esperança que Tamsin pudesse ter suscitado, ele insistira com a irmã para que a pusesse ao pescoço e ela não lhe opusera resistência, acreditando
que era mágica.
Rob sentiu-se enojado consigo próprio. Que espécie de homem é que fazia uma coisa daquelas? Colocar ao pescoço da irmã, que não suspeitava de nada, uma porção letal
de pólvora. Absolutamente nenhum homem, somente um rapaz demasiado fraco e incapaz de fazer alguma coisa para ajudar a irmã, a não ser ajudá-la a ter uma morte menos
agonizante. Devia ter tentado mais afincadamente encontrar uma maneira de a salvar, ainda que isso lhe custasse a própria vida.
O rei era a única esperança de Maidred. Enquanto a carroça continuava a avançar, Robbie acompanhava-a, tentando não sair do ângulo de visão da irmã, tarefa que era
bastante dificultada por haver tanta gente à sua volta.
Apanhado entre a multidão, Rob seguiu a carroça, transpondo as portas da cidade em direção a um descampado. Avistou os postes colocados no cimo de uma elevação de
terreno, a lenha empilhada à espera, tudo a uma distância segura para que nenhuma faúlha pudesse dar origem a uma catástrofe nos edifícios de Edimburgo.
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Quando a carroça parou, Robbie esticou o pescoço, olhando em redor com uma expressão de desespero. Onde é que estava o rei? com certeza que já devia ter chegado.
Talvez nem sequer aparecesse.
Não teria Rob ouvido dizer também que o monarca detestava multidões? Talvez o rei Jaime tivesse mudado de ideias quanto a assistir à execução das mulheres. Talvez
os rumores não passassem de mentiras, pelo que nunca teria existido a mínima possibilidade de o rei estar presente.
Rob viu a irmã, lavada em lágrimas, ser arrastada da parte de trás da carroça. Baixou a cabeça, sentindo-se possuído de um desespero indescritível. Nunca devia ter
dado ouvidos a Tamsin, nunca devia ter-se permitido acreditar, por um momento que fosse, que...
- O rei! O rei!
Os gritos de excitação fizeram com que erguesse a cabeça de imediato. Ficou com o coração a bater acelerado ao ver um grupo de homens a cavalo que se aproximavam,
o estandarte do rei desfraldado. A adaga da esperança retornou, trespassando-o mais dolorosamente do que nunca.
A multidão recuou respeitosamente quando os cavaleiros se misturaram com as pessoas presentes, puxando as rédeas; ao todo, eram meia dúzia. Rob perscrutou os rostos
dos homens a cavalo, tentando adivinhar qual seria o rei Jaime Stuart.
- Qual é o rei? - Não se apercebeu de que tinha verbalizado a pergunta até haver alguém que lhe respondeu.
O comerciante jovial a quem Rob havia dado uma cotovelada algum tempo antes apontou um dedo grosso.
- É aquele. O homem baixinho no meio dos outros.
Robbie jamais teria descrito o monarca como sendo um homem baixinho, mas a verdade é que Jaime Stuart parecia um anão no meio dos robustos nobres de feições empedernidas
que o acompanhavam. Um jovem magro e com uma barba bem aparada, envergava um vestuário escuro sem nada de especial, sem nenhum do aparato régio que se poderia esperar
ver num rei.
A mão enluvada não parava de mexer no fecho do manto. Era por demais evidente que lhe desagradava profundamente estar ali, sem ter a mínima vontade de assistir ao
espetáculo macabro que não tardaria a começar. Aquele pensamento aumentou a esperança de Robbie.
Tamsin contorceu-se, conseguindo soltar-se das mãos dos seus carcereiros. Deixou-se cair de joelhos diante do monarca, gritando:
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- Misericórdia, ó grande rei. Tende piedade de uma pobre velha que se arrepende dos erros que cometeu e que promete servir-vos para sempre como uma súbdita grata
e leal.
Maidred seguiu-lhe o exemplo, deixando-se cair de joelhos ao lado de Tamsin. O choro convulsivo impedia a irmã de Robbie de falar. Ergueu as mãos amarradas num gesto
de súplica que, na opinião de Rob, era mais eloquente do que quaisquer palavras.
O rei fixou o olhar nas rédeas do seu cavalo de pelagem castanha. Recusava-se a olhar para as duas mulheres e Rob teve a sensação de que o coração lhe caía aos pés.
Empurrando várias pessoas para o lado, abriu caminho e ajoelhou-se ao lado da irmã. Dos dois, Maidred sempre havia sido a mais articulada verbalmente, enquanto Robbie
tinha mais dificuldade em expressar-se. Mas dado que Maidred tinha a garganta embargada pelas lágrimas, cabia-lhe a ele encontrar as palavras que comovessem o coração
do rei.
- Por favor, majestade - gaguejou -, tende piedade. A minha irmã só tem quinze anos. Foi desencaminhada. Suplico-vos. Só tendes de olhar para ela e vereis a sua
inocência e bondade. Não é nenhuma bruxa. Ela jamais faria mal a quem quer que fosse, em especial a vossa majestade, nosso gracioso rei.
"Já perdi o meu pai e a minha mãe. A Maidred é tudo para mim. Se eu também a perder... não conseguirei suportar a dor.
A voz de Robbie vacilou. Tinha muita dificuldade em implorar, expor as suas emoções nuas e cruas perante o homem jovem de expressão impassível que se elevava acima
de si. Mas a sua súplica fez com que Jaime Stuart o fitasse, os olhos escuros do monarca a percorrerem-no, espelhando interesse e compaixão.
O olhar do rei foi de Robbie a Maidred, voltando a concentrar-se nele. Rob apercebeu-se da hesitação do rei e susteve a respiração. Pareceu-lhe que todos os presentes
faziam o mesmo. A única coisa que quebrou o silêncio foi um sonoro resfolegar, não de um dos cavalos, mas sim de um dos homens do séquito do monarca.
Um dos nobres que acompanhavam o rei inclinou-se para a frente para fazer um comentário ao cavaleiro de feições rudes montado ao seu lado. Os dois homens esboçaram
um sorriso pretensioso. Rob não conseguiu ouvir o que eles diziam, mas era óbvio que o rei tinha ouvido. Jaime Stuart ficou vermelho que nem um tomate. A sua fisionomia
endureceu e baixou a mão.
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- Continuem - ordenou.
- Não! - gritou Rob, sentindo a garganta a arder devido à força do seu protesto. Mas aquela única sílaba foi abafada pelos gritos de indignação de Tamsin, a que
se juntava o ulular de fúria das duas netas. Maidred continuava a chorar convulsivamente enquanto era agarrada, juntamente com Tamsin, pelos guardas, que as forçaram
a porem-se de pé.
A vontade férrea que Robbie chamara a si para reprimir as suas emoções partiu-se como uma adaga enferrujada. Ergueu-se de um salto, dando luta aos guardas para tentar
libertar Maidred. Foi bem-sucedido por breves momentos, puxando a irmã lavada em lágrimas para junto do seu coração antes de ela ter sido arrancada dos seus braços.
- Robbie! - chamou ela num queixume quando já era arrastada para ser amarrada ao poste.
De cabeça perdida, Rob investiu cegamente, possuído de uma fúria indescritível, num esforço para conseguir chegar junto da irmã. Enquanto dava murros e pontapés,
mal sentia as agressões de que era alvo e que vinham de todas as direções até o terem atingido na têmpora com um pau grosso que fez com que cambaleasse. Foi obrigado
a ajoelhar por mãos fortes, enquanto uma voz roufenha lhe falava ao ouvido.
- Pára com isso, rapaz. Não farás bem nenhum para ela nem para ti ao comportares-te desta maneira. Não podes salvá-la.
Robbie pestanejou para afastar o fio de sangue que lhe corria para o olho, o que lhe permitiu divisar mestre Galbraith, o carcereiro. O idoso e outro guarda jovem
imobilizavam Rob firmemente, mas ele continuava a debater-se, o desespero alimentado pela primeira espiral de fumo e o crepitar das chamas. Acima dos murmúrios da
multidão, ouvia a velha Tamsin a uivar de raiva.
- Maldito sejas, Jaime da Escócia, o Inferno está à tua espera! Que um dia pereças consumido pelas chamas! Lanço a minha maldição sobre todos os da Casa de Stuart!
- As invetivas da velha deram lugar aos gritos de agonia quando as labaredas se ergueram mais altas. Mas eram os gritos lancinantes de Maidred que dilaceravam Robbie.
Apesar de estar a ficar sem forças, fez outro esforço frenético para se libertar.
Mas foi então que se ouviu uma explosão que o imobilizou. O barulho atroador semeou o pânico entre a multidão. Rob apercebia-se vagamente de gritos de terror, do
relinchar de medo dos cavalos, do soar de passos pesados. Mas o caos parecia decorrer em surdina, como o som
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de uma cena abafado por um pesado manto de nevoeiro ou algo que tivesse saído de um sonho.
Os gritos de Maidred cessaram e para Rob foi como se todo o mundo ficasse mergulhado em silêncio. Os carcereiros que o imobilizavam largaram-no, mas não fez qualquer
tentativa para se levantar do chão. As lágrimas ardentes caíam-lhe pelas faces, misturando-se com o sangue. O mestre Galbraith deu-lhe uma palmada rude no ombro.
O carcereiro meteu-lhe algo na mão com brusquidão antes de se afastar de Rob.
Quando a multidão já começava a dispersar, Rob reuniu forças para se levantar. Não tinha coragem para olhar na direção da fogueira cujas chamas consumiam o que restava
da sua irmã. Em vez disso, o seu olhar fixou-se no rei.
Jaime Stuart esforçava-se por dominar o cavalo nervoso. Por breves momentos, o seu olhar prendeu-se no de Robbie. O monarca foi o primeiro a desviar o olhar. Obrigou
o cavalo a dar meia-volta e seguiu na direção de onde tinha vindo, seguido de perto pelos membros do seu séquito.
Robbie ficou a olhar para ele, o cheiro acre do fumo a misturar-se com o de carne queimada a saturar-lhe as narinas. Continuava a ouvir o crepitar e o sibilar das
chamas. Sabia de antemão que aquele som e o cheiro o acompanhariam até ao dia da sua morte.
Tinha a sensação de que aquelas chamas ardiam dentro de si, queimando o vazio que Maidred deixara no seu coração. O olhar de Rob seguiu o rei Jaime até este ter
desaparecido depois de transpor as portas da cidade.
Um pequeno acenar de mão de Jaime Stuart era tudo o que teria sido necessário para poupar a vida de Maidred. Robbie tinha a certeza de que o monarca estivera prestes
a fazer isso mesmo. Portanto, o que é que o teria impedido? Um comentário escarnecedor de um dos seus nobres mais proeminentes? O receio de ser escarnecido, que
ridicularizassem a sua fraqueza, caso se atrevesse a mostrar alguma compaixão?
O rei era fraco, além de ser tão cobarde como se dizia que era. O fogo que ardia no coração de Robbie recrudesceu, queimando-o com um ódio como nunca sentira até
então. Abriu os dedos e, finalmente, olhou para o objeto que o mestre Galbraith lhe tinha posto na mão.
Era um pequeno anel do cabelo de um castanho-dourado da irmã. Os olhos de Rob ameaçaram voltar a encher-se de lágrimas, mas pestanejou com força para as conter.
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Maldito sejas, Jaime da Escócia. O Inferno está à tua espera! Que um dia pereças consumido pelas chamas!"
A praga que Tamsin, nas vascas da morte, rogara ao rei ecoava na mente de Robbie, o veneno da velha bruxa a cair em saco roto, palavras fúteis, a menos que alguém
fosse suficientemente louco para concretizar essa maldição.
- E é o que tenciono fazer, Maidred - murmurou Robbie, apertando o anel de cabelo na sua mão cerrada. - Ainda que isso me leve o resto da vida.
Bretanha francesa, 1605
Eram poucas as hipóteses de regressar à ilha naquela noite. As nuvens carregadas não auguravam nada de bom, roubando ao dia horas preciosas e uma travessia mais
suave até ao cair da noite. O vento começou a levantar-se, encapelando as águas do canal com cristas de espuma.
A Senhora da Ilha Encantada esforçava-se por manter o capuz do seu manto na cabeça, para impedir que a aragem salina lhe açoitasse o rosto. O cabelo castanho e de
textura sedosa emoldurava-lhe o rosto pálido cuja compleição era perfeita. A estatura baixa fazia com que parecesse ter menos do que os seus trinta e um anos. Mas
os olhos verdes, sempre com uma expressão demasiado solene, demasiado cautelosos, faziam com que parecesse muito mais velha.
Caminhando com todo o cuidado ao longo da costa rochosa, olhava para o outro lado do canal, lançando um último olhar à terra que era o seu lar. Mas o contorno à
distância da ilha Encantada era obscurecido pelas sombras que as nuvens projetavam. Margaret Wolfe sentiu um nó na garganta e aquela pressão tão peculiar no peito
que era frequente sempre que deixava a segurança da ilha, o pressentimento de que a iminência de desastre se avultava ameaçador no horizonte.
O que acontecia porque a recentemente designada Senhora da Ilha Encantada possuía uma visão profética, diziam em sussurro, e com um temor respeitoso, as pessoas
que viviam na ilha e no continente. O que era o caso em certa medida, mas Margaret Wolfe atribuía a tensão que sentia à sua atribulada meninice. Qualquer pessoa
que fosse filha de uma bruxa louca como Cassandra Lascelles teria, inevitavelmente, de encarar
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a vida com um elevado grau de apreensão. Como a sua velha ama, a senhora Waters, dissera tantas vezes a Meg.
És uma alminha desconfiada, minha linda. Está-me aparecer que já nasceste ansiosa.
A ansiedade que Meg sentia naquele momento era acentuada pelo comportamento da sua companheira de viagem. Seraphine Beaufoy, a condessa de Castelnau, era uma mulher
de cabelos louros que mais parecia uma deusa, tão alta quanto Meg era baixa.
A condessa dava ordens num tom de voz autoritário, ordenando aos homens no barco a remos que as trouxera da ilha para arrastarem a embarcação mais para o areal,
ocultando-o por baixo de um amontoado de destroços e algas marinhas. O vento forte açoitava o manto de Seraphine, revelando o vestuário masculino que envergava,
um disfarce que não teria enganado ninguém, uma vez que o gibão curto e as calças que apertavam abaixo dos joelhos acentuavam ainda mais as curvas voluptuosas do
seu corpo.
Mas Seraphine estava mais preocupada com o aspeto prático da sua indumentária do que com disfarçar-se. Era impossível brandir uma espada vestida com espartilho e
saias de baixo. Seraphine estava armada com uma pistola e florete presos à cintura. Era por demais evidente que ela também tinha o pressentimento de possíveis perigos,
contudo existia uma acentuada diferença entre as duas, pensava Meg. Caso se deparassem com dificuldades, Seraphine sentir-se-ia deliciada. Voltou a juntar-se a Margaret,
mostrando-se satisfeita com a maneira como haviam ocultado o pequeno barco a remos.
- Já está. Pelo menos, o barco estará em segurança, o que nos permitirá recorrer ao nosso único meio de escapar. Dei ordens ao Jacques e ao Louis para que se mantivessem
de guarda.
- com certeza que estás a ser um pouco dramática. Já fiz a travessia até ao continente inúmeras vezes para tratar padecimentos e nunca precisei de um meio de fuga.
- Existe uma diferença abissal entre ajudar ao parto de um bebé de camponeses e tentar curar uma rapariga que afirma estar possuída por demónios, do que estás bem
ciente, Margaret Wolfe.
- Não se levarmos em consideração as maldições e os gritos proferidos por algumas pobres mulheres durante as dores do parto. - A pouco convincente tentativa de Meg
para se mostrar espirituosa pouco fez para desanuviar a expressão carrancuda no semblante de Seraphine.
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- Volto a repetir a mesma coisa, não me parece que devesses interferir neste assunto. - O seu tom de voz suavizou-se quando acrescentou:
- Não és obrigada a expiar por todo o mal que a tua mãe causou enquanto viveu. Não precisas de ir a correr em socorro de quem quer que seja quando alguém murmura
a palavra bruxa.
- Não é isso que estou a fazer - começou Meg a dizer, mas foi interrompida pelo olhar de Seraphine, a avaliação arguta de quem era sua amiga havia muitos anos e
a conhecia tão bem como a palma da sua mão.
- Melhor dizendo, não inteiramente - corrigiu Meg. - Na qualidade de nova Senhora da Ilha Encantada, não será minha obrigação proteger as mulheres, em especial as
outras Filhas da Terra?
- Não me parece que a Ariane teria desejado que te envolvesses nos assuntos supersticiosos dos residentes do continente. A minha tia ter-te-ia aconselhado a agires
com prudência.
- Uma vez que a Ariane já não se encontra entre nós, não podemos perguntar-lhe. - A ausência desta era motivo de grande desgosto de Margaret, tendo-lhe sido impossível
evitar o tremor que transparecia da sua voz.
Ariane Deauville, a antiga Senhora da Ilha Encantada, tinha sido tudo para Meg ao longo dos últimos quinze anos. Amiga, mãe e professora, tendo-lhe ensinado todos
os conhecimentos da Antiguidade das Filhas da Terra, mulheres sábias com talento para as artes de curar e para a magia branca.
E nenhuma era mais dotada do que a que aclamavam como Senhora da Ilha Encantada, um título que vinha da Antiguidade e que era dado à mulher mais bem preparada para
ser a mentora das Filhas da Terra em cada geração. Meg sentira-se indescritivelmente honrada e humildada quando Ariane a escolheu para sua sucessora.
Era um cargo que Meg nunca considerou possível que viesse a desempenhar até dali a muitos anos, uma vez que o título só era transmitido por ocasião da morte da Senhora
da Ilha Encantada predecessora. Mas quando o estado de saúde de Ariane Deauville tinha começado a deteriorar-se, esta decidira quebrar a tradição e abdicar a favor
de Meg.
"Podes chamar-me de egoísta, minha querida", dissera-lhe Ariane. "Mas a verdade é que quero passar o tempo que ainda me resta com o meu marido e o meu filho, viajar
para terras de que me inteirei somente através de livros, para poder aprender as maneiras de curar e conhecimentos antigos de outros países."
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Meg nunca teria sonhado sequer em chamar a sua amiga de egoísta. Nunca nenhuma Senhora da Ilha Encantada servira a sua terra e as Filhas da Terra mais dedicadamente
do que Ariane. Se ela conseguisse encontrar alguma tranquilidade e uma cura para a sua doença que estava a consumi-la lentamente, Meg só podia desejar-lhe que Deus
a acompanhasse e muita felicidade.
Todavia, naquele dia da primavera anterior em que Margaret tinha estado no cais, sorrindo e acenando até o navio ter desaparecido da sua vista, fora forçada a pestanejar
para conter as lágrimas. Sentira-se avassalada por um sentimento de angústia e uma sensação de pânico, com receio de ser incapaz de estar à altura da sua predecessora.
Esforçara-se denodadamente para conseguir isso, agradecida pelo encorajamento e apoio de Seraphine. Mas agora, quando a sua amiga lhe atirava à cara os desejos,
por pressuposto, de Ariane como arma, não conseguiu impedir-se de lhe ripostar.
- Não és tu quem não se tem cansado de me dizer que perante qualquer situação tenho de parar de tentar adivinhar o que a Ariane teria feito nas mesmas circunstâncias?
Que tenho de aprender a usar o meu próprio discernimento.
- Mas não quando estás enganada.
- Queres dizer quando não estou de acordo contigo.
- E não será isso a mesma coisa? - perguntou Seraphine num tom autoritário, mas depois riu-se. - Muito bem. Vamos lá procurar essa fedelha idiota que diz estar possuída
de demónios para poderes desembruxá-la. com um pouco de sorte até é possível que sejamos capazes de evitar a tempestade, regressando à ilha Encantada antes de escurecer.
Muito embora tivesse sido útil se esse rapaz imbecil que te suplicou que os ajudasses tivesse esperado para nos mostrar o caminho.
- O pobre Denys estava demasiado ansioso por regressar a casa. Isso não tem importância. Pernod é uma aldeia pequena e a família da rapariga é dona da hospedaria
local, a Golfinho Sorridente. Mademoiselle Tillet não será difícil de encontrar.
- Sendo assim, indica o caminho.
Pernod, à semelhança de muitas aldeias situadas na costa bretã, era habitada, em grande parte, por pescadores. Ao longo dos anos, tinha-se formado um trilho muito
pisado na praia rochosa. As botas de Seraphine eram muito mais adequadas ao piso acidentado do que os tamancos que Meg usava para proteger os sapatos, mas que lhe
dificultavam o andar.
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A condessa era considerada na corte francesa como uma mulher graciosa, encantadoramente sedutora e plena de uma indolência brincalhona. Seraphine, sempre que no
cumprimento de uma missão, era uma criatura inteiramente diferente. As pernas mais curtas de Meg mal conseguiam acompanhar a passada mais larga da amiga.
Quando chegaram ao ponto onde o trilho se alargava, dando lugar a uma rua que atravessava a aldeia, Meg já estava com a respiração um pouco arfante. Tal como dissera
a Seraphine, Pernod era uma pequena localidade, formada apenas por umas quantas casas, uma igreja pequeníssima e uma hospedaria. Pelo menos, as sólidas paredes de
pedra das pequenas casas proporcionavam um refúgio contra o vento, permitindo que Meg largasse o capuz do manto.
A rua de terra batida estava deserta e a aldeia espectralmente silenciosa, silêncio que só era quebrado pelo bater ocasional de uma portada e o roçagar da folhagem
das árvores. Aquela quietude causava algum mal-estar a Meg. Dada a hora, esperara ver alguns pescadores que regressassem da faina da pesca, rapazes que voltassem
para casa depois de terem trabalhado no campo comunitário ou mães irritadas que obrigavam os filhos renitentes a irem para dentro de casa onde a ceia os aguardava.
- Mas o que é isto, uma espécie de aldeia fantasma? Onde é que está toda a gente? - perguntou Seraphine. - Quem sabe se o demónio dessa rapariga, a Tillet, não terá
levado toda a gente juntamente com ela.
- Não digas isso! Nem sequer na brincadeira. C) mais certo é os aldeões terem recolhido a casa com receio do temporal que não tardará a desencadear-se.
Meg tentava tranquilizar-se a si própria e a Seraphine, mas parte de si não acreditava no que acabara de dizer. Aqueles bretões que viviam na região costeira eram
gente rija que estava acostumada às intempéries. Não seriam levados a trancarem as portas perante a aproximação de um mero aguaceiro, trovoada ou vendaval.
A Meg só ocorria um motivo que faria com que gente tão robusta se fechasse dentro das suas casas amedrontada: o medo de que uma bruxa andasse entre eles.
Meg rezava para que a situação não fosse essa. Tinha esperado resolver o problema da rapariga dos Tillet, que afirmava que estava embruxada, tratando do assunto
tranquilamente antes que os rumores e o pânico tivessem tido tempo para se propagarem. A espécie de pânico que poderia
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dar origem a que mulheres inocentes viessem a ser acusadas de bruxaria, torturadas e enforcadas.
Quando Margaret e Seraphine viraram uma esquina da rua, Meg avistou a tabuleta com o nome da hospedaria, que rangia açoitada pelo vento. A Golfinho Sorridente era
um estabelecimento modesto que só muito raramente era frequentado por outras pessoas que não os viajantes da região. Mas naquela tarde sombria e escura havia um
estranho que se mantinha na soleira da porta.
O homem parecia tão desenquadrado naquela aldeia de atmosfera agreste como um gibão de cetim teria parecido incongruente numa corda da roupa entre camisas de um
tecido grosseiro de tecedura caseira. Apesar da poeira que se agarrava às botas dele e da capa curta que trazia presa ao ombro, via-se que o seu vestuário era de
boa qualidade, o que indicava que era um gentil-homem.
Era de altura mediana, não se podendo dizer que tivesse uma figura imponente, mas havia algo na sua postura de alguém muito seguro de si próprio que fazia com que
parecesse mais alto do que era efetivamente. Meg não conseguiu banir o pensamento de que ele era um belo homem. Algumas pessoas até poderiam considerar que era formoso,
com as suas feições magras que pareciam esculpidas a cinzel e a pele macia muito bem barbeada, além de ser demasiado pálida para alguém que viajasse durante os meses
de verão. A brisa agitava as penas presas no toque colocado num cabelo ondulado de um castanho-alourado. Levantou a cabeça ligeiramente para observar o firmamento
cada vez mais escurecido.
Seraphine soltou um assobio ensurdecido por entre os dentes.
- Quem será aquele belo e jovem garanhão?
- Não faço a mínima ideia - murmurou Meg com algum constrangimento. - É deveras invulgar que um desconhecido como ele passe por uma aldeia tão remota como Pernod.
- Estás com receio de que ele seja o Diabo que foste chamada para exorcizar? Parece-me que é bonito de mais para isso.
Meg lançou um olhar coruscante à amiga, mas ficou como que paralisada quando lhe ocorreu um pensamento subitamente.
- Deus nos valha, Phine. Não achas que o teu marido talvez o tenha enviado?
Seraphine pareceu ter ficado surpreendida com aquela ideia disparatada, soltando uma gargalhada trocista.
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- O quê!? Monsieur le Comte ter contratado alguém para que lhe encontre a mulher errante, com instruções para a levar de regresso a Castelnau pelos cabelos, se necessário?
Gérard não teria coragem para isso. Além disso, duvido que o meu querido marido me queira tanto de regresso a casa quanto eu desejo voltar para junto dele.
Meg não podia concordar com aquilo, contudo, sabia de antemão de que pouco serviria estar a discutir aquele assunto. Tinha tentado fazer isso mesmo desde a chegada
de Seraphine à ilha Encantada havia cinco meses.
- Mais ainda, aquele homem nem sequer é francês - acrescentou Seraphine. - É muito provável que seja inglês.
- Mas como é que podes saber uma coisa dessas?
- Só precisas de olhar para o corte retilíneo do gibão. Nenhum galante francês digno desse nome se atreveria a sair de casa com uma peça de roupa com aquela falta
de estilo.
Seraphine e Meg tinham estado a falar em voz baixa enquanto se aproximavam da hospedaria, mas o estranho fixou a sua atenção nelas. Desencostou-se da ombreira da
porta, endireitando-se e ficando a olhar para as duas. Meg sentiu todo o peso do olhar do homem, duro, avaliador e excessivamente íntimo.
Meg ocultou-se ainda mais no capuz do manto, sentindo as bochechas a arder.
- Mas que assunto é que traria um gentil-homem aqui, a Pernod? E porque é que ele está a olhar para nós com tanta fixidez?
- Não sei. Talvez eu devesse perguntar-lhe e aproveitar para lhe dar uma lição de boas maneiras - replicou Seraphine.
Para grande perturbação de Meg, a condessa estacou e pôs-se a olhar para o estranho fixamente. Erguendo o queixo numa atitude de desafio, afastou o manto para trás
e levou a mão ao punho do florete que trazia preso de lado, à cintura.
- Seraphine! Pára com isso! - disse Meg numa voz sibilada. - Detesto que faças isso.
- Quando faço o quê? Quando honro o meu pai ao andar armada com o florete que ele me deu?
- Não faço qualquer objeção a que andes armada, mas sim a que estejas sempre morta por espetar alguém com essa lâmina.
Meg susteve a respiração enquanto esperava pela reação do homem perante a atitude agressiva de Seraphine. O momento arrastou-se até ele
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ter baixado o olhar. Inclinou-se numa vénia circunspecta antes de voltar para dentro da hospedaria. O alívio que Meg sentiu era por demais evidente, sentindo o corpo
percorrido por um tremor. Mas Seraphine, inacreditavelmente - raios partissem a mulher! -, mostrou-se dececionada. Voltou a cobrir o florete com a capa, que puxou
para a frente.
- Aí tens. Ambas estamos um pouco nervosas de mais, ficando inquietas sem razão nenhuma para isso. Trata-se apenas de um inglês idiota que, sem dúvida, se perdeu,
tendo procurado abrigo do temporal que não tardará a desencadear-se. O mais certo foi ele ter a esperança de poder passar o tempo com alguma galdéria da aldeia.
- Os olhos de Seraphine brilhavam provocadores quando acrescentou: - É só um palpite, minha querida. A próxima vez que te aventurares a sair da tua ilha, devias,
muito sinceramente, tentar não atrair tanto as atenções.
Meg ficou embatocada, sem saber se devia rir ou ficar fula.
- Idiota! Se os homens olharem para uma de nós duas, é sempre para ti.
- Sim, mas tu és aquela de que nunca se esquecem. Eu diria que é por causa desses teus olhos verdes de visionária. Basta olhar para eles uma vez e um homem fica
perdido para sempre - disse Seraphine arreliadora, contudo, do seu tom de voz transparecia uma nota de melancolia.
Meg abanou a cabeça, num gesto que tirava qualquer importância às palavras de Seraphine, considerando que eram disparatadas, uma vez que durante a maior parte da
sua vida se esforçara ao máximo para passar despercebida, para ser invisível, escondida nas brumas da ilha Encantada.
Talvez tivesse reagido exageradamente perante a presença do estranho, o seu medo irracional apenas parte do legado sinistro que a mãe lhe deixara. Durante a maior
parte da sua meninice e juventude, tinha tido motivos de sobra para recear, uma vez que sabia o que era ser perseguida. Todos os olhares que se demorassem excessivamente
em si, todos os desconhecidos que cruzassem o seu caminho, poderiam representar perigo para a sua pessoa.
Mas com certeza que esses tempos há muito que haviam ficado para trás. A sua maior inimiga, a Rainha das Trevas, Catarina de Médicis, tinha morrido há mais de quinze
anos. A mãe de Meg, uma bruxa, Cassandra Lascelles, morrera havia ainda mais tempo, afogada nas águas do rio Sena. Igualmente, a irmandade das bruxas de Cassandra,
formada pelas suas fanáticas seguidoras, tinha sido destruída, enquanto elas foram chacinadas pelos caçadores de bruxas ou tinham sido presas, julgadas e executadas.
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Já não restava ninguém que pudesse constituir uma ameaça à tranquilidade de Margaret, ninguém que a perseguisse. Por conseguinte, qual a razão para sentir os pelos
da nuca eriçados quando se cruzou com aquele desconhecido? Houve uma voz dentro de si que lhe segredou que a presença dele ali, o interesse que mostrara por ela,
não era obra do acaso.
Quando Meg era mais nova, teria dado ouvidos a essa voz. Mas à medida que ia ficando mais adulta, também ia ficando menos em sintonia com a faceta de visionária
da sua natureza, com mais tendência para questionar os seus instintos, para ignorar os seus extraordinários sentidos, considerando que isso seria um disparate.
Sentiu-se enervada e com a pulsação descompassada quando ela e Seraphine atravessaram o pátio, aproximando-se da arcada por onde o estranho havia desaparecido. Meg
desejou que Bridget Tillet fosse filha de um pescador que vivesse numa pequena casa bastante afastada da praia. Mas, acima de tudo, desejava poder estar de regresso
à sua ilha.
Quando Seraphine empurrou a porta da hospedaria para a abrir, foram assaltadas por uma cacofonia de barulho e cheiros avassaladores, o cheiro de bebidas alcoólicas
fortes e a carnes cozinhadas, ao que se juntava o fedor de corpos sujos.
Do mal o menos, o mistério da ausência de aldeões estava resolvido. Meg sentiu que o coração lhe caía aos pés quando entrou na taberna à cunha. Tinha-se a impressão
de que a maior parte dos habitantes de Pernod se apinhava ali, em todos os bancos individuais e corridos, sem que houvesse um único vago. Havia outros encostados
ao balcão, discutindo com gestos histriónicos; o coro de vozes assemelha-se ao zumbido de um ninho de vespas que tivessem sido perturbadas. Meg pouco conseguia destrinçar
do que eles diziam, mas o tom era, inquestionavelmente, de cólera e temor.
O viajante que encontrara fora da hospedaria sentava-se um pouco afastado dos aldeões. De todas as pessoas presentes, era o único quieto e calado. Talvez fosse isso
mesmo que atraiu a atenção de Meg, aquela aura de solidão que emanava dele e que fazia com que parecesse estar sozinho no meio daquela multidão.
Quando Seraphine fechou a porta depois de terem entrado, todas as cabeças se viraram na direção das duas e todos os clientes da taberna ficaram em silêncio.
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- Merde! - exclamou Seraphine.
Muito embora Meg não tivesse optado por se expressar tão grosseiramente, concordava com o sentido da expressão. O ar estava eletrizante de tensão, como toros de
madeira verde atirados para um lume crepitante. Meg percebeu algumas palavras sussurradas.
- A Senhora. Ilha Encantada. Feiticeira.
Meg foi alvo de inúmeros olhares, alguns de curiosidade e outros de hostilidade. Muitos dos aldeões conheciam-na, apesar de os residentes do continente procurarem
as capacidades de curandeira de Meg com mais relutância do que haviam tido para com a anterior Senhora da Ilha Encantada.
Quando afastou o capuz para trás, alguns dos aldeões persignaram-se, como se estivessem a proteger-se do mau-olhado. Meg estremeceu, perguntando-se se eles teriam
feito o mesmo com Ariane ou dar-se-ia o caso de aquelas pessoas tão simples se aperceberem de algo mais sinistro no semblante de Meg? Algum traço de Cassandra Lascelles
contido nos olhos da filha, não obstante todos os esforços de Meg para enterrar o seu passado.
Mas não eram os olhares das gentes da aldeia que a enervavam, mas sim o olhar do desconhecido que a observava atentamente, com uns olhos argutos e de expressão tranquila.
Meg desviou o olhar.
- Abram caminho - disse Seraphine num tom de voz ríspido, preparada para abrir caminho à força dos cotovelos para que Meg pudesse passar por entre a multidão. Mas
não foi necessário. Todos recuaram, quer por temor, quer por respeito, era coisa que Meg não saberia dizer, talvez um misto dos dois. Mas enquanto olhavam para Margaret
com manifesto mal-estar, olhavam para Seraphine de boca aberta. Quer estivesse trajada com calças curtas de couro ou vestida de cetim e coberta de jóias, Seraphine
era sempre a Madame la Comtesse. A expressão sobranceira desafiava qualquer pessoa a insultá-la ou sequer a fazer qualquer comentário acerca do seu vestuário tão
pouco feminino. Houve alguém que, aparentemente, se recordou que tinha o dom da fala, perguntando:
- com que então é verdade. A rapariga dos Tillet está embruxada? Juntaram-se-lhe outras vozes.
- E sabe-se quem é que lhe rogou a praga?
- Sois capaz de a salvar, milady?
- A vossa magia é suficientemente forte para a desembruxar?
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Antes que Meg pudesse formular uma resposta, Seraphine interveio.
- Ninguém está embruxado. A Senhora da Ilha Encantada está aqui para curar a rapariga, que, muito provavelmente, sofre do mal de bêtise.
- Mal de bêtise!? E o que é isso? - perguntou um rapaz numa voz trémula.
- É um mal que ataca o juízo e que faz com que se fique inacreditavelmente estúpido. Ouvi dizer que é extremamente contagioso.
- Seraphine - disse Meg em tom de censura ao ver as expressões de confusão que o sarcasmo da amiga causara.
- O melhor que podeis fazer é voltar para vossas casas - acrescentou Seraphine. - Para o caso de ainda não terdes reparado, aproxima-se um temporal.
Mas ninguém se mexeu. Para alívio de Meg, avistou o jovem Denys Brunel junto da porta que dava para a cozinha. Estava a conversar com dois homens altos e esgalgados
de cabelo ruivo. O mais novo dos dois tinha um braço por cima dos ombros de uma mulher idosa que chorava, enxugando as lágrimas com o avental.
O rosto de Denys iluminou-se ao avistar Meg que se aproximava dele. Pelo menos, havia alguém que se sentia satisfeito ao vê-la, refletiu. O rapaz apressou-se a proceder
às apresentações.
- Milady, este é o mestre Raimond Tillet e o filho, Osbert. E esta senhora é a Madame Sidonie Tillet, a avó da minha pobre Bridget... - Denys interrompeu-se e corou
antes de acrescentar: - Quero dizer, Mademoiselle Bridget Tillet, a rapariga de que vos falei e que está a sofrer tanto.
Os dois homens baixaram a cabeça num pequeno cumprimento, mas a idosa abeirou-se de Meg a cambalear. Semicerrou os olhos, fitando Margaret por entre as lágrimas
e pegando-lhe na mão. Sidonie Tillet apertava-lhe a mão com força, a palma da mão áspera de muito trabalho.
- Oh, milady, agradeço a todos os santos por terdes vindo para que façais com que esta praga que tanto aflige a minha pobre neta desapareça.
- Bem, eu... - começou Meg a dizer, mas foi interrompida por uma voz austera que reconheceu.
- Isto não é trabalho para mulheres. É um assunto que compete à Santa Igreja. - Meg olhou para o padre Jérôme, um homem magro que teria quarenta e muitos anos, o
qual descia as escadas de madeira de acesso às alcovas no andar de cima.
Meg já se tinha cruzado com o padre noutras ocasiões em que se deslocara a Pernod. Ao contrário dos clérigos de estatuto inferior, ele era um
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homem bastante erudito que mostrava tolerância para com as mulheres como Meg, desde que elas se restringissem à atividade de parteiras ou a curar os doentes. Mas
o seu olhar austero advertiu-a de que considerava o seu envolvimento naquele assunto como uma incursão no que era da sua exclusiva competência.
Ignorando Meg, dirigiu a palavra a Raimond Tillet.
- Já examinei a tua filha. Na minha opinião, ela está realmente possuída por demónios, pelo que é necessário proceder a um exorcismo. vou ter de viajar para norte
a fim de consultar o meu bispo antes de...
- E, enquanto estiverdes a fazer isso, a Bridget pode morrer - atalhou Osbert exacerbado. - Só existe uma coisa que poderá ajudar a minha irmã e isso é dar caça
à bruxa que a embruxou para a matar.
O coração de Meg saltou um batimento quando se ouviu um coro de assentimento da parte das outras pessoas presentes na taberna. Sentiu que Seraphine ficava tensa
ao seu lado e reparou no movimento da mão dela por baixo do manto, quando a amiga pegou no punho do florete.
- E quem é que será essa pessoa? - perguntou Seraphine numa voz autoritária.
- Quem mais é que poderia ser além da mère Poulet? - perguntou Osbert.
- O quê!? - exclamou Meg. - com certeza que não estás a referir-te a essa pobre velha que anda a mendigar e que anda com uma galinha presa por uma trela como animal
de estimação?
- É parente dela - replicou Osbert. - Eu ouço-a a falar constantemente com essa galinha. Houve uma ocasião em que me ri dela por fazer isso e ela tratou de me rogar
uma praga, pelo que na semana seguinte sofri uma entorse no tornozelo.
- Mas que grande disparate - começou Seraphine a dizer acalorada, mas Meg apressou-se a apertar-lhe o braço para a acautelar.
- Por favor, permitam-me que veja a Mademoiselle Bridget - disse Meg, dirigindo as suas palavras à avó da rapariga. A despeito das lágrimas, Sidonie parecia, de
longe, a mais calma, a pessoa mais razoável de todos os presentes. - Chamaram-me em função das minhas capacidades curativas. Tenho a certeza de que serei capaz de
encontrar uma causa natural para o mal de que a Bridget sofre, tratando-a com as ervas mais adequadas para a curar.
- Isso já foi tentado. Neste preciso momento, o doutor está com a Bridget - apressou-se a dizer Raimond antes que a idosa tivesse tempo
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para replicar. - Lamento que a minha mãe vos tenha chamado, obrigando-vos a vir de tão longe para nada, mademoiselle. - O proprietário da hospedaria inchou o peito,
dando-se ares de grande importância enquanto afirmava num tom suficientemente alto para todos ouvirem: - Mas a minha filha está a ser tratada por um curandeiro genuíno,
um físico com grandes conhecimentos.
- Esta desgraçada aldeola tem um médico? - perguntou Seraphine. O estalajadeiro ficou encrespado com o tom escarninho da condessa.
- Non, madame. Este físico, o doutor Blackwood, anda a viajar na companhia do nobre inglês que esta noite pernoitará na hospedaria. Um acaso muito auspicioso para
a minha pobre filha.
O olhar de Meg prendeu-se no estranho que se mantinha sentado perto da lareira. Pensou que ele observava todos os presentes com o distanciamento e a frieza de um
espectador durante uma representação teatral, à espera de ver como é que o drama se desenrolaria.
- Se Mademoiselle Tillet está a ser tratada por esse doutor Blackwood, não tendes necessidade da Senhora da Ilha Encantada - disse Seraphine, fechando os dedos no
braço de Meg. - Vamo-nos embora. Se nos apressarmos, ainda poderemos atravessar o canal antes que o temporal se desencadeie.
Tanto Denys como Madame Tillet protestaram alto e bom som.
- Por favor, milady, peço-vos que não vos ides embora - pediu a idosa num timbre de súplica. - Sois a única pessoa que pode salvar a minha neta. Não tenho a mínima
confiança neste médico inglês.
- É uma pena, mas isso é coisa que não nos diz respeito - interveio Seraphine.
- Diz, sim - adiantou Meg. Quando Seraphine tentou levá-la dali para fora, Meg manteve-se firme. - Phine, sabes muito bem como estes físicos podem ser ignorantes,
mais versados em latim do que em quaisquer artes de curar que sejam úteis. Deus sabe que género de poções e eméticos é que ele despejará pela garganta da pobre rapariga.
- Eu diria que ela será capaz de sobreviver. O que é o caso com muitas pessoas.
- Mas muitas não.
Inclinando-se mais para Meg, Seraphine sussurrou-lhe ao ouvido.
- Estou mais preocupada com a tua sobrevivência do que com a dela. Já te arriscaste bastante quando decidiste envolver-te neste assunto,
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mas agora, com a interferência do padre da aldeia e de um maldito físico idiota...
- Mais razões por que a pobre rapariga precisa de mim. Não posso limitar-me a virar costas ao assunto.
- Sim, podes. Só tens de pôr um pé à frente do outro e seguir naquela direção - retorquiu Seraphine, virando-a para a saída, mas, nesse preciso momento, ouviu-se
um grito arrepiante que veio do andar de cima. Era um grito que parecia pressagiar a morte de alguém. Sidonie gemeu alarmada, enquanto os homens se mostraram atemorizados.
Até mesmo Seraphine empalideceu, murmurando: - Que a Virgem Maria nos valha!
Meg libertou-se da mão da amiga e correu para as escadas. O estalajadeiro tentou impedi-la, mas viu o caminho bloqueado pelo filho.
- Non, papá. Deixe que a senhora vá ter com ela - disse Osbert. - A única pessoa que pode neutralizar a praga rogada por uma bruxa é outra bruxa.
- A Senhora da Ilha Encantada não é nenhuma bruxa! - insurgiu-se Seraphine ultrajada.
De imediato, a taberna começou a fervilhar de vozes que discutiam, pontuadas pelos gritos que vinham do piso de cima. Ignorando toda aquela gente, Meg correu pelas
escadas acima. Só se deteve quando se apercebeu de que Seraphine a seguia colada aos seus calcanhares.
- Não - disse, virando-se para a amiga e falando-lhe num tom de voz baixo e premente. - Se eu não puder ajudar esta rapariga, não estou a ver qual será o desfecho
desta situação.
- Sei eu. Eles irão atrás dessa velha pedinte, acusando-a de bruxaria, destino que também te estará reservado - adiantou Seraphine.
- Razão por que tens de encontrar a min Poulet para poderes escondê-la.
- Ela que vá para o diabo. A velha Mãe Galinha tem de olhar por si própria. Não tenho a mínima intenção de te deixar.
- Seraphine...
- Não!
Meg viu a expressão extremamente determinada no semblante da amiga, suspirando.
- Nesse caso, fica, mas tenta fazer com que estes homens vejam a razão, impedindo que algum deles vá à procura da velha Poulet.
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- Ora aí está uma coisa que eu posso fazer. - Seraphine começou a desembainhar o florete, mas a mão de Meg apressou-se a impedi-la de continuar.
- Não, isto não é tarefa para uma amazona guerreira, mas sim para madame la Comtesse e para os seus consideráveis encantos e capacidade de persuasão.
- Mas porque será que nunca sou capaz de fazer com que compreendas que é muito mais eficaz bater com a cabeça de um homem na de outro do que tentar seduzi-los? -
retorquiu Seraphine, mas cedeu, voltando a embainhar o florete. - De acordo. Vamos lá ser Circe e não Hipólito.
- Obrigada - agradeceu-lhe Meg, fazendo uma careta ao ouvir outro grito lancinante que vinha do andar de cima.
Seraphine olhou para aí, mostrando algum mal-estar.
- Duvido muito que esse físico aprecie mais a tua interferência do que o padre da aldeia. Por isso, tem cuidado, Meggie.
- Não te preocupes. Não é a primeira vez que tenho de lidar com idiotas tão ignorantes. Tenho a certeza de que esta situação não é nada que eu não possa controlar;
trata-se apenas de uma rapariga que se entregou a uma crise de histerismo. - Apesar daquela asserção tão confiante, Meg sentiu um arrepio que lhe percorreu todo
o corpo enquanto subia as escadas. Tinha plena confiança nas suas faculdades de curandeira. Havia sido ensinada pela mulher mais sábia de todas, Ariane Deauville,
além disso, Meg fora uma boa aprendiza.
E, contudo, não foi a imagem suave de Ariane que preencheu a sua mente enquanto continuava a subir as escadas, mas sim a de Cassandra Lascelles, com o seu cabelo
cor de ébano e uma pele branca com a translucidez do gelo e olhos negros que não viam.
Subitamente, Meg voltou a ser uma criança que subia sorrateira até à câmara na torre, em que estava proibida de entrar, onde a mãe acendia círios pretos e se inclinava
por cima de uma bacia de cobre. Era assim que Cassandra sussurrava os seus feitiços para chamar os espíritos que lhe surgiam na água, fazendo com que vozes sepulcrais
ecoassem pela câmara.
Na qualidade de Filha da Terra racional, Meg desejava poder negar a existência dessa espécie de magia negra, todavia, era algo que tinha visto com os seus próprios
olhos. Receava que fosse apenas uma questão de quando, e não se é que voltaria a deparar-se com tal malevolência.
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Talvez estivesse à sua espera naquele preciso momento no cimo das escadas daquela humilde hospedaria. Meg estremeceu, mas depois couraçou-se. Deixara de ser a filha
de Cassandra Lascelles, passando a ser a Senhora da Ilha Encantada, a portadora de luz e de racionalidade.
Os gritos arrepiantes vinham através da primeira porta à sua esquerda. Meg fez menção de bater, mas deteve-se, pensando que os gritos aflitivos que se ouviam no
outro lado da porta faziam com que qualquer formalidade parecesse absolutamente fútil.
Empurrou a porta, abrindo-a e entrando na alcova com a respiração suspensa; tinha a sensação de ter acabado de entrar no Inferno. As chamas altas do lume que ardia
na lareira faziam com que o ar fosse abrasador e irrespirável. As labaredas projetavam sombras nas paredes e o clarão emprestava um tom de vermelho de sangue aos
panos que pendiam do dossel do leito.
A luz vinha de várias velas em castiçais fixados à parede, das que haviam sido colocadas em cima da prateleira da lareira e das velas que estavam em cima de uma
pequena mesa, como se alguém tivesse acreditado que, com luz suficiente, o Diabo poderia ser mantido à distância.
Mas isso não tinha dado resultado, pensou Meg com um pequeno estremecimento. Ele rondava em torno da cama disfarçado de um homem alto de expressão sinistra.
Meg fechou a porta silenciosamente. As três pessoas que se encontravam no extremo oposto da alcova não deram pela sua presença. O físico esforçava-se por aquietar
a rapariga, que se contorcia debaixo das cobertas. Havia uma rapariga mais velha que se limitava a observar enquanto contorcia as mãos, o rosto tão pálido como o
linho branco da sua coifa.
- Mademoiselle Bridget! Tendes de vos aquietar - dizia o físico numa voz pastosa e com um estranho sotaque. Falou à jovem mais velha com rispidez.
- Não fiques aí especada a olhar! Ajuda-me a imobilizar a tua irmã. Entretanto, Bridget esbracejava freneticamente, atingindo o médico num olho. Ele recuou de repente,
praguejando, enquanto Bridget gritava à irmã a plenos pulmões.
- Charlotte! Ajuda-me.
- Por favor, Bridget - retorquiu Charlotte numa voz trémula.
- Tens de tentar lutar contra esse feitiço maléfico.
- Não posso. Oh, como ela me tortura.
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- Quem, minha querida?
- A mère Poulet. Não consegues vê-la?
- Não. Onde é que ela está?
- Está ali.
Meg ficou petrificada, receando que a rapariga apontasse um dedo trémulo na sua direção, mas Bridget fez um gesto na direção do teto.
- Ela está ali em cima! A pairar acima da minha cama. Oh! Não estás a ouvir as gargalhadas horríveis?
Charlotte olhava com uma expressão de frenesim para toda a alcova, chegando ao ponto de se encolher toda como se estivesse à espera de ver um qualquer espírito vingativo
que descesse das alturas, de garras estendidas para a atacar.
- Não, Bridget - replicou numa voz tremente. - Confesso que não estou a ver nada.
- Isso é porque não há nada para se ver - interveio Blackwood. Massajava o olho magoado enquanto apalpava o que estava em cima da mesa, à procura de um determinado
objeto e ordenando a Charlotte que se dominasse. - Pára de te portares como uma imbecil e ajuda-me a...
Mas Charlotte já estava farta até às pontas dos cabelos. com um soluço de choro, correu para fora do quarto, tendo sido por pouco que não derrubou Meg enquanto fugia.
Só então é que o doutor Blackwood deu pela presença de Meg, endireitando-se de repente em toda a sua estatura. Os ombros fortes e largos, quando combinados com a
maneira mal-ajambrada com que se vestia, davam-lhe mais a aparência de um trabalhador rural do que a de um físico. O cabelo castanho despenteado e a barba estavam
a precisar de ser cortados urgentemente, enquanto os olhos estavam congestionados e com olheiras fundas devido, aparentemente, à falta de descanso.
- Mas quem diabo sois vós? - perguntou Blackwood num tom de voz rosnado. O olhar de fúria do homem parecia ter força suficiente para a obrigar a sair porta fora.
Mas Meg manteve-se firme e determinada.
- Sou a Senhora... - Meg interrompeu-se, sempre com a sensação de estar a ser pretensiosa ao indicar o seu título. Concluiu simplesmente:
- Sou Margaret Wolfe.
- A mulher ardilosa que vive na ilha? - Os lábios do físico esboçaram um esgar de desprezo. - Era o que me faltava. Se bem que talvez pudésseis ajudar se não fôsseis
uma coisinha tão franzina.
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- com quem é que pensais que estais a falar? O olhar do físico percorreu-a de alto a baixo.
- Achais que sois suficientemente forte para me ajudar a imobilizar esta fedelha?
- Imobilizá-la para quê?
- A rapariga precisa de ser sangrada - explicou Blackwood, erguendo o braço, o que permitiu que Meg visse o brilho da lâmina da lanceta que ele empunhava na mão
direita.
O som do arquejo dela perdeu-se no grito uivado que saiu da boca de Bridget. A rapariga encolheu-se toda por baixo das cobertas de maneira a que nem sequer o cocuruto
da cabeça estava visível.
- Não importa se eu sou forte ou não - disse Meg por fim. - Jamais vos ajudaria a levar a cabo uma prática tão bárbara.
- Nesse caso, não tendes a mínima utilidade para mim. Saí desta alcova - ordenou o físico, virando-se para o leito, mas Meg apressou-se a colocar-se ao seu lado.
- Sois vós quem deve sair deste quarto - disse Meg, recuando repugnada ao sentir o cheiro de bebidas alcoólicas fortes. De súbito, compreendeu a razão do estranho
sotaque na voz dele.
- Por Deus, monsieur! Estais embriagado.
As bochechas de Blackwood ficaram muito vermelhas.
- É possível que eu tenha ingerido um pouco de vinho da Borgonha, mas estou sóbrio que chegue para saber o que é preciso fazer.
- O quê, sangramento? Mas será esse o único remédio de que os físicos dispõem? Seccionar as veias das pessoas?
- O ventre da rapariga está cheio de humores perniciosos que estão a fazer com que ela fique histérica. Sangrá-la é o único remédio.
- Mas o que é que haveríeis de saber acerca do ventre de uma mulher ou de qualquer outra parte da sua anatomia?
- Ora, posso assegurar-vos de que estudei aprofundadamente o corpo da mulher. - O arrastar sugestivo no tom da voz dele só serviu para aumentar a indignação de Meg.
- E o que é que sabeis a respeito da mente e da alma femininas?
- E tendes alma? Estou em crer que existem alguns debates a esse respeito.
- Nesse caso, ide debater esse assunto com o vosso amigo que está lá em baixo. E, já agora, talvez devêsseis aproveitar para curar a bebedeira.
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A única coisa pior do que um físico ignorante é um que esteja embriagado. - Meg virou-lhe as costas e encaminhou-se para a cama. Mas ele agarrou-a por um braço,
obrigando-a a dar meia-volta.
- E deixar-vos aqui a dar crédito aos disparates desta rapariga? Não me parece. Existe uma coisa muito mais perigosa do que um físico bêbado e isso é uma bruxa que
afirma possuir poderes sobrenaturais de cura.
- Eu não afirmo nada disso. Largai-me imediatamente!
- Assim farei quando já fordes a caminho da porta. - Ele apertou-lhe o braço com tanta força que a magoou, mas Meg recusou-se a dar parte de fraca. Ficaram a olhar
um para o outro com fixidez num confronto silencioso de vontades. Meg assestou o olhar nos olhos dele e ficou com a sensação de que caía para o fundo de um poço.
Nunca se tinha deparado com uma expressão tão sombria, tão fria e tão vazia. Era algo que não via desde que tinha aprofundado os olhos da mãe.
A cólera de Meg deu lugar ao medo. O seu olhar desviou-se do semblante empedernido de Blackwood, concentrando-se na lanceta de lâmina bem afiada que ele tinha na
mão.
Quando a porta se abriu, Meg olhou para aí com um sentimento de alívio. Ao contrário do que era costume, teria acolhido Seraphine de bom grado se ela tivesse entrado
de rompante de florete em riste. Mas o socorro veio de quem ela nunca teria esperado.
O estranho inglês deteve-se na ombreira da porta, de cenho carregado ao ver o que se passava.
- Armagil, o que é que se passa? Larga-a. - A ordem que o homem deu foi num tom de voz tão suave que Meg receou que o físico não lhe obedecesse. Mas Blackwood pestanejou
e olhou para a lanceta como se só naquele momento é que se tivesse apercebido da sua atitude ameaçadora. Largou Meg e falou ao amigo com encrespação.
- Leva-a daqui para fora.
Meg esfregou o braço dorido, preparando-se para outra atitude agressiva, mas o outro homem limitou-se a um abanar de cabeça.
- Não, Gil. Está-me a parecer que és tu quem tem de sair daqui.
- O diabo é que saio! - ripostou Blackwood com um olhar furioso. Os dois homens começaram a falar em inglês em voz baixa, como se pensassem que ela não perceberia
o que estavam a dizer. Ou como se Meg tivesse passado a ser uma coisa sem importância, como se não estivesse presente. O embate de vontades passara a ser entre os
dois homens,
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a expressão nos olhos de Blackwood sinistra e feroz, enquanto a do amigo era calma e firme.
- A irmã da rapariga está lá em baixo numa grande algazarra, Gil. Ela afirma que não estás a fazer nada para aliviar o sofrimento da irmã.
- Talvez conseguisse fazer isso se me fosse permitido continuar. Eu estava prestes a resolver o assunto quando ela se intrometeu - adiantou Blackwood, fazendo um
gesto encolerizado na direção de Meg. - Porque é que a deixaste subir?
- Porque estavam à espera dela. À exceção do estalajadeiro e do pároco da aldeia, é por demais evidente que estas pessoas depositam muita fé nas suas capacidades.
Blackwood fungou desdenhoso.
- Tenho de confessar que desde o princípio que tenho estado preocupado por pensar que não estavas em condições de resolver esta situação.
- Estou em perfeitas condições.
- Estarás, Gil? Olha bem para a tua mão.
Blackwood baixou o olhar e ao ver que os seus dedos tremiam, fez uma careta e cerrou os punhos. O amigo avançou, pousando a mão no ombro dele com o género de atitude
que poderia ter tido para serenar um corcel irrequieto.
- Vem comigo. Não há nada que possas fazer aqui. Vejamos o que esta senhora poderá fazer.
- Estás à espera que eu me afaste, só para poderes satisfazer a tua curiosidade a respeito desta bruxa? Raios partam isto, Graham, sabes o que pode acontecer...
- Eu sei, mas talvez existam maneiras melhores de lidar com o assunto. Vamos, Gil, antes que o irmão da rapariga ou alguns daqueles imbecis de cabeça quente que
estão lá em baixo decidam irromper por aqui adentro. Não podemos dar-nos ao luxo de nos vermos no meio de alguma coisa que atraia a atenção das autoridades locais
sobre nós.
Blackwood olhou para o amigo com uma expressão beligerante e praguejou. Soltou-se da mão dele com brusquidão e saiu intempestivamente da alcova sem sequer olhar
para trás.
Meg quase não tinha respirado durante toda aquela troca de palavras.
- Obrigada - agradeceu.
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O inglês tinha ficado a olhar para Blackwood, mas o agradecimento de Meg em voz baixa fez com que concentrasse a sua atenção nela. Inclinou-se rigidamente, dirigindo-lhe
a palavra em francês.
- Peço desculpa pelo meu amigo, mademoiselle. O Blackwood é capaz de ser bastante abrupto e de trato difícil, mas é um bom médico, exceto quando...
- Quando já bebeu vinho de mais?
- Tenho de dizer em sua defesa que ele não estava à espera de ter de tratar qualquer paciente esta noite.
Meg apreciou a lealdade do homem para com o amigo, mas não podia permitir que aquela desculpa justificasse a atitude dele.
- Um bom físico não se distinguirá por estar sempre preparado para socorrer alguém sempre que for necessário?
Ele ficou em silêncio, como se não tivesse argumentos com que rebater o que ela dizia. Meg perscrutou-lhe os olhos. Pensou que, se a tristeza fosse uma cor, então
essa seria a tonalidade dos olhos daquele homem. Mas, em vez disso, eram azuis, de um surpreendente azul muito vívido.
- Fizemos uma longa viagem para chegarmos a esta aldeia - disse por fim. - O doutor Blackwood está extremamente cansado. Ambos estamos exaustos. Mas posso assegurar-vos
de que ele não vos incomodará mais, Mademoiselle Wolfe.
O à-vontade com que ele proferia o seu nome sobressaltou Meg. Quando o homem já se preparava para deixar o quarto, ela disse:
- Pareceis saber quem eu sou, mas continuo sem fazer a mais pequena ideia de quem sois, monsieur.
- Chamo-me... Graham - replicou ele, hesitando antes de acrescentar: - Sir Patrick Graham, ao vosso serviço, milady.
Ele surpreendeu-a ao pegar-lhe na mão, levando as pontas dos dedos aos lábios. E depois desapareceu.
A porta do quarto fechou-se depois de Sir Patrick Graham ter saído. Meg tinha ficado a olhar para ele com um franzir de sobrancelhas de assombro. Noutras circunstâncias,
ter-se-ia sentido favoravelmente impressionada com aquele cavaleiro, com a sua maneira de ser calma, séria e gentil, facetas que ela admirava no caráter de um homem
e que contrastavam tanto com as maneiras grosseiras e brutas do seu amigo.
Mas a presença do inglês em Pernod preocupara Meg desde o início e a conversa que ela ouvira entre Graham e Blackwood, sem que eles soubessem que sabia falar a língua
inglesa, não fizera nada para mitigar a sua ansiedade.
Mas não dispunha de tempo para estar a preocupar-se com isso agora. Um gemido que veio de detrás de si lembrou-lhe isso mesmo. Encaminhou-se apressadamente para
o leito, deparando com Bridget a tremer debaixo da coberta.
- Está tudo bem, Mademoiselle Tillet - disse Meg. - O doutor Blackwood já se foi embora e agora ninguém lhe fará mal.
A única resposta da rapariga foi outro gemido. Quando Meg tentou afastar as cobertas para trás, Bridget agarrou-se a elas ainda com mais força.
- Chamo-me Margaret Wolfe e sou a curandeira da ilha Encantada. A tua avó mandou-me chamar para que te cure, Bridget. Por favor, deixa que eu te examine.
A rapariga tremia que nem varas verdes debaixo dos cobertores, como se estivesse com sezões. Meg conseguiu afastar os cobertores o suficiente para lhe destapar a
cara.
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Levou a mão à fronte dela. Para alguém que, por pressuposto, estaria febril, a pele de Bridget estava bastante fria, embora humedecida, o cabelo louro todo emaranhado.
A rapariga fedia ao cheiro acre a suor, o que não era de surpreender devido ao calor que vinha do lume forte na lareira e às chamas de todas aquelas velas. O ar
na alcova estava abafado e excessivamente quente. Meg sentia que a sua própria testa começava a estar perlada de suor.
Entretanto, a porta abriu-se para dar entrada a Sidonie Tillet, que se deslocava silenciosamente. A avó de Bridget aproximou-se do leito, perguntando ansiosamente:
- Como é que a pobre criança está? Achais que podeis ajudá-la, milady?
- Espero que sim.
Bridget tinha a respiração arquejante e os olhos firmemente cerrados. Tentou afastar a mão de Meg com brusquidão, mas esta conseguiu agarrar-lhe o braço, apesar
de ela estar a esbracejar. Apalpou-lhe o pulso para sentir a pulsação. Estava um pouco descompassada, mas, tirando isso, surpreendentemente normal para alguém que
afirmava estar possuída.
- Diga-me uma coisa. Que outros sintomas é que se manifestaram na sua neta? - perguntou Meg à idosa.
- Vómitos, febre e um estranho inchaço. Dores excruciantes e crises horríveis de tremores, como se houvesse alguém que estivesse a agarrá-la, sacudindo-a como se
fosse uma boneca de trapos. Ela nem sequer consegue levantar-se da cama. Diz que são os demónios que a imobilizam.
- E quando é que tudo isso começou?
- Comecei a reparar nos sintomas da doença nela há três dias. A Bridget ficava terrivelmente doente quando se levantava da cama. Fui dar com ela a vomitar nas traseiras
do estábulo das vacas e eu... - A idosa interrompeu-se muito corada. - Até tenho vergonha de vos dizer qual foi a minha desconfiança, cheguei ao ponto de acusar
a minha pobre menina, mas foi então que a Bridget caiu no chão vítima de um ataque horrível.
- A sério?
- Não tardou a ficar bastante claro que não se tratava de uma maleita natural própria das mulheres, mas sim que era obra de uma qualquer bruxaria abominável.
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Bridget arqueou as costas e começou a guinchar como se estivesse a confirmar as palavras da avó, enquanto abanava a cabeça de um lado para o outro.
Meg agarrou-lhe a cabeça para a impedir de continuar a abaná-la freneticamente.
- Bridget. Bridget Tillet. Abre os olhos e olha para mim.
A rapariga contorcia-se, tentando soltar-se das mãos de Meg. Quando esta repetiu a ordem que lhe tinha dado, mas num tom mais firme, os olhos de Bridget abriram-se
lentamente. Meg fitou com fixidez os olhos azuis, sem desviar o olhar do dela.
Os olhos dela eram extraordinariamente cristalinos, sem nada que os toldasse além do medo e de uma expressão de desafio. Desde que era criança que Meg tinha aprendido
a arte das mulheres sábias, que lhes era transmitida desde a Antiguidade, de ler olhos. Sentia que havia perdido alguma da sua apetência à medida que ia ficando
mais velha, mas Bridget Tillet era uma rapariga simples do campo. Não possuía a matreirice da loucura, nem a astúcia necessária para impedir que Meg lhe lesse os
pensamentos.
Frustrada por esta estar a perscrutá-la daquela maneira, Bridget virou a cabeça para o lado, soltando um uivo de protesto quando Meg afastou o cobertor ainda mais
para trás para poder examiná-la.
A camisa de noite de Bridget estava encharcada de suor, deixando ver os contornos do corpo. De facto, parecia haver uma pequena protuberância na região do abdómen.
Meg passou as mãos suavemente, mas com firmeza, por cima do inchaço. Bridget contorceu-se ao sentir as mãos dela, esforçando-se por agarrar a coberta.
- Grand-mère! Socorro. Faz com que ela pare. Sidonie agarrou a mão da neta, apertando-a com força.
- Estou aqui, meu amor. O que é que te dói, querida? Diz-me onde é que te dói.
- Dói-me em todo o corpo. Tenho muitas dores e estou a arder! A velha mère Poulet está a atormentar-me tanto. Ela jura que nem sequer a Senhora da Ilha Encantada
poderá salvar-me. Não ouves o horrível riso cacarejado dela, grand-mèré?
- Não. Oh, meu pobre anjo!
Pobre diabo teria sido uma descrição mais adequada para classificar Bridget Tillet, pensou Meg. Engoliu o comentário pouco abonatório, percebendo
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que não teria servido de grande coisa. A rapariga andava a fingir que estava possessa, o que não fazia lá muito bem. Meg já se havia deparado com intrujonas muito
mais competentes. Todavia, o papel que Bridget estava a desempenhar era o suficiente para aterrorizar os crédulos aldeões de Pernod, podendo fazer com que uma idosa
inofensiva fosse enforcada por bruxaria.
Tinha uma vontade quase irreprimível de agarrar Bridget pelos ombros, sacudindo a impostora imbecil até ela confessar, mas isso não remediaria a situação. Se confrontasse
Bridget, chamando-a de mentirosa, era possível que a rapariga se virasse contra Meg, dizendo que ela era uma bruxa e que estava de conluio com a mère Poulet para
a atormentarem. Meg compreendia que, a fim de arrancar a verdade a Bridget, teria de empregar métodos mais subtis, além de que teria mais possibilidades de conseguir
isso se estivesse sozinha com a jovem.
Voltou a tapar a rapariga com a coberta.
- Infelizmente - começou a dizer -, parece-me que esta pobre garota está amaldiçoada. Felizmente, sei como anular o poder que a bruxa exerce sobre ela. Existe um
poderoso feitiço que posso usar, mas vou precisar de ajuda.
- Tudo o que for preciso - apressou-se Sidonie a dizer. - Seja o que for para salvar a minha neta.
- Preciso que vá lá abaixo e que ponha água a ferver numa chaleira. E também... também vou precisar de alguns alhos. Uma grande quantidade que é necessário cortar.
- Alhos?
- Sim - respondeu Meg solenemente. - Para o meu feitiço.
A idosa mostrou-se confusa com o pedido dela, mas apressou-se a descer as escadas para fazer o que ela lhe pedira. Quando Sidonie saiu do quarto, Meg viu Denys Brunel
de relance, que andava de um extremo ao outro do patamar. Lançou um olhar de angústia na direção da alcova.
Meg considerou que o rapaz mostrava um interesse desmesurado pelo que se estava a passar, o que era invulgar em alguém que afirmava ser apenas um amigo da família
Tillet. Na sua mente começou a formar-se uma ideia que não era isenta de riscos, mas tinha esperança de que fosse bem-sucedida.
Saiu para o corredor e olhou para o rapaz com um sorriso tranquilizador, mas recusou-se a responder às suas ansiosas perguntas. Mandou-o ao
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piso térreo para chamar Seraphine. Quando a amiga entrou no quarto, Meg fez-lhe uma pergunta.
- Como é que estão as coisas lá em baixo?
- Suponho que bastante bem - respondeu Seraphine num tom taciturno. - Ainda ninguém saiu para ir buscar a mère Poulet, mas isso deve-se menos aos meus encantos do
que ao diabo daquele físico inglês. Ele está a ser muito generoso com o seu dinheiro, a pagar vinho para toda a gente.
E sem dúvida que não tardaria que toda a gente da aldeia ficasse com as ideias baralhadas, pelo que as pessoas seriam ainda mais perigosas. As paixões manifestavam-se
sempre com mais intensidade quando eram alimentadas por bebidas alcoólicas. Diabos levassem o raio do homem, pensou Meg para consigo. Tinha de resolver aquela situação
o mais rapidamente possível.
com poucas palavras concisas, disse a Seraphine o que precisava. Esta franziu a testa numa expressão de desconcerto, mas acabou por encolher os ombros, apressando-se
a fazer o que ela lhe pedira.
Em seguida, Meg extinguiu a chama das velas, deixando apenas uma acesa. Sem a presença da avó para assistir ao seu desempenho, Bridget tinha sossegado. Puxara a
coberta até ao nariz, observando atentamente todos os movimentos de Meg
- O que é que tencionais fazer? - perguntou a rapariga.
- Lançar um feitiço que te cure.
- E vai doer? - Era a pergunta de uma criança assustada. Meg fitou os olhos muito abertos e desconfiados de Bridget e a muita vontade que tinha de lhe apertar o
gasganete abrandou um pouco.
- Não, o meu feitiço, apesar de ser muito poderoso e forte, vai aliviar o teu sofrimento e clarificar as tuas ideias.
Entretanto, Seraphine voltou ao quarto, entregando a Meg o objeto que esta lhe pedira que fosse buscar. Seraphine estava a morrer de curiosidade, ansiando por poder
ficar a fim de ver o que Meg se preparava para fazer. Mas esta empurrou a amiga para fora da alcova, dizendo-lhe que fosse para baixo.
- Estás pronta? - perguntou à rapariga.
- Calculo que sim - murmurou Bridget. - E para que é que são os alhos e a água a ferver? Não devíamos esperar que a grand-mère volte com essas coisas?
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- Hum... não - respondeu Meg. - Só vou precisar dos alhos mais tarde. É melhor que comecemos de imediato, não concordas?
Ainda que com relutância, Bridget aquiesceu com um acenar de cabeça, muito embora fosse mais do que evidente que temia o que se iria passar.
Meg posicionou-se diante da única vela que restava, bem consciente do clarão fantasmagórico que a chama da vela projetaria no seu rosto. Perscrutou a sua mente à
procura de uma recordação que só muito raramente visitava, a de Cassandra Lascelles debruçada por cima da sua bacia de cobre fumegante.
Meg tinha visto muito pouco em termos de amor, sabedoria ou orientação na falecida mãe. Mas havia uma coisa que Cassandra lhe ensinara: como desempenhar o papel
de uma bruxa.
Meg abriu os braços completamente para trás e começou a entoar um encantamento na língua da Antiguidade das Filhas da Terra, há muito perdida para o mundo atual.
Entoava as palavras ao acaso, pelo que o que dizia não passava de uma salgalhada.
Bridget baixou a coberta até ao queixo, os olhos muito azuis e arregalados enquanto observava Meg, que ergueu um punho fechado bastante acima da chama da vela, abrindo
os dedos vagarosamente. Recomeçou a falar em francês, dirigindo-se a Bridget.
- Tenho aqui um anel de cabelo que foi cortado da cabeça do vosso inimigo. Se este for o cabelo da verdadeira bruxa que vos atormenta, quando este anel de cabelo
for queimado na chama deste círio consagrado, estareis livre da praga que vos foi rogada.
Bridget ergueu-se um pouco, mal respirando enquanto Meg chegava o anel de cabelo à chama da vela, murmurando mais algumas palavras que não faziam o mínimo sentido,
tendo de fazer um grande esforço para não franzir o nariz ao sentir o cheiro desagradável do cabelo a ser queimado.
Chegou o pequeno caracol de cabelo à chama, aproximando-o tanto que quase ficou com os dedos queimados. Afastou a mão de repente.
- Já está - afirmou. - O feitiço foi anulado.
- Parece-me que me estou a sentir melhor - disse Bridget, soltando a respiração.
- De verdade? Porque, se cometi algum erro, se o cabelo que queimei não era o da verdadeira bruxa...
- Oh, sim. Só podia ser do cabelo dela. Vede. Até já sou capaz de me sentar. - Bridget contorceu-se para se sentar, apoiando as costas
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a uma almofada. - Não tenho palavras para vos agradecer, milady. Espero que agora fique boa, mas o que é que poderá impedir a mère Poulet de me rogar outra praga?
- A mère Poulet? - perguntou Meg, fingindo uma expressão confusa. - Ela não era a bruxa que andava a atormentar-te. Não foi o cabelo dela que queimei.
- Então... então de quem era?
- O cabelo era do Denys Brunel.
- Do Denys? - Bridget ficou com a respiração arfante, abanando a cabeça. - Não, não pode ter sido ele. Era a mère Poulet. Eu vi-a a pairar acima de mim no teto.
- Foi uma mera ilusão, conjurada por mestre Brunel. Ao que parece, ele é um jovem bruxo de extraordinária competência, mas não conseguiu enganar-me. Há muito tempo
que eu suspeitava dele. Mas agora tenho de ir dizer aos outros e tratar de fazer com que o rapaz seja preso por bruxaria.
com estas palavras, Meg encaminhou-se para a porta da alcova.
- Não! - gritou Bridget, atirando as cobertas para trás. A rapariga que afirmara estar demasiado enfraquecida para conseguir estar de pé, levantou-se do leito de
um salto. Correu atrás de Meg, agarrando-a por um braço.
- Não, não podeis acusar o Denys. Ninguém acreditará em vós.
- Claro que acreditarão. Todas as pessoas que se encontram na taberna terão visto que a minha amiga, Madame la Comtesse, cortou um anel do cabelo do Denys e também
viram que ela mo trouxe.
Os dedos da rapariga apertaram o braço de Meg com toda a força.
- Esse teste estúpido não prova nada. Absolutamente nada!
- Certamente que o Denys terá de ser examinado mais pormenorizadamente. Quando estiver preso, eles hão de despi-lo até ficar todo nu para poderem procurar marcas
de bruxaria. Quaisquer sinais ou sardas que encontrem, vão ter de os espetar com alfinetes.
- Parai com isso! - gritou Bridget. - O Denys nunca me faria mal nenhum. Ele não é nenhum bruxo.
- Tenho a certeza de que ele se mostrará relutante em admiti-lo, por isso serão obrigados a torturá-lo para que ele confesse.
- O quê!? Não, eles n... não podem fazer isso. - Bridget levou a mão à boca, parecendo que estava prestes a sentir-se mal.
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- Oh, isso é que podem! Ouvi dizer que a "bota" é extremamente eficaz. É uma espécie de torniquete de ferro que prendem à perna e depois apertam os parafusos até
os ossos ficarem esmagados. O Denys nunca mais será capaz de caminhar, mas isso não tem grande importância, uma vez que será enforcado assim que confessar, o que
será inevitável. Ninguém consegue suportar as dores excruciantes da tortura da "bota".
- Não! Não podem fazer-lhe uma coisa tão horrível. Não ao Denys.
- E porque não? - perguntou Meg, olhando-a com uma expressão implacável. - Não era isso que querias que fizessem à velha mère Poulet?
Os olhos de Bridget ficaram cheios de lágrimas.
- Ela é tão má, é uma bruxa velha que anda sempre a espiar. Ela viu-me com o Denys... - interrompeu-se, tapando a boca com o punho cerrado.
- E...? - encorajou Meg. - Ela talvez te tenha visto e ao teu jovem apaixonado a fazerem amor e ficaste com medo que ela contasse. Parece-te que essa é uma razão
suficientemente válida para quereres que essa pobre idosa morra? Em especial, quando não tardará que o teu segredo passe a ser do conhecimento de todos. - Meg fixou
o olhar na região do abdómen da rapariga. Bridget cruzou os braços, encostando-os ao ventre. As lágrimas começaram a correr-lhe copiosamente pelas faces.
- Eu não queria que ela morresse, apenas que desaparecesse. Nunca pensei que a matariam, mas sim que corressem com ela para fora da aldeia antes de ela poder contar
o que viu. A grand-mère apanhou-me a vomitar e começou a desconfiar. Ela e o meu pai ficariam tão zangados. Tive de inventar uma história qualquer, qualquer coisa
que os impedisse de descobrir o que se passava. Nunca foi minha intenção que as coisas fossem tão longe. Só precisava de mais tempo para decidir o que fazer. - A
voz de Bridget ficou embargada pelas lágrimas.
A rapariga deixou-se cair no chão, dobrando os joelhos, que encostou ao queixo. Ocultou o rosto neles, com os ombros sacudidos pelo choro convulsivo.
Meg tentou endurecer o coração face à rapariga, lembrando-se da desgraça e sofrimento que as suas mentiras poderiam ter causado. Mas ela parecia tão novinha e tão
atemorizada.
Meg ajoelhou-se ao lado de Bridget. Envolveu-a com um braço, inicialmente um pouco constrangida. Não tinha aprendido nada a respeito
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do amor maternal com Cassandra Lascelles, no entanto, Ariane Deauville ensinara-lhe muito acerca disso.
Meg puxou a jovem para junto de si, começando a embalá-la nos seus braços.
- Eu... eu não quis causar tantos problemas - disse a rapariga por entre fungadelas. - Eu... eu só estava com muito medo.
- Sei que sim.
- Nunca esperei que as coisas chegassem tão longe. Mas, depois de ter começado a fingir, não sabia como é que havia de parar.
- Felizmente, todo esse assunto ainda pode ser remediado se tiveres coragem para isso.
- Mas... mas não sei o que hei de fazer - retorquiu a jovem, continuando a chorar. - O que é que posso fazer?
- A coisa mais corajosa que podes fazer - replicou Meg com suavidade. - Dizeres a verdade.
A trovoada era atroadora, com o firmamento a abrir-se para dar saída a uma chuva torrencial. A chuva caía em cascata sobre a hospedaria e tão densa que obscurecia
a rua que atravessava a aldeia. Sir Patrick Graham demorava-se junto da janela, observando um relâmpago que rasgava o céu e iluminava a escuridão. Preferia ouvir
os sons da tempestade que troava no exterior do que o burburinho de vozes rudes que tinham enchido a taberna até há uma hora.
Misericordiosamente, a taberna estava vazia naquele momento. Quando se soube a verdade acerca do embruxamento da rapariga dos Tillet, os aldeões haviam recolhido
a suas casas atónitos, sem quererem acreditar no que tinham acabado de ouvir, qual exército que tivesse sido reunido para travar uma batalha que nunca chegou a ter
lugar.
O próprio Graham ficou perplexo com aquele desfecho. Quando Margaret Wolfe ajudou uma Bridget muito trémula a descer as escadas para fazer uma declaração, Graham
tinha esperado o pior, ou seja, que não tardariam a dar início a uma caça às bruxas e não haveria nada que ele se atrevesse a fazer para interferir. Pior ainda,
receava não ser capaz de impedir Armagil de tentar fazer isso. O seu amigo, naquela altura, já bebera em excesso.
À semelhança de todos os presentes, Graham sustivera a respiração quando Bridget Tillet começou a falar numa voz vacilante e um pouco a medo. Uma pessoa tinha de
se esforçar para conseguir ouvir o que a rapariga dizia, confessando a sua culpa. A afirmação de que estava embruxada havia sido um embuste, uma mentira para ocultar
o facto de estar grávida.
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Graham não conseguia imaginar a coragem de que Bridget precisara para encarar todas as pessoas da aldeia. Talvez a tivesse admirado por isso, não fosse estar disposto
a apostar o seu último xelim no facto de a fedelha não ser particularmente corajosa nem honesta. Tinha a certeza de que a extraordinária confissão da rapariga, fosse
de que maneira fosse, se devia à mulher de semblante sereno que se encontrava atrás de Bridget, com uma mão pousada no ombro dela.
Mas como diabo é que Margaret Wolfe havia conseguido aquilo? Era quase como se ela tivesse lançado um qualquer feitiço sobre a rapariga.
Depois da confissão de Bridget, tinham-se ouvido gritos de indignação e de cólera, em grande medida da parte da família da rapariga. Os demais aldeões haviam ido
para suas casas num passo vagaroso. Muitos deles teriam a dor de cabeça que acompanha uma ressaca no dia seguinte, graças à maneira liberal como Blackwood pagou
vinho a todos os que se encontravam na taberna.
Armagil fizera muito para animar o ambiente antes mesmo de a rapariga dos Tillet ter surgido para fazer a sua confissão. Voltando a encher copos e dando uma palmada
num ombro aqui e ali, dizendo uma graçola a este e àquele. Aqueles aldeões taciturnos e desconfiados, a dada altura, começaram a esquecer-se de que o físico era
tanto um estranho como um inglês em que não deviam confiar.
O que não surpreendeu Graham. Quando Armagil decidia dar-se ao incómodo, mostrava uma bonomia de que o próprio Graham carecia. Sir Patrick nem sequer era capaz de
se lembrar em que altura da sua vida é que perdera todo o gosto pelos prazeres de que os outros costumavam desfrutar, quando a sua existência passara a ser uma mera
questão de sobrevivência.
Atravessou a taberna, dirigindo-se para onde Armagil se sentava, à mesa mais afastada da lareira, como era hábito do médico. Blackwood sucumbira, finalmente, aos
efeitos do muito vinho que havia ingerido. Estava inclinado sobre a mesa com a cabeça apoiada num braço.
Se o amigo tinha um defeito, pensou Graham, era a tendência para abusar de bebidas alcoólicas fortes, mas não podia censurar Blackwood por isso. Supunha que cada
homem tinha de encontrar a sua própria maneira de embotar a lâmina afiada da memória, de lidar com os fardos impostos pelo passado.
- Meu pobre Gil - murmurou Sir Patrick. - Está na hora de ires para a cama, velho amigo. - Hesitou antes de tocar em Blackwood. Armagil
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podia ser perigoso se fosse despertado subitamente, em especial se estivesse a ter um dos seus pesadelos. No entanto, o físico ressonava de mansinho, mostrando uma
expressão fisionómica de uma serenidade tão rara em si que Sir Patrick o invejou. Se alguma vez conseguisse alcançar um tal estado de insensibilidade no fundo de
uma garrafa, Graham talvez se tivesse sentido tentado a experimentar fazer isso.
Naquele momento ouviu-se outro trovão quando a porta da hospedaria se abriu, dando entrada um homem jovem de feições grosseiras que bateu com a porta com brusquidão
depois de ter entrado. Empurrou o capuz para trás. Apesar de usar um manto de fazenda, estava encharcado até aos ossos, o cabelo de um tom acobreado agarrado à testa.
Alexander McMahon olhou ansioso para o lume que crepitava na lareira, mas o homem ao serviço de outrem sabia bem quais eram os seus deveres. Aproximou-se do seu
amo, cumprimentando Sir Patrick com um pequeno inclinar da cabeça.
- Monsieur.
Patrick retraiu-se. A maneira como Alexander torturava a língua francesa era penosa de ouvir e a informação que o homem lhe trazia era demasiado vital para que se
corresse o risco de ser mal compreendida. O estalajadeiro e a sua família haviam-se retirado para as cozinhas. Mesmo assim, Patrick olhou em volta de si cautelosamente.
A necessidade de levar Armagil para a cama ficou esquecida momentaneamente. Graham puxou o seu servo, aproximando-o mais de si e falando ao homem no dialeto escocês
dele.
- Do que é que te inteiraste? - perguntou autoritário. Alexander fez uma pausa para afastar o cabelo molhado da fronte.
- Fiz como me haveis dito que fizesse, Sir Patrick. Segui a senhora e a sua companheira quando saíram da estalagem.
- E...?
- Elas não foram muito longe. Há uma espécie de barracão nas traseiras da hospedaria. O estalajadeiro disse-lhes que podiam pernoitar aí, o que fez bastante contrariado,
na minha opinião. Parece-me que a feiticeira lhe causa mal-estar. Ao que tudo indica, ela produz esse efeito na maior parte das pessoas das redondezas. O que também
se reflete em mim - acrescentou Alexander estremecendo. - Dizem que essa senhora possui visão profética. Que os olhos dela conseguem penetrar na alma de um homem,
expondo todos os seus segredos.
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Se isso fosse verdade, pensou Patrick, era um talento extremamente perigoso numa mulher. Em especial, para um homem como ele que tinha tanto a esconder.
Quando se apercebeu de que seria forçado a procurar a Senhora da Ilha Encantada, não fazia a mais pequena ideia daquilo com que iria deparar. Talvez constatasse
que a famosa senhora não passava de um mito ou, se de facto existisse, provaria ser uma velha matreira de pele murcha e rugosa ou uma eremita louca, ou até mesmo
uma Circe, sedutora e sinistra.
A beldade alta e impudente, que se pavoneara tão descaradamente vestida com roupas masculinas, era a que parecia corresponder mais à descrição de uma lendária feiticeira
e não Margaret Wolfe, com a sua estatura baixa, expressão austera e maneira de ser despretensiosa.
Não obstante, tinha existido um momento no andar de cima, na alcova, em que ele tivera uma pequena amostra do poder de Margaret. Quando o olhar dela se prendeu no
dele, tinha sentido como que uma sacudidela. Sentira-se possuído de um estranho pressentimento, como se, nesse preciso instante, se tivesse forjado uma ligação entre
os dois, o fio da vida de ambos destinado a entrelaçar-se para o bem e para o mal.
Sir Patrick deslocou a mão da fronte para o peito, fazendo o sinal da cruz. O que era uma bênção que a sua longa jornada através do território de França lhe proporcionava.
Em Inglaterra, havia sido forçado a passar todas as horas em que estava acordado a ocultar a sua identidade e o que era. Mas, por fim, não era obrigado a ocultar
a sua fé religiosa.
- E agora, senhor? - perguntou Alexander, despertando Patrick dos seus pensamentos. O homem mais novo torceu a orla do manto para extrair alguma da água que o ensopava.
- Foi uma sorte do acaso que trouxe essa feiticeira até aqui, não é verdade? Agora já não precisamos de ir à sua procura a essa ilha maldita em que ela vive.
Alexander era um homem supersticioso. Tinha ouvido muitas histórias cheias de mistério acerca da ilha Encantada, em que se dizia que era um lugar encantado, um paraíso
para as bruxas. Tinha temido essa viagem, tendo despendido muito do seu dinheiro a comprar amuletos que o protegessem. Sir Patrick desejava poder dizer ao jovem
que podiam esquecer a Senhora da Ilha encantada.
Margaret Wolfe causava-lhe inquietação. Desejava poder deixar que ela voltasse para o isolamento da sua ilha, mas, quer lhe agradasse, quer não, ela tornara-se necessária
aos seus planos.
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- O que é que desejais fazer, Sir Patrick? - voltou a perguntar-lhe Alexander. - Tencionais abordá-la esta noite?
Patrick examinava a chuva que batia contra os vidros enquanto refletia. Era óbvio que Margaret Wolfe não iria a lado nenhum naquela noite. Ninguém, nem sequer uma
aclamada e poderosa feiticeira, se arriscaria a atravessar o canal durante um temporal daqueles. Era igualmente óbvio, com base no que ele tinha observado, que ela
não era nenhuma tola, aquela Senhora da Ilha Encantada. Iria ter de a abordar mais cautelosamente do que teria imaginado.
- Não - respondeu por fim, dando uma palmada no ombro do seu servo. - Vem ajudar-me a levar o doutor Blackwood para a cama e depois trata de te secares antes de
te deitares. Teremos muito tempo amanhã de manhã para falar com a Senhora da Ilha Encantada.
Sir Patrick era um homem paciente. Tinha esperado a sua hora, aguardando durante anos a fio para que a causa da justiça prevalecesse. Podia dar-se ao luxo de esperar
mais uma noite.
A trovoada começou a abrandar e o vento amainou, deixando apenas o cair contínuo da chuva. Meg estava à entrada do estábulo das vacas dos Tillet, com a cabeça encostada
à ombreira de madeira. Não se tinha apercebido da muita tensão que se apoderara de si desde que havia saído da ilha Encantada. Só agora, que tinha oportunidade de
se descontrair embalada pelo bater monótono e calmante da chuva, é que sentia os músculos doridos.
De súbito, sentiu-se exausta, embora devesse começar a mexer-se para ajudar Seraphine a dispor os fardos de palha e os cobertores que Sidonie lhes fornecera para
improvisarem a cama em que dormiriam naquela noite.
Mas Seraphine já havia tratado disso e agora decidira travar conhecimento com a outra ocupante do barracão, uma vaca leiteira malhada com uns olhos castanhos enormes.
A condessa, que era capaz de se comportar com tanta sobranceria e ferocidade, afagava o focinho da vaca enquanto lhe ronronava suavemente, mostrando uma ternura
muito raramente revelada a qualquer criatura que caminhasse sobre duas pernas.
Quando se apercebeu de que Meg a observava, parou de imediato, mostrando acanhamento. Juntou-se à amiga à entrada do barracão.
- Parece que o temporal passou por nós, apenas muito barulho e alarido depois de tudo dito e feito.
Meg compreendeu que Seraphine se estava a referir a muito mais além do estado do tempo.
- Sim, mas as coisas podiam ter enveredado por um caminho muito diferente.
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- É só graças a ti que isso não aconteceu - retorquiu Seraphine, encostando-se ao lado oposto da ombreira. - O mestre Tillet poderia ter-te mostrado alguma gratidão
por teres persuadido a filha a confessar a verdade. Pelo menos, poderia ter-te proporcionado acomodações mais confortáveis para pernoitares.
- Eu expus as fragilidades da Bridget. É muito raro que as pessoas nos agradeçam por isso. As mais das vezes, preferem o conforto de uma mentira. Além disso, não
me importo de pernoitar no estábulo das vacas. É quente e seco.
E mais longe do aposento na estalagem onde os viajantes ingleses estavam alojados. Meg esfregou o antebraço onde tinha a nódoa negra, dorido por Blackwood o ter
apertado com uma força férrea. Contudo, não se sentia terrivelmente perturbada ao recordar-se do comportamento grosseiro do físico. Por alguma razão inexplicável,
era o outro, Sir Patrick dos olhos tristes, que a deixava mais inquieta.
- Foste demasiado indulgente e generosa para com a fedelha tola dos Tillet - disse Seraphine. - Só me apetecia esbofeteá-la.
- Ela tinha a avó para isso. A única coisa que salvou Bridget de uma grande tareia foi o facto de estar à espera de criança.
- Duvido muito que o apaixonado dela tenha a mesma sorte.
Meg concordou com um suspiro de cansaço. A última vez que vira Denys Brunel foi quando o rapaz saiu da hospedaria a correr como se levasse fogo no rabo, com o irmão
de Bridget a persegui-lo de perto.
- O Denys pareceu ser muito ligeiro de pés - continuou Meg.
- E esperemos que a chuva torrencial tenha arrefecido a fúria de Osbert. Estou em crer que o pior já passou, mas logo de manhã gostaria de ir procurar a mère Poulet.
Sabes como é a partir do momento em que uma pessoa é apelidada de bruxa. É possível que ela ainda corra perigo. Temos de a convencer a acompanhar-nos para se refugiar
na ilha Encantada, onde estará em segurança.
- O que deve ser bastante divertido. Tentar persuadir uma idosa meio desarranjada do juízo a abandonar a aldeia que considera o seu lar. O mais certo é tentar arrancar-nos
os olhos com as unhas ou açular a galinha contra nós.
- Não obstante...
- Não obstante, tens razão - atalhou Seraphine, fazendo uma graciosa vénia. - Como sempre, submeto-me à vossa sensatez, minha Senhora da Ilha Encantada, e esforçar-me-ei
por cumprir as vossas ordens.
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- Mulher ridícula - disse Meg rindo-se.
Seraphine endireitou-se, o sorriso a abandonar-lhe os lábios.
- Correste um tremendo risco ao vires aqui, Meg. Independentemente de como as coisas correram bem desta vez, sabes muito bem como é que estas coisas podem dar para
o torto.
- Sim, sei - murmurou Meg. Habitualmente, tudo começava de uma maneira tão simples, tal como acontecera ali, em Pernod. Uma criança que se atrasava para a ceia,
uma jovem que tinha sido vista a fazer uma tolice ou um rapaz apanhado a descurar as suas tarefas, esperando conseguirem fugir ao castigo ao pensarem numa desculpa
qualquer. Ou, em outras circunstâncias, era alguém que adoecia misteriosamente, uma maleita que estava muito além da capacidade de curar do ignorante médico local.
"Não foi por minha culpa que cheguei atrasado, mãezinha. Fui embruxado."
"As couves não secaram por eu me ter esquecido de as regar. Foram amaldiçoadas por uma bruxa."
"A sua mulher não morreu por causa da poção que eu lhe dei. Sou um físico muito competente. Mas ninguém pode lutar contra o poder de uma bruxa."
As mentiras espalhar-se-iam e os rumores começariam a propagar-se, pelo que se procuraria alguém a quem assacar culpas. De uma maneira geral, isso recaía sobre uma
pobre e velha pedinte como a mère Poulet, muitas vezes sem terem o juízo todo. Sob as dores da tortura, desfiará as suas próprias histórias, acusando outras de bruxaria.
O que teria começado como uma pequena mentira, adquiria contornos de frenesim, como um carvão incandescente que se deixasse cair numa pilha de palha seca. Meg tinha
ouvido histórias de aldeias quase despovoadas de mulheres até o bom senso prevalecer, acabando com a tortura, os julgamentos e os enforcamentos.
Entretanto, Seraphine continuava a queixar-se de Bridget Tillet.
- Que rapariga tão estúpida. Mas em que é que ela estaria a pensar?
- Ela não pensou. Estava demasiado atemorizada. Não que eu esteja a desculpar o comportamento dela. Mas decerto que serás capaz de imaginar o que deve ser para uma
rapariga que não é casada engravidar, como ficará desgraçada. A família e todos os aldeões podiam virar-se contra ela, expulsando-a da aldeia. Não é difícil perceber
como qualquer jovem se sentiria vulnerável, indefesa e aterrorizada nessas circunstâncias. Precisamente o género de rapariga que a minha mãe costumava...
Meg interrompeu-se. Era muito raro que falasse de Cassandra Lascelles com quem quer que fosse, nem sequer com a sua boa amiga Seraphine,
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que não disse nada, limitando-se a observá-la enquanto esperava que Meg continuasse, o que ela fez depois de ter engolido em seco.
- A minha mãe costumava aproveitar-se de raparigas desesperadas como a Bridget, usando as situações aflitivas em que se encontravam para as persuadir a juntarem-se
à Irmandade da Rosa de Prata. Ela oferecia-lhes proteção, libertando-as da vergonha e das necessidades por que passavam, chegando ao ponto de lhes prometer que teriam
riqueza e poder mais cedo ou mais tarde.
"Tudo o que lhes pedia em troca disso era um juramento de lealdade selado com sangue. Até podiam levar as crianças recém-nascidas, desde que fossem meninas. Bem
vês, para a minha mãe, os homens, qualquer que fosse a sua idade, não tinham a mínima utilidade, por isso, se alguma dessas raparigas desse à luz um menino, este
tinha de morrer. O pobrezinho era abandonado na encosta de uma colina, exposto aos elementos e a morrer à fome. - Meg sentiu um ardor nos olhos. - Foram muitas as
vezes em que me perguntei quantos é que teriam morrido dessa maneira, a chorarem pelo consolo de mães que nunca chegavam, a gritarem até a voz lhes faltar.
Seraphine passou um braço por cima dos ombros de Meg, que encostou a cabeça ao ombro da amiga mais alta. A chuva continuava a cair abundantemente, sem que Meg visse
devido às lágrimas.
- E sabes o que era o pior de tudo, Phine? - perguntou quando se recompôs. - A minha mãe cometia estes horrores em meu nome. Megera, a sua Rosa de Prata, como ela
insistia em chamar-me, a filha que ela esperava que viesse a ser uma feiticeira poderosa um dia, conquistando o mundo.
- Eram os sonhos de uma louca - retorquiu Seraphine, abraçando-a. - Eras apenas uma criança, tão inocente como qualquer dessas raparigas que a Cassandra aliciava
com as suas mentiras. Não eras responsável por nada do que ela fazia, além disso, já não és a Rosa de Prata. Agora és a Senhora da Ilha Encantada. O passado está
tão morto como a tua mãe, Meg. Tens de deixar de pensar nisso.
Meg limpou as lágrimas às costas da mão, desejando que as coisas pudessem ser assim tão simples.
- Pelo menos, a situação terá um desfecho mais risonho para a Bridget Tillet do que para qualquer dessas raparigas que foram vítimas das mentiras da minha mãe.
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"Monsieur Tillet está zangado com a filha de momento, mas acabará por perdoar a Bridget. É possível que o Denys Brunel não seja o tipo de marido que ele teria desejado
para a filha, um pobre pescador que nem sequer tem uma pequena casa que possa chamar de sua, mas estou confiante em que ele dará o seu consentimento para que possam
casar, o que fará para não ver a filha ainda mais desgraçada. Os banhos serão apregoados e eles casarão muito felizes.
- Ou, pelo menos, forçados a isso.
- Não me parece que seja assim. Acho que o Denys e a Bridget gostam genuinamente um do outro. Tenho a certeza de que a Bridget o ama com todo o seu coração.
- Ela ama a ilusão do seu jovem apaixonado, a pessoa que ela acredita que ele é. Talvez não seja boa ideia perguntar-lhe como é que se sentirá daqui a dez anos.
Precisamente o período de tempo em que Seraphine fora casada. Meg apercebeu-se do traço de amargura que transpareceu da voz da amiga. Quando olhou para ela, Seraphine
afastou-se, cruzando os braços diante do peito.
- Amanhã de manhã voltarei para a ilha Encantada - disse Meg.
- E tu, o que é que tencionas fazer?
- Que pergunta... irei contigo. Que outra coisa é que pensaste que eu faria?
- Acho que devias voltar para junto do teu marido.
A única resposta de Seraphine foi uma sonora gargalhada. Tentou refugiar-se mais para o interior, envolto em sombras, do barracão, mas Meg agarrou-a pelo braço.
- O Gérard ama-te tanto como tu o amas.
Seraphine soltou-se da mão dela.
- Não sejas uma romântica idiota, Meg. O casamento não tem nada a ver com amor, em especial entre as famílias da nobreza. É exclusivamente um contrato mercenário,
uma questão de permutas. O homem troca o seu título e propriedades pelo dote de uma mulher e o uso do seu útero.
- Mas não foi assim que as coisas se passaram contigo, Phine, do que estás bem ciente.
- Portanto, eu era uma tolinha deslumbrada quando conheci o Gérard. Agradeço-te por me teres lembrado isso.
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- Alguém precisa de o fazer - começou Meg a dizer, mas Seraphine interrompeu-a com brusquidão.
- Pára com isso, Meg. Não digas mais nada. Ainda que eu admita que em tempos senti alguma coisa pelo Gérard, isso acabou. Ele apoderou-se do meu filho, enviou o
meu pequeno François para casa do seu grande amigo, o marquês, para ser um pajem. E agora o meu rapazinho está morto.
- Foi por causa de um surto de varíola, o que pode acontecer em qualquer lugar. O Gérard não podia ter previsto uma coisa dessas. Ele ficou tão arrasado pelo desgosto
como tu.
Seraphine abanou a cabeça numa negativa exasperada.
- O François continuaria vivo se eu tivesse podido mantê-lo em casa, junto de mim, como era meu desejo.
- Mas não é costume entre os membros da nobreza enviar os filhos para serem criados noutras casas nobres?
- Sim, é - confirmou Seraphine com um trejeito de azedume nos lábios. - Para que o rapaz tivesse uma educação como deve ser, prepará-lo para ocupar o seu lugar no
mundo, para que estabelecesse relações importantes e valiosas. Mas desde quando é que o Gérard se importa com isso?
"Se o homem tivesse um mínimo de ambições, podia ter ido para Paris para que fosse nomeado para um lugar na corte. O meu marido é um homem inteligente, além de ter
a filiação religiosa certa para cair nas boas graças do rei, ao contrário do meu próprio pobre pai.
Aquilo era outra fonte de grande amargura para Seraphine. O seu pai, o capitão Nicolas Remy, tinha estado ao serviço do rei durante muitos anos, muito antes de sua
majestade ter passado a ser Henrique IV de França. O capitão Remy lutara por Henrique quando este era apenas o monarca do pequeno principado de Navarra, o baluarte
de uma nova religião, a fé huguenote.
Mas quando Henrique teve oportunidade de ascender ao trono de França, agarrou-a com unhas e dentes, ainda que isso significasse que teria de abandonar a fé religiosa
dos seus leais súbditos huguenotes.
- Paris vale uma missa - afirmara o rei naquela sua maneira espirituosa. - O rei atraiçoou o meu pai ao repudiar a nossa religião - acrescentou Seraphine. - Além
disso, eu também atraiçoei o meu pai quando desposei um católico.
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- Não acredito que o teu pai tenha considerado a situação sob esse prisma - retorquiu Meg. com base no que conhecia do capitão Remy, achava que o homem era de uma
honradez a toda a prova, leal à sua pátria e religião pelas quais se batera, contudo, sob muitos aspetos, era como o seu rei, um homem moderado e não um fanático
religioso.
Durante a sua juventude, Seraphine mostrara-se muito mais aguerrida na defesa da sua nova religião. O facto de ela ter abdicado das suas convicções religiosas para
passar a perfilhar o catolicismo, tinha sido um testemunho do muito amor que dedicava a Gérard. Era muito raro que Seraphine cedesse perante quem quer que fosse.
- O teu pai sempre admirou e respeitou o Gérard, tal como tu - recordou-lhe Meg.
- Isso aconteceu quando eu pensei que partilhávamos os mesmos sonhos e ambições. Na minha qualidade de mulher, sabia que nunca atingiria nada de significativo. Todavia,
podia ter ajudado o Gérard a tornar-se importante e poderoso, a espécie de homem que poderia deixar a sua marca no mundo.
"Mas Monsieur le Comte nunca deu nenhuma importância a nada que não fosse levar uma existência tranquila no campo, a tratar dos assuntos da sua propriedade, trabalho
que um feitor de confiança poderia ter feito tão bem como ele. No que lhe diz respeito, o Gérard podia muito bem ter sido um camponês, o que nos dá a ideia do que
ele se importa com o que se passa em França para lá dos seus hectares de terra.
"Mas eu vi algo de diferente no meu filho. Apesar de muito novo, havia uma centelha de grandeza no François. Mas agora ele já não se encontra entre nós, do que eu
sou mais culpada do que o próprio Gérard. Se eu me tivesse dado ao trabalho de aprender as artes de curar com tanto afinco como aprendi esgrima... - Seraphine interrompeu-se,
mordendo o lábio inferior enquanto os olhos ficavam rasos de água.
Mas recusou-se a verter uma única lágrima. Meg perguntou-se se Seraphine alguma vez se teria permitido chorar verdadeiramente pela morte do filho. Conhecendo-a como
conhecia, Meg duvidava que isso tivesse acontecido. Tocou na mão da amiga.
- A morte do François não foi por culpa tua nem por culpa do Gérard. Por vezes, nem todas as capacidades de curar, nem todos os cuidados do mundo, são suficientes
para proteger uma criança...
- Portanto, serias como aquele padre, dizendo-me o quê? Que a morte do meu filho foi por vontade de Deus? Uma questão de fé? Seja como for, que conhecimentos é que
poderias ter acerca disso? Nunca tiveste um filho, Meg, e é muito provável que nunca venhas a ter.
Meg retraiu-se como se tivesse sido agredida, afastando a mão da de Seraphine, que, de imediato, se mostrou contrita.
- Oh, meu Deus, perdoa-me, Meggie. Não tive a intenção de te magoar. Sabes como é que eu sou quando estou a sofrer, como uma loba ferida a rosnar e a atacar toda
a gente. - Pegou na mão de Meg, que apertou. - Perdoa-me.
- Não há nada a perdoar. Só desejava ter alguma poção ou bálsamo que pudessem curar a tua dor.
- Temo que não exista nenhuma cura mágica para o desgosto. Somente a passagem do tempo, ou assim me dizem. - Seraphine largou a mão de Meg, o seu semblante a ensombrar-se
outra vez. - O Gérard tinha outra solução. Ele era da opinião de que devíamos tentar ter outro filho. Como se eu não tivesse tentado dar-lhe outros herdeiros. Tenho
as
sepulturas de três nados-mortos que comprovam isso mesmo. O facto de François ter conseguido viver além da sua infância parecia ter sido um milagre. Não me parece
que uma mulher tão fraca e malévola como eu voltará a ser agraciada com essa bênção.
- Não és malévola nem tão-pouco fraca. Tens um coração capaz de amar incondicionalmente, além de seres a mulher mais forte e determinada que conheço.
- É o que tu pensas, Meg, mas, verdade seja dita, sou uma miserável cobarde. Não sou capaz de suportar a perspetiva de voltar a sepultar outra criança. Eu disse
ao Gérard que devia pôr-me de lado e que encontrasse outra noiva mais jovem e fértil. Se ele subornasse um número suficiente de membros da Igreja, tenho a certeza
de que o nosso casamento poderia ser anulado. Feito isso, eu podia retirar-me para um convento, passando a levar uma existência de serena contemplação e a adquirir
conhecimentos.
Foi por pouco que Meg não se engasgou ao imaginar Seraphine como uma freira. Seria como colocar uma leoa num cercado cheio de ovelhas. A própria Seraphine não tinha
consciência do quanto essa noção era ridícula. Os lábios tremeram-lhe e, assim que o seu olhar se cruzou com o de Meg, desatou a rir. A amiga não pôde impedir-se
de juntar o seu riso ao dela. O riso era salutar e deu a Seraphine a oportunidade de limpar uma lágrima furtiva ao canto do olho.
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- Talvez eu não tenha sido talhada para uma vida monástica - admitiu. - Mas o que é verdadeiramente triste é eu pensar que também nunca fui talhada para ser uma
esposa e mãe. Não faço a mais pequena ideia daquilo para que fui talhada.
- Possuis tantas qualidades maravilhosas. És tão destemida, cheia de vivacidade e tão inteligente.
- Ah, mas ambas sabemos que eu estaria muito melhor se não possuísse essas facetas de caráter. Ser arguta é sempre mais uma maldição do que uma bênção. A inteligência
nunca é valorizada numa mulher.
- É sim, na ilha Encantada. É muito frequente que eu pense na noite da escolha, quando a Ariane me designou para sua sucessora. Mas tu eras a sobrinha dela. Se eu
nunca tivesse ido para a ilha Encantada, certamente que terias sido tu a escolhida, pelo que talvez tivesses sido muito mais feliz.
- Não sejas absurda, Meg. A Ariane é demasiado sensata para me ter escolhido. Não nego que a minha tia me ama, mas reconhece os meus defeitos muito melhor do que
tu. Sou uma criatura impulsiva que perde as estribeiras muito facilmente, além disso não possuo nenhum dos teus dotes para curar. Eras tu quem estava destinada a
ser a Senhora da Ilha Elncantada. És uma verdadeira Filha da Terra, satisfeita com a tua vida tranquila, que te contentas em passar os dias a cultivar as tuas ervas
medicinais e, sempre que podes, com o nariz enfiado nos livros e a ensinar os conhecimentos da Antiguidade aos outros. A paz e a segurança que esta ilha te proporciona
são tudo o que sempre almejaste.
"Quanto a mim... - Seraphine encolheu os ombros. - Estou em crer que teria sido bem melhor para mim se tivesse nascido homem. Teria tido liberdade para viajar, para
ser um soldado ou para ocupar um posto importante na governação do reino. Quem sabe se não teria sido capaz de um feito meritório antes de morrer. Ou talvez eu esteja
destinada a ser apenas uma das pessoas infelizes que vivem numa permanente inquietação, sem nunca estarem satisfeitas com a sua existência.
- Oh, Phine - começou Meg a dizer, mas Seraphine cortou-lhe a palavra com um sorriso rápido.
- Não, peço desculpa, Meggie. Nunca foi minha intenção sobrecarregar-te com as minhas frustrações, nem tão-pouco preocupar-te. Já devias ter percebido que eu estou
sempre a arengar e a dizer uma data de disparates, especialmente quando estou cansada. Está na hora de dormirmos um pouco.
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Seraphine deu meia-volta, dando a conversa por terminada. Meg ficou a olhar para ela, sentindo um misto de afeto e frustração, com a sensação de que havia muita
coisa que ficara por dizer, embora não fizesse ideia da natureza do que não fora dito.
com certeza que tinha obrigação de fazer ou pensar em alguma coisa que pudesse serenar o espírito conturbado da amiga. Meg dava voltas e mais voltas à cabeça, como
fazia frequentemente, esforçando-se por recordar o que Ariane teria feito ou dito em circunstâncias semelhantes.
Mas tudo o que lhe ocorria ao pensamento era algo que Ariane lhe dissera numa tarde em que tinha estado a ensiná-la a preparar a infusão de uma poção para combater
as infeções em ferimentos. Ariane havia desviado o olhar, que mantivera na substância que reduzia a pó no almofariz com o pilão.
"Posso ensinar-te muitas coisas, minha querida. Como tratar ossos fraturados, como combater febres, suturar golpes, ajudar uma mulher durante as dores do parto.
Mas quando fores a Senhora da Ilha Encantada, as pessoas procurar-te-ão para que as aconselhes e que as ajudes a resolver os problemas do coração. com mais frequência
do que desejarias, não poderás indicar-lhes qualquer solução. Tudo o que poderás fazer é ouvir com simpatia e compaixão. Não podes considerar as adversidades dos
outros como se fossem tuas, até mesmo o sofrimento daqueles que te são queridos. Existirão ocasiões em que terás de te distanciar, deixando que sejam os outros a
encontrar os seus próprios meios de cura."
"Mas como é que eu saberei?", perguntara-lhe Meg ansiosamente. "Como é que saberei quando devo tentar ajudar e quando não devo interferir?"
Ariane sorrira-lhe com uma expressão de pesar.
"Ah, minha querida, isso é uma coisa que não posso ensinar-te. Vais ter de aprender isso por ti própria."
Meg suspirou quando se deitou na cama de palha ao lado de Seraphine, que já dormia a sono solto. Era algo que Meg sempre invejara à amiga, a capacidade que ela tinha
de fechar a sua mente a pensamentos dolorosos e às preocupações. Era capaz de adormecer assim que a sua cabeça tocava na almofada, era como extinguir a chama de
um pavio.
Até mesmo a vaca já se tinha aquietado, tendo deixado de se mexer na sua estrebaria. Só Meg é que se mantinha acordada, fixando o olhar nas vigas do telhado, revendo
em pensamento a conversa que havia tido com Seraphine, com a sensação de que, fosse de que maneira fosse, tinha faltado à amiga.
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Quando Seraphine chegou à sua ilha, Meg acolhera-a de braços abertos. Tinha ficado consternadíssima quando soube que ela deixara o marido, mas acreditara que tudo
o que Seraphine precisava era de algum tempo em tranquilidade para poder refletir e curar as feridas da alma.
Mas isso tivera lugar há cinco meses e Seraphine não mostrava quaisquer indícios de estar a lidar com as suas preocupações. Muito simplesmente, a mulher não sossegava
durante o tempo suficiente para poder refletir no que quer que fosse.
Se fosse mais corajosa e firme, pensou Meg, ter-se-ia arriscado a incorrer na ira de Seraphine, recambiando-a de volta para junto do conde. Não obstante todas as
veementes afirmações, Meg estava convencida de que a amiga continuava a amar o marido.
E porque é que não haveria de estar? Gérard Beaufoy era um homem generoso e compassivo. Ele oferecera a Seraphine muito mais além de um título e riqueza. Gérard
tinha levado para o casamento uma estabilidade de que Seraphine havia precisado para contrabalançar a sua natureza impulsiva e irrefletida.
Gérard possuía exatamente os atributos que a própria Meg teria desejado num homem que fosse seu marido. Isto é, se alguma vez se atrevesse a pensar num possível
matrimónio. Mas Meg apercebera-se, quando ainda era muito nova, dos perigos que se corria quando se abria o coração para alguém.
Ainda era uma garota quando tinha tido a sua primeira paixoneta por um jovem que o pai contratara para lhe ensinar música. Mas Alexander Naismith provara ser tão
traiçoeiro como era bem-parecido. Ele tinha tido conhecimento do sinistro legado que Meg herdara da mãe, pelo que o seu único interesse havia sido a aquisição de
todos esses perigosos segredos.
A paixoneta de Meg por ele quase lhe custara a sua própria vida, bem como a do pai e da madrasta. Tinham decorrido muitos anos até Meg voltar a confiar num homem.
Não até... Felipe.
O mero nome dele trazia-lhe à memória más recordações, mas já havia passado tempo suficiente para que a imagem do seu rosto e a recordação do que sentira nos seus
braços mais não fossem do que uma memória indistinta, o que era pelo melhor. A dor já desaparecera, mas a cicatriz perdurava, formando um escudo que impedia o acesso
ao seu coração.
Meg virou-se de lado, recordando as palavras de Seraphine que lhe ecoavam no pensamento.
"Estavas destinada a ser a Senhora da Ilha encantada... contente com a tua existência pontuada pela tranquilidade. A paz e a segurança que esta ilha te proporciona
são tudo o que sempre almejaste."
Seraphine tinha razão, contudo existiam ocasiões em que Meg sentia que tinha pago um preço elevado pela sua segurança, o custo exagerado da solidão. Há quanto tempo
é que não sentia o toque das mãos de um homem? Tinham passado anos desde a última vez que fora beijada... até esta noite.
A sua mente pintava uma imagem nítida da maneira como Sir Patrick Graham a olhara e tinha levado a mão dela aos seus lábios. Recordou-se das linhas fortes das faces
e do maxilar, como se esculpidas a cinzel, o cabelo bastante ondulado, os olhos de um azul muito vívido, a suave curvatura dos lábios dele.
Era um homem extremamente belo e Meg teria de ter sido insensível como uma pedra para não ter sentido um frémito de atração. Ergueu a mão, tentando inspecioná-la
na escuridão, como se houvessem restado vestígios do beijo que Graham lhe dera nas pontas dos dedos. Mas a única coisa que descortinava eram as nódoas negras que
o doutor Blackwood lhe deixara no braço quando o apertou.
Tinha tido muito pouco tempo livre para poder refletir sobre a estranha conversa que ela ouvira entre os dois homens. Mas agora recordava alguns fragmentos, o que
fazia com que lhe fosse ainda mais difícil adormecer.
"Vamos, Gil", dissera Sir Patrick. "Não podemos dar-nos ao luxo de nos encontrarmos no meio do que quer que seja que atraia as atenções das autoridades locais."
Qual seria o significado dessas palavras? Que Graham e Blackwood estavam envolvidos numa qualquer atividade clandestina, viajando sem os devidos documentos? Talvez
fossem espiões ingleses ou fossem culpados de algum crime, ou quem sabe se ela não estaria a dar largas à sua imaginação.
Era muito natural que dois ingleses que viajassem pelo estrangeiro receassem cometer alguma ofensa que fizesse com que se vissem a braços com a justiça francesa.
Não havia justificação nenhuma para ver alguma coisa de sinistro no comentário de Graham. Considerava algo que Blackwood tinha dito muito mais perturbador.
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"Estás à espera que eu me afaste só para que possas satisfazer a tua curiosidade a respeito desta bruxa?"
Curiosidade a respeito da bruxa... não poderiam ter existido palavras que mais alarmassem Meg. Tinha trabalhado denodadamente com vista a enterrar o seu passado,
para agora se arriscar a despertar o interesse de um qualquer estranho de passagem. Infelizmente, tinha sido isso precisamente o que ela fizera ao envolver-se no
assunto da rapariga dos Tillet.
Quer a chegada de Graham a Pernod fosse uma questão de mero acaso, quer se devesse a um qualquer desígnio secreto, era coisa que não importava. Amanhã, àquela mesma
hora, Meg já se encontraria na segurança da sua ilha, sendo muito pouco plausível que voltasse a ver qualquer daqueles dois homens.
Meg fechou os olhos, esforçando-se por banir Graham e o amigo do seu pensamento. Respirou fundo e pouco depois adormeceu, mergulhando num sono inquieto.
Fogo.
As chamas vermelhas com matizes dourados iluminavam a noite, o cheiro do fumo acre nas narinas de Meg, invadindo-a com um sentido de premência. Tinha de localizar
a origem do incêndio, extinguindo-o antes que fosse tarde de mais. Cambaleava pelas ruas estreitas com um balde cheio de água na mão. O clarão das labaredas parecia
mais intenso e mais quente, logo adiante de si.
Os edifícios altos que a ladeavam desapareceram subitamente, deixando-a rodeada por uma multidão. Os rostos iluminados pelas chamas infernais contorciam-se em esgares
horríveis enquanto as pessoas brandiam os punhos fechados e entoavam: "Arde, bruxa. Arde!"
Meg recuou horrorizada. Viu feixes de lenha que haviam sido empilhados aos pés de duas mulheres acorrentadas apostes. Uma delas era uma rapariga muito jovem que
pouco mais era do que uma garota. Gritava de dor e de medo. Até mesmo através do fumo denso, os seus olhos de expressão suplicante cruzaram-se com os de Meg.
"Ajudai-me, graciosa Senhora da Ilha Encantada. Imploro-vos."
Meg tentou, mas o peso do balde cheio de água atrasava-lhe o passo, que também era dificultado pela multidão que lhe bloqueava o caminho. Esforçou-se por abrir caminho,
com a água a extravasar do balde, enquanto empurrava as pessoas para poder avançar.
As labaredas eram cada vez mais altas em torno da rapariga aterrorizada. Meg conseguiu libertar-se da multidão e ergueu o balde para atirar a água e então... nada.
O balde estava vazio.
Meg começou a chorar convulsivamente enquanto as chamas tragavam a rapariga. O mundo parecia explodir em volta dela, arremessando-a para o chão.
Levantou os braços por cima da cabeça para se proteger do barulho ensurdecedor. Quando, por fim, se atreveu a baixar os braços, constatou que o silêncio se abatera
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e já não restavam vestígios nenhums da fogueira nem da rapariga, à exceção de algumas brasas incandescentes. A turba também tinha desaparecido, deixando Meg sozinha
com uma figura sem rosto toda trajada de negro.
Ele aproximou-se dela com uma atitude ameaçadora, apontando um dedo acusador a Meg.
"Foste tu quem fez isto. És a responsável pela execução da minha irmã." "Está enganado", ripostou Meg. "Eu tentei salvá-la."
"A tua lenda atraiu-a para a sua morte e ele assinou a sentença. Ambos têm de pagar pela vossa crueldade."
"Nãopercebo o que quer dizer com isso. Quem é você?Quem é esse "ele" e de quem é que está a falar?"
O fantasma não lhe deu resposta. Em vez disso, brandiu um archote flamejante: "Arde, bruxa. Arde!"
Meg recuou, mas era tarde de mais. A chama chegou à manga do seu vestido e o tecido ficou a arder...
- Não! - gritou Meg, sentando-se repentinamente e começando a bater na roupa. Precisou de uns momentos para se aperceber de que não estava em chamas. Não era ameaçada
por nada além de alguns pedacinhos de palha que se agarravam à sua pele, picando-a. Meg sacudiu os pedaços de palha.
Respirou fundo e passou as mãos pelo rosto para se obrigar a despertar completamente, sacudindo os últimos vestígios do pesadelo.
Perguntou-se se teria gritado. com certeza que a sua agitação devia ter acordado Seraphine, mas a mulher continuava a dormir imperturbável. Ver aquilo causou uma
irritação que era muito rara em Meg.
Ansiava por sacudir Seraphine para a despertar e... E fazer o quê? dizer à amiga que tinha tido um pesadelo? Seraphine ter-se-ia limitado a virar para o outro lado,
resmungando a Meg que esquecesse isso e que voltasse a dormir. Que era apenas um sonho mau.
No entanto, tinham existido tempos em que Seraphine teria sido obrigada a levar os sonhos de Meg mais a sério. Quando era mais nova Meg havia sido atormentada por
pesadelos de uma natureza mais profética Mas há vários anos que não era afligida por sonhos tão vívidos, mas esses do mal o menos, tinham feito algum sentido.
As suas visões eram sempre a respeito de pessoas que conhecia como a sua boa ama Jane Danvers ou a sua grande inimiga, a rainha Catarina de Médicis, não eram sonhos
em que figurava uma rapariga que Meg nunca
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tinha visto. E, contudo, havia algo de familiar na rapariga do pesadelo, qualquer coisa nos seus olhos e nas suas feições que lembrava a Meg alguém que conhecera.
Mas quem? Deu voltas à sua memória, mas a recordação era tão elusiva como tentar agarrar ténues espirais de fumo. Voltou a deitar-se em cima do cobertor com um suspiro
de cansaço. Cerrou os olhos e adormeceu, mas o seu sono era muito agitado.
Quando os primeiros alvores da manhã entraram no estábulo das vacas, Meg considerou que era um alivio. Parecia-lhe que o Sol era um fazedor da paz, declarando tréguas
na sua batalha com uma noite de desassossego.
Esfregando os olhos congestionados, Meg levantou-se com alguma dificuldade, retraindo-se ao sentir as costas rígidas. Espreguiçou-se e bocejou, olhando para Seraphine,
que continuava aninhada em cima dos fardos de palha, como se estivesse deitada no colchão de penas mais macio do mundo.
Meg não estava com pressa de a acordar. Não obstante conseguir adormecer sem a mínima dificuldade, Seraphine tinha tendência a despertar repentinamente. A languidez
com que a maior parte das mulheres da nobreza enfrentava as suas manhãs não era para ela. Seraphine saltava da cama como um cavaleiro pronto para o ataque, preparado
para se confrontar com o que o novo dia lhe reservasse.
Meg precisava de um princípio de dia mais suave e calmo. Gostava da quietude daqueles primeiros momentos da manhã, para poder refletir, para arranjar coragem para
o que o dia lhe trouxesse. Dirigiu-se em bicos de pés para fora do barracão para não acordar a amiga.
O firmamento estava nublado, vendo-se nuvens carregadas que ameaçavam mais chuva. A brisa que agitava o cabelo de Meg trazia consigo o cheiro de erva molhada, de
um mundo lavado e renovado. Respirou fundo, desfrutando daquela fragrância a terra fértil, desejando que lhe desanuviasse a mente, banindo os sonhos maus e estranhos,
perturbadores, bem como todos os acontecimentos constrangedores da noite anterior.
Não se via mais ninguém, além do estalajadeiro que se encaminhava para os estábulos, talvez para preparar as montadas dos ingleses. O que talvez fosse indicador
de que os viandantes retomariam o seu caminho logo pela manhã, pelo que Meg esperava que Sir Patrick e Blackwood estivessem ansiosos por partir. Seria com satisfação
que veria os dois homens
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a retomarem a sua viagem. Contudo, duvidava muito que Sir Patrick tivesse êxito a tentar levantar Blackwood da cama antes do meio-dia. A última vez que Meg vira
o físico, ele estava todo inclinado sobre uma mesa da taberna, já muito bem encaminhado para ficar perdido de bêbado.
Mas esse era um infeliz problema de Sir Patrick. Meg tinha o seu próprio problema. Ao ver um galo escanzelado a correr pelo pátio dos estábulos, lembrou-se de que
havia decidido procurar a mère Poulet para tentar convencê-la a ir para a ilha Encantada, onde passaria a viver em segurança. Muito embora as acusações de Bridget
se tivessem provado serem falsas, tal não impediria que algumas pessoas mostrassem uma hostilidade crescente para com a idosa.
Meg pouco sabia acerca dela, além das poucas vezes em que vira a mère Poulet a pedir esmola no lado de fora da estalagem ou à porta de uma das pequenas casas da
aldeia. Sempre que tinha tentado abordá-la, a idosa afastara-se, desaparecendo no campo nas redondezas da aldeia. A mère Poulet desconfiava dos estranhos, uma cautela
que Meg compreendia e respeitava.
Meg deixara sempre a comida que lhe dava em cima do tronco de uma árvore caída, após o que se retirava. Mas depois dos acontecimentos do dia anterior, conquistar
a confiança da idosa passara a ser uma questão de importância vital.
Mas, em primeiro lugar, Meg teria de a encontrar. com certeza que, numa aldeia da dimensão de Pernod, isso não devia ser muito difícil. Fortificou-se ao inspirar
profundamente o ar revigorante da manhã e voltou para dentro do barracão para acordar a condessa.
A manhã declinava rapidamente juntamente com o otimismo de Meg. Quando acabou de dar a terceira volta à aldeia sem ter conseguido encontrar a mère Poulet, Meg sentia-se
invadida por um misto de frustração e ansiedade.
Apesar dos protestos de Seraphine, Meg separara-se dela e cada uma seguiu em direções opostas à procura da idosa. Só esperava que Seraphine tivesse mais sorte do
que ela estava a ter. A mère Poulet vivia como uma vagabunda, mas decerto que a pobre alminha teria procurado refúgio para se acolher durante o temporal da noite
passada.
Certamente que haveria alguém em Pernod que se compadecesse o suficiente para acolher a idosa. Todavia, Meg não tinha visto muita generosidade
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em nenhum dos rostos das pessoas com que se cruzara naquela manhã. Ninguém estivera disposto a dar-lhe sequer os bons-dias, quanto mais responderem às perguntas
que ela fazia sobre o paradeiro da mère Poulet.
Meg ouviu resmungos suficientes para poder imaginar os rumores que haviam começado a circular, que ela tinha recorrido a alguma magia negra para induzir Bridget
Tillet a confessar. Meg pensava que, se possuísse poderes para isso, tê-los-ia usado para derreter alguns desses corações empedernidos, bem como para proporcionar
a si própria um novo par de pés que lhe doessem menos.
Voltou a percorrer a rua principal, sentindo todos os efeitos de uma noite mal dormida. Naquela manhã, não tinha perdido tempo a tomar o pequeno-almoço e nem sequer
para lavar a cara. Cansada, sentindo-se suja e com fome, lembrou-se de ter visto um barril deixado perto da hospedaria para que se enchesse com a água da chuva.
Pelo menos, poderia fazer uma pequena pausa para se refrescar.
Meg encaminhou-se nessa direção, arregaçando as mangas para lavar a cara. Infelizmente, havia alguém que tinha tido a mesma ideia. Meg recuou perturbada ao deparar
com Blackwood, que já se encontrava junto do barril.
O físico estava todo inclinado e com a cabeça mergulhada na água. Quando a tirou da água tinha o cabelo e a barba a pingar. Meg não teria ficado surpreendida se
o visse a sacudir-se como um cão rafeiro. Mas levando em consideração a quantidade de vinho que ele ingerira na noite anterior, era um movimento muito pouco aconselhável.
Blackwood tinha inteligência suficiente para se aperceber disso. com as duas mãos, alisou o cabelo e afastou-o dos olhos congestionados. Endireitou-se e olhou para
ela. Todos os instintos que Meg possuía urgiam-na a apressar-se a bater em retirada, mas houve algo dentro de si que se revoltou por permitir a si própria que aquele
homem a intimidasse.
Não compreendia que impulso é que se apoderou de si, talvez se devesse à frustração e exaustão ou ainda por antipatizar e desprezar Blackwood profundamente. Numa
atitude muito mais característica de Seraphine, Meg aproximou-se mais.
- Bons dias! - saudou alto e bom som numa voz plena de vivacidade.
Foi com satisfação que viu que Blackwood estremecia.
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- Não tem nada de bom, por isso peço-vos a gentileza de não me gritar.
- Tivestes uma noite difícil, doutor? Não me pareceis nada bem. Atrevo-me a dizer que estais a sofrer de um excesso de humores negros que vos percorrem as veias.
Talvez fosse benéfico que vos sangrassem.
Blackwood olhou para ela com cara de poucos amigos.
- Não me parece que haja alguma coisa que faça com que as dores de cabeça me passem, à exceção de ser decapitado. Mas o que diabo é que estes bretões põem nessa
coisa execrável a que chamam de vinho? Nem sequer o pedaço de ametista que tenho na minha bolsa serviu para alguma coisa.
- Ametista!? E de que é que isso servirá?
- Nunca ouvistes dizer que a ametista possui o poder de anular os efeitos de excesso de bebida. Mas que espécie de mulher sagaz é que sois?
- Mas acreditais realmente nesse disparate? Mas que espécie de físico é que sois? Em vez de terdes essa pedra na vossa bolsa, na próxima vez aconselho-vos a pô-la
na boca.
- Na minha boca!?
- Sim, porque serviria dois objetivos. Impedir-vos de beber e de expor a vossa ignorância. Desejo-vos um bom dia, monsieur.
Meg virou-se para se afastar altaneira, mas Blackwood agarrou-a pelo pulso. Não lho apertou tão dolorosamente como na última vez, mas com firmeza suficiente para
a impedir de se soltar.
- Largai-me o pulso imediatamente!
Blackwood ignorou as palavras de Meg, observando as nódoas negras que ela tinha no antebraço.
- Eu... eu fiz-vos isso?
- Uma vez que não me recordo de ter andado a lutar com mais ninguém a noite passada, deveis ser o culpado. E agora permiti que me vá embora antes de me partirdes
o pulso.
Ele franziu os sobrolhos, largando-a. Meg desarregaçou as mangas, tapando os hematomas.
Blackwood tinha, naturalmente, uma compleição avermelhada, mas as bochechas ficaram de um vermelho mais carregado.
- Peço perdão. Não foi minha intenção... Eu só estava...
- Bêbado? É frequente que os homens recorram a essa desculpa para explicarem comportamentos condenáveis. Na minha opinião, é uma desculpa que deixa muito a desejar.
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- Partilho da vossa opinião. Razão por que nunca a uso.
- Nesse caso, qual é a vossa desculpa?
- Que sou um mentecapto.
- Concordo inteiramente com o que dizeis, mas fico surpreendida ao ver que admitis isso sem qualquer pejo.
- E porque não? Não se pode dizer que seja um estado que eu possa ocultar facilmente. Gostaria de o atribuir ao vinho ou assegurar-vos que não acontece com frequência.
Mas embriagado ou sóbrio, devo advertir-vos de que sou um mentecapto durante a maior parte do tempo.
Meg perscrutou-o atentamente, tentando discernir se ele estaria a ser trocista ou a falar verdade. Apesar de o homem mostrar uma expressão solene, Meg viu um traço
de alguma ironia nos lábios dele. Foi forçada a conter uma inesperada e quase irreprimível vontade de rir.
- Agradeço-vos a advertência, monsieur. Farei o meu melhor para vos evitar.
- O que deveis fazer - concordou ele afavelmente. - Mas ainda não, porque acontece que sou o mentecapto que encontrou o que tendes andado a procurar.
- E como é que sabeis que eu tenho andado à procura de alguma coisa?
- Minha querida senhora, tendes andado numa roda-viva para cima e para baixo destas ruas durante toda a manhã. Toda a gente da aldeia sabe que estais à procura dessa
idosa que os aldeões chamam de Poulet e que ainda não haveis conseguido encontrar.
- E afirmais que sabeis onde ela se encontra?
- Sem dúvida - confirmou Blackwood com uma careta sorridente, mostrando os arranhões muito avermelhados que tinha nas costas das mãos. - E tenho as cicatrizes da
batalha que o comprovam.
Meg acompanhou Blackwood até à praia, com o coração cheio de dúvidas. Tinha poucas razões para confiar naquele homem. O sítio onde afirmava ter encontrado a mère
Poulet fazia muito pouco sentido.
Aquele trecho de areal era demasiado aberto e exposto, além de que as rochas pouco proporcionavam em termos de esconderijo ou de abrigo. Sentia-se um vento agreste
que soprava do canal, obrigando Meg a afastar constantemente as madeixas que lhe caíam para os olhos.
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Olhou nervosamente por cima do ombro, consciente do muito que se tinham afastado do perímetro da aldeia. Se Blackwood a tivesse atraído ali com algum objetivo pessoal
sinistro, não haveria ninguém que os visse, nem ninguém que ouvisse os gritos de Meg, além das gaivotas que os sobrevoavam.
Contudo, Blackwood não parecia importar-se muito se ela o acompanhava ou não. Quando Meg se deixou ficar mais para trás, ele nem sequer olhou por cima do ombro para
se certificar de que ela continuava a segui-lo. Meg estugou o passo para poder encurtar a distância que os separava. Se não por outra razão qualquer, porque o corpo
corpulento do homem servia de barreira que a protegia do vento. Blackwood remetera-se ao silêncio desde que haviam deixado a aldeia, o que agradava a Meg.
Facilitava-lhe a tarefa de observar o homem, sobre o qual não sabia muito bem o que pensar. Teria esperado que ele continuasse deitado àquela hora, a tentar curar
a bebedeira ou, se estivesse capaz de se levantar, estaria ansioso por selar o seu cavalo para se pôr a caminho. Blackwood não lhe parecia ser o género de homem
que se preocupasse com o seu melhor amigo, quanto mais dar-se ao incómodo de procurar uma idosa meio tresloucada que nem sequer conhecia. Por conseguinte, só lhe
restava questionar os motivos do médico.
O médico... esse era outro aspeto que a inquietava. Blackwood não era nada como outros físicos que ela conhecera, os quais eram, na sua maior parte, homens pomposos
e de barbas grisalhas, trajados com a sua indumentária negra até aos pés, mais desejosos de mostrar a sua fluência em latim e grego do que pôr em prática quaisquer
capacidades de curar que fossem úteis. Blackwood dava a impressão de ser tão arrogante e ignorante como qualquer dos da sua classe, mas faltava-lhe a atitude pedante.
com os seus ombros largos, alto e robusto, a pele bronzeada e a barba hirsuta, parecia mais um marinheiro ou um soldado, o género de arruaceiro que se encontraria
nas tabernas entre batalhas, a gastar tudo o que ganhava na bebida ou a jogar aos dados.
Era difícil adivinhar a sua idade. Tinha rugas ao canto dos olhos, mas, possivelmente, dever-se-iam a uma existência dura e a hábitos dissolutos. A postura muito
direita e a energia que pontuava os seus movimentos sugeriam um homem na sua fase mais pujante, pelo que não teria mais do que trinta e poucos anos.
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Blackwood olhou-a de lado e ficou de cenho franzido.
- Não deve olhar para as pessoas com fixidez. É má educação.
- Peço desculpa - disse Meg, embora pensasse que Blackwood não seria a pessoa mais indicada para lhe dar lições de boas maneiras. - Mas a verdade é que me deixais
extremamente intrigada. Porque é que vos destes ao trabalho de procurar a mère Poulet?
- Calculo que pela mesma razão que vos levou a procurá-la. Para evitar que uma velha inocente acabe com o pescoço todo esticado. Essa foi a única razão por que ontem
à noite subi aquelas escadas a cambalear para tentar lidar com aquela pequena galdéria aldrabona.
- Isso quer dizer que vos haveis apercebido de que a Bridget estava a fingir a doença?
- Qualquer idiota seria capaz de ver isso mesmo... exceto, talvez, os que vivem nesta aldeia. Mal precisei de examinar a fedelha para sentir uma grande vontade de
lhe torcer o pescoço magricela.
- Porque desprezais os mentirosos? Blackwood riu-se.
- Deus nos valha, claro que não. Eu próprio sou um mentiroso de alto gabarito. É uma arte que muito admiro, exceto quando é fomentada pela maldade ou se destina
a causar sofrimento e ruína. - A fisionomia do físico ensombrou-se. - Não, o que eu detesto é a injustiça, algo que tenho visto mais do que a minha conta. Estou
disposto a bater-me com o próprio Diabo para não voltar a ver outra pessoa inocente ser vitimada.
- A Bridget portou-se de uma maneira condenável, mas não se pode dizer que seja o Diabo. - Meg olhou-o com uma expressão conturbada. - Sabíeis que ela estava a fingir,
mas, mesmo assim, tencionáveis sangrá-la.
- Só brandi a lanceta para a assustar, para a levar a confessar a verdade.
- Duvido que o vosso método tão tosco pudesse ter resultado. Foi por muito pouco que não a aterrorizastes ao ponto de ela ter um ataque de histerismo.
- Vamos lá a saber: a que métodos brilhantes é que haveis recorrido? Todos os aldeões suspeitam de que mesmerizastes ou que enfeitiçastes a rapariga. Tenho de confessar
que eu também me sinto curioso em saber qual é o vosso segredo.
Meg hesitou, mas decidiu que não faria mal nenhum dizer-lhe o que se passara. Enquanto lhe explicava a sua artimanha com o anel de cabelo queimado, ainda que a contragosto,
Blackwood mostrou-se impressionado.
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- Muito inteligente, milady. vou ter de me recordar do vosso pequeno truque se alguma vez voltar a ver-me confrontado com uma situação semelhante.
- Duvido muito que conseguísseis que resultasse. Ao fim e ao cabo, não sois... o que é que me chamastes ontem à noite? "Uma bruxa com pretensões a ter poderes sobrenaturais."
De todos os insultos de Blackwood, Meg ficou surpreendida por continuar a lembrar-se daquele tão bem, admirada consigo própria por ter o poder de a magoar. Blackwood
deteve-se abruptamente.
- Eu disse-vos isso? Nesse caso, devia estar mais bêbado do que pensei.
O vento despenteava-lhe o cabelo, emprestando-lhe uma aparência ainda mais rude e bárbara do que nunca, mas houve qualquer coisa que suavizou o seu semblante.
- Peço-vos perdão por isso. Estou verdadeiramente arrependido.
- Blackwood falava com sinceridade. Meg não viu nada da sua habitual atitude trocista e sem-cerimónia. O pedido de desculpa dele deixou-a perplexa e mais confusa
a respeito do homem do que até então.
Meg ficou a olhar para ele, tentando desesperadamente ler-lhe os olhos. Não eram tão escuros como haviam dado a impressão de ser à fraca luz das velas na noite anterior.
Eram de um profundo azul-acinzentado, da mesma tonalidade do firmamento nublado.
Recordou-se de que se sentira alarmada com o olhar dele, considerando que era tão arrepiantemente vazio como o da mãe tinha sido, mas estava enganada. Existia uma
extraordinária atividade por detrás dos olhos de Blackwood; o homem era mais um caldeirão em ebulição do que um abismo em que fervilhavam tantos pensamentos e recordações
que ela não conseguia proceder a uma leitura correta.
A maneira intensa como lhe perscrutava os olhos pareceu constranger Blackwood. Ele recomeçou a caminhar, a sua fisionomia a espelhar a expressão indolente habitual.
- Ah, chegámos, finalmente - disse ele. - Che la mire Poulet.
- Blackwood indicou uma estrutura à distância que, à primeira vista, parecia nada mais do que destroços do naufrágio de uma embarcação que tivessem dado à costa.
Talvez, a dada altura, tenha sido precisamente isso.
Mas, quando se aproximaram mais, Meg viu que o casco partido tinha sido reforçado com tábuas que também haviam dado à costa, formando
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uma espécie de abrigo. A barraca situava-se bastante acima da margem da praia, entre algumas rochas protuberantes que a protegiam do vento. No entanto, uma forte
rajada de vento seria o suficiente para derrubar a periclitante barraca. Meg admirou-se por o temporal da noite anterior não ter feito isso mesmo.
Blackwood começou a subir em passadas largas. Pegando na orla das saias, Meg seguiu-o num passo mais lento. Apesar dessa precaução, foi por pouco que não escorregou.
Blackwood virou-se para trás e estendeu-lhe a mão para a ajudar a subir; Meg aceitou depois de uma breve hesitação. A palma da mão dele era cálida e não tinha calos,
ao contrário do que ela teria esperado devido à rudeza da sua aparência. O homem tinha uma mão surpreendentemente bem formada, forte e com dedos compridos, as unhas
limpas e bem cortadas.
Blackwood puxou-a, colocando-a ao seu lado numa saliência próxima da barraca. Ao observá-la mais de perto, parecia uma caverna de madeira de teto baixo com uma lona
pregada na entrada a servir de porta.
- Hortense - chamou Blackwood. - Sou eu. Voltei como prometi.
- Hortense? - perguntou Meg, retirando a mão que continuava na dele.
- Hortense Matisse. É o verdadeiro nome da mulher a que chamam mère Poulet.
- E como é que sabeis isso?
- Perguntei-lhe.
O que era mais do que qualquer outra pessoa tinha pensado fazer, incluindo ela própria, refletiu Meg, sentindo alguma vergonha.
A lona da entrada agitou-se e Hortense espreitou para fora, franzindo o nariz como um furão curioso. A idosa ficou com uma expressão radiante ao ver Blackwood, os
lábios a entreabrirem-se num esgar risonho quase completamente desdentado. Mas o sorriso de contentamento desapareceu ao ver Meg.
- Quem é que veio consigo? - perguntou Hortense autoritária.
- Esta é a famosa Senhora da Ilha Encantada. Ela também tem andado à sua procura.
- Porquê?
Meg baixou-se para que os seus olhos ficassem ao mesmo nível dos da idosa.
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Porque há muito tempo que queria conhecê-la, mère Poulet... quero dizer, Hortense.
Para si, será Madame Hortense Matisse, senhora impertinente.
Peço perdão. Não foi minha intenção ofendê-la. Vim aqui para a convidar a visitar a minha ilha.
- Esse lugar perverso? Não, obrigada.
Está-me a parecer que ouviu demasiadas histórias alarmantes da parte dos aldeões, de como a ilha Encantada é o paraíso para as bruxas.
Bruxas, tretas! Eu não tenho medo de bruxas. Até gosto muito de fingir, de vez em quando, que eu própria sou uma bruxa - redarguiu a idosa, rindo-se antes de franzir
as sobrancelhas. - São as histórias que ouvi a respeito da sua ilha que não me agradam, o facto de estar cheia de mulheres.
De facto, a ilha Encantada é habitada, em grande parte, por mulheres que são as mulheres e filhas de capitães de mar e marinheiros que estão ausentes no mar durante
longos períodos de tempo.
Não gosto muito da companhia de mulheres - acrescentou Hortense, olhando para Blackwood com uma expressão lúbrica. - Prefiro a companhia dos homens.
Mas temos alguns homens. Há um pequeno porto na ilha Encantada ao qual os navios mercantes do continente atracam. Também temos uma estalagem de nome Estranho de
Passagem, onde os marinheiros e os comerciantes se reúnem.
E ele estaria lá? - perguntou Hortense, apontando para Blackwood.
- Bem, não...
- Nesse caso, não estou interessada.
E, dizendo isto, a idosa recolheu-se no interior da sua caverna, a lona a pender no seu lugar. Meg olhou para Blackwood, que estava com uma cara muito séria, mas
não lhe foi difícil ver que ele se esforçava por não se rir. Ficou com uma forte suspeita de que o físico tinha antecipado a dificuldade que ela teria em convencer
Hortense, no entanto mantivera-se calado, deleitando-se com essa perspetiva.
Meg endireitou-se, dizendo com rispidez:
Podia ter-me avisado de como é que ela iria reagir.
Blackwood abriu muito os olhos, fingindo inocência.
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- Mas como diabo é que eu poderia ter adivinhado isso?
- Os dois parecem ter ficado grandes amigos. Ela pareceu-me muito rendida aos vossos encantos.
- É frequente que eu cause esse efeito nas mulheres, em especial nas que são curtas de vista.
Meg fitou-o com uma expressão furiosa, soltando um suspiro de frustração. Deu voltas à cabeça para encontrar outra maneira de abordar a idosa, tentando pensar num
argumento mais persuasivo, mas não lhe ocorreu nada. Estava cansada e tinha fome. Só desejava ir para casa. Mas sentia-se obrigada a fazer outra tentativa.
Encaminhou-se para a barraca, estendendo a mão para afastar a lona e poder espreitar para o interior. Mas Blackwood impediu-a.
- Se eu estivesse no seu lugar, não faria isso. A Hortense não gosta de visitas que não foram convidadas, mas a Marcela é ainda pior do que ela.
- A Marcela? Mas quem é essa Marcela?
- É a galinha da Hortense - respondeu ele, mostrando-lhe as costas da mão arranhadas. - A Marcela odeia visitantes. Ou talvez só não goste de mim. Não posso censurá-la
depois da maneira como a maltratei quando tentei tratar-lhe a asa partida.
- Haveis tentado curar uma galinha ferida?
- Admito que estou muito mais acostumado a comer as asas de um capão, em especial depois de ter sido assado e ficado bem tostadinho, acompanhado de uma generosa
porção de nabos assados. É verdade que fiz um esforço para ajudar a Marcela, mas sem grande êxito. Alguma vez tentastes pôr uma tala numa galinha?
- Não, eu... - começou Meg a replicar quando se apercebeu do ridículo de toda aquela situação. Imaginou Blackwood a lutar com uma galinha cacarejante que lhe dava
bicadas e o arranhava, as penas todas enfunadas de fúria. Aquela imagem foi mais forte do que a vontade de Meg. Desatou a rir.
Blackwood inclinou a cabeça de lado, pondo-se a olhar para ela.
- com que então sabeis como rir. Eu começava a duvidar disso. Sois uma coisinha tão séria.
Meg tentou voltar a afivelar a sua expressão circunspecta, mas os lábios tremiam-lhe de riso. Blackwood pegou-lhe no queixo com as pontas dos dedos. Inclinou-lhe
a cabeça para cima, inspecionando a sua fisionomia.
- Devíeis rir mais vezes. Melhora o vosso rosto. Quase pareceis bonita.
Era o género de elogio que ela teria esperado de Blackwood, direto ao ponto de ser quase ofensivo. A despeito disso, Meg preferia essa atitude à espécie de lisonjas
de outros homens que lhe haviam dito que era lindíssima, o que ela sabia não ser verdade. Pelo menos, as palavras de Blackwood, a cordialidade e a aprovação que
via nos olhos dele pareceram-lhe suficientemente genuínas para lhe porem um ligeiro rubor nas faces.
Irritada consigo própria, Meg afastou a mão dele. Entre a galinha hostil, a velha excêntrica e Blackwood - ele próprio parecia ser um pouco louco -, começava a ter
a impressão de que se encontrava numa situação ainda mais estranha que o sonho que tivera na noite passada.
Um sonho que estava destinado a ter uma dimensão ainda mais estranha, pensou Meg ao avistar as duas figuras que caminhavam uma atrás da outra pela praia, encaminhando-se
rapidamente na direção deles. Pensou que o par formado por Sir Patrick Graham e Seraphine era mais incongruente do que ela própria e Blackwood.
Sir Patrick mostrava um semblante tão sombrio como na noite anterior. Até mesmo o vento que agitava a capa curta e as penas do toque não afetava grandemente a sua
aura de calma. Por outro lado, Seraphine parecia uma deusa irada, com o cabelo louro a cair-lhe por cima dos ombros num emaranhado indomável, enquanto mantinha uma
mão junto do punho do florete.
Blackwood ficou com o corpo rígido ao lado de Meg. Também tinha avistado os dois. Praguejou entre dentes, o que não era o tipo de reação que Seraphine, habitualmente,
suscitava nos homens.
Mas quando Blackwood e Meg começaram a descer a pequena encosta rochosa para irem ao encontro deles, Meg apercebeu-se de que ele nem sequer parecia ter reparado
em Seraphine. O cenho carregado e o olhar empedernido eram dirigidos ao seu amigo.
Sir Patrick cumprimentou Meg com um inclinar de cabeça, mas, antes de poder falar, Seraphine adiantou-se-lhe.
- Maldição, Margaret Wolfe, pregaste-me um susto de morte! Mas que ideia foi a tua para desapareceres desta maneira?
- Andei à procura da mire Poulet. Decerto que te lembras que foi por isso que nos separámos, indo por direções diferentes.
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- O que eu nunca pensei que fosse boa ideia. Mas esperava que tu, no mínimo, terias o bom senso de restringires a procura aos limites da aldeia, sem teres decidido
vir para tão longe com este... este... - Seraphine interrompeu-se e fez um gesto na direção de Blackwood.
- Este médico - atalhou Meg antes de Seraphine poder pensar num epíteto insultuoso. - Lamento se te preocupei, mas está tudo bem. Encontrámos a mère Poulet ou, melhor
dizendo, devemos agradecer ao doutor Blackwood por isso.
Seraphine mostrava-se mais inclinada a passar o homem a fio de espada do que a agradecer-lhe. Fitava-o com um olhar furioso, como se o tivesse apanhado a tentar
violar Meg. Mas o físico nem sequer se apercebia do olhar assassino de Seraphine, uma vez que toda a sua atenção estava concentrada em Sir Patrick.
- Graham, devias ter ficado à espera na estalagem. Não havia necessidade nenhuma de vires à minha procura. Eu tinha-te dito que podia tratar deste assunto.
- Do que eu não duvidei, pelo menos no que diz respeito à idosa. Não vim aqui à tua procura. - O timbre de voz de Graham era tão suave quanto o de Blackwood era
agressivo. O cavaleiro mudou de posição, virando-se para Meg. - Éreis vós quem eu queria encontrar esta manhã. Contava que pudéssemos conversar...
- E aqui está ela. Falai! - atalhou Seraphine com rispidez.
- Gostaria de conversar convosco a sós - continuou Sir Patrick, como se não tivesse sido interrompido. - Dar-me-íeis a honra de me conceder alguns momentos para
poder falar convosco em particular?
- Não! - ripostaram Seraphine e Blackwood simultaneamente.
- Isto é uma perda do teu tempo, Graham - acrescentou Blackwood. - Ela não estará interessada.
- E não há nada que pudésseis dizer a ela que eu não possa ouvir atalhou Seraphine com um olhar carrancudo.
- Ela está aqui - interveio Meg acerbamente. - Portanto, quereis ter a bondade de permitir que ela responda?
Seraphine pegou em Meg por um braço, puxando-a de lado.
- Meg, não devias ter ido a lado nenhum sozinha com aquele homem. Procedeste irresponsavelmente ao andares por aí com esse físico que é um bêbado.
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- Pensei que tinhas chegado à conclusão de que o doutor Blackwood e Sir Patrick eram apenas dois viajantes ociosos. Tu até troçaste de mim por ter estado tão enervada
por causa deles.
- Mudei de ideias. Há qualquer coisa que não bate certo em relação aos dois, particularmente no caso do Graham. Ele tem andado a fazer demasiadas perguntas a teu
respeito na hospedaria, entre os aldeões. Ele até teve a impertinência de insistir comigo para que lhe dissesse há quanto tempo é que eras a Senhora da Ilha Encantada,
de onde é que vieste antes disso. Tenho a impressão de que o homem quer alguma coisa de ti. Não faço a mais pequena ideia sobre o que será, mas não me agrada nada.
- A mim também não me agrada. Mas não te parece que seria melhor falar com Sir Patrick para nos inteirarmos do que ele pretende?
- Suponho que sim - admitiu Seraphine, cerrando os lábios.
- O meu pai ensinou-me sempre que era melhor saber tanto sobre os nossos inimigos quanto nos for possível. Mas afasta-te apenas alguns metros até ao areal com aquele
homem. Mantém-te aonde eu te possa ver.
Meg concordou com um acenar de cabeça e depois encaminhou-se para Graham, que aguardava pacientemente pela decisão dela.
- Não faço a mínima ideia do que podereis querer dizer-me, Sir Patrick, mas estou disposta a ouvir-vos.
Blackwood resmungou qualquer coisa e Meg quase esperava que ele protestasse outra vez. Mas, quando olhou para ele, viu que se limitava a um encolher de ombros, como
se o assunto tivesse deixado de ter a mínima importância para si.
- Cinco minutos - impôs Seraphine a Graham. - A Senhora da Ilha Encantada não pode conceder-vos mais tempo. Os dois homens, os dois jovens muito corpulentos e bem
musculados, que nos trouxeram num barco a remos da ilha Encantada já estão a preparar a embarcação para regressarmos. O Jacques e o Louis receiam que venha aí mais
chuva torrencial, por isso temos de ir apanhar a idosa para tratarmos de voltar.
Meg olhou para a barraca. A lona foi afastada e viu que Hortense os observava. Quando se apercebeu de que a tinham visto, a idosa apressou-se a voltar para dentro
da barraca.
- Hum... Seraphine, isso talvez venha a ser um pouco difícil. Não me parece que a mère Poulet queira ser apanhada.
- Onde é que ela está? Escondida ali em cima, por baixo daquele amontoado de madeira? Posso ir buscá-la sem mais perdas de tempo.
- Seraphine começou a subir a pequena encosta, mas viu o caminho barrado por Blackwood.
- Eu vou buscá-la. Sou capaz de a persuadir mais depressa do que vós.
- Como? - perguntou Seraphine com uma expressão desdenhosa. -- Tentando embebedá-la? Regalando-a com garrafas de vinho como fizestes a todos os que se encontravam
na taberna ontem à noite?
- Não, atirando-vos ao canal. Tenho a certeza de que a Hortense acharia isso muito mais divertido.
- Gostaria de vos ver a tentar fazer isso!
Blackwood começou a caminhar na direção da barraca com Seraphine logo atrás de si, os dois a resmungarem um com o outro durante toda a subida. Meg olhava para eles
com alguma preocupação.
- Não tendes motivo nenhum para receardes pela vossa amiga, milady - disse Sir Patrick. - O Blackwood é capaz de barafustar e gritar, mas jamais faria mal a uma
mulher.
- Para vos dizer a verdade, não era pela minha amiga que eu estava preocupada - retorquiu Meg, virando-se para ele.
- Sim, já tive oportunidade de observar que Madame la Comtesse pode ser um tudo-nada... enérgica, mas o Blackwood é igualmente obstinado. Temo que aquela ladeira
esteja prestes a assistir a uma batalha que rivalizará com tudo o que possais imaginar entre os deuses no monte Olimpo. Talvez devêssemos recuar até uma distância
onde haja mais quietude - disse Sir Patrick com um sorriso de ironia, oferecendo-lhe o seu braço.
Meg hesitou. Seraphine referira-se a Graham como sendo o inimigo, mas estava a sentir alguma dificuldade em pensar nele sob esse prisma. Não só por ele ser um homem
muito bem-parecido, o que era inegável. Ele tinha o género de semblante de Adónis capaz de derreter as defesas da maior parte das mulheres.
Ao contrário do mal-ajambrado Blackwood, todas as peças de vestuário de Graham estavam limpas e impecáveis. A única coisa fora do seu lugar era um único caracol
louro que insistia em cair para a testa do homem, mas que lhe acrescentava ainda mais encanto.
Contudo, não era a sua aparência física que Meg achava atraente, mas sim as suas maneiras corteses, a sua maneira de ser circunspecta, a expressão de melancolia
no seu olhar, facetas que tocavam o seu coração. Quando ele sorria, o sorriso não se estendia aos seus olhos, mas não da maneira fria e calculista que vira noutros
homens.
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Tinha mais a impressão de que Sir Patrick há muito que se havia esquecido de como sorrir, tendo de fazer um esforço para se recordar. Meg não tinha a mínima dificuldade
em compreender aquilo, conturbada como lhe acontecia com bastante frequência devido ao pesado fardo que eram as recordações que guardava da mãe, o medo de que o
passado, que ela enterrara, surgisse de novo à superfície para a atormentar.
Portanto, qual seria o pesado fardo que Sir Patrick carregava?, perguntava-se Meg quando apoiou a mão na dobra do braço dele e ambos se encaminharam para a beira-mar.
- Espero que este meu pedido para conversar a sós convosco não vos tenha alarmado - começou ele por dizer.
- Isso depende do assunto de que me queirais falar e de quem sois.
- Eu já vos disse isso. Sou Sir Patrick Graham e...
- Estou a par do vosso nome. - Ou, pelo menos, acreditava que sim. Era muito possível que ele viajasse sob uma identidade falsa, muito embora não tivesse qualquer
razão para presumir isso. - Um nome não nos diz nada - prosseguiu Meg. - Não me dá a mínima ideia acerca da pessoa que sois.
- Não sou ninguém de uma importância especial; sou o filho mais velho de uma família modesta, mas muito respeitada, de Middlesex. Depois de ter feito os meus estudos
em Oxford, fui para Londres com a intenção de fazer fortuna, à semelhança do que muitos jovens fazem. Não fui muito bem-sucedido nem fracassei redondamente. Atualmente,
trabalho como escrivão no conselho privado do rei.
- Isso parece-me um cargo bastante importante.
- Existem muitos escrivães como eu, assoberbados de trabalho e mal pagos. Mesmo assim, não tenho de que me queixar. É um sinal de boa sorte estar ao serviço da corte,
por muito inferior que o posto seja.
- Nesse caso, só tenho de vos congratular, mas sinto-me ainda mais confusa do que nunca. O que é que traz um escrivão do conselho privado da coroa inglesa a uma
aldeia tão remota como Pernod?
- Pernod não era o meu destino final - respondeu ele, interrompendo-se e olhando fixamente para ela. - Éreis vós. Eu tinha a intenção de ir à ilha Encantada para
vos procurar.
- Estou a ver - retorquiu Meg, forçando uma nota animosa no seu tom de voz. - Devo sentir-me preocupada ou lisonjeada?
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- Não me parece que sejais a espécie de mulher que gosta de ser adulada. Mas devíeis saber que a lenda da Senhora da Ilha Encantada é conhecida e comentada até mesmo
em Londres.
Meg era capaz de tolerar aquilo, desde que fosse a lenda da Senhora da Ilha Encantada que fosse discutida e não Margaret Wolfe ou, pior ainda, Megera.
- E então o que é que ouvistes dizer a respeito da Senhora da Ilha Encantada que vos levou a vir à procura dela? - perguntou-lhe Meg.
- Que ela... quero dizer, que sois uma feiticeira de uma beleza e poderes inacreditáveis, muito versada em todas as artes de magia e de curar. Confesso que não acreditei
no que se dizia. Pensei que tudo isso não passaria de um mito.
- Mas, agora que me haveis visto, podeis confirmar isso mesmo.
- Pelo contrário, depois do que eu testemunhei na estalagem ontem à noite, compreendi que as histórias a vosso respeito correspondem à verdade. A maneira como resolvestes
a questão do embruxamento da menina Bridget Tillet...
- A rapariga não estava embruxada! Não fiz nada, além de expor o embuste dela, e isso foi tudo.
- Tudo? Haveis-vos apercebido das mentiras dela quando ninguém conseguiu perceber isso. Sabíeis que ela estava a fingir.
- Aparentemente, o vosso amigo Blackwood também se apercebeu disso.
- Mas fostes vós quem pôs fim ao logro. Disseram-me que tendes muita experiência nestas questões de embruxamentos fingidos.
- De tempos a tempos, sou chamada para lidar com alguém que se comporta como se estivesse endemoninhado, afirmações que acabam sempre por provar que são falsas.
- Sempre? Isso quer dizer que não acreditais que existam embruxamentos, que alguém possa realmente ser amaldiçoado por uma bruxa? perguntou Graham, perscrutando
a fisionomia de Meg. - Não acreditais na existência de ações demoníacas?
Meg pensou na mãe, reprimindo um arrepio.
- Não ponho inteiramente de parte a possibilidade de esse tipo de magia negra existir, mas acredito que seja muito raro.
- Se alguém tivesse sido amaldiçoado por uma bruxa, poderíeis ajudar essa pessoa? Seríeis capaz de anular a praga que lhe foi rogada?
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- Não sei - respondeu Meg, olhando para ele com as sobrancelhas franzidas. - Quem é que acreditais que está amaldiçoado, Sir Patrick? Vós?
- Não, graças a Deus.
- Então é algum dos vossos amigos?
- Não posso ter a presunção de o classificar como meu amigo. - Os rodeios de Graham começavam a irritar Meg.
- Nesse caso, como é que o classificaríeis? Como é que esse homem se chama?
Graham ficou em silêncio por uns momentos antes de responder. -Jaime Stuart.
-Jaime Stuart!? - exclamou Meg, olhando para ele incrédula. - com certeza que não estais a referir-vos a...
- Sim, estou - confirmou Sir Patrick muito sério. -Jaime Carlos Stuart, o rei de Inglaterra.
Meg ficou a olhar para Sir Patrick muda de espanto, perguntando-se se teria perdido toda a capacidade de avaliar o caráter de um homem. Tinha acreditado que Graham
era um homem circunspecto e sensato, mas, ao que tudo indicava, era tão louco como o amigo.
- Tenho a certeza de que não vos compreendi corretamente - disse Meg. - Estais a dizer-me que acreditais que o rei de Inglaterra está possuído pelo Demónio?
- Não está possuído, mas sim amaldiçoado. Sua majestade foi vítima de um embruxamento terrível, uma praga que lhe foi rogada.
Se Blackwood lhe tivesse dito uma coisa daquelas, Meg ter-se-ia sentido tentada a considerar as palavras do homem como mais um exemplo do estranho sentido de humor
dele. Mas Graham parecia estar a falar tão a sério que ficou sem saber o que pensar.
- Receio estar a explicar tudo isto de uma maneira muito atabalhoada - disse ele. - Talvez eu devesse começar pelo princípio, quando todos estes trágicos acontecimentos
começaram a desenrolar-se.
- Sim, talvez devêsseis fazer isso.
Caminharam em silêncio por uns momentos, enquanto Sir Patrick se esforçava por organizar as ideias.
- Tudo começou há quase quinze anos em Edimburgo. Jaime Stuart ainda não tinha ascendido ao trono inglês. Era apenas o rei da Escócia, um homem jovem que precisava
de arranjar noiva. A sua escolha recaiu na princesa Ana da Dinamarca e o rei Jaime teve uma atitude extraordinária para um monarca. Em vez de enviar uma comitiva
que lhe trouxesse a noiva, como é costume, Jaime Stuart fez a travessia por mar para desposar a princesa na pátria dela.
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- Foi uma decisão romântica, mas nada sensata - acrescentou Graham. - O nosso país nunca foi de gente dócil...
- O nosso país!? - ecoou Meg. - Mas pensei que tínheis dito que éreis oriundo de Middlesex?
Sir Patrick pareceu desagradado com a interrupção dela.
- A minha mãe nasceu na Escócia, por isso, quando eu era rapaz, passei muitos verões na mansão do meu tio, sentindo-me sempre como se estivesse em minha casa. Mas
continuando o que eu estava a dizer, a Escócia é um país de gente dura com uma longa história de rebelião, com grandes proprietários de terras que competem entre
si por poder e sempre prontos para desafiar o rei, especialmente um monarca que mostre quaisquer sinais de fraqueza.
"Jaime Stuart tinha um súbdito que era particularmente rebelde, o conde de Bothwell. Ele era sobrinho do mesmo Bothwell que depôs a falecida mãe do rei, Maria Stuart.
Mas os grandes proprietários de terras de Bothwell sempre foram súbditos problemáticos e indisciplinados.
"O atual conde aproveitou-se ao máximo da ausência do rei para arquitetar uma conspiração contra sua majestade, de uma natureza inesperada e do mais sinistro que
se possa conceber. Quando o rei Jaime regressou à Escócia com a sua noiva, a frota real foi açoitada por violentas tempestades.
Meg ficou rígida ao lado de Sir Patrick, percebendo qual a direção que a narrativa tomaria.
- Só por milagre é que o rei conseguiu chegar são e salvo a porto seguro. Não foi preciso muito tempo depois disso para se descobrir que...
- Que uma irmandade de bruxas era responsável - concluiu Meg por ele. - Não precisais de continuar, Sir Patrick. É com pesar que tenho de dizer que estou bastante
familiarizada com o que aconteceu a seguir.
- Como é que isso é possível? Não podíeis ser mais do que uma criança quando tudo isto teve lugar.
- Já tinha idade suficiente e temos uma memória coletiva para o sofrimento na ilha Encantada, em particular no que concerne ao destino de mulheres sábias. Quando
a notícia dos julgamentos de bruxas na Escócia chegou à nossa ilha, todas ficámos de luto. Todas essas pobres almas perdidas, centenas de mulheres inocentes, bem
como homens, acusados de conjurarem contra o rei, pessoas que foram presas e torturadas. Um grande número foi condenado a morrer na fogueira.
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Meg fechou os olhos por breves momentos, esforçando-se por expulsar aquela imagem horrível do seu pensamento.
- É o medo secreto de todas as mulheres que se atrevem a pôr em prática as artes de curar, mantendo vivos os conhecimentos que nos chegaram da Antiguidade. É impossível
que sejais capaz de imaginar...
- Sim, posso imaginar e partilho o vosso horror perante uma morte dessas. - Sir Patrick ficou com a garganta embargada, tossindo para a aclarar. - Mas nem toda a
gente que foi presa estava inocente. Havia uma irmandade de bruxas que se reunia à meia-noite numa igreja. Profanavam esse templo sagrado com os seus rituais satânicos,
queimando figuras do rei feitas de cera enquanto entoavam feitiços demoníacos com o objetivo de conjurarem tempestades para que todos os navios da frota real naufragassem.
- Atos demoníacos e profanos, com certeza, mas nem por isso menos disparatados. Nunca conheci ninguém que possuísse o poder de conjurar tempestades ou causar mal
através de bonecos de cera. O vosso rei devia ter direcionado a sua cólera para os que o atraiçoaram, instigando essa conspiração contra ele.
- Pensava-se que seria o conde de Bothwell. Ele também foi acusado de bruxaria, mas as acusações acabaram por ser retiradas. Ninguém conseguiu provar que ele tinha
ligações às bruxas e muitas pessoas acreditavam que as acusações eram falsas, um esforço para desacreditar o conde. Bothwell tinha feito inimigos poderosos na corte
do rei, além disso havia a estranha questão de uma mulher conhecida por Velha Tam.
- Velha Tam?
- Era o nome que a maior parte das pessoas usava quando se referiam a ela, mas durante o seu julgamento estava registada com o nome de Tamsin Rivers. De todas as
que foram julgadas e condenadas, ela parecia ter sido uma bruxa genuína.
- E o que é que vos leva a dizer isso?
- Sua majestade afirma que ela sabia coisas a seu respeito, pormenores íntimos que nenhum desconhecido devia saber. Foi a Velha Tam quem amaldiçoou o rei. O que
ela fez com o seu último sopro de vida enquanto era consumida pelas chamas da fogueira.
- Se eu estivesse a ser queimada viva, tenho a certeza de que também lhe teria rogado algumas pragas.
- Não, não teríeis feito isso. Não com base no que testemunhei da vossa coragem, generosidade e indulgência.
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Meg sentiu-se lisonjeada pela cordialidade com que ele a elogiava, apesar de sentir que não era merecedora. Sir Patrick não a conhecia, não sabia o que ela estivera
prestes a fazer. Eram muito poucas as pessoas que sabiam.
Pensou no momento mais negro da sua vida, quando se encontrava à beira do leito da sua inimiga, Catarina de Médicis, com a lâmina de bruxa cheia de veneno escondida
nas dobras da sua saia. Mais do que a vida da rainha correra risco nesse dia. Também a alma de Meg. Tinha estado tão perto de se render às forças do mal nesse dia,
tendo sido salva por uma ligeira hesitação, um resquício de sanidade mental. Mas a recordação desse acontecimento estaria para sempre consigo, lembrando-lhe aquilo
de que era capaz. Se não se mantivesse vigilante, seria extremamente fácil passar a ser a filha que a sua mãe quisera que fosse.
- Foi uma maldição terrível que essa velha rogou ao rei - continuou Sir Patrick.
"Maldito sejas, Jaime da Escócia. O Inferno está à tua espera! Que um dia pereças consumido pelas chamas! Rogo a minha maldição sobre todos os da Casa de Stuart.
Meg ficou surpreendida perante a alteração na voz dele; falava com um cerrado sotaque escocês. O pai de Meg poderia ter tido um desempenho como aquele com toda a
facilidade. Martin Wolfe era um ator muito talentoso, mas Meg teria pensado que uma imitação daquelas não estaria ao alcance de Sir Patrick. Seria aquele sotaque
o que restava na sua memória dos verões passados na Escócia durante a sua adolescência?
Olhou para ele com curiosidade.
- Como vos lembrais tão bem desse acontecimento, Sir Patrick. Estivestes presente aquando da execução da velha bruxa?
- Não, limito-me a repetir a maldição como me foi descrita pelo rei. Essas palavras têm atormentado sua majestade desde esse dia.
- E é aí que reside o poder de uma maldição, o tormento mental que pode infligir à sua vítima. Obviamente, não se concretizou. Já passaram muitos anos e o rei continua
de boa saúde.
- Até ao momento. Mas ultimamente o rei tem andado extremamente atormentado. Afirma que tem vindo a receber mensagens que parecem ter sido escritas com sangue e
que o ameaçam. "A maldição abater-se-á sobre ti, Jaime da Escócia. Não tardarás a morrer pelo fogo." Mas, ainda mais perturbador, sua majestade viu-a.
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- Quem?
- A Tamsin Rivers.
- A mulher que foi executada? Isso é impossível! - exclamou Meg. com certeza que o rei está enganado.
- Sua majestade jura a pés juntos que jamais se esquecerá do rosto demoníaco da velha bruxa. Diz que a viu num certo número de ocasiões, a pedir esmola na companhia
de uma mendiga cega nas encruzilhadas, a espiá-lo de um arvoredo quando andava a caçar. Numa ocasião até a viu a rondar no lado de fora dos muros do palácio, em
Whitehall.
- E houve mais alguém que a tenha visto?
- Bem... não. O rei mandou os alabardeiros atrás dela, mas parece que ela desapareceu como que por magia. Como um fantasma - acrescentou Sir Patrick constrangido.
Quando Meg soltou um som de impaciência, ele perguntou: - Não acreditais que os mortos podem levantar-se das suas sepulturas?
Meg ansiava poder afirmar que não acreditava, mas sentiu-se atormentada pela recordação de Cassandra Lascelles a movimentar as mãos muito magras por cima da bacia
de cobre fumegante, a conjurar a visão de um qualquer espírito horrível para que se apresentasse.
- Não desconto a possibilidade de um fantasma - admitiu Meg. -- Mas estou em crer que é mais plausível que o vosso rei sofra de alucinações. Talvez, finalmente,
esteja a sentir um ataque de consciência por causa de todas as mulheres que condenou a morrerem na fogueira.
- Ou um ataque relacionado com a maldição da bruxa.
- Em qualquer dos casos, não estou a perceber muito bem por que razão é que me estais a contar tudo isso.
Sir Patrick deteve os seus passos e virou-se de frente para ela.
- Porque tinha esperança de que me acompanhásseis quando regressasse a Londres. Esperava que usásseis os vossos extraordinários poderes para ajudar sua majestade.
Meg ficou a olhar para ele com uma expressão de incredulidade.
- Se estáveis à espera disso, sir, receio ter de vos dizer que estais infetado com a mesma loucura que aflige o vosso rei.
- Não é loucura. Verdade seja dita, existe um precedente dessa situação. Quando a falecida rainha Isabel foi ameaçada por um inimigo que tentou embruxá-la, ela consultou
um mago, o doutor John Dee.
- Mas isso era inteiramente diferente. O doutor Dee era o astrólogo e tutor da rainha Isabel, apesar disso, a dada altura, foi forçado a fugir de
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Inglaterra para escapar às acusações de bruxaria. Se uma coisa dessas pôde acontecer a um homem em quem a rainha depositou plena confiança durante muitos anos, o
que é que vos parece que me aconteceria com um rei que é conhecido por condenar bruxas a morrerem na fogueira? Desde que Jaime Stuart ascendeu ao trono de Inglaterra,
ouvi dizer que as vossas leis contra a prática de bruxaria são mais severas do que nunca.
- Não, posso garantir-vos que o rei tem uma capacidade de discernimento muito maior do que tinha na sua juventude, tem muito mais cuidado quando alguém é acusado
de bruxaria. As leis mais duras são promulgadas pelo Parlamento e não pelo monarca.
- Oh, isso faz com que eu me sinta muito melhor - ripostou Meg com rispidez. - Eu só me arriscaria a ver-me a braços com a severidade de todo o governo inglês.
- O rei responderia pela vossa segurança. Tenho de admitir que não é nada frequente que o rei procure o conselho de mulheres, mas estes acontecimentos mais recentes,
e tão perturbadores, andam a deixá-lo desesperado.
- Nesse caso, devia confiar nos seus próprios ministros e demais membros do governo para que investiguem a situação - disse Meg, recomeçando a caminhar e querendo
pôr fim àquela perturbadora proposta, mas Sir Patrick acompanhou a passada dela, mantendo-se ao seu lado enquanto lhe falava em voz baixa e num tom persuasivo.
- Nenhuma dessas pessoas possui as vossas faculdades, nem tão-pouco os vossos conhecimentos sobre o sobrenatural.
- E se o assunto não tiver nada a ver com o sobrenatural? Parece-me muito mais provável que haja alguém a pregar uma partida maliciosa a sua majestade com o objetivo
de o atormentar ou por vingança. Essa Tamsin Rivers tinha família?
- É possível que tivesse netas. Dizia-se que havia duas jovens que assistiram à morte dela na fogueira, mas, a ser esse o caso, fugiram de Edimburgo pouco depois.
- Muito prudente da parte delas. Nunca é muito salutar ter uma bruxa por avó. - "Ou uma mãe", pensou Meg sombriamente.
- E claro que também havia a outra mulher de que Tam falou aquando do seu julgamento. Ela não se cansou de escarnecer da noção de que estava ao serviço do conde
de Bothwell ou até mesmo do Diabo. "Não sirvo homem nenhum", vangloriou-se ela. "Não sirvo ninguém, além da minha senhora, a maior feiticeira de todos os tempos,
Megera."
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Meg couraçou-se para não mostrar qualquer reação, mas não conseguiu evitar um estremecimento ao ouvir o seu antigo nome.
- Já ouvistes falar desta bruxa?
- Não, eu... eu... - Se Sir Patrick não lhe tivesse causado um choque tão grande, Meg talvez tivesse sido capaz de negar de uma maneira mais convincente. Ao invés
disso, gaguejou. - Bem, sim, desde... desde sempre que têm circulado histórias acerca de uma feiticeira de nome Rosa de Prata. Mas tenho a certeza de que não passam
de mitos ridículos.
- A Rosa de Prata. Mas isso podia explicar muita coisa.
- Explicar o quê? - perguntou Meg exacerbada.
- O relatório de um dos guardas aos quais o rei ordenou que prendessem a Tamsin Rivers quando ela apareceu no pátio do palácio. O homem não encontrou vestígios da
presença dela, mas encontrou no chão umas estranhas pétalas, como ele nunca tinha visto. As pétalas de rosa cintilavam como se estivessem cobertas de prata.
Meg sentiu que o seu rosto ficava sem pinga de sangue.
- Haveis empalidecido imenso - comentou Sir Patrick, fitando-a atentamente. - Estais a sentir-vos mal?
Meg humedeceu os lábios, que, subitamente, haviam ficado secos.
- Estou... estou bem. Só que eu... eu devo ter-me esquecido do meu manto na estalagem e, de repente, comecei a sentir frio.
- com vossa licença...
Antes que Meg pudesse protestar, ele tirou a capa, que pôs pelos ombros dela. O tecido tinha o calor do corpo dele e estava impregnado da fragrância de sândalo.
Sir Patrick prendeu o fecho de prata no pescoço dela, tocando-lhe com a mão na face.
- Estais a sentir-vos melhor assim? - perguntou-lhe ele com um sorriso.
- Sim, obrigada. - Meg tinha consciência de que o bater do seu coração se acelerara e tentou afastar-se dele, sentindo-se embaraçada. Mas as mãos cálidas dele pegaram
nas dela.
- Se consentísseis em ir para Inglaterra comigo, durante a vossa estada estaríeis sob a minha proteção. Eu não me pouparia a esforços para garantir o vosso conforto
e segurança. Não sois capaz de imaginar o quanto eu preciso... o quanto o rei precisa de vós. Estais disposta a acompanhar-me?
Os olhos dele fixaram-se nos dela e Meg sentiu-se perigosamente atraída pela súplica que viu naqueles olhos de um azul intenso.
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- Não sei. Preciso de pensar no assunto.
- Quem me dera poder permitir-vos o tempo de que precisais para refletir, mas, como deveis compreender, trata-se de uma questão de alguma urgência. Não posso dar-me
ao luxo de me demorar aqui mais de um dia. Será possível saber a vossa resposta ao fim do dia?
Meg acenou que sim, afastando-se dele. Apercebeu-se de que tinha quebrado a promessa que fizera a Seraphine, tendo-se afastado bastante do ângulo de visão de quem
estivesse na barraca improvisada da mère Poulet.
Estugou o passo, distanciando-se de Sir Patrick no percurso de regresso ou talvez ele se tivesse deixado ficar para trás deliberadamente, para lhe permitir que refletisse
sobre o que acabara de ouvir. Meg aconchegou-se na capa, grata por estar a agasalhá-la. Contudo, continuava arrepiada devido à revelação da Velha Tam.
"Não sirvo ninguém, além da minha senhora, a maior feiticeira de todos os tempos, Megera."
Meg esforçou-se por trazer à memória todas as vezes em que a mãe a obrigara a aparecer diante das seguidoras da Rosa de Prata, a transpirar profusamente no pesado
manto e com uma coroa na cabeça, como se fosse uma rainha. Sentada num trono tão alto que os seus pés nem sequer tocavam no chão, Meg havia sido obrigada a estender
a mão pequena enquanto as mulheres da assembleia de bruxas se ajoelhavam diante dela, prestando-lhe vassalagem.
Por muito que tentasse recordar-se, não se lembrava de ninguém de nome Tamsin Rivers. Mas isso não era de admirar. Tinham sido inúmeras as mulheres iludidas que
a mãe recrutara para a Irmandade da Rosa de Prata.
Depois da morte de Cassandra Lascelles por afogamento, a irmandade das bruxas dispersara-se, com as mulheres a fugirem dos caçadores de bruxas e dos soldados da
Rainha das Trevas. Seria possível que uma delas tivesse conseguido fugir para as terras longínquas da Escócia?
Em princípio, isso não devia ter importância porque a Velha Tam estava morta. Meg não podia acreditar que o seu espírito se tivesse erguido dos mortos para atormentar
o rei e dar cumprimento à sua maldição. Todavia, havia alguém que estava a fazer precisamente isso, alguém bem vivo e com conhecimento da irmandade das bruxas, alguém
que sabia como aplicar uma camada prateada brilhante a pétalas de rosa.
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Mas quem? Meg estremeceu, demasiado atemorizada para considerar uma determinada possibilidade. Mergulhada no torvelinho dos seus pensamentos, não reparou em Armagil
Blackwood até ele ter surgido inesperadamente no seu caminho. Incapaz de se deter a tempo, chocou com ele. Foi como colidir com uma parede de granito e Meg cambaleou
para trás. Ele agarrou-a pelos ombros para que não se desequilibrasse.
- com a breca! Veja onde põe os pés... - interrompeu-se ao ver a cara dela. - Mas o que diabo é que se passa consigo, mulher? Parece que viu um fantasma.
E ele não fazia ideia. Meg teve de conter uma vontade quase irreprimível de desatar a rir histericamente. Titubeou uma desculpa qualquer, alegando que tinha caminhado
até muito longe e por isso estava cansada, mas Blackwood parecia não estar a ouvir o que ela dizia.
O olhar dele fixou-se na capa de Sir Patrick que envolvia os ombros de Meg, arqueando uma sobrancelha. Meg ficou irritada ao sentir as faces ruborizadas. Esgueirou-se
das mãos de Blackwood e, constrangida, alisou as dobras do tecido da capa. Antes que ele pudesse fazer algum comentário irritante, Meg antecipou-se-lhe.
- Como é que está a Hortense? - perguntou.
- Consegui persuadi-la a ir para a ilha Encantada e Madame la comtesse está a ajudá-la a juntar as suas coisas. O que não deve levar muito tempo, mas é melhor que
se apressem antes que a Hortense mude de ideias. Ambas têm de voltar para essa vossa ilha. E fiquem lá!
Era impossível não reparar no tom cáustico subjacente às últimas três palavras de Blackwood nem no olhar penetrante com que a fitava.
- Deduzo que estejais a par do que Sir Patrick me pediu que fizesse disse Meg.
- Sim, estou e ele fez isso à revelia do que eu o aconselhei.
- Mas ele disse que o rei...
- O rei que vá para o diabo. Deveis voltar para a ilha Encantada e esquecer tudo isto. Não tendes necessidade de vos envolverdes em assuntos que não vos dizem respeito.
- Blackwood falava-lhe com tanta rispidez e mostrava-se tão encolerizado que Meg recuou um passo.
- As vossas palavras são um conselho ou uma advertência?
- Interprete-as como vos aprouver. Não me arrogo o direito de dizer que pertenço à nobreza, nem que sou um gentil-homem. Mas, ocasionalmente, sou incentivado pelo
anjo bom da minha natureza, embora tenha
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passado a ser muito raro que lhe dê ouvidos. - A despeito da ira, os seus olhos ficaram toldados por uma expressão de alguma tristeza. - Mas seria acertado da vossa
parte se fizésseis como vos digo.
com estas palavras, Blackwood afastou-se antes de Meg poder fazer-lhe quaisquer perguntas, encaminhando-se de volta à barraca de Hortense. Passou por Seraphine,
que ainda chegara a tempo de ouvir o último comentário dele. Olhou para Meg com uma cara de desconfiança.
- O que é que seria acertado que fizesses? O que é que se passa, Meg? De que é que o Graham te queria falar?
Meg ansiava por dispor de mais tempo para poder refletir em sossego, mas não viu maneira de poder evitar as perguntas de Seraphine. Relatou-lhe a conversa que tivera
com Sir Patrick tão sucintamente quanto lhe foi possível, enquanto se preparava para a explosão que seria inevitável.
Mal tinha chegado ao fim da sua narrativa e já Seraphine lhe gritava.
- Mas perdeste o juízo por completo? O que é que queres dizer com precisares de tempo para refletires sobre a tua resposta? Só pode haver uma resposta para um pedido
tão tresloucado. Danação e que ele vá para o Inferno, não!
- As coisas não são assim tão simples.
- Ah, isso é que são. - Seraphine começou a andar de um lado para o outro, sem parar de agitar os braços, como se as palavras por si só não fossem suficientes para
expressar a dimensão da sua indignação. - Arriscares a cabeça ao viajares para Inglaterra com o objetivo de salvares Jaime Stuart dos seus próprios demónios? Porquê?
Sabes bem o que o homem é. Entre outras coisas, ele é o autor de um tratado sobre como detetar e examinar bruxas. O seu Demonologia é uma autêntica bíblia para os
caçadores de bruxas.
- Eu sei. Li esse livro aconselhada pela Ariane. Ela achava que era aconselhável que se estudasse as superstições e mal-entendidos relacionados com a bruxaria.
- Ela também me disse que o lesse. Cheguei até ao primeiro capítulo, antes de o rasgar em pedaços e atirar o resto para o lume.
-Jaime Stuart era muito novo quando escreveu esse livro. Sir Patrick acredita que, com a idade, o rei ficou mais sensato.
- Mais sensato como? - perguntou Seraphine num tom de chacota.
- Aperfeiçoou os seus talentos para torturar e queimar mulheres inocentes? Na minha opinião, ele já faz isso bastante bem. Já é responsável pela morte de demasiada
gente.
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- Não obstante...
- Desta vez não há "não obstante", Meg. Sei que te sentes obrigada a investigar qualquer rumor que envolva a antiga irmandade das bruxas da tua mãe, mas...
- Parece-me que desta vez é mais do que um mero rumor. O mais plausível é que o rei tenha imaginado que viu a Tamsin Rivers, mas essas pétalas prateadas que o guarda
do rei encontrou eram muito genuínas.
"Esse guarda teve a sorte de ter encontrado apenas as pétalas e não a rosa com o seu espinho venenoso. Contém uma toxina extremamente mortal que causa uma morte
excruciantemente dolorosa e demorada. Até mesmo entre as bruxas da irmandade, eram muito poucas em quem a minha mãe confiava para prepararem essa infusão venenosa.
Era muito difícil de preparar como devia ser... e estou em crer que todas as que sabiam como prepará-la estão mortas.
Meg mordeu o lábio inferior antes de prosseguir.
- Sir Patrick mencionou outra coisa que me alarmou, embora ele não conhecesse o seu significado. Ele disse que o rei acreditava ter visto a Tamsin Rivers na companhia
de uma mendiga, uma mendiga cega.
Seraphine estacou para poder olhar fixamente para a amiga.
- Oh, Meg! com certeza que não estás a imaginar que a tua mãe possa estar por detrás de tudo isto. Que a Cassandra Lascelles continue viva? Tu própria viste que
ela morreu afogada.
- Não, eu vi-a desaparecer abaixo da superfície das águas do rio Sena, mas o corpo dela nunca foi encontrado. Presumi que estivesse morta, no entanto, uma parte
de mim sempre se interrogou e receou.
- Mas se ela, vá-se lá saber como, conseguiu sobreviver, com certeza que teria tentado procurar-te. Eras a sua única filha, a sua única esperança de fazer com que
os seus sonhos loucos se concretizassem.
- Estás a esquecer-te de que o meu pai me escondeu em Inglaterra durante algum tempo e depois vim viver para a ilha Encantada sob a proteção da Ariane. Além disso,
a minha mãe estava profundamente descontente comigo. Chegou à conclusão de que eu não era digna de ser a Rosa de Prata. E se ela desistiu de mim mas não do sonho
de chegar a ver uma feiticeira a governar o mundo em vez de reis? E se ela continuar viva, tendo andado a conspirar durante todo este tempo?
- Não faças isso, Meggie - retorquiu Seraphine, agarrando-a pelos ombros. Apesar de a agarrar com firmeza, o seu tom de voz era invulgarmente
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suave. - Não te atormentes com essas fantasias sem pés nem cabeça. Não deixes que Sir Patrick e as suas histórias a respeito do seu rei, um homem estúpido e louco,
façam com que voltes a viver atemorizada.
- Nunca deixei de recear o meu passado, Phine. Só consegui suprimi-lo do meu pensamento. Se eu decidir ir a Inglaterra, não será por causa de Sir Patrick nem do
seu rei. Seria por mim, para conseguir livrar-me dos meus próprios fantasmas para sempre.
- Se? Até parece que já decidiste.
Meg apercebeu-se de que assim era, mas não disse nada, deixando que fosse o seu silêncio a falar por si.
- Faça-se como queiras. Só quero fazer-te mais uma pergunta continuou Seraphine.
Meg preparou-se para mais um dos aguerridos argumentos da amiga, mas Seraphine limitou-se a um suspiro que indicava que se dava por vencida.
- Quando é que partimos?
O Orion cortava as águas turvas do rio Tamisa, a maré e o remar ritmado dos remadores da galé a impulsionarem o navio que navegava em direção a montante. Meg conseguiu
aproximar-se da amurada a bombordo sem que o convés se inclinasse acentuadamente debaixo dos seus pés, como tinha acontecido durante a travessia tormentosa do canal
da Mancha e quando contornaram a costa através do mar do Norte.
O Sol mal se erguera no firmamento e as margens à distância continuavam envoltas em brumas. As únicas pessoas, além dela, que se encontravam no convés eram membros
da tripulação e o outro passageiro que não pertencia ao grupo que viajava com Sir Patrick.
John Johnston subira a bordo em Saint-Malo. Apresentara-se como sendo o agente de um comerciante de lã de Londres, o qual o enviara aos Países Baixos na esperança
de poder entrar em novos mercados. Era um homem alto, com um cabelo de um castanho-arruivado e uma barba farfalhuda, que preferia manter-se à distância, o que agradava
a Meg. A postura rígida de Johnston e os olhos de expressão fria causavam-lhe mal-estar.
A travessia por águas encapeladas não afetara Meg tão adversamente como afetou Seraphine, mas sentia-se grata por se encontrar em águas mais mansas. O ar naquela
manhã estava fresco, anunciando um outono antecipado. Meg esquecera-se do seu manto, mas estava relutante em voltar para o camarote que partilhava com Seraphine
para ir buscar o agasalho.
Se lhes tivesse sido possível fazer toda a viagem a cavalo, Seraphine teria sido uma viajante intrépida e uma companheira agradável. Mas uma Seraphine confinada
a um navio durante tanto tempo era uma criatura inteiramente diferente, mas Sir Patrick estivera ansioso por regressar a Londres
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o mais depressa possível. Por isso, e alegando o estado das estradas em Inglaterra, tinha insistido para que fizessem a viagem pelo rio e dizendo que seria mais
rápido. Seraphine concordara relutantemente, mas a verdade é que não passava nada bem desde que haviam levantado âncora.
Meg fizera todos os possíveis para aliviar o sofrimento da amiga, mas quando Seraphine lhe ordenou que saísse para a deixar morrer em paz e sossego, foi com alívio
que lhe obedeceu.
Agarrou-se à amurada e ergueu a cara para sentir a brisa fresca. Não gostava mais de viajar por mar do que Seraphine, mas o seu desagrado devia-se mais ao peso de
recordações penosas do que a qualquer desconforto físico.
Durante muitos anos, Meg albergara um medo secreto da água, uma ansiedade que vencera por fim ao fazer o seu melhor para suprimir a recordação da mãe a afogar-se.
Mas enquanto olhava para as águas salobras do Tamisa, os seus pensamentos também remoinharam, arrastando-a de retorno ao último dia em que vira a mãe com vida.
Meg tinha gorado o esquema de Cassandra Lascelles de disseminar um miasma venenoso por cima dos jardins do Louvre, com o intuito de matar a Rainha Viúva de França,
Catarina de Médicis, e quem tivesse a pouca sorte de se encontrar perto dela.
Descoberto o seu plano, Cassandra havia sido obrigada a fugir, arrastando Meg consigo. A mãe tinha ficado furiosa e Meg tremera com medo do castigo que sabia que
não tardaria. Cassandra Lascelles era perita a infligir dor, em especial à sua própria filha.
Mas o pai chegara a tempo de a tirar à mãe. Quando a guarda do palácio os alcançou, Cassandra pôs-se em fuga, tropeçando e caindo no rio. A corrente estava muito
forte nesse dia e a mãe ficou com o vestido encharcado, pelo que o peso do tecido a arrastou para o fundo. Ninguém tinha conseguido salvá-la.
"Mas devias ter tentado", disse uma voz insistente dentro de si.
"Eu era apenas uma criança. Uma garotinha pequena e aterrorizada", respondeu a parte racional de Meg. Contudo, havia um vago sentimento de culpa que nunca a abandonava.
Independentemente do que Cassandra tivesse sido, era a sua mãe. Conquanto Meg temesse a perspetiva de poder encontrar Cassandra viva, havia uma pequena parte do
seu coração que esperava que isso se concretizasse.
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Que Cassandra regressasse e que fosse a mãe por que Meg sempre ansiara, uma mãe que a abraçasse com ternura e que lhe dissesse que a amava. A fantasia de uma criança,
pensou Meg com tristeza. Estava bem ciente de que, se Cassandra tivesse sobrevivido, só tentaria envolver Meg nos seus loucos esquemas.
Se a mãe tivesse sobrevivido realmente... essa probabilidade causou um calafrio que percorreu o corpo de Meg, envolvendo-se nos seus próprios braços.
Ouviu o som de passos atrás de si. Sir Patrick, pensou ela, com um pequeno sorriso involuntário nos lábios. Sem a importunar, ele mantinha-se vigilante na medida
do possível, certificando-se de que ela fazia a viagem confortavelmente, tal como lhe prometera.
Meg deu meia-volta para o cumprimentar, mas o seu sorriso ficou petrificado. Sentiu-se tensa ao deparar com Blackwood, que se aproximava com o cenho franzido habitual
e um manto de lã atirado sobre o ombro.
- Para uma mulher que é considerada tão sensata, falta-vos muito bom senso. Agasalhai-vos com esta capa para não morrerdes com uma pneumonia. - Blackwood não lhe
colocou o agasalho pelas costas com tanta gentileza como Graham teria feito. Atirou-lhe o manto para cima dos ombros como teria atirado uma manta para cima do dorso
do seu cavalo.
- Obrigada - murmurou Meg surpreendida. Blackwood tinha-a evitado desde o dia em que a advertira para que voltasse para a ilha Encantada. Deixara bem claro que não
queria que ela fosse a Inglaterra, tendo ficado irritado com Meg por causa disso, mal lhe dirigindo a palavra durante toda a viagem. Para constrangimento de Meg,
apanhara-o frequentemente com o olhar assestado em si sempre que passeava pelo convés com Sir Patrick. Blackwood tinha um olhar extremamente inquietante.
Quando Meg apertou o fecho, franziu as sobrancelhas ao constatar que o manto lhe pertencia.
- Entrastes no meu camarote para me trazerdes isto?
- Pensei em ir ver como é que a vossa amiga estava a passar. Não vos esquecestes de que sou um médico, pois não? - acrescentou Blackwood um tanto ou quanto na defensiva.
- E o que é que Madame la Comtesse respondeu à vossa pergunta sobre o seu estado de saúde?
- Ameaçou que me atirava com o bacio, por isso peguei no manto e tratei de bater em retirada sem mais delongas.
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- Muito prudente da vossa parte. A Seraphine tem uma pontaria excelente.
- Talvez ela tenha boa pontaria, mas dado que parece que eu inspiro um impulso nas mulheres que as leva a quererem atirar-me com coisas, passei a ser muito bom a
esquivar-me.
A despeito de si própria, Meg riu-se, enquanto ele lhe sorriu, a primeira vez que lhe sorria em vários dias. Sentiu-se inesperadamente acalentada pelo sorriso dele.
Blackwood juntou-se a ela junto da amurada. Sir Patrick mantinha sempre uma distância cortês entre os dois, ao contrário de Blackwood, que se chegou tanto que roçou
por ela. O homem tinha uma presença avassaladora, como se estivesse a apoderar-se da quota-parte de ar de Meg, deixando-a ligeiramente sem fôlego.
Meg afastou-se um pouco dele. Nunca havia sido pessoa muito faladora, mas sentiu-se como que galvanizada, começando a falar nervosamente.
- Sir Patrick diz que aportaremos em Gravesend dentro em pouco. De lá, temos de mudar para uma barca que nos levará durante o resto do percurso. Sir Patrick acredita
que é possível que cheguemos a Londres ao cair da noite.
- É provável que o Graham tenha razão.
- A Seraphine ficará muito satisfeita quando chegarmos a terra. Ela considera que estar a bordo deste navio é o equivalente a estar no cárcere.
- Se ela pensa isso, é óbvio que Madame la Comtesse nunca esteve numa prisão.
- E vós, haveis estado?
- Sim.
Meg já devia estar acostumada à frontalidade dele, mas sabia de muito poucos homens que admitiriam tão casualmente uma coisa dessas. Blackwood devia ter-se apercebido
da expressão de choque nos olhos dela porque começou a rir-se.
- Não há motivo para alarme. Passei um ano a desfrutar da hospitalidade da prisão de Newgate, mas não foi por nada como assassinar os meus pacientes. Já matei alguns,
mas exclusivamente por acidente. Fui parar à prisão por estar atolado em dívidas.
- E haveis estado encarcerado durante um ano inteiro por isso? perguntou Meg indignada. - Sempre achei que o conceito de punir os
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devedores dessa maneira é absurdo. Como é que uma pessoa poderá pagar as suas dívidas se estiver encarcerado, portanto, impedido de trabalhar? Suponho que tenhais
tido um amigo que vos socorreu?
- Não exatamente. Quando o rei Jaime ascendeu ao trono, promulgou um indulto geral que abrangeu todos os gatunos, proxenetas e inúteis como eu, libertando toda a
gente do cárcere, isto é, excetuando os assassinos e os católicos. E foi assim que fui posto em liberdade - explicou Blackwood, tirando uma pequena garrafa forrada
a couro de dentro do manto e desarrolhando-a. - Deus salve o rei. - Havia um traço de troça no seu brinde. Bebeu um trago, após o que ofereceu a bebida a Meg. Quando
ela recusou com um abanar da cabeça, ele insistiu. - É aqua vitae. Ajudá-la-á a aquecer.
- O mais certo seria eu ficar com uma dor de cabeça excruciante e com o estômago destruído. Não devíeis beber uma coisa tão perniciosa. Se tendes de ingerir bebidas
fortes, devíeis experimentar beber uísque irlandês. A minha mãe, Catriona OHanlon, garante que é uma bebida de qualidade.
- A vossa mãe era irlandesa?
- Madrasta - emendou Meg, se bem que nunca tivesse associado Cat a toda a carga negativa do termo, mas sim mais a uma irmã mais velha e mais sensata. - O meu pai
desposou-a no ano em que fiz dez anos.
- E quanto à vossa própria mãe?
A pergunta fez com que Meg ficasse tensa, o seu olhar a concentrar-se na ligeira ondulação das águas escuras do rio. Uma imagem passou-lhe fugidiamente pela mente,
a mão muito branca de Cassandra a aparecer à tona da água pela última vez antes de ela desaparecer.
- Ela afogou-se quando eu tinha nove anos.
- Foi um acidente?
- O que é que vos leva a fazer essa pergunta? - perguntou Meg rispidamente.
- Não sei dizer. Foi apenas por causa de qualquer coisa que vi na vossa fisionomia. - O olhar de Blackwood perscrutou os olhos dela. Os olhos dele, por vezes, davam
a impressão de serem quase azuis, mas naquela manhã tendiam para o cinzento, refletindo o tom carregado do firmamento e das águas do rio. - A vossa mãe não teria
sido a primeira a procurar essa solução que é fruto de um desespero esmagador. As marés das águas do Tamisa levam muitas almas desgraçadas todos os anos.
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A minha mãe não se matou - retorquiu Meg, todavia os seus pensamentos retornaram a esses últimos minutos da vida da mãe quando tudo se havia acabado para Cassandra
Lascelles, os seus esquemas nefastos, os seus sonhos e até mesmo a posse de Meg. Quando percebeu que não conseguiria evitar que Martin Wolfe lhe tirasse a filha,
Cassandra deixara-se cair de joelhos com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces.
"Não! O que é que me fizeste? Não podes levar a minha Rosa de Prata! Ela é tudo o que eu tenho."
A mãe tinha sido uma mulher tão orgulhosa, tão aguerrida, sem nunca mostrar a mínima fraqueza e sem nunca chorar. Seria possível que se tivesse atirado ao rio? Meg
não podia ter a certeza, mas insistiu.
Tratou-se de um acidente. A minha mãe era cega. Quando tropeçou estava muito perto da linha de água do rio.
Blackwood pousou a mão em cima da dela na amurada.
- Fosse como fosse, a culpa não foi vossa.
Não teria sido? Meg também nunca tivera a certeza absoluta quanto a isso. Uma vez mais, ficou assombrada pelo sentido de perceção de Blackwood. Era quase como se
o homem possuísse a faculdade de ler olhos, o que teria sido bastante injusto porque ela não conseguia ler os dele por muito que se esforçasse. Meg só sabia que
ele estava a mostrar-se inesperadamente gentil e amável.
Os dedos de Blackwood entrelaçaram-se nos dela e ele passou o polegar ao de leve pelas costas da mão dela. Um gesto inconsequente da parte dele, do que ela estava
certa, mas que estava a ter um efeito inexplicável em si, fazendo com que sentisse um formigueiro na pele. Meg afastou-se um pouco dele. Ocultou as mãos dentro do
manto e tentou mudar de assunto.
- Parece-me que já não estais irritado comigo.
- Por causa do quê?
Por ter ignorado a vossa advertência, quando me dissestes que devia voltar para a ilha Encantada.
- O meu conselho - corrigiu Blackwood. - Sim, talvez eu me tenha sentido vexado por não terdes tido o bom senso de regressar à ilha acompanhada da Hortense.
- Continuo perplexa por ela ter concordado. Nunca me chegastes a dizer como é que conseguistes convencê-la.
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- Não foi muito difícil. Limitei-me a dizer-lhe que, se fosse uma boa rapariga e fosse para a ilha, um dia iria para a cama com ela outra vez.
- Dissestes-lhe o quê!? Faríeis realmente uma coisa dessas?
- Talvez... se estivesse suficientemente bêbado - respondeu Blackwood, fazendo uma pausa e parecendo estar a desfrutar do choque que se refletia no semblante dela
antes de acrescentar: - Claro que não faria uma coisa dessas.
- Portanto, haveis feito uma promessa a essa pobre mulher que não tínheis a intenção de cumprir. Devíeis ter vergonha de vós próprio.
- Eu teria dito à Hortense tudo e mais alguma coisa para a persuadir a ir para onde ficaria em segurança. Ter-vos-ia feito a mesma promessa se pensasse que teria
dado resultado. - O olhar dele demorou-se em Meg, avaliando-a sem o mínimo pejo. - Se bem que, no vosso caso, seria uma promessa que me sentiria muito tentado a
cumprir.
- Uma promessa dessas não me teria induzido minimamente a proceder como estais a sugerir.
- Não? O que dizeis deve-se apenas ao facto de nunca terdes ido para a cama comigo.
- E nunca irei!
- Provavelmente, não - concordou Blackwood, soltando um suspiro de troça. - E isso porque já vos haveis rendido aos encantos dos melancólicos olhos azuis do Graham.
- Não fiz nada disso - ripostou Meg, sentindo as bochechas a arderem.
- Não há necessidade nenhuma de estardes a mortificar-vos, minha querida. Não sois a primeira jovem senhora a quem isso acontece, mas não obtereis qualquer resultado.
O Graham está bastante determinado no que diz respeito aos seus objetivos e estes não incluem andar atrás de mulheres.
- E isso por que Sir Patrick é um gentil-homem do mais galante e cortês que se possa imaginar. A tal ponto que me custa a crer que vós e ele possam ser amigos. Pareceis-me
um par muito inverosímil.
- Tal como vós e Madame la Comtesse sois.
Meg virou a cara, fixando o olhar na direção dos aterros envoltos em brumas. Sentia-se irritada com Blackwood por ter feito com que corasse, mas ainda mais irritada
consigo própria por não lhe ter virado costas. Mas não conseguiu resistir à oportunidade de ficar a saber mais acerca de Sir Patrick.
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- Há muito tempo que vós e Sir Patrick são amigos? - perguntou-lhe Meg.
- Desde os nossos tempos de estudantes na Universidade de Oxford. Encontrávamo-nos entre os seres humildes que eram obrigados a trabalhar para podermos pagar as
propinas e, por isso, éramos desprezados pelos filhos dos ricos e privilegiados. Não que Graham prestasse grande atenção ou se importasse com isso. Andava sempre
tão embrenhado nos seus livros. Suponho que eu próprio devia ter estudado com o mesmo afinco, mas a verdade é que considerava mais gratificante fazer tudo o que
me era possível para desviar o Graham do caminho da virtude.
- Estudastes para vires a ser um médico. Qual era o objetivo dos estudos de Sir Patrick?
- O martírio - resmungou Blackwood.
- Peço desculpa?
As feições de Blackwood ensombraram-se, mas forçou-se a esboçar um sorriso.
- Quero dizer que o homem foi um mártir a estudar latim e grego. Estou um pouco familiarizado com a Universidade de Oxford. Ouvi dizer que muitos dos decanos das
faculdades têm a reputação de, secretamente, encorajarem a prática da religião católica. A fé religiosa de Sir Patrick.
- Blackwood fez um gesto com que dava o assunto por encerrado, mas Meg deu continuidade ao assunto.
-Já o vi a fazer o sinal da cruz e houve uma ocasião em que o vi mesmo a rezar o terço.
- O homem tem de se livrar do raio do rosário antes de chegarmos ao porto. Se ele for apanhado com um rosário, isso pode custar-lhe a sua liberdade, talvez mesmo
a sua vida. No mínimo dos mínimos, perderia o posto que tem na corte, além de ter de pagar uma pesada multa.
- Isso significa que o governo inglês não é mais clemente para com os da religião católica do que Isabel durante o seu reinado, não é verdade?
- Clemente! - exclamou Blackwood, bufando de indignação. O conselho da coroa é ainda mais intolerante desde que o rei Jaime ascendeu ao trono. Quando ele aspirava
a vir a ser o rei de Inglaterra, Jaime Stuart desfazia-se em sorrisos e promessas para toda a gente. Os católicos ficaram jubilantes, acreditando que tinham razões
para se sentirem esperançados, mas não tardou a ficar provado que temos um rei que prefere
caçar a reinar. Ele parece satisfeito em deixar a questão da religião a cargo do Parlamento, especialmente agora que o rei Jaime descobriu como a perseguição movida
aos não-conformistas pode ser lucrativa. Propriedades confiscadas e pesadas multas podem proporcionar a um monarca inúmeros cavalos e cães de caça.
Meg pestanejou de surpresa perante as palavras tão exaltadas dele. Daquilo que ela vira do seu comportamento a bordo do navio, concluía que Blackwood tratava todos
com uma indiferença prazenteira. Meg nunca o vira a manifestar tanta emoção.
- Não pareceis dedicar grande estima ao vosso rei - disse Meg.
- Eu teria sido levada a pensar que talvez sentísseis alguma gratidão para com ele.
- Pelo quê? Pela sua magnanimidade em perdoar um desavergonhado como eu? Ele teria feito muito melhor se tivesse estendido a sua misericórdia a alguém que fosse
realmente merecedor.
- É essa a verdadeira razão por que ficastes tão encolerizado comigo por ter decidido ir a Inglaterra para anular a praga que lhe rogaram? Desprezais tanto Jaime
Stuart que não quereis que eu o ajude?
- O facto de o ajudardes ou não é-me absolutamente indiferente. Duvido muito que sejais capaz disso. Ninguém poderá salvar Jaime Stuart das suas próprias tolices.
- Blackwood obrigou-se a dar uma gargalhada, relaxando as feições tensas, que adquiriram uma expressão sardónica.
- Mas eu não devia julgá-lo tão implacavelmente quando eu próprio sou tão tolo como ele. Acabei de pôr a minha vida nas vossas mãos. Quando tiverdes a vossa audiência
com o rei, só tereis de lhe repetir as minhas palavras de traição e acabarei por comer o pão que o diabo amassou.
- Eu jamais faria uma coisa dessas.
- Não, não faríeis, pois não? - Blackwood inclinou a cabeça de Meg para cima, perscrutando-lhe o rosto. - Sois uma coisinha tão solene e formal, mas esses vossos
olhos... tão misteriosos, tão cheios de um ardor oculto. Estou em crer que seríeis capaz de trespassar a alma de um homem com eles, mesmerizá-lo ao ponto de colocar
todos os seus segredos nas vossas mãos.
- Isso quer dizer que tendes assim tantos segredos, doutor Blackwood? Devo confessar que não consigo encontrar absolutamente nenhuma janela de acesso à vossa mente
- acrescentou Meg.
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- O que me proporciona grande satisfação, milady. Porque se lêsseis os pensamentos que me passam pela cabeça, o mais certo seria que pedísseis à condessa que me
passasse a fio de espada.
Blackwood inclinou-se para a frente e beijou-a. Sorriu e afastou-se, deixando Meg quase sem fôlego e irritada, tanto consigo própria como com ele.
Já havia sido beijada e abraçada com mais ternura, mas nunca de uma maneira que fizesse com que o seu coração batesse daquele modo. O beijo de Blackwood havia sido
vigoroso, rápido e assombroso, como roçar por um ferro incandescente. Meg teve de resistir à vontade de se abanar com a mão.
Se Blackwood, por acaso, olhasse para trás, decerto que se teria sentido divertido. Mas pareceu ter encontrado uma nova vítima para atormentar. O semblante do senhor
Johnston estava longe de ser caloroso quando ele se aproximou.
Outro homem qualquer ter-se-ia apercebido da cara de poucos amigos, mas Meg duvidava de que alguma coisa menos do que um tabefe repelisse Blackwood.
Cumprimentou Johnston com uma calorosa palmada no ombro e um sorriso rasgado, como se fossem bons amigos. Até mesmo no lado oposto do convés, Meg viu que Johnston
rangia os dentes, deixando bem claro que preferia estar sozinho, mas Blackwood não perdia uma oportunidade de abordar o homem.
Meg desconfiava que o físico se estava a comportar daquela maneira para irritar o carrancudo senhor Johnston. Blackwood parecia possuir uma faceta provocadora, levando
até os assuntos mais sérios para a brincadeira.
A conversa acalorada em relação às injustiças de que os católicos ingleses eram vítimas tinha-a deixado perplexa e confusa. Perguntava-se se Blackwood, como o amigo,
também era um não-conformista. No entanto, tinha alguma dificuldade em imaginá-lo assim tão devoto.
Mesmo assim, ele e Sir Patrick haviam sido grandes amigos em Oxford, estudantes pobres que eram forçados a trabalhar para pagarem os estudos. Esse fora outro comentário
que Blackwood fizera que a surpreendeu. Sir Patrick afirmara que vinha de uma família da burguesia de Middlesex proprietária de terras. com certeza que teriam tido
meios para pagar uma boa educação ao seu único filho.
? Mas como tinha acontecido a muitas famílias não-conformistas, era possível que tivessem ficado empobrecidos pela coroa inglesa. Se fosse esse o caso, Sir Patrick
não mostrava azedume. Ao contrário de Blackwood, Graham era de uma dedicação incondicional ao rei Jaime. Ou, pelo menos, assim parecia. Não obstante toda a sua afabilidade
e cortesia, Meg não tinha a certeza de compreender Sir Patrick melhor do que compreendia Blackwood.
Foi despertada dos seus pensamentos ao ver Seraphine, inesperadamente, a cambalear na sua direção. Tinha umas olheiras muito escuras e o cabelo de uma textura sedosa
e ondulado caía-lhe despenteado em volta dos ombros, mas via-se uma ligeira cor que começava a voltar-lhe às faces pálidas.
- Estou a ver que, afinal de contas, não morreste - disse Meg à guisa de saudação.
Os passos de Seraphine eram dados com toda a cautela, como se ainda esperasse que o convés oscilasse ou o seu estômago começasse a andar às voltas.
- Decidi continuar a viver, pelo menos até chegarmos a terra. Raios me partam se hei de morrer neste ataúde flutuante.
- Estamos a aproximar-nos de Gravesend.
- Sim, estou - retorquiu Seraphine com um dramático suspiro.
- Estou a referir-me a Gravesend, o porto em que desembarcaremos e não a uma sepultura1...
A expressão no rosto de Seraphine iluminou-se.
- ... e passaremos para a barca que nos levará para Londres.
Seraphine gemeu, juntando-se a Meg junto da amurada e tendo o cuidado de manter o olhar afastado das águas do rio. O nevoeiro já se tinha dissipado, permitindo que
Meg visse três crianças a brincarem num aterro à distância. Acenaram ao navio que passava e Meg ergueu a mão para lhes retribuir o acenar.
- O que é feito do teu pretendente desta manhã? - perguntou Seraphine.
- Se estás a referir-te a Sir Patrick, não faço ideia nenhuma. Mas diria que continua lá em baixo a dormir na sua cama de rede.
- Enquanto eu estive a morrer naquele camarote infeto, dispus de muito tempo para poder pensar em ti.
1. Grave em inglês significa sepultura. (N. da T.)
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- Deus me ajude - disse Meg, mas Seraphine ignorou o seu comentário, prosseguindo.
- Sempre considerei que te preocupavas de mais com o passado e com a tua mãe. Todavia, estou em crer que sei qual é o teu verdadeiro problema, Margaret Wolfe.
- Rogo-te que me esclareças. - Mais lhe valia incentivar Seraphine a falar porque a amiga diria o que tinha a dizer quer ela quisesse quer não.
- Tu levas uma vida demasiado sossegada nessa tua ilha. Tens trinta e um anos, não és casada e continuas a ser virgem. Se tivesses mais experiência do mundo, não
te sentirias enfeitiçada por Sir Patrick, demasiado pronta a confiar no primeiro homem bem-parecido que te aparecesse à frente.
Meg olhou para ela furiosa. Primeiro Blackwood e agora Seraphine, ambos a acusarem-na de estar apaixonada por Sir Patrick; aquilo começava a ser extremamente irritante.
- Não estou apaixonada por Sir Patrick e tão-pouco sou virgem. Seraphine tinha os olhos semicerrados por causa da brisa. Mas, ao ouvir aquilo, abriram-se de repente.
- O quê!? com certeza que não estás a referir-te a esse rapaz, o Naismith, que te sequestrou e manteve refém. Esse vilão que era o teu professor de música abusou
de ti?
- Não! O Sander portou-se de uma maneira censurável, mas não procedeu de modo condenável, desflorando uma garota de dez anos.
- Nesse caso, quem foi?
Meg arrependeu-se da explosão de irritação, mas compreendeu que Seraphine não lhe daria sossego até confessar quem era o homem.
- Tive um amante, um capitão de mar espanhol que atracou na ilha Encantada - replicou Meg. - Como Filhas da Terra, é-nos ensinado a acreditar que a união entre um
homem e uma mulher é uma coisa muito natural e tenho de confessar que sempre me senti curiosa. A experiência não foi dececionante. Foi um encontro afetuoso, reconfortante
e muito agradável. Não se revestiu de nada vergonhoso.
- Claro que não, não foi nada de que tivesses de te envergonhar. A única coisa de que devias ter vergonha foi o nunca teres confiado em mim, falando-me desse homem.
Mas eu conheço-te bem de mais, Meg. Natural ou não, nunca te terias entregado tão intimamente a um homem se não lhe tivesses dado também o teu coração.
- Eu acreditava que amava o Felipe. Até cheguei a pensar em casar com ele.
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- E então, o que é que aconteceu para que isso não acontecesse?
- Senti-me obrigada a falar-lhe do meu passado... de tudo.
- Mas porque é que tens de ser sempre tão infernalmente sincera? perguntou-lhe Seraphine, gemendo.
- Queres dizer que uma pessoa não devia ser sincera para com quem ama?
- Não! É frequente que sejam necessárias algumas pequenas falsidades para que o amor se mantenha vivo.
- Omitir a verdade a respeito do meu passado era uma falsidade demasiado grande.
- E como é que esse capitão Felipe reagiu à tua sinceridade?
- Como seria de esperar. Quando eu lhe falei da Irmandade da Rosa de Prata e acerca da minha mãe e de todas as suas bruxarias, o homem ficou horrorizado e tratou
de se manter afastado de mim. Mas apenas durante o tempo necessário para pensar sobre o assunto, após o que ficou intrigado, querendo saber o que eu tinha aprendido
com a minha mãe e através do Livro das Sombras, que poderes é que eu teria com base nos meus conhecimentos, que riquezas é que poderia adquirir. Tal e qual como
Sander Naismith, o amigo querido da minha meninice em quem eu confiava.
Meg soltou um suspiro de lassitude e amargura.
- com uma profunda mágoa, vi-me forçada a dizer a Felipe que deixasse a ilha Encantada, pedindo-lhe que nunca mais voltasse.
- Oh, Meggie! Lamento tanto - disse Seraphine, dando-lhe um forte abraço de comiseração, mas afastou-se dela quase de imediato.
- Mas rejeitaste um amante que agora está a par de todos os teus segredos e que anda por aí.
- O Felipe nunca me trairia. Jurou-me sobre a sua medalha da Virgem Maria que guardaria o meu segredo e que jamais quebraria um juramento desses. Ele era um homem
muito honrado e, seja como for, ele encontra-se no extremo mais longínquo do mundo. Fez-se ao mar para tentar arranjar fortuna em La Florida, o que conseguiu. A
fazer fé no que ouvi dizer, ele foi nomeado para governador de uma das colónias espanholas nessa região.
- Ótimo. Isso poupa-me o trabalho de ir à procura do patife para lhe cortar... hum... o coração.
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Não há motivo para albergares pensamentos de tanta vingança por causa de mim. Há muito tempo que me recompus de qualquer mágoa que Felipe me tenha causado.
Não fosse o facto de te teres isolado na tua ilha e nunca mais teres confiado em nenhum homem - retrucou Seraphine, fitando-a com uma expressão arguta nos olhos.
- Há quanto tempo é que tiveste essa relação com esse capitão Felipe?
- Há três... não, talvez tenha sido há quase quatro anos.
- Tempo de mais. Quando uma pessoa é derrubada da sela por um garanhão irascível, o melhor é voltar a montá-lo sem mais demoras.
Meg ainda pensou em protestar, dizendo que Felipe não era nenhum cavalo, mas Seraphine não estava a ouvi-la.
- Precisas de arranjar outro amante - disse Seraphine pensativa. - Mas desta feita vê se tratas de guardar os teus segredos e o teu coração para ti própria. E vê
se arranjas alguém cuja maneira de fazer amor não inspire palavras como calorosa, reconfortante e muito agradável. O teu gentil Sir Patrick nunca servirá, não obstante
o bonito palminho de cara. - O olhar de Seraphine percorreu o convés até onde o físico estava a importunar o muito irritado senhor Johnston.
- O Blackwood devia ser o teu homem.
- O Blackwood!? - repetiu Meg rindo-se. - Mas tu nem sequer simpatizas com ele.
- E não preciso de simpatizar. Não sou eu quem devia ir para a cama com ele.
- Tão-pouco eu.
- Pelo menos, devias considerar essa possibilidade. O Blackwood é um patife, o género de pulha que daria um bom amante, mas que deixaria o teu coração incólume.
Conheço o suficiente dos homens para poder apostar contigo em como ele levaria muito ardor e paixão para a tua cama.
- Foi isso que o Gérard fez em relação a ti?
- Não, fui eu quem imprimiu ardor ao nosso casamento - respondeu Seraphine, mostrando-se um tudo-nada saudosa. - Mas tenho de admitir que Monsieur le Comte ardia
maravilhosamente bem.
Aquela era a oportunidade de que Meg tinha andado à procura para, uma vez mais, urgir Seraphine a tentar reconciliar-se com o marido, mas foi impedida de a aproveitar
por Sir Patrick, que se encaminhava para elas.
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com Seraphine e Blackwood a insistirem que ela estava enamorada de Sir Patrick, Meg teve alguma dificuldade em encarar o homem com um mínimo de compostura. No entanto,
recusava-se a permitir que as afirmações disparatadas de ambos a transformassem numa fedelha ruborizada. Forçando-se a olhá-lo bem de frente, saudou-o alegremente.
- Muitos bons dias, Sir Patrick.
- Bons dias, milady. - Ele pegou-lhe na mão, baixando a cabeça, os lábios a esboçarem aquele seu acanhado meio sorriso que comovia Meg de uma maneira que não era
capaz de explicar.
Não estava apaixonada por Sir Patrick, do que Meg tinha a certeza, todavia não poderia negar que se sentia atraída por ele; havia qualquer coisa nos seus olhos azuis
que a chamava, como os ritmos obsidiantes das águas do mar.
Ele reteve a mão dela, com os olhos presos nos dela durante longos momentos até Seraphine ter começado a tossir despropositadamente. Sir Patrick largou a mão de
Meg, concentrando a sua atenção em Seraphine e fazendo-lhe uma pequena vénia.
- Madame la Comtesse, espero que estejais a sentir-vos melhor.
- Um pouco. Mas só me sentirei inteiramente bem quando sair deste navio.
- A vossa provação não tardará a chegar ao fim, prometo-vos. Espero instalar-vos a ambas confortavelmente na minha própria casa ainda esta noite, após o que tratarei
de pedir a audiência de Mademoiselle Margaret Wolfe com o rei para amanhã ou, o mais tardar, para o dia seguinte.
As sobrancelhas de Seraphine arquearam-se numa expressão altiva que refletia surpresa.
- Tendes de tratar desse assunto com a maior brevidade possível, monsieur. Já nos haveis negado tempo suficiente para podermos preparar-nos para esta jornada. Nenhuma
de nós pôde trazer um vestuário condigno de uma audiência na corte. Precisamos de, pelo menos, uma quinzena para irmos às lojas, encontrar uma costureira competente
e eu talvez tenha de mandar alguém a Paris para que me traga algumas das minhas jóias.
- Nada disso será necessário - retorquiu Sir Patrick com um sorriso dirigido a Meg. - Posso prometer-vos que a vossa audiência com o rei será muito informal e de
um caráter muito particular.
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Meg, que ouvira Seraphine a falar dos seus planos com perturbação, sentiu-se aliviada com as afirmações de Sir Patrick, mas esta mostrou-se carrancuda.
- Estais a sugerir que tencionais levar a Senhora da Ilha Encantada pelas escadas das traseiras do palácio furtivamente, como se ela fosse uma insignificante espia
ou uma qualquer rameira? Não me parece!
- Não tenho a mínima intenção de insultar a Senhora da Ilha Encantada. Mas deveis levar em consideração como esta situação é delicada. É necessário proceder com
a maior discrição. Sua majestade não desejaria que o seu embruxamento passasse a ser assunto de rumores na corte.
Seraphine soltou uma gargalhada escarnecedora.
- Já é assunto de conversas se esta corte for como a de Paris.
- Mas eu concordo com Sir Patrick - interveio Meg. - Eu preferiria que a minha conversa com o rei tivesse lugar o mais discretamente possível.
Seraphine abriu a boca para protestar, mas foi interrompida pelo som de vozes alteradas que altercavam. Vozes encolerizadas que se ouviam por todo o convés, atraindo
a atenção de Sir Patrick. Meg seguiu o olhar dele até onde o senhor Johnston, claramente, já estava farto da companhia de Blackwood.
O médico tinha recuado um passo, erguendo as mãos no ar, mas o gesto era mais trocista do que apaziguador.
- Se eu estiver enganado, peço perdão, Guido.
O rosto pálido adquiriu uma cor de um vermelho-escuro.
- Já lhe disse que o nome é Johnston. John Johnston. E é bom que não se esqueça disso, idiota bêbado. - com estas palavras insultuosas, espetou um dedo no peito
de Blackwood. Este continuou a sorrir, mas Meg viu que ele fechava os dedos em punhos cerrados. Era evidente que Sir Patrick também se apercebeu disso.
- com licença - murmurou e apressou-se a percorrer o convés. Entretanto, alguns membros da tripulação tinham interrompido as suas tarefas, rostos de expressões ávidas,
antecipando uma rixa. Mas Sir Patrick interpôs-se entre Johnston e Blackwood. Meg não conseguia ouvir o que diziam, mas apercebeu-se de que o tom de voz de Sir Patrick
era baixo e intenso.
O físico adquiriu uma atitude descontraída, mas Johnston continuava com uma postura tensa, qual serpente enrolada tão apertadamente que poderia ser facilmente provocada
a atacar.
- Existe qualquer coisa de perigoso naquele homem - murmurou Meg a Seraphine.
- Qual homem? Sir Patrick ou o Blackwood.
- O senhor Johnston - replicou Meg com um franzir de sobrancelhas. Havia algo nele que lhe causara mal-estar desde o momento em que ele subira a bordo, esforçando-se
por verbalizar essa sensação. - Ele não se comporta nem traja como os outros negociantes que tenho visto. Tem uma postura de militar, ereto e sempre vigilante, olhando
por cima do ombro, como se esperasse ser atacado. Não me parece que o senhor Johnston seja a pessoa que afirma ser.
- Poder-se-ia dizer o mesmo acerca do doutor Blackwood ou de Sir Patrick Graham sem a menor dificuldade. Este Johnston entrou a bordo em Saint-Malo?
- Sim, quando começaste a ficar confinada ao teu camarote.
- E ninguém o conhecia de parte nenhuma?
- O senhor Johnston comportou-se como se não conhecesse Sir Patrick nem o doutor Blackwood.
O olhar de Seraphine semicerrou-se enquanto examinava os três homens, que continuavam a conversar em voz baixa.
- Eles não se comportam como se não se conhecessem.
Meg tinha a mesma impressão inquietante. Seraphine virou-se para ela, mostrando ansiedade.
- Ainda estamos a tempo de voltarmos para trás, Meg. Quando chegarmos a Gravesend, podíamos separar-nos deles e procurar um navio que nos levasse de regresso à ilha
Encantada.
- Nada me agradaria mais, mas não posso fazer isso, Phine. Pelo menos até me ter encontrado com o rei para poder avaliar pessoalmente a veracidade do assunto que
o atormenta.
- Nesse caso, deves insistir para que sua majestade te receba na corte como deve ser. Não és nenhuma cigana. És a Senhora da Ilha Encantada.
- Sei que te agradaria muito uma receção pública como essa, mas sabes bem que detesto esse género de funções oficiais. Sempre preferi atrair tão pouca atenção quanto
for possível.
- Existe um grande perigo nessa atitude, Meg. Se continuares a querer passar despercebida, ninguém dará por isso se desapareceres.
- Tu darias por isso.
- Mas talvez não a tempo de poder salvar-te.
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- Sir Patrick disse...
Sir Patrick que vá para o diabo! Depositas uma fé cega nas garantias que o homem te deu.
Não se trata de uma fé cega, mas confio que seja um homem suficientemente honrado para se certificar de que não me advirá mal algum da minha audiência com o rei.
Além disso, uma única audiência é tudo o que preciso. Se eu quiser tirar a limpo a verdade da praga que lhe rogaram e até que ponto é que isso se relaciona com a
minha mãe e a Irmandade da Rosa de Prata, não me parece que consiga encontrar a resposta que procuro em Whitehall, o que até é conveniente. És capaz de imaginar-me
a tentar movimentar-me num palácio cheio de ambições, cortesãos que não se cansam de mexericos e atolado em intrigas?
- Minha querida amiga - replicou a condessa sombriamente. - Receio que é precisamente nessa situação que já te encontras.
O fogo de artifício rasgava o firmamento com pingentes de gelo de luz que iluminavam a terra, desaparecendo nas águas escuras do Tamisa. Os tombadilhos dos barcos
atracados e os telhados das casas nas margens do rio estavam apinhados de pessoas. Os gritos de deleite da população eram pontuados por explosões de gargalhadas
e de aclamações.
O troço do Tamisa que passava por Londres era sempre difícil de navegar, com os botes, batéis e embarcações cobertas a percorrerem o rio como pirilampos entre as
imponentes barcaças e os navios de três mastros. As celebrações dificultavam ainda mais as manobras de atracagem da barca de passageiros que viera de Gravesend.
Armagil Blackwood, Sir Patrick Graham e o seu servo Alexander foram dos primeiros a desembarcar, mas Blackwood não tardou a perder de vista os outros dois homens.
Enquanto abria caminho por entre os foliões que enchiam as docas, pisou o pé de um estivador. Mas o homem magricela ou estava muito bem-disposto ou demasiado entorpecido
pelo vinho que já bebera para conseguir refilar.
- Peço desculpa! - gritou Blackwood para se fazer ouvir. - Mas o que diabo é que se passa? - perguntou, fazendo um gesto com que apontou para outra explosão de fogo
de artifício. Parecia vir da direção de Whitehall.
- Estamos a celebrar - respondeu o estivador, também obrigado a gritar.
- A celebrar o quê?
- O rei ter conseguido escapar a uma conspiração.
Blackwood sentiu que o coração saltava um batimento. Apressou-se a procurar Graham, olhando em volta, mas não o avistou em lado nenhum. Esforçando-se por conter
o receio, perguntou:
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- E que conspiração era essa?
- Não sei. Uma conspiração qualquer contra a vida do rei que foi abortada há muitos anos na Escócia. O rei Jaime gosta de assinalar essa data.
- Oh, isso. Já me tinha esquecido disso - retorquiu Blackwood. Por um momento terrível, tinha receado... Respirou fundo, soltando a respiração que sustivera. Quando
a atenção do estivador voltou a concentrar-se no firmamento, Blackwood afastou-se, tendo encontrado um sítio mais sossegado atrás de uns barris e grades de madeira
empilhadas.
Os risos, os folguedos e os intermináveis brindes que os bêbados faziam à saúde de sua majestade, felizmente, ali eram menos audíveis. Blackwood sacou da sua própria
pequena garrafa, fazendo um esgar de desdém. Dois anos antes, depois de a rainha Isabel ter morrido e Jaime da Escócia ter sido designado para seu sucessor, tinham-se
acendido fogueiras e o vinho correu copiosamente. A idosa rainha virgem morrera, finalmente, e a coroa passou para um homem na flor da idade, o qual já provara a
sua competência em gerar herdeiros. com certeza que a ascensão dele ao trono seria o amanhecer de uma nova época em Inglaterra, uma época de prosperidade, estabilidade
e oportunidades. O otimismo prevalecera até Jaime Stuart ter aparecido em Londres com hordas de escoceses à procura de fortuna na sua esteira. O próprio monarca
considerava os cofres ingleses como um tesouro inesgotável.
Não tardou muito que a população inglesa começasse a sentir-se desiludida com o seu novo rei, muito embora uma pessoa não conseguisse aperceber-se disso ao ver o
estado de espírito de folia da multidão que enchia as docas naquela noite. Os londrinos nunca perdiam uma oportunidade de participar em quaisquer festejos, qualquer
que fosse o motivo.
Blackwood bebeu, fazendo um brinde à idiotice dos seus concidadãos, após o que brindou à sua própria saúde. Sentindo o ardor da bebida forte na garganta, divertia-se
a observar um grupo que se juntara próximo das escadas do ancoradouro. Havia uma meretriz entre estas pessoas que tentava vender os seus favores sexuais. A luz do
archote permitia que se distinguisse apenas o cabelo ruivo, a que a chama emprestava brilho, e uma grande porção de pele branca dos seios, que pareciam querer sair
pelo decote do vestido. Enquanto a rameira distraía os homens, sem dúvida que teria um associado nas proximidades que andaria a roubar bolsas e carteiras.
Aquele pensamento foi o suficiente para Blackwood se certificar de que a sua própria bolsa continuava bem presa no cinto. As ruas da cidade já eram bastante perigosas
durante o dia, quanto mais depois de a noite cair. Perguntava-se o que seria feito de Graham.
Sir Patrick e Alexander haviam seguido à frente para arranjarem uma carroça e um cavalo que transportassem as senhoras e os seus pertences para sua casa. Talvez
estivessem a ter dificuldade devido ao invulgar movimento nas ruas, contudo, Blackwood não duvidava de que Sir Patrick acabaria por conseguir o seu intento.
Desde que o médico o conhecia, constatara que Graham conseguia arranjar tudo o que pretendia, além de ser eficiente e com um bom olho para os pormenores. Se continuassem
a existir mosteiros em Inglaterra, Blackwood era capaz de imaginar Graham como sendo um abade que organizasse cuidadosamente a vida da ordem monástica.
Infelizmente, também conseguia imaginar Graham a organizar uma rebelião, ou a planear um assassínio pela calada, com a mesma facilidade. Uma possibilidade que dava
que pensar; Blackwood bebeu outro gole da sua bebida. Não estava embriagado, apesar de se sentir um pouco confuso e cansado, o que o levava a ansiar ir para a sua
cama.
Preparava-se para procurar Graham quando o avistou a voltar para o cais acompanhado de dois rapazes munidos de archotes para iluminarem o caminho. Blackwood chamou
o amigo, conseguindo fazer-se ouvir acima do barulho da multidão.
Quando Graham se lhe juntou, franziu o cenho ao ver a pequena garrafa na mão de Blackwood, embora não fizesse qualquer comentário.
- O Alexander está à espera com a carroça - disse -, mas achei melhor esperarmos até o fogo de artifício acabar e a multidão começar a dispersar antes de levarmos
Margaret Wolfe e a condessa. Tinha-me esquecido completamente de que esta celebração estava planeada.
- Também não me lembrei - retorquiu Blackwood, bebendo outro trago da garrafa, que ficou quase vazia. - Por uns momentos, perguntei-me se Jaime Stuart teria morrido
durante a nossa ausência e tivéssemos um novo rei. Certamente que te teria poupado muitos problemas.
- Por amor de Deus, Gil! - ripostou Sir Patrick, olhando em volta de si e puxando Blackwood para um lugar mais escuro. - Estamos em Londres. Por favor, tenta ser
mais discreto e tem tento na língua.
- Farei como dizes se tiveres mais cuidado com o uso dos teus berloques.
128
- Se estás a referir-te ao meu rosário, já tratei de o esconder por dentro do forro do meu gibão.
- E o que me dizes a isto? - perguntou Blackwood, afastando para o lado o manto de Graham e puxando o fio de prata que Sir Patrick usava ao pescoço. O pequeno medalhão
que continha os fios de cabelo sagrado oscilava entre os dedos de Blackwood.
Graham tirou-lhe o medalhão da mão com brusquidão. Levou-o aos lábios reverentemente.
- Ninguém, além de ti, compreenderia o significado que tem para mim.
- O quê, nem sequer o teu bom amigo Johnston?
Graham ficou de cenho carregado, voltando a meter o fio por dentro da roupa para que ninguém o visse.
- Isso é outra coisa por que devo reprovar a tua conduta. O que é que te passou pela cabeça para teres atormentado o Johnston da maneira como fizeste? Sabes bem
que o homem tem um feitio que não é de fiar. Tenho de te pedir que o deixes em paz e sossego daqui em diante.
- O que não me será difícil de fazer. Não gosto do Guido Fawkes. Ele é um homem inconcebivelmente mal-humorado, mas se tenciona assumir uma identidade falsa, podia
ter escolhido um nome melhor do que John Johnston.
- Infelizmente, quando se trata de arquitetar mentiras, o homem não consegue ser tão criativo como tu.
"Nem tu", sentiu-se Blackwood tentado a ripostar, mas não queria discutir com o amigo.
- Não sei o que é que andas a maquinar, Graham. Podia pôr-me a adivinhar, mas não quero. No entanto, sou da opinião de que tu e os teus amigos deviam ter a sensatez
de se desassociarem do Fawkes. O homem é demasiado imprevisível.
- O Fawkes... quero dizer, o Johnston, é um soldado, um perito no uso de artilharia e armas de fogo.
- Tal como tu és.
- Apenas quando atiro a alvos de madeira ou a aves aquáticas. Nunca apontei uma arma ao coração de um homem.
- Tão-pouco eu.
- Achas que serias capaz de fazer isso?
Blackwood ficou a pensar por uns momentos antes de lhe responder.
- Sim, era. Penso que podia ser muito melhor a ceifar a vida de pessoas do que a salvá-las, caso me permitisse agir dessa maneira.
- Não tenho a certeza de ser capaz, por muito justa que a causa fosse - redarguiu Graham, mostrando-se envergonhado por admitir aquilo. Razão por que a minha associação
com o senhor Johnston é necessária.
- Sim, mas não precisas dela.
Graham não fingiu que tinha ficado confuso, nem exigiu saber o que Blackwood queria dizer com aquilo. Este calculava que a Senhora da Ilha Encantada pesava tanto
na mente de Graham como na sua.
- A Margaret Wolfe tornou-se necessária aos meus planos, quer eu deseje que o seja ou não - replicou Graham.
- Porquê? Tu nunca acreditaste em bruxarias nem nos poderes destas alegadas mulheres astuciosas. Não obstante, arrastaste-me por todo o território de França para
encontrar esta.
- Eu não te arrastei para lado nenhum. Tu é que insististe em acompanhar-me. Além disso, a Senhora da Ilha Encantada não é nenhuma mulher ardilosa ignorante e comum.
É uma pessoa culta, uma senhora que possui grandes conhecimentos. Tenho gostado imenso das conversas muito interessantes que tive com ela durante a viagem, a despeito
de ela ser uma pagã nas suas crenças.
- Se ela é uma pagã, isso ajudar-te-á a calar a tua consciência se lhe acontecer alguma coisa de mal?
- Se a coloquei em perigo ao trazê-la para Londres, não tinha outra alternativa - ripostou Graham irritadamente. - Não é por minha culpa que o rei insiste em falar
com ela.
- E se a Senhora da Ilha Encantada conseguir curar sua majestade da sua crença de que está amaldiçoado? Imagino que isso não serviria os teus objetivos. Não é verdade
que desejas que o homem fique doido varrido?
- A única coisa que desejo é que Jaime Stuart seja responsabilizado pelos seus pecados. Eu tinha pensado que desejarias a mesma coisa.
Blackwood não conseguia distinguir com nitidez as feições de Graham devido à escuridão, mas apercebeu-se do maxilar dele a endurecer. Era uma expressão que Blackwood
conhecia bastante bem e que o deixava conturbado; era uma expressão empedernida e desprovida de qualquer emoção, em que só os olhos de Graham é que pareciam ter
vida, espelhando tanta ferocidade que era arrepiante.
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Havia muito tempo que conhecia Graham e o amava tanto quanto lhe era possível amar alguém, como se ele fosse o irmão que nunca teve. Contudo, Blackwood preferia
Patrick Graham, o académico gentil, o amigo compassivo que conhecia todos os seus segredos, que o ajudava a ir para a cama quando bebia de mais, que ouvia a confissão
de todos os seus pecados sem fazer quaisquer juízos de valor. Mas Graham, o fanático, perturbava-o e repugnava-o.
Graham aproximou-se mais de Blackwood, num esforço para perscrutar o seu semblante.
- Por que motivo é que, repentinamente, mostras tanto interesse pelo que possa acontecer à Senhora da Ilha Encantada? Tencionas nomear-te como seu protetor?
- Deus nos valha, não! O tipo de cavaleiro errante é o teu forte e não o meu.
- Sim, mas não podes negar que gostas dela.
Quando Blackwood abanou a cabeça, negando, Graham insistiu.
- Eu vi-te a beijá-la.
- Eu beijo todas as mulheres bonitas que conheço. É um hábito descuidado que eu tenho. - Blackwood esperava que a escuridão fosse suficiente para ocultar o rubor
que lhe subiu às faces. Beijar Margaret Wolfe tinha sido um erro. Só o fizera para a provocar e para a impedir de continuar a fazer-lhe perguntas que eram demasiado
intrusivas. Nunca tinha esperado encontrar uma boca tão cálida, doce, e que se rendera a ele o suficiente para despertar a sua lascívia.
A linha do maxilar de Graham suavizou-se, mas o seu tom de voz era de circunspeção quando disse:
- Armagil, peço-te, não, devo insistir que não tenhas nada a ver com a Margaret Wolfe. Os meus assuntos já são complicados de sobra sem que tu seduzas a Senhora
da Ilha Encantada.
- Não tenho a mínima intenção de fazer isso. Gosto das minhas mulheres desbragadas e terra a terra, com seios generosos e traseiros bem fornecidos de carne. As mulheres
de aspeto etéreo, como Margaret Wolfe, não me agradam absolutamente nada. Ela é a espécie de mulher calculista que faz com que um homem pense e sinta excessivamente,
ora acontece que esses são dois aspetos que eu evito com toda a diligência.
As palavras dele fizeram com que Graham se risse.
- Ainda bem. Portanto, isso quer dizer que também evitarás Margaret Wolfe.
Olhou para o firmamento, onde a quietude imperava agora, rendendo a sua escuridão às habituais estrelas que o pontilhavam e à luminosidade fria de uma Lua a três
quartos.
- Parece-me que as festividades estão a acabar e a multidão já começou a dispersar. Tenho de ir buscar as senhoras, mas estou satisfeito por nos termos entendido
- continuou Graham, sorrindo a Blackwood e encaminhando-se para a barca atracada junto dos degraus do ancoradouro.
- Sinto-me satisfeito por estares satisfeito - resmungou Blackwood quando o amigo já se embrenhava na escuridão. - Mas continuo sem compreender absolutamente nada.
Só agora é que Blackwood compreendia que Graham, muito habilmente, se esquivara a responder às suas perguntas relativas a Margaret e como é que ela figurava nos
planos dele, quaisquer que estes fossem.
No cimo dos degraus do ancoradouro, Graham foi abordado pela rameira de cabelo ruivo, que começou a andar à volta dele, estendendo a mão para lhe tocar, mas ele
furtou-se a ela. Muito embora a sua repugnância fosse por demais evidente, conversou com a mulher durante uns momentos, após o que a cumprimentou com um baixar de
cabeça, retomando o seu caminho. Sem dúvida que Graham teria censurado a mulher e tentado persuadi-la a abandonar aquela vida de pecado. Conselhos que tinham caído
em orelhas moucas. A mulher limitou-se a encolher os ombros e afastou-se para abordar outro homem qualquer.
Blackwood sorriu. Havia ocasiões em que Graham podia ser tão ingenuamente empenhado, enquanto noutras... o seu sorriso desvaneceu-se. Noutras ocasiões, Graham preocupava-o
terrivelmente.
Apesar de terem muito em comum, ambos diferiam muito um do outro. Nenhum dos dois desfrutara de uma juventude tranquila, ambos atormentados por recordações de pesadelo.
Mas Blackwood tinha optado por enterrar o seu passado bem fundo debaixo do caos que era a sua existência atual. Graham, por seu lado, acalentava os seus agravos,
como brasas incandescentes no lume, espevitando-as com um atiçador. Blackwood sempre havia temido que, um dia, essas brasas dessem origem a labaredas fora de controlo,
consumindo Graham e quaisquer infortunados que se encontrassem perto dele.
Esse dia podia estar a aproximar-se com uma celeridade perigosa. Mas como é que ele poderia ajudar Graham quando ele próprio não era capaz de conquistar os seus
demónios? A verdade nua e crua era o facto de ele
132
nunca ter sido muito eficaz a salvar quem quer que fosse. Como médico era um fracasso total e como amigo deixava muito a desejar. O melhor que tinha a fazer era
respeitar o pedido de Graham e manter-se à distância, principalmente de Margaret Wolfe. O que não devia ser muito difícil. No entanto, andava obcecado com uma vívida
imagem da luz do luar a entrar pelas águas-furtadas dos seus aposentos, banhando a Senhora da Ilha Encantada esparramada na sua cama, o seu corpo flexível, quente
e nu. O recato e o pudor esquecidos e o seu rosto estaria ruborizado de paixão, os lábios da cor de cerejas maduras. Os olhos verdes com uma expressão sensualmente
convidativa, acolhendo-o para que se afundasse profundamente no delta apertado da...
- Pelas chagas de Cristo! - blasfemou Blackwood, apertando a cana do nariz para banir aquela visão antes que produzisse o efeito inevitável no seu corpo. Tarde de
mais, já começava a sentir uma ereção.
Seria possível sentir aquele grau de excitação devido a um único beijo furtado? Talvez houvesse alguma coisa de bruxa em Margaret Wolfe ou talvez fosse a perversidade
do próprio Blackwood. Era só dizer-lhe que havia algo que lhe estava proibido para ele o desejar de imediato com todas as veras da sua alma.
Levou a pequena garrafa à boca, inclinando-a para beber um gole. Vazia. Soltou um suspiro de frustração. Aquilo de que estava a precisar realmente era de uma noite
de olvido, jogar aos dados numa taberna qualquer enquanto bebia vinho até se embebedar, após o que iria para o andar de cima acompanhado de uma rameira qualquer
que estivesse pelos ajustes.
Como se a tivesse conjurado em pensamento, a meretriz de cabelos ruivos que ele tinha visto a falar com Graham acostou-o.
- Estais sozinho, senhor? Talvez a precisar de um pouco de companhia? - A mulher passou as mãos sugestivamente pelas linhas arredondadas dos seus seios com uma pequena
risada tola. Apesar dos esforços para fazer o papel de menina acanhada, os dias da sua juventude há muito que haviam ficado para trás. O muge que lhe manchava as
bochechas só servia para acentuar as rugas nos olhos, enquanto o cheiro do perfume enjoativo o repugnava.
- Põe-te a andar, mulher. Não estou interessado no que me queres vender.
- Isso é porque não fazeis a mais pequena ideia daquilo que tenho para vender. Tenho muitas apetências.
- O quê, por exemplo?
- Sou uma cartomante, especialmente dotada na arte da hidromancia. Podia ler as águas do rio e dizer o que o futuro vos reserva.
- Eu estaria muito mais habilitado a dizer-te o teu. Morrerás de sífilis ou enforcada se não encontrares outra maneira de ganhares a vida. - Blackwood tentou passar
por ela, mas a mulher agarrou-o pela mão.
- O vosso futuro não vos interessa, doutor Blackwood?
Ficou surpreendido por ela saber o seu nome, olhando-a por entre olhos semicerrados naquela semiescuridão. Havia algo nela que lhe reavivou a memória, aquela basta
cabeleira ruiva e o sorriso felino.
- Já nos encontrámos antes? Conheço-te?
- Eu conheço-vos muito bem, doutor. - A mulher ergueu a mão dele, chegando-a perto do seu rosto. - A palma da vossa mão diz-me tudo. Já que não me deixais que preveja
o vosso futuro, talvez gostásseis que vos narrasse o vosso passado - disse ela, fazendo uma careta sorridente e deitando a língua de fora, começando a lamber-lhe
a palma da mão como uma gata. Blackwood praguejou e afastou a mão bruscamente.
- O meu passado não é assunto que te diga respeito. Andarias bem se não te esquecesses disso.
Se ela se apercebeu da ameaça velada que transparecia da voz dele, não pareceu ter ficado impressionada. Soltou uma gargalhada enrouquecida e afastou-se num andar
bamboleante. Fazendo uma careta de repugnância, Blackwood limpou a palma da mão ao gibão.
- Rameira estúpida - resmungou, tentando ignorar o encontro. Ela cumprimentara-o pelo seu nome, o que, por si só, não tinha nada de especial. Muitos dos seus pacientes
eram frequentadores habituais de tabernas e casas de jogo. Blackwood era bastante conhecido nas zonas menos recomendáveis de Londres.
Bastante mais perturbador era o facto de ela saber algo do seu passado. Blackwood massajou as têmporas e desejou ter as ideias mais claras para poder lembrar-se
de onde é que tinha visto a rapariga. Teria estado com Graham nessa ocasião? Isso parecia-lhe altamente improvável, a menos que tivesse sido numa dessas ocasiões
em que Graham fizera outra das suas infindáveis tentativas de salvar Blackwood de si próprio, aventurando-se a entrar numa taberna para o arrastar para casa.
Blackwood virou-se para trás para olhar de novo para a rapariga, mas ela já tinha desaparecido a coberto das sombras da noite.
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Amélia saltitava ao longo do beco, trauteando uma melodia em voz baixa, embora soubesse que estava a ser irresponsável. Apesar de ter uma visão muito apurada, seria
fácil tropeçar numa das pedras soltas do caminho ou num buraco e torcer um tornozelo.
Mas o maior perigo era despertar demasiadas atenções sobre si própria numa área de Londres mal-afamada devido aos predadores que se ocultavam nas sombras. Mas Amy
sentia-se demasiado satisfeita para tomar as precauções habituais, além disso, considerava-se uma dessas londrinas da noite e a adaga de lâmina curta que mantinha
escondida por baixo do manto estava sempre à mão. Muitos dos homens que a haviam tomado, erroneamente, por uma bela perdiz gorda aperceberam-se demasiado tarde que
tinham sido agarrados por um falcão quando foram arranhados profundamente pelas garras da ave de rapina, tendo ficado a sangrar.
Mas a multidão das festividades daquela noite devia oferecer melhores oportunidades para os carteiristas e salteadores. Amy percorreu o beco sem que ninguém a incomodasse.
Só quando chegou às escadas de madeira do seu alojamento por cima da taberna é que se apercebeu de movimento na escuridão. Amy deteve-se, mas tarde de mais.
A figura envolta num manto apareceu de repente à sua frente, empurrando-a contra a parede da taberna. O coração de Amy batia acelerado devido ao susto, mas reagiu
rapidamente, desembainhando o seu punhal.
Preparava-se para atacar quando o seu atacante gritou:
- Boo!- desatando a rir, um riso que ela conhecia.
Amy baixou a adaga, soltando um longo suspiro trémulo. O temor não tardou a dar lugar à cólera, começando a praguejar, chamando à irmã mais velha, Beatrice, todos
os nomes obscenos que lhe ocorreram ao pensamento.
Bea limitou-se a rir com mais vontade. Atirou para trás o capuz do manto, permitindo que um raio de luz do luar lhe iluminasse o rosto sorridente. Olhar para a irmã
era o mesmo que se Amy estivesse a ver-se ao espelho; ambas tinham o mesmo cabelo de um castanho-alourado, testa alta e nariz de linhas direitas. com a diferença
de os olhos da irmã terem uma expressão ligeiramente mais fria, as feições bastante mais angulosas do que as faces de linhas mais suaves e rosadas de Amy. Esta era
como a primavera para o inverno de Bea, como a avó de ambas costumava dizer. Amy embainhou a adaga.
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- Raios te partam, Bea! Pregaste-me um susto de morte.
- Ora, duvido muito - retorquiu Bea trocista. - Seja como for, é muito bem feito por andares por aí como uma idiota descuidada e por estares fora de casa até tão
tarde. Porque é que demoraste tanto tempo? Conseguiste descobrir alguma coisa?
Ainda irritada com a brincadeira de mau gosto da irmã, Amy ignorou as suas perguntas. Subiu as escadas manifestamente mal-humorada, seguida de perto por Bea, que
continuava a tentar conter o riso. A satisfação da irmã só servia para aumentar a irritação que Amy sentia.
Já no interior do alojamento que as duas irmãs partilhavam, Amy recusava-se a olhar ou a falar com Bea. Amélia despiu o manto, que atirou para cima da cama, sabendo
de antemão que isso irritaria a irmã. Bea gostava que tudo estivesse arrumado.
Foi com satisfação que ouviu a irmã a praguejar quando se aproximou mais da lareira. Amy e Bea partilhavam um quarto pequeno e bastante esquálido que não valia os
cinco xelins por semana que tinham de pagar à rapace proprietária da taberna, a senhora Keating. O mobiliário consistia em pouco mais do que uma estreita enxerga
com colchão de palha, uma pequena mesa de pinho, dois bancos e uma cómoda.
Mas Bea tinha acendido um bom lume que crepitava na lareira; Amy estendeu as mãos para as chamas. Só então é que se apercebeu de que estava gelada. As noites de
outono estavam a ficar bastante frias e Amy detestava o frio.
O calor do lume contribuiu muito para lhe restituir o bom humor, para o que também contribuiu o bufar de Bea, que andava de um lado para o outro na alcova. Sem precisar
de olhar para trás, Amy sabia que a irmã estaria a pendurar o manto que tinha atirado para cima do leito enquanto resmungava por ter de o fazer. Os lábios de Amy
esboçaram um pequeno sorriso de presunção. Bea já não se mostrava tão jovial quando se juntou à irmã perto da lareira.
- Peço-te desculpa por te ter assustado - disse contrita, embora Amy considerasse que a irmã não estava suficientemente arrependida. Fez menção de começar a dizer-lhe
isso mesmo quando foi distraída por um estranho som de queixume.
- O que é que foi aquilo?
- Nada.
Voltou a ouvir-se o mesmo som. "Miau."
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- Parece um gato a miar - disse Amy num tom de acusação. Os olhos de Bea brilhavam com uma expressão travessa, olhando diretamente para o canto mais afastado do
quarto.
Amy passou por ela com brusquidão, aproximando-se da fonte daquele miar. Viu uma gaiola de madeira atrás da arca em que guardavam a roupa. Um pequeno gato com uma
pelagem cor de gengibre estava todo encolhido atrás das grades.
Amy recuou, mostrando uma intensa aversão. Detestava gatos, considerando que eram animais malvados, matreiros e furtivos. Faziam com que ficasse com a pele toda
arrepiada e com comichões no nariz. Deu meia-volta com as mãos nas ancas e confrontou Bea.
- O que é que aquilo está a fazer aqui?
- É o meu novo amigo - respondeu Beatrice, juntando-se à irmã.
- Parece-me mais o amigo da senhora Keating, o Grímalkin.
Bea agachou-se diante da gaiola, estendendo os dedos por entre as barras. A criatura ficou com o pelo todo eriçado, miando de medo num tom mais elevado. Bea sorria
abertamente. Gostava de ser receada. Isso dava-lhe uma sensação de poder. Nesse aspeto, era muito parecida com a falecida avó. Quando Bea abriu o fecho da gaiola,
Amy recuou.
- Por amor de Deus, não tires essa coisa da gaiola.
Bea ignorou-a. O felino sibilou quando esta estendeu as mãos para lhe pegar, mas limitou-se a rir, até mesmo quando o animal a arranhou. Tirou o gato da gaiola,
agarrando-o pelo cachaço. A criatura miou e debateu-se assanhada, mas Bea prendeu-o firmemente debaixo do braço de maneira a que não pudesse abocanhá-la nem morder-lhe.
Amy observava a criatura com um olhar de desconfiança de uma distância segura, reparando na mancha de pelo branco acima dos olhos rasgados e de expressão atemorizada.
- Esse gato é o Grímalkin. O que é que estás a fazer com ele aqui?
- Pedi-o emprestado, mas, é claro, sem o consentimento da senhora Keating. Devias tê-la visto à procura do bicho durante toda a tarde, a chamar o bichano e a pôr
pires cheios de leite por todo o lado, era de partir o coração - disse Bea cheia de contentamento. - A senhora Keating dedica um amor tão grande a este miserável
bichano como o rei Jaime dedica aos seus cães de caça.
Amy sentia comichão no nariz, reprimindo a muita vontade de espirrar. Recuou ainda mais e olhou para a irmã com uma expressão de censura.
- A senhora Keating é, inegavelmente, uma megera velha, mas não é sensato que andes a atazaná-la, Bea. Não temos tempo nem dinheiro para procurar outro alojamento.
- Ela não faz a mais pequena ideia que fui eu quem lhe roubou o seu precioso Grimalkin e essa vaca merece ser atormentada. Chamou-me puta e porca.
Era frequente que Bea, na brincadeira, se descrevesse nesses termos, no entanto, não suportava esse género de insultos, viessem de onde viessem. Tão-pouco era pessoa
para esquecer e perdoar qualquer insulto, por isso, Amy reconheceu que não valia a pena tentar fazer com que a irmã visse as coisas com sensatez.
- Só te peço que mantenhas essa coisa longe de mim - pediu-lhe Amy.
Na brincadeira, Bea fez menção de lhe atirar o gato. Riu-se quando a irmã deu um salto para trás, mas depois instalou-se num banco, com o gato firmemente imobilizado
no seu colo. Ignorando o miar aflitivo do bicho, Bea começou a fazer-lhe festas atrás das orelhas.
- Já chega de falar do gato. Diz-me onde é que estiveste esta noite e o que é que viste.
Amy espirrou e ficou com os olhos lacrimosos, sentindo um mal-estar físico que fazia com que não tivesse vontade de responder à irmã, mas acabou por replicar-lhe
amuadamente.
- Fui até às docas e vi o doutor Blackwood a sair da barca que chegou de Gravesend.
- O Blackwood que vá para o diabo! Quem é que quer saber dele? O imbecil bêbado não serve para nada a... - começou Bea a dizer irritada, mas calou-se de repente
ao aperceber-se do que não pensara até então.
- Espera! Se o doutor regressou a Londres, então isso deve querer dizer que Sir Patrick Graham também voltou.
Bea estava a ser tão irritante naquela noite, entre a partida de mau gosto que pregara à irmã há pouco e levar para o quarto aquele gato horrível, pelo que Amy teria
gostado de a castigar, fechando a boca sem lhe dizer uma única palavra que fosse. Mas as boas notícias de que se inteirara fervilhavam dentro de si e não podiam
ser reprimidas.
- Oh, Bea! Sir Patrick não faltou à sua promessa. Foi buscar a Senhora da Ilha Encantada. - Amy estava à espera que Bea gritasse de contentamento, partilhando da
sua própria satisfação. Mas devia saber que
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não seria assim. Era muito raro que a irmã se entusiasmasse e que gritasse de alegria. Encostando-se à parede, continuava a fazer festas ao maldito gato.
- Como é que podes ter tanta certeza de que se trata da Senhora da Ilha Encantada? - perguntou-lhe Beatrice.
- Porque me escondi junto dos degraus do ancoradouro e vi Sir Patrick a ajudá-la a sair da barca. Consegui vislumbrá-la.
- Conseguiste vislumbrá-la? - O tom escarnecedor da irmã espicaçou Amy.
- Vi o suficiente dela para poder dizer que Margaret Wolfe é exatamente como a velha a descreveu, estatura franzina e delicada, mas possui uma aura mística. Ou devo
atrever-me a chamá-la pelo seu nome verdadeiro, Megera, a nossa venerável Rosa de Prata?
- Se eu fosse a ti, não o faria para já.
- Mas estou a dizer-te que só pode ser a Megera. Sir Patrick conseguiu encontrá-la, tal como tinha prometido.
- Não foi uma promessa que ele tenha feito de boa vontade, fê-la apenas porque o obrigámos a isso.
- Não interessa. Ele manteve a sua parte do nosso acordo.
- Ou então está a preparar-se para nos enganar para que acreditemos que fez isso. Podia ter ido buscar uma mulher qualquer, dizendo que é a Senhora da Ilha Encantada.
- Sir Patrick nunca faria uma coisa dessas. É um homem de honra, um homem piedoso.
Bea cerrou os lábios, soltando um som grosseiro.
- Esses são os piores, capazes de qualquer espécie de traição ou de mentiras para atingirem os seus objetivos, após o que se apressam a apagar a ardósia ao confessarem
os seus pecados e cumprirem a respetiva penitência. És tão tola, Amy. Estou em crer que tens uma paixoneta pelo teu bonito Sir Patrick.
- Não tenho nada - ripostou ela. Mas começou a percorrer o quarto agitada para ocultar o rubor que lhe subiu às faces. Antes de adormecer à noite na sua enxerga
desconfortável, permitia-se algumas fantasias gratificantes em que se imaginava casada com Sir Patrick, a viver na sua bela casa e a dormir num colchão de penas,
a comer morangos com suculentas natas batidas sempre que lhe apetecesse. "Minha Lady Graham."
Aquele tolo sonhar acordada era censurável. Ser uma devota da Rosa de Prata significava ter jurado que nunca casaria, que nunca amaria. Os homens deviam ser considerados
apenas como meros objetos de diversão ao longo do caminho até ao poder, na demanda para se conseguir ser uma feiticeira bem versada em todos os conhecimentos de
magia negra. A falecida avó de Amy teria sentido tanta vergonha da neta por ela se entregar a esses sonhos tão ridículos em que Sir Patrick figurava. O mais certo
era a avó estar às voltas na sua sepultura. Isto é, se fosse possível dizer que uma mulher que ficara reduzida a ossos carbonizados e a cinzas tinha uma sepultura
como devia ser.
Recuperando o domínio sobre si própria, Amy deu meia-volta, ficando de frente para a irmã.
- Não tenho nenhuma paixoneta por Sir Patrick, embora reconheça que ele é muito bem-parecido. Seria um animal de estimação muito mais agradável do que esse gato
sarnento. Gostaria bastante de poder prendê-lo numa jaula.
- Talvez venhas a poder fazer isso um dia, mas entretanto, Amy, peço-te que mostres alguma cautela e bom senso. Essa mulher que Sir Patrick trouxe para Londres talvez
venha a provar ser a Rosa de Prata, mas temos de a pôr à prova.
- Sem dúvida. Se ela for a Megera, terá amplos conhecimentos sobre as artes negras. Quero tanto que ela me ensine tudo o que aprendeu no Livro das Sombras e como
fazer as lâminas de bruxa.
- Ainda que essa mulher seja a Megera, é muito provável que não queira partilhar os seus conhecimentos. Não te esqueças de que ela virou costas à irmandade das bruxas,
tendo abandonado o título de Rosa de Prata.
- Mas isso só aconteceu porque era uma rapariguinha idiota e foi o pai que a levou para longe. Atualmente, já é uma mulher adulta.
- Uma mulher que não tem mostrado a mínima intenção de restabelecer a irmandade das bruxas.
- Tem de ser forçada a fazê-lo. Jamais seremos capazes de proceder ao ritual sem ela. Tem de ser obrigada a recordar-se de quem é realmente, há que lembrar-lhe que
tem um grande destino diante de si.
- E se ela não quiser que lhe lembrem isso?
- Nesse caso, pagará pela sua traição, tal e qual como o rei Jaime será forçado a pagar pelo que fez à nossa avó. - Amy bateu o pé de pura frustração, o seu contentamento
de há pouco esmagado debaixo das dúvidas de Bea e das questões irritantes que ela levantava. Mas com Beatrice
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era sempre assim, até mesmo nos dias mais soalheiros ela conjurava nuvens carregadas para que escurecessem o horizonte de Amy.
Esta olhou para a irmã furiosa, mas ela estava demasiado embrenhada no maldito gato para lhe prestar atenção. As festas que fazia ao bichano estavam a surtir efeito.
Grimalkin deixara de miar e de se agitar para se libertar das mãos dela. O gato tinha-se acalmado, começando a confiar em Bea. Criatura estúpida.
- Portanto, o que é que sugeres que façamos? - perguntou-lhe Amy com uma expressão taciturna.
- Que nos mantenhamos de olho em Sir Patrick e nessa senhora que ele trouxe de França, mas não devemos fazer qualquer tentativa para a abordarmos até termos provas
genuínas que comprovem a sua identidade.
- Claro que sim. Eu própria já tinha pensado nisso - replicou Amy arrogantemente. - Além disso, tenciono consultar o meu oráculo de água, para tentar ver o que o
destino nos reserva. - Aquele pensamento animou o estado de espírito de Amy, encaminhando-se para a arca para ir buscar a bacia de cobre e os círios, apesar de isso
a colocar nas proximidades do gato, o que lhe causou um ataque de espirros.
Bea aninhou o felino mais junto de si.
- Tu e a tua hidromancia. Se quiseres prever o futuro, toda a gente sabe que interpretar entranhas resulta muito melhor.
- Que horror. Têm tanto sangue e são repugnantes.
- Sim, mas ao contrário de ti, minha querida irmã, eu limpo sempre a porcaria que faço. - Bea sorriu e acariciou a garganta do pequeno gato.
- Sê um amor, Amy, e empresta-me o teu punhal.
Meg dava voltas e mais voltas, acabando por atirar a colcha para o lado. Apesar de o leito de quatro postes ter dois colchões espessos colocados sobre correias de
couro entrelaçadas e apesar de a sua almofada ter sido cheia com penas penugentas, não conseguia sentir alívio do seu sonho.
Meg corria através das ruas estreitas que desta vez lhe eram familiares, num pesadelo que a atormentava. Sabia por que razão é que se encontrava ali.
Ainda não haviam chegado fogo à madeira para a fogueira. As duas figuras ainda só estavam a ser arrastadas para os postes. Conseguia ver a idosa, as feições encarquilhadas
que refletiam um ódio intenso, enquanto dava voz à raiva que o rei lhe inspirava.
"Maldito sejas, Jaime da Escócia. O Inferno está à tua espera! Que um dia pereças consumido pelas chamas! Rogo a minha maldição sobre todos os da Casa de Stuart!"
Os queixumes da jovem mal se ouviam acima da fúria da velha. Quando as duas foram acorrentadas aos postes, Meg esforçava-se por chegar à rapariga, mas sentia os
pés pesados como se fosse ela a estar acorrentada.
Havia mais alguém que lutava por salvar a rapariga. Um rapaz magro que dava luta aos guardas que circundavam a fogueira. Foram precisos dois homens robustos para
conseguirem imobilizá-lo no solo.
"Robbie!", gritou a jovem quando outro guarda chegou lume à pilha de lenha em volta dos pés dela. Meg avançou a cambalear, apercebendo-se desesperada que, uma vez
mais, chegava demasiado tarde.
A rapariga perdia-se numa nuvem de fumo e de chamas crepitantes. Meg conseguia ouvir o pranto excruciante, mas esse choro não vinha da rapariga.
Era o rapaz...
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Meg acordou sobressaltada, sentindo as faces molhadas. Por breves momentos, pensou que estava encharcada em suor, uma consequência do tormentoso pesadelo. Mas quando
levou as mãos às faces, percebeu que eram as suas lágrimas que as molhavam. Tinha estado a chorar durante o sonho, o que não era para admirar. Até mesmo acordada,
continuava a ser capaz de ouvir os gritos lancinantes do rapaz.
Meg passou as mãos pelo rosto para limpar as lágrimas e os últimos vestígios do pesadelo, o mesmo que a afligia desde que tinha chegado a Londres havia três noites.
Os postes, a fogueira, a velha malvada, a jovem aterrorizada e o rapaz que lutava para a salvar.
- Robbie - murmurou Meg, sentando-se no leito e encostando-se às almofadas. Dizer o nome dele enchia-a de uma inexplicável tristeza e confusão.
Durante a sua juventude, tinha tido sonhos muito realistas acerca de pessoas que ela conhecia, sonhos que pareciam adverti-la de acontecimentos que teriam lugar
no futuro, entre estes tinha-lhe sido possível impedir alguns de ocorrerem. Mas por que razão é que continuava a ter aqueles pesadelos em que figuravam desconhecidos,
sobre um passado que ela não testemunhara e que não estava na sua mão alterar? Aquilo não fazia sentido nenhum.
"Mas é frequente que os sonhos não façam sentido." Meg recordou-se dos ecos da sua própria voz quando confortou um velho soldado que aparecera na ilha Encantada
à procura de alívio das insónias e pesadelos que
o atormentavam.
"Habitualmente, os sonhos são o resultado de uma mente inquieta ou de uma grande tensão. Se conseguir ter paz e sossego durante as horas em que estiver acordado,
os sonhos começarão a desaparecer", dissera Meg ao idoso, dando-lhe uma tisana que o ajudaria a conciliar o sono.
Franziu as sobrancelhas ao recordar-se daquele conselho tão simples, tão fácil de dar e tão difícil de aplicar a si própria. Duvidava de que conseguisse preparar
uma poção suficientemente forte para fazer com que o seu pesadelo desaparecesse, tão-pouco esperava encontrar paz e sossego nos tempos mais próximos, certamente
que não naquele dia.
Sir Patrick tinha, finalmente, conseguido a audiência dela com o rei. Aquele pensamento, por si só, era o suficiente para lhe causar um aperto no estômago. Tentou
bani-lo da sua mente enquanto se levantava da cama, reparando na almofada desocupada ao lado da sua.
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Apesar de o dia ainda mal ter raiado, a sua companheira de cama já se ausentara, mas Meg deixara de ficar surpreendida com isso. A casa de Sir patrick Graham era
confortável, embora fosse modesta. Ela e Seraphine tinham sido obrigadas a partilhar a mesma alcova.
Não importava, porque Seraphine levantava-se cedo todas as manhãs, saindo para tratar dos seus próprios assuntos. Era frequente que Meg se esquecesse de que a amiga
possuía o título de condessa. Nessa qualidade, tinha havido uma ocasião em que viajara para Londres, tendo feito parte da comitiva do embaixador francês acompanhada
do seu relutante marido, Gérard. Seraphine conhecia pessoas entre os membros da nobreza inglesa, tencionando recorrer a esses conhecimentos para encontrar outra
residência.
Madame la Comtesse não gostava de estar alojada sob o teto de Sir Patrick. Não confiava no homem e estava firmemente determinada a que ela e Meg se mudassem para
outra casa onde se sentissem mais confortáveis e tranquilas.
Mas Meg não era capaz de se sentir confortavelmente instalada até regressar à sua ilha Encantada, mas não fez nada para desencorajar Seraphine dos seus intentos.
Também não lhe agradava por aí além ficar a dever favores a Sir Patrick. Não obstante o homem continuar a tratá-la com
toda a cortesia e afabilidade, pouco o vira durante os últimos três dias.
Chamado a Whitehall pelos seus deveres e pelos esforços para tratar da audiência de Meg com o rei, Sir Patrick estivera tão ausente como Seraphine, pelo que ambos
haviam deixado Meg entregue a si própria durante tempo de mais para se preocupar com o possível restabelecimento da Irmandade da Rosa de Prata, receando que, de
uma maneira qualquer, isso pudesse estar relacionado com a sua mãe.
Teria acolhido de bom grado qualquer coisa que a distraísse dessa apreensão, até mesmo a presença de Blackwood, não obstante o homem poder ser tão provocador e arreliador.
Mas ela não o via desde a manhã em que tinham chegado a Londres. Ele desembarcara da barca e tinha-se sumido entre a multidão que enchia o cais, desaparecendo sem
sequer ter tido a cortesia de se despedir, se bem que Meg não fizesse ideia do motivo por que isso a perturbava.
Não tinha grandes esperanças de voltar a ver Blackwood, agora que ele regressara a Londres. Ela tinha a certeza de que ele estaria muito ocupado a jogar aos dados,
a beber, a assistir a lutas de galos ou como
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quer que ele ocupasse o seu tempo. Meg não era capaz de imaginá-lo a cuidar carinhosamente dos doentes, mas levando em linha de conta o que ela conhecia das suas
apetências clínicas, era preferível que assim fosse.
Não teria voltado a pensar em Blackwood, não fosse a tensão e o tédio que a haviam assolado durante os últimos dias. Não estava acostumada àquela ociosidade, nem
de estar confinada ao interior de uma casa. Tanto Seraphine como Sir Patrick pensavam que era mais sensato e seguro que ela se mantivesse sossegadamente em casa
dele, enquanto aguardava a audiência com o rei. Meg concordara - para já. Se esperava vir a descobrir a origem da misteriosa ameaça contra a vida de sua majestade,
precisava de começar por falar com Jaime Stuart. Mas, depois disso, Meg também conhecia pessoas em Londres...
Vestiu o roupão e assomou à janela, de onde se desfrutava de uma bonita vista dos jardins de Sir Patrick, com os seus canteiros muito bem arranjados e cuidados.
Mas a manhã estava nublosa, com um nevoeiro que ocultava a paisagem parcialmente.
Avistou alguém que se movimentava junto da macieira, pensando que devia ser Hubert Chalmers, o jardineiro de Sir Patrick, um homem afável de meia-idade cuja pança
começava a dificultar-lhe os movimentos, como ajoelhar-se. Foi com satisfação que acolheu a ajuda de Meg a podar e a arrancar as ervas daninhas, ajuda que ela oferecera
com todo o empenho. Nunca gostara muito de coser nem de bordar, além de se sentir demasiado apreensiva para poder concentrar-se na leitura de um livro. Mas trabalhar
no jardim, enterrando os dedos no solo rico, era uma tarefa a que estava acostumada, além de ser reconfortante. Era uma tarefa que a ajudava a passar aquele tempo
de espera ansiosa, sentindo-se agradecida ao senhor Chalmers por lhe ter dado aquela oportunidade.
Ergueu a mão para bater no vidro da janela para chamar a atenção do jardineiro e para lhe acenar. Mas ficou petrificada, com os nós dos dedos imobilizados no ar.
Não era Chalmers que tinha visto, mas sim uma mulher, o corpo magro oculto num manto cinzento que lhe dava pelos pés e com o capuz todo puxado para a frente a fim
de lhe ocultar as feições. Não podia ser Seraphine porque aquela mulher era muito mais baixa do que ela. Seria uma das criadas de Sir Patrick?
Não, nenhuma delas precisava de andar de bengala e aquela mulher apoiava-se pesadamente à sua para chegar ao fundo do carreiro do jardim.
Meg pensou ter visto a mulher a deixar cair qualquer coisa, mas talvez estivesse enganada. Em vez de se baixar para apanhar do chão o que quer que fosse, a mulher
deteve-se e inclinou a cabeça para cima, olhando na direção da casa. Meg deixou cair a mão, sentindo o coração a bater mais depressa. Não conseguia distinguir nada
da fisionomia da estranha, apesar disso, tinha a sensação de que a mulher olhava fixamente para si.
Conteve a muita vontade de se afastar da janela. Ficou com os pelos da nuca eriçados e sentiu que todo o seu corpo era percorrido por um arrepio como nunca sentira.
Não desde a última vez em que estivera a tremer diante de Cassandra Lascelles.
- Mãezinha? - murmurou Meg.
Deu um salto de tão sobressaltada e virou costas à janela quando a porta da alcova se abriu, dando entrada Seraphine cheia de vivacidade e determinação.
- Já acordaste. Ótimo. Porque há muito a fazer e pouco tempo... Seraphine interrompeu-se, observando o semblante de Meg, que só podia imaginar o quanto devia estar
empalidecida. - O que é que foi? O que é que se passa?
- Eu... eu... - Meg virou-se outra vez para a janela e com um gesto apontou para a mulher que vira no jardim. Mas já não havia ninguém nesse sítio. Ela tinha, muito
simplesmente, desaparecido como se nunca tivesse estado ali. Talvez Jaime Stuart não fosse o único a ver fantasmas do passado. - Pensei que...
- O quê? Que viste a tua mãe a retornar dos mortos?
- Nada - tartamudeou Meg, sentindo que procedera de maneira idiota ao permitir que a sua imaginação se descontrolasse.
Em circunstâncias normais, Seraphine não se teria contentado com uma resposta tão vaga. Teria insistido com Meg até obter toda a verdade, mas a própria Seraphine
parecia alheada. Estava acompanhada de três criadas jovens que vinham carregadas com vários pacotes, baldes cheios de água fumegante e um tabuleiro repleto de comida.
Eram seguidas de um lacaio que trazia o necessário para um banho de assento.
- Mas para que é isto tudo? - perguntou Meg.
- É a tua armadura. Não vais encontrar-te com o rei sem estares preparada para o que der e vier. - Como um general a passar revista às suas tropas, Seraphine ordenou
que pousassem o banho de assento, após o que
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dispensou o lacaio. Enquanto duas das criadas enchiam a tina com água quente, a outra colocava os embrulhos em cima do leito. Meg observava todos aqueles preparativos
com uma agitação crescente, se bem que tentasse levar a situação para a brincadeira.
- Armadura? Estás a dizer que me compraste um colete acolchoado para usar por baixo do vestido? Não te parece que ficarei com um aspeto bastante grotesco, inchada
como o papo cheio de um pombo?
- Minha querida Meg, quando eu tiver acabado, não vais parecer nenhuma criatura de penas, a menos que seja a ave-do-paraíso - replicou Seraphine, desembrulhando
o embrulho mais volumoso, exibindo triunfantemente um luxuoso vestido de veludo azul.
- Oh, Phine, o que é que fizeste? Pensei que tínhamos concordado que não seriam precisos luxos.
- É possível que tu tenhas concordado, mas eu nunca estive de acordo com isso. Sir Patrick pode levar-te furtivamente pelas escadas das traseiras do palácio, mas
quando te apresentares diante do rei, estarás resplandecente, exigindo o respeito que te é devido na qualidade de Senhora da Ilha Encantada. Orgulhosa e de cabeça
bem erguida como a mais importante rainha da cristandade.
- Será preciso mais do que um belo vestido para efetuar tal transformação - retorquiu Meg, passando os dedos pelas dobras aveludadas do vestido. Havia muitos anos
que não possuía nada tão requintado, não desde os tempos em que vivera com o pai em Londres havia muitos anos. Depois de Martin Wolfe ter salvado Meg dos horrores
da irmandade das bruxas da mãe, ele esforçara-se ao máximo para apagar o passado da filha. Tinha-a instalado numa casa requintada, comprando-lhe todos os luxos,
os vestidos bonitos e as jóias que qualquer adolescente normal desejaria possuir. O seu pobre pai estivera tão determinado em transformar a sua pequena bruxa tão
simples numa princesa deslumbrante. Não havia resultado então e Meg duvidava muito de que agora o resultado fosse diferente.
Mas contrariar Seraphine era o mesmo que tentar navegar a direito durante um violento furacão, além disso, Meg não tinha energia suficiente para se opor à amiga
em relação àquele assunto. Muito simplesmente, não estava interessada na maneira como se trajaria, mas uma vez que o assunto era importante para Seraphine, decidiu
submeter-se.
Verdade fosse dita, teria desfrutado do banho de assento se lhe fosse permitido fechar os olhos e perder-se num lugar sossegado da sua mente.
Mas isso era virtualmente impossível com uma criada a polir-lhe as unhas, enquanto outra lhe esfregava as costas energicamente, ao mesmo tempo que Seraphine a atafulhava
de pão com mel.
Meg não tinha apetite, mas Seraphine insistia, dizendo que a amiga não podia apresentar-se perante o rei de estômago vazio, e Meg reconheceu que ela tinha razão.
Depois de a terem secado com uma toalha, Meg manteve-se de pé docilmente enquanto começavam a vesti-la, embora se sentisse como uma boneca de trapos que era puxada
em todas as direções por quatro criadas muito empenhadas no que faziam. Ouvira falar do que os cavaleiros tinham de suportar enquanto eram preparados para a batalha,
o tempo que demorava para que lhes pusessem uma armadura completa. Meg pensava que não poderia ser muito pior do que aquilo, enquanto lhe punham as ligas que seguravam
as meias e a cintura era cingida por um espartilho, ao que se seguiram as anquinhas e várias anáguas. Perguntava-se como é que seria capaz de se mexer sem tropeçar,
em especial, calçada com os sapatos de pelica que lhe apertavam os dedos dos pés, os saltos de madeira dos coturnos muito mais altos do que os que costumava usar.
Depois de lhe terem posto o vestido de veludo pela cabeça, Seraphine ordenou às criadas que se retirassem para grande alívio de Meg.
- Eu própria acabarei de preparar milady - disse-lhes Seraphine, apressando-as em direção à porta da alcova. Quando Seraphine foi buscar as mangas, Meg passava as
mãos pelo tecido, maravilhada ao constatar como lhe assentava bem.
- Como é que conseguiste comprar um vestido que tem exatamente as minhas medidas? - perguntou-lhe Meg.
- com facilidade. Levei aquele teu vestido castanho velho e deixei que a costureira o descosesse todo para poder servir de molde.
- Seraphine! - exclamou Meg, olhando para a amiga de sobrolho carregado. - Esse vestido era o meu preferido.
- Era horroroso.
- Também era extremamente confortável e prático, o que, sem sombra de dúvida, este vestido não é - queixou-se Meg.
Ignorando as queixas da amiga, Seraphine disse-lhe autoritariamente que ficasse quieta. Meg obedeceu, sentindo-se um tanto ou quanto envergonhada ao aperceber-se
de que estava a lamuriar-se.
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- Peço desculpa - disse. Não é minha intenção parecer que sou
ingrata. O vestido é lindíssimo e agradeço-te por mo teres comprado. Como é que conseguiste que a costureira o acabasse em apenas três dias?
- Eu disse-te - retorquiu Seraphine, franzindo a testa enquanto se concentrava nos colchetes que prendiam as mangas, justas na parte inferior do braço e tufadas
na parte de cima, ao corpete do vestido. - Tenho os meus conhecimentos em Londres. Quando expliquei a urgência com que precisava do vestido à condessa de Shrewsbury,
ela teve a gentileza de me ceder a sua costureira, além disso, pelos padrões da corte, este vestido não é demasiado elaborado.
A Meg parecia bastante elaborado e dispendioso.
- E a condessa também te emprestou dinheiro? - perguntou-lhe Meg com algum mal-estar.
Seraphine riu-se.
- A Bess Throckmorton? Não me parece. Essa mulher não acumulou uma fortuna a dar dinheiro aos outros. - Seraphine começou a prender a outra manga, acrescentando
num tom mais sério: - Eu também tenho os meus próprios fundos, Meg. Apesar de estar separada de Monsieur le Comte, posso levantar dinheiro junto dos agentes financeiros
dele sem quaisquer restrições.
- Outro homem qualquer talvez tivesse apertado os cordões à bolsa a fim de obrigar a mulher a voltar para casa. - Meg não pôde impedir-se de salientar.
- O Gérard nunca faria uma coisa dessas. Nunca foi mesquinho com o seu dinheiro. Desde sempre que tentou dar-me tudo o que eu queria. Infelizmente, ele não pode
dar-me o que mais desejo.
- E o que é isso?
- O meu rapazinho. Quero o meu filho de volta. - Os olhos de Seraphine ficaram marejados de lágrimas, fazendo com que Meg tivesse esperança em que a amiga desse,
finalmente, largas ao desgosto que reprimia dentro de si havia tanto tempo. Mas Seraphine pestanejou com força. Aproximou-se da cama para ir buscar os punhos engomados
e a gola de tufos igualmente engomada. Quando voltou para junto de Meg, mudou de assunto. - Este vestido nunca serviria para a nossa corte em França. A linha do
pescoço é demasiado alta, mas a Bess avisou-me de que o rei Jaime era um tanto puritano.
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- A condessa disse-te alguma coisa que nos possa ser útil?
- Ela disse-me que, à semelhança da maior parte dos monarcas, o rei Jaime gosta que lhe façam profusos elogios. Fazes alguma ideia da maneira como deves dirigir
a palavra ao rei?
- Presumo que seria incorreto tratá-lo por "Sua alteza real, o maior queimador de bruxas".
Em circunstâncias normais, Seraphine teria retribuído o comentário espirituoso, mas, em vez disso, ficou com uma expressão carrancuda.
- Isso não é assunto para brincadeiras, Meg. A realeza, até mesmo os seus membros de ideias mais liberais, é extremamente ciosa da sua posição. Temos de lidar com
um rei com todo o cuidado.
Enquanto Seraphine tratava de lhe dar uma lição sobre os intrincados pormenores da etiqueta a ser observada na corte, Meg sentiu-se tentada a lembrar-lhe que aquela
não seria a primeira vez que lhe havia sido concedida uma audiência privada com um monarca.
Mas Meg supunha que não devia contar a ocasião em que estivera presa no palácio de Catarina de Médicis, quando se tinha preparado para matar a Rainha das Trevas.
Era impossível que existissem questões de protocolo quando uma pessoa se preparava para cometer regicídio.
Também tinha existido a ocasião durante a sua meninice em Londres, altura em que Meg fugira de casa para se rojar aos pés da rainha Isabel, tremendo que nem varas
verdes. Tinha idolatrado a rainha inglesa, uma adoração infantil, cega para todos os defeitos da mulher, por isso, aquele encontro correra da melhor maneira. Meg
conseguiu a mercê que desejara, a libertação da sua grande amiga, Lady Jane Danvers, que fora aprisionada na Torre de Londres.
Isabel ficara intrigada com o poder de Meg, que usava uma bola de cristal para adivinhar o futuro... intrigada e desconcertada. Quando entregou Meg ao pai, a rainha
Isabel deu uma ordem a Martin Wolfe.
Aconselhar-vos-ia fortemente a que a levásseis para essa ilha Encantada o mais depressa possível. Além de ser uma rapariga extraordinária, a Margaret também é uma
das mais enervantes que nos foi dado conhecer. Por conseguinte, pensamos que o nosso clima inglês poderá provar não ser o mais adequado a uma rosa francesa tão rara."
Mais valia que Seraphine continuasse a não ter conhecimento desse encontro com a rainha Isabel. Se fizesse alguma ideia de que Meg havia sido banida de Inglaterra,
a amiga jamais teria permitido que a amiga regressasse a Londres.
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Mas isso tinha acontecido havia mais de vinte anos. Entretanto, a rainha Isabel falecera, tal como a maior parte dos seus ministros também já havia morrido ou aposentara-se
dos seus elevados cargos. Meg duvidava que houvesse alguém que ainda se lembrasse desse encontro entre a falecida rainha e uma garota insignificante, mas esse era
um risco que Meg teria de correr.
Desviando os seus pensamentos do passado, Meg esforçou-se por memorizar as instruções de Seraphine.
- ... e o rei adora ser adulado. Portanto, deves tratá-lo com expressões como "Ó mais sábio de todos os reis desde o grande Salomão" ou "Mui real e mui amado rei
de corações".
- Eu nunca seria capaz de dizer coisas dessa natureza e manter uma cara séria e com certeza que o rei se riria ou se mostraria desagradado.
- Não. Sua majestade não caberia em si de contentamento.
- Mesmo que as minhas palavras soassem a falso?
- Ele nem sequer se aperceberia disso. As cortes reais não são lugares onde se proceda com sinceridade.
Enquanto Seraphine prendia uma faixa dourada na cintura de Meg, continuou a falar sobre o mesmo assunto.
- O rei imagina-se muito erudito, pelo que poderás cumprimentá-lo pelos seus conhecimentos. Ele fala latim e grego fluentemente e gosta muito de debates.
- Sob esse aspeto, pelo menos, talvez consiga satisfazê-lo. O meu próprio latim e grego são...
- Conhecimentos que farás melhor em esquecer. O rei não tem grande opinião acerca do intelecto das mulheres e duvido que ele acolhesse de bom grado ser desafiado
por ti.
- Se ele tem tão fraca opinião acerca das mulheres, por que razão é que se deu a tanto trabalho para que me trouxessem à sua presença?
- É precisamente isso que me preocupa. Isso e por que motivo é que um rei que está tão desesperado por que o curem de uma praga que lhe rogaram precisou de três
dias para te conceder uma audiência.
- Essa pergunta também me tem andado a preocupar - admitiu Meg.
- Por muito cauteloso que Sir Patrick tenha sido nos preparativos para esta audiência, se ele acredita que poderá manter este assunto em segredo, então o homem é
um rematado idiota. A Bess disse-me que já ti? nham começado a circular rumores a respeito da estranha maldição que
aflige o rei. Depois de te teres encontrado com ele, receio que também se comece a ouvir rumores acerca de ti, especulações sobre a mulher sagaz que veio de tão
longe para curar o rei.
- Espero que não. Tudo o que quero é encontrar-me discretamente com sua majestade para me inteirar do que ele me possa dizer a respeito dessa alegada bruxa que lhe
rogou uma praga.
- Se o teu objetivo for conseguir que ele te dê informações, então é melhor que aprendas a lisonjeá-lo e a empregar a tua astúcia e encantos femininos.
- Tu serias muito mais capaz de fazer isso.
- Sei que sim. Mas graças à maneira como Sir Patrick preparou tudo isto, nem sequer posso estar presente para me manter vigilante. Portanto, tenho de te armar o
melhor que me for possível.
Quando Seraphine se encaminhou para a cama onde estava o último pacote que começou a desembrulhar, Meg disse:
- Se me compraste uma adaga, não me parece que seja muito sensato que eu tente levar uma arma quando estiver na presença do rei.
- Tens toda a razão, especialmente por eu não ser capaz de te imaginar a usá-la. Mas, para me fazeres a vontade, prende isto numa das tuas ligas.
Meg pestanejou quando viu do que é que se tratava; era um requintado leque com cabo de marfim.
- O que é que estás à espera que eu faça com isto? Que faça olhinhos sedutores ao rei?
- Não, espero que o uses para te manteres de olho no que se passa nas tuas costas, uma vez que não poderei estar lá para fazer isso por ti.
Seraphine abriu o leque e viu que tinha um pequeníssimo espelho in corporado no centro. Meg sentiu-se tentada a dar uma gargalhada, mas conteve-se. Aquilo parecia-lhe
um tudo-nada dramático, mas Seraphine procedia com toda a seriedade enquanto lhe mostrava como pegar no leque e como usar o espelho para observar o que se passava
atrás de quem o usasse.
- Toma isto e pratica até ficares a saber como usá-lo disfarçadamente. E agora vai à tua vida para eu chamar a Louise e a Estelle para que me ajudem a arranjar-me.
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- Mas, Phine. Sabes que não podes acompanhar-me.
- Estou bem ciente disso. A minha intenção é encontrar um aliado que nos ajude no caso de o teu encontro com o rei correr mal. A Bess prometeu que me apresentaria
à rainha Ana.
- A rainha tem muita influência junto do marido? - perguntou Meg.
- Não sei. Diz-se que o rei é muito dedicado à mulher. É normal que ele se refira a ela como "Annie", até mesmo diante de toda a corte. O Gérard também me tratava
por um diminutivo, mas reservava-o apenas para os momentos em que estávamos sozinhos, na intimidade. - A voz de Seraphine demorou-se na última palavra, enquanto
a expressão nos seus olhos se suavizou ao lembrar-se desses momentos. Mas logo em seguida empurrou Meg em direção à porta.
Meg andava de um extremo ao outro do corredor do piso de cima a praticar, mas não com o leque como Seraphine a instruíra. Meg estava muito mais preocupada com a
sua habilidade em andar com os sapatos de salto alto sem tropeçar, fazendo uma figura ridícula. Caminhava num passo vacilante, tentando impedir que as anquinhas
oscilassem de uma maneira desajeitada e resistindo à vontade de tentar alargar a gola de tufos engomados que lhe arranhava o pescoço.
Usar aquele vestuário tão sofisticado era um erro, tal como tinha receado que aconteceria. O vestido, os coturnos, o leque, a par de todas as advertências e instruções
de Seraphine, serviam de muito pouco para reforçar a confiança de Meg em si própria, muito pelo contrário.
Deu outra volta no corredor, mas estacou repentinamente quando a porta da alcova de Sir Patrick se abriu e o criado dele, Alexander, saiu.
Meg fez menção de o saudar para lhe perguntar o que era feito do seu amo, mas antes mesmo de poder proferir as palavras "bom dia", Alexander passou por ela de cabeça
baixa e com o cabelo louro caído como uma cortina, ocultando-lhe os olhos.
Meg ficou surpreendida e ultrajada. O escocês evitava falar com ela sempre que lhe era possível. Meg tinha plena perceção de que Alexander a olhava com um misto
de medo e aversão, uma reação natural, uma vez que o escocês deixara bem claro desde o princípio que a considerava uma bruxa.
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Aquela atitude entristecia Meg, dado que, sob todos os outros aspetos, Alexander parecia ser um homem de caráter e de uma dedicação incondicional a Sir Patrick.
Agarrada ao corrimão, Meg desceu as escadas até ao vestíbulo que estava deserto. Hesitou por uns momentos, antes de dirigir os seus passos para a porta de acesso
ao jardim, embora não soubesse o que esperava encontrar. A mulher envolta no manto comprido, se ela tivesse existido de facto, há muito que se teria ido embora.
Talvez conseguisse encontrar algum vestígio da sua presença, o que provaria que não tinha imaginado coisas que não existiam.
Quando chegou ao jardim, Meg esforçou-se por se lembrar com exatidão do sítio em que lhe parecera que a mulher deixara cair qualquer coisa. Pensou que tinha sido
ali, por baixo da macieira. Começou a encaminhar-se nessa direção quando ouviu vozes masculinas. Avistou dois homens por detrás dos arbustos. Um deles era Chalmers,
o jardineiro, e o outro era Armagil Blackwood.
Meg imobilizou-se, sentindo que o seu coração dava um curioso salto contra as costelas. Sentiu uma grande vontade de bater em retirada. Já se sentia constrangida
de sobra ataviada com aquele vestido tão luxuoso e a que não estava acostumada, sem ter de se sujeitar ao olhar cínico de Blackwood.
Mas era tarde de mais. Os dois homens já a haviam visto, com Chalmers a fazer-lhe uma vénia que fez com que a rotunda barriga se dobrasse por cima do cinto. Blackwood
limitou-se a olhar para ela com fixidez, observando a invulgar aparência de Meg com um arquear das sobrancelhas que poderia ser interpretado como uma expressão entre
o surpreendido e o divertido.
Meg ergueu a cabeça a direito e aproximou-se com mais graciosidade do que imaginara ser-lhe possível. Quando já se congratulava, cambaleou, mas Blackwood agarrou-a
pelo braço para a impedir de cair.
- Calma - disse ele. Agora era impossível confundir a expressão no rosto dele. Os olhos dançavam de tão divertido que ele estava.
com as bochechas a arderem, Meg puxou o braço, soltando-se da mão dele e tentando recuperar a sua dignidade. Foi ajudada pela saudação calorosa e sorriso radiante
de Chalmers.
- E então, milady, estais pronta para a vossa visita a Whitehall? Se me permitis que vos diga, estais muito elegante.
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- Agradeço o cumprimento.
- Estava a falar de vós com o doutor Blackwood. Ele teve a amabilidade de me trazer um remédio para as minhas pedras nos rins, mas eu estava a dizer-lhe que já não
era necessário porque vossa senhoria já me tinha dado uma poção que me curou.
- A sério, ela fez isso? - retorquiu Blackwood, não se mostrando nada agradado ao tomar conhecimento daquilo.
Meg levantou o queixo numa atitude desafiadora.
- Aprendi a preparar uma determinada poção à base de ervas medicinais que resulta muito bem no tratamento de cálculos biliares.
- Sem dúvida que sim. Esta manhã consegui mijar sem desatar a guinchar... - O rosto anafado de Chalmers ficou vermelho que nem um tomate. - Peço perdão, milady,
pela minha linguagem tão grosseira.
- Ora, isso não tem importância nenhuma, Chalmers - atalhou Blackwood numa voz arrastada. - Todas as mulheres que brincam aos médicos, com certeza que não se melindram
com esse género de linguagem.
Antes que Meg pudesse pensar numa resposta, Chalmers foi chamado por uma das criadas que lhe indicava com um gesto que fosse ter à porta da cozinha. com um olhar
de constrangimento a Meg e Blackwood, o jardineiro pediu licença antes de se afastar.
Seguiu-se um silêncio de mal-estar. Sem dúvida que Blackwood pensava que ela se intrometera em assunto que só a ele dizia respeito ao tratar Chalmers. No entanto,
Meg não tinha a mínima intenção de lhe pedir desculpa, em especial quando viu o pequeno frasco que o físico tinha na mão. O frasquinho de vidro transparente continha
algo que tinha o aspeto de contas que pareciam estar a mexer-se.
- O que é isso, doutor Blackwood?
Este levantou o pequeno frasco para que ela o pudesse examinar melhor.
- Piolhos.
- Não admira que o senhor Chalmers se tenha mostrado tão agradecido pelo meu remédio. Estáveis à espera que o pobre do homem engolisse isso?
- Não, os piolhos destinam-se a ser inseridos na ponta da picha do homem.
Quando Meg estremeceu, Blackwood continuou com rispidez.
- Pode parecer que é repulsivo, mas sabe-se que dá resultado.
- Não consigo imaginar como. Nunca ouvi nada tão ridículo como isso.
- Não é mais ridículo do que uma mulher que prepara mezinhas à base de ervas, afirmando que sabe mais do que um médico licenciado em Oxford.
- Talvez devêssemos perguntar ao senhor Chalmers quem é que sabe mais. Desejo-vos um bom dia, senhor. - com um acenar de cabeça e uma expressão de imensa frieza.
Meg virou-lhe costas para se afastar com a postura mais digna que lhe fosse possível.
Ainda não tinha percorrido grande parte do carreiro que atravessava o jardim, quando Blackwood a chamou.
- Menina Margaret Wolfe, esperai.
Meg ignorou-o, continuando a andar, mas ele seguiu-a, agarrando-a por um braço. Meg ficou rígida.
- Largai-me imediatamente. Estais a amarrotar-me a manga do vestido e a pisar os ásteres de Sir Patrick.
Blackwood olhou para as botas.
- Ora, o Graham que vá para o diabo mais o seu jardim muito bem arranjadinho. Sempre que venho aqui, só me apetece pegar num sacho para escavar os canteiros, deixar
que as flores cresçam livremente como foi intenção da natureza, como as urzes nas colinas.
Meg começou a menear a cabeça num gesto de assentimento, mas conteve-se, sem querer reconhecer que, muito possivelmente, poderia concordar com Blackwood no que quer
que fosse. Fitou-o com uma expressão furiosa até ele a largar.
- Não foi minha intenção ter sido tão brusco há pouco - disse ele. - As minhas palavras deveram-se ao facto de me preocupar convosco, mais do que por qualquer outro
motivo. Não é muito sensato que as mulheres andem por aí a ministrar remédios.
- com certeza que existirão muitas mulheres em Inglaterra que fazem isso mesmo. Não será considerado como fazendo parte das obrigações de uma mulher saber como tratar
as maleitas dos que vivem em sua casa?
- Sim, no que diz respeito à sua própria família e aos servos da casa, mas não me parece que andem por aqui e ali a tratar de estranhos. Aqui, em Londres, até mesmo
as parteiras têm de obter uma licença junto do
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bispo antes de poderem ajudar as mulheres a dar à luz. Se as vossas poções falhassem alguma vez, poderíeis, muito facilmente, vir a ser acusada de bruxaria - acrescentou
Blackwood.
- E pensais que eu não estou bem ciente disso? É um risco que tenho vindo a correr ao longo de toda a minha vida - retorquiu Meg, incapaz de conter o azedume que
transparecia do seu tom de voz. - E o mesmo perigo com que qualquer mulher sábia se pode deparar. Deixar que um paciente morra, quer tenha sido por nossa culpa ou
não, e podemos ver-nos diante da forca, enquanto vós, os físicos, podem aniquilar todos os habitantes de uma aldeia com toda a impunidade.
- Não uma aldeia inteira, apenas os residentes de uma ou duas casas. Caso se mate mais do que isso, os pacientes, provavelmente, começariam a ser em número mais
reduzido.
Os lábios de Meg quiseram sorrir, mas ela estava determinada a não permitir que ele lhe provocasse o riso.
- Peço perdão - disse Blackwood contrito, a expressão nos olhos a suavizar-se. - Sabeis que não sou capaz de ficar sério durante muito tempo, seja qual for o assunto.
É um defeito fatal do meu caráter. Se vos ofendi, lamento profundamente.
Aquele inesperado pedido de desculpa apanhou Meg desprevenida, abrandando a irritação que sentia.
- Eu também lamento - disse. - Também não foi minha intenção ofender-vos.
- Ótimo. Mas agora peço-vos que me permitais prender a manga do vosso vestido.
Só então é que Meg se apercebeu de que a manga direita se desprendera parcialmente. Antes que pudesse objetar, Blackwood aproximou-se mais para voltar a prendê-la.
Ele prendeu os colchetes com tanta destreza como Seraphine tinha feito. O homem dava a impressão de estar muito familiarizado com as complexidades do vestuário feminino.
Aquele não era um momento oportuno para se recordar da opinião de Seraphine, quando esta disse que Blackwood seria um bom amante. Meg deu consigo a olhar fixamente
para as mãos dele, grandes, fortes e com dedos compridos. Não seria muito difícil imaginar aquelas mãos a acariciarem...
Meg ficou agitada, apressando-se a banir aqueles pensamentos da sua mente e desviando o olhar. Para atenuar o embaraço que sentia, adotou um tom brincalhão.
- Tendes muita habilidade a fazer isso, doutor Blackwood. Se a vossa prática de medicina falhar, talvez pudésseis encontrar trabalho como criada de uma senhora.
- Duvido disso. Tenho mais tendência para despir as mulheres, uma habilidade que a maior parte dos maridos considera censurável. - Prendeu o último colchete e recuou
um pouco, o seu olhar a percorrê-la de alto a baixo. -Já acabei. Estais... lindíssima.
Meg soltou uma gargalhada de ironia.
- Não é bem essa reação que um homem espera quando elogia uma senhora.
- Foi mais forte do que eu. Parecestes-me tão surpreendido e lembrei-me de me terdes dito que não acháveis que eu fosse bonita. Embora tenhais reconhecido que eu
era quase bonita quando sorria.
- Ah, mas, minha senhora, estais a sorrir.
Meg apercebeu-se de que, de facto, estava a sorrir. Obrigou-se a adotar uma expressão mais circunspecta.
- Estais deslumbrado com o vestido que é bastante bonito, mais nada.
Blackwood começou a andar lentamente à volta de Meg, examinando-a atentamente de todos os ângulos.
- Não, não me parece que o vestido me agrade. É de uma cor que não vos fica nada bem. O azul ficaria muito melhor a Madame la Comtesse.
- Enquanto uma mulher tão vulgar como eu só devia usar vestuário castanho ou cinzento.
- Devíeis vestir-vos de verde, de um tom escuro de floresta para condizer com a cor dos vossos olhos, ou de um brocado de um amarelo-escuro que daria realce ao vosso
cabelo, esses tons de um castanho-avermelhado que são refletidos pelo sol.
- Oh... - Meg estava acostumada à muita frontalidade de Blackwood e aos seus comentários provocadores. Nunca teria esperado um cumprimento que soava tão genuíno.
Ele olhava para ela da maneira como a maior parte dos homens olhava para Seraphine. Aquela perceção fez com que ficasse agitada.
- É isso que preferíeis? - perguntou-lhe Meg.
- O que eu preferia era ver-vos com muito menos roupa.
Meg ficou com a respiração arfante e os olhos muito abertos numa expressão de falsa ingenuidade.
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- Só estava a referir-me a que devíeis livrar-vos dessas anquinhas. Não consigo imaginar quem é que poderá ter inventado uma coisa tão infernal, decerto que alguma
virgem azeda ou um puritano austero. Essa maldita gaiola de barbas de baleia mantém, de facto, um homem à distância.
Apesar das suas queixas, Blackwood conseguia manter-se bastante chegado a ela, passando o nó de um dedo pela face de Meg.
- Aprovo a maneira como a condessa vos penteou, afastando o cabelo do rosto.
- Portanto, considerais que é uma melhoria.
- Sim, torna muito mais fácil beijar-vos.
Os olhos dele refletiam ardor, a sua intenção estampada com toda a clareza no rosto quando se inclinou mais para ela. As palavras de Seraphine ecoavam na mente de
Meg.
"Escolhe alguém cuja maneira de fazer amor não inspire adjetivos como afetuoso, confortável e muito agradável. O Blackwood devia ser o teu homem."
Meg não queria nem precisava de nenhum homem. A despeito disso, não conseguiu chamar a si a vontade de se afastar. O seu coração batia mais depressa enquanto esperava
que ele a beijasse.
Blackwood fez uma pausa, a sua boca a milímetros da dela. Suspirou e afastou-se, pegando-lhe nas mãos. O seu semblante mostrava uma expressão de uma seriedade muito
rara nele.
- Tendes de ter muito cuidado hoje, Margaret.
Era a primeira vez que ele a tratava pelo seu primeiro nome e a entoação com que o pronunciou era inesperadamente circunspecta e terna.
- S... sim - gaguejou ela, confundida e surpreendida por ele não a ter beijado e ainda mais surpreendida por ter ficado tão desiludida.
- Sou sempre prudente.
- Não, não sois, porque se fôsseis prudente teríeis ficado na ilha Encantada. É possível que o rei Jaime vos deixe a impressão de que é grosseiro e mesmo um pouco
idiota, mas é muito arguto. É um homem fraco, mas isso só o torna ainda mais perigoso. Não existe ninguém mais traiçoeiro do que um cobarde. Também tendes de ter
cuidado com o pequeno bigle do rei. Diz-se que ele morde.
Blackwood apertou-lhe as mãos.
- E também deveis ter cuidado com o Graham.
- com Sir Patrick? - perguntou Meg atónita. Estaria Blackwood a adverti-la contra o seu grande amigo?
O físico hesitou, como se estivesse a travar uma batalha consigo próprio antes de prosseguir, escolhendo as suas palavras com todo o cuidado.
- O Graham é um homem bom, mas acontece que o seu desmesurado zelo cega-o. Sofreu uma tragédia na sua juventude que o afetou profundamente e que configurou o homem
que ele é atualmente. Ele...
Mas fosse o que fosse que Blackwood tencionava acrescentar foi calado pela chegada do próprio Sir Patrick. Graham entrou no jardim, estacando ao deparar com eles.
Blackwood largou-lhe as mãos e afastou-se de Meg, mas não sem antes, receava ela, Sir Patrick os ter visto, embora não soubesse explicar por que razão é que isso
teria alguma importância. Blackwood mostrou-se constrangido, mas não tardou a recompor-se.
- Graham - disse à guisa de saudação na sua habitual maneira sem-cerimónia.
- Blackwood - retorquiu Sir Patrick com secura. Fez uma pequena vénia a Meg, mas sem a cortesia que costumava mostrar-lhe, o seu olhar a fixar-se no vestido novo.
Apesar de não ter feito qualquer comentário por ela estar com uma aparência tão diferente, Graham não pareceu ter ficado nada agradado. Quando voltou a concentrar
a sua atenção no amigo, Meg apercebeu-se de uma centelha de cólera nos olhos dele. - O que é que te trouxe aqui tão cedo? - perguntou num tom autoritário. - Pensei
que nunca te mexias muito antes do meio-dia.
- Ocasionalmente, consigo fazer isso. Vim trazer um remédio para tratar das pedras nos rins do Chalmers, mas uma vez que ele prefere a poção da menina Margaret Wolfe
aos meus piolhos, tratei de guardar os meus pequenos amigos e preparava-me para voltar para casa.
- Um momento, se quiseres fazer o favor. - Sir Patrick virou-se para Meg, obrigando-se a esboçar um sorriso forçado. - Menina Margaret Wolfe, com vossa licença,
preciso de dar uma palavra em particular ao doutor Blackwood.
A tensão entre os dois homens era tão palpável que Meg se sentia relutante em deixá-los. Mas a não ser que desafiasse abertamente o pedido de Sir Patrick, não lhe
restava outra alternativa. Fez uma vénia aos dois homens, mas foi o olhar de Blackwood que procurou. Os olhos dele pareciam estar a estender-lhe a mão antes de desviar
o olhar.
Enquanto Meg se dirigia em direção à casa, Blackwood tentava não olhar para ela, mas foi mais forte do que ele. Ela estava a aprender a caminhar
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com aqueles sapatos de salto alto e tinha-se retirado com graciosidade e dignidade.
Os seus lábios esboçaram um meio sorriso. Era estranho, mas quando Meg usava os seus vestidos tão simples e calçava as botas práticas, dela emanava uma discreta
confiança em si própria. Trajada com um requintado vestido, parecia insegura, vulnerável e, inexplicavelmente, mais jovem, o que suscitava nele uma enorme vontade
de a proteger.
Não queria sentir uma ternura tão grande mais do que queria aquele confronto com Graham. Mas parecia não haver maneira de evitar tanto uma coisa como a outra.
Assim que Meg desapareceu da vista deles, Graham interpelou-o de imediato.
- O que é que estás a fazer aqui, Blackwood? E não me venhas com mais disparates sobre uma necessidade urgente de trazeres os piolhos para tratares o Chalmers. Podias
ter enviado o remédio por esse rapaz que habitualmente te faz esses recados.
- Esta manhã não consegui encontrar o tom em lado nenhum. Além disso, desde quando é que preciso de alguma justificação para te visitar?
- Não vieste cá para me visitares. Vieste para a veres, depois de me teres prometido que te manterias afastado.
- Não me lembro de ter prometido exatamente como dizes.
- Concordaste que seria o melhor.
- É possível que sim, mas se eu sentir um certo interesse em Margaret Wolfe, não compreendo por que motivo é que isso tem tanta importância para ti. Talvez deplores
os meus interesses amorosos, mas nunca trataste de interferir.
- Margaret Wolfe é muito diferente das tuas galdérias. Além disso é uma convidada em minha casa, pelo que se encontra sob a minha proteção.
- E tencionas protegê-la?
Para contrariedade de Blackwood, Graham furtou-se à pergunta, fazendo-lhe ele próprio uma pergunta.
- Foste enfeitiçado por ela?
A pergunta era tão ridícula que Blackwood desatou a rir. Mas era óbvio que Graham falava muito a sério.
- Ainda bem que achas essa ideia tão divertida, porque eu não acho - acrescentou Graham. - Nunca te vi a olhar para uma mulher com tanta ternura como olhas para
ela. Receio que corras o perigo de estares enfeitiçado por ela.
- És um idiota.
- Espero que não. É possível que Margaret Wolfe se considere uma curandeira, mas admite que tem conhecimentos de magia branca, além de ser uma pagã confessa. Estar
enamorado de uma mulher como ela poria a tua alma imortal em perigo.
- A minha alma? - Blackwood não pôde evitar rir-se outra vez.
- Ambos sabemos que estou muito bem encaminhado no caminho para o Inferno. - Ficou mais sério quando acrescentou: - Mas nunca quis que percorresses esse caminho
comigo, Graham, por isso, seja o que for que andes a conspirar, peço-te que ponhas fim a isso.
- Não posso - ripostou Graham com uma expressão atormentada
no rosto.
- Queres dizer que não desejas, ainda que para atingires os teus objetivos ponhas a vida de Margaret Wolfe em perigo, ao mesmo tempo que destruirás a tua própria
vida.
- É frequente que sejam necessários sacrifícios quando uma pessoa age em nome de Deus e da justiça.
- Justiça! Detesto quando adotas essa atitude de tanta hipocrisia. Pelo menos, sê honesto contigo próprio e admite a tua conspiração pelo que é de facto.
- E o que é que isso seria?
- Vingança.
Um músculo na bochecha de Graham contraiu-se, a sua única reação àquela acusação.
- Tenho de ir buscar Margaret Wolfe para a levar a Whitehall. Não seria aconselhável fazer o rei esperar. Um teu criado, Blackwood.
Graham despediu-se com um pequeno inclinar da cabeça antes de se encaminhar para a casa. Blackwood reprimiu o impulso de ir atrás dele, para tentar pôr algum bom
senso na cabeça do homem, à força se necessário. Mas isso não lhe serviria de nada. O que aquele brilho acerado nos olhos de Graham e aquela expressão de fanatismo
que Blackwood tanto detestava lhe diziam.
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Blackwood seguiu na direção oposta, irritado com Graham por este ser tão inflexível, com Meg por não ter tido o bom senso de permanecer na ilha Encantada e com o
rei por... por demasiadas razões.
Mas, acima de tudo, Blackwood estava irritado consigo próprio porque tudo o que queria era voltar para casa e afogar-se na bebida. Quando é que se tinha transformado
num monte de esterco inútil?
Quando passou pela macieira, avistou qualquer coisa no chão que brilhava. Deteve-se para poder ver melhor.
- Mas o que diabo...? - baixou-se e pegou no estranho objeto, uma rosa branca coberta de uma substância prateada que cintilava à luz do Sol. Blackwood nunca tinha
visto nada como aquilo.
Continuou a examinar a rosa enquanto saía do jardim. Picou o polegar num espinho e praguejou. Os espinhos da rosa eram tão aguçados como a ponta de uma faca.
Blackwood tirou o lenço de assoar que trazia na bolsa, embrulhando a rosa cuidadosamente. Tinha o polegar a sangrar e chupou-o para estancar o sangue. Nunca tinha
visto uma flor tão perfeita como aquela rosa prateada. Era maravilhosa, mas tão antinatural que o deixou muito perturbado. Quem é que poderia ter criado uma coisa
daquelas? Não havia sido Chalmers, do que estava seguro. Era um bom jardineiro, mas não se podia dizer que fosse um homem inteligente, além de não ser dado a qualquer
tipo de experiência de enxertia.
Chalmers dissera-lhe que Meg o tinha andado a ajudar no jardim. Era muito mais plausível que a rosa fosse algo da sua criação, mas com que objetivo? Possuiria quaisquer
propriedades extraordinárias de cura? A ser esse o caso, porque é que havia sido tão descuidada, deixando-a cair no chão? Eram boas perguntas que Blackwood necessitava
de lhe fazer. Também lhe dariam uma ótima desculpa para voltar a vê-la.
"A mulher enfeitiçou-te." A acusação de Graham ecoava-lhe insistentemente no pensamento.
Um grande disparate, era o que Blackwood teria gostado de acreditar. Mas não podia evitar pensar que talvez Graham não fosse o único a não ser sincero consigo mesmo.
- Pelas chagas de Cristo - resmungou. - Estou a precisar de uma bebida. - Continuou a caminhar sem ter reparado na idosa que o observava a alguma distância.
Enquanto a mulher via Blackwood a afastar-se, levando consigo a preciosa rosa prateada, ela fremia de cólera, batendo com o extremo da bengala no chão.
- Maldição, maldição, maldição!
Ela deu meia-volta e seguiu na direção oposta; a passada cheia de energia desmentia qualquer necessidade de uma bengala. A peruca branca fazia-lhe uma comichão insuportável.
A primeira coisa que Amy fez quando foi ter com a irmã, foi tirar a cabeleira postiça da cabeça.
- E então, como é que correu? - perguntou-lhe Bea.
- O teste fracassou - replicou Amy irritada.
- Eu devia saber que estragarias tudo - retorquiu Bea, revirando os olhos. - Devia ter sido eu a fazer isso.
- Não podias ter feito melhor do que eu! Estava tudo a correr bastante bem. A senhora viu-me no jardim e tenho quase a certeza absoluta de que ela me viu a deixar
cair a rosa.
"Pensei que ela se apressaria a ir ver o que era, por isso escondi-me e fiquei a ver como é que ela reagiria ao ver que era a rosa prateada, porque só então é que
teríamos a certeza se ela é a Megera ou não.
Amy agitou a bengala, manifestamente agitada.
- Esperei e continuei à espera, mas ela não chegou a sair de casa, só vi o doutor Blackwood e o jardineiro, o que me forçou a sair sorrateiramente do jardim para
não ser apanhada. Fiquei sem saber o que fazer, pelo que optei por ficar no lado de fora do jardim, na esperança de poder voltar para lá depois de o Blackwood ter
saído, o que ele acabou por fazer. Mas com a rosa! - Amy concluiu o seu relato sem fôlego e com um suspiro de frustração.
- Permitiste que o Blackwood levasse a rosa? - perguntou Bea irada. - Oh, Amy, mas que idiota que és!
- Estou a dizer-te que não consegui impedir isso. - Amy estava tão furiosa e perturbada que as lágrimas começaram a correr-lhe pela cara.
- Agora vamos ter de fazer outra rosa e teremos de repetir o teste.
- A culpa não é minha. O culpado foi o Blackwood. Mas o que é que ele estava sequer a fazer lá? Ele picou o polegar num dos espinhos da rosa e é muito bem feito!
Como eu gostaria de lhe rogar uma praga.
- Se ele se picou no espinho, amaldiçoá-lo seria uma perda de tempo - retorquiu Bea, encolhendo os ombros. - O homem não tardará a morrer.
Whitehall espalhava-se por cerca de nove hectares, um labirinto de pátios, passagens, gabinetes e aposentos. As paredes muito altas de tijolos do palácio estendiam-se
até King Street, as alas ligadas entre si por uma ponte arqueada formavam os pisos superiores da casa da guarda.
Acompanhada por Sir Patrick, Meg percorria a rua congestionada, olhando para cima, para o contorno superior do palácio formado por uma enorme variedade de torres,
torreões e chaminés altas. Sentiu-se invadida por uma série de recordações, lembrando-se da ocasião em que percorrera o mesmo caminho sozinha quando era uma criança,
atemorizada, mas determinada a falar com a rainha Isabel.
Era impossível que Meg não se maravilhasse perante a coragem de que dera provas nessa ocasião. Dar-se-ia o caso de não se ter tratado de coragem, mas sim de ingenuidade
face ao risco que correra? Podiam acontecer tantas coisas más a uma garota que se aventurasse sozinha pelas ruas de Londres para se entregar à mercê da rainha conhecida
pelo nome de "Gloriana". Pessoa de estados de espírito imprevisíveis, Isabel podia ser cruel quando provocavam o seu mau feitio ou generosa e afetuosa como se mostrara
para com Meg.
Rezava para que as coisas lhe corressem igualmente bem com Jaime Stuart, um homem do qual sabia apenas que era um notório aniquilador de bruxas. Quando já se aproximavam
do portão principal, Meg sentiu um aperto no estômago, tal a apreensão que a afligia. O comportamento de Sir Patrick não era conducente a tranquilizá-la.
O homem não mostrava nenhuma da cortesia que ela esperava dele. Mal lhe dirigira a palavra durante o percurso até Whitehall. Enquanto a carruagem se deslocava lentamente
através das muito movimentadas
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ruas de Londres, ele não desviara os olhos da pequena janela. Todavia, Meg teria apostado que ele não vira nenhuma das casas de estruturas de madeira com os vãos
preenchidos por alvenaria, nem as lojas cheias de gente. O olhar dele parecera estar concentrado numa qualquer imagem que só ele é que conseguia ver.
O que quer que fosse, não lhe proporcionava prazer. A tensão refletia-se-lhe na boca, enquanto a expressão dos olhos alternava entre a mágoa e uma determinação inflexível.
Teria aquele estado de espírito tão sombrio alguma coisa a ver com o próximo encontro com o rei ou com Armagil Blackwood? Quando, com bastante relutância, tinha
deixado os dois homens no jardim, Meg tivera a certeza de que estariam prestes a discutir.
Quando falou dos seus receios a Seraphine, a amiga troçara dela, congratulando-a pelas suas conquistas e por ter posto os dois homens de candeias às avessas por
sua causa. Meg limitara-se a revirar os olhos aos disparates de Seraphine. Mas era evidente, a julgar pelo estado de espírito soturno de Sir Patrick, que ele e Blackwood
se tinham antagonizado por causa de alguma coisa. Meg teria dado muita coisa para saber o que se passara entre os dois homens, contudo, a expressão carrancuda de
Sir Patrick não convidava a que se lhe fizessem perguntas.
No entanto, o homem lembrou-se o suficiente das suas boas maneiras para lhe oferecer o seu braço e, embora Meg o sentisse rígido e inflexível debaixo da sua mão,
sentia-se grata pelo apoio. O movimento de pessoas era mais intenso fora do portão do pátio, onde os cortesãos tentavam ter acesso ao palácio sob o olhar atento
da sentinela. Os servos, proibidos de entrar, mantinham-se por ali enquanto aguardavam o retorno dos seus amos. Àquela multidão, acrescia-se um grupo de jovens galantes
muito animados que se encontravam ali para comerem com os olhos as senhoras que iam chegando, na esperança de conseguirem ver um tornozelo quando as beldades trajadas
de cetim e cheias de jóias desciam das carruagens. Observando aquela impressionante multidão, Meg só podia abanar a cabeça pensativa.
- As recordações que guardo da última vez em que estive aqui são tão vagas. Agora pergunto-me como é que consegui entrar furtivamente para falar com a rainha.
Sir Patrick deteve-se, ficando a olhar para ela, os olhos a espelharem dureza e desconfiança.
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- Já haveis estado em Whitehall? Nunca mencionastes isso. Meg já se arrependia do comentário impulsivo.
- O que não fiz por haver muito pouco a mencionar. Estou em crer que vos disse que vivi em Inglaterra durante algum tempo com o meu pai, tendo-me sentido fascinada
com as histórias que se contavam sobre a rainha Isabel, por isso, um dia fugi ao meu pai e, não sei bem como, consegui introduzir-me no palácio para poder vê-la
pessoalmente.
- Duvido que isso vos tenha sido muito difícil. A falecida rainha era mais acessível aos seus súbditos da plebe do que o rei Jaime. Sua majestade detesta multidões.
- Dito isto, o homem remeteu-se ao silêncio enquanto a conduzia depois de terem transposto o portão de acesso ao pátio. Atravessaram uma rua, passando pelo campo
onde os torneios reais tinham lugar e onde se haviam realizado muitas justas famosas durante os reinados de Isabel e do seu pai, o formidável Henrique VIII.
Meg distraiu-se por uns momentos, a imaginar toda a pompa e o fausto de que esses torneios se revestiriam, com os estandartes desfraldados ao vento, a luz do Sol
a refletir-se nas armaduras dos cavaleiros montados nos seus cavalos ricamente ajaezados, os gritos de encorajamento do público empolgado.
O campo dos torneios estava envolto numa atmosfera de vazio e abandono naquela tarde de outono em que a quietude reinava ali. Quando Meg fez um comentário sobre
o campo, Sir Patrick descontraiu-se o suficiente para lhe replicar com brusquidão.
- O rei Jaime gosta pouco de espetáculos públicos.
- Nem sequer de torneios?
- Não, ele não gosta de nenhuma manifestação de natureza militar. Na verdade, ele estremece ao ver lâminas de aço.
- Então isso quer dizer que ele é um homem pacífico? - perguntou Meg, mostrando-se duvidosa.
- Sim, custe o que custar.
A réplica foi tão concisa que Meg se perguntou se refletia a reprovação de Sir Patrick a respeito da política do rei. Mas duvidava disso porque o próprio Sir Patrick
era um homem da maior brandura. Se ele reprovava alguém, Meg tinha a convicção de que seria ela.
Ele encaminhou-a em direção ao extremo do antigo campo de torneios, onde um lanço de escadas de madeira dava acesso a uma galeria do palácio. Incapaz de suportar
por mais tempo o comportamento gélido de Sir Patrick, Meg adotou uma atitude de firmeza.
- Sir Patrick, fiz alguma coisa que vos causasse ofensa?
Ele pareceu ter ficado desconcertado com aquela pergunta tão frontal. Começou a formular uma qualquer negativa cortês quando Meg o interrompeu.
- É o meu vestido? - perguntou ela, alisando as dobras do tecido de veludo com alguma insegurança. - Sei que me aconselhastes a vestir-me com simplicidade, mas...
- Não, o vestido é adequado, dá-vos uma aparência bastante respeitável e não é, de maneira nenhuma, elaborado como os vestidos de outras senhoras que vi quando chegaram,
não é nada que possa atrair o género de atenção que desejais evitar - respondeu ele. - Não obstante, sem dúvida que haveis atraído as atenções do doutor Blackwood.
Havia uma certa rispidez que transparecia das palavras dele, o que levou Meg a interrogar-se. Seria possível que Seraphine tivesse razão quando disse que Sir Patrick
tinha ciúmes de Blackwood? Não, certamente que isso era absolutamente ridículo.
- Suponho que haveis discutido com o doutor Blackwood, o que lamento profundamente - retorquiu Meg constrangida. - E lamentaria ainda mais se, de uma maneira qualquer,
fui a causa desse desaguisado.
Meg esperava que ele negasse. Mas a sua consternação aumentou quando ele não negou, ficando em silêncio e fixando o olhar no chão.
Quando, finalmente, voltou a olhar para ela, as suas feições suavizaram-se, aventurando-se mesmo a pegar-lhe na mão.
- Menina Margaret, deveis compreender que fui eu quem vos trouxe para Inglaterra, por isso sou responsável pelo que vos possa acontecer. A conduta do meu amigo Blackwood
para com as mulheres, de uma maneira geral... - Sir Patrick interrompeu-se e suspirou. - Bem, digamos apenas que o seu comportamento não se pontua sempre pela atitude
irrepreensível que devia adotar. É uma fraqueza do seu caráter, pelo que procederíeis assisadamente se mantivésseis distância dele.
- Posso assegurar-vos, senhor, que, conquanto o doutor Blackwood tenha uma certa tendência para namoriscar, isso é absolutamente inconsequente. Não se passou nada
de uma natureza censurável entre nós.
- Não, não, não foi minha intenção insinuar nada disso. No essencial, Blackwood é um bom homem, mas existe um grande vazio espiritual
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no seu coração que o deixa vulnerável a tentações. A solidão é responsável pela maior parte dos seus pecados. Por vezes, penso que sou o seu único amigo verdadeiro.
- Ele não tem família? - perguntou Meg.
- Estou em crer que ninguém que ele reconheça ou por quem tenha afeto, mas é difícil dizer. Decerto que já haveis reparado que é muito raro que o Blackwood encare
com seriedade o que quer que seja. Entre as suas brincadeiras e a sua falta de tato, o homem mantém as pessoas à distância. Frequentemente, o seu comportamento é
capaz de fazer com que um santo perca a paciência, o que, diga-se de passagem, eu não sou.
"Já discordámos noutras ocasiões, mas as nossas discussões não tardam a ficar sanadas. Se me mostrei maldisposto e fui rude para convosco em consequência do nosso
desacordo, peço-vos perdão - acrescentou Sir Patrick, sorrindo e levando a mão dela aos lábios.
Meg aceitou o pedido de desculpa, mas a confusão reinava na sua cabeça. Patrick Graham e Armagil Blackwood afirmavam ser tão bons amigos, mas, no espaço de apenas
algumas horas, ambos a tinham advertido contra o outro. Por conseguinte, em qual deles é que ela haveria de acreditar?
E o que é que Sir Patrick quisera dizer com ele não ter qualquer família que reconhecesse? Blackwood era um desses homens que possuíam uma inteligência rápida e
humor irónico, além de ser de uma sinceridade contundente, facetas de caráter que poderiam induzir qualquer pessoa a acreditar numa falsa intimidade, que se conhecia
mais dele do que era a realidade.
Mas ela conhecia ainda menos a respeito de Blackwood do que acerca de Sir Patrick, do seu passado e do historial da sua família, de onde é que era oriundo. Meg teria
gostado de ter feito muitas mais perguntas a Sir Patrick em relação ao seu amigo. Mas ele antecipou-se-lhe com outro sorriso e apressando-a a subir as escadas.
- Não podemos deixar o rei à espera.
Era por demais evidente que Sir Patrick não tencionava dizer-lhe mais nada acerca do amigo e talvez estivesse mesmo arrependido do pouco que lhe contara. Mas o que
é que isso importava? Meg não fora a Inglaterra para proceder a um estudo sobre a personalidade de Armagil Blackwood, recordou a si própria.
O seu único objetivo era apurar a verdade a respeito do possível restabelecimento da Irmandade da Rosa de Prata, bem como sobre o que acontecera à sua mãe. A fim
de poder fazer isso, primeiro precisava de confrontar Jaime Stuart, o carrasco que sentenciava bruxas a morrerem na fogueira. Enquanto subia as escadas, sentia o
coração a bater como o de
um prisioneiro que subisse os degraus do patíbulo.
Sir Patrick parecia aperceber-se da tensão de Meg, comportando-se mais com a amabilidade que lhe mostrara antes, numa tentativa para a tranquilizar.
- Estas escadas dão acesso direto à parte mais privada do palácio. É reservada somente aos cortesãos e convidados mais privilegiados do rei.
O sorriso dele devia ter feito com que ela se sentisse melhor, mas não foi esse o caso. Uma vez que estava a ser tratada como uma convidada de honra, Meg compreendia
que se esperava muito de si, melhor dizendo, que fosse capaz de curar o rei da praga que lhe haviam rogado ou conseguisse convencê-lo de que o tinha curado.
Meg sabia muito bem como as coisas se passavam. Se tivesse êxito, seria aclamada como sendo uma mulher sábia. Se fracassasse, podia ser chamada de bruxa e sabia-se
bem o que Jaime Stuart fazia às bruxas.
Entretanto, Sir Patrick trocava algumas palavras com o alabardeiro do rei que se encontrava de guarda, tendo-lhes sido permitida a entrada através do portão acima
da arcada no solo. Percorreram a passagem por entre uma desconcertante diversidade de câmaras que formavam o coração do palácio.
Sir Patrick apontava os aposentos à medida que iam passando, explicando ao que se destinavam.
- Aquela é a câmara onde o conselho privado do rei se reúne. Por ali vai-se para a Câmara de Audiências Ordinárias, onde os nobres que esperam chegar à fala com
o soberano são obrigados a aguardar. Atrás daquela porta fica o gabinete particular do rei. Aquela passagem dá acesso à sala de estar e à alcova de sua majestade.
Ele falava rapidamente, como se a tensão que também sentia tivesse aumentado. A passagem diante deles estava obstruída por um grupo de cortesãos, todos homens. Mantinham-se
muito juntos enquanto discutiam um assunto que devia revestir-se de alguma importância, a julgar pelos semblantes graves. Meg não conseguia compreender o que era
dito, dado que falavam em voz baixa e alguns tinham um cerrado sotaque escocês. Sir Patrick inclinou-se para ela, murmurando-lhe ao ouvido:
- Aqueles homens formam o círculo de assistentes particulares do rei, os seus amigos mais chegados e conselheiros.
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Se aqueles homens eram isso, parecia que o rei tinha optado por se rodear de muitos dos seus compatriotas escoceses. Meg só podia especular sobre a dimensão do ressentimento
a que isso daria origem da parte dos seus súbditos ingleses.
Enquanto Meg e Sir Patrick se aproximavam, um dos homens afastou-se do grupo para ir ao encontro dos dois. Sir Patrick apresentou-o como sendo Thomas Percy, um dos
espadachins do rei, o seu guarda-costas particular. Percy era um homem alto com uma constituição física intimidante. Pelo rosto, não parecia ter muito mais de quarenta
anos, no entanto o cabelo encanecera-lhe prematuramente.
- Menina Margaret Wolfe - apresentou Sir Patrick.
Quando Meg se baixou numa vénia, o olhar de Percy percorreu-a.
- Ah, a mulher ardilosa que haveis trazido para curar o rei.
- Farei o que estiver ao meu alcance, mas... - Meg calou-se ao aperceber-se de que Percy nem sequer ouvia o que ela dizia. O homem virou-se para Sir Patrick, falando-lhe
de mansinho.
- Hoje houve outro incidente. Tenho a certeza de que ouvireis o que se passou da boca do rei. Ele está extremamente perturbado, tão atormentado que fala em retirar-se
para o palácio em Nonesuch, cancelando outra vez a abertura do Parlamento. Sabeis como é da maior importância que ele não faça isso.
- Isso não acontecerá - retorquiu Sir Patrick. - Não haverá mais demoras, o que posso prometer-vos.
- Rezo para que tenhais razão. Há muita coisa em jogo. Por pressuposto, devíeis ter tratado deste assunto - disse Percy, que estava consideravelmente agitado, o
tom de voz a tender para se elevar. Graham pousou uma mão no braço de Percy, num gesto que lhe aconselhava prudência, afastando-o de Meg.
Enquanto os dois homens conversavam, Meg fingiu interesse numa das tapeçarias que adornavam a parede. As palavras de Sir Patrick eram ininteligíveis. A maior parte
do pouco que conseguia ouvir era do que Percy dizia.
- ... devemos encontrar-nos dentro em breve... johnston... enervado. Demasiados atrasos... risco de... descobertos.
Johnston? Meg supunha que seria um nome bastante comum, apesar disso não pôde evitar pensar no misterioso homem que viajara com eles durante a viagem de França para
Inglaterra. Quem é que se arriscava a vir
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a ser descoberto? Seria esse Johnston? Thomas Percy? Sir Patrick? E descoberto pelo quê?
Meg esforçou-se por ouvir mais, mas Graham pôs fim à conversa abruptamente. Respirou fundo antes de voltar para junto de Meg.
- O Percy informou-me de que sua majestade se encontra à nossa espera na galeria longa.
Meg perguntava-se que mais é que Percy teria dito que colocou uma ruga funda entre os sobrolhos de Sir Patrick, que fazia um esforço bem visível para relaxar as
feições, enquanto acompanhava Meg por entre os inúmeros cortesãos presentes.
Os gentis-homens recuaram para lhes dar passagem; alguns cumprimentavam Sir Patrick com um breve acenar de cabeça e murmurando saudações. Meg couraçou-se para não
enrubescer enquanto era inspecionada por uma miríade de olhares masculinos, alguns de curiosidade, outros escarnecedores e uns quantos imperscrutáveis. Sentia-se
um pouco como um rato que estivesse a ser observado pelos olhos de várias dezenas de falcões esfaimados.
Todas as advertências de Seraphine quanto aos perigos que correria na corte, todas as intrigas e conspirações, passavam à desfilada pelo pensamento de Meg. Subitamente,
a oferta que a amiga lhe fizera do leque, com o seu pequeníssimo espelho incorporado, já não lhe parecia tão ridícula. Levou a mão ao cabo de marfim quando entraram
na galeria longa, à espera de ser obrigada a passar por mais duas fileiras de subordinados reais. Ficou surpreendida ao deparar com a ampla câmara deserta, à exceção
do rei e de um dos seus cães de caça.
Pelo menos, Meg presumiu que seria o monarca. Trajava modestamente quando comparado com a opulência dos homens com que se cruzara no salão do palácio. Vestia um
gibão de um cinzento-prateado e tinha uma capa de um tecido de seda e lã presa num ombro; o seu único adorno era um broche de diamantes preso no toque.
Lutava com o cão de caça de pelagem negra num espírito despreocupado de brincadeira. Mas a luz solar que entrava a jorros pelas janelas altas mostrava a fisionomia
macilenta de Jaime Stuart. O cão levantou-se, apoiado apenas nas patas traseiras e firmando as dianteiras no peito do rei enquanto lhe lambia as pontas da barba.
Em vez de ralhar ao animal, Jaime Stuart dava a impressão de gostar daquelas vigorosas manifestações de afeto.
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Meg ouvira tantas histórias sobre o monarca, Jaime Stuart, o queimador de bruxas, o autor do infame Demonologia. A sua reputação era tão sinistra entre as mulheres
sábias da ilha Encantada que Meg não teria ficado surpreendida caso se deparasse com um monstro disforme, a sua crueldade estampada no rosto. Nunca teria esperado
encontrar um homem com uma aparência tão vulgar, com um aspeto quase vulnerável, que procurava consolo no seu cão.
Foi o animal que alertou o rei Jaime para a chegada deles, posicionando-se entre o monarca e eles enquanto ladrava ameaçador.
- Ei, calado, jowler. Senta-te! - A expressão de melancolia no semblante do monarca iluminou-se ao ver Sir Patrick. - Ainda bem que chegastes, meu bom amigo. Já
tinha começado a pensar que vos havíeis esquecido por completo do vosso pobre rei.
- Jamais, majestade. - Sir Patrick afastou-se de Meg para se ajoelhar sobre um joelho diante do seu rei, mas Jaime Stuart não lho permitiu, erguendo o homem mais
novo para o abraçar.
O cão do rei foi direito a Meg para a inspecionar, fazendo com que ficasse tensa ao lembrar-se da advertência de Blackwood para que tivesse cuidado com o pequeno
bigle do monarca, mas aquele animal era um enorme cão de caça e aparentava ser bastante amigável. Meg estendeu a mão para que o animal a farejasse.
- Menino bonito, Jowkr - disse ela, aventurando-se a fazer-lhe festas numa orelha.
Entretanto, e finalmente, o rei largou Sir Patrick do seu abraço apertado, mas manteve um braço por cima dos ombros dele. Sir Patrick mostrava algum constrangimento
devido às manifestações de afeto de Jaime Stuart. Ele descrevera-se a Meg como sendo apenas um insignificante escrivão da corte, mas era evidente que o rei o tinha
em grande estima.
Falando com o denso sotaque da Escócia, a sua terra natal, Jaime Stuart expressava-se com tanta rapidez que Meg tinha dificuldade em compreender o que ele dizia.
Mas à medida que o seu sentido auditivo se ia habituando ao sotaque, percebeu que o rei tinha começado a queixar-se do seu filho mais velho, o príncipe Henrique.
- O que é que incomoda o rapaz para ele me desafiar desta maneira? Ainda esta manhã, decidiu praticar esgrima mesmo por baixo da minha janela. Ele sabe muito bem
que eu proibi quaisquer práticas de esgrima no interior do perímetro do palácio.
- Tenho a certeza de que o príncipe não teve a intenção de vos faltar ao respeito, majestade - retorquiu Sir Patrick. - A atitude dele deve-se aos excessos próprios
da juventude. O príncipe Henrique é um rapaz muito adético e com muita energia que precisa de extravasar.
- Nesse caso, ele que a despenda em atividades mais adequadas, como a caça à lebre com galgos ou apanhar pássaros em armadilhas. Mas o rapaz não gosta desses desportos.
Por mais que eu faça, não sou capaz de fazer do rapaz um caçador. - O rei suspirou profundamente. - E não sei quanto mais tempo é que me resta para conseguir fazer
dele um rei como deve ser. Se me acontecesse alguma coisa...
- Não vos acontecerá nada, majestade.
- Parece-vos que não, meu rapaz? Tenho a sensação de que este enorme malefício, que tem andado a rondar-me, está cada vez mais próximo. Enquanto estivestes ausente,
tenho tido sonhos tão horríveis sobre aquela bruxa e a praga que ela me rogou... de morrer na fogueira.
- Trouxe-vos alguém que tenho esperança que possa ajudar-vos com respeito a isso - retorquiu Sir Patrick, que se libertou do peso do braço do rei. - A mulher sábia
de que vos falei, a Senhora da Ilha Encantada.
Finalmente, o olhar de Jaime Stuart desviou-se na direção de Meg, que se tinha inclinado para fazer festas no focinho do cão de caça, enquanto o animal lhe lambia
a mão.
-joivle! - chamou o rei, batendo na coxa com um gesto imperioso. - Vem!
O cão apressou-se a colocar-se de novo ao lado do seu dono. Meg endireitou-se vagarosamente, sentindo-se insegura quanto à maneira de proceder, detestando a possibilidade
de ser chamada como se ela própria fosse um cão obediente.
Mas o rei resolveu esse dilema por ela. Ordenando ao cão que ficasse onde estava, Jaime Stuart acercou-se dela. Caminhava de uma maneira estranha. Embora não fosse
um homem corpulento, as pernas pareciam demasiado magras para conseguirem suportar o peso do corpo.
Aproximou-se diretamente de Meg, mas depois recuou um passo, a atitude de um homem que desconfiava de estranhos. O que se espelhava nos olhos semicerrados e com
uma expressão suspeitosa do monarca.
Quando Meg já lhe fazia uma vénia, Sir Patrick avançou, apresentando-a em voz baixa.
- Menina Margaret Wolfe, majestade.
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O rei examinou-a atentamente antes de lhe dizer que se endireitasse.
- Portanto, minha senhora, afirmais ser uma mulher sábia. - Jaime Stuart disse com um encolher de ombros, citando em latim: - U n idea perplexi na.
- A ideia de uma mulher sábia seria estranha para muitos homens adiantou Sir Patrick. - Mas posso assegurar-vos que a menina Margaret Wolfe possui uma inteligência
inigualável, embora, é claro, a sua perspicácia não seja tão profunda como a de vossa majestade.
- Hum... - A expressão no rosto do rei mostrava um misto de dúvida e menosprezo que irritou Meg. Tinha viajado até muito longe e arriscara muito para ser ridicularizada
daquela maneira. Retribuiu na mesma moeda sem pensar no que fazia.
- Quid quid latine dictum si f altum videtur.
Sir Patrick mostrou-se aterrado, olhando-a com uma expressão de censura. O rei arqueou os sobrolhos surpreendido e depois franziu o cenho.
- Muito verdadeiro, minha senhora. Qualquer coisa dita em latim pode fazer com que uma pessoa pareça mais sábio do que se é de facto.
- Também pode fazer com que uma pessoa pareça impertinente retorquiu Meg, recordando-se de que Seraphine lhe aconselhara cautela quanto a desafiar a vaidade do monarca.
- Perdoai-me, majestade. Na minha tola tentativa de vos impressionar, falei extemporaneamente. Os meus conhecimentos de latim não são tão profundos como os vossos,
de maneira nenhuma, mui... mui gracioso e erudito príncipe.
A lisonja ficou entalada na garganta de Meg, soando-lhe a falso aos ouvidos. Mas a boca do rei curvou-se no arremedo de um sorriso.
- Aceitamos o vosso pedido de desculpa, minha senhora. Não é necessário que tenteis impressionar-me tão afincadamente. O vosso conhecimento de latim é sofrível,
mas eu não esperaria que uma mulher sobrecarregasse o seu cérebro com esse género de erudição. O que a rainha nunca faz. A nossa Annie cinge-se à sua música, aos
seus bordados e a organizar bailes de máscaras e outros divertimentos bonitos para entretenimento da
nossa corte.
- Não possuo esses talentos, majestade.
- Não, os vossos talentos residem noutras matérias, não é verdade? Tendes a reputação de ser uma grande feiticeira, conhecedora de todas as práticas de maldições
e magia negra.
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Meg apercebeu-se da nota de acusação no timbre de voz do rei. Abriu o leque e abanou-o diante do rosto para ocultar o temor que sentia.
- Nunca fiz tais afirmações. Quaisquer talentos que eu possua são dedicados a curar, a estudar o uso de ervas medicinais e os seus poderes curativos. Não tenho nada
a ver com artes negras e, falando com toda a sinceridade, nunca acreditei em maldições.
- Acreditaríeis se alguém vos tivesse rogado uma praga - ripostou Jaime Stuart. - O veneno que essa bruxa me arremessou há muito que tem vindo a atormentar a minha
mente e, ultimamente, tem vindo a intensificar-se. Nem sequer me atrevo a olhar para os meus próprios jardins com medo que essa criatura surja diante de mim.
Jaime Stuart lançou um olhar de nervosismo na direção de uma das janelas altas. Quer fosse por não conseguir resistir à compulsão ou sentisse necessidade de pôr
a sua coragem à prova, o monarca aproximou-se da janela e olhou para fora. Em silêncio, Meg e Sir Patrick seguiram-no.
Os jardins mais abaixo seriam um lugar extremamente aprazível durante os meses de verão, quando as plantas estivessem em plena floração. Mas naquele fim de outono
tinham um aspeto bastante sombrio, com toda a vegetação queimada por geadas prematuras, os carreiros cobertos de folhagem seca.
- O fantasma dessa bruxa voltou a aparecer às primeiras horas desta manhã - adiantou Jaime Stuart.
-- O quê!? Estais a dizer aqui, em Whitehall, paredes adentro? - perguntou Sir Patrick chocado.
- Não, no lado de fora. Ela prendeu com um prego um gato morto no portão posterior e deixou uma mensagem escrita a sangue. "Filho de Davy. Arde no Inferno."
- Quem é o filho de Davy? - perguntou Meg.
Seguiu-se um silêncio feito de mal-estar depois da pergunta dela. Sir Patrick olhou para o rei, cujos lábios se haviam contraído numa linha fina de cólera, de relance
com uma expressão de constrangimento.
- O nome refere-se a mim - respondeu James Stuart por fim.
- Trata-se de uma calúnia referente ao meu nascimento. Desde sempre que existiram rumores torpes que dizem que sou o filho bastardo de David Rizzio, o músico da
corte.
- Nenhum súbdito leal acreditaria numa coisa dessas - disse Sir Patrick.
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- E quanto aos que são desleais? - perguntou o rei numa voz que tremia de cólera. - É uma calúnia infame contra mim e a minha mãe. Sugerir sequer que ela pudesse
ter-se comportado dessa maneira tão reprovável... A minha mãe era uma senhora profundamente religiosa, uma santa e uma mártir. Não houve ninguém na Escócia que não
tenha chorado o seu assassínio.
A mesma Escócia que, em tempos, tinha injuriado a rainha católica, com os pastores da Igreja Presbiteriana Escocesa a apelidarem-na de Jezabel e de puta papista,
os seus súbditos rebeldes a forçarem-na a ir para o exílio. Meg desconfiava que muito daquele desgosto se devia à indignação na Escócia contra os ingleses que se
tinham atrevido a executar Maria Stuart da Escócia.
Os olhos do rei Jaime até se encheram de lágrimas. Meg esforçou-se por encontrar algumas palavras de condolências, mas o pouco que sabia a respeito de Maria Stuart
não lhe conferia o estatuto de santidade.
A falecida rainha dos escoceses tinha sido uma mulher muito voluntariosa, romântica, apaixonada e imprudente. Levara uma existência cheia de escândalos, tendo-se
mesmo suspeitado de que conspirava para que o marido fosse assassinado, além de ter fugido com o infame conde de Bothwell. Banida do trono escocês, Maria Stuart
refugiara-se no outro lado da fronteira, mas não tardou a ficar prisioneira dos ingleses, um cativeiro que se prolongou pelos dezoito anos seguintes. Na sua ausência,
o filho, o príncipe Jaime, havia sido coroado rei da Escócia.
Empenhada numa conspiração para assassinar a rainha Isabel, com o objetivo de se apoderar do trono inglês, Maria Stuart foi, finalmente, condenada e sentenciada
à morte por decapitação. Atualmente, o rei Jaime falava muito apaixonadamente em defesa da mãe, mas era do conhecimento geral que quando ela foi julgada, com a sua
vida em jogo, Jaime Stuart não se esforçou muito para a salvar.
As lágrimas nos olhos dele falavam tanto de culpa quanto de mágoa. Os esquemas de Maria Stuart tinham constituído um perigo para o jovem rei, que na altura tentava
estabelecer uma aliança com a rainha Isabel, na esperança de vir a ser designado como sucessor da rainha inglesa, que não tinha herdeiros. A morte da mãe causara
a Jaime Stuart tristeza e alívio em partes iguais, um conflito de emoções que Meg compreendia bem de mais. Ela própria sentira o mesmo quando Cassandra Lascelles
morreu afogada.
"Mas e se ela não tivesse morrido afogada? O que é que farei se descobrir que ela está viva e é quem está por detrás de tudo isto?"
Aquele pensamento encheu Meg de uma sensação muito semelhante à de pânico. Suprimiu o medo, forçando-se a concentrar-se no que o rei dizia.
- ... se essa bruxa consegue chegar tão perto de Whitehall, não estou em segurança aqui. A terrível maldição não foi rogada só contra mim, mas sim contra todos os
membros da Casa de Stuart. Eu devia afastar-me temporariamente, encontrar um refúgio para a minha família fora da cidade.
- Mas, majestade... - começou Sir Patrick a dizer de cenho carregado. - A abertura do Parlamento...
- Tem de, forçosamente, ser adiada.
- Não, não posso permitir isso!
Quando o rei ficou a olhar para ele muito surpreendido, Sir Patrick corou e tentou remediar a situação.
- O que quis dizer é que vossa majestade não pode permitir que uma bruxa insignificante vos intimide ou que impeça o decorrer normal dos assuntos da governação do
reino. Há que pôr fim a essa maldição e tenho a certeza de que a Senhora da Ilha Encantada será capaz de um feitiço que lhe ponha fim.
Meg lançou um olhar de indignação a Sir Patrick. Acreditava ter deixado bem claro, sem margem para qualquer dúvida, que não se arrogava tais poderes e não estava
disposta a rebaixar-se ao realizar uma qualquer cerimónia disparatada. Virou-se para o monarca.
- Majestade, esses feitiços não existem, pela simples razão de que não há nenhuma maldição. Sois um homem racional. Decerto que compreendeis que essas palavras de
cólera não passaram do arengar de uma velha que estava a ter uma morte agonizante.
- Uma velha? - ripostou o rei, olhando-a com uma expressão furiosa. - Pensais que sou incapaz de distinguir a diferença entre uma mera mulher e uma bruxa?
Sim. Meg conteve a resposta instintiva na ponta da língua.
- Li o tratado que vossa majestade escreveu sobre bruxaria e estou ciente de que sois considerado um perito nesta matéria - disse Meg diplomaticamente.
- Não costumo gabar-me dos meus feitos, mas sim, sou reconhecido por isso. Ao ponto de, durante a minha última visita a Oxford, os doutores
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de grande erudição terem trazido uma mulher à minha presença, a qual afirmava ser capaz de se transformar num súcubo e drenar a vida das cabeças de gado da sua vizinha.
- E o que é que aconteceu a essa pobre... quero dizer, à mulher?
- Percebi que aquela infeliz alminha era louca e, por isso, aconselhei que ficasse confinada junto da família enquanto devia ser tratada com os remédios adequados
a acalmarem-lhe o cérebro.
Meg ficou a olhar para ele.
- Parece-me que haveis ficado surpreendida, menina Margaret Wolfe. Supúnheis que eu era um desses fanáticos que vêem bruxas por todo o lado, sempre prontos para
condenarem à morte na fogueira qualquer velha pateta e todas as raparigas que são acusadas por vizinhas ciumentas roídas pelo despeito?
"Não! Ordenei uma purga de bruxas há vários anos na Escócia, mas todas estavam de conluio numa conspiração traiçoeira contra mim. A minha capacidade de julgamento
nunca errou... exceto, talvez, numa única ocasião - acrescentou o rei.
Jaime Stuart vacilou, mostrando um semblante profundamente conturbado. Como se se tivesse apercebido da perturbação do dono, Jonler ganiu e chegou-se mais ao rei,
que lhe fez uma festa alheadamente.
- Havia uma jovem que foi condenada a morrer juntamente com a bruxa que me amaldiçoou. Na verdade, era apenas uma garota, mas tinha sido apanhada na igreja, onde
procediam a um ritual satânico, junto das outras bruxas.
"A rapariga afirmou que tinha sido desencaminhada, que não sabia o que estava a fazer. Estava lavada em lágrimas, suplicando-me que lhe poupasse a vida. Eu podia
ter-lhe perdoado se não fosse...
Jaime Stuart interrompeu-se e engoliu em seco.
- Tinham existido demasiadas conspirações contra mim, de facto, desde que eu era apenas uma criança. Sempre fui excessivamente clemente para com os meus inimigos.
Mas desta vez não podia dar-me a esse luxo, mas desde aí que essa recordação tem pesado na minha consciência.
- Por causa dessa rapariga? - perguntou Meg.
- Não, não obstante a sua inocência aparente, era tão culpada como as outras. Foi o rapaz que passou a atormentar-me, o irmão da rapariga. Ele ajoelhou-se diante
de mim e suplicou-me que poupasse a vida da irmã de maneira tão comovente que senti pesar por lhe infligir um desgosto tão incomensurável.
"Robin... Robbie, creio que era o nome dele. A irmã gritou o nome dele quando estava a ser acorrentada ao poste na fogueira. Ele bateu-se como um leão numa tentativa
para a salvar. E depois, quando tudo acabou, olhou para mim com uns olhos cheios de uma dor indescritível que espelhavam uma ira e um ódio incomensuráveis. -Jaime
Stuart estremeceu.
- O que é que lhe aconteceu?
- Não sei ao certo, mas ouvi dizer depois desse acontecimento que tinha acabado com a sua própria vida, de tão mortificado pelo sofrimento. Que Deus lhe perdoe,
se isso for verdade. Na altura, desejei que esse rumor fosse falso. Ele era um rapaz de uma grande beleza. Jamais serei capaz de o esquecer.
As similaridades entre a história do rei Jaime e os estranhos sonhos que Meg tinha tido eram uma coincidência demasiado estranha, pensou Meg, abanando-se com o leque.
O que lhe permitiu ver o rosto de Sir Patrick de relance atrás de si. As feições dele tinham adquirido uma estranha expressão, mas quando Meg se virou para trás
para poder vê-lo melhor, concluiu que isso se devera a alguma distorção na superfície do pequeno espelho. O homem mostrava o semblante habitual muito circunspecto
enquanto dizia:
- De facto, trata-se de uma história muito triste, majestade. Mas tenho a certeza de que não foi esse rapaz que se levantou dos mortos para vos atormentar.
- Não, é essa maldita bruxa que me amaldiçoou, a Tamsin Rivers. Meg temia já se ter atrevido de mais, questionando o discernimento do rei. Tentou proceder com mais
delicadeza.
- Perdoai-me, majestade. Mas o que é que há a respeito dessa tal Tamsin que vos convenceu que ela era uma bruxa possuidora de tais poderes?
- Tamsin Rivers admitiu isso mesmo. Chegou ao ponto de se gabar de adorar uma qualquer mulher demoníaca, uma feiticeira malévola que chamava de Megera.
- Mas é muito possível que essa Tamsin Rivers tenha sido uma louca, mais nada.
-- Não, digo-vos eu que era uma bruxa. As coisas que ela me disse aquando do julgamento, o que me segredou ao ouvido. - Até mesmo decorridos tantos anos, Jaime Stuart
mostrava-se abalado ao recordar aqueles acontecimentos. - Ela repetiu-me palavras íntimas que eu tinha dirigido à minha noiva na nossa noite de núpcias. Como é que
ela poderia ter conhecimento do que eu disse nessa noite?
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- Ela deve ter lido os vossos olhos.
Quando o rei a olhou com uma expressão inquisitiva, Meg foi obrigada a explicar-se.
- É uma faculdade que muitas Filhas da Terra possuem.
- Filhas da Terra?
- É esse o termo que preferimos usar quando nos referimos a nós próprias, as mulheres que se esforçaram denodadamente por preservar os conhecimentos da Antiguidade
sobre as artes de curar e da prática de magia branca. Entre esses dotes, inclui-se a capacidade de ler olhos, as janelas que permitem ver o coração. As que conseguem
fazê-lo com eficácia são capazes de ler pensamentos, por vezes até mesmo acontecimentos registados na memória.
- E vós, possuís esses dotes?
A atitude mais prudente para Meg teria sido negar. Seraphine repreendera-a em mais de uma ocasião por ser demasiado sincera. Mas, ao invés de seguir esse conselho,
respondeu:
- Sim, majestade, mas apenas um pouco.
- Mostrai-me.
Meg foi apanhada de surpresa e tentou furtar-se ao pedido do rei, mas este aproximou-se mais dela, repetindo o que lhe ordenara. Meg não teve outra alternativa que
não fosse erguer a cabeça para perscrutar os olhos do rei.
Quando era mais nova, havia sido muito mais competente a ler olhos. Nem sempre era uma coisa agradável de fazer, ler os pensamentos de outrem. Havia tanto tempo
que Meg não punha em prática essa sua apetência, pelo que estava enferrujada como a lâmina de uma espada negligenciada.
Mas ler os olhos de James Stuart era fácil de mais. Não obstante toda a sua perspicácia, havia algo de vulnerável no homem. Os olhos de Meg prenderam-se nos dele
e começaram a aprofundar-lhe os pensamentos. Era como se estivesse a entrar num castelo cuja ponte levadiça tivesse sido deixada levantada negligentemente.
Não precisou de sondar muito a mente dele até deparar com o medo que tinha assolado a maior parte da vida do rei, o temor de ser atraiçoado, de vir a ser assassinado
como o pai, que nunca chegara a conhecer, e como tantas das outras pessoas que Jaime Stuart amara.
Também se apercebeu de que o monarca não tinha um peito tão robusto como aparentava. Usava uma espécie de colete acolchoado por baixo do gibão, o que se destinava
a protegê-lo do punhal de um possível assassino, sempre receoso de que essa precaução não fosse suficiente. Enquanto ela penetrava cada vez mais profundamente, entrando
pela fortaleza adentro da mente do monarca, sentiu-se avassalada por toda uma diversidade entontecedora de visões, rebeliões, conspirações e batalhas, bem como o
sequestro de Jaime Stuart, que fora feito prisioneiro, tendo conseguido escapar com vida depois de ter tido uma espada encostada à garganta. E, finalmente, atrás
da última porta, um garotinho agachado a um canto, a tremer aterrorizado, a manga do gibão manchada de sangue.
- Deus do céu... - murmurou Meg. - Só tínheis cinco anos quando vistes o vosso avô a esvair-se em sangue, ferido de morte pela bala de um assassino. E haveis pensado
que foi por vossa culpa que isso aconteceu, que estáveis a ser castigado por Deus porque... porque... - Meg sondou um pouco mais aprofundadamente -, por causa do
pequeno pássaro que tínheis esmagado inadvertidamente, a carriça por cuja posse lutastes com o vosso amigo, Jocky... Jocky OScliattis.
Jaime Stuart tinha estado a olhar para ela como se estivesse mesmerizado, mas deu um salto para trás ao ouvir as últimas palavras dela, o rosto sem pinga de sangue.
À semelhança do rei, Sir Patrick também empalidecera, tendo-se esquecido tão completamente de onde é que estava que fez o sinal da cruz.
Felizmente para si, o rei Jaime estava demasiado concentrado em Meg para se ter apercebido. Fez menção de querer falar, mas as palavras não lhe saíam da boca, não
obstante, a acusação não verbalizada parecia pairar no ar. Bruxa.
Meg mexia com nervosismo no cabo do leque.
- Perdoai-me, majestade. Não foi minha intenção alarmar-vos nem ofender-vos. É por esta razão que as mulheres sábias que possuem este talento usam-no com bastante
parcimónia. É errado invadir os pensamentos mais íntimos de uma pessoa, tal como não se deve infligir dor sem que exista uma razão premente. Apenas aquelas Filhas
da Terra que enveredaram pela magia negra é que o aplicam com intuitos maléficos.
- Como essa Tamsin Rivers fez comigo. - Entretanto, parte da cor do rosto do rei retornara, contudo continuava a manter uma distância cautelosa de Meg.
- Portanto, presumo que estais a admitir que ela era uma bruxa.
- Sim, receio... receio ter de dizer que deve ter sido, o que, consequentemente, explica que a praga que ela me rogou é genuína - redarguiu
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Jaime Stuart, respirando fundo. - Muito bem. Tratai de me curar dessa maldição.
- Majestade...?
- Usai os vossos poderes ou a vossa magia branca, ou o que quer que lhe chamais, para pordes fim a esta maldição.
- M... mas...
- Não foi por essa razão que Sir Patrick vos trouxe à minha presença?
- Sim, mas... - Meg vacilou extremamente consternada, olhando para Sir Patrick num pedido mudo de socorro. Mas ele não disse nada, evitando deliberadamente o olhar
dela, quase como se tivesse passado a receá-la. Meg não podia censurá-lo depois da sua disparatada demonstração para o rei. Passara a maior parte da viagem desde
que haviam partido de França a assegurar-lhe que não era uma feiticeira, garantindo a Sir Patrick que não possuía poderes extraordinários.
- E então? - perguntou Jaime Stuart num tom de voz que mais parecia um rosnado. Como se pressentisse a tensão na voz do seu dono, Jowler ergueu-se sobre as quatro
patas. Até mesmo o cão parecia olhar para Meg como se estivesse a repreendê-la, enquanto o monarca a fitava com impaciência. - O que é que tencionais fazer para
me livrardes desta maldição?
"Uma questão excelente, majestade", pensou Meg, mas foi outra pessoa que deu voz ao comentário feito mentalmente.
Meg deu meia-volta repentinamente para ver quem é que se tinha atrevido a chegar à presença do rei sem ter sido convidado nem anunciado. Um homem, trajado sobriamente,
que não devia ter muito mais de metro e meio, embora, talvez devido ao facto de ser corcunda, parecesse mais baixo do que era realmente. Era muito pálido, como se
só muito raramente é que visse o sol, o rosto com rugas fundas e a boca pequena e contraída.
- Salisbury - saudou o rei num timbre de voz um tudo-nada de desagrado pela intromissão do homem. Imperturbável, este avançou.
Sir Patrick segredou ao ouvido de Meg.
- Robert Cecil, o conde de Salisbury, o secretário de Estado do rei. Meg não conseguiu decidir se ele lhe estava a dar uma informação ou a fazer-lhe uma advertência.
Ficou tensa, apesar de nenhum homem poder parecer mais inofensivo e despretensioso do que o conde de Salisbury enquanto fazia uma vénia ao monarca.
- Perdoai-me a intrusão, majestade. Ouvi dizer que este encontro com a mulher astuciosa estava a decorrer, pelo que me atrevi a juntar-me a vossa majestade.
- Ah! O que quereis dizer é que teríeis gostado de o impedir.
- O monarca olhou para Meg com um esgar sorridente. - O meu senhor Salisbury não nutre qualquer simpatia por bruxas.
- Tão-pouco eu - retorquiu ela.
- Realmente, senhora? - ripostou Salisbury, cumprimentando-a com um pequeno acenar de cabeça cortês. O seu tom de voz era suave,
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mas os seus olhos refletiam argúcia enquanto a avaliava. Meg tinha a inquietante sensação de que conhecia sua senhoria de algum lado, mas isso era impossível. Todavia,
havia algo no olhar firme do homem que lhe suscitava mal-estar.
- Sua majestade tem andado muito perturbado ultimamente devido a questões de bruxaria do passado. Não estou a ver como é que consultar outra mulher que possua essa
espécie de artes possa contribuir para a sua paz de espírito.
Quando Meg abriu a boca para protestar, Lorde Salisbury impediu-a de continuar.
- Por muito que possais afirmar que a vossa magia é benigna, com certeza que tal envolvimento no sobrenatural é contra a vontade de Deus. - O conde fez uma pausa,
lançando um olhar austero a Sir Patrick.
- E é por essa razão que aconselhei firmemente Sir Patrick para que não tratasse de arranjar este encontro.
- O que fiz a pedido de sua majestade - protestou o visado.
- Sim, eu insisti em falar com a Senhora da Ilha Encantada. Sentia-me muito curioso acerca dos seus dotes.
- E que dotes serão esses, majestade? - ripostou Salisbury, que arqueou uma sobrancelha.
- Estava prestes a inteirar-me disso mesmo quando nos interrompestes - respondeu Jaime Stuart visivelmente irritado. - Margaret Wolfe preparava-se para anular a
maldição.
- Peço-vos perdão, meu soberano - disse Salisbury, fazendo outra vénia. - Parece que o melhor será que a senhora prossiga.
Os três homens viraram-se, olhando fixamente para Meg, o rei expectante, Sir Patrick com a sua habitual expressão austera e Salisbury com um semblante que espelhava
ceticismo.
Aquele era o momento que Meg mais receara, quando esperariam que ela fizesse um milagre. Devia ter-se preparado melhor, refletido mais cuidadosamente como é que
procederia.
Ainda pensou em pedir círios e uma bacia cheia de água benta para realizar o simulacro de cerimónia a que procedera para enganar Bridget Tillet. Só seria necessário
fazer com que Jaime Stuart acreditasse que a maldição havia sido neutralizada.
Mas acontecia que o rei não era nenhuma aldeã ignorante, tal como não seria enganado com tanta facilidade por uns quantos feitiços misteriosos. Não seria preferível
que procedesse com sinceridade?
"Uma corte real não é um lugar para se agir com sinceridade", dissera-lhe Seraphine prementemente. Mas talvez fosse precisamente por isso que resultaria, por ser
uma atitude tão inesperada. Talvez Meg estivesse a ser ingénua, mas por entre todas as mentiras, intrigas e adulações levadas ao extremo, não seria possível que
uma simples atitude de sinceridade fosse como um vento purificador? Meg chamou a si toda a sua coragem antes de falar.
- Não existe magia nenhuma que possa pôr fim a uma maldição.
A boca de Lorde Salisbury contorceu-se num esgar de ironia, como se a dizer que sempre soubera isso. Sir Patrick olhou para o monarca com inquietação; por sua vez,
o rei olhava para ela com uma expressão carrancuda.
- Nesse caso estais a dizer que não há nada que possais fazer?
- Não, existe uma coisa - replicou Meg, voltando a prender o leque na faixa do vestido e fazendo um esforço tremendo para que os dedos não lhe tremessem. - Ao fim
e ao cabo, o que é uma maldição? Um mero desejo malévolo, portanto, qual será a melhor contramedida?
Quando nenhum dos três homens se dignou dar-lhe uma resposta, Meg continuou.
- Uma oração. Essa é a única coisa que pode neutralizar uma maldição. - Dito isto, acercou-se de Jaime Stuart com as mãos estendidas. O primeiro instinto deste foi
recuar, mas o rei ficou tão atónito com o gesto dela que permitiu que lhe tocasse.
As mãos dele eram como o próprio Jaime Stuart, um estranho contraste. As pontas dos dedos eram as de um académico, manchadas de tinta de escrever, mas as palmas
das mãos eram calosas devido ao contacto frequente com rédeas de couro, a marca de um cavaleiro e de um caçador ávido. Meg apertou-lhe as mãos enquanto entoava:
- Rezo a... - hesitou, apercebendo-se de que aquela não era a melhor altura para invocar qualquer deusa ou a Terra-Mãe. - Rogo a Deus, o nosso Pai todo-poderoso
nos céus, que proteja este rei de todos os males, de todos os atos demoníacos.
Apesar de Jaime Stuart ter estado a evitar os olhos de Meg, o seu olhar foi atraído pelo dela. Meg perscrutou-lhe os olhos aprofundadamente, como se, pela força
da sua vontade, pudesse fazer com que o rei acreditasse no poder das suas palavras.
- Que Deus e todos os Seus anjos ouçam a minha prece, que Jaime Stuart seja abençoado com um reinado longo e pacífico, para que governe
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o seu reino bem e com sabedoria. Que essa mesma bênção seja conferida aos seus herdeiros e a toda a Casa de Stuart.
Seguiu-se um pesado silêncio, mas, pouco depois, Meg ouviu Lorde Salisbury dizer:
- Amen.
O rei afastou as mãos das dela, quebrando o contacto físico que os unira, se bem que apenas por breves momentos.
- Então, é só isto? - perguntou o rei Jaime com uma expressão duvidosa. - A maldição acabou?
- Vossa majestade não acredita no poder da oração?
- Bem, sim, mas...
- Sendo assim, o resto depende inteiramente de vós, da força da vossa própria mente. Vossa majestade tem a reputação de ser um segundo rei Salomão. - Meg decidiu
que, naquela conjetura, um pouco de adulação não seria descabido. - Tenho a certeza de que sois demasiado sagaz para acreditar verdadeiramente que esses acontecimentos
recentes tenham tido origem num espectro do vosso passado.
- Portanto, só imaginei ter visto uma mulher que acreditava ter morrido? Estarei a enlouquecer?
Meg pensou no medo que sentiu ao pensar que tinha visto a sua mãe no jardim. Se o rei estava a enlouquecer, também ela seguia pelo mesmo caminho.
- Não, majestade. Tenho a certeza de que haveis visto alguém, mas não foi um fantasma. Essas mensagens escritas a sangue, o rasto de pétalas prateadas que o homem
da vossa guarda encontrou, foram acontecimentos verídicos, indícios que confirmam a existência de um inimigo de carne e osso que anda a conspirar para vos atormentar.
- O que é inteiramente a minha opinião quanto a esse assunto disse Salisbury.
- Hum! Isso quer dizer que estais satisfeito com a conclusão a que a senhora chegou, Salisbury - disse o monarca depois de um curto silêncio, mostrando uma expressão
soturna enquanto passava os dedos pela extremidade da barba. - Pois bem, eu preferiria, de longe, que não houvesse qualquer envolvimento de feitiçaria. Como qualquer
homem temente a Deus, o sobrenatural causa-me inquietação. Quanto às maquinações de homens comuns... -Jaime Stuart encolheu os ombros numa atitude de cansaço -,
já consegui sobreviver a demasiadas conspirações ao longo de toda a minha vida.
- Duvido muito que vossa majestade precisasse de procurar muito longe para encontrar a origem desta conspiração - adiantou Salisbury. - Súbditos traiçoeiros, aqueles
que se agarram à fé católica, são os que, mais provavelmente, desejarão mal a vossa majestade.
- Pelas chagas de Cristo, Salisbury, até acreditais que há papistas escondidos debaixo de todos os leitos, a afiarem as suas adagas.
- Talvez não debaixo de todos os leitos, mas é inegável que existem num número demasiado elevado, que não hesitarão em fazer o que for necessário para verem um monarca
católico no trono.
Teria Meg imaginado ou vira Lorde Salisbury olhar de relance na direção de Sir Patrick? Era difícil ter a certeza, uma vez que a fisionomia do secretário do monarca
tinha uma expressão tão imperscrutável. Apressou-se a falar.
- Não acredito que esta conspiração seja inspirada por qualquer fervor religioso. Parece-me mais que se trata de uma vingança, alguém que esteja familiarizado com
os julgamentos de bruxas que tiveram lugar na Escócia e que, por isso, acalente um ressentimento contra vós, talvez um familiar de alguma mulher que tenha sido condenada.
- Talvez outra seguidora dessa Megera? - alvitrou o monarca.
- T... talvez - concordou Meg.
- Isso quer dizer que sabeis alguma coisa a respeito dessa feiticeira, é isso, Margaret Wolfe? - perguntou-lhe Salisbury.
Meg entrelaçou os dedos das mãos para suprimir o tremor que lhe percorria todo o corpo.
- Apenas muito pouco. É claro que uma pessoa ouve histórias descabidas acerca de outras Filhas da Terra. Sabeis como é... como as mulheres gostam de mexericos.
O rei brindou Meg com um sorriso de complacência, o que aliviou parte da tensão que se apoderara dela.
- Isso é muito verdadeiro, razão por que qualquer investigação a fundo de um ato de traição não seja tarefa para uma mulher. A partir deste momento, vou confiar
este assunto às vossas competentes mãos, Salisbury. Sempre que existe uma conspiração em estado embrionário, posso confiar no meu pequeno bigle para descobrir a
origem dessa conspiração.
"Pequeno bige?" O comentário confundiu Meg, até se ter apercebido com um baque que o rei sorria a Lorde Salisbury com uma expressão radiante.
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Aquele era, claramente, o termo que Jaime Stuart usava afetuosamente quando se dirigia ao seu principal ministro. Não pareceu a Meg que o secretário de Estado gostasse
muito de ser tratado naqueles termos, mas obrigou-se a sorrir, fazendo uma inclinação de cabeça rígida a Jaime Stuart.
- Agradeço a vossa majestade a confiança que depositais em mim. Farei sempre tudo o que for necessário para manter vossa majestade a salvo de qualquer perigo.
Parecia o género de resposta aduladora que qualquer cortesão teria dado. Meg perguntava-se se seria a única a detetar um aviso velado, sentindo que lhe era dirigido.
Deu um pequeno passo atrás, lançando um olhar de ansiedade na direção da porta.
- Vossa majestade deve ter muito sobre que conversar com Lorde Salisbury. Por isso, não devo tomar-vos mais tempo quando me resta tão pouco que possa fazer, a não
ser oferecer-vos o parecer de uma humilde curandeira. Em períodos de grande tensão da mente, uma pessoa deve ter cuidados especiais com o corpo. Eu recomendar-vos-ia
ar fresco, luz do Sol e diversão para animardes o vosso estado de espírito.
Jaime Stuart esboçou um sorriso rasgado ao ouvir a sugestão de Meg.
- Estou a ver que sois realmente muito sábia para uma mulher, Margaret Wolfe. Não existe nada melhor do que uma boa cavalgada para os cães de caça.
Salisbury pigarreou delicadamente.
- São muitas as questões que ocuparão vossa majestade, assuntos prementes da governação do reino, petições, decretos que tendes de assinar...
- Tretas! Essa é a vossa ideia de diversão, meu senhor, mas não é a minha. Não, penso que estou a precisar muito de me retirar para o meu pavilhão de caça.
Quando o secretário de Estado pareceu preparar-se para mais protestos, Jaime Stuart silenciou-o com um olhar austero.
- É para o bem da saúde do vosso rei.
Salisbury não foi capaz de reprimir um suspiro audível.
- Assim me dizeis, majestade.
- Mas e a respeito da abertura do Parlamento, majestade? - perguntou Sir Patrick, que se mantivera tão calado durante todo aquele tempo que Meg se perguntava se
o rei se teria apercebido de que ele continuava presente.
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Mas, agora, Jaime Stuart sorria afetuosamente, passando a mão pela manga do gibão de Sir Patrick.
- Regressarei muito a tempo disso. Mas, por agora, vou caçar e quero que me acompanheis.
- Receio que Sir Patrick tenha outras obrigações... - começou Salisbury a dizer.
- Que podem esperar. Acompanhar-me-eis, meu rapaz. Até podeis trazer esse vosso amigo, o Androcles.
- Quem, majestade? - perguntou Sir Patrick.
- O homem que extraiu o espinho da pata do Jowler na primavera passada e lhe aplicou aquele bendito unguento que o sarou e que o pôs em condições de caçar no dia
seguinte.
- Estais a referir-vos ao Armagil Blackwood.
- Sim, ele. Um homem deveras divertido e muito bom a lidar com cães - acrescentou o rei Jaime, beliscando a bochecha de Sir Patrick na brincadeira.
O estado de espírito do monarca parecia muito mais animado. Assobiou para chamar o cão. Mal prestando atenção às vénias que lhe faziam, Jaime Stuart abandonou a
galeria comjoivera segui-lo muito de perto.
Meg endireitou-se, suspirando de mansinho. Aquela provação chegara ao fim e ela sobrevivera-lhe, muito embora não soubesse ao certo o que é que teria beneficiado
daquela audiência. Receava que muito pouco. Estava ansiosa por sair dali e pressentia que Sir Patrick desejava o mesmo.
Mas Lorde Salisbury barrou-lhes o caminho.
- Peço perdão, Margaret Wolfe, mas gostaria de vos dar uma palavrinha a sós.
- Bem... eu... eu... - tartamudeou Meg, olhando para Sir Patrick para que este a livrasse daquela situação, mas este não pareceu disposto a isso. Ao invés, fez uma
pequena inclinação de cabeça a Salisbury. Apesar de a ter olhado com uma expressão apologética, Meg continuou a sentir-se abandonada quando a porta se fechou depois
de ele ter saído, deixando-a sozinha com o secretário de Estado.
"Tende cuidado com o pequeno bigle do rei. Ele é conhecido por morder.-" Tão característico de Armagil Blackwood dizer-lhe com um tom chocarreiro e de uma maneira
tão enigmática o que devia ser uma advertência séria. Meg teria uma ou duas coisas a dizer ao homem quando voltasse a vê-lo. Isto é, se ela voltasse a vê-lo...
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Lorde Salisbury observava-a em silêncio, uma tática que ela tinha a certeza de que era calculada para a deixar pouco à vontade e, consequentemente, com as defesas
enfraquecidas.
O que estava a surtir o efeito desejado, mas Meg estava determinada a não o mostrar. Olhou-o bem de frente, apesar de manter as mãos ocultas nas dobras das saias,
como se estivesse à espera de que lhe partissem os dedos a qualquer momento.
- Quando soube que o rei iria conceder-vos uma audiência - começou Salisbury a dizer por fim -, tratei de proceder a algumas indagações. Ouvi muitas histórias estranhas
e fantásticas acerca da Senhora da Ilha Encantada.
- Tenho a impressão de que vossa senhoria não é a espécie de homem que dá ouvidos a informações sem fundamento.
- Minha senhora, eu tenho por costume dar ouvidos a tudo. Fiquei especialmente fascinado com as histórias das vossas folias à meia-noite no cimo dos penhascos e
entre as pedras dos druidas.
- Reuniões do conselho, tal como as que talvez tenham lugar entre vós e os outros secretários do conselho privado do rei. com a diferença de que as nossas foram
de mulheres sábias que se reúnem para partilhar os conhecimentos de cada uma sobre as artes de curar.
- Mulheres astuciosas oriundas de todas as partes de França, Espanha, Itália e Irlanda.
- Sim - confirmou Meg, perguntando-se aonde é que o homem pretenderia chegar com aquilo.
- E de Inglaterra. Decerto que sabeis o nome de muitas delas, talvez mesmo de algumas que vivem aqui, em Londres.
Meg apercebeu-se da armadilha, esforçando-se por lhe fugir.
- Não, tenho de vos dizer que não sei. Há muito tempo que esses conselhos não têm lugar na ilha Encantada, além disso, nos últimos anos, as participantes eram em
número muito reduzido. Deixei de saber onde encontrar qualquer das Filhas da Terra inglesas, mas ainda que soubesse...
- Meg interrompeu-se e fitou-o com uma expressão de desafio. - Não vim aqui para vos ajudar a desencadear uma caça às bruxas.
- Exatamente, o que é que vos trouxe aqui, minha senhora?
- Vim a pedido de Sir Patrick.
- Sir Patrick - ecoou Salisbury pensativamente, a matutar no nome de uma maneira que inquietou Meg.
- Ele pediu-me que viesse para aliviar a mente do rei, que se julga vítima de uma maldição.
- Estou a ver. Suponho que exista um precedente numa situação semelhante. A minha falecida soberana, a boa rainha Isabel, costumava consultar o seu necromante, o
doutor Dee, a respeito de questões dessa natureza.
- Haveis servido a rainha Isabel?
- Durante muitos anos, embora nem sempre num cargo tão elevado como o que ocupo agora. Comecei como um simples escrivão de meu pai, Lorde Burghley, quando ele era
secretário de Estado. Por essa razão, era frequente que estivesse na corte, o que me permite recordar um curioso incidente quando a rainha consultou uma feiticeira,
uma garota, se é que se pode acreditar numa coisa dessas.
Meg conseguia acreditar, sem margem para qualquer dúvida. Sentiu que a cor lhe desaparecia das faces quando compreendeu o motivo por que Salisbury lhe parecia familiar.
Tinha-o visto no dia em que entrara furtivamente no palácio para conseguir chegar à fala com a rainha Isabel, sentindo-se avassalada perante aquele vasto mar de
caras da corte. Mas Salisbury era um homem com um aspeto físico tão invulgar com a sua baixa estatura, corcunda e rosto macilento. Algures no seu subconsciente,
devia ter reparado no homem. Mas até que ponto é que sua senhoria se lembrava dessa ocasião? Seria possível que ele discernisse nela traços fisionómicos da garota
atemorizada que era nessa altura?
- A garota a que me referi atirou-se aos pés da rainha, afirmando que era a Rosa de Prata - continuou Salisbury -, essa infame Megera. O que é que pensais acerca
disso, minha senhora?
Meg sentia a boca tão seca que teve dificuldade em responder-lhe.
- Na minha opinião, essa criança devia ter ouvido um número exagerado de contos de fadas, além de possuir uma enorme imaginação. Não existe ninguém de nome Megera.
- Assim dizeis - retorquiu Salisbury cortesmente, mas os olhos dele pareciam trespassá-la até ao seu âmago. Decorreram vários momentos plenos de tensão, que a Meg
pareceram uma eternidade, antes de o homem lhe fazer uma inclinação de cabeça e se afastar para o lado. - Intrigais-me, Margaret Wolfe. Penso que temos de voltar
a falar. Dentro de muito pouco tempo.
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Meg tinha a sensação de não conseguir respirar até se encontrar fora das paredes do palácio. Quando atravessou o campo de torneios com Sir Patrick, teve de fazer
um esforço enorme para não desatar a correr. Até mesmo com o andar dificultado pelos saltos dos sapatos, conseguia caminhar mais depressa do que ele. Queria ir ter
com Seraphine para regressarem à ilha Encantada o mais depressa que lhes fosse possível.
Lorde Salisbury sabia. Ele conhecia o seu passado, sabia que em tempos se chamara Megera. Até mesmo enquanto aquele pensamento, que tanto pânico lhe causava, lhe
ocorreu à mente, a parte mais racional da sua consciência esforçava-se por se afirmar.
Era possível que Salisbury suspeitasse, mas não tinha a certeza absoluta, caso contrário teria dado ordens para que a prendessem antes de ela ter conseguido sair
do palácio. E como é que ela poderia sair de Inglaterra quando aquele mistério relativo a quem é que andaria a atormentar o rei não estava mais perto de ser solucionado?
Entretanto, Sir Patrick pôs-se ao lado dela. Não dissera nada no interior de Whitehall, onde havia o perigo de as suas palavras serem ouvidas. Mas agora agarrou-a
pelo braço para fazer com que ela caminhasse mais devagar, falando-lhe num tom de voz pleno de preocupação.
- O que é que se passou no palácio, Margaret Wolfe? O que é que Lorde Salisbury queria de vós? Pareceis estar extremamente perturbada.
- Perturbada? - Meg soltou o braço e fitou-o furiosa. - Sim, suponho que esteja. O que sua senhoria pretendia era interrogar-me, do que vós poderíeis ter-vos apercebido
facilmente. Porque é que me deixastes sozinha com ele?
- Porque, por muito cortesmente que Lorde Salisbury tenha proferido as suas palavras, não foi um pedido. Ele é um homem muito poderoso, talvez até mesmo mais do
que o próprio rei. Sei de alguns dos nobres mais importantes que esperam até quatro dias pela honra de uma audiência em particular com sua senhoria.
- Pois eu não me senti honrada. Senti-me ameaçada. Temo que ele desconfie de que eu sou uma bruxa, talvez até suspeite de que sou eu quem está por detrás desta conspiração
contra o rei. E acho que ele também suspeita de vós.
- Suspeita de mim? De quê?
- De serdes católico.
Meg estava à espera de que Sir Patrick negasse embaraçado. Mas pareceu ter ficado estranhamente aliviado.
- Talvez Lorde Salisbury desconfie disso, mas não tem a mínima importância. O rei sabe que perfilho a fé católica.
Quando Meg ficou a olhar fixamente para ele, perplexa perante aquela confirmação feita com tanta calma, Sir Patrick encolheu os ombros.
- Sua majestade não faz nada para impedir que os seus ministros persigam os católicos, mas procede com indulgência para com os seus favoritos. Em tempos, sua majestade
até teve um moço de estrebaria que era um padre encapotado. O rei Jaime tinha conhecimento disso, mas não exerceu quaisquer represálias. Afinal de contas, o homem
tinha muito jeito para tratar de cavalos. É claro que, quando o padre Benedict foi apanhado a celebrar uma missa secretamente, Jaime Stuart sentiu-se obrigado a
permitir que o prendessem. Mas a verdade é que o rei está mais do que disposto a ignorar a fé religiosa de cada um, desde que não lhe causem incómodos ao praticá-la.
Meg apercebeu-se de um traço de azedume no tom de voz de Sir Patrick que nunca lhe ouvira quando falava do seu soberano.
- Falais como se não apreciásseis a tolerância de que o rei dá mostras. Pensei que lhe dedicáveis uma estima incondicional.
- Os meus sentimentos para com o rei são inconsequentes. Estou mais curioso em inteirar-me dos vossos.
- Eu estava à espera de o detestar - retorquiu Meg, mas depois admitiu relutantemente -, mas não me foi possível. Sinto mais compaixão por ele do que poderia ter
imaginado.
- Sentis compaixão por ele?
- Sim. O que também sentiríeis se tivésseis lido os olhos dele como eu li. Ele viveu toda a sua infância, na verdade, durante a maior parte da sua vida, a temer
ser atraiçoado, assassinado ou de vir a perder todos os que ama. - Era o mesmo terror que Meg sentira às mãos da sua própria mãe. - Quando nunca se viveu com esse
medo, é impossível imaginar como será.
- Estou em crer que eu seria capaz.
- Não estou a desculpar algumas das coisas horríveis que Jaime Stuart fez, mas ele não é nenhum tirano cruel que não tem consciência. Ele pareceu-me estar cheio
de remorsos genuínos quando falou do rapaz
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que era irmão da rapariga que morreu na fogueira acusada de bruxaria, o rapaz cuja dor ele jamais será capaz de esquecer.
- O Robert Brody? - A gargalhada amarga que Sir Patrick soltou surpreendeu Meg. - Estais a depositar uma fé exagerada na consciência do rei ou na sua memória. Jaime
Stuart não se lembraria desse rapaz, ainda que tivesse tropeçado nele.
Meg franziu as sobrancelhas. Como é que Sir Patrick sabia o nome completo do rapaz? Tinha a certeza de que o rei não o mencionara. Tencionava fazer-lhe essa pergunta,
mas ele já se tinha afastado, começando a caminhar à frente dela.
Mas não antes de ela ter visto de relance o semblante dele, a mesma expressão que imaginara ter visto no pequeno espelho do seu leque quando se encontravam no palácio.
com a diferença de que agora sabia que não estava enganada, tendo visto um ódio tão profundo que era quase selvático na sua intensidade.
"Deus do céu", pensou Meg. Robbie.
Meg abotoou o botão do seu vestido muito simples, satisfeita por ter podido despir o requintado vestido que usara para ir a Whitehall. Seraphine ainda não tinha
voltado, pelo que precisara de chamar uma das criadas para que a ajudasse a sair daquela gaiola que era o vestido de veludo com um corpete muito justo, saias e mais
saias de baixo, espartilho e anquinhas.
Assim que foi libertada daquele vestuário, Meg dispensou os serviços da criada; precisava de ficar a sós com os seus pensamentos. Enquanto vestia o seu despretensioso
vestido, tinha esperança de se sentir mais igual a si própria, com o seu sentido de normalidade restabelecido. Mas os seus pensamentos estavam num autêntico turbilhão
devido ao seu recente encontro com o rei e, acima de tudo, devido às suas suspeitas em relação a Sir Patrick.
Ou devia dizer Robert Brody?
Não, com certeza que estava louca ao pensar nessa possibilidade. Sir Patrick Graham era o descendente de uma família antiga que gozava de boa reputação. Apesar de
ter nascido no seio de uma família da pequena nobreza, esta tinha de ser bem conhecida.
Que um jovem escocês determinado a vingar-se pudesse assumir a identidade de um cavaleiro inglês, ter conseguido obter uma posição na corte, até mesmo cair nas boas
graças do rei... era absolutamente impossível.
Meg não tinha nada com que fundamentar as suas suspeitas, à exceção de alguns momentos em que ele deixara que a máscara lhe caísse do rosto, quando revelou que sabia
o nome completo de Robbie e quando fez aquele comentário cáustico.
"Jaime Stuart não se lembraria desse rapaz, ainda que tivesse tropeçado nele."
Era muito pouco com que fundamentar uma suposição tão temerária, não obstante, no seu coração, Meg estava convencida de que Robert Brody e Sir Patrick eram uma única
e a mesma pessoa.
Tentara perscrutar o homem mais de perto durante o percurso depois de terem saído de Whitehall. Mas ele escudara-se por detrás da sua habitual fachada de cortesia.
Só então é que Meg se apercebeu de que Sir Patrick fazia grandes esforços para que os olhos de ambos não se demorassem por muito tempo quando se olhavam, compreensivelmente
desconfiado depois de ela ter lido os pensamentos do rei.
Mas Meg duvidava de que pudesse ter lido os olhos de Sir Patrick, por muito afincadamente que tentasse. Nunca conhecera um homem que guardasse melhor os seus pensamentos
e emoções do que ele. Mas se era de facto Robert Brody, tinha tido vários anos para se obrigar a isso.
A questão era saber durante quanto tempo é que um homem possuído de tanta raiva e ódio seria capaz de reprimir esses sentimentos antes de explodir com a força de
um vulcão. Depois de terem voltado para casa, Sir Patrick pediu licença para se ausentar, alegando que tinha uma reunião muito importante.
Mas uma reunião com quem? com Thomas Percy, o gentil-homem que era um espadachim e que tinha abordado Sir Patrick em Whitehall? Ou com o misterioso senhor Johnston?
Ou até mesmo, que Deus não o permitisse, com as bruxas que andavam a atormentar o rei?
Quanto mais Meg se esforçava por deslindar aquela intriga, mais se embrenhava no denso nevoeiro que até fazia com que a paisagem do que ela pensava conhecer se lhe
tornasse estranha.
Só havia uma coisa que para si era bem clara. Se Sir Patrick Graham era, realmente, Robert Brody, isso significava que Jaime Stuart corria perigo de morte e, muito
possivelmente, também a própria Meg. Porque, se ele odiava o rei, não tendo a mínima vontade de o salvar das suas aflições, por que razão é que se dera a tanto trabalho
para ir buscar Meg, trazendo-a para Londres. O que é que ele queria dela realmente?
196
Meg desejou que Seraphine não tardasse a voltar para casa, para poder perguntar-lhe qual a sua opinião sobre o assunto. Seria possível que Sir Patrick fosse, efetivamente,
Robert Brody? Ou estaria Meg a perder a sua capacidade de raciocínio?
Não lhe custava imaginar Seraphine a arquear uma sobrancelha numa expressão de ceticismo, falando-lhe numa voz arrastada. "Sim, minha querida amiga, estou em crer
que as tuas suspeitas estão corretas. És oficialmente louca."
Meg começou a andar de um lado para o outro na alcova, dando voltas à cabeça para encontrar uma maneira de confirmar ou desmentir as suas desconfianças. Podia tentar
interrogar os servos de Sir Patrick, mas duvidava que isso lhe trouxesse grande proveito. Todos sem exceção eram tão reservados quanto o amo, precisamente o que
se poderia esperar numa casa onde a fé católica continuava a ser prevalecente em desafio à lei vigente. E talvez até mesmo os servos em que ele depositava mais confiança
não tivessem conhecimento de todos os seus segredos.
E claro que havia uma pessoa que, mais provavelmente do que qualquer outra, teria conhecimento da verdade a respeito de Sir Patrick. Armagil Blackwood dissera insistentemente
que conhecia Patrick Granam desde os tempos da juventude de ambos, quando estudavam juntos na Universidade de Oxford.
Mas Blackwood também admitira sem o mínimo pejo que era um notório mentiroso. Ele e Graham eram grandes amigos. Se Sir Patrick andava a conspirar contra o rei, seria
razoável presumir que Blackwood estaria de conluio com ele.
Mas tinha sido ele a adverti-la de que devia desconfiar de Graham, o que este também fizera, aconselhando-a a ter cuidado com o amigo. Aquela situação era suficiente
para dar com uma mulher em doida.
Meg levou os dedos às têmporas, fazendo pressão e sentindo um latejar indicador do início de uma dor de cabeça. Estremeceu quando ouviu alguém que batia à porta
da alcova, mas disse a quem quer que fosse que podia entrar. Era uma criada esbaforida que lhe fez uma vénia de fugida.
- Oh, minha senhora, tendes de descer imediatamente. Chegou um mensageiro que quer falar convosco, afirmando que o assunto é urgente, que se trata de uma questão
de vida ou de morte.
- E de onde é que esse mensageiro veio? Foi mandado pela minha amiga, a condessa?
- Não, minha senhora. O mensageiro é o jovem tom, o rapaz que costuma fazer recados ao doutor Blackwood.
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Blackwood? Intrigada e inquieta, Meg acompanhou a criada até ao vestíbulo no piso térreo, onde deparou com um rapaz de cabelos escuros que andava de um lado para
o outro, ao mesmo tempo que batia com os punhos fechados nas coxas, como se estivesse possuído de uma preocupação angustiante.
Estava muito corado e suava profusamente, como se tivesse acabado de correr uma maratona. Quando viu Meg, correu para as escadas, que subiu, intercetando-a a meio.
- Menina Margaret Wolfe? - perguntou quase sem fôlego. Sem esperar que ela confirmasse a sua identidade, agarrou-a pela manga do vestido. - O meu amo, o doutor Blackwood,
mandou-me para que vos levasse até junto dele.
- O que é que se passa?
- Ele está doente, gravemente doente. Tendes de vir antes que seja tarde de mais. - O rapaz começou a puxá-la pelo braço, mas Meg resistiu-lhe, olhando para ele
com uma expressão de desconfiança.
- O teu amo pareceu-me estar de perfeita saúde quando me despedi dele esta manhã. - Depois de ter refletido por alguns momentos, perguntou-lhe em voz baixa: - O
doutor Blackwood tem estado a beber?
- Não! - respondeu o rapaz perentório com uma expressão de angústia, desatando a chorar. - O meu amo foi envenenado.
Meg seguiu o rapaz pela rua estreita, sentindo que estava a ficar sem ar nos pulmões. com a respiração arfante devido ao esforço para conseguir acompanhar a passada
do rapaz, sentia-se sufocada pelos edifícios que se agigantavam acima de si. Atravessar a Ponte de Londres foi como percorrer um túnel estreito e escuro.
Durante a sua meninice passada naquela cidade, Meg nunca gostara daquela ponte, com o seu casario de casas encavalitadas e estabelecimentos, o barulho ensurdecedor
das rodas das noras, o barulho das carroças puxadas por cavalos, os gritos constantes dos barqueiros, estivadores e vendedores ambulantes por baixo dos arcos da
ponte. Como era característico de Blackwood decidir viver no meio de tanto barulho e caos. Aquela não era uma área em que Meg desejasse viver... ou morrer.
Um guardador de vacas conduzia uma pequena manada para o mercado, aumentando a confusão do tráfego. Meg conseguiu manter-se agarrada à manga do gibão de tom para
não ficar separada dele no meio daquela multidão. Para não serem espezinhados pelas vacas, espalmaram-se contra a superfície de pedra de um dos pilares da ponte.
- Ainda... ainda falta muito para chegarmos? - perguntou Meg arfante.
- Já não falta muito. É a última casa, mas situa-se no lado de Southwark da ponte. Temos de nos apressar - disse tom, levando a mão ao lado do corpo em que sentia
uma guinada, dando a impressão de estar prestes a cair de exaustão, parecendo tão frenético como quando fora buscar Meg.
Embora sentisse o coração a bater acelerado, Meg tentava reprimir a sua própria sensação de pânico o suficiente para poder fazer as perguntas que já devia ter feito,
antes de seguir cegamente aquele rapaz por meia cidade de Londres.
- Como é que podes ter tanta certeza de que o doutor Blackwood foi envenenado?
- Porque foi o que o meu amo disse.
- Como é que ele te pareceu?
- Está horrivelmente pálido e geme como se estivesse a agonizar.
- Foi alguma coisa que ele comeu? Alguma coisa que tenha bebido?
- Não sei dizer, senhora.
- Mas porque é que ele mandou que me fosses buscar? Porque não outro médico?
- Não sei. O meu amo só insistiu em que éreis a única pessoa capaz de o socorrer.
- Mas porque é que ele diria isso? O doutor Blackwood tem tão pouco respeito pelas minhas capacidades de curar.
- Não sei porquê - respondeu tom numa voz gemida. - Por favor, minha senhora, temos de nos apressar.
Quando a última cabeça de gado passou, apareceu uma abertura entre a multidão que tom se apressou a aproveitar, deixando que Meg o seguisse o melhor que lhe fosse
possível, agarrando a pega da pequena mala que continha os seus remédios de ervas medicinais e instrumentos cirúrgicos.
Havia muito tempo que se considerava uma mulher cautelosa e razoável. Tinha todas as razões para desconfiar de Armagil Blackwood. Apesar disso, só fora preciso ouvir
que ele estava doente, talvez mesmo às portas da morte, para não hesitar em ir apressadamente para junto dele, sem sequer ter pensado duas vezes. No entanto, agora
não era a melhor ocasião para questionar a sua sanidade mental, nem tão-pouco para perguntar a si mesma por que razão é que um homem que mal conhecia exercia aquele
efeito em si.
Sentiu-se aliviada quando chegaram ao seu destino, uma casa de pasto entalada entre um armazém e uma taberna. Por cima do estabelecimento, viam-se quatro pisos de
alojamentos, cujas sacadas se destacavam em ângulos irregulares, e decerto que Blackwood viveria no último piso.
Depois de ter subido lanço após lanço de escadas, Meg sentia uma guinada no flanco e estava sem fôlego. Sem se deter para bater, tom abriu a porta do quarto de Blackwood,
entrando de rompante. Meg cambaleava atrás dele.
200
Era como entrar num sepulcro, frio e escuro. O lume não ardia na lareira, apesar do dia frio de final do outono, e não obstante as portadas das janelas estreitas
estarem todas fechadas. Quando os olhos de Meg se ajustaram à penumbra, viu que o alojamento de Blackwood consistia num quarto espaçoso, parcimoniosamente mobilado.
O que mais se destacava era o leito com dossel. Meg mal conseguia distinguir a figura de um homem todo tapado com os cobertores.
tom correu para a beira da cama.
- Oh, meu amo, como é que vos sentis? Trouxe a senhora, tal como me pedistes.
- Onde é que ela está? - perguntou Blackwood numa voz enrouquecida.
- Estou aqui - respondeu Meg, aproximando-se do leito e deixando cair a maleta no chão. com algum esforço, abriu as portadas de uma das janelas, permitindo que o
sol do fim da tarde banhasse a cama. Estremeceu quando viu o rosto de Blackwood, que estava lívido por baixo da barba. Tinha o cabelo todo emaranhado e suado, os
olhos encovados de dor.
- Margaret, haveis chegado com rapidez. - Apesar do sofrimento, que era por demais evidente, fez um trejeito sorridente. - Estáveis assim tão ansiosa por chegardes
à minha cama?
- Esta não é a melhor altura para brincadeiras disparatadas. - Pegou na mão dele para sentir a pulsação. Estava alarmantemente acelerada.
- tom disse-me que pensais que fostes envenenado. O que é que aconteceu? O que é que fez com que ficásseis neste estado?
- Fostes vós - respondeu Blackwood, virando a cabeça na almofada, o que lhe provocou uma careta. Até mesmo aquele pequeno movimento pareceu causar-lhe dores. - Maldição,
porque é que não vos dedicaste ao cultivo de malmequeres e margaridas como qualquer mulher normal?
Meg franziu as sobrancelhas perplexa, perguntando-se se ele estaria a ficar delirante.
- Mas de que é que estais a falar?
Blackwood soltou a mão da dela, fazendo um gesto na direção da pequena mesa perto do leito.
- Estou a referir-me àquela pequena recordação que eu trouxe do vosso jardim.
Meg inspecionou os objetos que se encontravam em cima da mesinha, uma vela meio consumida e uma coisa prateada que brilhava, envolvida nas dobras de um lenço de
assoar. Ficou com a respiração embargada na garganta. Soube o que era antes mesmo de afastar para trás uma ponta do lenço de linho, deparando com a rosa em toda
a sua beleza letal.
- com a breca! - exclamou tom, abeirando-se mais. - O que é isso?
- Não lhe toques! - advertiram Meg e Blackwood ao mesmo tempo. Assustado, tom recuou.
- Onde é que encontrastes isto? - perguntou-lhe Meg num tom autoritário.
- Encontrei-a... no jardim onde a haveis deixado cair.
- Isso não é verdade. Não tenho nada a ver com essa flor. Portanto, picastes-vos num dos espinhos? Onde?
Blackwood ergueu a mão direita que estava inchada. O pequeno ferimento no polegar estava a começar a supurar.
- Mas porque é que tivestes de tocar nisto? Porque é que não pudestes deixar a rosa onde estava?
- Sabeis como eu sou - replicou Blackwood com o arremedo de uma gargalhada. - Não sou capaz de manter as mãos afastadas de coisas bonitas - acrescentou, olhando-a
sugestivamente. - Não fizestes esta rosa, mas é óbvio que sabeis do que se trata.
- Sim, sei.
- E então... estou a morrer?
Meg furtou-se ao olhar dele, mas Blackwood devia ter visto o medo que se espelhou nos olhos dela. Conhecia bem de mais o poder mortífero do veneno de que o espinho
da rosa estava impregnado. Fora obrigada pela mãe a traduzir a preparação desse veneno contida no Livro das Sombras. Não tinha importado que fosse apenas uma criança
que Cassandra Lascelles aterrorizava e tratava mal. Meg continuava a ter sentimentos de culpa por todas as vidas que Cassandra ceifara com as rosas envenenadas.
E agora seria responsável por outra morte. As lágrimas marejaram-lhe os olhos. Blackwood apertou-lhe a mão.
- Se eu estiver a morrer, isso não tem importância, minha querida. É por causa da minha curiosidade, mais nada.
?- Mas é importante para mim - retorquiu Meg, despindo o manto e abrindo a maleta para passar uma vista de olhos rápida pelos
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frasquinhos que continham ervas medicinais secas que levara para se inteirar do que precisava.
tom andava atrás dela, perguntando-lhe em voz baixa:
- O que é que posso fazer, senhora? Como é que posso ajudar?
- Está demasiado frio aqui dentro. Podes começar por acender o lume na lareira, um bom lume.
- O meu amo não vai gostar disso. Nunca acende o lume, a menos que seja forçado, no pico do inverno, quando a água no lavatório está quase a congelar.
Olhando para a esqualidez do quarto de Blackwood, não era difícil a Meg adivinhar a razão para essa parcimónia. O homem vivia em extremas dificuldades financeiras,
provavelmente a um passo de voltar a ser preso devido às suas dívidas.
- Hoje quem manda aqui não é o teu amo. Sou eu - disse Meg, tirando algumas moedas da sua bolsa, que meteu na mão do rapaz. - Vai comprar alguma lenha, tanta quanta
puderes carregar, e volta para aqui o mais depressa possível.
tom lançou outro olhar ansioso a Blackwood, mas depois acenou que sim e apressou-se a sair do quarto. Meg encontrou um pequeno caldeirão, após o que tirou as suas
ervas dos frascos, mas, até ter um lume na lareira, não havia grande coisa que pudesse fazer.
Voltou a acercar-se da cama. Blackwood tinha fechado os olhos e cerrara os maxilares. Aquela era a crueldade daquele veneno em particular. Não atuava com rapidez.
Um homem forte como Blackwood poderia durar vários dias, sofrendo agonias mais excruciantes do que ser esticado na roda de tortura, ficando com os ossos partidos.
No entanto, era possível que Blackwood não conseguisse aguentar-se por muito mais tempo. Meg levou a mão à fronte dele. A febre já começava a instalar-se. Ele abriu
as pálpebras trémulas, olhando para ela com um sorriso de tristeza.
- Portanto, que feitiço é que estais a planear usar em mim, milady?
- Não tem nada de magia, mas acredito que serei capaz de preparar uma poção que servirá de antídoto.
- E curar-me-á?
Meg desejava ardentemente poder tranquilizá-lo, porque ela própria queria acreditar que sim. Mas não podia mentir-lhe.
- Tenho esperança de que sim, mas, para o caso de acontecer o pior, há alguém que desejais que eu mande chamar?
- Para uma despedida sentimental no meu leito de morte? Não me parece.
- Nem sequer Sir Patrick?
- Pelo fogo do Inferno, não! Ele não pararia de me atormentar com os seus padres-nossos, sempre a rezar pela minha alma. Além disso, ele não aprovaria a vossa presença
aqui comigo.
- Já percebi que Sir Patrick se considera como meu protetor, mas ele não me é nada, e, dadas as circunstâncias, é impossível que ele pense que estejais a seduzir-me.
- Seria o inverso, minha querida. O Graham pensa que estais decidida a enfeitiçar-me.
- Mas que grande disparate. É impossível que ele... - Meg interrompeu-se, apercebendo-se de que Graham podia e, muito provavelmente, acreditaria nisso. Isso explicaria
a tensão que pressentira nele, a reprovação muda de que ela era alvo, apesar de ele o negar. Se ele fosse realmente Robert Brody, teria ampla justificação para desconfiar
de qualquer mulher que suspeitasse estar envolvida nas artes negras, como a bruxa que arrastara a irmã para a sua morte. O mais certo seria ele desprezar tanto Meg
quanto desprezava o rei Jaime. Mas, por outro lado, o que é que levara Sir Patrick a procurá-la e a levá-la para Londres a fim de curar o rei da maldição que pesava
sobre ele?
Meg tinha inúmeras perguntas em relação a Sir Patrick e estava certa de que Blackwood poderia responder a muitas delas, mas agora não era a melhor altura para isso.
Afagou-lhe a fronte.
- Não tendes mais ninguém que devesse ser informado de como estais gravemente doente? Nenhum membro da vossa família? - A pergunta de Meg pareceu ter feito com que
ele ficasse pensativo. Mas acabou por abanar a cabeça.
- Não, já é tarde de mais para ternas reuniões de família. Se estou a morrer, só existe uma coisa que podeis fazer por mim, Margaret.
- Tudo o que quiserdes. Só tendes de dizer o que quereis.
- Beijai-me.
- Deus nos valha, Blackwood, até mesmo num momento destes, não sois capaz de vos deixardes de brincadeiras?
- Estou a falar muito a sério. Caramba! Seríeis capaz de negar a um moribundo a sua última vontade? - Blackwood pegou na mão dela e puxou-a para que se sentasse
na beira da cama ao seu lado, tentando sorrir,
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mas a sua voz estava prenhe de resignação. Acreditava que estava às portas da morte, mas não se sentia particularmente mortificado por isso. Era uma atitude que
entristecia e irritava Meg.
Movida por um impulso, baixou-se e comprimiu os lábios contra os dele, com mais vigor do que fora sua intenção. Apercebeu-se da surpresa dele, que passou a mão por
baixo dos cabelos de Meg, envolvendo-lhe a nuca.
Blackwood retribuiu-lhe o beijo com uma energia e avidez de que não deveria ser capaz dado o seu estado de saúde. Sem a largar, beijou-a com o desespero de um homem
que estivesse a afogar-se e a quem alguém tivesse atirado uma corda.
Ou quem sabe se o desespero não seria da parte de Meg. Os seus lábios entreabriram-se ao sentir o ardor e a paixão que nunca em toda a sua vida vira noutro homem.
Beijou-o avidamente até a curandeira que residia dentro de si mostrar determinação, recordando-lhe que o ardor que sentia nos lábios dele não se devia inteiramente
ao desejo. Recuou e pediu-lhe desculpa quase sem fôlego.
- Eu... eu lamento. Eu devia ter... - Voltou a pousar a mão na testa dele. - A febre aumentou. Estais a arder.
- Sem dúvida que estou - retorquiu ele com um riso trémulo. O olhar dele fixou-se no dela com uma expressão tão intensa e profunda como o beijo entre ambos. - Está-me
a parecer que o Graham tinha razão. Haveis-me enfeitiçado. Quase fazeis com que eu queira...
- O quê?
- Viver - respondeu Blackwood, engolindo com força.
- Sendo assim, é o que tendes de fazer. Não tenho o hábito de perder pessoas a que dedico o meu desvelo com tanta facilidade.
- Quereis dizer as pessoas de que cuidais.
- Sim, claro, foi o que quis dizer - confirmou Meg, embora ela própria não tivesse assim tanta certeza disso. Confusa com as suas próprias emoções, levantou-se rapidamente
da beira da cama e assomou à janela.
Mas o que seria feito de tom e da lenha? O que é que estava a demorar tanto o diabo do rapaz? Olhou para Blackwood, que tinha fechado os olhos. Apesar de se ter
armado em forte e mostrar uma indiferença que era fingida, ela viu a maneira como ele rangia os dentes ao sentir os espasmos de dor. As dores agravar-se-iam com
a progressão do veneno, até
que todos os músculos do corpo dele lhe dessem a sensação de estarem a ser rasgados por ganchos, dilacerando-lhe os tendões e desapegando-os dos ossos.
Quando Meg ouviu os passos de tom que subia as escadas, correu ao encontro dele a meio dos degraus, ajudando o rapaz a levar a lenha para a lareira. Enquanto preparavam
o lume para o acenderem, Blackwood olhava para eles com uma expressão carrancuda. Mas para além de resmungar sobre "o raio de um desperdício de madeira", não protestou
mais.
Quando os toros já ardiam na lareira, começou a trabalhar como se ela própria estivesse febril, triturando ervas medicinais e medindo-as antes de as deitar no pequeno
caldeirão. O veneno tinha começado a correr nas veias de Blackwood naquela manhã e Meg sentia-se como uma caçadora que cavalgava para apanhar a presa, sempre consciente
de que não havia nada mais perigoso do que uma besta acossada.
Mexeu o conteúdo do caldeirão, desejando dispor do tempo necessário para que a infusão macerasse mais demoradamente, quando olhou para Blackwood. Queixando-se do
calor, ele atirou a coberta da cama para baixo, expondo os contornos do tronco nu, a pele a brilhar de suor. O tempo de que Meg dispunha estava a esgotar-se, sabendo
que teria de agir de uma maneira tão estranha e drástica que tom nunca seria capaz de compreender.
Só iria alarmar o rapaz, por isso decidiu mandá-lo comprar mais lenha. Assim que ele saiu. Meg abriu a sua maleta, de onde tirou um instrumento de que só se servia
muito raramente e que tinha todo o cuidado em manter escondido. Desdobrou o bocado de pelica macia onde tinha embrulhado o pequeno punhal de lâmina fina, cuja ponta
era tão aguçada como uma agulha. O cabo podia ser torcido de modo a permitir que o punhal pudesse ser enchido com o líquido que seria injetado por baixo da pele
Uma lâmina de bruxa. Era esse o nome que a mãe lhe dera e o instrumento tinha sido mais um dos meios para as seguidoras de Cassandra Lascelles envenenarem as suas
vítimas. Os cabos haviam sido adornados com uma rosa prateada, mas a que Meg criara para seu uso pessoal não tinha qualquer ornamento. Quando era criança, detestara
e temera as lâminas de bruxa, mas já na idade adulta apercebera-se de que um objeto concebido para o mal podia ser utilizado para o bem.
com todo o cuidado, encheu a parte oca da lâmina com o antídoto que preparara. Quando se abeirou da cama, viu que Blackwood mergulhara
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num sono inquieto. Desejou que ele se mantivesse adormecido. Tornaria muito mais fácil o que se preparava para fazer.
Mas Blackwood acordou assim que ela se inclinou para ele e lhe tocou no braço. Os olhos dele ficaram toldados pela confusão por breves momentos, mas depois abriram-se
muito quando viu o que ela tinha na mão.
- Mas o que diabo é isso?
- É... é... hum... algo que aprendi num texto muito antigo que tive oportunidade de ler. Foi-me difícil encontrar a palavra que traduzisse o que este instrumento
é, mas estou em crer que era chamado de seringa.
Blackwood afastou o braço, encostando-o ao peito num gesto protetor.
- Não me interessa como lhe chamam. O que é que faz?
- Bem... a lâmina é oca e está cheia de um remédio que preparei. Ao inserir a agulha no vosso braço, poderei administrar o antídoto, que começará a correr-vos pelas
veias mais depressa do que se o ingerísseis por via oral. - Quando ele franziu o cenho, Meg acrescentou: - Não é um procedimento mais intrusivo do que aquele a que
recorreis constantemente para sangrar os vossos pacientes e posso garantir-vos de que é muito mais eficaz.
- Sendo assim, o melhor que tendes a fazer é não estardes com mais perdas de tempo.
- Posso mostrar-vos com exatidão como é que se procede. Se olhardes atentamente para o cabo...
- Não estou interessado em explicações. Fazei o que tendes a fazer. - Blackwood voltou a deixar que o braço caísse em cima do leito, expondo o pulso. Meg pousou
a lâmina em cima da mesinha enquanto o preparava, desinfetando-lhe a pele escrupulosamente. Amarrou um pedaço de corda em volta da parte superior do braço e começou
a apalpar para procurar uma veia, tendo encontrado uma grossa e forte.
Blackwood observava tudo o que ela fazia com distanciamento, o género de atitude que Meg costumava adotar quando tratava alguém. Mas, para sua consternação, constatou
que os seus dedos tremiam.
Meg tinha utilizado a lâmina de bruxa em ocasiões anteriores para ministrar outras poções destinadas a salvar outras vidas, mas nunca antes tentara neutralizar o
veneno da mãe. Cassandra Lascelles jamais lhe teria permitido fazer isso, se bem que Meg sempre acreditara que seria capaz de preparar um antídoto contra o veneno
da mãe se tivesse oportunidade para isso.
207
Finalmente, o seu momento chegara e sentia-se aterrorizada. Podia estar prestes a salvar a vida de Blackwood ou poderia estar à beira de o matar.
Sentiu-se paralisada até Blackwood a ter sobressaltado ao pegar-lhe na mão, levando-a aos lábios.
- Confio em vós, Margaret, mas se a poção não produzir o efeito desejado...
- Vai resultar! - gritou Meg. - Tem de surtir efeito.
- Nesse caso, não há razão para se perder mais tempo, amor, porque os meus dedos estão a ficar dormentes.
Meg respirou fundo. Acalmando-se, estendeu a mão para a lâmina. Voltou a encontrar a veia dele e posicionou a agulha por cima.
- Isto vai doer. Tereis a sensação de que estou a introduzir fogo nas vossas veias.
- Já fazeis isso ao tocar... - Blackwood arquejou quando ela introduziu a ponta da lâmina no seu corpo e calcou o cabo. - Pelas chagas de Cristo! - Blackwood arqueou-se
tão subitamente que Meg o cortou mais profundamente do que havia sido sua intenção. Apressou-se a remover a lâmina e a ligar-lhe o braço, tarefa que era dificultada
por ele estar a debater-se.
Melhor ou pior, Meg conseguiu fixar a ligadura, desatando a corda que estava amarrada à parte superior do braço dele. O rosto de Blackwood tinha ficado de um vermelho-escuro
e os lábios haviam-se cerrado num
esforço para reprimir um chorrilho de obscenidades.
Meg agarrou-lhe o rosto entre as mãos, aterrorizada ao pensar que ele poderia estar prestes a ter uma sezão.
- Blackwood! Armagil, por favor, dizei-me o que estais a sentir.
- Como um castelo em ruínas que está a ser atacado por um exército de camponeses de archotes em punho - disse ele num gemido. - E acho que os camponeses estão a
vencer.
- Eles que vençam. Deixai que eles queimem o veneno, eliminando-o. - Para vós é fácil recomendar isso. Não sois vós quem está a ser saqueado e pilhado. - Agarrou-se
aos pulsos dela com todo o corpo rígido. Meg observava-o, sentindo-se mais impotente do que nunca em toda a sua vida. Os minutos passavam com uma lentidão agonizante.
Blackwood tinha dificuldade em respirar, mas, a pouco e pouco, Meg sentia que
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o corpo dele estava a relaxar, a força com que lhe agarrava os pulsos a abrandar.
- Estais a sentir-vos melhor? - perguntou-lhe Meg.
- Melhor do que quê? Do que ter um ferro em brasa enfiado pelo traseiro acima?
Meg sentiu-se aliviada quando ele conseguiu soltar uma pequena gargalhada.
- Sim, parece que a coisa está a melhorar um tudo-nada - respondeu Blackwood, largando-lhe os pulsos. A coloração vermelha desapareceu-lhe das bochechas, dando lugar
a uma expressão de exaustão.
- E agora, o que é que acontece? - perguntou ele.
- Agora vem a parte mais difícil - respondeu Meg, massajando os pulsos doridos. - Agora esperamos.
A tarde deu lugar ao cair da noite, a escuridão noturna a instalar-se na alcova de Blackwood. Meg tratou de acender todas as velas que conseguiu encontrar, tendo
o cuidado de manter o candelabro afastado do leito para não perturbar o repouso de Blackwood.
Mas ele dormia tão profundamente que seria necessário mais do que as chamas suaves de umas quantas velas para o despertar. Meg disse a si própria que devia sentir-se
aliviada. Tinha receado que ele ficasse mais desassossegado, mais avassalado pelas dores e até mesmo a delirar e febril.
Sabia até que ponto é que o veneno da mãe era virulento. Mesmo depois de lhe ter injetado o antídoto diretamente na corrente sanguínea, Meg nunca esperara que produzisse
resultados tão rapidamente, que Blackwood conseguisse ficar deitado tão quieto, que pudesse dormir como...
Como os mortos.
Aquele pensamento fez com que ficasse gelada, banindo-o da sua mente. Acercou-se da beira da cama e pegou-lhe na mão para lhe tomar o pulso pelo que devia ser a
centésima vez. Blackwood nem sequer se mexeu quando ela lhe tocou, a mão pesada e inerte na dela.
Mas a pele estava fresca e a pulsação era bastante regular, embora Meg desejasse que fosse um pouco mais forte. Atrás dela, tom punha mais lenha na lareira. Havia
tanto tempo que o rapaz se mantinha em silêncio que Meg quase se tinha esquecido de que ele continuava presente. Serviu-se do atiçador para espevitar as brasas até
as chamas começarem a envol-
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ver os toros que tinha acrescentado. Endireitou-se e limpou as mãos à parte de trás dos calções apertados abaixo dos joelhos.
- vou ter de ir andando, menina Margaret Wolfe - disse num sussurro audível. - Já estou atrasado para cear com a minha mãe, que não gosta que eu fique fora de casa
depois de escurecer.
- Muito sensato da parte da tua mãe.
O rapaz arrastava os pés, mantendo os olhos presos no chão. Havia pouco, tinha importunado Meg com tantas perguntas sobre o estado de saúde de Blackwood que ela
já não conseguia ouvi-lo, tendo-o silenciado com uma suave repreensão. Mas agora apercebia-se de que tom estava a morrer por lhe perguntar, embora receasse a reação
dela.
- O teu amo está a melhorar - disse-lhe, afastando-se do leito -, espero que amanhã de manhã, quando acordar, já esteja muito melhor.
"Se ele acordar." Meg desviou o olhar rapidamente, não fosse o rapaz ver o medo nos seus olhos.
- Obrigado, senhora - retorquiu tom, soltando um suspiro de alívio. - Existirão muitas mais pessoas, além de mim, que ficarão muito contentes ao saberem que ele
está melhor. Sei que o meu amo não haveria de querer que eu dissesse a ninguém que estava muito doente, mas foi mais forte do que eu. Estava tão ralado e há muitas
pessoas das proximidades que gostam muito do doutor. Mandaram algumas coisas para o ajudar a recuperar. - O jovem apontou para uma cesta que tinha pousado em cima
da arca de carvalho onde a roupa era guardada.
Meg tinha estado tão concentrada a tratar Blackwood que nem sequer reparara na cesta que agora foi inspecionar. Continha ofertas simples: um pão escuro, algumas
maçãs, um naco de queijo e um boião de mel.
- Pensei... isto é, fui levada a acreditar que o único amigo do doutor Blackwood era Sir Patrick Graham.
- Bem... aqueles a que me refiro não são tão nobres nem respeitáveis. A maior parte são pessoas da rua, os vendedores ambulantes, os funileiros e as rameiras que
vendem os seus favores no... - tom calou-se, mostrando acanhamento. - Não que eu saiba alguma coisa a respeito dessas mulheres.
- Não, claro que não sabes - retorquiu Meg para o sossegar, ansiosa por o manter a falar, a fim de se inteirar de mais coisas sobre Armagil Blackwood. - Portanto,
esses funileiros e... e essas rameiras são amigos do doutor Blackwood?
210
- Nem por isso, são mais pessoas que ele já tratou, cosendo golpes, ajeitando ossos partidos, e até ajudou um ou dois bebés a nascer, coisas que a maior parte dos
físicos desdenharia tratar. Muitas das pessoas pobres, seja como for, nunca teriam dinheiro para pagar a um médico, especialmente um que se tenha licenciado em Oxford.
O meu amo vai tratar as pessoas em lugares a que a maior parte dos físicos teria medo de ir ou por serem demasiado soberbos, as casas mais pobres e as tabernas da
cidade, por isso as pessoas estão-lhe muito agradecidas.
- Imagino que sim e ele não deve receber muito mais do que isto como pagamento pelos seus serviços.
- Mesmo que lhe pagassem, isso não serviria de grande coisa ao bom doutor. Ele é capaz de esvaziar a bolsa para dar esmola a qualquer pedinte que lhe estenda a mão.
A minha mãe diz que não é muito prudente que um homem tenha um coração tão generoso. Eu disse isso ao doutor Blackwood e ele só se riu, dizendo: "Sabes o que é que
me aconteceria, tom, se eu tivesse muito dinheiro? Teria de correr com as raparigas determinadas a pôr fim à minha vida de solteiro e que haveriam de querer casar
comigo pela minha fortuna."
Meg sorriu. Aquilo parecia, sem tirar nem pôr, algo que Blackwood diria. Quase conseguia ouvi-lo. Aquele pensamento causou-lhe um curioso nó na garganta ao olhar
para o homem inconsciente na cama. Teve de fazer um esforço para reprimir a vontade de voltar a tomar-lhe a pulsação ou tentar despertá-lo. com certeza que estaria
mergulhado num sono reparador. Haveria de acordar pela manhã. Meg precisava de acreditar nisso. Voltou a concentrar-se no rapaz.
- O doutor Blackwood parece depositar muita confiança em ti, tom.
- Oh, sim, em especial quando ele... - O rapaz calou-se muito corado.
- Quando bebe de mais - adiantou Meg, acabando a frase por ele. O jovem ficou com uma expressão abespinhada, endireitando os ombros.
- A maior parte dos homens gosta de beber a sua cerveja, desfruta das suas senhoras e... e o meu amo nunca se comporta com maldade como alguns homens quando se embebedam.
A maior parte das vezes, ele só bebe um copito a mais quando perde um dos seus doentes. - E depois o rapaz acrescentou num tom de voz tão baixo que Meg teve de se
inclinar para ele para conseguir ouvi-lo: - O meu amo ficou embriagado durante três dias depois de a minha irmã ter morrido.
- O doutor Blackwood tentou curar a tua irmã? E não conseguiu?
- Não foi por culpa dele. Foi por causa da maldita varíola. Todo o nosso prédio foi posto de quarentena. Nenhum outro médico ou apotecário, e nem sequer uma curandeira,
teria ido lá para nos tratar. - Os olhos de tom espelhavam cólera quando a fitou com uma expressão de desafio. - Mas o doutor Blackwood foi a minha casa, tendo conseguido
salvar-me e à minha mãe. Mas não conseguiu tratar o meu avô e a Bess.
Meg examinou o rapaz, apercebendo-se de algumas marcas que a varíola deixara no seu rosto. tom teria sido um dos mais afortunados, tendo conseguido sobreviver a
uma doença que era fatal ou deixava as suas vítimas horrivelmente desfiguradas. A varíola era uma doença virulenta e até mesmo com todos os conhecimentos que ela
adquirira através de textos antigos, tudo o que aprendera com Ariane Deauville, Meg tinha perdido mais de uma pessoa devido a essa doença tão devastadora.
- Lamento muito a tua perda, tom.
A ira do rapaz desapareceu, os olhos a encherem-se de lágrimas. Mas quando Meg tentou pegar-lhe na mão, ele retraiu-se e afastou-se dela.
- Não há motivo para lamentardes. O meu avô e a minha irmã estão no céu com o meu pai. É o que a minha mãe diz e ela sabe dessas coisas. Tentou dizer isso ao doutor
Blackwood quando ele reagiu com um grande azedume, culpando-se a si próprio, em especial por a Bessie ter morrido. El... ela tinha apenas doze anos.
"Mas a minha mãe disse que, quando o Senhor nos chama para a Sua beira, temos de responder e que tinha chegado a hora da Bessie. Tudo o que nos restava fazer era
acender um círio e rezar pela alma dela. Mas o doutor Blackwood... - tom interrompeu-se, abanando a cabeça com uma expressão de tristeza. - Ele não tem fé nenhuma
em Deus, até disse: "Não tenciono rezar a nenhuma divindade que permite que uma menina tão inocente morra, enquanto permite que um homem desprezível como eu continue
a respirar." Portanto, a minha mãe e eu rezamos pela Bessie todos os domingos, mas também rezamos pelo doutor Blackwood.
tom fungou ruidosamente e limpou os olhos à manga. Meg sentia a dor do rapaz e lamentava Blackwood ainda mais. Sabia como era uma pessoa esforçar-se tanto para salvar
alguém, sem poder fazer nada quando essa vida nos fugia das mãos. Nunca pensara em afogar essa sensação de fracasso em bebidas alcoólicas fortes, mas tinham existido
ocasiões em que desejara poder fazer isso.
212
Meg olhou para Blackwood, reprimindo um impulso quase irresistível que a levava a querer acercar-se dele para o confortar. Um consolo a que ele não daria importância
ou que não hesitaria em rejeitar, ainda que pudesse senti-lo.
tom devia ter interpretado erroneamente a expressão no olhar dela porque lhe disse com rispidez:
- Não devíeis olhar para o meu amo dessa maneira. Ele fez tudo o que podia para salvar a minha irmã. Ele é um bom médico, mesmo que não seja essa a vossa opinião.
- Eu nunca disse...
- Dissestes, sim. Ele disse-me que o considerais um charlatão.
- Ele disse-te isso? Nunca pensei que a minha opinião tivesse alguma importância para ele.
- Mas acontece que tem, apesar de ele detestar que seja assim. Mas ele disse que nunca conheceu outra mulher como vós e ele... - tom calou-se, lançando um olhar
de quem cometia uma inconfidência na direção de Blackwood. - Deus me valha, ele não haveria de querer que eu vos dissesse isto. O meu amo costuma dizer que eu sou
mais linguareiro do que uma peixeira. Anda sempre a ameaçar-me de que me coserá os lábios. Está-me a parecer que é desta vez que fará isso.
- Não, prometo-te que não lhe direi nada do que me disseste.
- Agradeço - disse tom, dando-lhe as boas-noites abruptamente e virando-se para se ir embora.
Meg hesitou por breves momentos antes de correr atrás dele, que já havia saído do quarto e estava a meio do primeiro lanço de escadas quando ela o chamou.
- tom!
O rapaz imobilizou-se a meio de um passo, olhando para ela. ?- Sim, senhora?
?- Não me parece que, em todas as confidências que ele te fez, o doutor Blackwood nunca tenha falado da sua família?
tom cerrou os lábios e não foi difícil a Meg inteirar-se do que ele estava a pensar, ou seja, que já tinha revelado segredos a mais acerca do seu amo.
- Por favor, tom. Estou esperançada em que o teu amo seja capaz de se restabelecer, mas dado que está tão gravemente doente, parece-me que seria melhor se alguém
da sua família fosse informado do estado de saúde dele.
- Talvez sim, senhora. Mas o doutor nunca fala da sua família, até mesmo depois de ter bebido muito.
- Oh... - Meg meneou a cabeça num gesto de frustração. Deu as boas-noites a tom e começou a fechar a porta quando o rapaz começou a subir as escadas apressadamente.
Pareceu estar a debater-se com a sua consciência por uns momentos antes de dizer abruptamente:
- Desde sempre que se diz que o doutor Blackwood é. filho do velho Armagil Black.
- Armagil Black?
- O que faz sentido, não vos parece, dado que os nomes são tão parecidos? Quantos homens é que conheceis que tenham sido batizados com o nome Armagil?
- Só um.
- Ouvi dizer que são dois e diz-se que são muito parecidos no que diz respeito à teimosia. Segundo todos os mexericos que circulam por aí, o doutor Blackwood e o
pai tiveram uma discussão tremenda e por isso não se falam há já muitos anos, ao ponto de o doutor ter alterado o seu apelido.
- Mas decerto que o senhor Black, se soubesse como o filho está gravemente doente, poderia esquecer essa querela. Se pudesses informá-lo do que se passa amanhã de
manhã, com certeza que ele viria vê-lo.
- Duvido muito, senhora. Amanhã é dia de enforcamento em Tyburn. O padre Gregoire, um padre jesuíta, vai ser arrastado pelas ruas e esquartejado.
- Que espécie de homem é esse senhor Black? - perguntou Meg chocada. - O filho está às portas da morte e ele não estaria disposto a abdicar do prazer de ver um homem
a ser eviscerado?
- Não estais a perceber. Não haveria enforcamento nem esquartejamento se ele viesse vê-lo - retorquiu tom, soltando um longo suspiro.
- O velho Gilly Black é o carrasco, senhora.
A noite caiu sobre a Ponte de Londres e as únicas luzes que se viam eram as das lanternas acesas à entrada das casas.
- Vinte e uma horas, vejam se fecharam as portas à chave e atenção à iluminação - ecoou a voz do guarda-noturno. Algures à distância, ouviu-se um cão a uivar, mas,
tirando isso, o silêncio reinava na extensa ponte.
Meg fechou as portadas, mais preocupada com o frio que poderia entrar através das janelas do que com o barulho que pudesse vir de fora.
Era a única coisa que lhe ocorria fazer para que Blackwood ficasse mais confortável, o qual, finalmente, tinha despertado do sono profundo em que estivera mergulhado.
Meg pusera mais lenha no lume da lareira para que o quarto ficasse bem aquecido, tendo-o tapado com tantos cobertores quantos encontrara, mas ele continuava a tremer
descontroladamente.
Meg voltou a aproximar-se da beira da cama, tentando entalar os cobertores entre o colchão e o corpo de Blackwood.
- F... frio. Tenho tanto frio - disse ele.
- Eu sei que sim. Achais-vos com força para vos levantardes da cama? Talvez eu pudesse improvisar um leito para que pudésseis deitar-vos mais perto da lareira.
- Não!
- Eu devia ter mandado o tom comprar mais lenha antes de se ter ido embora. Talvez eu tenha de sair para comprar...
- Não - atalhou Blackwood numa voz roufenha. Virou-se de lado para poder olhar para ela. - N... não me deixeis sozinho. Deitai-vos na cama para me a... aquecerdes.
- As pálpebras pesavam-lhe e tinha os olhos baços, mas conseguiu esboçar o assomo de um sorriso. - Não estou a t... tentar seduzir-vos. Só não quero ficar sozinho
quando...
- Não ides morrer! - atalhou Meg veementemente, mas apressou-se a fazer o que ele lhe pedia, descalçando os sapatos e tirando as meias e o vestido, assim como as
saias de baixo, com dedos que pareciam estar entorpecidos e desajeitados.
Despiu-se toda, ficando apenas com a camisa de baixo, após o que se deitou, tapando-se com os cobertores e tomando-o nos seus braços. Todo ele tremia e tinha o corpo
gelado. Meg chegou-se a ele o mais possível e, naquele momento, desejou ser uma mulher mais corpulenta, com umas linhas do corpo mais curvilíneas e generosas, como
as de Seraphine.
Meg achava-se demasiado magra, demasiado franzina, para poder proporcionar-lhe o calor de que ele necessitava. Quase se sentiu esmagada no abraço de Blackwood, que
tremia tanto que fazia com que ambos tremessem que nem varas verdes. Enquanto ela lhe esfregava as costas vigorosamente, Blackwood tentava falar.
- M... Meg. Tenho de vos dizer u... uma coisa...
- Não, poupai as vossas forças. Seja o que for que quereis dizer-me, pode esperar até amanhã de manhã.
- N... não me p... parece. - Mas os dentes batiam-lhe com tanta força que lhe era impossível continuar a falar.
Meg abraçou-o com mais força, numa tentativa para lhe insuflar o calor e a força do seu próprio corpo. Continuou a chegá-lo a si até começar a sentir dores nos braços,
até ter ficado exaurida ao ponto de estar prestes a chorar de exaustão.
Os arrepios que o percorriam finalmente cessaram, permitindo que Meg suspirasse de alívio. Sentiu que a tensão do corpo dele o abandonava, os braços a ficarem inertes
e largando-a.
- Blackwood? - Meg soergueu-se para poder vê-lo melhor.
A cabeça dele caiu desamparada na almofada, os olhos fechados e com o rosto de uma extrema palidez.
- Armagil! - Meg levou a mão ao pescoço dele para sentir a pulsação, mas os dedos tremiam-lhe tanto que não conseguiu sentir o batimento do coração. Encostou o ouvido
ao peito nu, tentando ouvir as pulsações cardíacas. O coração batia, mas muito fracamente, e a respiração era cava e acelerada.
Meg ficou com a garganta embargada por um soluço de pranto que se esforçou por suprimir. Começou a chorar lágrimas ardentes e 216
copiosas que caíam no peito dele, pensando que não fariam bem nenhum ao homem. Tinha de pensar no que fazer a seguir, mas não lhe ocorria nada ao pensamento. A sua
única esperança de o salvar residira no antídoto que neutralizaria os efeitos do veneno.
Meg levou a mão ao queixo de Blackwood, acariciando-o e sentindo a aspereza da barba na palma da mão. Conhecia-o havia muito pouco tempo e durante grande parte desse
tempo acreditara desdenhá-lo. Mas agora não conseguia suportar a ideia de vir a perdê-lo.
Examinou a fisionomia dele à luz da chama tremeluzente da vela. Já o vira embriagado, encolerizado, trocista, arreliador ou lascivo. Nunca lhe parecera tão vulnerável
e tão gentil para um homem que era filho de um carrasco.
Poderia o doutor Blackwood ter optado por uma atividade profissional mais oposta à de Gilly Black? Teria sido isso que dera origem à acesa discussão entre os dois
homens? Meg sabia que a sinistra profissão de carrasco era, sob um aspeto, como muitas outras. Esperava-se que a atividade do pai fosse transmitida ao filho. A que
horrores é que Blackwood teria assistido ao longo da sua juventude para ter decidido desafiar o pai, era coisa que não conseguia imaginar.
Meg respeitava-o por essa atitude de desafio por saber bem de mais o que isso lhe teria custado. O maior desejo de qualquer criança era poder respeitar os pais,
obter o seu amor e aprovação. Mas quando se compreendia que um pai ou uma mãe procedia mal, chegando ao ponto de ser um monstro, a dor e os sentimentos de culpa
eram incomensuráveis.
- Lamento muito - murmurou Meg. - Lamento não ter sido capaz de compreender, peço desculpa se vos magoei quando vos acusei de serdes um mau físico, mas é verdade
que não sois um homem fácil de compreender. Só muito raramente é que falais a sério e comportais-vos como se tudo vos seja indiferente.
Mas acontecia que Meg tinha constatado que isso não era verdade pela maneira como ele tentara expor as mentiras de Bridget Tillet a respeito da mère Poulet, como
ele se esforçara ao máximo para assegurar a segurança da idosa. Mas, muito mais do que isso, Blackwood havia sido o único que se dera ao trabalho de descobrir o
nome verdadeiro de Hortense, tendo-a tratado como se ela fosse uma mulher relevante e não apenas uma velha jarreta que não regulava bem da cabeça.
Levando tudo aquilo em consideração, Meg não devia ter ficado surpreendida com as revelações de tom, sobre como Blackwood se aventurara a ir à área mais empobrecida
da cidade, não hesitando em tratar os casos mais desesperados até mesmo com risco para a sua própria vida.
Era possível que Meg deplorasse alguns dos métodos dele, os sangramentos e o uso de piolhos, mas não podia censurá-lo por isso. Fora ensinado com base em práticas
ignorantes que eram perfilhadas pela maior parte dos médicos. Blackwood não beneficiara dos ensinamentos de Ariane Deauville.
Todos os homens que quisessem vir a ser bons físicos podiam ter aprendido muito junto da antiga Senhora da Ilha Encantada. Mas os físicos que Meg encontrara ao longo
da sua vida teriam sido demasiado arrogantes para recorrerem aos conhecimentos de Ariane, os quais vinham da Antiguidade, considerando que não era mais do que uma
simples mulher astuciosa.
Meg até ouvira falar de alguns médicos que nem sequer examinavam os seus doentes, limitando-se a ler os sintomas descritos numa carta, após o que prescreviam o tratamento
igualmente por carta. Preparar infusões à base de ervas medicinais e tratar ossos fraturados eram coisas que estavam abaixo da sua categoria. A prescrição de poções
era do domínio dos apotecários, enquanto emendar ossos e coser golpes eram tarefas que cabiam aos barbeiros. Além disso, nenhum físico bem reputado desperdiçaria
o seu curso universitário no estrato mais baixo da sociedade.
O facto de Blackwood ter tentado aplicar os seus conhecimentos clínicos para tratar os mais pobres fazia dele um médico notável, até mesmo quando falhava. Quanto
a não se preocupar com essas pessoas, preocupava-se ao ponto de ficar perdido de bêbado sempre que não conseguia salvar a vida de um dos seus doentes.
Tinha-se inteirado de muitas coisas acerca de Armagil Blackwood esta noite, mas ainda havia muito mais que precisava de saber. Meg afagou-lhe a fronte.
- Quem me dera que pudéssemos começar tudo de novo. Quero conhecer-vos melhor, mas, para que isso possa acontecer, tendes de lutar contra o veneno e ficar comigo,
Armagil, estais a ouvir-me?
Meg chegou os lábios aos dele.
- Por favor, ficai.
218
- Meia-noite e está tudo calmo. - A voz do guarda-noturno ecoava no silêncio da noite enquanto fazia a sua ronda através das imediações de Westminster.
Meia-noite. A hora das bruxas. Sir Patrick tentou não pensar naquilo enquanto evitava ser visto pelo guarda-noturno. Mas enquanto se afastava furtivamente dos degraus
de acesso ao ancoradouro do rio, sentia os pelos da nuca em pé. Teve de resistir à muita vontade de continuar a olhar por cima do ombro.
Desde que tivera a infeliz ideia de se envolver com aquelas execráveis mulheres de apelido Rivers e no seu louco conluio para atormentarem o rei, Graham vivia no
medo constante de ser seguido por aquelas bruxas. Ainda se lembrava bem de mais do choque que sentira quando elas o abordaram pela primeira vez. Tinha sido num princípio
de noite de muito nevoeiro, quando se apressava em direção a casa depois de uma das suas reuniões secretas. As duas mulheres tinham-lhe surgido ao caminho como se
fossem espectros conjurados do caldeirão de uma bruxa.
Como se sentira horrorizado ao descobrir que elas estavam ao corrente de tudo a seu respeito, bem como da conspiração com vista a assassinar o rei. Um dos servos
de Thomas Percy tinha ido para a cama com Beatrice Rivers. Depois de já ter bebido muito, o lacaio revelara-lhe de mais.
"Não há razão para receios, Sir Patrick", dissera-lhe Amy Rivers numa voz ronronante. "A minha irmã e eu jamais atraiçoaríamos os vossos segredos. Também temos os
nossos motivos para odiarmos o rei Jaime, pelo que queremos ajudar-vos a destruí-lo."
Inicialmente, ambas tinham fingido ser de uma família arruinada que fora vítima de perseguições por terem perfilhado a religião católica, o que havia forçado Amélia
e Beatrice a enveredarem por uma existência de degradação para conseguirem sobreviver. Mas não foi preciso muito tempo para que as duas mulheres revelassem a sua
verdadeira natureza.
Graham não soubera qual era a que considerava mais perversa, Beatrice com os seus olhos trocistas e sorriso cruel ou Amélia com a sua voz delicodoce e esforços ridículos
para se mostrar muito feminina e recatada.
Mas recordou a si próprio que não tardaria a ver-se livre delas para sempre. Tudo estaria acabado dentro de menos de duas semanas, tudo...
Estugou o passo, caminhando através da área a que quem vivia ali se referia como o Cotton Garden. O Palácio de Westminster agigantava-se diante de si, as paredes
antigas a que a luz do luar emprestava suavidade e com as sombras a ocultarem o efeito destruidor da passagem dos anos na pedra de arenito vermelho. Havia muito
tempo que Westminster não era uma residência real, não desde os tempos de Eduardo, o Confessor. A maior parte da estrutura inicial fora destruída pelo fogo. O que
restava tinha-se transformado numa curiosa confusão de câmaras parlamentares e salas de tribunal contíguas a aposentos particulares, botequins especializados em
vinho, tabernas e bordéis.
Patrick inclinou a cabeça para trás para poder ver o piso superior da ala esquerda do palácio. Conhecido como a Câmara da Rainha, era onde Jaime Stuart se dirigiria
à Câmara dos Lordes dentro de dez dias. Tentou imaginá-la como uma carcaça enegrecida, cheia de escombros e vigas caídas. Tentou imaginar isso e não conseguiu. Essas
fantasias de destruição não se revestiam de realidade. Aquelas paredes com vários séculos pareciam demasiado resistentes, demasiado sobranceiras na sua serenidade
sob a Lua pálida daquele outubro.
Baixou o olhar e encaminhou-se para uma porta no piso térreo do palácio, diretamente por baixo da Câmara da Rainha. Bateu as vezes previamente combinadas e aguardou,
olhando nervosamente em torno de si.
A porta rangeu quando se abriu, apenas uma fresta. Foi com dificuldade que conseguiu distinguir a fisionomia do senhor Johnston; os olhos do homem brilhavam muito
vagamente acima do basto bigode e barba hirsuta. Quando reconheceu Patrick, abriu mais a porta, mas apenas o suficiente para lhe dar passagem, após o que se apressou
a fechá-la.
- Sir Patrick - resmungou Johnston à guisa de saudação.
- Johnston... - começou Graham a dizer, mas considerando o adiantado da hora e local, tal fingimento pareceu-lhe desnecessário. - Senhor Fawkes - corrigiu.
Fawkes trazia uma lanterna, mas o clarão era muito fraco para iluminar aquela ampla câmara cavernosa que se abria diante de Patrick. Estava cheia de pó e teias de
aranha que se viam nas vigas de madeira, parecendo que estava vazia, à exceção dos escombros de alvenaria amontoados no chão e de enormes pilhas de lenha.
Patrick já tinha ouvido falar na cave que havia sido arrendada quando os preparativos tiveram início. Mas nunca a vira com os seus próprios olhos. Não era nada o
pequeno buraco no subsolo que imaginara.
- Para que é que este espaço servia? - perguntou a Fawkes.
- Estou em crer que, em tempos, as cozinhas do antigo palácio se situavam aqui.
220
Mas não foi Fawkes quem lhe respondeu, mas sim outra voz que ecoou das paredes daquela câmara cavernosa. Patrick ficou surpreendido, olhando para a sua direita,
onde haviam surgido dois homens que saíam das sombras.
Um deles era Thomas Percy, com a sua farta cabeleira encanecida e rosto pálido, a par do seu próprio vestuário escuro, bem visíveis, tendo as paredes como pano de
fundo. Fez um breve acenar de cabeça a Patrick, mas o homem que tinha falado, Robert Catesby, avançou e apertou-lhe a mão com uma cordialidade e à-vontade como se
estivessem a cumprimentar-se numa das antecâmaras de Whitehall.
Catesby era um homem bem-parecido, alto e de constituição física atlética. Ele possuía uma faceta que Patrick invejava e tinha grande dificuldade em definir. Catesby
tinha uma espécie de radiância que fazia com que os outros homens se sentissem atraídos por ele. Era-lhe fácil conquistar a sua confiança.
Catesby fez um amplo gesto gracioso com que abarcou todo aquele aposento.
- Este espaço não é utilizado há vários anos, exceto quando é arrendado como armazém, o que o torna ideal para os nossos objetivos em virtude da sua localização,
diretamente abaixo da antiga Câmara da Rainha.
Patrick ergueu o olhar até às vigas de madeira do teto. Formavam uma barreira muito fraca entre aquele espaço e a câmara onde os membros do Parlamento se reuniriam.
Mas era a visibilidade daquela ampla divisão que o perturbava.
Catesby era, indiscutivelmente, o chefe do grupo, uma vez que arquitetava aquela conspiração havia dois anos. Como recém-chegado ao grupo, dado que só fora recrutado
no verão passado, Patrick continuava a sentir-se como um intruso. Nunca pusera em questão nenhum dos preparativos nem decisões de Catesby, mas agora era forçoso
que levantasse uma objeção.
- Eu tinha imaginado que fosse uma cave, um espaço pequeno e de cuja existência ninguém se lembrava. Não será perigoso utilizar este armazém tão espaçoso a que se
tem acesso tão facilmente? E se houver alguém que venha inspecionar este local e repare em tudo aquilo? - perguntou, apontando para uma enorme pilha de madeira.
- É pouco provável que isso aconteça. Ninguém costuma vir aqui respondeu Catesby.
- Podeis ver que a maior parte das pegadas deixadas na poeira do chão foi feita com as minhas botas - acrescentou Fawkes. - Mas se, por acaso, houver alguém mais
curioso que queira dar uma vista de olhos às antigas cozinhas, o que é que veria? Apenas a lenha que tenho vindo a acumular para usar durante os meses de inverno.
Os meus aposentos não se situam muito longe daqui.
- Haveria de parecer que é demasiada lenha para uma só pessoa comentou Patrick.
- Sou um homem extremamente friorento - retorquiu Fawkes com um pequeno sorriso.
Catesby aproximou-se da pilha de madeira. Estendeu a mão para um dos toros, soltando-o um pouco para o lado. Patrick abeirou-se dele para ver mais de perto, embora
mantivesse uma distância cautelosa, tal como Thomas Percy, um facto que não passou despercebido a Fawkes.
- Não há motivo para nervosismos, meus senhores. Não correreis perigo nenhum desde que o Catesby não proceda à sua investigação enquanto empunhar um archote.
Entretanto, Catesby soltou vários toros, expondo o fundo de uma grade de madeira.
- E então, quantas destas é que já temos?
- Trinta e seis - respondeu Fawkes.
Quando Catesby começou a soltar a parte de cima da grade, Fawkes protestou.
- Não há necessidade disso. Tenho-me mantido muito vigilante em relação à pólvora e tenho-a experimentado com frequência para me certificar de que não está a ficar
deteriorada.
- Deteriorada? - perguntou Patrick.
- Sim, quando a pólvora é mantida durante muito tempo, começa a desagregar-se nas suas várias partes de amónio e sulfato. Torna-se absolutamente inútil. Foi o que
aconteceu ao primeiro fornecimento que colocámos há mais de um ano. Substituí-la foi uma tarefa dispendiosa e arriscada. Razão por que não podemos dar-nos ao luxo
de outro atraso, por isso espero que tenhais cumprido a vossa parte do nosso plano, Sir Patrick.
Antes que o interpelado pudesse responder, Thomas Percy falou por ele.
- Ele cumpriu. Os temores do rei foram apaziguados por essa mulher ardilosa que Sir Patrick foi buscar a França. Ela conseguiu convencer
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o rei de que a maldição foi neutralizada, se bem que eu não consiga imaginar como. Todos sabemos como Jaime Stuart tem uma fraca opinião das mulheres e Margaret
Wolfe não me pareceu ter nada que a distinga das demais mulheres.
- Achais isso? - Desde o primeiro momento em que Patrick vira Meg, apercebera-se de algo de diferente nela, algo de visionária que o deixara desconcertado. Sentia-se
admiradíssimo por Percy não ter sido capaz de se aperceber disso.
Fawkes ficou a olhar para ele com uma expressão de curiosidade estampada no rosto.
- E então, como é que ela foi capaz de convencer o rei? Que espécie de magia é que empregou?
- Nenhuma - respondeu Patrick com algum mal-estar ao recordar-se da maneira como Meg tinha olhado fixamente para os olhos do monarca, como se não só tivesse a capacidade
de ler a mente de Jaime Stuart, como também pudesse influenciar os seus pensamentos. Patrick ter-se-ia sentido constrangido ao admitir aquilo perante um militar
endurecido como Fawkes, mas a verdade é que tinha começado a temer Meg, tão aterrorizado devido ao seu estranho poder que receava ir para a sua própria casa.
- Fiquei com a impressão de que ela se limitou a pegar nas mãos do rei, tendo rezado por ele.
- Ela rezou por ele? - perguntou Percy surpreendido. - É um comportamento bastante estranho numa bruxa.
- O modo como ela conseguiu fazer isso não importa para o caso atalhou Catesby. - O importante é que o rei não atrase a abertura do Parlamento uma vez mais.
Fawkes mostrava-se cético.
- Sim, a menos que aquelas bruxas decidam fazer mais alguma coisa para o atormentarem.
- O que elas não farão. Querem tanto que Jaime Stuart seja punido quanto nós, mas não lhe farão mais judiarias. Eu próprio me certificarei disso - adiantou Sir Patrick.
Catesby pareceu ter ficado satisfeito com o que ele disse. Retomou a tarefa de inspecionar as grades de madeira.
- Estais certo de que já acumulámos pólvora suficiente? - perguntou a Fawkes.
- Temos o suficiente para explodir a câmara acima de nós e todos os homens que se encontrarem presentes na altura.
- Todos os homens, mulheres e crianças - murmurou Sir Patrick.
- Nós todos sabíamos que a rainha Ana e o príncipe Henrique assistiriam à cerimónia de abertura do Parlamento juntamente com o rei. Isso passou a ser um problema
para vós, Sir Patrick? - perguntou-lhe Catesby.
- Não, mas é muito possível que o rei decida levar também o filho mais novo. O príncipe Carlos só tem quatro anos.
- Ele tem sido um rapazinho sempre adoentado. Tão enfraquecido que só este ano é que aprendeu a andar. Em qualquer dos casos, o mais certo seria vir a morrer dentro
de pouco tempo - retorquiu Fawkes.
- É isso que temos de dizer a nós próprios para justificarmos a chacina de um inocente?
- Esta é uma guerra sagrada, Sir Patrick, e em qualquer conflito existem sempre mortes de inocentes - ripostou Fawkes com uma expressão furiosa.
Patrick estava mais ciente daquilo do que qualquer outra pessoa, mas não conseguia banir do pensamento a imagem do pequeno Carlos a dar aqueles primeiros passos
cambaleantes, com Jaime Stuart ajoelhado e com os braços abertos até o garotinho caminhar até junto de si. E depois, com uma gargalhada triunfante, abraçou o filho,
erguendo-o ao alto, o semblante de Jaime Stuart radiante com uma alegria e um orgulho paternais.
Patrick fechou os olhos para dissipar essa recordação, obrigando-se a chamar à memória outra imagem de Jaime Stuart, o rei cobarde, à semelhança de qualquer outro
monarca, impiedoso e indiferente ao sofrimento que causava.
Patrick meteu a mão por dentro do gibão e os dedos fecharam-se no medalhão que continha o precioso anel de cabelo dela e, por breves momentos, a sua dor fez-se sentir
tão intensamente como se tivesse sido apenas ontem que...
- Sir Patrick...? - A voz de Fawkes despertou-o para o presente. Graham abriu os olhos e deparou com o soldado mercenário quase em cima de si. A perguntar-lhe num
tom autoritário: - Serei o único que se lembra que um homem bom e santo está sentenciado a ser executado hoje? Aos olhos de Deus, o padre Gregoire vale mais de mil
como esse fedelho enfermiço do Jaime Stuart. Não obstante, o nosso padre será 224
executado da maneira mais brutal possível, enforcado e esquartejado ainda em vida, com as entranhas evisceradas diante dos seus próprios olhos.
- Estou plenamente consciente disso, senhor Fawkes - ripostou Patrick, dando um passo atrás e fazendo o sinal da cruz. - Nenhum de nós se esqueceu e estou certo
de que todos rezaremos pelo padre Gregoire.
- Já deixámos para trás a fase das orações! - ripostou Fawkes com rispidez. - A menos que queiramos continuar a ver os nossos irmãos a serem chacinados, é imperioso
que ajamos e sem quaisquer escrúpulos que só têm lugar nas mulheres.
- Sim, mas e quanto aos nossos irmãos no Parlamento? - protestou Thomas Percy. - Estarão homens nessa câmara que são tão fiéis à verdadeira religião como nós, por
exemplo o jovem Lorde Monteagle, o Lorde Montrose e um parente meu, o conde de Northumberland. Se pudéssemos encontrar uma maneira qualquer de os advertir para que
se mantivessem afastados do Parlamento...
- Já discutimos esse assunto, Thomas - atalhou Catesby, um traço de impaciência a transparecer do seu tom de voz. - Deploro tanto a perda desses homens bons como
vós, mas qualquer tentativa de avisar qualquer deles só servirá para despertar suspeitas. Já são de mais os que estão inteirados dos nossos planos. Se alguém sussurrar
uma única palavra que seja aos ouvidos errados, arriscamo-nos a que os nossos planos fiquem comprometidos.
Patrick debatia-se com a sua própria consciência ao pensar naquele assunto, mas viu-se forçado a concordar com Catesby. Muitos homens bons perderiam a vida aquando
da explosão, mas o número dos que arriscavam a vida em prol daquela causa era igual. Patrick não tinha conhecimento do nome de todos os seus camaradas de conspiração,
mas também não queria saber, não fosse dar-se o caso de alguma coisa correr mal e vir a ser preso. Queria acreditar que era feito da mesma massa dos mártires, mas
também sabia de homens muito mais fortes que haviam sido vergados quando torturados na roda.
Patrick afagou o medalhão, apercebendo-se apenas vagamente de que os outros três homens tinham começado a falar sobre tudo o que era necessário fazer depois do assassínio
do rei, mas Patrick não tinha nada com que contribuir. Não era capaz de pensar sobre o que se passaria depois da explosão, como se a deflagração que seria o culminar
de todos os anos
que passara a planear empenhadamente queimasse a cólera e a dor, reduzindo-o igualmente a um amontoado de cinzas.
Ouviu a voz de Catesby que parecia chegar-lhe de muito longe quando lhes lembrou o local onde todos os conspiradores se encontrariam depois da explosão, com o objetivo
de incentivarem a rebelião da população e para se apoderarem do controlo do governo. Em seguida, Fawkes seguiria de barco para outros países da Europa, pedindo audiência
a todos os monarcas católicos para angariar o seu apoio ao convencê-los da justiça da causa por que eles se batiam.
"Justiça! No mínimo, sê honesto contigo próprio e admite que a tua participação na conspiração se deve a uma única coisa... vingança."
As palavras perturbadoras de Armagil ecoavam no pensamento de Patrick, mas a sua mão fechou-se com força no medalhão. Se a vingança residia no seu coração, pois
que assim fosse. Ele confessaria o seu pecado, cumpriria a sua penitência e confiaria no perdão de Deus.
Entretanto, Fawkes voltou a colocar os toros no seu lugar, ocultando cuidadosamente a grade de madeira que continha a pólvora, quando já se preparavam para se irem
embora. Thomas Percy foi o primeiro a sair, desaparecendo a coberto da noite. Patrick preparava-se para lhe seguir o exemplo quando foi detido pelo leve toque da
mão de Catesby no seu braço.
- Estais mais calado esta noite do que é habitual, Sir Patrick. Dar-se-á o caso de estardes a pensar duas vezes?
- Não, senhor. Asseguro-vos que não existe qualquer possibilidade de isso acontecer.
- E sabeis o que deveis fazer? - Patrick acenou que sim.
- Ir à caça com o rei, resguardando-o de qualquer outra situação alarmante, e certificar-me de que ele regressa ao palácio a tempo e horas.
- Estava a referir-me ao que vos cabe fazer depois de termos posto o nosso plano em prática. Decerto que estais ciente de que é preciso fazer alguma coisa a respeito
daquelas mulheres ímpias. É possível que elas desprezem tanto Jaime Stuart como nós, mas não podemos permitir que o sucesso da nossa sagrada causa seja manchado
por qualquer associação com a mesquinha vingança delas. Essas bruxas têm de ser... silenciadas, incluindo a que reside sob o vosso teto.
Margaret Wolfe, aquela a que Patrick dera a sua palavra de honra, dizendo-lhe que estaria em segurança se o acompanhasse até Inglaterra.
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Sentiu um baque de consciência, mas ele dera-lhe a sua palavra de honra quando pensava que Meg era uma boa mulher, a delicada curandeira que ela afirmara ser.
- Compreendo o que tem de ser feito - retorquiu Graham.
- A Amélia Rivers foi tola ao ponto de me confiar que ela e a irmã estão a planear celebrar um qualquer ritual demoníaco na noite anterior à explosão. Sei qual é
o local onde tencionam reunir-se com o resto das bruxas. Certificar-me-ei de que sejam todas capturadas. Nenhuma conseguirá escapar.
- Esplêndido - retorquiu Catesby sorrindo. - Conquanto seja um tudo-nada irónico. Quando o rei Jaime perecer no incêndio que se seguirá à deflagração, vai parecer
que a maldição da bruxa se concretizou. Já tínheis pensado nisso?
- Oh, sim - respondeu Patrick em voz baixa. - Tenho pensado muito nisso.
- Duas da madrugada e o tempo está ameno.
A voz do guarda-noturno dava a impressão de vir de muito longe enquanto Meg se esforçava por se manter acordada. As horas depois da meia-noite eram as mais solitárias,
as mais traiçoeiras, o período mais perigoso do dia.
Na qualidade de curandeira, Meg estava bem ciente dessa realidade, embora não fosse capaz de adiantar nenhuma razão lógica para isso, mas se alguém estivesse destinado
a morrer, era muito frequente que isso tivesse lugar na escuridão das horas que antecediam o romper do dia. Só lhe restava incentivar essas pessoas para resistirem
até ao nascer do Sol, altura em que as sombras da morte se dispersariam.
O estado de saúde de Blackwood não se alterara, mas Meg continuava deitada junto dele, com a cabeça encostada ao seu coração e um braço estendido por cima dele,
como se com a sua presença física e pura força de vontade pudesse evitar que a alma dele se afastasse furtivamente.
Tinha de o manter com vida até a luz do dia começar a raiar e depois tudo correria pelo melhor. Uma esperança irracional, mas era tudo a que se podia agarrar. Só
lhe restava manter-se vigilante e não se deixar adormecer.
Todavia, sentia-se tão exausta. As pálpebras pesavam-lhe, não obstante todos os seus esforços para se manter acordada. Os olhos fecharam-se, mas não para a mergulharem
numa escuridão repousante; ao invés disso, entrou num mundo de sonhos perturbadores.
Pesadelos em que via a mãe a enrolar Blackwood num lençol que depois cosia, Cassandra a troçar de Meg com as suas gargalhadas. Pesadelos em que o caixão de Blackwood
baixava à terra enquanto membros sem
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rosto de uma assembleia de bruxas rodopiavam em volta da sepultura num bailado de desvario enquanto atiravam mãos-cheias de terra para dentro da campa.
Pesadelos que uma vez mais a arrastavam de volta àquele largo onde homens de aspeto grosseiro empilhavam feixes de lenha em volta de uma rapariga aterrorizada, enquanto
outras pessoas continham um rapaz num estado frenético.
"Maidred!"
O pranto convulsivo do jovem como que dilacerava Meg. Queria acercar-se dele, mas a rapariga precisava mais de si do que ele. A pira já tinha sido acesa e as labaredas
elevavam-se envolvendo Maidred Brody, que gritava.
"Por amor de Deus, socorram-me!"
Mas, enquanto Meg avançava, Maidred abanava a cabeça.
"Não, já é tarde de mais para mim. Ajudai-o. Salvai o meu irmão. Ele tem de ser impedido de..."
Ela debatia-se por entre dores excruciantes enquanto as chamas a envolviam completamente.
"Salvai o Robbie. Prometei-me."
- Eu prometo. Eu prometo - murmurava Meg repetidamente até que foi acordada bruscamente pelo som da sua própria voz, sem Saber onde é que se encontrava, nem o que
se estava a passar.
com a recordação de acontecimentos recentes a desfilarem-lhe pelo pensamento, estendeu as mãos para Blackwood, mas constatou que o lugar na cama ao seu lado estava
vazio.
Endireitou-se de repente, sentindo o coração a bater fortemente de pânico. Afastou o cabelo do rosto, o seu olhar a percorrer o quarto. O lume extinguira-se na lareira,
tal como a chama das velas, mas a luminosidade acinzentada das primeiras horas da manhã entrava pelas portadas abertas.
A silhueta de Blackwood recortava-se contra a janela, enquanto olhava para fora ao mesmo tempo que comia avidamente um naco de pão. E estava completamente nu.
Meg respirou fundo, a sua respiração audível. Blackwood virou-se para trás, limpando um pouco de mel que lhe escorrera para o queixo.
- Acordei-vos? Tentei não fazer barulho, mas tinha tanta necessidade de urinar que pensei que a minha bexiga ia rebentar e depois percebi que estava esfaimado.
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Estava esfaimado? Meg soergueu-se sobre os cotovelos, olhando para ele sem querer acreditar no que ouvia. Ele estava esfaimado. Estava a comer pão barrado com mel.
Ele não... não estava morto.
O olhar de Meg foi da basta cabeleira toda despenteada de Blackwood até aos pelos mais grossos que lhe sombreavam o peito, após o que percorreu os quadris esguios
e pálidos, passando para as pernas bem musculadas e, em seguida, voltou para cima, sentindo-se mesmerizada ao ver a ereção dele.
Não lhe restava a mínima dúvida de que o homem não estava morto.
Meg sentia que devia ter desviado os olhos, mas era mais forte do que ela, não conseguia parar de olhar fixamente. Sentiu um aperto no peito de alívio tão intenso
que chegava a ser doloroso.
Blackwood meteu o último pedaço de pão na boca.
- Peço desculpa por isto - resmungou ele, fazendo um gesto na direção do pénis entumescido. - É uma coisa que costuma acontecer-me pela manhã. Não consigo controlar
a ereção.
Foi a careta sorridente dele que enfureceu Meg, transformando a sensação de alívio numa fúria levada ao rubro.
- Raios o partam!
Começou a procurar freneticamente qualquer coisa em volta de si que lhe pudesse atirar para que se cobrisse e encontrou apenas almofadas. Atirou-lhas, uma atrás
da outra. Blackwood esquivou-se facilmente, mas, pelo menos, o ataque dela tirou-lhe a careta sorridente da cara. Ele olhava-a com uma expressão de inocência ultrajada.
- Mas o que é que eu fiz agora? Pensei que ficaríeis satisfeita por me verdes recuperado.
- Satisfeita? - gritou Meg. - E porqué é que eu haveria de ficar satisfeita? Ao fim e ao cabo, só passei a última noite num verdadeiro inferno, a fazer todos os
esforços possíveis para vos manter com vida, a ter p... pesadelos em que vos via na sepultura. Mas agora estou a ver que estais bem e, em vez de me terdes despertado
para me dizerdes isso mesmo, 1... limitastes-vos a sair da cama para urinar e... e para quebrardes o jejum. E estais todo nu!
Armagil olhou em volta até encontrar a sua camisa. Vestiu-a atabalhoadamente, a falda a dar-lhe apenas pelas coxas. Meg ficou com a garganta embargada, tendo esgotado
a fúria que se apoderara de si, a qual deu lugar às lágrimas que começaram a correr-lhe livremente pelas faces.
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- Não, minha querida, não façais isso. - As molas de corda rangeram quando ele voltou para o colchão, colocando-se ao lado dela.
Meg apressou-se a afastar-se para o extremo oposto do leito, mas não havia maneira de lhe escapar. Blackwood puxou-a com suavidade, embora firmemente, para os seus
braços. Meg tentou resistir-lhe, mas não tinha força para isso nem a vontade de lhe resistir. Foi-se abaixo, chorando encostada ao peito dele.
- Ide... para o diabo q... que vos carregue, Armagil Blackwood.
- Sim, muito provavelmente é o que o destino me reserva, mas não por enquanto, graças a vós. E agora tratai de vos acalmardes. - Começou a embalá-la nos seus braços,
dando-lhe vários beijos no cimo da cabeça. - Peço desculpa por não ter pensado que devia ter tido o cuidado de vos acordar, mas parecestes-me tão exausta, e, além
disso, fiquei tão chocado ao dar comigo recuperado que precisei de alguns momentos para interiorizar o facto de não ter morrido.
Blackwood afastou-a um pouco de si para poder secar-lhe as lágrimas com as pontas dos dedos.
- Nunca pensei que pudesse vir a sentir tanto prazer em coisas tão simples como sentir o ar agreste da manhã na pele, saborear na língua a textura grosseira do pão,
a doçura do mel. Não estava à espera de continuar vivo esta manhã, Margaret. Tão-pouco que me interessasse tanto continuar vivo.
- Porque é que tendes o hábito de fazer isso... considerar a vossa vida como se fosse insignificante, algo que é facilmente descartável?
- Porque sou uma pessoa muito insignificante que nunca foi útil a ninguém.
- Estou em crer que existem muitas pessoas que discordariam do que estais a dizer. - Meg roçou os lábios pelos dele, sussurrando-lhe: - Especialmente eu.
Blackwood olhou intensa e demoradamente para os olhos dela, após o que a boca dele se apoderou da de Meg num beijo mais exigente. Os lábios dela entreabriram-se
sem que ele a forçasse, aceitando avidamente a língua dele, saboreando a boca que sabia a mel quente misturado com o subtil ardor do desejo.
Os lábios de Blackwood começaram a acariciar-lhe as faces, beijando a humidade deixada pelas lágrimas. Meg respondia-lhe na mesma moeda, beijando-lhe a fronte, as
pálpebras e as bochechas até os seus lábios voltarem a encontrar os dele.
Ela tocava-lhe, as suas mãos a percorrerem-lhe o peito, desfrutando da vitalidade que percorria o corpo de Armagil. Mas depois do muito frio, do terror e da escuridão
da noite anterior, isso não era suficiente. Meg precisava de sentir a calidez da pele dele, a aceleração da pulsação dele, o bater regular do coração dele. Os lábios
dela fecharam-se nos de Blackwood ao mesmo tempo que lhe puxava a camisa, tentando despir-lha.
Os dedos dele fecharam-se no pulso de Meg para a impedir de continuar. com a respiração arfante e meio a rir, disse-lhe:
- Pelas chagas de Cristo, mulher. Primeiro, queixastes-te da minha nudez e agora estás a tentar despir-me. Nunca estás satisfeita, mulher?
- Podia estar. Se me fizesses a vontade.
- Não, Margaret. Um herético e patife como eu que esteve tão perto da morte tem de refletir um pouco, pensar se quer mudar de vida ou não. A tua capacidade de raciocínio
foi afetada pela luta que tiveste de travar para salvares a minha miserável vida. Estás exausta e muito agitada e eu seria um vilão se me aproveitasse...
- Nesse caso, sê um vilão. Começa a mudar de vida, mas só amanhã. - Meg silenciou-o com outro beijo. Antes que Blackwood pudesse apresentar mais razões para pararem,
ela ergueu-se e despiu a camisa de baixo, arremessando-a para o lado. Sacudiu o cabelo para trás e ajoelhou-se por cima dele na cama.
Blackwood ficou a olhar para ela, como se quisesse devorar-lhe o corpo desnudado com os olhos. Entreabriu os lábios, mas não saiu som nenhum por uns momentos.
- Isto não é justo, Margaret. Primeiro consegues tratar-me do envenenamento e agora queres tirar-me a respiração.
- Sim, a tua respiração, o teu discernimento e... "O teu coração."
Não saberia dizer de onde é que aquele pensamento tinha vindo, mas esforçou-se ao máximo por o sufocar. Lembrou a si própria que aquele anseio que lhe percorria
o corpo não tinha nada a ver com amor, mas sim com o desejo sexual e a celebração do triunfo da vida sobre a morte.
Meg escarranchou-se em cima das pernas dele. Agarrando as faldas da camisa de Blackwood e puxando-as por cima das suas ancas. Tocou no pénis ereto dele. Armagil
gemeu e fechou os olhos.
Meg começou a acariciá-lo ousadamente, admirando-se perante o seu próprio atrevimento. Talvez isso se devesse em parte ao receio de que
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o seu bom senso retornasse. Tinha passado tempo de mais da sua vida a ser cuidadosa, sempre a pensar de mais em tudo e mais alguma coisa. Ao menos uma vez na vida,
queria dar largas à faceta apaixonada da sua natureza que reprimira durante tanto tempo.
Possuída de um enorme desejo, preparou-se para se acomodar em cima dele, para o tomar dentro de si. Os olhos de Blackwood abriram-se repentinamente.
- Não! - com uma rapidez que a deixou surpreendida, ele tirou-a de cima de si, deitando-a de costas. Inclinou-se por cima dela com uma expressão sombria no olhar
que a desconcertou.
- N... não? - O ardor do desejo nas faces de Meg misturou-se com o rubor da humilhação, acrescentando titubeante: - Não me q... queres realmente?
- Pelas chagas de Cristo, mulher - retorquiu ele com uma gargalhada abafada -, penso que o muito que te desejo é por demais evidente. Mas não no calor do momento
e como algo que acaba mal começou, como se fornica com uma rameira encostada à parede de uma taberna. Não foi assim que sonhei possuir-te.
- Tu... sonhaste como seria estares comigo?
- Desde o primeiro momento em que te vi. Até mesmo na noite passada quando estava cheio de febre. Por que outra razão é que pensas que acordei com uma ereção tão
grande.
- Tu próprio disseste que era uma coisa natural, algo que acontecia muito simplesmente.
- E de facto é assim contigo sempre no meu pensamento, a encantares-me - disse Blackwood, depositando-lhe um pequeno beijo no cimo da cabeça. - Nos meus pensamentos,
estás a seduzir-me - acrescentou, beijando-a na face. - Nos meus sonhos, enfeitiças-me.
Encantar? Seduzir? Enfeitiçar? Meg olhou aprofundadamente para os olhos dele. Aquelas não eram palavras que ela, nem qualquer outra pessoa, usasse para descrever
Margaret Wolfe. Mas ele falava com toda a sinceridade.
A boca de Blackwood como que pairava acima da dela tentadoramente.
- Mostra-me - suplicou Meg. - Mostra-me o que sonhaste.
O que ele começou a fazer, beijando-a e tocando-lhe com carícias que se demoravam e a deixavam a desejar mais. Até mesmo quando ela o teria beijado com todo o ardor,
procurando apressar o acasalamento entre os dois, ele recusava-se a permiti-lo.
Agarrando-a pelos pulsos, Blackwood imobilizou-os acima da cabeça de Meg com uma mão, enquanto com a outra continuava a explorar-lhe o corpo como se quisesse memorizar
todos os centímetros que o compunham. Meg arquejava e contorcia-se ao toque da mão dele, sentindo que Armagil conhecia agora melhor o seu corpo do que ela própria,
conhecedor de todas as curvas mais sensíveis e reentrância, todos os pontos mais íntimos, sabendo o que fazer para a excitar, ao ponto de raiar o desvario, com os
dedos e os lábios.
Quando ele a largou para poder despir a camisa, Meg já estava molhada, tal a necessidade de o sentir dentro de si. Ele não tinha dificuldade em ver o que lhe fizera,
esboçando um pequeno trejeito de triunfo masculino nos lábios quando se inclinou para a beijar outra vez.
Mas estava na hora de ela lhe mostrar um pouco do seu próprio poder. Desde sempre que Meg havia aprendido com rapidez, começando a mostrar-lhe tudo o que ele lhe
ensinara, carícias que provocavam, beijos cheios de ardor. Quando ele a penetrou por fim, o grito que Meg soltou era um misto de êxtase e alívio. Quando começaram
a movimentar-se como se fossem um único corpo, ela perdeu-se no olhar de Blackwood e constatou que era possível que o coração de uma pessoa batesse aceleradamente
ao mesmo tempo que mal se conseguia respirar. Enquanto o ardor se intensificava entre os dois, Meg cerrou os olhos por fim, entregando-se inteiramente às suas sensações,
que culminaram num clímax que faria com que todo o seu corpo fremisse.
Sentiu que Blackwood estremecia, apercebendo-se do momento em que ele também atingiu o seu clímax; ambos se abandonaram exaustos nos braços um do outro.
Meg dormitou aninhada no corpo bem musculado de Blackwood, que tinha um braço por cima da cintura dela num gesto de posse. A luz do Sol batia-lhe nas pálpebras,
avisando-a de que o dia já ia adiantado, mas afastou-se um pouco, encostando o rosto no peito de Blackwood.
Extenuado depois de terem feito amor, ele sentia o mesmo delicioso torpor que se apoderara dela, passando pelas brasas intermitentemente.
Meg sabia que devia levantar-se da cama. Não era seu costume deixar-se ficar a preguiçar depois de o Sol se ter levantado, em particular por
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continuarem a existir tantos problemas, a desesperada necessidade de encontrar a irmandade das bruxas para as impedir de fazerem mais mal, a possibilidade atemorizante
de a mãe continuar viva e ser a instigadora do que estava a acontecer, os seus receios a respeito de Sir Patrick e dúvidas quanto à verdadeira identidade do homem.
Mas, aninhada nos braços de Blackwood, todos esses problemas pareciam muito distantes, nada com que não pudesse lidar mais tarde. Não era capaz de se lembrar quando
havia sido a última vez que sentira tanta serenidade e se sentira tão segura. Queria agarrar-se a essa sensação de contentamento durante todo o tempo que lhe fosse
possível.
O bom senso não tardaria a levantar a sua cabeça feia dentro em pouco para a censurar pelo comportamento irresponsável. Quantas haviam sido as vezes em que admoestara
severamente as jovens da ilha por se entregarem a um homem com a maior das facilidades, advertindo-as do risco que corriam de virem a ser desdenhadas e ficarem de
coração dilacerado, alertando-as para os perigos de poderem engravidar ou mesmo de serem contagiadas com sífilis.
"Deveis ter o cuidado de não permitir que o desejo vos possua. Não existe nenhuma paixão tão forte que o bom senso e a prudência não sejam capazes de vencer."
Meg retraiu-se. Como devia ter parecido pomposa. Não admirava, pois, que muitas dessas raparigas não tivessem prestado a mínima atenção ao que lhes dizia, pensando,
provavelmente, que a própria Meg nunca sentira uma paixão genuína.
Até mesmo quando aceitara Felipe como seu amante, planeara a sua entrega com todo o cuidado, considerando que a experiência era mais um rito de passagem do que motivada
por um forte desejo. Ele havia sido um homem amável e atencioso, mas nunca lhe parecera que ele se importasse ou talvez nem sequer reparasse na reação pouco apaixonada
dela quando faziam amor.
Duvidava que Blackwood alguma vez se contentasse com reações tão tépidas perante a sua competência na cama. Aquele pensamento fez com que Meg esboçasse um pequeno
sorriso. Havia ocasiões em que Armagil podia parecer tão grosseiro e insensível, mas, não obstante, e inesperadamente, era capaz de proceder com tanta ternura, determinado
a fazer com que ela sentisse tanto prazer quanto ele próprio sentia.
O homem tinha umas mãos enormes e experientes, assim como uma boca extremamente hábil. Enquanto Meg se recordava de como ele a tinha excitado e acariciado, fazendo
com que ela ficasse prestes a perder toda a sua capacidade de raciocínio, sentia um formigueiro na pele que a fez soltar um suspiro langoroso.
- Hummm... - Aninhou a cabeça por baixo do ombro dele e sentiu que ele se mexia, despertando da sua sonolência. Blackwood roçou os lábios pelo cabelo dela.
- Acabaste de ronronar? - perguntou-lhe num sussurro.
- Não... bem, talvez - respondeu Meg, olhando para cima e vendo que ele a fitava com um sorriso sonolento, os olhos semicerrados numa expressão que tinha tanto de
sedutora quanto de insuportavelmente presunçosa.
- Deduzo que o meu desempenho tenha deixado milady inteiramente satisfeita.
- Talvez sim - repetiu Meg recatadamente, metendo os dedos por entre os pelos escuros que lhe cobriam o peito. - Eu podia descrever-te com toda a exatidão como o
teu desempenho foi primoroso, mas receio que a tua cabeça pudesse inchar de tanta vaidade. - Meg sentiu o barulho ensurdecido que vinha do estômago dele quando se
riu.
- Não, minha querida. Não me parece que fosse a cabeça a parte do meu corpo que corresse o perigo de inchar.
- A Seraphine tinha-me dito que serias um bom amante e tinha razão, o que deve agradar-lhe muito quando souber, porque não há nada que lhe dê mais prazer do que
ter ra... - Meg interrompeu-se; pensar na amiga foi o mesmo que lhe terem despejado um balde de água fria pela cabeça abaixo.
- A condessa é, obviamente, uma mulher de grande discernimento - retorquiu Blackwood, esboçando um sorriso pretensioso.
- E com um temperamento muito aguerrido - disse Meg, desligando-se dos braços dele e sentando-se a direito com um gemido. - Oh, meu Deus, desapareci ontem sem sequer
lhe ter deixado uma mensagem a dizer-lhe onde ia. A Seraphine deve andar frenética à minha procura. E quando me encontrar não hesitará em matar-me.
- Pois bem, não esperes que eu te proteja, meu amor. Essa mulher mete-me um medo de morte.
Meg deslizou até à beira da cama, mas Blackwood sentou-se, impedindo-a de continuar.
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- Não vás, fica. O mal já está feito. Tenho a certeza de que o jovem tom virá mais tarde para saber de mim. Nessa altura, podemos dizer-lhe que vá entregar uma mensagem
à Seraphine.
- Não me parece que haverias de querer que o rapaz deparasse com uma mulher toda nua na tua cama. - Meg mordeu o lábio inferior quando lhe ocorreu um pensamento
desagradável. - A menos que ele esteja acostumado a isso.
- Primeiro, ele teria de bater à porta. Estamos em Londres e não na tua pequena ilha tão pacífica. Fecho sempre a porta à chave à noite. - Blackwood forçou-a a deitar-se
outra vez nas almofadas, sorrindo-lhe.
- Portanto, não, o rapaz não está acostumado a apanhar-me na cama com uma mulher, mas é por uma razão muito mais importante do que essa que tenho uma tranca resistente
na porta. E verdade que não sou nenhum santo no que diz respeito ao belo sexo feminino, Margaret, mas costumo satisfazer a minha luxúria noutros lugares. Este aposento,
por muito modesto que possa ser, é o meu lar, o meu castelo. Nunca permiti que mulher alguma transpusesse esta porta. Até agora.
Ele afastou-lhe o cabelo do rosto, acariciando-lhe a face.
- Mas tu não és nenhuma mulher comum, pois não? És a lendária Senhora da Ilha Encantada, uma sedutora de inigualável...
- Ora, pára com isso. Não digas disparates. Sabes muito bem que não sou nenhum ser místico. O título nunca me assentou bem.
- Isso quer dizer que não devo tratar-te por "vossa majestade"? perguntou Blackwood na brincadeira. - A mais augusta e magnificente soberana?
- Apenas Margaret servirá muito bem.
- Sendo assim, muito bem, minha Margaret.
A sua Margaret. Nos lábios de Blackwood, o nome dela transformava-se numa carícia, um nome a que ele imprimia muita ternura, o que lhe agradava imensamente. Ele
voltou a deitar a cabeça dela na almofada e Meg pegou-lhe na mão, entrelaçando os dedos nos dele. Franziu as sobrancelhas ao reparar numa mancha negra no polegar
de Armagil, como se tivesse sido queimado com um ferro em brasa. Tocou no ferimento muito ao de leve.
- Ainda te dói?
- Não, tenho a sensação de que está entorpecido, como se essa parte do dedo estivesse inerte. Mas mais vale que isso aconteça com um pedaço de dedo do que a todo
o meu corpo - replicou ele com uma careta risonha. - Quem é que poderia imaginar que uma pequena flor tão bonita fosse capaz de causar tanto mal?
- Acho que essa marca será permanente. Mas não tenho a certeza. Nunca soube de ninguém que tivesse sobrevivido depois de ter sido envenenado.
- O que eu consegui graças a ti. Permite-me que te mostre a minha gratidão uma vez mais.
A boca de Blackwood exigiu a dela num beijo que fez com que uma onda de ardor lhe percorresse o corpo, mas não o suficiente para mitigar os seus sentimentos de culpa.
Afastou-o ligeiramente para trás, fitando-o com uma expressão muito séria.
- Também foi por minha causa que estiveste prestes a morrer. A rosa em cujo espinho te espetaste nunca se destinou a ti.
- Mas a quem é que se destinava? A ti? - A expressão amorosa no rosto de Blackwood deu lugar a uma de preocupação. - Acreditas que haja alguém que anda a tentar
matar-te? Mas quem?
- Estou em crer que essa rosa foi deixada para mim por uma dessas mesmas bruxas que andam a ameaçar o rei, mas não acredito que o objetivo tenha sido matar-me. Ela
saberia que eu reconheceria o perigo que essa rosa representava. Ela deve ter tido a intenção de que a rosa servisse apenas de sinal ou de um aviso.
- Ela?
- A minha mãe.
- A mesma mãe que morreu afogada diante dos teus próprios olhos quando eras pequena?
- É possível que ela continue viva. Foi por essa razão que me arrisquei a vir a Inglaterra. Tinha de saber ao certo.
- Margaret... - começou ele a dizer com lentidão. Falava-lhe afetuosamente, mas a incredulidade estava estampada no seu semblante. - Não sei como é que meteste essa
ideia na cabeça, mas não deves acalentar grandes esperanças.
- As minhas esperanças ou o meu maior temor? A minha mãe é uma figura de pesadelos. Tu, de entre toda a gente, devias compreender isso.
- O que é que queres dizer com isso?
- O tom falou-me do teu passado - admitiu Meg ao cabo de uns momentos de hesitação.
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- O quê!?
- Gilly Black, o carrasco. Ele é o teu pai, não é verdade? Blackwood descontraiu-se ligeiramente, apesar de resmungar.
- Raios partam esse fedelho tão linguareiro. Não devias prestar atenção a nada do que esse rapaz diz.
- Por favor, não te zangues com o tom. Ele sente uma enorme admiração por ti e preocupa-se muito contigo.
"Tal como eu", esteve quase a acrescentar, mas conteve-se a tempo.
- Ainda bem que o tom me contou isso. Não tens nada por que te envergonhares em relação ao teu passado.
- Não terei? - perguntou Blackwood com um esgar de azedume.
- Não quando comparado com o meu passado. É possível que o teu pai seja um carrasco, executando os que são condenados à morte, mas a minha mãe era uma bruxa e esperava
que eu... - Meg vacilou, recordando-se subitamente da advertência de Seraphine.
"Precisas de arranjar outro amante, mas na próxima vez guarda para ti o teu coração e os teus segredos.-"
- Esperava que tu o quê? - perguntou Blackwood ao ver que ela hesitava.
Foi poupada a decidir o que poderia dizer-lhe quando a porta do aposento se abriu repentinamente. Blackwood praguejou e olhou para ela com um sobrolho arqueado.
- Houve alguém que ontem à noite se esqueceu de pôr a tranca na porta.
- Peço desculpa. Mas tens de reconhecer que eu estava um tudo-nada preocupada. - Meg já conseguia sentir o calor do embaraço que lhe ruborizou as faces ao pensar
que teria de encarar os olhos muito abertos e inocentes de tom.
Blackwood afastou-se dela, posicionando o corpo de maneira a impedir que ela fosse vista.
- tom, meu rapaz, tens de esperar... oh, raios partam isto! - As costas largas dele ficaram rígidas. Meg arriscou-se a espreitar e ficou com a respiração embargada
de tão constrangida. Não foi o rapaz quem tinha entrado de rompante. O que já teria sido bastante mau, mas não tão intimidante como a figura de Sir Patrick Graham,
cuja fisionomia era uma máscara de choque e raiva.
Sir Patrick ficou petrificado na ombreira da porta, o rosto sem pinga de sangue. Meg sentiu um impulso quase irresistível de se esconder debaixo da colcha, mas já
era tarde de mais para essa atitude acriançada, além de ser um gesto fútil. Os olhos de Sir Patrick coruscavam ao olhar na direção dela, mas apressou-se a desviar
o olhar como se não tivesse estômago para a ver naquela situação.
Meg não podia fazer nada, além de puxar o lençol até ao pescoço, esforçando-se por apresentar uma postura tão digna quanto lhe fosse possível numa situação tão embaraçosa,
Armagil era o único que conseguia manter alguma parecença com a sua habitual despreocupação.
Passou as pernas por cima da beira do leito, espreguiçando-se e fingindo que bocejava.
- Graham! Que grande surpresa. Não que eu queira parecer inospitaleiro, mas este momento não é o mais conveniente para eu receber visitas da parte da manhã. Poderás
voltar, digamos, daqui a uma hora e a próxima vez que vieres a minha casa usa esses teus magníficos punhos para bateres à porta antes de entrares de rompante.
Sir Patrick baixou o olhar para os punhos cerrados e, lentamente, começou a abrir as mãos. Entretanto, alguma da cor voltou-lhe às faces, mas não fez menção de se
preparar para sair.
- Entrei sem avisar porque temia pela tua vida. Quando voltei para casa esta manhã, contaram-me uma história sem pés nem cabeça, segundo a qual tinhas chamado Margaret
Wolfe porque estavas às portas da morte.
- O que é verdade.
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- Nesse caso, parece que conseguiste recuperar a saúde miraculosamente.
- E tudo devido à intervenção da Margaret.
Sir Patrick lançou-lhe um olhar fulminante e extremamente desdenhoso.
- Sim, estou a ver exatamente qual a espécie de remédio que ela tem estado a ministrar-te.
- Trata de moderar o tom de voz, Granam - ripostou-lhe Blackwood numa voz ameaçadoramente suave. - E tem cuidado com o que dizes.
- Tenho a certeza de que é compreensível que Sir Patrick esteja preocupado - começou Meg a dizer, mas foi interrompida pelos dois homens.
- É assunto que não lhe diz respeito! - ripostou Blackwood exacerbado.
- Não preciso de compreensão nenhuma da vossa parte, madame. Verdade seja dita, nem sequer sei o que dizer-vos nestas circunstâncias.
- Até à vista será o suficiente - adiantou Blackwood, vestindo os calções apertados abaixo dos joelhos com brusquidão. Meg encontrou a camisa de baixo aos pés da
cama, mas não via maneira de poder vesti-la recatadamente na presença de Sir Patrick.
- Sai daqui, Graham, para permitires que a senhora se vista - disse Blackwood quando já vestia a camisa.
- Se quiserdes fazer o favor, senhor? - pediu Meg na esperança de que o seu tom mais cordato fosse mais persuasivo do que o tom autoritário de Blackwood. Mas a reação
dele foi virar-lhe as costas.
- Podeis vestir-vos, madame. Ficaria muito satisfeito se cobrirdes a vossa vergonha.
As palavras do homem magoaram-na, mas Meg recusou-se a permitir que Sir Patrick transformasse o que ela partilhara com Blackwood em algo ordinário e sórdido. Apressou-se
a pegar na camisa de baixo antes de lhe responder.
- Não acredito que uma mulher que sente prazer nos braços amorosos de um homem tenha mais por que se envergonhar do que o próprio homem.
- Não me parece que isso sirva de censura para o Graham, minha querida - interveio Blackwood num tom escarninho. - Tenho a certeza de que ele está à espera que eu
também me penitencie com uma camisa de cilício.
- O que eu possa esperar não importa - retorquiu Sir Patrick. - Tens muito pouco respeito pela minha opinião.
Blackwood fez menção de querer responder-lhe, mas Meg impediu-o com um abanar de cabeça. Aquela situação já era confrangedora que chegasse sem que os dois homens
começassem a discutir. Apressou-se a vestir as outras peças do seu vestuário, apertando as fitas do vestido desajeitadamente. Blackwood tratou de a ajudar. Ela devia
tê-lo desencorajado. Ajudá-la a vestir-se era um gesto tão íntimo e de tanta ternura que só poderia provocar Sir Patrick ainda mais. Meg receava que fosse essa precisamente
a intenção de Blackwood. Mas enquanto ele lhe apertava as fitas habilmente, sorria-lhe com tanto afeto e com uma expressão tão tranquilizadora que era como se Sir
Patrick nem sequer se encontrasse ali.
Este virou-se ainda a tempo de presenciar aqueles momentos de ternura entre os dois, o que não contribuiu em nada para o apaziguar.
- Portanto, o que é que fizeste, Gil? - perguntou num timbre de voz autoritário. - Fingiste teres adoecido para atraíres Margaret Wolfe à tua cama assim que eu deixei
de ser um empecilho? Ou dar-se-á o caso de os dois terem arquitetado esse estratagema para um encontro amoroso?
Blackwood afagou os braços de Meg.
- Não me tinha apercebido de que qualquer de nós fosse obrigado a desculpar-se perante ti. Conquanto possamos ser amigos, Graham, nunca te permiti que decidisses
com quem é que devo relacionar-me ou não. Nunca te prometi...
- Não, não fizeste isso, embora, se o tivesses feito, tal não servisse de grande coisa. Não és o género de homem que cumpra as suas promessas, pois não?
O escárnio provocou um estremecimento em Blackwood, mas Sir Patrick não pareceu ter-se apercebido, uma vez que prosseguiu.
- Ao contrário do que é costume, alberguei a esperança de que, em nome da nossa amizade, os meus desejos talvez tivessem mais importância para ti do que o teu interesse
por uma meretriz.
- Maldito sejas! - vociferou Blackwood, começando a dirigir-se para Sir Patrick, mas Meg conseguiu interpor-se entre os dois homens.
- Parem com isso, os dois!
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- Se voltares a insultá-la dessa maneira, juro que...
- Armagil, já vos disse que parassem! Ambos precisam de se acalmar para me permitirem explicar a Sir Patrick o que aconteceu.
Blackwood olhou para o outro com uma expressão de fúria, mas arrepiou caminho. Sir Patrick também se acalmou, se bem que o seu maxilar denotasse obstinação.
O homem parecia tão diferente daquele que Meg conhecera em Pernod. Teria a sua postura de gentil-homem sido uma mera imposturice para ocultar o seu verdadeiro caráter,
o de um homem endurecido pela amargura e ódio? Ou teriam essas emoções tão intensas sido reprimidas durante tempo de mais, fazendo com que ele revelasse a sua verdadeira
natureza? O seu vestuário em desalinho e o seu rosto empalidecido eram de quem havia passado a noite em claro.
Quando Meg se abeirou dele, Graham desviou o olhar como se não fosse capaz de olhar para ela. Ou dar-se-ia o caso de ele não querer que ela o fitasse, receando que
conseguisse ver toda a dor e amargura de um rapaz de nome Robert Brody?
- Sir Patrick... - Quando Meg tentou pousar a mão na manga dele, ele furtou-se ao toque dela. Meg deixou que o braço lhe pendesse ao longo do corpo. - O Armagil
não vos enganou nem tão-pouco a mim. Ele esteve realmente às portas da morte. Tinha sido envenenado.
- Envenenado!? - Graham dava a impressão de não estar disposto a dar atenção ao que quer que ela dissesse, mas aquela palavra deu-lhe que pensar. - Como é que isso
foi possível?
- Foi possível com isto - respondeu ela, apressando-se a ir buscar o lenço de bolso em que embrulhara cuidadosamente as pétalas que restavam da rosa mortífera. Algumas
das pétalas tinham caído, mas a flor em si, que já devia ter murchado e adquirido uma cor acastanhada, parecia fresca como se acabada de colher, preservada de uma
maneira nada natural.
A respiração de Sir Patrick ficou suspensa ao ver aquilo.
- Prata - murmurou. - As pétalas são prateadas como as que foram espalhadas para atemorizar o rei.
- As pétalas em si são inofensivas. É o espinho que está impregnado de um veneno letal. Quando o Armagil encontrou a rosa no vosso jardim, picou o polegar quando
lhe pegou.
Sir Patrick olhou para o amigo com uma expressão de arrependimento.
- Foste envenenado, realmente?
- Foi o que eu disse, não é verdade? - ripostou Blackwood furioso.
- E conseguiste restabelecer-te miraculosamente?
- Só graças ao antídoto de que a Margaret tem conhecimento.
Meg cobriu a rosa quando Sir Patrick franziu o cenho, tentando interiorizar o que lhe haviam dito.
- Mas como é que essa rosa foi parar ao meu jardim? Quem é que a deixou lá?
- Quem é que te parece? - perguntou Blackwood por sua vez.
- Só pode ter sido deixada pelas mesmas bruxas que têm andado a aterrorizar o rei Jaime.
- Mas porque é que terão feito isso?
- Não sei dizer. Talvez para assustar a Margaret ou talvez tivessem a intenção de te envenenar.
- Não. Ela não faria... quero dizer que elas não... - Sir Patrick calou-se, mostrando-se constrangido como se se tivesse apercebido de que se atraiçoara.
Era o que Meg receara; existia uma ligação qualquer entre Sir Patrick e as bruxas; quem lhe dera que ele pudesse ser induzido a admiti-lo.
Blackwood observava atentamente o amigo por entre olhos semicerrados.
- Sabes uma coisa, acho isso muito estranho, Graham. Fui eu quem foi envenenado, apesar disso, és tu quem parece que estiveste a lutar com o Diabo. Dar-me-ia muito
prazer acreditar que foste capaz de descontrair ao ponto de te divertires, o que nunca fazes, que tivesses andado na pândega numa taberna, mas, ai de mim, sei que
não foi isso. Portanto, o que é que andaste a fazer que te manteve fora de casa durante toda a noite?
- Não tens direito nenhum de me fazeres perguntas, especialmente em frente dela - respondeu Sir Patrick, fazendo um gesto na direção de Meg. - Por Deus, Armagil.
É como se todos estes anos que nos conhecemos não contassem para nada. Há já tanto tempo que somos amigos. Sei que és um bom homem, mas dói-me ver como tens desperdiçado
a tua vida. Es como um homem que tem andado à deriva durante todos estes anos, entorpecido ao ponto de não teres quaisquer sentimentos.
"Quando, finalmente, os teus sentimentos são despertos, isso deve-se a alguém como ela. E nem sequer sabes quem ela é realmente.
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- Sei o suficiente.
- Saberá ele, Margaret Wolfe? - perguntou Sir Patrick, acercando-se dela. - Duvido disso ou, melhor dizendo, em vez de me fazer perguntas a respeito dessas bruxas,
ele devesse perguntar-vos o que sabeis.
- Não o suficiente - replicou Meg. - Ou já teria tentado impedi-las de continuarem.
- E teríeis feito isso? A rosa prateada que haveis guardado tão cuidadosamente na vossa bolsa... é o símbolo da Megera.
Meg chamou a si toda a sua força de vontade para não reagir ao nome, mas as mãos fecharam-se-lhe em punhos cerrados involuntariamente nas dobras da saia.
- Tenho a certeza de que já ouvistes falar da Megera, não é verdade, Gil? - perguntou Sir Patrick, olhando para o amigo com fixidez. - Decerto que estás lembrado
de termos falado sobre a feiticeira que era idolatrada pela Tamsin Rivers, não?
- Vagamente. E provável que eu já estivesse bêbado na altura.
- Nem sequer te perguntas como é que Margaret Wolfe sabe tanto acerca dessas rosas envenenadas?
- Não, limito-me a sentir-me muito afortunado por ela saber.
- Também não lhe perguntas como é que ela conseguiu neutralizar a praga que a Tamsin Rivers rogou ao rei com tanta facilidade?
- Ela conseguiu fazer isso? - Blackwood olhou para Meg com uma expressão de surpresa.
- Nem sequer lhe perguntaste como é que a audiência com o rei decorreu?
- Acontece que eu estava um tudo-nada preocupado com o facto de poder morrer no meio de uma grande agonia. Esqueci-me completamente desse assunto.
- E ela não te disse? Que modéstia tão grande da parte dela. Gostaríeis de explicar como haveis curado o rei, Margaret Wolfe? Ou será melhor que seja eu a fazê-lo?
- Limitei-me a apelar ao seu bom senso - respondeu Meg.
- Apelastes ou haveis exercido o vosso poder sobre ele? - Sir Patrick virou-se para Blackwood, mostrando uma expressão muito séria.
- Ela tem conhecimento de magia demoníaca, Armagil, o que ela aprendeu junto de outras mulheres ardilosas, uma coisa que ela chama de leitura de olhos. O que ela
admitiu perante o rei e em seguida demonstrou essa sua capacidade de adivinhar pensamentos, além de ter esquadrinhado
as recordações dele. Ela também possui o poder de enfeitiçar, para se apoderar da mente de um homem.
- Nunca ouvi um disparate tão grande - retorquiu Blackwood.
- De que outro modo é que explicas a maneira como ela te deu a volta à cabeça? Ela tem tanto de bruxa como essas mulheres que ameaçam o rei. Muito plausivelmente,
ela também venera essa Megera...
- Já chega - atalhou Blackwood, cortando-lhe a palavra antes de Meg ter tido hipótese de se defender. - Graham, já há muito tempo que devias estar noutro lugar qualquer
que não aqui.
Sir Patrick abanou a cabeça, seguindo-se um suspiro de pura frustração.
- O que será pelo melhor, já que aqui não estou a conseguir quaisquer resultados a falar contigo. Esta bruxa conseguiu enfeitiçar-te ao ponto de não prestares a
mínima atenção ao que te digo. Além disso, tenho de assistir a um enforcamento. Tenho a certeza de que este assunto não tem importância nenhuma para ti, mas acontece
que um homem bom está prestes a morrer hoje por pecado nenhum, além de ter sido fiel à sua fé religiosa.
A expressão fisionómica de Blackwood era de dureza, mas quando Sir Patrick já se encaminhava para a porta, cedeu o suficiente para tentar impedi-lo.
- Não sejas idiota, Graham. Não poderás fazer bem nenhum a esse padre ao estares presente, além disso, estou certo de que os espiões do Salisbury devem estar lá
para tomarem nota de nomes e registarem a presença de outros suspeitos de serem católicos.
- O conde está bem ciente da minha religião. Mas, ainda que não estivesse, é um risco que teria de correr. Estou farto de ser um católico encapotado, farto até à
ponta dos cabelos desta necessidade de secretismo. O mínimo que posso fazer pelo padre Gregoire é estar presente para rezar por ele, para que lhe seja concedido
um fim rápido e misericordioso.
- O que não será o caso - ripostou Blackwood taciturno. - O Gilly Black é muito hábil na execução do seu mister.
- Sim, tu deves saber isso melhor do que ninguém, não é verdade? com esta última réplica acutilante, Sir Patrick saiu intempestivamente,
batendo a porta atrás de si. Quando Blackwood mostrou uma expressão carrancuda ao olhar para o amigo, Meg tentou ler as emoções dele. Cólera? Pesar? Culpa devido
ao papel que o pai, Gilly Black, desempenharia na
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brutal execução do padre? Mas, como sempre, Blackwood era um mistério para ela, como o seu semblante imperscrutável. Dirigiu-se para a porta, colocando a tranca
no seu lugar.
- É um pouco tarde para isso, não te parece? - perguntou Meg na brincadeira para aliviar a tensão que Sir Patrick deixara atrás de si. Blackwood respondeu-lhe com
um sorriso forçado.
- Suponho que não podíamos ter esperado que ficássemos fechados ao mundo para sempre. Mas teria sido bom se pudéssemos ter tido um pouco mais de tempo para nós.
- É verdade - concordou Meg em voz baixa.
Ele fitou-a intensamente e, por breves momentos, Meg teve a esperança de que ele voltasse a abraçá-la, mas Blackwood passou por ela, começando a vestir o resto da
sua roupa.
- Peço desculpa pelo comportamento do Graham - disse ele.
- Eu avisei-te de que ele era capaz de ser um pouco... veemente nas suas opiniões. Talvez depois de ter tido tempo para se acalmar e ter refletido...
- Deixará de me considerar uma bruxa e uma rameira, deixará de acreditar que sou uma ameaça à tua alma?
- Não, acho que terei de reconhecer que isso nunca acontecerá retorquiu Blackwood com um suspiro. - Considero que seria preferível que tu e a condessa deixassem
a casa dele imediatamente.
- Eu própria já tinha chegado a essa conclusão.
- Têm de encontrar aposentos num outro lugar qualquer, de preferência numa ilha muito longe daqui.
Meg esforçou-se por ocultar a dor que as palavras dele lhe infligiam, ao ver a facilidade com que Blackwood podia separar-se dela. Tentou convencer-se a si própria
de que a sugestão dele se devia unicamente à preocupação com a sua segurança.
- Ainda não posso regressar à ilha Encantada - disse Meg.
- E porque não? - perguntou ele, banhando o rosto com água fria na bacia. - Já curaste o rei, por conseguinte, conseguiste fazer o que te trouxe a Londres.
- Não tudo.
- Oh, sim, tinha-me esquecido da tua demanda para encontrares a tua falecida mãe. Margaret, com certeza que não estás a pensar realmente...
- Não sei o que pensar. É possível que a minha mãe não esteja por detrás dessas ameaças feitas ao rei, mas são obra de alguém. De uma bruxa qualquer que, obviamente,
tem conhecimento da Irmandade da Rosa de Prata.
- Sim... - O olhar dele demorou-se nela por alguns momentos, mas depois deixou-se cair em cima da beira da cama para calçar as botas. Blackwood tinha-a defendido
contra as acusações de Sir Patrick, mas com certeza que existiriam alguns resquícios de dúvida na mente dele.
- Não tencionas perguntar-me? - encorajou Meg.
- Perguntar-te o quê?
- Por que razão é que eu sei tanta coisa a respeito da irmandade das bruxas da Megera e sobre o veneno nas rosas prateadas?
Blackwood mostrava algum mal-estar, parando de calçar as botas por momentos.
- Presumi que isso se devesse ao facto de seres a Senhora da Ilha Encantada, consequentemente, possuirás todos esses conhecimentos e estarás ao corrente das histórias
de bruxas como essa Megera.
Ele estava a oferecer-lhe uma justificação. Portanto, porque é que Meg não poderia limitar-se a aproveitá-la? Quase conseguia ouvir a voz de Seraphine a adverti-la.
"Não há necessidade nenhuma de seres sincera, até mesmo com um amante." Meg humedeceu os lábios.
- Sim, tenho conhecimento da história da Megera porque... ".Guarda os teus segredos para ti própria, Meg."
Mas quando Blackwood ergueu a cabeça e os olhos dos dois se cruzaram, Meg confessou.
- Porque eu sou a Megera.
A bota que ele tinha na mão caiu no chão.
- O quê!? - A expressão no rosto de Blackwood era um misto de choque e incredulidade.
- Ou, pelo menos, era. É melhor que eu... eu te explique tudo.
- Sim, parece-me que é o melhor que tens a fazer - ripostou ele, olhando fixamente para ela.
Meg envolveu-se nos seus próprios braços enquanto, em frases entrecortadas, lhe descrevia os dias sombrios da sua meninice, os tempos em que havia sido a Rosa de
Prata, a obsessão de uma mãe tresloucada que fizera dela objeto da adoração de uma irmandade de bruxas igualmente tresloucadas.
- Todas acreditavam que eu estava destinada a vir a ser uma poderosa feiticeira que conquistaria o mundo. Eu... eu possuía alguns dotes muito
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invulgares - admitiu Meg. - Apesar de ainda ser muito nova, era muito competente a decifrar códigos e línguas da Antiguidade. Eu era uma das poucas pessoas capazes
de traduzirem o Livro das Sombras, um compêndio de artes negras que se tinha perdido havia muito tempo.
"Foi aí que aprendi como fazer as rosas prateadas e as seringas, embora a minha mãe nunca as tivesse utilizado com o objetivo de curar. As bruxas da irmandade chamavam-lhes
lâminas de bruxa e utilizavam-nas como outro meio de injetar o veneno.
"Eu nunca quis pôr essas armas tão letais nas mãos dessas bruxas, mas a Cassandra tinha meios... meios dolorosos para me obrigar a obedecer-lhe. Mas também é verdade
que a Cassandra era minha mãe e... e eu queria agradar-lhe. Queria que ela me amasse.
Meg hesitou, procurando ver nas feições de Blackwood um indício, por muito vago que fosse, de compreensão. Mas ele estava inclinado para a frente a calçar a outra
bota. Meg começou a andar de um lado para o outro enquanto prosseguia.
- Não sei por que caminhos sinistros a minha mãe me teria levado, mas fui afortunada por ter um pai que me salvou das mãos dela. Foi ele quem me entregou aos cuidados
de Ariane Deauville. Ela ensinou-me o verdadeiro significado do que é ser uma mulher sábia, uma curandeira, e foi assim que vim a ser a Senhora da Ilha Encantada.
- Portanto, deduzo que, muito simplesmente, te esqueceste de que, em tempos, foste essa Megera, é isso? Sem dúvida que terá sido por isso que te passou da ideia
mencionares-me esse facto.
Seria um sentimento de cólera que transparecia da voz dele? Repugnância? Se ao menos ele olhasse para ela.
- Não me é fácil falar do meu passado, Armagil, e sim, porque me tenho esforçado ao máximo por o esquecer. Mas nunca é possível. Meg sentia o ardor de lágrimas nos
olhos.
Aproximou-se mais de Blackwood e tentou pousar a mão no ombro dele, mas ele furtou-se ao toque dela, dirigindo-se para a lareira situada no lado oposto do aposento
e aumentando a distância entre os dois. Meg levou a mão ao peito, como se pudesse proteger o coração da dor que a rejeição de Blackwood lhe causava. As lágrimas
ameaçavam começar a correr-Ihe pelas faces, mas pestanejou com força para as conter, esforçando-se por manter uma postura digna e controlada.
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- Falaste de estranhos dotes - disse Blackwood por fim, de costas para ela. - Isso quer dizer que o Graham tinha razão. És capaz de enfeitiçar os homens, de ler
os seus pensamentos.
- Não! Eu nunca enfeiticei ninguém. Mas consigo ler olhos em certa medida e... e...
- E o quê? - A voz dele era como o zurzir de um chicote, fazendo com que ela ficasse sobressaltada.
- E sonhos. Costumo ter uns certos sonhos. - Meg respirou fundo antes de tentar explicar-lhe, de um só fôlego, os sonhos proféticos que haviam atormentado a sua
infância e os que a atormentavam recentemente a respeito da morte de Maidred Brody. - Nunca tinha tido sonhos acerca do passado até agora, pelo que não era capaz
de compreender o que este tentava dizer-me, mas acabei por perceber do que se tratava. Sir Patrick é o rapaz que figura nos meus pesadelos, é o irmão da Maidred.
Jurou que se vingaria pelo que o rei fez à irmã e foi para fazer isso que ele voltou.
- O quê!? - exclamou Armagil incrédulo, abeirando-se dela.
- Sir Patrick é Robert Brody. Ele...
- O diabo é que ele é. - Armagil tinha estado pálido, mas o seu rosto ficou de um vermelho-escuro de fúria. - Isso é a maior loucura que ouvi e não voltarás a falar
sobre esse assunto; estás a ouvir bem o que te digo? Pelas chagas de Cristo, mulher, se isto é o teu melhor a ler pensamentos, então os teus poderes deixam muito
a desejar.
Subjacente à raiva dele, Meg apercebeu-se de um traço de medo que se devia ao facto de conhecer bem Graham. Era forçoso que soubesse que o que Meg dizia era verdade,
mas Armagil faria tudo ao seu alcance para proteger o amigo. Uma atitude que ela compreendia bem. Agiria da mesma maneira se fosse Seraphine a precisar que a defendessem.
compreendeu que cometera um grave erro ao confiar-lhe as suas suspeitas e tentou remediar a situação.
- Talvez eu esteja enganada. Já admiti que as minhas capacidades não são o que foram no passado.
- Consegues ler a minha mente?
- Não, não me parece que...
- Tenta - As palavras dele eram um desafio, como se estivesse a atirar-lhe uma luva ao rosto.
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- Eu... eu preferia não o fazer.
Mas ele avançou para ela com uma atitude ameaçadora. Encostou-a à parede e imobilizou-a com uma mão em cada lado da cabeça dela.
- Faz o que te digo, Margaret. Lê os meus olhos.
com relutância, Meg ergueu a cabeça até o seu olhar ficar ao mesmo nível do dele, vendo que a expressão nos olhos dele era tão escura como a noite em que o conhecera.
Fez uma tentativa sem grande empenho de sondar as profundezas dos olhos dele, mas era o mesmo que tentar embarcar num mar de águas sombrias, açoitado por uma tempestade,
que ameaçavam engoli-la.
- Não posso - admitiu num sussurro, desviando o rosto.
- E porque não?
- Porque não me permites que sonde os teus pensamentos, nem sequer quando me tens nos teus braços nos momentos mais íntimos entre nós.
Armagil afastou-se dela.
- Acasalámos os nossos corpos, minha querida. Não existe nada de íntimo nisso.
- Não, isso não é verdade. Senti algo mais profundo e tenho a certeza de que tu...
- Não senti nada, razão por que tentei avisar-te de que não devíamos ir para a cama - atalhou Blackwood, voltando a dirigir-se para a lareira e começando a espevitar
as brasas vigorosamente com o atiçador, mas as brasas estavam reduzidas a cinzas porque o lume se extinguira. - Receei que fosse um erro e tinha toda a razão.
- Porque agora acreditas que eu sou uma bruxa? ;.
- Não sei o que é que és, à exceção de um facto. Não está na tua natureza dares cambalhotas casuais na cama de um homem. Eu devia ter adivinhado que imaginarias
que o que se passou entre nós teria mais significado do que teve realmente. - A sua voz era extremamente dura, mas suavizou-se um pouco quando acrescentou: - Posso
assegurar-te que foi deveras agradável e, não obstante o que o Graham disse, eu não quereria que te envergonhasses de nada do que fizemos.
- Sir Patrick não fez com que eu me sentisse envergonhada. Foste tu quem conseguiu isso. - com o lume apagado, Meg apercebeu-se subitamente de como aquele aposento
era frio. Envolveu-se nos seus próprios braços.
Armagil repôs o atiçador no seu lugar. Fechou os dedos na extremidade da prateleira acima da lareira e virou-se parcialmente para ela quando voltaram a bater à porta.
- Mas quem diabo...? - praguejou.
Quando abriu a porta toda para trás com brusquidão, tom entrou repentinamente. O rapaz soltou um grito de alegria ao ver que Armagil estava restabelecido. Enlaçou-o
pela cintura, após o que correu para abraçar Meg antes de voltar para junto de Armagil.
A explosão de alegria do rapaz era tão grande que deixou de haver oportunidade para mais alguma troca de palavras entre Meg e Armagil, o que talvez fosse pelo melhor,
pensou ela acabrunhada. Não havia mais nada que pudessem dizer um ao outro.
Era com satisfação que Meg deixava a casa de Sir Patrick. Ela e Seraphine não tinham muitos pertences, mas, pelo menos, emalar as poucas coisas e encontrar novos
alojamentos permitiam-lhe fazer outra coisa que não fosse pensar em Armagil.
Seraphine, como seria de esperar, estava furiosa com Meg por ter desaparecido durante toda a noite, pregando-lhe um susto de morte. Consequentemente, a condessa
anunciou com altivez que deixava de falar com Meg. O que significava que Seraphine passara a última meia hora a alternar entre as censuras e a exigir explicações.
Meg contou-lhe todos os pormenores da audiência com o rei, incluindo a ameaça velada proferida por Lorde Salisbury, bem com as suspeitas que tinha quanto à verdadeira
identidade de Sir Patrick. Mostrou-se mais hesitante quando chegou a altura de relatar tudo o que tinha tido lugar nos aposentos de Armagil.
Mas ou Seraphine era muito sagaz ou foi o rubor de Meg que a atraiçoou. Quando a amiga continuou a bombardeá-la com mais perguntas, Meg deu-se por vencida. Se Armagil
era capaz de encarar o caso amoroso entre os dois de uma maneira tão indiferente, então por que motivo é que ela não poderia fazer o mesmo?
- Chegada a manhã, celebrámos o restabelecimento de Armagil ao... ao... Fiz amor com o homem.
Quando Seraphine aplaudiu regozijante, Meg tentou sorrir, mas, #em vez disso, acabou por morder o lábio inferior.
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- Oh, Phine, eu não devia ter feito isso. Foi um comportamento indigno da Senhora da Ilha Encantada, um ato muito abaixo da minha dignidade.
- Ora, a tua dignidade que vá para o diabo. Proporcionou-te prazer? O homem satisfez-te?
- Não me parece que seja apropriado discutir... sim, foi maravilhoso, fizemos amor apaixonadamente e sem quaisquer restrições, tal como tu tinhas previsto que o
Armagil faria. - Meg tentou um despreocupado atirar de cabeça para trás, mas não foi muito bem-sucedida. Acrescentou com uma expressão nostálgica: - Ele também se
mostrou surpreendentemente carinhoso.
- Oh, não! - exclamou Seraphine, o sorriso rasgado a abandonar-lhe os lábios. - Eu disse-te para arranjares um amante e não que te apaixonasses.
- Não estou apaixonada. - Mas as suas palavras careciam de convicção até mesmo aos seus próprios ouvidos.
- Eu avisei-te, Meg. Mantém o coração fora do assunto, guarda os teus segredos para ti própria. Espero que, do mal o menos, tenhas prestado atenção à última parte
do meu conselho.
Meg voltou a dobrar uma saia de baixo, tendo o cuidado de evitar o olhar de Seraphine, mas sentia os olhos da amiga fixamente assestados em si.
- Margaret Wolfe, não me digas que te sentiste obrigada a abrir o coração ao homem, contando-lhe todo o teu passado, falando-lhe da tua tresloucada mãe e da tua
meninice como Rosa de Prata.
- De acordo, não te digo.
- Oh, Meg - gemeu Seraphine -, o que é que se há de fazer contigo?
- Lamento muito, Phine. Não consigo ser a espécie de mulher que está a guardar as suas roupas em baús, com os meus pensamentos concentrados nesta e o meu corpo noutra,
o meu coração fechado aqui. Não sou feita dessa massa e, por muito que finjas ser muito dura, também não és assim. Alguma vez foste para a cama com outro homem que
não fosse o teu marido?
- É a maneira de agir entre os membros da nobreza; a partir do momento em que se dá um herdeiro ao marido, uma pessoa é livre de fazer...
- A mim não me interessa o que as outras possam fazer... estou a referir-me a ti.
Seraphine começou a encolher os ombros, mas vacilou perante o olhar determinado de Meg.
- Não - admitiu em voz baixa -, nunca houve homem nenhum na minha vida além do Gérard.
- E nunca existirá. O meu coração anda à procura da mesma coisa que partilhaste com o teu marido, um único homem que se ama e a quem se é fiel para todo o sempre.
- E acreditas que talvez tenhas encontrado isso no Blackwood?
- Não. Ele reagiu como qualquer homem racional teria feito perante as revelações acerca do meu passado, irado, chocado e revoltado. Não posso censurá-lo, contudo,
vá-se lá saber porquê, pensei que o Armagil talvez fosse diferente - disse Meg suspirando. - Talvez eu não esteja destinada a encontrar um homem que me ame.
- Oh, Meg. - Seraphine deu-lhe um abraço apertado, mas Meg furtou-se ao amplexo da amiga.
- Temos de acabar de emalar as nossas coisas - disse Meg taciturna. O servo que Seraphine contratara chegou para levar os baús de ambas para baixo. Todo o pessoal
doméstico de Sir Patrick havia desaparecido de vista, sem dúvida que atemorizado por terem uma bruxa daquele calibre entre eles, à semelhança da reação do amo deles.
Mas Meg recusava-se a partir sem falar com Sir Patrick. Foi dar com ele no seu gabinete, tendo entrado sem bater à porta e apanhando-o de surpresa.
Ele olhava atentamente para um anel de cabelo com uma expressão de muita mágoa. Mas quando Meg entrou no aposento, apressou-se a guardar o anel de cabelo num medalhão,
ocultando aquela recordação e qualquer emoção. Olhou para Meg e as suas feições eram uma máscara forçada de cortesia.
- Estamos de partida - informou Meg. - Mas ditam as boas maneiras que se agradeça a hospitalidade ao anfitrião que nos acolheu.
- Não são necessários quaisquer agradecimentos - retorquiu ele com o gesto brusco com que rejeitava os agradecimentos dela. - Haveis prestado um serviço vital e
sou eu quem está em dívida para convosco.
- Ajudei o Armagil tanto por ele como por mim. Não me deveis absolutamente nada.
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- Eu não me estava a referir ao Armagil, embora, se, de facto, salvastes a vida dele, agradeço-vos. Estava a referir-me ao que haveis feito pelo rei.
- Uma vez mais, não foi por vós que fiz isso - retorquiu Meg, fitando-o com determinação. - Nem sequer acredito que quisésseis verdadeiramente poupá-lo ao terror
de acreditar que estava amaldiçoado. Mas, se foi esse o caso, estou em crer que terá sido por terdes os vossos próprios planos a respeito do destino do rei.
Graham desviou o rosto, o rubor a subir-lhe às faces.
- Portanto, estais a admiti-lo. Haveis recorrido aos vossos truques de bruxa, utilizando-os em mim. Estais ao corrente dos meus pensamentos.
- Somente o suficiente para perceber que sois um homem que sofre enormemente. Mas essa vingança em que estais tão empenhado não vos trará paz nem consolo.
- Não? - ripostou ele com um esgar de azedume.
- Não, acabará por custar-vos a vossa própria vida e talvez mesmo a vossa alma.
- Existem algumas causas pelas quais vale a pena renunciar a tudo. Meg estendeu a mão para tocar no medalhão.
- Parece-vos que ela concordaria? É isso que ela haveria de desejar para vós?
- Não me faleis acerca dela. Nem sequer vos deveis atrever a pronunciar o nome dela. Não sabeis absolutamente nada sobre... Deveis sair da minha cabeça, bruxa! -
Tirou o medalhão da mão dela com brusquidão e a tremer de cólera. Aproximou-se das janelas, o peito a soerguer-se devido à respiração acelerada. Só depois de ter
conseguido dominar as suas emoções é que se virou, ficando de frente para ela. - Haveis-me feito o favor de vir a Londres para tratar o rei. Estou-vos grato por
isso. Prometi-vos que estaríeis sempre em segurança e vou tomar medidas para poderdes regressar sã e salva à ilha Encantada.
- Isso é muito amável da vossa parte, mas não tenciono regressar, pelo menos não até ter encontrado o que vim procurar.
- E posso saber o que é isso?
- A verdade, Sir Patrick.
- Pára, ladrão!
O grito de fúria ecoava nos ouvidos de Amy. com o coração a bater rapidamente, passou por um carreteiro e por um lojista de aspeto desengonçado que fechava a sua
loja. Àquela hora, já ao fim da tarde, não havia muita gente na rua que lhe permitisse passar despercebida.
A sua única vantagem era conhecer bem aquela zona da cidade e o homem que a perseguia ser um negociante gordo que devia ter sido uma vítima fácil, se ela não tivesse
sido tão desajeitada quando lhe roubou a bolsa.
O homem bufava enquanto a perseguia. Ela poderia tê-lo despistado com facilidade se ele não tivesse contado com outros que o ajudavam na perseguição, dois jovens
marçanos entediados que, manifestamente, estavam a gostar da diversão que a perseguição lhes proporcionava.
Sentindo-se como se fosse uma lebre acossada, aterrorizada com a matilha de cães de caça que lhe mordiam os calcanhares, contornou uma carroça cuja carga estava
a ser entregue numa taberna. Derrubou algumas das grades de madeira, o que atrasou um pouco os que a perseguiam, mas não o suficiente.
Não tardaria a ser apanhada se não conseguisse encontrar um lugar onde se esconder. Amy obrigou-se a correr mais depressa, apesar de ter a sensação de que os seus
pulmões estavam prestes a rebentar. com o olhar, percorreu tudo em volta de si; avistou a entrada de um estreito beco, para onde se dirigiu a correr.
Sentiu uma forte guinada num dos lados do corpo, o que a obrigou a abrandar a passada por lhe ser impossível continuar a correr. Possuída de um grande desespero,
agachou-se atrás de um barril que se destinava
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a recolher a água da chuva, levando o punho fechado à boca para abafar a respiração arfante.
Sentia o bater acelerado do coração contra a caixa torácica, receando que fosse suficientemente audível para trair a sua presença. Pôs-se à escuta, esforçando-se
por conseguir ouvir os seus perseguidores. Pensou ouvir passos que hesitaram à entrada do beco.
Amy ficou tensa, esforçando-se tanto por se manter imóvel que tremia. Ouviu algumas palavras soltas dos homens que a perseguiam.
"... acho que veio por aqui... talvez tenha voltado para trás e entrado naquela taberna... não, com certeza que veio para este beco."
Amy reprimiu um gemido de medo e pânico. Aqueles momentos pareceram-lhe horas, mas as vozes acabaram por se sumir à distância juntamente com os passos. Talvez os
marçanos achassem que a perspetiva de a procurarem na taberna fosse muito mais atrativa ou, então, teriam decidido que a perseguição não valia a pena, não se os
obrigasse a entrar naquele beco imundo que fedia a urina e a dejetos despejados de baldes.
Qualquer que fosse o motivo da sua salvação, Amy respirou fundo de alívio e gratidão. Esperou mais dez minutos antes de se atrever a tirar a mão fechada da boca,
recomeçando a respirar normalmente. As suas mãos continuavam a tremer enquanto examinava o fruto do roubo. A bolsa de veludo parecera-lhe promissora quando a vira
a oscilar do cinto do negociante obeso. Mas quando desapertou os cordões e despejou o conteúdo na palma da mão, pestanejou indignada e dececionada.
Moedas de dinheiros! Apenas alguns miseráveis dinheiros. Tinha sido por aquilo que ela arriscou a cabeça?
- O miserável canalha barrigudo! - sibilou indignada. Sentia-se tão ultrajada que esteve quase a arremessar as moedas pelo beco. Mas não estava em situação de poder
desprezar até mesmo aquela pitança. Voltou a guardar as moedas na bolsa, sentou-se no chão e entregou-se a um pranto de desespero.
Só o Diabo é que saberia em cima de que imundícies é que estava sentada, enchendo o manto de nódoas. Mas sentia-se demasiado desalentada para se importar com isso.
Nada lhe tinha corrido bem desde ontem de manhã, quando Blackwood arruinara o teste, tendo pegado na rosa prateada e saído do jardim com a flor.
Sentira algum consolo ao pensar no maldito médico a morrer numa agonia excruciante, mas até mesmo essa satisfação começara a desaparecer quando Bea censurou Amy
pelo seu fracasso e incompetência. A irmã queixara-se insistentemente, dizendo-lhe que era uma idiota e que teriam de preparar a poção venenosa outra vez, acrescentando
que os ingredientes eram caríssimos e que estavam a ficar sem dinheiro e sem tempo.
Amy tivera esperança de que o negociante trouxesse bastante dinheiro consigo, o que resolveria o problema, tendo planeado que enfiaria a bolsa vazia na boca de Bea,
pondo fim às censuras tão cruéis da irmã. Mas, ao que tudo indicava, fizera asneira uma vez mais, arriscando a vida para nada e ficando sujeita a mais troças maldosas
da irmã.
Amy encostou a cabeça à parede do prédio de habitação e suspirou. Tinha obrigação de saber que nunca devia tentar roubar nada quando a sua cabeça estava numa confusão
tão grande. A avó tinha-a advertido tantas vezes para que não fizesse isso.
"Nunca se deve tentar roubar uma bolsa nem lançar um feitiço quando se está preocupada ou encolerizada, Amy, minha linda. O resultado só poderá ser o fracasso."
Talvez fosse por essa razão que a maldição que a avó lançara sobre Jaime Stuart nunca se concretizara. Sem dúvida nenhuma que a avó não tinha estado calma quando
amaldiçoou o rei, o que teria sido impossível com as chamas a lamberem-lhe as pernas, a enegrecerem-lhe a pele e tudo o que se seguiu a isso.
Entretanto, haviam decorrido vários anos desde esse dia horrível em que Amy vira a avó ser queimada em vida. Mas ela continuava a lembrar-se e a sentir a falta da
avó com uma mágoa tão grande como se tudo isso tivesse tido lugar ontem.
Amy ficou com os olhos marejados de lágrimas, pestanejando para as impedir de caírem.
- Não importa, avozinha - murmurou. - Hás de ser vingada. A Bea e eu certificar-nos-emos disso mesmo e, depois, todos os sonhos, todos os desejos que sempre tiveste
para a nossa irmandade de bruxas realizar-se-ão, prometo-te que sim.
Aquele pensamento deixou Amy mais animada, pondo-se de pé com lentidão. Percorreu o beco pé ante pé, olhando em volta cautelosamente antes de se aventurar a sair
de lá. Não avistou qualquer sinal do negociante nem daqueles horríveis marçanos. A rua estava menos movimentada do que antes, as lojas no piso térreo dos prédios
encerradas, uma vez que muitas pessoas já se teriam apressado a ir para suas casas para cearem.
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Amy sabia que também devia estugar o passo porque a luz do dia estava a desaparecer. Os guardas não tardariam a sair para se certificarem de que o recolher obrigatório
era obedecido. Mas a perspetiva de voltar para casa não a atraía por aí além, não com Bea à sua espera num estado de espírito malévolo.
Mas caso se mantivesse fora de casa durante mais algum tempo, Bea não tardaria a sair, dirigindo-se para as docas a fim de ganhar algum dinheiro ao abrir as pernas
para alguns marinheiros e estivadores. É claro que Amy teria de suportar a irmã a gabar-se de como era capaz de se prostituir muito melhor do que Amy era a roubar.
Mas isso aconteceria amanhã. Do mal o menos, poderia desfrutar de uma noite em paz e sossego.
Começou a andar sem destino certo nas proximidades da residência de Sir Patrick, apercebendo-se de que fora atraída até ali como uma traça atraída pela luz.
A casa dele não era nenhum palácio, mas com o pequeno jardim muito bem cuidado e o fumo a evolar-se das chaminés, para Amy aquilo representava tudo o que era acolhedor,
seguro e confortável. O ar tinha ficado muito mais frio depois do pôr do Sol. Amy tremia de frio e agasalhou-se mais no manto enquanto entrava no jardim furtivamente.
Ficou aliviada ao constatar que estava deserto. Se algum dos servos de Sir Patrick a apanhasse a rondar por ali, teria muita dificuldade em explicar o que fazia
ali. Ela própria não sabia; talvez tivesse esperança de conseguir vislumbrar Megera.
Era possível que Bea não se cansasse de falar acerca da necessidade de se certificarem de que a Senhora da Ilha Encantada e Megera eram uma só pessoa antes de a
abordarem, mas Amy estava convencida de que era esse o caso. Sempre que via Margaret Wolfe, sem saber explicar porquê, sentia isso mesmo.
O que se devia ao facto de Amy ser uma idiota que, obstinadamente, acreditava em tudo o que quisesse acreditar, diria Bea. Sem dúvida que Amy continuava a ser crédula
ao ponto de ir à procura de fadas por detrás dos arbustos, diria a irmã escarnecedora. Mas isso teria sido bastante estúpido.
Nenhuma fada escolheria viver onde quer que fosse naquela cidade fria, dura e apinhada. Viveriam nas regiões rurais mais ermas, onde o arvoredo era denso e havia
colinas de encostas acidentadas até cujo cume se podia subir para uma pessoa se sentir livre e respirar ar puro.
Era aí que Amy tencionava viver um dia se os planos das duas irmãs tivessem êxito. Isto é - quando os planos das duas tivessem êxito e depois de terem concluído
o ritual, com Megera a concretizar todos os sonhos delas, como a avó sempre havia jurado que a grande feiticeira poderia fazer.
Amy viveria numa propriedade grandiosa, vestiria as mais belas roupas de seda e jóias deslumbrantes. Ela seria a imagem da senhora da mansão e quem sabe se não teria
um lorde...
Amy inclinou a cabeça para trás, olhando para as janelas do piso superior da casa. Ainda não se via a luz de velas, o que a impedia de ver quaisquer movimentos.
Foi-se aproximando a pouco e pouco, na esperança de um vislumbre de... Era honesta para consigo própria ao ponto de admitir que não era Megera que queria espiar,
mas sim ele.
E se Sir Patrick estivesse na sua alcova, preparando-se para mudar de vestuário ou a despir-se para tomar banho? Seria maravilhoso vê-lo todo nu. Amy lambeu os lábios,
sentindo uma estranha sensação entre as pernas.
Tinha a certeza de que ele teria um belo corpo, com uma pele branca e macia, esbelto, bem musculado e com um pénis tão impressionantemente grande que Bea invejaria
Amy amargamente por esta o ter conquistado.
Tinha afirmado à irmã que tencionava fazer dele o seu animal de estimação, mas a verdade é que Amy ansiava por muito mais do que isso. Ainda que tivesse de o manter
acorrentado, desejava que Sir Patrick a adorasse ao ponto de, se ela se oferecesse para o libertar, ele lhe implorar que não o fizesse.
"Minha formosa Amélia, não compreendes que morreria por ti se me mandasses...)?
- O que é que pensas que estás a fazer aqui?
A pergunta irada sobressaltou Amy, despertando-a dos seus devaneios. Deu meia-volta de repente, soltando um som sibilante, os dedos abertos e ao alto como as garras
de uma gata, preparando-se para se defender de algum servo da casa.
Mas não era o jardineiro nem o horrível criado de quarto, Alexander, que falava com um cerrado sotaque escocês. Era ele, o próprio Sir Patrick. Os raios do Sol que
se punha refletiam-se nas madeixas mais claras do cabelo dele, dando-lhe um tom de um louro brunido. Até mesmo os seus olhos tinham um azul mais intenso à luz do
dia que começava a desaparecer.
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As mãos de Amy penderam inertes.
- Oh... - suspirou.
- Responde-me - exigiu ele com rispidez.
O que ela não pôde fazer. Estava incapaz de falar, incapaz de pensar e mal era capaz de respirar.
- O que é que andas a fazer, a rondar pelo meu jardim? Como é que te atreveste a entrar aqui!
Amy nunca ouvira a voz suave e gentil dele soar tão ríspida. Sir Patrick olhou em redor, quase como se tivesse vergonha de poder ser visto com ela.
Não, não era vergonha, assegurou a si própria. Era temor. Ambos partilhavam tantos segredos que, sem dúvida, ele recearia que fossem descobertos.
- Não há motivos para preocupações. Fui extremamente discreta. Ninguém me viu. Ninguém sabe que estou aqui.
- O que é que queres?
Amy chamou a si o seu sorriso mais cativante.
- Ora, eu só queria ver... - interrompeu-se, começando a comê-lo com os olhos, imaginando-se a despir-lhe o gibão, a camisa e os calções tufados pelo meio das coxas.
Ele estremeceu sob o olhar dela. De desejo? Era inegável que ela sentia o ardor. De súbito, a noite que não tardaria já não lhe parecia tão fria.
Não fossem os olhos dele. Tinham endurecido como lascas de gelo.
- Querias ver Margaret Wolfe? Vieste tarde de mais. Ela já se foi embora.
Amy ficou a olhar para ele, perguntando-se se se atreveria a passar a ponta do dedo pelo contorno firme da boca dele. Ainda levantou a mão quando o significado das
palavras dele penetrou a névoa de calidez que a envolvia.
- Foi-se embora? O... o que é que quereis dizer com foi-se embora? Onde é que ela foi?
- Não quero saber, desde que ela não resida sob o teto da minha casa. Portanto, não há razão nenhuma para que tenhas vindo cá outra vez.
- M... mas permitistes que ela se fosse embora? Que desaparecesse? E depois do que me prometestes...
- Quem és tu para me falares de promessas, bruxa? Depois de me teres dado a tua palavra de que não voltarias a atormentar o rei se eu fosse buscar a Senhora da Ilha
Encantada, trazendo-a para Inglaterra?
- E foi isso que fizemos!
- Então foi outra pessoa qualquer que pregou o gato morto na parede do palácio e que deixou uma mensagem ameaçadora escrita a sangue?
- Oh... - disse Amy numa voz um pouco a medo. - Isso.
- Sim, isso!
Ela detestava a expressão de escárnio que lhe desfigurava as feições. Fazia com que o rosto dele que era tão bonito parecesse quase feio.
- O gato foi ideia da minha irmã. - Amy abriu as mãos num gesto apaziguador. - Sabeis como é a Beatrice, sempre tão impaciente por que nos vinguemos do rei.
- E deixarem cair rosas prateadas mortíferas no meu jardim? Isso também fazia parte dos esquemas dela?
O sentimento de culpa espelhou-se claramente na cara dela. Amy olhou-o com um sorriso de nervosismo.
- Rosas!? Mas que rosas? Habitualmente são brancas ou vermelhas. Não é verdade? Nunca ouvi falar de nenhuma rosa como essa que estais a descrever. Prateada, foi
o que dissestes?
- Sim, exatamente como a rosa que envenenou o meu amigo Armagil! - ripostou Sir Patrick, aproximando-se mais dela, e, pela primeira vez, Amy reparou nas olheiras
que escureciam os olhos dele. Ele mal devia ter dormido na noite anterior, o pobrezinho, sem dúvida que de tanta preocupação por causa do grave estado de saúde de
Blackwood.
Armagil Blackwood era um arremedo de homem sem resquício de caráter e inútil que merecia todo o mal que lhe acontecesse, mas ela tinha-se esquecido de que ele era
amigo de Sir Patrick, não obstante o facto de Blackwood não merecer minimamente essa honra.
- Lamento muito que o doutor Blackwood esteja a morrer, mas...
- Não está a morrer. Margaret Wolfe curou-o.
- ... tenho a certeza de que... - Amy pestanejou. - Ela o quê? Não, ela não podia. Isso é impossível, a menos que...
Margaret Wolfe era, indubitavelmente, Megera.
"Ela sabia", pensou Amy, mal conseguindo conter a explosão de alegria dentro de si. Ficou ansiosa por dizer aquilo a Bea. Mas o triunfalismo de Amy foi sol de pouca
dura ao ver que Sir Patrick se abeirava mais de si,
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apercebendo-se de como se tinha atraiçoado a si mesma. Os olhos dele coruscavam de cólera e acusação.
- Não sei que esquema demoníaco é que vocês, bruxas, andam a arquitetar, tal como não sei por que razão é que queriam que eu fosse buscar Margaret Wolfe à sua ilha.
Mas quaisquer que sejam os vossos planos, acabam agora, estás a compreender?
Ele falava-lhe com dureza, num tom de voz ameaçador, o que não agradou nada a Amy. Um dos aspetos de que ela mais gostava em Sir Patrick era a sua cortesia e gentileza.
Afastou-se dele num passo cambaleante, embora tivesse erguido o queixo numa atitude de desafio.
- Não há motivos para vos comportardes com tanta superioridade. Vós também tendes os vossos planos malévolos. Não fostes buscar a Senhora da Ilha Encantada por nós
o termos exigido. O motivo por que a trouxestes para Londres foi para impedir que o ranhoso do rei Jaime fugisse para se esconder, cancelando a abertura do vosso
precioso Parlamento. Precisáveis de Margaret Wolfe porque acreditastes que ela podia pôr fim ao medo que ele tinha da maldição.
- O que ela fez.
Amy ficou de boca aberta. Megera tinha curado o doutor Blackwood? Neutralizara a maldição que pesava sobre o rei? Não, havia ali qualquer coisa que não batia certo.
Aquelas não eram, de maneira nenhuma, ações da feiticeira que praticava magia negra que a avó ensinara Amy a idolatrar.
- Margaret Wolfe cumpriu aquilo que lhe foi pedido - continuou Sir Patrick. - Ela deixou de ter qualquer utilidade para mim, do mesmo modo que tu ou a tua irmã nunca
me foram úteis. Se possuem algum bom senso, tratem de desaparecer e tenham cuidado para que eu não volte a ver-vos nem ouça falar de vocês as duas.
Nunca mais voltar a vê-lo? Aquele pensamento era insuportável para Amy.
- Mas ambos queremos a mesma coisa - argumentou Amélia numa voz suplicante. - A destruição de Jaime Stuart. A vossa conspiração para acabar com ele na explosão é
muito inteligente, mas a morte dele será muito rápida. A Bea e eu só queríamos que ele sofresse durante mais tempo, que soubesse por que razão é que iria morrer.
Mas juro que a partir de agora nunca mais o atormentaremos. - Amy pousou a mão na manga dele com um sorriso sedutor. - Não há motivo nenhum para que existam inimizades
entre nós. Somos aliados.
- Aliados? - ripostou ele, sacudindo-a selvaticamente. - Mas tu pensas que eu alguma vez quis que a minha causa sagrada fosse maculada pela tua imunda bruxaria?
Devias perecer da mesma maneira como a tua avó pereceu na fogueira. Mas estou a conceder-te a mercê da misericórdia que não mereces. Sai daqui imediatamente. Se
não saíres da minha vista durante o próximo minuto, chamarei um guarda.
O lábio inferior de Amy começou a tremer, possuída de um misto de mágoa e indignação.
- Tentai fazer isso e....e vereis do que sou capaz. Tudo o que eu sei a vosso respeito e dos vossos amigos, assim como do vosso traiçoeiro...
Amy ficou com a respiração arquejante quando ele a empurrou contra o tronco do carvalho, com uma mão a fechar-se em torno do seu pescoço. Não apertou com força que
chegasse para lhe cortar a respiração, apenas o suficiente para que ela ficasse com a garganta pisada. A pulsação de Amy acelerou-se, fazendo-se mais fortemente,
dividida entre o medo e a excitação perversa por ter conseguido fazer com que ele lhe tocasse.
- Se sussurrares uma única palavra que seja, parto-te o pescoço.
- Não tendes por que hesitar. Força! - incentivou ela numa voz roufenha. - Se o fizerdes, até que ponto é que sereis santo? Mas não vos esqueçais de que tenho uma
irmã, de facto, muitas irmãs que vingarão a minha morte. Por isso, não vos atreveríeis a fazer-me mal. É uma ameaça que soa a falso.
- Soa tanto a falso como a tua ameaça de vires a revelar a conspiração. Pensas realmente que haverá alguém que acredite numa única palavra de uma insignificante
como tu? - acrescentou ele por entre dentes cerrados.
- Talvez não, mas tratariam de investigar e o vosso plano redundaria em fracasso. Teríeis uma morte de traidor, com as vossas entranhas evisceradas e a cabeça espetada
numa estaca.
- Mas não antes de te acusar de bruxaria e acabares como a tua demoníaca avó, com as chamas a descarnarem-lhe os ossos.
- E depois estaremos todos mortos e o rei Jaime podia dançar uma animada jiga nas nossas campas.
A provocação dela pareceu penetrar a névoa de cólera dele. Continuou a imobilizá-la contra o tronco da árvore, se bem que a mão dele tivesse afrouxado o aperto na
garganta dela.
- Como estais a ver, continuamos a precisar um do outro - murmurou Amy. - Eu tenho poder, mais do que podeis imaginar, tal como
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a minha avó possuía. Posso amaldiçoar e lançar feitiços, até mesmo feitiços de amor - disse Amy, contorcendo-se e encostando-se a ele sugestivamente.
Ele retrocedeu de imediato, mostrando uma expressão de repugnância bem patente.
- Seria preciso muito mais do que magia para fazer com que um homem quisesse tocar numa coisa tão revoltante como tu - disse Sir Patrick, fitando-a com olhos de
fúria, o desprezo que sentia por ela como um espelho frio e impiedoso que refletia não a rapariga donairosa da imaginação dela, mas sim uma mulher que era só pele
e osso, com o cabelo desgrenhado, o vestido espalhafatoso e o manto a federem às imundícies das ruas.
Sir Patrick arrastou os tacões no solo, como se estivesse a raspar a bosta das botas. Deu meia-volta e encaminhou-se para casa sem sequer olhar para trás. Amy massajou
o pescoço, as lágrimas de raiva a correrem-lhe pelas faces.
Como ele era cruel. Era horrível. Ela poderia tê-lo amado para sempre, mas agora odiava-o com todas as veras do seu ser. Levando a mão por dentro do manto, pegou
no punho do seu punhal.
A chama da vela já era pouco intensa; a luz fraca tremeluzia, refletindo-se na superfície da água manchada de vermelho na bacia. Amy estava agachada num canto do
seu alojamento, a olhar fixamente para as suas mãos através da vaga de lágrimas. Tinha conseguido lavá-las, mas o punhal ainda estava incrustado de sangue. A lâmina
brilhante parecia estar a enferrujar-se.
Precisava de acabar de se lavar, mas estava a ter dificuldade em levantar-se do chão porque todo o seu corpo tremia. O que é que ela tinha feito? O que é que ela
tinha feito?
- F... foi mais forte do que eu. Tudo por culpa d... dele. Ele é que me obrigou a fazer isso. - Amy balouçava-se para trás e para a frente. Ficou petrificada ao
ouvir o barulho da porta que se abria.
Ouviu Beatrice a cambalear e a praguejar quando entrou.
- Amy! Raios te partam! Deixaste as roupas todas espalhadas pelo chão do quarto outra vez. Foi por pouco que não tropecei e parti o pescoço. Quando é que vais aprender
a não seres tão desmazelada?
Amy fletiu as pernas, encostando os joelhos ao peito, mas não conseguiu abafar um soluço de choro.
- Amy? - chamou Beatrice, pegando na vela, que ergueu ao alto, de modo a que a chama iluminasse o canto onde a irmã se encontrava agachada.
- Oh, Senhor, o que diabo é que se passa contigo agora?
A irmã nunca tinha tido paciência nenhuma para lágrimas e Amy pensou no quanto pareceria patética, com os olhos inchados de tanto chorar, o ranho a escorrer-lhe
do nariz. Mas já tinha a sua conta por um só dia. Não estava capaz de suportar mais escárnios da parte da irmã. Amy limpou o nariz à manga.
- N... não é nada. Deixa-me em paz - retorquiu chorosa. Beatrice pousou a vela em cima da mesa. Devia ter reparado na água manchada de sangue, porque voltou a praguejar.
- Mas o que é que se passa? Estás ferida?
com a garganta embargada pelas lágrimas, Amy respondeu com um abanar de cabeça.
- O teu punhal está cheio de sangue. Apunhalaste alguém? Quem?
- A culpa foi dele - respondeu Amy, falando com dificuldade.
- Foi tudo por culpa dele.
- Atrevo-me a dizer que sim, quem quer que ele tenha sido. Foste acostada por algum velhaco na rua ou era um homem que conhecias?
Amy respondeu-lhe, ocultando a cara nos joelhos e voltando a entregar-se a outra crise de choro. A manifestação de infelicidade devia parecer suficientemente séria
para suavizar até mesmo o coração empedernido da irmã.
Beatrice surpreendeu-a quando se sentou ao seu lado no canto em que continuava sentada. Puxou Amy para junto de si, abraçando-a.
- Vê se te acalmas, minha querida. Conta-me o que sucedeu. Se algum canalha magoou a minha irmãzinha, é bom que já esteja morto ou juro que o esventrarei com as
minhas próprias mãos.
O hálito de Beatrice fedia a bebidas alcoólicas fortes, ao que se juntava o cheiro almiscarado dos homens com que fora para a cama naquela noite. Sem dúvida que
ganhara bom dinheiro e a bebida amansara-a, o que justificava aquela rara manifestação de compaixão, mas Amy ansiava por consolo, viesse de onde viesse. Escondeu
o rosto no ombro da irmã.
- Oh, B... Bea. Tive um dia h... horrível, o p... pior da minha vida.
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Ao contrário do que era seu costume, Beatrice não a censurou por ser tão melodramática.
- Acalma-te, deixa-te de choramingar e conta-me o que aconteceu. A tua Bea vai fazer com que te sintas melhor.
Entre lágrimas e soluços, Amy esforçou-se por lhe contar o que sucedera. Sentia a garganta a latejar de tanto chorar, revelando os seus pensamentos tão atabalhoadamente
como as palavras que proferia, mas, melhor ou pior, lá conseguiu articular o que se tinha passado: ter estado prestes a ser apanhada por ter roubado uma bolsa, a
maneira impiedosa como Sir Patrick a rejeitara, o comportamento confuso de Margaret Wolfe.
- Ele foi tão cruel para comigo, Bea.
- Vá lá... acalma-te - disse Beatrice, dando palmadinhas no ombro da irmã. - Portanto, estás a dizer que a Margaret Wolfe curou o doutor Blackwood?
- Sim, foi o que Sir Patrick me disse antes de me agarrar pela garganta, pouco tendo faltado para que escarrasse para cima de mim.
- Isso quer dizer que a Margaret Wolfe sabia como preparar o antídoto para o veneno.
- Já te disse que Sir Patrick disse que eu o repugnava?
- E ela também conseguiu neutralizar a praga que a avó rogou ao rei?
Amy afastou a cabeça do ombro da irmã e levantou a cabeça, fitando-a com uma expressão de censura.
- Eu diria que pareces muito mais preocupada com as andanças de Margaret Wolfe do que com a maneira como Sir Patrick me magoou e humilhou.
- Ora, o teu precioso Sir Patrick que vá para o diabo que o carregue! É claro que estou mais interessada nela. Não estás a ver o que isso significa, minha tolinha?
Não precisamos de mais provas. A Margaret Wolfe é a Megera. - Claramente, a compaixão de Bea pela irmã tinha-se esgotado. Amy afastou-se dela.
- É claro que ela é a Megera. Não é isso que não me tenho cansado de dizer?
- E, obviamente, ela possui grandes conhecimentos e poder, tal como a nossa avó sempre disse.
- E de grande coisa que isso nos servirá - retorquiu Amy, fungando e limpando os olhos. - Até ao momento, tudo o que ela tem feito com os seus poderes foi desfazer
tudo o que nós fizemos.
- Porque ainda não lhe demos a saber da nossa existência. A Rosa de Prata não sabe que continua a ter seguidoras dedicadas.
- Não me parece que isso tenha a mínima importância - ripostou Amy. De uma maneira geral, das duas era a que tentava ser otimista, mas nunca se sentira tão em baixo,
tão inteiramente despojada de fé. - Na minha opinião, Margaret Wolfe não está interessada em ser a Rosa de Prata e tão-pouco nos ajudará com o nosso ritual.
- Oh, sim, interessar-se-á. Acredita no que te digo - começou Bea a dizer, mas interrompeu-se. Amy apercebeu-se do momento em que a sua irmã deu conta da sua"obra
porque Beatrice ficou de boca aberta. Pôs-se de pé atabalhoadamente. Pegou na vela com brusquidão e atravessou o aposento para poder examinar o pentagrama que Amy
tinha pintado na parede. O sangue ainda brilhava e parecia não ter secado. Beatrice girou sobre si própria e ficou a olhar para ela.
- Pelo fogo do Inferno, Amy!
Amy encolheu-se toda sob o olhar acusador da irmã.
- Foi... foi necessário. Fui forçada a fazer isso... para afastar qualquer espírito vingativo.
O olhar de Bea fixou-se no soalho. Agora estaria a aperceber-se do amontoado de trapos cheios de sangue que não tinham sido suficientes para limpar as manchas que
haviam deixado um rasto até à enorme arca da roupa.
Amy levantou-se do chão a tremer enquanto Bea seguia o rasto sangrento. Abriu o tampo da arca todo para trás, o cheiro metalino de sangue a fazer-se sentir com mais
intensidade. A luz da chama tremeluzente da
vela a incidir sobre o corpo encarquilhado da mulher de idade no interior da arca. A cabeça, com o cabelo grisalho, estava posicionada num ângulo estranho, numa
posição que seria extremamente desconfortável, mas tinha sido a única maneira de Amy conseguir meter a idosa taberneira dentro da arca.
A senhora Keating olhava fixamente para Beatrice com uma expressão vítrea nos olhos esbugalhados. Ficou tão apalermada que foi por pouco que não deixou cair a vela.
Mas recompôs-se rapidamente, endireitando o círio e olhando furiosa para Amy. Esta atirou o cabelo para trás, tentando adotar uma atitude de desafio, mas não conseguiu
mais do que apresentar uma expressão de culpa, falando numa voz chorosa.
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- Eu bem te disse que este tinha sido o meu pior dia, mas estavas tão concentrada na todo-poderosa Megera que nem sequer me deste a oportunidade de te contar o que
me aconteceu.
- Sou toda ouvidos - disse Bea por entre dentes cerrados.
- Depois de Sir Patrick ter sido tão horroroso para comigo...
- Esquece esse maldito Sir Patrick. Explica-me como é que a senhora Keating acabou dentro da nossa arca da roupa.
- Posso dizer-te que não foi nada fácil. Nem sequer sei dizer como é que consegui fazer isso. Para uma mulher de idade tão magra, ela era horrivelmente pesada.
- O que costuma acontecer em relação aos mortos. Estou menos interessada em saber como é que ela foi parar à arca do que em saber porque é que isso aconteceu.
- Bem... - O lábio inferior de Amy começou a tremer.
- E se recomeçares a chorar, juro que te dou uma bofetada. Amy ficou a olhar para a irmã muito ressentida, mas pestanejou com
força para conter as lágrimas.
- Bem, quando voltei para o nosso alojamento, já estava muito angustiada, não é verdade? E depois a senhora Keating entrou por aqui adentro como se me quisesse comer,
aos gritos a perguntar-me o que era feito do gato dela, o que faz com que, em parte, tudo isto seja também por tua culpa, Bea.
Ao ver que a irmã se limitava a olhar para si com uma expressão empedernida, Amy engoliu em seco antes de prosseguir.
- A mulher não se calava, sempre aos guinchos a perguntar-me pelo seu amado Grimalkin e dizendo que sabia quem é que lhe tinha feito mal, e como nunca devia ter
arrendado um quarto a duas bruxas como nós e... e disse que nos ia denunciar às autoridades e... e... - Amy calou-se, levando as mãos à cabeça. - Eu só queria que
ela se calasse, que parasse com aqueles guinchos e ameaças horríveis.
- Portanto, decidiste matá-la à punhalada. Aqui mesmo, no nosso alojamento?
- Eu... eu não estava a pensar com clareza. Tudo por culpa de Sir Patrick. Ele enraiveceu-me e perturbou-me tanto.
- Sir Patrick! Sir Patrick! Se eu voltar a ouvir-te mencionar o nome dele outra vez, não hesitarei em bater-te. Se estavas tão furiosa com o homem, porquê que não
o apunhalaste?
- Oh! - exclamou Amy bufando. - Parece-te que isso teria sido muito melhor?
- Sim, se ninguém te visse quando o apunhalasses. Mas, como de costume, quem sofre as consequências sou eu por ter de limpar outra porcaria que tu fizeste.
Amy espetou o lábio inferior para fora.
- Não se pode dizer que morresses de amor pela senhora Keating.
- A questão não é essa. Não estás a perceber o que isto significa, minha grande idiota? - ripostou Beatrice, batendo com o tampo da arca com força. - Assassinaste
a nossa senhoria, Amélia. E agora somos obrigadas a mudar de casa.
A Cabeça do Serraceno tinha sido um refúgio para Armagil Blackwood desde que chegara a Londres, um lugar tão bom como qualquer outro para um homem se perder entre
saborosas empadas de carne, grandes canecas de cerveja, ruidosa camaradagem masculina e raparigas dispostas a venderem os seus favores sexuais.
O físico era conhecido por ser uma companhia de índole afável, além de ser generoso com a sua bolsa, a menos que já tivesse bebido uns copos a mais. Nessas alturas,
havia que ter cuidado com o seu temperamento e punhos fortes, razão por que a maior parte dos homens tinha a sensatez de se manter à distância.
A expressão sombria no rosto de Blackwood naquela noite advertia a clientela da Cabeça do Sarraceno de que o doutor já tinha bebido muito mais do que a conta. A
maior parte dos clientes tinha o bom senso de o deixar sozinho no banco corrido em que se sentava encostado à parede numa atitude de abandono, os dedos fechados
em volta da pega da caneca de estanho com tampa.
Uma rameira rechonchuda, que estava de olho nele desde que tinha entrado na taberna, foi a única que se atreveu a abordá-lo. Mas um olhar coruscante de Blackwood,
acompanhado de um grunhido para que se afastasse, fez com que ela se apressasse a bater em retirada na direção oposta.
Blackwood não estava com apetite para o género de diversão que a mulher lhe proporcionaria, alguns momentos de grunhidos e apalpanços numa alcova no andar de cima.
Perguntava-se se voltaria a ser-lhe possível encontrar essa espécie de escape para a tensão encerrada no seu corpo.
Receava que não e tudo por causa dela. As imagens de Meg tão terna nos seus braços continuavam a percorrer-lhe a mente, os seus lábios tão macios a murmurarem-lhe
beijos na pele, o género de carícias que podia fazer com que um homem se perdesse durante mais tempo do que uns meros momentos fugazes, talvez mesmo durante toda
uma vida.
Blackwood fez pressão com os dedos nas pálpebras. Pelas chagas de Cristo! Continuava sem conseguir acreditar naquilo. Tinha-se deitado com Megera, a infame bruxa
que inspirara outras mulheres ao ponto de enlouquecerem, abandonando as suas crianças e as suas famílias para participarem em rituais demoníacos, envenenamentos
e maldições que conduziam à sua própria destruição.
A Rosa de Prata, fora ela própria a admiti-lo, possuía poderes antinaturais desde criança. Por impensável que fosse, talvez Graham tivesse razão. Talvez Meg o tivesse
enfeitiçado realmente. Blackwood nunca tinha dado crédito a esses disparates, mas se ela fosse, de facto, essa feiticeira demoníaca...
Não. Não obstante o que Graham pudesse dizer, Armagil não era capaz de conciliar a noção do mal com Margaret. Não com as suas mãos que curavam, a sabedoria serena,
a compaixão afável e a compreensão, qualidades que pareciam ter origem numa grande mágoa que residia dentro de si.
Mas agora ele tinha conhecimento da natureza dessa mágoa, de toda a extensão da insanidade da mãe dela, do autêntico pesadelo que havia sido a meninice de Meg. Até
mesmo enquanto lhe descrevera esse seu passado, ela parecera-lhe tão jovem e perdida, tão vítima como todas essas outras jovens desesperadas que tinham sido atraídas
pela loucura de Cassandra Lascelles. Ele devia ter envolvido Meg nos seus braços, tranquilizando-a ao invés de a rejeitar.
Todavia, Blackwood era suficientemente honesto para admitir que não a tinha rejeitado apenas devido ao choque de saber que ela era a Megera. Era possível que Meg
não lhe tivesse feito um feitiço, mas sem dúvida que lhe fizera alguma coisa que o punha a sentir demasiado, a recordar demasiado. Quando ela olhava para ele, o
brilho suave que se refletia nos seus olhos assustava-o. Meg estava a apaixonar-se por ele, o que só poderia levar a esperanças e expectativas desastrosas. Ele não
era o género de homem em que qualquer mulher pudesse confiar. Tinha magoado Meg, mas, na realidade, ele fizera-lhe um grande favor ao afastar-se dela.
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- Tão insofrivelmente nobre da minha parte - resmungou, erguendo a caneca de cerveja num brinde silencioso a si próprio.
"Aqui vai à tua saúde, Armagil Blackwood, o único homem em Londres que é capaz de encontrar virtude num canalha de coração empedernido."
Bebeu o resto da cerveja e mandou vir outra, numa tentativa para entorpecer os sentidos, para abafar as vozes que se faziam ouvir na sua cabeça. Aquele estado de
espírito até fazia com que parecesse preferível ouvir as conversas em torno de si, até começar a apreender partes do que era dito, apercebendo-se de que, em grande
parte, falavam a respeito da execução do padre.
"Nunca vi tanto sangue, nem sequer durante os espetáculos em que os cães são açu lados a ursos acorrentados.))
"Portanto, o traidor ainda estava vivo quando começaram a esquartejá-lo?"
"Oh, sim, se bem que o padre tivesse a cara tão arroxeada que pensei que já se tinha finado. Mas o velho Gillj Black conseguiu reanimá-lo. Deviam ter ouvido o traidor
a berrar quando o Black o esventrou e abanou as entranhas diante da cara dele."
Os dedos de Armagil apertaram-se em volta da caneca enquanto tentava bloquear aquelas vozes e as recordações tão insuportáveis que as acompanhavam.
A tremer ao romper do dia próximo de Tyburn, o ar da manhã a feri-lo tanto como se sentira ferido na sua juventude antes de ter aperfeiçoado a arte de se entorpecer.
Lembrava-se de ver Gilly Black a verificar uma última vez o nó corredio da corda.
"Presta muita atenção a como eu reforcei o nó, rapaz. é importante, se bem que muitos carrascos cometam o erro de pensar que o segredo de um enforcamento perfeito
reside inteiramente na corda. Mas a verdade é que se trata de uma arte muito mais exata do que isso. E preciso calcular o peso do condenado com todo o cuidado em
relação ao comprimento da corda. Isso faz toda a diferença entre uma morte rápida e uma lenta, o que não faz grande diferença no tocante a um ladrão ou a um assassino.
Mas quando a acusação é de traição, o vilão tem de sobreviver ao enforcamento, de maneira a que o resto da sua justa sentença possa ser levada a cabo."
O velho chegara ao ponto de fazer uma careta risonha quando mostrou a Armagil a sua faca curta de lâmina estreita e muito afiada própria para desossar carne. Assim
que ouviu o ranger das rodas da carroça que transportava o traidor condenado para o seu sinistro destino, Armagil escondera-se atrás do tronco de uma árvore a vomitar
o pequeno-almoço, para extremo desagrado do velho.
Mas enquanto bebia a sua cerveja, lembrou a si próprio que nessa altura era apenas um rapazinho. Ainda muito sensível e com as emoções à flor da pele, tal como Patrick
Graham era atualmente.
Blackwood estremeceu quando pensou em Graham presenciando a execução do padre naquela manhã, Graham cujo coração já estava sobrecarregado com sentimentos de cólera
e mágoa. Se Amnagil fosse minimamente seu amigo, teria feito mais um esforço para o impedir de assistir àquele espetáculo tão macabro.
Do mesmo modo que nunca devia ter permitido que Meg se afastasse de si com tanta mágoa espelhada no seu rosto. Se se tivesse interessado mais...
Maldição! Ele não queria interessar-se.
- Boa noite, doutor - saudou uma voz jovial.
Armagil ergueu o olhar, desviando-o da caneca para mostrar a sua irritação para com o idiota que se atrevera a abordá-lo. Albert Dunwiddy fitava-o com um sorriso
radiante, parecendo inteiramente alheado do mau humor de Blackwood.
Dunwiddy era um latoeiro que ganhava a vida a vender um pouco de tudo; Armagil desconfiava de que muitos desses objetos eram roubados. O homem era conhecido por
fazer com que lhe pagassem bebidas, a troco de alguns mexericos ou de uma qualquer história inverosímil.
A última coisa de que Armagil precisava naquele momento era das tagarelices de Dunwiddy acerca de um qualquer pescador que tinha encontrado ouro na barriga de um
esturjão, ou do ganso com duas cabeças que estava a ser exibido na loja do comerciante de aves de capoeira em Cheapside.
Blackwood tirou uma moeda da sua bolsa e atirou-a para cima da mesa.
- Pega no dinheiro e vai-te embora.
Dunwiddy espetou o lábio inferior numa expressão magoada.
- Imagine-se uma coisa destas! Eu à espera de cumprimentar um grande amigo sem que ele desconfiasse que venho mendigar.
Armagil arqueou as sobrancelhas. Quando encolheu os ombros e estendeu a mão para a moeda, Dunwiddy foi mais rápido a agarrar a moeda com um sorriso insinuante.
- Que nunca se diga que o Albert Dunwiddy insultaria um homem ao recusar a sua generosidade. Agradeço-vos...
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- Poupa-me aos teus agradecimentos - atalhou Armagil, fazendo um gesto de despedida, mas o homem era bronco de mais para perceber a alusão velada. Depois de ter
comprado a sua bebida, Dunwiddy puxou um banco para se sentar perto de Armagil.
- Estou com a boca ressequida - afirmou.
-- Nesse caso, seria prudente dares algum descanso à língua.
- Mas estou a rebentar de notícias...
- Que deves guardar para ti próprio.
- Estive presente no enforcamento do padre esta manhã.
- Não estou interessado nisso.
Mas Dunwiddy tratou de o pôr a par de todos os pormenores enquanto Blackwood rangia os dentes.
- Exatamente, o que é preciso fazer para que cales a boca? Partir a caneca na tua cabeça? Se isso der resultado, compensará a perda de uma caneca cheia de uma bela
cerveja.
Dunwiddy ficou a olhar para Blackwood muito surpreendido e ultrajado.
- Mas eu pensei que gostaria de saber como o seu pai se saiu tão bem. Não perdeu nenhuma da sua habilidade, apesar da idade avançada.
- O Gilly Black não é meu pai! - rugiu Armagil, fazendo com que mais de uma cabeça se virasse na sua direção. O taberneiro parou de limpar o tampo do balcão, alertado
para a possibilidade de problemas. Armagil esforçou-se por controlar a irritação enquanto Dunwiddy erguia a mão num gesto apaziguador.
- É claro que não, é claro que não. Peço desculpa. Esqueci-me de que o doutor e ele estão um pouco... desavindos. Não voltará a ouvir uma única palavra que seja
da minha boca a respeito desse assunto. - Dunwiddy bebeu um gole de cerveja. - Se bem que, se eu tivesse tido um pai que tivesse conseguido guindar-se aos píncaros
da sua arte, teria muito orgulho em tratá-lo por...
- Já chega! - ripostou Armagil, batendo com os punhos fechados no tampo da mesa e fazendo com que as canecas de estanho chocalhassem.
Dunwiddy estendeu a mão para a sua.
- Tenha cuidado - disse, falando atabalhoadamente. - Foi por pouco que não entornou a minha bebida.
- Três segundos - disse Blackwood numa voz rosnada.
- Três segundos, o quê!?
- É o tempo que tens para removeres a tua carcaça do banco para te pores a andar daqui para fora. Se não, não será só a tua cerveja que corre perigo.
- Muito bem - disse Dunwiddy com uma fungadela de desagrado.- Se esta noite não estava com disposição para ter companhia, devia ter dito isso assim que cheguei.
Mas é uma pena, porque eu tinha uma história ainda melhor para lhe contar. Se bem que haja ladroagem e assassínios de sobra na cidade, há já bastante tempo que não
tínhamos ninguém em tribunal sob a acusação de bruxaria.
Armagil teve a sensação de que o coração lhe parava de bater.
- O quê!?
- Ah, estou a ver que agora já está interessado no que tenho para dizer - replicou Dunwiddy, sorrindo-lhe com uma expressão presunçosa e estendendo a mão para a
caneca. Gritou quando Armagil lha tirou da mão com brusquidão.
- Que bruxa é essa? Como é que se chama? Responde-me, maldito!
- Não sei muito bem. Olhe bem para o que fez, entornou a cerveja toda nas minhas melhores calças.
Armagil levantou-se de um salto. Dunwiddy soltou um som de protesto quando ele o agarrou pelo gibão, arrastando-o para fora do banco.
- Para teu bem, é bom que saibas e que mo digas rapidamente. A quem é que te referes? Trata-se de alguém que tenha ido para a prisão?
- N... não, por enquanto. Mas tenho a certeza de que será apenas uma questão de tempo até essas mulheres demoníacas serem apanhadas.
- Isso quer dizer que se trata de mais do que uma bruxa?
- Sim, um bando delas, pelo menos foi o que ouvi dizer.
- E o que é que elas fizeram? De que é que são acusadas?
- Assassínio! - A despeito do medo que tinha do mau feitio de Blackwood, Dunwiddy lambeu os beiços, manifestamente satisfeito com a informação que estava prestes
a dar-lhe. - Elas mataram uma mulher e usaram o sangue dela para pintarem símbolos demoníacos nas paredes. A infeliz mulher devia ter sido uma amostra de gente porque
conseguiram meter o corpo dentro de uma arca.
- Uma amostra de gente? - A imagem de Meg ocorreu de imediato ao pensamento de Blackwood, a qual mal lhe chegava ao ombro e que tinha uma constituição física tão
franzina e delicada que ele receara poder esmagá-la quando fizeram amor com tamanho ardor.
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O ar abandonou-lhe os pulmões.
- Como é que ela se chama? - perguntou, mal conseguindo articular as palavras numa voz roufenha. - A mulher que mataram, como é que se chamava?
- Não me lembro muito bem.
- Maldito sejas! É melhor que te lembres. - Blackwood sacudiu Dunwiddy com tanta violência que a cabeça do homem se inclinou bruscamente para trás.
- Calma aí, doutor Blackwood. - Armagil sentiu uma mão pesada que se pousava no seu ombro. Tentou sacudi-la, mas o proprietário da Cabeça do Sarraceno apertou-lhe
o ombro com força. - Compreendo que aqui o nosso bom vizinho Dunwiddy pode ser um pouco irritante disse Minton com um sorriso que embora apaziguador denotava uma
velada advertência. - Mas não permito rixas no meu estabelecimento. Do que estais bem ciente, senhor.
- Eu não estava a irritar ninguém - queixou-se Dunwiddy. - Só estava a dar-lhe conta do assassínio horrível que aquelas bruxas cometeram.
- Um assunto macabro - concordou Minton. - Pobre velhota.
- Velhota? - ecoou Blackwood.
- Sim, uma idosa que era proprietária de uma taberna e que arrendava quartos.
- E ela foi a vítima? - perguntou Blackwood, sentindo que voltava a respirar. Soltou o braço de Dunwiddy, mas Minton continuava a manter uma mão firme no ombro de
Armagil.
Dunwiddy alisou a manga do gibão.
- Sim e era isso que eu estava a dizer-lhe quando ele se atirou a mim como um louco que tivesse fugido de Bedlam, exigindo nomes que estou a dizer-lhe desconhecer.
- Eu também não sei mais nada - acrescentou Minton, olhando para Armagil com curiosidade. - Porque é que isso tem assim tanta importância?
- Por razão nenhuma. Eu... eu só...
?-Já bebeu um copito a mais? - perguntou Minton, afrouxando a força com que apertava o ombro de Armagil, dando-lhe uma palmadinha. - Sabeis que dou muito apreço
a ter-vos como cliente, doutor, mas está-me a parecer que está na hora de irdes para casa dormir.
- Sim, eu... eu peço desculpa - retorquiu Blackwood, apercebendo-se de que todos os presentes tinham o olhar assestado em si. Também se apercebeu de que tremia.
Resmungando os seus pedidos de desculpa, saiu da taberna para a rua num passo cambaleante.
Inclinando-se sobre si mesmo, respirou fundo várias vezes para encher os pulmões de ar. Minton, bem como todos os presentes na taberna, tinha suposto que Armagil
já tinha bebido de mais. Mas o verdadeiro problema era o facto de não ter bebido o suficiente.
Estivera demasiado sóbrio para conseguir lidar com um choque como aquele. Aqueles poucos momentos em que tinha receado que Meg talvez fosse a mulher assassinada
de que os dois homens falavam contavam-se entre os mais sombrios da vida de Armagil e isso era dizer francamente muito.
Maldição! O que é que Margaret lhe teria feito? Não era capaz de explicar o que começara a sentir por ela ou, se sabia, não estava disposto a admiti-lo. Só sabia
que, se lhe acontecesse alguma coisa, sem dúvida que enlouqueceria.
Ela estava tão obstinadamente determinada a descobrir o paradeiro daquelas bruxas e se elas fossem as mesmas que haviam assassinado a taberneira tão brutalmente,
sentindo uma satisfação perversa ao escreverem com o sangue da vítima, então teriam levado a sua insanidade mental a novos níveis. Espalhar rosas envenenadas e pregar
gatos mortos numa parede pareciam coisas inofensivas quando comparadas com as circunstâncias em que aquele assassínio fora cometido.
Se Meg conseguisse, de facto, encurralar essas bruxas numa tentativa para pôr cobro aos seus malefícios, o que é que elas lhe poderiam fazer, ainda que ela fosse
o objeto da sua tresloucada adoração, a Rosa de Prata? E se ela tentasse entregá-las às autoridades, arriscar-se-ia a revelar o segredo do seu próprio passado. Era
muito possível que acabasse no tribunal juntamente com essas criaturas dementes.
Por conseguinte, o que é que ele poderia fazer para a manter em segurança? Só havia uma maneira: ele próprio teria de encontrar essas bruxas antes que ela conseguisse
descobrir-lhes o rasto, sendo ele a confrontá-las. Mas como, se nem sequer sabia por onde começar?
Passou as mãos pela cara, desejando que as suas ideias estivessem mais claras. Ainda pensou em voltar à Cabeça do Sarraceno para ver se conseguia obter mais informações
junto de Dunwiddy. Mas Armagil duvidava
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de que o latoeiro pudesse informá-lo de mais alguma coisa, além disso, se voltasse à estalagem, o mais certo seria voltar a ser posto na rua de uma maneira pouco
amável. A verdade é que Minton não apreciava nada uma boa rixa.
Portanto, que outra pessoa é que saberia mais alguma coisa acerca daquele assassínio? Sabia que o conde de Salisbury tinha o seu exército de espiões que o mantinha
muito bem informado acerca de tudo o que se passava na cidade. Armagil até sorriu perante a ideia de tentar forçar a entrada para conseguir chegar à fala com o pequeno
bigle. Teria mais sorte em conseguir uma audiência com o próprio rei Jaime, como se isso tivesse podido servir-lhe de alguma coisa.
O bom humor que aquele pensamento lhe suscitava desvaneceu-se ao pensar no rei, o único homem em Inglaterra que Armagil considerava mais inútil do que ele próprio.
Todavia existia mais alguém que poderia abordar, outro homem que possuía um misterioso pendor para se manter ao corrente de tudo o que se passava na zona mais mal-afamada
de Londres. A simples ideia de ir falar com ele causou em Armagil o efeito de um banho de água gelada, fazendo com que se sentisse demasiado sóbrio para o seu gosto.
Armagil conseguia ouvir o bater na água dos remos do barqueiro quando o barco já se afastava do cais. Armagil desejava ter podido convencer o homem a esperar por
si, mas não tinha dinheiro que chegasse para lhe pagar por isso, não quando o homem poderia ganhar bom dinheiro a transportar outras pessoas no seu barco.
O Sol punha-se vagarosamente, tingindo de escuro as águas ondulantes do rio Tamisa. Littledean era uma pequena aldeia situada às portas de Londres. No outro lado
do rio, Armagil conseguia divisar as impressionantes muralhas de pedra da imponente torre.
Os derradeiros raios de sol, que se refletiam na superfície de pedra, davam origem ao curioso efeito que fazia com que parte das ameias parecesse ter sido banhada
em sangue, o que trazia à memória os inúmeros condenados cujas vidas tinham acabado no terreiro da torre de maneira tão trágica.
Viver à sombra daquela macabra torre não era uma perspetiva do agrado de muitos homens. Contudo, desde sempre que Gilly Black se gabara da vista de que desfrutava.
Armagil começou a caminhar por um caminho já muito percorrido que dava acesso a uma habitação afastada da margem do rio. com a sua respiração a sair-lhe da boca
em baforadas de vapor, sentiu um arrepio gélido quando avistou a casa que em tempos considerara o seu lar.
A modesta casa não havia mudado muito, mas, até mesmo à pouca luz do crepúsculo, Armagil conseguia aperceber-se dos sinais de negligência, com partes no telhado
em que o colmo apodrecera, as muitas ervas daninhas que tinham invadido o jardim. Em tempos, arrancar as ervas daninhas tinha sido tarefa de Blackwood.
"É a única coisa para que alguma vez servirás", dissera-lhe o velho, mostrando a sua habitual atitude escarninha.
A recordação tão amarga fez com que Armagil hesitasse por momentos, mas acabou por se aproximar da porta, batendo com o punho fechado antes que mudasse de ideias.
Via a luz tremeluzente da chama da vela por detrás das vidraças em forma de losango. Armagil batia com os pés no solo numa tentativa para aquecer. Preparava-se para
voltar a bater quando a porta se abriu toda para trás. Ficou rígido. Não tinha estado à espera que fosse o próprio idoso a abrir-lhe a porta.
Era evidente que interrompera Black quando este ceava. O velho ainda tinha uma coxa de galinha na mão parcialmente comida, com um pouco de gordura que lhe escorria
para o queixo. Ficou boquiaberto ao deparar com Armagil e, durante longos momentos, ambos ficaram a olhar um para o outro.
Blackwood e Gilly Black eram mais ou menos da mesma altura, com os mesmos ombros largos e corpos ossudos. Armagil apercebeu-se de que, finalmente, conseguira ser
uns três ou cinco centímetros, mais coisa menos coisa, mais alto do que o velho. Ou talvez essa impressão se devesse apenas ao facto de Black ter começado a ficar
com as costas inclinadas para a frente, o que se devia à idade.
Tinha o cabelo completamente encanecido, à semelhança das sobrancelhas hirsutas, o que lhe emprestava uma aparência incongruentemente benigna. Seriam poucos os que
teriam adivinhado que a mão que agarrava a coxa de galinha era a mesma que havia eviscerado o padre naquela mesma manhã.
O velho foi o primeiro a falar, esboçando um esgar de azedume e escárnio tão familiar a Armagil.
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- Ora bem, mas que grande surpresa. O filho pródigo retorna a casa.
- Não volte a atrever-se a chamar-me isso. Não sou seu filho... começou Armagil a dizer com cara de poucos amigos, mas interrompeu-se, compreendendo que aquele não
era um começo de conversa muito auspicioso.
- Oh, tu deixaste isso inequivocamente claro quando saíste daqui há já vários anos. Portanto, o que é que, possivelmente, terá feito com que o grande senhor doutor
decidisse honrar-me com a sua presença?
Armagil mordeu o interior da bochecha, fazendo um grande esforço para não perder a calma.
- Preciso da sua ajuda num assunto. Só vim cá para que me desse algumas informações.
- Ora bem, isso é o que chamo de descaramento - ripostou o velho, soltando uma gargalhada resfolegada. - Das duas uma, ou estás doido ou bêbado.
- Para lhe dizer a verdade, estou um pouco das duas coisas. Por isso, era melhor que se afastasse para me deixar entrar.
- Pensei que tinha deixado bem claro na noite em que te foste embora que nunca mais serias bem-vindo a minha casa - ripostou Gilly com o rosto muito vermelho. -
Desde sempre que foste um estupor ingrato e de uma arrogância insuportável, mas agora tens o arrojo de vir a minha casa para me suplicares que te ajude! - O idoso
fez menção de fechar a porta na cara de Armagil, mas este apressou-se a estender a mão para o impedir.
- Não está a perceber o que eu quis dizer-lhe - disse Armagil num tom de voz calmo e frio. - Não estou a suplicar-lhe. Nem sequer estou a pedir-lhe. - Ignorando
os protestos titubeantes do velho, Armagil empurrou-o para trás e entrou em casa dele à força.
Meg tinha muita dificuldade em acreditar que a cidade de Londres só tinha pouco mais de quilómetro e meio de largura. Ela tinha percorrido a pé distâncias muito
maiores do que isso na ilha Encantada. Mas a sua ilha era um território de vastos espaços abertos onde uma mulher podia respirar... penhascos açoitados pelo vento,
florestas que proporcionavam sombra e frescura, além de partes do litoral desabitadas.
Em contraste, a cidade avassalava-a com o seu dédalo de ruas estreitas e de piso escorregadio por estarem cobertas de toda a espécie de imundícies. O número de pessoas
e de carroças era excessivo, a par do barulho ensurdecedor dos cascos dos animais e dos pregões dos vendedores, a par das imprecações de marçanos que armavam burburinho.
Os pisos de sacada dos prédios proporcionavam sombra às ruas, estruturas de madeira pintadas de preto e branco que haviam sido erigidas à pressa e que pareciam prestes
a ruírem com a mesma rapidez. A atmosfera de permanência era quase inexistente no centro da cidade, apenas uma afluência de humanidade que vivia num "salve-se quem
puder" para conseguir sobreviver.
Meg sentia-se gelada até aos ossos e tinha dores nos pés enquanto seguia Seraphine pela rua apinhada de gente. Ainda não se recompusera inteiramente do turbilhão
emocional do dia anterior, ao que se associava o facto de não ter tanta estâmina como Seraphine.
Mas a amiga também já tinha abrandado a passada, os ombros de linhas graciosas curvados sob o peso da missão desesperada de ambas. Tinham-se posto a caminho aos
primeiros alvores da manhã, fazendo perguntas com muita cautela a quem pudesse saber alguma coisa sobre mulheres que continuassem a pôr em prática os costumes de
antigamente.
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Meg não era capaz de tirar da ideia como aquela investigação teria sido muito mais fácil se estivessem de regresso à sua ilha. Se alguma mulher sábia tivesse enveredado
pelo caminho das artes negras, sem dúvida que isso não tardaria a chegar ao conhecimento da Senhora da Ilha Encantada, o que o alegado embruxamento de Bridget Tillet
exemplificava na perfeição.
Mas ali, em Londres, Meg não podia recorrer a mais nada que não fossem as recordações que guardava das Filhas da Terra que, em tempos idos, haviam participado nos
conselhos que tinham lugar entre os monólitos da ilha Encantada. Encontrar quaisquer vestígios da existência dessas mulheres era virtualmente impossível naquela
cidade tão populosa.
Todas as perguntas que Meg fazia eram recebidas com olhares imperscrutáveis de desconfiança, enquanto as portas se fechavam na sua cara. Os londrinos eram conhecidos
por desconfiarem de todos os estrangeiros, sendo manifestamente hostis no caso dos franceses. Seraphine, com a sua beleza e postura régia, pelo menos conseguia exercer
a sua influência sobre os homens. Quando queria, era capaz de ser encantadora, mas o seu encanto começava a esmorecer depois de ter sido mal recebida por uma parteira
mal-humorada.
Não, nunca tinha ouvido falar de alguma mulher que se intitulasse de Filha da Terra, da floresta, do céu ou de qualquer disparate dessa natureza. Era uma respeitável
parteira cristã, "para vossa informação", que não tinha nada a ver com o que quer que fosse que cheirasse a paganismo.
Meg mal tivera tempo de recuar antes de a porta se fechar no seu pé.
- Vaca estúpida! -- praguejou Seraphine, atirando as mãos ao alto num gesto de frustração. - Isto é ridículo, Meg. Não estamos a conseguir chegar a lado nenhum.
Talvez o problema seja estarmos a proceder de maneira demasiado subtil. Devíamos abordar o assunto diretamente, perguntando: "Reparou em algumas bruxas dementes
que andem por aí desvairadas com gatos mortos e umas flores prateadas muito estranhas?"
- Oh, cala-te! - retorquiu Meg.
- Porquê? Não existem grandes probabilidades de nos ouvirem no meio de todo este barulho. Mal consigo ouvir-me a falar, o que me irrita soberanamente por que gosto
bastante do som da minha própria voz.
Seraphine fez uma careta sorridente, claramente à espera de alguma reação da parte de Meg, mas esta agarrou-a pelo pulso, olhando por cima do ombro muito ansiosa.
O sorriso de Seraphine sumiu-se-lhe dos lábios.
- O que é que se passa, Meggie?
- Nada. Mas desde há algum tempo que tenho a sensação de que estamos a ser seguidas.
Seraphine deteve-se, arriscando um olhar rápido para trás. Mas não havia nada digno de nota, para além de alguns carregadores que levavam rolos de tecidos da loja
para uma carroça onde uma mulher regateava com o comerciante o preço dos tecidos.
- Não reparei em ninguém em especial - disse Seraphine.
Meg encolheu os ombros, tentando banir a estranha sensação de que havia alguém que mantinha os olhos presos nas suas costas. Seraphine voltou a olhar fugazmente
antes de retomarem o seu caminho.
- Se estivermos a ser seguidas, por quem é que calculas que seja? perguntou esta.
- É possível que seja um dos espiões de Lorde Cecil, uma das mulheres que procuramos ou mesmo... - Meg sentiu que o rubor lhe subia às faces, baixando a cabeça.
- Ou... ou ninguém. Parece-me que só estou a ser disparatada.
Mas, como sempre, Seraphine adivinhou os pensamentos da amiga com toda a facilidade.
- Se tinhas esperança de que fosse o Blackwood que viesse procurar-te, lamento ter de te dizer que o teu gigantesco doutor não seria capaz de passar despercebido
entre a multidão tão facilmente.
- Não, isso seria impossível e duvido muito que ele tentasse sequer. Além disso, não espero que ele volte a procurar-me.
- O que só prova que é um idiota. Seduzir-te e rejeitar-te depois só porque tiveste uma... uma meninice um tudo-nada invulgar. O homem é um grande mentecapto se
não é capaz de ver como te transformaste numa mulher fantástica. Ele que vá para o diabo que o carregue, é o que tenho a dizer.
- O Armagil é sensato de mais para permitir que o meu passado o intimide, bem como os estranhos dotes que eu possuo. Não posso censurá-lo por isso.
- Talvez tu não possas, mas eu posso, portanto, mais vale que ele se mantenha à distância. Ouvi dizer que, quando um homem passa a ser um eunuco, ele fica mais corpulento
e o Blackwood já é bastante imbecil.
Meg tentou sorrir perante as palavras exacerbadas de Seraphine, mas foi-lhe impossível. O que tinha acontecido entre si e Blackwood continuava muito presente, causando-lhe
uma mágoa que a impedia de encarar a situação com bom humor. Talvez nunca viesse a conseguir isso. Era estranho
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que sentisse uma ligação tão forte e profunda a um homem que conhecera tão fugazmente e com quem partilhara uma única noite. Recordaria sempre vividamente esses
momentos tão efémeros que passara nos braços dele, com o seu corpo unido ao dele como se fossem um só. Não obstante a mágoa, talvez essa recordação valesse tanto
quanto lhe custava, bastante mais do que seria o caso com muitas outras mulheres.
Seraphine teria continuado a dar largas à irritação que Blackwood lhe suscitava, mas Meg silenciou-a ao apertar-lhe a mão e fazendo-lhe um pedido.
- Por favor, Phine. Prefiro não falar do Armagil. Temos assuntos bastante mais importantes a que dedicarmos a nossa atenção.
Seraphine franziu o sobrolho, mas acalmou-se.
- Isso é verdade, mas o que é que vamos fazer a seguir? Este andarmos de um lado para o outro sem destino certo está a esgotar a minha paciência e a capacidade de
resistência dos meus pés.
- Reconheço que isso é verdade - retorquiu Meg, mordendo o lábio antes de admitir -, mas sei da ervanária de um apotecário onde é muito provável que encontremos
outra Filha da Terra. - Seraphine olhou-a com uma expressão exasperada.
- Meg, por amor de todos os santinhos! Porque é que não fomos lá em primeiro lugar?
- Porque eu tinha esperança de conseguir evitar isso. A mulher em questão tem motivos de sobra para me guardar ressentimentos e não excluo a possibilidade de que
me despreze.
- Como é que existe alguém que possa odiar-te? A menos que isso tenha alguma coisa a ver com a tua mãe.
- O que é o caso. Tem tudo a ver com ela. A mulher que tenciono procurar é... é a Mary Waters.
- Oh. - A mera menção do nome fez com que Seraphine ficasse a pensar. - Mas com certeza que ela não pode culpar-te, pois não?
- Pelo que a minha mãe fez? E porque não? São muitas as mulheres sábias que o fazem, para não mencionar que a Mary Waters tem mais razões para isso do que a maior
parte delas. Mesmo que ela não me odeie, o facto de voltar a ver-me só poderá reavivar recordações muito penosas. Para mais, é muito possível que ela não tenha qualquer
informação que nos possa ser útil.
- Mas também é possível que tenha! Compreendo os teus escrúpulos, Meg, mas ainda que ir falar com a Mary Waters não produza quaisquer resultados que nos sejam úteis,
não nos restam muitas alternativas. Enquanto andamos a perder tempo, a andar de um lado para o outro pela cidade, quem sabe que mais desgraças essas bruxas andarão
a planear ou a fazer?
Meg concordou com um acenar de cabeça taciturno.
- Vamos ter de seguir em direção à área próxima da Catedral de São Paulo. É aí que a maior parte dos apotecários se situa.
Quando Meg já se preparava para atravessar a rua, Seraphine deteve-a. Afastou-a da rua movimentada, levando-a em direção à entrada de uma ruela menos concorrida.
- Meg, já pensaste como irás proceder caso consigamos encontrar essas bruxas?
- Não, confesso que ainda não pensei nisso.
- Estás a considerar entregá-las às autoridades?
Meg ficou a pensar no destino que estava reservado às mulheres acusadas de bruxaria, as condições inqualificáveis em que eram encarceradas, as torturas e a inevitável
sentença de morte, condenadas a serem enforcadas ou, ainda pior, a morrerem na fogueira. Estremeceu.
- Espero que, quando me der a conhecer a elas, seja capaz de as persuadir a desistirem da tentativa de restabelecerem a irmandade das bruxas.
Além do ataque de que o Armagil foi vítima, e estou em crer que isso aconteceu inadvertidamente, e dos esforços delas para atemorizarem o rei, não fizeram nada de
muito grave. Ninguém morreu devido às suas ações.
- De que tenhas conhecimento.
- Se elas forem como tantas da sua igualha, não passam de mulheres desesperadas que procuram algo que lhes dê esperança. Oxalá eu possa chamá-las à razão.
- Nesse caso, é uma pena que me tenhas obrigado a deixar o meu implemento de chamar à razão nos nossos aposentos. - Seraphine não podia andar pelas ruas de Londres
trajada com roupas masculinas e de espada à cinta. Mas como Meg conhecia a amiga, estava certa de que teria uma arma escondida. - E se vieres a descobrir, por muito
louco que possa parecer, que a tua mãe se encontra por detrás disto?
- Lidarei com esse assunto quando chegar a altura de o fazer. Em primeiro lugar, tenho de encontrar essas bruxas.
- Continuo a pensar que o Graham teria sido a nossa melhor pista.
286
- Ele teria preferido morrer. Ele tem um único objetivo, vingar-se de Jaime Stuart. Estaria disposto a dar a vida por isso - retrucou Meg, acrescentando: - Sonhei
outra vez com ela.
- com a tua mãe?
- Não, com a Maidred Brody. Ela voltou a suplicar-me que salvasse o irmão. Sei que não acreditas no que te digo. O Armagil acusou-me de ser louca.
- Já não sei o que pensar. Tenho visto demasiadas provas dos teus poderes para duvidar de ti. Mas estou convencida de que tens dedicado tempo de mais da tua vida
a desfazer o mal que a tua mãe fez. Não precisas de andar por aí a fazer promessas a fantasmas de sonhos. Sir Patrick, ou Robert Brody, qualquer deles que ele seja,
é muito capaz de resolver os seus próprios problemas.
Meg não lhe deu réplica. Talvez Seraphine tivesse razão, mas a verdade é que não conseguia esquecer facilmente os olhos atormentados de Maidred Brody. A rapariga
fora levada por maus caminhos, como tantas outras jovens inocentes aliciadas com a promessa da magia da Rosa de Prata. Todavia, Meg não via maneira de poder dar
paz ao espírito conturbado de Maidred. Como é que lhe seria possível impedir que Robert Brody continuasse a enveredar por uma senda de destruição? O homem desprezava-a
e desconfiava dela. A única pessoa que talvez conseguisse exercer alguma influência sobre Sir Patrick era Armagil.
Mas ela nem sequer tinha sido capaz de levar Armagil a admitir que Sir Patrick e Robert Brody eram uma e a mesma pessoa, por conseguinte, como é que conseguiria
persuadir Armagil a intervir? Ainda que ele não a desprezasse como era desprezada por Sir Patrick, era indubitável que passara a desconfiar dela agora que sabia
quem ela era realmente. Salvar Robert Brody? Seria tudo o que estava ao seu alcance fazer para conter a ameaça que a irmandade das bruxas representava. Toda aquela
situação lhe parecia desesperada e avassaladora.
Embrenhada nos seus deprimentes pensamentos, Meg caminhava ao lado de Seraphine em silêncio até ter avistado três pílulas douradas pintadas numa tabuleta de madeira,
o símbolo característico de um apotecário. O estabelecimento estava recheado de prateleiras bem fornecidas de frascos e garrafas de misteriosos preparados. A fragrância
de ervas aromáticas pairava no ar, recordando Meg pungentemente da sua câmara na ilha Encantada em que destilava as suas próprias poções. Aquela fragrância teria
sido como um bálsamo para si se não se sentisse tão exausta e ansiosa por não saber como é que seria acolhida pela boticária.
Lembrou-se de que a visita ao primeiro apotecário não produzira qualquer resultado positivo, além de olhares de ignorância em resposta às suas perguntas. O que se
repetiu no segundo estabelecimento e no terceiro.
Quando entraram no quarto apotecário, Meg começou a recear ter dado início a outra demanda fútil. Mas assim que viu a mulher que se encontrava atrás do balcão, ficou
tensa. Desta feita nem sequer foi preciso perguntar por um nome. Muito embora a mulher não pudesse ter muito mais de vinte anos, a cara arredondada e as feições
de expressão suave tinham parecenças extraordinárias com um rosto de feições mais idosas de que Meg se lembrava vividamente e a que associava uma voz meiga e braços
afetuosos. Patience Waters proporcionara a Meg o seu único refúgio durante os dias caóticos da sua infância.
Apertou o braço de Seraphine para lhe dar a entender que haviam encontrado o estabelecimento certo.
- Por favor, deixa-me conduzir este assunto - segredou-lhe Meg quando a mulher saiu de trás do balcão, enxugando as mãos ao avental.
Abordou-as com um sorriso caloroso que fez com que Meg se lembrasse tanto de Patience que sentiu um nó na garganta. O olhar da mulher percorreu Meg, antes de se
concentrar esperançosamente em Seraphine, o que não surpreendeu Meg. O manto de um corte elegante da amiga, a par da sua postura altiva, indicava sem sombra de qualquer
dúvida a perspetiva de uma cliente importante e abastada. com um sorriso radiante, a mulher inclinou-se numa profunda vénia.
- Boa tarde, milady. Como é que posso servir-vos?
- Bem, eu... - começou Meg a dizer, tentando uma abordagem cautelosa, mas foi interrompida por Seraphine, que foi direita ao assunto sem estar com rodeios.
- O seu nome é Mary Waters?
A mulher pestanejou, o seu sorriso a vacilar um pouco.
- Sim, sou, isto é, antes de ter casado com o meu Ned. Agora sou a senhora Mary Robards.
- Sim, mas a sua avó chamava-se Patience Waters.
- A minha avó chamava-se Prudence. A Patience era a minha tia-
-avó. - O semblante de Mary Robards mostrava-se mais reservado 288
quando acrescentou: - Mas ela faleceu há já muito tempo e... e em circunstâncias deveras angustiantes.
Meg suspirou. Tinha esperado encetar aquela conversa de uma maneira mais afável, mas as perguntas bruscas de Seraphine não lhe deixaram outra alternativa que não
fosse ir direita ao assunto de imediato.
- Eu sei. A Patience Waters foi minha ama. Chamo-me Margaret Wolfe.
Pela primeira vez, a mulher fixou o olhar em Meg, olhando-a de alto a baixo. Mary empalideceu e chegou ao ponto de se retrair, afastando-se de Meg.
- Não sois bem-vinda aqui. Se não sairdes imediatamente da minha loja, chamarei o meu marido ou... ou um guarda. - Mary preparava-se para passar das palavras à ação
quando Seraphine a agarrou por um braço.
- Não farás nada disso.
- Largai-me de imediato ou eu... ou começo a gritar.
- Phine, deixa-a ir - disse Meg, apressando-se a sossegar a mulher. - Mary, não queremos fazer-lhe mal nenhum. Só preciso de lhe fazer algumas perguntas.
- Não! Não quero ter nada a ver consigo, nem com a sua irmandade das bruxas.
- Eu não tenho irmandade nenhuma.
- De verdade? Então diga isso às bruxas suas amigas que vêm cá
para comprar ervas.
Bruxas amigas? A pulsação de Meg acelerou-se, esperançada em que talvez tivesse encontrado, por fim, a pista certa. Entretanto, Seraphine largou a mulher, que retrocedeu,
massajando o braço.
- Por favor, deixai-me em paz e sossego. - Mary dirigiu a sua súplica a Meg. - Não vos chega ter feito com que a minha tia Patience fosse assassinada?
- A Meg não fez nada disso! - ripostou Seraphine com rispidez.
- Por amor de Deus, ela era apenas uma criança.
- Não, Phine, eu sinto-me responsável pela morte da Patience Waters - adiantou Meg com tristeza, virando-se para Mary. - A sua tia era uma mulher extremamente boa
e sensata, uma verdadeira Filha da Terra. Ela trabalhou como minha ama durante os primeiros cinco anos da minha vida. Acalentou-me e tentou proteger-me da loucura
da minha mãe. Depois de se ter inteirado dos planos insanos que a minha mãe tinha para mim, a Patience confrontou-a. Ameaçou Cassandra de que me levaria para longe,
procurando refúgio na ilha Encantada.
"Eu... eu ouvi a discussão entre as duas. Foi tão acesa e violenta que fiquei aterrorizada e comecei a chorar. Foi a Patience quem me acalmou. Disse-me que não tivesse
medo, que tudo haveria de correr bem. Entoou-me uma canção de embalar com que me adormeceu nos seus braços. Mas quando acordei na manhã seguinte... - Meg calou-se,
engolindo em seco - vi que a Patience havia desaparecido. Nunca mais a vi depois dessa noite. A minha mãe disse-me que tinha despedido a minha ama e que ela havia
voltado para junto da sua família.
- Mas não voltou! - gritou Mary. - Ela nunca mais voltou para junto de nós. Desapareceu sem deixar rasto.
- Eu era apenas uma criança - retorquiu Meg com um acenar de cabeça que expressava tristeza -, mas até mesmo nessa altura senti que a minha mãe me mentia. Sempre
receei que a Cassandra tivesse... eu sabia bem como a minha mãe era impiedosa para com quem lhe oferecesse resistência. Peço-lhe que acredite em mim quando lhe digo
que amava muito a sua tia Patience. Eu teria dado tudo se pudesse ter...
A voz de Meg enrouqueceu e não foi capaz de prosseguir. Seraphine passou-lhe um braço pelos ombros, apertando-a afetuosamente. Depois de ter conseguido recuperar
o domínio sobre as suas emoções, acrescentou com suavidade:
- Lamento muito, Mary.
Parte da hostilidade desapareceu dos olhos de Mary, mas voltou a colocar-se atrás do balcão.
- Se lamentais realmente como afirmais, então deixar-me-eis em paz e sossego e ordenareis às vossas lacaias que façam o mesmo.
- Não tenho lacaias. De facto, quero encontrar essas bruxas de que falou. Receio que andem a tentar restabelecer a antiga irmandade das bruxas. Quero impedi-las
de fazerem isso.
- Nesse caso, desejo-vos muita sorte com isso. Essas duas harpias parecem-me tão determinadas como são aterradoras.
- Portanto são duas, é isso? - perguntou Seraphine. - Sabe como é que se chamam?
Mary lançou um olhar de nervosismo por cima do ombro, como se receasse que a ouvissem e lhe rogassem uma praga por estar a falar com elas, respondendo às perguntas
que lhe faziam. Inclinou-se para a frente e falou num sussurro que mal se ouvia.
290
- Parece-me que são irmãs. Chamam-se Amélia e Beatrice Rivers. Rivers? O mesmo apelido da bruxa velha que tinha amaldiçoado o rei.
Meg e Seraphine trocaram um olhar cheio de significado, vendo as suas suspeitas confirmadas. Aquelas eram, inequivocamente, as bruxas que procuravam.
- E o que elas pretendiam de si? - perguntou Meg a Mary.
- Ao princípio, só vinham comprar ervas, mas depois começaram a aludir a outras coisas, que se aproximava um grande dia que mudaria tudo para as Filhas da Terra,
um novo poder que se imporia, pondo fim ao domínio dos homens. Elas falavam de vós. - Mary lançou um olhar a Meg que era um misto de desconfiança e ressentimento.
- Falavam de como seríeis a sua libertadora e vingadora. A Rosa de Prata.
- Não sou essa Rosa de Prata, Mary - retorquiu Meg com um abanar de cabeça. - Nunca fui, exceto na imaginação demente da minha mãe.
- Sim, demente é a palavra correta - concordou Mary. - Eu até podia ter ignorado a conversa tresloucada dessas bruxas se elas não se tivessem mostrado tão aterradoramente
sérias e determinadas para que eu me juntasse a elas no restabelecimento da irmandade das bruxas. Ameaçaram-me, dizendo que, se não concordasse, haveria de me arrepender.
"Fiquei assustada de mais para lhes perguntar o que é que queriam dizer com isso. Quando mandei que saíssem da minha loja, elas obedeceram - acrescentou Mary com
um estremecimento. - Há vários dias que não lhes ponho a vista em cima. E rezo para que nunca mais volte a vê-las.
Meg humedeceu os lábios. Havia outra pergunta que tinha de lhe fazer, apesar de temer a resposta.
- E essas duas irmãs vieram cá sempre sozinhas? Alguma vez as viu acompanhadas de uma mulher mais velha, muito magra, muito pálida e cega?
- Não, não me recordo de ter visto ninguém que corresponda a essa descrição.
Se Cassandra Lascelles tivesse acompanhado aquelas duas mulheres, decerto que Mary teria reparado nela. A mãe de Meg desde sempre que havia sido uma figura difícil
de esquecer. O facto de não ter sido vista com as irmãs Rivers não eliminava inteiramente a possibilidade de ela continuar viva e por detrás do que se estava a passar.
Não obstante, Meg começou a sentir-se um pouco mais aliviada.
- E então, faz alguma ideia do local onde poderemos encontrar essas irmãs Rivers? - perguntou Seraphine.
- Sim - respondeu Mary, mas a sua resposta foi dirigida a Meg.
Jurais que não sois realmente uma delas? Que a vossa intenção é pôr cobro ao que andam a fazer... e que as impedireis de retornarem aqui para me atormentarem?
- Farei tudo o que estiver ao meu alcance - replicou Meg calmamente. - Juro por minha honra na qualidade de Senhora da Ilha Encantada e de verdadeira Filha da Terra.
- Elas estão alojadas numa estalagem perto de Westminster - informou Mary depois de a ter observado demoradamente. - Na Duas Coroas. Foi aí que me ordenaram que
fosse quando deixasse de ser idiota, decidindo juntar-me a elas.
- Estou-lhe muito grata pelo que me disse. Como é que posso compensá-la pela sua ajuda?
- Ficando bem longe de mim e da minha família. Não quero ter nada a ver com os conhecimentos da Antiguidade, até mesmo com a magia branca que a minha avó e a minha
tia-avó Patience praticavam. Considero muito mais seguro proceder desta maneira.
Mary Waters não era a única mulher a pensar assim. O número de Filhas da Terra era cada vez mais reduzido. Meg compreendia os temores daquelas que desejavam abandonar
os conhecimentos da Antiguidade, o que não obstava a que fosse uma realidade que a entristecia.
Mary retomou o seu trabalho com o pilão e o almofariz, triturando vigorosamente manjerona em pó muito fino. Nem sequer ergueu o olhar quando Meg e Seraphine se viraram
para saírem.
Já estavam quase a chegar à porta quando Mary as chamou:
- Margaret Wolfe, esperai.
Meg e Seraphine detiveram-se e olharam para trás.
- Há outra coisa em relação a essas duas irmãs. A mais velha, a Beatrice, é extremamente fria e cruel. Estou certa de que ela seria muito capaz de esfolar um cachorrinho
em vida, rindo-se enquanto o fizesse. Mas a mais nova, Amélia... - Mary estremeceu. - Por muito simpática que ela possa parecer, existe um enorme vazio na expressão
dos olhos dela. Mas, de um momento para o outro, ela olha para as pessoas como se o Diabo tivesse acabado de acender o lume dentro dela. Das duas, ela é a mais perigosa.
Se a confrontardes, aconselho-vos a que tenhais muito cuidado.
A Estalagem Duas Coroas tinha o aspeto de um estabelecimento muito pouco conceituado. As ervas daninhas tinham invadido o pátio e o próprio edifício mostrava sinais
evidentes de deterioração. A tinta da tabuleta com o nome da estalagem já tinha começado a lascar, fazendo com que uma das coroas parecesse estar partida ao meio.
Em vez de ser um símbolo de esplendor real, mais parecia as extremidades serrilhadas de uma armadilha para animais.
"Aconselho-vos a que tenhais muito cuidado."
A advertência de Mary ecoava na cabeça de Meg. Mas o temor era menor do que o peso opressivo que se instalara no seu coração. Era tarde de mais para estar com cautelas,
demasiado tarde para que pudesse albergar qualquer esperança de uma resolução pacífica se o que lhe tinham dito correspondesse à verdade.
Toda a gente, desde o moço de estrebaria que se encostava ociosamente à vedação aos dois garotos vadios que pediam esmola, estava ansiosa por contar como a mulher
do estalajadeiro havia sido brutalmente assassinada duas noites atrás.
- Ouvi dizer que esquartejaram a velha senhora Keating de uma maneira bárbara - disse um dos rapazes a Meg. Parecia demasiado novinho para estar a falar com tanta
satisfação de um acontecimento tão macabro. Sorria abertamente, mostrando a falta dos dentes da frente, até o amigo mais velho lhe ter dado uma cotovelada no estômago.
- Conto-vos tudo por uma moeda, senhora - adiantou o mais velho, estendendo-lhe a mão suja. Mas o mais novinho não permitia que o outro lhe cortasse a palavra.
- Foram as bruxas que a mataram. Elas trataram de a esquartejar e deram-na a comer aos cães do Diabo. Em seguida, saltaram para cima do cabo das vassouras e sumiram-se,
sem que ninguém consiga encontrá-las.
- Espero que elas passem por aqui nas suas vassouras para te apanharem, meu pateta linguareiro. Devias ter ficado de bico calado até elas nos pagarem.
Era possível que os rapazes acabassem por resolver a discussão ao soco se Seraphine não tivesse decidido intervir, dando uma moeda a cada rapaz. Começou a bombardeá-los
com perguntas a que eles não sabiam como responder, mas Meg já ouvira o suficiente.
Aproximou-se da entrada da estalagem, sentindo um aperto de temor no estômago. Ouviu Seraphine que lhe gritava para que esperasse, mas chamou a si todas as suas
forças e entrou.
A taberna não era mais agradável do que o exterior da hospedaria, o soalho coberto com esteiras de junco sujas e o ar fedendo a bebidas azedadas. Meg avistou o corpulento
estalajadeiro de imediato, o qual servia grandes canecas de estanho cheias de cerveja enquanto se ria e estava na brincadeira com os clientes.
Keating não parecia nada um homem em estado de choque que estivesse a sofrer pelo assassínio da mulher, o que levou Meg a acalentar a esperança ténue de que os mexericos
que ouvira no pátio viessem a provar não ter qualquer fundamento. Quando Seraphine se lhe juntou, os olhos de todos os homens presentes viraram-se na direção das
duas. Meg duvidava de que mulheres respeitáveis alguma vez transpusessem a soleira de uma taberna frequentada por gente tão grosseira, em especial, nenhuma tão formosa
como Seraphine.
Esta mostrava-se absolutamente indiferente à agitação que a sua presença causava, mas as bochechas de Meg ardiam por sentir todos aqueles olhares lúbricos de que
eram alvo. Quando o estalajadeiro se encaminhou para elas, Meg procurou as palavras adequadas para formular a sua pergunta acerca das irmãs Rivers sem levantar suspeitas
no homem.
- Ah, já sei o que as senhoras pretendem - antecipou-se-lhe Keating com um sorriso de orelha a orelha.
- Já... já sabeis? - perguntou-lhe Meg.
- Custa um dinheiro por pessoa.
- Um dinheiro? Pelo quê? - perguntou Seraphine autoritária.
- É o que estou a cobrar pela visita ao aposento onde a horrível matança da minha pobre Lizzie teve lugar.
294
Meg ficou de boca aberta e Seraphine ficou com a respiração arquejante.
- Está a cobrar às pessoas que querem ver a alcova em que a sua mulher foi assassinada? Mas que espécie de canalha é você?
Keating encolheu os ombros bem fornidos de carne.
- Sou um homem prático. A minha Lizzie era uma mulher forreta que sabia como ganhar uns dinheiros. Ela teria sido a primeira a aplaudir o meu expediente. E quanto
a apelidar alguém de canalha, minha bela senhora, não sou eu quem anda a calcorrear a cidade feito parvo para poder ver uma alcova com as paredes manchadas de sangue.
Quando Seraphine respirou fundo, mostrando-se furiosa, o estalajadeiro ergueu as mãos num gesto apaziguador.
- Não que eu vos censure. Eu próprio gosto de emoções fortes. Mas parece-me justo que seja compensado por as proporcionar aos outros.
- A minha amiga e eu não andamos à procura de emoções fortes, grande mentecapto gordo e impudente. Tudo o que pretendemos são inform...
- Paga ao homem, Seraphine - atalhou Meg em voz baixa.
- O quê!? Meg, com certeza que não queres ver essa... essa câmara de horrores!
- Paga-lhe!
Seraphine franziu os sobrolhos, mas devia ter visto a expressão de determinação no rosto de Meg. Apesar de resmungar entre dentes, tirou duas moedas de dentro da
bolsa, colocando-as com brusquidão na palma da mão estendida de Keating.
O homem esboçava um sorriso dengoso enquanto lhes indicava a alcova acima das escadas exteriores. Piscou o olho a Seraphine e Meg apercebeu-se de que ela tinha ficado
dividida entre esbofeteá-lo e intercetar Meg. Mas esta foi demasiado lesta para ela, saindo da taberna num passo apressado. Já se encontrava a meio das escadas quando
Seraphine a apanhou, agarrando-a pelo cotovelo.
- Meg, espera. Não tens nada a ganhar ao veres uma alcova que só poderá agravar os teus pesadelos. Chegámos demasiado tarde, decerto que deves perceber isso mesmo.
Essas irmãs Rivers foram longe de mais. Cometeram um assassínio e terão de responder por isso. O melhor é deixar que os magistrados se encarreguem do assunto. Já
não poderás salvá-las.
- Estou bem ciente disso. Mas não me parece que as autoridades sejam capazes de as encontrar. O que não conseguiram fazer até ao momento. E ouviste o que a Mary
Waters disse. Que essas mulheres estão determinadas a restabelecer a Irmandade da Rosa de Prata. Mas é imperativo que eu impeça que essa loucura se dissemine, além
disso, continuo a precisar de saber se a minha mãe está, de uma maneira qualquer, por detrás do que se está a passar.
- Portanto, estás a pensar fazer o quê... encontrar alguma pista nesse quarto que os agentes da autoridade não tenham reparado?
- Talvez. Não é a minha faculdade mais forte, mas sabes que, por vezes, sou extraordinariamente sensitiva no que diz respeito à atmosfera de um local onde tenham
ocorrido atos de violência.
- Sei que sim, minha querida amiga - retorquiu Seraphine -, razão por que gostaria de impedir com todos os meios ao meu alcance que entres nessa alcova. Mas se insistires
em levar a tua avante, deixa-me entrar antes de ti.
- Há muito tempo que as bruxas se foram embora - retorquiu Meg, abanando a cabeça - e, ao contrário de Jaime Stuart, eu não tenho medo de fantasmas. Naquela alcova
não existe nada nem ninguém que possa fazer-me mal.
Mas, assim que entrou no aposento, Meg compreendeu que estava enganada. A alcova era tão exígua que a presença do homem bem entroncado dava a impressão de a encher.
Ele estava de costas para ela enquanto examinava atentamente qualquer coisa numa parede. A pulsação de Meg acelerou-se, a largura daqueles ombros, a inclinação da
cabeça e a basta cabeleira indomável eram-lhe tão familiares que lhe permitiram reconhecer Armagil antes mesmo de ele se virar de frente para si.
Ele pareceu tão surpreendido ao vê-la quanto ela quando deparou com ele. Até ter entrado naquele quarto, Meg tinha-se resignado a nunca mais voltar a vê-lo. O seu
coração batia com um misto insuportável de alegria e mágoa. Para além da surpresa inicial, era impossível descortinar o que Armagil estaria a sentir.
- Vós! - exclamou Seraphine num tom de voz carregado de aversão. Levou a mão aonde a sua espada devia ter estado e Meg sentiu-se extremamente contente por ela não
a ter trazido. - Mas o que diabo é que estais a fazer aqui?
Imperturbável perante a reação de cólera de Seraphine, Armagil respondeu:
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- Imagino que a mesma coisa que estais a fazer aqui. Ouvi falar do assassínio e decidi vir ver com os meus próprios olhos.
- Não me digais que hoje não houve nenhum espetáculo de cães açulados a ursos acorrentados nem enforcamentos para vosso divertimento.
- Não ando à procura de divertimento, apenas quero informar-me sobre o paradeiro das mulheres que cometeram este crime. Estou em crer que talvez sejam as mesmas
que tentaram envenenar-me.
- E que pena que não tenham sido bem-sucedidas.
- Realmente, é uma pena - retorquiu Armagil numa voz arrastada. - Até porque o meu senhorio é um homem de bem e poderia ter sido quem lucraria bastante ao mostrar
os meus aposentos.
Seraphine teve de fazer um esforço para não sorrir, o que pareceu irritá-la ainda mais do que antes. Meg conseguia ver que a amiga ansiava por dizer umas quantas
coisas a Blackwood de que ele não se esqueceria tão depressa.
Meg apressou-se a puxá-la de lado, falando-lhe veementemente em voz baixa até convencer Seraphine a desistir da atitude belicosa. Noutras circunstâncias, talvez
não tivesse conseguido, mas por muito que a condessa ansiasse vingar o mal que, na sua perspetiva, havia sido feito a Meg, compreendia que não poderia fazê-lo sem
revelar a Armagil o quanto a amiga estava a sofrer. E se existia um sentimento que Seraphine compreendia plenamente, era o do orgulho.
No entanto, mostrou-se menos cordata quando Meg insistiu com ela para que fosse para baixo, a fim de interrogar mais aprofundadamente Keating e a rapariga que trabalhava
na cozinha acerca das irmãs Rivers. Meg sabia que, não obstante todos os seus esforços, Seraphine não seria capaz de se conter se continuasse durante muito mais
tempo na presença de Armagil.
Depois de uma intensa troca de palavras sussurradas, Seraphine fez o que a amiga lhe pedia, mas não sem antes lançar um olhar coruscante de advertência a Armagil.
Quando a porta se fechou depois de ela ter saído, seguiu-se um silêncio de mal-estar. Blackwood tentou sorrir.
- Ao que tudo indica, parece que deixei de estar nas boas graças da condessa. Não que ela alguma vez tenha tido grande opinião a meu respeito.
- Ela só é excessivamente protetora em relação a mim, sempre com receio de que eu seja uma criatura frágil que pode ser magoada com facilidade.
"E eu magoei-te? Os olhos de Armagil faziam esta pergunta, ainda que ele não a verbalizasse. Meg considerou ser preferível concentrar o olhar na alcova, evitando
olhar para ele. Tinha receado sentir-se assolada por uma poderosa aura de terror e raiva. Mas a presença de Armagil era tão avassaladora que bloqueava quaisquer
outras sensações, exceto ter consciência de que ele estava ali.
Meg só podia recorrer aos seus olhos e não havia grande coisa que pudesse observar, à exceção da prova de que as ocupantes daquele aposento o haviam abandonado com
alguma precipitação - a cama por fazer e alguns pertences que tinham ficado para trás. O mais significativo dos quais era a arca da roupa vazia que estava manchada
com o que parecia ser sangue.
Meg não foi capaz de se obrigar a examiná-la mais de perto. Em vez disso, baixou-se para apanhar do chão um pedaço de fita que esfregou entre os dedos. Era de seda
de um azul-claro, falando-lhe dos sonhos inocentes de meninas, em absoluto contraste com a violência que tivera lugar naquela alcova.
Levou a fita à face e sentiu-se invadida por um inexplicável sentimento de tristeza e esperanças goradas. Consciente dos olhos de Armagil presos nela, baixou a mão.
- Não há muita coisa que se possa ver aqui - comentou Meg.
- Não. Sentir-me-ia tentado a exigir ao Keating que me devolvesse o meu dinheiro, se não fosse isto. - Armagil afastou-se para o lado, permitindo que se visse o
que a largura dos seus ombros ocultara, o símbolo pintado a sangue na parede.
Meg sentiu um aperto no estômago ao ver o pentagrama desenhado a sangue, o que era muito mais perturbador do que o interior ensanguentado da arca. Sentiu o primeiro
arrepio gélido da aura que pairava na alcova, deixando que a fita lhe caísse da mão sem ter consciência disso.
Obrigou-se a aproximar-se da parede. Detestava ter de o reconhecer, mas sentia-se grata pela presença sólida de Armagil ao seu lado enquanto examinava aquele símbolo.
- É um pentagrama, não é? - perguntou-lhe ele. - A marca do Diabo.
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Meg sentiu a garganta embargada. Pigarreou e fez um esforço para responder num tom de indiferença.
- Não necessariamente. Num pentagrama desenhado como deve ser, o topo da estrela representa o espírito. As outras quatro pontas representam os elementos, terra,
ar, fogo e água. Habitualmente, é considerado um bom sinal, uma proteção contra o mal.
- Quando não é pintado a sangue - retorquiu Armagil com secura.
- S... sim. E quem quer que tenha desenhado este inverteu a estrela, de maneira a apontar de cima para baixo.
- E isso tem algum significado?
- Significa que o seu espírito passou a ser escravo dos seus desejos carnais. Precisa de enfrentar a perversidade dentro de si antes que se soerga e se apodere completamente
do controlo sobre si.
Não fosse o facto de isso já ter acontecido. Meg pousou os dedos próximo da ponta da estrela. Sentiu-se envolvida numa voragem de raiva, dor e ódio. Afastou a mão
bruscamente, os seus sentidos em turbilhão. Cambaleou e teria caído se Armagil não a tivesse segurado.
- Meg?
A tremer descontroladamente, não conseguiu responder-lhe. Ele tomou-a nos braços, abraçando-a fortemente junto ao seu corpo. Meg escondeu o rosto no peito dele,
grata pela força que emanava de Armagil, que lhe afagava o cabelo enquanto lhe murmurava palavras que ela não conseguia compreender, mas isso não tinha importância,
o tom de voz dele era tão tranquilizante e suave. A ternura e a calidez dele, a pouco e pouco, começaram a banir a escuridão.
Meg teria sido capaz de ficar agarrada a ele para sempre, mas ao readquirir o domínio das suas emoções, sentiu-se confusa perante o comportamento dele. Quando se
arriscou a olhá-lo, ele sorriu-lhe.
- Estás a sentir-te melhor?
Ela acenou que sim.
- O que é que se passou?
- Eu... eu não sei dizer. Às vezes sinto coisas que desejaria não sentir. Quando toquei na parede, foi como se pudesse aperceber-me da perversidade da bruxa. - Meg
ficou à espera que ele recuasse, mas tal não aconteceu.
- Esse é outro dos teus... dotes?
- Sim.
Armagil parecia mais curioso do que desconfiado, mais igual ao homem que ela acreditava ter conhecido, o Armagil que fizera amor com ela tão apaixonadamente e não
aquele que se tornara tão frio, pouco tendo faltado para a pôr fora da sua alcova. O coração de Meg ficou tão cheio de esperança que chegava a ser doloroso, mas
não era capaz de confiar nessa emoção nem nele.
Quando Meg se afastou dele, Armagil pareceu estar relutante em largá-la. Ela recuou e tentou ler-lhe os olhos, mas ele apressou-se a desviar o olhar.
- Porque é que vieste aqui realmente, Armagil?
- Já te disse. A minha razão é a mesma que a tua. Ando à procura de bruxas.
- E estou incluída nisso?
- Não te vejo dessa perspetiva.
- Não foi essa a impressão com que fiquei quando nos separámos.
- Isso deve-se ao facto de eu ser um grande imbecil. Admito que fiquei chocado com o que me disseste. Quando me confessaste que eras a Megera, fiquei absolutamente
avassalado. Fiquei sem saber bem o que pensar nem o que sentir.
- E agora?
Armagil arriscou-se a olhar para ela e, pela primeira vez desde que estavam ali, permitiu-lhe um vislumbre por detrás da barreira.
Ele amava-a.
Meg ficou com a respiração presa na garganta. Armagil havia sentido a mesma poderosa emoção que ela sentira quando fizeram amor. Mas era algo que o assustava e não
devido à estranha herança dela. Portanto, porque é que seria? Talvez fosse alguma coisa no seu próprio passado? Por causa de algum acontecimento terrível que o deixara
desavindo com a sua família, ao ponto de renegar o seu próprio pai? Por breves momentos, ela conseguiu ver uma sombra do rapaz de coração terno que ele havia sido
em tempos. Mas Armagil semicerrou os olhos, vedando-lhe a entrada.
Tinha existido qualquer coisa que o tornara no homem empedernido em que se transformara, receando arriscar o seu coração. Todavia, Armagil amava-a a despeito de
si próprio. Aquele pensamento pôs-lhe um sorriso trémulo nos lábios, mas suprimiu-o. Não seria sensato fazer mais pressão sobre ele, forçá-lo a confissões que ele
não estava preparado para fazer.
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- Estás determinado a descobrir o paradeiro dessas bruxas e, contudo, tenho dificuldade em acreditar que seja por te terem envenenado disse Meg. - Dás tão pouca
importância à tua própria vida.
- Perdi todo o meu dinheiro a jogar aos dados na taberna ontem à noite, por isso fiquei sem ter com que pagar outro divertimento.
- E como é que conseguiste sequer encontrar este lugar? - Ficou bem patente que a pergunta dela o deixou constrangido. - Ouvi falar do assassínio e conheço bem um
homem que tem um jeito muito peculiar para se inteirar dos crimes que têm lugar na cidade.
- E que homem é esse?
- Gilly Black - respondeu Blackwood taciturnamente.
- O teu pá... - começou Meg a dizer, mas conteve-se ao ver a expressão carrancuda dele. - O senhor Black - corrigiu-se. - Reconciliaste-te com ele?
- Eu não poderia chamar-lhe de reconciliação. Fui falar com ele para que me desse informações, mais nada.
- O que deve ter sido extremamente difícil para ti, teres ido ter com ele para lhe pedires esse favor.
Armagil encolheu os ombros.
- Por que motivo é que decidiste fazer uma coisa dessas? Ele fitou-a com uma expressão exasperada.
- Tu és uma mulher extraordinária em relação a determinados aspetos, Margaret Wolfe, mas sob um aspeto és exatamente como todas as mulheres do mundo. Fazes perguntas
a mais.
Ele afastou-se dela, como se assim conseguisse furtar-se à curiosidade dela. Mas num espaço tão reduzido não havia como escapar-lhe. Quando Meg já receava que ele
saísse porta fora, abandonando o quarto, Armagil virou-se para ela com uma expressão exasperada.
- E tudo por tua causa, minha tontinha. Continuas a persistir em correr perigos. A única maneira que tenho de te proteger é ser eu próprio a encontrar essas bruxas.
Se te acontecesse alguma coisa de mal, eu não seria capaz de suportar isso. - A voz dele baixou de tom até ficar reduzida a um murmurar enrouquecido. - Estou em
crer que enlouqueceria.
O coração de Meg ameaçava rebentar de alegria. Ansiava por enlaçar-lhe o pescoço nos seus braços, mas, em vez disso, estendeu uma mão como faria para tranquilizar
um animal feroz que tivesse encontrado ferido na floresta. Armagil ficou a olhar para a mão dela e depois encostou a palma da sua mão à dela, entrelaçando os dedos
nos de Meg.
- Portanto, não te sou indiferente - disse ela. - O que se passou entre nós na tua alcova não foi uma cambalhota entre lençóis sem qualquer significado.
- Não e lamento ter dito isso. Eu só precisava de... eu só queria...
- Afastar-me porque eu te infundia receio.
- O que é verdade. E isso não tem nada a ver com o facto de eu pensar que és uma bruxa. É por causa desses teus olhos. Estão constantemente a perscrutar o meu coração
à procura de algo que eu receio dar. Sou um homem fraco, Margaret. E também sou um cobarde.
- Não acredito nisso - retorquiu Meg, apertando-lhe a mão.
- Oh, eu não teria a mínima dificuldade em proteger-te se alguém te atacasse com uma espada de lâmina aguçada. A minha vida não vale nada. Mas quando se trata de
eu me abrir à dor de uma grande perda, sou tão cobarde como um rapazinho medricas.
- Por conseguinte, preferirias fechar-te à perspetiva do amor e às inúmeras alegrias que nos proporciona?
- A minha única experiência de alegria é saber que é efémero e que deixa um vazio quando desaparece - replicou Armagil com um prolongado suspiro. - Mas quaisquer
que sejam os receios que suscitaste em mim, já é tarde de mais para os evitar. Tudo o que posso fazer é tratar de te manter em segurança o melhor que me for possível.
Meg sentiu-se emocionada com as palavras dele, com a ternura que se espelhava nos olhos de Armagil. Não devia pressioná-lo para que lhe dissesse mais, mas ocorreu-lhe
um pensamento que mal se atrevia a verbalizar.
- Sinto-me agradecida por quereres proteger-me, Armagil, mas existe algo muito mais importante que podias fazer.
- Diz-me o que é - replicou ele, levando a mão dela aos lábios. - Faria tudo e mais alguma coisa por ti.
- Prefiro que protejas o Robert Brody em vez de me protegeres. Blackwood praguejou e largou-lhe a mão como se, de repente, tivesse passado a ser um carvão em brasa.
- Mas, até mesmo agora, Sir Patrick pode estar a...
- Não, Margaret, imploro-te. Não recomeces com esses disparates acerca de o Graham ser o Robert Brody. Eu já te disse que isso não é possível.
- Mas estou convencida de que é. Sonhei outra vez com a Maidred.
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- Pára com isso - atalhou ele. - Sou capaz de me conciliar com os teus outros estranhos talentos, mas esses teus sonhos são demasiado inquietantes. Não quero ouvir
mais nada a respeito deles.
Armagil ergueu as mãos para a silenciar. Mas, então, gemeu e baixou os braços. Como se fosse mais forte do que ele, falou-lhe num tom autoritário.
- Raios partam isto, mas seja como queiras. Conta-me o que sonhaste.
- Foi o mesmo sonho que tive antes. A Maidred a suplicar-me que salvasse o irmão. As súplicas dela são cada vez mais desesperadas e eu não posso fazer nada. Talvez
sejas a única pessoa que poderá ajudar.
- Salvar um homem que nem sequer conheço? Alguém que não passa de uma figura que inventaste nos teus pesadelos?
- Tu conhece-lo. E estou convencida de que és o único que será capaz de parar Sir Patrick.
- Pará-lo de fazer o quê? - perguntou Armagil irritado.
- Sabes perfeitamente do que estou a falar. Sir Patrick, ou devia dizer Robert Brody, está determinado a vingar-se de Jaime Stuart.
- Se o rei foi responsável pela morte de alguém que ele amasse, talvez o Brody tenha direito a fazer isso.
- Não, isso só se traduzirá na destruição do teu amigo. Ainda que Sir Patrick fosse capaz de acabar com a vida de Jaime Stuart e, sabe-se lá como, ficar impune,
não percebes o que essa ação lhe fará? O derramamento de sangue nessas circunstâncias deixa uma mácula na alma de um homem que não pode ser lavada. Eu que o diga.
Eu própria estive demasiado perto dessa espécie de perversidade.
- Mas ainda que o que tu digas seja verdade, o que é que eu posso fazer a respeito desse assunto? - perguntou Armagil.
- Tu és o seu amigo mais chegado.
- Era. Nem sequer trocámos uma única palavra desde o dia em que discutimos por causa... - Blackwood calou-se com uma expressão de constrangimento.
- Por causa de mim - concluiu Meg em voz baixa. - Nunca poderás saber o quanto lamento ser a causa dessa desavença entre vocês os dois, mas isso não altera a situação.
Conheces Sir Patrick melhor do que ninguém. Decerto que terás uma ideia sobre o que ele anda a planear.
- Tenho por princípio nunca me meter nos assuntos dos outros. Isso exigiria demasiado esforço da minha parte. Não sei o que o Graham poderá andar a conspirar, exceto...
Receio que não ande a agir sozinho acabou Armagil por admitir, franzindo o sobrolho.
- Achas que ele está de conluio com as bruxas?
- Não. Embora não seja capaz de imaginar qual o papel delas em tudo isto, o Graham nunca se associaria voluntariamente... bem, tenho a certeza de que ele deixou
bem claro, de uma maneira que te magoou muito, o que sente em relação à prática de feitiçaria. Mas há já algum tempo que tenho a perceção de que o Graham participa
em reuniões secretas. Desconfio que com outros católicos fanáticos.
"A ser verdade, só podem ter um objetivo em mente, o assassínio do rei, o que satisfaria o desejo de vingança do próprio Sir Patrick. Neste momento, ele saiu com
o rei para participar numa caçada. Seria a oportunidade perfeita para atacar Jaime Stuart.
- Nesse caso, é provável que já seja tarde de mais.
- Não. Se fosse, não me parece que continuarias a sonhar com a Maidred. No entanto, o que é que queres que eu faça? Que te abandone e vá atrás do Graham?
- Ficarei em segurança até regressares - replicou Meg. Quando ele a olhou com uma expressão de ceticismo, insistiu. - A sério que sim. Essas bruxas estão bem escondidas
depois do que fizeram e não faço a mínima ideia de onde procurá-las.
- Mas não tencionas parar de as procurar.
- Não vou procurá-las até voltares. Dou-te a minha palavra de honra quanto a isso. Por favor, Armagil. Tu és a única pessoa a quem Sir Patrick dará ouvidos. És o
único que poderá proporcionar paz ao espírito de Maidred, salvando o irmão dela.
- Eu!? - Armagil soltou uma gargalhada roufenha. - Não fazes ideia de como o que estás a dizer é divertido. Mandar-me ir atrás do Graham é o mesmo que mandar um
chacal para parar um lobo. Também não morro de amores por Jaime Stuart. Ele é um infeliz arremedo de rei e de homem.
- Mas não queres que o assassinem.
- Não quero? - perguntou Blackwood em tom de desafio, o maxilar cerrado numa expressão de dureza.
- Se quisesses vir a ser um carrasco, há vários anos que poderias ter feito isso. Em vez disso, optaste por estudar medicina.
304
- Levando em consideração a minha competência como físico, as duas atividades, com muita frequência, são uma única. - A expressão de amargura de Armagil desvaneceu-se.
Suspirou. - Muito bem. Talvez eu me tenha mantido de parte sem fazer nada durante demasiado tempo. vou atrás do Graham, se bem que não possa garantir-te que fiques
satisfeita com os resultados.
- Deposito toda a confiança e esperança em ti.
- Tal como eu já te disse antes, és uma tolinha. - Mas Blackwood suavizou as palavras ao beijá-la antes de a deixar.
Amy mantinha-se por baixo do beiral da casa de fachada saliente dois pisos acima de si. Apoiada na bengala, estava encostada à parede. Aos olhos de qualquer transeunte,
ela pareceria uma mendiga idosa e cansada, embrulhada no seu xaile, tentando proteger-se do vento de um frio cortante. Desde que ninguém se detivesse para a examinar
mais de perto. O que ninguém fez para seu grande alívio.
Estava a arriscar-se muito ao aventurar-se a ir tão perto da área de Londres onde seria procurada com mais afinco depois do que tinha feito. Do sítio onde se encontrava,
conseguia ver bem a tabuleta da Duas Coroas, que era agitada pelo vento, mantendo-se vigilante à porta por onde Margaret Wolfe tinha desaparecido no interior da
estalagem, parecendo-lhe que há uma eternidade.
Se Amy fosse apanhada - nem sequer queria pensar nessa possibilidade, o que fez com que a mão que se apoiava na bengala tremesse. Ao contrário da irmã, não se sentia
empolgada perante a perspetiva de uma situação de perigo. O arrepio de excitação subjacente ao temor que sentia tinha uma origem inteiramente diferente - Megera.
Naquela altura, a Rosa de Prata já estaria a examinar o símbolo que Amy pintara a sangue na parede. Seria ela capaz de compreender o significado? Sentir-se-ia impressionada
com o que Amy fizera? Compreenderia ela que, em Amélia Rivers, a Rosa de Prata tinha uma seguidora incondicional?
Sentiu uma mão pesada no ombro. Soltou um guincho de medo, virando-se para o lado enquanto brandia a bengala para se defender do rapaz que a agarrara pelo ombro.
Os olhos de Bea troçavam dela abaixo da aba do toque adornado com uma pena. Amy baixou a bengala com um suspiro trémulo, sentindo a pulsação a bater com força.
- Raios te partam, Bea! Quase fizeste com que o meu coração parasse de bater. Pensei que eras um guarda.
- O que poderia muito bem ter sido, levando em linha de conta a pouca atenção que prestavas ao que te rodeia, com o olhar fixo outra vez e com essa expressão de
imbecilidade nos olhos.
- Estou a manter-me muito atenta à Rosa de Prata - ripostou Amy numa voz sibilante.
- O que estás a fazer muito atabalhoadamente. Porque é que está a levar tanto tempo? O mais certo é ela já ter conseguido passar por ti sem que tenhas dado por isso,
tendo desaparecido há muito tempo.
- Não aconteceu nada disso! E se achas que eras capaz de fazer muito melhor, devias ter sido tu a manteres-te de vigilância, tu que afirmas adorar tanto as situações
de perigo.
- Gosto de correr riscos, mas não riscos estúpidos. O teu disfarce é muito melhor do que o meu. Passas muito melhor por uma velha do que eu passo por um rapaz.
Amy rangeu os dentes ao ouvir o escárnio. As mãos fecharam-se na bengala, resistindo a uma vontade quase irreprimível de a partir na cabeça da irmã. Beatrice comportava-se
de maneira mais malévola do que era costume desde que haviam sido forçadas a fugir do alojamento de ambas na Duas Coroas. Mas Amy não acreditava que essa fosse a
verdadeira razão do mau humor de Bea. Não, a irmã tinha, muito simplesmente, ciúmes por Amy ter feito uma coisa que ela própria nunca se atrevera a fazer, não obstante
todas as suas fanfarronadas.
Amy tinha assassinado uma pessoa. Depois de o choque inicial, por causa do que tinha acontecido, ter passado, Amy sentira-se aguerrida e cheia de coragem, muito
mais do que Beatrice. Sempre que a oportunidade surgia, gabava-se da sua façanha.
Exatamente o que teria feito naquela altura, mas a sua atenção foi desviada para alguém que saía da estalagem. Ela e Bea ficaram tensas por antecipação. Foi com
surpresa que Amélia viu Armagil Blackwood.
- Mas o que é que ele está a fazer aqui? - perguntou Bea num resmungo.
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- Não sei. - Dececionada, Amy voltou a encostar-se à parede numa atitude de desalento. - Provavelmente, a beber até ficar perdido de bêbado como de costume.
Não fosse o facto de Blackwood não parecer estar embriagado. Afastou-se da estalagem numa passada mais determinada do que Amy alguma vez lhe vira.
- Não estou a gostar nada disto, Amy - resmungou-lhe Bea ao ouvido. - Que razão é que o Blackwood poderá ter tido para vir à Duas Coroas? Será possível que tenha
vindo à nossa procura?
- Ora, por que motivo é que ele faria isso?
- Talvez o teu precioso Sir Patrick o tenha enviado. Ele ameaçou que nos entregaria às autoridades.
- Ele não se atreveria a fazer isso. Além do mais, ele não é o meu Sir Patrick - ripostou Amy, fungando e sentindo as bochechas a arder ao recordar-se da mágoa e
humilhação que sentira perante a rejeição dele.
- Ele não passa de um homem inútil e estúpido, que não vale mais do que o idiota do amigo. Nem ele nem o Blackwood nos dizem respeito.
- Mas...
- Não! Não quero continuar a falar dele - atalhou Amy, batendo com a bengala no chão. - Haveremos de fazer com que ambos paguem caro quando detivermos o poder. -
Amy esperou que Bea expressasse o seu acordo, mas, ao invés disso, a irmã franziu a testa.
- Quanto a isso, tenho andado a pensar que devíamos esquecer tudo isso, sair de Londres e recomeçar tudo de novo num outro lugar qualquer.
- O quê!?
- Não tenho a mais pequena vontade de ser enforcada. Nem de morrer em vida na fogueira como aconteceu à nossa avó.
- Sim, a nossa avó. Que bom que é da tua parte lembrares-te dela. Tem de ser vingada.
- Sir Patrick e os amigos tratarão de fazer isso.
Amy mal conseguia acreditar no que estava a ouvir. Esquecendo-se completamente do seu disfarce de velha toda encurvada, endireitou-se e deu largas à sua indignação.
- Tu estarias disposta a abandonar absolutamente tudo, todos os ensinamentos da nossa avó, tudo o que ela nos prometeu, a causa por que ela morreu. Porque é que
não vais escarrar na campa dela? Devias ter vergonha, Bea. Vergonha.
Beatrice baixou a cabeça e, ao menos uma vez na vida, teve a decência de se mostrar um pouco envergonhada.
- Muito bem. Se queres agir com cobardia e fugir, não hesites continuou Amy. - Passa o resto da tua vida a fornicar homens em vielas escuras para ganhares a vida.
Continua a fazer isso até estares tão velha e sifilítica que ninguém te tocará. Nessa altura, poderás começar a andar pelas ruas a mendigar até...
- Está bem. Já chega - resmungou Beatrice. - Mas a verdade é que estou farta de esperar, de todas as patifarias que temos andado a fazer ao rei e a enganar Sir Patrick.
Quando é que tudo isto vai acabar, Amy?
- Sabes bem quando, na noite de... - Amy interrompeu-se. No extremo oposto da rua muito movimentada, Margaret Wolfe estava a sair da estalagem, acompanhada da amiga,
a condessa francesa. Esta era o género de mulher que Amy sempre detestara, graciosa e arrogante em toda a sua beleza e grandioso título nobiliárquico. Mas perdia
toda a importância junto da mulher de cabelo escuro e semblante circunspecto que caminhava ao seu lado.
Amy observava Megera, o seu coração repleto de adoração.
- A nossa Rosa de Prata, parece estar tão cansada. Ela tem despendido grandes esforços para tentar encontrar-nos.
- Sendo assim, não te parece que chegou a altura de ela nos encontrar? - perguntou Beatrice.
- Dentro de pouco tempo - replicou Amy, esboçando um sorriso felino. - Dentro de muito pouco tempo, minha querida irmã.
A luz do dia já tinha começado a esmorecer no solo endurecido pela geada nos campos. A maior parte dos cortesãos que cavalgavam na esteira do rei mostrava sinais
de fadiga. Estavam com frio, cansados e com fome, ansiavam por regressar ao castelo e para os confortos de um lume forte na lareira e de uma boa ceia. Sir Patrick
contava-se entre estes.
O rei era o único que parecia infatigável. James Stuart, quando escarranchado numa sela, era um homem diferente daquele que andava tropegamente pelos corredores
de Whitehall com o seu andar hesitante. Um cavaleiro exímio, nunca mostrava o mínimo sinal de exaustão, até mesmo após um dia inteiro passado em cavalgadas extenuantes.
Se os seus ombros pareciam rígidos, quando o Sol já se punha no horizonte, tal devia-se à ansiedade enquanto os batedores calcavam sebes e moitas à procura de qualquer
rasto de um cão que tinha desaparecido. Todos os cães haviam voltado da caçada menos um.
-Jonlet Jowler, vem cá, lindo menino! - gritava o matilheiro responsável pelos cães de caça, gritos que eram acompanhados de assobios estridentes.
O rei mantinha-se de costas eretas na sela, gritando pelo nome do cão a plenos pulmões, após o que ficava à espera de uma resposta que nunca chegava.
- Maldito cão tão idiota. Para onde é que poderá ter ido? - perguntava o monarca a Sir Patrick. O riso não ocultava o quanto Jaime Stuart se sentia mortificado e
o temor crescente que se apoderara de si.
- Tenho a certeza de que ele há de aparecer, majestade - disse Patrick, se bem que tivesse dificuldade em esconder os seus próprios receios. Embora nenhum dos dois
desse voz ao pensamento, Patrick tinha a certeza de que a mesma preocupação afligia os dois, a imagem de um gato morto pregado numa das paredes do palácio.
Patrick tentou banir aquela ideia do seu pensamento, mas não pôde impedir-se de refletir. Se alguém desejasse magoar ou atemorizar o rei, Jowler seria o perfeito
ponto de ataque. Jaime Stuart adorava o cão como se fosse o seu próprio filho.
Os pensamentos de Patrick recuaram, recordando-se da fisionomia velhaca e dos olhos plenos de ódio de Amélia Rivers, e, em silêncio, amaldiçoou a mulher. Devia ter
esganado a bruxa quando teve oportunidade para isso. Ou, então, devia ter engolido a cólera e afivelado um sorriso fingido para a manter na ilusão de que eram comparsas
no empreendimento paraaniquilar Jaime Stuart.
Mas a verdade é que não tinha tido estômago para qualquer das alternativas, o que poderia muito bem resultar em fracasso. Se por despeito essas bruxas tivessem feito
mal ao cão, a única coisa maior do que o desgosto que o rei sentiria seria o terror que se apoderaria dele. Qualquer que tivesse sido a magia a que Margaret Wolfe
recorrera para banir os receios de Jaime Stuart, isso deixaria de fazer efeito. O rei reuniria a família e isolar-se-ia em reclusão, pelo que a abertura do Parlamento
voltaria a ser adiada.
Todos os planos e a acumulação de toda aquela pólvora teriam sido em vão. Catesby, Fawkes e os restantes conspiradores teriam de aguardar pacientemente pela próxima
oportunidade. E Sir Patrick seria obrigado a fazer o mesmo. Mas restituir a verdadeira fé religiosa a Inglaterra era tudo o que importava, era muito mais importante
do que a vingança pessoal de Patrick.
Mas o medalhão oculto por baixo da sua camisa, contendo os sagrados fios de cabelo dela, ultimamente tinha começado a ficar mais pesado, um peso que sentia no coração
como uma censura silenciosa. Tinha vindo a adiar o que precisava de fazer durante tempo de mais, enquanto desempenhava o papel do fiel cortesão, tolerando as manifestações
repugnantes de afeto do rei, sendo forçado a dissimular a muita aversão que ele lhe inspirava.
Mas Patrick já não conseguia manter aquela farsa. Se aquele cão aparecesse morto, não esperaria pela reação de Jaime Stuart, que seria fugir aterrorizado, como uma
lebre acossada para a sua toca. Patrick decidiu que atacaria agora, ainda que com isso perdesse a vida - não, a sua alma imortal.
310
Naquele momento ouviu-se um grito à distância, de um maciço de árvores.
- Já o encontrámos - berrou um dos batedores.
Patrick observou o rei a ficar tenso na expectativa. Mas o grito inicial foi seguido de um silêncio que não augurava nada de bom. Patrick esperava ver um servo muito
abatido a emergir do arvoredo a qualquer momento, trazendo os restos ensanguentados desse cão de caça.
Sentindo a boca seca, Patrick aproximou mais a sua montada da do rei. A sua mão estendeu-se para a faca de caça que trazia, presa no cinto. Começou a desembainhar
a lâmina a pouco e pouco quando uma criatura, que não se distinguia com nitidez, de pelagem castanha, saiu desembestada da floresta.
Jojfler atravessou a clareira como uma flecha, correndo em direção ao dono. O rei soltou um irreprimível grito de júbilo que foi ecoado pelos cortesãos. Sir Patrick
soltou um longo suspiro, a mão a afastar-se da faca de caça. Sentiu-se percorrido por um tremor, em parte devido ao seu próprio alívio e em parte devido a uma curiosa
sensação de vazio.
Teve dificuldade em conseguir dominar as suas emoções. Felizmente, todos os olhares estavam presos no rei Jaime, que já desmontava do cavalo. Agachou-se para fazer
festas ao seu cão, ralhando com jowler num tom jovial.
- Meu grande patife. Por onde diabo é que tens andado? - Jaime Stuart afagou o pescoço do cão, rindo-se quando Joifler tentou lamber-lhe a barba. - Não, senhorrr...
os teus pedidos de desculpa não são aceites. Pensas que... ei! O que é isto?
O riso de Jaime Stuart esmoreceu quando tirou qualquer coisa que tinha estado presa à coleira do cão. Patrick esticou o pescoço para ver do que se tratava; era um
pequeno rolo de pergaminho. O rei endireitou-se. Enquanto o desenrolava, Patrick sentiu que o coração lhe caía aos pés, receando que, afinal de contas, as bruxas
tivessem atacado outra vez, ameaçando Jaime Stuart com a maldição.
Ignorando a maneira como Joifler encostava o focinho à sua mão, desejando que lhe prestasse mais atenção, o rei leu a mensagem. O monarca estava longe do alcance
de Patrick. Sc3 lhe restava observar o rosto do monarca enquanto este lia, esperando vê-lo a empalidecer de horror. Em vez disso, os lábios de Jaime Stuart fecharam-se,
mostrando uma estranha expressão, o que lhe pareceu ser um misto de jovialidade e irritação.
A curiosidade estava estampada no rosto dos cortesãos, mas ninguém disse nada. Patrick, incapaz de suportar a expectativa por mais tempo, perguntou ansioso:
- O que é isso, majestade? O que é que diz?
Jaime Stuart encolheu os ombros e encaminhou-se para Sir Patrick. Entregando-lhe a mensagem, o rei instruiu-o para que a lesse em voz alta.
Patrick pegou na mensagem e começou a ler num tom hesitante.
"bom senhor Joivler, o rei presta-vos mais atenção do que presta ao seu próprio povo, por conseguinte, talvez pudésseis ter a amabilidade de levar esta mensagem
a sua majestade. Em vez de andar a cavalgar pelos campos de cultivo, arruinando as colheitas enquanto se dedica ao seu desporto preferido, o rei devia saber que
o seu tempo seria mais proveitoso em Londres, a tratar dos assuntos de Estado e dos seus deveres reais."
Patrick pestanejou e depois acrescentou:
- Está assinada, "Um amigo preocupado".
Seguiu-se um profundo silêncio, os outros homens presentes sem saberem como reagir, todos à espera de uma indicação do rei. Jaime Stuart ficou de cenho franzido
por breves momentos, antes de soltar uma sonora gargalhada. Os cortesãos não tardaram a juntar o seu riso ao dele. Sir Patrick foi o único incapaz de partilhar de
tanto regozijo.
A despeito da natureza insolente da mensagem, Jaime Stuart decidira encará-la como uma brincadeira de mau gosto.
- És um bom mensageiro - disse o rei, baixando-se para coçar as orelhas de Jowler -, mas duvido que o patife que te obrigou a trazer isto tenha pensado em recompensar-te.
Suponho que eu seja obrigado a fazer isso na forma de um saboroso osso com tutano.
Ouviram-se suspiros de alívio de todas as direções quando o rei voltou a montar o seu cavalo, dando o sinal de regresso ao castelo. Quando todo o grupo de caçadores
começou a sair do campo, Sir Patrick foi o único a deixar-se ficar para trás. Olhou em volta, como se estivesse à espera de ver o autor da mensagem a sair do seu
esconderijo.
Patrick voltou a ler a mensagem atentamente, sem querer acreditar nos seus olhos. Conhecia demasiado bem a quem pertencia a mão audaz que escrevera aquela missiva.
Não havia como não reconhecer o traço cheio de floreados que formava a maiúscula A.
Patrick amachucou a mensagem na mão enluvada que cerrou, sentindo que a raiva se apoderava de si.
Armagil.
312
O castelo situado em Newmarket era modesto quando comparado com a maior parte das residências reais. O rei só se servia daquele castelo quando saía para caçar, uma
vez que era demasiado pequeno para alojar os inúmeros servos, cortesãos e ministros que o acompanhavam sempre para onde quer que fosse. Muitos eram forçados a procurar
alojamentos na vila.
Sir Patrick considerava-se afortunado por ter conseguido alojar-se na estalagem da localidade, ainda que fosse obrigado a partilhar o seu aposento com outros dois
cortesãos. Tinha prometido a Catesby que se manteria junto do rei, mantendo-o sob apertada vigilância. Mas o rancor e o ódio que nutria por Jaime Stuart nos últimos
tempos estavam demasiado à flor da pele. O tempo passado longe do rei, por muito pouco que fosse, era um alívio temporário que acolhia de bom grado.
Quando transpôs a porta da estalagem, constatou que a taberna estava à cunha. A maior parte dos homens pertencia a um estrato social inferior, o género dos que seguiam
sempre Jaime Stuart na esperança de conseguirem apresentar-lhe uma petição ou de obterem um qualquer sinal de favor real. Sir Patrick como que foi assaltado pelo
barulho de gargalhadas estridentes e vozes elevadas. Foi saudado por vários homens que o convidavam a juntar-se-lhes, mas Patrick sempre desdenhara essas companhias
ruidosas. Recusou secamente, dirigindo-se para as escadas.
Depois de ter dado apenas alguns passos, avistou uma figura familiar anichada num canto no outro extremo da taberna. Armagil tinha conseguido arranjar um banco.
Estava encostado à parede, mantendo uma caneca de cerveja junto do peito. Era evidente que já tinha bebido mais do
que a sua conta.
Os lábios de Sir Patrick estreitaram-se. Alimentado pela cólera, o frio e a exaustão que sentira anteriormente desapareceram. Desceu os poucos degraus que subira
e abriu caminho à cotovelada por entre a multidão até chegar junto de Armagil.
- Ah, aqui estás tu, por fim - disse o amigo, erguendo o olhar.
- Aqui estou eu - repetiu Patrick quase sufocando. - Não, mais corretamente, aqui estás tu e penso que não seja por um bom motivo. O que diabo é que estás a fazer
aqui, Armagil?
- A provar uma cerveja insípida e à espera que voltasses da caçada.
- Os lábios de Armagil mostraram o assomo de um sorriso. - O rei ficou satisfeito com a caçada de hoje?
Patrick respirou fundo. Quaisquer dúvidas que pudesse ter tido quanto à autoria daquela mensagem desapareceram de imediato, ao ver o brilho malicioso nos olhos de
Armagil.
- Maldito sejas! - ripostou Graham furioso. As sobrancelhas de Armagil arquearam-se perante o tom de cólera dele. Patrick teve de fazer um esforço enorme para não
lhe arremessar a caneca que ele tinha na mão. Em vez disso, tirou a mensagem toda amachucada do interior do gibão, atirando-a a Blackwood.
Armagil apanhou-a com uma mão enquanto equilibrava a caneca na outra sem sequer verter um pingo de cerveja, uma grande façanha para um homem que já estava meio bêbado.
Olhou para a mensagem com um sorriso irónico, mas não fez qualquer menção de a inspecionar mais de perto.
- E então? Não queres lê-la? - perguntou Patrick numa voz autoritária.
- Não preciso de a ler. Sei o que diz. - A frieza com que Armagil admitia aquilo só serviu para aumentar a raiva de Patrick. Cerrou as mãos em punhos cerrados.
- Maldito sejas, Armagil. Estou capaz... estou capaz de...
- Não tenho dificuldade em imaginar o quê, mas esmurrares-me a cara só servirá para atrair a atenção sobre ambos, o que nenhum de nós deseja. Não passou de uma pequena
brincadeira, homem. Pára de me olhar, como se os teus olhos pudessem lançar facas e senta-te, bebe qualquer coisa.
Patrick olhou para ele furioso, mas compreendeu que Armagil tinha razão. A tensão entre os dois, que era palpável, já começava a atrair alguns olhares curiosos.
Patrick conseguiu encontrar um banco, que puxou, sentando-se junto do amigo. Corriam poucos riscos de serem ouvidos devido ao barulho ensurdecedor das conversas
dos demais clientes da taberna, no entanto inclinou-se mais para Blackwood.
- Foi só uma brincadeira? - perguntou. - Estiveste à espera que o cão do rei aparecesse...
- Não fiz nada disso - atalhou Armagil, cortando-lhe a palavra. - Andava a caminhar pela vereda quando ojoiver me apareceu à frente.
314
O cão com certeza que ainda se lembrava de mim daquela ocasião em que lhe tratei da pata. Correu para mim e foi então que me lembrei de prender a mensagem na coleira.
Foi um impulso disparatado, mais nada.
- Um impulso? E, por mero acaso, até tinhas levado na bolsa pergaminho, tinta e um cálamo.
- Não, havia uma pequena quinta nas proximidades e a filha da casa mostrou-se mais do que prestável, satisfazendo as minhas necessidades.
- Oh, aposto que sim - ripostou Patrick escarninho.
- Estava a referir-me à necessidade de tinta e cálamo.
- E por que razão é que essa rapariga foi tão prestável para com um absoluto estranho?
- As terras do pai já sofreram em mais de uma ocasião os efeitos nefastos do desporto preferido do rei. Quando ela percebeu o que eu queria fazer, aprovou incondicionalmente.
- Tanto um como o outro agiram de um modo estúpido e irresponsável - resmungou Patrick. - Muito em especial da tua parte. Podias ter feito com que a ira do rei se
abatesse sobre a rapariga e toda a sua família.
- Se eu tivesse sido apanhado, teria assumido todas as culpas. Mas deduzo que ninguém soube que fui eu o autor da mensagem. O rei leu sequer a minha mensagem?
- Sim, leu. Inicialmente, ficou irritado, mas depois considerou que era uma partida de mau gosto.
- O que é uma pena.
- Um alívio. Podias ter atemorizado Jaime Stuart ao ponto de ele se ter apressado a voltar para Londres.
- Está-me a parecer que isso não te teria agradado nada, talvez por teres a intenção de não permitir que ele volte à cidade. - A alusão velada feita em voz baixa
de Armagil fez com que Patrick se recordasse do momento durante a caçada em que estivera prestes a desembainhar a faca de caça. Reprimiu um estremecimento de culpa.
- Não sejas absurdo. O que eu mais desejo é que o rei regresse a Londres são e salvo. É da maior importância que ele esteja presente aquando da abertura do Parlamento.
- É importante para ele ou para ti? - Se bem que os olhos de Armagil estivessem semicerrados, ele dava a impressão de examinar Patrick atentamente.
Patrick, de repente, começou a desconfiar de que o amigo não estava tão embriagado como supusera. Furtando-se à pergunta, inquiriu por seu turno:
- Ainda não me explicaste o que é que estás a fazer aqui. Porque é que não estás em Londres e na cama com a tua bruxa? - Pensou ter visto uma centelha de cólera
nos olhos de Armagil, mas, a ser o caso, este conseguiu extingui-la de imediato.
- Mal tenho visto a Margaret desde o dia em que me salvou a vida.
- O feitiço que ela te lançou já começou a desvanecer-se? Rezo para que seja esse o caso.
Armagil passou o dedo pelo bordo da sua caneca.
- O que quer que se tenha passado nos meus aposentos nesse dia, sou o único responsável. A Margaret não é nenhuma feiticeira, Graham retorquiu Armagil com o assomo
de um sorriso nos lábios. - Pelo menos, não uma que seja demoníaca.
- Seja ela o que for, a mulher enerva-me. Tens noção de que ela me acusou de ser Robert Brody? Mas onde é que ela terá ido buscar essa ideia? - disse Patrick, olhando
com dureza para Armagil.
- Sabes muito bem que não fui eu quem lhe disse isso. Eu até lhe disse que isso era impossível, mas ela não ficou convencida. FJa suspeita de que a tua intenção
seja aniquilar o rei e receia que por via disso venhas a perder a tua alma.
- Se a perder, não perco nada que não me pertença, não é verdade? É por esse motivo que estás aqui? Foi ela que te mandou para me impedires?
- De facto, a Margaret pediu-me que falasse contigo, que tentasse fazer com que visses a razão - admitiu Armagil. - Mas vim de moto próprio. Estou preocupado contigo.
- Desde quando? - perguntou Patrick, rindo-se com uma expressão de azedume.
- Sou teu amigo e sempre fui - ripostou Armagil com o rosto congestionado -, se bem que como amigo não valha grande coisa.
A despeito de si próprio, Patrick suavizou o tom.
- Isso não é verdade, sempre foste um amigo leal desde que éramos garotos, guardando os meus segredos, tal como eu guardo os teus. Acredito que és um homem com grande
potencial e muita capacidade para... para a dedicação. Razão por que sinto uma tristeza indescritível quando
316
vejo que desperdiças os teus talentos de maneira tão ociosa e indigna de ti, adotando uma atitude de tanta indiferença. Eu... - Patrick interrompeu-se.
- Peço-te que me desculpes. Detestas que eu te pregue sermões, mas...
- Não, tens toda a razão. Tenho dado muito pouca utilidade à minha vida, do que me envergonho. Tenho a sensação de que ando a dormir há já muito tempo, tendo sido
despertado abruptamente. - Armagil pousou a caneca e Patrick viu que ele mal tinha tocado na cerveja. Longe de estar embriagado, Blackwood não podia ter estado mais
sóbrio. - Perguntaste -me por que motivo é que estou aqui? Para fazer uma coisa que devia ter feito há muito tempo - continuou Armagil, inclinando-se para a frente,
a expressão no olhar mais límpida e atenta do que Patrick alguma vez lhe vira. - Queres vingar-te do Jaime Stuart? Vim para te ajudar.
O ar frio entrava pelas frestas entre os vidros e a caixilharia das janelas. Não obstante o lume vivo que ardia na lareira, Meg não conseguia aquecer. Novembro tinha
chegado acompanhado de um vento gélido que anunciava a chegada do inverno. O firmamento estivera coberto por um manto de nuvens durante a maior parte do dia, que
escurecia mais cedo do que era habitual.
Meg agasalhou-se num xaile, após o que acendeu uma vela para ler a missiva enviada por Armagil e que tom lhe entregara. Havia mais de uma semana que ele desaparecera
e que não dava notícias. Os dedos dela tremiam de ansiedade enquanto lia as linhas que ele, obviamente, lhe escrevera um pouco à pressa.
Margaret,
O rei regressou a Londres em segurança. Conversei demoradamente com o Graham e conseguimos chegar a um consenso, mas vou ter de me manter ao lado dele, o que me
impede de ir ter contigo. De momento, está tudo a correr bem, mas continuo a proceder cautelosamente e a continuar perto de ti. Independentemente do que se possa
dizer nos próximos dias, há uma coisa que deves saber, algo que já devia ter-te dito, mas para a qual agora não há tempo.
O Graham está à minha espera. Tenho de ir. Perdoa-me. A."
Meg leu a carta repetidas vezes, mordendo o lábio de frustração. Havia dias que esperava ansiosa por notícias de Armagil. Como era característico do homem, tão exasperante,
enviar-lhe uma mensagem tão abrupta e que dizia tão pouco.
318
Já sabia que o rei regressara a Londres são e salvo. Toda a população da cidade sabia que Jaime Stuart voltara para a sua residência oficial e que se preparava para
a abertura do Parlamento amanhã. O que é que Armagil quereria dizer com ter chegado a um consenso com Graham? Teria ele sido capaz de persuadir Sir Patrick a abandonar
os seus planos de vingança? Obviamente, não o suficiente para confiar inteiramente nele, porque, a ser o caso, Armagil não se sentiria obrigado a permanecer ao lado
dele.
E o que é que Armagil lhe teria querido dizer, mas que fora impedido de fazer? Que a amava? Seria isso tão difícil para ele que não pôde despender mais alguns momentos
para lhe escrever mais algumas palavras? A missiva enigmática dele levantava mais dúvidas do que as que esclarecia.
Meg abanou a cabeça exasperada, mas dobrou a mensagem, guardando-a por dentro do corpete, como se, de facto, fosse uma carta de amor. Sem dúvida que era o mais semelhante
a isso que alguma vez receberia de Armagil.
Esboçou um sorriso que expressava mágoa, tentando encontrar algum consolo no facto de Armagil se encontrar de regresso a Londres, e, para já, parecia que o rei estava
em segurança, pelo menos a salvo da vingança de Robert Brody. Mas e quanto às irmãs Rivers? Desde a noite do assassínio que não se ouvia dizer nada acerca das duas
mulheres. Seraphine aventava a hipótese de que elas talvez tivessem fugido de Londres e era muito plausível que tivesse razão. Sem dúvida que teria sido o mais sensato
da parte delas, mas sensato não era uma palavra que Meg tivesse aplicado se falasse de Beatrice ou de Amélia Rivers.
Estremeceu, recordando-se de todas as emoções sinistras que a haviam assolado quando tocou no pentagrama, de dor, de raiva e de tormento, demasiado profundas para
poderem ser racionalizadas. Não, era possível que essas mulheres tresloucadas tivessem sido forçadas a saírem de circulação durante algum tempo, mas Meg duvidava
de que elas abdicassem, assim tão facilmente, do desejo de se vingarem de Jaime Stuart, da mesma maneira que não renunciariam aos planos de restabelecerem a Irmandade
da Rosa de Prata.
Mas durante quanto tempo mais é que ela e Seraphine poderiam continuar em Inglaterra à procura daquelas bruxas? Já havia negligenciado as suas responsabilidades
como Senhora da Ilha Encantada durante demasiado tempo, além disso, as disponibilidades financeiras das duas começavam a esgotar-se. Seraphine não queria continuar
a recorrer aos agentes financeiros do marido, razão por que saíra para vender um dos seus broches.
Meg detestara que a amiga tivesse sido forçada a fazer isso, mas Seraphine limitara-se a um encolher de ombros, dizendo que o rubi nunca lhe havia ficado bem. Mas
Meg tinha fortes suspeitas de que ela estivesse farta de continuar fechada em casa. A irrequieta amiga sentia necessidade de fazer qualquer coisa, um desassossego
que Meg compreendia bem. Ela própria sentia-se inquieta.
Dirigiu-se para a janela, de vidros em forma de losango bastante sujos, abrindo-a. Sentiu uma lufada de ar gelado que penetrou o vestido de lã. Envolveu-se melhor
no xaile e inclinou-se mais para fora por cima do peitoril.
Os aposentos que Seraphine encontrara situavam-se nas proximidades de Westminster, o que permitia que Meg divisasse as torres do antigo palácio à distância, as paredes
antigas de pedra que transmitiam uma sensação de serenidade e ordem. Amanhã de manhã toda essa calma seria perturbada pelo alarido e fanfarra do rei quando chegasse
para se dirigir ao Parlamento; os salões habitualmente tranquilos estariam à cunha com os homens mais importantes do reino.
Não obstante o frio agreste, o firmamento do fim da tarde havia clareado e o dia de amanhã prometia ser agradável. Portanto, por que razão é que Meg tinha aquela
sensação inquietante de uma violenta tempestade prestes a desencadear-se? Franziu as sobrancelhas, concentrando o olhar na rua deserta abaixo de si.
O mais provável era a sua intranquilidade ter origem no facto de ser quase noite e de Seraphine ainda não ter voltado. Não era invulgar que, em Londres, as mulheres
saíssem às compras sozinhas. Mas acontecia que Seraphine não estava familiarizada com a cidade.
- Eu devia ter ido com ela - disse Meg para consigo, com um sentimento de culpa acrescido pela razão por que não o fizera. Não quisera sair de casa, pensando que
Armagil talvez a visitasse.
No mínimo dos mínimos, devia ter insistido para que Seraphine se fizesse acompanhar da criada cujos serviços haviam contratado, mas a condessa protestara.
- A Eliza é gorda, uma criatura indolente que caminha a passo de caracol. Eu podia tratar do assunto três vezes durante o tempo que me levará se ela me acompanhar
- alegara. - Não te preocupes comigo,
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Meggie - tinha acrescentado Seraphine com o seu sorriso mais deslumbrante. - Tenciono voltar antes de teres tido tempo para sentires a minha falta.
Essa conversa tinha tido lugar quando... havia quase três horas? Adorando a sua liberdade, era muito pouco provável que ela tivesse pressa em voltar para casa, demorando-se
enquanto ia às compras, comprando algumas das coisas de que ambas precisavam com o dinheiro da venda do broche. Mas e se ela se tivesse perdido? Ou ainda se o seu
feitio precipitado a tivesse levado a um desaguisado com um dos lojistas? Ou e se...
- Pára com isso! - admoestou-se Meg. - Seraphine era capaz de ser desabrida por vezes, mas a verdade é que não conhecia nenhuma mulher que pudesse olhar por si mesma
melhor do que ela.
Afastou-se da janela e, antes que todo o calor no interior da alcova saísse pela janela, Meg fechou-a. Devia ir ao piso térreo para ver em que ponto é que Eliza
estava na preparação da ceia. Não se podia confiar na criada para fazer o que era sua obrigação. Mas ir ver o que ela estava a fazer significava ser obrigada a ouvir
a infinita série de queixas de Eliza sobre as dores e os males que a afligiam constantemente, a maior parte dos quais Meg desconfiava serem imaginários.
Se Eliza tivesse deixado que a comida se queimasse outra vez, Meg tinha sempre a alternativa de servir fatias de pão e queijo. Ajeitou algumas almofadas e instalou-se
na cama à espera que Seraphine voltasse. Envolveu-se mais no xaile e bocejou. Como se sentia cansada. com tantas preocupações na cabeça, não andava a dormir bem.
Do mal o menos, não tinha sido atormentada com mais pesadelos em que Maidred Brody figurasse. Se Armagil tivesse sido bem-sucedido em dissuadir Sir Patrick de pôr
em prática os seus planos de vingança, talvez a rapariga, finalmente, pudesse repousar em paz. Meg rezava para que fosse isso.
Ficou a olhar para as chamas que crepitavam no lume da lareira, sentindo que as pálpebras lhe pesavam cada vez mais. A despeito de todos os seus esforços, Meg começou
a cabecear.
E de imediato começou a sonhar.
Meg cambaleava enquanto corria pelos corredores serpenteantes do túnel em perseguição de uma figura envolta num manto. Não conseguia ver-lhe o rosto mas sabia quem
era.
"Robert Brody! Pára", gritava. "Robbie, onde é que vais?"
O rapaz ignorou-a, desaparecendo na esquina seguinte. Meg continuou a correr atrás dele, emergindo numa ampla cave. Por breves momentos, não conseguiu ver para onde
é que Robert teria ido. Mas foi então que se viu a chama de uma tocha enquanto ele se esforçava por chegar lume à ponta de uma corda.
Por que motivo é que seria tão importante para ele pegar fogo àquela corda, era coisa de que Meg não fazia a mais pequena ideia. Contudo, sentia um impulso igualmente
irresistível para o impedir de continuar. Correu em frente, mas já era tarde de mais.
A corda tinha-se transformado numa serpente flamejante que se contorcia e sibilava, lançando centelhas em todas as direções. Enrolava-se, arrastando-se em direção
a um amontoado de barricas, a língua a lançar chamas mortíferas.
Subitamente, toda a cave explodiu num clarão que cegava de labaredas e calor e que levantou Meg do chão, arremessando-a pelo ar.
Estava esparramada no chão do Inferno, com toda a cidade de londres a oscilar e a ruir em torno de si, os edifícios a desmoronarem-se numa barragem de pedras, a
noite iluminada pelas labaredas e cortada pelos gritos agonizantes dos que morriam.
com grande dificuldade, Meg conseguiu pôr-se de pé, mas viu-se rodeada por corpos que rodopiavam. As bruxas cabriolavam desconsoladamente em volta dela num bailado
de um júbilo de desvario conduzido por Tamsin Rivers, o seu cabelo grisalho comprido a adejar como um estandarte enfunado pelo vento.
"Morte para ti, Jaime Stuart, e para todos os teus. Que ardam todos no fogo do Inferno", cacarejava a velha, apontando para o palácio que era pasto das chamas.
Para lá dos barrotes que ardiam, Meg viu o rei, que agarrava o filho mais novo, tentando desesperadamente levar a família para onde ficassem em segurança.
Meg tentou correr para o ajudar, mas foi arrastada para trás, agarrada por um par de braços fortes.
"Não, Robbie, deixa-me ir!"
Debatia-se nas mãos dele, esforçando-se por se libertar, mas só conseguiu afastar-lhe o capuz que tombou para trás, revelando não as feições juvenis de Robert Brodj,
mas sim as de um homem adulto que a fitava com olhos cheios de tristeza e de exaustão.
Meg parou de se debater, olhando fixamente para ele.
"A... Armagil?"
Ele baixou o olhar que prendeu nela, o rosto com uma barba hirsuta e lágrimas a correrem-lhe pelas faces.
"Perdoa-me, Margaret." Ela afastou-se dele.
"Perdoar-te pelo quê? Armagil, o que é que fizeste?" Não conseguiu ouvir a resposta dele porque as bruxas voltaram a circundá-la, entoando o seu nome. "Megera! Megera!"
Ela tentou libertar-se delas, mas elas rodearam-na, impelindo-a em direção a uma bruxa que se mantinha afastada das outras, envolta num manto negro com capuz.
322
"Megera", chamou-a a mãe, Cassandra a indicar-lhe com uma mão, a que a morte emprestava lividez, que se aproximasse.
Não! Meg sentou-se no leito abruptamente, sentindo o coração a bater descompassadamente. Tentou apagar o pesadelo da sua mente, mas continuava a conseguir ouvir
aquela voz persistente, continuava a ver a mulher fantasmagórica trajada de negro que lhe fazia gestos. Esfregou as pálpebras com os nós dos dedos, mas o fantasma
continuava presente no seu pensamento. Mantinha-se aos pés da cama, sussurrando o seu nome.
"Megera".
Mas Meg não estava a sonhar. Ficou como que paralisada, tão petrificada com o choque que ficou incapaz de se mexer ou de falar.
- Ah, acordaste por fim, minha Rosa de Prata - disse-lhe o espectro numa voz roufenha.
Tinha acordado? Aquela... aquela coisa tinha estado à espreita na sua alcova, a observá-la enquanto dormia?
- O... o quê... - A boca de Meg tinha secado, pelo que mal conseguia articular as palavras. - Q... quem sois vós?
- com certeza que já deves saber.
A mãe? Não, isso era impossível. Por muito que Meg receasse que a mãe estivesse viva, aquela pessoa que entrara intrusivamente na sua alcova não podia ser Cassandra
Lascelles. Não era suficientemente alta.
Recompondo-se do choque inicial, Meg apercebeu-se de outros pormenores. O capuz da mulher estava demasiado puxado para a frente, o que a impedia de discernir as
feições, mas a mão que ela estendera era franzina, não era nada como a mão longa e de dedos afuselados de Cassandra. A outra mão da mulher mexia em algo que tinha
por baixo da frente do manto - o cabo de um punhal.
O medo provocou-lhe uma vaga de calor que lhe percorreu os membros gelados, permitindo que Meg se mexesse. Levantou-se da cama atabalhoadamente, cambaleando um pouco
quando se pôs de pé e encaminhando-se para a porta. Mas a intrusa foi mais rápida do que ela. Num rodopio de negro, saltou para a frente de Meg, bloqueando-lhe a
saída da alcova.
- Não, milady. Esperai! Não tendes por que recear.
- Quem sois vós? - perguntou Meg outra vez, mas num tom de voz autoritário e mais forte. - Como é que entrastes aqui?
- Mas que pergunta, a Eliza teve a gentileza de me deixar entrar.
Houve algo na entoação matreira que transparecia da voz que encheu Meg de temor.
- Haveis entrado à força, sem permissão da minha criada? Fizestes-lhe mal?
- Não, porque é que eu haveria de fazer mal a Eliza? Ela é uma de nós.
- Uma de nós!?
- Outra bruxa, faz parte da nossa nova irmandade, milady. Está lá em baixo com as outras à vossa espera.
Eliza era uma bruxa? Aquela criatura tão plácida e indolente que era incapaz de se mexer para acrescentar mais lenha ao lume que ardia na lareira, ainda que estivesse
a morrer de frio? Meg levou a mão à fronte, com a sensação de que continuava embrenhada num qualquer sonho louco. Ficou rígida ao interiorizar todo o impacto das
palavras proferidas pela mulher envolta num manto.
- Outras? Existem outras? Quantas?
- As suficientes - foi a resposta vaga. - E todas sentem uma dedicação incondicional por vós, as vossas fiéis seguidoras, mas nenhuma mais do que eu.
Dito isto, a mulher afastou o capuz para trás, revelando uma cara arredondada que há muito havia deixado a frescura da juventude para trás, vendo-se as rugas aos
cantos da boca e um queixo que começava a ficar com papada. O cabelo desgrenhado já tinha fios grisalhos. Só os olhos não haviam perdido a juventude, grandes e com
uma expressão muito sonhadora.
- Senhora Rivers? - aventurou-se Meg a perguntar.
- Sabeis quem eu sou? - A mulher ficou deleitada, mostrando uma expressão radiante até Meg acrescentar:
- Beatrice?
Os lábios dela fizeram um beicinho infantil.
- Não, essa é a minha irmã. Eu sou a Amélia Rivers, mas a minha avozinha sempre me tratou por Amy.
- É claro, Amy. Eu devia ter sabido - murmurou Meg, enquanto na sua cabeça ecoava a voz de Mary Waters numa advertência.
"Amélia... Ka é a mais perigosa. Se vos confrontardes com ela, é bom que tenhais muito cuidado.
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Meg retrocedeu. Sentiu que o coração dava um salto alarmado quando a mão de Amy se estendeu de repente para agarrar a sua. Os dedos dela estavam gelados, fazendo
com que Meg se sentisse percorrida pelo mesmo arrepio gélido que sentira no aposento da Estalagem Duas Coroas. Restavam-lhe muito poucas dúvidas de que aquela era
a mesma mão de onde o sangue havia gotejado enquanto pintava o pentagrama na parede.
Reprimiu um impulso de pânico que a levava a ansiar desprender a mão, correr para a janela e abri-la de par em par para gritar por socorro. Naquele momento, Amy
estava calma, mas Meg sentiu que não seria preciso muito para que ela ficasse possuída do mesmo frenesim que a levara a assassinar a senhora Keating.
Desesperada, tentou sondar os olhos de Amy, mas foi em vão. Ler os olhos de uma louca era o mesmo que tentar juntar imagens num espelho estilhaçado.
- Esperei durante tanto tempo por este momento em que estaria diante de vós, jurando o meu amor e lealdade à Rosa de Prata.
Meg esforçou-se por não se retrair quando Amy levou a sua mão aos lábios, depositando um beijo fervoroso nos nós dos dedos. Os olhos da mulher fulguravam com uma
expressão de devoção profana.
- A minha querida avó sempre me prometeu que haveríeis de chegar num dia glorioso para recompensar todas as vossas verdadeiras seguidoras. Foi ela quem manteve a
vossa lenda viva muito depois de os demoníacos caçadores de bruxas terem destruído a vossa irmandade de feiticeiras em França. A minha avó foi uma das poucas que
conseguiram escapar, mas trouxe consigo todos os segredos que tinha aprendido. Ela sabia como fazer aquelas incríveis rosas prateadas, ensinando-me a mim e à Bea
a fazer. A minha avozinha era uma grande amiga da vossa mãe. Chamava-se Tamsin Rivers, com certeza que vos lembrais dela.
Meg fez um pequeno acenar de cabeça, se bem que não tivesse a mínima recordação de alguém com esse nome. Apesar de ainda ser muito novinha nessa altura, lembrava-se
perfeitamente de que Cassandra Lascelles não tivera quaisquer amigas. Tinham existido algumas mulheres da irmandade das bruxas em quem ela confiara, às quais ela
permitira o acesso à sua câmara secreta, onde lhes ensinou a preparar o veneno mortal, mas Meg tinha a certeza de que Tamsin Rivers não havia sido uma dessas. Se
ela tinha adquirido o segredo da preparação dessas rosas letais, então isso só poderia ter tido lugar espiando Cassandra, um passatempo perigoso. Tamsin Rivers haveria
de ter sido uma mulher deveras esperta e descarada.
- A minha mãezinha e o meu paizinho faleceram quando a Bea e eu ainda éramos muito pequenas. A avozinha era a nossa única família continuou Amy. - Depois de termos
fugido de França, não tivemos morada certa durante muito tempo porque a nossa avó tinha medo de que os caçadores de bruxas nos encontrassem. Finalmente, assentámos
em Edimburgo, onde a avozinha nos sustentava a vender poções e a ler a sina. Mas ela nunca deixou de adorar a Megera, até mesmo depois de ter sido presa, julgada
e condenada a morrer na fogueira.
Os olhos de Amy ficaram rasos de lágrimas.
- A avozinha era tão aguerrida e corajosa, mas quando as labaredas a envolveram e começaram a queimar-lhe a pele, ela fartou-se de gritar numa grande agonia. Jamais
me esquecerei dos gritos excruciantes dela. M... morreu de uma morte tão horrível.
- Eu sei que sim - retorquiu Meg em voz baixa. Independentemente do que Tamsin Rivers pudesse ter feito, ser queimada em vida era um destino demasiado cruel para
qualquer pessoa. Compadecia-se pelo que acontecera à idosa, no entanto apiedava-se ainda mais da neta, que fora forçada a presenciar um espetáculo tão medonho. -
Lamento muito.
- Lamentais? - O rosto de Amy ficou congestionado de fúria.
- Ela morreu por vós E como é que lhe haveis retribuído? Retirastes a maldição que ela lançou sobre Jaime Stuart. - Amy agarrava-lhe a mão com tanta força que Meg
sentia dores.
- Não fiz nada disso - retorquiu com a respiração arfante. - Limitei-me a fazer com que ele acreditasse que eu tinha feito isso. - O que, em certa medida, correspondia
à verdade.
Amy fitou-a com uma expressão furiosa.
- Quereis dizer que o enganastes?
- S... sim.
- Oh... - disse Amy, olhando para Meg e pestanejando de admiração. O rosto dela clareou como o firmamento depois de uma forte carga de água. O aperto na mão de Meg
afrouxou, permitindo que esta se afastasse dela. - Isso foi muito inteligente da vossa parte. Atrevo-me a concluir que quisestes incutir-lhe uma falsa sensação de
segurança. Eu bem disse à Bea que era forçoso que houvesse uma explicação cabal para o vosso procedimento. Embora a minha irmã e eu tivéssemos preferido que
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o vilão continuasse atormentado e atemorizado, mas isso agora não importa. Amanhã, a esta hora, Jaime Stuart estará a assar no Inferno.
- Amanhã? - perguntou Meg, esfregando a mão que latejava de dor. - O que é que acontecerá amanhã?
Amy ignorou a pergunta de Meg, que se mostrava alarmada.
- O que vai acontecer esta noite é que é importante. A Irmandade da Rosa de Prata será restabelecida. Tudo o que é requerido é a vossa presença, milady. Mas agora
vinde comigo. Temos de nos apressar. - Amy abriu a porta da alcova, indicando a Meg que saísse à sua frente. Mas Meg deixou-se ficar para trás.
- Onde é que queres que eu vá?
- Todas as vossas seguidoras se reuniram e estão à espera para vos proclamarem como nossa rainha. Esta noite ireis cumprir o vosso destino, ocupando o vosso lugar
como a feiticeira mais poderosa de todo o mundo.
Meg sentiu-se percorrida por um arrepio de medo. Amy poderia muito bem ter sido a sua mãe a falar, vendo o mesmo brilho de fanatismo que se refletia nos olhos de
Amy Rivers. Meg teria caminhado diretamente para o Inferno antes de a acompanhar até onde quer que fosse. Mas que outra alternativa é que lhe restaria? Na sua impaciência,
Amy brandia o punhal, indicando com um gesto a Meg que se encaminhasse para a porta.
Mas Meg mantinha-se imóvel, tentando ganhar tempo. com certeza que Seraphine regressaria a qualquer momento, mas a fugaz centelha de esperança que brilhara subitamente
extinguiu-se, dando lugar a um intenso temor. Sim, Seraphine haveria de voltar para casa, mas sem fazer a mínima ideia do perigo com que se depararia.
A formidável condessa chegaria e sobraria para Eliza e para as da sua igualha, mas Amy falara de outras. Meg não fazia ideia nenhuma de quantas daquelas iludidas
mulheres estariam reunidas no piso térreo da casa. Seraphine seria apanhada completamente desprevenida.
O melhor curso de ação seria Meg decidir acompanhá-las, afastando-as assim de casa o mais depressa possível. Ela própria estaria razoavelmente segura desde que Amy
e o resto das bruxas da irmandade a considerassem a Megera. E não seria aquela a razão que a trouxera a Londres, para apurar a verdade, para travar qualquer tentativa
de restabelecer a irmandade de bruxas da mãe? A assembleia naquela noite talvez viesse a provar ser a melhor e a única oportunidade de atingir esse objetivo. Poderia,
finalmente, pôr cobro à loucura que a atormentava desde a sua meninice. Só precisava de reunir coragem suficiente para desempenhar o papel de Rosa de Prata uma última
vez. A noite estava fria e agreste, mas límpida, a Lua em quarto crescente suspensa como uma cimitarra sobre a cidade. Os olhos de Meg já se tinham ajustado à escuridão,
mas, apesar disso, tropeçava enquanto seguia Amy pelo beco estreito, com o resto das mulheres a acompanhá-las de perto.
O grupo era composto por Eliza e por outras duas mulheres, mal se podendo dizer que constituíssem a força que Meg antecipara com tanto temor.
? Estavam todas trajadas com mantos similares ao de Amy, com símbolos de rosas cosidos atabalhoadamente no tecido preto. Meg não tinha conseguido discernir grande
coisa das feições delas por os capuzes estarem puxados para a cara, parecendo-lhe apenas que eram jovens. AperceH bia-se do empolgamento feito de nervosismo, mas,
veladamente subjacente, detetou vestígios de temor. O que dava a Meg a esperança de vir a conseguir assumir o controlo sobre elas e, talvez, mesmo sobre Eliza. A
criada mostrava-se manifestamente envergonhada, o que a impedia de olhar Meg de frente, ao ponto de lhe pedir desculpa por a ter enganado, tartamudeando:
- Peço desculpa, minha ama.
- Milady, é como deves tratá-la! - repreendeu Amy com rispidez, após o que lhe disse que tivesse tento na língua, a menos que lhe dirigissem a palavra, uma ordem
que Eliza fez os possíveis por obedecer, Enquanto percorriam as ruas num passo apressado, Meg ouvia Eliza atrás de si com a respiração arfante, com falta de ar,
apesar de Amy lhe dizer numa voz sibilante que não fizesse barulho. A verdade é que Eliza
se deslocava muito mais depressa do que Meg teria pensado ser possível a uma mulher tão pesada como ela, mas a isso era obrigada para conseguir acompanhar a passada
de Amy.
Nada confusa devido à escuridão, Amy caminhava pelo dédalo de
ruas e ruelas com a agilidade de um rato e muito sub-repticiamente. Meg tinha albergado alguma esperança de que viessem a ser detidas por um dos guardas do rei incumbidos
de manter a paz, mas Amy era muito hábil a evitar a guarda. Sem dúvida que tinha muita prática a proceder dessa
maneira.
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O que também era uma vantagem para si, pensou Meg, concluindo que, se fosse levada perante um magistrado, não se sairia muito melhor do que as outras. A sua história
de que fora raptada por quatro bruxas pareceria absolutamente inverosímil. Além disso, se quisesse pôr fim à irmandade das bruxas, Meg tinha de levar a sua missão
a bom termo.
Perguntava-se se Seraphine já teria voltado para casa. Quando a condessa constatasse que Meg e Eliza tinham desaparecido, sem dúvida que ficaria alarmada. Seraphine
saberia que Meg nunca teria tido a imprudência de sair de casa depois do cair da noite, decerto que nunca até ao raiar do dia. Somente as circunstâncias mais prementes
e extremas teriam feito com que Meg saísse de casa à noite. Seraphine ficaria preocupadíssima e sairia imediatamente à sua procura.
Mas Meg sentia-se desesperada, não acreditando que a amiga fosse capaz de a encontrar, quando até ela própria não sabia onde se encontrava, sabendo apenas que deviam
estar nas proximidades de Westminster. Quando saíram de um beco, Meg avistou o contorno à distância do majestoso palácio.
Naquele momento, Amy ergueu a mão, fazendo com que todas parassem abruptamente. Perscrutou a ampla rua escura de uma ponta à outra antes de acenar num gesto de satisfação.
- O caminho está desimpedido. Estamos quase a chegar. Acompanhem-me. - Tomou a dianteira, levando-as a atravessar a rua. Meg e as outras tinham dificuldade em acompanhar
o passo dela. Não fazia ideia nenhuma quanto ao lugar onde aquela assembleia de bruxas teria lugar. Talvez num cemitério ou num qualquer edifício abandonado, ou
mesmo numa cave escura.
Quando Meg se apercebeu do local para onde Amy se encaminhava, ficou de boca aberta perante a inconcebível audácia da mulher. Amy correu para a entrada em arco de
uma pequena igreja, as paredes de pedra cobertas de hera. com um olhar de nervosismo em redor, bateu à porta muito ao de leve, chamando em voz baixa.
Responderam-lhe no mesmo tom de voz e a porta entreabriu-se. com um gesto, Amy indicou a Meg e às outras que passassem à sua frente.
- Despachem-se! - sussurrou.
Meg hesitou na soleira da porta, a coragem a abandoná-la ao sentir-se avassalada por recordações da sua infância, lembrando-se de todo o horror que a irmandade de
bruxas da mãe lhe havia inspirado. Ocasionalmente,
continuava a ter pesadelos em que se via rodeada por mulheres desesperadas que a fitavam com olhares plenos de avidez, agarrando-se às suas saias com mãos sôfregas,
as vozes agudas a gritarem todas as suas exigências impossíveis de satisfazer.
"Megera! Megera! Faz com que eu volte a ser jovem. Faz com que eu seja formosa. Amaldiçoa o meu marido por me bater. Cura a minha irmã da surdez. Ressuscita o meu
filho dos mortos."
Meg fechou os olhos por breves momentos, lembrando a si própria que já não era aquela garota atormentada sujeita às desvairadas ambições da mãe. Até mesmo os pesadelos
chegavam ao fim, mais cedo ou mais tarde.
Atrás dela, Amy soltou um som de impaciência, empurrando Meg para o interior da igreja. Ouviu as outras que se juntavam atrás de si e a porta a fechar-se depois
de terem entrado.
As chamas de todos os círios tinham sido extintas, o que deu a Meg a sensação de estar a mergulhar nas profundezas de uma caverna onde o negrume imperava. A nave
que se estendia diante de si estava envolta em escuridão, pelo que teve de fazer um grande esforço para vislumbrar o que a rodeava. A igreja devia ser muito antiga,
talvez remontasse aos tempos dos normandos; as janelas eram altas e estreitas, enquanto o ar estava perfumado com séculos de incenso entranhado nas paredes.
Viu-se uma chama tremeluzente quando um grupo se aproximou delas, vindo da parte da frente da igreja. A pessoa mais alta, que trazia uma lanterna, resmungou a Amy.
- Já não era sem tempo. Porque é que demoraste tanto tempo?
- Tive de ter cuidado para que não fôssemos vistos pela guarda, não é verdade? Portanto, não sejas ríspida comigo, Bea. Esta é a nossa maior noite e a mais gloriosa,
aquela por que esperamos há uma eternidade, desde que a avozinha morreu.
- Isso quer dizer que a trouxeste?
- com certeza que trouxe. - Amy deu outro pequeno empurrão a Meg para que avançasse.
A lanterna foi levantada ao alto, cegando-a momentaneamente por causa do clarão que incidiu diretamente nos seus olhos. Pestanejou e concentrou o olhar na mulher
que tinha à sua frente.
Ao contrário das outras, Beatrice Rivers não fizera o mínimo esforço para ocultar o seu rosto, tendo o capuz caído para trás. Tinha acentuadas
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parecenças com Amy, embora as suas feições fossem mais macilentas e os olhos demasiado chegados um ao outro. Tinha uma expressão fisionómica dura e um trejeito de
crueldade no contorno da boca. O seu olhar espelhava mais ceticismo em contraste com a fervorosa adoração de Amy.
- Eis a nossa Rosa de Prata - anunciou Bea com um traço de mordacidade no seu tom de voz.
As palavras dela foram recebidas com murmúrios de desilusão da parte das outras duas mulheres que tinham estado à espera com Bea na igreja.
- Esta é que é a Rosa de Prata?
- Não me parece que seja assim tão poderosa.
- Pensei que fosse mais alta.
- Silêncio! - gritou Amy. - Como é que se atrevem a mostrar tanto desrespeito? E claro que ela é a Megera. Pensam que a minha irmã e eu não nos teríamos certificado
disso antes de corrermos os riscos inerentes a esta assembleia? Diz-lhes, Bea.
- Sim, ela é, de facto, a Megera, mas se é tão poderosa como rezam todas as lendas... - começou Bea a dizer, encolhendo os ombros e com um leve sorriso dirigido
a Meg.
- Sem dúvida nenhuma que é! - interveio Amy, virando-se para Meg. - Mostrai-lhes.
- Sim! Mostrai-nos! Mostrai-nos! - O coro estendeu-se a outras
vozes ansiosas. Meg recuou consternada, mas não havia por onde poder escapar. Estava rodeada por um grupo de figuras expectantes, embora não fossem tantas como receara
inicialmente. Incluindo as duas irmãs Rivers, eram apenas sete mulheres.
Meg humedeceu os lábios e tentou imprimir uma nota autoritária ao seu timbre de voz.
- Em primeiro lugar, afastem os capuzes para trás e mostrem-me os vossos rostos. Tenho de ver quem afirma pertencer à minha irmandade de bruxas.
Verificou-se alguma hesitação, mas depois, um a um, os capuzes foram afastados para trás. Meg temia descobrir que uma delas pudesse ser Mary Waters, a pobre mulher
que elas haviam tentado coagir a que se juntasse ao grupo. Foi com alívio que constatou que Mary estava ausente.
A maior parte daquelas mulheres tinha um aspeto de desmazelo e de subnutrição, os rostos a mostrarem as marcas de uma existência dura,
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o que dificultava o cálculo da idade de cada uma. As únicas exceções eram Eliza e uma jovem esguia que não deveria ter mais de quinze anos.
Quando Meg se acercou dela, a rapariga recuou. Mas quando lhe pegou no queixo, aquietou-se e só a respiração acelerada é que traía a apreensão que sentia. A faculdade
de Meg na leitura de olhos já não era tão apurada como fora em tempos, mas aquela garota não apresentava nenhuma dificuldade, os seus olhos tão grandes e assustados
como os de uma corça acabada de parir.
- O jovem que amavas atraiçoou-te. Assim que ele conseguiu convencer-te a que fosses para a sua cama, abandonou-te por outra mulher. E agora tens o coração dilacerado.
- Ohh... - exclamou a rapariga numa voz tremente. - É verdade. C... como é que sabeis isso?
- Está escrito nos teus olhos para que alguém com competência para isso o possa ler. - Meg afastou para trás uma madeixa de cabelo da cara da jovem. - Mas tu és
jovem e forte. O teu coração acabará por sarar e terás aprendido com o teu sofrimento. Um dia hás de encontrar o amor verdadeiro.
- O... obrigada, milady, pelas vossas palavras - disse a jovem com os olhos marejados de lágrimas.
Meg ouviu murmúrios de espanto da parte das outras mulheres do grupo.
- Ela sabia. A senhora só precisou de olhar para os olhos da Donas para conseguir ler o coração dela.
- Estão a ver? Eu bem vos tinha dito - interveio Amy, que não cabia em si de contente.
- Nada mais fácil do que ler os pensamentos de uma fedelha tão tola como a Dorcas - ripostou Bea num tom de troça. - E quanto aos meus olhos? - acrescentou, entregando
a lanterna a Eliza e posicionando-se de frente para Meg, com as mãos nas ancas e o nariz pontiagudo bem erguido numa atitude de desafio.
A coisa que Meg menos queria fazer era sondar a perversidade demoníaca que suspeitava que existiria por detrás da fachada beligerante de Beatrice Rivers. Mas obrigou-se
a perscrutar a fundo os olhos da mulher. Espelhavam dureza e frieza, mas eram surpreendentemente frágeis, como uma camada fina de gelo. Era uma tarefa mais fácil
do que tinha esperado, mergulhando numa mente tão cheia de azedume e de raiva como a de
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Amy. Contudo, Beatrice, com frequência, encontrava escape para a sua dor e crueldade.
Meg estremeceu ao discernir vislumbres de Bea de faca em punho a torturar pássaros, ratos, cachorrinhos e gatos, vítimas que eram sempre criaturas mais fracas do
que ela. Até hoje...
As imagens mais recentes forçaram Meg a vê-las, imagens que não queria ver e em que não desejava acreditar.
- Não - murmurou, quebrando o contacto com os olhos de Bea. Chamando a si toda a sua coragem, afastou para trás bruscamente uma parte da frente do manto da mulher,
retraindo-se ao ver a jóia cintilante presa no vestido de Beatrice.
- Isso pertencia à minha amiga - disse Meg numa voz enrouquecida. - Porque é que está em teu poder?
Beatrice pareceu surpreendida, mas recompôs-se de imediato, unindo as partes da frente do manto.
- com certeza que o encontrei.
- Isso não é verdade. Roubaste-o! Atacaste a Seraphine. Aproximaste-te furtivamente pelas costas dela e... - Meg ficou com a voz embargada, incapaz de continuar
a falar.
Ouviram-se manifestações de surpresa da parte das outras mulheres, que expressavam exclusivamente perplexidade perante o extraordinário sentido de perceção de Meg.
Quando esta lhes perscrutou os semblantes, a maior parte delas desviou o olhar, as faces coradas devido ao sentimento de culpa. Todas sabiam o que Beatrice tinha
feito. Amy era a única que não se mostrava perturbada.
- Onde é que está a Seraphine? O que é que lhe fizeste? - gritou-lhe Meg.
Amy pousou uma mão no braço dela, num gesto com que queria tranquilizá-la.
- Já não precisais de vos preocupar com ela. A condessa está a repousar bastante confortavelmente.
Meg sacudiu a mão dela, girou sobre si própria e virou-se para Beatrice.
- Onde... é que ela... está? - perguntou por entre dentes cerrados, tentando penetrar nos olhos frios da mulher.
O sorriso de Bea troçava dela, mas o seu olhar desviou-se na direção da escuridão atrás das mulheres. Antes que alguém pudesse impedi-la,
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Meg tirou a lanterna das mãos de Eliza com brusquidão e correu para a parte da frente da igreja. Os seus passos vacilaram quando discerniu o contorno de algo estendido
em cima do altar, onde deviam ter estado círios.
Não era uma coisa, mas sim alguém. O corpo de uma mulher encontrava-se em cima da pedra de mármore, o cabelo louro a pender da extremidade do altar.
- Seraphine!
A lanterna oscilava na mão de Meg, projetando arcos de luz distorcidos sobre a mulher estendida em cima do altar, como se fosse um sacrifício pagão. Meg pousou a
lanterna e inclinou-se sobre Seraphine, procurando a pulsação cardíaca na base da garganta. A condessa estava de uma palidez de morte e tinha a pele fria e pegajosa,
mas Meg sentiu que a força da vida latejava debaixo das pontas dos seus dedos e respirou de alívio, uma respiração entrecortada, afastado o pior dos seus medos.
Mas as imagens que Meg havia lido nos olhos de Beatrice desfilaram pelo seu pensamento, visões do pesado cacete a abater-se sobre a cabeça de Seraphine. Meg levantou-lhe
a cabeça, apalpando-a cuidadosamente. Não viu vestígios de sangue, graças a Deus, e o crânio não estava fendido, mas sentiu o inchaço de um enorme alto. Que Deus
permitisse que não fosse demasiado grave, mas era imperativo levar Seraphine dali para fora para poder cuidar dela.
Meg tinha tido oportunidade de ver as consequências de pancadas na cabeça. Já tratara pessoas que nunca mais haviam recuperado a consciência, enquanto outras tinham
acordado, mas com a perda para sempre de todas as suas faculdades mentais. Quanto maior fosse o período de tempo em que uma pessoa estivesse inconsciente, menores
eram as probabilidades de recuperação. Meg começou a massajar as têmporas de Seraphine, dando-lhe palmadinhas nas faces.
- Phine. Phine, tens de despertar.
Meg sentiu-se mais animada quando Seraphine se mexeu, soltou um pequeno gemido e as pálpebras fremiram.
- Seraphine!
- Ora, deixa-a estar. Ela ficará bem. Por agora - disse Beatrice.
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Meg ergueu a cabeça e viu que as bruxas da irmandade a tinham seguido até junto do altar, com Beatrice à frente de todas numa atitude belicosa. Esquecendo todos
os seus receios, Meg sentiu-se possuída de uma cólera que não conhecia limites.
- Como é que te atreveste! Evidentemente que sabias que esta mulher é minha amiga. Como é que te atreveste a agredi-la!
As outras recuaram, temendo a ira de Meg, mostrando-se confusas e com sentimentos de culpa. Mas o rosto de Bea tinha uma expressão escarnecedora.
- A culpa foi toda de sua senhoria. Londres é uma cidade perigosa e ela caiu numa das ciladas mais antigas. A nossa doce e inocente pequena Dorcas, que está ali,
chorou e gritou por socorro enquanto a Amy fingia que a espancava e a arrastava para um beco. Quando a muito arrogante sua senhoria foi atrás delas, eu...
- Sei bem o que aconteceu. Atacaste-a pelas costas - disse Meg, mas fitava Dorcas com olhos coruscantes. - A minha amiga é uma mulher generosa e corajosa que jamais
assistiria impávida enquanto pensasse que uma jovem indefesa estaria a passar por dificuldades. Todas vós abusaram da sua nobreza de alma, o que não admira porque
sois umas grandes cobardes!
Dorcas baixou a cabeça e começou a chorar.
- Eu... eu... estou muito arrependida, milady. Mas a Amy e a Beatrice... elas d... disseram que eu tinha de...
- Cala essa boca! - ordenou-lhe Amy. Meg voltou a assestar a sua cólera em Beatrice.
- É possível que a Dorcas tenha atraído a Seraphine, mas foste tu quem a agrediu pelas costas como um reles gatuno. Foi a única maneira de poderes dominar alguém
tão formidável como a Seraphine. Se a tivesses confrontado com frontalidade, não te terias saído nada bem, o que posso garantir-te.
Beatrice ficou furiosa, as feições contorcidas numa expressão malévola. Meteu a mão por dentro do manto, sacando do punhal. Dorcas guinchou aterrorizada, um terror
que se estendeu a algumas das outras mulheres.
Mas Meg sentia-se demasiado encolerizada para se preocupar com a atitude de Beatrice.
- O quê? Agora pensas que tens coragem para me ameaçares? Eu não sou nenhum pássaro nem gatinho indefesos.
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Beatrice começou a encaminhar-se para Meg numa atitude ameaçadora, mas quando esta se recusou a sentir-se intimidada, Bea hesitou, um tremor a percorrer-lhe a mão
que empunhava o punhal. Amy puxou-a para trás.
- Pára com isso, Bea! - gritou à irmã num tom de voz agudo. Virou-se para Meg, erguendo as mãos num gesto apaziguador. - Peço desculpa se vos causámos alguma consternação,
milady. Mas pensámos que era necessário.
- Necessário atacar a minha amiga. Porquê?
- Foi uma garantia. Não tínhamos a certeza de que estaríeis disposta a juntar-vos a nós esta noite.
- Provei que estava disposta a isso. Acompanhei-vos de boa vontade, não é verdade? Portanto, desamarrem a condessa e soltem-na para que eu possa cuidar dela.
Amy mostrava-se indecisa, mas Bea disse:
- Acho melhor que a condessa continue onde está. Não estou inteiramente convencida da vossa lealdade à nossa causa. Até ao momento, não se pode dizer que estejais
a comportar-vos como a feiticeira que a nossa avó nos prometeu. Até tentastes retirar a maldição que ela rogou ao rei.
- Oh, isso foi um truque, Bea - interveio Amy. - Ela explicou-me tudo e fiquei satisfeita com a explicação.
- Mas nunca será capaz de se explicar de maneira a que eu fique inteiramente satisfeita.
Meg fez menção de lhe dar resposta, mas foi distraída por um som emitido por Seraphine. Constatou que a amiga abrira os olhos.
Meg inclinou-se para ela, examinando-lhe os olhos ansiosamente. Viu muito sofrimento, mas também viu indícios de lucidez enquanto Seraphine se esforçava por se concentrar.
- Phine, consegues ouvir-me? Sabes quem sou?
- Claro que sei quem és - respondeu Seraphine depois de ter humedecido os lábios. - Não precisas de gritar.
- Vai correr tudo bem - tranquilizou-a Meg, afagando-lhe a fronte meigamente. - Estou aqui para te ajudar.
Seraphine tentou sacudir a cabeça, mas retraiu-se.
- Isto não devia ter acontecido. Fui um raio de uma idiota por ter deixado que elas me atraíssem... - calou-se e Meg ficou sem ter a certeza de ela estar a censurá-la
ou a censurar-se a si própria. Mas, fosse como fosse, a lucidez era um bom sinal.
- Não te aflijas. vou tirar-te daqui.
Os lábios de Seraphine mexeram-se e Meg debruçou-se mais para junto dela para conseguir ouvi-la.
- Esquece que existo. Vai-te embora de imediato. Foge.
- Não! Não vou a lado nenhum sem ti - disse-lhe Meg. Endireitou-se e olhou ameaçadoramente para as mulheres ali reunidas. - Deem-me uma faca, uma de vós.
- Não tenho nenhuma, milady - retorquiu Dorcas.
- Nenhuma de nós costuma andar com facas, à exceção da Amélia e da Beatrice - acrescentou Eliza.
Beatrice olhou para Meg com uma expressão que, apesar de carrancuda, era de desafio, enquanto Amy se preparava para falar.
- Milady, só precisamos que vós...
- Quero que aquilo de que precisam vá para o diabo! Quero que a minha amiga seja libertada de imediato. Entrega-me a tua faca para que possa desamarrá-la.
Amy escondeu a faca atrás das costas, fazendo beicinho, como uma criança que escondesse um brinquedo que lhe estivesse proibido. As outras mostravam sinais de agitação,
observando aquele confronto com olhos arregalados enquanto Meg se acercava de Amy.
- Dá-me a faca imediatamente!
- Ou fareis o quê? - interveio Beatrice escarninha. - Transformá-la-eis num sapo? Será que possuís realmente quaisquer poderes de magia negra?
- Se persistires em desafiar-me, ficarás a saber com exatidão quais os poderes que possuo - ripostou Meg num tom de voz que não augurava nada de bom. - Quando eu
ainda era criança, era a única pessoa que conseguia ler o livro das Sombras. Consegui memorizar um número suficiente de feitiços de magia negra para destruir esta
cidade de uma ponta à outra, quanto mais gente da tua igualha.
- Nesse caso, mostra-nos - desafiou Beatrice, mas Meg detetou o traço de receio que transparecia da voz dela. As outras mulheres encolheram-se todas e recuaram.
Amy foi a única que se manteve firmemente no mesmo lugar. Olhava para Meg com uma expressão de censura.
- Não há necessidade de vos mostrardes tão... tão hostil. Todas somos vossas seguidoras fiéis, prontas para cumprirmos as vossas ordens.
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Mas, primeiro, tendes de nos ajudar a celebrar o nosso ritual e cumprir todas as vossas promessas.
- Eu nunca vos prometi absolutamente nada - gritou Meg. Uma parte racional do seu cérebro urgia-a a manter a calma. Era pouco prudente desafiar uma mulher que estivesse
louca, mas Meg tinha suportado durante anos de mais aquele legado sinistro que a mãe lhe deixara, a lenda da Rosa de Prata. Mas havia algo dentro dela que atingira
o limite, à semelhança do que acontecera naquele dia na margem do rio em que desafiara a mãe, recusando-se a fazer por mais tempo o que a tresloucada Cassandra queria
que fizesse.
Posicionou-se no centro do círculo de mulheres.
- Sois todas umas loucas cheias de ilusões, dispostas a arriscar as vossas vidas, até mesmo as vossas almas, para participarem nesta loucura disse Meg apontando
com o dedo na direção de Amy. - com que espécie de disparates é que aquela mulher vos encheu a cabeça?
As mulheres retrocederam amedrontadas; Eliza foi a única que respondeu titubeante.
- Ela... ela contou-nos tudo sobre a Irmandade da Rosa de Prata que foi fundada em França. Mulheres fortes e destemidas chefiadas por vós com o objetivo de adquirirem
uma magia tão poderosa que destronaria reis, semeando terror num mundo dominado por homens...
- Sem dúvida que semearam o terror, assassinando crianças indefesas e envenenando pessoas inocentes. E as irmãs Rivers disseram-vos o que aconteceu a todas essas
destemidas mulheres? Foram perseguidas por caçadores de bruxas, torturadas e enforcadas. Algumas conseguiram escapar como a avó delas... mas quando a Tamsin Rivers
tentou restabelecer a Irmandade da Rosa de Prata na Escócia, foi amarrada a um poste e queimada viva.
- Q... queimada? - perguntou Dorcas numa voz trémula, mas o terror também se espelhava nos rostos das outras mulheres.
- Não lhe dêem ouvidos - gritou Amy.
- Então, o que ela diz não é verdade? - perguntou Eliza.
- S... sim, é, mas a morte da minha avó será vingada e nada disso nos acontecerá - respondeu Amélia, olhando para Meg com uma expressão ameaçadora. - Porque ela
usará os seus poderes para nos proteger.
- Se não me permitirem cuidar da minha amiga, não levantarei um dedo. Por amor de Deus, não vedes que todas vós já correis grandes perigos por estardes reunidas
de maneira tão descarada nesta igreja? Em que é que estáveis a pensar?
- Ela tem razão - concordou Dorcas numa voz trémula. - Nunca considerei que estivéssemos em segurança aqui.
- Tretas! - exclamou Amy. - O padre desta paróquia está demasiado ocupado a fornicar com a amante, enquanto o sacristão deve estar perdido de bêbado.
- E quanto à guarda? Os agentes do rei? Estais convencidas de que esta reunião passará despercebida a Jaime Stuart? O que não aconteceu com a que teve lugar há tantos
anos em Edimburgo, tal como não acontecerá agora.
Os lábios de Amy esboçaram um trejeito de presunção.
- Desta vez, não temos nada a recear do rei. Ele morrerá dentro de muito pouco tempo, perecerá envolto em chamas tal e qual como a minha avó profetizou.
- A maldição da Tamsin Rivers? Se ela possuísse algum poder genuíno, há muito que o rei teria sido aniquilado.
- Ela possuía poderes! Continua a possuí-los.
- A tua avó morreu, Amy.
Amy estremeceu ao ouvir as palavras sem rodeios de Meg.
- Não, o poder dela estendeu-se da sepultura para se apoderar das mentes dos homens de vontade fraca. São eles que executarão as ordens dela, cumprindo a maldição.
- Se estás a contar com Sir Patrick Graham, ficarás dececionada. Houve alguém que o dissuadiu a não atacar o rei.
Amy abanou a cabeça furiosamente.
- É possível que Sir Patrick seja um tratante cruel, mas ele quer vingar-se de Jaime Stuart tanto quanto eu e a minha irmã. Não existe nada deste lado do Inferno
que o convencesse a não fazê-lo.
- Não obstante, houve alguém que o convenceu, o doutor Blackwood, que é amigo dele.
A cólera de Amy aumentava na mesma proporção da que Meg sentia. Mas, para grande perplexidade desta, a mulher desatou a rir, um som quase obsceno que ecoava das
vigas do teto.
- B... Blackwood. Esse idiota que anda sempre bêbado? Porque é que ele haveria de interferir?
- Porque Sir Patrick é amigo dele e o Blackwood não o quer ver enforcado por traição. O Armagil prometeu...
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- Ele prometeu? - O riso de Amy desapareceu abruptamente, o regozijo substituído por uma expressão de um escárnio glacial. - Se soubésseis alguma coisa que fosse
a respeito desse homem, saberíeis que esse homem nunca cumpre as suas promessas. Ele nunca se mexe para nada, a não ser para beber o próximo copo de vinho. Ele não
mexerá um dedo que seja para impedir o que terá lugar amanhã.
Aquela era a segunda vez que Amélia Rivers se referia a um acontecimento misterioso que antecipava.
- O que é que queres dizer com isso? - perguntou-lhe Meg num tom autoritário. - Que é que estás à espera que aconteça amanhã?
Amy cerrou os lábios. Meg pensou que ela, uma vez mais, se furtaria à pergunta. Mas os olhos de Amy brilharam com uma expressão triunfante, como se não fosse capaz
de resistir a vangloriar-se, as palavras a saírem-lhe da boca.
- Pólvora! - gritou jubilante. - Pilhas e pilhas de pólvora nas caves por baixo do antigo Palácio de Westminster, só à espera que o Parlamento se reúna na câmara
mais acima. Assim que o rei der início ao seu discurso, o rastilho será aceso e depois, bum!
Amy fez um gesto dramático, levantando as mãos ao alto.
- Explodirão todos a caminho do Inferno e o caos reinará por toda a cidade. O governo será derrubado e os homens destruir-se-ão uns aos outros na luta pelo poder.
Mas o poder será nosso.
"Não estais a ver, Megera? Esta é a altura perfeita para cumprirdes o vosso destino. Ensinar à nossa irmandade de bruxas a vossa magia mais negra. Nós, as mulheres,
seremos as conquistadoras de Inglaterra e vós sereis a nossa rainha.
Meg olhou para os olhos vítreos de Amy e não viu o mais pequeno resquício de racionalidade. A mulher estava louca e a conspiração da pólvora que ela descrevera era
igualmente uma autêntica loucura. Meg tê-la-ia ignorado, considerando que não passava de outro delírio de Amy, se não tivesse tido aquele sonho tão perturbador.
Vira as barricas de pólvora empilhadas numa cave, exatamente como Amélia tinha acabado de descrever, a explosão, os edifícios a desmoronarem-se, o rei encurralado
por detrás de uma parede de fogo.
Mas Armagil escrevera a Meg, garantindo-lhe que tudo correria pelo melhor, não fosse o facto de a missiva dele ter sido tão vaga, sem dar quaisquer explicações quanto
ao seu paradeiro, nem sobre o que teria andado a fazer durante a última semana.
Mas, naquele momento, Meg lembrou-se de algo que Armagil lhe dissera no dia em que se haviam separado, como ele se havia mostrado relutante em interceder junto de
Sir Patrick.
"Mandar-me ir atrás do Graham é o mesmo que mandar um chacal para parar um lobo. Também não morro de amores pelo Jaime Stuart. Ele é um infeliz arremedo de rei e
de homem.-"
E se em vez de ter dissuadido Graham, Armagil tivesse sido persuadido a juntar-se-lhe? Não. Era possível que Armagil desprezasse o rei, mas não era um católico.
Também não tinha nenhum motivo para se vingar, ao contrário de Robert Brody. Ainda que tivesse, Armagil nunca consentiria em participar numa conspiração que resultaria
em tamanha destruição, a par da perda de tantas vidas inocentes.
A Meg era completamente indiferente ao que pudessem dizer a respeito de Armagil. Talvez desconhecesse muito do passado dele, o que motivara a zanga com o pai que
os levara a estarem de relações cortadas. Mas, no seu coração, ela conhecia Armagil Blackwood. Bem no seu âmago, o homem era como ela, um curandeiro e não um destruidor.
E, contudo, não era capaz de banir do seu pensamento a imagem atormentadora que vira no pesadelo, Armagil a afastar o capuz para trás, revelando-se enquanto chovia
fogo do firmamento em volta deles.
"Perdoa-me", murmurara-lhe ele.
Meg levou a mão à têmpora, fazendo pressão ao sentir uma enorme confusão. Sentia uma necessidade premente de ir à procura dele, mas a sua primeira prioridade era
salvar Seraphine, tirá-la das mãos daquele grupo de aspirantes a bruxas.
Meg pensou na irmandade das bruxas que a mãe tinha fundado. Muitas delas haviam sido banidas do seio das suas famílias, acossadas e desesperadas por uma réstia de
esperança numa vida melhor. Mas muitas mais haviam sido como a própria Cassandra, perigosas, formidáveis e criminalmente insanas.
Mas, quando comparadas com estas, aquelas mulheres que as irmãs Rivers haviam reunido eram patéticas. Muitas delas, naquele momento, pareciam mais atemorizadas do
que empolgadas. As únicas fanáticas genuínas do grupo eram Amélia e a irmã Bea...
Meg ficou tensa ao olhar em volta de si. O que era feito de Beatrice? Deu meia-volta e ficou consternada ao constatar que, enquanto estivera a discutir com Amy,
Bea aproximara-se furtivamente do altar. Estava debruçada sobre Seraphine de punhal em riste.
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- O que é que estás a fazer? Afasta-te dela imediatamente - gritou-lhe Meg.
- A Bea só está de guarda à condessa até concordardes em chefiar a nossa irmandade de bruxas, celebrando o ritual - disse Amy.
- Irmandade de bruxas? - O inesperado som da voz de Seraphine, apesar de muito enfraquecida, surpreendeu todas as presentes. Estava agora mais desperta, tendo começado
a debater-se para se libertar das cordas que a prendiam. - Vocês são um miserável arremedo de uma irmandade de bruxas... para isso precisam de ser em número de treze.
- Somos mais do que as que estamos aqui. Não tardarão a chegar retorquiu Amy insistente.
- Se viesse mais alguém, a esta hora já estaria aqui - interveio Bea.
- Isso não importa. Temos mais do que as suficientes para levarmos o ritual a cabo. Somos sete.
- Não tardarão a ser seis quando eu puser as mãos na bruxa imbecil que me deu esta dor de cabeça - resmungou Seraphine.
Beatrice soltou um som sibilante. Antes que Meg pudesse impedi-la, viu-se o reflexo da lâmina do punhal com que golpeou a face de Seraphine, que gritou de choque
e de dor.
Meg começou a atirar-se a Beatrice, mas esta encostou a ponta da lâmina à garganta de Seraphine.
- Se te aproximares mais um passo que seja, ela morre - avisou Beatrice.
- Se não largares esse punhal, serás tu quem morrerá e de uma maneira mais horrível do que és capaz de imaginar. - Mas o tremor na voz de Meg fazia com que a ameaça
soasse a falso.
- Acalma-te, Bea - disse Amy à irmã num tom de censura enquanto agarrava Meg pelo braço. - Ninguém fará mal à condessa, juro que não. Não desde que concordeis em
celebrar o ritual.
- Ritual? - retorquiu Meg, sacudindo-a para que lhe largasse o braço. - Mas que ritual é esse de que não se fartam de falar? O que diabo é que pretendem de mim?
- É o ritual dos mortos. Quero que trateis de apartar o véu que nos separa do além para conjurardes a minha avó.
- O quê!?
- Não faças nada disso, Meggie - interveio Seraphine numa voz enrouquecida.
Não fazer isso? Meg nem sequer acreditava ser capaz disso.
- Não possuo conhecimentos nenhuns na arte da necromancia protestou, dirigindo-se a Amy.
- Tendes, sim. Não me mintais. A minha avó viu esse feitiço ser posto em prática inúmeras vezes na vossa casa em Paris.
- Pela minha mãe, não por mim!
- É forçoso que também saibais como fazê-lo. A Cassandra queria que viésseis a ser a feiticeira mais poderosa em todo o mundo. com certeza que vos ensinou.
- A necromancia é uma das artes mais negras que existem e foi uma coisa que sempre me aterrorizou. É possível que tenha sido obrigada pela minha mãe a pôr em prática
esse ritual, mas recusei-me a aprender.
Os lábios de Amy tremeram e a expressão no seu olhar ensombrou-se.
- Portanto, recusais-vos a ressuscitar a minha avó?
- Não estás a ouvir o que te estou a dizer. Não posso!
- Para vosso bem, o melhor que tendes a fazer é tentar ou... ou... - Amy avançou para Meg, brandindo o seu próprio punhal.
- Talvez a Megera se sentisse mais inspirada se tivesse de procurar a amiga, a condessa, no mundo dos mortos - disse Beatrice ameaçadora. - Devo cortar-lhe a garganta
ou esquartejá-la bocado a bocado?
Bea posicionou o punhal de maneira a que agora a ponta da lâmina ficasse inserida numa das narinas de Seraphine. A condessa nem sequer soltou um gemido, mas os olhos
arregalaram-se de medo. Seraphine podia ter encarado a perspetiva da sua morte com coragem, mas tinha pavor a ser desfigurada.
Meg cometera o erro de acreditar que Beatrice era a mais fraca das duas irmãs Rivers, uma mulher que só se aventurava a dar largas à sua crueldade em animais indefesos.
Mas a verdade era que Seraphine estava tão indefesa como um gatinho. Continuava entontecida devido à forte pancada na cabeça, além de estar de mãos e pés atados.
Meg via que o fio de sangue que escorria do golpe na face da amiga excitava Beatrice, o que a tornava mais audaz. Amy podia ter sido a que cometera um assassínio,
mas Bea estava sôfrega por poder seguir-lhe o exemplo, quanto mais não fosse para provar a si mesma que era igual a Amy.
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"Como é que eu permiti que esta situação ficasse tão fora de controlo?", pensou Meg, censurando-se. Podia tentar disputar a posse do punhal com Beatrice, mas ainda
que fosse capaz, de uma maneira qualquer, de vencer a mulher mais forte, também teria de se haver com Amy.
Meg não podia esperar qualquer ajuda da parte daquelas patéticas bruxas. Tudo o que faziam era juntar-se amedrontadas enquanto observavam o que se passava como um
rebanho de ovelhas trémulas.
A última coisa no mundo que Meg alguma vez desejaria era seguir as peugadas de Cassandra Lascelles na prática de magia negra, mas quando o seu olhar se cruzou com
o de Seraphine, viu o terror que ela própria sentia. Meg apercebeu-se de que não lhe restava outra alternativa.
- Muito bem - disse numa voz enrouquecida. - vou tentar fazê-lo... conjurar dos mortos o espírito de Tamsin Rivers.
Amy traçou a giz o contorno do pentagrama no centro do chão de pedra da igreja. As bruxas da irmandade reuniram-se em círculo em torno de Meg, cada uma com uma vela
acesa. Tinham voltado a cobrir as cabeças com os capuzes, tendo-os puxado para a frente talvez para ocultarem o medo e os sentimentos de culpa. Ou talvez na esperança
de que o tecido fino, de uma maneira qualquer, as protegesse se aquela magia negra a que estavam à espera de assistir corresse mal inesperadamente.
Meg tinha tido a esperança de que Beatrice se juntasse ao resto do grupo, mas ela manteve-se vigilante junto do altar, a lâmina ameaçadora do punhal nunca a mais
de uns escassos milímetros do rosto de Seraphine.
Meg teve de bloquear o medo pelo que poderia acontecer à amiga, de maneira a manter-se calma para poder pensar. O seu olhar dirigiu-se para a porta, sentindo-se
desesperada e rezando para que aquela reunião fosse interrompida pela chegada de alguém, qualquer pessoa, um clérigo ou mesmo um dos guardas-noturnos da cidade.
Meg refletiu que preferia ser presa por bruxaria do que ter de se bater contra a loucura daquelas mulheres, as irmãs Rivers.
Mas tudo se mantinha envolto em silêncio fora daquelas grossas paredes, como se um feitiço de obscuridade se tivesse abatido sobre a igreja, isolando-as do resto
do mundo.
Amy colocou uma bacia de cobre cheia de água no centro do pentagrama. Em seguida, acendeu um círio grosso e negro, posicionando-o de modo a que a luz da chama tremcluzisse
por toda a superfície da água. Era óbvio que Tamsin Rivers tinha descrito ao pormenor à neta tudo o que envolvia o ritual, o que deixava a Meg muito poucas hipóteses
de fingir ou de recorrer a subterfúgios.
Quando Amy lhe indicou com um gesto que começasse, Meg protestou.
- Isto é tudo o que trouxeste? Apenas esta bacia e a vela? É necessário uma determinada poção para que a pessoa que procede ao conjuro possa ficar no estado de transe
necessário.
- A vossa mãe nunca precisou de nada disso. A minha avó costumava dizer que a Cassandra possuía um dom natural para erguer os mortos.
"Mas eu não sou a minha mãe!" Foi por pouco que não ripostou irritada, mas era uma afirmação que não se cansara de fazer durante a maior parte da sua vida. Subitamente,
sentiu-se farta de protestar. Quando já se encaminhava para o centro do pentagrama, Meg fez um último esforço para chamar Amy à razão.
- Existe um motivo por que a necromancia é uma arte rejeitada pela maior parte das mulheres sábias. Não só porque é errado perturbar o mundo dos mortos, como também
se corre o risco, quando se abre esse portal, de algum espírito descontente se passar para este mundo.
- Mas isso é exatamente o que eu quero - retorquiu Amy. - Quero que a minha avó volte. Ela devia estar aqui connosco para poder partilhar o nosso triunfo amanhã.
- Mas é muito possível que não seja a tua avó a emergir. Não é de desprezar a possibilidade de eu poder soltar outra coisa qualquer, algo sinistro e perigoso...
- Parai de tentar amedrontar-me e fazei o que tendes de fazer ou... - Amy não precisou de completar a ameaça. Só precisava de fazer um gesto na direção do altar,
onde Seraphine estava estendida indefesa, com a lâmina do punhal de Bea encostada à garganta da amiga.
Meg ajoelhou-se junto da bacia de cobre. Em mais de uma ocasião tinha visto a mãe pôr em prática aquele ritual aterrador. Meg vira a água na bacia a ondular e a
vaporizar-se, ouvindo as vozes sepulcrais que amaldiçoavam Cassandra por ela estar a perturbar o seu repouso eterno. Mas a mãe nunca fizera nenhum esforço para ensinar
a Meg a arte da necromancia. Cassandra não tinha acreditado que a filha possuísse esse dom.
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Enquanto Meg perscrutava a água, viu o seu próprio reflexo, que parecia dançar à luz tremeluzente da chama do círio. O cabelo castanho e sedoso, bem como os olhos
verdes, era como o do pai, mas a palidez da pele e a intensidade fisionómica eram parecenças que herdara de Cassandra Lascelles.
Meg temia que a mãe tivesse tido razão. Não possuía o dom de convocar os mortos. Mas ao aperceber-se dos traços fisionómicos de Cassandra, que espelhavam as suas
próprias feições, Meg sentiu-se ainda mais amedrontada do que até então.
Não desejava que o ritual fosse levado a cabo com êxito, mas tinha de produzir um efeito suficiente para salvar a vida de Seraphine e, muito plausivelmente, a sua
própria vida. Quando se ajoelhou junto da bacia, constatou que não era a única que tremia de apreensão. A luz das chamas das velas tremeluzia porque muitas das mulheres
que a circundavam tremiam de medo enquanto pegavam nos seus círios.
Não seria preciso muito de uma manifestação do sobrenatural para alarmar aquelas criaturas dignas de piedade, para que desatassem a fugir da igreja aos gritos, possuídas
de um grande terror. com um pouco de sorte, isso talvez chamasse a atenção dos guardas ou levaria à igreja um dos zeladores que fosse investigar o que se passava.
Ou ainda, se Meg conseguisse criar uma situação caótica, talvez tivesse oportunidade de libertar Seraphine, levando-a dali para fora. Era uma esperança bastante
ténue, mas era a única que lhe restava.
Elevou aos céus uma oração silenciosa e à boa Terra-Mãe, pedindo perdão pela profanação que estava prestes a tentar pôr em prática. Em seguida, Meg fechou os olhos,
procurando bem no fundo da sua alma aquele resquício de perversidade da mãe que desde sempre receara que existisse secretamente dentro de si e que se forçara denodadamente
por suprimir.
Enquanto entoava as palavras de um feitiço numa língua da Antiguidade há muito esquecida, Meg olhava fixamente para a bacia, permitindo que o cintilar do cobre e
a luz das chamas tremeluzentes dos círios na água a mesmerizassem.
Meg fazia movimentos com as mãos por cima da bacia ao mesmo tempo que balanceava o corpo. Era possível que o feitiço fosse da mãe, mas tinha noção de que a sua apetência
para a representação teatral se devia ao seu pai. Entre as inúmeras profissões a que ele se dedicara, Martin Wolfe, durante uma fase da sua vida, trabalhara como
ator num teatro de Londres.
Meg abanava a cabeça e gemia, imprimindo toda a sua apetência para o drama aos seus movimentos, enquanto a sua voz reverberava espectralmente das traves do teto.
Não tinha a mínima intenção de erguer ninguém dos mortos, mas era forçoso que encontrasse uma maneira de convencer Amélia Rivers de que o fizera, que o espírito
da sua avó se encontrava presente.
Meg repetiu as palavras do feitiço uma vez mais, permitindo que a sua voz atingisse um pico febril enquanto gritava.
- Tamsin Rivers! Ordeno-te que venhas até nós do mundo dos mortos. As tuas muito amadas netas, Amélia e Beatrice, estão à tua espera.
Uma das mulheres presentes deixou escapar um som sibilado, ou assim pensou Meg até se aperceber de que o som vinha da bacia de cobre. A água começou a ficar turva,
vendo-se uma nuvem de vapor que se evolava da superfície da água na bacia envolta numa espécie de bruma.
O coração de Meg começou a bater descontroladamente no seu peito. As mãos imobilizaram-se no ar e ficou incapaz de soltar um único som até Amy lhe ter espetado um
dedo nas costas com força.
- Está a resultar! - exclamou Amy empolgada. - Não podeis parar. Continuai.
Meg humedeceu os lábios, obrigando-se a prosseguir.
- Tamsin Rivers. V... vem até junto de nós. Aparta o véu que separa os nossos mundos e fala connosco. Eu, Megera, estou a chamar-te. Obedece-me.
A neblina rodopiou em turbilhão e, para grande horror de Meg, viu uma forma que começava a emergir, como a de uma mulher que apalpasse o seu caminho por entre o
nevoeiro.
- Megera - disse a voz espectral que não passava de um sussurro, mas, não obstante, parecia encher o interior de toda a igreja.
Uma das mulheres soltou um grito agudo e deixou cair a vela para se pôr em fuga. Meg pensou que talvez fosse a jovem Dorcas. As outras deram um salto para trás,
afastando-se do pentagrama. A respiração de Meg era acelerada, saindo-lhe da boca em haustos de terror. Tinha de pôr cobro àquilo agora, quebrar o feitiço antes
que fosse tarde de mais, mas não tinha a certeza de conseguir fazer isso. Nem sequer era capaz de desviar o olhar enquanto a figura que emergira do vapor de água
voltava a repetir o seu nome numa voz que lhe era arrepiantemente familiar.
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- Megera.
A neblina rodopiou em turbilhão e apartou-se. O rosto que tremeluzia abaixo da superfície da água não era o de uma bruxa velha como Tamsin Rivers, mas sim o de uma
mulher bastante mais nova. O cabelo cor de ébano emoldurava um rosto de pele de porcelana e malares proeminentes, formando um semblante cruel na sua beleza.
- M... mãezinha?
Cassandra Lascelles olhava para Meg com olhos que haviam deixado de ser opacos com a cegueira como tinham sido em vida dela. O olhar de Cassandra era penetrantemente
límpido, como se estivesse a ver a filha realmente pela primeira vez.
- Meg, mas que loucura é esta? Porque é que arriscaste envolver-te em magia negra para me chamares aqui?
Meg? A mãe nunca a tratara por esse diminutivo, deplorando sempre quaisquer manifestações de afeto, que havia considerado uma fraqueza. Do mesmo modo, Meg nunca
vira a fisionomia de Cassandra ensombrada com uma expressão de tanta tristeza e arrependimento.
- Mãezinha, és tu realmente? - perguntou num murmúrio.
Antes que o espectro pudesse responder. Amy chegou-se a Meg pelas costas.
- Essa não é a minha avó. Mas que impostura é esta? Tratai de banir esta criatura de imediato para chamardes a minha avó! - A tremer de raiva de tanta deceção, Amy
tocou na bacia. A água agitou-se e a imagem de Cassandra ondulou e esteve quase a desaparecer.
- Não! Amy, por favor - disse Meg. - É a minha mãe. - Por muito que temesse Cassandra e lamentasse a sua insanidade, houve qualquer coisa que mexeu com Meg, o anseio
inato de qualquer criança pelo amor da mãe. Apesar de saber que aquilo era errado, ciente dos perigos do que tinha conjurado, pela primeira vez Meg compreendeu a
atração que a necromancia exercia sobre as pessoas.
- Permite-me só mais um momento - suplicou a Amy.
- Não, livra-te dela imediatamente!
Ignorando o que ela dizia, Meg estendeu a mão para a imagem de Cassandra, querendo tocar-lhe tão ansiosamente, mas receando perturbar aquele elo de ligação tão frágil
que o seu feitiço forjara.
- Mãezinha, por favor, fala comigo outra vez. Diz-me como são as coisas onde estás. Estás em paz? E serás capaz de me perdoar pelo que aconteceu naquele dia na margem
do rio?
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- Não me cabe a mim perdoar-te pelo que quer que seja; és tu quem tem de me perdoar por tudo o que eu fiz...
- Não! - interveio Amy, puxando Meg para trás com brusquidão e posicionando o seu punhal por baixo do queixo dela. - Põe fim a isto e faz o que prometeste fazer.
Eu quero a minha avó! - Na sua agitação, feriu a pele de Meg com a ponta do punhal, fazendo com que uma pequena gota de sangue caísse na bacia. Os olhos de Cassandra
coruscaram e a água mudou de cor, adquirindo uma cor avermelhada.
A imagem de Cassandra desapareceu abaixo daquela superfície vermelha, mas a sua voz ecoou retumbante como o troar de um trovão.
- Miserável! Atreveste-te aferir a minha filha!
A água começou a fervilhar e a sibilar e o vapor que se evolava da bacia estava envolto numa bruma negra. Meg recuou e ficou com a respiração arquejante quando aquela
névoa negra passou através de si como uma lâmina glacial, congelando-lhe os pulmões. Ouviu o grito agudo de Amy, que soltou Meg, o punhal a cair-lhe da mão.
Ouviram-se outras vozes que gritavam, mas o som chegava-lhe abafado, como se alguém tivesse metido algodão nos seus ouvidos. As paredes de pedra, os círios e o pentagrama
- tudo aquilo começou a andar à roda diante dos olhos de Meg. Apercebeu-se vagamente de que estava a acontecer algo de terrível e estranho a Amy Rivers. A mulher
caiu desamparada no chão a espumar da boca, o corpo percorrido por espasmos.
Meg sentiu-se a tombar para a frente, tentando recuperar o equilíbrio antes de uma profunda escuridão ter enegrecido tudo em torno de si. A escuridão era estranhamente
fresca e serena e sair desse estado parecia-lhe uma tarefa demasiado difícil. Mas houve uma voz que perturbou toda aquela paz, incomodando-a.
- Margaret! Margaret, minha querida, abre os olhos.
A mão quente e grande de alguém que lhe friccionava os pulsos, após o que começou a dar-lhe palmadinhas nas faces com uma insistência crescente.
Meg tentou desviar a cabeça.
- Mãezinha, pára. Deixa-me descansar durante mais um minuto.
- Margaret! Raios partam isto, acorda, mulher.
A pancadinha seguinte foi mais insistente e dada com mais força, quase como uma bofetada. Meg abriu os olhos e olhou para o homem que se debruçava sobre si com uma
expressão reprovadora. Tinha o cabelo todo emaranhado e os olhos escuros estavam ensombrados de preocupação.
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- Graças a Deus... ela está a recuperar - disse ele, mas Meg não fazia ideia nenhuma de quem seria a pessoa com quem ele falava. O mais certo era o idiota estar
a falar consigo próprio.
Meg pestanejou, tentando focar o olhar.
- Armagil?
-- Deus seja louvado. Sabes quem eu sou?
- C... certamente que sim, se bem que seja de admirar que não me tenha esquecido. Mantiveste-te afastado durante tanto tempo - replicou Meg em tom de censura. -
Mas ainda bem que estás aqui agora. Tive o sonho mais horrível que se possa imaginar.
Esforçou-se por se sentar na cama, mas não sentiu a macieza do colchão de penas debaixo das mãos. Quando se restabeleceu, as palmas das mãos apoiaram-se num chão
frio de pedra que estava molhado.
Encostando-se a Armagil desnorteada, o olhar dela foi das palmas das mãos molhadas até à bacia de cobre virada com o fundo para cima, o círio negro tombado numa
poça de água, o pavio extinto.
Constatou que não estava na cama, tal como não estivera a sonhar.
- Tem calma - disse Armagil numa voz tranquilizadora, passando-lhe um braço por cima dos ombros para a ajudar a sentar-se. - Estás a sentir-te bem?
Bastaria? Meg não sabia como responder à pergunta dele. Olhou ansiosamente em volta de si à procura das bruxas da irmandade, mas à pouca luz das velas que restavam
não avistou ninguém. Teria pensado que se encontrava sozinha com Armagil se não fosse aquele aflitivo carpir.
O som era quase inumano, expressando um desgosto horrível, tão aflitivo que Meg só queria esconder a cara no ombro de Armagil para deixar de ouvir. Todavia, obrigou-se
a procurar a origem daquele carpir.
O seu olhar deteve-se em Beatrice Rivers, que estava agachada no chão a chorar convulsivamente, agarrada ao corpo inerte da irmã que tinha nos braços. A cabeça de
Amy balouçava sem vida, o pescoço tão flácido como o de uma boneca de trapos, com olhos vidrados que não viam, a boca petrificada numa expressão de horror.
- O que... o que é que aconteceu? - perguntou Meg numa voz titubeante.
- Raios me partam se sei! Mais tarde haveremos de apurar isso. Temos de sair daqui antes da chegada da guarda do rei. Consegues pôr-te de pé? - Sem lhe dar hipótese
de responder, Armagil levantou-a, pondo-a de pé. Inicialmente, Meg sentiu-se um pouco cambaleante, mas conseguiu equilibrar-se.
- Mas... mas... - Meg interrompeu-se, desviando o olhar daquela cena excruciante com Amy Rivers sem vida para procurar Seraphine. Não viu nada em cima do altar.
- A Phine?
- Estou aqui, Meggie - replicou Seraphine, que tinha estado encostada a uma coluna, comprimindo um lenço na face ensanguentada. Aproximou-se de Meg com passos pouco
firmes.
- Mas o que... como? - perguntou Meg desorientada.
- Agora não há tempo para explicações. Há uma porta lateral por detrás do altar. Vamos ter de sair por aí. - Agarrando Seraphine pelo braço com uma mão e Meg com
a outra, Armagil empurrou-as à sua frente sem estar com cerimónias.
Meg resistiu, deixando-se ficar para trás momentaneamente, o seu olhar atraído de novo para aquela cena digna de dó, Beatrice lavada em lágrimas, mantendo a irmã
nos braços.
- Mas não podemos ir-nos embora assim, sem...
- Sim, podemos! - atalharam Armagil e Seraphine ao mesmo tempo.
- Não há nada que possas fazer, Margaret - acrescentou Armagil. - Aquela desgraçada mulher está morta, o que também nos poderá acontecer se formos apanhados aqui.
E agora vê se te mexes!
Puxou-a em direção à escuridão do transepto lateral, onde havia uma porta de madeira muito simples. De um momento para o outro, Meg deu consigo fora da igreja. Uma
rajada do vento frio que se fazia sentir à noite fez com que ficasse arrepiada, mas também a revigorou como um banho de água fria.
Ouviu o som de gritos à distância, como se um grande número de homens estivesse a dirigir-se para a igreja. Dando um passo em frente, Meg tropeçou numa coisa dura
e percebeu que era uma pedra tumular. A porta lateral dera-lhes saída para o cemitério. Seraphine continuava a sentir-se muito pouco firme nas pernas. Armagil levantou-a
do solo para a carregar, insistindo com Meg para que o seguisse.
O que ela fez, ainda que continuasse confusa, caminhando atrás dele através do cemitério, que deu lugar a um labirinto de ruas e becos. Meg seguia Armagil cegamente,
sem fazer a mínima ideia do local para onde se
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dirigiam. A sua mente esforçava-se por fazer algum sentido do que se havia passado na igreja. O que é que ela tinha feito? Teria ela sido capaz de conjurar o espírito
da mãe? O que é que fulminara Amy Rivers de uma maneira tão mortífera? E como é que Armagil lhes aparecera tão subitamente? Nada daquilo lhe parecia real. Era como
se estivesse enredada num dos seus pesadelos.
A única coisa que lhe garantia que estava acordada era a presença sólida do homem que a conduzia para um lugar seguro. Isso a par da voz de Seraphine, que o invetivava
num tom de voz sibilado.
- Maldito seja! Ponha-me no chão, seu grande imbecil. Eu posso andar pelo meu próprio pé.
Armagil devia ter concluído que já se encontravam bastante distantes da igreja. Sem fôlego por ter carregado Seraphine, pousou-a no chão, o que não fez com muita
delicadeza. Agacharam-se envoltos nas sombras de uma loja, fazendo uma pausa para recuperarem o fôlego.
Meg ficou surpreendida ao constatar que se encontravam num dos edifícios contíguos ao amplo Palácio de Westminster. A noite que parecera tão tranquila quando Amy
Rivers a levara para a igreja estava agora cheia de movimento e ruidosa com o barulho dos cascos dos cavalos e do calcar de botas no piso empedrado.
- Esses homens todos foram chamados para darem caça às bruxas? - perguntou Meg a Armagil num sussurro temeroso.
- Não só por causa das bruxas - respondeu-lhe Armagil concisamente. - Tenho de te levar e à condessa para um lugar seguro e há uma coisa que tenho de fazer. Preciso
de avisar... - interrompeu-se e ficou tenso. - Maldição, cheguei tarde de mais!
Quando Meg lhe ia perguntar o que é que queria dizer, Armagil tapou-lhe a boca com a mão para a silenciar. Ao fundo da rua viam-se as chamas de archotes. Ela, Armagil
e Seraphine espalmaram-se contra a parede do edifício quando um grupo de soldados passou por eles em passo de marcha, arrastando alguém até onde outros soldados
aguardavam com cavalos.
Por um momento, Meg receou que o prisioneiro que eles escoltavam fosse uma daquelas infelizes mulheres que haviam estado na igreja, talvez até mesmo Dorcas, uma
jovem tão tolinha. Mas então viu que se tratava de um homem alto. Apesar de estar manietado, debatia-se para se libertar dos seus captores. A luz dos archotes iluminou
fugazmente um rosto que espevitou a memória de Meg.
Mas foi Seraphine quem sussurrou:
- É aquele senhor Johnston que fez a travessia de França connosco.
- Não - corrigiu Armagil sinistramente. - Aquele é Guido Fawkes. E se eles o forçarem a falar, vai haver uma tremenda confusão.
Os primeiros alvores do dia, com a sua luz suave, entravam na alcova onde Meg tapava Seraphine com a coberta. O inchaço causado pela pancada na cabeça já começara
a desaparecer e Meg preparou-lhe uma bebida doce à base de leite quente, vinho e especiarias para lhe aliviar as dores de cabeça.
Finalmente, tinha considerado que seria seguro permitir que Seraphine dormisse, o que já não era sem tempo. Duvidava que tivesse sido capaz de manter a amiga acordada
por muito mais tempo por ela se sentir tão exausta como a própria Meg. Mas com todos os acontecimentos da noite anterior a preencherem-lhe os pensamentos, os seus
nervos estavam feitos num farrapo, o que a impedia de repousar.
Aconchegou a coberta junto dos ombros de Seraphine. Os cabelos louros espalhavam-se pela almofada que ela agarrava, como se procurasse conforto nos braços de um
amante. Deitada no leito, a formidável condessa tinha uma aparência invulgarmente vulnerável, o que fez com que Meg sentisse um estranho nó na garganta.
com toda a ternura, afastou alguns fios de cabelo da cara de Seraphine, tendo o cuidado de não tocar na sutura retilínea que fechava o golpe que ela tinha na face.
Seraphine suportara a dor estoicamente enquanto Meg lhe suturava o ferimento. Mas esta apercebera-se do medo nos olhos da amiga, apesar de ela ter tentado levar
a situação para a brincadeira.
- Suponho que vá ficar com uma cicatriz horrorosa, o que será bom. Nenhuma bruxa miserável se atreverá a voltar a meter-se comigo.
- Lamento muito, Phine - retorquiu Meg.
- Porquê? O que aconteceu foi por minha culpa, por causa da minha estupidez, ter-me deixado enganar com tanta facilidade.
- Não, a culpa é, acima de tudo, minha por ter permitido que viesses comigo a Inglaterra nesta aventura louca.
- E, exatamente, como é que me terias impedido? Que magia negra é que possuis que te permitiria... - Seraphine calou-se, mostrando-se constrangida. Na noite anterior,
Meg dera provas de um poder negro que nenhuma das duas alguma vez desconfiara que ela possuísse. A Senhora
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da Ilha Encantada suspeitava que ambas se sentiam enervadas devido a isso. O estado de espírito de Meg nem sequer lhe permitira falar sobre o assunto, pelo que ficara
bastante aliviada quando Seraphine adormeceu.
Meg teria de vigiar cuidadosamente o estado de saúde da amiga. Existia sempre o perigo de qualquer ferimento vir a infetar, dando origem a estados febris, mas, por
agora, considerava que seria seguro deixar Seraphine dormir.
Meg saiu da alcova em bicos de pés para o corredor. Continuava sem saber para onde é que Armagil as levara nas horas ainda escuras da madrugada. Sentira-se demasiado
exausta, demasiado preocupada com o estado de saúde de Seraphine para ter reparado em mais alguma coisa que não fosse ter constatado que se encontravam numa espécie
de taberna.
Esperava ouvir barulho vindo do piso de baixo, o movimento de clientes que começariam a chegar ao princípio da manhã. Mas tudo estava mergulhado em silêncio, ouvindo
apenas os passos de Armagil, que se aproximava do outro extremo do corredor. Meg acreditava que ele teria estado à espera que ela saísse do quarto. Quando ele se
pôs ao seu lado, viu que parecia tão exausto quanto ela própria se sentia e com olheiras fundas abaixo dos olhos.
- Como é que a condessa está a passar? - perguntou ele em voz baixa.
- Dadas as circunstâncias e tudo o que aconteceu, ela está bastante bem. Já está a dormir.
- E tu, como é que estás?
- Eu... eu estou bem.
Armagil inclinou-lhe a cabeça para cima, passando as pontas dos dedos pelas olheiras escuras que se deviam à falta de descanso. Olhou-a com um sorriso de cansaço.
- Minha pequena mentirosa. Estás com o aspeto de alguém que tivesse acabado de estar às portas do Inferno. Porque é que não me deste ouvidos, Margaret? Eu disse-te
que não saísses de casa na noite passada.
- De facto disseste. Mas não me deste explicação nenhuma para isso.
- E tu não podias, muito simplesmente, confiar em mim? O que é que te passou pela cabeça para teres ido àquela igreja ontem à noite?
Numa manifestação de fadiga, Meg encostou-se à parede enquanto lhe explicava como Amy Rivers tinha conseguido entrar nos seus aposentos, sem ter sido convidada,
com a conivência de Eliza, a criada que a atraiçoara,
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e como a irmandade das bruxas tinha sequestrado Seraphine, servindo-se dela para a obrigarem a proceder a um ritual dos mortos. Meg tremia enquanto descrevia a Armagil
o que havia acontecido, como a imagem da mãe tinha aparecido, como a voz de Cassandra troara com toda a raiva de um espírito vingador e como a névoa negra se evolara,
envolvendo Amy num abraço sinistro.
- Isso deve ter sido um espetáculo digno de ser visto - disse Armagil. - Como é que conseguiste produzir um efeito tão aterrador? Não admira que a Amélia Rivers
tenha sucumbido num ataque tão fulminante.
Era isso que Armagil acreditava que tinha acontecido? Meg detestava ter de o desiludir, mas não podia fazer mais nada que não fosse dizer-lhe a verdade.
- Não se tratou de truque nenhum, Armagil. Eu... eu consegui, verdadeiramente, conjurar o espírito da minha mãe dos mortos.
- Margaret... - Armagil abanou a cabeça descrente, mas Meg estendeu a mão, agarrando-o pelo braço.
- É a verdade, Armagil. Era a minha mãe, muito embora ela me tenha tratado com mais afeto do que nunca enquanto viveu. Tratou-me por Meg e... e olhou realmente para
mim, como se estivesse a ver-me de uma maneira como nunca tinha conseguido ver-me antes.
Armagil pousou a mão na dela num gesto cheio de suavidade.
- O que fizeste foi entrar numa espécie de transe autoinduzido. Só viste o que desejavas ver.
- Nesse caso, como é que explicas o que aconteceu à Amélia Rivers?
- Pregaste-lhe um susto de morte, tal como às outras mulheres idiotas - respondeu Armagil com um encolher de ombros. - É óbvio que a mulher sofreu uma espécie de
apoplexia, o que lhe aconteceu por ter estado mais desarranjada do juízo do que as outras.
A explicação de Armagil parecia tão racional, tão sã mentalmente, mas Meg não podia aceitá-la. Sabia o que tinha visto, o que sentira. Cassandra Lascelles atacara,
das profundezas da sepultura, para proteger Meg, fulminando Amy Rivers mortalmente. À sua maneira feroz e intensa, a mãe tinha amado Meg.
Armagil puxou-a para os seus braços, apertando-a junto de si e afagando-lhe o cabelo.
- O que quer que tenha acontecido ontem à noite, agora não importa. A irmandade das bruxas acabou e ficaste a saber que a tua mãe não se
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encontrava por detrás de nada do que aconteceu. Ela está morta, Meg. Podes relegá-la para a tua memória, deixando-a aí. Agora estás em segurança.
- Sim - murmurou Meg. O que mais ansiava era poder encostar-se a ele, deixando-se envolver na sua força e ternura, mas a verdade é que continuavam a existir demasiadas
perguntas preocupantes sem respostas. Afastou-se dele, perguntando-lhe autoritariamente: - Estarei em segurança, Armagil? Algum de nós estará? Nem sequer sei onde
é que estou.
- Na taberna O Touro Branco. O proprietário é meu amigo. Em tempos, prestei-lhe um serviço, curei-lhe o filho de uma crise de febre cerebral. A recuperação do rapaz
deveu-se mais à sua própria estâmina do que às minhas capacidades, o que não obsta a que o senhor Armbruster sinta que está em dívida para comigo. Além disso, ele
também é como o Graham, um católico que pratica a sua religião em segredo. Portanto, minha querida, para responder à tua pergunta, sim, estamos em segurança. O Armbruster
jamais nos atraiçoaria.
- Atraiçoar-nos perante quem?
- Quem quer que possa vir à nossa procura.
- Armagil! - exclamou Meg exasperada e com uma cara de frustração face às constantes evasivas dele. - O que é que andavas a fazer fora de casa tão tarde na noite
passada? Como é que sabias aonde me poderias encontrar e à Seraphine?
- Foi o Graham quem me disse. Há muito que ele tinha conhecimento dos planos da Amy Rivers, que tencionava organizar uma assembleia de bruxas à meia-noite na igreja,
a qual teria lugar na noite de 4 de novembro. Deduzi que a mulher esteve perdida de amores pelo Graham a dada altura, pelo que terá confiado bastante nele. É claro
que, quando fui à igreja, nunca esperei encontrar-te e à Seraphine no meio delas.
- Nesse caso, porque é que foste lá?
- Queria ver as irmãs Rivers quando fossem presas, mas também quis certificar-me de que não haveria ninguém presente que estivesse inocente, nenhuma garota tola
que só procurasse emoções fortes, nenhuma jovem como... como...
- Como a Maidred Brody? - completou Meg em voz baixa.
- Sim, precisamente isso. Se isso acontecesse, eu só esperava chegar a tempo para lhe dizer que fugisse da igreja.
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- Mas não seria a única pessoa que querias avisar, pois não?
- Não percebo o que queres dizer com isso.
- Também querias avisar esse homem, o Fawkes, de que estava prestes a ser preso, não é verdade? Eu sei tudo a respeito da conspiração da pólvora, Armagil. O ato
terrível que Sir Patrick e os seus amigos planeavam fazer. A Amy Rivers contou-me tudo.
- Sendo assim, decerto que compreenderás que teria sido preferível que o Fawkes conseguisse escapar. Vão levá-lo para a Torre de Londres e pô-lo-ão no ecúleo para
o torturarem. - Incapaz de conter a agitação que se apoderara de si, Armagil começou a andar de um lado para o outro no corredor. - O Fawkes é um homem duro e obstinado,
um mártir no que diz respeito à sua fé religiosa, mas ninguém é capaz de suportar esse género de tortura. Ele acabará por revelar os nomes dos seus camaradas de
conspiração.
- E... e o teu nome figurará entre eles? Surpreendido, Armagil deteve-se a meio de um passo.
- O meu nome? Não, claro que não. O que é que te levou a pensar isso? De que é que estás a acusar-me?
- Não tenho a certeza. Acontece apenas que desapareceste durante duas semanas, quase sem dizeres nada, e desde que voltaste que tens agido com tanto secretismo.
- Meg fitou-o com firmeza, enquanto admitia:
- Eu já tinha começado a recear que Sir Patrick tivesse conseguido persuadir-te a juntares-te a ele.
Armagil ficou com as bochechas muito coradas.
- Não - retorquiu com amargura. - Tenho andado demasiado ocupado a atraiçoar o Graham. Se tivesses podido ver a expressão nos olhos dele quando se apercebeu de que
eu andava a agir contra os seus interesses... - Armagil calou-se, incapaz de prosseguir.
- Onde é que Sir Patrick se encontra neste momento?
- Está aqui. Mantenho-o amarrado na adega.
- Estás a mantê-lo como teu prisioneiro?
- Foi a única maneira de poder impedir que o raio do idiota levasse a sua avante! Apesar de saber que a causa por que se batia está perdida, está ansioso por aniquilar
o rei, mesmo à custa da sua própria vida.
- O tom de voz de Armagil estava impregnado de cólera e reprovação, mas Meg apercebeu-se de que, em grande parte, ele culpava-se a si próprio.
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- Procedeste da maneira mais correta, Armagil. Salvaste a vida do teu amigo - disse Meg, tentando pegar-lhe na mão, mas ele afastou-se dela bruscamente.
- Ao salvá-lo, também o perdi. O Graham amaldiçoar-me-á até ao dia da sua morte por o ter atraiçoado. - Num gesto de cansaço, Armagil esfregou as pálpebras com as
pontas dos dedos. - Mas agora tenho de ir vê-lo, para lhe dar a satisfação de poder amaldiçoar-me.
- vou contigo para te ajudar a explicar-lhe o motivo por que procedeste desse modo.
- Isso não seria nada aconselhável, minha querida. Não existem palavras que possam justificar adequadamente as minhas ações.
Armagil afastou-se dela e começou a descer as escadas, os ombros largos encurvados como se carregassem o fardo dos sentimentos de culpa de todo o mundo. A própria
Meg sentiu o aguilhão da culpa. Tinha andado tão mortificada com os sonhos sobre Maidred Brody, em que a rapariga lhe suplicava que salvasse o irmão, que nem sequer
pensara duas vezes quando pediu a Armagil que a ajudasse. Não tinha levado em consideração qual seria o custo para ele de atraiçoar a confiança que Graham depositava
em si.
Havia sido ela a convencer Armagil a interferir na vontade de vingança de Robert Brody. Independentemente do que Armagil pudesse dizer, Meg não podia permitir que
ele enfrentasse sozinho a cólera de Sir Patrick.
Caminhando em silêncio atrás dele, observava-o discretamente de alguma distância quando Armagil desapareceu por uma porta que dava acesso à adega. Decorridos alguns
momentos, Meg seguiu-o. Detendo-se a meio das escadas, ela hesitou, permitindo que os seus olhos se ajustassem à semiobscuridade da adega.
Havia uma lanterna cuja chama dispersava parte da escuridão. Era uma adega pequena onde o proprietário armazenava grades de vinho empilhadas, bem como grandes barricas
de cerveja. Sir Patrick estava sentado no chão com as mãos amarradas atrás das costas. Não tinha a mínima parecença com o gentil-homem muito aprumado e calmo que
Meg conhecera no primeiro dia em que o tinha visto. O cabelo estava todo despenteado e as roupas rasgadas, além de ter uma nódoa negra numa das bochechas.
Armagil devia ter tido de lutar para conseguir dominar Sir Patrick, chegando ao ponto de ter de o agredir fisicamente. Meg sentiu um enorme confrangimento ao pensar
na dor de alma que devia ter custado a Armagil agredir Sir Patrick.
Este mantinha-se encostado a um dos barris e toda a sua postura revelava o desespero e o desânimo que o atormentavam. Mas quando Armagil se aproximou dele, Sir Patrick
ficou rígido. Os seus olhos coruscavam, espelhando um ódio e um desprezo indescritíveis.
- O que diabo é que queres?
- Gostaria de poder libertar-te - replicou Armagil. - Se me desses a tua palavra de honra de que não...
- Mas quem és tu para falares de honra, meu canalha traiçoeiro? Vai para o Inferno!
Armagil suspirou. Serviu-se de um copo de vinho, que ofereceu a Sir Patrick depois de se ter agachado ao lado dele. Este desviou a cara.
- Graham, por favor. Não comeste nem bebeste nada desde ontem. Não servirá de proveito a ninguém se morreres de fome ou de sede.
Sir Patrick contraiu os lábios numa atitude de teimosia durante alguns momentos, mas acabou por ceder, bebendo um gole de vinho do copo que Armagil lhe chegou à
boca, no entanto parecia estar a preparar-se para cuspir o vinho na cara do amigo.
- Conta-me o que se está a passar na cidade - disse Sir Patrick por fim. - No mínimo, deves-me isso.
- Tal como já te tinha dito, o Fawkes foi levado para a Torre de Londres. Reina um grande mal-estar em Londres. As ruas da cidade fervilhavam de rumores esta manhã,
mas, com base no que ouvi dizer, a maior parte dos teus amigos conseguiu pôr-se em fuga.
- O Catesby tem a intenção de agitar os católicos dos condados centrais de Inglaterra para se sublevarem, juntando-se a nós. Ainda resta alguma esperança de que
parte do nosso plano possa ser posto em prática. Por amor de Deus, liberta-me e deixa que eu me junte a eles.
- Nunca conseguirias sair da cidade. As portas estão todas fechadas, tal como os cais do rio. Está tudo acabado, Graham - concluiu Armagil com suavidade. - Essa
tua rebelião estava condenada ao fracasso desde o princípio. Ouvi dizer que alguém enviou uma carta anonimamente a um membro da Câmara dos Pares, Lorde Monteagle,
há vários dias, avisando-o para que se mantivesse afastado da abertura do Parlamento e informando-o de que aconteceria algo de terrível. Pedia-se a sua senhoria
que não falasse disso a ninguém, mas ele levou a missiva de imediato a Robert Cecil.
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Entretanto, Sir Patrick recusou-se a beber mais vinho, a boca contorcida num esgar de azedume.
- Ah, se existe alguma coisa em que sejas competente é na redação de cartas anónimas.
- Não fui eu quem lhe endereçou essa mensagem.
- E estás à espera que eu alguma vez acredite nisso?
- Não, não me parece que venhas a acreditar - retorquiu Armagil, pousando o copo de vinho e endireitando-se com um suspiro de cansaço. ?- Não vais gostar de ouvir
o que te vou dizer, mas é aquilo que acredito que aconteceu. O Robert Cecil sempre teve a sua rede de espiões em ação. Penso que há muito tempo que ele tinha conhecimento
desta conspiração da pólvora, tendo permitido que tu, o Fawkes e o Catesby, bem como os vossos camaradas de conspiração, prosseguissem, dando-vos corda suficiente
para que se enforcassem. Até é muito possível que tenha sido ele próprio a escrever essa missiva ao Monteagle, de maneira a poder fingir que tinha sido informado
da conspiração só nessa altura, após o que, dramaticamente, tratou de impedir que o Fawkes entrasse em ação no último momento. Deste modo, o Cecil passou a merecer
a eterna gratidão do rei.
- Uma conjetura fascinante - ripostou Graham com uma expressão escarnecedora. - Ainda que essa história, absolutamente inverosímil, fosse verdade, não desculpa nem
justifica as tuas ações.
- Não estou à procura de desculpas. Eu próprio teria ido falar com o Cecil, informando-o da conspiração, se tivesse sido necessário.
- E é precisamente isso que não sou capaz de compreender - ripostou Graham exaltado. - Meu Deus, Armagil, eu confiei em ti. Contei-te tudo porque conseguiste convencer-me
de que, finalmente, tinhas recuperado algum sentido de honra, mas eu devia saber que isso jamais aconteceria. Ano após ano, tenho vindo a assistir à desintegração
do teu caráter. Até mesmo quando o teu comportamento dissoluto era crescente, e procedias com total indiferença pelas obrigações morais, continuei a acreditar que
ainda possuías uma centelha de nobreza de caráter. Mas, em vez disso, provaste ser um verdadeiro Judas, a criatura mais desprezível à face da Terra. Em que espécie
de vilão é que te transformaste?
- Eu podia fazer-te a mesma pergunta - ripostou Armagil. - Como é que foste capaz de te envolver em algo tão cobarde e condenável como essa conspiração da pólvora?
Eu até seria capaz de compreender a tua ânsia de matar Jaime Stuart. Mas acabar com a vida da mulher e do filho do rei, além de inúmeras pessoas inocentes, muitas
delas católicas como tu... é absolutamente imperdoável.
- Esse sacrifício era necessário pela... pela única e verdadeira fé. Estamos a falar de uma guerra sagrada.
- Não me venhas com essa cantiga - retorquiu Armagil exacerbado. - No que te diz respeito, tudo isto se deve a quereres vingar-te do rei e era-te inteiramente indiferente
que ceifasses inúmeras vidas para atingires os teus objetivos.
- Uma vingança que também deverias ter desejado - gritou Graham. - Mas em ti não existe lealdade, nem verdade, não há nada que consideres sagrado, nem a amizade,
nem as tuas promessas, e tão-pouco o que deves a quem é do teu próprio sangue.
Armagil não lhe deu réplica, mas estremeceu, dando a impressão de que cada palavra que Sir Patrick proferia o atingia com a força de uma pancada. Meg não conseguiu
suportar continuar a ouvir aquela troca de palavras em silêncio. Desceu rapidamente o resto dos degraus, gritando a Sir Patrick:
- Parai com isso de imediato. Será possível que não sejais capaz de ver como esta situação está a dilacerar o Armagil? Não sabeis por que razão ele agiu da maneira
como procedeu?
Sir Patrick lançou-lhe um olhar venenoso.
- Agora vejo tudo com toda a clareza. Ele continua a ser escravizado pela sua bruxa. Eu devia ter adivinhado o que se estava a passar.
- Meg, vai lá para cima - disse Armagil circunspecto.
- Não, não permitirei que ele continue a injuriar-te durante mais tempo. Tens de permitir que eu fale com ele.
- Recuso-me a ouvir o que quer que seja que saia dos teus lábios vis de rameira.
- Ireis ouvir-me, quer queirais, quer não - ripostou Meg. - Foi com grande sofrimento que o Armagil procedeu contra vós. o que ele só fez devido ao muito amor que
um amigo verdadeiro pode dedicar a outro. Ainda que o vosso louco plano fosse bem-sucedido, ter-vos-ia destruído. Não conseguis compreender isso, homem estúpido?
O Armagil só quis salvar-vos a vida e a alma. Ele procedeu dessa maneira por vós e também
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pela memória da vossa irmã. A Maidred não teria desejado que ficásseis com as mãos manchadas com esse sangue. Sei que não desejaria isso.
- Sabeis - disse Sir Patrick em tom de troça e com uma gargalhada sarcástica. - Não sabeis absolutamente nada. Nunca tive nenhuma irmã. - Virou a cabeça e lançou
um olhar viperino a Armagil. - Porque eu não sou o Robert Brody. É ele!
A taberna estava mergulhada em silêncio e deserta, as portadas das janelas fechadas. Armbruster espalhara o rumor de que a mulher padecia de uma febre altamente
contagiosa, possivelmente varíola. Consequentemente, a taberna estaria encerrada até notícia em contrário. Um embuste bastante astuto que iria manter até mesmo os
mais curiosos à distância.
Meg esfregou o braço pisado por causa da força com que Armagil o agarrara quando a levou à força da adega para o piso de cima, afastando-a da troça viperina de Patrick
Graham.
Os comentários escarninhos haviam-nos acompanhado pelas escadas acima.
"Portanto, a grande feiticeira nunca adivinhou a verdade e o Armagil nunca vos disse, até mesmo quando vos levou para a sua cama. Mas como é que poderíeis ter adivinhado,
quando ele próprio se esqueceu de quem é? Do mesmo modo que esqueceu a irmã que ele viu morrer queimada na fogueira, todas as promessas que ele fez de vingar a sua
morte..."
Armagil bateu com a porta da adega, silenciando misericordiosamente o som da voz cheia de azedume de Graham. Foi atrás do balcão, servindo-se de um grande copo de
vinho. Meg reparou em como a mão lhe tremia quando se serviu. Ele perguntou-lhe se também queria, mas ela abanou a cabeça, deixando-se cair na primeira cadeira que
lhe apareceu à frente.
Continuando atordoada com as acusações que Sir Patrick fizera, Meg examinava a fisionomia de Armagil, procurando qualquer indício de que correspondiam à verdade.
Como é que ela podia ter sido tão cega, sem nunca ter suspeitado de que ele era Robert Brody?
Armagil bebeu o vinho de um só trago e olhou para ela com uma expressão que era quase beligerante.
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- E então, não tens nada a dizer?
- Ainda estou a tentar compreender o sentido de toda esta situação - replicou Meg, levando a mão a uma das têmporas e fazendo pressão. - O que Sir Patrick disse
acerca de seres o Robert Brody... é uma coisa que não me parece possível.
- Tens mais facilidade em acreditar que Sir Patrick Graham, o descendente de uma antiga família inglesa, possa ser o Brody em vez de um celerado como eu? Suponho
que essa linha de raciocínio tenha alguma lógica. Ele aparenta ser um candidato a vingador heróico, cuja alma foi ferida, muito mais credível do que eu.
- Eu acreditei naquilo que me levaste a acreditar, Armagil.
- Não, estou bastante certo de que te disse em mais de uma ocasião, minha menina, que Sir Patrick Graham não era o Robert Brody, mas tu não quiseste acreditar no
que eu te dizia.
Armagil começou a falar com um sotaque escocês tão cerrado como o do rei Jaime, o que era tão surpreendente, ao ponto de ser cruel. Quando Meg o fitou com uma expressão
de censura, ele mostrou-se um tudo-nada envergonhado. Voltou a encher a caneca de vinho e sentou-se na cadeira defronte dela.
- Eu devia ter-te dito a verdade - admitiu Armagil.
- E porque é que não disseste?
- Porque, para mim, o Robert Brody está morto - respondeu ele com um encolher de ombros -, morreu há muitos anos. Enterrei o pobre rapaz ao lado do que restou da
sua irmã no litoral de Edimburgo. Ainda não chegaste à conclusão de que é mais fácil esquecer o passado se nunca falarmos dele?
- O silêncio não faz com que o passado desapareça, Armagil.
- Não, do mesmo modo que enterrá-lo no fundo de um copo de vinho não faz com que desapareça, muito embora, e sem dúvida alguma, eu me tenha esforçado denodadamente
durante muitos anos para o conseguir. - Fez menção de beber outro gole de vinho, mas deteve-se, suspirando e afastando a caneca para o lado. - Portanto, suponho
que estejas a perguntar-te como é que um rapaz imberbe da Escócia se transformou em Armagil Blackwood, um não muito respeitável doutor inglês.
- Parece que conseguiste convencer toda a população de Londres de que és isso mesmo. Toda a gente acredita que és filho do Gilly Black.
- Sei que sim - retorquiu Armagil com um esgar de desagrado.
- Por muitas vezes que eu tenha dito que esse homem não é o meu pai, imagino que seja isso que acontece quando se é um mentiroso inveterado. Quando se diz a verdade,
ninguém acredita em nós. Mas o Armagil Black fez as vezes de meu pai quando precisei de um novo nome, a título de empréstimo, recorrendo ao dele.
"Pelo menos, aproveitei parte do nome dele. Alterei o apelido para Blackwood porque... bem... porque esse é o aspeto da madeira quando fica carbonizada antes de
tudo ficar reduzido a cinzas. Sabias que, ao contrário da maior parte das pessoas, não sinto prazer nenhum ao ver o lume a arder numa lareira? Quase prefiro congelar
até à morte. - Armagil ficou pensativo e, pela primeira vez, Meg viu todo o desespero e tormento do rapaz que fora Robert Brody refletidos nos olhos dele.
Estendeu a mão por cima da mesa, pousando-a na dele.
Armagil pareceu nem sequer ter reparado no que ela fazia, continuando imerso nos seus pensamentos enquanto recuava vários anos até ao dia mais sombrio da sua vida.
Mas então tratou de dar um abanão a si próprio. Fechou os dedos nos de Meg, sorrindo-lhe com uma expressão de tristeza.
- Partilharei a minha história de vida contigo, Margaret, mas se não te importares, prefiro não falar do dia em que a minha irmã morreu. A dar crédito aos teus sonhos,
tu própria viste todo o horror.
- Sim, vi - confirmou Meg em voz baixa. - Mais do que o sofrimento de Maidred, vi e senti o tormento do irmão. Como o Robert Brody... quer dizer, tu... jurou vingar
a morte dela.
- Sim, uma história muito romântica, não te parece? O irmão de espírito perturbado e nobreza de sentimentos a conspirar e a maquinar durante anos a fio para se vingar
da morte da irmã na pessoa do rei. Uma história digna de um palco londrino. - A boca de Armagil esboçou um trejeito de ironia. - Infelizmente, essa não é a minha
história. O Graham é o género de homem que possui esse calculismo e paciência, mas não eu.
"Eu era demasiado fogoso para proceder desse modo, em especial durante aqueles primeiros dias de tanto sofrimento após a morte da minha irmã. Não sei se sabes, mas
eu tinha outras duas irmãs, a Brenna
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e a Annie, que dependiam de mim. Mas o meu desgosto e raiva eram tão grandes que o bem-estar delas pouco me importou. Comecei a passar grande parte do meu tempo
na taberna, a beber e a dar largas ao meu rancor contra o rei de uma maneira idiota. A pensar em como um dia a praga que aquela bruxa que morreu na fogueira rogou
ao rei se concretizaria. Eu certificar-me-ia disso mesmo.
"Eu teria dito qualquer coisa durante aquela primeira fase do intenso desgosto que se tinha apoderado de mim - continuou Armagil, olhando para Meg com uma expressão
de ansiedade. - No entanto, o meu azedume nunca teria chegado ao ponto de eu levantar a mão contra a esposa ou contra os filhos inocentes do rei. Tens de acreditar
em mim, Margaret.
- E acredito. Tu não és como Sir Patrick.
- Não julgues o Graham com demasiada severidade. Ele tem de se haver com os seus próprios demónios, mas chegarei a essa parte da minha história dentro em pouco.
Mas de volta ao outono em que a Maidred morreu, jurei que o rei não veria outra quadra natalícia e, com vista a isso, fiquei à espera da primeira oportunidade que
me surgisse.
"Nessa altura, já Jaime Stuart era um caçador ávido. Era demasiado fácil ficar à espera dele nas colinas acidentadas de Edimburgo. Eu tinha algum jeito com o arco
e a flecha e tratei de praticar intensamente até sentir que estava preparado. No dia escolhido, agachei-me atrás de umas árvores até avistar Jaime Stuart. Cheguei
a tê-lo diretamente na minha mira. Teria sido tão fácil acertar-lhe.
- E o que é que aconteceu? - incentivou Meg quando ele ficou em silêncio.
- O que é que aconteceu? Fui demasiado fraco para levar o meu plano avante. Tentei pensar na Maidred, na maneira horrorosa como ela morreu, em como Jaime Stuart
teria podido poupar-lhe a vida. O homem pairava na minha mente como o Diabo encarnado. Talvez tivesse conseguido passar dos pensamentos à ação se ele não tivesse
desmontado. Fora do seu cavalo, não sei explicar porquê, ele pareceu-me mais vulnerável.
"Ele desmontou por estar preocupado com um dos seus cães de caça que se tinha magoado. E ali estava ele ajoelhado no campo, não um monstro, nem sequer um rei tirano,
apenas como um homem comum preocupado com o seu cão. Posicionei a flecha e puxei a corda do arco para trás, mas, de súbito, fiquei com a visão turva e a minha mão
tremeu.
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Soltei a seta, mas foi acertar muito longe do alvo e fui obrigado a fugir antes que me apanhassem.
"Consegui escapar do campo, mas fui visto a correr para me afastar. Não me atrevi a ir para casa, para junto das minhas irmãs. Receei que seria apenas uma questão
de tempo até ser apanhado. Parte de mim não se preocupava com essa probabilidade. Eu não tinha sido capaz de proteger a Maidred e também fracassei quando quis vingar
a sua morte. Era merecedor de morrer.
- Oh, Armagil - disse Meg, que ansiava por reconfortá-lo, mas, abruptamente, ele largou-lhe a mão, estendendo a sua para a caneca de vinho. Bebeu um trago generoso
e ficou a olhar para dentro da caneca enquanto retomava a sua narrativa.
- Por vezes, quando se está no ponto mais baixo da nossa vida, o ânimo pode chegar-nos dos lugares mais imprevisíveis, quer se seja merecedor disso, quer não. O
meu anjo da guarda foi o carcereiro, o mestre Galbraith, o responsável pelo cárcere onde a minha irmã esteve presa.
"Era um homem extremamente compassivo, tendo ficado profundamente comovido com o que aconteceu à minha irmã. Ele e a mulher acolheram as minhas irmãs mais novas,
tendo-me ajudado a fugir de Edimburgo, para o que me deu dinheiro suficiente para poder chegar a Londres. A mulher dele era inglesa e tinha um irmão que tinha a
mesma profissão que ele.
- Gilly Black.
Armagil confirmou com um acenar de cabeça.
- Tenho falado de Gilly com dureza, mas, verdade seja dita, não tenho o direito de o fazer. Ele foi muito generoso quando me acolheu em sua casa e, por muito que
eu o deplore, reconheço que o Gilly é muito competente no seu mister. Calculo que existiram pessoas condenadas à morte que se sentiram gratas pela sua mestria, tendo-lhes
proporcionado um fim rápido.
"Gilly não tinha um filho varão, pelo que começou a dedicar-me muito afeto. Ofereceu-se para me adotar, razão por que mudei de nome, passando a ter o dele, após
o que me esforcei por eliminar qualquer traço do meu sotaque escocês e a Escócia da minha memória, decidido a ser o que ele desejava que eu fosse. O rapaz do carrasco,
o seu aprendiz. Mas, por muito que eu me esforçasse, o trabalho dele repugnava-me.
"Eu era incapaz de executar o único homem que acreditava que merecia morrer, por conseguinte, como é que conseguiria matar pessoas que
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não me tinham feito mal nenhum? Gilly ficou furioso com a minha fraqueza. Tinha-me acolhido em sua casa e considerava que a minha relutância em abraçar a sua profissão
era um ato de ingratidão. Talvez eu fosse ingrato, porque não conseguia ficar calado perante o que considerava censurável. Por isso, manifestava abertamente a repulsa
que a atividade profissional dele me suscitava.
"Ele podia ter-me posto na rua, deixando-me entregue à minha sorte. Mas nessa altura já eu conhecia o Patrick Graham. A mãe dele estava presa em Newgate, onde o
meu pai trabalhava com muita frequência. Ela era uma fervorosa católica. É possível que não te apercebas disso, mas são as senhoras de estratos sociais mais elevados
que mais se esforçam por manter viva a sua fé religiosa, escondendo padres em suas casas e organizando missas celebradas em segredo. E Miranda Graham era uma dessas
senhoras, mas foi apanhada em flagrante, tendo sido emitido um mandado de prisão em seu nome. Fugiu para a Escócia, levando consigo o filho pequeno e procurando
a proteção do rei. Dizia-se que o falecido marido era um parente afastado de Jaime Stuart e Lady Miranda Graham dependia desse laço familiar para solicitar o auxílio
de sua majestade. Mas o rei estava mais interessado em agradar à rainha Isabel, que continuava a ocupar o trono de Inglaterra. Tinha esperança de vir a ser designado
como herdeiro da soberana, por isso negou asilo aos Graham, entregando-os aos ingleses.
"Por ainda ser muito novo, o Patrick foi perdoado e ficou sob a custódia do reino. Mas a mãe ficou presa em Newgate durante dois anos, até ter morrido de tifo.
- Isso quer dizer que o anel de cabelo que ele tem no medalhão...
- É da mãe. Ela era uma mulher muito determinada, tendo imbuído o filho de uma grande paixão pela religião de ambos. Ele considera a mãe como uma mártir e uma santa.
O seu envolvimento na conspiração da pólvora foi, em parte, inspirado pelo fervor na sua fé religiosa, mas o mais importante é ele querer vingar o que considera
a traição de Jaime Stuart para com a mãe.
- Portanto, tu e Sir Patrick travaram amizade quando ele visitou a mãe na prisão e não em Oxford?
- Oxford aconteceu mais tarde. Graham não tinha grande fortuna, mas ajudou-me a tirar o curso nessa universidade. Eu tinha fracassado ao não cuidar das minhas irmãs,
e não me estou a referir apenas à Maidred,
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mas também à Brenna e à Annie. Pensei que talvez conseguisse expiar o meu pecado ao tirar o curso de medicina. Pelo menos, poderia aprender a ser útil aos meus semelhantes.
Mas já tiveste oportunidade de ver no que é que isso redundou. O Graham tem razão no que diz a meu respeito. Não presto para nada e não sou leal a quem quer que
seja.
- Isso não é verdade, Armagil - redarguiu Meg com um sorriso de alguma tristeza. - Talvez eu me sinta um pouco surpreendida com alguns dos teus métodos, mas sei
que tens ajudado um grande número de pessoas. Até mesmo quando a situação é desesperada, nunca desistes de tentar.
- Tal como tentei proteger a Maidred. Fracassei, não consegui salvar-lhe a vida. Nem sequer fui capaz de cumprir a minha promessa de destruir o homem que considero
responsável pela sua morte. - Armagil abanou a cabeça, mostrando um semblante acabrunhado e voltando a pegar na caneca de vinho, mas Meg pousou a mão no bordo para
o impedir de beber.
- Não estás a ver, Armagil? É isso precisamente que tens andado a fazer durante todos estes anos. Punir quem tu consideras mais responsável, tu próprio. Eu não compreendia
os meus sonhos sobre a Maidred em toda a sua dimensão até este momento, quando ela persistia em me suplicar que salvasse o irmão. Sempre pensei que ela se referia
a Sir Patrick, mas era a ti que ela se referia.
- Sim, e então, o que é que acontece agora? Porque fizeste uma promessa num sonho, tencionas iniciar alguma espécie de campanha com vista a seres a minha salvação?
- Quem me dera poder fazer isso - replicou Meg, inclinando-se sobre a mesa para lhe tocar ao de leve na face -, mas temo que sejas o único a poder fazer isso. Há
catorze anos que tens andado a atormentar-te por não te ter sido possível evitar a morte de Maidred. Acho que chegou a altura de começares a perdoar-te a ti próprio.
O tempo passava numa sucessão infindável de dias pardacentos e numa espera feita de ansiedade. Tinham existido celebrações e dera-se graças por não ter acontecido
nada de mal ao rei nem ao Parlamento. No meio de todo aquele repicar de sinos e espetáculos de fogo de artifício, ninguém conseguia ouvir os gritos lancinantes do
homem encarcerado na Torre de Londres a ser torturado.
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Tal como Armagil receara, até mesmo um militar endurecido como Guido Fawkes cedeu sob as dores da tortura no ecúleo, indicando os nomes dos seus camaradas de conspiração.
Foram emitidos mandados de prisão, incluindo um em nome de Sir Patrick Graham.
Sempre que Armagil saía da taberna furtivamente para recolher informações, Meg ficava à espera dele numa grande agonia. Receava que ele, uma vez que se sabia que
ele era um amigo chegado de Sir Patrick, pudesse ser apreendido e levado para a Torre para ele próprio ser interrogado.
Soltava sempre um suspiro de alívio quando ele regressava são e salvo, se bem que as notícias que ele trazia, de uma maneira geral, não fossem nada animadoras. O
medo e a suspeição fervilhavam por toda a cidade, com o ódio de que os católicos eram alvo acicatado num grau febril. As casas dos não-conformistas eram assaltadas
e saqueadas, e qualquer pessoa suspeita de ter tendências para o catolicismo era sujeita a prisão. Até mesmo a Embaixada espanhola foi assaltada pela turba enraivecida.
O desastre só foi evitado porque o astuto embaixador atirou alguns punhados de moedas para a multidão, gritando: "Deus salve e guarde o rei Jaime Stuart."
Por entre todos estes tumultos, o julgamento de uma tal Beatrice Rivers, acusada da prática de bruxaria, mereceu muito pouca atenção, a não ser da parte de Meg.
Quando Armagil lhe deu a notícia de que Bea havia sido condenada e sumariamente enforcada, não conseguiu evitar um pequeno sentimento de piedade, não obstante tudo
o que a mulher tinha feito.
Amélia e Beatrice Rivers tinham sido corrompidas pela lenda da Rosa de Prata desde o seu primeiro minuto de vida, da mesma maneira que a própria Meg. Mas esta fora
afortunada por poder contar com um pai e com Ariane Deauville, que a salvaram da loucura da irmandade das bruxas. Por outro lado, Amy e Beatrice não tinham tido
ninguém, além da avó. A vida de Armagil não havia sido a única a ser afetada irrevogavelmente pela morte de bruxas na fogueira na Escócia.
Meg pensava que o facto de Armagil não ter enveredado por uma senda de destruição e vingança, ao contrário de Sir Patrick e das irmãs Rivers, atestava o seu verdadeiro
caráter. A única pessoa que ele sempre estivera determinado a punir era a si próprio. Meg perguntava-se se ele lhe teria prestado alguma atenção quando o urgira
a perdoar-se a si mesmo. Desde a tarde em que ele confessara ser Robert Brody, tinha deixado bem claro que não queria voltar a abordar esse assunto.
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O seu distanciamento deixou Meg numa situação de muita solidão, uma vez que nem sequer tinha Seraphine com quem poderia conversar. A intrépida condessa nunca mais
voltara a ser a mesma desde aquela fatídica noite na igreja.
Seraphine, agora, passava a maior parte do seu tempo fechada no quarto, sem fazer o mínimo esforço para participar em quaisquer conversas sobre planos para conseguirem
escapar de Londres. Inicialmente, Meg atribuiu a letargia de Seraphine ao período de recuperação da agressão de que fora vítima, contudo, os ferimentos já tinham
sarado e até mesmo os pontos da sutura na face retirados.
Apesar de ela tentar fingir que não se passava nada de anormal, Meg apanhara-a várias vezes a ver-se ao espelho, examinando a cicatriz na face atentamente e com
uma expressão sombria nos olhos. A despeito de toda a sua inteligência, coragem e encanto, a condessa sempre dera muita importância à sua aparência física. Seraphine
dissera com frequência que o único valor que ela tinha para qualquer homem era a sua beleza. O mais triste em tudo aquilo era ela acreditar realmente nisso.
Meg desejava poder reconfortar a amiga, tranquilizando-a quanto a esse assunto, mas Seraphine era ainda melhor do que Armagil a evitar tópicos que não desejava discutir.
A esperança de Meg era que, quando pudessem seguir viagem de barco para a ilha Encantada, num futuro próximo, a amiga voltasse a recuperar a sua boa disposição.
Estavam todos a enlouquecer um pouco, confinados às paredes daquela estalagem, receando constantemente que qualquer bater inesperado à porta anunciasse a presença
dos soldados do rei. Aquela tarde em particular tornava-se ainda mais sombria devido ao granizo gélido que batia contra os vidros das janelas.
Armagil arriscara-se a sair outra vez, para indagar se haveria alguma esperança de os portos reabrirem dentro em pouco; a ser o caso, tentaria contratar um capitão
de mar que os transportasse pelo rio sem lhes fazer muitas perguntas.
A maior dificuldade seria conseguirem pôr Sir Patrick a bordo, especialmente porque o mais certo era ele opor-lhes resistência com toda a fúria de um homem que fosse
alistado à força na Marinha Real. Até era muito possível que Armagil fosse forçado a fazer com que ele perdesse a consciência. Durante os dias que se seguiram, o
ressentimento de Sir Patrick não se atenuara minimamente. Armagil continuava a ser obrigado
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a manter o amigo preso para o impedir de sair para a rua, arriscando a vida estupidamente. Meg receava que o facto de ele continuar encarcerado dia após dia estivesse
a desgastar Armagil muito mais do que afetava o próprio Sir Patrick.
Estava sentada a uma mesa da taberna, a tentar cerzir um rasgão num dos vestidos de Seraphine, quando o moço que trabalhava na cozinha chegou vindo da adega com
um tabuleiro cheio de comida. Meg viu que Sir Patrick se tinha recusado a comer uma vez mais.
Talvez fosse por já estar fechada naquela estalagem há muitos dias, com os nervos à flor da pele, o certo é que, subitamente, perdeu toda a paciência com Sir Patrick.
Ignorando os protestos do rapaz, Meg tirou-lhe o tabuleiro das mãos e desceu as escadas furiosa.
Desde o primeiro dia do seu cativeiro que não via Sir Patrick, mas constatou que Armagil se dera a muito trabalho para proporcionar o maior conforto possível ao
amigo. Tinha mandado improvisar um colchão e levara-lhe velas e livros para a adega. Graham já não estava amarrado. Meg deu com ele estendido no colchão, e com a
cabeça encostada à almofada, embrenhado na leitura de um tratado religioso. Parecia mais pálido e com as feições encovadas, mas aparentava estar mais calmo do que
na última vez em que ela o tinha visto.
Ele ergueu o olhar quando ela entrou e, quando se apercebeu de que se tratava apenas de Meg, ela reparou num brilho de calculismo que se refletiu nos olhos dele.
- Não vale a pena tentar - advertiu-o. - Ainda que conseguísseis passar por mim, o senhor Armbruster, o filho e o moço da cozinha estão todos lá em cima. Não conseguiríeis
ir muito longe.
Sir Patrick ficou carrancudo, voltando a concentrar-se no seu livro.
- Podeis levar esse tabuleiro outra vez para cima. Eu já tinha dito a esse rapaz imbecil que não estava com fome.
Meg pousou o tabuleiro em cima de uma barrica.
- De qualquer maneira, far-me-eis o favor de comer. Não vos será permitido morrer de fome.
Graham lançou-lhe um olhar insolente por cima da extremidade superior do livro.
- Não fazia a mais pequena ideia de que o meu bem-estar vos causasse tanta preocupação.
- A vossa pessoa é-me inteiramente indiferente, mas estou muito preocupada por causa do Armagil. Ele correu um grande risco para vos
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manter em segurança e não estou disposta a permitir que o atormenteis por mais tempo.
- Devíeis estar mais preocupada com a vossa segurança, bruxa. com base no que sei através do Blackwood, a cave em Westminster não foi o único local em que a guarda
real procedeu a uma rusga. Aconteceu o mesmo numa determinada igreja.
- A Amélia e a Beatrice Rivers estão ambas mortas, se é a isso que vos estais a referir.
- Ótimo - retorquiu Sir Patrick, humedecendo a ponta do dedo e virando uma página. - Mas a detenção de uma bruxa, de uma maneira geral, desencadeia uma caçada a
muitas mais. Deveis ter cuidado com o vosso próprio pescoço, Margaret Wolfe.
- Ninguém anda à procura de bruxas, Sir Patrick. Andam todos muito ocupados a perseguir católicos.
Houve um músculo na face de Graham que se contraiu, mas conseguiu replicar com toda a calma:
- Estou seguro de que o Catesby e os outros já se encontram muito longe de Londres e a reunir os nossos apoiantes nos condados centrais de Inglaterra. A nossa causa
está muito longe de ter sido derrotada.
Meg ficou a olhar para ele. Tinham acontecido muitas coisas durante a última semana que, obviamente, Armagil não contara a Sir Patrick. Preocupado com o estado físico
e mental do amigo, decerto que Armagil decidira poupar o amigo a mais desgostos. Mas Meg não tinha esses escrúpulos.
- Não haverá congregação nenhuma de apoiantes, nada de apoio vindo dos condados centrais de Inglaterra nem de outro lugar qualquer. A maior parte dos católicos ingleses
continua a ser leal ao seu rei. Têm demasiada sensatez para fomentarem uma guerra civil contra os seus próprios compatriotas, o que só resultaria numa enorme tragédia,
com o sangue derramado de inocentes das duas partes. Quanto ao Robert Catesby...
- Meg hesitou.
Graham baixou o livro e fitou-a com uma expressão ameaçadora.
- O que é que se passa com o Catesby? O que é que ouvistes dizer?
- Ele e os demais que estavam de conluio na conspiração foram encurralados pelas tropas do rei numa quinta. Foram todos apanhados.
- Não, estais a mentir! - Sir Patrick arremessou o livro para o lado, o rosto muito congestionado de raiva. - Não acredito no que estais a dizer.
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- Só precisais de perguntar ao moço da cozinha ou ao senhor Armbruster. O acontecimento foi tão estranho que as pessoas não se fartam de falar sobre esse assunto,
perguntando-se o que terá acontecido realmente.
- O que é que há de tão estranho no facto de alguns homens bons e honestos terem sido apanhados pelos cães do rei?
- A questão reside na pólvora. Os conspiradores molharam a que levaram durante o percurso à chuva até à quinta. Enquanto se preparavam para resistir ao cerco, tentaram
secar a pólvora com lume e o resultado foi uma explosão, da mesma maneira como haviam tencionado fazer ao rei. Alguns ficaram estropiados e outros cegaram. Foram
obrigados a fugir do fogo e foram cair nos braços dos soldados do rei que se encontravam no lado de fora da casa. Robert Catesby foi morto de imediato. Mas, provavelmente,
terá sido um dos mais afortunados. Os que sobreviveram foram levados de volta a Londres para sofrerem a morte reservada aos traidores; não preciso de vos dizer o
que é que isso significa.
Graham encostou-se à almofada desalentado.
- Enforcados, arrastados pela rua e esquartejados - murmurou.
- Uma morte que eu devia partilhar com eles.
- Talvez devêsseis - concordou Meg, mas arrependeu-se de imediato. - Não, eu não quis dizer isso, Sir Patrick. Ninguém devia ser sujeito a um destino tão bárbaro.
A vossa morte não serviria para nada, a não ser causar um profundo desgosto a Armagil.
- Não serviria para nada? O Catesby, o Fawkes e os outros serão considerados como mártires. Terão morrido pelo bem da nossa fé religiosa.
- O mais certo é serem amaldiçoados e injuriados. Continuais sem conseguir ver o que todos vós haveis feito? Apesar de a maior parte dos conspiradores terem sido
capturados, as perseguições e as detenções continuam. Andam a fazer rusgas em casas particulares e a arrastarem padres jesuítas para fora dos seus esconderijos.
Sir Patrick pareceu ter ficado atordoado. Claramente, aquela era uma consequência das suas ações que ele nunca levara em linha de conta.
- Os nossos padres? - perguntou com uma mágoa que era por demais evidente. - Mas nenhum desses homens santos esteve envolvido na nossa conspiração.
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- Isso não interessa. Esta terrível conspiração que haveis maquinado com os vossos amigos proporcionou a Robert Cecil a desculpa de que ele precisava para perseguir
os católicos ainda com mais afinco, para eliminar completamente a vossa religião de Inglaterra.
- A minha mãe morreu por ter protegido os nossos padres, o que fazia para se certificar de que a nossa fé religiosa era preservada, enquanto eu... eu... - Sir Patrick
deixou que lhe caísse uma lágrima pela face.
Meg tinha estado exasperada com a atitude do homem, mas ele mostrava-se tão devastado que se arrependeu de algumas das palavras duras que lhe dissera.
- Lamento muito, Sir Patrick. Eu só pretendi fazer com que compreendêsseis que a vossa morte não ajudaria...
- Só vos peço que me deixeis sozinho - atalhou ele, cruzando o rosto com um braço. Virou-se de costas para Meg, não lhe deixando outra alternativa que não fosse
retirar-se.
Voltou para o andar de cima. Fechou à chave a porta da adega, após o que se encostou a ela. Quando Armagil regressasse, decerto que ficaria extremamente irritado
com ela. A sua única intenção havia sido convencer Sir Patrick a comer, persuadi-lo a que se comportasse mais razoavelmente, mas agora receava ter agravado a situação
mais do que já estava.
Mas não dispôs de muito tempo para refletir no erro que cometera ao ouvir o barulho que tanto temera ao longo dos últimos dias. Alguém batia com toda a força à porta
da taberna, clamando que queria entrar, apesar do aviso afixado na porta de doença contagiosa.
O senhor Armbruster correu para a taberna, de pistola em punho, pronta para ser disparada. com um gesto da cabeça, indicou a Meg que corresse para o primeiro andar,
barricando-se com Seraphine na sua alcova. com o coração a bater fortemente, ela apressou-se a fazer o que ele lhe indicava, embora, se de facto se tratasse dos
soldados do rei que estivessem à porta munidos de um mandado, barricar-se não lhe serviria de nada.
Meg deteve-se a meio das escadas, pondo-se à escuta cheia de ansiedade. Conseguia ouvir Armbruster a articular imprecações contra quem quer que se encontrasse na
soleira da porta da taberna.
- Estamos fechados. Não sabe ler o aviso, grande idiota? Quer ficar exposto à varíola?
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A resposta que veio do outro lado da porta era ensurdecida, mas não era tão abafada que Meg não conseguisse identificá-la, pestanejando de surpresa; havia qualquer
coisa no sotaque da pessoa que lhe era familiar.
Meg correu escadas abaixo quando o senhor Armbruster já trancava a porta.
- Senhor Armbruster, esperai. Parece-me que sei quem é que está a bater à porta.
Não obstante os protestos de Armbruster, Meg destrancou a porta e entreabriu-a. A figura que se mantinha impacientemente na soleira era o último homem no mundo que
ela esperaria ver. Meg ficou a olhar para ele de boca aberta, sentindo um misto de alegria e perplexidade. Gérard Beaufoy fitava-a com uma expressão solene. O conde
de Castelnau tinha, finalmente, vindo à procura da sua mulher.
Meg encontrava-se no lado de fora da porta da alcova, batendo de mansinho. Tinha feito tudo o que estava ao seu alcance para persuadir Gérard a esperar no piso térreo
até ela ter informado Seraphine da chegada do seu marido. Era possível que a própria Meg se sentisse deleitada ao vê-lo, mas era impossível saber como é que Seraphine
reagiria.
Abriu a porta apenas alguns centímetros e espreitou para o interior da alcova.
- Phine? - chamou.
Ficou consternada ao ver que Seraphine ainda estava de camisa de dormir. Estava sentada num banco junto da lareira, passando um pente pelo cabelo numa atitude de
total alheamento.
- Seraphine, ainda nem sequer estás vestida.
- De que é que serve eu vestir-me? - retorquiu Seraphine com um encolher de ombros de desinteresse. - Não se pode dizer que esteja à espera de quaisquer visitas.
Meg olhou nervosamente por cima do ombro.
- Bem, a verdade é que tens uma; quero dizer, uma visita.
- Quem? Ora, isso não importa - disse Seraphine, indicando-lhe com um gesto da mão que se fosse embora. - Informa quem quer que seja que Madame la Comtesse não recebe
visitas esta tarde. A menos que seja alguém que ande à procura de um susto de morte.
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- Sabes perfeitamente que nunca me assustei com essa facilidade, ma chère. Sempre te queixaste, alegando que eu mostrava falta de imaginação - disse Gérard em voz
alta.
Seraphine ficou como que paralisada ao ouvir a voz do marido. Incapaz de esperar por mais tempo, o conde passou bruscamente por Meg, entrando na alcova.
Seraphine soltou um grito agudo e deu um pulo, levantando-se do banco e levando a mão à face.
- Gérard! Mas o que diabo é que estás a fazer aqui?
- Para dizer a verdade, estava à espera de um acolhimento um pouco mais caloroso, minha senhora. Quanto ao que estou a fazer aqui, isso devia ser óbvio. Vim à procura
da minha mulher.
- E porquê agora, tão subitamente?
- Não foi só agora. Há vários meses que ando a procurar-te, primeiro fui à ilha Encantada, depois percorri toda a costa de França e agora aqui estou, nesta miserável
cidade.
- Bem... tu... não podias ter escolhido uma altura pior para vires a Londres. Não ouviste falar no que aconteceu? Esta não é a melhor cidade para estrangeiros católicos
andarem a passear-se pela cidade.
- Encontro-me aqui sob a égide do embaixador francês. Estou em crer que isso me proporciona segurança suficiente. A minha única tolice foi não ter vindo à tua procura
mais cedo.
Quando Gérard se aproximou mais dela, Seraphine recuou, afastando-se dele. Continuando a cobrir a cicatriz com a mão, fitou-o com uma expressão furiosa.
- Pois bem, o que é que queres?
- O que é que te parece que eu queira? Quero-te a ti. Por favor, não te afastes de mim, Seraphine. Não és capaz de imaginar o quanto senti a tua falta. Cada dia
sem ti tem sido um autêntico tormento; esta situação está a pôr-me louco.
- Deves estar a enlouquecer para dizeres coisas dessas. Costumavas dizer que eu dava contigo em doido.
- Prefiro a loucura contigo do que sem ti, ma belle.
- Ah, mas é aí que está o problema. Deixei de ser a tua belle. Não sabes o que aconteceu.
- Sim, sei. A Margaret contou-me.
- Ah, contou? - Seraphine olhou para Meg, que continuava a manter-se na ombreira da porta, sem saber bem o que fazer, de sobrolho franzido. - Mas ainda não tinhas
visto isto.
Seraphine afastou a mão da cara, inclinando a face para a frente para lhe mostrar a cicatriz. Meg apercebia-se do enorme temor que Seraphine se esforçava por ocultar
sob aquela fachada de desafio.
- O quê? Essa coisinha insignificante? - Gérard inclinou-se para a frente para poder roçar os lábios pela bochecha dela. - Minha condessa tola. Tinhas obrigação
de saber que eu te considerarei sempre maravilhosa, ainda que tivesses uma dúzia de cicatrizes.
- Ora! Isso deve-se ao facto de sempre teres sido horrivelmente míope - redarguiu Seraphine, mas o lábio inferior tremia-lhe.
- O que eu preciso de saber é o que fizeste à mulher que te fez isso. Preciso de contratar os serviços de um advogado que te defenda da acusação de assassínio ou
só terei de te ajudar a enterrar o corpo?
- N... não, não lhe fiz nada.
- Mon Dieu, isso quer dizer que amansaste muito desde a última vez em que te vi. Mas terás tu amansado quanto baste para voltares para casa comigo?
- Não sou capaz de imaginar a razão por que haverias de me querer. Sempre fui para ti uma mulher do mais horrível que existe e já não temos o nosso filho. O nosso
rapazinho está... está - Seraphine ficou com a voz embargada na garganta e os olhos marejados de lágrimas.
- Eu sei, ma chère. Eu sei. - Gérard passou os dedos pelo cabelo dela. Ouviu-se um soluço chorado que se soltou da boca de Seraphine, que deu largas às lágrimas
e à muita mágoa que reprimia dentro de si há tanto tempo.
Enquanto Meg saía silenciosamente do quarto, a última coisa que viu foi Seraphine que se deixava abraçar pelo conde, procurando, por fim, consolo nos braços do marido.
Meg começou a descer as escadas e deparou com Armagil que as subia. Vinha corado de tão entusiasmado que estava.
- Tenho boas notícias. O porto reabriu e encontrei um navio em que poderemos fazer a travessia até França. com um pouco de sorte, poderemos zarpar aquando da maré
do próximo fim de tarde.
Meg mantinha-se junto da amurada do convés a observar a linha costeira de França, que estava cada vez mais próxima. E a partir daí encontraria o caminho de regresso
à ilha Encantada. O seu coração começou a bater mais depressa ao pensar naquilo. A ilha sempre havia sido o seu refúgio, e com o fantasma de Cassandra Lascelles,
finalmente, no seu repouso eterno, Meg acreditava que, por fim, encontraria paz e sossego aí.
A única inquietude que ainda não desaparecera da sua mente prendia-se com o homem que atravessava o convés naquele momento. Ou seria mais correto dizer inquietude
no seu coração?
Recordava-se da primeira viagem que haviam feito juntos, numa altura em que ela mal conseguia tolerar a presença de Armagil Blackwood. Ele continuava com a mesma
aparência desleixada e rude, mas nunca as feições de ninguém lhe tinham sido tão queridas. Queria encher os olhos com a imagem dele porque não sabia durante quanto
mais tempo é que continuariam juntos.
Ele embarcara com eles a fim de se certificar de que Patrick Graham não sucumbiria a um impulso irresistível de regressar a Londres para desempenhar o papel de mártir.
Armagil não explicara a ninguém o que tencionava fazer depois de ter visto Sir Patrick são e salvo em solo francês. Meg sentira relutância em perguntar-lhe, receando
que a resposta não lhe agradasse.
Armagil juntou-se a ela junto da amurada, sorrindo-lhe. Depois de um cumprimento resmungado, ambos se remeteram ao silêncio. Tinham passado por tanta coisa juntos,
na qualidade de adversários, amantes e amigos, que agora era estranho que ela, subitamente, se sentisse tão constrangida, sem sequer saber ao certo por que nome
é que devia tratá-lo. Armagil?
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Robbie? Meg tinha a impressão de que ele próprio se sentia constrangido depois de lhe ter revelado o que ia na sua alma, contando-lhe todos os seus segredos do passado.
- A travessia tem sido muito calma - comentou ele por fim.
- Sim - concordou Meg em voz baixa.
- Acho que a condessa se sente bastante satisfeita com isso, embora eu tenha reparado que ela e Monsieur le Comte mal têm saído do camarote.
- Não me parece que isso tenha alguma coisa a ver com o facto de a Seraphine enjoar no mar - começou Meg a dizer, mas depois calou-se enrubescida.
- Também duvido que seja por causa disso - concordou Armagil, rindo-se à socapa. - Quererá isso dizer que a senhora tresmalhada decidiu regressar para junto do seu
senhor?
- A Seraphine e o Gérard têm tido um casamento bastante tempestuoso; foi por muito pouco que a dolorosa perda do filho não fez com que cada um seguisse o seu próprio
caminho. Eles são tão diferentes um do outro; o conde é muito sério e calado, enquanto a Seraphine é, bem...
- Meg calou-se, sorrindo ironicamente - é Seraphine. Mas isso não os impede de se amarem profundamente, pelo que sempre acreditei que, se conseguissem encontrar
maneira de voltarem para os braços um do outro, as diferenças acabariam por se resolver. Estou muito feliz por ela. - Meg não foi capaz de evitar que uma nota de
melancolia transparecesse do seu tom de voz.
- Vais ter saudades dela - disse Armagil, olhando-a com uma expressão sagaz.
- Muitas - admitiu Meg com um sorriso de tristeza. - É verdade que tem havido ocasiões em que ela me irritou tanto que só me apetecia estrangulá-la. Mas a minha
ilha será um lugar muito mais tranquilo sem a presença dela. Mas estou contente por saber que ela estará aonde pertence.
"E quanto ao teu amigo? Reparei que Sir Patrick voltou a falar contigo. Já te perdoou por teres interferido, impedindo-o de se vingar?
- Acredito que sim. Se ainda não me perdoou inteiramente, espero que o faça um dia. Ele tenciona viajar para Douai. É aí que se situa um seminário para padres jesuítas.
A intenção dele é vir a ser ordenado padre.
- E depois regressará a Inglaterra?
- Receio que sim. Não para fomentar mais rebeliões, mas é inegável que os católicos ingleses têm dias difíceis pela frente, pelo que ele espera que, pelo menos,
consiga levar-lhes o consolo da missa e demais ritos sagrados.
- O que será extremamente perigoso para ele.
- É verdade, contudo, desde que tomou essa decisão, o Graham parece estar mais em paz consigo próprio do que alguma vez o vi.
- E quanto a ti?
- Eu estou bem. Porquê... a minha irmã tem andado a atormentar-te em sonhos, dizendo-te o contrário?
- Não, nunca mais voltei a sonhar com ela. Acredito que a Maidred já não teme o que te possa acontecer. O seu espírito repousa em paz.
- O que é uma boa notícia. Mas continuo a desejar ter podido... nunca deixarei de desejar... - Armagil calou-se, sentindo um nó na garganta.
- Eu sei - disse Meg, pousando a mão na dele em cima da amurada. Armagil apertou-lhe os dedos suavemente num gesto de gratidão. - E então, o que é que tencionas
fazer agora? - perguntou Meg por fim, depois de chamar a si toda a sua coragem.
- Tenciono regressar à Escócia.
- Oh... - Meg sentiu que o coração lhe caía aos pés. Afastou a mão da dele, esforçando-se por manter uma atitude animada. - Isso... isso será maravilhoso para ti,
voltares à tua terra natal decorridos tantos anos. Mas será seguro fazeres isso?
- Acho que já passou tempo mais do que suficiente. Já não tenho muitas semelhanças com esse rapaz imberbe de nome Robert Brody, Tenho de correr esse risco, Meg.
Estou a falar de uma viagem que já devia ter feito há muito tempo. Tenho de encontrar as minhas outras duas irmãs para poder pedir-lhes perdão por as ter abandonado.
com um pouco de sorte, não me escarrarão na cara, virando-me costas, apesar de isso ser, inegavelmente, o que eu mereço.
- Tenho a certeza de que não caberão em si de contentes com o teu regresso, Arma... - Meg interrompeu-se com um riso de alguma mágoa.
- Já não sei como devo tratar-te. Por Armagil? Por Robbie?
- Prefiro Armagil. Não és a única que, finalmente, pôde enterrar o passado de uma vez por todas.
- Por conseguinte, continuarás a ser o doutor Blackwood. Vais tentar exercer medicina em Edimburgo?
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- Não tenho a intenção de permanecer na Escócia, Margaret.
- Vais voltar para Londres?
- Não, pensei que poderia fazer-me ao mar numa viagem de exploração. Sabes, sei da existência de uma misteriosa ilha, de que ouvi falar, uma terra em que a maior
parte da população é feminina... o que se adequaria a mim na perfeição. Também ouvi dizer que é governada por uma lindíssima feiticeira.
Se bem que o seu coração tivesse começado a bater mais depressa, sentindo um misto de esperança e de alegria, Meg esforçou-se por igualar o tom ligeiro que ele imprimia
à voz.
- Um rumor disparatado. Não existe nenhuma feiticeira... pelo menos, não uma que seja lindíssima.
- Lindíssima - repetiu Armagil, inclinando-lhe o rosto para cima de maneira a ficar no mesmo plano do seu. - Tão maravilhosa quanto é sensata. Portanto, diz-me uma
coisa: fazes alguma ideia do que terei de fazer para pedir a esta deslumbrante senhora que me conceda permissão para residir na sua ilha?
- Não sejas absurdo. Não precisas de autorização nenhuma. A ilha Encantada é uma terra de refúgio. Todos são bem-vindos e tenho a certeza de que a Hortense ficará
deleitada quando te vir.
- Tretas. O mais certo é ela ter começado a andar enrolada com um marinheiro de pernas arqueadas e, por isso, nesta altura já ela se esqueceu da minha existência.
Estou mais preocupado em saber se ficarás contente por me veres.
- Sim, muito.
- Há tanta coisa que poderás ensinar-me, Margaret. Quero aprender tudo sobre a magia da Antiguidade para poder passar a ser um médico mais competente, um verdadeiro
curandeiro.
- Terei toda a satisfação em partilhar contigo os conhecimentos que possuo. - Meg ergueu o olhar para perscrutar os olhos dele. - E esse é o único motivo por que
queres ir à ilha Encantada?
- Não, estou em crer que existem umas quantas coisas que também poderei ensinar-te.
- O quê, por exemplo?
Os lábios de Armagil esboçaram um trejeito malicioso. Puxou-a para os seus braços e beijou-a até ela ficar sem fôlego. Quando, por fim, a afastou de si, a expressão
brincalhona que se espelhava nos seus olhos suavizou-se, dando lugar a um sentimento de maior ternura.
- Amo-te verdadeiramente, Margaret. Pensei que devia dizer-te isto para o caso de continuares a ter dificuldade em ler os meus olhos.
Ela levou a mão à face dele, sorrindo-lhe com olhos humedecidos pela emoção.
- Receio ter de admitir que serás sempre um homem difícil de ler. Portanto, sinto-me muito feliz por te ouvir dizer que me amas. Devias mencionar isso com mais frequência.
- Todos os dias, milady. Podes contar com isso.
Susan Carroll
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