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A SENTENÇA DE CÉSAR / Steven Saylor
A SENTENÇA DE CÉSAR / Steven Saylor

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

No ano 48 a.C. em que este romance tem lugar, o calendário romano estava cerca de dois meses adiantado relativamente às estações do ano. Assim, embora, segundo esse calendário, a história se inicie no dia 27 de Setembro, na realidade decorre em pleno Verão, e, segundo os cálculos modernos, numa data mais próxima do dia 23 de Julho.

 

 

 

 

 

 

CAPíTULO 1

- Ali! Estás a vê-lo? É o farol!

Betesda apertou-me o braço e apontou para uma centelha de luz visível no horizonte mergulhado em trevas. Era hora que antecede o amanhecer. Aos nossos pés, o convés do navio balouçava suavemente. Franzi os olhos e segui a direcção do seu olhar.

Betesda tinha-se mantido acordada toda a noite, aguardando o primeiro Vislumbre do grande farol de Alexandria.

- Pode aparecer a qualquer instante - tinha-nos dito o capitão na véspera ao crepúsculo, e Betesda instalara-se à proa do navio, de olhar fixo no horizonte meridional, onde o mar azul-esverdeado se unia ao céu azul. Lentamente, os azuis haviam-se tornado mais carregados, até se tingirem de um roxo profundo e depois de negro; as estrelas irromperam no céu, a sua luz iluminando o rosto das profundezas; uma nesga de lua atravessou o firmamento, mas o farol continuava sem aparecer. Aparentemente, não estávamos tão perto de Alexandria como o capitão julgara; apesar disso, eu confiava na sua mestria; até ao momento, a viagem desde Roma tinha decorrido lesta e sem percalços, e até eu era capaz de perceber, olhando as estrelas, que o nosso curso era agora para sul. A brisa persistente que nos dava por trás conduzia-nos por um mar calmo em direcção ao Egipto.

Mantive-me ao lado de Betesda durante toda a noite, fazendo-lhe companhia na sua vigília. Estava uma noite quente, mas de vez em

15quando ela estremecia, e eu estreitava-a contra mim. Há muitos anos, tínhamos partido de Alexandria a bordo de um navio, e ficado durante horas a fio a olhar a chama que ardia no cimo do farol, que se ia tornando progressivamente mais pequena, acabando por desaparecer do nosso campo de visão. Agora, estávamos de regresso a Alexandria, de novo juntos num navio, perscrutando o horizonte à espera do primeiro Vislumbre daquela mesma chama imorredoura.

- Ali! - disse ela, desta vez num murmúrio. Franzi os olhos, duvidoso; tratar-se-ia apenas de uma estrela, a cintilar acima da linha de água? Mas não, a luz era excessivamente uniforme para se tratar de uma estrela e foi-se tornando cada vez mais intensa diante dos nossos olhos.

- Faro - murmurei eu, pois esse era o nome do farol, e da ilha na qual fora construído o mais antigo e mais glorioso farol do mundo. Com a mais fulgorosa chama jamais produzida pelo homem no topo da mais alta torre jamais construída, há centenas de anos que guiava os navios que se aproximavam de Alexandria.

- Alexandria! - murmurou Betesda. Nascera ali, e fora ali que eu a conhecera no curso das minhas Viagens de juventude. Depois de a ter levado comigo para Roma, nenhum de nós voltara à cidade. Mas ninguém esquece Alexandria. Ao longo dos anos, sonhara muitas vezes com as suas amplas avenidas e os seus magníficos templos. Nos últimos dias, à medida que o navio nos aproximava da cidade, as memórias tinham começado a regressar, numa torrente de profusão avassaladora, que não era apenas de imagens e de sons, mas também de sabores, de odores e de sensações tácteis. Sentia-me desfalecer ao recordar as ondas de calor que emanavam do pavimento da Via Canópica nos dias de calor, o beijo seco de uma brisa desértica circulando por entre as palmeiras, as braçadas docemente refrescantes no Lago Mareótis, com o contorno indistinto da cidade em fundo.

Durante a viagem, Betesda e eu fizéramos um jogo de partilha de memórias, trocando-as entre nós à vez, como crianças que brincam à

16apanhada. Bastava um de nós dizer uma palavra, para desencadear uma recordação, que desencadeava outras recordações. Agora, com a luz de Faro a cintilar à distância, ela apertou-me a mão e murmurou:
- Escaravelho.

Eu suspirei.

- O joalheiro que tinha aquela lojinha mesmo no sopé do monte do templo de Serápis.

Betesda assentiu.

- Sim, o do nariz adunco.

- Não, esse era o ajudante dele. O joalheiro...

- ... era ligeiramente calvo E tinha um pescoço encaniçado. Sim, já me lembro.

- Como pudeste esquecer-te, Betesda? Ele acusou-te de roubares aquela jóia em forma de escaravelho mesmo debaixo do nariz adunco do ajudante.

- E se o ajudante tinha uma alma retorcida! Tinha sido ele a roubar o escaravelho!

- Como acabei por vir a descobrir. Pobre tipo, por esta altura, deve estar a acabar de cumprir a pena nas minas de sal.

- Pobre tipo? Ele nunca devia ter permitido que a culpa recaísse sobre uma rapariga inocente! - Os olhos dela faiscaram e eu entrevi o fulgor do espírito turbulento que ainda habitava nela, apesar da terrível doença que a assolava. Apertei-lhe a mão. Ela correspondeu e partiu-me o coração sentir a fraqueza do aperto dos seus dedos.

A doença de Betesda era a razão por que tínhamos decidido vir ao Egipto. Atormentara-a durante meses, roubando-lhe a força e a alegria, iludindo todas as curas propostas por todos os médicos que consultáramos em Roma. Por fim, a própria Betesda propôs uma cura: regressar ao Egipto. Banhar-se nas águas do Nilo. Só assim voltaria a ser a mesma.

Como adquirira Betesda aquela certeza? Não fazia ideia. Certa manhã, anunciara, muito simplesmente, que tínhamos de partir para Alexandria. Tendo acabado de receber algum dinheiro, não tinha desculpa

17para lho recusar. Leváramos connosco o mais recente membro da minha família, um jovem corpulento e mudo chamado Rupa, para nos servir de guarda-costas e por ser natural de Alexandria. Também trouxéramos connosco os meus dois jovens escravos, os irmãos Mopso e Ândrocles, cuja vivacidade e esperteza eu tinha esperança de que prevalecesse sobre a sua propensão para se meterem em sarilhos. Éramos os únicos passageiros do navio. Em tempos tão atribulados, poucos eram os que Viajavam se pudessem evitar fazê-lo.

Rupa e os rapazes dormiam, tal como a maior parte da tripulação do navio. Na quietude daquela hora que antecede o amanhecer, parecia que Betesda e eu éramos as duas únicas pessoas existentes à face da terra, e que o lume de Faros, que era agora cada vez mais intenso, brilhava apenas para nós.

Aos poucos e poucos, o céu começou a clarear. A refulgência negra do mar passou progressivamente a cor de ardósia. Um suave clarão avermelhado inundou o horizonte a oriente. A luz de Faros pareceu empalidecer, ofuscada pelo súbito tremeluzir da chama vermelha que anunciava a subida de Hélio nos céus, na sua quadriga ígnea.

Apercebi-me de que começara a haver movimentações a bordo. Olhei para trás e constatei que o convés estava repleto de marinheiros, que manejavam cordas e aprestos. Há quanto tempo andariam por ali? Aparentemente, eu passara pelas brasas enquanto observava o nascer do dia, e no entanto poderia jurar que nunca fechara os olhos. A luz de Faros tinha-me estupeficado. Pestanejei e abanei a cabeça. Observei mais atentamente os marinheiros. As expressões deles eram carregadas, e não alegres. No meio deles, entrevi o capitão, cuja expressão era a mais carregada de todas. Tratava-se de um sujeito afável, um grego grisalho aproximadamente com a mesma idade que eu, cerca de sessenta anos, de quem me tinha tornado amigo ao longo da viagem. Ele viu-me observá-lo e aproximou-se a passos largos, enquanto ladrava uma ordem a alguns dos seus homens. Murmurou baixinho:

- Céu vermelho. Não me agrada.

18Voltei-me para Betesda. Com os olhos semicerrados e os lábios entreabertos, ela continuava a olhar fixamente o lume de Faros, alheia à movimentação que tinha lugar atrás de nós. Pela primeira vez, consegui discernir a torre do farol, uma pequena lasca de pedra clara sob o brilhante ponto de luz.

- Está tão perto! - sussurrou ela.

Bastava-nos manter o rumo e uma velocidade constante, e a torre de Faros tornar-se-ia pouco a pouco maior e mais nítida - da altura de uma unha, de um dedo, de uma mão. Tornar-se-ia possível discernir a cantaria estriada que decora o exterior; veríamos as estátuas de deuses e reis que ornamentam a base e as varandas dos andares superiores. Para lá de Faros, veríamos os navios apinhados no grande porto e, na linha do horizonte, o recorte dos telhados de Alexandria.

Senti um puxão na manga da túnica e, ao voltar-me, vi o pequeno Ândrocles a olhar para mim. Tinha Mopso, o irmão ligeiramente mais velho, atrás dele, e por trás de ambos agigantava-se Rupa, esfregando o sono dos olhos.

- Senhor - disse Ândrocles -, qual é o problema?

Do meio do navio, o capitão dispensou-me um olhar de relance e bradou:

- Não quero esses dois miúdos aí no meio do caminho! - Depois gritou para os marujos: - Baixar a vela! Remos ao alto!

Uma súbita rajada de vento de oeste arrancou uma parte da vela das mãos dos marinheiros que tentavam ferrá-la. Sentimos o convés balançar abruptamente. O casco sob a proa embateu contra as ondas, e nós ficámos cobertos de espuma salgada. Betesda pestanejou, estremeceu e finalmente tirou os olhos de Faros. Lançou-me um olhar entorpecido:

- Marido, o que se passa?

- Não sei ao certo - disse eu. - Talvez fosse melhor abrigarmo-nos lá atrás. - Tomei-a pelo braço, com o fito de a conduzir, a ela e

19aos outros membros do grupo, para a pequena cabina que havia na popa do navio. Mas era tarde de mais. A tempestade, surgindo do nada, atingiu-nos em cheio, e o capitão ordenou-nos com gestos frenéticos que ficássemos onde estávamos, para não estorvarmos os marinheiros.

- Agarrem-se onde puderem! - gritou ele, com uma voz que mal se ouvia por cima do repentino guincho do vento. Gotas de chuva aguilhoaram-me a face, enchendo-me os lábios de grãos de arenito. Sentindo a areia ranger-me contra os dentes, praguejei e cuspi. Tinha ouvido falar de tempestades destas quando vivera em Alexandria, mas nunca tinha passado por nenhuma - tempestades de areia provenientes do deserto, que varriam os mares, combinando-se com chuvas torrenciais e cobrindo de água e terra os navios violentamente sacudidos pelo vento. Certa vez, depois de uma tempestade dessas, um navio tinha entrado no porto de Alexandria carregado de areia: o Sol tórrido tinha feito evaporar a água, deixando dunas de areia em miniatura espalhadas pelo convés.

A luz vermelha do Sol nascente ficou reduzida a uma recordação, banida por uma escuridão vociferante. Betesda agarrou-se a mim. Abri os olhos, apenas o suficiente para ver que Rupa estava ali perto, agarrando os rapazes com ambos os braços e conseguindo simultaneamente agarrar-se com firmeza à amurada. Mopso e Ândrocles escondiam a cara contra o seu peito largo.

Tão depressa como nos atacara, o vento cortante esmoreceu. Os uivos da tempestade diminuíram, mas não cessaram; dava a ideia de que o temporal recuara em todas as direcções, rodeando-nos sem nos tocar. Por cima de nós, abriu-se uma fresta no céu, revelando uma mancha incongruente de azul no meio da escuridão envolvente.

- Consegues ver o farol? - sussurrou Betesda.

Olhei para lá da proa, para uma névoa de um roxo-escuro, trespassado por raios de cinzento-opalescente. Não vi sinal da linha do horizonte, e muito menos um vislumbre da chama de Faros. Tive a estranha sensação de que Alexandria já não se encontrava para além

20da proa; o navio tinha sofrido tais reviravoltas, que eu não conseguia adivinhar para que direcção ficava o Sul. Olhei para o capitão, que estava no meio do convés, ofegante mas firme como uma rocha, segurando uma corda esticada com uma força tal, que tinha os nós dos dedos brancos.

- Alguma vez tinhas visto uma tempestade assim? - perguntei eu, baixando a voz em vez de a elevar, porque o círculo de quietude que rodeava o navio era perturbador.

O capitão não respondeu, mas do silêncio dele inferi que estava tão estupefacto como eu.

- Vivemos tempos estranhos - disse por fim - tanto nos céus como na terra.

O comentário não requeria explicações. Por toda a parte e a toda a hora, os homens Viam presságios e augúrios. Desde o dia em que César atravessara o rio Rubicão e marchara sobre Roma com o seu exército, arrastando o resto do mundo para uma desastrosa guerra civil, não se passara um dia a que se pudesse chamar normal. Eu próprio tinha testemunhado batalhas em mar e em terra, dera por mim encurralado em cidades cercadas, fora praticamente espezinhado por cidadãos esfomeados e desesperados, amotinados no Fórum romano. Vira homens serem queimados vivos no mar e homens morrerem afogados num túnel subterrâneo. Fizera coisas que julgara ser incapaz de fazer matara um homem a sangue-frio, renegara o meu amado filho, apaixonara-me por uma desconhecida, que morrera nos meus braços. Tinha voltado deliberadamente as costas a César e às suas loucas ambições, mas César continuava a chamar-me seu amigo; fora mais bem sucedido em alienar o rival de César, Pompeu, que tentara estrangular-me com as próprias mãos. O caos reinava sobre a terra, e os homens viam o seu reflexo nos céus: havia relatos de pássaros a voarem para trás, os templos eram atingidos por raios, nuvens vermelhas de sangue adquiriam a forma de exércitos em combate. Nos dias que antecederam o da nossa partida para Alexandria, Roma fora informada de acontecimentos momentosos: César e Pompeu tinham-se defrontado em Farsalo,

21na Grécia, e, a fazer fé nos relatos, as forças de Pompeu tinham sido completamente destruídas. O mundo sustinha a respiração, aguardando a partida seguinte do grande jogo. Não era, pois, surpreendente, que em tão estranha tempestade um homem como o nosso capitão visse apenas mais uma manifestação do caos que os cães da guerra haviam desencadeado nos céus e na terra.

Como que para confirmar este receio supersticioso, o círculo de céu azul que víramos por cima de nós desapareceu abruptamente, e o navio tornou a ser varrido pela chuva. Mas desta vez não trazia areia; algo maior atingiu-me a face, sobressaltando-me. Betesda deslizou para o chão, esquivando-se ao meu abraço, e ajoelhou-se para apanhar aquilo que tombara para o convés. Escapou-se-lhe dos dedos, mas ela recuperou-o com destreza. Tive um sobressalto e estremeci, esperando que Betesda gritasse e lançasse a irrequieta criatura para longe de si, mas ela aninhou-a nas mãos, arrulhando deliciada.

- Sabes o que é isto, marido? É um pequeno sapo do Nilo! Caído do céu, e a milhas de distância do Delta. Impossível, mas aqui está ele! É seguramente um sinal dos deuses!

- Mas um sinal de quê? - sussurrei eu, soltando um grunhido de repugnância no momento quando outra daquelas pegajosas criaturas caiu do céu, atingindo-me no rosto. Olhei em volta e vi que o convés estava coberto de criaturas saltitantes. Alguns dos marinheiros riam-se, outros franziam o nariz, enojados, outros saltavam, tentando evitar que os sapos lhes tocassem e gemiam assustados.

Um clarão de luz dividiu o céu, seguido quase imediatamente por um estrondoso trovão, que me fez matraquear os dentes. O sapo pulou das mãos de Betesda e saltou por sobre a amurada, em direcção ao vazio. O convés agitou-se, e eu tive uma tontura. Senti-me dominado por uma estranha ilusão, de que o vento tinha soerguido o navio e de que planávamos sobre as ondas, em voo corrido.

Perdi por completo a noção de tempo, mas devemos ter passado horas agarrados uns aos outros, para nos defendermos da força da

22tempestade. Por fim, o mar acalmou abruptamente. As nuvens negras retrocederam em todas as direcções, aos boléus umas sobre as outras, de tal forma que pareciam acumular-se em horizontes distantes como paredes de montanha, íngremes, polidas e negras, com as cristas irregulares orladas por chamas, ocasionalmente abertas por clarões de intolerável esplendor, enquanto as bases eram rabiscadas por relâmpagos como um papiro de escrita. O Sol estava pequeno e vermelho como sangue, obnubilado por um véu de bruma fino e negro. Em todas as minhas Viagens, fosse por terra ou por mar, nunca vira nada que se parecesse com a estranha luz que inundava o mundo naquele momento, um fulgor acobreado que parecia provir de nenhures. Mas diante de nós, muito ao longe, havia no horizonte uma clareira de céu azul, onde uma luz amarela brilhava sobre um reluzente mar cor de esmeralda. O capitão viu a abertura nas trevas e ordenou aos seus homens que navegassem naquela direcção.

A vela foi desfraldada. Os remadores regressaram aos seus lugares. A interrupção no horizonte era tão distinta, que eu quase estava a espera de emergir da escuridão de um momento para o outro, como quem sai de uma gruta. Mas não; com os remadores a fazer-nos avançar com firmeza, erguendo e mergulhando os remos em sincronia, passamos gradualmente de um mundo de trevas para o mundo da luz. Acima das nossas cabeças, a bruma negra esfumava-se e dispersava, e o Sol foi passando de vermelho-sangue a dourado. À nossa direita, surgiu no horizonte uma tira de terra de um castanho-claro; avançávamos para leste e, pela altura do sol de oeste, que nos aquecia os ombros e as costas ensopados pela chuva, passava pelo menos umas duas horas do meio-dia. Olhei por cima da amurada e vi que a água era uma confluência de verde e castanho, este da lama proveniente do Nilo. A tempestade tinha-nos impulsionado muito para além de Alexandria, algures para lá do amplo Delta do Nilo, o famoso delta em forma de leque.

Tão determinado estava o capitão em chegar a águas mais calmas, que nem reparou nos vários navios imobilizados à nossa frente, de

23velas brilhantes como marfim sob o Sol resplandecente. Àquela distância, era difícil discernir, mas algumas das embarcações pareciam navios de guerra. Perto de Alexandria, semelhante agrupamento não teria constituído motivo de alarme, pois o porto e a frota que o guardava ofereciam protecção contra vagabundos e piratas. Mas nós aparentávamos estar longe de qualquer porto ou ancoradouro de vulto, mas bem em mar aberto. Estávamos fortemente vulneráveis ao roubo e ao ataque. Reflectia eu nisto, quando o capitão pareceu finalmente reparar nas embarcações que se encontravam à nossa frente. Deu ordem para virar para sul, em direcção a terra, ainda que a pequena linha de costa, árida e nua, pouco parecesse oferecer, em termos de socorro ou de refúgio.

Mas os outros navios já tinham dado pela nossa presença e, quaisquer que fossem as intenções deles, não pareciam dispostos a deixar-nos prosseguir sem um encontro prévio. Duas embarcações mais pequenas rumaram na nossa direcção.

O capitão manteve uma expressão calma, e só um ligeiro franzir do sobrolho revelou a sua ansiedade quando examinou as embarcações que nos perseguiam; porém, na ordem dada aos remadores para acelerarem o ritmo, o tom de medo ressoou tão claramente como um aviso de trombeta. Eles redobraram a velocidade de forma tão abrupta, que convés deu um ligeiro solavanco.

- Rupa! - disse eu, tencionando apenas atrair-lhe a atenção; mas o corpulento mudo antecipou a pergunta e meteu a mão dentro da túnica, para me mostrar discretamente que tinha o punhal à mão. O pequeno Mopso, vendo o brilho da lâmina de Rupa, engoliu em seco. O irmão mais novo aproveitou a ocasião para o arreliar com uma cotovelada. Dei por mim a invejar a coragem ingénua de Ândrocles. Há poucas fatalidades mais temidas pelos Viajantes do que a perspectiva de serem abordados no mar por marinheiros hostis, longe de qualquer possibilidade de salvamento. A própria misericórdia dos deuses raramente é concedida em alto mar; talvez o refulgir da luz do Sol na água obnubile a sua visão a partir dos céus. Meti a mão dentro

24da túnica, para testar o punho do meu próprio punhal- Na pior das hipóteses, poderia pelo menos poupar Betesda à degradação da captura em alto mar. Ela já não era jovem - sobressaíam-lhe fios de prata nas madeixas de cabelo negro - mas, mesmo no estado debilitado em que se encontrava, continuava a ser desejável, pelo menos a meus olhos.

Seguíamos a uma velocidade considerável, mas os navios que vinham no nosso encalço eram mais rápidos. A linha da costa ia-se aproximando lentamente, quando os perseguidores nos alcançaram, com as velas brancas enfanadas. Homens armados enchiam os convés. Eram navios de guerra, e não mercantis.

Era inútil tentar escapar-lhes, mas o capitão entrou em pânico. Tendo mantido a cabeça fria durante a tempestade, que podia ter feito voltar o navio tirando-nos a vida de um momento para o outro, perdeu a cabeça ao ser confrontado com uma ameaça humana. Franzi o sobrolho com o seu erro de estratégia: se o encontro era inevitável, obrigar os perseguidores a vir atrás de nós só serviria para aumentar a sua ânsia de sangue, tornando homens com intenções inócuas mais perigosos no trato. Teria sido mais prudente marear e dar meia volta, para os enfrentar com a dignidade e a bravata que conseguisse aparentar, mas ele deu uma ordem rouca para os remadores darem a velocidade máxima.

A linha da costa aproximava-se, mas mostrava-se tão desértica como anteriormente; pouco mais era que um borrão pardo que se estendia no horizonte, desproVido de uma única palmeira que desse indícios de vida por aquelas bandas. Aquela costa sem perspectivas reflectia a falta de esperança que senti naquele momento; mas Betesda apertou-me a mão e sussurrou:

- Talvez sejam os navios de César, marido. Não disseste que César poderia ter vindo para o Egipto, se o relato do seu êxito na Grécia fosse verdadeiro?

- Disse.

25- E César sempre foi teu amigo, não foi, marido - mesmo quando tu foste muito pouco simpático com ele?

Quase sorri diante daquele comentário sardônico; Betesda continuava a ser capaz de me espicaçar, apesar da doença que não a lhe dava tréguas. Qualquer indício da presença da sua antiga vivacidade era um motivo de esperança.

- Tens razão - disse eu. - Estes sujeitos que nos seguem têm aspecto de levantinoS, mas podem ser homens de César, ou homens que ele conquistou a Pompeu, se de facto Pompeu foi vencido ou morto. Se aquela frota pertencer a César, e o tivermos encontrado a caminho de Alexandria, então...

Não concluí a frase, pois Betesda sabia o que eu ia dizer, e pronunciar o seu nome em voz alta ser-me-ia excessivamente doloroso; se tivesse sobrevivido às agruras da batalha, era muito provável que Meto, o meu filho adoptivo, estivesse ao lado de César. Da última vez que o vira fora em Massília, na Gália, onde o repreendera e renegara publicamente, pelas intrigas e mentiras que praticara ao serviço de César. Ninguém da minha família - e muito menos Betesda - percebia muito bem por que motivo eu voltara as costas a um filho que adoptara, que sempre me fora tão querido; eu próprio não percebia muito bem a violência da minha reacção. Se aqueles navios fossem de César, e se César se encontrasse entre eles, e se Meto estivesse com César - que partida os deuses não me teriam pregado, privando-me de uma chegada tranquila a Alexandria e colocando-me no meio da frota de César, na perspectiva de um encontro que não suportava sequer imaginar.

Por muito melancólicos que fossem estes pensamentos, pelo menos serviram para me impedir de imaginar uma alternativa mais terrível
- que os navios que seguiam no nosso encalço não fossem afinal de César. Aqueles homens podiam ser piratas, ou soldados renegados, ou qualquer coisa ainda pior...

Quem quer que fossem, eram velejadores experimentados, com considerável destreza na arte da perseguição e captura. Coordenando

26os movimentos com admirável precisão, afastaram-se um do outro, postando-se ao lado do nosso barco, a estibordo e a bombordo, e reduziram a velocidade regulando-a pela nossa. Estavam suficientemente próximos para eu conseguir ver as expressões irónicas dos homens armados que seguiam no convés. Estariam decididos a destruir-nos, ou apenas animados pela perseguição? Do navio postado a estibordo, um oficial gritou: - Desiste, capitão! Foste apanhado. Manda levantar os remos, caso contrário damos cabo deles!

A ameaça era literal: eu já Vira navios de guerra utilizar essa táctica: colocavam-se ao lado de uma embarcação inimiga, aproximavam-se e faziam recuar os próprios remos, de modo a cortar rente os remos ainda estendidos - do outro navio, deixando-o inutilizado. Com duas embarcações, tal manobra podia ser executada de ambos os lados simultaneamente. Dada a destreza demonstrada até ao momento pelos nossos perseguidores, não tinha a menor dúvida de que conseguiriam fazê-lo.

O capitão continuava em pânico, imobilizado e emudecido. Os homens olharam para ele, aguardando ordens, mas não as receberam. Continuámos a avançar a toda a velocidade, com os perseguidores e aproXimarem-se de ambos os lados.

- Por Hércules! - gritei, arrancando-me dos braços de Betesda para correr para junto do capitão. Apertei-lhe um braço. - Ordena-lhes que levantem os remos!

O capitão olhou-me com uma expressão vazia. Eu dei-lhe uma bofetada. Ele reagiu e fez menção de ripostar, mas depois um vislumbre de razão iluminou-lhe os olhos. Respirou fundo e ergueu os braços.

- Remos ao alto! - gritou. - Marear!

Os marinheiros, ofegantes e exaustos, obedeceram imediatamente. Com impecável arte náutica, os nossos perseguidores imitaram-nos, e os três navios permaneceram lado a lado, com as ondas a travar-nos a progressão.

O navio que seguia a estibordo aproXiMou-se ainda mais. O soldado que nos mandara parar falou novamente; estava tão perto, que quase

27não precisava de levantar a voz. Vi que usava insígnias de centurião romano.

- Identifica-te!

O capitão pigarreou.

- Este é o Andrómeda, um navio ateniense com tripulação grega.
- E tu?

- Creteu, proprietário e capitão.

- Por que fugiste quando nos aproximámos?
- Que tolo não faria o mesmo?

O centurião deu uma gargalhada. Pelo menos estava bem-humorado.

- De onde partiram?

- De óstia, a cidade portuária de Roma.
- Destino?

- Alexandria. já lá estaríamos se não fosse...
- Limita-te a responder às perguntas! Carga?

- Azeite e vinho. Em Alexandria, vamos comprar linho em rama e...
- Passageiros?

- Apenas um grupo, um sujeito e a mulher...
- É esse que está aí atrás de ti?

Eu tomei a palavra.

- Chamo-me Gordiano. Sou cidadão romano.

- Ah sim? - O centurião perscrutou-me. - Quantas pessoas te acompanham?

- A minha mulher, um guarda-costas, e dois jovens escravos.
- Podemos prosseguir? - inquiriu o capitão.

- Ainda não. Todos os navios, sem excepção, têm de acostar e ser revistados, e os nomes de todos os passageiros comunicados ao Grande. Não se assustem: trata-se de um procedimento normal. Agora dêem meia volta, vamos escoltar-vos até à frota.

Lancei um olhar melancólico à soturna linha de costa de que nos afastávamos agora progressivamente. Não tínhamos caído nas garras

28de César, nem dos piratas, nem de soldados renegados. Era muito pior que isso. No mundo inteiro, um só homem tinha a presunção de se intitular Magnus, o Grande: Pompeu. As Parcas tinham-me entregado às mãos de um homem que havia jurado matar-me.

29CAPíTULO II

A ”frota”, como lhe chamara o centurião, era na realidade um conjunto bem menos imponente do que parecera à distância. É certo que havia alguns navios de guerra, mas pareciam estar todos em diferentes graus de ruína, com as velas puídas, os cascos batidos e os remos desirmanados. Os outros navios eram de transporte. Os soldados que ocupavam os respectivos conveses tinham a aparência distraída e indisciplinada característica de escravos recrutados à força; já vira bastantes exemplos destes desde a eclosão da guerra pois, nas suas tentativas desesperadas de ganhar vantagem um sobre o outro, ambos os lados tinham destacado para as suas fileiras gladiadores, criados de lavoura, e mesmo escravos que habitualmente se dedicavam a trabalhos intelectuais. Estes soldados de expressões furtivas, rostos inexpressivos e armaduras amolgadas, não eram seguramente as esplêndidas tropas que Pompeu reunira para a sua campanha na Grécia; esses tinham presumiVelmente desaparecido em Farsalo, chacinados pelas legiões de César, ou perdoados e absorvidos nas fileiras do Cônsul.

Pompeu escapara de Farsalo com vida, mas com pouco mais. Corriam rumores de que fora completamente surpreendido pela derrota. O confronto tinha começado ao nascer do dia; no início da batalha, Pompeu sentira-se tão seguro da vitória, que se retirara para o pavilhão de comando, para descontrair e desfrutar do repasto do meio-dia. Mas as forças de César devastaram abruptamente a oposição, pondo-a em

30debandada. Ao chegarem ao local onde Pompeu estava posicionado, tomaram de assalto as muralhas e entraram aos borbotões pelo aquartelamento adentro. César foi o primeiro a alcançar ao pavilhão de Pompeu, onde encontrou um mobiliário sumptuoso, coberto de almofadas ainda quentes, uma mesa de banquete com travessas de prata repletas de iguarias fumegantes, e uma ânfora de um belo Falerniano ainda por abrir. Se Pompeu tencionara fazer um banquete de Vitória, a celebração fora prematura; no último momento, dando-se conta de que tudo estava perdido, o Grande desfizera-se da capa escarlate e restantes insígnias correspondentes à sua categoria militar, montara no primeiro cavalo que conseguira encontrar, e fugira a galope pelo portão das traseiras do aquartelamento, escapando com vida por uma unha negra.

E aqui estava Pompeu, com uma frota maltrapilha de guerreiros ancorada ao largo da costa do Egipto; e aqui estava eu, nas mãos de Pompeu.

Senti o estômago roncar, e apercebi-me de que ficara esfomeado de tanto andar de um lado para o outro no convés do pequeno navio, à espera de uma resposta do centurião, que anotara diligentemente o meu nome antes de remar parajunto do seu comandante, em busca de novas ordens. O capitão do Andrómeda, sentado ali perto, lançava-me olhares de soslaio. Por fim, pigarreou e disse:

- Olha, Gordiano, tu não és... Quer dizer, tu não és perigoso pois não?

Sorri.

- Depende. Achas que podia vencer-te numa luta honesta, Creteu? Temos mais ou menos a mesma idade, a mesma estatura...

- Não era isso que eu queria dizer, e tu sabes bem.

- Se é perigoso alguém conhecer-me, queres tu dizer? Se sou uma carga perigosa?

Ele anuiu.

31- Viemos cruzar-nos com Pompeu. Não conheço o homem, mas toda a gente conhece a sua reputação. Está habituado a obter o que quer, e a que nada o detenha.

Eu anuí, recordando um famoso comentário datado do início da carreira do Grande, da época em que ele governara tiranicamente os Sicilianos. Eles tinham-se queixado das tácticas ilegais que ele empregara para pôr a ilha na ordem. A resposta de Pompeu fora: ”Parem de nos citar as leis; nós temos espadas na mão!” Pompeu sempre fizera o que fosse necessário para prevalecer, e nunca conhecera o sabor da derrota - até agora.

- Considerando o que aconteceu em Farsalo, imagino que o Grande esteja de bastante mau humor - disse eu.

- Então sempre o conheces, Gordiano? Anuí.

- Somos conhecidos.

- E ele ficará satisfeito ou irritado quando o oficial lhe contar que te encontras no meu navio?

Ri-me contra vontade.

- Irritado por saber que ainda respiro. Satisfeito por saber que pode alterar esse estado de coisas.

O capitão franziu a sobrancelha.
- Odeia-te assim tanto?

- Odeia.

- Por teres tomado o partido de César? Abanei a cabeça.

- Não estou nem nunca estive do lado de César, apesar de o meu filho - de o filho que reneguei... - Deixei a frase em suspenso.

- Tens um filho que luta ao lado de César?

- São mais íntimos que isso. Meto dorme na mesma tenda, come da mesma marmita que César. Ajuda a escrever as obras de propaganda que César tenta fazer passar por memórias.

O capitão olhou-me com novos olhos.
- Quem haveria de pensar...

32- Que um sujeito de aspecto tão vulgar como eu teria uma conexão tão íntima com o novo senhor do mundo?

- Mais ou menos isso. Nesse caso, o que fizeste para ofender Pompeu?

Encostei-me à amurada e olhei fixamente a água.

- Isso, capitão, é um assunto que só a mim diz respeito.

- E a mim também, se Pompeu decidir confiscar-me o navio e lançar-me borda fora, para me punir por te ter trazido a bordo. Pergunto-te outra vez: o que fizeste para ofender o Grande?

- Quando César marchava sobre Roma e Pompeu procurava desesperadamente fugir, foi assassinado um jovem primo de Pompeu, um rapaz de quem ele gostava muito. Antes de sair de Roma, Pompeu incumbiu-me de descobrir o assassino.

- E tu fracassaste?

- Não propriamente. Mas o Grande não ficou satisfeito com os resultados da minha investigação. - Lembrei-me de Pompeu como o vira pela última vez - com as mãos em torno da minha garganta, os olhos protuberantes, decidido a ver-me morrer. Preparava-se para fugir de Itália de barco, partindo do porto de Brundísio no próprio momento em que César entrava na cidade. Eu escapara por pouco, conseguindo libertar-me das mãos de Pompeu e mergulhando em águas profundas, vindo à superfície por entre destroços de navios em chamas e arrastando-me até à costa enquanto Pompeu seguia a bordo para salvar a pele. Abanei a cabeça para clarear as ideias.

- Tu nada fizeste que insultasse a dignidade do Grande, capitão. Ele não tem motivos para te castigar. Se Pompeu te confiscar o navio, será por precisar de mais espaço para instalar o bando de soldados de ar pesaroso que mandou apinhar naqueles barcos de transporte. Mas terá necessidade de quem dirija este navio, pelo que não terá qualquer razão para te lançar borda fora. Ah, mas talvez fiquemos a par das intenções do Grande muito em breve. Vejo aproximar-se um esquife ligeiro, e creio que transporta o nosso amigo, o centurião que nos deteve.

33O esquife encostou. O centurião chamou-nos.
- ó do barco, capitão.

- ó do barco, centurião. Os teus homens acabaram de revistar a minha carga há uma hora. Posso prosseguir?

- Ainda não. O passageiro que trazes a bordo... Inclinei-me sobre a amurada, mostrando o rosto.
- Referes-te a mim, centurião?

- Sim. És o mesmo Gordiano a quem chamam o Descobridor, que mora em Roma?

- Suponho que não valha a pena negá-lo.

- Nesse caso, deves ser um sujeito bastante importante. O Grande gostaria de te dar uma palavrinha. Se quiseres juntar-te a nós aqui no esquife, escoltamos-te até à galera dele.

Betesda, que se mantivera à distância, com Rupa e os rapazes, aproximou-se e agarrou-me a mão.

- Marido...

- Vai correr tudo bem, tenho a certeza - disse eu. Ela apertou-me os dedos e desviou os olhos:

- Fizemos uma viagem tão longa, marido.

- Viemos até onde tudo começou entre nós. Bem, quase. Não chegámos a Alexandria, mas sempre vimos o farol, não foi?

Ela abanou a cabeça.

- Nunca devia ter insistido nesta viagem.

- Que disparate! Hoje em dia, nenhum lugar é mais seguro que outro qualquer. Viemos ao Egipto para tu te banhares no Nilo e te purificares dessa doença que te aflige, e assim será. Promete-me que o farás, mesmo que eu não esteja contigo ou que...

- Não digas uma coisa dessas! - sussurrou ela. Tomei-lhe ambas as mãos, mas apenas por momentos.

- O Grande não gosta que o façam esperar - recordei, permitindo com relutância que os dedos dela se desenlaçassem dos meus. - Olha por ela na minha ausência, Rupa. E vocês, rapazes, portem-se bem!

34- Androcles e Mopso olharam-me hesitantes, pressentindo que se passava qualquer coisa.

Um homem com a minha idade não devia ser obrigado a descer para um esquife por uma escada de corda, mas consegui superar a difícil descida com mais elegância do que julgara possível. Talvez os deuses estivessem atentos, afinal de contas, e lhes tivesse parecido razoável permitir que um velho romano retivesse uma réstia de dignidade no momento em que se preparava para enfrentar o seu destino.

- Está um belo dia - disse eu ao centurião. - Nem sinal da tempestade que nos trouxe para estas bandas. Ninguém diria que ela teve lugar. Só há céu azul à vista.

O centurião assentiu, mas não disse nada. Aparentemente, as suas reservas de bonomia tinham chegado ao fim. Tinha uma expressão sombria.

- O grupo não está muito animado - disse eu, observando os remadores. Eles continuaram a olhar em frente e não responderam. Passámos pelos navios de guerra e os de transporte, em direcção ao centro da pequena frota. A galera de Pompeu destacava-se das restantes embarcações. Tinha uma vela debruada a carmesim, o casco couraçado brilhava ao sol, e os soldados que se encontravam no convés eram, de longe, os que melhor trajavam. Tratava-se claramente do navio mais gracioso da frota, e no entanto, num sentido intangível, era o mais soturno. Seria apenas imaginação minha, ou o ar pareceria efectivamente adensar-se de temor à nossa volta, à medida que as investidas dos remos nos faziam aproximar mais do Grande?

Fui poupado ao desafio de tentar subir por uma corda, pois a galera estava equipada com uma rampa que se desdobrava a partir do convés. Subi para a rampa, vacilando um pouco. Quando o centurião me agarrou o cotovelo para me equilibrar, voltei-me para lhe agradecer, mas o modo como ele desviou a vista, como se o próprio facto de olhar para mim pudesse contaminá-lo, deixou-me nervoso. Apelando a toda a minha coragem, voltei-me e subi a rampa.

35Mal cheguei ao convés, fui revistado. Descobriram-me o punhal e tiraram-mo. Mandaram-me descalçar, levando-me também os sapatos; suponho que um assassino empreendedor seria capaz de arranjar maneira de esconder uma arma letal no calçado. Até a corda que usava para apertar a túnica me foi confiscada. Fui escoltado por guardas até à cabina da popa do galeão. A porta estava aberta e, muito antes de chegarmos junto dela, ouvi a voz sonora de Pompeu, proveniente do interior.

- Diz ao fedelho e ao seu eunuco de estimação que espero encontrar-me com ele em terra amanhã ao meio-dia, nem antes, nem depois. Ajuizarei quão subservientes tencionam ser estes egípcios por aquilo que me servirem ao almoço. Se optarem por bife de crocodilo e línguas de andorinha, acompanhados por um vinho italiano decente, direi ao rapaz-rei que também pode limpar-me o traseiro. Se julgam que lhes basta servirem-me salmonetes do Nilo e cerveja egípcia, ficarei a saber que vou ter um trabalhão. - Seguiu-se uma gargalhada áspera que me fez gelar os ossos.

Outra voz respondeu, num tom mais baixo:

- Às tuas ordens, Grande. - Momentos depois, emergia da cabina um oficial, trajando em todo o esplendor do seu uniforme, e com um capacete de pluma debaixo do braço. Observou-me e ergueu uma sobrancelha. - É este o chamado Gordiano, centurião Macro?

É sim, comandante.

Bem, cidadão Gordiano, não te invejo. Mas provavelmente tu também não me invejas. Vou a terra firme conferenciar com o altivo rapaz-rei e os seus insuportáveis conselheiros. O Grande espera ser adequadamente recebido quando amanhã se dirigir a terra, mas temos a distinta sensação de que o rapaz-rei preferia estar a encenar outra batalha contra a irmã e os rebeldes que ela esconde no deserto. O oficial abanou a cabeça. - Este género de coisa era muito mais fácil antes de Farsalo! Bastava-me estalar os dedos e os locais agachavam-se de medo. Agora olham-me como se... - Pareceu dar-se conta

36de que falara de mais, e franziu o sobrolho. - Ah, bom, talvez voltemos a ver-nos quando eu regressar. Ou talvez não. - Deu-me uma cotovelada nas costelas - excessivamente forte para ser amigável - e passou por mim com um empurrão. Fiquei a vê-lo descer a rampa e desaparecer do meu campo de visão.

Enquanto eu estava distraído, um dos guardas tinha aparentemente anunciado a minha chegada porque, sem mais preâmbulos, o centurião Macro empurrou-me na direcção da cabina. Entrei e ele fechou a porta atrás de mim.

O pequeno compartimento pareceu-me escuro depois de tanta claridade. À medida que os meus olhos se iam ajustando, o primeiro rosto que vi foi o de uma jovem, uma matrona romana surpreendentemente bela que estava sentada a um canto com as mãos entrelaçadas no regaço, olhando-me fixamente com uma expressão condescendente. Mesmo em pleno mar, ela tinha arranjado maneira de tratar cuidadosamente da sua aparência. Tinha o cabelo tingido com hena e preso no alto da cabeça, num penteado complicado. Tinha a estola cor de vinho segura em redor do torso escultural com um cinto de ouro com várias voltas, e via-se mais ouro a reluzir por entre o peitoral incrustado de jóias que lhe adornava a garganta e os berloques de lápis-lazúli que lhe oscilavam dos lóbulos das orelhas. Era indubitável que, ao fugir de Roma com o marido, a jovem esposa de Pompeu trouxera consigo uma considerável quantidade de jóias; devia arrastá-las de aquartelamento em aquartelamento, à medida que a arena de batalha se deslocava. Se havia mulher que aprendera a estar com óptimo aspecto em viagem, e se havia mulher que sentia ter conquistado o direito de usar as suas melhores jóias em qualquer ocasião, essa mulher era a paciente Cornélia.

Pompeu não era o seu primeiro marido. já fora casada com Públio Crasso, o filho de Marco Crasso, rival de longa data de César e Pompeu. Quando resolvera conquistar a Pártia, uns cinco anos antes, o pai Crasso levara consigo o filho; ambos haviam perecido quando os Partos

37massacraram os invasores romanos. Ainda jovem e bela e, segundo se dizia, versada em literatura, música, geometria e filosofia, Cornélia não permanecera viúva durante muito tempo. Havia quem dissesse que o seu casamento com Pompeu fora uma união política, outros que fora por amor. Qualquer que fosse a natureza da relação, ela mantivera-se firmemente a seu lado, nos bons e nos maus momentos.

- Sempre és tu, Descobridor! - A voz, tão áspera que me sobressaltou, provinha do outro canto. Pompeu avançou, emergindo das sombras mais profundas do compartimento.

Da última vez que o vira, encontrara-se possuído por uma fúria quase sobrenatural. Ainda agora havia um refulgir dessa mesma fúria nos seus olhos. Estava vestido como que para uma batalha, de armadura reluzente, e exibia uma postura rígida, com o queixo levantado, os ombros erectos, os braços cruzados atrás das costas, o peito erguido
- um modelo de dignidade e autodomínio romano. Mas, juntamente com aquele reflexo de fúria, havia nos seus olhos um reflexo de algo diferente - de medo, incerteza, derrota. Essas emoções, embora cuidadosamente dissimuladas, abalavam a rígida fachada formal que ele apresentava, e parecia-me que, por trás da sua armadura reluzente e da sua contenção ameaçadora, Pompeu, o Grande, era um homem vazio.

Vazio, pensei - mas nada inofensivo. Ele fitou-me com um olhar tão intenso, que tive de fazer um esforço para não baixar os olhos. Ao ver que eu recusava mostrar-me intimidado, ele ladrou uma gargalhada.

- Gordiano! Desafiador, como sempre, ou apenas estúpido? Não, estúpido não. Isso é impossível, dado que toda a gente te julga incrivelmente esperto. Mas a esperteza de nada vale sem o favor dos deuses, e creio que os deuses devem ter-te abandonado, não? Pois aqui estás tu, entregue às minhas mãos - a última pessoa à face da terra que eu imaginaria ver hoje. E eu devo ser a última pessoa que tu esperavas encontrar!

- Tomámos diferentes rumos para o mesmo lugar, Grande. Talvez seja porque os deuses nos retiraram a ambos a sua protecção.

38Ele ficou lívido.

- És de facto um tolo, e tratarei de que tenhas o fim que têm os tolos. julgava-te morto quando deixei Brundísio, afogado como uma ratazana depois de teres saltado do meu navio. Depois, Domício Aenobarbo veio ter comigo à Grécia e disse-me que te tinha visto vivo em Massília. ”Impossível!”, disse-lhe eu. ”O que tu viste foi o lémure do Descobridor.” ”Não, foi o homem, garantiu-me ele.” E agora, tu estás diante de mim em carne e osso, e foi Domício quem se transformou em lémure. Marco Antônio perseguiu-o implacavelmente como a uma raposa em Farsalo. Maldito Antônio! Maldito César! Mas quem sabe? Ouve bem o que te digo, César terá o castigo que merece, quando menos esperar. Os deuses vão abandonar César - assim! - Estalou os dedos. - Num momento estará vivo, planeando o triunfo seguinte, e no momento seguinte - morto como o Rei Numa! Vejo que escarneces de mim, Descobridor mas acredita no que te digo, César há-de pagá-las.

De que estaria ele a falar? Teria espiões e assassinos próximos de César, conspirando para se verem livres dele? Fitei Pompeu, e não respondi.

- Baixa os olhos, maldito sejas! Um homem na tua posição, pensa naqueles que viajam contigo, já que não pensas em ti próprio. Estás completamente à minha mercê!

Seria realmente capaz de fazer mal a Betesda para se vingar de mim? Tentei dominar a tremura da minha voz:

- Viajo acompanhado por um jovem mudo de inteligência simples, dois jovens escravos, e a minha mulher, que não se encontra bem. Custa-me a acreditar que o Grande fosse capaz de se rebaixar a exercer vingança sobre semelhantes...

- Oh, cala-te! - Pompeu emitiu um ruído de desagrado e olhou de soslaio para a mulher. Comunicaram um com o outro sem palavras, e a conversa pareceu acalmá-lo. Tive a sensação de que Cornélia era a sua âncora, a única coisa com que ele podia contar num momento em

39que tudo o resto, incluindo a sua capacidade de discernimento, o tinham abandonado de forma tão miserável.

Pompeu recusou-se a voltar a encarar-me:

- Vai-te embora, sai daqui! - disse por entredentes.

Pestanejei, incapaz de acreditar que ele estava a mandar-me embora

sem me matar.

- Estás à espera de quê? Voltei-me para sair.

- Mas não Penses que estamos conversados, Descobridor! - dardejou. - De momento, tenho demasiado em que pensar para poder apreciar plenamente o espectáculo da tua morte. Depois de me ter avistado com o jovem Rei Ptolemeu, e de a minha fortuna se ter reafirmado - nessa altura, quando puder tratar de ti à minha vontade, voltarei a chamar-te.

O centurião Macro pediu ordens a Pompeu, depois acompanhou-me de regresso ao esqife.

- Estás pálido como a barriga de um peixe - observou.
- Estou?

- Atenção aos pés, ao entrares no barco. Deram-me ordens para que nada te acontecesse.

- E o punhal que me foi retirado? Ele riu-se.

- Não voltarás a vê-lo. Podias magoar-te e Pompeu diz que não quer que te suceda nada.

40CAPíTULO III

A noite caiu. O mar estava calmo, o céu limpo. Muito ao longe, a poente, para lá das terras baixas e pantanosas do Delta do Nilo, consegui divisar Faros, uma chama ínfima num horizonte incerto. Embora estivesse agora noutra direcção, era provável que estivesse mais perto de nós do que quando a avistáramos pela primeira vez na noite anterior; no entanto, Alexandria parecia mais distante do que nunca.

- Ali! - disse a Betesda, que se encontrava a meu lado, encostada à amurada do navio. - Estás a vê-lo? É Faros.

Ela semicerrou os olhos e franziu o sobrolho.

- Não.

- Tens a certeza?

- Esta noite não consigo ver bem. Apertei-a de encontro a mim.

- Sentes-te mal?

Ela fez uma careta.

- Agora parece tão pouco importante. Ter vindo de tão longe com um propósito tão insignificante...

- Não é insignificante, mulher. Tens de voltar a ficar bem.
- Para quê? Os nossos filhos estão todos crescidos.

- Tanto Eco como Diana nos deram netos, e Diana espera mais um filho.

41- E hão-de certamente criá-los muito bem, com ou sem a avó. O meu tempo nesta terra tem sido feliz, senhor...

Senhor? Em que estaria ela a pensar para me tratar assim? já tinham passado muitos anos desde que eu a libertara e me casara com ela. Desse dia em diante, sempre me tratara por marido, e não se enganara uma única vez, tratando-me por senhor. Era o regresso ao Egipto, disse a mim mesmo, que a chamava ao passado, confundindo-a acerca do presente.

- O teu tempo nesta terra está longe de ter terminado, mulher.
- E o teu tempo, marido? - Não deu sinal de se ter apercebido do engano anterior. - Quando hoje te vi regressar, dei graças a ísis, pois pareceu-me um milagre. Mas o centurião proibiu o capitão de prosseguir caminho. O que significa que o Grande ainda tem contas a ajustar contigo.

- O Grande tem preocupações bem mais importantes do que eu. Veio pedir auxílio ao Rei Ptolemeu. Todos os outros aliados de Pompeu, os potentados orientais, e os financeiros e mercenários que se aliaram a ele antes de Farsalo, o abandonaram. Mas os seus laços com o Egipto são fortes. Se conseguir persuadir o Rei Ptolemeu a colocar-se do seu lado, ainda terá hipóteses de derrotar César. O Egipto tem cereais e ouro. O Egipto tem mesmo um exército romano, que durante os últimos sete anos aqui esteve acantonado, para garantir a paz.

- Coisa que se mostrou Visivelmente incapaz de conseguir, visto que Ptolemeu trava neste momento uma guerra civil com sua irmã Cleópatra - observou Betesda.

- Sempre foi assim no Egipto, pelo menos no nosso tempo de vida. Para ascenderem ao poder, os irmãos ptolemaicos casam-se entre si, conspiram uns com os outros, chegando mesmo a matar-se uns aos outros. Irmã casada com irmão, irmão assassino da irmã - que família! São tão selvagens e peculiares como aqueles deuses com cabeças de animais que os locais adoram.

42- Não faças troça! Neste momento, estás no domínio desses deuses, senhor. - Repetira o lapso. Não fiz qualquer comentário, mas suspirei e abracei-a com mais força.

- Portanto, como vês, Pompeu tem demasiado em que pensar para se preocupar comigo. - Disse estas palavras com toda a convicção de que fui capaz, e quase acreditei nelas.

Quando o sono se afasta, a noite é longa. Betesda e eu estávamos deitados lado a lado na pequena cama que ocupávamos na estreita cabina de passageiros, separados de Rupa e dos rapazes por uma rede muito fina de renda franzida. Rupa ressonava suavemente; os rapazes respiravam com regularidade, submersos no sono profundo das crianças. O navio balouçava muito ao de leve no mar calmo. Eu estava cansado, tinha a mente entorpecida, mas o sono não vinha.

Se não tivesse sido a tempestade, já estaríamos em Alexandria, a salvo e bem aconchegados numa hospedaria qualquer do bairro de Rakótis, com terra firme debaixo dos pés e um telhado como deve ser sobre a cabeça, a barriga cheia de delícias do mercado, a cabeça às voltas com as imagens e os sons de uma cidade apinhada de gente, que eu não Via desde a minha juventude. Chegada a madrugada, alugaria um barco para nos levar ao longo do canal em direcção às margens do Nilo. Betesda faria o que viera fazer, e eu faria o que viera fazer pois também eu tinha uma razão para visitar o Nilo, um propósito acerca do qual Betesda nada sabia...

Aos pés da nossa pequena cama, onde todas as manhãs servia de cómoda a Betesda, e todas as noites de mesa de jantar para nós os cinco, estava um baú de viagem. No interior do baú, aninhada entre a roupa, o calçado, o dinheiro e os cosméticos, vinha uma urna de bronze selada, que continha as cinzas de uma mulher chamada Cassandra. Fora irmã de Rupa e, mais do que isso, sua protectora - pois, além de ser mudo, Rupa tinha uma mente simples, e seria incapaz de se desembaraçar

43sozinho no mundo. Cassandra também fora muito especial para mim, embora a nossa relação quase se tivesse tornado fatal para ambos. Só a doença de Betesda me permitira esconder-lhe o caso, pois a maleita embotara-lhe a intuição, bem como os outros sentidos. Cassandra e Rupa tinham vivido em Alexandria antes de partirem para Roma; e Rupa queria restituir a irmã à terra da juventude de ambos, aspergir as cinzas dela no Nilo, devolvendo os seus restos mortais ao grande ciclo da terra, do ar, do fogo e da água. A urna que continha as cinzas pairava na minha mente como se fosse um sexto passageiro, invisível e inaudível mas muitas vezes presente nos meus pensamentos.

Se tudo tivesse corrido bem, amanhã Betesda banhar-se-ia no Nilo, e as cinzas de Cassandra misturar-se-iam com as águas sagradas do rio: deveres cumpridos, saúde recuperada, seria o fechar de um capítulo negro e, esperava eu, o início de outro mais risonho. Mas não fora assim que as coisas se tinham passado.

Teria culpa do meu próprio destino? Matara um homem; renegara o meu amado Meto; apaixonara-me por Cassandra, cujas cinzas se encontravam a pouca distância. Seria de espantar que os deuses me tivessem abandonado? Durante sessenta e dois anos tinham velado

por mim, salvando-me de consecutivas situações-limite, fosse por terem afeição por mim, ou apenas por acharem graça às peculiares reviravoltas da história da minha vida. Ter-se-iam agora desinteressado, distraídos pelo drama maior da guerra que varria o mundo? Ou teriam observado as minhas acções, julgando-me com severidade e não me achando merecedor de viver? Seguramente que, naquela tarde, algum deus, algures, se teria rido durante o meu encontro com Pompeu: dois homens derrotados, à beira da ruína.

Assim corriam os meus pensamentos naquela noite, mantendo o sono à distância.

Betesda dormia e devia estar a sonhar, a julgar pelos seus débeis murmúrios e as ocasionais contracções dos dedos. Parecia ter sonhos inquietantes, se não mesmo pesadelos, mas não a acordei; acorde-se

44alguém a meio de um sonho e os negros fantasmas continuam presentes; deixe-se o sonho decorrer e a pessoa acorda sem qualquer memória dele. Em breve Betesda poderia ter de enfrentar um pesadelo do qual seria impossível acordar. Como iria eu morrer? Seria Betesda obrigada a presenciar o acto? E depois, como iria recordar-me? Acima de tudo, um romano deve procurar enfrentar o seu fim com a dignidade intacta. Teria de me lembrar disso, e de pensar em Betesda, e na última memória que ela guardaria de mim, da próxima vez que o Grande me chamasse à sua presença.

A dada altura, a meio daquela noite muito comprida e muito escura, Betesda mexeu-se e procurou a minha mão com a sua. Entrelaçou os dedos nos meus e apertou-os com tanta força, que receei que estivesse com dores.

- Que se passa? - sussurrei.

Ela rolou para o meu lado e encostou um dedo aos meus lábios para me silenciar. Os olhos dela brilhavam na escuridão, mas não me era possível discernir a expressão do seu rosto. Murmurei outra vez, com o dedo colado aos lábios:

- Betesda, bem-amada...
- Shh! - sussurrou ela.

- Mas...

Ela tirou o dedo e substituiu-o pelos lábios, pressionando a sua boca contra a minha num beijo profundo e contínuo.

Há muito tempo que não nos beijávamos daquela maneira, desde o início da doença dela. O beijo recordou-me Cassandra e, por breves momentos, tive a ilusão de que era Cassandra que se encontrava ao meu lado na cama, as cinzas dela feitas novamente carne. Mas o beijo prolongou-se, a minha memória de Cassandra desvaneceu-se, e a pessoa de quem me recordei foi a própria Betesda, quando ela e eu éramos tão jovens, e a nossa paixão tão viva, que parecia que semelhante coisa nunca existira no mundo, que era um portal para um país desconhecido.

45Ela estreitou-se contra mim e abraçou-me, fazendo deslizar os braços pelo meu corpo. O odor do seu cabelo era inebriante; nem a doença nem a viagem a tinham impedido de realizar o ritual de lavar, escovar e perfumar a grande juba negra com reflexos prateados que lhe caía em cascata quase até à cintura. Rolou para cima de mim e as tranças dela envolveram-me, varrendo-me os ombros nus e as faces, misturando-se com as lágrimas que abruptamente brotaram dos meus olhos.

Enquanto o barco oscilava docemente sobre as ondas, com Rupa e os rapazes e a urna que continha Cassandra muito próximos, fizemos amor, em silêncio, lentamente, com uma profundidade de sentimentos que não partilhávamos há muito tempo. A princípio, receei que ela estivesse a esforçar-se excessivamente, mas foi ela que marcou o ritmo, levando-me rapidamente ao ponto do êxtase, e mantendo-me nesse estado sem pressas, fazendo cada momento durar uma delicada eternidade.

O seu corpo atingiu o paroxismo uma vez, depois outra, e na terceira ocasião eu juntei-me a ela, atingindo o pico e dissolvendo-me em letargia. Separámo-nos mas permanecemos lado a lado, respirando em uníssono, e tive a sensação de que o corpo dela se descontraíra completamente - tão completamente, que lhe agarrei na mão, receando não ter resposta. Mas ela correspondeu, apertando-me os dedos, ainda que todo o seu ser se mantivesse completamente lânguido, como se as articulações se lhe tivessem soltado, deixando-lhe os membros moles como a cera. Só nesse momento me apercebi exactamente da rigidez em que mantivera o corpo, mês após mês, mesmo enquanto dormia. Ela soltou um profundo suspiro de satisfação.

- Betesda disse eu baiXinho.

- Dorme sussurrou-me ela.

A palavra pareceu funcionar como uma fórmula encantatória. Quase imediatamente, senti a consciência abandonar-me, à medida que me afundava no quente e ilimitado oceano de Somno. As últimas coisas que ouvi foram um sussurro agudo, seguido de uma gargalhada abafada.

46A dada altura, Ândrocles e Mopso deviam ter acordado, divertindo-se muitíssimo com os ruídos provenientes do interior do compartimento. Noutras circunstâncias, podia ter-me irritado, mas devo ter adormecido com um sorriso, pois foi assim que acordei.

O sorriso desvaneceu-se depressa, quando me recordei exactamente do local onde me encontrava. Pestanejei à débil luz que passava pelo recorte da porta da cabina. Senti pessoas mover-se de um lado para o outro. No exterior da cabina, ouvi os marinheiros a gritar uns com os outros. A vela abriu-se num ruído súbito. Os remos rangeram. O capitão tinha-se feito ao mar - mas para onde?

Senti um frémito de esperança. Teríamos de alguma forma, a coberto da escuridão, conseguido escapar à frota de Pompeu? Teríamos Alexandria à vista? Saltei atabalhoadamente da cama, vestindo a túnica a pressa, enquanto abria a porta e saía para o convés.

As minhas esperanças evaporaram-se num instante. Estávamos no meio da frota de Pompeu, rodeados de navios por todos os lados. Estávamos todos em movimento, aproveitando uma brisa do mar para nos aproximarmos da costa.

O capitão VIU-me e abordou-me:

- Dormiste bem? - perguntou. - Achei que devias estar a precisar. Não tive coragem de te acordar.

- O que se passa?

- Não tenho bem a certeza, mas suspeito que tem algo a ver com eles. - E apontou para terra. Se, na véspera, a praia não passara de uma mancha informe de castanho, desprovida de qualquer sinal de vida, esta manhã estava apinhada de uma enorme multidão de soldados em disposição formal, com as lanças projectando compridas sombras e as armaduras refulgindo à luz oblíqua do nascer do Sol, as plumas do alto dos seus capacetes parecendo tremer como as folhas de certas árvores estremecem à menor brisa. No cimo das pequenas elevações, tinham sido erigidos pavilhões de cores vivas, com galhardetes ondulantes.

47O maior e mais impressionante destes pavilhões encontrava-se no próprio centro das hostes, no cume da mais alta das elevações. Sob o baldaquino vIa-se um trono, instalado sobre um estrado, uma resplandecente cadeira de ouro ornamentada com jóias, digna de nela se sentar um rei. De momento, o trono estava vago e, embora semicerrasse os olhos, não conseguia ver para lá dele, para o interior da tenda imperial.
- O exército do Rei Ptolemeu - disse o capitão.

- E rapaz-rei em pessoa, se o trono quiser dizer alguma coisa. Veio parlamentar com Pompeu.

- Alguns daqueles soldados estão ataviados como romanos.

- Pois estão. Há sete anos que uma legião romana está fixada neste país; veio auxiliar o falecido Rei Ptolemeu a manter-se no trono e a manter a paz. Alguns destes soldados prestaram serviço sob o comando de Pompeu, se bem me lembro. Dizem que os romanos aquartelados aqui se tornaram nativos, desposando egípcias e esquecendo os costumes romanos. Mas não se terão esquecido de Pompeu. Ele espera que eles voltem a combater a seu lado.

- E o Rei Ptolemeu?

- Está em guerra com a irmã mais velha. É por esse motivo que se encontra aqui, e não em Alexandria, suponho eu: veio combater as tropas leais a Cleópatra.

- Talvez já tenha vencido e tenha dado cabo dela.

- Talvez. Mas, nesse caso, creio que veríamos a cabeça de Cleópatra enfiada numa estaca, no exterior da tenda imperial.

Tendo recebido um sinal do navio adjacente, o capitão gritou aos seus homens que levantassem os remos. A frota aproximara-se o mais possível da costa, tendo em conta a pouca profundidade das águas. Voltei os olhos na direcção da galera de Pompeu e senti o coração afundar-se-me no peito. O pequeno esquife que me transportara no dia anterior dirigia-se a nós.

O esquife ladeou-nos. O centurião Macro não disse nada, limitando-se a olhar para cima e a fazer-me sinal para embarcar.

48O capitão falou-me ao ouvido:

- Ouço os outros mexerem-se - disse ele. - Queres que os acorde? Olhei para a porta da cabina.

- Não. Fiz as minhas despedidas ontem... à noite.

Desci pela escada de corda. Comecei a ver manchas diante dos olhos e senti o coração bater muito depressa. Tentei recordar-me de que a dignidade de um romano nunca tem tanta importância como no momento da sua morte, e de que a substância da vida de um homem se revela no modo como encara o seu fim. Ao entrar no esquife, tropecei e fiz balançar o barco. O centurião Macro agarrou-me o braço para me equilibrar. Nenhum dos remadores sorriu ou se riu a socapa; desviaram os olhos e balbuciaram orações, para afastar a desventura pressagiada por semelhante mau agouro.

Enquanto remávamos em direcção à galera de Pompeu, fiz questão de não olhar para trás. Com aquela estranha clarividência que um homem adquire com o passar dos anos, senti olhares fixos nas minhas costas, mas continuei a olhar a direito. Porém, ao encostarmos à galera, não consegui resistir a um último relance sobre o ombro. Silhuetas minúsculas à distância, vi-os a todos encostados à amurada - não apenas o capitão e todos os seus marinheiros, mas também Rupa, esfregando os olhos ensonados, e os rapazes, envergando apenas as reduzidas tangas com que dormiam, e Betesda em roupa de dormir. Vendo-me olhar para trás, ela ergueu as mãos e cobriu o rosto.

O centurião Macro acompanhou-me a bordo. Havia um numeroso grupo de oficiais reunido na proa da galera, agrupados em torno de Pompeu - a avaliar pela magnífica pluma cor de púrpura que se agitava no alto do capacete do homem que se encontrava no centro do grupo, escondido pela multidão circundante. Engoli em seco e preparei-me para enfrentar Pompeu, mas o centurião agarrou-me o cotovelo e conduziu-me na direcção oposta, para a cabina onde fora recebido na véspera. Bateu ao de leve, e Cornélia veio pessoalmente abrir a porta.

- Entra, Descobridor - disse em voz baixa. E fechou a porta atrás de mim.

49O compartimento estava abafado, devido ao fumo da lamparina de azeite. Contra uma parede, via-se a cama que Pompeu e a mulher presumivelmente partilhavam, com a coberta puxada para trás e amarrotada num dos lados, mas intacta no outro.

- Dormiste bem ontem à noite? - disse eu.

Ela ergueu uma sobrancelha.

- Razoavelmente, tendo em consideração as circunstâncias.
- Mas o Grande não chegou sequer a deitar-se.

Ela seguiu a direcção do meu olhar para a cama semi-desfeita.

O meu marido disse-me que és bom a reparar nessegénero de detalhes.
- Um vício que, aparentemente, não consigo perder. Era assim que ganhava a vida. Hoje em dia, parece que só me faz arranjar problemas.

- Todas as virtudes acabam por se transformar em vícios, se a pessoa viver tempo suficiente. O meu marido é o melhor exemplo disso.

- É?

- Quando me casei com ele, já não era jovem, mas ainda era impertinente, intrépido, supremamente confiante de que os deuses estavam do seu lado. Essas virtudes granjearam-lhe uma vida de vitórias, e as Vitórias granjearam-lhe o direito de se auto-intitular o Grande e de exigir que o tratem dessa maneira. Mas a impertinência pode transformar-se em arrogância, a intrepidez em temeridade, e a confiança pode transmutar-se naquele vício a que os gregos chamam hubris, um orgulho presunçoso que desafia os deuses a deitar um homem por terra.

- Tudo isso como forma de explicar o que aconteceu em Farsalo, suponho?

Ela tornou-se lívida, como Pompeu se tornara na véspera quando eu falara de mais.

- Tu próprio és bastante atreito ao vício da hubris, Descobridor.

50- É hubris dizer a verdade a um mortal? Pompeu não é um deus. Nem tu. Fazer frente a qualquer de vós não constitui um insulto aos céus.

Ela inspirou com as narinas dilatadas, fixando-me com um olhar felino. Por fim, pestanejou e baixou os olhos,

- Sabes que dia é hoje?

- A data? Faltam dois dias para as Calendas de Outubro, se não perdi a noção do tempo.

- Sim, é dia vinte e oito de Setembro, o aniversário do grande desfile triunfal do meu marido em Roma, há treze anos. Tinha destruido os piratas que infestavam os mares; esmagara Sertório em Espanha e os rebeldes de Mário em África; subjugara o Rei Mitrídates e um punhado de potentados menores na Ásia. Com todas essas vitórias aos ombros, regressou a Roma na qualidade de Pompeu, o Grande, invencível em terra e no mar. Atravessou a cidade numa biga incrustada de pedras preciosas, seguido por uma comitiva de príncipes e princesas asiáticas e um retrato gigantesco dele próprio, inteiramente feito de pérolas. César não era ninguém naqueles dias. Pompeu não tinha rivais. Podia ter-se tornado Rei de Roma. Mas preferiu respeitar as instituições dos seus antepassados. Foi o dia mais glorioso da sua vida. Celebramos sempre esta data com um jantar especial, para comemorar o aniversário desse triunfo. Talvez esta noite, se tudo correr bem... I

Ela abanou a cabeça.

- Parece que nos afastámos da tua observação inicial, de que o meu marido passou mais uma noite sem dormir. Desde Farsalo que é raro ele dormir. Senta-se ali, à mesa de trabalho, a gritar aos escravos que venham pôr azeite na lamparina, a ler cuidadosamente aquela pilha de documentos, seleccionando pedaços de pergaminho, rasurando nomes, rabiscando notas - e tudo isso para nada! Sabes o que está naquela pilha? Listas de provisões para tropas que já não existem, recomendações de ascensão na carreira destinadas a oficiais que ficaram a apodrecer ao sol da Grécia, notas logísticas para batalhas que nunca

51serão travadas. Passar sem dormir deixa um homem transtornado, desequilibra os quatro humores do seu interior.

- A Terra, o ar, o fogo e a água - disse eu. Cornélia abanou a cabeça.

-já só há fogo dentro dele. Queima toda a gente em que toca. Vai queimar-se a si próprio, de dentro para fora. Pompeu, o Grande, deixará de existir; restará apenas um invólucro chamuscado de carne, do que em tempos foi um homem.

- Mas ele vive esperançoso. Este encontro com o Rei Ptolemeu...
- Como se o Egipto pudesse salvar-nos!

- Não pode? Com toda a riqueza do Nilo; o poderio armado do exército egípcio, juntamente com a guarnição romana aqui posicionada; um porto seguro onde as forças dispersas em Farsalo poderão reagrupar-se, juntamente com os aliados que Pompeu ainda tem em África.

- Sim, talvez... talvez a situação não seja inteiramente desesperada desde que o Rei Ptolemeu se coloque do nosso lado.

- E por que não haveria de se colocar? Ela encolheu os ombros.

- O Rei não passa de um rapaz; tem apenas quinze anos. Quem sabe o que passa pela cabeça daqueles eunucos, meio-egípcios, meiogregos, que o aconselham? O Egipto só tem conseguido preservar a sua independência durante tanto tempo dividindo os romanos. Se eles se colocarem do lado de Pompeu, a sorte está lançada; terminada a batalha, o Egipto pertencerá a Pompeu... ou ao rival de Pompeu... e o Egipto deixará de ser o Egipto, passando a ser apenas mais uma província romana, é o que eles devem estar a pensar.

- Mas têm alternativa? Ou é Pompeu agora, ou então... - Dado que ela não tinha proferido o nome de César, eu também não o fiz. É seguramente bom sinal o Rei ter vindo saudar o Grande em todo o seu esplendor.

Cornélia suspirou.

52- Suponho que sim. Mas nunca imaginei que seria assim, aqui no meio do nada, assistidos por uma frota de barcaças a meter água, de cabeça baixa como pedintes depois de uma tempestade. E Gneu... Esquecendo todas as formalidades, referiu-se ao marido pelo seu primeiro nome. - Gneu está numa tensão tal! Devias tê-lo visto ontem, quando daqui saíste. Arengou durante uma hora, sem parar, acerca das torturas que tenciona infligir-te, içando-te ao cordame, esfolando-te em público, ordenando às tropas dos outros navios que observem em sentido. Perdeu por completo a noção das proporções. Há nele uma espécie de loucura.

Comecei a sentir-me tonto e debati-me para não perder o equilíbrio.
- Em nome do Hades, por que motivo estás a contar-me tudo isto? O que queres de mim, Cornélia?

Ela tirou qualquer coisa de uma gaveta e meteu-ma na mão. Tratava-se de um pequeno frasco de alabastro esculpido, com uma rolha de cortiça, o género de recipiente que normalmente conteria óleo perfumado.

- O que é isto? - perguntei.

- Algo que tenho vindo a guardar para mim própria... caso fosse necessário. Num mundo como este, nunca se sabe quando poderá ser preciso fazer uma saída rápida e discreta.

Ergui o frasco contra a luz e vi que continha um líquido claro: - E este é o teu alçapão pessoal para sair desta vida?

- É. Mas dou-to, Descobridor. O homem a quem o adquiri chama-lhe Némesis-num-frasco. Tem um efeito muito rápido, com uma dor mínima. Como sabes?

Porque experimentei uma amostra numa escrava, claro. Ela expirou quase sem um gemido.

- E achas, pois...

- Acho que terás muito mais facilidade em manter a tua dignidade de romano deste modo, do que à maneira do meu marido. Os homens julgam que são fortes, que serão incapazes de gritar ou de chorar, mas

53esquecem-se de que a carne é fraca e do tempo que estes frágeis corpos podem ser sujeitos à dor, antes de entregarem o espírito. Acredita em mim, Descobridor, esta saída será muito melhor para todos os envolvidos.
- Incluindo Pompeu.

O rosto dela endureceu.

- Não quero que ele dê espectáculo com a tua morte, especialmente na presença do Rei Ptolemeu. Ele descarregará em ti toda a raiva que tem a César. Imaginas quão patético seria? Ele devia ter consciência disso, mas perdeu por completo o discernimento.

Olhei fixamente o frasquinho que tinha na mão.

- Ficará furioso se se vir privado da oportunidade de me castigar pessoalmente.

- Não, se os deuses decidirem levar-te primeiro. É isso que vai parecer que se passou. Tu engoles o conteúdo, nem o sabor é desagradável, pelo que me disseram, e eu atiro o frasco borda fora. Morrerás subitamente e de forma relativamente tranquila. já não és jovem, Descobridor. Ninguém ficará surpreendido com o facto de o teu coração não ter aguentado; presumirão que morreste de medo face à perspectiva de enfrentar a ira de Pompeu. O meu marido ficará desapontado, mas ultrapassará isso, especialmente se conseguirmos, de uma forma ou de outra, arrancar a vitória às mandíbulas da derrota. Então haverá multidões sem fim sobre quem ele poderá descarregar a sua cólera.
- Queres que eu engula isto agora?

- Não, espera. Pompeu prepara-se para embarcar no esquife que o levará a terra, onde vai conferenciar com o Rei Ptolomeu. Engole-o depois de ele ter partido.

- De modo que o meu corpo esteja frio quando ele regressar? Ela anuiu.

- E se eu recusar?

- Prometo-te uma coisa, Descobridor. Aceita esta minha oferta, e eu tratarei de que nada aconteça à tua família. juro pelas sombras dos meus antepassados.

54Retirei a rolha de cortiça e observei o líquido incolor que repousava no interior do frasco: Némesis-num-frasco. Passei-o debaixo do nariz e detectei apenas um odor vagamente adocicado, não desagradável. Entre todas as formas como, ao longo dos anos, tinha imaginado morrer, ou estado lá próximo, não estava incluída a morte por envenenamento. Era então assim que eu ia deixar o mundo dos vivos - fazendo um favor a uma mulher que desejava poupar o marido à vergonha de me matar?

Uma leve pancada na porta sobressaltou-me. O frasco quase me saltou dos dedos. Cornélia agarrou-me a mão e apertou-me os dedos em volta dele:

- Cuidado! - sussurrou, olhando-me assustada. - Esconde-o. Tapei o frasco e escondi-o num bolso cosido no interior da minha túnica.

Era o centurião Macro.

- O Grande está quase pronto. Se desejas despedir-te dele...

- Claro. - Cornélia recompôs-se, inspirou fundo e saiu da cabina. Relutante em me deixar sozinho nos aposentos do comandante, o centurião mandou-me sair. Mantendo a mão no interior da túnica, apertei com firmeza o frasco de alabastro.

55CAPÍTULO IV

A meio do navio, Pompeu descia a rampa em direcção a um esquife real egípcio que acabara de chegar. Apesar do seu tamanho reduzido, a embarcação estava profusamente decorada: esculpidas no rebordo, viam-se imagens de crocodilos, grous, e cavalos do Rio Nilo, revestidas a prata martelada, com fragmentos embutidos de lápis-lazúli e turquesa, a fazer de olhos. A proa do navio tinha a forma de uma ibis soerguida com as asas esticadas. Além dos remadores, encontravam-se três soldados no barco. Um deles era claramente um egípcio de categoria social muito elevada, a avaliar pela filigrana de ouro que lhe decorava a couraça de prata. Os outros dois não trajavam como egípcios, mas como centuriões romanos; seriam presumivelmente oficiais das forças romanas estacionadas no Egipto, com o objectivo de manter a paz no país. Enquanto o oficial egípcio se deixava ficar para trás, os dois romanos avançaram e saudaram Pompeu quando ele desceu a rampa, dirigindo-se-lhe em uníssono:

- Grande!

Pompeu sorriu, claramente satisfeito por ser adequadamente saudado. Acenou com a cabeça a um dos homens, em sinal de reconheciMento:

- Septímio, não é?

O homem fez uma vénia. - Grande, surpreende-me que te recordes de mim.

56- Um bom comandante nunca esquece um homem que prestou serviço às suas ordens, por muitos anos que passem. Como corre o teu serviço no Egipto?

- São tempos conturbados, Grande. Não me posso queixar de enfado.

- E tu, centurião? Como te chamas?

- Sálvio, Grande. - O outro romano baixou os olhos, sem olhar Pompeu de frente. Pompeu franziu o sobrolho, depois ergueu os olhos para lá dos centuriões, para o egípcio que eles escoltavam. Tratava-se de um homem de constituição robusta, ombros largos e membros compactos. Tinha olhos azuis como os gregos e pele morena como os egípcios. Ouvi o centurião Macro segredar a Cornélia: - Aquele é o mastim cruzado do rapaz-rei; é um sujeito meio-grego, meio-egípcio nativo, tal como o senhor dele. Chama-se...

- Aquilas - disse o homem em voz ressonante, apresentando-se a Pompeu. - Capitão da Guarda Real. Terei a honra de te escoltar até à presença do Rei Ptolemeu... Grande - acrescentou, deixando a voz sumir-se nas sílabas finais.

Pompeu limitou-se a assentir com a cabeça e, com um gesto, ordenou à comitiva que descesse à embarcação. Apenas quatro homens o acompanhariam: Macro e outro centurião, que serviriam de guarda-costas, um escravo com uma caixa de materiais de escrita, que seria o escriba, e Filipe, o leal liberto de Pompeu, um indivíduo baixo e hirsuto de barba primorosamente aparada, de quem se dizia que assistia a todas as reuniões importantes ao lado de Pompeu porque nunca esquecia um nome, um rosto ou uma data.

Depois de os outros terem embarcado, Pompeu avançou. Auxiliado por Filipe, entrou no barco. Enquanto os outros se sentaram, Pompeu permaneceu de pé por momentos. Voltou-se e perscrutou os rostos dos que se tinham reunido no convés da galera para se despedirem dele. A multidão abriu-se para deixar passar Cornélia, que desceu a rampa e lhe estendeu a mão. Os dedos de ambos tocaram-se por instantes,

57afastando-se progressivamente quando os remadores mergulharam os remos na água e o esquife se pôs em movimento.

- Olha as maneiras, querido - gritou Cornélia, com a voz a tremer. Pode ser apenas um rapaz de quinze anos, mas não deixa de ser o Rei.

Pompeu sorriu e fez um gesto teatral de submissão, abrindo os braços de par a par e fazendo uma vénia profunda:

- ”Aquele que passa pela porta de um tirano torna-se escravo, por livre que antes fosse” - citou.

- Um excerto de Eurípedes - murmurou um dos oficiais atrás de mim.

- De Sófocles, se não estou em erro - repliquei eu. O homem fitou-me com ar ameaçador.

Pompeu dirigiu a Cornélia um derradeiro cumprimento com a cabeça, depois fez menção de se sentar, auxiliado por Filipe. Olhando abruptamente para cima, os seus olhos recaíram sobre mim. Foram apenas uns instantes, pois a questão de se acomodar no barco em movimento requeria toda a sua atenção, mas bastaram-lhe uns instantes para exprimir, em rápida sucessão, reconhecimento, alguma surpresa, um clarão de ódio profundo, e uma promessa implícita de que trataria de mim mais tarde, com tempo. Senti um nó na garganta e apertei o frasquinho que tinha no bolso.

Não mereci mais do que um olhar de soslaio; nos momentos que se seguiram, Pompeu acabou de se instalar e dirigiu a sua atenção para terra e para a comitiva que o aguardava no pavilhão real.

Sem dizer palavra, nós ficámos a observar o progresso do esquife. Toda a gente que se encontrava nos outros navios fazia o mesmo, tal como as fileiras de soldados reunidos em terra. O momento tornou-se ligeiramente irreal: parecia que o tempo tinha parado. Aqui perto da costa, as águas eram bastante escuras, coloridas pela lama do vizinho Nilo, trazida pela torrente das inundações anuais. O céu estava limpo, mas uniformemente enevoado, cinzento-pérola em vez de azul. Não

58corria brisa alguma; a atmosfera estava carregada e pesada da humidade. Os sons propagavam-se com peculiar clareza; ouvi nitidamente Pompeu a pigarrear no barco que se afastava, e os murmúrios com que tentou fazer conversa com Septímio e Sérvio. Eles não responderam, limitando-se a desviar o olhar, tal como os homens que me tinham ido buscar naquela manhã tinham desviado o seu. A costa, árida e descolorida, assumiu um aspecto particularmente agreste. O trono instalado diante do pavilhão real permanecia vazio; o Rei Ptolemeu continuava a não se mostrar.

Cornélia afastou-se da multidão encostada à amurada e começou a andar de um lado para o outro, de olhos fixos no esquife real. Levou a mão à boca num gesto ansioso.

A tensão que pairava no ar tornou-se tão opressiva, que comecei a pensar que emanava apenas de mim. Talvez o céu, visto pelos olhos dos outros, estivesse de um azul normal, e o momento não parecesse estranho a mais ninguém - excepto a mim, que tinha a morte pela frente. ”Quanto mais rápido melhor”, diz o provérbio etrusco. Passei os dedos pelo frasquinho que guardava no interior da túnica. Um sabor que não era desagradável, um pequeno desconforto, e depois o esquecimento...

O esquife real chegou a terra, onde era esperado por uma guarda de honra. Os remadores saltaram borda fora e arrastaram o barco até o casco se enterrar na rebentação arenosa. Sálvio e Aquilas saíram do barco, seguidos de Filipe, que se voltou para oferecer a mão a Pompeu. Cornélia gritou.

Talvez tivesse tido um momento de premonição. Talvez tivesse estado, muito simplesmente, a observar com mais atenção que os restantes. Olhei fixamente o esquife e, a princípio, apenas Vi uma confusão de movimentos súbitos. Só depois, revendo na memória aquelas imagens fugazes, haveria de se tornar claro para mim o que se passou exactaMente.

59Os remadores que haviam saltado para a zona da rebentação, auxiliados pelos soldados que os esperavam em terra, alcançaram o centurião Macro e o outro guarda-costas de Pompeu e puxaram-nos para fora do barco. Septímio, que ainda se encontrava no barco, atrás de Pompeu, desembainhou a espada. Quando a ergueu para atacar, o som retardado do grito de Macro chegou até à galera, seguido, num estranho momento de desconexão, pelo som metálico da espada que Septímio desembainhava. A lâmina desceu em ângulo agudo, mergulhando entre as omoplatas de Pompeu. Pompeu ficou hirto e depois teve uma convulsão. No que pareceu uma imitação bizarra dos gestos com que se havia despedido de Cornélia, abriu os braços de par em par.

Na praia, Filipe foi agarrado pelos soldados e puxado para trás, com a boca aberta num grito de angústia e os braços estendidos na direcção de Pompeu. Sálvio e Aquilas desembainharam as espadas e voltaram a subir a bordo. Os dois guarda-costas de Pompeu foram agarrados e mantidos debaixo de água até pararem de estrebuchar. No interior do barco, enquanto o escriba de Pompeu se agachava e se curvava, o Grande sucumbiu ao ataque simultâneo de Aquilas, Sálvio e Septímio, que se precipitaram para ele com as espadas a refulgir ao sol.

De repente, imobilizaram-se. Enquanto os outros dois recuavam, arfando, as couraças salpicadas de sangue, Aquilas agachou-se no barco, levando a cabo uma operação qualquer. Ergueu-se momentos depois, com a espada sanguinolenta numa mão e a cabeça cortada de Pompeu erguida ao alto, na outra.

Nós, os que nos encontrávamos no convés da galera de Pompeu, ficámos siderados e sem fala. Dos vários navios em redor, guinchos e gritos avulsos ecoaram pelas águas paradas, pontuando um silêncio fora do normal. Aquilas fez questão de exibir a cabeça de Pompeu à frota que se encontrava ao largo. O Grande tinha os olhos completamente arregalados e a boca aberta. jorrava sangue do pescoço cortado. Depois, Aquilas voltou-se e exibiu a cabeça às tropas que estavam em terra. No meio delas, o Rei Ptolemeu tinha finalmente aparecido diante do

60pavilhão real. A dado momento do ataque, tomara o seu lugar no trono, rodeado por um corrilho de assistentes. Àquela distância, era uma figura pequena, cujas feições mal se conseguiam distinguir, mas era instantaneamente reconhecível pela brilhante coroa de uraeus dos faraós egípcios que usava na cabeça, uma faixa de ouro com jóias incrustadas, com uma cobra arqueada ao centro. Nos braços cruzados, o Rei sustentava um mangual e um bastão curvado na ponta, ambos feitos de tiras de ouro, intervaladas com tiras de lápis-lazúli. Um conselheiro falou-lhe ao ouvido, e o Rei ergueu o bastão, numa saudação a Aquilas. As tropas egípcias reunidas irromperam num colossal aplauso, que varreu as águas como um trovão.

Voltei-me e olhei para Cornélia. Estava branca como o mármore, com o rosto contorcido como uma máscara de tragédia. O capitão da galera correu para ela, sussurrou-lhe qualquer coisa ao ouvido e apontou para ocidente. Com ar desorientado, ela voltou a cabeça. Surgira no horizonte uma frota de navios, proveniente da direcção do Nilo.

- Barcos de guerra egípcios! - disse o capitão, erguendo a voz e agarrando o braço de Cornélia, no intuito de a despertar daquele estado de transe.

Ela olhou fixamente os navios, depois a costa, depois novamente a frota que se aproximava. Os músculos do seu rosto contorceram-se, como se estivesse a tentar falar mas não fosse capaz. Estremeceu, pestanejou e por fim gritou:

- Levantar as âncoras! Içar velas! Içar velas!

O grito quebrou o encanto que nos tinha siderado. O convés irrompeu num frenesim. Soldados e marinheiros apressavam-se numa e noutra direcção. Fui empurrado, rodopiei sobre mim mesmo, e por pouco não fui atirado ao chão.

No meio do caos, subi a um ponto elevado e perscrutei os navios adjacentes. Todos os barcos estavam a levantar âncora em simultâneo, com os remadores a debater-se por dar meia volta e os marinheiros a içar freneticamente as velas. Por fim, localizei o Adrómeda. Betesda

61estava encostada à amurada, olhando na direcção da galera de Pompeu mas claramente sem conseguir ver-me no meio da confusão que se vivia no convés; estava nas pontas dos pés, acenando com as mãos. No momento exacto em que a olhava, Rupa agarrou-a por trás e afastou-a da amurada, obrigando-a a regressar à cabina, para tirá-la do caminho dos marinheiros que corriam para trás e para diante. Eu acenei com o braço e gritei o nome dela, mas sem efeito; no instante seguinte, ela desapareceu na cabina, acompanhada por Rupa e pelos rapazes.

Saltei para o convés e corri para a rampa por onde Pompeu tinha partido. Os marinheiros estavam a puxar as cordas, içando-a para fora de água. Atravessei a rampa a correr e mergulhei nas ondas.

O sal aguilhoou-me as narinas. O coração batia-me com toda a força dentro do peito. Rompi até à superfície e inspirei desesperadamente. Os navios estavam todos em movimento, confundindo-me e fazendo-me perder o sentido de orientação. Parecia-me que cada capitão agia por modo próprio; a pouca distância da galera de Pompeu, dois barcos mais pequenos colidiram, atirando alguns marinheiros pela borda fora. Abri caminho por entre as águas, olhando em volta e tentando orientar-me, à procura do Andrómeda. julgava saber em que direcção ele se encontrava da última vez que o vira, mas tinha a visão obstruída por um navio que passava. Apesar disso, comecei a nadar naquela direcção, para longe da costa.

O movimento de tantos remos de tantos navios provocou ondas que se encrespavam, juntavam e entrechocavam, agitando o mar como um caldeiro em ebulição. Entrou-me água pelas narinas. Engoli ar e respirei água. Tornou-se impossível nadar; o simples acto de manter a cabeça fora de água era uma luta. Vinda do nada, uma galera passou por mim a grande velocidade, o comprido banco de remos embatendo ruidosamente na água ao lado da minha cabeça, gerando uma turbulência que me atirou de um lado para o outro e me arrastou para o fundo, obrigando-me a girar de cabeça para baixo sob as ondas.

62Quando recuperei, estava mais desorientado do que nunca, sem sequer ter a certeza para que lado ficava a costa. Conseguir manter-me à tona de água consumia-me todas as energias. A dada altura, julguei entrever o Andrómeda e tentei desesperadamente nadar atrás dele, gastando as últimas forças a gritar o nome de Betesda. Mas podia muito bem tratar-se de outro barco e, em qualquer caso, a minha perseguição era vã: quanto mais depressa nadava, mais depressa o navio recuava, e com ele todas as minhas esperanças de alguma vez voltar a ver Betesda.

Por fim, desisti; ou, mais precisamente, submeti-me. Neptuno tinha os seus próprios planos para mim, e eu entreguei toda a minha capacidade de controlo nas mãos do deus. Senti os membros transformarem-se-me em chumbo e julguei que me afundaria sem apelo nem agravo, mas a mão do deus manteve-me à tona e direito, com o Sol abrasador a incidir-me no rosto. O mar agitado pelos remos foi acalmando. A multidão de velas foi-se afastando. Vinda não sei de onde, ouvi uma grande agitação, como que de um exército levantando acampamento, mas até esse ruído se extinguiu gradualmente, restando apenas o som baixo da minha própria respiração e o suave bater de pequenas ondas numa praia. Nas minhas costas materializou-se uma extensão de areia; as ondas já não me transportavam à superfície, limitando-se a empurrar-me levemente de um e de outro lado. A rebentação de superfície suspirava e sussurrava em meu redor. Soltei um gemido e fechei os olhos, sem estar inteiramente seguro de que ainda estava vivo e excessivamente cansado para me importar com isso.

É possível que tenha adormecido, mas não deve ter sido durante muito tempo. Sobrepondo-se aos suspiros da rebentação, ouvi outro som: o zumbido de moscas, de muitíssimas moscas, algures ali perto. Abri os olhos e vi um rosto com barba por cima de mim. Tinha os olhos marejados de lágrimas. Tremiam-lhe os lábios.

- Ajuda-me - disse ele. - Por amor de Júpiter, por favor, ajuda-me! Reconheci-o: era Filipe, o fiel liberto que acompanhara Pompeu a terra.

63- Por favor - disse ele. - Não consigo fazer isto sozinho. É pesado de mais. Eu estou extenuado. Vi-te na galera antes de partirmos. Estavas ao lado de Cornélia. Conhecia-lo bem? Combateste a seu lado?

julgava que conhecia todos os seus amigos, mas...

Tentei pôr-me de pé, mas as minhas pernas e os meus braços continuavam a ser de chumbo. Filipe ajudou-me a voltar-me de barriga para baixo e a pôr-me de gatas. Soergui-me de joelhos, sentindo-os afundarem-se na areia molhada. Filipe pôs-me a mão no ombro, equilibrando-me.

A praia estava deserta. Pavilhões e soldados, tinham desaparecido todos. O silêncio era arrepiante; ouvia-se apenas o suave murmúrio das ondas e o zumbido baixo das moscas.

Voltei a cabeça e olhei para o mar. A mesma neblina rala que branqueava o céu obscurecia o horizonte longínquo. Não se via uma única vela naquela extensão Imprecisa de águas calmas. Terra e mar encontravam-se igualmente vazios, mas o céu não; olhei para cima, e vi aves de rapina voando em círculos.

Filipe passou as mãos debaixo dos meus braços e ergueu-me, ansioso por me pôr de pé. Era um indivíduo de estatura pequena, mas obviamente bastante forte, certamente mais forte do que eu. Afirmara precisar da minha ajuda, mas o seu olhar dizia-me que era a minha companhia que ele queria, a presença de outra criatura humana viva naquele lugar de desolação. Filipe não queria estar sozinho e, quando me conduziu pela praia fora até ao local onde o esquife real tinha atracado, percebi por quê.

O esquife tinha desaparecido.

- Onde...? - comecei eu a dizer.

- Levaram-no numa carroça. Não é inacreditável? Só o trouxeram para trazer Pompeu a terra e, quando tudo acabou, limparam o sangue com baldes de água do mar, voltaram o barco ao contrário, meteram-no numa carroça e levaram-no por aqueles montes baixos afora. O exército deu meia volta e desapareceu em poucos momentos. Foi estranho, era como se fossem fantasmas. Dir-se-ia que nunca aqui estiveram.

64Mas o exército de Ptolemeu estivera de facto ali, e a prova estava aos nossos pés, rodeada por um ensurdecedor enxame de moscas. Alguém - Filipe, presumi eu - arrastara para a praia os cadáveres de Macro e do outro centurião, colocando-os lado a lado, voltados para cima. Ao lado deles, encontrava-se o escravo que acompanhara a comitiva para servir de escriba. jazia ao lado da caixa de materiais de escrita, com a túnica manchada do sangue resultante de vários golpes.

- Deve ter atrapalhado Aquilas e Sálvio, quando eles voltaram a trepar para o barco, empunhando as espadas - disse Filipe. - Não tinham razões para o matar. A mim não me mataram. O pobre escriba atrapalhou-os, foi o que foi.

Eu assenti com a cabeça para mostrar que compreendia, e finalmente voltei os olhos para o espectáculo com o qual estivera a evitar confrontar-me. Ao lado dos guarda-costas e do escriba jaziam os restos mortais de Pompeu, o Grande, um corpo nu, retalhado e sem cabeça. Era em redor do seu cadáver, especialmente em redor do sangue coagulado na zona do pescoço, que as moscas circulavam em maior profusão.

- Levaram a cabeça dele - disse Filipe em voz trémula. - Cortaram-lha e levaram-na como troféu! E o dedo...

Vi que tinham cortado um dedo à mão direita do cadáver; em redor do pequeno cepo ensanguentado zumbia um enxame mais pequeno de moscas.

- Para lhe tirarem o anel, percebes? Podiam ter-se limitado a tirar-lho. Mas não. Cortaram-lhe o dedo e lançaram-no para a areia, ou para as ondas, sabe-se lá para onde... - Filipe desatou a soluçar e, num súbito acesso, despiu a túnica, usando-a como chicote para enxotar as moscas. Os animais dispersaram, mas voltaram em seguida, ainda em maior número.

Filipe desistiu e disse, por entre soluços.

- Consegui despi-lo. Lavei-lhe as feridas com água do mar. Mas nem assim as moscas o largam. Temos de construir uma pira funerária.

65Deve haver destroços de madeira em quantidade suficiente, espalhados ao longo da praia. já reuni alguns, mas não chegam. Vais ajudar-me, não vais?

Olhei o cadáver de Pompeu e anuí num gesto de cabeça. Em jovem, fora tão famoso pela sua beleza como pela sua bravura. Tinha o físico de um jovem Hércules, o peito e os ombros compactos e musculosos, a cintura estreita, os membros belamente modelados. Tal como a maior parte dos homens, fora-se tornando mais flácido com o passar do tempo; nenhum escultor teria achado apropriado reproduzir em mármore a deformada massa de carne que se encontrava a meus pés. Olhando o que restava de Pompeu, não senti piedade nem repugnância. Aquela coisa não era Pompeu, tal como a cabeça que os egípcios tinham capturado não o era. Pompeu fora uma essência, uma força da natureza, uma vontade que governava uma formidável riqueza, frotas de navios de guerra, legiões de guerreiros leais. Aquela coisa que se encontrava a meus pés não era Pompeu. No entanto, teria de ser destruída. Tanto quanto eu sabia, Neptuno interviera pessoalmente para me salvar da morte por afogamento com o único propósito de prestar homenagem aos restos mortais de Pompeu, certificando-me de que eram purificados pelo fogo e objecto dos rituais de enterramento devidos a qualquer romano, tivesse-se ele atrevido ou não a auto-intitular-se o Grande.

- Devia ter morrido em Farsalo - observou Filipe. - Não desta forma, mas no momento e da forma que escolheu. Quando soube que tudo estava perdido, decidiu-se a fazê-lo. ”Ajuda-me, Filipe”, disse. ”Ajuda-me a não perder a coragem. Perdi o jogo, e não tenho estômago para enfrentar o rescaldo. Que este local seja o meu fim, que os livros de história digam: ”O Grande morreu em Farsalo”. Mas, no último momento, faltou-lhe a coragem. Pompeu, o Grande, titubeou e fugiu, comigo, a correr atrás dele. Para acabar assim, com a cabeça entregue ao Rei como troféu!

Filipe deixou-se cair de joelhos na areia e chorou. Eu afastei-me e perscrutei a praia em busca de restos de madeira.

66Quando o Sol atingiu o zénite e começou a afundar-se a ocidente, nós continuávamos a juntar madeira, aventurando-nos cada vez mais longe, de um lado ao outro da praia. Filipe insistiu para que construíssemos três piras, uma para o escriba assassinado, outra para os dois centuriões, e uma terceira, conspicuamente maior do que as restantes, para Pompeu. Quando as piras ficaram prontas, com os corpos colocados sobre elas, o Sol afundava-se a ocidente e as sombras avolumavam-se. Filipe fez fogo com uma pedra, e incendiou as piras.

Enquanto a escuridão caía e as chamas subiam pelos ares, perguntei-me se, a bordo da galera onde seguia, Cornélia conseguiria avistar a pira funerária do marido, qual ponto de luz a grande distância. Perguntei-me se Betesda, onde quer que estivesse, conseguiria ver a mesma chama, e se lhe faria lembrar Faros, e a faria chorar, como eu chorei naquela noite, com a reviravolta do destino que transformara uma viagem de esperança numa viagem de desespero.

67CAPíTULO V

Naquela noite, adormeci com o corpo exausto e a mente entorpeàda, com as chamas da pira funerária de Pompeu a dançar-me sobre as pálpebras e o odor da sua carne carbonizada nas narinas. Dormi

como um morto.

A fome acordou-me. Não tinha comido nada na véspera, e muito pouco na antevéspera. O meu estômago roncou quando despertei de um sonho sobre um peixe a grelhar num assador. Cheirou-me a peixe cozinhado; a fantasia era tão real, que nem depois de ter aberto os olhos se desvaneceu.

Estava deitado de costas na areia. O Sol ia alto. A intensidade de luz obrigou-me a pestanejar, ergui a mão para fazer sombra sobre os olhos, e depois a figura de um homem fez sombra diante de mim. Vi-o apenas como uma silhueta indistinta, mas percebi imediatamente que não se tratava de Filipe, pois este homem era muito maior. Sobressaltei-me e recuei apoiado nos cotovelos, e voltei a sobressaltar-me ao ver um objecto pontiagudo apontado na minha direcção. O meu estômago roncou compreensivelmente com fome. A coisa que o homem tinha na mão era um pau afiado, e espetado no pau via-se um peixe assado, quente das brasas.

O homem que tinha diante de mim emitiu um som gutural que me era familiar, enquanto apontava novamente o peixe na minha direcção, num gesto de oferta.

68- Rupa? - sussurrei. - És tu? - Pus a mão, em pala sobre os olhos, semícerrei-os e entrevi claramente o seu rosto, mas apenas por um instante, pois as lágrimas enevoaram-me a visão.

Pestanejei para deixá-las correr, e peguei no espeto. Não há uma forma rápida de comer um peixe inteiro, dado que se tem de ter cuidado com as espinhas, mas, num piscar de olhos, no espeto que eu tinha na mão restava apenas o esqueleto do peixe, e o meu estômago parou de resmungar. Acima de mim, Rupa sorriu com os dentes todos.

Limpei a boca e perscrutei a praia, até ao local onde Rupa tinha feito um buraco na areia, enchendo-o de carvão retirado das piras funerárias. Dois pedaços de madeira de cada lado serviam para sustentar os espetos, nos quais estava a assar mais peixe. Olhei para o mar e vi Ândrocles e Mopso, juntamente com Filipe, circulando nus pela rebentação, armados com paus aguçados e com as túnicas a servir de redes. Enquanto os observava, Androcles traspassou habilidosamente um peixe e ergueu-o orgulhosamente no ar, rindo-se muito satisfeito.

Olhei para um lado e o outro da praia e senti uma pontada de pânico.

- Mas onde está...?

- Aqui, marido.

Voltei a cabeça e vi Betesda sentada numa elevação de areia por trás de mim, recostada ao nosso baú de viagem. Fez-me um sorriso cansado. Aproximei-me dela e pousei a cabeça no seu colo. Ela afagou-me suavemente a testa. Suspirei e fechei os olhos. Sentia o Sol quente no rosto. O ruído suave da rebentação era como uma canção de embalar: as moscas da véspera tinham desaparecido. O corpo repousado, a fome saciada, e Betesda recuperada - tudo em menos do que demora a dizer uma oração. Pestanejei e ergui os olhos para ela. Soergui-me para lhe tocar nas faces, e assegurar-me de que não estava a dormir nem a sonhar.

- Como? - perguntei.

Ela respirou fundo e encostou-se ao baú, preparando-se para contar a história:

69- Depois de assistirmos à morte de Pompeu, e de aqueles navios de guerra egípcios terem aparecido, o capitão levantou a âncora e fugiu como os outros. Mas os navios egípcios deixaram-se ficar para trás. Não pretendiam travar uma batalha, apenas queriam repelir a frota de Pompeu. Ainda assim, estávamos rodeados por todos os lados por navios de Pompeu, e o capitão receava afastar-se deles. Por conseguinte, esperou pelo momento certo. Ao cair da noite, viu surgir a sua oportunidade, afastou-se da frota e orientou-se para sul. Ninguém veio no nosso encalço.

- Tanto quanto eu sabia, tu estavas na galera de Pompeu com a viúva dela, a não ser que ele te tivesse morto antes de ter partido ao encontro do Rei Ptolemeu. Pedi ao capitão para fazer meia volta e se Juntar à frota, mas ele recusou. Depois, vimos o brilho de chamas na costa, ainda muito afastada. Seria um sinal teu? Rezei para que fosse, e estava com o coração destroçado, pois julgava que o capitão tencionava conduzir-nos directamente para Alexandria, e que teria grande dificuldade em voltar a encontrar-te, Mas o capitão queria ver-se livre de nós o mais depressa possível; tivemos sorte em não nos ter atirado simplesmente borda fora. Ele dizia que devíamos ter sido amaldiçoados pelos deuses, e que ter-nos a bordo só poderia trazer-lhe problemas. Navegou em linha recta para este local, talvez por se tratar da língua de terra mais próxima, ou talvez por a fogueira lhe servir de farol.

- Quando chegámos, a fogueira estava reduzida a cinzas. O céu começava a clarear quando ele nos trouxe a terra firme, num barco a remos. Depois, regressou ao navio e desapareceu. Quando te vi deitado ali na praia, pensei que estavas morto. Mas, quando me aproximei, começaste a ressonar com uma força tal, que me ri e chorei ao mesmo tempo. Queria acordar-te, mas o liberto de Pompeu suplicou-me que não o fizesse. Disse-me que parecias um morto quando adormeceste ontem à noite, que precisavas desesperadamente de repousar. Baixou a voz, sussurrando de forma conspiratória, ainda que Filipe estivesse a chapinhar na rebentação e não tivesse a menor hipótese de

70ouvir-nos. - Ele parece ter a impressão de que és uma personagem importante, um veterano grisalho com uma ligação especial a Pompeu; pensa que ficaste de tal maneira abalado ao assistir à decapitação do Grande, que nadaste até à costa, num impulso tresloucado para lhe prestar homenagem.

Resmoneei.

- Tentei nadar na tua direcção, mas quase me afoguei. Tive muita sorte em conseguir chegar à praia. Aquele capitão grego é um tolo. Não fomos amaldiçoados pelos deuses, Betesda, fomos abençoados!

Tomei-lhe uma das mãos e beijei-lha. Ela fez um sorriso triste.

- Portanto, estive aqui sentada à espera toda a manhã, a ouvir-te ressonar, enquanto Rupa e os rapazes nos faziam uma refeição. Queres mais?

Vi Rupa aproximar-se com outro peixe assado. Fiquei com água na boca e o meu estômago roncou outra vez.

- Por que não o comes tu? - perguntei. Betesda abanou a cabeça. - Não tenho fome.

Tentei recordar-me da última vez em que a vira comer e senti uma pontada de ansiedade. Não estaria mais pálida do que anteriormente, com uma aparência mais débil do que nunca? Ou estaria simplesmente esgotada com a sucessão de acontecimentos dos últimos dias, como qualquer mulher nas mesmas circunstâncias?

Sentei-me e aceitei o peixe de Rupa. Tinha devorado o primeiro sem pensar, mas este, fui capaz de o saborear. Betesda fez um sorriso triste, satisfeita com o meu apetite.

Lambi os dedos e limpei a mão à túnica, e senti qualquer coisa no bolso: o presente que Cornélia me dera. Que coisa vil! E se o tivesse engolido, num momento de fraqueza e desespero? Estaria Cornélia arrependida de mo ter dado, desejando tê-lo guardado para si mesma? Devia despejar o conteúdo sobre as cinzas de Pompeu e atirar o frasco

71de alabastro ao mar, pensei; mas a simples preguiça impediu-me de o fazer. Era muito mais agradável estar sentado ao lado de Betesda, sentindo o calor do Sol na cara e observando os rapazes a pescar na rebentação cintilante.

Naquela tarde, Filipe e eu fomos explorar as redondezas e descobrimos uma pequena aldeia piscatória construída em redor de uma língua de terra voltada para leste. Ocupando um território disputado por Ptolemeu e por sua irmã Cleópatra, os aldeões, cansados de guerras, tinham-se tornado desconfiados relativamente a quaisquer desconhecidos, mas não tinham aversão aos sestércios romanos que eu podia oferecer-lhes. Viviam-se tempos difíceis no Egipto, e a prata romana abria muitas portas. Por um preço bastante razoável, consegui alugar uma carroça equipada com duas mulas.

O meu egípcio estava muito enferrujado, e os aldeões não falavam outra língua; foi Filipe, que era fluente em muitas línguas, quem fechou o negócio, comunicando-me a garantia do proprietário da carroça de que a estrada costeira estava em boas condições até Alexandria. Perguntei-lhe qual era a melhor maneira de atravessarmos o Nilo, e ele respondeu-me que, diante de cada uma das ramificações do delta, encontraríamos barqueiros, que competiriam entre si por nos transportar para a outra margem. O homem tinha um primo na capital; combinei que, à chegada, iria entregar-lhe a carroça e as mulas.

Filipe deixou-se ficar na aldeia, afirmando que tencionava dirigir-se para leste, e não para oeste, pelo que nos separámos. Dei-lhe uns sestércios para o caminho. Ele deu-me um abraço sentido, ainda no pressuposto - errado - de que eu era um dos dedicados veteranos de Pompeu.

- Quando uma pessoa anda em Viagem, deve estar preparada para mudanças inesperadas no itinerário - disse eu ao grupo reunido na praia naquela noite, em que o jantar de peixe requentado foi suplementado com pão ázimo comprado aos aldeões. - Não há dúvida de que

72sofremos um desvio considerável, mas prosseguiremos em direcção a Alexandria, conforme planeado, com a vantagem de que Betesda poderá banhar-se no Nilo antes e não depois de chegarmos, dado que o rio se situa entre nós e a cidade. - E Rupa poderá espalhar as cinzas da irmã, pensei, e agradeci silenciosamente a Cassandra, pois era o seu legado que pagava as despesas desta excursão - a viagem de navio, as mulas e a carroça, e mesmo os pedaços de pão ázimo com que Ândrocles e Mopso se empanturravam.

Os aldeões tinham-me dito que Alexandria ficava a cerca de cento e cinquenta milhas de distância, o que implicaria uma viagem de vários dias por território plano. Onde quer que a estrada atravessasse uma ramificação do Nilo, haveria uma aldeia, ou pelo menos uma taberna ou uma hospedaria. A paisagem consistiria em terreno plano, pantanoso, entremeado por campos cultivados, onde agricultores e escravos estariam ocupados a tratar das valas de irrigação e dos moinhos de água, pois a inundação anual do rio, da qual dependia a subsistência do país, já tinha começado. A viagem podia ser monótona, mas não devia ser particularmente perigosa, e não correríamos riscos se resolvêssemos dormir na carroça, à beira da estrada; o banditismo, garantiam os aldeões, não fazia parte do modo de ser egípcio. Embora tal não passasse, certamente, de uma auto-ilusão - há bandidos em toda a parte, tal como há vítimas e heróis -, era verdade que chegáramos a uma parte do mundo bastante mais tradicional e, na opinião de alguns, mais civilizada que a Itália. Decapitar brutalmente um potencial conquistador antes de ele poder pôr os pés no Egipto era uma coisa; o banditismo comum era outra, e eu não devia preocupar-me com isso.

Na manhã seguinte, muito cedo, partimos em direcção a Alexandria. O tempo estava quente, a atmosfera húmida e pesada, e o céu pontilhado de nuvens enfunadas. Com os seus buracos ocasionais e as bermas esboroadas, a estrada de pedra não estava definitivamente à altura dos padrões romanos. Betesda sofria mais com a trepidação do que eu teria gostado, mas as mulas avançavam a passo firme.

73Chegámos ao braço de rio situado no extremo leste do Delta do Nilo, à buliçosa cidade fortificada de Pelúsio. Na loja onde comprámos mantimentos, trocavam-se especulações acerca da guerra entre o Rei Ptolemeu e sua irmã Cleópatra; esta informação foi-me transmitida por Betesda, que percebia os locais muito melhor do que eu. Ela crescera em Alexandria, falava egípcio e, embora afirmasse que o dialecto dos habitantes de Pelúsio era rústico e agreste, não parecia ter grandes dificuldades em compreendê-los. Em Alexandria, toda a gente falaria pelo menos um pouco de grego. O grego era a língua dos Ptolemeus, a língua oficial da burocracia de estado, e a única que as classes dirigentes falavam. Fora da capital, porém, os egípcios nativos, mesmo depois de dois séculos e meio de domínio ptolemaico, mantinham-se teimosamente fiéis à sua língua nativa.

Segundo Betesda, a notícia do desembarque fatal de Pompeu já tinha chegado a Pelúsio, ainda que apenas sob a forma de rumores vagos. Alguns dos locais acreditavam na história, outros não. Preparávamo-nos nós para exibir as nossas compras ao dono da loja, quando uma mulher baixinha e presunçosa, de nariz no ar, passou à nossa frente para comprar um cesto de tâmaras, começando a falar de modo a que toda a gente a pudesse ouvir.

- Quem é esta pavoa? - sussurrei ao ouvido de Betesda.
- A mulher de um magistrado local, suponho.

- O que está ela a dizer?

Betesda escutou durante uns instantes e depois resfolegou:

- Uns disparates acerca da morte de Pompeu. Afirma que houve uma batalha entre romanos e egípcios, e que o rapaz-rei travou um combate pessoal com Pompeu, derrotando-o e cortando-lhe a cabeça. Que pavoa tola!

Apercebendo-se do tom de voz de Betesda mesmo sem perceber o latim, a mulher voltou-se na nossa direcção, dilatando as narinas. Eu preparei-me para uma discussão, mas Betesda mordeu a língua e baixou os olhos, e a mulher continuou a contar a versão dela. A situação provocou-me

74
uma sensação de desconforto: pareceu-me mais um sintoma da doença que Betesda se tivesse submetido tão prontamente à tagarelice de uma criatura pomposa e intrometida.

De facto, parecia-me que, a cada milha que passava, Betesda se sentia mais mortiça, pelo que me arrependi de a ter obrigado a fazer o esforço adicional de negociar com os habitantes locais. À medida que a nossa viagem prosseguia, instalava-se nela uma quietude fora do normal. Olhava os pântanos e os campos lamacentos com uma expressão vazia. Tentei fazê-la falar propondo-lhe recordações, como fizera na viagem por mar, mas ela mostrou-se desinteressada e distante.

Até sobre as suas intenções tinha pouco a dizer. Chegáramos ao Nilo, que era o objectivo da nossa viagem, e perguntei-lhe onde tencionava banhar-se e o que seria necessário para o ritual de purificação que tinha em mente.

- Aqui não - disse-me ela. - Ainda não. Saberei reconhecer o local quando lá passar. Osíris dir-me-á onde devo entrar no rio. O rio me mostrará o que devo fazer.

Quanto mais avançávamos, mais apreensivos me pareciam os aldeões. A notícia da morte de Pompeu precedia-nos invariavelmente, constituindo o principal tópico de conversa. Aparentemente, as cheias do Nilo não tinham sido tão abundantes como em anos anteriores. Um ano de baixa inundação significava que as colheitas seriam menos abundantes, com as consequentes fomes e outras dificuldades. Para a inundação ter sido tão fraca, - a coisa devia ter desagradado ao deus já que, no Egipto, o próprio Nilo é um deus). Anteriormente, a responsabilidade havia sido atribuída à guerra civil entre Ptolemeu e sua irmã Cleópatra, pois também eles eram divinos, e uma guerra entre um deus e uma deusa tinha repercussões, quer no mundo natural, quer no sobrenatural. Agora, porém, considerava-se que o Nilo sustivera a inundação na antecipação de um acontecimento ainda mais catastrófico, o homicídio do Grande - o único homem que reivindicara semelhante título desde o próprio Alexandre -, o general romano Pompeu.

75A discórdia gerada pela guerra civil tinha alastrado pela terra, causando calamidades consecutivas, e as pessoas receavam que estivesse para suceder um acontecimento ainda mais terrível.

De Pelúsio, partimos para Tânis, e daí para Busíris, no próprio centro do Delta. A cada dia que passava, o Verão tornava-se mais quente e o ar mais abafado e húmido. Sentia o odor fétido do Nilo lamacento penetrar-me nos poros. Ao longo do caminho, seguindo as instruções de Betesda, fizemos inúmeras excursões infrutíferas rio acima e rio abaixo: ela encontrava um local que declarava ser apropriado, afirmando que ali se banharia no dia seguinte; mas, quando amanhecia o dia seguinte, mudava de ideias. Após Busíris, chegámos a uma aldeia particularmente esquálida de nome Sais. Afirmando que o Sol se tornara excessivamente forte, Betesda permaneceu no quarto privativo da miserável hospedaria da cidade onde nos tínhamos instalado, recusando-se a sair. Rupa, Ândrocles, Mopso e eu não descobrimos grande coisa para fazer em Sais, e eu passei vários dias de ócio, a beber cerveja egípcia, oprimido pelo calor, a monotonia e uma sensação crescente de mau agouro.

Por fim, partimos de Sais e chegámos a Naucrátis, uma aldeia no braço mais ocidental do Nilo. Tínhamos atravessado o Delta todo, sem que Betesda tivesse encontrado um local adequado à realização do ritual de purificação que tinha em mente.

A cada dia que passava, e à medida que a viagem prosseguia, Betesda fora-me dando cada vez mais motivos de preocupação. Quase, não comia. Ao questioná-la sobre este facto, respondeu-me que o Jejum fazia parte do ritual de purificação. Sentava-se na carroça, imóvel, horas a fio, e, quando era obrigada a mexer-se, fazia-o de forma muito lenta, qual nadador em luta contra uma corrente forte. Parecia ocupar um lugar cada vez mais vago neste mundo, e residir cada vez mais noutro domínio, invisível para nós. Havia alturas em que olhava para ela e, por breves e assustadores instantes, julgava ver através do seu corpo, como se ele se tivesse tornado transparente. Então pestanejava, a ilusão dissipava-se, e dizia a mim próprio que se tratava de uma simples partida do calor e do ar carregado de humidade.

76CAPíTULO VI

Na manhã em que partimos de Naucrátis, a estrada virou para norte. Tínhamos o Nilo e o seu delta à nossa direita, mas eu sabia que o curso da estrada só seria paralelo ao rio durante mais algumas milhas, antes de voltar para ocidente, deixando o rio para trás e passando a acompanhar o canal que desviava a água do Nilo para Alexandria.

-já falta pouco? - perguntei a Betesda.

Ela olhou fixamente o rio, o brilho da superfície a iluminar-lhe o rosto, com uma expressão tão impassível que julguei que não me tivesse ouvido. Mas, por fim, respondeu:

-já falta pouco - e fechou os olhos, como se o simples acto de proferir aquelas palavras a tivesse deixado exausta.

A meio da manhã, chegámos a uma zona do rio onde crescia uma grande profusão de palmeiras e tamareiras. As águas estreitavam-se e corriam velozes por entre as margens lamacentas, com as linhas de demarcação obscurecidas por densas culturas de juncos altos. Nascentes subterrâneas alimentavam o rio, tornando a vegetação particularmente luxuriante. As árvores baixas cresciam muito perto umas das outras, cobertas por grande profusão de vinhas. Os juncos rodeavam lagoas em miniatura, onde flores de lótus e folhas de nenúfar se estendiam como tapetes à superfície da água. As libelinhas voavam de um lado para o outro, e sobre as águas pairavam enxames de mosquitos. O local fremia de vida: parecia simultaneamente eterno e antigo, um lugar separado do resto do mundo.

77- Aqui - disse Betesda num tom que não era alegre nem triste. Fiz parar as mulas. Mopso e Ândrocles saltaram da carroça, ansiosos por esticar as pernas.

- Tu és o Ciclope! Apanha-me se fores capaz! - gritou Ândrocles, dando uma estalada na testa do irmão e desatando a correr. Mopso deu um grito e correu atrás dele. Rupa saltou em seguida, deu a volta até à frente da carroça e estendeu a mão a Betesda. Eu de cima da carroça e ele em baixo, ajudámo-la a descer.

Ali perto, Androcles guinchou ao ser apanhado pelo irmão, e empurrou-o, para uma zona da margem coberta de musgo. Ter-lhes-ia gritado que se portassem bem, mas tinha os olhos postos em Betesda, que avançava lenta mas firmemente ao lado do rio, em direcção a uma mancha particularmente densa de juncos, árvores baixas e vinhas. Fiz menção de saltar da carroça e segui-la, mas Rupa agarrou-me o tornozelo. Tentei libertar-me, mas ele apertou-mo com mais força. Apontou para o baú, que seguia connosco na carroça. Pela expressão dorida do seu rosto, percebi o que ele pretendia.

A chave estava pendurada numa corrente que eu trazia em volta do pescoço. Tirei a corrente pela cabeça e tentei abrir o baú, mas os dedos escorregaram-me. Tentei novamente abrir a fechadura, mas faltou-me o jeito. A chave parecia decidida a contrariar-me. Por fim, lá consegui abrir a fechadura e levantei a tampa. Foi necessário vasculhar um pouco para encontrar a urna, que abrira caminho para o fundo do baú.

O bronze da urna pareceu-me frio ao toque. Não lhe pegara desde que fizéramos as malas. Tinha-me esquecido de quão pesada era. Tudo o que restava de Cassandra estava ali dentro, as cinzas e os pedaços de ossos e dentes resgatados da pira funerária. Olhei fixamente a urna durante um longo momento, distraído com memórias, e depois dei-me conta de que Rupa tinha dado a volta, colocando-se à minha frente com ambas as mãos estendidas. Com relutância, inclinei-me e entreguei-lhe a urna, e depois saltei da carroça.

78- Então é aqui? - perguntei-lhe. Ele assentiu com a cabeça.

- Queres que vá contigo?

Ele franziu o sobrolho. Fazia sentido que quisesse encarregar-se sozinho de espalhar no Nilo os restos mortais da irmã. Raramente se tinham separado um do outro desde a nascença, e o amor que os unia sempre estivera acima de tudo o resto. Por muito forte que tivesse sido a minha paixão por ela, eu apenas conhecera Cassandra durante uns meses, antes de ela ter morrido; tudo somado, o tempo efectivo que passara com ela, por muito especial que tivesse sido, não passara de umas quantas horas. Era razoável que fosse Rupa, e não eu, a enviar as cinzas dela para a sua derradeira viagem rumo ao mar e, se desejava fazê-lo em privado, eu não tinha o direito de objectar.

Poisei-lhe a mão no ombro, para lhe mostrar que compreendia. Ele apertou a urna de bronze ao peito, inclinou a cabeça sobre ela, de lágrimas nos olhos, depois voltou-se e começou a caminhar rio acima. Receoso de que fossem atrás dele, perturbando-o, chamei Ândrocles e Mopso para o pé de mim.

Entretanto, Betesda alcançara as árvores e a abundante vegetação rasteira que cresciam junto ao rio, para o lado inverso, e começara a procurar uma forma de a atravessar. Enquanto eu a observava, encontrou finalmente uma passagem. Sem se dar ao trabalho de olhar para trás, avançou pela vegetação adentro, e perdi-a de vista.

- Venham, rapazes! - disse eu, e fui no seu encalço.

Alcancei a espessa vegetação, e fiquei especado diante do local onde a vira pela última vez. Seria possível que se tivesse aberto uma passagem para ela, fechando-se em seguida? Para onde quer que olhasse, só via os juncos a nascer do solo lamacento, com uma teia de videiras pendentes sobre eles, sem qualquer abertura visível.

Chamei-a. Ela não respondeu.

Senti uma pontada de ansiedade, e depois apercebi-me de que devia procurar as pegadas dela no solo macio. Por fim encontrei-as, surpreendido por as marcas que deixara serem tão leves, não apenas por comparação

79com as minhas, mas por comparação com as dos rapazes. Na realidade, nos últimos dias ela diminuíra de peso e enfraquecera, pelo que os seus passos se tinham tornado leves como os de uma criança.

- Deve ter ido nesta direcção - disse Mopso, olhando o chão.
- Não, foi nesta! - insistia Ândrocles.

- Vocês os dois, recuem Imediatamente, antes que tornem as pegadas ainda mais confusas - ordenei eu, e depois segUi os passos de Betesda para trás e para a frente, refazendo a sua busca hesitante por entre a folhagem. Por fim, encontrei a passagem, tão bem disfarçada que parecia que mãos humanas a tinham concebido intencionalmente com o fito de passar despercebida. Um emaranhado de videiras pendia de tal forma, que ocultava por completo a vereda, a não ser que nos aproximássemos dela pelo ângulo correcto, e mesmo assim o emaranhado transmitia uma ilusão de impenetrabilidade até ao preciso momento em que se entrava pelo caminho.

- Betesda! - chamei, avançando pela folhagem.

Os rapazes seguiram-me e recomeçaram com as suas questiúnculas.
- Eu bem te disse que era nesta direcção - disse Mopso.

- Não, não disseste! Disseste... - Ândrocles calou-se ao ver que as sombras se fechavam abruptamente à nossa volta. Os rapazes sentiram o mesmo que eu: que tínhamos entrado num lugar que não era como os outros. Ali ao pé, ouvia-se o gorgulhar do rio, juntamente com o suave zumbir dos insectos e os gritos das aves nas copas das árvores.

Mais adiante entrevi, por entre as folhas das videiras pendentes, a luz do Sol a bater numa superfície de pedra. Chegámos a uma clareira rodeada de vegetação, mas a céu aberto. Sobre o pequeno templo que havia no centro incidia um raio de sol, de tal maneira enevoado por partículas de pó, que parecia uma coisa sólida, e não me teria surpreendido se visse libelinhas suspensas no interior da luz, presas como insectos no âmbar. Mas as libelinhas pairavam e circulavam sem impedimento, abrindo caminho a Betesda, que se aproximou do templo, subiu

80o pequeno lanço de degraus até ao pórtico colunado e desapareceu no seu interior.

O templo era de construção egípcia: tecto horizontal, colunas atarracadas, encimadas por capitéis com a forma de folhas de lótus, e hieróglifos gastos pela erosão do tempo, em desenfreada profusão sobre todas as superfícies. Não exibia qualquer indício de influência grega, pelo que era quase certo que pertencesse a uma data anterior à conquista de Alexandre e ao reinado dos Ptolemeus. Tinha centenas, talvez milhares de anos; era mais antigo do que Alexandria, mais antigo do que Roma, talvez tão antigo como as pirâmides. junto a ele, de uma confusão de pedras cobertas de fetos, gotejava uma nascente, formando um pequeno charco.

A nascente era a própria vida; a nascente explicava a presença daquele luxuriante oásis ao lado das margens variáveis do Nilo, o encanto sagrado exercido pelo local, bem como o templo erigido a seu lado. Observei os hieróglifos do templo; escutei o leve gorgulhar da nascente; senti o calor do sol nos ombros, mas estremeci, pois o local parecia-me inquietantemente familiar. Pus um dedo sobre os lábios, indicando aos rapazes que se mantivessem em silêncio, e atravessei a clareira em direcção aos degraus do templo.

Senti o perfume de mirra em combustão. Do interior, chegaram-me aos ouvidos duas vozes, murmurando tão baixo que, se não soubesse, não teria reconhecido uma delas como a de Betesda. A outra voz podia ser masculina ou feminina: não tinha a certeza. Subi os degraus até ao pórtico, inclinei a cabeça para dentro da abertura, e semicerrei os olhos diante da obscuridade do interior. Uma lamparina tremeluzente iluminava, com clarões breves e incertos, as paredes resplandecentemente pintadas, cobertas de estranhas imagens e hieróglifos. A mais grandiosa destas imagens era a do deus Osíris: era uma figura de homem alto, envolto em ligaduras brancas de múmia, com um mangual e um bastão nos braços cruzados, e a coroa atef na cabeça: um cone branco, adornado com penas de avestruz de ambos os lados, e um pequeno disco dourado no cimo bolboso.

81Ouvi as vozes do interior com mais clareza, mas a língua que falavam era-me estranha, não se tratava de nenhuma versão de Egípcio que eu conhecesse. Ouvir a voz de Betesda pronunciar aqueles sons estranhos provocou-me um calafrio pela espinha acima; era como se outro ser - uma criatura que me era desconhecida - tivesse possuído a voz dela. Não fiz menção de entrar no templo, deixando-me estar no umbral.

No interior, a sacerdotisa - pois, a pouco e pouco, tinha decidido que a voz era de uma mulher - começou a cantar. O canto foi aumentando de volume, até me aperceber que também os rapazes deviam conseguir ouVi-lo. Olhei para trás e vi-os no limiar da clareira, de olhos focados na abertura do templo, calados e imóveis.

Não sei quanto tempo durou o cântico, pois enfeitiçou-nos a todos. O tempo parou; até os grãos de poeira suspenderam a sua lenta e rodopiante dança, e as libelinhas, receosas da sua magia, dispersaram. Fechei os olhos e tentei discernir se o cântico continha alguma mensagem de cura e de esperança, pois fora para se curar da sua doença que Betesda viajara até ali. Mas as palavras eram-me estranhas, e o sentimento que o cântico inspirava não era de esperança, mas de resignação. Resignação relativamente a quê? Não às Parcas, nem mesmo à Fortuna, mas a algo mais antigo do que elas; à força invisível, qualquer que ela seja, que dita a medida da nossa vida debaixo do sol.

Os deuses do Egipto são mais antigos que os deuses de Roma. Um romano que vá ao Egipto encontra-se muito longe dos deuses que conhece, à mercê de forças mais antigas que a própria vida, de poderes que não têm nome porque existem desde uma era anterior àquela em que os homens podiam nomeá-los. Senti-me despido de qualquer pretensão de sabedoria e conhecimento mundano; encontrava-me nu diante do Universo, e estremeci. Teria querido fugir, mas não conseguia mover-me. Estava apresado no limiar daquele templo, como um insecto preso no âmbar.

O cântico terminou. Uma fina espiral de fumo fez-me comichão no nariz, enchendo-me a cabeça do odor a mirra queimada.

82Seguiram-se movimentos no interior do templo. Uma silhueta emergiu da sua luz incerta e, momentos depois, Betesda estava diante de mim.

- Chegou a hora - disse ela.
- A hora?

- De me banhar no Nilo.

- Este templo - já cá tinhas estado? Ela anuiu com uma inclinação de cabeça.
- Conheço este sítio.

- Mas como?

- Talvez a minha mãe me tenha trazido aqui quando era criança. Não tenho a certeza. Talvez só o tenha visto em sonhos. Mas é tal e qual como me recordo dele, ou como o vi em sonhos.

- Tenho a sensação de que também já aqui estive. Mas é impossível.

- Talvez se trate de um local que todos nós vemos em sonhos, quer nos recordemos desses sonhos, quer não. - Betesda pareceu satisfeita com aquela explicação, pois sorriu muito ao de leve. -Tenho de ir banhar-me no rio, marido.

Afastei-me para deixá-la passar.
- Vou contigo - disse eu.

- Não. A sábia diz que devo ir sozinha.
- A sábia?

Uma figura saiu das sombras de onde Betesda havia emergido. Tratava-se de uma mulher idosa, que envergava uma túnica de linho muito simples, com um manto de lã esfarrapado sobre os ombros, apesar do calor que se fazia sentir. Tinha o cabelo branco, preso na nuca num bandó. A pele parecia madeira antiga, escurecida pelo sol e coberta de rugas fundas. Não usava jóias. As mãos nodosas com que segurava o manto de lã pareciam muito pequenas. O mesmo acontecia com os pés. Calçava umas sandálias gastas e esfiapadas. Um gato de pêlo lustroso, negro como a noite, saiu das sombras atrás da velha, roçando-se-lhe contra os tornozelos.

83- A oferta da minha mulher foi suficiente? - Levei a mão à saca de moedas que tinha no bolso.

A mulher ergueu a mão.

- O deus não precisa de ofertas para satisfazer o pedido da tua mulher.

- O deus?

- Este lugar é consagrado a Osíris. A nascente está ligada ao Nilo, e a união das águas que se dá neste local foi perpetuamente abençoada por Osíris.

Inclinei a cabeça sem compreender, mas cedendo à autoridade da mulher. Betesda desceu os degraus. Fiz menção de a seguir, mas ela ergueu a mão:

- Não, marido. Não me sigas. O que tenho de fazer, fá-lo-ei sozinha.
- Então, pelo menos, leva os rapazes contigo, para o caso de necessitares deles. Para o caso de outra pessoa qualquer...

- Este lugar é sagrado, marido. Ninguém virá perturbar-me. Segui-a até à pequena gruta formada pela nascente. Ela atravessou o minúsculo charco e avançou por uma estreita vereda que parecia conduzir à margem do rio, até eu a perder de vista.

Pensei em continuar a segui-la, mas um poder qualquer deteve-me. Dei por mim olhando fixamente o pequeno charco formado pela nascente gotejante. Manchas de sol brilhavam à superfície. Pequenas criaturas translúcidas coleavam debaixo de água.

Ouvi um suspiro profundo e olhei para trás, para a sacerdotisa. Ela inclinava-se, baixando-se laboriosamente para se sentar nos degraus do templo. Apressei-me a dar-lhe assistência, e depois sentei-me ao seu lado.

O gato preto, ronronando audivelmente, insinuou-se entre nós e ergueu o queixo, convidando a mulher a fazer-lhe festas no pescoço com o indicador nodoso. Os gatos eram uma raridade em Roma e pouco apreciados pelos seus habitantes, mas no Egipto eram considerados divinos; certa vez, em Alexandria, eu tinha visto uma turba em fúria

84desmembrar um homem pelo crime de ter matado um gato. O bichano olhou para mim e emitiu umsonoro miado, como se estivesse a ordenarme que lhe desse prazer. Eu obedeci, fazendo-lhe festas no dorso.

A mulher fez um aceno com a cabeça na direcção oposta da clareira:
- Aqueles dois devem dar-te trabalhos sem fim - comentou. Segui o olhar dela e reparei que Mopso e Ândrocles tinham desaparecido. Sorri e encolhi os ombros.

- Não são piores do que os outros rapazes da idade deles. Lembro-me de que, quando adoptei Meto... - Tomei consciência do que dissera, e calei-me.

- O nome do teu filho causa-te sofrimento? - Ela teve um arrepio e envolveu-se no manto.

- jurei nunca mais voltar a pronunciar o seu nome. Às vezes, esqueço-me. - Olhei as videiras pintalgadas de sol e escutei o chilrear das aves. A magia daquele lugar começou a desvanecer-se. Afinal, a sacerdotisa era apenas uma mulher idosa, fraca e anémica; o gato não passava de um animal; o templo era simplesmente uma cabana de pedra construída por mortais, que haviam morrido e sido esquecidos há muito. A nascente pouco mais era do que uma infiltração e, no preciso momento em que olhei para cima, uma pequena nuvem ocultou o Sol e o dourado das folhas pintalgadas de luz desmaiou para um acobreado baço.

- A tua mulher ama-te muito - disse a velha.

Sorri. Seria disto que as mulheres falavam em segredo quando recorriam à outra mulher, como suplicante a sacerdotisa - de questões domésticas? Afaguei delicadamente o gato, sentindo a vibração do seu ronronar contra a palma da minha mão.

- Eu também a amo muito.

Ela anuiu.

- Nesse caso, deves estar em paz. Aqueles que se afogam no Nilo são especialmente abençoados por Osíris.

Senti uns dedos gelados cravarem-se-me no coração.

85- ”Aqueles que se banham no Nilo”, queres tu dizer, com certeza.
- Disse aquilo que queria dizer.

Não consegui falar. Tinha a boca cheia de cinzas. Levantei-me, sentindo-me tonto, a cabeça leve como fumo.

Sem conseguir ouvir mais nada para além do pulsar do sangue nos ouvidos, vendo apenas luzes e sombras, corri para a nascente. Sentia os pés pesados como chumbo, ao atravessar, violenta e desajeitadamente, o pequeno charco, para seguir o caminho que Betesda tinha tomado.

Alguns passos adiante, o caminho bifurcava-se. Segui pela vereda da direita.

O caminho seguia uniformemente pela encosta abaixo. Por entre o emaranhado de folhas, avistei o brilho do rio. Mas, antes de chegar à margem, a folhagem tornava-se mais densa, e apercebi-me de que Betesda não podia ter ido por aquele lado. Apesar disso, abri caminho por entre as videiras e os juncos, até alcançar a água. Senti o Sol bater-me na cara e aspirei uma golfada de ar. Olhei o Nilo e vi-o correr uniformemente da direita para a esquerda.

Subitamente, a água que tinha diante de mim tornou-se estranhamente ensombrada. Olhei a aparição, estupefacto, até me aperceber do que devia tratar-se. Algures para montante, Rupa acabara de lançar à água as cinzas da irmã. Em vez de se desvanecerem imediatamente na corrente, as cinzas tinham-se mantido juntas, mudando de forma e dispersando-se lentamente, como as nuvens mudam de forma e gradualmente se dispersam num céu quente. As cinzas de Cassandra passaram diante de mim e, no brilho do rio, a imagem do rosto dela olhou-me fixamente.

Durante bastante tempo, fui assombrado por uma estranha ilusão; depois, fui bruscamente devolvido à consciência pelo som de um grito infantil.

O grito tinha origem ali perto, um pouco mais para jusante. Era Ândrocles, que pedia ajuda:

86- Senhor! Oh, Senhor, vem depressa! - Mopso começou também a gritar: - Por favor! Ajudem-nos! Venham ajudar-nos, por favor! Em simultâneo com os gritos, ouvi o som de água a agitar-se.

Senti os pêlos da nuca eriçarem-se-me.

Endireitei-me como um fuso e recuei, abrindo passagem por entre a verdura, até regressar à bifurcação do caminho. Avancei pela vereda da esquerda e corri em direcção à água. Colidi com qualquer coisa e ouvi um grito aflito ao cair de cabeça. Tinha chocado com Mopso; ainda de gatas, olhei por cima do ombro e vi-o estendido de costas, a chorar convulsivamente. Ouvi mais alguém chorar e, ao voltar-me, vi Ândrocles diante de mim. Estava ensopado.

- O que aconteceu? - perguntei num sussurro rouco.
- Desapareceu! - gritou Ândrocles. - Ela desapareceu!

- O quê? - Pus-me de pé com dificuldade e agarrei-lhe os ombros.
- Ouvimos-te dizer que devíamos ir com ela, pelo que a seguimos, ainda que ela desejasse ir sozinha. Foi ideia do Mopso. julgo que ele só queria vê-la banhar-se...

- O que aconteceu? O que é que viram? Androcles, fala comigo! Ele estremeceu, apertou os braços à volta do corpo e desatou a chorar

ruidosamente, com um pranto subitamente tão profundo, que não conseguia falar.

Passei por ele a correr, na direcção da margem do rio. Era um local sossegado e escondido, com um dossel de folhas por cima e juncos a toda a volta. Betesda não estava em parte nenhuma. Chamei-a. O grito espantou um enorme bando de perdizes que estavam escondidas debaixo da vegetação, que bateram as asas grasnando, e levantaram voo. As cinzas de Cassandra estavam a passar, agora mais diluídas e dispersas, mas ainda discerníveis. A luz do Sol incidiu na superfície das águas, e tive a certeza de ver um rosto. Betesda? Cassandra? Não percebi de qual das duas se tratava. Caí de joelhos e estendi as mãos para as águas, mas só encontrei seixos e terreno pantanoso.

87- Ficámos a vê-la por detrás dos juncos. - Era Mopso. Devia ter recuperado do choque e seguira-me. Havia um tremor na sua voz, mas não estava tão histérico como o irmão mais novo. - Disseste que devíamos vir com ela, e nós viemos. E não foi para a ver banhar-se, como diz o Ândrocles! De qualquer maneira, ela não se despiu. Ajoelhou-se na margem por momentos, depois ergueu-se e caminhou rio adentro.

- E depois?

- Continuou a andar, até o rio... - Faltaram-lhe as palavras.

O rio engoliu-a. Ela... desapareceu debaixo de água, e não reapareceu! Fomos atrás dela, mas a água é funda de mais...

Eu entrei no rio. O fundo sólido e arenoso deu rapidamente lugar a um fundo cheio de lodo sujo, que me repuxava os pés. Fiquei com água até ao peito e, no passo seguinte, até ao queixo.

- Oh, Betesda! - murmurei, olhando na direcção de jusante. Os juncos oscilavam na brisa quente. O Sol brilhava sobre as águas. Na plácida superfície do Nilo, não havia sinais da passagem dela.

Enquanto houve luz do dia, procurámo-la.

Mopso foi a correr chamar Rupa, que era um nadador resistente. Enquanto os rapazes corriam de um lado para o outro da margem, Rupa despiu a túnica e mergulhou sob a superfície uma e outra vez, sem encontrar nada.

Sem nascente que a alimentasse, a margem oposto era arenosa e relativamente árida, mas apesar disso os juncos existentes ao longo da orla do rio poderiam esconder um corpo. Eu nadei até ao outro lado e também vasculhei essa margem. Buscámos o dia inteiro, mas não encontrámos vestígios de Betesda.

A dada altura, meio louco pela dor, regressei ao templo a correr. Tencionava interrogar a sacerdotisa, mas ela tinha desaparecido, juntamente com o gato. No interior da câmara, ardia tenuemente uma única lamparina, cujo óleo estava quase todo consumido. À sua luz tremeluzente

88observei as imagens pintadas nas paredes - deuses com corpos de homens e cabeças de animais, hieróglifos de escaravelhos e pássaros e de olhos esbugalhados que nada significavam para mim, e, predominando sobre todos, a imagem de Osíris, o deus mumificado. Que palavras teriam trocado, a sábia e a minha mulher? Teria Betesda simplesmente intenção de se banhar, tendo-se defrontado com algum imprevisto? Ou sempre teria sido sua intenção afundar-se no Nilo para não mais voltar?

Saí do templo para o interior da clareira. Voltei a sentir um estranho arrepio de reconhecimento. Teria visitado este lugar em sonhos esquecidos? Se alguma vez voltasse a vê-lo durante o sono, só se fosse num pesadelo.

Ao longo daquele dia comprido e desditoso, de tempos a tempos, os meus dedos inquietos tocavam por acaso no frasquinho que Cornélia me dera, e que permanecia dentro da minha túnica. O pensamento de que ainda o tinha em minha posse era o único consolo que me restava.

Por fim, a escuridão caiu, e tornou-se impossível prosseguir as buscas. Regressámos à carroça e montámos o acampamento. Ninguém tinha fome, mas eu acendi uma pequena fogueira à beira da estrada, só para ter qualquer coisa para onde olhar.

Os rapazes comprimiram-se um contra o outro, a chorar. Rupa também chorava, recordando a irmã, a quem dissera o último adeus naquele dia; apesar de ser mudo, soluçava como qualquer outro homem. Quanto a mim, atordoado e exausto, não conseguia chorar. Fiquei a olhar para a fogueira até que, por algum milagre de Somno, o sono tomou conta de mim, trazendo consigo a dádiva do esquecimento.

89CAPÍTULO VII

Fui acordado com a ponta de uma lança a espetar-se-me nas costelas. Ouvi uma voz, que se exprimia com aquele sotaque aflautado peculear aos falantes de grego do Egipto:

- Estou a dizer-te, comandante, que é o indivíduo que eu Vi. Foi ele que ajudou o liberto a construir a pira funerária.

- Nesse caso, o que está a fazer aqui, do outro lado do Delta? A voz era profunda e pesada de autoridade.

- Boa pergunta, senhor.

- Vamos ver como ele lhe responde. Tu aí! Acorda! A não ser que queiras que te espetemos esta lança entre as costelas.

Abri os olhos e vi dois homens de pé a meu lado. Um deles envergava um resplandecente uniforme de oficial egípcio: túnica verde sob uma couraça de bronze, e um capacete de bronze de ponta aguçada; o reflexo do sol da madrugada na sua armadura obrigou-me a pestanejar e a pôr a mão em pala sobre os olhos. O outro homem usava uma túnica de agricultor, mas tinha uma postura altiva e um brilho de raposa nos olhos; percebi imediatamente que devia tratar-se de um espião. Havia mais soldados por trás deles.

O oficial espicaçou-me novamente com a lança.

Subitamente, gerou-se uma confusão de movimentos, tão surpreendente que eu cobri a cara. Por entre os dedos, vi duas mãos agarrarem a lança e arrancarem-na às mãos do oficial egípcio. Seguiu-se uma luta

90confusa e um grito rouco, e eu levantei-me atabalhoadamente e vi um grande grupo de soldados em redor de Rupa, tirando-lhe a lança da mão e dobrando-lhe os braços por trás das costas.

- Não lhe façam mal! - gritei. - Trata-se do meu guarda-costas. Só estava a tentar proteger-me.

- Ele atacou um oficial da guarda do Rei Ptolemeu - fungou o homem que me picara, sacudindo pomposamente os antebraços. Um dos subordinados dele devolveu-lhe a lança com uma vénia obsequiosa. O oficial arrancou-lha da mão sem sequer fazer um gesto de agradecimento com a cabeça, e apontou-ma novamente à barriga, empurrando-me contra a carroça. A ponta da lança rasgou-me a túnica, arranhando-me a pele. Olhei para baixo e vi um fio de sangue sobre o metal reluzente.

- Somos viajantes pacíficos - protestei.

- Vindos de Roma, a julgar pelo sotaque. Acho que vocês são espiões - disse o oficial.

- Como este indivíduo? - Voltei os olhos para o homem da túnica.
- Só um espião reconhece outro espião - observou o oficial. E prosseguiu, voltando-se para o espião. - E tu devias ter reparado que o guarda-costas não estava à Vista. Devia estar lá em baixo no rio a fazer as necessidades quando nós aparecemos. Oculto desta maneira podia ter-me matado! Quantos mais elementos tem este grupo romano?
- Os dois rapazes, os escravos, aqueles além.

Ândrocles e Mopso, que tinham ambos o sono pesado, haviam sido acordados pelos soldados e estavam a por-se de pé, esfregando os olhos e olhando em redor com ar confuso.

- E uma mulher - acrescentou o espião. - Um pouco mais jovem do que este indivíduo, mas presumivelmente mulher dele. - Dirigiu-me um olhar zangado, transferindo para cima de mim a hostilidade que o oficial tinha descarregado sobre ele. - Onde está a tua mulher, romano, a que veio juntar-se a ti um dia depois de teres queimado Pompeu? Perdeste-a algures no Delta?

91Senti uma punhalada de dor, mais afiada do que a ponta da lança que tinha cravada contra a barriga. Por assustadores que os últimos momentos tivessem sido, tinham pelo menos tido o condão de, ainda que passageiramente, afastar Betesda do meu pensamento.

- A minha mulher... desceu ao rio para se banhar, ontem. Não regressou.

O oficial resfolegou.

- Mas que história tão prometedora! Levantas ainda mais suspeitas, romano. - Dirigiu-se ao subordinado que lhe devolvera a lança. Levem um grupo de homens e procurem a mulher. Não pode ter ido longe.

- Estou a dizer-te que ela desapareceu ontem no rio.

- Talvez. Ou talvez também seja uma espia, e tenha partido em missão.

- Isto é absurdo - disse eu.

- É? - O oficial cravou a lança com mais força na minha carne.
- Fazemos ideia de quem tu sejas, romano.

- Sabem? Parece-me bastante improvável. O espião tomou a palavra.

- Filipe disse-me. Ah, surpreende-te, não é verdade? - Aquele tom de imitação era particularmente dissonante.

- Filipe? O liberto de Pompeu? De que estás tu a falar?

- Pensaste que a praia estava deserta naquela tarde que passaram a construir a pira funerária. Mas, quando o exército de Ptolemeu se retirou, eu fiquei para trás, para observar o que se passava. Vi o liberto, em pranto sobre o corpo decapitado do seu antigo senhor. Depois, tu vieste dar à costa; só podias provir de um dos navios de Pompeu. Não estava suficientemente próximo para ouvir a vossa conversa, mas vivos arrecadarem restos de madeira e construírem as piras funerárias. E, no dia seguinte, o navio mercante trouxe o resto dos teus acompanhantes, a mulher e o mudo e os dois rapazes. Oh sim, havia uma mulher; disso tenho a certeza absoluta. No dia seguinte, despediste-te de Filipe, na

92aldeia piscatória. Tive de escolher qual dos dois seguir, e Filipe pareceu-me a alternativa mais óbvia. Fui chamar uns soldados e prendemo-lo na estrada que seguia para leste.

- O que foi que lhe fizeram?

- Somos nós que fazemos as perguntas, romano - disse o oficial, espetando-me com a lança.

O espião riu-se.

- Não lhe fizemos mal. Está bastante confortável, viaja sob escolta na comitiva de Ptolemeu. Quem sabe que informações importantes poderá comunicar-nos nos próximos dias. Mas ele já nos falou de ti.

- O que pode ele ter-vos contado? Só o conheci naquele dia.
- Exacto - e é precisamente isso que eu acho tão intrigante, porque Filipe diz que te viu na galera de Pompeu imediatamente antes de o chamado Grande vir a terra, e pareceu-lhe teres uma relação íntima com a esposa de Pompeu. Filipe afirma que deves ser um veterano dos velhos tempos - e, no entanto, não te conhecia, e Filipe conhece toda a gente com quem o seu senhor alguma vez se relacionou. Como é que isso pode ser, a não ser que sejas um dos - como dizer? apoiantes secretos de Pompeu. Um agente, viajando incógnito. Um espião!

- Ridículo! - disse eu, embora a suposição fosse perfeitamente lógica. Estava sobre o fio da navalha, tentando decidir que parte da verdade devia contar-lhes. Não era espião de Pompeu coisa nenhuma, mas de facto tinha trabalhado para ele mais do que uma vez, desenterrando segredos. Até que ponto seriam correctas as informações deste espião? Seria capaz de reconhecer o nome de Gordiano? Mesmo que não fosse, era provável que algum membro do quadro de espiões do Rei Ptolemeu tivesse ouvido falar de mim. Se mentisse e dissesse ao homem que não conhecia Pompeu, ele podia descobrir a verdade e presumir que eu tentava esconder algum facto mais prejudicial. Se contasse verdades de mais, poderia retirar conclusões falsas. Abanei a cabeça em face da ironia: Pompeu quisera ver-me morto e, na morte, poderia ainda alcançar o seu propósito, condenando-me por mera associação.

93- Chamo-me Gordiano - disse eu. O espião não mostrou qualquer reacção ao ouvir o nome. - Sou de facto romano, mas a minha mulher nasceu aqui no Egipto; conhecemo-nos em Alexandria, há muitos anos. Recentemente, ela adoeceu. Pareceu-lhe que apenas uma viagem de regresso ao Egipto, para se banhar no Nilo, poderia salvá-la. Foi por esse motivo que viemos. Viajámos num navio de mercadorias grego. Tínhamos Faros à vista, quando uma tempestade nos fez deslocar para leste. Foi assim que encontrei Pompeu. Sim, conhecia-o, de anos idos, mas não era seu espião, de maneira nenhuma. Quando ele foi morto e a sua frota içou as velas, na confusão, caí borda fora. Tive sorte em chegar à costa vivo. Filipe pediu-me para o ajudar a construir a pira funerária de Pompeu. Dificilmente poderia recusar.

- E os teus acompanhantes? Como regressaram à costa?

- O capitão grego estava decidido a ver-se livre deles, por achar que lhe davam azar. Mal nos separámos de Filipe, dirigimo-nos para aqui, para este local junto ao Nilo. Há um templo naquela clareira, com uma sacerdotisa de Osíris. A minha mulher foi ontem consultá-la.

Depois foi sozinha banhar-se no rio, e não regressou. - Olhei o espião com firmeza, com a visão enevoada pelas lágrimas.

O homem não acreditou em nada do que eu disse.

- Portanto, admites que já tinhas estado no Egipto! Foi certamente esse o motivo pelo qual foste seleccionado para esta missão, porque já conhecias o terreno.

- Que missão? Isto é absurdo! Não ponho os pés no Egipto há trinta anos...

- Isso é o que tu dizes. Talvez a tua mulher, quando a encontrarmos, conte uma história diferente. O templo de que falas está abandonado há anos. A velha que assombra este lugar não é sacerdotisa nenhuma; é uma espécie de bruxa semi-louca.

O oficial interrompeu-o.

- Não estamos a chegar a lado nenhum com esta conversa. O corpo do exército não está longe. Tenho de prosseguir com a guarda

94avançada. Deixarei contigo homens suficientes para vigiar estes prisioneiros, e podes entregá-los ao capitão Aquilas quando ele chegar.

- E a mulher? E se não conseguirmos encontrá-la?

O oficial observou-me durante longos momentos. Aliviou a pressão da lança contra mim.

- Se queres saber a minha opinião - disse ele -, acho que o romano está a dizer a verdade, acerca da mulher pelo menos. Mas que sei eu? Não passo de um soldado. Não possuo a mente tortuosa dos espiões.

Recuou e baixou a lança, espetando a ponta no solo para remover as marcas do meu sangue. A um sinal seu, os soldados avançaram para me prenderem as mãos atrás das costas; Rupa e os rapazes já tinham sido presos da mesma forma.

- E a carroça e as mulas? - disse eu.

- Serão confiscadas - disse o espião -, juntamente com aquele baú que trazes contigo. Estou curioso por ver o que tem dentro. Ordenou aos soldados que retirassem o baú da carroça.

Lembrei-me das cinzas de Cassandra, e agradeci a Osíris o facto de Rupa já as ter espalhado no rio.

- Se insistes em vasculhar a nossa roupa suja e os cosméticos da minha mulher, faz o favor - repliquei.

Fomos agrilhoados uns aos outros pelos tornozelos e obrigaram-nos sentar na carroça, os rapazes lado a lado à frente, Rupa e eu dos lados, um diante do outro. O espião esvaziou o baú na beira da estrada e remexeu no conteúdo. Tornou-se manifesto que não passava de um vulgar ladrão, pois meteu no bolso as moedas e alguns artigos de valor, como um pente de prata e ébano que Betesda tinha insistido em trazer consigo. Também remexeu no bolso da minha túnica, de onde retirou o frasco de alabastro.

- Ah, o que é isto? - disse ele.
- Um presente de uma senhora.

- Perfume? Não me digas que, hoje em dia, os romanos se perfumam como Catamitas?

95- Os frascos podem conter outras coisas, para além de perfume respondi eu.

Ele olhou-me com ar entendido.

- Veneno, aposto. Algo que os espiões trazem consigo, para o caso de precisarem de uma saída rápida e limpa. Ou estavas a pensar usá-lo noutra pessoa? No Rei Ptolemeu, talvez? Ah! O que quer que seja que tenha dentro, é um belo recipiente - disse ele, metendo-o no bolso juntamente com as moedas e o pente.

Em breve comecei a ouvir um longínquo relinchar de cavalos proveniente da direcção de Naucrátis, acompanhado por ordens gritadas, o ranger de rodas de carroças, e o som de tambores militares e de muitos pés a marchar em uníssono. Poucos sons são tão marcados, ou tão perturbadores, como a aproximação de um exército numeroso. Os pássaros levantam voo, vibra no ar um zumbido e a própria terra estremece.

O espião reuniu os artigos que não lhe interessavam e meteu-os atabalhoadamente no baú, depois ordenou aos soldados que pusessem o baú outra vez na carroça. Os rapazes ganiram, encolhendo os dedos dos pés para não lhos esmagarem, mas foi Rupa, com as suas pernas compridas, que sofreu maior desconforto.

A partir do limitado campo de visão que tinha no alto da carroça com as costas voltadas para a estrada, Rupa à minha frente e o rio para além dele -, tive de esticar o pescoço para ver a torrente de flâmulas ondulantes e capacetes emplumados do exército que se aproximava. Ao chegarem mais perto, começaram a entoar um cântico de marcha extraordinariamente grosseiro e incrivelmente elaborado. Era em egípcio mas, depois de as ouvir repetir incessantemente, fui capaz de perceber as palavras:

Ele veio bater à porta de Ptolemeu,

mas não chegou a pisar a terra do Egipto. Ainda dentro do barco,

o capitão Aquílas cortou-lhe o pescoço.

96Pelo que está morto, o romano está morto, como todos ficarão a saber

ao verem a sua cabeça! Urra! Urra!

Como todos ficarão a saber

ao verem a cabeça

do chamado Grande, que está morto! Chamado! Chamado!

Não se comparava a Alexandre, e foi cortado como o nó Górdio!

Urra! Urra!

Esta canção é curta mas a marcha é longa, pelo que de novo a cantaremos:

Urra! Urra!

Veio bater à porta de Ptolemeu,

mas não chegou a pisar a terra do Egipto...

Os guardas mantiveram-se postados em torno da carroça, mas o espião foi ter com as tropas e perdi-o de vista. O estampido dos passos da marcha ressoava cada vez mais alto. Os anéis de ferro que sustinham a borda superior da carroça começaram a entrechocar-se e a dançar contra a madeira, com a força da vibração. Se tivesse as mãos livres, teria tapado os ouvidos. Olhei para os rapazes e vi medo nos seus olhos. Rupa mexia-se com nervosismo, com as pernas atravancadas contra o baú. Todos eles olharam para mim em busca de confiança, Pelo que me debati para manter o rosto impassível, apesar do calafrio de pânico que sentia. Os grous escondidos entre os juncos da beira do Nilo levantaram voo, batendo as asas e emitindo gritos estridentes. Fiquei a vê-los fugir, cheio de inveja.

97O exército alcançou-nos e passou por nós, ribombante. O cântico era ensurdecedor:

Não se comparava a Alexandre, e foi cortado como o nó Górdio!

Milhares de homens passaram por nós a marchar. Em seguida, ouviram-se os cascos da cavalaria. Depois da cavalaria, vieram as carroças transportando as armas e as provisões. Por entre o estrépito das rodas, pareceu-me ouvir, ali perto, a voz aflautada do espião, a discutir qualquer coisa com alguém. Aparentemente, tomaram uma decisão, pois a conversa terminou e um soldado subiu para a carroça e mandou andar as mulas. Quando nos juntamos à procissão do exército do Rei Ptolemeu, o espião espreitou para o interior da carroça e lançou-me um sorriso sardônico.

- De facto, não encontrámos vestígios da tua mulher, romano. Deve ser bastante inteligente, para ter conseguido encobrir tão bem a fuga. Não me agrada nada deixar escapar um espião. Mais cedo ou mais tarde, hei-de encontrá-la. E, quando isso acontecer... - Enrolou o lábio, numa expressão que me gelou os ossos, e depois desapareceu.

98CAPíTULO VIII

Ao cair da noite, o exército chegou a uma fortaleza algures a leste de Alexandria, entre o mar, a norte, e o grande canal, a sul.

Tive a vaga sensação de que a carroça tinha parado. Estava a dormitar, não devido ao cansaço físico, mas a uma espécie de estupor mental; só entrando num estado de semi-sonolência e fogos-fátuos de pesadelos, é que a minha mente conseguia escapar à intolerável realidade composta por tédio e pavor, desconforto físico e dor paralisante.

Os grilhões que me prendiam os tornozelos foram desapertados. Esforcei-me por continuar a dormitar, mas despertei de vez ao sentir-me picado por qualquer coisa afiada.

- De pé, romano! - O espião, acompanhado por uns quantos soldados, empurrou-nos para fora da carroça. Doíam-me os ossos, de terem sido abanados durante um dia inteiro, sobre uma estrada particularmente gasta e com sulcos vincados de rodas. Sentia as pernas fracas, por terem estado presas durante horas. Cambaleei como um aleijado, com uma lança encostada às costas para me fazer avançar.

Rodeavam-nos muralhas altas, com gigantescos taludes de terra batida. No amplo recinto do interior da fortaleza, o gigantesco exército começou a tratar de descarregar as provisões, preparando-se para passar a noite. Os edifícios no interior da fortaleza eram quase todos simples e utilitários, mas havia um que se destacava devido à sua opulência.

99Colunas magníficas pintadas de cores vivas sustentavam um telhado de cobre luzidio. Foi para esse edifício que o espião nos conduziu.

Esperei no exterior, com Rupa e os rapazes, cercados por soldados, enquanto o espião entrava. Demorou-se bastante tempo. Acima de nós, o céu limpo parecia estar em chamas. O Sol, no ocaso, pintava as nuvens de escarlate e açafrão, tornando-as incandescentes como metal fundido; depois, a luz extinguiu-se, e o céu adquiriu um azul-profundo, semelhante ao do ferro que arrefece; finalmente escureceu, ganhando uns tons de azul ainda mais profundos, ornamentados de estrelas prateadas. Havia-me esquecido da beleza de cortar a respiração do pôr do Sol egípcio, mas a única sensação que o esplendor do final do dia despertou em mim foi de angústia. Betesda não estava ali, para partilhá-lo comigo.

Passado muito tempo, o espião regressou, parecendo satisfeito consigo mesmo.

- Que grande dia para ti, romano! Terás a extraordinária honra de conhecer pessoalmente o capitão Aquilas!

O assassino? estive prestes a dizer. Era difícil imaginar outro modo de descrever a morte de Pompeu. Aquilas era claramente um homem de quem não se podia esperar misericórdia.

Ao longo do átrio, decorado com uma profusão tumultuosa de hieróglifos, alinhavam-se lamparinas com cabeça de serpente, montadas sobre tripés de ferro. O espião conduziu-nos a uma câmara de tecto alto, decorada num estilo mais grego do que egípcio, com tapetes de padrões geométricos no chão, e grandes murais com cenas de batalhas nas paredes. Os escribas e outros funcionários corriam de um lado para o outro do amplo espaço. No centro de toda aquela movimentação, estavam dois homens de expressões muito diferentes, com as cabeças quase juntas, envolvidos em discussão acalorada.

Reconheci imediatamente Aquilas, de o ter avistado da galera de Pompeu. Envergando as várias insígnias que o distinguiam como capitão da Guarda Real, com uma pluma vermelha a adornar-lhe o capacete

100pontiagudo, o seu rosto bronzeado parecia muito escuro e a musculatura positivamente taurina ao lado da figura pálida e magra que se encontrava a seu lado. O homem franzino tinha um rosto comprido e uns chamativos olhos verdes. As suas vestes de linho amarelo ostentavam um debrum com bordados a ouro, usava na testa uma faixa de ouro maciço, e um peitoral magnífico de filigrana de ouro adornava-lhe o peito estreito. Era excessivamente velho para ser o Rei Ptolemeu, e no entanto tinha a aparência de um homem habituado a dar ordens e a ser obedecido.

Quando nos aproximámos, olharam os dois para nós e interromperam a conversa.

O espião fez uma vénia tão profunda, que quase tocou com o nariz no chão. Enquanto romano, eu não estava habituado a presenciar semelhantes demonstrações de subserviência, que são parte intrínseca do modo de vida egípcio, ou melhor, do modo de vida de qualquer estado com um governante absoluto.

- Excelências - sibilou ele, mantendo os olhos baixos -, aqui está o homem de quem lhes falei, o espião romano que apreendi esta manhã perto do templo abandonado de Osíris, a sul de Naucrátis.

Ambos os homens olharam para mim - embora o termo ”homem” não fosse inteiramente adequado ao indivíduo pálido, pensei eu, começando a perceber que, muito provavelmente, se tratava de um eunuco, outra característica da vida da corte nas monarquias hereditárias a que os romanos não estão habituados.

Aquilas lançou-me um olhar mal-humorado:
- Como disseste que ele diz que se chama?
- Gordanio excelência.

- Gordiano - corrigi. Até eu fiquei surpreendido com a segurança do meu tom de voz. Habituados a ouvir os súbditos falarem em sussurros e em tom bajulador, Aquilas e o companheiro pareceram tomados de surpresa ao ouvirem um cativo falar por sua iniciativa, atrevendo-se ainda por cima a olhá-los directamente nos olhos. Estaria a ser imprudente?

101Eu era um homem sem nada a perder, excepto a minha dignidade romana. Senti o manto dessa dignidade sobre os ombros, de forma tão palpável como se se tratasse de uma veste resistente, ainda que um pouco esfarrapada.

O capitão da Guarda Real franziu ainda mais o sobrolho. O companheiro olhou-me fixamente sem pestanejar.

- Gordiano - repetiu Aquilas, carrancudo. - O nome não me diz nada.

- Como te disse, excelência, ele foi visto na galera de Pompeu, no momento em que tu próprio te afastavas no esquife real, na companhia do chamado Grande.

- Não reparei nele. Gordiano? Gordiano? Diz-te alguma coisa, Potino?

O eunuco juntou as pontas dos dedos e franziu os lábios.

- Talvez - replicou, e bateu palmas. Apareceu imediatamente um escriba, a quem Potino falou em voz baixa, enquanto me observava com ar pensativo. O escriba desapareceu atrás de uma cortina.

- E os outros? - perguntou Aquilas.

- São os companheiros de viagem do romano. Como podes ver...
- Não estava a falar contigo - dardejou o capitão. O espião estremeceu e Prostrou-se em terra.

Eu pigarreei.

- O indivíduo alto chama-se Rupa. É mudo de nascença, mas não é surdo. Trabalhou com uma trupe de mimos em Alexandria, antes de ir para Roma. Ao falecer, a irmã confiou-o à minha guarda, e eu adoptei-o. É um homem livre e cidadão romano. Os dois rapazes são escravos e irmãos. Nem com as três cabeças juntas me parece que se conseguisse reunir inteligência suficiente para produzir um espião sofrível.

- Senhor! - protestaram Mopso e Ândrocles em uníssono, em voz aguda. Rupa franziu o sobrolho, não compreendendo inteiramente o sentido do meu comentário; a simplicidade de espírito fazia dele um homem difícil de insultar.

102Aquilas resmungou e reprimiu um sorriso. O rosto do eunuco manteve-se impassível, e permaneceu inexpressivo quando o escriba regressou, trazendo consigo um rolo de papiro. O papiro tinha sido desenrolado até uma passagem específica, para a qual o escriba apontou ao passá-lo para as mãos de Potino.

- ”Gordiano, chamado o Descobridor” - leu Potino. - Sempre constas do meu livro de nomes. - ”Romano, nascido durante o consulado de Espúrio Postúniio Albino e Marco Minúcio Rufo, no Ano 643 da Era Romana” - o que significa que tens, quê?, sessenta e dois anos? E nota-se que os tens, devo dizer-te! - ”Esposa: meio-egípcia, meio-judaica, de nome Betesda, inicialmente sua escrava (adquirida em Alexandria), mãe de sua filha. Dois filhos, ambos adoptados, um nascido livre, chamado Eco, o outro nascido escravo e chamado Meto
- acerca de quem ver adenda.” - Potino olhou severamente para o escriba, que baixou a cabeça como um cão repreendido e foi a correr buscar outro rolo. O eunuco preparava-se para continuar a ler quando, avistando alguém por trás de mim, assumiu abruptamente uma postura subserviente, com as mãos estendidas ao longo do corpo e a cabeça baixa. Aquilas fez o mesmo.

O toque de uma flauta acompanhou a chegada do jovem Rei. Todas as actividades que tinham lugar na ampla câmara foram interrompidas. Os vários escribas e funcionários pararam de fazer o que estavam a fazer, imobilizando-se como se tivessem sido atingidos pela Medusa. Aparentemente, de acordo com uma ordenação hierárquica de todo obscura para mim, alguns deles estavam autorizados a permanecer de pé, enquanto outros caíam de joelhos, e ainda outros se prostravam por inteiro, de rosto no chão e braços estendidos. Não fosse eu estar em dúvida sobre o procedimento que devia adoptar, o espião informou-me.

- Para o chão, cão romano! De joelhos, e rosto por terra! - E fez acompanhar esta ordem por várias picadas nas minhas costelas. Entrevi o Rei apenas de soslaio, resplandecente nas suas vestes de ouro e prata, e envergando a coroa de uraeus com cabeça de serpente.

103Com as mãos presas atrás das costas, não me foi fácil cair de joelhos e baixar o rosto até ao chão. Era uma postura humilhante, que me enfurecia; não foi apenas o afluxo de sangue à cabeça que me fez corar. Atrás de mim, ouvi Ândrocles sussurrar ao irmão:

- Olha o senhor com o rabo espetado no ar! - Seguiu-se um guincho abafado, quando o espião lembrou a Ândrocles que ele assumira idêntica postura vulnerável, dando-lhe um pontapé nessa parte da sua anatomia. O próprio espião deixou-se então cair de joelhos, no momento em que o Rei e a sua comitiva passaram.

- Capitão Aquilas, e camareiro-mor - disse Ptolemeu. Podia tratar-se de um rapaz, mas a voz dele já era de homem, mais grave do que eu esperara.

- Majestade - responderam eles em uníssono.

- Podem ordenar aos meus leais súbditos que se levantem e prossigam os seus afazeres - disse Ptolemeu.

Potino transmitiu a ordem. De imediato, o compartimento fervilhou de movimento, como se uma colecção de estátuas tivesse adquirido vida de um momento para o outro.

O espião levantou-se. Eu preparava-me para fazer o mesmo, mas ele deu-me um pontapé, ciciando:

- Não te mexas!

Na posição em que me encontrava pouco conseguia ver, mas conseguia ouvir tudo. O flautista continuou a tocar, mas baixou o volume. Era uma melodia curiosa, simples à primeira audição mas repetida em estranhas variações. O pai de Ptolemeu recebera o sobrenome de Ptolemeu Aulete, o Flautista, devido ao seu amor pelo instrumento. Tratarse-ia de uma das composições do falecido Rei? Um jovem monarca andar acompanhado por este tipo de símbolo da sua ligação a seu pai era o género de dispositivo que um político romano utilizaria; travando uma luta de morte com sua irmã Cleópatra, era benéfico para o jovem Rei de usar todos os meios à sua disposição para reclamar para si o legado do pai.

104- julguei que estivesses a repousar nos aposentos reais, Majestade, depois dos rigores da viagem - disse Potino.

Ptolemeu não respondeu de imediato. Voltou as costas a Potino e avançou na minha direcção, até eu conseguir pressentir a sua presença a meu lado, tão próxima que me chegava às narinas o odor das suas sandálias perfumadas.

- Disseram-me que capturaste um espião romano, camareiro-mor.
- Talvez, Majestade. Ou talvez não. Estou a tentar aprofundar a questão. Ah, aqui está um dos meus escribas, com a informação adicional que lhe pedi.

Depreendi que outro rolo tinha sido entregue. Enquanto Potino lia, murmurando para si próprio, o Rei permaneceu de pé diante de mim. Fixei os olhos num escaravelho com cornichos que calhou atravessar o chão diante do meu nariz.

- Então, camareiro-mor? - disse o Rei. - O que foi que descobriste?

Potino pigarreou.

- O homem chama-se Gordiano, de cognome o Descobridor. Fez carreira reunindo provas para os advogados dos tribunais romanos. Parece ter conquistado a confiança de um grande número de romanos poderosos ao longo dos anos: Cícero, Marco Antônio...

- E Pompeu! - disse o espião atrás de mim. Seguiu-se um momento de constrangedor silêncio. O homem falara sem ser interrogado e não era difícil imaginar Potino a lançar-lhe um olhar severo.

- Sim, Pompeu - disse o eunuco com secura. - Mas, de acordo com as minhas fontes, os dois tiveram um grave desentendimento no início da guerra entre Pompeu e César. Pelo que é bastante improvável que este romano fosse um espião de Pompeu, como o captor alega. Tudo indica o contrário!

- O que queres dizer com isso, camareiro-mor?

- O indivíduo tem um filho, Majestade, chamado Meto, que é nem mais nem menos que um dos confidentes mais íntimos de César;

105na verdade, os outros soldados referem-se-lhe como ”o companheiro de tenda de César”,

Gemi interiormente. A natureza exacta da relação de Meto com o seu imperador sempre fora uma fonte de perplexidade para mim, e um vexame quando os outros a comentavam. Ao que parecia, semelhantes especulações tinham chegado até ali, ao Egipto!

Ptolemeu mostrou-se intrigado:

- ”O companheiro de tenda de César”? O que é que isso implica exactamente, camareiro-mor?

O eunuco fungou:

- Os romanos divulgam continuamente mexericos ordinários de natureza sexual acerca uns dos outros, Majestade. Os políticos insultam os seus rivais, acusando-se de praticarem este ou aquele acto menos próprio. Os cidadãos comuns dizem o que lhes agrada acerca de quem os governa. Os soldados compõem enigmas e cançonetas, e mesmo toadas de marcha, em que se vangloriam das conquistas sexuais do seu comandante, ou troçam de outras tendências mais embaraçosas.
- Troçam? Os soldados dele... troçam... de César?

- Os romanos não são como nós, Majestade. São bastante infantis no que toca a questões sexuais, e não se respeitam uns aos outros, nem os deuses. A sua primitiva forma de governo, em que cada cidadão está em guerra com todos os outros numa luta interminável pela riqueza e pelo poder, tornou-os tão ímpios quanto grosseiros.

- Os soldados de César são fantasticamente leais. Lutam até à morte por ele - replicou calmamente o Rei Ptolemeu. - Não foi o que tu me disseste, camareirO-mor?

- Assim indicam as nossas fontes de informação. Há muitos exemplos que o provam, como o do soldado pertencente ao destacamento naval que, em Massília, continuou a lutar mesmo depois de perder vários membros, e morreu a gritar pelo nome de César; e também...

- E, no entanto, sentem-se autorizados a troçar dele. Como é que isso pode ser? Julgava que estes homens eram tão ferozmente dedicados

106a César por reconhecerem nele algum aspecto divino e estarem dispostos a submeter-se a essa divindade; não se diz que ele descende da deusa romana Vénus? Mas um mortal não troça de um deus; nem um deus permite que quem o adora o ridicularize.

- Como te disse, Majestade, os Romanos são um povo ímpio, políticamente corrupto, sexualmente pouco sofisticado e espiritualmente poluído. É por isso que temos de tomar todas as precauções com eles.

Ptolomeu aproximou-se ainda mais de mim. O escaravelho que passeava debaixo do meu nariz apressou-se a sair do caminho para dar espaço ao dedo grande do pé da sandália do Rei. Não pude deixar de reparar que ele tinha as unhas imaculadamente bem tratadas e que os seus pés cheiravam a água de rosas,

- Quer dizer pois, camareiro-mor, que este homem conhece César?
- Sim, Majestade. E, se for um espião, não deve ter sido contratado por Pompeu; parece-me mais provável que tenha sido enviado por César para espiar Pompeu e testemunhar a sua chegada às nossas costas.

- Nesse caso, não há dúvida de que lhe demos muito que ver! disse Aquilas, entrando abruptamente na conversa.

- Põe-te de joelhos, romano - disse Ptolemeu.

Gemi e senti uma pontada de dor nas costas, do esforço que fiz para me soerguer sem usar as mãos. O Rei deu alguns passos para trás e olhou para mim de alto. Atrevi-me a devolver-lhe o olhar por breves momentos, antes de baixar os olhos. O rosto dele era de facto o de um rapaz de quinze anos. A sua ascendência grega era evidente nos olhos azuis e na pele clara. Não era particularmente atraente - tinha uma boca grande demais e um nariz excessivamente comprido para satisfazer os ideais gregos de beleza -, mas os seus olhos faiscavam de inteligència, e a curva do canto da boca indiciava um sentido de humor endiabrado.

Chamas-te Gordiano-chamado-o-Descobridor?

- Sim, Majestade.

107- O espião que te capturou acusa-te de estares ao serviço de Pompeu. Verdadeiro ou falso?

- Não é verdade, Majestade.

- O meu camareiro-mor afirma que deves estar ao serviço de César.
- Também não é verdade, Majestade.

- Mas é verdade que conheces César?

- Sim, Majestade. - Via-se que César o intrigava, e que era a natureza imprecisa do meu relacionamento com César que despertava a sua curiosidade a meu respeito. A minha própria vida tinha menos valor para mim próprio naquele momento do que no início do dia anterior, mas devia a Rupa e aos rapazes fazer os possíveis para nos manter a todos vivos e juntos; por conseguinte disse: - Se agradar a Sua Majestade, posso contar-te uma ou outra coisa acerca de César; desde que me seja permitido preservar a cabeça, claro.

Sem olhar directamente para ele, percebi ainda assim que o canto da boca se lhe retorceu num sorriso matreiro. O jovem Rei do Egipto estava divertido.

- Tu, espião. Como te chamas?

O homem forneceu um nome com numerosas sílabas, egípcio e não grego. Ptolemeu não estava evidentemente para se maçar a pronunciá-lo, pois continuou a dirigir-se ao homem pelo título da profissão.

- O que te levou a pensar, espião, que este romano era um homem de Pompeu?

Na sua voz aflautada, o espião passou a contar onde me vira pela primeira vez, e que voltara a encontrar-me perto do templo à beira do Nilo.

Ptolemeu voltou os olhos na minha direcção.

- Bem, Gordiano-chamado-o-Descobridor? O que tens a dizer em tua defesa?

Repeti a história do motivo que me trouxera ao Egipto, por que fora capturado pela frota de Pompeu, terminando com o desaparecimento de Betesda na véspera e com a minha captura na manhã daquele dia.

108Todos tínhamos estado a falar em grego. Abruptamente, Ptolemeu dirigiu-se-me em latim. Tinha uma pronúncia esquisita, mas a gramática era impecável. - O espião parece-me um pouco idiota. O que dizes a isso, Gordiano-chamado-o-Descobridôr?

Pelo canto do olho, consegui ver que o espião fez uma careta, incapaz de seguir a nova língua. Respondi em latim:

- Quem sou eu para contradizer o juízo de Sua Majestade?

- Deves ser um homem de experiência considerável, Gordiano-chamado-o-Descobridor. Diz a verdade: o que tens a observar acerca deste espião? Fala com sinceridade: ordeno-te que o faças! Pigarreei.

- O homem pode ou não ser um idiota, Majestade, mas tenho a certeza de que é um ladrão.

- Porquê?

- Depois de me ter mandado prender, e aos meus companheiros, deixando-nos sem defesa possível, remexeu no meu baú de viagem, ostensivamente no intuito de obter provas que me incriminassem. Não descobrindo nada dogénero, meteu ao bolso algumas coisas de valor.

O canto da boca de Ptolemeu torceu-se na direcção oposta, produzindo uma careta retorcida. Fixou os olhos no espião e voltou a falar

em grego:

- O que roubaste a este romano?

O espião deixou cair o queixo e estremeceu. Demorou demasiado tempo a responder.

- Nada, Majestade.

- Quaisquer despojos tirados a um inimigo são propriedade do Rei, cujos funcionários só podem dispensá-los de acordo com os desejos do Rei. Não tens conhecimento disso, espião?

- Claro que sim, Majestade. Nunca pensaria em... isto e, nunca me passaria pela cabeça tirar o que quer que fosse a um prisioneiro, sem primeiro... sem o entregar directamente a...

Em latim, Ptolemeu disse-me:

109- O que te roubou ele, Gordiano-chamado-o-Descobridor?
- Moedas, Majestade.

- Sestércios romanos?

- Sim, Majestade.

- Se o homem tiver umas quantas moedas romanas em sua posse, ou mesmo um saco cheio delas, tal dificilmente constituirá uma prova de que tos roubou.

- Suponho que não, Majestade.

- Fazer uma acusação injustificada com semelhante gravidade contra um representante do Rei é uma ofensa capital.

Tentei engolir, mas tinha a boca seca como giz.
- Houve outra coisa que ele roubou do meu baú.
- O quê?

- Um pente, Majestade. Um belo objecto, de prata e ébano. A minha mulher insistiu em trazê-lo consigo... por razões sentimentais.

A voz entaramelou-se-me na garganta.

Ptolemeu voltou de novo os olhos para o espião. O homem não percebera nada da nossa conversa em latim, mas apesar disso começou a tremer e a ranger os dentes.

- Capitão! Aquilas avançou.
- Majestade?

- Manda os teus homens despirem o espião; tirem-lhe a túnica e tudo o que ele tiver consigo. Revirem-lhe os bolsos e as algibeiras, para vermos o que encontram.

- Imediatamente, Majestade.

Os soldados convergiram para o espião. Num piscar de olhos, o homem ficou nu. Queixou-se atabalhoadamente da indignidade a que estava a ser submetido e ficou escarlate da cabeça aos pés. Desviei os olhos, que por acaso recaíram sobre Potino. Seria imaginação minha, ou o eunuco aproveitava discretamente para olhar com atenção o escroto do homem nu?

110O flautista continuava a tocar em fundo. Por momentos, eu deixara de prestar atenção à música, embora ele nunca tivesse parado de tocar a mesma melodia em intermináveis variações.

- O que encontraram os teus homens, capitão?

- Moedas, Majestade. Pedaços de pergaminho. Um frasco de perfume, feito de alabastro. Alguns...

Um pente?

Sim, Majestade. - Aquilas ergueu-o diante do Rei, que o observou de alto mas não lhe tocou.

- Um pente de prata e ébano - observou Ptolemeu.

O espião, de pé, sozinho e nu, retorcia as mãos e tremia violentamente. Ouviu-se o som de um líquido a correr, e vi que a bexiga dele se esvaziava involuntariamente. Ele ficou na poça da sua própria urina, corando furiosamente, mordendo os lábios e choramingando.

O flautista continuava a tocar. A melodia passou a uma nota mais alegre e a um ritmo mais rápido.

- Tem misericórdia de mim, Majestade, suplico-te! tartamudeava o espião.

- Capitão.
- Majestade?

- Manda executar imediatamente este homem.

Potino avançou.

- Majestade, o homem é um agente de valor. Possui muitos conhecimentos altamente especializados. Por favor, considera...

- Este homem roubou o Rei. Mentiu ao Rei. Tu próprio testemunhaste a mentira. Estás a sugerir, camareiro-mor, que discutamos a hipótese de ele não ser executado?

Potino baixou os olhos.

- Não, Majestade. As palavras do rei envergonham-me.
- Capitão Aquilas.

- Majestade?

111- Executa imediatamente este homem, ali mesmo onde se encontra, para que todos os presentes testemunhem a prontidão da justiça do Rei.

Aquilas avançou a passos largos. Os soldados agarraram o espião pelos braços, não apenas para o Imobilizarem, mas para o manterem de pé; as pernas dele tinham perdido a firmeza e, de outro modo, ele teria sucumbido. Aquilas colocou as suas enormes mãos em volta do pescoço do homem e estrangulou-o. O vermelho que anteriormente cobria o rosto do homem transformou-se em roxo. O corpo dele entrou em convulsões. Da sua boca provinham sons esquisitos, até um baque repugnante pôr fim ao som gorgolejante. Com um resmungo de nojo, Aquilas largou-o. A cabeça do homem tombou para um dos lados e o seu corpo inerte caiu ao chão.

O compartimento ficou em silêncio, à excepção da melodia alegre do flautista.

- Camareiro-mor.

- Majestade?

- Manda tirar os grilhões ao romano e aos seus acompanhantes; manda devolver-lhe os artigos que lhe foram roubados; manda instalá-lo em aposentos adequados, com o devido conforto. Mantém-no à mão, para o caso de o Rei desejar falar com ele.

Potino fez uma vénia profunda. - Far-se-á como Sua Majestade ordena.

Os mesmo soldados que tinham despido e imobilizado o espião cercaram-me, começando a desfazer os nós das cordas que me prendiam os pulsos. Entretanto, o Rei Ptolemeu saía do compartimento, ao som de nova melodia do seu flautista, esta ainda mais animada.

Foi assim que travei conhecimento com o Rei egípcio e os respectivos conselheiros, e tive a minha primeira experiência da vida na corte real.

112CAPÍTULO IX

As nossas instalações eram simples, mas adequadas: um quarto de pedra, com camas de campanha para todos (com Mopso e Ândrocles na mesma), uma bacia de metal a um canto, um tapete no chão, e uma pequena lamparina, suspensa de um gancho no tecto. Havia mesmo uma janela estreita, que dava para um pátio de areia, onde estavam acampados os soldados. Acima da curva da muralha que contornava o pátio, via-se um céu escuro e pejado de estrelas.

Serviram-nos de comer: uma tigela de sopa de lentilhas para cada um, biscoitos de milheto, tâmaras e figos secos. A comida desapareceu quase imediatamente.

Vieram finalmente bater-nos à porta um par de soldados, trazendo-me o meu baú. Depositaram-no no centro do quarto e voltaram a sair. Abri a tampa. Ao cimo, Vi o pente de prata de ébano de Betesda. Peguei nele e passei as pontas dos dedos pela extremidade dos dentes. Por baixo dele, estava uma saca cheia de moedas e, ao lado da saca, quase escondido por uma prega de tecido, vi o frasco de alabastro que Cornélia me tinha dado.

Apaguei a lamparina e deitei-me, apertando nos dedos o pente de prata e ébano. Pensei em Diana e Eco, que ficariam devastados quando soubessem o que tinha acontecido a Betesda. Como poderia jamais contar-lhes? Teria sequer essa possibilidade? Roma parecia tão longe. Senti-me

113tomar por uma grande frieza, e pensei no frasco de alabastro. Talvez fosse, afinal, vontade dos deuses que consumisse o seu conteúdo...

Perto de mim, Mopso e Ândrocles conversavam baixinho. Preparava-me eu para lhes pedir que se calassem, quando Mopso me perguntou:
- Senhor, Roma será assim?

- O que queres dizer com isso, Mopso? - Lá fora, uma sentinela deu o sinal de rendição. O vento suspirava no topo das palmeiras que ficavam logo à saída da fortaleza. O mundo tinha-se tornado muito calmo e silencioso.

- Quando César regressar a Roma e se fizer rei, Roma será assim?
- indagou Mopso.

- Continuo sem perceber o que queres dizer.

- O que ele quer dizer - interveio Androcles, percebendo que a pergunta do irmão precisava de ser esclarecida - é o seguinte: as pessoas terão de adular, e de rastejar e de fazer vénias a César, e de o tratar por ”Majestade”, incluindo os cidadãos livres como tu, Senhor?

- Sim, Senhor - prosseguiu Mopso -, e César poderá dizer: ”Não gosto deste sujeito, manda matá-lo imediatamente!”, e vem uma pessoa, só porque o Rei César disse, e estrangula o tipo, assim sem mais nem menos? - E exemplificou o que queria dizer, levando as mãos ao pescoço do irmão. Ândrocles aderiu à brincadeira abanando os braços e as pernas e fazendo um ruído de engasgado.

Na cama ao lado, ouvi Rupa emitir uma gargalhadinha divertida mas, para mim, o que eles estavam a fazer nada tinha de engraçado.

- Não sei, rapazes. Quando regressarmos... - Estive quase a dizer: ”Se regressarmos”, mas não valia a pena lançar sementes de dúvida. - Quando regressarmos, Roma será certamente diferente. Os Egípcios sempre foram governados por um Rei; antes da dinastia dos Ptolemeus, havia os Faraós, cujos reinados remontam a milhares de anos, aos tempos das Pirâmides e da Esfinge. Mas nós nunca tivemos um rei - bem, pelo menos nos últimos quatrocentos e cinquenta anos. E nunca nenhum romano foi rei, nem mesmo César. Não temos qualquer

114experiência de monarquia, nem regras que a giram. Imagino que, tal como acontece com a confusão que é esta guerra, será mais como uma peça que os intervenientes vão construindo à medida que vai progredindo. Agora parem com essas discussões e vão dormir.

- Se não formos, mandas Rupa estrangular-nos, senhor?
- Não me tentes, Mopso!

Eles acabaram por se acalmar, e eu voltei a ouvir os suspiros da brisa nas palmeiras. Afastei do espírito todos os pensamentos relacionados com o frasco de alabastro; se eu morresse, quem tomaria conta dos rapazes e de Rupa nos dias de perigo que se avizinhavam? Apertei o pente entre os dedos, até que finalmente o sono - o abençoado sono, com o seu manto de esquecimento - começou a aproximar-se. Dentro da minha cabeça, outro som veio juntar-se aos suspiros da brisa, e adormeci ouvindo a canção tocada pelo flautista de Ptolemeu, repetida uma vez e outra.

Na manhã seguinte, partimos para Alexandria.

Aparentemente, o corpo principal do exército ficava na fortaleza, sob o comando de Aquilas, enquanto o Rei e uma companhia armada pequena, mas substancial - seguiam para a capital.

Um par de soldados içou o meu baú para a carroça. Outro ficou encarregado de conduzir as mulas, enquanto eu seguia atrás, com Rupa e os rapazes; desta vez não íamos amarrados, como na véspera. Continuaríamos livres ao chegar à cidade? O Rei tinha dito que me queria à mão de semear, o que implicava que eu não teria a liberdade para ir para onde entendesse. Tendo em conta a situação crítica por que tínhamos passado na véspera, era uma sorte estarmos vivos; considerando o futuro, porém, senti-me apreensivo.

A estrada seguia para oeste, para longe do Nilo, ao longo do amplo canal de transporte de água potável do rio para a capital, no qual podiam navegar pequenas embarcações. Perguntei-me como seria Ptolemeu transportado para a cidade, e presumi que fosse de quadriga,

115até avistar, a seguir às fileiras de soldados rasos, uma barcaça cheia de enfeites dourados que seguia pelo canal. Era conduzida por barqueiros, que a faziam avançar a uma velocidade superior à da corrente - que era lenta - com a ajuda de umas estacas compridas. Despidos da cintura para cima, com os ombros e braços musculados cintilantes de suor, os barqueiros operavam com graciosa eficácia, fazendo assentar as estacas no fundo do canal, uma após outra, e repetindo depois a sequência.

A zona média da barcaça estava coberta por um grande pálio cor de açafrão, sob o qual se abrigavam o Rei e a respectiva comitiva incluindo o eunuco Potino -, de quem eu captava um ou outro vislumbre ocasional. De vez em quando, nos momentos em que a brisa soprava do canal, chegavam-me aos ouvidos umas quantas notas de música, tocadas pelo flautista do Rei, que me faziam arrepiar, apesar do crescente calor do dia.

já perto do meio-dia, um soldado a pé aproximou-se da nossa carroça.
- És Gordiano-chamado-o-Descobridor? - Exprimia-se em egípcio, mas com uma lentidão e clareza tais, que até eu conseguia percebê-lo.
- Sou.

- Vem comigo.

- Há algum problema?

- Sua Majestade ordenou-me que viesse buscar-te.
- E os restantes membros do meu grupo?

- Seguem na carroça. Tu vens comigo.

Rupa ajudou-me a descer da carroça. Disse-lhe ao ouVido:

- Toma conta dos rapazes na minha ausência. Não os deixes meterem-se em nenhum sarilho. Eles pensam que são mais espertos do que tu, mas tu és o mais forte. Não tenhas medo de lhes mostrar quem manda. Compreendeste?

Ele olhou para mim com uma expressão hesitante, mas acenou com a cabeça.

Chamei os rapazes. Eles chegaram-se à traseira da carroça e inclinaram-se na minha direcção; eu agarrei-os por uma orelha e aproximei-os de ambos os lados da minha cabeça.

116- Não se atrevam - não se atrevam! - a meter-se em sarilhos na minha ausência. Façam o que Rupa vos disser.

- Nos disser - repetiu Mopso. - O Rupa não fala... - As palavras dele terminaram num guincho, ao sentir o apertão que lhe dei na orelha.

- Perceberam perfeitamente o que eu quis dizer. Quando eu voltar, se souber que me desobedeceram, torço-vos as orelhas até vo-las arrancar. Perceberam?

- Sim, senhor! - gritou Mopso.
- E tu, Androcles?

O irmão achou que era mais sensato nada dizer, e limitou-se a acenar com a cabeça. Soltei-os. O soldado agarrou-me o braço com firmeza, e fez menção de me puxar atrás de si.

Quando é que voltas? - Perguntou Mopso, esfregando a orelha. Não tardo - repliquei por cima do ombro, embora o meu futuro estivesse cheio de incertezas.

Depois de atravessarmos as fileiras da infantaria em marcha, o soldado conduziu-me ao outro lado da estrada; descemos uma rampa que ia dar à margem do canal, ao ponto onde a barcaça real tinha atracado num ancoradouro. Os barqueiros estavam a aproveitar o intervalo para descansar uns momentos, encostados às estacas. Logo que eu embarquei, o chefe da tripulação ordenou-lhes que voltassem ao trabalho. Os barqueiros que ocupavam ambos os lados da proa da barcaça ergueram as estacas e mergulharam-nas nas águas. A barcaça começou lentamente a mover-se.

Potino espreitou de baixo do baldaquino e fez-me sinal para que me aproximasse. Havia uns degraus que iam dar aos aposentos reais, que ficavam abaixo do nível das águas, numa área sombreada deliciosamente fresca. O pálio cor de açafrão suavizava o brilho do Sol; carpetes sumptuosas suavizavam-me os passos. Aqui e ali, viam-se pequenos grupos de cortesãos. Muitos deles ostentavam nemes, um pano de cabeça

117de linho plissado, semelhante ao da Esfinge, de cores e padrões diversos, conforme a categoria de cada um; outros optavam por perucas cerimoniais, sob as quais usariam, presumivelmente, o cabelo rapado. Foram-se afastando para me dar passagem até ao centro da barcaça, onde avistei o Rei Ptolemeu, sentado no trono; diante dele, havia outras duas cadeiras, muito menos opulentas, ambas decoradas de prata com embutidos de ébano e marfim, os amplos assentos cobertos de almofadas macias. Uma delas era ocupada por Potino. A outra estava vazia.
- Senta-te - disse Potíno.

Sentei-me, apercebendo-me de que o trono de Ptolemeu estava montado sobre um estrado. Tratava-se de uma plataforma baixa, mas era o suficiente para me obrigar a inclinar o queixo para cima, se me atrevesse a olhar para ele. Se baixasse os olhos, eles repousariam naturalmente sobre um pote de barro coberto, colocado ao lado dos pés do Rei. Ocorreu-me que o pote tinha o tamanho ideal para conter a cabeça de um homem.

- Dormiste bem, Gordiano-chamado-o-Descobridor?
- Bastante bem, Majestade.

- As instalações eram adequadas?
- Eram Majestade.

- óptimo. E tens fome?
- Talvez, Majestade.

- Nesse caso, vais comer alguma coisa na companhia de Potino. Por mim, nunca tenho fome ao meio-dia. Camareiro-mor, manda trazer comida.

Os criados trouxeram pequenas mesas, sobre as quais transportavam bandejas de prata com acepipes - azeitonas pretas e verdes recheadas de pimentão e pasta de noz, bolinhos de peixe polvilhados de sementes de papoila, bolos de milheto com mel, embebidos em vinho de romã.

Apesar da riqueza e abundância da refeição, tive alguma dificuldade em convocar o apetite, porque não conseguia deixar de pensar no que estaria dentro do pote de barro que se encontrava aos pés do Rei. Enquanto

118Potino e eu comíamos, o flautista do Rei tocou uma música. o homem estava sentado no chão, de pernas cruzadas, atrás de Ptolemeu, a curta distância do Rei. A música era diferente da que tinha tocado na véspera.

Ptolemeu pareceu ler-me os pensamentos,
- Gostas de música?

- Muito - respondi; pareceu-me a resposta mais segura. - Posso perguntar quem compôs essa música?

- O meu pai.

Fiz um aceno de cabeça. Tal como eu tinha suposto, Ptolemeu fazia-se acompanhar pela música do pai, a fim de reforçar a sua ligação ao Flautista, e portanto a sua legitimidade como sucessor do falecido rei. Mas depois ele acrescentou uma coisa que me obrigou a repensar as suas motivações, e a interpretação cínica que delas fizera.

- O meu pai tinha um talento notável para a música. Quando tocava, era capaz de fazer uma pessoa chorar um Momento, e rir-se no momento seguinte. Havia uma espécie de magia nos seus dedos e nos seus lábios. O artista que toca as músicas do meu pai capta as notas, mas nem sempre comunica o espírito das suas composições. Apesar disso, a música que ele compôs é a coisa que mais me recorda o meu pai. Se pensares bem, os monumentos que os homens deixam atrás de si, mesmo os maiores, apenas afectam um dos cinco sentidos, a vista. Olhamos para uma imagem gravada numa moeda, ou para uma estátua, ou lemos as palavras que foram escritas; vemos e recordamos. Mas arte alguma consegue captar e guardar para a posteridade a forma como um homem se ria, ou cantava, a entoação da sua voz; morto um homem, a sua voz e o seu riso, morrem com ele, desaparecem para sempre, e a memória que temos deles vai-se tornando cada vez menos precisa com a passagem do tempo. Por isso, foi uma sorte para mim que o meu pai tivesse composto música; e que outros sejam capazes de a reproduzir, mesmo que não o façam com a precisão com que ele o fazia. Nunca mais poderei ouvir o meu pai pronunciar o meu nome, mas

119posso ouvir as toadas que ele compôs, e dessa maneira sinto a sua presença persistir entre os vivos.

Atrevi-me a erguer os olhos para fixar os de Ptolemeu, mas o Rei olhava fixamente a meia distância, certamente revivendo alguma memória evocada pela canção melancólica do flautista. Pareceu-me estranho ouvir um rapaz tão jovem evocar sentimentos tão doce-amargos e pungentes; mas a verdade é que Ptolemeu não era um jovem vulgar. Era o descendente de uma longa linhagem de reis e rainhas, que remontava ao ajudante-de-campo de Alexandre, o Grande; ao longo da sua educação, fora enformado pela ideia de que era semídivíno, e possuidor de um destino singular. Teriajamais brincado com o abandono infantil e a ausência de preocupações com que Mopso e Ândrocles se divertiam? Não me parecia provável. Eu tinha interpretado a presença do flautista que o acompanhava como um dispositivo puramente político, um expediente calculado; em Roma, disso se teria tratado; mas, ao olhar Ptolemeu com os olhos fatigados de um romano, qualquer coisa me havia escapado. Seria possível que Ptolemeu fosse, simultaneamente mais mortal e mais real do que me parecera?

- A ligação entre um pai e um filho é uma coisa muito especial observei eu suavemente, e os meus pensamentos tomaram um rumo sombrio.

Ptolemeu pareceu, uma vez mais, ler-me os Pensamentos.

- Tu tens dois filhos, ao que sei. Um deles chama-se Eco e vive em Roma, e o outro chama-se Meto e acompanha César nas suas deslocações; mas deixaste de chamar teu filho àquele que se chama Meto.
- Assim é, Majestade.

- Tiveram um desaguisado? Eu fiz uma careta.

- Sim, Majestade. Em Massília...

Pela primeira vez, ouvi-o, rir, embora sem alegria.

- Não precisas de me dar explicações, Gordiano-chamado-o-Descobridor. Eu próprio tive a minha dose de desaguisados com membros

120da minha família, Se a minha mais recente excursão militar tivesse sido bem sucedida, estaria hoje de regresso a Alexandria com duas cabeças para exibir ao povo, e não apenas uma!

Vi Potino apertar os lábios; mas, se lhe pareceu que o Rei estava a ser pouco sensato, nada disse.

O Rei prosseguiu:

- Conta-me, Gordiano-chamado-o-Descobridór, o que dizem sobre o Egipto no local de onde vens? O que pensam os cidadãos de Roma da nossa pequena questiúncula doméstica?

Esta pergunta colocava-me em terreno traiçoeiro. Respondi cautelosamente:

- O teu pai era muito conhecido em Roma, evidentemente, dado que residiu na cidade durante um certo período. - Na verdade, o Flautista fora expulso do Egipto por uma multidão turbulenta e, durante o período em que vivera exilado em Roma, a filha mais velha, Berenice, aproveitara para se apoderar do governo na sua ausência.

- Nessa altura, eu era muito jovem - replicou o Rei. - Era jovem demais para acompanhar o meu pai. O que pensavam os Romanos dele?

- Enquanto viveu em Roma, o teu pai foi muito apreciado. A sua... generosidade... era muito... comentada. - Distribuindo dinheiro, e promessas de mais dinheiro, o Flautista tinha solicitado ao Senado Romano que o auxiliasse a recuperar o trono; no fundo, tinha empenhado a futura riqueza do seu país para comprar senadores e banqueiros romanos.
- Durante muitos meses, Majestade, a política romana girou em torno da ”questão egípcia”. - A questão era: repor o Flautista no trono, como marioneta de Roma, ou tomar imediatamente o país e fazer dele uma província romana? - Foi uma questão delicada, interminavelmente debatida. - César e Pompeu tinham encenado uma luta titânica sobre qual deles devia assumir o comando, mas optar por qualquer dos dois ameaçava perturbar o precário equilíbrio de poder em Roma; o Senado acabara por encarregar uma não-entidade, Aulo Gabínio, da pacificação

121do Egipto. - O povo de Roma ficou muito satisfeito com a devolução do trono ao teu pai. - Com o auxílio de um jovem e fogoso comandante de cavalaria chamado Marco António, Gabínio derrotara as forças de Berenice. Ao retomar o poder, o primeiro acto do Flautista fora executar a filha rebelde; o segundo fora aumentar os impostos, para começar a pagar a gigantesca quantia que prometera aos senadores e banqueiros romanos. O Egipto ficara empobrecido, e o povo egípcio gemia sob o fardo que lhe fora imposto, mas a considerável guarnição romana que Gabínio deixara no país mantivera o Flautista no poder. Pigarreei.

- A súbita morte do teu pai, há dois anos, causou dor e consternação em Roma. - Os senadores e os banqueiros ficaram preocupados com a possibilidade de o Egipto ser invadido pelo caos, e de os pagamentos de quem sucedesse ao Flautista serem suspensos; ouviram-se recriminações rancorosas por parte daqueles que tinham defendido a imediata anexação do Egipto quando era fácil fazê-lo.

O Rei acenou pensativamente com a cabeça.

- E que atitude têm os cidadãos de Roma relativamente aos assuntos do Egipto desde a morte do meu pai?

O terreno tornou-se ainda mais traiçoeiro.

- Para ser sincero, Majestade, desde a morte do teu pai que o meu conhecimento e, suspeito, o conhecimento da maioria dos romanos relativamente ao que se passa no Egipto é um tanto impreciso. Nos últimos anos, a nossa própria ”questiúncula doméstica” tem concentrado todas as nossas atenções. Roma tem sido devastada por uma guerra civil. Não nos ocupamos assim muito do que se passa no Egipto, pelo menos os cidadãos comuns.

- Mas o que se disse acerca do testamento do meu pai, aquando da sua morte?

- Para um romano, o testamento de um homem é uma coisa sagrada. Fossem quais fossem as disposições do teu pai, seriam respeitadas. - Na verdade, tinha sido uma grande desilusão o facto de o Flautista

122não ter legado a governação do Egipto ao Senado Romano; fora exactamente essa a opção de outros monarcas ao chegar o momento da sua morte: fortemente endiVidados para com Roma e desejando poupar os respectivos países à inevitável guerra e subsequente conquista, haviam-nas entregado a Roma. já o Flautista optara por legar o Egipto à filha mais velha das que ainda estavam vivas, Cleópatra, e ao irmão mais novo desta, Ptolemeu, que encarregara de governarem o país conjuntamente. Presumivelmente, os dois irmãos haviam-se casado um com o outro, como era habitual entre irmãos co-reinantes da família Ptolemeu. O incesto era objecto da aversão dos romanos, e considerado mais um sintoma de decadência da monarquia, a par dos eunucos, do esplendor faustoso da corte e das execuções caprichosas.

Felizmente, ao longo do meu discurso delicado, o Rei perdera a anterior capacidade de me ler os pensamentos; talvez estivesse excessivamente ocupado com os seus próprios pensamentos, porque se agitava no trono, de sobrolho franzido.

- O meu pai legou-me o Egipto a mim - e à minha irmã Cleópatra. Sabias, Gordiano-chamado-o-Descobridor?

É o que julgo saber, sim.

O meu pai sonhava com a paz na família e a prosperidade no Egipto. Porém, no mundo da carne, nem os sonhos de um deus se realizam sempre. As Parcas decretaram que este seria um período de guerra civil em toda a terra. Assim acontece em Roma. Assim acontece no Egipto. Assim acontece, ao que sei, no interior da tua própria família, Gordiano-chamado-o-DescobridÓr.

Inclinei a cabeça.

- Estás novamente a falar do meu filho,

- Meto, o companheiro de tenda de César - comentou ele, observando-me atentamente. Mordi o lábio e apertei as mãos com força. Ah, isso tem alguma coisa a ver com o vosso distanciamento? Talvez a águia tenha apertado excessivamente o teu filho debaixo das asas, não?

123Obriguei-me a abrir as mãos, e soltei um suspiro.

- Acho estranho que Vossa Majestade mostre tanto interesse pelos assuntos da família de um comum cidadão romano.

- Interessam-me todas as coisas que têm a ver com César - replicou ele. O brilho dos seus olhos era, em parte, o de um rapazinho de quinze anos, um rapazinho curioso, e em parte o de um político calculista. Quegénero de mortal seria este jovem Rei?

- Para muitos romanos - disse eu, lenta e suavemente -, não foi fácil escolher entre César e Pompeu. Cícero procurou freneticamente uma terceira via mas, não conseguindo encontrá-la, acabou por tomar o partido de Pompeu - opção de que veio a arrepender-se. Marco Célio colocou-se do lado de César, acabando por se sentir descontente e por traí-lo. Milo fugiu do exílio, em Massília, e procurou reunir um exército próprio...

- E tu conheceste todos estes homens? - Ptolomeu endireitou-se no trono. - Estes heróis, estes aventureiros, estes loucos cujos ecos nos chegam aqui ao Egipto?

Fiz um aceno de cabeça.

- Conheci a maioria melhor do que gostaria, certamente melhor do que me faria bem.

- E também conheces César com a mesma profundidade?
- Conheço.

- E não é verdade que ele é o maior de todos eles, o mais próximo da divindade?

- Conheço-o como homem, não como deus.
- Um homem de grande poder.

- Sim.

- Mas desagrada-te o favoritismo que ele exibe pelo teu filho, não é assim?

- A questão é complicada, Majestade. - Quase sorri, ao dizer isto, considerando que a pessoa com quem estava a conversar era casada com uma irmã que desprezava, e que outra das suas irmãs tinha sido

124executada pelo pai de ambos. Olhei de esguelha para o pote de barro que Ptolemeu tinha a seus pés. - Se César vier ao Egipto - prossegui vais mandá-lo decapitar, como fizeste a Pompeu?

Quer o Rei, quer Potino, olharam de esguelha para o pote de barro, confirmando aquilo de que eu tinha suspeitado. Senti-me levemente tonto. O Rei trocou um olhar com Potino, que desaprovava nitidamente esta orientação da conversa.

- Majestade - interveio ele, com o objectivo claro de mudar de assunto; mas o Rei sobrepôs-se-lhe, obrigando Potino a calar-se.

- Foi impressionante a facilidade com que o matámos, não foi? Refiro-me a Pompeu. Os deuses abandonaram-no em Farsalo. No momento em que se preparava para acostar ao Egipto, já não havia uma pitada de divindade pegada à sua miserável pessoa. Os deuses haviam-lhe despido a armadura e, quando as lâminas desceram sobre ele, a única resistência com que depararam foi a da carne, a fraca carne. Pensou em dirigir-se a terra para me recordar a dívida que o meu pai tinha para com ele, e assuMIr o comando do Egipto, como se o nosso tesouro, os nossos celeiros e os braços do nosso povo estivessem à sua disposição. Mas não seria assim. ”Põe fim ao chamado Grande antes que os seus pés toquem o solo do Egipto” - não foi exactamente isso que me disseste, Potino? Chegaste mesmo a citar esse epigrama favorito de Teodoto, o meu tutor: ”Os mortos não mordem.” Meditei longa e profundamente sobre esta questão; em sonhos, pedi conselho a Osíris e a Serápis. Os deuses concordaram com Potino. Se eu tivesse socorrido Pompeu, a maldição que caiu sobre ele teria caído igualmente sobre o Egipto.

- César poderá não ser assim. julgo que os deuses continuam do lado de César. A sua própria divindade deve estar a tornar-se mais forte a cada jogada. Ele virá ao Egipto, Gordiano-chamado-o-Descobridor, à procura do nosso trigo e nosso ouro, como veio Pompeu?
- Talvez, Majestade.

- E, se vier, será tão fácil matá-lo como foi Pompeu?

125Não respondi. Ptolemeu voltou-se para o eunuco.
- O que pensas tu, camareiro-mor?

- Penso, Majestade - disse Pontino, lançando um olhar astuto ao Rei -, que prometeste receber hoje em audiência alguns dos teus súbditos, aqui na barcaça real. Talvez fosse preferível adiares a tua conversa com este romano, enquanto concentras a tua atenção em questões mais oficiais.

Ptolemeu suspirou.

- Quem vem ver-me hoje?

- Várias delegações, que esperam comunicar-te o estado da inundação anual nas regiões do Nilo Superior; temos relatórios de Ombos, Hemontis, Latópolis e de outros locais. Receio que as notícias que trazem não sejam boas. Há também um grupo de mercadores de Clisma, no golfo do Mar Vermelho, que desejam solicitar-te uma redução dos impostos; o ano passado, viram diversos armazéns e quebra-mares serem destruídos por um incêndio, e precisam do dinheiro para os reconstruir. Li os relatórios e as petições, mas só tu podes conceder as dispensas que eles solicitam.

- Tenho mesmo de receber essa gente agora, camareiro-mor?

- Todos estes grupos vieram de muito longe, Majestade; e julgo que seria preferível deixarmos estes assuntos resolvidos antes de chegarmos a Alexandria, onde é provável que Vossa Majestade tenha à sua espera muito mais questões prementes, que terão sido geradas durante a sua ausência.

O Rei fechou os olhos.

- Muito bem, camareiro-mor. Potino levantou-se.

- Vou mandar parar a barcaça no próximo ancoradouro, e pedir uma escolta adequada para levar o romano para a...

- Não, Gordiano-chamado-o-Descobridor que fique.
- Mas, Majestade...

- Ele que fique onde está. - Ptolemeu lançou-lhe um olhar severo.

126- Como Vossa Majestade ordenar...

Eu estava à espera de que, num clima quente como este, o trabalho fosse completamente suspenso nas horas que se seguem ao meio-dia, mas não parecia ser assim. Enquanto eu permanecia sentado, lutando contra o sono - ressonar durante uma audiência real não seria certamente uma atitude bem vista -, foi chamada à presença do Rei uma sucessão de enviados. O que mais me impressionou foi a facilidade com que Ptolemeu entendia e falava diversas línguas e dialectos. Todos os enviados falavam um pouco de grego, mas muitos exauriam todo o seu vocabulário após uns quantos cumprimentos rituais, altura em que o Rei começava a conversar com perfeita fluência na língua que mais agradasse aos súbditos que tinha diante de si. Entretanto, o flautista tocava em fundo.

Finalmente, o derradeiro súbdito expressou a sua obediência respeitosa e afastou-se da presença do Rei. Potino acompanhou o homem. Ao regressar, foi abordado por um mensageiro que lhe sussurrou qualquer coisa ao ouvido. Aparentemente, tratava-se de uma mensagem longa e complexa. Ao escutá-la, o eunuco mostrou-se, primeiro assustado, depois divertido. Finalmente, correu para a beira de Ptolemeu.

- Majestade! Em breve terás a possibilidade de conhecer pessoalmente o senhor de Roma. A tua guarda avançada chegou a Alexandria. E mandaram dizer que os navios de César se encontram no porto.

Ptolemeu inspirou audivelmente.

- No porto? Estará César, como Pompeu estava, à espera que eu chegue para pisar o solo do Egipto?

Potino lançou-lhe um sorriso recatado.

- A bem dizer, Majestade, César chegou há uns dias. Disseram-me que atracou num embarcadouro público e que tentou dar um passeio num dos mercados. Parece que desejava atemorizar o povo, porque se apresentou com todo o aparato que acompanha um cônsul romano. Envergava a toga debruada a púrpura, e seguia atrás de doze homens armados, os chamados lictores, de fasces na mão.

127- Fasces?

- São uns feixes de varas de vidoeiro que revestem os machados de ferro - armas cerimoniais antigas que fazem parte do aparato dos magistrados romanos, quando circulam em público. Talvez sejam adequados a Roma, mas não são próprios para Alexandria! Pelo menos foi isso que o povo achou; a multidão ficou de tal maneira indignada com esta descortesia para com a dignidade de Vossa Majestade com o facto de o romano se permitir pavonear-se pela cidade na ausência do Rei, como se o Egipto fosse uma província de Roma -, que lançou um clamor de indignação, pegando em tudo o que conseguiu encontrar no mercado, fruta, legumes, peixe, e começando a lançá-lo aos romanos, até eles se retirarem para os respectivos navios. Por esta altura, César espera a tua chegada, antes de se atrever a por novamente pé na cidade.

Ptolemeu soltou uma gargalhada.

- Parece que houve uma batalha, e que César foi obrigado a retirar. O meu pai dizia-me muitas vezes que não compensa opor-se à multidão alexandrina. Teremos de pensar na forma de receber da melhor maneira o cônsul romano.

Baixou os olhos para o pote que tinha aos pés, e sorriu.

128CAPíTULO X

A chegada a Alexandria dentro da barcaça real foi uma experiência nova para mim, e uma experiência doce-amarga. Sempre que sentia uma ferroada de novidade, sentia também uma estocada de dor, porque Betesda não estava a meu lado, partilhando comigo esta experiência.

Quinze milhas a leste de Alexandria, o canal proveniente do Nilo atravessa uma cidade chamada Canopo, uma famosa estância de lazer para os ricos e ociosos da cidade. Eu tinha visitado Canopo por curiosidade quando vivera em Alexandria, nos meus tempos de juventude, mas nessa altura até as bugigangas que se vendiam nas lojas de recordações estavam fora do alcance dos meus magros rendimentos, e limitara-me a espreitar para dentro dos estabelecimentos de comidas, das casas de jogo e dos bordéis que se erguiam ao longo do canal. Quarenta anos mais tarde, dei por mim a atravessar a cidade sentado ao lado, nada menos que, do Rei do Egipto.

Os veraneantes acorreram em massa à margem do rio para ver passar a barcaça real, e lançar uma olhadela ao respectivo ocupante. Ptolemeu permaneceu sentado no trono, no centro da barcaça, ignorando a multidão que lhe acenava, mas pareceu-me detectar nos seus lábios a sombra de um sorriso quando ouvimos os espectadores aclamarem o seu nome. O Egipto era devastado por uma guerra civil, é certo, mas, entre a classe abastada de Alexandria, a pretensão de Ptolemeu ao trono não estava, aparentemente, em discussão.

129Entre Canopo e Alexandria, o canal tornava-se consideravelmente mais largo, permitindo a circulação de diversas barcaças em simultâneo. Num gesto de deferência para com a embarcação real, os outros barcos afastavam-se e detinham-se quando passavam por nós, de maneira que o nosso avanço prosseguia sem paragens. Passámos por barcaça após barcaça, umas privadas e luxuosamente decoradas, outras servindo de meios de transporte comuns, proporcionando diversos tipos de acomodações. Quando era novo, eu próprio fora a Canopo de barcaça, e fizera a viagem de pé, numa embarcação tão cheia, que tive receio de que nos afundássemos; passámos por vários barcos do mesmo género, cujos ocupantes se mostraram nitidamente menos entusiásticos com o respectivo monarca que os veraneantes que tinham acorrido à zona marginal de Canopo. Alguns dos rostos que olharam para nós mostravam-se positivamente hostis. Estariam do lado de Cleópatra, a irmã de Ptolemeu, na luta pela sucessão? Ou estariam completamente fartos dos Ptolemeus e do caos que eles tinham infligido ao Egipto nos últimos anos?

já perto de Alexandria, o canal diVidia-se em dois, e nós tomámos a ramificação da esquerda. Diante de nós, no horizonte plano, surgiu uma concentração de palmeiras, alinhadas na margem do Lago Mareótis; reflectindo o Sol, o lago surgia sob a forma de uma linha cintilante, para lá das silhuetas dos troncos das árvores. As árvores foram-se aproximando; a linha cintilante foi-se transformando numa extensão visível de água. As margens do canal tornaram-se mais bravias, com juncos de ambos os lados. Demos uma pequena curva e entrámos na vasta extensão do Lago Mareótis, que era mais um mar interior do que um lago propriamente dito. A nossa frente, ao longo da margem mais longínqua, avistavam-se os contornos dos edifícios de Alexandria, com a torre de Faros avultando-se por trás.

Os barcos de pesca e as embarcações privadas recuaram para dar passagem à barcaça do Rei. Dois pequenos barcos de guerra, manobrados por soldados fardados a rigor, vieram ao nosso encontro; ao

130chegarem junto a nós, fizeram meia volta, formando a escolta de chegada da barcaça real.

Por baixo das muralhas da cidade, no buliçoso porto da beira-rio, cortesãos e soldados estavam à nossa espera num molhe engrinaldado com flâmulas de cores variadas. A barcaça aproximou-se do ancoradouro, e parou suavemente. Ptolemeu levantou-se do trono, apertando nos braços o mangual e o bastão. Os cortesãos alinharam-se por trás dele; todos pareciam ter uma noção exacta do lugar que deviam ocupar. Eu deixei-me estar de lado, sem saber bem onde devia colocar-me. Potino sussurrou-me ao ouvido:

- Segue-me, e não digas nada.

Ao desembarcar, o Rei foi recebido cerimoriialmente por diversos membros da corte, que deram as boas-vindas a Ptolemeu, no seu regresso à capital. Em seguida, subiu para uma liteira fabulosamente decorada, com um pálio guarnecido a toda a volta com borlas cor-de-rosa e amarelas, e vigas e pilares esculpidos a ébano com embutidos de prata; o veículo foi erguido aos ombros de uma equipa de escravos imensamente musculados, nus como cavalos, adornados apenas com umas tiras de couro e umas faixas de linho.

Atrás da liteira do Rei, seguia outro veículo, quase tão magnificente como o primeiro. Potino empurrou-me lá para dentro e subiu atrás de mim. Fomos erguidos ao ar. Rodeados por guardas armados e precedidos por uma verdadeira orquestra de flautistas (tocando em uníssono uma toada festiva que se me tornara bastante familiar), fomos transportados ao longo do comprido molhe. As muralhas de Alexandria estendiam-se de ambos os lados do cortejo. À nossa frente, avolumavam-se os altos portões de bronze da Porta do Sol. As portas abriram-se para trás. Do interior soltou-se uma brisa morna, como se a própria cidade tivesse soltado um suspiro por ver regressar o seu monarca. A procissão real entrou na cidade.

Após tantas demoras e tantos atrasos, eu regressava finalmente a Alexandria. O perfume da cidade - porque, tal como uma mulher,

131Alexandria tem o seu perfume próprio, composto pela brisa marítima, as fragrâncias das flores e as brisas quentes do deserto - apoderou-se de mim, e com ele uma nostalgia muito mais poderosa e avassaladora do que eu previra. A torrente de memórias fez-me estremecer. A ausência de Betesda deu-me vontade de chorar. Se estivesse na posse dos seus restos mortais, poderia ao menos ter-lhe dado, na morte, as boas-vindas por que ela ansiara no seu regresso a casa; mas nem essa pequena consolação me fora concedida. Não possuía uma urna cheia de cinzas, nem um caixão com os seus restos mumificados. Reprimindo um soluço, sussurrei:

- Cá estamos de novo, cá estamos finalmente, após tantos anos de ausência! - Mas ninguém podia ouvir-me, à excepção de Potino, que me lançou um curioso olhar de esguelha, desviando depois a vista com desagrado, como se eu fosse um homem embriagado dando livre curso a emoções inexplicáveis.

Subimos o Argeu, a principal via norte-sul da cidade, um passeio magnificente com cem pés de largura, com fontes, obeliscos e palmeiras ao centro, e uma colunata de estátuas de mármore pintado e de colunas esguias de ambos os lados. Tinha-se ajuntado uma multidão, que assistia a uma distância de segurança, mantida pelos guardas armados que flanqueavam a procissão do Rei. Muitos aplaudiam; outros afastavam-se, de sobrolho franzido; havia quem guinchasse e balbuciasse, prostrando-se no chão, como que tomado por um temor religioso. Presumi que Ptolemeu era muitas coisas para muitas pessoas: rei, herói, usurpador, perseguidor, deus. Seria assim em Roma, quando César aí regressasse em glória? Era difícil imaginar um cidadão romano inclinando-se perante outro homem como se ele fosse divino mas, nos últimos anos, o destino do mundo assumira caminhos de tal maneira tortuosos, que tudo parecia possível.

Sendo uma cidade plana, Alexandria é uma das poucas cidades de grandes dimensões concebida em rede, as ruas interceptando-se em ângulos rectos, de modo a formar quarteirões rectangulares. Em Roma,

132que é uma cidade de colinas e vales, em cada esquina interceptam-se diversas ruas, cada uma das quais provém de uma direcção diferente, algumas do alto de uma colina, outras de um vale; cada intercepção é diferente de todas as outras e, juntas, constituem uma sucessão interminável de paisagens intrigantes. Alexandria é uma cidade plana de horizontes baixos, cujas avenidas largas proporcionam visões panorâmicas em todas as direcções. O elemento arquitectónico dominante é o farol de Faros, que se ergue a uma altura impossível sobre o grandioso porto, e cujo sinal luminoso é rival do próprio Sol.

Seria difícil precisar qual das cidades parece maior. Roma é um aglomerado populoso de lojas, prédios de habitação, templos e palácios, construídos em cima uns dos outros, sem qualquer sentido de ordem ou de proporção, que já foi uma aldeia graciosa, mas de cujo desenvolvimento as autoridades perderam o controlo, agitada e arrogante na sua vitalidade impertinente. Alexandria é uma cidade de avenidas largas, praças monumentais, templos magníficos, impressionantes fontanários e jardins discretos. A precisão da sua arquitectura grega exsuda uma aura de riqueza antiga, e uma paixão pela ordem; até nos prédios humildes do bairro de Rakótis, ou nas zonas mais pobres do Bairro judaico, um invencível sentido de higiene mantém a sordidez à distância. Mas, embora os alexandrinos adorem a beleza e a precisão, o calor do Sol egípcio induz uma certa languidez, e a tensão entre estas duas realidades - a ordem e a lassidão - confere à cidade o seu carácter ssingular, frequentemente perplexizante. A um romano, Alexandria parece indolente e presumida, com um excesso de sofisticação que não lhe faz nada bem - sofisticada a ponto de se mostrar cansada de viver, qual cortesã de meia-idade a quem já pouco importa o que pensam dela. A um alexandrino, Roma deve parecer insuportavelmente vulgar, cheia de gente impertinente e ruidosa, de políticos bombásticos, de uma arquitectura discordante e de ruas claustrofóbicas.

Chegámos ao mais importante cruzamento da cidade - a encruzilhada do mundo, na opinião de alguns -, onde o Argeu se cruza com

133a principal avenida leste-oeste, a igualmente larga Via Canópica, que é talvez a rua mais comprida do mundo. A intercepção destas duas avenidas é uma praça enorme, com um fontanário magnífico ao centro, onde nálades e dríades de mármore cabriolam na companhia de crocodilos e cavalos do rio Nilo (ou hipopótamos, como aqui lhes chamam), em redor de um gigantesco obelisco. A intercepção do Argeu com a Via Canópica marca o início do recinto real da cidade, onde se encontram as repartições oficiais, os templos, as casernas militares e as residências reais. Em cada um dos quatro cantos do cruzamento, há edifícios colunados, que albergam os túmulos dos reis e das rainhas ptolemaicos do Egipto. O mais opulento é o do fundador da cidade, Alexandre, o Grande, cujo cadáver mumificado é objecto da admiração dos visitantes, que percorrem o mundo inteiro para vir admirá-lo. As paredes do túmulo são adornadas por grandes placas de pedra com relevos pintados, onde se podem admirar as múltiplas façanhas do conquistador. Hoje - à semelhança do que acontecia todos os dias -, havia uma longa fila de pessoas à espera da sua vez de entrar. Ser-lhes-ia permitido passar, uma a uma, diante do cadáver de Alexandre, a fim de contemplarem por momentos (e ao longe, porque o sarcófago aberto se encontra do lado de lá de uma corrente de protecção e de uma fileira de guardas) o rosto do homem mais famoso da história. Nos anos em que vivera em Alexandria, eu nunca tinha entrado no túmulo do conquistador; o preço do bilhete era excessivamente elevado para um jovem romano sem rendimentos estáveis, que vagabundeava pelo mundo.

Ao passarmos diante do túmulo, as pessoas que se encontravam na referida fila voltaram-se para observar a procissão real. Neste dia, teriam um vislumbre, não apenas de Alexandre, mas também do seu actual herdeiro.

A meu lado, Potino soltou um profundo suspiro. Voltei-me para olhar para ele, e percebi que contemplava distraidamente as pontas das unhas.

- Foi por pouco que não a apanhámos em Cásio! - murmurou. Eu nada disse, mas ele voltou-se e viu o meu ar de espanto.

134- Cleópatra - explicou-me. - A irmã do Rei. A sul da aldeia de Cásio, na extremidade da fronteira leste, foi por pouco que não a apanhámos.

- Houve uma batalha? - perguntei eu, esforçando-me por mostrar um interesse polido. Estava embrenhado nos meus pensamentos, em Betesda, que perdera no Nilo; e em Meto que, naquele preciso momento, se encontrava muito provavelmente ao lado de César, num navio acostado no porto; e no estranho e inquietante nexo do passado e do futuro que parecia ter sido montado em Alexandria, para me receber.

- Mais precisamente, não houve uma batalha - respondeu Potino. Se tivéssemos conseguido travar um recontro decisivo com ela, teria sido o fim de Cleópatra e do grupo de bandidos e mercenários maltrapilhos que a acompanham. O exército do Rei é mais numeroso, está mais bem treinado, melhor equipado - e é bem mais pesado. Seria o mesmo que comparar um cavalo do rio com um pardal; o primeiro não teria qualquer dificuldade em esmagar o segundo, desde que conseguisse apanhá-lo. Eles têm-nos escapado, uma vez e outra. Estávamos a preparar uma armadilha nos montes, perto de Cásio, quando fomos informados de que Pompeu se aproximava da costa, acompanhado da sua frota.

- Podiam ter optado por esmagar Cleópatra, passando em seguida a Pompeu.

- Foi o conselho de Aquilas. Mas pareceu-nos que o risco era excessivo. E se Cleópatra nos tivesse escapado de novo - e fosse ela que Pompeu abordasse?

De facto, Pompeu devia ter tido a inteligência de desconfiar de Ptolemeu, pensei; Cleópatra, na defensiva contra o irmão e desesperada para encontrar um aliado, poderia tê-lo acolhido mais calorosamente.

- Nesse caso, teríamos de nos confrontar com Cleópatra e Pompeu de um lado - prosseguiu Potino -, e César do outro. Não teria sido agradável. É preferível lidarmos com as diversas situações em separado.

135- A começar pela mais fácil de resolver? - sugeri eu. Que alvo fácil acabara por ser o pobre Pompeu!

- Considerámos a situação em que Pompeu nos colocava, e decidimos eliminá-la pela raiz, por assim dizer. - Potino sorriu, mostrando-se muito satisfeito consigo mesmo. Tinha sido Aquilas a dar o golpe, mas presumi que Potino fora o autor do plano, e não se importava nada de que lho atribuíssem.

- O Rei aprovou a decisão?

- Nada se faz em nome do Rei que não tenha a aprovação do Rei.
- Isso parece mais uma fórmula que outra coisa.

- Mas não é. É verdade. Não te deixes iludir pela juventude do Rei. Ele é verdadeiramente filho de seu pai, o culminar de treze gerações de governantes. Eu sou a sua voz. Aquilas é a sua espada. Mas o Rei tem vontade própria.

- A irmã também é assim?

- Também ela é filha de seu pai. Quando muito, sendo uns anos mais velha, é ainda mais segura de si, que o irmão.

E ainda menos susceptível à influência de conselheiros como Potino, pensei. Teria sido por isso que o eunuco tomara o partido de um em detrimento do outro?

- E assim - prossegui -, tendo resolvido a questão de Pompeu...
- Tivemos a esperança de retomar imediatamente a questão de Cleópatra. Mas os navios que perseguiram a frota de Pompeu trouxeram-nos informações sobre César. Disseram-nos que ele tinha ancorado ao largo da ilha de Rodes, e que tencionava avançar para Alexandria logo que lhe fosse possível. Uma vez mais, pareceu-nos prudente voltar as nossas atenções para o ”problema romano” e adiar o confronto com a irmã do Rei.

- E vão resolver o problema de César como resolveram o de Pompeu? - Tive um arrepio de receio, imaginando a cabeça de César dentro de um cesto, ao lado da do Grande. O que aconteceria a Meto, se tal coisa se verificasse? Amaldiçoei-me por me sentir preocupado.

136Meto optara por uma vida de artimanhas e derramamento de sangue, e o seu destino nada tinha a ver comigo.

- César constitui uma questão mais complexa - respondeu Potino que exige uma resposta mais subtil.

Porque chega ao Egipto na sequência do seu triunfo em Farsalo? É manifesto que os deuses o adoram - reconheceu Potino. Mas Ptolemeu não é divino?

A vontade do Rei relativamente a César será tornada manifesta a seu tempo. Primeiro, veremos o que nos espera no porto. - Potino olhou-me com astúcia. - Dizem, Gordiano-chamado-o-Descobridôr, que os deuses te concederam uma imperativa franqueza e sinceridade com aqueles com quem conversas, Pessoas desconhecidas confiam-te segredos. Homens que têm o hábito da precaução, como César e Pompeu, desabafam contigo. Nem o Rei se mostra imune a este poder imperativo do discurso franco. Até eu pareço ser susceptível a ele!

- ”-Dizem”...? - perguntei.

- Está tudo no teu ficheiro. O serviço de informações do Rei é bastante amplo, sabes? Ele tem olhos e ouvidos em toda a parte.

- Mesmo em Roma?

- Especialmente em Roma. O que signIfica que a tua reputação te precede. Ontem à noite, o Rei passou uma hora a examinar o teu ficheiro e a fazer perguntas sobre ti.

- Presumo que devia sentir-me lisonjeado.

- Ou afortunado por continuares vivo. Ah, mas chegámos às portas da residência real. Receio que tenha chegado o momento de passarmos a outras formalidades, e de pormos fim a esta conversa.

Abriram-se os portões e a procissão entrou no complexo das residências reais, paralelo ao rio. Dizia-se que cada novo governante da linhagem dos Ptolemeus se sentira obrigado a fazer aumentar as residências reais, de maneira que, ao longo dos séculos, o complexo se transformara na mais sumptuosa concentração de riqueza e de luxo do mundo
- uma cidade dentro da cidade, com os seus templos e pátios próprios,

137os seus aposentos e os seus jardins, cheios de câmaras ocultas e de passagens secretas.

Os portões fecharam-se atrás de nós. Encontrávamo-nos num pátio estreito, rodeado por muros altos. As liteiras foram poisadas sobre blocos de pedra. Potino desceu e foi atender ao Rei, que emergiu da respectiva liteira para receber os cumprimentos de uma multidão de cortesãos atentos. De momento, parecia que se tinham esquecido de mim, pelo que me deixei ficar sentado, encostando-me às almofadas da liteira, divertido com as reviravoltas do destino, que me tinham trazido a uma situação tão curiosa. Com uma ponta de ansiedade, perguntei-me o que teria acontecido a Rupa e aos rapazes; em seguida, tive uma súbita e devastadora saudade de Roma. O que estaria a minha filha Diana, grávida do segundo filho, a fazer naquele momento? E o meu neto, o pequeno Aulo, e Davo, o cordeirinho pesadão que ela transformara em meu genro? Tinha tantas saudades deles! Quem me dera estar com eles em Roma, e com Betesda, e que nunca tivéssemos saído de Roma!

Algures no fundo dos meus pensamentos, ouvi o eco da música do flautista de Ptolemeu, circulando por entre os muros estreitos e afastando-se para longe. O pátio, que estivera a abarrotar de serviçais, estava agora quase deserto. Pestanejei e, ao voltar-me, vi uma mulher ao lado da liteira, a olhar fixamente para mim.

A sua pele tinha o matiz e o brilho do ébano polido. Penteava-se por forma a aproveitar a rigidez natural do seu cabelo: em nimbos circulares em volta do rosto, qual moldura flutuante de fumo negro, que se transformavam em tufos nas extremidades. Os seus olhos eram de um verde inesperado, de um tom que eu nunca tinha visto num núbio, mas os malares elevados e os lábios cheios eram emblemáticos da beleza das núbias.

Ela ofereceu-me um sorriso recatado e baixou os olhos.

- Chamo-me Merianis - disse em latim. - Se quiseres descer da liteira, levo-te ao teu quarto.

138- Vou ficar instalado no palácio?

- Vais. Queres que te acompanhe ao teu quarto? Inspirei profundamente e desci da liteira.

- Com certeza.

Segui-a por uma sucessão de corredores, pátios e jardins. Aproximávamo-nos do porto; de vez em quando, por uma ou outra abertura nas paredes, entrevia as velas dos navios e o brilho do Sol sobre as águas; ocasionalmente, tinha um vislumbre da torre de Faros, ao longe. Chegámos finalmente a uma escadaria, e subimos vários lances de degraus. Atravessámos um comprido corredor, passámos uma ponte de pedra que ligava dois edifícios, e descemos outro corredor comprido.

- Cá estamos - disse ela, abrindo uma porta de madeira.

Era um quarto grande, decorado com simplicidade, com uma cama encostada à parede, uma mesinha e uma cadeira encostadas a outra parede, e um tapete encarnado e amarelo, com um padrão grego, no chão. A ausência de ornamentações era mais do que compensada pela espectacular vista da janela alta, cujas cortinas amarelo-claro estavam corridas; nem pintura nem mosaico alguns poderiam jamais competir com a majestosa imagem de Faros, perfeitamente enquadrada na janela, e a vista, em primeiro plano, do grandioso porto, salpicado de navios.
- Magnífico! - sussurrei.

- Há em Roma paisagem que se compare com esta? - perguntou Marianis.

- Roma tem vistas magníficas - respondi eu -, mas não há nenhuma cidade com esta. Alguma vez foste a Roma?

- Nunca saí de Alexandria.

- Mas falas excelentemente o latim.

- Obrigada. Podemos falar em grego, se preferires.
- O que preferes tu, Merianis?

- Todas as oportunidades para treinar o latim são bem-vindas.
- Nesse caso, será um prazer proporcionar-te essa oportunidade. Ela sorriu.

139- Deves estar faminto, depois de uma viagem destas. Peço que te sirvam de comer?

- Não tenho fome.

- Nesse caso, talvez possa ajudar-te a descontrair da pressão do dia.

Olhei-a de alto a baixo, desde as sandálias incrustadas de lápis-lazúli, passando pela saia de linho puro que lhe deixava a mostra os tornozelos bem proporcionados, pelo manto de linho de várias camadas que usava suspenso dos ombros e dos seios bem torneados. O manto deixava-lhe o pescoço à mostra; um colar de berloques de lápis-lazúli aninhava-se-lhe de encontro à pele sedosa do pescoço.

- Estou bastante cansado, Merianis.

- Uma massagem não exigirá qualquer dispêndio de energia da tua Parte.

Lancei-lhe o que julgava ser um sorriso bastante irónico.

- Acho que vou apenas deitar-me e descansar algum tempo. O que fica ali a seguir, a propósito? - perguntei, reparando na porta estreita, coberta por uma cortina, que havia na parede ao lado da cama.

- Os aposentos dos teus escravos e do jovem que viaja contigo.
- Rupa e os rapazes? Onde estão eles?

- Não tardam aí, juntamente com o teu baú de Viagem. A carroça em que viajaram, e as mulas que a puxavam, serão devolvidas ao primo do proprietário, conforme era tua intenção.

Olhei para ela com mais atenção, perscrutando aqueles olhos verde-esmeralda.

- Pensei que eras uma escrava, Merianis.

- E sou - sou uma escrava de ísis. Sirvo a deusa e pertenço-lhe por inteiro, de corpo e alma, neste mundo e no outro.

- És uma sacerdotisa?

- Sou. Pertenço ao templo de ísis que existe no interior do palácio. Na sua ausência, porém...

- Ausência? ísis foi fazer uma viagem?

140- Na verdade, a minha senhora está ausente do palácio. Fiz um aceno de cabeça.

- Referes-te à Rainha Cleópatra.

- Ou ísis. São a mesma pessoa. A deusa é a Rainha, e a Rainha é a deusa. A Rainha Cleópatra é a encarnação de ísis, da mesma maneira que o Rei Ptolemeu é a encarnação de Osíris.

- Estou a ver. E por que motivo não estás com ela? Merianis hesitou.

- A minha senhora partiu do palácio de forma... um tanto abrupta. Não me foi possível acompanhá-la. Além disso, tenho deveres a cumprir, que me retêm aqui no palácio, junto ao templo. Entre outras tarefas, estou encarregada de prover ao bem-estar de visitantes distintos,

como tu.

Soltei uma gargalhada.

- Não percebo bem por que motivo sou distinto, mas calculo que seja por uma combinação de diversos infortúnios. Mas fico-te muito agradecido pela tua hospitalidade, Merianis.

Ela inclinou a cabeça.
- ísis ficará satisfeita.

- Também ficarás encarregada de prover ao bem-estar do distinto romano que se prepara para visitar Alexandria?

Ela inclinou a cabeça com ar interrogativo. Aproximei-me da janela.

- Aquele que se encontra no porto. Terás certamente reparado na frota de barcos de guerra romanos que ali se encontra, ou não?

Ela veio postar-se ao meu lado.

- São ao todo trinta e cinco barcos romanos; contei-os a todos. É verdade que conheces César?

Inspirei para responder, depois detive-me. A fadiga e o excesso de emoções tinham-me embotado a mente; de outro modo, ja me teria apercebido de que era provável que a mulher que se encontrava a meu lado - exótica, bela, bem falante, sedutoramente disponível - era

141mais do que uma criada ou uma sacerdotisa. Com o Rei e a Rainha em guerra um com o outro, o palácio devia estar cheio de espiões. Lançando um olhar de esguelha a Merianis, sentindo a sua proXiMidade física, cheirando o capitoso perfume a nardo indiano que provinha da sua pele escura, não tive dificuldade em conceber que um homem perdesse as reservas na sua presença, dizendo coisas que seria preferível calar.

Voltei a olhar para o porto. O dia fora longo, e aproximava-se gradualmente do fim. Os barcos lançavam sombras compridas na superfície lisa das águas, perfuradas por raios ofuscantes de sol. Faros lançava a mais marcante de todas as sombras, obscurecendo por completo a entrada do porto. Para além dele, ficava a extensão do mar, que parecia não ter fim. Pensei no Nilo, a desaguar interminavelmente naquele mar, levando consigo tudo quanto se tinha perdido, ou fora lançado às suas águas...

- Estou cansado, Merianis. Deixa-me sozinho.

- Como desejares - respondeu ela, e foi-se embora sem mais uma palavra, deixando atrás de si um suave odor a nardo indiano. Não sei quanto tempo fiquei ali à janela. O Sol continuou a mergulhar nas águas, até atingir um ponto do horizonte em que a terra se encontra com o mar, e ser engolido no meio de uma esplendorosa névoa de roxo e carmesim. O enorme porto foi ficando às escuras. Nas galeras romanas, acenderam-se lamparinas. Também era provável que se acendessem lamparinas na comprida passagem - o Heptastádio
- que ligava a cidade à ilha de Faros. Para além dessa passagem, havia outro porto, mais pequeno, que dava para sul, o Eunosto - o Porto do Bom Regresso -, junto ao centro do qual um arco erigido no Heptastádio permitia a passagem de navios de um porto para o outro. Ouvi bater à porta.

- É Merianis, pensei, e senti-me parcialmente satisfeito.

Quando abri a porta, contudo, não foi a sacerdotisa de ísis que vi, mas os olhos grandes de Rupa, cuja expressão declarava - tão nítidamente como se o tivesse dito - o seu espanto por se encontrar no

142interior do palácio real. Baixei os olhos e vi mais duas caras espantadas a olhar para mim.

Ándrocles! Mopso! Não fazem ideia...

... a alegria que é ver-te! - gritaram os rapazes em uníssono, lançando-me os braços ao pescoço. Rupa também estava com ar de quem gostaria de me abraçar, se houvesse espaço para ele na estreita porta.

- Mas afinal onde estiveste este tempo todo? - perguntou Ândrocles.

- E eras mesmo tu que seguias na lancha do Rei? - perguntou Mopso. - Pareceu-nos ver-te.

- E olhem para aquilo! - exclamou Androcles, correndo para a janela. - É o farol, é maior que uma montanha! E tantos barcos no porto! Galeras romanas, disse alguém, com o próprio César a bordo de uma delas.

Um par de escravos trouxe-me o baú para o quarto, seguidos de vários outros, com tabuleiros de comida fumegante. Só quando o cheiro me chegou ao nariz, é que tive consciência da fome com que estava.

- Quando estiveste com o Rei, ele mostrou-te a... de Pompeu? perguntou Mopso, sem conseguir articular a palavra.

- Vamos comer primeiro e falamos depois! - repliquei eu, sentindo o estômago a dar ordens. Tínhamos de ter cuidado com as conversas porque, nestes sítios, as paredes têm ouvidos. Mas, depois de comermos - grandes tigelas fumegantes de sopa de cevada, carne de pombo assada no espeto, pãezinhos de lentilhas com especiarias, acompanhados de taças de cerveja para fazer descer tudo aquilo -, não conversámos coisa nenhuma: fomos dormir. Eu deixei-me cair de encontro à almofada, deixando a Rupa e aos rapazes a tarefa de encontrarem uma cama onde se deitarem.

143CAPíTULO XI

- Trinta e três, trinta e quatro, trinta e cinco. Isso mesmo! Trinta e cinco galeras romanas ancoradas no porto - declarou Mopso, que acabava de as contar pela segunda vez. A luz da manhã reflectia-se nas águas, iluminando a face de Faros. O quarto cheirava ao pão acabado de cozer que os escravos nos tinham trazido para o pequeno-almoço. Encostei-me às almofadas da minha cama, mordiscando uma pontinha de côdea, enquanto os rapazes olhavam pela janela. Rupa estava sentado em cima do baú, a abanar a cabeça, divertido com os rapazes e as suas permanentes discussões.

- Trinta e cinco? Não são nada. São trinta e seis! - insistia Ândrocles.

- Tu é que contaste mal - replicou Mopso.
- Não contei nada!

- Nunca soubeste contar mais do que a soma dos teus dedos dos pés e das mãos - observou mopso.

- Que disparate! É óbvio que te esqueceste de um deles. Contaste aquele que tem uma cabeça de górgona na proa? Nunca tinha visto um bico tão assustador num navio!

- Onde?

- Quase não se vê, está praticamente oculto pelos edifícios ali daquela ilha. Como se chama aquela ilha do porto, senhor?

144- Chama-se Antirrodes e é propriedade do Rei. Aqueles edifícios pertencem-lhe; tem um pequeno porto dentro do porto.

- Deve ser um sítio fabuloso!

- Podemos lá ir, senhor? - perguntou Mopso.

- Desconfio de que uma pessoa tem de ser ligeiramente mais importante do que nós para ser convidada para Antirrodes.

- E, no entanto, temos um quarto no palácio - fez notar Ândrocles. - Quem diria?

- Talvez César se apodere de Antirrodes, e faça da ilha o seu quartel-general, e nesse caso...

- Mopso, cala-te! Estás proibido de voltar a falar de César enquanto estivermos aqui no palácio. Nem sequer o nome podes dizer. Estamos entendidos?

Ele franziu o sobrolho, depois viu pela minha expressão que eu estava a falar a sério, e acenou com a cabeça. Ao longo dos últimos anos que havíamos passado em Roma, os rapazes tinham aprendido algumas coisas sobre segredos e espionagem. Ele voltou a observar o porto.

- Alguns deles são de transporte de cavalos - fez notar. - Aqueles que estão mais perto do farol têm cavalos no convés.

- Imagina trazer cavalos da Grécia - comentou Ândrocles. Achas que serão os cavalos que... uma certa pessoa... usou na batalha de Farsalo para dar cabo de... um certo sujeito?

- Uma certa cabeça, queres tu dizer! - emendou Mopso com uma gargalhada.

- Mas olha! Estão a desembarcar mais soldados romanos daquele navio maior para o mais pequeno, o que esta constantemente a deslocar-se do palácio para os trazer para aquele ancoradouro.

- Mais soldados? Ancoradouro? - disse eu. - Há quanto tempo é que isso está a acontecer?

- Algum - respondeu Ândrocles. - O ancoradouro - é uma espécie de quadrado grande na margem - está a ficar bastante cheio

145de soldados romanos e soldados egípcios, e uma multidão de gente com roupas estranhas, e uma série de estandartes e flâmulas. Achas que vai haver um encontro oficial entre o Rei e... bem... uma certa pessoa? Olha, deve ser ele, ali no meio dos soldados, naquela galera romana. - Franziu os olhos. - Traz uma armadura com ar muito elegante, e uma grande capa encarnada, como uma certa pessoa.

- E é calvo como uma certa pessoa. Estou a ficar ofuscado com o Sol que lhe faz ricochete na cabeça! - Mopso soltou uma gargalhada.
- O que estão vocês para aí a arengar? - Levantei-me da cama

para ir ver mas, antes de chegar à janela, bateram à porta com força. Fiz um aceno de cabeça a Rupa, que se levantou e foi abrir a porta
- era Merianis.

Rupa abriu muito os olhos, depois endireitou os impressionantes ombros. Os rapazes limitaram-se a olhar com ar espantado.

Merianis trazia um vestido extraordinário, de um tecido verde transparente, bordado a prata e franzido debaixo dos seios com um cordão prateado. O verde condizia com os olhos dela. Tal como anteriormente, calçava sandálias incrustadas de lápis-lazúli, e um colar também de lápis-lazúli, mas as pedras tomavam uma coloração diferente ao lado do verde do vestido. O efeito, juntamente com a pele de ébano, era realmente notável.

- Consegues estar pronto dentro de meia hora? - perguntou-me.
- Pronto para quê?

- O camareiro-mor sugere que te vistas de cerimónia. Presumo que tenhas alguma coisa decente nesse baú, ou não?

- Não trago nada que se compare, sequer, com a elegância do que tu trazes sobre o corpo.

- Mas, senhor - interveio Mopso -, não te lembras? Antes de sairmos de Roma, à última da hora, decidiste trazer a tua melhor toga.
- Pois foi - repliquei eu.

- A toga é uma opção esplêndida! - observou Merianis. - Ao ver-te, o nosso visitante vai sentir-se em casa.

146- O vosso visitante?

- Certamente terás observado a assembleia que se reuniu no ancoradouro real! O Rei deseja que estejas presente quando César chegar.
- Estou a ver. E presumo que não tenho qualquer possibilidade de recusar?

- Absolutamente nenhuma. Volto cá daqui a meia hora, para te acompanhar. - Merianis sorriu, e em seguida desapareceu.

Rupa lançou-me um olhar que ecoava a pergunta que os rapazes fizeram em uníssono:

- Quem era aquela?

- Explico-vos enquanto me visto - respondi eu. - Rupa, tiras-me a toga do baú? Deve estar por aí algures; esperemos que não esteja excessivamente amarrotada. Androcles, Mopso, ajudem-me. já conhecem o procedimento. - Os rapazes ajudavam-me a vestir a toga desde que eu os tinha adquirido. A excepção das inevitáveis discussões acerca de qual deles devia apertar e segurar, ou dobrar e vincar, tinham aperfeiçoado a arte. Valioso o escravo que aprendeu a vestir a toga a um cidadão romano, de tal maneira que ele não pareça uma pilha de lã amarfanhada.

Eu tinha proibido os rapazes de pronunciarem o nome do homem que estava prestes a pisar o solo de Alexandria. Mas havia grandes probabilidade de se apresentar igualmente naquela manhã outro cujo nome os rapazes já sabiam que não podiam dizer na minha presença. Senti uma curiosa ausência de emoções perante a perspectiva de acolher o putativo senhor do mundo romano. Mas senti o coração bater mais depressa e a testa cobrir-se-me de suor quando considerei a possibilidade de, dentro de uma hora, me enfrentar com o homem a quem outrora chamara meu filho.

Que inteligentes tinham sido, geração após geração, os arquitectos dos Ptolemeus. Visto do exterior, o complexo do palácio parecia grandioso, intimidatório e impenetrável. No entanto, no interior desse edifício

147
grandioso, a pessoa não tinha uma sensação de arrepiante contenção, mas o prazer simples de atravessar corredores iluminados pelo sol e graciosos pátios onde se ouvia o alegre cantar dos passarinhos e os salpicos das fontes. Até parecia que andávamos a passear pelos elegantes jardins e os esplêndidos corredores de uma villa grega idealizada, só que era uma villa que nunca mais acabava. Assim fluíam os meus pensamentos, e tanto melhor porque me distraíam do que realmente me ocupava o espírito, enquanto seguia atrás de Merianis.

- Os dois jovens escravos e o teu amigo mudo pareceram ficar de orelha murcha quando lhes disse que não podiam vir connosco observou ela.

- Suspeito de que gostavam de ter tempo para te apreciar melhor. Em especial Rupa.

Ela sorriu.

- Tu também estás com um ar esplêndido. Eu soltei uma gargalhada.

- Sou um rosto cinzento e enrugado, a espreitar de dentro de uma toga cinzenta e enrugada.

- A meu ver, estás muito distinto.

- E, a meu ver, tu estás a ser muito pouco franca, Merianis. De qualquer maneira, presumo que, enquanto me mantiver a teu lado, ninguém reparará em mim. Ainda falta muito?

- Não. Na verdade...

Virámos uma esquina e entrámos numa poça de luz. Eu pestanejei por reacção ao brilho do céu azul, e senti na face a frescura da brisa marítima. Diante de nós, abria-se uma vasta praça, pavimentada de pedra, cheia de cortesãos de perucas cerimoniais ou coloridos toucados na cabeça, e envergando trajes elaborados. A praça terminava nuns degraus que iam dar à água, onde se perfilava uma comprida fila de soldados romanos. Nos quatro cantos da praça, estavam postadas companhias de soldados egípcios e, no centro, avistei um baldaquino com borlas cor-de-rosa e amarelas, e percebi que devia abrigar Ptolemeu, sentado no trono.

148Presumi que ocuparíamos um lugar na orla da multidão, mas Merianis foi avançando ousadamente. Ao ver que eu me deixava ficar para trás, pegou-me na mão, sorrindo, e conduziu-me como se eu fora uma criança em direcção ao berrante pálio. Os cortesãos inclinaram-se diante dela, os grupos de eunucos recuaram para deixá-la passar, e até o círculo de lanceiros que rodeava o soberano e a sua comitiva abriu fileiras para nos deixar passar. Potino estava ao lado do Rei. Avistou-nos e dirigiu-se a nós em passos largos.

- Finalmente! Por que demoraste tanto tempo, Gordiano-chamado-o-Descobridor? - perguntou num sussurro nervoso. - O Rei vai ficar aliviado; insistiu bastante para que estivesses presente. Observa tudo, mas nada digas. Compreendeste?

Acenei com a cabeça, num gesto de assentimento.
- E por que misterioso motivo vêm de mãos dadas? Os dedos de Merianis libertaram-se dos meus.

Potino voltou para junto do Rei. Ouviram-se retinir as trombetas. Um barquinho tinha-se aproximado dos degraus. Os ocupantes desembarcaram e, por entre a multidão, tive um Vislumbre de uma cabeça calva que bem conhecia. O meu coração começou a bater a grande velocidade.

Os soldados romanos formaram um cordão até ao baldaquino. Um pequeno grupo percorreu a passagem assim formada, aproximando-se do Rei. A personagem que mais se destacava era o próprio César. Não vinha vestido de imperador, de insígnias militares e capa escarlate, mas de cônsul do povo romano: envergava uma toga com um largo debrum cor de púrpura.

A última vez que eu o vira fora em Massília, na costa sul da Gália, no dia em que as forças dele tinham entrado na cidade, na sequência de um cerco prolongado. César estivera ausente em Espanha, ocupado a derrotar os inimigos que o defrontavam nesse país, e regressava a Roma, de onde partiria para a Grécia, para se confrontar com Pompeu; a passagem por Massília pouco mais fora do que uma visita de cortesia,

149uma oportunidade para exibir a sua famosa tendência para a clemência e, ao mesmo tempo, para subjugar, sem margem para dúvidas, uma cidade orgulhosa que mantivera a sua independência durante centenas de anos. Pressionados pelas circunstâncias, os massilianos haviam-se colocado ao lado de Pompeu, contra César, e tinham perdido tudo. Eu próprio estivera encerrado no interior da cidade nos últimos dias do cerco, à procura do meu filho Meto, que receava que estivesse morto. Mas o desaparecimento de Meto fora apenas uma componente do plano de César para a tomada da cidade e, quando César fizera a sua entrada triunfante, Meto ia a seu lado, reluzente de alegria. Nesse momento, o absurdo da guerra, e a crueldade com que o meu filho me enganara, tomaram conta de mim; em vez de correr a abraçar Meto, eu tinha-o rejeitado, renegando-o publicamente, na presença de César e do mundo. Desde então, não voltara a ver, nem Meto, nem César, embora as sombras de ambos continuassem a estender-se sobre a minha vida.

Agora, a meio mundo de distância de Massília, os nossos caminhos tinham voltado a cruzar-se.

Quando o vira pela última vez, César estava transbordante de vitória, deus-guerreiro aplicando uma justiça severa aos massilianos, antes de partir ao encontro do maior desafio da sua vida. Chegava agora a Alexandria com o triunfo em Farsalo ainda fresco na memória de todos, senhor indiscutível do mundo romano. Mantinha bem apertados os lábios finos, e o queixo em posição rígida, mas os olhos brilhavam-lhe, traindo a satisfação intensa que aquele momento lhe proporcionava. O queixo largo, os malares elevados e a cabeça calva conferiam-lhe uma aparência austera, mas a elasticidade do seu andar exibia a energia de um homem com metade da idade que ele tinha. Viver aquele momento deve ter sido um dos maiores feitos da longa carreira de César, o género de ocasião grandiosa que pintores e escultores celebrariam durante muitas gerações. O senhor da nova ordem mundial preparava-se para enfrentar o herdeiro de Alexandre Magno, na cidade

150que o próprio Alexandre havia fundado. No semblante de César, eu vi um homem totalmente consciente do alcance do momento, radiante de confiança e auto-estima.

E Ptolemeu? A expressão do Rei era mais obscura. Desde a infância que deviam ter-lhe ensinado a conformar o rosto numa máscara adequada a diversas ocasiões formais - à dedicação de templos, à imposição de castigos, à concessão de favores, à comunicação das bênçãos dos deuses, mas certamente que nunca passara por um momento semelhante a este. O seu semblante parecia totalmente - quase artificialmente - desprovido de expressão, à excepção de um brilho ocasional dos olhos, que revelava a excitação do rapazinho que tinha a coroa na cabeça. Sentado no trono, de mangual apertado numa mão e o bastão sobre o peito, mantinha-se absolutamente imóvel - à excepção dos dedos do pé esquerdo, que se contraíam descontraíam repetidamente de encontro à sola da sandália incrustada de jóias.

Potino avançou. É provável que, à semelhança de muitos outros romanos, César não gostasse de eunucos, mas o seu rosto não traiu qualquer reacção. O eunuco falou baixo de mais para que eu tivesse conseguido ouvi-lo; terá certamente perguntado a César como desejava ser apresentado, e ter-lhe-á explicado os gestos protocolares para cumprimentar o Rei; César respondeu no mesmo tom mas, pela cadência da voz, percebi que a conversa decorrera em grego.

Aparentemente, seguir-se-ia uma troca de presentes. César ergueu uma mão, indicando a um membro da sua comitiva que se aproximasse. Eu inspirei audivelmente ao reconhecer Meto, fardado a rigor e envergando uma couraça cintilante.

Parece tão jovem!, foi o único pensamento coerente que me atravessou o espírito, no meio de muitos outros que não podiam ser reduzidos a palavras. Senti uma dor no coração e devo ter soltado um grito abafado, porque Merianis me lançou um olhar intrigado, apertando-me a mão.

Meto parecia inteiro, bem de saúde e alerta; aparentemente, emergira incólume dos campos de batalha da Grécia. Trazia consigo uma caixa

151de prata martelada, com uma pega de bronze com a forma de uma cabeça de leão. Aproximou-se do trono com os braços estendidos. Ao chegar ao estrado, fez uma genuflexão com um joelho só e inclinou a cabeça, apresentando a caixa a Ptolemeu. Potino recebeu a caixa das mãos dele, abriu-a rapidamente para espreitar o interior, e depois sorriu.

Meto retirou-se. Eu fiquei a vê-lo recuar, até desaparecer no meio da comitiva que seguira César, e depois voltei a olhar para Potino, que se tinha voltado para o trono e aberto a caixa, exibindo o interior aos olhos do Rei. O Rei fez um aceno de cabeça para significar que aceitava o presente, pelo que Potino retirou o objecto do interior da caixa, erguendo-o ao alto. Tratava-se de um cinto espectacular, feito de peças de ouro levemente martelado, com a forma de folhas de hera entrelaçadas. As folhas de ouro brilharam ao sol, e tilintaram, abanadas pela brisa marítima. Ouviram-se murmúrios de aprovação, provenientes dos membros da comitiva do Rei.

Potino voltou a meter o cinto de ouro dentro da caixa, entregou a caixa a um subalterno, e depois dirigiu-se a César. Estavam os dois voltados na minha direcção, de maneira que a conversa chegou-me aos ouvidos.

- É um belo presente, cônsul - disse Potino -, chega a ser digno de Sua Majestade. Pergunto-me se terá sido propriedade do chamado Grande cujos haveres capturaste.

A expressão de César registou um ligeiríssimo desagrado pela perspicácia do eunuco.

- Na verdade, foi. Contava-se entre os tesouros que ele abandonou em Farsalo. Disseram-me que o cinto é de origem parta, da realeza parta, que é uma verdadeira raridade, e que Pompeu se apoderou dele quando derrotou Mitrídates. Era um dos objectos que ele tinha há mais tempo, e um dos que mais apreciava.

- Muito apropriado! - comentou Potino, sorrindo. - Os presentes que o Rei preparou para ti também vieram de Pompeu. Um deles esteve na sua posse durante toda a vida, e atrevo-me a dizer que era o objecto que ele mais apreciava, de entre todos os que possuía.

152César franziu o sobrolho, talvez perguntando a si próprio se teria percebido mal alguma parte da declaração de Potino, devido à pronúncia alexandrina com que falava o grego; em seguida, a sua atenção foi desviada para um pequeno grupo que avançava na sua direcção. Um dos recém-chegados era Filipe, o liberto de Pompeu, que eu não voltara a ver desde que nos tínhamos separado, após a incineração do Grande na sua pira funerária. Não parecia ter sido maltratado, mas tinha uma expressão abatida e esgazeada.

- O primeiro presente, César - disse Potino, fazendo um gesto a Filipe para que avançasse.

César franziu o sobrolho.

- Bem sei que Filipe era escravo, mas julgo que Pompeu fez dele um homem livre. Um cidadão romano não pode ser oferecido a outro

como presente.

Potino conseguiu fazer um sorriso constrangido.

- Nesse caso, o presente consiste na companhia de Filipe. Trata-se de um homem de muitas virtudes. Possa ele ser tão leal a César como

foi ao romano que serviu anteriormente.

Filipe mantinha os olhos postos no chão. César olhou-o com gravidade.

- Estiveste com ele até ao fim?

- Estive, cônsul.

- Dizem que lhe oficiaste os ritos funerários.
- Fiz o que pude, cônsul.

César tocou no ombro do homem. Com um gesto de cabeça, indicou-lhe que se juntasse aos restantes membros da sua comitiva.

Atrás de Filipe, vinham dois cortesãos com presentes. Eles próprios eram notáveis. Um deles era tão preto como Merianis, e mais pequeno que uma criança, com pernas e braços infantis e rosto de velho. O outro era um albino de testa alta e faces cavadas, com pelo menos mais uma cabeça de altura do que o mais alto dos presentes. O pequenino transportava um enorme cesto de verga; o gigante trazia consigo um cesto

153idêntico, mas em miniatura. O carácter grotesco da apresentação era perturbador, pelo menos para mim, mas talvez os meus sentidos estivessem excessivamente agitados por ter visto Meto, dado que houve outros - entre os quais Merianis - que se divertiram com a visão destes cortesãos mal combinados, com os seus fardos mal combinados. Merianis soltou uma gargalhada. Potino também se riu. Até o Rei exibiu uma leve indicação de um sorriso.

O gigante albino foi o primeiro a entregar o seu presente. Estendeu um braço anguloso, comprido e nu, apresentando a César o cestinho de verga. Foi Meto quem avançou, para receber o presente. Ergueu os olhos para o albino, como se procurasse sinais de tortuosidade na face descolorida do gIgante, olhando em seguida com deferência para César. Com um gesto de cabeça, César indicou a Meto que abrisse o cesto.

Meto tirou a tampa, olhou lá para dentro por momentos, franziu o sobrolho, depois meteu a mão dentro do recipiente e tirou um objecto brilhante. Lembrei-me do dedo que faltava ao cadáver de Pompeu do cepo ensanguentado, do enxame de moscas - e adivinhei o que seria o objecto, mesmo antes de os meus olhos terem discernido a forma do anel que Meto segurava entre o polegar e o indicador.

César inspirou audívelmente, depois estendeu a mão para Meto lhe entregar o anel. Lançou um olhar penetrante a Potino, e depois ao Rei. Poucos objectos são mais sagrados para um romano que o anel que usa. Todos os cidadãos têm um anel, que é um distintivo do seu estatuto; eu uso uma tira simples de ferro, como a maioria dos romanos, mas os homens de posição elevada gostam de ostentar anéis de metais mais preciosos, com dispositivos e gravações que proclamam os respectivos feitos. O anel de Pompeu, que eu vira por várias vezes, sempre de relance, era de ouro e tinha inscrita uma simples palavra: MAGNus, escrita ao contrário, para servir de selo. O anel que César tinha na mão estava longe demais para que eu pudesse vê-lo com pormenor mas, pela expressão que lhe atravessou o rosto, não me restaram quaisquer dúvidas de que fosse o de Pompeu.

154Certamente que César já teria sido informado do falecimento de Pompeu. Mas o anel era uma prova irrefutável da sua morte; em nenhuma outra circunstância poderia ter sido arrancado ao dedo do Grande, a fim de ser oferecido ao seu rival. Ondas de emoção inundaram a expressão de César. O que teria ele sentido naquele momento? Triunfo, com toda a segurança, pois ali estava uma prova tangível de que a derrota de Pompeu fora completa, e era irreversível; mas talvez também a sensação de ter sido enganado, uma vez que o destino de Pompeu lhe fora arrancado das mãos; e talvez uma ponta de irritação, pelo facto de um romano com semelhante estatura ter sido enganado por estrangeiros, agindo sob as ordens de um governante estrangeiro, e o seu haver mais precioso tratado com tal desprezo. Um anel de cidadania, símbolo do laço sagrado entre o estado romano e um dos seus membros, fora reduzido à dimensão de troféu arrancado a um cadáver. Estaria a ser apresentado a César como prova da estima do Rei, ou para lhe comunicar uma mensagem bem diferente, bem mais sinistra?

César ergueu os olhos do anel que tinha na palma da mão e lançou um olhar perscrutador ao Rei Ptolemeu, sentado no trono. O rosto de César mantinha-se tão impenetrável como a do Rei que lhe devolveu o olhar.

- O presente do Rei agrada a César? - perguntou Potino.

César manteve o silêncio durante longos momentos, depois replicou:
- César aceita o presente do Rei.

- Ah, óptimo! Mas há outro presente, que me atrevo a dizer que ainda agradará mais a César; trata-se de um haver que Pompeu considerava ainda mais precioso do que este anel. - Potino fez um gesto ao anão negro, indicando-lhe que avançasse. O homem assim fez, transportando desajeitadamente o fardo de que fora encarregado: o cesto era quase tão grande como o respectivo carregador. Poisou o cesto aos pés de César e, com um gesto floreado, tirou a tampa e meteu a mão lá dentro.

155Subitamente desconfiado, César recuou. Meto avançou um passo, levando a mão ao copo da espada que tinha na bainha. Potino soltou uma gargalhada. O anão tirou o objecto de dentro do cesto e ergueu-o ao alto, agarrando-o pelo cabelo com uma mão, enquanto apoiava com a outra a extremidade do pescoço, separado do corpo. Em excelente estado de preservação - porque os Egípcios são especialistas no embalsamamento dos mortos -, a cabeça de Pompeu foi exibida à atenção de César e de quantos o acompanhavam.

César não fez qualquer tentativa para ocultar o seu desagrado. Enrolou o lábio para cima, mostrando os dentes. Desviou os olhos por momentos, para em seguida olhar fixamente para a cabeça, claramente fascinado por ela.

Potino inclinou a cabeça.
- César está satisfeito?

César franziu o sobrolho. A sua face foi percorrida por um tremor de emoção. Os olhos encheram-se-lhe de brilho, como que subitamente inundados de lágrimas.

Potino olhou de César para a cabeça de Pompeu, e novamente para César.

- César aceita o presente? - perguntou, hesitante.

- César... - A voz de César estava carregada de emoção. - César não faz quaisquer tenções de devolver este... presente... à guarda dos que lho oferecem. Meto! Volta a meter a cabeça no cesto, e manda levar o cesto para o meu barco. Na medida do possível, manda purificá-la; a moeda na boca, e o resto, com honras.

Desviando uma vez mais os olhos da cabeça, bem como de Potino, o olhar de César recaiu casualmente sobre mim. Talvez fosse o facto

de eu estar vestido de toga que tenha chamado a sua atenção; a curiosidade que era um romano envergando o seu traje de cerimónia no meio de um ajuntamento de cortesãos egípcios ter-lhe-á espicaçado o interesse. Estudou-me o rosto e, por momentos, não deu qualquer sinal de me ter reconhecido; depois exibiu aquela estranha combinação de

156reconhecimento e dúvida que ocorre quando uma pessoa vê uma cara conhecida num contexto totalmente inesperado - pois certamente que Gordiano, o Descobridor, seria a última pessoa que ele esperava encontrar entre a comitiva do Rei Ptolemeu.

Meto estava ocupado a recolher a cabeça de Pompeu mas, quando passou por ele, César, que continuava a olhar para mim, tocou-lhe no braço e falou-lhe ao ouvido. Eu captei um ligeiríssimo vislumbre de movimento, quando Meto começou a voltar a cabeça na minha direcção. Que expressão lhe iluminaria o rosto quando sondou a multidão, à espera de me ver? Mas eu já lá não estava. Um súbito impulso obrigara-me a recuar para o meio da multidão, que tapou a linha de visão entre o grupo de César e eu.

Mas continuei a ver Merianis, em posição erecta, olhando com expressão absorta na direcção do grupo de César, com a atenção absorvida por alguém que lhe devolvia a intensidade do olhar. Percebi imediatamente o que se tinha passado: na minha ausência, o olhar que Meto me dirigira acabara por recair sobre Merianis. Pelo menos para ela - a avaliar pela expressão do seu rosto - o momento fora significativo.

157CAPÍTULO XII

- ”Tinha Alexandre quinze anos, quando passou casualmente pelo local onde Bucéfalo, um cavalo selvagem, se encontrava preso. Ouviu um relincho aterrador e perguntou aos criados: ”Que barulho de regelar o sangue foi aquele?” O jovem general Ptolemeu respondeu-lhe: ”É Bucéfalo, senhor, o cavalo que o rei teu pai mandou prender, porque ataca os homens com grande violência. Ninguém consegue domá-lo, e muito menos montá-lo. Nem sequer há homem que consiga aproximar-se dele com segurança.” Alexandre dirigiu-se à cerca onde o animal estava preso e pronunciou o nome do cavalo. Ao ouvir a voz de Alexandre, Bucéfalo voltou a relinchar, não da forma aterradora como sempre o fizera, mas com suavidade e doçura. Quando Alexandre se aproximou, o cavalo estendeu imediatamente o focinho na sua direcção e lambeu-lhe a mão, reconhecendo o dono que os deuses haviam decretado para ele. Foi então que Alexandre ...”

- E depois? - perguntou Mopso, que estava sentado no peitoril da janela a olhar para o porto. Os dois rapazes pareciam interminavelmente fascinados com os movimentos dos navios de César, com as idas e vindas dos barcos de mercadorias, e com o jogo das sombras na parede do farol. Pelo tom distraído da sua voz, era óbvio que a pergunta de Mopso não dizia respeito à narrativa que estivera a ouvir.

Tinha no colo um gato cinzento de olhos verdes, que ronronava sonoramente. O animal tinha à volta do pescoço uma coleira de prata maciça,

158com pequenas contas de lápis-lazúli, que permitia distingui-lo como um dos guardas secretos do palácio. O gato andava por onde bem lhe agradava; Mopso e Ândrocles tinham-se afeiçoado bastante a ele, e guardavam bocadinhos de comida para o atraírem para o colo quando o bicho se dignava vir visitar-nos.

Tinham passado vários dias desde a chegada de César. Durante esse período, havíamos sido autorizados a circular livremente na zona do palácio que compreendia os nossos quartos e o pátio por onde eu penetrara inicialmente no complexo. As refeições eram-nos servidas numa zona comum, onde comiam diversos cortesãos de categoria inferior, que raramente me dirigiam a palavra. De vez em quando, Merianis vinha saber como estávamos, garantindo-me que o Rei não se tinha esquecido de mim e dando-me a entender - subtil mas firmemente
- que, embora oficialmente eu não fosse prisioneiro, mas convidado, não podia abandonar os aposentos que me tinham sido reservados no palácio. Apesar disso, podia sair do palácio e circular pela cidade, desde que regressasse ao cair da noite. Porém, essas excursões haviam-se tornado cada vez mais problemáticas.

Alexandria era uma cidade em tumulto. Desde a chegada de César que todos os dias se verificavam distúrbios, numa ou noutra parte da cidade. Alguns eram limitados, e os guardas do Rei não tinham dificuldade em os resolver. Mas outros pareciam turbilhões, que percorriam bairros inteiros, dando origem a incêndios, pilhagens e morte. No mais sangrento destes incidentes, uma companhia de soldados romanos que decidira fazer um reconhecimento amigável da zona situada entre o Palácio e o Templo de Serápis fora vítima de uma emboscada e apedrejada até à morte, erradicada até ao último homem, apesar de todos eles irem de armaduras postas e espadas na bainha. A fúria de uma multidão de alexandrinos é uma coisa aterradora.

Por mim, nunca fora apanhado em situações abertamente perigosas durante as minhas voltas pela cidade, mas avistara ocasionalmente plumas de fumo erguendo-se nos ares, e estivera suficientemente perto de

159alguns dos distúrbios para ouvir o estridor das colisões dos soldados com os desordeiros. A minha pronúncia era claramente romana, e um simples pedido de informações a um desconhecido suscitava um olhar de ódio e um escarro a meus pés. Rupa, que vivera em Alexandria durante muitos anos e ainda tinha amigos na cidade, saía-se melhor, mas incomodava-me estar dependente de um mudo para me livrar de qualquer situação inesperada. Os rapazes mal sabiam falar grego, não sabiam uma palavra de egípcio, e - conhecendo-os - podiam a qualquer momento envolver-se, e envolver-me, em sarilhos.

De maneira que, nos últimos dias, tínhamos optado por nos deixar ficar em casa, praticamente não trocando palavra fosse com quem fosse, à excepção de Merianis, e não recebendo outros visitantes - à excepção, evidentemente, do gato cinzento que neste momento se enroscava com visível satisfação no colo de Mopso.

- E depois? - A pergunta de Mopso ecoou-me no espírito. Encostei-me às almofadas da minha cama e poisei o rolo de pergaminho que estivera a ler. Merianis, que tinha acesso à famosa biblioteca adjacente ao complexo do palácio, e aos seus quatrocentos mil volumes, mantinha-me bem fornecido de material de leitura. Nesse dia de manhã, trouxera-me um exemplar de um livro que eu tinha lido quando era miúdo, mas que nunca mais conseguira localizar em Roma: Os Maravilhosos Feitos de Alexandre, do Pseudo-Calístenes. Ler em voz alta ajudava a passar o tempo, e eu tivera a esperança de que Rupa e os rapazes que precisavam desesperadamente de se entreter, porque começávamos todos a ficar inquietos - se interessassem pelas arrojadas façanhas de Alexandre. Mas até os grandiosos feitos do conquistador pareciam empalidecer, em comparação com os eventos que tinham lugar em nosso redor.

Pousei o pergaminho e soltei um profundo suspiro. Ao longo dos últimos dias, tínhamos discutido muitas vezes a situação de incerteza que se vivia em Alexandria, mas os rapazes pareciam retirar consolo da repetição. - E depois? Não se sabe bem. Os navios de César controlam

160eficazmente o porto, e é provável que ele tenha mais navios a caminho, de maneira que...

- Ele irá saquear Alexandria? - perguntou Ândrocles, cujos olhos se iluminaram perante a perspectiva de uma destruição generalizada. Sentou-se no peitoril da janela, diante do irmão, pegou no gato, que estava sentado no colo de Mopso, e sentou-o no seu. O animal emitiu um discreto miado de queixa, e em seguida recomeçou a ronronar, ainda com mais força que antes.

- Em Alexandria, há quem pense que sim - repliquei eu -, mas não parece que a intenção dele seja essa. César veio fazer de pacificador, e não de guerreiro. Este conflito entre o Rei Ptolemeu e a Rainha Cleópatra tem de ser resolvido de uma vez para sempre, quer para bem do Egipto, quer para bem de Roma. E o Flautista tinha mais filhos
- uma filha chamada Arsínoe, que é mais nova que Cleópatra, mas mais velha que Ptolemeu, e um filho, o mais novo de todos, que tem o nome do pai; mas esses dois foram excluídos do testamento do Rei, e não parecem ter grande proeminência no conflito. Se os reais irmãos não conseguirem resolver esta disputa familiar, César fará de árbitro. Terá como recompensa a estabilidade do Egipto, o que lhe permitirá pagar finalmente as dívidas que o Rei anterior contraiu com Roma, e a retoma do fornecimento de trigo do Egipto, em quantidades e condições estáveis, para alimentar os cidadãos famintos de Roma.

- Quer dizer que o Rei Ptolemeu tem todo o interesse em o manter por cá, não? - observou Mopso.

- Quer tenha, quer não, o mais natural é Ptolemeu não se sentir com força suficiente para o expulsar; e, se conseguir conquistar César para o seu lado, isso poderá ajudá-lo a garantir a vitória sobre Cleópatra que há tanto tempo lhe escapa. Foi por isso que recebeu César com honras de soberano, e pôs à sua disposição uma vasta zona do palácio...

- Onde César se instalou, colocando os seus guardas pessoais em pontos-chave do perímetro - salientou Ândrocles. - Merianis afirma que os Egípcios deram a essa parte do palácio o nome de ”Pequena Roma”,

161e que as mulheres têm medo de ir até lá, porque julgam que os soldados romanos vão incomodá-las. E por que é que vós não estamos instalados na Pequena Roma, juntamente com os outros romanos, senhor?

- Porque quase de certeza que não nos davam um quarto com metade da vista do porto que este tem - respondi eu, com um sorriso sardônico. Na verdade, desde a sua chegada e a sua instalação no Palácio, que nem César nem Meto tinham entrado em contacto comigo; nem eu tinha tentado entrar em contacto com eles.

- É a minha vez de pegar no Alexandre! - disse Mopso.
- No Alexandre? - perguntei eu.

- No gato, é o novo nome dele. Não conseguíamos dizer o nome egípcio, por isso Merianis disse-nos que podíamos dar-lhe outro nome, e nós decidimos chamar-lhe Alexandre. E é a minha vez de pegar nele!
- Mopso pegou no animal, tirando-o do colo do irmão e sentando-o no seu próprio colo. - Achas que César tem a cabeça de Pompeu em cima de uma mesa, ao lado da cama?

Eu dei uma sonora gargalhada.

- Francamente, Mopso, acho que até César teria pesadelos. Mas há de facto uma questão: por que lhe terá o Rei Ptolemeu oferecido aquela cabeça?

- Porque achou que César ia ficar satisfeito - replicou Mopso. Não é por isso que as pessoas dão presentes umas às outras?

- Não necessariamente - respondi eu. - Um presente pode ser uma espécie de advertência. A fortuna é inconstante, e César é tão pouco imortal como Pompeu era. Acho que, lá bem no fundo, César sabe perfeitamente que podia muito bem ter sido a cabeça dele a ser oferecida como troféu, dentro de um cesto, num porto qualquer. Acho que o Rei e os seus conselheiros queriam recordar esse facto a César, embora sob a aparência de o lisonjearem, entregando-lhe os lamentáveis restos mortais do seu rival.

- César pode muito bem perder a cabeça se se atrever, sequer, a por um pé no exterior do Palácio - observou Ândrocles.

162- É verdade, as ruas são pouco seguras, mesmo para um homem que ande armado - assenti eu. - Talvez mesmo para um deus.

- E presumo que seja por isso que nos proibiste de andar sozinhos pela cidade - disse Ândrocles em voz amuada. - Sempre nos deixaste circular por Roma, mesmo quando as coisas estavam más.

- Isso não é totalmente verdade - salientei eu. - Além disso, vocês conhecem Roma como a palma das vossas mãos; se houver distúrbios no Fórum, sabem perfeitamente onde podem ir esconder-se até passarem os tumultos. Mas e a primeira vez que vem a Alexandria. Não conhecem esta cidade nem este povo. Nem sequer falam a língua deles. Muito provavelmente, perdiam-se, ou eram raptados por um negreiro beduíno, ou metiam-se em sabem os deuses que sarilhos, e se isso acontecesse...

Foi por pouco que não disse:

- Se isso, acontecesse, Betesda nunca me perdoaria.

Mopso apercebeu-se da sombra que me atravessou o rosto, e lançou um olhar ao irmão, como se lhe dissesse:

- Pára de amuar como um bebé, - não estás a ver que incomodaste o senhor?! Entretanto, Rupa observava a conversa em silêncio e sem expressão; mas eu começava a perceber que lhe escapavam muito poucas coisas de natureza emocional que se passassem em seu redor; para mudar de assunto, ele apontou para o rolo de pergaminho que eu deixara cair no colo, indicando-me que recomeçasse a ler em voz alta.

Eu pigarreei e desenrolei desajeitadamente o rolo, à procura do sítio onde tinha ficado.

- Ah, cá está: ”o cavalo estendeu imediatamente o focinho na sua direcção e lambeu-lhe a mão, reconhecendo o dono que os deuses haviam decretado para ele. Foi então que Alexandre ... ”

Bateram à porta. Merianis já tinha ido visitar-nos na manhã desse dia, e não havia razões para esperarmos que regressasse; e o toque parecia diferente do dela, mais forte e mais insistente. Alexandre, o gato, saltou do colo de Mopso para o chão.

163- Rupa, vê quem é.

Ele abriu cautelosamente a porta, recuando em seguida, para deixar entrar um egípcio armado. O guarda não era um soldado vulgar; vinha fardado a rigor, com o uniforme dos membros da comitiva real. O gato disparou por entre as pernas do homem, e fugiu do quarto.

O guarda olhou em volta, lançando olhares desconfiados a Rupa e aos rapazes, depois atravessou a cortina que separava o meu quarto do quarto deles. Regressou momentos depois, e disse qualquer coisa em egípcio ao guarda que tinha ficado no corredor. Esse guarda acenou com a cabeça, e desviou-se para o lado, para dar passagem a Potino, que entrou no quarto.

O camareiro-mor estudou-nos à vez, depois dirigiu-se à janela. Instintivamente, Mopso cedeu-lhe o lugar que ocupava no peitoril. Potino contemplou a paisagem por momentos, depois voltou-se para mim.

- Disse-lhes que te instalassem num quarto decente, mas não fazia ideia que te atribuiriam aposentos com uma vista tão espectacular do porto. Espero que aprecies o facto, Gordiano-chamado-o-Descobridôr. Neste palácio, há diplomatas alojados em aposentos com vistas muito menos impressionantes.

- Agradeço a generosidade do Rei. Potino fez um aceno de cabeça.

- E as refeições, têm sido adequadas?

- Mais do que adequadas, camareiro-mor. Rupa e os rapazes correm o risco de engordar se continuarem a comer tudo quanto lhes trazem, especialmente porque passam o dia fechados neste quarto.

- Mas tu deves ter feito umas excursões. Um visitante tem tanto que ver em Alexandria: o Farol, a Biblioteca, o Museu, com a mundialmente famosa escola de astrónomos e matemáticos, o Templo de Serápis, o Túmulo de Alexandre...

- No dia em que fomos visitar o farol, houve um tumulto que obrigou ao encerramento do Heptastádio. Quando fomos ao Templo de Serápis, rebentou uma rixa na Via Canópica. Quando fomos ver

164o Túmulo de Alexandre, disseram-nos que nesse dia estava fechado aos visitantes, por motivos de segurança...

- Sim, sim, percebo onde queres chegar. A cidade vive tempos instáveis. - Encolheu os ombros. - Faz tudo parte da riqueza da vida de Alexandria. Tenho a certeza de que recordarás, dos dias em que aqui viveste, que os habitantes desta cidade são pessoas apaixonadas e expansivas. Têm opiniões claras, e não têm medo de as dar a conhecer, quer aos homens, quer aos deuses.

- Na verdade, parecem ter opiniões muito claras acerca da presença de César na cidade.

- Há uma determinada parcela da população que reage, por medo e incompreensão. Acreditam nos boatos de que César veio declarar o Egipto uma província romana, e de que o Rei tenciona permitir tal coisa. Não compreendem que César é convidado do Rei.

Eu sorri.

- Um convidado cujos aposentos têm uma vista melhor do que a dos meus?

- Talvez queiras conhecê-los - observou Potino. - Na verdade, foi por isso que vim falar contigo. César tem conhecimento da tua presença no palácio. Pediu-me que te convidasse para jantares com ele esta noite, nos seus aposentos.

Fiquei a olhar fixamente para o pergaminho que tinha nas mãos. Enrolei-o num cilindro apertado, e não respondi.

O convite desagrada-te? - perguntou Potino. Quem mais estará presente nesse jantar?

Não se trata de uma função diplomática. Não haverá egípcios entre os comensais, apenas romanos. Para além disso, nada sei, excepto que César insistiu no carácter informal do encontro. Calculo que esteja limitado ao seu círculo íntimo.

- O seu círculo íntimo... - repeti eu, incapaz de reagir. Potino estudou-me atentamente.

165- Foi o teu filho que apresentou o cinto dourado ao Rei, não foi? E a seguir, foi o mesmo jovem oficial que recolheu a cabeça de Pompeu, por ordem de César.

- Esse jovem oficial chama-se Meto. Efoi meu filho. Mas já não é.
- Com certeza. Queres que transmita a César o teu desejo de que Meto não esteja presente num jantar em que tu sejas seu convidado?

- Não estou em posição de indicar a Gaio Júlio César quem deve escolher como companhia para o jantar! Além disso, não tenho qualquer desejo de jantar com César, seja em que circunstâncias for.

- Isso parece-me um tanto... indelicado da tua parte, Gordiano-chamado-o-Descobridor.

- Indelicado? Por quê? César não é o meu anfitrião.

- Ah, pois, o teu anfitrião é o Rei Ptolemeu - e posso garantir-te que o teu anfitrião ficaria muito agradado se aceitasses este convite. Senti um arrepio percorrer-me a espinha, até ao pescoço. Tinha passado por demasiadas experiências semelhantes nos últimos anos, para não perceber o sentido geral da insinuação de Potino. Quando poderia ter-me matado, o Rei Ptolemeu tinha-me poupado a vida. Tinha-me concedido a extraordinária honra de me autorizar a entrar em Alexandria na barcaça real. Tinha-me instalado em aposentos que estavam muito acima da minha posição. Em troca, quase nada me pedira até este momento. César desejava jantar comigo. O Rei ficaria agradado se eu aceitasse o convite. E de que estaria o Rei à espera depois disso? De um relatório sobre o estado de espírito de César, de um resumo da conversa, dos nomes e cargos dos presentes no jantar, juntamente com uma descrição de quaisquer opiniões que tivessem expressado?
- E se eu recusar o convite?

- Com certeza que não o farás, Gordiano-chamado-o-Descobridor. Estás longe da tua terra, chegaste ao Egipto num momento de grandes incertezas, de perigos, mesmo, acompanhado por três jovens cuja sobrevivência depende inteiramente das tuas opções e, devido a uma extraordinária confluência de circunstâncias, és objecto da protecção pessoal

166do Rei do Egipto! Ora César, que e outro dos convidados do Rei, pediu um favor a Sua Majestade - que te autorizasse a jantar com César e o Rei, ansioso por demonstrar a sua benévola hospitalidade, deseja que o faças. Na ausência de qualquer... acidente terrível... ou de uma súbita doença grave, tua ou de qualquer dos teus protegidos... não consigo imaginar nenhuma justificação para recusares o convite. Tu consegues, Gordiano-chamado-o-Descobridor? - A expressão suave do eunuco desafiava-me a detectar a sombra de qualquer ameaça por trás das suas palavras.

Eu abanei a cabeça.

- Não, claro que não. Não tenho qualquer justificação para negar a César o prazer da minha companhia. A que horas devo estar pronto?

167CAPíTULO XIII

Nessa noite, foi Merianis quem veio buscar-me. Parada à porta, olhou-me de alto a baixo.

- Uma túnica muito elegante - observou. - O azul-escuro fica-te bem, e o debrum amarelo, com esse padrão de cavalos marinhos, é muito gracioso. Mas não irias melhor de toga?

Não resisti a dar uma gargalhada.

- A um jantar privado, e neste clima? Não me parece. Quer dizer que vais acompanhar-me?

- Só até à fronteira romana - disse ela, referindo-se em tom de paródia à zona do palácio ocupada pelos romanos. - A minha missão acaba no momento em que te entregar aos guardas da fronteira.

- Que pena. Um homem sente-se mais confiante quando se apresenta com uma bela mulher pelo braço. Mas calculo que não haja mulheres presentes nesta ocasião.

- Não foi... convidada nenhuma mulher - replicou ela. Parecia ter em mente um qualquer sentido duplo, mas não consegui perceber

o que seria.

- Muito bem, Merianis, se aprovas a minha aparência, estou pronto. Rupa, toma conta dos rapazes. E vocês os dois, não se metam em sarilhos!

Percorremos corredores iluminados por tochas, jardins que cheiravam a jasmim e pátios adornados com estátuas gregas e obeliscos egípcios. Merianis poisou-me a mão no braço.

168- É comovente, a forma como te preocupas com eles.
- Com os rapazes?

- E com Rupa. Como se ele fosse teu filho.
- Tecnicamente, é meu filho, por adopção.

- Estou a ver. Adoptaste-o como uma espécie de substituto... Não acabou a frase.

- Não. Tomei-o ao meu cuidado quando a irmã dele morreu, porque era esse o desejo dela, estipulado em testamento. Não teve nada a ver com...

Ela acenou com a cabeça.

- Meto vai estar presente ao jantar desta noite? - perguntei.
- julgo que não. Potino transmitiu os teus sentimentos a César. No entanto, com Meto ou sem Meto, César deseja jantar contigo. Soltei um grave suspiro.

- Hei-de sobreviver a esta noite. A pessoa senta-se, come, esforça-se por conversar polidamente, o tempo passa, a noite acaba, e a pessoa pode ir-se embora.

- Receias assim tanto este encontro com César? Eu adorava conhecê-lo! Não há no mundo homem tão famoso, ou que possa vir a sê-lo. Dizem que ele chega a pôr na sombra os feitos de Alexandre. Poder dirigir-lhe uma palavra que fosse seria... - Incapaz de encontrar o adjectivo mais adequado, ela optou por um arrepio exagerado. Eu olhei-a de lado, perguntando a mim próprio quantos homens prefeririam, se lhes fosse dado escolher, passar uma noite com César em detrimento de uma noite com Merianis.

- A minha única esperança é que a noite seja relativamente calma, e que César não me faça nenhuma surpresa.

Ela ergueu uma sobrancelha.

- Eu cá não me preocupava com a possibilidade de surpresas provenientes desse lado.

- O que queres dizer com isso? Ela sorriu.

169- Os homens não costumam gostar de surpresas?
- Depende.

- Do homem?

- Da surpresa. Merianis, a que se deve esse sorriso retorcido?
- Acho que estou muito bem-disposta esta noite.

- E por quê?

- Ah, cá estamos nós, às portas da Pequena Roma. - Tínhamos entrado num pátio da que devia ser uma das zonas mais antigas do palácio, porque a pedra e a estatuária estavam visivelmente mais gastas pelo tempo. A porta pela qual tínhamos passado estava flanqueada por guardas egípcios, de espadas na mão. A porta situada do outro lado do pátio estava flanqueada pelas suas contrapartes romanas.

Ao verem-nos chegar, os guardas romanos trocaram um olhar que nada tinha a ver comigo, e tinha tudo a ver com Merianis. Gostaram daquilo que viram.

- Trago-vos Gordiano-chamado-o-Descobridor - disse ela. - O vosso senhor está à espera dele.

O guarda de posto mais elevado resfolegou.

- Nós somos romanos. Não temos senhor nenhum.

- Então o vosso imperador.

O guarda olhou rapidamente para mim, depois contemplou Merianis de alto a baixo.

- E quem é que está à tua espera, docinho?

- Não sejas impertinente! - lancei eu. - Esta mulher é sacerdotÍsa do templo real da Deusa ísis.

O guarda olhou para mim com ar atrapalhado.
- Não quis faltar-lhe ao respeito.

- Então pára de nos fazer perder tempo. Não te disseram que me esperasses?

- Disseram.

- Então leva-me imediatamente a César.

O guarda cedeu o lugar a outro, que estava postado de lado de dentro da porta, e fez-me sinal para que o seguisse. Olhei por cima

170do ombro para Merianis, que me lançou um último e misterioso sorriso, e depois dobrei uma esquina e perdi-a de vista.

Esta parte do palácio ficava a curta distância dos aposentos que eu ocupava, mas pareceu-me ter entrado noutro mundo. já não se viam cortesãos murmurantes, percorrendo os corredores ao som dos passos das sandálias e do roçagar dos compridos fatos de linho, deixando atrás de si um odor a óleo de crisântemos e a água de rosas; nem escravos reais a correr de um lado para o outro, cheios da sua própria importância; nem se ouvia o misterioso som de música e risos, proveniente de câmaras inacessíveis, situadas do lado de lá de pátios iluminados pelo luar. Pelo contrário, dei por mim na atmosfera brusca, e totalmente masculina, de um campo militar romano. Cheirou-me a guisado de peixe, ouvi o estrépito de gargalhadas rudes e, ao passar pelos sucessivos postos de controlo, senti o toque de mãos ásperas, que procuravam armas escondidas dentro da minha túnica. Num dos pátios maiores, tinham sido montadas diversas tendas, para acomodar os soldados. Estátuas preciosas de Osíris e Serápis avultavam-se de forma incongruente por sobre soldados em roupa interior, sentados de pernas cruzadas e lançando dados de osso de carneiro para o chão de mosaico antigo.

Por fim, o guarda passou-me para as mãos de um oficial superior, que se desculpou profusamente por quaisquer indignidades a que eu pudesse ter sido sujeito, e me garantiu que o imperador estava ansioso por me receber com todas as atenções e os maiores confortos.

Subimos uma comprida escadaria, demos uma volta e subimos mais uma série de degraus. O oficial percebeu que eu estava ligeiramente ofegante, de maneira que fez uma ligeira pausa; depois, subimos mais alguns degraus. Ao fundo de um comprido corredor de colunas, abriram-se umas portas altas de bronze. O oficial conduziu-me ao interior, e em seguida desapareceu discretamente.

Era um compartimento espantoso. O chão era de mármore verde-escuro, estriado com veios cor de púrpura e cor de laranja ferrugem.

171Diversas colunas do mesmo mármore extraordinário - nunca tinha visto nada assim - sustentavam um tecto de vigas maciças, pintadas a ouro com embutidos de ébano e marfim. Aqui e ali, tapetes com padrões de complexidade estonteante cobriam o solo, rodeados por móveis sólidos - mesas de tripé que pareciam de prata maciça, cadeiras e canapés com embutidos de pedras preciosas, e cobertos de almofadas macias de um tecido brilhante, iridescente. A iluminação provinha de uma dúzia, ou mais, de lamparinas de prata suspensas de correntes do tecto; as lamparinas tinham a forma de um quarteto de ibis, com as pontas das asas abertas tocando umas nas outras, e pontas de chama tremeluzindo nos bicos abertos. A luz difundia-se, suave e homogeneamente, por toda a sala, criando uma atmosfera de conforto e descontracção que fazia emudecer a magnificência do equipamento. A luz da Lua e das estrelas entrava pelas janelas altas, recortadas nos quatro lados da sala; as janelas eram emolduradas por cortinados de linho verde, debruados com fios de ouro e prata. Dirigi-me à janela mais próxima, que ficava voltada para sul, e contemplei um panorama de telhados, jardins suspensos e obeliscos, com o Lago Mareótis em fundo, a calma superfície negra cravejada de estrelas.

- Gordiano! Apesar de todas as minhas súplicas àquele malfadado eunuco, não tinha a certeza de que viesses.

Voltei-me e vi César sentado no meio da sala, com uma manta dobrada sobre os ombros, de tal maneira que só se lhe via a cabeça. Atrás dele, encontrava-se um escravo que envergava uma túnica verde e manejava nervosamente um Pente e uma tesoura.

- Espero que não te importes, Gordiano, mas ainda não acabei de cortar o cabelo. Ultimamente, tenho andado tão ocupado, que nem tenho tratado de mim. Aqui o Samuel é o melhor barbeiro do mundo conhecido; é um judeu de Antíoquia. Conquistei a Gália, venci Pompeu, mas há um inimigo contra o qual me sinto impotente: esta maldita calva! É ínvencível. inexorável. Impiedosa. Todos os meses perco mais alguns cabelos, a linha de batalha recua e a calva conquista um território

172mais amplo. Mas, se não podemos derrotar um inimigo, por vezes podemos, ao menos, roubar-lhe os atavios da vitória. O Samuel é o único que conhece o segredo por via do qual se mantém este inimigo à distância. Ele corta-me e penteia-me o cabelo de uma certa maneira, e eureka! Ninguém consegue adivinhar que a minha careca está cada vez maior.

Ergui uma sobrancelha, tentado a discordar; do ponto onde me encontrava, o contorno brilhante era claramente visível, mas se César estava convencido de que, pelo facto de pentear umas quantas madeixas de cabelo fino sobre a calva, criava a ilusão de que ela não existia, quem era eu para desenganá-lo?

- Pronto, já está! - anunciou Samuel. O barbeiro era um sujeito minúsculo, e tinha de subir a um cepo de madeira para chegar à cabeça de César. Desceu do cepo, poisou os instrumentos, tirou a manta dos ombros de César e sacudiu-a. Verifiquei, com um certo alívio, que César estava vestido com a mesma informalidade que eu: trajava uma túnica comprida, cor de açafrão, vagamente cintada. Parecia bastante magro. Certa vez, Meto comunicara-me que César se gabava de ter a mesma linha de cintura que ostentava aos trinta anos, enquanto a linha de cintura de Pompeu tinha duplicado com a idade.

- Queres aproveitar os serviços de Samuel? - perguntou-me César. Não estás com um ar assim muito cuidado, deixa-me que te diga. Para além de cortar o cabelo, Samuel também tem muito jeito para aparar os pêlos do nariz e das orelhas, ou de outras Zonas do corpo que a pessoa goste de ver depiladas.

- Obrigado pela tua oferta, Imperador, mas dispenso.

- Como preferires. Nesse caso, põe-te a andar, Samuel. Diz aos criados que sirvam o jantar. No terraço, está-me a parecer. - Depois voltou-se para mim. - Não precisas de me tratar pelo meu título militar, Gordiano. Esta missão ao Egipto é uma missão de paz. Vim na qualidade de cônsul do Povo Romano.

Fiz um aceno de cabeça.
- Muito bem, cônsul.

173Ele começou a atravessar a sala. Eu segui-o, imobilizando-me quando os meus olhos pousaram sobre uma estátua de Vénus em tamanho natural, um nu, que havia a um canto. Era de cortar a respiração, de tal maneira viva e cheia de sensualidade, que parecia que o mármore até respirava. A carne de Vénus parecia quente, em vez de fria; os seus lábios pareciam prestes a falar, prontos para beijar; os olhos procuravam avidamente os meus. Tinha uma expressão a um tempo serena e plenamente apaixonada. Em Roma, vêem-se reproduções recentes destas obras-primas, espalhadas pelos jardins dos ricos, e metidas nos nichos dos edifícios públicos, como sementes de papoila espalhadas na superfície de um prato de creme. Mas uma reprodução nunca é a mesma coisa que um original, e esta estátua não era, nitidamente, uma reprodução; só podia ter sido moldada pelas mãos de um dos grandes mestres gregos da Idade do Ouro.

César apercebeu-se da minha reacção, e veio postar-se a meu lado, diante da Vénus.

É impressionante, não é?

Nunca vi nada assim - admiti eu.

Nem eu. Disseram-me que pertenceu a Alexandre, e que foi ele quem mandou colocá-la no primeiro palácio real jamais construído em Alexandria. Consegues imaginar? Alexandre olhou para esta face!

- E ela contemplou a face de Alexandre - repliquei eu, fixando uma vez mais os olhos da estátua e sentindo-me irracionalmente desconcertado por ser o primeiro a pestanejar e desviar os olhos.

César fez um aceno de cabeça.

- Após a morte de Alexandre, o Egipto calhou a Ptolemeu, um dos seus generais e esta estátua passou para a posse da nova família real. Sabes uma coisa?, a primeira vez que entrei nesta sala - ciente de que fazia parte dos aposentos pessoais que o Rei Ptolemeu me atribuíra -, pensei que a estátua tinha sido aqui colocada com o objectivo específico de me impressionar, de me fazer sentir em casa, dado que sou descendente de Vénus. Mas, se reparares na maneira como o

174pedestal está fixado no chão, é óbvio que ela ocupa esta sala há muito tempo, talvez há várias gerações. Por isso, parece que foi o convidado que se adaptou à sala, e não a sala ao convidado. - Sorriu. - E, se reparares ainda com mais atenção aproxima-te, Gordiano, não tenhas medo que ela não te morde verás que tem uma linha muito fina, muito levemente descolorida, à volta do pescoço. Estás a vê-la? Franzi os olhos.

Estou. A cabeça deve ter-se partido, e voltaram a colocar-lha. Exactamente. Quando reparei nisso, não pude deixar de perguntar a mim mesmo se aquele malfadado eunuco me teria atribuído esta sala por saber que sou descendente de Vénus, e para me lisonjear; ou se me instalou aqui para me recordar de novo - e de novo de forma muito pouco subtil - que qualquer um, até uma divindade, pode ficar sem cabeça.

Desviei os olhos da Vénus e aproximei-me de outra janela. Esta estava voltada para leste, na direcção do Bairro judaico. No descampado que ficava para além das muralhas da cidade, avistei o curso sinuoso do canal que ia ter a Canopo, e depois ao Nilo.

- Tens umas vistas espectaculares.

- E de dia ainda são melhores. O porto de um lado, o lago do outro - é difícil imaginar melhor localização para uma cidade. Percebe-se por que motivo Alexandre pensou que poderia vir a governar o mundo a partir deste local, quando acabasse de o conquistar.

- Mas não chegou a ter essa possibilidade - observei eu. Assim que acabou de proceder às conquistas, e antes de poder usufruir dos frutos, morreu. - O silêncio tomou conta da sala. A própria Vénus me pareceu pestanejar e suster a respiração, surpreendida por aquelas palavras de mau presságio.

- A noite está quente - disse César. - E se jantássemos lá fora, no terraço que dá para o porto?

Segui-o até ao terraço de laje, iluminado por grandes braseiras, assentes sobre tripés de bronze, com pés de leão. Ele instalou-se num

175dos canapés e eu no outro. O luar que incidia no farol enviesava-me o sentido de perspectiva, criando a ilusão de que a torre era apenas uma réplica em miniatura e de que, se estendesse as mãos por cima da balaustrada, poderia tocar-lhe.

Olhei para oeste, onde se erguia uma estrutura maciça, ainda mais alta do que os aposentos onde César estava instalado.

- O que é aquilo?

- É o teatro, que tem uma parede alcantilada na direcção da cidade, e dá para o porto, ao qual tem acesso. É adjacente a este edifício; o espaço entre ambos é bastante estreito e pode ser facilmente fortificado.
- Fortificado?

- Sim, com pedras, pilhas de cascalho, esse género de coisas, Tenho andado a pensar que o teatro podia muito bem servir de cidadela, facilmente defensável de um ataque com origem em terra, aberto a reforços provenientes do mar.

- Prevês a necessidade de semelhante reduto?

- Oficialmente? Não. Mas avaliar as potencialidades de um território tornou-se para mim uma segunda natureza. Para onde quer que vá, procuro os possíveis redutos, os pontos fracos, os esconderijos, os locais de vigilância. - Sorriu. - Cheguei ao Egipto com uma força relativamente pequena, Gordiano, que pouco mais é do que uma guarda de honra; mas um número reduzido de homens bem treinados aguentam os ataques de um número elevado de inimigos, se a sua posição tiver sido cuidadosamente escolhida.

- Quer dizer que vai haver guerra na cidade?

- Se for possível evitá-la, não. Mas temos de estar preparados para todas as eventualidades, em especial numa cidade tão volátil como Alexandria.

- Estou a ver. Ao que parece, só há dois canapés aqui no terraço. Vamos jantar sozinhos?

- Por que não? Desde que cheguei a Alexandria, é a primeira vez que janto com uma pessoa que não é, nem um militar, nem um diplomata, nem um eunuco, nem um espião.

176Sustive a respiração ao ouvir a última palavra.

César olhou-me fixamente, com uma expressão sardônica.

- Tenho razão, não tenho, Gordiano? Não és... eunuco, pois não? Soltou uma gargalhada. Eu fiz o possível por acompanhá-lo com outra. Ele bateu as palmas. Momentos depois, chegava o primeiro prato, uma travessa de peixe em salmoura de açafrão. Aparentemente, o criado era também o provador de César. Ao exibir o prato para ser aprovado pelo seu senhor, murmurou:

- Absolutamente delicioso!

César sorriu.

- Esta refeição foi um mimo especial que me fizeram, Gordiano. Potino tem sido bastante mesquinho com as rações que atribui aos meus homens, afirmando que há escassez de mantimentos na cidade, embora me pareça que os cortesãos do Rei são bastante bem alimentados. Mas, enquanto o eunuco mantiver os meus homens a pão e água, eu comerei o mesmo que eles - excepto em ocasiões especiais,

como esta.

César comia com deleite. Eu não tinha grande apetite.

- Continuo a não perceber por que querias ver-me - disse eu.
- Gordiano! Comportas-te como se eu te tivesse convocado com a intenção de te interrogar. Umitei-me a solicitar a Potino que te transmitisse um convite para jantar, para podermos conversar.

- Sobre quê?

- Pregaste-me um ligeiro susto naquele dia, quando te vi no ancoradouro, no meio da comitiva do Rei. Antes de conseguir dizer a Meto que ali te encontravas, desapareceste. Mais tarde, falei com Potino, e ele confirmou-me que fora efectivamente Gordiano, o Descobridor, que eu vira, de toga vestida, ao lado daquela mulher extraordinária. Tenho curiosidade em saber como vieste parar a Alexandria.

- Não perguntaste a Potino?

- Perguntei, mas não vejo motivos para acreditar no que aquele eunuco me diz, seja sobre que for. Preferia ouvir a verdade da tua boca.

177Desisti de fingir que o peixe me interessava e fixei os olhos no farol.

- Vim ao Egipto com a minha mulher, Betesda, que estava doente. Ela queria banhar-se no Nilo, convencida de que as suas águas a curariam. Mas acabou por se perder nessas águas.

Com um gesto, César indicou ao escravo que levasse o peixe.

- Nesse caso, é mesmo verdade. Foi isso que Potino me disse. Lamento muito, Gordiano. Sei por Meto que estavas muito ligado à tua mulher. - Calou-se por momentos. - Como compreenderás, isso coloca-me numa posição delicada. Meto ainda não sabe que te encontras em Alexandria.

- Não? Mas naquele dia, no ancoradouro, Vi-te falar com ele, logo depois de me teres reconhecido. Ele voltou-se na minha direcção...
- E não viu ninguém, à excepção, naturalmente, daquela mulher

extraordinária, que de repente ficou sozinha, porque tu tinhas desaparecido. Não cheguei a pronunciar o teu nome. Limitei-me a pedir a Meto que observasse o homem da toga e me dissesse se os meus olhos me teriam enganado. Quando ele olhou, não viu nenhum homem de toga. Eu deixei cair a conversa - talvez te recordes de que estava ligeiramente ocupado com outro assunto, trocando presentes com o Rei do Egipto. Mais tarde, quando me encontrei com Potino em privado
- não estando Meto presente -, perguntei-lhe se eras tu, e Potino narrou-me a tua chegada ao Egipto. Não me pareceu adequado transmitir a história a Meto, já em terceira mão, pelo menos enquanto não conseguisse falar pessoalmente contigo. Assim sendo, Meto continua sem saber que te encontras em Alexandria, e desconhece a trágica notícia relativa à tua mulher - e não me parece mesmo nada adequado que seja eu a comunicar-lhe, considerando que tu te encontras por cá. Deve ser o pai a dar-lhe a triste notícia, não concordas?

Senti o coração dar-me um salto no peito.

- Não o convidaste a juntar-se a nós esta noite, pois não?

178- Não. Meto não sabe com quem janto esta noite, mas apenas que pedi para não ser interrompido, fosse por que motivo fosse. - Soltou uma gargalhada. - Deve achar que eu tenho uma ligação com aquela mulher extraordinária.

- Ela chama-se Merianis - informei-o. - Se calhar, era preferível que fosse ela a estar aqui, na minha vez.

- Não. Para dizer a verdade, quem ficou realmente enfeitiçado por ela foi Meto, e não eu. O teu filho tem um apetite um pouco inconstante, Gordiano. Sabias disso?

- Sei muito pouco acerca dos gostos e desgostos de Meto nesse domínio... ou das pessoas com quem partilha a sua cama.

César sorriu.

- Regra geral, prefiro que Meto nunca se afaste muito de mim. É o teu filho quem escreve o diário oficial das minhas idas e vindas - sem as notas dele, ser-me-ia impossível escrever as minhas memórias -, mas de vez em quando inspiro e expiro, ou tomo uma refeição, sem ele estar presente. Esta noite, ele não Virá ter connosco.

Senti uma dor no peito.

- Por favor, não fales dele como meu filho.

César abanou a cabeça.

- Gordiano! A guerra teve um efeito terrível sobre ti, não teve? Nesse sentido, pareces-te bastante com Cícero; prosperaste durante os velhos tempos em que toda a gente arrastava toda a gente para os tribunais, vergando as leis para punir os inimigos políticos, agitando acusações temerárias e lançando poeira para os olhos dos jurados. Agora, tudo isso mudou. As coisas nunca mais voltarão a ser as mesmas. Receio que não te adeqúes aos tempos em que vivemos. Tornaste-te descontente, irritável - amargo, mesmo -, mas não deves responsabilizar o pobre Meto por isso. Ah, chegou o segundo prato: centros de palma em azeite aromatizado. Talvez te agrade mais do que o peixe.

César serviu-se. Eu fiquei a olhar para a comida. Ele tinha tocado num ponto que me perturbava desde que avistara Meto no ancoradouro.

179Betesda não tivera qualquer relação de sangue com Meto, tal como eu não tinha; mas fora uma mãe para ele, em todos os sentidos relevantes. Meto teria de ser informado do seu desaparecimento. Quereria saber exactamente o que se tinha passado; era natural que tivesse questões a colocar, questões a que só eu poderia responder, dúvidas que apenas eu poderia mitigar. Não mereceria que eu lhe relatasse os factos, cara-a-cara?

César bebeu um gole de vinho.

- Talvez fosse melhor conversarmos de outra coisa. Soube que assististe às últimas horas da vida de Pompeu, que até ajudaste a construir a pira funerária.

- Foi Filipe que te contou?
- Foi.

- Calculo que lhe tenhas feito um interrogatório em forma depois de Potino to ter oferecido.

- Foi um momento pouco feliz. Como membro da casa de Pompeu como renegado e inimigo do Povo Romano -, Filipe devia ter-me sido entregue de forma mais discreta, juntamente com outros prisioneiros de guerra. Mas tratei-o com grande respeito. Nunca foi interrogado, no sentido em que sugeres; falei pessoalmente com ele, longamente e em privado, como estamos os dois a falar agora.

- Certamente que ele te terá contado tudo o que desejavas saber sobre os últimos dias de Pompeu.

- Filipe contou-me de facto algumas coisas, mas mostrou-se reticente relativamente a outras. Dado que tu estavas presente na altura, gostaria muito de ouvir a história dos teus lábios.

- Para quê? Para poderes regozijar-te? Ou para te ajudar a evitar o mesmo destino às mãos dos teus anfitriões egípcios?

Passou-lhe uma sombra pelo rosto.

- Quando vi a cabeça de Pompeu, os olhos encheram-se-me de lágrimas. Ele nunca devia ter tido fim tão ignominioso.

- Queres tu dizer que ele devia ter sido morto por armas romanas, e não por armas egípcias?

180- Sim, teria preferido que ele tivesse morrido num campo de batalha, em vez de ser apanhado à traição.

- Para que pudesses reclamar a glória de o ter matado?

- Tenho a certeza de que ele também teria preferido morrer num campo de batalha.

- Mas Pompeu teve a hipótese de morrer em combate, em Farsalo. E fugiu. Conheceu um fim macabro, mas rápido. Quantos dos homens que envias para o campo de batalha morrem com a mesma limpeza e a mesma rapidez, cônsul, e por quantos deles se enchem os teus olhos de lágrimas? Não é possível que chores por todos eles, pois de outro modo nunca mais acabavas de chorar.

Ele olhou-me com descontracção, sem se mostrar irritado nem ofendido. Acho que não estava habituado a que lhe falassem assim, e não sabia bem como reagir. Talvez tivesse achado que eu era levemente doido.

- Podemos falar de outros assuntos, Gordiano. Por exemplo, durante a minha ausência de Roma, a minha mulher manteve-me informado do que se passava na cidade. Calpúrnia escreveu-me uma carta particularmente interessante relatando-me o embaraço em que foste colocado quando Milo e Célio tentaram instigar o povo contra mim. E também me contou os pormenores do teu envolvimento com essa mulher notável que era Cassandra. Soube por Potino que outro dos objectivos que te trouxeram ao Egipto foi permitir ao irmão de Cassandra espalhar as cinzas dela no Nilo.

- Sim. O que aconteceu no mesmo dia em que Betesda desapareceu.

- Deve ter sido um dia horrível para ti! Só consigo imaginar o desgosto que deves ter tido, considerando a especial ligação que tinhas com Cassandra. Mas fiquei satisfeito por a minha mulher ter podido facilitar a resolução dos problemas relativos aos pertences de Cassandra após a morte dela. Soube que Calpúrnia teve o cuidado de garantir que aceitarias Rupa em tua casa, e receberias por inteiro o legado que Cassandra te tinha destinado.

181Cá estava o César que eu conhecia: o político consumado, com a sua infalível capacidade de descobrir o ponto fraco do adversário, com o objectivo de o desarmar, ou de o destruir. César não tinha necessidade de me destruir mas, se pudesse desarmar a minha animosidade apelando às minhas emoções, e conquistar-me para o seu lado, fá-lo-ia. O seu comportamento para comigo nesta noite fora irrepreensível, mas tinha conseguido espicaçar o sentimento de culpa que eu sentia por ter evitado Meto e agora, num único golpe, recordava-me a ligação que Cassandra estabelecera entre nós, bem como as atenções especiais de que eu fora objecto por parte de Calpúrnia, a mulher dele, na sequência da morte de Cassandra. Realizar estas subtis manipulações verbais era como que uma segunda natureza para ele; talvez nem tivesse grande consciência do que estava a fazer. Mas eu senti agudamente as suas palavras.

- Cassandra era muitas coisas - comentou, em tom melancólico. Bela, dotada, espantosamente inteligente. Percebo perfeitamente que a tenhas desejado, admirado, talvez mesmo amado...

- Preferia não falar sobre ela. Pelo menos aqui. Pelo menos contigo. Ele estudou-me por longos momentos.

- Porquê? Com quem mais podes conversar sobre Cassandra, se não comigo? Tu e eu conhecemos bastante bem o mundo, Gordiano. Somos sobreviventes. Podíamos conversar sobre tantas coisas. Devíamos ser amigos, e não inimigos! Ainda não percebi o que fiz que te ofendeu. Tomei o teu filho como meu confidente. Elevei-o a um estatuto

muito acima daquele a que muitos libertos sonham sequer aspirar. O percurso do teu filho na vida tem sido, até ao momento, de gloriosa ascensão, graças à minha generosidade e à força de espírito dele. Devias estar-me agradecido, e sentir-te orgulhoso dele! Não consigo compreender-te. Meto também se mostra espantado. Qualquer romano deseja agradar a seu pai, e Meto não tem outro anelo. O teu distanciamento dele fá-lo sofrer terrivelmente...

182- Chega, César! Tens de ganhar todas as discussões? Será necessário que todos os homens do mundo te amem e te sejam dedicados? Eu não o serei. Não sou capaz. Vi os tumultos que homens como tu e Pompeu provocaram neste mundo, e não sinto amor nenhum, mas uma profunda aversão. O meu filho ama-te, César, com todo o seu coração e toda a sua alma, e também com o seu corpo, segundo dizem os mexericos. Isso não te chega?

Olhei fixamente para César, que me devolveu o olhar, incapaz de pronunciar palavra. Depois sentimos ambos, no mesmo instante, a presença de uma terceira pessoa. Voltámos a cabeça em simultâneo. Meto estava à porta.

183CAPíTULO XIV

- Pai? - sussurrou Meto. Estava fardado, de armadura reluzente, capa curta e uma espada metida na bainha, à cintura. As inclemências da guerra combinavam com ele; mantinha-se esguio, em forma. Era neste momento um homem de trinta e um anos, mas continuava a parecer-me um rapazinho, e talvez nunca deixasse de o ser. Tinha o rosto, belo e aberto, queimado pelo sol. O forte bronzeado acentuava as cicatrizes de batalhas que tinha espalhadas pelos braços e as pernas. Sempre que me encontrava com ele, após prolongada separação, contava essas cicatrizes, com receio de encontrar alguma que ainda não conhecesse. Desta vez, não vi nenhuma nova. Ele emergira incólume da campanha grega e da Batalha de Farsalo.

Não respondi.

César franziu o sobrolho.

- Meto, o que estás aqui a fazer? Disse-te que não queria ser incomodado.

Os olhos de Meto circulavam entre nós dois. Eu desviei os meus, incapaz de suportar a visão do tumulto que lhe enchia o rosto. A pergunta de César pareceu finalmente penetrar na consciência dele.

- Disseste que não querias ser incomodado, Imperador... excepto num caso.

O rosto de César iluminou-se. Os seus olhos brilharam, como se reflectisse o sinal luminoso de Faros.

184- Chegou finalmente uma mensagem da Rainha?

- Não foi apenas uma mensagem; foi um mensageiro, e traz um presente.

Onde está ele?

À porta desta sala. É um sujeito grande e robusto, chamado Apolodoro. Afirma que o presente que traz foi enviado pela própria Rainha.

- Um presente?

- É um tapete enrolado, que, ele transporta nos braços. César encostou-se no assento e juntou as palmas das mãos.
- Quem é esse Apolodoro? O que sabemos sobre ele?

- De acordo com os teus serviços de informações, é siciliano de nascimento. Não sabemos como veio parar a Alexandria, nem como entrou ao serviço da Rainha Cleópatra, mas parece ter-se tornado seu companheiro de todos os momentos.

- Um guarda-costas?

- Segundo se diz entre os membros do palácio leais a Ptolemeu, Apolodoro é mais do que um guarda-costas da Rainha. Ele é de facto um espécime impressionante.

- Apesar disso, acho preferível darmos um desconto a essas insinuações; parecem ser bisbilhotices maldosas - declarou César, que também fora alvo de várias campanhas de mexericos ao longo da sua carreira política.

Meto acenou com a cabeça.

- Contudo, parece que este Apolodoro está permanentemente junto da rainha.

- Vai com ela para toda a parte? Meto acenou com a cabeça.

- Estou a ver. E como foi que o sujeito penetrou no palácio?
- Afirma ter vindo num pequeno barco a remos até um ancoradouro isolado, ter desembarcado com o tapete, e ter-se dirigido ao palácio. Como passou pela guarda de Ptolemeu, lá não sei - é óbvio que

185conhece os corredores do palácio, e dizem que ele está cheio de passagens secretas. Apareceu no posto de controlo romano, entregou um punhal com um ar repugnante, e deixou que o revistassem; depois disse aos guardas que o tapete era um presente da Rainha, e que tinha recebido instruções para não o apresentar a mais ninguém, senão a ti.

- Estou a ver. Deve ser um tapete de grande qualidade. Manda-o entrar. - Quando Meto se afastou para lhe obedecer, César voltou-se para mim. - Desculpas-me a interrupção, não é verdade, Gordiano? De qualquer maneira, a nossa conversa também não estava a decorrer da melhor maneira.

- Talvez fosse melhor ir-me embora.

- Como preferires. Mas não preferias assistir ao que se vai passar? À apresentação do tapete?

Não é um simples tapete, Gordiano, é um presente pessoal da Rainha Cleópatra! Nos últimos dias, o Rei Ptolemeu - ou, para ser mais preciso, aquele eunuco, Potino - tem feito todos os possíveis por impedir o acesso à minha pessoa de qualquer representante da Rainha. Deteve cortesãos leais a Cleópatra, confiscou e destruiu as mensagens que eles traziam, e mandou executar sumariamente os próprios cortesãos. Eu protestei junto do Rei - como se atrevia ele a interceptar mensagens dirigidas ao cônsul do Povo Romano? -, mas de nada valeu. O Rei quer impedir-me de ouvir o outro lado desta discussão que mantém com a irmã, mas eu gostaria muito de me encontrar com ela. Ouvem-se dizer coisas tão fascinantes sobre Cleópatra! Marco António conheceu-a há uns anos, quando ajudou a devolver o trono ao pai dela, e disse uma coisa muito curiosa...

Eu fiz um aceno de cabeça.

- Acho que deve ter-me dito a mesma coisa. Apesar de ter apenas catorze anos - aproximadamente a idade que o irmão tem neste momento -, havia nela qualquer coisa que fez com que AntóniO se lembrasse... de ti.

César sorriu.

186- Imaginas semelhante coisa?

Eu olhei para César, um homem de cinquenta e dois anos, com fios de cabelo repuxados sobre a calva, uma queixada forte e decidida, e um brilho de dureza e calculismo nos olhos, ligeiramente suavizado por aquele véu de fadiga do mundo que cai inevitavelmente sobre os homens que conhecem demasiado bem a vida.

- Nem por isso - confessei.

- Nem eu! Mas quem é o homem que resiste a conhecer uma suposta encarnação mais jovem de si mesmo, especialmente se for do sexo oposto?

- Tanto quanto sei, Cleópatra é uma encarnação de ísis. César olhou-me com malícia.

- Alguns filósofos postulam que ísis é, no fundo, a manifestação egípcia de Afrodite grega, que é também a Vénus romana - minha antepassada. O mundo é pequeno. Se Cleópatra é ísis, e ísis é Vénus, parece existir um laço familiar - um laço divino - entre a Rainha Cleópatra e eu próprio.

Fiz um sorriso hesitante. Estaria a entreter-se com este voo de fantasia porque o jogo de palavras o fascinava? A expressão do seu rosto era tudo menos excêntrica.

- Imperador! - Meto estava à porta. Evitava cuidadosamente que os seus olhos se encontrassem com os meus. - Apresento-te Apolodoro, servo de Cleópatra, que traz um presente de Sua Majestade.

Meto desviou-se para dar passagem a uma figura alta e imponente. Apolodoro era belo e moreno, com uma grande juba de cabelo preto penteada para trás a partir da testa, e uma barbinha preta muito bem aparada. Vestia uma túnica muito reduzida, sem mangas, que lhe deixava à vista as compridas pernas e os braços musculosos. Tinha os bicípites cortados por veias que sobressaíam dos músculos, que se encontravam sob tensão pelo peso do tapete enrolado, erguido ao alto. Lembrei-me de todos os degraus que tinha subido para chegar àquela sala; a carne de Apolodoro brilhava de suor, proveniente do esforço

187originado pelo peso que transportava, mas a sua respiração permanecia homogénea.

O tapete estava amarrado com uma corda fina em três pontos, para evitar que se desenrolasse. Apolodoro ajoelhou-se e pousou-o suavemente no chão.

- A Rainha Cleópatra dá as boas-Vindas a Gaio Júlio César, à sua chegada à cidade de Alexandria - disse em latim, com uma pronúncia deselegante que sugeria que teria memorizado a frase mecanicamente. Depois dirigiu-se a Meto em grego, dizendo-lhe: - Se for possível devolverem-me o punhal, para poder cortar as cordas...

- Eu corto-as - interveio César. Meto tirou a espada da bainha e entregou-a a César. César espetou a ponta afiada numa das cordas. Apolodoro ia-se engasgando.

- Por favor, César, tem cuidado!

- O tapete não é meu? - perguntou César. Depois sorriu para Meto. - E eu não sou um homem que conhece o valor das coisas?
- És sim, Imperador - concordou Meto.

- Fui jamais descuidado com alguma coisa que me pertencesse?
- Nunca, Imperador.

- Pois muito bem. - César cortou habilmente as três cordas, depois recuou para deixar Apolodoro desenrolar o tapete.

Foi-se tornando evidente que vinha qualquer coisa dentro do tapete e não era apenas um objecto, era um ser vivo, que se movia. Eu dei um passo atrás e arquejei, depois vi que César e Meto sorriam; não se mostraram inteiramente surpreendidos ao ver a Rainha Cleópatra ser desenrolada com a carpete, e pôr-se de pé com um movimento fluido.

O tapete enrolado não denunciava o prémio que escondia; parecia impossível que o seu interior pudesse conter uma personagem como Cleópatra, que ocupava as asas da imaginação de tantos. Porém, a imensidão da imagem conjurada pelo seu nome era curiosamente desproporcionada da encarnação física da mulher. Na verdade, mal parecia uma mulher, e muito mais uma jovem rapariga, pequena, esguia, de mãos e

188pés mimosos. Usava o cabelo puxado para trás e preso num discreto bandó
- que devia ser a melhor maneira de uma mulher se pentear, se tenciona viajar dentro de um tapete. Também lhe permitia usar um diadema simples na cabeça, uma coroa de uraeus, que não apresentava uma cobra empinada, mas a cabeça de um abutre sagrado. Trajava um vestido azul-escuro que a tapava da cabeça aos pés, e trazia uma faixa dourada à cintura, e outra por baixo dos seios. Embora fosse pequena, não tinha uma figura ameninada; a amplitude das coxas e dos seios teria agradado ao escultor da Vénus que tanto me impressionara ao princípio desta noite. O rosto também podia ter seduzido um mestre escultor. Não seria a mais bela das jovens - na idade dela, Betesda era mais bonita, e Cassandra também -, mas havia qualquer coisa de intrigante nas suas feições amplas e decididas. A Rainha Cleópatra tinha um daqueles rostos que se vão tornando mais fascinantes à medida que a pessoa olha para eles, porque parecia alterar-se subtilmente sempre que a luz mudava ou que ela movia a cabeça.

Ergueu-se, endireitou os ombros e abanou-se ligeiramente, como que para se libertar dos últimos vestígios da viagem dentro do tapete. Levou a mão à parte de trás da cabeça e soltou o cabelo, que lhe descia abaixo dos ombros, mas mantendo o diadema no sítio. Levantou os braços e passou os dedos pelos caracóis. Olhei de relance para César e para Meto, que pareciam tão seduzidos por ela como eu, em especial César. Quegénero de criatura seria esta, que se tinha arriscado a ser apanhada e morta para poder chegar à presença de César, e que agora se ataviava na presença de três desconhecidos com o despudor de um gato?

Ela olhou-nos à vez. A aparência de Meto agradou-lhe nitidamente, porque gastou longos momentos a apreciá-lo da cabeça aos pés. Eu interessei-lhe menos. O seu olhar poisou sobre César, e aí permaneceu. O olhar que trocaram foi de uma intensidade tal, que o resto da sala pareceu desvanecer-se no ar; eu senti que me tinha transformado numa sombra para eles.

189César sorriu.

- Meto, o que te parece o presente da Rainha Cleópatra?

- ”Cuidado com os presentes trazidos por gregos” - disse Meto. Era uma citação. Presumi que estivesse a dizer uma graça, comparando o tapete da Rainha com o cavalo de Tróia; mas, quando olhei para ele, vi que não sorria.

A Rainha ignorou estes comentários. Assumiu uma posição formal: um pé à frente do outro, a cabeça ligeiramente inclinada para trás, os braços abertos num gesto gracioso. Depois disse, num latim imaculado e sem pronúncia:

- Bem-vindo a Alexandria, Gaio Júlio César. Bem-vindo ao meu palácio.

- Ao palácio dela? - murmurou Meto.

César mandou-o calar com um olhar severo, depois dirigiu-se a mim.

- Peço-te desculpa, Gordiano. Convidei-te para jantar, a fim de passarmos uma noite calma, a conversar um com o outro. Mas nunca se sabe quando pode surgir uma questão de estado, como a que surgiu ainda que de uma forma nada convencional - esta noite.

- Não tens de pedir desculpa - respondi eu. - Fui um convidado muito pouco interessante. A minha conversa foi tão fraca como o meu apetite. Deixo-te.

Encaminhei-me da varanda para a sala grandiosamente decorada, sem olhar para trás. Ao passar diante da estátua de Vénus, abrandei ligeiramente o passo. Havia na Rainha qualquer coisa que me recordava a deusa, uma qualidade intangível com a qual os grandes artistas afinam os sentidos. Os homens comuns chamam-lhe divindade, e sabem reconhecê-la quando deparam com ela, mesmo que a sua língua não se mostre capaz de a captar com palavras, ou as suas mãos de lhe conferir uma forma escultural. A Rainha Cleópatra possuía essa qualidade ou era eu que estava estonteado pelo que se tinha passado, como qualquer homem pode ficar estonteado com um objecto de desejo? Certamente

190que Cleópatra era tão pouco divina como Betesda fora, e César tão pouco divino como eu.

Empurrei as portas de bronze e saí da sala; só me apercebi de que estava a ser seguido quando ouvi uma voz murmurar atrás de mim:
- Aquela mulher é um perigo.

Parei e voltei-me. Meto por pouco não colidiu comigo, posto o que recuou para uma distância respeitosa.

- Papá - sussurrou, baixando os olhos.

Não respondi. Apesar da armadura, apesar dos braços e das pernas musculosas, apesar das cicatrizes de batalha e da barba hirsuta que lhe cobria o queixo, naquele momento pareceu-me um rapazinho, timorato e cheio de dúvidas. Mordi o lábio e reuni todas as minhas reservas de coragem.

- Bem, se calhar foi melhor termo-nos encontrado. Tenho uma coisa para te dizer. E não vai ser fácil...

- ”Quanto mais depressa, melhor” - replicou ele, citando o provérbio que eu lhe tinha ensinado quando, em criança, tinha de lhe arrancar espinhos da palma da mão ou de lhe dar um remédio amargo. Ele mantinha os olhos baixos, mas subiu-lhe aos lábios um ligeiro sorriso que eu tentei evitar que me conquistasse o coração.

- O motivo que me trouxe ao Egipto...

Ele ergueu a cabeça para me olhar de frente. Eu desviei os olhos.
- Há algum tempo que Betesda não estava bem de saúde - prossegui. - Era uma maleita que os médicos não conseguiam identificar. Meteu-se-lhe na cabeça a ideia de que, se pudesse banhar-se no Nilo... Meto franziu o sobrolho.

- Betesda está aqui no Egipto contigo?

Senti que a língua se me transformava em chumbo. Tentei engolir, mas não consegui. A boca sabia-me a fel.

- Betesda veio comigo. Banhou-se nas águas do Nilo, como desejava. Mas o rio levou-ma. Ela desapareceu.

- O que queres dizer com isso, papá? Betesda afogou-se?

191- O rio levou-a. Talvez tenha sido melhor assim, se se tratava de uma doença incurável. Talvez fosse essa a sua intenção desde o princípio.

- Betesda morreu? - Os lábios começaram-lhe a tremer e ele franziu o sobrolho. O filho que deixara de ser meu filho, o favorito de César, que vira homens morrer aos milhares, que abrira caminho por entre correntes de cadáveres e montanhas de sangue vivo, começou a chorar.

- Meto! - Disse o nome dele, mas mantive as distâncias.

- Nunca me teria ocorrido... - Abanou a cabeça. As lágrimas corriam-lhe pelas faces abaixo. - Quando uma pessoa está longe de casa, não consegue deixar de imaginar o que estará a passar-se, mas treinamo-nos a pensar que só podem ser coisas boas. Quando nos preparamos para uma batalha, durante a batalha, quando atendemos ao rescaldo, é tanto o terror que nos cerca, tanta a confusão, a sangria, o sofrimento, que quando a pessoa se recorda de sua casa, pensa que é exactamente o oposto, que é um refúgio de segurança e felicidade, onde as pessoas que amamos se encontram juntas, e nada se altera. Mas claro que é um sonho, uma fantasia. Passa-se o mesmo em toda a parte, não há refúgios seguros, seja onde for. A morte rodeia-nos por todos os lados. Mas nunca me teria ocorrido... que Betesda... - Lançou-me um olhar irritado. - Nem sequer sabia que ela estava doente. Podias ter-me mandado dizer - se não tivesses deixado de me escrever.

Eu endireitei as costas e lancei os ombros para trás.

- Pronto, já te disse. Betesda já não está connosco. Se o corpo não tivesse desaparecido, tê-la-ia mandado mumificar, como era seu desejo. Meto abanou a cabeça, como se estivesse tonto.

- E a Diana? Como está ela? E o pequeno Aulo? E...

- A tua irmã... - Interrompi-me para me corrigir. - A minha filha e o filho dela estavam bem quando parti de Roma. Se não estivesse à espera de outro filho, ela ter-me-ia acompanhado.

- E Davo? E Eco? E...

192- Estão todos bem - atalhei eu, com vontade de pôr fim à conversa.

Ele suspirou.

- Papá, sei que isto deve ter sido uma grande tribulação para ti. Apenas posso...

- Não digas mais nada! - repliquei. - Era preciso dizer-te, e já te disse. Agora volta para junto de César.

- Voltar para junto de César? - Ele soltou uma gargalhada desprovida de alegria, e limpou uma lágrima que se lhe demorara no rosto.
- Não viste a expressão dele? E a expressão dela? Ela é um perigo. Uma coisa é lidar com aquele rapaz-rei que julga que foi fadado pelas estrelas, mais o eunuco dele. Mas receio que a Rainha Cleópatra seja uma questão muito diferente. Não posso deixar de admitir que coragem tem ela...

- Vejo o tempo que duraram as tuas lágrimas por Betesda. já só pensas em César e na Rainha, e no joguinho em que andam todos metidos.

- Papá! Estás a ser injusto.

- Pensa o que quiseres, mas não te dirijas a mim como se fosse teu pai.

Ele inspirou audívelmente e retraiu-se, como se eu lhe tivesse trespassado o peito com um punhal.

- Papá! - sussurrou ele, abanando a cabeça. Eu estava capaz de jurar que ele tinha voltado a ser uma criança, com não mais de dez ou doze anos, um rapazinho hesitante, metido dentro de uma armadura de guerreiro.

Foi-me necessária a minha última reserva de coragem para não o abraçar naquele momento. Em vez disso, voltei-me resolutamente e afastei-me a passos largos pelo corredor fora, descendo em seguida os muitos degraus que tinha subido anteriormente, e deixando Meto à espera que o seu imperador e a Rainha terminassem a prazenteira entrevista.

193CAPíTULO XV

- Tu sabias - disse a Merianis enquanto passávamos, lado a lado, por pátios e fontes buliçosas, de regresso ao meu quarto. Ela estava à minha espera no posto de controlo que assinalava a entrada do enclave romano.

- Tu sabias - repeti, voltando-me para olhar para ela. - Daí o teu sorriso retorcido. Daí o teu comentário malicioso sobre as surpresas.
- De que estás tu a falar, Gordiano-chamado-o-Descobridor?

- Tu sabias que, para além de mim, César receberia outro visitante esta noite.

- E sou eu que sou maliciosa? - perguntou ela. - Estás a dizer-me que o vosso jantar foi interrompido por um visitante inesperado?
- Não conseguiu conter um grande sorriso. O contraste dos dentes brancos com o brilho negro da pele era estonteante.

- César recebeu um presente de proveniência inesperada.
- Um presente?

- Uma surpresa, que escondia outra surpresa no seu interior. Foi comparada ao Cavalo de Tróia.

Merianis riu-se.

- São palavras de César? Eu franzi o sobrolho.

- Não, são palavras de um dos seus homens.

- E esse Cavalo de Tróia chegou em boas condições?

194- Chegou.

- O conteúdo emergiu são e salvo?

- Perfeitamente, e tão disposto a causar distúrbios como os invasores gregos que saltaram do Cavalo de Tróia. Da última vez que o vi, César parecia disposto a render-se a uma força devastadora.

Merianis bateu palmas, deliciada.

- Desculpa rir-me, mas a metáfora é tão invulgar. São sempre as mulheres que são descritas como cidades sob cerco, cujos portões são abertos para trás, e cujas muralhas são derrubadas. Dá-me vontade de rir pensar no poderoso César nessa posição.

- Ele é humano, Merianis, e não mais do que isso.

- Por enquanto - replicou ela, e em seguida murmurou qualquer coisa em egípcio, que eu presumi tratar-se de uma breve e extática acção de graças a ísis.

Tinha um grupo de guardas do palácio à minha, espera à porta do meu quarto. Sem me deixar entrar, o oficial que os comandava colocou-me, delicada mas firmemente, no meio dos seus homens, e dei por mim de novo em marcha, deixando Merianis para trás.

- Eu vejo como estão Rupa e os rapazes - disse ela enquanto eu me afastava.

Fui conduzido a uma zona do palácio que não conhecia. Os corredores foram-se tornando mais amplos, os jardins mais luxuriantes, as tapeçarias e outros objectos decorativos cada vez mais sumptuosos.

Os guardas acompanharam-me a uma sala ampla, dentro da qual se encontravam dezenas de cortesãos, formando pequenos grupos dispersos. A sala estava cheia do eco de muitas conversas sussurradas. Olhos cheios de curiosidade voltaram-se para nós. O oficial que comandava o grupo desapareceu, deixando-me parado no meio da sala, com uma escolta armada em meu redor.

- É aquele romano - ouvi alguém dizer. - Aquele que o Rei convidou para a sua barcaça. É um adivinho, não é?

195- Não, acho que é uma espécie de espião, ou então um assassino famoso.

- Parece velho de mais para isso.

- Com os romanos nunca se sabe. São uns sujeitos traiçoeiros, tortuosos. Quanto mais velho, mais ladino.

O oficial regressou à sala e, com um gesto, indicou-me que o seguisse. Abrimos caminho por entre a multidão, e chegámos diante de um par de portas douradas. As portas abriram-se. O oficial ficou para trás mas indicou-me com um gesto que entrasse. Eu entrei numa sala em que todas as superfícies pareciam cobertas de ouro - eram urnas de ouro sobre mesas douradas, cadeiras douradas com almofadas bordadas a ouro, paredes de ouro martelado e um tecto pintado a ouro, do qual estavam suspensas lamparinas douradas. Até o chão, de um estonteante mármore branco, era percorrido por veios de um material dourado. As paredes estavam adornadas com baixos-relevos, que narravam os feitos do primeiro Ptolemeu, o general de Alexandre. Também estes entablamentos, embora fossem seguramente talhados em pedra, eram dourados, quer por serem pintados a ouro, quer por estarem cobertos por uma espessa camada de folha de ouro, de tal maneira que as imagens cintilavam com a luz reflectida pelas lamparinas douradas. Entre elas, avistei a cena que tinha narrado em voz alta aos rapazes na manhã desse dia, em que Ptolemeu assiste ao primeiro encontro de Alexandre com o cavalo Bucéfalo.

Era uma sala desprovida de sombras, porque todas as superfícies reflectiam a luz. Até o ar parecia dourado, impregnado de um suave brilho sem origem aparente - e transportando a música de um flautista que tocava uma toada que me era familiar.

Na extremidade da sala, sentado num trono dourado, avistei Ptolemeu, que envergava uma toga plissada de linho branco, com uM manto dourado sobre os ombros. Devia ter estado a oficiar uma cerimónia religiosa no seu papel de deus Osíris, pois trazia posta a coroa atef, o jovem rosto, coberto pelo cone branco de plumas de penas de avestruz, tinha uma expressão severa. Por trás do trono, estava postada

196uma fila de guarda-costas. E junto ao trono via-se uma série de escribas, sentados no chão de pernas cruzadas. Ali perto, alguém tocava flauta. Diante do trono, estava Potino, de pé, de braços cruzados e a cabeça inclinada para trás, divertido com o meu espanto. Tinha entrado numa sala destinada a intimidar pessoas como eu, e a sala tinha cumprido a sua função.

- O teu jantar com César acabou cedo - comentou ele. - Não correu bem?

- Fomos interrompidos - respondi eu.

- Ah - disse Potino. - Um visitante inesperado?

Olhei-o atentamente. Seria eu o único que ignorava a chegada da Rainha? Depois apercebi-me de que ele se referia a Meto, cuja presença sabia que eu quisera evitar.

- A certa altura, o homem a quem chamei meu filho mostrou-se... Ptolemeu interveio.

- Acho que este distanciamento entre ti e o teu filho é uma coisa triste. Eu daria muita coisa para ter o meu pai novamente entre os viVos. Para voltar a olhá-lo nos olhos; para ouvir as suas gargalhadas; para o ouvir tocar flauta.

Considerando que o pai do Rei tinha matado a irmã mais velha, e que ele próprio estava em guerra com a irmã que tinha desposado, eu não estava disposto a permitir que o jovem Ptolemeu tivesse opiniões sobre as minhas relações familiares. Mas não respondi, antes dei Por mim a estudar a face de Ptolemeu, enquadrada pelo manto de ouro e a coroa atef. Tendo acabado de conhecer a irmã, estava impressionado com a profunda semelhança entre os dois. Nenhum deles era especialmente bonito, nenhum deles chamaria a atenção se entrassem incógnitos numa sala, mas ambos possuíam, inegavelmente, uma certa presença. Eu sentira-a de uma forma mais determinante na presença de Cleópatra, mas talvez isso fosse apenas fruto das minhas inclinações eróticas. Voltou-me a memória a imagem dela, de pé, a abanar a cabeça para soltar o cabelo, que lhe caiu até abaixo dos ombros.

197Potino pigarreou audivelmente. Aparentemente, tinha dito qualquer coisa que me tinha escapado.

- Se Gordiano-chamado-o-Descobridor fizer o favor de regressar ao presente... - disse, lançando-me um olhar condescendente que me pôs no meu lugar com grande clareza: eu era um mortal romano, confuso por me encontrar na sala dourada do Rei. Eu ericei-me.

- Perdoa-me. Estava perdido nos meus pensamentos, a tentar perceber em que aspectos é que o Rei se parece, ou não, com sua irmã Cleópatra.

Por momentos, eles ignoraram o comentário; depois, e em simultâneo, Potino teve um sobressalto e o Rei inclinou-se para diante.
- O que foi que disseste? - gritou Ptolemeu.

- As parecenças de família são óbvias - o nariz, os olhos mas há uma diferença, e eu não consigo localizá-la.

- Estiveste com ela? Com Cleópatra? - A voz de Potino cedeu, como por vezes cede a voz de um eunuco, mesmo dos mais maduros. Onde? Quando?

- Esta noite, nos aposentos de César.

Ptolemeu afundou-se no trono, e começou a mordiscar a ponta de um dedo. Um dos joelhos dele agitava-se.

Eu bem te disse que ela havia de arranjar maneira, Potino.

É impossível, Majestade! Todas as entradas estão guardadas, todas as encomendas são examinadas, todas...

- É óbvio que não é assim! Deixámos uma entrada por cobrir, e ela percebeu qual era. Ela é como uma serpente, percorre uma parede até encontrar uma fenda, por pequena que seja, e mete-se por ela.

- Na realidade, chegou por via marítima - comuniquei eu. Estaria a ser imprudente, a colocar a Rainha, e mesmo César, em perigo com estas revelações? Não estaria a cumprir exactamente o plano de Potino, trazendo informações ao Rei? Talvez, mas estava tão satisfeito com a exasperação que estava a causar neles, que não conseguia parar. - já esta noite, um sujeito chamado Apolodoro trouxe-a num barco a remos

198

do outro lado do porto. Descobriram um ancoradouro que não estava guardado e dirigiram-se ao sector romano do palácio.

- Que grande descaramento! - Ptolemeu deu uma palmada na testa, embatendo com a mão na coroa, um comportamento muito pouco digno de um deus. - Ela e o garanhão siciliano percorreram o palácio, indo bater à porta de César?

Potino baixou a voz.

- Vossa Majestade bem sabe que há maneiras secretas de atravessar o palácio e os terrenos do palácio. Algumas dessas passagens são muito antigas; pode haver algumas que nem eu próprio conheça. Certa vez, quando estava a remodelar os seus aposentos privados, o vosso pai deitou abaixo uma parede e descobriu uma rede de túneis que nem ele suspeitava...

- Apesar disso, Potino, tu garantiste-me que isto não aconteceria!
- Na verdade - intervim eu, incapaz de resistir à tentação não percorreram os dois o palácio. Apolodoro transportava-a.

- O quê? - Potino olhou para mim, confuso. - Transportava-a? Nos braços?

- Principalmente aos ombros.

O Rei e o camareiro-mor olharam para mim como se eu tivesse ensandecido. Um dos guarda-costas não conteve uma pequena gargalhada. O homem que se encontrava ao lado dele tossiu para abafar o ruído.

- Ia enrolada num tapete - esclareci eu. - Apolodoro levava um tapete ao ombro. Disse aos romanos que trazia uma prenda da Rainha para César. Eu estava presente quando Apolodoro entrou nos aposentos dele. O tapete foi desenrolado diante de César, e a Rainha apareceu. Pouco depois, eu retirei-me.

- Quem mais se encontrava na sala? - perguntou Potino. Encolhi os ombros.

- Meto. Retirou-se na mesma altura que eu. Não tenho a certeza por onde saiu Apolodoro; talvez por uma das passagens secretas de que estavam a falar.

199O Rei enrolou o lábio superior.
- Ela está a sós com ele?

- Neste preciso momento - respondi. Potino suspirou.

- Cleópatra é como uma nódoa de vinho sobre linho branco. jamais nos veremos livres dela.

- Se a nódoa não sai, o melhor é queimar o linho. - Ptolemeu franziu o sobrolho, soltou um trémulo suspiro, a que se seguiu uma espécie de balido. Fungou, sustendo as lágrimas. Naquele instante, parecia um rapazinho, e um rapazinho que estava, não apenas furioso, mas de coração despedaçado. Ao ter conhecimento de que a irmã se achava a sós com César, Ptolemeu verteu lágrimas amargas. Eu olhei para ele, confuso.

- Cleópatra! - sussurrou Potino. - Imparável. Implacável. Aquela mulher é um perigo.

Meto dissera o mesmo,

200CAPíTULO XVI

Os guarda-costas que me tinham acompanhado à câmara real acompanharam-me de regresso ao meu quarto. Fazia-se tarde. Os corredores estavam vazios; o palácio silencioso. Comecei a ouvi fragmentos da conversa que decorria no meu quarto muito antes de a porta aberta surgir no meu campo de Visão.

As vozes agudas de Ândrocles e de Mopso eram as que se propagavam mais depressa, pelo que foram as primeiras a chegar aos meus ouvidos. Assediavam o visitante com perguntas. As respostas deste, quando conseguia responder, eram pronunciadas mais lentamente, numa voz mais grave que eu não conseguia entender com clareza, embora ouvisse distintamente as sonoras gargalhadas.

- Mataste alguém em Farsalo? - perguntava Ândrocles.

- Claro que matou! Mas quantos? - retorquia Mopso. - Mataste alguém famoso, como Domício Aenobarbo?

- Não sejas ridículo! - disse Ândrocles. - Sabes perfeitamente como foi que o velho Barba Ruiva morreu. Marco Antônio perseguiu-O, como cão de caça atrás de coelho, até o coração lhe explodir dentro do peito. O que eu quero saber é o seguinte: estavas com César quando ele irrompeu pela tenda de Pompeu adentro, ainda avistando o Grande a desaparecer pelas traseiras? É verdade que se preparavam para um banquete, com escravos gregos a dedilhar as liras, e servido com as pratas de cerimónia de Pompeu?

201Estava agora suficientemente perto para ouvir a voz do homem, que se sobrepôs às pancadas subitamente aceleradas do meu coração.
- Rapazes, rapazes, as saudades que eu tinha vossas! Embora confesse que não sei como é que o papa atura o vosso chinfrim.

Detive-me no corredor, a alguns passos da porta.

- Vai-te embora! - sussurrei ao oficial que me escoltava. - Trouxeste-me até ao meu quarto, como te ordenaram, Não digas nada. Leva os teus homens e vai-te embora!

O oficial arqueou uma sobrancelha, mas fez o que eu lhe pedi. Avancei pela porta aberta.

Meto estava encostado a uma parede. Os rapazes saltitavam de um lado para o outro, não despregando os olhos dele até eu ter entrado no quarto, momento em que chocaram um com o outro, quase se deitando mutuamente ao chão. Rupa, que não conhecia Meto, estava sozinho ao pé da Janela; o seu sorriso, tímido mas simpático, desvaneceu-se assim que olhei para ele. Merianis estava ali perto, com Alexandre, o gato, ao colo. Apercebendo-se da minha expressão, poisou o gato no chão e aproximou-se dos rapazes, poisando-lhes a mão no ombro para aquietar o seu permanente frenesim. O gato desapareceu debaixo da minha cama.
- O que estás aqui a fazer? - perguntei.

Meto olhou-me longamente, com uma expressão primeiro suplicante e depois, perante a minha impassibilidade, exasperada.

- Papá, isto não faz sentido nenhum! Eu pedia-te perdão - se ao menos soubesse o que fiz para te ofender.

Ter-se-ia esquecido de tudo quanto eu lhe dissera em Massília? Eu não tinha. Longe disso! Quantas noites permanecera acordado, enquanto Betesda se agitava a meu lado, relembrando as palavras que se haviam precipitado da minha boca naquela ocasião? ”As palavras ditas jamais podem ser desditas”, como adverte o poeta, mas no calor do momento, eu perdera por completo a inibição e as palavras haviam jorrado, conduzindo-me a uma decisão que não havia previsto.

202- Meto! Primeiro, fizeste-te soldado, e vivias disso, de matar Gauleses para glória de César. De queimar aldeias, escravizar crianças, deixar viúvas a morrer à fome - sempre me desgostou, embora nunca to tenha dito. Agora que descobriste uma vocação nova, de espião de César, destróis os outros por meio da mentira. Ainda me desgosta mais.

”Qual é a coisa mais importante para mim? Descobrir a verdade! Faço-o mesmo quando não serve para nada, quando só pode provocar sofrimento. Faço-o porque tenho de o fazer. E tu, Meto? O que significa a verdade para ti? Não podes suportá-la, como eu não posso suportar a mentira! Somos completamente diferentes. Não é de espantar que tenhas encontrado o teu lugar ao lado de um homem como César...

”Esta será a nossa última conversa, Meto. A partir deste momento, deixaste de ser meu filho, Meto. Renego-te. Retiro-te o meu nome. Renuncio a toda e qualquer preocupação contigo. Se precisares de um pai, pede a César que te adopte!

Até hoje, em Alexandria, aquelas haviam sido as últimas palavras que eu lhe dirigira.

- Não há nada a discutir e não se põe a questão de te perdoar. É muito simples: este é o meu quarto, pelo menos de momento, e tu não tens nada que fazer aqui. Não devias ter vindo. Presumo que me tenhas seguido, ou que tenhas mandado alguém seguir-me, dado que é assim que fazes as coisas...

- Não! - interveio Merianis. - Fui eu que o trouxe.
- Tu? Mas como...?

- Quando te acompanhei para ires jantar com César, aguardei junto ao posto de controlo. Pouco depois, apareceu Apolodoro, trazendo a oferta para César. Meto veio recebê-lo. Reconheceu-me, do dia em que o rei recebeu César oficialmente no ancoradouro. Trocámos umas palavras breves...

- Não tão breves, que Meto não tenha ficado ciente de tudo o que precisava de saber sobre ti. Tornou-se um perito em extrair informação

203valiosa - é um dos seus deveres profissionais. - Também é um dos teus deveres? I pensei, sem o dizer em voz alta; pois tornara-se-me evidente que Merianis não era simplesmente uma sacerdotisa de ísis, mas uma espia da encarnação de ísis - a Rainha Cleópatra.

Merianis prosseguiu.

- Mas tarde, depois de eu te ter trazido de novo a este quarto e de os homens do Rei te terem levado, Meto mandou-me uma mensagem, pedindo-me que regressasse ao posto de controlo. Encontrámo-nos lá e Meto pediu-me que o trouxesse ao teu quarto. Procedi mal? Meto é teu filho, não é verdade?

Ptolemeu e Potino sabiam que eu me tinha afastado de Meto. Merianis não o saberia igualmente? Talvez estivesse mais inocente do que eu julgara - ou talvez não. De repente, dei por mim cheio de desconfianças, e odiei esta sensação. Fora justamente em semelhante pântano de dúvidas e duplicidades que me achara atolado em Massília, o que acabara por conduzir à minha desavença com Meto e César. Eles tinham-me seguido até Alexandria, trazendo a traição pestilenta a uma cidade já destroçada pela mentira. Senti-me como um homem que luta para se manter à tona de areias movediças, sem conseguir descobrir um ponto de apoio. Queria apenas que me deixassem em paz.

- Vai-te embora, Merianis.

- Gordiano-chamado-o-Descobridór, se te ofendi por ter trazido o teu filho à tua presença...

- Vai-te embora!

Merianis franziu o sobrolho, mas deu meia volta e saiu, pela porta que continuava aberta.

- Quanto a ti, Meto...

- Papá, não sejas ríspido! Por favor, imploro-te ...
- Silêncio!

Ele mordeu o lábio e fechou os olhos, mas parecia incapaz de se calar.

- Papá, se te interessar sabê-lo, começo a partilhar as tuas suspeitas em relação a César. - Abriu os olhos, mas apenas conseguiu fixar-me

204um instante antes de os desviar, como que surpreendido pela enormidade e a ousadia das palavras que acabava de pronunciar.

Fixei-o até ele me devolver o olhar.

- Explica-te.

Ele olhou de esguelha para Rupa.

Fiz um gesto de assentimento com a cabeça.

- Compreendo. O teu treino de espião ensinou-te a manter a boca fechada na presença de desconhecidos. Não pedirei a Rupa que saia do quarto. Na verdade, nem tão pouco aos rapazes. já passámos os quatro por demasiadas coisas nesta viagem. Tudo o que tiveres para me dizer, poderás dizê-lo diante deles.

- Isto já é suficientemente difícil para mim! - Meto foi sacudido por um arrepio, como se a pele lhe estivesse apertada. Dardejou Rupa com um olhar que exprimia mais do que mera desconfiança. Eu havia-o deserdado; e adoptara Rupa. Sentir-se-ia Meto substituído?

Sacudi a cabeça.

- Diz o que tens a dizer. Ele inspirou profundamente.

Desde Farsalo... não, ainda antes disso. Desde as operações militares em DirráquIo... ou terá sido aquando da última estadia de César em Roma, em que ele recorreu aos seus poderes de ditador para resolver os problemas que se tinham acumulado durante a sua ausência? Não, foi ainda antes disso; creio que deve ter começado quando me reuni a ele em Massília - quando tu me deserdaste na praça pública, ainda César regozijava com o triunfo da rendição da cidade. As coisas que me disseste, o que disseste sobre César - fiquei convencido de que tinhas enlouquecido, papá. Literalmente. Achei que a tensão do cerco à cidade tinha levado a melhor sobre ti. Mais tarde, César disse O mesmo: ”Não te preocupes”, sossegou-me. ”O teu pai há-de voltar a si. Dá-lhe tempo.” Mas talvez tenha sido esse o momento em que eu comecei a voltar a mim.

Meto fez uma pausa, ganhando forças para prosseguir.

205- Terei sido eu quem mudou? Ou terá sido César? Não me interpretes mal; César continua a ser o homem mais grandioso que jamais conheci neste mundo. A inteligência dele, a coragem, a perspicácia César eleva-se acima de todos nós como um colosso. E todavia...

Quedou-se em silêncio durante um longo momento, e acabou por encolher os ombros.

- Fui eu. Fui eu que deixei, muito simplesmente, de ter estômago para isto. Vi demasiado sangue, demasiado sofrimento. Tenho um sonho recorrente, sobre uma pequena aldeia na Gália, um lugarejo minúsculo, totalmente insignificante por comparação com Roma ou com Alexandria, mas não tanto que pudesse ser ignorado quando decidiu desafiar César. Cercámos a aldeia e apanhámo-los de surpresa. Houve uma batalha, aliás bastante curta e fácil. Chacinámos todos os homens que ousaram pegar em armas contra nós. Àqueles que se renderam, acorrentámo-los. Depois, obrigámos as mulheres, as crianças e os velhos a saírem de suas casas e incendiámos a aldeia de cima a baixo. Para dar o exemplo, percebes? Os sobreviventes foram vendidos como escravos, provavelmente a outros gauleses. Foi assim que as coisas funcionaram na Gália. Rendam-se, e tornar-se-ão súbditos de Roma; ofereçam resistência, e tornar-se-ão escravos. ”Temos de lhes apresentar alternativas simples”, explicou-me César. ”Ou estão com Roma, ou estão contra Roma; não há meio-termo.”

”No entanto, quando sonho com esta aldeia, o que vejo é a cara de determinada criança, um rapazinho, jovem de mais para pegar em armas, quase jovem de mais para compreender o que se estava a passar. O pai fora morto na batalha; a mãe estava louca de desgosto. O rapazinho não verteu uma única lágrima ao ver a casa em que tinha crescido ser devorada pelas chamas. A avaliar pela oficina anexa à casa, o pai do rapaz era ferreiro. O mais provável é que, quando crescesse, o rapaz também viesse a ser ferreiro, a casar-se e a ter filhos, e uma vida na aldeia. Em vez disso, porém, viu o pai morrer, foi separado da mãe e tornou-se escravo para o resto da vida. A quantia que o novo amo

206pagou por ele foi empregue no financiamento de novas campanhas contra outras aldeias gaulesas, para que mais rapazinhos como ele fossem escravizados. No meu sonho, vejo a cara dele, inexpressiva, imóvel, com a luz das chamas nos olhos.

”A aldeia não foi destruída por mero rancor, claro. Tudo o que se fez na Gália foi feito em nome de um propósito mais elevado; era o que César me dizia sempre. Ele persegue um ideal grandioso: o mundo inteiro unificado sob o estandarte de Roma, e Roma inteira unificada sob o poder de César. No entanto, para que isto venha a acontecer, há certas coisas que têm de acontecer primeiro. A Gália tinha de ser pacificada e colocada sob domínio de Roma; e foi. Quando o Senado de Roma se insurgiu contra César, os Senadores tiveram de ser corridos de Roma; e foram. Quando Pompeu instigou a oposição contra César, a oposição teve de ser dizimada; e foi. Agora, César tem de decidir o que acontecerá ao Egipto, quem deve governá-lo e qual a melhor maneira de o colocar sob o seu domínio. Com tudo isto, a glória de César resplandece, mais fulgurante do que nunca. E eu devia estar contente, pois contribuí para que tudo isto se tornasse realidade; mas tenho aquele sonho e, nos últimos tempos, é quase todas as noites. O fogo arde e o rapazinho olha as chamas, paralisado pelo choque. No esquema geral das coisas, pouco importa que ele tenha sido escravizado; Roma governará o mundo e César governará Roma e, para que isso aconteça, a escravidão daquele rapaz foi apenas uma ínfima necessidade na grande cadeia das necessidades.

”No entanto, por vezes... por vezes acordo com uma pergunta insana na cabeça: e se a vida desse rapazinho tivesse tanta importância como a de outra pessoa qualquer, como a do próprio César? E se eu pudesse escolher entre condenar aquele rapazinho ao Miserável destino que será o seu, e poupá-lo, frustrando as ambições de César? Vivo assombrado por esta ideia - o que é ridículo! Mete-se pelos olhos dentro que César é infinitamente mais importante do que aquele rapaz gaulês; um está destinado a governar o mundo, o outro é um escravo miserável, se é

207que ainda está vivo. Alguns homens são grandiosos, outros são insignificantes, e convém-nos, a nós que nos encontramos no meio, aliar-nos aos grandes e desprezarmos os pequenos. O simples acto de imaginar que o rapaz gaulês tem tanta importância como César equivale a presumir que subsiste em todos os homens uma qualquer qualidade mística que torna a sua vida igual à de qualquer outro, e a lição que a vida nos ensina é, sem sombra de dúvida, a oposta! Em força e em intelecto, os homens são tudo menos iguais, e os deuses prodigalizam as suas atenções a uns, mais do que sobre outros. E, todavia...

Meto baixou a cabeça e a torrente de palavras estancou. Percebi que a perturbação dele era genuína, e estava estupefacto com o curso dos seus pensamentos.

- César alguma vez se confrontou com tais dúvidas? Meto soltou uma gargalhada amarga.

- César nunca questiona a sua boa fortuna. Ama os deuses e é amado por eles. O triunfo constitui a sua própria sanção. Conquanto triunfe, um homem não precisa de questionar os seus métodos nem os seus objectivos. Em tempos, esta filosofia bastou-me, mas agora...
- Abanou a cabeça. - César esquece aquela velha palavra grega, hubris: uma ambição tão desmedida, que provoca a ira dos deuses.

Foi a minha vez de soltar uma gargalhada.

- Se, até agora, César não provocou a ira dos deuses, estou certo de que...

- Mas, até agora, César nunca teve a presunção de imaginar que era divino.

Olhei para ele perscrutadoramente.
- O quê?

- Desde que partimos para o Egipto que ele não pára de trazer o assunto à baila, inicialmente, em tom de graça. ”Estes Ptolemeus não se limitam a viver como deuses,” dizia, ”eles são deuses; tenho de ver como põem essa divindade em prática.” Mas não se trata de brincadeira nenhuma, pois não? Com Pompeu fora do mapa, o Senado reduzido à

208irrelevância, e todas as legiões unidas sob o seu comando, César precisará de meditar demoradamente sobre o que significa governar como um rei, quer se atribua o título, quer não. O exemplo de Alexandre não lhe serve de grande orientação, morreu muito jovem. já os Ptolemeus podem servir como modelo para uma dinastia duradoura e bem sucedida, ainda que, nos últimos tempos, a sua glória se tenha rebaixado aos dois espécimes decadentes que rivalizam para se apoderarem do governo do país.

- Não tens grande opinião do Rei Ptolemeu e da irmã, pois não?
- Tu próprio assististe ao espectáculo que a Rainha encenou esta noite! Ela e o irmão parecem ter ambos a mesma ideia: seduzir o homem para fazer do general seu aliado.

Franzi o sobrolho.

- Estás a sugerir que o jovem Ptolemeu...

- Está completamente apanhado por César. Chega a ser patético! Devias ver a atitude aduladora que adopta quando estão juntos - a maneira como olha para César, a adoração pelo herói a cintilar-lhe nos olhos!

Acenei com a cabeça, recordando a reacção de Ptolemeu quando eu lhe dissera que Cleópatra se encontrava a sós com César.

- Presumo que César seja imune a esse tipo de coisa, depois da adulação que lhe tem sido votada por tantos jovens ao longo dos anos.
- Incluindo uma razoável dose da tua parte, Meto, pensei.

Meto franziu o sobrolho.

- Era de esperar que assim fosse, mas com Ptolemeu a coisa é um tanto diferente. César parece estar igualmente fascinado por ele. O seu rosto ilumina-se sempre que Ptolemeu aparece. Encostam as cabeças, partilham graças, riem-se e trocam olhares cúmplices. Não consigo perceber. Não é certamente pela beleza do rapaz. Se queres a minha opinião, tanto ele como a irmã são bastante vulgares. - Meto bufou. A partir de agora, passaremos a tê-los ambos em torno de César, como moscas à volta de um pote de mel!

209Meditei nesta revelação. A ser verdade, não seria a primeira vez que César se envolvia num romance real. Quando jovem, as suas façanhas românticas na corte do Rei Nicomedes da Bitínia tinham-se tornado lendárias, inspirando coscuvilhices insidiosas entre os seus rivais políticos e cantigas de marcha indecorosas entre os seus próprios soldados. (Segundo uma letra hiperbólica, o seu insaciável imperador era ”marido para todas as mulheres e marido para todos os homens”.) No caso do Rei Nicomedes, César havia sido o amante jovem e, presumivelmente, o parceiro receptivo (daí o escândalo subsequente, e a chacota dos soldados, pois um romano não pode submeter-se a outro homem, devendo assumir sempre o papel dominante). Com César e Ptolemeu, os papéis seriam, presumivelmente, inversos, sendo César o parceiro mais velho e mais vivido, e Ptolemeu o jovem deslumbrado e sedento de experiência.

Quando os poetas cantam os amantes, celebram Harmódio e Aristogíton, ou Teseu e Ariadrie. Mas nem sempre é necessário que dois amantes sejam tão equilibrados em termos de beleza e juventude. Lembrei-me do meu próprio caso com Cassandra, uma mulher bastante mais nova que eu, e não me foi difícil compreender a faísca de desejo mútuo que César e o Rei podiam ter inflamado um no outro. Não obstante todo o sucesso mundano que adquirira, César estava naquela idade em que até os homens mais robustos sentem de uma forma aguda a crescente fragilidade do seu corpo outrora invencível, começando a olhar com inveja (e, sim, por vezes também com lascívia) para os corpos firmes e vigorosos de homens mais novos do que eles. A juventude transforma-se, por si mesma, num afrodisíaco para o homem que já não a possui; e a juventude, conjugada com desejo recíproco, torna-se irresistível.

Para quem observe de fora, tais casos amorosos podem parecer absurdos ou aviltantes - o homem de meios, já senil, suspirando por um jovem escravo sem recursos. Neste caso, porém, tratava-se de um encontro entre dois homens extraordinários. Pensei na combinação de entusiasmo juvenil com grave sentido de dever de Ptolemeu, na

210sua autoconfiança temperada de ingenuidade. Pensei na sofisticação natural e na suprema segurança de César, e na sua vaidade, ligeiramente ridícula, traída pelo modo como se penteava de maneira a cobrir a calva. Ambos eram, não apenas homens, mas governantes de homens; e, todavia, não apenas governantes, mas também homens, com apetites, fraquezas morais, inseguranças, necessidades; e não só homens e governantes, como também - ao que ambos pareciam acreditar descendentes e encarnações de divindades. Acrescia a tudo isto o facto de Ptolemeu ter perdido o pai que muito amava, e de César nunca ter tido filhos. Não me era difícil imaginar que César e o Rei tivessem algo de único a oferecer um ao outro numa esfera privada, devidamente afastada da arena pública das riquezas, das armas e da diplomacia; que, num momento em que se encontrassem a sós, pudessem partilhar um entendimento recíproco, inacessível a todos nós que estávamos de fora.

Por que razão se mostraria Meto tão desdenhoso ao comunicar as suas suspeitas? Teria sido tão íntimo de César quanto me fora dado acreditar por mais de uma vez? Teria essa intimidade minguado, ou cessado de todo? Estaria com ciúmes pelos devaneios sensuais de César com os dois irmãos - e esse ciume tornaria as suas suspeitas mais ou menos fiáveis?

Estremeci, como se despertasse de um sonho. Nem Meto, nem a forma de vida que escolhera seguir junto de César, me diziam já respeito. Mesmo que o que ele acabava de me dizer fosse verdade - que começara a ter dúvidas quanto àquela forma de vida -, ainda assim, isso nada tinha a ver comigo. Pelo menos, foi o que disse a mim mesmo.

- Falas como se um abismo se tivesse aberto entre ti e César. Todavia, ainda esta noite pude testemunhar o tipo de relação que mantêm um com o outro - como se fossem grandes amigos, rindo-se e sorrindo, completamente à-vontade. Diria que quase pareciam um velho casal.

- É isso que nós parecemos? As aparências podem iludir. - Baixou os olhos e, de súbito, senti uma pontada de dúvida. Estaria Meto a ser

211reservado e dissimulado com César, recorrendo às técnicas de fingimento que se haviam tornado a sua segunda natureza para iludir o homem que admirara e sobre quem tinha agora sérias reservas? Ou seria eu o ludibriado? Tanto quanto sabia, Meto continuava a ser um espião de confiança de César e eu não passava de mais uma fonte de informação a conquistar.

Endireitei-me e endureci o coração.

- Disseste o que tinhas a dizer e eu fiz o mesmo. Foi um dia longo
- demasiadamente longo e demasiadamente recheado de acontecimentos para um velho como eu. Preciso de descansar. Vai-te embora. Meto fez uma expressão desolada.

- Mas ainda queria dizer-te tantas coisas. Fica... para a próxima. Olhei-o sem pestanejar e fiz um gesto na direcção da porta aberta. Ele deu um abraço a cada um dos rapazes, fez um aceno de cabeça cortês a Rupa, e deu meia volta para se ir embora.

- Meto - espera um pouco. Ele parou à porta e voltou-se.

- já que aqui estás - Rupa, importas-te de aproximar o baú da cama? Abre a tampa, por favor. - Desde que nos instaláramos no quarto que eu deixara de manter o baú aferrolhado. Sentei-me na cama e remexi por entre os objectos que ele continha.

- O que procuras, papá? - perguntou Meto.

- Estão aqui os pertences de Betesda. Ela gostaria que tu ficasses com alguma coisa... como recordação.

Retirei vários objectos do baú, espalhando-os a meu lado, em cima da cama, para os escolher. Deparei com o pente de prata e ébano de Betesda. Ao pegar nele, senti tremer os dedos. Viria jamais a ter tanto significado para Meto como tinha para mim? Talvez; mas não conseguia suportar a ideia de me separar dele. Teria de encontrar outra coisa para lhe entregar.

- O que é isso? - perguntou ele.
- O quê?

212- Isso - esse frasquinho de alabastro. Era de Betesda?
- Não.

- Tens a certeza? Parece o tipo de coisa que ela teria utilizado para guardar perfume. Poder voltar a sentir o cheiro do perfume dela gostava tanto.

- O frasco não pertencia a Betesda!
- Não é preciso seres tão ríspido! Suspirei.

- Este frasco foi-me oferecido por Cornélia. Ele franziu o sobrolho.

- A mulher de Pompeu?

- Sim. É uma história complicada de mais para ta contar, mas acredita que este frasco não contém perfume.

- Veneno?

Dirigi-lhe um olhar aguçado.

- Não há dúvida de que César te ensinou a pensar como um espião. Meto abanou a cabeça com gravidade.

- Algumas coisas aprendi-as conmigo, papá, quer te agrade, quer não, e a tendência para a dedução foi uma delas. Não sendo perfume, que outra coisa poderia uma mulher como Cornélia transportar num frasquinho como esse? E, se to deu...

- Cornélia não me contratou para assassinar ninguém, se é nisso que estás a pensar.

- Estava a pensar que ela to teria oferecido num gesto de misericórdia, ou talvez de mera conveniência - para te poupar a uma morte mais violenta. O veneno era para ti, não era, papá?

Por pouco não sorri; a astúcia dele encantava-me, apesar de mim próprio.

- Trata-se de uma coisa chamada Némesis-num-frasco, rápida e relativamente indolor, pelo menos segundo me disse Cornélia. Garantiu-me que se tratava da sua reserva pessoal, para uso próprio se viesse a ter necessidade disso.

213Pobre Cornélia! Neste momento, deve sentir-lhe a falta.

É possível, mas duvido. Cornélia sobreviveu a Públio Crasso. Sobreviveu a Pompeu. É bem provável que sobreviva a mais um malfadado marido.

- Se houver homem suficientemente estulto para desposar mulher tão malfadada!

Endireitei-me e cerrei o maxilar. Não tinha pedido a Meto que voltasse atrás para nos entretermos com gracejos. Entre os objectos espalhados sobre a cama, o meu olhar recaiu sobre um frasquinho de malaquite esculpida, com uma tampa da mesma pedra, presa por um grampo de bronze. Peguei nele, contemplei-o demoradamente, e entreguei-o a Meto.

- Talvez aprecies isto, para te recordares dela. A cera de abelha que se encontra lá dentro está impregnada do perfume que Betesda usava em ocasiões especiais. Disse-lhe que o deixasse em Roma, mas ela insistiu em trazê-lo. ”E se formos convidados para um jantar com a Rainha Cleópatra?”, perguntou, obviamente a brincar.

Meto soltou a tampa e levou o frasco ao nariz. Era um perfume subtil, mas inconfundível, cujos ingredientes permaneciam secretos, até Para mim. O ar trouxe-me uma suave lufada. Vieram-me lágrimas aos olhos.

Meto prendeu a tampa. A voz saiu-lhe embargada de comoção.
- Se tens a certeza de que queres dar-mo...

- Fica com ele.

- Obrigado, papá.

Voltou-se para sair, mas virou-se para trás novamente.
- Aquele frasco de veneno, papá, devias livrar-te dele.

E tu devias meter-te na tua vída, ia eu para lhe dizer, mas o nó que se formara na minha garganta tornou-se excessivamente espesso. O máximo que consegui fazer foi um gesto abrupto de dispensa.

Meto saiu do quarto e desapareceu.

214Por que não segui o conselho de Meto? Poderia ter lançado o frasco de alabastro pela janela, na direcção do porto, onde se teria afundado como uma pedra. Mas não, juntei-o às outras coisas que se encontravam em cima da cama, voltei a colocar tudo dentro do baú, fechei a tampa e atirei-me para cima da cama.

Rupa aproximou-se. Disse-lhe para ir para o quarto dele. Mopso aproxIMOU-Se, pigarreando para dizer qualquer coisa. Disse-lhe que fosse com Ândrocles para junto de Rupa, Deixaram-me sozinho.

Cobri a cara com o antebraço e chorei. Imperceptível como um murmúrio, o perfume de Betesda pairava no ar.

215CAPÍTULO XVII

Na manhã seguinte, os rapazes evitaram fazer barulho, o que me permitiu dormir até tarde. Ainda me sentia ligeiramente tonto, com a cabeça cheia de sonhos agitados, quando Merianis apareceu, trazendo um fragmento de papiro que havia sido dobrado várias vezes e selado com cera. A impressão da cera era a do anel de César, na qual figurava uma imagem de Vénus, circundada pelas letras do nome dele.

- O que é isto? - perguntei.

- Não faço ideia - retorquiu Merianis. - Uma missiva da Pequena Roma. Sou apenas o mensageiro. Queres que espere, para o caso de quereres responder?

- Espera, para eu poder olhar para a tua cara radiante. Que alguém neste palácio se sinta feliz. O regresso da tua senhora terá alguma coisa a ver com a tua disposição desta manhã?

Ela sorriu.

- Na ausência da Rainha Cleópatra, o templo de ísis foi um espaço desprovido de magia.

- E agora, a magia regressou. - Quebrei o selo e desdobrei o papiro. A carta fora escrita pelo punho do próprio César.

Gordiano, As minhas desculpas pela interrupção do nosso jantar. Ficou muito por dizer. Porém, os encontros inesperados produzem resultados felizes.

216Hoje, haverá uma recepção real, à qual gostaria muito que comparecesses. Chama-lhe uma lição na arte subtil da reconciliação. Veste a toga e aparece no grande átrio de recepções à oitava hora do dia.

Pousei a carta. Merianis olhava para mim, expectante.

- É uma recepção qualquer, logo ao fim da tarde - disse eu. Ela acenou com a cabeça, indicando que já sabia.

- Tu vais? - perguntei.

- Nenhum poder, nos céus ou na terra, me impediria de ir.

- Nesse caso, também vou. Mopso! Ândrocles! Parem de brincar côm esse gato e preparem-me a toga.

O átrio de recepções era verdadeiramente grandioso, resultado de centenas de anos de refinamento, acréscimos e embelezamentos empreendidos por gerações de Ptolemeus. Era aqui que os Reis e as Rainhas do Egipto recebiam as homenagens dos súbditos, anunciavam tratados e acordos comerciais, celebravam as núpcias reais e encenavam as suas mais gloriosas exibições de riqueza e de poder. Todas as superfícies resplandeciam de luz reflectida, fossem os mármores polidos do pavimento e dos pedestais incrustados de pedras semipreciosas, fosse a prata lustrosa dos suportes e das lamparinas, fosse o ouro dos nichos, repletos de estátuas de douradas. O tecto alto era suportado por uma floresta de colunas esguias, decoradas com padrões de lótus e pintadas de tons vibrantes.

Quando Merianis e eu chegámos, já o átrio fervilhava de excitação. A multidão era maioritariamente composta por egípcios em traje de cerimónia, embora houvesse também um contingente alargado de romanos. ”Uma lição na arte subtil da reconciliação”, dissera César na nota que me dirigira, e os oficiais romanos pareciam glosar o mote, envidando todos os esforços para se misturarem com os nativos e entabularem conversa com eles. Pareciam, contudo, existir na sala duas facções desiguais de egípcios, que se mantinham à distância uma da outra.

217Presumi que a facção mais numerosa fosse a dos apoiantes do Rei, e o grupo mais pequeno o dos apoiantes da irmã. Enquanto os romanos se movimentavam entre ambos, os dois grupos de cortesãos não se misturavam, antes trocavam olhares furtivos e desconfiados.

Merianis pegou-me na mão e conduziu-me até ao outro extremo do átrio, onde se alinhavam quatro tronos sobre um estrado baixo. Os tronos eram dourados, estofados a carne de crocodilo, e os braços esculpidos tinham a forma de cabeças de crocodilo, cujas mandíbulas abertas revelavam filas de dentes de marfim. Na parede por trás dos tronos, um enorme fresco representava a cidade de Alexandria, como se observada por uma ave que planasse a grande altitude, com o farol de Faros agigantando-se por sobre tudo o resto. Para lá da paisagem urbana e do porto fervilhante, via-se um imenso mar azul pontuado de navios minúsculos, mas meticulosamente desenhados, com as grandes ilhas de Rodes e de Creta (identificadas, por baixo de cada uma, pelos respectivos nomes em caracteres gregos) ao longe.

Uma onda de excitação, palpável como uma brisa morna, percorreu a sala, prontamente seguida por um ruidoso burburinho. Vi que um séquito rumava em direcção ao estrado, abrindo caminho por entre a multidão. Potino ia à frente, seguido pelo Rei, que usava a coroa uraeus com uma cobra empinada. Depois vinha César, trajando como cônsul do Povo de Roma, com a toga debruada a púrpura. Atrás dele, resplandecente num vestido cor de púrpura, adornada de jóias e usando uma coroa uraeus com uma cabeça de abutre, vinha Cleópatra.

Depois dos irmãos mais velhos, entraram os dois membros da família real que eu ainda não tinha visto: Arsínoe, que era ligeiramente mais velha que o jovem Rei, e o mais novo de todos, um rapaz que também se chamava Ptolemeu, e que não podia ter mais de dez ou onze anos. Estes dois não usavam diademas, mas vestiam umas roupagens deslumbrantes.

Quando a procissão real passou por mim, tentei interpretar as suas expressões. Potino dava a impressão de estar aflito e constrangido, como se tivesse engolido qualquer coisa que não lhe tivesse assentado

218bem. O Rei Ptolemeu mantinha os lábios firmemente apertados e olhava em frente, como se tentasse deliberadamente ostentar um semblante impenetrável. César tinha o ar de quem está eminentemente satisfeito consigo próprio. E Cleópatra...

Na noite anterior, tinha visto Cleópatra com o cabelo num bandó, envergando um traje prático, adequado a uma viagem em condições difíceis, e praticamente sem ornamentos. Mesmo assim, impunha-se inconfundivelmente como uma Rainha. Agora, trajando vestes reais, com um colar de escaravelhos de ouro a adornar-lhe o peito e anéis de ouro e de prata nos dedos, a presença dela parecia encher a câmara. Olhei em volta e vi que alguns dos egípcios presentes a miravam com profundo ódio, outros com adoração, e que os oficiais romanos a contemplavam com expressões que iam do deslumbre à mera curiosidade; mas todos os pares de olhos, sem excepção, se fixaram em Cleópatra quando ela passou.

Tinha uma expressão tão insondável como a do irmão, mas irradiava uma qualidade assaz distinta. Ptolemeu exalava a tensão de uma catapulta retesada; Cleópatra parecia deslizar pela sala sem esforço, como uma nuvem prossegue céu afora.

O Rei e a Rainha subiram para o estrado e sentaram-se nos dois tronos centrais. A seu lado, sentaram-se Arsínoe e o jovem Ptolemeu, em tronos ligeiramente menos elevados e menos magnificentes. Observando os quatro lado a lado, fiquei estupefacto com as parecenças que havia entre eles. Era como se me encontrasse diante de quatro manifestações da mesma entidade, encarnada em corpos de diferentes idades e sexos, mas que eram, não obstante, mais semelhantes do que distintas. Teria esta inacreditável parecença servido apenas para agudizar a hostilidade que votavam uns aos outros?

Potino, de frente para o Rei e a Rainha, bateu com o bastão no chão. Os egípcios presentes inclinaram as cabeças e ajoelharam-se. Os romanos hesitaram, olhando para César a pedir indicações. Com um aceno de mão, César indicou-lhes que procedessem como os egípcios

219e, com graciosidade considerável, flectiu um joelho. Eu segui-lhe o exemplo mantendo, todavia, a cabeça levantada. Vi César inclinar-se primeiro perante Ptolemeu, que lhe devolveu um olhar vazio, e depois perante Cleópatra, que o fitou com um olhar que deixava poucas dúvidas, pelo menos no meu espírito, quanto ao que se passara entre os dois depois de eu me ter retirado da presença deles.

- ”A história faz-se à noite” - murmurei.

- Que disseste? - sussurrou Merianis.

- Estava apenas a citar um velho provérbio etrusco.

Potino levantou-se e bateu novamente com a pesada vara no chão. Todos se ergueram.

Seguiu-se um restolhar de movimentos, uma tossidela aqui e ali, o som de alguém a pigarrear, e uma gargalhadinha abafada de excitação por parte de Merianis. Depois, a câmara quedou-se em silêncio.

César avançou. Em virtude dos seus muitos anos de experiência como orador no Fórum e comandante no campo de batalha, não teve quaisquer dificuldades em encher o vasto átrio com a sua voz.

- Majestades, estou hoje diante de vós em duas qualidades: como cônsul do Povo de Roma, e como amigo do vosso falecido pai. Há onze anos, no ano do meu primeiro consulado, o vosso pai, expulso de Alexandria na sequência de um conflito civil, dirigiu-se a Roma, onde solicitou a nossa ajuda. Recebeu-a. O Senado declarou-o Amigo e aliado do Povo de Roma, uma honra elevada; em troca, o vosso pai nomeou o Povo de Roma guardião e tutor dos seus descendentes. Desta maneira, Roma e o Egipto ficaram unidos por laços jurídicos, bem como por laços de amizade.

”Também as fortunas de cidadãos privados se juntaram às do falecido Rei. Eu próprio abri os meus cofres, e exerci toda a minha influência para ajudar a sustentá-lo durante o exílio, e para finalmente o repor no trono que lhe pertencia. A sua morte foi uma tragédia para quantos o conheciam e estimavam, mas muito especialmente para o seu reino, que tanto amava e que, desde então, se tem debatido com tantos tumultos e dissensões.

220”O falecido Rei não morreu intestado. Com efeito, uma cópia do seu testamento foi enviada para Roma, a fim de ser depositada no Tesouro, sendo outra cópia guardada, sob selo, aqui em Alexandria. Acontece que a primeira cópia caiu nas mãos de Pompeu, estando assim irremediavelmente perdida para nós. Todavia, desde que cheguei a Alexandria, consegui obter a segunda cópia, quebrei o selo e fi-lo com todo o cuidado, embora não tivesse grande necessidade de voltar a familiarizar-me com os seus termos. As disposições contidas neste testamento haviam sido conhecidas aquando da morte do Rei, tendo sido muito debatidas em Roma.

”Infelizmente, nos últimos anos, o Povo de Roma, a braços com as suas próprias convulsões internas, não esteve em condições de supervisionar a aplicação dos desejos do falecido Rei. Quando cheguei ao Egipto, fiquei consternado ao descobrir que a vontade do vosso pai não havia sido cumprida. Aqueles que deviam ter assumido quotas idênticas da herança deixada rivalizavam um com o outro, traçando armas para determinar qual dos dois teria direito a reclamar para si a totalidade dos bens legados. Em certa medida, a responsabilidade por esta situação é do Povo de Roma, que não cumpriu as suas obrigações enquanto executor do testamento e guardião da família real. Faço, pois, tenções de redimir essa falta. Enquanto encarnação da vontade do Povo de Roma, a minha autoridade abrange esta questão da execução do testamento do falecido Rei, e tenciono verificar que as disposições por ele determinadas são adequadamente cumpridas - com equidade, amigavelmente, e para benefício de todas as partes envolvidas.

”Quando cheguei ao Egipto, fui calorosamente recebido por Sua Majestade, o Rei Ptolemeu, que me proporcionou generosa hospitalidade. Nos últimos tempos, eu próprio tenho sido objecto de pequenas insurreições e conflitos, pelo que ter aportado a esta bela cidade, e encontrado uma oferta de abrigo seguro e uma trégua nas minhas lutas recentes, constitui um favor que não olvidarei tão cedo. Obrigado, Rei Ptolemeu. Contudo, mais gratas ainda foram as horas que tu e eu temos

221passado juntos desde a minha chegada, e o nascimento entre nós do que espero venha a ser uma amizade duradoura e cada vez mais profunda. Em nós, Roma e o Egipto encontram-se. E é bom, não só para nós, mas para os nossos povos, que forjemos laços fortes de respeito e afecto mútuos.

César inclinou a cabeça perante o Rei que, do trono, olhou para ele com uma expressão mais hirta do que nunca. César fez uma pausa, aparentemente esperando que o Rei esboçasse algum gesto de reconhecimento. O momento prolongava-se desconfortavelmente. O semblante de Ptolemeu permanecia imutável, excepção feita a uma ligeira tremura do queixo. Por fim, César pigarreou e prosseguiu.

- A crescente amizade que tenho vindo a estreitar com Vossa Majestade trouxe-me grande alegria. No entanto, a minha visita também tem sido toldada pela tristeza nascida da minha desolação perante a discórdia que perpassa pela família real. Nas palavras do poeta, ”Quando os deuses se voltam uns contra os outros, os mortais voltam-se irmão contra irmão.” Da mesma maneira que a discórdia nos céus reverbera na terra, assim a discórdia no palácio de Alexandria causa uma Perturbação que se propaga por todo o Egipto, alastrando mesmo até Roma. Os assuntos dos homens sofrem ruína, e desorganiza-se a ordem natural das coisas. Segundo me disseram, os anciãos nunca testemunharam inundação tão baixa do Nilo como a desta Primavera e deste Verão; segundo me disseram, os sábios atribuem este fenômeno preocupante à perturbação que o rio sofre pela discórdia entre os legítimos governantes do Egipto. É necessário restaurar a harmonia e o equilíbrio - como era intenção do vosso sábio pai, que destinou que o Egipto fosse conjuntamente governado por uma Rainha e por um Rei: o filho mais velho e a filha mais velha da sua própria linhagem de sangue.

”É certo que o falecido Rei Ptolemeu não deixou os assuntos do Egipto em situação inteiramente estável. O custo da restauração da sua soberania não foi pequeno e o rei viu-se obrigado a contrair uma dívida considerável. Fez apelo às armas romanas; foi derramado sangue romano. Essas tropas romanas ainda permanecem no Egipto e, presentemente,

222recebem ordens de um comandante egípcio. O próprio exército que mantém a ordem no Egipto foi, essencialmente, uma oferta do Senado e do Povo de Roma ao reino do Egipto. A par da assistência militar, o vosso pai beneficiou do empréstimo de quantias avultadas de ouro e prata romanos, e de muitos outros recursos avançados por conta. O grosso da sua dívida financeira para com Roma, incluindo a sua dívida pessoal para comigo, permanece por saldar. Dadas a dissensão e a incerteza que estancam o Nilo, não parece possível que esta dívida possa ser paga enquanto a paz e a ordem não forem restabelecidas no Egipto.

”A dívida que o Egipto tem para com Roma ensombra a nossa amizade; não seria razoável da minha parte negá-lo. Devido a esta sombra, há no Egipto quem tema que eu possa não ter vindo apenas com uma reconciliação em mente. Esses temem que, na sequência da derrota de Pompeu em Farsalo, o conquistador da Gália possa ter-se dirigido ao Egipto com o intuito de disputar a autoridade dos seus legítimos governantes. Deixem-me garantir a Vossas Majestades, na presença dos membros da vossa corte real, e diante dos meus próprios oficiais de confiança, que não tenho a menor intenção de procurar impor a autoridade romana sobre o Egipto pela força das armas. Fazê-lo, não só violaria a vossa confiança em mim, como iria contra a vontade expressa do Senado e do Povo de Roma, que desejam apenas um relacionamento pacífico e um comércio amigável entre os nossos dois povos.

”Não vim trazer a guerra, mas acabar com ela; não vim usurpar trono dos herdeiros do Rei Ptolemeu, mas uni-los; não vim ameaçar Egipto, mas abraçá-lo.

César voltou-se para Cleópatra.

- Com esse fim em mente, saúdo o regresso da Rainha Cleópatra à cidade dos seus antepassados. - Tal como fizera anteriormente com Ptolemeu, César inclinou a cabeça. Ao contrário do irmão, Cleópatra respondeu ao gesto, esboçando um ligeiro sorriso de auto-satisfação, que me fez lembrar, acima de qualquer outro, o do próprio César.

223- A Rainha esteve muitos dias ausente da capital. As cerimónias e invocações religiosas que exigem a presença dela foram negligenciadas. Os projectos iniciados pelos seus ministros foram suspensos. A vida da cidade e o bem-estar do seu povo sofreram com isso. Cleópatra só regressou ao palácio ontem à noite, guiada, segundo me fez saber, pelo engenho e a persistência da própria deusa ísis. Hoje, a Rainha voltou a sentar-se no trono. O povo rejubila, e eu também.

”E os outros irmãos, a princesa Arsínoe e o jovem príncipe Ptolemeu? O testamento de seu pai não lhes concede nenhum legado específico. Contudo, vim a descobrir que têm verdadeira estatura real e, em minha opinião, deve ser-lhes atribuídos territórios próprios. Decreto, pois, que a ilha de Chipre que, ao longo dos últimos dez anos, tem sido uma província romana, regresse, de ora em diante, a regência ptolemaica, e que a princesa Arsínoe e o jovem príncipe Ptolemeu a rejam conjuntamente, como Rainha e Rei. Possa o seu governo constituir um reflexo do reinado harmonioso de seus irmãos aqui no Egipto.

”Que assim seja feito: que se cumpra a vontade do falecido Rei Ptolemeu, que os seus filhos governem juntos e que haja paz no Egipto; que o Senado e o Povo de Roma rejubilem também, reconhecendo a autoridade conjunta do Rei e da Rainha...

- Não! - gritou o Rei Ptolemeu, em voz quebrada. Saltou do trono, com os braços hirtos colados ao corpo e os punhos cerrados. A máscara impenetrável transformara-se em olhos dardejantes, queixo trémulo e lábios crispados.

Potíno correu para ele e falou-lhe por entredentes.

- Majestade! Por desagradável que este procedimento possa ser, acordámos previamente...

- Tu acordaste! Eu não disse nada.

- Acenaste com a cabeça sempre que...

- Acenei com a cabeça porque estava excessivamente irado para conseguir falar, e demasiadamente magoado para dizer o que realmente pensava!

224- Majestade, por favor! Se ainda há questões a discutir, essa discussão deve ter lugar em privado. Regressa ao trono e permite-me mandar estas pessoas embora...

- Não, eles que fiquem! Que permaneçam aqui, assistindo a este absurdo. Que sorriam e atirem beijos à rameira da minha irmã e ao seu amante romano, se assim desejam. Sou eu que me vou embora, para que os restantes possam prosseguir com esta orgia de autofelicitação!

Ptolemeu deu um passo em frente, cambaleando ligeiramente ao descer do estrado. A multidão, atónita, apartou-se para lhe dar passagem. Os guardas egípcios que se encontravam à porta afastaram-se, genuflectindo. Ptolemeu era como a proa de um navio que sulcava as ondas e o vento, tudo fazendo deflectir diante de si.

Merianis agarrou-me pelo braço.
- Anda! - sussurrou.

- Onde? Em que estás a pensar, Merianis?
- Anda! Não queres ver o que se vai seguir?

Olhei por cima do ombro enquanto nos apressávamos na peugada do Rei. Potino mostrava-se lívido e grave. César parecia completamente perdido, o que era raro nele; era este o fruto da sua ”lição na arte subtil da reconciliação”? Cleópatra, que não se levantara do trono nem dava ares de ter intenção de o fazer, ostentava um sorriso idêntico ao da Esfinge.

- Despacha-te! - disse Merianis, puxando-me energicamente pelo braço. Estava decidida a seguir o Rei, cujas vestes ondulavam pelos ares enquanto percorria, apressado, os corredores do palácio. Só parou ao chegar aos portões do pátio interior. Gritou aos guardas que abrissem os portões. Vendo-os hesitar, ameaçou mandar degolá-los. Os homens precipitaram-se para as rodas e os portões abriram-se lentamente.

O Rei correu para a rua. Merianis e eu seguimo-lo, juntamente com muitos outros membros do palácio.

Ptolemeu avançou pelo amplo Argeu. O seu aparecimento repentino, de coroa posta e envergando os trajes de estado, mas deslocando-se

225a pé sem um séquito formal, causou sensação. Todos os que o viram suspenderam de imediato o que estavam a fazer. Alguns prostraram-se reverentemente de joelhos. Outros sorriram e gritaram vivas. Outros limitaram-se a quedar-se especados. Todos se juntaram ao cortejo, sempre crescente, que seguia as pisadas do Rei.

A dada altura, Ptolemeu chegou ao grande cruzamento do Argeu com a Via Canópica, cada uma de cujas esquinas era ocupada por um túmulo de um antepassado seu. Dirigia-se ao edifício que alojava o corpo de Alexandre. Passou pelos visitantes que faziam fila para contemplar os restos mortais do herói. Os guardas ficaram atordoados ante o súbito aparecimento do Rei, mas recuperaram prontamente. Deixaram-no entrar, mas enxotaram os restantes; de outra forma, creio que Merianis teria continuado a segui-lo, arrastando-me consigo. Retrocedemos, pois, para a enorme praça, já a abarrotar de pessoas, que afluíam de todas as direcções.

Instantes depois, o Rei assomou a uma varanda que se projectava do andar superior do edifício. Mesmo àquela distância considerável, pude distinguir traços de lágrimas no seu rosto.

- Povo do Egipto! - gritou. A sua voz ressoou pela praça. Meu amado povo! Os romanos usurparam o meu trono! O Egipto foi conquistado numa única noite! Neste momento, somos todos escravos de Roma!

À nossa volta, estalou um tumulto. Gritos de ira e desespero troavam aos meus ouvidos, acompanhados, aqui e ali, por assobios e apupos de repúdio, e por gargalhadas esparsas. A maior parte da multidão parecia amar o Rei, mas havia claramente quem o desprezasse.

A voz de Ptolemeu perfurou a cacofonia.

- Dirijo-me a vós do edifício que aloja o nosso venerado Alexandre, maior de todos os conquistadores, o mais amado de todos os heróis, semideus de cujo nome deriva o da nossa cidade, e de cuja autoridade os Ptolemeus têm, de há séculos, derivado a legitimidade da sua regência divina. Agora, porém, aparece-nos um homem que se crê maior que o

226próprio Alexandre. Tem tão fraca opinião de nós, que nem sequer vem escoltado por uma grande armada, ou acompanhado por um grande exército; faz tenções de nos conquistar recorrendo à dissimulação e à mentira! Confesso-te meu povo que, durante algum tempo, até a mim me deslumbrou, e eu proporcionei-lhe um acolhimento muito mais caloroso do que ele merecia. Abri-lhe as portas do palácio real, partilhei com ele comida e bebida, ouvi a sua jactância envaidecida. Mas os meus olhos abriram-se! Se o romano conseguir o que pretende, estou certo de que lançará o corpo de Alexandre a um monte de esterco, deitará abaixo este túmulo e erigirá um monumento a si próprio! Talvez chegue mesmo ao ponto de mudar o nome à cidade, dando-lhe o seu próprio nome; um dia, acordareis, não em Alexandria, mas em Cesarópolis!

A multidão reagiu com uivos trovejantes. Ptolemeu abarcou a praça com um olhar grave, projectando uma autoridade muito superior aos seus poucos anos.

- Povo de Alexandria, por muito condescendente que seja, César tem perfeita consciência de que jamais vos submeteríeis a um romano que ousasse sentar-se às claras no trono do Egipto. Por isso, procura afastar-me do trono e substituir-me por um falso monarca. E quem será essa pessoa? Que criatura com pretensões à linhagem real desceria ao ponto de conspirar com o nosso inimigo? Acho que sabem a quem me refiro! É com vergonha que a trato por minha irmã. Aquando das últimas tentativas que empreendeu para se apossar do trono, expulsámo-la da cidade, remetendo-a para o deserto. Infelizmente, não cortámos a serpente ao meio, pois ela voltou à carga, inchada de veneno. E, para se apoderar do meu trono, nada a deterá! Sim, Cleópatra regressou ao palácio.

Esta notícia provocou uma meia dúzia de vivas entre a multidão, pois Cleópatra, tal como Ptolemeu, tinha os seus apoiantes entre a populaça. Outros reagiram apupando. Desencadearam-se, aqui e ali, confrontos verbais e trocas de murros.

227- A serpente voltou - bradou Ptolemeu. - Ontem à noite, fez-se prostituta de César. Hoje, ele presta-lhe o pagamento devido: a coroa que devia ser minha, e apenas minha!

- Nesse caso, que cobra é essa que desponta da tua fronte? lançou um engraçado de entre a multidão.

- Isto? - gritou Ptolemeu em resposta. - Este brinquedo sem significado nenhum, este bocado de sucata sem qualquer valor? Levantou da cabeça a insígnia uraeus e arremessou-a ao chão com todas as suas forças. O metal estatelou-se contra as lajes do pavimento.

A multidão reagiu com um silêncio abismado, a que se seguiu um movimento súbito, que me levantou do chão. Olhei em volta e vi o rosto de Merianis perder-se por entre um mar de caras atarantadas, iradas e assustadas.

- Soldados, vindos do palácio! - gritou alguém.
- Soldados romanos! Querem matar o Rei!

- Nós matamo-los primeiro! Morte a todos os romanos de Alexandria!

- Viva Cleópatra!

- Viva Ptolemeu! Morte a Cleópatra!
- Morte a César!

- Morte a todos os romanos!

Refulgiram espadas. Voaram pedras pelos ares. Havia sangue derramado nas pedras do chão. Ouvi uma mulher gritar-me ao ouvido. Tropecei numa criança (ou seria um anão?) e alguém me ajudou a recuperar o equilíbrio. OUVI o som de água a correr e apercebi-me de que estava perto do enorme fontanário do centro da praça. Entre as dríades saltitantes e os crocodilos de mandíbulas escancaradas, flutuava um cadáver, de barriga para baixo, exsudando um repugnante negrume rosado. Um seixo assobiou-me por cima da cabeça - com demasiada força para poder ter sido arremessado à mão; devia ter sido disparado com uma fisga - e atingiu o capacete de um soldado romano que estava ali perto, com um estrépito que me fez retinir os ouvidos. Furioso, o soldado

228brandiu a espada na direcção de onde partira o disparo e só por um triz não me cortou o pescoço.

Baixei-me - os meus reflexos tinham assumido o controlo do meu corpo, ainda que com excessiva lentidão - e, quando o fiz, olhei por acaso por cima da cabeça do soldado, notando que a varanda de onde Ptolemeu se dirigira aos alexandrinos se encontrava vazia. O que teria acontecido ao Rei?

E que iria acontecer-me a mim? Tanto quanto sabia, os motins continuariam a crescer até a cidade inteira ficar submergida no caos. Voltei a endireitar-me e estiquei-me o mais possível, espreitando por sobre as cabeças que me rodeavam, tentando vislumbrar o palácio. A totalidade do comprimento do Argeu, desde o fontanário até aos portões, estava apinhada por uma multidão enfurecida. Em precário equilíbrio nos bicos dos pés, vi aproximar-se a correr um grupo de jovens de paus na mão.

- Sai da frente, velho! - gritou um deles. - Os romanos levaram o Rei e fazem tenções de o matar!

- Nós matamo-los primeiro! - gritou outro.

Empurraram-me, obrigando-me a girar sobre mim e quase me derrubando.

Senti uma mão agarrar-me no ombro, endireitando-me. Era forte demais para se tratar de Merianis - era uma mão de homem. Contorci-me, tentando libertar-me e afastar-me, mas a pressão sobre o meu ombro tornou-se mais firme. Voltei-me para confrontar o homem.

- Rupa! - gritei. - Em nome do Hades, como conseguiste chegar até aqui?

229CAPíTULO XVIII

Rupa respondeu soltando um grunhido e apontando na direcção do edifício que alojava o Túmulo de Alexandre.

Franzi a testa.

- Não percebo.

Ele apontou com mais insistência, depois pegou-me na mão, puxando-me na direcção para a qual apontava. A estatura dele era, só por si, suficiente para abrir passagem por entre a multidão; qualquer pessoa que cometesse o disparate de se atravessar diante de nós era desviada com brusquidão. Por natureza, Rupa era o mais gentil dos homens; porém, quando necessário, sabia manejar a força que os deuses lhe haviam concedido.

Mas nem Rupa estava à altura do bando de rufias que, de súbito, nos bloqueou o caminho. Tinham todo o ar de ser trabalhadores das docas, a avaliar pelos músculos protuberantes que lhes saltavam dos ombros e dos braços, já para não falar do cheiro a salmoura que se lhes desprendia das túnicas esfiapadas. Eram uns sete ou oito, e traziam consigo as ferramentas do ofício: ganchos de ancoragem, braçadas de correntes, redes de corda e estacas das barcaças, da grossura de um antebraço - armas letais nas mãos de homens como estes.

- Tu aí! - gritou o chefe, que reparara em Rupa, cujo corpanzil chamava a atenção, lançando-me depois um olhar depreciativo. Para onde foram os romanos, os que se atreveram a aparecer aqui e a levar o Rei com eles?

230- Exactamente - acrescentou outro -, estamos a fazer uma caçada ao romano! Queremos matar o maior número de estupores desses que conseguirmos, e continuar a matá-los até saírem do Egipto e voltarem para a terra deles!

Rupa fitava-os com uma expressão vazia.

- Qual é o problema? És fino demais para falar com a gente?

O líder enrolou parte da corrente à volta de um dos punhos, e esticou a braçada solta. - A não ser que vocês os dois gostem de romanos? Se calhar acham que não há problema nenhum em o gabarola do Júlio César se pÔr na irmã do Rei e desatar a mandar em nós todos, não? Fez girar a corrente no ar, produzindo um som sibilante.

Ele é mudo - ia eu a dizer, mas apercebi-me de que a minha pronúncia me denunciaria. Se estes homens estavam apostados em matar romanos, eu não tinha o mínimo desejo de que começassem por mim. Até o mais pequeno do grupo tinha aspecto de conseguir perfeitamente arrancar-me a cabeça.

Grunhi e piquei o corpo de Rupa para lhe chamar a atenção, depois executei uma sequência de sinais, comunicando com ele através do vocabulário que o próprio Rupa tinha desenvolvido, utilizando as mãos e expressões faciais em substituição da voz.

- Cuidado - disse eu. - Estes tipos são grandes!
- Não tenho medo deles - insistiu Rupa.

- Tenho eu! - gesticulei.

- Que é isto? - perguntou o chefe do bando, olhando-nos de olhos semicerrados e ar desconfiado.

- Acho que são dois surdos-mudos - disse o amigo. - Tenho um primo assim. Casou com uma mulher igual a ele. Falam com as mãos.

O chefe olhou Rupa de alto a baixo, depois sorriu desdenhosamente na minha direcção.

- Ah, estão está bem. Deixem-nos em paz. Vamos mas é despachar uns romanos!

231Desapareceram a correr, na direcção do palácio. Através de gestos, Rupa disse-me:

- Eu não estava com medo deles. A sério!

- Ainda vou a tempo de os chamar de volta, se quiseres - murmurei eu. - Seu grande...

Rupa agarrou-me na mão e continuou a arrastar-me até ao edifício que albergava o Túmulo de Alexandre.

Os guardas armados que habitualmente flanqueavam a entrada tinham desaparecido na confusão, juntamente com a fila de visitantes que aguardara vez para entrar. As enormes portas de bronze estavam abertas de par em par.

Entrámos. O átrio de tecto alto, opulentamente decorado com mármore multicolor, estava estranhamente silencioso. Os nossos passos ecoaram na câmara deserta. O alvoroço da rua ficou reduzido a um bramido longínquo. À direita, havia uma porta que dava acesso a uma escada em caracol, por meio da qual, presumi, Ptolemeu teria subido à varanda para se dirigir à multidão.

Rupa puxou-me na direcção de outra porta, e de um corredor comprido, decorado com pilares. Descemos um lanço de escadas, atravessámos uma pequena antecâmara talhada em alabastro maciço e, por fim, entrámos numa catacumba. O ar era fresco, como o de uma adega subterrânea, e cheirava a crisântemos. A câmara, estreita e comprida, estava fracamente iluminada por lamparinas suspensas, e era dominada por uma estátua de ouro colocada na extremidade. As madeixas de cabelo revolvidas pelo vento, o semblante tranquilo e os ombros e membros belamente torneados tornavam inconfundível a identidade da estátua. Alexandre apresentava-se nu diante de nós, em toda a sua Juventude gloriosa, encimando um sarcófago aberto, no qual Jazia o cadáver mumificado do conquistador, envolto da cabeça aos pés em vestes resplandecentes e ostentando uma coroa de louros dourada. Trazidos pelos muitos visitantes e espalhados junto à base do sarcófago, havia ramos de flores frescas e coroas de flores secas - mandrágoras e malvas, iris e papoilas, jacintos e lírios de lótus.

232Mas Alexandre não era o único morto que jazia na câmara.

A luz era de tal maneira ténue e as imagens que se encontravam ao fundo da divisão de tal maneira absorventes, que nem reparei no obstáculo que tinha aos pés. Pisei-o, tropecei e só a mão forte e os reflexos rápidos de Rupa evitaram que me estatelasse no chão. Cambaleei para trás e olhei para baixo, para o corpo de um soldado egípcio. Estava de costas, os olhos abertos fitos no tecto e a espada ainda firmemente apertada na mão fechada. Se tinha havido luta, o soldado não conseguira ferir o adversário, pois não havia vestígios de sangue na lâmina da sua espada. Mas havia ali sangue em abundância; formava uma poça em torno do corpo do soldado, jorrando de uma ferida no abdómen.

- Por que me trouxeste aqui, Rupa?

Ele não respondeu, limitando-se a fazer-me sinal para que o seguisse. Atravessámos a câmara e abeirámo-nos da corrente de ouro que a bissectava, e para lá da qual não era admitida a presença de visitantes. Apesar de o sarcófago estar ainda a vários braços de distância do perímetro marcado pela corrente, era possível distinguir claramente o perfil familiar de Alexandre e o efeito dos feixes de luz mortiça sobre as madeixas de cabelo dourado, apanhadas sob a coroa de louros dourada. A visão provocou-me um calafrio e compreendi a paciência das multidões, que esperavam horas a fio para poderem permanecer neste sítio um breve momento e contemplar a eternidade.

Sem qualquer hesitação, Rupa meteu-se por baixo da corrente e avançou em direcção ao sarcófago. Senti uma pontada de temor supersticioso, mas acabei por imitá-lo. Não havia ali guardas que nos impedissem de o fazer, e a estátua vigilante do conquistador não deu sinais de desaprovar a nossa invasão do seu santuário.

Postei-me ao lado de Rupa e ambos baixámos os olhos para o rosto de Alexandre, o Grande.

Franzi o sobrolho. Assim de perto, a visão do semblante mumificado não era tão edificante como quando contemplada a alguns passos de

233distância. Conservava uma certa semelhança com a carne original, mas a vida interior, que o tornara belo, desaparecera há muito. A pele assemelhava-se a papiro gasto, finamente esticado sobre as protuberâncias ossudas das maçãs-do-rosto e do queixo. Os responsáveis pela admissão de visitantes ao túmulo pareciam ter calculado com precisão a distância a que deviam colocar a corrente dourada, para extraírem a maior vantagem possível do efeito lisonjeador da iluminação ténue e da distância.

- Que te parece, Rupa? Um pouco estragado de mais para nos poder valer, não?

Rupa concordou com um aceno. Nisto, uma voz juvenil fez-se ouvir:
- Mas não está nada mal se tiveres em consideração que tem mais de trezentos anos!

Dei um pulo. O meu coração baqueou pesadamente, estrepitou e quase me saltou pela garganta.

- Em nome do Hades...?

Do espaço sem luz que ficava entre o sarcófago e a estátua, surgiu de repente um rosto, secundado por outro.

- Mopso! Ândrocles! Eu devia ter adivinhado. Mas como...?
- Viemos pelo túnel, evidentemente - disse Mopso.

- Qual túnel?

- O túnel secreto que começa por baixo do roseiral do palácio, passa pela bifurcação que dá acesso à grande Biblioteca e vem ter directamente aqui. Sai-se por trás daquela estátua. Há um pequeno painel que se faz deslizar, sobe-se uns degraus - se for tão alta como Rupa, a pessoa curva-se um bocadinho e baixa a cabeça quando estiver a trepar para sair - e chega-se aqui, ao túmulo de Alexandre. Foi uma das primeiras passagens que nós descobrimos.

- Nós? - interpelou Ândrocles. - Fui eu que descobri esta passagem.

- Eu disse que foi uma das primeiras passagens que nós descobrimos, e nós - umas vezes tu, outras vezes eu - já descobrimos uma quantidade razoável de passagens desde que começámos a explorar o palácio - insistiu Mopso.

234- Sim, mas fui eu que descobri esta passagem. Descobri-a sem nenhuma ajuda, tua ou de quem quer que fosse, e depois fui generoso a ponto de partilhar a minha descoberta contigo. Portanto, devias ter dito: ”Foi uma das primeiras passagens que o Ândrocles descobriu.” Admite!

- Não admito coisa nenhuma. Estás a ser estúpido. Não está, senhor?

Soltei um suspiro.

- Então é assim que voces se tem entretido, mal eu viro costas por um instante que seja, desde que chegámos ao palácio? Têm andado a vasculhar todos os nichos e recantos, à procura de alçapões e de painéis deslizantes? Têm muita sorte em ainda estar vivos!

- Mas nunca ninguém nos proibiu, senhor! - disse Ândrocles. No palácio, toda a gente parece gostar de nós. Alguns guardas até nos oferecem guloseimas quando nos vêem.

- É verdade! - continuou Mopso. - Sobretudo aquele guarda que está de plantão no jardim com o tanque comprido. Chamamos-lhe Dentinho Doce, porque é sempre ele quem tem as melhores guloseimas, quadradinhos de mel engrossados com farinha, aromatizados com água de rosas e passados por amêndoas esmagadas. Uma delícia!

Imaginei aqueles dois, a imagem acabada da inocência, passando por todos os postos de controlo do palácio à custa de gargalhadas e sorrisos. Com o passar do tempo, os guardas ter-se-iam certamente habituado de tal maneira à presença deles, que teriam acabado por lhes permitir entrar e sair por onde lhes apetecesse, autorizando-os mesmo a levarem consigo o amigo Rupa, aquele grandalhão inofensivo. Abanei a cabeça.

- Quer dizer que já aqui tinham estado?

- Oh, sim - confirmou Ândrocles. - Gostamos de vir aqui depois do pôr do Sol, quando o túmulo está fechado aos Visitantes. Eles trancam as portas que dão para o átrio de entrada e esta divisão fica completamente vazia.

- E escura! - acrescentou Mopso.

235- Pois, temos de trazer uma lamparina. Mas é bastante agradável poder andar de um lado para o outro, observar os murais das paredes, e fazer uma visita a Alexandre, o Grande, sem ninguém à nossa volta. Eles fecham o sarcófago durante a noite, mas Rupa tem força suficiente para levantar a tampa. Em minha opinião, Alexandre está em excelente forma. Só espero ter o mesmo aspecto quando tiver trezentos anos. É quase possível imaginar ele sentar-se e começar a conversar!

- Feliz ou infelizmente - disse eu, desde os tempos de Alexandre, a magna arte do embalsamamento egípcio parece ter-se perdido. já não há quem saiba executar este tipo de magia. E ainda bem. Estão a imaginar as gerações futuras a fazer fila para contemplar o corpo perfeitamente preservado de César? Seja como for, continuo sem compreender como é que vocês apareceram aqui hoje. E para onde foi toda a gente?

- Estávamos os três muito entretidos no palácio - disse Ândrocles. - Por acaso, estávamos no jardim das roseiras, a ver o gato Alexandre perseguir uma borboleta, quando um dos cortesãos passou a correr, dizendo a toda a gente que o Rei estava na varanda do Túmulo de Alexandre, a incitar o povo contra os romanos. De repente, o roseiral ficou vazio, e nós ali ficámos, sentados no banco de fundo falso que dá acesso à passagem secreta. Tínhamos de vir ver o que se estava a passar, e este era o caminho mais rápido. Quando saímos do túnel, esta câmara estava vazia, à excepção de um único guarda egípcio; toda a gente tinha ido lá para fora ouvir o Rei. Escondemo-nos nas sombras, por trás de um destes pilares grandes, a pensar numa maneira de passarmos pelo guarda sem ele dar por nós, quando de repente ouvimos uma confusão no átrio, e o Rei entrou por aqui dentro, esbaforido. Percebia-se que era o Rei, embora não tivesse a coroa posta. Acho que se dirigia ao túnel secreto. Mas era perseguido por vários soldados romanos. O guarda egípcio tentou impedi-los de avançar. É aquele que está ali, no meio de uma poça de sangue. Por momentos, pensámos que os soldados romanos também iam matar o Rei, e julgo que o Rei pensou o mesmo. Devias ter visto o olhar que ele fez!

236- E ouvido as pragas que gritava contra a irmã e contra César! acrescentou Mopso.

- Continuando, os soldados posicionaram-se em formação de tartaruga em torno do Rei - escudos erguidos a toda a volta e por cima das cabeças, com as pontas das lanças a aparecer do lado de fora dos escudos - e avançaram em marcha para o exterior do edifício, levando o Rei consigo. De regresso ao palácio, suponho eu. Nós mantivemo-nos fora do campo de visão deles e seguimo-los até ao átrio principal e, nisto, adivinha com quem chocámos?

- Com Merianis - respondi eu.

- Exactamente! Ela disse-nos que tu estavas com ela mas que, sem perceber como, se tinham separado e, com tudo o que estava a passar-se na praça, sabia-se lá o que podia estar a acontecer-te. Perante isto, mandámos Rupa e Merianis a tua procura, enquanto Mopso e eu não arredávamos pé daqui, para podermos levar-te de volta ao palácio através do túnel secreto.

- Na verdade - atalhou Mopso -, resolvemos permanecer aqui porque Ândrocles estava com medo de sair para a praça. Disse que corríamos o risco de ser esmagados, uma vez que somos pequenos, pelo que era melhor mandar Rupa à tua procura, porque Rupa tem tamanho suficiente para tomar conta de si.

- Eu não estava com medo - corrigiu Ândrocles. - Ficar aqui à espera fazia parte do meu plano e, como podes ver, era um plano inteligente.

- É verdade - disse eu. - Mas o que aconteceu a Merianis? Olhei para Rupa, que encolheu os ombros.

- Presumo que a tenhas perdido de vista mal se misturaram com a multidão, não?

Rupa franziu o sobrolho e acenou com a cabeça.

- Não precisas de te sentir constrangido, Rupa. Se a prioridade dela fosse encontrar-me, Merianis ter-se-ia concentrado nisso em vez de tentar esgueirar-se para o átrio para ver o que estava a acontecer

237
a Ptolemeu e aos soldados romanos enviados para o prender. Foi simpático da parte dela avisar-vos de que eu poderia estar em perigo, mas não me surpreende que tenha decidido desaparecer, em vez de ajudar Rupa a procurar-me. Devia estar ansiosa por chegar ao palácio antes da tal tartaruga romana, para descrever à sua senhora tudo o que se passou aqui. É curioso; Merianis não deve saber da existência deste túnel que vai dar ao palácio, senão teria ido por aí. - Franzi o sobrolho.
- Merianis tem sido uma boa amiga para nós, rapazes: ajuda-nos, é atenciosa, está sempre de bom humor. Mas não podemos esquecer-nos de que o objecto da sua lealdade é outro.

- Falas como se Merianis fosse um soldado, senhor.

- Porque estou convencido de que é, Mopso, exactamente como qualquer homem que use a espada e o escudo.

- Ela nunca te fará mal, senhor! - disse Ândrocles.

- Tenho a certeza de que não - conquanto eu não afronte a sua senhora. - Rangi os dentes. - Desta vez, os deuses pregaram-me uma partida das boas! Consegui sobreviver a uma guerra civil, e venho meter-me no meio de outra, que não me diz respeito nenhum. Contudo, a minha experiência nestes conflitos diz-me que nem o mais descomprometido dos circunstantes consegue, em geral, permanecer neutral. O palácio é um campo de batalha, como Farsalo o foi. Cleópatra e Ptolemeu são generais rivais, comandando os respectivos exércitos, e César é a praça-forte estratégIca que ambos estão ansiosos por reivindicar; as demais batalhas e escaramuças de nada servirão caso um deles consiga aliciar César para a sua causa e, com César, todo o poderio de Roma.

- Mas, senhor, devias ter ouvido as pragas que o Rei vociferou contra César quando os soldados o levaram! - interpôs Ândrocles. O Rei deve odiar César com todas as suas forças!

- Suspeito de que a verdade reside precisamente no oposto. O Rei pode ser um Ptolemeu até à ponta das unhas, pode ter uma pose real, e uma segurança indómita quanto ao lugar divino que ocupa no mundo; mas não passa de um rapaz, que ainda não controla totalmente as suas

238emoções. Quando vociferou contra César, pareceu-me menos um general bradando às suas tropas do que um pretendente rejeitado. Quanto a César, certamente que nada lhe agradaria mais do que ver os irmãos resolverem as suas divergências, tratarem de governar o Egipto, e saldarem as dívidas que têm para com Roma; poderia assim felicitar-se por ter resolvido ”a questão egípcia”, e dedicar-se a rematar as pontas soltas da sua própria guerra civil. Todavia, é possível que nem o Rei nem a Rainha estejam dispostos a dar-se por satisfeitos com meio Egipto
- ou com meio César. Tal como a beleza cortejada por dois pretendentes, César pode vir a ter de, em última instância, escolher um em detrimento do outro. E é provável que, antes que isso aconteça, todos nós sejamos obrigados a tomar partido, quer queiramos, quer...

Voltámo-nos os quatro, abruptamente, na direcção da antecâmara de alabastro que conduzia ao átrio principal, de onde nos chegava o som de passos, de tumulto e de gritaria.

- Saqueadores? - perguntou Mopso.
- Soldados? - interrogou Ândrocles.

- Ou meros visitantes? - sugeri eu. - Seja quem for, julgo que é altura de regressarmos ao palácio. Ândrocles, mostra-me como se entra na passagem.

- Com certeza, senhor. Passa para as traseiras da estátua. Olhei para o buraco negro aberto aos pés da estátua.

- Não há luz nenhuma ao longo da passagem? Nenhuma entrada de ar?

- O primeiro troço é bastante escuro - esclareceu Ândrocles mas mais para frente há umas grades e uns ventiladores que deixam entrar feixes de luz e baforadas de ar fresco. Olha, eu entro primeiro e guio-te pela mão. Mopso pode entrar a seguir. Rupa pode ser o último e fechar o painel atrás de nós; é bastante pesado. Mas tem cuidado, senhor, para não bateres...

- Au!

- ... com a cabeça.

239CAPíTULO XIX

- O povo continua a provocar distúrbios por toda a cidade disse Merianis. -já passaram vários dias desde que o Rei o amotinou, mas o povo continua enfurecido. Os agitadores afirmam que César mantém o Rei cativo contra a vontade dele...

- Bom, é um facto que Ptolemeu regressou ao palácio sob custódia de um esquadrão de soldados romanos - observei eu.

- Mas nenhum deles lhe tocou com um dedo que fosse! O Rei voltou porque assim o entendeu...

- Após um dos seus guardas ter sido morto no Túmulo de Alexandre!

- Alguém tinha de proteger a pessoa do Rei no seu regresso ao palácio; aquela multidão tinha-se transformado numa turba raivosa, como tu próprio viste, Gordiano. Seja como for, assim que o Rei se encontrou novamente a salvo no palácio, César e Potino conseguiram acalmá-lo. As negociações entre a Rainha e o Rei prosseguem, sob a supervisão de César. Mas a cidade está mergulhada no caos.

- Os alexandrinos são famosos por este tipo de atitude - fiz eu ver. - A turba alexandrina expulsou da cidade o Rei anterior; foi preciso um exército romano para ele conseguir cá entrar novamente.

- Razão pela qual Ptolemeu tinha obrigação de não cometer o erro de incitar a fúria da multidão. Parte substancial da ira da populaça é obviamente dirigida contra os romanos, mas até os guardas do palácio

240têm medo de se aventurar pelas ruas. Alexandria está completamente sem rei nem roque! O museu fechou as portas - os sábios têm medo de vir, sequer à janela! - e o mesmo se passa em relação à Biblioteca. Acabaram-se os livros novos para ti, Gordiano! Terás de reler aqueles que já te trouxe.

- Sim, lê, senhor! - pediu Mopso, rebolando-se na cama, a meu lado. - Lê outra vez a parte sobre Alexandre e o nó górdio. É verdade que é essa a origem do teu nome de família? ”Na terra da Frígia, reinava o Rei Górdio, que nascera camponês, mas se tornara rei devido a um oráculo ...”

- Não vejo necessidade de ler novamente a história, uma vez que já a sabes de cor - repliquei eu. - Quanto à origem do meu nome Gordiano...

Mas nada faria Mopso parar.

- ”E, muitos anos mais tarde, Alexandre atravessou a Frígia e passou pela cidade de Górdio, assim nomeada em honra do Rei Górdio, e foi-lhe apresentado o nó górdio; os oráculos haviam dito que nenhum homem conseguiria conquistar a Ásia sem primeiro desatar o nó górdio, que estava tão engenhosamente atado, que nem o mais sábio de entre os homens conseguira desatá-lo, e de tal maneira apertado, que nem o mais forte de entre os homens conseguiria desapertá-lo. Foi então que Alexandre ...”

Ândrocles interrompeu a récita, saltando para o meio do quarto e representando as acções que Mopso ia descrevendo.

- ”Foi então que Alexandre desembainhou a espada e, com um poderoso golpe, decidido e sibilante, o cortou em dois; o nó desfez-se a seus pés e todos os presentes se curvaram perante o novo rei da Ásia
- urra! - Alexandre, o único homem suficientemente forte e suficientemente inteligente para desatar o nó górdio!”

- Não é isso que diz a história! - queixou-se Ândrocles.
- Mais coisa menos coisa.

- Mas não contaste aquela parte em que...

241- Contei tudo o que era crucial.

- Estás é com inveja de não te recordares das palavras.

- O importante é a história, não são as palavras. - Ândrocles voltou a imitar o gesto de desferir um golpe de espada sobre o nó. ”... com um poderoso golpe, decidido e sibilante, cortou-o em duas metades”!

Mopso secundou-o, precipitando-se para o centro do quarto, rasgando o ar com uma espada invisível.

- ”com um golpe, decidido e sibilante ...”

Rupa fez uma careta e tapou os ouvidos com as mãos. Merianis soltou um suspiro.

- Os rapazes ficam impossíveis, metidos dentro de casa o dia inteiro

- Se ficam! - Não só não estavam autorizados a passear pela cidade, como eu também os tinha proibido de continuarem a explorar as passagens secretas do palácio. - Se ao menos pudesse mandá-los fazer algum recado. Com uma volta muito comprida...

Merianis sorriu.

- Talvez tu e eu devêssemos sair um bocado.

- Não me parece! Da última vez que me aventurei a sair contigo, Merianis, quase fiquei sem cabeça às mãos de uns trabalhadores das docas sedentos de sangue. E, tanto quanto sei, eles ainda andam por aí, à caça de romanos.

- Tenho uma ideia diferente. Vem comigo, Gordiano.
- Aonde?

- Confia em mim!

Olhei para ela de soslaio.

- Com um golpe, decidido e sibilante! - gritou Mopso.
- Cortou-o em duas metades! - berrou Ândrocles. Estremeci.

- Muito bem, Merianis. Leva-me para fora deste quarto. Rapidamente! Para onde vamos?

- já verás.

242Inicialmente, fiquei com a impressão de que nos dirigíamos para o sector romano mas, a dada altura, Merianis enveredou por um corredor pelo qual eu nunca tinha passado, e dei por mim numa zona do palácio que me era desconhecida. Fiquei uma vez mais maravilhado ante a magnitude e a opulência do complexo real.

Por fim, desembocámos na ofuscante luz do Sol de um jardim comprido e estreito, que ficava diante do porto. Atravessámos o jardim, aspirando o ar morno e perfumado a jasmim, e descemos vários lanços de escadas. O céu limpo estava deslumbrante. As galeras da pequena frota de César encontravam-se dispersas sobre as águas, as proas voltadas para a entrada do porto, bloqueada por uma enorme corrente. Do outro lado do imenso porto, inacreditavelmente colossal, via-se o farol de Faros.

Merianis conduziu-me a um pontão de pedra que se prolongava uns bons metros pelas águas do porto adentro. Passámos por uma série de pequenos edifícios de telhados decorados com flâmulas coloridas. Por trás de uma estátua de Bes, o deus egípcio do prazer, um lanço de escadas ia dar a um pequeno esquife. Respirei fundo, pois a embarcação era exactamente igual àquela em que Pompeu fizera a sua última viagem: a proa esculpida com a forma de uma ibis de pé, de asas abertas, e a amurada decorada com ornamentos em forma de crocodilos, grous e cavalos do rio Nilo, revestidos a prata martelada com fragmentos embutidos de lápis-lazúli e turquesa, a fazer de olhos.

No esquife, estava sentado um homem que vestia apenas uma tanga curta, recostado sobre a proa, com os braços por cima da cabeça e os olhos fechados, a bronzear-se ao sol. Quando nos aproximámos mais, vi que se tratava de Apolodoro, o siCiliano que havia depositado Cleópatra aos pés de César.

Merianis chamou por ele. Apolodoro entreabriu preguiçosamente um olho.

- A passar pelas brasas a meio do dia? - perguntou Merianis. O que diria a Rainha se soubesse disto?

243Apolodoro sorriu e colocou uma das mãos sobre a tanga, esticando os dedos.

- Talvez tenha sido a Rainha a fatigar-me desta maneira.

- Blasfemo! - lançou Merianis, embora em tom jocoso. Apolodoro ergueu-se e sacudiu a farta juba de cabelo, como que para a desembaraçar. Lançou um olhar semicerrado a Merianis e inclinou-se para a frente esticando os lábios comprimidos. Merianis fingiu corresponder ao gesto mas, no último instante, recuou, pelo que Apolodoro deu um beijo no vazio e quase perdeu o equilíbrio, esbracejando selvaticamente para se recompor.

Merianis soltou uma gargalhada funda e rouca.

- Chama imediatamente o barqueiro, meu grande lapuz!

- O barqueiro? Pensas que eu não sou capaz de remar até lá? E contraiu exuberantemente os bicípites.

- Como queiras. - Merianis saltou para o barco e voltou-se para me pegar na mão.

Eu sentei-me à proa, ao lado dela.
- Para onde me levas, Merianis?

- Verás.

Apolodoro começou a remar, aumentando a distância entre nós e o pontão. Vista do porto, a enorme extensão ocupada pelo complexo do palácio oferecia uma panorâmica de varandas, nichos sombreados, jardins suspensos e açoteias. Consegui distinguir a divisão mais altaneira do edifício, onde tinha jantado com César e onde Cleópatra lhe fora apresentada, bem como o edifício adjacente, o grande teatro com os lugares voltados para o porto. Soldados romanos armados de lanças patrulhavam a fila superior; recordei-me de que César salientara as virtudes do teatro, como possível reduto em caso de ataque. Desde o começo dos distúrbios desencadeados pela arenga de Ptolemeu que César e os seus soldados tinham começado a fortificar o sector que ocupavam no complexo do palácio, barricando ruas e preenchendo as abertas entre edifícios com quaisquer materiais que tivessem à mão.

244Os imponentes edifícios ligados por pórticos que constituíam a marginal dominavam a linha do horizonte, pois Alexandria é, em grande parte, uma cidade plana; mas tem algumas colinas e, no topo da mais alta, assomando sobre o quadrante ocidental da cidade, erguia-se o grande templo de Serápis, o deus equivalente a Zeus que o primeiro Ptolemeu elevara a um lugar no panteão egípcio que rivalizava com o do próprio Osíris. Ao longe, e acima da linha desenhada pelos telhados da marginal, avistei o templo, um edifício majestoso, semelhante ao Parténon de Atenas, mas consideravelmente maior, embora a colina sobre a qual fora erigido não fosse, nem de perto nem de longe, tão imponente como a Acrópole.

Senti um aperto na garganta. Esta era a panorâmica de Alexandria que eu esperara contemplar se tivéssemos chegado de barco, conforme planeado, isto é, se a tempestade nos não tivesse desviado da rota inicial. Esta tinha sido a minha última visão da cidade, quando Betesda e eu daqui partíramos por mar, há já tantos anos, e era esta a visão que eu esperara partilhar com ela aquando do nosso regresso.

- Gordiano-chamado-o-Descobridor, estás triste?
- Por que perguntas, Merianis?

- Tens uma lágrima sobre a face.

- Não é nada. Apenas um respingo de água do mar - disse eu, limpando-a e obrigando a turbulência do meu peito a acalmar. - Parece-me que nos aproximamos de Antirrodes - prossegui, referindo-me à maior das pequenas ilhas que havia no interior do porto, reservada para uso exclusivo da família real; o próprio nome da ilha declarava, Um tanto ou quanto fantasiosamente, que se tratava de uma rival da grande ilha de Rodes. Às vezes, os habitantes locais chamavam-lhe Palácio Flutuante, porque a ilha estava de tal modo cheia de pináculos, passeios e varandas, que dava a impressão de que uma parte do complexo do palácio se havia desprendido do continente e flutuado até meio do porto. Arribar a Antirrodes sem o consentimento real era um acto passível de pena de morte, pelo que os marinheiros que circulavam

245pelo porto não se poupavam a esforços para o evitar. Para o cidadão comum de Alexandria, a ilha revestia-se de uma mística especial; havia quem dissesse que, nesse local, o falecido Rei organizara festas de deboche inimaginável, ou que a ilha era um repositório de objectos místicos e talismãs mágicos, que remontavam ao tempo dos antigos faraós.
- já cá estiveste? - perguntou Merianis.

Soltei uma gargalhada.

- Não, Merianis. Durante a última temporada que passei em Alexandria, há muitos anos, não era propriamente membro do círculo íntimo da realeza.

- E contudo, eis-te agora prestes a atracar em Antirrodes. Subiste na vida desde os tempos da tua juventude.

- Ou talvez tenha sido a vida que desceu até mim - retorqui. Apolodoro conduziu-nos para um pequeno porto amuralhado, e em direcção ao ancoradouro. Os guardas egípcios que patrulhavam o acesso ergueram as lanças mas, ao verem Merianis, sorriram.

- Trago um visitante para uma audiência com a Rainha - disse ela, saindo do barco e estendendo-me a mão.

- Outro romano? - Um dos guardas, um veterano grisalho com uma cicatriz medonha na cara, dirigiu-me um olhar desconfiado.

- Desculpa este tom, Gordiano. O capitão Crátipo comanda os Protectores da Rainha. Trata-se de uma companhia de guerreiros de elite que tem protegido a pessoa de Cleópatra desde o dia em que ela nasceu. Escudaram-na quando sua irmã Berenice usurpou o trono e também quando o rei Ptolemeu regressou ao Egipto e condenou Berenice à morte. Protegeram-na aquando dos tumultos que se seguiram à morte do pai, e permaneceram a seu lado enquanto esteve exilada no deserto. Ao longo dos anos, não foram poucos os guerreiros desta companhia que morreram por ela. São-lhe fanaticamente leais. Como recompensa pela sua devoção, a deusa ísis conceder-lhes-á que, no outro mundo, continuem a prestar assistência à Rainha no Reino dos Mortos.

- E a Rainha carecerá de protecção contra assassinos, mesmo depois de morta?

246Tomando o meu comentário por sarcasmo, Crátipo lançou-me uma rosnadela.

Merianis baixou a voz.

- Crátipo não gosta de ti porque és romano. Acha que os romanos são todos muito ímpios. Não percebe por que razão se sujeitam a ser governados por meros mortais. Devo admitir que é uma coisa que também me intriga.

Encolhi os ombros.

- Tanto quanto sei, nunca nenhum deus se candidatou a uma magistratura romana, provavelmente porque as campanhas eleitorais são incomportavelmente dispendiosas.

Merianis lançou-me um olhar interrogativo, e depois soltou uma gargalhada.

- Compreendo; disseste uma piada. Em todo o caso, Crátipo lamenta que a Rainha confie nas armas romanas, e não lhe agradam as ideias de César. Foi César quem sugeriu que, nos tempos mais próximos, a Rainha se fixasse aqui em Antirrodes, para sua própria segurança. Quanto a mim, foi uma ideia esplêndida, mas Crátipo é de opinião que, se um dos dois tinha de se retirar, era Ptolemeu quem deveria ter sido afastado do palácio, e Cleópatra quem nele devia ter ficado instalada.

- Mas este lugar é esplêndido - observei eu, enquanto os guardas nos escoltavam a saída do cais e a subida de uma escadaria de mármore ladeada por palmeiras. Diante de nós, erguia-se a fachada do palácio, uma curiosa mistura de colunas gregas e alvenaria egípcia. - A não ser que a Rainha se enfastie, estando aqui sozinha.

- César vem Visitá-la todos os dias.

- Todos os dias - ou todas as noites? - perguntei.

De um pórtico oculto pela sombra que dava acesso ao palácio, chegou-nos uma voz grave, rouca, que falava grego com uma pronúncia elegante.

- César pode visitar-me sempre que desejar. Tal como Merianis; pois a Rainha fica sempre agradada ao olhar para o rosto dela.

247Cleópatra avançou para a área iluminada pelo sol. Os guardas deitaram-se de cara no chão. Merianis ajoelhou-se e inclinou a cabeça. Eu segui o exemplo dela.

A Rainha aceitou estas prostrações como algo que lhe era devido. Ouvi o roçagar do seu vestido de linho e observei o movimento das suas sandálias de ouro, incrustadas de jóias, enquanto ela se movimentava de um lado para o outro à nossa frente. Foi somente após longos momentos que ela disse:

- Podem levantar-se.

Cleópatra estendeu a mão a Merianis, que a beijou.

- Trouxe comigo um visitante, Majestade. Este é Gordiano de Roma, a quem chamam o Descobridor.

Cleópatra olhou para mim. Fiquei impressionado com o brilho vivaz dos seus olhos e com o curioso atractivo, inegável mas impossível de descrever, que a sua presença exercia.

- já nos tínhamos Visto, não tínhamos?

- Eu estava presente quando Vossa Majestade se apresentou ao cônsul do Povo de Roma.

Ela acenou com a cabeça.

- Ah, sim. Nessa ocasião, a minha atenção estava inteiramente concentrada em César, mas recordo-me de te ter visto, ainda que por pouco tempo. Meto também se encontrava presente, mas pediram ambos licença para se retirar e desapareceram. Desde então, tenho visto Meto em numerosas ocasiões; César praticamente não vai a lado nenhum sem ele. Só muito recentemente, e através de Merianis - e não de César -, fiquei a saber da tua relação com Meto.

- Adoptei Meto quando ele era muito novo. Mas já não é meu filho.

- Que confusão! julgo saber que a adopção é uma prática bastante comum entre os romanos, um povo que coloca a sua fé em leis gIzadas pelos homens e em relações gizadas pelos homens. Em Roma, ao que parece, dois homens podem ser pai e filho num dia e, no dia seguinte,

248não terem qualquer relação de parentesco entre si; é um conceito que nos é estranho. No Egipto, o sangue é tudo. A linhagem de sangue não pode ser quebrada.

- Salvo com a morte? - inquiri eu.

- Nem com a morte. Irmã e irmão neste mundo serão irmã e irmão no outro. O sangue dos Ptolemeus que corre nas minhas veias é o mesmo que corre nas veias do meu irmão. Estamos unidos um ao outro, e aos nossos antepassados, para toda a eternidade. Neste reino, porém, habitamos carne mortal e, a dado momento, a morte pode separar-nos, ainda que apenas pelo breve período desta vida mortal.

- Espero sinceramente que tal não aconteça, Majestade. Ela sorriu.

- Se se tornar necessário que um de nós avance prematuramente para o outro mundo, asseguro-te que não serei eu. Crátipo nunca permitiria que tal acontecesse.

- Mal algum se abaterá jamais sobre Vossa Majestade enquanto restar um sopro de vida no corpo de qualquer dos homens presentes!
- declarou Crátipo.

- A vossa devoção agrada à Rainha - replicou Cleópatra. - Agora, regressem ao porto e mantenham-se alerta a outros Visitantes.

- Vossa Majestade espera alguém? - perguntei.

- Talvez. Mas falávamos sobre a vida depois da morte. - Cleópatra passeava pelos jardins luxuriantes que rodeavam o palácio, com Merianis e eu um pouco atrás.

Tendo vivido entre ambos os povos, parece-me que a expectativa dos Egípcios quanto à vida depois da morte excede em muito a dos romanos - observei eu. - Para nós, quando esta vida termina, o melhor já passou. Transformamo-nos em sombras, que observam os vivos com Inveja enquanto se desvanecem numa longa e cinzenta eternidade.

- Ah, mas estão redondamente enganados. Para aqueles que atingem a imortalidade, esta vida mais não é do que uma sombra da que nos espera. A finalidade desta vida consiste em nos preparamos para

249a outra. Mencionei este assunto por uma razão específica, Gordiano. Sabendo da importância que Meto tem para César, e da importância que tu tens para Meto - e porque Merianis se afeiçoou muito a ti fiquei interessada em saber mais coisas sobre ti.

- Tenho dificuldade em imaginar que a Rainha do Egipto possa ter algum interesse em mim.

- No entanto, estou ao corrente do motivo que te trouxe ao Egipto, Gordiano, e soube da tua perda. A tua mulher estava muito doente? Suspirei.

- Esse assunto é realmente interessante para Vossa Majestade? É doloroso para mim falar nele.

- Ainda assim, faz-me a vontade.

- Muito bem. A doença da minha mulher era um mistério para mim. Por vezes, quase me parecia que só existia na imaginação dela. Outras, porém, receava que ma levasse tão subitamente, que eu não tivesse tempo de me despedir.

- Era sua intenção banhar-se no Nilo, convencida que estava de que ficaria curada?

- Foi o que ela me disse. No entanto...

- Ficaste com a impressão de que talvez tivesse outro motivo para querer regressar ao Egipto?

-julgo que talvez tenha pressentido que a morte se aproximava, e era seu desejo morrer no Egipto. Expressava frequentemente o seu desdém pelos ritos fúnebres romanos; não queria ser cremada. E o Egipto era o único local em que poderia ser devidamente mumificada, sendo objecto dos antigos ritos egípcios de passagem para o outro mundo. No entanto, se era essa a sua intenção, não foi assim que as coisas aconteceram.

- A tua mulher desapareceu no Nilo.

- Sim, junto a um pequeno templo situado entre a estrada e o rio, a norte de Naucrátis.

Cleópatra assentiu com a cabeça.

250- O antigo templo de Osíris, oculto no meio das videiras; conheço-o bem. Trata-se de um lugar muito antigo e muito sagrado.

- Posteriormente, disseram-me que o templo estava abandonado e que a mulher que aí reside, e que se faz passar por sacerdotisa, é louca.

A Rainha arqueou uma sobrancelha.

- Conheço a mulher de quem falas. Achei-a muito sapiente.
- Foi essa bruxa velha que mandou Betesda meter-se na água disse eu, com amargura.

- Mas Gordiano! Não compreendes o significado de uma morte no Nilo? O rio é sagrado para Osíris; quem o rio reclama, é reclamado pelos deuses. Afogar-se no Nilo é ser abençoado por Osíris. Conheces a história da morte e da ressurreição de Osíris? Deixa-me contar-ta.

”Foi Osíris quem trouxe a dádiva da civilização ao mundo, na aurora da história. Antes de Osíris, os homens eram canibais; Osíris ensinou-os a cultivar os campos, a pescar no mar e muito mais coisas - os primeiros templos em que se adoraram aos deuses, as primeiras cidades e leis, até os primeiros instrumentos de música. O tipo de flauta que o meu pai tanto gostava de tocar foi inventado pelo próprio Osíris.

”Osíris governava a terra e todos os homens o adoravam. No entanto, precisamente devido à sua bondade, incorreu na inveja de Set, o irmão malévolo, que congeminou um estratagema para o destruir. Set construiu um cofre magnífico e, no decurso de um banquete entre os deuses, prometeu-o àquele cujo corpo melhor se lhe ajustasse. Quando Osíris se deitou dentro do cofre, Set tapou-o, selou-o com chumbo derretido e lançou-o ao Nilo.

”ísis, irmã e esposa dedicada de Osíris, seguiu o cofre e recuperou-o. Quando o abriu, Osíris estava morto. Porém, recorrendo às suas artes mágicas, ísis tornou a carne de Osíris incorruptível e restitUiu-o à vida. Osíris poderia ter-se apoderado do trono, mas preferiu retirar-se deste mundo para o Reino dos Mortos, onde acolhe as almas dos justos. Inclinei a cabeça.

251- O que tem isso a ver com Betesda? - perguntei num murmúrio.
- Todos nós somos compostos de quatro elementos: fogo, terra,

ar e água. Perecer no Nilo é ser libertado dos elementos terra e água, que se juntam à lama do rio. A tua mulher é, agora, somente fogo e ar. Pouco importa que não tenha sido mumificada. Se se afundou no Nilo, em emulação de Osíris, passou directamente deste mundo para o abraço do deus. Recebeu o dom da imortalidade. Devias estar contente por ela!

Desviei o olhar.

- Falas de coisas sobre as quais sei muito pouco. Como te disse, a religião romana não é dada a tanta... familiaridade... com o mundo dos mortos como a religião do Egipto.

- Poderás ser ignorante nestas matérias, Gordiano, mas é evidente que a tua mulher não o era. Ela escolheu o momento, o lugar e a maneira como partiu. Quantos mortais poderão desejar tamanha ventura?

- A não ser que tenham acesso à Némesis-num-frasco - murmurei para mim mesmo, pensando no frasquinho que Cornélia me havia dado. A Rainha franziu o sobrolho.

- Que disseste?

- Nada, Majestade. Foi um pensamento solto, sem importância. Crátipo apareceu a correr.

- Majestade! Aproximam-se mais visitantes.
- Os convidados da refeição do meio-dia?
- Sim, Majestade.

- Diz a Apolodoro que os escolte até ao pequeno terraço com vista para a cidade. César gosta de tomar as refeições ao ar livre.

- César? - perguntei. - É melhor ir-me embora. Se Merianis, ou outra pessoa, puder acompanhar-me...

- Ires-te embora? Que disparate! Deixa-te ficar, Gordiano, comerás connosco. Os meus cozinheiros prepararam um polvo recheado, e César prometeu trazer uma ânfora de vinho Falerniano - uma preciosidade rara! Nos últimos anos, os vinhos italianos de qualidade tornaram-se

252tão escassos no Egipto como as tempestades de neve. Disseram-me que esta ânfora provém da reserva privada de Pompeu, de que César se apoderou quando saqueou o acampamento do Grande em Farsalo.

- Majestade, não tenho o menor desejo de beber o vinho de um morto

- Nesse caso, vou mandar decantar uma cerveja egípcia para ti. Vem Merianis. Indica a Gordiano o caminho para o terraço.

253CAPíTULO XX

Subimos um lanço de degraus de mármore que ia dar a um terraço lajeado. Um parapeito sustentado por colunas baixas e largas dava para um declive abrupto, ao fundo do qual ficava o mar. O terraço era flanqueado de ambos os lados por palmeiras altas e plantas frondosas. Atrás de nós, erguia-se uma parede sem janelas, onde havia uma porta que dava acesso ao interior. Os canapés de jantar tinham sido dispostos em semicírculo, de frente para a cidade, de maneira que todos os comensais desfrutassem de uma panorâmica da marginal de Alexandria inundada de sol, e do seu reflexo nas águas do porto.

A Rainha recostou-se no canapé mais opulento, coberto de almofadões de cor púrpura. Apoiou o corpo sobre um cotovelo e reclinou-se, de tal maneira que um dos seus pés tocava o chão. A pose destacava os contornos da sua figura; o vestido de linho aderia-lhe aos seios pesados e às curvas sensuais das ancas, coxas e pernas. As jóias que lhe adornavam as sandálias refulgiam sob os feixes de luz solar.

Merianis colocou-se atrás do canapé, à esquerda da Rainha, permanecendo de pé. Fez-me sinal para que eu me colocasse a seu lado. Instantes depois, apareceu Apolodoro. Envergava apenas o que vestia no barco, embora se tivesse adornado para a ocasião, com um peitoral de prata. O metal martelado acentuava-lhe os músculos do peito nu. Inclinou-se reverentemente perante a Rainha.

- Chegou o teu convidado, Majestade.

254Cleópatra retorquiu com um movimento de cabeça.

- Podes ir-te embora, Apolodoro. Chamar-te-ei se precisar de ti. Quando Apolodoro virou costas para desaparecer pelas escadas abaixo, a cabeça calva de César surgiu no nosso campo de visão, logo seguida pelo seu rosto luminoso. César vestia a toga consular. Subiu o último degrau e avançou para o terraço. O sorriso que trazia no rosto empalideceu, ainda que apenas ligeiramente, ao ver-me.

- A Rainha do Egipto dá as boas-vindas ao cônsul de Roma disse Cleópatra. - Mas onde estão os lictores do cônsul?

- Ficaram junto ao embarcadouro. - César aproximou-se da Rainha, não fazendo menção de se inclinar. Num cenário destes, tornava-se evidente que não era necessário tratarem-se formalmente. Trocaram um olhar de amantes: descontraído, íntimo, confiante na reciprocidade. Cleópatra estendeu-lhe a mão; César depôs nela um beijo demorado, não nas costas, mas na palma.

César olhou para mim.

- Temos outro convidado?

- Por casualidade, Gordiano estava cá; Merianis, que sabia do meu desejo de o conhecer, trouxe-o até mim. Não te preocupes, o polvo chega para todos. Pergunto-me se o Falerniano chegará também.

- Quanto a isso, nada receies - afirmou César. Momentos depois, Meto chegava ao terraço. Trajava o uniforme militar de cerimónia e trazia uma ânfora nos braços, como quem traz um bebé ao colo. Fez um esgar quando me viu, mas nada disse.

Observei a ânfora que Meto trazia nos braços. Tinha a forma típica, asas pequenas junto ao topo de boca larga, e fundo arredondado; não fora concebida para se manter de pé, mas para permanecer deitada, ao comprido, ao lado de outras ânforas, para transporte e armazenamento de vinho. A boca da ânfora estava tapada com uma rolha de cortiça, lacrada a cera vermelha. De lado, tinham sido gravadas algumas palavras, em letras suficientemente grandes para se lerem num só relance:

255FALERNIANO

ABRIR SOMENTE NA PRESENÇA DE

GNEU POMPEU, O GRANDE

- O vinho pertencia à reserva privada de Pompeu - disse César. Quando invadimos o acampamento de Farsalo, encontrei o pavilhão abandonado dele, mas preparado para o que parecia ser um banquete faustoso - travessas de prata, grandes pedaços de caça assada e esta ânfora de falerniano, metida num suporte que se achava mesmo ao lado do canapé de Pompeu, prestes a ser aberta e decantada para os jarros. Ele fugira no último instante, sem tocar no banquete de vitória. Devia ter trazido esta ânfora da sua adega, em Roma, arrastando-a Grécia fora, à espera de uma ocasião especial para a abrir. Vê-se aqui o selo pessoal de Pompeu, as letras O GRANDE, impressas na cera. O anel dele ajusta-se perfeitamente à impressão.

César exibiu o anel que o Rei Ptolemeu lhe havia oferecido, que guardava numa corrente de prata que trazia ao pescoço. Meto ergueu a ânfora, César segurou o anel entre os dedos - não querendo, por superstição, que o anel de sinete de Pompeu lhe escorregasse para o dedo? - e mostrou como o selo havia sido impresso na cera vermelha, ajustando o anel à impressão.

- Abramo-la de imediato - sugeriu Cleópatra.

Meto sentou-se num dos canapés e pôs a ânfora ao alto, entre os joelhos, sobre um suporte de barro colocado no chão. Com a ajuda de um pequeno punhal que trazia consigo, descolou habilmente o selo de cera. Puxou cuidadosamente a rolha de cortiça. Merianis trouxe um jarro de prata mas, quando Meto se preparava para deitar o vinho no jarro, a rainha ergueu uma mão.

- Pára! Antes de encheres o primeiro jarro, serve o primeiro gole a César directamente da ânfora.

César sorriu.

256- Um gesto amável, Majestade. Mas creio que o primeiro gole deve ser para a minha anfitriã, a Rainha do Egipto.

Cleópatra abanou a cabeça e sorriu. Qualquer troca de palavras entre eles se convertia num momento de sedução.

- A Rainha declina. A Rainha insiste para que o conquistador de Pompeu beba o primeiro gole do vinho de Pompeu. E sei exactamente de que taça deves bebê-lo! Merianis, traz as taças de ouro martelado que me ofereceram no dia dos meus esponsais.

Merianis desapareceu por momentos no interior do palácio e regressou trazendo duas taças moldadas em estilo grego antigo - largas, de copas pouco profundas e com bases sólidas e asas de ouro maciço, e não de barro decorado.

Levantando-se do canapé, Cleópatra pegou numa das taças trazidas por Merianis e exibiu-a diante de César.

- Estas taças foram um presente que o Rei da Pártía me ofereceu, e ao meu irmão, no dia do nosso casamento real. Não são lindas?

- Sem dúvida - observou César. - Mas será adequado eu beber por ela?

- Se eu disser que é adequado, é adequado - sentenciou a Rainha. Os lábios do meu irmão jamais tocarão esta taça, tal como nunca tocarão os meus. Há só um homem cujos lábios quero nesta taça; só um homem cujos lábios quero que beijem os meus. - Aproximou o rosto do de César e, por momentos, julguei que se beijariam; porém, no último momento, recuou, lançando-lhe um sorriso maroto. Merianis riu-se, o que me fez recordar que ela fizera exactamente o mesmo a Apolodoro, Qual das mulheres estaria a imitar a outra? Naquele momento, ambas me pareceram inacreditavelmente jovens; não eram uma rainha-deusa e a sua sacerdotisa, mas duas rapariguinhas namoradeiras. Fosse o que fosse que César via nela, gostava do que via; a expressão vagamente estúpida que se lhe estampara no rosto era a de um homem tão enlevado, que pouco lhe importa que se saiba. Meto, que permanecia sentado, de ânfora entre os joelhos, viu o mesmo que eu, e corou. Cleópatra voltou-se para Meto, erguendo a taça dourada.

257- Meto, o soturno! O retrato acabado do romano compenetrado
- nunca tem um sorriso para a Rainha do Egipto! - Meto tentou recompor a expressão, conseguindo esboçar um sorriso enviesado e pouco convincente. - Levanta-te, romano soturno, e serve um trago de vinho ao teu cônsul!

Meto levantou-se e ergueu a ânfora. Despejar uma pequena quantidade de vinho daquele recipiente comprido e pesado para a taça era um desafio, mas ele fê-lo sem respingar uma gota. Uma vez servido o vinho, colocou novamente a ânfora no suporte e voltou a tapá-la com a rolha.

Cleópatra, avançando lenta e cuidadosamente, levou a taça a César. Ele pegou nela com ambas as mãos e levou-a aos lábios, sorrindo a Cleópatra por sobre a superfície negra de vinho em que os rostos de ambos se reflectiam.

Cleópatra retribuiu o sorriso; depois, uma sombra atravessou-lhe o rosto.

- Espera! O Vinho não foi provado! - Arrancou a taça dos lábios de César, Uma pequena quantidade do líquido saltou da borda da taça e espalhou-se no chão aos pés dela.

- Provado? - perguntou César. - Mas não há razão para o fazer. O vinho veio da adega privada de Pompeu, com o selo intacto.

- Os selos podem ser penetrados, e a cortiça também - afirmou Cleópatra. - Onde tinha eu a cabeça? O vinho tem de ser provado primeiro.

- Mas decerto que... - disse Meto, com uma expressão exasperada.

- Não! Tem de ser provado. Foi uma das primeiras coisas que o meu pai me ensinou. Tudo o que se vai comer ou beber tem de ser provado, sem excepção. O deleite do momento cegou-me. Merianis, vai buscar Zoe!

Antecipando-se ao desejo da Rainha, Merianis já entrara no edifício. Voltou pouco depois, acompanhada por uma escrava jovem e tímida,

258que trazia na mão um recipiente de prova normal, feito de barro. Cleópatra entregou a taça cheia a Merianis. Merianis verteu uma pequena quantidade de líquido da taça de ouro para o recipiente de barro que Zoe lhe estendeu, pois o protocolo impedia que os lábios do provador tocassem na taça de ouro reservada ao consorte da Rainha.

Meto cerrou o maxilar; presumi que de impaciência perante as atitudes egípcias da Rainha, por serem excessivamente desconfiadas. César parecia moderadamente divertido, mas ao mesmo tempo ligeiramente perturbado, pois a motivação da Rainha não parecia ser apenas a formação que recebera na infância, mas também uma qualquer premonição. Tal como a César, também a mim não me passara despercebida a agitação que se apossara do rosto de Cleópatra quando lhe afastara a taça dos lábios, nem a súbita faísca de medo que lhe toldara o olhar.

Sem constrangimento - pois estava habituada a ser observada enquanto comia -, a jovem Zoe levou o recipiente de barro aos lábios e bebeu. Baixou o recipiente e enxugou uma gota de vinho vermelho dos lábios. As suas feições assumiram uma expressão curiosa.

- Majestade...

Apareceu uma ruga na testa de César. Cleópatra olhava para a escrava com ar apreensivo.

- Sim, Zoe? O que é? Majestade... Sustive a respiração.

- Majestade, já provei muito vinhos para ti - mas nunca um vinho tão requintado como este!

A tensão evaporou-se. César soltou uma gargalhada suave. Cleópatra suspirou. Meto bufou, como quem diz: - Para quê tanta preocupação? Zoe sorriu.

- Majestade, não estou a exagerar! Nunca provei um vinho como este. Já provei Falernianos - embora não o faça há muito tempo mas nunca tão excelentes como este. É difícil explicar...

259- Nesse caso, suponho que tenhamos de descobrir nós próprios disse a Rainha. - Podes ir-te embora, Zoe. Regressa quando servirem as entradas.

Mas a rapariga não se mexeu.

- Como te disse, já provei Falernianos, mas nunca... nunca como este... - Os olhos dela, fixos num ponto do infinito, ganharam um brilho vítreo.

- Eu disse que podias retirar-te - repetiu Cleópatra, com alguma rispidez.

Zoe ignorou-a. As suas palavras começaram a entaramelar-se.

- O sabor... o sabor é como um fogo... como algo a arder na minha garganta, e que desce até ao estômago. Um fogo doce... não inteiramente desagradável... mas que queima, ainda assim. Oh, Majestade! Oh! Creio que há qualquer coisa esquisita neste vinho!

Zoe deixou cair o recipiente de barro. Todos recuámos, assustados com a explosão do barro a despedaçar-se contra as lajes,

Zoe caiu de joelhos, tremendo violentamente.
- Majestade! Majestade, ajuda-me, por favor!

Cleópatra correu para a rapariga. Ajoelhou-se e tomou nos braços o corpo convulso de Zoe, que olhou para ela de olhos vítreos, mas com uma expressão em que se misturavam a reverência e a confiança. Soergueu o rosto, como que à espera de um beijo. A Rainha fechou os olhos e depôs os lábios sobre os da rapariga, que exalou o último suspiro. As convulsões cessaram abruptamente. O corpo de Zoe tornou -se flácido.

Cleópatra abraçou o corpo da escrava morta, fechou os olhos começou a entoar uma melodia suave. Tratava-se de um canto egípcio, provavelmente de uma canção para os mortos. Enquanto a Rainha, cantava, de olhos fechados, pareceu pairar sobre todos os presentes” um encantamento. Ninguém se mexeu. Ninguém pronunciou palavra.

Eu fiquei especado, siderado ante o que via. Cleópatra não era somente a senhora da rapariga, nem apenas a sua Rainha; era também a

260sua deusa, cuja intervenção no preciso momento da morte poderia servir para transportar uma escrava de baixo estatuto para o reino dos imortais.

Quando Cleópatra abriu os olhos, apercebi-me de que não tinha estado apenas a cantar. Parecia ter processado uma série de cálculos furiosos, que se reflectiam no brilho incandescente do seu olhar. Chamou Merianis que, poisando a taça de ouro, correu para a Rainha e se ajoelhou a seu lado. Trocaram umas palavras sussurradas e prementes. Merianis olhou por cima do ombro na direcção de Meto, com uma expressão tão desorientada, que eu senti uma punhalada de temor. Meto também pressentiu qualquer coisa terrível no olhar de Merianis, pois notei que ficou lívido. César captou os olhares disparados entre eles, e vi desenhar-se no seu rosto uma máscara de surpresa.

Merianis parecia resistir ao que Cleópatra lhe sugeria, até que finalmente a Rainha levantou a voz:

- Vai-te embora, e faz o que te disse! Traz-me Apolodoro! Merianis pôs-se de pé e saiu do terraço a correr.

César olhou para a ânfora de vinho, que voltara a ser colocada no suporte, sobre as lajes do pavimento. Depois olhou para Meto, que se mantinha de pé ao lado da ânfora, e por último para Cleópatra e para a escrava morta.

- Em nome do Hades, o que foi que se passou aqui? Meto baixou os olhos para a ânfora.

- Envenenado! - murmurou. - Deve ser isso. De alguma maneira... - Estendeu a mão, como se fizesse menção de voltar a tirar a rolha de cortiça.

- Não! - gritou César. - Não lhe toques! - Era compreensível que César falasse em tom de alarme, mas havia na sua voz uma nota acusatória, e o olhar que dirigiu a Meto traía um laivo de suspeita. Deu um passo na direcção de Cleópatra, mas ela ergueu a mão, em sinal de que César não devia aproximar-se.

261- O ka de Zoe - aquilo a que vocês chamam o lémure - ainda não se libertou do corpo dela. Sinto-o ainda agarrado à sua carne. A morte foi tão inesperada, que o ka permanece aturdido, preso entre este mundo e o outro. Não digas nada. Não te mexas.

- Mas eu tencionava chamar os meus lictores...

- Silêncio! - disse Cleópatra, olhando para César com olhos dardejantes. Estupefacto, eu vi uma rapariga de vinte e um anos mandar calar o homem mais poderoso do mundo, e vi-o obedecer.

Assim nos deixámos estar, imóveis, como actores sobre o palco no final do último acto. Rodeado de imobilidade, comecei a tomar consciência da multiplicidade de sons que vinham do porto, abafados pela distância e pelos jardins que nos circundavam: gritos dos homens que trabalhavam no cais, guinchos de gaivotas, o próprio marulhar sussurrante e desassossegado da água. Feixes de luz solar dançavam sobre as lajes. A cena inundou-se de uma claridade cortante que, embora de natureza idêntica à dos sonhos, era simultaneamente mais real do que a realidade. Senti-me ligeiramente tonto e, não obstante a ordem da Rainha - de que ninguém devia mexer-se -, sentei-me num dos canapés e fechei os olhos por momentos.

Por fim, Merianis reapareceu a correr escada acima. Apercebi-me de que estivera a chorar, sem dúvida abalada pelo curso dos acontecimentos. Apolodoro vinha atrás dela, de semblante carregado.

Cleópatra levantou-se. O corpo de Zoe escorregou do amplexo da Rainha e caiu desamparado, qual peça de roupa acabada de despir, sobre as lajes do pavimento. O inquieto ka já teria, presumívelmente, partido, pois a Rainha não prestou mais atenção ao cadáver.

Levantou um braço e apontou para Meto.
- Quero que ele seja revistado.

O rosto de Meto ensombrou-se. César cerrou os maxilares e assentiu com a cabeça.

- Com certeza, Majestade. Assim será. Vou já chamar os meus lictores para tratarem do assunto.

262- Não! Mandei chamar Apolodoro para esse fim. Será Apolodoro a revistá-lo.

César movimentou o maxilar para trás e para diante.

- Majestade, parece-me que, nas presentes circunstâncias, seria melhor...

- Estamos em minha casa - disse Cleópatra. - A escrava que jaz morta era minha. Foi a minha taça que foi envenenada...

- Uma taça destinada aos meus lábios - frisou César.

- Cheia de vinho servido pelo teu homem - o mesmo romano de ar soturno que trouxe o vinho até aqui. Não, César, insisto para que seja um dos meus homens a executar a tarefa de revistar a pessoa de Meto.

César ponderou nas palavras da Rainha durante longos momentos. Voltou-se para Meto, sem contudo o olhar nos olhos, e depois virou-se novamente para Cleópatra.

- Muito bem, Majestade. Seja Apolodoro a revistá-lo. Avança, Meto. Levanta os braços e deixa o sujeito fazer o que tem a fazer.

Meto mostrou-se indignado, mas obedeceu prontamente. O queixo tremia-lhe; eu sabia que ele estava com vontade de lançar um olhar fulminante à Rainha, mas aguentou disciplinadamente, mantendo o olhar a direito.

Apolodoro passou as mãos pelos ombros, os membros e o torso de Meto, enfiando os dedos por entre as tiras de couro e as fivelas. Meto bufava e rangia os dentes. Cleópatra aproximou-se, observando com atenção. O olhar apreensivo de César deslocava-se de Meto para Cleópatra e desta novamente para Meto. Merianis, que se tinha afastado para outra zona do terraço, escondeu o rosto e começou a chorar. Apolodoro endireitou-se, hirto.

- Majestade...

- O que é, Apolodoro? O que foi que encontraste?

Do meio de duas tiras de couro do peitoral de Meto, Apolodoro extraiu um pequeno objecto branco de forma cilíndrica. César inclinou-se

263para diante, e o mesmo fez Cleópatra. Eu levantei-me do canapé, ainda meio tonto, e avancei na direcção de Meto, tomado por uma súbita premonição de catástrofe.

Apolodoro mantinha o objecto no ar, segurando-o entre o polegar e o indicador. Tratava-se de um frasquinho de alabastro.

Não consegui impedir-me de arquejar.

Quatro rostos voltaram-se em simultâneo para mim - o de César, o de Cleópatra, o de Apolodoro e o de Meto, cujos olhos estabeleciam finalmente contacto com os meus, pela primeira vez naquele dia. A expressão com que Meto me encarava gelou-me o sangue.

- Papá! - murmurou em voz rouca.

César arrancou o frasquinho dos dedos de Apolodoro, e meteu-mo debaixo do nariz.

- O que é isto, Gordiano?

Eu fitei o frasquinho. A rolha tinha desaparecido. Embora o frasco estivesse vazio, detectei uma leve baforada do mesmo odor - não inteiramente desagradável - que havia aspirado quando cheirara o conteúdo do frasco a bordo do navio de Pompeu. Não restavam dúvidas; tratava-se do frasquinho que Cornélia me oferecera.

O nariz de César estava tão próximo do meu, que quase se tocavam.
- Fala, DescobridÓr! Ordeno-te que fales! O que sabes tu acerca disto?

De trás de mim, chegou-me a voz calma mas imperativa de Cleópatra.

- Sim, Gordiano. Diz-nos o que sabes sobre este frasco de alabastro que Apolodoro encontrou na pessoa do teu filho.

264CAPíTULO XXI

Cerca de uma hora mais tarde, mergulhado numa espécie de estupor, estava de novo no meu quarto, remexendo no conteúdo do baú de viagem. A dois passos de mim, os soldados romanos que César ordenara que me acompanhassem observavam todos os meus movimentos. Rupa estava no outro extremo da divisão e os rapazes sentados no peitoril da janela. Ainda não lhes tinha dado pormenores sobre o que se havia passado, mas eles aperceberam-se de que algo terrível acontecera. Os rapazes tentavam manter-se calmos acariciando o gato Alexandre, que estava sentado entre os dois, a ronronar, alheio à tensão que se instalara no quarto.

- Não está aqui - tartamudeei. Cuidadosa e metodicamente, tinha tirado todos os objectos para fora do baú e espalhara-os por cima da cama. Agora, voltava a arrumar cada objecto dentro do baú com a mesma meticulosidade, sacudindo as túnicas para me certificar de que não havia nada escondido entre as dobras, e abrindo as pequenas caixas de bijutaria de Betesda para ter a certeza de que não havia nenhum frasquinho de alabastro escondido dentro de uma delas.

A busca revelou-se infrutífera. O frasco que Cornélia me tinha dado já não estava entre as minhas coisas; Apolodoro tinha-o encontrado na pessoa de Meto. Apesar disso, eu tinha estado a rezar para que se desse um milagre qualquer, para que encontrasse o frasquinho dentro do meu baú, rolhado e com o conteúdo intacto. já não havia dúvida

265possível. O veneno que Cornélia me dera - de acção rápida, relativamente indolor - era com certeza o mesmo que havia posto fim à vida da provadora de Cleópatra.

A minha reacção ao ver o frasco na mão de Apolodoro tinha sido tão espontânea, tão flagrante, que teria sido inútil disfarçá-la. Nenhuma mentira congeminada em cima do joelho teria satisfeito César. E o silêncio também não era uma alternativa possível; recusar-me a falar equivaleria a oferecer resistência à vontade de César, e à vontade de Cleópatra. Ambos possuíam vasta experiência em obter informações de indivíduos pouco cooperantes. Não digo que não conseguisse suportar um certo nível de sofrimento, mas tinha de pensar no que poderia acontecer a Rupa e aos rapazes. jamais permitiria que lhes fosse infligido mal algum, nem mesmo para proteger Meto.

E era justamente aqui que residia a mais amarga das ironias: depois de todos os meus protestos de que Meto deixara de ser meu filho, de que a nossa relação tinha terminado, e de que Meto já nada significava para mim, o meu primeiro instinto fora protegê-lo. César percebera-o de imediato.

- Se de facto Meto já nada significa para ti, Descobridor, por que não falas? - perguntara ele. - Está ali uma mulher morta. Não fora a intervenção da Rainha, teria sido eu a morrer! O que sabes acerca deste frasco de alabastro? Fala! Se for preciso obrigar-te a falar, fá-lo-ei. E nenhum de nós deseja que tal aconteça, pois não, Descobridor?

Assim, acabei por lhe contar de onde provinha o frasco e como tinha vindo parar às minhas mãos. Quando o vira pela última vez? Não tinha bem a certeza. (De facto, a última vez que me lembrava de o ter visto fora quando Meto reparara nele, no dia em que lhe dera uma lembrança de Betesda.) Como teria ido parar às mãos de Meto? Tentei disfarçar, dizendo que não fazia ideia; mas, ao perceber o tom de ameaça de César, o próprio Meto tomou a palavra.

- Vi este frasco entre as coisas do papá, na noite em que fui visitá-lo ao quarto dele. Tinha-o guardado no baú de Viagem. Aconselhei-o

266a desfazer-se dele. Tive receio de que se sentisse tentado... a usá-lo em si próprio. Porém, desse momento até hoje, não voltei a vê-lo até este siciliano o ter feito aparecer no ar, como por artes mágicas!

- Estás a afirmar que Apolodoro trazia o frasco consigo? - perguntou César.

-já todos testemunhámos o talento dele para fazer aparecer coisas do nada. - Meto lançou um olhar à Rainha.

- Basta! - disse César. - A única coisa de que temos a certeza é de que tanto o pai como o filho sabiam da existência deste veneno, e estão ambos aqui, juntamente com o frasco que o continha, e com a escrava que morreu por tê-lo bebido. Meto, Meto! Nunca imaginei...

- Cônsul, espera! - Abanei a cabeça. - Talvez tenha havido um engano...

- Que género de engano?

- Deixa-me ir ao meu quarto e fazer uma busca entre as minhas coisas. Um frasco de alabastro é um objecto bastante comum. Talvez o que estava na minha posse ainda lá se encontre. - Fiz os possíveis para ser convincente, mas a hipótese até a mim me parecia remota.

César - honra lhe seja feita - autorizou-me a explorar a possibilidade. Enquanto os homens dele levavam Meto sob custódia, outro grupo de soldados acompanhou-me a terra, escoltou-me até ao meu quarto e ficou a ver-me levar a cabo uma busca vã por entre os objectos arrumados no meu baú. O único resultado que obtive foi ter aduzido mais uma prova de que Meto me tinha surripiado o veneno, depois de o ter visto no meu baú.

Mas como teria o veneno ido parar ao vinho? E com que objectivo? Sentei-me na cama, aturdido pela enormidade do que acontecera. Seria realmente possível que o meu filho tivesse tentado matar Júlio César?

O meufilho: as palavras vieram-me ao espírito, teimosas, e aí permaneceram, incontestadas. Tal como chorara por Betesda, chorava agora por Meto, consciente de que ele devia estar perdido para mim, perdido para sempre. Foi nesse momento que compreendi por que razão havia

267resistido de forma tão intransigente a uma reconciliação com Meto desde que o vira novamente em Alexandria. Não fora devido ao meu próprio orgulho teimoso, ou a uma aversão irreconciliável pelo próprio Meto; fora devido ao medo de ter de vir a enfrentar uma situação como esta. Tendo perdido Betesda, como poderia expor-me segunda vez à possibilidade de perder a pessoa que mais amava no mundo? Meto, que levava uma existência tão perigosa, que se expunha vezes sem conta aos perigos da guerra e da espionagem, que havia ligado o seu destino ao cometa incandescente que era a carreira de César - tendo-o finalmente expulsado da minha vida, decerto que o melhor seria mantê-lo fora dela

para sempre, sob pena de ter de conceber a intolerável perspectiva de, mais tarde ou mais cedo, vir a perdê-lo de vez. E assim tinha acontecido, não obstante tudo o que eu fizera para endurecer o coração contra ele. Que viagem malfadada, a que me trouxera a Alexandria!

Os soldados deram-me tempo para me recompor, mas não se retiraram; César tinha-lhes ordenado que não me perdessem de vista. Rupa estava diante da janela, de braços cruzados, intranquilo e de sobrolho carregado. Os rapazes estavam nervosos, mordendo os lábios e trocando olhares, até que, por fim, Mopso quebrou o silêncio.

- Senhor, o que se passa? O que aconteceu? Tem que ver com Meto, não tem?

Abanei a cabeça.

- Rapazes, rapazes, não é nada que vos diga respeito...

Não, senhor, isto não está certo! - O pequeno Androcles adiantou-se. - Mopso e eu podemos ser apenas escravos, e Rupa ser bem, ser apenas o Rupa -, mas já não somos nenhumas crianças. Aconteceu alguma coisa, e foi terrível. Queremos saber o que foi. Nós somos inteligentes, Senhor...

- E destemidos! - atalhou Mopso.

E fortes! - acrescentou tacitamente Rupa, retesando os ombros de touro.

268O único ocupante do quarto que não se adiantou foi Alexandre, o gato, que voltou a acomodar-se sobre a sacada da janela, de costas voltadas para o interior do quarto, contemplando o porto.

- Talvez possamos ajudar-te, senhor.

Olhei para Ândrocles que, não obstante os seus protestos do contrário, era manifestamente ainda uma criança, e lembrei-me de Meto quando era daquela idade. Entretanto, Meto tornara-se um homem. Tinha ido até aos confins do mundo e regressado, matado outros homens e acabado quase morto, estado ao lado de César e mergulhado as mãos nas marés da História; contudo, uma parte de mim permanecia presa à ideia absurda de que Meto era tão novo e tão vulnerável como Ândrocles, um rapazinho que precisava da minha protecção - e das minhas repreensões. Naquele momento, reconciliei-me finalmente com Meto e com o homem em que ele havia escolhido tornar-se. Abandonei a falsa premissa de que era responsável pelos seus actos; rendi-me à sua inevitável autonomia; admiti para mim mesmo que, apesar de tudo, o amava. Se neste momento ele se encontrava em maus lençóis, não me cabia a mim julgá-lo, e faria tudo o que estivesse ao meu alcance para o ajudar.

- Meto é acusado de ter tentado matar o imperador, com um veneno que tirou deste baú - disse eu.

- Oh não! - exclamou Mopso.

- Não é verdade, pois não, senhor?
- Se é verdade, Ândrocles? Não sei.
- Mas se Meto fez tal coisa, senhor...

- Se o fez, eu próprio apelarei à misericórdia de César. Rasgarei a túnica, arrancarei os cabelos, lançar-me-ei a seus pés sem vergonha; todos os anos que passei à volta de advogados como Cícero ter-me-ão certamente ensinado alguns métodos de persuasão. Recorrerei a eles para interceder por Meto.

- Mas certamente que Meto está inocente, senhor!

269- Se está, Mopso, tenciono fazer tudo o que puder para o ilibar. Encontramo-nos numa terra estranha, onde a justiça está à mercê dos caprichos daqueles que pertencem a dada linhagem, e as leis e os decretos são determinados por governantes conflituosos. Onde as leis nada têm que ver com a verdade, e a Justiça nada tem que ver com provas. Em minha opinião, em breve se passará o mesmo em Roma; César está a aprender com estes crocodilos do Nilo e faz tenções de reproduzir o seu habitat no Tibre. Todavia, mesmo no Egipto, a verdade é a verdade e uma prova é uma prova, pelo que talvez ainda me seja possível fazer alguma coisa para salvar o meu filho.

- E nós ajudar-te-emos - insistiu Ândrocles.
- Se os deuses o permitirem - repliquei eu.

- Encontraste-o?

César estava à janela oriental do compartimento altaneiro, olhando por sobre os telhados do Bairro judeu, na direcção do longínquo Nilo.
- Não, cônsul.

Ele acenou com a cabeça. Mesmo de costas, percebi que não retirara qualquer satisfação do gesto. Estava de braços cruzados atrás das costas, fazendo girar nervosamente o frasco de alabastro entre os dedos. Voltou-se para me olhar de frente.

- Acabo de receber notícias perturbadoras. Em que estado tens os olhos, Gordiano?

- Como, Cônsul?

- Aproxima-te da janela e olha para oriente, para lá da cidade, para aquela mancha indiferenciada de deserto perto do Nilo. O que vês, Gordiano?

- Pouca coisa, cônsul. Uma mancha, como disseste, ainda mais obscurecida por uma grande nuvem de pó.

- Exactamente. Trata-se de pó levantado pela marcha de um exército. Segundo as informações que recebi, as forças de Ptolemeu abandonaram em peso as fortalezas do deserto, onde estavam acantonadas,

270e dirigem-se para a cidade, sob o comando de um tal Aquilas. Parece que conheceste o sujeito.

- Não propriamente, cônsul.
- Mas observaste-o de perto?

- Vi-o, a uma distância considerável, assassinar Pompeu. Mais tarde, praticamente debaixo do meu nariz, Vi-o estrangular um espião egípcio com as próprias mãos.

- Um bruto homicida!

- Creio que ambos os actos foram cometidos por ordem directa do Rei, o que faz da morte de Pompeu um assassínio político e da morte do espião uma execução - isto, para quem acha que há mortes que são assassínios e outras que não.

César olhou-me de soslaio.

-já matei homens no campo de batalha. Homens meus, respondendo a ordens minhas, provocaram a morte de muitos mais. Estás a chamar-me assassino, Gordiano?

- Nunca me atreveria a fazer semelhante julgamento, cônsul. César resfolegou.

- Esquivaste-te a responder, não foi? Cada vez mais me fazes lembrar Cícero. As palavras dúbias, as estocadas de viés, os equívocos intermináveis - com o passar dos anos, foste-te impregnando dos hábitos dele, quer te agrade, quer não.

Mantive a voz firme.

- Os tempos que vivemos levam-nos a todos por caminhos que não escolhemos trilhar.

- Fala por ti, Gordiano. Passas tempo demais a olhar para trás. O futuro é em frente.

- Um futuro que breve trará o exército de Ptolemeu às portas de Alexandria?

- Assim parece. Nunca foi minha intenção que Alexandria se transformasse num campo de batalha. O meu objectivo era chegar, resolver a questão entre o Rei e a Rainha, e ir-me embora. Em vez disto, vejo-me

271perante a perspectiva de uma guerra a grande escala, com um resultado incerto. Mandei vir reforços, mas é impossível determinar quando chegarão. Neste momento, eles são muitos e nós somos poucos. É verdade que as tropas sob o comando de Aquilas são altamente irregulares, se as avaliarmos pelo padrão romano. O núcleo duro é composto pelos legionários que vieram para o Egipto com Gabínio, para restituir o trono ao falecido Rei e manter a paz. Parece que, a certa altura, se esqueceram das suas origens e se egiptizaram, casando-se com nativas e adoptando os costumes locais. Que um deles tenha aceitado matar Pompeu a sangue-frio dá-nos a medida da distância a que se encontram dos seus nobres começos. Às suas fileiras, juntaram-se mercenários, escravos foragidos e criminosos estrangeiros. Não são o que se chama disciplinados, e não devem grande coisa à lealdade; a dada altura, quiseram um aumento e bloquearam os acessos ao palácio para o exigirem. Mas ainda sabem lutar. E, com um comandante tão Viciado em mortandades como eles, são capazes de vir a constituir um inimigo temível.

Começou a andar de um lado para o outro, fazendo girar o frasco de alabastro entre os dedos. Aparentemente, Meto estava longe dos seus pensamentos. Voltou a falar.

- Há pouco, disseste que o assassínio de Pompeu tinha sido executado por ordem directa do Rei. Acreditas nisso, Gordiano? Que o Rei Ptolemeu tenha dado a ordem de assassínio? Que ele seja capaz de dar uma ordem dessas sem a orientação de Potino?

- Estou certo de que terás chegado a conhecer o Rei melhor do que eu, cônsul. Deves estar em melhor posição para avaliar o carácter e as capacidades dele.

- Estarei? Queres saber a verdade, Gordiano? Estes Ptolemeus deixam-me completamente perplexo! Entre os dois, puseram-me a cabeça a andar à roda. É ridículo. O mestre da estratégia, o político consumado, o conquistador da Gália, o autor da queda de Pompeu confundido por duas crianças!

Não consegui reprimir um sorriso.

272- Cleópatra não é propriamente uma criança, cônsul, por muito jovem que se afigure a homens com a nossa idade. E - uma vez que pediste a minha opinião - Ptolemeu ja não é um rapazinho. Está muito perto da idade em que o jovem romano veste a toga da masculinidade e se torna um cidadão. Tu próprio não eras precoce aos quinze anos, cônsul?

- Precoce, talvez fosse, mas não estava propriamente preparado para governar um país como o Egipto! Quando eu era da idade do Rei... - O rosto de César suavizou-se. - Foi sensivelmente nessa idade que perdi o meu pai. Aconteceu certa manhã, enquanto ele se calçava. Era um homem forte e vigoroso, na flor da idade; era o meu mentor, o meu herói. Num momento, estava vivo, a atar as tiras dos sapatos. No momento seguinte, teve uma convulsão e caiu ao chão, morto como o Rei Numa. O pai dele tinha morrido da mesma forma: subitamente, na meia-idade, sem motivo aparente. Presumo que se trate de um defeito qualquer, transmitido de pai para filho; se assim for, eu já ultrapassei o quinhão de anos que me foram destinados e vivo agora de tempo concedido por empréstimo. Posso morrer a qualquer momento; talvez caia redondo no chão durante esta conversa!
- César olhou para a nuvem de pó que se via à distância e suspirou.
- Lembro-me do meu pai todos os dias - sempre que me calço. É Uma triste ventura um rapaz prestes a tornar-se adulto perder o pai. O mesmo aconteceu a Ptolemeu, embora ele fosse ainda mais novo do que eu quando o Flautista morreu. Creio que é por essa razão que deseja tão ardentemente o afecto e a orientação de um homem mais velho.

Franzi o sobrolho.

- Referes-te a Potino?

César soltou uma gargalhada.

- Poupo-te à graçola previsível sobre a masculinidade de Potino. Não, Gordiano, refiro-me a mim próprio. Quando, há dias, no átrio de recepções, mencionei a amizade especial que se estabelecera entre

273mim e o Rei, não estava apenas a debitar palavras agradáveis, à maneira de Cícero.

- julgo ser capaz de compreender o fascínio do Rei por César, mas não estou certo de compreender...

- O fascínio de César pelo Rei? Ptolemeu é inteligente, arrebatado, voluntarioso, convencido do seu destino divino...

- Tal como a irmã?

- Muito como a irmã, embora receie que lhe falte o sentido de humor de Cleópatra. É um jovem deveras grave - e que temperamento! A cena que montou no outro dia, incitando a multidão e lançando o diadema ao chão! - César abanou a cabeça. - Agi depressa de mais, pressionando-o para fazer as pazes com a irmã. Devia ter previsto que ele não reagiria bem.

- Fiquei com a impressão de que o Rei se comportava como um amante ciumento. - Encarei César sem desviar o olhar, pensando para comigo se não teria sido excessivamente frontal.

César semicerrou os olhos.

- A relação íntima que se desenvolve entre um homem mais velho e um jovem foi sempre mais bem recebida no mundo de expressão grega do que no nosso. O próprio Alexandre teve Heféstio, e mais tarde o rapaz persa, Bagoas. Se o Rei da cidade de Alexandre me abordou no mesmo espírito de amor masculino, não deverei sentir-me honrado? Os jovens são naturalmente susceptíveis à adoração dos heróis. Quanto mais ambicioso ou bem-nascido for o jovem, mais exaltado será o homem mais velho que deseja tomar como modelo.

- A atenção que do Rei lisonjeia-te?

- SIM; e de uma forma que as atenções da irmã não me lisonjeiam.
- Dizem que César admirou um rei, quando era novo. - A firmeza da minha voz era inversamente proporcional à temeridade das minhas palavras. Toda a gente conhecia os boatos que corriam sobre César e o Rei Nicomedes da Bitínia. Os inimigos políticos de César haviam recorrido a esta história para o ridicularizar - mas a maioria já tinha

274morrido. Entre os soldados de César, circulavam piadas sobre o assunto
- mas eu não era camarada de armas de César. No entanto, fora o próprio César quem enveredara por esta avenida de diálogo.

A resposta dele foi surpreendentemente sincera. É possível que, à semelhança do que acontecia comigo, César tivesse chegado àquele estádio da vida em que o passado nos parece extremamente remoto, mais uma curiosidade do que uma provocação. - Ah, Nico! Quando me calço, penso no meu pai; quando me descalço, penso em Nico. Eu tinha dezanove anos, era membro da comitiva oficial do pretor Minúcio Termo no Egeu. Termo precisava do apoio da armada do Rei Nícomedes; foi necessário nomear um emissário à corte do Rei, na Bitínia. A escolha de Termo recaiu sobre mim. ”Estou convencido de que vocês dois serão capazes de se entender”, disse-me o pretor, com um brilhozinho nos olhos. O velho bode tinha razão. Nico e eu entendemo-nos tão bem, que eu me demorei na Bitínia mesmo depois de Termo ter enviado um mensageiro para me ir buscar. Nico era um homem notável! Nascido para o poder, seguro de si próprio, com um apetite voraz pela vida; um governante semelhante àquele que Ptolemeu ainda pode Vir a ser. E com imenso para ensinar a um jovem romano sedento e ambicioso que, já não sendo um rapaz, ainda não era bem um homem. Eu era tão ingénuo, tão abismado e inocente! Quando penso nisso... É impossível imaginar-te ingénuo, cônsul.

E? Mas é como te digo! O jovem que Nico instruiu nas lides do mundo desapareceu há muito - mas o adulto recorda-se daqueles dias dourados tão claramente como se tivessem acontecido ontem. Fecho os olhos e estou novamente na Bitínia, sem uma cicatriz na pele e com a vida toda pela frente. Achas que Ptolemeu se lembrará de mim tão vivamente quando envelhecer, quando governar o Egipto se tiver tornado uma rotina gasta, e aquele sujeito chamado César há muito se tiver transformado em pó?

- Acho que o mundo recordará César muito tempo depois de Ptolemeu ter sido esquecido. - Pronunciei estas palavras como quem

275enuncia um facto consabido, mas César interpretou erradamente a minha entoação. A disposição aprazível que havia demonstrado até àquele instante evaporou-se.

- Não me lisonjeies, Gordiano - logo tu! A última coisa que me faz falta neste momento é mais um sicofanta.

Durante todo o tempo que demorara a nossa conversa, César não parara de remexer o pequeno frasco, fazendo-o girar na mão. Naquele momento, cerrou-o no punho fechado, apertando-o de tal maneira, que os nós dos seus dedos perderam a cor, tornando-se tão brancos como o alabastro. De súbito, arremessou-o com toda a força à parede de mármore. O frasco fez ricochete sem se partir e atingiu-me na perna. Não me magoou, mas eu dei um salto.

O gesto consumiu a fúria de César, que inspirou fundo.

- justamente quando eu estava prestes a restaurar a paz entre o Rei e a Rainha, Aquilas marcha sobre Alexandria - e alguém tenta envenenar-me.

- Talvez a vítima escolhida fosse a Rainha.

- Talvez. Mas como e quando terá sido o vinho envenenado, e por quem? Sabemos de onde veio o veneno - e esse facto lança uma sombra de suspeita sobre ti, Gordiano.

- Cônsul, eu nem sequer sabia que o frasco tinha desaparecido...
- Como já tiveste ocasião de explicar. Ainda assim, tal não afasta a possibilidade de teres agido em conluio com o teu filho - de lhe teres fornecido o veneno, sabendo de que modo ele pretendia utilizá-lo. Conspiraste contra mim?

Abanei a cabeça.
- Não, cônsul.

- Meto afirma nada saber. A Rainha aconselha-me a torturá-lo.

Não sabe quão indómita é a vontade dele. Eu próprio treinei Meto para suportar interrogatórios. No entanto, se estivesse convencido de que a tortura lhe soltaria a língua...

- Não, cônsul! Isso não.

276- A verdade tem de ser descoberta.

- Talvez... talvez eu possa fazê-lo, cônsul. Se me permitires...
- Por quê? Meto não te diz nada. Renegaste-o em Massília. Eu assisti a tudo, com os meus próprios olhos e os meus ouvidos.

- Cônsul, por favor! Deixa-me ajudar o meu filho.

César fitou-me durante longos momentos. Uma sombra pareceu fazer esmorecer a luz dos seus olhos, como se um sentimento negro e poderoso o agarrasse por dentro, mas o seu rosto manteve-se impassível. Por fim, disse:

- Ao longo dos anos, o teu filho tem demonstrado uma grande lealdade para comigo. Recompensei a sua devoção com um grau de confiança que concedi a muito poucos homens. E contudo, quando hoje vi morrer aquela escrava, uma parte de mim não ficou surpreendida. O verme da traição nasce pequeno, mas vai crescendo. Olhando para trás, apercebo-me de que há já algum tempo que se tem vindo a cavar um fosso entre mim e Meto. Os sinais têm sido subtis. Ele nunca me desafia abertamente, mas tenho vindo a detectar no seu rosto um fugaz olhar de amargura; tenho ouvido na sua voz uma ténue nota de discordância. Se Meto me traiu defacto, será punido de acordo com a sua ofensa.

Mordi o lábio.

César tem fama de ser clemente.

É verdade, Gordiano, que tive grande clemência para com aqueles que se bateram contra mim. Até perdoei àquela ratazana do Domício Aenobardo, e ele voltou a pegar em armas contra mim em Massília, e novamente em Farsalo. Mas, para um traidor que se escuda em mentiras e em veneno, não pode haver perdão. E digo-te isto com toda a franqueza, Gordiano, para que, caso acalentes a ideia de implorar pela vida do teu filho, poderes poupar-te a tal indignidade. Não te dês ao trabalho de rasgar a túnica e de chorar, como um dos clientes culpados de Cícero a tentar conquistar a simpatia do tribunal. Se Meto praticou este acto, a minha sentença será pesada e irreversível. Compreendeste?

277- Sim, cônsul. E se eu conseguir provar-te que ele está inocente? Uma sombra voltou a toldar-lhe o olhar.

- Se Meto está inocente, então alguém é culpado.
- Assim parece, cônsul.

- Se assim for, é provável que a verdade nos coloque um problema.
- Não tenho a certeza de perceber o que queres dizer com isso.
- O envenenador deve pertencer a uma das três facções: a minha,

a da Rainha, ou a do Rei. Seja qual for a verdade, a revelação é susceptível de vir a causar ainda mais... complicações. Razão pela qual me informarás, e a mim somente, do que quer que descubras. Compreendeste?

- Sim, cônsul.

César avançou até meio do quarto, inclinou-se e apanhou o frasquinho de alabastro. Observou-o em contraluz.

- Que ironia tremenda, se o veneno destinado à viúva de Pompeu tivesse ceifado a vida ao rival de Pompeu! Achas que o nosso envenenador tem sentido de humor, Gordiano?

- Tomarei essa possibilidade em linha de conta, cônsul.

278CAPÍTULO XXII

Tive de me curvar para conseguir entrar pela porta baixa. O carcereiro, um dos homens de César, fechou a porta atrás de mim. Meto, que estava sentado numa enxerga baixa, levantou-se de um pulo.

Mantinham-no preso numa pequena divisão subterrânea. As paredes eram húmidas e a única luz provinha de uma minúscula janela gradeada, situada bastante acima das nossas cabeças, através da qual nos chegavam uns ruídos indistintos, que ecoavam a actividade do porto
- sinos, gaivotas, gritos de homens e o murmúrio rumorejante das águas.

- Papá! O que fazes aqui? Não me vais dizer que César está convencido de que tu tens alguma coisa que ver com...

- Não estou aqui como prisioneiro, Meto. César concordou em deixar-me visitar-te.

- Procuraste no teu baú?

- Procurei. O frasco não estava lá. Não sei quando foi roubado. Neste momento, é César quem o tem. E pretende saber como é que ele se encontrava na tua pessoa.

- Mas o frasco nunca esteve na minha posse! A única vez que o vi foi naquele dia, no teu quarto, quando te disse para te veres livre dele.
- Se ao menos o tivesse feito!

Meto abanou a cabeça.

- Isto é uma loucura. Por que razão me mantém César aqui preso? Não é possível que acredite que eu tentei envenená-lo.

279Recordei-me do negrume nos olhos de César.

- Receio que César acredite que sim, embora isso lhe cause imensa dor. Mas, se conseguirmos provar que tal não aconteceu...

Meto olhava fixamente para a parede de pedra húmida, sem me ouvir.
- Os deuses devem desprezar-me muito! Primeiro, tu renegas-me, papá. Pensei que não podia haver nada pior. Mas agora César volta-se contra mim. Todos os que amei, em quem confiei e por quem dei a minha vida me abandonaram. Por que me permiti esperar por mais do que isto? Comecei esta vida como órfão e como escravo. E deixarei este mundo em condição ainda mais baixa, como traidor e criminoso, sem pai, sem um amigo, sem nome.

- Não, Meto! Independentemente do que venha a acontecer, serás sempre meu filho.

Ele olhou para mim com lágrimas nos olhos.
- Em Massília...

- Arrependo-me do erro que cometi em Massília! Tu és meu filho, Meto. Eu sou teu pai. Perdoa-me.

- Papá!

Abracei o meu filho. Pela primeira vez desde Massília, um espaço do meu coração, que se havia tornado insensível e frio, agitou-se e ofereceu-se à vida. O alívio que senti era quase palpável, como se uma pedra irregular e pontiaguda que se tivesse alojado no meu peito houvesse sido extraída. Tinha aprendido a ignorar a dor para conseguir suportá-la mas, agora que a dor desaparecera, tomei consciência do fardo triturador e desgastante que tinha sido o sofrimento que infligira a mim próprio. Abracei a solidez tépida do corpo de Meto e rejubilei com o facto de ele ainda estar neste mundo, vivo e inteiro. Mas por quanto tempo mais? No Egipto, tinha perdido Betesda, para voltar a encontrar Meto; teria reclamado Meto para ter de o perder para sempre?

Meto recuou. Ambos respirámos fundo e, por instantes, baixámos os olhos que se haviam tornado tímidos com a emoção do momento. Pigarreei.

280- Não posso demorar-me. Precisamos de falar, e depressa. E lembra-te: não digas nada que não seja seguro ouvir-se. Estas paredes parecem de pedra maciça, mas pode haver alguém à espreita e à escuta.

- Não há nada que eu não possa dizer em voz alta, papá. Não tenho nada a esconder.

- Ainda assim... - Pensei nos sentimentos que me confidenciara no meu quarto, no dia em que deparara com o frasco de alabastro, nas dúvidas que exprimira em relação a César e ao sofrimento que ficava à passagem de César; se outro dos homens de César tivesse ouvido a nossa conversa, as palavras de Meto não poderiam ter sido apresentadas como indício de sedição? Agora que Meto era acusado de traição, tudo o que tivesse dito contra César seria escalpelizado da pior forma possível, pelo que não ousei aventurar-me por essa via.

Pela primeira vez, permiti-me considerar a possibilidade de Meto ser efectivamente culpado de ter atentado contra a vida de César. Essa hipótese não fazia sentido, a não ser que o ressentimento dele contra César fosse muito mais profundo do que me havia confidenciado. Seria possível que o veneno se destinasse a Cleópatra, com o intuito de pôr termo à influência que ela exercia sobre César, e que o plano lhe tivesse corrido terrivelmente mal? Olhei para o rosto de Meto, procurando descortinar a verdade nos olhos dele. Seria o meu filho um envenenador, que ainda por cima não dava conta do recado? No canto do meu coração que em tempos havia renunciado a ele, agitava-se uma semente de dúvida.

- Apolodoro encontrou o frasquinho na tua pessoa, Meto. Como é que uma coisa destas aconteceu?

- Não faço ideia, papá.

- Será necessária uma resposta melhor do que essa para satisfazer César.

- César devia ter a certeza de que eu estou a dizer a verdade! Depois de tudo aquilo por que passámos juntos, é absurdo que não confie em mim.

281- Talvez tenhas razão. Mas pensa, Meto. Apolodoro limitou-se a exibir o frasco, afirmando que o tinha encontrado no teu corpo? Ou o frasco estava efectivamente na tua pessoa?

Meto enrugou a testa.

- Lembro-me de ele o ter puxado, e quando olhei para baixo vi
o frasco com os meus próprios olhos, metido entre duas tiras do meu peitoral. Não queria acreditar no que via! Hoje de manhã, quando vesti a armadura, o frasco não estava lá.

- Para além de Apolodoro, mais alguém terá tido a oportunidade de o colocar entre a tua roupa?

Ele abanou a cabeça.

- Não vejo como. Mas, se foi possível tal coisa acontecer sem que eu me apercebesse, como poderemos descobrir quando ou quem o fez? Fiz um aceno de cabeça.

- Aquela ânfora de Falerniano - de onde veio?

- Estava guardada num dos navios de César que se encontra atracado no porto, juntamente com outros objectos pessoais dele. Esta manhã, bastante cedo, mandou-me ir buscá-la.

- Alguém sabia que ele planeava beber essa ânfora hoje?

- Acho que nem o próprio César sabia. Decidiu de um momento para o outro. Suponho que queria impressionar a Rainha.

- Quando foste buscar a ânfora, houve alguma coisa que te indcasse que tinham mexido nela?

- Não creio que alguém lhe tenha tocado desde que foi levada para bordo. Na verdade, tive bastante dificuldade em encontrá-la; estava soterrada num canto do porão, por trás de um monte de objectos saqueados à tenda de Pompeu em Farsalo - cadeiras desdobráveis, lamparinas, tapetes, colchas e afins. Não havia sinais de que a carga tivesse sido remexida. Quando por fim a encontrei, limpei-lhe o pó para me certificar de que se tratava do Falerniano que César havia pedido, e inspeccionei o selo, para verificar se estava intacto; inspeccionei-o com bastante cuidado. Depois disso, a ânfora esteve sempre na

282minha posse e nunca saiu do meu campo de visão. Se o que tinhas em mente era a possibilidade de alguém ter sabido de antemão que César fazia tenções de abrir a ânfora hoje e ter conseguido meter o veneno já dentro antes de a ânfora ser aberta, podes descartar esta hipótese. Não é concebível que alguém pudesse ter feito tal coisa... excepto, eventualmente, eu próprio.

- Meto! Estas paredes podem ter ouvidos. Não digas isso, nem mesmo a brincar.

- Por que não? Se alguém pretende acusar-me, o melhor é imaginarmos o discurso que os meus acusadores farão. E uma coisa é certa: a pessoa que dispôs da melhor oportunidade, talvez mesmo da única oportunidade, para envenenar a ânfora previamente fui eu. Mas não o fiz. Ninguém o fez. O selo estava intacto.

- Os selos podem ser violados. Ele abanou a cabeça.

- Compreendo que queiras explorar todas as possibilidades, papá. Mas o encadeamento lógico conduz directamente ao frasco de alabastro. O frasco estava lá, estava vazio, e nós sabemos que continha veneno.
- Franziu o sobrolho. - O que não sabemos é quando e como foi deitado no vinho, e se foi vertido para dentro da ânfora aberta, envenenando o Falerniano todo, ou se foi colocado só na taça que Cleópatra entregou a César e da qual obrigou Zoe a provar. De uma maneira ou de outra, não vejo como é que tal coisa pode ter acontecido sem nenhum de nós dar por isso. Eu próprio quebrei o selo e abri a ânfora; fui eu quem deitou o vinho na taça. Não consigo imaginar como foi possível deitar o veneno na ânfora; a não ser, claro está, que tenha sido eu a fazê-lo.
- Meto!

- Desculpa, papá. Mas o facto é que eu dispus da oportunidade, e não vejo como poderia qualquer outra pessoa tê-lo feito sem eu dar por isso.

- Nesse caso, talvez só tivessem envenenado a taça. Mas quando? Pensa retrospectivamente, a ver se conseguimos reconstituir a sequência

283dos acontecimentos pela mesma ordem. A Rainha disse a Merianis para ir buscar as taças de ouro. Merianis foi buscá-las. A Rainha mostrou uma delas a César, e estendeu-ta para a encheres com vinho da ânfora. Depois, entregou a taça a César mas, antes de este beber, mandou chamar a provadora. Zoe apareceu. A Rainha passou a taça de ouro a Merianis; Merianis despejou um pouco de vinho da taça de ouro para o recipiente de barro que Zoe tinha trazido consigo; Zoe bebeu do recipiente de barro e sucumbiu rapidamente ao veneno. É assim que recordas as coisas, Meto?

Ele anuiu com um aceno de cabeça. Eu franzi o sobrolho.

- E o que aconteceu ao Vinho que ficou na taça de ouro? Meto deteve-se a pensar.

- Merianis continuava com a taça na mão quando Cleópatra se abeirou de Zoe. Nessa altura, Cleópatra chamou Merianis que, pousando a taça, correu para a sua senhora. Trocaram umas palavras, em voz demasiadamente baixa para nós conseguirmos ouvi-las; e Merianis foi buscar Apolodoro.

- Quer dizer que Merianis pousou a taça; e o que foi feito dela depois?

Meto abanou a cabeça.

- Deve ter acabado por ser despejada, não fosse alguém beber dela. Sim, foi isso, recordo-me agora! Foi depois de tu teres abandonado a ilha, papá, com os homens que te escoltaram de regresso ao teu quarto. Nós permanecemos no terraço. Pouco depois, chegavam mais homens
- os que me trouxeram para esta cela; antes disso, porém, a Rainha disse a Apolodoro que despejasse o vinho que estava na taça novamente para dentro da ânfora...

- Bolas de Numa! Agora é que o vinho da ânfora ficou todo envenenado, tenha sido envenenado anteriormente ou não! Não deviam ter deitado nada na ânfora.

- Tem assim tanta importância, papá?

284- Pensa, Meto! Se apenas o vinho da taça dourada estivesse enveninado, mas o vinho da ânfora não estivesse, poderíamos provar que não tinhas sido tu a envenenar a ânfora e que o veneno tinha de ter sido posteriormente adicionado à taça - taça esta que nunca esteve nas tuas mãos! Mas nesta altura não há maneira de saber se a ânfora foi ou não previamente envenenada, uma vez que agora já o foi com certeza. Dizes que o vinho foi despejado a pedido da Rainha?

- Sim.

- E César nada fez para o impedir?

- César estava ocupado a fazer-me perguntas. Nenhum de nós prestou grande atenção ao que estavam a fazer à taça. Mas, agora que mo perguntas, recordo-me de ouvir Cleópatra dizer qualquer coisa sobre o facto de a taça estar poluída e de nunca mais ninguém poder voltar a beber por ela, e recordo-me de ter visto, pelo canto do olho por assim dizer, Apolodoro, despejar a taça para dentro da ânfora.
- A ânfora foi guardada?

Ele enrugou a testa.

- Suponho que sim. Sim, foi; lembro-me de ver Apolodoro voltar a tapá-la com a rolha de cortiça, depois de ter esvaziado a taça lá para dentro e, quando eu estava a ser levado para fora do terraço, creio que um dos homens de César a terá levado consigo, pelo que presumo que esteja à guarda de César. No entanto, como tu próprio disseste, já sabemos que contém veneno, que mais não seja porque o vinho que estava na taça foi despejado lá para dentro.

- Tens razão; não vejo como poderá a ânfora ser-nos útil. Nem vejo como é que tudo isto poderá ajudar-nos. Sobretudo, pensei, quando todas as provas circunstanciais apontam directamente para a tua culpa, meu filho.
- Não obstante, é impensável que um homem com a experiência e a lucidez de César tenha permitido que uma prova vital como a ânfora fosse inapelavelmente adulterada.

- Talvez não tenhas reparado, papá, mas as faculdades de raciocínio de César não estão no seu melhor quando ele está na presença da Rainha.

285- Meto! Guarda para ti esse tipo de comentários.

- Achas mesmo que aquilo que eu digo, ou penso, ou faço, tem alguma importância, papá? Isto é o meu fim. Não tentei envenenar César, mas serei punido por esse crime. Talvez haja alguma justiça nisto. Fiquei especado a ver aquele rapazinho gaulês que assombra os meus sonhos ser feito órfão e escravo. Não, não é verdade - participei na matança com a minha espada e, com o meu estilete, celebrei a chacina ajudando César a escrever as suas memórias. Agora, morrerei por uma coisa que não fiz. Ouves as gargalhadas dos deuses, papá? Em minha opinião, as divindades que controlam o Egipto são tão caprichosas e ardilosas como as nossas.

- Não, Meto! Não serás punido por uma coisa que não fizeste.
- Se isso divertir os deuses, agradar a César e for a contento da Rainha Cleópatra...

- Não! Eu descobrirei a verdade, Meto, e a verdade salvar-te-á. Meto riu-se sem alegria e enxugou uma lágrima.

- Ah, papá, tive imensas saudades tuas!
- E eu tuas, Meto.

286CAPíTULO XXIII

-
Compreendes que só permito isto porque César mo solicitou, não é verdade? - Sentada no trono, no átrio de recepções da ilha de Antirrodes, a Rainha olhava-me de alto. Fora visitá-la nesse mesmo dia, na companhia de Merianis, e tinha sido informalmente recebido; mas a atmosfera desta segunda visita era muito diferente. O chão de mármore em que me ajoelhei pareceu-me duro, e senti claramente uma frieza na sala, embora o sol brilhasse lá fora.

- Peço apenas para conversar com eles, Majestade.

- Apolodoro e Merianis são meus súbditos. Não tens o direito de os interrogar.

- O Verbo exprime uma intenção hostil, Majestade. Eu apenas desejo estabelecer a verdade...

- A verdade é evidente, Gordiano-chamado-o-Descobridor. Por razões que apenas ele conhece, o teu filho tentou envenenar uma pessoa - talvez César, talvez eu, talvez ambos. Se queres descobrir a verdade, interroga-o a ele.

- já questionei Meto, Majestade. Mas só questionando todos os que estavam presentes poderei estabelecer a sequência exacta dos acontecimentos...

- Basta! já te disse que te autorizo a fazê-lo, mas apenas porque César me pediu pessoalmente que te fizesse a vontade. Com quem desejas falar primeiro?

287- Com Merianis, julgo eu.

- Muito bem. Dirige-te então ao terraço. Ela já lá está.

Encontrei Merianis debruçada sobre o parapeito baixo, fitando a linha que os telhados da cidade recortavam no horizonte, do lado de lá das águas.

Voltou-se ao sentir a minha presença. A expressão sorridente que eu me tinha habituado a ver desaparecera. O seu rosto revelava preocupação.

É verdade o que dizem?

O que queres dizer com isso, Merianis?

Que o exército de Aquilas se dirige para a cidade. Que chegará dentro de poucas horas.

- Assim mo diz César.

- Nesse caso, o desfecho está próXIMo. A dança chegará ao fim. César será forçado a tomar partido. E seguir-Se-ão muitas mortes.
- O partido de César é a reconciliação entre o Rei e a Rainha, sem derramamento de sangue. Ainda parece acreditar que é possível que isto aconteça.

Merianis olhou para mim durante longos momentos, depois baixou os olhos.

- Não foi sobre isto que vieste falar-me.

- Não. Gostaria de compreender o que se passou esta manhã.
- Tu estavas presente. Viste. Ouviste,

- Tu também estavas presente, Merianis. O que viste tu? O que ouviste?

Ela voltou novamente os olhos para a cidade.

- Lamento o que está a acontecer ao teu filho, Gordiano.

- Por que razão o lamentas, se acreditas que ele tentou envenenar a Rainha?

Lamento por tí, Gordiano. Lamento que o Egipto tenha sido para ti ocasião de tantas tribulações.

288Procurei olhá-la nos olhos, mas Merianis persistia em manter o rosto desviado.

- Quando a Rainha decidiu mandar provar o Vinho, mandou-te buscar Zoe. Onde a encontraste?

- No quarto dela, contíguo aos aposentos privados da Rainha.
- Não estava nas cozinhas?

- Claro que não! Um provador não está autorizado a aproximar-se das cozinhas. Um provador está proibido de comer seja o que for cuja origem se desconheça. Zoe estava sozinha no quarto dela. Tal como eu, Zoe estava ao serviço do Templo de ísis.

- Também era uma sacerdotisa?

- Não, era uma escrava do templo. A vida dela fora consagrada à deusa. O seu dever de provar a comida da Rainha era um dever sagrado. O resto do seu tempo, passava-o em contemplação da deusa.

- O recipiente de barro que Zoe trazia consigo, de onde veio?
- Era a sua taça pessoal, em que mais ninguém podia tocar. Qualquer líquido que Zoe provasse para a Rainha teria de ser previamente servido naquela taça.

- Nesse caso, a guarda da taça constituía uma das obrigações de Zoe?

- Sim.

- E tu nunca lhe tocaste?

Merianis olhou-me finalmente nos olhos.
- Por que me perguntas tal coisa?

- Por que não respondes?

- Disseste à Rainha que isto não seria um interrogatório.

- Como sabes? Estavas presente, escondida por trás de uma cortina, quando eu estava de joelhos na sala de audiências da Rainha? Merianis voltou a olhar para as águas e não respondeu.

- Estavas! E depois saíste a correr para o terraço, para esperares por mim. - Abanei a cabeça perante esta mentira menor. - Isso é uma lágrima?

289Merianis limpou-a.

É por Zoe que choras?

Não. Zoe teve uma morte sagrada, Tornou-se merecedora da gratidão de ísis e foi-lhe concedida vida eterna. Invejo-a.

- Invejas mesmo, Merianis? Acho que tu fizeste o mesmo, se não mais, pela Rainha.

- O que queres dizer com isso?

- És-lhe muito leal. Há alguma coisa que te recusasses fazer por ela?

- Daria a minha vida pela Rainha!

Mas serias capaz,, de matar por ela? pensei., Ou de colaborar para que um homem inocente - o meu filho - fosse condenado à noi-te?

- Quando Zoe estava a morrer nos braços da Rainha, Cleópatra chamou-te para junto de si. O que disseram uma à outra?

- Estás a ir longe de mais, Gordiano! Não tens nada que me fazer perguntas sobre palavras trocadas em privado entre mim e a Rainha.
- Ela estava a dizer-te qualquer coisa, ou a pedir-te que fizesses qualquer coisa. Reparei na maneira como olhaste para Meto. Depois, foste buscar Apolodoro. O que te disse a Rainha, Merianis?

- Repetir palavras ditas pela Rainha em confidência seria cometer um sacrilégio. Nem o teu grande César poderá obrigar-me a fazer tal coisa!

- Não é César quem to pede. Sou eu. Merianis abanou a cabeça.

- Se eu pudesse salvar o teu filho, Gordiano...

- Então sempre se disse alguma coisa, alguma coisa que tu não podes revelar - algo que pode salvar Meto.

Merianis soltou um suspiro, endireitou os ombros e voltou-se para mim. Se se travara uma luta dentro dela, essa luta tinha chegado ao fim. Merianis afectava uma expressão serena e opaca, tão impenetrável como a da Esfinge.

290- Às vezes, os desígnios dos deuses são obscuros para nós, mortais, Gordiano, mas os justos submetem-se à sua vontade e aprendem a não duvidar. Não voltes a perguntar-me o que me disse a Rainha naquela ocasião.

- Por favor, Merianis...

-julgo que também desejas falar com Apolodoro. Segue-me. Atravessou o terraço e desceu uma série de degraus, até um recanto sombreado, junto às águas. Apolodoro estava sentado num banco de pedra, encostado ao tronco de uma palmeira, desbastando um pedaço de madeira trazido pela corrente. Olhou para mim com uma expressão taciturna e revirou o pulso. A faca pareceu-me deveras afiada.

Voltei-me para me despedir de Merianis, mas ela já tinha desaparecido.

Observei o bocado de madeira. Era suficientemente pequeno para lhe caber à-vontade na palma da mão. O mar tinha-lhe dado uma forma curiosa, sugestiva da cabeça de um leão. Com a faca, Apolodoro fazia sobressair esta semelhança.

- És um tipo muito inteligente - observei. Ele rosnou.

- Preferes que conversemos em grego?

- Falo latim perfeitamente - retorquiu ele, olhando-me com azedume.

Falava com uma pronúncia atroz, mas não fiz nenhum comentário.
- És oriundo da Sicília, ao que sei.

- Nasci lá. O Egipto tem mais a ver comigo.

- O que fez com que te juntasses à comitiva da Rainha? Ele encolheu os ombros.

- É uma longa história. Temos passado por muitas coisas juntos, a Rainha e eu.

- Não há dúvida de que ela confia bastante em ti. Devo confessar que a vossa relação me parece... um tanto ou quanto ambígua.

Ele empertigou-se.

291- O que queres dizer com isso?

- Não és como Zoe, um escravo. Nem como Merianis; não possuis como dizê-lo? - a compostura de um sacerdote. Não és um homem de armas, como Crátipo; e não és um eunuco da corte.

- Podes estar certo de que não sou! - Para o provar, fez um movimento discreto que dirigiu a minha atenção para a tanga dele; usava-a dobrada sobre o corpo de tal maneira, que evidenciava de forma convincente a diferença entre ele e um eunuco.

- Vou ser franco, Apolodoro. Em certa ocasião, o Rei sugeriu, na minha presença, que a tua relação com a irmã dele não é completamente decorosa.

- Ai sim? Segundo sei, dizem exactamente o mesmo a respeito do teu filho e de César. O que não faz disso uma verdade, ou faz? - Exibiu um esgar ordinário e lascou outra apara do bocado de madeira.

- É indesmentível que ela te trata muito bem.
- Como assim?

- Estás aqui sentado a preguiçar, sem obrigações que se vejam...
- Não sabes o que dizes! Quando a Rainha precisa de mim, nunca lhe falto; nunca lhe faltei, desde menina. Nos bons e nos maus momentos - e olha que no último ano têm sido sobretudo maus. Houve dias, no deserto, com o exército de Ptolemeu às canelas, em que até os mais calejados estiveram prestes a abandonar a esperança. Mas eu jamais! Servi de exemplo para os outros; e, se um homem precisasse de um pontapé no traseiro, dava-lho. Não, não sou sacerdote, mas sei em que acredito.

- Acreditas na Rainha?

- Por que não? Um homem tem de acreditar em alguma coisa. A Rainha tem o dobro da coragem e o triplo da astúcia de qualquer homem que eu tenha conhecido até agora. Tem génio, não sei se me faço entender. Até à data, nunca me cruzei com nada melhor neste mundo, incluindo o teu precioso César.

- E o Rei Ptolemeu?

292Apolodoro cuspiu para o chão.

- É tão inútil como aquele eunuco que manda nele e que o tem preso pelos tomates. E tu? Acreditas em alguma coisa?

- Acredito que o meu filho não envenenou o vinho de César. Apolodoro endireitou-se. Olhou para o bocado de madeira que tinha na mão, e atirou-mo. Eu apanhei-o com um movimento desajeitado, o que me valeu o cacarejar da sua gargalhada desagradável.

- Que me dizes? - perguntou.

Volteei-o na palma da mão. Apolodoro tinha imprimido ao leão uma atitude feroz, uma boca que rugia e presas exageradas.

- Faço disto desde os meus tempos de rapaz, em Siracusa. Ganhava a vida a vender este tipo de coisas como artefacto típico aos romanos abastados que iam visitar as suas Propriedades sicilianas. E agora, protejo a Rainha do Egipto. Quem diria!

- És um tipo inteligente; ágil com os dedos. Nos teus tempos de rapaz em Siracusa, também aprendeste a executar truques?

- O que queres dizer com isso?

- Os rapazes que andam pela marginal de Siracusa e que abordam os visitantes para lhes vender bugigangas, as vezes metem os dedos por onde não devem. Certo dia, um malandrim siciliano roubou-me a bolsa das moedas, e eu tinha acabado de lhe pagar uma soma considerável por uma coisa de nada. A bolsa era pesada, volumosa, e contudo ele tirou-ma com tanta habilidade, que eu não dei por nada.

Apolodoro encolheu os ombros.
- Há um truque para se fazer isso. Acenei com a cabeça, anuindo.

- E também deve haver um truque para fazer o oposto, não?
- O que queres dizer com isso?

- Dedos ágeis podem surripiar uma bolsa sem que o proprietário sinta a mínima coisa. Dedos ágeis podem igualmente pespegar qualquer coisa no corpo de um homem - e a vítima nunca é o mais avisado dos dois.

293Apolodoro pôs-se de pé e sacudiu uma madeixa de cabelo da cara. Aproximou-se mais e inclinou-se sobre mim a ponto de eu lhe sentir a respiração sobre a testa. Tinha um hálito doce, como se tivesse estado a mastigar cravinhos.

- Acho que já respondi a perguntas suficientes.

- Não é preciso exaltares-te. A Rainha não te disse para seres franco comigo, a pedido de César?

- Acompanho-te a subir a escada. Vai ter com os homens de César e diz-lhes para te levarem de volta ao continente.

- Estava à espera de que fosses tu a fazê-lo.

- Preferia ver-te afogado. - Deu-me um encontrão, suficientemente forte para me fazer tropeçar no primeiro degrau. Ao subir, senti a respiração morna dele na nuca.

Escoltou-me até ao terraço, e preparou-se para voltar para trás.
- Apolodoro! - chamei.

- Sim? - A uns passos de distância, ele voltou-se com ar carrancudo.

- Não me sinto ofendido pelo facto de exibires o recheio da tua tanga perante mim de maneira tão alarve, mas também não fiquei especialmente impressionado. É uma pena que te sintas tentado a aumentar aquilo que a natureza te deu.

- O que estás tu para aí a balbuciar? - Franziu as sobrancelhas e olhou para baixo, para o meio das pernas, onde a tanga minúscula pendia de forma exagerada para além do possível. - Em nome do Hades, como...? Mas eu não...

Meteu a mão dentro do tecido avolumado e tirou a cabeça de leão entalhada; lançou-me um olhar irado e malévolo e arreganhou-se. Fiz um floreado com os dedos.

- Ao longo dos anos, eu também aprendi um ou dois truques de malandrim. Se eu fui capaz de meter esse objecto em sítio tão íntimo sem tu dares por isso, concluo que é perfeitamente possível que o frasco de alabastro tenha sido metido no corpo de Meto, por alguém que se

294encontrava aqui no terraço, à vista de todos, e sem o conhecimento de Meto. A única questão que se põe é: foste tu, Apolodoro? Ou terá sido outra pessoa? E qual era o móbil de quem o fez?

Apolodoro levantou o braço. Eu baixei-me e ouvi a cabeça de leão assobiar ao passar-me ao lado da orelha. A trajectória impeliu-a muito para além do perímetro do terraço. Aterrou na água com um respingo audível.

- ”Das águas veio, às águas torna” - recitei. Tinha quase a certeza de que era uma citação de Eurípedes, mas de que peça? Fiquei a ver a pequena cabeça de leão a balançar nas águas, e tive uma súbita intuição, como se tivesse atingido, inesperadamente e sem estar preparado para tal, a cúspide de uma grande revelação. Que associação teria aquele pedaço de madeira a balouçar nas águas despoletado no meu espírito, e por que motivo era significativo? Qual fogo-fátuo, um clarão de discernimento pairava sobre mim, aflitivamente próximo, mas inalcançável. Se ao menos conseguisse agarrá-lo, tinha a certeza de que seria capaz de compreender tudo o que tinha a ver com o envenenamento da taça na manhã de hoje. Quase o tive na mão - mas o clarão extinguiu-se, tal como o bocado de madeira balouçante que, de repente, desapareceu por entre as ondas.

Olhei por cima do ombro, e vi que Apolodoro se tinha ido embora.

295CAPíTULO XXIV

O exército comandado por Aquilas chegou à cidade nessa mesma noite. Foi com uma mistura de emoções que o povo de Alexandria descerrou os portões da cidade para deixar entrar os soldados. Muitos achavam que os intrusos romanos, agora em franca inferioridade numérica, seriam certamente expulsos. Mas a que preço, e com que resultado? Uma cidade é a pior das arenas para travar uma batalha. A falta de espaço contraria a estratégia; todos os confrontos ficam reduzidos ao nível de combates de rua. O fogo e a destruição ameaçavam as pessoas e a própria cidade; ninguém desejava ver Alexandria em chamas. E se, depois de grande derramamento de sangue e de intensa devastação, César e os seus homens fossem aniquilados ou expulsos, o que teriam os Egípcios ganhado com isso? Poderiam achar-se de regresso à estaca zero, com um país que permanecia dividido entre os dois irmãos de sangue real, cada um empenhado em apertar o pescoço ao outro.

Tendo recuado para uma zona defensável do recinto real, e mantendo o Rei Ptolemeu e o respectivo séquito essencialmente como cativos, as forças de César tinham cedido a tarefa de manter a ordem na cidade a Aquilas e ao seu exército heterogéneo. De acordo com todas as fontes, os distúrbios e as pilhagens prosseguiam em muitas zonas de Alexandria. Aquilas dividia as suas atenções entre a preparação para montar um cerco às forças de César e o controlo da populaça. No que diz respeito à desregrada turba alexandrina, uns tinham saudado intensamente

296a chegada das tropas de Aquilas, chegando mesmo a juntar-se a elas, enquanto outros, leais a Cleópatra, os viam como um exército ocupante, dificilmente preferível ao de César, pelo que desafiavam abertamente a sua autoridade sempre que tinham oportunidade para isso.

Violentamente espartilhada entre todos estes poderes em conflito, volátil até nos seus melhores momentos, Alexandria parecia estar à beira de um precipício em chamas, prestes a mergulhar no mais completo caos.

Que consequências teria esta crise para Meto? Pelo menos por ora, parecia que César se distraíra do exercício de atribuir culpas ao meu filho - e ainda bem porque, até ao momento, eu não tinha conseguido descobrir maneira de provar a inocência dele.

Com o novo ímpeto suscitado pela presença de um exército ameaçador, os eventos sucediam-se rapidamente. Para surpresa e alívio de muitos no palácio, César anunciou que se estabelecera novo acordo entre o Rei e a Rainha. Para celebrar a ocasião, haveria um banquete no grande átrio de recepções. Foi-me solicitado que estivesse presente.

A câmara reverberava com a música de flautas, trombetas, tambores e címbalos. Era certamente uma das composições do Flautista que a pequena orquestra tocava quando os guardas me conduziram ao meu lugar, num dos cantos, bastante longe dos canapés dispostos sobre o estrado, onde César tinha assento, flanqueado de um lado pela Rainha e do outro pelo Rei. Potino estava sentado ao lado de Ptolemeu. Ao lado de Cleópatra, sentava-se Merianis, com Apolodoro ali perto, de pé, a observar atentamente tudo o que se passava.

Havia guardas postados a todo o perímetro da câmara; eram todos romanos. Por consentimento mútuo, tanto os guardas do Rei como os da Rainha tinham sido banidos. César assumiria a responsabilidade pela protecção de ambos; em certa medida, César mantinha os dois irmãos cativos. O Rei e a Rainha haviam depositado a sua confiança nele, pelo menos por ora, e os destinos dos três entrelaçavam-se.

297Viam-se raparigas circulando de canapé em canapé, servindo vinho aos convivas. E rapazes percorrendo o átrio com travessas de prata, oferecendo iguarias. Um cantor juntou-se aos músicos e recitou uma longa balada em grego sobre um grupo de exploradores que subira o Nilo em busca da mãe do rio, deparando com inúmeras maravilhas ao longo do percurso.

À minha volta, as pessoas entretinham-se a conversar, quer inclinando-se para a frente nos canapés dispostos em círculo, quer reclinando-se para se aproximarem dos canapés Vizinhos, mas ninguém falava comigo. Notando a minha toga romana, os egípcios olhavam-me com desconfiança; os oficiais romanos, sabendo quem eu era, evitavam-me, por receio de serem contaminados com a desventura de Meto. Estando sozinho, arrebitei as orelhas para ouvir o que diziam aqueles que me rodeavam.

- É evidente que ele não sabe para onde se virar - dizia um cortesão egípcio a outro. Ambos pareciam ser bastante novos, embora se torne por vezes difícil estimar a idade de um eunuco. - Lembras-te da petulância com que se apresentava quando aqui chegou, inchado de orgulho com a vitória que havia conseguido em Farsalo, convencido de que poderia refazer o Egipto com um simples estalar de dedos? Apresentaram-lhe a cabeça de Pompeu dentro de um cesto e, desde então, tem andado a bater-se para conseguir manter a sua própria cabeça à tona. Agora, com a chegada de Aquilas, César percebeu que o jogo terminou. Só espera conseguir sair com vida de Alexandria!

Um oficial romano que ouvira a conversa debruçou-se sobre as costas do canapé em que estava reclinado e interrompeu-os.

- Na verdade, não podias estar mais enganado.

- Sobre quê? - perguntou o cortesão, repuxando o lábio.

- Sobre César. Este banquete é mais uma demonstração do controlo absoluto que ele tem sobre a situação. Interpreta este banquete como uma boda. O Egipto é a nova esposa de Roma; se se mostrar insolente, será posta no lugar com uma sonora bofetada; se, pelo contrário,

298se mostrar dócil e obediente, será presenteada com uma sonora...

- Seu romano ordinário! - explodiu o eunuco. A animosidade da troca de palavras parecia prestes a alastrar. Encolhi-me.

O oficial franziu o sobrolho.

- Que lindo que ficas quando te zangas. Se calhar és tu que estás a precisar de uma valente e sonora...

Os dois eunucos guinchavam às gargalhadas. O romano atirou a cabeça para trás e fez coro com eles. Apercebi-me de que afinal já se conheciam, e de que eram, no mínimo, amigos. Estava à vista que a reclusão e a incerteza que se viviam no palácio tinham ocasionado relacionamentos inesperados entre romanos e egípcios.

Ao estrado, acabara de chegar uma rapariga com novo jarro de vinho. Estabelecera-se um protocolo segundo o qual a Rainha seria a primeira a ser servida, seguindo-se o Rei, e por último César; claro que, antes de qualquer deles beber, seria servida uma taça à provadora que, presumo eu, teria sido seleccionada e aprovada pelos três. Tratava-se de uma rapariga jovem e bonita, semelhante à falecida Zoe, possivelmente outra escrava do templo de ísis. A provadora estava sentada num canapé colocado defronte e a um dos lados do estrado, discretamente arredado mas suficientemente à mão, sem nada que impedisse a linha de visão entre o casal real e ela própria, de maneira que cada travessa ou jarro que ela provasse, sobrevivendo à prova, pudesse ser de imediato passado ao Rei e à Rainha, sem eles os perderem de vista.

A escrava encarregada de os servir verteu uma língua de vinho do jarro para o recipiente de barro da provadora; a provadora levou o recipiente aos lábios e engoliu.

Passou-me uma visão diante dos olhos. A taça que eu segurava estremeceu-me nas mãos.

- Então foi assim que a coisa foi feita! - murmurei.

Os meus olhos desViaram-se da provadora para Merianis e senti um aperto no coração, um misto de raiva e de remorso. Tinha de transmitir

299quanto antes a minha súbita revelação a César. fazê-lo implicaria o fim de Merianis, e talvez o fim de Cleópatra. Qual teria sido a intenção delas? Qual das duas era mais culpada? Seria possível que Merianis tivesse agido à revelia da sua Rainha? Caberia a César apurar as respostas a estas perguntas; contudo, independentemente do que ele viesse a descobrir por meio de torturas e de interrogatórios, e independentemente dos pretextos que os culpados pudessem invocar, certamente que nem a mui celebrada clemência de César cobriria o perdão do logro perpetrado naquele dia em Antirrodes, Não seria Meto a cair sob a alçada da severa justiça romana; eu acabara de descobrir uma maneira de provar a inocência dele.

Levantei-me cambaleante, com as pernas a tremer. Compus-me e avancei direito ao estrado, atravessando a câmara a abarrotar de gente. Cleópatra foi a primeira a reparar em mim. Lançou-me um olhar demolidor que tornava inequívoco que, em sua opinião, eu não tinha nada que estar ali. Merianis, apercebendo-se do desprazer da Rainha, seguiu-lhe o olhar e teve um ligeiro sobressalto ao ver-me, acabando por baixar os olhos; ter-se-ia apercebido do que estava prestes a ser revelado? Quando Ptolemeu me viu, esboçou um sorriso intrigado; teria ouvido alguma coisa sobre o envenenamento em Antirrodes e a prisão de Meto, ou teria César conseguido ocultar-lhe essa informação? A resposta a esta pergunta tornou-se evidente assim que olhei para Potino: o olhar frio e avaliador que me dirigiu deixou-me ciente de que o Rei estava inteiramente ao corrente da minha situação.

Por último, também César reparou em mim. Sorria, em resposta a um gracejo de Ptolemeu, mas o sorriso desvaneceu-se assim que me viu. No espelho do seu rosto, vi quão transtornado estaria o meu semblante. Eu era o mensageiro que, numa peça, comunica a notícia que deitará por terra as expectativas de todos. Fixando em mim um olhar resoluto, César ergueu as mãos, indicando aos guardas - que haviam convergido abruptamente de ambos os lados do estrado para ver o que eu queria - que recuassem.

300Parei ao chegar à base do estrado e ergui os olhos para ele. Um burburinho tinha alastrado pela câmara, à medida que os convivas davam conta da minha abordagem, e da reacção dos que se encontravam no estrado.

- Tens alguma coisa para me dizer, Gordiano?

- Tenho, cônsul. Mas não aqui. Se for possível falar contigo em privado... - Lancei um olhar na direcção da Rainha e de Merianis.
- O assunto que me trazes não pode esperar, Gordiano?

- Se eu estivesse em posição de dizer ao cônsul quem envenenou o vinho em Antirrodes, o cônsul desejaria que o fizesse esperar? Baixei a voz o mais que pude, mas era impossível impedir que os que ladeavam César ouvissem as minhas palavras. Senti os olhos do Rei e da Rainha recaírem sobre nós, e César também deve tê-los sentido.
- Aproxima-te mais, Gordiano.

Subi para o estrado.

- Se pudéssemos falar em privado... Ele abanou a cabeça.

- O objectivo desta ocasião festiva toma precedente sobre tudo o resto, Gordiano, incluindo quaisquer notícias que possas ter para me comunicar. Estou prestes a anunciar uma paz gloriosa no Egipto. Não interromperei o banquete, nem mesmo por isso. Se desejares, aproxima-te mais e diz-me o que tens a dizer ao ouvido.

Dobrei um joelho diante dele. César inclinou-se para a frente e baixou a cabeça.

- Meto está inocente, cônsul. Posso prová-lo, aqui e agora, se mo permitires.

- Como?

- Manda trazer a ânfora de Falerniano que Meto levou para Antirrodes. Manda provar o vinho...

- Para matar outra bela escrava do templo?

- A provadora não morrerá, porque a ânfora nunca chegou a ser envenenada. Eu próprio provarei o vinho, se desejares.

301César recuou, apenas o suficiente para poder olhar-me nos olhos.
- Que dizes, Gordiano?

- O vinho que se encontra na ânfora não foi envenenado. César meditou por momentos.

- No entanto, a uma ordem da Rainha, o vinho da taça de ouro foi de novo deitado na ânfora...

- O vinho contido na taça de ouro que a Rainha entregou a César também não estava envenenado.

César franziu o sobrolho.

- E, não obstante, Zoe, a escrava do templo, morreu.

- Morreu porque a taça dela, o recipiente de barro pelo qual ela, e somente ela, bebia, e que se quebrou no chão quando ela caiu, foi envenenada. Essa taça, e apenas essa taça, foi envenenada! Recordas-te como as coisas se passaram? Quando Merianis foi chamá-la, Zoe trouxe a sua própria taça...

- E Merianis encheu essa taça com o vinho que estava na taça de ouro.

- Mas o vinho não estava adulterado. O veneno já se encontrava na taça de Zoe, onde fora posto sem o conhecimento de Zoe.

- Por quem?

- Talvez pela pessoa que foi chamá-la - disse eu, embora me custasse a acreditar que Merianis fosse capaz de semelhante perfídia a sangue-frio.

- Mas o frasco de alabastro foi posteriormente encontrado na posse de Meto.

- O frasco foi colocado nas roupas de Meto por Apolodoro. E quem foi chamar Apolodoro? - Mantive os olhos baixos, mas César olhou por cima de mim, na direcção de Merianis.

- Queres dizer que estavam ambos envolvidos - Merianis e Apolodoro?

- No mínimo esses dois - repliquei, pensando numa terceira pessoa, mas não me atrevendo a pronunciar o seu nome.

302- Mas por quê? Com que objectivo?

- Sobre isso, cônsul, não tenho a certeza. Mas pensa no seguinte: Meto não confiava na Rainha; Meto andava exasperado com a... influência... que ela exercia sobre ti. A Rainha - quero dizer, aqueles que lhe são próximos - poderia querer desacreditar Meto. E não havia melhor maneira de o conseguir do que fazer com que ele parecesse culpado de um crime contra o Cônsul.

César olhou para mim com uma expressão grave.

- Aquilo que sugeres é monstruoso, Gordiano. Sem a designares, acabaste de implicar determinada pessoa numa conspiração que tinha por objectivo defraudar-me. Se isso for verdade, o objectivo deste banquete é, ipso facto, negado. Serei forçado a reconsiderar quem deve herdar o trono do falecido Rei, e se esse trono deve ser partilhado. - Olhou na direcção de Ptolemeu e suspirou. - Tendo em conta quem comanda o exército que ocupa Alexandria, ser-me-ia certamente mais fácil optar simplesmente...

A voz de César foi diminuindo de tom. Pensei que estivesse perdido em pensamentos mas ao seguir a direcção do seu olhar, reparei que mais alguém se aproximava do estrado. Deve ter sido esta a cena que eu fiz, pensei, ao olhar para o rosto de Samuel, o barbeiro de César. O homenzinho contornava os canapés de jantar, resoluto embora ligeiramente trémulo, desviando ansiosamente o olhar de um rosto para outro, como se tivesse engolido qualquer coisa extremamente amarga.
- O que será agora? - murmurou César.

Samuel avançava apressadamente em direcção ao estrado. Os guardas olharam para César de modo a receber instruções, e recuaram ao sinal que este lhes fez.

- O que pretendes, Samuel?

- Senhor, tenho de falar contigo imediatamente. - Lançou um olhar a Potino, que franziu o sobrolho. - Em privado...

César olhou para mim de viés.

303- Parece que tens um gémeo nesta noite, como os Gémeos. - Voltou-se para o barbeiro. - Aproxima-te, Samuel. Gordiano ocupa um dos meus ouvidos. Tu podes ficar com o outro.

O sujeitinho alçou-se com algum esforço para cima do estrado e correu para o seu senhor. Ajoelhou-se e meteu um fragmento de papiro na mão de César. Enquanto César lia, Samuel sussurrava-lhe ao ouvido. O barbeiro falava a uma velocidade frenética, em tom demasiadamente baixo para eu poder ouví-lo, e César segurava o papiro numa posição que não me permitia lê-lo, embora tenha conseguido captar, de relance, alguns caracteres gregos. As notícias fizeram com que a cor se esvaísse do rosto de César. Antes do aparecimento de Samuel, o semblante de César parecera-me grave, mas a expressão que agora se lhe estampava no rosto eriçou-me os pêlos da nuca.

César baixou o papiro. Ergueu a mão na direcção de Samuel, indicando que já ouvira o suficiente.

- Potino - disse, olhando a direito. Falara baixo e calmamente, mas houve qualquer coisa no tom em que o fez que me gelou o sangue.
- Cônsul? - Potino enrugou a testa.

- Aproxima-te, Potino.

O eunuco pigarreou. A voz tremia-lhe.

- O camareiro-mor do Rei do Egipto não é um servo, que possa ser convocado por qualquer pessoa, que não o Rei; nem mesmo o cônsul de...

- Potino, aproxima-te! - A voz de César soou como um trovão. O eunuco levantou-se. Ptolemeu olhou de Potino para César, e novamente para Potino. Durante um breve momento, vi confusão no rosto do Rei, prontamente substituída pela máscara de impassibilidade de que ele tanto gostava.

Potino aproximou-se de César, lenta e cautelosamente, como uma pessoa se aproximaria de um leão.

- O que deseja o cônsul? César estendeu-lhe o papiro.

304- Foste tu que escreveste estas palavras, camareiro-mor? Potino esboçou um esgar sobranceiro.

- O camareiro-mor tem por hábito ditar documentos; a escrita propriamente dita é executada por um escriba...

- A não ser que o conteúdo da carta seja excessivamente sensível para ser confiado ao escriba de maior confiança - ou escutado pelos muitos espiões que ouvem por trás das portas deste palácio.

Potino olhou para Samuel e depois para César.

- julgo que o papel de mestre-espião não é estranho ao próprio cônsul.

César lançou um olhar afectuoso a Samuel.

- De vez em quando, os meus homens tecem gracejos à custa de Samuel. Chamam-lhe timorato; dizem que se assusta com a própria sombra. Mas essa natureza amedrontada fez de Samuel um homem deveras observador. Há quem zombe da sua pequena estatura; mas também essa característica tem as suas virtudes, pois ajuda um homem a deslocar-se de um lado para outro sem ser detectado e, por vezes, até a esgueirar-se por fendas entre paredes.

Admites, pois, que este patife tem estado a espiar-me.

Samuel limita-se a velar pela segurança do seu senhor. Não precisa de instruções minhas. Mas, sim, Samuel tem vindo a observar-te, Potino. Está ao corrente dos teus movimentos. Observou-te a escrever esta carta que, a pedido de Samuel, alguns dos meus homens capturaram das mãos do teu mensageiro. O mensageiro pode ser torturado para divulgar a origem da carta - em alternativa, podes simplesmente confessar que foste tu quem a escreveu, Potino.

- Mentiras! A criatura inventou esta elaborada falsidade. Traiu-te, cônsul. Faz com que te exponhas ao ridículo.

- Não me parece, Potino. Se um homem não pode confiar no seu barbeiro, em quem poderá confiar? - César voltou a estender a carta a Potino. - Toma! Lê-a em voz alta!

305Potino pegou no papiro. Ficou especado a olhar para ele e cambaleou ligeiramente para a frente e para trás, como se estivesse prestes a desmaiar. Olhou desesperadamente para Ptolemeu.

- Majestade!

O Rei fitou-o com o semblante carregado.

- Faz o que te mandou o cônsul, camareiro-mor.
- Lê a carta! - ordenou César.

Potino teve um sobressalto e obedeceu.

- ”Para Aquilas, comandante das forças do nosso legítimo Rei, de Potino, camareiro-mor, como podes asseverar pelo selo que fecha esta carta: Saudações.” Vejam! O selo foi quebrado; a cera desapareceu. Não há nada que prove...

- Continua a ler, Potino - rugiu César. - Continua a ler e não pares enquanto não tiveres pronunciado a última letra, ou ordeno aos meus homens que te trespassem por todos os lados.

A um gesto de César, um dos guardas espetou a ponta da lança nas costas de Potino. O eunuco guinchou.

- Por favor, cônsul! Muito bem, eu leio. ”Embora tenha aconselhado o Rei a fazer um compromisso que satisfizesse o invasor romano, ainda que apenas para salvaguardar as aparências, apercebo-me agora de que todos os compromissos redundarão em desastre. Temos de agir, e temos de o fazer rapidamente. Farei o que puder dentro do palácio, mas os nossos inimigos estão bem guardados, sobretudo depois de uma tentativa fracassada de envenenamento levada a cabo por um desconhecido.” Vês, cônsul? Esta carta prova que eu nada tive a ver com o recente atentado contra a tua vida; não faço ideia...

- Continua a ler!

Potino soltou outro guincho e contorceu as costas; pela mancha vermelha que se espalhou no seu manto, percebi que a lança tinha feito sangue. Ele arquejou e prosseguiu a leitura.

- ”Farei o que puder... para resolver sozinho este problema. Enquanto isso, tens de te preparar para travar uma batalha contra os inimigos

306que mantêm refém o nosso Rei. Em circunstância alguma poderá a vida do Rei ser posta em perigo ...” Aqui está, Majestade, a prova da minha lealdade para contigo. Não queres ordenar a este romano que chame os mastins dele?

Ptolemeu dirigiu a Potino um olhar impenetrável.
- Continua a ler, camareiro-mor.

Potino estremeceu violentamente. Faltava-lhe a voz,

- ”Em circunstância alguma poderá a vida do Rei ser posta em perigo. Contudo, por muito lamentáveis que sejam, é provável que a ocorrência de baixas dentro do palácio seja... inevitável. Na eventualidade de acontecer o pior, tomei medidas para que a irmã do Rei, Arsínoe, seja clandestinamente transportada para fora do palácio; ser-te-á entregue pouco antes de receberes esta carta. Mantém-na a salvo uma vez que, para conservarmos a nossa legitimidade perante a populaça, é necessário que pelo menos um dos membros da linhagem real sobreviva à batalha que se avizinha. Faz o que for necessário para eliminar a falsa Rainha e expulsar o invasor estrangeiro.” Majestade, o que pretendo dizer é que o próprio César poderia matar-te, desesperado pela pressão exercida por Aquilas! Nunca fui senão o que o teu mais leal...

- Silêncio! - César levantou-se e arrancou a carta das mãos trémulas de Potino. - Este documento expõe claramente a tua intenção de me matares e de assassinares a Rainha. Mais, exorta Aquilas a atacar o palácio, com manifesto menosprezo pela segurança do Rei Ptolemeu, e em total contravenção do acordo de paz entre o Rei e sua irmã. Esta carta faz de ti um potencial assassino, um conspirador e um traidor, Potino.

O eunuco lançou-se aos pés de Ptolemeu.

- Majestade, não te apercebes do que está a passar-se? César fez de ti seu refém e impôs-te este acordo, a fim de poder levar mais longe as suas ambições. Tomou o partido de Cleópatra, desde o momento em que a conheceu. E a razão é simples: ela pode dar-lhe um filho. Quando isso acontecer, César declarar-se-á Rei do Egipto, com Cleópatra por

307Rainha e o filho de ambos por herdeiro, e isso será o teu fim, Majestade, e o fim da tua dinastia! O Egipto será governado por romanos e as imagens dos teus antepassados serão substituídas por imagens de César. Ptolemeu olhou para o eunuco do alto do seu longo nariz.

- César é meu amigo.

- Se crês verdadeiramente que assim é, Majestade, testa a amizade que ele te vota. Abandona o palácio. Junta-te a Aquilas e ao teu exército. Deixa-me acompanhar-te...

- O eunuco está apenas a tentar salvar o pescoço - rugiu César. Ptolemeu levantou-se abruptamente, com tal ímpeto que empurrou Potino. O eunuco rastejava aos pés do Rei.

- Esqueceste-te do teu lugar, camareiro-mor - muito embora, a partir deste momento, tenhas deixado de ocupar esse cargo, pelo que passarei a tratar-te simplesmente por Potino. Estás convencido de que eu sou uma criança, que me submeto facilmente à tua vontade. julgas que és o governante secreto do Egipto, e eu uma simples marioneta que se senta no trono.

- Majestade, onde foste buscar essas ideias? O romano envenenou-te o espírito...

- Silêncio! Achas que o meu espírito é tão fraco, que César pode moldá-lo a seu bel-prazer? Tens-me em tão baixa conta? Sim, julgo que tens. ”Lamentável” - não foi essa a palavra que utilizaste na tua carta para descrever a minha morte, caso Aquilas devastasse o palácio, e me matasse no decurso do assalto? Pois lamentarás muitíssimo mais a tua própria morte, Potino.

- Não, Majestade! Ouve-me, por favor...

- Não há mais nada a dizer, Potino! Desinvisto-te do título e do cargo. Retiro-te todos os privilégios da casa real, agora e para toda a eternidade. Pelos crimes que cometeste contra mim, serás executado e o teu corpo será profanado; a tua carne servirá de repasto às aves carnívoras. Serás amaldiçoado pelos deuses; não só o teu corpo, como também o teu ka, perecerão para sempre, e será como se Potino nunca tivesse existido. Este é o fim que espera os traidores.

308Potino soltou um gemido e ocultou o rosto.

César levantou-se e colocou-se ao lado de Ptolemeu.

- Majestade, uma vez que baniste o eunuco, e uma vez que ele também cometeu um crime contra mim, tendo conspirado para me matar, peço-te um favor: permite que seja eu a julgá-lo e a determinar o castigo que merece.

- Não! - Potino olhou para cima, para ambos, com uma expressão lastimável. - O romano pretende arrancar-te até esta prerrogativa, Alteza. É César quem te trata como uma criança...

- Silêncio, Potino! - O Rei dirigiu-lhe um olhar furioso, voltando-se depois para César. - Porque César mo pediu, e porque César é o meu mais querido amigo, ofereço este criminoso a César, que poderá fazer o que bem entender com a criatura abjecta. Os romanos gabam-se muito do seu amor à justiça, não é verdade, César? Talvez possas dar-me uma lição sobre esta matéria. O que pensas fazer a Potino?

César baixou os olhos para o eunuco agachado, depois voltou-se por breves instantes para a Rainha, que tinha assistido em silêncio a toda esta cena, com uma expressão tão vazia como a do irmão nos seus momentos mais impenetráveis. Quando desviou o olhar dela, os olhos de César encontraram-se durante longos momentos com os meus, e percebi que o que lhe dissera não havia sido esquecido.

- Samuel! Vai aos meus aposentos, onde encontrarás uma ânfora, claramente identificada com umas letras grandes: ”Falerniano - abrir somente na presença de Gneu Pompeu, o Grande”. Traz-ma imediatamente.

O barbeiro assentiu com a cabeça, levantou-se num pulo e largou a correr.

César olhou para mim e, ao ver a minha expressão, aproximou-se e disse em voz baixa.

- Estás com um ar intrigado, Gordiano.
- Que espécie de jogo preparas tu, cônsul?

- Não se trata de um jogo, mas de um teste. Em tua opinião, a ânfora de Falerniano não chegou a ser envenenada, nem ela nem a taça de

309ouro; Merianis despejou o veneno no recipiente de barro da provadora, e Apolodoro colocou o frasco de alabastro no corpo do teu filho para o incriminar. Se assim for, o Falerniano não estava, nem está, adulterado, pois mandei-o selar novamente com cera antes de a ânfora sair da minha vista. Estás seguro da tua alegação, Gordiano?

É a única explicação, cônsul.

A não ser, evidentemente, que Meto tenha envenenado a ânfora caso em que o Falerniano matará quem o beber.

Abanei a cabeça.

- Isso não é possível, cônsul.

- Veremos. Tinha pensado que esta noite seria uma ocasião de alegria e divertimento, uma oportunidade para celebrar a reconciliação e a paz. Mas parece que estou destinado a descobrir quem são os meus amigos e quem são os meus inimigos. - Lançou um rápido olhar a Ptolemeu, seguido de outro a Cleópatra.

Samuel reapareceu, ofegante, com a ânfora nos braços.

César inspeccionou o novo selo, com a marca do seu próprio anel. Satisfeito, acenou a Samuel, que cortou o selo.

- Serve uma taça, Samuel. Aqui tens, utiliza a minha, uma vez que tenho a certeza de que ninguém a viciou.

O barbeiro despejou uma medida de vinho na taça.
- Levanta-te, Potino!

O eunuco pôs-se de pé, com uma expressão onde se lia uma mistura de terror e desafio.

- Cônsul! - sussurrei. - O que estás tu a fazer? Isto não é justiça romana, Isto é um puro capricho.

- Os deuses são caprichosos. Se queremos emulá-los, por vezes, também nós temos de o ser. Para além do mais, é uma forma de determinarmos a verdade, Gordiano; e tu és invariavelmente favorável a isso, não és?

A Rainha avançou, de cenho franzido.
- O que tencionas fazer, César?

310Merianis tinha os olhos postos no colo e puxava nervosamente os dedos. Apolodoro estava de pé, de braços cruzados e queixo esticado.

- Sim, César - interveio Ptolemeu. - Por que não mandas estrangular o traidor, aqui e agora?

- Porque pretendo proporcionar a Potino uma alternativa, que poderá permitir-lhe viver. Tenho na mão uma taça de vinho Falerniano, Potino, que veio da reserva pessoal de Pompeu. O Falerniano é um vinho lendário; é o melhor de todos os vinhos envelhecidos de Itália. Contudo, esta ânfora pode - ou não - conter um veneno mortal. Sim ou não? Esta é a pergunta que gostava de ver respondida. Em vez de o testar numa pobre escrava, ofereço-to a ti, Potino.

Tu rebaixas-me, romano!

Enganas-te, Potino; ofereço-te a oportunidade de saíres deste imbróglio com vida - o que é bastante mais do que tu mereces. Se o vinho estiver nas devidas condições, e se não fores afectado pela sua ingestão, libertar-te-ei e permitirei que te juntes ao exército de Aquilas. Gordiano tomará uma segunda taça, e esta noite todos nós partilharemos um excelente Falerniano. Porém, se o vinho estiver envenenado...

- Mentes! Esteja o vinho envenenado ou não, mandar-me-ás matar antes de eu conseguir sair desta câmara.

- Sou um homem de palavra, eunuco! Decíde-te. Aceitas a taça, ou não?

Pelo movimento frenético dos olhos de Potino, percebi o dilema que lhe assolava o espírito. Enquanto estivesse na posse das suas faculdades e de uma voz para implorar, poderia conceber algum estratagema para apelar à misericórdia de Ptolemeu; mas, assim que pegasse na taça, não haveria retorno. Eu próprio fui tomado por um súbito tremor de dúvida; a lógica do argumento que expusera a César era indesmentível, disso não tinha eu quaisquer dúvidas, e ainda assim... Lembrei-me do clarão incipiente de intuição que sentira ao interrogar Apolodoro, de alguma forma associada à peça de madeira que ele transformara na cabeça de um leão; esse momento de claridade, por muito fugaz e

311inconclusivo, que tivesse sido, parecera-me absolutamente genuíno e, contudo, não tinha qualquer relação com o que se passava neste momento. Estaria eu enganado quanto à ânfora? Quase desejei que Potino recusasse tocar-lhe.

Mas a hipótese de liberdade com que César lhe acenara acabou por levar a melhor sobre ele. Pegou na taça, contemplou por instantes o reflexo do seu rosto na superfície do vinho, e bebeu-o de um só trago.

Atentei nas expressões dos que estavam no estrado e vi que todos o observavam com a respiração em suspenso. Olhei por cima do ombro; os convidados, reclinados nos seus canapés, pareciam espectadores silenciosos de uma peça, concentrados no clímax. No canto mais afastado da câmara, avistei os dois cortesãos egípcios e o romano que os provocara jocosamente; estavam os três sentados muito juntos no mesmo canapé, interrompida a folia, mudos e quedos ante o drama que se desenrolava no estrado.

Potino devolveu a taça a César com um gesto brusco e manteve-se erecto, voltando a cabeça para um lado e para outro para olhar com uma expressão de desafio aqueles que o rodeavam. Passou a língua pelos lábios, rangeu os dentes e respirou fundo. Cerrou os olhos com força por momentos, abriu-os novamente, sorriu e olhou para César.
- Pronto, romano. Estás satisfeito?

- Não sentes nada?

- Apenas a satisfação que advém de ter bebido um Vinho deveras excepcional. É uma pena que o Grande não tenha tido a oportunidade de o saborear! E agora? Honrarás a palavra dada, César? Vais deixar-me partir?

César inclinou ligeiramente a cabeça para trás e observou Potino demoradamente, posto o que se voltou para mim. Não parecia estar satisfeito.

- Gordiano, parece que tinhas razão. A ânfora não foi envenenada; apenas a taça da provadora. A desagradável ocorrência a que assistimos em Antirrodes foi devida às acções de alguém em quem eu pensara

312poder confiar, uma pessoa que se me tornara íntima. - Os olhos de César começaram a deslocar-se na direcção da Rainha mas, antes que o seu olhar pousasse sobre ela, Potino emitiu um ruído que captou a sua atenção.

O som vinha das profundezas da garganta do eunuco, um rugido que emergiu como um resfolegar cavo. O homem foi bruscamente sacudido, como se lhe tivessem espetado uma lança num ponto sensível, e deu um passo atrás, levando as mãos à barriga.

- Não! - sussurrou. - Isto não está a acontecer! - Fez uma careta e voltou-se para o Rei. - Viborazinha ingrata! Tu e a tua irmã estão bem um para o outro, e ambos merecem a ruína que César vos tem reservada!

Caiu de joelhos, dobrando-se sobre si mesmo, acometido por convulsões.

- Maldito sejas, César! Que morras como Pompeu morreu, cortado às postas e coberto de sangue! - Caiu de lado, puxando os joelhos para o peito. No momento em que tinha o derradeiro estertor, o Rei deu um passo em frente e assentou-lhe um valente pontapé, que fez com que Potino rebolasse para fora do estrado. Flácido e sem vida, o corpo do eunuco caiu pesadamente no chão.

Olhei para César, que fitava o corpo morto de olhos muito abertos e sem pestanejar. O seu rosto parecia feito de cera; a praga do eunuco tinha-o enervado. Por fim, estremeceu, sacudindo o feitiço. Voltou-se para mim e lançou-me um sorriso magoado.

- Bem Gordiano, parece que estavas enganado. Os companheiros da Rainha estão inocentes. A responsabilidade pelo que aconteceu em Antirrodes é, afinal, do teu filho.

Eu abanei a cabeça.

- Não, cônsul, tem de haver outra explicação...

- Silêncio! O Rei desfez-se hoje de um traidor que conseguira conquistar a sua estima. Seguirei o exemplo do Rei. Também eu me livrarei do traidor que acolhi no meu seio. Meto será executado amanhã.

313Recuei cambaleando, tão siderado como se César me tivesse fulminado com um raio. Com a cabeça a andar à roda, olhei para Cleópatra, Embora a sua fisionomia permanecesse impassível, tive a impressão de que a Rainha sorria.

314CAPíTULO XXV

- César foi gentil em conceder-nos esta última conversa - disse Meto. Estava sentado na enxerga, olhando fixamente para as pedras húmidas da parede que tinha diante de si. Pela janela gradeada, chegavam-nos os ruídos da manhã quente de Verão: o chiar dos barcos ancorados, os gritos das gaivotas esfaimadas, as palavras gritadas que os marinheiros de César trocavam uns com os outros, certificando-se de que estava tudo em ordem. Aquilas mantinha o controlo nominal de praticamente toda a cidade, incluindo a ilha de Faros e o respectivo farol, bem como o pequeno porto de Eunosto, a sul da passagem que ia dar à ilha do Faros, mas o domínio de César sobre o grande porto mantinha-se inalterado.

- Foi gentil? - Abanei a cabeça, que estava cheia de teias de aranha. Tinha passado uma noite miserável, insone, esforçando-me em vão, por encontrar maneira de salvar o meu filho. - ”César foi gentil em conceder-nos esta última conversa”. Leal Meto! Fiel a César até à última, mesmo quando ele se prepara para pôr termo à tua vida.

- Que outra coisa pode ele fazer, papá? Alguém tentou envenená-lo em Antirrodes. Não fui eu; mas todos os indícios apontam para mim. César não pode permitir que semelhante acção permaneça impune.

- Mas qual é a vantagem de punir um homem inocente - um homem tão inabalavelmente leal como tu? Quando penso nos sacrifícios que fizeste por ele, nos riscos terríveis que correste...

315- Tudo de minha livre vontade. Eu escolhi servir César. Ele concedeu-me esse privilégio. Não te esqueças de que comecei a minha vida como escravo, papá. Eu nunca me esqueço disso.

- Tudo isso mudou quando eu te adoptei.

- Não, papá. O passado nunca desaparece por inteiro. Fizeste de mim teu filho e um cidadão; alteraste completamente o rumo da minha vida, e estou mais grato por isso do que possas imaginar. César confiou em mim, atribuiu-me um papel na realização do grande esquema das coisas e nutriu por mim uma espécie de amor - e também estou grato por isso. A minha vida foi muito mais rica do que poderia ter sonhado quando era um rapazinho - tanto mais rica quanto eu não tinha direito nem motivo para ambicionar todas as maravilhas que me aguardavam. Nunca as considerei como um dado adquirido! Mas tu renegaste-me...

- Meto, perdoa-me! Foi o pior erro que alguma vez cometi. Se pudesse voltar atrás e apagar esse momento, fá-lo-ia.

Meto encolheu os ombros.

- Fizeste o que achaste que tinhas de fazer. E agora, César fará o que tem de ser feito. Talvez ele esteja verdadeiramente convencido que eu tentei envenená-lo; ou então a alternativa é, muito simplesmente, inaceitável para ele - que, por razões que só ela conhece, a Rainha me tenha incriminado. César tem de agir; e, se tiver de escolher entre Cleópatra e eu, escolherá Cleópatra; e quem sou eu para objectar? Eu não passo de um escravo que teve a boa fortuna de se elevar acima da sua condição inicial; ela é a Rainha do Egipto, a herdeira dos Ptolemeus e, a fazer fé nos Egípcios, igualmente uma deusa. O destino dela está escrito nas estrelas; do ponto de vista do grande esquema das coisas, o meu destino não tem importância nenhuma.

- Não, Meto! Não aceito essa teoria. A tua vida tem tanta importância como a de qualquer outra pessoa. Passei a vida inteira a chafurdar nas porcarias feitas por esses homens e mulheres ditos ”grandes”. Não passam de criminosos e loucos mas, porque perpetram os seus crimes a tão grande escala, esperam que nos inclinemos perante eles em grande

316
reverência. ”Os deuses amam-me”, dizem, para justificar os crimes que cometem e atrair homens para as suas causas; contudo, se os deuses os amam assim tanto, por que têm mortes tão horríveis? Vê o que aconteceu a Pompeu, esventrado como um peixe nas praias do Egipto. Vê o horrível fim que tiveram Milo, Clódio, Marco Célio, Catilina, Domício Aenobardo, Cúrio - e a lista não acaba aqui. Crê no que te digo, Meto, abater-se-á igual destino sobre Cleópatra e, sim, até sobre o teu bem-amado César.

- Não me digas que tens a capacidade de prever o futuro, papá disse Meto, com uma gargalhada. - Voltámos à nossa velha discussão, ao pomo da discórdia que te levou a renegares-me. Em tua opinião, a devoção cega que eu tenho por César é excessiva; contribuo de livre vontade para a porcaria, como lhe chamas, que ele deixa atrás de si. E se calhar tens razão. Eu próprio partilho das tuas dúvidas. E partilho do teu ressentimento quanto ao facto de o mundo ser como é - rude, cruel e cheio de falsidade. Mas, em última análise, papá, eu escolhi tomar parte desse mundo, abraçar as lides de guerreiro e de espião, e agora pagarei o preço dessa escolha, tal como César pagará o dele, mais cedo ou mais tarde, se for verdade o que dizes. - Meto ergueu os olhos e analisou a parede. - Mas pergunto-me, papá, se farás bem em dar voz a esses pensamentos sediciosos. Tu próprio me advertiste de que falássemos com discrição, dada a porosidade das paredes do palácio.

- Que importa isso agora? César tomou uma decisão. E César é o Rei de Roma, de facto, ainda que não de nome, e estamos todos à sua mercê.

- Achas que me permitirá a escolher a maneira como morrerei? Gostaria de me deixar cair sobre a minha espada, como um romano ilustre. Ou obrigar-me-á a beber da ânfora, para pagar pelo crime de ter envenenado o vinho? Tal como obrigou Potino a beber, e a morrer, diante daquela gente toda.

317Estremeci e lutei para reprimir as lágrimas.

- César não o obrigou a beber - essa é, precisamente, a circunstância que torna a morte dele tão terrível! Se tivesses visto César ontem à noite, Meto, recostado no alto daquele estrado, dispensando justiça à toa, como qualquer potentado asiático decadente. Ele contou-me que tinha aprendido umas lições de governação com o Rei Nicomedes, e sente-se com disposição para as transmitir ao jovem Ptolemeu. Que tipo de exemplo deu ele ao tratar Potino daquela maneira? É certo que o eunuco não era melhor que os outros - não passava de um conspirador sem escrúpulos, com queda para o assassínio -, mas também não era pior do que eles; podia merecer, ou não, a morte de um traidor, mas ver César escarnecer dele daquela forma, pressionando-o a apostar a própria vida por capricho, para satisfazer a curiosidade de César a extravagância daquela atitude revoltou-me. E César apercebeu-se de que houve uma certa indecência na morte de Potino. Devias ter visto a cara dele quando o eunuco o amaldiçoou!

- César não acredita em maldição.

- Nem numa maldição lançada por um moribundo com o seu último sopro de vida?

Meto abanou a cabeça.

- Com maldição ou sem ela, a partir do momento em que um homem morre, já nada há a recear por parte dele. O que foi que o próprio Potino disse ao Rei, para justificar o plano que haviam congemiinado para assassinar Pompeu? ”Os mortos não mordem.”

Fiz um gesto de assentimento com a cabeça e, de repente, endireitei-me e arquejei, sentindo um arrepio percorrer-me o corpo - exactamente igual ao arrepio de intuição que sentira no dia em que olhara para a peça de madeira entalhada por Apolodoro, a balançar para cima e para baixo sobre as ondas. Desta vez, porém, em vez de se ter desvanecido antes que eu pudesse fazer sentido dela, a faísca de discernimentO irrompeu na minha consciência como uma lava flamejante, inescapável e indesmentível.

318Dei meia volta e bati com o punho na porta trancada.
- Carcereiro! Chega aqui, imediatamente!

Meto levantou-se da enxerga.

- Papá, não te podes ir já embora. Decerto que temos muito mais que dizer...

- E di-lo-emos, Meto, mais tarde, porque este não é, afinal, o nosso último encontro. Carcereiro! Deixa-me sair! Tenho de pedir imediatamente para falar com César!

Fui encontrar César vestido, não de cônsul, de toga, mas sim com o traje militar de imperador, com o famoso penacho vermelho a agitar-se suavemente à brisa marítima que corria na divisão altaneira, vinda do terraço que ficava de frente para o farol. Respirava-se naquela sala a atmosfera tensa e premente que é típica da tenda do comandante num campo de batalha; era em circunstâncias idênticas que me recordava de ter visto César no acampamento à saída de Brundísio, imediatamente antes de expulsar Pompeu de Itália, rodeado pela sua comitiva de jovens tenentes, todos zunindo perguntas e relatórios, e correndo de um lado para outro

Ao ver-me, César ergueu a mão, pedindo silêncio ao oficial que, momentos antes, tinha conseguido captar a atenção do seu comandante.
- Queiram desculpar-me, oficiais, mas preciso de um momento a sós com este cidadão.

Todos os homens que se achavam naquela divisão sabiam quem eu era - o pai do condenado Meto -, pelo que recebi olhares de reprovação de alguns deles, bem como olhares de simpatia por parte de outros. Todos à uma, os homens pegaram nas suas coisas, enrolando mapas e documentos, e retiraram para a antecâmara. Mesmo depois de as portas terem sido fechadas, ainda me era possível ouvir o vozear das palavras apressadas que trocavam entre si.

Olhei para César.

319- Rebentou alguma crise, cônsul? Ou será mais adequado tratar-te por Imperador?

- É uma espécie de crise. Aquilas mandou avançar parte do seu exército e espalhar tropas por vários pontos da cidade, preparando-se, aparentemente, para atacar as nossas posições. É possível que já tenha tido notícia da morte de Potino e que esta seja a sua reacção; como é possível que este ataque já estivesse planeado desde há muito. Seja como for, temos de estar preparados para o pior.

- Achas que Aquilas atacará sem uma ordem directa do Rei Ptolemeu?

- A ver vamos. Quando chegaste, estávamos justamente a discutir várias estratégias alternativas para fazer chegar notícia da vontade do Rei ao conhecimento de Aquilas, sem pôr em perigo, nem a vida do Rei, nem as dos nossos mensageiros. Aquilas assassinou dois enviados que mandei anteriormente ao seu encontro.

- Não tinha conhecimento disso.

- O homem não passa de um rufia! Faz-me lembrar os piratas que me raptaram quando eu era novo.

- E todos sabemos o que lhes aconteceu. - A crucifixão dos piratas era um capítulo seminal na lenda do início da carreira de César.

- Aquilas assassinou Pompeu com a sua própria espada. Nada me daria mais satisfação do que cometê-lo ao mesmo destino que o cúmplice dele, o falecido Potino.

- Pompeu foi assassinado com o consentimento do Rei - disse eu se não mesmo por sua instigação. O Rei também será punido?
- Não sejas ridículo, Gordiano. Assim que certas influências nefastas forem afastadas, o Rei estará verdadeiramente em posição de mostrar quem é; não tenho a mínima dúvida de que ele e a irmã virão a estar entre os mais fortes aliados de Roma. - Ao mesmo tempo que pronunciava estas palavras, foi claro para mim que ia assumindo forma na sua mente uma ideia contrária à que exprimia; mas tínhamo-nos desviado bastante do assunto que me trouxera à presença dele. De súbito, César impacientou-se com a nossa conversa.

320- Como podes ver, Gordiano, estou ocupadíssimo; a única razão por que te concedi esta audiência foi a premência do teu pedido, e o facto de me teres garantido que este encontro seria frutífero. Mandei chamar as pessoas que solicitaste que estivessem presentes; devem estar a chegar a qualquer momento. Disseste que tinhas chegado a uma conclusão inequívoca sobre o que se passou em Antirrodes, e que Meto está completamente inocente. Espero que sejas capaz de provar o que dizes.

- Aqueles que mandaste chamar conhecem a verdade, embora fragmentariamente. Bastará que confessem aquilo que sabem para que César conheça a verdade completa.

O oficial que estava de guarda à porta correu para César e falou-lhe ao ouvido.

- O primeiro dos que me pediste que chamasse acaba de chegar
- disse César e, voltando-se para o oficial: - Manda-o entrar.

Um instante depois, as portas abriram-se e Para dar entrada a um sujeito baixo, magro e seco de carnes; tinha o cabelo menos bem tratado e a barba menos aprumadamente aparada do que da primeira vez que o vira, a bordo do navio de Pompeu. O cativeiro - primeiro como prisioneiro do Rei, agora como prisioneiro de César - não assentava bem a Filipe, o liberto de Pompeu. Transformara-se num homem desgastado e desmazelado, com um olhar transtornado, que me fez temer pelo seu equilíbrio mental.

Quando me viu, franziu o sobrolho. O seu olhar tornou-se ainda mais tresloucado.

- Lembras-te de mim, Filipe? - perguntei. - juntámos lenha e gravetos para a pira funerária do teu antigo senhor.

- Claro que me lembro de ti. Lembro-me de tudo o que se passou nesse dia amaldiçoado. Se ao menos conseguisse esquecê-lo! - Baixou os olhos. - Vejo que também caíste nas garras de César.

Lembrei-me de que Filipe me tinha tomado por um dos veteranos de Pompeu, de tal maneira tolhido pela dor ao ver o Grande ser morto,

321que decidira saltar borda fora e nadar para terra; e que fora por esta razão que confiara em mim. Não Vi necessidade de lhe revelar a minha verdadeira identidade.

- De ora em diante, estamos todos nas mãos de César - repliquei olhando de soslaio para César. - Filipe, preciso desesperadamente da tua ajuda. Da mesma maneira que te ajudei naquele dia, na praia, a prestar os ritos devidos ao Grande, retribuis-me agora o favor?


- O que precisas de mim?

Inspirei fundo. Na noite anterior, em que estivera absolutamente convencido do cenário que tinha exposto a César e que ilibava Meto do papel de envenenador, os factos haviam-me demonstrado que estava afinal atroz e redondamente enganado. E se estivesse prestes a incorrer no mesmo erro? Era possível que tanto a intUIção como o raciocínio me tivessem abandonado; talvez até fosse possível que Meto fosse, afinal de contas, culpado do crime e estivesse novamente a fazer-me passar por tolo, como fizera em Massília. Reparei na expressão apreensiva que se desenhara no rosto de César e apercebi-me de que, naquele momento, devia estar com um aspecto tão tresloucado como Filipe. Tentei controlar o medo e a incerteza que subitamente me assolaram.

- Filipe, estiveste com o Grande em Farsalo, não estiveste?

- Estive. - Olhou de soslaio para César e pude sentir o ódio e a repulsa que nutria pelo homem que destruíra o seu amado senhor.

César interrompeu-nos.

-já interroguei este homem sobre tudo o que tinha a ver com Farsalo, com o assassínio de Pompeu e com tudo o que se passou entre os dois acontecimentos.

- Não duvido, César, mas julgo que há uma questão que escapou às tuas perguntas. Na noite em que jantámos juntos, qual foi o teu comentário sobre o interrogatório de Filipe? Que ele tinha sido cooperante em certos aspectos, reticente noutros. julgo saber uma das coisas relativamente às quais se mostrou relutante em falar.

322César dirigiu-me, e depois a Filipe, um olhar penetrante.
- Prossegue, Gordiano.

- Filipe, quando as tropas de Pompeu foram derrotadas em Farsalo, esta derrota representou um choque tremendo para o Grande, não foi?
- Foi.

- Mas creio que não se tratou de uma surpresa completamente inesperada. Pompeu sabia que César era um adversário temível; César ja o expulsara de Itália, e esmagara os aliados dele em Espanha. Pompeu deve ter considerado a possibilidade de vir a confrontar-se com uma derrota. Tenho razão?

Filipe lançou-me um olhar reservado, mas acabou por acenar afirmativamente com a cabeça.

- Em Farsalo - continuei -, a batalha começou ao nascer do dia, com o ataque dos dardos de César à linha da frente de Pompeu. Foi um combate sangrento e renhido mas, com o tempo a passar e o Sol a aproXiMar-se do zénite, os homens de Pompeu entraram em pânico e a linha desfez-se. A infantaria de Pompeu foi cercada. A cavalaria cedeu e bateu em retirada. A cavalaria de César foi atrás deles e chacinou muitos dos homens de Pompeu, obrigando os restantes a debandar, enquanto o corpo principal da infantaria de César convergia para o acampamento de Pompeu. Diz-se que o Grande, confiante na vitória, se retirara para o seu pavilhão ao meio-dia a fim de tomar uma refeição - um repasto verdadeiramente sumptuoso, servido em travessas de prata, acompanhado pelos mais requintados vinhos, um verdadeiro banquete de vitória. Foi com este cenário que César deparou ao entrar no acampamento e assentar pé no pavilhão de Pompeu, acabando por descobrir que o Grande tinha desaparecido momentos antes. É assim que reza a história que corre em Roma.

”Mas eis o que penso sobre o que se terá passado: quando Pompeu se retirou para o seu pavilhão, não albergava qualquer ilusão de ter vencido a batalha. Muito pelo contrário; permaneceu junto ao seu exército tempo suficiente para assistir à volta da maré, e regressou ao acampamento

323ciente de que tudo estava perdido. Retirou-se para o seu pavilhão, à espera do fim inevitável. Reuniu os seus camaradas mais íntimos
- incluindo tu, Filipe - e mandou servir imediatamente um faustoso banquete. Ordenou a um dos seus subordinados de maior confiança
- não terá sido a ti, Filipe? - que fosse buscar uma ânfora muito especial de vinho Falerniano, que tinha estado a guardar justamente para aquela ocasião, e somente para aquela ocasião.

”Recordas-te do que me disseste, Filipe, quando choravas a morte de Pompeu na praia? Lembro-me das tuas palavras, embora na altura, não as tivesse compreendido inteiramente. ”Ele devia ter morrido em Farsalo”, disseste tu. ”Não desta forma, mas no momento e da forma que escolheu. Quando soube que tudo estava perdido, decidiu-se a fazê-lo.” O que foi exactamente que ele te disse, Filipe?

Filipe olhou-me com firmeza, mas olhava para além de mim, para a recordação desse dia terrível, em Farsalo.

- O Grande disse-me: ”Ajuda-me, Filipe. Ajuda-me a não perder a coragem. Perdi o jogo, e não tenho estômago para enfrentar o rescaldo. Que este local seja o meu fim, que os livros de história digam: ”O Grande morreu em Farsalo”.

Eu acenei com a cabeça.

- Mas, no último momento, faltou-lhe a coragem; não foi isso que me disseste, Filipe? Pompeu, o Grande, titubeou e fugiu, tão depressa, que tu tiveste de correr atrás dele para o acompanhar. - Abanei a cabeça.
- Ouvi as tuas palavras, mas interpretei-as mal. Pensei que estivesses a dizer-me que ele se encontrava a meio do seu banquete de vitória, um banquete prematuro, quando se apercebeu de que tudo estava perdido, e tentou, debalde, reunir coragem para pegar na espada e morrer em combate, acabando por lhe faltar a coragem; e que, por isso, optara por desaparecer a cavalo. Mas a verdade é que, mesmo antes de o banquete ter início, Pompeu sabia que estava acabado. Com efeito, foi só depois de o banquete estar servido que ele te pediu que o ajudasses a arranjar coragem para morrer como tinha previamente escolhido morrer,

324caso o destino se voltasse contra ele. Não se tratava de um banquete de vitória; mas de uma festa de despedida! A ânfora cuidadosamente selada de vinho Falerniano que arrastava atrás de si, de campo de batalha em campo de batalha, para ser aberta somente na presença do próprio Pompeu - o que tornava essa ânfora tão peculiar, Filipe?

Filipe abanou a cabeça, recusando-se a responder, mas César tinha começado a compreender.

- Pompeu fazia tenções de morrer em momento por ele escolhido
- disse César. - Não deixando-se cair sobre uma espada - mas envenenado?

Anuí com um aceno de cabeça.

- Na companhia dos seus amigos mais íntimos, rodeado por atavios de riqueza e luxúria, e com uma excelente refeição no estômago. Nisto, porém, os inimigos infiltraram as linhas defensivas, e tu próprio, cônsul, apareceste a cavalgar pelo acampamento fora. Pompeu viu-se perante um dilema cuja resposta não podia ser adiada: captura e humilhação, ou uma morte rápida e certeira por ingestão de veneno - o mesmo veneno que a mulher conservava à mão para o caso de, também ela, se ver envolvida numa catástrofe semelhante. Bastava a Pompeu abrir o Falerniano, beber uma taça do vinho, e abandonar-se nos braços do esquecimento. Era este o plano de Pompeu. No entanto, quando a crise sobreveio, foi incapaz de o levar por diante. Por medo da morte? Talvez. MasJulgo que a sua vontade de viver mais um dia, mesmo que miserável e derrotado, foi, pura e simplesmente, mais forte do que tudo o resto. Correu para fora da tenda, montou no primeiro cavalo que encontrou e fugiu, escapando por uma unha negra. E tu, Filipe, apressaste-te a segui-lo, deixando para trás a ânfora selada de Falerniano.

César olhou para Filipe.
- É verdade?

Filipe baixou os olhos e rangeu os dentes. O seu silêncio era a resposta suficiente.

César abanou a cabeça.

325- E pensar que, se eu fosse da mesma têmpera que Pompeu, aproveitando todo e qualquer pretexto para me entregar à luxúria e à satisfação dos meus apetites, em vez de comandar os últimos assaltos da batalha, poderia ter-me sentado à mesa de Pompeu, provado da sua travessa de veado e enchido uma taça do seu Falerniano - era um banquete de vitória! - e teria morrido ali mesmo, envenenado. Como poderia ter morrido em qualquer ocasião em que decidisse provar o Falerniano de Pompeu!

Anuí com um aceno de cabeça.

- E o Grande estava perfeitamente ciente disso. Comentou o facto comigo, quando me chamou ao barco. ”César terá o castigo que merece”, disse-me, ”quando menos esperar. Num momento estará vivo, e no momento seguinte - morto como o Rei Numa!” Pensei que quisesse dizer que tinha infiltrado um assassino entre os teus homens, ou que estivesse simplesmente a delirar - mas afinal referia-se ao Falerniano que sabia ter caído nas tuas mãos e que esperava que tu decidisses abrir e beber a qualquer momento.

- Esperança de que este conspiradorzeco também devia partilhar. Hein, Filipe? Sabias do Falerniano, mas não me avisaste. Estavas à espera do dia em que eu resolvesse bebê-lo, morrendo com a morte que Pompeu foi demasiadamente cobarde para reclamar para si próprio?

- Estava! - gritou Filipe. - Para sua vergonha, o Grande descobriu-se incapaz de se suicidar, e optou por vir para o Egipto - o que veio a dar no mesmo. Pergunto-me muitas vezes se ele não terá vindo para ao Egipto justamente por saber que estes monstros acabariam com ele, aliviando-o do fardo de pôr termo à sua própria vida. Porém, as acções dos homens sobreViVem-lhes, e restava-me uma esperança
- que, mais cedo ou mais tarde, mensageiros irrompessem a correr pelo palácio, gritando a boa nova: ”César morreu! Ninguém sabe como, ninguém sabe porquê - estava a beber uma taça de vinho e, subitamente, caiu morto! Teria sido envenenado? Oh, deuses!”. - O homemzinho fervilhava de sarcasmo e de fúria.

326- E assim teria acontecido - observou César friamente - se eu tivesse bebido o vinho naquele dia em Antirrodes. Teria morrido, fulminado por um morto!

- ”Os mortos não mordem” - citei eu. - Foi o que Potino disse sobre Pompeu. Mas estava enganado. Mesmo morto, Pompeu poderia ter exercido a sua vingança final sobre ti, César. Acontece que o Falerniano matou a provadora da Rainha, em vez de te ter matado a ti; e a confusão que essa morte gerou por pouco não te levava a ordenares a morte de Meto - que, como já terás compreendido, estava inocente. César olhou para mim de viés.

- E como explicas a presença do frasco de alabastro na pessoa de Meto - um frasco que sabemos que continha veneno e que estava vazio quando o encontrámos?

Com um sentido de oportunidade tão perfeito, que mais parecia um actor numa peça, o soldado que guardava a porta de César aproximou-se para o informar de que as outras pessoas que havia mandado chamar já tinham chegado.

- Leva esta criatura daqui para fora - ordenou César, referindo-se a Filipe - e diz aos outros que entrem.

327CAPíTULO XXVI

Apolodoro foi o primeiro a entrar, seguido por Merianis, ambos de semblante carregado. Olhei de relance para César e vi no seu rosto o mesmo tipo de expressão, que deu lugar a outra, difícil de discernir
- seria de consternação, de resignação, de apreensão? -, quando Cleópatra entrou no compartimento.

Eu havia pedido a César que convocasse os subalternos sem a Rainha e, se possível, sem que ela tivesse conhecimento do encontro; não obstante, ali estava ela. Deslizou pela sala adentro, de traje real vestido
- vestes púrpuras e douradas -, com a coroa uraeus de cabeça de abutre na cabeça. Era uma presença muito diferente da presença descontraída que projectara nos seus domínios em Antirrodes, e ainda mais diferente da sedutora que tinha emergido do tapete, nesta mesma sala. Nem nas ocasiões em que a vira no átrio de recepções, com o traje de Estado, em eventos formais, Cleópatra possuíra o ar de majestade que irradiava neste momento.

Lançou-me um olhar furtivo e coruscante, e depois dirigiu a César um olhar mais suave.

- O cônsul deseja interrogar novamente os meus súbditos? César pigarreou.

- Gordiano sempre conseguiu esclarecer o que aconteceu em Antirrodes.

Cleópatra arqueou uma sobrancelha.

- Estará essa descoberta relacionada com o liberto Filipe, com quem me cruzei na antecâmara?

- Talvez. Neste momento, basta dizer que a ânfora de Falerniano tinha sido envenenada antes de ser aberta. Poderemos discutir os pormenores noutra ocasião mas, por ora, esse facto ficou suficientemente demonstrado.

A Rainha acenou lentamente com a cabeça.

- O que nos deixa a braços com uma questão muito estranha.
- Sim. A que propósito foi encontrado um frasco de alabastro vazio na pessoa de Meto quando, afinal de contas, esse frasco nada tinha que ver com o envenenamento?

- Uma situação curiosa.

- Deveras curiosa, e assaz perturbadora, Majestade. Mas estou convencido de que um dos presentes poderá esclarecê-la.

Um silêncio abateu-se sobre a sala. Finalmente, a Rainha tomou a palavra.

- Não será a explicação mais simples igualmente a mais provável? Dizes que a ânfora já estava envenenada. Mas não poderá ter sido duplamente envenenada? O frasco foi encontrado em Meto; o frasco estava vazio. Quer-me parecer, pois, que Meto obteve o frasco de Gordiano com ou sem o conhecimento do pai - e decidiu utilizá-lo, talvez contra ti, César, ou talvez para se ver livre de nós dois. Foi buscar a ânfora a teu pedido, e levou-a para Antirrodes; viu nisto uma oportunidade para fazer uso do veneno, pelo que também o trouxe consigo. Quando abriu a ânfora, destapou o frasquinho e despejou o conteúdo para dentro da ânfora. Nenhum de nós se apercebeu disso porque, muito simplesmente, nenhum de nós estava a prestar-lhe atenção. Dizes que a ânfora já estava envenenada. Pois parece que Meto agiu na ignorância desse facto, mas nem por isso com menos malícia. O crime que cometeu não se torna menos hediondo por ser redundante. - A Rainha pronunciou esta afirmação mantendo a postura erecta, a voz baixa e firme, e um olhar resoluto. Nem Cícero, no Fórum, perante um grupo de juízes

328

329cépticos, teria conseguido expor a sua argumentação com maior autoridade.

César, porém, não ficou convencido.

- O que Vossa Majestade acaba de dizer faz todo o sentido, mas a explicação não me satisfaz. - Voltou-se para Merianis, que baixou os olhos e mordeu o lábio. Naquele momento, a jovem exuberante, sorridente e bela que me saudara aquando da minha chegada ao palácio parecia estar longe, muito longe, fazendo-se substituir por uma figura destroçada, cujo olhar cabisbaixo e postura furtiva me recordaram Filipe. Desde a morte de Zoe em Antirrodes que eu não via um sorriso no rosto de Merianis. De cada vez que a via, ela parecia-me sempre mais apavorada.

- Talvez tu, Merianis possas apresentar uma explicação mais convincente - disse César,

Ela estremeceu, apesar de não estar frio na sala. Ergueu a cabeça apenas o suficiente para lançar um olhar interrogativo à Rainha, que lhe respondeu com um aceno de cabeça quase imperceptível.

- Eu confesso - disse Marianis. A voz tremia-lhe.

- Explica-te - retorquiu César.

- Fiz o que fiz... para magoar Meto. Tratou-se de um acto vergonhoso, indigno de uma sacerdotisa de ísis.

- Continua - disse César.

- Sim, Merianis, continua - disse a Rainha, em tom severo. Eu abanei a cabeça.

- Cônsul, quando te pedi que chamasses os súbditos da Rainha, não era isto que tinha em mente. Isto é...

- Silêncio, Gordiano. Sou eu quem faz as perguntas. Continua, Merianis. Explica-me o que fizeste naquele dia.

- Não tive nada a ver com o envenenamento. Porém, quando Zoe morreu e a Rainha me chamou para junto de si...

- Sim, recordo-me disso - interrompeu César. - Conversam as duas em murmúrios.

330- A Rainha limitou-se a mandar-me chamar Apolodoro.

- Mas conversaram uma com a outra durante um bom bocado, e com visível perturbação.

- Eu - eu estava chocada com o que acabara de acontecer. Fiquei confusa, transtornada. A Rainha teve de se repetir mais de uma vez. E impacientou-se comigo.

César fez um gesto de assentimento com a cabeça.

- E recordo-me de que dirigiste um olhar a Meto. Um olhar estranho.
- Olhei para ele de maneira estranha porque... foi nesse momento que arquitectei o meu plano contra ele.

- Compreendo. Continua.

- A Rainha disse-me para ir chamar Apolodoro. Corri à procura dele. Mas primeiro... primeiro, fui ao meu quarto... buscar o frasquinho do veneno.

- Foste tu que tiraste o frasco do baú de Gordiano? - perguntou César.

- Fui.

- Mas como sabias da existência desse frasco, e do que ele continha?

- No dia em que levei Meto ao quarto do pai, Gordiano pediu-me que os deixasse a sós - mas eu escondi-me no corredor e ouvi a conversa que teve lugar entre eles. Ouvi o que Gordiano disse acerca do frasco e do veneno que ele continha - e também ouvi o que Meto lhe disse: que atirasse o frasco para as águas do porto! Mais tarde, quando tive oportunidade, tirei o frasco do baú - mas apenas por recear que Gordiano pudesse sentir-se tentado a fazer uso do veneno contra si próprio, coisa que eu não conseguiria suportar. - Olhou finalmente para mim. - É verdade, juro-to por ísis! Roubei o frasquinho apenas porque quis proteger-te de ti mesmo, Gordiano! Por favor, acredita em mim!

Respirei fundo, preparando-me para falar, mas César silenciou-me, erguendo uma mão.

331- Continua, Merianis - disse.

- A Rainha mandou-me chamar Apolodoro mas, antes disso, corri ao meu quarto para me apoderar do frasco. Esvaziei-o...

- Não o tinhas esvaziado? - perguntou César rispidamente.

Se o teu objectivo era evitar que o veneno fosse utilizado, por que não o esvaziaste logo que o roubaste?

Merianis corou.

- Tens razão. O frasquinho já estava vazio - foi um lapso meu, Estou novamente a ficar confusa...

- Continua! - O tom de César fez com que até Cleópatra estremecesse. Merianis começou a soluçar.

- Quando encontrei Apolodoro, expliquei-lhe rapidamente o que se passara... e expus-lhe o meu plano: colocar o frasco vazio entre as vestes de Meto para que ele fosse responsabilizado pelo envenenamento.

- Mas por quê, Merianis? Por que tinhas tanto rancor a Meto?
- Não foi rancor; foi um desgosto amoroso! Desejei-o desde o primeiro momento em que o vi. Meto devia ter correspondido. Dei-lhe a conhecer os meus sentimentos, e ele rejeitou-me. Queria vê-lo sofrer!
- Merianis foi sacudida por um estremecimento e escondeu o rosto nas mãos.

- E tu, Apolodoro? - César lançou um olhar flamejante na direcção do siciliano espadaúdo. - Concordaste em participar neste embuste?

Em todas as ocasiões em que havia estado com ele, a atitude de Apolodoro fora sempre sobremaneira confiante e arrogantemente desafiadora; agora, porém, não despregava os olhos do chão e exprimia-se através de murmúrios roucos.

- Fiz o que Merianis me pediu.
- Mas por quê, Apolodoro?

- Porque... - Apolodoro expeliu as palavras rangendo os dentes. Porque a amo.

332- Compreendo. - César acenou gravemente com a cabeça. Deves amá-la muito, com efeito.

- E amo!

Eu não consegui manter-me calado.

- César! - interpelei-o, mas ele voltou a silenciar-me com um gesto de mão e um olhar irado. Voltou-se para Cleópatra.

- O que tem Vossa Majestade a dizer sobre isto?

O porte da Rainha era mais altivo do que nunca. Cleópatra transmitia a mesma impressão de frieza e majestade que um pilar de mármore.
- Certamente que o logro perpetrado ofende a dignidade do cônsul...

- Não menos do que a majestade da Rainha, se também ela foi enganada pelos seus servos!

- Sim, mas o crime deles é menos abominável do que o de envenenamento...

- Não será, se tivermos em conta que poderia ter redundado na execução de um dos meus lugar-tenentes mais íntimos, um homem inocente! - César respirou fundo. - Majestade, esta ofensa tem de ser expiada.

Uma ondulação de desânimo desfigurou a perfeição da compostura da Rainha, qual rajada de vento sobre águas tranquilas. Quando ela se pronunciou, a sua voz traiu uma nota muito ligeira de embargo.

- As palavras do cônsul são justas. Esta mentira tem de ser expiada; e será. - Olhou primeiro para Merianis, e depois para Apolodoro. Algo de profundo havia sido comunicado através do olhar que a Rainha trocou com ambos, os mais íntimos de entre os seus súbditos. A Rainha dera-lhes uma ordem silenciosa e, em silêncio, eles acataram-na. Pareciam que os três se tinham transportado para um plano de existência para o qual nem César nem eu podíamos segui-los. É assim que desculpo a inacção que me paralisou nos momentos seguintes. Eles transformaram-se em actores sobre um palco, movendo-se de acordo com as exigências da lógica da cena; César e eu transformámo-nos em espectadores

333mudos, impotentes para interferir na acção que se desenrolava diante dos nossos olhos, apenas capazes de a contemplar, horrorizados e estupefactos.

Apolodoro tirou um comprido punhal. Mais tarde, perguntaria a mim próprio por que não teria sido desarmado pelos guardas de César. Embora fosse o guarda-costas da Rainha, não deveria ter sido autorizado a aceder à presença de César com uma lâmina daquelas. Mas, como já era do nosso conhecimento, ele tinha bastante talento de mãos, e tinha conseguido passar pelos guardas sem a arma ser detectada.

Mas não era César o objecto das suas atenções. Apolodoro voltou-se para Merianis, que permanecia de pé, a tremer, de olhos fechados, como se soubesse o que ia passar-se. Os seus lábios moviam-se sem emitir som algum, recitando uma oração. Apolodoro enterrou-lhe o punhal no coração. julgo que terá morrido muito depressa, pois apenas proferiu uma frase curta e sibilante - ”Doce ísis!” - ao tombar no chão. Teve um par de convulsões e depois quedou-se completamente imóvel.

Sem hesitar, Apolodoro ajoelhou-se, endireitou diante de si o punhal comprido e a escorrer sangue, e deixou-se cair sobre ele com todo o peso do seu corpo. A morte de Apolodoro foi menos discreta que a de Merianis. Ele arquejou, tossiu sangue para o chão, e expeliu um sopro agonizante.

- Minha Rainha! - clamou, debatendo-se para conseguir erguer a cabeça, a fim de obter um último vislumbre de Cleópatra. Os olhos rolaram-lhe para trás das órbitas. O maxilar entreabriu-se-lhe. Corria-lhe sangue da boca. Caiu de lado, puxando os joelhos para o peito. Os pés contorceram-se-lhe em pontapés involuntários. Por fim, quedou-se tão imóvel como Merianis.

O guarda que se encontrava à porta deu um grito de alarme e aproximou-se a correr, rapidamente seguido por outros. César ergueu o braço.
- Não te aproximes!

- Mas, cônsul...! - protestou o guarda.

334- Deixa-nos. Imediatamente!

Lançando olhares de soslaio à Rainha e trocando sussurros entre si, os homens de César retiraram-se.

Cleópatra inspirou audivelmente e soltou um gemido. Corriam-lhe lágrimas pelo rosto. Baixou os olhos para os corpos sem Vida que tinha a seus pés. Por momentos, receei que perdesse por completo a compostura e se deixasse cair no chão em pranto. Mas endireitou o pescoço, reprimiu as lágrimas e voltou os olhos brilhantes para César.

- César está satisfeito? - perguntou.

Mais uma vez, senti-me compelido a falar, mas César inclinou ligeiramente a cabeça para o lado, espetou o queixo e silenciou-me com um olhar.

- César... está satisfeito.

Cleópatra baixou os olhos.

- E este assunto está encerrado?

- O assunto está encerrado. Os súbditos da Rainha foram punidos. Meto foi ilibado e será libertado. Não voltaremos a falar do que aconteceu em Antirrodes.

- Muito bem - disse a Rainha. Soltou uma comprida capa de linho que trazia dobrada e presa num dos ombros, desdobrou o traje com uma sacudidela e estendeu-o por cima dos corpos de Merianis e Apolodoro. - Por favor, não deixes ninguém tocar nestes cadáveres. Os embalsamadores do templo de ísis virão recolhê-los dentro em breve, para que se possam observar os rituais devidos a cada estádio da viagem para a qual embarcaram.

Não consegui conter-me. A voz tremia-me.

- Seria verdadeiramente desastroso se alguma coisa corresse mal e a Rainha ficasse desapontada! Mesmo na outra vida, os seus leais servos terão de estar prontos e à sua espera quando chegar o dia em que a própria Rainha passe desta vida à outra!

Cleópatra dirigiu-me um olhar gelado.

335- Compreendeste perfeitamente, Gordiano. Apolodoro e Merianis adoram ísis, e eu sou a encarnação de ísis. A lealdade deles não conhece limites, como não os conhece a recompensa que terão. Assim é neste mundo; assim será no outro, e por toda a eternidade. Os ímpios cairão em desgraça e tornarão ao pó, mas os justos viverão eternamente.
- Contigo por Rainha?

- Não te preocupes, Gordiano. Tenho sérias dúvidas de que te encontres entre os meus súbditos na outra vida.

Com estas palavras, recompôs-se e saiu da sala de cabeça altivamente erguida.

336CAPíTULO XXVII

Os embalsamadores não tardaram; na verdade, tardaram tão pouco, que parecia que tinham sido convocados antecipadamente, preparados para entrar em cena a um sinal da Rainha. Os corpos de Merianis e Apolodoro foram estendidos sobre padiolas e levados dali para fora.

- ”César está satisfeito”! - explodi eu, incapaz de conter o meu sarcasmo. - Estás mesmo, cônsul? Como podes estar satisfeito? César observou-me demoradamente antes de me responder.

- Estou satisfeito por ter reagido como devia ter reagido àquilo, que acabou de se passar nesta sala.

- Mas não estás decerto convencido de que a Rainha e os súbditos dela te disseram a verdade!

- Isso, Gordiano, é outra questão.

- As lágrimas que ela chorou! Serviu-se delas como uma bruxa, para lançar um feitiço sobre ti.

- Talvez; mas estou convencido de que eram lágrimas genuínas. Duvidas de que a Rainha amava Apolodoro e Merianis, como uma Rainha ama aqueles que lhe são mais próximos? Duvidas de que tivesse ficado profundamente comovida com o sacrifício que fizeram por ela?

- Sacrifício, dizes bem! O disparate de Merianis estar loucamente apaixonada por Meto, e ter decidido, por mero capricho, destruí-lo porque ele a rejeitou - e o disparate ainda maior de Apolodoro alinhar de imediato com semelhante plano, sem qualquer hesitação, à revelia da

337Rainha! Apolodoro era escravo de uma só mulher, e ambos sabemos que essa mulher não era Merianis.

César suspirou.

- Na verdade, Gordiano, acontece que eu sei, porque Meto mo confidenciou na altura, que Merianis lhe ofereceu, efectivamente, os seus afectos...

Tal como a mim!

... e que Meto recusou.

Tal como eu. Mas não acredito, por um instante sequer, que Merianis tenha decidido, de sua livre iniciativa, colocar o frasco na pessoa de Meto.

Ele dirigiu-me um olhar grave.
- Nem eu.

- E todavia, preferes deixar o assunto morrer aqui!

- Meto será libertado, Gordiano! Não era este o resultado que desejavas?

- Nem nunca devias tê-lo mandado Prender e ameaçado tirar-lhe a vida tive vontade de replicar.

- Sou um romano, cônsul. Seja ou não inteligente da minha parte, o facto é que tomo a Justiça como um dado adquirido. Mas a verdade também me interessa. Enquanto a Rainha aqui esteve, reCusaste-te a deixar-me falar. Quererás ouvir-me agora?

Ele soltou um suspiro.

- Muito bem. Porque és o pai de Meto; porque sofreste muito aqui no Egipto; e também porque, quer te tenhas apercebido disso, quer não, tenho bastante apreço por ti, Gordiano, vou fazer-te a vontade, só desta vez, e permitir-te que me contes exactamente o que julgas ser a verdade. Explica-me, pois, o que aconteceu em Antirrodes, e nunca mais voltemos a tocar neste assunto. Estamos entendidos?

- Sim, cônsul.

- Então prossegue.

338- Concedes que a ânfora de vinho já estava envenenada porque se tratava do vinho com que Pompeu fazia tenções de se envenenar? César anuiu com um aceno de cabeça.

- Concedo. E o frasco de alabastro?

- Acredito que tenha sido tirado do meu baú por Merianis, tal como ela disse, e pela razão que apresentou: pretendia negar-me a possibilidade de usar o veneno em mim próprio. Apoderou-se do veneno para me defender. Creio que, de tudo o que nos disse, essa foi a única verdade, porque houve uma coisa que Merianis omitiu: que era uma espia da Rainha; que os seus olhos e ouvidos pertenciam a Cleópatra, Dizia-lhe tudo, e estou convencido de que também lhe terá falado do frasco de alabastro. Quando lhe perguntaste por que não tinha esvaziado o frasco, ela corou. Penso que essa terá sido a sua intenção original, mas que alguém lhe ordenou que não o fizesse - a Rainha, claro. Para uma mulher como Cleópatra, um veneno como aquele poderia vir a revelar-se útil, pelo que ordenou a Merianis que mantivesse intactos o frasquinho e o respectivo conteúdo.

”O veneno não tinha utilidade imediata para nenhuma das duas; na altura, ambas se esqueceram dele, tal como eu. Chegamos então àquele dia terrível em Antirrodes. Quando Zoe morre por acção do vinho envenenado, a Rainha ficou tão perplexa e alarmada como qualquer de nós. Todavia, a sua mente trabalhou com extraordinária rapidez, tentando descobrir uma maneira de se aproveitar do sucedido. Uma vez que tinha sido Meto a abrir a ânfora, era o suspeito mais óbvio, e é possível que Cleópatra se tenha efectivamente convencido de que Meto envenenara o vinho. Meto era inimigo dela; a Rainha sabia que ele não via com bons olhos a influência que ela exercia sobre ti, cônsul. Independentemente de ele ter, ou não, envenenado o vinho, a Rainha teria toda a vantagem em se ver livre dele, e reconheceu na situação uma oportunidade para lhe infligir um duro golpe - ao mesmo tempo que desviava as suspeitas de si própria. Engendrou rapidamente um plano, que pôs imediatamente em prática.

339”Enquanto segurava o corpo de Zoe, chamou Merianis. O que disse a Rainha a Merianis? Nenhum de nós ouviu, pois ambas falaram em voz baixa; contudo, não ficaste com a impressão de que Merianis hesitou ao ouvir as ordens da Rainha? O que Cleópatra lhe disse para fazer foi o seguinte: em primeiro lugar, ir ao quarto buscar o frasco de alabastro e esvaziá-lo; depois, ir buscar Apolodoro, e transmitir-lhe o desejo da Rainha de que se dirigisse imediatamente ao terraço e, assim que a oportunidade se proporcionasse, colocasse o frasco vazio na pessoa de Meto. Merianis ficou consternada; não tinha qualquer desejo de prejudicar Meto, mas faltava-lhe o ânimo para resistir à ordem da Rainha. Daí a estranheza do olhar que dirigiu a Meto; daí a vergonha e a angústia que não mais a largaram. já Apolodoro obedeceu sem hesitação à ordem da Rainha, pela simples razão que nos confessou hoje aqui: ”Porque a amo”, disse ele. A verdade porém é que não se referia a Merianis, mas a Cleópatra!

César esfregou pensativamente o queixo.

- E - supondo que esta versão dos acontecimentos é a verdadeira era por isso que querias que os dois servos comparecessem hoje aqui sem a sua senhora. Tinhas esperança de que revelassem a verdade incriminando a Rainha.

- Sim. Mas Cleópatra previu essa possibilidade. Podia simplesmente ter-se recusado a cooperar, mas apercebeu-se de que, em certa medida, era necessário dar-te uma explicação, e de que alguém teria de ser punido. Antes de se dirigirem à tua presença, a Rainha comunicou a Merianis e a Apolodoro exactamente o que deviam dizer caso fossem interrogados; e, para a salvar, eles mentiram, sabendo que por isso teriam de morrer. - Recordei o olhar de aquiescência no rosto de Merianis quando Apolodoro desferiu a estocada de morte, e a minha voz embargou-se. - Se Merianis não me tivesse roubado o veneno do baú, desejando apenas salvaguardar-me de mim próprio, ainda poderia estar viva.

César acenou com a cabeça.

340- É estranho como o frasquinho de alabastro de Cornélia e a ânfora de vinho Falerniano de Pompeu parecem ter assumido vida própria, uma vida maligna, mesmo depois de os respectivos proprietários os terem abandonado. Parece que, afinal, os mortos sempre mordem, e as suas viuvas também!

- Aceitas a minha versão dos eventos, cônsul?

- A tua versão satisfaz a minha curiosidade, Gordiano. Mas não satisfaz as minhas necessidades.

- As tuas necessidades?

- Vim ao Egipto resolver assuntos pendentes, em meu benefício, e em benefício de Roma, o que vai dar no mesmo. As dívidas têm de ser pagas; para que isso aconteça, as colheitas têm de ser feitas e os impostos de ser cobrados; para que isso aconteça, o Egipto precisa de paz. Ou o Rei e a Rainha se reconciliam, ou um deles tem de ser eliminado e o outro sentado no trono - e quem ocupar o trono terá de ser um aliado firme de Roma. Ao longo de todo este processo, tenho tentado fazer valer o testamento do Flautista, em particular o seu desejo de que os dois irmãos governem conjuntamente. O que se passou em Antirrodes foi lamentável; mas, como tu próprio demonstraste, o envenenamento foi acidental e a reacção da Rainha, conquanto deplorável, não foi premeditada. Pressionar a Rainha para que admita a verdade, atormentá-la com perguntas como se ela tivesse conspirado, qual criminosa, contra a minha pessoa, em nada contribui para o objectivo maior...

- Mas ela conspirou defacto contra ti, cônsul! Não uma, mas duas vezes! Primeiro, quando procurou incriminar Meto falsamente - acção tanto mais grave, em minha opinião, justamente por ter sido espontânea -, e depois quando, há escassos momentos, planeou, com total premeditação, obrigar os súbditos a mentir-te, com o objectivo de ocultar o primeiro embuste!

- Querias que eu chamasse mentirosa à Rainha?
- Queria que chamasses às coisas o que elas são!

341- Ah, mas é justamente aí que tu demonstras não perceber a situação, Gordiano. Tens conhecimento, mas falta-te o entendimento. Através destes logros, a Rainha procurou promover a sua posição, e não colocar-me em perigo. Este é um ponto crucial, Gordiano, que tu não conseguiste captar. Isto é uma questão política; tem a ver com a aparência das coisas. Quando a Rainha foi pressionada para dar uma resposta que satisfizesse as aparências, foi exactamente isso que fez.

- À custa de duas vidas! A Rainha é um monstro. Obrigar aquelas duas pessoas a mentir para se proteger, e depois vê-los pôr termo à própria vida, para ela salvar a face...

- E também para eu próprio salvar a face, Gordiano. Acreditas mesmo que ela os obrigou a fazer o que quer que fosse? Muito pelo contrário, ao que julgo; o que eles fizeram, fizeram-no de sua livre vontade, fervorosamente, diria mesmo. Que devoção extraordinária! Se eu conseguisse despertar semelhante profundidade de amor e lealdade! Houve homens que morreram por mim, é certo, mas não exactamente da mesma maneira que estes dois morreram pela Rainha. Eles acreditavam genuinamente que ela é uma deusa, com poder para lhes conceder a vida eterna. Espantoso! - Havia uma nota de inveja neste espanto. Seria possível que, um dia, um rei romano suscitasse devoçao tão completa, auto-sacrifício de tal maneira cego? Esta ideia parecia-me repelente, mas César mostrava-se fascinado com tal possibilidade.

Avançou para a janela e contemplou a vista que se estendia até ao longínquo Nilo.

- E todavia... - Detectei-lhe uma nota de resignação na voz. Reparei que os ombros se lhe abatiam. - Dizes que ela me enfeitiçou, Gordiano, e temo que tenhas razão. Eu próprio quase acredito que ela seja uma deusa, que mais não seja porque me faz sentir como um deus. Tenho cinquenta e dois anos, Gordiano. Cleópatra faz-me sentir um rapaz. Conquistei o mundo e sinto-me fatigado; ela oferece-me um mundo novo para conquistar, rejuvenesce-me. Na verdade, oferece-me mais do que um mundo; oferece-me a imortalidade. Tenho cinquenta e dois

342anos, Gordiano, e ainda não gerei um herdeiro. Cleópatra prometeu dar-me um filho. Imaginas o que seria? Um filho que governasse, não só o Egipto, mas também Roma! juntos, podíamos fundar uma dinastia, que governasse o mundo inteiro, para sempre.

Abanei a cabeça. César, que olhava pela janela, não viu a minha reacção, embora deva tê-la pressentido.

- Suponho - disse - que este seja precisamente o tipo de conversa que levou Meto a insurgir-se tão veementemente contra a Rainha e contra a sua influência sobre mim. O meu discurso assemelha-se ao de um déspota oriental iludido? Terei corrido mundo, despistando ciladas e levando a melhor sobre os inimigos, para perder a sanidade aqui no Egipto, às mãos de uma rapariga de vinte e um anos?

- Afirmas que ela te prometeu o mundo, cônsul; e, no entanto, mente com a mesma facilidade com que respira. Afirmas que te prometeu um filho; e, no entanto, ainda que ela viesse anunciar que estava grávida de um filho teu, como poderias ter a certeza...

César ergueu uma mão.

- Basta! Não digas tal coisa em voz alta. Há certos pensamentos que é melhor cometer ao silêncio.

Fechou as mãos atrás das costas e olhou silenciosamente para fora da janela, durante tanto tempo que parecia ter-se esquecido da minha presença, até voltar finalmente a falar. A tonalidade da sua voz sofrera uma alteração subtil; naquele interim silencioso, César tinha tomado uma decisão relativamente à Rainha.

Mas primeiro queria resolver outra questão. Pigarreou.

- Gordiano, quero que saibas que eu nunca teria executado Meto.

- Mas disseste-me...

- Disse-te o que considerei necessário dizer-te a fim de obter o resultado que pretendia. - Voltou-se, encarando-me. - A ameaça iminente que pairava sobre Meto não te esporeou a descobrir a verdade sobre a ânfora envenenada?

- É possível. Mas ainda assim...

343- Eu conheço os homens, Gordiano. Se há talento que contribuiu para me guindar à posição em que hoje me encontro, foi a minha capacidade de avaliar o carácter e as competências dos homens que me rodeiam. Alguns homens reagem a um encorajamento, outros a ameaças, outros ainda a tudo o que diga respeito à sua honra. O truque reside em perceber qual é a melhor maneira de inspirar cada homem a dar o seu melhor. julgo que te conheço, Gordiano, melhor do que tu pensas. E a prova está, aliás como sempre, no resultado.

Abanei a cabeça.

- Queres dizer que nunca acreditaste que Meto fosse culpado?
- Foi isso que me ouviste dizer, Gordiano? Creio que te disse algo ligeiramente diferente. Mas o importante é que Meto será imediatamente libertado e retomará o seu posto a meu lado.

- Como se nada tivesse acontecido?

- Aprendi a perdoar aos meus inimigos, Gordiano. Alguns deles aprenderam a perdoar-me, até a mim. Não será mais fácil a dois amigos perdoarem-se um ao outro?

Rangi os dentes.

- Enuncias um falso silogismo, cônsul.
- Como assim?

- Tu precisas de ser perdoado; Meto não fez nada que careça de redenção.

- Ah, sim? É excelente ouvir-te finalmente dizer tal coisa, Gordiano! Afinal, o teu filho não tem culpa nenhuma.

- O que eu quis dizer...

- Eu sei o que quiseste dizer. Mas a decisão quanto ao que se seguira a esta... lamentável quebra de confiança... compete a Meto, penso eu, e não a ti. O teu filho é livre de tomar as suas decisões, ou pensas continuar a vigiá-lo e a julgá-lo a cada escolha que ele faça, conservando-o refém da tua desaprovação? Achas que as decisões que tomei ultimamente em relação a Meto foram mais destrutivas do que a tua, quando o renegaste? Se foi possível selar essa brecha, não será possível selar também esta?

344César acabava de me puxar o tapete de baixo dos pés, elevando as suas próprias decisões a um plano acima de qualquer discussão, ao mesmo tempo que desafiava a minha autoridade paterna e o meu Juízo moral - e com que astúcia o fizera! Senti-me vexado com a insinuação dele, mas não fui capaz de o refutar. Ou Meto era senhor de si mesmo, ou não; e, se era, eu teria que reconhecer, de uma vez por todas, que ele estava fora do alcance da minha autoridade e da minha capacidade de moldar as suas opiniões e os seus desejos. Voltaria Meto a correr para os braços de César, perdoando e esquecendo a ”lamentável quebra de confiança” do seu imperador? Ou teria o verme da dúvida conseguido insinuar-se permanentemente nos seus pensamentos, tornando-o incapaz da lealdade e do amor que César lhe inspirara outrora? César tinha razão: a opção pertencia a Meto, não a mim.

Contudo, César parecia ter de fazer outra opção, esta mais premente. Desviou de mim a sua atenção e chamou o guarda que estava à porta, a quem deu uma ordem, em voz demasiadamente baixa para eu conseguir ouvi-lo. Depois, começou a andar de um lado para o outro, contemplando a sua imagem reflectida no chão de mármore polido, aparentemente esquecido de mim. À semelhança de muitos dos homens poderosos que havia conhecido ao longo da minha vida, César possuía a capacidade de passar de uma preocupação para outra sem transição, concentrando todas as suas energias no problema que tinha diante de si. Tratara do meu caso, dera o assunto por concluído e, embora eu permanecesse fisicamente na sua presença, para todos os efeitos práticos, já tinha desaparecido.

Pigarreei.
- Se o cônsul já não precisa de mim...

César ergueu os olhos do chão, sobressaltado como uma pessoa adormecida subitamente arrancada a um sonho.

- Gordiano! Não, deixa-te estar. Estou prestes a tomar uma decisão há muito adiada. E é bom que haja alguém presente para testemunhar o momento. Por que não tu? Sim, creio que Gordiano, o Descobridor, é precisamente o homem que deverá estar a meu lado nesta ocasião.

345Esperámos, sem que eu soubesse bem do que estávamos à espera, Por fim, o guarda de serviço à porta anunciou que o visitante de César tinha chegado. Instantes depois, deixando o séquito de cortesãos na antecâmara, o Rei entrou na sala.

346CAPíTULO XXVIII

Flecti um joelho. César manteve-se de pé.

Para além de fazer um vago aceno com a mão, indicando que eu podia levantar-me, Ptolemeu não pareceu dar pela minha presença e avançou direito a César, parando a poucos passos dele. Trazia posta a coroa uraeus com a cobra erguida; o seu porte era erecto. Parecia diferente, como se tivesse deixado de ser um rapaz com atributos de homem, tornando-se um homem que abandonara a juventude. A despeito da diferença de idades, o olhar que trocou com César foi de igual para igual.

- Majestade - cumprimentou César, inclinando ligeiramente a cabeça.

- Cônsul - replicou Ptolemeu, de olhos brilhantes e com um leve sorriso a suavizar-lhe os lábios. A semelhança com a irmã era mais impressionante do que nunca.

César suspirou.

-já falámos demoradamente sobre o que há a fazer. Manténs-te inflexível na tua posição?

- jamais partilharei o trono com a minha irmã. Potino, fossem quais fossem as suas reais motivações, chegou a convencer-me a ceder; mas Potino já não está entre nós.

Foi então que percebi a origem da transformação que se dera em Ptolemeu; não se devia a nenhum acrescento, mas a uma subtracção.

347Salvo aquando das exortações lançadas da varanda do Túmulo de Alexandre, nunca o tinha visto sem Potino. Talvez os que afirmavam que o camareiro-mor tinha uma influência excessiva sobre o Rei tivessem razão. Com Potino fora do caminho, Ptolemeu parecia ter passado ao estado adulto de um dia Para o outro.

- Vossa Majestade compreende as dificuldades da posição em que me encontro - disse César.

- Compreendo.

- Ultimamente, contudo, à medida que os eventos se foram desenrolando, e que a personalidade de cada um dos descendentes do Flautista se foi tornando mais clara para mim...

Ptolemeu fitava-o com uma expressão interrogativa.
- O cônsul fez uma escolha entre nós?


- Fiz.

- E...?

- Sabes quão ardentemente desejei reconciliar-te com a tua irmã. Ainda agora, se tal fosse possível, esse continuaria a ser, em minha opinião, o caminho mais razoável. Mas essa hipótese não é manifestamente possível, o que obriga a outra opção...

Ptolemeu inclinou ligeiramente a cabeça para trás e semicerrou os olhos.

- Continua, cônsul.

- Majestade, decidi apoiar a tua pretensão a único governante do Egipto.

Por entre o sorriso reservado do Rei, vi despontar o sorriso radioso do rapaz.

- E a minha irmã?

- O mais provável é Cleópatra não aceitar de boamente a minha decisão, mas ser-lhe-á dado ver que não tem outra alternativa; em última análise, a situação dela em Alexandria depende inteiramente da minha protecção.

O sorriso do Rei desvaneceu-se.

348- E se ela se esgueirar de Alexandria e se juntar aos rebeldes que a apoiam, tal como conseguiu infiltrar-se no palácio?

- Isso não acontecerá.

- Como pode o cônsul ter a certeza?

- Por um lado, porque alguns dos seus amigos mais íntimos aqueles que a ajudaram a penetrar na cidade - já não estão com ela.
- César lançou-me um olhar de esguelha. Aparentemente, não queria discutir a morte de Apolodoro e Merianis na presença do Rei. - Por ora, Cleópatra regressará ao palácio de Antirrodes, onde permanecerá. Os meus soldados mantê-la-ão sob vigilância.

- Como me vigiaram nos últimos dias? - inquiriu Ptolemeu.
- Durante o período de incerteza que acaba de terminar, pareceu-me necessário estar preparado para qualquer eventualidade - respondeu César. - Agora que a minha decisão foi tomada, Vossa Majestade terá obviamente liberdade para se movimentar a-vontade. Cleópatra não gozará do mesmo privilégio.

- A minha irmã deverá ser-me entregue, para ser julgada.

- Não, Majestade. Não posso satisfazer esse pedido. Nada de mal deverá acontecer-lhe.

- Se a minha irmã viver, mais tarde ou mais cedo evadir-se-á e organizará uma revolta. Mesmo sob custódia, arranjará maneira de causar danos. Enquanto lhe restar um sopro de vida, jamais deixará de conspirar para me ver morto.

César acenou com a cabeça.

- É manifesto que Cleópatra não pode permanecer no Egipto. Creio que será preferível ela fixar residência em Roma - sob minha protecção e vigilância, naturalmente.

- Em Roma? Onde poderá continuar a conspirar contra mim?
- A casa onde ficar instalada estará sob vigilância. Os seus movimentos serão limitados, o mesmo acontecendo com a lista de pessoas autorizadas a visitá-la.

- César encontrar-se-á entre aqueles que a visitarão em Roma?

349- Talvez, de tempos a tempos. Ptolemeu abanou a cabeça.

- Alexandria é longe de Roma. César acabará por esquecer os laços que estabeleceu com o Rei do Egipto. A víbora encher-lhe-á os ouvidos de veneno e fará com que César se vire contra mim! - No tom de voz subitamente estridente, o rapaz que permanecia dentro do homem fazia uma aparição intempestiva.

César manteve-se inflexível.

- Vossa Majestade terá de confiar em mim nesta matéria. Não permitirei que mal algum aconteça a Cleópatra. Não basta reconhecer a tua pretensão a herdeiro exclusivo do trono do Egipto?

Ptolemeu inspirou fundo. Endireitou os ombros. O rapaz foi suprimido; o homem reafirmou a sua primazia, e tomou uma decisão.

- César ajuíza sabiamente. O povo do Egipto, bem como o seu Rei, têm a boa fortuna de ter encontrado um amigo assim no cônsul do Povo de Roma. Agora, há muito trabalho a fazer. Se de facto tenho liberdade para circular...

- Tens, Majestade.

- Nesse caso, abandonarei o palácio para me juntar ao exército de Aquilas e assumir a chefia dos meus homens na cidade. Informarei Aquilas da tua decisão em meu favor e ordenar-lhe-ei que mande recolher as tropas, para que não haja mais derramamento de sangue, nem romano nem egípcio. Assim que a ordem for restabelecida na cidade, bem como no palácio, e assim que a minha irmã e todos aqueles que desejarem continuar ao serviço dela tenham saído do Egipto, sob protecção de César, haverá uma cerimónia para assinalar a cessação das hostilidades e a afirmação do meu reinado. - A sua voz suavizou-se. - Se o cônsul tiver tempo, gostaria que me acompanhasse numa viagem pelo Nilo acima, para poder observar a vida do rio e testemunhar os muitos esplendores existentes ao longo das suas margens.

César deu um passo em frente e tomou a mão do Rei.

350

- Nada me daria mais prazer, Majestade. Mais tarde ou mais cedo, terei de abandonar o Egipto; haverá um ajuste de contas com o que resta das tropas de Pompeu que, segundo se diz, estão a reagrupar-se na Líbia, sob comando de Catão. Todavia, não temo nada de particularmente grave daqueles lados, e a resolução final e completa dos assuntos de Egipto tem precedência sobre todas as outras questões de Estado. Acompanhar o Rei numa expedição pelo Nilo acima - consolidar a nossa amizade através de uma viagem como a que propões - dar-me-ia enorme contentamento.

Trocaram um olhar que transmitia um afecto de tal modo íntimo, que me senti um intruso. Pigarreei discretamente, mas nenhum dos dois reparou em mim.

- Entretanto - prosseguiu César, adoptando novamente um tom mais formal -, ficarei à espera da cessação de hostilidades por parte dos homens de Aquilas, e aguardarei ansiosamente o regresso de Vossa Majestade.

O Rei deu um passo atrás, retirando a mão do aperto de César. Voltou-se para se ir embora, mas a determinação viril que havia no seu rosto vacilou; quando se voltou novamente para César, girando sobre os calcanhares, a pessoa que eu vi, timorata e insegura, de lágrimas nos olhos, era o rapaz-rei. Correu para César e agarrou-lhe o braço.
- Vem comigo, César! Não quero deixar-te!

César sorriu com indulgência ante esta súbita explosão de emoção. Com um gesto suave, pousou a mão sobre a mão que lhe agarrava o braço e apertou-a afectuosamente.

- O Rei não precisa de mim para lidar com Aquilas. A ordem de cessação de hostilidades tem de ser dada por ti, e apenas por ti. Eu só iria atrapalhar.

Ptolemeu acenou com a cabeça, mas os seus olhos encheram-se de lágrimas.

- Tens razão, claro. O que tenho de fazer, devo fazê-lo sozinho. ”Ser Rei é uma actividade solitária”, costumava dizer o meu pai. Mas

351nunca te esqueças de uma coisa, César: neste momento, a totalidade do meu reino não me é mais cara do que a mera contemplação da tua pessoa!

Incrédulo, verifiquei que também César tinha os olhos marejados de lágrimas e, quando falou, fê-lo em voz emocionada.

- Se isso é verdade, Majestade, vai depressa, para poderes regressar ainda mais depressa para junto de mim!

Sem mais palavras, mantendo os olhos fixos nos de César até ao último instante possível, Ptolemeu recuou, deu meia volta, e retirou-se da sala, com as vestes de Estado roçagando na brisa suave provocada pelo seu andar.

César quedou-se imóvel, seguindo-o com o olhar.
- Pensas falar com ela agora? - perguntei.

César lançou-me um olhar de tal maneira vazio, que eu repeti a pergunta

- Pensas falar com ela agora? Com a Rainha. Ou deverei dizer simplesmente ”Cleópatra”, uma vez que já não possui esse título?

- Vai com certeza manter algum título - observou César com ar ausente, como se a minha pergunta o tivesse distraído de pensamentos mais importantes. - Talvez ”Princesa”, que era o título que tinha quando o pai era vivo; Cleópatra não deixou de ser a filha do Flautista e a irmã do Rei.

- Embora tenha deixado de ser sua esposa?

- Tenho a certeza de que a lei real egípcia terá algum protocolo para a dissolução do casamento - disse César.

- E, uma vez privada da coroa, continuará a ser uma encarnação da deusa ísis? Perder o trono deve ser uma coisa horrível; mas perder a divindade...

- Se a tua ideia é ser engraçado à custa da religião local, Gordiano, não estás a ter piada.

- E pensas falar com ela agora? - perguntei novamente. Ele inspirou profundamente, depois riu-se a contragosto.


352- Há tarefas perante as quais até César se acobarda! Mas, se adiar o momento da verdade, ela acabará por saber da minha decisão por terceiros, o que pode criar um problema ainda mais grave. O melhor é ser corajoso e encarar a situação de frente. É possível que a Rainha isto é, a princesa - já esteja a caminho de Antirrodes, mas talvez ainda consigamos apanhá-la antes de o barco partir.

- ”Consigamos”, cônsul?

É evidente que te incluo, Gordiano. Quando assistes ao começo de uma coisa, não desejas ver como ela acaba?

- Talvez. Mas desejará o cônsul que eu veja?

- Sempre me pareceu útil poder contar com mais um par de olhos e mais um par de ouvidos para testemunharem acontecimentos importantes. A minha memória já não é o que era; dá muito jeito poder dispor de uma versão complementar quando me sento a escrever as minhas memórias. Há muito que Meto cumpria essa função; acho que estou a colocar-te no lugar dele.

- Serei um fraco substituto do meu filho. Talvez devesses chamá-lo e reinvesti-lo das suas funções.

- É uma excelente sugestão. O quarto onde Meto se encontra detido fica perto do pontão. Mandarei alguns homens à nossa frente para o libertarem, de maneira que possa juntar-se a nós. Tendo desempenhado o papel de antagonista da Rainha - da princesa -, talvez Meto mereça estar por perto na altura quando eu lhe anunciar a minha decisão. Permitir-lhe testemunhar esse momento é o mínimo que posso fazer à laia de recompensa. Vamos, Gordiano!

Estuguei o passo ao lado de César enquanto ele atravessava o complexo do palácio, acompanhado pela sua comitiva, parando várias vezes ao longo do percurso para dar ordens aos subordinados. Chegámos aos jardins que se estendiam ao longo da marginal. Para lá das palmeiras e dos jasmins em flor, no pontão de pedra, avistámos Cleópatra, na

353companhia de alguns servos e do mensageiro romano que fora enviado para a impedir de embarcar no esquife que a levaria de volta a Antirrodes. A pouca distância de nós, ouvi uma voz familiar.

- César!

Ao ver Meto à beira do caminho, o cônsul parou e abriu os braços.
- Meto! Estás com bom aspecto, graças a Vénus!

Meto hesitou, mas o sorriso que se estampava no rosto de César fé-lo vencer a hesitação. Abraçaram-se.

- O mensageiro disse... César acenou com a cabeça.

- Foste ilibado de todas as suspeitas, graças ao discernimento do teu Pai.

- Papá! - Meto abraçou-me. Fora a César que primeiro falara, e a César que dera o primeiro abraço; mas eu tentei concentrar-me na alegria que senti ao vê-lo são, livre e fora de perigo,

- O que significa que descobriste o que se passou em Antirrodes observou Meto, olhando interrogativamente para mim e para César.
- Com efeito, foi exactamente isso que o teu pai fez - replicou César. - Mas as explicações vão ter de ficar para outra altura. Cleópatra aguarda-nos no pontão, e não quero fazê-la esperar.

César ia à frente, dando passadas compridas e rápidas.
- Papá, o que vem a ser tudo isto? - sussurrou Meto. Preparava-me para lhe responder quando César olhou por cima do

ombro e me silenciou com um olhar.

O Sol da tarde, reflectindo-se nas pedras do pontão e nas águas do porto, estava deslumbrante. As gaivotas mergulhavam e gritavam por cima das nossas cabeças. As ondas lambiam os degraus que davam acesso ao esquife real. Ao ver que César se dirigia ao seu encontro, Cleópatra sorriu mas, à medida que nos fomos aproximando, notei-lhe um tremor de ansiedade no canto da boca. Ao ver Meto, continuou a sorrir, mas com um sorriso mais tenso. Ergueu as mãos para tomar as de César, mas ele deteve-se a uma distância que não tornava possível corresponder

354ao gesto, pelo que Cleópatra ficou com um gesto de boas-vindas por completar, numa pose estranha. Recolheu as mãos e franziu o sobrolho.
- César, o que se passa?

Ele olhou para ela com uma expressão grave.
- Houve... um desenvolvimento,

- Bom ou mau? Mau, a avaliar pela tua expressão. César desviou os olhos.

- César? O que se passa? Diz-me depressa! - No seu tom subitamente estridente, ouvi a voz do irmão mais novo.

Perante o silêncio de César, ela adoptou um tom mais formal.

- Cônsul - disse, e percebi que começara a desconfiar da verdade; com esta saudação, procurava ver se, em resposta, César a trataria formalmente por rainha, ou não.

César suspirou e preparava-se para falar, quando fomos surpreendidos por um grito lançado por um dos vigilantes romanos que patrulhava os telhados do palácio, atrás de nós.

- Navios de guerra! Navios de guerra! Navios de guerra egípcios vindos do porto de Eunosto!

Todos os olhos se voltaram para o Heptastádio - a comprida passagem que liga a cidade e a ilha de Faros, separando o porto grande do porto de Eunosto, a sul. Sensivelmente a meio da passagem, havia um arco que permitia aos barcos circularem de um porto para o outro. Com os remadores puxando furiosamente pelos remos, um navio de guerra egípcio após outro entravam no porto maior, com o convés a abarrotar de soldados e de catapultas, e a refulgir de lanças.

Outro vigilante gritou dos telhados:

- Fumo! Labaredas! Fogo nas barricadas junto ao teatro real! Todos os que nos encontrávamos no pontão nos voltámos em simultâneo, para ver a nuvem de fumo negro que se elevava da zona onde as defesas de César estavam mais densamente concentradas. Enquanto isso, uma vibração pesada, percutida, deslocava-se pelo ar, fazendo com que os meus dentes matraqueassem - era o bum... bum... bum...

355de um aríete à distância. As tropas de Aquilas tinham lançado um ataque simultâneo, por terra e por mar, às posições de César.

Virei-me para César e apercebi-me da série de emoções que lhe atravessavam o rosto - consternação, ultraje e um desapontamento doloroso. César viu que eu o fitava e agarrou-me o braço com um aperto doloroso. Afastou-me dos outros e silvou-me ao ouvido:

- Gordiano! Tu estavas lá. Viste o que eu vi. Ou-viste o que eu ouvi. O Rei não se comprometeu a ordenar a retirada de Aquilas e das suas tropas?

- Comprometeu.

- Nesse caso, o que está a acontecer aqui?

Da direcção de onde os navios de guerra se aproximavam, ouvi um enorme estalido, seguido por um som de recuo. Um dos navios de guerra egípcios, moViMentando-se por entre as galeras de César, tinha-se aproXiMado do pontão, tendo-o neste momento ao alcance dos disparos. Teria alguém com visão de águia detectado César e Cleópatra no pontão? Ou teriam os responsáveis pela catapulta resolvido disparar um projéctil ao primeiro alvo que lhes aparecesse? Fosse como fosse, a flamejante bola de pez precipitava-se em direcção a nós. Uma das servas de Cleópatra deixou escapar um grito, e alguns do que estavam à minha volta recuaram apressadamente. O projéctil não chegou a atingir-nos; caiu no mar, com um espirro de água e um silvo, a uma certa distância do pontão, mas suficientemente perto para me borrifar o rosto com um esguicho de vapor quente.

César continuava a apertar-me o braço com toda a força.

- É por causa dela! - sussurrou. - Foi porque me recusei a entregar-lha. O ódio que tem à irmã é maior do que o amor que me tem a mim! Deve ter dado ordem para atacar assim que viu Aquilas. E sabe onde posicionei os meus homens e onde reforcei as minhas defesas; instruiu Aquilas sobre os lugares exactos a que apontar o assalto. A viborazinha soez!

Cleópatra encontrava-se relativamente perto. Não tinha os olhos postos no navio de guerra que se aproximava, mas em nós. No meio de toda

356aquela agitação, mantivera-se absolutamente imóvel. Se havia alguma diferença, residia no facto de o seu semblante se apresentar ainda mais composto do que anteriormente. Creio mesmo ter visto - a não ser que o tivesse imaginado - uma ligeira promessa de sorriso nos seus lábios. Teria compreendido, num instante, exactamente o que se tinha passado? julgo que sim, porque o sorriso era de triunfo - o sorriso que iluminaria o rosto de uma rainha que acabasse de arrancar um triunfo às mandíbulas da derrota.

- Parece, cônsul, que estamos a ser atacados. - O uso da primeira pessoa do plural não fora acidental. - Surpreende-me que Aquilas tenha desferido um assalto destes, sabendo que o meu irmão se encontra sob tua custódia.

Ela percebera o que se tinha passado. E procurava engodar César, para que lhe contasse a verdade. César não respondeu.

O navio de guerra aproximava-se. Àquela dístância, eu distinguia os rostos dos soldados egípcios no convés, e percebi que a catapulta estava a ser novamente retesada, para disparar outra bola de fogo na nossa direcção.

- Ou terá este ataque - prosseguiu Cleópatra - sido lançado por instigação, do meu irmão?

César respirou fundo.

- Vossa Majestade compreendeu a situação. Há menos de uma hora, libertei o teu irmão e permiti-lhe que se juntasse a Aquilas.

- Mas por quê, cônsul?

- Imperador! - gritou Meto. - Temos de retirar de imediato! O perigo...

César afastou o olhar da Rainha durante tempo suficiente para ladrar uma ordem.

- Recuar para posição segura! Todos! já! Meto fez menção de lhe pegar no braço.
- Imperador, tu também tens de vir...

César sacudiu-o mas, curiosamente, continuava a apertar-me o braço com a outra mão, agora ainda com mais força.

357- Vai, Meto. Leva-os para posição segura. Eu seguir-vos-ei dentro de momentos. Vai! É uma ordem!

Relutante, Meto virou costas e fez sinal aos outros para que o seguissem para fora do pontão. Eu não poderia tê-lo seguido, mesmo que quisesse; César agarrava-me com firmeza.

Dirigiu-se a Cleópatra.

- O teu irmão implorou-me que o deixasse ir ter com Aquilas. Prometeu-me que ordenaria a Aquilas que retirasse as tropas. E prometeu regressar ao palácio assim que estivesse despachado.

- E tu acreditaste nele?

- Aceitei uma promessa feita pelo Rei do Egipto.

- O meu pai era o Rei do Egipto! O meu irmão não passa de um rapaz estouvado.

- Reconheço agora que é como dizes. E, se alguma vez chegou a ser Rei, a partir deste momento, Ptolemeu deixou de o ser, e jamais o será.

Acendeu-se uma fogueira por trás dos olhos de Cleópatra.
- O que queres dizer com isso, César?

- Abandono qualquer tentativa de te reconciliar com o teu irmão. Na minha qualidade de cônsul do Povo de Roma, e de executor do testamento de teu pai, reconheço-te como Rainha do Egipto e única pretendente legítima ao trono.

- E Ptolemeu?

- Ptolemeu traiu-me. Ao fazê-lo, traiu igualmente o seu povo e o seu destino. Assim que o derrotarmos, e ao exército dele, tomarei todas as medidas necessárias para assegurar que nunca mais possa reclamar o trono, ou prejudicar-te, seja de que maneira for.

Ouvi um sonoro estalido, muito mais próximo do que o anterior, seguido por um som de recuo. A catapulta acabara de lançar uma segunda bola de fogo na nossa direcção. O projéctil descreveu um arco pelo ar; era difícil calcular a trajectória da perspectiva limitada em que me encontrava.

358-, - Vai, Majestade! - disse César. - Segue os outros para lugar seguro.

Cleópatra sorria tranquilamente. Aquiesceu ao pedido de César e preparou-se para abandonar o pontão. Afastou-se a passo ligeiro, mas sem correr.

- Cônsul - disse eu nervosamente, olhando para a bola de fogo que se aproximava -, não deveríamos, também nós...

- Não te mexas! Tenho bom olho para avaliar estas coisas, Gordiano. Este projéctil foi consideravelmente menos bem apontado do que o anterior. Estamos perfeitamente seguros.

E o certo é que a bola de fogo descendente aterrou inofensivamente na água, ainda mais longe de nós do que a primeira. Entretanto, aproximava-se rapidamente uma galera romana, com a intenção de interceptar o navio de guerra egípcio, que se virou abruptamente.

César puxou-me para si.

- Ouviste o que eu disse à Rainha?

- Palavra por palavra, cônsul. - Arqueei uma sobrancelha. Omitiste alguns pormenores acerca da conversa que tiveste com o irmão.

- Talvez. O importante é que jamais contradigas ou te desvies da versão dos acontecimentos que eu contei à Rainha. Compreendes?
- Compreendo, cônsul. Cleópatra nunca deverá saber que foi a tua segunda escolha.

César olhou para a extremidade do pontão, onde a Rainha acabava de se juntar à pequena multidão que ali se reunira. Acenou com a cabeça, pensativo.

- Fiz uma escolha entre os dois e escolhi mal. Mas os deuses concederam-me uma oportunidade para rectificar o meu erro antes de ele se tornar ainda mais calamitoso. Cleópatra enganou-me, e eu perdi a confiança nela. Agora fui eu que a enganei; estamos quites e podemos começar de novo.

359- Em minha opinião, cônsul, nenhum dos dois enganou minimamente o outro. Tanto um como o outro se aperceberam exactamente do jogo que o outro fazia.

- Mas fingiremos que não foi assim; e esta é a essência da governação, Gordiano - bem como do matrimónio. Cleópatra é mulher; eu sou homem; mas somos ambos chefes de Estado. Quando um de nós meter o pé na poça, o outro fingirá que não reparou. Quando houver atritos, manteremos uma ficção de harmonia; e, desta maneira, ambos respeitaremos a dignidade do outro.

- Não seria mais sensato, e muito menos problemático, no matrimónio como na governação, ser simplesmente directo e honesto? Admitir os erros cometidos e pedir perdão?

César olhou para mim e abanou a cabeça.

- Não faço ideia quegénero de marido darias, Gordiano, mas nunca terias sido bem sucedido como político, ou como rei.

- Nunca desejei ser nenhum deles.

- Fizeste bem! E agora, abandonemos este maldito pontão. Onde param os meus oficiais? Onde estão os meus mensageiros? Temos de defender uma Rainha e de ganhar uma batalha!

360CAPíTULO XXIX

Na verdade, foi necessário travar muitas batalhas em Alexandria, durante os meses que se seguiram.

O ataque de Aquilas às posições de César foi apenas o primeiro incidente do que acabou por ser uma guerra a grande escala, uma guerra bastante invulgar, porque foi quase integralmente travada dentro dos limites da cidade e do respectivo porto. Em terra, as lutas não tinham lugar em planícies extensas ou em terrenos montanhosos, mas em espaços fechados - em ruas estreitas ou telhados contíguos -, exigindo por isso uma estratégia bastante diferente da habitual disposição tactica das forças de infantaria e de cavalaria. Os confrontos navais travavam-se dentro dos confins do porto e, por vezes, tomavam a feição de um grandioso espectáculo encenado para duvidoso divertimento da populaça.

Em inferioridade numérica e apanhado de surpresa pela duplicidade de Ptolemeu, César começou por se debater com grandes dificuldades para defender a sua posição. Fugir por via marítima era virtualmente impossível, em parte devido aos ventos desfavoráveis que dificultavam a saída do porto, e em parte devido aos perigos múltiplos que pesavam sobre uma retirada geral das tropas em direcção às docas, e daí por barco, em direcção à estreita entrada do porto, tudo isto sob assaltos egípcios em terra e no mar; Pompeu, acossado por César, tinha conseguido executar uma retirada naval destegénero em Brundísio, mas escapara

361por uma unha negra. César estava, efectivamente, cativo em Alexandria, e arriscava-se a ser completamente destruído caso os egípcios conseguissem penetrar as suas defesas. Os oficiais romanos resmungavam frequentemente que ele os tinha conduzido a um beco sem saída por ter avaliado mal - o que era invulgar nele - as forças do inimigo e por estar perdido de amores por uma rainha traiçoeira; mas César nunca revelou o menor sinal de dúvida, ou deixou escapar qualquer recriminação. Talvez Cleópatra o tivesse convencido de que, juntos, possuíam um destino divino, e de que, juntos, ultrapassariam todos os obstáculos que se atravessassem no seu caminho para a imortalidade.

Deixarei ao cuidado de outros o relato dos muitos incidentes que constituíram a Guerra de Alexandria. Certamente que o próprio César, com a ajuda de Meto e de outros, escreverá um relato mais ou menos rigoroso, ainda que totalmente auto-elogioso. Será sincero quanto a relação que manteve com os irmãos da casa real? Será interessante ler as frases delicadas a que recorrerá parajustificar a sua decisão de autorizar Ptolemeu a sair do palácio para se juntar a Aquilas. Mas, quando se trata de narrar o que se passou no campo de batalha, em geral, as memórias de César são fiáveis.

Alguns dos episódios destacam-se na minha memória. No início, os egípcios tentaram contaminar a água que abastecia o palácio. Em toda a Alexandria, não havia um único fontanário público que fosse abastecido por um poço ou uma fonte natural, e a água do Lago Mareótis era demasiadamente salobra para se beber; a água potável consumida na cidade provinha exclusivamente de um canal do Nilo que, ao chegar à periferia da cidade, se dividia em numerosos canais, que abasteciam as diferentes zonas da cidade. Tendo assumido o controlo do canal, os egípcios começaram a bombear água do mar para a torrente que abastecia as zonas controladas por César. Quando a água que consumiam começou a tornar-se inexplicavelmente salgada, os homens de César quase se renderam ao pânico, mas César garantiu-lhes que, ao longo de uma área costeira, há sempre correntes subterrâneas de água doce.

362os homens dedicaram-se a abrir furos em vários pontos, trabalhando continuadamente, dia e noite. Tal como lhes havia sido prometido, descobriram veios suficientes de água doce para as necessidades, o que evitou uma crise que poderia ter proporcionado uma vitória têmpora aos egípcios.

Também durante o período inicial, os armazéns situados ao longo do porto foram incendiados, facto que foi sendo aumentado com o tempo, transformando-se na lenda de que César reduzira a grande Biblioteca a cinzas. O que realmente aconteceu foi que, quando os homens de César atearam fogo a várias embarcações egípcias ancoradas no porto maior, para impedir que estes barcos viessem a ser tomados e usados contra eles, o incêndio alastrou a alguns edifícios da baixa portuária. Entre estes, contava-se um armazém da Biblioteca, que albergava uma enorme quantidade de papiros, juntamente com um número indeterminado de rolos copiados ou recentemente adquiridos, que ainda não tinham dado entrada na Biblioteca. Calcula-se que tenham sido destruidos cerca de quarenta mil volumes, mas a Biblioteca escapou incólume. Não obstante, Cleópatra ficou muito ressentida com César por causa desta destruição, e o próprio César lamentou amargamente a perda, que mais não fosse porque fornecia aos egípcios mais um pretexto para o rotularem como destruidor e bárbaro.

Todavia, para César, o ponto mais baixo, da guerra foi o dia em que perdeu a nova capa cor de púrpura.

César sempre usara uma capa vermelho-sangue, e tinha orgulho no facto de tanto amigos como adversários detectarem facilmente a sua presença no meio da mancha compacta de homens em campo. Cleópatra oferecera a César uma capa nova, de um tom diferente, um púrpura extremamente real, e igualmente conspícuo. Alguns romanos torceram o nariz a esta inovação - estavam a lutar por um cônsul ou por um rei? - mas muitos pareceram acolhê-la de bom grado. César utilizou a capa no dia em que, acompanhado por várias centenas de soldados, atravessou o porto de barco e cercou a passagem que vai dar à

363ilha de Faros. O seu objectivo era obter o controlo do arco da passagem, que permitia aos navios egípcios lançar ataques a partir do porto de Eunosto.

De início, a batalha estava correr bem; a ilha de Faros foi tomada, bem como a passagem, e os homens de César dedicaram-se a encher de pedregulhos a boca do arco. Mas os alexandrinos receberam reforços e o rumo da batalha mudou, Os homens de César entraram em pânico e fugiram. O próprio César viu-se obrigado a retirar para a sua embarcação, que foi conduzida ao longo da passagem. Os soldados que se precipitaram para dentro do barco foram tantos, que ele começou a afundar-se. Com a capa cor de púrpura aos ombros, César saltou do convés e nadou até junto de outro navio que fundeara mais perto da saída do porto. As pesadas dobras da capa ensopada ameaçavam arrastá-lo para o fundo; debatendo-se contra as ondas encrespadas, mal conseguindo manter a cabeça fora de água, César conseguiu desembaraçar-se da vestimenta e, durante um bocado, ainda nadou com ela presa entre os dentes, pois não queria ficar sem o presente da Rainha. Mas, a dada altura, a capa fugiu-lhe dos dentes e ele deixou-a ir.

Esse dia foi desastroso para César. Os alexandrinos recuperaram o arco da passagem e removeram os pedregulhos que o bloqueavam; mais de oitocentos dos homens de César foram mortos pelo inimigo ou afogaram-se, incluindo todos os que se encontravam a bordo do seu navio, que naufragou; e os alexandrinos, triunfantes, conseguiram pescar das águas a capa nova de César. Em cima da passagem, dançaram, berraram e agitaram a capa à laia de bandeira de vitória enquanto César se arrastava, cuspindo água e meio afogado, para dentro do navio e empreendia uma retirada ignominiosa. Mais tarde, os alexandrinos pregaram a capa rasgada e emporcalhada a uma vara, qual estandarte capturado, e, até ao fim da guerra, desfraldavam-na e agitavam-na sempre que tinham oportunidade, como insulto à dignidade de César.

A guerra prolongou-se durante meses, com a vantagem oscilando continuamente de um lado para o outro. Como em todas as guerras,

364houve períodos de calmaria no confronto, em que ambas as partes redefiniam posições. César aproveitava estas ocasiões para consultar os muitos académicos e filósofos que se viram confinados em zonas da cidade sob controlo romano, entre as quais se incluía a Biblioteca e o Museu adjacente à Biblioteca, o repositório de muito do conhecimento matemático e astronómico do mundo. Foi durante um desses períodos de calmaria que César se propôs estabelecer novo calendário, mais fiável que o que vigorava, já que, em anos recentes, o venerável calendário romano começara a ficar desfasado das estações do ano, de tal maneira que as festividades de comemoração das colheitas tinham lugar antes das próprias colheitas, e as festas de Primavera quando os romanos ainda andavam a tremer de frio. Para conceber o novo calendário, César consultou os sábios mais afamados do mundo e, se eles fizeram bem o seu trabalho, pode ser que o calendário, tal como os movimentos das estrelas e dos planetas, sobreviva à própria Roma.

Por fim, o equilíbrio entre as forças em confronto foi alterado pela intervenção do Rei Mitrídates de Pérgamo, aliado de César, que chegou à fronteira do Egipto à cabeça de um exército formado por destacamentos judeus, árabes e sírios. Mitrídates tomou Pelúsio, marchando depois para sul, em direcção ao vértice do Delta do Nilo. Quando teve conhecimento do avanço de Mitrídates, o Rei Ptolemeu enviou uma força para o interceptar; ao saber que este contingente egípcio fora aniquilado, Ptolemeu decidiu confrontar-se pessoalmente com os novos invasores. Entretanto, César, que se mantinha em comunicação regular com Mitrídates, arregimentou as suas melhores tropas e, deixando um contingente a garantir a posição romana na cidade, soltou amarras, abandonando o porto. Aportou a uma zona a oeste de Alexandria e contornou o exército de Ptolemeu, marchando a uma velocidade tal, que passou pelo Rei e se juntou a Mitrídates no Nilo antes de Ptolemeu chegar. Estava montado o cenário para a batalha decisiva da Guerra de Alexandria, que não seria travada em Alexandria, mas no coração do Egipto, nas margens do imenso rio.

365Eu não estive lá, mas Meto esteve. E foi através dos seus olhos que eu testemunhei o fim do Rei Ptolemeu.

O exército de Ptolemeu ocupou uma pequena aldeia perto do rio situada numa colina, e ladeada por um canal que funcionava como fosso; os egípcios construíram muralhas de terra e cavaram trincheiras, onde alinharam estacas pontiagudas. Parecia uma posição impenetrável, mas os homens de César atravessaram o canal a vau, derrubando árvores e enchendo o canal até construírem uma ponte improvisada, enquanto outros desciam a corrente a nado, emergindo na outra extremidade da aldeia, de tal maneira que a praça-forte de Ptolemeu ficou cercada. Não obstante, a fortificação continuava a parecer impenetrável, até que os batedores de César reparam numa área mal vigiada, em que a colina sobre a qual a aldeia fora edificada era mais íngreme; aparentemente, os egípcios convenceram-se de que o declive do penhasco constituía, por si mesmo, defesa adequada. César lançou um assalto repentino e poderoso contra esse ponto e, quando tomou o pináculo, os seus homens precipitaram-se pela encosta abaixo, atravessando a aldeia e empurrando adiante de si os egípcios tomados de pânico. Estes, encurralados pelas suas próprias fortificações, despenharam-se dos muros abaixo, empilhando-se uns sobre os outros nas trincheiras e empalando-se nas estacas. Aqueles que conseguiram fugir da aldeia viam-se confrontados com os soldados romanos que os cercavam, pelo que o exército de Ptolemeu foi chacinado, quer a partir de dentro, quer de fora.

O Rei Ptolemeu, notificado do desastre à medida que este se desenrolava, conseguiu fugir numa pequena embarcação e refugiar-se na barcaça real, que circulava no Nilo. O capitão levantou âncora, mergulhou os remos e começou a bater em retirada da cena de batalha. Entretanto, centenas de soldados egípcios desesperados largavam as armas, despiam as armaduras e mergulhavam no rio, convergindo, sob a forma de uma massa imensa e borbulhante, para a barcaça real, para onde tentavam içar-se. Os ocupantes da embarcação acolheram os primeiros a chegar mas estes, apercebendo-se de que cedo a embarcação ficaria

366sobrelotada, começaram a tentar repelir os camaradas, ferindo-os ao fio da espada, picando-os com as lanças e disparando setas para os que ainda se encontravam a alguma distância.

Foi uma cena agonizante. As margens do Nilo faziam eco dos gritos dos moribundos e das súplicas dos vivos. A água em torno do navio avermelhava-se de sangue e a superfície das águas adensava-se de cadáveres. Todavia, os homens que estavam dentro de água eram muito mais numerosos que os que haviam conseguido subir para o navio e, apesar da chacina, eram cada vez mais aqueles que conseguiam trepar para bordo até que, por fim, a embarcação atingiu o ponto de sobrecarga. O lado estibordo submergiu; o lado oposto ergueu-se no ar. Como se tivesse levado um piparote de um Titã, a enorme barcaça voltou-se, despejando os ocupantes para dentro de água e caindo de borco sobre a horda de nadadores que tentava subir para bordo. Durante breves momentos, o casco da embarcação permaneceu Visível à tona de água; depois desapareceu completamente, engolido pelo rio.

O exército de Ptolemeu fora aniquilado. A vitória de César era completa.

Ou quase completa, pois o corpo do Rei nunca foi encontrado. Os homens de César examinaram todos os cadáveres que se amontoavam ao longo da margem, vasculharam todos os maciços de juncos, mergulharam redes nos baixios e dragaram com varas toda as extensões acessíveis do leito do rio ao longo de várias milhas, no sentido da foz. Os melhores nadadores de César - entre os quais se contava Meto, que dirigiu as buscas - mergulharam repetidas vezes na zona onde a embarcação se tinha voltado, recuperando todos os cadáveres enterrados nos limos ou presos nos destroços. Foi um trabalho cansativo, sujo e perigoso, e não teve qualquer resultado.

Ou quase. Um dos mergulhadores localizou a flauta do flautista do Rei. Outro recuperou a coroa uraeus com a cabeça de cobra e depositou-a nas mãos de César. O próprio Meto encontrou uma recordação ainda mais curiosa: uma capa esgarçada, de tal modo enlameada que, à primeira

367vista, não foi fácil discernir o seu tom púrpura. Tratava-se da capa que César tinha perdido na batalha da passagem para a ilha de Faros, quando ele próprio poderia ter perecido num barco que se afundou. Aparentemente, o Rei Ptolemeu conservava a capa à mão, pretendendo utilizá-la para incitar os seus homens em momentos críticos de batalha ou para celebrar o seu derradeiro triunfo sobre o invasor romano. Quando Meto devolveu a capa de César, o imperador esboçou um sorriso triste, mas nada disse. Estendeu a capa sobre um dos rochedos da margem do rio e, quando estava suficientemente seca, colocou-a sobre uma das muitas piras ateadas para consumir os romanos mortos. A capa cor de púrpura ardeu, e César nunca mais voltou a falar sobre ela.

Ao ouvir a história da morte de Ptolemeu, lembrei-me das palavras de Cleópatra sobre aqueles que morriam no rio Nilo e sobre a bênção especial que recebiam de Osíris. Mas o que preocupava César não era a existência do Rei além-túmulo, mas a possibilidade de ele continuar a existir neste mundo, factual ou lendariamente. Enquanto o corpo de Ptolemeu não fosse encontrado, os inimigos da Rainha podiam continuar a acreditar que o seu campeão sobrevivera, e a paz no Egipto poderia vir a ser perturbada por pretendentes ao trono. Havia mesmo a remota possibilidade de Ptolemeu ter efectivamente sobrevivido e passado à clandestinidade, disfarçando-se de plebeu ou escapando para outro país, fora da alçada de Roma - talvez para a corte do Rei parto. César teria preferido regressar a Alexandria na posse do corpo inanimado de Rei, para poder exibi-lo a Cleópatra como a cabeça de Pompeu lhe fora exibida a ele, como prova irrefutável de que o inimigo morrera. Neste aspecto, porém, e apesar de todos os seus esforços, os desejos de César seriam gorados.

Não derramei lágrimas pelo jovem Ptolemeu. Tinha-o visto assassinar homens a sangue-frio; ele era tudo menos inocente. Mas não deixou de ser uma vítima, de homens ainda mais implacáveis do que ele, e o horror do fim que o levou encheu-me de uma espécie de reverência, idêntica à que me tomara aquando da morte de Pompeu. A história e a

368lenda conspiram para nos convencer de que alguns homens se elevam acima do grosso da humanidade, que se distinguem dos comuns mortais pelo nascimento, o mérito ou o favor dos deuses; mas homem nenhum, quaisquer que sejam as suas pretensões de grandeza, é imune à morte, e a morte dos chamados grandes é frequentemente mais abjecta e aterrorizadora do que a morte do mais humilde dos seus súbditos. Pensei no jovem Rei e na curta e estranha vida que fora a sua, tão pejada de violência, de traição e de sonhos frustrados, e senti uma pontada de compaixão.

Quando César regressou a Alexandria, a notícia da morte do Rei havia-o precedido. Abandonando por completo a resistência, os alexandrinos depuseram armas e abriram a Porta Canópica a César e à sua comitiva. As pessoas envergaram as vestes rasgadas dos suplicantes. Os sacerdotes ofereceram sacrifícios nos templos para aplacar a ira dos deuses. Mas César não estava irado. Proibiu os seus homens de exibirem qualquer sinal de hostilidade e transformou a marcha pela cidade num cortejo de alegria. Quando chegou ao recinto real, os homens que César deixara a proteger o palácio receberam-no com vivas exultantes. Cleópatra adiantou-se para o saudar. Não era vista em público há já algum tempo e fiquei com a impressão de que, não obstante o vestido solto que escolhera para a ocasião, tinha alargado consideravelmente na zona da cintura. Em vez da cabeça do irmão, César colocou-lhe nas mãos a coroa capturada. Sem tirar o seu próprio diadema, Cleópatra ajustou a coroa do irmão sobre a fronte, pelo que a cabeça do abutre e a cobra erguida ficaram lado a lado. Os alexandrinos, incluindo aqueles que anteriormente lançavam pragas e cuspiam à menção do nome dela, soltaram num viva trovejante, saudando-a como sua deusa-Rainha.

A batalha do Nilo teve lugar nos últimos dias do mês de Março, cinco dias antes das calendas de Abril (pelo calendário antigo); foi nesse belo dia que recebi finalmente uma carta de Roma, da minha filha Diana.

369Durante o tempo que a guerra durou, permaneci enclausurado no recinto do palácio, juntamente com as forças romanas. Tinha a companhia de Rupa e dos rapazes, e a de Meto, quando ele conseguia que César o dispensasse. Mas tinha cada vez mais saudades de Roma.

Para espantar essas saudades, escrevia regularmente a Diana, cartas longas em que a mantinha a par de tudo o que nos acontecera desde que a mãe e eu havíamos partido de Roma, à excepção do único acontecimento que não suportava cometer ao papel: o desaparecimento de Betesda. Contei-lhe da minha reconciliação com Meto, dos meus encontros com o Rei e com a Rainha do Egipto, e da interessante visita que fizera, com Rupa e os rapazes, ao Túmulo de Alexandre. A actividade comercial no porto tinha estagnado mas, de tempos a tempos, César despachava um navio com correio e Meto introduzia as minhas cartas na posta oficial do cônsul. Não tinha maneira de saber se elas chegavam ou não às mãos de Diana, porque não recebera nenhuma carta dela - até ao dia da batalha no Nilo, em que, pouco depois de um navio proveniente de Roma ter entrado no porto, veio um mensageiro bater-me à porta, depositando-me na mão um rolo de pergaminho selado.

Quebrei o selo, desenrolei a folha de pergaminho e li:

Queridos pai e mãe,

Tenho-vos escrito muitas cartas, mas como as vossas cartas não dão sinal de recepção das minhas, nunca sei muito bem o que dizer. Correndo o risco de me repetir, digo-vos que, aqui em Roma, tudo vai bem. Eco e a família dele parecem estar florescentes; julgo que Eco desempenha actualmente um cargo qualquer junto de Marco António, que ficou responsável pela cidade na ausência de César, mas Eco é tão reservado no que toca ao trabalho dele (sai ao pai!) que não sei bem o que ele faz concretamente, embora pareça ser lucrativo. Davo e eu temos olhado pela casa na vossa ausência. O pequeno Aulo está feliz

370mas tem saudades das histórias que o avÔ lhe contava e de que a avó lhe vá dar as boas-noites à cama quando se deita.

Passemos agora às verdadeiras notícias: o bebé já nasceu! O parto teve lugar nos Nonos de Março - foi um parto fácil - e decidimos chamar-lhe Betesda, ou talvez simplesmente Bet, por ser mais curto, escolha que espero que agrade à avó. É bem-disposta, saudável e barulhenta! É parecida contigo, papá - ouço-te murmurar ”Pobre criança!”, mas não, é muito bonita.

Estamos ansiosos por que regressem a casa. As vossas cartas nada dizem sobre a tentativa que a mãe queria fazer de se curar nas águas do Nilo, pelo que ansiamos por saber o que se passou.

Escrevam depressa e digam-me se receberam esta carta. Com todo o amor, para os dois, para Meto, para Rupa e para Ândrocles e Mopso.
Votos de felicidade para César, que a guerra acabe depressa e que possam regressar todos a Roma! Que Neptuno abençoe o barco que leva esta carta e o barco que vos trará de volta para a nossa companhia!

Quando acabei de ler a carta, Mopso perguntou-me se chorava de alegria ou de tristeza. Não soube responder-lhe.

A nova maternidade de Diana esteve muito presente na minha lembrança quando, alguns dias depois do regresso triunfante de César, foi -
oficialmente anunciado que a Rainha Cleópatra estava à espera de um filho. Segundo Meto, César não tinha a mínima dúvida de que o filho fosse seu. Em meados de Abril, tendo resolvido todos os assuntos que os prendiam a Alexandria, os futuros pais partiram Nilo acima em viagem recreativa, inflamados pelo triunfo da sua união e rodeados por todos os luxos. Lembrei-me de que Ptolemeu havia proposto idêntica viagem a César. Mas Ptolemeu morrera no Nilo e era a irmã de Ptolemeu que mostrava a César os esplêndidos templos e as aras que cobriam as margens do rio, a fonte da grandeza do Egipto.

371CAPíTULO XXX

Com o fim da guerra, sobreveio a paz. Alexandria abriu as portas e os portos. Rupa, os rapazes e eu éramos livres de circular por onde nos apetecesse.

Durante alguns dias, vagueei pela cidade, pensando em contemplar as Vistas e revisitar alguns locais familiares antes de partir, pois, com a minha idade, parecia-me muito pouco provável que cá voltasse. Mas as vistas e os sons de Alexandria não me davam alegria. Pedi a Meto que, à primeira oportunidade, arranjasse um lugar para mim e para os meus num dos navios de transporte de César que levantasse âncora com destino a Roma,

Meto fez o que lhe pedi. Na véspera do dia marcado para a nossa partida de Alexandria, levei Rupa comigo em passeio pela Via Canópica, decidido a dar pelo menos uma vista de olhos ao Templo de Sérapis antes de me ir embora. Ao passarmos pelas bancadas do mercado, pelas praças e pelos fontanários, meditei nas cedências que a luta pela sobrevivência nos obrigava a fazer. César acabara por escolher Cleópatra, ainda que mais pelos defeitos do irmão do que pelas suas virtudes. Cleópatra enganara César, e teria assistido à execução de Meto sem o mínimo estremecimento de culpa. César não fora totalmente honesto com a Rainha; e que dizer da sua relação com Meto, que mandara prender e ameaçara matar? Imaginei os três presos num círculo de logro, cada um a braços com as traições dos restantes, mas decidido, em prol

372das conveniências, a desviar os olhos. Havia no seu pragmatismo calculista qualquer coisa que me deixava completamente insatisfeito; mas quem era eu para julgá-los? A minha rejeição de Meto, quando me sentira traído e defraudado por ele, só me tinha trazido infelicidade, e acabara por ser eu a retratar-me, como se a culpa fosse minha. Enquanto as coisas corressem com relativa tranquilidade, não seria mais sensato fechar os olhos a traições, mentiras e desapontamentos menores, e seguir o curso da nossa vida? Que ventura resultou alguma vez da declaração de ultimatos e do julgamento das escolhas e acções dos outros? Daí que aprendamos a ceder uns perante os outros, bem como perante as nossas próprias expectativas, coagidos pelas exigências de um mundo imperfeito.

Eram estas as reflexões que se agitavam na minha cabeça quando avistei, do outro lado de uma bancada, a velha sacerdotisa com quem Betesda se aconselhara no Templo de Osíris, à beira do Nilo.

O mercado era grande e estava apinhado de gente; os bens começavam novamente a afluir a Alexandria e a população, com a disposição esfuziante que se segue a um período de guerra, estava ansiosa por gastar dinheiro. Só consegui entrever um Vislumbre fugaz da mulher, no meio de um enxame ululante e a uma distância considerável; e só quando ela desapareceu do meu campo de visão é que me apercebi de quem se tratava.

Agarrei o braço de Rupa. Viste-a?

Rupa gesticulou com as mãos.

- A velha sacerdotisa - comecei eu a dizer - mas depois lembrei-me de que, quando Betesda fora pedir conselho à sábia, Rupa não se encontrava connosco: estava a espalhar as cinzas de Cassandra no rio. Rupa não chegara a conhecer a mulher.

Franzi o sobrolho e semicerrei os olhos, tentando captar outro vislumbre do rosto da mulher por entre toda aquela gente.

373- Era uma pessoa... que me pareceu ter reconhecido. Mas talvez fosse apenas - não, espera! Ali está ela! Consegues vê-la? - Pus-me em bicos de pés e apontei. - Tenho a certeza de que é ela; é igualzinha! O cabelo branco apanhado num bandó; a pele com aspecto de madeira crestada; a vestimenta de lã esfiapada...

Rupa abanou a cabeça, depois susteve a respiração.
- Conseguiste vê-la?

Rupa gesticulou.

- Olha para a mulher mais nova que está com ela. Olha!

- Mulher mais nova? Onde? Não vejo ninguém - a não ser que estejas a referir-te à mulher que tem a capa com capuz e...

Tal como Rupa, também eu sustive a respiração. Ficámos os dois imóveis, especados de incredulidade.

- Não pode ser - murmurei - e no entanto...

Rupa acenou vigorosamente com a cabeça, ao mesmo tempo que franzia a testa, como se dissesse:

É mesmo ela. E no entanto não pode ser ela...

É uma ilusão provocada pela luz - disse eu, semicerrando os olhos na direcção da aparição, pois decerto que a mulher do vestido de linho amarelo, cujo cabelo era ocultado pelas abas de um capuz, era apenas um espírito. Todavia, era visível para a velha bruxa, pois as duas mulheres trocaram umas palavras, aparentemente sobre os méritos relativos de dois pentes que lhes eram estendidos por um vendedor. Estavam demasiadamente longe, disse para comigo; o sol egípcio era intenso de mais, esbatendo os rostos que se encontravam à distância. Eu via o que desejava ver, e não o que realmente existia. Contudo, Rupa parecia ver o mesmo que eu. Ou não?

Insatisfeitas com ambos os pentes, a mulher e a bruxa afastavam-se. Interpuseram-se outros rostos, mais próximos. Pus-me em bicos de pés e baloucei-me de um lado e para outro, tentando não a perder de vista.

- É ela, não é? - perguntei. - É... - Comprimi os lábios, reunindo todas as minhas forças para conseguir pronunciar o nome em voz alta.

374Rupa interrompeu-me. Enganchou os dedos indicadores um no outro fazendo o sinal que significava a sua irmã e, através da expressão do rosto, exclamou a palavra:

- Cassandra!

O meu queixo IMobilizou-se, O som morreu-me na garganta. Estivera prestes a dizer outro nome.

De repente, senti-me confuso. Talvez a mulher fosse um tanto parecida com Cassandra. E contudo...

Onde estava ela? Tinha perdido a mulher de vista, bem como a velha bruxa. Tinham ambas desaparecido no meio da multidão.

- Não era velha de mais para ser Cassandra? - perguntei em voz cava. - E Cassandra era loura. Não lhe víamos o cabelo, por causa do capuz, mas esta mulher tinha feições mais escuras, não tinha?

Rupa abanou a cabeça, dando a impressão de estar perturbado e confuso. Tinha lágrimas nos olhos.

Não, pensei eu, não fora Cassandra que nós víramos. Era impossível. Cassandra transformara-se em cinzas; e já nem era cinzas, mas cinzas dissolvidas no Nilo - os seus efémeros restos mortais tínham-se fundido com o rio imortal, para que Osíris lhe concedesse a vida eterna.

Cassandra acreditaria em tais coisas? Não tinha a certeza. Mas Betesda acreditava. Betesda acreditava piamente na existência de outro mundo, e no poder sobrenatural do grande Rio Nílo.

Durante uma hora, ou mais, vagueámos pelas cercanias do mercado. Eu fiz de conta que fazia compras, procurando bugigangas e brinquedos para levar para Roma e oferecer a Diana, a Aulo e à minha nova neta, mas na realidade tinha a esperança de avistar novamente a bruxa e a mulher que a acompanhava. Mas não voltei a vê-las nesse dia.

Nessa noite, pedi a Meto que cancelasse a minha passagem no navio com destino a Roma.

- Por quê, papá? Fiquei convencido de que estavas ansioso por te ir embora.

375Encolhi os ombros.

- Andaste hoje a passear com Rupa não foi?
- Andei.

Meto sorriu.

- Se calhar acabaste por te divertir, não?
- Se calhar.

- Ainda bem! Alexandria é uma cidade fantástica. Deixa-te ficar mais uns dias, para descontraíres e contemplares as vistas. Queres que te arranje passagem para Roma a bordo do próximo navio, ou só para o seguinte?

- Não tenho a certeza de quando poderei deixar a cidade. Tenho a sensação de que... deixei qualquer coisa por resolver... aqui em Alexandria.

- Então avisa-me quando chegar a altura. Mas não te atrases demasiado. Assim que César voltar do cruzeiro pelo Nilo, partiremos para outra guerra, noutras paragens, e o mais certo é eu próprio partir de Alexandria.

Dia após dia, regressei ao mercado, umas vezes acompanhado por Rupa, outras pelos rapazes, outras sozinho. Dei todas as razões possíveis para o fazer, salvo a verdadeira.

Os vendedores do mercado começaram a reconhecer-me, uma vez que eu perguntava a todos pelas duas mulheres que tinha visto naquele dia. Alguns pareciam ter uma vaga ideia de quem eram as pessoas por quem eu perguntava, mas nenhum conhecia a identidade das mulheres, o seu paradeiro, nem sabia se voltariam ao mercado.

Uma vez e outra, Meto arranjou-me lugar a bordo de navios que partiam para Roma, e uma e outra, no último instante, eu pedia-lhe que cancelasse esses preparativos. Só mais uma ida ao mercado, dizia para comigo; se eu puder ver aquele sítio só mais uma vez ...

Mesmo com todas as maravilhas que Alexandria tinha para oferecer,

376Androcles e Mopso começavam a ficar impacientes. César e Cleópatra regressaram da viagem pelo Nilo. O círculo íntimo de César, de que Meto fazia parte, preparou-se para abandonar Alexandria. Meto começou a pressionar-me quanto aos meus próprios preparativos.

- Não achas que chegou o momento, papá? Depois de eu ter partido, não te será fácil conseguir passagem. Marcamos uma data?
- Sim, é melhor - respondi eu com relutância.

- A não ser que tenhas algum motivo de peso que te obrigue a ficar mais tempo. - Meto franziu o sobrolho. Eu estava a esconder-lhe qualquer coisa, e ele sabia que assim era.

- Não. Marcamos uma data e desta vez não altero as coisas à última.

- Muito bem. Há um navio que sai para Roma depois de amanhã. Mordi o lábio e senti uma dor pesada no peito.

- óptimo. Iremos a bordo.

No dia seguinte, que seria o meu último dia completo em Alexandria, dirigi-me sozinho ao mercado. Cheguei muito cedo e passei lá o dia inteiro. Os vendedores abanavam a cabeça; começavam a pensar que eu era louco. A velha sacerdotisa e a outra mulher nunca chegaram a aparecer.

Na manhã seguinte, Rupa e os rapazes acordaram cedo, prontos para embarcar com destino a Roma. O meu baú estava arrumado. Estava tudo a postos.

Meto prometera acompanhar-nos até ao pontão. Veio ao nosso encontro rejubilante de excitação.

- Imagina, papá! Vou convosco! César mandou-me para Roma. Precisa que alguém entregue um relatório a Marco António, e disse-me que eu sou a pessoa indicada para o fazer. Na verdade, penso que é uma espécie de licença, em compensação por... bem, por uma certa dose de experiências desagradáveis que tu e eu tivemos de suportar. Acabou por ser bom que tivesses adiado tanto o regresso, pois assim posso ir contigo!

377- Sim, é uma excelente notícia - disse eu, tentando mostrar algum entusiasmo. Apercebi-me de que Meto ficara desapontado com a minha reacção. Começámos a dirigir-nos para o porto.

Não se via uma nuvem no céu. Soprava um vento favorável de sul, que transportava o cheiro seco e a areia do deserto. Os rapazes correram para o convés, apesar de Meto os ter advertido de que teriam de se portar bem a bordo de um navio militar. Rupa, ajudado por um dos marinheiros, içou o meu baú para bordo. Eu tardava em abandonar o pontão.

- Está na hora, papá - disse Meto. - O capitão já mandou embarcar toda a gente.

Abanei a cabeça.
- Eu fico.

- Como? Papá, não há razão nenhuma para ficares. Não te percebo. Pensa em Diana! Tenho a certeza de que estás ansioso por ver a bebé...
- Rupa!

Rupa sentara-se sobre o baú que acabara de colocar no convés, a recuperar o fôlego. Levantou-se e aproximou-se de mim.

- Rupa, tens contigo a chave do baú, não tens?

Ele confirmou com um aceno de cabeça e meteu a mão por dentro da túnica para me mostrar a chave, que levava pendurada num fio que trazia à volta do pescoço.

- óptimo. Abre o baú. Mesmo por cima, está uma bolsa de cabedal com moedas. Traz-ma; vou precisar de algum dinheiro.

Meto abanou a cabeça.

- Ficas mesmo, não ficas?
- Fico.

- Mas por quê papá? Se tens de fazer alguma coisa, deixa-me ficar contigo para te ajudar. Ou pelo menos fica com um dos rapazes, ou com Rupa...

- Não! Aquilo que tenho a fazer, tenho de o fazer sozinho. Rupa levantou a tampa do baú. Mopso e Ândrocles acorreram com ar preocupado e, instantes depois, percebi por quê: espreitando por

378sobre a aresta do baú, com os olhos verdes muito abertos e a coleira de prata brilhando ao sol, estava Alexandre, o gato.

Arqueei uma sobrancelha.

- Com que então, raptaram um felino sagrado do palácio real! Se a Rainha Cleópatra descobre, é bem capaz de decidir atirar dois jovens escravos às águas do porto.

- Nesse caso, não podemos permitir que a Rainha descubra disse Meto com um sorriso malicioso. - Tenho a certeza de que o capitão não se importa; um gato pode caçar os ratos que houver no navio.

Rupa desceu com a bolsa das moedas e entregou-ma. Mopso e Ândrocles fecharam cuidadosamente a tampa do baú e olharam para todos os lados, para se certificarem de que mais ninguém Vira o que ele continha. Dei um abraço a Meto, e recuei.

- Olha pelos outros durante a viagem, Meto. Quando te encontrares com Diana, e com Eco...

- Sim, papá, o que queres que lhes diga? Eles ainda não sabem o que aconteceu a Betesda. O que queres que lhes diga a respeito dela? E a teu respeito?

- Diz-lhes a verdade, até onde for possível. Às vezes, Meto, a verdade tem de bastar.

- Diana ficará transtornada quando souber o que aconteceu à mãe. E quanto a ti, queres que lhe diga que, pura e simplesmente, te recusaste a partir do Egipto?

- Diz-lhes que os amo; eles já sabem. E diz-lhes que regressarei a casa assim que puder... se for essa a vontade dos deuses.

O capitão do navio fez a última chamada para embarcar. Os marinheiros corriam de um lado para o outro no convés, preparando-se para levantar âncora. Sem desviar os olhos de mim, Meto subiu a bordo. Rupa e os rapazes estavam ao lado dele. Enquanto o barco se afastava da doca, mantiveram os olhos sobre mim, perplexos.

O navio ganhou distância. Os rostos deles foram-se tornando cada vez mais pequenos, até que me foi impossível ler-lhes as expressões.

379Ergui os olhos para o grande farol que dominava o porto e pensei no primeiro vislumbre que tivera da sua chama, na noite em que seguia a bordo do Andrómeda com Betesda, antes de a tempestade desabar, pondo fim a todas as nossas expectativas.

380CAPITULO XXXI

Fui visitar a Rainha Cleópatra. Para minha surpresa, fui quase imediatamente conduzido à sua presença.

Cleópatra estava reclinada num canapé cor de púrpura coberto de almofadões dourados. Os escravos abanavam-na com penas de avestruz. Usava um vestido solto e vaporoso, que não escondia o facto de se encontrar grávida.

- Gordiano-chamado-o-Descobridór! Pensei que partias hoje para Roma, Juntamente com aquele teu filho soturno.

- Devia ter partido, Majestade. Mudei de ideias. Ela arqueou uma sobrancelha.

- Para poderes visitar-me?

- Em tempos, Vossa Majestade informou-me das circunstâncias especiais que rodeiam a morte no Nilo.

Ela lançou-me um olhar perscrutador e acenou lentamente com a cabeça.

- Aqueles que perecem no Nilo são abençoados por Osíris. O deus abraça o ka enquanto as correntes e as contracorrentes do rio enlaçam o junco vazio do corpo.

Abanei a cabeça.

- Tanta conversa sobre o Nilo sagrado! Eu Vi o Nilo. Estive enfiado até ao pescoço nas suas águas barrentas, à procura do corpo de Betesda. Senti a viscosidade do fundo sugar-me os pés. Senti o fedor das plantas

381que apodrecem ao longo das margens. O Nilo nada tem de belo. É fétido, malcheiroso, escuro e viscoso! o Nilo traz a morte.

- E, no entanto, também dá vida! - Cleópatra pousou a mão sobre o vente inchado. - Alguns homens - néscios ignorantes e melindrosos! - tecem os mesmos comentários quando se referem ao delta sagrado que as mulheres têm entre as suas pernas. E contudo, é daí que nascem as novas Vidas. Homens estúpidos, os que torcem o nariz diante de fluidos viscosos e odores intensos a fertilidade! Preferem brincar com as espadas e lanças, sólidas e brilhantes, e ver o sangue jorrar das feridas uns dos outros! Sim, o Nilo é tudo o que disseste que é: uma vasta extensão de água pastosa e de lama viscosa. Espalha-se pelo Egipto, levando a vida e a morte onde quer que vá. É isso que os deuses fazem. Dão a vida. Dão a morte - e a vida para além da morte.

- Isso é o que tu dizes; que aqueles que perecem no Nilo voltam a nascer. Mas ressuscitam?

- O que queres dizer com isso?
- Voltam a andar neste mundo?

Cleópatra olhou para mim com ar sombrio.

- Estás a pensar no meu irmão? É verdade que o corpo dele nunca chegou a ser encontrado, mas...

- Há outra pessoa cujo corpo nunca foi encontrado.

Ela franziu a testa e depois assentiu com um aceno de cabeça.
- A tua mulher?

- Sim.

- O que te leva a fazer essa pergunta, Gordiano?

- Deixa-me fazer outra. Disseste-me que conhecias a velha sacerdotisa do templo que fica à saída de Naucrátis.

já visitei o templo. Conheci-a.

É possível que eu a tenha visto aqui em Alexandria, num dos mercados?

- Ela é muito velha, mas nada a impede de vir à cidade, se o desejar. Até as sacerdotisas têm de arranjar provisões. Mas, se apenas tivesses

382visto a sacerdotisa, não estarias a fazer-me estas perguntas, pois não? Viste mais alguém.

- Vi uma mulher que estava com a sacerdotisa. Rupa também a viu. Mas não vimos a mesma mulher. Ele viu a irmã, Cassandra, cujas cinzas havia espalhado no Nilo. E eu vi... Betesda. O que me fez pensar...

- Que nenhum dos dois viu a mulher que reconheceu.
- Exactamente. A não ser...

- A não ser que ambos tenham visto o que pensaram ter visto. Cassandra e Betesda, de algum modo unidas pelo rio e erguendo-se do mundo dos mortos.

Estremeci.

- Esse tipo de coisas acontece no Egipto?

- Talvez. Mas julgo que preferes uma explicação mais racional e menos mística, não é verdade, Gordiano? Talvez as duas mulheres fossem muito mais parecidas do que tu pensavas. Talvez a mulher que tu e Rupa avistaram no mercado fosse de facto a tua mulher - que, afinal, não chegou a morrer.

Mas a mulher que eu vi parecia ser mais nova do que Betesda... A tua mulher estava doente da última vez que a viste, não estava, e já se encontrava doente há algum tempo? Se estivesse melhor, refrescada pelo Inverno ameno do Egipto e bronzeada pelo sol cálido do Egipto, com o cabelo grisalho tingido com hena, não pareceria mais nova?

- Betesda - viva! Mas como é isso possível? Nós procurámos e voltámos a procurar...

- Talvez ela não quisesse ser descoberta. Fizeste alguma coisa que a ofendesse?

Pensei em Cassandra. Betesda não tinha dado qualquer sinal de saber o que se passara entre nós, mas...

- Ou talvez lhe tenha acontecido alguma coisa no próprio rio sugeriu a Rainha. - Talvez se tenha esquecido de quem era e se tenha perdido.

383- Mas quando voltou a si, certamente teria vindo à minha procura...

- Onde? Tu tinhas sido levado dali para fora pelo exército de Ptolemeu; como poderia ela saber para onde tinhas ido? Mesmo que te tenha seguido até Alexandria, durante muitos meses ninguém pôde entrar em contacto com nenhum de nós, os que habitávamos aqui no palácio. Talvez a tua mulher tenha residido todo este tempo no templo de Osíris, à beira do Nilo, espiando a impureza que esteve na origem da sua doença, rejuvenescendo-se e recuperando a sua vitalidade ao serviço da sacerdotisa.

Soltei um suspiro rouco.

- Gostava muito de acreditar nisso.

- Mas temes que seja uma esperança vã?
- Exactamente!

- A única solução é fazeres o que toda a vida fizeste; descobrir a verdade, Gordiano. Vai ao templo que fica à saída de Naucrátis. E vê o que descobres.

- E se Betesda não estiver lá?

- Encontrá-la-ás. Se não no templo, no rio. Tens de a encontrar, e tens de te reunir a ela, de uma maneira ou de outra. Não é isso que pretendes? Não é isso que o teu coração deseja?

É! Então, vence o medo, Gordiano. Vai ao templo que fica à beira do Nilo. E faz o que tiveres de fazer para te reunires à tua mulher.

Despedi-me de Cleópatra abalado e a tremer de dúvidas, mas decidido a seguir o conselho que ela me dera. A Rainha sorria quando me fui embora. Por ter partilhado comigo a sabedoria sagrada de ísis? Ou porque, se eu decidisse fazer o que me indicara, era a última vez que me via?

Fiz a viagem num barco dos canais, prosseguindo depois a cavalo, pelo caminho paralelo ao rio. Viajando sozinho, sem o conforto e a distracção

384proporcionados pelos companheiros de viagem, apercebi-me de que havia muitos anos que não viajava assim. E recordei os meus tempos de juventude, em que partia em viagens sem saber quanto tempo elas durariam ou para onde me levariam, seguindo a estrada como um homem segue o seu destino, umas vezes ansioso, outras exausto pelos rigores da viagem, mas o mais das vezes inundado por uma sensação de liberdade e pela expectativa de deparar com algo surpreendente e maravilhoso depois da curva seguinte. Sabia-me bem estar sozinho com os meus pensamentos, contemplando a paisagem ao longo do canal, e depois a paisagem que se espraiava pelo caminho fora. À medida que me aproximava dos arredores do templo, sentia-me apaziguado e, ao mesmo tempo, inundado de expectativa.

O tempo estava ameno. As palmeiras agitavam-se à brisa suave que vinha de sul. Os camponeses trabalhavam nos campos, recuperando diques de irrigação e reparando moinhos de água, preparando-se para as cheias anuais. Alexandria parecia estar longe; Roma, ainda mais longe.

Este era o Egipto que eu recordava dos meus tempos de juventude, o Egipto que tanto ansiara por revisitar. Senti o Sol bater-me na cara, aspirei os cheiros do Nilo que dá a vida, e senti-me transportado no tempo, como se todos os anos de permeio nunca tivessem acontecido. Era de novo o rapaz que havia sido quando aportei pela primeira vez ao Egipto, com muito pouco a que chamar meu, desobrigado de tudo e de todos, mas confiando no futuro, como só os jovens confiam.

Cheguei a uma zona, entre o rio e a estrada, em que a folhagem se tornava mais densa e mais alta. Embora não conseguisse vê-lo, sabia que o templo estava algures, no meio daquela densidade verde. Prendi o cavalo e estiquei as pernas entorpecidas e magoadas de um homem velho que já não está habituado a montar. Nem este aspecto, que me recordava da fragilidade do meu corpo, abalou a ilusão de ter recuado no tempo.

Meti-me pelo meio de uma cortina de videiras suspensas e detectei uma vereda por entre a folhagem. O jogo de luz e sombras confundia

385a minha percepção das distâncias. O isolamento do local agia sobre mim como um encantamento. A vereda curvava ora num sentido, ora noutro e, a dada altura, comecei a pensar que estava irremediavelmente perdido. Nisto, desemboquei numa clareira cheia de sol e vi o templo diante de mim. As libélulas atravessavam os feixes de luz. A água gorgolejava e esparrinhava num charco de nascente ao lado do templo.

Subi os degraus. Cheguei ao alpendre e entrei no santuário de Osíris. Fui envolvido pelo odor a mirra queimada. A câmara estava fracamente iluminada. Uma silhueta destacou-se da penumbra e foi-se aproximando, até que distingui as feições ressequidas e gastas da sacerdotisa. Ouvi um miado e baixei os olhos para o gato preto que se enroscava contra os seus tornozelos ossudos.

Tratar-se-ia da mesma mulher que eu avistara no mercado em Alexandria, ou ter-me-ia a memória pregado uma partida? Dir-me-ia a verdade?

- Sacerdotisa - comecei. - Estive aqui há muitos meses, no Verão passado, com a minha mulher. Ela estava doente. Pediu-te conselho. Tu disseste-lhe que se banhasse no Nilo. Recordas-te?

A anciã encolheu um ombro contra o ouvido e olhou para o meu rosto com atenção.

- Oh, sim, recordo-me.

- E, não há muito tempo, pareceu-me ter-te visto num dos mercados de Alexandria. Foi a ti que vi? Estiveste na cidade?

Ela olhou-me demoradamente e depois abanou a cabeça.

- Não é essa a pergunta que queres realmente fazer-me. Não foi para saber isso que aqui vieste.

- Não, não foi. Tens razão. Vim à procura de Betesda. Ela está aqui?

Quando aqui chegaste, a tua mulher estava muito doente; mais doente do que possas imaginar. O seu corpo estava fraco, mas era o espírito que tinha adoecido. Estava às portas da morte. Eu pouco podia fazer por ela, excepto encomendá-la aos cuidados do rio.

386- E o rio conseguiu curá-la?

- Vai até ao rio. Procura o sítio onde a viste pela última vez. Vai descobrir a verdade.

As palavras da sacerdotisa ecoavam as de Cleópatra. Estremeci, tal como estremecera na presença da Rainha. Saí para o alpendre do templo, a precisar de recuperar o fôlego. Quando voltei a entrar no santuário, a sacerdotisa tinha desaparecido, bem como o gato. A pequena câmara encontrava-se vazia, à excepção de uma lamparina que espirrava e de um turíbulo de mirra do qual se desprendia o último fiapo de fumo.

Desci os degraus, saltei por cima do charco de nascente e meti pelo caminho que ia dar ao rio. Cheguei a uma bifurcação e hesitei, tentando lembrar-me por qual das vias se chegava às águas. Lembrava-me de que uma delas terminava abruptamente num emaranhado de vegetação, de onde vira as cinzas de Cassandra turvar a corrente das águas; a outra dava acesso ao sítio onde Betesda desaparecera. Mas qual delas era qual? A memória falhava-me e detive-me um longo momento, embaraçado. Tratava-se de um problema simples, mas a minha mente estava tão confusa, que tive de proceder passo a passo, como se fosse uma criança. Betesda tinha entrado no Nilo num ponto mais a jusante do que aquele onde as cinzas de Cassandra tinham sido lançadas ao rio; se o rio estava diante de mim, e se as águas corriam da direita para a esquerda, então o atalho da esquerda devia conduzir para jusante; era, pois, por este atalho que eu devia seguir.

O trilho descia a direito. Por entre as folhas, comecei a entrever manchas de sol sobre a água verde. Por fim, cheguei à orla do rio. Era um local isolado e silencioso, com um dossel de folhagem e juncos a toda a volta. Betesda não estava em parte nenhuma. Chamei por ela. O meu grito despertou um bando de pássaros que se agitou no meio da vegetação rasteira, crocitou e levantou voo em direcção ao alto.

Despi a túnica e a tanga. O ângulo de incidência do sol era tal, que o rio inteiro parecia repicar de luz dançante. Eram tantos os pontinhos

387de luz que se reflectiam do rio na minha nudez, que tive a sensação de estar envolvido num vestido de lantejoulas solares. Os feixes de luz reflectida ofuscavam-me e aqueciam-me a pele.

Entrei no rio. O fundo sólido e arenoso depressa deu a vez a uma pasta viscosa que me sugava os pés. A água chegou-me ao peito e, um passo depois, ao queixo.

- Oh, Betesda! - murmurei. Os juncos moviam-se ao sabor da brisa tépida. A luz do Sol tremeluzia sobre as águas. O semblante plácido do Nilo não dava sinal de estar preocupado com o meu destino, ou com o destino de qualquer mortal; simultaneamente, porém, o rio parecia acolher-me. A sua escuridão morna oferecia consolo; a sua vastidão proporcionava um termo à vaidade humana; a sua intemporalidade abria uma porta de acesso à eternidade.

Mais um passo e a água cobriu-me a cabeça. Abri os olhos. A água era turva e verde, mas a superfície, acima de mim, assemelhava-se a um lençol de prata martelada. Abri a boca para que o Nilo me penetrasse nos pulmões. Uma enchente febril inundou-me o peito. O dossel de prata que me cobria extinguiu-se. A água turva ficou negra.

Senti umas mãos sobre o meu corpo. Do manto negro, surgiu um rosto. Era o rosto de Cassandra! Não - era o rosto de Betesda, de feições tão suaves e lisas como quando a conhecera em Alexandria. Betesda poisou a boca sobre a minha. O beijo sugou-me o Nilo dos pulmões e cortou-me a respiração...

Abri os olhos, pestanejando para sacudir as gotas de água das pestanas. jazia de costas sobre a areia da margem. Um dossel de folhagem agitava-se por cima de mim; as folhas pareciam feitas de prata. Para lá das folhas, o céu era uma mancha de um sobrenatural cor de púrpura, com filamentos de azul-marinho e vermelhão.

Senti a tepidez de um corpo ao lado do meu; estava alguém deitado comigo na areia. Ela agitou-se e soergueu-se, apoiando-se sobre um cotovelo para poder olhar para mim.

388- Betesda! - murmurei, e tossi um pouco. Tinha o gosto do Nilo na boca.

- Marido - sussurrou ela, numa voz cheia de amor e ternura. Beijou-me.

- Betesda, onde estamos? Ela franziu o sobrolho.

- Estás assim tão confuso, marido, que não te recordas de ter entrado no Nilo?

- Sim, mas... estamos vivos... ou mortos?
- Isso importa? Estamos juntos.

- Sim, mas... já somos imortais?

Betesda riu-se. Há muito tempo que não a ouvia rir-se daquela maneira, tão despreocupada e descontraída.

- Não sejas tolo, marido. A resposta não é óbvia?

- Não, não é inteiramente óbvia. - O céu não se assemelhava a nenhum céu de que eu tivesse memória. Ou seria aquela estranha paleta de cores meramente um fenómeno resultante do encontro entre a luz do Sol, a névoa marinha, e uma tempestade de areia que andasse ali perto? - Onde estiveste durante todos estes meses Betesda? Ela sorriu.

- Por agora, deixa-me ser eu a fazer as perguntas. A minha neta já nasceu?

- Já! Diana escreveu-me uma carta - mas como soubeste que era uma rapariga?

Ela encolheu os ombros.

- Foi um palpite. Quero vê-la. Temos de descobrir uma forma de regressar a Roma, o mais depressa possível.

Sorri.

- Quer dizer que estamos vivos? Betesda arqueou uma sobrancelha.

- Não foi isso que eu disse. Os espíritos dos mortos não podem viajar?

 

 

                                                                  Steven Saylor

 

 

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