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A SENTINELA - P.2 / Richard Zimler
A SENTINELA - P.2 / Richard Zimler

                                                                                                                                             

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A SENTINELA

Segunda Parte

 

Decidi não fazer notar que frequentemente as pessoas que tencionam matar-se oferecem aos outros as coisas que mais estimam, mas Sylvie devia já ter as suas suspeitas e soltou um som curto, estrangulado, ao mesmo tempo que passava a mão pelo pescoço. Quando Morel a fitou preocupado, disse-lhe que estava a precisar de mais um café. Talvez receasse que ele se fosse abaixo se soubesse a verdade. Pedi também um café para mim; participar naquele pequeno ritual talvez me ajudasse a conquistar a confiança deles.

Enquanto enchia a cafeteira, Morel disse-me que Susana descera ao piso inferior às quatro da manhã por não conseguir dormir. Tinha dado com Nero sentado na cozinha - «com um ar infeliz» - e deixara-o ir para o jardim. Morel fora ter com ela passado pouco tempo. Ficaram a conversar na sala. Susana foi ver como estava Sandi cerca das cinco e um quarto e viu a caixa dos comprimidos - Victan - na mesinha de cabeceira, ao lado de uma garrafa de vodca meio vazia. A respiração dela era perigosamente fraca.

A Susana chamou o 112 - disse Sylvie.

Morel começou a deitar a água fervente no filtro do café.

Algum de vocês mexeu em alguma coisa no quarto da Sandi? - perguntei.

Procuramos alguma carta - respondeu Morel-, mas não encontramos. Não tiramos nada do sítio.

Ótimo. Preciso de dar uma vista de olhos. Mais tarde, virá cá um técnico da Judiciária. Onde está a Susana?

Na cama - respondeu Sylvie. - Infelizmente, vamos ter de a acordar daqui a pouco.

Porquê?

O funeral do Pedro. É hoje, às duas da tarde. - Notando a minha surpresa, encolheu os ombros e acrescentou: - É demasiado em cima da hora para mudar a data. Há amigos que vêm de Paris.

Levei os dedos à testa para pressionar as têmporas: a palavra «funeral» desencadeara um pulsar insistente. Gabriel já estava atrás de mim, observando e à espera.

Preciso de mostrar uma coisa a Susana - disse eu a Sylvie, na esperança de que uma conversa ativa evitasse que G tomasse o comando.

Tirei do bolso o retrato da mulher que tinha sido vista a sair da casa de Coutinho na manhã da sua morte e expliquei as razões que me levavam a estar tão interessado em identificá-la, mas nem Sylvie nem Morel a reconheceram. Assim como nunca tinham visto uma tatuagem com o número trinta.

Não me parece que sirva de alguma coisa mostrar o desenho à Susana neste momento acrescentou Sylvie. - O médico dela esteve cá e deu -lhe um sedativo.

Morel estendeu-me o café.

Leite ou açúcar? - perguntou.

Inspetor...? - Sylvie levantou as sobrancelhas com uma expressão interrogativa.

Estava voltado para ela, o que me pareceu estranho. Tinha também uma esferográfica na mão. Se precisa de papel, posso ir buscar algum - disse Sylvie.

Levei algum tempo a compreender o que me estava a dizer. Só então respondi:

Muitas vezes escrevo na mão quando não quero correr o risco de me esquecer de alguma coisa importante.

Leite ou açúcar? - repetiu Morel,

Nada - respondi. Peguei na chávena que me estendia e sentei-me de novo.

Os rabiscos na palma da mão estavam escritos no código que Ernie e eu tínhamos inventado em crianças. Decifrei, dizia: «A boa esposa queria que tu compreendesses que nesta casa aconteceram crueldades. E por isso... »

A mensagem acabava de forma abrupta, provavelmente porque Sylvie tinha interrompido G.

Depois de um gole de café, disse a Sylvie:

Queria pedir-lhe que levasse os desenhos lá acima a Susana.

Acorde-a se for preciso. Diga-lhe que Monroe precisa da ajuda dela.

E pergunte-lhe se a filha tinha o anel de turquesa posto.

Mal Sylvie saiu, Morel sentou-se a meu lado e ofereceu-me um cigarro. Pela primeira vez em anos, aceitei. Era possível que apenas quisesse uma curta trégua nos meus hábitos, ou talvez procurasse o conforto de um antigo vício, mas e se G se tivesse esgueirado sorrateiramente através da fronteira entre nós e influenciado a minha decisão?

Fumar fazia-me sentir à beira de um precipício - qualquer movimento em falso far-me-ia deitar tudo a perder.

Morel levantou-se e passou o dedo ao longo de uma fiada de azulejos decorativos na parede, traçando os contornos do esmalte brilhante, amarelo e azul. Observando-o, apercebi-me de que, à medida que envelhecem, pela maneira como se movem - a sua vacilante graciosidade, os homens se tornam um teste à nossa solidariedade e ao nosso medo de morrer.

Quando reparou que o observava, voltou-se para mim, de novo com as lágrimas nos olhos, como se tivesse visto na minha expressão maior empatia do que estava à espera.

Tocado pela solidão que se lia nos seus olhos, disse-lhe:

Foi uma grande perda para si.

Conheço Sandi desde que nasce - explicou. - Sou o padrinho.

Acha que Susana estará em condições de falar comigo mais logo?

Duvido muito. - Sem mais explicações, voltou a fixar o olhar nos azulejos.

Tem alguma ideia sobre quem possa ser o assassino do seu amigo? - perguntei. Experimentei uma segunda fumaça no cigarro, mas soube-me ainda pior do que a primeira.

Não, nenhuma.

A princípio, pensei que poderia ter sido o senhor a matá-lo.

Ele abanou a cabeça, como que desapontado comigo, e voltou a sentar-se. Ao fim de algum tempo, fechou os olhos como se estivesse a ouvir uma música ao longe. Aspirando profundamente o cigarro, deixou sair as volutas de fumo pelas narinas. A sua distância parecia uma espécie de perfeição, o que me levou a pensar se não teria também sido sedado pelo médico de Susana.

Quando lhe fiz a pergunta, respondeu:

Tomo um comprimido que Sylvie me dá. - Pôs as mãos ao alto como que a mostrar que não tinha por onde escolher. - O mesmo comprimido que Sandi toma - acrescentou numa voz amargurada. Pelo modo como apagou o cigarro, ausente, e, por isso, com excessiva persistência, tive a impressão de que estava a considerar até onde poderia ir no desabafo. Sabe, o que acontece é muito injusto, inspetor. Pedro tem tristeza demasiada na sua vida mais do que um homem deve ter - replicou.

A que está exatamente a referir-se?

O primeiro casamento é uma grande tristeza.

«Porque estará ele a dizer-me isto?», pensei para comigo. Mais tarde, nessa semana, quando divagava no meu quarto do hospital, cheguei à conclusão de que Morel devia estar a dar-me uma pista - talvez sem ter perfeita consciência disso - sobre as razões por que o amigo tinha sido assassinado.

Então o que aconteceu durante o primeiro casamento? - perguntei.

Frédérique, sua mulher... ela vira os filhos contra Pedro. Ela diz ele engana-a, o que é verdade, e eles divorciam. Ela diz a seus filhos que Pedro não quer dar dinheiro e que ele tenta roubar a casa. - Morel fez um gesto de desdém. - Isso não é verdade. Mas todos estão tão zangados. É uma má ópera francesa, pior que Offenbach! Então Pedra desiste. Ele dá a Frédérique o que ela quer. Ele paga para Marie e Pierre ter uma boa educação, mas mesmo assim eles não falam com ele. A última vez que ele vê os filhos... deve ser há quinze anos. Os meninos nessa altura são adolescentes. Isso é porque ele está tão sempre com Sandi.

Uma segunda oportunidade - comentei.

Exactement.

Frédérique ainda é viva?

Provavelmente, mas não falo com ela há anos.

Estará em Paris?

Ou Bordéus. Ela é de lá.

E Marie e Pierre?

Não tenho ideia.

Morel pestanejou, semicerrando os olhos, e voltou ao seu estado de apatia. Ou fingiu. Pareceu-me que depois de ter dito o que precisava de dizer estava ansioso por se escapar daquele tempo e espaço.

Havia um exemplar do Público dobrado em cima da bancada junto ao fogão. Peguei nele e fui até à janela. Talvez a opinião de Morel sobre o divórcio fosse distorcida. Podia ser que Coutinho tivesse tentado arruinar a vida da ex-mulher. Quem sabe se algum trauma recente não teria ressuscitado todo o sofrimento passado e a tivesse levado a vingar-se do ex-marido ao fim de tanto tempo.

Em cima do peitoril da janela havia um cinzeiro de cristal, ainda com duas pontas de cigarro da noite anterior. Juntei-lhes uma terceira.

Não encontrei nenhum artigo sobre o crime no jornal, o que significava que quem passara a informação para os jornais não tinha mordido o meu anzol. Ao ouvir passos nas escadas, voltei-me para a porta e descobri que o espaço girava lentamente à minha volta. Quando estendi a mão para o peitoril da janela para me segurar, o jornal que tivera nas mãos estava caído no chão. Sylvie entrou na cozinha quando eu o apanhava. Agora tinha a esferográfica na mão esquerda.

Inspetor, o senhor está bem? - perguntou ela.

Por instantes perdi o equilíbrio - respondi. - Que tal a Susana?

Nunca viu a mulher com a tatuagem do seu desenho. Disse também que a Sandi não tinha o anel no dedo. Não faz ideia de onde ele possa estar.

E disse que faria o possível por falar consigo ao fim da tarde. Mas não promete.

Ao agarrar no desenho, reparei que a mensagem na minha mão estava agora completa. G tinha escrito: «Então a miúda bateu a bota completamente sozinha?»

 

No hall de entrada, liguei para David Zydowicz e contei-lhe o que se passara com Sandi, acrescentando que queria que fosse ele a autopsiá-la. Abafando a voz, pedi-lhe para procurar nódoas negras e outros sinais indicadores de que ela fora forçada a tomar uma overdose. Ele concordou e liguei a Luci pedindo-lhe para ir ter comigo imediatamente.

Estava eu a limpar a mensagem de G da mão quando tocou a campainha. Sylvie precipitou-se da cozinha, apertando o leque contra o peito, e abriu a porta a duas raparigas.

Bom dia, minha senhora - disse a mais nova. A franja negra chegava-lhe às sobrancelhas. Tinha o ar de uma estrela pop dos anos de 1960, uma aspirante a Cher de catorze anos.

A outra rapariga era alta e mais esguia, e tinha puxado o cabelo loiro e comprido para a testa. Agarrava-o como se fosse uma tábua de salvação, e mantinha os lábios cerrados. Usava uma blusa branca, larga, com mangas de sino compridas, o que parecia dar-lhe uma graça de bailarina.

As raparigas não se moveram, retidas pela timidez.

Entrem, entrem! - convidou Sylvie, e apresentou-mas como sendo as melhores amigas de Sandi.

Mónica - a aspirante a Cher - deu-me um beijinho na cara. Joana - a bailarina tensa - estendeu o braço o mais que podia para me cumprimentar.

A Sandi... está bem, minha senhora? - perguntou Mónica numa voz hesitante.

Vamos sentar-nos um bocado na cozinha para eu vos contar tudo - propôs Sylvie. Conduzindo as raparigas diante de si, lançou-me o olhar de quem tem pela frente uma tarefa quase suicidária.

Joana foi a primeira a entrar na cozinha. Morel estava ao fundo, junto à janela, passando a mão pela barba crescida.

Joana! - exclamou ele com viva surpresa.

Quando o viu, a rapariga pareceu ficar sem fôlego e levou as mãos à boca. Mónica, pondo-se ao lado da amiga para ver o que a tinha deixado tão assustada, rompeu em lágrimas.

Oh, mes petites, qu' est-ce qu'il y ar - perguntou ele numa voz perturbada. - Que se passa? Mónica encurvou os ombros e apertou a mão contra o coração.

Foi só... foi só porque fomos apanhadas de surpresa - respondeu em francês, embora me parecesse manifestamente mentira.

Joana também deve ter percebido como soava falso e, para disfarçar o erro, acrescentou:

Não fazíamos ideia de que estava cá. E ultimamente temos andado muito nervosas. Desculpe... peço imensa desculpa.

Não faz mal, não se preocupe - tranquilizou-a MoreI.

Encaminhou-se para as raparigas de braços abertos e deu-lhes um abraço. Ao separar-se de Joana, pegou-lhe no queixo com a mão e fitou-a com um olhar caloroso, de um júbilo paternal. Ela respondeu com um sorriso de comprazimento. Era uma atriz acabada.

«Nada do que se vê entre eles é o que parece» pensei, ainda que a necessidade de decifrar todas as suas interações me desse a certeza de ter uma pequena vantagem sobre eles - ao fim e ao cabo, estava agora preparado para notar todas as tentativas de se enganarem uns aos outros e a mim.

Como é que se conhecem? - perguntei.

Conhecemos todos a última vez que Sandi vem a França - respondeu ele. - Joana e Mónica... elas vêm com ela. Passam um fim de semana comigo na minha casa na Normandia. Até montam meus cavalos! Passamos bons tempos juntos, não?

Muito bons - retorquiu Joana, e acenou convictamente com a cabeça para me convencer de estar a dizer a verdade.

«É importante para ela enganar toda a gente que aqui está, inclusive eu», pensei, o que significava que o perigo representado por Morel real ou suposto - era tão grave que nem mesmo a polícia a podia proteger.

Sylvie pegou numa cadeira para si e pediu às raparigas para se sentarem, uma de cada lado. Apertou nas suas as mãos delas. Disse-lhes que tinham de ter coragem.

Ao ouvir o que acontecera, Joana levantou-se de um salto, respirando com dificuldade, e Mónica rompeu em soluços. Sylvie fez sinal a Morel para que ajudasse Joana enquanto ela confortava Mónica. MoreI convenceu a rapariga a sentar-se de novo e ajoelhou-se a seu lado, mas, quando tentou pegar-lhe nas mãos geladas para as aquecer, ela soltou-se e precipitou-se para o canto oposto do compartimento, junto à porta para o jardim. Encolhendo-se no canto formado pelas duas paredes - uma criança pequena procurando enfiar-se dentro dos tijolos e do reboco em busca de segurança -, começou a chorar. Sylvie aproximou-se e, pondo-se atrás dela, agarrou-a pelos ombros.

Morel tirou um cigarro do maço, mas deixou cair o isqueiro. Tendo-se baixado

Tendo­ se baixado para o apanhar, os seus olhos surpreenderam o meu olhar.

Dois homens espelhando a sua inutilidade, reconhecendo que apenas Sylvie seria capaz de ajudar as amigas de Sandi, porque era mu­lher.

Morel levantou as mãos, deixando-as cair de seguida, como que a exprimir o nosso fracasso mútuo, e durante o segundo que levou a fazer isso tive a impressão de compreender mais acerca dele - acerca do facto de ter sido apanhado numa série de acontecimentos que escapavam ao seu controlo ou autoridade - do que na meia hora anterior.

Infelizmente, aquela minha recente perceção de quão perdido se sentia fez com que a reação da miúda para com ele parecesse inexplicável.

Assim que as lágrimas se acalmaram, Joana voltou em passo arrastado para a mesa, de cabeça baixa, desculpando-se, dizendo numa voz fraca, frágil, embaraçada - apegando-se à insignificância para se sentir mais segura -, que não se sentia a mesma desde que soubera da morte do pai de Sandi.

Joana contou-nos que Sandi tinha ligado para ambas na tarde anterior. Assoando-se a um lenço de papel, disse que Sandi lhes contara como o pai tinha morrido, mas que se recusara a dizer como se sentia.

As três amigas combinaram voltar a falar nesse mesmo dia ao fim da tarde, mas Sandi não voltou a ligar a nenhuma delas. Mónica e Joana tinham tentado, uma e outra, falar com ela, mas o telemóvel estava sempre desligado. Por isso, acabaram por decidir ir a casa dela.

Onde está o telemóvel da Sandi? - perguntei a Sylvie.

Tem-no a Susana - disse ela.

Quando interroguei as miúdas sobre as razões por que Sandi andava tão perturbada nos últimos meses, Mónica explicou-me que ela andava a ser cruelmente atormentada pelos rapazes da escola por ser o que eles chamavam uma «menina rica mimada». Aparentemente, tornara-se um alvo fácil para os colegas cujos pais tinham perdido os empregos ou visto os salários cortados desde o princípio da crise económica com que nos debatíamos. Sandi começou a ver-se a si própria como uma pária. Tinha decidido assumir uma imagem mais rebelde.

Foi por isso que cortou o cabelo tão curto? - perguntei.

Sim. Pensava que isso acabaria com as provocações - disse Mónica. - Mas não funcionou acrescentou com amargura. - Os rapazes começaram foi a gozá-la por ter um aspeto esquisito. Para que Morel compreendesse, Sylvie repetiu-lhe em francês o que Mónica dissera.

Também acha, Joana? - perguntei. - Acha que os problemas da Sandi começaram por andarem a troçar dela?

A miúda mordeu os lábios e fez um aceno de assentimento. Morel deve ter chegado à mesma conclusão que eu; juntou as mãos numa posição de quem reza e implorou em francês:

Ma petite, se sabes de alguma coisa que nós desconheçamos, peço-te por tudo que nos digas. Joana esbugalhou os olhos e lançou a cabeça para trás, como se ele a tivesse encostado à parede. Julguei que o iria acusar aos gritos de ter planeado o assassinato do pai de Sandy e ameaçado a sua amiga. Mas, com um ar de deplorável derrota, limitou-se a encostar a cabeça à mesa e a chorar.

O olhar de esperança perdida que me lançou um momento antes de as lágrimas lhe inundarem os olhos deu-me a entender que queria que eu percebesse que Morel era um inimigo tão superior às suas capacidades que não havia esperança para ela. Para me distanciar do seu desespero e pensar melhor em tudo aquilo, disse que precisava de fazer uma chamada e saí para o jardim. Seria a ideia do divórcio tão odiosa para Sandi que ela teria implorado ao pai que não o permitisse? Morel poderia ter descoberto o papel desempenhado por ela, e, quando isso aconteceu, ter-se virado contra Sandi e tê-la ameaçado. Vendo que, mesmo assim, a rapariga não desistia das suas objeções ao divórcio, Morel decidira libertar Susana recorrendo à única maneira que lhe parecia possível: arranjar forma de lhe matar o marido.

Enquanto dava voltas ao jardim, compreendi que, se tudo aquilo fosse verdade, então Sandi teria concluído que Morel era o responsável pela morte do pai. Poderia ter-lhe dito na noite anterior que suspeitava de que fora ele a planear - ou mesmo a levar a cabo - o assassinato do seu velho amigo. Talvez ele a tivesse dominado e forçado a engolir uma overdose de tranquilizantes.

Quando voltei para a cozinha, Sylvie acariciava o cabelo de Mónica. Os olhos da rapariga estavam vidrados pela incredulidade. Joana repousava a cabeça no tampo da mesa, de olhos fechados.

MoreI, em pé junto da janela das traseiras, fumava com ar ausente, os olhos postos no céu. Nada na sua expressão ou postura indicava qualquer preocupação com o que as duas raparigas pudessem dizer sobre ele. Sentei-me ao lado de Joana e pousei-lhe a mão no ombro. Quando ela abriu os olhos, disse-lhe que lhe agradecia a ajuda que me dera. Sentindo o seu gesto reticente, levantando e deixando cair as costas, vi-me como que num daqueles sonhos em que fazemos coisas que nunca faríamos na vida real.

Quando tocaram à campainha, Morel prontificou-se a ir ver quem era. Segundos depois, Luci entrava na cozinha atrás dele. O modo rígido e artificial como me sorriu fez-me crer que andava a repensar a sua carreira na polícia.

Pedi a Sylvie e às duas miúdas para esperarem ali enquanto eu e Luci examinávamos o quarto de Sandi. Para afastar Morel de Joana e Mónica, pedi-lhe que nos acompanhasse.

Encontrámos uma garrafa de vodca Absolut e uma embalagem vazia de Victan em cima da mesinha de cabeceira da rapariga, junto a um livro de vampiros que andava a ler - Queimada - e dois dos três CD em que eu tinha reparado no dia anterior: Day & Age, dos Killers, e Let England Shake, da P. J. Harvey. A capa do CD que faltava tinha uma mulher jovem, de pele clara, mas de momento não conseguia lembrar-me nem do título nem do nome da banda.

Via que Luci estava à espera de que eu lhe pedisse para me dizer o que se passava, mas não havia tempo.

Se começar a ver que não vai aguentar - disse-lhe -, saia do quarto um bocado.

Não, chefe, não é preciso - respondeu, num tom profissional.

Estou bem.

Calcei as luvas e dei um abanão a Queimada, mas não vi nenhuma carta de suicídio nem outra coisa cair de entre as páginas do livro. Nos dois CD também não havia nada de anormal.

O texto da contracapa do livro dizia que era sobre uma jovem vampira chamada Zoey Redbird com um coração destroçado e uma «alma desfeita».

A cama estava por fazer. As bonecas e os animais de peluche estavam juntos, muito bem arrumados em cima da secretária. Dei-lhes uma rápida vista de olhos, enquanto Luci via as gavetas da cómoda. Verifiquei também debaixo da cama, mas desta vez não havia roupas desarrumadas, nem faca colada no canto do colchão.

Quando emergi de sob a cama, Morel perguntou-me se podia ir ver como estava Susana.

Tudo bem, mas isto agora é uma investigação oficial - disse-lhe num tom severo. - Por isso, não quero que fale com a Joana nem com a Mónica sem eu estar presente. E traga o telemóvel da Sandi quando voltar para baixo.

Num palpite, pensando que Sandi poderia ter deixado o anel - ou quem sabe um bilhete de suicídio - no sítio onde antes encontrara coisas de valor para ela, tirei o colchão de cima do estrado. A um canto via-se o seu computador portátil. Parecia estar ali à minha espera. Estremeci perante a ideia de que Sandi sabia que eu iria levantar o colchão depois da sua morte por já o ter feito antes. Tinha subestimado a sua inteligência.

Talvez tenha deixado uma explicação para o seu suicídio no portátil - disse Luci.

Penso exatamente o mesmo. - Passei-lhe o computador. - Dê-lhe uma vista de olhos, mas, se não encontrar nada de interessante, leve-o ao Joaquim. Quero que ele veja todos os ficheiros criados desde sexta - feira.

Luci sentou-se à secretária com o portátil, enquanto eu procurava nas prateleiras o terceiro CD que Sandi tinha em cima da mesinha de cabeceira. Uma compressão repentina nas costas deu-me a entender que Gabriel exigia a minha atenção.

Não descobri o CD que faltava. O relógio do quarto marcava 9h47. Fui espreitar o corredor. Não havia sinal de Morel.

Pegue no seu caderno de apontamentos - disse a Luci.

Quando recobrei os sentidos, encontrava-me no andar de baixo, na sala de estar. Tinha nas mãos o CD em falta: Lungs, de Florence + The Machine. Apercebi-me de que, momentos antes, dentro de mim, era noite, muito depois da meia-noite, e que eu fugia a correr com o meu irmão.

Luci estava sentada no sofá, estendendo-me o anel de turquesa de Sandi. Disse-me alguma coisa, mas apenas apreendi alguns fragmentos. Abanei a mão a pedir-lhe que esperasse um momento e fechei os olhos até conseguir formar alguma palavra. Quando os voltei a abrir, ela declarou:

O chefe pediu-me para lhe guardar o anel.

Peguei nele e examinei-o.

Onde é que o encontrei?

No armário de medicamentos na casa de banho dos pais. Ao que parece, foi onde a Sandi encontrou os comprimidos para dormir da mãe.

Mostrei o Lungs.

E isto?

No armário das bebidas. Onde a Sandi encontrou a vodca.

«Quem leva uma coisa, tem de deixar outra em seu lugar...» Sandi confiara que depois da sua morte eu me lembraria das últimas palavras que me dirigira - e que descobriria os seus tesouros escondidos. O que queria dizer que já decidira pôr termo à vida quando falámos na cozinha na sexta-feira - e provavelmente tinha já um plano traçado. Rapariga espantosa! Se ao menos tivesse ouvido o que ela não ousou dizer-me!

Estava à espera de encontrar dentro da caixa do CD um recado para mim ou para a mãe, mas nem sequer tinha as letras das canções. Devia querer que quem encontrasse o disco o ouvisse. Ela, ou outra pessoa, escrevera à mão o título num disco sem mais nada, o que provavelmente significava que tinha sido descarregado da internet.

De volta à cozinha, Mónica disse-me que Lungs era o CD favorito de Sandi, e que ela citava muitas vezes partes das letras das canções, mas nem ela nem Joana se lembravam dos versos de que a amiga tanto gostava.

Tinham as duas, um ar infeliz e tenso. Pedi-lhes que não saíssem até termos a possibilidade de falar e pedi a Luci que as levasse para fora.

A sós com Sylvie e Morel, avisei-os de que os jornalistas poderiam começar a telefonar para eles e pedi-lhes que não falassem com ninguém acerca do caso.

Já começaram - disse Sylvie, com um franzir de sobrolho irritado. - Embora não faça ideia de como arranjaram o meu número.

É um país pequeno. Um amigo dá o seu número na sexta-feira e na segunda-feira já metade de Portugal o sabe.

No exterior, Luci segurava o portátil de Sandi debaixo do braço enquanto conversava com as duas miúdas. Nessa altura já tinha decidido falar a sós com Joana, que me transmitira de forma muito clara o seu silencioso desespero.

Onde mora? - perguntei a Mónica.

Na Alameda.

Chamei-lhe um táxi na Calçada do Combro, estendi ao taxista uma nota de dez euros e pedi-lhe para entregar o troco à rapariga. Antes de partir, Mónica voltou para junto de Joana e travaram uma breve conversa em voz baixa. Disse a Luci para chamar alguém da sede para levar o computador e o telemóvel de Sandi, visto que decidira encarregá-la de seguir Morel para onde quer que ele fosse. Enquanto ela subia a rua de volta a casa, o táxi de Mónica arrancou.

Assim que fitei Joana, ela puxou para diante o cabelo e segurou-o com ambas as mãos. O seu olha era suspeitoso e apreensivo.

Mora longe daqui? - perguntei num tom delicado.

No Estoril, Sr. inspetor. Vou a pé até ao Cais do Sodré e apanho o comboio.

Vamos os dois de táxi - propus. - Assim temos tempo para conversar.

Prefiro ir sozinha, se não se importa.

E que me diz a isto...? No caminho para a estação eu digo-lhe o que penso de tudo e a Joana pode dizer-me onde é que me enganei.

Esforcei-me por dar um tom convidativo às minhas palavras - e deixar claro pela minha expressão que precisava muitíssimo da sua ajuda -, mas ela mordeu os lábios outra vez e olhou-me com um ar de culpa.

Sr. inspetor, eu não vivo no Estoril - disse.

O meu telemóvel tocou. Não reconheci o número e desliguei-o.

Pois não, também me parecia.

Venha comigo - disse ela, e começou a descer a rua sem esperar pela minha resposta. A sua súbita resolução deixou-me surpreendido.

Quando estávamos fora do alcance da casa dos Coutinho, Joana disse-me onde morava. Era na Lapa.

Toque à campainha daqui a meia hora - disse-me.

Sem esperar por resposta, seguiu rua abaixo. Nunca olhou para trás, embora uma vez tenha parado com um estremecimento, como se sacudisse uma emoção indesejável.

Assim que voltei a ligar o telemóvel, Mesquita, o chefe da Polícia Judiciária, telefonou-me.

Você desligou-me o telefone na cara, Monroe? - rosnou.

Estava a interrogar uma pessoa

Não me volte a fazer uma coisa destas! Está a ouvir?

Estou sim, chefe. Peço desculpa.

E então sacou alguma coisa interessante no interrogatório?

Talvez. Tenho de falar com mais uma pessoa e logo saberei.

Oiça, parece que acabou com as fugas de informação - comentou ele, num tom de aprovação.

Fiz tudo por isso.

Foi pressionado por alguém importante até agora?

Não, talvez estejam todos à espera de ver o que descubro.

Pode ser que sim - disse ele, mas na sua voz lia-se a dúvida.

Depois de ter desligado, a exaustão parecia tomar conta de mim, e sentia a boca seca, pelo que decidi fazer uma pausa e entrar num café.

Mesmo em frente a um pequeno largo na Rua da Esperança, um mendigo gorducho, com um boné de basebol dos Yankees, a barba grisalha e emaranhada de um gnomo saído de um conto de fadas, montava guarda.

Depois de pegar nos meus cinquenta cêntimos, fez-me a continência.

Teria percebido que eu era da polícia?

Um gato preto dormia numa almofada branca em cima do balcão, pouco higiénico mas encantador, como que posando para uma fotografia que ninguém tiraria, à semelhança de metade de Portugal. Bebi um sumo de laranja natural enquanto lhe fazia festas na barriga de caxemira e pedi uma sanduíche de queijo e tomate à jovem brasileira ao balcão.

Na casa de banho, molhei a cabeça com água fria e puxei para trás o cabelo. Enquanto fazia o meu xixi, o improvável Elvis que acabara de criar no espelho rachado sugeriu que um Valium me curaria todos os males, mas consegui largá-lo sem seguir o seu conselho. De volta ao balcão, liguei para Joaquim. Luci já lhe dissera que iria receber o computador e o telemóvel de Sandi. Pedi-lhe que começasse pelos ficheiros dos últimos três dias e depois fosse recuando semana a semana, até à Páscoa, se necessário. Além de qualquer informação sobre o suicídio, devia procurar tudo o que a rapariga pudesse ter escrito sobre andar a ser molestada por Morel ou qualquer outra pessoa.

Na rua, o gnomo sem-abrigo pegou na sanduíche que lhe tinha comprado e fez-me mais uma continência. Logo depois de cruzar a transversal seguinte, tive a sensação de que uma mão me agarrava o casaco pelas costas e comecei a tombar...

Estava de joelhos no passeio quando voltei a mim. Tinham passado sete minutos - tempo suficiente para Gabriel ter saboreado um cigarro a julgar pelo gosto que sentia na boca. Aonde iria isto parar, e estaria eu aqui quando isso acontecesse?

O meu telemóvel tocou. Vi o número de Ernie no visor.

Que se passa? - perguntou ele, mal atendi.

Quem me dera saber - respondi.

O meu irmão explicou-me que eu tinha acabado de lhe ligar e pedir que viesse a Lisboa. Estavas a gozar comigo? - perguntou.

Porque haveria eu de gozar contigo?

Bem sabes que não posso ir a Lisboa! Porque me obrigas a dizer-te isso?

Não fui eu, foi o G - confessei.

Que queres dizer?

Ele é que te disse para vires! Não fui eu. Agora diz-me exatamente o que te disse.

Disse: «Vem para Lisboa, onde eu posso olhar por ti!» E depois desligou.

Ele anda a tomar o comando com mais frequência - expliquei.

A fronteira entre nós os dois está a desaparecer. Não sei como isto acabará... se é que alguma vez acabará.

O meu irmão não disse nada, provavelmente por estar a pensar na melhor maneira de me tranquilizar, mas a minha cabeça encheu-se de todas as coisas terríveis que lhe poderiam acontecer quando estávamos separados. Pedi-lhe que carregasse a pistola que lhe comprara e que a tivesse junto à cama.

Se o pai aparecer, tens de lhe dar um tiro! - ordenei.

Caramba, Rico, não percas a calma. Ele nunca há de vir a Portugal. Isso acabou.

Ernie, ainda não percebeste que nunca há de acabar.

Estamos a falar de coisas diferentes - disse ele.

Não estamos, não! Carrega a pistola como te mostrei. E dispara.

Ele não precisa de mais do que um segundo.

Desliguei antes que ele pudesse discordar. Tinha a camisa empapada em suor. Comprei uma garrafa de água numa mercearia indiana minúscula e tomei um Valium com o último gole. Cheguei ao apartamento de Joana alguns minutos depois. Ela premiu o botão do intercomunicador que abria a porta para eu entrar no edifício. Ao deixar o apertado elevador no último andar, ligou-me o inspetor Quintela para me dizer que Sottomayor, o contabilista da vítima, tinha acabado de chegar à sede.

Quando pode o senhor estar cá? - perguntou.

Não posso. Fale com ele. E quero que lhe pergunte o nome da última pessoa que o Coutinho subornou. Se tivermos um, será mais fácil chegarmos aos outros. Ameace-o com a prisão se tiver de ser.

Posso bater-lhe?

Era o típico sentido de humor de Quintela, e esforcei-me por rir, mas soou a falso. Quando toquei à campainha de Joana, foi Mónica quem veio abrir.

Ei, pensei que a tinha mandado para casa! - exclamei.

Ela fez um sorriso descarado.

Achámos que era melhor ficarmos juntas!

Percebi que ela e Joana em circunstâncias mais favoráveis eram capazes de algumas diabruras de verão. Sabia também que a triste conta de três menos uma iria provavelmente mantê-las em estreito contacto para resto da vida.

Mónica estendeu-me uma nota de dez euros.

Não posso aceitar que me pague o táxi!

Tentei devolver-lhe o dinheiro, dizendo que eu é que tinha insistido para que o apanhasse, mas ela recusou-se a pegar nele.

Aguenta firme! - exortava Joana à amiga, simulando uma voz heroica. Irrompeu na sala vinda da porta do fundo, manifestando uma divertida determinação em ganhar aquela pequena batalha.

Joana trazia ainda a blusa larga, mas vestira uns shorts em tecido escocês que pareceriam mais adequados a um jogador de golfe de meia-idade. Estava descalça e limpava a cara com uma toalha. Cumprimentámo-nos com um beijinho na cara.

Estava a ferver - disse ela. Tinha o cabelo a pingar. Aos seus pés formava-se uma poça de água, mas ela não se importava.

«A confiança de uma rapariga que é cabeça de cartaz da sua própria vida», pensei.

Convidou-me a entrar para a sala de estar, que estava decorada como uma tenda do deserto: tapetes orientais cor de laranja e vermelhos cobriam as paredes, e do teto pendia um tecido amarelo estampado com estrelas pretas e brancas. O sopro fresco do ar condicionado fez-me estremecer de satisfação. Despi o casaco e alarguei o colarinho da camisa.

Desculpem - disse às raparigas -, mas Lisboa e eu temos ideias diferentes sobre o clima ideal. Enquanto Joana me foi buscar água mineral à cozinha, fixei as estrelas pairando acima de mim. Os pais dela vão muitas vezes à África do Norte - explicou Mónica. - Uma vez fui com eles... a Marraquexe. A Sandi também foi.

Comemos naquela grande praça que lá há e até andámos de camelo!

Joana voltou com a água e indicou-me uma velha poltrona de veludo vermelho. Ela e Mónica sentaram-se em frente a mim num sofá igualmente gasto.

Oiça, Sr. inspetor - começou Joana -, quero que saiba que não lhe contaria nada disto se a Sandi ainda estivesse viva.

O seu ar seguro deixou-me de novo desarmado.

Às vezes parece mais velha do que os anos que tem - declarei.

Os meus pais dizem-me a mesma coisa! - retorquiu com um sorriso de agrado.

Dava a impressão de ser uma miúda que tinha prazer em desafiar as expectativas dos adultos. Talvez as três amigas tivessem isso em comum.

Conte-me o que aconteceu ao certo em casa de Morel na Normandia - pedi. - Desde o princípio.

Joana trocou as pernas cruzadas e inclinou-se para diante.

A Sandi, a Mónica e eu fomos lá passar quatro dias na Páscoa.

Dormíamos no mesmo quarto, a Sandi e eu numa cama antiga enorme e a Mónica numa cama pequena.

Tirando o pai de Sandi e Morel, contou Joana, não ficou mais ninguém lá em casa durante a visita delas, a não ser um velho cozinheiro francês, que apareceu duas vezes para fazer o jantar, e dois rapazes novos que trabalhavam nas cavalariças em part-time e tinham ajudado as raparigas a andar a cavalo.

Na segunda noite - prosseguiu Joana -, acordei às duas e meia da manhã, e a Sandi não estava a meu lado na cama. Imaginei que tivesse acordado e descido ao piso de baixo para comer qualquer coisa. Ou estivesse com medo e tivesse ido para o quarto do pai.

Porque haveria ela de estar com medo?

A casa de Monsieur Morel é gigantesca. E antiga.

O soalho range sob os nossos passos - acrescentou Mónica com uma careta.

E não ajudava nada que o pai da Sandi e Monsieur Morel se pusessem a brincar connosco durante o jantar a dizer que a casa estava assombrada - continuou Joana, -, O Sr. Coutinho chegou a contar que uma vez tinha visto um fantasma na cozinha com sangue a escorrer-lhe da boca.

O pai da Sandi dizia aquilo para nos divertir - acrescentou Mónica, revirando os olhos.

Às vezes - disse Joana -, parecia não ter a mínima ideia de que a Sandi era diferente dele.

Diferente, como?

Era uma pessoa insegura.

Falava como se essa tivesse sido a falha fatal de Sandi.

Cerca de meia hora depois de ter dado pela falta da Sandi - continuou Joana -, ela entrou em bicos de pés no quarto e sentou-se na ponta da cama. Começou a choramingar assim que me inclinei para ela. Não nos contou o que se tinha passado. Tapámo-la com um cobertor porque estava a tremer e ela acabou por nos dizer que Monsieur Morei tinha abusado dela.

As duas raparigas lançaram-me um olhar sombrio, e então retorqui:

Não fico chocado. Já ouvi praticamente de tudo nestes dezassete anos de trabalho na polícia.

A Sandi tinha sangue entre as pernas - disse Joana, pondo os olhos no chão como uma rapariguinha que tivesse revelado uma coisa pela qual seria punida.

Tinha sido violada por Morel? - perguntei.

Pronunciar a palavra «violada» pareceu deixar-me isolado na minha metade da sala, do outro lado de uma barreira invisível que me separava das raparigas.

Joana tentou responder, mas faltou-lhe a voz. Cobrindo os olhos com uma mão, abandonou-se ao desespero. Enquanto Mónica a confortava, levantei-me e deixei vaguear o olhar de um lado para o outro de um tapete oriental - vermelho-escuro e cor de laranja brilhante -, pensando em tudo o que queria dizer às duas raparigas, mas não ousando invadir a sua intimidade.

Depois de as raparigas se terem recomposto um pouco, Joana levantou para mim os olhos vermelhos do choro. A sua respiração parecia perigosamente hesitante.

Eu estava muito bem, mas de um momento para o outro deixei de estar - disse ela. - Peço-lhe desculpa, senhor inspetor.

Não tem de que pedir desculpa - respondi, voltando a sentar-me. - Gostava só de vos dizer uma coisa que pode ajudar.

Não sei bem se há alguma coisa que nos possa ajudar agora que a Sandi... - Mónica abanou a cabeça, sem acabar a frase.

Detesto forçá-las a isto, mas é muito importante que me contem o resto da história.

Claro. Nós sabemos que tem de ser – disse Mónica. Dirigindo-se a Joana, acrescentou: - Eu começo. Assim podes recuperar o fôlego.

Depois de beber um gole de água, começou: - A Sandi contou-nos que Monsieur Morel estava a ler no quarto com a porta entreaberta. Ouviu-a quando ela se dirigia para o quarto do pai e foi ter com ela. Convidou-a a ir para a cozinha e aqueceu-lhe leite, para a ajudar a dormir, disse ele. Depois, ela percebeu que ele tinha posto qualquer droga no leite porque começou a sentir-se muitíssimo fraca. Ele disse-lhe que a ia ajudar a voltar para o quarto, mas em vez disso levou-a para o dele. ­ Mónica respirou profundamente. - E então... fez-lhe aquilo.

A Sandi fez-nos jurar que não diríamos nada - continuou Joana, com um tom de desaprovação na voz. A maneira grave como franziu o sobrolho deu-me a impressão de que se estava a lembrar, com amargura, do modo como tinha falhado em ajudar a amiga. - Disse-nos que o pai e a mãe nunca iriam acreditar nela, porque Morel era o amante da mãe e o melhor amigo do pai.

E ele também a ameaçou - acrescentou Mónica, com asco. - Disse-lhe que conhecia os casos do pai dela com outras mulheres e que haveria de arranjar maneira de as revistas de mexericos escreverem sobre isso.

E até afirmou que a culpa era da Sandi... que ela é que o tinha seduzido! - exclamou Joana, a voz fremente de desprezo.

Mas isso é falso! - gritou Mónica. - A Sandi não era dessas!

Quando Joana a beijou na cara, pensei com admiração: «Esta amizade é muito mais profunda do que qualquer outra em que eu pudesse ter tido parte-quando em da idade-delas.» E tive-o-pressentimento de que não teriam criado uma relação tão forte com Sandi se a sua lealdade não fosse também acima da média.

Joana disse:

Monsieur Morel também disse à Sandi que sempre desejara tirar-lhe a virgindade e que, agora que o tinha feito, ela deixara de o interessar. E que não precisava de recear que ele voltasse a fazê-lo.

O meu olhar volveu-se para dentro quando me lembrei de que Sandi dera um presente - um livro de cozinha - ao homem que a tinha violado. Teria ela sido levada a esse gesto por precisar de sentir uma vergonha tão profunda que a impelisse a levar para diante o plano de se matar?

A questão parecia resolver um enigma que me intrigava há trinta e dois anos: por que razão uma mulher condenada à morte haveria de passar as suas últimas horas a tricotar um cachecol de quase dois metros com as cores do arco-íris para o seu carcereiro?

Sr. inspetor? - disse Joana

Estou a ouvir - respondi. - Então acha que a Sandi acabou por dizer aos pais o que Morel lhe tinha feito?

Ela jurava que não, mas descobri que estava a mentir. Seja como for, eles não fizeram nada. O Sr. Coutinho deve ter levado a sério a ameaça de MoreI. - Franzindo o sobrolho desdenhosamente, acrescentou: - Odiaria ver aparecer nessas estúpidas revistas de mexericos alguma coisa que prejudicasse a sua imagem.

Imagino que ela não tenha tido qualquer possibilidade de ir a um médico ou uma clínica no dia a seguir, depois de agredida por MoreI. Quer dizer, para ser examinada.

Não, mas guardei uma coisa que prova o que ele lhe fez! - disse Joana num tom de triunfo vingador. Enfiou a mão no bolso dos shorts, tirou uma ampola de âmbar e levantou-se para ma mostrar. Continha um pedacito de tecido branco. - É um bocado de uma toalha com sangue.

Sangue de quem?

De Morel! - Voltou a sentar-se. - Quando tentava libertar-se, a Sandi arranhou-o com força nas costas. Ao chegar ao nosso quarto, limpou as mãos a uma toalha. Não suportava sentir o odor dele nela. Enquanto tomava um duche, rasguei uma ponta da toalha.

Muito inteligente - retorqui, embora soubesse que a sua astúcia não nos serviria de nada.

Com isso pode tirar o ADN do Morel, não pode? - perguntou ela.

Inclinou-se para mim e levantou os punhos como uma lutadora.

Devia ter passado três meses nessa esperança, porque no momento em que lhes prometi que iria entregar a ampola aos técnicos do laboratório, os olhos dela encheram-se de lágrimas. Esforçando-se por encontrar as palavras certas, Joana murmurou:

Obrigada, Sr. inspetor. Obrigada por ajudar a Sandi.

A sua expressão era radiosa. Tive o pressentimento de que seria desastroso revelar-lhes a impossibilidade de provar em tribunal que o sangue de Morel ficara nas unhas de Sandi quando ele a violara. O testemunho dela teria estabelecido essa relação. Mas, agora que estava morta, nunca viria a realizar-se julgamento nenhum.

Depois de as raparigas terem ido à cozinha buscar uma embalagem de sumo de maçã, partilhando-a, perguntei-lhes se Morel tentara voltar a fazer mal a Sandi, em casa dele ou dela. Mónica já tinha começado a entrançar o cabelo de Joana, com uma convicção e uma destreza impressionantes.

Ela nunca falou em nada desse género - disse Joana -, mas também não tenho a certeza de que nos contasse. Dizia que se sentia sempre suja. Mas sei que não acreditava no que ele lhe disse, que já não estava interessado nela. Por isso, fazia tudo o que podia para ter a certeza de que ele não a achava atraente.

Essa é que foi a verdadeira razão por que ela cortou o cabelo rente, não foi?

Foi. E também começou a deixar de comer, para ficar ainda mais desinteressante. - Num tom de desaprovação, acrescentou: - Começou a usar saias e calças compridas para não se ver que era só pele e osso.

Lembrei-me de que Sandi usava um casaco do pai das duas vezes em que falei com ela. Tinha pensado que seria para se sentir reconfortada com o cheiro dele. Era claro que se tornara muito hábil em subterfúgios na altura em que a conheci.

Alguma vez viu a Sandi vomitar depois de comer? - perguntei, pensando que agora sabia por que razão tinha ela um honeydripper escondido na cama.

Ela disse-me que tinha começado a vomitar para evitar engordar. E contou-mo como se fosse um novo talento fantástico. Era de loucos!

E alguma vez a viu cortar-se a si própria?

Joana olhou-me com uma expressão atónita.

Cortar-se, como?

Com uma faca? Nos braços. Ou noutras partes do corpo.

Nenhuma das raparigas sabia nada disso, o que provavelmente queria dizer que Sandi tencionava enfiar a faca em Morel se ele ousasse entrar no seu quarto. Nem Joana nem Mónica se tinham apercebido de quaisquer tendências suicidas em Sandi.

Ainda que ela nos tenha dito que a morte do pai era culpa dela ­ disse Joana. - Talvez tenha sido essa a razão por que fez aquilo.

Pensaria ela que a culpa era sua por não ter conseguido dizer nada ao pai sobre o augúrio de morte dos seus pesadelos, como originalmente fora levada a crer? Quando fiz a pergunta às duas raparigas, Joana disse que estava convencida precisamente do contrário: de que fora o que Sandi confessara ao pai que tinha acabado por a deixar mergulhada em sentimentos de culpa.

Ela deve ter dito ao pai o que Morel lhe fez - disse a rapariga. E o pai deve ter feito frente a MoreI. Morel percebeu então que precisava de silenciar o senhor Coutinho e pagou a alguém para o matar.

Era uma explicação bastante lógica. Só que essa possibilidade teria exigido uma improvável sequência de acontecimentos na casa de férias de Coutinho no Algarve. E que Susana Coutinho me tivesse mentido sobre alguma coisa crucial para a vida da filha.

Mónica parou de entrançar o cabelo da amiga e exclamou numa voz agitada:

A Sandi deve ter começado a acreditar mesmo que Morel tinha razão quando lhe disse que ela o seduzira. Dava-me a impressão de que estava demasiado perturbada para conseguir pensar com clareza.

Sabe uma coisa, Sr. inspetor? - acrescentou Joana. - A Sandi também deixou de ter o período. Porque não andava a comer o suficiente.

Ficou contente por isso ter acontecido. Achava que nenhum homem a quereria se ela não tivesse o período. Talvez isso agora pareça não fazer muito sentido, mas quando ela nos disse fazia.

Mónica acabou a tarefa com um elástico. Joana inspecionou atentamente o entrançado perfeito; ficou bastante satisfeita. Depois de agradecer a Mónica, inclinou-se e pegou na revista Visão que estava na mesinha baixa entre mim e ela. Torceu-a num rolo apertado. Deu-me a sensação de que precisava de medir a sua própria força.

Vou tomar medidas para evitar que Morel se aproxime de vocês - disse eu, adivinhando o medo dela.

Ela fixou-me com um olhar ansioso.

Como pode conseguir isso?

Porque ele sabe que eu o considero um dos suspeitos e, por isso, vai mostrar-se o mais bem-comportado possível. E também mandei alguém vigiá-lo.

Mandou? - perguntou Mónica, surpreendida.

Quando confirmei que ele seria seguido dia e noite, se necessário, Joana bateu com a revista enrolada na cabeça de Mónica, soltando uma risadinha.

O meu desejo e a que a dedicação que mostrava uma pela outra as ajudasse a ultrapassar este trauma.

Em resposta à pergunta seguinte, as raparigas disseram-me que não sabiam se Sandi tinha contado ao psicólogo que fora violada.

Ela disse-vos se Morel tinha tentado roubar-lhe alguma coisa? ­ perguntei; estava a pensar no anel de turquesa.

Não. Nunca falou nisso - respondeu Joana. Mónica confirmou.

Podia ser, então, que, ao deixar de comer, os dedos tivessem ficado tão finos que o anel estivesse sempre a cair.

Já me lembro! - exclamou Mónica de repente.

O quê? - perguntou Joana.

«A felicidade atingiu-a como um comboio nos carris.»

Não estou a perceber - disse eu.

O verso de Lungs de que Sandi mais gostava era parecido com isso.

Mónica cantou-o o melhor que se lembrava. Ficámos todos em silêncio a seguir. Joana fixou o olhar no vazio, claramente debatendo-se com uma nova onda de desespero. Parecia quase certo que as duas raparigas estavam a pensar, tal como eu, que a primeira experiência sexual de Sandi tinha sido um desastre - e um desastre intencional.

Sr. inspetor - perguntou Joana -, quando vai prender Monsieur

MoreI? Não pode prendê-lo já?

Temos de falar nisso - respondi.

Como assim?

O problema é que só consigo ver uma maneira de considerar Morel o assassino mantendo a lógica das coisas. E isso exige algumas verificações da minha parte. Sobretudo com a Sr.ª Coutinho, e ela ainda não está em condições de responder às minhas perguntas.

Nós contámos-lhe exatamente o que a Sandi nos contou! - exclamou Mónica em tom ofendido.

Não duvido, mas a vossa história só faz sentido se o pai da Sandi só tivesse sabido do que aconteceu à filha no último dia em que esteve no Algarve. Porque, se a Sandi lhe tivesse dito alguma coisa antes disso, ele nunca permitiria que Morel ficasse na sua casa de férias com ela lá. Já para não dizer que Morel não aceitaria um convite para ficar na mesma casa que a rapariga que ele violara três meses antes.

A não ser que seja uma pessoa nojenta e má! - exclamou Joana.

Sim, há pessoas dessas, é verdade. Mas se a Sandi tivesse contado ao pai que tinha sido violada teria havido com toda a certeza uma discussão violenta entre ele e Morel no Algarve.

E se calhar foi o que aconteceu! - disse Joana.

Só que a mãe da Sandi disse- me que tudo tinha corrido bem.

Pode ser que ela não estivesse lá quando isso aconteceu.

Mesmo que não estivesse, teria sabido que houvera uma discussão grave em casa dela.

Talvez não tivessem chegado a vias de facto por Morel ter dito ao Sr. Coutinho que estava arrependido do que fizera - sugeriu Joana, insistente. - Concordou em manter-se longe de Sandi e da Sr.ª Coutinho e foi-se embora logo a seguir. Apanhou o Sr. Coutinho de surpresa em casa dele e deu-lhe um tiro. Ou pagou a alguém para o fazer.

E qual era o motivo?

Impedir que o Sr. Coutinho fosse à polícia.

Então para evitar uma acusação por violação, que poderia não pegar, ia pagar a um assassino? Não é muito provável. Além disso, vocês disseram-me que o pai da Sandi odiaria ver o caso publicado nos jornais; por isso, nunca iria à polícia. Teria ficado com a Sandi na casa de férias. Haveria de querer ajudá-la.

Talvez ele tivesse coisas realmente importantes para fazer em Lisboa - sugeriu Joana, desesperada por validar a sua teoria. - O senhor não o conhece. Ele está sempre a trabalhar. É ou não é, Mónica?

É. Havia semanas a fio em que chegava a casa tardíssimo todas as noites.

Além disso - acrescentou Joana -, ele deixava a Sandi com a mãe. Na ideia dele ficava em segurança.

Embora nós saibamos que não estava a salvo nem com ela nem com ninguém - disse eu. Levantei-me e afastei-me das raparigas para pensar melhor. Uma das hipóteses é que Sandi tivesse dito à mãe exatamente o que se tinha passado, mas Susana se tivesse recusado a acreditar na história porque isso significaria ter de deixar o amante - e enfrentar um escândalo público.

Nesse caso, ter-se-ia convencido de que Sandi estava a mentir quando dizia ter sido violada, procurando evitar que ela deixasse Pedro e se casasse com MoreI. Se achasse que Sandi lhe mentira sobre uma coisa tão séria - e que poderia levar Morel a ser julgado pela prática de um crime - não teria mostrado grande compreensão pelos problemas da filha. O que poderia explicar a grande tensão que senti entre as duas durante o nosso primeiro encontro.

«Não acreditarem em nós e como assassinarem tudo o que temos de bom.»

Ernie e eu nunca tínhamos sentido necessidade de o verbalizar - compreendíamo-lo de cada vez que olhávamos um para o outro -, mas talvez fosse exatamente o que eu precisava de dizer a Susana para conseguir descobrir o que se tinha passado entre ela e Sandi. A não ser que...

Outra possibilidade levava-me de volta a Joana e a Mónica; Sandi teria realmente mentido, mas não sobre a violação.

Falem-me mais nos homens que trabalhavam nas cavalariças de Morel- pedi-lhes.

O que quer saber?

Que idade tinham? Onde viviam?

Tinham ar de ter vinte e tal anos. Eram da povoação mais próxima.

Andavam na universidade e só trabalhavam para Monsieur Morel em part-time.

Atiraram-se a vocês?

Diziam-nos umas piadas - retorquiu Mónica. Adivinhando a direção que tomavam os meus pensamentos, acrescentou: - Eram coisas inofensivas... A sério.

Acompanhavam-vos nos passeios a cavalo?

Um deles sim.

Lembra-se do nome dele?

Mónica voltou-se para Joana.

Era Bernard?

Acho que sim - disse joana, acrescentando: - Acha que ele poderia confirmar que Monsieur MoreI violou a Sandi?

A questão não é essa - respondi.

Então qual é?

Começo a pensar que MoreI não abusou dela... que quem abusou foi esse Bernard.

Isso é impossível! - declarou Joana com aquela sua confiança desarmante. - A Sandi não teria falado em Morel se não tivesse sido ele.

Não, a não ser que tenha pensado que poderia conquistar o vosso silêncio mais facilmente se vos convencesse de que era ele o homem que a atacara. Disse que Morel conhecia segredos do pai dela que poderia arruinar o casamento dos pais. Isso era uma maneira de fazer com que vocês ficassem caladas. E o plano dela funcionou... Nunca disseram nada até agora. Se ela vos tivesse dito que era um dos rapazes das cavalariças, teria sido quase impossível garantir o vosso silêncio.

Admito que é possível- disse Joana -, mas teria a Sandi realmente...

Vocês viram como MoreI se comportou convosco - interrompi.

Não se mostrava nada preocupado com o que a Sandi poderia ter contado sobre ele, ou com o que vocês pudessem contar-me.

Não disse mais nada. Não queria acrescentar que Sandi poderia estar ansiosa por ir ter com Bernard ou com o amigo dele naquela noite. Ou com ambos. Poderia parecer-lhe uma aventura excitante.

Depois de a terem usado, os rapazes provavelmente convenceram-na de que ela os tinha provocado e de que, ao ir ter com eles às cavalariças ou a qualquer outro sítio da propriedade de Morel, tornara aceitável o que tinham feito. Disseram-lhe que ela andava a pôr-se a jeito.

Mas o que é que poderia tê-los levado a fazer uma viagem de milhares de quilómetros até Portugal e matar Coutinho três meses depois?

 

Eu e Ernie fugimos de casa no dia 26 de junho de 1979, um sábado. Eu tinha nove anos e o meu irmão, cinco. As aulas haviam acabado nessa altura. Aproximava-se o fim da manhã, era quase meio-dia, e o nosso pai tinha acordado com uma ressaca monumental.

Estávamos no alpendre a tomar o pequeno-almoço quando ele começou aos berros a chamar por mim e por Ernie. O terror que se espelhou na cara do meu irmão mostrou-me que era melhor fazer alguma coisa rapidamente. Agarrei-o e desatámos a correr desabaladamente em direção a Crawford. Na minha opinião, o meu pai estava demasiado grogue para ir atrás de nós, e, depois de termos galgado a oscilante cerca de madeira da propriedade dos Johnsons, seguimos o caminho que dali levava à cidade.

Ernie e eu, a bem dizer, não trocámos uma palavra. Durante uma guerra temos tendência para ficar bem calados. Poupámos energias.

Contava que Nathan, que trabalhava no armazém da cidade, nos levasse de carro até Grand Junction ou outro sítio onde o meu pai não nos pudesse encontrar. Se ele não pudesse levar-nos, iríamos à boleia.

Mas Ernie escorregou numa curva do caminho que tinha ficado em péssimo estado com as chuvas da primavera. Caiu e resvalou por uma encosta coberta de ervas, uns bons dez metros. Quando cheguei junto dele, tinha sangue no ombro e num dos joelhos. Limpei-o o melhor que podia com as mãos. Ernie mostrava-se disposto a continuar, mas, ao estancar-lhe o sangue com a minha camisa, percebi o que já devia ser evidente - que o meu pai culparia a minha mãe por termos fugido e que ela não iria sobreviver à lição que lhe daria.

Quando olhei em frente para ver onde Ernie e eu nunca haveríamos de ir, apercebi-me de que estávamos debaixo de uma enorme árvore frondosa, cada ramo curvado sob o peso de centenas de brincos de filigrana. Eram como esmeraldas brilhantes. Nunca tinha sequer reparado nisso. Fiquei tão espantado que recuei um passo.

«Uma beleza tão inesperada pode ser perigosa», pensava, embora nessa altura não fosse possível tê-lo formulado numa frase tão límpida.

Ainda hoje, quando vejo alguma coisa erguer-se acima de mim - que mais não seja a parede de um prédio -, aquela nogueira agiganta-se diante dos meus olhos e uma estrela cadente de surpresa e de maravilhamento atravessa cintilante toda a distância das minhas recordações. Arrastámo-nos de volta a casa. O meu pai saíra, mas a minha mãe estava na cama apertando um saco de ervilhas geladas contra a cara.

Depois da morte dela, pedi ao meu pai que construísse uma ponte por cima do riacho que passava no nosso terreno, embora fosse fácil atravessá-lo a pé, exceto quando chovia muito. Já não me lembro por­ quê.

Antes de o meu pai ter esvaziado as gavetas da minha mãe, roubei um baralho de cartas da mesinha de cabeceira - as tais com os monumentos de Lisboa nas costas. Dei vinte e seis cartas a Ernie e fiquei com as outras vinte e seis. Gostava da ideia de Ernie e eu só podermos jogar rummy ou póquer um com o outro.

Não é que devesse saber onde o meu irmão guarda a sua metade do baralho, mas sei. Está numa caixa de arrumações de plástico debaixo da sua cama, juntamente com os seus mapas do Colorado e os CD de cantores românticos, sentimentais, como Carlos Gardel e Bing Crosby. Ernie faz uma imitação muito boa de Carlos Gardel, mas como tem o cabelo demasiado comprido temos de fechar os olhos para experimentarmos o pleno impacto de estarmos ao lado de uma melodramática vedeta argentina garganteando Por Una Cabeza.

Lembro- me de estar com o meu pai a seguir ao funeral, com ele a dobrar os dedos bastante para trás, sobretudo para fazer Ernie rir. O meu pai era extremamente flexível e a liberdade de fazer o que quisesse com a mão era como ser capaz de voar.

Lembro- me também de o meu pai dançar o tango com Ernie nos braços já depois da morte da minha mãe, Mieczyslaw Fogg a cantar com toda a alma em polaco no nosso velho gira-discos KLH, e eu a bater palmas naquele ritmo sub-reptício. Embora naquele tempo não o exprimisse por palavras, sei que estava a pensar no seguinte: «Apesar de tudo, eu e o Ernie tivemos sorte, porque não quereria ter outro pai, embora odeie aquilo em que ele se torna quando se zanga e não consiga compreender porque faz as coisas que faz.»

Era um daqueles momentos que sabia que haveria de guardar dentro de mim, num lugar secreto onde nunca ninguém o pudesse descobrir, porque pensar coisas boas acerca do meu pai era uma traição imperdoável tanto a Ernie como a mim. E à nossa mãe também, naturalmente.

Gostava de levantar a pequena alavanca do nosso gira-discos KLH que mudava as rotações de 33 para 45 ou 78 por causa do ruído preciso e mecânico que fazia. Acho que me dava a ideia de que era possível alterar coisas importantes na nossa vida; bastava que conseguíssemos perceber onde devíamos concentrar a nossa energia e em que sentido a empurrar.

O meu pai tinha LP de Mieczyslaw Fogg, Hanka Ordonówna, Sefcia Górska, Zula Pogozelska e uma data de outros cantores polacos. Antes de eu nascer, comprara a coleção de discos de um estucador polaco que tinha posto um anúncio no Denver Posto

Quando dançava com Ernie, fechava os olhos e deixava-se guiar pela melodia. Para ele, girar e contorcer-se como Fred Astaire parecia tão fácil como respirar. Era um homem airoso. E bonito. Tinha orgulho em ser filho dele.

Gostava da sua boa aparência num género despretensioso - com o cabelo sempre despenteado e a barba de dois dias - que hoje me parece típica do Oeste americano, embora isso se possa dever ao facto de viver a milhares de quilómetros do Colorado e não saber realmente qual o aspeto dos homens de lá. Se a nossa vida familiar tivesse sido o filme hollywoodesco que eu gostaria que tivesse sido, o meu pai teria um cabelo de estrela de cinema, penteado para trás, e abriria caminho, dançando o tango, até ao coração de Ginger Rogers na cena mais espetacular. Passaria a lua de mel com ela em Acapulco à luz da Lua cheia.

Ele - e não Ernie, naturalmente - cantaria Por Una Cabeza na cena do clímax. A sua vida no Colorado - tal como eu, o meu irmão e a minha mãe - não passaria de uma cena cortada do filme.

A minha mãe contou-me que tinha feito parte de um coro em Portugal, mas não me parece que alguma vez a tenha ouvido cantar. Era de Évora, uma pequena cidade a poucos centímetros para este de Lisboa no mapa de Portugal no nosso Collier's Atlas. Quando estava sozinho em casa, às vezes punha a ponta do dedo na marca de Évora no mapa e tentava imaginar os edifícios brancos da praça central.

O meu pai ficava irritável e maldoso quando estava bêbado, mas com a ressaca passava a ser perigoso. Será situação rara nos alcoólicos?

Nunca o descobri; há coisas que prefiro não saber.

Quando estava a sós comigo e com Ernie, a minha mãe por vezes falava português. Mas, se o meu pai estivesse por perto e tivesse estado a beber, não ousava fazê-lo. Dava-lhe uma estalada sempre que ela não falava em inglês.

Estás sempre a rebaixar-me aos olhos dos meus filhos com a porcaria dessas rábulas... e mesmo à minha frente! - berrava-lhe, com um esgar de desprezo como se ela fosse lixo.

Mas, para dizer a verdade, quando a minha mãe dizia mal dele insistia sempre em diluir as críticas, tornando-as menos incisivas. Não só em inglês, mas também em português.

Agora, que sou adulto, posso ver que as estaladas e os murros lhe levaram a maior parte da combatividade, e que o Valium fez o resto. Talvez ter de olhar por mim e pelo Ernie também tenha contribuído para a deitar abaixo. Às vezes penso que foi o facto de nos ter por perto que a arrastou para as profundezas do seu mar de solidão e a submergiu por completo.

Ou, mais precisamente, foi o dever de nos criar, a mim e a Ernie, que a arrastou para o velho Plymouth Belvedere do meu pai e a pôs ao volante rumo a um encontro marcado com aquele álamo à beira da estrada.

Por outro lado, quando vejo os meus filhos a brincarem juntos, convenço-me de que éramos a única luz que alguma vez lhe chegava naquele fundo do mar onde vivia. Teria ela deixado o meu pai se nós não tivéssemos nascido? É uma questão em que não penso muitas vezes para não acrescentar à minha insónia um poço demasiado negro.

O que acho é que a nossa fuga e o ter sido espancada por causa disso foi o fim da minha mãe. A partir de então, deixou de sair de casa, mesmo para ir à igreja ou apanhar flores. A bem dizer, nunca mais se voltou a vestir.

Talvez tenha sido enquanto segurava as ervilhas geladas contra a cara que imaginou a maneira de se libertar para sempre.

Provavelmente pensou que, se deixasse de estar presente, nós poderíamos fugir de casa. E que dessa vez seríamos bem-sucedidos. De certo modo, tinha razão, embora tivéssemos levado mais quatro anos para conseguir sair do Colorado. E apenas depois de o nosso pai nos deixar. As bebedeiras dele tinham-se agravado pouco antes do seu desaparecimento - tornaram-se tão más que às vezes acordava sem saber onde estava e pensando que a minha mãe ainda era viva.

Houve uma tarde em que o meu pai estava com uma piela de todo o tamanho e decidiu ir deitar-se, contou-me a minha mãe - num inglês que era uma má tradução do português. Disse-me que ele tinha emborcado tanto rum que «não se aguentava a si próprio e foi dormir urna sesta». Queria dizer que ele não se segurava em pé, mas, de tão nervosa, usara o verbo de forma errada, embora eu desejasse que não fosse engano e que o meu pai se detestasse quando se embebedava.

Nunca ousei odiar o meu pai até vir para Portugal. Quando vivia no rancho, estava convencido de que ele podia realmente ler os meus pensamentos e que, se visse que havia na minha cabeça alguma coisa de que não gostava, nos poria à prova, a mim e a Ernie, mais uma vez.

Os sioux consideram os álamos árvores sagradas. Nathan disse-mo depois de a minha mãe morrer. Julgo que queria explicar-me que ela tinha escolhido aquela árvore por saber que era venerável. Não creio, de facto, que achasse que tal informação reduziria o meu sofrimento. Talvez fosse necessário ter sido criado como sioux para compreender porque é que a espécie de árvore contra a qual ela embateu era importante.

Nathan teria uns cinquenta e tal anos nessa altura, acho. Ernie e eu costumávamos ir visitá-lo à loja da cidade onde trabalhava. Vendia-nos pastilhas elásticas e alcaçuz. Quando não havia lá mais ninguém, falava-nos de Alce Negro, o grande curandeiro sioux - da sua aprendizagem e das suas viagens para Inglaterra com o Buffalo Bills Wild West Show, das suas visões e escritos. Mas, se entrava alguém na loja, fingia sempre que estávamos a falar de basebol ou de futebol. Nathan acreditava que eu fora abençoado à nascença por um thunderbird, uma ave sagrada. Não sei como chegou a essa conclusão. Por vezes sentava-me em cima do balcão de madeira onde estava a caixa registadora e deixava-me dar uma fumaça no seu cachimbo. Dizia que era ele que lhe dava o poder de profetizar o futuro e que por isso tinha a certeza de que eu e Ernie iríamos precisar de uma grande ajuda para chegarmos à vida adulta.

Nathan tinha dentro de si um sol luminoso, embora a maior parte das pessoas não o pudesse ver, naturalmente.

Certa vez, sentou Ernie na sua cadeira e rodou sete vezes em volta dele numa dança, murmurando uma prece sioux. «Isto vai ajudar a mantê-lo protegido mesmo quando tu não estiveres por perto, Rico», explicou-me.

Ernie, Nathan e a minha mãe eram as únicas pessoas que eu deixava que me tratassem por Rico.

Nathan tinha uma pele cor de canela, rugas profundas em volta dos olhos, um cabelo muito preto, que usava comprido e separado em duas tranças firmes, e uns olhos pequenos e fundos como contas de obsidiana. Não vestia as roupas tradicionais dos sioux. Usava jeans e T-shirt. As suas mãos eram calosas dos trabalhos de escultura em madeira que fazia.

Por vezes, ao fim da tarde, andava pela cidade com o cabelo solto, usando grinaldas de flores à volta do pescoço. Havia quem se risse dele e dissesse que queria ser uma mulher. Não sabiam - nem queriam saber ­ o que era um winkte. Além de que não gostavam de índios.

Nesse tempo, não chamávamos a pessoas como Nathan «nativo-americano». Na cidade teriam troçado de alguém que usasse esses termos.

Era perfeitamente aceite rejeitar-se alguém só por ser sioux. E fazê-lo às abertas, com a certeza de que quase toda a gente concordaria.

A polícia podia prender um nativo-americano simplesmente por andar na rua. Era o que acontecia a Nathan sempre que saía de Crawford.

Uma vez passou uma semana na cadeia em Denver. Quando conseguiu voltar a Crawford, disse-me: «Lembra-te sempre disto, Rico, eles podem prender-te só por estares sentado num jardim a pensar!»

Quando eu tinha uns cinco ou seis anos, Nathan explicou-me o que era um winkte: um bobo que é ao mesmo tempo um sábio. Um winkte é abençoado ao nascer com um duplo espírito, um masculino e outro feminino.

Hoje penso que ele sabia muito sobre o que Ernie e eu passávamos em casa. Mas nessa altura não tinha consciência disso. Terá ele feito o meu pai desaparecer? Talvez haja coisas ao alcance dos winktes que estão muito para além daquilo que um polícia branco pensa que eles podem fazer.

Gostava que ele tivesse dado uma ajuda à minha mãe com a sua magia. Mas é possível que tenha tentado sem que eu desconfiasse.

A vida deve ter sido para a minha mãe uma grande luta diária quando chegou ao Colorado. Provavelmente, agarrou-se ao meu pai - um homem forte que dava a impressão de conhecer todos os códigos culturais secretos daquele novo país - como se ele fosse o seu parceiro de número no trapézio.

Dois de maio de 1981, um sábado. Tinha um jogo de basebol da Little League nessa manhã em Crawford. Ernie foi comigo a pé e ficou a ver-me jogar da última fila das bancadas, sentado ao lado de Nathan.

O meu pai era para ir, mas estava a curtir a bebedeira que apanhara com os amigos na véspera. A minha mãe ficou em casa, a tricotar na cama. Disse que queria acabar o cachecol que andava a fazer para o meu pai, pois só lhe faltavam uns trinta centímetros.

O cachecol tinha as cores do arco-íris. A minha mãe encomendara lã tingida com produtos naturais de uma loja chamada Art Fibers, de Santa Fé.

Desculpa, amor - disse-me quando me informou de que não podia ir ver-me jogar. - Talvez da próxima vez. - Falou em português.

Deu-me um beijo e aspirou profundamente o cheiro do meu pescoço.

É melhor do que flores do campo! - exclamou.

Seguidamente, segurou a cabeça de Ernie entre as mãos e disse-lhe que ele era o menino mais bonito do mundo, o que me deixou com ciúmes, embora aquele comportamento tão estranho me tenha preocupado mais do que qualquer outra coisa.

Devia ter adivinhado o que iria acontecer, mas não adivinhei.

Depois do jogo, Ernie e eu fomos para casa seguindo a pé a 92, a estrada que passava em frente do nosso rancho, quando avistámos o belo Plymouth Belvedere do meu pai mesmo à nossa frente, logo a seguir à velha casa meio arruinada do Mayor Anderson. Só que não estava estacionado e sim espatifado contra uma árvore enorme. A parte da frente ficara achatada contra o para-brisas e enfaixada à volta da árvore. Atrás do carro, encontrava-se um grande camião de reboque e, no outro lado da estrada, um carro da polícia de trânsito do Colorado.

O nosso pai estava a falar com o guarda. Gesticulava imenso, com o boné dos Milwaukee Braves na mão.

Percebi logo o que acontecera, mas não permiti que essa ideia me dominasse.

Talvez destruir o adorado Plymouth do meu pai fizesse parte da sua vingança. É possível também que tenha tomado o único caminho que lhe parecia razoável e nunca lhe tivesse ocorrido que estava a destruir aquilo que ele mais apreciava.

Ernie correu para lá. Eu não. Não queria entrar mais cedo do que o necessário naquilo que seria a minha vida a partir de então.

Assim que pegou em Ernie, o meu pai deve ter-lhe contado o que acontecera. O meu irmão desatou a berrar como se o estivessem a matar.

O guarda explicou ao meu pai que havia uma testemunha - um caçador de Boulder. O homem relatara que a minha mãe tinha acelerado em direção à árvore. Ia pelo menos a oitenta quilómetros à hora.

De volta a casa, encontrámos dobrado na mesa da cozinha o cachecol em arco-íris que a minha mãe acabara de fazer. Em cima, uma carta para o meu pai. Nunca soube o que escrevera. O meu pai agarrou nela e recusou-se a mostrar-ma quando lhe pedi. A única coisa que me disse foi que ela pedia desculpa por nos abandonar, a Ernie e a mim.

Nunca lhe perdoei não me ter mostrado a carta da minha mãe. Não vejo como poderia fazê-lo. Há vezes em que sinto que devia perdoar-lhe só para conseguir alguma az de esprito, mas jamais o farei.

O meu pai nunca usou o cachecol. Não sei o que lhe aconteceu.

Procurei-o uma vez ou outra nos anos que se seguiram, mas não o encontrei.

É possível que a minha mãe tenha simplesmente adormecido ao volante devido à grande quantidade de Valium e que tencionasse apenas ir até à cidade no carro do meu pai. Talvez quisesse ir até Denver e apanhar aí um avião para Nova Iorque e depois seguir para Lisboa. Ou talvez tenha tomado uma dúzia de comprimidos para não sentir dor ao partir a coluna quando embatesse na árvore sagrada que escolhera. Gosto de pensar que planeou tudo com tanta antecedência que foi capaz de evitar sentir fosse o que fosse no momento do impacto. Se bem que, quando estou desesperado por falar com ela e ser acarinhado, deseje por vezes que ela tenha sentido dores lancinantes durante dois ou três segundos. Bem sei que não devemos desejar tais coisas a alguém que amamos, claro, mas acho que a raiva de sermos abandonados ainda em crianças pode enfiar-nos ideias cruéis na cabeça.

 

Antes de me despedir de Joana e Mónica, disseram-me que nunca tinham visto o pai de Sandi com outra mulher que não a esposa e que não reconheciam a cara do desenho feito pela polícia. Nunca haviam visto ninguém com o número trinta tatuado na mão.

Nessa manhã, Sylvie tinha-me dado o número de telefone do psicólogo de Sandi, Benjamim Loureiro. Liguei-lhe enquanto seguia para a estação de metro do Rato. Ele estava à espera de que a polícia o contactasse. Disse-me que Sylvie já o tinha informado da morte de Sandi.

O Dr. Loureiro respondeu cautelosamente às minhas perguntas, explicado que o sigilo profissional o obrigava a não entrar em espetos concretos do que Sandi lhe tivesse confiado. Disse-me que o tratamento da jovem paciente tinha a ver com dificuldades psicológicas que estavam a comprometer a sua saúde física, assim como com profundos sentimentos de autoaversão.

Os pais dela estavam a par da bulimia? - perguntei.

O senhor acha que ela tinha bulimia? - replicou ele.

Tinha um honeydripper na cama para provocar o reflexo de vómito - disse eu. - E contou às amigas que vomitava a seguir às refeições.

O Dr. Loureiro hesitou uns instantes, confirmando depois as minhas suspeitas. Em resposta à pergunta seguinte, disse-me que Sandi nunca falara em nenhum caso de abuso sexual. De facto, dissera-lhe que ainda era virgem. Tinham tido a primeira sessão de terapia na terceira sexta-feira de maio. Os distúrbios alimentares haviam começado algumas semanas antes. Loureiro achava que os problemas conjugais dos pais de Sandi - bem como a dificuldade de adaptação que sentira após a sua vinda de França - lhe tinham minado a autoconfiança. Além disso, Sandi começara a menstruar cerca de seis meses antes e as alterações hormonais no corpo haviam-lhe afetado gravemente a estabilidade. Nunca falara em suicídio, mas não o surpreendia que ela tivesse posto fim à vida; a privação alimentar provocara-lhe perigosas alterações de humor. Muito do tempo que passara com ela fora simplesmente dedicado ao estabelecimento de estratégias para uma alimentação saudável.

O psicólogo confirmou que Sandi tinha realmente sonhos em que intervinham intrusos violentos em casa dela e que punham em risco a sua família.

Loureiro telefonara a Sandi no sábado. Tinha-lhe parecido deprimida, mas estável. Haviam marcado uma sessão especial para a tarde de hoje.

Depois de Loureiro me ter lido as datas das sessões com Sandi, liguei para David Zydowicz e convenci-o a fazer a autópsia da rapariga o mais depressa possível. Quando lhe falei nos aspetos suplementares a que precisava de estar atento, perguntou-me que idade tinha ela; quando lhe disse, respondeu em tom crítico:

Pensei que era só no Brasil que as meninas começavam tão cedo.

Infelizmente, não foi por escolha dela.

A seguir tentei o telemóvel da Sr.ª Coutinho, mas estava desligado.

Consegui, porém, falar com Morel e pedi-lhe que lhe passasse a chamada.

Ela interrompeu-me a tentativa de lhe apresentar as minhas condolências.

Oh, Monroe, ainda está em Lisboa? - perguntou. A sua voz parecia-me alegre e como que drogada. - Mas esta ligação está horrível! Até parece que está a falar da Lua!

Oiça, Sr. Coutinho, precisava de saber se...

Sou toda ouvidos - interrompeu, em inglês, e fez soar um riso rouco, de fumadora.

Desculpe fazer esta pergunta, mas a Sandi alguma vez lhe falou em abusos sexuais de que pudesse ter sido vítima em casa de Monsieur Morel em França?

Silêncio.

Sr.ª Coutinho, isto é importante - insisti. - Tente concentrar-se, por favor.

Pode tratar-me por Susana. Tenho a impressão de sermos já velhos amigos. Quer dizer, se tivesse amigos, o senhor seria um deles! ­ Riu-se mais uma vez.

Susana, tente ouvir o que estou a dizer. A sua filha alguma vez falou em experiências sexuais que teve... experiências violentas que a podem ter perturbado profundamente?

Gosto muito de si, mas o seu português é abominável! - Dirigindo-se a Morel, disse-lhe: - Consegue compreender este português?

Ouvi a voz de Morel:

Susana não está muito bem. Volte a ligar mais tarde!

A Sandi pode ter sido violada; por isso, passe-me a Susana outra vez, agora!

Violada? O que quer dizer?

A Susana pode explicar quando eu acabar de falar. Dê-lhe o raio do telemóvel!

Passados instantes, Susana perguntou:

É o senhor outra vez, Monroe?

Sim. Agora ouça bem, Susana. A Sandi alguma vez disse o que aconteceu em casa de Morel... sobre ser violentada ou molestada?

Depois de um instante de silêncio, atacou.

Quero o nome da pessoa que lhe contou uma coisa tão disparatada!

Duas amigas dela disseram-me isso.

Que duas amigas?

Joana e Mónica. Elas estavam com Sandi na casa de Morel na Normandia.

Elas foram... molestadas?

Não. Mas a Sandi contou-lhes o que lhe tinha acontecido.

Oiça, Monroe, o senhor levou-me a pensar em coisas que não fazem sentido. E eu não compreendo o que está a tentar dizer-me.

Joana e Mónica dizem que Sandi foi atacada quando estava em casa de Morei... em casa dele na Normandia.

Susana baixou o telefone e falou com Morel em francês, mas não consegui perceber o que dizia. Quando ela começou a soluçar, Morel retomou a chamada.

Monroe, o senhor é um louco! - gritou. - Faz as coisas pior!

Aconteceu algo horrível a Sandi em sua casa. Preciso de saber tudo o que o senhor sabe.

Espere um momento.

Morel dirigiu-se a Susana em francês, num tom de comando, depois disse-me para esperar mais uns segundos enquanto saía do quarto dela. O choro foi diminuindo até ficar reduzido ao silêncio.

Oiça, Monroe, eu digo já ao senhor - disse ele. - Nós temos umas belas férias juntos em minha casa. Não sei sobre o que está a falar.

Então não aconteceu nada de mal com Bernard?

Quem é Bernard?

Um dos rapazes que trabalham nas suas cavalariças.

Bernard Mercier? O senhor acha que ele fez mal a Sandi? – perguntou Morel numa voz atónita.

Sim. Nunca suspeitou de nada de semelhante?

Não, nunca.

E o outro rapaz das cavalariças? Como se chama ele?

François Savarin.

Alguma vez suspeitou de que ele fosse capaz de violência?

Não. É um bom rapaz. Conheço sua família há muitos anos.

Ainda trabalham para si, os dois?

Fraçois, sim. Mando Bernard embora.

Porquê?

Ele rouba de mim.

Quando?

Na Páscoa... quando Sandi e Pedro estão de visita.

Não disse que não tinha acontecido nada nessa altura?

Nada de mal com Sandi e as outras meninas! É isso que digo!

Então o que aconteceu exatamente com Bernard Mercier?

Pedro vê que ele rouba.

O que roubou ele?

Um livro importante. Eu tenho uma biblioteca valiosa. Ele rouba a primeira edição de Les Confessions, de Rousseau. Ainda não devolve. Diz que nunca rouba esse livro.

Mas Pedro Coutinho viu-o roubar o livro?

Exatamente

E despediu Bernard?

Que mais posso fazer?

Bernard sabia que Pedro Coutinho o acusou de roubar?

Sim. Tenho de dizer porque eu não estou ali quando ele rouba.

Há quanto tempo trabalhava Bernard para si?

Desde quando ele é rapaz.

Há quantos anos?

Talvez... talvez dez anos.

Antes de desligar, Morel deu - me os números de telemóvel dos dois trabalhadores das cavalariças. Quando desliguei, tinha já uma ideia clara do que acontecera.

Sandi fora violada por um ou por ambos os rapazes. O que ela dissera a Joana e a Mónica sobre ter sido drogada era provavelmente verdade; uma rapariga não inventa esse tipo de pormenores. Quem quer que a tenha violado deve ter-lhe dito que, agora que perdera a virgindade, deixara de lhe interessar; também neste caso não me parece que uma rapariga de catorze anos tivesse inventado um comentário tão cruel. E os meus muitos anos de experiência haviam-me ensinado que os pormenores verídicos tornam a mentira no seu todo neste caso, que Morel a tinha violado - mais fácil de manter.

Se a minha tese estivesse certa, então Sandi teria contado a verdade ao pai. Como não fora forçada a ir ter com os seus atacantes, o pai concluíra que a polícia não teria qualquer base para proceder a prisões.

Talvez considerasse até que a filha era em parte responsável pelo que se passara. Seja como for, é provável que lhe tenha dito para guardar segredo sobre o acontecido. Não devia sequer contar à mãe, pois Susana era capaz de ir à polícia, o que significaria que os jornalistas iriam saber disso. Para fazer Bernard Mercie pagar pelo crime - e te a certeza de que Sandi não o voltaria a ver -, Coutinho arranjara maneira de conseguir que ele fosse despedido. Apostaria que fora ele quem tirara da biblioteca de Morel a primeira edição de Les Confessions de Rousseau, dizendo depois que vira Mercier a roubá-la. A Coutinho devia ter parecido a solução ideal - e mais discreta.

Mercier viu-se sem emprego depois de dez anos de leais serviços a MoreI. Terá ficado furioso com a mentira de Coutinho, que lhe arruinou a reputação. E talvez com Sandi também. Muito possivelmente achava que não havia nada de que devesse envergonhar-se - afinal a rapariga fora ter com ele de sua livre vontade. Passara os últimos três meses a preparar a sua vingança. Talvez tivesse apenas planeado assustar Coutinho e as coisas tivessem descarrilado.

Quanto a Sandi, deve ter ficado destroçada por o pai não ter feito qualquer esforço para a defender. Voejou desesperadamente durante três meses em torno da chama da vergonha, até que a sua resistência cedeu e acabou por ruir.

Para verificar a minha teoria, liguei a Luci e pedi -lhe que fosse até à biblioteca de Coutinho e procurasse Les Confessions no armário envidraçado e fechado à chave. Telefonei também ao inspetor Quintela e pedi-lhe para ligar o computador e me dar a data da primeira edição. Daí a um minuto, ou pouco mais, já a tinha: 1782.

Luci voltou a entrar em contacto comigo mal cheguei ao meu gabinete. Tinha nas mãos uma edição com uma encadernação de couro de Les Confessions, publicada em 1782.

O facto de ser uma primeira edição não era ainda uma prova absoluta de que Continho a roubara a Morel, mas na página de guarda do livro Luci descobriu um carimbo bastante delido onde se lia: J. Morel, rue du Floquet, Sacquenville.

Que quer que faça com isto, chefe? - perguntou-me.

Traga o livro - respondi. Mas, mal acabei de o dizer, ocorreu-me que MoreI poderia ter-me mentido e ter estado implicado numa combinação para despedir Mercier. E encobrir o caso. A ser assim, também saberia que o livro estava no armário fechado de Coutinho. - Mudei de ideias - disse a Luci. - Ponha Les Confessions no sítio onde estava. É melhor não dar a entender que suspeitamos de que livro possa ter uma importância especial.

Pela janela lateral vi que o inspetor Quintela estava no seu gabinete; por isso, entreguei-lhe a ampola que Jana me dera e pedi-lhe que a passasse aos técnicos do laboratório. Se a minha teoria estivesse certa, o sangue no pedaço de toalha seria de Mercier ou de Savarin. Ou, na pior hipótese, de ambos. Pedi-lhe também para arranjar as listas de passageiros de todos os voos de e para Paris durante as duas últimas semanas e para verificar se Mercier ou Savarin constavam de alguma delas.

Depois de Quintela sair, lembrei-me de que Sandi poderia ter contado à mãe que fora violada, mesmo depois de o pai lhe ter dito para não o fazer. Em última análise, Susana poderia ter reparado na mudança de comportamento da filha e tê-la levado a confessar. Nesse caso, é bem possível que tenha discordado do marido no que respeitava à maneira de tratar a situação. Teria concluído que Pedro recusara a Sandi a ajuda e a compreensão de que ela precisava. Poderia ter-se mostrado inclinada a informar a polícia e ter sido impedida por ele. Muito provavelmente teria havido uma discussão violenta. Tudo isso explicaria por que razão, ao falar comigo, aludira à crueldade que existira naquela casa. Será que a culpa a levara a esperar que eu compreendesse a insinuação? Ao fim e ao cabo, ela tinha tomado parte no plano do marido para guardar silêncio sobre a violação da filha.

Tudo parecia encaixar, mas sentia que havia algo mais, algo que ninguém queria que eu visse faltava qualquer coisa, e estava relacionada com a necessidade de fazer com que os piores crimes desaparecessem como se nunca tivessem acontecido.

De volta à minha secretária, consultei o website de Florence + the Machine e encontrei as letras de Lungs. A canção Dog Days Are Over chamou-me a atenção imediatamente por falar de uma rapariga a quem a felicidade atingira como um comboio descontrolado. Também mencionava cavalos ameaçadores e, perto do fim, fazia uma analogia entre a alegria e ser-se alvejado pelas costas.

Frequentemente buscamos narrativas que nos ajudem a perceber a nossa vida, e tornara-se óbvio para mim que Sandi encontrara naquela canção uma resposta para a sua.

Vi duas vezes o vídeo de Dog Days Are Over no YouTube. A vocalista - Florence? - usava um vaporoso vestido branco e tinha a cara e as mãos pintadas dessa mesma cor. O cabelo era um capacete vermelho encaracolado. A canção começava num tom sussurrado e suave, e os movimentos das mãos, sinuosos e descompassados, faziam com que a sua dança parecesse espontânea, jovem, não profissional. Cerca de um minuto após o início da canção, começou a ouvir-se em fundo um bater de palmas sincopado; a vocalista começou a entoar as palavras como se tivesse ficado furiosa. Depois - pareceu-me -, Dog Days torna­se um êxito num estilo Motown atualizado para adolescentes ansiosos por terem uma confirmação musical de toda a raiva que se lhes pedia que eliminassem.

Enquanto passava os olhos pela lista de chamadas feitas do e para o telefone de Coutinho para ver se tivera algum contacto com os dois rapazes franceses durante as últimas semanas, David ligou-me para o gabinete. Disse que tinha acabado de fazer a autópsia de Sandi e que não havia quaisquer vestígios de que tivesse sido forçada a tomar uma overdose nem ferimentos autoinfligidos. Estava à espera dos resultados dos exames a substâncias tóxicas para classificar a morte como suicídio, mas não via razões para suspeitar de qualquer outra causa.

Quando me disse que o peso dela estava a um nível perigosamente baixo, expliquei-lhe que sofria de bulimia.

Só mais uma coisa, Henrique - acrescentou num tom sombrio.

A Sandi estava grávida.

A revelação de David deixou-me pregado à cadeira.

Oh, meu Deus, de quanto tempo?

Cerca de três meses, embora o feto só tivesse dezasseis milímetros de comprimento. Estaria mais desenvolvido se ela comesse melhor.

Havia súbitas mudanças no acaso que poderiam fazer com que lhe parecesse inútil continuar a lutar, claro, e esta era uma delas.

Sabia que haveria de recordar para sempre a sólida curvatura da minha caneca de café, porque foi precisamente ao apertá-la com força que compreendi que Sandi deixara de se alimentar para que ninguém se apercebesse de que estava grávida. O que significava que tinha também matado à fome o filho por nascer - um crime com que apenas conseguira viver o tempo de decidir pôr termo à vida.

Confirmei na lista das chamadas feitas e recebidas por Coutinho que não tinha falado nem com Mercier nem com Savarin nas últimas duas semanas. Fonseca surgiu no umbral da porta enquanto me perguntava se deveria pedir à polícia francesa para interrogar os dois rapazes. Fez-me um apanhado das provas que ele e Vaz tinham recolhido na sexta-feira. Depois de excluírem as impressões digitais das pessoas da família e da Sr.ª Grimault, restavam as de seis outras pessoas, mas nenhuma delas constava da nossa base de dados. Também não havia cor­ respondência com a bala encontrada, o que significava que a arma do assassino não fora usada para cometer qualquer outro crime em Portugal.

Fonseca tinha-a identificado como sendo uma Browning semiautomática, mas não encontrara quaisquer impressões digitais. Curiosamente, era um modelo que tínhamos usado na polícia até cerca de dez anos antes.

Como esperava, as manchas de sangue no panda de peluche e na roupa interior que encontrara debaixo da cama eram da própria Sandi.

Havia impressões digitais de Morel por toda a sala de estar, assim como o seu ADN nas beatas dos cigarros Gauloises. A palavra «Diana» em japonês fora realmente escrita com o sangue de Coutinho.

Uma fibra que ficara presa na segunda letra mostrava que o pincel utilizado era de pelo de coelho.

Vamos ter de verificar os pincéis da vítima - disse eu a Fonseca.

Lançou-me um olhar circunspecto.

Já verifiquei. Os pincéis de Coutinho são de pelo de gato ou de marta.

De gato?

Nada de raro por aqueles lados. Descobri na Wikipedia que os japoneses usam-no muito para fazer pincéis.

Quer dizer que o assassino trouxe o seu próprio pincel de coelho para a festa.

Exato. O que significa que contava com sangue suficiente para a caligrafia. É alguém que prepara as coisas.

E quanto àquele bocadinho de toalha? De quem era o sangue?

Ainda não temos resultados. O Sudoku prometeu fazer a análise esta tarde. Ele liga para si.

Fonseca prosseguiu dizendo que Joaquim não tinha encontrado nada de interessante no computador de Coutinho - nem e-mails com ameaças nem provas de subornos feitos -, mas restavam-lhe várias centenas de ficheiros para ver. Quanto ao portátil de Sandi, ainda não tinha conseguido pegar nele. Sabia que eu estava com pressa e prometera levá-lo para casa à noite.

E as marcas dos ténis? - perguntei.

Eram de uns Converse, tamanho 43 - respondeu Fonseca.

Têm qualquer coisa de especial?

O Vaz diz que as solas não mostravam sinais de uso.

Então o assassino comprou-os para o crime… É um tipo esperto – disse eu porque, mesmo que os encontrássemos, não poderíamos saber nada sobre a sua rotina diária por mais que espremêssemos as solas.

Antes de Fonseca sair, pedi -lhe que fosse a casa de Coutinho e investigasse o quarto de Sandi à procura de indícios. Prometeu-me ir lá ao fim do dia.

A nossa rececionista, Filipa, ligou-me quando estava a ouvir as restantes canções de Lungs.

Está aqui uma miúda gira chamada Joana à sua procura - disse ela num tom jovial.

Fui receber a rapariga ao cimo das escadas. Ela sorriu aliviada quando me avistou.

Tudo bem? - perguntei.

Tudo, obrigada. - Trocámos um beijinho na cara. - Oiça, Sr. inspetor, e se trinta não for na verdade o número trinta? - perguntou.

A adivinha dela não me fez qualquer sentido.

Não estou a perceber - disse eu.

Uma das nossas professoras de Francês dá ioga duas vezes por semana a seguir às aulas. E tem uma tatuagem na mão direita. É como se escreve em sânscrito Om, a sílaba que os hindus cantam. Devia ter percebido logo que era isso, mas estava muito nervosa. Om é muito parecido com o número trinta quando se olha de repente. Se tiver um computador, mostro lhe.

De volta ao meu gabinete, Joana sentou-se na cadeira diante do computador e começou a escrever no teclado. Inclinei-me sobre o seu ombro, mas a sensação de uma espécie de posição pai-filha pareceu-me demasiado íntima e recuei um passo. Momentos depois, o motor de busca do Google apresentava-nos seis milhões e duzentas mil imagens da sílaba Om. Joana escolheu uma que surgia num desenho estilizado.

Sou um génio, certo? - perguntou, rindo-se.

É uma rapariga espantosa! - concordei. Apertando-lhe o ombro ligeiramente, contornei a secretária de modo a ficar de frente para ela.

Então, como se chama essa professora? - perguntei.

Joana levantou o lábio como fazem os burros.

O seu desenho não se parece muito com ela - retorquiu -, e não gostaria de a meter em sarilhos.

Ela deve ter estado em casa da Sandi quando o pai dela foi assassinado. O que significa que pode ter visto ou ouvido o assassino.

É só porque... porque não quero que ela fique a odiar-me.

Se ficar a odiar alguém, não há de ser a si. Prometo.

Chama-se Maria Dias - disse Joana, e, enquanto eu anotava o nome, pegou no telemóvel e deu-me o número e o endereço da professora.

Como tem os contactos dela? - perguntei.

A professora Dias convidou-nos para almoçar, a mim, à Mónica e à Sandi, a seguir às férias da Páscoa. Gostava especialmente da Sandi.

 

Maria Dias vivia na zona do Chiado, numa casa em frente do Nood, um restaurante de comida asiática que Jorge adorava porque os empregados africanos e brasileiros andavam com ele às cavalitas se lhes pedisse com suficiente descaramento. Por cima do intercomunicador do prédio, em letras vermelhas irregulares, alguém escrevera FUCK MOODY'S, um protesto contra a agência americana de rating que tinha descido a cotação do crédito de Portugal para o nível de «lixo» há quase exatamente um ano. Toquei para o apartamento de Maria Dias, no terceiro andar, perfeitamente convencido de que ela devia ter ido à praia, para escapar ao calor e à poeira da cidade, mas segundos depois ouvi-a perguntar quem era. Expliquei-lhe porque é que precisava de falar com ela. Abriu de imediato.

À porta, disse-me:

Encontrou-me mais depressa do que eu pensava, Sr. inspetor.

Tive sorte... Houve uma pessoa que há pouco me ajudou a identificá-la.

Entre. - Esboçou um sorriso tímido.

O apartamento era pequeno e com as paredes cobertas de pinturas figurativas; coisa que tinha em comum com o amante assassinado. O chão era de tatami. A um canto via-se uma estatueta de Buda, que me dava pela cintura, a meditar serenamente. A mobília era elegante, contemporânea e uniformemente branca.

Chamou-me a atenção uma bonita aljava de couro, bastante gasta, pendurada por cima da porta da cozinha. As penas das flechas eram finas e cinzentas - quase iguais às que Nathan fazia.

Maria Dias estava descalça e pediu-me que tirasse os sapatos. Pu­los ao lado de outros dois pares junto à porta. Usava umas calças pretas soltas e uma camisola cor-de-rosa de mangas cavas. Tinha uns braços flexíveis e bronzeados, uma cintura delgada - uma gazela com uns olhos verdes de pestanas longas. O cabelo preto estava curto e espetado. É provável que o tivesse cortado durante o fim de semana para evitar ser identificada. Calculei que tivesse uns trinta anos, mas havia no seu porte uma autoridade que me levava a pensar que poderia ser mais velha.

Surpreendia-me o seu estilo tão diferente do de Susana, mas esse era provavelmente um dos seus atrativos vara Coutinho.

Então, que lhe posso oferecer? - perguntou, mais uma vez com um sorriso tímido e reticente. Nada, obrigado. Acabei de tomar o pequeno-almoço.

Estreitou as mãos uma na outra como que à espera de que eu lhe desse uma oportunidade para se mostrar uma boa anfitriã, o que me levou a pensar que não deveria receber muitas visitas.

E que me diz a um chazinho? - perguntou.

Boa ideia. Com um pedaço de limão, se tiver.

Venha até à cozinha e vamos falando. O senhor parece estar desesperado por respostas.

A cozinha era pequena e bem organizada. No meio da mesa de mármore branco havia doze tacinhas de um amarelo-torrado, dispostas como pétalas de uma flor de lótus. Cada taça continha uma especiaria - açafrão-da-índia, colorau e outros pós de diferentes tons de vermelho, amarelo e castanho, que não consegui identificar. Não era de admirar que pairasse no ar um forte cheiro a caril.

Lindo - disse eu, apontando para a flor de cerâmica.

Fico contente que goste - respondeu amavelmente.

Depois de encher a chaleira, foi buscar as taças - pretas com um rebordo esmaltado azul - e pô-las na bancada. Hesitou uns instantes quando estendeu a mão para a gaveta dos talheres e depois foi quase às apalpadelas que tirou as colherinhas de chá. Isso, e o movimento contraído e determinado do queixo, revelou-me que devia preferir uns minutos de conversa ligeira antes de começar o interrogatório.

Há quanto tempo faz ioga? - perguntei.

Desde miúda. Foi o meu pai quem me iniciou, na verdade... ioga e judo.

E há quanto tempo dá aulas de Francês no liceu?

Oito anos.

Um bom sítio para ensinar?

Adoro. Os miúdos são formidáveis. - Apontou para duas latas de chá Twinings numa prateleira alta. - English Breakfast ou Earl Greyt

English Breakfast.

Erguendo-se em pontas de pés, empurrou a lata para fora da prateleira e apanhou-a habilmente.

Imagino que seja bilingue, em português e francês - disse eu.

Confirmou com um aceno de cabeça.

Embora me sinta mais à vontade com o francês.

Nasceu em França, filha de pais portugueses?

Exatamente. - Abriu a lata e aspirou demoradamente o chá, deliciada. Tinha um perfil bonito. Apostaria que os seus alunos faziam tudo para lhe agradar, e que era boa professora.

Disseram-me que a Sandi era sua aluna - declarei.

Sim. É uma rapariga maravilhosa. - Pois ando a lata, perguntou:

Então, como é que me descobriu?

Um trabalhador das obras viu-a sair da casa de Coutinho. Embora não seja muito parecida com o desenho que ele nos ajudou a fazer.

Foi a sua mão que a denunciou. A princípio, pensámos que a tatuagem era o número trinta.

Ela virou a mão para me mostrar o seu Om em letras cor de vinho.

É bonito - disse eu. - Mas porque escolheu a mão?

Para ser consciente - respondeu.

Consciente de quê? - perguntei.

De mim própria... De como funciona o meu corpo e o meu espírito. E do meu esforço para levar a vida que quero levar.

Que é... ?

Concentrada e calma, inspetor. E solitária. Entregue a mim própria.

Os laços conduzem ao sofrimento - retorqui, numa paráfrase de uma das Quatro Nobres Verdades do Buda, pelo menos tal como Ernie mas tinha explicado durante o seu estágio de filosofia oriental.

Estou impressionada! - disse ela. Os olhos brilharam-lhe com humor. Provavelmente pensara, como a maior parte dos portugueses, que todos os polícias são iletrados e fanáticos acima de tudo por futebol.

Sou o tipo de pessoa que sabe um bocadinho de uma data de coisas - disse eu.

Um colecionador de factos. - Fez um aceno com a cabeça como quem sabe tudo sobre esse tipo de pessoas e não aprecia grandemente os seus métodos. - O que eu queria dizer, inspetor, era que não acredito num Deus que olhe por nós. Os budistas não acreditam nesse tipo de tretas. - Soava duro e deslocado na boca dela. - Nascemos sós e morremos sós - acrescentou, e fitou-me como que a desafiar-me para a contradizer. - Assim que aceitamos isso, começa o verdadeiro trabalho.

Parecia acreditar que a existência humana não passava de um longo inverno desprovido de sentido.

E então qual é o verdadeiro trabalho? – perguntei.

Aperfeiçoarmo-nos a nós próprios. O Buda é uma alma perfeita.

É o nosso modelo.

Como Jesus - acrescentei, pensando na tia Olívia.

Ela mostrou-se indignada.

Não, nada disso! Não há nenhum Deus como esse da Bíblia.

Nem nenhum filho de Deus! Nós não rezamos ao Buda, inspetor. Seria ridículo. Não tem nada de parecido com o cristianismo!

A sua aura de superioridade irritava-me - e parecia-me provinciana de um modo tipicamente português; todos os meus conhecidos que tinham adotado crenças orientais tendiam a agir como se fossem os primeiros ocidentais a fazer tal coisa. Achei que não devia dizer nada. Juntei as mãos atrás das costas e pus-me a olhar em volta, pensando agora que era bem possível surgir alguma discussão durante o interrogatório. E encarava-o com receio.

Ela parecia não dar pela minha indisposição. Depois de tirar um bule de um armário e o pôr em cima da bancada, deitou três colheres bem cheias de folhas de chá.

Então, será que o senhor é um crente cristão? - perguntou ela.

No seu tom de voz havia desaprovação.

Não praticante - respondi, enquanto ela tirava um limão do frigorífico. - Os meus pais e a minha tia eram. O meu irmão talvez ainda seja.

E a sua mulher? - Cortou uma rodela de limão e pô-la numa minúscula tacinha de vidro azul.

É judia. Acho que os nossos filhos também são, mas não tenho bem a certeza.

Não tem a certeza?

A minha mulher pensa que Deus foi inventado para manter as mulheres no lugar que lhes cabe, mas a minha sogra insiste em explicar-me que o judaísmo se transmite por via materna. O que, ao que me parece, faz com que os nossos filhos sejam judeus.

Quando a água começou a ferver, a minha anfitriã deitou-a por cima das folhas numa espiral cada vez mais apertada, gozando a precisão com que o fazia. Perguntei -lhe:

Então há quanto tempo andava envolvida com Coutinho? Em termos amorosos, quero eu dizer. Conheceram-se recentemente?

Ela sobressaltou-se, depois sorriu ironicamente e soltou uma gargalhada. Poisou a chaleira.

Onde está a piada? - perguntei, suspeitando de que se devesse ao meu português; tinha usado a palavra «envolvida», e talvez isso fosse uma tradução desajustada do inglês.

Tinha um ar ausente, como se não me tivesse ouvido.

O mundo atinge quase sempre o auge de beleza quando menos o esperamos - disse ela, claramente falando consigo. Depois, dirigindo­se a mim, acrescentou: - Oferece-nos presentes também, se estivermos prontos a recebê-los. - Fez um sorriso agradecido.

Exato - respondi, mas sem convicção; nesse momento, a minha recetividade às suas observações poéticas estava perto do zero.

Continuando a sorrir de si Rara si colocou o bule assim como as taças, num tabuleiro preto de laca. Tive a sensação de que a vida de todos os dias era uma sucessão de pequenos rituais cheios de significado para ela - uma tentativa de manter a ordem num mundo que parecia demasiado centrado em questões superficiais.

Vamos conversar para a sala - disse ela, e levou o tabuleiro para a mesa de jantar, uma antiga roda de carroça coberta por um círculo de vidro espesso verde. Passei a mão pela madeira escurecida pelo tempo e, levado por um palpite, perguntei-lhe se lhe tinha sido oferecida por Pedro Coutinho, mas ela disse-me que fora a avó.

Maria Dias pediu licença para ir à casa de banho enquanto o chá ficava em infusão. Assim que saiu da sala, atravessei em bicos de pés o tatami, dirigi-me para estatueta do Buda e carreguei-lhe com força nos ombros para sentir a solidez da sua determinação, pensando que numa outra vida Ernie teria decorado a sua casa daquele modo. Fiquei contente com a possibilidade de dar uma espreitadela ao que poderia ter sido. Era como entrar às escondidas nos sonhos do meu irmão. Assim que Maria Dias voltou e retomámos os nossos lugares, perguntei:

Coutinho era budista também?

Não, mas estudou o zen quando viveu no Japão. Por vezes ainda entoava cânticos e meditava. Comecei a suspeitar de que ela e Coutinho tinham sido feitos um para o outro.

E como foi que se conheceram? - perguntei.

O Pedro viu-me numa reunião de pais há cerca de nove meses. A mulher dele não pôde ir. Depois das apresentações, pediu-me o meu número do telefone. Ligou daí a poucos dias. Sabia que não devia encontrar-me com ele, pois era casado, mas estava curiosa. E ele era um sedutor: brilhante, com graça, afetuoso... Acabei por me apaixonar, se bem que tenha deixado claro que não o poderia ver tantas vezes como seria seu desejo. Como lhe disse há pouco, preciso de muito tempo para mim.

Encheu as taças, sentando-se rigidamente, como se acabasse de se lembrar de que uma boa postura faz parte do ser consciente. Enquanto soprava o chá, fixou-me com um olhar inquisitivo. Pensei que me fosse perguntar se estava perto de apanhar o assassino do seu amante. Em vez disso, retorquiu:

Este momento está a ser muito diferente daquilo que eu tinha pensado.

Não consegui perceber se achava isso uma coisa boa ou má, o que me levou a outra conclusão: não conseguira ler muito bem as suas expressões - talvez por estarmos os dois a falar na nossa segunda língua.

Era até possível - concedi com relutância - que não fosse intenção sua mostrar-se condescendente para comigo minutos antes.

E de que maneira é este momento diferente? - perguntei, espremendo um pouco de limão no meu chá.

Tinha imaginado que, quando o senhor me descobrisse, eu ia entrar em pânico. E quase entrei, mas depois não.

Por razões egoístas, fico contente por isso não ter acontecido ­ disse eu.

Egoístas?

Assim é mais fácil falar consigo. Podemos começar agora?

Pensava que já tínhamos começado - respondeu, e lançou-me um sorriso malicioso, de criança. Parecia subitamente à vontade, como se alguma engrenagem tivesse mudado dentro de si. Tal como muitas das pessoas que conheço, talvez andasse a tomar antidepressivos.

Tirei o bloco de notas do bolso do casaco.

Estava em casa de Pedro Coutinho na altura em que ele foi assassinado? - perguntei.

Não. Saí cedo nessa manhã. O assassino ainda não tinha chegado.

Esforcei-me por disfarçar o meu desapontamento, mas ela disse:

Lamento. Gostava de o ter visto. O que ele fez ao Pedro foi horrível.

Como sabe o que ele fez ao Pedro?

Li no jornal.

Deve ter sido um choque.

Foi horrível... o meu coração parecia querer saltar-me do peito.

Estava a começar uma aula, o que foi uma sorte, porque os meus alunos me acalmaram.

Uma aula? Pensei que estaria de férias em julho e agosto.

Durante o verão, dou aulas de ioga no Health Clube do Chiado.

Só duas vezes por semana: às terças e sextas. Ia começar a minha primeira aula da manhã e lá estava tudo no jornal.

Deve ter percebido que iríamos querer falar consigo, mas não se apresentou.

Estive quase para o fazer, mas uma história com um homem casado… E sabia que não seria de ajuda nenhuma. Ir à polícia só me criaria problemas na escola. E também por causa da família do Pedro.

Mais uma vez, fixou-me como que a desafiar-me para a contradizer.

Como cortou o cabelo, sou levado a concluir que estava determinada a não ser descoberta por nós - contrapus.

Falei num tom mais crítico do que tencionava. Ela passou a mão pelo cabelo num gesto tenso, como que a verificar se ainda estava tão curto como pensava.

Se pensa que era da polícia que eu tinha medo, está muito enganado - respondeu num tom ressentido.

Então de quem era?

Os seus olhos fulminaram-me.

Inspetor, nunca lhe ocorreu que o assassino pudesse querer encontrar-me? É bem possível que julgue que eu estava lá quando matou o Pedro, o que significa que há de querer ter a certeza de que eu nunca o poderei identificar.

Não pensei nessa possibilidade porque tinha a impressão de que ninguém sabia ...

Claro que não pensou nisso! - cortou ela, acintosa. - Mas eu fiquei uma pilha de nervos! E é verdade, sim, cortei o cabelo. Se estivesse no meu lugar, não tratava de mudar de visual?

Sim, mas o que queria dizer era que não tinha pensado que alguém soubesse da vossa relação. A Sr.ª Coutinho não sabia de certeza.

Não posso saber o que o Pedro contava aos amigos. Bem sabe do que os homens são capazes. tem alguma ideia de quem poderia querer fazer-lhe mal?

Ela negou com a cabeça.

O Pedro nunca falava de negócios comigo.

Está a partir do princípio de que se tratava de um inimigo do mundo dos negócios - comentei.

É a única coisa que faz sentido para mim.

Há alguém em particular que lhe ocorra de momento?

Já lhe disse, ele não falava comigo dessa parte da sua vida.

Na última noite que passaram juntos, ele falou num velho amigo chamado Jean Morel?

Não.

Alguma vez mencionou os nomes Bernard Mercier ou François Savarin?

Não, e nunca os ouvi.

Alguma vez falou da filha Sandi num contexto de qualquer coisa de... digamos violento que lhe tivesse acontecido há cerca de três meses?

Maria Dias esboçou um gesto repentino, fazendo recuar a cabeça.

Aconteceu alguma coisa de violento à Sandi?

Não estou autorizado a dizer. Mas Pedro Coutinho alguma vez lhe disse alguma coisa que a tenha levado a pensar que ela pudesse ter sido atacada?

Não. Mas ele não se sentia à vontade a falar da Sandi comigo. Eu era professora dela, e isso tornava as coisas embaraçosas.

Ele pareceu-lhe nervoso ou preocupado na manhã do crime?

Não. Parecia... - Levou a mão à cabeça. Tive a sensação de que o facto de eu ter dito que Sandi fora vítima de violência produzira nela um efeito como que ligeiramente diferido. Virando a mão, contemplou o Om com uma expressão determinada. Ao fim de alguns instantes, disse: - Dê-me um momento. - Levantando-se, pois ou as mãos em cima das coxas, curvou-se para diante e fez uma série de dez respirações profundas. Depois, levantando-se nas pontas dos pés, esticou os braços por cima da cabeça, com as palmas unidas, e baixou-os muito lentamente ao longo do corpo, como que fechando as asas.

Não me era difícil imaginar Coutinho a pintá-la com os seus pincéis japoneses e atraindo-a depois para a cama. Bebi um demorado gole do chá, perguntando a mim próprio como reagiria um budista ao suicídio de uma aluna de quem gostasse.

O que foi? - perguntou Maria Dias, vendo-me hesitar.

Custa-me dizer-lhe isto, mas a Sandi pôs termo à vida ontem à noite.

Ela inclinou a cabeça como se não me tivesse ouvido bem.

A Sandi tomou uma overdose de comprimidos - expliquei. - Foi dada como morta hoje pela manhã. Lamento ter de lhe dizer isto.

Ela levantou-se de um salto, os lábios cerrados, a expressão suspeitosa.

Está a mentir! - gritou. - E estou a perceber o que está a tentar fazer! Deve pensar que sou parva!

Não, estou a dizer-lhe a verdade. A Sandi tomou um punhado de comprimidos para dormir da mãe. Engoliu-os com vodca.

Maria Dias inclinou-se para mim, as mãos fincadas na mesa. A fúria enlouquecida que lhe lia nos olhos fez-me crer que era capaz de se atirar a mim.

Diga-me o que realmente se passou, seu estupor! - berrou.

A Sandi morreu hoje às sete da manhã - disse eu, abrindo as mãos e mantendo um tom de voz sereno, como aprendera a fazer com pessoas violentas. - E não temos razões para suspeitar de outra causa além de suicídio.

O seu olhar fixo enervava-me. Contando com a acumulação de pormenores para lhe ir diminuindo a raiva, acrescentei:

Disseram-me que os médicos não conseguiram estabilizar a tensão arterial. Tomou Victan... vinte comprimidos. Tirou-os do armário de medicamentos da mãe.

Tinha um olhar vazio e puxava os cabelos.

Isso... é impossível - murmurou num tom ausente.

Desculpe provocar-lhe este choque. Compreendo que...

Merde! - berrou ela.

Enquanto eu me esforçava por encontrar algo que a pudesse ajudar um pouco, ela voltou-me costas e repetiu mais três vezes «merde», num sussurro gritado.

Precipitando-se para o quarto, bateu a porta com estrondo e fechou-se à chave. Os seus soluços levaram-me a atravessar a sala de ponta a ponta. Parei junto à janela que dava para o largo fronteira.

A luz pardacenta sobre o topo dos telhados trouxe-me lágrimas aos olhos. Quando os abri de novo, estava de pé junto à porta da cozinha, diante de um pequeno retrato. Não sentira o latejar na cabeça nem qualquer outro dos habituais sinais de aviso.

O quadro representava uma mulher nova, numa roupagem branca e cintilante, de pé diante de um espelho, as tranças pretas - enroladas no topo da cabeça - atadas com uma fita comprida de cor púrpura. Olhava para a esquerda, e nos seus olhos havia uma surpresa exultante, como se um amigo ou um familiar inesperado tivesse acabado de entrar no quarto depois de uma longa ausência. A julgar pelo olhar ligeiramente voltado para baixo, deduzi que seria um filho, ou filha. O quadro fora executado ao estilo de Goya. E a mulher tinha a cara delicada e o olhar inteligente de Maria Dias. Poderiam ser irmãs. O que significava que, afinal, a obra de arte não fora roubada da sala de Coutinho; ele deve tê-la oferecido.

Baixei os olhos para a mão, mas não havia nada escrito.

A dona da casa saiu do quarto de lenço na mão. Tinha os olhos vermelhos. Dirigindo-se em passo arrastado para a pequena secretária junto ao Buda, pegou num pauzinho de incenso da gaveta de cima e inseriu a ponta na palma de uma mão de barro colocada numa das estantes. Depois de o acender, abanou o fumo na sua direção e inalou-o com prazer.

Desculpe tê-lo deixado sozinho - disse ela, voltando-se para mim, a voz vacilante.

Não há problema - retorqui.

Sentou-se e pegou no lenço de papel. Começou a rasgá-lo em pedacinhos, mas aplicadamente, como se fosse importante não voltar a perder o controlo.

Gosto do quadro que o Pedro Coutinho lhe deu - disse eu, apontando para o retrato.

Sim, é muito bonito - respondeu, mas sem alma.

A mulher podia ser você... se tivesse vivido no século dezanove.

Sim, o Pedro achava que a semelhança era... - Não conseguindo encontrar a palavra que procurava, desistiu com um encolher de ombros.

Quando é que lha ofereceu? - perguntei.

Há cerca de um mês. - As lágrimas assomaram -lhe por entre as pestanas.

Vou buscar-lhe outro lenço - propus, levantando-me.

Não, é melhor deixá-las correr.

Para que repousasse uns instantes, pus-me a examinar o quadro mais uma vez. Decidi que a mulher estava pronta a lançar-se em direção ao filho que não se via no quadro. O artista quisera captar o instante antes desse movimento. Ao fazê-lo, tinha-a também pintado prestes a regressar à sua vida real e a abandonar a posição de modelo. Parecia-me algo de que valia a pena falar com Ernie.

Passado algum tempo, ela disse:

Estou pronta para mais perguntas. - O seu esforço para sorrir fez-me lembrar a Sr.ª Coutinho. «Somos um país de mulheres corajosas, à falta de outras coisas», pensei.

Alguma vez pressentiu que a Sandi tivesse tendências suicidas? - perguntei.

Não.

Mas reparou que andava perturbada?

Claro, mas não lhe fiz nenhuma pergunta. Como lhe disse, o meu caso com o pai dela tornava as coisas muito embaraçosas.

Nem sequer lhe perguntou o que se passava quando ela veio cá a casa a seguir às férias da Páscoa?

Ela estremeceu.

Como sabe que a Sandi esteve cá?

As amigas dela, Joana e Mónica, disseram-me.

Não, não lhe fiz perguntas aqui, embora obviamente o devesse ter feito - disse ela num tom de arrependimento. Levantando-se, acrescentou: - Às vezes penso que devia tornar-me monja e não voltar a falar com outro ser humano pelo resto da minha vida. - Num tom de quem me desafiava a duvidar da sua sinceridade, acrescentou: - Que pensa disso?

Penso que esta tem sido a pior semana da minha vida.

Olhou-me como se tivesse acabado de compreender que eu não era o pateta insensível que tinha imaginado. Depois de ter fixado mais uma vez o Om na mão, fechou os olhos e sussurrou um breve cântico.

Aproximando-se em passos rápidos da janela onde eu estivera, desapareceu por trás das dobras da diáfana cortina branca e olhou para fora.

Aposto que ele já partiu há muito - disse eu, suspeitando qual seria a preocupação dela.

Porque pensa isso?

Suspeito de que ele veio de França para matar Pedro Coutinho.

A estas horas já deve ter voltado. Quando tiver a certeza digo-lhe, depois de ter os nomes dos passageiros de todos os voos para Paris desde quinta-feira.

Obrigado

Passando os olhos pelos meus apontamentos, ocorreu-me uma derradeira pergunta:

Na última manhã em que estiveram juntos, reparou se o Pedro Coutinho tinha com ele algum dos seus telemóveis.

Não, lamento muito.

Há mais alguma coisa que me possa dizer relacionada com o crime?

Ela abanou a cabeça, a dizer que não.

Só por uma questão de precaução - rematei -, se vir alguma coisa suspeita, ligue-me, de dia ou de noite. - Mostrei-lhe o meu cartão, dizendo: - Tem aqui o meu número. - Pu-lo em cima da mesa. - Talvez fosse melhor pedir a alguma amiga para ficar consigo durante uns dias. Não precisa de passar por tudo isto sozinha.

Mas é assim que as coisas são! - retorquiu abruptamente. - Estamos todos sós... sempre. E isto prova que não há nada que possamos fazer para nos ajudarmos uns aos outros!

Apertámos as mãos à porta. As dela estavam geladas.

Ao descer as escadas, ouvi o estilhaçar de peças de barro. Uma vida com Ernie dera-me uma boa ideia do que estaria ela a partir - a sua flor de lótus de especiarias - e a razão por que o fazia: porque era a coisa mais bonita que possuía.

 

O inspetor Quintela veio ao meu gabinete trazer-me a informação de que não havia nenhum Bernard Mercier ou François Savarin em qualquer dos voos de ou para Paris das duas últimas semanas. Encostou-se ao umbral, mordendo o polegar. Disposto a pôr à prova a lógica do meu raciocínio, perguntei-lhe:

Oiça, Manuel, se quisesse matar alguém em Paris, como é que ia para lá?

Os olhos de Manuel brilharam com a presteza competitiva de um jovem aceitando o desafio de alguém mais velho.

Quem vou eu matar desta vez? - perguntou. Já tínhamos jogado este jogo antes.

Um construtor civil rico que você conheceu há poucos meses.

E qual o motivo por que o vou aviar?

Você foi despedido do seu emprego por ele ter dito que o viu roubar um livro valioso.

É uma coisa muito feia.

A sua ingenuidade parecia mais doce do que irritante, como normalmente acontecia.

Pois é - concordei -, e você ficou muito chateado com isso.

E então como é que iria para Paris?

De carro, porque agora não há fronteiras. Ninguém poderia provar onde eu tinha estado. - Quintela deixou-se cair na cadeira em frente da minha secretária. - Não usaria cartão de crédito e evitaria as caixas de multibanco em Espanha e em França. Iria levantando bastante dinheiro em Portugal, mas, aos poucos, ao longo de umas semanas, para que ninguém que fosse investigar as minhas contas bancárias reparasse em qualquer coisa suspeita.

Talvez até durante um período de três meses - avancei.

Não me parece mal.

Vê-se que não é a primeira vez que pensa nisto - retorqui com um júbilo perverso na voz.

Ele apertou nas mãos o meu pesa-papéis - uma enorme pedra lisa do jardim de Ernie.

Passo o tempo a pensar em apanhar o estupor que atropelou o meu irmão - disse ele.

O irmão mais velho, Luís, tinha sido atropelado dez anos antes por um advogado espanhol a conduzir a alta velocidade, em Sitges, uma estância de férias perto de Barcelona.

E onde compraria a arma para o matar? - perguntei.

No mercado negro. E em Portugal, onde falo a língua suficientemente bem para não dizer nada que me pudesse identificar.

Mais alguma coisa?

Sim. Pintaria o cabelo de preto e compraria uma bela boina basca. Os catalães iriam pensar que o crime fora cometido por algum separatista da ETA. - Com as mãos, mostrou-me como poria a boina de lado, em jeito guapo, por cima do olho direito.

Começo a pensar que todos os polícias têm, pelo menos, um crime pensado lá no fundo das suas cabeças - disse eu. - Talvez seja até essa a razão por que escolhemos esta profissão.

Acha que é para nos impedir de fazer isso mesmo?

Não. Para aprendermos a fazê-lo sem sermos apanhados.

O seu riso revelou-me que achava que eu não estava a falar a sério, mas o meu olhar firme fez com que mudasse de ideias.

Então quem é que gostaria de matar, Monroe? - perguntou.

Havia na pergunta um pouco da simpatia ingénua que Manuel Quintela inspirava, assim como um dos seus defeitos fatais, a cândida in­ consciência de diversos dos mais básicos desejos humanos: neste caso, o de privacidade. Mas disse-lhe a verdade; usar uma máscara perante ele não me parecia já necessário.

Matava o seu pai? - replicou numa voz espantada.

Ou matava-me ele primeiro a mim.

Quintela coçou a cara rosada e juvenil, considerando uma possibilidade que nunca antes lhe tinha passado pela cabeça.

Sabe o que me chateia mais, Monroe? É que aquele sacana não passou um único dia na cadeia. Trago sempre o nome e a morada dele na carteira, não sei se sabe.

Chegou a ir a julgamento?

Não. Houve um inspetor catalão que me disse off the record que o gajo era amigo do Juan Antonio Samaranch. Lembra-se dele? - Quintela exibiu um esgar de desprezo. - É o estupor do fascista que foi dirigente do Comité Olímpico. O tal catalão disse-me que os tribunais espanhóis eram os mais corruptos da Europa. - Passou a língua pelos lábios carnudos com uma alegria maliciosa. - Disse ao tipo que se via logo que não sabia nada sobre Portugal!

Pedi a Quintela que me desse uma lista dos nomes dos passageiros dos comboios internacionais com partida ou chegada de Lisboa durante as duas últimas semanas. Pedi-lhe também que investigasse as contas dos cartões de crédito de Mercier e Savarin nas estações de serviço portuguesas a caminho de Paris.

Assim que voltei a ficar só, ocorreu-me que o assassino, ou assassinos, podia ter comprado em Lisboa os seus Converse novinhos em folha. Era possível que tivesse tido algum deslize e os tivesse pago com cartão de crédito.

Depois de ter eliminado as primeiras lojas de artigos desportivos da lista que vira no Google, recebi uma chamada de Sottomayor, o contabilista de Coutinho.

Hoje estava à espera de que a conversa fosse consigo - disse ele.

Desculpe, não me foi mesmo possível.

Estive a pensar melhor. Posso falar-lhe sobre os subornos, mas só pessoalmente.

Quando podemos encontrar-nos? - perguntei.

Estou aqui mesmo ao pé da sede da Judiciária.

Sottomayor tinha uma barba bem tratada, pintada num tom castanho tão escuro que lhe dava à cara uma tonalidade branca cadavérica.

Possivelmente por essa razão os olhos brilhantes pareciam ter o ar sofredor de um Cristo da iconografia russa. Trazia um casaco azul, mas tanto as calças quanto o colete eram de linho bege. Usava umas luvas de conduzir de cabedal preto e uma bengala de madeira com um castão de prata em forma de cabeça de pato.

Parecia ter escolhido a excentricidade como maneira de singrar no mundo.

Mal nos cumprimentámos, declarou numa voz determinada:

Nunca testemunharei em tribunal sobre nada do que lhe vou dizer agora.

Convidei-o a sentar-se numa cadeira junto à minha secretária.

Então porque veio cá afinal? - perguntei-lhe, sentando-me em frente dele.

Puxou o lóbulo da orelha, como que a considerar as suas opções.

Embora não deseje ser envolvido diretamente, espero que o senhor possa usar o que lhe vou dizer para processar um dos políticos mais corruptos que Pedro subornou. - Sorriu amavelmente. - Não é que pense que o consiga.

Não?

Quando é que viu alguém ser julgado por corrupção neste país?

Então e o Isaltino Morais? - aventei; fora presidente da Câmara de Oeiras e tinha sido possível levá-lo a tribunal uns anos antes.

Sottomayor soltou um suspiro, descalçando as luvas.

Vê-se que o senhor não seguiu o caso.

Ultimamente não.

Pousou as luvas cuidadosamente em cima da secretária, sem pressas, satisfeito com os seus modos aristocráticos, o que achei, curiosamente, relaxante, como se tivesse sido transportado no tempo para um século antes.

Como talvez se lembre - começou -, Morais foi condenado em 2009 por corrupção, fraude e lavagem de dinheiro, e condenado a sete anos de prisão. Tudo isto por atos praticados em 1996. Recorreu, naturalmente, e a sentença foi reduzida para dois anos. Entretanto, concorreu novamente para o cargo de presidente da Câmara de Oeiras. Lembra -se dos resultados, por acaso?

Ganhou as eleições.

Provando-nos assim a todos - disse ele, numa voz deliciada - o pouco que as pessoas ligam quer à corrupção quer ao respeito que devem a si próprias. Nunca cumprirá qualquer pena. O Morais alguma vez aceitou subornos de Pedro Coutinho?

Esqueça o Morais! Não passa de um zé-ninguém, um arrivista, um zero à esquerda que mal sabe ler e escrever - retorquiu desdenhosamente. Com aquela derrisão, Sottomayor parecia impaciente por me mostrar que o seu desprezo era o do Dinheiro Antigo pelo Dinheiro Novo. Recuperando a calma, continuou: - Sr. inspetor-chefe, o que estou a tentar dizer-lhe é uma coisa muito diferente. - Sacou de um cachimbo elegante e de um isqueiro de prata. - Importa-se?

É contra a lei.

Não respondeu à minha pergunta - disse ele, divertido por poder usar contra mim as minhas próprias palavras.

Continue - retorqui.

Abri a janela e recuperei a concha que em tempos tinha usado como cinzeiro antes da entrada em vigor da lei antitabágica. Depois de acender o cachimbo, desabotoou o casaco. Com o cachimbo entredentes, recostou-se, juntou as mãos atrás da cabeça e perguntou:

Joga futebol, Sr. inspetor-chefe?

Não.

Mas vê um jogo de Vez em quando?

Não, se o puder evitar.

Riu-se.

A minha opinião sobre si está a subir vários pontos. - Claramente satisfeito com o seu papel tutelar, disse: - O que quero dizer é que pessoas como o senhor e eu, que acham que as regras do jogo deveriam ser iguais para todos... são uma reduzida minoria. A maior parte das pessoas sente-se felicíssima se arranjar um bom emprego com a cunha de um amigo, ou uma autorização para construir uma casa de banho extra pagando um suborno. – Inclinou-se para mim, ansioso. - Estamos of! the record, não estamos?

Sottomayor causava-me uma impressão vertiginosa - como perante um fogo de artifício excessivamente espetacular. Quando confirmei, o seu olhar tornou-se profundamente sério.

O Pedro fazia todos os pagamentos pessoalmente e quase tudo em dinheiro - começou por dizer. - Usava luvas, para não deixar impressões digitais. Mas, uma vez ou outra, recorria a transferências bancárias. Comece por essas, Sr. inspetor-chefe. - O cachimbo apagara-se. Voltou a acendê-lo, chupando o fumo com uma gulosa aplicação. - As últimas transferências de que me lembro foram feitas para ganhar um contrato para uma urbanização em Coimbra. O Pedro fez pelo menos dois pagamentos para a conta de uma empresa nas ilhas Caimão. Isto foi na primavera de 2010. - Apontou-me a boquilha do cachimbo e piscou os olhos no meio do fumo que lançara. - Verifique as contas bancárias do Pedro em Portugal e em França e há de encontrar o nome do banco. Ou verifique os extratos bancários da Susana e da Sandi. Pode ser que tenha usado uma das contas delas para evitar qualquer associação direta com a transferência.

Usava essa estratégia muitas vezes?

Só quando uma transação exigia especial... delicadeza. Agora, o nome que aparece na conta que recebe as transferências nas ilhas Caimão deve ser Alcino Lima. Mas tente convencer alguém no banco que recebeu o dinheiro a confirmar-lhe isso. – A sua atitude de gravidade rompeu-se e piscou-me o olho. – Se o seu encantador sotaque americano não lhe conseguir a informação de que precisa, ofereça um suborno. Não é nada de que não estejam à espera. Para isso, pode ter de apanhar um avião e ir até lá, naturalmente, mas é um sítio lindo. Bom para a pesca submarina! E com um excelente peixe fresco. Prove a salada de búzios... É a minha preferida. Põem-lhe uma data de sumo de lima. Quem haveria de dizer? Enfim, leve a mulher e os filhos... Vão adorar.

Como sabe que tenho mulher e filhos?

Acha que ia dizer isto tudo a um polícia duvidoso? Fiz a minha investigaçãozinha. Mil euros são capazes de lhe conseguir os documentos de que precisa. Dou-lhe o dinheiro agora se concordar em ir lá.

Tirou um envelope volumoso do bolso de dentro do casaco e estendeu-mo.

Estaria a oferecer-me dinheiro por algo mais do que seguir a pista de umas quantas transferências bancárias? Talvez pensasse que podia comprar a minha promessa de deixar o seu nome fora da investigação.

Recusei-o com um gesto.

Por favor, não se ofenda, Sr. inspetor-chefe. Estamos todos a viver tempos difíceis e quem poderia negar a um funcionário dedicado uns dias num paraíso tropical?

Quem é Alcino Lima? - perguntei, ansioso por pisar um terreno mais seguro.

Muito bem! - respondeu, voltando a guardar o envelope no bolso do casaco. - Mas se mudar de opinião é só dizer. Pode contar com a oferta especial dos bilhetes de avião, em executiva, se preferir. Quanto ao Sr. Alcino Lima era, naquela altura, o vereador do pelouro da habitação em Coimbra. Mas naturalmente é possível que a tal conta nas ilhas Caimão esteja em nome de alguém da família. Disseram-me que um sobrinho a estudar em Lisboa lhe faz chegar o dinheiro.

Peguei no meu bloco de notas e escrevi os nomes que ele me dera.

Quanto aos pagamentos que o Pedro fez em dinheiro, tem registos disso? - perguntei.

Não, era o Pedro que os fazia.

Onde?

Não sei. Discutia as quantias comigo muitas vezes e quem ia subornar, mas nunca me deu nenhuma informação sobre os registos.

Então como pode ter a certeza de que os fazia?

Porque me disse que sim. Sempre me pareceu que os tinha em casa. Não faço ideia onde, se bem que, se um polícia bonito como o senhor experimentasse submeter-me a alguma tortura não muito exagerada - disse ele com um franzir divertido dos lábios -, faria por aguentar um bocado para lhe agradar e depois era capaz de sugerir a biblioteca de Pedro.

Sottomayor achara claramente útil dar-me a entender que era gay.

Se calhar para provar que confiava em mim e que eu devia confiar nele.

Mas começava a achar que ele pertencia a uma elite que tinha arruinado a economia e destruído a auto confiança deste país.

Na biblioteca, porquê? - perguntei.

Porque ele era o único que aí entrava. Tirando a Sr.ª Grimault.

A mulher dele nunca entrava na biblioteca?

Sottomayor bateu com a bengala no chão e lançou-me um olhar de desagrado.

O senhor conheceu a Susana, Sr. inspetor-chefe?

Sim.

E ficou com a impressão de que era uma apaixonada pela literatura francesa clássica... Proust, Zola, Anatole France...?

Pareceu-me uma pessoa inteligente - respondi.

Então não esteve muito tempo com ela.

O senhor é sempre assim tão maldoso? - perguntei.

Maldoso? - Riu-se com a ideia. - O senhor interpretou-me muito mal, Sr. inspetor-chefe. Eu gosto da Susana. Gosto muito dela! E era uma mulher tremendamente sexy quando Pedro casou com ela, posso dizer-lhe.

Lançou-me um olhar como que a desafiar-me a discordar.

Muito bem - disse eu, incapaz de disfarçar a irritação na voz -, então por que razão Coutinho lhe falou sequer nos subornos que fazia?

Que interesse tinha ele nisso?

Gostava de ter alguém com quem pudesse partilhar o seu divertimento. Éramos amigos desde pequenos. E temos um sentido de humor muito parecido.

Quer dizer que se divertia com os subornos que fazia?

Quando entrou no mundo dos negócios, ter de pagar a políticos era uma coisa que lhe dava volta ao estômago. Como estratégia defensiva, digamos assim, aprendeu a fazer disso um jogo. Acabou por lhe dar gozo propor valores absurdamente baixos e ver um presidente da camara ou um ministro regatear para receber mais. Gostava de expor a ganância deles. O melhor de tudo era ver desfazerem-se em cinzas todas as proclamações de serviço público. Sr. Inspetor, o senhor conhece um certo tipo de políticos portugueses que usam fatos italianos e que precisam de um Mercedes ou de um BMW para exibirem a classe que nunca tiveram? Bem, certa vez chamei puta barata a um deles, um tipo particularmente odioso, e o Pedra ficou furioso comigo. Disse que estes tipos não se parecem em nada com putas, nem mesmo com as mais baratas, porque uma mulher que oferece sexo em troca de dinheiro fornece um serviço útil à sociedade.

Então quem é que o Pedra corrompia?

Todos aqueles que tivessem de assinar as autorizações de que precisávamos e que mordessem a isca que ele lhes lançava, dizendo que gostaria de contribuir «para a sua causa política favorita», sendo que a causa favorita de qualquer político é a sua pessoa, não sei se está a ver. Sottomayor sorriu com a sua piada, mas eu navegava muito ao largo no mar - sem nenhum dos pontos de referência que me permitissem reconhecer Portugal - de modo que não me pareceu que o que dissera tivesse a mínima piada. Será que me tinham feito muitas propostas de suborno durante os últimos dezassete anos sem que eu sequer me tivesse apercebido disso? Gostava que me desse alguns nomes - disse eu.

Por onde quer que comece?

Quem recebia os maiores subornos?

Ministros e secretários de Estado. Os presidentes da Câmara recebiam menos, e os vereadores normalmente não iam além do preço de uma semana num hotel quatro estrelas na Madeira. Mas hoje em dia estão todos em saldo. Podem conseguir-se verdadeiras pechinchas para quem anda às compras.

O Coutinho pagava-lhes diretamente?

Normalmente pagava a algum familiar. Os primos são muito usados, especialmente se tiverem contas no estrangeiro. O Pedro fazia muitos pagamentos em França por projetos que andava a construir em Portugal e vice-versa.

Prosseguindo, Sottomayor deu-me os nomes de dois dos últimos quatro presidentes da Câmara de Lisboa e de três atuais vereadores. Falou também num antigo ministro do Interior e num atual secretário de Estado. Informou-me que um antigo presidente de um clube de futebol de Lisboa mantinha o record do maior suborno pago por Pedro: quarenta mil euros. A título de explicação, disse:

O homem era amigo próximo de vários membros bem colocados do Partido Socialista, numa altura em que eram eles quem controlava a maior parte das câmaras importantes.

E quanto àquele centro comercial que Coutinho andava a construir na Reserva Natural do Sado?

Que quer saber?

A quem pagou ele?

Um vereador de lá recebeu quinze mil euros, tanto quanto me lembro... Um tal Jorge qualquer coisa. Mas o tipo ia usar essa quantia para pagar a outros políticos. Infelizmente, não faço ideia de quem eram nem de quanto receberam.

Quinze mil, só?

Sottomayor rui-se

Diga-me uma coisa, Sr. Inspetor-chefe, quando lhe pagam a si pela sua assinatura?

Mas quinze mil não é muito para um projeto de vários milhões.

Como lhe disse, há por aí umas pechinchas se se der ao trabalho de fazer uma pequena comparação de preços.

O meu passo seguinte parecia arriscado, mas o seu tom de perplexidade - com uns resquícios de desdém - levou-me a crer que o que dizia era totalmente verdade.

E se eu lhe dissesse que tenho a lista completa dos subornos pagos pelo seu velho amigo ao longo dos últimos doze anos? - avancei. - Só que está tudo em código.

Nem uma nem outra dessas informações me deixaria surpreendido.

Porque...

O cachimbo voltara a apagar-se. Enquanto sacudia o tabaco apagado do fornilho para a minha concha-cinzeiro, disse:

Porque me disseram que o senhor era competente, e porque o Pedro era uma pessoa cautelosa. Não quereria que a polícia descobrisse no que andava metido... especialmente um polícia honesto como o senhor. Era capaz de lhe dar cabo de todo o divertimento!

Sabe alguma coisa sobre o código?

Pode ser. É só com números?

É.

É um sistema que inventámos quando éramos miúdos. A única coisa de que precisa é aquilo que chamávamos uma frase-mestra. Imagine a seguinte: «O meu cachimbo acabou de se apagar.» A primeira letra, «O», passa a ser o número 1; a segunda, «M», é o número dois; a terceira é o número 3, e assim por diante. É fácil. - Sacou da bolsa de tabaco e começou a encher o cachimbo. - Sem a frase-mestra será extremamente difícil decifrar o código. E nós inventámos maneiras de a distorcer a ponto de ser praticamente impossível alguém descobri la.

Qual era a frase que usavam quando eram miúdos?

O primeiro verso d'Os Lusíadas. - Sentou-se direito e abriu os braços de modo a abarcar a dimensão épica das suas palavras: - «As armas e os barões assinalados, que da ocidental praia lusitana.»

Depois de declamar o primeiro verso num português triunfante - como se representasse para a última fila de um teatro -, Sottomayor recostou-se na cadeira e soltou um suspiro exausto.

Se não for isso, Sr. inspetor, então receio não poder ajudá-lo. Se quer o meu conselho... esqueça o código e os subornos que ele fez em dinheiro. Siga a pista das transferências para as ilhas Caimão. É a única maneira de avançar. - Acendeu o cachimbo e soprou o fumo para o teto. Mais alguma coisa que possa fazer por si? - perguntou.

Só mais uma coisa - respondi. - Tanto quanto sabe, o Pedro esteve envolvido em quaisquer negócios no Japão, nos últimos tempos?

No Japão?

O assassino forçou-o a escrever o nome «Diana» em carateres japoneses na parede da sala de estar.

Diana? Por que razão?

Não sei. Mas teria ele alguns negócios no Japão relacionados com obras?

Não que eu soubesse.

E o nome Diana terá alguma coisa a ver com a estadia dele no Japão quando era novo?

Não que me lembre.

E alguma ligação com a sua vida atual?

Não me faz lembrar nada.

Consultei as minhas notas uma última vez e dei por uma lacuna que precisava de preencher.

Como se arranjava Coutinho para poder fazer os subornos em dinheiro?

Tinha um cofre secreto em casa.

Onde?

Não faço ideia.

E como fazia ele para juntar assim tanto dinheiro?

Toda a gente tem dinheiro à mão para uma emergência, Sr. inspetor.

Eu não tenho.

Ele riu-se novamente.

Mas quantos centros comerciais ou estádios de futebol construiu o senhor ultimamente?

Luci ligou-me pouco depois de Sottomayor ter saído e disse-me que Susana, Sylvie e Morel tinham utilizado um serviço de limusinas e iam naquele momento a caminho do cemitério da Ajuda para o funeral de Pedro Coutinho. Passada uma hora e meia, tendo eu acabado de eliminara décima segunda loja de artigos desportivos - sem nenhuma pista que me conduzisse aos ténis que o assassino pudesse ter comprado -, voltou a ligar para me dizer que a limusina tinha acabado de os deixar em casa.

E tenho más notícias - acrescentou. - A casa dos Coutinho foi assaltada enquanto nós estivemos fora. Foi vandalizada.

Pondo- me de pé, perguntei:

Deram por alguma coisa ter sido roubada? Não.

Fiquei a olhar pela janela como se estivesse a espreitar através do meu silêncio atónito. Depois lembrei-me do dicionário de Francês-Farsi de Coutinho; seria possível que os assaltantes tivessem andado à procura da pen que eu descobrira na cavidade aberta no livro?

Vasculharam a biblioteca?

Sim.

E o quarto da Sandi? - perguntei, esperando que não tivéssemos perdido as provas de como ela tinha passado as suas últimas horas.

Já alguma vez viu os efeitos de um furacão numa cidade pequena?

Faz alguma ideia de como é que eles entraram?

Ainda não descobri... não há portas forçadas nem janelas partidas. Chefe, se me permite que lhe diga com toda a franqueza, não sei como isto entra na sua teoria sobre os dois franceses das cavalariças de MoreI. Quer dizer, se fossem eles os responsáveis, então, o que tinham necessidade de voltar a casa dele.

A única ideia que me ocorria é que estávamos a lidar com dois casos diferentes: um assassinato cometido por um ou dois dos franceses e um assalto ordenado por um político na sombra. Enquanto explicava a minha teoria a Luci, decidi que era melhor certificarmo-nos de que não se tratava apenas de um caso de delinquentes que haviam aproveitado a ausência de uma família enlutada para roubarem.

Luci, está na sala neste momento?

Na cozinha.

Vá à sala e veja se roubaram algum dos quadros.

Segundos depois, Luci disse-me que a única que faltava era o desenho do Almeida que Fonseca tinha levado para o laboratório para ver se havia impressões digitais.

Veja se faltam algumas das joias de Susana - indiquei-lhe.

Pouco depois de ter desligado, lembrei-me de que havia ainda uma possibilidade de os dois crimes estarem ligados e voltei a telefonar-lhe.

Pedi -lhe para ir ver se Les Confessions continuavam na biblioteca de Coutinho.

Devia ter-lhe pedido para não o largar - confessei. - Se o Savarin e o Mercier assaltaram a casa, provavelmente levaram-no.

Mas para que haviam eles de o querer? - perguntou ela.

O Coutinho conseguiu que despedissem o Mercier tirando o livro da estante do Morel e dizendo que tinha sido o rapaz a roubá-lo. No lugar dele, o que eu faria era tirar o livro na primeira oportunidade que tivesse. Parecer-me-ia lógico, como corrigir uma injustiça. Já para não dizer que o livro deve valer uma pequena fortuna. Não me admiraria nada se faltasse uma mala inteira cheia de primeiras edições do Coutinho.

Mas o Mercier podia ter levado Les Confessions no dia do crime.

Não queria permanecer no local o tempo de o encontrar até porque o Coutinho estava a asfixiar no tapete da sala de estar. Os assassinos principiantes perdem muitas vezes o sangue-frio, Luci.

Mas porque haveriam de vandalizar o resto da casa? - perguntou ela.

O ódio deixa sempre atrás um rasto de destruição do caraças ­ repliquei, e por uma vez não me importei de falar como os detetives privados dos anos quarenta.

Então se foi o Mercier, quer dizer que ele andou a vigiar a casa ­ disse ela.

Mal as consequências da sua revelação se tornaram claras para mim, um calafrio fez-me estremecer fortemente.

Grande verdade, Luci. Por isso, não perca tempo com as joias. Vá já à biblioteca e procure Les Confessions. É o único livro que sabemos que estava lá. Se já não estiver, é porque foi roubado.

Vou demorar um bocado a localizá-lo, chefe - disse ela num tom desalentado.

Anime-se... Esta é a melhor coisa que poderia ter acontecido! - exclamei.

Então porquê, chefe?

Porque, se foi o Mercier quem fez isto, quer dizer que há uma hora ainda estava em Lisboa e que provavelmente não conseguiu ainda sair do país.

Enquanto seguia para casa de Coutinho, dei instruções ao inspetor Quintela para ligar para os nossos contactos nas companhias de aviação e nos Caminhos de Ferro e pedir-lhes que impedissem a saída de Lisboa de qualquer passageiro chamado Bernard Mercier ou François Savarin. Luci telefonou-me logo a seguir. Estava na biblioteca, à procura de Les Confessions, mas pedira a Sylvie que verificasse as joias de Susana e não faltava nenhuma.

Daí a vinte minutos, quando bati à porta da casa de Coutinho, Sylvie veio atender. Tinha na mão uma taça alta rosada de champanhe e mexia-o com a elegante armação de um par de óculos de aros de metal.

Estava descalça, com umas grossas pulseiras de ouro nos tornozelos.

Apercebendo-se do meu olhar curioso, disse:

A Susana e eu estivemos na Índia no ano passado. - Levantando a taça, acrescentou com amarga ironia: - Como tirar proveito da pobreza dos outros! - Bebeu o champanhe de um único trago. Claramente, era a sua vez de se embebedar.

Alguma ideia sobre o que os assaltantes procuravam? - perguntei.

É o que lhe ia perguntar, inspetor.

Vejo que não tocaram em nada na sala de estar.

Isso é importante?

Deixa-nos duas possibilidades: ou eles já sabiam que o que, procuravam não estava aqui ou encontraram o que queriam antes de procurar aqui

Estou a perceber. Alguma ideia sobre como entraram? - perguntou.

Iria apostar que tinham uma chave.

Só que nós mandámos mudar a fechadura ontem.

E a porta das traseiras? Também mudou essa fechadura?

Não, ainda não, ficou marcada para hoje. Mas eles podiam ter entrado por ali?

Porque não?

O jardim tem um muro de três metros a toda a volta.

Uma das casas por trás do jardim tem ar de estar abandonada há anos. Com uma escada, seria fácil galgar o muro. Vou pedir aos técnicos para verificarem se há pegadas ou outras provas.

Acha que quem fez isto matou o meu irmão?

É muito possível.

E como arranjou as chaves?

É muito fácil fazer cópias. Basta que alguém tire o porta-chaves ao seu irmão, à Susana ou à Sandi durante dez minutos.

Enquanto dizia isto ocorreu-me que Mercier poderia ter roubado as chaves a Sandi depois de a ter violado. Ela estaria demasiado perturbada para dar pela falta delas, o que daria tempo a Mercier para fazer as cópias. Depois, o chaveiro apareceria misteriosamente num sítio qualquer em casa no dia seguinte. Mesmo que ela se apercebesse do desaparecimento, não iria querer admiti-lo, porque seria forçada a explicar como é que Mercier tivera oportunidade de a roubar.

Encontrei Luci sentada no chão da biblioteca, os olhos postos nas páginas de um livro com uma encadernação de couro, rodeada por uma série de outros, espalhados à toa. Não era difícil vê-la como uma criancinha sentada numa caixa de areia, perdida num mundo de livros de aventuras.

Apontou para as prateleiras, onde umas duas centenas de livros estavam já alinhados. Disse-me que estava a dispô-los por ordem alfabética. Ainda não tinha visto Les Confessions.

Que está a ler? - perguntei.

Oh, isto? É um livro do Sherlock Holmes em português... Uma edição que nunca tinha visto. Desculpe por estar a fazer uma pausa, chefe.

Não tem de que se desculpar, Luci.

Houve uma altura em que era capaz de dar tudo para ser o Dr. Watson - disse ela, abanando a cabeça, como que a desvalorizar uma fantasia disparatada.

E aqui a temos, poucos anos depois, no papel do próprio Holmes!

Luci lançou-me um olhar de dúvida.

Não me parece que eu e Mr. Holmes tenhamos muita coisa em comum. Tudo o que para ele é elementar, é para mim um mistério.

Talvez assim seja, mas todos nós temos momentos de intuição, Luci. E vou precisar de que me avise quando chegar a sua vez. Na verdade, estou a contar consigo.

Ela sorriu, agradecida.

Sim, chefe. Muito obrigada.

Então qual é a história que está a ler?

A Faixa Malhada.

Uma das suas favoritas?

Quando era miúda, ficava aterrorizada ao pensar que o criminoso usava uma serpente venenosa para assassinar pessoas.

Sim, uma vívora dos pântanos da Índia - comentei.

O chefe até da espécie da cobra se lembra!

Quando se cresce no Colorado, Luci, saber identificar cobras pode ser uma questão de vida ou de morte. Embora, bem ou mal, Conan Doyle tenha inventado uma víbora dos pântanos indiana. - Dava a impressão de estar a querer impressioná-la, o que me fez sentir embaraçado, pelo que acrescentei: - Já chega de proezas de memória. Vamos lá voltar ao trabalho!

A um canto da sala via-se um monte de vidros que haviam sido para ali varridos, perto do armário fechado que fora rebentado. Tinham levado os CD de música clássica, mas dava a impressão de que não faltava nenhuma das primeiras edições. Quando lhe chamei a atenção para isso, Luci disse:

Pois, não faz sentido nenhum. A não ser que houvesse nos CD qualquer coisa secreta.

Talvez não tivessem música - especulei.

Então o que teriam, chefe?

Umas quantas décadas de informações valiosas sobre subornos, calculo…Pormenores sobre transferências bancarias, talvez até os números de série das notas usadas para pagar subornos…Provas diretas de atos criminosos, mais do que simplesmente uma lista. Possivelmente até gravações de conversas com políticos corruptos. É provável que Coutinho tenha guardado uma data de informações para sua própria proteção. Estou a ficar com a impressão de que a pen que encontrámos era apenas para consultas rápidas.

Os franceses não iam estar preocupados com informações sobre as transações ilegais do Coutinho; por isso, voltámos à sua teoria de dois crimes diferentes.

Pelo menos por agora - concordei.

Quando estávamos os dois à procura de Les Confessions, Morel apareceu na sala. Ia a caminho da cozinha para fazer mais café.

A Susana está melhor? - perguntei.

O senhor o que acha? - disse ele com um olhar azedo.

Já pode falar comigo?

Nem pensar.

Ouviu-se abrir e fechar a porta de entrada. Momentos depois, Sylvie gritou:

Chegaram os seus técnicos, inspetor.

Pedi a Fonseca e a Vaz que começassem pelo andar de cima, no quarto de Sandi e que a seguir inspecionassem cuidadosamente o jardim. Daí a cerca de uma hora, às cinco e quarenta e nove exatamente, encontrei Les Confessions.

 

Encontrar Les Confessions punha de parte a minha teoria de terem sido os franceses a assaltar a casa de Coutinho, o que nos reduzia à possibilidade de estarmos perante um político corrupto à procura dos registos de contratos suspeitos. Provavelmente, arranjara uma qualquer maneira de saber que a pen de Coutinho estava escondida dentro do dicionário de Francês-Farsi. E agora parecia-me também possível que quisessem deitar mão ao próprio dicionário. Eis o que me levou a pedir a Luci para, depois de acabar o que tinha a fazer na biblioteca, ir à sala de provas da sede verificar se havia palavras ou frases assinaladas de uma qualquer maneira.

Deixei -a na biblioteca com a intenção de perguntar a Fonseca e a Vaz se haviam chegado a alguma conclusão quanto ao número de assaltantes, mas, ao alcançar as escadas, ouvi Sodoku a conversar na sala com Sylvie. No momento em que ia a descer, ele apareceu.

Sodoku! - chamei.

Ele fez-me um aceno e depois começou a subir as escadas. Encontrámo-nos a meio. Cortara o cabelo tão rente desde a última vez que o tinha visto que mais parecia um recruta do exército.

Está melhor da gripe? - perguntei.

Não estive doente - murmurou ele. - Disse isso aos outros só para evitar problemas. A Maria está de novo a fazer quimio.

Sinto muito. Espero que tenha rápidas melhoras.

Vai-se andando aos poucos - disse ele.

Dei-lhe uma palmadinha no braço.

Oiça, esperava que me telefonasse para me dizer alguma coisa sobre o sangue no pedaço da toalha! -lembrei-lhe eu.

Devia ter ligado, Henrique, mas da primeira vez que analisei a amostra deu-me um resultado esquisito, e por isso comecei tudo de novo. Mas deu-me o mesmo resultado. Então, achei melhor falar consigo pessoalmente. E acabei de chegar.

O que é que descobriu?

Não vai gostar do que vai ouvir.

Não há nada neste caso de que eu goste.

O ADN é da vítima.

Qual vítima?

Pedro Coutinho.

Quando recuperei a consciência, estava sentado num banco à sombra num pequeno jardim rodeado por um gradeamento preto que me dava pelo peito. Suava profusamente. Momentos antes tinha estado numa sala quente às escuras - húmida e quase sem arejamento.

Sentia os pulmões como que salpicados de ferrugem, e respirava com dificuldade. A boca e a língua tinham um gosto a tabaco; viam-se três pontas de cigarro esmagadas no chão junto ao meu pé direito. Agarrava na mão a minha kachina. A coroa da deusa fizera-me três furinhos na palma. Compreendi que estava à espera de que Nathan me dissesse onde esconder Ernie.

Uma velha minúscula, com um cabelo grisalho, de aspeto quebradiço, e uns binóculos de ópera ao pescoço, espalhava no chão migalhas que ia tirando de um saco de plástico, cercada por uma chusma de pombos vorazes. Desviei o olhar dela, pousando-o na minha mão esquerda.

«Vejo agora que possivelmente nós não queríamos saber que isto fosse possível.»

Gabriel sublinhara a mensagem com dois traços, mas eu não sabia a que se referia ele; por instantes, esquecera o que Sodoku me tinha dito.

Eram seis horas e vinte e sete da tarde. Olhando em volta, reconheci a enorme paineira branca atrás de mim. Estava na Praça da Alegria. A árvore tinha um tronco impressionante, engelhado como a pele de um elefante e eriçado de espinhos. Sentir a sua aguda aspereza na ponta dos dedos confirmava o que precisava de saber - que o mundo fora da minha cabeça era real.

Liguei o telemóvel.

Fonseca: «Onde diabo está você?»

Luci: «Preciso de falar consigo.»

Mesquita: «Ligue o raio desse telemóvel!»

Ana: «Muitos beijinhos.»

Quando verifiquei as últimas chamadas efetuadas, descobri que G fizera dois telefonemas. O primeiro fora para Maria Dias. Durara quatro segundos, o que significava que não conseguira falar com ela e decidira não deixar mensagem. Suspeitei de que não quisera que mais alguém ouvisse o que tinha para lhe dizer, mas porque não me dissera a mim o que queria dela?

Não reconheci o segundo número. Ao ligar, descobri que era do Health Club do Chiado. A chamada de G durara sete minutos. Devia querer que Maria Dias lhe dissesse mais alguma coisa sobre Sandi.

Depois de falar com o rececionista do ginásio, lembrei-me da conversa que tivera com Sodoku. Muitas pontas dispersas de informação faziam agora sentido. Era como se conseguisse ver uma constelação complexa - na forma exata deste caso - onde antes não percebia mais do que pontos de luz. Agora, compreendia a razão por que Coutinho se mostrara tão desesperado por permanecer casado. Não conseguia suportar a ideia de perder Sandi precisamente quando mais a desejava. Teria ele sabido desde o dia em que ela nasceu - ao mesmo tempo que tocava com a ponta dos dedos na suave e secreta fenda do seu sexo - o que viria a fazer-lhe quando ela se tornasse mulher? Teria ele passado nove meses a rezar para que fosse menina?

Talvez tivesse implorado a Deus por um rapaz para que nunca se sentisse tentado a fazer mal à própria filha.

Fui atingido pela bizarra certeza de que este caso tinha de me vir ter às mãos; ao contrário da maior parte das pessoas, sentia - na pele e no coração - que havia homens capazes de planear durante muitíssimo tempo como fazer mal às pessoas que amavam. Seguir uma estratégia dava -lhes um propósito na vida.

Coutinho deve ter assustado Sandi com alguma atroz história de fantasmas em casa de Morel na esperança de que ela fosse para junto dele durante a noite. Ou teria ele conseguido aliciá-la de outro modo? Provavelmente andava há meses a minar-lhe a auto confiança.

Sandi esforçara-se por se tornar o menos atraente possível durante as semanas que se seguiram à violação, mas a faca que mantinha debaixo da cama dizia-me que nem mesmo essa estratégia conseguira afastar o pai. Teria ela engravidado naquela primeira noite ou só mais tarde?

Tirara o anel que ele lhe dera no dia de anos, mas não conseguia deitá-lo fora. Queria que a mãe lhe perguntasse porque deixara de o usar e insistisse na pergunta. Queria que a mãe lhe dissesse que estava pronta para ouvir o que ela tivesse para lhe contar - e lhe prometesse acreditar em tudo o que ela lhe confiasse.

Seria um paradoxo que as verdades que ficam por dizer acabam por nos roubar a voz?

Sandi nunca voltara para casa a seguir às férias em França. Aquela rapariga apenas existia num tempo anterior, que não estava já ao seu alcance.

Durante muito tempo parecera-me imperdoável continuar a sentir falta do meu pai todos os dias, e suponho que Sandi tenha sentido a mesma coisa, pelo menos durante algum tempo - a falta do pai que conhecera antes. E, no entanto, tal como eu, é possível que rezasse todas as noites para que morresse - que fosse mesmo assassinado. E com uma bala nas costas.

Sandi cortou o cabelo e, para se purificar, vomitava tudo o que comia. Deixou de menstruar. Talvez pensasse que a mãe haveria de ligar uma coisa à outra mais tarde ou mais cedo. E é mesmo possível que Susana Coutinho tenha ligado tudo. Se calhar era a maior atriz que alguma vez conheci. E a mais culpada.

A ser assim, então, provavelmente terá dito ao assassino profissional que contratara para não ser duro para com o marido. Mas talvez ele lhe tenha desobedecido. Ou, muito possivelmente, Susana terá cedido à raiva e ordenado que o filho da puta tivesse uma morte bem dolorosa. Assim que eu conseguisse aceder aos seus extratos bancários, talvez descobrisse que tinha levantado uma grande quantia em dinheiro semanas antes do crime. Mas, pensando no que o marido fizera à filha, será que eu tinha realmente vontade de provar que era ela a culpada?

 

Ao tirar o maço de cigarros de Gabriel do bolso, descobri também uma lista das chamadas feitas e recebidas por Sandi durante a semana anterior. Deve ter sido Sodoku a dar-ma durante a nossa conversa, quando eu estava já sob o controlo de G.

Uma rápida ligação para o inspetor Quintela confirmou-me que fora ele a entregá-la a Sodoku para que ma desse.

Na tarde de sábado, Sandi recebera três chamadas que não atendera de Maria Dias, e mais uma no domingo. Não havia registo de qualquer tentativa de resposta por parte da rapariga. Contei um total de onze chamadas não atendidas de dois outros números; supus que se tratasse de Joana e de Mónica.

Quando liguei para Fonseca, ele atendeu aos berros.

Você simplesmente desapareceu, Monroe! Não pode fazer uma coisa dessas!

Desculpe. A Ana telefonou-me a dizer que o Jorge estava doente.

Está com febre?

Não. Dores de barriga. Comeu um cachorro quente estragado.

Mentir dava às minhas palavras uma curva fácil, confiante. - Agora está melhor, mas passou um mau bocado.

Dê-lhe um beijinho do tio Eduardo. E você onde está?

Saí agora de casa. Não demoro nada. Que tem aí para mim sobre o assalto?

Fonseca confirmou que o intruso, ou intrusos, tinha trepado pelo muro para o jardim; dois pequenos ramos da buganvília cor de rubi que serpenteava por cima do muro tinham sido arrancados havia pouco tempo. Além disso, seguira o trajeto do intruso, ou intrusos, até à propriedade adjacente e descobrira o que lhe pareciam ser as marcas da base da escada. Infelizmente, não tinha grandes esperanças de descobrir mais nada de útil; o intruso usara luvas e devia ter as chaves das traseiras, como eu suspeitara. Tudo o que ele, Vaz e Sodoku tinham conseguido arranjar era uma leve marca de pegada na capa de um CD no quarto de Sandi. Aparentemente fora feita por uns ténis de homem - de tamanho quarenta ou quarenta e um, na opinião de Vaz.

Pequeno de mais para o nosso assassino - fez-me notar Fonseca.

Por onde lhe parece que o assaltante começou as buscas? Perguntei.

Pelo quarto da miúda. Era o mais desarrumado.

E acha que era só um ou mais?

Estou a partir do princípio de que eram vários... Há uma data de estragos.

Quais foram as divisões onde não tocaram em nada?

A sala de estar, o quarto dos pais, a cozinha e a despensa. E o quarto de arrumos no andar de cima.

Fonseca era tão capaz como eu de tirar as devidas ilações; por isso, ambos percebemos que os assaltantes deviam saber que o que procuravam não se encontrava nessas divisões. O que significava que ou estavam a trabalhar com pessoas que já conheciam a casa de Coutinho ou eles próprios já lá tinham estado.

Já soube dos resultados do Sodoku? - perguntei.

Já. Esse Coutinho era realmente uma boa peça.

Então pode ser que a mulher o tenha mandado matar e pago a alguém para destruir o que restava das provas que o assassino a soldo deixara.

Se foi isso o que aconteceu, então ela merece a Medalha de Honra Fonseca!

Só que o plano dela não funcionou lá muito bem... A Sandi suicidou-se. Oiça, amanhã cedo vou tentar falar com os vizinhos com quem ainda não falámos. Também vou ver se consigo arranjar cópias dos extratos bancários de Susana Coutinho e dar uma palavrinha aos empregados do Coutinho. Conforme o que me disserem, posso voltar a precisar de si.

Tudo bem - disse ele. - Ah, quase me esquecia. A Luci pediu-me para lhe dizer que ainda não tinha encontrado o dicionário de Francês- Farsi.

Saí do jardim em direção à Avenida da Liberdade. Estava a pensar em ir até à praça de táxis em frente ao Hotel Tivoli, mas acabei por não chegar lá.

Quando dei por mim, estava sentado com Jorge ao colo, na nossa sala de estar. Eram nove e vinte da noite. Estive ausente durante quase três horas. Jorge fazia desenhos num caderno, todo concentrado. Eu estava em calças de pijama e com a T-shirt de basebol dos Colorado Rockies. Tinha calçadas as pantufas às riscas azuis e vermelhas. Há talvez um ano que não sabia onde as metera. Pensava que estavam perdidas.

Ouvia-se baixinho o CD com The Chordettes entoando Mr. Sandman; Ernie e eu, quando éramos crianças, acompanhávamos em coro aquelas vozes que nos soavam estranhamente perfeitas como harpas.

Pondo Jorge no chão, levantei-me. Precisava de encontrar Ana e Nati. Imaginei que estivessem no andar de cima. Sentia, enrolado no peito, um grito desesperado, à espera de ocasião para se soltar.

Eh, por tua causa enganei-me! - protestou o meu filho, com aquela expressão amuada, de lábios franzidos, que costuma fazer quando me quer mostrar que não concorda com a maneira como está a ser tratado. - Agora fiquei com o desenho todo estragado!

Dava a impressão de estar prestes a lançar-me o lápis azul que segurava e levantei as mãos em escudo.

Onde está a tua mãe? - perguntei.

Sentou-se com um resmungo.

Foi deitar-se.

E o Nati?

Não sei. Se calhar está a ler. Está sempre a ler!

Já jantaste? Olhou-me com os olhos franzidos como se eu o estivesse a interromper demasiadas vezes. - Jorge, não sejas mal-educado ­ admoestei.

Eu não sou o Jorge, sou o Francisco. - Tirou a girafa de entre as almofadas do sofá e abanou-a ao alto.

Revirei os olhos; ele revirou os dele. Mais uma vez o meu clone em miniatura. Quando ia a caminho da cozinha, gritou:

E quero um biscoito... de chocolate! E sumo de cereja!

Detive-me, voltei-me e lancei-lhe um olhar ameaçador.

Dou-te cinco minutos para um sumo e um biscoito, e depois vou pôr-te na cama, a ti e ao Francisco.

Não é justo.

Jorge, tive um dia muito difícil e tu estás a torná-lo ainda mais difícil.

Abanou as mãos na minha direção, imitando Roger, o extraterrestre de American Dad. Estava à espera de me arrancar a habitual gargalhada de perdão, mas abanei a cabeça num gesto de advertência. Ele resmungou e voltou ao desenho.

Na cozinha, descobri que G não me deixara qualquer mensagem.

No momento em que pegava no jarro de sumo de cereja, Mr. Sandman estava a acabar. E eu fiz o mesmo.

Acordei na cama ao lado de Ana. Dormia deitada de lado, a cara desviada de mim. «Finalmente acabou por acontecer», pensei. «Cheguei ao fim da lenta corrida encosta acima em que tenho andado desde os oito anos.» O vazio de perda dentro de mim parecia associado à falta de alguém para quem me voltar. Queria pedir ajuda a Ana, mas a sua respiração serena na ponta dos meus dedos - a sua existência fisicamente separada da minha - apenas me levava a crer que ela poderia não acreditar em mim. De qualquer modo, jurara a Ernie que nunca contaria a verdade a Ana. Inclinei-me para o outro lado e sentei-me.

Sabia que precisava de um plano que pudesse pôr rapidamente em prática. Tirei uma esferográfica da mesa de cabeceira e, pela primeira vez na vida, escrevi uma mensagem para G na mão, embora à medida que o fazia compreendesse que sempre soubera que aquilo algum dia acabaria por acontecer: «Tens de me largar. Ernie e eu ficamos bem.

Não dês cabo da minha vida.»

Levantei-me, desci as escadas em bicos de pés e sentei-me à secretária de Ana. Tirei uma folha de papel da impressora. Queria escrever um recado a explicar o que me estava a acontecer, mas apercebi-me logo de que qualquer coisa que lhe dissesse só serviria para a deixar confusa. Tinha de falar com o meu irmão, porque provar a Gabriel que Ernie estava em segurança era a minha única esperança de continuar a ser quem era e também de reestabelecer as fronteiras à minha volta.

Estava a pensar em telefonar ao meu irmão da pequena lavandaria fora da cozinha, de modo a não acordar Ana nem os pequenos, mas uns instantes depois de me ter levantado dei por mim novamente sentado.

Estava na poltrona do quarto de Jorge, com ele profundamente adormecido, despido da cintura para baixo, apenas com uma das meias; as calças do pijama do Piu-Piu e a segunda meia estavam esquecidas no chão do quarto. O Francisco montava guarda encostado à mesinha de cabeceira. Não sei como, fora-me parar aos joelhos uma vela vermelha e comprida emergindo do castiçal em forma de estrela da tia Olívia.

Uns círculos diáfanos de luz contraíram-se no teto quando me pus de pé.

O medo colava-se-me à respiração. O relógio marcava três e quarenta. Olhei para a mão: Gabriel tinha apagado a minha mensagem.

Quando fechei novamente os olhos para refletir, o mundo sofreu nova mudança.

Não grites com ele, mamã! - berrou Jorge.

Encontrava-me agora sentado na cama, completamente desperto, fitando Ana com um olhar furioso; ela, à porta, descalça, envolta na camisa de dormir vermelha, com um ar impaciente e preocupado. Abriguei - me atrás da poltrona do meu filho como que para me proteger.

A vela tinha ardido mais uns centímetros. Dei uma olhadela ao relógio: eram quatro e dezassete.

Ana olhava ora para Jorge ora para mim. Tinha a cara vermelha de raiva.

Que raio estavas tu a pensar? - perguntou ela.

Antes de conseguir responder, Nati apareceu por trás dela, peito à mostra, a coçar a barriga.

Que se passa? - perguntou numa voz ensonada.

Preciso de um minuto - pedi. Encolhi-me ao ouvir o som débil, fútil, da minha voz.

Podes ter o tempo todo que quiseres! - rosnou Ana, cada palavra uma ameaça. - Mas quero que saias desta casa!

Jorge rompeu a chorar. Pus-me de joelhos, abri os braços e ele correu para mim. Sentir a sua solidez e o instante pulsar da tão grande necessidade que tinha de mim no seu pequeno corpo, trouxe-me de volta.

Está tudo bem - disse-lhe eu, mas ele deu pela dúvida na minha voz e começou a soluçar.

Nem sequer sabes o que fizeste de errado, pois não? - perguntou

Ana com desprezo.

Abanei a cabeça.

Desculpa. Estou baralhado. Deixa-me só ajudar o Jorge e depois falamos.

Nati passou ao lado da mãe para vir ter comigo.

Então, desapareceste por uns momentos, pai?

Falava calmamente, o que era estranho. Levantei Jorge nos braços e pus- me em pé. Encostei os lábios à sua cara.

Está tudo bem, querido, estou aqui agora.

Nati exclamou:

Ó pai, escuta-me! Desapareceste?

Como ele me olhava fixamente, retorqui:

Sim, não estive aqui durante algum tempo.

E agora estás de volta? És tu?

Sou eu.

Voltou-se para a mãe.

Está tudo bem, mãe. Ele voltou.

Não estou a perceber nada - respondeu ela.

O espetáculo acabou, pessoal, toca a andar - disse Nati, imitando um polícia das séries de televisão a mandar os transeuntes saírem do local de um acidente. Era uma das suas rábulas. Como ninguém se riu, fungou desdenhoso. - Vocês são o público ideal, pessoal, mas agora tenho de ir à cozinha comer um donut.

Nati, estás maluco ou quê? - perguntou Ana. Passava o olhar de uns para outros como se tivéssemos formado um grupo unido contra ela. Eu agarrava com força Jorge, que começara a tremer.

Ana, peço perdão pelo que possa ter feito - disse.

Reagiu com uma expressão gelada.

Então o que fez o pai? - perguntou Nati a Ana.

Ana cruzou os braços diante do peito, num gesto protetor.

Isso é uma coisa entre mim e o teu pai - rematou num tom sombrio.

Nati encolheu os ombros, como se a mãe fosse imperscrutável. Todos os quatro parecíamos desligados do resto do mundo - numa ilha que eu fizera para nós. Ou que G fizera.

Pensei que ias para a cozinha - disse Ana a Nati.

Ouve, o pai às vezes desaparece - explicou-lhe ele, escolhendo cuidadosamente as palavras. Olhou para ela, depois para mim, esforçando-se por não tomar partido. - Pensei que sabias isso, mãe.

Nati, o que dizes não faz sentido nenhum - disse ela.

Ele voltou-se para mim com uma expressão atónita.

Nunca lhe disseste nada?

Não - respondi, porque mentir, pela primeira vez desde que me lembro, me pareceu uma péssima ideia.

Dirigindo-se à mãe, Nati continuou:

O pai vai-se embora e há outra pessoa que toma o lugar dele. ­ Mordendo o lábio, dava a impressão de não lhe ocorrerem as palavras certas. Fitando Jorge, disse: - Dingo, faz-nos um favor. Para de chorar e diz à mamã o que se passa!

Jorge enxugou os olhos com os punhos.

Força, diz lá - insistiu Nati, num tom mais suave, em português, pois a língua tinha por vezes um efeito calmante sobre o miudito.

O papá às vezes fica a olhar para mim - respondeu, torcendo-se nos meus braços de maneira a ficar voltado para a mãe.

Quando? - perguntou ela.

Gostaria de me confundir com o meu filhito. Naquele momento, ocorreu-me que morrer não teria importância se ficasse dentro de Jorge.

Não sei. Olha, quando ele faz isso.

O quê?

Fica sentado a olhar para mim. - O miúdo apontou para a poltrona para onde tinha atirado a roupa suja. - Fica ali.

Nem Jorge nem Nati me tinham alguma vez dito uma única palavra sobre Gabriel. Eu não ousava fazer um movimento, com medo de que as minhas pernas cedessem.

Nati explicou:

Ele também olhava para mim… quando eu era mais novo. Ficava sempre sentado com aquele castiçal em forma de estrela. Era da tia Olívia, não era?

Assenti com um gesto da cabeça.

Uma ou duas vezes disse-me olá. Mas a maior parte do tempo não falava. Às vezes, quando eu era pequeno, pegava em mim e fazia-me festas no cabelo. E dava-me beijos por todo o corpo. Fazíamos uma brincadeira que era contarmos juntos os meus dedos dos pés, um por um. Ele chorava também, pelo menos ao princípio... mas eu percebia que não era por se sentir triste. Embora nunca me tenha dito porque era.

Voltando-se para mim, sorriu-me com o mesmo sorriso generoso e divertido que sempre tivera desde criança. Naquele momento, fez-me sentir pouco à vontade, por não ter a certeza de o merecer.

Que foi? - perguntou-me.

Houve muitas coisas boas que me aconteceram, mas não sei porquê - murmurei. - Tanta coisa que não consigo explicar.

Virei-me para Ana e com o movimento dos lábios disse:

Adoro-te.

Ela desviou o olhar como que medindo as suas opções.

Sabes, pai, às vezes não te entendo - disse Nati.

Se calhar não podes. Tens só treze anos.

Enfim... - retorquiu ele, no tom impaciente que os miúdos assumem quando dão pouca importância às excentricidades dos adultos. Ás vezes apanhava-o também a fumar. Ficava ali sentado a observar-me e a fumar. O Dingo e eu chamávamos-lhe a Sentinela. Habitualmente só aparece depois do pôr do Sol.

OK, Hank, quer dizer que fingias ser outra pessoa - suspirou Ana, convencida, como se finalmente ouvisse uma coisa que lhe fazia sentido. - Mas importas-te de me dizer porque fazias isso? Se era só para poderes fumar em casa... Porque se era só por isso, então...

Ana, é difícil de explicar - interrompi -, mas não era a fingir. Juro.

A Sentinela não é a mesma pessoa que o pai - disse Nati. - Quando ele chega, o pai desaparece.

Já ouvi que chegue! - gritou Ana. Fez um gesto a Jorge, girando a mão como que a puxar uma linha de pesca. - Anda cá, vais já comigo para a cama.

Ele precisa de nós os dois neste momento - pedi a Ana numa voz implorante, mas querendo realmente dizer: «Precisamos dos nossos filhos ao nosso lado ou o nosso casamento não sobreviverá a isto.»

Põe-no no chão, Hank.

Fiz o que ela dizia, mas o miudito ficou agarrado à minha perna.

Jorge - gritou ela -, anda já para o pé de mim!

Ele levantou os olhos na minha direção e fez uma careta como Roger, o extraterrestre.

Falamos depois, querido - disse-lhe eu. - Vai correr tudo bem.

O miúdo respirou fundo e começou a cantar a canção de American Dad enquanto se dirigia para Ana. Não chegou à parte do refrão porque ela o agarrou pela mão como se ele pudesse levantar voo.

Ai! - berrou ele.

Pois, ai! - retorquiu Ana furiosa. - E tu - exclamou, fuzilando

Nati com o olhar - já para o teu quarto!

Pensava que sabias tudo sobre a Sentinela - disse ele, encolhendo os ombros.

Saberia se me tivesses dito!

Não me faças uma coisa destas, mãe! Não é justo!

Nati, por favor - pedi -, vai lá para o quarto. Falamos depois.

Mas é que estou com fome - gemeu ele. - Não é a brincar, tenho mesmo fome.

Então vai para a cozinha e fica lá enquanto eu e a tua mãe conversamos.

Antes de sair da divisão, o meu filho lançou-me um olhar fulminante que queria dizer que nunca haveria de entender os adultos. Havia nele também uma ponta de divertimento; estava felicíssimo consigo próprio por ter mantido a calma quando os pais haviam perdido o controlo. Seria isso sinal de uma maturidade duramente conquistada ou a sua maneira de fingir que a nossa discussão não tinha importância nenhuma?

Depois de Ana ter levado Jorge para o nosso quarto, voltou para junto de mim com as minhas calças e sapatos na mão. Pô-los no chão e recuou dois passos, como se estivessem prestes a explodir.

Veste-te - ordenou. Fazia-me frente como um guarda prisional, fria e impenetrável. Nunca me passaria pela cabeça que tal fosse possível.

Os meus pensamentos voaram, e agarrei-me à ideia de que porventura me estaria a testar, a tentar obrigar-me a contar a verdade sobre mim e a minha infância, procurando também perceber se eu a considerava a pessoa mais importante na minha vida.

Ao fim de algum tempo, disse:

Escolhia-te a ti. A ti e aos miúdos.

De que estás tu a falar? - perguntou ela.

Sempre quiseste saber se te escolheria a ti ou ao Ernie.

Poça, Hank, eu nunca te obrigaria a fazer uma escolha dessas - respondeu numa voz desapontada. As suas palavras pairaram no ar como se eu tivesse mostrado estar enganado sobre o essencial em relação a ela. - Porque haveria de fazer isso?

Porque obrigar uma pessoa a escolher entre aqueles que ama é a melhor maneira de a destruir.

Talvez seja verdade - respondeu ela. - Mas ainda não consigo dormir contigo esta noite. Veste-te... veste as tuas roupas.

Não tenho para onde ir - respondi.

Hank, magoaste-me! - gritou ela. Os seus olhos marejaram-se de lágrimas.

Dei um passo para ela, devagar, as mãos abertas. Senti o nosso futuro vacilar mesmo diante de mim.

Ana... - O meu corpo estava dorido pelo desejo de a abraçar.

Ela recuou.

Não te aproximes. Não sei quem tu és. Depois de treze anos de casamento, acabo de perceber que não sei quem tu és!

Desculpa. Não queria magoar-te. Podes crer

Tu fizeste por me magoar! «Vê se te calas e pegas nisso!» Como pudeste dizer-me uma coisa dessas?

Não era eu.

Oh, meu Deus, não me venhas outra vez com essas tretas!

O desdém vincava-lhe a cara. E nesse momento apercebi-me de uma coisa que me parecia quase impossível: não dera pela lenta acumulação de queixas no peito dela. Camadas de gelo... Treze anos a dizer mentiras tinham criado aquele gelo entre nós.

Podemos voltar ao princípio? - perguntei.

Isso comigo não funciona. Isso está bem para ti, para o Ernie e para a tua tia Olívia.

Ana, ouve. Não me parece que ele quisesse magoar-te. Não sei grande coisa sobre ele, mas pelo menos sei isso. Não sabe como se há de comportar com as outras pessoas. Chama-se Gabriel. Foi o nome que lhe dei quando era miúdo. Possivelmente nunca esteve diante de uma mulher. E viu aqui a sua única oportunidade para... - Parei de falar porque a expressão impaciente dela me mostrava até que ponto o que eu dizia lhe parecia ridículo. Mas tinha de o dizer. - Tenta imaginar que tens uma única oportunidade de intimidade com alguém. Não eras capaz de arriscar tudo?

Ela soltou um suspiro.

Hank, achas que sou idiota?!

Claro que não. Estou só a tentar dizer-te que ele não é como tu pensas, que ele...

Não me obrigues a gritar outra vez - interrompeu ela. - Não quero inquietar os miúdos.

Comecei a fazer uma lista mental de todas as coisas que não podia deixar que acontecessem. A primeira era que Jorge e Nati crescessem sem a minha proteção.

Mas quero ficar contigo e com os miúdos - disse eu. - É tudo o que sempre quis.

Neste momento, o que tu queres não me interessa. Posso mudar radicalmente de ideias amanhã. É muito provável. Mas agora não. - A sua expressão era de desencanto.

Algo mais do que a vergonha levou-me a dar meia-volta, algo surgido das centenas de cicatrizes que Ernie tinha no corpo e das centenas de outras que eu trazia dentro de mim.

Fica com o Ernie - propôs Ana. - Ele toma conta de ti enquanto eu penso no que há a fazer. Vesti as calças. A tensa impaciência na sua expressão mostrava-me que desejava chorar, mas que não o faria. Pressenti uma abertura. Porém, os meus pensamentos espalhavam-se à minha volta como sombras aterradas. A única oportunidade de uma vida com sentido girava em torno deste momento, mas sentia-me incapaz de pronunciar sequer uma frase coerente.

Se me desses só quinze minutos - pedi-lhe -, explicava-te tudo. Estou a tentar lidar com demasiadas coisas ao mesmo tempo neste momento, Ana. É por causa deste caso. Parece que me escolheu a mim.

Identifico-me com a Sandi, e eu...

Porque haveria de acreditar em ti? - interrompeu ela.

Dentro da minha cabeça sentia a passagem rápida do tempo. Se ao menos pudesse fazer uma pausa, seria capaz de formular a frase mágica que me permitiria ficar.

Acariciei o ar entre nós. Era um gesto desajeitado, mas esperava que ela entendesse que eu queria dizer que, se fôssemos muito devagarinho, seria ainda capaz de fazer com que ela compreendesse.

Porque estou encostado à parede por tudo o que fiz de errado ­ disse eu. Dei mais um passo na sua direção, mas ela ergueu os braços para me deter. Quando me apercebi de que lhe inspirava terror, todas as minhas esperanças desabaram, e as mãos tombaram-me ao longo do corpo.

Um homem observa os pés assentarem nas pedras da calçada, ouvindo cada um dos passos que dá, como se isso pudesse fornecer-lhe alguma chave para o futuro. Ligando o destino do seu país de adoção ao seu próprio destino, pensa: «Fomos desfeitos pelas nossas próprias mentiras.»

Agachei-me ao passar a esquina da sede da Judiciária, como se fosse algum criminoso num filme de série B à espera de se entregar ao romper do dia. Durante algum tempo, fiquei a observar um pombo a bicar uma côdea de pizza. Quando o telemóvel tocou, percebi que devia ser Ana, e o meu coração deu um salto, mas foi o nome de Ernie que apareceu no visor.

O Nati ligou para mim - disse ele, ofegante. - Contou-me o que se passou. Estava muito inquieto. O meu filho devia ter reconsiderado a sua comédia ou fingiu fazê-lo, para nos convencer a não discutirmos à porta fechada.

Respondi a todas as perguntas de Ernie sobre o que se tinha passado entre mim e Ana, embora fosse incapaz de dar à explicação do desentendimento uma ordem e alguma coerência.

Ouve, vem já aqui para casa - interrompeu ele, finalmente.

Tenho de ficar em Lisboa. É onde estão os meus filhos e a Ana.

Mas não devias estar só - disse Ernie.

Quase não fazia sentido falar se não pudesse estar com Ana quando mais precisava dela. Deixei tombar o braço com o telemóvel.

Ernie gritava o meu nome e, como eu não respondia, continuou aos berros até eu não ter outra escolha senão levar de novo o aparelho ao ouvido.

Eu fico bem - disse-lhe.

Não ficas nada, Rico! Pega no carro e vem para cá. Peço-te, Rico!

Fui treinado para aguentar; por isso, podes voltar para a cama.

OK, ouve, Rico, vai para o teu gabinete e liga-me de lá. Preciso de saber que estás num sítio seguro.

Ernie - retorqui -, o sítio onde eu esteja no teu GPS não muda nada.

Christ, Rico, faz o que eu te digo uma vez na vida!

Vi que não valia a pena discutir.

Ligo-te quando chegar ao meu gabinete - disse eu.

Era mentira quando lho disse, mas, na falta de outro sítio para onde ir, acabei por me ver na sede da polícia daí a poucos minutos. Filipe, o nosso guarda-noturno, traz sempre maçãs para o trabalho. Apanhei com uma mão a Granny Smith que ele me atirou, o que me valeu um sorriso de admiração.

Sentado à secretária, mandei um SMS a Ernie dizendo-lhe que estava no meu gabinete. Ele não ligou, o que me deixou aliviado. Com alguma sorte, teria já tomado o chá de valeriana e adormecido.

Estive a ver o vídeo de Dog Days Are Over no YouTube vezes e vezes seguidas, prestando atenção às mãos da cantora, tentando captar a mensagem oculta que ela transmitira a Sandi, mas só conseguia pensar em como fora estúpido por não ter percebido que Ana era mais importante do que os meus segredos. Ansiando por me escapar do canto onde me tinha encolhido, passei para os mapas do Google a ver imagens de Black Canyon.

As sombras ocultas

Nas tuas ásperas ravinas

Não são tuas, são minhas.

Imaginei-me sentado no meio das escarpas do desfiladeiro, ouvindo o rio Gunnison a precipitar-se em torrentes, depois levantando os olhos para o retalho azul do céu a mais de seiscentos metros acima de mim. Empunhei a minha pistola Walther semiautomática. Parecia o parceiro ideal para um último ato mágico: prata e preto, e absolutamente seguro da sua própria mestria.

Pela segunda vez na vida, contei até dez com o cano de uma arma enfiado na boca. A primeira fora o meu pai quem mo enfiara. E também puxara o gatilho, mas - surpresa das surpresas não tinha carregado a arma. Dessa vez, desmaiara antes de descobrir que não ia morrer. E, quando recobrei os sentidos Ernie estava deitado a meu lado. Encontrávamo-nos debaixo de um monte tórrido de cobertores. Não compreendi porquê até ele me dizer que eu tinha ficado gelado depois de ter desmaiado. O que nenhum de nós sabia era que uma parte de mim nunca haveria de degelar completamente.

Desta vez, enquanto ia contando até ao momento da morte, uma coisa importante surgiu-me no espírito: o facto de a minha mãe se ter matado significava que eu nunca faria aos meus filhos o que ela me fizera a mim e a Ernie. Porque nunca poderia sujeitar Jorge e Nati ao que a minha mãe me sujeitara a mim e ao meu irmão quando espatifou o Plymouth do meu pai na estrada para Crawford, num tépido dia de primavera de 1981. Mais de trinta anos depois da sua morte, a minha mãe tinha de facto conseguido impedir-me de enfiar uma bala na cabeça.

Depois de ter parado a contagem, percebi uma segunda coisa que me parecia ainda mais importante: a minha mãe também não tivera medo de morrer. Tudo o que aconteceu nesse dia deve ter-lhe parecido perfeitamente certo. «Foi simples, Hank», haveria ela de me dizer se tal lhe fosse possível. Ou seria isso apenas o que eu mais gostaria de acreditar? Com os mortos, parecia nunca ser possível obter respostas claras.

Despertei com o som de passos. Levantando a cabeça de cima da secretária, vi uma silhueta alta, esguia, no umbral da porta. O chapéu de cowboy na mão dizia-me que se tratava de Ernie, mesmo sabendo que ele nunca se afastaria tanto da sua quinta.

Quem és tu realmente? - ouvi-me perguntar, e, embora isso me parecesse impossível, vi a minha voz esvoaçar do teto e poisar no chão. O som de uma borboleta.

De repente senti que estava acordado e que Ernie entrava pelo meu gabinete. A cara do meu irmão estava mais envelhecida do que me lembrava, e os olhos tinham um tom de verde mais suave.

Estás muito longe de casa - disse-lhe. Não me levantei para ir ter com ele. Queria sentir a imperiosa tensão de precisar de o abraçar antes de ceder. Ou, talvez, pela primeira vez na vida, precisasse de que fosse ele a vir ter comigo. Voltei a poisar a cabeça no tampo da secretária e fechei os olhos.

Tinha acabado de contar até sete, quando senti que ele se aninhava a meu lado. Ao chegar a doze, pôs-me a mão na cabeça. Nessa altura, perdi a conta, pois o cheiro a papas de aveia que me chegava dele transformou-se num poço profundo comigo caindo por ele abaixo. Aí, no fundo escuro, sentado ao lado do meu irmão, senti -o esfregar a cara na minha, e a aspereza da barba crescida convencia-me de que tínhamos conseguido chegar à idade adulta - e de que eu ainda podia ter esperança.

Não deixarei que nada de mal te aconteça - murmurou ele. Eram as nossas palavras mágicas, de todas as mais mágicas, embora naquele momento ambos soubéssemos que não serviam de garantia.

Ernie fazia-me festas no cabelo. A minha gratidão por esse simples carinho era tão grande que abarcava quarenta anos do nosso passado comum e tinha ainda espaço para o momento presente. Endireitei-me na cadeira e deixei que os braços delgados e fortes de Ernie me enlaçassem, pois agora estava certo de que eu era feito de coisas que nunca tinha desejado coisas partidas a que não continuaria agarrado.

Arranjei uma bela merda - confessei.

Vamos já compor isso - retorquiu, e a sua voz parecia-me tão confiante que me sentia capaz de me deixar ir. Quando finalmente enxuguei as lágrimas, recostei-me na cadeira, mas ele pegou-me na mão. Os nossos dedos entrelaçados eram uma ponte - e sempre o tinham sido.

Ernie inspirou, aspirando o ar avidamente. Bagas de suor caíam-lhe pela cara.

Sentes-te mal? - perguntei.

É só porque saí tão à pressa que me esqueci de trazer os meus medicamentos. Pode ser que precise de ficar um bocado sentado no escuro ou... Tens aí algum Valium a mais?

Tu nunca tomas Valium.

Estendeu a mão.

Agora tomo.

Depois de ele ter engolido o comprimido, sentou-se na cadeira à minha frente e baixou-se, pondo a cabeça entre os joelhos. Apaguei as luzes e massajei-lhe as costas. Quando finalmente se voltou a endireitar, disse:

Está tudo bem. Fico já ótimo. - A voz dele soava estranhamente segura. - Se calhar devias ligar à Ana. - Colocou o chapéu de cowboy entre nós. No escuro, a pena na faixa tinha o aspeto de uma grossa flecha preta.

Mais tarde - disse eu. - Não conseguiria aguentar outra discussão neste momento.

E ao Nati... Precisas de falar com ele - acrescentou.

Vou ligar-lhe. - Pus o chapéu de Ernie na cabeça. Ele disse-me que eu parecia o Alan Lad no Shane.

Está escuro de mais para se ver isso - fiz-lhe notar.

Para mim não. Como cenouras a dar com um pau.

Ri-me, e ele também.

Sinto-me muito esquisito - disse eu, para que ele o soubesse.

Conta-me.

Sinto- me como se estivéssemos no nosso quartinho no Colorado e nada nos pudesse atingir. Como se finalmente tivéssemos conseguido escapar ao tempo. Tu e eu... Vivemos entre o tiquetaque de um relógio.

A partir daqui vai ser sempre «agora».

Compreendi que já não tinha medo do que pudesse acontecer entre mim e Ana - não porque tudo fosse ficar bem, mas porque sabia que nada voltaria a estar bem a não ser que eu arriscasse tudo para a ter de volta.

Ernie olhava por cima do meu ombro para o parque de estacionamento.

Tens uma vista muito merdosa - declarou.

Obrigado. Como é que te deixaram passar na receção?

Já cá estive antes, há uns anos. Não te lembras?

Nem por isso.

O cabo-verdiano da receção lembrava-se de que sou teu irmão - prosseguiu Ernie. - Acha que somos parecidos.

Mas não somos.

Temos os olhos da mamã mesmo sendo de cores diferentes,

Os teus são mais bonitos.

Achas?

Fiz que sim com a cabeça. Ele pegou na minha maçã.

Vais comê-la?

Talvez.

Podemos comê-la a meias?

Claro.

Deu-lhe uma dentada e estendeu-ma. Era bom passá-la de um para o outro. Depois de a termos comido até ao caroço, levantei o cesto do lixo e ele atirou o que restava lá para dentro. Obrigado por teres atravessado a Divisória Continental - disse eu; era o nome que dávamos à linha imaginária a oeste de Évora que ele não atravessava desde a morte da tia Olívia, em abril de 2006.

Estive para não vir - disse ele. - Fiquei em pânico no momento em que comecei a visualizar a viagem de carro até aqui. Mas depois pus-me a imaginar que o pior que podia acontecer era ter um ataque cardíaco e morrer de repente na autoestrada. O que não era assim tão mau, comparado com o que significava não vir.

O que significava?

Que toda a minha vida era um fracasso.

Não vejo como isso poderia ser verdade.

Porque passei a vida a preparar-me para isto... para te ajudar quando mais ninguém o pudesse fazer. Se não viesse cá agora, não poderia continuar a viver. Não poderia ver-me ao espelho.

Tu não tens espelhos - fiz-lhe notar.

Podes deixar de te armar em esperto. Só aqui estamos nós.

E se não me apetecer? Ouve, Ernie, não me deves nada. Quero que vivas a tua vida como quiseres, sem te preocupares com o que penso.

A maneira forçada como baixou o olhar mostrou-me que alguma coisa do que eu dissera tinha posto o Colorado no horizonte dos seus pensamentos.

Há coisas em que não me podes ajudar - acrescentei. - Nem tu nem ninguém.

Mas pelo menos posso levar-te para casa - retorquiu.

Não, tenho de ficar em Lisboa. Começo a compreender que este caso tem muito mais a ver comigo do que aquilo que pensava. Parece-me uma espécie de teste.

O que queria dizer é que podia levar-te para tua casa - disse ele.

Voltei-me, para olhar para a porta, porque o tempo recomeçaria assim que eu deixasse o meu gabinete.

Eu falo com ela - disse o meu irmão.

O seu tom assertivo deixou-me desconfiado.

E que vais tu dizer-lhe? - perguntei.

A verdade.

Mas sempre disseste que isso era a única coisa que nunca poderíamos revelar! - contrapus, num tom ressentido.

Estava enganado. Agora compreendo isso... Embora fosse preciso ter Évora no retrovisor para o perceber.

Ernie, que se passa?

Agora sabemos quem somos, Rico. Somos adultos. Quando chegámos a Portugal, não passávamos de dois miúdos. Estávamos perdidos, precisávamos de regras. O pai tinha sido morto há pouco tempo, e eu estava...

Morto? – perguntei sobressaltado. – Como sabes isso?

Porque é mais do que óbvio que está morto, Rico.

Sabes alguma coisa que eu desconheça? - insisti, num tom de não-te-atrevas-a-mentir-me, sempre suspeitara de que ele sabia mais do que eu.

Ernie levantou as mãos.

Uma coisa de cada vez. Primeiro vamos para casa. - Levantou-se, ansioso por escapar ao meu interrogatório.

Preciso de saber o que vais contar à Ana e o que tem isso a ver com o pai - disse eu. Trinta anos de dúvidas sobre o meu pai pareciam observar-nos atentamente.

Já te disse - escusou-se ele -, vou contar-lhe finalmente toda a verdade.

E qual é a verdade sobre o pai?

Que ele desapareceu e que, se não apareceu até agora, é porque deve ter morri do.

Não sabes mais do que isso?

Não.

Não acreditei nele. Talvez tivesse ouvido alguma coisa sobre as investigações no Colorado.

A polícia já encontrou o que restava dele? - perguntei.

Não. Pelo menos que eu saiba.

Outra mentira – tinha a certeza. Mas o perfil de Ernie tornou-se mais duro. Sabia por experiência que não conseguiria arrancar-lhe mais nada.

E é isso que vais dizer à Ana? - perguntei, incrédulo. Ela não vai cair nessa. Vai ficar furiosa contigo.

Apercebi-me de que desejava que ela desatasse aos berros com o meu irmão, já que eu não o podia fazer.

O que aconteceu no Colora do aconteceu-nos aos dois - disse ele.

Por isso temos de ser os dois a contar-lhe. É a única maneira. E ela merece saber o que te aconteceu.

Poderia o meu passado tornar-se dela também? Compreendia agora que, no mundo onde eu queria viver, as pessoas que nos amam herdam tudo o que fez de nós aquilo que somos.

E se ela não acreditar em nós? - perguntei.

Ele levantou o cabelo por cima da orelha cortada.

Mostro-lhe as minhas cicatrizes.

Não podes fazer isso - retorqui. - Seria...

Rico, farei o que tenho de fazer! - declarou. - Vou contar-lhe como foi da primeira vez em que o pai pegou na navalha e eu compreendi que ele nunca me deixaria chegar a adulto! E soube que eu era a razão por que ele nunca te deixaria crescer a ti também.

Antes de deixarmos o meu gabinete, liguei o telemóvel e tinha quatro mensagens: de Mesquita, Fonseca, Sudoku e Luci. A única que li foi a de Luci: «Chefe, não havia nada no dicionário de Francês- Farsi.»

Depois de ouvir o meu pedido de desculpas por estar a acordá-la, Luci pediu-me para esperar um momento para sair do quarto.

Onde está? - perguntou.

Na sede.

O senhor está bem, chefe? Estava preocupada consigo.

Obrigado, Luci, mas não precisa de se preocupar... Ando nisto desde que você tinha dez anos. Então não havia nada assinalado no dicionário?

Não, nada. É importante?

Não sei ao certo. A minha teoria é de que o dicionário continha o código para decifrar os nomes da lista de subornos, dissimulada nas fotografias de férias. Para ele, faria sentido tê-lo assinalado aí. Mas, se não há lá nada destacado, não temos maneira de o descobrir. O problema é que o Coutinho só poderia ter contado que tinha na biblioteca uma pen com informações incriminatórias a alguém que estivesse a par da conspiração. E não estou a ver como é que o assaltante poderia ser um confidente do Coutinho e ao mesmo tempo uma pessoa subornada por ele. Quando as coisas não fazem sentido, como neste caso, Luci, isso quer dizer que estamos a ser aldrabados... ou que não estamos a ver alguma coisa óbvia.

Não conhecemos as pessoas que ele subornou, mas conhecemos dois dos seus bons amigos: Morel e Sottomayor.

Sim, só que o Morei vive em França e tem um caso com a Susana Coutinho; por isso, parece-me difícil acreditar que esteja envolvido no dia a dia dos negócios do Coutinho em Portugal. E o Sottomayor disse-me que não sabia nada sobre o sítio onde o Coutinho tinha os registos.

O chefe acreditou nele?

Enquanto nos dirigíamos para o carro de Ernie, consultei as camadas feitas e descobri que G ligara mais uma vez para Maria Dias momentos antes da minha discussão com Ana. A conversa tinha durado quase doze minutos. Para acordar a professora a meio da noite, G devia ter alguma coisa essencial para lhe perguntar, ou lhe dizer.

Quando atendeu a minha chamada, disse-me num tom de desculpa:

Espero mesmo que não tenha mudado de opinião.

Não mudei - assegurei-lhe, para não desdizer o que quer que G tivesse combinado com ela -, mas preciso de falar consigo pessoalmente.

Tudo bem, apareça. Falamos enquanto eu faço as malas.

Que poderia G ter-lhe dito para a levar a sair de Lisboa com tanta pressa? A única coisa que me ocorria era que ele percebera quem era o assassino e estava convencido de que tentaria vingar-se dela. Mas por que razão me ocultaria a sua identidade?

Maria Dias surpreendeu-me ao desligar antes de me dar sequer oportunidade de me despedir. Isso deve ter apanhado outra pessoa de surpresa; uma voz de homem - que mal se ouvia - deixou escapar qualquer coisa sobre estar com fome. Com uma mão a tapar o telemóvel, disse a Ernie que devia estar sob escuta por alguém muito descuidado e pedi-lhe que ouvisse o que estava ele a dizer, pois o meu irmão entendia melhor do que eu o que diziam em português.

Ernie pôs-se à escuta, baixando a cabeça. Exatamente como costumava fazer em pequeno, e depois devolveu-me o telemóvel.

Ouvi um homem que parecia estar a conversar com alguém ao lado. A única coisa que percebi claramente foi: «Monroy não é muito previsível.» Disse isso e depois a chamada caiu.

 

Ter o telemóvel sob escuta poderia querer dizer que a minha investigação estava seriamente comprometida, mas também me agradava a ideia de quem quer que tivesse assassinado Coutinho e assaltado a sua casa me temer a mim e ao que eu poderia fazer. E, agora que sabia que estava a ser observado, poderia pregar-lhe uma ou outra partida.

Desliguei o telemóvel para impedir que fornecesse a nossa localização e fui ter com Ernie. O seu enorme Chevrolet estava estacionado na rua mais abaixo e Rosie, enrolada no lugar do condutor. Peguei nela e estendi-a ao dono enquanto ela se esforçava por me lamber a cara. Dirigi-me para casa de Maria Dias seguindo a Rua da Escola Politécnica. Vinte minutos depois, enfiava o carro num lugar de estacionamento apertado perto do Teatro São Carlos.

Fica aqui - disse ao meu irmão. - Vou dar uma vista de olhos pelas redondezas. - Não ousei dizer-lhe que a pessoa que fazia escuta aos meus telefonemas poderia aparecer e atacar-me, mas ele deve ter-se apercebido disso, porque levou o indicador à testa, o nosso sinal para «tem cuidado, muito cuidado».

Sempre - respondi. - Mas, ouve uma coisa, vou ligar-te dentro de poucos minutos e dizer-te que estou a caminho de um sítio maluco.

Aonde vais tu? - perguntou ele, desconfiado.

A lado nenhum. É só para baralhar a pessoa que faz as escutas... para a manter por aí às voltas. Depois de falarmos, vem ter comigo ao Largo de Camões.

Tendo dado alguns passos, mudei a arma para o bolso do casaco, acalmado pela sensação da morte entre os dedos. Quando virei para a Rua Serpa Pinto, um bocado de cimento do tamanho de um punho veio esmagar-se no passeio do outro lado da rua. O barulho fez-me dar um salto para trás e deixou-me o coração a mil. Lancei um olhar alarmado a uma velha com cara de noz debruçada à janela de um segundo andar. Levantei os olhos para ver de onde tinha caído o cimento e descobri uma fenda denunciadora no reboco por baixo das telhas.

Mais um meteorito lisboeta – gritou a velha, furiosa.

Um pouco adiante, na fina separatória do pavimento no meio do Largo Bordalo Pinheiro, uma rapariga de calças justas a imitar pele de cobra e com uma T-shirt sem costas lia as mensagens no telemóvel enquanto esperava que o seu minúsculo chihuahua sem pelo espremesse um cocó do traseiro tremelicante. No exterior da casa de Maria Dias, dois rapazes com um aspeto desgrenhado - o cabelo espesso penteado para a frente a tapar-lhes os olhos - encostavam-se a um velho BMW com um cabide de arame a fazer as vezes de antena.

A luz ofuscante, cor de laranja e amarela, que a fachada de azulejos do edifício no topo do largo lançava fez-me levantar os olhos mais uma vez, levando-me a descobrir uma abóbada perfeita de céu azul profundo. Se as circunstâncias fossem outras, teria arrastado Ana e os miúdos para uma excursão a um qualquer sítio no fim do mundo, para os lados da casa de Ernie.

Ao atravessar a rua, apercebi-me de que o tipo que pusera o meu telemóvel sob escuta podia ser o responsável pelas fugas de informação para a imprensa acerca da morte de Coutinho. Vendo bem as coisas, quem recusaria uns dinheiritos extras numa crise económica? Possivelmente fora pago por um, ou vários, dos políticos corrompidos por Coutinho. Talvez só não tivesse fornecido mais pormenores aos amigos jornalistas por aqueles que lhe pagavam terem descoberto o que fizera. Eis também uma justificação possível para o facto de nenhum ministro, ou os seus assessores, ter telefonado a saber se eu fizera progressos; aqueles que mais tinham a perder já haviam recebido transcrições de todas as minhas conversas ao telefone desde o princípio do caso!

Quem quer que estivesse a seguir os meus movimentos deve ter contado com a minha ingenuidade. E, se Coutinho tinha comprado ministros, também era possível que tivesse dado umas massas a alguém altamente colocado na polícia. Tanto quanto sabia, Mesquita poderia ter-me levado a acreditar que manter-me no caso era um favor que me fazia para que eu não fosse levado a pô-lo em questão.

Foi então que percebi: Mesquita considerara uma afronta pessoal o facto de eu ter desligado o telemóvel porque andava a seguir os meus passos!

A revelação deteve-me, paralisado, no meio da rua. Sentia que estava debaixo de uma torre que até então se mantivera invisível aos meus olhos. Sem o saber, andara à volta da sua base desde a manhã de sexta-feira, ali, naquelas ruas, sobre uma calçada que me queimava os pés, com os velhos mendigos, os donos de cães e os meteoritos de Lisboa. Lá em cima, no topo, milhares de metros acima de nós, estavam os homens que compravam e negociavam pessoas como eu. E que seguiam cada um dos seus movimentos.

Se tentasse derrubar a torre, eles fariam com que fosse despedido e posto numa lista negra. Estremecendo, atento, com a sensação de ter acabado de saltar para um comboio rumo a um destino há muito desejado, precipitei-me rua abaixo até ao Largo de Camões, espantando um bando de pombos às bicadas num monte de areia diante de um oculista. Ligando o telemóvel, subi dois a dois os degraus da Igreja do Carmo e disse a Ernie que seguia para a estação dos caminhos de ferro de Santarém, para me encontrar às nove e meia com uma testemunha que podia identificar o assaltante que vandalizara a casa de Coutinho. Acrescentei que tinha comigo a pen da vítima.

Santarém ficava pelo menos a uma hora de Lisboa. Nesse momento eram oito e cinco. Mesmo que o meu seguidor descobrisse depois das nove e meia que tinha sido levado ao engano e telefonasse aos seus amigos em Lisboa para o substituírem, Ernie e eu teríamos uma hora e meia para nos movimentarmos livremente.

Depois de o meu irmão ir ter comigo, pedi-lhe que tirasse as luvas cirúrgicas antes do nosso encontro com Maria Dias. Ela abriu o trinco mal lhe disse quem era. O meu irmão deu uma olha dela ao puxador enferrujado do elevador e subiu pelas escadas.

OK, vamos dar descanso ao Anselmo - propus; dizíamos sempre por piada que estes elevadores de aspeto artesanal eram, na verdade, puxados para cima e para baixo por um pobre e desgraçado velhote chamado Anselmo, que passava o dia a manobrar no fundo do poço.

Subi à frente de Ernie, imaginando Ana estendida sozinha no escuro, a lamentar os anos que tinha desperdiçado a meu lado. O meu irmão podia muitas vezes ler-me nos olhos coisas que mais ninguém via; por isso, voltei-me para o pôr à prova, e ele disse:

Não percas a calma. Já tenho um plano secreto.

Que tipo de plano?

Se te dissesse, deixava de ser secreto. - Lançou-me o seu sorriso malicioso, que me arreliava, mas não tínhamos tempo para uma discussão.

Deparámos com a porta da professora já aberta. Bati duas vezes e disse quem era.

Entre - disse ela bem alto.

Vestia umas calças de treino largas e uma camisola interior prateada. Os braços e ombros musculosos brilhavam com o suor. Estava especada ao lado de duas malas metálicas cheias de roupas em camadas arrumadas, as de cores escuras na mala mais pequena e as mais claras na maior, Atrás dela, via-se a estátua do Buda envolta em toalhas e atada com uma corda de nylon. Em cima da base, uma coluna de mármore branco, encontrava-se um rolo de papel de embrulho e um pequeno agrafador, Os livros estavam arrumados em três grandes caixas castanhas do Jumbo.

Apresentei o meu irmão e expliquei que viera de visita de Évora.

Está a par da nossa combinação - disse eu.

Apertámos as mãos, Maria Dias franzindo os olhos, desconfiada.

Oiça, Monroe - disse ela -, não quero problemas,

Não vamos ter problemas nenhuns - assegurei-lhe. - Só queria deixar algumas coisas claras. Ernie teria preferido não apertar a mão a ninguém, mas, quando ela lha estendeu, não lhe deixou outra opção. Depois de o pior ter passado, Ernie pôs a mão atrás das costas, para não ser tentado a tocar-lhe. O queixo tremia-lhe. Se estivesse em casa, haveria de se arrastar até à cama e ficar aí enrolado numa bola apertada.

A dona da casa não reparou no ar embaraçado que se lia na cara dele. Na verdade, parecia até divertida. Talvez as drogas a tivessem tornado pouco observadora. Havia uma brusquidão tensa nos movimentos da sua mão, que me levava a crer que o uso de anfetaminas era uma possibilidade - e que me dava a sensação de existir dentro dela uma mata densa e emaranhada que apenas lhe permitia uma preciosa e pequena liberdade de movimentos.

Você é mesmo um cowboy? - perguntou ela a Ernie com uma curiosidade ameninada.

Eu e o meu irmão somos do Colorado - respondeu ele.

E que quer isso dizer ao certo? - perguntou Maria Dias.

No Colorado há uma data de gente com chapéu de cowboy - explicou Ernie.

Mas agora vive em Portugal.

Sim e não.

A professora não tirou os olhos dele, como se Ernie fosse um enigma que tivesse de ser resolvido. Ansioso por lhe desviar a atenção, interrompi:

Não tenciona voltar a Lisboa, pois não?

Ela fitou-me de olhar carregado.

Inspetor, o senhor é que me disse para me ir embora e não voltar.

Que raio de truque vem a ser este agora?

Nenhum. Como poderia eu saber que seguiria a minha sugestão? Você é claramente o tipo de mulher que gosta de fazer as coisas à sua maneira.

Estava à espera de que mostrasse agrado pelo meu elogio. Mas, em vez disso, o modo zangado como passou a língua pelos lábios deu-me a impressão de que acabava de se lembrar das razões que a levaram a não gostar de mim.

Até parece que passou a noite em claro a trabalhar neste caso ­ disse ela, mas sem a mínima simpatia.

Apercebi-me de que tinha a camisa toda enrugada e não me barbeara. Incapaz de me sair com uma mentira que parecesse plausível, retorqui:

Tive uma discussão com a minha mulher.

Não foi por me ter ajudado, espero.

Teria havido uma cintilação de divertimento nos seus olhos verdes? Talvez esse fosse o seu modo de me avisar de que a mata dentro de si era bastante mais vasta do que eu pensara, e que seria melhor não tentar atravessá-la.

Foi uma discussão por razões pessoais - disse eu. - Então quando está a pensar partir?

Ao meio-dia, mesmo que não tenha as malas todas feitas - respondeu. Passando o olhar em volta, examinou a desordem da sala como que a verificar o que exigia agora a sua atenção. Vai passar por cá um amigo meu e manda-me depois o que eu não puder levar comigo acrescentou.

Onde vai passar a fronteira?

Em Valença. Durmo num sítio qualquer perto de Bilbau e depois sigo para Bordéus. Falei com a minha mãe a noite passada... Ela espera-me depois de amanhã.

Vive em Bordéus?

Sim. Foi lá que cresci.

Uma dissonante sensação de inevitabilidade fez-me recuar para dentro de mim. Imaginei Morel sentado na cozinha de Coutinho, fumando numa pose lânguida. Tinha-me falado ainda há pouco no primeiro casamento do seu velho amigo com uma senhora de Bordéus e no divórcio acrimonioso que arruinara a sua relação com os filhos adolescentes.

Em França todos a devem chamar Marie - disse eu. - Em vez de Maria, quero dizer.

Sim, claro.

Coutinho deve ter arruinado a relação com a primeira filha muito antes do divórcio, na altura em que ela começara a transformar-se numa mulher. Gabriel percebera-o muito antes de mim. E tinha conspirado contra mim de modo a assegurar a fuga dela.

O seu irmão Pierre também está em Bordéus? - perguntei, ansioso por pôr à prova o meu raciocínio.

Ela abriu os olhos, espantada.

Como sabe que tenho um irmão? - perguntou com aspereza.

Jean Morel falou-me de vocês os dois - respondi, tentando manter a voz o mais neutra possível.

Ela sorriu amargamente, mas com uma inclinação insinuante da cabeça.

Então, como está Monsieur Morel?

Parece apaixonado pela segunda mulher do seu pai.

Ah, mas isso é mesmo interessante - disse ela com demorada e arrastada ironia, embora daí a alguns instantes o seu olhar se tenha afastado para além de mim, como se tivesse avistado ao longe uma figura perigosa.

Ernie fitou-me interrogativamente. Parecia que ela o deixava confuso.

Diga-me uma coisa - continuei, chamando-a de volta à realidade. Quando ela me fixou, perguntei-lhe: - Quando foi a última vez que viu Monsieur MoreI?

Na altura do divórcio. Ele foi ao tribunal com o Coutinho algumas vezes.

Que idade tinha você?

Dezasseis anos.

E, se não leva a mal a pergunta, quando foi que o seu pai começou a... molestá-la?

Quando eu tinha treze anos... Treze anos, três meses e seis dias.

Foi ao meu quarto uma noite em que a minha mãe não estava e disse­me que tinha uma coisa especial para a sua menina crescida... agora que já era uma mulherzinha.

Maria Dias olhava ora para mim, ora para Ernie, desafiando- nos a pôr em dúvida a sua história.

Lamento muito - retorqui, embora a compaixão que sentia fosse em grande parte dominada pelo medo que tinha dela.

Pôs os olhos na tatuagem do Om.

Sabe o que me perturbou mais, inspetor?

Não.

Ele veio-se a olhar para nós os dois no espelho enorme que tinha no quarto…apreciando o que me estava a fazer. E sabe o que me salvou? Vai rir-se quando ouvir.

Duvido muito.

A transcendência em mim que haveria de sobreviver acontecesse o que acontecesse... a minha natureza de Buda.

Não sabia o que ela queria dizer com aquilo, mas parecia-me uma afirmação que decorara havia muito tempo a fim de derrotar as suas próprias dúvidas. Suspeitava de que o seu budismo fosse uma tentativa de controlar de forma segura a raiva.

Falou-se nesses abusos no processo de divórcio? - perguntei.

Disse que não com a cabeça.

Não tínhamos provas, e o Coutinho iria alegar que o nosso advogado estava apenas a tentar conquistar para mim e para a minha mãe mais simpatia e mais dinheiro. Faria tudo para me humilhar em público. Não teria o menor escrúpulo em fazê-lo, posso garantir-lhe.

Chama Coutinho ao seu pai - fiz-lhe notar.

É uma sugestão que o meu psiquiatra me fez há uns anos, em Paris. Decidimos que era melhor para mim não o considerar pai.

E acha que Monsieur Morel sabia o que ele lhe tinha feito?

Era o melhor amigo do Coutinho - disse ela, num tom desdenhoso. - O senhor que acha?

Acho que alguns homens são peritos em enganar as pessoas. São encantadores e inteligentes... bons a contar anedotas, excelentes a cantar e a dançar. São as estrelas de qualquer festa.

Ela soltou um riso desolado.

Fala como se conhecesse bem o meu pai.

Sei bem como são os homens como ele.

Espero que tenha mandado alguns para a prisão.

Sempre que posso.

E então aconteceu uma coisa estranha. Tive a certeza de que Gabriel acabara de entrar na sala, mas sem me controlar. Pretendia observar-nos. Desviei o olhar para a porta de entrada como que à espera de ver pela primeira vez que aspeto tinha ele ao certo.

Há algum problema? - perguntou a dona da casa.

Estava só a pensar num velho amigo. Você é uma excelente atriz, não sei se sabe. Todo o medo que mostrou de ser perseguida pelo assassino durante a nossa última conversa... Fiquei convencido de que estava aterrorizada.

O que se passou com o Coutinho mostrou-me a utilidade de uma boa representação. Apontando para um pequeno sofá branco encostado à parede, acrescentou: - Oiça, fiquem aí no sofá. Estou a ver que isto é capaz de demorar um bocado. Volto já. Lembrei-me de uma coisa que tenho de pôr na mala.

Importa-se de que use a casa de banho? - perguntou Ernie.

Ela apontou para a porta a seguir às estantes. Enquanto estavam os dois fora da sala, compreendi que o meu erro fundamental fora partir do princípio de que Maria Dias era a amante de Coutinho. E ela tinha-se mostrado muito inteligente ao usar uns ténis de homem o tempo suficiente para deixar as pegadas de sangue. Devia ter acabado de ver o pai morrer asfixiado quando o trabalhador das obras foi de encontro a ela na Rua do Vale.

Um monte de borboletas noturnas mortas ensombrava o fundo do candeeiro circular de teto. Parecia um descuido prenunciador. Observando a acumulação de tantas pequenas mortes, imaginei Maria Dias a meditar na sua cela e vivi dez anos da vida dela nuns breves segundos. Tatuagens de símbolos budistas envolviam-lhe os braços e subiam-lhe até ao pescoço, à medida que aumentava a sua necessidade de dominar a raiva e o desespero. O cabelo embranquecera e os olhos brilhavam com uma luz estranha, isolada, de uma asceta que renunciara a quaisquer laços com o mundo.

Haveria de contar às outras presas que escolhera aquela vida, tinha abraçado a via que seguia desde criança.

Será que, daqui a dez anos, em julho de 2022, me perguntaria ainda se fizera bem ao mandá-la prender?

Dei uns passos em direção ao retrato da jovem mãe do século XIX que estivera na parede da casa de Coutinho até sexta-feira. Estava encostado ao lado da porta de entrada. Maria deve ter reparado nele no dia em que matou o pai; deve ter odiado a ideia de ele ter ficado com uma imagem que se assemelhava a ela. Deve ter tido a ilusão de que uma parte simbólica de si continuava prisioneira dele.

Ernie regressou em passos medidos para a sala. Tinha a mão direita vermelha; esfregara-a com água a escaldar. Com um gesto, fez sinal para que não me preocupasse, sentou -se a meu lado e apontou para uma moeda de um euro que viu no meio das almofadas. Peguei nela e entreguei-lha para que a desse a Maria, mas disse-me que não tocaria em mais nada a não ser que fosse obrigado a isso.

Ela parece-me drogada com qualquer coisa. – murmurou

Provavelmente está – disse eu, e levei o indicador à testa, tendo ele acenando a concordar. Depois de ter cruzado os braços, Ernie enrolou-se sobre si. Dei-lhe uma palmadinha encorajadora na perna.

Vamos já embora - confiei-lhe.

Tudo bem. O Valium já começou a fazer efeito.

Assim que Maria Dias entrou precipitadamente na sala, enfiou uma pequena bolsa preta na mala maior. Calculei que estivesse a guardar a arma, mas não lhe perguntei. Pegou numa das cadeiras de madeira que estavam à volta da mesa de jantar. Entreguei-lhe a moeda de um euro.

O meu irmão encontrou-a no sofá - disse eu.

Obrigada. - Guardou-a na mão fechada e esculpiu uma oração em palavras rápidas. Ao reparar na estranha posição de Ernie, falou-lhe numa voz amável pela primeira vez desde a nossa chegada. - Está a sentir-se mal?

Só um pouco zonzo... Levantei-me muito cedo hoje - respondeu ele, endireitando-se.

Ela fitou Ernie compreensiva, mas eu não queria Maria Dias perto do buraco que a minha mãe deixara no coração dele.

Vai levar o retrato que roubou ao seu pai? - perguntei.

Claro. Quanto a mim, ele não tinha direito ao quadro.

Porque obrigou o Coutinho a escrever «Diana» em carateres japoneses com o próprio sangue? Não foi ele quem o escreveu... Fui eu! - exclamou em tom vingativo. – Era o nome que me dava. Ensinou-me a escrevê-lo em Japonês quando eu era pequena. Naquela altura pareceu-me muito divertido.

A emoção de o ter ao meu lado a guiar-me o braço pelo papel para eu conseguir escrever aqueles carateres tão bonitos... Achava aquilo uma maravilha.

E porquê Diana?

Não sei bem… Começou a tratar-me assim quando eu era pequena.

Mas porquê escrevê-lo na parede a seguir ao assassinato?

Queria assumir a responsabilidade por aquilo que fizera. Pode ver isso como parte da minha ideia de ter consciência, inspetor. Precisava de que o mundo soubesse que eu tinha feito justiça... Eu, a rapariguinha estúpida de quem ele abusara, a parva que tinha acreditado nele, que o tinha adorado. - Os olhos dela irradiavam alegria novamente. - Sabia que vocês iriam pensar que fora ele a escrevê-lo. E ninguém em Portugal sabia que era o nome que ele me dava. Por isso, não representava nenhum risco para mim.

Sabe com quem o seu pai andava a dormir... a amante final?

Inspetor, pode ter a certeza de que havia mais do que uma - replicou ela, como se eu não tivesse ainda percebido nada sobre ele. - Durante todo o tempo em que abusou de mim, teve outras raparigas. Uma delas era mesmo a minha melhor amiga, embora só o tenhamos descoberto anos depois. - Olhou pela janela como se o passado estivesse aí. - A minha amiga pensava que o Coutinho estava apaixonado por ela. Talvez até estivesse... durante algum tempo. Mas quem sabe o que um homem como ele sente e pensa?

Então não faz ideia de quem dormiu com ele na noite antes de o ter matado? - perguntei.

Não, mas no seu lugar iria à procura de uma rapariga entre os treze e os dezoito anos, elegante, loira, bonita e... que mais? - Procurava a palavra certa. Parecia ansiosa por me ajudar agora.

Com falta de autoestima? - sugeri.

Ela largou uma risada amarga e disse:

Sim, ele era um mestre a destruir a confiança das raparigas que desejava. - Traçou no ar umas pinceladas imaginárias. - Um artista que usava a promessa de um amor mais profundo de um homem muito especial.

Sabe o nome de alguma rapariga que ele possa ter molestado aqui em Lisboa?

Não. Quando soube que se tinha mudado para cá, não queria ter nada a ver com ele. E não queria nem por nada que me reconhecesse! Cortei o cabelo curto, pintei-o de outra cor, e evitei todas as reuniões de pais, pois poderia ter de o ver. - Atirou a moeda ao ar, apanhou-a e voltou-a. - Caras disse ela, e olhou para mim como que à espera da minha opinião sobre a importância do acaso nas nossas vidas, mas naquele momento eu não tinha opinião nenhuma. Se ele não tivesse voltado para Portugal - continuou ela -, nada disto teria acontecido. Ou seria de prever que haveríamos de voltar a encontrar-nos um dia? O que acha, senhor inspetor?

Via-se que sentia necessidade de pôr à prova a minha fé no destino ­ ou em qualquer conceito budista de fado que não me era familiar.

Não tenho ideia nenhuma – disse eu.

Acho que tem - insistiu ela.

Não acredito que haja nenhum plano no que acontece, se é isso que me pergunta - respondi. Ela suspirou como se eu estivesse a ser teimoso.

Sabe uma coisa? Quando soube que ele tinha voltado para Lisboa, não pensei em matá-lo... pelo menos, não imediatamente. Foi ele que me forçou a tomar essa decisão.

O que eu não ousava perguntar era: «E também foi forçada a dar-lhe uma morte tão dolorosa?»

Já falamos do que se passou na sexta-feira passada - propus -, mas primeiro diga-me se alguém estava a par dos abusos do seu pai e não fez nada para acabar com isso. - Estava a pensar mais uma vez em Morel, perguntando-me se ele teria alguma responsabilidade na morte de Sandi.

Ela mexeu-se, pouco à vontade, na cadeira e desviou o olhar.

Não tenho a certeza - disse ela. - Mas sei que o Coutinho tinha outros amigos com a mesma... inclinação. Descobri uma fotografia dele com duas rapariguinhas e um grupo de outros homens. Isto foi antes de ter começado a abusar de mim.

O Morel era um deles?

Não, ele não estava na fotografia.

Conhecia alguma das raparigas?

Não.

Então, quem eram os homens? Amigos do seu pai?

Pensei que eram homens de negócios e políticos conhecidos dele.

De França ou de Portugal?

Não sei.

Onde encontrou a fotografia?

Na agenda do Coutinho. Dessa vez, tinha-a deixado mesmo em cima da mesa da cozinha... esqueceu-se dela. Quando lhe peguei, a fotografia caiu.

Guardou-a?

Não. Caí na asneira de a dar à minha mãe. Ela queimou-a. - Num tom de desprezo, acrescentou: - Disse que era para proteger as raparigas.

Mas você pensou que ela a queimara para proteger o seu pai.

Digamos apenas que a minha mãe se mostrava muitas vezes uma mulher de fidelidades mal orientadas.

Maria olhou para Ernie; fiz o mesmo. Tinha os olhos fechados, a cabeça inclinada para baixo; estava a tentar enfiar-se naquela parte de si próprio sem portas nem janelas.

Então quem destruiu a vossa infância, inspetor? - perguntou.

Olhámos um para o outro. Não sei o que viu ela, mas eu vi uma mulher satisfeitíssima com a sua intuição.

A nossa infância não foi destruída por ninguém - disse eu.

Não? - perguntou ela, e o seu tom irónico mostrava que não era o que lhe parecia. Talvez tivesse uma espécie de radar para gente como eu e o meu irmão. É o que acontece com a maior parte das pessoas que sofreram na infância, como aprendi com o meu trabalho na polícia.

Foi o nosso pai - respondeu-lhe Ernie. Tinha-se endireitado no assento e posto o chapéu de cowboy. Eu não reparara na mudança de posição. Verifiquei as minhas mãos, mas não havia nada escrito em nenhuma delas.

Mas agora ele já se foi - continuou Ernie -, e nós ainda cá estamos.

Fitou-me com um olhar carente, ansioso pela minha confirmação.

Quando assenti com um gesto da cabeça, tive a sensação de que a minha vida era feita das milhares de vezes em que eu tinha reparado que Ernie e eu estávamos sentados lado a lado, na nossa própria dimensão sem que importasse o que estávamos a fazer ou a distância a que nos encontrávamos um do outro.

Quando é que soube que o Coutinho se mudara de Paris para Lisboa? - perguntei. - Sabia que ele já tinha uma nova família?

Vi-o numa reunião de pais em setembro - disse ela -, pouco depois do começo das aulas. Estava com a mulher. Foi um choque. Pensava que ainda vivia em Paris. Soube que ele se voltara a casar, pela minha mãe. Ela tinha visto um artigo sobre o casamento numa dessas revistas de mexericos. Mas não fazia ideia de que tinha uma filha. Em parte, uma das razões por que eu vim para Lisboa foi para evitar cruzar-me com ele. E, afinal, ei-lo ali, e a Sandi era minha aluna... - Abanou a cabeça, pensando no seu azar. Ou talvez na impossibilidade de lutar contra o destino. - Inspetor, se não fosse o meu deslize, tinha-me apanhado? - perguntou ansiosa, como que desesperada por confirmar que fora inteligente.

Que é que acha? - perguntei, na esperança de que a resposta revelasse o que ela queria dizer, e como G descobrira as coisas.

Não faço ideia. Não sei que provas o senhor tinha.

A pegada dos ténis... de homem, de tamanho quarenta e três. Ela soltou um riso ameninado Nunca me teria apanhado com isso. - Virou-se novamente para a janela que dava para o largo. Estaria ela a olhar para um mundo alternativo onde não tinha sido apanhada? Aí, numa cidade com edifícios e ruas construídos segundo os seus desejos, Sandi estaria ainda viva e desfazendo-se em agradecimentos, entre lágrimas, pelo que a meia-irmã fizera por ela.

Então percebeu como é que o meu irmão descobriu quem era o assassino? - perguntou Ernie, compreendendo que era uma pergunta que eu não podia fazer.

Sim. Percebi logo que tinha cometido um erro fatal. Ele não lhe contou? - perguntou ela surpreendida.

Não. O Henrique nem sempre gosta de falar do seu trabalho na polícia... Pelo menos, comigo. Tal como Ernie esperava, Maria Dias fez-lhe um sorriso cúmplice, como se os dois tivessem acabado de formar uma equipa que me deixava a mim de fora. Num tom confidencial, explicou:

Disse ao seu irmão que soubera no ginásio como o Coutinho tinha morrido e que trabalhava lá às terças e sextas. Conversámos numa segunda-feira, e por isso teria de ter lido a notícia nos jornais de sexta-feira. Mas os jornais só falaram na morte de Coutinho no sábado. Eu não podia saber que ele estava morto na sexta-feira a não ser que estivesse envolvida. Fui muito estúpida, não fui?

Quer dizer que G ligara para o Health Club do Chiado para ter a certeza de que ela não dera nenhuma aula extra de ioga no sábado.

Ela voltou-se para mim.

Comecei a observá-lo com toda a atenção para ver se tinha reparado no meu deslize, mas o senhor não se denunciou. Também é um bom ator, inspetor! - Levantando-se, dirigiu-se para a janela. Depois de ter afastado a cortina, abriu-a um pouco mais e atirou a moeda de um euro para a rua. - Vamos andar todos a pedir pelas ruas antes de darem cabo de nós. É o que eles querem.

Eles, quem? - perguntou Ernie.

Os que fazem as regras O FMI e as agências de notação, os banqueiros e os tipos da bolsa Dormem com os canalhas que governam este país. Todos esses sujeitinhos de fato de marca que vivem em Cascais e no Estoril... - Abanou a cabeça a mostrar a sua frustração.

Tudo no mundo se faz à maneira deles. E arranjam modo de dar cabo de quem quiserem. Voltando-se para mim, disse: - Quando cá veio a primeira vez, estava convencida de que me tinha apanhado. Nessa altura, quando partiu do princípio de que eu era a amante de Coutinho, foi... - ergueu as mãos em agradecimento - foi como se o universo me sorrisse.

Não querendo que ela se safasse com uma ideia tão conveniente - mas também não querendo provocá-la -, disse em tom ameno:

Até que soube o que se tinha passado com a Sandi.

Sim, até esse momento. - Passou a mão num gesto tenso pelo cabelo.

Se a sua consciência estivesse tão embotada por todos os sofrimentos por que tinha passado como eu julgava, haveria de se recompor rapidamente e convencer-se de que a morte de Sandi era uma infeliz - mas necessária consequência do seu ato justiceiro.

Quando é que descobriu que a Sandi andava a ser molestada por Coutinho? - perguntei.

Quando ela deixou de comer. É estranho como as pessoas podem ser diferentes, mas... na essência iguais.

E que quer dizer isso ao certo?

Eu tentei a técnica oposta para manter o Coutinho longe de mim.

Comia o mais que podia! - Fez inchar as bochechas. - Ele detestava ver-me gorda! - Com os olhos a brilhar, voltou-se para Ernie, para que o novo amigo partilhasse o seu contentamento. Não conseguia sentir tesão com uma gorducha de treze anos nos braços. Foi assim que a minha mãe percebeu o que se passava. Ele mostrou-se demasiado insistente para que eu fizesse dieta... e demasiado zangado por me recusar.

Foi muito esperta - disse Ernie com admiração.

Sim, só que fiquei com um aspeto horroroso! - Tapou a cara com as mãos: uma rapariguinha ansiosa por ser tranquilizada.

Fez o que tinha a fazer.

Não gostava de ver Maria Dias a interagir com Ernie. Provavelmente ele também não, mas ia-lhe dando o que ela pretendia, pela mesma razão por que eu não ousava dizer-lhe que a sua meia-irmã estava grávida.

A Sandi sabia que estava preocupada com ela? - perguntei.

Maria sentou-se muito direita, como que a reclamar o seu estatuto de adulta.

Sabia. Fui ter com ela e disse-lhe que sabia o que o Coutinho andava a fazer-lhe. Ela disse-me que não havia nada que eu pudesse fazer… pelo menos, a princípio. Sentia-se desesperada. E culpada.

Culpada porque o pai a tinha convencido de que ela o seduzira?

E porque se sentia dividida entre o desejo de lhe agradar e o de o matar. Sim, inspetor, agradar-lhe na cama!

Maria Dias mordeu com força essas últimas palavras como que para me chocar, mas, tendo em conta o meu passado, as trágicas e confusas esperanças de Sandi não eram para mim surpresa. Sabia que ela tinha uma faca escondida debaixo do colchão? ­ perguntei.

Não, mas faz sentido. - Desviou o olhar, meditando neste novo pormenor. - Estou convencida de que não a ter usado deve ter sido aquilo que ela achou mais difícil de se perdoar.

Porque não queria que a Sandi soubesse do laço que existia entre vocês as duas? - perguntei. Porque tinha medo de que ela me rejeitasse. Suspeitava de que o Coutinho lhe tivesse contado coisas horrorosas sobre mim... O monstro de egoísmo que eu era por me recusar até a falar com o nosso «querido e generoso» papá, o nosso papá tão «bonito e com um aspeto tão jovem»! - Com um sorriso perverso e triunfante, acrescentou: - Sabia que ele fez uma operação plástica para tirar as rugas da cara, certo?

Sim, vi as marcas.

Provavelmente mais do que uma - continuou com desprezo.

Mas acabou por dizer à Sandi que eram meias-irmãs?

Disse, e ela confirmou que o Coutinho lhe dissera que eu era má, mimada e que tinha feito a vida dele num inferno durante o divórcio.

Quando foi a primeira vez que falou com ela sobre os abusos de que ela estava a ser vítima? Umas duas semanas depois de ter cortado o cabelo, a Sandi começou a ficar perigosamente magra. Quando lhe vi os braços finos como bambus, fiquei doente... fisicamente doente! O mais espantoso é que a princípio não percebi por que motivo estava a ter uma reação tão visceral àquela perda de peso. A mente é uma coisa muito engraçada...

E depois um dia na escola veio-me tudo de repente. - Dobrou os braços acima da cabeça, levada talvez pela necessidade de se lembrar de que era uma pessoa forte e determinada e já não a adolescente com peso a mais de outros tempos. - Tinha chamado a Sandi na aula para analisar um poema de Baudelaire. Ela respondeu com uma tal, como hei de dizer? hesitação tímida ... Antes, ficava sempre contente quando eu a chamava; por isso, fiquei chocada. Quando o significado do sofrimento que lhe lia nos olhos me atingiu, atingiu-me realmente com toda a força. Passei muitas noites sem pregar olho. Todo o medo que tinha dele surgiu de novo, o terror absoluto! - Maria Dias fitou-me com um olhar predador. - Sabe o que é ouvir a voz do meu pai como uma alucinação enquanto dava aulas? Meu Deus, como eu odiava aquela voz!

Foi por isso que o amordaçou?

Ele começou a querer dar-me ordens. Imagine, com uma bala nas tripas, eu ainda com a arma na mão e ele a pensar que podia dizer-me o que fazer!

Quando começou a planear matá-lo?

Nos princípios de junho. Depois de uma semana ou duas de insónias repletas de pânico. Só voltei a dormir depois de ter comprado uma arma. - Levou a mão ao coração como se precisasse de fazer um juramento. - Ele não me deixou alternativa, inspetor - disse ela em desespero. - Se não o matasse, teria falhado em relação à Sandi E a mim. - Desviou o olhar, quando as lágrimas lhe marejaram os olhos.

Onde conseguiu a arma? - perguntei.

Tenho um velho amigo de Paris que vive agora em Madrid.

Quando éramos mais novos e bastante mais parvos, assaltávamos casas em Neuilly e outras zonas chiques de Paris. Ele agora tem o cadastro limpo, mas ainda conhece algumas pessoas úteis.

Havia alguma razão especial para ter usado uma Browning semiautomática?

O meu amigo disse-me que vocês as usaram em tempos na polícia. Pareceu-me acertado... Uma espécie de simetria.

Não me parecia que ela tivesse alguma coisa a ver com o assalto a casa de Coutinho, mas, dado o que dissera, tinha de lhe fazer a pergunta.

Não, não quero nada dele... nada em que ele tenha tocado - respondeu. - E que é que eles levaram... os quadros?

Não. Por enquanto, não sabemos. Ainda tem a arma?

Está junto aos ténis a mais de quinze metros debaixo da água.

No Tejo?

Sim. Há agora um lindo passadiço de madeira à beira-rio em Vila Franca de Xira. Fui lá no sábado. Vê-se uma data de aves se se for bastante cedo... garças, garçotas...

Falava como e estivesse a contar um dia bem passado no campo

E já sem o pai a perseguir-lhe os pensamentos, possivelmente fora mesmo.

Podia imaginá-la facilmente a ver a arma a afundar-se nas águas cor de jade e murmurando para si própria: «Se seguirmos o nosso destino até bem longe, seremos recompensados com a beleza do mundo.»

E a chave de casa de Coutinho... Como a arranjou? - perguntei.

Tirei -a da mochila da Sandi quando ela cá veio almoçar com a Mónica e a Joana. Disse-lhes que me tinha esquecido de uma garrafa de vinho no carro. Há ali à esquina uma pequena loja onde fazem chaves. Só demorei uns minutos. - Baixou os olhos e sorriu de si para consigo. Ao levantar o olhar, preparou-se para uma nova batalha. - Nem imagina a esperança que eu tinha de que o Coutinho não tivesse mais filhos.

Ou que mudasse. Se não o tivesse matado, ainda estaria a abusar da Sandi.

Olhou para Ernie como que precisando do acordo dele, mas por essa altura já ele estava farto daqueles olhares prementes e voltou-se para outro lado. Vendo na discrição dele uma recusa, Maria Dias gritou:

O suicídio da Sandi não devia ter acontecido! Eu estava a tentar evitar uma coisa dessas! Era a única pessoa a ajudá-la! - Apontou um dedo acusador na minha direção. - O que é que vocês fazem para ajudar os miúdos que são abusados no raio deste país? A polícia não faz nada. Voltando-se para Ernie, gritou: - O seu irmão não faz nada! Ernie levantou-se de um salto, a raiva na enfurecida profundidade dos seus olhos e a toda a largura dos ombros.

Você não faz ideia de quantas pessoas o meu irmão meteu na prisão! – ripostou à dona da casa numa voz tremente. – E não faz ideia daquilo por que nós passámos.

Levantando o olhar para ele, ela respirou profundamente e encolheu-se. Teria visto que não compreendia nada da cumplicidade que nos unia, a mim e ao meu irmão? Se calhar sentiu o terror mais elementar de ser dominada por homens. Apesar de profundamente inteligente, parecia incapaz de perceber o alcance daquilo que os outros pensavam dela. Alguns dias mais tarde, haveria de me ocorrer que Maria Dias apenas tivera um vislumbre das mais vagas sombras dos sentimentos atormentados de Sandi e que os confundira com a sua própria necessidade de vingança. Talvez tivesse até pensado que Sandi lhe dera uma autorização tácita para matar o pai.

Numa voz magoada, tentando reconquistar-nos, Maria Dias disse:

Só queria mostrar que é impossível processar os que abusam de crianças em Portugal.

Não saberia dizer se os remorsos dela eram genuínos. Nem sequer me apetecia fazer o esforço. Queria mesmo era ir-me embora, ver os meus filhos e pedir a Ana que me deixasse voltar para a nossa vida. O olhar de Ernie voltara-se para dentro e ele começou a tremer. Levantei-me e peguei-lhe na mão. Imaginei que devíamos ter um ar ridículo - dois homens adultos de mãos dadas como rapazinhos -, mas o ridículo parecera-me muitas vezes a maneira de o mundo me dizer que eu estava a fazer o que devia.

Maria Dias olhava-nos com uma expressão dura, superior, e era gratificante aperceber-me de que pouco me importava o que ela pensava.

Tenho só mais umas quantas perguntas - disse-lhe.

Ainda bem, porque preciso de acabar de fazer as malas - rematou ela num tom neutro.

Apertei uma vez mais com força a mão de Ernie e larguei-a.

Então acha que a mãe da Sandi sabia o que se estava a passar? ­ perguntei.

Duvido. A Sandi tinha esperança de que ela tivesse captado as pistas, mas a Susana não queria saber.

Você tentou ligar para a miúda no fim de semana, mas ela não atendeu.

É verdade.

Ia dizer-lhe que foi você que matou o pai dela?

Ela já teria concluído isso. Calculou o que eu pensava fazer quando lhe disse que compreendia aquilo por que ela estava a passar.

Apercebi-me nesse momento de que Sandi tentara proteger a professora quando negara saber alguma coisa sobre o quadro roubado pelo assassino do pai. Muito possivelmente, tinha também escondido - ou destruído - as fotografias da sala que a mãe não conseguia encontrar. A Sandi pediu-lhe para não fazer nada de violento? - inquiri.

Ela lançou-me um olhar furibundo.

Quer que eu lhe diga que a morte dela foi culpa minha, não é? Fique sabendo uma coisa! Ele não a largou nem sequer quando a viu cadavérica. Se o senhor pudesse ouvir a voz dela quando me disse que... Havia um tal desespero. Disse-me que não queria que eu fizesse mal ao pai. Mas as suas palavras transmitiam-me uma coisa e tudo o resto nela, uma outra bem diferente! Mesmo assim, concordei em não fazer mal ao Coutinho.

O quê?

Disse-lhe que ia fazer uma denúncia anónima à polícia sobre ele. Garanti-lhe que ninguém a iria responsabilizar pela prisão do Coutinho. Mas também lhe disse que tínhamos de tentar encontrar fotografias dele com outras raparigas, como prova. Ela não as encontrou em parte nenhuma. Pelo menos, foi o que me disse. Tive o pressentimento de que ela teria preferido matar-se à fome a arranjar problemas ao Coutinho ou participar de alguma forma no meu plano. E então entrei em casa dela às escondidas numa altura em que os pais estavam fora e obriguei-a a procurá-las comigo. Não as encontrámos, mas havia nos modos dela alguma coisa de hesitante e ansioso... Comecei a suspeitar de que já as tinha encontrado e não me contaria onde as escondera ... O que não me deixava outra alternativa senão tomar o assunto nas minhas mãos.

Tive a sensação de que Gabriel estava novamente junto à porta. Queria que eu ignorasse o meu código profissional e pessoal e deixasse Maria Dias partir em liberdade.

Imagino que se vá livrar do telemóvel numa altura qualquer ­ disse eu, para ganhar um pouco de tempo. - Por isso, como poderei contactar consigo, caso alguém na Judiciária chegue à conclusão de que foi você?

Se calhar podia dar-lhe o número da minha mãe em Bordéus ­ retorquiu como se isso fosse generoso da sua parte.

Tomei nota do número.

Será que viu algo de acusador nos olhos de Ernie enquanto eu escrevia? Fendeu com um gesto da mão o ar entre nós.

Não me arrependo daquilo que fiz! - gritou. - Pode ser que vocês os dois pensem que devia estar arrependida, mas não estou!

 

Uma pessoa sai para a rua depois de um interrogatório desagradável, fica surpreendida por ver que a manhã ainda vai no princípio, e segue o rasto do traço com que a luz do sol risca o amarelo pálido da fachada do prédio fronteiro, e maravilha-se com a maneira como se dobra, irregular, em torno da coluna biselada de um candeeiro preto acima da sua cabeça, e conta uma, duas, três, quatro, cinco motos estacionadas no meio do Largo Rafael Bordalo Pinheiro, e observa um gato branco com uma mancha preta num dos olhos, como um pirata, anichado debaixo de um Honda prateado - talvez aspirando a sua própria mortalidade no vento seco que sopra vindo de Espanha - e, finalmente, tranquilizada pelas palavras soltas e uma conversa de amigos que lhe chegam de um dos andares acima do sítio onde se encontra, levanta os olhos, avista dois pombos num telhado e imagina - sorrindo de si para consigo - que está a escutar sem que o saibam a conversa que travam. Vê todas estas coisas como se fossem uma necessidade, porque acredita - por mais improvável que pareça - que todas elas estão seguramente destinadas a ter importância a certo ponto da história. Que história? A história dessa pessoa e do mundo, pois que nesse momento não há separação entre as duas.

Voltei-me para ver Ernie. Ele lançou-me o seu sorriso de viés, reconfortante precisamente porque era seu e sempre o fora. Passou-me o braço pelos ombros e disse-me uma coisa que me fez rir. Embora duvide de que estivéssemos a falar sobre como eu costumava tratá-lo por Wyatt Earp, o lendário justiceiro do Oeste americano, é assim que recordo esse momento.

Quando Ernie tinha nove anos, comecei a ensinar-lhe às escondidas a carregar e disparar o revólver Colt de percussão que o meu pai me oferecera quando fiz treze anos. Daí a poucos meses, o meu irmão era capaz de acertar numa lata de Dr. Pepper a cerca de trinta metros, quase sem falhar um tiro.

Ernie já não se lembra do que me fez rir. Ambos estamos perfeitamente convencidos de que não era nada sobre Maria Dias. Ela deixou-nos aos dois com a sensação de termos fugido de um campo de batalha. No entanto, lembro-me do peso do braço dele. Parecia que me retinha no sítio, mas de uma forma agradável. Seriam os pressentimentos não só possíveis como inevitáveis? Talvez tenha sido esse o motivo por que desviei o olhar do candeeiro para as cinco motos, para o gato e para os pombos. Eram como adereços à disposição de um ator; precisava de ter a certeza de que estavam ali - cada um deles no lugar que lhe cabia - antes de a minha vida seguir na direção que tinha de seguir.

Passou agora quase um mês - estamos a 11 de agosto -, e a vaga sensação de queda também me invade quando penso naquele momento. Uma queda lenta, ao longo de um minuto ou mais, uma lentidão semelhante à do mel a pingar. Lembro-me também de uma explosão tão violenta que não consegui ouvir nada por alguns segundos. Parece-me que ocorreu a seguir à minha queda, mas isso não é possível.

Pelo que conta Ernie, começámos a descer a rua em direção ao carro, e disse-lhe que ia pedir reforços assim que lá chegássemos. Quando me perguntou se ia mandar prender Maria Dias, respondi-lhe:

Ela é em grande parte responsável pela morte da Sandi, por isso, que posso eu fazer?

Podias deixá-la ir embora.

Nesse momento, surgiu diante de nós uma figura encapuçada.

Ernie era capaz de jurar que o blusão de capuz era cinzento, mas, segundo o relatório oficial, era verde. Como qualquer polícia sabe, os erros deste género não são raros; as testemunhas oculares - mesmo as mais atentas - fixam muitas vezes uma série de pormenores errados.

O encapuçado apontou-nos a arma. Pressentindo que ia disparar, atirei-me para cima de Ernie e gritei:

Não!

O primeiro tiro apanhou-me na parte de trás da perna esquerda, a uns sete centímetros do joelho.

Não saquei da pistola porque devo ter pensado - sem mais do que a fração de um segundo para avaliar as alternativas - que não conseguiria disparar a tempo e só tinha uma oportunidade para proteger o meu irmão. Segundo Ernie, Gabriel tomou então o comando e, ao cair no chão, gritou ao nosso atacante: «Hás de pagar por isto, grande cabrão!» A esvair-me em sangue, ainda consegui pôr-me de joelhos. Tirei a arma do bolso, mas eis que um segundo tiro me atingiu no ombro direito.

Ernie deve ter pegado na pistola quando ela me caiu das mãos, embora não se lembre. Mal disparou, o homem caiu para trás e ficou estendido com um som cavo. Tinha os olhos abertos, fixos no vazio. Um tal vazio, de facto, que Ernie começou a meditar na dimensão da morte ­ em como era infinitamente mais vasta do que qualquer vida individual e em como parecia agora rodear-nos aos três.

Ernie chamou o 112 e disse que o irmão fora alvejado duas vezes num largo perto do Chiado.

Que largo? - perguntou a senhora do outro lado da linha.

Ernie levantou os olhos para a placa da praça e disse-lhe, acrescentando ainda a reforçar a urgência:

O meu irmão é inspetor-chefe da Polícia Judiciária. Chama-se Henrique Monroe. E acho que vai morrer se a ambulância não chegar muito rapidamente.

É espantoso que tenha tido a presença de espírito para falar de forma tão precisa, mas explicou-me que, depois de um tremor inicial, lhe surgiu uma claridade hipnótica e soube exatamente o que tinha de fazer. Enquanto esperávamos a chegada da ambulância, juntou-se à nossa volta uma multidão. Uma senhora de idade trouxe-me um copo de água. Gosto de pensar que foi a mesma mulher que me falou nos meteoritos de Lisboa.

Ernie atingiu o encapuçado acima do olho esquerdo. Fizera pontaria para o meio da testa, o que quer dizer que apenas falhara o alvo por poucos centímetros. Bom trabalho. Mais tarde, garantiu-me que há vinte anos que não disparava uma arma, mas Nati disse-me há dias que vira o tio ainda há dois anos a treinar a pontaria com latas de Coca-cola junto ao riacho que passa na sua propriedade, numa altura em que eu tinha ido às compras a Évora.

Não me lembro de sangue, mas Ernie disse-me que eu parecia saído de um filme de terror. A minha cara estava tão pálida que se convenceu de que não me iria safar. As minhas mãos estavam geladas. Contou-me que eu estava arquejante e que lhe disse que não me chegava ar suficiente aos pulmões. Não me lembro de nada disso.

A certa altura, perguntei-lhe:

Tens aí algum chocolate, miúdo?

Quando respondeu que não, repliquei que não fazia mal, mas ainda assim ele perguntou aos circunstantes se alguém tinha um chocolate. Um rapaz passou-lhe uma barra de Mars, e o meu irmão ajudou-me a segurá-la enquanto eu lhe ia dando umas dentadas. Quando me ponho a imaginar toda a trabalheira que os dois tivemos - ou três, se contarmos Gabriel – para comer um chocolate de tão má qualidade desato a rir-me à gargalhada.

Como estava a respirar mal, mastigar era uma pequena luta, mas consegui acabar a barra de Mars. Ernie chegava-me o copo de água aos lábios sempre que lhe dizia que tinha sede.

Comer aquele chocolate e depois lamber os dedos parece-me agora uma prova de que nunca saberemos qual virá a ser o nosso último desejo.

Ernie diz que depois de o papel da embalagem me ter caído vazio das mãos, o abracei apertadamente. Sentiu o cheiro do meu medo. Comecei a bater os dentes, mas sorri-lhe e disse-lhe que ele agora era um homem e que tudo correria pelo melhor. E que ficaria zangado se não tomasse cuidado consigo.

Não me lembro de lhe ter dito nada do género.

Ernie diz que percebeu que Gabriel me estava a devolver o corpo quando comecei com esgares de dor. Também não me lembro de nada disso. Ou de lhe murmurar que contava com ele para olhar pelo King Kong e o Godzilla. E, finalmente, de lhe dizer que pedisse por mim desculpa a Ana por todas as mentiras.

 

Ana estava adormecida numa cadeira aos pés da cama. A cabeça descaía-lhe para o lado numa descida tortuosamente lenta, endireitando-se depois com um movimento repentino. Tinha o ar de alguém apanhado num nó do tempo. Ressonava, e deu-me a impressão de que tinha sonhos agitados. Observei-a sem dizer nada porque o meu amor por ela era agora uma presença física entre nós - paciente e absolutamente segura da sua própria importância - e parecia exigir silêncio.

Lembro-me, logo de seguida, de me sentir ludibriado por Ana não estar a meu lado na cama e de me perguntar por que razão a minha almofada estava pegajosa e o ar cheirava a amoníaco. Esforcei-me por me sentar mas Quando fiz força no braço direito uma dor lancinante no ombro fez-me grunhir. Estava coberto por uma espessa camada de ligaduras, e a parte mole que elas escondiam chamejava como uma queimadura de cada vez que a palpava com a ponta dos dedos. Olhando para o lado, vi um dispositivo intravenoso. Pendia dele um saco plástico cheio de um líquido transparente. Segui com os olhos o tubo comprido que transportava o líquido até uma agulha grossa, com um aspeto temível, espetada no meu braço. Apetecia-me arrancá-la, mas tinha a certeza de que isso me arranjaria problemas com Ana quando ela acordasse.

A minha perna esquerda começou a latejar, como se tivesse sido queimada a sério. Será que o carro se tinha incendiado? E se Jorge e Nati lá estivessem, quer dizer que...

Quando chamei por Ana, ela abriu os olhos.

Onde está o Ernie e os miúdos? - perguntei.

Sem desviar de mim os olhos atónitos, levantou-se de um salto e tirou o casaco, atirando-o para a cadeira. Amparando-me a cabeça entre as mãos, beijou-me nos lábios.

Estás no hospital, querido, e estamos todos bem.

Sorriu-me como se eu fosse uma prenda que tivesse acabado de receber. Tinha os lábios gretados e o cabelo estava mais curto do que me lembrava.

Então não aconteceu nada de mal ao Jorge e ao Nati?

Estão preocupados contigo, naturalmente, mas bem. Estão com os meus pais.

E Ernie está em?

Sim. Só saiu por um bocado para ir comer qualquer coisa. Coitado, estava a morrer de fome. Quer dizer que ele não morreu no acidente? - perguntei.

Não houve acidente nenhum.

Não bati com o carro contra uma árvore enorme... uma nogueira na estrada para Crawford? Ana negou com a cabeça, deu-me um beijo na testa e depois nos olhos. Tocar-lhe fez-me perceber que estava onde queria estar, mesmo sem ter qualquer memória do que tinha acontecido.

E tu estás bem? - perguntei.

Estou ótima. Estamos todos ótimos.

Senti formar-se na garganta um nó apertado de gratidão, mas não chorei. As minhas emoções pareciam-me paralisadas pela confusão que me ia na cabeça. Ana compreendeu a minha perplexidade e disse:

Estás no Hospital de Santa Marta. Estiveste na Unidade de Cuidados Intensivos, mas hoje transferiram-te para um quarto normal.

Voltou a beijar-me, e então senti que cheirava a todas as preocupações por que a tinha feito passar. Pedi-lhe perdão por a ter assustado e obrigado a vir ao hospital.

Antes aqui do que nuns quantos outros lugares que me vêm à lembrança.

Uma das cortinas à volta da cama tinha uma enorme mancha amarelada. Não sei porquê, mas interessava-me.

Que mancha é aquela? - perguntei, apontando.

Não faço ideia.

Há mais pessoas neste quarto?

Apontando para o lado direito, murmurou:

Está ali outro doente. Fez ontem uma operação de urgência à apêndice. - Formando as palavras apenas com os lábios, acrescentou:

É pequeno e peludo... Parece um orangotango.

Depois, riu-se como fazem as pessoas que acabaram de chorar. Coloquei a mão dela contra a minha cara. Olhámo-nos em silêncio durante bastante tempo, até se tornar confuso onde acabava um e começava o outro.

Como vim aqui parar? - perguntei.

Ana contou-me o que acontecera, começando pelo interrogatório a Maria Dias. Não me lembrava de nada. Disse-me que tinha sido alvejado duas vezes na rua, que nenhuma das balas acertara numa artéria ou em algum órgão vital, mas que o osso do tornozelo esquerdo estava bastante fraturado e tinha de ser reparado com uma tala de metal. Estávamos numa quarta-feira. Fora operado dois dias antes, para extrair a bala e reparar o tornozelo. Não tinha havido complicações. Ela guardara as balas em casa para o caso de eu as querer ver. O cirurgião tinha-lhe dito que, se tudo corresse como previsto, eu teria alta em aproximadamente dez dias. E disse-lhe também que, dadas as circunstâncias, eu tivera imensa sorte.

Levar com dois balázios não é propriamente ter-se sorte - comentei.

Não quisera ter piada, mas Ana riu-se como se tivesse sido salva de um perigo. Quando as lágrimas começaram a correr-lhe pela cara, fiz um esforço enorme para me sentar. Ela abraçou-me como se tivéssemos estado separados o inverno todo, e a sua tepidez deve ter-me lembrado de outras coisas porque-tive uma ereção, apesar de me parecer que não era lá muito boa ideia, dado que possivelmente precisava de todo o sangue disponível e a circular à volta das feridas. Mas para ter a certeza de que tudo estava bem por aqueles lados levei a mão ao sítio.

Ana deu uma olhadela rápida por baixo dos lençóis e sorriu. Beijámo-nos longamente, simplesmente, como se nunca mais tivéssemos de ter pressa. Quando por fim nos afastámos, ela tirou a Debbie de dentro do seu saco de lona e passou-ma à volta do pescoço. Depois, a meu pedido, chegou-me aos lábios um copo de água. Enquanto bebia, comecei a sentir uma onda de exaustão. Voltar a adormecer parecia-me a melhor opção.

Primeiro tenho de ligar para os miúdos - disse ela.

A conversa de Ana com Nati e Jorge era um arranhar suave nas orlas dos meus ouvidos, como um LP que já tivesse acabado mas continuasse ainda a rodar no gira-discos.

Jorge insistiu em falar comigo e, por isso, Ana despertou-me aos abanões para que conseguisse pegar no telefone. Perguntou-me quatro vezes se estava bem e das quatro vezes tentei diferentes versões de «Não podia estar melhor», tanto em português quanto em inglês. Finalmente, Nati tirou-lhe o telefone das mãos e disse-me:

Queria que saísses da polícia!

Pois.

Estou a falar a sério.

Não tenho bem a certeza de estar completamente consciente. Talvez pudéssemos começar esta conversa do princípio.

Desculpa, mas não estou a gostar nada disto! – retorquiu ele. – Mesmo nada, pai.

O nó de lágrimas contidas apertava-me de novo a garganta. Não consegui sequer sussurrar uma resposta; por isso, Ana tirou-me o telefone das mãos. Depois de acabar a conversa com Nati, disse-me que a mãe e o pai dela chegariam com os miúdos daí a pouco.

Quando acordei mais tarde, tinha a meu lado um homem alto, esguio, a barba por fazer, o cabelo comprido e despenteado, e uma compressa na testa, que descalçava as luvas cirúrgicas, com grande concentração.

Olá, Sr. doutor - disse eu, levantando a mão num gesto que pretendia amistoso.

Olá, Rico - disse ele. - Como te sentes?

Tinha umas mãos rugosas, marcadas pelo trabalho duro, e uns braços que pareciam soltos. O seu sorriso de viés quase tocava o teto.

Quando abriu os olhos, surpreendido, como que para me perguntar porque o fitava com uma expressão tão chocada, o verde profundo e as pestanas compridas denunciaram-no, embora parecesse mais velho do que me lembrava. Fiz-lhe sinal para se aproximar, pois precisava de ter a certeza de que era quem eu pensava. O beijo que me deu arranhando-me a pele e o cheiro a papas de aveia confirmaram-me que era ele, o que foi um grande alívio.

As coisas parecem um pouco esquisitas neste momento - disse-lhe.

Passaste por um mau bocado.

A minha perna parece-me queimada. E não gosto nada da agulha no braço. Para onde foi a Ana?

Ela queria que eu ficasse a sós contigo uns minutos. Foi à Bela Ipanema ver se conseguia comprar-te uma canja.

Não tinha fome, mas faria o possível para comer a sopa, já que ela se dera àquele trabalho.

Ernie disse qualquer coisa, mas não percebi o quê. Talvez fosse a propósito das luvas porque acabara de as colocar em cima da cama.

Sentando-se a meu lado, pressionou-me a mão contra a testa para verificar se eu estava com febre.

Como é que eu passara a ser a única pessoa que ele podia tocar sem se arriscar a ficar doente?

Não tens febre - disse ele, com um aceno satisfeito da cabeça.

O que comeste? - perguntei.

Dois muffins de limão. Trouxe-te dois de aveia. Se calhar precisas de muita fibra por causa dos analgésicos que te deram. Queres? - apontou para um saco de papel castanho numa cadeira decrépita junto à porta.

Será que ninguém na Administração compreende que o vinil branco deixa à mostra a mínima mancha e risco? - perguntei.

Rico, estou a perguntar-te se queres um bolo - disse Ernie, amavelmente.

Tens a certeza de que eles têm muffins? - perguntei.

Ainda agora comi dois.

Então isso quer dizer que ou tens razão ou estás com alucinações.

Tenho razão. Nunca tive alucinações com nada que se possa comer!

Pareceu-me uma resposta genuinamente engraçada, mas não me ri.

Entrou uma enfermeira disparada. Devia andar pelos trinta e tal anos, diria, com um nariz de duende, uns lábios semelhantes a um arco de Cupido e um cabelo preto e rebelde. Era um pouco parecida com Debbie Harry. Quando ouviu a minha pronúncia, disse-me que tinha trabalhado em Manchester durante um ano, num restaurante persa. Todos os clientes pensavam que ela era uma iraniana fugida aos ayatollahs e ficavam desapontados quando percebiam que era portuguesa. Ernie e eu trocámos um olhar e decidimos não lhe estragar a boa disposição.

Por isso, confirmámos que éramos de Inglaterra - da cidade de Woodford, disse-lhe. O nome ocorreu-me na altura. Mais tarde, lembrei-me de que o saxofonista preferido do meu pai, Johnny Dankworth, era de lá.

A enfermeira, chamada Rita, explicou-me que a intravenosa me estava a dar antibióticos e acrescentou que o médico me viria ver quando fizesse a ronda. Mostrou-me onde ficava a campainha ao lado da cama e disse- me que a chamasse se precisasse de alguma coisa. Peguei na campainha e, quando levantei os olhos, já a enfermeira tinha saído a correr do quarto.

Não há dúvida de que a gente destas bandas anda depressa - retorqui no meu melhor sotaque do Colorado.

Ernie riu-se, e depois sentou-se a meu lado, e falámos em tom conspirativo sobre as nossas refeições preferidas da infância. Enquanto ele não parava de falar num guisado de posole que jurava ter comido em Denver quando tínhamos ido ao zoo, lembrei-me de uma estatueta do Buda embrulhada em toalhas de banho. E de malas enormes, metálicas.

Quantos dias estive eu sem acordo? - perguntei finalmente.

Foste alvejado há dois dias e operado logo de seguida.

Tentei recuar até ao momento da operação. Só me lembrava de uma luz fortíssima que me queimava a cara.

Que horas são? - perguntei.

Ernie consultou o relógio.

Nove menos dez da noite.

Íamos a algum sítio com malas de metal?

Não. A Maria Dias é que se ia embora... a mulher que tu interrogaste.

Quem é ela?

A filha do Coutinho e da primeira mulher dele.

Acenei a cabeça como se compreendesse, mas tinha apenas uma vaga ideia da família Coutinho. Quando perguntei para onde ia a tal Maria Dias, Ernie deu-me uma palmadinha no peito como se quisesse certificar-se de que eu era mais sólido do que parecia e falou-me na viagem dela por Espanha até França. Nada daquilo me soava familiar.

Em resposta às perguntas que se seguiram, Ernie contou-me que o homem que me alvejara se chamava Alberto Trigueiro. Estava a pouco menos de cinco metros do sítio onde nos encontrávamos quando disparou.

Essa distância fixou -se na minha memória como uma farpa incómoda, mas sem que percebesse a razão. Ernie disse-me que, a princípio, matar Trigueiro o tinha deixado com náuseas, como se tivesse tombado de um despenhadeiro. Lançou-me um olhar suplicante, como se me pedisse algumas palavras significativas, mas eu não sabia o que dizer e acabei por perguntar:

De que era feito o despenhadeiro?

Ele pensou durante uns instantes.

Talvez de todas as coisas boas que tentei fazer na vida - retorquiu.

O que se passa, Rico, é que, depois de a ambulância te ter levado e enquanto ali fiquei sentado, sozinho, no meio da rua, a olhar para o teu sangue nas minhas mãos e esforçando-me por não chorar, compreendi que defender-nos a nós os dois significava que tínhamos o direito a estar vivos. E que não tinha caído de coisíssima nenhuma.

Como ele me parecia tão aliviado, disse:

Isso é muito bom.

Sabes, às vezes dá-me a impressão de ter passado toda a vida a pedir desculpa por estar vivo - explicou. - Mas aquele sangue derramado... acabou com tudo isso. Ou talvez tenha sido por ter matado alguém. Nunca pensei que isso fosse possível.

Olhámos um para o outro e podia ter oito anos e ele quatro, e podíamos ter começado a aprender as estreitas, combativas, irracionais, dimensões da vida em que havíamos nascido.

Há muitos anos, quando éramos pequenos, menti-te - disse Ernie. Desculpa. Senti que tinha de o fazer.

Mentiste sobre quê? – perguntei.

Disse-te que tinha medo de que o pai voltasse e me levasse... Depois de ele ter desaparecido, quero eu dizer. Mas não era verdade. Lamento mesmo, Rico, mas tinha medo de que a polícia viesse buscar-te e te acusasse do desaparecimento. E te levasse para a prisão. Foi por isso que te fiz jurar que nunca contarias a ninguém como ele desapareceu. ­ Com a voz embargada, prosseguiu: - Foi por isso que te obriguei a mentir à Ana e aos miúdos. Não devia ter feito isso, mas a verdade é que o fiz.

Não te preocupes, Ernie. Não me obrigaste a nada que eu não quisesse.

Apertou os polegares contra as têmporas e fechou os olhos. Reparando que as mangas da camisa eram demasiado curtas - e para o distrair -, perguntei:

Mas a quem é que roubaste essas roupas?

A ti - retorquiu, sorrindo.

Quem é que te autorizou?

Ninguém, mas não tinha por onde escolher.

Porquê?

Tu recusaste-te a parar de sangrar para cima de mim, mesmo depois de eu te ter pedido com todo o jeito para não me sujares mais a camisa!

Aquela provocação diferida era exatamente a atitude certa, dando-nos oportunidade para uma boa gargalhada. O riso dele parecia-me um som admirável, como se fosse a melhor coisa que havia nele, aquilo que me esforçara avida toda por salvaguardar e mesmo o que fizera com que tivesse valido a pena apanhar um tiro.

Durante anos, tentei descobrir o telhado que cobria tudo o que sentia pelo meu irmão, mas ao ouvi-lo tão feliz compreendi que não havia telhado. Com Ernie presente, eu estava a céu aberto.

Ernie disse-me que Luci se tinha apresentado depois de a ambulância me ter levado. Levara-o para o carro da polícia e pedira-lhe que lhe dissesse o que se tinha passado.

Parecia não se importar com o facto de eu não contar as coisas por ordem, nem com as minhas constantes interrupções para recuperar o fôlego - disse Ernie. - Tiveste sorte com ela.

É verdade.

Ernie disse-me que Luci sabia que o homem se chamava Trigueiro e que tinha vinte e sete anos, porque trazia a carteira no bolso. Mais tarde, descobriu que passara dois anos na prisão de Paços de Ferreira por causa de uma série de assaltos no Porto, o que nos levou a pensar que provavelmente tinha sido ele a vandalizar a casa de Coutinho.

Manuel Marques, um outro inspetor-chefe, interrogara Ernie na sede da Judiciária.

Foi duro contigo? - perguntei, temendo o pior.

Não, nada. Estava à espera daquilo do polícia bom e do polícia mau, mas foi só ele a falar comigo e depois de lhe ter contado como tinhas sido atingido e como eu tive de disparar contra o Trigueiro, passámos imenso tempo a falar do Alentejo, porque nessa altura já lhe tinha dito que vivia perto do Redondo. Sabias que ele nasceu a poucos quilómetros de Elvas? Não.

A irmã ainda vive na quinta da família. Tem no jardim em frente à casa um dragoeiro com quase cinco metros de altura. Imagina só, Rico! O inspetor Marques convidou-me para ir lá um dia.

Conseguir pôr praticamente qualquer pessoa a falar de plantas era um dos talentos de Ernie. Estava eu ainda a pensar nisto, quando me perguntou:

E tu, porque achas que o Trigueiro te queria matar?

Não queria - respondi, porque, ao ouvir verbalizar a pergunta, percebi claramente por que razão a distância a que ele se encontrava de nós, no momento em que disparou, me ficara gravada na cabeça como uma farpa incómoda. - Ele disparou de muito perto - prossegui. - Podia ter-me enfiado uma bala na cabeça se a intenção fosse essa. Acho que queria deixar-me apenas fora de cena por uns tempos. Pelo menos, a princípio.

Porque queria ele pôr-te fora de cena?

Porque eu devia estar a chegar demasiado perto da pessoa que o contratou.

Mas quem?

Essa é que é a grande questão, Ernie.

O meu irmão levantou-se, ficou com o olhar ausente, dando-me a impressão de estar a sopesar esta nova informação face à irrevocabilidade de ter posto fim à vida de outra pessoa.

Fizeste a coisa certa - disse-lhe eu.

Fitou-me com uma expressão de dúvida.

Ele ter-nos-ia matado aos dois se tivesses falhado o primeiro tiro - continuei – A pessoa que organizou isto não brinca em serviço. O que está em jogo é demasiado importante. O segundo tiro era para me mandar para o cemitério.

Ernie acenou como se assentisse, mas via que precisaria de reforçar a mensagem durante meses. Instantes depois, ouvimos Jorge já perto, no corredor. Vinha a palrar sobre um desenho animado, e a minha sogra fazia os possíveis por convencê-lo a falar mais baixo. Ao entrar no quarto, ficou boquiaberto, e o Francisco caiu-lhe da mão, o que me levou a pensar que eu devia estar com um aspeto bastante assustador.

Quando lhe abri os braços, hesitou, como se estivesse a ponderar qual seria a sensação de se manter à distância, por um segundo que fosse, de tudo aquilo por que ansiava; depois, gritou «Papá!» e precipitou-se para mim como se eu fosse a sua terra prometida.

Ana tirou-lhe os sapatos e as calças enquanto eu o cobria de beijos, e Nati ajudou-a a enfiá-lo na cama a meu lado sem bater na minha perna ferida ou no ombro.

Cem por cento fruta! - gritou o obsessivo monstrinho assim que se instalou, o meu braço à sua volta.

É a nova publicidade dos sumos Bongo - explicou Ana, com um resmungo divertido.

Jorge anichou-se com a cara encostada ao meu pescoço. O hálito morno e o seu peso junto a mim pareciam-me um talismã contra tudo o que ainda me poderia acontecer de mal. Daí a instantes, já ele dormia profundamente.

Nati farejou o ar aproximando-se de mim – claramente um membro do Clã Coelho – e disse. Pai detesto ser eu a dar-te a notícia, mas este teu quarto fede a cinquenta anos de peidos.

Ri-me com Ana e Ernie, mas sobretudo porque ver Nati - aqueles seus olhos tão sérios e os seus gestos expressivos - me trazia à memória tantas surpresas felizes que lhe devia ao longo dos anos que só o riso as poderia incluir a todas. Perguntou-me se queria uma massagem nas costas, mas voltar-me implicaria contorções dolorosas.

Senta-te só aqui ao pé de mim - pedi-lhe.

Nati era demasiado novo para saber que o que de mais útil poderia fazer por mim era simplesmente deixar-me abraçá-lo; por isso, olhou-me com uma expressão desapontada e por instantes pareceu-se tanto com a minha mãe que o choque me fez desviar os olhos dele.

Assim que se sentou, poisou a cabeça no meu peito, a orelha para baixo, como se à escuta do bater do meu coração. Adorei a surpreendente justeza disso.

 

Acordei ao amanhecer com uma mensagem na mão: «O Coutinho pode estar a sete palmos de terra, mas o sacana continua a posar para os paparazzi»

Assumi que isso significava duas coisas: que as trágicas consequências daquilo que ele fizera continuavam a estar absolutamente presentes no mundo; e que G - tal como Maria Dias estava convencido de que Coutinho tinha escondido fotografias que tirara com rapariguinhas adolescentes.

G forçara a ponta da esferográfica com tal força na minha carne ­ na palavra «sacana». – que tive de enxugar o sangue com a bata do hospital. Esticando o braço para trás. Tirei da mesinha de cabeceira o novo telemóvel que Ana me tinha comprado.

Depois de ter assegurado Luci de que estava ótimo e de pedir desculpa por a acordar, fiquei atónito - e talvez também ela própria - ao ouvi -la desatar a chorar.

Peço imensa desculpa, chefe - escusou-se. - Sei que é uma parvoíce, mas quando o vi inconsciente no hospital e com aquelas ligaduras todas... procurei preparar-me para o pior. E agora o alívio de ouvir a sua voz foi de mais.

Depois de ter respondido a todas as suas perguntas sobre a minha situação clínica, consegui orientá-la para o tema do trabalho. Expliquei-lhe o motivo pelo qual me tinha livrado do antigo telemóvel e pedi-lhe que me trouxesse a pen de Coutinho, que continuava escondida no meu gabinete; queria que Joaquim a investigasse cuidadosamente antes de eu dar o próximo passo. Luci concordou, mas disse também que provavelmente deveria dizer a Romão que a tinha encontrado; era ele quem agora estava à frente do caso.

Não respondi nada; apercebi-me de que Romão, ao assumir as minhas tarefas, não teria nem tempo nem recursos para investigar plenamente o caso. Passar-lhe a pen não valeria de grande coisa.

Desculpe se o ofendi, chefe - disse Luci num tom conciliador.

Não, tem toda a razão - respondi. - Vou falar com o Romão mais logo. Diga-me uma coisa, Luci, também passou a trabalhar com ele?

Passei, sim, chefe.

Romão era um investigador brilhante, mas também um bruto que achava que as mulheres eram demasiado emotivas para poderem ser boas policias. E nunca permitia a Luci qualquer iniciativa na investigação das ligações entre o assalto à casa de Coutinho e o ataque de que eu fora vitima, o que fazia desta reorientação do caso um cenário ideal para quem tinha ordenado o atentado contra mim.

Esforcei-me por ficar sentado - ansiando por uma perspetiva mais abrangente sobre esta reviravolta nos nossos destinos -, mas, assim que deslizei a perna esquerda sobre o lençol, a dor fez-me soltar um uivo. Era como se me tivessem espetado um prego no ferimento até ao osso.

Está a sentir-se mal, chefe? - perguntou Luci.

Foi só uma pontada. Oiça, tenho de desligar... Chegou o médico.

Falamos depois.

Ana atendeu o telefone de casa como se a minha voz chegasse em seu socorro e não o oposto, como era o caso. Não gostei de estar tão carente. Não tinha a certeza de que ela devesse confiar numa pessoa com lacunas tão profundas como as minhas.

Quando lhe disse que era possível que tivesse sido algum político ou homem de negócios influente a pagar a Trigueiro para me impedir de ligar todos os pontos que rodeavam o assassinato de Coutinho, perguntou-me como poderíamos confirmá-lo.

Como o Ernie enfiou uma bala na única pessoa que nos poderia levar até quem tem medo de mim - disse eu -, nunca chegaremos a sabê-lo.

Talvez os teus colegas possam seguir a pista do pagamento que o Trigueiro deve ter recebido. Deve ter sido em dinheiro. Não vai haver pista nenhuma.

Antes do Tiro e Depois-do- Tiro. Dois continentes distintos, cada um com as suas cadeias de montanhas, vales e cidades. E será que ali, na costa acidentada e rochosa de Depois-do- Tiro, a minha mulher acre ditaria que o que eu lhe dizia era verdade; quando, sentados no cais deserto, lhe contasse a minha infância?

Ana perguntou-me como me sentia; falei-lhe nas minhas dores lancinantes como se fosse uma piada. Um teste? Ana passou-o, não se rindo.

E se tiver de ficar mais tempo no hospital do que os médicos pensam? - perguntei, ansiando por lhe contar alguma coisa sobre os meus medos, falando no menos importante deles.

Vais ficar bem depressa. És forte. E estaremos todos ao teu lado.

Voltarás para casa mais cedo do que pensas.

Ana disse-me que Ernie se mostrava um hóspede agradável.

E esta manhã, ele e o Jorge levantaram-se mais cedo e fizeram panquecas à moda do Colorado para todos nós. - Rindo-se, feliz por falar de coisas banais, exclamou: - Deixaram tudo numa grande barafunda, também. Quem me dera que estivesses cá para ralhares com eles!

A minha mulher passou o telefone a Nati, que me falou de Moby Dick - uma maneira de partilhar comigo algo de significativo. Pela primeira vez, apercebi-me de que havia o perigo de ele viver excessivamente mergulhado nos livros. Porque será que foi preciso ser alvejado para dar pela semelhança entre ele e a minha mãe com tamanha clareza? Parecia-me agora que a minha tarefa deveria passar a ser encorajá-lo a fechar os romances de vez em quando e a juntar-se a mim no mundo real.

Na tua opinião, porque é que o romance começa com o narrador a dizer: «Chamai-me Ishmael?» - perguntou Nati. – Em vez de dizer, por exemplo: «O meu nome é Ishmael»

Sempre achei que era por Ishmael não ser o verdadeiro nome dele - retorqui.

Mas porque haveria ele de mentir?

Porque não confia o suficiente nos leitores para lhes dar pormenores íntimos sobre si... tais como saberem o seu verdadeiro nome. É só o primeiro capítulo, afinal. Como pode Ishmael ter a certeza de que o leitor está do seu lado? Primeiro precisa de lhe contar a sua história. Há uma data de pessoas que crescem sem uma única pessoa em quem confiar, Nati.

Isso é o que fui levado a compreender - disse ele, num tom cúmplice.

Quando Jorge veio ao telefone, lançou-se de cabeça na sua necessidade de me contar as aventuras com os amigos da vizinhança; era uma bênção escutar aquelas histórias imprevisíveis. Mal voltou a estar do outro lado da linha, Ana disse, como que recitando um encantamento:

Como vês, os nossos pequenos sentem imenso a tua falta.

Não respondi porque queria agarrar-me àquele momento.

Ainda aí estás? - perguntou.

Ana, desculpa ter-te escondido tanto sobre mim. Compreenderei se quiseres...

O Ernie contou-me tudo por que passaram em pequenos – interrompeu. E também me mostrou as cicatrizes. Por isso, percebo porque inventaste tantas coisas sobre o teu passado. Confesso que ver as cicatrizes do Ernie me deu vontade de matar o teu pai!

Uma sensação de clímax fez-me baixar os olhos para o relógio.

Eram oito menos quatro minutos de quinta-feira, dia 12 de julho de 2012. De repente, tornou-se claro que tinha esperado toda a vida para que uma mulher me dissesse que me defenderia a mim e ao meu irmão até à morte.

Eras capaz de nos defender? - perguntei.

Ouve, Hank, não posso saber ao certo o que teria feito, mas estou convencida de que teria a coragem de, primeiro, denunciar o teu pai à polícia e, segundo, testemunhar contra ele. Terceiro, se nada disso funcionasse de o mandar para o outro mundo!

Ouvir Ana falar como quem expõe um plano traçado com raiva deu-me vontade de a abraçar com força.

Sabes, passei metade da noite acordada a imaginar como haveria de o fazer - prosseguiu ela animada. - Foi aquele suicídio que me contaste no outro dia, com cianeto, que me sugeriu como me livraria do teu pai.

Perante aquela sólida determinação na voz, senti a agradável e estonteante desorientação que nos possui quando seguimos por caminhos a elevada altitude, acompanhados lá em cima pelos pensamentos imprevisíveis, penugentos, esvoaçantes, que normalmente não conseguimos atingir.

Então, que é que achas? - perguntou.

O cianeto tem um gosto a amêndoa amarga. Ele cuspia-o.

Nada disso, misturava-o no rum.

O vaivém de intimidade entre nós era como brincar às escondidas, e foi assim que comecei a compreender o que nunca antes pusera em palavras: que o meu amor por Ana era também uma espécie de brincadeira de crianças.

Talvez resultasse - disse-lhe. - Mas teríamos de nos livrar do corpo também... e sem que ninguém visse.

Punha-te a ti e ao Ernie a tratar dessa parte.

Se calhar podíamos levá-lo até ao Black Canyon e atirá-lo lá de cima.

Não sei bem porque disse aquilo, mas pareceu-me ser essa a melhor opção.

Ouve, Hank - disse ela, mudando de tom -, há muitas coisas que agora fazem sentido e que antes não eram claras para mim. Mas o que não consigo compreender é porque pensavas que não acreditaria em ti.

O médico das urgências que tratou o Ernie da primeira vez em que o meu pai o feriu a sério estava convencido de que fora eu quem lhe cortara metade da orelha.

Esperei mais de trinta anos para protestar contra tal injustiça. E no entanto não gritei nem desatei aos berros, como sempre pensara que iria acontecer.

Como é possível que um médico pensasse uma coisa dessas? - perguntou Ana. - Tu não passavas de uma criança.

Porque foi o que o meu pai lhe disse. O médico jurou que me mandava para uma casa de correção se eu voltasse a fazer mal ao Ernie. E havias de ver o olhar que me lançou... Como se eu fosse um traste. Por isso, não podia correr o risco de contar a quem quer que fosse. Por isso, não podia correr o risco de contar a quem quer que fosse.

Não estou a ver o que é que uma coisa tem a ver com a outra.

Porque, se me pusessem numa casa de correção, não poderia proteger o meu irmão. Mais tarde ou mais cedo, o meu pai haveria de o matar. Tanto o Ernie como eu sabíamos isso. Ansiávamos por contar a alguém aquilo por que estávamos a passar, mas ao mesmo tempo sentíamo-nos aterrorizados com a ideia de alguém descobrir. Porque sabíamos que o encantador do meu pai acabaria por convencer do contrário a pessoa a quem o contássemos. Viver à espera de coisas más mata, Ana. Talvez seja até mais destrutivo do que as coisas más propriamente ditas.

E ficar calado foi a coisa mais difícil que fiz... que nós fizemos. E não ganhámos nada com isso. Nada!

Comecei aos soluços, mas mesmo isso não deteve a torrente de palavras que me corriam da boca:

E então, mais tarde, quando o meu pai desapareceu, não disse­mos nada do que ele nos tinha feito, porque a polícia local pensava que eu e o Ernie o tínhamos matado. Separaram-nos. Foi muito duro... realmente duro. Interrogaram-me durante sete horas a fio. Provavelmente ainda hoje pensam que o matei, acho eu. Não houve um dia, nestes últimos vinte e oito anos, em que o Ernie não se preocupasse com isso. Ainda hoje pensa que me podem extraditar e mandar para uma prisão no Colorado.

Ana disse-me que detestava falar de assuntos tão sérios ao telefone.

Vou aí ter! Não te mexas!

Assim que chegou, esvaziou a mochila em cima da colcha: quatro mangas da cor do pôr do Sol. No dia anterior tinha-lhe implorado que me trouxesse fruta tropical. Enquanto eu acariciava uma das mangas, sentou-se ao meu lado e perguntou:

Que mais precisas que eu saiba?

Fiquei estupefacto por a ouvir fazer uma pergunta tão perfeita, mas também tinha dúvidas quanto a confessar-lhe demasiado.

Ana, não sei por onde começar.

Deste-me a entender que ir à igreja era abominável. Podes começar por aí.

As pessoas que iam à igreja achavam que o meu pai era um cristão exemplar - expliquei a Ana. E de certo modo era. Às vezes era ele quem dirigia os cânticos.

Isso era importante? - perguntou ela, incrédula.

Era uma coisa que contava muito no sítio onde vivíamos. Ele tinha uma voz magnífica.

Cantei as palavras de abertura de Erguei-vos, Soldados de Cristo. Sem ironia. Como o cantara em criança, quando fazia o que podia para acreditar no ser invisível a quem toda a gente que conhecia orava.

Quem tem uma voz magnífica és tu! - disse Ana, pousando-me a mão na cabeça como que num ato de bênção.

Será que Ernie lhe tinha contado que havia uma rivalidade entre mim e o meu pai em relação a ele?

Tenho a voz do meu pai - confessei.

É por isso que nunca mais cantaste para mim? Gostava das tuas serenatas enquanto me esfregavas no banho. Era maravilhoso!

Como que aterrando num sítio nunca antes imaginado, apercebi-me de que o facto de não me permitir cantar para Ana não tinha nada a ver com detestar ou ter pavor do meu pai.

O amor é mais persistente do que o ódio - disse-lhe. Pareceu-me nesse momento uma descoberta assombrosa.

E o Gabriel... Também ama o teu pai? - perguntou Ana, hesitante.

Não, só eu é que mantenho o amor - retorqui. Não sei como sabia isso, mas sabia.

Fala-me do Gabriel- pediu-me, como se finalmente tivéssemos chegado ao nosso destino.

Não ias gostar do que tenho para te dizer.

Deixa-me ser eu a decidir isso.

Vendo a determinação no seu olhar, compreendi que subestimara Ana durante muito tempo - talvez desde o momento em que nos tínhamos conhecido.

Contei-lhe o que sabia, a maior parte de trás para a frente, ganhando velocidade, numa espécie de precipitação lunática, como um LP que tivesse mudado para 78 rotações. Mas ela não me interrompeu, mesmo quando as coisas não faziam sentido. Acabei por lhe contar a primeira vez em que ele viera ter comigo.

Quero falar com ele – disse-me quando terminei.

Estremeci como se ela me tivesse dado uma estalada. E depois recuei para o mais recôndito lugar dentro de mim.

Levantou-se e começou a pentear os cabelos para fazer um rabo de cavalo, como se se preparasse para uma nova batalha. Olhou para mim com insistência.

Tenho uma mensagem para o Gabriel.

Péssima ideia - repliquei.

Hank, preciso de falar com ele - repetiu.

Nem pensar! - disse. Porque qualquer conversa poderia dar-lhe uma visão muito diferente de quem eu era, como se nunca tivesse sido o homem que imaginara.

Passei na biblioteca e trouxe um livro sobre este assunto - disse Ana. - Ao que parece, tens a possibilidade de trazer G até ti sempre que o queiras. O Ernie disse que o G vem ter contigo quando imaginas muito sangue.

Não posso permitir que te encontres com ele. Cruzes, Ana, odeio essa ideia!

Já nos encontrámos, no nosso quarto.

Decidi ganhar a discussão, não respondendo.

Hank, tens de fazer isto por mim, por nós. É a única maneira de seguir em frente.

Contei os segundos. Quando ia em sete, Ana disse:

Se não for por nós, então, fá-lo pelos miúdos.

Não está certo meter os miúdos nisto! – resmunguei

E julgas que só faço o que está certo quando és tu que estás em jogo - Riu-se, cáustica. - Se julgas, estás muitíssimo enganado!

Ele vai ser grosseiro contigo. Pode troçar de ti.

E depois? Hank, eu sei proteger-me. Sabes muito bem. Tem mesmo de ser.

Continuámos a discussão mais uns minutos, mas sabia que já tinha perdido.

Imaginei Jorge a cair da bicicleta. Um pequeno acidente apenas, mas que lhe fez um arranhão no joelho, e a ferida deixou-me as mãos cobertas de sangue.

Quando voltei a mim, tinha os olhos banhados em lágrimas. Estava também ofegante, o que me deu a entender que Gabriel, da distância do nosso rancho ou algures nas montanhas, estivera a falar com Ana.

 

Ana contou-me que o meu corpo se tornara flácido. E que, quando me sentei direito, a irritação que me viu nos olhos não lhe era familiar.

Tens aí cigarros? - perguntou-lhe Gabriel.

Ficou com a impressão de que o meu sotaque era mais cerrado do que o costume e a minha voz, mais profunda.

Tu... tu não és o Hank - disse-lhe, e, apesar de querer dar às suas palavras o tom de uma constatação, elas saíram -lhe mais como uma pergunta. Estava sentada na cadeira branca de vinil, esforçando-se por adotar um ar despreocupado. Sentia-se distanciada de si, como se tivesse entrado por acaso na vida de outra pessoa.

Não, o Hank neste momento não esta em casa, querida – respondeu G – Ele depois volta. Tens aí cigarros?

Não, desculpa, mas não tenho – respondeu ela.

Para que serves tu, afinal? - perguntou G, franzindo o sobrolho.

Para pouca coisa, está-me a parecer.

Com o pronto reconhecimento da sua inutilidade, Ana estava à espera de arrancar um sorriso a G, mas em vez disso ele olhou-a com desagrado.

Querias que estivesse arrependido por te ter magoado, mas não estou!

Isso já não tem importância.

Então o que é que tem importância?

Ana inclinou-se para diante e juntou as mãos.

O Hank.

Gabriel olhou -a de cima a baixo e sorriu.

Tens umas belas mamas.

É muito atencioso da tua parte informar-me disso - respondeu Ana.

E o teu sotaque argentino é muy hermoso - disse G com uma piscadela de olho. - Aposto que o Hank gosta de te ouvir dizer palavrões quando estão a fazer sexo.

E quem é que não gosta? - replicou ela, fingindo que a conversa não a incomodava. - Mas já agora também te digo que não tens nada a ver com o que eu e o Hank fazemos na cama - acrescentou.

G deu um salto ao ouvir estas palavras.

Tenho a ver com tudo o que diz respeito ao Hank!

Ana desviou o olhar, incapaz de encontrar uma resposta. Começava a compreender melhor a razão por que nunca lhe falara em G. Ao fim de algum tempo, disse.

Se calhar podíamos voltar ao princípio.

Fazes o favor de não te armar em tia Olívia?

Ouve, pedi ao Hank que te deixasse vir ter comigo porque queria agradecer-te. Foi só por isso. Agradecer-me, porquê?

Para já, por teres defendido o Ernie aqueles anos todos.

E agora estás a ver se fico todo simpatia e sorrisos... lá porque me agradeceste. Pois olha, queridinha, não sou nada desse género. Isso é a especialidade do Hank. E, já agora, que vem a ser isso de pores uma madeixa roxa no cabelo? Os quarenta anos bateram-te forte, não foi? Ana desviou os olhos, intimidada pela expressão desdenhosa de G. As lágrimas subiam-lhe no peito.

Envelhecer não é nada fácil, pois não? - insistiu Gabriel.

Ana sentia que tinha de o pôr do seu lado se queria que ele ouvisse o que precisava de lhe dizer.

Gostava de ter estado contigo no Colora do - disse ela -, porque haveria de mandar prender o pai do Hank.

Acusado de quê?

Abuso de menores.

Parece-me pouco provável. Ele tinha-te levado à certa como levou toda a gente. Ias achá-lo um tipo encantador. Ias chupar-lhe a pila sempre que ele to pedisse.

Não me parece.

Ias odiar a mãe do Hank também... por não o ter protegido, a ele e ao Ernie.

Não quero julgá-la.

Oh, deixa-te disso! Para que serve a vida se não para julgar pessoas que não se compreende?!

O Hank, a bem dizer, quase não fala dela. E o Ernie nunca o faz. Gabriel respirou fundo e esfregou a mão na cara, parecendo subitamente inseguro.

Aquilo que mais lamento é não ter conseguido... Salvá-la - murmurou. - Gostava de ter compreendido como o fazer. - Fez um esgar horrível.

Nem sei porque te estou a dizer estas coisas. Devo estar maluco!

Ana queria pensar que ele lhe falava no seu fracasso porque também queria estar do mesmo lado da barricada.

Protegeste o Hank o tempo suficiente para ele me ter conhecido e criado o Nati e o Jorge dentro de mim - disse ela. - Mesmo que nunca venhas a confiar em mim, quero que saibas que te estou mais agradecida do que aquilo que és capaz de compreender.

Quando G levou a mão aos lábios, Ana reparou que ele tremia.

Repousou a cabeça na mão e desviou o olhar. Achava-o parecido com Ernie - perscrutando um horizonte distante à espreita de sinais de perigo. A posição dele, prostrada e torcida, dava-lhe a impressão de que as forças o abandonavam.

Quando G finalmente se voltou para Ana, disse:

Vai buscar-me um chocolate preto. O meu preferido é o de grãos de café com cobertura de chocolate Leysieffer.

Vou ver se encontro.

G lambeu os beiços como um gato.

Fumar um cigarro depois de uns grãos de café com cobertura de chocolate é a melhor coisa que conheço.

O ar deliciado que Ana lhe via nos olhos dava-lhe a sensação de que alguma coisa mudara entre os dois.

Não se pode fumar no hospital - disse ela. - Mas não vais ficar aqui muito mais tempo.

Mesmo assim, se realmente queres agradecer-me, traz-me um maço de Marlboro às escondidas!

Não me leves a mal, mas acho que é não é boa ideia... para o Hank, quero eu dizer. Pode... pôr em causa a recuperação.

O erro dele foi deixar de fumar.

O comentário pareceu a Ana tão sentido, ainda que politicamente incorreto, que soltou uma gargalhada.

Gosto de ver que me achas piada - retorquiu G num tom divertido.

Ana sentiu-se encorajada.

Ouve, queria que o Hank começasse a... falar com um terapeuta quando sair do hospital - disse ela.

Receio bem que não haja cura para o mal dele.

Qual é o mal dele?

Ama um homem que odeia, e odeia uma mulher que ama.

Ana achou que havia muito de verdade naquelas palavras.

Está irreversivelmente lixado - acrescentou G. -Quer dizer, se queres a minha opinião.

Só quero que ele se aceite como é e…me aceite a mim. Quero que ele seja a pessoa que quer ser. Será pedir de mais?

Sim, acho que é capaz de ser. Além disso, não me irei embora.

Nem eu quero que vás.

Isso é que queres!

Tu és parte dele desde os oito anos. Só quero que neste momento sejas bom para ele. E para mim. Temos passado um mau bocado ultimamente.

E quem não passou? Seja como for, não sei o que queres dizer com isso de ser bom.

Mas vais descobrir. És esperto.

Foi a vez de Gabriel se rir.

Gosto de ver que me achas piada - disse Ana.

Quando G sorriu, os seus olhos ganharam uma beleza profunda que parecia ser também a minha.

Estou a ver porque é que o Hank te escolheu - rematou. - Por isso, está bem, experimenta lá a psicoterapia. Diz ao Hank que tem a minha bênção... desde que não tente ver-se livre de mim, evidentemente. - Piscou o olho. - Não ia gostar nada do raio de uma brincadeira dessas!

 

Quando Ana inicialmente me contou a conversa que tivera com Gabriel evitou mencionar que lhe tinha dito que eu precisaria de ver um terapeuta. Agora, depois de me dar um beijo na testa, disse:

Queria que começasses a falar com um profissional.

Com um carpinteiro, por exemplo? - perguntei, necessitando de mais tempo para raciocinar. Não, com um psicólogo, por exemplo. Vais passar uns meses em casa antes de voltar ao trabalho; por isso, podias aproveitá-los para alguma coisa útil. E ver um terapeuta obriga-te a sair de casa pelo menos uma vez por semana.

Não tenho a certeza de que seja boa ideia.

Hank, isto não é um pedido – disse ela, mas num tom amável. Das primeiras vezes vou contigo, se achares que isso ajuda.

Não quero pôr em perigo o bem-estar de Gabriel. Não seria justo.

Ouve, Hank, só quero que fales com alguém.

Não sei bem - retorqui, uma maneira de dizer «não».

O Gabriel quer que tu vás.

Perguntaste-lhe?

Bem, achei que também lhe dizia respeito. Hank, julgo que ele compreende que tu não podes continuar a viver ao abrigo de mentiras. É demasiado cansativo. E acabarias por me afastar a mim e aos miúdos. Creio que mais tarde ou mais cedo também tu acabarás por ver que é assim.

Depois de Ana sair para ir buscar os miúdos, e enquanto meditava sobre o efeito que a terapia teria sobre mim, Ernie apareceu. Manteve-se, porém, no limiar da porta, o chapéu de cowboy na mão direita, a esquerda atrás das costas. Luzia-lhe um brilho astuto nos olhos.

Espero que não me tragas nenhum réptil - disse-lhe. Certa vez pusera a minha mãe aos guinchos ao presenteá-la com uma cobra pequena que tinha convidado para o almoço.

Não, nada de répteis desta vez - respondeu. - Mas trouxe-te isto!

E fez surgir um frágil raminho de flores silvestres azuis e vermelhas.

Tinha os dedos todos sujos, o que me lembrou que Ernie precisava de passar uma parte de todos os seus dias num universo sem governo humano.

Muito bonitas! - exclamei - Mas onde as encontraste?

Num terreno abandonado aqui perto do hospital. Vivem lá dois velhotes, numa barraca improvisada, mas deixaram-me apanhá-las.

Quando me pôs as flores debaixo do nariz, aspirei -as deliciado.

A Ana acabou de me ligar para me dizer que as coisas estavam novamente bem entre vocês - disse Ernie com satisfação.

Sim, obrigado pela ajuda.

Depois de ter arranjado uma jarra - de vidro azul - e posto as flores na mesinha de cabeceira, e enquanto lavava as mãos no pequeno lavatório do quarto, fiz-lhe um resumo das minhas apreensões sobre a questão do terapeuta. Deixando o pior para o fim, concluí:

Nunca resolverei caso nenhum sem a ajuda do Gabriel.

Quem te disse que ele tem de desaparecer?

Ernie, qualquer que seja o terapeuta a que eu vá há de querer fazer de mim alguém normal.

Ernie riu-se.

Hank, custa-me ter de te informar - disse ele, ainda a rir-se -, mas não devias alimentar muitas esperanças de alguma vez aterrares no Planeta Normal. Fica numa galáxia distante, e nunca ninguém na nossa família conseguiu sequer avistá-lo. - Pegou numa cadeira e inclinou -se para mim com um olhar intencional. - Aposto que o terapeuta vai querer que integres o G.

Cruzes, Ernie, que raio quer dizer isso?!

Pegou numa das mangas que Ana tinha trazido e apertou-a.

Não sei muito bem, mas o Darth Vader estava sempre a falar em integração... Acho que é uma maneira de aceitarmos até mesmo as coisas mais estranhas da nossa personalidade.

Quando Ernie andava na escola secundária, alcunhou o seu psiquiatra de Darth Vader por causa da sua voz grave e por não ter absolutamente nenhum sentido de humor.

Ouve - disse ele, como se eu estivesse a mostrar-me desnecessariamente difícil -, só tens de explicar ao terapeuta o que queres e o que não queres.

Posso fazer isso?

É isso que tens de fazer, grande parvo!

Enquanto tentava perceber se ele estava a dizer-me a verdade, Luci telefonou.

Desculpe, chefe - disse ela -, a pen do Coutinho não está no sítio que o senhor me indicou.

Não está no meu processo do assalto no Estoril?

Não. Tirei tudo para fora para ter a certeza. E também dei uma vista de olhos a todos os outros casos pendentes.

Merda! - Atirei os cobertores para o lado.

Quem a poderia ter levado? - perguntou Luci.

Algum dos nossos queridos colegas - repliquei, furioso.

O roubo de elementos de prova custaria o despedimento a um agente, não é verdade? - perguntou ela.

Era o que pensava... pelo menos até há pouco tempo - disse eu.

Este caso fê-lo mudar de ideias?

Se o agente estiver bem relacionado ou for importante para alguém do governo… - Deixei no ar o resto da informação.

Mesmo assim, teria de ser um agente disposto a correr o risco de uma investigação interna... Talvez alguém que quisesse apagar a pista de algum suborno que tivesse recebido do Coutinho. Ou o de algum amigo seu. Ou acha que a minha ideia é maluca, chefe?

Não, não é maluca. Mas acontece que possivelmente um agente poderia continuar a levar uma bela vida depois de uma acusação de corrupção, mas ficaria com a carreira definitivamente arruinada se fosse acusado de estupro.

Não estou a compreender, chefe.

Estou convencido de que deve haver fotografias comprometedoras na peno Ou, para ser mais preciso, julgo que quem a tirou dos meus ficheiros andava muito preocupado por pensar que era isso que lá poderia haver.

Que tipo de fotografias comprometedoras?

Do Coutinho com rapariguinhas menores. E com amigos. Maria Dias deu-me a entender que ele se vinha a olhar para o espelho durante as relações sexuais. E descobriu uma fotografia comprometedora do Coutinho, quando ele ainda estava casado com a mãe dela. Tenho a impressão de que dava muito uso à máquina fotográfica.

Quer dizer que há um colega nosso a querer proteger a reputação do Coutinho?

O mais provável é que esteja a proteger a reputação de alguém ainda vivo… alguém que teria de fugir à pressa do país se as fotografias fossem tornadas públicas.

Mas o senhor só encontrou fotografias de férias na pen e uma lista de possíveis subornos. Deve ter-me escapado algum ficheiro escondido. Devia ter posto o Joaquim a procurá-lo. Mas, como disse, pode ser que quem mandou roubar a pen não soubesse ao certo o que lá havia e tenha querido jogar à cautela.

Então e agora o que fazemos, chefe?

Não respondi. Estava a pensar no que Sottomayor me dissera sobre as transferências que Coutinho fazia a partir da conta da mulher. Por isso, parecia-me também possível que ele tivesse enviado e-mails sobre as suas escapadelas sexuais a partir do computador dela - e muito possivelmente com algumas fotografias comprometedoras anexadas. A pessoa que os recebera poderia também figurar nelas - e ter sido avisada por Coutinho do sítio onde poderia encontrar a pen em caso de emergência.

Disse a Luci que precisava de falar com Susana Coutinho e que depois voltava a ligar-lhe. Ao nono toque, Morel atendeu o telefone. Perguntou de imediato como estava de saúde, o que me deixou sensibilizado, mas, sob tudo o que disse acerca da minha estadia no hospital, jazia o pesado terror de saber que não poderia continuar a adiar o momento em que lhe diria que Sandi andava a ser abusada pelo próprio pai.

Algum dos meus colegas ligou para si para lhe falar nas provas que encontrámos sobre a Sandi e o pai?

Não, tudo o que nos dizem é que o senhor apanha um tiro.

Quando lhe contei, Morel disse numa voz indignada que Coutinho nunca faria mal à filha - e que não era nada ético da minha parte difamar um pai tão bom e carinhoso depois da sua morte.

Oiça lá - retorqui -, os nossos técnicos de laboratório fizeram o teste duas vezes para se certificarem de que o sangue que a Sandi tinha debaixo das unhas era mesmo do pai. Não há engano. O que significa que a Sandi tentou libertar-se dele quando estava em sua casa e não conseguiu. O Coutinho violou a filha em sua casa! E o que aconteceu lá explica também o que ela fez a seguir à Páscoa... A razão por que cortou o cabelo daquela maneira, por que deixou de comer... Explica até porque é que o Coutinho estava tão empenhado em não se separar de Susana.

Se isso é verdade, então ela...

É verdade! - interrompi. - E a Sandi não conseguia viver com o que tinha acontecido.

Decidi não lhe dizer que Sandi estava grávida. O choque que isso implicaria poderia pô-lo contra mim, pensei. Ou talvez não estivesse simplesmente disposto a destruir o pouco que restava da vida que ele e Susana tinham tentado construir. Quando lhe perguntei se lhe ia dizer alguma coisa sobre Sandi andar a ser molestada, respondeu:

Tenho de o fazer. Mesmo que não sei se ela compreende o que estou a dizer. - Explicou que Susana estava a tomar doses muitíssimo fortes de tranquilizantes.

Acha que ela poderá falar comigo por uns instantes? - perguntei. Tenho um assunto menos perturbador que preciso de tratar com ela.

Ela não diz coisa com coisa – replicou num tom sombrio.

Muito Dem, diga-me só se ela tem um computador.

Não, odeia computadores.

Mas tem qualquer outro tipo de dispositivo para enviar e-mails?

Ou que outra pessoa pudesse usar para guardar ficheiros sem ela saber?

Que quer dizer com «dispositivo»?

Um iPad, por exemplo.

Não, não tem nada dessas coisas.

Custa-me crer que ela nunca use um computador.

Usa o portátil da Sandi quando precisa de um.

O portátil dela?

Exatamente.

Depois de desligar, pedi a Ernie que me ajudasse a sentar-me, mas, assim que me pegou na perna para a passar por cima do lençol, contorci - me de dor.

Acho que é melhor ficares deitado - disse o meu irmão.

Raios parta, Ernie, ajuda-me só a fazer o que preciso de fazer!

Assim que me vi sentado na beira da cama, liguei a Luci e pedi-lhe para ir rapidamente à sala das provas dos nossos técnicos informáticos.

Boas notícias - disse-me quando me ligou de volta. - O Joaquim tem o computador da Sandi.

Passou o telefone ao técnico.

Oiça, Monroe, desculpe, mas ainda não tive nenhuma hipótese de dar uma vista de olhos aos ficheiros da miúda. Como você está fora de jogo, não me parecia haver grande pressa nisso. A boa notícia é que já acabei de ver o computador do pai dela. Mas não encontrei lá nada que tivesse a ver com subornos.

Tem aí consigo o portátil da miúda?

Está aqui à minha frente.

Ligue-o. Primeiro queria que procurasse um ficheiro com fotografias. Provavelmente está bem escondido. É capaz até de ser preciso uma password para o abrir.

Que tipo de fotografias devo procurar? - perguntou ele.

De homens feitos com rapariguinhas menores.

Que estão eles a fazer nas fotografias? - quis saber, num tom desconfiado.

Tudo o que não quereria que fizessem.

O Monroe acha mesmo que uma miúda de catorze anos ia guardar fotografias pornográficas no computador?

Estou convencido de que foi o pai que as escondeu lá. O sítio mais seguro do mundo. Nunca ninguém iria procurar no computador dela. Ninguém iria sequer suspeitar... nem mesmo a Sandi.

Posso demorar um bocado a localizá-las.

Joaquim, tem de encontrar isso agora mesmo. Comigo fora de jogo, a merda deste caso vai acabar tão enterrado que nunca mais volta ao de cima.

Vou fazer o que puder, mas... oh, chiça!

Algum problema?

Só um segundo... - Passado talvez um minuto, Joaquim voltou ao telefone. - Temos aqui um problema, Monroe. Tenho de lhe pedir que aguente aí mais um bocado.

Enquanto contava os segundos, ouvi Joaquim soltar uma enfiada de palavrões.

Estamos tramados! - exclamou, quando voltou a pegar no telefone. - O disco duro deve ter crachado!

Agora?

Não. Foi alguém que o bloqueou de propósito depois de o terem trazido para aqui.

Tem a certeza de que não tinha sido já apagado quando lhe chegou às mãos?

Absoluta. Abri-o para lhe dar uma vista de olhos rápida. E agora desapareceu tudo.

É fácil crachar um disco duro?

Monroe, não há nada que não seja fácil de fazer com um computador quando se sabe como! Tem a certeza absoluta de que todos os ficheiros desapareceram?

É isso que estou a ver. Não deixaram nada. Quem fez isto deixou-nos bem fodidos, Monroe. Onde é que guardou o computador?

No meu gabinete.

Fechado à chave?

Não, naquele armário que lá tenho... o senhor já o viu.

Joaquim, mande ver se o computador tem impressões digitais... até à última tecla. E depois ligue-me a dizer os resultados.

Os meus filhos e Ana chegaram daí a alguns minutos. Jorge saltou para cima de mim e mostrou-me o desenho que tinha feito com uma figura esguia com membros desengonçados e uns riscos em vez de olhos (eu) dentro de um quadrado amarelo gigantesco (o hospital), com pterodáctilos cor-de-rosa de guarda ao telhado (gaivotas). Enchi-o de beijos e elogios e esforcei-me em vão por deixar de pensar no portátil de Sandi. Seguidamente, Jorge e Nati montaram a mesa desdobrável com um tampo de feltro verde que os meus sogros lhes haviam emprestado. Ernie foi buscar mais cadeiras. Depois de se sentarem, os rapazes começaram o puzzle que tinham trazido com a ilha de Manhattan vista do espaço.

Enquanto os observava, pensei: «É esta a razão por que sobrevivi, é isto que conta na minha vida, é disto que me hei de lembrar quando for velho.» E no entanto toda a manhã me vi perseguido por pensamentos desesperançados. Cerca do meio-dia, Joaquim telefonou-me para me dizer que as únicas impressões digitais que tinha descoberto eram as de Sandi e dos pais. A posição das impressões deixadas por Coutinho mostrava que andara com o portátil da filha em mais do que uma ocasião.

Tenho mesmo muita pena, Monroe - disse ele. - Lixei tudo, não foi?

Não é culpa sua. A pessoa que nos quer impedir de descobrir as fotografias deve ter dado ordens ao seu cúmplice na polícia para dar cabo de qualquer cadeado que o senhor usasse.

Fonseca, Sudoku e Quintela foram visitar-me nesse fim de tarde. Ernie e Ana decidiram dar uma volta com os miúdos para eles poderem falar comigo à vontade. Acabámos na risota a troçar dos políticos que tínhamos.

Os meus colegas concentravam toda a ferocidade trocista no ministro-adjunto; acabara de se saber que tinha conseguido uma licenciatura em Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade Lusófona num único ano, em vez dos três normais. Fizera apenas quatro das trinta e seis cadeiras. Os administradores da universidade - alguns deles amigos e colegas do seu partido político - deram-lhe equivalência a trinta e duas cadeiras através da «atribuição de créditos a experiência profissional». Ao todo, pagara 1777 euros pela inscrição e propinas, uma pequena fração do que um estudante pagaria para frequentar todas as cadeiras normalmente exigidas.

Acabámos a fazer uma lista da «experiência profissional» e das tais equivalências: Por ter comido comida chinesa nas duas vezes que foi ao Restaurante Mandarim no Casino Estoril, tinha recebido os créditos necessários para a cadeira de História e Cultura Asiáticas. Por conduzir o BMW descapotável quando ia para o emprego na Assembleia da República, passara em História Alemã Contemporânea. Por ver o DVD de Avatar com os sobrinhos...

Retirando-me da brincadeira por uns momentos, apercebi-me de que teria preferido um minuto de silêncio - partilhado por toda a gente em Portugal - como forma de protesto contra o género de corrupção e de tráfico de influências que o levara ao poder. Ou um desfile com velas acesas pela Avenida da Liberdade, uma cerimónia fúnebre pela pequena mas esperançosa democracia em que pensávamos que Portugal se tornaria um dia.

Ao mesmo tempo, apercebi-me de que o nosso sistema de filtragem estava gravemente avariado: em vez de rejeitar as pessoas mais corruptas, o aparelho político permitia -lhes subir até ao topo.

Pouco antes de os meus colegas saírem, pedi -lhes que estivessem atentos a Luci e que me dissessem alguma coisa se ela tivesse algum problema com Romão. Depois de ficar novamente sozinho, pus-me a cogitar se a pessoa que ordenara o atentado contra mim seria um destes oportunistas inescrupulosos e provincianos em fatos chiques que agora governam o nosso país. E se viveria tão alto que nunca conseguiria chegar a ele.

Ao fim do dia, depois de a minha família ter voltado para casa, vi surgir no umbral da porta um visitante inesperado. Terminara já a hora de visita, eram quase nove, mas disse-me que tinha conseguido passar pelos «cães de guarda» na receção porque era amigo do chefe do departamento de cirurgia, que conhecia através do antigo presidente da Câmara de Lisboa, e que muitas vezes jogava golfe com ele no...

Sottomayor mostrara-se, na ocasião, espantoso a referir nomes de personalidades conhecidas, mas não me importava. Parecia-me mais um dos seus floreados aristocráticos - o equivalente verbal ao lenço de caxemira vermelha e amarela que usava de modo tão elegante em volta do pescoço.

Tinha-me trazido um sortido de trufas da Godiva do tamanho de uma caixa de Monopólio. Pensei que deveria ter o poder de ler a mente até me confessar que levava sempre chocolates aos amigos hospitalizados.

Temos de garantir uma dose extra de açúcar e de gorduras quando nos sentimos vulneráveis explicou, num argumento de tal modo oposto ao conselho que Ana e Ernie me tinham dado que me provocou uma boa gargalhada.

Depois de abrir a caixa, inclinou-a para me exibir a categoria da escolha.

Tire uma - incitei-o.

Terei eu a coragem? - perguntou, levantando as sobrancelhas com um ar malandro.

Animei-o com um aceno da cabeça, e ele enfiou uma trufa na boca.

Mastigou -a com movimentos laterais, como uma ovelha. Fingindo um desmaio, disse:

Tive sorte, sabia a whisky!

Pousou a caixa em cima da mesinha de cabeceira e sentou-se na cadeira junto à cama. Coçou o queixo e encolheu os ombros como que sem saber o que fazer, e por isso disse-lhe que os hospitais eram uma chatice e que não se sentisse obrigado a ficar. Para minha surpresa, apontou-me um dedo e disse num tom preocupado:

Insisto absolutamente em que o senhor tenha mais cuidado consigo! Pregou-nos a todos um grande susto.

Era reconfortante vê-lo preocupado comigo, embora não acreditasse inteiramente nas suas palavras. Era como se ambos tivéssemos concordado em participar numa pequena farsa inofensiva, destinada a levar-nos a crer que o mundo continuava a dar algum valor à consideração e às boas maneiras. Um homem que vivia no castelo estava a mostrar-se gentil para com a plebe. Ninguém poderia culpá-lo por tal ato de generalidade, nem sequer eu.

Vou fazer o que puder para ficar longe das balas a partir de agora ­ disse eu.

Não quero que vá para as ilhas Caimão ou para qualquer outro sítio longe de sua casa. Retiro a minha oferta para lhe pagar o avião.

Fica devidamente registado.

Quanto tempo vai ficar de baixa?

Uns meses. Vou precisar de fazer fisioterapia depois de sair daqui... Disseram-me que posso ficar a coxear durante um bom bocado, talvez para sempre. Os músculos foram atingidos, e o osso do tornozelo pode nunca mais voltar a ser o que era.

Fez uma careta.

Dá-me a impressão de que, nestes últimos tempos, há um ambiente de violência predatória nas ruas de Lisboa - declarou. - Tem passado no Rossio à noite ultimamente? Os rapazes que andam por ali têm ar de quem é capaz de nos cortar a garganta por cinquenta cêntimos.

Disse-lhe que as estatísticas mais recentes mostravam que o nosso índice de mortes violentas descera em relação ao ano anterior, e que provavelmente ele estava a reagir à obsessão dos media com crimes violentos, mas ele rejeitou com um gesto da mão os números que recitava e disse:

Tenho uma coisa mais importante para lhe dizer. De facto, é essa a razão da minha visita.

Recostando-se e cruzando as pernas, falou-me numa operação que fizera a um cancro da pele em Zurique sete anos antes. Ao recuperar consciência, passara os olhos pelas dezasseis jarras de rosas e crisântemos que o rodeavam no quarto.

O meu filho mais velho, muito impressionável, tinha-as contado.

Compreendi que estava encurralado numa vida que detestava. No dia em que me deram alta do hospital, disse à minha mulher que queria o divórcio e mudei-me para o meu escritório. Estávamos casados há vinte e oito anos, Sr. inspetor-chefe. E, embora ache que estes últimos sete anos sem ela têm sido os mais felizes da minha vida, compreendo agora que não precisava de me dar ao trabalho de me separar.

Fixou-me de uma maneira que me levava a crer que estava à espera de que lhe perguntasse porquê, o que fiz. Para minha surpresa, achei agradável e reconfortante fazer o que ele queria como receber um bom papel numa peça engraçada.

Não precisava de me dar a esse trabalho porque a querida da minha esposa tinha-se desapaixonado há anos - explicou-me num tom divertido - e estava-se nas tintas para os meus casos. Mas as pessoas podem ser animais perversos, e, por isso, quando pedi o divórcio, ela jurou-me que haveria de dar cabo da minha vida. Acabou por me levar um bom bocado mais do que aquilo a que tinha direito. E disse a todos os nossos amigos que eu abusara dela emocionalmente. Nem sequer sabia ao certo o que ela queria dizer com aquilo, mas eles sabiam. Muitos nunca mais voltaram a falar-me e, ainda por cima, tive de ouvir os insuportáveis sermões dos meus dois filhos, lamentavelmente moralistas. Ainda assim, as mentiras ficaram-lhe caras – acrescentou, franzindo os lábios e sorrindo, maliciosos, como se se julgasse capaz de se safar de uma acusação de crueldade premeditada.- Arrastei-a pelos tribunais durante quase quatro anos. Acabou por passar um inferno!

A minha expressão deve ter-me denunciado. Apontando-me a bengala, Sottomayor disse:

Pela maneira como ela me descreveu ao juiz, parecia o coronel Gaddafi! Uma vergonha! - Baixando a bengala, inspirou fundo para se acalmar e prosseguiu numa voz contrita: - Mas tem toda a razão, podia ter agido de maneira mais nobre. Seja como for, o que lhe queria dizer é o seguinte: não tome grandes decisões antes de estar fora do hospital pelo menos há dois meses. Dê-se tempo. Relaxe. Esqueça os problemas importantes da vida. Não se preocupe com quem ganha e com quem perde neste triste pequeno país que é o nosso. Andam obviamente por aí homens muito perigosos e violentos que não se importam de atingir bons polícias como o senhor. Por isso, aproveite a companhia dos seus filhos. Vá até à Madeira e trabalhe para o bronze. Deixe os seus colegas tratarem dos maus.

Vou fazer por isso.

Assim é que é.

Antes de sair, deu-me uma palmadinha no ombro como se fôssemos combatentes do mesmo pelotão e rematou:

Enquanto o seu pirilau continuar a funcionar, não tem com o que se preocupar.

Parecia uma espécie de comentário paternal. Ou talvez assim eu o quisesse entender.

O meu pirilau está em forma – retorqui, permitindo-me um sorriso - , mas talvez seja a única parte nessas condições.

Ele levantou o braço e fechou o punho à maneira portuguesa para indicar uma ereção e disse: Se for capaz de o fazer feliz a si e à sua mulher duas ou três vezes por semana, o resto não é mais do que a cobertura do bolo.

 

Na manhã seguinte, uma sexta-feira, acordei com o cobertor no chão e um gosto a chocolate na boca. Eram seis horas e poucos minutos.

Esbracejando para encontrar uma posição que aliviasse a tortura da perna, descobri que Ernie já tinha chegado. Estava sentado numa das duas cadeiras do quarto, um livro aberto em cima dos joelhos.

Quando raio chegaste? - perguntei.

Há bocadinho. Não conseguia dormir. - Levantou-se e veio para junto de mim, poisando-me a mão na cabeça. - Como estão as dores?

Talvez um pouco melhor - respondi.

Pensei que ias deixar de mentir.

À Ana. A ti, posso dizer o que me vem à cabeça.

Ernie tapou-me com o cobertor e estendeu-se a meu lado.

Se isso te faz bem, podes ser o mais chato que quiseres - respondeu, sorrindo como sempre faz quando tem a certeza de estar a ser adorável.

Até podes berrar comigo e chamar-me nomes. Não me importo.

É uma proposta generosa, Ernie, e talvez venha a aproveitá-la mais tarde. Mas não tinhas de voltar para o teu jardim? As rosas e as azáleas devem estar preocupadas contigo.

Queria que se fosse embora, para poder finalmente chorar; a lenta e regular acumulação de sofrimento físico - e a frustração por algumas das provas mais importantes se terem esfumado estava simplesmente a pesar-me de mais.

A Luísa tem regado tudo - disse ele. - Não te tinha falado nisso? Luísa era uma vizinha, uma professora reformada.

Ernie, não digas à Ana, mas as dores pioraram. E estar aqui enfiado dá cabo de mim.

Espera aí, que eu volto já! - declarou, e saiu a correr.

Daí a vinte minutos, apareceu com o médico responsável pela minha recuperação. O Dr. Amorim não fizera a barba nessa manhã e tinha ainda papadas debaixo dos olhos.

Uma noitada? - perguntei.

Jantar em casa da minha sobrinha. Vai casar-se. Sete pratos, e ainda não digeri o pudim flã. Então qual é o problema, Sr. inspetor chefe?

Depois de ter explicado, disse-me que as dores eram normais dadas as circunstâncias, mas receitou-me um medicamento mais forte. Daí a instantes, uma enfermeira trouxe-me os comprimidos, e, passados uns quarenta minutos, saí do corpo sem esforço e flutuei para fora de uma janela imaginária por trás de mim. O vento tépido volteando em meu redor ajudou-me a subir o bastante para ter uma vista espantosa sobre uma cidade de telhados de telha vermelha e jardins ocultos, que me parecia muito mais real e bonita do que aquela onde eu normalmente vivia.

«Algures dentro de nós, estamos sempre a flutuar,» Foi a conclusão a que cheguei enquanto vogava acima da Torre de Belém. «E, se estamos sempre a flutuar, talvez outras coisas até menos prováveis sejam também possíveis.»

Nesse fim de tarde, quando contei à minha mulher e aos meus filhos o que tinha descoberto, eles riram-se; mantive em segredo que estava a falar absolutamente a sério, apesar de ter decidido que, mais tarde, quando estivesse em casa, partilharia a verdade com eles, como parte da celebração da convalescença.

Ernie chegou na manhã seguinte, novamente ao princípio do dia, desta vez com Jorge ao colo, vestindo o seu pijama do Piu-Piu. Acordou-me ao entrar.

O Dingo obrigou-me a prometer-lhe que o trazia comigo - murmurou.

Colocou cautelosamente o miúdo na minha cadeira, tirou o cobertor azul, o seu favorito, de dentro de um saco de viagem que tinha trazido e aconchegou-o, deixando-o com o aspeto de uma múmia egípcia.

Quando Rosie pôs a cabeça fora do saco, sobressaltei-me. Como ela se preparava para ladrar, apontei-lhe um dedo ameaçador.

Nem penses! - exclamei.

Não podes trazer um cão para aqui! - disse num grito abafado ao meu irmão, embora ficasse encantado por fazer parte de uma conspiração envolvendo um cãozito, um miúdo de sete anos e um cowboy. O caos orquestrado de Ernie era como estar de novo em casa.

Claro que posso - retorquiu o meu irmão, tirando Rosie do saco.

Portugal. - disse ele, abrindo os braços como se para abraçar o país inteiro - é o país onde as regras não passam de sugestões!

A cadelita torcia-se toda e gania, tão excitada que a cauda batia no braço de Ernie.

Que é isso aí? - perguntou o homem que agora partilhava o quarto comigo, por detrás da cortina que separava as camas.

Tinha-se apresentando na noite anterior. Chamava-se Duarte e era canalizador.

Desculpe - respondi. - O meu filho mais novo e o meu irmão vieram ver-me.

Um deles parece um cão - comentou.

Deve ser o meu filho. É arraçado de caniche.

Os portugueses, em geral, não compreendem o meu tipo de humor, mas Duarte riu-se a valer, o que me encorajou. E de um momento para o outro senti-me com disposição para galhofa. Apercebendo-se disso, Ernie agarrou as patas dianteiras de Rosie e pô-la de pé em cima da cama como um cão de circo. Ela dançou, esforçando-se por me beijar. Eu esquivava-me ao mesmo tempo que imitava Frank Sinatra entoando I've Got You Under My Skin.

Jorge esgueirou-se para fora do cobertor, pôs-se de pé e veio meio sonolento até junto de mim, inclinando-se para me dar um beijo. Cheirava a sono e a couro antigo.

Andas outra vez a levar para a cama a tua bola de futebol? - perguntei.

Confirmou com um aceno de cabeça e deitou os braços à minha volta. Ernie soltou Rosie, e ela desatou a lamber-nos como se não nos víssemos há anos, o que provocou as risadinhas de Jorge e o fez tapar os olhos com as mãos, por não gostar que Rosie o beijasse aí.

Daí a pouco, enquanto Ernie, Jorge e Nati andavam a passear Rosie no Jardim da Estrela, Luci chegou. Ana estava sentada a meu lado. Depois das apresentações, Luci lançou-nos um sorriso tímido e estendeu-me uma pequena caixa branca.

Doces de... de amêndoa - disse hesitante, talvez receando que a minha mulher pudesse não ver com bons olhos um gesto de amizade vindo de uma colega jovem e bonita. Levei imediatamente à boca um dos doces, dizendo-lhe que era delicioso.

E não têm colesterol - comentou Luci.

Acha que estou gordo? - brinquei.

Em vez de lhe amenizar as preocupações, o meu comentário deixou-a sobressaltada.

Oh, não não era isso que queria dizer. Estava só a…

Luci, está tudo bem – interrompeu Ana. – Está a parecer-me que vai ter de aprender a não prestar muita atenção ao chamado sentido de humor do meu marido. - Mandou-me um beijo na ponta dos dedos e acrescentou: - O Hank às vezes pode ser demasiado encantador, não sei se me entende.

Graças às críticas enternecidas que me fez nesse dia, a minha mulher conseguiu conquistar a amizade de Luci. Depois de Ana ter saído para ir tomar um café, a minha jovem colega puxou uma cadeira para junto da cama. Quando eu quis saber como estava a avançar o caso Coutinho, ela confirmou que Romão não fizera nada desde que eu fora ferido.

O desespero que me abalou parecia associado às permanentes dúvidas que me assaltavam quanto à plena recuperação da minha perna e do ombro. Só me apercebi da esperança que existia dentro de mim no momento em que ela desapareceu.

Sentindo que a conversa estava agora nas suas mãos, Luci apontou para o livro em cima da mesinha, Deaf People in Hitler's Europe:

Se calhar era melhor ler alguma coisa menos deprimente - disse ela.

Não o acho de modo nenhum deprimente - assegurei.

Não?

Luci, sabia que os nazis começaram a esterilizar os surdos em 1933, logo a seguir à eleição de Hitler? E que era proibido aos cristãos surdos usarem linguagem gestual em público com os amigos que fossem judeus?

Não, não sabia. E o senhor gosta de ler livros que o deixam enervado e furioso, chefe?

A raiva é uma emoção pouco valorizada, Luci. Mas tem - me sido muito útil em diversas ocasiões. - Devia ter acrescentado: «E pressinto que, para impedir que este caso seja encerrado para sempre, vou precisar de toda a raiva que conseguir.»

Eu, de todas as vezes em que precisei da raiva, tive a sensação de não ter que chegasse confidenciou - me Luci. Lembrei-me de toda a profundidade que existia escondida nela. E da sua vontade de que me apercebesse disso.

Uma hora mais tarde, enquanto dormitava para esquecer as minhas preocupações, um sujeito encorpado bateu à porta do quarto. Vestia um fato cinzento enorme e amarrotado, com uma gravata de um azul escuríssimo - perfeito para o dono da agência funerária de uma vilória numa série de televisão americana. Ana regressara um pouco antes. O homem apresentou-se como sendo Lourenço Pires e disse-nos que era da repartição de Recursos Humanos da Polícia Judiciária. Tinha os sobrolhos pesadamente transpirados e a respiração ofegante de um homem a avançar rumo a um ataque cardíaco.

Sentou-se a meu lado e lançou-se numa palavrosa explicação acerca da política oficial da polícia em relação aos agentes feridos no cumprimento de serviço. Durante todo esse tempo ia batendo com uma esferográfica no joelho. Tendo em conta os cortes de ordenado dos dois anos anteriores, interpretei aquilo como um sinal ameaçador.

Fui despedido? - interrompi.

Não, claro que não.

Quer dizer que vou continuar a receber o meu ordenado enquanto estiver de baixa?-perguntei O limite são dez anos. E, mesmo depois disso, se tiver uma recaída de saúde, pode vir a receber novo subsídio.

Então, quais são as más notícias que me traz?

Não há más notícias - garantiu ele. - Vai receber a assistência a que tem direito.

Prosseguiu as explicações, e tudo me parecia razoável, mas, mal ele saiu, Ana disse que apostava cinquenta euros em como ia receber pelo correio uma carta - limitando as minhas regalias - dentro de um mês.

Aceitei o desafio e trocámos um aperto de mão a selar a aposta.

Dava um título bastante mau: «Polícia atingido com dois tiros em serviço perde os seus direitos» - declarei. - Não iam correr esse risco.

Hank, por onde tens andado? Já ninguém no governo liga patavina à má publicidade. Já estão habituados! Limitam-se a fazer contas de somar e, se a soma se tornar elevada de mais, começam a apagar coisas, incluindo pessoas como tu e eu. - Lançou-me um olhar duro. ­Preferia que me pagasses os cinquenta euros em dinheiro, se não te importares!

A minha última visita do dia foi o inspetor-chefe Romão. Chegou ao fim da tarde com um boião de mel de eucalipto. Entregou-mo numa pose rígida, a cabeça levantada, como se usasse uma coroa invisível. Quando passámos aos assuntos sérios, expliquei -lhe que acreditava que quem tinha mandado alvejar-me pretendia afastar-me da investigação. Fiz tudo por purgar a voz de qualquer emoção, pois o modo como Romão recuou a cadeira era a sua maneira de me lembrar de que se sentia pouco à vontade com quaisquer demonstrações de fraqueza. Ainda a minha explicação não durara cinco minutos e já ele lançava olhadelas ao relógio de pulso, o que me enervou bastante. Só Deus sabe se terei usado o conjuntivo corretamente uma única vez. Romão disse-me - como eu esperava - que nos registos bancários de Trigueiro não havia indícios de quaisquer pagamentos que pudesse ter recebido para me atacar. Os registos de chamadas telefónicas também não haviam revelado nada de suspeito. E não tinha nenhuma pista sobre a pessoa que assaltara a casa de Coutinho.

As coisas não estão muito boas para nós - concluiu.

«Nós?» A sua linguagem corporal e os seus modos diziam-me que os meus ferimentos não lhe importavam minimamente. Compreendendo que Romão estava já convencido de que nunca iríamos descobrir nada sobre quem ordenara o ataque, mudei de assunto para a urbanização ilegal de Coutinho no estuário do Sado. Antes de sair, apertou-me a mão com vigor, como que para me instilar confiança. Para manter viva a farsa, assegurei-o de que lhe enviaria um sumário das minhas notas nos próximos dias.

Um minuto ou dois depois de ele ter saído apressadamente do quarto, surpreendi-me a pensar em português acerca do dilema em que me via. Usar todos aqueles adjetivos de muitas sílabas que me soavam estranhos aos ouvidos - desorientado, transtornado desapontado - parecia-me uma forma de automedicação, pois pensá-los numa língua estrangeira como que separava esses sentimentos de mim e, por isso mesmo, dava-lhes menos poder. No entanto, tomei uma dose reforçada de analgésicos e daí a meia hora. Enquanto Ana me acariciava a cabeça e me falava num médico brasileiro e na mulher que tinham comprado quatro jarras das mais caras na galeria, flutuei para fora da janela imaginária na minha cabeça. Levei Ana comigo, mas não tardou que o sentido do que ela me dizia se perdesse por completo.

Às duas da manhã, acordei com o som do gelo a estalar sob os passos de alguém. O meu coração desatou a bater desabalado, como que correndo em direção ao ponto de exclamação sempre à minha espera na orla dos receios. Acendi a luz, mas não estava ali ninguém.

Voltando a estender-me, um sentimento de segurança, perfeito, quieto e silencioso - de estar mais seguro do que alguma vez estivera -, inundou-me como um líquido morno. A minha vida era real. E a voz suave de duas mulheres que conversavam no corredor era a maneira de a noite me dizer que tudo estava bem.

Calmo é o riacho que tanto ama as margens como as terras aonde nunca chegará.

Escrevi o haiku na mão enquanto me erguia - sem esforço - na minha própria alegria. Não captava exatamente o que eu sentia, mas andava lá perto.

Vivi sentimentos de êxtase tranquilo intermitentemente durante os dias que se seguiram, a maior parte das vezes a meio da noite, habitando as suaves ilhas de ruído no recife quente à minha volta. Nessa duas noites extraordinárias, compreendi claramente que a perda era a voz que o passado sempre usara para atrair a minha atenção. Mas via agora que era capaz de mudar a maneira como ele falava comigo.

Na terceira tarde, Ana sentou-se na minha cama e falou-me num dançarino transexual que tinha entrevistado por telefone nessa manhã. Ouvi-la falar da história do ballet e de outras coisas de que eu não sabia nada era como ser salvo de um naufrágio. Foi assim que ao longo da minha vida fui compreendendo que preferia ouvir a falar.

Quando finalmente se calou, disse-lhe: «Ter-te conhecido foi a coisa mais excitante que alguma vez me aconteceu», porque não podia deixar que passasse mais tempo sem lhe dizer uma das coisas que a alegria inesperada me tinha ensinado.

Ela abraçou-me e beijou-me as mãos, aspirando-as com os olhos fechados, como se isso lhe recordasse momentos há muito passados, o que provava mais uma vez que podia confiar que ela faria o que era preciso fazer, mesmo quando eu não tinha a mínima ideia de que seria.

No dia seguinte - quarta-feira, 18 de julho, nove dias depois da minha operação -, fui transferido para um quarto particular com janela. A vista era modesta: uns prédios de apartamentos caídos em desgraça e um café desmazelado. Mas que emoção ver o céu! Estava ansioso por dar uma olhadela a todas aquelas vidas de desconhecidos, como Jimmy Stewart em Janela Indiscreta, mas os moradores mantinham os estores rigorosamente fechados.

Os sacanas daqueles egoístas nunca os abrem! - queixei-me a Ana nessa tarde.

Trezentos anos de bufos ao serviço da Inquisição e da ditadura devem ter tornado os portugueses um nadinha cautelosos - fez- me ela notar.

Ana estava a descascar uma manga e tinha-me posto um pedaço na boca.

Onde estaremos daqui a vinte anos? - perguntou.

Se os miúdos viverem em Portugal, nós também aqui ficaremos.

E se já tiverem emigrado? - perguntou ela com um ar triste. - Não gosto nada de não ser capaz de prever o futuro. - Encostou-se a mim.

A incerteza não se dá bem comigo.

Percebi nesse momento que lhe custara muito mostrar-se tão forte desde que eu fora ferido. Massajei-lhe os ombros, como ela gostava, e não tardou a fechar os olhos. Num sussurro disse-lhe que podia passar pelas brasas, e em breve adormeceu.

Para festejar poder ver o mundo exterior, decidi não tomar analgésicos. Foi numa das ocasiões em que me debatia contra o atroz latejar na perna que me surgiu o primeiro pensamento útil sobre o caso Coutinho em dias: a mãe de Maria Dias poderia não ter queimado a fotografia comprometedora do marido com as rapariguinhas. Era possível até que a tivesse usado para o ameaçar, a fim de se assegurar de que ele nunca mais abusaria da filha ou de mais alguém. Era, pelo menos, o que eu teria feito.

Calculei que um dos homens na fotografia pudesse ter continuado amigo de Coutinho estes anos todos - e ter encomendado o ataque à minha pessoa. Mas, mesmo que assim não fosse, obter a fotografia incriminadora possibilitar-me-ia identificar alguns homens que deviam estar fechados algures onde não pudessem deitar mão a meninas menores de idade.

A Sr.ª Dias mostrou-se surpreendida por ouvir alguém falar-lhe em português ao telefone, mas, depois de me ter identificado, disse-me que Monsieur Morel descobrira o seu número e lhe ligara uns dias antes. Quando lhe expliquei que tinha interrogado a filha uma semana antes, ela gaguejou:

Mas... eu... eu pensava que me tinha dito que estava em Lisboa...

E estou.

A minha filha não esteve em Lisboa neste verão, Sr. inspetor.

Não se preocupe, minha senhora - disse eu. - Não quero prendê-la. De qualquer modo, agora que Maria está em França, não corre perigo.

Estou a dizer-lhe a verdade, a minha filha saiu de Lisboa quando começaram as férias de verão e não saiu de Paris.

O que posso dizer-lhe para a convencer de que não tenciono prendê-la? Agora já compreendi que há questões muito mais sérias em jogo.

Oiça, passei um fim de semana com ela em Paris há três semanas.

Mas eu estive há pouco tempo no apartamento dela em Lisboa.

Estive a interroga-la sobre o assassinato o seu ex-marido.

A única coisa que me ocorre é que o senhor deve ter interrogado outra mulher.

A senhora é a mãe de Maria Dias? - perguntei.

Sou.

E foi casada com Pedro Coutinho?

Fui.

E tem um filho chamado Pierre?

Não quero falar de Pierre consigo! - cortou ela. - Em caso algum!

Não queria criar nenhuma dificuldade, minha senhora, e não faço ideia do que a sua filha lhe disse quando esteve consigo.

Pode ser que até a tenha convencido de que passou o verão todo em Paris. Mas preciso de saber uma coisa muito importante. Ainda tem a fotografia que ela encontrou do seu marido com...

Oiça, não lhe vou dizer nem mais uma palavra sobre a minha filha - interrompeu ela, com uma tão incontestável e impaciente certeza que percebi que não tinha a menor hipótese de a fazer mudar de ideias.

Ao fim do dia, passei para o computador portátil as minhas notas e transferi-as - juntamente com todos os ficheiros das férias de Coutinho - para uma peno Ana concordou em entregá-las na sede da Judiciária.

Na manhã seguinte, quando liguei para o Liceu Francês, o vice- diretor foi buscar a ficha de Maria Dias. Surpreendeu-me ao informar-me de que ela tinha começado a dar aulas há quatro anos e não oito como me dissera -, o que provavelmente significava que viera para Lisboa atrás de Coutinho, pois ele mudara-se mais ou menos na mesma altura. Também mencionou que Maria Dias fora uma arque ira de prestígio internacional e que estava a treinar duas alunas do décimo segundo ano para os campeonatos nacionais. A professora Dias disse-lhe também que tinha sido o pai a ensiná-la a manejar o arco e a flecha.

Foi nesse momento que compreendi porque é que Coutinho lhe chamava Diana quando ela era pequena. Maria Dias não quisera que eu percebesse, mas provavelmente o pai dera-lhe aquela alcunha ternurenta graças aos seus talentos: Diana era o nome da deusa grega da caça!

 

Deram-me alta no dia 22 de julho, há vinte e um dias, depois de quase duas semanas no hospital. Puseram-me gesso no calcanhar esquerdo. Como não podia fazer força nenhuma no pé, estava completamente dependente das canadianas para andar de um lado para o outro. Assim que entrei em casa, Ana ajudou-me a tirar o sapato e a meia direitos, e o pé descalço pôs-se a ler a textura familiar do nosso velho chão de tacos e a traduzir o que ia descobrindo num tão profundo alívio que poderia conter todo o amor que alguma vez sentira.

Ana entrelaçou a mão na minha e conduziu-me de divisão em divisão como uma rapariga mostrando a um amigo há muito perdido o seu esconderijo secreto. Depois de eu ir ao quarto de banho enxugar os olhos e lavar a cara, Nati ajudou-me a enfiar a minha camisa de dormir favorita, Jorge entregou-me o Francisco e desci as escadas a coxear, apoiando-me em Ana mais do que o necessário porque precisava de que ela soubesse que confiava que ela me ajudaria a refazer a vida. Dormitei intermitentemente o dia todo no sofá às flores na lavandaria, porque do outro lado da rua há um antigo prédio com uma fachada de azulejos azuis que refletem de tal modo a luz do sol que lhe chamamos a Super- Nova. Uma casa feita de luz é difícil de conseguir, mesmo em Lisboa, e ela lembrava-me toda a beleza quase esquecida que me esperou em casa pacientemente, nunca pedindo nada em troca - enquanto estivera no hospital: os lápis amarelos de Ana, trincados, o cesto de vime de Jorge e Nati, a minha almofada de penas...

Olhando para o Largo de Santa Marinha da janela da sala de estar, sentia-me grato por ver o mundo reduzido a um simples retângulo de cimento à sombra de exatamente dez lodoeiros e iluminado por seis esbeltos candeeiros. João, um menino que morava na casa ao lado, brincava, com um cão corgi que não reconheci, na parte reservada às crianças, que os vizinhos tinham pintado com flores há uns dois anos. Haveria no mundo lugar melhor para um miudito e um cão partilharem as mil e uma maneiras de uma bola de ténis voar pelos ares?

Na segunda tarde que passei em casa, Ernie decidiu ir recolher sementes no Jardim Botânico e levou os miúdos porque – sem mais nem porquê – Morel tinha telefonado a perguntar se ele e Susana Coutinho podiam passar para tomar um chá. Quando tocaram à campainha, Ana estava ainda no andar de cima, a mudar as calças de treino e a T-shirt que trazia. Susana entrou primeiro, vacilante, como se temesse que algum passo em falso pudesse fazer com que o chão cedesse, a mão direita pronta a apoiar-se na parede. Vestia uns jeans coçados e sandálias, e uma blusa branca de camponesa que a cunhada meio hippie lhe deveria ter emprestado. Não tinha posto maquilhagem nem Báton. A voz estava rouca e hesitante; os olhos, apagados e cinzentos. Pelo modo como se esforçara por sorrir antes de nos cumprimentarmos, percebi que ainda não saíra de junto da campa da filha. Será que algum de nós tinha o direito de lhe pedir para estar em qualquer outro sítio?

Estendeu-me uma grande caixa cor-de-rosa, um bolo inglês da Versailles. Depois de lhe agradecer, procurei alguma coisa para lhe dizer, uma pequena ajuda, mas o mais que me saiu foi:

Enquanto estive no hospital, não parei de pensar em si e na Sandi.

Ela sorriu novamente, mas, pelo gesto implorante que dirigiu a Morel, que se precipitou para lhe tomar o braço, percebi que pronunciara em voz alta um nome que ela teria preferido ouvir apenas na sua cabeça.

Como achara que não havia interesse nenhum em passar ao inspetor Romão os brincos que ela me dera, tinha-os comigo para lhos restituir. Estendendo-lhe um pequeno envelope, disse-lhe:

Tinha-me confiado isto para guardar em segurança.

Dando uma olhadela ao conteúdo, Susana exclamou:

Oh, meu Deus... tinha-me esquecido completamente. - Pôs os brincos na palma da mão e fitou-me com um ar preocupado, como se tivesse acabado de compreender que sem querer poderia ter-me ofendido. - Era um presente - disse.

Eu sei, e são muito bonitos, mas a senhora estava numa situação muito difícil quando mos deu. Susana passou os brincos a Morel e tomou as minhas mãos entre as suas, o que mudou completamente a maneira como a vi nesse dia. E mesmo o modo como passaria a vê-la em sonhos.

Agora quero, mais do que nunca, que fique com eles - declarou.

O olhar dela aguentou o meu, e parecia dizer-me que não éramos assim tão diferentes como poderia pensar. - Devo-lhe um presente por ter sido tão simpático - acrescentou. - E por ter arriscado a vida.

Felizmente, Ana vinha a descer as escadas e poupou-me ter de responder alguma coisa. Depois de feitas as apresentações, Susana pegou nos brincos.

Há algumas semanas quis oferecer ao seu marido estes brincos para si, mas ele achou que eu poderia ter mudado de ideias. - Entregou os brincos a Ana. - Gostaria muito que ficasse com eles.

A minha mulher fê-los baloiçar no ar.

São lindíssimos! - exclamou. - E devem valer uma fortuna. Desculpe, mas não posso aceitá-los. Tentou devolvê-los, mas Susana esquivou-se a recebê-los com um gesto da mão.

Pelo tom determinado com que disse, compreendi que fora o marido quem lhos dera.

Acho que seria má educação recusar - disse eu a Ana, para evitar mais sofrimento.

Ela inclinou-se para diante e deu dois beijinhos a Susana. Ao afastar-se, os olhos de Ana brilhavam de admiração pela convidada, o que me agradou porque queria dizer que partilhávamos a mesma opinião.

Enquanto Ana mostrava a Susana a vista para o Tejo que tínhamos do segundo andar do nosso duplex, confirmei que Morel lhe tinha contado que Coutinho abusava da filha.

Não posso fazer outra coisa - disse ele. - O mistério porque Sandi se mata é demasiado difícil de aceitar. Pelo menos agora ela tem uma resposta. - Tocou-me no braço. - Há aqui um sítio onde podemos falar os dois?

Levei-o para o refúgio que preparara para mim na lavandaria.

Quer dizer que Susana acredita no que eu descobri sobre o marido? - perguntei.

Ela sabe que é verdade, mas continua a negar. É um compromisso que faz para continuar a viver. - O som soprado, tão tipicamente gaulês que lhe saiu dos lábios, fez-me crer que também ele decidira fazer um compromisso: viver o resto da vida como se nunca tivesse descoberto que a afilhada andava a ser repetidamente abusada.

Agora diga o que descobre - pediu-me num tom insistente.

Falei-lhe em Maria Dias – e nas minhas conversas com ela e com a mãe.

Onde está Maria agora? – perguntou.

Voltou para França - respondi, e depois disse uma mentira:

Antes que eu a pudesse prender, fugiu do país.

Morel levantou-se e dirigiu-se para a janela. O seu olhar parecia triste e derrotado. Acendendo um cigarro com mãos ansiosas, aspirou o fumo como se a sua vontade de prosseguir dependesse disso. Era o momento ideal para lhe dizer que Sandi estava grávida, mas receava que Susana fosse capaz de pôr termo à vida se o soubesse.

Importa-se de me dizer o que sabe do Pierre, o irmão de Maria?­ perguntei, antes.

O Pierre? Depois do divórcio, ele deixa a escola. Começa a tomar drogas, perde o contato com a mãe e a irmã... Tem problemas com a polícia. Talvez está ainda na prisão. Ou talvez morto. Devo dizer que na altura não entendo isso... este seu comportamento autodestrutivo.

E agora compreende?

Morel continuou a fumar pensativamente.

Se ele descobre o que acontece à irmã... Ela precisa dele para a defender e ele não está cá ... Sim, Monroe, compreendo muito bem.

Que vão fazer agora, o senhor e Susana? - perguntei.

Vamos para França. Quando o médico está satisfeito com os... progressos de Susana. Aqui só há morte para nós.

Na manhã seguinte, Ernie anunciou-me que voltaria com Rosie para a Villa Ernesto. Não me tinha querido dizer nada no dia anterior porque isso me iria impedir de dormir a noite toda. Ana convenceu Jorge a ajudá-la a lavar a loiça do pequeno-almoço e eu pude assim despedir-me do meu irmão a sós. Sentia o pânico a apertar-me as entranhas e acabei por acompanhá-lo até à rua para termos mais uns minutos juntos. Pus o chapéu preto de cowboy que ele tinha desencantado numa loja da Rua da Rosa e peguei nas canadianas. Dirigimo-nos para o carro, como se para um funeral, o que odiava, mas o pouco tempo que nos restava não nos deixou outra opção. Rosie trotava atrás de nós, a cauda a dar a dar, farejando todos os tesouros que os passeios de Lisboa escondiam.

Depois de ter apertado o cinto de segurança, Ernie tirou as luvas cirúrgicas e agarrou-me pelos ombros. Rosie deixou -se cair refastelada no banco a seu lado.

Vais ficar OK, Rico - disse ele.

Peguei-lhe na mão e afaguei-a, imaginando-o como o rapazinho que fora. Instantes depois, Ernie tentou retirá-la, mas eu retive-a; tinha decidido que, se nunca o deixasse partir, nada de mau poderia acontecer a nenhum de nós.

Ficas mesmo um bicho giro com esse chapéu, Rico! - exclamou, com um assobio. - Quem to comprou?

Foste tu - respondi.

Lançou-me um sorriso de exagerado orgulho, fazendo o melhor que podia para aligeirar o momento. Agora parecia ser o irmão mais velho, desviando-nos aos dois do desespero, mas o mais que consegui em resposta aos seus esforços foi um triste aceno de cabeça.

Até eras ca az de te ter tornado uma estrela de um desses westerns de grande orçamento se tivesses ido para Hollywood - disse ele.

A minha respiração era hesitante e cava, tal a vontade de dizer a frase acertada, o encantamento que o libertaria de mim, sem o fardo do meu amor.

Ainda podemos ir - retorqui.

O chapéu é preto... terias de ser o mau da fita - observou ele.

Não faz mal, assim como assim, são sempre eles que têm as melhores tiradas.

Mesmo a mais parva das conversas pode às vezes servir para revelar o que se esconde na parte inconsciente da nossa mente, porque nessa altura sabia já o que devia dizer-lhe:

Queria voltar a ver a campa da mãe. Preciso que os teus sobrinhos a vejam também. - Apertei a mão de Ernie contra o meu peito para que ele sentisse toda a ansiedade que havia em mim. - Talvez queira trazer o corpo dela de volta para Portugal. Podemos decidir isso mais tarde. Mas tenho de estar junto da mãe mais uma vez agora que sei o que sei. Tenho mesmo, Ernie.

Que sabes o quê?

Ela não nos deixou sozinhos com o pai de propósito. Não teve alternativa... estava demasiado deprimida. Teria ficado connosco se tivesse podido. Estás a ver, tenho de lhe dizer que a perdoei.

Ernie baixou os olhos. Para evitar que se sentisse pressionado, levantei os meus. Algures no meio – conspirando para compreender até que ponto perdoar a nossa mãe poderia mudar-nos pairavam as nossas especulações sobre o futuro.

Ernie não conseguia responder; por isso, enfiei a cabeça no carro e beijei-o nos lábios. Será que eu alguma vez compreenderia como nos tínhamos tornado homens? E ele? Talvez haja mistérios que no fundo não queremos esclarecer porque isso faria com que o passado nos parecesse muito menos singular. E todos temos o direito de olhar a nossa vida como única e especial, se não outra coisa.

«Haverá dois rapazes que se tenham afastado tanto dos horizontes que o destino originalmente lhes traçara!», pensava quando larguei a mão de Ernie.

Quando destravou o carro, bati na porta para lhe chamar a atenção e disse-lhe para enxugar os olhos para poder ver algum animal selvagem que pudesse atravessar-se na estrada.

Que tipo de animal selvagem? - perguntou.

Não sei, mas seria giro ver alguns coiotes em Lisboa - retorqui.

Fez o que eu lhe pedira e limpou as lágrimas com os polegares, porque era o meu irmão mais novo, mesmo que se portasse com mais maturidade do que eu. Foi então que me apercebi de que ele vertera lágrimas de verdade, o que nunca antes acontecera, penso, e então o seu enorme Chevrolet ferrugento arrancou e não tardou a ranger rua abaixo em direção ao rio. Rosie, que tinha saltado para o banco de trás, fixava-me da janela com uma expressão nostálgica. Queria dizer ao meu irmão que precisava de reparar o escape, e quase lho ia gritando, mas tive medo de que ele fosse contra alguma coisa, e por isso deixei - me ficar simplesmente a olhar enquanto ele e Rosie se afastavam. Assim fiquei muito tempo depois de eles terem desaparecido de vista, pois que mais poderia eu fazer?

No dia seguinte, o quarto em casa, às três da tarde, Nati acordou-me de um dos meus sonhos flutuantes. Estendi a mão para ele, pois, quando tomava uma boa dose de analgésicos, a gravidade não tinha qualquer poder sobre mim.

Tenho uma coisa séria para falar contigo, pai - disse ele.

Bocejei e comecei a beijar-lhe os dedos um a um, pois estava demasiado longe para me importar com a ideia de isso o poder deixar embaraçado.

Pai, ouve! - interrompeu ele, retirando a mão. - É mesmo importante.

Estou a ouvir - respondi, mas voltei a fechar os olhos porque a ausência de gravidade era uma experiência demasiado maravilhosa para a largar tão facilmente.

Lembras-te daquele CD da Florence + the Machine? - perguntou Nati. - Aquele que era da miúda que se suicidou?

Claro que me lembro disse eu, mas não estava a seguir as suas palavras; pairava sobre nossa casa, e o meu filho mais não era do que uma voz.

Pai! Pai, acorda! - Fixava-me, furioso.

Estou aqui - repliquei. Sentando-me, estiquei os braços acima da cabeça num esforço para voltar até ele. - Para de fazer caretas e dá-me de beber.

Nati foi buscar-me um-grande copo de água. Bebi metade.

OK, agora estou de volta ao mundo real- declarei. E estava quase.

Pensei que tinhas dito que ouviste o CD da Florence + the Machine - disse ele.

E ouvi. Queria analisar a letra; por isso, pesquisei na internet e depois vi os vídeos. Vi aquele, o Dog Days, três vezes, acho eu.

Então não ouviste mesmo o CD?

Não.

Foi o que pensei. Anda daí até à sala. Tens de ver o que há no CD.

Estendi os braços. Puxando com força, Nati conseguiu pôr-me de pé. Ao mesmo tempo que lutava contra as tonturas, inclinei-me para diante. Uma vez levantado, compreendi aquilo que devia ter sido óbvio; não entregara o CD de Sandi como elemento de prova. Não sabia como fora parar às mãos de Nati.

Aonde foste buscar o CD? - perguntei, enquanto uma vaga de culpa me invadia.

Deu-mo o tio Ernie.

Peguei nas canadianas.

E aonde raio foi ele buscá-lo?

Ele disse-me que depois de tu teres sido baleado, quando desmaiaste na rua, o encontrou no teu bolso. Guardou-o por uma questão de segurança.

E deu-to a ti?

Deu. Perguntou-me onde o devia pôr, e eu disse-lhe que o guardava até tu voltares para casa. Só que… Fez uma careta como se se tivesse metido num grande sarilho. - Pu-lo na minha estante para depois to dar, mas esqueci-me disso até há bocadinho. Desculpa lá.

Não faz mal. Com tudo o que aconteceu, eu...

Pai, não é o Lungs - interrompeu Nati.

Não é Lungs, o quê?

O que a miúda te deixou... O CD. Pai, tens de ver o que ela queria que tu descobrisses!

Assim que chegámos à sala, pegou no comando do DVD, abriu a gaveta e colocou o disco lá dentro.

Não faças isso, vais estragá-lo! - gritei.

Não há problema. Já experimentei.

Passou-me o comando, e depois foi para a cozinha.

Não queres ver? - perguntei.

Vi um minuto se tanto, por acaso. Para mim já chega.

O DVD tem uma duração de quarenta e sete minutos, mas só vi uns vinte. Não quero mais nada daquilo na cabeça.

No vídeo, surgem quatro homens com duas miúdas. Uma delas é Sandi. Elástica e esguia, com a graça hesitante de uma corça. Não tem ainda aquele desastrado corte de cabelo.

A outra miúda é esguia, quase sem seios. Parece mais nova do que Sandi. Diria que tem uns doze ou treze anos, no lanço final da infância. Os cabelos são pretos e compridos e a tez de bronze, um toque de floresta amazónica nos olhos. Chamei-lhe Menina Número Dois a princípio, mas Ana disse-me num tom zangado que ela merecia ter um nome. Agora chamamos-lhe Mariana.

Um dos homens é Pedro Coutinho; o outro, Sottomayor. Os dois restantes foram identificados por Morel como sendo o notário parisiense de Coutinho, Gilles Laplage, e um exportador venezuelano que agora vivia no Brasil, chamado Sebastian Forester. Morel disse-me que era um velho amigo de Pedro.

Quando Morei veio a minha casa ver o DVD, explicou-me que tinha sido filmado no apartamento que Forester tem em Lisboa. Fora convidado para lá jantar certa vez e reconheceu a mobília dourada e o espelho Louis XVI. O apartamento é uma suite no último andar de um daqueles monstros monolíticos na Avenida dos Estados Unidos da América. Há uma semana descobri que Sottomayor vive um andar abaixo.

Susana Coutinho desconhece a existência do DVD.

Pode ter a certeza de que ela toma uma overdose de comprimidos, como a Sandi, cinco minutos depois de ver isso - disse Morel na voz resignada de um homem que nos últimos meses aprendeu demasiadas lições sobre sofrimento. Chegou ao nosso apartamento há duas semanas e viu o filme, a cabeça entre as mãos, a fumar cigarro atrás de cigarro, até se levantar de um salto ao fim de treze minutos e dizer que se recusava a assistir a mais.

Quem vê o filme poderá imaginar quantas vezes terá Coutinho abusado da filha antes daquele momento, e pode estar certo de que foram suficientes para a convencer de que não valia a pena resistir. Aparentemente, tirar-lhe a virgindade não lhe bastara, como começara por lhe fazer crer. Ou talvez Sandi só o tivesse dito à amiga por ser essa a sua última esperança.

Aos dezassete minutos e quarenta e três segundos do DVD, um minuto depois de o pai ter acabado de a violar - e enquanto lhe beijava a nuca -, Sandi volta-se para a câmara. Tem um olhar vazio, pouco menos do que morto.

Olha para nós, para mim, para quem quer que esteja a assistir. Será que se apercebe de que os homens que acabarão por ver o DVD acharão excitante a sua submissão ausente e anestesiada ao pai?

A primeira vez que vi estes dezassete minutos e quarenta e três segundos, a vergonha a trespassar-me como uma navalha, atravessei a sala aos saltos sem as canadianas e carreguei com força no botão de desligar.

Peguei no disco e agarrei-o firmemente na mão. Apetecia-me parti-lo ao meio, esmagá-lo até ficar com o punho em sangue.

Deveria tê-lo feito, mas precisava de ir a correr para a casa de banho. Ana sentou-se na borda da banheira enquanto eu libertava tudo o que tinha dentro de mim e depois ajudou-me a limpar-me.

O olhar de Sandi para a câmara é o que torna tudo aquilo ainda mais cruel. Ser filmada no pior momento da vida é uma coisa que não deveria acontecer a ninguém, e muito menos a uma miúda tão nova.

17h43 é a pior coisa que vi na vida.

Depois do olhar de Sandi, dirigido a quem quer que um dia visse aquele OVO, a câmara muda de ângulo, e durante os vinte e um minutos e quatro segundos que se seguem, pelo que diz Ana, que registou a duração do filme, é a vez de Forester e Laplage violentarem Mariana.

Os últimos onze minutos s sete segundos mostram Sottomayor a fazer o que quer de Sandi. Empunhando a bengala e colocando-a por trás da cabeça da miúda, puxa-a para si e sorri para a câmara. É o sorriso malicioso de quem se julga capaz de se safar de uma acusação de crueldade premeditada.

Ou, neste caso, que pensa ter-se safado.

Foi aquele sorriso que me mostrou a verdade.

«Esqueça os problemas importantes da vida. Não se preocupe com quem ganha e com quem perde neste triste pequeno país que é o nosso. Andam obviamente por aí homens muito perigosos e violentos que não se importam de atingir bons polícias como o senhor. Por isso, aproveite a companhia dos seus filhos. Vá até à Madeira e trabalhe para o bronze. Deixe os seus colegas tratarem dos maus.»

Esperava que eu largasse o caso e estava a dar-me um último aviso - não fosse eu vir a descobrir a sua preferência por rapariguinhas impúberes - de que ele estava no topo da lista dos homens violentos que me consideravam descartável. Antes disso, andou a tentar lançar-me nas pistas falsas dos subornos pagos por Coutinho.

Fingira ser gay para conquistar a minha confiança - e porque o deve ter divertido enganar-me tão redondamente.

Quando contei a Ana as conclusões a que chegara, ela disse que só a surpreendia que ele não tivesse envenenado os chocolates Godiva que me levara. Mas não precisava de chegar a tanto, claro; conseguira exatamente o que pretendia com os dois tiros que encomendara.

 

Depois de fechar à chave o DVD na gaveta onde guardo as armas, compreendi que não era, nem de perto nem de longe, tão corajoso como pensara. Ou talvez tivesse perdido o que me restava de ingenuidade; já não tinha a mínima dúvida de que os homens que governavam Portugal - e os seus amigos bem colocados noutras partes do mundo - eram capazes de me matar para evitarem ter de responder pelos seus crimes. Ser obrigado a andar a saltitar pela minha casa - ou talvez a coxear o resto da vida - era prova disso mesmo. Caírem de uma altura de trezentos metros numa calçada de Lisboa ou do Porto - de Xangai, de Nova Iorque - era a última coisa que qualquer um deles poderia permitir que lhe acontecesse. Haveriam de preferir de longe que a queda me calhasse a mim.

Ou a si. Lembre-se disso. Mesmo que não se lembre de mais nada.

Ana disse-me que também ela, tal como eu, compreendera que Sottomayor era um homem perigoso, mas que eu tinha de entregar o DVD ao Ministério Público.

Temos de tentar proteger outras miúdas como a Sandi e a Mariana - insistiu.

Não compreendia que já não tínhamos essa opção.

Desta vez eram capazes de te enfiar dois balázios a ti... ou a um dos miúdos - disse eu.

Só pronunciar em voz alta essa possibilidade fez com que as pernas me começassem a tremer e tudo se pusesse a girar. Sentei-me no sofá e inclinei-me, a cabeça entre os joelhos.

Ouve, Hank - disse Ana -, não podemos viver amedrontados. Se começamos com isso, então... Porque é que os teus pais fugiram à ditadura na Argentina? - interrompi.

Ana mordeu os lábios e esquivou-se ao meu olhar de desafio. Não respondeu à pergunta, pois ambos sabíamos que tinham emigrado porque Javier - o irmão mais velho da mãe de Ana - fora preso e assassinado pela polícia por ter estado à frente de um protesto estudantil. O crânio dele foi descoberto doze anos mais tarde numa vala comum no jardim de uma fábrica de sapatos nos arredores de Buenos Aires. Só o identificaram graças aos registos dentários.

Quando comecei a soluçar, Ana foi buscar-me um copo de sumo de laranja. Depois de o ter bebido, disse-lhe:

Isto vai até ao topo.

Que estás a dizer?

Os DVD roubados da casa de Coutinho devem mostrar algumas figuras graúdas com miúdas corno a Sandi... Ministros, embaixadores, diretores de empresas... Não vão permitir que uma coisa que mostre quem eles realmente são venha a público, Tiveram de assaltar a casa... antes que Susana Coutinho ou outra pessoa encontrasse os filmes que provam o que andavam a fazer.

Muito bem, então qual é o próximo passo? - perguntou ela.

Nessa noite, tomei uma boa dose de analgésicos, capaz de me pôr a voar acima da costa de Portugal até Vigo, mas de madrugada dei por mim esparramado como um bêbado num banco no Largo de Santa Marinha. As canadianas tinham sido atiradas para o chão onde as crianças brincam. Na minha mão esquerda, G escrevera: «H - Enquanto morria contigo num passeio de Lisboa, vi a cidade desaparecer. Levou menos tempo do que possas imaginar ver todas aquelas velhas ruas e casas vacilantes desvanecerem-se. A última coisa a sumir-se foi o rio.» Na mão direita, acrescentara: «O rio abraçou a margem durante milhares de séculos e não queria sumir-se assim! H - não sei o que fazer agora. Sou real? E tu, és?»

Depois de voltar para casa a coxear, limpei a tinta das mãos e escondi o meu bloco de notas da polícia no faqueiro de prata que Ana herdara da avó. Entrando em bicos de pés no quarto de Nati, acordei-o e disse-lhe para nunca falar do DVD a nenhum amigo.

Nunca faria uma coisa dessas - garantiu-me.

Levantei-me e fui à janela para ter a certeza de que ninguém nos vigiava. Voltando para junto do meu filho, pousei-lhe a mão no peito.

Nem sequer podes falar nisso.

Não falo.

Estava demasiado inquieto para tomar o pequeno-almoço. Depois de os miúdos terem devorado os cereais, fechei-me à chave na lavandaria para poder refletir à vontade. Procurando conter o pânico que me invadia, disse de mim para comigo: «Não faças nada por agora. Tens tempo.» Acabei por pegar no portátil e ouvir no YouTube o vídeo de Dog Days Are Over. Cantei a canção em voz baixa até saber a melodia e a letra de cor. Precisava que fizesse parte de mim.

Quando ouvi a campainha, deparei com Luci no patamar. Tinha trazido uma daquelas bicicletas desdobráveis, prateada, com um cesto na parte da frente. O alívio que senti ao vê-la foi tanto que tive vontade de lhe dar um beijo, mas não queria envergonhá-la.

Jorge apareceu a correr vindo da cozinha e encurralou Luci antes de o conseguir impedir.

Ei, isso é para mim? - perguntou.

Não, desculpa, é para o teu pai - disse Luci.

Afastei Jorge e depois convidei-a a entrar. Mal entrámos na sala, segurei o meu filho pelos ombros para evitar que ele se descontrolasse e perguntei a Luci se a bicicleta era realmente para mim.

É, sim. Disseram-me que é bom para recuperar os músculos da perna.

Também quero uma bicicleta! – choramingou Jorge, erguendo os olhos para mim, uns olhos a brilhar com esperança capaz de desfazer todos os meus argumentos contra tal compra.

Se me deixares em paz, a mim e à Luci, durante meia hora ­ propus-lhe -, compro-te uma na primeira vez que sair de casa.

Desatou aos pulos, depois deu-me um murro na barriga para reforçar a pergunta:

Prometes?

Prometo.

Assim que Nati arranjou maneira de atrair Jorge para fora da sala, disse a Luci que não devia ter-me comprado uma prenda tão cara.

Consegui um bom desconto - replicou. Sorriu com o deleite de quem ajuda um amigo, mas logo uma sombra lhe cobriu a expressão quando lhe propus que fôssemos para a cozinha falar no caso Coutinho. Tinha já decidido pedir-lhe para não mencionar a investigação a ninguém.

Mal a vi sentada à mesa, perguntei-lhe qual era o problema.

Ela levou a mão ao bolso dos jeans e tirou um delgado chip preto, só um pouco maior do que um cartão SIM. Passou-mo para as mãos.

Que é isto?

Serve para fazer escutas. Encontraram-no fixado com fita-cola debaixo da sua secretária... junto da borda. Já vimos se havia impressões digitais, mas nada.

Percebi de imediato quem o pusera ali.

Sottomayor usava luvas de cabedal no dia em que foi falar comigo. E eu, estupidamente, pensei que era apenas afetação.

Então que fazemos, chefe?

Ainda funciona? Ainda envia algum sinal? - Imaginei que Romão pudesse localizar as pessoas que tinham andado a ouvir as minhas conversas.

Deixou de funcionar há pouco - explicou Luci. - Os técnicos disseram-nos que estava programado para durar apenas uns dias.

Eles têm alguma ideia sobre o que devemos fazer?

Não. Disseram que é de fabrico caseiro; por isso, nem sequer temos um fabricante que possamos contactar.

Enquanto incluía mais esta descoberta na minha lista de acusações contra Sottomayor e seus capangas, Luci surpreendeu-me com uma pergunta que não me permitira fazer a mim próprio: Chefe, acha possível que o inspetor-chefe Romão possa não estar interessado em descobrir quem ordenou o atentado contra si?

No ponto a que chegámos, Luci, acho que tudo é possível.

Ela lançou-me um olhar de quem acaba de receber a notícia da morte de um familiar; por isso, acrescentei:

Oiça, preferia que não falasse com ninguém sobre mim, sobre o Coutinho ou sobre este caso. Nem sequer com o seu marido.

O chefe descobriu alguma coisa que eu não saiba?

Só que o Sottomayor não é o anjinho que nos quis dar a entender que era - retorqui.

Ele ameaçou-o?

Não, não é isso - menti. - Seja como for, é melhor que não saiba demasiado sobre ele.

Foi ele quem mandou disparar sobre si, não foi?

Haveria na minha voz alguma coisa que revelava a verdade?

Luci, fico mesmo zangado consigo se continuar a fazer perguntas! - rematei, esforçando-me por dar às palavras um tom paternal e mal-humorado.

Estávamos a chegar demasiado próximo de alguma coisa, chefe? - perguntou ela.

Luci!

Tenho direito a saber.

Podemos nunca vir a ter a certeza - disse eu. - O mais importante é não falar em nada que ache suspeito. Não podemos arriscar-nos a que lhe aconteça o mesmo que me aconteceu a mim.

Não gosto nada disto. Não foi para isso que entrei para a polícia.

Oiça, há muitíssimos casos onde pode tentar ser o Dr. Watson - retorqui, esforçando-me por desvalorizar o presente dilema. - Por agora, limite-se a fazer o que o Romão disser e, se alguém lhe perguntar alguma coisa sobre os tiros, ou sobre Coutinho, diga que ultimamente tem andado tão atarefada que nem pensou mais no caso.

Fixando-me como se fosse uma questão de vida ou de morte, Luci declarou:

Muito bem, mas, quando o senhor voltar, quero ser novamente destacada para a sua equipa. Não quero trabalhar com mais ninguém.

A minha sensação de fracasso atenuou-se um pouco depois de ter convencido Luci da necessidade de se manter calada: pelo menos conseguira protegê-la. Senti-me capaz de participar no jantar de família e até ajudei Jorge a desenhar casas no seu caderno. Quando Ernie ligou, estive à conversa com ele sobre as suas pereiras e macieiras zonzas de calor. Fiquei contente por ter uma distração.

Cerca das dez horas, comecei a sentir os arrepios nos braços que normalmente indicam que estou prestes a apanhar um resfriado. Tomei logo duas aspirinas e fui deitar-me, mas acordei às três com a testa a arder e uma febre de trinta e oito e meio. Doía-me a garganta e tinha o nariz entupido. Não queria incomodar Ana e consegui voltar a adormecer ao fim de algum tempo, mas ela acordou quando comecei a tossir. Pôs-me uma compressa fria na testa e obrigou-me a tomar mais duas aspirinas. Apetecia-me abraçá-la - precisava do carinho dela para suportar aquilo -, mas estava a arder de febre e não queria contagiá-la.

Quando voltei a adormecer, sonhei que Gabriel vinha ter comigo a Black Canyon. O seu cabelo desgrenhado tornara-se grisalho. E a cara, fina e marcada pelo tempo, estava profundamente vincada pelas rugas. Parecia ter mais de sessenta anos. Conseguia vê-lo e ouvi-lo tão bem como via e ouvia Ana e os meus filhos.

Seria um sonho, ter-me-ia a febre conduzido a um estado crepuscular onde podia falar com a minha metade pela primeira vez?

Recordo-me do que G e eu dissemos um ao outro porque - assim que voltei a mim - escrevi a nossa conversa na parte de dentro da capa do livro que andava a ler, Deaf People in Hitler's Europe.

Estás mais velho - disse-lhe. Pareceu-me injusto e triste dizê-lo.

Também tu, parceiro! – ripostou ele, rindo-se.

Sentamo-nos na orla do Black Canyon. Acima de nós nuvens brancas de algodão deslizam em formação rumo ao horizonte, a este. Uns seiscentos metros abaixo, via-se uma serpente sinuosa e pardacenta: o rio Gunnison. Falámos durante algum tempo sobre a paisagem. Parecia ser a maneira que encontrara de fazer com que me sentisse à vontade com ele. E então disse-me:

Não gostei de ficar à beira da morte.

Pois, eu também não - retorqui.

Pediu-me desculpa por não me ter protegido, e eu disse-lhe que a culpa não era dele. Pelo modo como carregou o sobrolho, percebi que não concordava.

Mas, enfim, a questão é que ter estado à beira da morte ensinou-me uma coisa - declarou num tom confessional.

O quê?

Que tudo isto é bem capaz de desaparecer.

Quando lhe perguntei se estava a falar do Colorado, fez um gesto largo com a mão indicando a terra, o céu e mesmo o rio lá ao fundo.

O Colorado, Portugal e tudo o mais - disse ele. - Escrevi-te uma mensagem sobre isso. Vi Lisboa desaparecer, casa a casa. As ruas reduzidas a nada, uma a uma, e não havia coisa alguma que pudesse fazer para o impedir. Era uma loucura. E perturbante. Levei algum tempo a compreender o que aquilo significava.

O que significava?

Deu-me uma palmadinha na perna.

É assim, miúdo... não somos feitos da mesma massa. Não consigo ficar sem fazer nada e deixar que tudo por que lutei desapareça.

É realmente isso que está em causa? - perguntei, cético; achei que estava a exagerar.

Ou somos nós a ganhar ou eles... Como cowboys e índios outra vez. E tanto tu quanto eu e o Ernie... somos índios!

Não é assim tão simples - contrapus.

Fazer o que está certo parece-me bastante simples.

Ouve, não posso correr o risco de perder os miúdos ou a Ana. Vais ter de esquecer a ideia de entregar à justiça Sottomayor e os amigos.

Ele olhou para este, para o sol que nascia. A luz da montanha derramava-se sobre nós, dourada e quente.

Pensei que tinha perdido a sombra quando fomos baleados ­ disse ele. - Fiquei assustadíssimo. Está aí atrás de ti, neste momento - repliquei, apontando-a.

Ele voltou-se. A sombra era longa, esguia e orlada de um vago brilho avermelhado. Parecia menos forte e definida do que seria na vida real.

Ah, isso aí. Não é disso que estou a falar.

Então estás a falar de quê?

Se achas que podes viver sem mim, então descobre tu!

Porque não falas mais claramente?

Porque não quero!

O modo enfurecido, desafiador, como me fixou, deu-me a entender o que queria dizer.

Pensaste que eu já estava morto, não foi?

Sim, e fiquei em pânico.

Mais uma razão para ter agora muito mais cuidado – disse eu.

Muito bem, então que direção tomo eu, este ou oeste?

Não sei.

Tens de escolher por mim. Tu é que fazes as regras aqui, miúdo, mesmo que não acredites. «Portugal fica a este», pensei. Mas não queria que ele viesse ter comigo aí, pois podia pôr em perigo a minha família.

Oeste - propus.

Sempre foste o mais ajuizado - respondeu ele.

O sorriso desapontado que me lançou parecia significar que aquela poderia ser a última vez que nos víamos.

Dá um abraço à Ana - disse ele.

E então acordei.

A febre aumentou durante toda a manhã. À hora do almoço, estava fraco de mais para sair da cama e descobri que não conseguia aguentar nenhum alimento sólido. O meu sogro, Esteban, era radiologista e veio examinar-me mais tarde. Assegurou-me de que as feridas estavam a sarar bem e não tinham infetado.

Parece que apanhaste uma gripe, filho - concluiu, encolhendo os ombros.

Preocupava-me a ideia de os meus filhos a apanharem e proibi-os de entrarem no quarto durante o resto do dia. Jorge ficou sentado no chão com a sua girafa do lado de fora da porta a ler os livros do Dr. Seuss. Quando começou a aborrecer-se, mandei-o buscar o caderno de desenho e sugeri-lhe que fizesse o meu retrato. Quando acabou, parecia um pássaro azul em frangalhos num ninho de lenços de papel e jornais.

De Gabriel, nem uma palavra. Se calhar seguiria para oeste para sempre.

Ao fim do dia, estendido na cama, enquanto pensava se conseguia viver sem ele, lembrei-me de Sandi tal como me surgiu no dia em que a tinha interrogado. Ocorreu-me então que ela teria reagido tão mal à primeira menstruação por já ter pressentido a especial predileção do pai por rapariguinhas adolescentes. Talvez fosse ela própria quem surgia nos seus pesadelos, entrando em casa e maltratando os pais. Os sonhos eram um aviso para que se mantivesse calada. Tal como eu e Ernie, Sandi concluíra que se alguma vez dissesse a verdade - e conseguisse convencer alguém de que abusavam dela - mandaria o pai para a prisão e destruiria a sua família.

Na manhã seguinte, já me sentia suficientemente bem para me sentar na cama e comer umas torradas com compota. Era sábado, dia 29 de julho. Ana precisava de ir trabalhar nessa tarde. Saiu do apartamento por volta das onze e meia, depois de me ter feito uma sopa de letras para o almoço. Continuava a não deixar que os miúdos estivessem perto de mim, o que provocou em Jorge um choro convulso, de modo que tive de o ir buscar para que se acalmasse. Ficámos os dois sentados no sofá uma boa parte do dia, a ver os jogos olímpicos na televisão. Vimos sobretudo as provas de natação e de ciclismo, mas mais para o fim da tarde apanhámos também a competição de natação sincronizada. A estranha imagem, como que em espelho, de dois mergulhadores girando e rolando pelos ares parecia a princípio ridícula e fútil, mas quanto mais víamos mais tínhamos a sensação de ser arte, dando forma à necessidade humana de afinidade e solidariedade.

Nessa noite, dormi praticamente dez horas e acordei pouco depois das nove - sozinho na cama com uma mensagem na mão esquerda: «H - Desculpa por ter seguido para este. Não tinha outra escolha.» Na mão direita, havia um nome: «Jean Morel.»

Percebi de imediato o que G propunha. Atirei para o lado os cobertores e pus-me de pé. Liguei para Joaquim, para casa, pois era domingo. Aceitou imediatamente ajudar-me. Estava ainda um pouco febril, e Ana queria que eu ficasse em casa, mas, quando lhe disse que apanhava um táxi se fosse preciso, concordou em levar-me de carro. Joaquim fez uma cópia do DVD que Sandi me deixara e concordou em não falar nisso a ninguém.

A seguir liguei para Morel e pedi-lhe para vir ter comigo e ver o DVD.

Foi nesse dia que Morel identificou os dois homens que tinham participado na filmagem - juntamente com Coutinho e Sottomayor ­ como sendo Gilles Laplage e Sebastian Forester.

Depois de ter visto os primeiros doze minutos, recusou-se a continuar, mas insisti que reparasse no minuto dezassete.

Morel concordou com o meu plano depois de ter visto as imagens dos dezassete minutos e quarenta e três segundos, mas obrigou-me a prometer que nunca falaria a Susana na existência do filme. Como quase não falava português, ditei-lhe um recado para entregar ao Ministério Público, explicando que tinha encontrado o DVD na biblioteca de Coutinho e fazendo um resumo do seu conteúdo. Sabendo que Coutinho devia ter a pornografia escondida nos discos de música clássica - no armário fechado à chave -, pedi-lhe também que escrevesse que havíamos encontrado o DVD em questão no disco dos Prelúdios de Debussy, por Pascal Rogé, visto que Ana o tinha e concordara em ceder à nossa causa a capa e os encartes do álbum. Morel dirigiu-se para a Procuradoria-Geral do Ministério Público no carro de Susana.

Tinha a certeza de que quem lesse o texto que ditara acreditaria na história de Morel: ninguém suspeitaria de que fora eu a encontrar o disco e a entregá-lo. A minha família e eu estaríamos a salvo de represálias.

Morel e eu conversámos nesse dia ao fim da tarde. Entregara o filme e o nosso bilhete a Bruno Cerveira, o procurador a quem o caso fora atribuído.

Passaram dois dias sem uma palavra de Cerveira, mas eu estava quase livre da gripe e sentia-me confiante, como se G e eu tivéssemos desferido um golpe importante numa guerra que a maior parte das pessoas nem sequer sabia estar a ser travada. E como se tivesse regressado de um passeio que me afastara tanto de mim próprio que precisara da ajuda de Gabriel para voltar.

N o terceiro dia de espera, um fisioterapeuta que me fora designado pela Polícia Judiciaria veio a minha casa para a nossa primeira sessão. Chamava-se Pavlo e parecia ter uns trinta anos. Era de Kiev e vivia em Portugal desde 2004. O seu espesso cabelo preto, com risca ao meio, formava umas asas que lhe tapavam as orelhas, dando-lhe o ar ligeiramente cómico, mas romântico, de um galã dos filmes mudos de Hollywood. Pelo modo como Jorge o fixava, de boca aberta, torcendo-se como quem precisa de fazer xixi, convenci-me de que fora atingido pela flecha de Cupido pela primeira vez. Correu desajeitadamente para o quarto, aos tropeções; tive a sensação de que se calhar tivera até uma ereção.

Fiquei admirado comigo por não me sentir minimamente preocupado. Invadia-me antes uma admiração divertida por aquele diabinho.

Sob a orientação de Pavlo, em breve conseguia movimentar-me muito melhor com as canadianas. Na verdade, ele mostrava-se mais preocupado com o ombro do que com a perna, porque os músculos tinham enrijecido e já não conseguia levantar o braço acima da cabeça. Indicou-me uma série de exercícios de alongamentos para fazer duas vezes por dia.

Nessa noite, na cama, quando calhou falarmos de Pavlo, dei por mim a contar a Ana que pensava que Jorge era gay. O tom dramático em que estupidamente falei no caso - temendo que ela pudesse sentir-se desapontada ou preocupada com o nosso filho -levou-a a troçar de mim.

Não vais agora pensar que ligo alguma coisa ao que o Jorge possa fazer na cama - disse-me.

Pensei que podias ver a coisa de outra maneira por ser o nosso filho.

Deu-me um beijo na ponta do nariz como se eu fosse o seu terceiro filho, e o que de momento mais precisava de orientação.

Gostas tanto dele que te preocupas de mais. Vai correr tudo bem.

As coisas podem não ser fáceis para ele - insisti. - Ainda há muitos preconceitos.

É mais forte do que as pessoas pensam. É um menino rijo.

Há quanto tempo suspeitavas disto?

Há uns dois anos. - Ana soltou uma risada. - Quem haveria de pensar que ia ficar caído pelo Rudolfo Valentino?

Então também reparaste?

Ela espetou o indicador e lançou-me um olhar astuto.

Agradecia que lhe explicasses o que é uma ereção quando tiveres ocasião.

Porquê eu? Tu sabes pelo menos tão bem como eu para que serve ­ ripostei, o que a levou a fazer-me uma chave de braço que me deitou de costas.

Há mais uma coisa - disse-lhe, levantando os olhos para ela, contente por ter uma mulher que gostava de assumir o comando de vez em quando.

O quê?

O Ernie disse-me que foi para a cama com homens. Por isso, parece-me que isso quer dizer que é gay. - Não mencionei que tinha dormido com prostitutas.

Que grande novidade - retorquiu, fingindo um bocejo.

Depois de apagada a luz, a pressão de lhe contar ainda outra coisa fez-me colocar a mão dela sobre os meus olhos como uma venda.

Há uma coisa que nunca te disse sobre mim – confessei.

Gostas de mais da tua intimidade com a minha passarinha para seres gay, por isso não me venhas agora com tretas!

Não, mas fiz sexo com rapazes quando era miúdo. No Colorado.

E depois em Évora.

Ela virou-se para mim. O seu hálito quente afagou-me a face.

Muito empreendedor da sua parte ter sexo em dois continentes, senhor inspetor-chefe.

Nunca falei disso a ninguém a não ser ao Ernie há poucas semanas. A tia Olívia nunca soube.

Oh, por amor de Deus! - exclamou Ana. - Ela gostava de ti como de mais nada nem de mais ninguém. Nunca poderia sentir-se desapontada contigo.

O meu pai haveria de dizer que eu era uma vergonha.

Ana sentou-se.

Oh, Hank, é impossível que ainda estejas preocupado com o que ele pensaria!

É bem possível.

Para de pensar nele! - ordenou, e mordeu a tatuagem do thunderbird no meu braço para reforçar o que dissera.

Chegando-se de novo para o seu lado da cama, virou-se de lado com os pés gelados a tocar-me na perna boa, para mostrar que queria que eu me encostasse a ela de costas, e assim fiz.

E como vai ser quando o Jorge descobrir que é gay... se é que é mesmo? perguntei.

Isso que tem? – murmurou ela.

Talvez fique preocupado.

Puxou-me o braço, para a enlaçar e retorquiu:

Se precisar de conselhos, pode perguntar ao Ernie.

Pode ser que ele não saiba muito do assunto.

Nesse caso, pode perguntar ao pai.

Estou a falar a sério, Ana.

Hank, tu tens uma capacidade espantosa para te preocupares com tudo! Deixa-te disso! Mais a mais, se o Jorge já tem ereções aos sete anos, vai ser muito popular!

Na tarde do dia seguinte - 2 de agosto, há nove dias -, Morel telefonou. Cerveira tinha acabado de lhe ligar para lhe dizer que não havia nada no DVD que pudesse ser usado para processar qualquer um dos homens envolvidos.

Como é isso possível? - perguntei.

A Sandi está morta. E por isso não pode testemunhar contra Sottomayor, naturalmente.

O DVD testemunha contra ele! - berrei.

Ele diz que isso não basta. Têm de ter a certeza de que não há consentimento.

A raiva que me enchia o peito era uma forma de loucura explosiva.

Será que dá a impressão de que ela se sente feliz com o que se passa?! - perguntei. - Ela tinha catorze anos, porra!

Cerveira confirma que catorze anos é a idade de consentimento em Portugal.

Isso só é verdade quando não envolve coação! O senhor ouviu alguma coisa do que lhe disse no outro dia?

Não grite comigo, Monroe! Não pode imaginar o que sinto neste momento.

Desculpe. Mas oiça com atenção. Se um homem força uma rapariga a fazer alguma coisa que ela não quer, pode ser acusado de estupro.

Tanto faz que ela tenha catorze, quinze anos ou outra idade.

Mesmo assim, ele diz que o DVD não basta para conseguir uma condenação.

Ele viu o filme todo? - perguntei. - Viu o minuto dezassete?

Sim, ele diz que vê o filme todo.

Lembrou-lhe que o sangue que a Sandi tinha debaixo das unhas prova que ela se opôs ao pai? Ele diz que a Sandi está morta e o pai dela está morto e que não há caso.

Se ele viu o DVD, sabe que Sottomayor também a forçou. E esse filho da puta está bem vivo! Temos de o mostrar a outro procurador. Conheço alguns que...

Cerveira diz que ele fala com mais dois procuradores - interrompeu MoreI. - Todos eles concordam que não temos nada.

Pediu licença para ir buscar os cigarros. Quando voltou ao telefone, disse:

Preciso de explicar outra coisa, Monroe.

Parecia desamparado.

Que mais aconteceu? - perguntei. - Tem a ver com Susana?

Sim e não. Uma vez eu e você falamos das montanhas onde o senhor vive quando é rapaz. Lembra-se?

Vagamente.

Nestes últimos dias... É como se eu estou ao fundo de uma montanha alta... uma montanha onde vivo noutros tempos. Olho para cima e vejo o topo, e sei que nunca posso trepar lá acima. Estou velho de mais e cansado. Não posso lutar. Quando tem a minha idade, compreende que a vida é sempre uma luta... lutar por aquilo que queremos, lutar para ser ouvido ... É uma luta do primeiro ao último dia. Mas não posso fazer isso mais tempo. Tenho sessenta e dois anos. E o cimo da montanha está muito longe... muito alto. E Susana... não está já lá de qualquer maneira. Está aqui em baixo comigo.

E que quer dizer exatamente com isso? - perguntei.

Susana e eu vamos ficar onde estamos. Sabemos que não podemos ganhar. E o pior já está, não?

E a Mariana? Pode ainda estar a sofrer num sítio qualquer.

Cerveira diz que ela talvez tem catorze anos também.

Não, não, não! É mais nova do que a Sandi... vê-se bem!

Mon Dieu, o senhor é impossível! Não temos nenhuma prova!

Sabe o que o Cerveira está realmente a dizer-nos, não sabe? Que ninguém vai pegar neste caso aconteça o que acontecer!

Sim, Monroe, compreendo - disse ele num tom fatigado. - Penso que compreendo isso antes do senhor, de facto. Sou de um país onde isso também acontece. Egalité, fraternité... Fica muito bem nas moedas antigas, mas há. quarenta anos Que faco negócios em França e sei que o modo como as coisas funcionam é muito diferente na vida real.

Como funcionam as coisas?

Ou Cerveira já sabe que não ganha... porque as hipóteses contra ele são demasiado grandes, ou está do lado daqueles que desejam lutar.

Não faz diferença.

Faz... moralmente faz.

Moralmente? - repetiu ele, como se isso fosse uma noção absurda.

E soltou uma curta risada, embora pressentisse que estava perto das lágrimas. - O que acha que a moral tem a ver com isto? - perguntou.

Tudo.

Não, isso não lhes diz nada, Monroe! Isto é uma negociação... um acordo de negócios. E o resultado final já está decidido.

Apetecia-me gritar-lhe alguma coisa que o fizesse ter vergonha de desistir. Mais do que isso, apetecia-me berrar-lhe que iria matar Sottomayor ou fabricar provas para o culpar pelo assassinato de Coutinho. Mas, ao permitir que o silêncio se prolongasse, compreendi que nunca poderia correr tal risco - não enquanto marido e pai. A única opção que me restava era localizar Mariana, mas isso poderia levar anos. E, mesmo que viesse a encontrá-la, Sottomayor e os amigos haveriam certamente de conseguir que não testemunhasse, recorrendo a dinheiro ou a ameaças.

Como última esperança, sugeri a Morel divulgarmos o DVD através da imprensa.

Não! - bradou. - Susana não quer o mundo a ver o que acontece à filha! Não esqueça a sua promessa a mim! E a Sandi? Acha que gosta de ver toda a gente a vê-la com o pai?

Ambos sabíamos que o seu suicídio era a prova de que a resposta seria «não!».

Mas, se não passamos o DVD à imprensa, não acontece nada aos homens que a levaram à morte.

Quem a matou foi o pai dela! - gritou Morel.

Pelo menos podíamos arruinar-lhes a reputação - disse eu.

Numa voz lenta, suplicante, Morel respondeu:

Podemos arruinar as reputações deles apenas se deixamos que todos veem o que acontece a Sandi. A cara dela no minuto dezassete vai acabar na internet. Há milhões a verem. E Susana não sobrevive a uma coisa dessas. E eu também não. Por isso a questão agora é, Monroe, o senhor quer matar-nos, a mim e a ela?

Ao desligar, dirigi-me para o meu quarto e fechei a porta com cuidado porque não queria atrair a atenção para a minha decisão de abandonar um mundo onde Sottomayor e os amigos nunca haveriam de pagar pelos seus crimes. Não nos deveríamos recusar a jogar se as regras favorecessem sempre o outro lado? Não seria nosso dever moral fazer greve?

Logo que me vi sozinho, retirei as ligaduras do ombro e pus-me nu diante do espelho. Examinando os sulcos entrecruzados das cicatrizes - mais profundas e feias do que temera -, pedi perdão à minha mãe, porque me trouxera ao mundo sem uma imperfeição e me amamentara com o seu leite. Era caso para me perguntar se não deveria ter cuidado melhor de tudo o que ela me dera.

Depois de correr as cortinas, fiquei sentado no escuro, tentando compreender como tinha chegado àquele impasse. Onde estaria agora se tivesse morrido? Uma pergunta que não faz qualquer sentido, mas que repeti uma e outra vez, como se chamasse aos gritos na escuridão por alguém que em breve desapareceria sem deixar rasto.

Nessa noite, Ana fez a receita de Leonardo da Vinci de polenta com ameixas a ver se me punha mais bem-disposto, mas recusei-me a sair da cama. Nati trouxe-me o jantar numa bandeja. Observando a apreensão no seu olhar, lembrei-me - com um estremecimento violento, como se um foguetão me atravessasse a cabeça - que andara enervadíssimo por causa do projeto sobre Bossa Nova. Pedi-lhe desculpa por não o ter ajudado.

Tudo bem... Já passou à história - disse ele.

Não é tanto assim - retorqui. - Foi só há duas semanas.

Isso foi antes dos tiros. - Reprimiu as lágrimas.

Foi assim que soube que a curta vida do meu filho tinha já um «antes de» e um «depois de», tal como a minha. Fora uma estupidez não ter compreendido a profundidade do seu sentimento. Quando o abracei, o seu peito delicado, tremendo contra o meu, fez com que me apercebesse pela primeira vez de que havia já nele um bom bocado do meu próprio passado, transmitido de maneiras que tinham escapado ao meu radar. Compreender isso era o suficiente para me fazer regressar - por breves instantes, esperando sentir o menos possível - à minha própria versão do inferno.

Contei-lhe - com arrancos e hesitações intermitentes - a primeira vez em que o meu pai nos tinha submetido a uma prova, a mim e a Ernie.

Agarrava a mão de Nati enquanto falava, e ele não ofereceu resistência. Deve ter sentido que eu não podia fazer aquilo sozinho. Talvez também tivesse já compreendido que tocar alguém era para mim um enorme conforto nos piores momentos. Quando acabei, perguntou-me:

O teu pai voltou a fazer-te isso mais alguma vez?

Fez, claro. E às vezes eu não conseguia encontrar o Ernie a tempo e então ele maltratava-o. Causou ferimentos sérios ao teu tio.

Então não havia motocultivadora?

Tínhamos uma motocultivadora, sim, mas não foi com isso que o Ernie perdeu meia orelha.

Deviam ter fugido! - exclamou o meu filho, como se o meu irmão e eu tivéssemos ainda uma hipótese de escapar; a implacável fronte ira entre passado e presente também se revelara impossível de aceitar para mim quando tinha a idade dele.

Expliquei-lhe que, quando íamos a caminho de Crawford, Ernie e eu compreendemos que, se fugíssemos, o nosso pai poderia dar uma lição definitiva à nossa mãe, e que a culpa seria nossa. Nati fez um sinal de assentimento como se compreendesse exatamente o que estivera em jogo, mas percebi que não fazia a mínima ideia do que eu estava realmente a falar. O que provavelmente era bom.

Tu e o teu irmão... é como se vocês não fossem ... não fossem como as outras pessoas - disse ele, encolhendo os ombros num gesto de frustração, por não ser capaz de encontrar as palavras certas.

Talvez os miúdos que crescem nas condições em que nós crescemos não consigam ultrapassar as barreiras que os mantêm separados uns dos outros. A individualidade não está tão protegida. Em certas circunstâncias, podem fundir-se uns nos outros. Acho que o teu tio e eu fomos quase uma só pessoa durante algum tempo.

Nati acenou a cabeça para mostrar que compreendia o que eu queria dizer.

Ouve, pai - disse ele, num tom de quem se prepara para dizer algo de que o outro pode não gostar. - Não quero que voltes para aquele trabalho. Nunca mais.

Antes que eu pudesse responder, desatou a chorar. Ana surgiu a correr. Depois de o termos acalmado e de os dois se terem retirado para a sala, compreendi que ia fazer o que o meu filho me pedia. Não via outra saída, de facto.

Quando nos deitámos, enquanto se enfiava debaixo dos lençóis, Ana perguntou-me se eu ainda estava em greve.

Acho que sim.

Então fazer amor comigo está fora de questão?

Posso abrir uma exceção só por esta vez. Isto, se conseguirmos encontrar uma posição em que eu não tenha de usar o ombro que me dói.

Vais ver como sou criativa.

Mas primeiro tenho de te perguntar uma coisa.

O quê?

Ficavas chateada se eu não voltasse para a Judiciária?

Hank, isso é por causa do Nati?

Pelo tom dela, calculei que me diria que o nosso filho não tardaria a habituar-se de novo ao trabalho. E que tudo voltaria ao normal. Mas eu não queria que as coisas voltassem ao normal. Isso seria uma afronta ao que eu tinha visto no minuto 17h43.

Não. É por minha causa - retorqui. Contei-lhe aquilo dos homens na torre e disse-lhe que não voltaria a trabalhar para eles, que não tinha ainda descoberto como os iria combater, mas que o faria. - Talvez descubra onde é que Sottomayor gosta de ir jantar e pague a algum cozinheiro para lhe pôr cianeto na comida - rematei. - Talvez o fim dele chegue quando menos o esperar.

Ana riu-se. Pensava que eu estava a brincar.

Enquanto a abraçava, ocorreu-me que tinha entrado em greve não tanto para protestar contra a injustiça no mundo, mas para não me deixar levar numa vingança violenta contra Sottomayor.

Imagino agora que muito do que disse a Ana nesse dia deve ter parecido coisa de lunático ou paranoico. Talvez ela tenha pensado que eu tomara analgésicos a mais nas semanas anteriores. E provavelmente assim fora. No entanto, ouviu-me sem me interromper e, quando acabei, beijou-me nos olhos, no nariz e nos lábios. Passados uns instantes, ficou ela por cima e guiou-me para dentro de si, mas eu inverti as posições quase de imediato para que ficasse ela por baixo, precisando, acho, de voltar a saber qual era a sensação de estar na posição de comando mesmo que apenas por breves minutos.

Tive a primeira sessão de terapia há cinco dias. A minha psicóloga, Lena Carvalho, é alta e delgada. O cabelo, caído até aos ombros, é castanho e espesso. Tem uns olhos verdes sempre curiosos que – felizmente – parecem muitas vezes adivinhar quando estão a ser demasiado insistentes na busca dos pensamentos, desviando-se para me devolverem o direito a não falar demasiado sobre mim. Deve ter perto de quarenta anos.

«Há muitas coisas que nunca chegarei a compreender sobre esta mulher», pensei durante toda a primeira hora em que conversei com ela. O seu temperamento prático pareceu-me muitíssimo diferente do meu e tive a sensação de que ela conseguira uma fácil auto confiança. Os pais de Lena eram brasileiros, mas tinham vindo para Portugal quando ela tinha quatro anos. Doutorara-se na Universidade de North Caroline e falava um inglês fluente, embora, tal como muitos brasileiros, não conseguisse pronunciar o L antes de outra consoante. Por exemplo, diz «fayot» em vez de «felt».

Fico contente por ser mais fluente do que ela em inglês. Acho que é justo ter uma pequena vantagem.

Lena e eu falámos durante duas horas a fio, o dobro da duração habitual das sessões. Quando me perguntou de que queria eu falar, respondi:

Há uma data de coisas de que provavelmente devia falar.

Escolha uma.

Acabei por conversar sobre o desaparecimento do meu pai quando eu tinha catorze anos, e como continuo à espera de que ele apareça. Chegando à mesma conclusão a que eu chegara, ela disse:

Talvez haja mistérios que preferimos deixar por resolver.

Concordei com ela, mas expliquei-lhe que acreditava que agora estava preparado para saber o que tinha acontecido ao meu pai.

Então haveremos de o descobrir juntos - encorajou-me.

O seu sorriso deixou-me tenso, como se estivesse a tentar enganar-me. Não consegui impedir me de responder num tom duro:

Não vejo como, a não ser que tencione ir até ao Colorado comigo e seguir uma pista que se perdeu há trinta anos. Ou que esteja em contacto com Nathan.

Nathan?

Expliquei-lhe quem era Nathan e falei-lhe na possibilidade de ele ter matado o meu pai ou arranjado alguma maneira de o forçar a sair dali, embora não tenha dito nada sobre a possível ligação dele com Ernie.

Era uma coisa que teria de esperar.

Talvez - disse ela. - Mas estou a jogar na hipótese de haver coisas a que pode não ter ligado na altura... pistas que guardou na memória e a que nunca prestou atenção. Posso ajudá-lo nisso.

Falava como se desejasse persuadir-me de que seria uma aventura - como a viagem de jangada do Huck Finn Mississippi abaixo -, o que me fez soltar uma gargalhada, porque voltar à América comigo não haveria de ser uma viagem nada pitoresca.

Mais ou menos a meio da sessão, referiu-se a Gabriel e perguntou-me se queria contar-lhe alguma coisa sobre ele, mas aquela frontalidade deu-me vontade de me esgueirar dali para fora.

Talvez prefira escrever - sugeriu.

Escrever como?

Comece por me escrever cartas a falar nele. Já fiz isso com outros pacientes. Há muita gente que consegue escrever aquilo que não é capaz de dizer.

Não sei bem - respondi, uma maneira de dizer (não)

Pense nisso. Não há pressas. Um passo de cada vez.

Já muito perto do fim da sessão, quando Lena me perguntou se havia mais alguma coisa que eu precisasse que ela soubesse antes de darmos por terminada a consulta, falei -lhe do dia em que a minha mãe morreu. Confessei que quando me sentia mais zangado com ela e sozinho, desejava que tivesse sofrido imenso durante dois ou três segundos.

É o pensamento de que mais me envergonho - expliquei-lhe - e não quero voltar a pensar isso.

Porque...?

Porque isso me faz sentir muito má pessoa.

Há vezes em que está certo ser-se má pessoa. Pelo menos, é humano. Não tem direito a ser humano?

Acho que não quero ser humano dessa maneira.

Esses maus pensamentos acerca da sua mãe... Que aconteceria se Ana e os seus filhos soubessem disso? Eram capazes de ficar com muito pior opinião de mim.

E depois o que acontecia?

Podia perdê-los.

Acha que Ana o deixaria e levaria os filhos com ela porque você uma vez ou outra teve maus pensamentos acerca de uma mãe que o abandonou?

Ela não nos abandonou! - respondi com uma raiva que me deixou chocado.

Se compreendi o que me contou, ela matou -se quando você e o seu irmão eram pequenos. Não é assim?

Não compreende. Ela não tinha-alternativa.

Talvez não tivesse, mas a verdade é que o deixou a si e ao seu irmão numa altura em que não podiam tomar conta de vocês. Mas voltemos à sua mulher por agora. Tenho a impressão de que acha que ela também o poderia abandonar.

Ficou furiosa comigo há tempos. Senti imenso medo de nunca mais a ver.

Mas ela fez as pazes consigo. Não o abandonou.

É verdade.

Será que o seu medo está ligado ao que a sua mãe lhe fez.

Lena sugeria que eu não vira o óbvio. E talvez assim fosse. A vergonha fez com que me encolhesse.

Em que está a pensar? - perguntou ela.

Que fui um grande desapontamento para a minha mãe - respondi.

Se assume a culpa toda, a sua mãe fica com todo o espaço para ser uma pessoa maravilhosa. Tem consciência disso?

Depois da sessão, saí para o dia ensolarado fora do prédio do consultório, tão grato pelo calor e a luz que fechei os olhos e abri os braços como se estendesse as asas. Voltei a mim duas horas mais tarde num banco da Praça da Alegria. Tinha no bolso um maço de Marlboro com dois cigarros a menos e um pequeno isqueiro azul.

G tinha atirado as canadianas para o meio de uns arbustos atrás do banco. Depois de as ter recuperado, desci a coxear a Avenida da Liberdade e apanhei o metro para a Baixa, de onde segui para casa no elétrico 28.

No dia seguinte, logo a seguir ao almoço, Gabriel levou-me de novo para o mesmo jardinzito descuidado. Fiquei a observar uma velhota a tricotar uma roupinha de bebé amarela, um barbudo em fato de treino a fazer jogging colina acima, uma mulher nova a passear o cão, um collie saltitante e gorducho, e muitas outras pessoas que passavam apressadas. Davam a impressão de fazerem parte de uma grande exibição que se desenrolava diante dos meus olhos. Fiquei sentado, completamente imóvel, de modo a apreciar a liberdade de não ter de fazer parte do espetáculo.

Mais tarde, seguindo Alfama acima no elétrico, apercebi - me de que parecia ter aterrado fora do fio do tempo, num planeta extremamente pequeno que era só meu.

Estar em greve parecia uma coisa muito boa.

No dia seguinte, porém, pouco depois do meio-dia, voltei a mim na Avenida dos Estados Unidos da América. Passei a coxear pelos enormes e horrorosos blocos de apartamentos em direção à estação do metro Roma. Só depois de ter entrado no comboio me ocorreu que tinha estado em frente do prédio onde Forester e Sottomayor moravam.

Três quartos de hora mais tarde, enquanto esperava o elétrico do costume, um rapaz pediu-me lume e, ao procurar no bolso o isqueiro de G, descobri o anel de Sandi. Apertando-o na mão, percebi o que G me estava a dizer, mas não estava preparado para largar o meu pequeno planeta. Escrevi na mão: «Dá-me tempo para pensar.»

Na manhã seguinte, G escreveu em resposta: «Se me deres algum tempo também.»

Pensei em telefonar a Luci Rara lhe entregar o anel como prova mas parecia-me agora inteiramente possível que ela tivesse sido escolhida pela gente de cima como a pessoa ideal para conquistar a minha confiança e lhes passar informações sobre mim. Talvez a tivessem mandado roubar a pen de Coutinho e apagar o disco duro de Sandi.

Gostava muito de Luci, e era quase impossível imaginar que ela me pudesse ter traído, mas tornava-se muito claro nesse preciso momento que não devia confiar em mais ninguém senão na minha família. De qualquer modo, não podia arriscar-me a que ela voltasse a pensar naquele caso. Quando estivesse pronto para entrar na nova etapa da minha vida, haveria de a convidar para jantar, a ela e ao marido, e teríamos então uma longa conversa.

Há dois dias, descobri o que G queria dizer ao certo com aquele «Se me deres algum tempo também»; perdi o meu rasto das duas da tarde até às cinco e voltei a mim em casa, na cozinha, com uma chávena de chá quente à minha espera na bancada, ao lado de um boião de mel. Tinha dois talões de correio expresso enfiados no bolso. Um embrulho fora enviado a Tom Bagnatori do Ministério Público, na Avenida Marechal Câmara, no Rio de Janeiro; e outro a Denis Gershon da Procuradoria da República no Quai des Orfèvres, em Paris. Cada um deles pesava 148 gramas.

Ao verificar o registo de chamadas do meu telemóvel, descobri que G tinha feito três telefonemas para o Rio de Janeiro nos últimos três dias e dois para Paris. Ao ligar para o número do Brasil, confirmei que se tratava do do Ministério Público. E o mesmo se passava em relação ao francês.

Era óbvio que, ao contrário de mim, Gabriel não se sentira limitado por escrúpulos morais em relação a Susana e a Morel.

O remetente que usara era inventado, e o nome – Santorini – era o nome de solteira de Ana. Para pôr à prova a minha teoria sobre o que ele tinha enviado para o Brasil e para França, liguei para Joaquim.

Olá, Henrique, ainda bem que telefona - disse ele num tom aliviado.

Então porquê?

Nem me parecia o mesmo quando cá veio.

Tenho andado um bocado desorientado ultimamente - retorqui.

Mas, oiça, liguei-lhe porque me esqueci de lhe perguntar quanto lhe devo pelas cópias dos DVD que me fez.

Deve estar a brincar, Henrique. Se apanhar aqueles sacanas, eu é que lhe pago! Bagnatori ligou ontem ao fim da tarde, pouco passava das sete horas em Lisboa. Pediu para falar com Gabriel Santorini e disse-me que acabara de ver o DVD que eu lhe tinha mandado.

Uma gente inacreditavelmente ruim - disse ele no seu português cantado do Brasil.

Sim, ficaria muito contente por vê-los processados.

Quem não ficaria? - retorquiu Bagnatori e acrescentou que andava há anos a reunir provas contra Forester. - Como lhe disse ao telefone, andamos há muito tempo farejando a merda que deixa por onde passa.

Então porque ainda não o prenderam? - perguntei.

Está bem relacionado e é esperto. E as meninas não estão dispostas a testemunhar contra ele. Tem de compreender que muitas delas são tão pobres que nunca tinham estado num hotel. Ele leva-as a lojas em Ipanema para escolherem roupas de Nova Iorque e ao Palace Hotel de Copacabana para beberem champanhe francês. Elas nunca tinham visto um lustre de cristal. Nem empregados de smoking. Vêm das favelas e descobrem o prazer de dormir numa cama com lençóis de cetim.

Nem se importam que um porco de sessenta anos se ponha a arfar em cima delas durante uns minutos. Acham que é uma coisa a que tem direito por lhes comprarem tantos presentes.

Há alguma coisa que se possa fazer em relação aos outros homens que aparecem no filme? Quando falámos, disse-me que um deles vivia em Portugal e o outro em França.

Sottomayor, o sujeito da bengala, vive aqui em Lisboa. O gordo, Gilles Laplage, vive em Paris.

A não ser que eles venham ao Rio, não posso fazer nada. Já lhe tinha dito isso.

Se eles são amigos do Forester, talvez conseguisse atrair um deles, ou os dois, de alguma maneira, a ir ao Brasil. Talvez possam prender mais facilmente estrangeiros do que brasileiros. Ele desatou a rir-se.

Alguma vez esteve no Rio, Monroe?

Não.

O turismo sexual é a principal indústria local. Dezenas de milhares de europeus e americanos chegam ao Rio todos os meses, prontos a beber caipirinhas e a foder bundas brasileiras até que as picas lhes caiam.

Sempre achei a palavra «bunda» feia. Respondi com silêncio.

Oiça, eu sei que ficou desapontado - continuou -, mas as coisas são como são. Não havia de gostar que eu mentisse. Se começássemos a prender homens como o Sottomayor por ir para a cama com algum brotinho bem jovem durante as férias, então os nossos hotéis de luxo iam à falência e o meu chefe lixava-me a mim!

Denis Gershon ainda não telefonara. Não esperava que o fizesse. Já não tinha a mínima esperança de convencer quem quer que fosse numa posição de autoridade a tomar o meu lugar neste combate.

Quando falhamos em qualquer coisa, torna-se presente o que é possível e o que não é, e tenho a sensação de que talvez soubesse desde o princípio que isto não ia acabar de maneira satisfatória. Pensava ultimamente que não conseguia ouvir as mensagens que o mundo procurava dizer-me, mas é possível que já as tivesse ouvido e não pudesse simplesmente aceitar o que tinham para me dizer.

E no entanto também é verdade que a ideia de embarcar numa lenta e solitária campanha em favor da justiça - inteiramente em segredo - ainda me atrai. Ao fim e ao cabo, daqui a um ano ou dois - ou quem sabe dentro de alguns meses -, Sottomayor vai de certeza sentir a falta do prazer oculto de mandar uma rapariguinha de treze anos ajoelhar-se diante dele. Dada a sua personalidade, parece-me pouco provável que desista de tais prazeres extracurriculares só porque um dos seus parceiros no crime teve um fim violento. Ou por ter tido algumas dificuldades com um polícia nascido no Colorado e que nem sequer fala português corretamente.

Tenho de estudar atentamente os seus hábitos, claro. E saber tudo sobre ele. A parte mais difícil será engendrar um plano para o apanhar numa armadilha que não me ponha em risco a mim nem a ninguém que eu ame. Naturalmente, é possível que venha a reconhecer que isso não é de modo algum realizável, que ele está demasiado alto na torre para que o possa alcançar. Mas a minha infância tornou-me inventivo e paciente. E também meticulosamente ardiloso. Acho que seria estúpido apostar contra alguém que sobreviveu ao que eu sobrevivi. Os dois, eu e Gabriel.

Um trabalho de detetive privado? É provavelmente aquilo para que andei a preparar-me a vida toda.

 

Estamos a 11 de agosto de 2012, um sábado. Acordei de madrugada e contemplei o rosa e ouro do nascer do Sol sentado à janela do quarto. Ainda pensei em flutuar por aí fora em direção àquela cor, mas decidi que ficava melhor com Ana e com os miúdos.

Quando me pus de pé para descer para o andar de baixo, a minha mulher voltou-se e disse-me numa voz semiadormecida que quase se tinha esquecido de que me devia cinquenta euros, pois o meu subsídio ainda não fora cancelado. Disse-lhe que a levava a almoçar, a ela e aos miúdos, ao Nood com aquele balúrdio e ela dispôs os lábios para um beijo. Depois de eu a beijar, deitou-se de barriga para baixo e voltou a adormecer.

Na noite anterior decidira devolver o anel de Sandi à mãe, mas, depois de comer os meus flocos de aveia, não o encontrei no armário das especiarias onde o tinha deixado, o que queria dizer que Gabriel não estava ainda pronto para se separar dele. Procurando-o, ocorreram-me outras ideias e, enquanto esperava que o chá estivesse pronto, fui buscar ao seu esconderijo a caixa com os tesouros da minha mãe e rasguei a fita amarelecida com que a tinha selado vinte anos antes. O livro de Pablo Neruda, Vinte Poemas de Amor, estava no fundo, sob os retratos a carvão que ela fizera quando eu era pequeno e a antiga pregadeira de ametista que usava sempre para ir à igreja, além da minha metade do baralho. Não sabia que andava à procura do livro, mas, quando vi a capa - um papagaio de papel voando num céu de um azul pálido o meu coração começou a bater mais depressa.

Quando abri o livro na página de guarda, uma flor caiu - uma erva-pombinha dourada.

Voltei a colocar no sítio a flor de um amarelo apagado, fina como papel, e comecei a folhear o livro. Tinha um cheiro acre, a pó e vinagre.

Ao abrir a primeira página, descobri que tinha sido impresso em 1942 na Colección Cometa. Como é que ainda me lembrava passados tantos anos que a citação que eu procurava pertencia ao décimo quarto poema?

Te traeré de las montanas flores alegres, copihues,

Avellanas oscuras, y cestas silvestres de besos.

Quiero hacer contigo

Lo que la primavera hace com los cerezos

Havia muito da minha mãe simplesmente no modo como tinha traçado a linha bem direita com que sublinhara aquelas palavras maravilhosas.

«A ponta do seu lápis tocou exatamente aqui», pensei, carregando com força na primeira linha, de modo a que uma fração da grafite passasse para o meu dedo e se tornasse parte de mim. «A minha mãe olhou para esta página, exatamente como eu agora a olho.»

Enquanto tomava o pequeno-almoço, liguei a Ernie porque, depois de ter lido Pablo Neruda, finalmente compreendera o que a nossa mãe mais tinha desejado para nós. Ao mesmo tempo que me debatia com a dificuldade de exprimir por palavras quanto me sentia próximo da mãe, compreendi que o que ela desejava tão ardentemente tinha de facto acontecido, o que queria dizer que não precisava de entrar em grandes explicações.

Vivemos umas aventuras bem boas, não vivemos? - acabei por perguntar.

É verdade, tem sido espantoso! - replicou ele na sua voz de irmão mais novo.

E ainda não chegámos ao fim.

Não, ainda aí vêm uma data de coisas boas nos próximos anos.

O entusiasmo dele dispôs-me a falar-lhe da minha terapia. Quando acabei, disse-me que tinha feito muito bem. E propôs ainda ajudar-me a pagar as sessões.

O meu subsídio cobre as despesas - disse eu.

Então, vou começar a pagar-te, a ti e à Ana, o que vocês fizeram por mim estes anos todos. Ernie, assaltaste algum banco ou quê?

Não. Vendi dois quadros.

Não compreendo.

Dois dos meus quadros com flores... Vendi-os. Há duas semanas.

Porque não disseste nada?

Tinhas acabado de sair do hospital e pareceu-me que não era boa ocasião, e depois começámos a falar de outras coisas e, seja como for, estou a dizer-te agora.

À distância dos quase cem quilómetros que nos separavam, podia ver o sorriso de um homem correndo tão adiante das expectativas que tínhamos para ele que já não conseguia sequer avistá-las.

Quem os comprou? - perguntei.

O dono de um restaurante, o Jardine Bistro, em Wivenhoe, Inglaterra. Chama-se Christian. É de origem suíça, mas vive em Inglaterra há muito tempo.

Como é que soube do teu trabalho?

Uma das amigas dele, que se interessa por flores, descobriu os quadros na minha página do Facebook. Chama-se [o. Falou em mim ao Christian. Estou em contacto com os dois.

Tens uma página no Facebook?

Tenho. Criei-a aqui há uns meses.

E este tipo comprou dois quadros?

Comprou.

Sem os ver pessoalmente?

Tenho imagens em alta definição na minha página. Também tirei uns primeiros planos dos pormenores mais importantes e mandei-lhos pelo correio.

Ernie, quanto te pagou ele? - perguntei num tom suspeitoso; estava com medo de que o dono do restaurante se tivesse aproveitado dele.

Mil euros.

Pelos dois?

Não, por cada um.

Era muito mais do que estava à espera, mas havia qualquer coisa que não jogava bem.

Pediste mil euros por cada quadro? - perguntei.

É um preço demasiado elevado, bem sei, mas...

Não é nada demasiado elevado! - exclamei. - Só estou espantado por teres pedido um preço decente.

Pedi tanto a ver se ele não os comprava.

Não estou a perceber.

Os que ele queria eram os quadros de que eu gostava mesmo e não sabia bem se os queria vender; por isso, pedi um valor absurdo, mas ele aceitou-o. O tiro saiu-me pela culatra! - Riu-se com gosto. Ouvindo-o, dava-me a impressão de que acabara de escalar uma encosta ensolarada dentro de si próprio.

Ernie disse-me que tinha vendido uma grande paisagem do Black Canyon e um retrato de Rosie a dormir no seu pequeno tapete.

Já recebeste o dinheiro? - Ainda estava a ver se não haveria nada a cheirar a esturro naquele milagre.

Já. O Chris fez uma transferência anteontem. E programou uma exposição do meu trabalho no restaurante. Tem obras de arte nas paredes. Muda-as ao fim de três ou quatro meses. A minha começa em fins de novembro. Diz ele que em Inglaterra as pessoas ainda fazem compras no Natal. .. A crise lá não é tão grave como aqui.

Não queria chorar diante dele, mas também não queria desligar. Por isso, fiquei a meio caminho e não disse nada.

Ainda aí estás?

Mais ou menos - murmurei.

Pois, eu também fiquei um pouco espantado - disse ele. - Seja como for, imagino que posso pagar metade do que recebi até agora e ainda fico com dinheiro que chegue para me aguentar a mim e ao jardim por uns tempos.

Ainda não consegui afazer-me à ideia do sucesso de Ernie. Gostava de conhecer Chris e [o, duas pessoas capazes de ver o talento do meu irmão. Ernie concordou com a ideia de irmos a Wivenhoe à abertura da exposição. Disse logo que ia beber uma boa dose de chá de valeriana antes do voo para acalmar os nervos. Terei Valium à mão para o caso de o chá não bastar.

Estive a ver o Jardine Bistro na internet. Parece uma enorme casa de tijolo. Pelo que diz a Wikipedia, Wivenhoe tem cerca de dez mil habitantes e fica na margem do rio Colne. No site do British National Rail, descobri que podemos lá ir no comboio que parte da estação de Liverpool Street em Londres. A viagem não dura mais do que uma hora e cinco minutos. Os voos de Lisboa para Londres duram apenas duas horas.

Calculo que possamos ficar em Londres duas noites e depois apanhar o comboio para Wivenhoe. E daí, para festejarmos o sucesso de Ernie, vamos à Escócia, pois tanto ele como eu sempre desejámos ver Loch Ness. Talvez Ana possa conhecer alguns transexuais para entrevistar em Glasgow ou em Edimburgo.

É estranho que nunca me tenha ocorrido que podíamos ir com tanta facilidade a um país onde se fala inglês. Só pensar em estar lá deixa-me zonzo - como se, chegando o momento de passar o controlo de passaportes, estivesse a ultrapassar tudo o que alguma vez esperei para mim e para Ernie. Talvez ver os quadros dele numa exposição queira dizer que posso deixar de estar sempre a fazer comparações entre o que somos e aquilo que poderíamos ter sido. Espero sinceramente que sim, mas penso que só o descobrirei quando isso acontecer.

Durante as três últimas noites, depois de Ana adormecer, tenho-me sentado à secretária dela na sala e escrito a Lena sobre Gabriel, começando na altura em que eu tinha oito anos e ele me escreveu a primeira mensagem na mão, embora lhe tenha contado bastante mais do que simplesmente como e por que razão ele vem ter comigo. Tentar transmitir sentimentos que não compreendo inteiramente faz-me gaguejar interiormente e obriga-me a reescrever bastantes coisas. Apercebi-me de que era impossível falar-lhe de G sem explicar também muitas coisas sobre os meus pais e Ernie. E porque tenho finalmente de parar de mentir.

Esta manhã, descobri que gosto de fazer as camas e de arrumar os quartos dos miúdos. Ver os lençóis bem esticados e prontos para os receberem... Que mais poderia desejar? Ana compreendeu. Enquanto me observava a limpar as janelas de Nati, contou-me coisas que nunca antes me dissera, sobre ir de bicicleta para o porto de Buenos Aires quando era nova para assistir à descarga dos barcos enormes, e sobre as cortinas de veludo vermelho do bordel onde o tio [avier tinha arranjado um emprego a tocar piano - apenas uns poucos meses antes de ter desaparecido - e como o pai costumava mostrar-lhe as constelações no céu noturno. Penso que ela me contava todas estas coisas porque sabia que eu ouviria o que dissesse sem interromper as minhas limpezas.

E o que compreendi foi o seguinte: que o som da sua voz - vagueando através de memórias de infância - era igual ao da minha própria ânsia de amor, que nunca teria fim.

Ernie disse-me que vinha cá amanhã à tarde. Trará as nossas luvas de basebol. Vamos treinar pela primeira vez em trinta anos, no Largo de Santa Marinha, e ele não me vai dar baldas; vai lançar a bola com toda a força e obrigar-me a dar a volta ao largo, porque diz que preciso de fortalecer o ombro e a perna feridos. Diz que, se ficar satisfeito com os meus esforços - e se eu não começar com aquilo que chama as choraminguices do costume! -, depois me leva à cafetaria da Gulbenkian para uma dose dupla de musse de pera abacate.

A seguir, vai conduzir-nos até ao bairro de Coutinho. Quero dar uma espreitadela à casa abandonada com a claraboia partida, mesmo por trás da dele. Já tenho a escada, o pé de cabra e as lanternas no carro.

Duvido de que descubra quaisquer provas que valham a pena, mas aquela casa e as balas que me acertaram estão relacionados, e preciso de o ver com os meus próprios olhos.

Ter ficado as portas da morte mudou uma data de coisas, naturalmente. Quando se tem um irmão mais novo com trinta e oito anos, mas que ainda não está inteiramente convencido do seu direito a estar vivo, acaba-se por fazer praticamente tudo o que ele nos pede, como eu, que lhe telefono todas as noites antes de me deitar, e encomendo a viveiros de França e de Itália sementes para o seu jardim, e uma vez ou outra lhe lembro que, quando a barriga da mãe começou a crescer com ele lá dentro, costumava pôr-me a imaginar como iria ele ser, e haverá vezes, em momentos de particular ternura, que sou mesmo capaz de lhe dizer que meses antes de ele vir ao mundo eu sabia já a cor que os seus olhos teriam e como seria a textura do seu cabelo e o hábito que viria a ter de puxar as orelhas enquanto lê e o cheiro que o seu pescoço teria quando estivesse com sono e uma data de outras coisas. Foi assim que vim a compreender - sem ser capaz de encontrar palavras para o dizer - que desejar uma coisa com suficiente intensidade pode torná-la real.

Quando temos um filho adolescente, é possível que nos perguntamos se podemos pentear-lhe o cabelo depois do duche ou ajudá-lo a vestir a sua T-shirt favorita pelo simples prazer de tocar o que o tempo nos vai roubando, e sabemos que o estamos a irritar com cada olhar que se prolonga um pouco mais, e quando insistimos em lhe ensinar o jitterbug, mas compreendemos também que a sua exasperação é o preço que temos de pagar para nunca esquecermos que a vida dele e a nossa não estão de modo algum tão separadas como somos levados a crer.

Se tivermos um filho de sete anos, então, temos sorte, porque naquelas noites em que não conseguimos dormir - e são muitas - podemos enfiar-nos sorrateiramente na sua cama e ele há de enrolar-se em volta de nós como se fosse de borracha e tivesse membros elásticos, fosse todo ele confiança e sono, e há de respirar encostado à nossa cara, e talvez, num dado momento, o ir e vir das suas costas contra o nosso peito apague todas as fronteiras entre os dois. Teremos a noção de como este amor imoderado que sentimos por ele poderá, um dia, fazer com que finalmente deixemos de temer a nossa própria morte. Haveremos de lhe comprar uma bicicleta, naturalmente, e prateada - «Tal qual a tua, papá!» - e ensinar-lhe a andar nela, como eu, que parti com o meu filho à aventura pelos campos perto da casa de Ernie, e, apesar de o perigo de ele ter aí algum acidente ser mínimo, o obriguei a usar o capacete, porque há coisas que valem a pena o risco e outras não, e é importante conhecer a diferença.

E, se tivermos uma mulher que aceitou passar por cima dos nossos maus modos e má educação, pelo menos a maior parte das vezes, então haveremos de a apertar na cama mais fortemente do que nunca e fazer como eu fiz, que prometi continuar a ir às sessões de terapia todas as semanas. Num momento de maior tranquilidade, talvez possa até admitir que estou longe de ter acabado a minha busca de justiça, ainda que tenha dito o contrário a toda a gente, mas que ela tomará outra forma se quiser continuar a ser a pessoa que quero ser; poderei mesmo arriscar-me a parecer idiota e dizer-lhe que estamos sempre a flutuar sobre as cidades e os campos dentro de nós, aproveitando os ventos interiores mais impercetiveis por cima dos telhados e escadarias e parques e canyons, em Portugal e na América e na Argentina e em qualquer outra parte, mesmo quando estamos certos de não termos forças para nos levantarmos de uma cama de hospital.

Se pensarmos a sério que estivemos quase a morrer, como eu estive, então chegaremos à conclusão de que não compreendemos grande coisa do modo como a vida funciona - as suas adições e subtrações, os que desaparecem e os que não desaparecem -, mas está bem, pelo menos por agora, porque independentemente do que aconteça ainda, haveremos de nos enfiar na cama todas as noites ao lado da pessoa que gosta de aconchegar os seus pés frios entre as nossas pernas, e nos deixa beijá-la onde quisermos. Pode ser que um dia ela nos permita mesmo dar início a uma nova vida dentro dela e, se tudo correr como previsto - e, naturalmente, quase nunca é o caso -, talvez desta vez seja uma menina.

E, quando se é uma pessoa como eu, acontece que por vezes, ao fazer amor com a minha mulher, numa pausa, fico a ouvir as andorinhas lá fora, tagarelando incessantemente sobre os mais fragrantes ventos de verão que conheceram e os maiores mosquitos que devoraram e sobre todas as dificuldades de viver em Portugal e sobre o que quer que seja - por mais fútil que pareça - que me apeteça sugerir-lhes. Pode acontecer, se estiver de humor filosófico, que me aperceba de que, mesmo que tivesse morrido umas semanas antes, esvaindo-me em sangue numa esquina de Lisboa, estas avezinhas de coração enlouquecido haveriam de continuar nos seus mergulhos de um lado para o outro do Largo da Santa Marinha – ou onde quer que ficasse a janela onde estivesse – falando umas com as outras sobre as mesmas surpresas e alegrias e desapontamentos e tristezas de que falam em qualquer outra parte do mundo.

 

                                                                                Richard Zimler  

 

                      

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