Qorpo-Santo
COMÉDIA EM TRÊS ATOS
PERSONAGENS: ESCULÁPIO FARMÁCIA (mulher deste) TRÊS MENINOS DE 12 ANOS UM MENINO DE 4 ANOS IDALINA LÍDIA (filhas de Esculápio e Farmácia) PLÍNIA FIDÉLIS (namorado de Farmácia) TAMANDUÁ (criado) TATU (criado)
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ATO I
CENA I Marido e mulher.
ESCULÁPIO Mulher! que tanto arrumas esta casa! Mexes p'ra-qui! mexes p'ra-li! remexes-te para acolá! Ora de vassoura! ora de agulha! ora de tesoura! (Deve o ator fazer todos os gestos que exprimirem tais remexidos) Sempre a arrumar! Sempre a desarrumar! Cruzes com semelhante mulher!
FARMÁCIA (varrendo) Cruzes com semelhante indivíduo! Sempre a pairar! sempre a ralhar. Ave Maria! Os anjos do céu me deem paciência para aturá-lo, já que os da Terra não têm forças suficientes para aquietá-lo!
(Nesta ocasião um filho de 3 a 4 anos passa do lado do pai para o da mãe com uma caixa de chapéu na mão a levar-lhe)
MENINO Mamãe, mamãe: pegue, o papai não quer! Guarde.
FARMÁCIA Para que eu quero isto?! Leva a teu pai; e diz a ele que arrume.
ESCULÁPIO É o dever das mulheres cuidarem de tudo quanto se acha das portas para dentro, inclusive os maridos.
FARMÁCIA Também é dever dos maridos cuidarem de todos os interesses seus e de sua Família, das portas para fora de uma casa, entretanto o senhor está aqui metido dia e noite, sem tratar desses deveres.
ESCULÁPIO Pelo que vejo quer a senhora censurar o meu procedimento; e dizer talvez que lhe estou usurpando um direito: o de governar a seu belprazer filhos, escravos, etc.
FARMÁCIA Isso não é coisa alguma! O senhor não querer ir à Tesouraria receber seus vencimentos, como funcionário público, é que me causa estranheza. Em que é que o senhor se fia? Em mim? Não é trabalho próprio de uma senhora. — andar por Repartições públicas recebendo honorários de seu marido. E o senhor melhor o sabe que eu! Não tem caixeiros, não tem criados; não sei portanto o que espera. Amanhã ou depois talvez não haja, nem para pagar o pão; entretanto o senhor anda aqui em roda de mim, como o ganoso peru da mais nova perua.
ESCULÁPIO És muito ralhona! Sempre estás a ralhar, porque passeio pouco! Que impertinência de mulher! Não pode ver o marido em casa, nem um só dia! Safa!
FARMÁCIA Como hei de querer vê-lo? Você não come? Não bebe? Seus filhos não gastam? Eu não preciso? Tudo acontece, e o senhor se admira; e ainda tem a audácia de chamar-me — ralhona! Depois, se falta, eu é que padeço! (Empurrando-o) Vá! Vá à Tesouraria buscar o que a Fazenda da Província lhe deve. (Pondo o dedo no nariz) Olhe, se você não for hoje, eu não faço mais caso de você! (Tocando com a direita nos dedos da esquerda) Não lhe hei de vestir! Não lhe hei de fazer a cama! Não hei de dormir com você! Não hei de passear! Não hei de fazer nada! Nada que você goste! Aqueles bolinhos da sua paixão; esses você não vê mais! Hei de fazer só para o meu namorado!
ESCULÁPIO Oh! oh! oh! A senhora com namorado! Por isso é que (apontando com o dedo polegar da mão direita) a sujeitinha não me pode ver em casa nem cinco minutos! — chama-me peru de roda, e não sei o que mais. Casada; com filhos; já de meia-idade; e ainda fala em namorados. Os namorados hão de pô-la em bom estado! Olhe, fique certa (pondo o dedo no nariz): o primeiro bem que eles lhe hão de fazer, ou primeiro elogio — é dizerem, e bom será que não digam em suas próprias faces ou bochechas — que a senhora não tem juízo. O segundo, é que a senhora já é velha; e por isso que são preferíveis mesmo que sejam 20 para namorar, as de 14, 15 e 16 anos. Terceiro, finalmente, que não estão para aturar além da senhora. — a seus filhos! Quer mais claro? bote-lhe água... Não: este pensamento é velho: bote-lhe luz.
FARMÁCIA Tu és o diabo! Ainda não vi um homem mais ciumento! Tudo ele faz nascer, ou pender, do, ou para o sentido, ou lado mau! Quase que ia dizendo — Arre lá contigo! Mas como me parece não ser expressão portuguesa; ou ser um erro contra as regras de sintaxe... salvo se quiséssemos fazer dessas palavras um advérbio de aversão ou de espanto; não direi. Mas... estás hoje algum tanto insuportável!
ESCULÁPIO Bravíssimos! A senhora hoje não só está a melhor governadora da casa, como da rua... é até gramática! Não nos diz alguma coisa sobre Retórica? Filosofia? História e Geografia!? Acho-a tão cheia de saber... que não posso deixar de lhe fazer uma tal pergunta. A senhora não se escandaliza, por que a faço!?
FARMÁCIA O senhor é que está hoje muito gracioso, ou engraçado! Tenha paciência; faça o que lhe digo; e deixe-me trabalhar na arrumação da minha casa!
ESCULÁPIO Bem; eu me retiro (pega o chapéu para sair). Adeus, meus Amores, minha querida; minha vida; meu Tudo! Adeus! Adeus! Até logo. Mande-me preparar algumas coisinhas boas para as duas horas, ou quando muito três da tarde.
FARMÁCIA Estás bem servido! Não me canso mais contigo.
ESCULÁPIO Então, não lhe trago dinheiro, esse metal precioso que tanto a encanta, e a que tanto a senhora se compraz em adorar.
FARMÁCIA Traga ou não traga; eu não me importo com coisinhas boas; já se foi o tempo, meu caro, em que a minha mãe (põe-se a chorar)... Deus lhe fale na alma, e a tenha em bom lugar — se cansava em lhe preparar!... e sempre vou falar dela: essa é que é a graça! Pensas que agora hás de fazer o mesmo comigo? Estás enganado, e muito enganado! Eu tenho muita gente por mim.
ESCULÁPIO (voltando)
Ui! que é isto!? (Mexendo-lhe com a mão no ombro) Enlouquecestes, menina?
FARMÁCIA Não sei. Vá-se embora.
ESCULÁPIO (à parte) O diabo que entenda esta mulher! Se não saio, incomoda-se porque estou em casa! Se saio, incomoda-se porque saio! De modo que é um mistério... e mistério incompreensível. Custa a crer! Se alguém te pudesse examinar, penso que encontraria em ti: — Mais folhas que em uma árvore. Mais tópicos que em um flos-santório! É o ente mais extraordinário que eu tenho visto (rapidamente) Só vendo, só vendo! Sempre é, foi, e será mulher, que não se pode comparar com um só objeto. E ainda eu não sei se a comparação que fiz acima está bem encaixada! (Note-se, durante o tempo que o marido fala, ela afeta chorar; soluça, conserva o lenço branco nos olhos, etc. Para ela, e de repente) Saio ou não saio!? Vou ou não vou!? Quer, ou não quer!? Diga! fale! eu não hei de estar aqui quase pregado à porta por tantas horas!
FARMÁCIA Não sei, faça o que quiser.
(Entram as filhas, brincando umas com as outras. Uma delas, cantando)
FILHA Nós já viemos da nossa vizinha: anda Irmãzinha, a Mamãe consolemos!
FARMÁCIA (voltando o rosto para as filhas menores de 12 anos, cheia de prazer dá o seguinte grito) Como elas são tão bonitinhas!
ESCULÁPIO Muito bem! Muito bem! Agora já tem com quem se entreter; portanto, retiro-me até às 3 horas da tarde. (Sai)
CENA II
FARMÁCIA Sentem-se, minhas filhas. Vocês hão de estar muito cansadas; com fome; com saudades da Mamãe, não é? Conta-me, Lídia, como está a tua camarada? E você, Idalina, há de me dizer como ficou o seu namorado; pois eu sei que já vai gostando do primo Pedrinho! Esta outra, eu sei que não namora, nem é de muitas camaradagens, por isso eu nada pergunto a ela.
IDALINA Ora esta, mamãe parece criança! Vejam só, sendo eu uma menina de dez anos, já hei de ter namorados! principalmente quando c certo, e eu sei, que Papai não gosta de namoros; nem de me ver junta a brincar com rapazes.
LÍDIA E eu que ainda sou pequenina; quem faz caso de mim? Que camaradas posso eu ter?
PLÍNIA Tem as duas bonecas! (Rindo-se) São bem boas, porque não se zangam; não choram; não incomodam a ninguém; nem pessoa alguma se incomoda com elas.
FARMÁCIA Vocês hoje vieram muito tralhonas, muito espevitadas! Está bom; chega; não quero mais conversar!
ELAS Esta mamãe é assim; se a gente não está, tem saudades; se está, zanga-se com nós! Está bom; está bom. Vamos nos embora; vamos, Lídia, levanta-te; não sejas preguiçosa. Vamos cantando. (Dão os braços, e cantam) A Mamãe consolar
Vieram as três filhinhas! Mas ela tem zanguinhas Que se não pode aturar
Assim vamos nos embora, à vizinha passear; Vamos ver ela bordar, Enquanto a Mamãe chora!
(Saem as três de braço como tinham entrado) FARMÁCIA (sozinha) Quando chegará o meu Jadeu? E como virá ele? Talvez alegre, talvez triste. Se lhe pagaram, há de vir contente; mas se o não fizeram... indignado! E que homem de gênio! É uma fúria quando o insultam! Bom como um Deus, quando o respeitam! E eu que o conheço... Mas (com um transporte da sisudez, para a alegria e leviandade) manguei hoje muito com ele! Ralhei, repreendi, e fiz ele sair sem ter vontade; afetei tristeza, fingi choro... fiz o diabo! Fiz-me de mulher muito respeitável; e fiz-me de criança muito leviana. (Batem à porta) Batem?... (escutando) quem estará aí? Deus sabe... o que quererá. Será velho, ou velha; moco, ou moça!? Eu ando tão aborrecida dos velhos e das velhas, que é coisa muita! Há momentos em que ao vê-los sinto o mais impertinente desejo de lançar! Na dúvida se será boa, ou má comida que me vem, esperarei que batam mais outra vez. (Trom, trom, trom) Oh! agora o fazem com mais força; c pancada de maçono! Suporão talvez que isto é algum Templo!? Ah! se fosse Fidélis que me viesse visitar... quanto eu estimaria!... E em que ocasião vinha ele consolar esta alma... animar este coração! — verei. (Aproxima-se da porta) Ah! é ele! Quem o trouxe a estas paragens, Sr. Fidelis?
CENA II
FIDELIS (entrando)
Minha Marília! minha adorada! Onde está o vosso aborrecido, insociável marido?
FARMÁCIA (que assim se chama a mulher) Passeia, meu amigo do coração!
FIDELIS Então, podemos estar aqui tranquilos?
FARMÁCIA Com toda a tranquilidade que pode gozar um espírito e prazer que pode fruir um coração!
ESCULÁPIO (a quem chamaremos — Larapio, bate à porta, com duas fortes pancadas, como costuma) Não importa que saiba, menina; tu és muito timorata. Ainda não sabes de uma coisa: trago aqui uma carta; vai-lhe abrir a porta; é falsa; mas farei-o- engoli-la como verdadeira!
FARMÁCIA Tu és muito ardiloso! É o que nos vale, senão estávamos perdidos! Perdidíssimos!
FIDELIS Não temas! vai. Vai, porque ao contrário poderá ele desconfiar; e isso será pior!
FARMÁCIA Sim; tens razão. (Aproxima-se à porta e abre) Meu... sim; és tu; já viestes; chegastes.
ESCULÁPIO (entrando sem reparar para Fidélis) Então, minha Farmácia; como passastes as longas horas que ausente de ti...
FARMÁCIA Já sei; ausente de mim, palpitou seu coração; enfraqueceu-se sua existência, etc., etc. Não é assim?
ESCULÁPIO (percorrendo os olhos pela casa, dá com Fidélis; para este) Oh! o senhor por aqui!? O que quer; o que faz? Perdeu alguma coisa nesta minha habitação!?
FIDELIS Vim de propósito (revelando certo receio em suas palavras e em seus gestos) trazer-lhe uma carta de um de seus maiores amigos. Ei-la. (Apreesenta-lha)
ESCULÁPIO (abrindo, e Fidélis escapando-se; aberta a carta, que nada tem escrito, Fidélis já se acha na rua) Que cachorro! Que audaz! Vir trazer-me uma carta branca! Que quererá dizer isto? Carta branca! Isto faz um Rei a um Presidente, quando neste deposita toda a confiança! Esperemos, ou refletiremos. O papel traz a coroa imperial. Querem ver que estou feito Presidente da Província?! e com carta branca. (Para a mulher, que até então, como é seu costume, estava calada, arrumando a casa) Sabes, minha queridinha? (Abraçando-a) Estou feito Presidente da Província; e com carta branca! (Salta; pula; toca castanholas; e faz o diabo — de alegria)
FARMÁCIA (à parte) Estou vingada! Ele sempre me chama de criança; nené; e não sei que mais. E agora está como o mais inocente menino. (Para o marido) Sim, estás muito contente! Estimo muito. Dinheiro pouco não terei; é só contos; pulos; danças; bailes; e nada mais! Com isso não fico satisfeita; nem o senhor feliz, se... seus filhos...
ESCULÁPIO Oh! (À parte) que sarna gálica! Nada há que a contenha! (Com certo desembaraço) Se estou sisudo, incomoda-se, porque estou sério; se brinco, zanga-se porque brinco. Deus ou o diabo que a entenda. (Para a Mulher) Senhora, já mandou preparar o que eu lhe disse que queria, quando voltasse?
FARMÁCIA Sabe que mais? — Não estou resolvida a aturá-lo mais. Adeus! adeus! (Saindo)
ESCULÁPIO (atrás) Vem cá! Vem cá, meu diabinho! Vem! Vem! (Voltando) E foi (com certo ar de tristeza) – se embora o diabo! (Mudando de tom) Esta mulher é ainda mais outras coisas além daquelas que eu já disse que era! — é a 5ª maravilha do Mundo! É a primeira graça do Universo! É o pendão da liberdade arvorado em todos os pontos do globo que habitamos!
FARMÁCIA (vigiando) Nhonhô! Está doente? Quer chá ou chocolate?
ESCULÁPIO (espantado) Que ouço? Será a voz dela? Estou com uma fúria! Quero e não posso, desejo e não faço; busco e não pego. Tenho nesta cabeça, às vezes, uma legião5 de demônios, como em outras, neste coração, um milhão de Deuses. Quando entrei, achei aqui um traidor; e quem sabe se um ladrão; se um assassino. Estou sempre em luta com estes malvados, sempre a mais perfeita moral está sendo a guia de meus passos! Os outros riem-se! Me indigno, e nada faço. Parece que o que se quer é gozar; gozar e mais gozar. Ninguém quer saber do modo; se lhe é lícito, ou ilícito, nem tampouco das consequências boas ou más que podem resultar! Vou (desembainhando um punhal), vou também ser um imoral! A primeira que encontrar de meu agrado, gozo-a; ou faço-a jurar ser amiga de quem eu quiser — com este ferro! (Dá uma volta, com o punhal levantado; e sai rapidamente)
ATO II
CENA I FARMÁCIA (só, e coberta com um longo véu)
Meu Deus! que será feito de meu marido! Ele saiu como um tigre capaz de devorar quantas presas encontrasse diante de si... que homem cruel, meu Deus! O que farei para vê-lo feliz? Se o maltrato, ele se incomoda; em não lhe dando se não desgosta; se lhe revelo afeto, ele se aflige, porque se lembra de minhas repetidas infidelidades lendo-as em meu semblante. Já não sei, meu Deus, o que hei de fazer para dar-lhe um viver como o meu. Ele é audaz; é querido; é estimado — desde o primeiro Monarca do Mundo até o mais ínfimo malvado. Não há classe alguma da sociedade que o não ame; que o não respeite. Entretanto, é (mudando de tom) esta vida sempre irregular — de prazeres; de dor; de martírio. Estará ele condenado a viver sempre em um contínuo flagelo? E eu a acompanhá-lo em seus desgostos!? Que sina é a minha! E que destino é o dele! Como o Céu é às vezes cruel para com os entes que cria! Tenho observado que tudo quanto existe tem uma parte de celeste, e outra de terrestre. Animais; plantas; árvores; flores; frutas: tudo! tudo é celestial-terreno ou terreno-celestial! Como Deus há ligado o Céu à Terra, ou esta ao Céu! É por isso que vemos, quer quanto às nossas boas ações; quer quanto às más; uma punição infalível; ou uma compensação generosa; e premeia aquelas de suas partes que merecem prémio; e castigo! Somos dela uma parte, tanto física como moral; ou espiritual e material: assim deve ser portanto. Sim; se os nossos pés marcham por caminhos firmes, limpos e seguros, nossos passos também são firmes, limpos e seguros! Mas se a estrada que pisamos é escabrosa, ora resvalamos; tropeçamos; cambaleamos; e algumas vezes temos o infortúnio de cair! O bem nos conduz e nos conserva feliz! O mal ordinariamente nos faz desgraçados!
CENA II Entra o marido banhado em sangue; a mulher, ao vê-lo, dá um grito de dor, e quase cai desfalecida.
ESCULÁPIO Eis as consequências más de teu procedimento; e daqueles que tiveram a desgraça de acompanhar-te em tuas ignorâncias! Vês?
Estás satisfeita? O teu marido ainda ontem um dos homens mais honestos; mais sábios; mais prudentes, que se há conhecido; não passa hoje de um criminoso de morte! E sabes por quê? pela necessidade de uma mulher-amiga. Fui, cruel, em busca, como por tantas vezes me tem sido exortado; e por inúmeros amigos, aconselhado! (À parte) Mas o Povo é sempre assim. Tem um homem vocação para um emprego, ele entende que lhe deve dar outro. Ainda que no outro dia o chão se alastre de cadáveres — é-lhe isso indiferente; ou ao menos não lhe serve de lição. Transtorna sempre os cálculos mais bem fundados daqueles que mais o podem felicitar! Faz portanto muitas vezes a sua própria infelicidade, e a daqueles que mais útil lhe têm sido, e podem ser, atendendo-os. Em busca de uma amiga que me amasse; respeitasse; e compreendesse — encontrei um obstáculo! Vês o que fiz? Minhas vestes assaz o revelam. (Mostrando-as) Estão tintas; e de sangue de um parente teu.
FARMÁCIA Deus! Deus! (embrulhando o rosto) acudi-me! Socorrei-me.
ESCULÁPIO É sempre assim: um crime traz outro crime, como uma virtude — outra virtude. Escapa-se às vezes dos Tribunais humanos, mas ninguém o consegue dos Tribunais Divinos. Céus! que ouço? bombardeiam-me a casa!? Barulho de espadas (fica um tanto aflito, e refletindo). Estou vendo o instante em que esta casa é varejada, entram nela soldados e me arrastam a alguma prisão. Como a ideia do crime rala e conserva o criminoso. E como a lembrança do bem que fazemos nos anima, fortalece, e enche de alegria. Aquele conduz o homem ao inferno; esta, ao Céu.
FARMÁCIA (como despertando de um sono) Que é isto?! (Cheia de espanto) Que vejo?! meu marido irado? (À parte) Que pensamento atroz lhe ocupará a imaginação! Que cálculos de homem! E que mudanças se observam em seus procederes. Ora é um Anjo, é mais — é um Deus. Ora é o mais atrevido general. Ora parece o mais feroz ente que existe no mundo que habitamos. (Aproximando-se dele) Senhor, que tens? A tua aflição me enlouquece, me desespera; e me entristece.
ESCULÁPIO Mulher! se tu soubesses a indignação que de mim se apossa, quando vejo praticar atos contrários ao dever!? Ah! serias capaz de mandar levantar uma forca; e mesmo com essa mão de seda, e com esses olhos de santa, lavrar a sentença de morte e presenciar tão horrorosa execução!? (Passeando meditabundo) Como considerarão; o que entenderão os homens por partido; facções; associação política? Entenderão quiçá a comunidade entre todos os bens ou entre os bens de todas as espécies? Ou os preceitos que mandam escrever, para que haja direitos e deveres, ordem e moral? Vejo todos os princípios derrocados por aqueles mesmos que em razão de tais princípios empunham o cetro da Autoridade. Quererá o Governo, ou Nação, mudar de princípios? Quererá o oposto àquilo que determinou que queria, e que mandou escrever? Será assim que o Povo ficará satisfeito! Ou devem, entendem por... Há lados em todos os países constitucionais! Há homens; há preceitos a respeitarem e a cumprir. E é isto o que entendo por Partido Político; o que nada tem com a comunidade de toda a espécie de bens! Todos os que pensam de um modo, fazem certa força, e se esta é maior que aquela, coloca os seus companheiros no poder, para que o que julga-se mais conveniente a todos — seja feito! e assim os que pensam de modo contrário. Tudo o mais parece-me absurdo! Por outra: Ou todos gozam iguais liberdades; e então todos serão iguais, ainda que aparentemente distintos, ou haverá distinções, conforme os cargos e posições que ocupam!... (Pondo a mão na cabeça): Sinto afrouxar-se tanto esta imaginação, quando falo sobre moral, ou quando penso em imprimir um tal sistema de administração pública, mesmo particular, que... às vezes não sei o que devo fazer! Parece que tem uns a liberdade de impunemente fazerem quanto lhes pareça; outros de padecer, e de sofrer... Um, trilhando a vereda da virtude, padece! Outro, seguindo o vício, — enriquece! Às vezes, porém, se observa o contrário. Mas quem poderá viver sem regras ou sem preceitos que regulem seus direitos; seus deveres; seus poderes!? Seriam as sociedades um caos. Anarquizar-se-iam, e logo depois — destruirse-iam.
FARMÁCIA (Levantando-se ou erguendo-se do soja em que estava recostada) Ai! estou tão cansada! Tão abatida, que não posso mais!
ESCULÁPIO E eu, indagando pelos milhares de perdas que hei sofrido!
FARMÁCIA Pois então, abracemo-nos, e morramos juntos.
ESCULÁPIO Está dito.
(Abraçam-se; e deixam-se ir caindo)
AMBOS Já que a Terra nos foi ingrata, procuraremos a felicidade no Céu!
ATO II
TATU (cantarolando) Hão de morrer desgraçados! Hão de morrer desgraçados! os que não quiserem ser decretados, hão de morrer desgraçados! (Cantarolando e passeando)
TAMANDUÁ (entrando e agarrando-o) Mas o que tem, senhor; o que tem?
TATU (voltando-se) Ora o que tenho! o diabo nestas tripas; e o demónio nesta barriga... e não te quero dizer (caminhando para um lado) que tenho uma diaba (batendo na cabeça) nesta cabeça!
TAMANDUÁ Nada! mas o que é verdade é que nossos amos vão hoje para o cemitério!
TATU Como?! é possível isto?
TAMANDUÁ É uma verdade! Entenderam certos esbirros de polícia, que eles haviam de viver separados; diriam eles — que a mulher é para eles, e quem mais quisesse gozá-la, e o marido fizesse outro tanto com as mulheres que pudesse, ou que quisesse. O resultado foi padecerem ambos muito. O marido quase morreu por cinco ou seis vezes; e a mulher ficou de professora pública de cidade — uma simples cozinheira, e lavadeira! Cheios ou ralados de desgostos, abraçaramse ontem nesta sala, ou na sala imediata; e hoje lá vão para o barro vermelho, com a firme resolução de gozar no outro Mundo a felicidade que neste lhes foi negada!
TATU Sabes o que mais? (Batendo-lhe no ombro) Foi bem bom isso, porque agora mudaremo-nos de casa.
TAMANDUÁ Ó estúpido! pois tu querias melhor vida que a que tens? És um malvado. Não sabes agradecer a Deus e aos homens os favores que te fazem!
TATU Qual malvado! Tu é que és um tolo! Ignoras ainda que é bom ser ingrato aparentemente, para ser grato verdadeiramente! Ó Sr. Tamanduá, explique-me melhor isso, ou como alguns costumam expressar-se, ponha a sua asserção com cores, e em pedações, que melhor se comam e apreciem.
TAMANDUÁ Quer que eu seja seu mestre?
(Note-se: estas figuras devem ser as mais exóticas que se pode imaginar)
TATU Se quiser ser, não será o primeiro burro que berra.
TAMANDUÁ Agradeço-lhe muito o elogio! Estimaria, entretanto...
TATU Já sei o que estimaria que eu lhe dissesse: que a ingratidão é uma espécie de luta entre o agraciado ou favorecido e aquele que faz a graça ou favor; que as lutas, muitas vezes, não só fortalecem o espírito, ilustram ou esclarecem a inteligência, como até engordam e robustecem o corpo. E que, por consequência, os ingratos, quando assim são para com alguns, têm por fim — ser-lhes úteis, senão necessários! Por exemplo: os homens científicos, como sabes, estão sempre em contínuas lutas! Os artistas, qual é o que com sua ferramenta não luta constantemente? Os filósofos, com suas descobertas; os retóricos, com a composição de magníficos discursos; os políticos, com o melhor sistema de governo, ou com a melhor direção que devem dar aos negócios públicos; os magistrados, com a perseguição dos criminosos, e com o emprego de todos os meios para que os crimes se não repitam, para que cada qual possua e goze aquilo que por direito lhe pertence! Finalmente, não há ente algum sobre a Terra que não lute no mister a que se dedica para poder viver! Portanto, são loucos aqueles que se assustam; fogem; ou praguejam as lutas! E é delas, ficai certo, que nasce o progresso, e a civilização dos povos a todos os respeitos.
TAMANDUÁ Não pensei que Vossa Senhoria sabia tanto, e que era capaz de me dar tão grande e boa lição! Agradecido! Agradecido, Sr. Tatu, eu sou todo seu. Venha de lá um abraço.
(Abraçam-se)
TATU Então, pelo que me diz, está assaz ou bastantemente convencido, ou ao menos deve ficar — de que os nossos amos fizeram a maior das asneiras em se transportarem, por desgostosos das lutas, a melhor vida!
TAMANDUÁ Sem dúvida nenhuma! e que asneira deixar de comer doce para ir comer barro.
TATU Mas vê, amigo! o trabalho que os homens e as mulheres tiveram para separar estes dois entes, em corpo e em espírito, e que nunca foram capazes de o conseguir de todo, ou completamente. Pareciam entes celestes, ou auxiliados ou protegidos da Divindade! Quando estavam longe os corpos, achavam-se os espíritos tão bem ligados, quase como se estivessem presas as cabeças por um fio elétrico! Sempre a conversarem, sempre a se entenderem... uma coisa é dizer, outra é ver, e não se podia deixar de ver! De tempos em tempos, por mais esforços contrários, que outros fizessem, lá ia o marido ou vinha mulher; e uma bela noite passavam ambos juntos. Ainda que depois novas perseguições, novas atrocidades, fizessem do marido, como se fora um réu de medonhos crimes! Nunca pois os puderam separar! Até que se juntaram em corpo e alma; foram ou vão ser enterrados, patenteando destarte ao mundo, e aos homens — a impossibilidade do divórcio ou separação eterna de almas por Deus ligadas; abençoadas e protegidas ou amparadas! Sirva este fato de lição; e que aproveite a quantos pretenderem, ou tentarem — divorciar esposos.
TAMANDUÁ Tu ainda não sabes a quarta parte da nossa! Oh! Se tu soubesses.
TATU (agarrando-o e com muito empenho) Ora, amigo! diz, anda, fala; eu quero ouvir-te.
TAMANDUÁ Não! (Com aspecto impertinente) Não digo nada. Não quero te fazer saltar ao teto de júbilo.
TATU Mau! Ingrato! A gente quer tanto bem a ele; e ele ainda quer ter segredos. Quer ocultar-me coisas que me podem dar prazer.
TAMANDUÁ Não digo! Não quero! (Muito zangado, e batendo com as mãos) Estou com raiva.
TATU Por que, meu queridinho? (Afagando-o) Que te fizeram?
TAMANDUÁ Ora porquê! inda pergunta? Não se lembra que por três vezes quis casar carnal e espiritualmente... com seu primo Eustaquinho; e depois (empurrando-o) até com você! e que nem ele, nem você têm querido!? Fazendo assim penar esta alma, este coração!... esta cabeça!...
TATU Ó diabo! tu estás variando! Quanto ao espírito, nem todos os demônios que habitam por todas as regiões são capazes de nos divorciar, e quanto ao parir... mais devagar; eu sou homem; (pondolhe a mão no ombro) não sou mulher! e tu hás de saber que é o vício mais danoso que o homem pode praticar!
TAMANDUÁ Mas que queres? (Ainda com aspecto impertinente) Apaixonar-me por ti de todos os modos! Paixão da alma! Paixão do corpo! E se tu não quiseres satisfazer este desejo ou loucura... vou... faço... aconteço... pego... levo... (atirando-lhe com as mãos) faço o diabo! (Gritando)
TATU Pois já que se não contenta com o nosso casamento espiritual somente, sendo ambos homens! Já que quer o imundo e absurdo casamento carnal, declaro-lhe que não sou mais seu sócio (empurrando-o).
TAMANDUÁ (empurrando-o também) Pois eu também não sou mais seu! (Há a mais renhida luta entre eles em que rompem chapéus; descalçam-se; rasgam casacos; e findam a comédia saindo aos gritos) Fiquemos sem chapéu, sem botas, sem camisa! Mas estamos divorciados carnalmente e espiritualmente. Não! não! não! (Perto das portas por onde tem de sair; e voltando o rosto para a Cena, com os chapéus ou restos destes levantados) Viva!... Viva!... Viva!
(Deve descer o pano. Estes vivas algum tanto prolongados, como indicam os dois pontos; e com especialidade o último em que há numerosos)
Qorpo-Santo
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