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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A SERPENTE EMPLUMADA
A SERPENTE EMPLUMADA

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

 

XXV
Foi uma surpresa para Kate o casamento de Don Ramon dois meses depois do falecimento de Dona Carlota. A noiva tinha vinte e oito anos e chamava-se Teresa. Após o casamento, que se realizou civilmente e na maior intimidade, Ramon trouxe a nova esposa para Jamiltepec.
Conhecia-a desde pequena, pois era filha do proprietário da famosa hacienda de Las Jemas, situada a uma dúzia de milhas de Jamiltepec. Don Tomaz, pai da rapariga, fora grande amigo dos Carrascos. Morrera, porém, um ano antes, deixando a importante hacienda aos três filhos e confiando a Teresa a administração da quinta. Teresa era a mais nova. Os dois irmãos viviam a existência inútil e perdulária dos mexicanos, e por isso Don Tomaz, a fim de salvar a propriedade daquelas mãos nefastas, designara Teresa como administradora e obtivera o consentimento dos dois irmãos. Na verdade, os rapazes eram criaturas ociosas que, em vida do progenitor, nunca haviam mostrado o mínimo desejo de o ajudar na difícil gerência da quinta. Teresa fora a única. E durante a doença do pai, todas as fadigas da administração haviam recaído sobre ela, enquanto os irmãos gastavam o dinheiro e as forças nas orgias em que se deleitam os mexicanos de certa classe. No entanto, assim que o pai faleceu, os dois irmãos apareceram em casa cheios de arrogância, com a intenção de se tornarem hacendados. Pela simples força bruta afastaram a irmã do seu cargo, deram ordens contrárias às dela, escarneceram-na e uniram-se para a esmagar. Queriam relegá-la para o seu lugar de mulher, isto é, para uma espécie de escravidão a que, aos seus olhos, deviam pertencer as pessoas desse sexo.
Eram brutos, e como brutos, cobardes. E, como tantos mexicanos daquela categoria, condescendentes e prejudiciais para si próprios. Relacionaram-se com juizes e generais, exibiram-se em ricos trajes de charro e receberam em casa uma multidão de gente duvidosa.
Contra aquela indolência e brutalidade, Teresa nada podia fazer e conhecia bem a sua impotência. Os irmãos eram fracos, sensuais, belos à sua maneira, dissipadores, despreocupados, mas de sentimentos ferozes.
- Faz-te bonita e arranja um marido - aconselhavam-lhe. Aos olhos deles, o seu maior crime era não atrair os homens
com quem conviviam. O facto de nunca ter conhecido homem e não se haver ainda casado tornava-a quase odiosa. De que servia a mulher senão para uma vida de relaxamento e licenciosidade?
- Queres usar calças? - perguntavam-lhe, irónicos. - No, señorita, enquanto houver aqui dois homens. No, señorita, os homens é que usam calças, e as mulheres escondem o que têm debaixo das saias.
Teresa já estava habituada a estes insultos; contudo, sofria muito no seu íntimo.
- Queres viver à moda dos americanos? Então abala para a América, corta o cabelo e veste calças. Compra lá um rancho e arranja um marido que receba as tuas ordens.
Teresa consultou advogados, que se limitaram a erguer os braços ao céu. Foi então procurar Ramon, a quem conhecia desde pequena.
Para expulsar os irmãos da hacienda seria necessário intentar um processo dispendioso e de resultado incerto. Em vez disso, Ramon propôs-lhe que casasse com ele segundo um regime matrimonial em que ela disporia sempre dos seus bens.
- Nesta terra os homens desprezam as mulheres e não podem passar sem elas, o que representa um suicídio - disse Ramon.
O casal foi visitar Kate. Teresa era franzina, pálida, de farta cabeleira preta e grandes olhos negros. Apesar do ar calmo, notava-se-lhe certa independência e autoridade. Sofrera muitas humilhações da parte dos irmãos e tinha ainda os olhos pisados pelas lágrimas de amargura, indignação e cólera.
Agora, amava Ramon com todas as veras da sua alma. Isso era evidente. Fora ele que salvara da degradação a sua dignidade de mulher e lha havia restituído bela e intacta. Em troca, passou a conceder ao seu salvador uma admiração respeitosa e quase feroz.
Em relação a Kate mostrava-se tímida e um pouco distante, tal se receasse essa mulher branca, doutra raça, que viajara muito e possuía larga experiência da vida. com um vestido claro e um rebozo de gaze preta, estava sentada na sala de Kate, com as mãos trigueiras pousadas no regaço, o pescoço escuro muito direito, e desviando um pouco o rosto fino e bem modelado. A irlandesa achou-lhe uma aparência de costureirinha.
Mas Kate não deu fé do estranho poder autoritário que também emanava desse corpo moreno e esguio, nem do olhar penetrante e desconfiado que por vezes Teresa lhe dardejava. Alma de fogo num corpo delicado. Atitude cheia de reservas. De quando em quando, a boca parecia formular uma palavra em silêncio e nos lábios perpassava-lhe um sorriso constrangido. Nunca lhe desaparecia, porém, o fulgor dos olhos.
- Falas tão pouco, chica! - observou Ramon, com certa ternura.
Então os olhos dela cintilaram e a boca esboçou um sorriso.
Via-se bem que estava apaixonada, embebida num êxtase de amor, o que explicava a sua frieza perante Kate.
"Despreza-me - pensou esta - porque não sou capaz de amar como ela." E, por um segundo, Kate invejaria Teresa. Mas daí a pouco desdenhava-a: "Tipo de harém..."
Sim, Ramon adaptava-se bem ao papel de sultão. Era belo, no seu traje branco, muito sereno, com ar de paxá, mas ao mesmo tempo afável, atencioso - e com aspecto tão juvenil! Como um paxá, preparava um cacharolete de genebra, vermute e limão. Teresa espiava-o de esguelha, sem perder de vista Kate, sua possível inimiga, a mulher que falava aos homens no mesmo pé de igualdade.
Kate levantou-se para ir buscar colheres. Nesse momento, Ramon recuou da mesa baixa em que espremia o limão e colidiu de leve com a dona da casa quando esta passava. Kate reparou de novo como ele se esquivava a qualquer contacto com ela. A sua sensualidade natural afastava-o de Kate como uma chama se desvia perante uma corrente de ar. Ela corou, e Teresa viu o súbito rubor sob essa pele branca, e o clarão quase de ira que atravessou os olhos castanhos de Kate. Momento de evasão de dois cursos de sangue tão diferentes!
Teresa pôs-se de pé, aproximou-se de Ramon e, inclinando-se sobre os copos, perguntou com aquela afectação infantil própria das mulheres da sua raça:
- Que puseste aí?
- Olha ! - retorquiu ele. E, com a mesma infantibilidade dos homens do seu tipo, começou a explicar-lhe de que se compunha o cacharolete e deu-lhe a provar um pouco de genebra, numa colher.
- É tequila da pior - declarou Teresa.
- A oito pesos cada garrafa? - volveu o marido, a rir.
- Custa esse preço? Tão caro!
Ela fitou-o nos olhos, por um momento, e viu esse rosto tornar-se mais escuro, mais ardente, como se todo ele se derretesse ao senti-la perto de si. Teresa então ergueu a cabeça, orgulhosamente. Havia-o reconquistado.
"Manhas de harém!" pensou Kate. E experimentou certa impaciência ao verificar como o ilustre, prodigioso Ramon se deixava prender nas malhas de um ser tão insignificante. Sentia-se contrariada por ter assim consciência da presença física do homem, do seu corpo belo, dos seus ombros fortes, das suas pernas vigorosas. Dir-se-ia ter também de sucumbir ao fascínio e vir a fazer parte do harém daquele sultão.
Que estranha vontade possuía a pequenina mulher morena! Que subtil poder feminino num corpo que quase só tinha pele e osso! Teresa era capaz de engrandecer a glória do marido - ao passo que ela própria se tornava imperceptível, a não ser quanto ao fulgor tigrino dos seus grandes olhos pretos.
Kate observava admirada. Conhecera homens que lhe davam a impressão de a transformarem em rainha, de ter a cabeça nas estrelas e repousar o peito nas nuvens. Sabia o que era subir, subir, subir até encher o universo com a sua feminilidade.
Via agora, porém, o contrário. Quem tinha poder sobrenatural era essa criatura pequenina, que fazia maior Don Ramon, enquanto ela se diminuía e ficava invisível, excepto no que respeitava aos olhos. Ele, como um sultão, como um fruto sazonado ao sol, tomava uma aparência extraordinária e imponente; e então, por algum poder misterioso do seu corpo trigueiro, a frágil Teresa fazia-o ainda mais completo.
Era o que Ramon queria, e Kate, percebendo-o, sentia-se irritada. Parecia-lhe odioso aquele macho triunfante, exasperava-a aquela rapariga ardente que só pensava em exaltar o homem.
ah, o poder oculto da mulher trigueira! Kate chamava àquilo harém e prostituição. Sim, era a atitude da escrava. Que pretendia dele essa criatura senão o sexo, como uma prostituta?
Pois não era degradante para uma mulher semelhante espécie de amor? E não tornava o homem fraco, sensual, ou odiosamente tirânico?
No entanto, já duma coisa Kate se convencera: que a chave da vida, e da continuidade da vida, residia nas relações do homem e da mulher. A união completa dos dois representava a vida presente e futura; dessa fusão surgia uma vida nova.
Mas tais relações necessitam de equilíbrio, e TereSa destruía-o juntando na balança o seu peso ao do homem.
Ramon não quisera Kate. Possuía agora o que desejara: aquela criaturinha escura, tão servil e orgulhosa do seu poder. Só quisera Kate para camarada, camarada inteligente, Não para mulher. Preferira essa viborazinha de Teresa...
Cipriano, esse desejava Kate. O general, o militar empertigado desejava Kate, mas só por momentos. não se importava casar realmente com ela; o que lhe interessava eram os instantes passados a seu lado. Kate tinha de lhe conceder esses instantes, e em seguida ele tornava a partir para junto das suas tropas. com isso se contentava. E ela também. Assim, ficava senhora da sua existência. Não tinha feitio para andar de roda dum homem a excitar-lhe o sangue, a estimular-lhe o ardor!
Levantou-se e foi ao quarto buscar um livro que prometera a Ramon. Não podia suportar mais tempo a exibição do amor dele por Teresa. Ah, aquele sorriso néscio estampado no rosto do homem, o brilho estranho dos olhos, o aprumo orgulhoso do corpo!
Eis como eram os dessa raça. Selvagens, com o insuportável fluido sensual dos índios e aquela maneira primitiva de se dissolver numa horrível confusão de desejo; com a presunção da sua virilidade insolente e inesgotável.
O pior era que essa força cósmica que ela até aí só conhecera nos olhos azuis dos homens loiros (e que tornava rainhas as respectivas mulheres, ainda que eles as detestassem por fim), essa força declinava agora nos olhos azuis e nascia nas pupilas pretas. As de Ramon, naquela ocasião, luziam de orgulho, poder e desafio. E o mesmo notava Kate nos olhares rápidos de Cipriano. A força do mundo esmorecia nos homens loiros, a sua supremacia abandonava-os para renascer nos de cor escura.
Joachim, o ser inquieto, inteligente e sensível, que era capaz de penetrar na alma de Kate e contemplá-la com os seus olhos azuis, morrera à vista da mulher. Se ela pudesse excitar-lhe o sangue, como Teresa fazia a Ramon, nunca ele teria morrido. Mas seria impossível. Cada um é como é. E cada raça, também. Teresa bateu timidamente à porta do quarto.
- Posso entrar?
- Entre! - respondeu Kate, endireitando-se e deixando as rimas de volumes em volta da mala dos livros.
O aposento era amplo e através das janelas rasgadas via-se o pátio e o jardim soalheiro, mangueiras de troncos lisos como trombas de elefantes, ervas reverdecidas pela chuva e galinhas a esgaravatar a terra debaixo das folhas esgarçadas das bananeiras. Um pássaro vermelho chafurdava no tanque, abrindo e fechando as asas escuras sobre o corpinho escarlate.
Teresa, porém, olhava para o quarto, não para fora. Sentiu o cheiro de cigarros, cujas pontas enchiam um cinzeiro de ágata. Notou os livros em desordem, as jóias espalhadas, a tapeçaria persa pendente atrás da cama, a colcha magnífica, os vestidos de seda e de veludo colocados sobre uma arca, os xailes de longas franjas cuidadosamente dobrados, os sapatos espalhados no chão, brancos, cinzentos, amarelos, castanhos e pretos, e os belos castiçais chineses.
Teresa parecia fascinada por tudo aquilo.
- Que linda! - disse, tocando na colcha sumptuosa.
- Foi uma amiga que a fez e ma ofereceu, em Inglaterra. Teresa observava tudo com espanto, em especial as jóias dispersas no toucador.
- Não gosta dessas pedras encarnadas? - perguntou Kate, ajoelhando de novo para arrumar os livros e olhando o pescoço moreno pendido sobre as jóias. Que ombros frágeis e que pele acetinada, naquele vestidinho branco! E aquela cabeleira negra, segura por travessas de tartaruga! No conjunto, uma rapariguinha humilde e insignificante. Mas Kate bem sabia que Teresa não era insignificante nem humilde. Naquele corpo franzino havia um estranho poder que despertava o ardor num homem e o exultava e, de certa maneira, o guardava só para si. O eterno apelo da carne...
Na mesinha de costura estava um pedaço de musselina que Kate comprara na índia e não sabia em que aproveitar. A cor, espécie de amarelo-pêssego, não se harmonizava com o seu tom de pele. Teresa apalpou o tecido entremeado de fios de ouro.
- É organdi?
inquiriu.
- Não, é musselina feita à mão. Ofereço-lha. A cor vai-me mal, e a si deve-lhe ir lindamente.
Ergueu-se e dispôs o tecido de roda do pescoço bronzeado de Teresa. No espelho, esta viu-se envolta na bela musselina e os olhos brilharam-lhe de prazer.
- Ah, não! Não posso aceitar!
- Porquê? Não condiz bem comigo. Faz agora um ano que a tenho aí. Até pensei em cortá-la para fazer cortinas. Fique com ela.
Kate talvez fosse arrogante, e até cruel, na sua maneira de oferecer.
- Não quero privá-la...
- Aceite, peço-lhe.
Ramon apareceu no limiar e relanceou o quarto e as duas mulheres.
- Olha! - disse Teresa, embaraçada. - A señora quer dar-me esta musselina indiana. - Voltara-se timidamente para ele, com o tecido desdobrado em roda do pescoço.
- Fica-te muito bem - declarou Ramon, contemplando-a.
- A señora não devia oferecer-me...
- Se to dá é porque faz gosto nisso.
- Então - concluiu Teresa, virando-se para Kate - muito e muito obrigada.
- Não tem de quê!
- Ramon acha que me vai bem...
- Na verdade, vai-lhe a matar - declarou Kate, dirigindo-se agora a Ramon. - O tecido foi feito na índia para alguém com aquela cor trigueira. Há-de condizer admiravelmente com ela.
- É muito bonito - concordou Ramon.
com o olhar, percorria o quarto, examinava os diferentes objectos que ali estavam, vindos de todas as partes do mundo, e até as pontas de cigarro na taça de ágata: luxo, desordem, e algo de esterilidade da mulher emancipada.
Kate não sabia em que é que ele pensava. Mas, por seu turno, reflectia: "Ora aí está o homem que eu defendi naquele terraço, que eu vi com um buraco nas costas, nu e inconsciente. Nesse momento não se parecia com um sultão."
Teresa devia ter-lhe adivinhado os pensamentos, porque disse,
olhando para Ramon:
- Sem a señora, Ramon teria morrido. Nunca me esquecerei...
- Não falemos nisso - atalhou Kate. - O destino tece-as.
Eu não alterei nada.
- Foi o próprio destino, señora!
- Não quer vir passar uma temporada connosco em Jamiltepec? - perguntou Ramon. - Agora já tenho uma dona de casa.
- Sim, vá! - insistiu Teresa.
- Ela precisa de uma amiga - explicou o marido.
- Preciso, é verdade. Nunca tive nenhuma a valer desde que deixei o colégio, ainda pequena...
Kate duvidava que pudesse ser para Teresa uma amiga a valer. E cogitava no que pretenderiam, de facto, aqueles dois - e o que pensariam dela.
- Pois sim, terei muito gosto em passar uns dias...
- Óptimo! - exclamou Teresa. - Quando deverá ser? Combinaram o dia.
- E escreveremos a canção de Malintzi - disse Ramon.
- Não faça semelhante coisa - acudiu Kate vivamente.
Ele olhou-a com ar pasmado, como se não percebesse logo, um ar que lhe era habitual. Por instantes, Kate poderia supor ter-lhe dado a impressão que um fantasma produziria se aparecesse a uma criança.
Em Jamiltepec, as duas mulheres entretiveram-se a talhar vestidos para Teresa na peça de musselina cor de ananás. Para senhora casada, o guarda-roupa de Teresa era bastante modesto: só possuía trajes pretos, que lhe davam um ar infeliz, e alguns brancos já antiquados. Até aí só vivera para o pai (que tinha bons livros acerca do México e toda a vida escrevera sobre a história do estado de Jalisco) e para dirigir a sua hacienda. Esta, chamada de Las Jemas, era a única que não fora destruída durante as revoltas que se seguiram à fuga de Porfirio Diaz; Teresa orgulhava-se bastante deste facto.
O seu carácter assemelhava-se muito ao de uma freira, talvez por se tratar de uma pessoa profundamente apaixonada e as paixões profundas serem mais para se esconder do que para exteriorizar nos contactos quotidianos.
Kate, provando-lhe o vestido sobre os ombros morenos, tornou a admirar a estranha macieza daquela pele escura e o pesado volume dos cabelos negros. A família dos Romeros, a que Tereza pertencia, estabelecera-se no México logo nos primeiros tempos da conquista.
Que lhe fizesse mangas compridas, sugeriu. E acrescentou, ocultando um pouco envergonhada a magreza daqueles membros trigueiros:
- Tenho os braços tão delgados! Não são bonitos como os
seus.
Kate, mulher de quarenta anos, tinha-os fortes e alvos e toda ela
era bem constituída.
- Sim - repetiu Teresa -, compridas até aos punhos.
A outra assim fez, achando que, na realidade, era o que mais convinha àquela natureza.
- Aqui os homens - explicou a dona da casa - não gostam
de mulheres magras.
- Não importa o que os homens pensam - sentenciou Kate. - Julga que Don Ramon gostaria que fosse gorda como uma
galinha?
Teresa fitou-a com os seus olhos pretos, grandes e brilhantes -
tão vivazes e, de certa maneira, fugidios.
- Quem sabe! - exclamou. E, no seu sorriso rápido, malicioso, via-se que não desgostaria de ser, às vezes, como uma galinha
gorda.
Presentemente Kate conhecia mais do que nunca a vida interior duma hacienda. Quando estava em casa, Ramon consultava diariamente o feitor; Teresa, porém, aliviava-lhe esse trabalho e já se ocupava bastante da propriedade. Em geral, ele andava por fora, ou para ir à Cidade do México, ou a Guadalajara e mesmo a Sonora. Todos o conheciam no país e o seu nome tornara-se célebre. Mas, debaixo desse culto que os compatriotas lhe prestavam, Kate adivinhava uma animosidade latente. Talvez preferissem aniquilar os seus heróis a elevá-los temporariamente às culminâncias da glória. O momento que mais apreciavam era o da queda do ídolo.
Para Kate, sempre céptica, deviam eles andar afiando o gume com que o atingiriam no peito, quando o herói se tornasse demasiadamente incómodo. É claro que precisavam da anuência de Cipriano, e Cipriano era um diabinho que os mexicanos temiam deveras. Cipriano, por então, conservava-se fiel - para com Ramon e para consigo mesmo. Representava o papel de Huitzilopochtli e Ramon o de Quetzalcoatl. Eis uma verdade simples e evidente para o general, que mantinha o seu exército pronto para o que desse e viesse. O próprio presidente seria incapaz de prescindir de Viedma, apesar de ser também um homem destemido.
- Qualquer dia - declarava Cipriano - poremos Quetzalcoatl na Catedral de Puebla, e Huitzilopochtli na da capital, e Malintzi na de Guadalupe. Não falta muito, Ramon.
- Faremos com que esse dia chegue - respondia Ramon.
Mas Ramon e Montes sofriam ambos com a profunda e diabólica animosidade do país, manifestada no próprio silêncio da população. Era sempre assim, fossem quais fossem as mãos em que o poder caísse: os Mexicanos pareciam destilar ódio oculto, um ódio demoníaco que lhes aviltava a alma; um ódio cujo único fim consistia em frustrar todos os planos.
Aí estava o dragão do México, que Ramon teria de combater. Contra o mesmo inimigo devia lutar o presidente Montes, e isso arruinava-lhe a saúde. Igualmente Cipriano, mas este desenvencilhava-se melhor. Os soldados apoiavam-no, com tambores e danças de roda das fogueiras. E o general consolidava de dia para dia a sua posição.
Ramon, na sua província, também se sentia seguro. Era o chefe, e, com o seu esforço e energia, lograva dominar qualquer veleidade de revolta. Aterrorizava com o mistério da vida, continha a gente em respeito pela fascinação que exercia. Nos seus domínios, considerava-se forte. Mas fora daí, e em especial na Cidade do México, aquela invisível e subtil má vontade do povo dir-se-ia fazê-lo sangrar, sangrar imensamente. E também a voracidade dos estrangeiros, aves de rapina que rondavam a capital cosmopolita.
Durante a ausência de Ramon, Kate fez companhia a Teresa. As duas mulheres tinham isto de comum: achavam que era melhor apoiar um homem corajoso do que fazer papel de intrometidas e importunas. Isso as unia. A profunda convicção de que deviam ser fiéis aos respectivos maridos ligava intimamente a mulher de Cipriano à de Ramon.
Estava quase no fim a estação das chuvas, embora se pudessem prever aguaceiros ocasionais para Setembro ou mesmo Outubro. Entretanto o belo Outono mexicano surgira na terra, como uma espécie de Primavera ao inverso. Vastos espaços se cobriam de flores brancas e cor-de-rosa, estranhos arbustos silvestres floresciam também, duma maneira fantástica, brilhavam à luz florestas inteiras de girassóis; o céu estava de um azul puríssimo, e, nas terras encharcadas da última chuva, a claridade do dia reverberava intensa.
O lago enchera-se mais, povoando de plantas aquáticas todas as suas margens. Vinham aves imigradas do Norte, nuvens de patos bravos que pareciam poeira no ar e depois polvilhavam a água como raminhos de erva: colimbos, grous, gaivotas brancas dos mares interiores, tal se o mistério dos regimes setentrionais se deslocasse para o Sul. Errava em terra o cheiro de água, que produzia uma sensação calmante - tanto mais que Kate supunha ter origem na aridez do solo parte do horror que lhe causava o povo mexicano. Se houvesse sempre uma gota de água na atmosfera e uma neblina sobre as árvores, desapareceria dos corações humanos aquela maldade inexprimível.
Kate ia muitas vezes a cavalo, com Teresa, ver os campos. A cana-de-açúcar, nos vales, crescia muito verde e muito alta, e os peóns começavam a cortá-la com os seus nwchetes, que pareciam espadas, e enchiam os carros de bois que as transportavam à fábrica de Sayula. Nas vertentes áridas das colinas, avultava na sua rigidez férrea a espinhosa planta da teqnila, que é uma espécie de agave. E nos cactos rijos abriam flores maravilhosas, belas de mais para tão sinistra planta. Através dos campos viam-se molhos de vagens apanhadas dos feijoeiros e abóboras dum tamanho incrível. Entre as folhas emurchecidas pendiam tomates e pimentões. Ainda se erguiam pés de milho com espigas tenras. Como a banana era pouca, as crianças colhiam toda a fruta que encontravam para fazer doce. Teresa, para esse efeito, aproveitava até os últimos figos e pêssegos. Das mangueiras suspendiam-se frutos amarelos e maduros, mas na maior parte eles estavam verdes e tombavam pesados como testículos de toiro.
Era Outono no México, com patos bravos na água, e caçadores com espingardas, e rolas nas árvores. Outono do México, início da estação seca: céu mais alto, azul mais pálido, poentes de rara transparência doirada. Os bagos de café avermelhavam-se nos arbustos contorcidos debaixo das árvores maiores, e as buganvílias, de tons roxos, eram tãoespessas que se podiam mergulhar nelas os braços.
Teresa cuidava de tudo e Kate ajudava-a. Se estava um peón doente numa das cabanas, se era preciso separar os enxames de abelhas nas colmeias debaixo das mangueiras, fazer compotas, tratar do jardim, dos vitelos, do fabrico de manteiga ou de queijos, Teresa a tudo isso atendia acompanhada de Kate. E esta admirava-se da vontade firme e constante, que tinha de ser exercida a todo o momento. Tudo corria bem graças a um poderoso esforço de vontade. À mínima fraqueza do patrão as coisas desandariam e seria a ruína da propriedade.
Jamais um desfalecimento, sempre a vontade tenaz.
Ramon regressou, numa tarde de Novembro, de longa viagem a Sonora. Viera por terra desde Lepic, e, por duas vezes, encontrara-se retido pelas inundações; não era vulgar chuvas tão tardias. Mostrava-se fatigado e com ar ausente. Kate sentiu um baque no coração enquanto comentava para si mesma: " Tão longínquo, que até parece encaminhar-se para a morte."
As nuvens cobriam o céu novamente, relampejava no horizonte, mas tudo estava silencioso. Kate retirou-se cedo e foi até à extremidade do terraço sobranceiro ao lago. Só a claridade intermitente dos relâmpagos iluminava a noite escura e, num desses breves clarões, viu Teresa sentada junto do muro do terraço descoberto; tinha a cabeça de Ramon deitada no regaço e acariciava-lhe lentamente os bastos cabelos pretos.
Kate sobressaltou-se, e disse num murmúrio:
- Desculpem! Não sabia que se encontravam aqui.
- Quis estar cá fora, ao ar livre! - explicou Ramon, soerguendo-se a custo.
- Não se mexa! - pediu Kate. - Foi estupidez minha ter vindo aqui. O senhor está cansado.
- Sinto-me realmente cansado - volveu ele, deitando-se outra vez no chão. - Aquela gente chega a convencer-me de que estou esgotado. Por isso voltei para Teresa.
- Sim - retorquiu Kate. - Não se é impunemente o Quetzalcoatl vivo. É natural que o esgotem. Mas valerá a pena ser devorado por eles?
- Tem de ser assim. Há-de-se verificar a mudança e é um homem que a deve fazer. Às vezes chego a desejar que não seja eu.
- Também acho. E Teresa igualmente. Até penso se não será preferível continuar a ser apenas um ser humano.
Teresa, entretanto, calava-se.
- Faz-se o que é preciso fazer - disse Ramon. - No fim de contas, não se deixa de ser homem. E, se daí resultar ferimento... à la guerre comme à la guerre!
Aquela voz, no escuro, parecia a de um fantasma.
- Ah! - fez Kate, suspirando. - Gostava de saber o que é um homem que se expõe a tantos horrores por causa dos seus semelhantes.
Houve um momento de silêncio.
- O homem é uma coluna de sangue dotada de voz. Quando a voz se extingue e fica apenas a coluna, tanto melhor.
Retirou-se ela para o seu quarto. Ia triste, levando ainda nos ouvidos o som daquelas palavras melancólicas. Dir-se-ia que Ramon tinha dentro de si uma ferida aberta. Era como se Kate a sentisse, nas suas próprias entranhas.
Se ele morresse, em resultado de tanto esforço? Então, pensou, Cipriano ficaria só e tudo estaria acabado.
Por que razão devia um homem afadigar-se de tal maneira por causa dum povo estúpido e mau? Se o mundo corria à desfilada para a sua perdição, deixá-lo, isso era lá com ele.
Pensou em Teresa, que consolava Ramon sem dizer nada. E pensou em Ramon, assim ferido e desesperado! Coisas horríveis, na verdade. Ela devia intervir, defendê-lo contra si próprio. Porque haviam os homens de empreender esses combates inúteis, dos quais voltavam para casa a fim de se restabelecerem junto das suas companheiras?
Para Kate, essa luta não merecia sequer as honras de um ferimento. Que tão antipático mundo terminasse de vez, se tal era o seu destino, e quanto mais depressa melhor! Kate não levantaria um dedo para o impedir. Que cada qual vivesse a sua preciosa vida, que é só uma - e fosse tudo mais para o diabo!
Tentaria impedir que Ramon continuasse naquela senda suicida. Deixá-lo ser o Quetzalcoatl vivo quantas vezes quisesse; mas não tinha o direito de se expor à maldade demoníaca do povo.
Contudo, ele insistia nisso, como Joachim fizera na Irlanda. Teresa, com a sua firmeza doce e calma, talvez lhe fosse de melhor auxílio do que Kate com as suas recriminações.
"Ah! Ainda bem que Cipriano é militar. As feridas que sofrer não lhe atingirão a alma." Mas sabia que, sem Ramon, Cipriano não seria ninguém e nem chegaria a interessar-lhe.
De manhã, Teresa compareceu sozinha ao primeiro almoço. Parecia muito tranquila; dissimulava os sentimentos sob o seu ar orgulhoso de mulher morena.
- Como vai Ramon?
- Está a dormir.
- Ainda bem. Pareceu-me muito em baixo ontem à noite.
- Sim... - Teresa fitou a outra com os seus grandes olhos negros cheios de coragem e de lágrimas contidas.
- Não compreendo que um homem se sacrifique àquele ponto. É inadmissível.
Teresa continuava a fitá-la.
- Ele não se sacrifica - replicou. - Sente que tem de proceder assim. E o meu dever é ajudá-lo.
-? Nesse caso, sacrifica-se por ele, o que também é para mim inadmissível.
- Ah, não! - retorquiu Teresa, com uma onda de sangue a ruborizar-lhe as faces. - Não me sacrifico por Ramon. Se posso dar-lhe... sono... quando dele necessita, isso não representa sacrifício. Representa... - Não terminou a frase, e o rubor acentuou-se-lhe.
- Representa amor, bem sei - volveu Kate. - Mas também a esgota.
- Não é só amor! - exclamou Teresa altivamente. - Eu podia amar outros homens, há muitos que merecem afecto. Mas Ramon... A minha alma pertence-lhe. - Afloraram-lhe lágrimas aos olhos. - Prefiro não falar deste assunto - acrescentou, pondo-se de pé.
E saiu do quarto, deixando Kate um tanto perturbada - e com desejo de voltar para Sayula.
Mas uma hora depois Teresa reapareceu e, apoiando no braço de Kate a mãozinha fresca e macia, disse-lhe em tom suave:
- Desculpe se fui indelicada.
- Eu é que não tenho razão...
- Sim, julga que em tudo isto só existe amor. O amor é uma parte mínima do resto.
- E que é o resto?
- Como posso dizer-lhe, se desconhece? Mas pensa que Ramon não é para mim mais do que um amante?
- Um marido! - emendou Kate. Teresa sacudiu a cabeça com impaciência.
- Ah, esses termos, que tão pouco significam! Não é apenas um marido! É a minha vida!
- Acho preferível cada qual viver a sua vida.
- Não. A vida é como uma semente. De nada serve se não a dermos. Sei que é assim; guardei durante anos a minha vida para mim só. Quando se a guarda muito tempo, ela morre. Quis oferecê-la a Deus, mas não consegui. Disseram-me que se eu casasse com Ramon e tomasse parte na heresia de Quetzalcoatl ficaria condenada aos tormentos eternos, mas alguma coisa me segredava que isso não era verdade e que Ramon necessitava da minha alma. Ah, señora!
- Um sorriso iluminou a face pálida de Teresa. - Dei a minha alma a Ramon. Perdi-a por sua causa. Que mais posso dizer?
- E a alma dele?
- Está aqui. - E Teresa espalmou a mão no seio. Kate ficou um momento calada.
- E se ele a atraiçoar? - perguntou então.
- Ah, señora, Ramon não é apenas um amante. É um homem honesto e não trairá o seu próprio sangue. Concedeu-me a sua alma em troca da minha, e eu lutarei até ao último sopro de vida para o apaziguar quando volta para mim esfrangalhado e com necessidade de sossego. - Teresa proferiu tudo isto com veemência, e depois acrescentou num murmúrio, como se falasse a si mesma: - Graças a Deus, não tenho uma vida só minha. Dei-a a um homem que é mais que homem, como se diz na linguagem de Quetzalcoatl. Por isso ela não morrerá em mim como um pássaro na gaiola... Oh, señora! Quando ele parte para Sinaloa e para a costa ocidental, a minha alma acompanha-o. E Ramon não se esquece que a minha está com ele, tenho a certeza! Não, señora, não deve criticar-me nem
lastimar-me.
- No entanto, acho melhor cada qual guardar a sua alma e ser
responsável por ela.
- Sim, se fosse possível! - replicou Teresa. - Mas não se pode guardar a alma dentro de nós porque acaba por morrer... Enquanto o homem não nos dá a sua semente, a nossa é estéril, e a dele nada vale sem a mulher. O mesmo acontece à alma. Enquanto a não damos a um homem e ele a não toma, nenhum valor tem. E depois de ele a tomar, toda inteira, ninguém fala de traição! Um homem só atraiçoa quando se lhe deu uma parte e não tudo, e a mulher só atraiçoa quando aceita dela apenas uma parte e não o todo. Mas quando de um lado se deu tudo e tudo se aceitou, a traição não existe. Sou o que sou para Ramon e ele é o que é para mim. Não importa o que fizer. Não importa que esteja longe.
Kate não gostava de receber lições daquela criaturinha; era mulher da sociedade, bela e com experiência da vida. Estava acostumada a que lhe rendessem preito. As demais do seu sexo chegavam a temê-la, porque era decidida e impiedosa.
Teresa também a receava um pouco como senhora da sociedade, mas não como mulher. Entrincheirada na sua almazinha orgulhosa, Teresa considerava Kate uma dessas pessoas do mundo exterior que têm muito brilho mas que não estão muito seguras dos segredos da sua personalidade. Toda a beleza e crueldade feminina de Kate era coisa secundária para Teresa em comparação com o profundo e tranquilo amor que a ligava a Ramon.
Sim, Kate habituara-se a olhar as outras mulheres como seres inferiores. No entanto, os papéis inverteram-se de súbito. Embora soubesse que Ramon era superior a Cipriano, viu-se constrangida a pensar se Teresa não seria também superior a ela.
Teresa? Mais importante do que Kate? Que surpresa! Não podia ser verdade.
Contudo, assim era. Ramon desejara casar com Teresa e não com Kate. E o ardor desse enlace ela via-o tanto nos olhos de Ramon como nos da mulher: um ardor que não existia nos olhos de Kate.
O casamento desta com Cipriano não parecia sério nem definitivo. Quando Cipriano estava ausente, ela recuperava a sua antiga individualidade. Só com o general presente é que se compenetrava da sua submissão.
Quando Teresa voltou a fitá-la com aquele seu fulgor do olhar, misturado de indignação, Kate sentiu-se desanimada e arrependida - decerto pela primeira vez na sua existência.
Sabia que Teresa sentia certa aversão por ela: era uma estrangeira branca que falava tão inteligentemente como um homem e nunca dera a sua alma; nem admitia que a pudesse dar. Todas essas damas bem vestidas, da América ou da Europa, guardavam a alma para si mesmas, numa espécie de avareza.
Teresa estava resolvida a não deixar que a outra a tratasse indefinidamente como um ser inferior. Assim procediam todas as estrangeiras para com as mexicanas, porque se consideravam emancipadas. E, para com Ramon, mostravam certa condescendência.
Mas Ramon... Bastava que ele as fixasse para que elas se sentissem reduzidas a nada, apesar de todo o seu dinheiro, experiência e ares dominadores. Raças dominadoras! Que esperassem! Ramon era um desafio a tudo isso. Que o dominassem, se fossem capazes de tanto!
- Não dormiu? - perguntou Teresa a Kate.
- Não muito bem.
- Está com olheiras.
Kate alisou a pele, desconfiada, em volta dos olhos.
- É o que nos faz o México. Não é fácil conservar a juventude neste país. A senhora é que está com bom parecer.
- Sinto-me perfeitamente.
Irradiava de Teresa uma frescura nova, algo de frágil e subtil que ela não precisava de defender contra outra mulher.
- Agora que Ramon já veio, é altura de eu regressar a casa -
declarou Kate.
- Porquê? Faz empenho nisso?
- Acho preferível.
- Nesse caso irei consigo até Sayula. De barco, não é verdade?
Kate arrumou as suas coisas. Dormira mal. A noite fora tenebrosa, cheia de horrores. Lembrara-se de Ramon atacado pelos bandidos e do seu ferimento nas costas. Tivera-a acordada durante horas o barulho ameaçador da chuva.
Percebia o desdém de Teresa pela sua maneira de considerar a
vida conjugal.
- Também eu fui casada - disse Kate. - com um homem
excepcional, a quem amei.
- Ah, sim... E ele morreu.
- Quis morrer.
- Ah, sim... quis morrer.
- Fiz o possível para evitar que se estafasse.
- Fez?
- Que mais estava na minha mão? - redarguiu Kate, num
assomo de ira.
- Se lhe houvesse dado a sua vida, ele não quereria morrer.
- Eu dei-lhe a minha vida. Amava-o. Ah, nem faz ideia! Mas ele não quis a minha alma. Achava que eu devia guardá-la para
mim.
- Os homens são assim quando são apenas homens. Mas,
sendo ardentes e bravos, então querem que as mulheres lhes dêem a alma e guardam-na dentro de si. Sei o que é. Sei onde a minha alma está. Nas entranhas de Ramon, assim como a sua semente está nas minhas entranhas, entranhas de mulher. Ele é um homem e uma coluna de sangue; eu sou uma mulher e um vale de sangue. Digo-lhe isto porque lhe salvou a vida e portanto estamos todos ligados: Caterina, eu, Ramon e Cipriano. Mas não me julgue mal. Aquela outra espécie de mulheres, as que conservam a sua alma, que é senão fraqueza?
- E os homens?
- Se são ardentes e bravos, confortam as nossas entranhas, Caterina!
Kate baixou a cabeça obstinada, furiosa por ter sido apeada do seu pedestal. Que coisa miserável, pensou, isso de uma mulher viver apenas por amor de um homem! Só para lhe enviar a alma para dentro do seu precioso corpo... E trazer no ventre a sua semente preciosa... Quanto a ela própria, nada.
Pretendeu consumar a sua indignação, mas não foi bem sucedida. Talvez no fundo, e contra sua vontade, invejasse Teresa, os seus olhos negros cintilantes, a sua firmeza selvática. Invejava-lhe os dedos delicados, e, acima de tudo, a consolação de ter um homem tão profundamente ligado a si.
A manhã estava quente depois da chuva. As rãs coaxavam, frenéticas. Na outra banda do lago as montanhas pareciam azuis-escuras, com farrapos de nevoeiro a arrastarem-se através das árvores e nuvens brancas a coroarem os picos. Nas águas barrentas navegava um barco de vela solitário.
- Hoje, tudo isto me lembra a Europa, o Tirol - disse Kate, comovida.
- Gosta muito da Europa? - perguntou Teresa.
- Muito.
- E tenciona voltar para lá?
- Penso regressar em breve, para ver minha mãe e os meus filhos.
- Eles reclamam-na?
- Sim, respondeu Kate, um pouco hesitante. E em seguida ajuntou: - Não muito. Mas quero tornar a vê-los.
- Porquê? Tem saudades deles?
- às vezes. - E os olhos de Kate arrasaram-se de água. O barco avançava sem rumor.
- E Cipriano? - volveu Teresa, a medo.
- Ah!, exclamou Kate. -Esse é para mim como um estranho.
Teresa ficou uns momentos calada.
- O homem é sempre estranho para a mulher, creio eu - rematou ela. - E porque não havia de ser?
- Mas a senhora não tem filhos.
- Tem-nos Ramon, E ele costuma dizer: "Continuarei a lançar pão à água e se meus filhos acabarem por se aproximar de mim ficarei contente." Não é. o seu caso?
- Não! - respondeu Kate. - Sou mulher, não sou homem.
- Se eu tiver filhos - declarou Teresa - também lançarei pão à água para os atrair, e espero não os reter ciosamente na minha rede. Assusta-me o amor, é tão pessoal! Devemos deixar os pássaros voarem com as suas asas e os peixes nadarem à vontade. a manhã concede-nos mais do que o amor. E eu quero ser sincera para com a manhã.

XXVI
Kate estava satisfeita por voltar à sua casa e por se encontrar sozinha. Sentia que se operava nela uma grande mudança - mudança que a poderia matar se se realizasse violentamente. Era o fim de qualquer coisa e o princípio de outra: no mais profundo da sua alma e nas suas entranhas. Os homens, Ramon e Cipriano, e o México, seriam a causa daquela modificação. Chegara o momento. Entretanto, se a evolução fosse brusca de mais, e rápida em excesso, poderia revelar-se fatal. Por isso tinha necessidade de se isolar, de tempos a tempos.
Sentava-se na margem durante horas, à sombra dum salgueiro verde, cuja cortina de folhas descia até à água. O lago mostrava-se mais alto e mais cheio que de costume, e tinha também maior calma e maior mistério. Errava o cheiro dos nenúfares que emurcheciam depois de haverem dado à costa. As distâncias pareciam prolongadas. Lembravam estampas japonesas os outeiros mais próximos, salpicados de verdura. Carros de grandes rodas traziam à aldeia a cana-de-açúcar cortada; puxavam-nos a cada um, oito bois que baloiçavam lentamente a cabeça de enormes chifres, enquanto um peón, à frente, os conduzia com o aguilhão poisado no jugo. Tão pesados, tão vagarosos e contudo fáceis de guiar!
Experimentava, no México, uma sensação esquisita, como se estivesse em presença duma humanidade pré-histórica, gente de olhos escuros de antes do período glaciário - quando o mundo era mais frio, os mares vazios e diferente a constituição da terra; quando as águas, solidificadas, se acumulavam nos pólos, e as planícies ocupavam os oceanos, como a Atlântida e os antigos continentes da Polinésia; quando os mares não passavam de lagos, embora grandes, e os povos de olhos pretos podiam dar a pé a volta ao mundo. Nesse tempo existia uma raça misteriosa de sangue ardente e ligeira no andar: raça que possuía uma civilização que lhe era própria. Depois fundiram-se os glaciares, os homens refugiaram-se nos pontos elevados, como os planaltos do México, e separaram-se em nações diferentes.
Na América é tão forte a sombra do mundo antediluviano que às vezes Kate perdia a noção dos tempos decorridos e começava a aproximar-se do antigo modo de ser, da vontade velha e torva, do desprezo da morte, da subtil e escura consciência, do instinto que precedeu a razão. Regressava à época em que o espírito e o poder dos homens residiam no sangue e na espinha dorsal, e as relações entre eles e com os animais se produziam através da medula.
Os Mexicanos ainda se encontravam nesse estádio. O que é aborígene na América pertence à fase de antes do Dilúvio, antes de reinar na terra a vida espiritual. Por isso, ali, a actividade cerebral dos brancos se alastra como uma erva em terreno virgem - para, é claro, murchar depressa e desaparecer por completo. Então, como resultado disso, surge um novo gérmen, uma nova concepção da humanidade: vem da fusão da antiga consciência instintiva e do racionalismo intelectual do branco. Um ser diferente, nascido do encontro daqueles dois.
Kate era muito irlandesa, e no fundo da sua alma jazia o misticismo original, quase desaparecido, dessa primitiva raça celta ou ibérica. É como um resíduo que existe ainda no mundo antediluviano e que não pode ser inteiramente destruído.
Sabia ela, mais ou menos, que era essa fusão o que Ramon pretendia realizar. Compreendia também o motivo pelo qual Cipriano tomava a seus olhos uma importância maior que todo o seu passado, os seus dois maridos, e os filhos. Esse velho sangue másculo despertava-lhe agora nas veias; daí vinham as palpitações que ela ultimamente sentia.
A Irlanda não podia nem queria esquecer aquele ardor sombrio e primitivo. Os Thuathas de Danaan, embora submersos, continuam vivos no sangue, não se lhes consegue impor silêncio. E a Europa científica e meticulosa tinha de se defrontar de novo com os velhos
gigantes.
Esta alteração, todavia - e Kate bem o notava -, não era coisa que se efectuasse com brusquidão; de outro modo haveria rotura e possibilidade de morte. O primitivismo tem os seus horrores. O espírito original do México, pesado, terre à terre, podia ser-lhe tão odioso que a tornasse perversa. Essa obtusa, indomável persistência, desprovida de energia e de esperança, que é peculiar ao aborígene americano, levava-a às vezes a supor que ia perder a razão. Obstinação tenaz que resistia aos séculos e desprezava a personalidade! Lascívia da morte, feroz, incalculável, terrível!
Esse povo, realmente, nunca mudava. Os homens não tinham fé na vida, em nenhuma realidade evidente. Eram apenas fiéis a certas forças obscuras do passado. O presente submergia-se na alma dos homens e das mulheres sob uma camada de lava negra, não deixando à superfície senão a indiferença.
A Esperança! A Esperança! Seria possível, um dia, fazê-la reviver nessas almas obscuras e obter o enlace das suas raças, único passo para o novo mundo do homem?
Entretanto, Kate sentia-se invadida por um mal-estar esquisito. Achava ser necessário partir, a fim de escapar a tamanha depressão. Já não podia ouvir a rastejante insistência dos criados: o sangue é só um, nós somos do mesmo sangue - sentença de tribo pior do que a morte para um indivíduo de raça branca. Estranha teimosia aquela que preconizava a todos a fusão do sangue!
Kate pertencia a uma família antiga, com pergaminhos. Fora educada nas ideias anglo-germânicas da superioridade intrínseca da aristocracia hereditária. O seu sangue era diferente do da gente vulgar: outro fluido, mais refinado.
No México, porém, nada disso conta. Juana, o homem que ia buscar água, o barqueiro que remava no lago, todos revelavam o mesmo pensamento no olhar: "O sangue é só um; pelo sangue tu e eu somos iguais." Kate lia isto nos olhos deles, adivinhava-o nas suas palavras, quer fossem deferentes ou escarninhas, e, por vezes, sentia-se revoltada com essa imposição da igualdade de sangue.
E quando se empertigava como para proclamar "O meu sangue é só meu. Noli me tangere", percebia nas pupilas negras daquelas criaturas o terrível ódio ancestral que as impele a cometer as maiores atrocidades.
Contudo, inclinavam-se perante a sua inteligência, sabedoria e compreenção, e, embora contra vontade, testemunhavam-lhe certo respeito. Ela pertencia às raças dominadoras, hábeis e espertas... Mas exigiam-lhe a aceitação da velha crença: O sangue é só um. Somos todos do mesmo sangue.
E tinha de se submeter, senão persistiriam na sua lenta vingança.
Mas não podia submeter-se de repente. Devia ser a pouco e pouco; um esforço violento destruí-la-ia.
Compreendia agora a afirmação de Ramon: "O homem é uma coluna de sangue, a mulher um vale de sangue." Era a unidade primordial
do género humano, oposta à unidade do espírito individual.
Kate, porém, sempre considerara seu o próprio sangue. O espírito é que ela partilhava com os outros.
Percebia agora o motivo por que Ramon e Cipriano usavam fatos brancos e sandálias e andavam meio nus como deuses vivos. Era a aceitação da antiga crença, o renascimento do laço de sangue que unia os homens, laço que tornava o sacrifício humano tão poderoso
factor da vida.
O sangue do indivíduo é rendido ao ser supremo, ao ser de sangue, deus, nação ou tribo.
E, na verdade, que estranha união existia entre Ramon e os seus homens, entre Cipriano e os seus soldados! Era a comunhão do sangue. Isto podia indignar Kate, enjoá-la por vezes, mas era uma força que não conseguia vencer.
Mesmo admitindo essa comunhão de sangue, Ramon reivindicava uma supremacia, até uma divindade. Era um homem como o mais humilde dos seus peóns, nascido da mesma fonte, das mesmas raízes que eles; no entanto, mostrava ser superior aos outros. E a sua superioridade não provinha do sangue ou do espírito mas duma misteriosa estrela interior que nascia do oceano sombrio e cintilava entre o mar e o céu imenso. A estrela que une o vasto sangue universal ao sopro universal do espírito e brilha entre ambos.
Porque essa coisa que reina sobre o poder humano e que é em si mesma um poder, essa coisa é a estrela misteriosa do cosmos primitivo, é a divindade no homem.
Certos homens nada possuem de divino. Possuem apenas faculdades. São ou deveriam ser escravos. Muitas vezes um homem tem a centelha divina, mas é sufocada pela força ou pela vida material.
E quando o espírito e o sangue se separam e divergem, provocando a morte maior, então apagam-se quase todas as estrelas.
Só o homem que possui uma estrela magna, uma grande divindade, será capaz de reaproximar essas forças contrárias e criar uma nova união.
Esse homem era Ramon e o seu esforço o máximo que se podia fazer: aproximar e unir as forças contrárias. Eis o poder divino de um homem. Por ele, no homem, se distingue o deus. Por ele apenas
e por mais nada.
Embora fosse como o mais ínfimo dos seus peóns, com o mesmo coração que bate, os mesmos rins insondáveis, e os lábios fechados sobre o mesmo segredo da humanidade; e fosse humano como Kate era humana, com a mesma ansiedade de espírito e a sede do puro conhecimento e da comunhão; no entanto só ele tinha o poder astral de unir os dois grandes impulsos da humanidade, e de os fundir - de ser a ave de asas imensas que paira entre as duas potências opostas: a Estrela da Manhã, que está entre o sopro da aurora e as profundezas da noite.
Os homens haviam tentado assassiná-lo com punhaladas. Carlota quisera matá-lo com o seu espírito. Cada parte, separadamente, pretendera liquidá-lo. Ele, contudo, estava fora do alcance de qualquer delas. Era o Quetzalcoatl vivo, a cintilação de uma estrela que nascia na alma dos seus compatriotas. Chama dum astro a meio das duas asas do poder: eis só o que representa a divindade num homem e em toda a humanidade.
Kate recebeu um recado de Cipriano: mandava-lhe dizer que vinha instalar-se na Vivenda Aragon. Esta casa era a principal da região do lago; tinha um jardim em toda a volta, não muito grande mas bonito, com palmeiras e sebes de jasmineiros, tudo muito verde em resultado de regas constantes. A própria construção lembrava um castelo em ponto pequeno, talvez despropositado; mas eram agradáveis as varandas espaçosas que davam para a encosta e a vegetação do jardim, mesmo acima do lago.
Cipriano chegou bem disposto. Brilhavam-lhe os olhos com uma expressão de mocidade. Queria casar a valer com Kate, segundo a lei civil mexicana, e morar com ela na Vivenda Aragon. Kate hesitava, achando que tinha necessidade de voltar em breve à Europa, sobretudo à Inglaterra e Irlanda. Era urgente, porque lhe custava já a suportar aquela ameaça do México, a sua influência deprimente. Precisava, pelo menos, de um intervalo de repouso.
Assim o declarou a Cipriano, que ficou desanimado.
- Não importa casar ou não antes de ir - disse ela. - O que tenho é de me afastar daqui o mais depressa possível.
- Quando?
- Em Janeiro.
O rosto dele desanuviou-se.
- Então casemo-nos primeiro. Na semana que vem.
Ela aquiesceu com estranha indiferença, e Cipriano, radiante, correu a fazer os preparativos necessários.
Pouco interessava a Kate o casamento civil. No sentido essencial, já estava casada com Cipriano. Ele era acima de tudo militar, tão depressa vinha para ela como a deixava. Kate, de qualquer maneira, passaria grande parte do tempo sozinha.
Podia convir-lhe como marido, mas o que a assustava era esse México terrível. O movimento quetzalcoatliano espalhara-se de maneira sinistra por todo o país. O arcebispo manifestara-se contra isso, e Ramon, Cipriano e seus aderentes estavam excomungados. Haviam tentado assassinar Montes.
Na capital, os partidários de Quetzalcoatl tinham escolhido para lugar de reunião a Igreja de San Juan Bautista, conhecida pela Igreja do Salvador Negro. O arcebispo ordenara aos seus fiéis que fossem em procissão ao referido templo, agora chamado Casa de Quetzalcoatl, a fim de o retomarem para o culto católico. O governo, porém, sabendo que mais tarde ou mais cedo haveria luta, fez dispersar a procissão e deteve o arcebispo, depois de alguma efusão de sangue.
Rebentou então uma espécie de guerra. Os Cavaleiros de Cortez exibiram a sua famosa reserva de armas, que aliás não era muito impressionante. Em Zócalo produziu-se uma manifestação clerical, dirigida por um padre fanático. Montes mandou atirar sobre os insurretos. Aquilo afigurava-se o começo duma luta religiosa. Pelas ruas viam-se os bandos de Quetzalcoatl, com as suas serapes azuis e brancas, e' os de Huitzilopochtli, de serapes vermelhas e pretas, marchando ao som de tambores e erguendo uns as suas estranhas insígnias redondas, feitas de penas, e outros longas varas rematadas por um penacho rubro de extremidade preta. Nas igrejas, os sacerdotes incitavam os fiéis à guerra santa; os que haviam aderido à causa de Quetzalcoatl discursavam nas ruas à multidão.
Período tumultuoso. Em Zacatecas, o general Narciso Beltran manifestara-se contra Montes e a favor da Igreja, mas Cipriano interviera com tal presteza e violência que deu em resultado o fuzilamento de Beltran e a dispersão das suas tropas.
Então Montes declarou ser igual no México o antigo culto católico e publicou um decreto determinando que a religião nacional da República fosse a de Quetzalcoatl. Encerraram-se todas as igrejas e os padres viram-se obrigados a prestar juramento de fidelidade à República ou a serem condenados ao exílio. Em todas as cidades e aldeias surgiam os soldados de Huitzilopochtli e os homens de serape azul. Ramon trabalhava sem descanso. Cipriano aparecia nos lugares onde menos o esperavam. Conseguiu despertar uma espécie de frenesi religioso nas regiões mais descontentes, como Vera Cruz, Tamaulipas, Jucatão. Efectuaram-se no mar estranhos baptismos e nas costas elevaram-se fortalezas com as cores de Huitzilopochtli.
Todo o país vibrava com uma sensação desconhecida, dominado pela vaga de energia nova, mas em tudo aquilo entrava violência, crueldade e certo horror.
Deportaram o arcebispo. Já não se viam sotainas nas ruas; só as serapes de Quetzalcoatl e as de Huitzilopochtli se evidenciavam entre as multidões. Eis porque Cipriano chegou junto de Kate, com os olhos a luzir, ébrio de triunfo. Kate ficou assustada e sentiu-se vazia e inútil. Nem sequer aquela vitória espantosa e a alteração que se dava na face do mundo a podiam salvar por completo. Pertencia à velha Europa e não lhe era fácil transformar-se tão rapidamente. Contudo, achava que, se voltasse à Irlanda e concedesse uns tempos de repouso à sua vida e ao seu corpo, poderia então regressar ao México e participar nos acontecimentos.
Porque não era só o espírito que se modificava, mas também o corpo e o próprio sangue. Sentia esse terrível catabolismo e metabolismo a transformá-la noutra criatura. Se a metamorfose fosse muito brusca, decerto ela morreria.
Casou-se, pois, legalmente com Cipriano e foi passar um mês com ele na Vivenda Aragon. Em seguida embarcaria sozinha para a Irlanda, projecto a que o marido deu a sua anuência.
Era deveras estranho estar casada com ele. Kate tinha a impressão de se afundar pesadamente abaixo da superfície da vida, para jazer nas suas profundezas.
Estranha, pesada, verdadeira passividade. Pela primeira vez na sua existência, ela sentia-se repousada. Falar e pensar tornavam-se-lhe coisas triviais; as ondas à tona de água não são nada para aqueles que vivem submersos.
Na alma, estava serena e altiva. Ah, se o corpo não sofresse tanto com a transformação! No cosmos encontrara a paz de espírito, o universo abrira-se à sua frente, e ela deixava-se afundar no leito de puro descanso. Adquirira quase tanta segurança como Teresa. Só a atormentava a mudança que se lhe operava no sangue.
Cipriano mostrava-se feliz, à sua maneira de índio. Parecia um adolescente contemplando o mistério da vida com olhos dilatados de espanto. Não se ocupava especialmente de Kate, nem lhe falava de assuntos sérios. Se ela aflorava uma conversa desse género, dirigia-lhe um olhar desconfiado e afastava-se.
Tinha consciência de coisas de que a mulher mal se apercebia, sobretudo do perigo das palavras irritantes. E isto ele evitava.
Kate compreendia agora como os seus antigos amores haviam sido brutais, carregados de desejo e de contactos voluptuosos. com Cipriano, desaparecia a sua vontade ardente feminina, toda ela doçura, submissão; e contudo, tais as fontes térmicas que brotam da terra sem rumor, tão poderosa era na sua força secreta!
Via quase com espanto morrer dentro de si a Afrodite da espuma, essa Afrodite ávida de sensações ardentes. Como se prevenido por vago instinto, Cipriano repudiava essa parte da natureza de Kate. Quando esta se deixava dominar pelo êxtase voluptuoso que acaba em espasmos delirantes, ele afastava-se da mulher. Retirava-se desde que pressentia nela a sede daquelas volúpias a que costumava chamar o seu "prazer". E Kate percebia que lhe era repulsiva nesses momentos. Misterioso e implacável, afastava-se sem uma palavra.
Estendida a seu lado ela compreendia então quanto era superficial aquela efervescência de sensualidade. Parecia vir do exterior, não do seu íntimo. Depois do primeiro instante de decepção, quando esse prazer lhe era negado, concluía que não o desejava realmente, que até lhe repugnava.
E Cipriano, no seu silêncio quente e obscuro, aproximava-se quando ela se assemelhava a uma fonte borbulhando sem rumor das profundezas vulcânicas. Já não se tratava de prazer consciente. O que se passava era estranho, inexprimível, muito diferente das suas relações com Joachim. Nem êxtases, nem espasmos. Uma espécie de força subterrânea a que tinha de se submeter.
Tal como no amor, assim era Cipriano na vida. Kate não conseguia perscrutá-lo. Se tentava, via-se obrigada a desistir e a classificá-lo entre as coisas que existem e não se compreendem. Um desconhecido, e uma presença; nada mais.
Não podia existir intimidade. Cipriano envolvia-se na sua reserva como numa capa e deixava Kate envolver-se na dela. Eram dois estranhos. Ele aceitava o facto integralmente, como se outra coisa não fosse possível, mas Kate achava aquilo deveras singular. Tinha tanto desejo de intimidade e esforçara-se tanto por obtê-la!
Agora, resignara-se a aceitá-lo tal como era: um desconhecido, um estrangeiro na presença do qual vivia. E sem nenhuma intimidade espiritual, a sua união não passava de uma união de sangue.
Por isso, pouco importavam as ausências de Cipriano. Deixava atrás de si a marca da sua presença, e levava consigo a de Kate. Em resumo, não existia o desgosto da separação.
Certa manhã, ele teve de partir cedo para a cidade. O sol ainda não cobria o lago mas, para além de Tuliapan, já acariciava as montanhas, que brilhavam tão distintas que se diriam focadas por luz mágica. O sulco verde das encostas parecia ao alcance da mão. No seu voo, cintilaram de súbito duas gaivotas brancas, apanhadas na luminosidade. Mas o lago, suave, unido, silencioso, permanecia ainda na sombra.
Kate lembrou-se do mar. O Pacífico não ficava longe. Ela tinha a impressão de o haver esquecido, mas sentia de novo a necessidade da sua brisa.
Cipriano ia banhar-se; Kate viu-o caminhar sobre as lajes do cais. Despiu o roupão e o vulto escuro desenhou-se na água amarelada. Era tão moreno! Tal um malaio. Corpo tão trigueiro como a cara; e com esse físico primitivo, e o peito alto, e as ancas bem modeladas, evocava as figuras masculinas de certas medalhas gregas.
Mergulhou da beira do cais e avançou na água mansa. Nesse momento a luz espalhou-se dos cimos das montanhas e cobriu de oiro a superfície do lago. Imediatamente, Cipriano apareceu rubro como fogo. Os raios solares, porém, não eram vermelhos, mas, reflectidos pelas águas, davam ao corpo de Cipriano um tom de lume, como se o abrasassem.
Os filhos da Manhã... A coluna de Sangue... Um Pele-Vermelha... Kate contemplava-o admirada enquanto nadava resplandecente e puro. Como se fosse de fogo!
Os filhos da Manhã... Kate mais uma vez renunciou a todo e qualquer esforço de conhecimento - e, sem esforço, limitou-se à comunhão de sangue.
Sim, a sua raça... Ela notara já como os indígenas se tornavam de um vermelho puro à luz da manhã e da tarde. Dir-se-iam chamas erguendo-se da água.
Cipriano partiu a cavalo, com o criado. Kate viu-o afastar-se pela estrada além, sombrio na sua montada ruça. Parecia não fazer movimento nenhum. Irradiava um orgulho másculo e, assim unido ao animal, era como se este e o cavaleiro constituíssem um único ser.
Desapareceu. Kate, por um instante, experimentou saudade da sua presença. Mais do que dele próprio. Não desejaria tocar-lhe nem falar-lhe, mas tão-somente senti-lo ali.
Depressa se dominou e voltou à realidade. Desde que se compenetrava da ausência de Cipriano, vinha-lhe a noção nítida da sua presença.
Passeou um pouco pela costa, junto do molhe. Adorava estar só. Absolutamente só, com o jardim, o lago e a manhã.
"No fundo, sou como Teresa", pensou ela.
De súbito viu à sua frente uma corda comprida e escura em cima de um pedregulho. Aquilo fê-la sair dos devaneios. Era uma cobra de pele ornada com delicados desenhos; estava sobre uma pedra enorme e a cabeça pendia-lhe até ao chão.
O réptil sentiu a presença da mulher, pois, com incrível rapidez, rastejou ao longo da rocha e entrou numa fenda que havia na base do molhe.
Não era grande o buraco. Depois de ali penetrar, virou a cabeça e dardejou a língua preta; mas em seguida desapareceu devagar, e Kate viu-lhe ainda o último anel, no qual poisava a cabeça chata. Fazia lembrar aqueles diabos que se representam de queixo apoiado sobre os braços, olhando através duma seteira. Do fundo do esconderijo espiava a mulher; seguia-a com os olhos cintilantes de crueldade.
Kate pensou então em todos esses seres invisíveis, escondidos nos recantos ocultos da terra. E perguntava a si mesma se aquele réptil não sofreria por ser incapaz de se elevar na escala da criação; de não poder correr a quatro patas em vez de rastejar...
Talvez não. Talvez houvesse encontrado a sua própria paz. Kate sentiu-se reconciliada com o animal.

XXVII
Teresa e Kate tornaram a visitar-se. Existia agora entre ambas certa simpatia, especialmente desde que a irlandesa decidira partir.
Envolvia o lago uma pureza outonal. Sentia-se a humidade na atmosfera, as sarças das encostas cobriam-se de rebentos. O sol inundava os montes duma luz de ouro, as sombras eram profundas, aveludadas. A verdura invadia tudo, até as rochas e a terra cor-de-rosa. O verde brilhante das canas-de-açúcar sobressaía no fundo rubro dos campos lavrados de fresco; aqui e ali, entre a massa escura das árvores, avultava a mancha branca das povoações.
O céu estava alto e límpido. No ar cristalino vibravam os tambores e o grito para as pausas do dia. E o dia parecia deter-se perante o mistério supremo desse universo que desabrochava, vasto, suave e cheio de vida.
Até no lago se encontrava uma espécie de apaziguamento. Avançava uma canoa com a vela entumecida tal uma concha nacarada; o casco negro e afilado deslizava sobre a água. Dir-se-ia a barca de Dioniso portadora duma mensagem e de ramos de videira.
Kate mal se lembrava agora da secura árida dos meses anteriores, quando a terra parecia crepitar ao sol implacável.
Ramon e Teresa atravessaram o lago e o seu barco de remos entrou no molhe. Era uma manhã em que as sombras nas montanhas tomavam o tom azul das centáureas.
- Sempre vai partir? - perguntou Ramon a Kate.
- Por uma temporada. Não me julga a mulher de Loth, não é verdade?
- Não - respondeu ele, a rir. - Julgo que é a de Cipriano.
- E sou. Mas preciso de sair, embora por pouco tempo.
- Ah! Nesse caso vá e volte depressa. E diga lá na Irlanda que façam o que fizemos aqui.
- Como?
- Encontrando-se em si mesmos, e no seu próprio universo, e com os seus deuses. Justifiquem os seus mistérios. Os Irlandeses são tão prolixos no que respeita aos seus heróis de outrora e aos seus tempos gloriosos! Diga-lhes, pois, que concretizem tudo isso, como nós fizemos com Quetzalcoatl e Huitzilopochtli.
- Está bem. Veremos se há quem me escute...
- Sim, senhora. - Seguiu com os olhos a vela branca que se aproximava e depois indagou: - Afinal, porque quer partir?
- É-lhe indiferente o caso, pois não?
- Não, não me é indiferente.
- Porquê?
Ramon levou outra vez uns segundos para responder:
- É uma das nossas - replicou por fim. - Precisamos de si.
- Mesmo quando não faço nada? E quando principio a aborrecer-me com a história do Quetzalcoatl vivo e o resto, e preferia conhecer um simples Don Ramon?
Ele riu-se.
- Que é um simples Don Ramon? Don Ramon tem dentro de si Quetzalcoatl vivo. Mas a senhora auxilia-nos, apesar de tudo.
- Não creio que precise de auxílio, e muito menos de uma mulher que. no fim de contas, não é mais que a esposa do seu amigo.
Estavam sentados num banco, debaixo das manhãs-de-páscoa, cujas folhas rubras formavam como que uma flor de pétalas enormes.
- A esposa do meu amigo - volveu Ramon. - Que poderia
ser de mais agradável para mim?
- Pois claro! - exclamou Kate de maneira ambígua. Ramon tinha os braços apoiados nos joelhos e olhava para o
lago, com ar ausente. O seu rosto reflectia cansaço e aquela vulnerabilidade que sempre comovia Kate. Mais uma vez ela se compenetrou do isolamento e esforço que a procura de uma vida diferente impunha àquele homem. E, no entanto, ela não desistia...
Essa visão acentuou-lhe o sentimento de impotência, da impotência total da mulher em ajudar o homem que caminha para o Além.
- Está muito seguro de si mesmo? - perguntou.
- Seguro de mim? Não! De um instante para o outro eu morro e desapareço da face do mundo. Como poderia estar seguro de mim
mesmo?
- Mas porque há-de morrer?
- Todos morrem. Até Carlota!
- Essa tinha a sua hora marcada.
- Pode-se marcar a nossa hora como se faz no despertador de um relógio?
Kate calou-se por uns momentos.
- Se não está seguro de si mesmo, de que está então? - inquiriu como se o desafiasse.
Ramon fitou-a com os seus olhos sombrios.
- Estou seguro... seguro... - A voz sumiu-se-lhe, o rosto tomou a palidez dum defunto. Só os olhos a observavam intensamente. De novo ela se viu perante a sombra dolorosa do homem e se sentia impotente diante desse espectro vivo do sofrimento.
- Não pensa que anda em erro, pois não? - perguntou Kate.
- Não, mas talvez não possa manter...
- E então? - insistiu friamente a irlandesa.
- Continuarei o meu caminho, embora desacompanhado. Kate só lhe via os olhos negros, fitos nela. Ramon começou a falar em espanhol: - Isto faz-me doer a alma, como um pronúncio de morte.
- Mas porquê? Não está doente!
- Sinto a alma desagregar-se.
- Não deixe! - exclamou Kate, alarmada.
Ramon fitava-a ainda com os olhos inexpressivos. De súbito, ela experimentou uma sensação de calma e de força.
- Devia esquecer por uns tempos - disse-lhe em voz compassiva, poisando a sua mão na dele. Para quê tentar compreendê-lo ou contrariá-lo? Era uma mulher, ele um homem e, portanto, tinham da vida uma concepção diversa.
Ao contacto daquela mão, Ramon percebeu despertar de um sonho e fixou-a com olhar perscrutador e altivo. A carícia maternal sobressaltara-o como uma picada.
- Sim, devia - disse.
- Pois claro. Se quer ser tão... abstracto e quetzalcoatliano enterre de vez enquando a cabeça na areia como fazem as avestruzes, e esqueça.
- Oh! - exclamou Ramon sorrindo. - Ei-la de novo zangada!
- O caso não é tão simples como parece. Existe em mim um conflito, e não me deixam ausentar-me por algum tempo.
- Não podemos impedi-la.
-Pois sim, mas discordam da minha ida. Não me deixam partir em paz.
- Porque deseja ir-se embora?
- Tenho de ir. Tenho de voltar para junto dos meus filhos e da
minha mãe.
- Sente essa necessidade?
- Sinto.
Logo que deu esta resposta compreendeu que havia nela certa duplicidade. Era como se tivesse dois eus: um, mais novo, terno, sensível, que pertencia a Cipriano e a Ramon; outro, duro, completo, que pertencia aos filhos, à mãe, à Inglaterra, a todo o seu passado. O eu antigo nada tinha de submisso e era forte, o recente parecia frágil, estava ligado a Cipriano e até a Ramon e a Teresa; nada tinha de independente.
Kate possuía consciência desta dualidade e sofria com isso. Porque não conseguia optar definitivamente pela antiga maneira de ser, nem pela moderna, ficava a deter-se entre as duas.
- Pois é - continuou. - Sinto essa necessidade, e querem
evitar que eu parta.
- Que ideia! - protestou Ramon.
- Sim, senhor. Exercem pressão sobre mim, paralisam-me, impedem-me de me ir embora.
- Se tem essa sensação, convém que nos afastemos de si durante uns tempos.
- Porquê? Não concordam com a minha ida? Se eu tenho de
ir, porque não me apoiam?
Ramon fitou-a tranquilamente.
- É impossível. Não acredito nessa partida. Seria virar-nos as costas, renegar-nos. Mas a verdade é que somos todos muito complicados. Se acha que tem de se ausentar durante certo período, então vá! Não é coisa de importância primordial. Já fez a sua opção, e
eu não fico apreensivo.
Kate sentiu alívio ao ouvir isto, porque estava bastante preocupada consigo mesma. Nas suas relações com Cipriano e Ramon, nunca tinha a certeza de nada. Contudo, replicou com um pouco de ironia:
- Porque haveria de ficar apreensivo?
- Não desconfia de si própria às vezes?
- Nunca! Estou sempre segura da minha pessoa.
Continuavam sentados no jardim da Vivenda Aragon, debaixo da manhã-de-páscoa. O ar começava a aquecer. O lago estava calmo, o vento amainara e tudo se conservava imóvel - excepto as folhas rubras do arbusto.
O Natal aproximava-se! Eis o que recordou a Kate aquela planta majestosa.
Natal! O azevinho! A Inglaterra! As prendas! As iguarias! Se ela se apressasse poderia chegar à Inglaterra na data festiva. Achava uma coisa tão natural encontrar-se na pátria com a mãe, pelo Natal! Tinha casos tão interessantes a contar! E as bisbilhotices divertidas que havia de ouvir... De longe, tudo isso lhe parecia encantador. No entanto, experimentava como que uma relutância ao pensar nesse regresso.
- Podemo-nos fartar de coisas boas - disse ela a Ramon.
- De qual, em particular?
- Oh! De Quetzalcoatl e todas essas histórias. Podemos estar saturados.
- É possível - respondeu Ramon, pondo-se de pé e afastando-se em passos tão subtis que ela nem deu pela sua retirada.
Quando compreendeu que ele se fora embora, ficou fula. Mas continuou sentada debaixo do magnífico arbusto, contemplando com os olhos irritados a sebe de jasmineiro e as suas flores dum branco puríssimo. Onde é que ela ouvira qualquer coisa a respeito de jasmins? "E entre nós os jasmins..."
Oh! Como se sentia farta de tudo aquilo!
Teresa descia a ladeira do jardim.
- Ainda está aqui?
- Onde podia eu estar? - retorquiu Kate.
- Não sei... Meu marido foi a Sayula a fim de falar com o Jefe. Não quis esperar para ir connosco no barco.
- Talvez tivesse pressa.
- Que maravilha! - observou Teresa, apontando para o estendal vermelho do majestoso eufórbio.
- São as vossas flores de Natal, não são?
- Sim, as flores de Noche buena.
- É extraordinário! O Natal com hibiscos e manhãs-de-páscoa! Estou ansiosa por ver azevinho e laranjas na montra duma frutaria de Hampstead.
- Porquê? - disse Teresa, rindo.
- Ah! - suspirou Kate. - Voltar à vida simples, ver os autocarros a correr na lama de Piccadilly, na véspera do Natal, e os passeios molhados cheios de gente diante das lojas cintilantes...
- Isso é que é vida, para si? - perguntou Teresa.
- Sim. Sem esta abstracção e vontade. A vida satisfaz-me se eu puder vivê-la e ser eu mesma.
- É altura de Cipriano regressar - disse Teresa.
Kate levantou-se com súbita impaciência. Já não suportava essa tutela. Haviade lhes mostrar que era livre!
Foi com Teresa à aldeia. O ar parecia misteriosamente vivo, animado com um sopro novo. Mas Kate sentia-se fora do ambiente. As duas senhoras sentaram-se debaixo de uma árvore na praia de Sayula, conversando um pouco e contemplando a imensidão do lago
cor de pérola.
Ancorado junto do molhe estava um barco de toldo vermelho e mastro comprido. Em terra, viam-se grupos de homens vestidos de branco a olharem para o interior da embarcação. O contorno monolítico duma vaca preta e branca e dum touro enorme recortava-se contra a superfície das águas.
Era perto, e no entanto parecia tudo estranho e remoto. Dois peóns colocaram uma prancha e puseram-se a empurrar a vaca para lá. O animal avançou relutante mas depois, com a lenta indiferença dos Mexicanos, seguiu pela ponte adiante. Os homens incitavam-no, até que ele ganhou o barco e entrou definitivamente no porão.
O grupo ocupou-se então do touro. Um mexicano já idoso, alto, de calças estreitas de pele e casaco de cabedal, com um imenso chapéu de feltro bordado a prata, ergueu delicadamente a cabeça do touro, pegando-lhe pela argola do focinho. Atrás estava um peón que, curvando-se, empurrou os poderosos flancos do animal. E este, com toda a calma, foi andando pela prancha além. Mas parou.
Os peóns reagruparam-se. O que estava atrás, de faixa vermelha atada à cintura, deixou de empurrar. Então dois outros passaram uma corda em volta das ancas do touro. O velho tornou a pegar pela argola, sempre com muito cuidado, e o animal levantou outra vez a cabeça. Mas continuou parado.
De novo lhe puxaram pela argola e pela corda. O monstro mantinha-se impassível. Tudo isto decorria no maior silêncio.
Por fim o touro percorreu a ponte em passos lentos e alcançou a borda do navio. Ali, esperou.
De cabeça baixa, olhava para o fundo do porão. Os homens empurravam-no com toda a força, puxavam a corda - tudo no profundo silêncio mexicano.
Devagar, cauteloso, o animal agachou-se, e então, com um movimento rápido, pendeu as patas dianteiras no interior do barco, ficando com os quartos traseiros alçados. Houve um momento de confusão, depois um baque. Finalmente, o touro saltara e encontrava-se no porão do navio.
E tudo tão silencioso e tão remoto!
- Ramon quer que se sente ao lado dele no templo como esposa de Quetzalcoatl... com algum nome esquisito? - perguntou Kate a Teresa.
- Não sei. Mais tarde, diz ele, quando for ocasião de haver uma deusa.
- E importa-se?
- Por mim, tenho medo. Mas sei que Ramon o deseja. Ele diz que é aceitar a maior responsabilidade da nossa vida, e eu acredito que seja verdade. Se existe divindade em mim, devo reconhecê-la, envergar a túnica verde e ser deusa no momento oportuno. Ramon afirma que precisamos de manifestar a presença divina. E, ao lembrar-me de meus irmãos, acho que ele tem razão. Hei-de pensar no deus que palpita invisível como o coração do mundo. E quando vestir a túnica verde e me sentar no templo diante de toda a gente, voltar-me-ei para o coração do universo e tentarei compenetrar-me do meu eu divino.
- Julgava que a túnica verde era só para a esposa de Huitzilopochtli - observou Kate.
- Ah, sim! - replicou Teresa. - A minha é preta, com barras brancas e desenhos encarnados.
- Preferia a verde? Fique com ela, se quiser. Eu vou-me embora...
Teresa ergueu os olhos para Kate.
- A túnica verde é para a mulher de Huitzilopochtli - declarou.
- Não vejo que isso tenha importância - volveu a irlandesa.
- Cada homem deve possuir a esposa que lhe convém. Cipriano não quereria uma mulher como eu.
- Cada mulher deve ter o homem que lhe convém - retorquiu Kate. - Para mim, Ramon seria muito abstracto e muito despótico.
Teresa ruborizou-se e baixou os olhos.
- Ramon exige muita submissão de uma mulher para que me agradasse - ajuntou a outra.
Teresa ergueu a cabeça, o pescoço moreno ondulou como uma
serpente.
- Como é que sabe que Ramon exige submissão das mulheres? Como é que sabe? Nunca a exigiu de si... Está enganada. Ele não me impõe tal submissão. O que pretende é que me entregue brandamente; em compensação, entrega-se-me, a mim, com uma brandura maior do que esta que lhe concedo: um homem como Ramon é mais dócil do que uma mulher. Não se assemelha a Cipriano, que é soldado. Ramon mostra-se dócil. Não tem razão no que
diz, Caterina.
Kate soltou uma risadinha. Mas Teresa prosseguiu:
- Vejo-a como um soldado entre as mulheres, está sempre a combater. Eu não sou assim. No entanto, há mulheres que são de temperamento bélico e essas precisam de mandos militares. Eis a razão por que é Malintzi e tem um vestido verde. Estará sempre disposta a lutar... até consigo mesma, se ficar só no mundo.
Havia uma grande calma em volta do lago. As duas senhoras aguardavam a chegada de Ramon.
Um homem vestido de branco, acocorado e silencioso debaixo de uma árvore, desbastava folhas de palmeira, com ar concentrado. Em seguida ia molhá-las na água e voltava para se sentar de novo, recomeçando o trabalho com aquela atenção pueril da gente do povo. Estava a consertar uma cadeira de palha. Como Kate o observasse, os olhares dos dois encontraram-se e o homem saudou-a. Dir-se-ia que, dele, emanava para ela uma chama de vida, a qual lhe transmitiu um estranho poder.
Nitrindo excitado, corria ao longo da margem um cavalo ruço malhado de branco. A crina flutuava ao vento, as patas faziam saltar os calhaus, as narinas abriam-se-lhe ansiosas. Porque seria?
Um peón fizera entrar no lago a sua carroça puxada por quatro muares, até que a água ficou acima dos varais, e quase atingindo o fundo do veículo. Parecia um barco conduzido por quatro cavalos-marinhos.
Era Inverno, mas dir-se-ia Primavera nas imediações do lago. Saltitavam na praia bezerros amarelos e brancos, agitando a cauda, correndo lado a lado à beira da água, que eles cheiravam desconfiados.
A uma árvore estava amarrada uma burra, com a sua cria deitada à sombra, um jumentinho preto como uma amora, enroscado no chão, com a cabeça peluda erguida e as longas orelhas fitas.
- Quantos dias tem o burrinho? - perguntava Kate ao peón, que saíra da sua cabana de colmo.
O homem dirigiu-lhe um olhar em que havia júbilo e deferência - olhar que fez Kate sentir uma onda de orgulho encher-lhe o peito.
- Nasceu a noite passada, patrona! - respondeu ele, sorrindo.
- Tão novo! Ainda não pode aguentar-se nas pernas, pois não?
O peón aproximou-se do jumento e pô-lo de pé. E ali ficou o animalzinho, espantado, de pernas abertas, como se em cima de ganchos de cabelo.
- Que engraçado! - exclamou Kate, deliciada. O homem riu-se; parecia grato pelo interesse dela.
O jumento a custo se mantinha naquela posição. Vacilava sobre as quatro patas bambas, com ar admirado. Deu uns passos oscilantes para cheirar as folhas de milho. Cheirou, e tornou a cheirar, tal se o mistério do olfacto se lhe revelasse nas narinas.
Então voltou para Kate a cabeça aveludada e deitou de fora a língua cor-de-rosa. Kate soltou uma gargalhada, o que fez o animal dar um pulo que o deixou infinitamente surpreendido consigo próprio. Tentou uns passos, e, de repente, sem que ele mesmo esperasse semelhante coisa, deu outro salto.
- Já dança! - exclamou Kate. - E só tem umas horas de existência!
- Já dança - confirmou o peón.
Depois daquelas experiências, o burrinho aproximou-se da mãe em passos incertos e começou a mamar.
Erguendo a vista, Kate encontrou os olhos do homem cintilantes da chama da vida, cheios de confiança e de conhecimento.
O jumentinho preto, a mãe, o mistério da criação, o respeito pela mulher superior a ele, bela e radiosa, tudo isto exprimiam os olhos negros desse homem primitivo.
- Adiós! - disse Kate.
- Adiós, patrona! - respondeu ele, erguendo o braço, na saudação de Quetzalcoatl.
Atravessou ela a praia em direcção ao cais; sentia dentro de si uma onda de vida, forte, resistente. "É o sexo", disse consigo. "Como o sexo pode ser extraordinário quando o homem o conserva poderoso e sagrado e que ele enche o mundo! É como o sol, penetrando-nos. Mas não me submeterei, mesmo assim. Porquê ceder?" Ramon aproximava-se, com o seu largo chapéu ornamentado do símbolo de Quetzalcoatl. Nesse instante tocaram os tambores e, do alto da torre, soou a voz nítida e possante anunciando o meio-dia. Todos os homens que se encontravam na praia aprumaram o corpo e ergueram o braço direito. As mulheres viraram a palma da mão para o Sol. Tudo ficou imóvel, excepto os animais.
Então Ramon encaminhou-se para o barco, enquanto os homens o saudavam à maneira de Quetzalcoatl.
- É espantoso como nesta terra se pode ter a impressão de que se é alguém! - notou Kate, quando já iam sobre a água no barco de remos. - Sentimo-nos como se pertencêssemos de facto à nobreza.
- E não é verdade?
- Sim, mas isso em toda a parte nos é negado. Só aqui temos a noção do poder da nobreza. Os indígenas ainda a veneram. Parecem
adorar-me.
- Por enquanto - replicou Ramon. - Mais tarde assassiná-la-ão porque a adoraram.
- É inevitável? - volveu Kate em tom despreocupado.
- Creio que sim. Se vivesse sozinha aqui, em Sayula, e reinasse por algum tempo, seria assassinada... ou pior ainda... pelo povo que a tinha idolatrado.
- Não acredito.
- É como lhe digo.
- Mas porquê?
- A não ser que se consiga dos deuses a nossa própria nobreza e se implore dos céus o poder, acabaremos por ser assassinados.
- A minha nobreza tem essa origem.
Mas não ficou muito convencida e mais firmou a sua resolução
de partir.
Escreveu para a Cidade do México e reservou uma passagem de Vera Cruz a Southampton. Embarcaria no último dia de Novembro.
Cipriano regressou a 17 e Kate participou-lhe o que tinha feito. Ele ficou a olhá-la, de cabeça um pouco à banda e com uma expressão de criança ajuizada, mas Kate foi incapaz de adivinhar o que lhe ia na alma.
- Vais-te embora já? - perguntou ele em espanhol.
A mulher percebeu então que estava ofendido. Quando se melindrava falava-lhe sempre em espanhol, nunca em inglês.
- No dia 30.
- E quando voltas?
- Quien sabe! - ripostou Kate.
Por uns minutos, Cipriano fitou-a com as suas pupilas negras imperscrutáveis. Estava a pensar que tinha o direito de a impedir que saísse do país, visto ser legalmente sua esposa. Nas profundezas dos olhos luzia a antiga cólera índia; depois surgiu uma leve mudança de expressão no rosto, quando a ira contida cedeu lugar à indiferença estóica, à velha indiferença de tantos séculos. Kate quase sentia as ondas sucessivas de sombra e frieza que percorriam Cipriano sem que ele mesmo desse por isso. E mais uma vez lhe estremeceu o coração o medo de perder o contacto com esse homem.
- Como quieras tu! - disse ele por fim.
Concedia-lhe a liberdade com a misteriosa indiferença do seu sangue e não faria mais esforços para a reter. Era o fatalismo dos da sua raça.
Conforme Kate previra, Cipriano tomou um barco e foi a Jamiltepec falar com Ramon.
A mulher ficou só, como de costume. Ocorreu-lhe que ela própria criara essa solidão. Não conseguia identificar-se com aquela gente, sentir-se à vontade fosse com quem fosse. Fechava-se sempre na sua personalidade.
Importava-lhe muito a reciprocidade sexual? Podia importar-lhe ainda mais se não a houvesse tido; mas tivera-a, e de maneira perfeita, com Cipriano. Sabia tudo a esse respeito. Era como se houvesse conquistado outro território, outro domínio da vida. E agora devia retirar-se para a toca da sua individualidade, com a vítima nos dentes.
De súbito, viu-se como os homens muitas vezes a viam: uma gata enorme, com os seus espasmos de volúpia e o gozo demorado do seu isolamento. Conhecia outras mulheres assim. Brincavam cheias de amor e familiaridade como um gato com um rato. Por fim devoravam o ratinho querido e reapareciam com a barriga repleta e uma voluptuosa sensação de força.
Algumas vezes o rato recusava-se a ser digerido, de que resultava prolongada dispepsia; ou então, como Cipriano, transformava-se numa espécie de cobra, que alçava a cabeça, olhava para trás e desaparecia num buraco, deixando-a confusa e destituída de poder.
Outra coisa que ela observava horrorizada. Uma após outra, as suas "amigas", as grandes amorosas, na idade de quarenta, quarenta e cinco e cinquenta anos perdiam todos os atractivos e ficavam umas corujas horrendas, procurando em volta a vítima cada vez mais rara. Como seres humanos deixavam de existir, metamorfoseadas em corujas elegantes e mexeriqueiras.
Kate era bastante inteligente para tirar proveito da lição. Estava bem que uma mulher cultivasse o seu ego, a sua personalidade. Estava muito certo que desprezasse o amor ou que com ele se entretivesse como um gato faz ao rato; isto é, brincar o mais tempo possível antes de o comer e saciar voluptuosamente o ego com a sua vítima.
"A mulher sofre mais com a supressão do ego do que com a do sexo", afirmou uma escritora, e talvez seja verdade. Mas olhai, olhai para as mulheres modernas de cinquenta anos, as que cultivaram o ego até ao extremo limite! São em geral criaturas que nos enchem de pena ou de repulsa.
Kate sabia tudo isto, e nisto pensava enquanto ali sozinha na sua vivenda. Tivera a sua liberdade, mesmo no México. Esses homens deixá-la-iam partir. Não estava prisioneira. E levaria consigo todos os despojos que ainda guardavam.
E depois? Sentar-se nos salões de Londres e ser mais uma coruja ao lado das outras? Arvorar um sorriso postiço e falar com voz
artificial?
"Não! - disse consigo. - O meu ego e a minha personalidade não valem esse preço. Prefiro desfazer-me deles em parte a ver-me reduzida a isso."
No fim de contas, quando Cipriano a acariciava toda ela parecia desabrochar. Era a força do sexo, que enchia o mundo de lascívia e sobre que ela não se atrevia a reflectir. O seu poder tornava-se maior do que a sua vontade. Por outro lado, quando estava só e abria as asas do seu ego e o espírito desferia voo, o mundo afigurava-se-lhe maravilhoso. Todavia, após uns instantes, desvanecia-se o esplendor, substituído por uma solidão amarga.
"Preciso de ambos - concluiu. - Não posso afastar-me de Cipriano nem de Ramon. Renovaram-me o sangue. Digo que são limitados, mas todos temos de o ser. Se tentamos ser ilimitados, tornamo-nos monstros. Sem Cipriano a afagar-me, a limitar-me e a submergir-me a vontade, tornar-me-ia uma velha horrível. Devo regozijar-me pelo facto de Cipriano me limitar com a sua vontade e o seu contacto ardente. Porque o que eu chamo a minha grandeza faz-me cair no vácuo desde que não haja a mão dum homem para me segurar. Ah, sim! Antes submeter-me do que ser uma mulher horrível."
Chamou o criado e foi através do lago num barco de remos. Era por uma bela manhã de Novembro. Nas escarpas das montanhas, a nordeste, as sombras tinham um tom azul muito puro. Por baixo, a vegetação começava a amarelecer. O lago, embora ainda cheio, principiava a baixar, e os jacintos-d'água vogavam à toa. No ar calmo viam-se pássaros voando. Alguns milheirais exibiam os seus talos secos, mas as flores de palo-blanco tinham já desabrochado e errava o perfume das acácias amarelas.
"Porque havia de me ir embora? - pensou Kate. - Porque havia de ver os autocarros na lama de Piccadilly na véspera do Natal e a multidão nos passeios molhados diante das lojas iluminadas? Mais vale ficar aqui, onde a minha alma é menos triste. Tenho de pedir desculpa a Ramon das coisas que lhe disse. No fim de contas, aqui há outra grandeza, com o som dos tambores e o grito de Quetzalcoatl."
Já ela distinguia o último andar da casa de Jamiltepec, semelhante a uma torre avermelhada, e a buganvília roxa pendente do muro, os cachos das flores de plumbago e a porção de rosas brancas.
- Están tocando - disse tranquilamente o barqueiro, erguendo para ela os olhos negros.
Já ouvira o som do tambor em Jamiltepec. Uma voz de homem se elevou na manhã clara.
O barqueiro levantou um remo, como se fizesse sinal. E assim que o barco penetrou na enseadazinha, veio um criado a correr ao longo do molhe. No ar soalheiro notava-se o cheiro das daturas e das rosas, e um silêncio profundo que nem o tambor nem o canto perturbavam.
- Don Cipriano está aqui? - perguntou Kate.
- Está - murmurou o criado, apontando para o balcão donde partia a voz do cantor. - Deseja que eu o informe da sua chegada?
- Não - respondeu Kate. - vou sentar-me um bocado no jardim, antes de subir.
- Nesse caso, deixarei a porta aberta - volveu o homem - e assenhora entrará quando quiser.
Kate instalou-se no banco de uma árvore, donde pendiam flores de trepadeira enroscada ali como uma serpente. Pôs-se a ouvir o canto. Ramon ensinava o novo hino a um dos cantores.
Não tinha muito boa voz o Quetzalcoatl vivo. Cantava baixinho, como se para si mesmo, mas com expressão simples e bela. Kate não conseguiu perceber a letra.
- Ya? - disse Ramon ao terminar.
- Ya, patrón! - respondeu o cantor.
E na sua voz forte e pura, este entoou o hino:
O meu caminho não é o teu e o teu não é o meu.
Mas vem, antes que nos separemos.
Cada qual por seu lado, dirijamo-nos à Estrela da Manhã
Para lá nos encontrarmos.
Não te aponto o meu caminho
Nem chamo por ti.
Mas a Estrela é a mesma para nós ambos
E a ambos nos atrai.
A cada qual o seu caminho, esse que esplende Na encruzilhada,
Que abre a sua chama como a porta de uma tenda Por onde, invisíveis, deslizamos.
Não pode um homem pisar como a mulher
Nem a mulher andar como o homem.
O espírito de cada um através das folhas de sombra
Se move como pode.
Mas a Estrela da Manhã e a da Noite Fixam tendas de fogo
Onde nos retinimos quais ciganos, sem saber Como é que vieram os outros.
Nada mais peço que me insinuar Na tenda do Espírito, e deter-me Na casa da chama bifurcada Como hóspede seu.
Fica aí comigo, esposa minha, Corporalmente. E que a flama nos envolva Qual uma rede.
Sede lá, homens, comigo,
Alcançai o lar.
Ride comigo, enquanto a mulher repousei,
Porque vale a pena.
O homem entoara o hino por várias vezes, parava, dir-se-ia esquecer-se, extinguia-se-lhe a voz pura e quente. Então a de Ramon, baixa e um tanto rouca, elevava-se com subtil intensidade, como se vinda do meio duma concha; depois, o tenor retomava o canto, que lhe corria no sangue como uma chama.
O mozo de Kate, ou seja, o seu criado, seguira-a ao jardim, e tinha-se sentado de pernas cruzadas, a certa distância, debaixo de uma árvore, de costas apoiadas ao tronco - sombra acocorada, vestida de branco. Os dedos dos pés saíam-lhe rijos e escuros das huaraches esburacadas, e o trancelim de palha do chapéu pendia-lhe junto à face trigueira. Quanto ao resto era tudo alvo, e as calças de linho apertavam-se-lhe nas coxas.
Quando o canto terminou, e o tambor deixou de rufar, e as vozes, num murmúrio, mal se ouviam, o mozo ergueu a cabeça e olhou para Kate. Brilhavam-lhe as pupilas negras, no rosto errava-lhe um sorriso tímido.
- Está muy bien, patrona? - perguntou, um pouco envergonhado.
- Muito bem - respondeu ela, como um eco fiel. Mas no seu coração debatiam-se conflitos diversos, e o criado sabia-o.
Parecia tão novo com aquele sorriso alegre, excitado, receoso! Havia nele qualquer coisa de perpetuamente infantil; mas era uma criança que, dum momento para outro, se podia tornar num selvagem- vingativo e brutal, um homem que nunca perdia a consciência do seu sexo. E Kate pensou mais uma vez que existiam várias maneiras de regressar à infância.
O criado, porém, continuava a espiá-la, de soslaio: queria ver se havia nela qualquer hostilidade secreta. Desejaria que concordasse com o hino, com o tambor e com tudo mais. Como uma criança, ansiava pela sua aquiescência; mas, se a senhora se mostrasse hostil, ele seria o primeiro a manifestar-se. Um julgamento adverso torná-lo-ia inimigo declarado.
Ah, os homens eram todos iguais!
Nessa ocasião, o rapaz levantou-se, com súbita agilidade, e ela ouviu a voz de Cipriano na varanda:
- Que é, Lupe?
- Está la patrona - respondeu o mozo.
Kate ergueu-se também e olhou. Viu a cabeça e os ombros nus do marido, em cima, no parapeito.
- Já lá vou - participou-lhe.
Vagarosamente transpôs os portões de ferro do corredor. Lupe, que a seguia, fechou-os atrás de si.
No terraço encontrou Ramon e Cipriano, ambos de tronco nu, que a esperavam em silêncio. Kate, embaraçada, explicou:
- Estive a escutar o novo hino.
- E-que lhe pareceu? - perguntou Ramon.
- Gostei.
- Sentemo-nos - propôs ele. E a recém-vinda deixou-se cair numa das cadeiras de verga. Cipriano ficou de pé, encostado à balaustrada.
Kate viera para declarar a sua submissão: dizer que já não queria ir-se embora. Mas, vendo os dois homens numa disposição muito quetzalcoatliana, não se decidia a aflorar o assunto. Tinha a sensação de ser uma intrusa. Não se compenetrava de que também pertencia à seita.
- Parece-me que não há Estrela da Manhã para nos reunir a todos três - observou, irónica mas um pouco trémula.
Sobre eles desceu um silêncio ainda mais profundo.
- Estou a ver que uma mulher é realmente de trop aqui junto de vocês ambos.
Hesitou um tanto ao dizer isto. Sabia que Cipriano ficava perplexo e melindrado quando ela escarnecia.
Ramon respondeu-lhe com uma doçura que vinha direita do seu coração.
- Então que há, prima?
com um tremor nos lábios, Kate replicou:
- Em verdade, não desejo deixá-los.
Olhando rapidamente para Cipriano, Ramon retorquiu:
- Bem sei que não deseja.
O tom suave e protector da sua voz fê-la revoltar-se de novo. com os olhos rasos de lágrimas, ela bradou:
- Afinal vocês não precisam de mim!
- Não, não, preciso de ti. Verdad, verdad! - exclamou Cipriano em voz baixa e contida, quase num murmúrio.
E, no meio das suas lágrimas, Kate pensava: "Como sou intrujona! Sei perfeitamente que sou eu que não os quero. Quero-me só a mim mesma. Mas posso iludi-los de modo que o não percebam."
Havia notado a paixão fálica e ardente na voz de Cipriano.
Coube a vez a Ramon de falar, e fê-lo em tom glacial:
- A Caterina é que não precisa de nós. Não se comprometa connosco. Atenda à sua própria preferência.
- E se ela me aconselhar a partir? - ripostou Kate, como um desafio, através de um resto de lágrimas.
- Então parta!
Kate recomeçou a chorar.
- Ah, eu bem sabia que não precisavam de mim. Mas Cipriano acudiu com persuasiva ternura:
- Não és dele! Ele não pode dizer nada.
- Isso é verdade - concordou Ramon. - Não me dêem ouvidos.
Levantando bruscamente a cabeça, no meio do seu pranto, viu-o afastar-se sem rumor.
Limpou a cara, recuperou a calma e, de olhos húmidos, fitou Cipriano. Este conservava-se muito direito, como um galo combatente. Nas pupilas negras brilhava-lhe um fulgor estranho.
Sim, Kate também tinha medo dele, desses olhos pretos inumanos.
- Não queres que me vá embora, pois não? - perguntou-lhe suplicante.
Espalhou-se no rosto do homem um sorriso lento, e um leve tremor lhe percorreu o corpo. E então, na sua voz de inflexões índias, muito suave, Cipriano disse-lhe em espanhol:
- Yo! Yo! - E as sobrancelhas erguiam-se-lhe numa expressão de espanto divertido. Ainda trémulo, concluiu: - Te quiero mucho! Mucho te quiero! Mucho, mucho!
As palavras soavam tão cariciosas, vinham-lhe tanto do seu sangue ardente, que a mulher se sobressaltou e disse:
- Não me deixarás partir!

XXV
Foi uma surpresa para Kate o casamento de Don Ramon dois meses depois do falecimento de Dona Carlota. A noiva tinha vinte e oito anos e chamava-se Teresa. Após o casamento, que se realizou civilmente e na maior intimidade, Ramon trouxe a nova esposa para Jamiltepec.
Conhecia-a desde pequena, pois era filha do proprietário da famosa hacienda de Las Jemas, situada a uma dúzia de milhas de Jamiltepec. Don Tomaz, pai da rapariga, fora grande amigo dos Carrascos. Morrera, porém, um ano antes, deixando a importante hacienda aos três filhos e confiando a Teresa a administração da quinta. Teresa era a mais nova. Os dois irmãos viviam a existência inútil e perdulária dos mexicanos, e por isso Don Tomaz, a fim de salvar a propriedade daquelas mãos nefastas, designara Teresa como administradora e obtivera o consentimento dos dois irmãos. Na verdade, os rapazes eram criaturas ociosas que, em vida do progenitor, nunca haviam mostrado o mínimo desejo de o ajudar na difícil gerência da quinta. Teresa fora a única. E durante a doença do pai, todas as fadigas da administração haviam recaído sobre ela, enquanto os irmãos gastavam o dinheiro e as forças nas orgias em que se deleitam os mexicanos de certa classe. No entanto, assim que o pai faleceu, os dois irmãos apareceram em casa cheios de arrogância, com a intenção de se tornarem hacendados. Pela simples força bruta afastaram a irmã do seu cargo, deram ordens contrárias às dela, escarneceram-na e uniram-se para a esmagar. Queriam relegá-la para o seu lugar de mulher, isto é, para uma espécie de escravidão a que, aos seus olhos, deviam pertencer as pessoas desse sexo.
Eram brutos, e como brutos, cobardes. E, como tantos mexicanos daquela categoria, condescendentes e prejudiciais para si próprios. Relacionaram-se com juizes e generais, exibiram-se em ricos trajes de charro e receberam em casa uma multidão de gente duvidosa.
Contra aquela indolência e brutalidade, Teresa nada podia fazer e conhecia bem a sua impotência. Os irmãos eram fracos, sensuais, belos à sua maneira, dissipadores, despreocupados, mas de sentimentos ferozes.
- Faz-te bonita e arranja um marido - aconselhavam-lhe. Aos olhos deles, o seu maior crime era não atrair os homens
com quem conviviam. O facto de nunca ter conhecido homem e não se haver ainda casado tornava-a quase odiosa. De que servia a mulher senão para uma vida de relaxamento e licenciosidade?
- Queres usar calças? - perguntavam-lhe, irónicos. - No, señorita, enquanto houver aqui dois homens. No, señorita, os homens é que usam calças, e as mulheres escondem o que têm debaixo das saias.
Teresa já estava habituada a estes insultos; contudo, sofria muito no seu íntimo.
- Queres viver à moda dos americanos? Então abala para a América, corta o cabelo e veste calças. Compra lá um rancho e arranja um marido que receba as tuas ordens.
Teresa consultou advogados, que se limitaram a erguer os braços ao céu. Foi então procurar Ramon, a quem conhecia desde pequena.
Para expulsar os irmãos da hacienda seria necessário intentar um processo dispendioso e de resultado incerto. Em vez disso, Ramon propôs-lhe que casasse com ele segundo um regime matrimonial em que ela disporia sempre dos seus bens.
- Nesta terra os homens desprezam as mulheres e não podem passar sem elas, o que representa um suicídio - disse Ramon.
O casal foi visitar Kate. Teresa era franzina, pálida, de farta cabeleira preta e grandes olhos negros. Apesar do ar calmo, notava-se-lhe certa independência e autoridade. Sofrera muitas humilhações da parte dos irmãos e tinha ainda os olhos pisados pelas lágrimas de amargura, indignação e cólera.
Agora, amava Ramon com todas as veras da sua alma. Isso era evidente. Fora ele que salvara da degradação a sua dignidade de mulher e lha havia restituído bela e intacta. Em troca, passou a conceder ao seu salvador uma admiração respeitosa e quase feroz.
Em relação a Kate mostrava-se tímida e um pouco distante, tal se receasse essa mulher branca, doutra raça, que viajara muito e possuía larga experiência da vida. com um vestido claro e um rebozo de gaze preta, estava sentada na sala de Kate, com as mãos trigueiras pousadas no regaço, o pescoço escuro muito direito, e desviando um pouco o rosto fino e bem modelado. A irlandesa achou-lhe uma aparência de costureirinha.
Mas Kate não deu fé do estranho poder autoritário que também emanava desse corpo moreno e esguio, nem do olhar penetrante e desconfiado que por vezes Teresa lhe dardejava. Alma de fogo num corpo delicado. Atitude cheia de reservas. De quando em quando, a boca parecia formular uma palavra em silêncio e nos lábios perpassava-lhe um sorriso constrangido. Nunca lhe desaparecia, porém, o fulgor dos olhos.
- Falas tão pouco, chica! - observou Ramon, com certa ternura.
Então os olhos dela cintilaram e a boca esboçou um sorriso.
Via-se bem que estava apaixonada, embebida num êxtase de amor, o que explicava a sua frieza perante Kate.
"Despreza-me - pensou esta - porque não sou capaz de amar como ela." E, por um segundo, Kate invejaria Teresa. Mas daí a pouco desdenhava-a: "Tipo de harém..."
Sim, Ramon adaptava-se bem ao papel de sultão. Era belo, no seu traje branco, muito sereno, com ar de paxá, mas ao mesmo tempo afável, atencioso - e com aspecto tão juvenil! Como um paxá, preparava um cacharolete de genebra, vermute e limão. Teresa espiava-o de esguelha, sem perder de vista Kate, sua possível inimiga, a mulher que falava aos homens no mesmo pé de igualdade.
Kate levantou-se para ir buscar colheres. Nesse momento, Ramon recuou da mesa baixa em que espremia o limão e colidiu de leve com a dona da casa quando esta passava. Kate reparou de novo como ele se esquivava a qualquer contacto com ela. A sua sensualidade natural afastava-o de Kate como uma chama se desvia perante uma corrente de ar. Ela corou, e Teresa viu o súbito rubor sob essa pele branca, e o clarão quase de ira que atravessou os olhos castanhos de Kate. Momento de evasão de dois cursos de sangue tão diferentes!
Teresa pôs-se de pé, aproximou-se de Ramon e, inclinando-se sobre os copos, perguntou com aquela afectação infantil própria das mulheres da sua raça:
- Que puseste aí?
- Olha ! - retorquiu ele. E, com a mesma infantibilidade dos homens do seu tipo, começou a explicar-lhe de que se compunha o cacharolete e deu-lhe a provar um pouco de genebra, numa colher.
- É tequila da pior - declarou Teresa.
- A oito pesos cada garrafa? - volveu o marido, a rir.
- Custa esse preço? Tão caro!
Ela fitou-o nos olhos, por um momento, e viu esse rosto tornar-se mais escuro, mais ardente, como se todo ele se derretesse ao senti-la perto de si. Teresa então ergueu a cabeça, orgulhosamente. Havia-o reconquistado.
"Manhas de harém!" pensou Kate. E experimentou certa impaciência ao verificar como o ilustre, prodigioso Ramon se deixava prender nas malhas de um ser tão insignificante. Sentia-se contrariada por ter assim consciência da presença física do homem, do seu corpo belo, dos seus ombros fortes, das suas pernas vigorosas. Dir-se-ia ter também de sucumbir ao fascínio e vir a fazer parte do harém daquele sultão.
Que estranha vontade possuía a pequenina mulher morena! Que subtil poder feminino num corpo que quase só tinha pele e osso! Teresa era capaz de engrandecer a glória do marido - ao passo que ela própria se tornava imperceptível, a não ser quanto ao fulgor tigrino dos seus grandes olhos pretos.
Kate observava admirada. Conhecera homens que lhe davam a impressão de a transformarem em rainha, de ter a cabeça nas estrelas e repousar o peito nas nuvens. Sabia o que era subir, subir, subir até encher o universo com a sua feminilidade.
Via agora, porém, o contrário. Quem tinha poder sobrenatural era essa criatura pequenina, que fazia maior Don Ramon, enquanto ela se diminuía e ficava invisível, excepto no que respeitava aos olhos. Ele, como um sultão, como um fruto sazonado ao sol, tomava uma aparência extraordinária e imponente; e então, por algum poder misterioso do seu corpo trigueiro, a frágil Teresa fazia-o ainda mais completo.
Era o que Ramon queria, e Kate, percebendo-o, sentia-se irritada. Parecia-lhe odioso aquele macho triunfante, exasperava-a aquela rapariga ardente que só pensava em exaltar o homem.
ah, o poder oculto da mulher trigueira! Kate chamava àquilo harém e prostituição. Sim, era a atitude da escrava. Que pretendia dele essa criatura senão o sexo, como uma prostituta?
Pois não era degradante para uma mulher semelhante espécie de amor? E não tornava o homem fraco, sensual, ou odiosamente tirânico?
No entanto, já duma coisa Kate se convencera: que a chave da vida, e da continuidade da vida, residia nas relações do homem e da mulher. A união completa dos dois representava a vida presente e futura; dessa fusão surgia uma vida nova.
Mas tais relações necessitam de equilíbrio, e TereSa destruía-o juntando na balança o seu peso ao do homem.
Ramon não quisera Kate. Possuía agora o que desejara: aquela criaturinha escura, tão servil e orgulhosa do seu poder. Só quisera Kate para camarada, camarada inteligente, Não para mulher. Preferira essa viborazinha de Teresa...
Cipriano, esse desejava Kate. O general, o militar empertigado desejava Kate, mas só por momentos. não se importava casar realmente com ela; o que lhe interessava eram os instantes passados a seu lado. Kate tinha de lhe conceder esses instantes, e em seguida ele tornava a partir para junto das suas tropas. com isso se contentava. E ela também. Assim, ficava senhora da sua existência. Não tinha feitio para andar de roda dum homem a excitar-lhe o sangue, a estimular-lhe o ardor!
Levantou-se e foi ao quarto buscar um livro que prometera a Ramon. Não podia suportar mais tempo a exibição do amor dele por Teresa. Ah, aquele sorriso néscio estampado no rosto do homem, o brilho estranho dos olhos, o aprumo orgulhoso do corpo!
Eis como eram os dessa raça. Selvagens, com o insuportável fluido sensual dos índios e aquela maneira primitiva de se dissolver numa horrível confusão de desejo; com a presunção da sua virilidade insolente e inesgotável.
O pior era que essa força cósmica que ela até aí só conhecera nos olhos azuis dos homens loiros (e que tornava rainhas as respectivas mulheres, ainda que eles as detestassem por fim), essa força declinava agora nos olhos azuis e nascia nas pupilas pretas. As de Ramon, naquela ocasião, luziam de orgulho, poder e desafio. E o mesmo notava Kate nos olhares rápidos de Cipriano. A força do mundo esmorecia nos homens loiros, a sua supremacia abandonava-os para renascer nos de cor escura.
Joachim, o ser inquieto, inteligente e sensível, que era capaz de penetrar na alma de Kate e contemplá-la com os seus olhos azuis, morrera à vista da mulher. Se ela pudesse excitar-lhe o sangue, como Teresa fazia a Ramon, nunca ele teria morrido. Mas seria impossível. Cada um é como é. E cada raça, também. Teresa bateu timidamente à porta do quarto.
- Posso entrar?
- Entre! - respondeu Kate, endireitando-se e deixando as rimas de volumes em volta da mala dos livros.
O aposento era amplo e através das janelas rasgadas via-se o pátio e o jardim soalheiro, mangueiras de troncos lisos como trombas de elefantes, ervas reverdecidas pela chuva e galinhas a esgaravatar a terra debaixo das folhas esgarçadas das bananeiras. Um pássaro vermelho chafurdava no tanque, abrindo e fechando as asas escuras sobre o corpinho escarlate.
Teresa, porém, olhava para o quarto, não para fora. Sentiu o cheiro de cigarros, cujas pontas enchiam um cinzeiro de ágata. Notou os livros em desordem, as jóias espalhadas, a tapeçaria persa pendente atrás da cama, a colcha magnífica, os vestidos de seda e de veludo colocados sobre uma arca, os xailes de longas franjas cuidadosamente dobrados, os sapatos espalhados no chão, brancos, cinzentos, amarelos, castanhos e pretos, e os belos castiçais chineses.
Teresa parecia fascinada por tudo aquilo.
- Que linda! - disse, tocando na colcha sumptuosa.
- Foi uma amiga que a fez e ma ofereceu, em Inglaterra. Teresa observava tudo com espanto, em especial as jóias dispersas no toucador.
- Não gosta dessas pedras encarnadas? - perguntou Kate, ajoelhando de novo para arrumar os livros e olhando o pescoço moreno pendido sobre as jóias. Que ombros frágeis e que pele acetinada, naquele vestidinho branco! E aquela cabeleira negra, segura por travessas de tartaruga! No conjunto, uma rapariguinha humilde e insignificante. Mas Kate bem sabia que Teresa não era insignificante nem humilde. Naquele corpo franzino havia um estranho poder que despertava o ardor num homem e o exultava e, de certa maneira, o guardava só para si. O eterno apelo da carne...
Na mesinha de costura estava um pedaço de musselina que Kate comprara na índia e não sabia em que aproveitar. A cor, espécie de amarelo-pêssego, não se harmonizava com o seu tom de pele. Teresa apalpou o tecido entremeado de fios de ouro.
- É organdi?
inquiriu.
- Não, é musselina feita à mão. Ofereço-lha. A cor vai-me mal, e a si deve-lhe ir lindamente.
Ergueu-se e dispôs o tecido de roda do pescoço bronzeado de Teresa. No espelho, esta viu-se envolta na bela musselina e os olhos brilharam-lhe de prazer.
- Ah, não! Não posso aceitar!
- Porquê? Não condiz bem comigo. Faz agora um ano que a tenho aí. Até pensei em cortá-la para fazer cortinas. Fique com ela.
Kate talvez fosse arrogante, e até cruel, na sua maneira de oferecer.
- Não quero privá-la...
- Aceite, peço-lhe.
Ramon apareceu no limiar e relanceou o quarto e as duas mulheres.
- Olha! - disse Teresa, embaraçada. - A señora quer dar-me esta musselina indiana. - Voltara-se timidamente para ele, com o tecido desdobrado em roda do pescoço.
- Fica-te muito bem - declarou Ramon, contemplando-a.
- A señora não devia oferecer-me...
- Se to dá é porque faz gosto nisso.
- Então - concluiu Teresa, virando-se para Kate - muito e muito obrigada.
- Não tem de quê!
- Ramon acha que me vai bem...
- Na verdade, vai-lhe a matar - declarou Kate, dirigindo-se agora a Ramon. - O tecido foi feito na índia para alguém com aquela cor trigueira. Há-de condizer admiravelmente com ela.
- É muito bonito - concordou Ramon.
com o olhar, percorria o quarto, examinava os diferentes objectos que ali estavam, vindos de todas as partes do mundo, e até as pontas de cigarro na taça de ágata: luxo, desordem, e algo de esterilidade da mulher emancipada.
Kate não sabia em que é que ele pensava. Mas, por seu turno, reflectia: "Ora aí está o homem que eu defendi naquele terraço, que eu vi com um buraco nas costas, nu e inconsciente. Nesse momento não se parecia com um sultão."
Teresa devia ter-lhe adivinhado os pensamentos, porque disse,
olhando para Ramon:
- Sem a señora, Ramon teria morrido. Nunca me esquecerei...
- Não falemos nisso - atalhou Kate. - O destino tece-as.
Eu não alterei nada.
- Foi o próprio destino, señora!
- Não quer vir passar uma temporada connosco em Jamiltepec? - perguntou Ramon. - Agora já tenho uma dona de casa.
- Sim, vá! - insistiu Teresa.
- Ela precisa de uma amiga - explicou o marido.
- Preciso, é verdade. Nunca tive nenhuma a valer desde que deixei o colégio, ainda pequena...
Kate duvidava que pudesse ser para Teresa uma amiga a valer. E cogitava no que pretenderiam, de facto, aqueles dois - e o que pensariam dela.
- Pois sim, terei muito gosto em passar uns dias...
- Óptimo! - exclamou Teresa. - Quando deverá ser? Combinaram o dia.
- E escreveremos a canção de Malintzi - disse Ramon.
- Não faça semelhante coisa - acudiu Kate vivamente.
Ele olhou-a com ar pasmado, como se não percebesse logo, um ar que lhe era habitual. Por instantes, Kate poderia supor ter-lhe dado a impressão que um fantasma produziria se aparecesse a uma criança.
Em Jamiltepec, as duas mulheres entretiveram-se a talhar vestidos para Teresa na peça de musselina cor de ananás. Para senhora casada, o guarda-roupa de Teresa era bastante modesto: só possuía trajes pretos, que lhe davam um ar infeliz, e alguns brancos já antiquados. Até aí só vivera para o pai (que tinha bons livros acerca do México e toda a vida escrevera sobre a história do estado de Jalisco) e para dirigir a sua hacienda. Esta, chamada de Las Jemas, era a única que não fora destruída durante as revoltas que se seguiram à fuga de Porfirio Diaz; Teresa orgulhava-se bastante deste facto.
O seu carácter assemelhava-se muito ao de uma freira, talvez por se tratar de uma pessoa profundamente apaixonada e as paixões profundas serem mais para se esconder do que para exteriorizar nos contactos quotidianos.
Kate, provando-lhe o vestido sobre os ombros morenos, tornou a admirar a estranha macieza daquela pele escura e o pesado volume dos cabelos negros. A família dos Romeros, a que Tereza pertencia, estabelecera-se no México logo nos primeiros tempos da conquista.
Que lhe fizesse mangas compridas, sugeriu. E acrescentou, ocultando um pouco envergonhada a magreza daqueles membros trigueiros:
- Tenho os braços tão delgados! Não são bonitos como os
seus.
Kate, mulher de quarenta anos, tinha-os fortes e alvos e toda ela
era bem constituída.
- Sim - repetiu Teresa -, compridas até aos punhos.
A outra assim fez, achando que, na realidade, era o que mais convinha àquela natureza.
- Aqui os homens - explicou a dona da casa - não gostam
de mulheres magras.
- Não importa o que os homens pensam - sentenciou Kate. - Julga que Don Ramon gostaria que fosse gorda como uma
galinha?
Teresa fitou-a com os seus olhos pretos, grandes e brilhantes -
tão vivazes e, de certa maneira, fugidios.
- Quem sabe! - exclamou. E, no seu sorriso rápido, malicioso, via-se que não desgostaria de ser, às vezes, como uma galinha
gorda.
Presentemente Kate conhecia mais do que nunca a vida interior duma hacienda. Quando estava em casa, Ramon consultava diariamente o feitor; Teresa, porém, aliviava-lhe esse trabalho e já se ocupava bastante da propriedade. Em geral, ele andava por fora, ou para ir à Cidade do México, ou a Guadalajara e mesmo a Sonora. Todos o conheciam no país e o seu nome tornara-se célebre. Mas, debaixo desse culto que os compatriotas lhe prestavam, Kate adivinhava uma animosidade latente. Talvez preferissem aniquilar os seus heróis a elevá-los temporariamente às culminâncias da glória. O momento que mais apreciavam era o da queda do ídolo.
Para Kate, sempre céptica, deviam eles andar afiando o gume com que o atingiriam no peito, quando o herói se tornasse demasiadamente incómodo. É claro que precisavam da anuência de Cipriano, e Cipriano era um diabinho que os mexicanos temiam deveras. Cipriano, por então, conservava-se fiel - para com Ramon e para consigo mesmo. Representava o papel de Huitzilopochtli e Ramon o de Quetzalcoatl. Eis uma verdade simples e evidente para o general, que mantinha o seu exército pronto para o que desse e viesse. O próprio presidente seria incapaz de prescindir de Viedma, apesar de ser também um homem destemido.
- Qualquer dia - declarava Cipriano - poremos Quetzalcoatl na Catedral de Puebla, e Huitzilopochtli na da capital, e Malintzi na de Guadalupe. Não falta muito, Ramon.
- Faremos com que esse dia chegue - respondia Ramon.
Mas Ramon e Montes sofriam ambos com a profunda e diabólica animosidade do país, manifestada no próprio silêncio da população. Era sempre assim, fossem quais fossem as mãos em que o poder caísse: os Mexicanos pareciam destilar ódio oculto, um ódio demoníaco que lhes aviltava a alma; um ódio cujo único fim consistia em frustrar todos os planos.
Aí estava o dragão do México, que Ramon teria de combater. Contra o mesmo inimigo devia lutar o presidente Montes, e isso arruinava-lhe a saúde. Igualmente Cipriano, mas este desenvencilhava-se melhor. Os soldados apoiavam-no, com tambores e danças de roda das fogueiras. E o general consolidava de dia para dia a sua posição.
Ramon, na sua província, também se sentia seguro. Era o chefe, e, com o seu esforço e energia, lograva dominar qualquer veleidade de revolta. Aterrorizava com o mistério da vida, continha a gente em respeito pela fascinação que exercia. Nos seus domínios, considerava-se forte. Mas fora daí, e em especial na Cidade do México, aquela invisível e subtil má vontade do povo dir-se-ia fazê-lo sangrar, sangrar imensamente. E também a voracidade dos estrangeiros, aves de rapina que rondavam a capital cosmopolita.
Durante a ausência de Ramon, Kate fez companhia a Teresa. As duas mulheres tinham isto de comum: achavam que era melhor apoiar um homem corajoso do que fazer papel de intrometidas e importunas. Isso as unia. A profunda convicção de que deviam ser fiéis aos respectivos maridos ligava intimamente a mulher de Cipriano à de Ramon.
Estava quase no fim a estação das chuvas, embora se pudessem prever aguaceiros ocasionais para Setembro ou mesmo Outubro. Entretanto o belo Outono mexicano surgira na terra, como uma espécie de Primavera ao inverso. Vastos espaços se cobriam de flores brancas e cor-de-rosa, estranhos arbustos silvestres floresciam também, duma maneira fantástica, brilhavam à luz florestas inteiras de girassóis; o céu estava de um azul puríssimo, e, nas terras encharcadas da última chuva, a claridade do dia reverberava intensa.
O lago enchera-se mais, povoando de plantas aquáticas todas as suas margens. Vinham aves imigradas do Norte, nuvens de patos bravos que pareciam poeira no ar e depois polvilhavam a água como raminhos de erva: colimbos, grous, gaivotas brancas dos mares interiores, tal se o mistério dos regimes setentrionais se deslocasse para o Sul. Errava em terra o cheiro de água, que produzia uma sensação calmante - tanto mais que Kate supunha ter origem na aridez do solo parte do horror que lhe causava o povo mexicano. Se houvesse sempre uma gota de água na atmosfera e uma neblina sobre as árvores, desapareceria dos corações humanos aquela maldade inexprimível.
Kate ia muitas vezes a cavalo, com Teresa, ver os campos. A cana-de-açúcar, nos vales, crescia muito verde e muito alta, e os peóns começavam a cortá-la com os seus nwchetes, que pareciam espadas, e enchiam os carros de bois que as transportavam à fábrica de Sayula. Nas vertentes áridas das colinas, avultava na sua rigidez férrea a espinhosa planta da teqnila, que é uma espécie de agave. E nos cactos rijos abriam flores maravilhosas, belas de mais para tão sinistra planta. Através dos campos viam-se molhos de vagens apanhadas dos feijoeiros e abóboras dum tamanho incrível. Entre as folhas emurchecidas pendiam tomates e pimentões. Ainda se erguiam pés de milho com espigas tenras. Como a banana era pouca, as crianças colhiam toda a fruta que encontravam para fazer doce. Teresa, para esse efeito, aproveitava até os últimos figos e pêssegos. Das mangueiras suspendiam-se frutos amarelos e maduros, mas na maior parte eles estavam verdes e tombavam pesados como testículos de toiro.
Era Outono no México, com patos bravos na água, e caçadores com espingardas, e rolas nas árvores. Outono do México, início da estação seca: céu mais alto, azul mais pálido, poentes de rara transparência doirada. Os bagos de café avermelhavam-se nos arbustos contorcidos debaixo das árvores maiores, e as buganvílias, de tons roxos, eram tãoespessas que se podiam mergulhar nelas os braços.
Teresa cuidava de tudo e Kate ajudava-a. Se estava um peón doente numa das cabanas, se era preciso separar os enxames de abelhas nas colmeias debaixo das mangueiras, fazer compotas, tratar do jardim, dos vitelos, do fabrico de manteiga ou de queijos, Teresa a tudo isso atendia acompanhada de Kate. E esta admirava-se da vontade firme e constante, que tinha de ser exercida a todo o momento. Tudo corria bem graças a um poderoso esforço de vontade. À mínima fraqueza do patrão as coisas desandariam e seria a ruína da propriedade.
Jamais um desfalecimento, sempre a vontade tenaz.
Ramon regressou, numa tarde de Novembro, de longa viagem a Sonora. Viera por terra desde Lepic, e, por duas vezes, encontrara-se retido pelas inundações; não era vulgar chuvas tão tardias. Mostrava-se fatigado e com ar ausente. Kate sentiu um baque no coração enquanto comentava para si mesma: " Tão longínquo, que até parece encaminhar-se para a morte."
As nuvens cobriam o céu novamente, relampejava no horizonte, mas tudo estava silencioso. Kate retirou-se cedo e foi até à extremidade do terraço sobranceiro ao lago. Só a claridade intermitente dos relâmpagos iluminava a noite escura e, num desses breves clarões, viu Teresa sentada junto do muro do terraço descoberto; tinha a cabeça de Ramon deitada no regaço e acariciava-lhe lentamente os bastos cabelos pretos.
Kate sobressaltou-se, e disse num murmúrio:
- Desculpem! Não sabia que se encontravam aqui.
- Quis estar cá fora, ao ar livre! - explicou Ramon, soerguendo-se a custo.
- Não se mexa! - pediu Kate. - Foi estupidez minha ter vindo aqui. O senhor está cansado.
- Sinto-me realmente cansado - volveu ele, deitando-se outra vez no chão. - Aquela gente chega a convencer-me de que estou esgotado. Por isso voltei para Teresa.
- Sim - retorquiu Kate. - Não se é impunemente o Quetzalcoatl vivo. É natural que o esgotem. Mas valerá a pena ser devorado por eles?
- Tem de ser assim. Há-de-se verificar a mudança e é um homem que a deve fazer. Às vezes chego a desejar que não seja eu.
- Também acho. E Teresa igualmente. Até penso se não será preferível continuar a ser apenas um ser humano.
Teresa, entretanto, calava-se.
- Faz-se o que é preciso fazer - disse Ramon. - No fim de contas, não se deixa de ser homem. E, se daí resultar ferimento... à la guerre comme à la guerre!
Aquela voz, no escuro, parecia a de um fantasma.
- Ah! - fez Kate, suspirando. - Gostava de saber o que é um homem que se expõe a tantos horrores por causa dos seus semelhantes.
Houve um momento de silêncio.
- O homem é uma coluna de sangue dotada de voz. Quando a voz se extingue e fica apenas a coluna, tanto melhor.
Retirou-se ela para o seu quarto. Ia triste, levando ainda nos ouvidos o som daquelas palavras melancólicas. Dir-se-ia que Ramon tinha dentro de si uma ferida aberta. Era como se Kate a sentisse, nas suas próprias entranhas.
Se ele morresse, em resultado de tanto esforço? Então, pensou, Cipriano ficaria só e tudo estaria acabado.
Por que razão devia um homem afadigar-se de tal maneira por causa dum povo estúpido e mau? Se o mundo corria à desfilada para a sua perdição, deixá-lo, isso era lá com ele.
Pensou em Teresa, que consolava Ramon sem dizer nada. E pensou em Ramon, assim ferido e desesperado! Coisas horríveis, na verdade. Ela devia intervir, defendê-lo contra si próprio. Porque haviam os homens de empreender esses combates inúteis, dos quais voltavam para casa a fim de se restabelecerem junto das suas companheiras?
Para Kate, essa luta não merecia sequer as honras de um ferimento. Que tão antipático mundo terminasse de vez, se tal era o seu destino, e quanto mais depressa melhor! Kate não levantaria um dedo para o impedir. Que cada qual vivesse a sua preciosa vida, que é só uma - e fosse tudo mais para o diabo!
Tentaria impedir que Ramon continuasse naquela senda suicida. Deixá-lo ser o Quetzalcoatl vivo quantas vezes quisesse; mas não tinha o direito de se expor à maldade demoníaca do povo.
Contudo, ele insistia nisso, como Joachim fizera na Irlanda. Teresa, com a sua firmeza doce e calma, talvez lhe fosse de melhor auxílio do que Kate com as suas recriminações.
"Ah! Ainda bem que Cipriano é militar. As feridas que sofrer não lhe atingirão a alma." Mas sabia que, sem Ramon, Cipriano não seria ninguém e nem chegaria a interessar-lhe.
De manhã, Teresa compareceu sozinha ao primeiro almoço. Parecia muito tranquila; dissimulava os sentimentos sob o seu ar orgulhoso de mulher morena.
- Como vai Ramon?
- Está a dormir.
- Ainda bem. Pareceu-me muito em baixo ontem à noite.
- Sim... - Teresa fitou a outra com os seus grandes olhos negros cheios de coragem e de lágrimas contidas.
- Não compreendo que um homem se sacrifique àquele ponto. É inadmissível.
Teresa continuava a fitá-la.
- Ele não se sacrifica - replicou. - Sente que tem de proceder assim. E o meu dever é ajudá-lo.
-? Nesse caso, sacrifica-se por ele, o que também é para mim inadmissível.
- Ah, não! - retorquiu Teresa, com uma onda de sangue a ruborizar-lhe as faces. - Não me sacrifico por Ramon. Se posso dar-lhe... sono... quando dele necessita, isso não representa sacrifício. Representa... - Não terminou a frase, e o rubor acentuou-se-lhe.
- Representa amor, bem sei - volveu Kate. - Mas também a esgota.
- Não é só amor! - exclamou Teresa altivamente. - Eu podia amar outros homens, há muitos que merecem afecto. Mas Ramon... A minha alma pertence-lhe. - Afloraram-lhe lágrimas aos olhos. - Prefiro não falar deste assunto - acrescentou, pondo-se de pé.
E saiu do quarto, deixando Kate um tanto perturbada - e com desejo de voltar para Sayula.
Mas uma hora depois Teresa reapareceu e, apoiando no braço de Kate a mãozinha fresca e macia, disse-lhe em tom suave:
- Desculpe se fui indelicada.
- Eu é que não tenho razão...
- Sim, julga que em tudo isto só existe amor. O amor é uma parte mínima do resto.
- E que é o resto?
- Como posso dizer-lhe, se desconhece? Mas pensa que Ramon não é para mim mais do que um amante?
- Um marido! - emendou Kate. Teresa sacudiu a cabeça com impaciência.
- Ah, esses termos, que tão pouco significam! Não é apenas um marido! É a minha vida!
- Acho preferível cada qual viver a sua vida.
- Não. A vida é como uma semente. De nada serve se não a dermos. Sei que é assim; guardei durante anos a minha vida para mim só. Quando se a guarda muito tempo, ela morre. Quis oferecê-la a Deus, mas não consegui. Disseram-me que se eu casasse com Ramon e tomasse parte na heresia de Quetzalcoatl ficaria condenada aos tormentos eternos, mas alguma coisa me segredava que isso não era verdade e que Ramon necessitava da minha alma. Ah, señora!
- Um sorriso iluminou a face pálida de Teresa. - Dei a minha alma a Ramon. Perdi-a por sua causa. Que mais posso dizer?
- E a alma dele?
- Está aqui. - E Teresa espalmou a mão no seio. Kate ficou um momento calada.
- E se ele a atraiçoar? - perguntou então.
- Ah, señora, Ramon não é apenas um amante. É um homem honesto e não trairá o seu próprio sangue. Concedeu-me a sua alma em troca da minha, e eu lutarei até ao último sopro de vida para o apaziguar quando volta para mim esfrangalhado e com necessidade de sossego. - Teresa proferiu tudo isto com veemência, e depois acrescentou num murmúrio, como se falasse a si mesma: - Graças a Deus, não tenho uma vida só minha. Dei-a a um homem que é mais que homem, como se diz na linguagem de Quetzalcoatl. Por isso ela não morrerá em mim como um pássaro na gaiola... Oh, señora! Quando ele parte para Sinaloa e para a costa ocidental, a minha alma acompanha-o. E Ramon não se esquece que a minha está com ele, tenho a certeza! Não, señora, não deve criticar-me nem
lastimar-me.
- No entanto, acho melhor cada qual guardar a sua alma e ser
responsável por ela.
- Sim, se fosse possível! - replicou Teresa. - Mas não se pode guardar a alma dentro de nós porque acaba por morrer... Enquanto o homem não nos dá a sua semente, a nossa é estéril, e a dele nada vale sem a mulher. O mesmo acontece à alma. Enquanto a não damos a um homem e ele a não toma, nenhum valor tem. E depois de ele a tomar, toda inteira, ninguém fala de traição! Um homem só atraiçoa quando se lhe deu uma parte e não tudo, e a mulher só atraiçoa quando aceita dela apenas uma parte e não o todo. Mas quando de um lado se deu tudo e tudo se aceitou, a traição não existe. Sou o que sou para Ramon e ele é o que é para mim. Não importa o que fizer. Não importa que esteja longe.
Kate não gostava de receber lições daquela criaturinha; era mulher da sociedade, bela e com experiência da vida. Estava acostumada a que lhe rendessem preito. As demais do seu sexo chegavam a temê-la, porque era decidida e impiedosa.
Teresa também a receava um pouco como senhora da sociedade, mas não como mulher. Entrincheirada na sua almazinha orgulhosa, Teresa considerava Kate uma dessas pessoas do mundo exterior que têm muito brilho mas que não estão muito seguras dos segredos da sua personalidade. Toda a beleza e crueldade feminina de Kate era coisa secundária para Teresa em comparação com o profundo e tranquilo amor que a ligava a Ramon.
Sim, Kate habituara-se a olhar as outras mulheres como seres inferiores. No entanto, os papéis inverteram-se de súbito. Embora soubesse que Ramon era superior a Cipriano, viu-se constrangida a pensar se Teresa não seria também superior a ela.
Teresa? Mais importante do que Kate? Que surpresa! Não podia ser verdade.
Contudo, assim era. Ramon desejara casar com Teresa e não com Kate. E o ardor desse enlace ela via-o tanto nos olhos de Ramon como nos da mulher: um ardor que não existia nos olhos de Kate.
O casamento desta com Cipriano não parecia sério nem definitivo. Quando Cipriano estava ausente, ela recuperava a sua antiga individualidade. Só com o general presente é que se compenetrava da sua submissão.
Quando Teresa voltou a fitá-la com aquele seu fulgor do olhar, misturado de indignação, Kate sentiu-se desanimada e arrependida - decerto pela primeira vez na sua existência.
Sabia que Teresa sentia certa aversão por ela: era uma estrangeira branca que falava tão inteligentemente como um homem e nunca dera a sua alma; nem admitia que a pudesse dar. Todas essas damas bem vestidas, da América ou da Europa, guardavam a alma para si mesmas, numa espécie de avareza.
Teresa estava resolvida a não deixar que a outra a tratasse indefinidamente como um ser inferior. Assim procediam todas as estrangeiras para com as mexicanas, porque se consideravam emancipadas. E, para com Ramon, mostravam certa condescendência.
Mas Ramon... Bastava que ele as fixasse para que elas se sentissem reduzidas a nada, apesar de todo o seu dinheiro, experiência e ares dominadores. Raças dominadoras! Que esperassem! Ramon era um desafio a tudo isso. Que o dominassem, se fossem capazes de tanto!
- Não dormiu? - perguntou Teresa a Kate.
- Não muito bem.
- Está com olheiras.
Kate alisou a pele, desconfiada, em volta dos olhos.
- É o que nos faz o México. Não é fácil conservar a juventude neste país. A senhora é que está com bom parecer.
- Sinto-me perfeitamente.
Irradiava de Teresa uma frescura nova, algo de frágil e subtil que ela não precisava de defender contra outra mulher.
- Agora que Ramon já veio, é altura de eu regressar a casa -
declarou Kate.
- Porquê? Faz empenho nisso?
- Acho preferível.
- Nesse caso irei consigo até Sayula. De barco, não é verdade?
Kate arrumou as suas coisas. Dormira mal. A noite fora tenebrosa, cheia de horrores. Lembrara-se de Ramon atacado pelos bandidos e do seu ferimento nas costas. Tivera-a acordada durante horas o barulho ameaçador da chuva.
Percebia o desdém de Teresa pela sua maneira de considerar a
vida conjugal.
- Também eu fui casada - disse Kate. - com um homem
excepcional, a quem amei.
- Ah, sim... E ele morreu.
- Quis morrer.
- Ah, sim... quis morrer.
- Fiz o possível para evitar que se estafasse.
- Fez?
- Que mais estava na minha mão? - redarguiu Kate, num
assomo de ira.
- Se lhe houvesse dado a sua vida, ele não quereria morrer.
- Eu dei-lhe a minha vida. Amava-o. Ah, nem faz ideia! Mas ele não quis a minha alma. Achava que eu devia guardá-la para
mim.
- Os homens são assim quando são apenas homens. Mas,
sendo ardentes e bravos, então querem que as mulheres lhes dêem a alma e guardam-na dentro de si. Sei o que é. Sei onde a minha alma está. Nas entranhas de Ramon, assim como a sua semente está nas minhas entranhas, entranhas de mulher. Ele é um homem e uma coluna de sangue; eu sou uma mulher e um vale de sangue. Digo-lhe isto porque lhe salvou a vida e portanto estamos todos ligados: Caterina, eu, Ramon e Cipriano. Mas não me julgue mal. Aquela outra espécie de mulheres, as que conservam a sua alma, que é senão fraqueza?
- E os homens?
- Se são ardentes e bravos, confortam as nossas entranhas, Caterina!
Kate baixou a cabeça obstinada, furiosa por ter sido apeada do seu pedestal. Que coisa miserável, pensou, isso de uma mulher viver apenas por amor de um homem! Só para lhe enviar a alma para dentro do seu precioso corpo... E trazer no ventre a sua semente preciosa... Quanto a ela própria, nada.
Pretendeu consumar a sua indignação, mas não foi bem sucedida. Talvez no fundo, e contra sua vontade, invejasse Teresa, os seus olhos negros cintilantes, a sua firmeza selvática. Invejava-lhe os dedos delicados, e, acima de tudo, a consolação de ter um homem tão profundamente ligado a si.
A manhã estava quente depois da chuva. As rãs coaxavam, frenéticas. Na outra banda do lago as montanhas pareciam azuis-escuras, com farrapos de nevoeiro a arrastarem-se através das árvores e nuvens brancas a coroarem os picos. Nas águas barrentas navegava um barco de vela solitário.
- Hoje, tudo isto me lembra a Europa, o Tirol - disse Kate, comovida.
- Gosta muito da Europa? - perguntou Teresa.
- Muito.
- E tenciona voltar para lá?
- Penso regressar em breve, para ver minha mãe e os meus filhos.
- Eles reclamam-na?
- Sim, respondeu Kate, um pouco hesitante. E em seguida ajuntou: - Não muito. Mas quero tornar a vê-los.
- Porquê? Tem saudades deles?
- às vezes. - E os olhos de Kate arrasaram-se de água. O barco avançava sem rumor.
- E Cipriano? - volveu Teresa, a medo.
- Ah!, exclamou Kate. -Esse é para mim como um estranho.
Teresa ficou uns momentos calada.
- O homem é sempre estranho para a mulher, creio eu - rematou ela. - E porque não havia de ser?
- Mas a senhora não tem filhos.
- Tem-nos Ramon, E ele costuma dizer: "Continuarei a lançar pão à água e se meus filhos acabarem por se aproximar de mim ficarei contente." Não é. o seu caso?
- Não! - respondeu Kate. - Sou mulher, não sou homem.
- Se eu tiver filhos - declarou Teresa - também lançarei pão à água para os atrair, e espero não os reter ciosamente na minha rede. Assusta-me o amor, é tão pessoal! Devemos deixar os pássaros voarem com as suas asas e os peixes nadarem à vontade. a manhã concede-nos mais do que o amor. E eu quero ser sincera para com a manhã.

XXVI
Kate estava satisfeita por voltar à sua casa e por se encontrar sozinha. Sentia que se operava nela uma grande mudança - mudança que a poderia matar se se realizasse violentamente. Era o fim de qualquer coisa e o princípio de outra: no mais profundo da sua alma e nas suas entranhas. Os homens, Ramon e Cipriano, e o México, seriam a causa daquela modificação. Chegara o momento. Entretanto, se a evolução fosse brusca de mais, e rápida em excesso, poderia revelar-se fatal. Por isso tinha necessidade de se isolar, de tempos a tempos.
Sentava-se na margem durante horas, à sombra dum salgueiro verde, cuja cortina de folhas descia até à água. O lago mostrava-se mais alto e mais cheio que de costume, e tinha também maior calma e maior mistério. Errava o cheiro dos nenúfares que emurcheciam depois de haverem dado à costa. As distâncias pareciam prolongadas. Lembravam estampas japonesas os outeiros mais próximos, salpicados de verdura. Carros de grandes rodas traziam à aldeia a cana-de-açúcar cortada; puxavam-nos a cada um, oito bois que baloiçavam lentamente a cabeça de enormes chifres, enquanto um peón, à frente, os conduzia com o aguilhão poisado no jugo. Tão pesados, tão vagarosos e contudo fáceis de guiar!
Experimentava, no México, uma sensação esquisita, como se estivesse em presença duma humanidade pré-histórica, gente de olhos escuros de antes do período glaciário - quando o mundo era mais frio, os mares vazios e diferente a constituição da terra; quando as águas, solidificadas, se acumulavam nos pólos, e as planícies ocupavam os oceanos, como a Atlântida e os antigos continentes da Polinésia; quando os mares não passavam de lagos, embora grandes, e os povos de olhos pretos podiam dar a pé a volta ao mundo. Nesse tempo existia uma raça misteriosa de sangue ardente e ligeira no andar: raça que possuía uma civilização que lhe era própria. Depois fundiram-se os glaciares, os homens refugiaram-se nos pontos elevados, como os planaltos do México, e separaram-se em nações diferentes.
Na América é tão forte a sombra do mundo antediluviano que às vezes Kate perdia a noção dos tempos decorridos e começava a aproximar-se do antigo modo de ser, da vontade velha e torva, do desprezo da morte, da subtil e escura consciência, do instinto que precedeu a razão. Regressava à época em que o espírito e o poder dos homens residiam no sangue e na espinha dorsal, e as relações entre eles e com os animais se produziam através da medula.
Os Mexicanos ainda se encontravam nesse estádio. O que é aborígene na América pertence à fase de antes do Dilúvio, antes de reinar na terra a vida espiritual. Por isso, ali, a actividade cerebral dos brancos se alastra como uma erva em terreno virgem - para, é claro, murchar depressa e desaparecer por completo. Então, como resultado disso, surge um novo gérmen, uma nova concepção da humanidade: vem da fusão da antiga consciência instintiva e do racionalismo intelectual do branco. Um ser diferente, nascido do encontro daqueles dois.
Kate era muito irlandesa, e no fundo da sua alma jazia o misticismo original, quase desaparecido, dessa primitiva raça celta ou ibérica. É como um resíduo que existe ainda no mundo antediluviano e que não pode ser inteiramente destruído.
Sabia ela, mais ou menos, que era essa fusão o que Ramon pretendia realizar. Compreendia também o motivo pelo qual Cipriano tomava a seus olhos uma importância maior que todo o seu passado, os seus dois maridos, e os filhos. Esse velho sangue másculo despertava-lhe agora nas veias; daí vinham as palpitações que ela ultimamente sentia.
A Irlanda não podia nem queria esquecer aquele ardor sombrio e primitivo. Os Thuathas de Danaan, embora submersos, continuam vivos no sangue, não se lhes consegue impor silêncio. E a Europa científica e meticulosa tinha de se defrontar de novo com os velhos
gigantes.
Esta alteração, todavia - e Kate bem o notava -, não era coisa que se efectuasse com brusquidão; de outro modo haveria rotura e possibilidade de morte. O primitivismo tem os seus horrores. O espírito original do México, pesado, terre à terre, podia ser-lhe tão odioso que a tornasse perversa. Essa obtusa, indomável persistência, desprovida de energia e de esperança, que é peculiar ao aborígene americano, levava-a às vezes a supor que ia perder a razão. Obstinação tenaz que resistia aos séculos e desprezava a personalidade! Lascívia da morte, feroz, incalculável, terrível!
Esse povo, realmente, nunca mudava. Os homens não tinham fé na vida, em nenhuma realidade evidente. Eram apenas fiéis a certas forças obscuras do passado. O presente submergia-se na alma dos homens e das mulheres sob uma camada de lava negra, não deixando à superfície senão a indiferença.
A Esperança! A Esperança! Seria possível, um dia, fazê-la reviver nessas almas obscuras e obter o enlace das suas raças, único passo para o novo mundo do homem?
Entretanto, Kate sentia-se invadida por um mal-estar esquisito. Achava ser necessário partir, a fim de escapar a tamanha depressão. Já não podia ouvir a rastejante insistência dos criados: o sangue é só um, nós somos do mesmo sangue - sentença de tribo pior do que a morte para um indivíduo de raça branca. Estranha teimosia aquela que preconizava a todos a fusão do sangue!
Kate pertencia a uma família antiga, com pergaminhos. Fora educada nas ideias anglo-germânicas da superioridade intrínseca da aristocracia hereditária. O seu sangue era diferente do da gente vulgar: outro fluido, mais refinado.
No México, porém, nada disso conta. Juana, o homem que ia buscar água, o barqueiro que remava no lago, todos revelavam o mesmo pensamento no olhar: "O sangue é só um; pelo sangue tu e eu somos iguais." Kate lia isto nos olhos deles, adivinhava-o nas suas palavras, quer fossem deferentes ou escarninhas, e, por vezes, sentia-se revoltada com essa imposição da igualdade de sangue.
E quando se empertigava como para proclamar "O meu sangue é só meu. Noli me tangere", percebia nas pupilas negras daquelas criaturas o terrível ódio ancestral que as impele a cometer as maiores atrocidades.
Contudo, inclinavam-se perante a sua inteligência, sabedoria e compreenção, e, embora contra vontade, testemunhavam-lhe certo respeito. Ela pertencia às raças dominadoras, hábeis e espertas... Mas exigiam-lhe a aceitação da velha crença: O sangue é só um. Somos todos do mesmo sangue.
E tinha de se submeter, senão persistiriam na sua lenta vingança.
Mas não podia submeter-se de repente. Devia ser a pouco e pouco; um esforço violento destruí-la-ia.
Compreendia agora a afirmação de Ramon: "O homem é uma coluna de sangue, a mulher um vale de sangue." Era a unidade primordial
do género humano, oposta à unidade do espírito individual.
Kate, porém, sempre considerara seu o próprio sangue. O espírito é que ela partilhava com os outros.
Percebia agora o motivo por que Ramon e Cipriano usavam fatos brancos e sandálias e andavam meio nus como deuses vivos. Era a aceitação da antiga crença, o renascimento do laço de sangue que unia os homens, laço que tornava o sacrifício humano tão poderoso
factor da vida.
O sangue do indivíduo é rendido ao ser supremo, ao ser de sangue, deus, nação ou tribo.
E, na verdade, que estranha união existia entre Ramon e os seus homens, entre Cipriano e os seus soldados! Era a comunhão do sangue. Isto podia indignar Kate, enjoá-la por vezes, mas era uma força que não conseguia vencer.
Mesmo admitindo essa comunhão de sangue, Ramon reivindicava uma supremacia, até uma divindade. Era um homem como o mais humilde dos seus peóns, nascido da mesma fonte, das mesmas raízes que eles; no entanto, mostrava ser superior aos outros. E a sua superioridade não provinha do sangue ou do espírito mas duma misteriosa estrela interior que nascia do oceano sombrio e cintilava entre o mar e o céu imenso. A estrela que une o vasto sangue universal ao sopro universal do espírito e brilha entre ambos.
Porque essa coisa que reina sobre o poder humano e que é em si mesma um poder, essa coisa é a estrela misteriosa do cosmos primitivo, é a divindade no homem.
Certos homens nada possuem de divino. Possuem apenas faculdades. São ou deveriam ser escravos. Muitas vezes um homem tem a centelha divina, mas é sufocada pela força ou pela vida material.
E quando o espírito e o sangue se separam e divergem, provocando a morte maior, então apagam-se quase todas as estrelas.
Só o homem que possui uma estrela magna, uma grande divindade, será capaz de reaproximar essas forças contrárias e criar uma nova união.
Esse homem era Ramon e o seu esforço o máximo que se podia fazer: aproximar e unir as forças contrárias. Eis o poder divino de um homem. Por ele, no homem, se distingue o deus. Por ele apenas
e por mais nada.
Embora fosse como o mais ínfimo dos seus peóns, com o mesmo coração que bate, os mesmos rins insondáveis, e os lábios fechados sobre o mesmo segredo da humanidade; e fosse humano como Kate era humana, com a mesma ansiedade de espírito e a sede do puro conhecimento e da comunhão; no entanto só ele tinha o poder astral de unir os dois grandes impulsos da humanidade, e de os fundir - de ser a ave de asas imensas que paira entre as duas potências opostas: a Estrela da Manhã, que está entre o sopro da aurora e as profundezas da noite.
Os homens haviam tentado assassiná-lo com punhaladas. Carlota quisera matá-lo com o seu espírito. Cada parte, separadamente, pretendera liquidá-lo. Ele, contudo, estava fora do alcance de qualquer delas. Era o Quetzalcoatl vivo, a cintilação de uma estrela que nascia na alma dos seus compatriotas. Chama dum astro a meio das duas asas do poder: eis só o que representa a divindade num homem e em toda a humanidade.
Kate recebeu um recado de Cipriano: mandava-lhe dizer que vinha instalar-se na Vivenda Aragon. Esta casa era a principal da região do lago; tinha um jardim em toda a volta, não muito grande mas bonito, com palmeiras e sebes de jasmineiros, tudo muito verde em resultado de regas constantes. A própria construção lembrava um castelo em ponto pequeno, talvez despropositado; mas eram agradáveis as varandas espaçosas que davam para a encosta e a vegetação do jardim, mesmo acima do lago.
Cipriano chegou bem disposto. Brilhavam-lhe os olhos com uma expressão de mocidade. Queria casar a valer com Kate, segundo a lei civil mexicana, e morar com ela na Vivenda Aragon. Kate hesitava, achando que tinha necessidade de voltar em breve à Europa, sobretudo à Inglaterra e Irlanda. Era urgente, porque lhe custava já a suportar aquela ameaça do México, a sua influência deprimente. Precisava, pelo menos, de um intervalo de repouso.
Assim o declarou a Cipriano, que ficou desanimado.
- Não importa casar ou não antes de ir - disse ela. - O que tenho é de me afastar daqui o mais depressa possível.
- Quando?
- Em Janeiro.
O rosto dele desanuviou-se.
- Então casemo-nos primeiro. Na semana que vem.
Ela aquiesceu com estranha indiferença, e Cipriano, radiante, correu a fazer os preparativos necessários.
Pouco interessava a Kate o casamento civil. No sentido essencial, já estava casada com Cipriano. Ele era acima de tudo militar, tão depressa vinha para ela como a deixava. Kate, de qualquer maneira, passaria grande parte do tempo sozinha.
Podia convir-lhe como marido, mas o que a assustava era esse México terrível. O movimento quetzalcoatliano espalhara-se de maneira sinistra por todo o país. O arcebispo manifestara-se contra isso, e Ramon, Cipriano e seus aderentes estavam excomungados. Haviam tentado assassinar Montes.
Na capital, os partidários de Quetzalcoatl tinham escolhido para lugar de reunião a Igreja de San Juan Bautista, conhecida pela Igreja do Salvador Negro. O arcebispo ordenara aos seus fiéis que fossem em procissão ao referido templo, agora chamado Casa de Quetzalcoatl, a fim de o retomarem para o culto católico. O governo, porém, sabendo que mais tarde ou mais cedo haveria luta, fez dispersar a procissão e deteve o arcebispo, depois de alguma efusão de sangue.
Rebentou então uma espécie de guerra. Os Cavaleiros de Cortez exibiram a sua famosa reserva de armas, que aliás não era muito impressionante. Em Zócalo produziu-se uma manifestação clerical, dirigida por um padre fanático. Montes mandou atirar sobre os insurretos. Aquilo afigurava-se o começo duma luta religiosa. Pelas ruas viam-se os bandos de Quetzalcoatl, com as suas serapes azuis e brancas, e' os de Huitzilopochtli, de serapes vermelhas e pretas, marchando ao som de tambores e erguendo uns as suas estranhas insígnias redondas, feitas de penas, e outros longas varas rematadas por um penacho rubro de extremidade preta. Nas igrejas, os sacerdotes incitavam os fiéis à guerra santa; os que haviam aderido à causa de Quetzalcoatl discursavam nas ruas à multidão.
Período tumultuoso. Em Zacatecas, o general Narciso Beltran manifestara-se contra Montes e a favor da Igreja, mas Cipriano interviera com tal presteza e violência que deu em resultado o fuzilamento de Beltran e a dispersão das suas tropas.
Então Montes declarou ser igual no México o antigo culto católico e publicou um decreto determinando que a religião nacional da República fosse a de Quetzalcoatl. Encerraram-se todas as igrejas e os padres viram-se obrigados a prestar juramento de fidelidade à República ou a serem condenados ao exílio. Em todas as cidades e aldeias surgiam os soldados de Huitzilopochtli e os homens de serape azul. Ramon trabalhava sem descanso. Cipriano aparecia nos lugares onde menos o esperavam. Conseguiu despertar uma espécie de frenesi religioso nas regiões mais descontentes, como Vera Cruz, Tamaulipas, Jucatão. Efectuaram-se no mar estranhos baptismos e nas costas elevaram-se fortalezas com as cores de Huitzilopochtli.
Todo o país vibrava com uma sensação desconhecida, dominado pela vaga de energia nova, mas em tudo aquilo entrava violência, crueldade e certo horror.
Deportaram o arcebispo. Já não se viam sotainas nas ruas; só as serapes de Quetzalcoatl e as de Huitzilopochtli se evidenciavam entre as multidões. Eis porque Cipriano chegou junto de Kate, com os olhos a luzir, ébrio de triunfo. Kate ficou assustada e sentiu-se vazia e inútil. Nem sequer aquela vitória espantosa e a alteração que se dava na face do mundo a podiam salvar por completo. Pertencia à velha Europa e não lhe era fácil transformar-se tão rapidamente. Contudo, achava que, se voltasse à Irlanda e concedesse uns tempos de repouso à sua vida e ao seu corpo, poderia então regressar ao México e participar nos acontecimentos.
Porque não era só o espírito que se modificava, mas também o corpo e o próprio sangue. Sentia esse terrível catabolismo e metabolismo a transformá-la noutra criatura. Se a metamorfose fosse muito brusca, decerto ela morreria.
Casou-se, pois, legalmente com Cipriano e foi passar um mês com ele na Vivenda Aragon. Em seguida embarcaria sozinha para a Irlanda, projecto a que o marido deu a sua anuência.
Era deveras estranho estar casada com ele. Kate tinha a impressão de se afundar pesadamente abaixo da superfície da vida, para jazer nas suas profundezas.
Estranha, pesada, verdadeira passividade. Pela primeira vez na sua existência, ela sentia-se repousada. Falar e pensar tornavam-se-lhe coisas triviais; as ondas à tona de água não são nada para aqueles que vivem submersos.
Na alma, estava serena e altiva. Ah, se o corpo não sofresse tanto com a transformação! No cosmos encontrara a paz de espírito, o universo abrira-se à sua frente, e ela deixava-se afundar no leito de puro descanso. Adquirira quase tanta segurança como Teresa. Só a atormentava a mudança que se lhe operava no sangue.
Cipriano mostrava-se feliz, à sua maneira de índio. Parecia um adolescente contemplando o mistério da vida com olhos dilatados de espanto. Não se ocupava especialmente de Kate, nem lhe falava de assuntos sérios. Se ela aflorava uma conversa desse género, dirigia-lhe um olhar desconfiado e afastava-se.
Tinha consciência de coisas de que a mulher mal se apercebia, sobretudo do perigo das palavras irritantes. E isto ele evitava.
Kate compreendia agora como os seus antigos amores haviam sido brutais, carregados de desejo e de contactos voluptuosos. com Cipriano, desaparecia a sua vontade ardente feminina, toda ela doçura, submissão; e contudo, tais as fontes térmicas que brotam da terra sem rumor, tão poderosa era na sua força secreta!
Via quase com espanto morrer dentro de si a Afrodite da espuma, essa Afrodite ávida de sensações ardentes. Como se prevenido por vago instinto, Cipriano repudiava essa parte da natureza de Kate. Quando esta se deixava dominar pelo êxtase voluptuoso que acaba em espasmos delirantes, ele afastava-se da mulher. Retirava-se desde que pressentia nela a sede daquelas volúpias a que costumava chamar o seu "prazer". E Kate percebia que lhe era repulsiva nesses momentos. Misterioso e implacável, afastava-se sem uma palavra.
Estendida a seu lado ela compreendia então quanto era superficial aquela efervescência de sensualidade. Parecia vir do exterior, não do seu íntimo. Depois do primeiro instante de decepção, quando esse prazer lhe era negado, concluía que não o desejava realmente, que até lhe repugnava.
E Cipriano, no seu silêncio quente e obscuro, aproximava-se quando ela se assemelhava a uma fonte borbulhando sem rumor das profundezas vulcânicas. Já não se tratava de prazer consciente. O que se passava era estranho, inexprimível, muito diferente das suas relações com Joachim. Nem êxtases, nem espasmos. Uma espécie de força subterrânea a que tinha de se submeter.
Tal como no amor, assim era Cipriano na vida. Kate não conseguia perscrutá-lo. Se tentava, via-se obrigada a desistir e a classificá-lo entre as coisas que existem e não se compreendem. Um desconhecido, e uma presença; nada mais.
Não podia existir intimidade. Cipriano envolvia-se na sua reserva como numa capa e deixava Kate envolver-se na dela. Eram dois estranhos. Ele aceitava o facto integralmente, como se outra coisa não fosse possível, mas Kate achava aquilo deveras singular. Tinha tanto desejo de intimidade e esforçara-se tanto por obtê-la!
Agora, resignara-se a aceitá-lo tal como era: um desconhecido, um estrangeiro na presença do qual vivia. E sem nenhuma intimidade espiritual, a sua união não passava de uma união de sangue.
Por isso, pouco importavam as ausências de Cipriano. Deixava atrás de si a marca da sua presença, e levava consigo a de Kate. Em resumo, não existia o desgosto da separação.
Certa manhã, ele teve de partir cedo para a cidade. O sol ainda não cobria o lago mas, para além de Tuliapan, já acariciava as montanhas, que brilhavam tão distintas que se diriam focadas por luz mágica. O sulco verde das encostas parecia ao alcance da mão. No seu voo, cintilaram de súbito duas gaivotas brancas, apanhadas na luminosidade. Mas o lago, suave, unido, silencioso, permanecia ainda na sombra.
Kate lembrou-se do mar. O Pacífico não ficava longe. Ela tinha a impressão de o haver esquecido, mas sentia de novo a necessidade da sua brisa.
Cipriano ia banhar-se; Kate viu-o caminhar sobre as lajes do cais. Despiu o roupão e o vulto escuro desenhou-se na água amarelada. Era tão moreno! Tal um malaio. Corpo tão trigueiro como a cara; e com esse físico primitivo, e o peito alto, e as ancas bem modeladas, evocava as figuras masculinas de certas medalhas gregas.
Mergulhou da beira do cais e avançou na água mansa. Nesse momento a luz espalhou-se dos cimos das montanhas e cobriu de oiro a superfície do lago. Imediatamente, Cipriano apareceu rubro como fogo. Os raios solares, porém, não eram vermelhos, mas, reflectidos pelas águas, davam ao corpo de Cipriano um tom de lume, como se o abrasassem.
Os filhos da Manhã... A coluna de Sangue... Um Pele-Vermelha... Kate contemplava-o admirada enquanto nadava resplandecente e puro. Como se fosse de fogo!
Os filhos da Manhã... Kate mais uma vez renunciou a todo e qualquer esforço de conhecimento - e, sem esforço, limitou-se à comunhão de sangue.
Sim, a sua raça... Ela notara já como os indígenas se tornavam de um vermelho puro à luz da manhã e da tarde. Dir-se-iam chamas erguendo-se da água.
Cipriano partiu a cavalo, com o criado. Kate viu-o afastar-se pela estrada além, sombrio na sua montada ruça. Parecia não fazer movimento nenhum. Irradiava um orgulho másculo e, assim unido ao animal, era como se este e o cavaleiro constituíssem um único ser.
Desapareceu. Kate, por um instante, experimentou saudade da sua presença. Mais do que dele próprio. Não desejaria tocar-lhe nem falar-lhe, mas tão-somente senti-lo ali.
Depressa se dominou e voltou à realidade. Desde que se compenetrava da ausência de Cipriano, vinha-lhe a noção nítida da sua presença.
Passeou um pouco pela costa, junto do molhe. Adorava estar só. Absolutamente só, com o jardim, o lago e a manhã.
"No fundo, sou como Teresa", pensou ela.
De súbito viu à sua frente uma corda comprida e escura em cima de um pedregulho. Aquilo fê-la sair dos devaneios. Era uma cobra de pele ornada com delicados desenhos; estava sobre uma pedra enorme e a cabeça pendia-lhe até ao chão.
O réptil sentiu a presença da mulher, pois, com incrível rapidez, rastejou ao longo da rocha e entrou numa fenda que havia na base do molhe.
Não era grande o buraco. Depois de ali penetrar, virou a cabeça e dardejou a língua preta; mas em seguida desapareceu devagar, e Kate viu-lhe ainda o último anel, no qual poisava a cabeça chata. Fazia lembrar aqueles diabos que se representam de queixo apoiado sobre os braços, olhando através duma seteira. Do fundo do esconderijo espiava a mulher; seguia-a com os olhos cintilantes de crueldade.
Kate pensou então em todos esses seres invisíveis, escondidos nos recantos ocultos da terra. E perguntava a si mesma se aquele réptil não sofreria por ser incapaz de se elevar na escala da criação; de não poder correr a quatro patas em vez de rastejar...
Talvez não. Talvez houvesse encontrado a sua própria paz. Kate sentiu-se reconciliada com o animal.

XXVII
Teresa e Kate tornaram a visitar-se. Existia agora entre ambas certa simpatia, especialmente desde que a irlandesa decidira partir.
Envolvia o lago uma pureza outonal. Sentia-se a humidade na atmosfera, as sarças das encostas cobriam-se de rebentos. O sol inundava os montes duma luz de ouro, as sombras eram profundas, aveludadas. A verdura invadia tudo, até as rochas e a terra cor-de-rosa. O verde brilhante das canas-de-açúcar sobressaía no fundo rubro dos campos lavrados de fresco; aqui e ali, entre a massa escura das árvores, avultava a mancha branca das povoações.
O céu estava alto e límpido. No ar cristalino vibravam os tambores e o grito para as pausas do dia. E o dia parecia deter-se perante o mistério supremo desse universo que desabrochava, vasto, suave e cheio de vida.
Até no lago se encontrava uma espécie de apaziguamento. Avançava uma canoa com a vela entumecida tal uma concha nacarada; o casco negro e afilado deslizava sobre a água. Dir-se-ia a barca de Dioniso portadora duma mensagem e de ramos de videira.
Kate mal se lembrava agora da secura árida dos meses anteriores, quando a terra parecia crepitar ao sol implacável.
Ramon e Teresa atravessaram o lago e o seu barco de remos entrou no molhe. Era uma manhã em que as sombras nas montanhas tomavam o tom azul das centáureas.
- Sempre vai partir? - perguntou Ramon a Kate.
- Por uma temporada. Não me julga a mulher de Loth, não é verdade?
- Não - respondeu ele, a rir. - Julgo que é a de Cipriano.
- E sou. Mas preciso de sair, embora por pouco tempo.
- Ah! Nesse caso vá e volte depressa. E diga lá na Irlanda que façam o que fizemos aqui.
- Como?
- Encontrando-se em si mesmos, e no seu próprio universo, e com os seus deuses. Justifiquem os seus mistérios. Os Irlandeses são tão prolixos no que respeita aos seus heróis de outrora e aos seus tempos gloriosos! Diga-lhes, pois, que concretizem tudo isso, como nós fizemos com Quetzalcoatl e Huitzilopochtli.
- Está bem. Veremos se há quem me escute...
- Sim, senhora. - Seguiu com os olhos a vela branca que se aproximava e depois indagou: - Afinal, porque quer partir?
- É-lhe indiferente o caso, pois não?
- Não, não me é indiferente.
- Porquê?
Ramon levou outra vez uns segundos para responder:
- É uma das nossas - replicou por fim. - Precisamos de si.
- Mesmo quando não faço nada? E quando principio a aborrecer-me com a história do Quetzalcoatl vivo e o resto, e preferia conhecer um simples Don Ramon?
Ele riu-se.
- Que é um simples Don Ramon? Don Ramon tem dentro de si Quetzalcoatl vivo. Mas a senhora auxilia-nos, apesar de tudo.
- Não creio que precise de auxílio, e muito menos de uma mulher que. no fim de contas, não é mais que a esposa do seu amigo.
Estavam sentados num banco, debaixo das manhãs-de-páscoa, cujas folhas rubras formavam como que uma flor de pétalas enormes.
- A esposa do meu amigo - volveu Ramon. - Que poderia
ser de mais agradável para mim?
- Pois claro! - exclamou Kate de maneira ambígua. Ramon tinha os braços apoiados nos joelhos e olhava para o
lago, com ar ausente. O seu rosto reflectia cansaço e aquela vulnerabilidade que sempre comovia Kate. Mais uma vez ela se compenetrou do isolamento e esforço que a procura de uma vida diferente impunha àquele homem. E, no entanto, ela não desistia...
Essa visão acentuou-lhe o sentimento de impotência, da impotência total da mulher em ajudar o homem que caminha para o Além.
- Está muito seguro de si mesmo? - perguntou.
- Seguro de mim? Não! De um instante para o outro eu morro e desapareço da face do mundo. Como poderia estar seguro de mim
mesmo?
- Mas porque há-de morrer?
- Todos morrem. Até Carlota!
- Essa tinha a sua hora marcada.
- Pode-se marcar a nossa hora como se faz no despertador de um relógio?
Kate calou-se por uns momentos.
- Se não está seguro de si mesmo, de que está então? - inquiriu como se o desafiasse.
Ramon fitou-a com os seus olhos sombrios.
- Estou seguro... seguro... - A voz sumiu-se-lhe, o rosto tomou a palidez dum defunto. Só os olhos a observavam intensamente. De novo ela se viu perante a sombra dolorosa do homem e se sentia impotente diante desse espectro vivo do sofrimento.
- Não pensa que anda em erro, pois não? - perguntou Kate.
- Não, mas talvez não possa manter...
- E então? - insistiu friamente a irlandesa.
- Continuarei o meu caminho, embora desacompanhado. Kate só lhe via os olhos negros, fitos nela. Ramon começou a falar em espanhol: - Isto faz-me doer a alma, como um pronúncio de morte.
- Mas porquê? Não está doente!
- Sinto a alma desagregar-se.
- Não deixe! - exclamou Kate, alarmada.
Ramon fitava-a ainda com os olhos inexpressivos. De súbito, ela experimentou uma sensação de calma e de força.
- Devia esquecer por uns tempos - disse-lhe em voz compassiva, poisando a sua mão na dele. Para quê tentar compreendê-lo ou contrariá-lo? Era uma mulher, ele um homem e, portanto, tinham da vida uma concepção diversa.
Ao contacto daquela mão, Ramon percebeu despertar de um sonho e fixou-a com olhar perscrutador e altivo. A carícia maternal sobressaltara-o como uma picada.
- Sim, devia - disse.
- Pois claro. Se quer ser tão... abstracto e quetzalcoatliano enterre de vez enquando a cabeça na areia como fazem as avestruzes, e esqueça.
- Oh! - exclamou Ramon sorrindo. - Ei-la de novo zangada!
- O caso não é tão simples como parece. Existe em mim um conflito, e não me deixam ausentar-me por algum tempo.
- Não podemos impedi-la.
-Pois sim, mas discordam da minha ida. Não me deixam partir em paz.
- Porque deseja ir-se embora?
- Tenho de ir. Tenho de voltar para junto dos meus filhos e da
minha mãe.
- Sente essa necessidade?
- Sinto.
Logo que deu esta resposta compreendeu que havia nela certa duplicidade. Era como se tivesse dois eus: um, mais novo, terno, sensível, que pertencia a Cipriano e a Ramon; outro, duro, completo, que pertencia aos filhos, à mãe, à Inglaterra, a todo o seu passado. O eu antigo nada tinha de submisso e era forte, o recente parecia frágil, estava ligado a Cipriano e até a Ramon e a Teresa; nada tinha de independente.
Kate possuía consciência desta dualidade e sofria com isso. Porque não conseguia optar definitivamente pela antiga maneira de ser, nem pela moderna, ficava a deter-se entre as duas.
- Pois é - continuou. - Sinto essa necessidade, e querem
evitar que eu parta.
- Que ideia! - protestou Ramon.
- Sim, senhor. Exercem pressão sobre mim, paralisam-me, impedem-me de me ir embora.
- Se tem essa sensação, convém que nos afastemos de si durante uns tempos.
- Porquê? Não concordam com a minha ida? Se eu tenho de
ir, porque não me apoiam?
Ramon fitou-a tranquilamente.
- É impossível. Não acredito nessa partida. Seria virar-nos as costas, renegar-nos. Mas a verdade é que somos todos muito complicados. Se acha que tem de se ausentar durante certo período, então vá! Não é coisa de importância primordial. Já fez a sua opção, e
eu não fico apreensivo.
Kate sentiu alívio ao ouvir isto, porque estava bastante preocupada consigo mesma. Nas suas relações com Cipriano e Ramon, nunca tinha a certeza de nada. Contudo, replicou com um pouco de ironia:
- Porque haveria de ficar apreensivo?
- Não desconfia de si própria às vezes?
- Nunca! Estou sempre segura da minha pessoa.
Continuavam sentados no jardim da Vivenda Aragon, debaixo da manhã-de-páscoa. O ar começava a aquecer. O lago estava calmo, o vento amainara e tudo se conservava imóvel - excepto as folhas rubras do arbusto.
O Natal aproximava-se! Eis o que recordou a Kate aquela planta majestosa.
Natal! O azevinho! A Inglaterra! As prendas! As iguarias! Se ela se apressasse poderia chegar à Inglaterra na data festiva. Achava uma coisa tão natural encontrar-se na pátria com a mãe, pelo Natal! Tinha casos tão interessantes a contar! E as bisbilhotices divertidas que havia de ouvir... De longe, tudo isso lhe parecia encantador. No entanto, experimentava como que uma relutância ao pensar nesse regresso.
- Podemo-nos fartar de coisas boas - disse ela a Ramon.
- De qual, em particular?
- Oh! De Quetzalcoatl e todas essas histórias. Podemos estar saturados.
- É possível - respondeu Ramon, pondo-se de pé e afastando-se em passos tão subtis que ela nem deu pela sua retirada.
Quando compreendeu que ele se fora embora, ficou fula. Mas continuou sentada debaixo do magnífico arbusto, contemplando com os olhos irritados a sebe de jasmineiro e as suas flores dum branco puríssimo. Onde é que ela ouvira qualquer coisa a respeito de jasmins? "E entre nós os jasmins..."
Oh! Como se sentia farta de tudo aquilo!
Teresa descia a ladeira do jardim.
- Ainda está aqui?
- Onde podia eu estar? - retorquiu Kate.
- Não sei... Meu marido foi a Sayula a fim de falar com o Jefe. Não quis esperar para ir connosco no barco.
- Talvez tivesse pressa.
- Que maravilha! - observou Teresa, apontando para o estendal vermelho do majestoso eufórbio.
- São as vossas flores de Natal, não são?
- Sim, as flores de Noche buena.
- É extraordinário! O Natal com hibiscos e manhãs-de-páscoa! Estou ansiosa por ver azevinho e laranjas na montra duma frutaria de Hampstead.
- Porquê? - disse Teresa, rindo.
- Ah! - suspirou Kate. - Voltar à vida simples, ver os autocarros a correr na lama de Piccadilly, na véspera do Natal, e os passeios molhados cheios de gente diante das lojas cintilantes...
- Isso é que é vida, para si? - perguntou Teresa.
- Sim. Sem esta abstracção e vontade. A vida satisfaz-me se eu puder vivê-la e ser eu mesma.
- É altura de Cipriano regressar - disse Teresa.
Kate levantou-se com súbita impaciência. Já não suportava essa tutela. Haviade lhes mostrar que era livre!
Foi com Teresa à aldeia. O ar parecia misteriosamente vivo, animado com um sopro novo. Mas Kate sentia-se fora do ambiente. As duas senhoras sentaram-se debaixo de uma árvore na praia de Sayula, conversando um pouco e contemplando a imensidão do lago
cor de pérola.
Ancorado junto do molhe estava um barco de toldo vermelho e mastro comprido. Em terra, viam-se grupos de homens vestidos de branco a olharem para o interior da embarcação. O contorno monolítico duma vaca preta e branca e dum touro enorme recortava-se contra a superfície das águas.
Era perto, e no entanto parecia tudo estranho e remoto. Dois peóns colocaram uma prancha e puseram-se a empurrar a vaca para lá. O animal avançou relutante mas depois, com a lenta indiferença dos Mexicanos, seguiu pela ponte adiante. Os homens incitavam-no, até que ele ganhou o barco e entrou definitivamente no porão.
O grupo ocupou-se então do touro. Um mexicano já idoso, alto, de calças estreitas de pele e casaco de cabedal, com um imenso chapéu de feltro bordado a prata, ergueu delicadamente a cabeça do touro, pegando-lhe pela argola do focinho. Atrás estava um peón que, curvando-se, empurrou os poderosos flancos do animal. E este, com toda a calma, foi andando pela prancha além. Mas parou.
Os peóns reagruparam-se. O que estava atrás, de faixa vermelha atada à cintura, deixou de empurrar. Então dois outros passaram uma corda em volta das ancas do touro. O velho tornou a pegar pela argola, sempre com muito cuidado, e o animal levantou outra vez a cabeça. Mas continuou parado.
De novo lhe puxaram pela argola e pela corda. O monstro mantinha-se impassível. Tudo isto decorria no maior silêncio.
Por fim o touro percorreu a ponte em passos lentos e alcançou a borda do navio. Ali, esperou.
De cabeça baixa, olhava para o fundo do porão. Os homens empurravam-no com toda a força, puxavam a corda - tudo no profundo silêncio mexicano.
Devagar, cauteloso, o animal agachou-se, e então, com um movimento rápido, pendeu as patas dianteiras no interior do barco, ficando com os quartos traseiros alçados. Houve um momento de confusão, depois um baque. Finalmente, o touro saltara e encontrava-se no porão do navio.
E tudo tão silencioso e tão remoto!
- Ramon quer que se sente ao lado dele no templo como esposa de Quetzalcoatl... com algum nome esquisito? - perguntou Kate a Teresa.
- Não sei. Mais tarde, diz ele, quando for ocasião de haver uma deusa.
- E importa-se?
- Por mim, tenho medo. Mas sei que Ramon o deseja. Ele diz que é aceitar a maior responsabilidade da nossa vida, e eu acredito que seja verdade. Se existe divindade em mim, devo reconhecê-la, envergar a túnica verde e ser deusa no momento oportuno. Ramon afirma que precisamos de manifestar a presença divina. E, ao lembrar-me de meus irmãos, acho que ele tem razão. Hei-de pensar no deus que palpita invisível como o coração do mundo. E quando vestir a túnica verde e me sentar no templo diante de toda a gente, voltar-me-ei para o coração do universo e tentarei compenetrar-me do meu eu divino.
- Julgava que a túnica verde era só para a esposa de Huitzilopochtli - observou Kate.
- Ah, sim! - replicou Teresa. - A minha é preta, com barras brancas e desenhos encarnados.
- Preferia a verde? Fique com ela, se quiser. Eu vou-me embora...
Teresa ergueu os olhos para Kate.
- A túnica verde é para a mulher de Huitzilopochtli - declarou.
- Não vejo que isso tenha importância - volveu a irlandesa.
- Cada homem deve possuir a esposa que lhe convém. Cipriano não quereria uma mulher como eu.
- Cada mulher deve ter o homem que lhe convém - retorquiu Kate. - Para mim, Ramon seria muito abstracto e muito despótico.
Teresa ruborizou-se e baixou os olhos.
- Ramon exige muita submissão de uma mulher para que me agradasse - ajuntou a outra.
Teresa ergueu a cabeça, o pescoço moreno ondulou como uma
serpente.
- Como é que sabe que Ramon exige submissão das mulheres? Como é que sabe? Nunca a exigiu de si... Está enganada. Ele não me impõe tal submissão. O que pretende é que me entregue brandamente; em compensação, entrega-se-me, a mim, com uma brandura maior do que esta que lhe concedo: um homem como Ramon é mais dócil do que uma mulher. Não se assemelha a Cipriano, que é soldado. Ramon mostra-se dócil. Não tem razão no que
diz, Caterina.
Kate soltou uma risadinha. Mas Teresa prosseguiu:
- Vejo-a como um soldado entre as mulheres, está sempre a combater. Eu não sou assim. No entanto, há mulheres que são de temperamento bélico e essas precisam de mandos militares. Eis a razão por que é Malintzi e tem um vestido verde. Estará sempre disposta a lutar... até consigo mesma, se ficar só no mundo.
Havia uma grande calma em volta do lago. As duas senhoras aguardavam a chegada de Ramon.
Um homem vestido de branco, acocorado e silencioso debaixo de uma árvore, desbastava folhas de palmeira, com ar concentrado. Em seguida ia molhá-las na água e voltava para se sentar de novo, recomeçando o trabalho com aquela atenção pueril da gente do povo. Estava a consertar uma cadeira de palha. Como Kate o observasse, os olhares dos dois encontraram-se e o homem saudou-a. Dir-se-ia que, dele, emanava para ela uma chama de vida, a qual lhe transmitiu um estranho poder.
Nitrindo excitado, corria ao longo da margem um cavalo ruço malhado de branco. A crina flutuava ao vento, as patas faziam saltar os calhaus, as narinas abriam-se-lhe ansiosas. Porque seria?
Um peón fizera entrar no lago a sua carroça puxada por quatro muares, até que a água ficou acima dos varais, e quase atingindo o fundo do veículo. Parecia um barco conduzido por quatro cavalos-marinhos.
Era Inverno, mas dir-se-ia Primavera nas imediações do lago. Saltitavam na praia bezerros amarelos e brancos, agitando a cauda, correndo lado a lado à beira da água, que eles cheiravam desconfiados.
A uma árvore estava amarrada uma burra, com a sua cria deitada à sombra, um jumentinho preto como uma amora, enroscado no chão, com a cabeça peluda erguida e as longas orelhas fitas.
- Quantos dias tem o burrinho? - perguntava Kate ao peón, que saíra da sua cabana de colmo.
O homem dirigiu-lhe um olhar em que havia júbilo e deferência - olhar que fez Kate sentir uma onda de orgulho encher-lhe o peito.
- Nasceu a noite passada, patrona! - respondeu ele, sorrindo.
- Tão novo! Ainda não pode aguentar-se nas pernas, pois não?
O peón aproximou-se do jumento e pô-lo de pé. E ali ficou o animalzinho, espantado, de pernas abertas, como se em cima de ganchos de cabelo.
- Que engraçado! - exclamou Kate, deliciada. O homem riu-se; parecia grato pelo interesse dela.
O jumento a custo se mantinha naquela posição. Vacilava sobre as quatro patas bambas, com ar admirado. Deu uns passos oscilantes para cheirar as folhas de milho. Cheirou, e tornou a cheirar, tal se o mistério do olfacto se lhe revelasse nas narinas.
Então voltou para Kate a cabeça aveludada e deitou de fora a língua cor-de-rosa. Kate soltou uma gargalhada, o que fez o animal dar um pulo que o deixou infinitamente surpreendido consigo próprio. Tentou uns passos, e, de repente, sem que ele mesmo esperasse semelhante coisa, deu outro salto.
- Já dança! - exclamou Kate. - E só tem umas horas de existência!
- Já dança - confirmou o peón.
Depois daquelas experiências, o burrinho aproximou-se da mãe em passos incertos e começou a mamar.
Erguendo a vista, Kate encontrou os olhos do homem cintilantes da chama da vida, cheios de confiança e de conhecimento.
O jumentinho preto, a mãe, o mistério da criação, o respeito pela mulher superior a ele, bela e radiosa, tudo isto exprimiam os olhos negros desse homem primitivo.
- Adiós! - disse Kate.
- Adiós, patrona! - respondeu ele, erguendo o braço, na saudação de Quetzalcoatl.
Atravessou ela a praia em direcção ao cais; sentia dentro de si uma onda de vida, forte, resistente. "É o sexo", disse consigo. "Como o sexo pode ser extraordinário quando o homem o conserva poderoso e sagrado e que ele enche o mundo! É como o sol, penetrando-nos. Mas não me submeterei, mesmo assim. Porquê ceder?" Ramon aproximava-se, com o seu largo chapéu ornamentado do símbolo de Quetzalcoatl. Nesse instante tocaram os tambores e, do alto da torre, soou a voz nítida e possante anunciando o meio-dia. Todos os homens que se encontravam na praia aprumaram o corpo e ergueram o braço direito. As mulheres viraram a palma da mão para o Sol. Tudo ficou imóvel, excepto os animais.
Então Ramon encaminhou-se para o barco, enquanto os homens o saudavam à maneira de Quetzalcoatl.
- É espantoso como nesta terra se pode ter a impressão de que se é alguém! - notou Kate, quando já iam sobre a água no barco de remos. - Sentimo-nos como se pertencêssemos de facto à nobreza.
- E não é verdade?
- Sim, mas isso em toda a parte nos é negado. Só aqui temos a noção do poder da nobreza. Os indígenas ainda a veneram. Parecem
adorar-me.
- Por enquanto - replicou Ramon. - Mais tarde assassiná-la-ão porque a adoraram.
- É inevitável? - volveu Kate em tom despreocupado.
- Creio que sim. Se vivesse sozinha aqui, em Sayula, e reinasse por algum tempo, seria assassinada... ou pior ainda... pelo povo que a tinha idolatrado.
- Não acredito.
- É como lhe digo.
- Mas porquê?
- A não ser que se consiga dos deuses a nossa própria nobreza e se implore dos céus o poder, acabaremos por ser assassinados.
- A minha nobreza tem essa origem.
Mas não ficou muito convencida e mais firmou a sua resolução
de partir.
Escreveu para a Cidade do México e reservou uma passagem de Vera Cruz a Southampton. Embarcaria no último dia de Novembro.
Cipriano regressou a 17 e Kate participou-lhe o que tinha feito. Ele ficou a olhá-la, de cabeça um pouco à banda e com uma expressão de criança ajuizada, mas Kate foi incapaz de adivinhar o que lhe ia na alma.
- Vais-te embora já? - perguntou ele em espanhol.
A mulher percebeu então que estava ofendido. Quando se melindrava falava-lhe sempre em espanhol, nunca em inglês.
- No dia 30.
- E quando voltas?
- Quien sabe! - ripostou Kate.
Por uns minutos, Cipriano fitou-a com as suas pupilas negras imperscrutáveis. Estava a pensar que tinha o direito de a impedir que saísse do país, visto ser legalmente sua esposa. Nas profundezas dos olhos luzia a antiga cólera índia; depois surgiu uma leve mudança de expressão no rosto, quando a ira contida cedeu lugar à indiferença estóica, à velha indiferença de tantos séculos. Kate quase sentia as ondas sucessivas de sombra e frieza que percorriam Cipriano sem que ele mesmo desse por isso. E mais uma vez lhe estremeceu o coração o medo de perder o contacto com esse homem.
- Como quieras tu! - disse ele por fim.
Concedia-lhe a liberdade com a misteriosa indiferença do seu sangue e não faria mais esforços para a reter. Era o fatalismo dos da sua raça.
Conforme Kate previra, Cipriano tomou um barco e foi a Jamiltepec falar com Ramon.
A mulher ficou só, como de costume. Ocorreu-lhe que ela própria criara essa solidão. Não conseguia identificar-se com aquela gente, sentir-se à vontade fosse com quem fosse. Fechava-se sempre na sua personalidade.
Importava-lhe muito a reciprocidade sexual? Podia importar-lhe ainda mais se não a houvesse tido; mas tivera-a, e de maneira perfeita, com Cipriano. Sabia tudo a esse respeito. Era como se houvesse conquistado outro território, outro domínio da vida. E agora devia retirar-se para a toca da sua individualidade, com a vítima nos dentes.
De súbito, viu-se como os homens muitas vezes a viam: uma gata enorme, com os seus espasmos de volúpia e o gozo demorado do seu isolamento. Conhecia outras mulheres assim. Brincavam cheias de amor e familiaridade como um gato com um rato. Por fim devoravam o ratinho querido e reapareciam com a barriga repleta e uma voluptuosa sensação de força.
Algumas vezes o rato recusava-se a ser digerido, de que resultava prolongada dispepsia; ou então, como Cipriano, transformava-se numa espécie de cobra, que alçava a cabeça, olhava para trás e desaparecia num buraco, deixando-a confusa e destituída de poder.
Outra coisa que ela observava horrorizada. Uma após outra, as suas "amigas", as grandes amorosas, na idade de quarenta, quarenta e cinco e cinquenta anos perdiam todos os atractivos e ficavam umas corujas horrendas, procurando em volta a vítima cada vez mais rara. Como seres humanos deixavam de existir, metamorfoseadas em corujas elegantes e mexeriqueiras.
Kate era bastante inteligente para tirar proveito da lição. Estava bem que uma mulher cultivasse o seu ego, a sua personalidade. Estava muito certo que desprezasse o amor ou que com ele se entretivesse como um gato faz ao rato; isto é, brincar o mais tempo possível antes de o comer e saciar voluptuosamente o ego com a sua vítima.
"A mulher sofre mais com a supressão do ego do que com a do sexo", afirmou uma escritora, e talvez seja verdade. Mas olhai, olhai para as mulheres modernas de cinquenta anos, as que cultivaram o ego até ao extremo limite! São em geral criaturas que nos enchem de pena ou de repulsa.
Kate sabia tudo isto, e nisto pensava enquanto ali sozinha na sua vivenda. Tivera a sua liberdade, mesmo no México. Esses homens deixá-la-iam partir. Não estava prisioneira. E levaria consigo todos os despojos que ainda guardavam.
E depois? Sentar-se nos salões de Londres e ser mais uma coruja ao lado das outras? Arvorar um sorriso postiço e falar com voz
artificial?
"Não! - disse consigo. - O meu ego e a minha personalidade não valem esse preço. Prefiro desfazer-me deles em parte a ver-me reduzida a isso."
No fim de contas, quando Cipriano a acariciava toda ela parecia desabrochar. Era a força do sexo, que enchia o mundo de lascívia e sobre que ela não se atrevia a reflectir. O seu poder tornava-se maior do que a sua vontade. Por outro lado, quando estava só e abria as asas do seu ego e o espírito desferia voo, o mundo afigurava-se-lhe maravilhoso. Todavia, após uns instantes, desvanecia-se o esplendor, substituído por uma solidão amarga.
"Preciso de ambos - concluiu. - Não posso afastar-me de Cipriano nem de Ramon. Renovaram-me o sangue. Digo que são limitados, mas todos temos de o ser. Se tentamos ser ilimitados, tornamo-nos monstros. Sem Cipriano a afagar-me, a limitar-me e a submergir-me a vontade, tornar-me-ia uma velha horrível. Devo regozijar-me pelo facto de Cipriano me limitar com a sua vontade e o seu contacto ardente. Porque o que eu chamo a minha grandeza faz-me cair no vácuo desde que não haja a mão dum homem para me segurar. Ah, sim! Antes submeter-me do que ser uma mulher horrível."
Chamou o criado e foi através do lago num barco de remos. Era por uma bela manhã de Novembro. Nas escarpas das montanhas, a nordeste, as sombras tinham um tom azul muito puro. Por baixo, a vegetação começava a amarelecer. O lago, embora ainda cheio, principiava a baixar, e os jacintos-d'água vogavam à toa. No ar calmo viam-se pássaros voando. Alguns milheirais exibiam os seus talos secos, mas as flores de palo-blanco tinham já desabrochado e errava o perfume das acácias amarelas.
"Porque havia de me ir embora? - pensou Kate. - Porque havia de ver os autocarros na lama de Piccadilly na véspera do Natal e a multidão nos passeios molhados diante das lojas iluminadas? Mais vale ficar aqui, onde a minha alma é menos triste. Tenho de pedir desculpa a Ramon das coisas que lhe disse. No fim de contas, aqui há outra grandeza, com o som dos tambores e o grito de Quetzalcoatl."
Já ela distinguia o último andar da casa de Jamiltepec, semelhante a uma torre avermelhada, e a buganvília roxa pendente do muro, os cachos das flores de plumbago e a porção de rosas brancas.
- Están tocando - disse tranquilamente o barqueiro, erguendo para ela os olhos negros.
Já ouvira o som do tambor em Jamiltepec. Uma voz de homem se elevou na manhã clara.
O barqueiro levantou um remo, como se fizesse sinal. E assim que o barco penetrou na enseadazinha, veio um criado a correr ao longo do molhe. No ar soalheiro notava-se o cheiro das daturas e das rosas, e um silêncio profundo que nem o tambor nem o canto perturbavam.
- Don Cipriano está aqui? - perguntou Kate.
- Está - murmurou o criado, apontando para o balcão donde partia a voz do cantor. - Deseja que eu o informe da sua chegada?
- Não - respondeu Kate. - vou sentar-me um bocado no jardim, antes de subir.
- Nesse caso, deixarei a porta aberta - volveu o homem - e assenhora entrará quando quiser.
Kate instalou-se no banco de uma árvore, donde pendiam flores de trepadeira enroscada ali como uma serpente. Pôs-se a ouvir o canto. Ramon ensinava o novo hino a um dos cantores.
Não tinha muito boa voz o Quetzalcoatl vivo. Cantava baixinho, como se para si mesmo, mas com expressão simples e bela. Kate não conseguiu perceber a letra.
- Ya? - disse Ramon ao terminar.
- Ya, patrón! - respondeu o cantor.
E na sua voz forte e pura, este entoou o hino:
O meu caminho não é o teu e o teu não é o meu.
Mas vem, antes que nos separemos.
Cada qual por seu lado, dirijamo-nos à Estrela da Manhã
Para lá nos encontrarmos.
Não te aponto o meu caminho
Nem chamo por ti.
Mas a Estrela é a mesma para nós ambos
E a ambos nos atrai.
A cada qual o seu caminho, esse que esplende Na encruzilhada,
Que abre a sua chama como a porta de uma tenda Por onde, invisíveis, deslizamos.
Não pode um homem pisar como a mulher
Nem a mulher andar como o homem.
O espírito de cada um através das folhas de sombra
Se move como pode.
Mas a Estrela da Manhã e a da Noite Fixam tendas de fogo
Onde nos retinimos quais ciganos, sem saber Como é que vieram os outros.
Nada mais peço que me insinuar Na tenda do Espírito, e deter-me Na casa da chama bifurcada Como hóspede seu.
Fica aí comigo, esposa minha, Corporalmente. E que a flama nos envolva Qual uma rede.
Sede lá, homens, comigo,
Alcançai o lar.
Ride comigo, enquanto a mulher repousei,
Porque vale a pena.
O homem entoara o hino por várias vezes, parava, dir-se-ia esquecer-se, extinguia-se-lhe a voz pura e quente. Então a de Ramon, baixa e um tanto rouca, elevava-se com subtil intensidade, como se vinda do meio duma concha; depois, o tenor retomava o canto, que lhe corria no sangue como uma chama.
O mozo de Kate, ou seja, o seu criado, seguira-a ao jardim, e tinha-se sentado de pernas cruzadas, a certa distância, debaixo de uma árvore, de costas apoiadas ao tronco - sombra acocorada, vestida de branco. Os dedos dos pés saíam-lhe rijos e escuros das huaraches esburacadas, e o trancelim de palha do chapéu pendia-lhe junto à face trigueira. Quanto ao resto era tudo alvo, e as calças de linho apertavam-se-lhe nas coxas.
Quando o canto terminou, e o tambor deixou de rufar, e as vozes, num murmúrio, mal se ouviam, o mozo ergueu a cabeça e olhou para Kate. Brilhavam-lhe as pupilas negras, no rosto errava-lhe um sorriso tímido.
- Está muy bien, patrona? - perguntou, um pouco envergonhado.
- Muito bem - respondeu ela, como um eco fiel. Mas no seu coração debatiam-se conflitos diversos, e o criado sabia-o.
Parecia tão novo com aquele sorriso alegre, excitado, receoso! Havia nele qualquer coisa de perpetuamente infantil; mas era uma criança que, dum momento para outro, se podia tornar num selvagem- vingativo e brutal, um homem que nunca perdia a consciência do seu sexo. E Kate pensou mais uma vez que existiam várias maneiras de regressar à infância.
O criado, porém, continuava a espiá-la, de soslaio: queria ver se havia nela qualquer hostilidade secreta. Desejaria que concordasse com o hino, com o tambor e com tudo mais. Como uma criança, ansiava pela sua aquiescência; mas, se a senhora se mostrasse hostil, ele seria o primeiro a manifestar-se. Um julgamento adverso torná-lo-ia inimigo declarado.
Ah, os homens eram todos iguais!
Nessa ocasião, o rapaz levantou-se, com súbita agilidade, e ela ouviu a voz de Cipriano na varanda:
- Que é, Lupe?
- Está la patrona - respondeu o mozo.
Kate ergueu-se também e olhou. Viu a cabeça e os ombros nus do marido, em cima, no parapeito.
- Já lá vou - participou-lhe.
Vagarosamente transpôs os portões de ferro do corredor. Lupe, que a seguia, fechou-os atrás de si.
No terraço encontrou Ramon e Cipriano, ambos de tronco nu, que a esperavam em silêncio. Kate, embaraçada, explicou:
- Estive a escutar o novo hino.
- E-que lhe pareceu? - perguntou Ramon.
- Gostei.
- Sentemo-nos - propôs ele. E a recém-vinda deixou-se cair numa das cadeiras de verga. Cipriano ficou de pé, encostado à balaustrada.
Kate viera para declarar a sua submissão: dizer que já não queria ir-se embora. Mas, vendo os dois homens numa disposição muito quetzalcoatliana, não se decidia a aflorar o assunto. Tinha a sensação de ser uma intrusa. Não se compenetrava de que também pertencia à seita.
- Parece-me que não há Estrela da Manhã para nos reunir a todos três - observou, irónica mas um pouco trémula.
Sobre eles desceu um silêncio ainda mais profundo.
- Estou a ver que uma mulher é realmente de trop aqui junto de vocês ambos.
Hesitou um tanto ao dizer isto. Sabia que Cipriano ficava perplexo e melindrado quando ela escarnecia.
Ramon respondeu-lhe com uma doçura que vinha direita do seu coração.
- Então que há, prima?
com um tremor nos lábios, Kate replicou:
- Em verdade, não desejo deixá-los.
Olhando rapidamente para Cipriano, Ramon retorquiu:
- Bem sei que não deseja.
O tom suave e protector da sua voz fê-la revoltar-se de novo. com os olhos rasos de lágrimas, ela bradou:
- Afinal vocês não precisam de mim!
- Não, não, preciso de ti. Verdad, verdad! - exclamou Cipriano em voz baixa e contida, quase num murmúrio.
E, no meio das suas lágrimas, Kate pensava: "Como sou intrujona! Sei perfeitamente que sou eu que não os quero. Quero-me só a mim mesma. Mas posso iludi-los de modo que o não percebam."
Havia notado a paixão fálica e ardente na voz de Cipriano.
Coube a vez a Ramon de falar, e fê-lo em tom glacial:
- A Caterina é que não precisa de nós. Não se comprometa connosco. Atenda à sua própria preferência.
- E se ela me aconselhar a partir? - ripostou Kate, como um desafio, através de um resto de lágrimas.
- Então parta!
Kate recomeçou a chorar.
- Ah, eu bem sabia que não precisavam de mim. Mas Cipriano acudiu com persuasiva ternura:
- Não és dele! Ele não pode dizer nada.
- Isso é verdade - concordou Ramon. - Não me dêem ouvidos.
Levantando bruscamente a cabeça, no meio do seu pranto, viu-o afastar-se sem rumor.
Limpou a cara, recuperou a calma e, de olhos húmidos, fitou Cipriano. Este conservava-se muito direito, como um galo combatente. Nas pupilas negras brilhava-lhe um fulgor estranho.
Sim, Kate também tinha medo dele, desses olhos pretos inumanos.
- Não queres que me vá embora, pois não? - perguntou-lhe suplicante.
Espalhou-se no rosto do homem um sorriso lento, e um leve tremor lhe percorreu o corpo. E então, na sua voz de inflexões índias, muito suave, Cipriano disse-lhe em espanhol:
- Yo! Yo! - E as sobrancelhas erguiam-se-lhe numa expressão de espanto divertido. Ainda trémulo, concluiu: - Te quiero mucho! Mucho te quiero! Mucho, mucho!
As palavras soavam tão cariciosas, vinham-lhe tanto do seu sangue ardente, que a mulher se sobressaltou e disse:
- Não me deixarás partir!

XXV
Foi uma surpresa para Kate o casamento de Don Ramon dois meses depois do falecimento de Dona Carlota. A noiva tinha vinte e oito anos e chamava-se Teresa. Após o casamento, que se realizou civilmente e na maior intimidade, Ramon trouxe a nova esposa para Jamiltepec.
Conhecia-a desde pequena, pois era filha do proprietário da famosa hacienda de Las Jemas, situada a uma dúzia de milhas de Jamiltepec. Don Tomaz, pai da rapariga, fora grande amigo dos Carrascos. Morrera, porém, um ano antes, deixando a importante hacienda aos três filhos e confiando a Teresa a administração da quinta. Teresa era a mais nova. Os dois irmãos viviam a existência inútil e perdulária dos mexicanos, e por isso Don Tomaz, a fim de salvar a propriedade daquelas mãos nefastas, designara Teresa como administradora e obtivera o consentimento dos dois irmãos. Na verdade, os rapazes eram criaturas ociosas que, em vida do progenitor, nunca haviam mostrado o mínimo desejo de o ajudar na difícil gerência da quinta. Teresa fora a única. E durante a doença do pai, todas as fadigas da administração haviam recaído sobre ela, enquanto os irmãos gastavam o dinheiro e as forças nas orgias em que se deleitam os mexicanos de certa classe. No entanto, assim que o pai faleceu, os dois irmãos apareceram em casa cheios de arrogância, com a intenção de se tornarem hacendados. Pela simples força bruta afastaram a irmã do seu cargo, deram ordens contrárias às dela, escarneceram-na e uniram-se para a esmagar. Queriam relegá-la para o seu lugar de mulher, isto é, para uma espécie de escravidão a que, aos seus olhos, deviam pertencer as pessoas desse sexo.
Eram brutos, e como brutos, cobardes. E, como tantos mexicanos daquela categoria, condescendentes e prejudiciais para si próprios. Relacionaram-se com juizes e generais, exibiram-se em ricos trajes de charro e receberam em casa uma multidão de gente duvidosa.
Contra aquela indolência e brutalidade, Teresa nada podia fazer e conhecia bem a sua impotência. Os irmãos eram fracos, sensuais, belos à sua maneira, dissipadores, despreocupados, mas de sentimentos ferozes.
- Faz-te bonita e arranja um marido - aconselhavam-lhe. Aos olhos deles, o seu maior crime era não atrair os homens
com quem conviviam. O facto de nunca ter conhecido homem e não se haver ainda casado tornava-a quase odiosa. De que servia a mulher senão para uma vida de relaxamento e licenciosidade?
- Queres usar calças? - perguntavam-lhe, irónicos. - No, señorita, enquanto houver aqui dois homens. No, señorita, os homens é que usam calças, e as mulheres escondem o que têm debaixo das saias.
Teresa já estava habituada a estes insultos; contudo, sofria muito no seu íntimo.
- Queres viver à moda dos americanos? Então abala para a América, corta o cabelo e veste calças. Compra lá um rancho e arranja um marido que receba as tuas ordens.
Teresa consultou advogados, que se limitaram a erguer os braços ao céu. Foi então procurar Ramon, a quem conhecia desde pequena.
Para expulsar os irmãos da hacienda seria necessário intentar um processo dispendioso e de resultado incerto. Em vez disso, Ramon propôs-lhe que casasse com ele segundo um regime matrimonial em que ela disporia sempre dos seus bens.
- Nesta terra os homens desprezam as mulheres e não podem passar sem elas, o que representa um suicídio - disse Ramon.
O casal foi visitar Kate. Teresa era franzina, pálida, de farta cabeleira preta e grandes olhos negros. Apesar do ar calmo, notava-se-lhe certa independência e autoridade. Sofrera muitas humilhações da parte dos irmãos e tinha ainda os olhos pisados pelas lágrimas de amargura, indignação e cólera.
Agora, amava Ramon com todas as veras da sua alma. Isso era evidente. Fora ele que salvara da degradação a sua dignidade de mulher e lha havia restituído bela e intacta. Em troca, passou a conceder ao seu salvador uma admiração respeitosa e quase feroz.
Em relação a Kate mostrava-se tímida e um pouco distante, tal se receasse essa mulher branca, doutra raça, que viajara muito e possuía larga experiência da vida. com um vestido claro e um rebozo de gaze preta, estava sentada na sala de Kate, com as mãos trigueiras pousadas no regaço, o pescoço escuro muito direito, e desviando um pouco o rosto fino e bem modelado. A irlandesa achou-lhe uma aparência de costureirinha.
Mas Kate não deu fé do estranho poder autoritário que também emanava desse corpo moreno e esguio, nem do olhar penetrante e desconfiado que por vezes Teresa lhe dardejava. Alma de fogo num corpo delicado. Atitude cheia de reservas. De quando em quando, a boca parecia formular uma palavra em silêncio e nos lábios perpassava-lhe um sorriso constrangido. Nunca lhe desaparecia, porém, o fulgor dos olhos.
- Falas tão pouco, chica! - observou Ramon, com certa ternura.
Então os olhos dela cintilaram e a boca esboçou um sorriso.
Via-se bem que estava apaixonada, embebida num êxtase de amor, o que explicava a sua frieza perante Kate.
"Despreza-me - pensou esta - porque não sou capaz de amar como ela." E, por um segundo, Kate invejaria Teresa. Mas daí a pouco desdenhava-a: "Tipo de harém..."
Sim, Ramon adaptava-se bem ao papel de sultão. Era belo, no seu traje branco, muito sereno, com ar de paxá, mas ao mesmo tempo afável, atencioso - e com aspecto tão juvenil! Como um paxá, preparava um cacharolete de genebra, vermute e limão. Teresa espiava-o de esguelha, sem perder de vista Kate, sua possível inimiga, a mulher que falava aos homens no mesmo pé de igualdade.
Kate levantou-se para ir buscar colheres. Nesse momento, Ramon recuou da mesa baixa em que espremia o limão e colidiu de leve com a dona da casa quando esta passava. Kate reparou de novo como ele se esquivava a qualquer contacto com ela. A sua sensualidade natural afastava-o de Kate como uma chama se desvia perante uma corrente de ar. Ela corou, e Teresa viu o súbito rubor sob essa pele branca, e o clarão quase de ira que atravessou os olhos castanhos de Kate. Momento de evasão de dois cursos de sangue tão diferentes!
Teresa pôs-se de pé, aproximou-se de Ramon e, inclinando-se sobre os copos, perguntou com aquela afectação infantil própria das mulheres da sua raça:
- Que puseste aí?
- Olha ! - retorquiu ele. E, com a mesma infantibilidade dos homens do seu tipo, começou a explicar-lhe de que se compunha o cacharolete e deu-lhe a provar um pouco de genebra, numa colher.
- É tequila da pior - declarou Teresa.
- A oito pesos cada garrafa? - volveu o marido, a rir.
- Custa esse preço? Tão caro!
Ela fitou-o nos olhos, por um momento, e viu esse rosto tornar-se mais escuro, mais ardente, como se todo ele se derretesse ao senti-la perto de si. Teresa então ergueu a cabeça, orgulhosamente. Havia-o reconquistado.
"Manhas de harém!" pensou Kate. E experimentou certa impaciência ao verificar como o ilustre, prodigioso Ramon se deixava prender nas malhas de um ser tão insignificante. Sentia-se contrariada por ter assim consciência da presença física do homem, do seu corpo belo, dos seus ombros fortes, das suas pernas vigorosas. Dir-se-ia ter também de sucumbir ao fascínio e vir a fazer parte do harém daquele sultão.
Que estranha vontade possuía a pequenina mulher morena! Que subtil poder feminino num corpo que quase só tinha pele e osso! Teresa era capaz de engrandecer a glória do marido - ao passo que ela própria se tornava imperceptível, a não ser quanto ao fulgor tigrino dos seus grandes olhos pretos.
Kate observava admirada. Conhecera homens que lhe davam a impressão de a transformarem em rainha, de ter a cabeça nas estrelas e repousar o peito nas nuvens. Sabia o que era subir, subir, subir até encher o universo com a sua feminilidade.
Via agora, porém, o contrário. Quem tinha poder sobrenatural era essa criatura pequenina, que fazia maior Don Ramon, enquanto ela se diminuía e ficava invisível, excepto no que respeitava aos olhos. Ele, como um sultão, como um fruto sazonado ao sol, tomava uma aparência extraordinária e imponente; e então, por algum poder misterioso do seu corpo trigueiro, a frágil Teresa fazia-o ainda mais completo.
Era o que Ramon queria, e Kate, percebendo-o, sentia-se irritada. Parecia-lhe odioso aquele macho triunfante, exasperava-a aquela rapariga ardente que só pensava em exaltar o homem.
ah, o poder oculto da mulher trigueira! Kate chamava àquilo harém e prostituição. Sim, era a atitude da escrava. Que pretendia dele essa criatura senão o sexo, como uma prostituta?
Pois não era degradante para uma mulher semelhante espécie de amor? E não tornava o homem fraco, sensual, ou odiosamente tirânico?
No entanto, já duma coisa Kate se convencera: que a chave da vida, e da continuidade da vida, residia nas relações do homem e da mulher. A união completa dos dois representava a vida presente e futura; dessa fusão surgia uma vida nova.
Mas tais relações necessitam de equilíbrio, e TereSa destruía-o juntando na balança o seu peso ao do homem.
Ramon não quisera Kate. Possuía agora o que desejara: aquela criaturinha escura, tão servil e orgulhosa do seu poder. Só quisera Kate para camarada, camarada inteligente, Não para mulher. Preferira essa viborazinha de Teresa...
Cipriano, esse desejava Kate. O general, o militar empertigado desejava Kate, mas só por momentos. não se importava casar realmente com ela; o que lhe interessava eram os instantes passados a seu lado. Kate tinha de lhe conceder esses instantes, e em seguida ele tornava a partir para junto das suas tropas. com isso se contentava. E ela também. Assim, ficava senhora da sua existência. Não tinha feitio para andar de roda dum homem a excitar-lhe o sangue, a estimular-lhe o ardor!
Levantou-se e foi ao quarto buscar um livro que prometera a Ramon. Não podia suportar mais tempo a exibição do amor dele por Teresa. Ah, aquele sorriso néscio estampado no rosto do homem, o brilho estranho dos olhos, o aprumo orgulhoso do corpo!
Eis como eram os dessa raça. Selvagens, com o insuportável fluido sensual dos índios e aquela maneira primitiva de se dissolver numa horrível confusão de desejo; com a presunção da sua virilidade insolente e inesgotável.
O pior era que essa força cósmica que ela até aí só conhecera nos olhos azuis dos homens loiros (e que tornava rainhas as respectivas mulheres, ainda que eles as detestassem por fim), essa força declinava agora nos olhos azuis e nascia nas pupilas pretas. As de Ramon, naquela ocasião, luziam de orgulho, poder e desafio. E o mesmo notava Kate nos olhares rápidos de Cipriano. A força do mundo esmorecia nos homens loiros, a sua supremacia abandonava-os para renascer nos de cor escura.
Joachim, o ser inquieto, inteligente e sensível, que era capaz de penetrar na alma de Kate e contemplá-la com os seus olhos azuis, morrera à vista da mulher. Se ela pudesse excitar-lhe o sangue, como Teresa fazia a Ramon, nunca ele teria morrido. Mas seria impossível. Cada um é como é. E cada raça, também. Teresa bateu timidamente à porta do quarto.
- Posso entrar?
- Entre! - respondeu Kate, endireitando-se e deixando as rimas de volumes em volta da mala dos livros.
O aposento era amplo e através das janelas rasgadas via-se o pátio e o jardim soalheiro, mangueiras de troncos lisos como trombas de elefantes, ervas reverdecidas pela chuva e galinhas a esgaravatar a terra debaixo das folhas esgarçadas das bananeiras. Um pássaro vermelho chafurdava no tanque, abrindo e fechando as asas escuras sobre o corpinho escarlate.
Teresa, porém, olhava para o quarto, não para fora. Sentiu o cheiro de cigarros, cujas pontas enchiam um cinzeiro de ágata. Notou os livros em desordem, as jóias espalhadas, a tapeçaria persa pendente atrás da cama, a colcha magnífica, os vestidos de seda e de veludo colocados sobre uma arca, os xailes de longas franjas cuidadosamente dobrados, os sapatos espalhados no chão, brancos, cinzentos, amarelos, castanhos e pretos, e os belos castiçais chineses.
Teresa parecia fascinada por tudo aquilo.
- Que linda! - disse, tocando na colcha sumptuosa.
- Foi uma amiga que a fez e ma ofereceu, em Inglaterra. Teresa observava tudo com espanto, em especial as jóias dispersas no toucador.
- Não gosta dessas pedras encarnadas? - perguntou Kate, ajoelhando de novo para arrumar os livros e olhando o pescoço moreno pendido sobre as jóias. Que ombros frágeis e que pele acetinada, naquele vestidinho branco! E aquela cabeleira negra, segura por travessas de tartaruga! No conjunto, uma rapariguinha humilde e insignificante. Mas Kate bem sabia que Teresa não era insignificante nem humilde. Naquele corpo franzino havia um estranho poder que despertava o ardor num homem e o exultava e, de certa maneira, o guardava só para si. O eterno apelo da carne...
Na mesinha de costura estava um pedaço de musselina que Kate comprara na índia e não sabia em que aproveitar. A cor, espécie de amarelo-pêssego, não se harmonizava com o seu tom de pele. Teresa apalpou o tecido entremeado de fios de ouro.
- É organdi?
inquiriu.
- Não, é musselina feita à mão. Ofereço-lha. A cor vai-me mal, e a si deve-lhe ir lindamente.
Ergueu-se e dispôs o tecido de roda do pescoço bronzeado de Teresa. No espelho, esta viu-se envolta na bela musselina e os olhos brilharam-lhe de prazer.
- Ah, não! Não posso aceitar!
- Porquê? Não condiz bem comigo. Faz agora um ano que a tenho aí. Até pensei em cortá-la para fazer cortinas. Fique com ela.
Kate talvez fosse arrogante, e até cruel, na sua maneira de oferecer.
- Não quero privá-la...
- Aceite, peço-lhe.
Ramon apareceu no limiar e relanceou o quarto e as duas mulheres.
- Olha! - disse Teresa, embaraçada. - A señora quer dar-me esta musselina indiana. - Voltara-se timidamente para ele, com o tecido desdobrado em roda do pescoço.
- Fica-te muito bem - declarou Ramon, contemplando-a.
- A señora não devia oferecer-me...
- Se to dá é porque faz gosto nisso.
- Então - concluiu Teresa, virando-se para Kate - muito e muito obrigada.
- Não tem de quê!
- Ramon acha que me vai bem...
- Na verdade, vai-lhe a matar - declarou Kate, dirigindo-se agora a Ramon. - O tecido foi feito na índia para alguém com aquela cor trigueira. Há-de condizer admiravelmente com ela.
- É muito bonito - concordou Ramon.
com o olhar, percorria o quarto, examinava os diferentes objectos que ali estavam, vindos de todas as partes do mundo, e até as pontas de cigarro na taça de ágata: luxo, desordem, e algo de esterilidade da mulher emancipada.
Kate não sabia em que é que ele pensava. Mas, por seu turno, reflectia: "Ora aí está o homem que eu defendi naquele terraço, que eu vi com um buraco nas costas, nu e inconsciente. Nesse momento não se parecia com um sultão."
Teresa devia ter-lhe adivinhado os pensamentos, porque disse,
olhando para Ramon:
- Sem a señora, Ramon teria morrido. Nunca me esquecerei...
- Não falemos nisso - atalhou Kate. - O destino tece-as.
Eu não alterei nada.
- Foi o próprio destino, señora!
- Não quer vir passar uma temporada connosco em Jamiltepec? - perguntou Ramon. - Agora já tenho uma dona de casa.
- Sim, vá! - insistiu Teresa.
- Ela precisa de uma amiga - explicou o marido.
- Preciso, é verdade. Nunca tive nenhuma a valer desde que deixei o colégio, ainda pequena...
Kate duvidava que pudesse ser para Teresa uma amiga a valer. E cogitava no que pretenderiam, de facto, aqueles dois - e o que pensariam dela.
- Pois sim, terei muito gosto em passar uns dias...
- Óptimo! - exclamou Teresa. - Quando deverá ser? Combinaram o dia.
- E escreveremos a canção de Malintzi - disse Ramon.
- Não faça semelhante coisa - acudiu Kate vivamente.
Ele olhou-a com ar pasmado, como se não percebesse logo, um ar que lhe era habitual. Por instantes, Kate poderia supor ter-lhe dado a impressão que um fantasma produziria se aparecesse a uma criança.
Em Jamiltepec, as duas mulheres entretiveram-se a talhar vestidos para Teresa na peça de musselina cor de ananás. Para senhora casada, o guarda-roupa de Teresa era bastante modesto: só possuía trajes pretos, que lhe davam um ar infeliz, e alguns brancos já antiquados. Até aí só vivera para o pai (que tinha bons livros acerca do México e toda a vida escrevera sobre a história do estado de Jalisco) e para dirigir a sua hacienda. Esta, chamada de Las Jemas, era a única que não fora destruída durante as revoltas que se seguiram à fuga de Porfirio Diaz; Teresa orgulhava-se bastante deste facto.
O seu carácter assemelhava-se muito ao de uma freira, talvez por se tratar de uma pessoa profundamente apaixonada e as paixões profundas serem mais para se esconder do que para exteriorizar nos contactos quotidianos.
Kate, provando-lhe o vestido sobre os ombros morenos, tornou a admirar a estranha macieza daquela pele escura e o pesado volume dos cabelos negros. A família dos Romeros, a que Tereza pertencia, estabelecera-se no México logo nos primeiros tempos da conquista.
Que lhe fizesse mangas compridas, sugeriu. E acrescentou, ocultando um pouco envergonhada a magreza daqueles membros trigueiros:
- Tenho os braços tão delgados! Não são bonitos como os
seus.
Kate, mulher de quarenta anos, tinha-os fortes e alvos e toda ela
era bem constituída.
- Sim - repetiu Teresa -, compridas até aos punhos.
A outra assim fez, achando que, na realidade, era o que mais convinha àquela natureza.
- Aqui os homens - explicou a dona da casa - não gostam
de mulheres magras.
- Não importa o que os homens pensam - sentenciou Kate. - Julga que Don Ramon gostaria que fosse gorda como uma
galinha?
Teresa fitou-a com os seus olhos pretos, grandes e brilhantes -
tão vivazes e, de certa maneira, fugidios.
- Quem sabe! - exclamou. E, no seu sorriso rápido, malicioso, via-se que não desgostaria de ser, às vezes, como uma galinha
gorda.
Presentemente Kate conhecia mais do que nunca a vida interior duma hacienda. Quando estava em casa, Ramon consultava diariamente o feitor; Teresa, porém, aliviava-lhe esse trabalho e já se ocupava bastante da propriedade. Em geral, ele andava por fora, ou para ir à Cidade do México, ou a Guadalajara e mesmo a Sonora. Todos o conheciam no país e o seu nome tornara-se célebre. Mas, debaixo desse culto que os compatriotas lhe prestavam, Kate adivinhava uma animosidade latente. Talvez preferissem aniquilar os seus heróis a elevá-los temporariamente às culminâncias da glória. O momento que mais apreciavam era o da queda do ídolo.
Para Kate, sempre céptica, deviam eles andar afiando o gume com que o atingiriam no peito, quando o herói se tornasse demasiadamente incómodo. É claro que precisavam da anuência de Cipriano, e Cipriano era um diabinho que os mexicanos temiam deveras. Cipriano, por então, conservava-se fiel - para com Ramon e para consigo mesmo. Representava o papel de Huitzilopochtli e Ramon o de Quetzalcoatl. Eis uma verdade simples e evidente para o general, que mantinha o seu exército pronto para o que desse e viesse. O próprio presidente seria incapaz de prescindir de Viedma, apesar de ser também um homem destemido.
- Qualquer dia - declarava Cipriano - poremos Quetzalcoatl na Catedral de Puebla, e Huitzilopochtli na da capital, e Malintzi na de Guadalupe. Não falta muito, Ramon.
- Faremos com que esse dia chegue - respondia Ramon.
Mas Ramon e Montes sofriam ambos com a profunda e diabólica animosidade do país, manifestada no próprio silêncio da população. Era sempre assim, fossem quais fossem as mãos em que o poder caísse: os Mexicanos pareciam destilar ódio oculto, um ódio demoníaco que lhes aviltava a alma; um ódio cujo único fim consistia em frustrar todos os planos.
Aí estava o dragão do México, que Ramon teria de combater. Contra o mesmo inimigo devia lutar o presidente Montes, e isso arruinava-lhe a saúde. Igualmente Cipriano, mas este desenvencilhava-se melhor. Os soldados apoiavam-no, com tambores e danças de roda das fogueiras. E o general consolidava de dia para dia a sua posição.
Ramon, na sua província, também se sentia seguro. Era o chefe, e, com o seu esforço e energia, lograva dominar qualquer veleidade de revolta. Aterrorizava com o mistério da vida, continha a gente em respeito pela fascinação que exercia. Nos seus domínios, considerava-se forte. Mas fora daí, e em especial na Cidade do México, aquela invisível e subtil má vontade do povo dir-se-ia fazê-lo sangrar, sangrar imensamente. E também a voracidade dos estrangeiros, aves de rapina que rondavam a capital cosmopolita.
Durante a ausência de Ramon, Kate fez companhia a Teresa. As duas mulheres tinham isto de comum: achavam que era melhor apoiar um homem corajoso do que fazer papel de intrometidas e importunas. Isso as unia. A profunda convicção de que deviam ser fiéis aos respectivos maridos ligava intimamente a mulher de Cipriano à de Ramon.
Estava quase no fim a estação das chuvas, embora se pudessem prever aguaceiros ocasionais para Setembro ou mesmo Outubro. Entretanto o belo Outono mexicano surgira na terra, como uma espécie de Primavera ao inverso. Vastos espaços se cobriam de flores brancas e cor-de-rosa, estranhos arbustos silvestres floresciam também, duma maneira fantástica, brilhavam à luz florestas inteiras de girassóis; o céu estava de um azul puríssimo, e, nas terras encharcadas da última chuva, a claridade do dia reverberava intensa.
O lago enchera-se mais, povoando de plantas aquáticas todas as suas margens. Vinham aves imigradas do Norte, nuvens de patos bravos que pareciam poeira no ar e depois polvilhavam a água como raminhos de erva: colimbos, grous, gaivotas brancas dos mares interiores, tal se o mistério dos regimes setentrionais se deslocasse para o Sul. Errava em terra o cheiro de água, que produzia uma sensação calmante - tanto mais que Kate supunha ter origem na aridez do solo parte do horror que lhe causava o povo mexicano. Se houvesse sempre uma gota de água na atmosfera e uma neblina sobre as árvores, desapareceria dos corações humanos aquela maldade inexprimível.
Kate ia muitas vezes a cavalo, com Teresa, ver os campos. A cana-de-açúcar, nos vales, crescia muito verde e muito alta, e os peóns começavam a cortá-la com os seus nwchetes, que pareciam espadas, e enchiam os carros de bois que as transportavam à fábrica de Sayula. Nas vertentes áridas das colinas, avultava na sua rigidez férrea a espinhosa planta da teqnila, que é uma espécie de agave. E nos cactos rijos abriam flores maravilhosas, belas de mais para tão sinistra planta. Através dos campos viam-se molhos de vagens apanhadas dos feijoeiros e abóboras dum tamanho incrível. Entre as folhas emurchecidas pendiam tomates e pimentões. Ainda se erguiam pés de milho com espigas tenras. Como a banana era pouca, as crianças colhiam toda a fruta que encontravam para fazer doce. Teresa, para esse efeito, aproveitava até os últimos figos e pêssegos. Das mangueiras suspendiam-se frutos amarelos e maduros, mas na maior parte eles estavam verdes e tombavam pesados como testículos de toiro.
Era Outono no México, com patos bravos na água, e caçadores com espingardas, e rolas nas árvores. Outono do México, início da estação seca: céu mais alto, azul mais pálido, poentes de rara transparência doirada. Os bagos de café avermelhavam-se nos arbustos contorcidos debaixo das árvores maiores, e as buganvílias, de tons roxos, eram tãoespessas que se podiam mergulhar nelas os braços.
Teresa cuidava de tudo e Kate ajudava-a. Se estava um peón doente numa das cabanas, se era preciso separar os enxames de abelhas nas colmeias debaixo das mangueiras, fazer compotas, tratar do jardim, dos vitelos, do fabrico de manteiga ou de queijos, Teresa a tudo isso atendia acompanhada de Kate. E esta admirava-se da vontade firme e constante, que tinha de ser exercida a todo o momento. Tudo corria bem graças a um poderoso esforço de vontade. À mínima fraqueza do patrão as coisas desandariam e seria a ruína da propriedade.
Jamais um desfalecimento, sempre a vontade tenaz.
Ramon regressou, numa tarde de Novembro, de longa viagem a Sonora. Viera por terra desde Lepic, e, por duas vezes, encontrara-se retido pelas inundações; não era vulgar chuvas tão tardias. Mostrava-se fatigado e com ar ausente. Kate sentiu um baque no coração enquanto comentava para si mesma: " Tão longínquo, que até parece encaminhar-se para a morte."
As nuvens cobriam o céu novamente, relampejava no horizonte, mas tudo estava silencioso. Kate retirou-se cedo e foi até à extremidade do terraço sobranceiro ao lago. Só a claridade intermitente dos relâmpagos iluminava a noite escura e, num desses breves clarões, viu Teresa sentada junto do muro do terraço descoberto; tinha a cabeça de Ramon deitada no regaço e acariciava-lhe lentamente os bastos cabelos pretos.
Kate sobressaltou-se, e disse num murmúrio:
- Desculpem! Não sabia que se encontravam aqui.
- Quis estar cá fora, ao ar livre! - explicou Ramon, soerguendo-se a custo.
- Não se mexa! - pediu Kate. - Foi estupidez minha ter vindo aqui. O senhor está cansado.
- Sinto-me realmente cansado - volveu ele, deitando-se outra vez no chão. - Aquela gente chega a convencer-me de que estou esgotado. Por isso voltei para Teresa.
- Sim - retorquiu Kate. - Não se é impunemente o Quetzalcoatl vivo. É natural que o esgotem. Mas valerá a pena ser devorado por eles?
- Tem de ser assim. Há-de-se verificar a mudança e é um homem que a deve fazer. Às vezes chego a desejar que não seja eu.
- Também acho. E Teresa igualmente. Até penso se não será preferível continuar a ser apenas um ser humano.
Teresa, entretanto, calava-se.
- Faz-se o que é preciso fazer - disse Ramon. - No fim de contas, não se deixa de ser homem. E, se daí resultar ferimento... à la guerre comme à la guerre!
Aquela voz, no escuro, parecia a de um fantasma.
- Ah! - fez Kate, suspirando. - Gostava de saber o que é um homem que se expõe a tantos horrores por causa dos seus semelhantes.
Houve um momento de silêncio.
- O homem é uma coluna de sangue dotada de voz. Quando a voz se extingue e fica apenas a coluna, tanto melhor.
Retirou-se ela para o seu quarto. Ia triste, levando ainda nos ouvidos o som daquelas palavras melancólicas. Dir-se-ia que Ramon tinha dentro de si uma ferida aberta. Era como se Kate a sentisse, nas suas próprias entranhas.
Se ele morresse, em resultado de tanto esforço? Então, pensou, Cipriano ficaria só e tudo estaria acabado.
Por que razão devia um homem afadigar-se de tal maneira por causa dum povo estúpido e mau? Se o mundo corria à desfilada para a sua perdição, deixá-lo, isso era lá com ele.
Pensou em Teresa, que consolava Ramon sem dizer nada. E pensou em Ramon, assim ferido e desesperado! Coisas horríveis, na verdade. Ela devia intervir, defendê-lo contra si próprio. Porque haviam os homens de empreender esses combates inúteis, dos quais voltavam para casa a fim de se restabelecerem junto das suas companheiras?
Para Kate, essa luta não merecia sequer as honras de um ferimento. Que tão antipático mundo terminasse de vez, se tal era o seu destino, e quanto mais depressa melhor! Kate não levantaria um dedo para o impedir. Que cada qual vivesse a sua preciosa vida, que é só uma - e fosse tudo mais para o diabo!
Tentaria impedir que Ramon continuasse naquela senda suicida. Deixá-lo ser o Quetzalcoatl vivo quantas vezes quisesse; mas não tinha o direito de se expor à maldade demoníaca do povo.
Contudo, ele insistia nisso, como Joachim fizera na Irlanda. Teresa, com a sua firmeza doce e calma, talvez lhe fosse de melhor auxílio do que Kate com as suas recriminações.
"Ah! Ainda bem que Cipriano é militar. As feridas que sofrer não lhe atingirão a alma." Mas sabia que, sem Ramon, Cipriano não seria ninguém e nem chegaria a interessar-lhe.
De manhã, Teresa compareceu sozinha ao primeiro almoço. Parecia muito tranquila; dissimulava os sentimentos sob o seu ar orgulhoso de mulher morena.
- Como vai Ramon?
- Está a dormir.
- Ainda bem. Pareceu-me muito em baixo ontem à noite.
- Sim... - Teresa fitou a outra com os seus grandes olhos negros cheios de coragem e de lágrimas contidas.
- Não compreendo que um homem se sacrifique àquele ponto. É inadmissível.
Teresa continuava a fitá-la.
- Ele não se sacrifica - replicou. - Sente que tem de proceder assim. E o meu dever é ajudá-lo.
-? Nesse caso, sacrifica-se por ele, o que também é para mim inadmissível.
- Ah, não! - retorquiu Teresa, com uma onda de sangue a ruborizar-lhe as faces. - Não me sacrifico por Ramon. Se posso dar-lhe... sono... quando dele necessita, isso não representa sacrifício. Representa... - Não terminou a frase, e o rubor acentuou-se-lhe.
- Representa amor, bem sei - volveu Kate. - Mas também a esgota.
- Não é só amor! - exclamou Teresa altivamente. - Eu podia amar outros homens, há muitos que merecem afecto. Mas Ramon... A minha alma pertence-lhe. - Afloraram-lhe lágrimas aos olhos. - Prefiro não falar deste assunto - acrescentou, pondo-se de pé.
E saiu do quarto, deixando Kate um tanto perturbada - e com desejo de voltar para Sayula.
Mas uma hora depois Teresa reapareceu e, apoiando no braço de Kate a mãozinha fresca e macia, disse-lhe em tom suave:
- Desculpe se fui indelicada.
- Eu é que não tenho razão...
- Sim, julga que em tudo isto só existe amor. O amor é uma parte mínima do resto.
- E que é o resto?
- Como posso dizer-lhe, se desconhece? Mas pensa que Ramon não é para mim mais do que um amante?
- Um marido! - emendou Kate. Teresa sacudiu a cabeça com impaciência.
- Ah, esses termos, que tão pouco significam! Não é apenas um marido! É a minha vida!
- Acho preferível cada qual viver a sua vida.
- Não. A vida é como uma semente. De nada serve se não a dermos. Sei que é assim; guardei durante anos a minha vida para mim só. Quando se a guarda muito tempo, ela morre. Quis oferecê-la a Deus, mas não consegui. Disseram-me que se eu casasse com Ramon e tomasse parte na heresia de Quetzalcoatl ficaria condenada aos tormentos eternos, mas alguma coisa me segredava que isso não era verdade e que Ramon necessitava da minha alma. Ah, señora!
- Um sorriso iluminou a face pálida de Teresa. - Dei a minha alma a Ramon. Perdi-a por sua causa. Que mais posso dizer?
- E a alma dele?
- Está aqui. - E Teresa espalmou a mão no seio. Kate ficou um momento calada.
- E se ele a atraiçoar? - perguntou então.
- Ah, señora, Ramon não é apenas um amante. É um homem honesto e não trairá o seu próprio sangue. Concedeu-me a sua alma em troca da minha, e eu lutarei até ao último sopro de vida para o apaziguar quando volta para mim esfrangalhado e com necessidade de sossego. - Teresa proferiu tudo isto com veemência, e depois acrescentou num murmúrio, como se falasse a si mesma: - Graças a Deus, não tenho uma vida só minha. Dei-a a um homem que é mais que homem, como se diz na linguagem de Quetzalcoatl. Por isso ela não morrerá em mim como um pássaro na gaiola... Oh, señora! Quando ele parte para Sinaloa e para a costa ocidental, a minha alma acompanha-o. E Ramon não se esquece que a minha está com ele, tenho a certeza! Não, señora, não deve criticar-me nem
lastimar-me.
- No entanto, acho melhor cada qual guardar a sua alma e ser
responsável por ela.
- Sim, se fosse possível! - replicou Teresa. - Mas não se pode guardar a alma dentro de nós porque acaba por morrer... Enquanto o homem não nos dá a sua semente, a nossa é estéril, e a dele nada vale sem a mulher. O mesmo acontece à alma. Enquanto a não damos a um homem e ele a não toma, nenhum valor tem. E depois de ele a tomar, toda inteira, ninguém fala de traição! Um homem só atraiçoa quando se lhe deu uma parte e não tudo, e a mulher só atraiçoa quando aceita dela apenas uma parte e não o todo. Mas quando de um lado se deu tudo e tudo se aceitou, a traição não existe. Sou o que sou para Ramon e ele é o que é para mim. Não importa o que fizer. Não importa que esteja longe.
Kate não gostava de receber lições daquela criaturinha; era mulher da sociedade, bela e com experiência da vida. Estava acostumada a que lhe rendessem preito. As demais do seu sexo chegavam a temê-la, porque era decidida e impiedosa.
Teresa também a receava um pouco como senhora da sociedade, mas não como mulher. Entrincheirada na sua almazinha orgulhosa, Teresa considerava Kate uma dessas pessoas do mundo exterior que têm muito brilho mas que não estão muito seguras dos segredos da sua personalidade. Toda a beleza e crueldade feminina de Kate era coisa secundária para Teresa em comparação com o profundo e tranquilo amor que a ligava a Ramon.
Sim, Kate habituara-se a olhar as outras mulheres como seres inferiores. No entanto, os papéis inverteram-se de súbito. Embora soubesse que Ramon era superior a Cipriano, viu-se constrangida a pensar se Teresa não seria também superior a ela.
Teresa? Mais importante do que Kate? Que surpresa! Não podia ser verdade.
Contudo, assim era. Ramon desejara casar com Teresa e não com Kate. E o ardor desse enlace ela via-o tanto nos olhos de Ramon como nos da mulher: um ardor que não existia nos olhos de Kate.
O casamento desta com Cipriano não parecia sério nem definitivo. Quando Cipriano estava ausente, ela recuperava a sua antiga individualidade. Só com o general presente é que se compenetrava da sua submissão.
Quando Teresa voltou a fitá-la com aquele seu fulgor do olhar, misturado de indignação, Kate sentiu-se desanimada e arrependida - decerto pela primeira vez na sua existência.
Sabia que Teresa sentia certa aversão por ela: era uma estrangeira branca que falava tão inteligentemente como um homem e nunca dera a sua alma; nem admitia que a pudesse dar. Todas essas damas bem vestidas, da América ou da Europa, guardavam a alma para si mesmas, numa espécie de avareza.
Teresa estava resolvida a não deixar que a outra a tratasse indefinidamente como um ser inferior. Assim procediam todas as estrangeiras para com as mexicanas, porque se consideravam emancipadas. E, para com Ramon, mostravam certa condescendência.
Mas Ramon... Bastava que ele as fixasse para que elas se sentissem reduzidas a nada, apesar de todo o seu dinheiro, experiência e ares dominadores. Raças dominadoras! Que esperassem! Ramon era um desafio a tudo isso. Que o dominassem, se fossem capazes de tanto!
- Não dormiu? - perguntou Teresa a Kate.
- Não muito bem.
- Está com olheiras.
Kate alisou a pele, desconfiada, em volta dos olhos.
- É o que nos faz o México. Não é fácil conservar a juventude neste país. A senhora é que está com bom parecer.
- Sinto-me perfeitamente.
Irradiava de Teresa uma frescura nova, algo de frágil e subtil que ela não precisava de defender contra outra mulher.
- Agora que Ramon já veio, é altura de eu regressar a casa -
declarou Kate.
- Porquê? Faz empenho nisso?
- Acho preferível.
- Nesse caso irei consigo até Sayula. De barco, não é verdade?
Kate arrumou as suas coisas. Dormira mal. A noite fora tenebrosa, cheia de horrores. Lembrara-se de Ramon atacado pelos bandidos e do seu ferimento nas costas. Tivera-a acordada durante horas o barulho ameaçador da chuva.
Percebia o desdém de Teresa pela sua maneira de considerar a
vida conjugal.
- Também eu fui casada - disse Kate. - com um homem
excepcional, a quem amei.
- Ah, sim... E ele morreu.
- Quis morrer.
- Ah, sim... quis morrer.
- Fiz o possível para evitar que se estafasse.
- Fez?
- Que mais estava na minha mão? - redarguiu Kate, num
assomo de ira.
- Se lhe houvesse dado a sua vida, ele não quereria morrer.
- Eu dei-lhe a minha vida. Amava-o. Ah, nem faz ideia! Mas ele não quis a minha alma. Achava que eu devia guardá-la para
mim.
- Os homens são assim quando são apenas homens. Mas,
sendo ardentes e bravos, então querem que as mulheres lhes dêem a alma e guardam-na dentro de si. Sei o que é. Sei onde a minha alma está. Nas entranhas de Ramon, assim como a sua semente está nas minhas entranhas, entranhas de mulher. Ele é um homem e uma coluna de sangue; eu sou uma mulher e um vale de sangue. Digo-lhe isto porque lhe salvou a vida e portanto estamos todos ligados: Caterina, eu, Ramon e Cipriano. Mas não me julgue mal. Aquela outra espécie de mulheres, as que conservam a sua alma, que é senão fraqueza?
- E os homens?
- Se são ardentes e bravos, confortam as nossas entranhas, Caterina!
Kate baixou a cabeça obstinada, furiosa por ter sido apeada do seu pedestal. Que coisa miserável, pensou, isso de uma mulher viver apenas por amor de um homem! Só para lhe enviar a alma para dentro do seu precioso corpo... E trazer no ventre a sua semente preciosa... Quanto a ela própria, nada.
Pretendeu consumar a sua indignação, mas não foi bem sucedida. Talvez no fundo, e contra sua vontade, invejasse Teresa, os seus olhos negros cintilantes, a sua firmeza selvática. Invejava-lhe os dedos delicados, e, acima de tudo, a consolação de ter um homem tão profundamente ligado a si.
A manhã estava quente depois da chuva. As rãs coaxavam, frenéticas. Na outra banda do lago as montanhas pareciam azuis-escuras, com farrapos de nevoeiro a arrastarem-se através das árvores e nuvens brancas a coroarem os picos. Nas águas barrentas navegava um barco de vela solitário.
- Hoje, tudo isto me lembra a Europa, o Tirol - disse Kate, comovida.
- Gosta muito da Europa? - perguntou Teresa.
- Muito.
- E tenciona voltar para lá?
- Penso regressar em breve, para ver minha mãe e os meus filhos.
- Eles reclamam-na?
- Sim, respondeu Kate, um pouco hesitante. E em seguida ajuntou: - Não muito. Mas quero tornar a vê-los.
- Porquê? Tem saudades deles?
- às vezes. - E os olhos de Kate arrasaram-se de água. O barco avançava sem rumor.
- E Cipriano? - volveu Teresa, a medo.
- Ah!, exclamou Kate. -Esse é para mim como um estranho.
Teresa ficou uns momentos calada.
- O homem é sempre estranho para a mulher, creio eu - rematou ela. - E porque não havia de ser?
- Mas a senhora não tem filhos.
- Tem-nos Ramon, E ele costuma dizer: "Continuarei a lançar pão à água e se meus filhos acabarem por se aproximar de mim ficarei contente." Não é. o seu caso?
- Não! - respondeu Kate. - Sou mulher, não sou homem.
- Se eu tiver filhos - declarou Teresa - também lançarei pão à água para os atrair, e espero não os reter ciosamente na minha rede. Assusta-me o amor, é tão pessoal! Devemos deixar os pássaros voarem com as suas asas e os peixes nadarem à vontade. a manhã concede-nos mais do que o amor. E eu quero ser sincera para com a manhã.

XXVI
Kate estava satisfeita por voltar à sua casa e por se encontrar sozinha. Sentia que se operava nela uma grande mudança - mudança que a poderia matar se se realizasse violentamente. Era o fim de qualquer coisa e o princípio de outra: no mais profundo da sua alma e nas suas entranhas. Os homens, Ramon e Cipriano, e o México, seriam a causa daquela modificação. Chegara o momento. Entretanto, se a evolução fosse brusca de mais, e rápida em excesso, poderia revelar-se fatal. Por isso tinha necessidade de se isolar, de tempos a tempos.
Sentava-se na margem durante horas, à sombra dum salgueiro verde, cuja cortina de folhas descia até à água. O lago mostrava-se mais alto e mais cheio que de costume, e tinha também maior calma e maior mistério. Errava o cheiro dos nenúfares que emurcheciam depois de haverem dado à costa. As distâncias pareciam prolongadas. Lembravam estampas japonesas os outeiros mais próximos, salpicados de verdura. Carros de grandes rodas traziam à aldeia a cana-de-açúcar cortada; puxavam-nos a cada um, oito bois que baloiçavam lentamente a cabeça de enormes chifres, enquanto um peón, à frente, os conduzia com o aguilhão poisado no jugo. Tão pesados, tão vagarosos e contudo fáceis de guiar!
Experimentava, no México, uma sensação esquisita, como se estivesse em presença duma humanidade pré-histórica, gente de olhos escuros de antes do período glaciário - quando o mundo era mais frio, os mares vazios e diferente a constituição da terra; quando as águas, solidificadas, se acumulavam nos pólos, e as planícies ocupavam os oceanos, como a Atlântida e os antigos continentes da Polinésia; quando os mares não passavam de lagos, embora grandes, e os povos de olhos pretos podiam dar a pé a volta ao mundo. Nesse tempo existia uma raça misteriosa de sangue ardente e ligeira no andar: raça que possuía uma civilização que lhe era própria. Depois fundiram-se os glaciares, os homens refugiaram-se nos pontos elevados, como os planaltos do México, e separaram-se em nações diferentes.
Na América é tão forte a sombra do mundo antediluviano que às vezes Kate perdia a noção dos tempos decorridos e começava a aproximar-se do antigo modo de ser, da vontade velha e torva, do desprezo da morte, da subtil e escura consciência, do instinto que precedeu a razão. Regressava à época em que o espírito e o poder dos homens residiam no sangue e na espinha dorsal, e as relações entre eles e com os animais se produziam através da medula.
Os Mexicanos ainda se encontravam nesse estádio. O que é aborígene na América pertence à fase de antes do Dilúvio, antes de reinar na terra a vida espiritual. Por isso, ali, a actividade cerebral dos brancos se alastra como uma erva em terreno virgem - para, é claro, murchar depressa e desaparecer por completo. Então, como resultado disso, surge um novo gérmen, uma nova concepção da humanidade: vem da fusão da antiga consciência instintiva e do racionalismo intelectual do branco. Um ser diferente, nascido do encontro daqueles dois.
Kate era muito irlandesa, e no fundo da sua alma jazia o misticismo original, quase desaparecido, dessa primitiva raça celta ou ibérica. É como um resíduo que existe ainda no mundo antediluviano e que não pode ser inteiramente destruído.
Sabia ela, mais ou menos, que era essa fusão o que Ramon pretendia realizar. Compreendia também o motivo pelo qual Cipriano tomava a seus olhos uma importância maior que todo o seu passado, os seus dois maridos, e os filhos. Esse velho sangue másculo despertava-lhe agora nas veias; daí vinham as palpitações que ela ultimamente sentia.
A Irlanda não podia nem queria esquecer aquele ardor sombrio e primitivo. Os Thuathas de Danaan, embora submersos, continuam vivos no sangue, não se lhes consegue impor silêncio. E a Europa científica e meticulosa tinha de se defrontar de novo com os velhos
gigantes.
Esta alteração, todavia - e Kate bem o notava -, não era coisa que se efectuasse com brusquidão; de outro modo haveria rotura e possibilidade de morte. O primitivismo tem os seus horrores. O espírito original do México, pesado, terre à terre, podia ser-lhe tão odioso que a tornasse perversa. Essa obtusa, indomável persistência, desprovida de energia e de esperança, que é peculiar ao aborígene americano, levava-a às vezes a supor que ia perder a razão. Obstinação tenaz que resistia aos séculos e desprezava a personalidade! Lascívia da morte, feroz, incalculável, terrível!
Esse povo, realmente, nunca mudava. Os homens não tinham fé na vida, em nenhuma realidade evidente. Eram apenas fiéis a certas forças obscuras do passado. O presente submergia-se na alma dos homens e das mulheres sob uma camada de lava negra, não deixando à superfície senão a indiferença.
A Esperança! A Esperança! Seria possível, um dia, fazê-la reviver nessas almas obscuras e obter o enlace das suas raças, único passo para o novo mundo do homem?
Entretanto, Kate sentia-se invadida por um mal-estar esquisito. Achava ser necessário partir, a fim de escapar a tamanha depressão. Já não podia ouvir a rastejante insistência dos criados: o sangue é só um, nós somos do mesmo sangue - sentença de tribo pior do que a morte para um indivíduo de raça branca. Estranha teimosia aquela que preconizava a todos a fusão do sangue!
Kate pertencia a uma família antiga, com pergaminhos. Fora educada nas ideias anglo-germânicas da superioridade intrínseca da aristocracia hereditária. O seu sangue era diferente do da gente vulgar: outro fluido, mais refinado.
No México, porém, nada disso conta. Juana, o homem que ia buscar água, o barqueiro que remava no lago, todos revelavam o mesmo pensamento no olhar: "O sangue é só um; pelo sangue tu e eu somos iguais." Kate lia isto nos olhos deles, adivinhava-o nas suas palavras, quer fossem deferentes ou escarninhas, e, por vezes, sentia-se revoltada com essa imposição da igualdade de sangue.
E quando se empertigava como para proclamar "O meu sangue é só meu. Noli me tangere", percebia nas pupilas negras daquelas criaturas o terrível ódio ancestral que as impele a cometer as maiores atrocidades.
Contudo, inclinavam-se perante a sua inteligência, sabedoria e compreenção, e, embora contra vontade, testemunhavam-lhe certo respeito. Ela pertencia às raças dominadoras, hábeis e espertas... Mas exigiam-lhe a aceitação da velha crença: O sangue é só um. Somos todos do mesmo sangue.
E tinha de se submeter, senão persistiriam na sua lenta vingança.
Mas não podia submeter-se de repente. Devia ser a pouco e pouco; um esforço violento destruí-la-ia.
Compreendia agora a afirmação de Ramon: "O homem é uma coluna de sangue, a mulher um vale de sangue." Era a unidade primordial
do género humano, oposta à unidade do espírito individual.
Kate, porém, sempre considerara seu o próprio sangue. O espírito é que ela partilhava com os outros.
Percebia agora o motivo por que Ramon e Cipriano usavam fatos brancos e sandálias e andavam meio nus como deuses vivos. Era a aceitação da antiga crença, o renascimento do laço de sangue que unia os homens, laço que tornava o sacrifício humano tão poderoso
factor da vida.
O sangue do indivíduo é rendido ao ser supremo, ao ser de sangue, deus, nação ou tribo.
E, na verdade, que estranha união existia entre Ramon e os seus homens, entre Cipriano e os seus soldados! Era a comunhão do sangue. Isto podia indignar Kate, enjoá-la por vezes, mas era uma força que não conseguia vencer.
Mesmo admitindo essa comunhão de sangue, Ramon reivindicava uma supremacia, até uma divindade. Era um homem como o mais humilde dos seus peóns, nascido da mesma fonte, das mesmas raízes que eles; no entanto, mostrava ser superior aos outros. E a sua superioridade não provinha do sangue ou do espírito mas duma misteriosa estrela interior que nascia do oceano sombrio e cintilava entre o mar e o céu imenso. A estrela que une o vasto sangue universal ao sopro universal do espírito e brilha entre ambos.
Porque essa coisa que reina sobre o poder humano e que é em si mesma um poder, essa coisa é a estrela misteriosa do cosmos primitivo, é a divindade no homem.
Certos homens nada possuem de divino. Possuem apenas faculdades. São ou deveriam ser escravos. Muitas vezes um homem tem a centelha divina, mas é sufocada pela força ou pela vida material.
E quando o espírito e o sangue se separam e divergem, provocando a morte maior, então apagam-se quase todas as estrelas.
Só o homem que possui uma estrela magna, uma grande divindade, será capaz de reaproximar essas forças contrárias e criar uma nova união.
Esse homem era Ramon e o seu esforço o máximo que se podia fazer: aproximar e unir as forças contrárias. Eis o poder divino de um homem. Por ele, no homem, se distingue o deus. Por ele apenas
e por mais nada.
Embora fosse como o mais ínfimo dos seus peóns, com o mesmo coração que bate, os mesmos rins insondáveis, e os lábios fechados sobre o mesmo segredo da humanidade; e fosse humano como Kate era humana, com a mesma ansiedade de espírito e a sede do puro conhecimento e da comunhão; no entanto só ele tinha o poder astral de unir os dois grandes impulsos da humanidade, e de os fundir - de ser a ave de asas imensas que paira entre as duas potências opostas: a Estrela da Manhã, que está entre o sopro da aurora e as profundezas da noite.
Os homens haviam tentado assassiná-lo com punhaladas. Carlota quisera matá-lo com o seu espírito. Cada parte, separadamente, pretendera liquidá-lo. Ele, contudo, estava fora do alcance de qualquer delas. Era o Quetzalcoatl vivo, a cintilação de uma estrela que nascia na alma dos seus compatriotas. Chama dum astro a meio das duas asas do poder: eis só o que representa a divindade num homem e em toda a humanidade.
Kate recebeu um recado de Cipriano: mandava-lhe dizer que vinha instalar-se na Vivenda Aragon. Esta casa era a principal da região do lago; tinha um jardim em toda a volta, não muito grande mas bonito, com palmeiras e sebes de jasmineiros, tudo muito verde em resultado de regas constantes. A própria construção lembrava um castelo em ponto pequeno, talvez despropositado; mas eram agradáveis as varandas espaçosas que davam para a encosta e a vegetação do jardim, mesmo acima do lago.
Cipriano chegou bem disposto. Brilhavam-lhe os olhos com uma expressão de mocidade. Queria casar a valer com Kate, segundo a lei civil mexicana, e morar com ela na Vivenda Aragon. Kate hesitava, achando que tinha necessidade de voltar em breve à Europa, sobretudo à Inglaterra e Irlanda. Era urgente, porque lhe custava já a suportar aquela ameaça do México, a sua influência deprimente. Precisava, pelo menos, de um intervalo de repouso.
Assim o declarou a Cipriano, que ficou desanimado.
- Não importa casar ou não antes de ir - disse ela. - O que tenho é de me afastar daqui o mais depressa possível.
- Quando?
- Em Janeiro.
O rosto dele desanuviou-se.
- Então casemo-nos primeiro. Na semana que vem.
Ela aquiesceu com estranha indiferença, e Cipriano, radiante, correu a fazer os preparativos necessários.
Pouco interessava a Kate o casamento civil. No sentido essencial, já estava casada com Cipriano. Ele era acima de tudo militar, tão depressa vinha para ela como a deixava. Kate, de qualquer maneira, passaria grande parte do tempo sozinha.
Podia convir-lhe como marido, mas o que a assustava era esse México terrível. O movimento quetzalcoatliano espalhara-se de maneira sinistra por todo o país. O arcebispo manifestara-se contra isso, e Ramon, Cipriano e seus aderentes estavam excomungados. Haviam tentado assassinar Montes.
Na capital, os partidários de Quetzalcoatl tinham escolhido para lugar de reunião a Igreja de San Juan Bautista, conhecida pela Igreja do Salvador Negro. O arcebispo ordenara aos seus fiéis que fossem em procissão ao referido templo, agora chamado Casa de Quetzalcoatl, a fim de o retomarem para o culto católico. O governo, porém, sabendo que mais tarde ou mais cedo haveria luta, fez dispersar a procissão e deteve o arcebispo, depois de alguma efusão de sangue.
Rebentou então uma espécie de guerra. Os Cavaleiros de Cortez exibiram a sua famosa reserva de armas, que aliás não era muito impressionante. Em Zócalo produziu-se uma manifestação clerical, dirigida por um padre fanático. Montes mandou atirar sobre os insurretos. Aquilo afigurava-se o começo duma luta religiosa. Pelas ruas viam-se os bandos de Quetzalcoatl, com as suas serapes azuis e brancas, e' os de Huitzilopochtli, de serapes vermelhas e pretas, marchando ao som de tambores e erguendo uns as suas estranhas insígnias redondas, feitas de penas, e outros longas varas rematadas por um penacho rubro de extremidade preta. Nas igrejas, os sacerdotes incitavam os fiéis à guerra santa; os que haviam aderido à causa de Quetzalcoatl discursavam nas ruas à multidão.
Período tumultuoso. Em Zacatecas, o general Narciso Beltran manifestara-se contra Montes e a favor da Igreja, mas Cipriano interviera com tal presteza e violência que deu em resultado o fuzilamento de Beltran e a dispersão das suas tropas.
Então Montes declarou ser igual no México o antigo culto católico e publicou um decreto determinando que a religião nacional da República fosse a de Quetzalcoatl. Encerraram-se todas as igrejas e os padres viram-se obrigados a prestar juramento de fidelidade à República ou a serem condenados ao exílio. Em todas as cidades e aldeias surgiam os soldados de Huitzilopochtli e os homens de serape azul. Ramon trabalhava sem descanso. Cipriano aparecia nos lugares onde menos o esperavam. Conseguiu despertar uma espécie de frenesi religioso nas regiões mais descontentes, como Vera Cruz, Tamaulipas, Jucatão. Efectuaram-se no mar estranhos baptismos e nas costas elevaram-se fortalezas com as cores de Huitzilopochtli.
Todo o país vibrava com uma sensação desconhecida, dominado pela vaga de energia nova, mas em tudo aquilo entrava violência, crueldade e certo horror.
Deportaram o arcebispo. Já não se viam sotainas nas ruas; só as serapes de Quetzalcoatl e as de Huitzilopochtli se evidenciavam entre as multidões. Eis porque Cipriano chegou junto de Kate, com os olhos a luzir, ébrio de triunfo. Kate ficou assustada e sentiu-se vazia e inútil. Nem sequer aquela vitória espantosa e a alteração que se dava na face do mundo a podiam salvar por completo. Pertencia à velha Europa e não lhe era fácil transformar-se tão rapidamente. Contudo, achava que, se voltasse à Irlanda e concedesse uns tempos de repouso à sua vida e ao seu corpo, poderia então regressar ao México e participar nos acontecimentos.
Porque não era só o espírito que se modificava, mas também o corpo e o próprio sangue. Sentia esse terrível catabolismo e metabolismo a transformá-la noutra criatura. Se a metamorfose fosse muito brusca, decerto ela morreria.
Casou-se, pois, legalmente com Cipriano e foi passar um mês com ele na Vivenda Aragon. Em seguida embarcaria sozinha para a Irlanda, projecto a que o marido deu a sua anuência.
Era deveras estranho estar casada com ele. Kate tinha a impressão de se afundar pesadamente abaixo da superfície da vida, para jazer nas suas profundezas.
Estranha, pesada, verdadeira passividade. Pela primeira vez na sua existência, ela sentia-se repousada. Falar e pensar tornavam-se-lhe coisas triviais; as ondas à tona de água não são nada para aqueles que vivem submersos.
Na alma, estava serena e altiva. Ah, se o corpo não sofresse tanto com a transformação! No cosmos encontrara a paz de espírito, o universo abrira-se à sua frente, e ela deixava-se afundar no leito de puro descanso. Adquirira quase tanta segurança como Teresa. Só a atormentava a mudança que se lhe operava no sangue.
Cipriano mostrava-se feliz, à sua maneira de índio. Parecia um adolescente contemplando o mistério da vida com olhos dilatados de espanto. Não se ocupava especialmente de Kate, nem lhe falava de assuntos sérios. Se ela aflorava uma conversa desse género, dirigia-lhe um olhar desconfiado e afastava-se.
Tinha consciência de coisas de que a mulher mal se apercebia, sobretudo do perigo das palavras irritantes. E isto ele evitava.
Kate compreendia agora como os seus antigos amores haviam sido brutais, carregados de desejo e de contactos voluptuosos. com Cipriano, desaparecia a sua vontade ardente feminina, toda ela doçura, submissão; e contudo, tais as fontes térmicas que brotam da terra sem rumor, tão poderosa era na sua força secreta!
Via quase com espanto morrer dentro de si a Afrodite da espuma, essa Afrodite ávida de sensações ardentes. Como se prevenido por vago instinto, Cipriano repudiava essa parte da natureza de Kate. Quando esta se deixava dominar pelo êxtase voluptuoso que acaba em espasmos delirantes, ele afastava-se da mulher. Retirava-se desde que pressentia nela a sede daquelas volúpias a que costumava chamar o seu "prazer". E Kate percebia que lhe era repulsiva nesses momentos. Misterioso e implacável, afastava-se sem uma palavra.
Estendida a seu lado ela compreendia então quanto era superficial aquela efervescência de sensualidade. Parecia vir do exterior, não do seu íntimo. Depois do primeiro instante de decepção, quando esse prazer lhe era negado, concluía que não o desejava realmente, que até lhe repugnava.
E Cipriano, no seu silêncio quente e obscuro, aproximava-se quando ela se assemelhava a uma fonte borbulhando sem rumor das profundezas vulcânicas. Já não se tratava de prazer consciente. O que se passava era estranho, inexprimível, muito diferente das suas relações com Joachim. Nem êxtases, nem espasmos. Uma espécie de força subterrânea a que tinha de se submeter.
Tal como no amor, assim era Cipriano na vida. Kate não conseguia perscrutá-lo. Se tentava, via-se obrigada a desistir e a classificá-lo entre as coisas que existem e não se compreendem. Um desconhecido, e uma presença; nada mais.
Não podia existir intimidade. Cipriano envolvia-se na sua reserva como numa capa e deixava Kate envolver-se na dela. Eram dois estranhos. Ele aceitava o facto integralmente, como se outra coisa não fosse possível, mas Kate achava aquilo deveras singular. Tinha tanto desejo de intimidade e esforçara-se tanto por obtê-la!
Agora, resignara-se a aceitá-lo tal como era: um desconhecido, um estrangeiro na presença do qual vivia. E sem nenhuma intimidade espiritual, a sua união não passava de uma união de sangue.
Por isso, pouco importavam as ausências de Cipriano. Deixava atrás de si a marca da sua presença, e levava consigo a de Kate. Em resumo, não existia o desgosto da separação.
Certa manhã, ele teve de partir cedo para a cidade. O sol ainda não cobria o lago mas, para além de Tuliapan, já acariciava as montanhas, que brilhavam tão distintas que se diriam focadas por luz mágica. O sulco verde das encostas parecia ao alcance da mão. No seu voo, cintilaram de súbito duas gaivotas brancas, apanhadas na luminosidade. Mas o lago, suave, unido, silencioso, permanecia ainda na sombra.
Kate lembrou-se do mar. O Pacífico não ficava longe. Ela tinha a impressão de o haver esquecido, mas sentia de novo a necessidade da sua brisa.
Cipriano ia banhar-se; Kate viu-o caminhar sobre as lajes do cais. Despiu o roupão e o vulto escuro desenhou-se na água amarelada. Era tão moreno! Tal um malaio. Corpo tão trigueiro como a cara; e com esse físico primitivo, e o peito alto, e as ancas bem modeladas, evocava as figuras masculinas de certas medalhas gregas.
Mergulhou da beira do cais e avançou na água mansa. Nesse momento a luz espalhou-se dos cimos das montanhas e cobriu de oiro a superfície do lago. Imediatamente, Cipriano apareceu rubro como fogo. Os raios solares, porém, não eram vermelhos, mas, reflectidos pelas águas, davam ao corpo de Cipriano um tom de lume, como se o abrasassem.
Os filhos da Manhã... A coluna de Sangue... Um Pele-Vermelha... Kate contemplava-o admirada enquanto nadava resplandecente e puro. Como se fosse de fogo!
Os filhos da Manhã... Kate mais uma vez renunciou a todo e qualquer esforço de conhecimento - e, sem esforço, limitou-se à comunhão de sangue.
Sim, a sua raça... Ela notara já como os indígenas se tornavam de um vermelho puro à luz da manhã e da tarde. Dir-se-iam chamas erguendo-se da água.
Cipriano partiu a cavalo, com o criado. Kate viu-o afastar-se pela estrada além, sombrio na sua montada ruça. Parecia não fazer movimento nenhum. Irradiava um orgulho másculo e, assim unido ao animal, era como se este e o cavaleiro constituíssem um único ser.
Desapareceu. Kate, por um instante, experimentou saudade da sua presença. Mais do que dele próprio. Não desejaria tocar-lhe nem falar-lhe, mas tão-somente senti-lo ali.
Depressa se dominou e voltou à realidade. Desde que se compenetrava da ausência de Cipriano, vinha-lhe a noção nítida da sua presença.
Passeou um pouco pela costa, junto do molhe. Adorava estar só. Absolutamente só, com o jardim, o lago e a manhã.
"No fundo, sou como Teresa", pensou ela.
De súbito viu à sua frente uma corda comprida e escura em cima de um pedregulho. Aquilo fê-la sair dos devaneios. Era uma cobra de pele ornada com delicados desenhos; estava sobre uma pedra enorme e a cabeça pendia-lhe até ao chão.
O réptil sentiu a presença da mulher, pois, com incrível rapidez, rastejou ao longo da rocha e entrou numa fenda que havia na base do molhe.
Não era grande o buraco. Depois de ali penetrar, virou a cabeça e dardejou a língua preta; mas em seguida desapareceu devagar, e Kate viu-lhe ainda o último anel, no qual poisava a cabeça chata. Fazia lembrar aqueles diabos que se representam de queixo apoiado sobre os braços, olhando através duma seteira. Do fundo do esconderijo espiava a mulher; seguia-a com os olhos cintilantes de crueldade.
Kate pensou então em todos esses seres invisíveis, escondidos nos recantos ocultos da terra. E perguntava a si mesma se aquele réptil não sofreria por ser incapaz de se elevar na escala da criação; de não poder correr a quatro patas em vez de rastejar...
Talvez não. Talvez houvesse encontrado a sua própria paz. Kate sentiu-se reconciliada com o animal.

XXVII
Teresa e Kate tornaram a visitar-se. Existia agora entre ambas certa simpatia, especialmente desde que a irlandesa decidira partir.
Envolvia o lago uma pureza outonal. Sentia-se a humidade na atmosfera, as sarças das encostas cobriam-se de rebentos. O sol inundava os montes duma luz de ouro, as sombras eram profundas, aveludadas. A verdura invadia tudo, até as rochas e a terra cor-de-rosa. O verde brilhante das canas-de-açúcar sobressaía no fundo rubro dos campos lavrados de fresco; aqui e ali, entre a massa escura das árvores, avultava a mancha branca das povoações.
O céu estava alto e límpido. No ar cristalino vibravam os tambores e o grito para as pausas do dia. E o dia parecia deter-se perante o mistério supremo desse universo que desabrochava, vasto, suave e cheio de vida.
Até no lago se encontrava uma espécie de apaziguamento. Avançava uma canoa com a vela entumecida tal uma concha nacarada; o casco negro e afilado deslizava sobre a água. Dir-se-ia a barca de Dioniso portadora duma mensagem e de ramos de videira.
Kate mal se lembrava agora da secura árida dos meses anteriores, quando a terra parecia crepitar ao sol implacável.
Ramon e Teresa atravessaram o lago e o seu barco de remos entrou no molhe. Era uma manhã em que as sombras nas montanhas tomavam o tom azul das centáureas.
- Sempre vai partir? - perguntou Ramon a Kate.
- Por uma temporada. Não me julga a mulher de Loth, não é verdade?
- Não - respondeu ele, a rir. - Julgo que é a de Cipriano.
- E sou. Mas preciso de sair, embora por pouco tempo.
- Ah! Nesse caso vá e volte depressa. E diga lá na Irlanda que façam o que fizemos aqui.
- Como?
- Encontrando-se em si mesmos, e no seu próprio universo, e com os seus deuses. Justifiquem os seus mistérios. Os Irlandeses são tão prolixos no que respeita aos seus heróis de outrora e aos seus tempos gloriosos! Diga-lhes, pois, que concretizem tudo isso, como nós fizemos com Quetzalcoatl e Huitzilopochtli.
- Está bem. Veremos se há quem me escute...
- Sim, senhora. - Seguiu com os olhos a vela branca que se aproximava e depois indagou: - Afinal, porque quer partir?
- É-lhe indiferente o caso, pois não?
- Não, não me é indiferente.
- Porquê?
Ramon levou outra vez uns segundos para responder:
- É uma das nossas - replicou por fim. - Precisamos de si.
- Mesmo quando não faço nada? E quando principio a aborrecer-me com a história do Quetzalcoatl vivo e o resto, e preferia conhecer um simples Don Ramon?
Ele riu-se.
- Que é um simples Don Ramon? Don Ramon tem dentro de si Quetzalcoatl vivo. Mas a senhora auxilia-nos, apesar de tudo.
- Não creio que precise de auxílio, e muito menos de uma mulher que. no fim de contas, não é mais que a esposa do seu amigo.
Estavam sentados num banco, debaixo das manhãs-de-páscoa, cujas folhas rubras formavam como que uma flor de pétalas enormes.
- A esposa do meu amigo - volveu Ramon. - Que poderia
ser de mais agradável para mim?
- Pois claro! - exclamou Kate de maneira ambígua. Ramon tinha os braços apoiados nos joelhos e olhava para o
lago, com ar ausente. O seu rosto reflectia cansaço e aquela vulnerabilidade que sempre comovia Kate. Mais uma vez ela se compenetrou do isolamento e esforço que a procura de uma vida diferente impunha àquele homem. E, no entanto, ela não desistia...
Essa visão acentuou-lhe o sentimento de impotência, da impotência total da mulher em ajudar o homem que caminha para o Além.
- Está muito seguro de si mesmo? - perguntou.
- Seguro de mim? Não! De um instante para o outro eu morro e desapareço da face do mundo. Como poderia estar seguro de mim
mesmo?
- Mas porque há-de morrer?
- Todos morrem. Até Carlota!
- Essa tinha a sua hora marcada.
- Pode-se marcar a nossa hora como se faz no despertador de um relógio?
Kate calou-se por uns momentos.
- Se não está seguro de si mesmo, de que está então? - inquiriu como se o desafiasse.
Ramon fitou-a com os seus olhos sombrios.
- Estou seguro... seguro... - A voz sumiu-se-lhe, o rosto tomou a palidez dum defunto. Só os olhos a observavam intensamente. De novo ela se viu perante a sombra dolorosa do homem e se sentia impotente diante desse espectro vivo do sofrimento.
- Não pensa que anda em erro, pois não? - perguntou Kate.
- Não, mas talvez não possa manter...
- E então? - insistiu friamente a irlandesa.
- Continuarei o meu caminho, embora desacompanhado. Kate só lhe via os olhos negros, fitos nela. Ramon começou a falar em espanhol: - Isto faz-me doer a alma, como um pronúncio de morte.
- Mas porquê? Não está doente!
- Sinto a alma desagregar-se.
- Não deixe! - exclamou Kate, alarmada.
Ramon fitava-a ainda com os olhos inexpressivos. De súbito, ela experimentou uma sensação de calma e de força.
- Devia esquecer por uns tempos - disse-lhe em voz compassiva, poisando a sua mão na dele. Para quê tentar compreendê-lo ou contrariá-lo? Era uma mulher, ele um homem e, portanto, tinham da vida uma concepção diversa.
Ao contacto daquela mão, Ramon percebeu despertar de um sonho e fixou-a com olhar perscrutador e altivo. A carícia maternal sobressaltara-o como uma picada.
- Sim, devia - disse.
- Pois claro. Se quer ser tão... abstracto e quetzalcoatliano enterre de vez enquando a cabeça na areia como fazem as avestruzes, e esqueça.
- Oh! - exclamou Ramon sorrindo. - Ei-la de novo zangada!
- O caso não é tão simples como parece. Existe em mim um conflito, e não me deixam ausentar-me por algum tempo.
- Não podemos impedi-la.
-Pois sim, mas discordam da minha ida. Não me deixam partir em paz.
- Porque deseja ir-se embora?
- Tenho de ir. Tenho de voltar para junto dos meus filhos e da
minha mãe.
- Sente essa necessidade?
- Sinto.
Logo que deu esta resposta compreendeu que havia nela certa duplicidade. Era como se tivesse dois eus: um, mais novo, terno, sensível, que pertencia a Cipriano e a Ramon; outro, duro, completo, que pertencia aos filhos, à mãe, à Inglaterra, a todo o seu passado. O eu antigo nada tinha de submisso e era forte, o recente parecia frágil, estava ligado a Cipriano e até a Ramon e a Teresa; nada tinha de independente.
Kate possuía consciência desta dualidade e sofria com isso. Porque não conseguia optar definitivamente pela antiga maneira de ser, nem pela moderna, ficava a deter-se entre as duas.
- Pois é - continuou. - Sinto essa necessidade, e querem
evitar que eu parta.
- Que ideia! - protestou Ramon.
- Sim, senhor. Exercem pressão sobre mim, paralisam-me, impedem-me de me ir embora.
- Se tem essa sensação, convém que nos afastemos de si durante uns tempos.
- Porquê? Não concordam com a minha ida? Se eu tenho de
ir, porque não me apoiam?
Ramon fitou-a tranquilamente.
- É impossível. Não acredito nessa partida. Seria virar-nos as costas, renegar-nos. Mas a verdade é que somos todos muito complicados. Se acha que tem de se ausentar durante certo período, então vá! Não é coisa de importância primordial. Já fez a sua opção, e
eu não fico apreensivo.
Kate sentiu alívio ao ouvir isto, porque estava bastante preocupada consigo mesma. Nas suas relações com Cipriano e Ramon, nunca tinha a certeza de nada. Contudo, replicou com um pouco de ironia:
- Porque haveria de ficar apreensivo?
- Não desconfia de si própria às vezes?
- Nunca! Estou sempre segura da minha pessoa.
Continuavam sentados no jardim da Vivenda Aragon, debaixo da manhã-de-páscoa. O ar começava a aquecer. O lago estava calmo, o vento amainara e tudo se conservava imóvel - excepto as folhas rubras do arbusto.
O Natal aproximava-se! Eis o que recordou a Kate aquela planta majestosa.
Natal! O azevinho! A Inglaterra! As prendas! As iguarias! Se ela se apressasse poderia chegar à Inglaterra na data festiva. Achava uma coisa tão natural encontrar-se na pátria com a mãe, pelo Natal! Tinha casos tão interessantes a contar! E as bisbilhotices divertidas que havia de ouvir... De longe, tudo isso lhe parecia encantador. No entanto, experimentava como que uma relutância ao pensar nesse regresso.
- Podemo-nos fartar de coisas boas - disse ela a Ramon.
- De qual, em particular?
- Oh! De Quetzalcoatl e todas essas histórias. Podemos estar saturados.
- É possível - respondeu Ramon, pondo-se de pé e afastando-se em passos tão subtis que ela nem deu pela sua retirada.
Quando compreendeu que ele se fora embora, ficou fula. Mas continuou sentada debaixo do magnífico arbusto, contemplando com os olhos irritados a sebe de jasmineiro e as suas flores dum branco puríssimo. Onde é que ela ouvira qualquer coisa a respeito de jasmins? "E entre nós os jasmins..."
Oh! Como se sentia farta de tudo aquilo!
Teresa descia a ladeira do jardim.
- Ainda está aqui?
- Onde podia eu estar? - retorquiu Kate.
- Não sei... Meu marido foi a Sayula a fim de falar com o Jefe. Não quis esperar para ir connosco no barco.
- Talvez tivesse pressa.
- Que maravilha! - observou Teresa, apontando para o estendal vermelho do majestoso eufórbio.
- São as vossas flores de Natal, não são?
- Sim, as flores de Noche buena.
- É extraordinário! O Natal com hibiscos e manhãs-de-páscoa! Estou ansiosa por ver azevinho e laranjas na montra duma frutaria de Hampstead.
- Porquê? - disse Teresa, rindo.
- Ah! - suspirou Kate. - Voltar à vida simples, ver os autocarros a correr na lama de Piccadilly, na véspera do Natal, e os passeios molhados cheios de gente diante das lojas cintilantes...
- Isso é que é vida, para si? - perguntou Teresa.
- Sim. Sem esta abstracção e vontade. A vida satisfaz-me se eu puder vivê-la e ser eu mesma.
- É altura de Cipriano regressar - disse Teresa.
Kate levantou-se com súbita impaciência. Já não suportava essa tutela. Haviade lhes mostrar que era livre!
Foi com Teresa à aldeia. O ar parecia misteriosamente vivo, animado com um sopro novo. Mas Kate sentia-se fora do ambiente. As duas senhoras sentaram-se debaixo de uma árvore na praia de Sayula, conversando um pouco e contemplando a imensidão do lago
cor de pérola.
Ancorado junto do molhe estava um barco de toldo vermelho e mastro comprido. Em terra, viam-se grupos de homens vestidos de branco a olharem para o interior da embarcação. O contorno monolítico duma vaca preta e branca e dum touro enorme recortava-se contra a superfície das águas.
Era perto, e no entanto parecia tudo estranho e remoto. Dois peóns colocaram uma prancha e puseram-se a empurrar a vaca para lá. O animal avançou relutante mas depois, com a lenta indiferença dos Mexicanos, seguiu pela ponte adiante. Os homens incitavam-no, até que ele ganhou o barco e entrou definitivamente no porão.
O grupo ocupou-se então do touro. Um mexicano já idoso, alto, de calças estreitas de pele e casaco de cabedal, com um imenso chapéu de feltro bordado a prata, ergueu delicadamente a cabeça do touro, pegando-lhe pela argola do focinho. Atrás estava um peón que, curvando-se, empurrou os poderosos flancos do animal. E este, com toda a calma, foi andando pela prancha além. Mas parou.
Os peóns reagruparam-se. O que estava atrás, de faixa vermelha atada à cintura, deixou de empurrar. Então dois outros passaram uma corda em volta das ancas do touro. O velho tornou a pegar pela argola, sempre com muito cuidado, e o animal levantou outra vez a cabeça. Mas continuou parado.
De novo lhe puxaram pela argola e pela corda. O monstro mantinha-se impassível. Tudo isto decorria no maior silêncio.
Por fim o touro percorreu a ponte em passos lentos e alcançou a borda do navio. Ali, esperou.
De cabeça baixa, olhava para o fundo do porão. Os homens empurravam-no com toda a força, puxavam a corda - tudo no profundo silêncio mexicano.
Devagar, cauteloso, o animal agachou-se, e então, com um movimento rápido, pendeu as patas dianteiras no interior do barco, ficando com os quartos traseiros alçados. Houve um momento de confusão, depois um baque. Finalmente, o touro saltara e encontrava-se no porão do navio.
E tudo tão silencioso e tão remoto!
- Ramon quer que se sente ao lado dele no templo como esposa de Quetzalcoatl... com algum nome esquisito? - perguntou Kate a Teresa.
- Não sei. Mais tarde, diz ele, quando for ocasião de haver uma deusa.
- E importa-se?
- Por mim, tenho medo. Mas sei que Ramon o deseja. Ele diz que é aceitar a maior responsabilidade da nossa vida, e eu acredito que seja verdade. Se existe divindade em mim, devo reconhecê-la, envergar a túnica verde e ser deusa no momento oportuno. Ramon afirma que precisamos de manifestar a presença divina. E, ao lembrar-me de meus irmãos, acho que ele tem razão. Hei-de pensar no deus que palpita invisível como o coração do mundo. E quando vestir a túnica verde e me sentar no templo diante de toda a gente, voltar-me-ei para o coração do universo e tentarei compenetrar-me do meu eu divino.
- Julgava que a túnica verde era só para a esposa de Huitzilopochtli - observou Kate.
- Ah, sim! - replicou Teresa. - A minha é preta, com barras brancas e desenhos encarnados.
- Preferia a verde? Fique com ela, se quiser. Eu vou-me embora...
Teresa ergueu os olhos para Kate.
- A túnica verde é para a mulher de Huitzilopochtli - declarou.
- Não vejo que isso tenha importância - volveu a irlandesa.
- Cada homem deve possuir a esposa que lhe convém. Cipriano não quereria uma mulher como eu.
- Cada mulher deve ter o homem que lhe convém - retorquiu Kate. - Para mim, Ramon seria muito abstracto e muito despótico.
Teresa ruborizou-se e baixou os olhos.
- Ramon exige muita submissão de uma mulher para que me agradasse - ajuntou a outra.
Teresa ergueu a cabeça, o pescoço moreno ondulou como uma
serpente.
- Como é que sabe que Ramon exige submissão das mulheres? Como é que sabe? Nunca a exigiu de si... Está enganada. Ele não me impõe tal submissão. O que pretende é que me entregue brandamente; em compensação, entrega-se-me, a mim, com uma brandura maior do que esta que lhe concedo: um homem como Ramon é mais dócil do que uma mulher. Não se assemelha a Cipriano, que é soldado. Ramon mostra-se dócil. Não tem razão no que
diz, Caterina.
Kate soltou uma risadinha. Mas Teresa prosseguiu:
- Vejo-a como um soldado entre as mulheres, está sempre a combater. Eu não sou assim. No entanto, há mulheres que são de temperamento bélico e essas precisam de mandos militares. Eis a razão por que é Malintzi e tem um vestido verde. Estará sempre disposta a lutar... até consigo mesma, se ficar só no mundo.
Havia uma grande calma em volta do lago. As duas senhoras aguardavam a chegada de Ramon.
Um homem vestido de branco, acocorado e silencioso debaixo de uma árvore, desbastava folhas de palmeira, com ar concentrado. Em seguida ia molhá-las na água e voltava para se sentar de novo, recomeçando o trabalho com aquela atenção pueril da gente do povo. Estava a consertar uma cadeira de palha. Como Kate o observasse, os olhares dos dois encontraram-se e o homem saudou-a. Dir-se-ia que, dele, emanava para ela uma chama de vida, a qual lhe transmitiu um estranho poder.
Nitrindo excitado, corria ao longo da margem um cavalo ruço malhado de branco. A crina flutuava ao vento, as patas faziam saltar os calhaus, as narinas abriam-se-lhe ansiosas. Porque seria?
Um peón fizera entrar no lago a sua carroça puxada por quatro muares, até que a água ficou acima dos varais, e quase atingindo o fundo do veículo. Parecia um barco conduzido por quatro cavalos-marinhos.
Era Inverno, mas dir-se-ia Primavera nas imediações do lago. Saltitavam na praia bezerros amarelos e brancos, agitando a cauda, correndo lado a lado à beira da água, que eles cheiravam desconfiados.
A uma árvore estava amarrada uma burra, com a sua cria deitada à sombra, um jumentinho preto como uma amora, enroscado no chão, com a cabeça peluda erguida e as longas orelhas fitas.
- Quantos dias tem o burrinho? - perguntava Kate ao peón, que saíra da sua cabana de colmo.
O homem dirigiu-lhe um olhar em que havia júbilo e deferência - olhar que fez Kate sentir uma onda de orgulho encher-lhe o peito.
- Nasceu a noite passada, patrona! - respondeu ele, sorrindo.
- Tão novo! Ainda não pode aguentar-se nas pernas, pois não?
O peón aproximou-se do jumento e pô-lo de pé. E ali ficou o animalzinho, espantado, de pernas abertas, como se em cima de ganchos de cabelo.
- Que engraçado! - exclamou Kate, deliciada. O homem riu-se; parecia grato pelo interesse dela.
O jumento a custo se mantinha naquela posição. Vacilava sobre as quatro patas bambas, com ar admirado. Deu uns passos oscilantes para cheirar as folhas de milho. Cheirou, e tornou a cheirar, tal se o mistério do olfacto se lhe revelasse nas narinas.
Então voltou para Kate a cabeça aveludada e deitou de fora a língua cor-de-rosa. Kate soltou uma gargalhada, o que fez o animal dar um pulo que o deixou infinitamente surpreendido consigo próprio. Tentou uns passos, e, de repente, sem que ele mesmo esperasse semelhante coisa, deu outro salto.
- Já dança! - exclamou Kate. - E só tem umas horas de existência!
- Já dança - confirmou o peón.
Depois daquelas experiências, o burrinho aproximou-se da mãe em passos incertos e começou a mamar.
Erguendo a vista, Kate encontrou os olhos do homem cintilantes da chama da vida, cheios de confiança e de conhecimento.
O jumentinho preto, a mãe, o mistério da criação, o respeito pela mulher superior a ele, bela e radiosa, tudo isto exprimiam os olhos negros desse homem primitivo.
- Adiós! - disse Kate.
- Adiós, patrona! - respondeu ele, erguendo o braço, na saudação de Quetzalcoatl.
Atravessou ela a praia em direcção ao cais; sentia dentro de si uma onda de vida, forte, resistente. "É o sexo", disse consigo. "Como o sexo pode ser extraordinário quando o homem o conserva poderoso e sagrado e que ele enche o mundo! É como o sol, penetrando-nos. Mas não me submeterei, mesmo assim. Porquê ceder?" Ramon aproximava-se, com o seu largo chapéu ornamentado do símbolo de Quetzalcoatl. Nesse instante tocaram os tambores e, do alto da torre, soou a voz nítida e possante anunciando o meio-dia. Todos os homens que se encontravam na praia aprumaram o corpo e ergueram o braço direito. As mulheres viraram a palma da mão para o Sol. Tudo ficou imóvel, excepto os animais.
Então Ramon encaminhou-se para o barco, enquanto os homens o saudavam à maneira de Quetzalcoatl.
- É espantoso como nesta terra se pode ter a impressão de que se é alguém! - notou Kate, quando já iam sobre a água no barco de remos. - Sentimo-nos como se pertencêssemos de facto à nobreza.
- E não é verdade?
- Sim, mas isso em toda a parte nos é negado. Só aqui temos a noção do poder da nobreza. Os indígenas ainda a veneram. Parecem
adorar-me.
- Por enquanto - replicou Ramon. - Mais tarde assassiná-la-ão porque a adoraram.
- É inevitável? - volveu Kate em tom despreocupado.
- Creio que sim. Se vivesse sozinha aqui, em Sayula, e reinasse por algum tempo, seria assassinada... ou pior ainda... pelo povo que a tinha idolatrado.
- Não acredito.
- É como lhe digo.
- Mas porquê?
- A não ser que se consiga dos deuses a nossa própria nobreza e se implore dos céus o poder, acabaremos por ser assassinados.
- A minha nobreza tem essa origem.
Mas não ficou muito convencida e mais firmou a sua resolução
de partir.
Escreveu para a Cidade do México e reservou uma passagem de Vera Cruz a Southampton. Embarcaria no último dia de Novembro.
Cipriano regressou a 17 e Kate participou-lhe o que tinha feito. Ele ficou a olhá-la, de cabeça um pouco à banda e com uma expressão de criança ajuizada, mas Kate foi incapaz de adivinhar o que lhe ia na alma.
- Vais-te embora já? - perguntou ele em espanhol.
A mulher percebeu então que estava ofendido. Quando se melindrava falava-lhe sempre em espanhol, nunca em inglês.
- No dia 30.
- E quando voltas?
- Quien sabe! - ripostou Kate.
Por uns minutos, Cipriano fitou-a com as suas pupilas negras imperscrutáveis. Estava a pensar que tinha o direito de a impedir que saísse do país, visto ser legalmente sua esposa. Nas profundezas dos olhos luzia a antiga cólera índia; depois surgiu uma leve mudança de expressão no rosto, quando a ira contida cedeu lugar à indiferença estóica, à velha indiferença de tantos séculos. Kate quase sentia as ondas sucessivas de sombra e frieza que percorriam Cipriano sem que ele mesmo desse por isso. E mais uma vez lhe estremeceu o coração o medo de perder o contacto com esse homem.
- Como quieras tu! - disse ele por fim.
Concedia-lhe a liberdade com a misteriosa indiferença do seu sangue e não faria mais esforços para a reter. Era o fatalismo dos da sua raça.
Conforme Kate previra, Cipriano tomou um barco e foi a Jamiltepec falar com Ramon.
A mulher ficou só, como de costume. Ocorreu-lhe que ela própria criara essa solidão. Não conseguia identificar-se com aquela gente, sentir-se à vontade fosse com quem fosse. Fechava-se sempre na sua personalidade.
Importava-lhe muito a reciprocidade sexual? Podia importar-lhe ainda mais se não a houvesse tido; mas tivera-a, e de maneira perfeita, com Cipriano. Sabia tudo a esse respeito. Era como se houvesse conquistado outro território, outro domínio da vida. E agora devia retirar-se para a toca da sua individualidade, com a vítima nos dentes.
De súbito, viu-se como os homens muitas vezes a viam: uma gata enorme, com os seus espasmos de volúpia e o gozo demorado do seu isolamento. Conhecia outras mulheres assim. Brincavam cheias de amor e familiaridade como um gato com um rato. Por fim devoravam o ratinho querido e reapareciam com a barriga repleta e uma voluptuosa sensação de força.
Algumas vezes o rato recusava-se a ser digerido, de que resultava prolongada dispepsia; ou então, como Cipriano, transformava-se numa espécie de cobra, que alçava a cabeça, olhava para trás e desaparecia num buraco, deixando-a confusa e destituída de poder.
Outra coisa que ela observava horrorizada. Uma após outra, as suas "amigas", as grandes amorosas, na idade de quarenta, quarenta e cinco e cinquenta anos perdiam todos os atractivos e ficavam umas corujas horrendas, procurando em volta a vítima cada vez mais rara. Como seres humanos deixavam de existir, metamorfoseadas em corujas elegantes e mexeriqueiras.
Kate era bastante inteligente para tirar proveito da lição. Estava bem que uma mulher cultivasse o seu ego, a sua personalidade. Estava muito certo que desprezasse o amor ou que com ele se entretivesse como um gato faz ao rato; isto é, brincar o mais tempo possível antes de o comer e saciar voluptuosamente o ego com a sua vítima.
"A mulher sofre mais com a supressão do ego do que com a do sexo", afirmou uma escritora, e talvez seja verdade. Mas olhai, olhai para as mulheres modernas de cinquenta anos, as que cultivaram o ego até ao extremo limite! São em geral criaturas que nos enchem de pena ou de repulsa.
Kate sabia tudo isto, e nisto pensava enquanto ali sozinha na sua vivenda. Tivera a sua liberdade, mesmo no México. Esses homens deixá-la-iam partir. Não estava prisioneira. E levaria consigo todos os despojos que ainda guardavam.
E depois? Sentar-se nos salões de Londres e ser mais uma coruja ao lado das outras? Arvorar um sorriso postiço e falar com voz
artificial?
"Não! - disse consigo. - O meu ego e a minha personalidade não valem esse preço. Prefiro desfazer-me deles em parte a ver-me reduzida a isso."
No fim de contas, quando Cipriano a acariciava toda ela parecia desabrochar. Era a força do sexo, que enchia o mundo de lascívia e sobre que ela não se atrevia a reflectir. O seu poder tornava-se maior do que a sua vontade. Por outro lado, quando estava só e abria as asas do seu ego e o espírito desferia voo, o mundo afigurava-se-lhe maravilhoso. Todavia, após uns instantes, desvanecia-se o esplendor, substituído por uma solidão amarga.
"Preciso de ambos - concluiu. - Não posso afastar-me de Cipriano nem de Ramon. Renovaram-me o sangue. Digo que são limitados, mas todos temos de o ser. Se tentamos ser ilimitados, tornamo-nos monstros. Sem Cipriano a afagar-me, a limitar-me e a submergir-me a vontade, tornar-me-ia uma velha horrível. Devo regozijar-me pelo facto de Cipriano me limitar com a sua vontade e o seu contacto ardente. Porque o que eu chamo a minha grandeza faz-me cair no vácuo desde que não haja a mão dum homem para me segurar. Ah, sim! Antes submeter-me do que ser uma mulher horrível."
Chamou o criado e foi através do lago num barco de remos. Era por uma bela manhã de Novembro. Nas escarpas das montanhas, a nordeste, as sombras tinham um tom azul muito puro. Por baixo, a vegetação começava a amarelecer. O lago, embora ainda cheio, principiava a baixar, e os jacintos-d'água vogavam à toa. No ar calmo viam-se pássaros voando. Alguns milheirais exibiam os seus talos secos, mas as flores de palo-blanco tinham já desabrochado e errava o perfume das acácias amarelas.
"Porque havia de me ir embora? - pensou Kate. - Porque havia de ver os autocarros na lama de Piccadilly na véspera do Natal e a multidão nos passeios molhados diante das lojas iluminadas? Mais vale ficar aqui, onde a minha alma é menos triste. Tenho de pedir desculpa a Ramon das coisas que lhe disse. No fim de contas, aqui há outra grandeza, com o som dos tambores e o grito de Quetzalcoatl."
Já ela distinguia o último andar da casa de Jamiltepec, semelhante a uma torre avermelhada, e a buganvília roxa pendente do muro, os cachos das flores de plumbago e a porção de rosas brancas.
- Están tocando - disse tranquilamente o barqueiro, erguendo para ela os olhos negros.
Já ouvira o som do tambor em Jamiltepec. Uma voz de homem se elevou na manhã clara.
O barqueiro levantou um remo, como se fizesse sinal. E assim que o barco penetrou na enseadazinha, veio um criado a correr ao longo do molhe. No ar soalheiro notava-se o cheiro das daturas e das rosas, e um silêncio profundo que nem o tambor nem o canto perturbavam.
- Don Cipriano está aqui? - perguntou Kate.
- Está - murmurou o criado, apontando para o balcão donde partia a voz do cantor. - Deseja que eu o informe da sua chegada?
- Não - respondeu Kate. - vou sentar-me um bocado no jardim, antes de subir.
- Nesse caso, deixarei a porta aberta - volveu o homem - e assenhora entrará quando quiser.
Kate instalou-se no banco de uma árvore, donde pendiam flores de trepadeira enroscada ali como uma serpente. Pôs-se a ouvir o canto. Ramon ensinava o novo hino a um dos cantores.
Não tinha muito boa voz o Quetzalcoatl vivo. Cantava baixinho, como se para si mesmo, mas com expressão simples e bela. Kate não conseguiu perceber a letra.
- Ya? - disse Ramon ao terminar.
- Ya, patrón! - respondeu o cantor.
E na sua voz forte e pura, este entoou o hino:
O meu caminho não é o teu e o teu não é o meu.
Mas vem, antes que nos separemos.
Cada qual por seu lado, dirijamo-nos à Estrela da Manhã
Para lá nos encontrarmos.
Não te aponto o meu caminho
Nem chamo por ti.
Mas a Estrela é a mesma para nós ambos
E a ambos nos atrai.
A cada qual o seu caminho, esse que esplende Na encruzilhada,
Que abre a sua chama como a porta de uma tenda Por onde, invisíveis, deslizamos.
Não pode um homem pisar como a mulher
Nem a mulher andar como o homem.
O espírito de cada um através das folhas de sombra
Se move como pode.
Mas a Estrela da Manhã e a da Noite Fixam tendas de fogo
Onde nos retinimos quais ciganos, sem saber Como é que vieram os outros.
Nada mais peço que me insinuar Na tenda do Espírito, e deter-me Na casa da chama bifurcada Como hóspede seu.
Fica aí comigo, esposa minha, Corporalmente. E que a flama nos envolva Qual uma rede.
Sede lá, homens, comigo,
Alcançai o lar.
Ride comigo, enquanto a mulher repousei,
Porque vale a pena.
O homem entoara o hino por várias vezes, parava, dir-se-ia esquecer-se, extinguia-se-lhe a voz pura e quente. Então a de Ramon, baixa e um tanto rouca, elevava-se com subtil intensidade, como se vinda do meio duma concha; depois, o tenor retomava o canto, que lhe corria no sangue como uma chama.
O mozo de Kate, ou seja, o seu criado, seguira-a ao jardim, e tinha-se sentado de pernas cruzadas, a certa distância, debaixo de uma árvore, de costas apoiadas ao tronco - sombra acocorada, vestida de branco. Os dedos dos pés saíam-lhe rijos e escuros das huaraches esburacadas, e o trancelim de palha do chapéu pendia-lhe junto à face trigueira. Quanto ao resto era tudo alvo, e as calças de linho apertavam-se-lhe nas coxas.
Quando o canto terminou, e o tambor deixou de rufar, e as vozes, num murmúrio, mal se ouviam, o mozo ergueu a cabeça e olhou para Kate. Brilhavam-lhe as pupilas negras, no rosto errava-lhe um sorriso tímido.
- Está muy bien, patrona? - perguntou, um pouco envergonhado.
- Muito bem - respondeu ela, como um eco fiel. Mas no seu coração debatiam-se conflitos diversos, e o criado sabia-o.
Parecia tão novo com aquele sorriso alegre, excitado, receoso! Havia nele qualquer coisa de perpetuamente infantil; mas era uma criança que, dum momento para outro, se podia tornar num selvagem- vingativo e brutal, um homem que nunca perdia a consciência do seu sexo. E Kate pensou mais uma vez que existiam várias maneiras de regressar à infância.
O criado, porém, continuava a espiá-la, de soslaio: queria ver se havia nela qualquer hostilidade secreta. Desejaria que concordasse com o hino, com o tambor e com tudo mais. Como uma criança, ansiava pela sua aquiescência; mas, se a senhora se mostrasse hostil, ele seria o primeiro a manifestar-se. Um julgamento adverso torná-lo-ia inimigo declarado.
Ah, os homens eram todos iguais!
Nessa ocasião, o rapaz levantou-se, com súbita agilidade, e ela ouviu a voz de Cipriano na varanda:
- Que é, Lupe?
- Está la patrona - respondeu o mozo.
Kate ergueu-se também e olhou. Viu a cabeça e os ombros nus do marido, em cima, no parapeito.
- Já lá vou - participou-lhe.
Vagarosamente transpôs os portões de ferro do corredor. Lupe, que a seguia, fechou-os atrás de si.
No terraço encontrou Ramon e Cipriano, ambos de tronco nu, que a esperavam em silêncio. Kate, embaraçada, explicou:
- Estive a escutar o novo hino.
- E-que lhe pareceu? - perguntou Ramon.
- Gostei.
- Sentemo-nos - propôs ele. E a recém-vinda deixou-se cair numa das cadeiras de verga. Cipriano ficou de pé, encostado à balaustrada.
Kate viera para declarar a sua submissão: dizer que já não queria ir-se embora. Mas, vendo os dois homens numa disposição muito quetzalcoatliana, não se decidia a aflorar o assunto. Tinha a sensação de ser uma intrusa. Não se compenetrava de que também pertencia à seita.
- Parece-me que não há Estrela da Manhã para nos reunir a todos três - observou, irónica mas um pouco trémula.
Sobre eles desceu um silêncio ainda mais profundo.
- Estou a ver que uma mulher é realmente de trop aqui junto de vocês ambos.
Hesitou um tanto ao dizer isto. Sabia que Cipriano ficava perplexo e melindrado quando ela escarnecia.
Ramon respondeu-lhe com uma doçura que vinha direita do seu coração.
- Então que há, prima?
com um tremor nos lábios, Kate replicou:
- Em verdade, não desejo deixá-los.
Olhando rapidamente para Cipriano, Ramon retorquiu:
- Bem sei que não deseja.
O tom suave e protector da sua voz fê-la revoltar-se de novo. com os olhos rasos de lágrimas, ela bradou:
- Afinal vocês não precisam de mim!
- Não, não, preciso de ti. Verdad, verdad! - exclamou Cipriano em voz baixa e contida, quase num murmúrio.
E, no meio das suas lágrimas, Kate pensava: "Como sou intrujona! Sei perfeitamente que sou eu que não os quero. Quero-me só a mim mesma. Mas posso iludi-los de modo que o não percebam."
Havia notado a paixão fálica e ardente na voz de Cipriano.
Coube a vez a Ramon de falar, e fê-lo em tom glacial:
- A Caterina é que não precisa de nós. Não se comprometa connosco. Atenda à sua própria preferência.
- E se ela me aconselhar a partir? - ripostou Kate, como um desafio, através de um resto de lágrimas.
- Então parta!
Kate recomeçou a chorar.
- Ah, eu bem sabia que não precisavam de mim. Mas Cipriano acudiu com persuasiva ternura:
- Não és dele! Ele não pode dizer nada.
- Isso é verdade - concordou Ramon. - Não me dêem ouvidos.
Levantando bruscamente a cabeça, no meio do seu pranto, viu-o afastar-se sem rumor.
Limpou a cara, recuperou a calma e, de olhos húmidos, fitou Cipriano. Este conservava-se muito direito, como um galo combatente. Nas pupilas negras brilhava-lhe um fulgor estranho.
Sim, Kate também tinha medo dele, desses olhos pretos inumanos.
- Não queres que me vá embora, pois não? - perguntou-lhe suplicante.
Espalhou-se no rosto do homem um sorriso lento, e um leve tremor lhe percorreu o corpo. E então, na sua voz de inflexões índias, muito suave, Cipriano disse-lhe em espanhol:
- Yo! Yo! - E as sobrancelhas erguiam-se-lhe numa expressão de espanto divertido. Ainda trémulo, concluiu: - Te quiero mucho! Mucho te quiero! Mucho, mucho!
As palavras soavam tão cariciosas, vinham-lhe tanto do seu sangue ardente, que a mulher se sobressaltou e disse:
- Não me deixarás partir!

XXV
Foi uma surpresa para Kate o casamento de Don Ramon dois meses depois do falecimento de Dona Carlota. A noiva tinha vinte e oito anos e chamava-se Teresa. Após o casamento, que se realizou civilmente e na maior intimidade, Ramon trouxe a nova esposa para Jamiltepec.
Conhecia-a desde pequena, pois era filha do proprietário da famosa hacienda de Las Jemas, situada a uma dúzia de milhas de Jamiltepec. Don Tomaz, pai da rapariga, fora grande amigo dos Carrascos. Morrera, porém, um ano antes, deixando a importante hacienda aos três filhos e confiando a Teresa a administração da quinta. Teresa era a mais nova. Os dois irmãos viviam a existência inútil e perdulária dos mexicanos, e por isso Don Tomaz, a fim de salvar a propriedade daquelas mãos nefastas, designara Teresa como administradora e obtivera o consentimento dos dois irmãos. Na verdade, os rapazes eram criaturas ociosas que, em vida do progenitor, nunca haviam mostrado o mínimo desejo de o ajudar na difícil gerência da quinta. Teresa fora a única. E durante a doença do pai, todas as fadigas da administração haviam recaído sobre ela, enquanto os irmãos gastavam o dinheiro e as forças nas orgias em que se deleitam os mexicanos de certa classe. No entanto, assim que o pai faleceu, os dois irmãos apareceram em casa cheios de arrogância, com a intenção de se tornarem hacendados. Pela simples força bruta afastaram a irmã do seu cargo, deram ordens contrárias às dela, escarneceram-na e uniram-se para a esmagar. Queriam relegá-la para o seu lugar de mulher, isto é, para uma espécie de escravidão a que, aos seus olhos, deviam pertencer as pessoas desse sexo.
Eram brutos, e como brutos, cobardes. E, como tantos mexicanos daquela categoria, condescendentes e prejudiciais para si próprios. Relacionaram-se com juizes e generais, exibiram-se em ricos trajes de charro e receberam em casa uma multidão de gente duvidosa.
Contra aquela indolência e brutalidade, Teresa nada podia fazer e conhecia bem a sua impotência. Os irmãos eram fracos, sensuais, belos à sua maneira, dissipadores, despreocupados, mas de sentimentos ferozes.
- Faz-te bonita e arranja um marido - aconselhavam-lhe. Aos olhos deles, o seu maior crime era não atrair os homens
com quem conviviam. O facto de nunca ter conhecido homem e não se haver ainda casado tornava-a quase odiosa. De que servia a mulher senão para uma vida de relaxamento e licenciosidade?
- Queres usar calças? - perguntavam-lhe, irónicos. - No, señorita, enquanto houver aqui dois homens. No, señorita, os homens é que usam calças, e as mulheres escondem o que têm debaixo das saias.
Teresa já estava habituada a estes insultos; contudo, sofria muito no seu íntimo.
- Queres viver à moda dos americanos? Então abala para a América, corta o cabelo e veste calças. Compra lá um rancho e arranja um marido que receba as tuas ordens.
Teresa consultou advogados, que se limitaram a erguer os braços ao céu. Foi então procurar Ramon, a quem conhecia desde pequena.
Para expulsar os irmãos da hacienda seria necessário intentar um processo dispendioso e de resultado incerto. Em vez disso, Ramon propôs-lhe que casasse com ele segundo um regime matrimonial em que ela disporia sempre dos seus bens.
- Nesta terra os homens desprezam as mulheres e não podem passar sem elas, o que representa um suicídio - disse Ramon.
O casal foi visitar Kate. Teresa era franzina, pálida, de farta cabeleira preta e grandes olhos negros. Apesar do ar calmo, notava-se-lhe certa independência e autoridade. Sofrera muitas humilhações da parte dos irmãos e tinha ainda os olhos pisados pelas lágrimas de amargura, indignação e cólera.
Agora, amava Ramon com todas as veras da sua alma. Isso era evidente. Fora ele que salvara da degradação a sua dignidade de mulher e lha havia restituído bela e intacta. Em troca, passou a conceder ao seu salvador uma admiração respeitosa e quase feroz.
Em relação a Kate mostrava-se tímida e um pouco distante, tal se receasse essa mulher branca, doutra raça, que viajara muito e possuía larga experiência da vida. com um vestido claro e um rebozo de gaze preta, estava sentada na sala de Kate, com as mãos trigueiras pousadas no regaço, o pescoço escuro muito direito, e desviando um pouco o rosto fino e bem modelado. A irlandesa achou-lhe uma aparência de costureirinha.
Mas Kate não deu fé do estranho poder autoritário que também emanava desse corpo moreno e esguio, nem do olhar penetrante e desconfiado que por vezes Teresa lhe dardejava. Alma de fogo num corpo delicado. Atitude cheia de reservas. De quando em quando, a boca parecia formular uma palavra em silêncio e nos lábios perpassava-lhe um sorriso constrangido. Nunca lhe desaparecia, porém, o fulgor dos olhos.
- Falas tão pouco, chica! - observou Ramon, com certa ternura.
Então os olhos dela cintilaram e a boca esboçou um sorriso.
Via-se bem que estava apaixonada, embebida num êxtase de amor, o que explicava a sua frieza perante Kate.
"Despreza-me - pensou esta - porque não sou capaz de amar como ela." E, por um segundo, Kate invejaria Teresa. Mas daí a pouco desdenhava-a: "Tipo de harém..."
Sim, Ramon adaptava-se bem ao papel de sultão. Era belo, no seu traje branco, muito sereno, com ar de paxá, mas ao mesmo tempo afável, atencioso - e com aspecto tão juvenil! Como um paxá, preparava um cacharolete de genebra, vermute e limão. Teresa espiava-o de esguelha, sem perder de vista Kate, sua possível inimiga, a mulher que falava aos homens no mesmo pé de igualdade.
Kate levantou-se para ir buscar colheres. Nesse momento, Ramon recuou da mesa baixa em que espremia o limão e colidiu de leve com a dona da casa quando esta passava. Kate reparou de novo como ele se esquivava a qualquer contacto com ela. A sua sensualidade natural afastava-o de Kate como uma chama se desvia perante uma corrente de ar. Ela corou, e Teresa viu o súbito rubor sob essa pele branca, e o clarão quase de ira que atravessou os olhos castanhos de Kate. Momento de evasão de dois cursos de sangue tão diferentes!
Teresa pôs-se de pé, aproximou-se de Ramon e, inclinando-se sobre os copos, perguntou com aquela afectação infantil própria das mulheres da sua raça:
- Que puseste aí?
- Olha ! - retorquiu ele. E, com a mesma infantibilidade dos homens do seu tipo, começou a explicar-lhe de que se compunha o cacharolete e deu-lhe a provar um pouco de genebra, numa colher.
- É tequila da pior - declarou Teresa.
- A oito pesos cada garrafa? - volveu o marido, a rir.
- Custa esse preço? Tão caro!
Ela fitou-o nos olhos, por um momento, e viu esse rosto tornar-se mais escuro, mais ardente, como se todo ele se derretesse ao senti-la perto de si. Teresa então ergueu a cabeça, orgulhosamente. Havia-o reconquistado.
"Manhas de harém!" pensou Kate. E experimentou certa impaciência ao verificar como o ilustre, prodigioso Ramon se deixava prender nas malhas de um ser tão insignificante. Sentia-se contrariada por ter assim consciência da presença física do homem, do seu corpo belo, dos seus ombros fortes, das suas pernas vigorosas. Dir-se-ia ter também de sucumbir ao fascínio e vir a fazer parte do harém daquele sultão.
Que estranha vontade possuía a pequenina mulher morena! Que subtil poder feminino num corpo que quase só tinha pele e osso! Teresa era capaz de engrandecer a glória do marido - ao passo que ela própria se tornava imperceptível, a não ser quanto ao fulgor tigrino dos seus grandes olhos pretos.
Kate observava admirada. Conhecera homens que lhe davam a impressão de a transformarem em rainha, de ter a cabeça nas estrelas e repousar o peito nas nuvens. Sabia o que era subir, subir, subir até encher o universo com a sua feminilidade.
Via agora, porém, o contrário. Quem tinha poder sobrenatural era essa criatura pequenina, que fazia maior Don Ramon, enquanto ela se diminuía e ficava invisível, excepto no que respeitava aos olhos. Ele, como um sultão, como um fruto sazonado ao sol, tomava uma aparência extraordinária e imponente; e então, por algum poder misterioso do seu corpo trigueiro, a frágil Teresa fazia-o ainda mais completo.
Era o que Ramon queria, e Kate, percebendo-o, sentia-se irritada. Parecia-lhe odioso aquele macho triunfante, exasperava-a aquela rapariga ardente que só pensava em exaltar o homem.
ah, o poder oculto da mulher trigueira! Kate chamava àquilo harém e prostituição. Sim, era a atitude da escrava. Que pretendia dele essa criatura senão o sexo, como uma prostituta?
Pois não era degradante para uma mulher semelhante espécie de amor? E não tornava o homem fraco, sensual, ou odiosamente tirânico?
No entanto, já duma coisa Kate se convencera: que a chave da vida, e da continuidade da vida, residia nas relações do homem e da mulher. A união completa dos dois representava a vida presente e futura; dessa fusão surgia uma vida nova.
Mas tais relações necessitam de equilíbrio, e TereSa destruía-o juntando na balança o seu peso ao do homem.
Ramon não quisera Kate. Possuía agora o que desejara: aquela criaturinha escura, tão servil e orgulhosa do seu poder. Só quisera Kate para camarada, camarada inteligente, Não para mulher. Preferira essa viborazinha de Teresa...
Cipriano, esse desejava Kate. O general, o militar empertigado desejava Kate, mas só por momentos. não se importava casar realmente com ela; o que lhe interessava eram os instantes passados a seu lado. Kate tinha de lhe conceder esses instantes, e em seguida ele tornava a partir para junto das suas tropas. com isso se contentava. E ela também. Assim, ficava senhora da sua existência. Não tinha feitio para andar de roda dum homem a excitar-lhe o sangue, a estimular-lhe o ardor!
Levantou-se e foi ao quarto buscar um livro que prometera a Ramon. Não podia suportar mais tempo a exibição do amor dele por Teresa. Ah, aquele sorriso néscio estampado no rosto do homem, o brilho estranho dos olhos, o aprumo orgulhoso do corpo!
Eis como eram os dessa raça. Selvagens, com o insuportável fluido sensual dos índios e aquela maneira primitiva de se dissolver numa horrível confusão de desejo; com a presunção da sua virilidade insolente e inesgotável.
O pior era que essa força cósmica que ela até aí só conhecera nos olhos azuis dos homens loiros (e que tornava rainhas as respectivas mulheres, ainda que eles as detestassem por fim), essa força declinava agora nos olhos azuis e nascia nas pupilas pretas. As de Ramon, naquela ocasião, luziam de orgulho, poder e desafio. E o mesmo notava Kate nos olhares rápidos de Cipriano. A força do mundo esmorecia nos homens loiros, a sua supremacia abandonava-os para renascer nos de cor escura.
Joachim, o ser inquieto, inteligente e sensível, que era capaz de penetrar na alma de Kate e contemplá-la com os seus olhos azuis, morrera à vista da mulher. Se ela pudesse excitar-lhe o sangue, como Teresa fazia a Ramon, nunca ele teria morrido. Mas seria impossível. Cada um é como é. E cada raça, também. Teresa bateu timidamente à porta do quarto.
- Posso entrar?
- Entre! - respondeu Kate, endireitando-se e deixando as rimas de volumes em volta da mala dos livros.
O aposento era amplo e através das janelas rasgadas via-se o pátio e o jardim soalheiro, mangueiras de troncos lisos como trombas de elefantes, ervas reverdecidas pela chuva e galinhas a esgaravatar a terra debaixo das folhas esgarçadas das bananeiras. Um pássaro vermelho chafurdava no tanque, abrindo e fechando as asas escuras sobre o corpinho escarlate.
Teresa, porém, olhava para o quarto, não para fora. Sentiu o cheiro de cigarros, cujas pontas enchiam um cinzeiro de ágata. Notou os livros em desordem, as jóias espalhadas, a tapeçaria persa pendente atrás da cama, a colcha magnífica, os vestidos de seda e de veludo colocados sobre uma arca, os xailes de longas franjas cuidadosamente dobrados, os sapatos espalhados no chão, brancos, cinzentos, amarelos, castanhos e pretos, e os belos castiçais chineses.
Teresa parecia fascinada por tudo aquilo.
- Que linda! - disse, tocando na colcha sumptuosa.
- Foi uma amiga que a fez e ma ofereceu, em Inglaterra. Teresa observava tudo com espanto, em especial as jóias dispersas no toucador.
- Não gosta dessas pedras encarnadas? - perguntou Kate, ajoelhando de novo para arrumar os livros e olhando o pescoço moreno pendido sobre as jóias. Que ombros frágeis e que pele acetinada, naquele vestidinho branco! E aquela cabeleira negra, segura por travessas de tartaruga! No conjunto, uma rapariguinha humilde e insignificante. Mas Kate bem sabia que Teresa não era insignificante nem humilde. Naquele corpo franzino havia um estranho poder que despertava o ardor num homem e o exultava e, de certa maneira, o guardava só para si. O eterno apelo da carne...
Na mesinha de costura estava um pedaço de musselina que Kate comprara na índia e não sabia em que aproveitar. A cor, espécie de amarelo-pêssego, não se harmonizava com o seu tom de pele. Teresa apalpou o tecido entremeado de fios de ouro.
- É organdi?
inquiriu.
- Não, é musselina feita à mão. Ofereço-lha. A cor vai-me mal, e a si deve-lhe ir lindamente.
Ergueu-se e dispôs o tecido de roda do pescoço bronzeado de Teresa. No espelho, esta viu-se envolta na bela musselina e os olhos brilharam-lhe de prazer.
- Ah, não! Não posso aceitar!
- Porquê? Não condiz bem comigo. Faz agora um ano que a tenho aí. Até pensei em cortá-la para fazer cortinas. Fique com ela.
Kate talvez fosse arrogante, e até cruel, na sua maneira de oferecer.
- Não quero privá-la...
- Aceite, peço-lhe.
Ramon apareceu no limiar e relanceou o quarto e as duas mulheres.
- Olha! - disse Teresa, embaraçada. - A señora quer dar-me esta musselina indiana. - Voltara-se timidamente para ele, com o tecido desdobrado em roda do pescoço.
- Fica-te muito bem - declarou Ramon, contemplando-a.
- A señora não devia oferecer-me...
- Se to dá é porque faz gosto nisso.
- Então - concluiu Teresa, virando-se para Kate - muito e muito obrigada.
- Não tem de quê!
- Ramon acha que me vai bem...
- Na verdade, vai-lhe a matar - declarou Kate, dirigindo-se agora a Ramon. - O tecido foi feito na índia para alguém com aquela cor trigueira. Há-de condizer admiravelmente com ela.
- É muito bonito - concordou Ramon.
com o olhar, percorria o quarto, examinava os diferentes objectos que ali estavam, vindos de todas as partes do mundo, e até as pontas de cigarro na taça de ágata: luxo, desordem, e algo de esterilidade da mulher emancipada.
Kate não sabia em que é que ele pensava. Mas, por seu turno, reflectia: "Ora aí está o homem que eu defendi naquele terraço, que eu vi com um buraco nas costas, nu e inconsciente. Nesse momento não se parecia com um sultão."
Teresa devia ter-lhe adivinhado os pensamentos, porque disse,
olhando para Ramon:
- Sem a señora, Ramon teria morrido. Nunca me esquecerei...
- Não falemos nisso - atalhou Kate. - O destino tece-as.
Eu não alterei nada.
- Foi o próprio destino, señora!
- Não quer vir passar uma temporada connosco em Jamiltepec? - perguntou Ramon. - Agora já tenho uma dona de casa.
- Sim, vá! - insistiu Teresa.
- Ela precisa de uma amiga - explicou o marido.
- Preciso, é verdade. Nunca tive nenhuma a valer desde que deixei o colégio, ainda pequena...
Kate duvidava que pudesse ser para Teresa uma amiga a valer. E cogitava no que pretenderiam, de facto, aqueles dois - e o que pensariam dela.
- Pois sim, terei muito gosto em passar uns dias...
- Óptimo! - exclamou Teresa. - Quando deverá ser? Combinaram o dia.
- E escreveremos a canção de Malintzi - disse Ramon.
- Não faça semelhante coisa - acudiu Kate vivamente.
Ele olhou-a com ar pasmado, como se não percebesse logo, um ar que lhe era habitual. Por instantes, Kate poderia supor ter-lhe dado a impressão que um fantasma produziria se aparecesse a uma criança.
Em Jamiltepec, as duas mulheres entretiveram-se a talhar vestidos para Teresa na peça de musselina cor de ananás. Para senhora casada, o guarda-roupa de Teresa era bastante modesto: só possuía trajes pretos, que lhe davam um ar infeliz, e alguns brancos já antiquados. Até aí só vivera para o pai (que tinha bons livros acerca do México e toda a vida escrevera sobre a história do estado de Jalisco) e para dirigir a sua hacienda. Esta, chamada de Las Jemas, era a única que não fora destruída durante as revoltas que se seguiram à fuga de Porfirio Diaz; Teresa orgulhava-se bastante deste facto.
O seu carácter assemelhava-se muito ao de uma freira, talvez por se tratar de uma pessoa profundamente apaixonada e as paixões profundas serem mais para se esconder do que para exteriorizar nos contactos quotidianos.
Kate, provando-lhe o vestido sobre os ombros morenos, tornou a admirar a estranha macieza daquela pele escura e o pesado volume dos cabelos negros. A família dos Romeros, a que Tereza pertencia, estabelecera-se no México logo nos primeiros tempos da conquista.
Que lhe fizesse mangas compridas, sugeriu. E acrescentou, ocultando um pouco envergonhada a magreza daqueles membros trigueiros:
- Tenho os braços tão delgados! Não são bonitos como os
seus.
Kate, mulher de quarenta anos, tinha-os fortes e alvos e toda ela
era bem constituída.
- Sim - repetiu Teresa -, compridas até aos punhos.
A outra assim fez, achando que, na realidade, era o que mais convinha àquela natureza.
- Aqui os homens - explicou a dona da casa - não gostam
de mulheres magras.
- Não importa o que os homens pensam - sentenciou Kate. - Julga que Don Ramon gostaria que fosse gorda como uma
galinha?
Teresa fitou-a com os seus olhos pretos, grandes e brilhantes -
tão vivazes e, de certa maneira, fugidios.
- Quem sabe! - exclamou. E, no seu sorriso rápido, malicioso, via-se que não desgostaria de ser, às vezes, como uma galinha
gorda.
Presentemente Kate conhecia mais do que nunca a vida interior duma hacienda. Quando estava em casa, Ramon consultava diariamente o feitor; Teresa, porém, aliviava-lhe esse trabalho e já se ocupava bastante da propriedade. Em geral, ele andava por fora, ou para ir à Cidade do México, ou a Guadalajara e mesmo a Sonora. Todos o conheciam no país e o seu nome tornara-se célebre. Mas, debaixo desse culto que os compatriotas lhe prestavam, Kate adivinhava uma animosidade latente. Talvez preferissem aniquilar os seus heróis a elevá-los temporariamente às culminâncias da glória. O momento que mais apreciavam era o da queda do ídolo.
Para Kate, sempre céptica, deviam eles andar afiando o gume com que o atingiriam no peito, quando o herói se tornasse demasiadamente incómodo. É claro que precisavam da anuência de Cipriano, e Cipriano era um diabinho que os mexicanos temiam deveras. Cipriano, por então, conservava-se fiel - para com Ramon e para consigo mesmo. Representava o papel de Huitzilopochtli e Ramon o de Quetzalcoatl. Eis uma verdade simples e evidente para o general, que mantinha o seu exército pronto para o que desse e viesse. O próprio presidente seria incapaz de prescindir de Viedma, apesar de ser também um homem destemido.
- Qualquer dia - declarava Cipriano - poremos Quetzalcoatl na Catedral de Puebla, e Huitzilopochtli na da capital, e Malintzi na de Guadalupe. Não falta muito, Ramon.
- Faremos com que esse dia chegue - respondia Ramon.
Mas Ramon e Montes sofriam ambos com a profunda e diabólica animosidade do país, manifestada no próprio silêncio da população. Era sempre assim, fossem quais fossem as mãos em que o poder caísse: os Mexicanos pareciam destilar ódio oculto, um ódio demoníaco que lhes aviltava a alma; um ódio cujo único fim consistia em frustrar todos os planos.
Aí estava o dragão do México, que Ramon teria de combater. Contra o mesmo inimigo devia lutar o presidente Montes, e isso arruinava-lhe a saúde. Igualmente Cipriano, mas este desenvencilhava-se melhor. Os soldados apoiavam-no, com tambores e danças de roda das fogueiras. E o general consolidava de dia para dia a sua posição.
Ramon, na sua província, também se sentia seguro. Era o chefe, e, com o seu esforço e energia, lograva dominar qualquer veleidade de revolta. Aterrorizava com o mistério da vida, continha a gente em respeito pela fascinação que exercia. Nos seus domínios, considerava-se forte. Mas fora daí, e em especial na Cidade do México, aquela invisível e subtil má vontade do povo dir-se-ia fazê-lo sangrar, sangrar imensamente. E também a voracidade dos estrangeiros, aves de rapina que rondavam a capital cosmopolita.
Durante a ausência de Ramon, Kate fez companhia a Teresa. As duas mulheres tinham isto de comum: achavam que era melhor apoiar um homem corajoso do que fazer papel de intrometidas e importunas. Isso as unia. A profunda convicção de que deviam ser fiéis aos respectivos maridos ligava intimamente a mulher de Cipriano à de Ramon.
Estava quase no fim a estação das chuvas, embora se pudessem prever aguaceiros ocasionais para Setembro ou mesmo Outubro. Entretanto o belo Outono mexicano surgira na terra, como uma espécie de Primavera ao inverso. Vastos espaços se cobriam de flores brancas e cor-de-rosa, estranhos arbustos silvestres floresciam também, duma maneira fantástica, brilhavam à luz florestas inteiras de girassóis; o céu estava de um azul puríssimo, e, nas terras encharcadas da última chuva, a claridade do dia reverberava intensa.
O lago enchera-se mais, povoando de plantas aquáticas todas as suas margens. Vinham aves imigradas do Norte, nuvens de patos bravos que pareciam poeira no ar e depois polvilhavam a água como raminhos de erva: colimbos, grous, gaivotas brancas dos mares interiores, tal se o mistério dos regimes setentrionais se deslocasse para o Sul. Errava em terra o cheiro de água, que produzia uma sensação calmante - tanto mais que Kate supunha ter origem na aridez do solo parte do horror que lhe causava o povo mexicano. Se houvesse sempre uma gota de água na atmosfera e uma neblina sobre as árvores, desapareceria dos corações humanos aquela maldade inexprimível.
Kate ia muitas vezes a cavalo, com Teresa, ver os campos. A cana-de-açúcar, nos vales, crescia muito verde e muito alta, e os peóns começavam a cortá-la com os seus nwchetes, que pareciam espadas, e enchiam os carros de bois que as transportavam à fábrica de Sayula. Nas vertentes áridas das colinas, avultava na sua rigidez férrea a espinhosa planta da teqnila, que é uma espécie de agave. E nos cactos rijos abriam flores maravilhosas, belas de mais para tão sinistra planta. Através dos campos viam-se molhos de vagens apanhadas dos feijoeiros e abóboras dum tamanho incrível. Entre as folhas emurchecidas pendiam tomates e pimentões. Ainda se erguiam pés de milho com espigas tenras. Como a banana era pouca, as crianças colhiam toda a fruta que encontravam para fazer doce. Teresa, para esse efeito, aproveitava até os últimos figos e pêssegos. Das mangueiras suspendiam-se frutos amarelos e maduros, mas na maior parte eles estavam verdes e tombavam pesados como testículos de toiro.
Era Outono no México, com patos bravos na água, e caçadores com espingardas, e rolas nas árvores. Outono do México, início da estação seca: céu mais alto, azul mais pálido, poentes de rara transparência doirada. Os bagos de café avermelhavam-se nos arbustos contorcidos debaixo das árvores maiores, e as buganvílias, de tons roxos, eram tãoespessas que se podiam mergulhar nelas os braços.
Teresa cuidava de tudo e Kate ajudava-a. Se estava um peón doente numa das cabanas, se era preciso separar os enxames de abelhas nas colmeias debaixo das mangueiras, fazer compotas, tratar do jardim, dos vitelos, do fabrico de manteiga ou de queijos, Teresa a tudo isso atendia acompanhada de Kate. E esta admirava-se da vontade firme e constante, que tinha de ser exercida a todo o momento. Tudo corria bem graças a um poderoso esforço de vontade. À mínima fraqueza do patrão as coisas desandariam e seria a ruína da propriedade.
Jamais um desfalecimento, sempre a vontade tenaz.
Ramon regressou, numa tarde de Novembro, de longa viagem a Sonora. Viera por terra desde Lepic, e, por duas vezes, encontrara-se retido pelas inundações; não era vulgar chuvas tão tardias. Mostrava-se fatigado e com ar ausente. Kate sentiu um baque no coração enquanto comentava para si mesma: " Tão longínquo, que até parece encaminhar-se para a morte."
As nuvens cobriam o céu novamente, relampejava no horizonte, mas tudo estava silencioso. Kate retirou-se cedo e foi até à extremidade do terraço sobranceiro ao lago. Só a claridade intermitente dos relâmpagos iluminava a noite escura e, num desses breves clarões, viu Teresa sentada junto do muro do terraço descoberto; tinha a cabeça de Ramon deitada no regaço e acariciava-lhe lentamente os bastos cabelos pretos.
Kate sobressaltou-se, e disse num murmúrio:
- Desculpem! Não sabia que se encontravam aqui.
- Quis estar cá fora, ao ar livre! - explicou Ramon, soerguendo-se a custo.
- Não se mexa! - pediu Kate. - Foi estupidez minha ter vindo aqui. O senhor está cansado.
- Sinto-me realmente cansado - volveu ele, deitando-se outra vez no chão. - Aquela gente chega a convencer-me de que estou esgotado. Por isso voltei para Teresa.
- Sim - retorquiu Kate. - Não se é impunemente o Quetzalcoatl vivo. É natural que o esgotem. Mas valerá a pena ser devorado por eles?
- Tem de ser assim. Há-de-se verificar a mudança e é um homem que a deve fazer. Às vezes chego a desejar que não seja eu.
- Também acho. E Teresa igualmente. Até penso se não será preferível continuar a ser apenas um ser humano.
Teresa, entretanto, calava-se.
- Faz-se o que é preciso fazer - disse Ramon. - No fim de contas, não se deixa de ser homem. E, se daí resultar ferimento... à la guerre comme à la guerre!
Aquela voz, no escuro, parecia a de um fantasma.
- Ah! - fez Kate, suspirando. - Gostava de saber o que é um homem que se expõe a tantos horrores por causa dos seus semelhantes.
Houve um momento de silêncio.
- O homem é uma coluna de sangue dotada de voz. Quando a voz se extingue e fica apenas a coluna, tanto melhor.
Retirou-se ela para o seu quarto. Ia triste, levando ainda nos ouvidos o som daquelas palavras melancólicas. Dir-se-ia que Ramon tinha dentro de si uma ferida aberta. Era como se Kate a sentisse, nas suas próprias entranhas.
Se ele morresse, em resultado de tanto esforço? Então, pensou, Cipriano ficaria só e tudo estaria acabado.
Por que razão devia um homem afadigar-se de tal maneira por causa dum povo estúpido e mau? Se o mundo corria à desfilada para a sua perdição, deixá-lo, isso era lá com ele.
Pensou em Teresa, que consolava Ramon sem dizer nada. E pensou em Ramon, assim ferido e desesperado! Coisas horríveis, na verdade. Ela devia intervir, defendê-lo contra si próprio. Porque haviam os homens de empreender esses combates inúteis, dos quais voltavam para casa a fim de se restabelecerem junto das suas companheiras?
Para Kate, essa luta não merecia sequer as honras de um ferimento. Que tão antipático mundo terminasse de vez, se tal era o seu destino, e quanto mais depressa melhor! Kate não levantaria um dedo para o impedir. Que cada qual vivesse a sua preciosa vida, que é só uma - e fosse tudo mais para o diabo!
Tentaria impedir que Ramon continuasse naquela senda suicida. Deixá-lo ser o Quetzalcoatl vivo quantas vezes quisesse; mas não tinha o direito de se expor à maldade demoníaca do povo.
Contudo, ele insistia nisso, como Joachim fizera na Irlanda. Teresa, com a sua firmeza doce e calma, talvez lhe fosse de melhor auxílio do que Kate com as suas recriminações.
"Ah! Ainda bem que Cipriano é militar. As feridas que sofrer não lhe atingirão a alma." Mas sabia que, sem Ramon, Cipriano não seria ninguém e nem chegaria a interessar-lhe.
De manhã, Teresa compareceu sozinha ao primeiro almoço. Parecia muito tranquila; dissimulava os sentimentos sob o seu ar orgulhoso de mulher morena.
- Como vai Ramon?
- Está a dormir.
- Ainda bem. Pareceu-me muito em baixo ontem à noite.
- Sim... - Teresa fitou a outra com os seus grandes olhos negros cheios de coragem e de lágrimas contidas.
- Não compreendo que um homem se sacrifique àquele ponto. É inadmissível.
Teresa continuava a fitá-la.
- Ele não se sacrifica - replicou. - Sente que tem de proceder assim. E o meu dever é ajudá-lo.
-? Nesse caso, sacrifica-se por ele, o que também é para mim inadmissível.
- Ah, não! - retorquiu Teresa, com uma onda de sangue a ruborizar-lhe as faces. - Não me sacrifico por Ramon. Se posso dar-lhe... sono... quando dele necessita, isso não representa sacrifício. Representa... - Não terminou a frase, e o rubor acentuou-se-lhe.
- Representa amor, bem sei - volveu Kate. - Mas também a esgota.
- Não é só amor! - exclamou Teresa altivamente. - Eu podia amar outros homens, há muitos que merecem afecto. Mas Ramon... A minha alma pertence-lhe. - Afloraram-lhe lágrimas aos olhos. - Prefiro não falar deste assunto - acrescentou, pondo-se de pé.
E saiu do quarto, deixando Kate um tanto perturbada - e com desejo de voltar para Sayula.
Mas uma hora depois Teresa reapareceu e, apoiando no braço de Kate a mãozinha fresca e macia, disse-lhe em tom suave:
- Desculpe se fui indelicada.
- Eu é que não tenho razão...
- Sim, julga que em tudo isto só existe amor. O amor é uma parte mínima do resto.
- E que é o resto?
- Como posso dizer-lhe, se desconhece? Mas pensa que Ramon não é para mim mais do que um amante?
- Um marido! - emendou Kate. Teresa sacudiu a cabeça com impaciência.
- Ah, esses termos, que tão pouco significam! Não é apenas um marido! É a minha vida!
- Acho preferível cada qual viver a sua vida.
- Não. A vida é como uma semente. De nada serve se não a dermos. Sei que é assim; guardei durante anos a minha vida para mim só. Quando se a guarda muito tempo, ela morre. Quis oferecê-la a Deus, mas não consegui. Disseram-me que se eu casasse com Ramon e tomasse parte na heresia de Quetzalcoatl ficaria condenada aos tormentos eternos, mas alguma coisa me segredava que isso não era verdade e que Ramon necessitava da minha alma. Ah, señora!
- Um sorriso iluminou a face pálida de Teresa. - Dei a minha alma a Ramon. Perdi-a por sua causa. Que mais posso dizer?
- E a alma dele?
- Está aqui. - E Teresa espalmou a mão no seio. Kate ficou um momento calada.
- E se ele a atraiçoar? - perguntou então.
- Ah, señora, Ramon não é apenas um amante. É um homem honesto e não trairá o seu próprio sangue. Concedeu-me a sua alma em troca da minha, e eu lutarei até ao último sopro de vida para o apaziguar quando volta para mim esfrangalhado e com necessidade de sossego. - Teresa proferiu tudo isto com veemência, e depois acrescentou num murmúrio, como se falasse a si mesma: - Graças a Deus, não tenho uma vida só minha. Dei-a a um homem que é mais que homem, como se diz na linguagem de Quetzalcoatl. Por isso ela não morrerá em mim como um pássaro na gaiola... Oh, señora! Quando ele parte para Sinaloa e para a costa ocidental, a minha alma acompanha-o. E Ramon não se esquece que a minha está com ele, tenho a certeza! Não, señora, não deve criticar-me nem
lastimar-me.
- No entanto, acho melhor cada qual guardar a sua alma e ser
responsável por ela.
- Sim, se fosse possível! - replicou Teresa. - Mas não se pode guardar a alma dentro de nós porque acaba por morrer... Enquanto o homem não nos dá a sua semente, a nossa é estéril, e a dele nada vale sem a mulher. O mesmo acontece à alma. Enquanto a não damos a um homem e ele a não toma, nenhum valor tem. E depois de ele a tomar, toda inteira, ninguém fala de traição! Um homem só atraiçoa quando se lhe deu uma parte e não tudo, e a mulher só atraiçoa quando aceita dela apenas uma parte e não o todo. Mas quando de um lado se deu tudo e tudo se aceitou, a traição não existe. Sou o que sou para Ramon e ele é o que é para mim. Não importa o que fizer. Não importa que esteja longe.
Kate não gostava de receber lições daquela criaturinha; era mulher da sociedade, bela e com experiência da vida. Estava acostumada a que lhe rendessem preito. As demais do seu sexo chegavam a temê-la, porque era decidida e impiedosa.
Teresa também a receava um pouco como senhora da sociedade, mas não como mulher. Entrincheirada na sua almazinha orgulhosa, Teresa considerava Kate uma dessas pessoas do mundo exterior que têm muito brilho mas que não estão muito seguras dos segredos da sua personalidade. Toda a beleza e crueldade feminina de Kate era coisa secundária para Teresa em comparação com o profundo e tranquilo amor que a ligava a Ramon.
Sim, Kate habituara-se a olhar as outras mulheres como seres inferiores. No entanto, os papéis inverteram-se de súbito. Embora soubesse que Ramon era superior a Cipriano, viu-se constrangida a pensar se Teresa não seria também superior a ela.
Teresa? Mais importante do que Kate? Que surpresa! Não podia ser verdade.
Contudo, assim era. Ramon desejara casar com Teresa e não com Kate. E o ardor desse enlace ela via-o tanto nos olhos de Ramon como nos da mulher: um ardor que não existia nos olhos de Kate.
O casamento desta com Cipriano não parecia sério nem definitivo. Quando Cipriano estava ausente, ela recuperava a sua antiga individualidade. Só com o general presente é que se compenetrava da sua submissão.
Quando Teresa voltou a fitá-la com aquele seu fulgor do olhar, misturado de indignação, Kate sentiu-se desanimada e arrependida - decerto pela primeira vez na sua existência.
Sabia que Teresa sentia certa aversão por ela: era uma estrangeira branca que falava tão inteligentemente como um homem e nunca dera a sua alma; nem admitia que a pudesse dar. Todas essas damas bem vestidas, da América ou da Europa, guardavam a alma para si mesmas, numa espécie de avareza.
Teresa estava resolvida a não deixar que a outra a tratasse indefinidamente como um ser inferior. Assim procediam todas as estrangeiras para com as mexicanas, porque se consideravam emancipadas. E, para com Ramon, mostravam certa condescendência.
Mas Ramon... Bastava que ele as fixasse para que elas se sentissem reduzidas a nada, apesar de todo o seu dinheiro, experiência e ares dominadores. Raças dominadoras! Que esperassem! Ramon era um desafio a tudo isso. Que o dominassem, se fossem capazes de tanto!
- Não dormiu? - perguntou Teresa a Kate.
- Não muito bem.
- Está com olheiras.
Kate alisou a pele, desconfiada, em volta dos olhos.
- É o que nos faz o México. Não é fácil conservar a juventude neste país. A senhora é que está com bom parecer.
- Sinto-me perfeitamente.
Irradiava de Teresa uma frescura nova, algo de frágil e subtil que ela não precisava de defender contra outra mulher.
- Agora que Ramon já veio, é altura de eu regressar a casa -
declarou Kate.
- Porquê? Faz empenho nisso?
- Acho preferível.
- Nesse caso irei consigo até Sayula. De barco, não é verdade?
Kate arrumou as suas coisas. Dormira mal. A noite fora tenebrosa, cheia de horrores. Lembrara-se de Ramon atacado pelos bandidos e do seu ferimento nas costas. Tivera-a acordada durante horas o barulho ameaçador da chuva.
Percebia o desdém de Teresa pela sua maneira de considerar a
vida conjugal.
- Também eu fui casada - disse Kate. - com um homem
excepcional, a quem amei.
- Ah, sim... E ele morreu.
- Quis morrer.
- Ah, sim... quis morrer.
- Fiz o possível para evitar que se estafasse.
- Fez?
- Que mais estava na minha mão? - redarguiu Kate, num
assomo de ira.
- Se lhe houvesse dado a sua vida, ele não quereria morrer.
- Eu dei-lhe a minha vida. Amava-o. Ah, nem faz ideia! Mas ele não quis a minha alma. Achava que eu devia guardá-la para
mim.
- Os homens são assim quando são apenas homens. Mas,
sendo ardentes e bravos, então querem que as mulheres lhes dêem a alma e guardam-na dentro de si. Sei o que é. Sei onde a minha alma está. Nas entranhas de Ramon, assim como a sua semente está nas minhas entranhas, entranhas de mulher. Ele é um homem e uma coluna de sangue; eu sou uma mulher e um vale de sangue. Digo-lhe isto porque lhe salvou a vida e portanto estamos todos ligados: Caterina, eu, Ramon e Cipriano. Mas não me julgue mal. Aquela outra espécie de mulheres, as que conservam a sua alma, que é senão fraqueza?
- E os homens?
- Se são ardentes e bravos, confortam as nossas entranhas, Caterina!
Kate baixou a cabeça obstinada, furiosa por ter sido apeada do seu pedestal. Que coisa miserável, pensou, isso de uma mulher viver apenas por amor de um homem! Só para lhe enviar a alma para dentro do seu precioso corpo... E trazer no ventre a sua semente preciosa... Quanto a ela própria, nada.
Pretendeu consumar a sua indignação, mas não foi bem sucedida. Talvez no fundo, e contra sua vontade, invejasse Teresa, os seus olhos negros cintilantes, a sua firmeza selvática. Invejava-lhe os dedos delicados, e, acima de tudo, a consolação de ter um homem tão profundamente ligado a si.
A manhã estava quente depois da chuva. As rãs coaxavam, frenéticas. Na outra banda do lago as montanhas pareciam azuis-escuras, com farrapos de nevoeiro a arrastarem-se através das árvores e nuvens brancas a coroarem os picos. Nas águas barrentas navegava um barco de vela solitário.
- Hoje, tudo isto me lembra a Europa, o Tirol - disse Kate, comovida.
- Gosta muito da Europa? - perguntou Teresa.
- Muito.
- E tenciona voltar para lá?
- Penso regressar em breve, para ver minha mãe e os meus filhos.
- Eles reclamam-na?
- Sim, respondeu Kate, um pouco hesitante. E em seguida ajuntou: - Não muito. Mas quero tornar a vê-los.
- Porquê? Tem saudades deles?
- às vezes. - E os olhos de Kate arrasaram-se de água. O barco avançava sem rumor.
- E Cipriano? - volveu Teresa, a medo.
- Ah!, exclamou Kate. -Esse é para mim como um estranho.
Teresa ficou uns momentos calada.
- O homem é sempre estranho para a mulher, creio eu - rematou ela. - E porque não havia de ser?
- Mas a senhora não tem filhos.
- Tem-nos Ramon, E ele costuma dizer: "Continuarei a lançar pão à água e se meus filhos acabarem por se aproximar de mim ficarei contente." Não é. o seu caso?
- Não! - respondeu Kate. - Sou mulher, não sou homem.
- Se eu tiver filhos - declarou Teresa - também lançarei pão à água para os atrair, e espero não os reter ciosamente na minha rede. Assusta-me o amor, é tão pessoal! Devemos deixar os pássaros voarem com as suas asas e os peixes nadarem à vontade. a manhã concede-nos mais do que o amor. E eu quero ser sincera para com a manhã.

XXVI
Kate estava satisfeita por voltar à sua casa e por se encontrar sozinha. Sentia que se operava nela uma grande mudança - mudança que a poderia matar se se realizasse violentamente. Era o fim de qualquer coisa e o princípio de outra: no mais profundo da sua alma e nas suas entranhas. Os homens, Ramon e Cipriano, e o México, seriam a causa daquela modificação. Chegara o momento. Entretanto, se a evolução fosse brusca de mais, e rápida em excesso, poderia revelar-se fatal. Por isso tinha necessidade de se isolar, de tempos a tempos.
Sentava-se na margem durante horas, à sombra dum salgueiro verde, cuja cortina de folhas descia até à água. O lago mostrava-se mais alto e mais cheio que de costume, e tinha também maior calma e maior mistério. Errava o cheiro dos nenúfares que emurcheciam depois de haverem dado à costa. As distâncias pareciam prolongadas. Lembravam estampas japonesas os outeiros mais próximos, salpicados de verdura. Carros de grandes rodas traziam à aldeia a cana-de-açúcar cortada; puxavam-nos a cada um, oito bois que baloiçavam lentamente a cabeça de enormes chifres, enquanto um peón, à frente, os conduzia com o aguilhão poisado no jugo. Tão pesados, tão vagarosos e contudo fáceis de guiar!
Experimentava, no México, uma sensação esquisita, como se estivesse em presença duma humanidade pré-histórica, gente de olhos escuros de antes do período glaciário - quando o mundo era mais frio, os mares vazios e diferente a constituição da terra; quando as águas, solidificadas, se acumulavam nos pólos, e as planícies ocupavam os oceanos, como a Atlântida e os antigos continentes da Polinésia; quando os mares não passavam de lagos, embora grandes, e os povos de olhos pretos podiam dar a pé a volta ao mundo. Nesse tempo existia uma raça misteriosa de sangue ardente e ligeira no andar: raça que possuía uma civilização que lhe era própria. Depois fundiram-se os glaciares, os homens refugiaram-se nos pontos elevados, como os planaltos do México, e separaram-se em nações diferentes.
Na América é tão forte a sombra do mundo antediluviano que às vezes Kate perdia a noção dos tempos decorridos e começava a aproximar-se do antigo modo de ser, da vontade velha e torva, do desprezo da morte, da subtil e escura consciência, do instinto que precedeu a razão. Regressava à época em que o espírito e o poder dos homens residiam no sangue e na espinha dorsal, e as relações entre eles e com os animais se produziam através da medula.
Os Mexicanos ainda se encontravam nesse estádio. O que é aborígene na América pertence à fase de antes do Dilúvio, antes de reinar na terra a vida espiritual. Por isso, ali, a actividade cerebral dos brancos se alastra como uma erva em terreno virgem - para, é claro, murchar depressa e desaparecer por completo. Então, como resultado disso, surge um novo gérmen, uma nova concepção da humanidade: vem da fusão da antiga consciência instintiva e do racionalismo intelectual do branco. Um ser diferente, nascido do encontro daqueles dois.
Kate era muito irlandesa, e no fundo da sua alma jazia o misticismo original, quase desaparecido, dessa primitiva raça celta ou ibérica. É como um resíduo que existe ainda no mundo antediluviano e que não pode ser inteiramente destruído.
Sabia ela, mais ou menos, que era essa fusão o que Ramon pretendia realizar. Compreendia também o motivo pelo qual Cipriano tomava a seus olhos uma importância maior que todo o seu passado, os seus dois maridos, e os filhos. Esse velho sangue másculo despertava-lhe agora nas veias; daí vinham as palpitações que ela ultimamente sentia.
A Irlanda não podia nem queria esquecer aquele ardor sombrio e primitivo. Os Thuathas de Danaan, embora submersos, continuam vivos no sangue, não se lhes consegue impor silêncio. E a Europa científica e meticulosa tinha de se defrontar de novo com os velhos
gigantes.
Esta alteração, todavia - e Kate bem o notava -, não era coisa que se efectuasse com brusquidão; de outro modo haveria rotura e possibilidade de morte. O primitivismo tem os seus horrores. O espírito original do México, pesado, terre à terre, podia ser-lhe tão odioso que a tornasse perversa. Essa obtusa, indomável persistência, desprovida de energia e de esperança, que é peculiar ao aborígene americano, levava-a às vezes a supor que ia perder a razão. Obstinação tenaz que resistia aos séculos e desprezava a personalidade! Lascívia da morte, feroz, incalculável, terrível!
Esse povo, realmente, nunca mudava. Os homens não tinham fé na vida, em nenhuma realidade evidente. Eram apenas fiéis a certas forças obscuras do passado. O presente submergia-se na alma dos homens e das mulheres sob uma camada de lava negra, não deixando à superfície senão a indiferença.
A Esperança! A Esperança! Seria possível, um dia, fazê-la reviver nessas almas obscuras e obter o enlace das suas raças, único passo para o novo mundo do homem?
Entretanto, Kate sentia-se invadida por um mal-estar esquisito. Achava ser necessário partir, a fim de escapar a tamanha depressão. Já não podia ouvir a rastejante insistência dos criados: o sangue é só um, nós somos do mesmo sangue - sentença de tribo pior do que a morte para um indivíduo de raça branca. Estranha teimosia aquela que preconizava a todos a fusão do sangue!
Kate pertencia a uma família antiga, com pergaminhos. Fora educada nas ideias anglo-germânicas da superioridade intrínseca da aristocracia hereditária. O seu sangue era diferente do da gente vulgar: outro fluido, mais refinado.
No México, porém, nada disso conta. Juana, o homem que ia buscar água, o barqueiro que remava no lago, todos revelavam o mesmo pensamento no olhar: "O sangue é só um; pelo sangue tu e eu somos iguais." Kate lia isto nos olhos deles, adivinhava-o nas suas palavras, quer fossem deferentes ou escarninhas, e, por vezes, sentia-se revoltada com essa imposição da igualdade de sangue.
E quando se empertigava como para proclamar "O meu sangue é só meu. Noli me tangere", percebia nas pupilas negras daquelas criaturas o terrível ódio ancestral que as impele a cometer as maiores atrocidades.
Contudo, inclinavam-se perante a sua inteligência, sabedoria e compreenção, e, embora contra vontade, testemunhavam-lhe certo respeito. Ela pertencia às raças dominadoras, hábeis e espertas... Mas exigiam-lhe a aceitação da velha crença: O sangue é só um. Somos todos do mesmo sangue.
E tinha de se submeter, senão persistiriam na sua lenta vingança.
Mas não podia submeter-se de repente. Devia ser a pouco e pouco; um esforço violento destruí-la-ia.
Compreendia agora a afirmação de Ramon: "O homem é uma coluna de sangue, a mulher um vale de sangue." Era a unidade primordial
do género humano, oposta à unidade do espírito individual.
Kate, porém, sempre considerara seu o próprio sangue. O espírito é que ela partilhava com os outros.
Percebia agora o motivo por que Ramon e Cipriano usavam fatos brancos e sandálias e andavam meio nus como deuses vivos. Era a aceitação da antiga crença, o renascimento do laço de sangue que unia os homens, laço que tornava o sacrifício humano tão poderoso
factor da vida.
O sangue do indivíduo é rendido ao ser supremo, ao ser de sangue, deus, nação ou tribo.
E, na verdade, que estranha união existia entre Ramon e os seus homens, entre Cipriano e os seus soldados! Era a comunhão do sangue. Isto podia indignar Kate, enjoá-la por vezes, mas era uma força que não conseguia vencer.
Mesmo admitindo essa comunhão de sangue, Ramon reivindicava uma supremacia, até uma divindade. Era um homem como o mais humilde dos seus peóns, nascido da mesma fonte, das mesmas raízes que eles; no entanto, mostrava ser superior aos outros. E a sua superioridade não provinha do sangue ou do espírito mas duma misteriosa estrela interior que nascia do oceano sombrio e cintilava entre o mar e o céu imenso. A estrela que une o vasto sangue universal ao sopro universal do espírito e brilha entre ambos.
Porque essa coisa que reina sobre o poder humano e que é em si mesma um poder, essa coisa é a estrela misteriosa do cosmos primitivo, é a divindade no homem.
Certos homens nada possuem de divino. Possuem apenas faculdades. São ou deveriam ser escravos. Muitas vezes um homem tem a centelha divina, mas é sufocada pela força ou pela vida material.
E quando o espírito e o sangue se separam e divergem, provocando a morte maior, então apagam-se quase todas as estrelas.
Só o homem que possui uma estrela magna, uma grande divindade, será capaz de reaproximar essas forças contrárias e criar uma nova união.
Esse homem era Ramon e o seu esforço o máximo que se podia fazer: aproximar e unir as forças contrárias. Eis o poder divino de um homem. Por ele, no homem, se distingue o deus. Por ele apenas
e por mais nada.
Embora fosse como o mais ínfimo dos seus peóns, com o mesmo coração que bate, os mesmos rins insondáveis, e os lábios fechados sobre o mesmo segredo da humanidade; e fosse humano como Kate era humana, com a mesma ansiedade de espírito e a sede do puro conhecimento e da comunhão; no entanto só ele tinha o poder astral de unir os dois grandes impulsos da humanidade, e de os fundir - de ser a ave de asas imensas que paira entre as duas potências opostas: a Estrela da Manhã, que está entre o sopro da aurora e as profundezas da noite.
Os homens haviam tentado assassiná-lo com punhaladas. Carlota quisera matá-lo com o seu espírito. Cada parte, separadamente, pretendera liquidá-lo. Ele, contudo, estava fora do alcance de qualquer delas. Era o Quetzalcoatl vivo, a cintilação de uma estrela que nascia na alma dos seus compatriotas. Chama dum astro a meio das duas asas do poder: eis só o que representa a divindade num homem e em toda a humanidade.
Kate recebeu um recado de Cipriano: mandava-lhe dizer que vinha instalar-se na Vivenda Aragon. Esta casa era a principal da região do lago; tinha um jardim em toda a volta, não muito grande mas bonito, com palmeiras e sebes de jasmineiros, tudo muito verde em resultado de regas constantes. A própria construção lembrava um castelo em ponto pequeno, talvez despropositado; mas eram agradáveis as varandas espaçosas que davam para a encosta e a vegetação do jardim, mesmo acima do lago.
Cipriano chegou bem disposto. Brilhavam-lhe os olhos com uma expressão de mocidade. Queria casar a valer com Kate, segundo a lei civil mexicana, e morar com ela na Vivenda Aragon. Kate hesitava, achando que tinha necessidade de voltar em breve à Europa, sobretudo à Inglaterra e Irlanda. Era urgente, porque lhe custava já a suportar aquela ameaça do México, a sua influência deprimente. Precisava, pelo menos, de um intervalo de repouso.
Assim o declarou a Cipriano, que ficou desanimado.
- Não importa casar ou não antes de ir - disse ela. - O que tenho é de me afastar daqui o mais depressa possível.
- Quando?
- Em Janeiro.
O rosto dele desanuviou-se.
- Então casemo-nos primeiro. Na semana que vem.
Ela aquiesceu com estranha indiferença, e Cipriano, radiante, correu a fazer os preparativos necessários.
Pouco interessava a Kate o casamento civil. No sentido essencial, já estava casada com Cipriano. Ele era acima de tudo militar, tão depressa vinha para ela como a deixava. Kate, de qualquer maneira, passaria grande parte do tempo sozinha.
Podia convir-lhe como marido, mas o que a assustava era esse México terrível. O movimento quetzalcoatliano espalhara-se de maneira sinistra por todo o país. O arcebispo manifestara-se contra isso, e Ramon, Cipriano e seus aderentes estavam excomungados. Haviam tentado assassinar Montes.
Na capital, os partidários de Quetzalcoatl tinham escolhido para lugar de reunião a Igreja de San Juan Bautista, conhecida pela Igreja do Salvador Negro. O arcebispo ordenara aos seus fiéis que fossem em procissão ao referido templo, agora chamado Casa de Quetzalcoatl, a fim de o retomarem para o culto católico. O governo, porém, sabendo que mais tarde ou mais cedo haveria luta, fez dispersar a procissão e deteve o arcebispo, depois de alguma efusão de sangue.
Rebentou então uma espécie de guerra. Os Cavaleiros de Cortez exibiram a sua famosa reserva de armas, que aliás não era muito impressionante. Em Zócalo produziu-se uma manifestação clerical, dirigida por um padre fanático. Montes mandou atirar sobre os insurretos. Aquilo afigurava-se o começo duma luta religiosa. Pelas ruas viam-se os bandos de Quetzalcoatl, com as suas serapes azuis e brancas, e' os de Huitzilopochtli, de serapes vermelhas e pretas, marchando ao som de tambores e erguendo uns as suas estranhas insígnias redondas, feitas de penas, e outros longas varas rematadas por um penacho rubro de extremidade preta. Nas igrejas, os sacerdotes incitavam os fiéis à guerra santa; os que haviam aderido à causa de Quetzalcoatl discursavam nas ruas à multidão.
Período tumultuoso. Em Zacatecas, o general Narciso Beltran manifestara-se contra Montes e a favor da Igreja, mas Cipriano interviera com tal presteza e violência que deu em resultado o fuzilamento de Beltran e a dispersão das suas tropas.
Então Montes declarou ser igual no México o antigo culto católico e publicou um decreto determinando que a religião nacional da República fosse a de Quetzalcoatl. Encerraram-se todas as igrejas e os padres viram-se obrigados a prestar juramento de fidelidade à República ou a serem condenados ao exílio. Em todas as cidades e aldeias surgiam os soldados de Huitzilopochtli e os homens de serape azul. Ramon trabalhava sem descanso. Cipriano aparecia nos lugares onde menos o esperavam. Conseguiu despertar uma espécie de frenesi religioso nas regiões mais descontentes, como Vera Cruz, Tamaulipas, Jucatão. Efectuaram-se no mar estranhos baptismos e nas costas elevaram-se fortalezas com as cores de Huitzilopochtli.
Todo o país vibrava com uma sensação desconhecida, dominado pela vaga de energia nova, mas em tudo aquilo entrava violência, crueldade e certo horror.
Deportaram o arcebispo. Já não se viam sotainas nas ruas; só as serapes de Quetzalcoatl e as de Huitzilopochtli se evidenciavam entre as multidões. Eis porque Cipriano chegou junto de Kate, com os olhos a luzir, ébrio de triunfo. Kate ficou assustada e sentiu-se vazia e inútil. Nem sequer aquela vitória espantosa e a alteração que se dava na face do mundo a podiam salvar por completo. Pertencia à velha Europa e não lhe era fácil transformar-se tão rapidamente. Contudo, achava que, se voltasse à Irlanda e concedesse uns tempos de repouso à sua vida e ao seu corpo, poderia então regressar ao México e participar nos acontecimentos.
Porque não era só o espírito que se modificava, mas também o corpo e o próprio sangue. Sentia esse terrível catabolismo e metabolismo a transformá-la noutra criatura. Se a metamorfose fosse muito brusca, decerto ela morreria.
Casou-se, pois, legalmente com Cipriano e foi passar um mês com ele na Vivenda Aragon. Em seguida embarcaria sozinha para a Irlanda, projecto a que o marido deu a sua anuência.
Era deveras estranho estar casada com ele. Kate tinha a impressão de se afundar pesadamente abaixo da superfície da vida, para jazer nas suas profundezas.
Estranha, pesada, verdadeira passividade. Pela primeira vez na sua existência, ela sentia-se repousada. Falar e pensar tornavam-se-lhe coisas triviais; as ondas à tona de água não são nada para aqueles que vivem submersos.
Na alma, estava serena e altiva. Ah, se o corpo não sofresse tanto com a transformação! No cosmos encontrara a paz de espírito, o universo abrira-se à sua frente, e ela deixava-se afundar no leito de puro descanso. Adquirira quase tanta segurança como Teresa. Só a atormentava a mudança que se lhe operava no sangue.
Cipriano mostrava-se feliz, à sua maneira de índio. Parecia um adolescente contemplando o mistério da vida com olhos dilatados de espanto. Não se ocupava especialmente de Kate, nem lhe falava de assuntos sérios. Se ela aflorava uma conversa desse género, dirigia-lhe um olhar desconfiado e afastava-se.
Tinha consciência de coisas de que a mulher mal se apercebia, sobretudo do perigo das palavras irritantes. E isto ele evitava.
Kate compreendia agora como os seus antigos amores haviam sido brutais, carregados de desejo e de contactos voluptuosos. com Cipriano, desaparecia a sua vontade ardente feminina, toda ela doçura, submissão; e contudo, tais as fontes térmicas que brotam da terra sem rumor, tão poderosa era na sua força secreta!
Via quase com espanto morrer dentro de si a Afrodite da espuma, essa Afrodite ávida de sensações ardentes. Como se prevenido por vago instinto, Cipriano repudiava essa parte da natureza de Kate. Quando esta se deixava dominar pelo êxtase voluptuoso que acaba em espasmos delirantes, ele afastava-se da mulher. Retirava-se desde que pressentia nela a sede daquelas volúpias a que costumava chamar o seu "prazer". E Kate percebia que lhe era repulsiva nesses momentos. Misterioso e implacável, afastava-se sem uma palavra.
Estendida a seu lado ela compreendia então quanto era superficial aquela efervescência de sensualidade. Parecia vir do exterior, não do seu íntimo. Depois do primeiro instante de decepção, quando esse prazer lhe era negado, concluía que não o desejava realmente, que até lhe repugnava.
E Cipriano, no seu silêncio quente e obscuro, aproximava-se quando ela se assemelhava a uma fonte borbulhando sem rumor das profundezas vulcânicas. Já não se tratava de prazer consciente. O que se passava era estranho, inexprimível, muito diferente das suas relações com Joachim. Nem êxtases, nem espasmos. Uma espécie de força subterrânea a que tinha de se submeter.
Tal como no amor, assim era Cipriano na vida. Kate não conseguia perscrutá-lo. Se tentava, via-se obrigada a desistir e a classificá-lo entre as coisas que existem e não se compreendem. Um desconhecido, e uma presença; nada mais.
Não podia existir intimidade. Cipriano envolvia-se na sua reserva como numa capa e deixava Kate envolver-se na dela. Eram dois estranhos. Ele aceitava o facto integralmente, como se outra coisa não fosse possível, mas Kate achava aquilo deveras singular. Tinha tanto desejo de intimidade e esforçara-se tanto por obtê-la!
Agora, resignara-se a aceitá-lo tal como era: um desconhecido, um estrangeiro na presença do qual vivia. E sem nenhuma intimidade espiritual, a sua união não passava de uma união de sangue.
Por isso, pouco importavam as ausências de Cipriano. Deixava atrás de si a marca da sua presença, e levava consigo a de Kate. Em resumo, não existia o desgosto da separação.
Certa manhã, ele teve de partir cedo para a cidade. O sol ainda não cobria o lago mas, para além de Tuliapan, já acariciava as montanhas, que brilhavam tão distintas que se diriam focadas por luz mágica. O sulco verde das encostas parecia ao alcance da mão. No seu voo, cintilaram de súbito duas gaivotas brancas, apanhadas na luminosidade. Mas o lago, suave, unido, silencioso, permanecia ainda na sombra.
Kate lembrou-se do mar. O Pacífico não ficava longe. Ela tinha a impressão de o haver esquecido, mas sentia de novo a necessidade da sua brisa.
Cipriano ia banhar-se; Kate viu-o caminhar sobre as lajes do cais. Despiu o roupão e o vulto escuro desenhou-se na água amarelada. Era tão moreno! Tal um malaio. Corpo tão trigueiro como a cara; e com esse físico primitivo, e o peito alto, e as ancas bem modeladas, evocava as figuras masculinas de certas medalhas gregas.
Mergulhou da beira do cais e avançou na água mansa. Nesse momento a luz espalhou-se dos cimos das montanhas e cobriu de oiro a superfície do lago. Imediatamente, Cipriano apareceu rubro como fogo. Os raios solares, porém, não eram vermelhos, mas, reflectidos pelas águas, davam ao corpo de Cipriano um tom de lume, como se o abrasassem.
Os filhos da Manhã... A coluna de Sangue... Um Pele-Vermelha... Kate contemplava-o admirada enquanto nadava resplandecente e puro. Como se fosse de fogo!
Os filhos da Manhã... Kate mais uma vez renunciou a todo e qualquer esforço de conhecimento - e, sem esforço, limitou-se à comunhão de sangue.
Sim, a sua raça... Ela notara já como os indígenas se tornavam de um vermelho puro à luz da manhã e da tarde. Dir-se-iam chamas erguendo-se da água.
Cipriano partiu a cavalo, com o criado. Kate viu-o afastar-se pela estrada além, sombrio na sua montada ruça. Parecia não fazer movimento nenhum. Irradiava um orgulho másculo e, assim unido ao animal, era como se este e o cavaleiro constituíssem um único ser.
Desapareceu. Kate, por um instante, experimentou saudade da sua presença. Mais do que dele próprio. Não desejaria tocar-lhe nem falar-lhe, mas tão-somente senti-lo ali.
Depressa se dominou e voltou à realidade. Desde que se compenetrava da ausência de Cipriano, vinha-lhe a noção nítida da sua presença.
Passeou um pouco pela costa, junto do molhe. Adorava estar só. Absolutamente só, com o jardim, o lago e a manhã.
"No fundo, sou como Teresa", pensou ela.
De súbito viu à sua frente uma corda comprida e escura em cima de um pedregulho. Aquilo fê-la sair dos devaneios. Era uma cobra de pele ornada com delicados desenhos; estava sobre uma pedra enorme e a cabeça pendia-lhe até ao chão.
O réptil sentiu a presença da mulher, pois, com incrível rapidez, rastejou ao longo da rocha e entrou numa fenda que havia na base do molhe.
Não era grande o buraco. Depois de ali penetrar, virou a cabeça e dardejou a língua preta; mas em seguida desapareceu devagar, e Kate viu-lhe ainda o último anel, no qual poisava a cabeça chata. Fazia lembrar aqueles diabos que se representam de queixo apoiado sobre os braços, olhando através duma seteira. Do fundo do esconderijo espiava a mulher; seguia-a com os olhos cintilantes de crueldade.
Kate pensou então em todos esses seres invisíveis, escondidos nos recantos ocultos da terra. E perguntava a si mesma se aquele réptil não sofreria por ser incapaz de se elevar na escala da criação; de não poder correr a quatro patas em vez de rastejar...
Talvez não. Talvez houvesse encontrado a sua própria paz. Kate sentiu-se reconciliada com o animal.

XXVII
Teresa e Kate tornaram a visitar-se. Existia agora entre ambas certa simpatia, especialmente desde que a irlandesa decidira partir.
Envolvia o lago uma pureza outonal. Sentia-se a humidade na atmosfera, as sarças das encostas cobriam-se de rebentos. O sol inundava os montes duma luz de ouro, as sombras eram profundas, aveludadas. A verdura invadia tudo, até as rochas e a terra cor-de-rosa. O verde brilhante das canas-de-açúcar sobressaía no fundo rubro dos campos lavrados de fresco; aqui e ali, entre a massa escura das árvores, avultava a mancha branca das povoações.
O céu estava alto e límpido. No ar cristalino vibravam os tambores e o grito para as pausas do dia. E o dia parecia deter-se perante o mistério supremo desse universo que desabrochava, vasto, suave e cheio de vida.
Até no lago se encontrava uma espécie de apaziguamento. Avançava uma canoa com a vela entumecida tal uma concha nacarada; o casco negro e afilado deslizava sobre a água. Dir-se-ia a barca de Dioniso portadora duma mensagem e de ramos de videira.
Kate mal se lembrava agora da secura árida dos meses anteriores, quando a terra parecia crepitar ao sol implacável.
Ramon e Teresa atravessaram o lago e o seu barco de remos entrou no molhe. Era uma manhã em que as sombras nas montanhas tomavam o tom azul das centáureas.
- Sempre vai partir? - perguntou Ramon a Kate.
- Por uma temporada. Não me julga a mulher de Loth, não é verdade?
- Não - respondeu ele, a rir. - Julgo que é a de Cipriano.
- E sou. Mas preciso de sair, embora por pouco tempo.
- Ah! Nesse caso vá e volte depressa. E diga lá na Irlanda que façam o que fizemos aqui.
- Como?
- Encontrando-se em si mesmos, e no seu próprio universo, e com os seus deuses. Justifiquem os seus mistérios. Os Irlandeses são tão prolixos no que respeita aos seus heróis de outrora e aos seus tempos gloriosos! Diga-lhes, pois, que concretizem tudo isso, como nós fizemos com Quetzalcoatl e Huitzilopochtli.
- Está bem. Veremos se há quem me escute...
- Sim, senhora. - Seguiu com os olhos a vela branca que se aproximava e depois indagou: - Afinal, porque quer partir?
- É-lhe indiferente o caso, pois não?
- Não, não me é indiferente.
- Porquê?
Ramon levou outra vez uns segundos para responder:
- É uma das nossas - replicou por fim. - Precisamos de si.
- Mesmo quando não faço nada? E quando principio a aborrecer-me com a história do Quetzalcoatl vivo e o resto, e preferia conhecer um simples Don Ramon?
Ele riu-se.
- Que é um simples Don Ramon? Don Ramon tem dentro de si Quetzalcoatl vivo. Mas a senhora auxilia-nos, apesar de tudo.
- Não creio que precise de auxílio, e muito menos de uma mulher que. no fim de contas, não é mais que a esposa do seu amigo.
Estavam sentados num banco, debaixo das manhãs-de-páscoa, cujas folhas rubras formavam como que uma flor de pétalas enormes.
- A esposa do meu amigo - volveu Ramon. - Que poderia
ser de mais agradável para mim?
- Pois claro! - exclamou Kate de maneira ambígua. Ramon tinha os braços apoiados nos joelhos e olhava para o
lago, com ar ausente. O seu rosto reflectia cansaço e aquela vulnerabilidade que sempre comovia Kate. Mais uma vez ela se compenetrou do isolamento e esforço que a procura de uma vida diferente impunha àquele homem. E, no entanto, ela não desistia...
Essa visão acentuou-lhe o sentimento de impotência, da impotência total da mulher em ajudar o homem que caminha para o Além.
- Está muito seguro de si mesmo? - perguntou.
- Seguro de mim? Não! De um instante para o outro eu morro e desapareço da face do mundo. Como poderia estar seguro de mim
mesmo?
- Mas porque há-de morrer?
- Todos morrem. Até Carlota!
- Essa tinha a sua hora marcada.
- Pode-se marcar a nossa hora como se faz no despertador de um relógio?
Kate calou-se por uns momentos.
- Se não está seguro de si mesmo, de que está então? - inquiriu como se o desafiasse.
Ramon fitou-a com os seus olhos sombrios.
- Estou seguro... seguro... - A voz sumiu-se-lhe, o rosto tomou a palidez dum defunto. Só os olhos a observavam intensamente. De novo ela se viu perante a sombra dolorosa do homem e se sentia impotente diante desse espectro vivo do sofrimento.
- Não pensa que anda em erro, pois não? - perguntou Kate.
- Não, mas talvez não possa manter...
- E então? - insistiu friamente a irlandesa.
- Continuarei o meu caminho, embora desacompanhado. Kate só lhe via os olhos negros, fitos nela. Ramon começou a falar em espanhol: - Isto faz-me doer a alma, como um pronúncio de morte.
- Mas porquê? Não está doente!
- Sinto a alma desagregar-se.
- Não deixe! - exclamou Kate, alarmada.
Ramon fitava-a ainda com os olhos inexpressivos. De súbito, ela experimentou uma sensação de calma e de força.
- Devia esquecer por uns tempos - disse-lhe em voz compassiva, poisando a sua mão na dele. Para quê tentar compreendê-lo ou contrariá-lo? Era uma mulher, ele um homem e, portanto, tinham da vida uma concepção diversa.
Ao contacto daquela mão, Ramon percebeu despertar de um sonho e fixou-a com olhar perscrutador e altivo. A carícia maternal sobressaltara-o como uma picada.
- Sim, devia - disse.
- Pois claro. Se quer ser tão... abstracto e quetzalcoatliano enterre de vez enquando a cabeça na areia como fazem as avestruzes, e esqueça.
- Oh! - exclamou Ramon sorrindo. - Ei-la de novo zangada!
- O caso não é tão simples como parece. Existe em mim um conflito, e não me deixam ausentar-me por algum tempo.
- Não podemos impedi-la.
-Pois sim, mas discordam da minha ida. Não me deixam partir em paz.
- Porque deseja ir-se embora?
- Tenho de ir. Tenho de voltar para junto dos meus filhos e da
minha mãe.
- Sente essa necessidade?
- Sinto.
Logo que deu esta resposta compreendeu que havia nela certa duplicidade. Era como se tivesse dois eus: um, mais novo, terno, sensível, que pertencia a Cipriano e a Ramon; outro, duro, completo, que pertencia aos filhos, à mãe, à Inglaterra, a todo o seu passado. O eu antigo nada tinha de submisso e era forte, o recente parecia frágil, estava ligado a Cipriano e até a Ramon e a Teresa; nada tinha de independente.
Kate possuía consciência desta dualidade e sofria com isso. Porque não conseguia optar definitivamente pela antiga maneira de ser, nem pela moderna, ficava a deter-se entre as duas.
- Pois é - continuou. - Sinto essa necessidade, e querem
evitar que eu parta.
- Que ideia! - protestou Ramon.
- Sim, senhor. Exercem pressão sobre mim, paralisam-me, impedem-me de me ir embora.
- Se tem essa sensação, convém que nos afastemos de si durante uns tempos.
- Porquê? Não concordam com a minha ida? Se eu tenho de
ir, porque não me apoiam?
Ramon fitou-a tranquilamente.
- É impossível. Não acredito nessa partida. Seria virar-nos as costas, renegar-nos. Mas a verdade é que somos todos muito complicados. Se acha que tem de se ausentar durante certo período, então vá! Não é coisa de importância primordial. Já fez a sua opção, e
eu não fico apreensivo.
Kate sentiu alívio ao ouvir isto, porque estava bastante preocupada consigo mesma. Nas suas relações com Cipriano e Ramon, nunca tinha a certeza de nada. Contudo, replicou com um pouco de ironia:
- Porque haveria de ficar apreensivo?
- Não desconfia de si própria às vezes?
- Nunca! Estou sempre segura da minha pessoa.
Continuavam sentados no jardim da Vivenda Aragon, debaixo da manhã-de-páscoa. O ar começava a aquecer. O lago estava calmo, o vento amainara e tudo se conservava imóvel - excepto as folhas rubras do arbusto.
O Natal aproximava-se! Eis o que recordou a Kate aquela planta majestosa.
Natal! O azevinho! A Inglaterra! As prendas! As iguarias! Se ela se apressasse poderia chegar à Inglaterra na data festiva. Achava uma coisa tão natural encontrar-se na pátria com a mãe, pelo Natal! Tinha casos tão interessantes a contar! E as bisbilhotices divertidas que havia de ouvir... De longe, tudo isso lhe parecia encantador. No entanto, experimentava como que uma relutância ao pensar nesse regresso.
- Podemo-nos fartar de coisas boas - disse ela a Ramon.
- De qual, em particular?
- Oh! De Quetzalcoatl e todas essas histórias. Podemos estar saturados.
- É possível - respondeu Ramon, pondo-se de pé e afastando-se em passos tão subtis que ela nem deu pela sua retirada.
Quando compreendeu que ele se fora embora, ficou fula. Mas continuou sentada debaixo do magnífico arbusto, contemplando com os olhos irritados a sebe de jasmineiro e as suas flores dum branco puríssimo. Onde é que ela ouvira qualquer coisa a respeito de jasmins? "E entre nós os jasmins..."
Oh! Como se sentia farta de tudo aquilo!
Teresa descia a ladeira do jardim.
- Ainda está aqui?
- Onde podia eu estar? - retorquiu Kate.
- Não sei... Meu marido foi a Sayula a fim de falar com o Jefe. Não quis esperar para ir connosco no barco.
- Talvez tivesse pressa.
- Que maravilha! - observou Teresa, apontando para o estendal vermelho do majestoso eufórbio.
- São as vossas flores de Natal, não são?
- Sim, as flores de Noche buena.
- É extraordinário! O Natal com hibiscos e manhãs-de-páscoa! Estou ansiosa por ver azevinho e laranjas na montra duma frutaria de Hampstead.
- Porquê? - disse Teresa, rindo.
- Ah! - suspirou Kate. - Voltar à vida simples, ver os autocarros a correr na lama de Piccadilly, na véspera do Natal, e os passeios molhados cheios de gente diante das lojas cintilantes...
- Isso é que é vida, para si? - perguntou Teresa.
- Sim. Sem esta abstracção e vontade. A vida satisfaz-me se eu puder vivê-la e ser eu mesma.
- É altura de Cipriano regressar - disse Teresa.
Kate levantou-se com súbita impaciência. Já não suportava essa tutela. Haviade lhes mostrar que era livre!
Foi com Teresa à aldeia. O ar parecia misteriosamente vivo, animado com um sopro novo. Mas Kate sentia-se fora do ambiente. As duas senhoras sentaram-se debaixo de uma árvore na praia de Sayula, conversando um pouco e contemplando a imensidão do lago
cor de pérola.
Ancorado junto do molhe estava um barco de toldo vermelho e mastro comprido. Em terra, viam-se grupos de homens vestidos de branco a olharem para o interior da embarcação. O contorno monolítico duma vaca preta e branca e dum touro enorme recortava-se contra a superfície das águas.
Era perto, e no entanto parecia tudo estranho e remoto. Dois peóns colocaram uma prancha e puseram-se a empurrar a vaca para lá. O animal avançou relutante mas depois, com a lenta indiferença dos Mexicanos, seguiu pela ponte adiante. Os homens incitavam-no, até que ele ganhou o barco e entrou definitivamente no porão.
O grupo ocupou-se então do touro. Um mexicano já idoso, alto, de calças estreitas de pele e casaco de cabedal, com um imenso chapéu de feltro bordado a prata, ergueu delicadamente a cabeça do touro, pegando-lhe pela argola do focinho. Atrás estava um peón que, curvando-se, empurrou os poderosos flancos do animal. E este, com toda a calma, foi andando pela prancha além. Mas parou.
Os peóns reagruparam-se. O que estava atrás, de faixa vermelha atada à cintura, deixou de empurrar. Então dois outros passaram uma corda em volta das ancas do touro. O velho tornou a pegar pela argola, sempre com muito cuidado, e o animal levantou outra vez a cabeça. Mas continuou parado.
De novo lhe puxaram pela argola e pela corda. O monstro mantinha-se impassível. Tudo isto decorria no maior silêncio.
Por fim o touro percorreu a ponte em passos lentos e alcançou a borda do navio. Ali, esperou.
De cabeça baixa, olhava para o fundo do porão. Os homens empurravam-no com toda a força, puxavam a corda - tudo no profundo silêncio mexicano.
Devagar, cauteloso, o animal agachou-se, e então, com um movimento rápido, pendeu as patas dianteiras no interior do barco, ficando com os quartos traseiros alçados. Houve um momento de confusão, depois um baque. Finalmente, o touro saltara e encontrava-se no porão do navio.
E tudo tão silencioso e tão remoto!
- Ramon quer que se sente ao lado dele no templo como esposa de Quetzalcoatl... com algum nome esquisito? - perguntou Kate a Teresa.
- Não sei. Mais tarde, diz ele, quando for ocasião de haver uma deusa.
- E importa-se?
- Por mim, tenho medo. Mas sei que Ramon o deseja. Ele diz que é aceitar a maior responsabilidade da nossa vida, e eu acredito que seja verdade. Se existe divindade em mim, devo reconhecê-la, envergar a túnica verde e ser deusa no momento oportuno. Ramon afirma que precisamos de manifestar a presença divina. E, ao lembrar-me de meus irmãos, acho que ele tem razão. Hei-de pensar no deus que palpita invisível como o coração do mundo. E quando vestir a túnica verde e me sentar no templo diante de toda a gente, voltar-me-ei para o coração do universo e tentarei compenetrar-me do meu eu divino.
- Julgava que a túnica verde era só para a esposa de Huitzilopochtli - observou Kate.
- Ah, sim! - replicou Teresa. - A minha é preta, com barras brancas e desenhos encarnados.
- Preferia a verde? Fique com ela, se quiser. Eu vou-me embora...
Teresa ergueu os olhos para Kate.
- A túnica verde é para a mulher de Huitzilopochtli - declarou.
- Não vejo que isso tenha importância - volveu a irlandesa.
- Cada homem deve possuir a esposa que lhe convém. Cipriano não quereria uma mulher como eu.
- Cada mulher deve ter o homem que lhe convém - retorquiu Kate. - Para mim, Ramon seria muito abstracto e muito despótico.
Teresa ruborizou-se e baixou os olhos.
- Ramon exige muita submissão de uma mulher para que me agradasse - ajuntou a outra.
Teresa ergueu a cabeça, o pescoço moreno ondulou como uma
serpente.
- Como é que sabe que Ramon exige submissão das mulheres? Como é que sabe? Nunca a exigiu de si... Está enganada. Ele não me impõe tal submissão. O que pretende é que me entregue brandamente; em compensação, entrega-se-me, a mim, com uma brandura maior do que esta que lhe concedo: um homem como Ramon é mais dócil do que uma mulher. Não se assemelha a Cipriano, que é soldado. Ramon mostra-se dócil. Não tem razão no que
diz, Caterina.
Kate soltou uma risadinha. Mas Teresa prosseguiu:
- Vejo-a como um soldado entre as mulheres, está sempre a combater. Eu não sou assim. No entanto, há mulheres que são de temperamento bélico e essas precisam de mandos militares. Eis a razão por que é Malintzi e tem um vestido verde. Estará sempre disposta a lutar... até consigo mesma, se ficar só no mundo.
Havia uma grande calma em volta do lago. As duas senhoras aguardavam a chegada de Ramon.
Um homem vestido de branco, acocorado e silencioso debaixo de uma árvore, desbastava folhas de palmeira, com ar concentrado. Em seguida ia molhá-las na água e voltava para se sentar de novo, recomeçando o trabalho com aquela atenção pueril da gente do povo. Estava a consertar uma cadeira de palha. Como Kate o observasse, os olhares dos dois encontraram-se e o homem saudou-a. Dir-se-ia que, dele, emanava para ela uma chama de vida, a qual lhe transmitiu um estranho poder.
Nitrindo excitado, corria ao longo da margem um cavalo ruço malhado de branco. A crina flutuava ao vento, as patas faziam saltar os calhaus, as narinas abriam-se-lhe ansiosas. Porque seria?
Um peón fizera entrar no lago a sua carroça puxada por quatro muares, até que a água ficou acima dos varais, e quase atingindo o fundo do veículo. Parecia um barco conduzido por quatro cavalos-marinhos.
Era Inverno, mas dir-se-ia Primavera nas imediações do lago. Saltitavam na praia bezerros amarelos e brancos, agitando a cauda, correndo lado a lado à beira da água, que eles cheiravam desconfiados.
A uma árvore estava amarrada uma burra, com a sua cria deitada à sombra, um jumentinho preto como uma amora, enroscado no chão, com a cabeça peluda erguida e as longas orelhas fitas.
- Quantos dias tem o burrinho? - perguntava Kate ao peón, que saíra da sua cabana de colmo.
O homem dirigiu-lhe um olhar em que havia júbilo e deferência - olhar que fez Kate sentir uma onda de orgulho encher-lhe o peito.
- Nasceu a noite passada, patrona! - respondeu ele, sorrindo.
- Tão novo! Ainda não pode aguentar-se nas pernas, pois não?
O peón aproximou-se do jumento e pô-lo de pé. E ali ficou o animalzinho, espantado, de pernas abertas, como se em cima de ganchos de cabelo.
- Que engraçado! - exclamou Kate, deliciada. O homem riu-se; parecia grato pelo interesse dela.
O jumento a custo se mantinha naquela posição. Vacilava sobre as quatro patas bambas, com ar admirado. Deu uns passos oscilantes para cheirar as folhas de milho. Cheirou, e tornou a cheirar, tal se o mistério do olfacto se lhe revelasse nas narinas.
Então voltou para Kate a cabeça aveludada e deitou de fora a língua cor-de-rosa. Kate soltou uma gargalhada, o que fez o animal dar um pulo que o deixou infinitamente surpreendido consigo próprio. Tentou uns passos, e, de repente, sem que ele mesmo esperasse semelhante coisa, deu outro salto.
- Já dança! - exclamou Kate. - E só tem umas horas de existência!
- Já dança - confirmou o peón.
Depois daquelas experiências, o burrinho aproximou-se da mãe em passos incertos e começou a mamar.
Erguendo a vista, Kate encontrou os olhos do homem cintilantes da chama da vida, cheios de confiança e de conhecimento.
O jumentinho preto, a mãe, o mistério da criação, o respeito pela mulher superior a ele, bela e radiosa, tudo isto exprimiam os olhos negros desse homem primitivo.
- Adiós! - disse Kate.
- Adiós, patrona! - respondeu ele, erguendo o braço, na saudação de Quetzalcoatl.
Atravessou ela a praia em direcção ao cais; sentia dentro de si uma onda de vida, forte, resistente. "É o sexo", disse consigo. "Como o sexo pode ser extraordinário quando o homem o conserva poderoso e sagrado e que ele enche o mundo! É como o sol, penetrando-nos. Mas não me submeterei, mesmo assim. Porquê ceder?" Ramon aproximava-se, com o seu largo chapéu ornamentado do símbolo de Quetzalcoatl. Nesse instante tocaram os tambores e, do alto da torre, soou a voz nítida e possante anunciando o meio-dia. Todos os homens que se encontravam na praia aprumaram o corpo e ergueram o braço direito. As mulheres viraram a palma da mão para o Sol. Tudo ficou imóvel, excepto os animais.
Então Ramon encaminhou-se para o barco, enquanto os homens o saudavam à maneira de Quetzalcoatl.
- É espantoso como nesta terra se pode ter a impressão de que se é alguém! - notou Kate, quando já iam sobre a água no barco de remos. - Sentimo-nos como se pertencêssemos de facto à nobreza.
- E não é verdade?
- Sim, mas isso em toda a parte nos é negado. Só aqui temos a noção do poder da nobreza. Os indígenas ainda a veneram. Parecem
adorar-me.
- Por enquanto - replicou Ramon. - Mais tarde assassiná-la-ão porque a adoraram.
- É inevitável? - volveu Kate em tom despreocupado.
- Creio que sim. Se vivesse sozinha aqui, em Sayula, e reinasse por algum tempo, seria assassinada... ou pior ainda... pelo povo que a tinha idolatrado.
- Não acredito.
- É como lhe digo.
- Mas porquê?
- A não ser que se consiga dos deuses a nossa própria nobreza e se implore dos céus o poder, acabaremos por ser assassinados.
- A minha nobreza tem essa origem.
Mas não ficou muito convencida e mais firmou a sua resolução
de partir.
Escreveu para a Cidade do México e reservou uma passagem de Vera Cruz a Southampton. Embarcaria no último dia de Novembro.
Cipriano regressou a 17 e Kate participou-lhe o que tinha feito. Ele ficou a olhá-la, de cabeça um pouco à banda e com uma expressão de criança ajuizada, mas Kate foi incapaz de adivinhar o que lhe ia na alma.
- Vais-te embora já? - perguntou ele em espanhol.
A mulher percebeu então que estava ofendido. Quando se melindrava falava-lhe sempre em espanhol, nunca em inglês.
- No dia 30.
- E quando voltas?
- Quien sabe! - ripostou Kate.
Por uns minutos, Cipriano fitou-a com as suas pupilas negras imperscrutáveis. Estava a pensar que tinha o direito de a impedir que saísse do país, visto ser legalmente sua esposa. Nas profundezas dos olhos luzia a antiga cólera índia; depois surgiu uma leve mudança de expressão no rosto, quando a ira contida cedeu lugar à indiferença estóica, à velha indiferença de tantos séculos. Kate quase sentia as ondas sucessivas de sombra e frieza que percorriam Cipriano sem que ele mesmo desse por isso. E mais uma vez lhe estremeceu o coração o medo de perder o contacto com esse homem.
- Como quieras tu! - disse ele por fim.
Concedia-lhe a liberdade com a misteriosa indiferença do seu sangue e não faria mais esforços para a reter. Era o fatalismo dos da sua raça.
Conforme Kate previra, Cipriano tomou um barco e foi a Jamiltepec falar com Ramon.
A mulher ficou só, como de costume. Ocorreu-lhe que ela própria criara essa solidão. Não conseguia identificar-se com aquela gente, sentir-se à vontade fosse com quem fosse. Fechava-se sempre na sua personalidade.
Importava-lhe muito a reciprocidade sexual? Podia importar-lhe ainda mais se não a houvesse tido; mas tivera-a, e de maneira perfeita, com Cipriano. Sabia tudo a esse respeito. Era como se houvesse conquistado outro território, outro domínio da vida. E agora devia retirar-se para a toca da sua individualidade, com a vítima nos dentes.
De súbito, viu-se como os homens muitas vezes a viam: uma gata enorme, com os seus espasmos de volúpia e o gozo demorado do seu isolamento. Conhecia outras mulheres assim. Brincavam cheias de amor e familiaridade como um gato com um rato. Por fim devoravam o ratinho querido e reapareciam com a barriga repleta e uma voluptuosa sensação de força.
Algumas vezes o rato recusava-se a ser digerido, de que resultava prolongada dispepsia; ou então, como Cipriano, transformava-se numa espécie de cobra, que alçava a cabeça, olhava para trás e desaparecia num buraco, deixando-a confusa e destituída de poder.
Outra coisa que ela observava horrorizada. Uma após outra, as suas "amigas", as grandes amorosas, na idade de quarenta, quarenta e cinco e cinquenta anos perdiam todos os atractivos e ficavam umas corujas horrendas, procurando em volta a vítima cada vez mais rara. Como seres humanos deixavam de existir, metamorfoseadas em corujas elegantes e mexeriqueiras.
Kate era bastante inteligente para tirar proveito da lição. Estava bem que uma mulher cultivasse o seu ego, a sua personalidade. Estava muito certo que desprezasse o amor ou que com ele se entretivesse como um gato faz ao rato; isto é, brincar o mais tempo possível antes de o comer e saciar voluptuosamente o ego com a sua vítima.
"A mulher sofre mais com a supressão do ego do que com a do sexo", afirmou uma escritora, e talvez seja verdade. Mas olhai, olhai para as mulheres modernas de cinquenta anos, as que cultivaram o ego até ao extremo limite! São em geral criaturas que nos enchem de pena ou de repulsa.
Kate sabia tudo isto, e nisto pensava enquanto ali sozinha na sua vivenda. Tivera a sua liberdade, mesmo no México. Esses homens deixá-la-iam partir. Não estava prisioneira. E levaria consigo todos os despojos que ainda guardavam.
E depois? Sentar-se nos salões de Londres e ser mais uma coruja ao lado das outras? Arvorar um sorriso postiço e falar com voz
artificial?
"Não! - disse consigo. - O meu ego e a minha personalidade não valem esse preço. Prefiro desfazer-me deles em parte a ver-me reduzida a isso."
No fim de contas, quando Cipriano a acariciava toda ela parecia desabrochar. Era a força do sexo, que enchia o mundo de lascívia e sobre que ela não se atrevia a reflectir. O seu poder tornava-se maior do que a sua vontade. Por outro lado, quando estava só e abria as asas do seu ego e o espírito desferia voo, o mundo afigurava-se-lhe maravilhoso. Todavia, após uns instantes, desvanecia-se o esplendor, substituído por uma solidão amarga.
"Preciso de ambos - concluiu. - Não posso afastar-me de Cipriano nem de Ramon. Renovaram-me o sangue. Digo que são limitados, mas todos temos de o ser. Se tentamos ser ilimitados, tornamo-nos monstros. Sem Cipriano a afagar-me, a limitar-me e a submergir-me a vontade, tornar-me-ia uma velha horrível. Devo regozijar-me pelo facto de Cipriano me limitar com a sua vontade e o seu contacto ardente. Porque o que eu chamo a minha grandeza faz-me cair no vácuo desde que não haja a mão dum homem para me segurar. Ah, sim! Antes submeter-me do que ser uma mulher horrível."
Chamou o criado e foi através do lago num barco de remos. Era por uma bela manhã de Novembro. Nas escarpas das montanhas, a nordeste, as sombras tinham um tom azul muito puro. Por baixo, a vegetação começava a amarelecer. O lago, embora ainda cheio, principiava a baixar, e os jacintos-d'água vogavam à toa. No ar calmo viam-se pássaros voando. Alguns milheirais exibiam os seus talos secos, mas as flores de palo-blanco tinham já desabrochado e errava o perfume das acácias amarelas.
"Porque havia de me ir embora? - pensou Kate. - Porque havia de ver os autocarros na lama de Piccadilly na véspera do Natal e a multidão nos passeios molhados diante das lojas iluminadas? Mais vale ficar aqui, onde a minha alma é menos triste. Tenho de pedir desculpa a Ramon das coisas que lhe disse. No fim de contas, aqui há outra grandeza, com o som dos tambores e o grito de Quetzalcoatl."
Já ela distinguia o último andar da casa de Jamiltepec, semelhante a uma torre avermelhada, e a buganvília roxa pendente do muro, os cachos das flores de plumbago e a porção de rosas brancas.
- Están tocando - disse tranquilamente o barqueiro, erguendo para ela os olhos negros.
Já ouvira o som do tambor em Jamiltepec. Uma voz de homem se elevou na manhã clara.
O barqueiro levantou um remo, como se fizesse sinal. E assim que o barco penetrou na enseadazinha, veio um criado a correr ao longo do molhe. No ar soalheiro notava-se o cheiro das daturas e das rosas, e um silêncio profundo que nem o tambor nem o canto perturbavam.
- Don Cipriano está aqui? - perguntou Kate.
- Está - murmurou o criado, apontando para o balcão donde partia a voz do cantor. - Deseja que eu o informe da sua chegada?
- Não - respondeu Kate. - vou sentar-me um bocado no jardim, antes de subir.
- Nesse caso, deixarei a porta aberta - volveu o homem - e assenhora entrará quando quiser.
Kate instalou-se no banco de uma árvore, donde pendiam flores de trepadeira enroscada ali como uma serpente. Pôs-se a ouvir o canto. Ramon ensinava o novo hino a um dos cantores.
Não tinha muito boa voz o Quetzalcoatl vivo. Cantava baixinho, como se para si mesmo, mas com expressão simples e bela. Kate não conseguiu perceber a letra.
- Ya? - disse Ramon ao terminar.
- Ya, patrón! - respondeu o cantor.
E na sua voz forte e pura, este entoou o hino:
O meu caminho não é o teu e o teu não é o meu.
Mas vem, antes que nos separemos.
Cada qual por seu lado, dirijamo-nos à Estrela da Manhã
Para lá nos encontrarmos.
Não te aponto o meu caminho
Nem chamo por ti.
Mas a Estrela é a mesma para nós ambos
E a ambos nos atrai.
A cada qual o seu caminho, esse que esplende Na encruzilhada,
Que abre a sua chama como a porta de uma tenda Por onde, invisíveis, deslizamos.
Não pode um homem pisar como a mulher
Nem a mulher andar como o homem.
O espírito de cada um através das folhas de sombra
Se move como pode.
Mas a Estrela da Manhã e a da Noite Fixam tendas de fogo
Onde nos retinimos quais ciganos, sem saber Como é que vieram os outros.
Nada mais peço que me insinuar Na tenda do Espírito, e deter-me Na casa da chama bifurcada Como hóspede seu.
Fica aí comigo, esposa minha, Corporalmente. E que a flama nos envolva Qual uma rede.
Sede lá, homens, comigo,
Alcançai o lar.
Ride comigo, enquanto a mulher repousei,
Porque vale a pena.
O homem entoara o hino por várias vezes, parava, dir-se-ia esquecer-se, extinguia-se-lhe a voz pura e quente. Então a de Ramon, baixa e um tanto rouca, elevava-se com subtil intensidade, como se vinda do meio duma concha; depois, o tenor retomava o canto, que lhe corria no sangue como uma chama.
O mozo de Kate, ou seja, o seu criado, seguira-a ao jardim, e tinha-se sentado de pernas cruzadas, a certa distância, debaixo de uma árvore, de costas apoiadas ao tronco - sombra acocorada, vestida de branco. Os dedos dos pés saíam-lhe rijos e escuros das huaraches esburacadas, e o trancelim de palha do chapéu pendia-lhe junto à face trigueira. Quanto ao resto era tudo alvo, e as calças de linho apertavam-se-lhe nas coxas.
Quando o canto terminou, e o tambor deixou de rufar, e as vozes, num murmúrio, mal se ouviam, o mozo ergueu a cabeça e olhou para Kate. Brilhavam-lhe as pupilas negras, no rosto errava-lhe um sorriso tímido.
- Está muy bien, patrona? - perguntou, um pouco envergonhado.
- Muito bem - respondeu ela, como um eco fiel. Mas no seu coração debatiam-se conflitos diversos, e o criado sabia-o.
Parecia tão novo com aquele sorriso alegre, excitado, receoso! Havia nele qualquer coisa de perpetuamente infantil; mas era uma criança que, dum momento para outro, se podia tornar num selvagem- vingativo e brutal, um homem que nunca perdia a consciência do seu sexo. E Kate pensou mais uma vez que existiam várias maneiras de regressar à infância.
O criado, porém, continuava a espiá-la, de soslaio: queria ver se havia nela qualquer hostilidade secreta. Desejaria que concordasse com o hino, com o tambor e com tudo mais. Como uma criança, ansiava pela sua aquiescência; mas, se a senhora se mostrasse hostil, ele seria o primeiro a manifestar-se. Um julgamento adverso torná-lo-ia inimigo declarado.
Ah, os homens eram todos iguais!
Nessa ocasião, o rapaz levantou-se, com súbita agilidade, e ela ouviu a voz de Cipriano na varanda:
- Que é, Lupe?
- Está la patrona - respondeu o mozo.
Kate ergueu-se também e olhou. Viu a cabeça e os ombros nus do marido, em cima, no parapeito.
- Já lá vou - participou-lhe.
Vagarosamente transpôs os portões de ferro do corredor. Lupe, que a seguia, fechou-os atrás de si.
No terraço encontrou Ramon e Cipriano, ambos de tronco nu, que a esperavam em silêncio. Kate, embaraçada, explicou:
- Estive a escutar o novo hino.
- E-que lhe pareceu? - perguntou Ramon.
- Gostei.
- Sentemo-nos - propôs ele. E a recém-vinda deixou-se cair numa das cadeiras de verga. Cipriano ficou de pé, encostado à balaustrada.
Kate viera para declarar a sua submissão: dizer que já não queria ir-se embora. Mas, vendo os dois homens numa disposição muito quetzalcoatliana, não se decidia a aflorar o assunto. Tinha a sensação de ser uma intrusa. Não se compenetrava de que também pertencia à seita.
- Parece-me que não há Estrela da Manhã para nos reunir a todos três - observou, irónica mas um pouco trémula.
Sobre eles desceu um silêncio ainda mais profundo.
- Estou a ver que uma mulher é realmente de trop aqui junto de vocês ambos.
Hesitou um tanto ao dizer isto. Sabia que Cipriano ficava perplexo e melindrado quando ela escarnecia.
Ramon respondeu-lhe com uma doçura que vinha direita do seu coração.
- Então que há, prima?
com um tremor nos lábios, Kate replicou:
- Em verdade, não desejo deixá-los.
Olhando rapidamente para Cipriano, Ramon retorquiu:
- Bem sei que não deseja.
O tom suave e protector da sua voz fê-la revoltar-se de novo. com os olhos rasos de lágrimas, ela bradou:
- Afinal vocês não precisam de mim!
- Não, não, preciso de ti. Verdad, verdad! - exclamou Cipriano em voz baixa e contida, quase num murmúrio.
E, no meio das suas lágrimas, Kate pensava: "Como sou intrujona! Sei perfeitamente que sou eu que não os quero. Quero-me só a mim mesma. Mas posso iludi-los de modo que o não percebam."
Havia notado a paixão fálica e ardente na voz de Cipriano.
Coube a vez a Ramon de falar, e fê-lo em tom glacial:
- A Caterina é que não precisa de nós. Não se comprometa connosco. Atenda à sua própria preferência.
- E se ela me aconselhar a partir? - ripostou Kate, como um desafio, através de um resto de lágrimas.
- Então parta!
Kate recomeçou a chorar.
- Ah, eu bem sabia que não precisavam de mim. Mas Cipriano acudiu com persuasiva ternura:
- Não és dele! Ele não pode dizer nada.
- Isso é verdade - concordou Ramon. - Não me dêem ouvidos.
Levantando bruscamente a cabeça, no meio do seu pranto, viu-o afastar-se sem rumor.
Limpou a cara, recuperou a calma e, de olhos húmidos, fitou Cipriano. Este conservava-se muito direito, como um galo combatente. Nas pupilas negras brilhava-lhe um fulgor estranho.
Sim, Kate também tinha medo dele, desses olhos pretos inumanos.
- Não queres que me vá embora, pois não? - perguntou-lhe suplicante.
Espalhou-se no rosto do homem um sorriso lento, e um leve tremor lhe percorreu o corpo. E então, na sua voz de inflexões índias, muito suave, Cipriano disse-lhe em espanhol:
- Yo! Yo! - E as sobrancelhas erguiam-se-lhe numa expressão de espanto divertido. Ainda trémulo, concluiu: - Te quiero mucho! Mucho te quiero! Mucho, mucho!
As palavras soavam tão cariciosas, vinham-lhe tanto do seu sangue ardente, que a mulher se sobressaltou e disse:
- Não me deixarás partir!

XXV
Foi uma surpresa para Kate o casamento de Don Ramon dois meses depois do falecimento de Dona Carlota. A noiva tinha vinte e oito anos e chamava-se Teresa. Após o casamento, que se realizou civilmente e na maior intimidade, Ramon trouxe a nova esposa para Jamiltepec.
Conhecia-a desde pequena, pois era filha do proprietário da famosa hacienda de Las Jemas, situada a uma dúzia de milhas de Jamiltepec. Don Tomaz, pai da rapariga, fora grande amigo dos Carrascos. Morrera, porém, um ano antes, deixando a importante hacienda aos três filhos e confiando a Teresa a administração da quinta. Teresa era a mais nova. Os dois irmãos viviam a existência inútil e perdulária dos mexicanos, e por isso Don Tomaz, a fim de salvar a propriedade daquelas mãos nefastas, designara Teresa como administradora e obtivera o consentimento dos dois irmãos. Na verdade, os rapazes eram criaturas ociosas que, em vida do progenitor, nunca haviam mostrado o mínimo desejo de o ajudar na difícil gerência da quinta. Teresa fora a única. E durante a doença do pai, todas as fadigas da administração haviam recaído sobre ela, enquanto os irmãos gastavam o dinheiro e as forças nas orgias em que se deleitam os mexicanos de certa classe. No entanto, assim que o pai faleceu, os dois irmãos apareceram em casa cheios de arrogância, com a intenção de se tornarem hacendados. Pela simples força bruta afastaram a irmã do seu cargo, deram ordens contrárias às dela, escarneceram-na e uniram-se para a esmagar. Queriam relegá-la para o seu lugar de mulher, isto é, para uma espécie de escravidão a que, aos seus olhos, deviam pertencer as pessoas desse sexo.
Eram brutos, e como brutos, cobardes. E, como tantos mexicanos daquela categoria, condescendentes e prejudiciais para si próprios. Relacionaram-se com juizes e generais, exibiram-se em ricos trajes de charro e receberam em casa uma multidão de gente duvidosa.
Contra aquela indolência e brutalidade, Teresa nada podia fazer e conhecia bem a sua impotência. Os irmãos eram fracos, sensuais, belos à sua maneira, dissipadores, despreocupados, mas de sentimentos ferozes.
- Faz-te bonita e arranja um marido - aconselhavam-lhe. Aos olhos deles, o seu maior crime era não atrair os homens
com quem conviviam. O facto de nunca ter conhecido homem e não se haver ainda casado tornava-a quase odiosa. De que servia a mulher senão para uma vida de relaxamento e licenciosidade?
- Queres usar calças? - perguntavam-lhe, irónicos. - No, señorita, enquanto houver aqui dois homens. No, señorita, os homens é que usam calças, e as mulheres escondem o que têm debaixo das saias.
Teresa já estava habituada a estes insultos; contudo, sofria muito no seu íntimo.
- Queres viver à moda dos americanos? Então abala para a América, corta o cabelo e veste calças. Compra lá um rancho e arranja um marido que receba as tuas ordens.
Teresa consultou advogados, que se limitaram a erguer os braços ao céu. Foi então procurar Ramon, a quem conhecia desde pequena.
Para expulsar os irmãos da hacienda seria necessário intentar um processo dispendioso e de resultado incerto. Em vez disso, Ramon propôs-lhe que casasse com ele segundo um regime matrimonial em que ela disporia sempre dos seus bens.
- Nesta terra os homens desprezam as mulheres e não podem passar sem elas, o que representa um suicídio - disse Ramon.
O casal foi visitar Kate. Teresa era franzina, pálida, de farta cabeleira preta e grandes olhos negros. Apesar do ar calmo, notava-se-lhe certa independência e autoridade. Sofrera muitas humilhações da parte dos irmãos e tinha ainda os olhos pisados pelas lágrimas de amargura, indignação e cólera.
Agora, amava Ramon com todas as veras da sua alma. Isso era evidente. Fora ele que salvara da degradação a sua dignidade de mulher e lha havia restituído bela e intacta. Em troca, passou a conceder ao seu salvador uma admiração respeitosa e quase feroz.
Em relação a Kate mostrava-se tímida e um pouco distante, tal se receasse essa mulher branca, doutra raça, que viajara muito e possuía larga experiência da vida. com um vestido claro e um rebozo de gaze preta, estava sentada na sala de Kate, com as mãos trigueiras pousadas no regaço, o pescoço escuro muito direito, e desviando um pouco o rosto fino e bem modelado. A irlandesa achou-lhe uma aparência de costureirinha.
Mas Kate não deu fé do estranho poder autoritário que também emanava desse corpo moreno e esguio, nem do olhar penetrante e desconfiado que por vezes Teresa lhe dardejava. Alma de fogo num corpo delicado. Atitude cheia de reservas. De quando em quando, a boca parecia formular uma palavra em silêncio e nos lábios perpassava-lhe um sorriso constrangido. Nunca lhe desaparecia, porém, o fulgor dos olhos.
- Falas tão pouco, chica! - observou Ramon, com certa ternura.
Então os olhos dela cintilaram e a boca esboçou um sorriso.
Via-se bem que estava apaixonada, embebida num êxtase de amor, o que explicava a sua frieza perante Kate.
"Despreza-me - pensou esta - porque não sou capaz de amar como ela." E, por um segundo, Kate invejaria Teresa. Mas daí a pouco desdenhava-a: "Tipo de harém..."
Sim, Ramon adaptava-se bem ao papel de sultão. Era belo, no seu traje branco, muito sereno, com ar de paxá, mas ao mesmo tempo afável, atencioso - e com aspecto tão juvenil! Como um paxá, preparava um cacharolete de genebra, vermute e limão. Teresa espiava-o de esguelha, sem perder de vista Kate, sua possível inimiga, a mulher que falava aos homens no mesmo pé de igualdade.
Kate levantou-se para ir buscar colheres. Nesse momento, Ramon recuou da mesa baixa em que espremia o limão e colidiu de leve com a dona da casa quando esta passava. Kate reparou de novo como ele se esquivava a qualquer contacto com ela. A sua sensualidade natural afastava-o de Kate como uma chama se desvia perante uma corrente de ar. Ela corou, e Teresa viu o súbito rubor sob essa pele branca, e o clarão quase de ira que atravessou os olhos castanhos de Kate. Momento de evasão de dois cursos de sangue tão diferentes!
Teresa pôs-se de pé, aproximou-se de Ramon e, inclinando-se sobre os copos, perguntou com aquela afectação infantil própria das mulheres da sua raça:
- Que puseste aí?
- Olha ! - retorquiu ele. E, com a mesma infantibilidade dos homens do seu tipo, começou a explicar-lhe de que se compunha o cacharolete e deu-lhe a provar um pouco de genebra, numa colher.
- É tequila da pior - declarou Teresa.
- A oito pesos cada garrafa? - volveu o marido, a rir.
- Custa esse preço? Tão caro!
Ela fitou-o nos olhos, por um momento, e viu esse rosto tornar-se mais escuro, mais ardente, como se todo ele se derretesse ao senti-la perto de si. Teresa então ergueu a cabeça, orgulhosamente. Havia-o reconquistado.
"Manhas de harém!" pensou Kate. E experimentou certa impaciência ao verificar como o ilustre, prodigioso Ramon se deixava prender nas malhas de um ser tão insignificante. Sentia-se contrariada por ter assim consciência da presença física do homem, do seu corpo belo, dos seus ombros fortes, das suas pernas vigorosas. Dir-se-ia ter também de sucumbir ao fascínio e vir a fazer parte do harém daquele sultão.
Que estranha vontade possuía a pequenina mulher morena! Que subtil poder feminino num corpo que quase só tinha pele e osso! Teresa era capaz de engrandecer a glória do marido - ao passo que ela própria se tornava imperceptível, a não ser quanto ao fulgor tigrino dos seus grandes olhos pretos.
Kate observava admirada. Conhecera homens que lhe davam a impressão de a transformarem em rainha, de ter a cabeça nas estrelas e repousar o peito nas nuvens. Sabia o que era subir, subir, subir até encher o universo com a sua feminilidade.
Via agora, porém, o contrário. Quem tinha poder sobrenatural era essa criatura pequenina, que fazia maior Don Ramon, enquanto ela se diminuía e ficava invisível, excepto no que respeitava aos olhos. Ele, como um sultão, como um fruto sazonado ao sol, tomava uma aparência extraordinária e imponente; e então, por algum poder misterioso do seu corpo trigueiro, a frágil Teresa fazia-o ainda mais completo.
Era o que Ramon queria, e Kate, percebendo-o, sentia-se irritada. Parecia-lhe odioso aquele macho triunfante, exasperava-a aquela rapariga ardente que só pensava em exaltar o homem.
ah, o poder oculto da mulher trigueira! Kate chamava àquilo harém e prostituição. Sim, era a atitude da escrava. Que pretendia dele essa criatura senão o sexo, como uma prostituta?
Pois não era degradante para uma mulher semelhante espécie de amor? E não tornava o homem fraco, sensual, ou odiosamente tirânico?
No entanto, já duma coisa Kate se convencera: que a chave da vida, e da continuidade da vida, residia nas relações do homem e da mulher. A união completa dos dois representava a vida presente e futura; dessa fusão surgia uma vida nova.
Mas tais relações necessitam de equilíbrio, e TereSa destruía-o juntando na balança o seu peso ao do homem.
Ramon não quisera Kate. Possuía agora o que desejara: aquela criaturinha escura, tão servil e orgulhosa do seu poder. Só quisera Kate para camarada, camarada inteligente, Não para mulher. Preferira essa viborazinha de Teresa...
Cipriano, esse desejava Kate. O general, o militar empertigado desejava Kate, mas só por momentos. não se importava casar realmente com ela; o que lhe interessava eram os instantes passados a seu lado. Kate tinha de lhe conceder esses instantes, e em seguida ele tornava a partir para junto das suas tropas. com isso se contentava. E ela também. Assim, ficava senhora da sua existência. Não tinha feitio para andar de roda dum homem a excitar-lhe o sangue, a estimular-lhe o ardor!
Levantou-se e foi ao quarto buscar um livro que prometera a Ramon. Não podia suportar mais tempo a exibição do amor dele por Teresa. Ah, aquele sorriso néscio estampado no rosto do homem, o brilho estranho dos olhos, o aprumo orgulhoso do corpo!
Eis como eram os dessa raça. Selvagens, com o insuportável fluido sensual dos índios e aquela maneira primitiva de se dissolver numa horrível confusão de desejo; com a presunção da sua virilidade insolente e inesgotável.
O pior era que essa força cósmica que ela até aí só conhecera nos olhos azuis dos homens loiros (e que tornava rainhas as respectivas mulheres, ainda que eles as detestassem por fim), essa força declinava agora nos olhos azuis e nascia nas pupilas pretas. As de Ramon, naquela ocasião, luziam de orgulho, poder e desafio. E o mesmo notava Kate nos olhares rápidos de Cipriano. A força do mundo esmorecia nos homens loiros, a sua supremacia abandonava-os para renascer nos de cor escura.
Joachim, o ser inquieto, inteligente e sensível, que era capaz de penetrar na alma de Kate e contemplá-la com os seus olhos azuis, morrera à vista da mulher. Se ela pudesse excitar-lhe o sangue, como Teresa fazia a Ramon, nunca ele teria morrido. Mas seria impossível. Cada um é como é. E cada raça, também. Teresa bateu timidamente à porta do quarto.
- Posso entrar?
- Entre! - respondeu Kate, endireitando-se e deixando as rimas de volumes em volta da mala dos livros.
O aposento era amplo e através das janelas rasgadas via-se o pátio e o jardim soalheiro, mangueiras de troncos lisos como trombas de elefantes, ervas reverdecidas pela chuva e galinhas a esgaravatar a terra debaixo das folhas esgarçadas das bananeiras. Um pássaro vermelho chafurdava no tanque, abrindo e fechando as asas escuras sobre o corpinho escarlate.
Teresa, porém, olhava para o quarto, não para fora. Sentiu o cheiro de cigarros, cujas pontas enchiam um cinzeiro de ágata. Notou os livros em desordem, as jóias espalhadas, a tapeçaria persa pendente atrás da cama, a colcha magnífica, os vestidos de seda e de veludo colocados sobre uma arca, os xailes de longas franjas cuidadosamente dobrados, os sapatos espalhados no chão, brancos, cinzentos, amarelos, castanhos e pretos, e os belos castiçais chineses.
Teresa parecia fascinada por tudo aquilo.
- Que linda! - disse, tocando na colcha sumptuosa.
- Foi uma amiga que a fez e ma ofereceu, em Inglaterra. Teresa observava tudo com espanto, em especial as jóias dispersas no toucador.
- Não gosta dessas pedras encarnadas? - perguntou Kate, ajoelhando de novo para arrumar os livros e olhando o pescoço moreno pendido sobre as jóias. Que ombros frágeis e que pele acetinada, naquele vestidinho branco! E aquela cabeleira negra, segura por travessas de tartaruga! No conjunto, uma rapariguinha humilde e insignificante. Mas Kate bem sabia que Teresa não era insignificante nem humilde. Naquele corpo franzino havia um estranho poder que despertava o ardor num homem e o exultava e, de certa maneira, o guardava só para si. O eterno apelo da carne...
Na mesinha de costura estava um pedaço de musselina que Kate comprara na índia e não sabia em que aproveitar. A cor, espécie de amarelo-pêssego, não se harmonizava com o seu tom de pele. Teresa apalpou o tecido entremeado de fios de ouro.
- É organdi?
inquiriu.
- Não, é musselina feita à mão. Ofereço-lha. A cor vai-me mal, e a si deve-lhe ir lindamente.
Ergueu-se e dispôs o tecido de roda do pescoço bronzeado de Teresa. No espelho, esta viu-se envolta na bela musselina e os olhos brilharam-lhe de prazer.
- Ah, não! Não posso aceitar!
- Porquê? Não condiz bem comigo. Faz agora um ano que a tenho aí. Até pensei em cortá-la para fazer cortinas. Fique com ela.
Kate talvez fosse arrogante, e até cruel, na sua maneira de oferecer.
- Não quero privá-la...
- Aceite, peço-lhe.
Ramon apareceu no limiar e relanceou o quarto e as duas mulheres.
- Olha! - disse Teresa, embaraçada. - A señora quer dar-me esta musselina indiana. - Voltara-se timidamente para ele, com o tecido desdobrado em roda do pescoço.
- Fica-te muito bem - declarou Ramon, contemplando-a.
- A señora não devia oferecer-me...
- Se to dá é porque faz gosto nisso.
- Então - concluiu Teresa, virando-se para Kate - muito e muito obrigada.
- Não tem de quê!
- Ramon acha que me vai bem...
- Na verdade, vai-lhe a matar - declarou Kate, dirigindo-se agora a Ramon. - O tecido foi feito na índia para alguém com aquela cor trigueira. Há-de condizer admiravelmente com ela.
- É muito bonito - concordou Ramon.
com o olhar, percorria o quarto, examinava os diferentes objectos que ali estavam, vindos de todas as partes do mundo, e até as pontas de cigarro na taça de ágata: luxo, desordem, e algo de esterilidade da mulher emancipada.
Kate não sabia em que é que ele pensava. Mas, por seu turno, reflectia: "Ora aí está o homem que eu defendi naquele terraço, que eu vi com um buraco nas costas, nu e inconsciente. Nesse momento não se parecia com um sultão."
Teresa devia ter-lhe adivinhado os pensamentos, porque disse,
olhando para Ramon:
- Sem a señora, Ramon teria morrido. Nunca me esquecerei...
- Não falemos nisso - atalhou Kate. - O destino tece-as.
Eu não alterei nada.
- Foi o próprio destino, señora!
- Não quer vir passar uma temporada connosco em Jamiltepec? - perguntou Ramon. - Agora já tenho uma dona de casa.
- Sim, vá! - insistiu Teresa.
- Ela precisa de uma amiga - explicou o marido.
- Preciso, é verdade. Nunca tive nenhuma a valer desde que deixei o colégio, ainda pequena...
Kate duvidava que pudesse ser para Teresa uma amiga a valer. E cogitava no que pretenderiam, de facto, aqueles dois - e o que pensariam dela.
- Pois sim, terei muito gosto em passar uns dias...
- Óptimo! - exclamou Teresa. - Quando deverá ser? Combinaram o dia.
- E escreveremos a canção de Malintzi - disse Ramon.
- Não faça semelhante coisa - acudiu Kate vivamente.
Ele olhou-a com ar pasmado, como se não percebesse logo, um ar que lhe era habitual. Por instantes, Kate poderia supor ter-lhe dado a impressão que um fantasma produziria se aparecesse a uma criança.
Em Jamiltepec, as duas mulheres entretiveram-se a talhar vestidos para Teresa na peça de musselina cor de ananás. Para senhora casada, o guarda-roupa de Teresa era bastante modesto: só possuía trajes pretos, que lhe davam um ar infeliz, e alguns brancos já antiquados. Até aí só vivera para o pai (que tinha bons livros acerca do México e toda a vida escrevera sobre a história do estado de Jalisco) e para dirigir a sua hacienda. Esta, chamada de Las Jemas, era a única que não fora destruída durante as revoltas que se seguiram à fuga de Porfirio Diaz; Teresa orgulhava-se bastante deste facto.
O seu carácter assemelhava-se muito ao de uma freira, talvez por se tratar de uma pessoa profundamente apaixonada e as paixões profundas serem mais para se esconder do que para exteriorizar nos contactos quotidianos.
Kate, provando-lhe o vestido sobre os ombros morenos, tornou a admirar a estranha macieza daquela pele escura e o pesado volume dos cabelos negros. A família dos Romeros, a que Tereza pertencia, estabelecera-se no México logo nos primeiros tempos da conquista.
Que lhe fizesse mangas compridas, sugeriu. E acrescentou, ocultando um pouco envergonhada a magreza daqueles membros trigueiros:
- Tenho os braços tão delgados! Não são bonitos como os
seus.
Kate, mulher de quarenta anos, tinha-os fortes e alvos e toda ela
era bem constituída.
- Sim - repetiu Teresa -, compridas até aos punhos.
A outra assim fez, achando que, na realidade, era o que mais convinha àquela natureza.
- Aqui os homens - explicou a dona da casa - não gostam
de mulheres magras.
- Não importa o que os homens pensam - sentenciou Kate. - Julga que Don Ramon gostaria que fosse gorda como uma
galinha?
Teresa fitou-a com os seus olhos pretos, grandes e brilhantes -
tão vivazes e, de certa maneira, fugidios.
- Quem sabe! - exclamou. E, no seu sorriso rápido, malicioso, via-se que não desgostaria de ser, às vezes, como uma galinha
gorda.
Presentemente Kate conhecia mais do que nunca a vida interior duma hacienda. Quando estava em casa, Ramon consultava diariamente o feitor; Teresa, porém, aliviava-lhe esse trabalho e já se ocupava bastante da propriedade. Em geral, ele andava por fora, ou para ir à Cidade do México, ou a Guadalajara e mesmo a Sonora. Todos o conheciam no país e o seu nome tornara-se célebre. Mas, debaixo desse culto que os compatriotas lhe prestavam, Kate adivinhava uma animosidade latente. Talvez preferissem aniquilar os seus heróis a elevá-los temporariamente às culminâncias da glória. O momento que mais apreciavam era o da queda do ídolo.
Para Kate, sempre céptica, deviam eles andar afiando o gume com que o atingiriam no peito, quando o herói se tornasse demasiadamente incómodo. É claro que precisavam da anuência de Cipriano, e Cipriano era um diabinho que os mexicanos temiam deveras. Cipriano, por então, conservava-se fiel - para com Ramon e para consigo mesmo. Representava o papel de Huitzilopochtli e Ramon o de Quetzalcoatl. Eis uma verdade simples e evidente para o general, que mantinha o seu exército pronto para o que desse e viesse. O próprio presidente seria incapaz de prescindir de Viedma, apesar de ser também um homem destemido.
- Qualquer dia - declarava Cipriano - poremos Quetzalcoatl na Catedral de Puebla, e Huitzilopochtli na da capital, e Malintzi na de Guadalupe. Não falta muito, Ramon.
- Faremos com que esse dia chegue - respondia Ramon.
Mas Ramon e Montes sofriam ambos com a profunda e diabólica animosidade do país, manifestada no próprio silêncio da população. Era sempre assim, fossem quais fossem as mãos em que o poder caísse: os Mexicanos pareciam destilar ódio oculto, um ódio demoníaco que lhes aviltava a alma; um ódio cujo único fim consistia em frustrar todos os planos.
Aí estava o dragão do México, que Ramon teria de combater. Contra o mesmo inimigo devia lutar o presidente Montes, e isso arruinava-lhe a saúde. Igualmente Cipriano, mas este desenvencilhava-se melhor. Os soldados apoiavam-no, com tambores e danças de roda das fogueiras. E o general consolidava de dia para dia a sua posição.
Ramon, na sua província, também se sentia seguro. Era o chefe, e, com o seu esforço e energia, lograva dominar qualquer veleidade de revolta. Aterrorizava com o mistério da vida, continha a gente em respeito pela fascinação que exercia. Nos seus domínios, considerava-se forte. Mas fora daí, e em especial na Cidade do México, aquela invisível e subtil má vontade do povo dir-se-ia fazê-lo sangrar, sangrar imensamente. E também a voracidade dos estrangeiros, aves de rapina que rondavam a capital cosmopolita.
Durante a ausência de Ramon, Kate fez companhia a Teresa. As duas mulheres tinham isto de comum: achavam que era melhor apoiar um homem corajoso do que fazer papel de intrometidas e importunas. Isso as unia. A profunda convicção de que deviam ser fiéis aos respectivos maridos ligava intimamente a mulher de Cipriano à de Ramon.
Estava quase no fim a estação das chuvas, embora se pudessem prever aguaceiros ocasionais para Setembro ou mesmo Outubro. Entretanto o belo Outono mexicano surgira na terra, como uma espécie de Primavera ao inverso. Vastos espaços se cobriam de flores brancas e cor-de-rosa, estranhos arbustos silvestres floresciam também, duma maneira fantástica, brilhavam à luz florestas inteiras de girassóis; o céu estava de um azul puríssimo, e, nas terras encharcadas da última chuva, a claridade do dia reverberava intensa.
O lago enchera-se mais, povoando de plantas aquáticas todas as suas margens. Vinham aves imigradas do Norte, nuvens de patos bravos que pareciam poeira no ar e depois polvilhavam a água como raminhos de erva: colimbos, grous, gaivotas brancas dos mares interiores, tal se o mistério dos regimes setentrionais se deslocasse para o Sul. Errava em terra o cheiro de água, que produzia uma sensação calmante - tanto mais que Kate supunha ter origem na aridez do solo parte do horror que lhe causava o povo mexicano. Se houvesse sempre uma gota de água na atmosfera e uma neblina sobre as árvores, desapareceria dos corações humanos aquela maldade inexprimível.
Kate ia muitas vezes a cavalo, com Teresa, ver os campos. A cana-de-açúcar, nos vales, crescia muito verde e muito alta, e os peóns começavam a cortá-la com os seus nwchetes, que pareciam espadas, e enchiam os carros de bois que as transportavam à fábrica de Sayula. Nas vertentes áridas das colinas, avultava na sua rigidez férrea a espinhosa planta da teqnila, que é uma espécie de agave. E nos cactos rijos abriam flores maravilhosas, belas de mais para tão sinistra planta. Através dos campos viam-se molhos de vagens apanhadas dos feijoeiros e abóboras dum tamanho incrível. Entre as folhas emurchecidas pendiam tomates e pimentões. Ainda se erguiam pés de milho com espigas tenras. Como a banana era pouca, as crianças colhiam toda a fruta que encontravam para fazer doce. Teresa, para esse efeito, aproveitava até os últimos figos e pêssegos. Das mangueiras suspendiam-se frutos amarelos e maduros, mas na maior parte eles estavam verdes e tombavam pesados como testículos de toiro.
Era Outono no México, com patos bravos na água, e caçadores com espingardas, e rolas nas árvores. Outono do México, início da estação seca: céu mais alto, azul mais pálido, poentes de rara transparência doirada. Os bagos de café avermelhavam-se nos arbustos contorcidos debaixo das árvores maiores, e as buganvílias, de tons roxos, eram tãoespessas que se podiam mergulhar nelas os braços.
Teresa cuidava de tudo e Kate ajudava-a. Se estava um peón doente numa das cabanas, se era preciso separar os enxames de abelhas nas colmeias debaixo das mangueiras, fazer compotas, tratar do jardim, dos vitelos, do fabrico de manteiga ou de queijos, Teresa a tudo isso atendia acompanhada de Kate. E esta admirava-se da vontade firme e constante, que tinha de ser exercida a todo o momento. Tudo corria bem graças a um poderoso esforço de vontade. À mínima fraqueza do patrão as coisas desandariam e seria a ruína da propriedade.
Jamais um desfalecimento, sempre a vontade tenaz.
Ramon regressou, numa tarde de Novembro, de longa viagem a Sonora. Viera por terra desde Lepic, e, por duas vezes, encontrara-se retido pelas inundações; não era vulgar chuvas tão tardias. Mostrava-se fatigado e com ar ausente. Kate sentiu um baque no coração enquanto comentava para si mesma: " Tão longínquo, que até parece encaminhar-se para a morte."
As nuvens cobriam o céu novamente, relampejava no horizonte, mas tudo estava silencioso. Kate retirou-se cedo e foi até à extremidade do terraço sobranceiro ao lago. Só a claridade intermitente dos relâmpagos iluminava a noite escura e, num desses breves clarões, viu Teresa sentada junto do muro do terraço descoberto; tinha a cabeça de Ramon deitada no regaço e acariciava-lhe lentamente os bastos cabelos pretos.
Kate sobressaltou-se, e disse num murmúrio:
- Desculpem! Não sabia que se encontravam aqui.
- Quis estar cá fora, ao ar livre! - explicou Ramon, soerguendo-se a custo.
- Não se mexa! - pediu Kate. - Foi estupidez minha ter vindo aqui. O senhor está cansado.
- Sinto-me realmente cansado - volveu ele, deitando-se outra vez no chão. - Aquela gente chega a convencer-me de que estou esgotado. Por isso voltei para Teresa.
- Sim - retorquiu Kate. - Não se é impunemente o Quetzalcoatl vivo. É natural que o esgotem. Mas valerá a pena ser devorado por eles?
- Tem de ser assim. Há-de-se verificar a mudança e é um homem que a deve fazer. Às vezes chego a desejar que não seja eu.
- Também acho. E Teresa igualmente. Até penso se não será preferível continuar a ser apenas um ser humano.
Teresa, entretanto, calava-se.
- Faz-se o que é preciso fazer - disse Ramon. - No fim de contas, não se deixa de ser homem. E, se daí resultar ferimento... à la guerre comme à la guerre!
Aquela voz, no escuro, parecia a de um fantasma.
- Ah! - fez Kate, suspirando. - Gostava de saber o que é um homem que se expõe a tantos horrores por causa dos seus semelhantes.
Houve um momento de silêncio.
- O homem é uma coluna de sangue dotada de voz. Quando a voz se extingue e fica apenas a coluna, tanto melhor.
Retirou-se ela para o seu quarto. Ia triste, levando ainda nos ouvidos o som daquelas palavras melancólicas. Dir-se-ia que Ramon tinha dentro de si uma ferida aberta. Era como se Kate a sentisse, nas suas próprias entranhas.
Se ele morresse, em resultado de tanto esforço? Então, pensou, Cipriano ficaria só e tudo estaria acabado.
Por que razão devia um homem afadigar-se de tal maneira por causa dum povo estúpido e mau? Se o mundo corria à desfilada para a sua perdição, deixá-lo, isso era lá com ele.
Pensou em Teresa, que consolava Ramon sem dizer nada. E pensou em Ramon, assim ferido e desesperado! Coisas horríveis, na verdade. Ela devia intervir, defendê-lo contra si próprio. Porque haviam os homens de empreender esses combates inúteis, dos quais voltavam para casa a fim de se restabelecerem junto das suas companheiras?
Para Kate, essa luta não merecia sequer as honras de um ferimento. Que tão antipático mundo terminasse de vez, se tal era o seu destino, e quanto mais depressa melhor! Kate não levantaria um dedo para o impedir. Que cada qual vivesse a sua preciosa vida, que é só uma - e fosse tudo mais para o diabo!
Tentaria impedir que Ramon continuasse naquela senda suicida. Deixá-lo ser o Quetzalcoatl vivo quantas vezes quisesse; mas não tinha o direito de se expor à maldade demoníaca do povo.
Contudo, ele insistia nisso, como Joachim fizera na Irlanda. Teresa, com a sua firmeza doce e calma, talvez lhe fosse de melhor auxílio do que Kate com as suas recriminações.
"Ah! Ainda bem que Cipriano é militar. As feridas que sofrer não lhe atingirão a alma." Mas sabia que, sem Ramon, Cipriano não seria ninguém e nem chegaria a interessar-lhe.
De manhã, Teresa compareceu sozinha ao primeiro almoço. Parecia muito tranquila; dissimulava os sentimentos sob o seu ar orgulhoso de mulher morena.
- Como vai Ramon?
- Está a dormir.
- Ainda bem. Pareceu-me muito em baixo ontem à noite.
- Sim... - Teresa fitou a outra com os seus grandes olhos negros cheios de coragem e de lágrimas contidas.
- Não compreendo que um homem se sacrifique àquele ponto. É inadmissível.
Teresa continuava a fitá-la.
- Ele não se sacrifica - replicou. - Sente que tem de proceder assim. E o meu dever é ajudá-lo.
-? Nesse caso, sacrifica-se por ele, o que também é para mim inadmissível.
- Ah, não! - retorquiu Teresa, com uma onda de sangue a ruborizar-lhe as faces. - Não me sacrifico por Ramon. Se posso dar-lhe... sono... quando dele necessita, isso não representa sacrifício. Representa... - Não terminou a frase, e o rubor acentuou-se-lhe.
- Representa amor, bem sei - volveu Kate. - Mas também a esgota.
- Não é só amor! - exclamou Teresa altivamente. - Eu podia amar outros homens, há muitos que merecem afecto. Mas Ramon... A minha alma pertence-lhe. - Afloraram-lhe lágrimas aos olhos. - Prefiro não falar deste assunto - acrescentou, pondo-se de pé.
E saiu do quarto, deixando Kate um tanto perturbada - e com desejo de voltar para Sayula.
Mas uma hora depois Teresa reapareceu e, apoiando no braço de Kate a mãozinha fresca e macia, disse-lhe em tom suave:
- Desculpe se fui indelicada.
- Eu é que não tenho razão...
- Sim, julga que em tudo isto só existe amor. O amor é uma parte mínima do resto.
- E que é o resto?
- Como posso dizer-lhe, se desconhece? Mas pensa que Ramon não é para mim mais do que um amante?
- Um marido! - emendou Kate. Teresa sacudiu a cabeça com impaciência.
- Ah, esses termos, que tão pouco significam! Não é apenas um marido! É a minha vida!
- Acho preferível cada qual viver a sua vida.
- Não. A vida é como uma semente. De nada serve se não a dermos. Sei que é assim; guardei durante anos a minha vida para mim só. Quando se a guarda muito tempo, ela morre. Quis oferecê-la a Deus, mas não consegui. Disseram-me que se eu casasse com Ramon e tomasse parte na heresia de Quetzalcoatl ficaria condenada aos tormentos eternos, mas alguma coisa me segredava que isso não era verdade e que Ramon necessitava da minha alma. Ah, señora!
- Um sorriso iluminou a face pálida de Teresa. - Dei a minha alma a Ramon. Perdi-a por sua causa. Que mais posso dizer?
- E a alma dele?
- Está aqui. - E Teresa espalmou a mão no seio. Kate ficou um momento calada.
- E se ele a atraiçoar? - perguntou então.
- Ah, señora, Ramon não é apenas um amante. É um homem honesto e não trairá o seu próprio sangue. Concedeu-me a sua alma em troca da minha, e eu lutarei até ao último sopro de vida para o apaziguar quando volta para mim esfrangalhado e com necessidade de sossego. - Teresa proferiu tudo isto com veemência, e depois acrescentou num murmúrio, como se falasse a si mesma: - Graças a Deus, não tenho uma vida só minha. Dei-a a um homem que é mais que homem, como se diz na linguagem de Quetzalcoatl. Por isso ela não morrerá em mim como um pássaro na gaiola... Oh, señora! Quando ele parte para Sinaloa e para a costa ocidental, a minha alma acompanha-o. E Ramon não se esquece que a minha está com ele, tenho a certeza! Não, señora, não deve criticar-me nem
lastimar-me.
- No entanto, acho melhor cada qual guardar a sua alma e ser
responsável por ela.
- Sim, se fosse possível! - replicou Teresa. - Mas não se pode guardar a alma dentro de nós porque acaba por morrer... Enquanto o homem não nos dá a sua semente, a nossa é estéril, e a dele nada vale sem a mulher. O mesmo acontece à alma. Enquanto a não damos a um homem e ele a não toma, nenhum valor tem. E depois de ele a tomar, toda inteira, ninguém fala de traição! Um homem só atraiçoa quando se lhe deu uma parte e não tudo, e a mulher só atraiçoa quando aceita dela apenas uma parte e não o todo. Mas quando de um lado se deu tudo e tudo se aceitou, a traição não existe. Sou o que sou para Ramon e ele é o que é para mim. Não importa o que fizer. Não importa que esteja longe.
Kate não gostava de receber lições daquela criaturinha; era mulher da sociedade, bela e com experiência da vida. Estava acostumada a que lhe rendessem preito. As demais do seu sexo chegavam a temê-la, porque era decidida e impiedosa.
Teresa também a receava um pouco como senhora da sociedade, mas não como mulher. Entrincheirada na sua almazinha orgulhosa, Teresa considerava Kate uma dessas pessoas do mundo exterior que têm muito brilho mas que não estão muito seguras dos segredos da sua personalidade. Toda a beleza e crueldade feminina de Kate era coisa secundária para Teresa em comparação com o profundo e tranquilo amor que a ligava a Ramon.
Sim, Kate habituara-se a olhar as outras mulheres como seres inferiores. No entanto, os papéis inverteram-se de súbito. Embora soubesse que Ramon era superior a Cipriano, viu-se constrangida a pensar se Teresa não seria também superior a ela.
Teresa? Mais importante do que Kate? Que surpresa! Não podia ser verdade.
Contudo, assim era. Ramon desejara casar com Teresa e não com Kate. E o ardor desse enlace ela via-o tanto nos olhos de Ramon como nos da mulher: um ardor que não existia nos olhos de Kate.
O casamento desta com Cipriano não parecia sério nem definitivo. Quando Cipriano estava ausente, ela recuperava a sua antiga individualidade. Só com o general presente é que se compenetrava da sua submissão.
Quando Teresa voltou a fitá-la com aquele seu fulgor do olhar, misturado de indignação, Kate sentiu-se desanimada e arrependida - decerto pela primeira vez na sua existência.
Sabia que Teresa sentia certa aversão por ela: era uma estrangeira branca que falava tão inteligentemente como um homem e nunca dera a sua alma; nem admitia que a pudesse dar. Todas essas damas bem vestidas, da América ou da Europa, guardavam a alma para si mesmas, numa espécie de avareza.
Teresa estava resolvida a não deixar que a outra a tratasse indefinidamente como um ser inferior. Assim procediam todas as estrangeiras para com as mexicanas, porque se consideravam emancipadas. E, para com Ramon, mostravam certa condescendência.
Mas Ramon... Bastava que ele as fixasse para que elas se sentissem reduzidas a nada, apesar de todo o seu dinheiro, experiência e ares dominadores. Raças dominadoras! Que esperassem! Ramon era um desafio a tudo isso. Que o dominassem, se fossem capazes de tanto!
- Não dormiu? - perguntou Teresa a Kate.
- Não muito bem.
- Está com olheiras.
Kate alisou a pele, desconfiada, em volta dos olhos.
- É o que nos faz o México. Não é fácil conservar a juventude neste país. A senhora é que está com bom parecer.
- Sinto-me perfeitamente.
Irradiava de Teresa uma frescura nova, algo de frágil e subtil que ela não precisava de defender contra outra mulher.
- Agora que Ramon já veio, é altura de eu regressar a casa -
declarou Kate.
- Porquê? Faz empenho nisso?
- Acho preferível.
- Nesse caso irei consigo até Sayula. De barco, não é verdade?
Kate arrumou as suas coisas. Dormira mal. A noite fora tenebrosa, cheia de horrores. Lembrara-se de Ramon atacado pelos bandidos e do seu ferimento nas costas. Tivera-a acordada durante horas o barulho ameaçador da chuva.
Percebia o desdém de Teresa pela sua maneira de considerar a
vida conjugal.
- Também eu fui casada - disse Kate. - com um homem
excepcional, a quem amei.
- Ah, sim... E ele morreu.
- Quis morrer.
- Ah, sim... quis morrer.
- Fiz o possível para evitar que se estafasse.
- Fez?
- Que mais estava na minha mão? - redarguiu Kate, num
assomo de ira.
- Se lhe houvesse dado a sua vida, ele não quereria morrer.
- Eu dei-lhe a minha vida. Amava-o. Ah, nem faz ideia! Mas ele não quis a minha alma. Achava que eu devia guardá-la para
mim.
- Os homens são assim quando são apenas homens. Mas,
sendo ardentes e bravos, então querem que as mulheres lhes dêem a alma e guardam-na dentro de si. Sei o que é. Sei onde a minha alma está. Nas entranhas de Ramon, assim como a sua semente está nas minhas entranhas, entranhas de mulher. Ele é um homem e uma coluna de sangue; eu sou uma mulher e um vale de sangue. Digo-lhe isto porque lhe salvou a vida e portanto estamos todos ligados: Caterina, eu, Ramon e Cipriano. Mas não me julgue mal. Aquela outra espécie de mulheres, as que conservam a sua alma, que é senão fraqueza?
- E os homens?
- Se são ardentes e bravos, confortam as nossas entranhas, Caterina!
Kate baixou a cabeça obstinada, furiosa por ter sido apeada do seu pedestal. Que coisa miserável, pensou, isso de uma mulher viver apenas por amor de um homem! Só para lhe enviar a alma para dentro do seu precioso corpo... E trazer no ventre a sua semente preciosa... Quanto a ela própria, nada.
Pretendeu consumar a sua indignação, mas não foi bem sucedida. Talvez no fundo, e contra sua vontade, invejasse Teresa, os seus olhos negros cintilantes, a sua firmeza selvática. Invejava-lhe os dedos delicados, e, acima de tudo, a consolação de ter um homem tão profundamente ligado a si.
A manhã estava quente depois da chuva. As rãs coaxavam, frenéticas. Na outra banda do lago as montanhas pareciam azuis-escuras, com farrapos de nevoeiro a arrastarem-se através das árvores e nuvens brancas a coroarem os picos. Nas águas barrentas navegava um barco de vela solitário.
- Hoje, tudo isto me lembra a Europa, o Tirol - disse Kate, comovida.
- Gosta muito da Europa? - perguntou Teresa.
- Muito.
- E tenciona voltar para lá?
- Penso regressar em breve, para ver minha mãe e os meus filhos.
- Eles reclamam-na?
- Sim, respondeu Kate, um pouco hesitante. E em seguida ajuntou: - Não muito. Mas quero tornar a vê-los.
- Porquê? Tem saudades deles?
- às vezes. - E os olhos de Kate arrasaram-se de água. O barco avançava sem rumor.
- E Cipriano? - volveu Teresa, a medo.
- Ah!, exclamou Kate. -Esse é para mim como um estranho.
Teresa ficou uns momentos calada.
- O homem é sempre estranho para a mulher, creio eu - rematou ela. - E porque não havia de ser?
- Mas a senhora não tem filhos.
- Tem-nos Ramon, E ele costuma dizer: "Continuarei a lançar pão à água e se meus filhos acabarem por se aproximar de mim ficarei contente." Não é. o seu caso?
- Não! - respondeu Kate. - Sou mulher, não sou homem.
- Se eu tiver filhos - declarou Teresa - também lançarei pão à água para os atrair, e espero não os reter ciosamente na minha rede. Assusta-me o amor, é tão pessoal! Devemos deixar os pássaros voarem com as suas asas e os peixes nadarem à vontade. a manhã concede-nos mais do que o amor. E eu quero ser sincera para com a manhã.

XXVI
Kate estava satisfeita por voltar à sua casa e por se encontrar sozinha. Sentia que se operava nela uma grande mudança - mudança que a poderia matar se se realizasse violentamente. Era o fim de qualquer coisa e o princípio de outra: no mais profundo da sua alma e nas suas entranhas. Os homens, Ramon e Cipriano, e o México, seriam a causa daquela modificação. Chegara o momento. Entretanto, se a evolução fosse brusca de mais, e rápida em excesso, poderia revelar-se fatal. Por isso tinha necessidade de se isolar, de tempos a tempos.
Sentava-se na margem durante horas, à sombra dum salgueiro verde, cuja cortina de folhas descia até à água. O lago mostrava-se mais alto e mais cheio que de costume, e tinha também maior calma e maior mistério. Errava o cheiro dos nenúfares que emurcheciam depois de haverem dado à costa. As distâncias pareciam prolongadas. Lembravam estampas japonesas os outeiros mais próximos, salpicados de verdura. Carros de grandes rodas traziam à aldeia a cana-de-açúcar cortada; puxavam-nos a cada um, oito bois que baloiçavam lentamente a cabeça de enormes chifres, enquanto um peón, à frente, os conduzia com o aguilhão poisado no jugo. Tão pesados, tão vagarosos e contudo fáceis de guiar!
Experimentava, no México, uma sensação esquisita, como se estivesse em presença duma humanidade pré-histórica, gente de olhos escuros de antes do período glaciário - quando o mundo era mais frio, os mares vazios e diferente a constituição da terra; quando as águas, solidificadas, se acumulavam nos pólos, e as planícies ocupavam os oceanos, como a Atlântida e os antigos continentes da Polinésia; quando os mares não passavam de lagos, embora grandes, e os povos de olhos pretos podiam dar a pé a volta ao mundo. Nesse tempo existia uma raça misteriosa de sangue ardente e ligeira no andar: raça que possuía uma civilização que lhe era própria. Depois fundiram-se os glaciares, os homens refugiaram-se nos pontos elevados, como os planaltos do México, e separaram-se em nações diferentes.
Na América é tão forte a sombra do mundo antediluviano que às vezes Kate perdia a noção dos tempos decorridos e começava a aproximar-se do antigo modo de ser, da vontade velha e torva, do desprezo da morte, da subtil e escura consciência, do instinto que precedeu a razão. Regressava à época em que o espírito e o poder dos homens residiam no sangue e na espinha dorsal, e as relações entre eles e com os animais se produziam através da medula.
Os Mexicanos ainda se encontravam nesse estádio. O que é aborígene na América pertence à fase de antes do Dilúvio, antes de reinar na terra a vida espiritual. Por isso, ali, a actividade cerebral dos brancos se alastra como uma erva em terreno virgem - para, é claro, murchar depressa e desaparecer por completo. Então, como resultado disso, surge um novo gérmen, uma nova concepção da humanidade: vem da fusão da antiga consciência instintiva e do racionalismo intelectual do branco. Um ser diferente, nascido do encontro daqueles dois.
Kate era muito irlandesa, e no fundo da sua alma jazia o misticismo original, quase desaparecido, dessa primitiva raça celta ou ibérica. É como um resíduo que existe ainda no mundo antediluviano e que não pode ser inteiramente destruído.
Sabia ela, mais ou menos, que era essa fusão o que Ramon pretendia realizar. Compreendia também o motivo pelo qual Cipriano tomava a seus olhos uma importância maior que todo o seu passado, os seus dois maridos, e os filhos. Esse velho sangue másculo despertava-lhe agora nas veias; daí vinham as palpitações que ela ultimamente sentia.
A Irlanda não podia nem queria esquecer aquele ardor sombrio e primitivo. Os Thuathas de Danaan, embora submersos, continuam vivos no sangue, não se lhes consegue impor silêncio. E a Europa científica e meticulosa tinha de se defrontar de novo com os velhos
gigantes.
Esta alteração, todavia - e Kate bem o notava -, não era coisa que se efectuasse com brusquidão; de outro modo haveria rotura e possibilidade de morte. O primitivismo tem os seus horrores. O espírito original do México, pesado, terre à terre, podia ser-lhe tão odioso que a tornasse perversa. Essa obtusa, indomável persistência, desprovida de energia e de esperança, que é peculiar ao aborígene americano, levava-a às vezes a supor que ia perder a razão. Obstinação tenaz que resistia aos séculos e desprezava a personalidade! Lascívia da morte, feroz, incalculável, terrível!
Esse povo, realmente, nunca mudava. Os homens não tinham fé na vida, em nenhuma realidade evidente. Eram apenas fiéis a certas forças obscuras do passado. O presente submergia-se na alma dos homens e das mulheres sob uma camada de lava negra, não deixando à superfície senão a indiferença.
A Esperança! A Esperança! Seria possível, um dia, fazê-la reviver nessas almas obscuras e obter o enlace das suas raças, único passo para o novo mundo do homem?
Entretanto, Kate sentia-se invadida por um mal-estar esquisito. Achava ser necessário partir, a fim de escapar a tamanha depressão. Já não podia ouvir a rastejante insistência dos criados: o sangue é só um, nós somos do mesmo sangue - sentença de tribo pior do que a morte para um indivíduo de raça branca. Estranha teimosia aquela que preconizava a todos a fusão do sangue!
Kate pertencia a uma família antiga, com pergaminhos. Fora educada nas ideias anglo-germânicas da superioridade intrínseca da aristocracia hereditária. O seu sangue era diferente do da gente vulgar: outro fluido, mais refinado.
No México, porém, nada disso conta. Juana, o homem que ia buscar água, o barqueiro que remava no lago, todos revelavam o mesmo pensamento no olhar: "O sangue é só um; pelo sangue tu e eu somos iguais." Kate lia isto nos olhos deles, adivinhava-o nas suas palavras, quer fossem deferentes ou escarninhas, e, por vezes, sentia-se revoltada com essa imposição da igualdade de sangue.
E quando se empertigava como para proclamar "O meu sangue é só meu. Noli me tangere", percebia nas pupilas negras daquelas criaturas o terrível ódio ancestral que as impele a cometer as maiores atrocidades.
Contudo, inclinavam-se perante a sua inteligência, sabedoria e compreenção, e, embora contra vontade, testemunhavam-lhe certo respeito. Ela pertencia às raças dominadoras, hábeis e espertas... Mas exigiam-lhe a aceitação da velha crença: O sangue é só um. Somos todos do mesmo sangue.
E tinha de se submeter, senão persistiriam na sua lenta vingança.
Mas não podia submeter-se de repente. Devia ser a pouco e pouco; um esforço violento destruí-la-ia.
Compreendia agora a afirmação de Ramon: "O homem é uma coluna de sangue, a mulher um vale de sangue." Era a unidade primordial
do género humano, oposta à unidade do espírito individual.
Kate, porém, sempre considerara seu o próprio sangue. O espírito é que ela partilhava com os outros.
Percebia agora o motivo por que Ramon e Cipriano usavam fatos brancos e sandálias e andavam meio nus como deuses vivos. Era a aceitação da antiga crença, o renascimento do laço de sangue que unia os homens, laço que tornava o sacrifício humano tão poderoso
factor da vida.
O sangue do indivíduo é rendido ao ser supremo, ao ser de sangue, deus, nação ou tribo.
E, na verdade, que estranha união existia entre Ramon e os seus homens, entre Cipriano e os seus soldados! Era a comunhão do sangue. Isto podia indignar Kate, enjoá-la por vezes, mas era uma força que não conseguia vencer.
Mesmo admitindo essa comunhão de sangue, Ramon reivindicava uma supremacia, até uma divindade. Era um homem como o mais humilde dos seus peóns, nascido da mesma fonte, das mesmas raízes que eles; no entanto, mostrava ser superior aos outros. E a sua superioridade não provinha do sangue ou do espírito mas duma misteriosa estrela interior que nascia do oceano sombrio e cintilava entre o mar e o céu imenso. A estrela que une o vasto sangue universal ao sopro universal do espírito e brilha entre ambos.
Porque essa coisa que reina sobre o poder humano e que é em si mesma um poder, essa coisa é a estrela misteriosa do cosmos primitivo, é a divindade no homem.
Certos homens nada possuem de divino. Possuem apenas faculdades. São ou deveriam ser escravos. Muitas vezes um homem tem a centelha divina, mas é sufocada pela força ou pela vida material.
E quando o espírito e o sangue se separam e divergem, provocando a morte maior, então apagam-se quase todas as estrelas.
Só o homem que possui uma estrela magna, uma grande divindade, será capaz de reaproximar essas forças contrárias e criar uma nova união.
Esse homem era Ramon e o seu esforço o máximo que se podia fazer: aproximar e unir as forças contrárias. Eis o poder divino de um homem. Por ele, no homem, se distingue o deus. Por ele apenas
e por mais nada.
Embora fosse como o mais ínfimo dos seus peóns, com o mesmo coração que bate, os mesmos rins insondáveis, e os lábios fechados sobre o mesmo segredo da humanidade; e fosse humano como Kate era humana, com a mesma ansiedade de espírito e a sede do puro conhecimento e da comunhão; no entanto só ele tinha o poder astral de unir os dois grandes impulsos da humanidade, e de os fundir - de ser a ave de asas imensas que paira entre as duas potências opostas: a Estrela da Manhã, que está entre o sopro da aurora e as profundezas da noite.
Os homens haviam tentado assassiná-lo com punhaladas. Carlota quisera matá-lo com o seu espírito. Cada parte, separadamente, pretendera liquidá-lo. Ele, contudo, estava fora do alcance de qualquer delas. Era o Quetzalcoatl vivo, a cintilação de uma estrela que nascia na alma dos seus compatriotas. Chama dum astro a meio das duas asas do poder: eis só o que representa a divindade num homem e em toda a humanidade.
Kate recebeu um recado de Cipriano: mandava-lhe dizer que vinha instalar-se na Vivenda Aragon. Esta casa era a principal da região do lago; tinha um jardim em toda a volta, não muito grande mas bonito, com palmeiras e sebes de jasmineiros, tudo muito verde em resultado de regas constantes. A própria construção lembrava um castelo em ponto pequeno, talvez despropositado; mas eram agradáveis as varandas espaçosas que davam para a encosta e a vegetação do jardim, mesmo acima do lago.
Cipriano chegou bem disposto. Brilhavam-lhe os olhos com uma expressão de mocidade. Queria casar a valer com Kate, segundo a lei civil mexicana, e morar com ela na Vivenda Aragon. Kate hesitava, achando que tinha necessidade de voltar em breve à Europa, sobretudo à Inglaterra e Irlanda. Era urgente, porque lhe custava já a suportar aquela ameaça do México, a sua influência deprimente. Precisava, pelo menos, de um intervalo de repouso.
Assim o declarou a Cipriano, que ficou desanimado.
- Não importa casar ou não antes de ir - disse ela. - O que tenho é de me afastar daqui o mais depressa possível.
- Quando?
- Em Janeiro.
O rosto dele desanuviou-se.
- Então casemo-nos primeiro. Na semana que vem.
Ela aquiesceu com estranha indiferença, e Cipriano, radiante, correu a fazer os preparativos necessários.
Pouco interessava a Kate o casamento civil. No sentido essencial, já estava casada com Cipriano. Ele era acima de tudo militar, tão depressa vinha para ela como a deixava. Kate, de qualquer maneira, passaria grande parte do tempo sozinha.
Podia convir-lhe como marido, mas o que a assustava era esse México terrível. O movimento quetzalcoatliano espalhara-se de maneira sinistra por todo o país. O arcebispo manifestara-se contra isso, e Ramon, Cipriano e seus aderentes estavam excomungados. Haviam tentado assassinar Montes.
Na capital, os partidários de Quetzalcoatl tinham escolhido para lugar de reunião a Igreja de San Juan Bautista, conhecida pela Igreja do Salvador Negro. O arcebispo ordenara aos seus fiéis que fossem em procissão ao referido templo, agora chamado Casa de Quetzalcoatl, a fim de o retomarem para o culto católico. O governo, porém, sabendo que mais tarde ou mais cedo haveria luta, fez dispersar a procissão e deteve o arcebispo, depois de alguma efusão de sangue.
Rebentou então uma espécie de guerra. Os Cavaleiros de Cortez exibiram a sua famosa reserva de armas, que aliás não era muito impressionante. Em Zócalo produziu-se uma manifestação clerical, dirigida por um padre fanático. Montes mandou atirar sobre os insurretos. Aquilo afigurava-se o começo duma luta religiosa. Pelas ruas viam-se os bandos de Quetzalcoatl, com as suas serapes azuis e brancas, e' os de Huitzilopochtli, de serapes vermelhas e pretas, marchando ao som de tambores e erguendo uns as suas estranhas insígnias redondas, feitas de penas, e outros longas varas rematadas por um penacho rubro de extremidade preta. Nas igrejas, os sacerdotes incitavam os fiéis à guerra santa; os que haviam aderido à causa de Quetzalcoatl discursavam nas ruas à multidão.
Período tumultuoso. Em Zacatecas, o general Narciso Beltran manifestara-se contra Montes e a favor da Igreja, mas Cipriano interviera com tal presteza e violência que deu em resultado o fuzilamento de Beltran e a dispersão das suas tropas.
Então Montes declarou ser igual no México o antigo culto católico e publicou um decreto determinando que a religião nacional da República fosse a de Quetzalcoatl. Encerraram-se todas as igrejas e os padres viram-se obrigados a prestar juramento de fidelidade à República ou a serem condenados ao exílio. Em todas as cidades e aldeias surgiam os soldados de Huitzilopochtli e os homens de serape azul. Ramon trabalhava sem descanso. Cipriano aparecia nos lugares onde menos o esperavam. Conseguiu despertar uma espécie de frenesi religioso nas regiões mais descontentes, como Vera Cruz, Tamaulipas, Jucatão. Efectuaram-se no mar estranhos baptismos e nas costas elevaram-se fortalezas com as cores de Huitzilopochtli.
Todo o país vibrava com uma sensação desconhecida, dominado pela vaga de energia nova, mas em tudo aquilo entrava violência, crueldade e certo horror.
Deportaram o arcebispo. Já não se viam sotainas nas ruas; só as serapes de Quetzalcoatl e as de Huitzilopochtli se evidenciavam entre as multidões. Eis porque Cipriano chegou junto de Kate, com os olhos a luzir, ébrio de triunfo. Kate ficou assustada e sentiu-se vazia e inútil. Nem sequer aquela vitória espantosa e a alteração que se dava na face do mundo a podiam salvar por completo. Pertencia à velha Europa e não lhe era fácil transformar-se tão rapidamente. Contudo, achava que, se voltasse à Irlanda e concedesse uns tempos de repouso à sua vida e ao seu corpo, poderia então regressar ao México e participar nos acontecimentos.
Porque não era só o espírito que se modificava, mas também o corpo e o próprio sangue. Sentia esse terrível catabolismo e metabolismo a transformá-la noutra criatura. Se a metamorfose fosse muito brusca, decerto ela morreria.
Casou-se, pois, legalmente com Cipriano e foi passar um mês com ele na Vivenda Aragon. Em seguida embarcaria sozinha para a Irlanda, projecto a que o marido deu a sua anuência.
Era deveras estranho estar casada com ele. Kate tinha a impressão de se afundar pesadamente abaixo da superfície da vida, para jazer nas suas profundezas.
Estranha, pesada, verdadeira passividade. Pela primeira vez na sua existência, ela sentia-se repousada. Falar e pensar tornavam-se-lhe coisas triviais; as ondas à tona de água não são nada para aqueles que vivem submersos.
Na alma, estava serena e altiva. Ah, se o corpo não sofresse tanto com a transformação! No cosmos encontrara a paz de espírito, o universo abrira-se à sua frente, e ela deixava-se afundar no leito de puro descanso. Adquirira quase tanta segurança como Teresa. Só a atormentava a mudança que se lhe operava no sangue.
Cipriano mostrava-se feliz, à sua maneira de índio. Parecia um adolescente contemplando o mistério da vida com olhos dilatados de espanto. Não se ocupava especialmente de Kate, nem lhe falava de assuntos sérios. Se ela aflorava uma conversa desse género, dirigia-lhe um olhar desconfiado e afastava-se.
Tinha consciência de coisas de que a mulher mal se apercebia, sobretudo do perigo das palavras irritantes. E isto ele evitava.
Kate compreendia agora como os seus antigos amores haviam sido brutais, carregados de desejo e de contactos voluptuosos. com Cipriano, desaparecia a sua vontade ardente feminina, toda ela doçura, submissão; e contudo, tais as fontes térmicas que brotam da terra sem rumor, tão poderosa era na sua força secreta!
Via quase com espanto morrer dentro de si a Afrodite da espuma, essa Afrodite ávida de sensações ardentes. Como se prevenido por vago instinto, Cipriano repudiava essa parte da natureza de Kate. Quando esta se deixava dominar pelo êxtase voluptuoso que acaba em espasmos delirantes, ele afastava-se da mulher. Retirava-se desde que pressentia nela a sede daquelas volúpias a que costumava chamar o seu "prazer". E Kate percebia que lhe era repulsiva nesses momentos. Misterioso e implacável, afastava-se sem uma palavra.
Estendida a seu lado ela compreendia então quanto era superficial aquela efervescência de sensualidade. Parecia vir do exterior, não do seu íntimo. Depois do primeiro instante de decepção, quando esse prazer lhe era negado, concluía que não o desejava realmente, que até lhe repugnava.
E Cipriano, no seu silêncio quente e obscuro, aproximava-se quando ela se assemelhava a uma fonte borbulhando sem rumor das profundezas vulcânicas. Já não se tratava de prazer consciente. O que se passava era estranho, inexprimível, muito diferente das suas relações com Joachim. Nem êxtases, nem espasmos. Uma espécie de força subterrânea a que tinha de se submeter.
Tal como no amor, assim era Cipriano na vida. Kate não conseguia perscrutá-lo. Se tentava, via-se obrigada a desistir e a classificá-lo entre as coisas que existem e não se compreendem. Um desconhecido, e uma presença; nada mais.
Não podia existir intimidade. Cipriano envolvia-se na sua reserva como numa capa e deixava Kate envolver-se na dela. Eram dois estranhos. Ele aceitava o facto integralmente, como se outra coisa não fosse possível, mas Kate achava aquilo deveras singular. Tinha tanto desejo de intimidade e esforçara-se tanto por obtê-la!
Agora, resignara-se a aceitá-lo tal como era: um desconhecido, um estrangeiro na presença do qual vivia. E sem nenhuma intimidade espiritual, a sua união não passava de uma união de sangue.
Por isso, pouco importavam as ausências de Cipriano. Deixava atrás de si a marca da sua presença, e levava consigo a de Kate. Em resumo, não existia o desgosto da separação.
Certa manhã, ele teve de partir cedo para a cidade. O sol ainda não cobria o lago mas, para além de Tuliapan, já acariciava as montanhas, que brilhavam tão distintas que se diriam focadas por luz mágica. O sulco verde das encostas parecia ao alcance da mão. No seu voo, cintilaram de súbito duas gaivotas brancas, apanhadas na luminosidade. Mas o lago, suave, unido, silencioso, permanecia ainda na sombra.
Kate lembrou-se do mar. O Pacífico não ficava longe. Ela tinha a impressão de o haver esquecido, mas sentia de novo a necessidade da sua brisa.
Cipriano ia banhar-se; Kate viu-o caminhar sobre as lajes do cais. Despiu o roupão e o vulto escuro desenhou-se na água amarelada. Era tão moreno! Tal um malaio. Corpo tão trigueiro como a cara; e com esse físico primitivo, e o peito alto, e as ancas bem modeladas, evocava as figuras masculinas de certas medalhas gregas.
Mergulhou da beira do cais e avançou na água mansa. Nesse momento a luz espalhou-se dos cimos das montanhas e cobriu de oiro a superfície do lago. Imediatamente, Cipriano apareceu rubro como fogo. Os raios solares, porém, não eram vermelhos, mas, reflectidos pelas águas, davam ao corpo de Cipriano um tom de lume, como se o abrasassem.
Os filhos da Manhã... A coluna de Sangue... Um Pele-Vermelha... Kate contemplava-o admirada enquanto nadava resplandecente e puro. Como se fosse de fogo!
Os filhos da Manhã... Kate mais uma vez renunciou a todo e qualquer esforço de conhecimento - e, sem esforço, limitou-se à comunhão de sangue.
Sim, a sua raça... Ela notara já como os indígenas se tornavam de um vermelho puro à luz da manhã e da tarde. Dir-se-iam chamas erguendo-se da água.
Cipriano partiu a cavalo, com o criado. Kate viu-o afastar-se pela estrada além, sombrio na sua montada ruça. Parecia não fazer movimento nenhum. Irradiava um orgulho másculo e, assim unido ao animal, era como se este e o cavaleiro constituíssem um único ser.
Desapareceu. Kate, por um instante, experimentou saudade da sua presença. Mais do que dele próprio. Não desejaria tocar-lhe nem falar-lhe, mas tão-somente senti-lo ali.
Depressa se dominou e voltou à realidade. Desde que se compenetrava da ausência de Cipriano, vinha-lhe a noção nítida da sua presença.
Passeou um pouco pela costa, junto do molhe. Adorava estar só. Absolutamente só, com o jardim, o lago e a manhã.
"No fundo, sou como Teresa", pensou ela.
De súbito viu à sua frente uma corda comprida e escura em cima de um pedregulho. Aquilo fê-la sair dos devaneios. Era uma cobra de pele ornada com delicados desenhos; estava sobre uma pedra enorme e a cabeça pendia-lhe até ao chão.
O réptil sentiu a presença da mulher, pois, com incrível rapidez, rastejou ao longo da rocha e entrou numa fenda que havia na base do molhe.
Não era grande o buraco. Depois de ali penetrar, virou a cabeça e dardejou a língua preta; mas em seguida desapareceu devagar, e Kate viu-lhe ainda o último anel, no qual poisava a cabeça chata. Fazia lembrar aqueles diabos que se representam de queixo apoiado sobre os braços, olhando através duma seteira. Do fundo do esconderijo espiava a mulher; seguia-a com os olhos cintilantes de crueldade.
Kate pensou então em todos esses seres invisíveis, escondidos nos recantos ocultos da terra. E perguntava a si mesma se aquele réptil não sofreria por ser incapaz de se elevar na escala da criação; de não poder correr a quatro patas em vez de rastejar...
Talvez não. Talvez houvesse encontrado a sua própria paz. Kate sentiu-se reconciliada com o animal.

XXVII
Teresa e Kate tornaram a visitar-se. Existia agora entre ambas certa simpatia, especialmente desde que a irlandesa decidira partir.
Envolvia o lago uma pureza outonal. Sentia-se a humidade na atmosfera, as sarças das encostas cobriam-se de rebentos. O sol inundava os montes duma luz de ouro, as sombras eram profundas, aveludadas. A verdura invadia tudo, até as rochas e a terra cor-de-rosa. O verde brilhante das canas-de-açúcar sobressaía no fundo rubro dos campos lavrados de fresco; aqui e ali, entre a massa escura das árvores, avultava a mancha branca das povoações.
O céu estava alto e límpido. No ar cristalino vibravam os tambores e o grito para as pausas do dia. E o dia parecia deter-se perante o mistério supremo desse universo que desabrochava, vasto, suave e cheio de vida.
Até no lago se encontrava uma espécie de apaziguamento. Avançava uma canoa com a vela entumecida tal uma concha nacarada; o casco negro e afilado deslizava sobre a água. Dir-se-ia a barca de Dioniso portadora duma mensagem e de ramos de videira.
Kate mal se lembrava agora da secura árida dos meses anteriores, quando a terra parecia crepitar ao sol implacável.
Ramon e Teresa atravessaram o lago e o seu barco de remos entrou no molhe. Era uma manhã em que as sombras nas montanhas tomavam o tom azul das centáureas.
- Sempre vai partir? - perguntou Ramon a Kate.
- Por uma temporada. Não me julga a mulher de Loth, não é verdade?
- Não - respondeu ele, a rir. - Julgo que é a de Cipriano.
- E sou. Mas preciso de sair, embora por pouco tempo.
- Ah! Nesse caso vá e volte depressa. E diga lá na Irlanda que façam o que fizemos aqui.
- Como?
- Encontrando-se em si mesmos, e no seu próprio universo, e com os seus deuses. Justifiquem os seus mistérios. Os Irlandeses são tão prolixos no que respeita aos seus heróis de outrora e aos seus tempos gloriosos! Diga-lhes, pois, que concretizem tudo isso, como nós fizemos com Quetzalcoatl e Huitzilopochtli.
- Está bem. Veremos se há quem me escute...
- Sim, senhora. - Seguiu com os olhos a vela branca que se aproximava e depois indagou: - Afinal, porque quer partir?
- É-lhe indiferente o caso, pois não?
- Não, não me é indiferente.
- Porquê?
Ramon levou outra vez uns segundos para responder:
- É uma das nossas - replicou por fim. - Precisamos de si.
- Mesmo quando não faço nada? E quando principio a aborrecer-me com a história do Quetzalcoatl vivo e o resto, e preferia conhecer um simples Don Ramon?
Ele riu-se.
- Que é um simples Don Ramon? Don Ramon tem dentro de si Quetzalcoatl vivo. Mas a senhora auxilia-nos, apesar de tudo.
- Não creio que precise de auxílio, e muito menos de uma mulher que. no fim de contas, não é mais que a esposa do seu amigo.
Estavam sentados num banco, debaixo das manhãs-de-páscoa, cujas folhas rubras formavam como que uma flor de pétalas enormes.
- A esposa do meu amigo - volveu Ramon. - Que poderia
ser de mais agradável para mim?
- Pois claro! - exclamou Kate de maneira ambígua. Ramon tinha os braços apoiados nos joelhos e olhava para o
lago, com ar ausente. O seu rosto reflectia cansaço e aquela vulnerabilidade que sempre comovia Kate. Mais uma vez ela se compenetrou do isolamento e esforço que a procura de uma vida diferente impunha àquele homem. E, no entanto, ela não desistia...
Essa visão acentuou-lhe o sentimento de impotência, da impotência total da mulher em ajudar o homem que caminha para o Além.
- Está muito seguro de si mesmo? - perguntou.
- Seguro de mim? Não! De um instante para o outro eu morro e desapareço da face do mundo. Como poderia estar seguro de mim
mesmo?
- Mas porque há-de morrer?
- Todos morrem. Até Carlota!
- Essa tinha a sua hora marcada.
- Pode-se marcar a nossa hora como se faz no despertador de um relógio?
Kate calou-se por uns momentos.
- Se não está seguro de si mesmo, de que está então? - inquiriu como se o desafiasse.
Ramon fitou-a com os seus olhos sombrios.
- Estou seguro... seguro... - A voz sumiu-se-lhe, o rosto tomou a palidez dum defunto. Só os olhos a observavam intensamente. De novo ela se viu perante a sombra dolorosa do homem e se sentia impotente diante desse espectro vivo do sofrimento.
- Não pensa que anda em erro, pois não? - perguntou Kate.
- Não, mas talvez não possa manter...
- E então? - insistiu friamente a irlandesa.
- Continuarei o meu caminho, embora desacompanhado. Kate só lhe via os olhos negros, fitos nela. Ramon começou a falar em espanhol: - Isto faz-me doer a alma, como um pronúncio de morte.
- Mas porquê? Não está doente!
- Sinto a alma desagregar-se.
- Não deixe! - exclamou Kate, alarmada.
Ramon fitava-a ainda com os olhos inexpressivos. De súbito, ela experimentou uma sensação de calma e de força.
- Devia esquecer por uns tempos - disse-lhe em voz compassiva, poisando a sua mão na dele. Para quê tentar compreendê-lo ou contrariá-lo? Era uma mulher, ele um homem e, portanto, tinham da vida uma concepção diversa.
Ao contacto daquela mão, Ramon percebeu despertar de um sonho e fixou-a com olhar perscrutador e altivo. A carícia maternal sobressaltara-o como uma picada.
- Sim, devia - disse.
- Pois claro. Se quer ser tão... abstracto e quetzalcoatliano enterre de vez enquando a cabeça na areia como fazem as avestruzes, e esqueça.
- Oh! - exclamou Ramon sorrindo. - Ei-la de novo zangada!
- O caso não é tão simples como parece. Existe em mim um conflito, e não me deixam ausentar-me por algum tempo.
- Não podemos impedi-la.
-Pois sim, mas discordam da minha ida. Não me deixam partir em paz.
- Porque deseja ir-se embora?
- Tenho de ir. Tenho de voltar para junto dos meus filhos e da
minha mãe.
- Sente essa necessidade?
- Sinto.
Logo que deu esta resposta compreendeu que havia nela certa duplicidade. Era como se tivesse dois eus: um, mais novo, terno, sensível, que pertencia a Cipriano e a Ramon; outro, duro, completo, que pertencia aos filhos, à mãe, à Inglaterra, a todo o seu passado. O eu antigo nada tinha de submisso e era forte, o recente parecia frágil, estava ligado a Cipriano e até a Ramon e a Teresa; nada tinha de independente.
Kate possuía consciência desta dualidade e sofria com isso. Porque não conseguia optar definitivamente pela antiga maneira de ser, nem pela moderna, ficava a deter-se entre as duas.
- Pois é - continuou. - Sinto essa necessidade, e querem
evitar que eu parta.
- Que ideia! - protestou Ramon.
- Sim, senhor. Exercem pressão sobre mim, paralisam-me, impedem-me de me ir embora.
- Se tem essa sensação, convém que nos afastemos de si durante uns tempos.
- Porquê? Não concordam com a minha ida? Se eu tenho de
ir, porque não me apoiam?
Ramon fitou-a tranquilamente.
- É impossível. Não acredito nessa partida. Seria virar-nos as costas, renegar-nos. Mas a verdade é que somos todos muito complicados. Se acha que tem de se ausentar durante certo período, então vá! Não é coisa de importância primordial. Já fez a sua opção, e
eu não fico apreensivo.
Kate sentiu alívio ao ouvir isto, porque estava bastante preocupada consigo mesma. Nas suas relações com Cipriano e Ramon, nunca tinha a certeza de nada. Contudo, replicou com um pouco de ironia:
- Porque haveria de ficar apreensivo?
- Não desconfia de si própria às vezes?
- Nunca! Estou sempre segura da minha pessoa.
Continuavam sentados no jardim da Vivenda Aragon, debaixo da manhã-de-páscoa. O ar começava a aquecer. O lago estava calmo, o vento amainara e tudo se conservava imóvel - excepto as folhas rubras do arbusto.
O Natal aproximava-se! Eis o que recordou a Kate aquela planta majestosa.
Natal! O azevinho! A Inglaterra! As prendas! As iguarias! Se ela se apressasse poderia chegar à Inglaterra na data festiva. Achava uma coisa tão natural encontrar-se na pátria com a mãe, pelo Natal! Tinha casos tão interessantes a contar! E as bisbilhotices divertidas que havia de ouvir... De longe, tudo isso lhe parecia encantador. No entanto, experimentava como que uma relutância ao pensar nesse regresso.
- Podemo-nos fartar de coisas boas - disse ela a Ramon.
- De qual, em particular?
- Oh! De Quetzalcoatl e todas essas histórias. Podemos estar saturados.
- É possível - respondeu Ramon, pondo-se de pé e afastando-se em passos tão subtis que ela nem deu pela sua retirada.
Quando compreendeu que ele se fora embora, ficou fula. Mas continuou sentada debaixo do magnífico arbusto, contemplando com os olhos irritados a sebe de jasmineiro e as suas flores dum branco puríssimo. Onde é que ela ouvira qualquer coisa a respeito de jasmins? "E entre nós os jasmins..."
Oh! Como se sentia farta de tudo aquilo!
Teresa descia a ladeira do jardim.
- Ainda está aqui?
- Onde podia eu estar? - retorquiu Kate.
- Não sei... Meu marido foi a Sayula a fim de falar com o Jefe. Não quis esperar para ir connosco no barco.
- Talvez tivesse pressa.
- Que maravilha! - observou Teresa, apontando para o estendal vermelho do majestoso eufórbio.
- São as vossas flores de Natal, não são?
- Sim, as flores de Noche buena.
- É extraordinário! O Natal com hibiscos e manhãs-de-páscoa! Estou ansiosa por ver azevinho e laranjas na montra duma frutaria de Hampstead.
- Porquê? - disse Teresa, rindo.
- Ah! - suspirou Kate. - Voltar à vida simples, ver os autocarros a correr na lama de Piccadilly, na véspera do Natal, e os passeios molhados cheios de gente diante das lojas cintilantes...
- Isso é que é vida, para si? - perguntou Teresa.
- Sim. Sem esta abstracção e vontade. A vida satisfaz-me se eu puder vivê-la e ser eu mesma.
- É altura de Cipriano regressar - disse Teresa.
Kate levantou-se com súbita impaciência. Já não suportava essa tutela. Haviade lhes mostrar que era livre!
Foi com Teresa à aldeia. O ar parecia misteriosamente vivo, animado com um sopro novo. Mas Kate sentia-se fora do ambiente. As duas senhoras sentaram-se debaixo de uma árvore na praia de Sayula, conversando um pouco e contemplando a imensidão do lago
cor de pérola.
Ancorado junto do molhe estava um barco de toldo vermelho e mastro comprido. Em terra, viam-se grupos de homens vestidos de branco a olharem para o interior da embarcação. O contorno monolítico duma vaca preta e branca e dum touro enorme recortava-se contra a superfície das águas.
Era perto, e no entanto parecia tudo estranho e remoto. Dois peóns colocaram uma prancha e puseram-se a empurrar a vaca para lá. O animal avançou relutante mas depois, com a lenta indiferença dos Mexicanos, seguiu pela ponte adiante. Os homens incitavam-no, até que ele ganhou o barco e entrou definitivamente no porão.
O grupo ocupou-se então do touro. Um mexicano já idoso, alto, de calças estreitas de pele e casaco de cabedal, com um imenso chapéu de feltro bordado a prata, ergueu delicadamente a cabeça do touro, pegando-lhe pela argola do focinho. Atrás estava um peón que, curvando-se, empurrou os poderosos flancos do animal. E este, com toda a calma, foi andando pela prancha além. Mas parou.
Os peóns reagruparam-se. O que estava atrás, de faixa vermelha atada à cintura, deixou de empurrar. Então dois outros passaram uma corda em volta das ancas do touro. O velho tornou a pegar pela argola, sempre com muito cuidado, e o animal levantou outra vez a cabeça. Mas continuou parado.
De novo lhe puxaram pela argola e pela corda. O monstro mantinha-se impassível. Tudo isto decorria no maior silêncio.
Por fim o touro percorreu a ponte em passos lentos e alcançou a borda do navio. Ali, esperou.
De cabeça baixa, olhava para o fundo do porão. Os homens empurravam-no com toda a força, puxavam a corda - tudo no profundo silêncio mexicano.
Devagar, cauteloso, o animal agachou-se, e então, com um movimento rápido, pendeu as patas dianteiras no interior do barco, ficando com os quartos traseiros alçados. Houve um momento de confusão, depois um baque. Finalmente, o touro saltara e encontrava-se no porão do navio.
E tudo tão silencioso e tão remoto!
- Ramon quer que se sente ao lado dele no templo como esposa de Quetzalcoatl... com algum nome esquisito? - perguntou Kate a Teresa.
- Não sei. Mais tarde, diz ele, quando for ocasião de haver uma deusa.
- E importa-se?
- Por mim, tenho medo. Mas sei que Ramon o deseja. Ele diz que é aceitar a maior responsabilidade da nossa vida, e eu acredito que seja verdade. Se existe divindade em mim, devo reconhecê-la, envergar a túnica verde e ser deusa no momento oportuno. Ramon afirma que precisamos de manifestar a presença divina. E, ao lembrar-me de meus irmãos, acho que ele tem razão. Hei-de pensar no deus que palpita invisível como o coração do mundo. E quando vestir a túnica verde e me sentar no templo diante de toda a gente, voltar-me-ei para o coração do universo e tentarei compenetrar-me do meu eu divino.
- Julgava que a túnica verde era só para a esposa de Huitzilopochtli - observou Kate.
- Ah, sim! - replicou Teresa. - A minha é preta, com barras brancas e desenhos encarnados.
- Preferia a verde? Fique com ela, se quiser. Eu vou-me embora...
Teresa ergueu os olhos para Kate.
- A túnica verde é para a mulher de Huitzilopochtli - declarou.
- Não vejo que isso tenha importância - volveu a irlandesa.
- Cada homem deve possuir a esposa que lhe convém. Cipriano não quereria uma mulher como eu.
- Cada mulher deve ter o homem que lhe convém - retorquiu Kate. - Para mim, Ramon seria muito abstracto e muito despótico.
Teresa ruborizou-se e baixou os olhos.
- Ramon exige muita submissão de uma mulher para que me agradasse - ajuntou a outra.
Teresa ergueu a cabeça, o pescoço moreno ondulou como uma
serpente.
- Como é que sabe que Ramon exige submissão das mulheres? Como é que sabe? Nunca a exigiu de si... Está enganada. Ele não me impõe tal submissão. O que pretende é que me entregue brandamente; em compensação, entrega-se-me, a mim, com uma brandura maior do que esta que lhe concedo: um homem como Ramon é mais dócil do que uma mulher. Não se assemelha a Cipriano, que é soldado. Ramon mostra-se dócil. Não tem razão no que
diz, Caterina.
Kate soltou uma risadinha. Mas Teresa prosseguiu:
- Vejo-a como um soldado entre as mulheres, está sempre a combater. Eu não sou assim. No entanto, há mulheres que são de temperamento bélico e essas precisam de mandos militares. Eis a razão por que é Malintzi e tem um vestido verde. Estará sempre disposta a lutar... até consigo mesma, se ficar só no mundo.
Havia uma grande calma em volta do lago. As duas senhoras aguardavam a chegada de Ramon.
Um homem vestido de branco, acocorado e silencioso debaixo de uma árvore, desbastava folhas de palmeira, com ar concentrado. Em seguida ia molhá-las na água e voltava para se sentar de novo, recomeçando o trabalho com aquela atenção pueril da gente do povo. Estava a consertar uma cadeira de palha. Como Kate o observasse, os olhares dos dois encontraram-se e o homem saudou-a. Dir-se-ia que, dele, emanava para ela uma chama de vida, a qual lhe transmitiu um estranho poder.
Nitrindo excitado, corria ao longo da margem um cavalo ruço malhado de branco. A crina flutuava ao vento, as patas faziam saltar os calhaus, as narinas abriam-se-lhe ansiosas. Porque seria?
Um peón fizera entrar no lago a sua carroça puxada por quatro muares, até que a água ficou acima dos varais, e quase atingindo o fundo do veículo. Parecia um barco conduzido por quatro cavalos-marinhos.
Era Inverno, mas dir-se-ia Primavera nas imediações do lago. Saltitavam na praia bezerros amarelos e brancos, agitando a cauda, correndo lado a lado à beira da água, que eles cheiravam desconfiados.
A uma árvore estava amarrada uma burra, com a sua cria deitada à sombra, um jumentinho preto como uma amora, enroscado no chão, com a cabeça peluda erguida e as longas orelhas fitas.
- Quantos dias tem o burrinho? - perguntava Kate ao peón, que saíra da sua cabana de colmo.
O homem dirigiu-lhe um olhar em que havia júbilo e deferência - olhar que fez Kate sentir uma onda de orgulho encher-lhe o peito.
- Nasceu a noite passada, patrona! - respondeu ele, sorrindo.
- Tão novo! Ainda não pode aguentar-se nas pernas, pois não?
O peón aproximou-se do jumento e pô-lo de pé. E ali ficou o animalzinho, espantado, de pernas abertas, como se em cima de ganchos de cabelo.
- Que engraçado! - exclamou Kate, deliciada. O homem riu-se; parecia grato pelo interesse dela.
O jumento a custo se mantinha naquela posição. Vacilava sobre as quatro patas bambas, com ar admirado. Deu uns passos oscilantes para cheirar as folhas de milho. Cheirou, e tornou a cheirar, tal se o mistério do olfacto se lhe revelasse nas narinas.
Então voltou para Kate a cabeça aveludada e deitou de fora a língua cor-de-rosa. Kate soltou uma gargalhada, o que fez o animal dar um pulo que o deixou infinitamente surpreendido consigo próprio. Tentou uns passos, e, de repente, sem que ele mesmo esperasse semelhante coisa, deu outro salto.
- Já dança! - exclamou Kate. - E só tem umas horas de existência!
- Já dança - confirmou o peón.
Depois daquelas experiências, o burrinho aproximou-se da mãe em passos incertos e começou a mamar.
Erguendo a vista, Kate encontrou os olhos do homem cintilantes da chama da vida, cheios de confiança e de conhecimento.
O jumentinho preto, a mãe, o mistério da criação, o respeito pela mulher superior a ele, bela e radiosa, tudo isto exprimiam os olhos negros desse homem primitivo.
- Adiós! - disse Kate.
- Adiós, patrona! - respondeu ele, erguendo o braço, na saudação de Quetzalcoatl.
Atravessou ela a praia em direcção ao cais; sentia dentro de si uma onda de vida, forte, resistente. "É o sexo", disse consigo. "Como o sexo pode ser extraordinário quando o homem o conserva poderoso e sagrado e que ele enche o mundo! É como o sol, penetrando-nos. Mas não me submeterei, mesmo assim. Porquê ceder?" Ramon aproximava-se, com o seu largo chapéu ornamentado do símbolo de Quetzalcoatl. Nesse instante tocaram os tambores e, do alto da torre, soou a voz nítida e possante anunciando o meio-dia. Todos os homens que se encontravam na praia aprumaram o corpo e ergueram o braço direito. As mulheres viraram a palma da mão para o Sol. Tudo ficou imóvel, excepto os animais.
Então Ramon encaminhou-se para o barco, enquanto os homens o saudavam à maneira de Quetzalcoatl.
- É espantoso como nesta terra se pode ter a impressão de que se é alguém! - notou Kate, quando já iam sobre a água no barco de remos. - Sentimo-nos como se pertencêssemos de facto à nobreza.
- E não é verdade?
- Sim, mas isso em toda a parte nos é negado. Só aqui temos a noção do poder da nobreza. Os indígenas ainda a veneram. Parecem
adorar-me.
- Por enquanto - replicou Ramon. - Mais tarde assassiná-la-ão porque a adoraram.
- É inevitável? - volveu Kate em tom despreocupado.
- Creio que sim. Se vivesse sozinha aqui, em Sayula, e reinasse por algum tempo, seria assassinada... ou pior ainda... pelo povo que a tinha idolatrado.
- Não acredito.
- É como lhe digo.
- Mas porquê?
- A não ser que se consiga dos deuses a nossa própria nobreza e se implore dos céus o poder, acabaremos por ser assassinados.
- A minha nobreza tem essa origem.
Mas não ficou muito convencida e mais firmou a sua resolução
de partir.
Escreveu para a Cidade do México e reservou uma passagem de Vera Cruz a Southampton. Embarcaria no último dia de Novembro.
Cipriano regressou a 17 e Kate participou-lhe o que tinha feito. Ele ficou a olhá-la, de cabeça um pouco à banda e com uma expressão de criança ajuizada, mas Kate foi incapaz de adivinhar o que lhe ia na alma.
- Vais-te embora já? - perguntou ele em espanhol.
A mulher percebeu então que estava ofendido. Quando se melindrava falava-lhe sempre em espanhol, nunca em inglês.
- No dia 30.
- E quando voltas?
- Quien sabe! - ripostou Kate.
Por uns minutos, Cipriano fitou-a com as suas pupilas negras imperscrutáveis. Estava a pensar que tinha o direito de a impedir que saísse do país, visto ser legalmente sua esposa. Nas profundezas dos olhos luzia a antiga cólera índia; depois surgiu uma leve mudança de expressão no rosto, quando a ira contida cedeu lugar à indiferença estóica, à velha indiferença de tantos séculos. Kate quase sentia as ondas sucessivas de sombra e frieza que percorriam Cipriano sem que ele mesmo desse por isso. E mais uma vez lhe estremeceu o coração o medo de perder o contacto com esse homem.
- Como quieras tu! - disse ele por fim.
Concedia-lhe a liberdade com a misteriosa indiferença do seu sangue e não faria mais esforços para a reter. Era o fatalismo dos da sua raça.
Conforme Kate previra, Cipriano tomou um barco e foi a Jamiltepec falar com Ramon.
A mulher ficou só, como de costume. Ocorreu-lhe que ela própria criara essa solidão. Não conseguia identificar-se com aquela gente, sentir-se à vontade fosse com quem fosse. Fechava-se sempre na sua personalidade.
Importava-lhe muito a reciprocidade sexual? Podia importar-lhe ainda mais se não a houvesse tido; mas tivera-a, e de maneira perfeita, com Cipriano. Sabia tudo a esse respeito. Era como se houvesse conquistado outro território, outro domínio da vida. E agora devia retirar-se para a toca da sua individualidade, com a vítima nos dentes.
De súbito, viu-se como os homens muitas vezes a viam: uma gata enorme, com os seus espasmos de volúpia e o gozo demorado do seu isolamento. Conhecia outras mulheres assim. Brincavam cheias de amor e familiaridade como um gato com um rato. Por fim devoravam o ratinho querido e reapareciam com a barriga repleta e uma voluptuosa sensação de força.
Algumas vezes o rato recusava-se a ser digerido, de que resultava prolongada dispepsia; ou então, como Cipriano, transformava-se numa espécie de cobra, que alçava a cabeça, olhava para trás e desaparecia num buraco, deixando-a confusa e destituída de poder.
Outra coisa que ela observava horrorizada. Uma após outra, as suas "amigas", as grandes amorosas, na idade de quarenta, quarenta e cinco e cinquenta anos perdiam todos os atractivos e ficavam umas corujas horrendas, procurando em volta a vítima cada vez mais rara. Como seres humanos deixavam de existir, metamorfoseadas em corujas elegantes e mexeriqueiras.
Kate era bastante inteligente para tirar proveito da lição. Estava bem que uma mulher cultivasse o seu ego, a sua personalidade. Estava muito certo que desprezasse o amor ou que com ele se entretivesse como um gato faz ao rato; isto é, brincar o mais tempo possível antes de o comer e saciar voluptuosamente o ego com a sua vítima.
"A mulher sofre mais com a supressão do ego do que com a do sexo", afirmou uma escritora, e talvez seja verdade. Mas olhai, olhai para as mulheres modernas de cinquenta anos, as que cultivaram o ego até ao extremo limite! São em geral criaturas que nos enchem de pena ou de repulsa.
Kate sabia tudo isto, e nisto pensava enquanto ali sozinha na sua vivenda. Tivera a sua liberdade, mesmo no México. Esses homens deixá-la-iam partir. Não estava prisioneira. E levaria consigo todos os despojos que ainda guardavam.
E depois? Sentar-se nos salões de Londres e ser mais uma coruja ao lado das outras? Arvorar um sorriso postiço e falar com voz
artificial?
"Não! - disse consigo. - O meu ego e a minha personalidade não valem esse preço. Prefiro desfazer-me deles em parte a ver-me reduzida a isso."
No fim de contas, quando Cipriano a acariciava toda ela parecia desabrochar. Era a força do sexo, que enchia o mundo de lascívia e sobre que ela não se atrevia a reflectir. O seu poder tornava-se maior do que a sua vontade. Por outro lado, quando estava só e abria as asas do seu ego e o espírito desferia voo, o mundo afigurava-se-lhe maravilhoso. Todavia, após uns instantes, desvanecia-se o esplendor, substituído por uma solidão amarga.
"Preciso de ambos - concluiu. - Não posso afastar-me de Cipriano nem de Ramon. Renovaram-me o sangue. Digo que são limitados, mas todos temos de o ser. Se tentamos ser ilimitados, tornamo-nos monstros. Sem Cipriano a afagar-me, a limitar-me e a submergir-me a vontade, tornar-me-ia uma velha horrível. Devo regozijar-me pelo facto de Cipriano me limitar com a sua vontade e o seu contacto ardente. Porque o que eu chamo a minha grandeza faz-me cair no vácuo desde que não haja a mão dum homem para me segurar. Ah, sim! Antes submeter-me do que ser uma mulher horrível."
Chamou o criado e foi através do lago num barco de remos. Era por uma bela manhã de Novembro. Nas escarpas das montanhas, a nordeste, as sombras tinham um tom azul muito puro. Por baixo, a vegetação começava a amarelecer. O lago, embora ainda cheio, principiava a baixar, e os jacintos-d'água vogavam à toa. No ar calmo viam-se pássaros voando. Alguns milheirais exibiam os seus talos secos, mas as flores de palo-blanco tinham já desabrochado e errava o perfume das acácias amarelas.
"Porque havia de me ir embora? - pensou Kate. - Porque havia de ver os autocarros na lama de Piccadilly na véspera do Natal e a multidão nos passeios molhados diante das lojas iluminadas? Mais vale ficar aqui, onde a minha alma é menos triste. Tenho de pedir desculpa a Ramon das coisas que lhe disse. No fim de contas, aqui há outra grandeza, com o som dos tambores e o grito de Quetzalcoatl."
Já ela distinguia o último andar da casa de Jamiltepec, semelhante a uma torre avermelhada, e a buganvília roxa pendente do muro, os cachos das flores de plumbago e a porção de rosas brancas.
- Están tocando - disse tranquilamente o barqueiro, erguendo para ela os olhos negros.
Já ouvira o som do tambor em Jamiltepec. Uma voz de homem se elevou na manhã clara.
O barqueiro levantou um remo, como se fizesse sinal. E assim que o barco penetrou na enseadazinha, veio um criado a correr ao longo do molhe. No ar soalheiro notava-se o cheiro das daturas e das rosas, e um silêncio profundo que nem o tambor nem o canto perturbavam.
- Don Cipriano está aqui? - perguntou Kate.
- Está - murmurou o criado, apontando para o balcão donde partia a voz do cantor. - Deseja que eu o informe da sua chegada?
- Não - respondeu Kate. - vou sentar-me um bocado no jardim, antes de subir.
- Nesse caso, deixarei a porta aberta - volveu o homem - e assenhora entrará quando quiser.
Kate instalou-se no banco de uma árvore, donde pendiam flores de trepadeira enroscada ali como uma serpente. Pôs-se a ouvir o canto. Ramon ensinava o novo hino a um dos cantores.
Não tinha muito boa voz o Quetzalcoatl vivo. Cantava baixinho, como se para si mesmo, mas com expressão simples e bela. Kate não conseguiu perceber a letra.
- Ya? - disse Ramon ao terminar.
- Ya, patrón! - respondeu o cantor.
E na sua voz forte e pura, este entoou o hino:
O meu caminho não é o teu e o teu não é o meu.
Mas vem, antes que nos separemos.
Cada qual por seu lado, dirijamo-nos à Estrela da Manhã
Para lá nos encontrarmos.
Não te aponto o meu caminho
Nem chamo por ti.
Mas a Estrela é a mesma para nós ambos
E a ambos nos atrai.
A cada qual o seu caminho, esse que esplende Na encruzilhada,
Que abre a sua chama como a porta de uma tenda Por onde, invisíveis, deslizamos.
Não pode um homem pisar como a mulher
Nem a mulher andar como o homem.
O espírito de cada um através das folhas de sombra
Se move como pode.
Mas a Estrela da Manhã e a da Noite Fixam tendas de fogo
Onde nos retinimos quais ciganos, sem saber Como é que vieram os outros.
Nada mais peço que me insinuar Na tenda do Espírito, e deter-me Na casa da chama bifurcada Como hóspede seu.
Fica aí comigo, esposa minha, Corporalmente. E que a flama nos envolva Qual uma rede.
Sede lá, homens, comigo,
Alcançai o lar.
Ride comigo, enquanto a mulher repousei,
Porque vale a pena.
O homem entoara o hino por várias vezes, parava, dir-se-ia esquecer-se, extinguia-se-lhe a voz pura e quente. Então a de Ramon, baixa e um tanto rouca, elevava-se com subtil intensidade, como se vinda do meio duma concha; depois, o tenor retomava o canto, que lhe corria no sangue como uma chama.
O mozo de Kate, ou seja, o seu criado, seguira-a ao jardim, e tinha-se sentado de pernas cruzadas, a certa distância, debaixo de uma árvore, de costas apoiadas ao tronco - sombra acocorada, vestida de branco. Os dedos dos pés saíam-lhe rijos e escuros das huaraches esburacadas, e o trancelim de palha do chapéu pendia-lhe junto à face trigueira. Quanto ao resto era tudo alvo, e as calças de linho apertavam-se-lhe nas coxas.
Quando o canto terminou, e o tambor deixou de rufar, e as vozes, num murmúrio, mal se ouviam, o mozo ergueu a cabeça e olhou para Kate. Brilhavam-lhe as pupilas negras, no rosto errava-lhe um sorriso tímido.
- Está muy bien, patrona? - perguntou, um pouco envergonhado.
- Muito bem - respondeu ela, como um eco fiel. Mas no seu coração debatiam-se conflitos diversos, e o criado sabia-o.
Parecia tão novo com aquele sorriso alegre, excitado, receoso! Havia nele qualquer coisa de perpetuamente infantil; mas era uma criança que, dum momento para outro, se podia tornar num selvagem- vingativo e brutal, um homem que nunca perdia a consciência do seu sexo. E Kate pensou mais uma vez que existiam várias maneiras de regressar à infância.
O criado, porém, continuava a espiá-la, de soslaio: queria ver se havia nela qualquer hostilidade secreta. Desejaria que concordasse com o hino, com o tambor e com tudo mais. Como uma criança, ansiava pela sua aquiescência; mas, se a senhora se mostrasse hostil, ele seria o primeiro a manifestar-se. Um julgamento adverso torná-lo-ia inimigo declarado.
Ah, os homens eram todos iguais!
Nessa ocasião, o rapaz levantou-se, com súbita agilidade, e ela ouviu a voz de Cipriano na varanda:
- Que é, Lupe?
- Está la patrona - respondeu o mozo.
Kate ergueu-se também e olhou. Viu a cabeça e os ombros nus do marido, em cima, no parapeito.
- Já lá vou - participou-lhe.
Vagarosamente transpôs os portões de ferro do corredor. Lupe, que a seguia, fechou-os atrás de si.
No terraço encontrou Ramon e Cipriano, ambos de tronco nu, que a esperavam em silêncio. Kate, embaraçada, explicou:
- Estive a escutar o novo hino.
- E-que lhe pareceu? - perguntou Ramon.
- Gostei.
- Sentemo-nos - propôs ele. E a recém-vinda deixou-se cair numa das cadeiras de verga. Cipriano ficou de pé, encostado à balaustrada.
Kate viera para declarar a sua submissão: dizer que já não queria ir-se embora. Mas, vendo os dois homens numa disposição muito quetzalcoatliana, não se decidia a aflorar o assunto. Tinha a sensação de ser uma intrusa. Não se compenetrava de que também pertencia à seita.
- Parece-me que não há Estrela da Manhã para nos reunir a todos três - observou, irónica mas um pouco trémula.
Sobre eles desceu um silêncio ainda mais profundo.
- Estou a ver que uma mulher é realmente de trop aqui junto de vocês ambos.
Hesitou um tanto ao dizer isto. Sabia que Cipriano ficava perplexo e melindrado quando ela escarnecia.
Ramon respondeu-lhe com uma doçura que vinha direita do seu coração.
- Então que há, prima?
com um tremor nos lábios, Kate replicou:
- Em verdade, não desejo deixá-los.
Olhando rapidamente para Cipriano, Ramon retorquiu:
- Bem sei que não deseja.
O tom suave e protector da sua voz fê-la revoltar-se de novo. com os olhos rasos de lágrimas, ela bradou:
- Afinal vocês não precisam de mim!
- Não, não, preciso de ti. Verdad, verdad! - exclamou Cipriano em voz baixa e contida, quase num murmúrio.
E, no meio das suas lágrimas, Kate pensava: "Como sou intrujona! Sei perfeitamente que sou eu que não os quero. Quero-me só a mim mesma. Mas posso iludi-los de modo que o não percebam."
Havia notado a paixão fálica e ardente na voz de Cipriano.
Coube a vez a Ramon de falar, e fê-lo em tom glacial:
- A Caterina é que não precisa de nós. Não se comprometa connosco. Atenda à sua própria preferência.
- E se ela me aconselhar a partir? - ripostou Kate, como um desafio, através de um resto de lágrimas.
- Então parta!
Kate recomeçou a chorar.
- Ah, eu bem sabia que não precisavam de mim. Mas Cipriano acudiu com persuasiva ternura:
- Não és dele! Ele não pode dizer nada.
- Isso é verdade - concordou Ramon. - Não me dêem ouvidos.
Levantando bruscamente a cabeça, no meio do seu pranto, viu-o afastar-se sem rumor.
Limpou a cara, recuperou a calma e, de olhos húmidos, fitou Cipriano. Este conservava-se muito direito, como um galo combatente. Nas pupilas negras brilhava-lhe um fulgor estranho.
Sim, Kate também tinha medo dele, desses olhos pretos inumanos.
- Não queres que me vá embora, pois não? - perguntou-lhe suplicante.
Espalhou-se no rosto do homem um sorriso lento, e um leve tremor lhe percorreu o corpo. E então, na sua voz de inflexões índias, muito suave, Cipriano disse-lhe em espanhol:
- Yo! Yo! - E as sobrancelhas erguiam-se-lhe numa expressão de espanto divertido. Ainda trémulo, concluiu: - Te quiero mucho! Mucho te quiero! Mucho, mucho!
As palavras soavam tão cariciosas, vinham-lhe tanto do seu sangue ardente, que a mulher se sobressaltou e disse:
- Não me deixarás partir!

XXV
Foi uma surpresa para Kate o casamento de Don Ramon dois meses depois do falecimento de Dona Carlota. A noiva tinha vinte e oito anos e chamava-se Teresa. Após o casamento, que se realizou civilmente e na maior intimidade, Ramon trouxe a nova esposa para Jamiltepec.
Conhecia-a desde pequena, pois era filha do proprietário da famosa hacienda de Las Jemas, situada a uma dúzia de milhas de Jamiltepec. Don Tomaz, pai da rapariga, fora grande amigo dos Carrascos. Morrera, porém, um ano antes, deixando a importante hacienda aos três filhos e confiando a Teresa a administração da quinta. Teresa era a mais nova. Os dois irmãos viviam a existência inútil e perdulária dos mexicanos, e por isso Don Tomaz, a fim de salvar a propriedade daquelas mãos nefastas, designara Teresa como administradora e obtivera o consentimento dos dois irmãos. Na verdade, os rapazes eram criaturas ociosas que, em vida do progenitor, nunca haviam mostrado o mínimo desejo de o ajudar na difícil gerência da quinta. Teresa fora a única. E durante a doença do pai, todas as fadigas da administração haviam recaído sobre ela, enquanto os irmãos gastavam o dinheiro e as forças nas orgias em que se deleitam os mexicanos de certa classe. No entanto, assim que o pai faleceu, os dois irmãos apareceram em casa cheios de arrogância, com a intenção de se tornarem hacendados. Pela simples força bruta afastaram a irmã do seu cargo, deram ordens contrárias às dela, escarneceram-na e uniram-se para a esmagar. Queriam relegá-la para o seu lugar de mulher, isto é, para uma espécie de escravidão a que, aos seus olhos, deviam pertencer as pessoas desse sexo.
Eram brutos, e como brutos, cobardes. E, como tantos mexicanos daquela categoria, condescendentes e prejudiciais para si próprios. Relacionaram-se com juizes e generais, exibiram-se em ricos trajes de charro e receberam em casa uma multidão de gente duvidosa.
Contra aquela indolência e brutalidade, Teresa nada podia fazer e conhecia bem a sua impotência. Os irmãos eram fracos, sensuais, belos à sua maneira, dissipadores, despreocupados, mas de sentimentos ferozes.
- Faz-te bonita e arranja um marido - aconselhavam-lhe. Aos olhos deles, o seu maior crime era não atrair os homens
com quem conviviam. O facto de nunca ter conhecido homem e não se haver ainda casado tornava-a quase odiosa. De que servia a mulher senão para uma vida de relaxamento e licenciosidade?
- Queres usar calças? - perguntavam-lhe, irónicos. - No, señorita, enquanto houver aqui dois homens. No, señorita, os homens é que usam calças, e as mulheres escondem o que têm debaixo das saias.
Teresa já estava habituada a estes insultos; contudo, sofria muito no seu íntimo.
- Queres viver à moda dos americanos? Então abala para a América, corta o cabelo e veste calças. Compra lá um rancho e arranja um marido que receba as tuas ordens.
Teresa consultou advogados, que se limitaram a erguer os braços ao céu. Foi então procurar Ramon, a quem conhecia desde pequena.
Para expulsar os irmãos da hacienda seria necessário intentar um processo dispendioso e de resultado incerto. Em vez disso, Ramon propôs-lhe que casasse com ele segundo um regime matrimonial em que ela disporia sempre dos seus bens.
- Nesta terra os homens desprezam as mulheres e não podem passar sem elas, o que representa um suicídio - disse Ramon.
O casal foi visitar Kate. Teresa era franzina, pálida, de farta cabeleira preta e grandes olhos negros. Apesar do ar calmo, notava-se-lhe certa independência e autoridade. Sofrera muitas humilhações da parte dos irmãos e tinha ainda os olhos pisados pelas lágrimas de amargura, indignação e cólera.
Agora, amava Ramon com todas as veras da sua alma. Isso era evidente. Fora ele que salvara da degradação a sua dignidade de mulher e lha havia restituído bela e intacta. Em troca, passou a conceder ao seu salvador uma admiração respeitosa e quase feroz.
Em relação a Kate mostrava-se tímida e um pouco distante, tal se receasse essa mulher branca, doutra raça, que viajara muito e possuía larga experiência da vida. com um vestido claro e um rebozo de gaze preta, estava sentada na sala de Kate, com as mãos trigueiras pousadas no regaço, o pescoço escuro muito direito, e desviando um pouco o rosto fino e bem modelado. A irlandesa achou-lhe uma aparência de costureirinha.
Mas Kate não deu fé do estranho poder autoritário que também emanava desse corpo moreno e esguio, nem do olhar penetrante e desconfiado que por vezes Teresa lhe dardejava. Alma de fogo num corpo delicado. Atitude cheia de reservas. De quando em quando, a boca parecia formular uma palavra em silêncio e nos lábios perpassava-lhe um sorriso constrangido. Nunca lhe desaparecia, porém, o fulgor dos olhos.
- Falas tão pouco, chica! - observou Ramon, com certa ternura.
Então os olhos dela cintilaram e a boca esboçou um sorriso.
Via-se bem que estava apaixonada, embebida num êxtase de amor, o que explicava a sua frieza perante Kate.
"Despreza-me - pensou esta - porque não sou capaz de amar como ela." E, por um segundo, Kate invejaria Teresa. Mas daí a pouco desdenhava-a: "Tipo de harém..."
Sim, Ramon adaptava-se bem ao papel de sultão. Era belo, no seu traje branco, muito sereno, com ar de paxá, mas ao mesmo tempo afável, atencioso - e com aspecto tão juvenil! Como um paxá, preparava um cacharolete de genebra, vermute e limão. Teresa espiava-o de esguelha, sem perder de vista Kate, sua possível inimiga, a mulher que falava aos homens no mesmo pé de igualdade.
Kate levantou-se para ir buscar colheres. Nesse momento, Ramon recuou da mesa baixa em que espremia o limão e colidiu de leve com a dona da casa quando esta passava. Kate reparou de novo como ele se esquivava a qualquer contacto com ela. A sua sensualidade natural afastava-o de Kate como uma chama se desvia perante uma corrente de ar. Ela corou, e Teresa viu o súbito rubor sob essa pele branca, e o clarão quase de ira que atravessou os olhos castanhos de Kate. Momento de evasão de dois cursos de sangue tão diferentes!
Teresa pôs-se de pé, aproximou-se de Ramon e, inclinando-se sobre os copos, perguntou com aquela afectação infantil própria das mulheres da sua raça:
- Que puseste aí?
- Olha ! - retorquiu ele. E, com a mesma infantibilidade dos homens do seu tipo, começou a explicar-lhe de que se compunha o cacharolete e deu-lhe a provar um pouco de genebra, numa colher.
- É tequila da pior - declarou Teresa.
- A oito pesos cada garrafa? - volveu o marido, a rir.
- Custa esse preço? Tão caro!
Ela fitou-o nos olhos, por um momento, e viu esse rosto tornar-se mais escuro, mais ardente, como se todo ele se derretesse ao senti-la perto de si. Teresa então ergueu a cabeça, orgulhosamente. Havia-o reconquistado.
"Manhas de harém!" pensou Kate. E experimentou certa impaciência ao verificar como o ilustre, prodigioso Ramon se deixava prender nas malhas de um ser tão insignificante. Sentia-se contrariada por ter assim consciência da presença física do homem, do seu corpo belo, dos seus ombros fortes, das suas pernas vigorosas. Dir-se-ia ter também de sucumbir ao fascínio e vir a fazer parte do harém daquele sultão.
Que estranha vontade possuía a pequenina mulher morena! Que subtil poder feminino num corpo que quase só tinha pele e osso! Teresa era capaz de engrandecer a glória do marido - ao passo que ela própria se tornava imperceptível, a não ser quanto ao fulgor tigrino dos seus grandes olhos pretos.
Kate observava admirada. Conhecera homens que lhe davam a impressão de a transformarem em rainha, de ter a cabeça nas estrelas e repousar o peito nas nuvens. Sabia o que era subir, subir, subir até encher o universo com a sua feminilidade.
Via agora, porém, o contrário. Quem tinha poder sobrenatural era essa criatura pequenina, que fazia maior Don Ramon, enquanto ela se diminuía e ficava invisível, excepto no que respeitava aos olhos. Ele, como um sultão, como um fruto sazonado ao sol, tomava uma aparência extraordinária e imponente; e então, por algum poder misterioso do seu corpo trigueiro, a frágil Teresa fazia-o ainda mais completo.
Era o que Ramon queria, e Kate, percebendo-o, sentia-se irritada. Parecia-lhe odioso aquele macho triunfante, exasperava-a aquela rapariga ardente que só pensava em exaltar o homem.
ah, o poder oculto da mulher trigueira! Kate chamava àquilo harém e prostituição. Sim, era a atitude da escrava. Que pretendia dele essa criatura senão o sexo, como uma prostituta?
Pois não era degradante para uma mulher semelhante espécie de amor? E não tornava o homem fraco, sensual, ou odiosamente tirânico?
No entanto, já duma coisa Kate se convencera: que a chave da vida, e da continuidade da vida, residia nas relações do homem e da mulher. A união completa dos dois representava a vida presente e futura; dessa fusão surgia uma vida nova.
Mas tais relações necessitam de equilíbrio, e TereSa destruía-o juntando na balança o seu peso ao do homem.
Ramon não quisera Kate. Possuía agora o que desejara: aquela criaturinha escura, tão servil e orgulhosa do seu poder. Só quisera Kate para camarada, camarada inteligente, Não para mulher. Preferira essa viborazinha de Teresa...
Cipriano, esse desejava Kate. O general, o militar empertigado desejava Kate, mas só por momentos. não se importava casar realmente com ela; o que lhe interessava eram os instantes passados a seu lado. Kate tinha de lhe conceder esses instantes, e em seguida ele tornava a partir para junto das suas tropas. com isso se contentava. E ela também. Assim, ficava senhora da sua existência. Não tinha feitio para andar de roda dum homem a excitar-lhe o sangue, a estimular-lhe o ardor!
Levantou-se e foi ao quarto buscar um livro que prometera a Ramon. Não podia suportar mais tempo a exibição do amor dele por Teresa. Ah, aquele sorriso néscio estampado no rosto do homem, o brilho estranho dos olhos, o aprumo orgulhoso do corpo!
Eis como eram os dessa raça. Selvagens, com o insuportável fluido sensual dos índios e aquela maneira primitiva de se dissolver numa horrível confusão de desejo; com a presunção da sua virilidade insolente e inesgotável.
O pior era que essa força cósmica que ela até aí só conhecera nos olhos azuis dos homens loiros (e que tornava rainhas as respectivas mulheres, ainda que eles as detestassem por fim), essa força declinava agora nos olhos azuis e nascia nas pupilas pretas. As de Ramon, naquela ocasião, luziam de orgulho, poder e desafio. E o mesmo notava Kate nos olhares rápidos de Cipriano. A força do mundo esmorecia nos homens loiros, a sua supremacia abandonava-os para renascer nos de cor escura.
Joachim, o ser inquieto, inteligente e sensível, que era capaz de penetrar na alma de Kate e contemplá-la com os seus olhos azuis, morrera à vista da mulher. Se ela pudesse excitar-lhe o sangue, como Teresa fazia a Ramon, nunca ele teria morrido. Mas seria impossível. Cada um é como é. E cada raça, também. Teresa bateu timidamente à porta do quarto.
- Posso entrar?
- Entre! - respondeu Kate, endireitando-se e deixando as rimas de volumes em volta da mala dos livros.
O aposento era amplo e através das janelas rasgadas via-se o pátio e o jardim soalheiro, mangueiras de troncos lisos como trombas de elefantes, ervas reverdecidas pela chuva e galinhas a esgaravatar a terra debaixo das folhas esgarçadas das bananeiras. Um pássaro vermelho chafurdava no tanque, abrindo e fechando as asas escuras sobre o corpinho escarlate.
Teresa, porém, olhava para o quarto, não para fora. Sentiu o cheiro de cigarros, cujas pontas enchiam um cinzeiro de ágata. Notou os livros em desordem, as jóias espalhadas, a tapeçaria persa pendente atrás da cama, a colcha magnífica, os vestidos de seda e de veludo colocados sobre uma arca, os xailes de longas franjas cuidadosamente dobrados, os sapatos espalhados no chão, brancos, cinzentos, amarelos, castanhos e pretos, e os belos castiçais chineses.
Teresa parecia fascinada por tudo aquilo.
- Que linda! - disse, tocando na colcha sumptuosa.
- Foi uma amiga que a fez e ma ofereceu, em Inglaterra. Teresa observava tudo com espanto, em especial as jóias dispersas no toucador.
- Não gosta dessas pedras encarnadas? - perguntou Kate, ajoelhando de novo para arrumar os livros e olhando o pescoço moreno pendido sobre as jóias. Que ombros frágeis e que pele acetinada, naquele vestidinho branco! E aquela cabeleira negra, segura por travessas de tartaruga! No conjunto, uma rapariguinha humilde e insignificante. Mas Kate bem sabia que Teresa não era insignificante nem humilde. Naquele corpo franzino havia um estranho poder que despertava o ardor num homem e o exultava e, de certa maneira, o guardava só para si. O eterno apelo da carne...
Na mesinha de costura estava um pedaço de musselina que Kate comprara na índia e não sabia em que aproveitar. A cor, espécie de amarelo-pêssego, não se harmonizava com o seu tom de pele. Teresa apalpou o tecido entremeado de fios de ouro.
- É organdi?
inquiriu.
- Não, é musselina feita à mão. Ofereço-lha. A cor vai-me mal, e a si deve-lhe ir lindamente.
Ergueu-se e dispôs o tecido de roda do pescoço bronzeado de Teresa. No espelho, esta viu-se envolta na bela musselina e os olhos brilharam-lhe de prazer.
- Ah, não! Não posso aceitar!
- Porquê? Não condiz bem comigo. Faz agora um ano que a tenho aí. Até pensei em cortá-la para fazer cortinas. Fique com ela.
Kate talvez fosse arrogante, e até cruel, na sua maneira de oferecer.
- Não quero privá-la...
- Aceite, peço-lhe.
Ramon apareceu no limiar e relanceou o quarto e as duas mulheres.
- Olha! - disse Teresa, embaraçada. - A señora quer dar-me esta musselina indiana. - Voltara-se timidamente para ele, com o tecido desdobrado em roda do pescoço.
- Fica-te muito bem - declarou Ramon, contemplando-a.
- A señora não devia oferecer-me...
- Se to dá é porque faz gosto nisso.
- Então - concluiu Teresa, virando-se para Kate - muito e muito obrigada.
- Não tem de quê!
- Ramon acha que me vai bem...
- Na verdade, vai-lhe a matar - declarou Kate, dirigindo-se agora a Ramon. - O tecido foi feito na índia para alguém com aquela cor trigueira. Há-de condizer admiravelmente com ela.
- É muito bonito - concordou Ramon.
com o olhar, percorria o quarto, examinava os diferentes objectos que ali estavam, vindos de todas as partes do mundo, e até as pontas de cigarro na taça de ágata: luxo, desordem, e algo de esterilidade da mulher emancipada.
Kate não sabia em que é que ele pensava. Mas, por seu turno, reflectia: "Ora aí está o homem que eu defendi naquele terraço, que eu vi com um buraco nas costas, nu e inconsciente. Nesse momento não se parecia com um sultão."
Teresa devia ter-lhe adivinhado os pensamentos, porque disse,
olhando para Ramon:
- Sem a señora, Ramon teria morrido. Nunca me esquecerei...
- Não falemos nisso - atalhou Kate. - O destino tece-as.
Eu não alterei nada.
- Foi o próprio destino, señora!
- Não quer vir passar uma temporada connosco em Jamiltepec? - perguntou Ramon. - Agora já tenho uma dona de casa.
- Sim, vá! - insistiu Teresa.
- Ela precisa de uma amiga - explicou o marido.
- Preciso, é verdade. Nunca tive nenhuma a valer desde que deixei o colégio, ainda pequena...
Kate duvidava que pudesse ser para Teresa uma amiga a valer. E cogitava no que pretenderiam, de facto, aqueles dois - e o que pensariam dela.
- Pois sim, terei muito gosto em passar uns dias...
- Óptimo! - exclamou Teresa. - Quando deverá ser? Combinaram o dia.
- E escreveremos a canção de Malintzi - disse Ramon.
- Não faça semelhante coisa - acudiu Kate vivamente.
Ele olhou-a com ar pasmado, como se não percebesse logo, um ar que lhe era habitual. Por instantes, Kate poderia supor ter-lhe dado a impressão que um fantasma produziria se aparecesse a uma criança.
Em Jamiltepec, as duas mulheres entretiveram-se a talhar vestidos para Teresa na peça de musselina cor de ananás. Para senhora casada, o guarda-roupa de Teresa era bastante modesto: só possuía trajes pretos, que lhe davam um ar infeliz, e alguns brancos já antiquados. Até aí só vivera para o pai (que tinha bons livros acerca do México e toda a vida escrevera sobre a história do estado de Jalisco) e para dirigir a sua hacienda. Esta, chamada de Las Jemas, era a única que não fora destruída durante as revoltas que se seguiram à fuga de Porfirio Diaz; Teresa orgulhava-se bastante deste facto.
O seu carácter assemelhava-se muito ao de uma freira, talvez por se tratar de uma pessoa profundamente apaixonada e as paixões profundas serem mais para se esconder do que para exteriorizar nos contactos quotidianos.
Kate, provando-lhe o vestido sobre os ombros morenos, tornou a admirar a estranha macieza daquela pele escura e o pesado volume dos cabelos negros. A família dos Romeros, a que Tereza pertencia, estabelecera-se no México logo nos primeiros tempos da conquista.
Que lhe fizesse mangas compridas, sugeriu. E acrescentou, ocultando um pouco envergonhada a magreza daqueles membros trigueiros:
- Tenho os braços tão delgados! Não são bonitos como os
seus.
Kate, mulher de quarenta anos, tinha-os fortes e alvos e toda ela
era bem constituída.
- Sim - repetiu Teresa -, compridas até aos punhos.
A outra assim fez, achando que, na realidade, era o que mais convinha àquela natureza.
- Aqui os homens - explicou a dona da casa - não gostam
de mulheres magras.
- Não importa o que os homens pensam - sentenciou Kate. - Julga que Don Ramon gostaria que fosse gorda como uma
galinha?
Teresa fitou-a com os seus olhos pretos, grandes e brilhantes -
tão vivazes e, de certa maneira, fugidios.
- Quem sabe! - exclamou. E, no seu sorriso rápido, malicioso, via-se que não desgostaria de ser, às vezes, como uma galinha
gorda.
Presentemente Kate conhecia mais do que nunca a vida interior duma hacienda. Quando estava em casa, Ramon consultava diariamente o feitor; Teresa, porém, aliviava-lhe esse trabalho e já se ocupava bastante da propriedade. Em geral, ele andava por fora, ou para ir à Cidade do México, ou a Guadalajara e mesmo a Sonora. Todos o conheciam no país e o seu nome tornara-se célebre. Mas, debaixo desse culto que os compatriotas lhe prestavam, Kate adivinhava uma animosidade latente. Talvez preferissem aniquilar os seus heróis a elevá-los temporariamente às culminâncias da glória. O momento que mais apreciavam era o da queda do ídolo.
Para Kate, sempre céptica, deviam eles andar afiando o gume com que o atingiriam no peito, quando o herói se tornasse demasiadamente incómodo. É claro que precisavam da anuência de Cipriano, e Cipriano era um diabinho que os mexicanos temiam deveras. Cipriano, por então, conservava-se fiel - para com Ramon e para consigo mesmo. Representava o papel de Huitzilopochtli e Ramon o de Quetzalcoatl. Eis uma verdade simples e evidente para o general, que mantinha o seu exército pronto para o que desse e viesse. O próprio presidente seria incapaz de prescindir de Viedma, apesar de ser também um homem destemido.
- Qualquer dia - declarava Cipriano - poremos Quetzalcoatl na Catedral de Puebla, e Huitzilopochtli na da capital, e Malintzi na de Guadalupe. Não falta muito, Ramon.
- Faremos com que esse dia chegue - respondia Ramon.
Mas Ramon e Montes sofriam ambos com a profunda e diabólica animosidade do país, manifestada no próprio silêncio da população. Era sempre assim, fossem quais fossem as mãos em que o poder caísse: os Mexicanos pareciam destilar ódio oculto, um ódio demoníaco que lhes aviltava a alma; um ódio cujo único fim consistia em frustrar todos os planos.
Aí estava o dragão do México, que Ramon teria de combater. Contra o mesmo inimigo devia lutar o presidente Montes, e isso arruinava-lhe a saúde. Igualmente Cipriano, mas este desenvencilhava-se melhor. Os soldados apoiavam-no, com tambores e danças de roda das fogueiras. E o general consolidava de dia para dia a sua posição.
Ramon, na sua província, também se sentia seguro. Era o chefe, e, com o seu esforço e energia, lograva dominar qualquer veleidade de revolta. Aterrorizava com o mistério da vida, continha a gente em respeito pela fascinação que exercia. Nos seus domínios, considerava-se forte. Mas fora daí, e em especial na Cidade do México, aquela invisível e subtil má vontade do povo dir-se-ia fazê-lo sangrar, sangrar imensamente. E também a voracidade dos estrangeiros, aves de rapina que rondavam a capital cosmopolita.
Durante a ausência de Ramon, Kate fez companhia a Teresa. As duas mulheres tinham isto de comum: achavam que era melhor apoiar um homem corajoso do que fazer papel de intrometidas e importunas. Isso as unia. A profunda convicção de que deviam ser fiéis aos respectivos maridos ligava intimamente a mulher de Cipriano à de Ramon.
Estava quase no fim a estação das chuvas, embora se pudessem prever aguaceiros ocasionais para Setembro ou mesmo Outubro. Entretanto o belo Outono mexicano surgira na terra, como uma espécie de Primavera ao inverso. Vastos espaços se cobriam de flores brancas e cor-de-rosa, estranhos arbustos silvestres floresciam também, duma maneira fantástica, brilhavam à luz florestas inteiras de girassóis; o céu estava de um azul puríssimo, e, nas terras encharcadas da última chuva, a claridade do dia reverberava intensa.
O lago enchera-se mais, povoando de plantas aquáticas todas as suas margens. Vinham aves imigradas do Norte, nuvens de patos bravos que pareciam poeira no ar e depois polvilhavam a água como raminhos de erva: colimbos, grous, gaivotas brancas dos mares interiores, tal se o mistério dos regimes setentrionais se deslocasse para o Sul. Errava em terra o cheiro de água, que produzia uma sensação calmante - tanto mais que Kate supunha ter origem na aridez do solo parte do horror que lhe causava o povo mexicano. Se houvesse sempre uma gota de água na atmosfera e uma neblina sobre as árvores, desapareceria dos corações humanos aquela maldade inexprimível.
Kate ia muitas vezes a cavalo, com Teresa, ver os campos. A cana-de-açúcar, nos vales, crescia muito verde e muito alta, e os peóns começavam a cortá-la com os seus nwchetes, que pareciam espadas, e enchiam os carros de bois que as transportavam à fábrica de Sayula. Nas vertentes áridas das colinas, avultava na sua rigidez férrea a espinhosa planta da teqnila, que é uma espécie de agave. E nos cactos rijos abriam flores maravilhosas, belas de mais para tão sinistra planta. Através dos campos viam-se molhos de vagens apanhadas dos feijoeiros e abóboras dum tamanho incrível. Entre as folhas emurchecidas pendiam tomates e pimentões. Ainda se erguiam pés de milho com espigas tenras. Como a banana era pouca, as crianças colhiam toda a fruta que encontravam para fazer doce. Teresa, para esse efeito, aproveitava até os últimos figos e pêssegos. Das mangueiras suspendiam-se frutos amarelos e maduros, mas na maior parte eles estavam verdes e tombavam pesados como testículos de toiro.
Era Outono no México, com patos bravos na água, e caçadores com espingardas, e rolas nas árvores. Outono do México, início da estação seca: céu mais alto, azul mais pálido, poentes de rara transparência doirada. Os bagos de café avermelhavam-se nos arbustos contorcidos debaixo das árvores maiores, e as buganvílias, de tons roxos, eram tãoespessas que se podiam mergulhar nelas os braços.
Teresa cuidava de tudo e Kate ajudava-a. Se estava um peón doente numa das cabanas, se era preciso separar os enxames de abelhas nas colmeias debaixo das mangueiras, fazer compotas, tratar do jardim, dos vitelos, do fabrico de manteiga ou de queijos, Teresa a tudo isso atendia acompanhada de Kate. E esta admirava-se da vontade firme e constante, que tinha de ser exercida a todo o momento. Tudo corria bem graças a um poderoso esforço de vontade. À mínima fraqueza do patrão as coisas desandariam e seria a ruína da propriedade.
Jamais um desfalecimento, sempre a vontade tenaz.
Ramon regressou, numa tarde de Novembro, de longa viagem a Sonora. Viera por terra desde Lepic, e, por duas vezes, encontrara-se retido pelas inundações; não era vulgar chuvas tão tardias. Mostrava-se fatigado e com ar ausente. Kate sentiu um baque no coração enquanto comentava para si mesma: " Tão longínquo, que até parece encaminhar-se para a morte."
As nuvens cobriam o céu novamente, relampejava no horizonte, mas tudo estava silencioso. Kate retirou-se cedo e foi até à extremidade do terraço sobranceiro ao lago. Só a claridade intermitente dos relâmpagos iluminava a noite escura e, num desses breves clarões, viu Teresa sentada junto do muro do terraço descoberto; tinha a cabeça de Ramon deitada no regaço e acariciava-lhe lentamente os bastos cabelos pretos.
Kate sobressaltou-se, e disse num murmúrio:
- Desculpem! Não sabia que se encontravam aqui.
- Quis estar cá fora, ao ar livre! - explicou Ramon, soerguendo-se a custo.
- Não se mexa! - pediu Kate. - Foi estupidez minha ter vindo aqui. O senhor está cansado.
- Sinto-me realmente cansado - volveu ele, deitando-se outra vez no chão. - Aquela gente chega a convencer-me de que estou esgotado. Por isso voltei para Teresa.
- Sim - retorquiu Kate. - Não se é impunemente o Quetzalcoatl vivo. É natural que o esgotem. Mas valerá a pena ser devorado por eles?
- Tem de ser assim. Há-de-se verificar a mudança e é um homem que a deve fazer. Às vezes chego a desejar que não seja eu.
- Também acho. E Teresa igualmente. Até penso se não será preferível continuar a ser apenas um ser humano.
Teresa, entretanto, calava-se.
- Faz-se o que é preciso fazer - disse Ramon. - No fim de contas, não se deixa de ser homem. E, se daí resultar ferimento... à la guerre comme à la guerre!
Aquela voz, no escuro, parecia a de um fantasma.
- Ah! - fez Kate, suspirando. - Gostava de saber o que é um homem que se expõe a tantos horrores por causa dos seus semelhantes.
Houve um momento de silêncio.
- O homem é uma coluna de sangue dotada de voz. Quando a voz se extingue e fica apenas a coluna, tanto melhor.
Retirou-se ela para o seu quarto. Ia triste, levando ainda nos ouvidos o som daquelas palavras melancólicas. Dir-se-ia que Ramon tinha dentro de si uma ferida aberta. Era como se Kate a sentisse, nas suas próprias entranhas.
Se ele morresse, em resultado de tanto esforço? Então, pensou, Cipriano ficaria só e tudo estaria acabado.
Por que razão devia um homem afadigar-se de tal maneira por causa dum povo estúpido e mau? Se o mundo corria à desfilada para a sua perdição, deixá-lo, isso era lá com ele.
Pensou em Teresa, que consolava Ramon sem dizer nada. E pensou em Ramon, assim ferido e desesperado! Coisas horríveis, na verdade. Ela devia intervir, defendê-lo contra si próprio. Porque haviam os homens de empreender esses combates inúteis, dos quais voltavam para casa a fim de se restabelecerem junto das suas companheiras?
Para Kate, essa luta não merecia sequer as honras de um ferimento. Que tão antipático mundo terminasse de vez, se tal era o seu destino, e quanto mais depressa melhor! Kate não levantaria um dedo para o impedir. Que cada qual vivesse a sua preciosa vida, que é só uma - e fosse tudo mais para o diabo!
Tentaria impedir que Ramon continuasse naquela senda suicida. Deixá-lo ser o Quetzalcoatl vivo quantas vezes quisesse; mas não tinha o direito de se expor à maldade demoníaca do povo.
Contudo, ele insistia nisso, como Joachim fizera na Irlanda. Teresa, com a sua firmeza doce e calma, talvez lhe fosse de melhor auxílio do que Kate com as suas recriminações.
"Ah! Ainda bem que Cipriano é militar. As feridas que sofrer não lhe atingirão a alma." Mas sabia que, sem Ramon, Cipriano não seria ninguém e nem chegaria a interessar-lhe.
De manhã, Teresa compareceu sozinha ao primeiro almoço. Parecia muito tranquila; dissimulava os sentimentos sob o seu ar orgulhoso de mulher morena.
- Como vai Ramon?
- Está a dormir.
- Ainda bem. Pareceu-me muito em baixo ontem à noite.
- Sim... - Teresa fitou a outra com os seus grandes olhos negros cheios de coragem e de lágrimas contidas.
- Não compreendo que um homem se sacrifique àquele ponto. É inadmissível.
Teresa continuava a fitá-la.
- Ele não se sacrifica - replicou. - Sente que tem de proceder assim. E o meu dever é ajudá-lo.
-? Nesse caso, sacrifica-se por ele, o que também é para mim inadmissível.
- Ah, não! - retorquiu Teresa, com uma onda de sangue a ruborizar-lhe as faces. - Não me sacrifico por Ramon. Se posso dar-lhe... sono... quando dele necessita, isso não representa sacrifício. Representa... - Não terminou a frase, e o rubor acentuou-se-lhe.
- Representa amor, bem sei - volveu Kate. - Mas também a esgota.
- Não é só amor! - exclamou Teresa altivamente. - Eu podia amar outros homens, há muitos que merecem afecto. Mas Ramon... A minha alma pertence-lhe. - Afloraram-lhe lágrimas aos olhos. - Prefiro não falar deste assunto - acrescentou, pondo-se de pé.
E saiu do quarto, deixando Kate um tanto perturbada - e com desejo de voltar para Sayula.
Mas uma hora depois Teresa reapareceu e, apoiando no braço de Kate a mãozinha fresca e macia, disse-lhe em tom suave:
- Desculpe se fui indelicada.
- Eu é que não tenho razão...
- Sim, julga que em tudo isto só existe amor. O amor é uma parte mínima do resto.
- E que é o resto?
- Como posso dizer-lhe, se desconhece? Mas pensa que Ramon não é para mim mais do que um amante?
- Um marido! - emendou Kate. Teresa sacudiu a cabeça com impaciência.
- Ah, esses termos, que tão pouco significam! Não é apenas um marido! É a minha vida!
- Acho preferível cada qual viver a sua vida.
- Não. A vida é como uma semente. De nada serve se não a dermos. Sei que é assim; guardei durante anos a minha vida para mim só. Quando se a guarda muito tempo, ela morre. Quis oferecê-la a Deus, mas não consegui. Disseram-me que se eu casasse com Ramon e tomasse parte na heresia de Quetzalcoatl ficaria condenada aos tormentos eternos, mas alguma coisa me segredava que isso não era verdade e que Ramon necessitava da minha alma. Ah, señora!
- Um sorriso iluminou a face pálida de Teresa. - Dei a minha alma a Ramon. Perdi-a por sua causa. Que mais posso dizer?
- E a alma dele?
- Está aqui. - E Teresa espalmou a mão no seio. Kate ficou um momento calada.
- E se ele a atraiçoar? - perguntou então.
- Ah, señora, Ramon não é apenas um amante. É um homem honesto e não trairá o seu próprio sangue. Concedeu-me a sua alma em troca da minha, e eu lutarei até ao último sopro de vida para o apaziguar quando volta para mim esfrangalhado e com necessidade de sossego. - Teresa proferiu tudo isto com veemência, e depois acrescentou num murmúrio, como se falasse a si mesma: - Graças a Deus, não tenho uma vida só minha. Dei-a a um homem que é mais que homem, como se diz na linguagem de Quetzalcoatl. Por isso ela não morrerá em mim como um pássaro na gaiola... Oh, señora! Quando ele parte para Sinaloa e para a costa ocidental, a minha alma acompanha-o. E Ramon não se esquece que a minha está com ele, tenho a certeza! Não, señora, não deve criticar-me nem
lastimar-me.
- No entanto, acho melhor cada qual guardar a sua alma e ser
responsável por ela.
- Sim, se fosse possível! - replicou Teresa. - Mas não se pode guardar a alma dentro de nós porque acaba por morrer... Enquanto o homem não nos dá a sua semente, a nossa é estéril, e a dele nada vale sem a mulher. O mesmo acontece à alma. Enquanto a não damos a um homem e ele a não toma, nenhum valor tem. E depois de ele a tomar, toda inteira, ninguém fala de traição! Um homem só atraiçoa quando se lhe deu uma parte e não tudo, e a mulher só atraiçoa quando aceita dela apenas uma parte e não o todo. Mas quando de um lado se deu tudo e tudo se aceitou, a traição não existe. Sou o que sou para Ramon e ele é o que é para mim. Não importa o que fizer. Não importa que esteja longe.
Kate não gostava de receber lições daquela criaturinha; era mulher da sociedade, bela e com experiência da vida. Estava acostumada a que lhe rendessem preito. As demais do seu sexo chegavam a temê-la, porque era decidida e impiedosa.
Teresa também a receava um pouco como senhora da sociedade, mas não como mulher. Entrincheirada na sua almazinha orgulhosa, Teresa considerava Kate uma dessas pessoas do mundo exterior que têm muito brilho mas que não estão muito seguras dos segredos da sua personalidade. Toda a beleza e crueldade feminina de Kate era coisa secundária para Teresa em comparação com o profundo e tranquilo amor que a ligava a Ramon.
Sim, Kate habituara-se a olhar as outras mulheres como seres inferiores. No entanto, os papéis inverteram-se de súbito. Embora soubesse que Ramon era superior a Cipriano, viu-se constrangida a pensar se Teresa não seria também superior a ela.
Teresa? Mais importante do que Kate? Que surpresa! Não podia ser verdade.
Contudo, assim era. Ramon desejara casar com Teresa e não com Kate. E o ardor desse enlace ela via-o tanto nos olhos de Ramon como nos da mulher: um ardor que não existia nos olhos de Kate.
O casamento desta com Cipriano não parecia sério nem definitivo. Quando Cipriano estava ausente, ela recuperava a sua antiga individualidade. Só com o general presente é que se compenetrava da sua submissão.
Quando Teresa voltou a fitá-la com aquele seu fulgor do olhar, misturado de indignação, Kate sentiu-se desanimada e arrependida - decerto pela primeira vez na sua existência.
Sabia que Teresa sentia certa aversão por ela: era uma estrangeira branca que falava tão inteligentemente como um homem e nunca dera a sua alma; nem admitia que a pudesse dar. Todas essas damas bem vestidas, da América ou da Europa, guardavam a alma para si mesmas, numa espécie de avareza.
Teresa estava resolvida a não deixar que a outra a tratasse indefinidamente como um ser inferior. Assim procediam todas as estrangeiras para com as mexicanas, porque se consideravam emancipadas. E, para com Ramon, mostravam certa condescendência.
Mas Ramon... Bastava que ele as fixasse para que elas se sentissem reduzidas a nada, apesar de todo o seu dinheiro, experiência e ares dominadores. Raças dominadoras! Que esperassem! Ramon era um desafio a tudo isso. Que o dominassem, se fossem capazes de tanto!
- Não dormiu? - perguntou Teresa a Kate.
- Não muito bem.
- Está com olheiras.
Kate alisou a pele, desconfiada, em volta dos olhos.
- É o que nos faz o México. Não é fácil conservar a juventude neste país. A senhora é que está com bom parecer.
- Sinto-me perfeitamente.
Irradiava de Teresa uma frescura nova, algo de frágil e subtil que ela não precisava de defender contra outra mulher.
- Agora que Ramon já veio, é altura de eu regressar a casa -
declarou Kate.
- Porquê? Faz empenho nisso?
- Acho preferível.
- Nesse caso irei consigo até Sayula. De barco, não é verdade?
Kate arrumou as suas coisas. Dormira mal. A noite fora tenebrosa, cheia de horrores. Lembrara-se de Ramon atacado pelos bandidos e do seu ferimento nas costas. Tivera-a acordada durante horas o barulho ameaçador da chuva.
Percebia o desdém de Teresa pela sua maneira de considerar a
vida conjugal.
- Também eu fui casada - disse Kate. - com um homem
excepcional, a quem amei.
- Ah, sim... E ele morreu.
- Quis morrer.
- Ah, sim... quis morrer.
- Fiz o possível para evitar que se estafasse.
- Fez?
- Que mais estava na minha mão? - redarguiu Kate, num
assomo de ira.
- Se lhe houvesse dado a sua vida, ele não quereria morrer.
- Eu dei-lhe a minha vida. Amava-o. Ah, nem faz ideia! Mas ele não quis a minha alma. Achava que eu devia guardá-la para
mim.
- Os homens são assim quando são apenas homens. Mas,
sendo ardentes e bravos, então querem que as mulheres lhes dêem a alma e guardam-na dentro de si. Sei o que é. Sei onde a minha alma está. Nas entranhas de Ramon, assim como a sua semente está nas minhas entranhas, entranhas de mulher. Ele é um homem e uma coluna de sangue; eu sou uma mulher e um vale de sangue. Digo-lhe isto porque lhe salvou a vida e portanto estamos todos ligados: Caterina, eu, Ramon e Cipriano. Mas não me julgue mal. Aquela outra espécie de mulheres, as que conservam a sua alma, que é senão fraqueza?
- E os homens?
- Se são ardentes e bravos, confortam as nossas entranhas, Caterina!
Kate baixou a cabeça obstinada, furiosa por ter sido apeada do seu pedestal. Que coisa miserável, pensou, isso de uma mulher viver apenas por amor de um homem! Só para lhe enviar a alma para dentro do seu precioso corpo... E trazer no ventre a sua semente preciosa... Quanto a ela própria, nada.
Pretendeu consumar a sua indignação, mas não foi bem sucedida. Talvez no fundo, e contra sua vontade, invejasse Teresa, os seus olhos negros cintilantes, a sua firmeza selvática. Invejava-lhe os dedos delicados, e, acima de tudo, a consolação de ter um homem tão profundamente ligado a si.
A manhã estava quente depois da chuva. As rãs coaxavam, frenéticas. Na outra banda do lago as montanhas pareciam azuis-escuras, com farrapos de nevoeiro a arrastarem-se através das árvores e nuvens brancas a coroarem os picos. Nas águas barrentas navegava um barco de vela solitário.
- Hoje, tudo isto me lembra a Europa, o Tirol - disse Kate, comovida.
- Gosta muito da Europa? - perguntou Teresa.
- Muito.
- E tenciona voltar para lá?
- Penso regressar em breve, para ver minha mãe e os meus filhos.
- Eles reclamam-na?
- Sim, respondeu Kate, um pouco hesitante. E em seguida ajuntou: - Não muito. Mas quero tornar a vê-los.
- Porquê? Tem saudades deles?
- às vezes. - E os olhos de Kate arrasaram-se de água. O barco avançava sem rumor.
- E Cipriano? - volveu Teresa, a medo.
- Ah!, exclamou Kate. -Esse é para mim como um estranho.
Teresa ficou uns momentos calada.
- O homem é sempre estranho para a mulher, creio eu - rematou ela. - E porque não havia de ser?
- Mas a senhora não tem filhos.
- Tem-nos Ramon, E ele costuma dizer: "Continuarei a lançar pão à água e se meus filhos acabarem por se aproximar de mim ficarei contente." Não é. o seu caso?
- Não! - respondeu Kate. - Sou mulher, não sou homem.
- Se eu tiver filhos - declarou Teresa - também lançarei pão à água para os atrair, e espero não os reter ciosamente na minha rede. Assusta-me o amor, é tão pessoal! Devemos deixar os pássaros voarem com as suas asas e os peixes nadarem à vontade. a manhã concede-nos mais do que o amor. E eu quero ser sincera para com a manhã.

XXVI
Kate estava satisfeita por voltar à sua casa e por se encontrar sozinha. Sentia que se operava nela uma grande mudança - mudança que a poderia matar se se realizasse violentamente. Era o fim de qualquer coisa e o princípio de outra: no mais profundo da sua alma e nas suas entranhas. Os homens, Ramon e Cipriano, e o México, seriam a causa daquela modificação. Chegara o momento. Entretanto, se a evolução fosse brusca de mais, e rápida em excesso, poderia revelar-se fatal. Por isso tinha necessidade de se isolar, de tempos a tempos.
Sentava-se na margem durante horas, à sombra dum salgueiro verde, cuja cortina de folhas descia até à água. O lago mostrava-se mais alto e mais cheio que de costume, e tinha também maior calma e maior mistério. Errava o cheiro dos nenúfares que emurcheciam depois de haverem dado à costa. As distâncias pareciam prolongadas. Lembravam estampas japonesas os outeiros mais próximos, salpicados de verdura. Carros de grandes rodas traziam à aldeia a cana-de-açúcar cortada; puxavam-nos a cada um, oito bois que baloiçavam lentamente a cabeça de enormes chifres, enquanto um peón, à frente, os conduzia com o aguilhão poisado no jugo. Tão pesados, tão vagarosos e contudo fáceis de guiar!
Experimentava, no México, uma sensação esquisita, como se estivesse em presença duma humanidade pré-histórica, gente de olhos escuros de antes do período glaciário - quando o mundo era mais frio, os mares vazios e diferente a constituição da terra; quando as águas, solidificadas, se acumulavam nos pólos, e as planícies ocupavam os oceanos, como a Atlântida e os antigos continentes da Polinésia; quando os mares não passavam de lagos, embora grandes, e os povos de olhos pretos podiam dar a pé a volta ao mundo. Nesse tempo existia uma raça misteriosa de sangue ardente e ligeira no andar: raça que possuía uma civilização que lhe era própria. Depois fundiram-se os glaciares, os homens refugiaram-se nos pontos elevados, como os planaltos do México, e separaram-se em nações diferentes.
Na América é tão forte a sombra do mundo antediluviano que às vezes Kate perdia a noção dos tempos decorridos e começava a aproximar-se do antigo modo de ser, da vontade velha e torva, do desprezo da morte, da subtil e escura consciência, do instinto que precedeu a razão. Regressava à época em que o espírito e o poder dos homens residiam no sangue e na espinha dorsal, e as relações entre eles e com os animais se produziam através da medula.
Os Mexicanos ainda se encontravam nesse estádio. O que é aborígene na América pertence à fase de antes do Dilúvio, antes de reinar na terra a vida espiritual. Por isso, ali, a actividade cerebral dos brancos se alastra como uma erva em terreno virgem - para, é claro, murchar depressa e desaparecer por completo. Então, como resultado disso, surge um novo gérmen, uma nova concepção da humanidade: vem da fusão da antiga consciência instintiva e do racionalismo intelectual do branco. Um ser diferente, nascido do encontro daqueles dois.
Kate era muito irlandesa, e no fundo da sua alma jazia o misticismo original, quase desaparecido, dessa primitiva raça celta ou ibérica. É como um resíduo que existe ainda no mundo antediluviano e que não pode ser inteiramente destruído.
Sabia ela, mais ou menos, que era essa fusão o que Ramon pretendia realizar. Compreendia também o motivo pelo qual Cipriano tomava a seus olhos uma importância maior que todo o seu passado, os seus dois maridos, e os filhos. Esse velho sangue másculo despertava-lhe agora nas veias; daí vinham as palpitações que ela ultimamente sentia.
A Irlanda não podia nem queria esquecer aquele ardor sombrio e primitivo. Os Thuathas de Danaan, embora submersos, continuam vivos no sangue, não se lhes consegue impor silêncio. E a Europa científica e meticulosa tinha de se defrontar de novo com os velhos
gigantes.
Esta alteração, todavia - e Kate bem o notava -, não era coisa que se efectuasse com brusquidão; de outro modo haveria rotura e possibilidade de morte. O primitivismo tem os seus horrores. O espírito original do México, pesado, terre à terre, podia ser-lhe tão odioso que a tornasse perversa. Essa obtusa, indomável persistência, desprovida de energia e de esperança, que é peculiar ao aborígene americano, levava-a às vezes a supor que ia perder a razão. Obstinação tenaz que resistia aos séculos e desprezava a personalidade! Lascívia da morte, feroz, incalculável, terrível!
Esse povo, realmente, nunca mudava. Os homens não tinham fé na vida, em nenhuma realidade evidente. Eram apenas fiéis a certas forças obscuras do passado. O presente submergia-se na alma dos homens e das mulheres sob uma camada de lava negra, não deixando à superfície senão a indiferença.
A Esperança! A Esperança! Seria possível, um dia, fazê-la reviver nessas almas obscuras e obter o enlace das suas raças, único passo para o novo mundo do homem?
Entretanto, Kate sentia-se invadida por um mal-estar esquisito. Achava ser necessário partir, a fim de escapar a tamanha depressão. Já não podia ouvir a rastejante insistência dos criados: o sangue é só um, nós somos do mesmo sangue - sentença de tribo pior do que a morte para um indivíduo de raça branca. Estranha teimosia aquela que preconizava a todos a fusão do sangue!
Kate pertencia a uma família antiga, com pergaminhos. Fora educada nas ideias anglo-germânicas da superioridade intrínseca da aristocracia hereditária. O seu sangue era diferente do da gente vulgar: outro fluido, mais refinado.
No México, porém, nada disso conta. Juana, o homem que ia buscar água, o barqueiro que remava no lago, todos revelavam o mesmo pensamento no olhar: "O sangue é só um; pelo sangue tu e eu somos iguais." Kate lia isto nos olhos deles, adivinhava-o nas suas palavras, quer fossem deferentes ou escarninhas, e, por vezes, sentia-se revoltada com essa imposição da igualdade de sangue.
E quando se empertigava como para proclamar "O meu sangue é só meu. Noli me tangere", percebia nas pupilas negras daquelas criaturas o terrível ódio ancestral que as impele a cometer as maiores atrocidades.
Contudo, inclinavam-se perante a sua inteligência, sabedoria e compreenção, e, embora contra vontade, testemunhavam-lhe certo respeito. Ela pertencia às raças dominadoras, hábeis e espertas... Mas exigiam-lhe a aceitação da velha crença: O sangue é só um. Somos todos do mesmo sangue.
E tinha de se submeter, senão persistiriam na sua lenta vingança.
Mas não podia submeter-se de repente. Devia ser a pouco e pouco; um esforço violento destruí-la-ia.
Compreendia agora a afirmação de Ramon: "O homem é uma coluna de sangue, a mulher um vale de sangue." Era a unidade primordial
do género humano, oposta à unidade do espírito individual.
Kate, porém, sempre considerara seu o próprio sangue. O espírito é que ela partilhava com os outros.
Percebia agora o motivo por que Ramon e Cipriano usavam fatos brancos e sandálias e andavam meio nus como deuses vivos. Era a aceitação da antiga crença, o renascimento do laço de sangue que unia os homens, laço que tornava o sacrifício humano tão poderoso
factor da vida.
O sangue do indivíduo é rendido ao ser supremo, ao ser de sangue, deus, nação ou tribo.
E, na verdade, que estranha união existia entre Ramon e os seus homens, entre Cipriano e os seus soldados! Era a comunhão do sangue. Isto podia indignar Kate, enjoá-la por vezes, mas era uma força que não conseguia vencer.
Mesmo admitindo essa comunhão de sangue, Ramon reivindicava uma supremacia, até uma divindade. Era um homem como o mais humilde dos seus peóns, nascido da mesma fonte, das mesmas raízes que eles; no entanto, mostrava ser superior aos outros. E a sua superioridade não provinha do sangue ou do espírito mas duma misteriosa estrela interior que nascia do oceano sombrio e cintilava entre o mar e o céu imenso. A estrela que une o vasto sangue universal ao sopro universal do espírito e brilha entre ambos.
Porque essa coisa que reina sobre o poder humano e que é em si mesma um poder, essa coisa é a estrela misteriosa do cosmos primitivo, é a divindade no homem.
Certos homens nada possuem de divino. Possuem apenas faculdades. São ou deveriam ser escravos. Muitas vezes um homem tem a centelha divina, mas é sufocada pela força ou pela vida material.
E quando o espírito e o sangue se separam e divergem, provocando a morte maior, então apagam-se quase todas as estrelas.
Só o homem que possui uma estrela magna, uma grande divindade, será capaz de reaproximar essas forças contrárias e criar uma nova união.
Esse homem era Ramon e o seu esforço o máximo que se podia fazer: aproximar e unir as forças contrárias. Eis o poder divino de um homem. Por ele, no homem, se distingue o deus. Por ele apenas
e por mais nada.
Embora fosse como o mais ínfimo dos seus peóns, com o mesmo coração que bate, os mesmos rins insondáveis, e os lábios fechados sobre o mesmo segredo da humanidade; e fosse humano como Kate era humana, com a mesma ansiedade de espírito e a sede do puro conhecimento e da comunhão; no entanto só ele tinha o poder astral de unir os dois grandes impulsos da humanidade, e de os fundir - de ser a ave de asas imensas que paira entre as duas potências opostas: a Estrela da Manhã, que está entre o sopro da aurora e as profundezas da noite.
Os homens haviam tentado assassiná-lo com punhaladas. Carlota quisera matá-lo com o seu espírito. Cada parte, separadamente, pretendera liquidá-lo. Ele, contudo, estava fora do alcance de qualquer delas. Era o Quetzalcoatl vivo, a cintilação de uma estrela que nascia na alma dos seus compatriotas. Chama dum astro a meio das duas asas do poder: eis só o que representa a divindade num homem e em toda a humanidade.
Kate recebeu um recado de Cipriano: mandava-lhe dizer que vinha instalar-se na Vivenda Aragon. Esta casa era a principal da região do lago; tinha um jardim em toda a volta, não muito grande mas bonito, com palmeiras e sebes de jasmineiros, tudo muito verde em resultado de regas constantes. A própria construção lembrava um castelo em ponto pequeno, talvez despropositado; mas eram agradáveis as varandas espaçosas que davam para a encosta e a vegetação do jardim, mesmo acima do lago.
Cipriano chegou bem disposto. Brilhavam-lhe os olhos com uma expressão de mocidade. Queria casar a valer com Kate, segundo a lei civil mexicana, e morar com ela na Vivenda Aragon. Kate hesitava, achando que tinha necessidade de voltar em breve à Europa, sobretudo à Inglaterra e Irlanda. Era urgente, porque lhe custava já a suportar aquela ameaça do México, a sua influência deprimente. Precisava, pelo menos, de um intervalo de repouso.
Assim o declarou a Cipriano, que ficou desanimado.
- Não importa casar ou não antes de ir - disse ela. - O que tenho é de me afastar daqui o mais depressa possível.
- Quando?
- Em Janeiro.
O rosto dele desanuviou-se.
- Então casemo-nos primeiro. Na semana que vem.
Ela aquiesceu com estranha indiferença, e Cipriano, radiante, correu a fazer os preparativos necessários.
Pouco interessava a Kate o casamento civil. No sentido essencial, já estava casada com Cipriano. Ele era acima de tudo militar, tão depressa vinha para ela como a deixava. Kate, de qualquer maneira, passaria grande parte do tempo sozinha.
Podia convir-lhe como marido, mas o que a assustava era esse México terrível. O movimento quetzalcoatliano espalhara-se de maneira sinistra por todo o país. O arcebispo manifestara-se contra isso, e Ramon, Cipriano e seus aderentes estavam excomungados. Haviam tentado assassinar Montes.
Na capital, os partidários de Quetzalcoatl tinham escolhido para lugar de reunião a Igreja de San Juan Bautista, conhecida pela Igreja do Salvador Negro. O arcebispo ordenara aos seus fiéis que fossem em procissão ao referido templo, agora chamado Casa de Quetzalcoatl, a fim de o retomarem para o culto católico. O governo, porém, sabendo que mais tarde ou mais cedo haveria luta, fez dispersar a procissão e deteve o arcebispo, depois de alguma efusão de sangue.
Rebentou então uma espécie de guerra. Os Cavaleiros de Cortez exibiram a sua famosa reserva de armas, que aliás não era muito impressionante. Em Zócalo produziu-se uma manifestação clerical, dirigida por um padre fanático. Montes mandou atirar sobre os insurretos. Aquilo afigurava-se o começo duma luta religiosa. Pelas ruas viam-se os bandos de Quetzalcoatl, com as suas serapes azuis e brancas, e' os de Huitzilopochtli, de serapes vermelhas e pretas, marchando ao som de tambores e erguendo uns as suas estranhas insígnias redondas, feitas de penas, e outros longas varas rematadas por um penacho rubro de extremidade preta. Nas igrejas, os sacerdotes incitavam os fiéis à guerra santa; os que haviam aderido à causa de Quetzalcoatl discursavam nas ruas à multidão.
Período tumultuoso. Em Zacatecas, o general Narciso Beltran manifestara-se contra Montes e a favor da Igreja, mas Cipriano interviera com tal presteza e violência que deu em resultado o fuzilamento de Beltran e a dispersão das suas tropas.
Então Montes declarou ser igual no México o antigo culto católico e publicou um decreto determinando que a religião nacional da República fosse a de Quetzalcoatl. Encerraram-se todas as igrejas e os padres viram-se obrigados a prestar juramento de fidelidade à República ou a serem condenados ao exílio. Em todas as cidades e aldeias surgiam os soldados de Huitzilopochtli e os homens de serape azul. Ramon trabalhava sem descanso. Cipriano aparecia nos lugares onde menos o esperavam. Conseguiu despertar uma espécie de frenesi religioso nas regiões mais descontentes, como Vera Cruz, Tamaulipas, Jucatão. Efectuaram-se no mar estranhos baptismos e nas costas elevaram-se fortalezas com as cores de Huitzilopochtli.
Todo o país vibrava com uma sensação desconhecida, dominado pela vaga de energia nova, mas em tudo aquilo entrava violência, crueldade e certo horror.
Deportaram o arcebispo. Já não se viam sotainas nas ruas; só as serapes de Quetzalcoatl e as de Huitzilopochtli se evidenciavam entre as multidões. Eis porque Cipriano chegou junto de Kate, com os olhos a luzir, ébrio de triunfo. Kate ficou assustada e sentiu-se vazia e inútil. Nem sequer aquela vitória espantosa e a alteração que se dava na face do mundo a podiam salvar por completo. Pertencia à velha Europa e não lhe era fácil transformar-se tão rapidamente. Contudo, achava que, se voltasse à Irlanda e concedesse uns tempos de repouso à sua vida e ao seu corpo, poderia então regressar ao México e participar nos acontecimentos.
Porque não era só o espírito que se modificava, mas também o corpo e o próprio sangue. Sentia esse terrível catabolismo e metabolismo a transformá-la noutra criatura. Se a metamorfose fosse muito brusca, decerto ela morreria.
Casou-se, pois, legalmente com Cipriano e foi passar um mês com ele na Vivenda Aragon. Em seguida embarcaria sozinha para a Irlanda, projecto a que o marido deu a sua anuência.
Era deveras estranho estar casada com ele. Kate tinha a impressão de se afundar pesadamente abaixo da superfície da vida, para jazer nas suas profundezas.
Estranha, pesada, verdadeira passividade. Pela primeira vez na sua existência, ela sentia-se repousada. Falar e pensar tornavam-se-lhe coisas triviais; as ondas à tona de água não são nada para aqueles que vivem submersos.
Na alma, estava serena e altiva. Ah, se o corpo não sofresse tanto com a transformação! No cosmos encontrara a paz de espírito, o universo abrira-se à sua frente, e ela deixava-se afundar no leito de puro descanso. Adquirira quase tanta segurança como Teresa. Só a atormentava a mudança que se lhe operava no sangue.
Cipriano mostrava-se feliz, à sua maneira de índio. Parecia um adolescente contemplando o mistério da vida com olhos dilatados de espanto. Não se ocupava especialmente de Kate, nem lhe falava de assuntos sérios. Se ela aflorava uma conversa desse género, dirigia-lhe um olhar desconfiado e afastava-se.
Tinha consciência de coisas de que a mulher mal se apercebia, sobretudo do perigo das palavras irritantes. E isto ele evitava.
Kate compreendia agora como os seus antigos amores haviam sido brutais, carregados de desejo e de contactos voluptuosos. com Cipriano, desaparecia a sua vontade ardente feminina, toda ela doçura, submissão; e contudo, tais as fontes térmicas que brotam da terra sem rumor, tão poderosa era na sua força secreta!
Via quase com espanto morrer dentro de si a Afrodite da espuma, essa Afrodite ávida de sensações ardentes. Como se prevenido por vago instinto, Cipriano repudiava essa parte da natureza de Kate. Quando esta se deixava dominar pelo êxtase voluptuoso que acaba em espasmos delirantes, ele afastava-se da mulher. Retirava-se desde que pressentia nela a sede daquelas volúpias a que costumava chamar o seu "prazer". E Kate percebia que lhe era repulsiva nesses momentos. Misterioso e implacável, afastava-se sem uma palavra.
Estendida a seu lado ela compreendia então quanto era superficial aquela efervescência de sensualidade. Parecia vir do exterior, não do seu íntimo. Depois do primeiro instante de decepção, quando esse prazer lhe era negado, concluía que não o desejava realmente, que até lhe repugnava.
E Cipriano, no seu silêncio quente e obscuro, aproximava-se quando ela se assemelhava a uma fonte borbulhando sem rumor das profundezas vulcânicas. Já não se tratava de prazer consciente. O que se passava era estranho, inexprimível, muito diferente das suas relações com Joachim. Nem êxtases, nem espasmos. Uma espécie de força subterrânea a que tinha de se submeter.
Tal como no amor, assim era Cipriano na vida. Kate não conseguia perscrutá-lo. Se tentava, via-se obrigada a desistir e a classificá-lo entre as coisas que existem e não se compreendem. Um desconhecido, e uma presença; nada mais.
Não podia existir intimidade. Cipriano envolvia-se na sua reserva como numa capa e deixava Kate envolver-se na dela. Eram dois estranhos. Ele aceitava o facto integralmente, como se outra coisa não fosse possível, mas Kate achava aquilo deveras singular. Tinha tanto desejo de intimidade e esforçara-se tanto por obtê-la!
Agora, resignara-se a aceitá-lo tal como era: um desconhecido, um estrangeiro na presença do qual vivia. E sem nenhuma intimidade espiritual, a sua união não passava de uma união de sangue.
Por isso, pouco importavam as ausências de Cipriano. Deixava atrás de si a marca da sua presença, e levava consigo a de Kate. Em resumo, não existia o desgosto da separação.
Certa manhã, ele teve de partir cedo para a cidade. O sol ainda não cobria o lago mas, para além de Tuliapan, já acariciava as montanhas, que brilhavam tão distintas que se diriam focadas por luz mágica. O sulco verde das encostas parecia ao alcance da mão. No seu voo, cintilaram de súbito duas gaivotas brancas, apanhadas na luminosidade. Mas o lago, suave, unido, silencioso, permanecia ainda na sombra.
Kate lembrou-se do mar. O Pacífico não ficava longe. Ela tinha a impressão de o haver esquecido, mas sentia de novo a necessidade da sua brisa.
Cipriano ia banhar-se; Kate viu-o caminhar sobre as lajes do cais. Despiu o roupão e o vulto escuro desenhou-se na água amarelada. Era tão moreno! Tal um malaio. Corpo tão trigueiro como a cara; e com esse físico primitivo, e o peito alto, e as ancas bem modeladas, evocava as figuras masculinas de certas medalhas gregas.
Mergulhou da beira do cais e avançou na água mansa. Nesse momento a luz espalhou-se dos cimos das montanhas e cobriu de oiro a superfície do lago. Imediatamente, Cipriano apareceu rubro como fogo. Os raios solares, porém, não eram vermelhos, mas, reflectidos pelas águas, davam ao corpo de Cipriano um tom de lume, como se o abrasassem.
Os filhos da Manhã... A coluna de Sangue... Um Pele-Vermelha... Kate contemplava-o admirada enquanto nadava resplandecente e puro. Como se fosse de fogo!
Os filhos da Manhã... Kate mais uma vez renunciou a todo e qualquer esforço de conhecimento - e, sem esforço, limitou-se à comunhão de sangue.
Sim, a sua raça... Ela notara já como os indígenas se tornavam de um vermelho puro à luz da manhã e da tarde. Dir-se-iam chamas erguendo-se da água.
Cipriano partiu a cavalo, com o criado. Kate viu-o afastar-se pela estrada além, sombrio na sua montada ruça. Parecia não fazer movimento nenhum. Irradiava um orgulho másculo e, assim unido ao animal, era como se este e o cavaleiro constituíssem um único ser.
Desapareceu. Kate, por um instante, experimentou saudade da sua presença. Mais do que dele próprio. Não desejaria tocar-lhe nem falar-lhe, mas tão-somente senti-lo ali.
Depressa se dominou e voltou à realidade. Desde que se compenetrava da ausência de Cipriano, vinha-lhe a noção nítida da sua presença.
Passeou um pouco pela costa, junto do molhe. Adorava estar só. Absolutamente só, com o jardim, o lago e a manhã.
"No fundo, sou como Teresa", pensou ela.
De súbito viu à sua frente uma corda comprida e escura em cima de um pedregulho. Aquilo fê-la sair dos devaneios. Era uma cobra de pele ornada com delicados desenhos; estava sobre uma pedra enorme e a cabeça pendia-lhe até ao chão.
O réptil sentiu a presença da mulher, pois, com incrível rapidez, rastejou ao longo da rocha e entrou numa fenda que havia na base do molhe.
Não era grande o buraco. Depois de ali penetrar, virou a cabeça e dardejou a língua preta; mas em seguida desapareceu devagar, e Kate viu-lhe ainda o último anel, no qual poisava a cabeça chata. Fazia lembrar aqueles diabos que se representam de queixo apoiado sobre os braços, olhando através duma seteira. Do fundo do esconderijo espiava a mulher; seguia-a com os olhos cintilantes de crueldade.
Kate pensou então em todos esses seres invisíveis, escondidos nos recantos ocultos da terra. E perguntava a si mesma se aquele réptil não sofreria por ser incapaz de se elevar na escala da criação; de não poder correr a quatro patas em vez de rastejar...
Talvez não. Talvez houvesse encontrado a sua própria paz. Kate sentiu-se reconciliada com o animal.

XXVII
Teresa e Kate tornaram a visitar-se. Existia agora entre ambas certa simpatia, especialmente desde que a irlandesa decidira partir.
Envolvia o lago uma pureza outonal. Sentia-se a humidade na atmosfera, as sarças das encostas cobriam-se de rebentos. O sol inundava os montes duma luz de ouro, as sombras eram profundas, aveludadas. A verdura invadia tudo, até as rochas e a terra cor-de-rosa. O verde brilhante das canas-de-açúcar sobressaía no fundo rubro dos campos lavrados de fresco; aqui e ali, entre a massa escura das árvores, avultava a mancha branca das povoações.
O céu estava alto e límpido. No ar cristalino vibravam os tambores e o grito para as pausas do dia. E o dia parecia deter-se perante o mistério supremo desse universo que desabrochava, vasto, suave e cheio de vida.
Até no lago se encontrava uma espécie de apaziguamento. Avançava uma canoa com a vela entumecida tal uma concha nacarada; o casco negro e afilado deslizava sobre a água. Dir-se-ia a barca de Dioniso portadora duma mensagem e de ramos de videira.
Kate mal se lembrava agora da secura árida dos meses anteriores, quando a terra parecia crepitar ao sol implacável.
Ramon e Teresa atravessaram o lago e o seu barco de remos entrou no molhe. Era uma manhã em que as sombras nas montanhas tomavam o tom azul das centáureas.
- Sempre vai partir? - perguntou Ramon a Kate.
- Por uma temporada. Não me julga a mulher de Loth, não é verdade?
- Não - respondeu ele, a rir. - Julgo que é a de Cipriano.
- E sou. Mas preciso de sair, embora por pouco tempo.
- Ah! Nesse caso vá e volte depressa. E diga lá na Irlanda que façam o que fizemos aqui.
- Como?
- Encontrando-se em si mesmos, e no seu próprio universo, e com os seus deuses. Justifiquem os seus mistérios. Os Irlandeses são tão prolixos no que respeita aos seus heróis de outrora e aos seus tempos gloriosos! Diga-lhes, pois, que concretizem tudo isso, como nós fizemos com Quetzalcoatl e Huitzilopochtli.
- Está bem. Veremos se há quem me escute...
- Sim, senhora. - Seguiu com os olhos a vela branca que se aproximava e depois indagou: - Afinal, porque quer partir?
- É-lhe indiferente o caso, pois não?
- Não, não me é indiferente.
- Porquê?
Ramon levou outra vez uns segundos para responder:
- É uma das nossas - replicou por fim. - Precisamos de si.
- Mesmo quando não faço nada? E quando principio a aborrecer-me com a história do Quetzalcoatl vivo e o resto, e preferia conhecer um simples Don Ramon?
Ele riu-se.
- Que é um simples Don Ramon? Don Ramon tem dentro de si Quetzalcoatl vivo. Mas a senhora auxilia-nos, apesar de tudo.
- Não creio que precise de auxílio, e muito menos de uma mulher que. no fim de contas, não é mais que a esposa do seu amigo.
Estavam sentados num banco, debaixo das manhãs-de-páscoa, cujas folhas rubras formavam como que uma flor de pétalas enormes.
- A esposa do meu amigo - volveu Ramon. - Que poderia
ser de mais agradável para mim?
- Pois claro! - exclamou Kate de maneira ambígua. Ramon tinha os braços apoiados nos joelhos e olhava para o
lago, com ar ausente. O seu rosto reflectia cansaço e aquela vulnerabilidade que sempre comovia Kate. Mais uma vez ela se compenetrou do isolamento e esforço que a procura de uma vida diferente impunha àquele homem. E, no entanto, ela não desistia...
Essa visão acentuou-lhe o sentimento de impotência, da impotência total da mulher em ajudar o homem que caminha para o Além.
- Está muito seguro de si mesmo? - perguntou.
- Seguro de mim? Não! De um instante para o outro eu morro e desapareço da face do mundo. Como poderia estar seguro de mim
mesmo?
- Mas porque há-de morrer?
- Todos morrem. Até Carlota!
- Essa tinha a sua hora marcada.
- Pode-se marcar a nossa hora como se faz no despertador de um relógio?
Kate calou-se por uns momentos.
- Se não está seguro de si mesmo, de que está então? - inquiriu como se o desafiasse.
Ramon fitou-a com os seus olhos sombrios.
- Estou seguro... seguro... - A voz sumiu-se-lhe, o rosto tomou a palidez dum defunto. Só os olhos a observavam intensamente. De novo ela se viu perante a sombra dolorosa do homem e se sentia impotente diante desse espectro vivo do sofrimento.
- Não pensa que anda em erro, pois não? - perguntou Kate.
- Não, mas talvez não possa manter...
- E então? - insistiu friamente a irlandesa.
- Continuarei o meu caminho, embora desacompanhado. Kate só lhe via os olhos negros, fitos nela. Ramon começou a falar em espanhol: - Isto faz-me doer a alma, como um pronúncio de morte.
- Mas porquê? Não está doente!
- Sinto a alma desagregar-se.
- Não deixe! - exclamou Kate, alarmada.
Ramon fitava-a ainda com os olhos inexpressivos. De súbito, ela experimentou uma sensação de calma e de força.
- Devia esquecer por uns tempos - disse-lhe em voz compassiva, poisando a sua mão na dele. Para quê tentar compreendê-lo ou contrariá-lo? Era uma mulher, ele um homem e, portanto, tinham da vida uma concepção diversa.
Ao contacto daquela mão, Ramon percebeu despertar de um sonho e fixou-a com olhar perscrutador e altivo. A carícia maternal sobressaltara-o como uma picada.
- Sim, devia - disse.
- Pois claro. Se quer ser tão... abstracto e quetzalcoatliano enterre de vez enquando a cabeça na areia como fazem as avestruzes, e esqueça.
- Oh! - exclamou Ramon sorrindo. - Ei-la de novo zangada!
- O caso não é tão simples como parece. Existe em mim um conflito, e não me deixam ausentar-me por algum tempo.
- Não podemos impedi-la.
-Pois sim, mas discordam da minha ida. Não me deixam partir em paz.
- Porque deseja ir-se embora?
- Tenho de ir. Tenho de voltar para junto dos meus filhos e da
minha mãe.
- Sente essa necessidade?
- Sinto.
Logo que deu esta resposta compreendeu que havia nela certa duplicidade. Era como se tivesse dois eus: um, mais novo, terno, sensível, que pertencia a Cipriano e a Ramon; outro, duro, completo, que pertencia aos filhos, à mãe, à Inglaterra, a todo o seu passado. O eu antigo nada tinha de submisso e era forte, o recente parecia frágil, estava ligado a Cipriano e até a Ramon e a Teresa; nada tinha de independente.
Kate possuía consciência desta dualidade e sofria com isso. Porque não conseguia optar definitivamente pela antiga maneira de ser, nem pela moderna, ficava a deter-se entre as duas.
- Pois é - continuou. - Sinto essa necessidade, e querem
evitar que eu parta.
- Que ideia! - protestou Ramon.
- Sim, senhor. Exercem pressão sobre mim, paralisam-me, impedem-me de me ir embora.
- Se tem essa sensação, convém que nos afastemos de si durante uns tempos.
- Porquê? Não concordam com a minha ida? Se eu tenho de
ir, porque não me apoiam?
Ramon fitou-a tranquilamente.
- É impossível. Não acredito nessa partida. Seria virar-nos as costas, renegar-nos. Mas a verdade é que somos todos muito complicados. Se acha que tem de se ausentar durante certo período, então vá! Não é coisa de importância primordial. Já fez a sua opção, e
eu não fico apreensivo.
Kate sentiu alívio ao ouvir isto, porque estava bastante preocupada consigo mesma. Nas suas relações com Cipriano e Ramon, nunca tinha a certeza de nada. Contudo, replicou com um pouco de ironia:
- Porque haveria de ficar apreensivo?
- Não desconfia de si própria às vezes?
- Nunca! Estou sempre segura da minha pessoa.
Continuavam sentados no jardim da Vivenda Aragon, debaixo da manhã-de-páscoa. O ar começava a aquecer. O lago estava calmo, o vento amainara e tudo se conservava imóvel - excepto as folhas rubras do arbusto.
O Natal aproximava-se! Eis o que recordou a Kate aquela planta majestosa.
Natal! O azevinho! A Inglaterra! As prendas! As iguarias! Se ela se apressasse poderia chegar à Inglaterra na data festiva. Achava uma coisa tão natural encontrar-se na pátria com a mãe, pelo Natal! Tinha casos tão interessantes a contar! E as bisbilhotices divertidas que havia de ouvir... De longe, tudo isso lhe parecia encantador. No entanto, experimentava como que uma relutância ao pensar nesse regresso.
- Podemo-nos fartar de coisas boas - disse ela a Ramon.
- De qual, em particular?
- Oh! De Quetzalcoatl e todas essas histórias. Podemos estar saturados.
- É possível - respondeu Ramon, pondo-se de pé e afastando-se em passos tão subtis que ela nem deu pela sua retirada.
Quando compreendeu que ele se fora embora, ficou fula. Mas continuou sentada debaixo do magnífico arbusto, contemplando com os olhos irritados a sebe de jasmineiro e as suas flores dum branco puríssimo. Onde é que ela ouvira qualquer coisa a respeito de jasmins? "E entre nós os jasmins..."
Oh! Como se sentia farta de tudo aquilo!
Teresa descia a ladeira do jardim.
- Ainda está aqui?
- Onde podia eu estar? - retorquiu Kate.
- Não sei... Meu marido foi a Sayula a fim de falar com o Jefe. Não quis esperar para ir connosco no barco.
- Talvez tivesse pressa.
- Que maravilha! - observou Teresa, apontando para o estendal vermelho do majestoso eufórbio.
- São as vossas flores de Natal, não são?
- Sim, as flores de Noche buena.
- É extraordinário! O Natal com hibiscos e manhãs-de-páscoa! Estou ansiosa por ver azevinho e laranjas na montra duma frutaria de Hampstead.
- Porquê? - disse Teresa, rindo.
- Ah! - suspirou Kate. - Voltar à vida simples, ver os autocarros a correr na lama de Piccadilly, na véspera do Natal, e os passeios molhados cheios de gente diante das lojas cintilantes...
- Isso é que é vida, para si? - perguntou Teresa.
- Sim. Sem esta abstracção e vontade. A vida satisfaz-me se eu puder vivê-la e ser eu mesma.
- É altura de Cipriano regressar - disse Teresa.
Kate levantou-se com súbita impaciência. Já não suportava essa tutela. Haviade lhes mostrar que era livre!
Foi com Teresa à aldeia. O ar parecia misteriosamente vivo, animado com um sopro novo. Mas Kate sentia-se fora do ambiente. As duas senhoras sentaram-se debaixo de uma árvore na praia de Sayula, conversando um pouco e contemplando a imensidão do lago
cor de pérola.
Ancorado junto do molhe estava um barco de toldo vermelho e mastro comprido. Em terra, viam-se grupos de homens vestidos de branco a olharem para o interior da embarcação. O contorno monolítico duma vaca preta e branca e dum touro enorme recortava-se contra a superfície das águas.
Era perto, e no entanto parecia tudo estranho e remoto. Dois peóns colocaram uma prancha e puseram-se a empurrar a vaca para lá. O animal avançou relutante mas depois, com a lenta indiferença dos Mexicanos, seguiu pela ponte adiante. Os homens incitavam-no, até que ele ganhou o barco e entrou definitivamente no porão.
O grupo ocupou-se então do touro. Um mexicano já idoso, alto, de calças estreitas de pele e casaco de cabedal, com um imenso chapéu de feltro bordado a prata, ergueu delicadamente a cabeça do touro, pegando-lhe pela argola do focinho. Atrás estava um peón que, curvando-se, empurrou os poderosos flancos do animal. E este, com toda a calma, foi andando pela prancha além. Mas parou.
Os peóns reagruparam-se. O que estava atrás, de faixa vermelha atada à cintura, deixou de empurrar. Então dois outros passaram uma corda em volta das ancas do touro. O velho tornou a pegar pela argola, sempre com muito cuidado, e o animal levantou outra vez a cabeça. Mas continuou parado.
De novo lhe puxaram pela argola e pela corda. O monstro mantinha-se impassível. Tudo isto decorria no maior silêncio.
Por fim o touro percorreu a ponte em passos lentos e alcançou a borda do navio. Ali, esperou.
De cabeça baixa, olhava para o fundo do porão. Os homens empurravam-no com toda a força, puxavam a corda - tudo no profundo silêncio mexicano.
Devagar, cauteloso, o animal agachou-se, e então, com um movimento rápido, pendeu as patas dianteiras no interior do barco, ficando com os quartos traseiros alçados. Houve um momento de confusão, depois um baque. Finalmente, o touro saltara e encontrava-se no porão do navio.
E tudo tão silencioso e tão remoto!
- Ramon quer que se sente ao lado dele no templo como esposa de Quetzalcoatl... com algum nome esquisito? - perguntou Kate a Teresa.
- Não sei. Mais tarde, diz ele, quando for ocasião de haver uma deusa.
- E importa-se?
- Por mim, tenho medo. Mas sei que Ramon o deseja. Ele diz que é aceitar a maior responsabilidade da nossa vida, e eu acredito que seja verdade. Se existe divindade em mim, devo reconhecê-la, envergar a túnica verde e ser deusa no momento oportuno. Ramon afirma que precisamos de manifestar a presença divina. E, ao lembrar-me de meus irmãos, acho que ele tem razão. Hei-de pensar no deus que palpita invisível como o coração do mundo. E quando vestir a túnica verde e me sentar no templo diante de toda a gente, voltar-me-ei para o coração do universo e tentarei compenetrar-me do meu eu divino.
- Julgava que a túnica verde era só para a esposa de Huitzilopochtli - observou Kate.
- Ah, sim! - replicou Teresa. - A minha é preta, com barras brancas e desenhos encarnados.
- Preferia a verde? Fique com ela, se quiser. Eu vou-me embora...
Teresa ergueu os olhos para Kate.
- A túnica verde é para a mulher de Huitzilopochtli - declarou.
- Não vejo que isso tenha importância - volveu a irlandesa.
- Cada homem deve possuir a esposa que lhe convém. Cipriano não quereria uma mulher como eu.
- Cada mulher deve ter o homem que lhe convém - retorquiu Kate. - Para mim, Ramon seria muito abstracto e muito despótico.
Teresa ruborizou-se e baixou os olhos.
- Ramon exige muita submissão de uma mulher para que me agradasse - ajuntou a outra.
Teresa ergueu a cabeça, o pescoço moreno ondulou como uma
serpente.
- Como é que sabe que Ramon exige submissão das mulheres? Como é que sabe? Nunca a exigiu de si... Está enganada. Ele não me impõe tal submissão. O que pretende é que me entregue brandamente; em compensação, entrega-se-me, a mim, com uma brandura maior do que esta que lhe concedo: um homem como Ramon é mais dócil do que uma mulher. Não se assemelha a Cipriano, que é soldado. Ramon mostra-se dócil. Não tem razão no que
diz, Caterina.
Kate soltou uma risadinha. Mas Teresa prosseguiu:
- Vejo-a como um soldado entre as mulheres, está sempre a combater. Eu não sou assim. No entanto, há mulheres que são de temperamento bélico e essas precisam de mandos militares. Eis a razão por que é Malintzi e tem um vestido verde. Estará sempre disposta a lutar... até consigo mesma, se ficar só no mundo.
Havia uma grande calma em volta do lago. As duas senhoras aguardavam a chegada de Ramon.
Um homem vestido de branco, acocorado e silencioso debaixo de uma árvore, desbastava folhas de palmeira, com ar concentrado. Em seguida ia molhá-las na água e voltava para se sentar de novo, recomeçando o trabalho com aquela atenção pueril da gente do povo. Estava a consertar uma cadeira de palha. Como Kate o observasse, os olhares dos dois encontraram-se e o homem saudou-a. Dir-se-ia que, dele, emanava para ela uma chama de vida, a qual lhe transmitiu um estranho poder.
Nitrindo excitado, corria ao longo da margem um cavalo ruço malhado de branco. A crina flutuava ao vento, as patas faziam saltar os calhaus, as narinas abriam-se-lhe ansiosas. Porque seria?
Um peón fizera entrar no lago a sua carroça puxada por quatro muares, até que a água ficou acima dos varais, e quase atingindo o fundo do veículo. Parecia um barco conduzido por quatro cavalos-marinhos.
Era Inverno, mas dir-se-ia Primavera nas imediações do lago. Saltitavam na praia bezerros amarelos e brancos, agitando a cauda, correndo lado a lado à beira da água, que eles cheiravam desconfiados.
A uma árvore estava amarrada uma burra, com a sua cria deitada à sombra, um jumentinho preto como uma amora, enroscado no chão, com a cabeça peluda erguida e as longas orelhas fitas.
- Quantos dias tem o burrinho? - perguntava Kate ao peón, que saíra da sua cabana de colmo.
O homem dirigiu-lhe um olhar em que havia júbilo e deferência - olhar que fez Kate sentir uma onda de orgulho encher-lhe o peito.
- Nasceu a noite passada, patrona! - respondeu ele, sorrindo.
- Tão novo! Ainda não pode aguentar-se nas pernas, pois não?
O peón aproximou-se do jumento e pô-lo de pé. E ali ficou o animalzinho, espantado, de pernas abertas, como se em cima de ganchos de cabelo.
- Que engraçado! - exclamou Kate, deliciada. O homem riu-se; parecia grato pelo interesse dela.
O jumento a custo se mantinha naquela posição. Vacilava sobre as quatro patas bambas, com ar admirado. Deu uns passos oscilantes para cheirar as folhas de milho. Cheirou, e tornou a cheirar, tal se o mistério do olfacto se lhe revelasse nas narinas.
Então voltou para Kate a cabeça aveludada e deitou de fora a língua cor-de-rosa. Kate soltou uma gargalhada, o que fez o animal dar um pulo que o deixou infinitamente surpreendido consigo próprio. Tentou uns passos, e, de repente, sem que ele mesmo esperasse semelhante coisa, deu outro salto.
- Já dança! - exclamou Kate. - E só tem umas horas de existência!
- Já dança - confirmou o peón.
Depois daquelas experiências, o burrinho aproximou-se da mãe em passos incertos e começou a mamar.
Erguendo a vista, Kate encontrou os olhos do homem cintilantes da chama da vida, cheios de confiança e de conhecimento.
O jumentinho preto, a mãe, o mistério da criação, o respeito pela mulher superior a ele, bela e radiosa, tudo isto exprimiam os olhos negros desse homem primitivo.
- Adiós! - disse Kate.
- Adiós, patrona! - respondeu ele, erguendo o braço, na saudação de Quetzalcoatl.
Atravessou ela a praia em direcção ao cais; sentia dentro de si uma onda de vida, forte, resistente. "É o sexo", disse consigo. "Como o sexo pode ser extraordinário quando o homem o conserva poderoso e sagrado e que ele enche o mundo! É como o sol, penetrando-nos. Mas não me submeterei, mesmo assim. Porquê ceder?" Ramon aproximava-se, com o seu largo chapéu ornamentado do símbolo de Quetzalcoatl. Nesse instante tocaram os tambores e, do alto da torre, soou a voz nítida e possante anunciando o meio-dia. Todos os homens que se encontravam na praia aprumaram o corpo e ergueram o braço direito. As mulheres viraram a palma da mão para o Sol. Tudo ficou imóvel, excepto os animais.
Então Ramon encaminhou-se para o barco, enquanto os homens o saudavam à maneira de Quetzalcoatl.
- É espantoso como nesta terra se pode ter a impressão de que se é alguém! - notou Kate, quando já iam sobre a água no barco de remos. - Sentimo-nos como se pertencêssemos de facto à nobreza.
- E não é verdade?
- Sim, mas isso em toda a parte nos é negado. Só aqui temos a noção do poder da nobreza. Os indígenas ainda a veneram. Parecem
adorar-me.
- Por enquanto - replicou Ramon. - Mais tarde assassiná-la-ão porque a adoraram.
- É inevitável? - volveu Kate em tom despreocupado.
- Creio que sim. Se vivesse sozinha aqui, em Sayula, e reinasse por algum tempo, seria assassinada... ou pior ainda... pelo povo que a tinha idolatrado.
- Não acredito.
- É como lhe digo.
- Mas porquê?
- A não ser que se consiga dos deuses a nossa própria nobreza e se implore dos céus o poder, acabaremos por ser assassinados.
- A minha nobreza tem essa origem.
Mas não ficou muito convencida e mais firmou a sua resolução
de partir.
Escreveu para a Cidade do México e reservou uma passagem de Vera Cruz a Southampton. Embarcaria no último dia de Novembro.
Cipriano regressou a 17 e Kate participou-lhe o que tinha feito. Ele ficou a olhá-la, de cabeça um pouco à banda e com uma expressão de criança ajuizada, mas Kate foi incapaz de adivinhar o que lhe ia na alma.
- Vais-te embora já? - perguntou ele em espanhol.
A mulher percebeu então que estava ofendido. Quando se melindrava falava-lhe sempre em espanhol, nunca em inglês.
- No dia 30.
- E quando voltas?
- Quien sabe! - ripostou Kate.
Por uns minutos, Cipriano fitou-a com as suas pupilas negras imperscrutáveis. Estava a pensar que tinha o direito de a impedir que saísse do país, visto ser legalmente sua esposa. Nas profundezas dos olhos luzia a antiga cólera índia; depois surgiu uma leve mudança de expressão no rosto, quando a ira contida cedeu lugar à indiferença estóica, à velha indiferença de tantos séculos. Kate quase sentia as ondas sucessivas de sombra e frieza que percorriam Cipriano sem que ele mesmo desse por isso. E mais uma vez lhe estremeceu o coração o medo de perder o contacto com esse homem.
- Como quieras tu! - disse ele por fim.
Concedia-lhe a liberdade com a misteriosa indiferença do seu sangue e não faria mais esforços para a reter. Era o fatalismo dos da sua raça.
Conforme Kate previra, Cipriano tomou um barco e foi a Jamiltepec falar com Ramon.
A mulher ficou só, como de costume. Ocorreu-lhe que ela própria criara essa solidão. Não conseguia identificar-se com aquela gente, sentir-se à vontade fosse com quem fosse. Fechava-se sempre na sua personalidade.
Importava-lhe muito a reciprocidade sexual? Podia importar-lhe ainda mais se não a houvesse tido; mas tivera-a, e de maneira perfeita, com Cipriano. Sabia tudo a esse respeito. Era como se houvesse conquistado outro território, outro domínio da vida. E agora devia retirar-se para a toca da sua individualidade, com a vítima nos dentes.
De súbito, viu-se como os homens muitas vezes a viam: uma gata enorme, com os seus espasmos de volúpia e o gozo demorado do seu isolamento. Conhecia outras mulheres assim. Brincavam cheias de amor e familiaridade como um gato com um rato. Por fim devoravam o ratinho querido e reapareciam com a barriga repleta e uma voluptuosa sensação de força.
Algumas vezes o rato recusava-se a ser digerido, de que resultava prolongada dispepsia; ou então, como Cipriano, transformava-se numa espécie de cobra, que alçava a cabeça, olhava para trás e desaparecia num buraco, deixando-a confusa e destituída de poder.
Outra coisa que ela observava horrorizada. Uma após outra, as suas "amigas", as grandes amorosas, na idade de quarenta, quarenta e cinco e cinquenta anos perdiam todos os atractivos e ficavam umas corujas horrendas, procurando em volta a vítima cada vez mais rara. Como seres humanos deixavam de existir, metamorfoseadas em corujas elegantes e mexeriqueiras.
Kate era bastante inteligente para tirar proveito da lição. Estava bem que uma mulher cultivasse o seu ego, a sua personalidade. Estava muito certo que desprezasse o amor ou que com ele se entretivesse como um gato faz ao rato; isto é, brincar o mais tempo possível antes de o comer e saciar voluptuosamente o ego com a sua vítima.
"A mulher sofre mais com a supressão do ego do que com a do sexo", afirmou uma escritora, e talvez seja verdade. Mas olhai, olhai para as mulheres modernas de cinquenta anos, as que cultivaram o ego até ao extremo limite! São em geral criaturas que nos enchem de pena ou de repulsa.
Kate sabia tudo isto, e nisto pensava enquanto ali sozinha na sua vivenda. Tivera a sua liberdade, mesmo no México. Esses homens deixá-la-iam partir. Não estava prisioneira. E levaria consigo todos os despojos que ainda guardavam.
E depois? Sentar-se nos salões de Londres e ser mais uma coruja ao lado das outras? Arvorar um sorriso postiço e falar com voz
artificial?
"Não! - disse consigo. - O meu ego e a minha personalidade não valem esse preço. Prefiro desfazer-me deles em parte a ver-me reduzida a isso."
No fim de contas, quando Cipriano a acariciava toda ela parecia desabrochar. Era a força do sexo, que enchia o mundo de lascívia e sobre que ela não se atrevia a reflectir. O seu poder tornava-se maior do que a sua vontade. Por outro lado, quando estava só e abria as asas do seu ego e o espírito desferia voo, o mundo afigurava-se-lhe maravilhoso. Todavia, após uns instantes, desvanecia-se o esplendor, substituído por uma solidão amarga.
"Preciso de ambos - concluiu. - Não posso afastar-me de Cipriano nem de Ramon. Renovaram-me o sangue. Digo que são limitados, mas todos temos de o ser. Se tentamos ser ilimitados, tornamo-nos monstros. Sem Cipriano a afagar-me, a limitar-me e a submergir-me a vontade, tornar-me-ia uma velha horrível. Devo regozijar-me pelo facto de Cipriano me limitar com a sua vontade e o seu contacto ardente. Porque o que eu chamo a minha grandeza faz-me cair no vácuo desde que não haja a mão dum homem para me segurar. Ah, sim! Antes submeter-me do que ser uma mulher horrível."
Chamou o criado e foi através do lago num barco de remos. Era por uma bela manhã de Novembro. Nas escarpas das montanhas, a nordeste, as sombras tinham um tom azul muito puro. Por baixo, a vegetação começava a amarelecer. O lago, embora ainda cheio, principiava a baixar, e os jacintos-d'água vogavam à toa. No ar calmo viam-se pássaros voando. Alguns milheirais exibiam os seus talos secos, mas as flores de palo-blanco tinham já desabrochado e errava o perfume das acácias amarelas.
"Porque havia de me ir embora? - pensou Kate. - Porque havia de ver os autocarros na lama de Piccadilly na véspera do Natal e a multidão nos passeios molhados diante das lojas iluminadas? Mais vale ficar aqui, onde a minha alma é menos triste. Tenho de pedir desculpa a Ramon das coisas que lhe disse. No fim de contas, aqui há outra grandeza, com o som dos tambores e o grito de Quetzalcoatl."
Já ela distinguia o último andar da casa de Jamiltepec, semelhante a uma torre avermelhada, e a buganvília roxa pendente do muro, os cachos das flores de plumbago e a porção de rosas brancas.
- Están tocando - disse tranquilamente o barqueiro, erguendo para ela os olhos negros.
Já ouvira o som do tambor em Jamiltepec. Uma voz de homem se elevou na manhã clara.
O barqueiro levantou um remo, como se fizesse sinal. E assim que o barco penetrou na enseadazinha, veio um criado a correr ao longo do molhe. No ar soalheiro notava-se o cheiro das daturas e das rosas, e um silêncio profundo que nem o tambor nem o canto perturbavam.
- Don Cipriano está aqui? - perguntou Kate.
- Está - murmurou o criado, apontando para o balcão donde partia a voz do cantor. - Deseja que eu o informe da sua chegada?
- Não - respondeu Kate. - vou sentar-me um bocado no jardim, antes de subir.
- Nesse caso, deixarei a porta aberta - volveu o homem - e assenhora entrará quando quiser.
Kate instalou-se no banco de uma árvore, donde pendiam flores de trepadeira enroscada ali como uma serpente. Pôs-se a ouvir o canto. Ramon ensinava o novo hino a um dos cantores.
Não tinha muito boa voz o Quetzalcoatl vivo. Cantava baixinho, como se para si mesmo, mas com expressão simples e bela. Kate não conseguiu perceber a letra.
- Ya? - disse Ramon ao terminar.
- Ya, patrón! - respondeu o cantor.
E na sua voz forte e pura, este entoou o hino:
O meu caminho não é o teu e o teu não é o meu.
Mas vem, antes que nos separemos.
Cada qual por seu lado, dirijamo-nos à Estrela da Manhã
Para lá nos encontrarmos.
Não te aponto o meu caminho
Nem chamo por ti.
Mas a Estrela é a mesma para nós ambos
E a ambos nos atrai.
A cada qual o seu caminho, esse que esplende Na encruzilhada,
Que abre a sua chama como a porta de uma tenda Por onde, invisíveis, deslizamos.
Não pode um homem pisar como a mulher
Nem a mulher andar como o homem.
O espírito de cada um através das folhas de sombra
Se move como pode.
Mas a Estrela da Manhã e a da Noite Fixam tendas de fogo
Onde nos retinimos quais ciganos, sem saber Como é que vieram os outros.
Nada mais peço que me insinuar Na tenda do Espírito, e deter-me Na casa da chama bifurcada Como hóspede seu.
Fica aí comigo, esposa minha, Corporalmente. E que a flama nos envolva Qual uma rede.
Sede lá, homens, comigo,
Alcançai o lar.
Ride comigo, enquanto a mulher repousei,
Porque vale a pena.
O homem entoara o hino por várias vezes, parava, dir-se-ia esquecer-se, extinguia-se-lhe a voz pura e quente. Então a de Ramon, baixa e um tanto rouca, elevava-se com subtil intensidade, como se vinda do meio duma concha; depois, o tenor retomava o canto, que lhe corria no sangue como uma chama.
O mozo de Kate, ou seja, o seu criado, seguira-a ao jardim, e tinha-se sentado de pernas cruzadas, a certa distância, debaixo de uma árvore, de costas apoiadas ao tronco - sombra acocorada, vestida de branco. Os dedos dos pés saíam-lhe rijos e escuros das huaraches esburacadas, e o trancelim de palha do chapéu pendia-lhe junto à face trigueira. Quanto ao resto era tudo alvo, e as calças de linho apertavam-se-lhe nas coxas.
Quando o canto terminou, e o tambor deixou de rufar, e as vozes, num murmúrio, mal se ouviam, o mozo ergueu a cabeça e olhou para Kate. Brilhavam-lhe as pupilas negras, no rosto errava-lhe um sorriso tímido.
- Está muy bien, patrona? - perguntou, um pouco envergonhado.
- Muito bem - respondeu ela, como um eco fiel. Mas no seu coração debatiam-se conflitos diversos, e o criado sabia-o.
Parecia tão novo com aquele sorriso alegre, excitado, receoso! Havia nele qualquer coisa de perpetuamente infantil; mas era uma criança que, dum momento para outro, se podia tornar num selvagem- vingativo e brutal, um homem que nunca perdia a consciência do seu sexo. E Kate pensou mais uma vez que existiam várias maneiras de regressar à infância.
O criado, porém, continuava a espiá-la, de soslaio: queria ver se havia nela qualquer hostilidade secreta. Desejaria que concordasse com o hino, com o tambor e com tudo mais. Como uma criança, ansiava pela sua aquiescência; mas, se a senhora se mostrasse hostil, ele seria o primeiro a manifestar-se. Um julgamento adverso torná-lo-ia inimigo declarado.
Ah, os homens eram todos iguais!
Nessa ocasião, o rapaz levantou-se, com súbita agilidade, e ela ouviu a voz de Cipriano na varanda:
- Que é, Lupe?
- Está la patrona - respondeu o mozo.
Kate ergueu-se também e olhou. Viu a cabeça e os ombros nus do marido, em cima, no parapeito.
- Já lá vou - participou-lhe.
Vagarosamente transpôs os portões de ferro do corredor. Lupe, que a seguia, fechou-os atrás de si.
No terraço encontrou Ramon e Cipriano, ambos de tronco nu, que a esperavam em silêncio. Kate, embaraçada, explicou:
- Estive a escutar o novo hino.
- E-que lhe pareceu? - perguntou Ramon.
- Gostei.
- Sentemo-nos - propôs ele. E a recém-vinda deixou-se cair numa das cadeiras de verga. Cipriano ficou de pé, encostado à balaustrada.
Kate viera para declarar a sua submissão: dizer que já não queria ir-se embora. Mas, vendo os dois homens numa disposição muito quetzalcoatliana, não se decidia a aflorar o assunto. Tinha a sensação de ser uma intrusa. Não se compenetrava de que também pertencia à seita.
- Parece-me que não há Estrela da Manhã para nos reunir a todos três - observou, irónica mas um pouco trémula.
Sobre eles desceu um silêncio ainda mais profundo.
- Estou a ver que uma mulher é realmente de trop aqui junto de vocês ambos.
Hesitou um tanto ao dizer isto. Sabia que Cipriano ficava perplexo e melindrado quando ela escarnecia.
Ramon respondeu-lhe com uma doçura que vinha direita do seu coração.
- Então que há, prima?
com um tremor nos lábios, Kate replicou:
- Em verdade, não desejo deixá-los.
Olhando rapidamente para Cipriano, Ramon retorquiu:
- Bem sei que não deseja.
O tom suave e protector da sua voz fê-la revoltar-se de novo. com os olhos rasos de lágrimas, ela bradou:
- Afinal vocês não precisam de mim!
- Não, não, preciso de ti. Verdad, verdad! - exclamou Cipriano em voz baixa e contida, quase num murmúrio.
E, no meio das suas lágrimas, Kate pensava: "Como sou intrujona! Sei perfeitamente que sou eu que não os quero. Quero-me só a mim mesma. Mas posso iludi-los de modo que o não percebam."
Havia notado a paixão fálica e ardente na voz de Cipriano.
Coube a vez a Ramon de falar, e fê-lo em tom glacial:
- A Caterina é que não precisa de nós. Não se comprometa connosco. Atenda à sua própria preferência.
- E se ela me aconselhar a partir? - ripostou Kate, como um desafio, através de um resto de lágrimas.
- Então parta!
Kate recomeçou a chorar.
- Ah, eu bem sabia que não precisavam de mim. Mas Cipriano acudiu com persuasiva ternura:
- Não és dele! Ele não pode dizer nada.
- Isso é verdade - concordou Ramon. - Não me dêem ouvidos.
Levantando bruscamente a cabeça, no meio do seu pranto, viu-o afastar-se sem rumor.
Limpou a cara, recuperou a calma e, de olhos húmidos, fitou Cipriano. Este conservava-se muito direito, como um galo combatente. Nas pupilas negras brilhava-lhe um fulgor estranho.
Sim, Kate também tinha medo dele, desses olhos pretos inumanos.
- Não queres que me vá embora, pois não? - perguntou-lhe suplicante.
Espalhou-se no rosto do homem um sorriso lento, e um leve tremor lhe percorreu o corpo. E então, na sua voz de inflexões índias, muito suave, Cipriano disse-lhe em espanhol:
- Yo! Yo! - E as sobrancelhas erguiam-se-lhe numa expressão de espanto divertido. Ainda trémulo, concluiu: - Te quiero mucho! Mucho te quiero! Mucho, mucho!
As palavras soavam tão cariciosas, vinham-lhe tanto do seu sangue ardente, que a mulher se sobressaltou e disse:
- Não me deixarás partir!

XXV
Foi uma surpresa para Kate o casamento de Don Ramon dois meses depois do falecimento de Dona Carlota. A noiva tinha vinte e oito anos e chamava-se Teresa. Após o casamento, que se realizou civilmente e na maior intimidade, Ramon trouxe a nova esposa para Jamiltepec.
Conhecia-a desde pequena, pois era filha do proprietário da famosa hacienda de Las Jemas, situada a uma dúzia de milhas de Jamiltepec. Don Tomaz, pai da rapariga, fora grande amigo dos Carrascos. Morrera, porém, um ano antes, deixando a importante hacienda aos três filhos e confiando a Teresa a administração da quinta. Teresa era a mais nova. Os dois irmãos viviam a existência inútil e perdulária dos mexicanos, e por isso Don Tomaz, a fim de salvar a propriedade daquelas mãos nefastas, designara Teresa como administradora e obtivera o consentimento dos dois irmãos. Na verdade, os rapazes eram criaturas ociosas que, em vida do progenitor, nunca haviam mostrado o mínimo desejo de o ajudar na difícil gerência da quinta. Teresa fora a única. E durante a doença do pai, todas as fadigas da administração haviam recaído sobre ela, enquanto os irmãos gastavam o dinheiro e as forças nas orgias em que se deleitam os mexicanos de certa classe. No entanto, assim que o pai faleceu, os dois irmãos apareceram em casa cheios de arrogância, com a intenção de se tornarem hacendados. Pela simples força bruta afastaram a irmã do seu cargo, deram ordens contrárias às dela, escarneceram-na e uniram-se para a esmagar. Queriam relegá-la para o seu lugar de mulher, isto é, para uma espécie de escravidão a que, aos seus olhos, deviam pertencer as pessoas desse sexo.
Eram brutos, e como brutos, cobardes. E, como tantos mexicanos daquela categoria, condescendentes e prejudiciais para si próprios. Relacionaram-se com juizes e generais, exibiram-se em ricos trajes de charro e receberam em casa uma multidão de gente duvidosa.
Contra aquela indolência e brutalidade, Teresa nada podia fazer e conhecia bem a sua impotência. Os irmãos eram fracos, sensuais, belos à sua maneira, dissipadores, despreocupados, mas de sentimentos ferozes.
- Faz-te bonita e arranja um marido - aconselhavam-lhe. Aos olhos deles, o seu maior crime era não atrair os homens
com quem conviviam. O facto de nunca ter conhecido homem e não se haver ainda casado tornava-a quase odiosa. De que servia a mulher senão para uma vida de relaxamento e licenciosidade?
- Queres usar calças? - perguntavam-lhe, irónicos. - No, señorita, enquanto houver aqui dois homens. No, señorita, os homens é que usam calças, e as mulheres escondem o que têm debaixo das saias.
Teresa já estava habituada a estes insultos; contudo, sofria muito no seu íntimo.
- Queres viver à moda dos americanos? Então abala para a América, corta o cabelo e veste calças. Compra lá um rancho e arranja um marido que receba as tuas ordens.
Teresa consultou advogados, que se limitaram a erguer os braços ao céu. Foi então procurar Ramon, a quem conhecia desde pequena.
Para expulsar os irmãos da hacienda seria necessário intentar um processo dispendioso e de resultado incerto. Em vez disso, Ramon propôs-lhe que casasse com ele segundo um regime matrimonial em que ela disporia sempre dos seus bens.
- Nesta terra os homens desprezam as mulheres e não podem passar sem elas, o que representa um suicídio - disse Ramon.
O casal foi visitar Kate. Teresa era franzina, pálida, de farta cabeleira preta e grandes olhos negros. Apesar do ar calmo, notava-se-lhe certa independência e autoridade. Sofrera muitas humilhações da parte dos irmãos e tinha ainda os olhos pisados pelas lágrimas de amargura, indignação e cólera.
Agora, amava Ramon com todas as veras da sua alma. Isso era evidente. Fora ele que salvara da degradação a sua dignidade de mulher e lha havia restituído bela e intacta. Em troca, passou a conceder ao seu salvador uma admiração respeitosa e quase feroz.
Em relação a Kate mostrava-se tímida e um pouco distante, tal se receasse essa mulher branca, doutra raça, que viajara muito e possuía larga experiência da vida. com um vestido claro e um rebozo de gaze preta, estava sentada na sala de Kate, com as mãos trigueiras pousadas no regaço, o pescoço escuro muito direito, e desviando um pouco o rosto fino e bem modelado. A irlandesa achou-lhe uma aparência de costureirinha.
Mas Kate não deu fé do estranho poder autoritário que também emanava desse corpo moreno e esguio, nem do olhar penetrante e desconfiado que por vezes Teresa lhe dardejava. Alma de fogo num corpo delicado. Atitude cheia de reservas. De quando em quando, a boca parecia formular uma palavra em silêncio e nos lábios perpassava-lhe um sorriso constrangido. Nunca lhe desaparecia, porém, o fulgor dos olhos.
- Falas tão pouco, chica! - observou Ramon, com certa ternura.
Então os olhos dela cintilaram e a boca esboçou um sorriso.
Via-se bem que estava apaixonada, embebida num êxtase de amor, o que explicava a sua frieza perante Kate.
"Despreza-me - pensou esta - porque não sou capaz de amar como ela." E, por um segundo, Kate invejaria Teresa. Mas daí a pouco desdenhava-a: "Tipo de harém..."
Sim, Ramon adaptava-se bem ao papel de sultão. Era belo, no seu traje branco, muito sereno, com ar de paxá, mas ao mesmo tempo afável, atencioso - e com aspecto tão juvenil! Como um paxá, preparava um cacharolete de genebra, vermute e limão. Teresa espiava-o de esguelha, sem perder de vista Kate, sua possível inimiga, a mulher que falava aos homens no mesmo pé de igualdade.
Kate levantou-se para ir buscar colheres. Nesse momento, Ramon recuou da mesa baixa em que espremia o limão e colidiu de leve com a dona da casa quando esta passava. Kate reparou de novo como ele se esquivava a qualquer contacto com ela. A sua sensualidade natural afastava-o de Kate como uma chama se desvia perante uma corrente de ar. Ela corou, e Teresa viu o súbito rubor sob essa pele branca, e o clarão quase de ira que atravessou os olhos castanhos de Kate. Momento de evasão de dois cursos de sangue tão diferentes!
Teresa pôs-se de pé, aproximou-se de Ramon e, inclinando-se sobre os copos, perguntou com aquela afectação infantil própria das mulheres da sua raça:
- Que puseste aí?
- Olha ! - retorquiu ele. E, com a mesma infantibilidade dos homens do seu tipo, começou a explicar-lhe de que se compunha o cacharolete e deu-lhe a provar um pouco de genebra, numa colher.
- É tequila da pior - declarou Teresa.
- A oito pesos cada garrafa? - volveu o marido, a rir.
- Custa esse preço? Tão caro!
Ela fitou-o nos olhos, por um momento, e viu esse rosto tornar-se mais escuro, mais ardente, como se todo ele se derretesse ao senti-la perto de si. Teresa então ergueu a cabeça, orgulhosamente. Havia-o reconquistado.
"Manhas de harém!" pensou Kate. E experimentou certa impaciência ao verificar como o ilustre, prodigioso Ramon se deixava prender nas malhas de um ser tão insignificante. Sentia-se contrariada por ter assim consciência da presença física do homem, do seu corpo belo, dos seus ombros fortes, das suas pernas vigorosas. Dir-se-ia ter também de sucumbir ao fascínio e vir a fazer parte do harém daquele sultão.
Que estranha vontade possuía a pequenina mulher morena! Que subtil poder feminino num corpo que quase só tinha pele e osso! Teresa era capaz de engrandecer a glória do marido - ao passo que ela própria se tornava imperceptível, a não ser quanto ao fulgor tigrino dos seus grandes olhos pretos.
Kate observava admirada. Conhecera homens que lhe davam a impressão de a transformarem em rainha, de ter a cabeça nas estrelas e repousar o peito nas nuvens. Sabia o que era subir, subir, subir até encher o universo com a sua feminilidade.
Via agora, porém, o contrário. Quem tinha poder sobrenatural era essa criatura pequenina, que fazia maior Don Ramon, enquanto ela se diminuía e ficava invisível, excepto no que respeitava aos olhos. Ele, como um sultão, como um fruto sazonado ao sol, tomava uma aparência extraordinária e imponente; e então, por algum poder misterioso do seu corpo trigueiro, a frágil Teresa fazia-o ainda mais completo.
Era o que Ramon queria, e Kate, percebendo-o, sentia-se irritada. Parecia-lhe odioso aquele macho triunfante, exasperava-a aquela rapariga ardente que só pensava em exaltar o homem.
ah, o poder oculto da mulher trigueira! Kate chamava àquilo harém e prostituição. Sim, era a atitude da escrava. Que pretendia dele essa criatura senão o sexo, como uma prostituta?
Pois não era degradante para uma mulher semelhante espécie de amor? E não tornava o homem fraco, sensual, ou odiosamente tirânico?
No entanto, já duma coisa Kate se convencera: que a chave da vida, e da continuidade da vida, residia nas relações do homem e da mulher. A união completa dos dois representava a vida presente e futura; dessa fusão surgia uma vida nova.
Mas tais relações necessitam de equilíbrio, e TereSa destruía-o juntando na balança o seu peso ao do homem.
Ramon não quisera Kate. Possuía agora o que desejara: aquela criaturinha escura, tão servil e orgulhosa do seu poder. Só quisera Kate para camarada, camarada inteligente, Não para mulher. Preferira essa viborazinha de Teresa...
Cipriano, esse desejava Kate. O general, o militar empertigado desejava Kate, mas só por momentos. não se importava casar realmente com ela; o que lhe interessava eram os instantes passados a seu lado. Kate tinha de lhe conceder esses instantes, e em seguida ele tornava a partir para junto das suas tropas. com isso se contentava. E ela também. Assim, ficava senhora da sua existência. Não tinha feitio para andar de roda dum homem a excitar-lhe o sangue, a estimular-lhe o ardor!
Levantou-se e foi ao quarto buscar um livro que prometera a Ramon. Não podia suportar mais tempo a exibição do amor dele por Teresa. Ah, aquele sorriso néscio estampado no rosto do homem, o brilho estranho dos olhos, o aprumo orgulhoso do corpo!
Eis como eram os dessa raça. Selvagens, com o insuportável fluido sensual dos índios e aquela maneira primitiva de se dissolver numa horrível confusão de desejo; com a presunção da sua virilidade insolente e inesgotável.
O pior era que essa força cósmica que ela até aí só conhecera nos olhos azuis dos homens loiros (e que tornava rainhas as respectivas mulheres, ainda que eles as detestassem por fim), essa força declinava agora nos olhos azuis e nascia nas pupilas pretas. As de Ramon, naquela ocasião, luziam de orgulho, poder e desafio. E o mesmo notava Kate nos olhares rápidos de Cipriano. A força do mundo esmorecia nos homens loiros, a sua supremacia abandonava-os para renascer nos de cor escura.
Joachim, o ser inquieto, inteligente e sensível, que era capaz de penetrar na alma de Kate e contemplá-la com os seus olhos azuis, morrera à vista da mulher. Se ela pudesse excitar-lhe o sangue, como Teresa fazia a Ramon, nunca ele teria morrido. Mas seria impossível. Cada um é como é. E cada raça, também. Teresa bateu timidamente à porta do quarto.
- Posso entrar?
- Entre! - respondeu Kate, endireitando-se e deixando as rimas de volumes em volta da mala dos livros.
O aposento era amplo e através das janelas rasgadas via-se o pátio e o jardim soalheiro, mangueiras de troncos lisos como trombas de elefantes, ervas reverdecidas pela chuva e galinhas a esgaravatar a terra debaixo das folhas esgarçadas das bananeiras. Um pássaro vermelho chafurdava no tanque, abrindo e fechando as asas escuras sobre o corpinho escarlate.
Teresa, porém, olhava para o quarto, não para fora. Sentiu o cheiro de cigarros, cujas pontas enchiam um cinzeiro de ágata. Notou os livros em desordem, as jóias espalhadas, a tapeçaria persa pendente atrás da cama, a colcha magnífica, os vestidos de seda e de veludo colocados sobre uma arca, os xailes de longas franjas cuidadosamente dobrados, os sapatos espalhados no chão, brancos, cinzentos, amarelos, castanhos e pretos, e os belos castiçais chineses.
Teresa parecia fascinada por tudo aquilo.
- Que linda! - disse, tocando na colcha sumptuosa.
- Foi uma amiga que a fez e ma ofereceu, em Inglaterra. Teresa observava tudo com espanto, em especial as jóias dispersas no toucador.
- Não gosta dessas pedras encarnadas? - perguntou Kate, ajoelhando de novo para arrumar os livros e olhando o pescoço moreno pendido sobre as jóias. Que ombros frágeis e que pele acetinada, naquele vestidinho branco! E aquela cabeleira negra, segura por travessas de tartaruga! No conjunto, uma rapariguinha humilde e insignificante. Mas Kate bem sabia que Teresa não era insignificante nem humilde. Naquele corpo franzino havia um estranho poder que despertava o ardor num homem e o exultava e, de certa maneira, o guardava só para si. O eterno apelo da carne...
Na mesinha de costura estava um pedaço de musselina que Kate comprara na índia e não sabia em que aproveitar. A cor, espécie de amarelo-pêssego, não se harmonizava com o seu tom de pele. Teresa apalpou o tecido entremeado de fios de ouro.
- É organdi?
inquiriu.
- Não, é musselina feita à mão. Ofereço-lha. A cor vai-me mal, e a si deve-lhe ir lindamente.
Ergueu-se e dispôs o tecido de roda do pescoço bronzeado de Teresa. No espelho, esta viu-se envolta na bela musselina e os olhos brilharam-lhe de prazer.
- Ah, não! Não posso aceitar!
- Porquê? Não condiz bem comigo. Faz agora um ano que a tenho aí. Até pensei em cortá-la para fazer cortinas. Fique com ela.
Kate talvez fosse arrogante, e até cruel, na sua maneira de oferecer.
- Não quero privá-la...
- Aceite, peço-lhe.
Ramon apareceu no limiar e relanceou o quarto e as duas mulheres.
- Olha! - disse Teresa, embaraçada. - A señora quer dar-me esta musselina indiana. - Voltara-se timidamente para ele, com o tecido desdobrado em roda do pescoço.
- Fica-te muito bem - declarou Ramon, contemplando-a.
- A señora não devia oferecer-me...
- Se to dá é porque faz gosto nisso.
- Então - concluiu Teresa, virando-se para Kate - muito e muito obrigada.
- Não tem de quê!
- Ramon acha que me vai bem...
- Na verdade, vai-lhe a matar - declarou Kate, dirigindo-se agora a Ramon. - O tecido foi feito na índia para alguém com aquela cor trigueira. Há-de condizer admiravelmente com ela.
- É muito bonito - concordou Ramon.
com o olhar, percorria o quarto, examinava os diferentes objectos que ali estavam, vindos de todas as partes do mundo, e até as pontas de cigarro na taça de ágata: luxo, desordem, e algo de esterilidade da mulher emancipada.
Kate não sabia em que é que ele pensava. Mas, por seu turno, reflectia: "Ora aí está o homem que eu defendi naquele terraço, que eu vi com um buraco nas costas, nu e inconsciente. Nesse momento não se parecia com um sultão."
Teresa devia ter-lhe adivinhado os pensamentos, porque disse,
olhando para Ramon:
- Sem a señora, Ramon teria morrido. Nunca me esquecerei...
- Não falemos nisso - atalhou Kate. - O destino tece-as.
Eu não alterei nada.
- Foi o próprio destino, señora!
- Não quer vir passar uma temporada connosco em Jamiltepec? - perguntou Ramon. - Agora já tenho uma dona de casa.
- Sim, vá! - insistiu Teresa.
- Ela precisa de uma amiga - explicou o marido.
- Preciso, é verdade. Nunca tive nenhuma a valer desde que deixei o colégio, ainda pequena...
Kate duvidava que pudesse ser para Teresa uma amiga a valer. E cogitava no que pretenderiam, de facto, aqueles dois - e o que pensariam dela.
- Pois sim, terei muito gosto em passar uns dias...
- Óptimo! - exclamou Teresa. - Quando deverá ser? Combinaram o dia.
- E escreveremos a canção de Malintzi - disse Ramon.
- Não faça semelhante coisa - acudiu Kate vivamente.
Ele olhou-a com ar pasmado, como se não percebesse logo, um ar que lhe era habitual. Por instantes, Kate poderia supor ter-lhe dado a impressão que um fantasma produziria se aparecesse a uma criança.
Em Jamiltepec, as duas mulheres entretiveram-se a talhar vestidos para Teresa na peça de musselina cor de ananás. Para senhora casada, o guarda-roupa de Teresa era bastante modesto: só possuía trajes pretos, que lhe davam um ar infeliz, e alguns brancos já antiquados. Até aí só vivera para o pai (que tinha bons livros acerca do México e toda a vida escrevera sobre a história do estado de Jalisco) e para dirigir a sua hacienda. Esta, chamada de Las Jemas, era a única que não fora destruída durante as revoltas que se seguiram à fuga de Porfirio Diaz; Teresa orgulhava-se bastante deste facto.
O seu carácter assemelhava-se muito ao de uma freira, talvez por se tratar de uma pessoa profundamente apaixonada e as paixões profundas serem mais para se esconder do que para exteriorizar nos contactos quotidianos.
Kate, provando-lhe o vestido sobre os ombros morenos, tornou a admirar a estranha macieza daquela pele escura e o pesado volume dos cabelos negros. A família dos Romeros, a que Tereza pertencia, estabelecera-se no México logo nos primeiros tempos da conquista.
Que lhe fizesse mangas compridas, sugeriu. E acrescentou, ocultando um pouco envergonhada a magreza daqueles membros trigueiros:
- Tenho os braços tão delgados! Não são bonitos como os
seus.
Kate, mulher de quarenta anos, tinha-os fortes e alvos e toda ela
era bem constituída.
- Sim - repetiu Teresa -, compridas até aos punhos.
A outra assim fez, achando que, na realidade, era o que mais convinha àquela natureza.
- Aqui os homens - explicou a dona da casa - não gostam
de mulheres magras.
- Não importa o que os homens pensam - sentenciou Kate. - Julga que Don Ramon gostaria que fosse gorda como uma
galinha?
Teresa fitou-a com os seus olhos pretos, grandes e brilhantes -
tão vivazes e, de certa maneira, fugidios.
- Quem sabe! - exclamou. E, no seu sorriso rápido, malicioso, via-se que não desgostaria de ser, às vezes, como uma galinha
gorda.
Presentemente Kate conhecia mais do que nunca a vida interior duma hacienda. Quando estava em casa, Ramon consultava diariamente o feitor; Teresa, porém, aliviava-lhe esse trabalho e já se ocupava bastante da propriedade. Em geral, ele andava por fora, ou para ir à Cidade do México, ou a Guadalajara e mesmo a Sonora. Todos o conheciam no país e o seu nome tornara-se célebre. Mas, debaixo desse culto que os compatriotas lhe prestavam, Kate adivinhava uma animosidade latente. Talvez preferissem aniquilar os seus heróis a elevá-los temporariamente às culminâncias da glória. O momento que mais apreciavam era o da queda do ídolo.
Para Kate, sempre céptica, deviam eles andar afiando o gume com que o atingiriam no peito, quando o herói se tornasse demasiadamente incómodo. É claro que precisavam da anuência de Cipriano, e Cipriano era um diabinho que os mexicanos temiam deveras. Cipriano, por então, conservava-se fiel - para com Ramon e para consigo mesmo. Representava o papel de Huitzilopochtli e Ramon o de Quetzalcoatl. Eis uma verdade simples e evidente para o general, que mantinha o seu exército pronto para o que desse e viesse. O próprio presidente seria incapaz de prescindir de Viedma, apesar de ser também um homem destemido.
- Qualquer dia - declarava Cipriano - poremos Quetzalcoatl na Catedral de Puebla, e Huitzilopochtli na da capital, e Malintzi na de Guadalupe. Não falta muito, Ramon.
- Faremos com que esse dia chegue - respondia Ramon.
Mas Ramon e Montes sofriam ambos com a profunda e diabólica animosidade do país, manifestada no próprio silêncio da população. Era sempre assim, fossem quais fossem as mãos em que o poder caísse: os Mexicanos pareciam destilar ódio oculto, um ódio demoníaco que lhes aviltava a alma; um ódio cujo único fim consistia em frustrar todos os planos.
Aí estava o dragão do México, que Ramon teria de combater. Contra o mesmo inimigo devia lutar o presidente Montes, e isso arruinava-lhe a saúde. Igualmente Cipriano, mas este desenvencilhava-se melhor. Os soldados apoiavam-no, com tambores e danças de roda das fogueiras. E o general consolidava de dia para dia a sua posição.
Ramon, na sua província, também se sentia seguro. Era o chefe, e, com o seu esforço e energia, lograva dominar qualquer veleidade de revolta. Aterrorizava com o mistério da vida, continha a gente em respeito pela fascinação que exercia. Nos seus domínios, considerava-se forte. Mas fora daí, e em especial na Cidade do México, aquela invisível e subtil má vontade do povo dir-se-ia fazê-lo sangrar, sangrar imensamente. E também a voracidade dos estrangeiros, aves de rapina que rondavam a capital cosmopolita.
Durante a ausência de Ramon, Kate fez companhia a Teresa. As duas mulheres tinham isto de comum: achavam que era melhor apoiar um homem corajoso do que fazer papel de intrometidas e importunas. Isso as unia. A profunda convicção de que deviam ser fiéis aos respectivos maridos ligava intimamente a mulher de Cipriano à de Ramon.
Estava quase no fim a estação das chuvas, embora se pudessem prever aguaceiros ocasionais para Setembro ou mesmo Outubro. Entretanto o belo Outono mexicano surgira na terra, como uma espécie de Primavera ao inverso. Vastos espaços se cobriam de flores brancas e cor-de-rosa, estranhos arbustos silvestres floresciam também, duma maneira fantástica, brilhavam à luz florestas inteiras de girassóis; o céu estava de um azul puríssimo, e, nas terras encharcadas da última chuva, a claridade do dia reverberava intensa.
O lago enchera-se mais, povoando de plantas aquáticas todas as suas margens. Vinham aves imigradas do Norte, nuvens de patos bravos que pareciam poeira no ar e depois polvilhavam a água como raminhos de erva: colimbos, grous, gaivotas brancas dos mares interiores, tal se o mistério dos regimes setentrionais se deslocasse para o Sul. Errava em terra o cheiro de água, que produzia uma sensação calmante - tanto mais que Kate supunha ter origem na aridez do solo parte do horror que lhe causava o povo mexicano. Se houvesse sempre uma gota de água na atmosfera e uma neblina sobre as árvores, desapareceria dos corações humanos aquela maldade inexprimível.
Kate ia muitas vezes a cavalo, com Teresa, ver os campos. A cana-de-açúcar, nos vales, crescia muito verde e muito alta, e os peóns começavam a cortá-la com os seus nwchetes, que pareciam espadas, e enchiam os carros de bois que as transportavam à fábrica de Sayula. Nas vertentes áridas das colinas, avultava na sua rigidez férrea a espinhosa planta da teqnila, que é uma espécie de agave. E nos cactos rijos abriam flores maravilhosas, belas de mais para tão sinistra planta. Através dos campos viam-se molhos de vagens apanhadas dos feijoeiros e abóboras dum tamanho incrível. Entre as folhas emurchecidas pendiam tomates e pimentões. Ainda se erguiam pés de milho com espigas tenras. Como a banana era pouca, as crianças colhiam toda a fruta que encontravam para fazer doce. Teresa, para esse efeito, aproveitava até os últimos figos e pêssegos. Das mangueiras suspendiam-se frutos amarelos e maduros, mas na maior parte eles estavam verdes e tombavam pesados como testículos de toiro.
Era Outono no México, com patos bravos na água, e caçadores com espingardas, e rolas nas árvores. Outono do México, início da estação seca: céu mais alto, azul mais pálido, poentes de rara transparência doirada. Os bagos de café avermelhavam-se nos arbustos contorcidos debaixo das árvores maiores, e as buganvílias, de tons roxos, eram tãoespessas que se podiam mergulhar nelas os braços.
Teresa cuidava de tudo e Kate ajudava-a. Se estava um peón doente numa das cabanas, se era preciso separar os enxames de abelhas nas colmeias debaixo das mangueiras, fazer compotas, tratar do jardim, dos vitelos, do fabrico de manteiga ou de queijos, Teresa a tudo isso atendia acompanhada de Kate. E esta admirava-se da vontade firme e constante, que tinha de ser exercida a todo o momento. Tudo corria bem graças a um poderoso esforço de vontade. À mínima fraqueza do patrão as coisas desandariam e seria a ruína da propriedade.
Jamais um desfalecimento, sempre a vontade tenaz.
Ramon regressou, numa tarde de Novembro, de longa viagem a Sonora. Viera por terra desde Lepic, e, por duas vezes, encontrara-se retido pelas inundações; não era vulgar chuvas tão tardias. Mostrava-se fatigado e com ar ausente. Kate sentiu um baque no coração enquanto comentava para si mesma: " Tão longínquo, que até parece encaminhar-se para a morte."
As nuvens cobriam o céu novamente, relampejava no horizonte, mas tudo estava silencioso. Kate retirou-se cedo e foi até à extremidade do terraço sobranceiro ao lago. Só a claridade intermitente dos relâmpagos iluminava a noite escura e, num desses breves clarões, viu Teresa sentada junto do muro do terraço descoberto; tinha a cabeça de Ramon deitada no regaço e acariciava-lhe lentamente os bastos cabelos pretos.
Kate sobressaltou-se, e disse num murmúrio:
- Desculpem! Não sabia que se encontravam aqui.
- Quis estar cá fora, ao ar livre! - explicou Ramon, soerguendo-se a custo.
- Não se mexa! - pediu Kate. - Foi estupidez minha ter vindo aqui. O senhor está cansado.
- Sinto-me realmente cansado - volveu ele, deitando-se outra vez no chão. - Aquela gente chega a convencer-me de que estou esgotado. Por isso voltei para Teresa.
- Sim - retorquiu Kate. - Não se é impunemente o Quetzalcoatl vivo. É natural que o esgotem. Mas valerá a pena ser devorado por eles?
- Tem de ser assim. Há-de-se verificar a mudança e é um homem que a deve fazer. Às vezes chego a desejar que não seja eu.
- Também acho. E Teresa igualmente. Até penso se não será preferível continuar a ser apenas um ser humano.
Teresa, entretanto, calava-se.
- Faz-se o que é preciso fazer - disse Ramon. - No fim de contas, não se deixa de ser homem. E, se daí resultar ferimento... à la guerre comme à la guerre!
Aquela voz, no escuro, parecia a de um fantasma.
- Ah! - fez Kate, suspirando. - Gostava de saber o que é um homem que se expõe a tantos horrores por causa dos seus semelhantes.
Houve um momento de silêncio.
- O homem é uma coluna de sangue dotada de voz. Quando a voz se extingue e fica apenas a coluna, tanto melhor.
Retirou-se ela para o seu quarto. Ia triste, levando ainda nos ouvidos o som daquelas palavras melancólicas. Dir-se-ia que Ramon tinha dentro de si uma ferida aberta. Era como se Kate a sentisse, nas suas próprias entranhas.
Se ele morresse, em resultado de tanto esforço? Então, pensou, Cipriano ficaria só e tudo estaria acabado.
Por que razão devia um homem afadigar-se de tal maneira por causa dum povo estúpido e mau? Se o mundo corria à desfilada para a sua perdição, deixá-lo, isso era lá com ele.
Pensou em Teresa, que consolava Ramon sem dizer nada. E pensou em Ramon, assim ferido e desesperado! Coisas horríveis, na verdade. Ela devia intervir, defendê-lo contra si próprio. Porque haviam os homens de empreender esses combates inúteis, dos quais voltavam para casa a fim de se restabelecerem junto das suas companheiras?
Para Kate, essa luta não merecia sequer as honras de um ferimento. Que tão antipático mundo terminasse de vez, se tal era o seu destino, e quanto mais depressa melhor! Kate não levantaria um dedo para o impedir. Que cada qual vivesse a sua preciosa vida, que é só uma - e fosse tudo mais para o diabo!
Tentaria impedir que Ramon continuasse naquela senda suicida. Deixá-lo ser o Quetzalcoatl vivo quantas vezes quisesse; mas não tinha o direito de se expor à maldade demoníaca do povo.
Contudo, ele insistia nisso, como Joachim fizera na Irlanda. Teresa, com a sua firmeza doce e calma, talvez lhe fosse de melhor auxílio do que Kate com as suas recriminações.
"Ah! Ainda bem que Cipriano é militar. As feridas que sofrer não lhe atingirão a alma." Mas sabia que, sem Ramon, Cipriano não seria ninguém e nem chegaria a interessar-lhe.
De manhã, Teresa compareceu sozinha ao primeiro almoço. Parecia muito tranquila; dissimulava os sentimentos sob o seu ar orgulhoso de mulher morena.
- Como vai Ramon?
- Está a dormir.
- Ainda bem. Pareceu-me muito em baixo ontem à noite.
- Sim... - Teresa fitou a outra com os seus grandes olhos negros cheios de coragem e de lágrimas contidas.
- Não compreendo que um homem se sacrifique àquele ponto. É inadmissível.
Teresa continuava a fitá-la.
- Ele não se sacrifica - replicou. - Sente que tem de proceder assim. E o meu dever é ajudá-lo.
-? Nesse caso, sacrifica-se por ele, o que também é para mim inadmissível.
- Ah, não! - retorquiu Teresa, com uma onda de sangue a ruborizar-lhe as faces. - Não me sacrifico por Ramon. Se posso dar-lhe... sono... quando dele necessita, isso não representa sacrifício. Representa... - Não terminou a frase, e o rubor acentuou-se-lhe.
- Representa amor, bem sei - volveu Kate. - Mas também a esgota.
- Não é só amor! - exclamou Teresa altivamente. - Eu podia amar outros homens, há muitos que merecem afecto. Mas Ramon... A minha alma pertence-lhe. - Afloraram-lhe lágrimas aos olhos. - Prefiro não falar deste assunto - acrescentou, pondo-se de pé.
E saiu do quarto, deixando Kate um tanto perturbada - e com desejo de voltar para Sayula.
Mas uma hora depois Teresa reapareceu e, apoiando no braço de Kate a mãozinha fresca e macia, disse-lhe em tom suave:
- Desculpe se fui indelicada.
- Eu é que não tenho razão...
- Sim, julga que em tudo isto só existe amor. O amor é uma parte mínima do resto.
- E que é o resto?
- Como posso dizer-lhe, se desconhece? Mas pensa que Ramon não é para mim mais do que um amante?
- Um marido! - emendou Kate. Teresa sacudiu a cabeça com impaciência.
- Ah, esses termos, que tão pouco significam! Não é apenas um marido! É a minha vida!
- Acho preferível cada qual viver a sua vida.
- Não. A vida é como uma semente. De nada serve se não a dermos. Sei que é assim; guardei durante anos a minha vida para mim só. Quando se a guarda muito tempo, ela morre. Quis oferecê-la a Deus, mas não consegui. Disseram-me que se eu casasse com Ramon e tomasse parte na heresia de Quetzalcoatl ficaria condenada aos tormentos eternos, mas alguma coisa me segredava que isso não era verdade e que Ramon necessitava da minha alma. Ah, señora!
- Um sorriso iluminou a face pálida de Teresa. - Dei a minha alma a Ramon. Perdi-a por sua causa. Que mais posso dizer?
- E a alma dele?
- Está aqui. - E Teresa espalmou a mão no seio. Kate ficou um momento calada.
- E se ele a atraiçoar? - perguntou então.
- Ah, señora, Ramon não é apenas um amante. É um homem honesto e não trairá o seu próprio sangue. Concedeu-me a sua alma em troca da minha, e eu lutarei até ao último sopro de vida para o apaziguar quando volta para mim esfrangalhado e com necessidade de sossego. - Teresa proferiu tudo isto com veemência, e depois acrescentou num murmúrio, como se falasse a si mesma: - Graças a Deus, não tenho uma vida só minha. Dei-a a um homem que é mais que homem, como se diz na linguagem de Quetzalcoatl. Por isso ela não morrerá em mim como um pássaro na gaiola... Oh, señora! Quando ele parte para Sinaloa e para a costa ocidental, a minha alma acompanha-o. E Ramon não se esquece que a minha está com ele, tenho a certeza! Não, señora, não deve criticar-me nem
lastimar-me.
- No entanto, acho melhor cada qual guardar a sua alma e ser
responsável por ela.
- Sim, se fosse possível! - replicou Teresa. - Mas não se pode guardar a alma dentro de nós porque acaba por morrer... Enquanto o homem não nos dá a sua semente, a nossa é estéril, e a dele nada vale sem a mulher. O mesmo acontece à alma. Enquanto a não damos a um homem e ele a não toma, nenhum valor tem. E depois de ele a tomar, toda inteira, ninguém fala de traição! Um homem só atraiçoa quando se lhe deu uma parte e não tudo, e a mulher só atraiçoa quando aceita dela apenas uma parte e não o todo. Mas quando de um lado se deu tudo e tudo se aceitou, a traição não existe. Sou o que sou para Ramon e ele é o que é para mim. Não importa o que fizer. Não importa que esteja longe.
Kate não gostava de receber lições daquela criaturinha; era mulher da sociedade, bela e com experiência da vida. Estava acostumada a que lhe rendessem preito. As demais do seu sexo chegavam a temê-la, porque era decidida e impiedosa.
Teresa também a receava um pouco como senhora da sociedade, mas não como mulher. Entrincheirada na sua almazinha orgulhosa, Teresa considerava Kate uma dessas pessoas do mundo exterior que têm muito brilho mas que não estão muito seguras dos segredos da sua personalidade. Toda a beleza e crueldade feminina de Kate era coisa secundária para Teresa em comparação com o profundo e tranquilo amor que a ligava a Ramon.
Sim, Kate habituara-se a olhar as outras mulheres como seres inferiores. No entanto, os papéis inverteram-se de súbito. Embora soubesse que Ramon era superior a Cipriano, viu-se constrangida a pensar se Teresa não seria também superior a ela.
Teresa? Mais importante do que Kate? Que surpresa! Não podia ser verdade.
Contudo, assim era. Ramon desejara casar com Teresa e não com Kate. E o ardor desse enlace ela via-o tanto nos olhos de Ramon como nos da mulher: um ardor que não existia nos olhos de Kate.
O casamento desta com Cipriano não parecia sério nem definitivo. Quando Cipriano estava ausente, ela recuperava a sua antiga individualidade. Só com o general presente é que se compenetrava da sua submissão.
Quando Teresa voltou a fitá-la com aquele seu fulgor do olhar, misturado de indignação, Kate sentiu-se desanimada e arrependida - decerto pela primeira vez na sua existência.
Sabia que Teresa sentia certa aversão por ela: era uma estrangeira branca que falava tão inteligentemente como um homem e nunca dera a sua alma; nem admitia que a pudesse dar. Todas essas damas bem vestidas, da América ou da Europa, guardavam a alma para si mesmas, numa espécie de avareza.
Teresa estava resolvida a não deixar que a outra a tratasse indefinidamente como um ser inferior. Assim procediam todas as estrangeiras para com as mexicanas, porque se consideravam emancipadas. E, para com Ramon, mostravam certa condescendência.
Mas Ramon... Bastava que ele as fixasse para que elas se sentissem reduzidas a nada, apesar de todo o seu dinheiro, experiência e ares dominadores. Raças dominadoras! Que esperassem! Ramon era um desafio a tudo isso. Que o dominassem, se fossem capazes de tanto!
- Não dormiu? - perguntou Teresa a Kate.
- Não muito bem.
- Está com olheiras.
Kate alisou a pele, desconfiada, em volta dos olhos.
- É o que nos faz o México. Não é fácil conservar a juventude neste país. A senhora é que está com bom parecer.
- Sinto-me perfeitamente.
Irradiava de Teresa uma frescura nova, algo de frágil e subtil que ela não precisava de defender contra outra mulher.
- Agora que Ramon já veio, é altura de eu regressar a casa -
declarou Kate.
- Porquê? Faz empenho nisso?
- Acho preferível.
- Nesse caso irei consigo até Sayula. De barco, não é verdade?
Kate arrumou as suas coisas. Dormira mal. A noite fora tenebrosa, cheia de horrores. Lembrara-se de Ramon atacado pelos bandidos e do seu ferimento nas costas. Tivera-a acordada durante horas o barulho ameaçador da chuva.
Percebia o desdém de Teresa pela sua maneira de considerar a
vida conjugal.
- Também eu fui casada - disse Kate. - com um homem
excepcional, a quem amei.
- Ah, sim... E ele morreu.
- Quis morrer.
- Ah, sim... quis morrer.
- Fiz o possível para evitar que se estafasse.
- Fez?
- Que mais estava na minha mão? - redarguiu Kate, num
assomo de ira.
- Se lhe houvesse dado a sua vida, ele não quereria morrer.
- Eu dei-lhe a minha vida. Amava-o. Ah, nem faz ideia! Mas ele não quis a minha alma. Achava que eu devia guardá-la para
mim.
- Os homens são assim quando são apenas homens. Mas,
sendo ardentes e bravos, então querem que as mulheres lhes dêem a alma e guardam-na dentro de si. Sei o que é. Sei onde a minha alma está. Nas entranhas de Ramon, assim como a sua semente está nas minhas entranhas, entranhas de mulher. Ele é um homem e uma coluna de sangue; eu sou uma mulher e um vale de sangue. Digo-lhe isto porque lhe salvou a vida e portanto estamos todos ligados: Caterina, eu, Ramon e Cipriano. Mas não me julgue mal. Aquela outra espécie de mulheres, as que conservam a sua alma, que é senão fraqueza?
- E os homens?
- Se são ardentes e bravos, confortam as nossas entranhas, Caterina!
Kate baixou a cabeça obstinada, furiosa por ter sido apeada do seu pedestal. Que coisa miserável, pensou, isso de uma mulher viver apenas por amor de um homem! Só para lhe enviar a alma para dentro do seu precioso corpo... E trazer no ventre a sua semente preciosa... Quanto a ela própria, nada.
Pretendeu consumar a sua indignação, mas não foi bem sucedida. Talvez no fundo, e contra sua vontade, invejasse Teresa, os seus olhos negros cintilantes, a sua firmeza selvática. Invejava-lhe os dedos delicados, e, acima de tudo, a consolação de ter um homem tão profundamente ligado a si.
A manhã estava quente depois da chuva. As rãs coaxavam, frenéticas. Na outra banda do lago as montanhas pareciam azuis-escuras, com farrapos de nevoeiro a arrastarem-se através das árvores e nuvens brancas a coroarem os picos. Nas águas barrentas navegava um barco de vela solitário.
- Hoje, tudo isto me lembra a Europa, o Tirol - disse Kate, comovida.
- Gosta muito da Europa? - perguntou Teresa.
- Muito.
- E tenciona voltar para lá?
- Penso regressar em breve, para ver minha mãe e os meus filhos.
- Eles reclamam-na?
- Sim, respondeu Kate, um pouco hesitante. E em seguida ajuntou: - Não muito. Mas quero tornar a vê-los.
- Porquê? Tem saudades deles?
- às vezes. - E os olhos de Kate arrasaram-se de água. O barco avançava sem rumor.
- E Cipriano? - volveu Teresa, a medo.
- Ah!, exclamou Kate. -Esse é para mim como um estranho.
Teresa ficou uns momentos calada.
- O homem é sempre estranho para a mulher, creio eu - rematou ela. - E porque não havia de ser?
- Mas a senhora não tem filhos.
- Tem-nos Ramon, E ele costuma dizer: "Continuarei a lançar pão à água e se meus filhos acabarem por se aproximar de mim ficarei contente." Não é. o seu caso?
- Não! - respondeu Kate. - Sou mulher, não sou homem.
- Se eu tiver filhos - declarou Teresa - também lançarei pão à água para os atrair, e espero não os reter ciosamente na minha rede. Assusta-me o amor, é tão pessoal! Devemos deixar os pássaros voarem com as suas asas e os peixes nadarem à vontade. a manhã concede-nos mais do que o amor. E eu quero ser sincera para com a manhã.

XXVI
Kate estava satisfeita por voltar à sua casa e por se encontrar sozinha. Sentia que se operava nela uma grande mudança - mudança que a poderia matar se se realizasse violentamente. Era o fim de qualquer coisa e o princípio de outra: no mais profundo da sua alma e nas suas entranhas. Os homens, Ramon e Cipriano, e o México, seriam a causa daquela modificação. Chegara o momento. Entretanto, se a evolução fosse brusca de mais, e rápida em excesso, poderia revelar-se fatal. Por isso tinha necessidade de se isolar, de tempos a tempos.
Sentava-se na margem durante horas, à sombra dum salgueiro verde, cuja cortina de folhas descia até à água. O lago mostrava-se mais alto e mais cheio que de costume, e tinha também maior calma e maior mistério. Errava o cheiro dos nenúfares que emurcheciam depois de haverem dado à costa. As distâncias pareciam prolongadas. Lembravam estampas japonesas os outeiros mais próximos, salpicados de verdura. Carros de grandes rodas traziam à aldeia a cana-de-açúcar cortada; puxavam-nos a cada um, oito bois que baloiçavam lentamente a cabeça de enormes chifres, enquanto um peón, à frente, os conduzia com o aguilhão poisado no jugo. Tão pesados, tão vagarosos e contudo fáceis de guiar!
Experimentava, no México, uma sensação esquisita, como se estivesse em presença duma humanidade pré-histórica, gente de olhos escuros de antes do período glaciário - quando o mundo era mais frio, os mares vazios e diferente a constituição da terra; quando as águas, solidificadas, se acumulavam nos pólos, e as planícies ocupavam os oceanos, como a Atlântida e os antigos continentes da Polinésia; quando os mares não passavam de lagos, embora grandes, e os povos de olhos pretos podiam dar a pé a volta ao mundo. Nesse tempo existia uma raça misteriosa de sangue ardente e ligeira no andar: raça que possuía uma civilização que lhe era própria. Depois fundiram-se os glaciares, os homens refugiaram-se nos pontos elevados, como os planaltos do México, e separaram-se em nações diferentes.
Na América é tão forte a sombra do mundo antediluviano que às vezes Kate perdia a noção dos tempos decorridos e começava a aproximar-se do antigo modo de ser, da vontade velha e torva, do desprezo da morte, da subtil e escura consciência, do instinto que precedeu a razão. Regressava à época em que o espírito e o poder dos homens residiam no sangue e na espinha dorsal, e as relações entre eles e com os animais se produziam através da medula.
Os Mexicanos ainda se encontravam nesse estádio. O que é aborígene na América pertence à fase de antes do Dilúvio, antes de reinar na terra a vida espiritual. Por isso, ali, a actividade cerebral dos brancos se alastra como uma erva em terreno virgem - para, é claro, murchar depressa e desaparecer por completo. Então, como resultado disso, surge um novo gérmen, uma nova concepção da humanidade: vem da fusão da antiga consciência instintiva e do racionalismo intelectual do branco. Um ser diferente, nascido do encontro daqueles dois.
Kate era muito irlandesa, e no fundo da sua alma jazia o misticismo original, quase desaparecido, dessa primitiva raça celta ou ibérica. É como um resíduo que existe ainda no mundo antediluviano e que não pode ser inteiramente destruído.
Sabia ela, mais ou menos, que era essa fusão o que Ramon pretendia realizar. Compreendia também o motivo pelo qual Cipriano tomava a seus olhos uma importância maior que todo o seu passado, os seus dois maridos, e os filhos. Esse velho sangue másculo despertava-lhe agora nas veias; daí vinham as palpitações que ela ultimamente sentia.
A Irlanda não podia nem queria esquecer aquele ardor sombrio e primitivo. Os Thuathas de Danaan, embora submersos, continuam vivos no sangue, não se lhes consegue impor silêncio. E a Europa científica e meticulosa tinha de se defrontar de novo com os velhos
gigantes.
Esta alteração, todavia - e Kate bem o notava -, não era coisa que se efectuasse com brusquidão; de outro modo haveria rotura e possibilidade de morte. O primitivismo tem os seus horrores. O espírito original do México, pesado, terre à terre, podia ser-lhe tão odioso que a tornasse perversa. Essa obtusa, indomável persistência, desprovida de energia e de esperança, que é peculiar ao aborígene americano, levava-a às vezes a supor que ia perder a razão. Obstinação tenaz que resistia aos séculos e desprezava a personalidade! Lascívia da morte, feroz, incalculável, terrível!
Esse povo, realmente, nunca mudava. Os homens não tinham fé na vida, em nenhuma realidade evidente. Eram apenas fiéis a certas forças obscuras do passado. O presente submergia-se na alma dos homens e das mulheres sob uma camada de lava negra, não deixando à superfície senão a indiferença.
A Esperança! A Esperança! Seria possível, um dia, fazê-la reviver nessas almas obscuras e obter o enlace das suas raças, único passo para o novo mundo do homem?
Entretanto, Kate sentia-se invadida por um mal-estar esquisito. Achava ser necessário partir, a fim de escapar a tamanha depressão. Já não podia ouvir a rastejante insistência dos criados: o sangue é só um, nós somos do mesmo sangue - sentença de tribo pior do que a morte para um indivíduo de raça branca. Estranha teimosia aquela que preconizava a todos a fusão do sangue!
Kate pertencia a uma família antiga, com pergaminhos. Fora educada nas ideias anglo-germânicas da superioridade intrínseca da aristocracia hereditária. O seu sangue era diferente do da gente vulgar: outro fluido, mais refinado.
No México, porém, nada disso conta. Juana, o homem que ia buscar água, o barqueiro que remava no lago, todos revelavam o mesmo pensamento no olhar: "O sangue é só um; pelo sangue tu e eu somos iguais." Kate lia isto nos olhos deles, adivinhava-o nas suas palavras, quer fossem deferentes ou escarninhas, e, por vezes, sentia-se revoltada com essa imposição da igualdade de sangue.
E quando se empertigava como para proclamar "O meu sangue é só meu. Noli me tangere", percebia nas pupilas negras daquelas criaturas o terrível ódio ancestral que as impele a cometer as maiores atrocidades.
Contudo, inclinavam-se perante a sua inteligência, sabedoria e compreenção, e, embora contra vontade, testemunhavam-lhe certo respeito. Ela pertencia às raças dominadoras, hábeis e espertas... Mas exigiam-lhe a aceitação da velha crença: O sangue é só um. Somos todos do mesmo sangue.
E tinha de se submeter, senão persistiriam na sua lenta vingança.
Mas não podia submeter-se de repente. Devia ser a pouco e pouco; um esforço violento destruí-la-ia.
Compreendia agora a afirmação de Ramon: "O homem é uma coluna de sangue, a mulher um vale de sangue." Era a unidade primordial
do género humano, oposta à unidade do espírito individual.
Kate, porém, sempre considerara seu o próprio sangue. O espírito é que ela partilhava com os outros.
Percebia agora o motivo por que Ramon e Cipriano usavam fatos brancos e sandálias e andavam meio nus como deuses vivos. Era a aceitação da antiga crença, o renascimento do laço de sangue que unia os homens, laço que tornava o sacrifício humano tão poderoso
factor da vida.
O sangue do indivíduo é rendido ao ser supremo, ao ser de sangue, deus, nação ou tribo.
E, na verdade, que estranha união existia entre Ramon e os seus homens, entre Cipriano e os seus soldados! Era a comunhão do sangue. Isto podia indignar Kate, enjoá-la por vezes, mas era uma força que não conseguia vencer.
Mesmo admitindo essa comunhão de sangue, Ramon reivindicava uma supremacia, até uma divindade. Era um homem como o mais humilde dos seus peóns, nascido da mesma fonte, das mesmas raízes que eles; no entanto, mostrava ser superior aos outros. E a sua superioridade não provinha do sangue ou do espírito mas duma misteriosa estrela interior que nascia do oceano sombrio e cintilava entre o mar e o céu imenso. A estrela que une o vasto sangue universal ao sopro universal do espírito e brilha entre ambos.
Porque essa coisa que reina sobre o poder humano e que é em si mesma um poder, essa coisa é a estrela misteriosa do cosmos primitivo, é a divindade no homem.
Certos homens nada possuem de divino. Possuem apenas faculdades. São ou deveriam ser escravos. Muitas vezes um homem tem a centelha divina, mas é sufocada pela força ou pela vida material.
E quando o espírito e o sangue se separam e divergem, provocando a morte maior, então apagam-se quase todas as estrelas.
Só o homem que possui uma estrela magna, uma grande divindade, será capaz de reaproximar essas forças contrárias e criar uma nova união.
Esse homem era Ramon e o seu esforço o máximo que se podia fazer: aproximar e unir as forças contrárias. Eis o poder divino de um homem. Por ele, no homem, se distingue o deus. Por ele apenas
e por mais nada.
Embora fosse como o mais ínfimo dos seus peóns, com o mesmo coração que bate, os mesmos rins insondáveis, e os lábios fechados sobre o mesmo segredo da humanidade; e fosse humano como Kate era humana, com a mesma ansiedade de espírito e a sede do puro conhecimento e da comunhão; no entanto só ele tinha o poder astral de unir os dois grandes impulsos da humanidade, e de os fundir - de ser a ave de asas imensas que paira entre as duas potências opostas: a Estrela da Manhã, que está entre o sopro da aurora e as profundezas da noite.
Os homens haviam tentado assassiná-lo com punhaladas. Carlota quisera matá-lo com o seu espírito. Cada parte, separadamente, pretendera liquidá-lo. Ele, contudo, estava fora do alcance de qualquer delas. Era o Quetzalcoatl vivo, a cintilação de uma estrela que nascia na alma dos seus compatriotas. Chama dum astro a meio das duas asas do poder: eis só o que representa a divindade num homem e em toda a humanidade.
Kate recebeu um recado de Cipriano: mandava-lhe dizer que vinha instalar-se na Vivenda Aragon. Esta casa era a principal da região do lago; tinha um jardim em toda a volta, não muito grande mas bonito, com palmeiras e sebes de jasmineiros, tudo muito verde em resultado de regas constantes. A própria construção lembrava um castelo em ponto pequeno, talvez despropositado; mas eram agradáveis as varandas espaçosas que davam para a encosta e a vegetação do jardim, mesmo acima do lago.
Cipriano chegou bem disposto. Brilhavam-lhe os olhos com uma expressão de mocidade. Queria casar a valer com Kate, segundo a lei civil mexicana, e morar com ela na Vivenda Aragon. Kate hesitava, achando que tinha necessidade de voltar em breve à Europa, sobretudo à Inglaterra e Irlanda. Era urgente, porque lhe custava já a suportar aquela ameaça do México, a sua influência deprimente. Precisava, pelo menos, de um intervalo de repouso.
Assim o declarou a Cipriano, que ficou desanimado.
- Não importa casar ou não antes de ir - disse ela. - O que tenho é de me afastar daqui o mais depressa possível.
- Quando?
- Em Janeiro.
O rosto dele desanuviou-se.
- Então casemo-nos primeiro. Na semana que vem.
Ela aquiesceu com estranha indiferença, e Cipriano, radiante, correu a fazer os preparativos necessários.
Pouco interessava a Kate o casamento civil. No sentido essencial, já estava casada com Cipriano. Ele era acima de tudo militar, tão depressa vinha para ela como a deixava. Kate, de qualquer maneira, passaria grande parte do tempo sozinha.
Podia convir-lhe como marido, mas o que a assustava era esse México terrível. O movimento quetzalcoatliano espalhara-se de maneira sinistra por todo o país. O arcebispo manifestara-se contra isso, e Ramon, Cipriano e seus aderentes estavam excomungados. Haviam tentado assassinar Montes.
Na capital, os partidários de Quetzalcoatl tinham escolhido para lugar de reunião a Igreja de San Juan Bautista, conhecida pela Igreja do Salvador Negro. O arcebispo ordenara aos seus fiéis que fossem em procissão ao referido templo, agora chamado Casa de Quetzalcoatl, a fim de o retomarem para o culto católico. O governo, porém, sabendo que mais tarde ou mais cedo haveria luta, fez dispersar a procissão e deteve o arcebispo, depois de alguma efusão de sangue.
Rebentou então uma espécie de guerra. Os Cavaleiros de Cortez exibiram a sua famosa reserva de armas, que aliás não era muito impressionante. Em Zócalo produziu-se uma manifestação clerical, dirigida por um padre fanático. Montes mandou atirar sobre os insurretos. Aquilo afigurava-se o começo duma luta religiosa. Pelas ruas viam-se os bandos de Quetzalcoatl, com as suas serapes azuis e brancas, e' os de Huitzilopochtli, de serapes vermelhas e pretas, marchando ao som de tambores e erguendo uns as suas estranhas insígnias redondas, feitas de penas, e outros longas varas rematadas por um penacho rubro de extremidade preta. Nas igrejas, os sacerdotes incitavam os fiéis à guerra santa; os que haviam aderido à causa de Quetzalcoatl discursavam nas ruas à multidão.
Período tumultuoso. Em Zacatecas, o general Narciso Beltran manifestara-se contra Montes e a favor da Igreja, mas Cipriano interviera com tal presteza e violência que deu em resultado o fuzilamento de Beltran e a dispersão das suas tropas.
Então Montes declarou ser igual no México o antigo culto católico e publicou um decreto determinando que a religião nacional da República fosse a de Quetzalcoatl. Encerraram-se todas as igrejas e os padres viram-se obrigados a prestar juramento de fidelidade à República ou a serem condenados ao exílio. Em todas as cidades e aldeias surgiam os soldados de Huitzilopochtli e os homens de serape azul. Ramon trabalhava sem descanso. Cipriano aparecia nos lugares onde menos o esperavam. Conseguiu despertar uma espécie de frenesi religioso nas regiões mais descontentes, como Vera Cruz, Tamaulipas, Jucatão. Efectuaram-se no mar estranhos baptismos e nas costas elevaram-se fortalezas com as cores de Huitzilopochtli.
Todo o país vibrava com uma sensação desconhecida, dominado pela vaga de energia nova, mas em tudo aquilo entrava violência, crueldade e certo horror.
Deportaram o arcebispo. Já não se viam sotainas nas ruas; só as serapes de Quetzalcoatl e as de Huitzilopochtli se evidenciavam entre as multidões. Eis porque Cipriano chegou junto de Kate, com os olhos a luzir, ébrio de triunfo. Kate ficou assustada e sentiu-se vazia e inútil. Nem sequer aquela vitória espantosa e a alteração que se dava na face do mundo a podiam salvar por completo. Pertencia à velha Europa e não lhe era fácil transformar-se tão rapidamente. Contudo, achava que, se voltasse à Irlanda e concedesse uns tempos de repouso à sua vida e ao seu corpo, poderia então regressar ao México e participar nos acontecimentos.
Porque não era só o espírito que se modificava, mas também o corpo e o próprio sangue. Sentia esse terrível catabolismo e metabolismo a transformá-la noutra criatura. Se a metamorfose fosse muito brusca, decerto ela morreria.
Casou-se, pois, legalmente com Cipriano e foi passar um mês com ele na Vivenda Aragon. Em seguida embarcaria sozinha para a Irlanda, projecto a que o marido deu a sua anuência.
Era deveras estranho estar casada com ele. Kate tinha a impressão de se afundar pesadamente abaixo da superfície da vida, para jazer nas suas profundezas.
Estranha, pesada, verdadeira passividade. Pela primeira vez na sua existência, ela sentia-se repousada. Falar e pensar tornavam-se-lhe coisas triviais; as ondas à tona de água não são nada para aqueles que vivem submersos.
Na alma, estava serena e altiva. Ah, se o corpo não sofresse tanto com a transformação! No cosmos encontrara a paz de espírito, o universo abrira-se à sua frente, e ela deixava-se afundar no leito de puro descanso. Adquirira quase tanta segurança como Teresa. Só a atormentava a mudança que se lhe operava no sangue.
Cipriano mostrava-se feliz, à sua maneira de índio. Parecia um adolescente contemplando o mistério da vida com olhos dilatados de espanto. Não se ocupava especialmente de Kate, nem lhe falava de assuntos sérios. Se ela aflorava uma conversa desse género, dirigia-lhe um olhar desconfiado e afastava-se.
Tinha consciência de coisas de que a mulher mal se apercebia, sobretudo do perigo das palavras irritantes. E isto ele evitava.
Kate compreendia agora como os seus antigos amores haviam sido brutais, carregados de desejo e de contactos voluptuosos. com Cipriano, desaparecia a sua vontade ardente feminina, toda ela doçura, submissão; e contudo, tais as fontes térmicas que brotam da terra sem rumor, tão poderosa era na sua força secreta!
Via quase com espanto morrer dentro de si a Afrodite da espuma, essa Afrodite ávida de sensações ardentes. Como se prevenido por vago instinto, Cipriano repudiava essa parte da natureza de Kate. Quando esta se deixava dominar pelo êxtase voluptuoso que acaba em espasmos delirantes, ele afastava-se da mulher. Retirava-se desde que pressentia nela a sede daquelas volúpias a que costumava chamar o seu "prazer". E Kate percebia que lhe era repulsiva nesses momentos. Misterioso e implacável, afastava-se sem uma palavra.
Estendida a seu lado ela compreendia então quanto era superficial aquela efervescência de sensualidade. Parecia vir do exterior, não do seu íntimo. Depois do primeiro instante de decepção, quando esse prazer lhe era negado, concluía que não o desejava realmente, que até lhe repugnava.
E Cipriano, no seu silêncio quente e obscuro, aproximava-se quando ela se assemelhava a uma fonte borbulhando sem rumor das profundezas vulcânicas. Já não se tratava de prazer consciente. O que se passava era estranho, inexprimível, muito diferente das suas relações com Joachim. Nem êxtases, nem espasmos. Uma espécie de força subterrânea a que tinha de se submeter.
Tal como no amor, assim era Cipriano na vida. Kate não conseguia perscrutá-lo. Se tentava, via-se obrigada a desistir e a classificá-lo entre as coisas que existem e não se compreendem. Um desconhecido, e uma presença; nada mais.
Não podia existir intimidade. Cipriano envolvia-se na sua reserva como numa capa e deixava Kate envolver-se na dela. Eram dois estranhos. Ele aceitava o facto integralmente, como se outra coisa não fosse possível, mas Kate achava aquilo deveras singular. Tinha tanto desejo de intimidade e esforçara-se tanto por obtê-la!
Agora, resignara-se a aceitá-lo tal como era: um desconhecido, um estrangeiro na presença do qual vivia. E sem nenhuma intimidade espiritual, a sua união não passava de uma união de sangue.
Por isso, pouco importavam as ausências de Cipriano. Deixava atrás de si a marca da sua presença, e levava consigo a de Kate. Em resumo, não existia o desgosto da separação.
Certa manhã, ele teve de partir cedo para a cidade. O sol ainda não cobria o lago mas, para além de Tuliapan, já acariciava as montanhas, que brilhavam tão distintas que se diriam focadas por luz mágica. O sulco verde das encostas parecia ao alcance da mão. No seu voo, cintilaram de súbito duas gaivotas brancas, apanhadas na luminosidade. Mas o lago, suave, unido, silencioso, permanecia ainda na sombra.
Kate lembrou-se do mar. O Pacífico não ficava longe. Ela tinha a impressão de o haver esquecido, mas sentia de novo a necessidade da sua brisa.
Cipriano ia banhar-se; Kate viu-o caminhar sobre as lajes do cais. Despiu o roupão e o vulto escuro desenhou-se na água amarelada. Era tão moreno! Tal um malaio. Corpo tão trigueiro como a cara; e com esse físico primitivo, e o peito alto, e as ancas bem modeladas, evocava as figuras masculinas de certas medalhas gregas.
Mergulhou da beira do cais e avançou na água mansa. Nesse momento a luz espalhou-se dos cimos das montanhas e cobriu de oiro a superfície do lago. Imediatamente, Cipriano apareceu rubro como fogo. Os raios solares, porém, não eram vermelhos, mas, reflectidos pelas águas, davam ao corpo de Cipriano um tom de lume, como se o abrasassem.
Os filhos da Manhã... A coluna de Sangue... Um Pele-Vermelha... Kate contemplava-o admirada enquanto nadava resplandecente e puro. Como se fosse de fogo!
Os filhos da Manhã... Kate mais uma vez renunciou a todo e qualquer esforço de conhecimento - e, sem esforço, limitou-se à comunhão de sangue.
Sim, a sua raça... Ela notara já como os indígenas se tornavam de um vermelho puro à luz da manhã e da tarde. Dir-se-iam chamas erguendo-se da água.
Cipriano partiu a cavalo, com o criado. Kate viu-o afastar-se pela estrada além, sombrio na sua montada ruça. Parecia não fazer movimento nenhum. Irradiava um orgulho másculo e, assim unido ao animal, era como se este e o cavaleiro constituíssem um único ser.
Desapareceu. Kate, por um instante, experimentou saudade da sua presença. Mais do que dele próprio. Não desejaria tocar-lhe nem falar-lhe, mas tão-somente senti-lo ali.
Depressa se dominou e voltou à realidade. Desde que se compenetrava da ausência de Cipriano, vinha-lhe a noção nítida da sua presença.
Passeou um pouco pela costa, junto do molhe. Adorava estar só. Absolutamente só, com o jardim, o lago e a manhã.
"No fundo, sou como Teresa", pensou ela.
De súbito viu à sua frente uma corda comprida e escura em cima de um pedregulho. Aquilo fê-la sair dos devaneios. Era uma cobra de pele ornada com delicados desenhos; estava sobre uma pedra enorme e a cabeça pendia-lhe até ao chão.
O réptil sentiu a presença da mulher, pois, com incrível rapidez, rastejou ao longo da rocha e entrou numa fenda que havia na base do molhe.
Não era grande o buraco. Depois de ali penetrar, virou a cabeça e dardejou a língua preta; mas em seguida desapareceu devagar, e Kate viu-lhe ainda o último anel, no qual poisava a cabeça chata. Fazia lembrar aqueles diabos que se representam de queixo apoiado sobre os braços, olhando através duma seteira. Do fundo do esconderijo espiava a mulher; seguia-a com os olhos cintilantes de crueldade.
Kate pensou então em todos esses seres invisíveis, escondidos nos recantos ocultos da terra. E perguntava a si mesma se aquele réptil não sofreria por ser incapaz de se elevar na escala da criação; de não poder correr a quatro patas em vez de rastejar...
Talvez não. Talvez houvesse encontrado a sua própria paz. Kate sentiu-se reconciliada com o animal.

XXVII
Teresa e Kate tornaram a visitar-se. Existia agora entre ambas certa simpatia, especialmente desde que a irlandesa decidira partir.
Envolvia o lago uma pureza outonal. Sentia-se a humidade na atmosfera, as sarças das encostas cobriam-se de rebentos. O sol inundava os montes duma luz de ouro, as sombras eram profundas, aveludadas. A verdura invadia tudo, até as rochas e a terra cor-de-rosa. O verde brilhante das canas-de-açúcar sobressaía no fundo rubro dos campos lavrados de fresco; aqui e ali, entre a massa escura das árvores, avultava a mancha branca das povoações.
O céu estava alto e límpido. No ar cristalino vibravam os tambores e o grito para as pausas do dia. E o dia parecia deter-se perante o mistério supremo desse universo que desabrochava, vasto, suave e cheio de vida.
Até no lago se encontrava uma espécie de apaziguamento. Avançava uma canoa com a vela entumecida tal uma concha nacarada; o casco negro e afilado deslizava sobre a água. Dir-se-ia a barca de Dioniso portadora duma mensagem e de ramos de videira.
Kate mal se lembrava agora da secura árida dos meses anteriores, quando a terra parecia crepitar ao sol implacável.
Ramon e Teresa atravessaram o lago e o seu barco de remos entrou no molhe. Era uma manhã em que as sombras nas montanhas tomavam o tom azul das centáureas.
- Sempre vai partir? - perguntou Ramon a Kate.
- Por uma temporada. Não me julga a mulher de Loth, não é verdade?
- Não - respondeu ele, a rir. - Julgo que é a de Cipriano.
- E sou. Mas preciso de sair, embora por pouco tempo.
- Ah! Nesse caso vá e volte depressa. E diga lá na Irlanda que façam o que fizemos aqui.
- Como?
- Encontrando-se em si mesmos, e no seu próprio universo, e com os seus deuses. Justifiquem os seus mistérios. Os Irlandeses são tão prolixos no que respeita aos seus heróis de outrora e aos seus tempos gloriosos! Diga-lhes, pois, que concretizem tudo isso, como nós fizemos com Quetzalcoatl e Huitzilopochtli.
- Está bem. Veremos se há quem me escute...
- Sim, senhora. - Seguiu com os olhos a vela branca que se aproximava e depois indagou: - Afinal, porque quer partir?
- É-lhe indiferente o caso, pois não?
- Não, não me é indiferente.
- Porquê?
Ramon levou outra vez uns segundos para responder:
- É uma das nossas - replicou por fim. - Precisamos de si.
- Mesmo quando não faço nada? E quando principio a aborrecer-me com a história do Quetzalcoatl vivo e o resto, e preferia conhecer um simples Don Ramon?
Ele riu-se.
- Que é um simples Don Ramon? Don Ramon tem dentro de si Quetzalcoatl vivo. Mas a senhora auxilia-nos, apesar de tudo.
- Não creio que precise de auxílio, e muito menos de uma mulher que. no fim de contas, não é mais que a esposa do seu amigo.
Estavam sentados num banco, debaixo das manhãs-de-páscoa, cujas folhas rubras formavam como que uma flor de pétalas enormes.
- A esposa do meu amigo - volveu Ramon. - Que poderia
ser de mais agradável para mim?
- Pois claro! - exclamou Kate de maneira ambígua. Ramon tinha os braços apoiados nos joelhos e olhava para o
lago, com ar ausente. O seu rosto reflectia cansaço e aquela vulnerabilidade que sempre comovia Kate. Mais uma vez ela se compenetrou do isolamento e esforço que a procura de uma vida diferente impunha àquele homem. E, no entanto, ela não desistia...
Essa visão acentuou-lhe o sentimento de impotência, da impotência total da mulher em ajudar o homem que caminha para o Além.
- Está muito seguro de si mesmo? - perguntou.
- Seguro de mim? Não! De um instante para o outro eu morro e desapareço da face do mundo. Como poderia estar seguro de mim
mesmo?
- Mas porque há-de morrer?
- Todos morrem. Até Carlota!
- Essa tinha a sua hora marcada.
- Pode-se marcar a nossa hora como se faz no despertador de um relógio?
Kate calou-se por uns momentos.
- Se não está seguro de si mesmo, de que está então? - inquiriu como se o desafiasse.
Ramon fitou-a com os seus olhos sombrios.
- Estou seguro... seguro... - A voz sumiu-se-lhe, o rosto tomou a palidez dum defunto. Só os olhos a observavam intensamente. De novo ela se viu perante a sombra dolorosa do homem e se sentia impotente diante desse espectro vivo do sofrimento.
- Não pensa que anda em erro, pois não? - perguntou Kate.
- Não, mas talvez não possa manter...
- E então? - insistiu friamente a irlandesa.
- Continuarei o meu caminho, embora desacompanhado. Kate só lhe via os olhos negros, fitos nela. Ramon começou a falar em espanhol: - Isto faz-me doer a alma, como um pronúncio de morte.
- Mas porquê? Não está doente!
- Sinto a alma desagregar-se.
- Não deixe! - exclamou Kate, alarmada.
Ramon fitava-a ainda com os olhos inexpressivos. De súbito, ela experimentou uma sensação de calma e de força.
- Devia esquecer por uns tempos - disse-lhe em voz compassiva, poisando a sua mão na dele. Para quê tentar compreendê-lo ou contrariá-lo? Era uma mulher, ele um homem e, portanto, tinham da vida uma concepção diversa.
Ao contacto daquela mão, Ramon percebeu despertar de um sonho e fixou-a com olhar perscrutador e altivo. A carícia maternal sobressaltara-o como uma picada.
- Sim, devia - disse.
- Pois claro. Se quer ser tão... abstracto e quetzalcoatliano enterre de vez enquando a cabeça na areia como fazem as avestruzes, e esqueça.
- Oh! - exclamou Ramon sorrindo. - Ei-la de novo zangada!
- O caso não é tão simples como parece. Existe em mim um conflito, e não me deixam ausentar-me por algum tempo.
- Não podemos impedi-la.
-Pois sim, mas discordam da minha ida. Não me deixam partir em paz.
- Porque deseja ir-se embora?
- Tenho de ir. Tenho de voltar para junto dos meus filhos e da
minha mãe.
- Sente essa necessidade?
- Sinto.
Logo que deu esta resposta compreendeu que havia nela certa duplicidade. Era como se tivesse dois eus: um, mais novo, terno, sensível, que pertencia a Cipriano e a Ramon; outro, duro, completo, que pertencia aos filhos, à mãe, à Inglaterra, a todo o seu passado. O eu antigo nada tinha de submisso e era forte, o recente parecia frágil, estava ligado a Cipriano e até a Ramon e a Teresa; nada tinha de independente.
Kate possuía consciência desta dualidade e sofria com isso. Porque não conseguia optar definitivamente pela antiga maneira de ser, nem pela moderna, ficava a deter-se entre as duas.
- Pois é - continuou. - Sinto essa necessidade, e querem
evitar que eu parta.
- Que ideia! - protestou Ramon.
- Sim, senhor. Exercem pressão sobre mim, paralisam-me, impedem-me de me ir embora.
- Se tem essa sensação, convém que nos afastemos de si durante uns tempos.
- Porquê? Não concordam com a minha ida? Se eu tenho de
ir, porque não me apoiam?
Ramon fitou-a tranquilamente.
- É impossível. Não acredito nessa partida. Seria virar-nos as costas, renegar-nos. Mas a verdade é que somos todos muito complicados. Se acha que tem de se ausentar durante certo período, então vá! Não é coisa de importância primordial. Já fez a sua opção, e
eu não fico apreensivo.
Kate sentiu alívio ao ouvir isto, porque estava bastante preocupada consigo mesma. Nas suas relações com Cipriano e Ramon, nunca tinha a certeza de nada. Contudo, replicou com um pouco de ironia:
- Porque haveria de ficar apreensivo?
- Não desconfia de si própria às vezes?
- Nunca! Estou sempre segura da minha pessoa.
Continuavam sentados no jardim da Vivenda Aragon, debaixo da manhã-de-páscoa. O ar começava a aquecer. O lago estava calmo, o vento amainara e tudo se conservava imóvel - excepto as folhas rubras do arbusto.
O Natal aproximava-se! Eis o que recordou a Kate aquela planta majestosa.
Natal! O azevinho! A Inglaterra! As prendas! As iguarias! Se ela se apressasse poderia chegar à Inglaterra na data festiva. Achava uma coisa tão natural encontrar-se na pátria com a mãe, pelo Natal! Tinha casos tão interessantes a contar! E as bisbilhotices divertidas que havia de ouvir... De longe, tudo isso lhe parecia encantador. No entanto, experimentava como que uma relutância ao pensar nesse regresso.
- Podemo-nos fartar de coisas boas - disse ela a Ramon.
- De qual, em particular?
- Oh! De Quetzalcoatl e todas essas histórias. Podemos estar saturados.
- É possível - respondeu Ramon, pondo-se de pé e afastando-se em passos tão subtis que ela nem deu pela sua retirada.
Quando compreendeu que ele se fora embora, ficou fula. Mas continuou sentada debaixo do magnífico arbusto, contemplando com os olhos irritados a sebe de jasmineiro e as suas flores dum branco puríssimo. Onde é que ela ouvira qualquer coisa a respeito de jasmins? "E entre nós os jasmins..."
Oh! Como se sentia farta de tudo aquilo!
Teresa descia a ladeira do jardim.
- Ainda está aqui?
- Onde podia eu estar? - retorquiu Kate.
- Não sei... Meu marido foi a Sayula a fim de falar com o Jefe. Não quis esperar para ir connosco no barco.
- Talvez tivesse pressa.
- Que maravilha! - observou Teresa, apontando para o estendal vermelho do majestoso eufórbio.
- São as vossas flores de Natal, não são?
- Sim, as flores de Noche buena.
- É extraordinário! O Natal com hibiscos e manhãs-de-páscoa! Estou ansiosa por ver azevinho e laranjas na montra duma frutaria de Hampstead.
- Porquê? - disse Teresa, rindo.
- Ah! - suspirou Kate. - Voltar à vida simples, ver os autocarros a correr na lama de Piccadilly, na véspera do Natal, e os passeios molhados cheios de gente diante das lojas cintilantes...
- Isso é que é vida, para si? - perguntou Teresa.
- Sim. Sem esta abstracção e vontade. A vida satisfaz-me se eu puder vivê-la e ser eu mesma.
- É altura de Cipriano regressar - disse Teresa.
Kate levantou-se com súbita impaciência. Já não suportava essa tutela. Haviade lhes mostrar que era livre!
Foi com Teresa à aldeia. O ar parecia misteriosamente vivo, animado com um sopro novo. Mas Kate sentia-se fora do ambiente. As duas senhoras sentaram-se debaixo de uma árvore na praia de Sayula, conversando um pouco e contemplando a imensidão do lago
cor de pérola.
Ancorado junto do molhe estava um barco de toldo vermelho e mastro comprido. Em terra, viam-se grupos de homens vestidos de branco a olharem para o interior da embarcação. O contorno monolítico duma vaca preta e branca e dum touro enorme recortava-se contra a superfície das águas.
Era perto, e no entanto parecia tudo estranho e remoto. Dois peóns colocaram uma prancha e puseram-se a empurrar a vaca para lá. O animal avançou relutante mas depois, com a lenta indiferença dos Mexicanos, seguiu pela ponte adiante. Os homens incitavam-no, até que ele ganhou o barco e entrou definitivamente no porão.
O grupo ocupou-se então do touro. Um mexicano já idoso, alto, de calças estreitas de pele e casaco de cabedal, com um imenso chapéu de feltro bordado a prata, ergueu delicadamente a cabeça do touro, pegando-lhe pela argola do focinho. Atrás estava um peón que, curvando-se, empurrou os poderosos flancos do animal. E este, com toda a calma, foi andando pela prancha além. Mas parou.
Os peóns reagruparam-se. O que estava atrás, de faixa vermelha atada à cintura, deixou de empurrar. Então dois outros passaram uma corda em volta das ancas do touro. O velho tornou a pegar pela argola, sempre com muito cuidado, e o animal levantou outra vez a cabeça. Mas continuou parado.
De novo lhe puxaram pela argola e pela corda. O monstro mantinha-se impassível. Tudo isto decorria no maior silêncio.
Por fim o touro percorreu a ponte em passos lentos e alcançou a borda do navio. Ali, esperou.
De cabeça baixa, olhava para o fundo do porão. Os homens empurravam-no com toda a força, puxavam a corda - tudo no profundo silêncio mexicano.
Devagar, cauteloso, o animal agachou-se, e então, com um movimento rápido, pendeu as patas dianteiras no interior do barco, ficando com os quartos traseiros alçados. Houve um momento de confusão, depois um baque. Finalmente, o touro saltara e encontrava-se no porão do navio.
E tudo tão silencioso e tão remoto!
- Ramon quer que se sente ao lado dele no templo como esposa de Quetzalcoatl... com algum nome esquisito? - perguntou Kate a Teresa.
- Não sei. Mais tarde, diz ele, quando for ocasião de haver uma deusa.
- E importa-se?
- Por mim, tenho medo. Mas sei que Ramon o deseja. Ele diz que é aceitar a maior responsabilidade da nossa vida, e eu acredito que seja verdade. Se existe divindade em mim, devo reconhecê-la, envergar a túnica verde e ser deusa no momento oportuno. Ramon afirma que precisamos de manifestar a presença divina. E, ao lembrar-me de meus irmãos, acho que ele tem razão. Hei-de pensar no deus que palpita invisível como o coração do mundo. E quando vestir a túnica verde e me sentar no templo diante de toda a gente, voltar-me-ei para o coração do universo e tentarei compenetrar-me do meu eu divino.
- Julgava que a túnica verde era só para a esposa de Huitzilopochtli - observou Kate.
- Ah, sim! - replicou Teresa. - A minha é preta, com barras brancas e desenhos encarnados.
- Preferia a verde? Fique com ela, se quiser. Eu vou-me embora...
Teresa ergueu os olhos para Kate.
- A túnica verde é para a mulher de Huitzilopochtli - declarou.
- Não vejo que isso tenha importância - volveu a irlandesa.
- Cada homem deve possuir a esposa que lhe convém. Cipriano não quereria uma mulher como eu.
- Cada mulher deve ter o homem que lhe convém - retorquiu Kate. - Para mim, Ramon seria muito abstracto e muito despótico.
Teresa ruborizou-se e baixou os olhos.
- Ramon exige muita submissão de uma mulher para que me agradasse - ajuntou a outra.
Teresa ergueu a cabeça, o pescoço moreno ondulou como uma
serpente.
- Como é que sabe que Ramon exige submissão das mulheres? Como é que sabe? Nunca a exigiu de si... Está enganada. Ele não me impõe tal submissão. O que pretende é que me entregue brandamente; em compensação, entrega-se-me, a mim, com uma brandura maior do que esta que lhe concedo: um homem como Ramon é mais dócil do que uma mulher. Não se assemelha a Cipriano, que é soldado. Ramon mostra-se dócil. Não tem razão no que
diz, Caterina.
Kate soltou uma risadinha. Mas Teresa prosseguiu:
- Vejo-a como um soldado entre as mulheres, está sempre a combater. Eu não sou assim. No entanto, há mulheres que são de temperamento bélico e essas precisam de mandos militares. Eis a razão por que é Malintzi e tem um vestido verde. Estará sempre disposta a lutar... até consigo mesma, se ficar só no mundo.
Havia uma grande calma em volta do lago. As duas senhoras aguardavam a chegada de Ramon.
Um homem vestido de branco, acocorado e silencioso debaixo de uma árvore, desbastava folhas de palmeira, com ar concentrado. Em seguida ia molhá-las na água e voltava para se sentar de novo, recomeçando o trabalho com aquela atenção pueril da gente do povo. Estava a consertar uma cadeira de palha. Como Kate o observasse, os olhares dos dois encontraram-se e o homem saudou-a. Dir-se-ia que, dele, emanava para ela uma chama de vida, a qual lhe transmitiu um estranho poder.
Nitrindo excitado, corria ao longo da margem um cavalo ruço malhado de branco. A crina flutuava ao vento, as patas faziam saltar os calhaus, as narinas abriam-se-lhe ansiosas. Porque seria?
Um peón fizera entrar no lago a sua carroça puxada por quatro muares, até que a água ficou acima dos varais, e quase atingindo o fundo do veículo. Parecia um barco conduzido por quatro cavalos-marinhos.
Era Inverno, mas dir-se-ia Primavera nas imediações do lago. Saltitavam na praia bezerros amarelos e brancos, agitando a cauda, correndo lado a lado à beira da água, que eles cheiravam desconfiados.
A uma árvore estava amarrada uma burra, com a sua cria deitada à sombra, um jumentinho preto como uma amora, enroscado no chão, com a cabeça peluda erguida e as longas orelhas fitas.
- Quantos dias tem o burrinho? - perguntava Kate ao peón, que saíra da sua cabana de colmo.
O homem dirigiu-lhe um olhar em que havia júbilo e deferência - olhar que fez Kate sentir uma onda de orgulho encher-lhe o peito.
- Nasceu a noite passada, patrona! - respondeu ele, sorrindo.
- Tão novo! Ainda não pode aguentar-se nas pernas, pois não?
O peón aproximou-se do jumento e pô-lo de pé. E ali ficou o animalzinho, espantado, de pernas abertas, como se em cima de ganchos de cabelo.
- Que engraçado! - exclamou Kate, deliciada. O homem riu-se; parecia grato pelo interesse dela.
O jumento a custo se mantinha naquela posição. Vacilava sobre as quatro patas bambas, com ar admirado. Deu uns passos oscilantes para cheirar as folhas de milho. Cheirou, e tornou a cheirar, tal se o mistério do olfacto se lhe revelasse nas narinas.
Então voltou para Kate a cabeça aveludada e deitou de fora a língua cor-de-rosa. Kate soltou uma gargalhada, o que fez o animal dar um pulo que o deixou infinitamente surpreendido consigo próprio. Tentou uns passos, e, de repente, sem que ele mesmo esperasse semelhante coisa, deu outro salto.
- Já dança! - exclamou Kate. - E só tem umas horas de existência!
- Já dança - confirmou o peón.
Depois daquelas experiências, o burrinho aproximou-se da mãe em passos incertos e começou a mamar.
Erguendo a vista, Kate encontrou os olhos do homem cintilantes da chama da vida, cheios de confiança e de conhecimento.
O jumentinho preto, a mãe, o mistério da criação, o respeito pela mulher superior a ele, bela e radiosa, tudo isto exprimiam os olhos negros desse homem primitivo.
- Adiós! - disse Kate.
- Adiós, patrona! - respondeu ele, erguendo o braço, na saudação de Quetzalcoatl.
Atravessou ela a praia em direcção ao cais; sentia dentro de si uma onda de vida, forte, resistente. "É o sexo", disse consigo. "Como o sexo pode ser extraordinário quando o homem o conserva poderoso e sagrado e que ele enche o mundo! É como o sol, penetrando-nos. Mas não me submeterei, mesmo assim. Porquê ceder?" Ramon aproximava-se, com o seu largo chapéu ornamentado do símbolo de Quetzalcoatl. Nesse instante tocaram os tambores e, do alto da torre, soou a voz nítida e possante anunciando o meio-dia. Todos os homens que se encontravam na praia aprumaram o corpo e ergueram o braço direito. As mulheres viraram a palma da mão para o Sol. Tudo ficou imóvel, excepto os animais.
Então Ramon encaminhou-se para o barco, enquanto os homens o saudavam à maneira de Quetzalcoatl.
- É espantoso como nesta terra se pode ter a impressão de que se é alguém! - notou Kate, quando já iam sobre a água no barco de remos. - Sentimo-nos como se pertencêssemos de facto à nobreza.
- E não é verdade?
- Sim, mas isso em toda a parte nos é negado. Só aqui temos a noção do poder da nobreza. Os indígenas ainda a veneram. Parecem
adorar-me.
- Por enquanto - replicou Ramon. - Mais tarde assassiná-la-ão porque a adoraram.
- É inevitável? - volveu Kate em tom despreocupado.
- Creio que sim. Se vivesse sozinha aqui, em Sayula, e reinasse por algum tempo, seria assassinada... ou pior ainda... pelo povo que a tinha idolatrado.
- Não acredito.
- É como lhe digo.
- Mas porquê?
- A não ser que se consiga dos deuses a nossa própria nobreza e se implore dos céus o poder, acabaremos por ser assassinados.
- A minha nobreza tem essa origem.
Mas não ficou muito convencida e mais firmou a sua resolução
de partir.
Escreveu para a Cidade do México e reservou uma passagem de Vera Cruz a Southampton. Embarcaria no último dia de Novembro.
Cipriano regressou a 17 e Kate participou-lhe o que tinha feito. Ele ficou a olhá-la, de cabeça um pouco à banda e com uma expressão de criança ajuizada, mas Kate foi incapaz de adivinhar o que lhe ia na alma.
- Vais-te embora já? - perguntou ele em espanhol.
A mulher percebeu então que estava ofendido. Quando se melindrava falava-lhe sempre em espanhol, nunca em inglês.
- No dia 30.
- E quando voltas?
- Quien sabe! - ripostou Kate.
Por uns minutos, Cipriano fitou-a com as suas pupilas negras imperscrutáveis. Estava a pensar que tinha o direito de a impedir que saísse do país, visto ser legalmente sua esposa. Nas profundezas dos olhos luzia a antiga cólera índia; depois surgiu uma leve mudança de expressão no rosto, quando a ira contida cedeu lugar à indiferença estóica, à velha indiferença de tantos séculos. Kate quase sentia as ondas sucessivas de sombra e frieza que percorriam Cipriano sem que ele mesmo desse por isso. E mais uma vez lhe estremeceu o coração o medo de perder o contacto com esse homem.
- Como quieras tu! - disse ele por fim.
Concedia-lhe a liberdade com a misteriosa indiferença do seu sangue e não faria mais esforços para a reter. Era o fatalismo dos da sua raça.
Conforme Kate previra, Cipriano tomou um barco e foi a Jamiltepec falar com Ramon.
A mulher ficou só, como de costume. Ocorreu-lhe que ela própria criara essa solidão. Não conseguia identificar-se com aquela gente, sentir-se à vontade fosse com quem fosse. Fechava-se sempre na sua personalidade.
Importava-lhe muito a reciprocidade sexual? Podia importar-lhe ainda mais se não a houvesse tido; mas tivera-a, e de maneira perfeita, com Cipriano. Sabia tudo a esse respeito. Era como se houvesse conquistado outro território, outro domínio da vida. E agora devia retirar-se para a toca da sua individualidade, com a vítima nos dentes.
De súbito, viu-se como os homens muitas vezes a viam: uma gata enorme, com os seus espasmos de volúpia e o gozo demorado do seu isolamento. Conhecia outras mulheres assim. Brincavam cheias de amor e familiaridade como um gato com um rato. Por fim devoravam o ratinho querido e reapareciam com a barriga repleta e uma voluptuosa sensação de força.
Algumas vezes o rato recusava-se a ser digerido, de que resultava prolongada dispepsia; ou então, como Cipriano, transformava-se numa espécie de cobra, que alçava a cabeça, olhava para trás e desaparecia num buraco, deixando-a confusa e destituída de poder.
Outra coisa que ela observava horrorizada. Uma após outra, as suas "amigas", as grandes amorosas, na idade de quarenta, quarenta e cinco e cinquenta anos perdiam todos os atractivos e ficavam umas corujas horrendas, procurando em volta a vítima cada vez mais rara. Como seres humanos deixavam de existir, metamorfoseadas em corujas elegantes e mexeriqueiras.
Kate era bastante inteligente para tirar proveito da lição. Estava bem que uma mulher cultivasse o seu ego, a sua personalidade. Estava muito certo que desprezasse o amor ou que com ele se entretivesse como um gato faz ao rato; isto é, brincar o mais tempo possível antes de o comer e saciar voluptuosamente o ego com a sua vítima.
"A mulher sofre mais com a supressão do ego do que com a do sexo", afirmou uma escritora, e talvez seja verdade. Mas olhai, olhai para as mulheres modernas de cinquenta anos, as que cultivaram o ego até ao extremo limite! São em geral criaturas que nos enchem de pena ou de repulsa.
Kate sabia tudo isto, e nisto pensava enquanto ali sozinha na sua vivenda. Tivera a sua liberdade, mesmo no México. Esses homens deixá-la-iam partir. Não estava prisioneira. E levaria consigo todos os despojos que ainda guardavam.
E depois? Sentar-se nos salões de Londres e ser mais uma coruja ao lado das outras? Arvorar um sorriso postiço e falar com voz
artificial?
"Não! - disse consigo. - O meu ego e a minha personalidade não valem esse preço. Prefiro desfazer-me deles em parte a ver-me reduzida a isso."
No fim de contas, quando Cipriano a acariciava toda ela parecia desabrochar. Era a força do sexo, que enchia o mundo de lascívia e sobre que ela não se atrevia a reflectir. O seu poder tornava-se maior do que a sua vontade. Por outro lado, quando estava só e abria as asas do seu ego e o espírito desferia voo, o mundo afigurava-se-lhe maravilhoso. Todavia, após uns instantes, desvanecia-se o esplendor, substituído por uma solidão amarga.
"Preciso de ambos - concluiu. - Não posso afastar-me de Cipriano nem de Ramon. Renovaram-me o sangue. Digo que são limitados, mas todos temos de o ser. Se tentamos ser ilimitados, tornamo-nos monstros. Sem Cipriano a afagar-me, a limitar-me e a submergir-me a vontade, tornar-me-ia uma velha horrível. Devo regozijar-me pelo facto de Cipriano me limitar com a sua vontade e o seu contacto ardente. Porque o que eu chamo a minha grandeza faz-me cair no vácuo desde que não haja a mão dum homem para me segurar. Ah, sim! Antes submeter-me do que ser uma mulher horrível."
Chamou o criado e foi através do lago num barco de remos. Era por uma bela manhã de Novembro. Nas escarpas das montanhas, a nordeste, as sombras tinham um tom azul muito puro. Por baixo, a vegetação começava a amarelecer. O lago, embora ainda cheio, principiava a baixar, e os jacintos-d'água vogavam à toa. No ar calmo viam-se pássaros voando. Alguns milheirais exibiam os seus talos secos, mas as flores de palo-blanco tinham já desabrochado e errava o perfume das acácias amarelas.
"Porque havia de me ir embora? - pensou Kate. - Porque havia de ver os autocarros na lama de Piccadilly na véspera do Natal e a multidão nos passeios molhados diante das lojas iluminadas? Mais vale ficar aqui, onde a minha alma é menos triste. Tenho de pedir desculpa a Ramon das coisas que lhe disse. No fim de contas, aqui há outra grandeza, com o som dos tambores e o grito de Quetzalcoatl."
Já ela distinguia o último andar da casa de Jamiltepec, semelhante a uma torre avermelhada, e a buganvília roxa pendente do muro, os cachos das flores de plumbago e a porção de rosas brancas.
- Están tocando - disse tranquilamente o barqueiro, erguendo para ela os olhos negros.
Já ouvira o som do tambor em Jamiltepec. Uma voz de homem se elevou na manhã clara.
O barqueiro levantou um remo, como se fizesse sinal. E assim que o barco penetrou na enseadazinha, veio um criado a correr ao longo do molhe. No ar soalheiro notava-se o cheiro das daturas e das rosas, e um silêncio profundo que nem o tambor nem o canto perturbavam.
- Don Cipriano está aqui? - perguntou Kate.
- Está - murmurou o criado, apontando para o balcão donde partia a voz do cantor. - Deseja que eu o informe da sua chegada?
- Não - respondeu Kate. - vou sentar-me um bocado no jardim, antes de subir.
- Nesse caso, deixarei a porta aberta - volveu o homem - e assenhora entrará quando quiser.
Kate instalou-se no banco de uma árvore, donde pendiam flores de trepadeira enroscada ali como uma serpente. Pôs-se a ouvir o canto. Ramon ensinava o novo hino a um dos cantores.
Não tinha muito boa voz o Quetzalcoatl vivo. Cantava baixinho, como se para si mesmo, mas com expressão simples e bela. Kate não conseguiu perceber a letra.
- Ya? - disse Ramon ao terminar.
- Ya, patrón! - respondeu o cantor.
E na sua voz forte e pura, este entoou o hino:
O meu caminho não é o teu e o teu não é o meu.
Mas vem, antes que nos separemos.
Cada qual por seu lado, dirijamo-nos à Estrela da Manhã
Para lá nos encontrarmos.
Não te aponto o meu caminho
Nem chamo por ti.
Mas a Estrela é a mesma para nós ambos
E a ambos nos atrai.
A cada qual o seu caminho, esse que esplende Na encruzilhada,
Que abre a sua chama como a porta de uma tenda Por onde, invisíveis, deslizamos.
Não pode um homem pisar como a mulher
Nem a mulher andar como o homem.
O espírito de cada um através das folhas de sombra
Se move como pode.
Mas a Estrela da Manhã e a da Noite Fixam tendas de fogo
Onde nos retinimos quais ciganos, sem saber Como é que vieram os outros.
Nada mais peço que me insinuar Na tenda do Espírito, e deter-me Na casa da chama bifurcada Como hóspede seu.
Fica aí comigo, esposa minha, Corporalmente. E que a flama nos envolva Qual uma rede.
Sede lá, homens, comigo,
Alcançai o lar.
Ride comigo, enquanto a mulher repousei,
Porque vale a pena.
O homem entoara o hino por várias vezes, parava, dir-se-ia esquecer-se, extinguia-se-lhe a voz pura e quente. Então a de Ramon, baixa e um tanto rouca, elevava-se com subtil intensidade, como se vinda do meio duma concha; depois, o tenor retomava o canto, que lhe corria no sangue como uma chama.
O mozo de Kate, ou seja, o seu criado, seguira-a ao jardim, e tinha-se sentado de pernas cruzadas, a certa distância, debaixo de uma árvore, de costas apoiadas ao tronco - sombra acocorada, vestida de branco. Os dedos dos pés saíam-lhe rijos e escuros das huaraches esburacadas, e o trancelim de palha do chapéu pendia-lhe junto à face trigueira. Quanto ao resto era tudo alvo, e as calças de linho apertavam-se-lhe nas coxas.
Quando o canto terminou, e o tambor deixou de rufar, e as vozes, num murmúrio, mal se ouviam, o mozo ergueu a cabeça e olhou para Kate. Brilhavam-lhe as pupilas negras, no rosto errava-lhe um sorriso tímido.
- Está muy bien, patrona? - perguntou, um pouco envergonhado.
- Muito bem - respondeu ela, como um eco fiel. Mas no seu coração debatiam-se conflitos diversos, e o criado sabia-o.
Parecia tão novo com aquele sorriso alegre, excitado, receoso! Havia nele qualquer coisa de perpetuamente infantil; mas era uma criança que, dum momento para outro, se podia tornar num selvagem- vingativo e brutal, um homem que nunca perdia a consciência do seu sexo. E Kate pensou mais uma vez que existiam várias maneiras de regressar à infância.
O criado, porém, continuava a espiá-la, de soslaio: queria ver se havia nela qualquer hostilidade secreta. Desejaria que concordasse com o hino, com o tambor e com tudo mais. Como uma criança, ansiava pela sua aquiescência; mas, se a senhora se mostrasse hostil, ele seria o primeiro a manifestar-se. Um julgamento adverso torná-lo-ia inimigo declarado.
Ah, os homens eram todos iguais!
Nessa ocasião, o rapaz levantou-se, com súbita agilidade, e ela ouviu a voz de Cipriano na varanda:
- Que é, Lupe?
- Está la patrona - respondeu o mozo.
Kate ergueu-se também e olhou. Viu a cabeça e os ombros nus do marido, em cima, no parapeito.
- Já lá vou - participou-lhe.
Vagarosamente transpôs os portões de ferro do corredor. Lupe, que a seguia, fechou-os atrás de si.
No terraço encontrou Ramon e Cipriano, ambos de tronco nu, que a esperavam em silêncio. Kate, embaraçada, explicou:
- Estive a escutar o novo hino.
- E-que lhe pareceu? - perguntou Ramon.
- Gostei.
- Sentemo-nos - propôs ele. E a recém-vinda deixou-se cair numa das cadeiras de verga. Cipriano ficou de pé, encostado à balaustrada.
Kate viera para declarar a sua submissão: dizer que já não queria ir-se embora. Mas, vendo os dois homens numa disposição muito quetzalcoatliana, não se decidia a aflorar o assunto. Tinha a sensação de ser uma intrusa. Não se compenetrava de que também pertencia à seita.
- Parece-me que não há Estrela da Manhã para nos reunir a todos três - observou, irónica mas um pouco trémula.
Sobre eles desceu um silêncio ainda mais profundo.
- Estou a ver que uma mulher é realmente de trop aqui junto de vocês ambos.
Hesitou um tanto ao dizer isto. Sabia que Cipriano ficava perplexo e melindrado quando ela escarnecia.
Ramon respondeu-lhe com uma doçura que vinha direita do seu coração.
- Então que há, prima?
com um tremor nos lábios, Kate replicou:
- Em verdade, não desejo deixá-los.
Olhando rapidamente para Cipriano, Ramon retorquiu:
- Bem sei que não deseja.
O tom suave e protector da sua voz fê-la revoltar-se de novo. com os olhos rasos de lágrimas, ela bradou:
- Afinal vocês não precisam de mim!
- Não, não, preciso de ti. Verdad, verdad! - exclamou Cipriano em voz baixa e contida, quase num murmúrio.
E, no meio das suas lágrimas, Kate pensava: "Como sou intrujona! Sei perfeitamente que sou eu que não os quero. Quero-me só a mim mesma. Mas posso iludi-los de modo que o não percebam."
Havia notado a paixão fálica e ardente na voz de Cipriano.
Coube a vez a Ramon de falar, e fê-lo em tom glacial:
- A Caterina é que não precisa de nós. Não se comprometa connosco. Atenda à sua própria preferência.
- E se ela me aconselhar a partir? - ripostou Kate, como um desafio, através de um resto de lágrimas.
- Então parta!
Kate recomeçou a chorar.
- Ah, eu bem sabia que não precisavam de mim. Mas Cipriano acudiu com persuasiva ternura:
- Não és dele! Ele não pode dizer nada.
- Isso é verdade - concordou Ramon. - Não me dêem ouvidos.
Levantando bruscamente a cabeça, no meio do seu pranto, viu-o afastar-se sem rumor.
Limpou a cara, recuperou a calma e, de olhos húmidos, fitou Cipriano. Este conservava-se muito direito, como um galo combatente. Nas pupilas negras brilhava-lhe um fulgor estranho.
Sim, Kate também tinha medo dele, desses olhos pretos inumanos.
- Não queres que me vá embora, pois não? - perguntou-lhe suplicante.
Espalhou-se no rosto do homem um sorriso lento, e um leve tremor lhe percorreu o corpo. E então, na sua voz de inflexões índias, muito suave, Cipriano disse-lhe em espanhol:
- Yo! Yo! - E as sobrancelhas erguiam-se-lhe numa expressão de espanto divertido. Ainda trémulo, concluiu: - Te quiero mucho! Mucho te quiero! Mucho, mucho!
As palavras soavam tão cariciosas, vinham-lhe tanto do seu sangue ardente, que a mulher se sobressaltou e disse:
- Não me deixarás partir!

XXV
Foi uma surpresa para Kate o casamento de Don Ramon dois meses depois do falecimento de Dona Carlota. A noiva tinha vinte e oito anos e chamava-se Teresa. Após o casamento, que se realizou civilmente e na maior intimidade, Ramon trouxe a nova esposa para Jamiltepec.
Conhecia-a desde pequena, pois era filha do proprietário da famosa hacienda de Las Jemas, situada a uma dúzia de milhas de Jamiltepec. Don Tomaz, pai da rapariga, fora grande amigo dos Carrascos. Morrera, porém, um ano antes, deixando a importante hacienda aos três filhos e confiando a Teresa a administração da quinta. Teresa era a mais nova. Os dois irmãos viviam a existência inútil e perdulária dos mexicanos, e por isso Don Tomaz, a fim de salvar a propriedade daquelas mãos nefastas, designara Teresa como administradora e obtivera o consentimento dos dois irmãos. Na verdade, os rapazes eram criaturas ociosas que, em vida do progenitor, nunca haviam mostrado o mínimo desejo de o ajudar na difícil gerência da quinta. Teresa fora a única. E durante a doença do pai, todas as fadigas da administração haviam recaído sobre ela, enquanto os irmãos gastavam o dinheiro e as forças nas orgias em que se deleitam os mexicanos de certa classe. No entanto, assim que o pai faleceu, os dois irmãos apareceram em casa cheios de arrogância, com a intenção de se tornarem hacendados. Pela simples força bruta afastaram a irmã do seu cargo, deram ordens contrárias às dela, escarneceram-na e uniram-se para a esmagar. Queriam relegá-la para o seu lugar de mulher, isto é, para uma espécie de escravidão a que, aos seus olhos, deviam pertencer as pessoas desse sexo.
Eram brutos, e como brutos, cobardes. E, como tantos mexicanos daquela categoria, condescendentes e prejudiciais para si próprios. Relacionaram-se com juizes e generais, exibiram-se em ricos trajes de charro e receberam em casa uma multidão de gente duvidosa.
Contra aquela indolência e brutalidade, Teresa nada podia fazer e conhecia bem a sua impotência. Os irmãos eram fracos, sensuais, belos à sua maneira, dissipadores, despreocupados, mas de sentimentos ferozes.
- Faz-te bonita e arranja um marido - aconselhavam-lhe. Aos olhos deles, o seu maior crime era não atrair os homens
com quem conviviam. O facto de nunca ter conhecido homem e não se haver ainda casado tornava-a quase odiosa. De que servia a mulher senão para uma vida de relaxamento e licenciosidade?
- Queres usar calças? - perguntavam-lhe, irónicos. - No, señorita, enquanto houver aqui dois homens. No, señorita, os homens é que usam calças, e as mulheres escondem o que têm debaixo das saias.
Teresa já estava habituada a estes insultos; contudo, sofria muito no seu íntimo.
- Queres viver à moda dos americanos? Então abala para a América, corta o cabelo e veste calças. Compra lá um rancho e arranja um marido que receba as tuas ordens.
Teresa consultou advogados, que se limitaram a erguer os braços ao céu. Foi então procurar Ramon, a quem conhecia desde pequena.
Para expulsar os irmãos da hacienda seria necessário intentar um processo dispendioso e de resultado incerto. Em vez disso, Ramon propôs-lhe que casasse com ele segundo um regime matrimonial em que ela disporia sempre dos seus bens.
- Nesta terra os homens desprezam as mulheres e não podem passar sem elas, o que representa um suicídio - disse Ramon.
O casal foi visitar Kate. Teresa era franzina, pálida, de farta cabeleira preta e grandes olhos negros. Apesar do ar calmo, notava-se-lhe certa independência e autoridade. Sofrera muitas humilhações da parte dos irmãos e tinha ainda os olhos pisados pelas lágrimas de amargura, indignação e cólera.
Agora, amava Ramon com todas as veras da sua alma. Isso era evidente. Fora ele que salvara da degradação a sua dignidade de mulher e lha havia restituído bela e intacta. Em troca, passou a conceder ao seu salvador uma admiração respeitosa e quase feroz.
Em relação a Kate mostrava-se tímida e um pouco distante, tal se receasse essa mulher branca, doutra raça, que viajara muito e possuía larga experiência da vida. com um vestido claro e um rebozo de gaze preta, estava sentada na sala de Kate, com as mãos trigueiras pousadas no regaço, o pescoço escuro muito direito, e desviando um pouco o rosto fino e bem modelado. A irlandesa achou-lhe uma aparência de costureirinha.
Mas Kate não deu fé do estranho poder autoritário que também emanava desse corpo moreno e esguio, nem do olhar penetrante e desconfiado que por vezes Teresa lhe dardejava. Alma de fogo num corpo delicado. Atitude cheia de reservas. De quando em quando, a boca parecia formular uma palavra em silêncio e nos lábios perpassava-lhe um sorriso constrangido. Nunca lhe desaparecia, porém, o fulgor dos olhos.
- Falas tão pouco, chica! - observou Ramon, com certa ternura.
Então os olhos dela cintilaram e a boca esboçou um sorriso.
Via-se bem que estava apaixonada, embebida num êxtase de amor, o que explicava a sua frieza perante Kate.
"Despreza-me - pensou esta - porque não sou capaz de amar como ela." E, por um segundo, Kate invejaria Teresa. Mas daí a pouco desdenhava-a: "Tipo de harém..."
Sim, Ramon adaptava-se bem ao papel de sultão. Era belo, no seu traje branco, muito sereno, com ar de paxá, mas ao mesmo tempo afável, atencioso - e com aspecto tão juvenil! Como um paxá, preparava um cacharolete de genebra, vermute e limão. Teresa espiava-o de esguelha, sem perder de vista Kate, sua possível inimiga, a mulher que falava aos homens no mesmo pé de igualdade.
Kate levantou-se para ir buscar colheres. Nesse momento, Ramon recuou da mesa baixa em que espremia o limão e colidiu de leve com a dona da casa quando esta passava. Kate reparou de novo como ele se esquivava a qualquer contacto com ela. A sua sensualidade natural afastava-o de Kate como uma chama se desvia perante uma corrente de ar. Ela corou, e Teresa viu o súbito rubor sob essa pele branca, e o clarão quase de ira que atravessou os olhos castanhos de Kate. Momento de evasão de dois cursos de sangue tão diferentes!
Teresa pôs-se de pé, aproximou-se de Ramon e, inclinando-se sobre os copos, perguntou com aquela afectação infantil própria das mulheres da sua raça:
- Que puseste aí?
- Olha ! - retorquiu ele. E, com a mesma infantibilidade dos homens do seu tipo, começou a explicar-lhe de que se compunha o cacharolete e deu-lhe a provar um pouco de genebra, numa colher.
- É tequila da pior - declarou Teresa.
- A oito pesos cada garrafa? - volveu o marido, a rir.
- Custa esse preço? Tão caro!
Ela fitou-o nos olhos, por um momento, e viu esse rosto tornar-se mais escuro, mais ardente, como se todo ele se derretesse ao senti-la perto de si. Teresa então ergueu a cabeça, orgulhosamente. Havia-o reconquistado.
"Manhas de harém!" pensou Kate. E experimentou certa impaciência ao verificar como o ilustre, prodigioso Ramon se deixava prender nas malhas de um ser tão insignificante. Sentia-se contrariada por ter assim consciência da presença física do homem, do seu corpo belo, dos seus ombros fortes, das suas pernas vigorosas. Dir-se-ia ter também de sucumbir ao fascínio e vir a fazer parte do harém daquele sultão.
Que estranha vontade possuía a pequenina mulher morena! Que subtil poder feminino num corpo que quase só tinha pele e osso! Teresa era capaz de engrandecer a glória do marido - ao passo que ela própria se tornava imperceptível, a não ser quanto ao fulgor tigrino dos seus grandes olhos pretos.
Kate observava admirada. Conhecera homens que lhe davam a impressão de a transformarem em rainha, de ter a cabeça nas estrelas e repousar o peito nas nuvens. Sabia o que era subir, subir, subir até encher o universo com a sua feminilidade.
Via agora, porém, o contrário. Quem tinha poder sobrenatural era essa criatura pequenina, que fazia maior Don Ramon, enquanto ela se diminuía e ficava invisível, excepto no que respeitava aos olhos. Ele, como um sultão, como um fruto sazonado ao sol, tomava uma aparência extraordinária e imponente; e então, por algum poder misterioso do seu corpo trigueiro, a frágil Teresa fazia-o ainda mais completo.
Era o que Ramon queria, e Kate, percebendo-o, sentia-se irritada. Parecia-lhe odioso aquele macho triunfante, exasperava-a aquela rapariga ardente que só pensava em exaltar o homem.
ah, o poder oculto da mulher trigueira! Kate chamava àquilo harém e prostituição. Sim, era a atitude da escrava. Que pretendia dele essa criatura senão o sexo, como uma prostituta?
Pois não era degradante para uma mulher semelhante espécie de amor? E não tornava o homem fraco, sensual, ou odiosamente tirânico?
No entanto, já duma coisa Kate se convencera: que a chave da vida, e da continuidade da vida, residia nas relações do homem e da mulher. A união completa dos dois representava a vida presente e futura; dessa fusão surgia uma vida nova.
Mas tais relações necessitam de equilíbrio, e TereSa destruía-o juntando na balança o seu peso ao do homem.
Ramon não quisera Kate. Possuía agora o que desejara: aquela criaturinha escura, tão servil e orgulhosa do seu poder. Só quisera Kate para camarada, camarada inteligente, Não para mulher. Preferira essa viborazinha de Teresa...
Cipriano, esse desejava Kate. O general, o militar empertigado desejava Kate, mas só por momentos. não se importava casar realmente com ela; o que lhe interessava eram os instantes passados a seu lado. Kate tinha de lhe conceder esses instantes, e em seguida ele tornava a partir para junto das suas tropas. com isso se contentava. E ela também. Assim, ficava senhora da sua existência. Não tinha feitio para andar de roda dum homem a excitar-lhe o sangue, a estimular-lhe o ardor!
Levantou-se e foi ao quarto buscar um livro que prometera a Ramon. Não podia suportar mais tempo a exibição do amor dele por Teresa. Ah, aquele sorriso néscio estampado no rosto do homem, o brilho estranho dos olhos, o aprumo orgulhoso do corpo!
Eis como eram os dessa raça. Selvagens, com o insuportável fluido sensual dos índios e aquela maneira primitiva de se dissolver numa horrível confusão de desejo; com a presunção da sua virilidade insolente e inesgotável.
O pior era que essa força cósmica que ela até aí só conhecera nos olhos azuis dos homens loiros (e que tornava rainhas as respectivas mulheres, ainda que eles as detestassem por fim), essa força declinava agora nos olhos azuis e nascia nas pupilas pretas. As de Ramon, naquela ocasião, luziam de orgulho, poder e desafio. E o mesmo notava Kate nos olhares rápidos de Cipriano. A força do mundo esmorecia nos homens loiros, a sua supremacia abandonava-os para renascer nos de cor escura.
Joachim, o ser inquieto, inteligente e sensível, que era capaz de penetrar na alma de Kate e contemplá-la com os seus olhos azuis, morrera à vista da mulher. Se ela pudesse excitar-lhe o sangue, como Teresa fazia a Ramon, nunca ele teria morrido. Mas seria impossível. Cada um é como é. E cada raça, também. Teresa bateu timidamente à porta do quarto.
- Posso entrar?
- Entre! - respondeu Kate, endireitando-se e deixando as rimas de volumes em volta da mala dos livros.
O aposento era amplo e através das janelas rasgadas via-se o pátio e o jardim soalheiro, mangueiras de troncos lisos como trombas de elefantes, ervas reverdecidas pela chuva e galinhas a esgaravatar a terra debaixo das folhas esgarçadas das bananeiras. Um pássaro vermelho chafurdava no tanque, abrindo e fechando as asas escuras sobre o corpinho escarlate.
Teresa, porém, olhava para o quarto, não para fora. Sentiu o cheiro de cigarros, cujas pontas enchiam um cinzeiro de ágata. Notou os livros em desordem, as jóias espalhadas, a tapeçaria persa pendente atrás da cama, a colcha magnífica, os vestidos de seda e de veludo colocados sobre uma arca, os xailes de longas franjas cuidadosamente dobrados, os sapatos espalhados no chão, brancos, cinzentos, amarelos, castanhos e pretos, e os belos castiçais chineses.
Teresa parecia fascinada por tudo aquilo.
- Que linda! - disse, tocando na colcha sumptuosa.
- Foi uma amiga que a fez e ma ofereceu, em Inglaterra. Teresa observava tudo com espanto, em especial as jóias dispersas no toucador.
- Não gosta dessas pedras encarnadas? - perguntou Kate, ajoelhando de novo para arrumar os livros e olhando o pescoço moreno pendido sobre as jóias. Que ombros frágeis e que pele acetinada, naquele vestidinho branco! E aquela cabeleira negra, segura por travessas de tartaruga! No conjunto, uma rapariguinha humilde e insignificante. Mas Kate bem sabia que Teresa não era insignificante nem humilde. Naquele corpo franzino havia um estranho poder que despertava o ardor num homem e o exultava e, de certa maneira, o guardava só para si. O eterno apelo da carne...
Na mesinha de costura estava um pedaço de musselina que Kate comprara na índia e não sabia em que aproveitar. A cor, espécie de amarelo-pêssego, não se harmonizava com o seu tom de pele. Teresa apalpou o tecido entremeado de fios de ouro.
- É organdi?
inquiriu.
- Não, é musselina feita à mão. Ofereço-lha. A cor vai-me mal, e a si deve-lhe ir lindamente.
Ergueu-se e dispôs o tecido de roda do pescoço bronzeado de Teresa. No espelho, esta viu-se envolta na bela musselina e os olhos brilharam-lhe de prazer.
- Ah, não! Não posso aceitar!
- Porquê? Não condiz bem comigo. Faz agora um ano que a tenho aí. Até pensei em cortá-la para fazer cortinas. Fique com ela.
Kate talvez fosse arrogante, e até cruel, na sua maneira de oferecer.
- Não quero privá-la...
- Aceite, peço-lhe.
Ramon apareceu no limiar e relanceou o quarto e as duas mulheres.
- Olha! - disse Teresa, embaraçada. - A señora quer dar-me esta musselina indiana. - Voltara-se timidamente para ele, com o tecido desdobrado em roda do pescoço.
- Fica-te muito bem - declarou Ramon, contemplando-a.
- A señora não devia oferecer-me...
- Se to dá é porque faz gosto nisso.
- Então - concluiu Teresa, virando-se para Kate - muito e muito obrigada.
- Não tem de quê!
- Ramon acha que me vai bem...
- Na verdade, vai-lhe a matar - declarou Kate, dirigindo-se agora a Ramon. - O tecido foi feito na índia para alguém com aquela cor trigueira. Há-de condizer admiravelmente com ela.
- É muito bonito - concordou Ramon.
com o olhar, percorria o quarto, examinava os diferentes objectos que ali estavam, vindos de todas as partes do mundo, e até as pontas de cigarro na taça de ágata: luxo, desordem, e algo de esterilidade da mulher emancipada.
Kate não sabia em que é que ele pensava. Mas, por seu turno, reflectia: "Ora aí está o homem que eu defendi naquele terraço, que eu vi com um buraco nas costas, nu e inconsciente. Nesse momento não se parecia com um sultão."
Teresa devia ter-lhe adivinhado os pensamentos, porque disse,
olhando para Ramon:
- Sem a señora, Ramon teria morrido. Nunca me esquecerei...
- Não falemos nisso - atalhou Kate. - O destino tece-as.
Eu não alterei nada.
- Foi o próprio destino, señora!
- Não quer vir passar uma temporada connosco em Jamiltepec? - perguntou Ramon. - Agora já tenho uma dona de casa.
- Sim, vá! - insistiu Teresa.
- Ela precisa de uma amiga - explicou o marido.
- Preciso, é verdade. Nunca tive nenhuma a valer desde que deixei o colégio, ainda pequena...
Kate duvidava que pudesse ser para Teresa uma amiga a valer. E cogitava no que pretenderiam, de facto, aqueles dois - e o que pensariam dela.
- Pois sim, terei muito gosto em passar uns dias...
- Óptimo! - exclamou Teresa. - Quando deverá ser? Combinaram o dia.
- E escreveremos a canção de Malintzi - disse Ramon.
- Não faça semelhante coisa - acudiu Kate vivamente.
Ele olhou-a com ar pasmado, como se não percebesse logo, um ar que lhe era habitual. Por instantes, Kate poderia supor ter-lhe dado a impressão que um fantasma produziria se aparecesse a uma criança.
Em Jamiltepec, as duas mulheres entretiveram-se a talhar vestidos para Teresa na peça de musselina cor de ananás. Para senhora casada, o guarda-roupa de Teresa era bastante modesto: só possuía trajes pretos, que lhe davam um ar infeliz, e alguns brancos já antiquados. Até aí só vivera para o pai (que tinha bons livros acerca do México e toda a vida escrevera sobre a história do estado de Jalisco) e para dirigir a sua hacienda. Esta, chamada de Las Jemas, era a única que não fora destruída durante as revoltas que se seguiram à fuga de Porfirio Diaz; Teresa orgulhava-se bastante deste facto.
O seu carácter assemelhava-se muito ao de uma freira, talvez por se tratar de uma pessoa profundamente apaixonada e as paixões profundas serem mais para se esconder do que para exteriorizar nos contactos quotidianos.
Kate, provando-lhe o vestido sobre os ombros morenos, tornou a admirar a estranha macieza daquela pele escura e o pesado volume dos cabelos negros. A família dos Romeros, a que Tereza pertencia, estabelecera-se no México logo nos primeiros tempos da conquista.
Que lhe fizesse mangas compridas, sugeriu. E acrescentou, ocultando um pouco envergonhada a magreza daqueles membros trigueiros:
- Tenho os braços tão delgados! Não são bonitos como os
seus.
Kate, mulher de quarenta anos, tinha-os fortes e alvos e toda ela
era bem constituída.
- Sim - repetiu Teresa -, compridas até aos punhos.
A outra assim fez, achando que, na realidade, era o que mais convinha àquela natureza.
- Aqui os homens - explicou a dona da casa - não gostam
de mulheres magras.
- Não importa o que os homens pensam - sentenciou Kate. - Julga que Don Ramon gostaria que fosse gorda como uma
galinha?
Teresa fitou-a com os seus olhos pretos, grandes e brilhantes -
tão vivazes e, de certa maneira, fugidios.
- Quem sabe! - exclamou. E, no seu sorriso rápido, malicioso, via-se que não desgostaria de ser, às vezes, como uma galinha
gorda.
Presentemente Kate conhecia mais do que nunca a vida interior duma hacienda. Quando estava em casa, Ramon consultava diariamente o feitor; Teresa, porém, aliviava-lhe esse trabalho e já se ocupava bastante da propriedade. Em geral, ele andava por fora, ou para ir à Cidade do México, ou a Guadalajara e mesmo a Sonora. Todos o conheciam no país e o seu nome tornara-se célebre. Mas, debaixo desse culto que os compatriotas lhe prestavam, Kate adivinhava uma animosidade latente. Talvez preferissem aniquilar os seus heróis a elevá-los temporariamente às culminâncias da glória. O momento que mais apreciavam era o da queda do ídolo.
Para Kate, sempre céptica, deviam eles andar afiando o gume com que o atingiriam no peito, quando o herói se tornasse demasiadamente incómodo. É claro que precisavam da anuência de Cipriano, e Cipriano era um diabinho que os mexicanos temiam deveras. Cipriano, por então, conservava-se fiel - para com Ramon e para consigo mesmo. Representava o papel de Huitzilopochtli e Ramon o de Quetzalcoatl. Eis uma verdade simples e evidente para o general, que mantinha o seu exército pronto para o que desse e viesse. O próprio presidente seria incapaz de prescindir de Viedma, apesar de ser também um homem destemido.
- Qualquer dia - declarava Cipriano - poremos Quetzalcoatl na Catedral de Puebla, e Huitzilopochtli na da capital, e Malintzi na de Guadalupe. Não falta muito, Ramon.
- Faremos com que esse dia chegue - respondia Ramon.
Mas Ramon e Montes sofriam ambos com a profunda e diabólica animosidade do país, manifestada no próprio silêncio da população. Era sempre assim, fossem quais fossem as mãos em que o poder caísse: os Mexicanos pareciam destilar ódio oculto, um ódio demoníaco que lhes aviltava a alma; um ódio cujo único fim consistia em frustrar todos os planos.
Aí estava o dragão do México, que Ramon teria de combater. Contra o mesmo inimigo devia lutar o presidente Montes, e isso arruinava-lhe a saúde. Igualmente Cipriano, mas este desenvencilhava-se melhor. Os soldados apoiavam-no, com tambores e danças de roda das fogueiras. E o general consolidava de dia para dia a sua posição.
Ramon, na sua província, também se sentia seguro. Era o chefe, e, com o seu esforço e energia, lograva dominar qualquer veleidade de revolta. Aterrorizava com o mistério da vida, continha a gente em respeito pela fascinação que exercia. Nos seus domínios, considerava-se forte. Mas fora daí, e em especial na Cidade do México, aquela invisível e subtil má vontade do povo dir-se-ia fazê-lo sangrar, sangrar imensamente. E também a voracidade dos estrangeiros, aves de rapina que rondavam a capital cosmopolita.
Durante a ausência de Ramon, Kate fez companhia a Teresa. As duas mulheres tinham isto de comum: achavam que era melhor apoiar um homem corajoso do que fazer papel de intrometidas e importunas. Isso as unia. A profunda convicção de que deviam ser fiéis aos respectivos maridos ligava intimamente a mulher de Cipriano à de Ramon.
Estava quase no fim a estação das chuvas, embora se pudessem prever aguaceiros ocasionais para Setembro ou mesmo Outubro. Entretanto o belo Outono mexicano surgira na terra, como uma espécie de Primavera ao inverso. Vastos espaços se cobriam de flores brancas e cor-de-rosa, estranhos arbustos silvestres floresciam também, duma maneira fantástica, brilhavam à luz florestas inteiras de girassóis; o céu estava de um azul puríssimo, e, nas terras encharcadas da última chuva, a claridade do dia reverberava intensa.
O lago enchera-se mais, povoando de plantas aquáticas todas as suas margens. Vinham aves imigradas do Norte, nuvens de patos bravos que pareciam poeira no ar e depois polvilhavam a água como raminhos de erva: colimbos, grous, gaivotas brancas dos mares interiores, tal se o mistério dos regimes setentrionais se deslocasse para o Sul. Errava em terra o cheiro de água, que produzia uma sensação calmante - tanto mais que Kate supunha ter origem na aridez do solo parte do horror que lhe causava o povo mexicano. Se houvesse sempre uma gota de água na atmosfera e uma neblina sobre as árvores, desapareceria dos corações humanos aquela maldade inexprimível.
Kate ia muitas vezes a cavalo, com Teresa, ver os campos. A cana-de-açúcar, nos vales, crescia muito verde e muito alta, e os peóns começavam a cortá-la com os seus nwchetes, que pareciam espadas, e enchiam os carros de bois que as transportavam à fábrica de Sayula. Nas vertentes áridas das colinas, avultava na sua rigidez férrea a espinhosa planta da teqnila, que é uma espécie de agave. E nos cactos rijos abriam flores maravilhosas, belas de mais para tão sinistra planta. Através dos campos viam-se molhos de vagens apanhadas dos feijoeiros e abóboras dum tamanho incrível. Entre as folhas emurchecidas pendiam tomates e pimentões. Ainda se erguiam pés de milho com espigas tenras. Como a banana era pouca, as crianças colhiam toda a fruta que encontravam para fazer doce. Teresa, para esse efeito, aproveitava até os últimos figos e pêssegos. Das mangueiras suspendiam-se frutos amarelos e maduros, mas na maior parte eles estavam verdes e tombavam pesados como testículos de toiro.
Era Outono no México, com patos bravos na água, e caçadores com espingardas, e rolas nas árvores. Outono do México, início da estação seca: céu mais alto, azul mais pálido, poentes de rara transparência doirada. Os bagos de café avermelhavam-se nos arbustos contorcidos debaixo das árvores maiores, e as buganvílias, de tons roxos, eram tãoespessas que se podiam mergulhar nelas os braços.
Teresa cuidava de tudo e Kate ajudava-a. Se estava um peón doente numa das cabanas, se era preciso separar os enxames de abelhas nas colmeias debaixo das mangueiras, fazer compotas, tratar do jardim, dos vitelos, do fabrico de manteiga ou de queijos, Teresa a tudo isso atendia acompanhada de Kate. E esta admirava-se da vontade firme e constante, que tinha de ser exercida a todo o momento. Tudo corria bem graças a um poderoso esforço de vontade. À mínima fraqueza do patrão as coisas desandariam e seria a ruína da propriedade.
Jamais um desfalecimento, sempre a vontade tenaz.
Ramon regressou, numa tarde de Novembro, de longa viagem a Sonora. Viera por terra desde Lepic, e, por duas vezes, encontrara-se retido pelas inundações; não era vulgar chuvas tão tardias. Mostrava-se fatigado e com ar ausente. Kate sentiu um baque no coração enquanto comentava para si mesma: " Tão longínquo, que até parece encaminhar-se para a morte."
As nuvens cobriam o céu novamente, relampejava no horizonte, mas tudo estava silencioso. Kate retirou-se cedo e foi até à extremidade do terraço sobranceiro ao lago. Só a claridade intermitente dos relâmpagos iluminava a noite escura e, num desses breves clarões, viu Teresa sentada junto do muro do terraço descoberto; tinha a cabeça de Ramon deitada no regaço e acariciava-lhe lentamente os bastos cabelos pretos.
Kate sobressaltou-se, e disse num murmúrio:
- Desculpem! Não sabia que se encontravam aqui.
- Quis estar cá fora, ao ar livre! - explicou Ramon, soerguendo-se a custo.
- Não se mexa! - pediu Kate. - Foi estupidez minha ter vindo aqui. O senhor está cansado.
- Sinto-me realmente cansado - volveu ele, deitando-se outra vez no chão. - Aquela gente chega a convencer-me de que estou esgotado. Por isso voltei para Teresa.
- Sim - retorquiu Kate. - Não se é impunemente o Quetzalcoatl vivo. É natural que o esgotem. Mas valerá a pena ser devorado por eles?
- Tem de ser assim. Há-de-se verificar a mudança e é um homem que a deve fazer. Às vezes chego a desejar que não seja eu.
- Também acho. E Teresa igualmente. Até penso se não será preferível continuar a ser apenas um ser humano.
Teresa, entretanto, calava-se.
- Faz-se o que é preciso fazer - disse Ramon. - No fim de contas, não se deixa de ser homem. E, se daí resultar ferimento... à la guerre comme à la guerre!
Aquela voz, no escuro, parecia a de um fantasma.
- Ah! - fez Kate, suspirando. - Gostava de saber o que é um homem que se expõe a tantos horrores por causa dos seus semelhantes.
Houve um momento de silêncio.
- O homem é uma coluna de sangue dotada de voz. Quando a voz se extingue e fica apenas a coluna, tanto melhor.
Retirou-se ela para o seu quarto. Ia triste, levando ainda nos ouvidos o som daquelas palavras melancólicas. Dir-se-ia que Ramon tinha dentro de si uma ferida aberta. Era como se Kate a sentisse, nas suas próprias entranhas.
Se ele morresse, em resultado de tanto esforço? Então, pensou, Cipriano ficaria só e tudo estaria acabado.
Por que razão devia um homem afadigar-se de tal maneira por causa dum povo estúpido e mau? Se o mundo corria à desfilada para a sua perdição, deixá-lo, isso era lá com ele.
Pensou em Teresa, que consolava Ramon sem dizer nada. E pensou em Ramon, assim ferido e desesperado! Coisas horríveis, na verdade. Ela devia intervir, defendê-lo contra si próprio. Porque haviam os homens de empreender esses combates inúteis, dos quais voltavam para casa a fim de se restabelecerem junto das suas companheiras?
Para Kate, essa luta não merecia sequer as honras de um ferimento. Que tão antipático mundo terminasse de vez, se tal era o seu destino, e quanto mais depressa melhor! Kate não levantaria um dedo para o impedir. Que cada qual vivesse a sua preciosa vida, que é só uma - e fosse tudo mais para o diabo!
Tentaria impedir que Ramon continuasse naquela senda suicida. Deixá-lo ser o Quetzalcoatl vivo quantas vezes quisesse; mas não tinha o direito de se expor à maldade demoníaca do povo.
Contudo, ele insistia nisso, como Joachim fizera na Irlanda. Teresa, com a sua firmeza doce e calma, talvez lhe fosse de melhor auxílio do que Kate com as suas recriminações.
"Ah! Ainda bem que Cipriano é militar. As feridas que sofrer não lhe atingirão a alma." Mas sabia que, sem Ramon, Cipriano não seria ninguém e nem chegaria a interessar-lhe.
De manhã, Teresa compareceu sozinha ao primeiro almoço. Parecia muito tranquila; dissimulava os sentimentos sob o seu ar orgulhoso de mulher morena.
- Como vai Ramon?
- Está a dormir.
- Ainda bem. Pareceu-me muito em baixo ontem à noite.
- Sim... - Teresa fitou a outra com os seus grandes olhos negros cheios de coragem e de lágrimas contidas.
- Não compreendo que um homem se sacrifique àquele ponto. É inadmissível.
Teresa continuava a fitá-la.
- Ele não se sacrifica - replicou. - Sente que tem de proceder assim. E o meu dever é ajudá-lo.
-? Nesse caso, sacrifica-se por ele, o que também é para mim inadmissível.
- Ah, não! - retorquiu Teresa, com uma onda de sangue a ruborizar-lhe as faces. - Não me sacrifico por Ramon. Se posso dar-lhe... sono... quando dele necessita, isso não representa sacrifício. Representa... - Não terminou a frase, e o rubor acentuou-se-lhe.
- Representa amor, bem sei - volveu Kate. - Mas também a esgota.
- Não é só amor! - exclamou Teresa altivamente. - Eu podia amar outros homens, há muitos que merecem afecto. Mas Ramon... A minha alma pertence-lhe. - Afloraram-lhe lágrimas aos olhos. - Prefiro não falar deste assunto - acrescentou, pondo-se de pé.
E saiu do quarto, deixando Kate um tanto perturbada - e com desejo de voltar para Sayula.
Mas uma hora depois Teresa reapareceu e, apoiando no braço de Kate a mãozinha fresca e macia, disse-lhe em tom suave:
- Desculpe se fui indelicada.
- Eu é que não tenho razão...
- Sim, julga que em tudo isto só existe amor. O amor é uma parte mínima do resto.
- E que é o resto?
- Como posso dizer-lhe, se desconhece? Mas pensa que Ramon não é para mim mais do que um amante?
- Um marido! - emendou Kate. Teresa sacudiu a cabeça com impaciência.
- Ah, esses termos, que tão pouco significam! Não é apenas um marido! É a minha vida!
- Acho preferível cada qual viver a sua vida.
- Não. A vida é como uma semente. De nada serve se não a dermos. Sei que é assim; guardei durante anos a minha vida para mim só. Quando se a guarda muito tempo, ela morre. Quis oferecê-la a Deus, mas não consegui. Disseram-me que se eu casasse com Ramon e tomasse parte na heresia de Quetzalcoatl ficaria condenada aos tormentos eternos, mas alguma coisa me segredava que isso não era verdade e que Ramon necessitava da minha alma. Ah, señora!
- Um sorriso iluminou a face pálida de Teresa. - Dei a minha alma a Ramon. Perdi-a por sua causa. Que mais posso dizer?
- E a alma dele?
- Está aqui. - E Teresa espalmou a mão no seio. Kate ficou um momento calada.
- E se ele a atraiçoar? - perguntou então.
- Ah, señora, Ramon não é apenas um amante. É um homem honesto e não trairá o seu próprio sangue. Concedeu-me a sua alma em troca da minha, e eu lutarei até ao último sopro de vida para o apaziguar quando volta para mim esfrangalhado e com necessidade de sossego. - Teresa proferiu tudo isto com veemência, e depois acrescentou num murmúrio, como se falasse a si mesma: - Graças a Deus, não tenho uma vida só minha. Dei-a a um homem que é mais que homem, como se diz na linguagem de Quetzalcoatl. Por isso ela não morrerá em mim como um pássaro na gaiola... Oh, señora! Quando ele parte para Sinaloa e para a costa ocidental, a minha alma acompanha-o. E Ramon não se esquece que a minha está com ele, tenho a certeza! Não, señora, não deve criticar-me nem
lastimar-me.
- No entanto, acho melhor cada qual guardar a sua alma e ser
responsável por ela.
- Sim, se fosse possível! - replicou Teresa. - Mas não se pode guardar a alma dentro de nós porque acaba por morrer... Enquanto o homem não nos dá a sua semente, a nossa é estéril, e a dele nada vale sem a mulher. O mesmo acontece à alma. Enquanto a não damos a um homem e ele a não toma, nenhum valor tem. E depois de ele a tomar, toda inteira, ninguém fala de traição! Um homem só atraiçoa quando se lhe deu uma parte e não tudo, e a mulher só atraiçoa quando aceita dela apenas uma parte e não o todo. Mas quando de um lado se deu tudo e tudo se aceitou, a traição não existe. Sou o que sou para Ramon e ele é o que é para mim. Não importa o que fizer. Não importa que esteja longe.
Kate não gostava de receber lições daquela criaturinha; era mulher da sociedade, bela e com experiência da vida. Estava acostumada a que lhe rendessem preito. As demais do seu sexo chegavam a temê-la, porque era decidida e impiedosa.
Teresa também a receava um pouco como senhora da sociedade, mas não como mulher. Entrincheirada na sua almazinha orgulhosa, Teresa considerava Kate uma dessas pessoas do mundo exterior que têm muito brilho mas que não estão muito seguras dos segredos da sua personalidade. Toda a beleza e crueldade feminina de Kate era coisa secundária para Teresa em comparação com o profundo e tranquilo amor que a ligava a Ramon.
Sim, Kate habituara-se a olhar as outras mulheres como seres inferiores. No entanto, os papéis inverteram-se de súbito. Embora soubesse que Ramon era superior a Cipriano, viu-se constrangida a pensar se Teresa não seria também superior a ela.
Teresa? Mais importante do que Kate? Que surpresa! Não podia ser verdade.
Contudo, assim era. Ramon desejara casar com Teresa e não com Kate. E o ardor desse enlace ela via-o tanto nos olhos de Ramon como nos da mulher: um ardor que não existia nos olhos de Kate.
O casamento desta com Cipriano não parecia sério nem definitivo. Quando Cipriano estava ausente, ela recuperava a sua antiga individualidade. Só com o general presente é que se compenetrava da sua submissão.
Quando Teresa voltou a fitá-la com aquele seu fulgor do olhar, misturado de indignação, Kate sentiu-se desanimada e arrependida - decerto pela primeira vez na sua existência.
Sabia que Teresa sentia certa aversão por ela: era uma estrangeira branca que falava tão inteligentemente como um homem e nunca dera a sua alma; nem admitia que a pudesse dar. Todas essas damas bem vestidas, da América ou da Europa, guardavam a alma para si mesmas, numa espécie de avareza.
Teresa estava resolvida a não deixar que a outra a tratasse indefinidamente como um ser inferior. Assim procediam todas as estrangeiras para com as mexicanas, porque se consideravam emancipadas. E, para com Ramon, mostravam certa condescendência.
Mas Ramon... Bastava que ele as fixasse para que elas se sentissem reduzidas a nada, apesar de todo o seu dinheiro, experiência e ares dominadores. Raças dominadoras! Que esperassem! Ramon era um desafio a tudo isso. Que o dominassem, se fossem capazes de tanto!
- Não dormiu? - perguntou Teresa a Kate.
- Não muito bem.
- Está com olheiras.
Kate alisou a pele, desconfiada, em volta dos olhos.
- É o que nos faz o México. Não é fácil conservar a juventude neste país. A senhora é que está com bom parecer.
- Sinto-me perfeitamente.
Irradiava de Teresa uma frescura nova, algo de frágil e subtil que ela não precisava de defender contra outra mulher.
- Agora que Ramon já veio, é altura de eu regressar a casa -
declarou Kate.
- Porquê? Faz empenho nisso?
- Acho preferível.
- Nesse caso irei consigo até Sayula. De barco, não é verdade?
Kate arrumou as suas coisas. Dormira mal. A noite fora tenebrosa, cheia de horrores. Lembrara-se de Ramon atacado pelos bandidos e do seu ferimento nas costas. Tivera-a acordada durante horas o barulho ameaçador da chuva.
Percebia o desdém de Teresa pela sua maneira de considerar a
vida conjugal.
- Também eu fui casada - disse Kate. - com um homem
excepcional, a quem amei.
- Ah, sim... E ele morreu.
- Quis morrer.
- Ah, sim... quis morrer.
- Fiz o possível para evitar que se estafasse.
- Fez?
- Que mais estava na minha mão? - redarguiu Kate, num
assomo de ira.
- Se lhe houvesse dado a sua vida, ele não quereria morrer.
- Eu dei-lhe a minha vida. Amava-o. Ah, nem faz ideia! Mas ele não quis a minha alma. Achava que eu devia guardá-la para
mim.
- Os homens são assim quando são apenas homens. Mas,
sendo ardentes e bravos, então querem que as mulheres lhes dêem a alma e guardam-na dentro de si. Sei o que é. Sei onde a minha alma está. Nas entranhas de Ramon, assim como a sua semente está nas minhas entranhas, entranhas de mulher. Ele é um homem e uma coluna de sangue; eu sou uma mulher e um vale de sangue. Digo-lhe isto porque lhe salvou a vida e portanto estamos todos ligados: Caterina, eu, Ramon e Cipriano. Mas não me julgue mal. Aquela outra espécie de mulheres, as que conservam a sua alma, que é senão fraqueza?
- E os homens?
- Se são ardentes e bravos, confortam as nossas entranhas, Caterina!
Kate baixou a cabeça obstinada, furiosa por ter sido apeada do seu pedestal. Que coisa miserável, pensou, isso de uma mulher viver apenas por amor de um homem! Só para lhe enviar a alma para dentro do seu precioso corpo... E trazer no ventre a sua semente preciosa... Quanto a ela própria, nada.
Pretendeu consumar a sua indignação, mas não foi bem sucedida. Talvez no fundo, e contra sua vontade, invejasse Teresa, os seus olhos negros cintilantes, a sua firmeza selvática. Invejava-lhe os dedos delicados, e, acima de tudo, a consolação de ter um homem tão profundamente ligado a si.
A manhã estava quente depois da chuva. As rãs coaxavam, frenéticas. Na outra banda do lago as montanhas pareciam azuis-escuras, com farrapos de nevoeiro a arrastarem-se através das árvores e nuvens brancas a coroarem os picos. Nas águas barrentas navegava um barco de vela solitário.
- Hoje, tudo isto me lembra a Europa, o Tirol - disse Kate, comovida.
- Gosta muito da Europa? - perguntou Teresa.
- Muito.
- E tenciona voltar para lá?
- Penso regressar em breve, para ver minha mãe e os meus filhos.
- Eles reclamam-na?
- Sim, respondeu Kate, um pouco hesitante. E em seguida ajuntou: - Não muito. Mas quero tornar a vê-los.
- Porquê? Tem saudades deles?
- às vezes. - E os olhos de Kate arrasaram-se de água. O barco avançava sem rumor.
- E Cipriano? - volveu Teresa, a medo.
- Ah!, exclamou Kate. -Esse é para mim como um estranho.
Teresa ficou uns momentos calada.
- O homem é sempre estranho para a mulher, creio eu - rematou ela. - E porque não havia de ser?
- Mas a senhora não tem filhos.
- Tem-nos Ramon, E ele costuma dizer: "Continuarei a lançar pão à água e se meus filhos acabarem por se aproximar de mim ficarei contente." Não é. o seu caso?
- Não! - respondeu Kate. - Sou mulher, não sou homem.
- Se eu tiver filhos - declarou Teresa - também lançarei pão à água para os atrair, e espero não os reter ciosamente na minha rede. Assusta-me o amor, é tão pessoal! Devemos deixar os pássaros voarem com as suas asas e os peixes nadarem à vontade. a manhã concede-nos mais do que o amor. E eu quero ser sincera para com a manhã.

XXVI
Kate estava satisfeita por voltar à sua casa e por se encontrar sozinha. Sentia que se operava nela uma grande mudança - mudança que a poderia matar se se realizasse violentamente. Era o fim de qualquer coisa e o princípio de outra: no mais profundo da sua alma e nas suas entranhas. Os homens, Ramon e Cipriano, e o México, seriam a causa daquela modificação. Chegara o momento. Entretanto, se a evolução fosse brusca de mais, e rápida em excesso, poderia revelar-se fatal. Por isso tinha necessidade de se isolar, de tempos a tempos.
Sentava-se na margem durante horas, à sombra dum salgueiro verde, cuja cortina de folhas descia até à água. O lago mostrava-se mais alto e mais cheio que de costume, e tinha também maior calma e maior mistério. Errava o cheiro dos nenúfares que emurcheciam depois de haverem dado à costa. As distâncias pareciam prolongadas. Lembravam estampas japonesas os outeiros mais próximos, salpicados de verdura. Carros de grandes rodas traziam à aldeia a cana-de-açúcar cortada; puxavam-nos a cada um, oito bois que baloiçavam lentamente a cabeça de enormes chifres, enquanto um peón, à frente, os conduzia com o aguilhão poisado no jugo. Tão pesados, tão vagarosos e contudo fáceis de guiar!
Experimentava, no México, uma sensação esquisita, como se estivesse em presença duma humanidade pré-histórica, gente de olhos escuros de antes do período glaciário - quando o mundo era mais frio, os mares vazios e diferente a constituição da terra; quando as águas, solidificadas, se acumulavam nos pólos, e as planícies ocupavam os oceanos, como a Atlântida e os antigos continentes da Polinésia; quando os mares não passavam de lagos, embora grandes, e os povos de olhos pretos podiam dar a pé a volta ao mundo. Nesse tempo existia uma raça misteriosa de sangue ardente e ligeira no andar: raça que possuía uma civilização que lhe era própria. Depois fundiram-se os glaciares, os homens refugiaram-se nos pontos elevados, como os planaltos do México, e separaram-se em nações diferentes.
Na América é tão forte a sombra do mundo antediluviano que às vezes Kate perdia a noção dos tempos decorridos e começava a aproximar-se do antigo modo de ser, da vontade velha e torva, do desprezo da morte, da subtil e escura consciência, do instinto que precedeu a razão. Regressava à época em que o espírito e o poder dos homens residiam no sangue e na espinha dorsal, e as relações entre eles e com os animais se produziam através da medula.
Os Mexicanos ainda se encontravam nesse estádio. O que é aborígene na América pertence à fase de antes do Dilúvio, antes de reinar na terra a vida espiritual. Por isso, ali, a actividade cerebral dos brancos se alastra como uma erva em terreno virgem - para, é claro, murchar depressa e desaparecer por completo. Então, como resultado disso, surge um novo gérmen, uma nova concepção da humanidade: vem da fusão da antiga consciência instintiva e do racionalismo intelectual do branco. Um ser diferente, nascido do encontro daqueles dois.
Kate era muito irlandesa, e no fundo da sua alma jazia o misticismo original, quase desaparecido, dessa primitiva raça celta ou ibérica. É como um resíduo que existe ainda no mundo antediluviano e que não pode ser inteiramente destruído.
Sabia ela, mais ou menos, que era essa fusão o que Ramon pretendia realizar. Compreendia também o motivo pelo qual Cipriano tomava a seus olhos uma importância maior que todo o seu passado, os seus dois maridos, e os filhos. Esse velho sangue másculo despertava-lhe agora nas veias; daí vinham as palpitações que ela ultimamente sentia.
A Irlanda não podia nem queria esquecer aquele ardor sombrio e primitivo. Os Thuathas de Danaan, embora submersos, continuam vivos no sangue, não se lhes consegue impor silêncio. E a Europa científica e meticulosa tinha de se defrontar de novo com os velhos
gigantes.
Esta alteração, todavia - e Kate bem o notava -, não era coisa que se efectuasse com brusquidão; de outro modo haveria rotura e possibilidade de morte. O primitivismo tem os seus horrores. O espírito original do México, pesado, terre à terre, podia ser-lhe tão odioso que a tornasse perversa. Essa obtusa, indomável persistência, desprovida de energia e de esperança, que é peculiar ao aborígene americano, levava-a às vezes a supor que ia perder a razão. Obstinação tenaz que resistia aos séculos e desprezava a personalidade! Lascívia da morte, feroz, incalculável, terrível!
Esse povo, realmente, nunca mudava. Os homens não tinham fé na vida, em nenhuma realidade evidente. Eram apenas fiéis a certas forças obscuras do passado. O presente submergia-se na alma dos homens e das mulheres sob uma camada de lava negra, não deixando à superfície senão a indiferença.
A Esperança! A Esperança! Seria possível, um dia, fazê-la reviver nessas almas obscuras e obter o enlace das suas raças, único passo para o novo mundo do homem?
Entretanto, Kate sentia-se invadida por um mal-estar esquisito. Achava ser necessário partir, a fim de escapar a tamanha depressão. Já não podia ouvir a rastejante insistência dos criados: o sangue é só um, nós somos do mesmo sangue - sentença de tribo pior do que a morte para um indivíduo de raça branca. Estranha teimosia aquela que preconizava a todos a fusão do sangue!
Kate pertencia a uma família antiga, com pergaminhos. Fora educada nas ideias anglo-germânicas da superioridade intrínseca da aristocracia hereditária. O seu sangue era diferente do da gente vulgar: outro fluido, mais refinado.
No México, porém, nada disso conta. Juana, o homem que ia buscar água, o barqueiro que remava no lago, todos revelavam o mesmo pensamento no olhar: "O sangue é só um; pelo sangue tu e eu somos iguais." Kate lia isto nos olhos deles, adivinhava-o nas suas palavras, quer fossem deferentes ou escarninhas, e, por vezes, sentia-se revoltada com essa imposição da igualdade de sangue.
E quando se empertigava como para proclamar "O meu sangue é só meu. Noli me tangere", percebia nas pupilas negras daquelas criaturas o terrível ódio ancestral que as impele a cometer as maiores atrocidades.
Contudo, inclinavam-se perante a sua inteligência, sabedoria e compreenção, e, embora contra vontade, testemunhavam-lhe certo respeito. Ela pertencia às raças dominadoras, hábeis e espertas... Mas exigiam-lhe a aceitação da velha crença: O sangue é só um. Somos todos do mesmo sangue.
E tinha de se submeter, senão persistiriam na sua lenta vingança.
Mas não podia submeter-se de repente. Devia ser a pouco e pouco; um esforço violento destruí-la-ia.
Compreendia agora a afirmação de Ramon: "O homem é uma coluna de sangue, a mulher um vale de sangue." Era a unidade primordial
do género humano, oposta à unidade do espírito individual.
Kate, porém, sempre considerara seu o próprio sangue. O espírito é que ela partilhava com os outros.
Percebia agora o motivo por que Ramon e Cipriano usavam fatos brancos e sandálias e andavam meio nus como deuses vivos. Era a aceitação da antiga crença, o renascimento do laço de sangue que unia os homens, laço que tornava o sacrifício humano tão poderoso
factor da vida.
O sangue do indivíduo é rendido ao ser supremo, ao ser de sangue, deus, nação ou tribo.
E, na verdade, que estranha união existia entre Ramon e os seus homens, entre Cipriano e os seus soldados! Era a comunhão do sangue. Isto podia indignar Kate, enjoá-la por vezes, mas era uma força que não conseguia vencer.
Mesmo admitindo essa comunhão de sangue, Ramon reivindicava uma supremacia, até uma divindade. Era um homem como o mais humilde dos seus peóns, nascido da mesma fonte, das mesmas raízes que eles; no entanto, mostrava ser superior aos outros. E a sua superioridade não provinha do sangue ou do espírito mas duma misteriosa estrela interior que nascia do oceano sombrio e cintilava entre o mar e o céu imenso. A estrela que une o vasto sangue universal ao sopro universal do espírito e brilha entre ambos.
Porque essa coisa que reina sobre o poder humano e que é em si mesma um poder, essa coisa é a estrela misteriosa do cosmos primitivo, é a divindade no homem.
Certos homens nada possuem de divino. Possuem apenas faculdades. São ou deveriam ser escravos. Muitas vezes um homem tem a centelha divina, mas é sufocada pela força ou pela vida material.
E quando o espírito e o sangue se separam e divergem, provocando a morte maior, então apagam-se quase todas as estrelas.
Só o homem que possui uma estrela magna, uma grande divindade, será capaz de reaproximar essas forças contrárias e criar uma nova união.
Esse homem era Ramon e o seu esforço o máximo que se podia fazer: aproximar e unir as forças contrárias. Eis o poder divino de um homem. Por ele, no homem, se distingue o deus. Por ele apenas
e por mais nada.
Embora fosse como o mais ínfimo dos seus peóns, com o mesmo coração que bate, os mesmos rins insondáveis, e os lábios fechados sobre o mesmo segredo da humanidade; e fosse humano como Kate era humana, com a mesma ansiedade de espírito e a sede do puro conhecimento e da comunhão; no entanto só ele tinha o poder astral de unir os dois grandes impulsos da humanidade, e de os fundir - de ser a ave de asas imensas que paira entre as duas potências opostas: a Estrela da Manhã, que está entre o sopro da aurora e as profundezas da noite.
Os homens haviam tentado assassiná-lo com punhaladas. Carlota quisera matá-lo com o seu espírito. Cada parte, separadamente, pretendera liquidá-lo. Ele, contudo, estava fora do alcance de qualquer delas. Era o Quetzalcoatl vivo, a cintilação de uma estrela que nascia na alma dos seus compatriotas. Chama dum astro a meio das duas asas do poder: eis só o que representa a divindade num homem e em toda a humanidade.
Kate recebeu um recado de Cipriano: mandava-lhe dizer que vinha instalar-se na Vivenda Aragon. Esta casa era a principal da região do lago; tinha um jardim em toda a volta, não muito grande mas bonito, com palmeiras e sebes de jasmineiros, tudo muito verde em resultado de regas constantes. A própria construção lembrava um castelo em ponto pequeno, talvez despropositado; mas eram agradáveis as varandas espaçosas que davam para a encosta e a vegetação do jardim, mesmo acima do lago.
Cipriano chegou bem disposto. Brilhavam-lhe os olhos com uma expressão de mocidade. Queria casar a valer com Kate, segundo a lei civil mexicana, e morar com ela na Vivenda Aragon. Kate hesitava, achando que tinha necessidade de voltar em breve à Europa, sobretudo à Inglaterra e Irlanda. Era urgente, porque lhe custava já a suportar aquela ameaça do México, a sua influência deprimente. Precisava, pelo menos, de um intervalo de repouso.
Assim o declarou a Cipriano, que ficou desanimado.
- Não importa casar ou não antes de ir - disse ela. - O que tenho é de me afastar daqui o mais depressa possível.
- Quando?
- Em Janeiro.
O rosto dele desanuviou-se.
- Então casemo-nos primeiro. Na semana que vem.
Ela aquiesceu com estranha indiferença, e Cipriano, radiante, correu a fazer os preparativos necessários.
Pouco interessava a Kate o casamento civil. No sentido essencial, já estava casada com Cipriano. Ele era acima de tudo militar, tão depressa vinha para ela como a deixava. Kate, de qualquer maneira, passaria grande parte do tempo sozinha.
Podia convir-lhe como marido, mas o que a assustava era esse México terrível. O movimento quetzalcoatliano espalhara-se de maneira sinistra por todo o país. O arcebispo manifestara-se contra isso, e Ramon, Cipriano e seus aderentes estavam excomungados. Haviam tentado assassinar Montes.
Na capital, os partidários de Quetzalcoatl tinham escolhido para lugar de reunião a Igreja de San Juan Bautista, conhecida pela Igreja do Salvador Negro. O arcebispo ordenara aos seus fiéis que fossem em procissão ao referido templo, agora chamado Casa de Quetzalcoatl, a fim de o retomarem para o culto católico. O governo, porém, sabendo que mais tarde ou mais cedo haveria luta, fez dispersar a procissão e deteve o arcebispo, depois de alguma efusão de sangue.
Rebentou então uma espécie de guerra. Os Cavaleiros de Cortez exibiram a sua famosa reserva de armas, que aliás não era muito impressionante. Em Zócalo produziu-se uma manifestação clerical, dirigida por um padre fanático. Montes mandou atirar sobre os insurretos. Aquilo afigurava-se o começo duma luta religiosa. Pelas ruas viam-se os bandos de Quetzalcoatl, com as suas serapes azuis e brancas, e' os de Huitzilopochtli, de serapes vermelhas e pretas, marchando ao som de tambores e erguendo uns as suas estranhas insígnias redondas, feitas de penas, e outros longas varas rematadas por um penacho rubro de extremidade preta. Nas igrejas, os sacerdotes incitavam os fiéis à guerra santa; os que haviam aderido à causa de Quetzalcoatl discursavam nas ruas à multidão.
Período tumultuoso. Em Zacatecas, o general Narciso Beltran manifestara-se contra Montes e a favor da Igreja, mas Cipriano interviera com tal presteza e violência que deu em resultado o fuzilamento de Beltran e a dispersão das suas tropas.
Então Montes declarou ser igual no México o antigo culto católico e publicou um decreto determinando que a religião nacional da República fosse a de Quetzalcoatl. Encerraram-se todas as igrejas e os padres viram-se obrigados a prestar juramento de fidelidade à República ou a serem condenados ao exílio. Em todas as cidades e aldeias surgiam os soldados de Huitzilopochtli e os homens de serape azul. Ramon trabalhava sem descanso. Cipriano aparecia nos lugares onde menos o esperavam. Conseguiu despertar uma espécie de frenesi religioso nas regiões mais descontentes, como Vera Cruz, Tamaulipas, Jucatão. Efectuaram-se no mar estranhos baptismos e nas costas elevaram-se fortalezas com as cores de Huitzilopochtli.
Todo o país vibrava com uma sensação desconhecida, dominado pela vaga de energia nova, mas em tudo aquilo entrava violência, crueldade e certo horror.
Deportaram o arcebispo. Já não se viam sotainas nas ruas; só as serapes de Quetzalcoatl e as de Huitzilopochtli se evidenciavam entre as multidões. Eis porque Cipriano chegou junto de Kate, com os olhos a luzir, ébrio de triunfo. Kate ficou assustada e sentiu-se vazia e inútil. Nem sequer aquela vitória espantosa e a alteração que se dava na face do mundo a podiam salvar por completo. Pertencia à velha Europa e não lhe era fácil transformar-se tão rapidamente. Contudo, achava que, se voltasse à Irlanda e concedesse uns tempos de repouso à sua vida e ao seu corpo, poderia então regressar ao México e participar nos acontecimentos.
Porque não era só o espírito que se modificava, mas também o corpo e o próprio sangue. Sentia esse terrível catabolismo e metabolismo a transformá-la noutra criatura. Se a metamorfose fosse muito brusca, decerto ela morreria.
Casou-se, pois, legalmente com Cipriano e foi passar um mês com ele na Vivenda Aragon. Em seguida embarcaria sozinha para a Irlanda, projecto a que o marido deu a sua anuência.
Era deveras estranho estar casada com ele. Kate tinha a impressão de se afundar pesadamente abaixo da superfície da vida, para jazer nas suas profundezas.
Estranha, pesada, verdadeira passividade. Pela primeira vez na sua existência, ela sentia-se repousada. Falar e pensar tornavam-se-lhe coisas triviais; as ondas à tona de água não são nada para aqueles que vivem submersos.
Na alma, estava serena e altiva. Ah, se o corpo não sofresse tanto com a transformação! No cosmos encontrara a paz de espírito, o universo abrira-se à sua frente, e ela deixava-se afundar no leito de puro descanso. Adquirira quase tanta segurança como Teresa. Só a atormentava a mudança que se lhe operava no sangue.
Cipriano mostrava-se feliz, à sua maneira de índio. Parecia um adolescente contemplando o mistério da vida com olhos dilatados de espanto. Não se ocupava especialmente de Kate, nem lhe falava de assuntos sérios. Se ela aflorava uma conversa desse género, dirigia-lhe um olhar desconfiado e afastava-se.
Tinha consciência de coisas de que a mulher mal se apercebia, sobretudo do perigo das palavras irritantes. E isto ele evitava.
Kate compreendia agora como os seus antigos amores haviam sido brutais, carregados de desejo e de contactos voluptuosos. com Cipriano, desaparecia a sua vontade ardente feminina, toda ela doçura, submissão; e contudo, tais as fontes térmicas que brotam da terra sem rumor, tão poderosa era na sua força secreta!
Via quase com espanto morrer dentro de si a Afrodite da espuma, essa Afrodite ávida de sensações ardentes. Como se prevenido por vago instinto, Cipriano repudiava essa parte da natureza de Kate. Quando esta se deixava dominar pelo êxtase voluptuoso que acaba em espasmos delirantes, ele afastava-se da mulher. Retirava-se desde que pressentia nela a sede daquelas volúpias a que costumava chamar o seu "prazer". E Kate percebia que lhe era repulsiva nesses momentos. Misterioso e implacável, afastava-se sem uma palavra.
Estendida a seu lado ela compreendia então quanto era superficial aquela efervescência de sensualidade. Parecia vir do exterior, não do seu íntimo. Depois do primeiro instante de decepção, quando esse prazer lhe era negado, concluía que não o desejava realmente, que até lhe repugnava.
E Cipriano, no seu silêncio quente e obscuro, aproximava-se quando ela se assemelhava a uma fonte borbulhando sem rumor das profundezas vulcânicas. Já não se tratava de prazer consciente. O que se passava era estranho, inexprimível, muito diferente das suas relações com Joachim. Nem êxtases, nem espasmos. Uma espécie de força subterrânea a que tinha de se submeter.
Tal como no amor, assim era Cipriano na vida. Kate não conseguia perscrutá-lo. Se tentava, via-se obrigada a desistir e a classificá-lo entre as coisas que existem e não se compreendem. Um desconhecido, e uma presença; nada mais.
Não podia existir intimidade. Cipriano envolvia-se na sua reserva como numa capa e deixava Kate envolver-se na dela. Eram dois estranhos. Ele aceitava o facto integralmente, como se outra coisa não fosse possível, mas Kate achava aquilo deveras singular. Tinha tanto desejo de intimidade e esforçara-se tanto por obtê-la!
Agora, resignara-se a aceitá-lo tal como era: um desconhecido, um estrangeiro na presença do qual vivia. E sem nenhuma intimidade espiritual, a sua união não passava de uma união de sangue.
Por isso, pouco importavam as ausências de Cipriano. Deixava atrás de si a marca da sua presença, e levava consigo a de Kate. Em resumo, não existia o desgosto da separação.
Certa manhã, ele teve de partir cedo para a cidade. O sol ainda não cobria o lago mas, para além de Tuliapan, já acariciava as montanhas, que brilhavam tão distintas que se diriam focadas por luz mágica. O sulco verde das encostas parecia ao alcance da mão. No seu voo, cintilaram de súbito duas gaivotas brancas, apanhadas na luminosidade. Mas o lago, suave, unido, silencioso, permanecia ainda na sombra.
Kate lembrou-se do mar. O Pacífico não ficava longe. Ela tinha a impressão de o haver esquecido, mas sentia de novo a necessidade da sua brisa.
Cipriano ia banhar-se; Kate viu-o caminhar sobre as lajes do cais. Despiu o roupão e o vulto escuro desenhou-se na água amarelada. Era tão moreno! Tal um malaio. Corpo tão trigueiro como a cara; e com esse físico primitivo, e o peito alto, e as ancas bem modeladas, evocava as figuras masculinas de certas medalhas gregas.
Mergulhou da beira do cais e avançou na água mansa. Nesse momento a luz espalhou-se dos cimos das montanhas e cobriu de oiro a superfície do lago. Imediatamente, Cipriano apareceu rubro como fogo. Os raios solares, porém, não eram vermelhos, mas, reflectidos pelas águas, davam ao corpo de Cipriano um tom de lume, como se o abrasassem.
Os filhos da Manhã... A coluna de Sangue... Um Pele-Vermelha... Kate contemplava-o admirada enquanto nadava resplandecente e puro. Como se fosse de fogo!
Os filhos da Manhã... Kate mais uma vez renunciou a todo e qualquer esforço de conhecimento - e, sem esforço, limitou-se à comunhão de sangue.
Sim, a sua raça... Ela notara já como os indígenas se tornavam de um vermelho puro à luz da manhã e da tarde. Dir-se-iam chamas erguendo-se da água.
Cipriano partiu a cavalo, com o criado. Kate viu-o afastar-se pela estrada além, sombrio na sua montada ruça. Parecia não fazer movimento nenhum. Irradiava um orgulho másculo e, assim unido ao animal, era como se este e o cavaleiro constituíssem um único ser.
Desapareceu. Kate, por um instante, experimentou saudade da sua presença. Mais do que dele próprio. Não desejaria tocar-lhe nem falar-lhe, mas tão-somente senti-lo ali.
Depressa se dominou e voltou à realidade. Desde que se compenetrava da ausência de Cipriano, vinha-lhe a noção nítida da sua presença.
Passeou um pouco pela costa, junto do molhe. Adorava estar só. Absolutamente só, com o jardim, o lago e a manhã.
"No fundo, sou como Teresa", pensou ela.
De súbito viu à sua frente uma corda comprida e escura em cima de um pedregulho. Aquilo fê-la sair dos devaneios. Era uma cobra de pele ornada com delicados desenhos; estava sobre uma pedra enorme e a cabeça pendia-lhe até ao chão.
O réptil sentiu a presença da mulher, pois, com incrível rapidez, rastejou ao longo da rocha e entrou numa fenda que havia na base do molhe.
Não era grande o buraco. Depois de ali penetrar, virou a cabeça e dardejou a língua preta; mas em seguida desapareceu devagar, e Kate viu-lhe ainda o último anel, no qual poisava a cabeça chata. Fazia lembrar aqueles diabos que se representam de queixo apoiado sobre os braços, olhando através duma seteira. Do fundo do esconderijo espiava a mulher; seguia-a com os olhos cintilantes de crueldade.
Kate pensou então em todos esses seres invisíveis, escondidos nos recantos ocultos da terra. E perguntava a si mesma se aquele réptil não sofreria por ser incapaz de se elevar na escala da criação; de não poder correr a quatro patas em vez de rastejar...
Talvez não. Talvez houvesse encontrado a sua própria paz. Kate sentiu-se reconciliada com o animal.

XXVII
Teresa e Kate tornaram a visitar-se. Existia agora entre ambas certa simpatia, especialmente desde que a irlandesa decidira partir.
Envolvia o lago uma pureza outonal. Sentia-se a humidade na atmosfera, as sarças das encostas cobriam-se de rebentos. O sol inundava os montes duma luz de ouro, as sombras eram profundas, aveludadas. A verdura invadia tudo, até as rochas e a terra cor-de-rosa. O verde brilhante das canas-de-açúcar sobressaía no fundo rubro dos campos lavrados de fresco; aqui e ali, entre a massa escura das árvores, avultava a mancha branca das povoações.
O céu estava alto e límpido. No ar cristalino vibravam os tambores e o grito para as pausas do dia. E o dia parecia deter-se perante o mistério supremo desse universo que desabrochava, vasto, suave e cheio de vida.
Até no lago se encontrava uma espécie de apaziguamento. Avançava uma canoa com a vela entumecida tal uma concha nacarada; o casco negro e afilado deslizava sobre a água. Dir-se-ia a barca de Dioniso portadora duma mensagem e de ramos de videira.
Kate mal se lembrava agora da secura árida dos meses anteriores, quando a terra parecia crepitar ao sol implacável.
Ramon e Teresa atravessaram o lago e o seu barco de remos entrou no molhe. Era uma manhã em que as sombras nas montanhas tomavam o tom azul das centáureas.
- Sempre vai partir? - perguntou Ramon a Kate.
- Por uma temporada. Não me julga a mulher de Loth, não é verdade?
- Não - respondeu ele, a rir. - Julgo que é a de Cipriano.
- E sou. Mas preciso de sair, embora por pouco tempo.
- Ah! Nesse caso vá e volte depressa. E diga lá na Irlanda que façam o que fizemos aqui.
- Como?
- Encontrando-se em si mesmos, e no seu próprio universo, e com os seus deuses. Justifiquem os seus mistérios. Os Irlandeses são tão prolixos no que respeita aos seus heróis de outrora e aos seus tempos gloriosos! Diga-lhes, pois, que concretizem tudo isso, como nós fizemos com Quetzalcoatl e Huitzilopochtli.
- Está bem. Veremos se há quem me escute...
- Sim, senhora. - Seguiu com os olhos a vela branca que se aproximava e depois indagou: - Afinal, porque quer partir?
- É-lhe indiferente o caso, pois não?
- Não, não me é indiferente.
- Porquê?
Ramon levou outra vez uns segundos para responder:
- É uma das nossas - replicou por fim. - Precisamos de si.
- Mesmo quando não faço nada? E quando principio a aborrecer-me com a história do Quetzalcoatl vivo e o resto, e preferia conhecer um simples Don Ramon?
Ele riu-se.
- Que é um simples Don Ramon? Don Ramon tem dentro de si Quetzalcoatl vivo. Mas a senhora auxilia-nos, apesar de tudo.
- Não creio que precise de auxílio, e muito menos de uma mulher que. no fim de contas, não é mais que a esposa do seu amigo.
Estavam sentados num banco, debaixo das manhãs-de-páscoa, cujas folhas rubras formavam como que uma flor de pétalas enormes.
- A esposa do meu amigo - volveu Ramon. - Que poderia
ser de mais agradável para mim?
- Pois claro! - exclamou Kate de maneira ambígua. Ramon tinha os braços apoiados nos joelhos e olhava para o
lago, com ar ausente. O seu rosto reflectia cansaço e aquela vulnerabilidade que sempre comovia Kate. Mais uma vez ela se compenetrou do isolamento e esforço que a procura de uma vida diferente impunha àquele homem. E, no entanto, ela não desistia...
Essa visão acentuou-lhe o sentimento de impotência, da impotência total da mulher em ajudar o homem que caminha para o Além.
- Está muito seguro de si mesmo? - perguntou.
- Seguro de mim? Não! De um instante para o outro eu morro e desapareço da face do mundo. Como poderia estar seguro de mim
mesmo?
- Mas porque há-de morrer?
- Todos morrem. Até Carlota!
- Essa tinha a sua hora marcada.
- Pode-se marcar a nossa hora como se faz no despertador de um relógio?
Kate calou-se por uns momentos.
- Se não está seguro de si mesmo, de que está então? - inquiriu como se o desafiasse.
Ramon fitou-a com os seus olhos sombrios.
- Estou seguro... seguro... - A voz sumiu-se-lhe, o rosto tomou a palidez dum defunto. Só os olhos a observavam intensamente. De novo ela se viu perante a sombra dolorosa do homem e se sentia impotente diante desse espectro vivo do sofrimento.
- Não pensa que anda em erro, pois não? - perguntou Kate.
- Não, mas talvez não possa manter...
- E então? - insistiu friamente a irlandesa.
- Continuarei o meu caminho, embora desacompanhado. Kate só lhe via os olhos negros, fitos nela. Ramon começou a falar em espanhol: - Isto faz-me doer a alma, como um pronúncio de morte.
- Mas porquê? Não está doente!
- Sinto a alma desagregar-se.
- Não deixe! - exclamou Kate, alarmada.
Ramon fitava-a ainda com os olhos inexpressivos. De súbito, ela experimentou uma sensação de calma e de força.
- Devia esquecer por uns tempos - disse-lhe em voz compassiva, poisando a sua mão na dele. Para quê tentar compreendê-lo ou contrariá-lo? Era uma mulher, ele um homem e, portanto, tinham da vida uma concepção diversa.
Ao contacto daquela mão, Ramon percebeu despertar de um sonho e fixou-a com olhar perscrutador e altivo. A carícia maternal sobressaltara-o como uma picada.
- Sim, devia - disse.
- Pois claro. Se quer ser tão... abstracto e quetzalcoatliano enterre de vez enquando a cabeça na areia como fazem as avestruzes, e esqueça.
- Oh! - exclamou Ramon sorrindo. - Ei-la de novo zangada!
- O caso não é tão simples como parece. Existe em mim um conflito, e não me deixam ausentar-me por algum tempo.
- Não podemos impedi-la.
-Pois sim, mas discordam da minha ida. Não me deixam partir em paz.
- Porque deseja ir-se embora?
- Tenho de ir. Tenho de voltar para junto dos meus filhos e da
minha mãe.
- Sente essa necessidade?
- Sinto.
Logo que deu esta resposta compreendeu que havia nela certa duplicidade. Era como se tivesse dois eus: um, mais novo, terno, sensível, que pertencia a Cipriano e a Ramon; outro, duro, completo, que pertencia aos filhos, à mãe, à Inglaterra, a todo o seu passado. O eu antigo nada tinha de submisso e era forte, o recente parecia frágil, estava ligado a Cipriano e até a Ramon e a Teresa; nada tinha de independente.
Kate possuía consciência desta dualidade e sofria com isso. Porque não conseguia optar definitivamente pela antiga maneira de ser, nem pela moderna, ficava a deter-se entre as duas.
- Pois é - continuou. - Sinto essa necessidade, e querem
evitar que eu parta.
- Que ideia! - protestou Ramon.
- Sim, senhor. Exercem pressão sobre mim, paralisam-me, impedem-me de me ir embora.
- Se tem essa sensação, convém que nos afastemos de si durante uns tempos.
- Porquê? Não concordam com a minha ida? Se eu tenho de
ir, porque não me apoiam?
Ramon fitou-a tranquilamente.
- É impossível. Não acredito nessa partida. Seria virar-nos as costas, renegar-nos. Mas a verdade é que somos todos muito complicados. Se acha que tem de se ausentar durante certo período, então vá! Não é coisa de importância primordial. Já fez a sua opção, e
eu não fico apreensivo.
Kate sentiu alívio ao ouvir isto, porque estava bastante preocupada consigo mesma. Nas suas relações com Cipriano e Ramon, nunca tinha a certeza de nada. Contudo, replicou com um pouco de ironia:
- Porque haveria de ficar apreensivo?
- Não desconfia de si própria às vezes?
- Nunca! Estou sempre segura da minha pessoa.
Continuavam sentados no jardim da Vivenda Aragon, debaixo da manhã-de-páscoa. O ar começava a aquecer. O lago estava calmo, o vento amainara e tudo se conservava imóvel - excepto as folhas rubras do arbusto.
O Natal aproximava-se! Eis o que recordou a Kate aquela planta majestosa.
Natal! O azevinho! A Inglaterra! As prendas! As iguarias! Se ela se apressasse poderia chegar à Inglaterra na data festiva. Achava uma coisa tão natural encontrar-se na pátria com a mãe, pelo Natal! Tinha casos tão interessantes a contar! E as bisbilhotices divertidas que havia de ouvir... De longe, tudo isso lhe parecia encantador. No entanto, experimentava como que uma relutância ao pensar nesse regresso.
- Podemo-nos fartar de coisas boas - disse ela a Ramon.
- De qual, em particular?
- Oh! De Quetzalcoatl e todas essas histórias. Podemos estar saturados.
- É possível - respondeu Ramon, pondo-se de pé e afastando-se em passos tão subtis que ela nem deu pela sua retirada.
Quando compreendeu que ele se fora embora, ficou fula. Mas continuou sentada debaixo do magnífico arbusto, contemplando com os olhos irritados a sebe de jasmineiro e as suas flores dum branco puríssimo. Onde é que ela ouvira qualquer coisa a respeito de jasmins? "E entre nós os jasmins..."
Oh! Como se sentia farta de tudo aquilo!
Teresa descia a ladeira do jardim.
- Ainda está aqui?
- Onde podia eu estar? - retorquiu Kate.
- Não sei... Meu marido foi a Sayula a fim de falar com o Jefe. Não quis esperar para ir connosco no barco.
- Talvez tivesse pressa.
- Que maravilha! - observou Teresa, apontando para o estendal vermelho do majestoso eufórbio.
- São as vossas flores de Natal, não são?
- Sim, as flores de Noche buena.
- É extraordinário! O Natal com hibiscos e manhãs-de-páscoa! Estou ansiosa por ver azevinho e laranjas na montra duma frutaria de Hampstead.
- Porquê? - disse Teresa, rindo.
- Ah! - suspirou Kate. - Voltar à vida simples, ver os autocarros a correr na lama de Piccadilly, na véspera do Natal, e os passeios molhados cheios de gente diante das lojas cintilantes...
- Isso é que é vida, para si? - perguntou Teresa.
- Sim. Sem esta abstracção e vontade. A vida satisfaz-me se eu puder vivê-la e ser eu mesma.
- É altura de Cipriano regressar - disse Teresa.
Kate levantou-se com súbita impaciência. Já não suportava essa tutela. Haviade lhes mostrar que era livre!
Foi com Teresa à aldeia. O ar parecia misteriosamente vivo, animado com um sopro novo. Mas Kate sentia-se fora do ambiente. As duas senhoras sentaram-se debaixo de uma árvore na praia de Sayula, conversando um pouco e contemplando a imensidão do lago
cor de pérola.
Ancorado junto do molhe estava um barco de toldo vermelho e mastro comprido. Em terra, viam-se grupos de homens vestidos de branco a olharem para o interior da embarcação. O contorno monolítico duma vaca preta e branca e dum touro enorme recortava-se contra a superfície das águas.
Era perto, e no entanto parecia tudo estranho e remoto. Dois peóns colocaram uma prancha e puseram-se a empurrar a vaca para lá. O animal avançou relutante mas depois, com a lenta indiferença dos Mexicanos, seguiu pela ponte adiante. Os homens incitavam-no, até que ele ganhou o barco e entrou definitivamente no porão.
O grupo ocupou-se então do touro. Um mexicano já idoso, alto, de calças estreitas de pele e casaco de cabedal, com um imenso chapéu de feltro bordado a prata, ergueu delicadamente a cabeça do touro, pegando-lhe pela argola do focinho. Atrás estava um peón que, curvando-se, empurrou os poderosos flancos do animal. E este, com toda a calma, foi andando pela prancha além. Mas parou.
Os peóns reagruparam-se. O que estava atrás, de faixa vermelha atada à cintura, deixou de empurrar. Então dois outros passaram uma corda em volta das ancas do touro. O velho tornou a pegar pela argola, sempre com muito cuidado, e o animal levantou outra vez a cabeça. Mas continuou parado.
De novo lhe puxaram pela argola e pela corda. O monstro mantinha-se impassível. Tudo isto decorria no maior silêncio.
Por fim o touro percorreu a ponte em passos lentos e alcançou a borda do navio. Ali, esperou.
De cabeça baixa, olhava para o fundo do porão. Os homens empurravam-no com toda a força, puxavam a corda - tudo no profundo silêncio mexicano.
Devagar, cauteloso, o animal agachou-se, e então, com um movimento rápido, pendeu as patas dianteiras no interior do barco, ficando com os quartos traseiros alçados. Houve um momento de confusão, depois um baque. Finalmente, o touro saltara e encontrava-se no porão do navio.
E tudo tão silencioso e tão remoto!
- Ramon quer que se sente ao lado dele no templo como esposa de Quetzalcoatl... com algum nome esquisito? - perguntou Kate a Teresa.
- Não sei. Mais tarde, diz ele, quando for ocasião de haver uma deusa.
- E importa-se?
- Por mim, tenho medo. Mas sei que Ramon o deseja. Ele diz que é aceitar a maior responsabilidade da nossa vida, e eu acredito que seja verdade. Se existe divindade em mim, devo reconhecê-la, envergar a túnica verde e ser deusa no momento oportuno. Ramon afirma que precisamos de manifestar a presença divina. E, ao lembrar-me de meus irmãos, acho que ele tem razão. Hei-de pensar no deus que palpita invisível como o coração do mundo. E quando vestir a túnica verde e me sentar no templo diante de toda a gente, voltar-me-ei para o coração do universo e tentarei compenetrar-me do meu eu divino.
- Julgava que a túnica verde era só para a esposa de Huitzilopochtli - observou Kate.
- Ah, sim! - replicou Teresa. - A minha é preta, com barras brancas e desenhos encarnados.
- Preferia a verde? Fique com ela, se quiser. Eu vou-me embora...
Teresa ergueu os olhos para Kate.
- A túnica verde é para a mulher de Huitzilopochtli - declarou.
- Não vejo que isso tenha importância - volveu a irlandesa.
- Cada homem deve possuir a esposa que lhe convém. Cipriano não quereria uma mulher como eu.
- Cada mulher deve ter o homem que lhe convém - retorquiu Kate. - Para mim, Ramon seria muito abstracto e muito despótico.
Teresa ruborizou-se e baixou os olhos.
- Ramon exige muita submissão de uma mulher para que me agradasse - ajuntou a outra.
Teresa ergueu a cabeça, o pescoço moreno ondulou como uma
serpente.
- Como é que sabe que Ramon exige submissão das mulheres? Como é que sabe? Nunca a exigiu de si... Está enganada. Ele não me impõe tal submissão. O que pretende é que me entregue brandamente; em compensação, entrega-se-me, a mim, com uma brandura maior do que esta que lhe concedo: um homem como Ramon é mais dócil do que uma mulher. Não se assemelha a Cipriano, que é soldado. Ramon mostra-se dócil. Não tem razão no que
diz, Caterina.
Kate soltou uma risadinha. Mas Teresa prosseguiu:
- Vejo-a como um soldado entre as mulheres, está sempre a combater. Eu não sou assim. No entanto, há mulheres que são de temperamento bélico e essas precisam de mandos militares. Eis a razão por que é Malintzi e tem um vestido verde. Estará sempre disposta a lutar... até consigo mesma, se ficar só no mundo.
Havia uma grande calma em volta do lago. As duas senhoras aguardavam a chegada de Ramon.
Um homem vestido de branco, acocorado e silencioso debaixo de uma árvore, desbastava folhas de palmeira, com ar concentrado. Em seguida ia molhá-las na água e voltava para se sentar de novo, recomeçando o trabalho com aquela atenção pueril da gente do povo. Estava a consertar uma cadeira de palha. Como Kate o observasse, os olhares dos dois encontraram-se e o homem saudou-a. Dir-se-ia que, dele, emanava para ela uma chama de vida, a qual lhe transmitiu um estranho poder.
Nitrindo excitado, corria ao longo da margem um cavalo ruço malhado de branco. A crina flutuava ao vento, as patas faziam saltar os calhaus, as narinas abriam-se-lhe ansiosas. Porque seria?
Um peón fizera entrar no lago a sua carroça puxada por quatro muares, até que a água ficou acima dos varais, e quase atingindo o fundo do veículo. Parecia um barco conduzido por quatro cavalos-marinhos.
Era Inverno, mas dir-se-ia Primavera nas imediações do lago. Saltitavam na praia bezerros amarelos e brancos, agitando a cauda, correndo lado a lado à beira da água, que eles cheiravam desconfiados.
A uma árvore estava amarrada uma burra, com a sua cria deitada à sombra, um jumentinho preto como uma amora, enroscado no chão, com a cabeça peluda erguida e as longas orelhas fitas.
- Quantos dias tem o burrinho? - perguntava Kate ao peón, que saíra da sua cabana de colmo.
O homem dirigiu-lhe um olhar em que havia júbilo e deferência - olhar que fez Kate sentir uma onda de orgulho encher-lhe o peito.
- Nasceu a noite passada, patrona! - respondeu ele, sorrindo.
- Tão novo! Ainda não pode aguentar-se nas pernas, pois não?
O peón aproximou-se do jumento e pô-lo de pé. E ali ficou o animalzinho, espantado, de pernas abertas, como se em cima de ganchos de cabelo.
- Que engraçado! - exclamou Kate, deliciada. O homem riu-se; parecia grato pelo interesse dela.
O jumento a custo se mantinha naquela posição. Vacilava sobre as quatro patas bambas, com ar admirado. Deu uns passos oscilantes para cheirar as folhas de milho. Cheirou, e tornou a cheirar, tal se o mistério do olfacto se lhe revelasse nas narinas.
Então voltou para Kate a cabeça aveludada e deitou de fora a língua cor-de-rosa. Kate soltou uma gargalhada, o que fez o animal dar um pulo que o deixou infinitamente surpreendido consigo próprio. Tentou uns passos, e, de repente, sem que ele mesmo esperasse semelhante coisa, deu outro salto.
- Já dança! - exclamou Kate. - E só tem umas horas de existência!
- Já dança - confirmou o peón.
Depois daquelas experiências, o burrinho aproximou-se da mãe em passos incertos e começou a mamar.
Erguendo a vista, Kate encontrou os olhos do homem cintilantes da chama da vida, cheios de confiança e de conhecimento.
O jumentinho preto, a mãe, o mistério da criação, o respeito pela mulher superior a ele, bela e radiosa, tudo isto exprimiam os olhos negros desse homem primitivo.
- Adiós! - disse Kate.
- Adiós, patrona! - respondeu ele, erguendo o braço, na saudação de Quetzalcoatl.
Atravessou ela a praia em direcção ao cais; sentia dentro de si uma onda de vida, forte, resistente. "É o sexo", disse consigo. "Como o sexo pode ser extraordinário quando o homem o conserva poderoso e sagrado e que ele enche o mundo! É como o sol, penetrando-nos. Mas não me submeterei, mesmo assim. Porquê ceder?" Ramon aproximava-se, com o seu largo chapéu ornamentado do símbolo de Quetzalcoatl. Nesse instante tocaram os tambores e, do alto da torre, soou a voz nítida e possante anunciando o meio-dia. Todos os homens que se encontravam na praia aprumaram o corpo e ergueram o braço direito. As mulheres viraram a palma da mão para o Sol. Tudo ficou imóvel, excepto os animais.
Então Ramon encaminhou-se para o barco, enquanto os homens o saudavam à maneira de Quetzalcoatl.
- É espantoso como nesta terra se pode ter a impressão de que se é alguém! - notou Kate, quando já iam sobre a água no barco de remos. - Sentimo-nos como se pertencêssemos de facto à nobreza.
- E não é verdade?
- Sim, mas isso em toda a parte nos é negado. Só aqui temos a noção do poder da nobreza. Os indígenas ainda a veneram. Parecem
adorar-me.
- Por enquanto - replicou Ramon. - Mais tarde assassiná-la-ão porque a adoraram.
- É inevitável? - volveu Kate em tom despreocupado.
- Creio que sim. Se vivesse sozinha aqui, em Sayula, e reinasse por algum tempo, seria assassinada... ou pior ainda... pelo povo que a tinha idolatrado.
- Não acredito.
- É como lhe digo.
- Mas porquê?
- A não ser que se consiga dos deuses a nossa própria nobreza e se implore dos céus o poder, acabaremos por ser assassinados.
- A minha nobreza tem essa origem.
Mas não ficou muito convencida e mais firmou a sua resolução
de partir.
Escreveu para a Cidade do México e reservou uma passagem de Vera Cruz a Southampton. Embarcaria no último dia de Novembro.
Cipriano regressou a 17 e Kate participou-lhe o que tinha feito. Ele ficou a olhá-la, de cabeça um pouco à banda e com uma expressão de criança ajuizada, mas Kate foi incapaz de adivinhar o que lhe ia na alma.
- Vais-te embora já? - perguntou ele em espanhol.
A mulher percebeu então que estava ofendido. Quando se melindrava falava-lhe sempre em espanhol, nunca em inglês.
- No dia 30.
- E quando voltas?
- Quien sabe! - ripostou Kate.
Por uns minutos, Cipriano fitou-a com as suas pupilas negras imperscrutáveis. Estava a pensar que tinha o direito de a impedir que saísse do país, visto ser legalmente sua esposa. Nas profundezas dos olhos luzia a antiga cólera índia; depois surgiu uma leve mudança de expressão no rosto, quando a ira contida cedeu lugar à indiferença estóica, à velha indiferença de tantos séculos. Kate quase sentia as ondas sucessivas de sombra e frieza que percorriam Cipriano sem que ele mesmo desse por isso. E mais uma vez lhe estremeceu o coração o medo de perder o contacto com esse homem.
- Como quieras tu! - disse ele por fim.
Concedia-lhe a liberdade com a misteriosa indiferença do seu sangue e não faria mais esforços para a reter. Era o fatalismo dos da sua raça.
Conforme Kate previra, Cipriano tomou um barco e foi a Jamiltepec falar com Ramon.
A mulher ficou só, como de costume. Ocorreu-lhe que ela própria criara essa solidão. Não conseguia identificar-se com aquela gente, sentir-se à vontade fosse com quem fosse. Fechava-se sempre na sua personalidade.
Importava-lhe muito a reciprocidade sexual? Podia importar-lhe ainda mais se não a houvesse tido; mas tivera-a, e de maneira perfeita, com Cipriano. Sabia tudo a esse respeito. Era como se houvesse conquistado outro território, outro domínio da vida. E agora devia retirar-se para a toca da sua individualidade, com a vítima nos dentes.
De súbito, viu-se como os homens muitas vezes a viam: uma gata enorme, com os seus espasmos de volúpia e o gozo demorado do seu isolamento. Conhecia outras mulheres assim. Brincavam cheias de amor e familiaridade como um gato com um rato. Por fim devoravam o ratinho querido e reapareciam com a barriga repleta e uma voluptuosa sensação de força.
Algumas vezes o rato recusava-se a ser digerido, de que resultava prolongada dispepsia; ou então, como Cipriano, transformava-se numa espécie de cobra, que alçava a cabeça, olhava para trás e desaparecia num buraco, deixando-a confusa e destituída de poder.
Outra coisa que ela observava horrorizada. Uma após outra, as suas "amigas", as grandes amorosas, na idade de quarenta, quarenta e cinco e cinquenta anos perdiam todos os atractivos e ficavam umas corujas horrendas, procurando em volta a vítima cada vez mais rara. Como seres humanos deixavam de existir, metamorfoseadas em corujas elegantes e mexeriqueiras.
Kate era bastante inteligente para tirar proveito da lição. Estava bem que uma mulher cultivasse o seu ego, a sua personalidade. Estava muito certo que desprezasse o amor ou que com ele se entretivesse como um gato faz ao rato; isto é, brincar o mais tempo possível antes de o comer e saciar voluptuosamente o ego com a sua vítima.
"A mulher sofre mais com a supressão do ego do que com a do sexo", afirmou uma escritora, e talvez seja verdade. Mas olhai, olhai para as mulheres modernas de cinquenta anos, as que cultivaram o ego até ao extremo limite! São em geral criaturas que nos enchem de pena ou de repulsa.
Kate sabia tudo isto, e nisto pensava enquanto ali sozinha na sua vivenda. Tivera a sua liberdade, mesmo no México. Esses homens deixá-la-iam partir. Não estava prisioneira. E levaria consigo todos os despojos que ainda guardavam.
E depois? Sentar-se nos salões de Londres e ser mais uma coruja ao lado das outras? Arvorar um sorriso postiço e falar com voz
artificial?
"Não! - disse consigo. - O meu ego e a minha personalidade não valem esse preço. Prefiro desfazer-me deles em parte a ver-me reduzida a isso."
No fim de contas, quando Cipriano a acariciava toda ela parecia desabrochar. Era a força do sexo, que enchia o mundo de lascívia e sobre que ela não se atrevia a reflectir. O seu poder tornava-se maior do que a sua vontade. Por outro lado, quando estava só e abria as asas do seu ego e o espírito desferia voo, o mundo afigurava-se-lhe maravilhoso. Todavia, após uns instantes, desvanecia-se o esplendor, substituído por uma solidão amarga.
"Preciso de ambos - concluiu. - Não posso afastar-me de Cipriano nem de Ramon. Renovaram-me o sangue. Digo que são limitados, mas todos temos de o ser. Se tentamos ser ilimitados, tornamo-nos monstros. Sem Cipriano a afagar-me, a limitar-me e a submergir-me a vontade, tornar-me-ia uma velha horrível. Devo regozijar-me pelo facto de Cipriano me limitar com a sua vontade e o seu contacto ardente. Porque o que eu chamo a minha grandeza faz-me cair no vácuo desde que não haja a mão dum homem para me segurar. Ah, sim! Antes submeter-me do que ser uma mulher horrível."
Chamou o criado e foi através do lago num barco de remos. Era por uma bela manhã de Novembro. Nas escarpas das montanhas, a nordeste, as sombras tinham um tom azul muito puro. Por baixo, a vegetação começava a amarelecer. O lago, embora ainda cheio, principiava a baixar, e os jacintos-d'água vogavam à toa. No ar calmo viam-se pássaros voando. Alguns milheirais exibiam os seus talos secos, mas as flores de palo-blanco tinham já desabrochado e errava o perfume das acácias amarelas.
"Porque havia de me ir embora? - pensou Kate. - Porque havia de ver os autocarros na lama de Piccadilly na véspera do Natal e a multidão nos passeios molhados diante das lojas iluminadas? Mais vale ficar aqui, onde a minha alma é menos triste. Tenho de pedir desculpa a Ramon das coisas que lhe disse. No fim de contas, aqui há outra grandeza, com o som dos tambores e o grito de Quetzalcoatl."
Já ela distinguia o último andar da casa de Jamiltepec, semelhante a uma torre avermelhada, e a buganvília roxa pendente do muro, os cachos das flores de plumbago e a porção de rosas brancas.
- Están tocando - disse tranquilamente o barqueiro, erguendo para ela os olhos negros.
Já ouvira o som do tambor em Jamiltepec. Uma voz de homem se elevou na manhã clara.
O barqueiro levantou um remo, como se fizesse sinal. E assim que o barco penetrou na enseadazinha, veio um criado a correr ao longo do molhe. No ar soalheiro notava-se o cheiro das daturas e das rosas, e um silêncio profundo que nem o tambor nem o canto perturbavam.
- Don Cipriano está aqui? - perguntou Kate.
- Está - murmurou o criado, apontando para o balcão donde partia a voz do cantor. - Deseja que eu o informe da sua chegada?
- Não - respondeu Kate. - vou sentar-me um bocado no jardim, antes de subir.
- Nesse caso, deixarei a porta aberta - volveu o homem - e assenhora entrará quando quiser.
Kate instalou-se no banco de uma árvore, donde pendiam flores de trepadeira enroscada ali como uma serpente. Pôs-se a ouvir o canto. Ramon ensinava o novo hino a um dos cantores.
Não tinha muito boa voz o Quetzalcoatl vivo. Cantava baixinho, como se para si mesmo, mas com expressão simples e bela. Kate não conseguiu perceber a letra.
- Ya? - disse Ramon ao terminar.
- Ya, patrón! - respondeu o cantor.
E na sua voz forte e pura, este entoou o hino:
O meu caminho não é o teu e o teu não é o meu.
Mas vem, antes que nos separemos.
Cada qual por seu lado, dirijamo-nos à Estrela da Manhã
Para lá nos encontrarmos.
Não te aponto o meu caminho
Nem chamo por ti.
Mas a Estrela é a mesma para nós ambos
E a ambos nos atrai.
A cada qual o seu caminho, esse que esplende Na encruzilhada,
Que abre a sua chama como a porta de uma tenda Por onde, invisíveis, deslizamos.
Não pode um homem pisar como a mulher
Nem a mulher andar como o homem.
O espírito de cada um através das folhas de sombra
Se move como pode.
Mas a Estrela da Manhã e a da Noite Fixam tendas de fogo
Onde nos retinimos quais ciganos, sem saber Como é que vieram os outros.
Nada mais peço que me insinuar Na tenda do Espírito, e deter-me Na casa da chama bifurcada Como hóspede seu.
Fica aí comigo, esposa minha, Corporalmente. E que a flama nos envolva Qual uma rede.
Sede lá, homens, comigo,
Alcançai o lar.
Ride comigo, enquanto a mulher repousei,
Porque vale a pena.
O homem entoara o hino por várias vezes, parava, dir-se-ia esquecer-se, extinguia-se-lhe a voz pura e quente. Então a de Ramon, baixa e um tanto rouca, elevava-se com subtil intensidade, como se vinda do meio duma concha; depois, o tenor retomava o canto, que lhe corria no sangue como uma chama.
O mozo de Kate, ou seja, o seu criado, seguira-a ao jardim, e tinha-se sentado de pernas cruzadas, a certa distância, debaixo de uma árvore, de costas apoiadas ao tronco - sombra acocorada, vestida de branco. Os dedos dos pés saíam-lhe rijos e escuros das huaraches esburacadas, e o trancelim de palha do chapéu pendia-lhe junto à face trigueira. Quanto ao resto era tudo alvo, e as calças de linho apertavam-se-lhe nas coxas.
Quando o canto terminou, e o tambor deixou de rufar, e as vozes, num murmúrio, mal se ouviam, o mozo ergueu a cabeça e olhou para Kate. Brilhavam-lhe as pupilas negras, no rosto errava-lhe um sorriso tímido.
- Está muy bien, patrona? - perguntou, um pouco envergonhado.
- Muito bem - respondeu ela, como um eco fiel. Mas no seu coração debatiam-se conflitos diversos, e o criado sabia-o.
Parecia tão novo com aquele sorriso alegre, excitado, receoso! Havia nele qualquer coisa de perpetuamente infantil; mas era uma criança que, dum momento para outro, se podia tornar num selvagem- vingativo e brutal, um homem que nunca perdia a consciência do seu sexo. E Kate pensou mais uma vez que existiam várias maneiras de regressar à infância.
O criado, porém, continuava a espiá-la, de soslaio: queria ver se havia nela qualquer hostilidade secreta. Desejaria que concordasse com o hino, com o tambor e com tudo mais. Como uma criança, ansiava pela sua aquiescência; mas, se a senhora se mostrasse hostil, ele seria o primeiro a manifestar-se. Um julgamento adverso torná-lo-ia inimigo declarado.
Ah, os homens eram todos iguais!
Nessa ocasião, o rapaz levantou-se, com súbita agilidade, e ela ouviu a voz de Cipriano na varanda:
- Que é, Lupe?
- Está la patrona - respondeu o mozo.
Kate ergueu-se também e olhou. Viu a cabeça e os ombros nus do marido, em cima, no parapeito.
- Já lá vou - participou-lhe.
Vagarosamente transpôs os portões de ferro do corredor. Lupe, que a seguia, fechou-os atrás de si.
No terraço encontrou Ramon e Cipriano, ambos de tronco nu, que a esperavam em silêncio. Kate, embaraçada, explicou:
- Estive a escutar o novo hino.
- E-que lhe pareceu? - perguntou Ramon.
- Gostei.
- Sentemo-nos - propôs ele. E a recém-vinda deixou-se cair numa das cadeiras de verga. Cipriano ficou de pé, encostado à balaustrada.
Kate viera para declarar a sua submissão: dizer que já não queria ir-se embora. Mas, vendo os dois homens numa disposição muito quetzalcoatliana, não se decidia a aflorar o assunto. Tinha a sensação de ser uma intrusa. Não se compenetrava de que também pertencia à seita.
- Parece-me que não há Estrela da Manhã para nos reunir a todos três - observou, irónica mas um pouco trémula.
Sobre eles desceu um silêncio ainda mais profundo.
- Estou a ver que uma mulher é realmente de trop aqui junto de vocês ambos.
Hesitou um tanto ao dizer isto. Sabia que Cipriano ficava perplexo e melindrado quando ela escarnecia.
Ramon respondeu-lhe com uma doçura que vinha direita do seu coração.
- Então que há, prima?
com um tremor nos lábios, Kate replicou:
- Em verdade, não desejo deixá-los.
Olhando rapidamente para Cipriano, Ramon retorquiu:
- Bem sei que não deseja.
O tom suave e protector da sua voz fê-la revoltar-se de novo. com os olhos rasos de lágrimas, ela bradou:
- Afinal vocês não precisam de mim!
- Não, não, preciso de ti. Verdad, verdad! - exclamou Cipriano em voz baixa e contida, quase num murmúrio.
E, no meio das suas lágrimas, Kate pensava: "Como sou intrujona! Sei perfeitamente que sou eu que não os quero. Quero-me só a mim mesma. Mas posso iludi-los de modo que o não percebam."
Havia notado a paixão fálica e ardente na voz de Cipriano.
Coube a vez a Ramon de falar, e fê-lo em tom glacial:
- A Caterina é que não precisa de nós. Não se comprometa connosco. Atenda à sua própria preferência.
- E se ela me aconselhar a partir? - ripostou Kate, como um desafio, através de um resto de lágrimas.
- Então parta!
Kate recomeçou a chorar.
- Ah, eu bem sabia que não precisavam de mim. Mas Cipriano acudiu com persuasiva ternura:
- Não és dele! Ele não pode dizer nada.
- Isso é verdade - concordou Ramon. - Não me dêem ouvidos.
Levantando bruscamente a cabeça, no meio do seu pranto, viu-o afastar-se sem rumor.
Limpou a cara, recuperou a calma e, de olhos húmidos, fitou Cipriano. Este conservava-se muito direito, como um galo combatente. Nas pupilas negras brilhava-lhe um fulgor estranho.
Sim, Kate também tinha medo dele, desses olhos pretos inumanos.
- Não queres que me vá embora, pois não? - perguntou-lhe suplicante.
Espalhou-se no rosto do homem um sorriso lento, e um leve tremor lhe percorreu o corpo. E então, na sua voz de inflexões índias, muito suave, Cipriano disse-lhe em espanhol:
- Yo! Yo! - E as sobrancelhas erguiam-se-lhe numa expressão de espanto divertido. Ainda trémulo, concluiu: - Te quiero mucho! Mucho te quiero! Mucho, mucho!
As palavras soavam tão cariciosas, vinham-lhe tanto do seu sangue ardente, que a mulher se sobressaltou e disse:
- Não me deixarás partir!

XXV
Foi uma surpresa para Kate o casamento de Don Ramon dois meses depois do falecimento de Dona Carlota. A noiva tinha vinte e oito anos e chamava-se Teresa. Após o casamento, que se realizou civilmente e na maior intimidade, Ramon trouxe a nova esposa para Jamiltepec.
Conhecia-a desde pequena, pois era filha do proprietário da famosa hacienda de Las Jemas, situada a uma dúzia de milhas de Jamiltepec. Don Tomaz, pai da rapariga, fora grande amigo dos Carrascos. Morrera, porém, um ano antes, deixando a importante hacienda aos três filhos e confiando a Teresa a administração da quinta. Teresa era a mais nova. Os dois irmãos viviam a existência inútil e perdulária dos mexicanos, e por isso Don Tomaz, a fim de salvar a propriedade daquelas mãos nefastas, designara Teresa como administradora e obtivera o consentimento dos dois irmãos. Na verdade, os rapazes eram criaturas ociosas que, em vida do progenitor, nunca haviam mostrado o mínimo desejo de o ajudar na difícil gerência da quinta. Teresa fora a única. E durante a doença do pai, todas as fadigas da administração haviam recaído sobre ela, enquanto os irmãos gastavam o dinheiro e as forças nas orgias em que se deleitam os mexicanos de certa classe. No entanto, assim que o pai faleceu, os dois irmãos apareceram em casa cheios de arrogância, com a intenção de se tornarem hacendados. Pela simples força bruta afastaram a irmã do seu cargo, deram ordens contrárias às dela, escarneceram-na e uniram-se para a esmagar. Queriam relegá-la para o seu lugar de mulher, isto é, para uma espécie de escravidão a que, aos seus olhos, deviam pertencer as pessoas desse sexo.
Eram brutos, e como brutos, cobardes. E, como tantos mexicanos daquela categoria, condescendentes e prejudiciais para si próprios. Relacionaram-se com juizes e generais, exibiram-se em ricos trajes de charro e receberam em casa uma multidão de gente duvidosa.
Contra aquela indolência e brutalidade, Teresa nada podia fazer e conhecia bem a sua impotência. Os irmãos eram fracos, sensuais, belos à sua maneira, dissipadores, despreocupados, mas de sentimentos ferozes.
- Faz-te bonita e arranja um marido - aconselhavam-lhe. Aos olhos deles, o seu maior crime era não atrair os homens
com quem conviviam. O facto de nunca ter conhecido homem e não se haver ainda casado tornava-a quase odiosa. De que servia a mulher senão para uma vida de relaxamento e licenciosidade?
- Queres usar calças? - perguntavam-lhe, irónicos. - No, señorita, enquanto houver aqui dois homens. No, señorita, os homens é que usam calças, e as mulheres escondem o que têm debaixo das saias.
Teresa já estava habituada a estes insultos; contudo, sofria muito no seu íntimo.
- Queres viver à moda dos americanos? Então abala para a América, corta o cabelo e veste calças. Compra lá um rancho e arranja um marido que receba as tuas ordens.
Teresa consultou advogados, que se limitaram a erguer os braços ao céu. Foi então procurar Ramon, a quem conhecia desde pequena.
Para expulsar os irmãos da hacienda seria necessário intentar um processo dispendioso e de resultado incerto. Em vez disso, Ramon propôs-lhe que casasse com ele segundo um regime matrimonial em que ela disporia sempre dos seus bens.
- Nesta terra os homens desprezam as mulheres e não podem passar sem elas, o que representa um suicídio - disse Ramon.
O casal foi visitar Kate. Teresa era franzina, pálida, de farta cabeleira preta e grandes olhos negros. Apesar do ar calmo, notava-se-lhe certa independência e autoridade. Sofrera muitas humilhações da parte dos irmãos e tinha ainda os olhos pisados pelas lágrimas de amargura, indignação e cólera.
Agora, amava Ramon com todas as veras da sua alma. Isso era evidente. Fora ele que salvara da degradação a sua dignidade de mulher e lha havia restituído bela e intacta. Em troca, passou a conceder ao seu salvador uma admiração respeitosa e quase feroz.
Em relação a Kate mostrava-se tímida e um pouco distante, tal se receasse essa mulher branca, doutra raça, que viajara muito e possuía larga experiência da vida. com um vestido claro e um rebozo de gaze preta, estava sentada na sala de Kate, com as mãos trigueiras pousadas no regaço, o pescoço escuro muito direito, e desviando um pouco o rosto fino e bem modelado. A irlandesa achou-lhe uma aparência de costureirinha.
Mas Kate não deu fé do estranho poder autoritário que também emanava desse corpo moreno e esguio, nem do olhar penetrante e desconfiado que por vezes Teresa lhe dardejava. Alma de fogo num corpo delicado. Atitude cheia de reservas. De quando em quando, a boca parecia formular uma palavra em silêncio e nos lábios perpassava-lhe um sorriso constrangido. Nunca lhe desaparecia, porém, o fulgor dos olhos.
- Falas tão pouco, chica! - observou Ramon, com certa ternura.
Então os olhos dela cintilaram e a boca esboçou um sorriso.
Via-se bem que estava apaixonada, embebida num êxtase de amor, o que explicava a sua frieza perante Kate.
"Despreza-me - pensou esta - porque não sou capaz de amar como ela." E, por um segundo, Kate invejaria Teresa. Mas daí a pouco desdenhava-a: "Tipo de harém..."
Sim, Ramon adaptava-se bem ao papel de sultão. Era belo, no seu traje branco, muito sereno, com ar de paxá, mas ao mesmo tempo afável, atencioso - e com aspecto tão juvenil! Como um paxá, preparava um cacharolete de genebra, vermute e limão. Teresa espiava-o de esguelha, sem perder de vista Kate, sua possível inimiga, a mulher que falava aos homens no mesmo pé de igualdade.
Kate levantou-se para ir buscar colheres. Nesse momento, Ramon recuou da mesa baixa em que espremia o limão e colidiu de leve com a dona da casa quando esta passava. Kate reparou de novo como ele se esquivava a qualquer contacto com ela. A sua sensualidade natural afastava-o de Kate como uma chama se desvia perante uma corrente de ar. Ela corou, e Teresa viu o súbito rubor sob essa pele branca, e o clarão quase de ira que atravessou os olhos castanhos de Kate. Momento de evasão de dois cursos de sangue tão diferentes!
Teresa pôs-se de pé, aproximou-se de Ramon e, inclinando-se sobre os copos, perguntou com aquela afectação infantil própria das mulheres da sua raça:
- Que puseste aí?
- Olha ! - retorquiu ele. E, com a mesma infantibilidade dos homens do seu tipo, começou a explicar-lhe de que se compunha o cacharolete e deu-lhe a provar um pouco de genebra, numa colher.
- É tequila da pior - declarou Teresa.
- A oito pesos cada garrafa? - volveu o marido, a rir.
- Custa esse preço? Tão caro!
Ela fitou-o nos olhos, por um momento, e viu esse rosto tornar-se mais escuro, mais ardente, como se todo ele se derretesse ao senti-la perto de si. Teresa então ergueu a cabeça, orgulhosamente. Havia-o reconquistado.
"Manhas de harém!" pensou Kate. E experimentou certa impaciência ao verificar como o ilustre, prodigioso Ramon se deixava prender nas malhas de um ser tão insignificante. Sentia-se contrariada por ter assim consciência da presença física do homem, do seu corpo belo, dos seus ombros fortes, das suas pernas vigorosas. Dir-se-ia ter também de sucumbir ao fascínio e vir a fazer parte do harém daquele sultão.
Que estranha vontade possuía a pequenina mulher morena! Que subtil poder feminino num corpo que quase só tinha pele e osso! Teresa era capaz de engrandecer a glória do marido - ao passo que ela própria se tornava imperceptível, a não ser quanto ao fulgor tigrino dos seus grandes olhos pretos.
Kate observava admirada. Conhecera homens que lhe davam a impressão de a transformarem em rainha, de ter a cabeça nas estrelas e repousar o peito nas nuvens. Sabia o que era subir, subir, subir até encher o universo com a sua feminilidade.
Via agora, porém, o contrário. Quem tinha poder sobrenatural era essa criatura pequenina, que fazia maior Don Ramon, enquanto ela se diminuía e ficava invisível, excepto no que respeitava aos olhos. Ele, como um sultão, como um fruto sazonado ao sol, tomava uma aparência extraordinária e imponente; e então, por algum poder misterioso do seu corpo trigueiro, a frágil Teresa fazia-o ainda mais completo.
Era o que Ramon queria, e Kate, percebendo-o, sentia-se irritada. Parecia-lhe odioso aquele macho triunfante, exasperava-a aquela rapariga ardente que só pensava em exaltar o homem.
ah, o poder oculto da mulher trigueira! Kate chamava àquilo harém e prostituição. Sim, era a atitude da escrava. Que pretendia dele essa criatura senão o sexo, como uma prostituta?
Pois não era degradante para uma mulher semelhante espécie de amor? E não tornava o homem fraco, sensual, ou odiosamente tirânico?
No entanto, já duma coisa Kate se convencera: que a chave da vida, e da continuidade da vida, residia nas relações do homem e da mulher. A união completa dos dois representava a vida presente e futura; dessa fusão surgia uma vida nova.
Mas tais relações necessitam de equilíbrio, e TereSa destruía-o juntando na balança o seu peso ao do homem.
Ramon não quisera Kate. Possuía agora o que desejara: aquela criaturinha escura, tão servil e orgulhosa do seu poder. Só quisera Kate para camarada, camarada inteligente, Não para mulher. Preferira essa viborazinha de Teresa...
Cipriano, esse desejava Kate. O general, o militar empertigado desejava Kate, mas só por momentos. não se importava casar realmente com ela; o que lhe interessava eram os instantes passados a seu lado. Kate tinha de lhe conceder esses instantes, e em seguida ele tornava a partir para junto das suas tropas. com isso se contentava. E ela também. Assim, ficava senhora da sua existência. Não tinha feitio para andar de roda dum homem a excitar-lhe o sangue, a estimular-lhe o ardor!
Levantou-se e foi ao quarto buscar um livro que prometera a Ramon. Não podia suportar mais tempo a exibição do amor dele por Teresa. Ah, aquele sorriso néscio estampado no rosto do homem, o brilho estranho dos olhos, o aprumo orgulhoso do corpo!
Eis como eram os dessa raça. Selvagens, com o insuportável fluido sensual dos índios e aquela maneira primitiva de se dissolver numa horrível confusão de desejo; com a presunção da sua virilidade insolente e inesgotável.
O pior era que essa força cósmica que ela até aí só conhecera nos olhos azuis dos homens loiros (e que tornava rainhas as respectivas mulheres, ainda que eles as detestassem por fim), essa força declinava agora nos olhos azuis e nascia nas pupilas pretas. As de Ramon, naquela ocasião, luziam de orgulho, poder e desafio. E o mesmo notava Kate nos olhares rápidos de Cipriano. A força do mundo esmorecia nos homens loiros, a sua supremacia abandonava-os para renascer nos de cor escura.
Joachim, o ser inquieto, inteligente e sensível, que era capaz de penetrar na alma de Kate e contemplá-la com os seus olhos azuis, morrera à vista da mulher. Se ela pudesse excitar-lhe o sangue, como Teresa fazia a Ramon, nunca ele teria morrido. Mas seria impossível. Cada um é como é. E cada raça, também. Teresa bateu timidamente à porta do quarto.
- Posso entrar?
- Entre! - respondeu Kate, endireitando-se e deixando as rimas de volumes em volta da mala dos livros.
O aposento era amplo e através das janelas rasgadas via-se o pátio e o jardim soalheiro, mangueiras de troncos lisos como trombas de elefantes, ervas reverdecidas pela chuva e galinhas a esgaravatar a terra debaixo das folhas esgarçadas das bananeiras. Um pássaro vermelho chafurdava no tanque, abrindo e fechando as asas escuras sobre o corpinho escarlate.
Teresa, porém, olhava para o quarto, não para fora. Sentiu o cheiro de cigarros, cujas pontas enchiam um cinzeiro de ágata. Notou os livros em desordem, as jóias espalhadas, a tapeçaria persa pendente atrás da cama, a colcha magnífica, os vestidos de seda e de veludo colocados sobre uma arca, os xailes de longas franjas cuidadosamente dobrados, os sapatos espalhados no chão, brancos, cinzentos, amarelos, castanhos e pretos, e os belos castiçais chineses.
Teresa parecia fascinada por tudo aquilo.
- Que linda! - disse, tocando na colcha sumptuosa.
- Foi uma amiga que a fez e ma ofereceu, em Inglaterra. Teresa observava tudo com espanto, em especial as jóias dispersas no toucador.
- Não gosta dessas pedras encarnadas? - perguntou Kate, ajoelhando de novo para arrumar os livros e olhando o pescoço moreno pendido sobre as jóias. Que ombros frágeis e que pele acetinada, naquele vestidinho branco! E aquela cabeleira negra, segura por travessas de tartaruga! No conjunto, uma rapariguinha humilde e insignificante. Mas Kate bem sabia que Teresa não era insignificante nem humilde. Naquele corpo franzino havia um estranho poder que despertava o ardor num homem e o exultava e, de certa maneira, o guardava só para si. O eterno apelo da carne...
Na mesinha de costura estava um pedaço de musselina que Kate comprara na índia e não sabia em que aproveitar. A cor, espécie de amarelo-pêssego, não se harmonizava com o seu tom de pele. Teresa apalpou o tecido entremeado de fios de ouro.
- É organdi?
inquiriu.
- Não, é musselina feita à mão. Ofereço-lha. A cor vai-me mal, e a si deve-lhe ir lindamente.
Ergueu-se e dispôs o tecido de roda do pescoço bronzeado de Teresa. No espelho, esta viu-se envolta na bela musselina e os olhos brilharam-lhe de prazer.
- Ah, não! Não posso aceitar!
- Porquê? Não condiz bem comigo. Faz agora um ano que a tenho aí. Até pensei em cortá-la para fazer cortinas. Fique com ela.
Kate talvez fosse arrogante, e até cruel, na sua maneira de oferecer.
- Não quero privá-la...
- Aceite, peço-lhe.
Ramon apareceu no limiar e relanceou o quarto e as duas mulheres.
- Olha! - disse Teresa, embaraçada. - A señora quer dar-me esta musselina indiana. - Voltara-se timidamente para ele, com o tecido desdobrado em roda do pescoço.
- Fica-te muito bem - declarou Ramon, contemplando-a.
- A señora não devia oferecer-me...
- Se to dá é porque faz gosto nisso.
- Então - concluiu Teresa, virando-se para Kate - muito e muito obrigada.
- Não tem de quê!
- Ramon acha que me vai bem...
- Na verdade, vai-lhe a matar - declarou Kate, dirigindo-se agora a Ramon. - O tecido foi feito na índia para alguém com aquela cor trigueira. Há-de condizer admiravelmente com ela.
- É muito bonito - concordou Ramon.
com o olhar, percorria o quarto, examinava os diferentes objectos que ali estavam, vindos de todas as partes do mundo, e até as pontas de cigarro na taça de ágata: luxo, desordem, e algo de esterilidade da mulher emancipada.
Kate não sabia em que é que ele pensava. Mas, por seu turno, reflectia: "Ora aí está o homem que eu defendi naquele terraço, que eu vi com um buraco nas costas, nu e inconsciente. Nesse momento não se parecia com um sultão."
Teresa devia ter-lhe adivinhado os pensamentos, porque disse,
olhando para Ramon:
- Sem a señora, Ramon teria morrido. Nunca me esquecerei...
- Não falemos nisso - atalhou Kate. - O destino tece-as.
Eu não alterei nada.
- Foi o próprio destino, señora!
- Não quer vir passar uma temporada connosco em Jamiltepec? - perguntou Ramon. - Agora já tenho uma dona de casa.
- Sim, vá! - insistiu Teresa.
- Ela precisa de uma amiga - explicou o marido.
- Preciso, é verdade. Nunca tive nenhuma a valer desde que deixei o colégio, ainda pequena...
Kate duvidava que pudesse ser para Teresa uma amiga a valer. E cogitava no que pretenderiam, de facto, aqueles dois - e o que pensariam dela.
- Pois sim, terei muito gosto em passar uns dias...
- Óptimo! - exclamou Teresa. - Quando deverá ser? Combinaram o dia.
- E escreveremos a canção de Malintzi - disse Ramon.
- Não faça semelhante coisa - acudiu Kate vivamente.
Ele olhou-a com ar pasmado, como se não percebesse logo, um ar que lhe era habitual. Por instantes, Kate poderia supor ter-lhe dado a impressão que um fantasma produziria se aparecesse a uma criança.
Em Jamiltepec, as duas mulheres entretiveram-se a talhar vestidos para Teresa na peça de musselina cor de ananás. Para senhora casada, o guarda-roupa de Teresa era bastante modesto: só possuía trajes pretos, que lhe davam um ar infeliz, e alguns brancos já antiquados. Até aí só vivera para o pai (que tinha bons livros acerca do México e toda a vida escrevera sobre a história do estado de Jalisco) e para dirigir a sua hacienda. Esta, chamada de Las Jemas, era a única que não fora destruída durante as revoltas que se seguiram à fuga de Porfirio Diaz; Teresa orgulhava-se bastante deste facto.
O seu carácter assemelhava-se muito ao de uma freira, talvez por se tratar de uma pessoa profundamente apaixonada e as paixões profundas serem mais para se esconder do que para exteriorizar nos contactos quotidianos.
Kate, provando-lhe o vestido sobre os ombros morenos, tornou a admirar a estranha macieza daquela pele escura e o pesado volume dos cabelos negros. A família dos Romeros, a que Tereza pertencia, estabelecera-se no México logo nos primeiros tempos da conquista.
Que lhe fizesse mangas compridas, sugeriu. E acrescentou, ocultando um pouco envergonhada a magreza daqueles membros trigueiros:
- Tenho os braços tão delgados! Não são bonitos como os
seus.
Kate, mulher de quarenta anos, tinha-os fortes e alvos e toda ela
era bem constituída.
- Sim - repetiu Teresa -, compridas até aos punhos.
A outra assim fez, achando que, na realidade, era o que mais convinha àquela natureza.
- Aqui os homens - explicou a dona da casa - não gostam
de mulheres magras.
- Não importa o que os homens pensam - sentenciou Kate. - Julga que Don Ramon gostaria que fosse gorda como uma
galinha?
Teresa fitou-a com os seus olhos pretos, grandes e brilhantes -
tão vivazes e, de certa maneira, fugidios.
- Quem sabe! - exclamou. E, no seu sorriso rápido, malicioso, via-se que não desgostaria de ser, às vezes, como uma galinha
gorda.
Presentemente Kate conhecia mais do que nunca a vida interior duma hacienda. Quando estava em casa, Ramon consultava diariamente o feitor; Teresa, porém, aliviava-lhe esse trabalho e já se ocupava bastante da propriedade. Em geral, ele andava por fora, ou para ir à Cidade do México, ou a Guadalajara e mesmo a Sonora. Todos o conheciam no país e o seu nome tornara-se célebre. Mas, debaixo desse culto que os compatriotas lhe prestavam, Kate adivinhava uma animosidade latente. Talvez preferissem aniquilar os seus heróis a elevá-los temporariamente às culminâncias da glória. O momento que mais apreciavam era o da queda do ídolo.
Para Kate, sempre céptica, deviam eles andar afiando o gume com que o atingiriam no peito, quando o herói se tornasse demasiadamente incómodo. É claro que precisavam da anuência de Cipriano, e Cipriano era um diabinho que os mexicanos temiam deveras. Cipriano, por então, conservava-se fiel - para com Ramon e para consigo mesmo. Representava o papel de Huitzilopochtli e Ramon o de Quetzalcoatl. Eis uma verdade simples e evidente para o general, que mantinha o seu exército pronto para o que desse e viesse. O próprio presidente seria incapaz de prescindir de Viedma, apesar de ser também um homem destemido.
- Qualquer dia - declarava Cipriano - poremos Quetzalcoatl na Catedral de Puebla, e Huitzilopochtli na da capital, e Malintzi na de Guadalupe. Não falta muito, Ramon.
- Faremos com que esse dia chegue - respondia Ramon.
Mas Ramon e Montes sofriam ambos com a profunda e diabólica animosidade do país, manifestada no próprio silêncio da população. Era sempre assim, fossem quais fossem as mãos em que o poder caísse: os Mexicanos pareciam destilar ódio oculto, um ódio demoníaco que lhes aviltava a alma; um ódio cujo único fim consistia em frustrar todos os planos.
Aí estava o dragão do México, que Ramon teria de combater. Contra o mesmo inimigo devia lutar o presidente Montes, e isso arruinava-lhe a saúde. Igualmente Cipriano, mas este desenvencilhava-se melhor. Os soldados apoiavam-no, com tambores e danças de roda das fogueiras. E o general consolidava de dia para dia a sua posição.
Ramon, na sua província, também se sentia seguro. Era o chefe, e, com o seu esforço e energia, lograva dominar qualquer veleidade de revolta. Aterrorizava com o mistério da vida, continha a gente em respeito pela fascinação que exercia. Nos seus domínios, considerava-se forte. Mas fora daí, e em especial na Cidade do México, aquela invisível e subtil má vontade do povo dir-se-ia fazê-lo sangrar, sangrar imensamente. E também a voracidade dos estrangeiros, aves de rapina que rondavam a capital cosmopolita.
Durante a ausência de Ramon, Kate fez companhia a Teresa. As duas mulheres tinham isto de comum: achavam que era melhor apoiar um homem corajoso do que fazer papel de intrometidas e importunas. Isso as unia. A profunda convicção de que deviam ser fiéis aos respectivos maridos ligava intimamente a mulher de Cipriano à de Ramon.
Estava quase no fim a estação das chuvas, embora se pudessem prever aguaceiros ocasionais para Setembro ou mesmo Outubro. Entretanto o belo Outono mexicano surgira na terra, como uma espécie de Primavera ao inverso. Vastos espaços se cobriam de flores brancas e cor-de-rosa, estranhos arbustos silvestres floresciam também, duma maneira fantástica, brilhavam à luz florestas inteiras de girassóis; o céu estava de um azul puríssimo, e, nas terras encharcadas da última chuva, a claridade do dia reverberava intensa.
O lago enchera-se mais, povoando de plantas aquáticas todas as suas margens. Vinham aves imigradas do Norte, nuvens de patos bravos que pareciam poeira no ar e depois polvilhavam a água como raminhos de erva: colimbos, grous, gaivotas brancas dos mares interiores, tal se o mistério dos regimes setentrionais se deslocasse para o Sul. Errava em terra o cheiro de água, que produzia uma sensação calmante - tanto mais que Kate supunha ter origem na aridez do solo parte do horror que lhe causava o povo mexicano. Se houvesse sempre uma gota de água na atmosfera e uma neblina sobre as árvores, desapareceria dos corações humanos aquela maldade inexprimível.
Kate ia muitas vezes a cavalo, com Teresa, ver os campos. A cana-de-açúcar, nos vales, crescia muito verde e muito alta, e os peóns começavam a cortá-la com os seus nwchetes, que pareciam espadas, e enchiam os carros de bois que as transportavam à fábrica de Sayula. Nas vertentes áridas das colinas, avultava na sua rigidez férrea a espinhosa planta da teqnila, que é uma espécie de agave. E nos cactos rijos abriam flores maravilhosas, belas de mais para tão sinistra planta. Através dos campos viam-se molhos de vagens apanhadas dos feijoeiros e abóboras dum tamanho incrível. Entre as folhas emurchecidas pendiam tomates e pimentões. Ainda se erguiam pés de milho com espigas tenras. Como a banana era pouca, as crianças colhiam toda a fruta que encontravam para fazer doce. Teresa, para esse efeito, aproveitava até os últimos figos e pêssegos. Das mangueiras suspendiam-se frutos amarelos e maduros, mas na maior parte eles estavam verdes e tombavam pesados como testículos de toiro.
Era Outono no México, com patos bravos na água, e caçadores com espingardas, e rolas nas árvores. Outono do México, início da estação seca: céu mais alto, azul mais pálido, poentes de rara transparência doirada. Os bagos de café avermelhavam-se nos arbustos contorcidos debaixo das árvores maiores, e as buganvílias, de tons roxos, eram tãoespessas que se podiam mergulhar nelas os braços.
Teresa cuidava de tudo e Kate ajudava-a. Se estava um peón doente numa das cabanas, se era preciso separar os enxames de abelhas nas colmeias debaixo das mangueiras, fazer compotas, tratar do jardim, dos vitelos, do fabrico de manteiga ou de queijos, Teresa a tudo isso atendia acompanhada de Kate. E esta admirava-se da vontade firme e constante, que tinha de ser exercida a todo o momento. Tudo corria bem graças a um poderoso esforço de vontade. À mínima fraqueza do patrão as coisas desandariam e seria a ruína da propriedade.
Jamais um desfalecimento, sempre a vontade tenaz.
Ramon regressou, numa tarde de Novembro, de longa viagem a Sonora. Viera por terra desde Lepic, e, por duas vezes, encontrara-se retido pelas inundações; não era vulgar chuvas tão tardias. Mostrava-se fatigado e com ar ausente. Kate sentiu um baque no coração enquanto comentava para si mesma: " Tão longínquo, que até parece encaminhar-se para a morte."
As nuvens cobriam o céu novamente, relampejava no horizonte, mas tudo estava silencioso. Kate retirou-se cedo e foi até à extremidade do terraço sobranceiro ao lago. Só a claridade intermitente dos relâmpagos iluminava a noite escura e, num desses breves clarões, viu Teresa sentada junto do muro do terraço descoberto; tinha a cabeça de Ramon deitada no regaço e acariciava-lhe lentamente os bastos cabelos pretos.
Kate sobressaltou-se, e disse num murmúrio:
- Desculpem! Não sabia que se encontravam aqui.
- Quis estar cá fora, ao ar livre! - explicou Ramon, soerguendo-se a custo.
- Não se mexa! - pediu Kate. - Foi estupidez minha ter vindo aqui. O senhor está cansado.
- Sinto-me realmente cansado - volveu ele, deitando-se outra vez no chão. - Aquela gente chega a convencer-me de que estou esgotado. Por isso voltei para Teresa.
- Sim - retorquiu Kate. - Não se é impunemente o Quetzalcoatl vivo. É natural que o esgotem. Mas valerá a pena ser devorado por eles?
- Tem de ser assim. Há-de-se verificar a mudança e é um homem que a deve fazer. Às vezes chego a desejar que não seja eu.
- Também acho. E Teresa igualmente. Até penso se não será preferível continuar a ser apenas um ser humano.
Teresa, entretanto, calava-se.
- Faz-se o que é preciso fazer - disse Ramon. - No fim de contas, não se deixa de ser homem. E, se daí resultar ferimento... à la guerre comme à la guerre!
Aquela voz, no escuro, parecia a de um fantasma.
- Ah! - fez Kate, suspirando. - Gostava de saber o que é um homem que se expõe a tantos horrores por causa dos seus semelhantes.
Houve um momento de silêncio.
- O homem é uma coluna de sangue dotada de voz. Quando a voz se extingue e fica apenas a coluna, tanto melhor.
Retirou-se ela para o seu quarto. Ia triste, levando ainda nos ouvidos o som daquelas palavras melancólicas. Dir-se-ia que Ramon tinha dentro de si uma ferida aberta. Era como se Kate a sentisse, nas suas próprias entranhas.
Se ele morresse, em resultado de tanto esforço? Então, pensou, Cipriano ficaria só e tudo estaria acabado.
Por que razão devia um homem afadigar-se de tal maneira por causa dum povo estúpido e mau? Se o mundo corria à desfilada para a sua perdição, deixá-lo, isso era lá com ele.
Pensou em Teresa, que consolava Ramon sem dizer nada. E pensou em Ramon, assim ferido e desesperado! Coisas horríveis, na verdade. Ela devia intervir, defendê-lo contra si próprio. Porque haviam os homens de empreender esses combates inúteis, dos quais voltavam para casa a fim de se restabelecerem junto das suas companheiras?
Para Kate, essa luta não merecia sequer as honras de um ferimento. Que tão antipático mundo terminasse de vez, se tal era o seu destino, e quanto mais depressa melhor! Kate não levantaria um dedo para o impedir. Que cada qual vivesse a sua preciosa vida, que é só uma - e fosse tudo mais para o diabo!
Tentaria impedir que Ramon continuasse naquela senda suicida. Deixá-lo ser o Quetzalcoatl vivo quantas vezes quisesse; mas não tinha o direito de se expor à maldade demoníaca do povo.
Contudo, ele insistia nisso, como Joachim fizera na Irlanda. Teresa, com a sua firmeza doce e calma, talvez lhe fosse de melhor auxílio do que Kate com as suas recriminações.
"Ah! Ainda bem que Cipriano é militar. As feridas que sofrer não lhe atingirão a alma." Mas sabia que, sem Ramon, Cipriano não seria ninguém e nem chegaria a interessar-lhe.
De manhã, Teresa compareceu sozinha ao primeiro almoço. Parecia muito tranquila; dissimulava os sentimentos sob o seu ar orgulhoso de mulher morena.
- Como vai Ramon?
- Está a dormir.
- Ainda bem. Pareceu-me muito em baixo ontem à noite.
- Sim... - Teresa fitou a outra com os seus grandes olhos negros cheios de coragem e de lágrimas contidas.
- Não compreendo que um homem se sacrifique àquele ponto. É inadmissível.
Teresa continuava a fitá-la.
- Ele não se sacrifica - replicou. - Sente que tem de proceder assim. E o meu dever é ajudá-lo.
-? Nesse caso, sacrifica-se por ele, o que também é para mim inadmissível.
- Ah, não! - retorquiu Teresa, com uma onda de sangue a ruborizar-lhe as faces. - Não me sacrifico por Ramon. Se posso dar-lhe... sono... quando dele necessita, isso não representa sacrifício. Representa... - Não terminou a frase, e o rubor acentuou-se-lhe.
- Representa amor, bem sei - volveu Kate. - Mas também a esgota.
- Não é só amor! - exclamou Teresa altivamente. - Eu podia amar outros homens, há muitos que merecem afecto. Mas Ramon... A minha alma pertence-lhe. - Afloraram-lhe lágrimas aos olhos. - Prefiro não falar deste assunto - acrescentou, pondo-se de pé.
E saiu do quarto, deixando Kate um tanto perturbada - e com desejo de voltar para Sayula.
Mas uma hora depois Teresa reapareceu e, apoiando no braço de Kate a mãozinha fresca e macia, disse-lhe em tom suave:
- Desculpe se fui indelicada.
- Eu é que não tenho razão...
- Sim, julga que em tudo isto só existe amor. O amor é uma parte mínima do resto.
- E que é o resto?
- Como posso dizer-lhe, se desconhece? Mas pensa que Ramon não é para mim mais do que um amante?
- Um marido! - emendou Kate. Teresa sacudiu a cabeça com impaciência.
- Ah, esses termos, que tão pouco significam! Não é apenas um marido! É a minha vida!
- Acho preferível cada qual viver a sua vida.
- Não. A vida é como uma semente. De nada serve se não a dermos. Sei que é assim; guardei durante anos a minha vida para mim só. Quando se a guarda muito tempo, ela morre. Quis oferecê-la a Deus, mas não consegui. Disseram-me que se eu casasse com Ramon e tomasse parte na heresia de Quetzalcoatl ficaria condenada aos tormentos eternos, mas alguma coisa me segredava que isso não era verdade e que Ramon necessitava da minha alma. Ah, señora!
- Um sorriso iluminou a face pálida de Teresa. - Dei a minha alma a Ramon. Perdi-a por sua causa. Que mais posso dizer?
- E a alma dele?
- Está aqui. - E Teresa espalmou a mão no seio. Kate ficou um momento calada.
- E se ele a atraiçoar? - perguntou então.
- Ah, señora, Ramon não é apenas um amante. É um homem honesto e não trairá o seu próprio sangue. Concedeu-me a sua alma em troca da minha, e eu lutarei até ao último sopro de vida para o apaziguar quando volta para mim esfrangalhado e com necessidade de sossego. - Teresa proferiu tudo isto com veemência, e depois acrescentou num murmúrio, como se falasse a si mesma: - Graças a Deus, não tenho uma vida só minha. Dei-a a um homem que é mais que homem, como se diz na linguagem de Quetzalcoatl. Por isso ela não morrerá em mim como um pássaro na gaiola... Oh, señora! Quando ele parte para Sinaloa e para a costa ocidental, a minha alma acompanha-o. E Ramon não se esquece que a minha está com ele, tenho a certeza! Não, señora, não deve criticar-me nem
lastimar-me.
- No entanto, acho melhor cada qual guardar a sua alma e ser
responsável por ela.
- Sim, se fosse possível! - replicou Teresa. - Mas não se pode guardar a alma dentro de nós porque acaba por morrer... Enquanto o homem não nos dá a sua semente, a nossa é estéril, e a dele nada vale sem a mulher. O mesmo acontece à alma. Enquanto a não damos a um homem e ele a não toma, nenhum valor tem. E depois de ele a tomar, toda inteira, ninguém fala de traição! Um homem só atraiçoa quando se lhe deu uma parte e não tudo, e a mulher só atraiçoa quando aceita dela apenas uma parte e não o todo. Mas quando de um lado se deu tudo e tudo se aceitou, a traição não existe. Sou o que sou para Ramon e ele é o que é para mim. Não importa o que fizer. Não importa que esteja longe.
Kate não gostava de receber lições daquela criaturinha; era mulher da sociedade, bela e com experiência da vida. Estava acostumada a que lhe rendessem preito. As demais do seu sexo chegavam a temê-la, porque era decidida e impiedosa.
Teresa também a receava um pouco como senhora da sociedade, mas não como mulher. Entrincheirada na sua almazinha orgulhosa, Teresa considerava Kate uma dessas pessoas do mundo exterior que têm muito brilho mas que não estão muito seguras dos segredos da sua personalidade. Toda a beleza e crueldade feminina de Kate era coisa secundária para Teresa em comparação com o profundo e tranquilo amor que a ligava a Ramon.
Sim, Kate habituara-se a olhar as outras mulheres como seres inferiores. No entanto, os papéis inverteram-se de súbito. Embora soubesse que Ramon era superior a Cipriano, viu-se constrangida a pensar se Teresa não seria também superior a ela.
Teresa? Mais importante do que Kate? Que surpresa! Não podia ser verdade.
Contudo, assim era. Ramon desejara casar com Teresa e não com Kate. E o ardor desse enlace ela via-o tanto nos olhos de Ramon como nos da mulher: um ardor que não existia nos olhos de Kate.
O casamento desta com Cipriano não parecia sério nem definitivo. Quando Cipriano estava ausente, ela recuperava a sua antiga individualidade. Só com o general presente é que se compenetrava da sua submissão.
Quando Teresa voltou a fitá-la com aquele seu fulgor do olhar, misturado de indignação, Kate sentiu-se desanimada e arrependida - decerto pela primeira vez na sua existência.
Sabia que Teresa sentia certa aversão por ela: era uma estrangeira branca que falava tão inteligentemente como um homem e nunca dera a sua alma; nem admitia que a pudesse dar. Todas essas damas bem vestidas, da América ou da Europa, guardavam a alma para si mesmas, numa espécie de avareza.
Teresa estava resolvida a não deixar que a outra a tratasse indefinidamente como um ser inferior. Assim procediam todas as estrangeiras para com as mexicanas, porque se consideravam emancipadas. E, para com Ramon, mostravam certa condescendência.
Mas Ramon... Bastava que ele as fixasse para que elas se sentissem reduzidas a nada, apesar de todo o seu dinheiro, experiência e ares dominadores. Raças dominadoras! Que esperassem! Ramon era um desafio a tudo isso. Que o dominassem, se fossem capazes de tanto!
- Não dormiu? - perguntou Teresa a Kate.
- Não muito bem.
- Está com olheiras.
Kate alisou a pele, desconfiada, em volta dos olhos.
- É o que nos faz o México. Não é fácil conservar a juventude neste país. A senhora é que está com bom parecer.
- Sinto-me perfeitamente.
Irradiava de Teresa uma frescura nova, algo de frágil e subtil que ela não precisava de defender contra outra mulher.
- Agora que Ramon já veio, é altura de eu regressar a casa -
declarou Kate.
- Porquê? Faz empenho nisso?
- Acho preferível.
- Nesse caso irei consigo até Sayula. De barco, não é verdade?
Kate arrumou as suas coisas. Dormira mal. A noite fora tenebrosa, cheia de horrores. Lembrara-se de Ramon atacado pelos bandidos e do seu ferimento nas costas. Tivera-a acordada durante horas o barulho ameaçador da chuva.
Percebia o desdém de Teresa pela sua maneira de considerar a
vida conjugal.
- Também eu fui casada - disse Kate. - com um homem
excepcional, a quem amei.
- Ah, sim... E ele morreu.
- Quis morrer.
- Ah, sim... quis morrer.
- Fiz o possível para evitar que se estafasse.
- Fez?
- Que mais estava na minha mão? - redarguiu Kate, num
assomo de ira.
- Se lhe houvesse dado a sua vida, ele não quereria morrer.
- Eu dei-lhe a minha vida. Amava-o. Ah, nem faz ideia! Mas ele não quis a minha alma. Achava que eu devia guardá-la para
mim.
- Os homens são assim quando são apenas homens. Mas,
sendo ardentes e bravos, então querem que as mulheres lhes dêem a alma e guardam-na dentro de si. Sei o que é. Sei onde a minha alma está. Nas entranhas de Ramon, assim como a sua semente está nas minhas entranhas, entranhas de mulher. Ele é um homem e uma coluna de sangue; eu sou uma mulher e um vale de sangue. Digo-lhe isto porque lhe salvou a vida e portanto estamos todos ligados: Caterina, eu, Ramon e Cipriano. Mas não me julgue mal. Aquela outra espécie de mulheres, as que conservam a sua alma, que é senão fraqueza?
- E os homens?
- Se são ardentes e bravos, confortam as nossas entranhas, Caterina!
Kate baixou a cabeça obstinada, furiosa por ter sido apeada do seu pedestal. Que coisa miserável, pensou, isso de uma mulher viver apenas por amor de um homem! Só para lhe enviar a alma para dentro do seu precioso corpo... E trazer no ventre a sua semente preciosa... Quanto a ela própria, nada.
Pretendeu consumar a sua indignação, mas não foi bem sucedida. Talvez no fundo, e contra sua vontade, invejasse Teresa, os seus olhos negros cintilantes, a sua firmeza selvática. Invejava-lhe os dedos delicados, e, acima de tudo, a consolação de ter um homem tão profundamente ligado a si.
A manhã estava quente depois da chuva. As rãs coaxavam, frenéticas. Na outra banda do lago as montanhas pareciam azuis-escuras, com farrapos de nevoeiro a arrastarem-se através das árvores e nuvens brancas a coroarem os picos. Nas águas barrentas navegava um barco de vela solitário.
- Hoje, tudo isto me lembra a Europa, o Tirol - disse Kate, comovida.
- Gosta muito da Europa? - perguntou Teresa.
- Muito.
- E tenciona voltar para lá?
- Penso regressar em breve, para ver minha mãe e os meus filhos.
- Eles reclamam-na?
- Sim, respondeu Kate, um pouco hesitante. E em seguida ajuntou: - Não muito. Mas quero tornar a vê-los.
- Porquê? Tem saudades deles?
- às vezes. - E os olhos de Kate arrasaram-se de água. O barco avançava sem rumor.
- E Cipriano? - volveu Teresa, a medo.
- Ah!, exclamou Kate. -Esse é para mim como um estranho.
Teresa ficou uns momentos calada.
- O homem é sempre estranho para a mulher, creio eu - rematou ela. - E porque não havia de ser?
- Mas a senhora não tem filhos.
- Tem-nos Ramon, E ele costuma dizer: "Continuarei a lançar pão à água e se meus filhos acabarem por se aproximar de mim ficarei contente." Não é. o seu caso?
- Não! - respondeu Kate. - Sou mulher, não sou homem.
- Se eu tiver filhos - declarou Teresa - também lançarei pão à água para os atrair, e espero não os reter ciosamente na minha rede. Assusta-me o amor, é tão pessoal! Devemos deixar os pássaros voarem com as suas asas e os peixes nadarem à vontade. a manhã concede-nos mais do que o amor. E eu quero ser sincera para com a manhã.

XXVI
Kate estava satisfeita por voltar à sua casa e por se encontrar sozinha. Sentia que se operava nela uma grande mudança - mudança que a poderia matar se se realizasse violentamente. Era o fim de qualquer coisa e o princípio de outra: no mais profundo da sua alma e nas suas entranhas. Os homens, Ramon e Cipriano, e o México, seriam a causa daquela modificação. Chegara o momento. Entretanto, se a evolução fosse brusca de mais, e rápida em excesso, poderia revelar-se fatal. Por isso tinha necessidade de se isolar, de tempos a tempos.
Sentava-se na margem durante horas, à sombra dum salgueiro verde, cuja cortina de folhas descia até à água. O lago mostrava-se mais alto e mais cheio que de costume, e tinha também maior calma e maior mistério. Errava o cheiro dos nenúfares que emurcheciam depois de haverem dado à costa. As distâncias pareciam prolongadas. Lembravam estampas japonesas os outeiros mais próximos, salpicados de verdura. Carros de grandes rodas traziam à aldeia a cana-de-açúcar cortada; puxavam-nos a cada um, oito bois que baloiçavam lentamente a cabeça de enormes chifres, enquanto um peón, à frente, os conduzia com o aguilhão poisado no jugo. Tão pesados, tão vagarosos e contudo fáceis de guiar!
Experimentava, no México, uma sensação esquisita, como se estivesse em presença duma humanidade pré-histórica, gente de olhos escuros de antes do período glaciário - quando o mundo era mais frio, os mares vazios e diferente a constituição da terra; quando as águas, solidificadas, se acumulavam nos pólos, e as planícies ocupavam os oceanos, como a Atlântida e os antigos continentes da Polinésia; quando os mares não passavam de lagos, embora grandes, e os povos de olhos pretos podiam dar a pé a volta ao mundo. Nesse tempo existia uma raça misteriosa de sangue ardente e ligeira no andar: raça que possuía uma civilização que lhe era própria. Depois fundiram-se os glaciares, os homens refugiaram-se nos pontos elevados, como os planaltos do México, e separaram-se em nações diferentes.
Na América é tão forte a sombra do mundo antediluviano que às vezes Kate perdia a noção dos tempos decorridos e começava a aproximar-se do antigo modo de ser, da vontade velha e torva, do desprezo da morte, da subtil e escura consciência, do instinto que precedeu a razão. Regressava à época em que o espírito e o poder dos homens residiam no sangue e na espinha dorsal, e as relações entre eles e com os animais se produziam através da medula.
Os Mexicanos ainda se encontravam nesse estádio. O que é aborígene na América pertence à fase de antes do Dilúvio, antes de reinar na terra a vida espiritual. Por isso, ali, a actividade cerebral dos brancos se alastra como uma erva em terreno virgem - para, é claro, murchar depressa e desaparecer por completo. Então, como resultado disso, surge um novo gérmen, uma nova concepção da humanidade: vem da fusão da antiga consciência instintiva e do racionalismo intelectual do branco. Um ser diferente, nascido do encontro daqueles dois.
Kate era muito irlandesa, e no fundo da sua alma jazia o misticismo original, quase desaparecido, dessa primitiva raça celta ou ibérica. É como um resíduo que existe ainda no mundo antediluviano e que não pode ser inteiramente destruído.
Sabia ela, mais ou menos, que era essa fusão o que Ramon pretendia realizar. Compreendia também o motivo pelo qual Cipriano tomava a seus olhos uma importância maior que todo o seu passado, os seus dois maridos, e os filhos. Esse velho sangue másculo despertava-lhe agora nas veias; daí vinham as palpitações que ela ultimamente sentia.
A Irlanda não podia nem queria esquecer aquele ardor sombrio e primitivo. Os Thuathas de Danaan, embora submersos, continuam vivos no sangue, não se lhes consegue impor silêncio. E a Europa científica e meticulosa tinha de se defrontar de novo com os velhos
gigantes.
Esta alteração, todavia - e Kate bem o notava -, não era coisa que se efectuasse com brusquidão; de outro modo haveria rotura e possibilidade de morte. O primitivismo tem os seus horrores. O espírito original do México, pesado, terre à terre, podia ser-lhe tão odioso que a tornasse perversa. Essa obtusa, indomável persistência, desprovida de energia e de esperança, que é peculiar ao aborígene americano, levava-a às vezes a supor que ia perder a razão. Obstinação tenaz que resistia aos séculos e desprezava a personalidade! Lascívia da morte, feroz, incalculável, terrível!
Esse povo, realmente, nunca mudava. Os homens não tinham fé na vida, em nenhuma realidade evidente. Eram apenas fiéis a certas forças obscuras do passado. O presente submergia-se na alma dos homens e das mulheres sob uma camada de lava negra, não deixando à superfície senão a indiferença.
A Esperança! A Esperança! Seria possível, um dia, fazê-la reviver nessas almas obscuras e obter o enlace das suas raças, único passo para o novo mundo do homem?
Entretanto, Kate sentia-se invadida por um mal-estar esquisito. Achava ser necessário partir, a fim de escapar a tamanha depressão. Já não podia ouvir a rastejante insistência dos criados: o sangue é só um, nós somos do mesmo sangue - sentença de tribo pior do que a morte para um indivíduo de raça branca. Estranha teimosia aquela que preconizava a todos a fusão do sangue!
Kate pertencia a uma família antiga, com pergaminhos. Fora educada nas ideias anglo-germânicas da superioridade intrínseca da aristocracia hereditária. O seu sangue era diferente do da gente vulgar: outro fluido, mais refinado.
No México, porém, nada disso conta. Juana, o homem que ia buscar água, o barqueiro que remava no lago, todos revelavam o mesmo pensamento no olhar: "O sangue é só um; pelo sangue tu e eu somos iguais." Kate lia isto nos olhos deles, adivinhava-o nas suas palavras, quer fossem deferentes ou escarninhas, e, por vezes, sentia-se revoltada com essa imposição da igualdade de sangue.
E quando se empertigava como para proclamar "O meu sangue é só meu. Noli me tangere", percebia nas pupilas negras daquelas criaturas o terrível ódio ancestral que as impele a cometer as maiores atrocidades.
Contudo, inclinavam-se perante a sua inteligência, sabedoria e compreenção, e, embora contra vontade, testemunhavam-lhe certo respeito. Ela pertencia às raças dominadoras, hábeis e espertas... Mas exigiam-lhe a aceitação da velha crença: O sangue é só um. Somos todos do mesmo sangue.
E tinha de se submeter, senão persistiriam na sua lenta vingança.
Mas não podia submeter-se de repente. Devia ser a pouco e pouco; um esforço violento destruí-la-ia.
Compreendia agora a afirmação de Ramon: "O homem é uma coluna de sangue, a mulher um vale de sangue." Era a unidade primordial
do género humano, oposta à unidade do espírito individual.
Kate, porém, sempre considerara seu o próprio sangue. O espírito é que ela partilhava com os outros.
Percebia agora o motivo por que Ramon e Cipriano usavam fatos brancos e sandálias e andavam meio nus como deuses vivos. Era a aceitação da antiga crença, o renascimento do laço de sangue que unia os homens, laço que tornava o sacrifício humano tão poderoso
factor da vida.
O sangue do indivíduo é rendido ao ser supremo, ao ser de sangue, deus, nação ou tribo.
E, na verdade, que estranha união existia entre Ramon e os seus homens, entre Cipriano e os seus soldados! Era a comunhão do sangue. Isto podia indignar Kate, enjoá-la por vezes, mas era uma força que não conseguia vencer.
Mesmo admitindo essa comunhão de sangue, Ramon reivindicava uma supremacia, até uma divindade. Era um homem como o mais humilde dos seus peóns, nascido da mesma fonte, das mesmas raízes que eles; no entanto, mostrava ser superior aos outros. E a sua superioridade não provinha do sangue ou do espírito mas duma misteriosa estrela interior que nascia do oceano sombrio e cintilava entre o mar e o céu imenso. A estrela que une o vasto sangue universal ao sopro universal do espírito e brilha entre ambos.
Porque essa coisa que reina sobre o poder humano e que é em si mesma um poder, essa coisa é a estrela misteriosa do cosmos primitivo, é a divindade no homem.
Certos homens nada possuem de divino. Possuem apenas faculdades. São ou deveriam ser escravos. Muitas vezes um homem tem a centelha divina, mas é sufocada pela força ou pela vida material.
E quando o espírito e o sangue se separam e divergem, provocando a morte maior, então apagam-se quase todas as estrelas.
Só o homem que possui uma estrela magna, uma grande divindade, será capaz de reaproximar essas forças contrárias e criar uma nova união.
Esse homem era Ramon e o seu esforço o máximo que se podia fazer: aproximar e unir as forças contrárias. Eis o poder divino de um homem. Por ele, no homem, se distingue o deus. Por ele apenas
e por mais nada.
Embora fosse como o mais ínfimo dos seus peóns, com o mesmo coração que bate, os mesmos rins insondáveis, e os lábios fechados sobre o mesmo segredo da humanidade; e fosse humano como Kate era humana, com a mesma ansiedade de espírito e a sede do puro conhecimento e da comunhão; no entanto só ele tinha o poder astral de unir os dois grandes impulsos da humanidade, e de os fundir - de ser a ave de asas imensas que paira entre as duas potências opostas: a Estrela da Manhã, que está entre o sopro da aurora e as profundezas da noite.
Os homens haviam tentado assassiná-lo com punhaladas. Carlota quisera matá-lo com o seu espírito. Cada parte, separadamente, pretendera liquidá-lo. Ele, contudo, estava fora do alcance de qualquer delas. Era o Quetzalcoatl vivo, a cintilação de uma estrela que nascia na alma dos seus compatriotas. Chama dum astro a meio das duas asas do poder: eis só o que representa a divindade num homem e em toda a humanidade.
Kate recebeu um recado de Cipriano: mandava-lhe dizer que vinha instalar-se na Vivenda Aragon. Esta casa era a principal da região do lago; tinha um jardim em toda a volta, não muito grande mas bonito, com palmeiras e sebes de jasmineiros, tudo muito verde em resultado de regas constantes. A própria construção lembrava um castelo em ponto pequeno, talvez despropositado; mas eram agradáveis as varandas espaçosas que davam para a encosta e a vegetação do jardim, mesmo acima do lago.
Cipriano chegou bem disposto. Brilhavam-lhe os olhos com uma expressão de mocidade. Queria casar a valer com Kate, segundo a lei civil mexicana, e morar com ela na Vivenda Aragon. Kate hesitava, achando que tinha necessidade de voltar em breve à Europa, sobretudo à Inglaterra e Irlanda. Era urgente, porque lhe custava já a suportar aquela ameaça do México, a sua influência deprimente. Precisava, pelo menos, de um intervalo de repouso.
Assim o declarou a Cipriano, que ficou desanimado.
- Não importa casar ou não antes de ir - disse ela. - O que tenho é de me afastar daqui o mais depressa possível.
- Quando?
- Em Janeiro.
O rosto dele desanuviou-se.
- Então casemo-nos primeiro. Na semana que vem.
Ela aquiesceu com estranha indiferença, e Cipriano, radiante, correu a fazer os preparativos necessários.
Pouco interessava a Kate o casamento civil. No sentido essencial, já estava casada com Cipriano. Ele era acima de tudo militar, tão depressa vinha para ela como a deixava. Kate, de qualquer maneira, passaria grande parte do tempo sozinha.
Podia convir-lhe como marido, mas o que a assustava era esse México terrível. O movimento quetzalcoatliano espalhara-se de maneira sinistra por todo o país. O arcebispo manifestara-se contra isso, e Ramon, Cipriano e seus aderentes estavam excomungados. Haviam tentado assassinar Montes.
Na capital, os partidários de Quetzalcoatl tinham escolhido para lugar de reunião a Igreja de San Juan Bautista, conhecida pela Igreja do Salvador Negro. O arcebispo ordenara aos seus fiéis que fossem em procissão ao referido templo, agora chamado Casa de Quetzalcoatl, a fim de o retomarem para o culto católico. O governo, porém, sabendo que mais tarde ou mais cedo haveria luta, fez dispersar a procissão e deteve o arcebispo, depois de alguma efusão de sangue.
Rebentou então uma espécie de guerra. Os Cavaleiros de Cortez exibiram a sua famosa reserva de armas, que aliás não era muito impressionante. Em Zócalo produziu-se uma manifestação clerical, dirigida por um padre fanático. Montes mandou atirar sobre os insurretos. Aquilo afigurava-se o começo duma luta religiosa. Pelas ruas viam-se os bandos de Quetzalcoatl, com as suas serapes azuis e brancas, e' os de Huitzilopochtli, de serapes vermelhas e pretas, marchando ao som de tambores e erguendo uns as suas estranhas insígnias redondas, feitas de penas, e outros longas varas rematadas por um penacho rubro de extremidade preta. Nas igrejas, os sacerdotes incitavam os fiéis à guerra santa; os que haviam aderido à causa de Quetzalcoatl discursavam nas ruas à multidão.
Período tumultuoso. Em Zacatecas, o general Narciso Beltran manifestara-se contra Montes e a favor da Igreja, mas Cipriano interviera com tal presteza e violência que deu em resultado o fuzilamento de Beltran e a dispersão das suas tropas.
Então Montes declarou ser igual no México o antigo culto católico e publicou um decreto determinando que a religião nacional da República fosse a de Quetzalcoatl. Encerraram-se todas as igrejas e os padres viram-se obrigados a prestar juramento de fidelidade à República ou a serem condenados ao exílio. Em todas as cidades e aldeias surgiam os soldados de Huitzilopochtli e os homens de serape azul. Ramon trabalhava sem descanso. Cipriano aparecia nos lugares onde menos o esperavam. Conseguiu despertar uma espécie de frenesi religioso nas regiões mais descontentes, como Vera Cruz, Tamaulipas, Jucatão. Efectuaram-se no mar estranhos baptismos e nas costas elevaram-se fortalezas com as cores de Huitzilopochtli.
Todo o país vibrava com uma sensação desconhecida, dominado pela vaga de energia nova, mas em tudo aquilo entrava violência, crueldade e certo horror.
Deportaram o arcebispo. Já não se viam sotainas nas ruas; só as serapes de Quetzalcoatl e as de Huitzilopochtli se evidenciavam entre as multidões. Eis porque Cipriano chegou junto de Kate, com os olhos a luzir, ébrio de triunfo. Kate ficou assustada e sentiu-se vazia e inútil. Nem sequer aquela vitória espantosa e a alteração que se dava na face do mundo a podiam salvar por completo. Pertencia à velha Europa e não lhe era fácil transformar-se tão rapidamente. Contudo, achava que, se voltasse à Irlanda e concedesse uns tempos de repouso à sua vida e ao seu corpo, poderia então regressar ao México e participar nos acontecimentos.
Porque não era só o espírito que se modificava, mas também o corpo e o próprio sangue. Sentia esse terrível catabolismo e metabolismo a transformá-la noutra criatura. Se a metamorfose fosse muito brusca, decerto ela morreria.
Casou-se, pois, legalmente com Cipriano e foi passar um mês com ele na Vivenda Aragon. Em seguida embarcaria sozinha para a Irlanda, projecto a que o marido deu a sua anuência.
Era deveras estranho estar casada com ele. Kate tinha a impressão de se afundar pesadamente abaixo da superfície da vida, para jazer nas suas profundezas.
Estranha, pesada, verdadeira passividade. Pela primeira vez na sua existência, ela sentia-se repousada. Falar e pensar tornavam-se-lhe coisas triviais; as ondas à tona de água não são nada para aqueles que vivem submersos.
Na alma, estava serena e altiva. Ah, se o corpo não sofresse tanto com a transformação! No cosmos encontrara a paz de espírito, o universo abrira-se à sua frente, e ela deixava-se afundar no leito de puro descanso. Adquirira quase tanta segurança como Teresa. Só a atormentava a mudança que se lhe operava no sangue.
Cipriano mostrava-se feliz, à sua maneira de índio. Parecia um adolescente contemplando o mistério da vida com olhos dilatados de espanto. Não se ocupava especialmente de Kate, nem lhe falava de assuntos sérios. Se ela aflorava uma conversa desse género, dirigia-lhe um olhar desconfiado e afastava-se.
Tinha consciência de coisas de que a mulher mal se apercebia, sobretudo do perigo das palavras irritantes. E isto ele evitava.
Kate compreendia agora como os seus antigos amores haviam sido brutais, carregados de desejo e de contactos voluptuosos. com Cipriano, desaparecia a sua vontade ardente feminina, toda ela doçura, submissão; e contudo, tais as fontes térmicas que brotam da terra sem rumor, tão poderosa era na sua força secreta!
Via quase com espanto morrer dentro de si a Afrodite da espuma, essa Afrodite ávida de sensações ardentes. Como se prevenido por vago instinto, Cipriano repudiava essa parte da natureza de Kate. Quando esta se deixava dominar pelo êxtase voluptuoso que acaba em espasmos delirantes, ele afastava-se da mulher. Retirava-se desde que pressentia nela a sede daquelas volúpias a que costumava chamar o seu "prazer". E Kate percebia que lhe era repulsiva nesses momentos. Misterioso e implacável, afastava-se sem uma palavra.
Estendida a seu lado ela compreendia então quanto era superficial aquela efervescência de sensualidade. Parecia vir do exterior, não do seu íntimo. Depois do primeiro instante de decepção, quando esse prazer lhe era negado, concluía que não o desejava realmente, que até lhe repugnava.
E Cipriano, no seu silêncio quente e obscuro, aproximava-se quando ela se assemelhava a uma fonte borbulhando sem rumor das profundezas vulcânicas. Já não se tratava de prazer consciente. O que se passava era estranho, inexprimível, muito diferente das suas relações com Joachim. Nem êxtases, nem espasmos. Uma espécie de força subterrânea a que tinha de se submeter.
Tal como no amor, assim era Cipriano na vida. Kate não conseguia perscrutá-lo. Se tentava, via-se obrigada a desistir e a classificá-lo entre as coisas que existem e não se compreendem. Um desconhecido, e uma presença; nada mais.
Não podia existir intimidade. Cipriano envolvia-se na sua reserva como numa capa e deixava Kate envolver-se na dela. Eram dois estranhos. Ele aceitava o facto integralmente, como se outra coisa não fosse possível, mas Kate achava aquilo deveras singular. Tinha tanto desejo de intimidade e esforçara-se tanto por obtê-la!
Agora, resignara-se a aceitá-lo tal como era: um desconhecido, um estrangeiro na presença do qual vivia. E sem nenhuma intimidade espiritual, a sua união não passava de uma união de sangue.
Por isso, pouco importavam as ausências de Cipriano. Deixava atrás de si a marca da sua presença, e levava consigo a de Kate. Em resumo, não existia o desgosto da separação.
Certa manhã, ele teve de partir cedo para a cidade. O sol ainda não cobria o lago mas, para além de Tuliapan, já acariciava as montanhas, que brilhavam tão distintas que se diriam focadas por luz mágica. O sulco verde das encostas parecia ao alcance da mão. No seu voo, cintilaram de súbito duas gaivotas brancas, apanhadas na luminosidade. Mas o lago, suave, unido, silencioso, permanecia ainda na sombra.
Kate lembrou-se do mar. O Pacífico não ficava longe. Ela tinha a impressão de o haver esquecido, mas sentia de novo a necessidade da sua brisa.
Cipriano ia banhar-se; Kate viu-o caminhar sobre as lajes do cais. Despiu o roupão e o vulto escuro desenhou-se na água amarelada. Era tão moreno! Tal um malaio. Corpo tão trigueiro como a cara; e com esse físico primitivo, e o peito alto, e as ancas bem modeladas, evocava as figuras masculinas de certas medalhas gregas.
Mergulhou da beira do cais e avançou na água mansa. Nesse momento a luz espalhou-se dos cimos das montanhas e cobriu de oiro a superfície do lago. Imediatamente, Cipriano apareceu rubro como fogo. Os raios solares, porém, não eram vermelhos, mas, reflectidos pelas águas, davam ao corpo de Cipriano um tom de lume, como se o abrasassem.
Os filhos da Manhã... A coluna de Sangue... Um Pele-Vermelha... Kate contemplava-o admirada enquanto nadava resplandecente e puro. Como se fosse de fogo!
Os filhos da Manhã... Kate mais uma vez renunciou a todo e qualquer esforço de conhecimento - e, sem esforço, limitou-se à comunhão de sangue.
Sim, a sua raça... Ela notara já como os indígenas se tornavam de um vermelho puro à luz da manhã e da tarde. Dir-se-iam chamas erguendo-se da água.
Cipriano partiu a cavalo, com o criado. Kate viu-o afastar-se pela estrada além, sombrio na sua montada ruça. Parecia não fazer movimento nenhum. Irradiava um orgulho másculo e, assim unido ao animal, era como se este e o cavaleiro constituíssem um único ser.
Desapareceu. Kate, por um instante, experimentou saudade da sua presença. Mais do que dele próprio. Não desejaria tocar-lhe nem falar-lhe, mas tão-somente senti-lo ali.
Depressa se dominou e voltou à realidade. Desde que se compenetrava da ausência de Cipriano, vinha-lhe a noção nítida da sua presença.
Passeou um pouco pela costa, junto do molhe. Adorava estar só. Absolutamente só, com o jardim, o lago e a manhã.
"No fundo, sou como Teresa", pensou ela.
De súbito viu à sua frente uma corda comprida e escura em cima de um pedregulho. Aquilo fê-la sair dos devaneios. Era uma cobra de pele ornada com delicados desenhos; estava sobre uma pedra enorme e a cabeça pendia-lhe até ao chão.
O réptil sentiu a presença da mulher, pois, com incrível rapidez, rastejou ao longo da rocha e entrou numa fenda que havia na base do molhe.
Não era grande o buraco. Depois de ali penetrar, virou a cabeça e dardejou a língua preta; mas em seguida desapareceu devagar, e Kate viu-lhe ainda o último anel, no qual poisava a cabeça chata. Fazia lembrar aqueles diabos que se representam de queixo apoiado sobre os braços, olhando através duma seteira. Do fundo do esconderijo espiava a mulher; seguia-a com os olhos cintilantes de crueldade.
Kate pensou então em todos esses seres invisíveis, escondidos nos recantos ocultos da terra. E perguntava a si mesma se aquele réptil não sofreria por ser incapaz de se elevar na escala da criação; de não poder correr a quatro patas em vez de rastejar...
Talvez não. Talvez houvesse encontrado a sua própria paz. Kate sentiu-se reconciliada com o animal.

XXVII
Teresa e Kate tornaram a visitar-se. Existia agora entre ambas certa simpatia, especialmente desde que a irlandesa decidira partir.
Envolvia o lago uma pureza outonal. Sentia-se a humidade na atmosfera, as sarças das encostas cobriam-se de rebentos. O sol inundava os montes duma luz de ouro, as sombras eram profundas, aveludadas. A verdura invadia tudo, até as rochas e a terra cor-de-rosa. O verde brilhante das canas-de-açúcar sobressaía no fundo rubro dos campos lavrados de fresco; aqui e ali, entre a massa escura das árvores, avultava a mancha branca das povoações.
O céu estava alto e límpido. No ar cristalino vibravam os tambores e o grito para as pausas do dia. E o dia parecia deter-se perante o mistério supremo desse universo que desabrochava, vasto, suave e cheio de vida.
Até no lago se encontrava uma espécie de apaziguamento. Avançava uma canoa com a vela entumecida tal uma concha nacarada; o casco negro e afilado deslizava sobre a água. Dir-se-ia a barca de Dioniso portadora duma mensagem e de ramos de videira.
Kate mal se lembrava agora da secura árida dos meses anteriores, quando a terra parecia crepitar ao sol implacável.
Ramon e Teresa atravessaram o lago e o seu barco de remos entrou no molhe. Era uma manhã em que as sombras nas montanhas tomavam o tom azul das centáureas.
- Sempre vai partir? - perguntou Ramon a Kate.
- Por uma temporada. Não me julga a mulher de Loth, não é verdade?
- Não - respondeu ele, a rir. - Julgo que é a de Cipriano.
- E sou. Mas preciso de sair, embora por pouco tempo.
- Ah! Nesse caso vá e volte depressa. E diga lá na Irlanda que façam o que fizemos aqui.
- Como?
- Encontrando-se em si mesmos, e no seu próprio universo, e com os seus deuses. Justifiquem os seus mistérios. Os Irlandeses são tão prolixos no que respeita aos seus heróis de outrora e aos seus tempos gloriosos! Diga-lhes, pois, que concretizem tudo isso, como nós fizemos com Quetzalcoatl e Huitzilopochtli.
- Está bem. Veremos se há quem me escute...
- Sim, senhora. - Seguiu com os olhos a vela branca que se aproximava e depois indagou: - Afinal, porque quer partir?
- É-lhe indiferente o caso, pois não?
- Não, não me é indiferente.
- Porquê?
Ramon levou outra vez uns segundos para responder:
- É uma das nossas - replicou por fim. - Precisamos de si.
- Mesmo quando não faço nada? E quando principio a aborrecer-me com a história do Quetzalcoatl vivo e o resto, e preferia conhecer um simples Don Ramon?
Ele riu-se.
- Que é um simples Don Ramon? Don Ramon tem dentro de si Quetzalcoatl vivo. Mas a senhora auxilia-nos, apesar de tudo.
- Não creio que precise de auxílio, e muito menos de uma mulher que. no fim de contas, não é mais que a esposa do seu amigo.
Estavam sentados num banco, debaixo das manhãs-de-páscoa, cujas folhas rubras formavam como que uma flor de pétalas enormes.
- A esposa do meu amigo - volveu Ramon. - Que poderia
ser de mais agradável para mim?
- Pois claro! - exclamou Kate de maneira ambígua. Ramon tinha os braços apoiados nos joelhos e olhava para o
lago, com ar ausente. O seu rosto reflectia cansaço e aquela vulnerabilidade que sempre comovia Kate. Mais uma vez ela se compenetrou do isolamento e esforço que a procura de uma vida diferente impunha àquele homem. E, no entanto, ela não desistia...
Essa visão acentuou-lhe o sentimento de impotência, da impotência total da mulher em ajudar o homem que caminha para o Além.
- Está muito seguro de si mesmo? - perguntou.
- Seguro de mim? Não! De um instante para o outro eu morro e desapareço da face do mundo. Como poderia estar seguro de mim
mesmo?
- Mas porque há-de morrer?
- Todos morrem. Até Carlota!
- Essa tinha a sua hora marcada.
- Pode-se marcar a nossa hora como se faz no despertador de um relógio?
Kate calou-se por uns momentos.
- Se não está seguro de si mesmo, de que está então? - inquiriu como se o desafiasse.
Ramon fitou-a com os seus olhos sombrios.
- Estou seguro... seguro... - A voz sumiu-se-lhe, o rosto tomou a palidez dum defunto. Só os olhos a observavam intensamente. De novo ela se viu perante a sombra dolorosa do homem e se sentia impotente diante desse espectro vivo do sofrimento.
- Não pensa que anda em erro, pois não? - perguntou Kate.
- Não, mas talvez não possa manter...
- E então? - insistiu friamente a irlandesa.
- Continuarei o meu caminho, embora desacompanhado. Kate só lhe via os olhos negros, fitos nela. Ramon começou a falar em espanhol: - Isto faz-me doer a alma, como um pronúncio de morte.
- Mas porquê? Não está doente!
- Sinto a alma desagregar-se.
- Não deixe! - exclamou Kate, alarmada.
Ramon fitava-a ainda com os olhos inexpressivos. De súbito, ela experimentou uma sensação de calma e de força.
- Devia esquecer por uns tempos - disse-lhe em voz compassiva, poisando a sua mão na dele. Para quê tentar compreendê-lo ou contrariá-lo? Era uma mulher, ele um homem e, portanto, tinham da vida uma concepção diversa.
Ao contacto daquela mão, Ramon percebeu despertar de um sonho e fixou-a com olhar perscrutador e altivo. A carícia maternal sobressaltara-o como uma picada.
- Sim, devia - disse.
- Pois claro. Se quer ser tão... abstracto e quetzalcoatliano enterre de vez enquando a cabeça na areia como fazem as avestruzes, e esqueça.
- Oh! - exclamou Ramon sorrindo. - Ei-la de novo zangada!
- O caso não é tão simples como parece. Existe em mim um conflito, e não me deixam ausentar-me por algum tempo.
- Não podemos impedi-la.
-Pois sim, mas discordam da minha ida. Não me deixam partir em paz.
- Porque deseja ir-se embora?
- Tenho de ir. Tenho de voltar para junto dos meus filhos e da
minha mãe.
- Sente essa necessidade?
- Sinto.
Logo que deu esta resposta compreendeu que havia nela certa duplicidade. Era como se tivesse dois eus: um, mais novo, terno, sensível, que pertencia a Cipriano e a Ramon; outro, duro, completo, que pertencia aos filhos, à mãe, à Inglaterra, a todo o seu passado. O eu antigo nada tinha de submisso e era forte, o recente parecia frágil, estava ligado a Cipriano e até a Ramon e a Teresa; nada tinha de independente.
Kate possuía consciência desta dualidade e sofria com isso. Porque não conseguia optar definitivamente pela antiga maneira de ser, nem pela moderna, ficava a deter-se entre as duas.
- Pois é - continuou. - Sinto essa necessidade, e querem
evitar que eu parta.
- Que ideia! - protestou Ramon.
- Sim, senhor. Exercem pressão sobre mim, paralisam-me, impedem-me de me ir embora.
- Se tem essa sensação, convém que nos afastemos de si durante uns tempos.
- Porquê? Não concordam com a minha ida? Se eu tenho de
ir, porque não me apoiam?
Ramon fitou-a tranquilamente.
- É impossível. Não acredito nessa partida. Seria virar-nos as costas, renegar-nos. Mas a verdade é que somos todos muito complicados. Se acha que tem de se ausentar durante certo período, então vá! Não é coisa de importância primordial. Já fez a sua opção, e
eu não fico apreensivo.
Kate sentiu alívio ao ouvir isto, porque estava bastante preocupada consigo mesma. Nas suas relações com Cipriano e Ramon, nunca tinha a certeza de nada. Contudo, replicou com um pouco de ironia:
- Porque haveria de ficar apreensivo?
- Não desconfia de si própria às vezes?
- Nunca! Estou sempre segura da minha pessoa.
Continuavam sentados no jardim da Vivenda Aragon, debaixo da manhã-de-páscoa. O ar começava a aquecer. O lago estava calmo, o vento amainara e tudo se conservava imóvel - excepto as folhas rubras do arbusto.
O Natal aproximava-se! Eis o que recordou a Kate aquela planta majestosa.
Natal! O azevinho! A Inglaterra! As prendas! As iguarias! Se ela se apressasse poderia chegar à Inglaterra na data festiva. Achava uma coisa tão natural encontrar-se na pátria com a mãe, pelo Natal! Tinha casos tão interessantes a contar! E as bisbilhotices divertidas que havia de ouvir... De longe, tudo isso lhe parecia encantador. No entanto, experimentava como que uma relutância ao pensar nesse regresso.
- Podemo-nos fartar de coisas boas - disse ela a Ramon.
- De qual, em particular?
- Oh! De Quetzalcoatl e todas essas histórias. Podemos estar saturados.
- É possível - respondeu Ramon, pondo-se de pé e afastando-se em passos tão subtis que ela nem deu pela sua retirada.
Quando compreendeu que ele se fora embora, ficou fula. Mas continuou sentada debaixo do magnífico arbusto, contemplando com os olhos irritados a sebe de jasmineiro e as suas flores dum branco puríssimo. Onde é que ela ouvira qualquer coisa a respeito de jasmins? "E entre nós os jasmins..."
Oh! Como se sentia farta de tudo aquilo!
Teresa descia a ladeira do jardim.
- Ainda está aqui?
- Onde podia eu estar? - retorquiu Kate.
- Não sei... Meu marido foi a Sayula a fim de falar com o Jefe. Não quis esperar para ir connosco no barco.
- Talvez tivesse pressa.
- Que maravilha! - observou Teresa, apontando para o estendal vermelho do majestoso eufórbio.
- São as vossas flores de Natal, não são?
- Sim, as flores de Noche buena.
- É extraordinário! O Natal com hibiscos e manhãs-de-páscoa! Estou ansiosa por ver azevinho e laranjas na montra duma frutaria de Hampstead.
- Porquê? - disse Teresa, rindo.
- Ah! - suspirou Kate. - Voltar à vida simples, ver os autocarros a correr na lama de Piccadilly, na véspera do Natal, e os passeios molhados cheios de gente diante das lojas cintilantes...
- Isso é que é vida, para si? - perguntou Teresa.
- Sim. Sem esta abstracção e vontade. A vida satisfaz-me se eu puder vivê-la e ser eu mesma.
- É altura de Cipriano regressar - disse Teresa.
Kate levantou-se com súbita impaciência. Já não suportava essa tutela. Haviade lhes mostrar que era livre!
Foi com Teresa à aldeia. O ar parecia misteriosamente vivo, animado com um sopro novo. Mas Kate sentia-se fora do ambiente. As duas senhoras sentaram-se debaixo de uma árvore na praia de Sayula, conversando um pouco e contemplando a imensidão do lago
cor de pérola.
Ancorado junto do molhe estava um barco de toldo vermelho e mastro comprido. Em terra, viam-se grupos de homens vestidos de branco a olharem para o interior da embarcação. O contorno monolítico duma vaca preta e branca e dum touro enorme recortava-se contra a superfície das águas.
Era perto, e no entanto parecia tudo estranho e remoto. Dois peóns colocaram uma prancha e puseram-se a empurrar a vaca para lá. O animal avançou relutante mas depois, com a lenta indiferença dos Mexicanos, seguiu pela ponte adiante. Os homens incitavam-no, até que ele ganhou o barco e entrou definitivamente no porão.
O grupo ocupou-se então do touro. Um mexicano já idoso, alto, de calças estreitas de pele e casaco de cabedal, com um imenso chapéu de feltro bordado a prata, ergueu delicadamente a cabeça do touro, pegando-lhe pela argola do focinho. Atrás estava um peón que, curvando-se, empurrou os poderosos flancos do animal. E este, com toda a calma, foi andando pela prancha além. Mas parou.
Os peóns reagruparam-se. O que estava atrás, de faixa vermelha atada à cintura, deixou de empurrar. Então dois outros passaram uma corda em volta das ancas do touro. O velho tornou a pegar pela argola, sempre com muito cuidado, e o animal levantou outra vez a cabeça. Mas continuou parado.
De novo lhe puxaram pela argola e pela corda. O monstro mantinha-se impassível. Tudo isto decorria no maior silêncio.
Por fim o touro percorreu a ponte em passos lentos e alcançou a borda do navio. Ali, esperou.
De cabeça baixa, olhava para o fundo do porão. Os homens empurravam-no com toda a força, puxavam a corda - tudo no profundo silêncio mexicano.
Devagar, cauteloso, o animal agachou-se, e então, com um movimento rápido, pendeu as patas dianteiras no interior do barco, ficando com os quartos traseiros alçados. Houve um momento de confusão, depois um baque. Finalmente, o touro saltara e encontrava-se no porão do navio.
E tudo tão silencioso e tão remoto!
- Ramon quer que se sente ao lado dele no templo como esposa de Quetzalcoatl... com algum nome esquisito? - perguntou Kate a Teresa.
- Não sei. Mais tarde, diz ele, quando for ocasião de haver uma deusa.
- E importa-se?
- Por mim, tenho medo. Mas sei que Ramon o deseja. Ele diz que é aceitar a maior responsabilidade da nossa vida, e eu acredito que seja verdade. Se existe divindade em mim, devo reconhecê-la, envergar a túnica verde e ser deusa no momento oportuno. Ramon afirma que precisamos de manifestar a presença divina. E, ao lembrar-me de meus irmãos, acho que ele tem razão. Hei-de pensar no deus que palpita invisível como o coração do mundo. E quando vestir a túnica verde e me sentar no templo diante de toda a gente, voltar-me-ei para o coração do universo e tentarei compenetrar-me do meu eu divino.
- Julgava que a túnica verde era só para a esposa de Huitzilopochtli - observou Kate.
- Ah, sim! - replicou Teresa. - A minha é preta, com barras brancas e desenhos encarnados.
- Preferia a verde? Fique com ela, se quiser. Eu vou-me embora...
Teresa ergueu os olhos para Kate.
- A túnica verde é para a mulher de Huitzilopochtli - declarou.
- Não vejo que isso tenha importância - volveu a irlandesa.
- Cada homem deve possuir a esposa que lhe convém. Cipriano não quereria uma mulher como eu.
- Cada mulher deve ter o homem que lhe convém - retorquiu Kate. - Para mim, Ramon seria muito abstracto e muito despótico.
Teresa ruborizou-se e baixou os olhos.
- Ramon exige muita submissão de uma mulher para que me agradasse - ajuntou a outra.
Teresa ergueu a cabeça, o pescoço moreno ondulou como uma
serpente.
- Como é que sabe que Ramon exige submissão das mulheres? Como é que sabe? Nunca a exigiu de si... Está enganada. Ele não me impõe tal submissão. O que pretende é que me entregue brandamente; em compensação, entrega-se-me, a mim, com uma brandura maior do que esta que lhe concedo: um homem como Ramon é mais dócil do que uma mulher. Não se assemelha a Cipriano, que é soldado. Ramon mostra-se dócil. Não tem razão no que
diz, Caterina.
Kate soltou uma risadinha. Mas Teresa prosseguiu:
- Vejo-a como um soldado entre as mulheres, está sempre a combater. Eu não sou assim. No entanto, há mulheres que são de temperamento bélico e essas precisam de mandos militares. Eis a razão por que é Malintzi e tem um vestido verde. Estará sempre disposta a lutar... até consigo mesma, se ficar só no mundo.
Havia uma grande calma em volta do lago. As duas senhoras aguardavam a chegada de Ramon.
Um homem vestido de branco, acocorado e silencioso debaixo de uma árvore, desbastava folhas de palmeira, com ar concentrado. Em seguida ia molhá-las na água e voltava para se sentar de novo, recomeçando o trabalho com aquela atenção pueril da gente do povo. Estava a consertar uma cadeira de palha. Como Kate o observasse, os olhares dos dois encontraram-se e o homem saudou-a. Dir-se-ia que, dele, emanava para ela uma chama de vida, a qual lhe transmitiu um estranho poder.
Nitrindo excitado, corria ao longo da margem um cavalo ruço malhado de branco. A crina flutuava ao vento, as patas faziam saltar os calhaus, as narinas abriam-se-lhe ansiosas. Porque seria?
Um peón fizera entrar no lago a sua carroça puxada por quatro muares, até que a água ficou acima dos varais, e quase atingindo o fundo do veículo. Parecia um barco conduzido por quatro cavalos-marinhos.
Era Inverno, mas dir-se-ia Primavera nas imediações do lago. Saltitavam na praia bezerros amarelos e brancos, agitando a cauda, correndo lado a lado à beira da água, que eles cheiravam desconfiados.
A uma árvore estava amarrada uma burra, com a sua cria deitada à sombra, um jumentinho preto como uma amora, enroscado no chão, com a cabeça peluda erguida e as longas orelhas fitas.
- Quantos dias tem o burrinho? - perguntava Kate ao peón, que saíra da sua cabana de colmo.
O homem dirigiu-lhe um olhar em que havia júbilo e deferência - olhar que fez Kate sentir uma onda de orgulho encher-lhe o peito.
- Nasceu a noite passada, patrona! - respondeu ele, sorrindo.
- Tão novo! Ainda não pode aguentar-se nas pernas, pois não?
O peón aproximou-se do jumento e pô-lo de pé. E ali ficou o animalzinho, espantado, de pernas abertas, como se em cima de ganchos de cabelo.
- Que engraçado! - exclamou Kate, deliciada. O homem riu-se; parecia grato pelo interesse dela.
O jumento a custo se mantinha naquela posição. Vacilava sobre as quatro patas bambas, com ar admirado. Deu uns passos oscilantes para cheirar as folhas de milho. Cheirou, e tornou a cheirar, tal se o mistério do olfacto se lhe revelasse nas narinas.
Então voltou para Kate a cabeça aveludada e deitou de fora a língua cor-de-rosa. Kate soltou uma gargalhada, o que fez o animal dar um pulo que o deixou infinitamente surpreendido consigo próprio. Tentou uns passos, e, de repente, sem que ele mesmo esperasse semelhante coisa, deu outro salto.
- Já dança! - exclamou Kate. - E só tem umas horas de existência!
- Já dança - confirmou o peón.
Depois daquelas experiências, o burrinho aproximou-se da mãe em passos incertos e começou a mamar.
Erguendo a vista, Kate encontrou os olhos do homem cintilantes da chama da vida, cheios de confiança e de conhecimento.
O jumentinho preto, a mãe, o mistério da criação, o respeito pela mulher superior a ele, bela e radiosa, tudo isto exprimiam os olhos negros desse homem primitivo.
- Adiós! - disse Kate.
- Adiós, patrona! - respondeu ele, erguendo o braço, na saudação de Quetzalcoatl.
Atravessou ela a praia em direcção ao cais; sentia dentro de si uma onda de vida, forte, resistente. "É o sexo", disse consigo. "Como o sexo pode ser extraordinário quando o homem o conserva poderoso e sagrado e que ele enche o mundo! É como o sol, penetrando-nos. Mas não me submeterei, mesmo assim. Porquê ceder?" Ramon aproximava-se, com o seu largo chapéu ornamentado do símbolo de Quetzalcoatl. Nesse instante tocaram os tambores e, do alto da torre, soou a voz nítida e possante anunciando o meio-dia. Todos os homens que se encontravam na praia aprumaram o corpo e ergueram o braço direito. As mulheres viraram a palma da mão para o Sol. Tudo ficou imóvel, excepto os animais.
Então Ramon encaminhou-se para o barco, enquanto os homens o saudavam à maneira de Quetzalcoatl.
- É espantoso como nesta terra se pode ter a impressão de que se é alguém! - notou Kate, quando já iam sobre a água no barco de remos. - Sentimo-nos como se pertencêssemos de facto à nobreza.
- E não é verdade?
- Sim, mas isso em toda a parte nos é negado. Só aqui temos a noção do poder da nobreza. Os indígenas ainda a veneram. Parecem
adorar-me.
- Por enquanto - replicou Ramon. - Mais tarde assassiná-la-ão porque a adoraram.
- É inevitável? - volveu Kate em tom despreocupado.
- Creio que sim. Se vivesse sozinha aqui, em Sayula, e reinasse por algum tempo, seria assassinada... ou pior ainda... pelo povo que a tinha idolatrado.
- Não acredito.
- É como lhe digo.
- Mas porquê?
- A não ser que se consiga dos deuses a nossa própria nobreza e se implore dos céus o poder, acabaremos por ser assassinados.
- A minha nobreza tem essa origem.
Mas não ficou muito convencida e mais firmou a sua resolução
de partir.
Escreveu para a Cidade do México e reservou uma passagem de Vera Cruz a Southampton. Embarcaria no último dia de Novembro.
Cipriano regressou a 17 e Kate participou-lhe o que tinha feito. Ele ficou a olhá-la, de cabeça um pouco à banda e com uma expressão de criança ajuizada, mas Kate foi incapaz de adivinhar o que lhe ia na alma.
- Vais-te embora já? - perguntou ele em espanhol.
A mulher percebeu então que estava ofendido. Quando se melindrava falava-lhe sempre em espanhol, nunca em inglês.
- No dia 30.
- E quando voltas?
- Quien sabe! - ripostou Kate.
Por uns minutos, Cipriano fitou-a com as suas pupilas negras imperscrutáveis. Estava a pensar que tinha o direito de a impedir que saísse do país, visto ser legalmente sua esposa. Nas profundezas dos olhos luzia a antiga cólera índia; depois surgiu uma leve mudança de expressão no rosto, quando a ira contida cedeu lugar à indiferença estóica, à velha indiferença de tantos séculos. Kate quase sentia as ondas sucessivas de sombra e frieza que percorriam Cipriano sem que ele mesmo desse por isso. E mais uma vez lhe estremeceu o coração o medo de perder o contacto com esse homem.
- Como quieras tu! - disse ele por fim.
Concedia-lhe a liberdade com a misteriosa indiferença do seu sangue e não faria mais esforços para a reter. Era o fatalismo dos da sua raça.
Conforme Kate previra, Cipriano tomou um barco e foi a Jamiltepec falar com Ramon.
A mulher ficou só, como de costume. Ocorreu-lhe que ela própria criara essa solidão. Não conseguia identificar-se com aquela gente, sentir-se à vontade fosse com quem fosse. Fechava-se sempre na sua personalidade.
Importava-lhe muito a reciprocidade sexual? Podia importar-lhe ainda mais se não a houvesse tido; mas tivera-a, e de maneira perfeita, com Cipriano. Sabia tudo a esse respeito. Era como se houvesse conquistado outro território, outro domínio da vida. E agora devia retirar-se para a toca da sua individualidade, com a vítima nos dentes.
De súbito, viu-se como os homens muitas vezes a viam: uma gata enorme, com os seus espasmos de volúpia e o gozo demorado do seu isolamento. Conhecia outras mulheres assim. Brincavam cheias de amor e familiaridade como um gato com um rato. Por fim devoravam o ratinho querido e reapareciam com a barriga repleta e uma voluptuosa sensação de força.
Algumas vezes o rato recusava-se a ser digerido, de que resultava prolongada dispepsia; ou então, como Cipriano, transformava-se numa espécie de cobra, que alçava a cabeça, olhava para trás e desaparecia num buraco, deixando-a confusa e destituída de poder.
Outra coisa que ela observava horrorizada. Uma após outra, as suas "amigas", as grandes amorosas, na idade de quarenta, quarenta e cinco e cinquenta anos perdiam todos os atractivos e ficavam umas corujas horrendas, procurando em volta a vítima cada vez mais rara. Como seres humanos deixavam de existir, metamorfoseadas em corujas elegantes e mexeriqueiras.
Kate era bastante inteligente para tirar proveito da lição. Estava bem que uma mulher cultivasse o seu ego, a sua personalidade. Estava muito certo que desprezasse o amor ou que com ele se entretivesse como um gato faz ao rato; isto é, brincar o mais tempo possível antes de o comer e saciar voluptuosamente o ego com a sua vítima.
"A mulher sofre mais com a supressão do ego do que com a do sexo", afirmou uma escritora, e talvez seja verdade. Mas olhai, olhai para as mulheres modernas de cinquenta anos, as que cultivaram o ego até ao extremo limite! São em geral criaturas que nos enchem de pena ou de repulsa.
Kate sabia tudo isto, e nisto pensava enquanto ali sozinha na sua vivenda. Tivera a sua liberdade, mesmo no México. Esses homens deixá-la-iam partir. Não estava prisioneira. E levaria consigo todos os despojos que ainda guardavam.
E depois? Sentar-se nos salões de Londres e ser mais uma coruja ao lado das outras? Arvorar um sorriso postiço e falar com voz
artificial?
"Não! - disse consigo. - O meu ego e a minha personalidade não valem esse preço. Prefiro desfazer-me deles em parte a ver-me reduzida a isso."
No fim de contas, quando Cipriano a acariciava toda ela parecia desabrochar. Era a força do sexo, que enchia o mundo de lascívia e sobre que ela não se atrevia a reflectir. O seu poder tornava-se maior do que a sua vontade. Por outro lado, quando estava só e abria as asas do seu ego e o espírito desferia voo, o mundo afigurava-se-lhe maravilhoso. Todavia, após uns instantes, desvanecia-se o esplendor, substituído por uma solidão amarga.
"Preciso de ambos - concluiu. - Não posso afastar-me de Cipriano nem de Ramon. Renovaram-me o sangue. Digo que são limitados, mas todos temos de o ser. Se tentamos ser ilimitados, tornamo-nos monstros. Sem Cipriano a afagar-me, a limitar-me e a submergir-me a vontade, tornar-me-ia uma velha horrível. Devo regozijar-me pelo facto de Cipriano me limitar com a sua vontade e o seu contacto ardente. Porque o que eu chamo a minha grandeza faz-me cair no vácuo desde que não haja a mão dum homem para me segurar. Ah, sim! Antes submeter-me do que ser uma mulher horrível."
Chamou o criado e foi através do lago num barco de remos. Era por uma bela manhã de Novembro. Nas escarpas das montanhas, a nordeste, as sombras tinham um tom azul muito puro. Por baixo, a vegetação começava a amarelecer. O lago, embora ainda cheio, principiava a baixar, e os jacintos-d'água vogavam à toa. No ar calmo viam-se pássaros voando. Alguns milheirais exibiam os seus talos secos, mas as flores de palo-blanco tinham já desabrochado e errava o perfume das acácias amarelas.
"Porque havia de me ir embora? - pensou Kate. - Porque havia de ver os autocarros na lama de Piccadilly na véspera do Natal e a multidão nos passeios molhados diante das lojas iluminadas? Mais vale ficar aqui, onde a minha alma é menos triste. Tenho de pedir desculpa a Ramon das coisas que lhe disse. No fim de contas, aqui há outra grandeza, com o som dos tambores e o grito de Quetzalcoatl."
Já ela distinguia o último andar da casa de Jamiltepec, semelhante a uma torre avermelhada, e a buganvília roxa pendente do muro, os cachos das flores de plumbago e a porção de rosas brancas.
- Están tocando - disse tranquilamente o barqueiro, erguendo para ela os olhos negros.
Já ouvira o som do tambor em Jamiltepec. Uma voz de homem se elevou na manhã clara.
O barqueiro levantou um remo, como se fizesse sinal. E assim que o barco penetrou na enseadazinha, veio um criado a correr ao longo do molhe. No ar soalheiro notava-se o cheiro das daturas e das rosas, e um silêncio profundo que nem o tambor nem o canto perturbavam.
- Don Cipriano está aqui? - perguntou Kate.
- Está - murmurou o criado, apontando para o balcão donde partia a voz do cantor. - Deseja que eu o informe da sua chegada?
- Não - respondeu Kate. - vou sentar-me um bocado no jardim, antes de subir.
- Nesse caso, deixarei a porta aberta - volveu o homem - e assenhora entrará quando quiser.
Kate instalou-se no banco de uma árvore, donde pendiam flores de trepadeira enroscada ali como uma serpente. Pôs-se a ouvir o canto. Ramon ensinava o novo hino a um dos cantores.
Não tinha muito boa voz o Quetzalcoatl vivo. Cantava baixinho, como se para si mesmo, mas com expressão simples e bela. Kate não conseguiu perceber a letra.
- Ya? - disse Ramon ao terminar.
- Ya, patrón! - respondeu o cantor.
E na sua voz forte e pura, este entoou o hino:
O meu caminho não é o teu e o teu não é o meu.
Mas vem, antes que nos separemos.
Cada qual por seu lado, dirijamo-nos à Estrela da Manhã
Para lá nos encontrarmos.
Não te aponto o meu caminho
Nem chamo por ti.
Mas a Estrela é a mesma para nós ambos
E a ambos nos atrai.
A cada qual o seu caminho, esse que esplende Na encruzilhada,
Que abre a sua chama como a porta de uma tenda Por onde, invisíveis, deslizamos.
Não pode um homem pisar como a mulher
Nem a mulher andar como o homem.
O espírito de cada um através das folhas de sombra
Se move como pode.
Mas a Estrela da Manhã e a da Noite Fixam tendas de fogo
Onde nos retinimos quais ciganos, sem saber Como é que vieram os outros.
Nada mais peço que me insinuar Na tenda do Espírito, e deter-me Na casa da chama bifurcada Como hóspede seu.
Fica aí comigo, esposa minha, Corporalmente. E que a flama nos envolva Qual uma rede.
Sede lá, homens, comigo,
Alcançai o lar.
Ride comigo, enquanto a mulher repousei,
Porque vale a pena.
O homem entoara o hino por várias vezes, parava, dir-se-ia esquecer-se, extinguia-se-lhe a voz pura e quente. Então a de Ramon, baixa e um tanto rouca, elevava-se com subtil intensidade, como se vinda do meio duma concha; depois, o tenor retomava o canto, que lhe corria no sangue como uma chama.
O mozo de Kate, ou seja, o seu criado, seguira-a ao jardim, e tinha-se sentado de pernas cruzadas, a certa distância, debaixo de uma árvore, de costas apoiadas ao tronco - sombra acocorada, vestida de branco. Os dedos dos pés saíam-lhe rijos e escuros das huaraches esburacadas, e o trancelim de palha do chapéu pendia-lhe junto à face trigueira. Quanto ao resto era tudo alvo, e as calças de linho apertavam-se-lhe nas coxas.
Quando o canto terminou, e o tambor deixou de rufar, e as vozes, num murmúrio, mal se ouviam, o mozo ergueu a cabeça e olhou para Kate. Brilhavam-lhe as pupilas negras, no rosto errava-lhe um sorriso tímido.
- Está muy bien, patrona? - perguntou, um pouco envergonhado.
- Muito bem - respondeu ela, como um eco fiel. Mas no seu coração debatiam-se conflitos diversos, e o criado sabia-o.
Parecia tão novo com aquele sorriso alegre, excitado, receoso! Havia nele qualquer coisa de perpetuamente infantil; mas era uma criança que, dum momento para outro, se podia tornar num selvagem- vingativo e brutal, um homem que nunca perdia a consciência do seu sexo. E Kate pensou mais uma vez que existiam várias maneiras de regressar à infância.
O criado, porém, continuava a espiá-la, de soslaio: queria ver se havia nela qualquer hostilidade secreta. Desejaria que concordasse com o hino, com o tambor e com tudo mais. Como uma criança, ansiava pela sua aquiescência; mas, se a senhora se mostrasse hostil, ele seria o primeiro a manifestar-se. Um julgamento adverso torná-lo-ia inimigo declarado.
Ah, os homens eram todos iguais!
Nessa ocasião, o rapaz levantou-se, com súbita agilidade, e ela ouviu a voz de Cipriano na varanda:
- Que é, Lupe?
- Está la patrona - respondeu o mozo.
Kate ergueu-se também e olhou. Viu a cabeça e os ombros nus do marido, em cima, no parapeito.
- Já lá vou - participou-lhe.
Vagarosamente transpôs os portões de ferro do corredor. Lupe, que a seguia, fechou-os atrás de si.
No terraço encontrou Ramon e Cipriano, ambos de tronco nu, que a esperavam em silêncio. Kate, embaraçada, explicou:
- Estive a escutar o novo hino.
- E-que lhe pareceu? - perguntou Ramon.
- Gostei.
- Sentemo-nos - propôs ele. E a recém-vinda deixou-se cair numa das cadeiras de verga. Cipriano ficou de pé, encostado à balaustrada.
Kate viera para declarar a sua submissão: dizer que já não queria ir-se embora. Mas, vendo os dois homens numa disposição muito quetzalcoatliana, não se decidia a aflorar o assunto. Tinha a sensação de ser uma intrusa. Não se compenetrava de que também pertencia à seita.
- Parece-me que não há Estrela da Manhã para nos reunir a todos três - observou, irónica mas um pouco trémula.
Sobre eles desceu um silêncio ainda mais profundo.
- Estou a ver que uma mulher é realmente de trop aqui junto de vocês ambos.
Hesitou um tanto ao dizer isto. Sabia que Cipriano ficava perplexo e melindrado quando ela escarnecia.
Ramon respondeu-lhe com uma doçura que vinha direita do seu coração.
- Então que há, prima?
com um tremor nos lábios, Kate replicou:
- Em verdade, não desejo deixá-los.
Olhando rapidamente para Cipriano, Ramon retorquiu:
- Bem sei que não deseja.
O tom suave e protector da sua voz fê-la revoltar-se de novo. com os olhos rasos de lágrimas, ela bradou:
- Afinal vocês não precisam de mim!
- Não, não, preciso de ti. Verdad, verdad! - exclamou Cipriano em voz baixa e contida, quase num murmúrio.
E, no meio das suas lágrimas, Kate pensava: "Como sou intrujona! Sei perfeitamente que sou eu que não os quero. Quero-me só a mim mesma. Mas posso iludi-los de modo que o não percebam."
Havia notado a paixão fálica e ardente na voz de Cipriano.
Coube a vez a Ramon de falar, e fê-lo em tom glacial:
- A Caterina é que não precisa de nós. Não se comprometa connosco. Atenda à sua própria preferência.
- E se ela me aconselhar a partir? - ripostou Kate, como um desafio, através de um resto de lágrimas.
- Então parta!
Kate recomeçou a chorar.
- Ah, eu bem sabia que não precisavam de mim. Mas Cipriano acudiu com persuasiva ternura:
- Não és dele! Ele não pode dizer nada.
- Isso é verdade - concordou Ramon. - Não me dêem ouvidos.
Levantando bruscamente a cabeça, no meio do seu pranto, viu-o afastar-se sem rumor.
Limpou a cara, recuperou a calma e, de olhos húmidos, fitou Cipriano. Este conservava-se muito direito, como um galo combatente. Nas pupilas negras brilhava-lhe um fulgor estranho.
Sim, Kate também tinha medo dele, desses olhos pretos inumanos.
- Não queres que me vá embora, pois não? - perguntou-lhe suplicante.
Espalhou-se no rosto do homem um sorriso lento, e um leve tremor lhe percorreu o corpo. E então, na sua voz de inflexões índias, muito suave, Cipriano disse-lhe em espanhol:
- Yo! Yo! - E as sobrancelhas erguiam-se-lhe numa expressão de espanto divertido. Ainda trémulo, concluiu: - Te quiero mucho! Mucho te quiero! Mucho, mucho!
As palavras soavam tão cariciosas, vinham-lhe tanto do seu sangue ardente, que a mulher se sobressaltou e disse:
- Não me deixarás partir!

XXV
Foi uma surpresa para Kate o casamento de Don Ramon dois meses depois do falecimento de Dona Carlota. A noiva tinha vinte e oito anos e chamava-se Teresa. Após o casamento, que se realizou civilmente e na maior intimidade, Ramon trouxe a nova esposa para Jamiltepec.
Conhecia-a desde pequena, pois era filha do proprietário da famosa hacienda de Las Jemas, situada a uma dúzia de milhas de Jamiltepec. Don Tomaz, pai da rapariga, fora grande amigo dos Carrascos. Morrera, porém, um ano antes, deixando a importante hacienda aos três filhos e confiando a Teresa a administração da quinta. Teresa era a mais nova. Os dois irmãos viviam a existência inútil e perdulária dos mexicanos, e por isso Don Tomaz, a fim de salvar a propriedade daquelas mãos nefastas, designara Teresa como administradora e obtivera o consentimento dos dois irmãos. Na verdade, os rapazes eram criaturas ociosas que, em vida do progenitor, nunca haviam mostrado o mínimo desejo de o ajudar na difícil gerência da quinta. Teresa fora a única. E durante a doença do pai, todas as fadigas da administração haviam recaído sobre ela, enquanto os irmãos gastavam o dinheiro e as forças nas orgias em que se deleitam os mexicanos de certa classe. No entanto, assim que o pai faleceu, os dois irmãos apareceram em casa cheios de arrogância, com a intenção de se tornarem hacendados. Pela simples força bruta afastaram a irmã do seu cargo, deram ordens contrárias às dela, escarneceram-na e uniram-se para a esmagar. Queriam relegá-la para o seu lugar de mulher, isto é, para uma espécie de escravidão a que, aos seus olhos, deviam pertencer as pessoas desse sexo.
Eram brutos, e como brutos, cobardes. E, como tantos mexicanos daquela categoria, condescendentes e prejudiciais para si próprios. Relacionaram-se com juizes e generais, exibiram-se em ricos trajes de charro e receberam em casa uma multidão de gente duvidosa.
Contra aquela indolência e brutalidade, Teresa nada podia fazer e conhecia bem a sua impotência. Os irmãos eram fracos, sensuais, belos à sua maneira, dissipadores, despreocupados, mas de sentimentos ferozes.
- Faz-te bonita e arranja um marido - aconselhavam-lhe. Aos olhos deles, o seu maior crime era não atrair os homens
com quem conviviam. O facto de nunca ter conhecido homem e não se haver ainda casado tornava-a quase odiosa. De que servia a mulher senão para uma vida de relaxamento e licenciosidade?
- Queres usar calças? - perguntavam-lhe, irónicos. - No, señorita, enquanto houver aqui dois homens. No, señorita, os homens é que usam calças, e as mulheres escondem o que têm debaixo das saias.
Teresa já estava habituada a estes insultos; contudo, sofria muito no seu íntimo.
- Queres viver à moda dos americanos? Então abala para a América, corta o cabelo e veste calças. Compra lá um rancho e arranja um marido que receba as tuas ordens.
Teresa consultou advogados, que se limitaram a erguer os braços ao céu. Foi então procurar Ramon, a quem conhecia desde pequena.
Para expulsar os irmãos da hacienda seria necessário intentar um processo dispendioso e de resultado incerto. Em vez disso, Ramon propôs-lhe que casasse com ele segundo um regime matrimonial em que ela disporia sempre dos seus bens.
- Nesta terra os homens desprezam as mulheres e não podem passar sem elas, o que representa um suicídio - disse Ramon.
O casal foi visitar Kate. Teresa era franzina, pálida, de farta cabeleira preta e grandes olhos negros. Apesar do ar calmo, notava-se-lhe certa independência e autoridade. Sofrera muitas humilhações da parte dos irmãos e tinha ainda os olhos pisados pelas lágrimas de amargura, indignação e cólera.
Agora, amava Ramon com todas as veras da sua alma. Isso era evidente. Fora ele que salvara da degradação a sua dignidade de mulher e lha havia restituído bela e intacta. Em troca, passou a conceder ao seu salvador uma admiração respeitosa e quase feroz.
Em relação a Kate mostrava-se tímida e um pouco distante, tal se receasse essa mulher branca, doutra raça, que viajara muito e possuía larga experiência da vida. com um vestido claro e um rebozo de gaze preta, estava sentada na sala de Kate, com as mãos trigueiras pousadas no regaço, o pescoço escuro muito direito, e desviando um pouco o rosto fino e bem modelado. A irlandesa achou-lhe uma aparência de costureirinha.
Mas Kate não deu fé do estranho poder autoritário que também emanava desse corpo moreno e esguio, nem do olhar penetrante e desconfiado que por vezes Teresa lhe dardejava. Alma de fogo num corpo delicado. Atitude cheia de reservas. De quando em quando, a boca parecia formular uma palavra em silêncio e nos lábios perpassava-lhe um sorriso constrangido. Nunca lhe desaparecia, porém, o fulgor dos olhos.
- Falas tão pouco, chica! - observou Ramon, com certa ternura.
Então os olhos dela cintilaram e a boca esboçou um sorriso.
Via-se bem que estava apaixonada, embebida num êxtase de amor, o que explicava a sua frieza perante Kate.
"Despreza-me - pensou esta - porque não sou capaz de amar como ela." E, por um segundo, Kate invejaria Teresa. Mas daí a pouco desdenhava-a: "Tipo de harém..."
Sim, Ramon adaptava-se bem ao papel de sultão. Era belo, no seu traje branco, muito sereno, com ar de paxá, mas ao mesmo tempo afável, atencioso - e com aspecto tão juvenil! Como um paxá, preparava um cacharolete de genebra, vermute e limão. Teresa espiava-o de esguelha, sem perder de vista Kate, sua possível inimiga, a mulher que falava aos homens no mesmo pé de igualdade.
Kate levantou-se para ir buscar colheres. Nesse momento, Ramon recuou da mesa baixa em que espremia o limão e colidiu de leve com a dona da casa quando esta passava. Kate reparou de novo como ele se esquivava a qualquer contacto com ela. A sua sensualidade natural afastava-o de Kate como uma chama se desvia perante uma corrente de ar. Ela corou, e Teresa viu o súbito rubor sob essa pele branca, e o clarão quase de ira que atravessou os olhos castanhos de Kate. Momento de evasão de dois cursos de sangue tão diferentes!
Teresa pôs-se de pé, aproximou-se de Ramon e, inclinando-se sobre os copos, perguntou com aquela afectação infantil própria das mulheres da sua raça:
- Que puseste aí?
- Olha ! - retorquiu ele. E, com a mesma infantibilidade dos homens do seu tipo, começou a explicar-lhe de que se compunha o cacharolete e deu-lhe a provar um pouco de genebra, numa colher.
- É tequila da pior - declarou Teresa.
- A oito pesos cada garrafa? - volveu o marido, a rir.
- Custa esse preço? Tão caro!
Ela fitou-o nos olhos, por um momento, e viu esse rosto tornar-se mais escuro, mais ardente, como se todo ele se derretesse ao senti-la perto de si. Teresa então ergueu a cabeça, orgulhosamente. Havia-o reconquistado.
"Manhas de harém!" pensou Kate. E experimentou certa impaciência ao verificar como o ilustre, prodigioso Ramon se deixava prender nas malhas de um ser tão insignificante. Sentia-se contrariada por ter assim consciência da presença física do homem, do seu corpo belo, dos seus ombros fortes, das suas pernas vigorosas. Dir-se-ia ter também de sucumbir ao fascínio e vir a fazer parte do harém daquele sultão.
Que estranha vontade possuía a pequenina mulher morena! Que subtil poder feminino num corpo que quase só tinha pele e osso! Teresa era capaz de engrandecer a glória do marido - ao passo que ela própria se tornava imperceptível, a não ser quanto ao fulgor tigrino dos seus grandes olhos pretos.
Kate observava admirada. Conhecera homens que lhe davam a impressão de a transformarem em rainha, de ter a cabeça nas estrelas e repousar o peito nas nuvens. Sabia o que era subir, subir, subir até encher o universo com a sua feminilidade.
Via agora, porém, o contrário. Quem tinha poder sobrenatural era essa criatura pequenina, que fazia maior Don Ramon, enquanto ela se diminuía e ficava invisível, excepto no que respeitava aos olhos. Ele, como um sultão, como um fruto sazonado ao sol, tomava uma aparência extraordinária e imponente; e então, por algum poder misterioso do seu corpo trigueiro, a frágil Teresa fazia-o ainda mais completo.
Era o que Ramon queria, e Kate, percebendo-o, sentia-se irritada. Parecia-lhe odioso aquele macho triunfante, exasperava-a aquela rapariga ardente que só pensava em exaltar o homem.
ah, o poder oculto da mulher trigueira! Kate chamava àquilo harém e prostituição. Sim, era a atitude da escrava. Que pretendia dele essa criatura senão o sexo, como uma prostituta?
Pois não era degradante para uma mulher semelhante espécie de amor? E não tornava o homem fraco, sensual, ou odiosamente tirânico?
No entanto, já duma coisa Kate se convencera: que a chave da vida, e da continuidade da vida, residia nas relações do homem e da mulher. A união completa dos dois representava a vida presente e futura; dessa fusão surgia uma vida nova.
Mas tais relações necessitam de equilíbrio, e TereSa destruía-o juntando na balança o seu peso ao do homem.
Ramon não quisera Kate. Possuía agora o que desejara: aquela criaturinha escura, tão servil e orgulhosa do seu poder. Só quisera Kate para camarada, camarada inteligente, Não para mulher. Preferira essa viborazinha de Teresa...
Cipriano, esse desejava Kate. O general, o militar empertigado desejava Kate, mas só por momentos. não se importava casar realmente com ela; o que lhe interessava eram os instantes passados a seu lado. Kate tinha de lhe conceder esses instantes, e em seguida ele tornava a partir para junto das suas tropas. com isso se contentava. E ela também. Assim, ficava senhora da sua existência. Não tinha feitio para andar de roda dum homem a excitar-lhe o sangue, a estimular-lhe o ardor!
Levantou-se e foi ao quarto buscar um livro que prometera a Ramon. Não podia suportar mais tempo a exibição do amor dele por Teresa. Ah, aquele sorriso néscio estampado no rosto do homem, o brilho estranho dos olhos, o aprumo orgulhoso do corpo!
Eis como eram os dessa raça. Selvagens, com o insuportável fluido sensual dos índios e aquela maneira primitiva de se dissolver numa horrível confusão de desejo; com a presunção da sua virilidade insolente e inesgotável.
O pior era que essa força cósmica que ela até aí só conhecera nos olhos azuis dos homens loiros (e que tornava rainhas as respectivas mulheres, ainda que eles as detestassem por fim), essa força declinava agora nos olhos azuis e nascia nas pupilas pretas. As de Ramon, naquela ocasião, luziam de orgulho, poder e desafio. E o mesmo notava Kate nos olhares rápidos de Cipriano. A força do mundo esmorecia nos homens loiros, a sua supremacia abandonava-os para renascer nos de cor escura.
Joachim, o ser inquieto, inteligente e sensível, que era capaz de penetrar na alma de Kate e contemplá-la com os seus olhos azuis, morrera à vista da mulher. Se ela pudesse excitar-lhe o sangue, como Teresa fazia a Ramon, nunca ele teria morrido. Mas seria impossível. Cada um é como é. E cada raça, também. Teresa bateu timidamente à porta do quarto.
- Posso entrar?
- Entre! - respondeu Kate, endireitando-se e deixando as rimas de volumes em volta da mala dos livros.
O aposento era amplo e através das janelas rasgadas via-se o pátio e o jardim soalheiro, mangueiras de troncos lisos como trombas de elefantes, ervas reverdecidas pela chuva e galinhas a esgaravatar a terra debaixo das folhas esgarçadas das bananeiras. Um pássaro vermelho chafurdava no tanque, abrindo e fechando as asas escuras sobre o corpinho escarlate.
Teresa, porém, olhava para o quarto, não para fora. Sentiu o cheiro de cigarros, cujas pontas enchiam um cinzeiro de ágata. Notou os livros em desordem, as jóias espalhadas, a tapeçaria persa pendente atrás da cama, a colcha magnífica, os vestidos de seda e de veludo colocados sobre uma arca, os xailes de longas franjas cuidadosamente dobrados, os sapatos espalhados no chão, brancos, cinzentos, amarelos, castanhos e pretos, e os belos castiçais chineses.
Teresa parecia fascinada por tudo aquilo.
- Que linda! - disse, tocando na colcha sumptuosa.
- Foi uma amiga que a fez e ma ofereceu, em Inglaterra. Teresa observava tudo com espanto, em especial as jóias dispersas no toucador.
- Não gosta dessas pedras encarnadas? - perguntou Kate, ajoelhando de novo para arrumar os livros e olhando o pescoço moreno pendido sobre as jóias. Que ombros frágeis e que pele acetinada, naquele vestidinho branco! E aquela cabeleira negra, segura por travessas de tartaruga! No conjunto, uma rapariguinha humilde e insignificante. Mas Kate bem sabia que Teresa não era insignificante nem humilde. Naquele corpo franzino havia um estranho poder que despertava o ardor num homem e o exultava e, de certa maneira, o guardava só para si. O eterno apelo da carne...
Na mesinha de costura estava um pedaço de musselina que Kate comprara na índia e não sabia em que aproveitar. A cor, espécie de amarelo-pêssego, não se harmonizava com o seu tom de pele. Teresa apalpou o tecido entremeado de fios de ouro.
- É organdi?
inquiriu.
- Não, é musselina feita à mão. Ofereço-lha. A cor vai-me mal, e a si deve-lhe ir lindamente.
Ergueu-se e dispôs o tecido de roda do pescoço bronzeado de Teresa. No espelho, esta viu-se envolta na bela musselina e os olhos brilharam-lhe de prazer.
- Ah, não! Não posso aceitar!
- Porquê? Não condiz bem comigo. Faz agora um ano que a tenho aí. Até pensei em cortá-la para fazer cortinas. Fique com ela.
Kate talvez fosse arrogante, e até cruel, na sua maneira de oferecer.
- Não quero privá-la...
- Aceite, peço-lhe.
Ramon apareceu no limiar e relanceou o quarto e as duas mulheres.
- Olha! - disse Teresa, embaraçada. - A señora quer dar-me esta musselina indiana. - Voltara-se timidamente para ele, com o tecido desdobrado em roda do pescoço.
- Fica-te muito bem - declarou Ramon, contemplando-a.
- A señora não devia oferecer-me...
- Se to dá é porque faz gosto nisso.
- Então - concluiu Teresa, virando-se para Kate - muito e muito obrigada.
- Não tem de quê!
- Ramon acha que me vai bem...
- Na verdade, vai-lhe a matar - declarou Kate, dirigindo-se agora a Ramon. - O tecido foi feito na índia para alguém com aquela cor trigueira. Há-de condizer admiravelmente com ela.
- É muito bonito - concordou Ramon.
com o olhar, percorria o quarto, examinava os diferentes objectos que ali estavam, vindos de todas as partes do mundo, e até as pontas de cigarro na taça de ágata: luxo, desordem, e algo de esterilidade da mulher emancipada.
Kate não sabia em que é que ele pensava. Mas, por seu turno, reflectia: "Ora aí está o homem que eu defendi naquele terraço, que eu vi com um buraco nas costas, nu e inconsciente. Nesse momento não se parecia com um sultão."
Teresa devia ter-lhe adivinhado os pensamentos, porque disse,
olhando para Ramon:
- Sem a señora, Ramon teria morrido. Nunca me esquecerei...
- Não falemos nisso - atalhou Kate. - O destino tece-as.
Eu não alterei nada.
- Foi o próprio destino, señora!
- Não quer vir passar uma temporada connosco em Jamiltepec? - perguntou Ramon. - Agora já tenho uma dona de casa.
- Sim, vá! - insistiu Teresa.
- Ela precisa de uma amiga - explicou o marido.
- Preciso, é verdade. Nunca tive nenhuma a valer desde que deixei o colégio, ainda pequena...
Kate duvidava que pudesse ser para Teresa uma amiga a valer. E cogitava no que pretenderiam, de facto, aqueles dois - e o que pensariam dela.
- Pois sim, terei muito gosto em passar uns dias...
- Óptimo! - exclamou Teresa. - Quando deverá ser? Combinaram o dia.
- E escreveremos a canção de Malintzi - disse Ramon.
- Não faça semelhante coisa - acudiu Kate vivamente.
Ele olhou-a com ar pasmado, como se não percebesse logo, um ar que lhe era habitual. Por instantes, Kate poderia supor ter-lhe dado a impressão que um fantasma produziria se aparecesse a uma criança.
Em Jamiltepec, as duas mulheres entretiveram-se a talhar vestidos para Teresa na peça de musselina cor de ananás. Para senhora casada, o guarda-roupa de Teresa era bastante modesto: só possuía trajes pretos, que lhe davam um ar infeliz, e alguns brancos já antiquados. Até aí só vivera para o pai (que tinha bons livros acerca do México e toda a vida escrevera sobre a história do estado de Jalisco) e para dirigir a sua hacienda. Esta, chamada de Las Jemas, era a única que não fora destruída durante as revoltas que se seguiram à fuga de Porfirio Diaz; Teresa orgulhava-se bastante deste facto.
O seu carácter assemelhava-se muito ao de uma freira, talvez por se tratar de uma pessoa profundamente apaixonada e as paixões profundas serem mais para se esconder do que para exteriorizar nos contactos quotidianos.
Kate, provando-lhe o vestido sobre os ombros morenos, tornou a admirar a estranha macieza daquela pele escura e o pesado volume dos cabelos negros. A família dos Romeros, a que Tereza pertencia, estabelecera-se no México logo nos primeiros tempos da conquista.
Que lhe fizesse mangas compridas, sugeriu. E acrescentou, ocultando um pouco envergonhada a magreza daqueles membros trigueiros:
- Tenho os braços tão delgados! Não são bonitos como os
seus.
Kate, mulher de quarenta anos, tinha-os fortes e alvos e toda ela
era bem constituída.
- Sim - repetiu Teresa -, compridas até aos punhos.
A outra assim fez, achando que, na realidade, era o que mais convinha àquela natureza.
- Aqui os homens - explicou a dona da casa - não gostam
de mulheres magras.
- Não importa o que os homens pensam - sentenciou Kate. - Julga que Don Ramon gostaria que fosse gorda como uma
galinha?
Teresa fitou-a com os seus olhos pretos, grandes e brilhantes -
tão vivazes e, de certa maneira, fugidios.
- Quem sabe! - exclamou. E, no seu sorriso rápido, malicioso, via-se que não desgostaria de ser, às vezes, como uma galinha
gorda.
Presentemente Kate conhecia mais do que nunca a vida interior duma hacienda. Quando estava em casa, Ramon consultava diariamente o feitor; Teresa, porém, aliviava-lhe esse trabalho e já se ocupava bastante da propriedade. Em geral, ele andava por fora, ou para ir à Cidade do México, ou a Guadalajara e mesmo a Sonora. Todos o conheciam no país e o seu nome tornara-se célebre. Mas, debaixo desse culto que os compatriotas lhe prestavam, Kate adivinhava uma animosidade latente. Talvez preferissem aniquilar os seus heróis a elevá-los temporariamente às culminâncias da glória. O momento que mais apreciavam era o da queda do ídolo.
Para Kate, sempre céptica, deviam eles andar afiando o gume com que o atingiriam no peito, quando o herói se tornasse demasiadamente incómodo. É claro que precisavam da anuência de Cipriano, e Cipriano era um diabinho que os mexicanos temiam deveras. Cipriano, por então, conservava-se fiel - para com Ramon e para consigo mesmo. Representava o papel de Huitzilopochtli e Ramon o de Quetzalcoatl. Eis uma verdade simples e evidente para o general, que mantinha o seu exército pronto para o que desse e viesse. O próprio presidente seria incapaz de prescindir de Viedma, apesar de ser também um homem destemido.
- Qualquer dia - declarava Cipriano - poremos Quetzalcoatl na Catedral de Puebla, e Huitzilopochtli na da capital, e Malintzi na de Guadalupe. Não falta muito, Ramon.
- Faremos com que esse dia chegue - respondia Ramon.
Mas Ramon e Montes sofriam ambos com a profunda e diabólica animosidade do país, manifestada no próprio silêncio da população. Era sempre assim, fossem quais fossem as mãos em que o poder caísse: os Mexicanos pareciam destilar ódio oculto, um ódio demoníaco que lhes aviltava a alma; um ódio cujo único fim consistia em frustrar todos os planos.
Aí estava o dragão do México, que Ramon teria de combater. Contra o mesmo inimigo devia lutar o presidente Montes, e isso arruinava-lhe a saúde. Igualmente Cipriano, mas este desenvencilhava-se melhor. Os soldados apoiavam-no, com tambores e danças de roda das fogueiras. E o general consolidava de dia para dia a sua posição.
Ramon, na sua província, também se sentia seguro. Era o chefe, e, com o seu esforço e energia, lograva dominar qualquer veleidade de revolta. Aterrorizava com o mistério da vida, continha a gente em respeito pela fascinação que exercia. Nos seus domínios, considerava-se forte. Mas fora daí, e em especial na Cidade do México, aquela invisível e subtil má vontade do povo dir-se-ia fazê-lo sangrar, sangrar imensamente. E também a voracidade dos estrangeiros, aves de rapina que rondavam a capital cosmopolita.
Durante a ausência de Ramon, Kate fez companhia a Teresa. As duas mulheres tinham isto de comum: achavam que era melhor apoiar um homem corajoso do que fazer papel de intrometidas e importunas. Isso as unia. A profunda convicção de que deviam ser fiéis aos respectivos maridos ligava intimamente a mulher de Cipriano à de Ramon.
Estava quase no fim a estação das chuvas, embora se pudessem prever aguaceiros ocasionais para Setembro ou mesmo Outubro. Entretanto o belo Outono mexicano surgira na terra, como uma espécie de Primavera ao inverso. Vastos espaços se cobriam de flores brancas e cor-de-rosa, estranhos arbustos silvestres floresciam também, duma maneira fantástica, brilhavam à luz florestas inteiras de girassóis; o céu estava de um azul puríssimo, e, nas terras encharcadas da última chuva, a claridade do dia reverberava intensa.
O lago enchera-se mais, povoando de plantas aquáticas todas as suas margens. Vinham aves imigradas do Norte, nuvens de patos bravos que pareciam poeira no ar e depois polvilhavam a água como raminhos de erva: colimbos, grous, gaivotas brancas dos mares interiores, tal se o mistério dos regimes setentrionais se deslocasse para o Sul. Errava em terra o cheiro de água, que produzia uma sensação calmante - tanto mais que Kate supunha ter origem na aridez do solo parte do horror que lhe causava o povo mexicano. Se houvesse sempre uma gota de água na atmosfera e uma neblina sobre as árvores, desapareceria dos corações humanos aquela maldade inexprimível.
Kate ia muitas vezes a cavalo, com Teresa, ver os campos. A cana-de-açúcar, nos vales, crescia muito verde e muito alta, e os peóns começavam a cortá-la com os seus nwchetes, que pareciam espadas, e enchiam os carros de bois que as transportavam à fábrica de Sayula. Nas vertentes áridas das colinas, avultava na sua rigidez férrea a espinhosa planta da teqnila, que é uma espécie de agave. E nos cactos rijos abriam flores maravilhosas, belas de mais para tão sinistra planta. Através dos campos viam-se molhos de vagens apanhadas dos feijoeiros e abóboras dum tamanho incrível. Entre as folhas emurchecidas pendiam tomates e pimentões. Ainda se erguiam pés de milho com espigas tenras. Como a banana era pouca, as crianças colhiam toda a fruta que encontravam para fazer doce. Teresa, para esse efeito, aproveitava até os últimos figos e pêssegos. Das mangueiras suspendiam-se frutos amarelos e maduros, mas na maior parte eles estavam verdes e tombavam pesados como testículos de toiro.
Era Outono no México, com patos bravos na água, e caçadores com espingardas, e rolas nas árvores. Outono do México, início da estação seca: céu mais alto, azul mais pálido, poentes de rara transparência doirada. Os bagos de café avermelhavam-se nos arbustos contorcidos debaixo das árvores maiores, e as buganvílias, de tons roxos, eram tãoespessas que se podiam mergulhar nelas os braços.
Teresa cuidava de tudo e Kate ajudava-a. Se estava um peón doente numa das cabanas, se era preciso separar os enxames de abelhas nas colmeias debaixo das mangueiras, fazer compotas, tratar do jardim, dos vitelos, do fabrico de manteiga ou de queijos, Teresa a tudo isso atendia acompanhada de Kate. E esta admirava-se da vontade firme e constante, que tinha de ser exercida a todo o momento. Tudo corria bem graças a um poderoso esforço de vontade. À mínima fraqueza do patrão as coisas desandariam e seria a ruína da propriedade.
Jamais um desfalecimento, sempre a vontade tenaz.
Ramon regressou, numa tarde de Novembro, de longa viagem a Sonora. Viera por terra desde Lepic, e, por duas vezes, encontrara-se retido pelas inundações; não era vulgar chuvas tão tardias. Mostrava-se fatigado e com ar ausente. Kate sentiu um baque no coração enquanto comentava para si mesma: " Tão longínquo, que até parece encaminhar-se para a morte."
As nuvens cobriam o céu novamente, relampejava no horizonte, mas tudo estava silencioso. Kate retirou-se cedo e foi até à extremidade do terraço sobranceiro ao lago. Só a claridade intermitente dos relâmpagos iluminava a noite escura e, num desses breves clarões, viu Teresa sentada junto do muro do terraço descoberto; tinha a cabeça de Ramon deitada no regaço e acariciava-lhe lentamente os bastos cabelos pretos.
Kate sobressaltou-se, e disse num murmúrio:
- Desculpem! Não sabia que se encontravam aqui.
- Quis estar cá fora, ao ar livre! - explicou Ramon, soerguendo-se a custo.
- Não se mexa! - pediu Kate. - Foi estupidez minha ter vindo aqui. O senhor está cansado.
- Sinto-me realmente cansado - volveu ele, deitando-se outra vez no chão. - Aquela gente chega a convencer-me de que estou esgotado. Por isso voltei para Teresa.
- Sim - retorquiu Kate. - Não se é impunemente o Quetzalcoatl vivo. É natural que o esgotem. Mas valerá a pena ser devorado por eles?
- Tem de ser assim. Há-de-se verificar a mudança e é um homem que a deve fazer. Às vezes chego a desejar que não seja eu.
- Também acho. E Teresa igualmente. Até penso se não será preferível continuar a ser apenas um ser humano.
Teresa, entretanto, calava-se.
- Faz-se o que é preciso fazer - disse Ramon. - No fim de contas, não se deixa de ser homem. E, se daí resultar ferimento... à la guerre comme à la guerre!
Aquela voz, no escuro, parecia a de um fantasma.
- Ah! - fez Kate, suspirando. - Gostava de saber o que é um homem que se expõe a tantos horrores por causa dos seus semelhantes.
Houve um momento de silêncio.
- O homem é uma coluna de sangue dotada de voz. Quando a voz se extingue e fica apenas a coluna, tanto melhor.
Retirou-se ela para o seu quarto. Ia triste, levando ainda nos ouvidos o som daquelas palavras melancólicas. Dir-se-ia que Ramon tinha dentro de si uma ferida aberta. Era como se Kate a sentisse, nas suas próprias entranhas.
Se ele morresse, em resultado de tanto esforço? Então, pensou, Cipriano ficaria só e tudo estaria acabado.
Por que razão devia um homem afadigar-se de tal maneira por causa dum povo estúpido e mau? Se o mundo corria à desfilada para a sua perdição, deixá-lo, isso era lá com ele.
Pensou em Teresa, que consolava Ramon sem dizer nada. E pensou em Ramon, assim ferido e desesperado! Coisas horríveis, na verdade. Ela devia intervir, defendê-lo contra si próprio. Porque haviam os homens de empreender esses combates inúteis, dos quais voltavam para casa a fim de se restabelecerem junto das suas companheiras?
Para Kate, essa luta não merecia sequer as honras de um ferimento. Que tão antipático mundo terminasse de vez, se tal era o seu destino, e quanto mais depressa melhor! Kate não levantaria um dedo para o impedir. Que cada qual vivesse a sua preciosa vida, que é só uma - e fosse tudo mais para o diabo!
Tentaria impedir que Ramon continuasse naquela senda suicida. Deixá-lo ser o Quetzalcoatl vivo quantas vezes quisesse; mas não tinha o direito de se expor à maldade demoníaca do povo.
Contudo, ele insistia nisso, como Joachim fizera na Irlanda. Teresa, com a sua firmeza doce e calma, talvez lhe fosse de melhor auxílio do que Kate com as suas recriminações.
"Ah! Ainda bem que Cipriano é militar. As feridas que sofrer não lhe atingirão a alma." Mas sabia que, sem Ramon, Cipriano não seria ninguém e nem chegaria a interessar-lhe.
De manhã, Teresa compareceu sozinha ao primeiro almoço. Parecia muito tranquila; dissimulava os sentimentos sob o seu ar orgulhoso de mulher morena.
- Como vai Ramon?
- Está a dormir.
- Ainda bem. Pareceu-me muito em baixo ontem à noite.
- Sim... - Teresa fitou a outra com os seus grandes olhos negros cheios de coragem e de lágrimas contidas.
- Não compreendo que um homem se sacrifique àquele ponto. É inadmissível.
Teresa continuava a fitá-la.
- Ele não se sacrifica - replicou. - Sente que tem de proceder assim. E o meu dever é ajudá-lo.
-? Nesse caso, sacrifica-se por ele, o que também é para mim inadmissível.
- Ah, não! - retorquiu Teresa, com uma onda de sangue a ruborizar-lhe as faces. - Não me sacrifico por Ramon. Se posso dar-lhe... sono... quando dele necessita, isso não representa sacrifício. Representa... - Não terminou a frase, e o rubor acentuou-se-lhe.
- Representa amor, bem sei - volveu Kate. - Mas também a esgota.
- Não é só amor! - exclamou Teresa altivamente. - Eu podia amar outros homens, há muitos que merecem afecto. Mas Ramon... A minha alma pertence-lhe. - Afloraram-lhe lágrimas aos olhos. - Prefiro não falar deste assunto - acrescentou, pondo-se de pé.
E saiu do quarto, deixando Kate um tanto perturbada - e com desejo de voltar para Sayula.
Mas uma hora depois Teresa reapareceu e, apoiando no braço de Kate a mãozinha fresca e macia, disse-lhe em tom suave:
- Desculpe se fui indelicada.
- Eu é que não tenho razão...
- Sim, julga que em tudo isto só existe amor. O amor é uma parte mínima do resto.
- E que é o resto?
- Como posso dizer-lhe, se desconhece? Mas pensa que Ramon não é para mim mais do que um amante?
- Um marido! - emendou Kate. Teresa sacudiu a cabeça com impaciência.
- Ah, esses termos, que tão pouco significam! Não é apenas um marido! É a minha vida!
- Acho preferível cada qual viver a sua vida.
- Não. A vida é como uma semente. De nada serve se não a dermos. Sei que é assim; guardei durante anos a minha vida para mim só. Quando se a guarda muito tempo, ela morre. Quis oferecê-la a Deus, mas não consegui. Disseram-me que se eu casasse com Ramon e tomasse parte na heresia de Quetzalcoatl ficaria condenada aos tormentos eternos, mas alguma coisa me segredava que isso não era verdade e que Ramon necessitava da minha alma. Ah, señora!
- Um sorriso iluminou a face pálida de Teresa. - Dei a minha alma a Ramon. Perdi-a por sua causa. Que mais posso dizer?
- E a alma dele?
- Está aqui. - E Teresa espalmou a mão no seio. Kate ficou um momento calada.
- E se ele a atraiçoar? - perguntou então.
- Ah, señora, Ramon não é apenas um amante. É um homem honesto e não trairá o seu próprio sangue. Concedeu-me a sua alma em troca da minha, e eu lutarei até ao último sopro de vida para o apaziguar quando volta para mim esfrangalhado e com necessidade de sossego. - Teresa proferiu tudo isto com veemência, e depois acrescentou num murmúrio, como se falasse a si mesma: - Graças a Deus, não tenho uma vida só minha. Dei-a a um homem que é mais que homem, como se diz na linguagem de Quetzalcoatl. Por isso ela não morrerá em mim como um pássaro na gaiola... Oh, señora! Quando ele parte para Sinaloa e para a costa ocidental, a minha alma acompanha-o. E Ramon não se esquece que a minha está com ele, tenho a certeza! Não, señora, não deve criticar-me nem
lastimar-me.
- No entanto, acho melhor cada qual guardar a sua alma e ser
responsável por ela.
- Sim, se fosse possível! - replicou Teresa. - Mas não se pode guardar a alma dentro de nós porque acaba por morrer... Enquanto o homem não nos dá a sua semente, a nossa é estéril, e a dele nada vale sem a mulher. O mesmo acontece à alma. Enquanto a não damos a um homem e ele a não toma, nenhum valor tem. E depois de ele a tomar, toda inteira, ninguém fala de traição! Um homem só atraiçoa quando se lhe deu uma parte e não tudo, e a mulher só atraiçoa quando aceita dela apenas uma parte e não o todo. Mas quando de um lado se deu tudo e tudo se aceitou, a traição não existe. Sou o que sou para Ramon e ele é o que é para mim. Não importa o que fizer. Não importa que esteja longe.
Kate não gostava de receber lições daquela criaturinha; era mulher da sociedade, bela e com experiência da vida. Estava acostumada a que lhe rendessem preito. As demais do seu sexo chegavam a temê-la, porque era decidida e impiedosa.
Teresa também a receava um pouco como senhora da sociedade, mas não como mulher. Entrincheirada na sua almazinha orgulhosa, Teresa considerava Kate uma dessas pessoas do mundo exterior que têm muito brilho mas que não estão muito seguras dos segredos da sua personalidade. Toda a beleza e crueldade feminina de Kate era coisa secundária para Teresa em comparação com o profundo e tranquilo amor que a ligava a Ramon.
Sim, Kate habituara-se a olhar as outras mulheres como seres inferiores. No entanto, os papéis inverteram-se de súbito. Embora soubesse que Ramon era superior a Cipriano, viu-se constrangida a pensar se Teresa não seria também superior a ela.
Teresa? Mais importante do que Kate? Que surpresa! Não podia ser verdade.
Contudo, assim era. Ramon desejara casar com Teresa e não com Kate. E o ardor desse enlace ela via-o tanto nos olhos de Ramon como nos da mulher: um ardor que não existia nos olhos de Kate.
O casamento desta com Cipriano não parecia sério nem definitivo. Quando Cipriano estava ausente, ela recuperava a sua antiga individualidade. Só com o general presente é que se compenetrava da sua submissão.
Quando Teresa voltou a fitá-la com aquele seu fulgor do olhar, misturado de indignação, Kate sentiu-se desanimada e arrependida - decerto pela primeira vez na sua existência.
Sabia que Teresa sentia certa aversão por ela: era uma estrangeira branca que falava tão inteligentemente como um homem e nunca dera a sua alma; nem admitia que a pudesse dar. Todas essas damas bem vestidas, da América ou da Europa, guardavam a alma para si mesmas, numa espécie de avareza.
Teresa estava resolvida a não deixar que a outra a tratasse indefinidamente como um ser inferior. Assim procediam todas as estrangeiras para com as mexicanas, porque se consideravam emancipadas. E, para com Ramon, mostravam certa condescendência.
Mas Ramon... Bastava que ele as fixasse para que elas se sentissem reduzidas a nada, apesar de todo o seu dinheiro, experiência e ares dominadores. Raças dominadoras! Que esperassem! Ramon era um desafio a tudo isso. Que o dominassem, se fossem capazes de tanto!
- Não dormiu? - perguntou Teresa a Kate.
- Não muito bem.
- Está com olheiras.
Kate alisou a pele, desconfiada, em volta dos olhos.
- É o que nos faz o México. Não é fácil conservar a juventude neste país. A senhora é que está com bom parecer.
- Sinto-me perfeitamente.
Irradiava de Teresa uma frescura nova, algo de frágil e subtil que ela não precisava de defender contra outra mulher.
- Agora que Ramon já veio, é altura de eu regressar a casa -
declarou Kate.
- Porquê? Faz empenho nisso?
- Acho preferível.
- Nesse caso irei consigo até Sayula. De barco, não é verdade?
Kate arrumou as suas coisas. Dormira mal. A noite fora tenebrosa, cheia de horrores. Lembrara-se de Ramon atacado pelos bandidos e do seu ferimento nas costas. Tivera-a acordada durante horas o barulho ameaçador da chuva.
Percebia o desdém de Teresa pela sua maneira de considerar a
vida conjugal.
- Também eu fui casada - disse Kate. - com um homem
excepcional, a quem amei.
- Ah, sim... E ele morreu.
- Quis morrer.
- Ah, sim... quis morrer.
- Fiz o possível para evitar que se estafasse.
- Fez?
- Que mais estava na minha mão? - redarguiu Kate, num
assomo de ira.
- Se lhe houvesse dado a sua vida, ele não quereria morrer.
- Eu dei-lhe a minha vida. Amava-o. Ah, nem faz ideia! Mas ele não quis a minha alma. Achava que eu devia guardá-la para
mim.
- Os homens são assim quando são apenas homens. Mas,
sendo ardentes e bravos, então querem que as mulheres lhes dêem a alma e guardam-na dentro de si. Sei o que é. Sei onde a minha alma está. Nas entranhas de Ramon, assim como a sua semente está nas minhas entranhas, entranhas de mulher. Ele é um homem e uma coluna de sangue; eu sou uma mulher e um vale de sangue. Digo-lhe isto porque lhe salvou a vida e portanto estamos todos ligados: Caterina, eu, Ramon e Cipriano. Mas não me julgue mal. Aquela outra espécie de mulheres, as que conservam a sua alma, que é senão fraqueza?
- E os homens?
- Se são ardentes e bravos, confortam as nossas entranhas, Caterina!
Kate baixou a cabeça obstinada, furiosa por ter sido apeada do seu pedestal. Que coisa miserável, pensou, isso de uma mulher viver apenas por amor de um homem! Só para lhe enviar a alma para dentro do seu precioso corpo... E trazer no ventre a sua semente preciosa... Quanto a ela própria, nada.
Pretendeu consumar a sua indignação, mas não foi bem sucedida. Talvez no fundo, e contra sua vontade, invejasse Teresa, os seus olhos negros cintilantes, a sua firmeza selvática. Invejava-lhe os dedos delicados, e, acima de tudo, a consolação de ter um homem tão profundamente ligado a si.
A manhã estava quente depois da chuva. As rãs coaxavam, frenéticas. Na outra banda do lago as montanhas pareciam azuis-escuras, com farrapos de nevoeiro a arrastarem-se através das árvores e nuvens brancas a coroarem os picos. Nas águas barrentas navegava um barco de vela solitário.
- Hoje, tudo isto me lembra a Europa, o Tirol - disse Kate, comovida.
- Gosta muito da Europa? - perguntou Teresa.
- Muito.
- E tenciona voltar para lá?
- Penso regressar em breve, para ver minha mãe e os meus filhos.
- Eles reclamam-na?
- Sim, respondeu Kate, um pouco hesitante. E em seguida ajuntou: - Não muito. Mas quero tornar a vê-los.
- Porquê? Tem saudades deles?
- às vezes. - E os olhos de Kate arrasaram-se de água. O barco avançava sem rumor.
- E Cipriano? - volveu Teresa, a medo.
- Ah!, exclamou Kate. -Esse é para mim como um estranho.
Teresa ficou uns momentos calada.
- O homem é sempre estranho para a mulher, creio eu - rematou ela. - E porque não havia de ser?
- Mas a senhora não tem filhos.
- Tem-nos Ramon, E ele costuma dizer: "Continuarei a lançar pão à água e se meus filhos acabarem por se aproximar de mim ficarei contente." Não é. o seu caso?
- Não! - respondeu Kate. - Sou mulher, não sou homem.
- Se eu tiver filhos - declarou Teresa - também lançarei pão à água para os atrair, e espero não os reter ciosamente na minha rede. Assusta-me o amor, é tão pessoal! Devemos deixar os pássaros voarem com as suas asas e os peixes nadarem à vontade. a manhã concede-nos mais do que o amor. E eu quero ser sincera para com a manhã.

XXVI
Kate estava satisfeita por voltar à sua casa e por se encontrar sozinha. Sentia que se operava nela uma grande mudança - mudança que a poderia matar se se realizasse violentamente. Era o fim de qualquer coisa e o princípio de outra: no mais profundo da sua alma e nas suas entranhas. Os homens, Ramon e Cipriano, e o México, seriam a causa daquela modificação. Chegara o momento. Entretanto, se a evolução fosse brusca de mais, e rápida em excesso, poderia revelar-se fatal. Por isso tinha necessidade de se isolar, de tempos a tempos.
Sentava-se na margem durante horas, à sombra dum salgueiro verde, cuja cortina de folhas descia até à água. O lago mostrava-se mais alto e mais cheio que de costume, e tinha também maior calma e maior mistério. Errava o cheiro dos nenúfares que emurcheciam depois de haverem dado à costa. As distâncias pareciam prolongadas. Lembravam estampas japonesas os outeiros mais próximos, salpicados de verdura. Carros de grandes rodas traziam à aldeia a cana-de-açúcar cortada; puxavam-nos a cada um, oito bois que baloiçavam lentamente a cabeça de enormes chifres, enquanto um peón, à frente, os conduzia com o aguilhão poisado no jugo. Tão pesados, tão vagarosos e contudo fáceis de guiar!
Experimentava, no México, uma sensação esquisita, como se estivesse em presença duma humanidade pré-histórica, gente de olhos escuros de antes do período glaciário - quando o mundo era mais frio, os mares vazios e diferente a constituição da terra; quando as águas, solidificadas, se acumulavam nos pólos, e as planícies ocupavam os oceanos, como a Atlântida e os antigos continentes da Polinésia; quando os mares não passavam de lagos, embora grandes, e os povos de olhos pretos podiam dar a pé a volta ao mundo. Nesse tempo existia uma raça misteriosa de sangue ardente e ligeira no andar: raça que possuía uma civilização que lhe era própria. Depois fundiram-se os glaciares, os homens refugiaram-se nos pontos elevados, como os planaltos do México, e separaram-se em nações diferentes.
Na América é tão forte a sombra do mundo antediluviano que às vezes Kate perdia a noção dos tempos decorridos e começava a aproximar-se do antigo modo de ser, da vontade velha e torva, do desprezo da morte, da subtil e escura consciência, do instinto que precedeu a razão. Regressava à época em que o espírito e o poder dos homens residiam no sangue e na espinha dorsal, e as relações entre eles e com os animais se produziam através da medula.
Os Mexicanos ainda se encontravam nesse estádio. O que é aborígene na América pertence à fase de antes do Dilúvio, antes de reinar na terra a vida espiritual. Por isso, ali, a actividade cerebral dos brancos se alastra como uma erva em terreno virgem - para, é claro, murchar depressa e desaparecer por completo. Então, como resultado disso, surge um novo gérmen, uma nova concepção da humanidade: vem da fusão da antiga consciência instintiva e do racionalismo intelectual do branco. Um ser diferente, nascido do encontro daqueles dois.
Kate era muito irlandesa, e no fundo da sua alma jazia o misticismo original, quase desaparecido, dessa primitiva raça celta ou ibérica. É como um resíduo que existe ainda no mundo antediluviano e que não pode ser inteiramente destruído.
Sabia ela, mais ou menos, que era essa fusão o que Ramon pretendia realizar. Compreendia também o motivo pelo qual Cipriano tomava a seus olhos uma importância maior que todo o seu passado, os seus dois maridos, e os filhos. Esse velho sangue másculo despertava-lhe agora nas veias; daí vinham as palpitações que ela ultimamente sentia.
A Irlanda não podia nem queria esquecer aquele ardor sombrio e primitivo. Os Thuathas de Danaan, embora submersos, continuam vivos no sangue, não se lhes consegue impor silêncio. E a Europa científica e meticulosa tinha de se defrontar de novo com os velhos
gigantes.
Esta alteração, todavia - e Kate bem o notava -, não era coisa que se efectuasse com brusquidão; de outro modo haveria rotura e possibilidade de morte. O primitivismo tem os seus horrores. O espírito original do México, pesado, terre à terre, podia ser-lhe tão odioso que a tornasse perversa. Essa obtusa, indomável persistência, desprovida de energia e de esperança, que é peculiar ao aborígene americano, levava-a às vezes a supor que ia perder a razão. Obstinação tenaz que resistia aos séculos e desprezava a personalidade! Lascívia da morte, feroz, incalculável, terrível!
Esse povo, realmente, nunca mudava. Os homens não tinham fé na vida, em nenhuma realidade evidente. Eram apenas fiéis a certas forças obscuras do passado. O presente submergia-se na alma dos homens e das mulheres sob uma camada de lava negra, não deixando à superfície senão a indiferença.
A Esperança! A Esperança! Seria possível, um dia, fazê-la reviver nessas almas obscuras e obter o enlace das suas raças, único passo para o novo mundo do homem?
Entretanto, Kate sentia-se invadida por um mal-estar esquisito. Achava ser necessário partir, a fim de escapar a tamanha depressão. Já não podia ouvir a rastejante insistência dos criados: o sangue é só um, nós somos do mesmo sangue - sentença de tribo pior do que a morte para um indivíduo de raça branca. Estranha teimosia aquela que preconizava a todos a fusão do sangue!
Kate pertencia a uma família antiga, com pergaminhos. Fora educada nas ideias anglo-germânicas da superioridade intrínseca da aristocracia hereditária. O seu sangue era diferente do da gente vulgar: outro fluido, mais refinado.
No México, porém, nada disso conta. Juana, o homem que ia buscar água, o barqueiro que remava no lago, todos revelavam o mesmo pensamento no olhar: "O sangue é só um; pelo sangue tu e eu somos iguais." Kate lia isto nos olhos deles, adivinhava-o nas suas palavras, quer fossem deferentes ou escarninhas, e, por vezes, sentia-se revoltada com essa imposição da igualdade de sangue.
E quando se empertigava como para proclamar "O meu sangue é só meu. Noli me tangere", percebia nas pupilas negras daquelas criaturas o terrível ódio ancestral que as impele a cometer as maiores atrocidades.
Contudo, inclinavam-se perante a sua inteligência, sabedoria e compreenção, e, embora contra vontade, testemunhavam-lhe certo respeito. Ela pertencia às raças dominadoras, hábeis e espertas... Mas exigiam-lhe a aceitação da velha crença: O sangue é só um. Somos todos do mesmo sangue.
E tinha de se submeter, senão persistiriam na sua lenta vingança.
Mas não podia submeter-se de repente. Devia ser a pouco e pouco; um esforço violento destruí-la-ia.
Compreendia agora a afirmação de Ramon: "O homem é uma coluna de sangue, a mulher um vale de sangue." Era a unidade primordial
do género humano, oposta à unidade do espírito individual.
Kate, porém, sempre considerara seu o próprio sangue. O espírito é que ela partilhava com os outros.
Percebia agora o motivo por que Ramon e Cipriano usavam fatos brancos e sandálias e andavam meio nus como deuses vivos. Era a aceitação da antiga crença, o renascimento do laço de sangue que unia os homens, laço que tornava o sacrifício humano tão poderoso
factor da vida.
O sangue do indivíduo é rendido ao ser supremo, ao ser de sangue, deus, nação ou tribo.
E, na verdade, que estranha união existia entre Ramon e os seus homens, entre Cipriano e os seus soldados! Era a comunhão do sangue. Isto podia indignar Kate, enjoá-la por vezes, mas era uma força que não conseguia vencer.
Mesmo admitindo essa comunhão de sangue, Ramon reivindicava uma supremacia, até uma divindade. Era um homem como o mais humilde dos seus peóns, nascido da mesma fonte, das mesmas raízes que eles; no entanto, mostrava ser superior aos outros. E a sua superioridade não provinha do sangue ou do espírito mas duma misteriosa estrela interior que nascia do oceano sombrio e cintilava entre o mar e o céu imenso. A estrela que une o vasto sangue universal ao sopro universal do espírito e brilha entre ambos.
Porque essa coisa que reina sobre o poder humano e que é em si mesma um poder, essa coisa é a estrela misteriosa do cosmos primitivo, é a divindade no homem.
Certos homens nada possuem de divino. Possuem apenas faculdades. São ou deveriam ser escravos. Muitas vezes um homem tem a centelha divina, mas é sufocada pela força ou pela vida material.
E quando o espírito e o sangue se separam e divergem, provocando a morte maior, então apagam-se quase todas as estrelas.
Só o homem que possui uma estrela magna, uma grande divindade, será capaz de reaproximar essas forças contrárias e criar uma nova união.
Esse homem era Ramon e o seu esforço o máximo que se podia fazer: aproximar e unir as forças contrárias. Eis o poder divino de um homem. Por ele, no homem, se distingue o deus. Por ele apenas
e por mais nada.
Embora fosse como o mais ínfimo dos seus peóns, com o mesmo coração que bate, os mesmos rins insondáveis, e os lábios fechados sobre o mesmo segredo da humanidade; e fosse humano como Kate era humana, com a mesma ansiedade de espírito e a sede do puro conhecimento e da comunhão; no entanto só ele tinha o poder astral de unir os dois grandes impulsos da humanidade, e de os fundir - de ser a ave de asas imensas que paira entre as duas potências opostas: a Estrela da Manhã, que está entre o sopro da aurora e as profundezas da noite.
Os homens haviam tentado assassiná-lo com punhaladas. Carlota quisera matá-lo com o seu espírito. Cada parte, separadamente, pretendera liquidá-lo. Ele, contudo, estava fora do alcance de qualquer delas. Era o Quetzalcoatl vivo, a cintilação de uma estrela que nascia na alma dos seus compatriotas. Chama dum astro a meio das duas asas do poder: eis só o que representa a divindade num homem e em toda a humanidade.
Kate recebeu um recado de Cipriano: mandava-lhe dizer que vinha instalar-se na Vivenda Aragon. Esta casa era a principal da região do lago; tinha um jardim em toda a volta, não muito grande mas bonito, com palmeiras e sebes de jasmineiros, tudo muito verde em resultado de regas constantes. A própria construção lembrava um castelo em ponto pequeno, talvez despropositado; mas eram agradáveis as varandas espaçosas que davam para a encosta e a vegetação do jardim, mesmo acima do lago.
Cipriano chegou bem disposto. Brilhavam-lhe os olhos com uma expressão de mocidade. Queria casar a valer com Kate, segundo a lei civil mexicana, e morar com ela na Vivenda Aragon. Kate hesitava, achando que tinha necessidade de voltar em breve à Europa, sobretudo à Inglaterra e Irlanda. Era urgente, porque lhe custava já a suportar aquela ameaça do México, a sua influência deprimente. Precisava, pelo menos, de um intervalo de repouso.
Assim o declarou a Cipriano, que ficou desanimado.
- Não importa casar ou não antes de ir - disse ela. - O que tenho é de me afastar daqui o mais depressa possível.
- Quando?
- Em Janeiro.
O rosto dele desanuviou-se.
- Então casemo-nos primeiro. Na semana que vem.
Ela aquiesceu com estranha indiferença, e Cipriano, radiante, correu a fazer os preparativos necessários.
Pouco interessava a Kate o casamento civil. No sentido essencial, já estava casada com Cipriano. Ele era acima de tudo militar, tão depressa vinha para ela como a deixava. Kate, de qualquer maneira, passaria grande parte do tempo sozinha.
Podia convir-lhe como marido, mas o que a assustava era esse México terrível. O movimento quetzalcoatliano espalhara-se de maneira sinistra por todo o país. O arcebispo manifestara-se contra isso, e Ramon, Cipriano e seus aderentes estavam excomungados. Haviam tentado assassinar Montes.
Na capital, os partidários de Quetzalcoatl tinham escolhido para lugar de reunião a Igreja de San Juan Bautista, conhecida pela Igreja do Salvador Negro. O arcebispo ordenara aos seus fiéis que fossem em procissão ao referido templo, agora chamado Casa de Quetzalcoatl, a fim de o retomarem para o culto católico. O governo, porém, sabendo que mais tarde ou mais cedo haveria luta, fez dispersar a procissão e deteve o arcebispo, depois de alguma efusão de sangue.
Rebentou então uma espécie de guerra. Os Cavaleiros de Cortez exibiram a sua famosa reserva de armas, que aliás não era muito impressionante. Em Zócalo produziu-se uma manifestação clerical, dirigida por um padre fanático. Montes mandou atirar sobre os insurretos. Aquilo afigurava-se o começo duma luta religiosa. Pelas ruas viam-se os bandos de Quetzalcoatl, com as suas serapes azuis e brancas, e' os de Huitzilopochtli, de serapes vermelhas e pretas, marchando ao som de tambores e erguendo uns as suas estranhas insígnias redondas, feitas de penas, e outros longas varas rematadas por um penacho rubro de extremidade preta. Nas igrejas, os sacerdotes incitavam os fiéis à guerra santa; os que haviam aderido à causa de Quetzalcoatl discursavam nas ruas à multidão.
Período tumultuoso. Em Zacatecas, o general Narciso Beltran manifestara-se contra Montes e a favor da Igreja, mas Cipriano interviera com tal presteza e violência que deu em resultado o fuzilamento de Beltran e a dispersão das suas tropas.
Então Montes declarou ser igual no México o antigo culto católico e publicou um decreto determinando que a religião nacional da República fosse a de Quetzalcoatl. Encerraram-se todas as igrejas e os padres viram-se obrigados a prestar juramento de fidelidade à República ou a serem condenados ao exílio. Em todas as cidades e aldeias surgiam os soldados de Huitzilopochtli e os homens de serape azul. Ramon trabalhava sem descanso. Cipriano aparecia nos lugares onde menos o esperavam. Conseguiu despertar uma espécie de frenesi religioso nas regiões mais descontentes, como Vera Cruz, Tamaulipas, Jucatão. Efectuaram-se no mar estranhos baptismos e nas costas elevaram-se fortalezas com as cores de Huitzilopochtli.
Todo o país vibrava com uma sensação desconhecida, dominado pela vaga de energia nova, mas em tudo aquilo entrava violência, crueldade e certo horror.
Deportaram o arcebispo. Já não se viam sotainas nas ruas; só as serapes de Quetzalcoatl e as de Huitzilopochtli se evidenciavam entre as multidões. Eis porque Cipriano chegou junto de Kate, com os olhos a luzir, ébrio de triunfo. Kate ficou assustada e sentiu-se vazia e inútil. Nem sequer aquela vitória espantosa e a alteração que se dava na face do mundo a podiam salvar por completo. Pertencia à velha Europa e não lhe era fácil transformar-se tão rapidamente. Contudo, achava que, se voltasse à Irlanda e concedesse uns tempos de repouso à sua vida e ao seu corpo, poderia então regressar ao México e participar nos acontecimentos.
Porque não era só o espírito que se modificava, mas também o corpo e o próprio sangue. Sentia esse terrível catabolismo e metabolismo a transformá-la noutra criatura. Se a metamorfose fosse muito brusca, decerto ela morreria.
Casou-se, pois, legalmente com Cipriano e foi passar um mês com ele na Vivenda Aragon. Em seguida embarcaria sozinha para a Irlanda, projecto a que o marido deu a sua anuência.
Era deveras estranho estar casada com ele. Kate tinha a impressão de se afundar pesadamente abaixo da superfície da vida, para jazer nas suas profundezas.
Estranha, pesada, verdadeira passividade. Pela primeira vez na sua existência, ela sentia-se repousada. Falar e pensar tornavam-se-lhe coisas triviais; as ondas à tona de água não são nada para aqueles que vivem submersos.
Na alma, estava serena e altiva. Ah, se o corpo não sofresse tanto com a transformação! No cosmos encontrara a paz de espírito, o universo abrira-se à sua frente, e ela deixava-se afundar no leito de puro descanso. Adquirira quase tanta segurança como Teresa. Só a atormentava a mudança que se lhe operava no sangue.
Cipriano mostrava-se feliz, à sua maneira de índio. Parecia um adolescente contemplando o mistério da vida com olhos dilatados de espanto. Não se ocupava especialmente de Kate, nem lhe falava de assuntos sérios. Se ela aflorava uma conversa desse género, dirigia-lhe um olhar desconfiado e afastava-se.
Tinha consciência de coisas de que a mulher mal se apercebia, sobretudo do perigo das palavras irritantes. E isto ele evitava.
Kate compreendia agora como os seus antigos amores haviam sido brutais, carregados de desejo e de contactos voluptuosos. com Cipriano, desaparecia a sua vontade ardente feminina, toda ela doçura, submissão; e contudo, tais as fontes térmicas que brotam da terra sem rumor, tão poderosa era na sua força secreta!
Via quase com espanto morrer dentro de si a Afrodite da espuma, essa Afrodite ávida de sensações ardentes. Como se prevenido por vago instinto, Cipriano repudiava essa parte da natureza de Kate. Quando esta se deixava dominar pelo êxtase voluptuoso que acaba em espasmos delirantes, ele afastava-se da mulher. Retirava-se desde que pressentia nela a sede daquelas volúpias a que costumava chamar o seu "prazer". E Kate percebia que lhe era repulsiva nesses momentos. Misterioso e implacável, afastava-se sem uma palavra.
Estendida a seu lado ela compreendia então quanto era superficial aquela efervescência de sensualidade. Parecia vir do exterior, não do seu íntimo. Depois do primeiro instante de decepção, quando esse prazer lhe era negado, concluía que não o desejava realmente, que até lhe repugnava.
E Cipriano, no seu silêncio quente e obscuro, aproximava-se quando ela se assemelhava a uma fonte borbulhando sem rumor das profundezas vulcânicas. Já não se tratava de prazer consciente. O que se passava era estranho, inexprimível, muito diferente das suas relações com Joachim. Nem êxtases, nem espasmos. Uma espécie de força subterrânea a que tinha de se submeter.
Tal como no amor, assim era Cipriano na vida. Kate não conseguia perscrutá-lo. Se tentava, via-se obrigada a desistir e a classificá-lo entre as coisas que existem e não se compreendem. Um desconhecido, e uma presença; nada mais.
Não podia existir intimidade. Cipriano envolvia-se na sua reserva como numa capa e deixava Kate envolver-se na dela. Eram dois estranhos. Ele aceitava o facto integralmente, como se outra coisa não fosse possível, mas Kate achava aquilo deveras singular. Tinha tanto desejo de intimidade e esforçara-se tanto por obtê-la!
Agora, resignara-se a aceitá-lo tal como era: um desconhecido, um estrangeiro na presença do qual vivia. E sem nenhuma intimidade espiritual, a sua união não passava de uma união de sangue.
Por isso, pouco importavam as ausências de Cipriano. Deixava atrás de si a marca da sua presença, e levava consigo a de Kate. Em resumo, não existia o desgosto da separação.
Certa manhã, ele teve de partir cedo para a cidade. O sol ainda não cobria o lago mas, para além de Tuliapan, já acariciava as montanhas, que brilhavam tão distintas que se diriam focadas por luz mágica. O sulco verde das encostas parecia ao alcance da mão. No seu voo, cintilaram de súbito duas gaivotas brancas, apanhadas na luminosidade. Mas o lago, suave, unido, silencioso, permanecia ainda na sombra.
Kate lembrou-se do mar. O Pacífico não ficava longe. Ela tinha a impressão de o haver esquecido, mas sentia de novo a necessidade da sua brisa.
Cipriano ia banhar-se; Kate viu-o caminhar sobre as lajes do cais. Despiu o roupão e o vulto escuro desenhou-se na água amarelada. Era tão moreno! Tal um malaio. Corpo tão trigueiro como a cara; e com esse físico primitivo, e o peito alto, e as ancas bem modeladas, evocava as figuras masculinas de certas medalhas gregas.
Mergulhou da beira do cais e avançou na água mansa. Nesse momento a luz espalhou-se dos cimos das montanhas e cobriu de oiro a superfície do lago. Imediatamente, Cipriano apareceu rubro como fogo. Os raios solares, porém, não eram vermelhos, mas, reflectidos pelas águas, davam ao corpo de Cipriano um tom de lume, como se o abrasassem.
Os filhos da Manhã... A coluna de Sangue... Um Pele-Vermelha... Kate contemplava-o admirada enquanto nadava resplandecente e puro. Como se fosse de fogo!
Os filhos da Manhã... Kate mais uma vez renunciou a todo e qualquer esforço de conhecimento - e, sem esforço, limitou-se à comunhão de sangue.
Sim, a sua raça... Ela notara já como os indígenas se tornavam de um vermelho puro à luz da manhã e da tarde. Dir-se-iam chamas erguendo-se da água.
Cipriano partiu a cavalo, com o criado. Kate viu-o afastar-se pela estrada além, sombrio na sua montada ruça. Parecia não fazer movimento nenhum. Irradiava um orgulho másculo e, assim unido ao animal, era como se este e o cavaleiro constituíssem um único ser.
Desapareceu. Kate, por um instante, experimentou saudade da sua presença. Mais do que dele próprio. Não desejaria tocar-lhe nem falar-lhe, mas tão-somente senti-lo ali.
Depressa se dominou e voltou à realidade. Desde que se compenetrava da ausência de Cipriano, vinha-lhe a noção nítida da sua presença.
Passeou um pouco pela costa, junto do molhe. Adorava estar só. Absolutamente só, com o jardim, o lago e a manhã.
"No fundo, sou como Teresa", pensou ela.
De súbito viu à sua frente uma corda comprida e escura em cima de um pedregulho. Aquilo fê-la sair dos devaneios. Era uma cobra de pele ornada com delicados desenhos; estava sobre uma pedra enorme e a cabeça pendia-lhe até ao chão.
O réptil sentiu a presença da mulher, pois, com incrível rapidez, rastejou ao longo da rocha e entrou numa fenda que havia na base do molhe.
Não era grande o buraco. Depois de ali penetrar, virou a cabeça e dardejou a língua preta; mas em seguida desapareceu devagar, e Kate viu-lhe ainda o último anel, no qual poisava a cabeça chata. Fazia lembrar aqueles diabos que se representam de queixo apoiado sobre os braços, olhando através duma seteira. Do fundo do esconderijo espiava a mulher; seguia-a com os olhos cintilantes de crueldade.
Kate pensou então em todos esses seres invisíveis, escondidos nos recantos ocultos da terra. E perguntava a si mesma se aquele réptil não sofreria por ser incapaz de se elevar na escala da criação; de não poder correr a quatro patas em vez de rastejar...
Talvez não. Talvez houvesse encontrado a sua própria paz. Kate sentiu-se reconciliada com o animal.

XXVII
Teresa e Kate tornaram a visitar-se. Existia agora entre ambas certa simpatia, especialmente desde que a irlandesa decidira partir.
Envolvia o lago uma pureza outonal. Sentia-se a humidade na atmosfera, as sarças das encostas cobriam-se de rebentos. O sol inundava os montes duma luz de ouro, as sombras eram profundas, aveludadas. A verdura invadia tudo, até as rochas e a terra cor-de-rosa. O verde brilhante das canas-de-açúcar sobressaía no fundo rubro dos campos lavrados de fresco; aqui e ali, entre a massa escura das árvores, avultava a mancha branca das povoações.
O céu estava alto e límpido. No ar cristalino vibravam os tambores e o grito para as pausas do dia. E o dia parecia deter-se perante o mistério supremo desse universo que desabrochava, vasto, suave e cheio de vida.
Até no lago se encontrava uma espécie de apaziguamento. Avançava uma canoa com a vela entumecida tal uma concha nacarada; o casco negro e afilado deslizava sobre a água. Dir-se-ia a barca de Dioniso portadora duma mensagem e de ramos de videira.
Kate mal se lembrava agora da secura árida dos meses anteriores, quando a terra parecia crepitar ao sol implacável.
Ramon e Teresa atravessaram o lago e o seu barco de remos entrou no molhe. Era uma manhã em que as sombras nas montanhas tomavam o tom azul das centáureas.
- Sempre vai partir? - perguntou Ramon a Kate.
- Por uma temporada. Não me julga a mulher de Loth, não é verdade?
- Não - respondeu ele, a rir. - Julgo que é a de Cipriano.
- E sou. Mas preciso de sair, embora por pouco tempo.
- Ah! Nesse caso vá e volte depressa. E diga lá na Irlanda que façam o que fizemos aqui.
- Como?
- Encontrando-se em si mesmos, e no seu próprio universo, e com os seus deuses. Justifiquem os seus mistérios. Os Irlandeses são tão prolixos no que respeita aos seus heróis de outrora e aos seus tempos gloriosos! Diga-lhes, pois, que concretizem tudo isso, como nós fizemos com Quetzalcoatl e Huitzilopochtli.
- Está bem. Veremos se há quem me escute...
- Sim, senhora. - Seguiu com os olhos a vela branca que se aproximava e depois indagou: - Afinal, porque quer partir?
- É-lhe indiferente o caso, pois não?
- Não, não me é indiferente.
- Porquê?
Ramon levou outra vez uns segundos para responder:
- É uma das nossas - replicou por fim. - Precisamos de si.
- Mesmo quando não faço nada? E quando principio a aborrecer-me com a história do Quetzalcoatl vivo e o resto, e preferia conhecer um simples Don Ramon?
Ele riu-se.
- Que é um simples Don Ramon? Don Ramon tem dentro de si Quetzalcoatl vivo. Mas a senhora auxilia-nos, apesar de tudo.
- Não creio que precise de auxílio, e muito menos de uma mulher que. no fim de contas, não é mais que a esposa do seu amigo.
Estavam sentados num banco, debaixo das manhãs-de-páscoa, cujas folhas rubras formavam como que uma flor de pétalas enormes.
- A esposa do meu amigo - volveu Ramon. - Que poderia
ser de mais agradável para mim?
- Pois claro! - exclamou Kate de maneira ambígua. Ramon tinha os braços apoiados nos joelhos e olhava para o
lago, com ar ausente. O seu rosto reflectia cansaço e aquela vulnerabilidade que sempre comovia Kate. Mais uma vez ela se compenetrou do isolamento e esforço que a procura de uma vida diferente impunha àquele homem. E, no entanto, ela não desistia...
Essa visão acentuou-lhe o sentimento de impotência, da impotência total da mulher em ajudar o homem que caminha para o Além.
- Está muito seguro de si mesmo? - perguntou.
- Seguro de mim? Não! De um instante para o outro eu morro e desapareço da face do mundo. Como poderia estar seguro de mim
mesmo?
- Mas porque há-de morrer?
- Todos morrem. Até Carlota!
- Essa tinha a sua hora marcada.
- Pode-se marcar a nossa hora como se faz no despertador de um relógio?
Kate calou-se por uns momentos.
- Se não está seguro de si mesmo, de que está então? - inquiriu como se o desafiasse.
Ramon fitou-a com os seus olhos sombrios.
- Estou seguro... seguro... - A voz sumiu-se-lhe, o rosto tomou a palidez dum defunto. Só os olhos a observavam intensamente. De novo ela se viu perante a sombra dolorosa do homem e se sentia impotente diante desse espectro vivo do sofrimento.
- Não pensa que anda em erro, pois não? - perguntou Kate.
- Não, mas talvez não possa manter...
- E então? - insistiu friamente a irlandesa.
- Continuarei o meu caminho, embora desacompanhado. Kate só lhe via os olhos negros, fitos nela. Ramon começou a falar em espanhol: - Isto faz-me doer a alma, como um pronúncio de morte.
- Mas porquê? Não está doente!
- Sinto a alma desagregar-se.
- Não deixe! - exclamou Kate, alarmada.
Ramon fitava-a ainda com os olhos inexpressivos. De súbito, ela experimentou uma sensação de calma e de força.
- Devia esquecer por uns tempos - disse-lhe em voz compassiva, poisando a sua mão na dele. Para quê tentar compreendê-lo ou contrariá-lo? Era uma mulher, ele um homem e, portanto, tinham da vida uma concepção diversa.
Ao contacto daquela mão, Ramon percebeu despertar de um sonho e fixou-a com olhar perscrutador e altivo. A carícia maternal sobressaltara-o como uma picada.
- Sim, devia - disse.
- Pois claro. Se quer ser tão... abstracto e quetzalcoatliano enterre de vez enquando a cabeça na areia como fazem as avestruzes, e esqueça.
- Oh! - exclamou Ramon sorrindo. - Ei-la de novo zangada!
- O caso não é tão simples como parece. Existe em mim um conflito, e não me deixam ausentar-me por algum tempo.
- Não podemos impedi-la.
-Pois sim, mas discordam da minha ida. Não me deixam partir em paz.
- Porque deseja ir-se embora?
- Tenho de ir. Tenho de voltar para junto dos meus filhos e da
minha mãe.
- Sente essa necessidade?
- Sinto.
Logo que deu esta resposta compreendeu que havia nela certa duplicidade. Era como se tivesse dois eus: um, mais novo, terno, sensível, que pertencia a Cipriano e a Ramon; outro, duro, completo, que pertencia aos filhos, à mãe, à Inglaterra, a todo o seu passado. O eu antigo nada tinha de submisso e era forte, o recente parecia frágil, estava ligado a Cipriano e até a Ramon e a Teresa; nada tinha de independente.
Kate possuía consciência desta dualidade e sofria com isso. Porque não conseguia optar definitivamente pela antiga maneira de ser, nem pela moderna, ficava a deter-se entre as duas.
- Pois é - continuou. - Sinto essa necessidade, e querem
evitar que eu parta.
- Que ideia! - protestou Ramon.
- Sim, senhor. Exercem pressão sobre mim, paralisam-me, impedem-me de me ir embora.
- Se tem essa sensação, convém que nos afastemos de si durante uns tempos.
- Porquê? Não concordam com a minha ida? Se eu tenho de
ir, porque não me apoiam?
Ramon fitou-a tranquilamente.
- É impossível. Não acredito nessa partida. Seria virar-nos as costas, renegar-nos. Mas a verdade é que somos todos muito complicados. Se acha que tem de se ausentar durante certo período, então vá! Não é coisa de importância primordial. Já fez a sua opção, e
eu não fico apreensivo.
Kate sentiu alívio ao ouvir isto, porque estava bastante preocupada consigo mesma. Nas suas relações com Cipriano e Ramon, nunca tinha a certeza de nada. Contudo, replicou com um pouco de ironia:
- Porque haveria de ficar apreensivo?
- Não desconfia de si própria às vezes?
- Nunca! Estou sempre segura da minha pessoa.
Continuavam sentados no jardim da Vivenda Aragon, debaixo da manhã-de-páscoa. O ar começava a aquecer. O lago estava calmo, o vento amainara e tudo se conservava imóvel - excepto as folhas rubras do arbusto.
O Natal aproximava-se! Eis o que recordou a Kate aquela planta majestosa.
Natal! O azevinho! A Inglaterra! As prendas! As iguarias! Se ela se apressasse poderia chegar à Inglaterra na data festiva. Achava uma coisa tão natural encontrar-se na pátria com a mãe, pelo Natal! Tinha casos tão interessantes a contar! E as bisbilhotices divertidas que havia de ouvir... De longe, tudo isso lhe parecia encantador. No entanto, experimentava como que uma relutância ao pensar nesse regresso.
- Podemo-nos fartar de coisas boas - disse ela a Ramon.
- De qual, em particular?
- Oh! De Quetzalcoatl e todas essas histórias. Podemos estar saturados.
- É possível - respondeu Ramon, pondo-se de pé e afastando-se em passos tão subtis que ela nem deu pela sua retirada.
Quando compreendeu que ele se fora embora, ficou fula. Mas continuou sentada debaixo do magnífico arbusto, contemplando com os olhos irritados a sebe de jasmineiro e as suas flores dum branco puríssimo. Onde é que ela ouvira qualquer coisa a respeito de jasmins? "E entre nós os jasmins..."
Oh! Como se sentia farta de tudo aquilo!
Teresa descia a ladeira do jardim.
- Ainda está aqui?
- Onde podia eu estar? - retorquiu Kate.
- Não sei... Meu marido foi a Sayula a fim de falar com o Jefe. Não quis esperar para ir connosco no barco.
- Talvez tivesse pressa.
- Que maravilha! - observou Teresa, apontando para o estendal vermelho do majestoso eufórbio.
- São as vossas flores de Natal, não são?
- Sim, as flores de Noche buena.
- É extraordinário! O Natal com hibiscos e manhãs-de-páscoa! Estou ansiosa por ver azevinho e laranjas na montra duma frutaria de Hampstead.
- Porquê? - disse Teresa, rindo.
- Ah! - suspirou Kate. - Voltar à vida simples, ver os autocarros a correr na lama de Piccadilly, na véspera do Natal, e os passeios molhados cheios de gente diante das lojas cintilantes...
- Isso é que é vida, para si? - perguntou Teresa.
- Sim. Sem esta abstracção e vontade. A vida satisfaz-me se eu puder vivê-la e ser eu mesma.
- É altura de Cipriano regressar - disse Teresa.
Kate levantou-se com súbita impaciência. Já não suportava essa tutela. Haviade lhes mostrar que era livre!
Foi com Teresa à aldeia. O ar parecia misteriosamente vivo, animado com um sopro novo. Mas Kate sentia-se fora do ambiente. As duas senhoras sentaram-se debaixo de uma árvore na praia de Sayula, conversando um pouco e contemplando a imensidão do lago
cor de pérola.
Ancorado junto do molhe estava um barco de toldo vermelho e mastro comprido. Em terra, viam-se grupos de homens vestidos de branco a olharem para o interior da embarcação. O contorno monolítico duma vaca preta e branca e dum touro enorme recortava-se contra a superfície das águas.
Era perto, e no entanto parecia tudo estranho e remoto. Dois peóns colocaram uma prancha e puseram-se a empurrar a vaca para lá. O animal avançou relutante mas depois, com a lenta indiferença dos Mexicanos, seguiu pela ponte adiante. Os homens incitavam-no, até que ele ganhou o barco e entrou definitivamente no porão.
O grupo ocupou-se então do touro. Um mexicano já idoso, alto, de calças estreitas de pele e casaco de cabedal, com um imenso chapéu de feltro bordado a prata, ergueu delicadamente a cabeça do touro, pegando-lhe pela argola do focinho. Atrás estava um peón que, curvando-se, empurrou os poderosos flancos do animal. E este, com toda a calma, foi andando pela prancha além. Mas parou.
Os peóns reagruparam-se. O que estava atrás, de faixa vermelha atada à cintura, deixou de empurrar. Então dois outros passaram uma corda em volta das ancas do touro. O velho tornou a pegar pela argola, sempre com muito cuidado, e o animal levantou outra vez a cabeça. Mas continuou parado.
De novo lhe puxaram pela argola e pela corda. O monstro mantinha-se impassível. Tudo isto decorria no maior silêncio.
Por fim o touro percorreu a ponte em passos lentos e alcançou a borda do navio. Ali, esperou.
De cabeça baixa, olhava para o fundo do porão. Os homens empurravam-no com toda a força, puxavam a corda - tudo no profundo silêncio mexicano.
Devagar, cauteloso, o animal agachou-se, e então, com um movimento rápido, pendeu as patas dianteiras no interior do barco, ficando com os quartos traseiros alçados. Houve um momento de confusão, depois um baque. Finalmente, o touro saltara e encontrava-se no porão do navio.
E tudo tão silencioso e tão remoto!
- Ramon quer que se sente ao lado dele no templo como esposa de Quetzalcoatl... com algum nome esquisito? - perguntou Kate a Teresa.
- Não sei. Mais tarde, diz ele, quando for ocasião de haver uma deusa.
- E importa-se?
- Por mim, tenho medo. Mas sei que Ramon o deseja. Ele diz que é aceitar a maior responsabilidade da nossa vida, e eu acredito que seja verdade. Se existe divindade em mim, devo reconhecê-la, envergar a túnica verde e ser deusa no momento oportuno. Ramon afirma que precisamos de manifestar a presença divina. E, ao lembrar-me de meus irmãos, acho que ele tem razão. Hei-de pensar no deus que palpita invisível como o coração do mundo. E quando vestir a túnica verde e me sentar no templo diante de toda a gente, voltar-me-ei para o coração do universo e tentarei compenetrar-me do meu eu divino.
- Julgava que a túnica verde era só para a esposa de Huitzilopochtli - observou Kate.
- Ah, sim! - replicou Teresa. - A minha é preta, com barras brancas e desenhos encarnados.
- Preferia a verde? Fique com ela, se quiser. Eu vou-me embora...
Teresa ergueu os olhos para Kate.
- A túnica verde é para a mulher de Huitzilopochtli - declarou.
- Não vejo que isso tenha importância - volveu a irlandesa.
- Cada homem deve possuir a esposa que lhe convém. Cipriano não quereria uma mulher como eu.
- Cada mulher deve ter o homem que lhe convém - retorquiu Kate. - Para mim, Ramon seria muito abstracto e muito despótico.
Teresa ruborizou-se e baixou os olhos.
- Ramon exige muita submissão de uma mulher para que me agradasse - ajuntou a outra.
Teresa ergueu a cabeça, o pescoço moreno ondulou como uma
serpente.
- Como é que sabe que Ramon exige submissão das mulheres? Como é que sabe? Nunca a exigiu de si... Está enganada. Ele não me impõe tal submissão. O que pretende é que me entregue brandamente; em compensação, entrega-se-me, a mim, com uma brandura maior do que esta que lhe concedo: um homem como Ramon é mais dócil do que uma mulher. Não se assemelha a Cipriano, que é soldado. Ramon mostra-se dócil. Não tem razão no que
diz, Caterina.
Kate soltou uma risadinha. Mas Teresa prosseguiu:
- Vejo-a como um soldado entre as mulheres, está sempre a combater. Eu não sou assim. No entanto, há mulheres que são de temperamento bélico e essas precisam de mandos militares. Eis a razão por que é Malintzi e tem um vestido verde. Estará sempre disposta a lutar... até consigo mesma, se ficar só no mundo.
Havia uma grande calma em volta do lago. As duas senhoras aguardavam a chegada de Ramon.
Um homem vestido de branco, acocorado e silencioso debaixo de uma árvore, desbastava folhas de palmeira, com ar concentrado. Em seguida ia molhá-las na água e voltava para se sentar de novo, recomeçando o trabalho com aquela atenção pueril da gente do povo. Estava a consertar uma cadeira de palha. Como Kate o observasse, os olhares dos dois encontraram-se e o homem saudou-a. Dir-se-ia que, dele, emanava para ela uma chama de vida, a qual lhe transmitiu um estranho poder.
Nitrindo excitado, corria ao longo da margem um cavalo ruço malhado de branco. A crina flutuava ao vento, as patas faziam saltar os calhaus, as narinas abriam-se-lhe ansiosas. Porque seria?
Um peón fizera entrar no lago a sua carroça puxada por quatro muares, até que a água ficou acima dos varais, e quase atingindo o fundo do veículo. Parecia um barco conduzido por quatro cavalos-marinhos.
Era Inverno, mas dir-se-ia Primavera nas imediações do lago. Saltitavam na praia bezerros amarelos e brancos, agitando a cauda, correndo lado a lado à beira da água, que eles cheiravam desconfiados.
A uma árvore estava amarrada uma burra, com a sua cria deitada à sombra, um jumentinho preto como uma amora, enroscado no chão, com a cabeça peluda erguida e as longas orelhas fitas.
- Quantos dias tem o burrinho? - perguntava Kate ao peón, que saíra da sua cabana de colmo.
O homem dirigiu-lhe um olhar em que havia júbilo e deferência - olhar que fez Kate sentir uma onda de orgulho encher-lhe o peito.
- Nasceu a noite passada, patrona! - respondeu ele, sorrindo.
- Tão novo! Ainda não pode aguentar-se nas pernas, pois não?
O peón aproximou-se do jumento e pô-lo de pé. E ali ficou o animalzinho, espantado, de pernas abertas, como se em cima de ganchos de cabelo.
- Que engraçado! - exclamou Kate, deliciada. O homem riu-se; parecia grato pelo interesse dela.
O jumento a custo se mantinha naquela posição. Vacilava sobre as quatro patas bambas, com ar admirado. Deu uns passos oscilantes para cheirar as folhas de milho. Cheirou, e tornou a cheirar, tal se o mistério do olfacto se lhe revelasse nas narinas.
Então voltou para Kate a cabeça aveludada e deitou de fora a língua cor-de-rosa. Kate soltou uma gargalhada, o que fez o animal dar um pulo que o deixou infinitamente surpreendido consigo próprio. Tentou uns passos, e, de repente, sem que ele mesmo esperasse semelhante coisa, deu outro salto.
- Já dança! - exclamou Kate. - E só tem umas horas de existência!
- Já dança - confirmou o peón.
Depois daquelas experiências, o burrinho aproximou-se da mãe em passos incertos e começou a mamar.
Erguendo a vista, Kate encontrou os olhos do homem cintilantes da chama da vida, cheios de confiança e de conhecimento.
O jumentinho preto, a mãe, o mistério da criação, o respeito pela mulher superior a ele, bela e radiosa, tudo isto exprimiam os olhos negros desse homem primitivo.
- Adiós! - disse Kate.
- Adiós, patrona! - respondeu ele, erguendo o braço, na saudação de Quetzalcoatl.
Atravessou ela a praia em direcção ao cais; sentia dentro de si uma onda de vida, forte, resistente. "É o sexo", disse consigo. "Como o sexo pode ser extraordinário quando o homem o conserva poderoso e sagrado e que ele enche o mundo! É como o sol, penetrando-nos. Mas não me submeterei, mesmo assim. Porquê ceder?" Ramon aproximava-se, com o seu largo chapéu ornamentado do símbolo de Quetzalcoatl. Nesse instante tocaram os tambores e, do alto da torre, soou a voz nítida e possante anunciando o meio-dia. Todos os homens que se encontravam na praia aprumaram o corpo e ergueram o braço direito. As mulheres viraram a palma da mão para o Sol. Tudo ficou imóvel, excepto os animais.
Então Ramon encaminhou-se para o barco, enquanto os homens o saudavam à maneira de Quetzalcoatl.
- É espantoso como nesta terra se pode ter a impressão de que se é alguém! - notou Kate, quando já iam sobre a água no barco de remos. - Sentimo-nos como se pertencêssemos de facto à nobreza.
- E não é verdade?
- Sim, mas isso em toda a parte nos é negado. Só aqui temos a noção do poder da nobreza. Os indígenas ainda a veneram. Parecem
adorar-me.
- Por enquanto - replicou Ramon. - Mais tarde assassiná-la-ão porque a adoraram.
- É inevitável? - volveu Kate em tom despreocupado.
- Creio que sim. Se vivesse sozinha aqui, em Sayula, e reinasse por algum tempo, seria assassinada... ou pior ainda... pelo povo que a tinha idolatrado.
- Não acredito.
- É como lhe digo.
- Mas porquê?
- A não ser que se consiga dos deuses a nossa própria nobreza e se implore dos céus o poder, acabaremos por ser assassinados.
- A minha nobreza tem essa origem.
Mas não ficou muito convencida e mais firmou a sua resolução
de partir.
Escreveu para a Cidade do México e reservou uma passagem de Vera Cruz a Southampton. Embarcaria no último dia de Novembro.
Cipriano regressou a 17 e Kate participou-lhe o que tinha feito. Ele ficou a olhá-la, de cabeça um pouco à banda e com uma expressão de criança ajuizada, mas Kate foi incapaz de adivinhar o que lhe ia na alma.
- Vais-te embora já? - perguntou ele em espanhol.
A mulher percebeu então que estava ofendido. Quando se melindrava falava-lhe sempre em espanhol, nunca em inglês.
- No dia 30.
- E quando voltas?
- Quien sabe! - ripostou Kate.
Por uns minutos, Cipriano fitou-a com as suas pupilas negras imperscrutáveis. Estava a pensar que tinha o direito de a impedir que saísse do país, visto ser legalmente sua esposa. Nas profundezas dos olhos luzia a antiga cólera índia; depois surgiu uma leve mudança de expressão no rosto, quando a ira contida cedeu lugar à indiferença estóica, à velha indiferença de tantos séculos. Kate quase sentia as ondas sucessivas de sombra e frieza que percorriam Cipriano sem que ele mesmo desse por isso. E mais uma vez lhe estremeceu o coração o medo de perder o contacto com esse homem.
- Como quieras tu! - disse ele por fim.
Concedia-lhe a liberdade com a misteriosa indiferença do seu sangue e não faria mais esforços para a reter. Era o fatalismo dos da sua raça.
Conforme Kate previra, Cipriano tomou um barco e foi a Jamiltepec falar com Ramon.
A mulher ficou só, como de costume. Ocorreu-lhe que ela própria criara essa solidão. Não conseguia identificar-se com aquela gente, sentir-se à vontade fosse com quem fosse. Fechava-se sempre na sua personalidade.
Importava-lhe muito a reciprocidade sexual? Podia importar-lhe ainda mais se não a houvesse tido; mas tivera-a, e de maneira perfeita, com Cipriano. Sabia tudo a esse respeito. Era como se houvesse conquistado outro território, outro domínio da vida. E agora devia retirar-se para a toca da sua individualidade, com a vítima nos dentes.
De súbito, viu-se como os homens muitas vezes a viam: uma gata enorme, com os seus espasmos de volúpia e o gozo demorado do seu isolamento. Conhecia outras mulheres assim. Brincavam cheias de amor e familiaridade como um gato com um rato. Por fim devoravam o ratinho querido e reapareciam com a barriga repleta e uma voluptuosa sensação de força.
Algumas vezes o rato recusava-se a ser digerido, de que resultava prolongada dispepsia; ou então, como Cipriano, transformava-se numa espécie de cobra, que alçava a cabeça, olhava para trás e desaparecia num buraco, deixando-a confusa e destituída de poder.
Outra coisa que ela observava horrorizada. Uma após outra, as suas "amigas", as grandes amorosas, na idade de quarenta, quarenta e cinco e cinquenta anos perdiam todos os atractivos e ficavam umas corujas horrendas, procurando em volta a vítima cada vez mais rara. Como seres humanos deixavam de existir, metamorfoseadas em corujas elegantes e mexeriqueiras.
Kate era bastante inteligente para tirar proveito da lição. Estava bem que uma mulher cultivasse o seu ego, a sua personalidade. Estava muito certo que desprezasse o amor ou que com ele se entretivesse como um gato faz ao rato; isto é, brincar o mais tempo possível antes de o comer e saciar voluptuosamente o ego com a sua vítima.
"A mulher sofre mais com a supressão do ego do que com a do sexo", afirmou uma escritora, e talvez seja verdade. Mas olhai, olhai para as mulheres modernas de cinquenta anos, as que cultivaram o ego até ao extremo limite! São em geral criaturas que nos enchem de pena ou de repulsa.
Kate sabia tudo isto, e nisto pensava enquanto ali sozinha na sua vivenda. Tivera a sua liberdade, mesmo no México. Esses homens deixá-la-iam partir. Não estava prisioneira. E levaria consigo todos os despojos que ainda guardavam.
E depois? Sentar-se nos salões de Londres e ser mais uma coruja ao lado das outras? Arvorar um sorriso postiço e falar com voz
artificial?
"Não! - disse consigo. - O meu ego e a minha personalidade não valem esse preço. Prefiro desfazer-me deles em parte a ver-me reduzida a isso."
No fim de contas, quando Cipriano a acariciava toda ela parecia desabrochar. Era a força do sexo, que enchia o mundo de lascívia e sobre que ela não se atrevia a reflectir. O seu poder tornava-se maior do que a sua vontade. Por outro lado, quando estava só e abria as asas do seu ego e o espírito desferia voo, o mundo afigurava-se-lhe maravilhoso. Todavia, após uns instantes, desvanecia-se o esplendor, substituído por uma solidão amarga.
"Preciso de ambos - concluiu. - Não posso afastar-me de Cipriano nem de Ramon. Renovaram-me o sangue. Digo que são limitados, mas todos temos de o ser. Se tentamos ser ilimitados, tornamo-nos monstros. Sem Cipriano a afagar-me, a limitar-me e a submergir-me a vontade, tornar-me-ia uma velha horrível. Devo regozijar-me pelo facto de Cipriano me limitar com a sua vontade e o seu contacto ardente. Porque o que eu chamo a minha grandeza faz-me cair no vácuo desde que não haja a mão dum homem para me segurar. Ah, sim! Antes submeter-me do que ser uma mulher horrível."
Chamou o criado e foi através do lago num barco de remos. Era por uma bela manhã de Novembro. Nas escarpas das montanhas, a nordeste, as sombras tinham um tom azul muito puro. Por baixo, a vegetação começava a amarelecer. O lago, embora ainda cheio, principiava a baixar, e os jacintos-d'água vogavam à toa. No ar calmo viam-se pássaros voando. Alguns milheirais exibiam os seus talos secos, mas as flores de palo-blanco tinham já desabrochado e errava o perfume das acácias amarelas.
"Porque havia de me ir embora? - pensou Kate. - Porque havia de ver os autocarros na lama de Piccadilly na véspera do Natal e a multidão nos passeios molhados diante das lojas iluminadas? Mais vale ficar aqui, onde a minha alma é menos triste. Tenho de pedir desculpa a Ramon das coisas que lhe disse. No fim de contas, aqui há outra grandeza, com o som dos tambores e o grito de Quetzalcoatl."
Já ela distinguia o último andar da casa de Jamiltepec, semelhante a uma torre avermelhada, e a buganvília roxa pendente do muro, os cachos das flores de plumbago e a porção de rosas brancas.
- Están tocando - disse tranquilamente o barqueiro, erguendo para ela os olhos negros.
Já ouvira o som do tambor em Jamiltepec. Uma voz de homem se elevou na manhã clara.
O barqueiro levantou um remo, como se fizesse sinal. E assim que o barco penetrou na enseadazinha, veio um criado a correr ao longo do molhe. No ar soalheiro notava-se o cheiro das daturas e das rosas, e um silêncio profundo que nem o tambor nem o canto perturbavam.
- Don Cipriano está aqui? - perguntou Kate.
- Está - murmurou o criado, apontando para o balcão donde partia a voz do cantor. - Deseja que eu o informe da sua chegada?
- Não - respondeu Kate. - vou sentar-me um bocado no jardim, antes de subir.
- Nesse caso, deixarei a porta aberta - volveu o homem - e assenhora entrará quando quiser.
Kate instalou-se no banco de uma árvore, donde pendiam flores de trepadeira enroscada ali como uma serpente. Pôs-se a ouvir o canto. Ramon ensinava o novo hino a um dos cantores.
Não tinha muito boa voz o Quetzalcoatl vivo. Cantava baixinho, como se para si mesmo, mas com expressão simples e bela. Kate não conseguiu perceber a letra.
- Ya? - disse Ramon ao terminar.
- Ya, patrón! - respondeu o cantor.
E na sua voz forte e pura, este entoou o hino:
O meu caminho não é o teu e o teu não é o meu.
Mas vem, antes que nos separemos.
Cada qual por seu lado, dirijamo-nos à Estrela da Manhã
Para lá nos encontrarmos.
Não te aponto o meu caminho
Nem chamo por ti.
Mas a Estrela é a mesma para nós ambos
E a ambos nos atrai.
A cada qual o seu caminho, esse que esplende Na encruzilhada,
Que abre a sua chama como a porta de uma tenda Por onde, invisíveis, deslizamos.
Não pode um homem pisar como a mulher
Nem a mulher andar como o homem.
O espírito de cada um através das folhas de sombra
Se move como pode.
Mas a Estrela da Manhã e a da Noite Fixam tendas de fogo
Onde nos retinimos quais ciganos, sem saber Como é que vieram os outros.
Nada mais peço que me insinuar Na tenda do Espírito, e deter-me Na casa da chama bifurcada Como hóspede seu.
Fica aí comigo, esposa minha, Corporalmente. E que a flama nos envolva Qual uma rede.
Sede lá, homens, comigo,
Alcançai o lar.
Ride comigo, enquanto a mulher repousei,
Porque vale a pena.
O homem entoara o hino por várias vezes, parava, dir-se-ia esquecer-se, extinguia-se-lhe a voz pura e quente. Então a de Ramon, baixa e um tanto rouca, elevava-se com subtil intensidade, como se vinda do meio duma concha; depois, o tenor retomava o canto, que lhe corria no sangue como uma chama.
O mozo de Kate, ou seja, o seu criado, seguira-a ao jardim, e tinha-se sentado de pernas cruzadas, a certa distância, debaixo de uma árvore, de costas apoiadas ao tronco - sombra acocorada, vestida de branco. Os dedos dos pés saíam-lhe rijos e escuros das huaraches esburacadas, e o trancelim de palha do chapéu pendia-lhe junto à face trigueira. Quanto ao resto era tudo alvo, e as calças de linho apertavam-se-lhe nas coxas.
Quando o canto terminou, e o tambor deixou de rufar, e as vozes, num murmúrio, mal se ouviam, o mozo ergueu a cabeça e olhou para Kate. Brilhavam-lhe as pupilas negras, no rosto errava-lhe um sorriso tímido.
- Está muy bien, patrona? - perguntou, um pouco envergonhado.
- Muito bem - respondeu ela, como um eco fiel. Mas no seu coração debatiam-se conflitos diversos, e o criado sabia-o.
Parecia tão novo com aquele sorriso alegre, excitado, receoso! Havia nele qualquer coisa de perpetuamente infantil; mas era uma criança que, dum momento para outro, se podia tornar num selvagem- vingativo e brutal, um homem que nunca perdia a consciência do seu sexo. E Kate pensou mais uma vez que existiam várias maneiras de regressar à infância.
O criado, porém, continuava a espiá-la, de soslaio: queria ver se havia nela qualquer hostilidade secreta. Desejaria que concordasse com o hino, com o tambor e com tudo mais. Como uma criança, ansiava pela sua aquiescência; mas, se a senhora se mostrasse hostil, ele seria o primeiro a manifestar-se. Um julgamento adverso torná-lo-ia inimigo declarado.
Ah, os homens eram todos iguais!
Nessa ocasião, o rapaz levantou-se, com súbita agilidade, e ela ouviu a voz de Cipriano na varanda:
- Que é, Lupe?
- Está la patrona - respondeu o mozo.
Kate ergueu-se também e olhou. Viu a cabeça e os ombros nus do marido, em cima, no parapeito.
- Já lá vou - participou-lhe.
Vagarosamente transpôs os portões de ferro do corredor. Lupe, que a seguia, fechou-os atrás de si.
No terraço encontrou Ramon e Cipriano, ambos de tronco nu, que a esperavam em silêncio. Kate, embaraçada, explicou:
- Estive a escutar o novo hino.
- E-que lhe pareceu? - perguntou Ramon.
- Gostei.
- Sentemo-nos - propôs ele. E a recém-vinda deixou-se cair numa das cadeiras de verga. Cipriano ficou de pé, encostado à balaustrada.
Kate viera para declarar a sua submissão: dizer que já não queria ir-se embora. Mas, vendo os dois homens numa disposição muito quetzalcoatliana, não se decidia a aflorar o assunto. Tinha a sensação de ser uma intrusa. Não se compenetrava de que também pertencia à seita.
- Parece-me que não há Estrela da Manhã para nos reunir a todos três - observou, irónica mas um pouco trémula.
Sobre eles desceu um silêncio ainda mais profundo.
- Estou a ver que uma mulher é realmente de trop aqui junto de vocês ambos.
Hesitou um tanto ao dizer isto. Sabia que Cipriano ficava perplexo e melindrado quando ela escarnecia.
Ramon respondeu-lhe com uma doçura que vinha direita do seu coração.
- Então que há, prima?
com um tremor nos lábios, Kate replicou:
- Em verdade, não desejo deixá-los.
Olhando rapidamente para Cipriano, Ramon retorquiu:
- Bem sei que não deseja.
O tom suave e protector da sua voz fê-la revoltar-se de novo. com os olhos rasos de lágrimas, ela bradou:
- Afinal vocês não precisam de mim!
- Não, não, preciso de ti. Verdad, verdad! - exclamou Cipriano em voz baixa e contida, quase num murmúrio.
E, no meio das suas lágrimas, Kate pensava: "Como sou intrujona! Sei perfeitamente que sou eu que não os quero. Quero-me só a mim mesma. Mas posso iludi-los de modo que o não percebam."
Havia notado a paixão fálica e ardente na voz de Cipriano.
Coube a vez a Ramon de falar, e fê-lo em tom glacial:
- A Caterina é que não precisa de nós. Não se comprometa connosco. Atenda à sua própria preferência.
- E se ela me aconselhar a partir? - ripostou Kate, como um desafio, através de um resto de lágrimas.
- Então parta!
Kate recomeçou a chorar.
- Ah, eu bem sabia que não precisavam de mim. Mas Cipriano acudiu com persuasiva ternura:
- Não és dele! Ele não pode dizer nada.
- Isso é verdade - concordou Ramon. - Não me dêem ouvidos.
Levantando bruscamente a cabeça, no meio do seu pranto, viu-o afastar-se sem rumor.
Limpou a cara, recuperou a calma e, de olhos húmidos, fitou Cipriano. Este conservava-se muito direito, como um galo combatente. Nas pupilas negras brilhava-lhe um fulgor estranho.
Sim, Kate também tinha medo dele, desses olhos pretos inumanos.
- Não queres que me vá embora, pois não? - perguntou-lhe suplicante.
Espalhou-se no rosto do homem um sorriso lento, e um leve tremor lhe percorreu o corpo. E então, na sua voz de inflexões índias, muito suave, Cipriano disse-lhe em espanhol:
- Yo! Yo! - E as sobrancelhas erguiam-se-lhe numa expressão de espanto divertido. Ainda trémulo, concluiu: - Te quiero mucho! Mucho te quiero! Mucho, mucho!
As palavras soavam tão cariciosas, vinham-lhe tanto do seu sangue ardente, que a mulher se sobressaltou e disse:
- Não me deixarás partir!

XXV
Foi uma surpresa para Kate o casamento de Don Ramon dois meses depois do falecimento de Dona Carlota. A noiva tinha vinte e oito anos e chamava-se Teresa. Após o casamento, que se realizou civilmente e na maior intimidade, Ramon trouxe a nova esposa para Jamiltepec.
Conhecia-a desde pequena, pois era filha do proprietário da famosa hacienda de Las Jemas, situada a uma dúzia de milhas de Jamiltepec. Don Tomaz, pai da rapariga, fora grande amigo dos Carrascos. Morrera, porém, um ano antes, deixando a importante hacienda aos três filhos e confiando a Teresa a administração da quinta. Teresa era a mais nova. Os dois irmãos viviam a existência inútil e perdulária dos mexicanos, e por isso Don Tomaz, a fim de salvar a propriedade daquelas mãos nefastas, designara Teresa como administradora e obtivera o consentimento dos dois irmãos. Na verdade, os rapazes eram criaturas ociosas que, em vida do progenitor, nunca haviam mostrado o mínimo desejo de o ajudar na difícil gerência da quinta. Teresa fora a única. E durante a doença do pai, todas as fadigas da administração haviam recaído sobre ela, enquanto os irmãos gastavam o dinheiro e as forças nas orgias em que se deleitam os mexicanos de certa classe. No entanto, assim que o pai faleceu, os dois irmãos apareceram em casa cheios de arrogância, com a intenção de se tornarem hacendados. Pela simples força bruta afastaram a irmã do seu cargo, deram ordens contrárias às dela, escarneceram-na e uniram-se para a esmagar. Queriam relegá-la para o seu lugar de mulher, isto é, para uma espécie de escravidão a que, aos seus olhos, deviam pertencer as pessoas desse sexo.
Eram brutos, e como brutos, cobardes. E, como tantos mexicanos daquela categoria, condescendentes e prejudiciais para si próprios. Relacionaram-se com juizes e generais, exibiram-se em ricos trajes de charro e receberam em casa uma multidão de gente duvidosa.
Contra aquela indolência e brutalidade, Teresa nada podia fazer e conhecia bem a sua impotência. Os irmãos eram fracos, sensuais, belos à sua maneira, dissipadores, despreocupados, mas de sentimentos ferozes.
- Faz-te bonita e arranja um marido - aconselhavam-lhe. Aos olhos deles, o seu maior crime era não atrair os homens
com quem conviviam. O facto de nunca ter conhecido homem e não se haver ainda casado tornava-a quase odiosa. De que servia a mulher senão para uma vida de relaxamento e licenciosidade?
- Queres usar calças? - perguntavam-lhe, irónicos. - No, señorita, enquanto houver aqui dois homens. No, señorita, os homens é que usam calças, e as mulheres escondem o que têm debaixo das saias.
Teresa já estava habituada a estes insultos; contudo, sofria muito no seu íntimo.
- Queres viver à moda dos americanos? Então abala para a América, corta o cabelo e veste calças. Compra lá um rancho e arranja um marido que receba as tuas ordens.
Teresa consultou advogados, que se limitaram a erguer os braços ao céu. Foi então procurar Ramon, a quem conhecia desde pequena.
Para expulsar os irmãos da hacienda seria necessário intentar um processo dispendioso e de resultado incerto. Em vez disso, Ramon propôs-lhe que casasse com ele segundo um regime matrimonial em que ela disporia sempre dos seus bens.
- Nesta terra os homens desprezam as mulheres e não podem passar sem elas, o que representa um suicídio - disse Ramon.
O casal foi visitar Kate. Teresa era franzina, pálida, de farta cabeleira preta e grandes olhos negros. Apesar do ar calmo, notava-se-lhe certa independência e autoridade. Sofrera muitas humilhações da parte dos irmãos e tinha ainda os olhos pisados pelas lágrimas de amargura, indignação e cólera.
Agora, amava Ramon com todas as veras da sua alma. Isso era evidente. Fora ele que salvara da degradação a sua dignidade de mulher e lha havia restituído bela e intacta. Em troca, passou a conceder ao seu salvador uma admiração respeitosa e quase feroz.
Em relação a Kate mostrava-se tímida e um pouco distante, tal se receasse essa mulher branca, doutra raça, que viajara muito e possuía larga experiência da vida. com um vestido claro e um rebozo de gaze preta, estava sentada na sala de Kate, com as mãos trigueiras pousadas no regaço, o pescoço escuro muito direito, e desviando um pouco o rosto fino e bem modelado. A irlandesa achou-lhe uma aparência de costureirinha.
Mas Kate não deu fé do estranho poder autoritário que também emanava desse corpo moreno e esguio, nem do olhar penetrante e desconfiado que por vezes Teresa lhe dardejava. Alma de fogo num corpo delicado. Atitude cheia de reservas. De quando em quando, a boca parecia formular uma palavra em silêncio e nos lábios perpassava-lhe um sorriso constrangido. Nunca lhe desaparecia, porém, o fulgor dos olhos.
- Falas tão pouco, chica! - observou Ramon, com certa ternura.
Então os olhos dela cintilaram e a boca esboçou um sorriso.
Via-se bem que estava apaixonada, embebida num êxtase de amor, o que explicava a sua frieza perante Kate.
"Despreza-me - pensou esta - porque não sou capaz de amar como ela." E, por um segundo, Kate invejaria Teresa. Mas daí a pouco desdenhava-a: "Tipo de harém..."
Sim, Ramon adaptava-se bem ao papel de sultão. Era belo, no seu traje branco, muito sereno, com ar de paxá, mas ao mesmo tempo afável, atencioso - e com aspecto tão juvenil! Como um paxá, preparava um cacharolete de genebra, vermute e limão. Teresa espiava-o de esguelha, sem perder de vista Kate, sua possível inimiga, a mulher que falava aos homens no mesmo pé de igualdade.
Kate levantou-se para ir buscar colheres. Nesse momento, Ramon recuou da mesa baixa em que espremia o limão e colidiu de leve com a dona da casa quando esta passava. Kate reparou de novo como ele se esquivava a qualquer contacto com ela. A sua sensualidade natural afastava-o de Kate como uma chama se desvia perante uma corrente de ar. Ela corou, e Teresa viu o súbito rubor sob essa pele branca, e o clarão quase de ira que atravessou os olhos castanhos de Kate. Momento de evasão de dois cursos de sangue tão diferentes!
Teresa pôs-se de pé, aproximou-se de Ramon e, inclinando-se sobre os copos, perguntou com aquela afectação infantil própria das mulheres da sua raça:
- Que puseste aí?
- Olha ! - retorquiu ele. E, com a mesma infantibilidade dos homens do seu tipo, começou a explicar-lhe de que se compunha o cacharolete e deu-lhe a provar um pouco de genebra, numa colher.
- É tequila da pior - declarou Teresa.
- A oito pesos cada garrafa? - volveu o marido, a rir.
- Custa esse preço? Tão caro!
Ela fitou-o nos olhos, por um momento, e viu esse rosto tornar-se mais escuro, mais ardente, como se todo ele se derretesse ao senti-la perto de si. Teresa então ergueu a cabeça, orgulhosamente. Havia-o reconquistado.
"Manhas de harém!" pensou Kate. E experimentou certa impaciência ao verificar como o ilustre, prodigioso Ramon se deixava prender nas malhas de um ser tão insignificante. Sentia-se contrariada por ter assim consciência da presença física do homem, do seu corpo belo, dos seus ombros fortes, das suas pernas vigorosas. Dir-se-ia ter também de sucumbir ao fascínio e vir a fazer parte do harém daquele sultão.
Que estranha vontade possuía a pequenina mulher morena! Que subtil poder feminino num corpo que quase só tinha pele e osso! Teresa era capaz de engrandecer a glória do marido - ao passo que ela própria se tornava imperceptível, a não ser quanto ao fulgor tigrino dos seus grandes olhos pretos.
Kate observava admirada. Conhecera homens que lhe davam a impressão de a transformarem em rainha, de ter a cabeça nas estrelas e repousar o peito nas nuvens. Sabia o que era subir, subir, subir até encher o universo com a sua feminilidade.
Via agora, porém, o contrário. Quem tinha poder sobrenatural era essa criatura pequenina, que fazia maior Don Ramon, enquanto ela se diminuía e ficava invisível, excepto no que respeitava aos olhos. Ele, como um sultão, como um fruto sazonado ao sol, tomava uma aparência extraordinária e imponente; e então, por algum poder misterioso do seu corpo trigueiro, a frágil Teresa fazia-o ainda mais completo.
Era o que Ramon queria, e Kate, percebendo-o, sentia-se irritada. Parecia-lhe odioso aquele macho triunfante, exasperava-a aquela rapariga ardente que só pensava em exaltar o homem.
ah, o poder oculto da mulher trigueira! Kate chamava àquilo harém e prostituição. Sim, era a atitude da escrava. Que pretendia dele essa criatura senão o sexo, como uma prostituta?
Pois não era degradante para uma mulher semelhante espécie de amor? E não tornava o homem fraco, sensual, ou odiosamente tirânico?
No entanto, já duma coisa Kate se convencera: que a chave da vida, e da continuidade da vida, residia nas relações do homem e da mulher. A união completa dos dois representava a vida presente e futura; dessa fusão surgia uma vida nova.
Mas tais relações necessitam de equilíbrio, e TereSa destruía-o juntando na balança o seu peso ao do homem.
Ramon não quisera Kate. Possuía agora o que desejara: aquela criaturinha escura, tão servil e orgulhosa do seu poder. Só quisera Kate para camarada, camarada inteligente, Não para mulher. Preferira essa viborazinha de Teresa...
Cipriano, esse desejava Kate. O general, o militar empertigado desejava Kate, mas só por momentos. não se importava casar realmente com ela; o que lhe interessava eram os instantes passados a seu lado. Kate tinha de lhe conceder esses instantes, e em seguida ele tornava a partir para junto das suas tropas. com isso se contentava. E ela também. Assim, ficava senhora da sua existência. Não tinha feitio para andar de roda dum homem a excitar-lhe o sangue, a estimular-lhe o ardor!
Levantou-se e foi ao quarto buscar um livro que prometera a Ramon. Não podia suportar mais tempo a exibição do amor dele por Teresa. Ah, aquele sorriso néscio estampado no rosto do homem, o brilho estranho dos olhos, o aprumo orgulhoso do corpo!
Eis como eram os dessa raça. Selvagens, com o insuportável fluido sensual dos índios e aquela maneira primitiva de se dissolver numa horrível confusão de desejo; com a presunção da sua virilidade insolente e inesgotável.
O pior era que essa força cósmica que ela até aí só conhecera nos olhos azuis dos homens loiros (e que tornava rainhas as respectivas mulheres, ainda que eles as detestassem por fim), essa força declinava agora nos olhos azuis e nascia nas pupilas pretas. As de Ramon, naquela ocasião, luziam de orgulho, poder e desafio. E o mesmo notava Kate nos olhares rápidos de Cipriano. A força do mundo esmorecia nos homens loiros, a sua supremacia abandonava-os para renascer nos de cor escura.
Joachim, o ser inquieto, inteligente e sensível, que era capaz de penetrar na alma de Kate e contemplá-la com os seus olhos azuis, morrera à vista da mulher. Se ela pudesse excitar-lhe o sangue, como Teresa fazia a Ramon, nunca ele teria morrido. Mas seria impossível. Cada um é como é. E cada raça, também. Teresa bateu timidamente à porta do quarto.
- Posso entrar?
- Entre! - respondeu Kate, endireitando-se e deixando as rimas de volumes em volta da mala dos livros.
O aposento era amplo e através das janelas rasgadas via-se o pátio e o jardim soalheiro, mangueiras de troncos lisos como trombas de elefantes, ervas reverdecidas pela chuva e galinhas a esgaravatar a terra debaixo das folhas esgarçadas das bananeiras. Um pássaro vermelho chafurdava no tanque, abrindo e fechando as asas escuras sobre o corpinho escarlate.
Teresa, porém, olhava para o quarto, não para fora. Sentiu o cheiro de cigarros, cujas pontas enchiam um cinzeiro de ágata. Notou os livros em desordem, as jóias espalhadas, a tapeçaria persa pendente atrás da cama, a colcha magnífica, os vestidos de seda e de veludo colocados sobre uma arca, os xailes de longas franjas cuidadosamente dobrados, os sapatos espalhados no chão, brancos, cinzentos, amarelos, castanhos e pretos, e os belos castiçais chineses.
Teresa parecia fascinada por tudo aquilo.
- Que linda! - disse, tocando na colcha sumptuosa.
- Foi uma amiga que a fez e ma ofereceu, em Inglaterra. Teresa observava tudo com espanto, em especial as jóias dispersas no toucador.
- Não gosta dessas pedras encarnadas? - perguntou Kate, ajoelhando de novo para arrumar os livros e olhando o pescoço moreno pendido sobre as jóias. Que ombros frágeis e que pele acetinada, naquele vestidinho branco! E aquela cabeleira negra, segura por travessas de tartaruga! No conjunto, uma rapariguinha humilde e insignificante. Mas Kate bem sabia que Teresa não era insignificante nem humilde. Naquele corpo franzino havia um estranho poder que despertava o ardor num homem e o exultava e, de certa maneira, o guardava só para si. O eterno apelo da carne...
Na mesinha de costura estava um pedaço de musselina que Kate comprara na índia e não sabia em que aproveitar. A cor, espécie de amarelo-pêssego, não se harmonizava com o seu tom de pele. Teresa apalpou o tecido entremeado de fios de ouro.
- É organdi?
inquiriu.
- Não, é musselina feita à mão. Ofereço-lha. A cor vai-me mal, e a si deve-lhe ir lindamente.
Ergueu-se e dispôs o tecido de roda do pescoço bronzeado de Teresa. No espelho, esta viu-se envolta na bela musselina e os olhos brilharam-lhe de prazer.
- Ah, não! Não posso aceitar!
- Porquê? Não condiz bem comigo. Faz agora um ano que a tenho aí. Até pensei em cortá-la para fazer cortinas. Fique com ela.
Kate talvez fosse arrogante, e até cruel, na sua maneira de oferecer.
- Não quero privá-la...
- Aceite, peço-lhe.
Ramon apareceu no limiar e relanceou o quarto e as duas mulheres.
- Olha! - disse Teresa, embaraçada. - A señora quer dar-me esta musselina indiana. - Voltara-se timidamente para ele, com o tecido desdobrado em roda do pescoço.
- Fica-te muito bem - declarou Ramon, contemplando-a.
- A señora não devia oferecer-me...
- Se to dá é porque faz gosto nisso.
- Então - concluiu Teresa, virando-se para Kate - muito e muito obrigada.
- Não tem de quê!
- Ramon acha que me vai bem...
- Na verdade, vai-lhe a matar - declarou Kate, dirigindo-se agora a Ramon. - O tecido foi feito na índia para alguém com aquela cor trigueira. Há-de condizer admiravelmente com ela.
- É muito bonito - concordou Ramon.
com o olhar, percorria o quarto, examinava os diferentes objectos que ali estavam, vindos de todas as partes do mundo, e até as pontas de cigarro na taça de ágata: luxo, desordem, e algo de esterilidade da mulher emancipada.
Kate não sabia em que é que ele pensava. Mas, por seu turno, reflectia: "Ora aí está o homem que eu defendi naquele terraço, que eu vi com um buraco nas costas, nu e inconsciente. Nesse momento não se parecia com um sultão."
Teresa devia ter-lhe adivinhado os pensamentos, porque disse,
olhando para Ramon:
- Sem a señora, Ramon teria morrido. Nunca me esquecerei...
- Não falemos nisso - atalhou Kate. - O destino tece-as.
Eu não alterei nada.
- Foi o próprio destino, señora!
- Não quer vir passar uma temporada connosco em Jamiltepec? - perguntou Ramon. - Agora já tenho uma dona de casa.
- Sim, vá! - insistiu Teresa.
- Ela precisa de uma amiga - explicou o marido.
- Preciso, é verdade. Nunca tive nenhuma a valer desde que deixei o colégio, ainda pequena...
Kate duvidava que pudesse ser para Teresa uma amiga a valer. E cogitava no que pretenderiam, de facto, aqueles dois - e o que pensariam dela.
- Pois sim, terei muito gosto em passar uns dias...
- Óptimo! - exclamou Teresa. - Quando deverá ser? Combinaram o dia.
- E escreveremos a canção de Malintzi - disse Ramon.
- Não faça semelhante coisa - acudiu Kate vivamente.
Ele olhou-a com ar pasmado, como se não percebesse logo, um ar que lhe era habitual. Por instantes, Kate poderia supor ter-lhe dado a impressão que um fantasma produziria se aparecesse a uma criança.
Em Jamiltepec, as duas mulheres entretiveram-se a talhar vestidos para Teresa na peça de musselina cor de ananás. Para senhora casada, o guarda-roupa de Teresa era bastante modesto: só possuía trajes pretos, que lhe davam um ar infeliz, e alguns brancos já antiquados. Até aí só vivera para o pai (que tinha bons livros acerca do México e toda a vida escrevera sobre a história do estado de Jalisco) e para dirigir a sua hacienda. Esta, chamada de Las Jemas, era a única que não fora destruída durante as revoltas que se seguiram à fuga de Porfirio Diaz; Teresa orgulhava-se bastante deste facto.
O seu carácter assemelhava-se muito ao de uma freira, talvez por se tratar de uma pessoa profundamente apaixonada e as paixões profundas serem mais para se esconder do que para exteriorizar nos contactos quotidianos.
Kate, provando-lhe o vestido sobre os ombros morenos, tornou a admirar a estranha macieza daquela pele escura e o pesado volume dos cabelos negros. A família dos Romeros, a que Tereza pertencia, estabelecera-se no México logo nos primeiros tempos da conquista.
Que lhe fizesse mangas compridas, sugeriu. E acrescentou, ocultando um pouco envergonhada a magreza daqueles membros trigueiros:
- Tenho os braços tão delgados! Não são bonitos como os
seus.
Kate, mulher de quarenta anos, tinha-os fortes e alvos e toda ela
era bem constituída.
- Sim - repetiu Teresa -, compridas até aos punhos.
A outra assim fez, achando que, na realidade, era o que mais convinha àquela natureza.
- Aqui os homens - explicou a dona da casa - não gostam
de mulheres magras.
- Não importa o que os homens pensam - sentenciou Kate. - Julga que Don Ramon gostaria que fosse gorda como uma
galinha?
Teresa fitou-a com os seus olhos pretos, grandes e brilhantes -
tão vivazes e, de certa maneira, fugidios.
- Quem sabe! - exclamou. E, no seu sorriso rápido, malicioso, via-se que não desgostaria de ser, às vezes, como uma galinha
gorda.
Presentemente Kate conhecia mais do que nunca a vida interior duma hacienda. Quando estava em casa, Ramon consultava diariamente o feitor; Teresa, porém, aliviava-lhe esse trabalho e já se ocupava bastante da propriedade. Em geral, ele andava por fora, ou para ir à Cidade do México, ou a Guadalajara e mesmo a Sonora. Todos o conheciam no país e o seu nome tornara-se célebre. Mas, debaixo desse culto que os compatriotas lhe prestavam, Kate adivinhava uma animosidade latente. Talvez preferissem aniquilar os seus heróis a elevá-los temporariamente às culminâncias da glória. O momento que mais apreciavam era o da queda do ídolo.
Para Kate, sempre céptica, deviam eles andar afiando o gume com que o atingiriam no peito, quando o herói se tornasse demasiadamente incómodo. É claro que precisavam da anuência de Cipriano, e Cipriano era um diabinho que os mexicanos temiam deveras. Cipriano, por então, conservava-se fiel - para com Ramon e para consigo mesmo. Representava o papel de Huitzilopochtli e Ramon o de Quetzalcoatl. Eis uma verdade simples e evidente para o general, que mantinha o seu exército pronto para o que desse e viesse. O próprio presidente seria incapaz de prescindir de Viedma, apesar de ser também um homem destemido.
- Qualquer dia - declarava Cipriano - poremos Quetzalcoatl na Catedral de Puebla, e Huitzilopochtli na da capital, e Malintzi na de Guadalupe. Não falta muito, Ramon.
- Faremos com que esse dia chegue - respondia Ramon.
Mas Ramon e Montes sofriam ambos com a profunda e diabólica animosidade do país, manifestada no próprio silêncio da população. Era sempre assim, fossem quais fossem as mãos em que o poder caísse: os Mexicanos pareciam destilar ódio oculto, um ódio demoníaco que lhes aviltava a alma; um ódio cujo único fim consistia em frustrar todos os planos.
Aí estava o dragão do México, que Ramon teria de combater. Contra o mesmo inimigo devia lutar o presidente Montes, e isso arruinava-lhe a saúde. Igualmente Cipriano, mas este desenvencilhava-se melhor. Os soldados apoiavam-no, com tambores e danças de roda das fogueiras. E o general consolidava de dia para dia a sua posição.
Ramon, na sua província, também se sentia seguro. Era o chefe, e, com o seu esforço e energia, lograva dominar qualquer veleidade de revolta. Aterrorizava com o mistério da vida, continha a gente em respeito pela fascinação que exercia. Nos seus domínios, considerava-se forte. Mas fora daí, e em especial na Cidade do México, aquela invisível e subtil má vontade do povo dir-se-ia fazê-lo sangrar, sangrar imensamente. E também a voracidade dos estrangeiros, aves de rapina que rondavam a capital cosmopolita.
Durante a ausência de Ramon, Kate fez companhia a Teresa. As duas mulheres tinham isto de comum: achavam que era melhor apoiar um homem corajoso do que fazer papel de intrometidas e importunas. Isso as unia. A profunda convicção de que deviam ser fiéis aos respectivos maridos ligava intimamente a mulher de Cipriano à de Ramon.
Estava quase no fim a estação das chuvas, embora se pudessem prever aguaceiros ocasionais para Setembro ou mesmo Outubro. Entretanto o belo Outono mexicano surgira na terra, como uma espécie de Primavera ao inverso. Vastos espaços se cobriam de flores brancas e cor-de-rosa, estranhos arbustos silvestres floresciam também, duma maneira fantástica, brilhavam à luz florestas inteiras de girassóis; o céu estava de um azul puríssimo, e, nas terras encharcadas da última chuva, a claridade do dia reverberava intensa.
O lago enchera-se mais, povoando de plantas aquáticas todas as suas margens. Vinham aves imigradas do Norte, nuvens de patos bravos que pareciam poeira no ar e depois polvilhavam a água como raminhos de erva: colimbos, grous, gaivotas brancas dos mares interiores, tal se o mistério dos regimes setentrionais se deslocasse para o Sul. Errava em terra o cheiro de água, que produzia uma sensação calmante - tanto mais que Kate supunha ter origem na aridez do solo parte do horror que lhe causava o povo mexicano. Se houvesse sempre uma gota de água na atmosfera e uma neblina sobre as árvores, desapareceria dos corações humanos aquela maldade inexprimível.
Kate ia muitas vezes a cavalo, com Teresa, ver os campos. A cana-de-açúcar, nos vales, crescia muito verde e muito alta, e os peóns começavam a cortá-la com os seus nwchetes, que pareciam espadas, e enchiam os carros de bois que as transportavam à fábrica de Sayula. Nas vertentes áridas das colinas, avultava na sua rigidez férrea a espinhosa planta da teqnila, que é uma espécie de agave. E nos cactos rijos abriam flores maravilhosas, belas de mais para tão sinistra planta. Através dos campos viam-se molhos de vagens apanhadas dos feijoeiros e abóboras dum tamanho incrível. Entre as folhas emurchecidas pendiam tomates e pimentões. Ainda se erguiam pés de milho com espigas tenras. Como a banana era pouca, as crianças colhiam toda a fruta que encontravam para fazer doce. Teresa, para esse efeito, aproveitava até os últimos figos e pêssegos. Das mangueiras suspendiam-se frutos amarelos e maduros, mas na maior parte eles estavam verdes e tombavam pesados como testículos de toiro.
Era Outono no México, com patos bravos na água, e caçadores com espingardas, e rolas nas árvores. Outono do México, início da estação seca: céu mais alto, azul mais pálido, poentes de rara transparência doirada. Os bagos de café avermelhavam-se nos arbustos contorcidos debaixo das árvores maiores, e as buganvílias, de tons roxos, eram tãoespessas que se podiam mergulhar nelas os braços.
Teresa cuidava de tudo e Kate ajudava-a. Se estava um peón doente numa das cabanas, se era preciso separar os enxames de abelhas nas colmeias debaixo das mangueiras, fazer compotas, tratar do jardim, dos vitelos, do fabrico de manteiga ou de queijos, Teresa a tudo isso atendia acompanhada de Kate. E esta admirava-se da vontade firme e constante, que tinha de ser exercida a todo o momento. Tudo corria bem graças a um poderoso esforço de vontade. À mínima fraqueza do patrão as coisas desandariam e seria a ruína da propriedade.
Jamais um desfalecimento, sempre a vontade tenaz.
Ramon regressou, numa tarde de Novembro, de longa viagem a Sonora. Viera por terra desde Lepic, e, por duas vezes, encontrara-se retido pelas inundações; não era vulgar chuvas tão tardias. Mostrava-se fatigado e com ar ausente. Kate sentiu um baque no coração enquanto comentava para si mesma: " Tão longínquo, que até parece encaminhar-se para a morte."
As nuvens cobriam o céu novamente, relampejava no horizonte, mas tudo estava silencioso. Kate retirou-se cedo e foi até à extremidade do terraço sobranceiro ao lago. Só a claridade intermitente dos relâmpagos iluminava a noite escura e, num desses breves clarões, viu Teresa sentada junto do muro do terraço descoberto; tinha a cabeça de Ramon deitada no regaço e acariciava-lhe lentamente os bastos cabelos pretos.
Kate sobressaltou-se, e disse num murmúrio:
- Desculpem! Não sabia que se encontravam aqui.
- Quis estar cá fora, ao ar livre! - explicou Ramon, soerguendo-se a custo.
- Não se mexa! - pediu Kate. - Foi estupidez minha ter vindo aqui. O senhor está cansado.
- Sinto-me realmente cansado - volveu ele, deitando-se outra vez no chão. - Aquela gente chega a convencer-me de que estou esgotado. Por isso voltei para Teresa.
- Sim - retorquiu Kate. - Não se é impunemente o Quetzalcoatl vivo. É natural que o esgotem. Mas valerá a pena ser devorado por eles?
- Tem de ser assim. Há-de-se verificar a mudança e é um homem que a deve fazer. Às vezes chego a desejar que não seja eu.
- Também acho. E Teresa igualmente. Até penso se não será preferível continuar a ser apenas um ser humano.
Teresa, entretanto, calava-se.
- Faz-se o que é preciso fazer - disse Ramon. - No fim de contas, não se deixa de ser homem. E, se daí resultar ferimento... à la guerre comme à la guerre!
Aquela voz, no escuro, parecia a de um fantasma.
- Ah! - fez Kate, suspirando. - Gostava de saber o que é um homem que se expõe a tantos horrores por causa dos seus semelhantes.
Houve um momento de silêncio.
- O homem é uma coluna de sangue dotada de voz. Quando a voz se extingue e fica apenas a coluna, tanto melhor.
Retirou-se ela para o seu quarto. Ia triste, levando ainda nos ouvidos o som daquelas palavras melancólicas. Dir-se-ia que Ramon tinha dentro de si uma ferida aberta. Era como se Kate a sentisse, nas suas próprias entranhas.
Se ele morresse, em resultado de tanto esforço? Então, pensou, Cipriano ficaria só e tudo estaria acabado.
Por que razão devia um homem afadigar-se de tal maneira por causa dum povo estúpido e mau? Se o mundo corria à desfilada para a sua perdição, deixá-lo, isso era lá com ele.
Pensou em Teresa, que consolava Ramon sem dizer nada. E pensou em Ramon, assim ferido e desesperado! Coisas horríveis, na verdade. Ela devia intervir, defendê-lo contra si próprio. Porque haviam os homens de empreender esses combates inúteis, dos quais voltavam para casa a fim de se restabelecerem junto das suas companheiras?
Para Kate, essa luta não merecia sequer as honras de um ferimento. Que tão antipático mundo terminasse de vez, se tal era o seu destino, e quanto mais depressa melhor! Kate não levantaria um dedo para o impedir. Que cada qual vivesse a sua preciosa vida, que é só uma - e fosse tudo mais para o diabo!
Tentaria impedir que Ramon continuasse naquela senda suicida. Deixá-lo ser o Quetzalcoatl vivo quantas vezes quisesse; mas não tinha o direito de se expor à maldade demoníaca do povo.
Contudo, ele insistia nisso, como Joachim fizera na Irlanda. Teresa, com a sua firmeza doce e calma, talvez lhe fosse de melhor auxílio do que Kate com as suas recriminações.
"Ah! Ainda bem que Cipriano é militar. As feridas que sofrer não lhe atingirão a alma." Mas sabia que, sem Ramon, Cipriano não seria ninguém e nem chegaria a interessar-lhe.
De manhã, Teresa compareceu sozinha ao primeiro almoço. Parecia muito tranquila; dissimulava os sentimentos sob o seu ar orgulhoso de mulher morena.
- Como vai Ramon?
- Está a dormir.
- Ainda bem. Pareceu-me muito em baixo ontem à noite.
- Sim... - Teresa fitou a outra com os seus grandes olhos negros cheios de coragem e de lágrimas contidas.
- Não compreendo que um homem se sacrifique àquele ponto. É inadmissível.
Teresa continuava a fitá-la.
- Ele não se sacrifica - replicou. - Sente que tem de proceder assim. E o meu dever é ajudá-lo.
-? Nesse caso, sacrifica-se por ele, o que também é para mim inadmissível.
- Ah, não! - retorquiu Teresa, com uma onda de sangue a ruborizar-lhe as faces. - Não me sacrifico por Ramon. Se posso dar-lhe... sono... quando dele necessita, isso não representa sacrifício. Representa... - Não terminou a frase, e o rubor acentuou-se-lhe.
- Representa amor, bem sei - volveu Kate. - Mas também a esgota.
- Não é só amor! - exclamou Teresa altivamente. - Eu podia amar outros homens, há muitos que merecem afecto. Mas Ramon... A minha alma pertence-lhe. - Afloraram-lhe lágrimas aos olhos. - Prefiro não falar deste assunto - acrescentou, pondo-se de pé.
E saiu do quarto, deixando Kate um tanto perturbada - e com desejo de voltar para Sayula.
Mas uma hora depois Teresa reapareceu e, apoiando no braço de Kate a mãozinha fresca e macia, disse-lhe em tom suave:
- Desculpe se fui indelicada.
- Eu é que não tenho razão...
- Sim, julga que em tudo isto só existe amor. O amor é uma parte mínima do resto.
- E que é o resto?
- Como posso dizer-lhe, se desconhece? Mas pensa que Ramon não é para mim mais do que um amante?
- Um marido! - emendou Kate. Teresa sacudiu a cabeça com impaciência.
- Ah, esses termos, que tão pouco significam! Não é apenas um marido! É a minha vida!
- Acho preferível cada qual viver a sua vida.
- Não. A vida é como uma semente. De nada serve se não a dermos. Sei que é assim; guardei durante anos a minha vida para mim só. Quando se a guarda muito tempo, ela morre. Quis oferecê-la a Deus, mas não consegui. Disseram-me que se eu casasse com Ramon e tomasse parte na heresia de Quetzalcoatl ficaria condenada aos tormentos eternos, mas alguma coisa me segredava que isso não era verdade e que Ramon necessitava da minha alma. Ah, señora!
- Um sorriso iluminou a face pálida de Teresa. - Dei a minha alma a Ramon. Perdi-a por sua causa. Que mais posso dizer?
- E a alma dele?
- Está aqui. - E Teresa espalmou a mão no seio. Kate ficou um momento calada.
- E se ele a atraiçoar? - perguntou então.
- Ah, señora, Ramon não é apenas um amante. É um homem honesto e não trairá o seu próprio sangue. Concedeu-me a sua alma em troca da minha, e eu lutarei até ao último sopro de vida para o apaziguar quando volta para mim esfrangalhado e com necessidade de sossego. - Teresa proferiu tudo isto com veemência, e depois acrescentou num murmúrio, como se falasse a si mesma: - Graças a Deus, não tenho uma vida só minha. Dei-a a um homem que é mais que homem, como se diz na linguagem de Quetzalcoatl. Por isso ela não morrerá em mim como um pássaro na gaiola... Oh, señora! Quando ele parte para Sinaloa e para a costa ocidental, a minha alma acompanha-o. E Ramon não se esquece que a minha está com ele, tenho a certeza! Não, señora, não deve criticar-me nem
lastimar-me.
- No entanto, acho melhor cada qual guardar a sua alma e ser
responsável por ela.
- Sim, se fosse possível! - replicou Teresa. - Mas não se pode guardar a alma dentro de nós porque acaba por morrer... Enquanto o homem não nos dá a sua semente, a nossa é estéril, e a dele nada vale sem a mulher. O mesmo acontece à alma. Enquanto a não damos a um homem e ele a não toma, nenhum valor tem. E depois de ele a tomar, toda inteira, ninguém fala de traição! Um homem só atraiçoa quando se lhe deu uma parte e não tudo, e a mulher só atraiçoa quando aceita dela apenas uma parte e não o todo. Mas quando de um lado se deu tudo e tudo se aceitou, a traição não existe. Sou o que sou para Ramon e ele é o que é para mim. Não importa o que fizer. Não importa que esteja longe.
Kate não gostava de receber lições daquela criaturinha; era mulher da sociedade, bela e com experiência da vida. Estava acostumada a que lhe rendessem preito. As demais do seu sexo chegavam a temê-la, porque era decidida e impiedosa.
Teresa também a receava um pouco como senhora da sociedade, mas não como mulher. Entrincheirada na sua almazinha orgulhosa, Teresa considerava Kate uma dessas pessoas do mundo exterior que têm muito brilho mas que não estão muito seguras dos segredos da sua personalidade. Toda a beleza e crueldade feminina de Kate era coisa secundária para Teresa em comparação com o profundo e tranquilo amor que a ligava a Ramon.
Sim, Kate habituara-se a olhar as outras mulheres como seres inferiores. No entanto, os papéis inverteram-se de súbito. Embora soubesse que Ramon era superior a Cipriano, viu-se constrangida a pensar se Teresa não seria também superior a ela.
Teresa? Mais importante do que Kate? Que surpresa! Não podia ser verdade.
Contudo, assim era. Ramon desejara casar com Teresa e não com Kate. E o ardor desse enlace ela via-o tanto nos olhos de Ramon como nos da mulher: um ardor que não existia nos olhos de Kate.
O casamento desta com Cipriano não parecia sério nem definitivo. Quando Cipriano estava ausente, ela recuperava a sua antiga individualidade. Só com o general presente é que se compenetrava da sua submissão.
Quando Teresa voltou a fitá-la com aquele seu fulgor do olhar, misturado de indignação, Kate sentiu-se desanimada e arrependida - decerto pela primeira vez na sua existência.
Sabia que Teresa sentia certa aversão por ela: era uma estrangeira branca que falava tão inteligentemente como um homem e nunca dera a sua alma; nem admitia que a pudesse dar. Todas essas damas bem vestidas, da América ou da Europa, guardavam a alma para si mesmas, numa espécie de avareza.
Teresa estava resolvida a não deixar que a outra a tratasse indefinidamente como um ser inferior. Assim procediam todas as estrangeiras para com as mexicanas, porque se consideravam emancipadas. E, para com Ramon, mostravam certa condescendência.
Mas Ramon... Bastava que ele as fixasse para que elas se sentissem reduzidas a nada, apesar de todo o seu dinheiro, experiência e ares dominadores. Raças dominadoras! Que esperassem! Ramon era um desafio a tudo isso. Que o dominassem, se fossem capazes de tanto!
- Não dormiu? - perguntou Teresa a Kate.
- Não muito bem.
- Está com olheiras.
Kate alisou a pele, desconfiada, em volta dos olhos.
- É o que nos faz o México. Não é fácil conservar a juventude neste país. A senhora é que está com bom parecer.
- Sinto-me perfeitamente.
Irradiava de Teresa uma frescura nova, algo de frágil e subtil que ela não precisava de defender contra outra mulher.
- Agora que Ramon já veio, é altura de eu regressar a casa -
declarou Kate.
- Porquê? Faz empenho nisso?
- Acho preferível.
- Nesse caso irei consigo até Sayula. De barco, não é verdade?
Kate arrumou as suas coisas. Dormira mal. A noite fora tenebrosa, cheia de horrores. Lembrara-se de Ramon atacado pelos bandidos e do seu ferimento nas costas. Tivera-a acordada durante horas o barulho ameaçador da chuva.
Percebia o desdém de Teresa pela sua maneira de considerar a
vida conjugal.
- Também eu fui casada - disse Kate. - com um homem
excepcional, a quem amei.
- Ah, sim... E ele morreu.
- Quis morrer.
- Ah, sim... quis morrer.
- Fiz o possível para evitar que se estafasse.
- Fez?
- Que mais estava na minha mão? - redarguiu Kate, num
assomo de ira.
- Se lhe houvesse dado a sua vida, ele não quereria morrer.
- Eu dei-lhe a minha vida. Amava-o. Ah, nem faz ideia! Mas ele não quis a minha alma. Achava que eu devia guardá-la para
mim.
- Os homens são assim quando são apenas homens. Mas,
sendo ardentes e bravos, então querem que as mulheres lhes dêem a alma e guardam-na dentro de si. Sei o que é. Sei onde a minha alma está. Nas entranhas de Ramon, assim como a sua semente está nas minhas entranhas, entranhas de mulher. Ele é um homem e uma coluna de sangue; eu sou uma mulher e um vale de sangue. Digo-lhe isto porque lhe salvou a vida e portanto estamos todos ligados: Caterina, eu, Ramon e Cipriano. Mas não me julgue mal. Aquela outra espécie de mulheres, as que conservam a sua alma, que é senão fraqueza?
- E os homens?
- Se são ardentes e bravos, confortam as nossas entranhas, Caterina!
Kate baixou a cabeça obstinada, furiosa por ter sido apeada do seu pedestal. Que coisa miserável, pensou, isso de uma mulher viver apenas por amor de um homem! Só para lhe enviar a alma para dentro do seu precioso corpo... E trazer no ventre a sua semente preciosa... Quanto a ela própria, nada.
Pretendeu consumar a sua indignação, mas não foi bem sucedida. Talvez no fundo, e contra sua vontade, invejasse Teresa, os seus olhos negros cintilantes, a sua firmeza selvática. Invejava-lhe os dedos delicados, e, acima de tudo, a consolação de ter um homem tão profundamente ligado a si.
A manhã estava quente depois da chuva. As rãs coaxavam, frenéticas. Na outra banda do lago as montanhas pareciam azuis-escuras, com farrapos de nevoeiro a arrastarem-se através das árvores e nuvens brancas a coroarem os picos. Nas águas barrentas navegava um barco de vela solitário.
- Hoje, tudo isto me lembra a Europa, o Tirol - disse Kate, comovida.
- Gosta muito da Europa? - perguntou Teresa.
- Muito.
- E tenciona voltar para lá?
- Penso regressar em breve, para ver minha mãe e os meus filhos.
- Eles reclamam-na?
- Sim, respondeu Kate, um pouco hesitante. E em seguida ajuntou: - Não muito. Mas quero tornar a vê-los.
- Porquê? Tem saudades deles?
- às vezes. - E os olhos de Kate arrasaram-se de água. O barco avançava sem rumor.
- E Cipriano? - volveu Teresa, a medo.
- Ah!, exclamou Kate. -Esse é para mim como um estranho.
Teresa ficou uns momentos calada.
- O homem é sempre estranho para a mulher, creio eu - rematou ela. - E porque não havia de ser?
- Mas a senhora não tem filhos.
- Tem-nos Ramon, E ele costuma dizer: "Continuarei a lançar pão à água e se meus filhos acabarem por se aproximar de mim ficarei contente." Não é. o seu caso?
- Não! - respondeu Kate. - Sou mulher, não sou homem.
- Se eu tiver filhos - declarou Teresa - também lançarei pão à água para os atrair, e espero não os reter ciosamente na minha rede. Assusta-me o amor, é tão pessoal! Devemos deixar os pássaros voarem com as suas asas e os peixes nadarem à vontade. a manhã concede-nos mais do que o amor. E eu quero ser sincera para com a manhã.

XXVI
Kate estava satisfeita por voltar à sua casa e por se encontrar sozinha. Sentia que se operava nela uma grande mudança - mudança que a poderia matar se se realizasse violentamente. Era o fim de qualquer coisa e o princípio de outra: no mais profundo da sua alma e nas suas entranhas. Os homens, Ramon e Cipriano, e o México, seriam a causa daquela modificação. Chegara o momento. Entretanto, se a evolução fosse brusca de mais, e rápida em excesso, poderia revelar-se fatal. Por isso tinha necessidade de se isolar, de tempos a tempos.
Sentava-se na margem durante horas, à sombra dum salgueiro verde, cuja cortina de folhas descia até à água. O lago mostrava-se mais alto e mais cheio que de costume, e tinha também maior calma e maior mistério. Errava o cheiro dos nenúfares que emurcheciam depois de haverem dado à costa. As distâncias pareciam prolongadas. Lembravam estampas japonesas os outeiros mais próximos, salpicados de verdura. Carros de grandes rodas traziam à aldeia a cana-de-açúcar cortada; puxavam-nos a cada um, oito bois que baloiçavam lentamente a cabeça de enormes chifres, enquanto um peón, à frente, os conduzia com o aguilhão poisado no jugo. Tão pesados, tão vagarosos e contudo fáceis de guiar!
Experimentava, no México, uma sensação esquisita, como se estivesse em presença duma humanidade pré-histórica, gente de olhos escuros de antes do período glaciário - quando o mundo era mais frio, os mares vazios e diferente a constituição da terra; quando as águas, solidificadas, se acumulavam nos pólos, e as planícies ocupavam os oceanos, como a Atlântida e os antigos continentes da Polinésia; quando os mares não passavam de lagos, embora grandes, e os povos de olhos pretos podiam dar a pé a volta ao mundo. Nesse tempo existia uma raça misteriosa de sangue ardente e ligeira no andar: raça que possuía uma civilização que lhe era própria. Depois fundiram-se os glaciares, os homens refugiaram-se nos pontos elevados, como os planaltos do México, e separaram-se em nações diferentes.
Na América é tão forte a sombra do mundo antediluviano que às vezes Kate perdia a noção dos tempos decorridos e começava a aproximar-se do antigo modo de ser, da vontade velha e torva, do desprezo da morte, da subtil e escura consciência, do instinto que precedeu a razão. Regressava à época em que o espírito e o poder dos homens residiam no sangue e na espinha dorsal, e as relações entre eles e com os animais se produziam através da medula.
Os Mexicanos ainda se encontravam nesse estádio. O que é aborígene na América pertence à fase de antes do Dilúvio, antes de reinar na terra a vida espiritual. Por isso, ali, a actividade cerebral dos brancos se alastra como uma erva em terreno virgem - para, é claro, murchar depressa e desaparecer por completo. Então, como resultado disso, surge um novo gérmen, uma nova concepção da humanidade: vem da fusão da antiga consciência instintiva e do racionalismo intelectual do branco. Um ser diferente, nascido do encontro daqueles dois.
Kate era muito irlandesa, e no fundo da sua alma jazia o misticismo original, quase desaparecido, dessa primitiva raça celta ou ibérica. É como um resíduo que existe ainda no mundo antediluviano e que não pode ser inteiramente destruído.
Sabia ela, mais ou menos, que era essa fusão o que Ramon pretendia realizar. Compreendia também o motivo pelo qual Cipriano tomava a seus olhos uma importância maior que todo o seu passado, os seus dois maridos, e os filhos. Esse velho sangue másculo despertava-lhe agora nas veias; daí vinham as palpitações que ela ultimamente sentia.
A Irlanda não podia nem queria esquecer aquele ardor sombrio e primitivo. Os Thuathas de Danaan, embora submersos, continuam vivos no sangue, não se lhes consegue impor silêncio. E a Europa científica e meticulosa tinha de se defrontar de novo com os velhos
gigantes.
Esta alteração, todavia - e Kate bem o notava -, não era coisa que se efectuasse com brusquidão; de outro modo haveria rotura e possibilidade de morte. O primitivismo tem os seus horrores. O espírito original do México, pesado, terre à terre, podia ser-lhe tão odioso que a tornasse perversa. Essa obtusa, indomável persistência, desprovida de energia e de esperança, que é peculiar ao aborígene americano, levava-a às vezes a supor que ia perder a razão. Obstinação tenaz que resistia aos séculos e desprezava a personalidade! Lascívia da morte, feroz, incalculável, terrível!
Esse povo, realmente, nunca mudava. Os homens não tinham fé na vida, em nenhuma realidade evidente. Eram apenas fiéis a certas forças obscuras do passado. O presente submergia-se na alma dos homens e das mulheres sob uma camada de lava negra, não deixando à superfície senão a indiferença.
A Esperança! A Esperança! Seria possível, um dia, fazê-la reviver nessas almas obscuras e obter o enlace das suas raças, único passo para o novo mundo do homem?
Entretanto, Kate sentia-se invadida por um mal-estar esquisito. Achava ser necessário partir, a fim de escapar a tamanha depressão. Já não podia ouvir a rastejante insistência dos criados: o sangue é só um, nós somos do mesmo sangue - sentença de tribo pior do que a morte para um indivíduo de raça branca. Estranha teimosia aquela que preconizava a todos a fusão do sangue!
Kate pertencia a uma família antiga, com pergaminhos. Fora educada nas ideias anglo-germânicas da superioridade intrínseca da aristocracia hereditária. O seu sangue era diferente do da gente vulgar: outro fluido, mais refinado.
No México, porém, nada disso conta. Juana, o homem que ia buscar água, o barqueiro que remava no lago, todos revelavam o mesmo pensamento no olhar: "O sangue é só um; pelo sangue tu e eu somos iguais." Kate lia isto nos olhos deles, adivinhava-o nas suas palavras, quer fossem deferentes ou escarninhas, e, por vezes, sentia-se revoltada com essa imposição da igualdade de sangue.
E quando se empertigava como para proclamar "O meu sangue é só meu. Noli me tangere", percebia nas pupilas negras daquelas criaturas o terrível ódio ancestral que as impele a cometer as maiores atrocidades.
Contudo, inclinavam-se perante a sua inteligência, sabedoria e compreenção, e, embora contra vontade, testemunhavam-lhe certo respeito. Ela pertencia às raças dominadoras, hábeis e espertas... Mas exigiam-lhe a aceitação da velha crença: O sangue é só um. Somos todos do mesmo sangue.
E tinha de se submeter, senão persistiriam na sua lenta vingança.
Mas não podia submeter-se de repente. Devia ser a pouco e pouco; um esforço violento destruí-la-ia.
Compreendia agora a afirmação de Ramon: "O homem é uma coluna de sangue, a mulher um vale de sangue." Era a unidade primordial
do género humano, oposta à unidade do espírito individual.
Kate, porém, sempre considerara seu o próprio sangue. O espírito é que ela partilhava com os outros.
Percebia agora o motivo por que Ramon e Cipriano usavam fatos brancos e sandálias e andavam meio nus como deuses vivos. Era a aceitação da antiga crença, o renascimento do laço de sangue que unia os homens, laço que tornava o sacrifício humano tão poderoso
factor da vida.
O sangue do indivíduo é rendido ao ser supremo, ao ser de sangue, deus, nação ou tribo.
E, na verdade, que estranha união existia entre Ramon e os seus homens, entre Cipriano e os seus soldados! Era a comunhão do sangue. Isto podia indignar Kate, enjoá-la por vezes, mas era uma força que não conseguia vencer.
Mesmo admitindo essa comunhão de sangue, Ramon reivindicava uma supremacia, até uma divindade. Era um homem como o mais humilde dos seus peóns, nascido da mesma fonte, das mesmas raízes que eles; no entanto, mostrava ser superior aos outros. E a sua superioridade não provinha do sangue ou do espírito mas duma misteriosa estrela interior que nascia do oceano sombrio e cintilava entre o mar e o céu imenso. A estrela que une o vasto sangue universal ao sopro universal do espírito e brilha entre ambos.
Porque essa coisa que reina sobre o poder humano e que é em si mesma um poder, essa coisa é a estrela misteriosa do cosmos primitivo, é a divindade no homem.
Certos homens nada possuem de divino. Possuem apenas faculdades. São ou deveriam ser escravos. Muitas vezes um homem tem a centelha divina, mas é sufocada pela força ou pela vida material.
E quando o espírito e o sangue se separam e divergem, provocando a morte maior, então apagam-se quase todas as estrelas.
Só o homem que possui uma estrela magna, uma grande divindade, será capaz de reaproximar essas forças contrárias e criar uma nova união.
Esse homem era Ramon e o seu esforço o máximo que se podia fazer: aproximar e unir as forças contrárias. Eis o poder divino de um homem. Por ele, no homem, se distingue o deus. Por ele apenas
e por mais nada.
Embora fosse como o mais ínfimo dos seus peóns, com o mesmo coração que bate, os mesmos rins insondáveis, e os lábios fechados sobre o mesmo segredo da humanidade; e fosse humano como Kate era humana, com a mesma ansiedade de espírito e a sede do puro conhecimento e da comunhão; no entanto só ele tinha o poder astral de unir os dois grandes impulsos da humanidade, e de os fundir - de ser a ave de asas imensas que paira entre as duas potências opostas: a Estrela da Manhã, que está entre o sopro da aurora e as profundezas da noite.
Os homens haviam tentado assassiná-lo com punhaladas. Carlota quisera matá-lo com o seu espírito. Cada parte, separadamente, pretendera liquidá-lo. Ele, contudo, estava fora do alcance de qualquer delas. Era o Quetzalcoatl vivo, a cintilação de uma estrela que nascia na alma dos seus compatriotas. Chama dum astro a meio das duas asas do poder: eis só o que representa a divindade num homem e em toda a humanidade.
Kate recebeu um recado de Cipriano: mandava-lhe dizer que vinha instalar-se na Vivenda Aragon. Esta casa era a principal da região do lago; tinha um jardim em toda a volta, não muito grande mas bonito, com palmeiras e sebes de jasmineiros, tudo muito verde em resultado de regas constantes. A própria construção lembrava um castelo em ponto pequeno, talvez despropositado; mas eram agradáveis as varandas espaçosas que davam para a encosta e a vegetação do jardim, mesmo acima do lago.
Cipriano chegou bem disposto. Brilhavam-lhe os olhos com uma expressão de mocidade. Queria casar a valer com Kate, segundo a lei civil mexicana, e morar com ela na Vivenda Aragon. Kate hesitava, achando que tinha necessidade de voltar em breve à Europa, sobretudo à Inglaterra e Irlanda. Era urgente, porque lhe custava já a suportar aquela ameaça do México, a sua influência deprimente. Precisava, pelo menos, de um intervalo de repouso.
Assim o declarou a Cipriano, que ficou desanimado.
- Não importa casar ou não antes de ir - disse ela. - O que tenho é de me afastar daqui o mais depressa possível.
- Quando?
- Em Janeiro.
O rosto dele desanuviou-se.
- Então casemo-nos primeiro. Na semana que vem.
Ela aquiesceu com estranha indiferença, e Cipriano, radiante, correu a fazer os preparativos necessários.
Pouco interessava a Kate o casamento civil. No sentido essencial, já estava casada com Cipriano. Ele era acima de tudo militar, tão depressa vinha para ela como a deixava. Kate, de qualquer maneira, passaria grande parte do tempo sozinha.
Podia convir-lhe como marido, mas o que a assustava era esse México terrível. O movimento quetzalcoatliano espalhara-se de maneira sinistra por todo o país. O arcebispo manifestara-se contra isso, e Ramon, Cipriano e seus aderentes estavam excomungados. Haviam tentado assassinar Montes.
Na capital, os partidários de Quetzalcoatl tinham escolhido para lugar de reunião a Igreja de San Juan Bautista, conhecida pela Igreja do Salvador Negro. O arcebispo ordenara aos seus fiéis que fossem em procissão ao referido templo, agora chamado Casa de Quetzalcoatl, a fim de o retomarem para o culto católico. O governo, porém, sabendo que mais tarde ou mais cedo haveria luta, fez dispersar a procissão e deteve o arcebispo, depois de alguma efusão de sangue.
Rebentou então uma espécie de guerra. Os Cavaleiros de Cortez exibiram a sua famosa reserva de armas, que aliás não era muito impressionante. Em Zócalo produziu-se uma manifestação clerical, dirigida por um padre fanático. Montes mandou atirar sobre os insurretos. Aquilo afigurava-se o começo duma luta religiosa. Pelas ruas viam-se os bandos de Quetzalcoatl, com as suas serapes azuis e brancas, e' os de Huitzilopochtli, de serapes vermelhas e pretas, marchando ao som de tambores e erguendo uns as suas estranhas insígnias redondas, feitas de penas, e outros longas varas rematadas por um penacho rubro de extremidade preta. Nas igrejas, os sacerdotes incitavam os fiéis à guerra santa; os que haviam aderido à causa de Quetzalcoatl discursavam nas ruas à multidão.
Período tumultuoso. Em Zacatecas, o general Narciso Beltran manifestara-se contra Montes e a favor da Igreja, mas Cipriano interviera com tal presteza e violência que deu em resultado o fuzilamento de Beltran e a dispersão das suas tropas.
Então Montes declarou ser igual no México o antigo culto católico e publicou um decreto determinando que a religião nacional da República fosse a de Quetzalcoatl. Encerraram-se todas as igrejas e os padres viram-se obrigados a prestar juramento de fidelidade à República ou a serem condenados ao exílio. Em todas as cidades e aldeias surgiam os soldados de Huitzilopochtli e os homens de serape azul. Ramon trabalhava sem descanso. Cipriano aparecia nos lugares onde menos o esperavam. Conseguiu despertar uma espécie de frenesi religioso nas regiões mais descontentes, como Vera Cruz, Tamaulipas, Jucatão. Efectuaram-se no mar estranhos baptismos e nas costas elevaram-se fortalezas com as cores de Huitzilopochtli.
Todo o país vibrava com uma sensação desconhecida, dominado pela vaga de energia nova, mas em tudo aquilo entrava violência, crueldade e certo horror.
Deportaram o arcebispo. Já não se viam sotainas nas ruas; só as serapes de Quetzalcoatl e as de Huitzilopochtli se evidenciavam entre as multidões. Eis porque Cipriano chegou junto de Kate, com os olhos a luzir, ébrio de triunfo. Kate ficou assustada e sentiu-se vazia e inútil. Nem sequer aquela vitória espantosa e a alteração que se dava na face do mundo a podiam salvar por completo. Pertencia à velha Europa e não lhe era fácil transformar-se tão rapidamente. Contudo, achava que, se voltasse à Irlanda e concedesse uns tempos de repouso à sua vida e ao seu corpo, poderia então regressar ao México e participar nos acontecimentos.
Porque não era só o espírito que se modificava, mas também o corpo e o próprio sangue. Sentia esse terrível catabolismo e metabolismo a transformá-la noutra criatura. Se a metamorfose fosse muito brusca, decerto ela morreria.
Casou-se, pois, legalmente com Cipriano e foi passar um mês com ele na Vivenda Aragon. Em seguida embarcaria sozinha para a Irlanda, projecto a que o marido deu a sua anuência.
Era deveras estranho estar casada com ele. Kate tinha a impressão de se afundar pesadamente abaixo da superfície da vida, para jazer nas suas profundezas.
Estranha, pesada, verdadeira passividade. Pela primeira vez na sua existência, ela sentia-se repousada. Falar e pensar tornavam-se-lhe coisas triviais; as ondas à tona de água não são nada para aqueles que vivem submersos.
Na alma, estava serena e altiva. Ah, se o corpo não sofresse tanto com a transformação! No cosmos encontrara a paz de espírito, o universo abrira-se à sua frente, e ela deixava-se afundar no leito de puro descanso. Adquirira quase tanta segurança como Teresa. Só a atormentava a mudança que se lhe operava no sangue.
Cipriano mostrava-se feliz, à sua maneira de índio. Parecia um adolescente contemplando o mistério da vida com olhos dilatados de espanto. Não se ocupava especialmente de Kate, nem lhe falava de assuntos sérios. Se ela aflorava uma conversa desse género, dirigia-lhe um olhar desconfiado e afastava-se.
Tinha consciência de coisas de que a mulher mal se apercebia, sobretudo do perigo das palavras irritantes. E isto ele evitava.
Kate compreendia agora como os seus antigos amores haviam sido brutais, carregados de desejo e de contactos voluptuosos. com Cipriano, desaparecia a sua vontade ardente feminina, toda ela doçura, submissão; e contudo, tais as fontes térmicas que brotam da terra sem rumor, tão poderosa era na sua força secreta!
Via quase com espanto morrer dentro de si a Afrodite da espuma, essa Afrodite ávida de sensações ardentes. Como se prevenido por vago instinto, Cipriano repudiava essa parte da natureza de Kate. Quando esta se deixava dominar pelo êxtase voluptuoso que acaba em espasmos delirantes, ele afastava-se da mulher. Retirava-se desde que pressentia nela a sede daquelas volúpias a que costumava chamar o seu "prazer". E Kate percebia que lhe era repulsiva nesses momentos. Misterioso e implacável, afastava-se sem uma palavra.
Estendida a seu lado ela compreendia então quanto era superficial aquela efervescência de sensualidade. Parecia vir do exterior, não do seu íntimo. Depois do primeiro instante de decepção, quando esse prazer lhe era negado, concluía que não o desejava realmente, que até lhe repugnava.
E Cipriano, no seu silêncio quente e obscuro, aproximava-se quando ela se assemelhava a uma fonte borbulhando sem rumor das profundezas vulcânicas. Já não se tratava de prazer consciente. O que se passava era estranho, inexprimível, muito diferente das suas relações com Joachim. Nem êxtases, nem espasmos. Uma espécie de força subterrânea a que tinha de se submeter.
Tal como no amor, assim era Cipriano na vida. Kate não conseguia perscrutá-lo. Se tentava, via-se obrigada a desistir e a classificá-lo entre as coisas que existem e não se compreendem. Um desconhecido, e uma presença; nada mais.
Não podia existir intimidade. Cipriano envolvia-se na sua reserva como numa capa e deixava Kate envolver-se na dela. Eram dois estranhos. Ele aceitava o facto integralmente, como se outra coisa não fosse possível, mas Kate achava aquilo deveras singular. Tinha tanto desejo de intimidade e esforçara-se tanto por obtê-la!
Agora, resignara-se a aceitá-lo tal como era: um desconhecido, um estrangeiro na presença do qual vivia. E sem nenhuma intimidade espiritual, a sua união não passava de uma união de sangue.
Por isso, pouco importavam as ausências de Cipriano. Deixava atrás de si a marca da sua presença, e levava consigo a de Kate. Em resumo, não existia o desgosto da separação.
Certa manhã, ele teve de partir cedo para a cidade. O sol ainda não cobria o lago mas, para além de Tuliapan, já acariciava as montanhas, que brilhavam tão distintas que se diriam focadas por luz mágica. O sulco verde das encostas parecia ao alcance da mão. No seu voo, cintilaram de súbito duas gaivotas brancas, apanhadas na luminosidade. Mas o lago, suave, unido, silencioso, permanecia ainda na sombra.
Kate lembrou-se do mar. O Pacífico não ficava longe. Ela tinha a impressão de o haver esquecido, mas sentia de novo a necessidade da sua brisa.
Cipriano ia banhar-se; Kate viu-o caminhar sobre as lajes do cais. Despiu o roupão e o vulto escuro desenhou-se na água amarelada. Era tão moreno! Tal um malaio. Corpo tão trigueiro como a cara; e com esse físico primitivo, e o peito alto, e as ancas bem modeladas, evocava as figuras masculinas de certas medalhas gregas.
Mergulhou da beira do cais e avançou na água mansa. Nesse momento a luz espalhou-se dos cimos das montanhas e cobriu de oiro a superfície do lago. Imediatamente, Cipriano apareceu rubro como fogo. Os raios solares, porém, não eram vermelhos, mas, reflectidos pelas águas, davam ao corpo de Cipriano um tom de lume, como se o abrasassem.
Os filhos da Manhã... A coluna de Sangue... Um Pele-Vermelha... Kate contemplava-o admirada enquanto nadava resplandecente e puro. Como se fosse de fogo!
Os filhos da Manhã... Kate mais uma vez renunciou a todo e qualquer esforço de conhecimento - e, sem esforço, limitou-se à comunhão de sangue.
Sim, a sua raça... Ela notara já como os indígenas se tornavam de um vermelho puro à luz da manhã e da tarde. Dir-se-iam chamas erguendo-se da água.
Cipriano partiu a cavalo, com o criado. Kate viu-o afastar-se pela estrada além, sombrio na sua montada ruça. Parecia não fazer movimento nenhum. Irradiava um orgulho másculo e, assim unido ao animal, era como se este e o cavaleiro constituíssem um único ser.
Desapareceu. Kate, por um instante, experimentou saudade da sua presença. Mais do que dele próprio. Não desejaria tocar-lhe nem falar-lhe, mas tão-somente senti-lo ali.
Depressa se dominou e voltou à realidade. Desde que se compenetrava da ausência de Cipriano, vinha-lhe a noção nítida da sua presença.
Passeou um pouco pela costa, junto do molhe. Adorava estar só. Absolutamente só, com o jardim, o lago e a manhã.
"No fundo, sou como Teresa", pensou ela.
De súbito viu à sua frente uma corda comprida e escura em cima de um pedregulho. Aquilo fê-la sair dos devaneios. Era uma cobra de pele ornada com delicados desenhos; estava sobre uma pedra enorme e a cabeça pendia-lhe até ao chão.
O réptil sentiu a presença da mulher, pois, com incrível rapidez, rastejou ao longo da rocha e entrou numa fenda que havia na base do molhe.
Não era grande o buraco. Depois de ali penetrar, virou a cabeça e dardejou a língua preta; mas em seguida desapareceu devagar, e Kate viu-lhe ainda o último anel, no qual poisava a cabeça chata. Fazia lembrar aqueles diabos que se representam de queixo apoiado sobre os braços, olhando através duma seteira. Do fundo do esconderijo espiava a mulher; seguia-a com os olhos cintilantes de crueldade.
Kate pensou então em todos esses seres invisíveis, escondidos nos recantos ocultos da terra. E perguntava a si mesma se aquele réptil não sofreria por ser incapaz de se elevar na escala da criação; de não poder correr a quatro patas em vez de rastejar...
Talvez não. Talvez houvesse encontrado a sua própria paz. Kate sentiu-se reconciliada com o animal.

XXVII
Teresa e Kate tornaram a visitar-se. Existia agora entre ambas certa simpatia, especialmente desde que a irlandesa decidira partir.
Envolvia o lago uma pureza outonal. Sentia-se a humidade na atmosfera, as sarças das encostas cobriam-se de rebentos. O sol inundava os montes duma luz de ouro, as sombras eram profundas, aveludadas. A verdura invadia tudo, até as rochas e a terra cor-de-rosa. O verde brilhante das canas-de-açúcar sobressaía no fundo rubro dos campos lavrados de fresco; aqui e ali, entre a massa escura das árvores, avultava a mancha branca das povoações.
O céu estava alto e límpido. No ar cristalino vibravam os tambores e o grito para as pausas do dia. E o dia parecia deter-se perante o mistério supremo desse universo que desabrochava, vasto, suave e cheio de vida.
Até no lago se encontrava uma espécie de apaziguamento. Avançava uma canoa com a vela entumecida tal uma concha nacarada; o casco negro e afilado deslizava sobre a água. Dir-se-ia a barca de Dioniso portadora duma mensagem e de ramos de videira.
Kate mal se lembrava agora da secura árida dos meses anteriores, quando a terra parecia crepitar ao sol implacável.
Ramon e Teresa atravessaram o lago e o seu barco de remos entrou no molhe. Era uma manhã em que as sombras nas montanhas tomavam o tom azul das centáureas.
- Sempre vai partir? - perguntou Ramon a Kate.
- Por uma temporada. Não me julga a mulher de Loth, não é verdade?
- Não - respondeu ele, a rir. - Julgo que é a de Cipriano.
- E sou. Mas preciso de sair, embora por pouco tempo.
- Ah! Nesse caso vá e volte depressa. E diga lá na Irlanda que façam o que fizemos aqui.
- Como?
- Encontrando-se em si mesmos, e no seu próprio universo, e com os seus deuses. Justifiquem os seus mistérios. Os Irlandeses são tão prolixos no que respeita aos seus heróis de outrora e aos seus tempos gloriosos! Diga-lhes, pois, que concretizem tudo isso, como nós fizemos com Quetzalcoatl e Huitzilopochtli.
- Está bem. Veremos se há quem me escute...
- Sim, senhora. - Seguiu com os olhos a vela branca que se aproximava e depois indagou: - Afinal, porque quer partir?
- É-lhe indiferente o caso, pois não?
- Não, não me é indiferente.
- Porquê?
Ramon levou outra vez uns segundos para responder:
- É uma das nossas - replicou por fim. - Precisamos de si.
- Mesmo quando não faço nada? E quando principio a aborrecer-me com a história do Quetzalcoatl vivo e o resto, e preferia conhecer um simples Don Ramon?
Ele riu-se.
- Que é um simples Don Ramon? Don Ramon tem dentro de si Quetzalcoatl vivo. Mas a senhora auxilia-nos, apesar de tudo.
- Não creio que precise de auxílio, e muito menos de uma mulher que. no fim de contas, não é mais que a esposa do seu amigo.
Estavam sentados num banco, debaixo das manhãs-de-páscoa, cujas folhas rubras formavam como que uma flor de pétalas enormes.
- A esposa do meu amigo - volveu Ramon. - Que poderia
ser de mais agradável para mim?
- Pois claro! - exclamou Kate de maneira ambígua. Ramon tinha os braços apoiados nos joelhos e olhava para o
lago, com ar ausente. O seu rosto reflectia cansaço e aquela vulnerabilidade que sempre comovia Kate. Mais uma vez ela se compenetrou do isolamento e esforço que a procura de uma vida diferente impunha àquele homem. E, no entanto, ela não desistia...
Essa visão acentuou-lhe o sentimento de impotência, da impotência total da mulher em ajudar o homem que caminha para o Além.
- Está muito seguro de si mesmo? - perguntou.
- Seguro de mim? Não! De um instante para o outro eu morro e desapareço da face do mundo. Como poderia estar seguro de mim
mesmo?
- Mas porque há-de morrer?
- Todos morrem. Até Carlota!
- Essa tinha a sua hora marcada.
- Pode-se marcar a nossa hora como se faz no despertador de um relógio?
Kate calou-se por uns momentos.
- Se não está seguro de si mesmo, de que está então? - inquiriu como se o desafiasse.
Ramon fitou-a com os seus olhos sombrios.
- Estou seguro... seguro... - A voz sumiu-se-lhe, o rosto tomou a palidez dum defunto. Só os olhos a observavam intensamente. De novo ela se viu perante a sombra dolorosa do homem e se sentia impotente diante desse espectro vivo do sofrimento.
- Não pensa que anda em erro, pois não? - perguntou Kate.
- Não, mas talvez não possa manter...
- E então? - insistiu friamente a irlandesa.
- Continuarei o meu caminho, embora desacompanhado. Kate só lhe via os olhos negros, fitos nela. Ramon começou a falar em espanhol: - Isto faz-me doer a alma, como um pronúncio de morte.
- Mas porquê? Não está doente!
- Sinto a alma desagregar-se.
- Não deixe! - exclamou Kate, alarmada.
Ramon fitava-a ainda com os olhos inexpressivos. De súbito, ela experimentou uma sensação de calma e de força.
- Devia esquecer por uns tempos - disse-lhe em voz compassiva, poisando a sua mão na dele. Para quê tentar compreendê-lo ou contrariá-lo? Era uma mulher, ele um homem e, portanto, tinham da vida uma concepção diversa.
Ao contacto daquela mão, Ramon percebeu despertar de um sonho e fixou-a com olhar perscrutador e altivo. A carícia maternal sobressaltara-o como uma picada.
- Sim, devia - disse.
- Pois claro. Se quer ser tão... abstracto e quetzalcoatliano enterre de vez enquando a cabeça na areia como fazem as avestruzes, e esqueça.
- Oh! - exclamou Ramon sorrindo. - Ei-la de novo zangada!
- O caso não é tão simples como parece. Existe em mim um conflito, e não me deixam ausentar-me por algum tempo.
- Não podemos impedi-la.
-Pois sim, mas discordam da minha ida. Não me deixam partir em paz.
- Porque deseja ir-se embora?
- Tenho de ir. Tenho de voltar para junto dos meus filhos e da
minha mãe.
- Sente essa necessidade?
- Sinto.
Logo que deu esta resposta compreendeu que havia nela certa duplicidade. Era como se tivesse dois eus: um, mais novo, terno, sensível, que pertencia a Cipriano e a Ramon; outro, duro, completo, que pertencia aos filhos, à mãe, à Inglaterra, a todo o seu passado. O eu antigo nada tinha de submisso e era forte, o recente parecia frágil, estava ligado a Cipriano e até a Ramon e a Teresa; nada tinha de independente.
Kate possuía consciência desta dualidade e sofria com isso. Porque não conseguia optar definitivamente pela antiga maneira de ser, nem pela moderna, ficava a deter-se entre as duas.
- Pois é - continuou. - Sinto essa necessidade, e querem
evitar que eu parta.
- Que ideia! - protestou Ramon.
- Sim, senhor. Exercem pressão sobre mim, paralisam-me, impedem-me de me ir embora.
- Se tem essa sensação, convém que nos afastemos de si durante uns tempos.
- Porquê? Não concordam com a minha ida? Se eu tenho de
ir, porque não me apoiam?
Ramon fitou-a tranquilamente.
- É impossível. Não acredito nessa partida. Seria virar-nos as costas, renegar-nos. Mas a verdade é que somos todos muito complicados. Se acha que tem de se ausentar durante certo período, então vá! Não é coisa de importância primordial. Já fez a sua opção, e
eu não fico apreensivo.
Kate sentiu alívio ao ouvir isto, porque estava bastante preocupada consigo mesma. Nas suas relações com Cipriano e Ramon, nunca tinha a certeza de nada. Contudo, replicou com um pouco de ironia:
- Porque haveria de ficar apreensivo?
- Não desconfia de si própria às vezes?
- Nunca! Estou sempre segura da minha pessoa.
Continuavam sentados no jardim da Vivenda Aragon, debaixo da manhã-de-páscoa. O ar começava a aquecer. O lago estava calmo, o vento amainara e tudo se conservava imóvel - excepto as folhas rubras do arbusto.
O Natal aproximava-se! Eis o que recordou a Kate aquela planta majestosa.
Natal! O azevinho! A Inglaterra! As prendas! As iguarias! Se ela se apressasse poderia chegar à Inglaterra na data festiva. Achava uma coisa tão natural encontrar-se na pátria com a mãe, pelo Natal! Tinha casos tão interessantes a contar! E as bisbilhotices divertidas que havia de ouvir... De longe, tudo isso lhe parecia encantador. No entanto, experimentava como que uma relutância ao pensar nesse regresso.
- Podemo-nos fartar de coisas boas - disse ela a Ramon.
- De qual, em particular?
- Oh! De Quetzalcoatl e todas essas histórias. Podemos estar saturados.
- É possível - respondeu Ramon, pondo-se de pé e afastando-se em passos tão subtis que ela nem deu pela sua retirada.
Quando compreendeu que ele se fora embora, ficou fula. Mas continuou sentada debaixo do magnífico arbusto, contemplando com os olhos irritados a sebe de jasmineiro e as suas flores dum branco puríssimo. Onde é que ela ouvira qualquer coisa a respeito de jasmins? "E entre nós os jasmins..."
Oh! Como se sentia farta de tudo aquilo!
Teresa descia a ladeira do jardim.
- Ainda está aqui?
- Onde podia eu estar? - retorquiu Kate.
- Não sei... Meu marido foi a Sayula a fim de falar com o Jefe. Não quis esperar para ir connosco no barco.
- Talvez tivesse pressa.
- Que maravilha! - observou Teresa, apontando para o estendal vermelho do majestoso eufórbio.
- São as vossas flores de Natal, não são?
- Sim, as flores de Noche buena.
- É extraordinário! O Natal com hibiscos e manhãs-de-páscoa! Estou ansiosa por ver azevinho e laranjas na montra duma frutaria de Hampstead.
- Porquê? - disse Teresa, rindo.
- Ah! - suspirou Kate. - Voltar à vida simples, ver os autocarros a correr na lama de Piccadilly, na véspera do Natal, e os passeios molhados cheios de gente diante das lojas cintilantes...
- Isso é que é vida, para si? - perguntou Teresa.
- Sim. Sem esta abstracção e vontade. A vida satisfaz-me se eu puder vivê-la e ser eu mesma.
- É altura de Cipriano regressar - disse Teresa.
Kate levantou-se com súbita impaciência. Já não suportava essa tutela. Haviade lhes mostrar que era livre!
Foi com Teresa à aldeia. O ar parecia misteriosamente vivo, animado com um sopro novo. Mas Kate sentia-se fora do ambiente. As duas senhoras sentaram-se debaixo de uma árvore na praia de Sayula, conversando um pouco e contemplando a imensidão do lago
cor de pérola.
Ancorado junto do molhe estava um barco de toldo vermelho e mastro comprido. Em terra, viam-se grupos de homens vestidos de branco a olharem para o interior da embarcação. O contorno monolítico duma vaca preta e branca e dum touro enorme recortava-se contra a superfície das águas.
Era perto, e no entanto parecia tudo estranho e remoto. Dois peóns colocaram uma prancha e puseram-se a empurrar a vaca para lá. O animal avançou relutante mas depois, com a lenta indiferença dos Mexicanos, seguiu pela ponte adiante. Os homens incitavam-no, até que ele ganhou o barco e entrou definitivamente no porão.
O grupo ocupou-se então do touro. Um mexicano já idoso, alto, de calças estreitas de pele e casaco de cabedal, com um imenso chapéu de feltro bordado a prata, ergueu delicadamente a cabeça do touro, pegando-lhe pela argola do focinho. Atrás estava um peón que, curvando-se, empurrou os poderosos flancos do animal. E este, com toda a calma, foi andando pela prancha além. Mas parou.
Os peóns reagruparam-se. O que estava atrás, de faixa vermelha atada à cintura, deixou de empurrar. Então dois outros passaram uma corda em volta das ancas do touro. O velho tornou a pegar pela argola, sempre com muito cuidado, e o animal levantou outra vez a cabeça. Mas continuou parado.
De novo lhe puxaram pela argola e pela corda. O monstro mantinha-se impassível. Tudo isto decorria no maior silêncio.
Por fim o touro percorreu a ponte em passos lentos e alcançou a borda do navio. Ali, esperou.
De cabeça baixa, olhava para o fundo do porão. Os homens empurravam-no com toda a força, puxavam a corda - tudo no profundo silêncio mexicano.
Devagar, cauteloso, o animal agachou-se, e então, com um movimento rápido, pendeu as patas dianteiras no interior do barco, ficando com os quartos traseiros alçados. Houve um momento de confusão, depois um baque. Finalmente, o touro saltara e encontrava-se no porão do navio.
E tudo tão silencioso e tão remoto!
- Ramon quer que se sente ao lado dele no templo como esposa de Quetzalcoatl... com algum nome esquisito? - perguntou Kate a Teresa.
- Não sei. Mais tarde, diz ele, quando for ocasião de haver uma deusa.
- E importa-se?
- Por mim, tenho medo. Mas sei que Ramon o deseja. Ele diz que é aceitar a maior responsabilidade da nossa vida, e eu acredito que seja verdade. Se existe divindade em mim, devo reconhecê-la, envergar a túnica verde e ser deusa no momento oportuno. Ramon afirma que precisamos de manifestar a presença divina. E, ao lembrar-me de meus irmãos, acho que ele tem razão. Hei-de pensar no deus que palpita invisível como o coração do mundo. E quando vestir a túnica verde e me sentar no templo diante de toda a gente, voltar-me-ei para o coração do universo e tentarei compenetrar-me do meu eu divino.
- Julgava que a túnica verde era só para a esposa de Huitzilopochtli - observou Kate.
- Ah, sim! - replicou Teresa. - A minha é preta, com barras brancas e desenhos encarnados.
- Preferia a verde? Fique com ela, se quiser. Eu vou-me embora...
Teresa ergueu os olhos para Kate.
- A túnica verde é para a mulher de Huitzilopochtli - declarou.
- Não vejo que isso tenha importância - volveu a irlandesa.
- Cada homem deve possuir a esposa que lhe convém. Cipriano não quereria uma mulher como eu.
- Cada mulher deve ter o homem que lhe convém - retorquiu Kate. - Para mim, Ramon seria muito abstracto e muito despótico.
Teresa ruborizou-se e baixou os olhos.
- Ramon exige muita submissão de uma mulher para que me agradasse - ajuntou a outra.
Teresa ergueu a cabeça, o pescoço moreno ondulou como uma
serpente.
- Como é que sabe que Ramon exige submissão das mulheres? Como é que sabe? Nunca a exigiu de si... Está enganada. Ele não me impõe tal submissão. O que pretende é que me entregue brandamente; em compensação, entrega-se-me, a mim, com uma brandura maior do que esta que lhe concedo: um homem como Ramon é mais dócil do que uma mulher. Não se assemelha a Cipriano, que é soldado. Ramon mostra-se dócil. Não tem razão no que
diz, Caterina.
Kate soltou uma risadinha. Mas Teresa prosseguiu:
- Vejo-a como um soldado entre as mulheres, está sempre a combater. Eu não sou assim. No entanto, há mulheres que são de temperamento bélico e essas precisam de mandos militares. Eis a razão por que é Malintzi e tem um vestido verde. Estará sempre disposta a lutar... até consigo mesma, se ficar só no mundo.
Havia uma grande calma em volta do lago. As duas senhoras aguardavam a chegada de Ramon.
Um homem vestido de branco, acocorado e silencioso debaixo de uma árvore, desbastava folhas de palmeira, com ar concentrado. Em seguida ia molhá-las na água e voltava para se sentar de novo, recomeçando o trabalho com aquela atenção pueril da gente do povo. Estava a consertar uma cadeira de palha. Como Kate o observasse, os olhares dos dois encontraram-se e o homem saudou-a. Dir-se-ia que, dele, emanava para ela uma chama de vida, a qual lhe transmitiu um estranho poder.
Nitrindo excitado, corria ao longo da margem um cavalo ruço malhado de branco. A crina flutuava ao vento, as patas faziam saltar os calhaus, as narinas abriam-se-lhe ansiosas. Porque seria?
Um peón fizera entrar no lago a sua carroça puxada por quatro muares, até que a água ficou acima dos varais, e quase atingindo o fundo do veículo. Parecia um barco conduzido por quatro cavalos-marinhos.
Era Inverno, mas dir-se-ia Primavera nas imediações do lago. Saltitavam na praia bezerros amarelos e brancos, agitando a cauda, correndo lado a lado à beira da água, que eles cheiravam desconfiados.
A uma árvore estava amarrada uma burra, com a sua cria deitada à sombra, um jumentinho preto como uma amora, enroscado no chão, com a cabeça peluda erguida e as longas orelhas fitas.
- Quantos dias tem o burrinho? - perguntava Kate ao peón, que saíra da sua cabana de colmo.
O homem dirigiu-lhe um olhar em que havia júbilo e deferência - olhar que fez Kate sentir uma onda de orgulho encher-lhe o peito.
- Nasceu a noite passada, patrona! - respondeu ele, sorrindo.
- Tão novo! Ainda não pode aguentar-se nas pernas, pois não?
O peón aproximou-se do jumento e pô-lo de pé. E ali ficou o animalzinho, espantado, de pernas abertas, como se em cima de ganchos de cabelo.
- Que engraçado! - exclamou Kate, deliciada. O homem riu-se; parecia grato pelo interesse dela.
O jumento a custo se mantinha naquela posição. Vacilava sobre as quatro patas bambas, com ar admirado. Deu uns passos oscilantes para cheirar as folhas de milho. Cheirou, e tornou a cheirar, tal se o mistério do olfacto se lhe revelasse nas narinas.
Então voltou para Kate a cabeça aveludada e deitou de fora a língua cor-de-rosa. Kate soltou uma gargalhada, o que fez o animal dar um pulo que o deixou infinitamente surpreendido consigo próprio. Tentou uns passos, e, de repente, sem que ele mesmo esperasse semelhante coisa, deu outro salto.
- Já dança! - exclamou Kate. - E só tem umas horas de existência!
- Já dança - confirmou o peón.
Depois daquelas experiências, o burrinho aproximou-se da mãe em passos incertos e começou a mamar.
Erguendo a vista, Kate encontrou os olhos do homem cintilantes da chama da vida, cheios de confiança e de conhecimento.
O jumentinho preto, a mãe, o mistério da criação, o respeito pela mulher superior a ele, bela e radiosa, tudo isto exprimiam os olhos negros desse homem primitivo.
- Adiós! - disse Kate.
- Adiós, patrona! - respondeu ele, erguendo o braço, na saudação de Quetzalcoatl.
Atravessou ela a praia em direcção ao cais; sentia dentro de si uma onda de vida, forte, resistente. "É o sexo", disse consigo. "Como o sexo pode ser extraordinário quando o homem o conserva poderoso e sagrado e que ele enche o mundo! É como o sol, penetrando-nos. Mas não me submeterei, mesmo assim. Porquê ceder?" Ramon aproximava-se, com o seu largo chapéu ornamentado do símbolo de Quetzalcoatl. Nesse instante tocaram os tambores e, do alto da torre, soou a voz nítida e possante anunciando o meio-dia. Todos os homens que se encontravam na praia aprumaram o corpo e ergueram o braço direito. As mulheres viraram a palma da mão para o Sol. Tudo ficou imóvel, excepto os animais.
Então Ramon encaminhou-se para o barco, enquanto os homens o saudavam à maneira de Quetzalcoatl.
- É espantoso como nesta terra se pode ter a impressão de que se é alguém! - notou Kate, quando já iam sobre a água no barco de remos. - Sentimo-nos como se pertencêssemos de facto à nobreza.
- E não é verdade?
- Sim, mas isso em toda a parte nos é negado. Só aqui temos a noção do poder da nobreza. Os indígenas ainda a veneram. Parecem
adorar-me.
- Por enquanto - replicou Ramon. - Mais tarde assassiná-la-ão porque a adoraram.
- É inevitável? - volveu Kate em tom despreocupado.
- Creio que sim. Se vivesse sozinha aqui, em Sayula, e reinasse por algum tempo, seria assassinada... ou pior ainda... pelo povo que a tinha idolatrado.
- Não acredito.
- É como lhe digo.
- Mas porquê?
- A não ser que se consiga dos deuses a nossa própria nobreza e se implore dos céus o poder, acabaremos por ser assassinados.
- A minha nobreza tem essa origem.
Mas não ficou muito convencida e mais firmou a sua resolução
de partir.
Escreveu para a Cidade do México e reservou uma passagem de Vera Cruz a Southampton. Embarcaria no último dia de Novembro.
Cipriano regressou a 17 e Kate participou-lhe o que tinha feito. Ele ficou a olhá-la, de cabeça um pouco à banda e com uma expressão de criança ajuizada, mas Kate foi incapaz de adivinhar o que lhe ia na alma.
- Vais-te embora já? - perguntou ele em espanhol.
A mulher percebeu então que estava ofendido. Quando se melindrava falava-lhe sempre em espanhol, nunca em inglês.
- No dia 30.
- E quando voltas?
- Quien sabe! - ripostou Kate.
Por uns minutos, Cipriano fitou-a com as suas pupilas negras imperscrutáveis. Estava a pensar que tinha o direito de a impedir que saísse do país, visto ser legalmente sua esposa. Nas profundezas dos olhos luzia a antiga cólera índia; depois surgiu uma leve mudança de expressão no rosto, quando a ira contida cedeu lugar à indiferença estóica, à velha indiferença de tantos séculos. Kate quase sentia as ondas sucessivas de sombra e frieza que percorriam Cipriano sem que ele mesmo desse por isso. E mais uma vez lhe estremeceu o coração o medo de perder o contacto com esse homem.
- Como quieras tu! - disse ele por fim.
Concedia-lhe a liberdade com a misteriosa indiferença do seu sangue e não faria mais esforços para a reter. Era o fatalismo dos da sua raça.
Conforme Kate previra, Cipriano tomou um barco e foi a Jamiltepec falar com Ramon.
A mulher ficou só, como de costume. Ocorreu-lhe que ela própria criara essa solidão. Não conseguia identificar-se com aquela gente, sentir-se à vontade fosse com quem fosse. Fechava-se sempre na sua personalidade.
Importava-lhe muito a reciprocidade sexual? Podia importar-lhe ainda mais se não a houvesse tido; mas tivera-a, e de maneira perfeita, com Cipriano. Sabia tudo a esse respeito. Era como se houvesse conquistado outro território, outro domínio da vida. E agora devia retirar-se para a toca da sua individualidade, com a vítima nos dentes.
De súbito, viu-se como os homens muitas vezes a viam: uma gata enorme, com os seus espasmos de volúpia e o gozo demorado do seu isolamento. Conhecia outras mulheres assim. Brincavam cheias de amor e familiaridade como um gato com um rato. Por fim devoravam o ratinho querido e reapareciam com a barriga repleta e uma voluptuosa sensação de força.
Algumas vezes o rato recusava-se a ser digerido, de que resultava prolongada dispepsia; ou então, como Cipriano, transformava-se numa espécie de cobra, que alçava a cabeça, olhava para trás e desaparecia num buraco, deixando-a confusa e destituída de poder.
Outra coisa que ela observava horrorizada. Uma após outra, as suas "amigas", as grandes amorosas, na idade de quarenta, quarenta e cinco e cinquenta anos perdiam todos os atractivos e ficavam umas corujas horrendas, procurando em volta a vítima cada vez mais rara. Como seres humanos deixavam de existir, metamorfoseadas em corujas elegantes e mexeriqueiras.
Kate era bastante inteligente para tirar proveito da lição. Estava bem que uma mulher cultivasse o seu ego, a sua personalidade. Estava muito certo que desprezasse o amor ou que com ele se entretivesse como um gato faz ao rato; isto é, brincar o mais tempo possível antes de o comer e saciar voluptuosamente o ego com a sua vítima.
"A mulher sofre mais com a supressão do ego do que com a do sexo", afirmou uma escritora, e talvez seja verdade. Mas olhai, olhai para as mulheres modernas de cinquenta anos, as que cultivaram o ego até ao extremo limite! São em geral criaturas que nos enchem de pena ou de repulsa.
Kate sabia tudo isto, e nisto pensava enquanto ali sozinha na sua vivenda. Tivera a sua liberdade, mesmo no México. Esses homens deixá-la-iam partir. Não estava prisioneira. E levaria consigo todos os despojos que ainda guardavam.
E depois? Sentar-se nos salões de Londres e ser mais uma coruja ao lado das outras? Arvorar um sorriso postiço e falar com voz
artificial?
"Não! - disse consigo. - O meu ego e a minha personalidade não valem esse preço. Prefiro desfazer-me deles em parte a ver-me reduzida a isso."
No fim de contas, quando Cipriano a acariciava toda ela parecia desabrochar. Era a força do sexo, que enchia o mundo de lascívia e sobre que ela não se atrevia a reflectir. O seu poder tornava-se maior do que a sua vontade. Por outro lado, quando estava só e abria as asas do seu ego e o espírito desferia voo, o mundo afigurava-se-lhe maravilhoso. Todavia, após uns instantes, desvanecia-se o esplendor, substituído por uma solidão amarga.
"Preciso de ambos - concluiu. - Não posso afastar-me de Cipriano nem de Ramon. Renovaram-me o sangue. Digo que são limitados, mas todos temos de o ser. Se tentamos ser ilimitados, tornamo-nos monstros. Sem Cipriano a afagar-me, a limitar-me e a submergir-me a vontade, tornar-me-ia uma velha horrível. Devo regozijar-me pelo facto de Cipriano me limitar com a sua vontade e o seu contacto ardente. Porque o que eu chamo a minha grandeza faz-me cair no vácuo desde que não haja a mão dum homem para me segurar. Ah, sim! Antes submeter-me do que ser uma mulher horrível."
Chamou o criado e foi através do lago num barco de remos. Era por uma bela manhã de Novembro. Nas escarpas das montanhas, a nordeste, as sombras tinham um tom azul muito puro. Por baixo, a vegetação começava a amarelecer. O lago, embora ainda cheio, principiava a baixar, e os jacintos-d'água vogavam à toa. No ar calmo viam-se pássaros voando. Alguns milheirais exibiam os seus talos secos, mas as flores de palo-blanco tinham já desabrochado e errava o perfume das acácias amarelas.
"Porque havia de me ir embora? - pensou Kate. - Porque havia de ver os autocarros na lama de Piccadilly na véspera do Natal e a multidão nos passeios molhados diante das lojas iluminadas? Mais vale ficar aqui, onde a minha alma é menos triste. Tenho de pedir desculpa a Ramon das coisas que lhe disse. No fim de contas, aqui há outra grandeza, com o som dos tambores e o grito de Quetzalcoatl."
Já ela distinguia o último andar da casa de Jamiltepec, semelhante a uma torre avermelhada, e a buganvília roxa pendente do muro, os cachos das flores de plumbago e a porção de rosas brancas.
- Están tocando - disse tranquilamente o barqueiro, erguendo para ela os olhos negros.
Já ouvira o som do tambor em Jamiltepec. Uma voz de homem se elevou na manhã clara.
O barqueiro levantou um remo, como se fizesse sinal. E assim que o barco penetrou na enseadazinha, veio um criado a correr ao longo do molhe. No ar soalheiro notava-se o cheiro das daturas e das rosas, e um silêncio profundo que nem o tambor nem o canto perturbavam.
- Don Cipriano está aqui? - perguntou Kate.
- Está - murmurou o criado, apontando para o balcão donde partia a voz do cantor. - Deseja que eu o informe da sua chegada?
- Não - respondeu Kate. - vou sentar-me um bocado no jardim, antes de subir.
- Nesse caso, deixarei a porta aberta - volveu o homem - e assenhora entrará quando quiser.
Kate instalou-se no banco de uma árvore, donde pendiam flores de trepadeira enroscada ali como uma serpente. Pôs-se a ouvir o canto. Ramon ensinava o novo hino a um dos cantores.
Não tinha muito boa voz o Quetzalcoatl vivo. Cantava baixinho, como se para si mesmo, mas com expressão simples e bela. Kate não conseguiu perceber a letra.
- Ya? - disse Ramon ao terminar.
- Ya, patrón! - respondeu o cantor.
E na sua voz forte e pura, este entoou o hino:
O meu caminho não é o teu e o teu não é o meu.
Mas vem, antes que nos separemos.
Cada qual por seu lado, dirijamo-nos à Estrela da Manhã
Para lá nos encontrarmos.
Não te aponto o meu caminho
Nem chamo por ti.
Mas a Estrela é a mesma para nós ambos
E a ambos nos atrai.
A cada qual o seu caminho, esse que esplende Na encruzilhada,
Que abre a sua chama como a porta de uma tenda Por onde, invisíveis, deslizamos.
Não pode um homem pisar como a mulher
Nem a mulher andar como o homem.
O espírito de cada um através das folhas de sombra
Se move como pode.
Mas a Estrela da Manhã e a da Noite Fixam tendas de fogo
Onde nos retinimos quais ciganos, sem saber Como é que vieram os outros.
Nada mais peço que me insinuar Na tenda do Espírito, e deter-me Na casa da chama bifurcada Como hóspede seu.
Fica aí comigo, esposa minha, Corporalmente. E que a flama nos envolva Qual uma rede.
Sede lá, homens, comigo,
Alcançai o lar.
Ride comigo, enquanto a mulher repousei,
Porque vale a pena.
O homem entoara o hino por várias vezes, parava, dir-se-ia esquecer-se, extinguia-se-lhe a voz pura e quente. Então a de Ramon, baixa e um tanto rouca, elevava-se com subtil intensidade, como se vinda do meio duma concha; depois, o tenor retomava o canto, que lhe corria no sangue como uma chama.
O mozo de Kate, ou seja, o seu criado, seguira-a ao jardim, e tinha-se sentado de pernas cruzadas, a certa distância, debaixo de uma árvore, de costas apoiadas ao tronco - sombra acocorada, vestida de branco. Os dedos dos pés saíam-lhe rijos e escuros das huaraches esburacadas, e o trancelim de palha do chapéu pendia-lhe junto à face trigueira. Quanto ao resto era tudo alvo, e as calças de linho apertavam-se-lhe nas coxas.
Quando o canto terminou, e o tambor deixou de rufar, e as vozes, num murmúrio, mal se ouviam, o mozo ergueu a cabeça e olhou para Kate. Brilhavam-lhe as pupilas negras, no rosto errava-lhe um sorriso tímido.
- Está muy bien, patrona? - perguntou, um pouco envergonhado.
- Muito bem - respondeu ela, como um eco fiel. Mas no seu coração debatiam-se conflitos diversos, e o criado sabia-o.
Parecia tão novo com aquele sorriso alegre, excitado, receoso! Havia nele qualquer coisa de perpetuamente infantil; mas era uma criança que, dum momento para outro, se podia tornar num selvagem- vingativo e brutal, um homem que nunca perdia a consciência do seu sexo. E Kate pensou mais uma vez que existiam várias maneiras de regressar à infância.
O criado, porém, continuava a espiá-la, de soslaio: queria ver se havia nela qualquer hostilidade secreta. Desejaria que concordasse com o hino, com o tambor e com tudo mais. Como uma criança, ansiava pela sua aquiescência; mas, se a senhora se mostrasse hostil, ele seria o primeiro a manifestar-se. Um julgamento adverso torná-lo-ia inimigo declarado.
Ah, os homens eram todos iguais!
Nessa ocasião, o rapaz levantou-se, com súbita agilidade, e ela ouviu a voz de Cipriano na varanda:
- Que é, Lupe?
- Está la patrona - respondeu o mozo.
Kate ergueu-se também e olhou. Viu a cabeça e os ombros nus do marido, em cima, no parapeito.
- Já lá vou - participou-lhe.
Vagarosamente transpôs os portões de ferro do corredor. Lupe, que a seguia, fechou-os atrás de si.
No terraço encontrou Ramon e Cipriano, ambos de tronco nu, que a esperavam em silêncio. Kate, embaraçada, explicou:
- Estive a escutar o novo hino.
- E-que lhe pareceu? - perguntou Ramon.
- Gostei.
- Sentemo-nos - propôs ele. E a recém-vinda deixou-se cair numa das cadeiras de verga. Cipriano ficou de pé, encostado à balaustrada.
Kate viera para declarar a sua submissão: dizer que já não queria ir-se embora. Mas, vendo os dois homens numa disposição muito quetzalcoatliana, não se decidia a aflorar o assunto. Tinha a sensação de ser uma intrusa. Não se compenetrava de que também pertencia à seita.
- Parece-me que não há Estrela da Manhã para nos reunir a todos três - observou, irónica mas um pouco trémula.
Sobre eles desceu um silêncio ainda mais profundo.
- Estou a ver que uma mulher é realmente de trop aqui junto de vocês ambos.
Hesitou um tanto ao dizer isto. Sabia que Cipriano ficava perplexo e melindrado quando ela escarnecia.
Ramon respondeu-lhe com uma doçura que vinha direita do seu coração.
- Então que há, prima?
com um tremor nos lábios, Kate replicou:
- Em verdade, não desejo deixá-los.
Olhando rapidamente para Cipriano, Ramon retorquiu:
- Bem sei que não deseja.
O tom suave e protector da sua voz fê-la revoltar-se de novo. com os olhos rasos de lágrimas, ela bradou:
- Afinal vocês não precisam de mim!
- Não, não, preciso de ti. Verdad, verdad! - exclamou Cipriano em voz baixa e contida, quase num murmúrio.
E, no meio das suas lágrimas, Kate pensava: "Como sou intrujona! Sei perfeitamente que sou eu que não os quero. Quero-me só a mim mesma. Mas posso iludi-los de modo que o não percebam."
Havia notado a paixão fálica e ardente na voz de Cipriano.
Coube a vez a Ramon de falar, e fê-lo em tom glacial:
- A Caterina é que não precisa de nós. Não se comprometa connosco. Atenda à sua própria preferência.
- E se ela me aconselhar a partir? - ripostou Kate, como um desafio, através de um resto de lágrimas.
- Então parta!
Kate recomeçou a chorar.
- Ah, eu bem sabia que não precisavam de mim. Mas Cipriano acudiu com persuasiva ternura:
- Não és dele! Ele não pode dizer nada.
- Isso é verdade - concordou Ramon. - Não me dêem ouvidos.
Levantando bruscamente a cabeça, no meio do seu pranto, viu-o afastar-se sem rumor.
Limpou a cara, recuperou a calma e, de olhos húmidos, fitou Cipriano. Este conservava-se muito direito, como um galo combatente. Nas pupilas negras brilhava-lhe um fulgor estranho.
Sim, Kate também tinha medo dele, desses olhos pretos inumanos.
- Não queres que me vá embora, pois não? - perguntou-lhe suplicante.
Espalhou-se no rosto do homem um sorriso lento, e um leve tremor lhe percorreu o corpo. E então, na sua voz de inflexões índias, muito suave, Cipriano disse-lhe em espanhol:
- Yo! Yo! - E as sobrancelhas erguiam-se-lhe numa expressão de espanto divertido. Ainda trémulo, concluiu: - Te quiero mucho! Mucho te quiero! Mucho, mucho!
As palavras soavam tão cariciosas, vinham-lhe tanto do seu sangue ardente, que a mulher se sobressaltou e disse:
- Não me deixarás partir!

XXV
Foi uma surpresa para Kate o casamento de Don Ramon dois meses depois do falecimento de Dona Carlota. A noiva tinha vinte e oito anos e chamava-se Teresa. Após o casamento, que se realizou civilmente e na maior intimidade, Ramon trouxe a nova esposa para Jamiltepec.
Conhecia-a desde pequena, pois era filha do proprietário da famosa hacienda de Las Jemas, situada a uma dúzia de milhas de Jamiltepec. Don Tomaz, pai da rapariga, fora grande amigo dos Carrascos. Morrera, porém, um ano antes, deixando a importante hacienda aos três filhos e confiando a Teresa a administração da quinta. Teresa era a mais nova. Os dois irmãos viviam a existência inútil e perdulária dos mexicanos, e por isso Don Tomaz, a fim de salvar a propriedade daquelas mãos nefastas, designara Teresa como administradora e obtivera o consentimento dos dois irmãos. Na verdade, os rapazes eram criaturas ociosas que, em vida do progenitor, nunca haviam mostrado o mínimo desejo de o ajudar na difícil gerência da quinta. Teresa fora a única. E durante a doença do pai, todas as fadigas da administração haviam recaído sobre ela, enquanto os irmãos gastavam o dinheiro e as forças nas orgias em que se deleitam os mexicanos de certa classe. No entanto, assim que o pai faleceu, os dois irmãos apareceram em casa cheios de arrogância, com a intenção de se tornarem hacendados. Pela simples força bruta afastaram a irmã do seu cargo, deram ordens contrárias às dela, escarneceram-na e uniram-se para a esmagar. Queriam relegá-la para o seu lugar de mulher, isto é, para uma espécie de escravidão a que, aos seus olhos, deviam pertencer as pessoas desse sexo.
Eram brutos, e como brutos, cobardes. E, como tantos mexicanos daquela categoria, condescendentes e prejudiciais para si próprios. Relacionaram-se com juizes e generais, exibiram-se em ricos trajes de charro e receberam em casa uma multidão de gente duvidosa.
Contra aquela indolência e brutalidade, Teresa nada podia fazer e conhecia bem a sua impotência. Os irmãos eram fracos, sensuais, belos à sua maneira, dissipadores, despreocupados, mas de sentimentos ferozes.
- Faz-te bonita e arranja um marido - aconselhavam-lhe. Aos olhos deles, o seu maior crime era não atrair os homens
com quem conviviam. O facto de nunca ter conhecido homem e não se haver ainda casado tornava-a quase odiosa. De que servia a mulher senão para uma vida de relaxamento e licenciosidade?
- Queres usar calças? - perguntavam-lhe, irónicos. - No, señorita, enquanto houver aqui dois homens. No, señorita, os homens é que usam calças, e as mulheres escondem o que têm debaixo das saias.
Teresa já estava habituada a estes insultos; contudo, sofria muito no seu íntimo.
- Queres viver à moda dos americanos? Então abala para a América, corta o cabelo e veste calças. Compra lá um rancho e arranja um marido que receba as tuas ordens.
Teresa consultou advogados, que se limitaram a erguer os braços ao céu. Foi então procurar Ramon, a quem conhecia desde pequena.
Para expulsar os irmãos da hacienda seria necessário intentar um processo dispendioso e de resultado incerto. Em vez disso, Ramon propôs-lhe que casasse com ele segundo um regime matrimonial em que ela disporia sempre dos seus bens.
- Nesta terra os homens desprezam as mulheres e não podem passar sem elas, o que representa um suicídio - disse Ramon.
O casal foi visitar Kate. Teresa era franzina, pálida, de farta cabeleira preta e grandes olhos negros. Apesar do ar calmo, notava-se-lhe certa independência e autoridade. Sofrera muitas humilhações da parte dos irmãos e tinha ainda os olhos pisados pelas lágrimas de amargura, indignação e cólera.
Agora, amava Ramon com todas as veras da sua alma. Isso era evidente. Fora ele que salvara da degradação a sua dignidade de mulher e lha havia restituído bela e intacta. Em troca, passou a conceder ao seu salvador uma admiração respeitosa e quase feroz.
Em relação a Kate mostrava-se tímida e um pouco distante, tal se receasse essa mulher branca, doutra raça, que viajara muito e possuía larga experiência da vida. com um vestido claro e um rebozo de gaze preta, estava sentada na sala de Kate, com as mãos trigueiras pousadas no regaço, o pescoço escuro muito direito, e desviando um pouco o rosto fino e bem modelado. A irlandesa achou-lhe uma aparência de costureirinha.
Mas Kate não deu fé do estranho poder autoritário que também emanava desse corpo moreno e esguio, nem do olhar penetrante e desconfiado que por vezes Teresa lhe dardejava. Alma de fogo num corpo delicado. Atitude cheia de reservas. De quando em quando, a boca parecia formular uma palavra em silêncio e nos lábios perpassava-lhe um sorriso constrangido. Nunca lhe desaparecia, porém, o fulgor dos olhos.
- Falas tão pouco, chica! - observou Ramon, com certa ternura.
Então os olhos dela cintilaram e a boca esboçou um sorriso.
Via-se bem que estava apaixonada, embebida num êxtase de amor, o que explicava a sua frieza perante Kate.
"Despreza-me - pensou esta - porque não sou capaz de amar como ela." E, por um segundo, Kate invejaria Teresa. Mas daí a pouco desdenhava-a: "Tipo de harém..."
Sim, Ramon adaptava-se bem ao papel de sultão. Era belo, no seu traje branco, muito sereno, com ar de paxá, mas ao mesmo tempo afável, atencioso - e com aspecto tão juvenil! Como um paxá, preparava um cacharolete de genebra, vermute e limão. Teresa espiava-o de esguelha, sem perder de vista Kate, sua possível inimiga, a mulher que falava aos homens no mesmo pé de igualdade.
Kate levantou-se para ir buscar colheres. Nesse momento, Ramon recuou da mesa baixa em que espremia o limão e colidiu de leve com a dona da casa quando esta passava. Kate reparou de novo como ele se esquivava a qualquer contacto com ela. A sua sensualidade natural afastava-o de Kate como uma chama se desvia perante uma corrente de ar. Ela corou, e Teresa viu o súbito rubor sob essa pele branca, e o clarão quase de ira que atravessou os olhos castanhos de Kate. Momento de evasão de dois cursos de sangue tão diferentes!
Teresa pôs-se de pé, aproximou-se de Ramon e, inclinando-se sobre os copos, perguntou com aquela afectação infantil própria das mulheres da sua raça:
- Que puseste aí?
- Olha ! - retorquiu ele. E, com a mesma infantibilidade dos homens do seu tipo, começou a explicar-lhe de que se compunha o cacharolete e deu-lhe a provar um pouco de genebra, numa colher.
- É tequila da pior - declarou Teresa.
- A oito pesos cada garrafa? - volveu o marido, a rir.
- Custa esse preço? Tão caro!
Ela fitou-o nos olhos, por um momento, e viu esse rosto tornar-se mais escuro, mais ardente, como se todo ele se derretesse ao senti-la perto de si. Teresa então ergueu a cabeça, orgulhosamente. Havia-o reconquistado.
"Manhas de harém!" pensou Kate. E experimentou certa impaciência ao verificar como o ilustre, prodigioso Ramon se deixava prender nas malhas de um ser tão insignificante. Sentia-se contrariada por ter assim consciência da presença física do homem, do seu corpo belo, dos seus ombros fortes, das suas pernas vigorosas. Dir-se-ia ter também de sucumbir ao fascínio e vir a fazer parte do harém daquele sultão.
Que estranha vontade possuía a pequenina mulher morena! Que subtil poder feminino num corpo que quase só tinha pele e osso! Teresa era capaz de engrandecer a glória do marido - ao passo que ela própria se tornava imperceptível, a não ser quanto ao fulgor tigrino dos seus grandes olhos pretos.
Kate observava admirada. Conhecera homens que lhe davam a impressão de a transformarem em rainha, de ter a cabeça nas estrelas e repousar o peito nas nuvens. Sabia o que era subir, subir, subir até encher o universo com a sua feminilidade.
Via agora, porém, o contrário. Quem tinha poder sobrenatural era essa criatura pequenina, que fazia maior Don Ramon, enquanto ela se diminuía e ficava invisível, excepto no que respeitava aos olhos. Ele, como um sultão, como um fruto sazonado ao sol, tomava uma aparência extraordinária e imponente; e então, por algum poder misterioso do seu corpo trigueiro, a frágil Teresa fazia-o ainda mais completo.
Era o que Ramon queria, e Kate, percebendo-o, sentia-se irritada. Parecia-lhe odioso aquele macho triunfante, exasperava-a aquela rapariga ardente que só pensava em exaltar o homem.
ah, o poder oculto da mulher trigueira! Kate chamava àquilo harém e prostituição. Sim, era a atitude da escrava. Que pretendia dele essa criatura senão o sexo, como uma prostituta?
Pois não era degradante para uma mulher semelhante espécie de amor? E não tornava o homem fraco, sensual, ou odiosamente tirânico?
No entanto, já duma coisa Kate se convencera: que a chave da vida, e da continuidade da vida, residia nas relações do homem e da mulher. A união completa dos dois representava a vida presente e futura; dessa fusão surgia uma vida nova.
Mas tais relações necessitam de equilíbrio, e TereSa destruía-o juntando na balança o seu peso ao do homem.
Ramon não quisera Kate. Possuía agora o que desejara: aquela criaturinha escura, tão servil e orgulhosa do seu poder. Só quisera Kate para camarada, camarada inteligente, Não para mulher. Preferira essa viborazinha de Teresa...
Cipriano, esse desejava Kate. O general, o militar empertigado desejava Kate, mas só por momentos. não se importava casar realmente com ela; o que lhe interessava eram os instantes passados a seu lado. Kate tinha de lhe conceder esses instantes, e em seguida ele tornava a partir para junto das suas tropas. com isso se contentava. E ela também. Assim, ficava senhora da sua existência. Não tinha feitio para andar de roda dum homem a excitar-lhe o sangue, a estimular-lhe o ardor!
Levantou-se e foi ao quarto buscar um livro que prometera a Ramon. Não podia suportar mais tempo a exibição do amor dele por Teresa. Ah, aquele sorriso néscio estampado no rosto do homem, o brilho estranho dos olhos, o aprumo orgulhoso do corpo!
Eis como eram os dessa raça. Selvagens, com o insuportável fluido sensual dos índios e aquela maneira primitiva de se dissolver numa horrível confusão de desejo; com a presunção da sua virilidade insolente e inesgotável.
O pior era que essa força cósmica que ela até aí só conhecera nos olhos azuis dos homens loiros (e que tornava rainhas as respectivas mulheres, ainda que eles as detestassem por fim), essa força declinava agora nos olhos azuis e nascia nas pupilas pretas. As de Ramon, naquela ocasião, luziam de orgulho, poder e desafio. E o mesmo notava Kate nos olhares rápidos de Cipriano. A força do mundo esmorecia nos homens loiros, a sua supremacia abandonava-os para renascer nos de cor escura.
Joachim, o ser inquieto, inteligente e sensível, que era capaz de penetrar na alma de Kate e contemplá-la com os seus olhos azuis, morrera à vista da mulher. Se ela pudesse excitar-lhe o sangue, como Teresa fazia a Ramon, nunca ele teria morrido. Mas seria impossível. Cada um é como é. E cada raça, também. Teresa bateu timidamente à porta do quarto.
- Posso entrar?
- Entre! - respondeu Kate, endireitando-se e deixando as rimas de volumes em volta da mala dos livros.
O aposento era amplo e através das janelas rasgadas via-se o pátio e o jardim soalheiro, mangueiras de troncos lisos como trombas de elefantes, ervas reverdecidas pela chuva e galinhas a esgaravatar a terra debaixo das folhas esgarçadas das bananeiras. Um pássaro vermelho chafurdava no tanque, abrindo e fechando as asas escuras sobre o corpinho escarlate.
Teresa, porém, olhava para o quarto, não para fora. Sentiu o cheiro de cigarros, cujas pontas enchiam um cinzeiro de ágata. Notou os livros em desordem, as jóias espalhadas, a tapeçaria persa pendente atrás da cama, a colcha magnífica, os vestidos de seda e de veludo colocados sobre uma arca, os xailes de longas franjas cuidadosamente dobrados, os sapatos espalhados no chão, brancos, cinzentos, amarelos, castanhos e pretos, e os belos castiçais chineses.
Teresa parecia fascinada por tudo aquilo.
- Que linda! - disse, tocando na colcha sumptuosa.
- Foi uma amiga que a fez e ma ofereceu, em Inglaterra. Teresa observava tudo com espanto, em especial as jóias dispersas no toucador.
- Não gosta dessas pedras encarnadas? - perguntou Kate, ajoelhando de novo para arrumar os livros e olhando o pescoço moreno pendido sobre as jóias. Que ombros frágeis e que pele acetinada, naquele vestidinho branco! E aquela cabeleira negra, segura por travessas de tartaruga! No conjunto, uma rapariguinha humilde e insignificante. Mas Kate bem sabia que Teresa não era insignificante nem humilde. Naquele corpo franzino havia um estranho poder que despertava o ardor num homem e o exultava e, de certa maneira, o guardava só para si. O eterno apelo da carne...
Na mesinha de costura estava um pedaço de musselina que Kate comprara na índia e não sabia em que aproveitar. A cor, espécie de amarelo-pêssego, não se harmonizava com o seu tom de pele. Teresa apalpou o tecido entremeado de fios de ouro.
- É organdi?
inquiriu.
- Não, é musselina feita à mão. Ofereço-lha. A cor vai-me mal, e a si deve-lhe ir lindamente.
Ergueu-se e dispôs o tecido de roda do pescoço bronzeado de Teresa. No espelho, esta viu-se envolta na bela musselina e os olhos brilharam-lhe de prazer.
- Ah, não! Não posso aceitar!
- Porquê? Não condiz bem comigo. Faz agora um ano que a tenho aí. Até pensei em cortá-la para fazer cortinas. Fique com ela.
Kate talvez fosse arrogante, e até cruel, na sua maneira de oferecer.
- Não quero privá-la...
- Aceite, peço-lhe.
Ramon apareceu no limiar e relanceou o quarto e as duas mulheres.
- Olha! - disse Teresa, embaraçada. - A señora quer dar-me esta musselina indiana. - Voltara-se timidamente para ele, com o tecido desdobrado em roda do pescoço.
- Fica-te muito bem - declarou Ramon, contemplando-a.
- A señora não devia oferecer-me...
- Se to dá é porque faz gosto nisso.
- Então - concluiu Teresa, virando-se para Kate - muito e muito obrigada.
- Não tem de quê!
- Ramon acha que me vai bem...
- Na verdade, vai-lhe a matar - declarou Kate, dirigindo-se agora a Ramon. - O tecido foi feito na índia para alguém com aquela cor trigueira. Há-de condizer admiravelmente com ela.
- É muito bonito - concordou Ramon.
com o olhar, percorria o quarto, examinava os diferentes objectos que ali estavam, vindos de todas as partes do mundo, e até as pontas de cigarro na taça de ágata: luxo, desordem, e algo de esterilidade da mulher emancipada.
Kate não sabia em que é que ele pensava. Mas, por seu turno, reflectia: "Ora aí está o homem que eu defendi naquele terraço, que eu vi com um buraco nas costas, nu e inconsciente. Nesse momento não se parecia com um sultão."
Teresa devia ter-lhe adivinhado os pensamentos, porque disse,
olhando para Ramon:
- Sem a señora, Ramon teria morrido. Nunca me esquecerei...
- Não falemos nisso - atalhou Kate. - O destino tece-as.
Eu não alterei nada.
- Foi o próprio destino, señora!
- Não quer vir passar uma temporada connosco em Jamiltepec? - perguntou Ramon. - Agora já tenho uma dona de casa.
- Sim, vá! - insistiu Teresa.
- Ela precisa de uma amiga - explicou o marido.
- Preciso, é verdade. Nunca tive nenhuma a valer desde que deixei o colégio, ainda pequena...
Kate duvidava que pudesse ser para Teresa uma amiga a valer. E cogitava no que pretenderiam, de facto, aqueles dois - e o que pensariam dela.
- Pois sim, terei muito gosto em passar uns dias...
- Óptimo! - exclamou Teresa. - Quando deverá ser? Combinaram o dia.
- E escreveremos a canção de Malintzi - disse Ramon.
- Não faça semelhante coisa - acudiu Kate vivamente.
Ele olhou-a com ar pasmado, como se não percebesse logo, um ar que lhe era habitual. Por instantes, Kate poderia supor ter-lhe dado a impressão que um fantasma produziria se aparecesse a uma criança.
Em Jamiltepec, as duas mulheres entretiveram-se a talhar vestidos para Teresa na peça de musselina cor de ananás. Para senhora casada, o guarda-roupa de Teresa era bastante modesto: só possuía trajes pretos, que lhe davam um ar infeliz, e alguns brancos já antiquados. Até aí só vivera para o pai (que tinha bons livros acerca do México e toda a vida escrevera sobre a história do estado de Jalisco) e para dirigir a sua hacienda. Esta, chamada de Las Jemas, era a única que não fora destruída durante as revoltas que se seguiram à fuga de Porfirio Diaz; Teresa orgulhava-se bastante deste facto.
O seu carácter assemelhava-se muito ao de uma freira, talvez por se tratar de uma pessoa profundamente apaixonada e as paixões profundas serem mais para se esconder do que para exteriorizar nos contactos quotidianos.
Kate, provando-lhe o vestido sobre os ombros morenos, tornou a admirar a estranha macieza daquela pele escura e o pesado volume dos cabelos negros. A família dos Romeros, a que Tereza pertencia, estabelecera-se no México logo nos primeiros tempos da conquista.
Que lhe fizesse mangas compridas, sugeriu. E acrescentou, ocultando um pouco envergonhada a magreza daqueles membros trigueiros:
- Tenho os braços tão delgados! Não são bonitos como os
seus.
Kate, mulher de quarenta anos, tinha-os fortes e alvos e toda ela
era bem constituída.
- Sim - repetiu Teresa -, compridas até aos punhos.
A outra assim fez, achando que, na realidade, era o que mais convinha àquela natureza.
- Aqui os homens - explicou a dona da casa - não gostam
de mulheres magras.
- Não importa o que os homens pensam - sentenciou Kate. - Julga que Don Ramon gostaria que fosse gorda como uma
galinha?
Teresa fitou-a com os seus olhos pretos, grandes e brilhantes -
tão vivazes e, de certa maneira, fugidios.
- Quem sabe! - exclamou. E, no seu sorriso rápido, malicioso, via-se que não desgostaria de ser, às vezes, como uma galinha
gorda.
Presentemente Kate conhecia mais do que nunca a vida interior duma hacienda. Quando estava em casa, Ramon consultava diariamente o feitor; Teresa, porém, aliviava-lhe esse trabalho e já se ocupava bastante da propriedade. Em geral, ele andava por fora, ou para ir à Cidade do México, ou a Guadalajara e mesmo a Sonora. Todos o conheciam no país e o seu nome tornara-se célebre. Mas, debaixo desse culto que os compatriotas lhe prestavam, Kate adivinhava uma animosidade latente. Talvez preferissem aniquilar os seus heróis a elevá-los temporariamente às culminâncias da glória. O momento que mais apreciavam era o da queda do ídolo.
Para Kate, sempre céptica, deviam eles andar afiando o gume com que o atingiriam no peito, quando o herói se tornasse demasiadamente incómodo. É claro que precisavam da anuência de Cipriano, e Cipriano era um diabinho que os mexicanos temiam deveras. Cipriano, por então, conservava-se fiel - para com Ramon e para consigo mesmo. Representava o papel de Huitzilopochtli e Ramon o de Quetzalcoatl. Eis uma verdade simples e evidente para o general, que mantinha o seu exército pronto para o que desse e viesse. O próprio presidente seria incapaz de prescindir de Viedma, apesar de ser também um homem destemido.
- Qualquer dia - declarava Cipriano - poremos Quetzalcoatl na Catedral de Puebla, e Huitzilopochtli na da capital, e Malintzi na de Guadalupe. Não falta muito, Ramon.
- Faremos com que esse dia chegue - respondia Ramon.
Mas Ramon e Montes sofriam ambos com a profunda e diabólica animosidade do país, manifestada no próprio silêncio da população. Era sempre assim, fossem quais fossem as mãos em que o poder caísse: os Mexicanos pareciam destilar ódio oculto, um ódio demoníaco que lhes aviltava a alma; um ódio cujo único fim consistia em frustrar todos os planos.
Aí estava o dragão do México, que Ramon teria de combater. Contra o mesmo inimigo devia lutar o presidente Montes, e isso arruinava-lhe a saúde. Igualmente Cipriano, mas este desenvencilhava-se melhor. Os soldados apoiavam-no, com tambores e danças de roda das fogueiras. E o general consolidava de dia para dia a sua posição.
Ramon, na sua província, também se sentia seguro. Era o chefe, e, com o seu esforço e energia, lograva dominar qualquer veleidade de revolta. Aterrorizava com o mistério da vida, continha a gente em respeito pela fascinação que exercia. Nos seus domínios, considerava-se forte. Mas fora daí, e em especial na Cidade do México, aquela invisível e subtil má vontade do povo dir-se-ia fazê-lo sangrar, sangrar imensamente. E também a voracidade dos estrangeiros, aves de rapina que rondavam a capital cosmopolita.
Durante a ausência de Ramon, Kate fez companhia a Teresa. As duas mulheres tinham isto de comum: achavam que era melhor apoiar um homem corajoso do que fazer papel de intrometidas e importunas. Isso as unia. A profunda convicção de que deviam ser fiéis aos respectivos maridos ligava intimamente a mulher de Cipriano à de Ramon.
Estava quase no fim a estação das chuvas, embora se pudessem prever aguaceiros ocasionais para Setembro ou mesmo Outubro. Entretanto o belo Outono mexicano surgira na terra, como uma espécie de Primavera ao inverso. Vastos espaços se cobriam de flores brancas e cor-de-rosa, estranhos arbustos silvestres floresciam também, duma maneira fantástica, brilhavam à luz florestas inteiras de girassóis; o céu estava de um azul puríssimo, e, nas terras encharcadas da última chuva, a claridade do dia reverberava intensa.
O lago enchera-se mais, povoando de plantas aquáticas todas as suas margens. Vinham aves imigradas do Norte, nuvens de patos bravos que pareciam poeira no ar e depois polvilhavam a água como raminhos de erva: colimbos, grous, gaivotas brancas dos mares interiores, tal se o mistério dos regimes setentrionais se deslocasse para o Sul. Errava em terra o cheiro de água, que produzia uma sensação calmante - tanto mais que Kate supunha ter origem na aridez do solo parte do horror que lhe causava o povo mexicano. Se houvesse sempre uma gota de água na atmosfera e uma neblina sobre as árvores, desapareceria dos corações humanos aquela maldade inexprimível.
Kate ia muitas vezes a cavalo, com Teresa, ver os campos. A cana-de-açúcar, nos vales, crescia muito verde e muito alta, e os peóns começavam a cortá-la com os seus nwchetes, que pareciam espadas, e enchiam os carros de bois que as transportavam à fábrica de Sayula. Nas vertentes áridas das colinas, avultava na sua rigidez férrea a espinhosa planta da teqnila, que é uma espécie de agave. E nos cactos rijos abriam flores maravilhosas, belas de mais para tão sinistra planta. Através dos campos viam-se molhos de vagens apanhadas dos feijoeiros e abóboras dum tamanho incrível. Entre as folhas emurchecidas pendiam tomates e pimentões. Ainda se erguiam pés de milho com espigas tenras. Como a banana era pouca, as crianças colhiam toda a fruta que encontravam para fazer doce. Teresa, para esse efeito, aproveitava até os últimos figos e pêssegos. Das mangueiras suspendiam-se frutos amarelos e maduros, mas na maior parte eles estavam verdes e tombavam pesados como testículos de toiro.
Era Outono no México, com patos bravos na água, e caçadores com espingardas, e rolas nas árvores. Outono do México, início da estação seca: céu mais alto, azul mais pálido, poentes de rara transparência doirada. Os bagos de café avermelhavam-se nos arbustos contorcidos debaixo das árvores maiores, e as buganvílias, de tons roxos, eram tãoespessas que se podiam mergulhar nelas os braços.
Teresa cuidava de tudo e Kate ajudava-a. Se estava um peón doente numa das cabanas, se era preciso separar os enxames de abelhas nas colmeias debaixo das mangueiras, fazer compotas, tratar do jardim, dos vitelos, do fabrico de manteiga ou de queijos, Teresa a tudo isso atendia acompanhada de Kate. E esta admirava-se da vontade firme e constante, que tinha de ser exercida a todo o momento. Tudo corria bem graças a um poderoso esforço de vontade. À mínima fraqueza do patrão as coisas desandariam e seria a ruína da propriedade.
Jamais um desfalecimento, sempre a vontade tenaz.
Ramon regressou, numa tarde de Novembro, de longa viagem a Sonora. Viera por terra desde Lepic, e, por duas vezes, encontrara-se retido pelas inundações; não era vulgar chuvas tão tardias. Mostrava-se fatigado e com ar ausente. Kate sentiu um baque no coração enquanto comentava para si mesma: " Tão longínquo, que até parece encaminhar-se para a morte."
As nuvens cobriam o céu novamente, relampejava no horizonte, mas tudo estava silencioso. Kate retirou-se cedo e foi até à extremidade do terraço sobranceiro ao lago. Só a claridade intermitente dos relâmpagos iluminava a noite escura e, num desses breves clarões, viu Teresa sentada junto do muro do terraço descoberto; tinha a cabeça de Ramon deitada no regaço e acariciava-lhe lentamente os bastos cabelos pretos.
Kate sobressaltou-se, e disse num murmúrio:
- Desculpem! Não sabia que se encontravam aqui.
- Quis estar cá fora, ao ar livre! - explicou Ramon, soerguendo-se a custo.
- Não se mexa! - pediu Kate. - Foi estupidez minha ter vindo aqui. O senhor está cansado.
- Sinto-me realmente cansado - volveu ele, deitando-se outra vez no chão. - Aquela gente chega a convencer-me de que estou esgotado. Por isso voltei para Teresa.
- Sim - retorquiu Kate. - Não se é impunemente o Quetzalcoatl vivo. É natural que o esgotem. Mas valerá a pena ser devorado por eles?
- Tem de ser assim. Há-de-se verificar a mudança e é um homem que a deve fazer. Às vezes chego a desejar que não seja eu.
- Também acho. E Teresa igualmente. Até penso se não será preferível continuar a ser apenas um ser humano.
Teresa, entretanto, calava-se.
- Faz-se o que é preciso fazer - disse Ramon. - No fim de contas, não se deixa de ser homem. E, se daí resultar ferimento... à la guerre comme à la guerre!
Aquela voz, no escuro, parecia a de um fantasma.
- Ah! - fez Kate, suspirando. - Gostava de saber o que é um homem que se expõe a tantos horrores por causa dos seus semelhantes.
Houve um momento de silêncio.
- O homem é uma coluna de sangue dotada de voz. Quando a voz se extingue e fica apenas a coluna, tanto melhor.
Retirou-se ela para o seu quarto. Ia triste, levando ainda nos ouvidos o som daquelas palavras melancólicas. Dir-se-ia que Ramon tinha dentro de si uma ferida aberta. Era como se Kate a sentisse, nas suas próprias entranhas.
Se ele morresse, em resultado de tanto esforço? Então, pensou, Cipriano ficaria só e tudo estaria acabado.
Por que razão devia um homem afadigar-se de tal maneira por causa dum povo estúpido e mau? Se o mundo corria à desfilada para a sua perdição, deixá-lo, isso era lá com ele.
Pensou em Teresa, que consolava Ramon sem dizer nada. E pensou em Ramon, assim ferido e desesperado! Coisas horríveis, na verdade. Ela devia intervir, defendê-lo contra si próprio. Porque haviam os homens de empreender esses combates inúteis, dos quais voltavam para casa a fim de se restabelecerem junto das suas companheiras?
Para Kate, essa luta não merecia sequer as honras de um ferimento. Que tão antipático mundo terminasse de vez, se tal era o seu destino, e quanto mais depressa melhor! Kate não levantaria um dedo para o impedir. Que cada qual vivesse a sua preciosa vida, que é só uma - e fosse tudo mais para o diabo!
Tentaria impedir que Ramon continuasse naquela senda suicida. Deixá-lo ser o Quetzalcoatl vivo quantas vezes quisesse; mas não tinha o direito de se expor à maldade demoníaca do povo.
Contudo, ele insistia nisso, como Joachim fizera na Irlanda. Teresa, com a sua firmeza doce e calma, talvez lhe fosse de melhor auxílio do que Kate com as suas recriminações.
"Ah! Ainda bem que Cipriano é militar. As feridas que sofrer não lhe atingirão a alma." Mas sabia que, sem Ramon, Cipriano não seria ninguém e nem chegaria a interessar-lhe.
De manhã, Teresa compareceu sozinha ao primeiro almoço. Parecia muito tranquila; dissimulava os sentimentos sob o seu ar orgulhoso de mulher morena.
- Como vai Ramon?
- Está a dormir.
- Ainda bem. Pareceu-me muito em baixo ontem à noite.
- Sim... - Teresa fitou a outra com os seus grandes olhos negros cheios de coragem e de lágrimas contidas.
- Não compreendo que um homem se sacrifique àquele ponto. É inadmissível.
Teresa continuava a fitá-la.
- Ele não se sacrifica - replicou. - Sente que tem de proceder assim. E o meu dever é ajudá-lo.
-? Nesse caso, sacrifica-se por ele, o que também é para mim inadmissível.
- Ah, não! - retorquiu Teresa, com uma onda de sangue a ruborizar-lhe as faces. - Não me sacrifico por Ramon. Se posso dar-lhe... sono... quando dele necessita, isso não representa sacrifício. Representa... - Não terminou a frase, e o rubor acentuou-se-lhe.
- Representa amor, bem sei - volveu Kate. - Mas também a esgota.
- Não é só amor! - exclamou Teresa altivamente. - Eu podia amar outros homens, há muitos que merecem afecto. Mas Ramon... A minha alma pertence-lhe. - Afloraram-lhe lágrimas aos olhos. - Prefiro não falar deste assunto - acrescentou, pondo-se de pé.
E saiu do quarto, deixando Kate um tanto perturbada - e com desejo de voltar para Sayula.
Mas uma hora depois Teresa reapareceu e, apoiando no braço de Kate a mãozinha fresca e macia, disse-lhe em tom suave:
- Desculpe se fui indelicada.
- Eu é que não tenho razão...
- Sim, julga que em tudo isto só existe amor. O amor é uma parte mínima do resto.
- E que é o resto?
- Como posso dizer-lhe, se desconhece? Mas pensa que Ramon não é para mim mais do que um amante?
- Um marido! - emendou Kate. Teresa sacudiu a cabeça com impaciência.
- Ah, esses termos, que tão pouco significam! Não é apenas um marido! É a minha vida!
- Acho preferível cada qual viver a sua vida.
- Não. A vida é como uma semente. De nada serve se não a dermos. Sei que é assim; guardei durante anos a minha vida para mim só. Quando se a guarda muito tempo, ela morre. Quis oferecê-la a Deus, mas não consegui. Disseram-me que se eu casasse com Ramon e tomasse parte na heresia de Quetzalcoatl ficaria condenada aos tormentos eternos, mas alguma coisa me segredava que isso não era verdade e que Ramon necessitava da minha alma. Ah, señora!
- Um sorriso iluminou a face pálida de Teresa. - Dei a minha alma a Ramon. Perdi-a por sua causa. Que mais posso dizer?
- E a alma dele?
- Está aqui. - E Teresa espalmou a mão no seio. Kate ficou um momento calada.
- E se ele a atraiçoar? - perguntou então.
- Ah, señora, Ramon não é apenas um amante. É um homem honesto e não trairá o seu próprio sangue. Concedeu-me a sua alma em troca da minha, e eu lutarei até ao último sopro de vida para o apaziguar quando volta para mim esfrangalhado e com necessidade de sossego. - Teresa proferiu tudo isto com veemência, e depois acrescentou num murmúrio, como se falasse a si mesma: - Graças a Deus, não tenho uma vida só minha. Dei-a a um homem que é mais que homem, como se diz na linguagem de Quetzalcoatl. Por isso ela não morrerá em mim como um pássaro na gaiola... Oh, señora! Quando ele parte para Sinaloa e para a costa ocidental, a minha alma acompanha-o. E Ramon não se esquece que a minha está com ele, tenho a certeza! Não, señora, não deve criticar-me nem
lastimar-me.
- No entanto, acho melhor cada qual guardar a sua alma e ser
responsável por ela.
- Sim, se fosse possível! - replicou Teresa. - Mas não se pode guardar a alma dentro de nós porque acaba por morrer... Enquanto o homem não nos dá a sua semente, a nossa é estéril, e a dele nada vale sem a mulher. O mesmo acontece à alma. Enquanto a não damos a um homem e ele a não toma, nenhum valor tem. E depois de ele a tomar, toda inteira, ninguém fala de traição! Um homem só atraiçoa quando se lhe deu uma parte e não tudo, e a mulher só atraiçoa quando aceita dela apenas uma parte e não o todo. Mas quando de um lado se deu tudo e tudo se aceitou, a traição não existe. Sou o que sou para Ramon e ele é o que é para mim. Não importa o que fizer. Não importa que esteja longe.
Kate não gostava de receber lições daquela criaturinha; era mulher da sociedade, bela e com experiência da vida. Estava acostumada a que lhe rendessem preito. As demais do seu sexo chegavam a temê-la, porque era decidida e impiedosa.
Teresa também a receava um pouco como senhora da sociedade, mas não como mulher. Entrincheirada na sua almazinha orgulhosa, Teresa considerava Kate uma dessas pessoas do mundo exterior que têm muito brilho mas que não estão muito seguras dos segredos da sua personalidade. Toda a beleza e crueldade feminina de Kate era coisa secundária para Teresa em comparação com o profundo e tranquilo amor que a ligava a Ramon.
Sim, Kate habituara-se a olhar as outras mulheres como seres inferiores. No entanto, os papéis inverteram-se de súbito. Embora soubesse que Ramon era superior a Cipriano, viu-se constrangida a pensar se Teresa não seria também superior a ela.
Teresa? Mais importante do que Kate? Que surpresa! Não podia ser verdade.
Contudo, assim era. Ramon desejara casar com Teresa e não com Kate. E o ardor desse enlace ela via-o tanto nos olhos de Ramon como nos da mulher: um ardor que não existia nos olhos de Kate.
O casamento desta com Cipriano não parecia sério nem definitivo. Quando Cipriano estava ausente, ela recuperava a sua antiga individualidade. Só com o general presente é que se compenetrava da sua submissão.
Quando Teresa voltou a fitá-la com aquele seu fulgor do olhar, misturado de indignação, Kate sentiu-se desanimada e arrependida - decerto pela primeira vez na sua existência.
Sabia que Teresa sentia certa aversão por ela: era uma estrangeira branca que falava tão inteligentemente como um homem e nunca dera a sua alma; nem admitia que a pudesse dar. Todas essas damas bem vestidas, da América ou da Europa, guardavam a alma para si mesmas, numa espécie de avareza.
Teresa estava resolvida a não deixar que a outra a tratasse indefinidamente como um ser inferior. Assim procediam todas as estrangeiras para com as mexicanas, porque se consideravam emancipadas. E, para com Ramon, mostravam certa condescendência.
Mas Ramon... Bastava que ele as fixasse para que elas se sentissem reduzidas a nada, apesar de todo o seu dinheiro, experiência e ares dominadores. Raças dominadoras! Que esperassem! Ramon era um desafio a tudo isso. Que o dominassem, se fossem capazes de tanto!
- Não dormiu? - perguntou Teresa a Kate.
- Não muito bem.
- Está com olheiras.
Kate alisou a pele, desconfiada, em volta dos olhos.
- É o que nos faz o México. Não é fácil conservar a juventude neste país. A senhora é que está com bom parecer.
- Sinto-me perfeitamente.
Irradiava de Teresa uma frescura nova, algo de frágil e subtil que ela não precisava de defender contra outra mulher.
- Agora que Ramon já veio, é altura de eu regressar a casa -
declarou Kate.
- Porquê? Faz empenho nisso?
- Acho preferível.
- Nesse caso irei consigo até Sayula. De barco, não é verdade?
Kate arrumou as suas coisas. Dormira mal. A noite fora tenebrosa, cheia de horrores. Lembrara-se de Ramon atacado pelos bandidos e do seu ferimento nas costas. Tivera-a acordada durante horas o barulho ameaçador da chuva.
Percebia o desdém de Teresa pela sua maneira de considerar a
vida conjugal.
- Também eu fui casada - disse Kate. - com um homem
excepcional, a quem amei.
- Ah, sim... E ele morreu.
- Quis morrer.
- Ah, sim... quis morrer.
- Fiz o possível para evitar que se estafasse.
- Fez?
- Que mais estava na minha mão? - redarguiu Kate, num
assomo de ira.
- Se lhe houvesse dado a sua vida, ele não quereria morrer.
- Eu dei-lhe a minha vida. Amava-o. Ah, nem faz ideia! Mas ele não quis a minha alma. Achava que eu devia guardá-la para
mim.
- Os homens são assim quando são apenas homens. Mas,
sendo ardentes e bravos, então querem que as mulheres lhes dêem a alma e guardam-na dentro de si. Sei o que é. Sei onde a minha alma está. Nas entranhas de Ramon, assim como a sua semente está nas minhas entranhas, entranhas de mulher. Ele é um homem e uma coluna de sangue; eu sou uma mulher e um vale de sangue. Digo-lhe isto porque lhe salvou a vida e portanto estamos todos ligados: Caterina, eu, Ramon e Cipriano. Mas não me julgue mal. Aquela outra espécie de mulheres, as que conservam a sua alma, que é senão fraqueza?
- E os homens?
- Se são ardentes e bravos, confortam as nossas entranhas, Caterina!
Kate baixou a cabeça obstinada, furiosa por ter sido apeada do seu pedestal. Que coisa miserável, pensou, isso de uma mulher viver apenas por amor de um homem! Só para lhe enviar a alma para dentro do seu precioso corpo... E trazer no ventre a sua semente preciosa... Quanto a ela própria, nada.
Pretendeu consumar a sua indignação, mas não foi bem sucedida. Talvez no fundo, e contra sua vontade, invejasse Teresa, os seus olhos negros cintilantes, a sua firmeza selvática. Invejava-lhe os dedos delicados, e, acima de tudo, a consolação de ter um homem tão profundamente ligado a si.
A manhã estava quente depois da chuva. As rãs coaxavam, frenéticas. Na outra banda do lago as montanhas pareciam azuis-escuras, com farrapos de nevoeiro a arrastarem-se através das árvores e nuvens brancas a coroarem os picos. Nas águas barrentas navegava um barco de vela solitário.
- Hoje, tudo isto me lembra a Europa, o Tirol - disse Kate, comovida.
- Gosta muito da Europa? - perguntou Teresa.
- Muito.
- E tenciona voltar para lá?
- Penso regressar em breve, para ver minha mãe e os meus filhos.
- Eles reclamam-na?
- Sim, respondeu Kate, um pouco hesitante. E em seguida ajuntou: - Não muito. Mas quero tornar a vê-los.
- Porquê? Tem saudades deles?
- às vezes. - E os olhos de Kate arrasaram-se de água. O barco avançava sem rumor.
- E Cipriano? - volveu Teresa, a medo.
- Ah!, exclamou Kate. -Esse é para mim como um estranho.
Teresa ficou uns momentos calada.
- O homem é sempre estranho para a mulher, creio eu - rematou ela. - E porque não havia de ser?
- Mas a senhora não tem filhos.
- Tem-nos Ramon, E ele costuma dizer: "Continuarei a lançar pão à água e se meus filhos acabarem por se aproximar de mim ficarei contente." Não é. o seu caso?
- Não! - respondeu Kate. - Sou mulher, não sou homem.
- Se eu tiver filhos - declarou Teresa - também lançarei pão à água para os atrair, e espero não os reter ciosamente na minha rede. Assusta-me o amor, é tão pessoal! Devemos deixar os pássaros voarem com as suas asas e os peixes nadarem à vontade. a manhã concede-nos mais do que o amor. E eu quero ser sincera para com a manhã.

XXVI
Kate estava satisfeita por voltar à sua casa e por se encontrar sozinha. Sentia que se operava nela uma grande mudança - mudança que a poderia matar se se realizasse violentamente. Era o fim de qualquer coisa e o princípio de outra: no mais profundo da sua alma e nas suas entranhas. Os homens, Ramon e Cipriano, e o México, seriam a causa daquela modificação. Chegara o momento. Entretanto, se a evolução fosse brusca de mais, e rápida em excesso, poderia revelar-se fatal. Por isso tinha necessidade de se isolar, de tempos a tempos.
Sentava-se na margem durante horas, à sombra dum salgueiro verde, cuja cortina de folhas descia até à água. O lago mostrava-se mais alto e mais cheio que de costume, e tinha também maior calma e maior mistério. Errava o cheiro dos nenúfares que emurcheciam depois de haverem dado à costa. As distâncias pareciam prolongadas. Lembravam estampas japonesas os outeiros mais próximos, salpicados de verdura. Carros de grandes rodas traziam à aldeia a cana-de-açúcar cortada; puxavam-nos a cada um, oito bois que baloiçavam lentamente a cabeça de enormes chifres, enquanto um peón, à frente, os conduzia com o aguilhão poisado no jugo. Tão pesados, tão vagarosos e contudo fáceis de guiar!
Experimentava, no México, uma sensação esquisita, como se estivesse em presença duma humanidade pré-histórica, gente de olhos escuros de antes do período glaciário - quando o mundo era mais frio, os mares vazios e diferente a constituição da terra; quando as águas, solidificadas, se acumulavam nos pólos, e as planícies ocupavam os oceanos, como a Atlântida e os antigos continentes da Polinésia; quando os mares não passavam de lagos, embora grandes, e os povos de olhos pretos podiam dar a pé a volta ao mundo. Nesse tempo existia uma raça misteriosa de sangue ardente e ligeira no andar: raça que possuía uma civilização que lhe era própria. Depois fundiram-se os glaciares, os homens refugiaram-se nos pontos elevados, como os planaltos do México, e separaram-se em nações diferentes.
Na América é tão forte a sombra do mundo antediluviano que às vezes Kate perdia a noção dos tempos decorridos e começava a aproximar-se do antigo modo de ser, da vontade velha e torva, do desprezo da morte, da subtil e escura consciência, do instinto que precedeu a razão. Regressava à época em que o espírito e o poder dos homens residiam no sangue e na espinha dorsal, e as relações entre eles e com os animais se produziam através da medula.
Os Mexicanos ainda se encontravam nesse estádio. O que é aborígene na América pertence à fase de antes do Dilúvio, antes de reinar na terra a vida espiritual. Por isso, ali, a actividade cerebral dos brancos se alastra como uma erva em terreno virgem - para, é claro, murchar depressa e desaparecer por completo. Então, como resultado disso, surge um novo gérmen, uma nova concepção da humanidade: vem da fusão da antiga consciência instintiva e do racionalismo intelectual do branco. Um ser diferente, nascido do encontro daqueles dois.
Kate era muito irlandesa, e no fundo da sua alma jazia o misticismo original, quase desaparecido, dessa primitiva raça celta ou ibérica. É como um resíduo que existe ainda no mundo antediluviano e que não pode ser inteiramente destruído.
Sabia ela, mais ou menos, que era essa fusão o que Ramon pretendia realizar. Compreendia também o motivo pelo qual Cipriano tomava a seus olhos uma importância maior que todo o seu passado, os seus dois maridos, e os filhos. Esse velho sangue másculo despertava-lhe agora nas veias; daí vinham as palpitações que ela ultimamente sentia.
A Irlanda não podia nem queria esquecer aquele ardor sombrio e primitivo. Os Thuathas de Danaan, embora submersos, continuam vivos no sangue, não se lhes consegue impor silêncio. E a Europa científica e meticulosa tinha de se defrontar de novo com os velhos
gigantes.
Esta alteração, todavia - e Kate bem o notava -, não era coisa que se efectuasse com brusquidão; de outro modo haveria rotura e possibilidade de morte. O primitivismo tem os seus horrores. O espírito original do México, pesado, terre à terre, podia ser-lhe tão odioso que a tornasse perversa. Essa obtusa, indomável persistência, desprovida de energia e de esperança, que é peculiar ao aborígene americano, levava-a às vezes a supor que ia perder a razão. Obstinação tenaz que resistia aos séculos e desprezava a personalidade! Lascívia da morte, feroz, incalculável, terrível!
Esse povo, realmente, nunca mudava. Os homens não tinham fé na vida, em nenhuma realidade evidente. Eram apenas fiéis a certas forças obscuras do passado. O presente submergia-se na alma dos homens e das mulheres sob uma camada de lava negra, não deixando à superfície senão a indiferença.
A Esperança! A Esperança! Seria possível, um dia, fazê-la reviver nessas almas obscuras e obter o enlace das suas raças, único passo para o novo mundo do homem?
Entretanto, Kate sentia-se invadida por um mal-estar esquisito. Achava ser necessário partir, a fim de escapar a tamanha depressão. Já não podia ouvir a rastejante insistência dos criados: o sangue é só um, nós somos do mesmo sangue - sentença de tribo pior do que a morte para um indivíduo de raça branca. Estranha teimosia aquela que preconizava a todos a fusão do sangue!
Kate pertencia a uma família antiga, com pergaminhos. Fora educada nas ideias anglo-germânicas da superioridade intrínseca da aristocracia hereditária. O seu sangue era diferente do da gente vulgar: outro fluido, mais refinado.
No México, porém, nada disso conta. Juana, o homem que ia buscar água, o barqueiro que remava no lago, todos revelavam o mesmo pensamento no olhar: "O sangue é só um; pelo sangue tu e eu somos iguais." Kate lia isto nos olhos deles, adivinhava-o nas suas palavras, quer fossem deferentes ou escarninhas, e, por vezes, sentia-se revoltada com essa imposição da igualdade de sangue.
E quando se empertigava como para proclamar "O meu sangue é só meu. Noli me tangere", percebia nas pupilas negras daquelas criaturas o terrível ódio ancestral que as impele a cometer as maiores atrocidades.
Contudo, inclinavam-se perante a sua inteligência, sabedoria e compreenção, e, embora contra vontade, testemunhavam-lhe certo respeito. Ela pertencia às raças dominadoras, hábeis e espertas... Mas exigiam-lhe a aceitação da velha crença: O sangue é só um. Somos todos do mesmo sangue.
E tinha de se submeter, senão persistiriam na sua lenta vingança.
Mas não podia submeter-se de repente. Devia ser a pouco e pouco; um esforço violento destruí-la-ia.
Compreendia agora a afirmação de Ramon: "O homem é uma coluna de sangue, a mulher um vale de sangue." Era a unidade primordial
do género humano, oposta à unidade do espírito individual.
Kate, porém, sempre considerara seu o próprio sangue. O espírito é que ela partilhava com os outros.
Percebia agora o motivo por que Ramon e Cipriano usavam fatos brancos e sandálias e andavam meio nus como deuses vivos. Era a aceitação da antiga crença, o renascimento do laço de sangue que unia os homens, laço que tornava o sacrifício humano tão poderoso
factor da vida.
O sangue do indivíduo é rendido ao ser supremo, ao ser de sangue, deus, nação ou tribo.
E, na verdade, que estranha união existia entre Ramon e os seus homens, entre Cipriano e os seus soldados! Era a comunhão do sangue. Isto podia indignar Kate, enjoá-la por vezes, mas era uma força que não conseguia vencer.
Mesmo admitindo essa comunhão de sangue, Ramon reivindicava uma supremacia, até uma divindade. Era um homem como o mais humilde dos seus peóns, nascido da mesma fonte, das mesmas raízes que eles; no entanto, mostrava ser superior aos outros. E a sua superioridade não provinha do sangue ou do espírito mas duma misteriosa estrela interior que nascia do oceano sombrio e cintilava entre o mar e o céu imenso. A estrela que une o vasto sangue universal ao sopro universal do espírito e brilha entre ambos.
Porque essa coisa que reina sobre o poder humano e que é em si mesma um poder, essa coisa é a estrela misteriosa do cosmos primitivo, é a divindade no homem.
Certos homens nada possuem de divino. Possuem apenas faculdades. São ou deveriam ser escravos. Muitas vezes um homem tem a centelha divina, mas é sufocada pela força ou pela vida material.
E quando o espírito e o sangue se separam e divergem, provocando a morte maior, então apagam-se quase todas as estrelas.
Só o homem que possui uma estrela magna, uma grande divindade, será capaz de reaproximar essas forças contrárias e criar uma nova união.
Esse homem era Ramon e o seu esforço o máximo que se podia fazer: aproximar e unir as forças contrárias. Eis o poder divino de um homem. Por ele, no homem, se distingue o deus. Por ele apenas
e por mais nada.
Embora fosse como o mais ínfimo dos seus peóns, com o mesmo coração que bate, os mesmos rins insondáveis, e os lábios fechados sobre o mesmo segredo da humanidade; e fosse humano como Kate era humana, com a mesma ansiedade de espírito e a sede do puro conhecimento e da comunhão; no entanto só ele tinha o poder astral de unir os dois grandes impulsos da humanidade, e de os fundir - de ser a ave de asas imensas que paira entre as duas potências opostas: a Estrela da Manhã, que está entre o sopro da aurora e as profundezas da noite.
Os homens haviam tentado assassiná-lo com punhaladas. Carlota quisera matá-lo com o seu espírito. Cada parte, separadamente, pretendera liquidá-lo. Ele, contudo, estava fora do alcance de qualquer delas. Era o Quetzalcoatl vivo, a cintilação de uma estrela que nascia na alma dos seus compatriotas. Chama dum astro a meio das duas asas do poder: eis só o que representa a divindade num homem e em toda a humanidade.
Kate recebeu um recado de Cipriano: mandava-lhe dizer que vinha instalar-se na Vivenda Aragon. Esta casa era a principal da região do lago; tinha um jardim em toda a volta, não muito grande mas bonito, com palmeiras e sebes de jasmineiros, tudo muito verde em resultado de regas constantes. A própria construção lembrava um castelo em ponto pequeno, talvez despropositado; mas eram agradáveis as varandas espaçosas que davam para a encosta e a vegetação do jardim, mesmo acima do lago.
Cipriano chegou bem disposto. Brilhavam-lhe os olhos com uma expressão de mocidade. Queria casar a valer com Kate, segundo a lei civil mexicana, e morar com ela na Vivenda Aragon. Kate hesitava, achando que tinha necessidade de voltar em breve à Europa, sobretudo à Inglaterra e Irlanda. Era urgente, porque lhe custava já a suportar aquela ameaça do México, a sua influência deprimente. Precisava, pelo menos, de um intervalo de repouso.
Assim o declarou a Cipriano, que ficou desanimado.
- Não importa casar ou não antes de ir - disse ela. - O que tenho é de me afastar daqui o mais depressa possível.
- Quando?
- Em Janeiro.
O rosto dele desanuviou-se.
- Então casemo-nos primeiro. Na semana que vem.
Ela aquiesceu com estranha indiferença, e Cipriano, radiante, correu a fazer os preparativos necessários.
Pouco interessava a Kate o casamento civil. No sentido essencial, já estava casada com Cipriano. Ele era acima de tudo militar, tão depressa vinha para ela como a deixava. Kate, de qualquer maneira, passaria grande parte do tempo sozinha.
Podia convir-lhe como marido, mas o que a assustava era esse México terrível. O movimento quetzalcoatliano espalhara-se de maneira sinistra por todo o país. O arcebispo manifestara-se contra isso, e Ramon, Cipriano e seus aderentes estavam excomungados. Haviam tentado assassinar Montes.
Na capital, os partidários de Quetzalcoatl tinham escolhido para lugar de reunião a Igreja de San Juan Bautista, conhecida pela Igreja do Salvador Negro. O arcebispo ordenara aos seus fiéis que fossem em procissão ao referido templo, agora chamado Casa de Quetzalcoatl, a fim de o retomarem para o culto católico. O governo, porém, sabendo que mais tarde ou mais cedo haveria luta, fez dispersar a procissão e deteve o arcebispo, depois de alguma efusão de sangue.
Rebentou então uma espécie de guerra. Os Cavaleiros de Cortez exibiram a sua famosa reserva de armas, que aliás não era muito impressionante. Em Zócalo produziu-se uma manifestação clerical, dirigida por um padre fanático. Montes mandou atirar sobre os insurretos. Aquilo afigurava-se o começo duma luta religiosa. Pelas ruas viam-se os bandos de Quetzalcoatl, com as suas serapes azuis e brancas, e' os de Huitzilopochtli, de serapes vermelhas e pretas, marchando ao som de tambores e erguendo uns as suas estranhas insígnias redondas, feitas de penas, e outros longas varas rematadas por um penacho rubro de extremidade preta. Nas igrejas, os sacerdotes incitavam os fiéis à guerra santa; os que haviam aderido à causa de Quetzalcoatl discursavam nas ruas à multidão.
Período tumultuoso. Em Zacatecas, o general Narciso Beltran manifestara-se contra Montes e a favor da Igreja, mas Cipriano interviera com tal presteza e violência que deu em resultado o fuzilamento de Beltran e a dispersão das suas tropas.
Então Montes declarou ser igual no México o antigo culto católico e publicou um decreto determinando que a religião nacional da República fosse a de Quetzalcoatl. Encerraram-se todas as igrejas e os padres viram-se obrigados a prestar juramento de fidelidade à República ou a serem condenados ao exílio. Em todas as cidades e aldeias surgiam os soldados de Huitzilopochtli e os homens de serape azul. Ramon trabalhava sem descanso. Cipriano aparecia nos lugares onde menos o esperavam. Conseguiu despertar uma espécie de frenesi religioso nas regiões mais descontentes, como Vera Cruz, Tamaulipas, Jucatão. Efectuaram-se no mar estranhos baptismos e nas costas elevaram-se fortalezas com as cores de Huitzilopochtli.
Todo o país vibrava com uma sensação desconhecida, dominado pela vaga de energia nova, mas em tudo aquilo entrava violência, crueldade e certo horror.
Deportaram o arcebispo. Já não se viam sotainas nas ruas; só as serapes de Quetzalcoatl e as de Huitzilopochtli se evidenciavam entre as multidões. Eis porque Cipriano chegou junto de Kate, com os olhos a luzir, ébrio de triunfo. Kate ficou assustada e sentiu-se vazia e inútil. Nem sequer aquela vitória espantosa e a alteração que se dava na face do mundo a podiam salvar por completo. Pertencia à velha Europa e não lhe era fácil transformar-se tão rapidamente. Contudo, achava que, se voltasse à Irlanda e concedesse uns tempos de repouso à sua vida e ao seu corpo, poderia então regressar ao México e participar nos acontecimentos.
Porque não era só o espírito que se modificava, mas também o corpo e o próprio sangue. Sentia esse terrível catabolismo e metabolismo a transformá-la noutra criatura. Se a metamorfose fosse muito brusca, decerto ela morreria.
Casou-se, pois, legalmente com Cipriano e foi passar um mês com ele na Vivenda Aragon. Em seguida embarcaria sozinha para a Irlanda, projecto a que o marido deu a sua anuência.
Era deveras estranho estar casada com ele. Kate tinha a impressão de se afundar pesadamente abaixo da superfície da vida, para jazer nas suas profundezas.
Estranha, pesada, verdadeira passividade. Pela primeira vez na sua existência, ela sentia-se repousada. Falar e pensar tornavam-se-lhe coisas triviais; as ondas à tona de água não são nada para aqueles que vivem submersos.
Na alma, estava serena e altiva. Ah, se o corpo não sofresse tanto com a transformação! No cosmos encontrara a paz de espírito, o universo abrira-se à sua frente, e ela deixava-se afundar no leito de puro descanso. Adquirira quase tanta segurança como Teresa. Só a atormentava a mudança que se lhe operava no sangue.
Cipriano mostrava-se feliz, à sua maneira de índio. Parecia um adolescente contemplando o mistério da vida com olhos dilatados de espanto. Não se ocupava especialmente de Kate, nem lhe falava de assuntos sérios. Se ela aflorava uma conversa desse género, dirigia-lhe um olhar desconfiado e afastava-se.
Tinha consciência de coisas de que a mulher mal se apercebia, sobretudo do perigo das palavras irritantes. E isto ele evitava.
Kate compreendia agora como os seus antigos amores haviam sido brutais, carregados de desejo e de contactos voluptuosos. com Cipriano, desaparecia a sua vontade ardente feminina, toda ela doçura, submissão; e contudo, tais as fontes térmicas que brotam da terra sem rumor, tão poderosa era na sua força secreta!
Via quase com espanto morrer dentro de si a Afrodite da espuma, essa Afrodite ávida de sensações ardentes. Como se prevenido por vago instinto, Cipriano repudiava essa parte da natureza de Kate. Quando esta se deixava dominar pelo êxtase voluptuoso que acaba em espasmos delirantes, ele afastava-se da mulher. Retirava-se desde que pressentia nela a sede daquelas volúpias a que costumava chamar o seu "prazer". E Kate percebia que lhe era repulsiva nesses momentos. Misterioso e implacável, afastava-se sem uma palavra.
Estendida a seu lado ela compreendia então quanto era superficial aquela efervescência de sensualidade. Parecia vir do exterior, não do seu íntimo. Depois do primeiro instante de decepção, quando esse prazer lhe era negado, concluía que não o desejava realmente, que até lhe repugnava.
E Cipriano, no seu silêncio quente e obscuro, aproximava-se quando ela se assemelhava a uma fonte borbulhando sem rumor das profundezas vulcânicas. Já não se tratava de prazer consciente. O que se passava era estranho, inexprimível, muito diferente das suas relações com Joachim. Nem êxtases, nem espasmos. Uma espécie de força subterrânea a que tinha de se submeter.
Tal como no amor, assim era Cipriano na vida. Kate não conseguia perscrutá-lo. Se tentava, via-se obrigada a desistir e a classificá-lo entre as coisas que existem e não se compreendem. Um desconhecido, e uma presença; nada mais.
Não podia existir intimidade. Cipriano envolvia-se na sua reserva como numa capa e deixava Kate envolver-se na dela. Eram dois estranhos. Ele aceitava o facto integralmente, como se outra coisa não fosse possível, mas Kate achava aquilo deveras singular. Tinha tanto desejo de intimidade e esforçara-se tanto por obtê-la!
Agora, resignara-se a aceitá-lo tal como era: um desconhecido, um estrangeiro na presença do qual vivia. E sem nenhuma intimidade espiritual, a sua união não passava de uma união de sangue.
Por isso, pouco importavam as ausências de Cipriano. Deixava atrás de si a marca da sua presença, e levava consigo a de Kate. Em resumo, não existia o desgosto da separação.
Certa manhã, ele teve de partir cedo para a cidade. O sol ainda não cobria o lago mas, para além de Tuliapan, já acariciava as montanhas, que brilhavam tão distintas que se diriam focadas por luz mágica. O sulco verde das encostas parecia ao alcance da mão. No seu voo, cintilaram de súbito duas gaivotas brancas, apanhadas na luminosidade. Mas o lago, suave, unido, silencioso, permanecia ainda na sombra.
Kate lembrou-se do mar. O Pacífico não ficava longe. Ela tinha a impressão de o haver esquecido, mas sentia de novo a necessidade da sua brisa.
Cipriano ia banhar-se; Kate viu-o caminhar sobre as lajes do cais. Despiu o roupão e o vulto escuro desenhou-se na água amarelada. Era tão moreno! Tal um malaio. Corpo tão trigueiro como a cara; e com esse físico primitivo, e o peito alto, e as ancas bem modeladas, evocava as figuras masculinas de certas medalhas gregas.
Mergulhou da beira do cais e avançou na água mansa. Nesse momento a luz espalhou-se dos cimos das montanhas e cobriu de oiro a superfície do lago. Imediatamente, Cipriano apareceu rubro como fogo. Os raios solares, porém, não eram vermelhos, mas, reflectidos pelas águas, davam ao corpo de Cipriano um tom de lume, como se o abrasassem.
Os filhos da Manhã... A coluna de Sangue... Um Pele-Vermelha... Kate contemplava-o admirada enquanto nadava resplandecente e puro. Como se fosse de fogo!
Os filhos da Manhã... Kate mais uma vez renunciou a todo e qualquer esforço de conhecimento - e, sem esforço, limitou-se à comunhão de sangue.
Sim, a sua raça... Ela notara já como os indígenas se tornavam de um vermelho puro à luz da manhã e da tarde. Dir-se-iam chamas erguendo-se da água.
Cipriano partiu a cavalo, com o criado. Kate viu-o afastar-se pela estrada além, sombrio na sua montada ruça. Parecia não fazer movimento nenhum. Irradiava um orgulho másculo e, assim unido ao animal, era como se este e o cavaleiro constituíssem um único ser.
Desapareceu. Kate, por um instante, experimentou saudade da sua presença. Mais do que dele próprio. Não desejaria tocar-lhe nem falar-lhe, mas tão-somente senti-lo ali.
Depressa se dominou e voltou à realidade. Desde que se compenetrava da ausência de Cipriano, vinha-lhe a noção nítida da sua presença.
Passeou um pouco pela costa, junto do molhe. Adorava estar só. Absolutamente só, com o jardim, o lago e a manhã.
"No fundo, sou como Teresa", pensou ela.
De súbito viu à sua frente uma corda comprida e escura em cima de um pedregulho. Aquilo fê-la sair dos devaneios. Era uma cobra de pele ornada com delicados desenhos; estava sobre uma pedra enorme e a cabeça pendia-lhe até ao chão.
O réptil sentiu a presença da mulher, pois, com incrível rapidez, rastejou ao longo da rocha e entrou numa fenda que havia na base do molhe.
Não era grande o buraco. Depois de ali penetrar, virou a cabeça e dardejou a língua preta; mas em seguida desapareceu devagar, e Kate viu-lhe ainda o último anel, no qual poisava a cabeça chata. Fazia lembrar aqueles diabos que se representam de queixo apoiado sobre os braços, olhando através duma seteira. Do fundo do esconderijo espiava a mulher; seguia-a com os olhos cintilantes de crueldade.
Kate pensou então em todos esses seres invisíveis, escondidos nos recantos ocultos da terra. E perguntava a si mesma se aquele réptil não sofreria por ser incapaz de se elevar na escala da criação; de não poder correr a quatro patas em vez de rastejar...
Talvez não. Talvez houvesse encontrado a sua própria paz. Kate sentiu-se reconciliada com o animal.

XXVII
Teresa e Kate tornaram a visitar-se. Existia agora entre ambas certa simpatia, especialmente desde que a irlandesa decidira partir.
Envolvia o lago uma pureza outonal. Sentia-se a humidade na atmosfera, as sarças das encostas cobriam-se de rebentos. O sol inundava os montes duma luz de ouro, as sombras eram profundas, aveludadas. A verdura invadia tudo, até as rochas e a terra cor-de-rosa. O verde brilhante das canas-de-açúcar sobressaía no fundo rubro dos campos lavrados de fresco; aqui e ali, entre a massa escura das árvores, avultava a mancha branca das povoações.
O céu estava alto e límpido. No ar cristalino vibravam os tambores e o grito para as pausas do dia. E o dia parecia deter-se perante o mistério supremo desse universo que desabrochava, vasto, suave e cheio de vida.
Até no lago se encontrava uma espécie de apaziguamento. Avançava uma canoa com a vela entumecida tal uma concha nacarada; o casco negro e afilado deslizava sobre a água. Dir-se-ia a barca de Dioniso portadora duma mensagem e de ramos de videira.
Kate mal se lembrava agora da secura árida dos meses anteriores, quando a terra parecia crepitar ao sol implacável.
Ramon e Teresa atravessaram o lago e o seu barco de remos entrou no molhe. Era uma manhã em que as sombras nas montanhas tomavam o tom azul das centáureas.
- Sempre vai partir? - perguntou Ramon a Kate.
- Por uma temporada. Não me julga a mulher de Loth, não é verdade?
- Não - respondeu ele, a rir. - Julgo que é a de Cipriano.
- E sou. Mas preciso de sair, embora por pouco tempo.
- Ah! Nesse caso vá e volte depressa. E diga lá na Irlanda que façam o que fizemos aqui.
- Como?
- Encontrando-se em si mesmos, e no seu próprio universo, e com os seus deuses. Justifiquem os seus mistérios. Os Irlandeses são tão prolixos no que respeita aos seus heróis de outrora e aos seus tempos gloriosos! Diga-lhes, pois, que concretizem tudo isso, como nós fizemos com Quetzalcoatl e Huitzilopochtli.
- Está bem. Veremos se há quem me escute...
- Sim, senhora. - Seguiu com os olhos a vela branca que se aproximava e depois indagou: - Afinal, porque quer partir?
- É-lhe indiferente o caso, pois não?
- Não, não me é indiferente.
- Porquê?
Ramon levou outra vez uns segundos para responder:
- É uma das nossas - replicou por fim. - Precisamos de si.
- Mesmo quando não faço nada? E quando principio a aborrecer-me com a história do Quetzalcoatl vivo e o resto, e preferia conhecer um simples Don Ramon?
Ele riu-se.
- Que é um simples Don Ramon? Don Ramon tem dentro de si Quetzalcoatl vivo. Mas a senhora auxilia-nos, apesar de tudo.
- Não creio que precise de auxílio, e muito menos de uma mulher que. no fim de contas, não é mais que a esposa do seu amigo.
Estavam sentados num banco, debaixo das manhãs-de-páscoa, cujas folhas rubras formavam como que uma flor de pétalas enormes.
- A esposa do meu amigo - volveu Ramon. - Que poderia
ser de mais agradável para mim?
- Pois claro! - exclamou Kate de maneira ambígua. Ramon tinha os braços apoiados nos joelhos e olhava para o
lago, com ar ausente. O seu rosto reflectia cansaço e aquela vulnerabilidade que sempre comovia Kate. Mais uma vez ela se compenetrou do isolamento e esforço que a procura de uma vida diferente impunha àquele homem. E, no entanto, ela não desistia...
Essa visão acentuou-lhe o sentimento de impotência, da impotência total da mulher em ajudar o homem que caminha para o Além.
- Está muito seguro de si mesmo? - perguntou.
- Seguro de mim? Não! De um instante para o outro eu morro e desapareço da face do mundo. Como poderia estar seguro de mim
mesmo?
- Mas porque há-de morrer?
- Todos morrem. Até Carlota!
- Essa tinha a sua hora marcada.
- Pode-se marcar a nossa hora como se faz no despertador de um relógio?
Kate calou-se por uns momentos.
- Se não está seguro de si mesmo, de que está então? - inquiriu como se o desafiasse.
Ramon fitou-a com os seus olhos sombrios.
- Estou seguro... seguro... - A voz sumiu-se-lhe, o rosto tomou a palidez dum defunto. Só os olhos a observavam intensamente. De novo ela se viu perante a sombra dolorosa do homem e se sentia impotente diante desse espectro vivo do sofrimento.
- Não pensa que anda em erro, pois não? - perguntou Kate.
- Não, mas talvez não possa manter...
- E então? - insistiu friamente a irlandesa.
- Continuarei o meu caminho, embora desacompanhado. Kate só lhe via os olhos negros, fitos nela. Ramon começou a falar em espanhol: - Isto faz-me doer a alma, como um pronúncio de morte.
- Mas porquê? Não está doente!
- Sinto a alma desagregar-se.
- Não deixe! - exclamou Kate, alarmada.
Ramon fitava-a ainda com os olhos inexpressivos. De súbito, ela experimentou uma sensação de calma e de força.
- Devia esquecer por uns tempos - disse-lhe em voz compassiva, poisando a sua mão na dele. Para quê tentar compreendê-lo ou contrariá-lo? Era uma mulher, ele um homem e, portanto, tinham da vida uma concepção diversa.
Ao contacto daquela mão, Ramon percebeu despertar de um sonho e fixou-a com olhar perscrutador e altivo. A carícia maternal sobressaltara-o como uma picada.
- Sim, devia - disse.
- Pois claro. Se quer ser tão... abstracto e quetzalcoatliano enterre de vez enquando a cabeça na areia como fazem as avestruzes, e esqueça.
- Oh! - exclamou Ramon sorrindo. - Ei-la de novo zangada!
- O caso não é tão simples como parece. Existe em mim um conflito, e não me deixam ausentar-me por algum tempo.
- Não podemos impedi-la.
-Pois sim, mas discordam da minha ida. Não me deixam partir em paz.
- Porque deseja ir-se embora?
- Tenho de ir. Tenho de voltar para junto dos meus filhos e da
minha mãe.
- Sente essa necessidade?
- Sinto.
Logo que deu esta resposta compreendeu que havia nela certa duplicidade. Era como se tivesse dois eus: um, mais novo, terno, sensível, que pertencia a Cipriano e a Ramon; outro, duro, completo, que pertencia aos filhos, à mãe, à Inglaterra, a todo o seu passado. O eu antigo nada tinha de submisso e era forte, o recente parecia frágil, estava ligado a Cipriano e até a Ramon e a Teresa; nada tinha de independente.
Kate possuía consciência desta dualidade e sofria com isso. Porque não conseguia optar definitivamente pela antiga maneira de ser, nem pela moderna, ficava a deter-se entre as duas.
- Pois é - continuou. - Sinto essa necessidade, e querem
evitar que eu parta.
- Que ideia! - protestou Ramon.
- Sim, senhor. Exercem pressão sobre mim, paralisam-me, impedem-me de me ir embora.
- Se tem essa sensação, convém que nos afastemos de si durante uns tempos.
- Porquê? Não concordam com a minha ida? Se eu tenho de
ir, porque não me apoiam?
Ramon fitou-a tranquilamente.
- É impossível. Não acredito nessa partida. Seria virar-nos as costas, renegar-nos. Mas a verdade é que somos todos muito complicados. Se acha que tem de se ausentar durante certo período, então vá! Não é coisa de importância primordial. Já fez a sua opção, e
eu não fico apreensivo.
Kate sentiu alívio ao ouvir isto, porque estava bastante preocupada consigo mesma. Nas suas relações com Cipriano e Ramon, nunca tinha a certeza de nada. Contudo, replicou com um pouco de ironia:
- Porque haveria de ficar apreensivo?
- Não desconfia de si própria às vezes?
- Nunca! Estou sempre segura da minha pessoa.
Continuavam sentados no jardim da Vivenda Aragon, debaixo da manhã-de-páscoa. O ar começava a aquecer. O lago estava calmo, o vento amainara e tudo se conservava imóvel - excepto as folhas rubras do arbusto.
O Natal aproximava-se! Eis o que recordou a Kate aquela planta majestosa.
Natal! O azevinho! A Inglaterra! As prendas! As iguarias! Se ela se apressasse poderia chegar à Inglaterra na data festiva. Achava uma coisa tão natural encontrar-se na pátria com a mãe, pelo Natal! Tinha casos tão interessantes a contar! E as bisbilhotices divertidas que havia de ouvir... De longe, tudo isso lhe parecia encantador. No entanto, experimentava como que uma relutância ao pensar nesse regresso.
- Podemo-nos fartar de coisas boas - disse ela a Ramon.
- De qual, em particular?
- Oh! De Quetzalcoatl e todas essas histórias. Podemos estar saturados.
- É possível - respondeu Ramon, pondo-se de pé e afastando-se em passos tão subtis que ela nem deu pela sua retirada.
Quando compreendeu que ele se fora embora, ficou fula. Mas continuou sentada debaixo do magnífico arbusto, contemplando com os olhos irritados a sebe de jasmineiro e as suas flores dum branco puríssimo. Onde é que ela ouvira qualquer coisa a respeito de jasmins? "E entre nós os jasmins..."
Oh! Como se sentia farta de tudo aquilo!
Teresa descia a ladeira do jardim.
- Ainda está aqui?
- Onde podia eu estar? - retorquiu Kate.
- Não sei... Meu marido foi a Sayula a fim de falar com o Jefe. Não quis esperar para ir connosco no barco.
- Talvez tivesse pressa.
- Que maravilha! - observou Teresa, apontando para o estendal vermelho do majestoso eufórbio.
- São as vossas flores de Natal, não são?
- Sim, as flores de Noche buena.
- É extraordinário! O Natal com hibiscos e manhãs-de-páscoa! Estou ansiosa por ver azevinho e laranjas na montra duma frutaria de Hampstead.
- Porquê? - disse Teresa, rindo.
- Ah! - suspirou Kate. - Voltar à vida simples, ver os autocarros a correr na lama de Piccadilly, na véspera do Natal, e os passeios molhados cheios de gente diante das lojas cintilantes...
- Isso é que é vida, para si? - perguntou Teresa.
- Sim. Sem esta abstracção e vontade. A vida satisfaz-me se eu puder vivê-la e ser eu mesma.
- É altura de Cipriano regressar - disse Teresa.
Kate levantou-se com súbita impaciência. Já não suportava essa tutela. Haviade lhes mostrar que era livre!
Foi com Teresa à aldeia. O ar parecia misteriosamente vivo, animado com um sopro novo. Mas Kate sentia-se fora do ambiente. As duas senhoras sentaram-se debaixo de uma árvore na praia de Sayula, conversando um pouco e contemplando a imensidão do lago
cor de pérola.
Ancorado junto do molhe estava um barco de toldo vermelho e mastro comprido. Em terra, viam-se grupos de homens vestidos de branco a olharem para o interior da embarcação. O contorno monolítico duma vaca preta e branca e dum touro enorme recortava-se contra a superfície das águas.
Era perto, e no entanto parecia tudo estranho e remoto. Dois peóns colocaram uma prancha e puseram-se a empurrar a vaca para lá. O animal avançou relutante mas depois, com a lenta indiferença dos Mexicanos, seguiu pela ponte adiante. Os homens incitavam-no, até que ele ganhou o barco e entrou definitivamente no porão.
O grupo ocupou-se então do touro. Um mexicano já idoso, alto, de calças estreitas de pele e casaco de cabedal, com um imenso chapéu de feltro bordado a prata, ergueu delicadamente a cabeça do touro, pegando-lhe pela argola do focinho. Atrás estava um peón que, curvando-se, empurrou os poderosos flancos do animal. E este, com toda a calma, foi andando pela prancha além. Mas parou.
Os peóns reagruparam-se. O que estava atrás, de faixa vermelha atada à cintura, deixou de empurrar. Então dois outros passaram uma corda em volta das ancas do touro. O velho tornou a pegar pela argola, sempre com muito cuidado, e o animal levantou outra vez a cabeça. Mas continuou parado.
De novo lhe puxaram pela argola e pela corda. O monstro mantinha-se impassível. Tudo isto decorria no maior silêncio.
Por fim o touro percorreu a ponte em passos lentos e alcançou a borda do navio. Ali, esperou.
De cabeça baixa, olhava para o fundo do porão. Os homens empurravam-no com toda a força, puxavam a corda - tudo no profundo silêncio mexicano.
Devagar, cauteloso, o animal agachou-se, e então, com um movimento rápido, pendeu as patas dianteiras no interior do barco, ficando com os quartos traseiros alçados. Houve um momento de confusão, depois um baque. Finalmente, o touro saltara e encontrava-se no porão do navio.
E tudo tão silencioso e tão remoto!
- Ramon quer que se sente ao lado dele no templo como esposa de Quetzalcoatl... com algum nome esquisito? - perguntou Kate a Teresa.
- Não sei. Mais tarde, diz ele, quando for ocasião de haver uma deusa.
- E importa-se?
- Por mim, tenho medo. Mas sei que Ramon o deseja. Ele diz que é aceitar a maior responsabilidade da nossa vida, e eu acredito que seja verdade. Se existe divindade em mim, devo reconhecê-la, envergar a túnica verde e ser deusa no momento oportuno. Ramon afirma que precisamos de manifestar a presença divina. E, ao lembrar-me de meus irmãos, acho que ele tem razão. Hei-de pensar no deus que palpita invisível como o coração do mundo. E quando vestir a túnica verde e me sentar no templo diante de toda a gente, voltar-me-ei para o coração do universo e tentarei compenetrar-me do meu eu divino.
- Julgava que a túnica verde era só para a esposa de Huitzilopochtli - observou Kate.
- Ah, sim! - replicou Teresa. - A minha é preta, com barras brancas e desenhos encarnados.
- Preferia a verde? Fique com ela, se quiser. Eu vou-me embora...
Teresa ergueu os olhos para Kate.
- A túnica verde é para a mulher de Huitzilopochtli - declarou.
- Não vejo que isso tenha importância - volveu a irlandesa.
- Cada homem deve possuir a esposa que lhe convém. Cipriano não quereria uma mulher como eu.
- Cada mulher deve ter o homem que lhe convém - retorquiu Kate. - Para mim, Ramon seria muito abstracto e muito despótico.
Teresa ruborizou-se e baixou os olhos.
- Ramon exige muita submissão de uma mulher para que me agradasse - ajuntou a outra.
Teresa ergueu a cabeça, o pescoço moreno ondulou como uma
serpente.
- Como é que sabe que Ramon exige submissão das mulheres? Como é que sabe? Nunca a exigiu de si... Está enganada. Ele não me impõe tal submissão. O que pretende é que me entregue brandamente; em compensação, entrega-se-me, a mim, com uma brandura maior do que esta que lhe concedo: um homem como Ramon é mais dócil do que uma mulher. Não se assemelha a Cipriano, que é soldado. Ramon mostra-se dócil. Não tem razão no que
diz, Caterina.
Kate soltou uma risadinha. Mas Teresa prosseguiu:
- Vejo-a como um soldado entre as mulheres, está sempre a combater. Eu não sou assim. No entanto, há mulheres que são de temperamento bélico e essas precisam de mandos militares. Eis a razão por que é Malintzi e tem um vestido verde. Estará sempre disposta a lutar... até consigo mesma, se ficar só no mundo.
Havia uma grande calma em volta do lago. As duas senhoras aguardavam a chegada de Ramon.
Um homem vestido de branco, acocorado e silencioso debaixo de uma árvore, desbastava folhas de palmeira, com ar concentrado. Em seguida ia molhá-las na água e voltava para se sentar de novo, recomeçando o trabalho com aquela atenção pueril da gente do povo. Estava a consertar uma cadeira de palha. Como Kate o observasse, os olhares dos dois encontraram-se e o homem saudou-a. Dir-se-ia que, dele, emanava para ela uma chama de vida, a qual lhe transmitiu um estranho poder.
Nitrindo excitado, corria ao longo da margem um cavalo ruço malhado de branco. A crina flutuava ao vento, as patas faziam saltar os calhaus, as narinas abriam-se-lhe ansiosas. Porque seria?
Um peón fizera entrar no lago a sua carroça puxada por quatro muares, até que a água ficou acima dos varais, e quase atingindo o fundo do veículo. Parecia um barco conduzido por quatro cavalos-marinhos.
Era Inverno, mas dir-se-ia Primavera nas imediações do lago. Saltitavam na praia bezerros amarelos e brancos, agitando a cauda, correndo lado a lado à beira da água, que eles cheiravam desconfiados.
A uma árvore estava amarrada uma burra, com a sua cria deitada à sombra, um jumentinho preto como uma amora, enroscado no chão, com a cabeça peluda erguida e as longas orelhas fitas.
- Quantos dias tem o burrinho? - perguntava Kate ao peón, que saíra da sua cabana de colmo.
O homem dirigiu-lhe um olhar em que havia júbilo e deferência - olhar que fez Kate sentir uma onda de orgulho encher-lhe o peito.
- Nasceu a noite passada, patrona! - respondeu ele, sorrindo.
- Tão novo! Ainda não pode aguentar-se nas pernas, pois não?
O peón aproximou-se do jumento e pô-lo de pé. E ali ficou o animalzinho, espantado, de pernas abertas, como se em cima de ganchos de cabelo.
- Que engraçado! - exclamou Kate, deliciada. O homem riu-se; parecia grato pelo interesse dela.
O jumento a custo se mantinha naquela posição. Vacilava sobre as quatro patas bambas, com ar admirado. Deu uns passos oscilantes para cheirar as folhas de milho. Cheirou, e tornou a cheirar, tal se o mistério do olfacto se lhe revelasse nas narinas.
Então voltou para Kate a cabeça aveludada e deitou de fora a língua cor-de-rosa. Kate soltou uma gargalhada, o que fez o animal dar um pulo que o deixou infinitamente surpreendido consigo próprio. Tentou uns passos, e, de repente, sem que ele mesmo esperasse semelhante coisa, deu outro salto.
- Já dança! - exclamou Kate. - E só tem umas horas de existência!
- Já dança - confirmou o peón.
Depois daquelas experiências, o burrinho aproximou-se da mãe em passos incertos e começou a mamar.
Erguendo a vista, Kate encontrou os olhos do homem cintilantes da chama da vida, cheios de confiança e de conhecimento.
O jumentinho preto, a mãe, o mistério da criação, o respeito pela mulher superior a ele, bela e radiosa, tudo isto exprimiam os olhos negros desse homem primitivo.
- Adiós! - disse Kate.
- Adiós, patrona! - respondeu ele, erguendo o braço, na saudação de Quetzalcoatl.
Atravessou ela a praia em direcção ao cais; sentia dentro de si uma onda de vida, forte, resistente. "É o sexo", disse consigo. "Como o sexo pode ser extraordinário quando o homem o conserva poderoso e sagrado e que ele enche o mundo! É como o sol, penetrando-nos. Mas não me submeterei, mesmo assim. Porquê ceder?" Ramon aproximava-se, com o seu largo chapéu ornamentado do símbolo de Quetzalcoatl. Nesse instante tocaram os tambores e, do alto da torre, soou a voz nítida e possante anunciando o meio-dia. Todos os homens que se encontravam na praia aprumaram o corpo e ergueram o braço direito. As mulheres viraram a palma da mão para o Sol. Tudo ficou imóvel, excepto os animais.
Então Ramon encaminhou-se para o barco, enquanto os homens o saudavam à maneira de Quetzalcoatl.
- É espantoso como nesta terra se pode ter a impressão de que se é alguém! - notou Kate, quando já iam sobre a água no barco de remos. - Sentimo-nos como se pertencêssemos de facto à nobreza.
- E não é verdade?
- Sim, mas isso em toda a parte nos é negado. Só aqui temos a noção do poder da nobreza. Os indígenas ainda a veneram. Parecem
adorar-me.
- Por enquanto - replicou Ramon. - Mais tarde assassiná-la-ão porque a adoraram.
- É inevitável? - volveu Kate em tom despreocupado.
- Creio que sim. Se vivesse sozinha aqui, em Sayula, e reinasse por algum tempo, seria assassinada... ou pior ainda... pelo povo que a tinha idolatrado.
- Não acredito.
- É como lhe digo.
- Mas porquê?
- A não ser que se consiga dos deuses a nossa própria nobreza e se implore dos céus o poder, acabaremos por ser assassinados.
- A minha nobreza tem essa origem.
Mas não ficou muito convencida e mais firmou a sua resolução
de partir.
Escreveu para a Cidade do México e reservou uma passagem de Vera Cruz a Southampton. Embarcaria no último dia de Novembro.
Cipriano regressou a 17 e Kate participou-lhe o que tinha feito. Ele ficou a olhá-la, de cabeça um pouco à banda e com uma expressão de criança ajuizada, mas Kate foi incapaz de adivinhar o que lhe ia na alma.
- Vais-te embora já? - perguntou ele em espanhol.
A mulher percebeu então que estava ofendido. Quando se melindrava falava-lhe sempre em espanhol, nunca em inglês.
- No dia 30.
- E quando voltas?
- Quien sabe! - ripostou Kate.
Por uns minutos, Cipriano fitou-a com as suas pupilas negras imperscrutáveis. Estava a pensar que tinha o direito de a impedir que saísse do país, visto ser legalmente sua esposa. Nas profundezas dos olhos luzia a antiga cólera índia; depois surgiu uma leve mudança de expressão no rosto, quando a ira contida cedeu lugar à indiferença estóica, à velha indiferença de tantos séculos. Kate quase sentia as ondas sucessivas de sombra e frieza que percorriam Cipriano sem que ele mesmo desse por isso. E mais uma vez lhe estremeceu o coração o medo de perder o contacto com esse homem.
- Como quieras tu! - disse ele por fim.
Concedia-lhe a liberdade com a misteriosa indiferença do seu sangue e não faria mais esforços para a reter. Era o fatalismo dos da sua raça.
Conforme Kate previra, Cipriano tomou um barco e foi a Jamiltepec falar com Ramon.
A mulher ficou só, como de costume. Ocorreu-lhe que ela própria criara essa solidão. Não conseguia identificar-se com aquela gente, sentir-se à vontade fosse com quem fosse. Fechava-se sempre na sua personalidade.
Importava-lhe muito a reciprocidade sexual? Podia importar-lhe ainda mais se não a houvesse tido; mas tivera-a, e de maneira perfeita, com Cipriano. Sabia tudo a esse respeito. Era como se houvesse conquistado outro território, outro domínio da vida. E agora devia retirar-se para a toca da sua individualidade, com a vítima nos dentes.
De súbito, viu-se como os homens muitas vezes a viam: uma gata enorme, com os seus espasmos de volúpia e o gozo demorado do seu isolamento. Conhecia outras mulheres assim. Brincavam cheias de amor e familiaridade como um gato com um rato. Por fim devoravam o ratinho querido e reapareciam com a barriga repleta e uma voluptuosa sensação de força.
Algumas vezes o rato recusava-se a ser digerido, de que resultava prolongada dispepsia; ou então, como Cipriano, transformava-se numa espécie de cobra, que alçava a cabeça, olhava para trás e desaparecia num buraco, deixando-a confusa e destituída de poder.
Outra coisa que ela observava horrorizada. Uma após outra, as suas "amigas", as grandes amorosas, na idade de quarenta, quarenta e cinco e cinquenta anos perdiam todos os atractivos e ficavam umas corujas horrendas, procurando em volta a vítima cada vez mais rara. Como seres humanos deixavam de existir, metamorfoseadas em corujas elegantes e mexeriqueiras.
Kate era bastante inteligente para tirar proveito da lição. Estava bem que uma mulher cultivasse o seu ego, a sua personalidade. Estava muito certo que desprezasse o amor ou que com ele se entretivesse como um gato faz ao rato; isto é, brincar o mais tempo possível antes de o comer e saciar voluptuosamente o ego com a sua vítima.
"A mulher sofre mais com a supressão do ego do que com a do sexo", afirmou uma escritora, e talvez seja verdade. Mas olhai, olhai para as mulheres modernas de cinquenta anos, as que cultivaram o ego até ao extremo limite! São em geral criaturas que nos enchem de pena ou de repulsa.
Kate sabia tudo isto, e nisto pensava enquanto ali sozinha na sua vivenda. Tivera a sua liberdade, mesmo no México. Esses homens deixá-la-iam partir. Não estava prisioneira. E levaria consigo todos os despojos que ainda guardavam.
E depois? Sentar-se nos salões de Londres e ser mais uma coruja ao lado das outras? Arvorar um sorriso postiço e falar com voz
artificial?
"Não! - disse consigo. - O meu ego e a minha personalidade não valem esse preço. Prefiro desfazer-me deles em parte a ver-me reduzida a isso."
No fim de contas, quando Cipriano a acariciava toda ela parecia desabrochar. Era a força do sexo, que enchia o mundo de lascívia e sobre que ela não se atrevia a reflectir. O seu poder tornava-se maior do que a sua vontade. Por outro lado, quando estava só e abria as asas do seu ego e o espírito desferia voo, o mundo afigurava-se-lhe maravilhoso. Todavia, após uns instantes, desvanecia-se o esplendor, substituído por uma solidão amarga.
"Preciso de ambos - concluiu. - Não posso afastar-me de Cipriano nem de Ramon. Renovaram-me o sangue. Digo que são limitados, mas todos temos de o ser. Se tentamos ser ilimitados, tornamo-nos monstros. Sem Cipriano a afagar-me, a limitar-me e a submergir-me a vontade, tornar-me-ia uma velha horrível. Devo regozijar-me pelo facto de Cipriano me limitar com a sua vontade e o seu contacto ardente. Porque o que eu chamo a minha grandeza faz-me cair no vácuo desde que não haja a mão dum homem para me segurar. Ah, sim! Antes submeter-me do que ser uma mulher horrível."
Chamou o criado e foi através do lago num barco de remos. Era por uma bela manhã de Novembro. Nas escarpas das montanhas, a nordeste, as sombras tinham um tom azul muito puro. Por baixo, a vegetação começava a amarelecer. O lago, embora ainda cheio, principiava a baixar, e os jacintos-d'água vogavam à toa. No ar calmo viam-se pássaros voando. Alguns milheirais exibiam os seus talos secos, mas as flores de palo-blanco tinham já desabrochado e errava o perfume das acácias amarelas.
"Porque havia de me ir embora? - pensou Kate. - Porque havia de ver os autocarros na lama de Piccadilly na véspera do Natal e a multidão nos passeios molhados diante das lojas iluminadas? Mais vale ficar aqui, onde a minha alma é menos triste. Tenho de pedir desculpa a Ramon das coisas que lhe disse. No fim de contas, aqui há outra grandeza, com o som dos tambores e o grito de Quetzalcoatl."
Já ela distinguia o último andar da casa de Jamiltepec, semelhante a uma torre avermelhada, e a buganvília roxa pendente do muro, os cachos das flores de plumbago e a porção de rosas brancas.
- Están tocando - disse tranquilamente o barqueiro, erguendo para ela os olhos negros.
Já ouvira o som do tambor em Jamiltepec. Uma voz de homem se elevou na manhã clara.
O barqueiro levantou um remo, como se fizesse sinal. E assim que o barco penetrou na enseadazinha, veio um criado a correr ao longo do molhe. No ar soalheiro notava-se o cheiro das daturas e das rosas, e um silêncio profundo que nem o tambor nem o canto perturbavam.
- Don Cipriano está aqui? - perguntou Kate.
- Está - murmurou o criado, apontando para o balcão donde partia a voz do cantor. - Deseja que eu o informe da sua chegada?
- Não - respondeu Kate. - vou sentar-me um bocado no jardim, antes de subir.
- Nesse caso, deixarei a porta aberta - volveu o homem - e assenhora entrará quando quiser.
Kate instalou-se no banco de uma árvore, donde pendiam flores de trepadeira enroscada ali como uma serpente. Pôs-se a ouvir o canto. Ramon ensinava o novo hino a um dos cantores.
Não tinha muito boa voz o Quetzalcoatl vivo. Cantava baixinho, como se para si mesmo, mas com expressão simples e bela. Kate não conseguiu perceber a letra.
- Ya? - disse Ramon ao terminar.
- Ya, patrón! - respondeu o cantor.
E na sua voz forte e pura, este entoou o hino:
O meu caminho não é o teu e o teu não é o meu.
Mas vem, antes que nos separemos.
Cada qual por seu lado, dirijamo-nos à Estrela da Manhã
Para lá nos encontrarmos.
Não te aponto o meu caminho
Nem chamo por ti.
Mas a Estrela é a mesma para nós ambos
E a ambos nos atrai.
A cada qual o seu caminho, esse que esplende Na encruzilhada,
Que abre a sua chama como a porta de uma tenda Por onde, invisíveis, deslizamos.
Não pode um homem pisar como a mulher
Nem a mulher andar como o homem.
O espírito de cada um através das folhas de sombra
Se move como pode.
Mas a Estrela da Manhã e a da Noite Fixam tendas de fogo
Onde nos retinimos quais ciganos, sem saber Como é que vieram os outros.
Nada mais peço que me insinuar Na tenda do Espírito, e deter-me Na casa da chama bifurcada Como hóspede seu.
Fica aí comigo, esposa minha, Corporalmente. E que a flama nos envolva Qual uma rede.
Sede lá, homens, comigo,
Alcançai o lar.
Ride comigo, enquanto a mulher repousei,
Porque vale a pena.
O homem entoara o hino por várias vezes, parava, dir-se-ia esquecer-se, extinguia-se-lhe a voz pura e quente. Então a de Ramon, baixa e um tanto rouca, elevava-se com subtil intensidade, como se vinda do meio duma concha; depois, o tenor retomava o canto, que lhe corria no sangue como uma chama.
O mozo de Kate, ou seja, o seu criado, seguira-a ao jardim, e tinha-se sentado de pernas cruzadas, a certa distância, debaixo de uma árvore, de costas apoiadas ao tronco - sombra acocorada, vestida de branco. Os dedos dos pés saíam-lhe rijos e escuros das huaraches esburacadas, e o trancelim de palha do chapéu pendia-lhe junto à face trigueira. Quanto ao resto era tudo alvo, e as calças de linho apertavam-se-lhe nas coxas.
Quando o canto terminou, e o tambor deixou de rufar, e as vozes, num murmúrio, mal se ouviam, o mozo ergueu a cabeça e olhou para Kate. Brilhavam-lhe as pupilas negras, no rosto errava-lhe um sorriso tímido.
- Está muy bien, patrona? - perguntou, um pouco envergonhado.
- Muito bem - respondeu ela, como um eco fiel. Mas no seu coração debatiam-se conflitos diversos, e o criado sabia-o.
Parecia tão novo com aquele sorriso alegre, excitado, receoso! Havia nele qualquer coisa de perpetuamente infantil; mas era uma criança que, dum momento para outro, se podia tornar num selvagem- vingativo e brutal, um homem que nunca perdia a consciência do seu sexo. E Kate pensou mais uma vez que existiam várias maneiras de regressar à infância.
O criado, porém, continuava a espiá-la, de soslaio: queria ver se havia nela qualquer hostilidade secreta. Desejaria que concordasse com o hino, com o tambor e com tudo mais. Como uma criança, ansiava pela sua aquiescência; mas, se a senhora se mostrasse hostil, ele seria o primeiro a manifestar-se. Um julgamento adverso torná-lo-ia inimigo declarado.
Ah, os homens eram todos iguais!
Nessa ocasião, o rapaz levantou-se, com súbita agilidade, e ela ouviu a voz de Cipriano na varanda:
- Que é, Lupe?
- Está la patrona - respondeu o mozo.
Kate ergueu-se também e olhou. Viu a cabeça e os ombros nus do marido, em cima, no parapeito.
- Já lá vou - participou-lhe.
Vagarosamente transpôs os portões de ferro do corredor. Lupe, que a seguia, fechou-os atrás de si.
No terraço encontrou Ramon e Cipriano, ambos de tronco nu, que a esperavam em silêncio. Kate, embaraçada, explicou:
- Estive a escutar o novo hino.
- E-que lhe pareceu? - perguntou Ramon.
- Gostei.
- Sentemo-nos - propôs ele. E a recém-vinda deixou-se cair numa das cadeiras de verga. Cipriano ficou de pé, encostado à balaustrada.
Kate viera para declarar a sua submissão: dizer que já não queria ir-se embora. Mas, vendo os dois homens numa disposição muito quetzalcoatliana, não se decidia a aflorar o assunto. Tinha a sensação de ser uma intrusa. Não se compenetrava de que também pertencia à seita.
- Parece-me que não há Estrela da Manhã para nos reunir a todos três - observou, irónica mas um pouco trémula.
Sobre eles desceu um silêncio ainda mais profundo.
- Estou a ver que uma mulher é realmente de trop aqui junto de vocês ambos.
Hesitou um tanto ao dizer isto. Sabia que Cipriano ficava perplexo e melindrado quando ela escarnecia.
Ramon respondeu-lhe com uma doçura que vinha direita do seu coração.
- Então que há, prima?
com um tremor nos lábios, Kate replicou:
- Em verdade, não desejo deixá-los.
Olhando rapidamente para Cipriano, Ramon retorquiu:
- Bem sei que não deseja.
O tom suave e protector da sua voz fê-la revoltar-se de novo. com os olhos rasos de lágrimas, ela bradou:
- Afinal vocês não precisam de mim!
- Não, não, preciso de ti. Verdad, verdad! - exclamou Cipriano em voz baixa e contida, quase num murmúrio.
E, no meio das suas lágrimas, Kate pensava: "Como sou intrujona! Sei perfeitamente que sou eu que não os quero. Quero-me só a mim mesma. Mas posso iludi-los de modo que o não percebam."
Havia notado a paixão fálica e ardente na voz de Cipriano.
Coube a vez a Ramon de falar, e fê-lo em tom glacial:
- A Caterina é que não precisa de nós. Não se comprometa connosco. Atenda à sua própria preferência.
- E se ela me aconselhar a partir? - ripostou Kate, como um desafio, através de um resto de lágrimas.
- Então parta!
Kate recomeçou a chorar.
- Ah, eu bem sabia que não precisavam de mim. Mas Cipriano acudiu com persuasiva ternura:
- Não és dele! Ele não pode dizer nada.
- Isso é verdade - concordou Ramon. - Não me dêem ouvidos.
Levantando bruscamente a cabeça, no meio do seu pranto, viu-o afastar-se sem rumor.
Limpou a cara, recuperou a calma e, de olhos húmidos, fitou Cipriano. Este conservava-se muito direito, como um galo combatente. Nas pupilas negras brilhava-lhe um fulgor estranho.
Sim, Kate também tinha medo dele, desses olhos pretos inumanos.
- Não queres que me vá embora, pois não? - perguntou-lhe suplicante.
Espalhou-se no rosto do homem um sorriso lento, e um leve tremor lhe percorreu o corpo. E então, na sua voz de inflexões índias, muito suave, Cipriano disse-lhe em espanhol:
- Yo! Yo! - E as sobrancelhas erguiam-se-lhe numa expressão de espanto divertido. Ainda trémulo, concluiu: - Te quiero mucho! Mucho te quiero! Mucho, mucho!
As palavras soavam tão cariciosas, vinham-lhe tanto do seu sangue ardente, que a mulher se sobressaltou e disse:
- Não me deixarás partir!

XXV
Foi uma surpresa para Kate o casamento de Don Ramon dois meses depois do falecimento de Dona Carlota. A noiva tinha vinte e oito anos e chamava-se Teresa. Após o casamento, que se realizou civilmente e na maior intimidade, Ramon trouxe a nova esposa para Jamiltepec.
Conhecia-a desde pequena, pois era filha do proprietário da famosa hacienda de Las Jemas, situada a uma dúzia de milhas de Jamiltepec. Don Tomaz, pai da rapariga, fora grande amigo dos Carrascos. Morrera, porém, um ano antes, deixando a importante hacienda aos três filhos e confiando a Teresa a administração da quinta. Teresa era a mais nova. Os dois irmãos viviam a existência inútil e perdulária dos mexicanos, e por isso Don Tomaz, a fim de salvar a propriedade daquelas mãos nefastas, designara Teresa como administradora e obtivera o consentimento dos dois irmãos. Na verdade, os rapazes eram criaturas ociosas que, em vida do progenitor, nunca haviam mostrado o mínimo desejo de o ajudar na difícil gerência da quinta. Teresa fora a única. E durante a doença do pai, todas as fadigas da administração haviam recaído sobre ela, enquanto os irmãos gastavam o dinheiro e as forças nas orgias em que se deleitam os mexicanos de certa classe. No entanto, assim que o pai faleceu, os dois irmãos apareceram em casa cheios de arrogância, com a intenção de se tornarem hacendados. Pela simples força bruta afastaram a irmã do seu cargo, deram ordens contrárias às dela, escarneceram-na e uniram-se para a esmagar. Queriam relegá-la para o seu lugar de mulher, isto é, para uma espécie de escravidão a que, aos seus olhos, deviam pertencer as pessoas desse sexo.
Eram brutos, e como brutos, cobardes. E, como tantos mexicanos daquela categoria, condescendentes e prejudiciais para si próprios. Relacionaram-se com juizes e generais, exibiram-se em ricos trajes de charro e receberam em casa uma multidão de gente duvidosa.
Contra aquela indolência e brutalidade, Teresa nada podia fazer e conhecia bem a sua impotência. Os irmãos eram fracos, sensuais, belos à sua maneira, dissipadores, despreocupados, mas de sentimentos ferozes.
- Faz-te bonita e arranja um marido - aconselhavam-lhe. Aos olhos deles, o seu maior crime era não atrair os homens
com quem conviviam. O facto de nunca ter conhecido homem e não se haver ainda casado tornava-a quase odiosa. De que servia a mulher senão para uma vida de relaxamento e licenciosidade?
- Queres usar calças? - perguntavam-lhe, irónicos. - No, señorita, enquanto houver aqui dois homens. No, señorita, os homens é que usam calças, e as mulheres escondem o que têm debaixo das saias.
Teresa já estava habituada a estes insultos; contudo, sofria muito no seu íntimo.
- Queres viver à moda dos americanos? Então abala para a América, corta o cabelo e veste calças. Compra lá um rancho e arranja um marido que receba as tuas ordens.
Teresa consultou advogados, que se limitaram a erguer os braços ao céu. Foi então procurar Ramon, a quem conhecia desde pequena.
Para expulsar os irmãos da hacienda seria necessário intentar um processo dispendioso e de resultado incerto. Em vez disso, Ramon propôs-lhe que casasse com ele segundo um regime matrimonial em que ela disporia sempre dos seus bens.
- Nesta terra os homens desprezam as mulheres e não podem passar sem elas, o que representa um suicídio - disse Ramon.
O casal foi visitar Kate. Teresa era franzina, pálida, de farta cabeleira preta e grandes olhos negros. Apesar do ar calmo, notava-se-lhe certa independência e autoridade. Sofrera muitas humilhações da parte dos irmãos e tinha ainda os olhos pisados pelas lágrimas de amargura, indignação e cólera.
Agora, amava Ramon com todas as veras da sua alma. Isso era evidente. Fora ele que salvara da degradação a sua dignidade de mulher e lha havia restituído bela e intacta. Em troca, passou a conceder ao seu salvador uma admiração respeitosa e quase feroz.
Em relação a Kate mostrava-se tímida e um pouco distante, tal se receasse essa mulher branca, doutra raça, que viajara muito e possuía larga experiência da vida. com um vestido claro e um rebozo de gaze preta, estava sentada na sala de Kate, com as mãos trigueiras pousadas no regaço, o pescoço escuro muito direito, e desviando um pouco o rosto fino e bem modelado. A irlandesa achou-lhe uma aparência de costureirinha.
Mas Kate não deu fé do estranho poder autoritário que também emanava desse corpo moreno e esguio, nem do olhar penetrante e desconfiado que por vezes Teresa lhe dardejava. Alma de fogo num corpo delicado. Atitude cheia de reservas. De quando em quando, a boca parecia formular uma palavra em silêncio e nos lábios perpassava-lhe um sorriso constrangido. Nunca lhe desaparecia, porém, o fulgor dos olhos.
- Falas tão pouco, chica! - observou Ramon, com certa ternura.
Então os olhos dela cintilaram e a boca esboçou um sorriso.
Via-se bem que estava apaixonada, embebida num êxtase de amor, o que explicava a sua frieza perante Kate.
"Despreza-me - pensou esta - porque não sou capaz de amar como ela." E, por um segundo, Kate invejaria Teresa. Mas daí a pouco desdenhava-a: "Tipo de harém..."
Sim, Ramon adaptava-se bem ao papel de sultão. Era belo, no seu traje branco, muito sereno, com ar de paxá, mas ao mesmo tempo afável, atencioso - e com aspecto tão juvenil! Como um paxá, preparava um cacharolete de genebra, vermute e limão. Teresa espiava-o de esguelha, sem perder de vista Kate, sua possível inimiga, a mulher que falava aos homens no mesmo pé de igualdade.
Kate levantou-se para ir buscar colheres. Nesse momento, Ramon recuou da mesa baixa em que espremia o limão e colidiu de leve com a dona da casa quando esta passava. Kate reparou de novo como ele se esquivava a qualquer contacto com ela. A sua sensualidade natural afastava-o de Kate como uma chama se desvia perante uma corrente de ar. Ela corou, e Teresa viu o súbito rubor sob essa pele branca, e o clarão quase de ira que atravessou os olhos castanhos de Kate. Momento de evasão de dois cursos de sangue tão diferentes!
Teresa pôs-se de pé, aproximou-se de Ramon e, inclinando-se sobre os copos, perguntou com aquela afectação infantil própria das mulheres da sua raça:
- Que puseste aí?
- Olha ! - retorquiu ele. E, com a mesma infantibilidade dos homens do seu tipo, começou a explicar-lhe de que se compunha o cacharolete e deu-lhe a provar um pouco de genebra, numa colher.
- É tequila da pior - declarou Teresa.
- A oito pesos cada garrafa? - volveu o marido, a rir.
- Custa esse preço? Tão caro!
Ela fitou-o nos olhos, por um momento, e viu esse rosto tornar-se mais escuro, mais ardente, como se todo ele se derretesse ao senti-la perto de si. Teresa então ergueu a cabeça, orgulhosamente. Havia-o reconquistado.
"Manhas de harém!" pensou Kate. E experimentou certa impaciência ao verificar como o ilustre, prodigioso Ramon se deixava prender nas malhas de um ser tão insignificante. Sentia-se contrariada por ter assim consciência da presença física do homem, do seu corpo belo, dos seus ombros fortes, das suas pernas vigorosas. Dir-se-ia ter também de sucumbir ao fascínio e vir a fazer parte do harém daquele sultão.
Que estranha vontade possuía a pequenina mulher morena! Que subtil poder feminino num corpo que quase só tinha pele e osso! Teresa era capaz de engrandecer a glória do marido - ao passo que ela própria se tornava imperceptível, a não ser quanto ao fulgor tigrino dos seus grandes olhos pretos.
Kate observava admirada. Conhecera homens que lhe davam a impressão de a transformarem em rainha, de ter a cabeça nas estrelas e repousar o peito nas nuvens. Sabia o que era subir, subir, subir até encher o universo com a sua feminilidade.
Via agora, porém, o contrário. Quem tinha poder sobrenatural era essa criatura pequenina, que fazia maior Don Ramon, enquanto ela se diminuía e ficava invisível, excepto no que respeitava aos olhos. Ele, como um sultão, como um fruto sazonado ao sol, tomava uma aparência extraordinária e imponente; e então, por algum poder misterioso do seu corpo trigueiro, a frágil Teresa fazia-o ainda mais completo.
Era o que Ramon queria, e Kate, percebendo-o, sentia-se irritada. Parecia-lhe odioso aquele macho triunfante, exasperava-a aquela rapariga ardente que só pensava em exaltar o homem.
ah, o poder oculto da mulher trigueira! Kate chamava àquilo harém e prostituição. Sim, era a atitude da escrava. Que pretendia dele essa criatura senão o sexo, como uma prostituta?
Pois não era degradante para uma mulher semelhante espécie de amor? E não tornava o homem fraco, sensual, ou odiosamente tirânico?
No entanto, já duma coisa Kate se convencera: que a chave da vida, e da continuidade da vida, residia nas relações do homem e da mulher. A união completa dos dois representava a vida presente e futura; dessa fusão surgia uma vida nova.
Mas tais relações necessitam de equilíbrio, e TereSa destruía-o juntando na balança o seu peso ao do homem.
Ramon não quisera Kate. Possuía agora o que desejara: aquela criaturinha escura, tão servil e orgulhosa do seu poder. Só quisera Kate para camarada, camarada inteligente, Não para mulher. Preferira essa viborazinha de Teresa...
Cipriano, esse desejava Kate. O general, o militar empertigado desejava Kate, mas só por momentos. não se importava casar realmente com ela; o que lhe interessava eram os instantes passados a seu lado. Kate tinha de lhe conceder esses instantes, e em seguida ele tornava a partir para junto das suas tropas. com isso se contentava. E ela também. Assim, ficava senhora da sua existência. Não tinha feitio para andar de roda dum homem a excitar-lhe o sangue, a estimular-lhe o ardor!
Levantou-se e foi ao quarto buscar um livro que prometera a Ramon. Não podia suportar mais tempo a exibição do amor dele por Teresa. Ah, aquele sorriso néscio estampado no rosto do homem, o brilho estranho dos olhos, o aprumo orgulhoso do corpo!
Eis como eram os dessa raça. Selvagens, com o insuportável fluido sensual dos índios e aquela maneira primitiva de se dissolver numa horrível confusão de desejo; com a presunção da sua virilidade insolente e inesgotável.
O pior era que essa força cósmica que ela até aí só conhecera nos olhos azuis dos homens loiros (e que tornava rainhas as respectivas mulheres, ainda que eles as detestassem por fim), essa força declinava agora nos olhos azuis e nascia nas pupilas pretas. As de Ramon, naquela ocasião, luziam de orgulho, poder e desafio. E o mesmo notava Kate nos olhares rápidos de Cipriano. A força do mundo esmorecia nos homens loiros, a sua supremacia abandonava-os para renascer nos de cor escura.
Joachim, o ser inquieto, inteligente e sensível, que era capaz de penetrar na alma de Kate e contemplá-la com os seus olhos azuis, morrera à vista da mulher. Se ela pudesse excitar-lhe o sangue, como Teresa fazia a Ramon, nunca ele teria morrido. Mas seria impossível. Cada um é como é. E cada raça, também. Teresa bateu timidamente à porta do quarto.
- Posso entrar?
- Entre! - respondeu Kate, endireitando-se e deixando as rimas de volumes em volta da mala dos livros.
O aposento era amplo e através das janelas rasgadas via-se o pátio e o jardim soalheiro, mangueiras de troncos lisos como trombas de elefantes, ervas reverdecidas pela chuva e galinhas a esgaravatar a terra debaixo das folhas esgarçadas das bananeiras. Um pássaro vermelho chafurdava no tanque, abrindo e fechando as asas escuras sobre o corpinho escarlate.
Teresa, porém, olhava para o quarto, não para fora. Sentiu o cheiro de cigarros, cujas pontas enchiam um cinzeiro de ágata. Notou os livros em desordem, as jóias espalhadas, a tapeçaria persa pendente atrás da cama, a colcha magnífica, os vestidos de seda e de veludo colocados sobre uma arca, os xailes de longas franjas cuidadosamente dobrados, os sapatos espalhados no chão, brancos, cinzentos, amarelos, castanhos e pretos, e os belos castiçais chineses.
Teresa parecia fascinada por tudo aquilo.
- Que linda! - disse, tocando na colcha sumptuosa.
- Foi uma amiga que a fez e ma ofereceu, em Inglaterra. Teresa observava tudo com espanto, em especial as jóias dispersas no toucador.
- Não gosta dessas pedras encarnadas? - perguntou Kate, ajoelhando de novo para arrumar os livros e olhando o pescoço moreno pendido sobre as jóias. Que ombros frágeis e que pele acetinada, naquele vestidinho branco! E aquela cabeleira negra, segura por travessas de tartaruga! No conjunto, uma rapariguinha humilde e insignificante. Mas Kate bem sabia que Teresa não era insignificante nem humilde. Naquele corpo franzino havia um estranho poder que despertava o ardor num homem e o exultava e, de certa maneira, o guardava só para si. O eterno apelo da carne...
Na mesinha de costura estava um pedaço de musselina que Kate comprara na índia e não sabia em que aproveitar. A cor, espécie de amarelo-pêssego, não se harmonizava com o seu tom de pele. Teresa apalpou o tecido entremeado de fios de ouro.
- É organdi?
inquiriu.
- Não, é musselina feita à mão. Ofereço-lha. A cor vai-me mal, e a si deve-lhe ir lindamente.
Ergueu-se e dispôs o tecido de roda do pescoço bronzeado de Teresa. No espelho, esta viu-se envolta na bela musselina e os olhos brilharam-lhe de prazer.
- Ah, não! Não posso aceitar!
- Porquê? Não condiz bem comigo. Faz agora um ano que a tenho aí. Até pensei em cortá-la para fazer cortinas. Fique com ela.
Kate talvez fosse arrogante, e até cruel, na sua maneira de oferecer.
- Não quero privá-la...
- Aceite, peço-lhe.
Ramon apareceu no limiar e relanceou o quarto e as duas mulheres.
- Olha! - disse Teresa, embaraçada. - A señora quer dar-me esta musselina indiana. - Voltara-se timidamente para ele, com o tecido desdobrado em roda do pescoço.
- Fica-te muito bem - declarou Ramon, contemplando-a.
- A señora não devia oferecer-me...
- Se to dá é porque faz gosto nisso.
- Então - concluiu Teresa, virando-se para Kate - muito e muito obrigada.
- Não tem de quê!
- Ramon acha que me vai bem...
- Na verdade, vai-lhe a matar - declarou Kate, dirigindo-se agora a Ramon. - O tecido foi feito na índia para alguém com aquela cor trigueira. Há-de condizer admiravelmente com ela.
- É muito bonito - concordou Ramon.
com o olhar, percorria o quarto, examinava os diferentes objectos que ali estavam, vindos de todas as partes do mundo, e até as pontas de cigarro na taça de ágata: luxo, desordem, e algo de esterilidade da mulher emancipada.
Kate não sabia em que é que ele pensava. Mas, por seu turno, reflectia: "Ora aí está o homem que eu defendi naquele terraço, que eu vi com um buraco nas costas, nu e inconsciente. Nesse momento não se parecia com um sultão."
Teresa devia ter-lhe adivinhado os pensamentos, porque disse,
olhando para Ramon:
- Sem a señora, Ramon teria morrido. Nunca me esquecerei...
- Não falemos nisso - atalhou Kate. - O destino tece-as.
Eu não alterei nada.
- Foi o próprio destino, señora!
- Não quer vir passar uma temporada connosco em Jamiltepec? - perguntou Ramon. - Agora já tenho uma dona de casa.
- Sim, vá! - insistiu Teresa.
- Ela precisa de uma amiga - explicou o marido.
- Preciso, é verdade. Nunca tive nenhuma a valer desde que deixei o colégio, ainda pequena...
Kate duvidava que pudesse ser para Teresa uma amiga a valer. E cogitava no que pretenderiam, de facto, aqueles dois - e o que pensariam dela.
- Pois sim, terei muito gosto em passar uns dias...
- Óptimo! - exclamou Teresa. - Quando deverá ser? Combinaram o dia.
- E escreveremos a canção de Malintzi - disse Ramon.
- Não faça semelhante coisa - acudiu Kate vivamente.
Ele olhou-a com ar pasmado, como se não percebesse logo, um ar que lhe era habitual. Por instantes, Kate poderia supor ter-lhe dado a impressão que um fantasma produziria se aparecesse a uma criança.
Em Jamiltepec, as duas mulheres entretiveram-se a talhar vestidos para Teresa na peça de musselina cor de ananás. Para senhora casada, o guarda-roupa de Teresa era bastante modesto: só possuía trajes pretos, que lhe davam um ar infeliz, e alguns brancos já antiquados. Até aí só vivera para o pai (que tinha bons livros acerca do México e toda a vida escrevera sobre a história do estado de Jalisco) e para dirigir a sua hacienda. Esta, chamada de Las Jemas, era a única que não fora destruída durante as revoltas que se seguiram à fuga de Porfirio Diaz; Teresa orgulhava-se bastante deste facto.
O seu carácter assemelhava-se muito ao de uma freira, talvez por se tratar de uma pessoa profundamente apaixonada e as paixões profundas serem mais para se esconder do que para exteriorizar nos contactos quotidianos.
Kate, provando-lhe o vestido sobre os ombros morenos, tornou a admirar a estranha macieza daquela pele escura e o pesado volume dos cabelos negros. A família dos Romeros, a que Tereza pertencia, estabelecera-se no México logo nos primeiros tempos da conquista.
Que lhe fizesse mangas compridas, sugeriu. E acrescentou, ocultando um pouco envergonhada a magreza daqueles membros trigueiros:
- Tenho os braços tão delgados! Não são bonitos como os
seus.
Kate, mulher de quarenta anos, tinha-os fortes e alvos e toda ela
era bem constituída.
- Sim - repetiu Teresa -, compridas até aos punhos.
A outra assim fez, achando que, na realidade, era o que mais convinha àquela natureza.
- Aqui os homens - explicou a dona da casa - não gostam
de mulheres magras.
- Não importa o que os homens pensam - sentenciou Kate. - Julga que Don Ramon gostaria que fosse gorda como uma
galinha?
Teresa fitou-a com os seus olhos pretos, grandes e brilhantes -
tão vivazes e, de certa maneira, fugidios.
- Quem sabe! - exclamou. E, no seu sorriso rápido, malicioso, via-se que não desgostaria de ser, às vezes, como uma galinha
gorda.
Presentemente Kate conhecia mais do que nunca a vida interior duma hacienda. Quando estava em casa, Ramon consultava diariamente o feitor; Teresa, porém, aliviava-lhe esse trabalho e já se ocupava bastante da propriedade. Em geral, ele andava por fora, ou para ir à Cidade do México, ou a Guadalajara e mesmo a Sonora. Todos o conheciam no país e o seu nome tornara-se célebre. Mas, debaixo desse culto que os compatriotas lhe prestavam, Kate adivinhava uma animosidade latente. Talvez preferissem aniquilar os seus heróis a elevá-los temporariamente às culminâncias da glória. O momento que mais apreciavam era o da queda do ídolo.
Para Kate, sempre céptica, deviam eles andar afiando o gume com que o atingiriam no peito, quando o herói se tornasse demasiadamente incómodo. É claro que precisavam da anuência de Cipriano, e Cipriano era um diabinho que os mexicanos temiam deveras. Cipriano, por então, conservava-se fiel - para com Ramon e para consigo mesmo. Representava o papel de Huitzilopochtli e Ramon o de Quetzalcoatl. Eis uma verdade simples e evidente para o general, que mantinha o seu exército pronto para o que desse e viesse. O próprio presidente seria incapaz de prescindir de Viedma, apesar de ser também um homem destemido.
- Qualquer dia - declarava Cipriano - poremos Quetzalcoatl na Catedral de Puebla, e Huitzilopochtli na da capital, e Malintzi na de Guadalupe. Não falta muito, Ramon.
- Faremos com que esse dia chegue - respondia Ramon.
Mas Ramon e Montes sofriam ambos com a profunda e diabólica animosidade do país, manifestada no próprio silêncio da população. Era sempre assim, fossem quais fossem as mãos em que o poder caísse: os Mexicanos pareciam destilar ódio oculto, um ódio demoníaco que lhes aviltava a alma; um ódio cujo único fim consistia em frustrar todos os planos.
Aí estava o dragão do México, que Ramon teria de combater. Contra o mesmo inimigo devia lutar o presidente Montes, e isso arruinava-lhe a saúde. Igualmente Cipriano, mas este desenvencilhava-se melhor. Os soldados apoiavam-no, com tambores e danças de roda das fogueiras. E o general consolidava de dia para dia a sua posição.
Ramon, na sua província, também se sentia seguro. Era o chefe, e, com o seu esforço e energia, lograva dominar qualquer veleidade de revolta. Aterrorizava com o mistério da vida, continha a gente em respeito pela fascinação que exercia. Nos seus domínios, considerava-se forte. Mas fora daí, e em especial na Cidade do México, aquela invisível e subtil má vontade do povo dir-se-ia fazê-lo sangrar, sangrar imensamente. E também a voracidade dos estrangeiros, aves de rapina que rondavam a capital cosmopolita.
Durante a ausência de Ramon, Kate fez companhia a Teresa. As duas mulheres tinham isto de comum: achavam que era melhor apoiar um homem corajoso do que fazer papel de intrometidas e importunas. Isso as unia. A profunda convicção de que deviam ser fiéis aos respectivos maridos ligava intimamente a mulher de Cipriano à de Ramon.
Estava quase no fim a estação das chuvas, embora se pudessem prever aguaceiros ocasionais para Setembro ou mesmo Outubro. Entretanto o belo Outono mexicano surgira na terra, como uma espécie de Primavera ao inverso. Vastos espaços se cobriam de flores brancas e cor-de-rosa, estranhos arbustos silvestres floresciam também, duma maneira fantástica, brilhavam à luz florestas inteiras de girassóis; o céu estava de um azul puríssimo, e, nas terras encharcadas da última chuva, a claridade do dia reverberava intensa.
O lago enchera-se mais, povoando de plantas aquáticas todas as suas margens. Vinham aves imigradas do Norte, nuvens de patos bravos que pareciam poeira no ar e depois polvilhavam a água como raminhos de erva: colimbos, grous, gaivotas brancas dos mares interiores, tal se o mistério dos regimes setentrionais se deslocasse para o Sul. Errava em terra o cheiro de água, que produzia uma sensação calmante - tanto mais que Kate supunha ter origem na aridez do solo parte do horror que lhe causava o povo mexicano. Se houvesse sempre uma gota de água na atmosfera e uma neblina sobre as árvores, desapareceria dos corações humanos aquela maldade inexprimível.
Kate ia muitas vezes a cavalo, com Teresa, ver os campos. A cana-de-açúcar, nos vales, crescia muito verde e muito alta, e os peóns começavam a cortá-la com os seus nwchetes, que pareciam espadas, e enchiam os carros de bois que as transportavam à fábrica de Sayula. Nas vertentes áridas das colinas, avultava na sua rigidez férrea a espinhosa planta da teqnila, que é uma espécie de agave. E nos cactos rijos abriam flores maravilhosas, belas de mais para tão sinistra planta. Através dos campos viam-se molhos de vagens apanhadas dos feijoeiros e abóboras dum tamanho incrível. Entre as folhas emurchecidas pendiam tomates e pimentões. Ainda se erguiam pés de milho com espigas tenras. Como a banana era pouca, as crianças colhiam toda a fruta que encontravam para fazer doce. Teresa, para esse efeito, aproveitava até os últimos figos e pêssegos. Das mangueiras suspendiam-se frutos amarelos e maduros, mas na maior parte eles estavam verdes e tombavam pesados como testículos de toiro.
Era Outono no México, com patos bravos na água, e caçadores com espingardas, e rolas nas árvores. Outono do México, início da estação seca: céu mais alto, azul mais pálido, poentes de rara transparência doirada. Os bagos de café avermelhavam-se nos arbustos contorcidos debaixo das árvores maiores, e as buganvílias, de tons roxos, eram tãoespessas que se podiam mergulhar nelas os braços.
Teresa cuidava de tudo e Kate ajudava-a. Se estava um peón doente numa das cabanas, se era preciso separar os enxames de abelhas nas colmeias debaixo das mangueiras, fazer compotas, tratar do jardim, dos vitelos, do fabrico de manteiga ou de queijos, Teresa a tudo isso atendia acompanhada de Kate. E esta admirava-se da vontade firme e constante, que tinha de ser exercida a todo o momento. Tudo corria bem graças a um poderoso esforço de vontade. À mínima fraqueza do patrão as coisas desandariam e seria a ruína da propriedade.
Jamais um desfalecimento, sempre a vontade tenaz.
Ramon regressou, numa tarde de Novembro, de longa viagem a Sonora. Viera por terra desde Lepic, e, por duas vezes, encontrara-se retido pelas inundações; não era vulgar chuvas tão tardias. Mostrava-se fatigado e com ar ausente. Kate sentiu um baque no coração enquanto comentava para si mesma: " Tão longínquo, que até parece encaminhar-se para a morte."
As nuvens cobriam o céu novamente, relampejava no horizonte, mas tudo estava silencioso. Kate retirou-se cedo e foi até à extremidade do terraço sobranceiro ao lago. Só a claridade intermitente dos relâmpagos iluminava a noite escura e, num desses breves clarões, viu Teresa sentada junto do muro do terraço descoberto; tinha a cabeça de Ramon deitada no regaço e acariciava-lhe lentamente os bastos cabelos pretos.
Kate sobressaltou-se, e disse num murmúrio:
- Desculpem! Não sabia que se encontravam aqui.
- Quis estar cá fora, ao ar livre! - explicou Ramon, soerguendo-se a custo.
- Não se mexa! - pediu Kate. - Foi estupidez minha ter vindo aqui. O senhor está cansado.
- Sinto-me realmente cansado - volveu ele, deitando-se outra vez no chão. - Aquela gente chega a convencer-me de que estou esgotado. Por isso voltei para Teresa.
- Sim - retorquiu Kate. - Não se é impunemente o Quetzalcoatl vivo. É natural que o esgotem. Mas valerá a pena ser devorado por eles?
- Tem de ser assim. Há-de-se verificar a mudança e é um homem que a deve fazer. Às vezes chego a desejar que não seja eu.
- Também acho. E Teresa igualmente. Até penso se não será preferível continuar a ser apenas um ser humano.
Teresa, entretanto, calava-se.
- Faz-se o que é preciso fazer - disse Ramon. - No fim de contas, não se deixa de ser homem. E, se daí resultar ferimento... à la guerre comme à la guerre!
Aquela voz, no escuro, parecia a de um fantasma.
- Ah! - fez Kate, suspirando. - Gostava de saber o que é um homem que se expõe a tantos horrores por causa dos seus semelhantes.
Houve um momento de silêncio.
- O homem é uma coluna de sangue dotada de voz. Quando a voz se extingue e fica apenas a coluna, tanto melhor.
Retirou-se ela para o seu quarto. Ia triste, levando ainda nos ouvidos o som daquelas palavras melancólicas. Dir-se-ia que Ramon tinha dentro de si uma ferida aberta. Era como se Kate a sentisse, nas suas próprias entranhas.
Se ele morresse, em resultado de tanto esforço? Então, pensou, Cipriano ficaria só e tudo estaria acabado.
Por que razão devia um homem afadigar-se de tal maneira por causa dum povo estúpido e mau? Se o mundo corria à desfilada para a sua perdição, deixá-lo, isso era lá com ele.
Pensou em Teresa, que consolava Ramon sem dizer nada. E pensou em Ramon, assim ferido e desesperado! Coisas horríveis, na verdade. Ela devia intervir, defendê-lo contra si próprio. Porque haviam os homens de empreender esses combates inúteis, dos quais voltavam para casa a fim de se restabelecerem junto das suas companheiras?
Para Kate, essa luta não merecia sequer as honras de um ferimento. Que tão antipático mundo terminasse de vez, se tal era o seu destino, e quanto mais depressa melhor! Kate não levantaria um dedo para o impedir. Que cada qual vivesse a sua preciosa vida, que é só uma - e fosse tudo mais para o diabo!
Tentaria impedir que Ramon continuasse naquela senda suicida. Deixá-lo ser o Quetzalcoatl vivo quantas vezes quisesse; mas não tinha o direito de se expor à maldade demoníaca do povo.
Contudo, ele insistia nisso, como Joachim fizera na Irlanda. Teresa, com a sua firmeza doce e calma, talvez lhe fosse de melhor auxílio do que Kate com as suas recriminações.
"Ah! Ainda bem que Cipriano é militar. As feridas que sofrer não lhe atingirão a alma." Mas sabia que, sem Ramon, Cipriano não seria ninguém e nem chegaria a interessar-lhe.
De manhã, Teresa compareceu sozinha ao primeiro almoço. Parecia muito tranquila; dissimulava os sentimentos sob o seu ar orgulhoso de mulher morena.
- Como vai Ramon?
- Está a dormir.
- Ainda bem. Pareceu-me muito em baixo ontem à noite.
- Sim... - Teresa fitou a outra com os seus grandes olhos negros cheios de coragem e de lágrimas contidas.
- Não compreendo que um homem se sacrifique àquele ponto. É inadmissível.
Teresa continuava a fitá-la.
- Ele não se sacrifica - replicou. - Sente que tem de proceder assim. E o meu dever é ajudá-lo.
-? Nesse caso, sacrifica-se por ele, o que também é para mim inadmissível.
- Ah, não! - retorquiu Teresa, com uma onda de sangue a ruborizar-lhe as faces. - Não me sacrifico por Ramon. Se posso dar-lhe... sono... quando dele necessita, isso não representa sacrifício. Representa... - Não terminou a frase, e o rubor acentuou-se-lhe.
- Representa amor, bem sei - volveu Kate. - Mas também a esgota.
- Não é só amor! - exclamou Teresa altivamente. - Eu podia amar outros homens, há muitos que merecem afecto. Mas Ramon... A minha alma pertence-lhe. - Afloraram-lhe lágrimas aos olhos. - Prefiro não falar deste assunto - acrescentou, pondo-se de pé.
E saiu do quarto, deixando Kate um tanto perturbada - e com desejo de voltar para Sayula.
Mas uma hora depois Teresa reapareceu e, apoiando no braço de Kate a mãozinha fresca e macia, disse-lhe em tom suave:
- Desculpe se fui indelicada.
- Eu é que não tenho razão...
- Sim, julga que em tudo isto só existe amor. O amor é uma parte mínima do resto.
- E que é o resto?
- Como posso dizer-lhe, se desconhece? Mas pensa que Ramon não é para mim mais do que um amante?
- Um marido! - emendou Kate. Teresa sacudiu a cabeça com impaciência.
- Ah, esses termos, que tão pouco significam! Não é apenas um marido! É a minha vida!
- Acho preferível cada qual viver a sua vida.
- Não. A vida é como uma semente. De nada serve se não a dermos. Sei que é assim; guardei durante anos a minha vida para mim só. Quando se a guarda muito tempo, ela morre. Quis oferecê-la a Deus, mas não consegui. Disseram-me que se eu casasse com Ramon e tomasse parte na heresia de Quetzalcoatl ficaria condenada aos tormentos eternos, mas alguma coisa me segredava que isso não era verdade e que Ramon necessitava da minha alma. Ah, señora!
- Um sorriso iluminou a face pálida de Teresa. - Dei a minha alma a Ramon. Perdi-a por sua causa. Que mais posso dizer?
- E a alma dele?
- Está aqui. - E Teresa espalmou a mão no seio. Kate ficou um momento calada.
- E se ele a atraiçoar? - perguntou então.
- Ah, señora, Ramon não é apenas um amante. É um homem honesto e não trairá o seu próprio sangue. Concedeu-me a sua alma em troca da minha, e eu lutarei até ao último sopro de vida para o apaziguar quando volta para mim esfrangalhado e com necessidade de sossego. - Teresa proferiu tudo isto com veemência, e depois acrescentou num murmúrio, como se falasse a si mesma: - Graças a Deus, não tenho uma vida só minha. Dei-a a um homem que é mais que homem, como se diz na linguagem de Quetzalcoatl. Por isso ela não morrerá em mim como um pássaro na gaiola... Oh, señora! Quando ele parte para Sinaloa e para a costa ocidental, a minha alma acompanha-o. E Ramon não se esquece que a minha está com ele, tenho a certeza! Não, señora, não deve criticar-me nem
lastimar-me.
- No entanto, acho melhor cada qual guardar a sua alma e ser
responsável por ela.
- Sim, se fosse possível! - replicou Teresa. - Mas não se pode guardar a alma dentro de nós porque acaba por morrer... Enquanto o homem não nos dá a sua semente, a nossa é estéril, e a dele nada vale sem a mulher. O mesmo acontece à alma. Enquanto a não damos a um homem e ele a não toma, nenhum valor tem. E depois de ele a tomar, toda inteira, ninguém fala de traição! Um homem só atraiçoa quando se lhe deu uma parte e não tudo, e a mulher só atraiçoa quando aceita dela apenas uma parte e não o todo. Mas quando de um lado se deu tudo e tudo se aceitou, a traição não existe. Sou o que sou para Ramon e ele é o que é para mim. Não importa o que fizer. Não importa que esteja longe.
Kate não gostava de receber lições daquela criaturinha; era mulher da sociedade, bela e com experiência da vida. Estava acostumada a que lhe rendessem preito. As demais do seu sexo chegavam a temê-la, porque era decidida e impiedosa.
Teresa também a receava um pouco como senhora da sociedade, mas não como mulher. Entrincheirada na sua almazinha orgulhosa, Teresa considerava Kate uma dessas pessoas do mundo exterior que têm muito brilho mas que não estão muito seguras dos segredos da sua personalidade. Toda a beleza e crueldade feminina de Kate era coisa secundária para Teresa em comparação com o profundo e tranquilo amor que a ligava a Ramon.
Sim, Kate habituara-se a olhar as outras mulheres como seres inferiores. No entanto, os papéis inverteram-se de súbito. Embora soubesse que Ramon era superior a Cipriano, viu-se constrangida a pensar se Teresa não seria também superior a ela.
Teresa? Mais importante do que Kate? Que surpresa! Não podia ser verdade.
Contudo, assim era. Ramon desejara casar com Teresa e não com Kate. E o ardor desse enlace ela via-o tanto nos olhos de Ramon como nos da mulher: um ardor que não existia nos olhos de Kate.
O casamento desta com Cipriano não parecia sério nem definitivo. Quando Cipriano estava ausente, ela recuperava a sua antiga individualidade. Só com o general presente é que se compenetrava da sua submissão.
Quando Teresa voltou a fitá-la com aquele seu fulgor do olhar, misturado de indignação, Kate sentiu-se desanimada e arrependida - decerto pela primeira vez na sua existência.
Sabia que Teresa sentia certa aversão por ela: era uma estrangeira branca que falava tão inteligentemente como um homem e nunca dera a sua alma; nem admitia que a pudesse dar. Todas essas damas bem vestidas, da América ou da Europa, guardavam a alma para si mesmas, numa espécie de avareza.
Teresa estava resolvida a não deixar que a outra a tratasse indefinidamente como um ser inferior. Assim procediam todas as estrangeiras para com as mexicanas, porque se consideravam emancipadas. E, para com Ramon, mostravam certa condescendência.
Mas Ramon... Bastava que ele as fixasse para que elas se sentissem reduzidas a nada, apesar de todo o seu dinheiro, experiência e ares dominadores. Raças dominadoras! Que esperassem! Ramon era um desafio a tudo isso. Que o dominassem, se fossem capazes de tanto!
- Não dormiu? - perguntou Teresa a Kate.
- Não muito bem.
- Está com olheiras.
Kate alisou a pele, desconfiada, em volta dos olhos.
- É o que nos faz o México. Não é fácil conservar a juventude neste país. A senhora é que está com bom parecer.
- Sinto-me perfeitamente.
Irradiava de Teresa uma frescura nova, algo de frágil e subtil que ela não precisava de defender contra outra mulher.
- Agora que Ramon já veio, é altura de eu regressar a casa -
declarou Kate.
- Porquê? Faz empenho nisso?
- Acho preferível.
- Nesse caso irei consigo até Sayula. De barco, não é verdade?
Kate arrumou as suas coisas. Dormira mal. A noite fora tenebrosa, cheia de horrores. Lembrara-se de Ramon atacado pelos bandidos e do seu ferimento nas costas. Tivera-a acordada durante horas o barulho ameaçador da chuva.
Percebia o desdém de Teresa pela sua maneira de considerar a
vida conjugal.
- Também eu fui casada - disse Kate. - com um homem
excepcional, a quem amei.
- Ah, sim... E ele morreu.
- Quis morrer.
- Ah, sim... quis morrer.
- Fiz o possível para evitar que se estafasse.
- Fez?
- Que mais estava na minha mão? - redarguiu Kate, num
assomo de ira.
- Se lhe houvesse dado a sua vida, ele não quereria morrer.
- Eu dei-lhe a minha vida. Amava-o. Ah, nem faz ideia! Mas ele não quis a minha alma. Achava que eu devia guardá-la para
mim.
- Os homens são assim quando são apenas homens. Mas,
sendo ardentes e bravos, então querem que as mulheres lhes dêem a alma e guardam-na dentro de si. Sei o que é. Sei onde a minha alma está. Nas entranhas de Ramon, assim como a sua semente está nas minhas entranhas, entranhas de mulher. Ele é um homem e uma coluna de sangue; eu sou uma mulher e um vale de sangue. Digo-lhe isto porque lhe salvou a vida e portanto estamos todos ligados: Caterina, eu, Ramon e Cipriano. Mas não me julgue mal. Aquela outra espécie de mulheres, as que conservam a sua alma, que é senão fraqueza?
- E os homens?
- Se são ardentes e bravos, confortam as nossas entranhas, Caterina!
Kate baixou a cabeça obstinada, furiosa por ter sido apeada do seu pedestal. Que coisa miserável, pensou, isso de uma mulher viver apenas por amor de um homem! Só para lhe enviar a alma para dentro do seu precioso corpo... E trazer no ventre a sua semente preciosa... Quanto a ela própria, nada.
Pretendeu consumar a sua indignação, mas não foi bem sucedida. Talvez no fundo, e contra sua vontade, invejasse Teresa, os seus olhos negros cintilantes, a sua firmeza selvática. Invejava-lhe os dedos delicados, e, acima de tudo, a consolação de ter um homem tão profundamente ligado a si.
A manhã estava quente depois da chuva. As rãs coaxavam, frenéticas. Na outra banda do lago as montanhas pareciam azuis-escuras, com farrapos de nevoeiro a arrastarem-se através das árvores e nuvens brancas a coroarem os picos. Nas águas barrentas navegava um barco de vela solitário.
- Hoje, tudo isto me lembra a Europa, o Tirol - disse Kate, comovida.
- Gosta muito da Europa? - perguntou Teresa.
- Muito.
- E tenciona voltar para lá?
- Penso regressar em breve, para ver minha mãe e os meus filhos.
- Eles reclamam-na?
- Sim, respondeu Kate, um pouco hesitante. E em seguida ajuntou: - Não muito. Mas quero tornar a vê-los.
- Porquê? Tem saudades deles?
- às vezes. - E os olhos de Kate arrasaram-se de água. O barco avançava sem rumor.
- E Cipriano? - volveu Teresa, a medo.
- Ah!, exclamou Kate. -Esse é para mim como um estranho.
Teresa ficou uns momentos calada.
- O homem é sempre estranho para a mulher, creio eu - rematou ela. - E porque não havia de ser?
- Mas a senhora não tem filhos.
- Tem-nos Ramon, E ele costuma dizer: "Continuarei a lançar pão à água e se meus filhos acabarem por se aproximar de mim ficarei contente." Não é. o seu caso?
- Não! - respondeu Kate. - Sou mulher, não sou homem.
- Se eu tiver filhos - declarou Teresa - também lançarei pão à água para os atrair, e espero não os reter ciosamente na minha rede. Assusta-me o amor, é tão pessoal! Devemos deixar os pássaros voarem com as suas asas e os peixes nadarem à vontade. a manhã concede-nos mais do que o amor. E eu quero ser sincera para com a manhã.

XXVI
Kate estava satisfeita por voltar à sua casa e por se encontrar sozinha. Sentia que se operava nela uma grande mudança - mudança que a poderia matar se se realizasse violentamente. Era o fim de qualquer coisa e o princípio de outra: no mais profundo da sua alma e nas suas entranhas. Os homens, Ramon e Cipriano, e o México, seriam a causa daquela modificação. Chegara o momento. Entretanto, se a evolução fosse brusca de mais, e rápida em excesso, poderia revelar-se fatal. Por isso tinha necessidade de se isolar, de tempos a tempos.
Sentava-se na margem durante horas, à sombra dum salgueiro verde, cuja cortina de folhas descia até à água. O lago mostrava-se mais alto e mais cheio que de costume, e tinha também maior calma e maior mistério. Errava o cheiro dos nenúfares que emurcheciam depois de haverem dado à costa. As distâncias pareciam prolongadas. Lembravam estampas japonesas os outeiros mais próximos, salpicados de verdura. Carros de grandes rodas traziam à aldeia a cana-de-açúcar cortada; puxavam-nos a cada um, oito bois que baloiçavam lentamente a cabeça de enormes chifres, enquanto um peón, à frente, os conduzia com o aguilhão poisado no jugo. Tão pesados, tão vagarosos e contudo fáceis de guiar!
Experimentava, no México, uma sensação esquisita, como se estivesse em presença duma humanidade pré-histórica, gente de olhos escuros de antes do período glaciário - quando o mundo era mais frio, os mares vazios e diferente a constituição da terra; quando as águas, solidificadas, se acumulavam nos pólos, e as planícies ocupavam os oceanos, como a Atlântida e os antigos continentes da Polinésia; quando os mares não passavam de lagos, embora grandes, e os povos de olhos pretos podiam dar a pé a volta ao mundo. Nesse tempo existia uma raça misteriosa de sangue ardente e ligeira no andar: raça que possuía uma civilização que lhe era própria. Depois fundiram-se os glaciares, os homens refugiaram-se nos pontos elevados, como os planaltos do México, e separaram-se em nações diferentes.
Na América é tão forte a sombra do mundo antediluviano que às vezes Kate perdia a noção dos tempos decorridos e começava a aproximar-se do antigo modo de ser, da vontade velha e torva, do desprezo da morte, da subtil e escura consciência, do instinto que precedeu a razão. Regressava à época em que o espírito e o poder dos homens residiam no sangue e na espinha dorsal, e as relações entre eles e com os animais se produziam através da medula.
Os Mexicanos ainda se encontravam nesse estádio. O que é aborígene na América pertence à fase de antes do Dilúvio, antes de reinar na terra a vida espiritual. Por isso, ali, a actividade cerebral dos brancos se alastra como uma erva em terreno virgem - para, é claro, murchar depressa e desaparecer por completo. Então, como resultado disso, surge um novo gérmen, uma nova concepção da humanidade: vem da fusão da antiga consciência instintiva e do racionalismo intelectual do branco. Um ser diferente, nascido do encontro daqueles dois.
Kate era muito irlandesa, e no fundo da sua alma jazia o misticismo original, quase desaparecido, dessa primitiva raça celta ou ibérica. É como um resíduo que existe ainda no mundo antediluviano e que não pode ser inteiramente destruído.
Sabia ela, mais ou menos, que era essa fusão o que Ramon pretendia realizar. Compreendia também o motivo pelo qual Cipriano tomava a seus olhos uma importância maior que todo o seu passado, os seus dois maridos, e os filhos. Esse velho sangue másculo despertava-lhe agora nas veias; daí vinham as palpitações que ela ultimamente sentia.
A Irlanda não podia nem queria esquecer aquele ardor sombrio e primitivo. Os Thuathas de Danaan, embora submersos, continuam vivos no sangue, não se lhes consegue impor silêncio. E a Europa científica e meticulosa tinha de se defrontar de novo com os velhos
gigantes.
Esta alteração, todavia - e Kate bem o notava -, não era coisa que se efectuasse com brusquidão; de outro modo haveria rotura e possibilidade de morte. O primitivismo tem os seus horrores. O espírito original do México, pesado, terre à terre, podia ser-lhe tão odioso que a tornasse perversa. Essa obtusa, indomável persistência, desprovida de energia e de esperança, que é peculiar ao aborígene americano, levava-a às vezes a supor que ia perder a razão. Obstinação tenaz que resistia aos séculos e desprezava a personalidade! Lascívia da morte, feroz, incalculável, terrível!
Esse povo, realmente, nunca mudava. Os homens não tinham fé na vida, em nenhuma realidade evidente. Eram apenas fiéis a certas forças obscuras do passado. O presente submergia-se na alma dos homens e das mulheres sob uma camada de lava negra, não deixando à superfície senão a indiferença.
A Esperança! A Esperança! Seria possível, um dia, fazê-la reviver nessas almas obscuras e obter o enlace das suas raças, único passo para o novo mundo do homem?
Entretanto, Kate sentia-se invadida por um mal-estar esquisito. Achava ser necessário partir, a fim de escapar a tamanha depressão. Já não podia ouvir a rastejante insistência dos criados: o sangue é só um, nós somos do mesmo sangue - sentença de tribo pior do que a morte para um indivíduo de raça branca. Estranha teimosia aquela que preconizava a todos a fusão do sangue!
Kate pertencia a uma família antiga, com pergaminhos. Fora educada nas ideias anglo-germânicas da superioridade intrínseca da aristocracia hereditária. O seu sangue era diferente do da gente vulgar: outro fluido, mais refinado.
No México, porém, nada disso conta. Juana, o homem que ia buscar água, o barqueiro que remava no lago, todos revelavam o mesmo pensamento no olhar: "O sangue é só um; pelo sangue tu e eu somos iguais." Kate lia isto nos olhos deles, adivinhava-o nas suas palavras, quer fossem deferentes ou escarninhas, e, por vezes, sentia-se revoltada com essa imposição da igualdade de sangue.
E quando se empertigava como para proclamar "O meu sangue é só meu. Noli me tangere", percebia nas pupilas negras daquelas criaturas o terrível ódio ancestral que as impele a cometer as maiores atrocidades.
Contudo, inclinavam-se perante a sua inteligência, sabedoria e compreenção, e, embora contra vontade, testemunhavam-lhe certo respeito. Ela pertencia às raças dominadoras, hábeis e espertas... Mas exigiam-lhe a aceitação da velha crença: O sangue é só um. Somos todos do mesmo sangue.
E tinha de se submeter, senão persistiriam na sua lenta vingança.
Mas não podia submeter-se de repente. Devia ser a pouco e pouco; um esforço violento destruí-la-ia.
Compreendia agora a afirmação de Ramon: "O homem é uma coluna de sangue, a mulher um vale de sangue." Era a unidade primordial
do género humano, oposta à unidade do espírito individual.
Kate, porém, sempre considerara seu o próprio sangue. O espírito é que ela partilhava com os outros.
Percebia agora o motivo por que Ramon e Cipriano usavam fatos brancos e sandálias e andavam meio nus como deuses vivos. Era a aceitação da antiga crença, o renascimento do laço de sangue que unia os homens, laço que tornava o sacrifício humano tão poderoso
factor da vida.
O sangue do indivíduo é rendido ao ser supremo, ao ser de sangue, deus, nação ou tribo.
E, na verdade, que estranha união existia entre Ramon e os seus homens, entre Cipriano e os seus soldados! Era a comunhão do sangue. Isto podia indignar Kate, enjoá-la por vezes, mas era uma força que não conseguia vencer.
Mesmo admitindo essa comunhão de sangue, Ramon reivindicava uma supremacia, até uma divindade. Era um homem como o mais humilde dos seus peóns, nascido da mesma fonte, das mesmas raízes que eles; no entanto, mostrava ser superior aos outros. E a sua superioridade não provinha do sangue ou do espírito mas duma misteriosa estrela interior que nascia do oceano sombrio e cintilava entre o mar e o céu imenso. A estrela que une o vasto sangue universal ao sopro universal do espírito e brilha entre ambos.
Porque essa coisa que reina sobre o poder humano e que é em si mesma um poder, essa coisa é a estrela misteriosa do cosmos primitivo, é a divindade no homem.
Certos homens nada possuem de divino. Possuem apenas faculdades. São ou deveriam ser escravos. Muitas vezes um homem tem a centelha divina, mas é sufocada pela força ou pela vida material.
E quando o espírito e o sangue se separam e divergem, provocando a morte maior, então apagam-se quase todas as estrelas.
Só o homem que possui uma estrela magna, uma grande divindade, será capaz de reaproximar essas forças contrárias e criar uma nova união.
Esse homem era Ramon e o seu esforço o máximo que se podia fazer: aproximar e unir as forças contrárias. Eis o poder divino de um homem. Por ele, no homem, se distingue o deus. Por ele apenas
e por mais nada.
Embora fosse como o mais ínfimo dos seus peóns, com o mesmo coração que bate, os mesmos rins insondáveis, e os lábios fechados sobre o mesmo segredo da humanidade; e fosse humano como Kate era humana, com a mesma ansiedade de espírito e a sede do puro conhecimento e da comunhão; no entanto só ele tinha o poder astral de unir os dois grandes impulsos da humanidade, e de os fundir - de ser a ave de asas imensas que paira entre as duas potências opostas: a Estrela da Manhã, que está entre o sopro da aurora e as profundezas da noite.
Os homens haviam tentado assassiná-lo com punhaladas. Carlota quisera matá-lo com o seu espírito. Cada parte, separadamente, pretendera liquidá-lo. Ele, contudo, estava fora do alcance de qualquer delas. Era o Quetzalcoatl vivo, a cintilação de uma estrela que nascia na alma dos seus compatriotas. Chama dum astro a meio das duas asas do poder: eis só o que representa a divindade num homem e em toda a humanidade.
Kate recebeu um recado de Cipriano: mandava-lhe dizer que vinha instalar-se na Vivenda Aragon. Esta casa era a principal da região do lago; tinha um jardim em toda a volta, não muito grande mas bonito, com palmeiras e sebes de jasmineiros, tudo muito verde em resultado de regas constantes. A própria construção lembrava um castelo em ponto pequeno, talvez despropositado; mas eram agradáveis as varandas espaçosas que davam para a encosta e a vegetação do jardim, mesmo acima do lago.
Cipriano chegou bem disposto. Brilhavam-lhe os olhos com uma expressão de mocidade. Queria casar a valer com Kate, segundo a lei civil mexicana, e morar com ela na Vivenda Aragon. Kate hesitava, achando que tinha necessidade de voltar em breve à Europa, sobretudo à Inglaterra e Irlanda. Era urgente, porque lhe custava já a suportar aquela ameaça do México, a sua influência deprimente. Precisava, pelo menos, de um intervalo de repouso.
Assim o declarou a Cipriano, que ficou desanimado.
- Não importa casar ou não antes de ir - disse ela. - O que tenho é de me afastar daqui o mais depressa possível.
- Quando?
- Em Janeiro.
O rosto dele desanuviou-se.
- Então casemo-nos primeiro. Na semana que vem.
Ela aquiesceu com estranha indiferença, e Cipriano, radiante, correu a fazer os preparativos necessários.
Pouco interessava a Kate o casamento civil. No sentido essencial, já estava casada com Cipriano. Ele era acima de tudo militar, tão depressa vinha para ela como a deixava. Kate, de qualquer maneira, passaria grande parte do tempo sozinha.
Podia convir-lhe como marido, mas o que a assustava era esse México terrível. O movimento quetzalcoatliano espalhara-se de maneira sinistra por todo o país. O arcebispo manifestara-se contra isso, e Ramon, Cipriano e seus aderentes estavam excomungados. Haviam tentado assassinar Montes.
Na capital, os partidários de Quetzalcoatl tinham escolhido para lugar de reunião a Igreja de San Juan Bautista, conhecida pela Igreja do Salvador Negro. O arcebispo ordenara aos seus fiéis que fossem em procissão ao referido templo, agora chamado Casa de Quetzalcoatl, a fim de o retomarem para o culto católico. O governo, porém, sabendo que mais tarde ou mais cedo haveria luta, fez dispersar a procissão e deteve o arcebispo, depois de alguma efusão de sangue.
Rebentou então uma espécie de guerra. Os Cavaleiros de Cortez exibiram a sua famosa reserva de armas, que aliás não era muito impressionante. Em Zócalo produziu-se uma manifestação clerical, dirigida por um padre fanático. Montes mandou atirar sobre os insurretos. Aquilo afigurava-se o começo duma luta religiosa. Pelas ruas viam-se os bandos de Quetzalcoatl, com as suas serapes azuis e brancas, e' os de Huitzilopochtli, de serapes vermelhas e pretas, marchando ao som de tambores e erguendo uns as suas estranhas insígnias redondas, feitas de penas, e outros longas varas rematadas por um penacho rubro de extremidade preta. Nas igrejas, os sacerdotes incitavam os fiéis à guerra santa; os que haviam aderido à causa de Quetzalcoatl discursavam nas ruas à multidão.
Período tumultuoso. Em Zacatecas, o general Narciso Beltran manifestara-se contra Montes e a favor da Igreja, mas Cipriano interviera com tal presteza e violência que deu em resultado o fuzilamento de Beltran e a dispersão das suas tropas.
Então Montes declarou ser igual no México o antigo culto católico e publicou um decreto determinando que a religião nacional da República fosse a de Quetzalcoatl. Encerraram-se todas as igrejas e os padres viram-se obrigados a prestar juramento de fidelidade à República ou a serem condenados ao exílio. Em todas as cidades e aldeias surgiam os soldados de Huitzilopochtli e os homens de serape azul. Ramon trabalhava sem descanso. Cipriano aparecia nos lugares onde menos o esperavam. Conseguiu despertar uma espécie de frenesi religioso nas regiões mais descontentes, como Vera Cruz, Tamaulipas, Jucatão. Efectuaram-se no mar estranhos baptismos e nas costas elevaram-se fortalezas com as cores de Huitzilopochtli.
Todo o país vibrava com uma sensação desconhecida, dominado pela vaga de energia nova, mas em tudo aquilo entrava violência, crueldade e certo horror.
Deportaram o arcebispo. Já não se viam sotainas nas ruas; só as serapes de Quetzalcoatl e as de Huitzilopochtli se evidenciavam entre as multidões. Eis porque Cipriano chegou junto de Kate, com os olhos a luzir, ébrio de triunfo. Kate ficou assustada e sentiu-se vazia e inútil. Nem sequer aquela vitória espantosa e a alteração que se dava na face do mundo a podiam salvar por completo. Pertencia à velha Europa e não lhe era fácil transformar-se tão rapidamente. Contudo, achava que, se voltasse à Irlanda e concedesse uns tempos de repouso à sua vida e ao seu corpo, poderia então regressar ao México e participar nos acontecimentos.
Porque não era só o espírito que se modificava, mas também o corpo e o próprio sangue. Sentia esse terrível catabolismo e metabolismo a transformá-la noutra criatura. Se a metamorfose fosse muito brusca, decerto ela morreria.
Casou-se, pois, legalmente com Cipriano e foi passar um mês com ele na Vivenda Aragon. Em seguida embarcaria sozinha para a Irlanda, projecto a que o marido deu a sua anuência.
Era deveras estranho estar casada com ele. Kate tinha a impressão de se afundar pesadamente abaixo da superfície da vida, para jazer nas suas profundezas.
Estranha, pesada, verdadeira passividade. Pela primeira vez na sua existência, ela sentia-se repousada. Falar e pensar tornavam-se-lhe coisas triviais; as ondas à tona de água não são nada para aqueles que vivem submersos.
Na alma, estava serena e altiva. Ah, se o corpo não sofresse tanto com a transformação! No cosmos encontrara a paz de espírito, o universo abrira-se à sua frente, e ela deixava-se afundar no leito de puro descanso. Adquirira quase tanta segurança como Teresa. Só a atormentava a mudança que se lhe operava no sangue.
Cipriano mostrava-se feliz, à sua maneira de índio. Parecia um adolescente contemplando o mistério da vida com olhos dilatados de espanto. Não se ocupava especialmente de Kate, nem lhe falava de assuntos sérios. Se ela aflorava uma conversa desse género, dirigia-lhe um olhar desconfiado e afastava-se.
Tinha consciência de coisas de que a mulher mal se apercebia, sobretudo do perigo das palavras irritantes. E isto ele evitava.
Kate compreendia agora como os seus antigos amores haviam sido brutais, carregados de desejo e de contactos voluptuosos. com Cipriano, desaparecia a sua vontade ardente feminina, toda ela doçura, submissão; e contudo, tais as fontes térmicas que brotam da terra sem rumor, tão poderosa era na sua força secreta!
Via quase com espanto morrer dentro de si a Afrodite da espuma, essa Afrodite ávida de sensações ardentes. Como se prevenido por vago instinto, Cipriano repudiava essa parte da natureza de Kate. Quando esta se deixava dominar pelo êxtase voluptuoso que acaba em espasmos delirantes, ele afastava-se da mulher. Retirava-se desde que pressentia nela a sede daquelas volúpias a que costumava chamar o seu "prazer". E Kate percebia que lhe era repulsiva nesses momentos. Misterioso e implacável, afastava-se sem uma palavra.
Estendida a seu lado ela compreendia então quanto era superficial aquela efervescência de sensualidade. Parecia vir do exterior, não do seu íntimo. Depois do primeiro instante de decepção, quando esse prazer lhe era negado, concluía que não o desejava realmente, que até lhe repugnava.
E Cipriano, no seu silêncio quente e obscuro, aproximava-se quando ela se assemelhava a uma fonte borbulhando sem rumor das profundezas vulcânicas. Já não se tratava de prazer consciente. O que se passava era estranho, inexprimível, muito diferente das suas relações com Joachim. Nem êxtases, nem espasmos. Uma espécie de força subterrânea a que tinha de se submeter.
Tal como no amor, assim era Cipriano na vida. Kate não conseguia perscrutá-lo. Se tentava, via-se obrigada a desistir e a classificá-lo entre as coisas que existem e não se compreendem. Um desconhecido, e uma presença; nada mais.
Não podia existir intimidade. Cipriano envolvia-se na sua reserva como numa capa e deixava Kate envolver-se na dela. Eram dois estranhos. Ele aceitava o facto integralmente, como se outra coisa não fosse possível, mas Kate achava aquilo deveras singular. Tinha tanto desejo de intimidade e esforçara-se tanto por obtê-la!
Agora, resignara-se a aceitá-lo tal como era: um desconhecido, um estrangeiro na presença do qual vivia. E sem nenhuma intimidade espiritual, a sua união não passava de uma união de sangue.
Por isso, pouco importavam as ausências de Cipriano. Deixava atrás de si a marca da sua presença, e levava consigo a de Kate. Em resumo, não existia o desgosto da separação.
Certa manhã, ele teve de partir cedo para a cidade. O sol ainda não cobria o lago mas, para além de Tuliapan, já acariciava as montanhas, que brilhavam tão distintas que se diriam focadas por luz mágica. O sulco verde das encostas parecia ao alcance da mão. No seu voo, cintilaram de súbito duas gaivotas brancas, apanhadas na luminosidade. Mas o lago, suave, unido, silencioso, permanecia ainda na sombra.
Kate lembrou-se do mar. O Pacífico não ficava longe. Ela tinha a impressão de o haver esquecido, mas sentia de novo a necessidade da sua brisa.
Cipriano ia banhar-se; Kate viu-o caminhar sobre as lajes do cais. Despiu o roupão e o vulto escuro desenhou-se na água amarelada. Era tão moreno! Tal um malaio. Corpo tão trigueiro como a cara; e com esse físico primitivo, e o peito alto, e as ancas bem modeladas, evocava as figuras masculinas de certas medalhas gregas.
Mergulhou da beira do cais e avançou na água mansa. Nesse momento a luz espalhou-se dos cimos das montanhas e cobriu de oiro a superfície do lago. Imediatamente, Cipriano apareceu rubro como fogo. Os raios solares, porém, não eram vermelhos, mas, reflectidos pelas águas, davam ao corpo de Cipriano um tom de lume, como se o abrasassem.
Os filhos da Manhã... A coluna de Sangue... Um Pele-Vermelha... Kate contemplava-o admirada enquanto nadava resplandecente e puro. Como se fosse de fogo!
Os filhos da Manhã... Kate mais uma vez renunciou a todo e qualquer esforço de conhecimento - e, sem esforço, limitou-se à comunhão de sangue.
Sim, a sua raça... Ela notara já como os indígenas se tornavam de um vermelho puro à luz da manhã e da tarde. Dir-se-iam chamas erguendo-se da água.
Cipriano partiu a cavalo, com o criado. Kate viu-o afastar-se pela estrada além, sombrio na sua montada ruça. Parecia não fazer movimento nenhum. Irradiava um orgulho másculo e, assim unido ao animal, era como se este e o cavaleiro constituíssem um único ser.
Desapareceu. Kate, por um instante, experimentou saudade da sua presença. Mais do que dele próprio. Não desejaria tocar-lhe nem falar-lhe, mas tão-somente senti-lo ali.
Depressa se dominou e voltou à realidade. Desde que se compenetrava da ausência de Cipriano, vinha-lhe a noção nítida da sua presença.
Passeou um pouco pela costa, junto do molhe. Adorava estar só. Absolutamente só, com o jardim, o lago e a manhã.
"No fundo, sou como Teresa", pensou ela.
De súbito viu à sua frente uma corda comprida e escura em cima de um pedregulho. Aquilo fê-la sair dos devaneios. Era uma cobra de pele ornada com delicados desenhos; estava sobre uma pedra enorme e a cabeça pendia-lhe até ao chão.
O réptil sentiu a presença da mulher, pois, com incrível rapidez, rastejou ao longo da rocha e entrou numa fenda que havia na base do molhe.
Não era grande o buraco. Depois de ali penetrar, virou a cabeça e dardejou a língua preta; mas em seguida desapareceu devagar, e Kate viu-lhe ainda o último anel, no qual poisava a cabeça chata. Fazia lembrar aqueles diabos que se representam de queixo apoiado sobre os braços, olhando através duma seteira. Do fundo do esconderijo espiava a mulher; seguia-a com os olhos cintilantes de crueldade.
Kate pensou então em todos esses seres invisíveis, escondidos nos recantos ocultos da terra. E perguntava a si mesma se aquele réptil não sofreria por ser incapaz de se elevar na escala da criação; de não poder correr a quatro patas em vez de rastejar...
Talvez não. Talvez houvesse encontrado a sua própria paz. Kate sentiu-se reconciliada com o animal.

XXVII
Teresa e Kate tornaram a visitar-se. Existia agora entre ambas certa simpatia, especialmente desde que a irlandesa decidira partir.
Envolvia o lago uma pureza outonal. Sentia-se a humidade na atmosfera, as sarças das encostas cobriam-se de rebentos. O sol inundava os montes duma luz de ouro, as sombras eram profundas, aveludadas. A verdura invadia tudo, até as rochas e a terra cor-de-rosa. O verde brilhante das canas-de-açúcar sobressaía no fundo rubro dos campos lavrados de fresco; aqui e ali, entre a massa escura das árvores, avultava a mancha branca das povoações.
O céu estava alto e límpido. No ar cristalino vibravam os tambores e o grito para as pausas do dia. E o dia parecia deter-se perante o mistério supremo desse universo que desabrochava, vasto, suave e cheio de vida.
Até no lago se encontrava uma espécie de apaziguamento. Avançava uma canoa com a vela entumecida tal uma concha nacarada; o casco negro e afilado deslizava sobre a água. Dir-se-ia a barca de Dioniso portadora duma mensagem e de ramos de videira.
Kate mal se lembrava agora da secura árida dos meses anteriores, quando a terra parecia crepitar ao sol implacável.
Ramon e Teresa atravessaram o lago e o seu barco de remos entrou no molhe. Era uma manhã em que as sombras nas montanhas tomavam o tom azul das centáureas.
- Sempre vai partir? - perguntou Ramon a Kate.
- Por uma temporada. Não me julga a mulher de Loth, não é verdade?
- Não - respondeu ele, a rir. - Julgo que é a de Cipriano.
- E sou. Mas preciso de sair, embora por pouco tempo.
- Ah! Nesse caso vá e volte depressa. E diga lá na Irlanda que façam o que fizemos aqui.
- Como?
- Encontrando-se em si mesmos, e no seu próprio universo, e com os seus deuses. Justifiquem os seus mistérios. Os Irlandeses são tão prolixos no que respeita aos seus heróis de outrora e aos seus tempos gloriosos! Diga-lhes, pois, que concretizem tudo isso, como nós fizemos com Quetzalcoatl e Huitzilopochtli.
- Está bem. Veremos se há quem me escute...
- Sim, senhora. - Seguiu com os olhos a vela branca que se aproximava e depois indagou: - Afinal, porque quer partir?
- É-lhe indiferente o caso, pois não?
- Não, não me é indiferente.
- Porquê?
Ramon levou outra vez uns segundos para responder:
- É uma das nossas - replicou por fim. - Precisamos de si.
- Mesmo quando não faço nada? E quando principio a aborrecer-me com a história do Quetzalcoatl vivo e o resto, e preferia conhecer um simples Don Ramon?
Ele riu-se.
- Que é um simples Don Ramon? Don Ramon tem dentro de si Quetzalcoatl vivo. Mas a senhora auxilia-nos, apesar de tudo.
- Não creio que precise de auxílio, e muito menos de uma mulher que. no fim de contas, não é mais que a esposa do seu amigo.
Estavam sentados num banco, debaixo das manhãs-de-páscoa, cujas folhas rubras formavam como que uma flor de pétalas enormes.
- A esposa do meu amigo - volveu Ramon. - Que poderia
ser de mais agradável para mim?
- Pois claro! - exclamou Kate de maneira ambígua. Ramon tinha os braços apoiados nos joelhos e olhava para o
lago, com ar ausente. O seu rosto reflectia cansaço e aquela vulnerabilidade que sempre comovia Kate. Mais uma vez ela se compenetrou do isolamento e esforço que a procura de uma vida diferente impunha àquele homem. E, no entanto, ela não desistia...
Essa visão acentuou-lhe o sentimento de impotência, da impotência total da mulher em ajudar o homem que caminha para o Além.
- Está muito seguro de si mesmo? - perguntou.
- Seguro de mim? Não! De um instante para o outro eu morro e desapareço da face do mundo. Como poderia estar seguro de mim
mesmo?
- Mas porque há-de morrer?
- Todos morrem. Até Carlota!
- Essa tinha a sua hora marcada.
- Pode-se marcar a nossa hora como se faz no despertador de um relógio?
Kate calou-se por uns momentos.
- Se não está seguro de si mesmo, de que está então? - inquiriu como se o desafiasse.
Ramon fitou-a com os seus olhos sombrios.
- Estou seguro... seguro... - A voz sumiu-se-lhe, o rosto tomou a palidez dum defunto. Só os olhos a observavam intensamente. De novo ela se viu perante a sombra dolorosa do homem e se sentia impotente diante desse espectro vivo do sofrimento.
- Não pensa que anda em erro, pois não? - perguntou Kate.
- Não, mas talvez não possa manter...
- E então? - insistiu friamente a irlandesa.
- Continuarei o meu caminho, embora desacompanhado. Kate só lhe via os olhos negros, fitos nela. Ramon começou a falar em espanhol: - Isto faz-me doer a alma, como um pronúncio de morte.
- Mas porquê? Não está doente!
- Sinto a alma desagregar-se.
- Não deixe! - exclamou Kate, alarmada.
Ramon fitava-a ainda com os olhos inexpressivos. De súbito, ela experimentou uma sensação de calma e de força.
- Devia esquecer por uns tempos - disse-lhe em voz compassiva, poisando a sua mão na dele. Para quê tentar compreendê-lo ou contrariá-lo? Era uma mulher, ele um homem e, portanto, tinham da vida uma concepção diversa.
Ao contacto daquela mão, Ramon percebeu despertar de um sonho e fixou-a com olhar perscrutador e altivo. A carícia maternal sobressaltara-o como uma picada.
- Sim, devia - disse.
- Pois claro. Se quer ser tão... abstracto e quetzalcoatliano enterre de vez enquando a cabeça na areia como fazem as avestruzes, e esqueça.
- Oh! - exclamou Ramon sorrindo. - Ei-la de novo zangada!
- O caso não é tão simples como parece. Existe em mim um conflito, e não me deixam ausentar-me por algum tempo.
- Não podemos impedi-la.
-Pois sim, mas discordam da minha ida. Não me deixam partir em paz.
- Porque deseja ir-se embora?
- Tenho de ir. Tenho de voltar para junto dos meus filhos e da
minha mãe.
- Sente essa necessidade?
- Sinto.
Logo que deu esta resposta compreendeu que havia nela certa duplicidade. Era como se tivesse dois eus: um, mais novo, terno, sensível, que pertencia a Cipriano e a Ramon; outro, duro, completo, que pertencia aos filhos, à mãe, à Inglaterra, a todo o seu passado. O eu antigo nada tinha de submisso e era forte, o recente parecia frágil, estava ligado a Cipriano e até a Ramon e a Teresa; nada tinha de independente.
Kate possuía consciência desta dualidade e sofria com isso. Porque não conseguia optar definitivamente pela antiga maneira de ser, nem pela moderna, ficava a deter-se entre as duas.
- Pois é - continuou. - Sinto essa necessidade, e querem
evitar que eu parta.
- Que ideia! - protestou Ramon.
- Sim, senhor. Exercem pressão sobre mim, paralisam-me, impedem-me de me ir embora.
- Se tem essa sensação, convém que nos afastemos de si durante uns tempos.
- Porquê? Não concordam com a minha ida? Se eu tenho de
ir, porque não me apoiam?
Ramon fitou-a tranquilamente.
- É impossível. Não acredito nessa partida. Seria virar-nos as costas, renegar-nos. Mas a verdade é que somos todos muito complicados. Se acha que tem de se ausentar durante certo período, então vá! Não é coisa de importância primordial. Já fez a sua opção, e
eu não fico apreensivo.
Kate sentiu alívio ao ouvir isto, porque estava bastante preocupada consigo mesma. Nas suas relações com Cipriano e Ramon, nunca tinha a certeza de nada. Contudo, replicou com um pouco de ironia:
- Porque haveria de ficar apreensivo?
- Não desconfia de si própria às vezes?
- Nunca! Estou sempre segura da minha pessoa.
Continuavam sentados no jardim da Vivenda Aragon, debaixo da manhã-de-páscoa. O ar começava a aquecer. O lago estava calmo, o vento amainara e tudo se conservava imóvel - excepto as folhas rubras do arbusto.
O Natal aproximava-se! Eis o que recordou a Kate aquela planta majestosa.
Natal! O azevinho! A Inglaterra! As prendas! As iguarias! Se ela se apressasse poderia chegar à Inglaterra na data festiva. Achava uma coisa tão natural encontrar-se na pátria com a mãe, pelo Natal! Tinha casos tão interessantes a contar! E as bisbilhotices divertidas que havia de ouvir... De longe, tudo isso lhe parecia encantador. No entanto, experimentava como que uma relutância ao pensar nesse regresso.
- Podemo-nos fartar de coisas boas - disse ela a Ramon.
- De qual, em particular?
- Oh! De Quetzalcoatl e todas essas histórias. Podemos estar saturados.
- É possível - respondeu Ramon, pondo-se de pé e afastando-se em passos tão subtis que ela nem deu pela sua retirada.
Quando compreendeu que ele se fora embora, ficou fula. Mas continuou sentada debaixo do magnífico arbusto, contemplando com os olhos irritados a sebe de jasmineiro e as suas flores dum branco puríssimo. Onde é que ela ouvira qualquer coisa a respeito de jasmins? "E entre nós os jasmins..."
Oh! Como se sentia farta de tudo aquilo!
Teresa descia a ladeira do jardim.
- Ainda está aqui?
- Onde podia eu estar? - retorquiu Kate.
- Não sei... Meu marido foi a Sayula a fim de falar com o Jefe. Não quis esperar para ir connosco no barco.
- Talvez tivesse pressa.
- Que maravilha! - observou Teresa, apontando para o estendal vermelho do majestoso eufórbio.
- São as vossas flores de Natal, não são?
- Sim, as flores de Noche buena.
- É extraordinário! O Natal com hibiscos e manhãs-de-páscoa! Estou ansiosa por ver azevinho e laranjas na montra duma frutaria de Hampstead.
- Porquê? - disse Teresa, rindo.
- Ah! - suspirou Kate. - Voltar à vida simples, ver os autocarros a correr na lama de Piccadilly, na véspera do Natal, e os passeios molhados cheios de gente diante das lojas cintilantes...
- Isso é que é vida, para si? - perguntou Teresa.
- Sim. Sem esta abstracção e vontade. A vida satisfaz-me se eu puder vivê-la e ser eu mesma.
- É altura de Cipriano regressar - disse Teresa.
Kate levantou-se com súbita impaciência. Já não suportava essa tutela. Haviade lhes mostrar que era livre!
Foi com Teresa à aldeia. O ar parecia misteriosamente vivo, animado com um sopro novo. Mas Kate sentia-se fora do ambiente. As duas senhoras sentaram-se debaixo de uma árvore na praia de Sayula, conversando um pouco e contemplando a imensidão do lago
cor de pérola.
Ancorado junto do molhe estava um barco de toldo vermelho e mastro comprido. Em terra, viam-se grupos de homens vestidos de branco a olharem para o interior da embarcação. O contorno monolítico duma vaca preta e branca e dum touro enorme recortava-se contra a superfície das águas.
Era perto, e no entanto parecia tudo estranho e remoto. Dois peóns colocaram uma prancha e puseram-se a empurrar a vaca para lá. O animal avançou relutante mas depois, com a lenta indiferença dos Mexicanos, seguiu pela ponte adiante. Os homens incitavam-no, até que ele ganhou o barco e entrou definitivamente no porão.
O grupo ocupou-se então do touro. Um mexicano já idoso, alto, de calças estreitas de pele e casaco de cabedal, com um imenso chapéu de feltro bordado a prata, ergueu delicadamente a cabeça do touro, pegando-lhe pela argola do focinho. Atrás estava um peón que, curvando-se, empurrou os poderosos flancos do animal. E este, com toda a calma, foi andando pela prancha além. Mas parou.
Os peóns reagruparam-se. O que estava atrás, de faixa vermelha atada à cintura, deixou de empurrar. Então dois outros passaram uma corda em volta das ancas do touro. O velho tornou a pegar pela argola, sempre com muito cuidado, e o animal levantou outra vez a cabeça. Mas continuou parado.
De novo lhe puxaram pela argola e pela corda. O monstro mantinha-se impassível. Tudo isto decorria no maior silêncio.
Por fim o touro percorreu a ponte em passos lentos e alcançou a borda do navio. Ali, esperou.
De cabeça baixa, olhava para o fundo do porão. Os homens empurravam-no com toda a força, puxavam a corda - tudo no profundo silêncio mexicano.
Devagar, cauteloso, o animal agachou-se, e então, com um movimento rápido, pendeu as patas dianteiras no interior do barco, ficando com os quartos traseiros alçados. Houve um momento de confusão, depois um baque. Finalmente, o touro saltara e encontrava-se no porão do navio.
E tudo tão silencioso e tão remoto!
- Ramon quer que se sente ao lado dele no templo como esposa de Quetzalcoatl... com algum nome esquisito? - perguntou Kate a Teresa.
- Não sei. Mais tarde, diz ele, quando for ocasião de haver uma deusa.
- E importa-se?
- Por mim, tenho medo. Mas sei que Ramon o deseja. Ele diz que é aceitar a maior responsabilidade da nossa vida, e eu acredito que seja verdade. Se existe divindade em mim, devo reconhecê-la, envergar a túnica verde e ser deusa no momento oportuno. Ramon afirma que precisamos de manifestar a presença divina. E, ao lembrar-me de meus irmãos, acho que ele tem razão. Hei-de pensar no deus que palpita invisível como o coração do mundo. E quando vestir a túnica verde e me sentar no templo diante de toda a gente, voltar-me-ei para o coração do universo e tentarei compenetrar-me do meu eu divino.
- Julgava que a túnica verde era só para a esposa de Huitzilopochtli - observou Kate.
- Ah, sim! - replicou Teresa. - A minha é preta, com barras brancas e desenhos encarnados.
- Preferia a verde? Fique com ela, se quiser. Eu vou-me embora...
Teresa ergueu os olhos para Kate.
- A túnica verde é para a mulher de Huitzilopochtli - declarou.
- Não vejo que isso tenha importância - volveu a irlandesa.
- Cada homem deve possuir a esposa que lhe convém. Cipriano não quereria uma mulher como eu.
- Cada mulher deve ter o homem que lhe convém - retorquiu Kate. - Para mim, Ramon seria muito abstracto e muito despótico.
Teresa ruborizou-se e baixou os olhos.
- Ramon exige muita submissão de uma mulher para que me agradasse - ajuntou a outra.
Teresa ergueu a cabeça, o pescoço moreno ondulou como uma
serpente.
- Como é que sabe que Ramon exige submissão das mulheres? Como é que sabe? Nunca a exigiu de si... Está enganada. Ele não me impõe tal submissão. O que pretende é que me entregue brandamente; em compensação, entrega-se-me, a mim, com uma brandura maior do que esta que lhe concedo: um homem como Ramon é mais dócil do que uma mulher. Não se assemelha a Cipriano, que é soldado. Ramon mostra-se dócil. Não tem razão no que
diz, Caterina.
Kate soltou uma risadinha. Mas Teresa prosseguiu:
- Vejo-a como um soldado entre as mulheres, está sempre a combater. Eu não sou assim. No entanto, há mulheres que são de temperamento bélico e essas precisam de mandos militares. Eis a razão por que é Malintzi e tem um vestido verde. Estará sempre disposta a lutar... até consigo mesma, se ficar só no mundo.
Havia uma grande calma em volta do lago. As duas senhoras aguardavam a chegada de Ramon.
Um homem vestido de branco, acocorado e silencioso debaixo de uma árvore, desbastava folhas de palmeira, com ar concentrado. Em seguida ia molhá-las na água e voltava para se sentar de novo, recomeçando o trabalho com aquela atenção pueril da gente do povo. Estava a consertar uma cadeira de palha. Como Kate o observasse, os olhares dos dois encontraram-se e o homem saudou-a. Dir-se-ia que, dele, emanava para ela uma chama de vida, a qual lhe transmitiu um estranho poder.
Nitrindo excitado, corria ao longo da margem um cavalo ruço malhado de branco. A crina flutuava ao vento, as patas faziam saltar os calhaus, as narinas abriam-se-lhe ansiosas. Porque seria?
Um peón fizera entrar no lago a sua carroça puxada por quatro muares, até que a água ficou acima dos varais, e quase atingindo o fundo do veículo. Parecia um barco conduzido por quatro cavalos-marinhos.
Era Inverno, mas dir-se-ia Primavera nas imediações do lago. Saltitavam na praia bezerros amarelos e brancos, agitando a cauda, correndo lado a lado à beira da água, que eles cheiravam desconfiados.
A uma árvore estava amarrada uma burra, com a sua cria deitada à sombra, um jumentinho preto como uma amora, enroscado no chão, com a cabeça peluda erguida e as longas orelhas fitas.
- Quantos dias tem o burrinho? - perguntava Kate ao peón, que saíra da sua cabana de colmo.
O homem dirigiu-lhe um olhar em que havia júbilo e deferência - olhar que fez Kate sentir uma onda de orgulho encher-lhe o peito.
- Nasceu a noite passada, patrona! - respondeu ele, sorrindo.
- Tão novo! Ainda não pode aguentar-se nas pernas, pois não?
O peón aproximou-se do jumento e pô-lo de pé. E ali ficou o animalzinho, espantado, de pernas abertas, como se em cima de ganchos de cabelo.
- Que engraçado! - exclamou Kate, deliciada. O homem riu-se; parecia grato pelo interesse dela.
O jumento a custo se mantinha naquela posição. Vacilava sobre as quatro patas bambas, com ar admirado. Deu uns passos oscilantes para cheirar as folhas de milho. Cheirou, e tornou a cheirar, tal se o mistério do olfacto se lhe revelasse nas narinas.
Então voltou para Kate a cabeça aveludada e deitou de fora a língua cor-de-rosa. Kate soltou uma gargalhada, o que fez o animal dar um pulo que o deixou infinitamente surpreendido consigo próprio. Tentou uns passos, e, de repente, sem que ele mesmo esperasse semelhante coisa, deu outro salto.
- Já dança! - exclamou Kate. - E só tem umas horas de existência!
- Já dança - confirmou o peón.
Depois daquelas experiências, o burrinho aproximou-se da mãe em passos incertos e começou a mamar.
Erguendo a vista, Kate encontrou os olhos do homem cintilantes da chama da vida, cheios de confiança e de conhecimento.
O jumentinho preto, a mãe, o mistério da criação, o respeito pela mulher superior a ele, bela e radiosa, tudo isto exprimiam os olhos negros desse homem primitivo.
- Adiós! - disse Kate.
- Adiós, patrona! - respondeu ele, erguendo o braço, na saudação de Quetzalcoatl.
Atravessou ela a praia em direcção ao cais; sentia dentro de si uma onda de vida, forte, resistente. "É o sexo", disse consigo. "Como o sexo pode ser extraordinário quando o homem o conserva poderoso e sagrado e que ele enche o mundo! É como o sol, penetrando-nos. Mas não me submeterei, mesmo assim. Porquê ceder?" Ramon aproximava-se, com o seu largo chapéu ornamentado do símbolo de Quetzalcoatl. Nesse instante tocaram os tambores e, do alto da torre, soou a voz nítida e possante anunciando o meio-dia. Todos os homens que se encontravam na praia aprumaram o corpo e ergueram o braço direito. As mulheres viraram a palma da mão para o Sol. Tudo ficou imóvel, excepto os animais.
Então Ramon encaminhou-se para o barco, enquanto os homens o saudavam à maneira de Quetzalcoatl.
- É espantoso como nesta terra se pode ter a impressão de que se é alguém! - notou Kate, quando já iam sobre a água no barco de remos. - Sentimo-nos como se pertencêssemos de facto à nobreza.
- E não é verdade?
- Sim, mas isso em toda a parte nos é negado. Só aqui temos a noção do poder da nobreza. Os indígenas ainda a veneram. Parecem
adorar-me.
- Por enquanto - replicou Ramon. - Mais tarde assassiná-la-ão porque a adoraram.
- É inevitável? - volveu Kate em tom despreocupado.
- Creio que sim. Se vivesse sozinha aqui, em Sayula, e reinasse por algum tempo, seria assassinada... ou pior ainda... pelo povo que a tinha idolatrado.
- Não acredito.
- É como lhe digo.
- Mas porquê?
- A não ser que se consiga dos deuses a nossa própria nobreza e se implore dos céus o poder, acabaremos por ser assassinados.
- A minha nobreza tem essa origem.
Mas não ficou muito convencida e mais firmou a sua resolução
de partir.
Escreveu para a Cidade do México e reservou uma passagem de Vera Cruz a Southampton. Embarcaria no último dia de Novembro.
Cipriano regressou a 17 e Kate participou-lhe o que tinha feito. Ele ficou a olhá-la, de cabeça um pouco à banda e com uma expressão de criança ajuizada, mas Kate foi incapaz de adivinhar o que lhe ia na alma.
- Vais-te embora já? - perguntou ele em espanhol.
A mulher percebeu então que estava ofendido. Quando se melindrava falava-lhe sempre em espanhol, nunca em inglês.
- No dia 30.
- E quando voltas?
- Quien sabe! - ripostou Kate.
Por uns minutos, Cipriano fitou-a com as suas pupilas negras imperscrutáveis. Estava a pensar que tinha o direito de a impedir que saísse do país, visto ser legalmente sua esposa. Nas profundezas dos olhos luzia a antiga cólera índia; depois surgiu uma leve mudança de expressão no rosto, quando a ira contida cedeu lugar à indiferença estóica, à velha indiferença de tantos séculos. Kate quase sentia as ondas sucessivas de sombra e frieza que percorriam Cipriano sem que ele mesmo desse por isso. E mais uma vez lhe estremeceu o coração o medo de perder o contacto com esse homem.
- Como quieras tu! - disse ele por fim.
Concedia-lhe a liberdade com a misteriosa indiferença do seu sangue e não faria mais esforços para a reter. Era o fatalismo dos da sua raça.
Conforme Kate previra, Cipriano tomou um barco e foi a Jamiltepec falar com Ramon.
A mulher ficou só, como de costume. Ocorreu-lhe que ela própria criara essa solidão. Não conseguia identificar-se com aquela gente, sentir-se à vontade fosse com quem fosse. Fechava-se sempre na sua personalidade.
Importava-lhe muito a reciprocidade sexual? Podia importar-lhe ainda mais se não a houvesse tido; mas tivera-a, e de maneira perfeita, com Cipriano. Sabia tudo a esse respeito. Era como se houvesse conquistado outro território, outro domínio da vida. E agora devia retirar-se para a toca da sua individualidade, com a vítima nos dentes.
De súbito, viu-se como os homens muitas vezes a viam: uma gata enorme, com os seus espasmos de volúpia e o gozo demorado do seu isolamento. Conhecia outras mulheres assim. Brincavam cheias de amor e familiaridade como um gato com um rato. Por fim devoravam o ratinho querido e reapareciam com a barriga repleta e uma voluptuosa sensação de força.
Algumas vezes o rato recusava-se a ser digerido, de que resultava prolongada dispepsia; ou então, como Cipriano, transformava-se numa espécie de cobra, que alçava a cabeça, olhava para trás e desaparecia num buraco, deixando-a confusa e destituída de poder.
Outra coisa que ela observava horrorizada. Uma após outra, as suas "amigas", as grandes amorosas, na idade de quarenta, quarenta e cinco e cinquenta anos perdiam todos os atractivos e ficavam umas corujas horrendas, procurando em volta a vítima cada vez mais rara. Como seres humanos deixavam de existir, metamorfoseadas em corujas elegantes e mexeriqueiras.
Kate era bastante inteligente para tirar proveito da lição. Estava bem que uma mulher cultivasse o seu ego, a sua personalidade. Estava muito certo que desprezasse o amor ou que com ele se entretivesse como um gato faz ao rato; isto é, brincar o mais tempo possível antes de o comer e saciar voluptuosamente o ego com a sua vítima.
"A mulher sofre mais com a supressão do ego do que com a do sexo", afirmou uma escritora, e talvez seja verdade. Mas olhai, olhai para as mulheres modernas de cinquenta anos, as que cultivaram o ego até ao extremo limite! São em geral criaturas que nos enchem de pena ou de repulsa.
Kate sabia tudo isto, e nisto pensava enquanto ali sozinha na sua vivenda. Tivera a sua liberdade, mesmo no México. Esses homens deixá-la-iam partir. Não estava prisioneira. E levaria consigo todos os despojos que ainda guardavam.
E depois? Sentar-se nos salões de Londres e ser mais uma coruja ao lado das outras? Arvorar um sorriso postiço e falar com voz
artificial?
"Não! - disse consigo. - O meu ego e a minha personalidade não valem esse preço. Prefiro desfazer-me deles em parte a ver-me reduzida a isso."
No fim de contas, quando Cipriano a acariciava toda ela parecia desabrochar. Era a força do sexo, que enchia o mundo de lascívia e sobre que ela não se atrevia a reflectir. O seu poder tornava-se maior do que a sua vontade. Por outro lado, quando estava só e abria as asas do seu ego e o espírito desferia voo, o mundo afigurava-se-lhe maravilhoso. Todavia, após uns instantes, desvanecia-se o esplendor, substituído por uma solidão amarga.
"Preciso de ambos - concluiu. - Não posso afastar-me de Cipriano nem de Ramon. Renovaram-me o sangue. Digo que são limitados, mas todos temos de o ser. Se tentamos ser ilimitados, tornamo-nos monstros. Sem Cipriano a afagar-me, a limitar-me e a submergir-me a vontade, tornar-me-ia uma velha horrível. Devo regozijar-me pelo facto de Cipriano me limitar com a sua vontade e o seu contacto ardente. Porque o que eu chamo a minha grandeza faz-me cair no vácuo desde que não haja a mão dum homem para me segurar. Ah, sim! Antes submeter-me do que ser uma mulher horrível."
Chamou o criado e foi através do lago num barco de remos. Era por uma bela manhã de Novembro. Nas escarpas das montanhas, a nordeste, as sombras tinham um tom azul muito puro. Por baixo, a vegetação começava a amarelecer. O lago, embora ainda cheio, principiava a baixar, e os jacintos-d'água vogavam à toa. No ar calmo viam-se pássaros voando. Alguns milheirais exibiam os seus talos secos, mas as flores de palo-blanco tinham já desabrochado e errava o perfume das acácias amarelas.
"Porque havia de me ir embora? - pensou Kate. - Porque havia de ver os autocarros na lama de Piccadilly na véspera do Natal e a multidão nos passeios molhados diante das lojas iluminadas? Mais vale ficar aqui, onde a minha alma é menos triste. Tenho de pedir desculpa a Ramon das coisas que lhe disse. No fim de contas, aqui há outra grandeza, com o som dos tambores e o grito de Quetzalcoatl."
Já ela distinguia o último andar da casa de Jamiltepec, semelhante a uma torre avermelhada, e a buganvília roxa pendente do muro, os cachos das flores de plumbago e a porção de rosas brancas.
- Están tocando - disse tranquilamente o barqueiro, erguendo para ela os olhos negros.
Já ouvira o som do tambor em Jamiltepec. Uma voz de homem se elevou na manhã clara.
O barqueiro levantou um remo, como se fizesse sinal. E assim que o barco penetrou na enseadazinha, veio um criado a correr ao longo do molhe. No ar soalheiro notava-se o cheiro das daturas e das rosas, e um silêncio profundo que nem o tambor nem o canto perturbavam.
- Don Cipriano está aqui? - perguntou Kate.
- Está - murmurou o criado, apontando para o balcão donde partia a voz do cantor. - Deseja que eu o informe da sua chegada?
- Não - respondeu Kate. - vou sentar-me um bocado no jardim, antes de subir.
- Nesse caso, deixarei a porta aberta - volveu o homem - e assenhora entrará quando quiser.
Kate instalou-se no banco de uma árvore, donde pendiam flores de trepadeira enroscada ali como uma serpente. Pôs-se a ouvir o canto. Ramon ensinava o novo hino a um dos cantores.
Não tinha muito boa voz o Quetzalcoatl vivo. Cantava baixinho, como se para si mesmo, mas com expressão simples e bela. Kate não conseguiu perceber a letra.
- Ya? - disse Ramon ao terminar.
- Ya, patrón! - respondeu o cantor.
E na sua voz forte e pura, este entoou o hino:
O meu caminho não é o teu e o teu não é o meu.
Mas vem, antes que nos separemos.
Cada qual por seu lado, dirijamo-nos à Estrela da Manhã
Para lá nos encontrarmos.
Não te aponto o meu caminho
Nem chamo por ti.
Mas a Estrela é a mesma para nós ambos
E a ambos nos atrai.
A cada qual o seu caminho, esse que esplende Na encruzilhada,
Que abre a sua chama como a porta de uma tenda Por onde, invisíveis, deslizamos.
Não pode um homem pisar como a mulher
Nem a mulher andar como o homem.
O espírito de cada um através das folhas de sombra
Se move como pode.
Mas a Estrela da Manhã e a da Noite Fixam tendas de fogo
Onde nos retinimos quais ciganos, sem saber Como é que vieram os outros.
Nada mais peço que me insinuar Na tenda do Espírito, e deter-me Na casa da chama bifurcada Como hóspede seu.
Fica aí comigo, esposa minha, Corporalmente. E que a flama nos envolva Qual uma rede.
Sede lá, homens, comigo,
Alcançai o lar.
Ride comigo, enquanto a mulher repousei,
Porque vale a pena.
O homem entoara o hino por várias vezes, parava, dir-se-ia esquecer-se, extinguia-se-lhe a voz pura e quente. Então a de Ramon, baixa e um tanto rouca, elevava-se com subtil intensidade, como se vinda do meio duma concha; depois, o tenor retomava o canto, que lhe corria no sangue como uma chama.
O mozo de Kate, ou seja, o seu criado, seguira-a ao jardim, e tinha-se sentado de pernas cruzadas, a certa distância, debaixo de uma árvore, de costas apoiadas ao tronco - sombra acocorada, vestida de branco. Os dedos dos pés saíam-lhe rijos e escuros das huaraches esburacadas, e o trancelim de palha do chapéu pendia-lhe junto à face trigueira. Quanto ao resto era tudo alvo, e as calças de linho apertavam-se-lhe nas coxas.
Quando o canto terminou, e o tambor deixou de rufar, e as vozes, num murmúrio, mal se ouviam, o mozo ergueu a cabeça e olhou para Kate. Brilhavam-lhe as pupilas negras, no rosto errava-lhe um sorriso tímido.
- Está muy bien, patrona? - perguntou, um pouco envergonhado.
- Muito bem - respondeu ela, como um eco fiel. Mas no seu coração debatiam-se conflitos diversos, e o criado sabia-o.
Parecia tão novo com aquele sorriso alegre, excitado, receoso! Havia nele qualquer coisa de perpetuamente infantil; mas era uma criança que, dum momento para outro, se podia tornar num selvagem- vingativo e brutal, um homem que nunca perdia a consciência do seu sexo. E Kate pensou mais uma vez que existiam várias maneiras de regressar à infância.
O criado, porém, continuava a espiá-la, de soslaio: queria ver se havia nela qualquer hostilidade secreta. Desejaria que concordasse com o hino, com o tambor e com tudo mais. Como uma criança, ansiava pela sua aquiescência; mas, se a senhora se mostrasse hostil, ele seria o primeiro a manifestar-se. Um julgamento adverso torná-lo-ia inimigo declarado.
Ah, os homens eram todos iguais!
Nessa ocasião, o rapaz levantou-se, com súbita agilidade, e ela ouviu a voz de Cipriano na varanda:
- Que é, Lupe?
- Está la patrona - respondeu o mozo.
Kate ergueu-se também e olhou. Viu a cabeça e os ombros nus do marido, em cima, no parapeito.
- Já lá vou - participou-lhe.
Vagarosamente transpôs os portões de ferro do corredor. Lupe, que a seguia, fechou-os atrás de si.
No terraço encontrou Ramon e Cipriano, ambos de tronco nu, que a esperavam em silêncio. Kate, embaraçada, explicou:
- Estive a escutar o novo hino.
- E-que lhe pareceu? - perguntou Ramon.
- Gostei.
- Sentemo-nos - propôs ele. E a recém-vinda deixou-se cair numa das cadeiras de verga. Cipriano ficou de pé, encostado à balaustrada.
Kate viera para declarar a sua submissão: dizer que já não queria ir-se embora. Mas, vendo os dois homens numa disposição muito quetzalcoatliana, não se decidia a aflorar o assunto. Tinha a sensação de ser uma intrusa. Não se compenetrava de que também pertencia à seita.
- Parece-me que não há Estrela da Manhã para nos reunir a todos três - observou, irónica mas um pouco trémula.
Sobre eles desceu um silêncio ainda mais profundo.
- Estou a ver que uma mulher é realmente de trop aqui junto de vocês ambos.
Hesitou um tanto ao dizer isto. Sabia que Cipriano ficava perplexo e melindrado quando ela escarnecia.
Ramon respondeu-lhe com uma doçura que vinha direita do seu coração.
- Então que há, prima?
com um tremor nos lábios, Kate replicou:
- Em verdade, não desejo deixá-los.
Olhando rapidamente para Cipriano, Ramon retorquiu:
- Bem sei que não deseja.
O tom suave e protector da sua voz fê-la revoltar-se de novo. com os olhos rasos de lágrimas, ela bradou:
- Afinal vocês não precisam de mim!
- Não, não, preciso de ti. Verdad, verdad! - exclamou Cipriano em voz baixa e contida, quase num murmúrio.
E, no meio das suas lágrimas, Kate pensava: "Como sou intrujona! Sei perfeitamente que sou eu que não os quero. Quero-me só a mim mesma. Mas posso iludi-los de modo que o não percebam."
Havia notado a paixão fálica e ardente na voz de Cipriano.
Coube a vez a Ramon de falar, e fê-lo em tom glacial:
- A Caterina é que não precisa de nós. Não se comprometa connosco. Atenda à sua própria preferência.
- E se ela me aconselhar a partir? - ripostou Kate, como um desafio, através de um resto de lágrimas.
- Então parta!
Kate recomeçou a chorar.
- Ah, eu bem sabia que não precisavam de mim. Mas Cipriano acudiu com persuasiva ternura:
- Não és dele! Ele não pode dizer nada.
- Isso é verdade - concordou Ramon. - Não me dêem ouvidos.
Levantando bruscamente a cabeça, no meio do seu pranto, viu-o afastar-se sem rumor.
Limpou a cara, recuperou a calma e, de olhos húmidos, fitou Cipriano. Este conservava-se muito direito, como um galo combatente. Nas pupilas negras brilhava-lhe um fulgor estranho.
Sim, Kate também tinha medo dele, desses olhos pretos inumanos.
- Não queres que me vá embora, pois não? - perguntou-lhe suplicante.
Espalhou-se no rosto do homem um sorriso lento, e um leve tremor lhe percorreu o corpo. E então, na sua voz de inflexões índias, muito suave, Cipriano disse-lhe em espanhol:
- Yo! Yo! - E as sobrancelhas erguiam-se-lhe numa expressão de espanto divertido. Ainda trémulo, concluiu: - Te quiero mucho! Mucho te quiero! Mucho, mucho!
As palavras soavam tão cariciosas, vinham-lhe tanto do seu sangue ardente, que a mulher se sobressaltou e disse:
- Não me deixarás partir!

 

 

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