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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A SERVIÇO DO REI / A. M. Hublet
A SERVIÇO DO REI / A. M. Hublet

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

       Alano é um jovem e destemido cristão que foi colocado em um monastério para que seu pai lutasse nas cruzadas. Inconformado ele foge e encontra seu pai convencendo-o a aceitá-lo em suas fileiras. Com apenas quinze anos é um exímio cavaleiro, amigo de seu rei e o orgulho de seu pai.

Numa das batalhas é dado como morto e feito prisioneiro. O que poderia ser o fim é apenas o começo de inúmeras aventuras: torturas, provações contra sua fé e conhecer a doce Zaní, da qual se torna seu guardião e amigo.

Alano mostra aos seus inimigos que é um guerreiro valoroso e a mulçumana Zaní cada dia se torna mais apaixonada por esse cristão.

 

 

 

 

                                                       Capítulo 1

                       A FUGA

No grande pátio, onde as pombinhas brancas voam ao redor de uma límpida fonte, que repousa sobre colu­nas delicadamente trabalhadas, um me­nino, de atitudes desembaraçadas, e om­bros largos, passeia impaciente desde o portal da bela igreja românica ao átrio de ingresso da abadia. Seus olha­res voltam-se continuamente para a porta abacial de que saem, finalmente, absorvidos em sua palestra, o pai e o abade do mosteiro.

— Desta maneira, reverendíssimo padre, entrego-vos o meu Alano. Tenho certeza de que fareis dele um cris­tão e um cavaleiro.

— Cuidaremos dele com toda so­licitude, nobre senhor. Mas, como poderia ele deixar de seguir quase que ins­tintivamente, as pegadas do pai?

— Lembrai-vos de que é minha única felicidade, — ajuntou o conde Aimery, bruscamente, querendo esconder sua emoção.

— Justamente por isto, peço-vos, Nobre senhor, que reflitais ainda. Não posso compreender vossa partida com destino à Terra Santa.

— Prometi que envergaria a Cruz; somente a longa enfermidade de mi­nha querida esposa pôde impedir-me o cumprimento de meu voto; agora, o céu chamou-a a si; nada mais me resta, que cumprir minha palavra.

— Diante da juventude de Alano, conseguireis certamente a dispensa, se a pedirdes.

— Um Aimery, não se subtrai ja­mais ao cumprimento da palavra em­penhada. Educai vós a meu filho nes­sas idéias, no amor de Deus e no res­peito à honra.

Divisando, então, o jovem que, a certa distância os contemplava, ace­nou-lhe:

— Vem cá, filho!

Alano aproximou-se de rosto contrafeito e inclinou-se diante do abade, com um gesto cheio de nobreza, no qual, porém transparecia um pouco de inflexibilidade e hostilidade.

— Filho, o reverendíssimo padre, ao meu pedido, concorda em receber-te nesta abadia, onde saberei que estarás sempre em segurança, até que eu cum­pra o meu voto.

— Estarei mais perto de ti, pai, se me permitires que te acompanhe!

O abade interveio com um sorriso de condescendência.

— Vamos, Alano! Um menino de treze anos não pode evidentemente cor­rer os riscos de uma Cruzada!

— Saberei mostrar a todos que, para guerrear, já não sou mais uma criança! — protestou com firmeza o jo­vem. — Meu olhar é seguro, meu braço é forte e a cabeça é firme.

— Naturalmente, meu filho! Conheço a tua coragem, — continuou o conde. No entanto, jovem como és, não tenho direito de te expor a tão grandes canseiras.

— Papai, por favor!

— Não insistas, Alano! Já me de­cidi. Quero que, esperando-me, aceites voluntariamente a autoridade do padre abade; serás dócil com os monges, cor­dial com os companheiros que te darão os quais, certamente, não terão teus pendores guerreiros. Quando eu vol­tar, quero encontrar-te adiantado nos estudos e um grande sábio.

— Papai! O estudo me interessa muito menos que o combate!

—- Vamos, meu filho! Obedece! — aconselhou o abade. Alano olhou-o de viés e já se preparava para responder, quando o conde deu por encerrada a entrevista:

— Adeus, filho, e reza todos os dias para mim!

— Papai, partes logo?

— Talvez precise ainda de oito dias para concluir os preparativos. Cora­gem!

Abraçou ternamente ao jovem; montou no cavalo que lhe fora trazido pelo escudeiro e partiu sem olhar para trás. O abade apoiou a mão no ombro do rapaz:

— Seja razoável, Alano! Obedece! — repetiu.

O jovem, com um gesto rápido afas­tou-se e murmurou entre dentes:

— Ainda o alcançarei!

O abade, a quem esta reflexão não escapara, decidira manter sob estreita vigilância o taciturno aluno; contraria­mente, porém, às suas previsões, no pri­meiro e segundo dia, não se verifica­ra nenhum sinal de revolta. No tercei­ro, Alano tomara uma atitude alegre e dera em tudo provas de uma docilidade perfeita: assistira devotamente aos ofí­cios; ouvira com paciência as lições do padre Jacinto e concordara em tudo com momentos livres, entretanto passara-os caminhando pelos jardins e pelos claustros, tanto que, depois de uma se­mana, o bom abade começou a simpa­tizar com ele.

Confidenciou ao Magister sua sa­tisfação, pelos resultados obtidos:

— Domesticamos rapidamente nos­so gavião selvagem, padre Jacinto!

— Eh! Reverendíssimo padre... o gavião pode lembrar-se de um mo­mento a outro de que ainda tem asas! Preferia muito mais vê-lo estudar com empenho, antes que ficar por aí, a an­dar continuamente pelos jardins.

— Paciência, filho! Este jovem não está destinado a ser monge; seja­mos indulgentes para com ele. Não te­ma!

O pobre abade bem cedo deveria pagar pelo seu fugaz sentimento de van­gloria. Durante aquele dia, — era um domingo, — Alano, entre um ofício e o outro, passeou pelos jardins cheios de sombra da abadia, estudando minu­ciosamente as sebes e as alamedas de carmins.

— Estás procurando ninhos, Ala­no? — indagou brincando um dos co­legas. — Cuidado, que quem anda em bus­ca de ninhos, desagrada a Frei Egídio.

— A mim também! Fica tranquilo.

Antes de anoitecer, retirou-se para sua cela, cantarolando uma velha can­ção de guerra e deitou-se muito satis­feito com o dia que passara.

Pouco antes da meia-noite, Alano foi acordado pelo som dos sinos que chamavam os monges para o canto de matinas; levantou imediatamente, ves­tiu-se em silêncio, embora fosse, como seus companheiros, dispensado do ofí­cio noturno. Aproximando-se da porta ouviu longamente os passos dos mon­ges que se afastavam em direção ao co­ro, até que se diluíram no silêncio; fe­chou com cuidado a porta e desceu ao claustro, iluminado pela lua.

Tudo estava em paz; o lento salmo das vozes, que lhe vinham da igreja, harmonizava perfeitamente com o silêncio da noite. Na ponta dos pés, Alano chegou a uma pesada porta de carvalho, que dava para os jardins da abadia; afastou lentamente os batentes e escorregou para fora sem ser obser­vado.

A noite era de uma limpidez mara­vilhosa; os edifícios do mosteiro desta­cavam-se nitidamente contra o céu, com exceção da igreja, cujos largos vitrais estavam iluminados por uma tênue luz multicor. Silenciosamente Alano acom­panhou os muros, passou pela fonte, em que a água saltitava numa bacia de mármore negro, em seguida escondeu-se na sombra escura de uma sebe. Che­gou sem dificuldade a um lugar que estudara particularmente durante seus passeios, e, agarrando-se ao tronco nodoso de uma velha árvore, apoiou os pés nas saliências da muralha, atingindo-lhe rapidamente o cimo.

Cavalgando o muro, deu um últi­mo olhar ao mosteiro, para assegu­rar-se de que não fora seguido; com a mão fez uma irônica saudação de des­pedida em direção ao bom padre aba­de e em seguida deixou-se cair no pra­do vizinho. Livre!

Uma vez saído da abadia, rapida­mente atingiu a pastagem onde eram recolhidos, à noite, os cavalos, do sítio; entre os fogosos animais não lhe foi di­fícil distinguir Galará, seu fiel corcel, que lhe obedecia como um cãozinho. Chamou-o com um assobio. O lindo animal imediatamente acorreu, esfregan­do a cabeça no ombro do dono. Sal­tar-lhe à garupa; acomodar-se sem se­la e sem freio, era uma brincadeira pa­ra o jovem filho do conde Aimery, per­feito cavaleiro. Apertando os joelhos, pôs o cavalo a trote, conduzindo perto do pequeno muro que fechava o recinto e, com um rápido esforço, o fez pular.

No outro lado do muro, a estrada branca alargava-se sob o olhar cúmpli­ce da lua, estirando-se na direção de um espesso bosque, onde se perdia. O cavaleiro meteu-se nela e depois, quan­do julgou que o rumor da disparada já não poderia atingir ao mosteiro, in­clinou-se sobre o pescoço de Galará, acariciou-o, falando-lhe em voz baixa, e lançou-o em plena velocidade na di­reção à aventura, que o aguardava.

 

O romper do novo dia, encontrou Alano galopando ainda, enquanto can­tava uma canção guerreira; ao surgir o primeiro raio de sol, explodiu numa gargalhada, pensando na surpresa do padre Jacinto quando, antes da missa, lançasse para o interior da cela deser­ta o seu "Benedicamus Domino", ago­ra sem resposta alguma. Divertindo-se com esta lembrança, sofreou o ímpeto do cavalo, para poupar-lhe energias. Pôs-se, então, a cantar a plenos pul­mões: o cansaço da alegria da liberda­de.

Mais tarde, parou às bordas de um bosque, e deixou Galará pastando, ali­mentando-se com algumas provisões que havia trazido. Saciado, dormiu di­versas horas; ao acordar, colheu amoras dos arbustos vizinhos, e partiu de novo.

Seu plano inicial era o seguinte: alcançar o castelo paterno; esconder-se nos bosques da vizinhança e seguir de longe o exército de seu pai, apenas se houvesse posto em marcha. Chegando, porém às terras de sua propriedade, soube de um pastor, que o identificara, que o Conde Aimery já partira há dois dias, deixando no comando do caste­lo o mordomo-mor Ugo, com um pu­nhado de homens.

Teve de modificar seus planos uma vez que, entre todos os subalternos do castelo, Ugo, vítima habitual de suas traquinices, era o único que não se dei­xava influenciar pelo jovem amo.

— Se me descobre, — pensou Alano — aquela cabeça de porongo1, é ca­paz de mandar-me reconduzir ao mos­teiro, no meio de dois homens arma­dos, como um malfeitor. Essa satisfa­ção nunca darei ao reverendíssimo pa­dre abade.

Informou-se, então, minuciosa­mente da direção tomada pelos cruza­dos; recomendou vivamente ao pastor de guardar segredo e pôs-se em mar­cha. Pelo anoitecer, bateu à porta de uma cabana isolada, onde o acolheu uma família de velhos lavradores; com uma fome de lobo, devorou o pão ne­gro e o queijo que lhe foram ofereci­dos; em seguida, depois de haver ali­mentado Galará, foi deitar-se satisfei­to no monte de feno da estrebaria, on­de adormeceu como um justo.

Na manhã seguinte, aceitou muito contente um pão e uma taça de leite; em seguida, depois de haver pago a hos­pitalidade, não obstante os protestos daquela boa gente, interrogou-os:

— Vistes por acaso passar, há dias, cavaleiros, que ostentavam as minhas cores?

— De certo! Vimos um exército que partia para a Cruzada!

— Perfeitamente! É esse que eu busco!

— Desciam em direção do sul, por aquele lado... tem dois dias de vanta­gem, senhor!

— Não importa! Hei de alcançá-los!

— Como? Ides também para a cru­zada? Tão jovem?

— Saberão qual é a minha idade, pelo vigor dos meus golpes, meu po­vo! Adeus! Rezai por mim! Mais uma vez, muito obrigado!

O homem forneceu-lhe um freio enferrujado e um pano velho, que lhe serviu de pelego e Alano, mais feliz do que um rei, partiu, cantando a plenos pulmões, canções heróicas.

Depois de dois dias de caminho e de rápida cavalgada, enquanto ultra­passava a serra, do alto de uma colina, descobriu finalmente uma nuvem de pó, que se levantava no meio dos cam­pos de trigo:

Serão eles?

Bem cedo, realmente, seu olhar agudo conseguiu distinguir lanças e elmos que brilhavam, refletindo os úl­timos raios do sol. Então, pela primei­ra vez depois da fuga do mosteiro, Ala­no começou a pensar na acolhida que lhe teria dispensado o pai. Decidiu, porém, não preocupar-se, naquele dia, deixando o assunto para a manhã e deitou-se, envolto em seu manto.

Ao despontar do sol, pôde distin­guir perfeitamente os cavaleiros levan­tando o acampamento; e desta vez re­conheceu: sem sombra de dúvida, as cores do pai; então, recomendando-se inteiramente a Nossa Senhora e a São Jorge, montou novamente em Galará e alcançou-os.

Sua chegada imprevista e impetuo­sa causou impressão nos homens de ar­mas, pois Alano desfrutava, entre os soldados de seu pai, imensa populari­dade e afeição. Habituado desde a in­fância a viver em seu meio, participan­do dos exercícios militares, aprendera com aqueles homens rudes a manejar a espada e a adaga, com surpreendente destreza. Dotado de grande vigor, não obstante sua pequena estatura, não te­mia de correr ao assalto junto aos de­mais e saia-se sempre com grande ga­lhardia.

Na equitação ninguém o superava; posto no dorso de um cavalo ainda an­tes de caminhar, aprendera a subjugar os animais mais fogosos e teimosos e impor-lhes rapidamente sua vontade.

Se a acolhida dos soldados foi en­tusiástica, a do conde foi muito dife­rente. Dissimulando sua alegria por ver novamente o filho, que tanto ama­va, o cavaleiro passou a tratá-lo com energia e apostrofou-o com voz irada:

— De onde vens? — indagou brus­camente.

— Da abadia... pai, não fui fei­to para ser monge e sim guerreiro!

— Ah! É isso! Toma nota, então: a primeira lição que o guerreiro deve aprender é saber obedecer.

— Lá a vida me era insuportável! De outro lado, jurei que não ficaria com aquele abade, que me tomou por uma criança. Um Aimery não deve cumprir a palavra empenhada?

O conde, silencioso, pôs-se a ca­minhar de cá para lá, enquanto em seu espírito alternavam-se o desconten­tamento por ver que Alano havia de­sobedecido, a alegria que a presença do filho lhe proporcionava e o temor pe­los grandes trabalhos e sacrifícios a que o exporia, se o levasse consigo. No entanto, não podia mandá-lo de volta sozinho nem privar-se de um dos com­panheiros para escoltá-lo. Finalmen­te, parando diante do rapaz, que esta­va confuso, falou-lhe com voz rude:

— No meu exército, não há lugar para um filho desobediente!

— Papai! Por favor!...

— Talvez possa aceitar-te; um soldado a mais!

— Um soldado? É justamente o que eu peço!

— Quero que compreendas bem: serás apenas mais um de meus homens, sem qualquer exceção, nem favor, to­mando parte em todos os trabalhos e correndo os mesmos riscos.

— Estamos de acordo!

— Tanto pior! Foste tu que o quiseste: não me culpes amanhã. Eis que pássaras, portanto, a estar sujeito, como todos os teus companheiros, à disciplina militar; à primeira desobe­diência serás severamente punido!

— De acordo, comandante!

— Toma teu lugar na última filei­ra da coluna: estarás sob as ordens de Pierrú.

O rapaz despediu-se do pai e cor­reu para o lugar que lhe tinha sido de­signado, ao lado de Pierrú, velho sar­gento, tão resmungador quanto valen­te e que gostava muito do rapaz, sem querer, entretanto, demonstrá-lo.

— Eis um equipamento maravi­lhoso para ir combater na Terra San­ta!— disse Pierrú irônico, dando um olhar de desprezo à suja coberta e às rédeas de linho trançadas de seu novo subordinado. — Se os sarracenos te cap­turassem com esses arreios, diriam que a armada cristã não passa de um bando de mendigos!

Alano tomou uma atitude altiva e olhou-o firmemente:

— Antes de qualquer coisa, os sarra­cenos não me aprisionarão. E, depois, se alguém rir de meu equipamento, sa­berei fazê-lo engolir o riso!

Pierrú resmungou satisfeito com a resposta, mas na etapa seguinte descobriu na bagagem uma sela; um cava­leiro ofereceu-lhe os estribos, um ou­tro deu-lhe as rédeas, de modo que Alano retomou o caminho mais altivo e alegre que nunca.

— Devolverei tudo isto, tirando-o de minha parte do botim, logo após nos­sa vitória! — prometeu ele.

Nos seis dias seguintes, nem uma vez o conde Aimery dirigiu a palavra ao filho, coisa que muito custou a seu coração e ao coração sensível de Alano. O jovem, porém, teve o máximo cuidado de não queixar-se; e se esse fato lhe arrancou alguma lágrima, so­mente a noite lhe conheceu o segredo. Durante o dia mostrava-se um cavaleiro modelo, tomando de boamente parte em todas as canseiras, conservando a alegria e o sorriso nos momentos mais agudos. Não suspeitava absolutamen­te que seu pai estivesse observando em seu jovem rosto, os efeitos do cansa­ço. Recomendara a Pierrú que dosasse os trabalhos à força do menino. À noi­te, quando Alano, envolto em seu manto, repousava entre seus rudes companheiros, o conde Aimery, à ronda, parava longamente para contemplá-lo.

Em certa tarde que Alano acompa­nhava aos homens destacados para a busca de forragem, deram com um ban­do de malandros, que maltratavam um grupo de viajantes. Apenas se inteirou de quanto acontecia, o jovem lançou-se sobre os bandidos, desembainhando sua pequena adaga, a única arma que lhe era permitido carregar — e serviu-se dela com tal vigor, que os facínoras, atordoados com ataque tão fulminante, fugiram sem opor qualquer resistência, antes que o resto da patrulha tivesse tempo para intervir.

O Conde Aimery exultou de felici­dade, quando soube do comportamento corajoso do filho, mas cuidou seria­mente em não deixar transparecer coi­sa alguma. Pierrú resmungou que "não havia necessidade de tanta cora­gem para fazer debandar um grupo de ladrões...", no entanto, concordou que Alano pendurasse ao bálteo2 uma espa­da nua, que ele fizera saltar das mãos. dos agressores.

O Conde Aimery chegou por pri­meiro ao ponto de concentração dos ca­valeiros com os quais deveria navegar para a Terra Santa e por isso viu-se en­carregado de procurar os navios, que deveriam levar toda a expedição; as buscas, muito difíceis, proporcionaram a seus homens de armas, alguns dias de descanso, bem merecido, aliás.

 

Certa manhã, o conde mandou chamar o filho e examinou-o com olhar severo; nada, porém, no comportamento do rapaz podia justificar qualquer reprimenda; era um pequeno homem de armas, bem feito e em forma perfeita; as lições de Pierrú e seu desejo de acertar, haviam transformado o garoto despreocupado e brincalhão, num jovem soldado perfeito. Manteve-se imóvel sob o olhar crítico do pai, erguendo para ele um rosto que queria permanecer impassível: o vento e o sol haviam-no bronzeado e emagrecido, dando-lhe uma expressão viril e infantil ao mesmo tempo.

Os olhos do cavaleiro iluminaram-se de felicidade à vista daquele peque­no guerreiro, altivamente de pé em sua frente, cheio de encanto e beleza e, pe­la primeira vez, dirigiu-lhe a palavra:

— Que é que me contaram a teu respeito? Correste em socorro de via­jantes em perigo?

— Não era, por acaso, minha obri­gação de cavaleiro, senhor?

— Não te repreendo, meu filho! Bem ao contrário! No dia em que ti­veres aprendido a não agir somente em função de tua cabeça, poderás ser um digno cavaleiro de nossa linhagem.

— Deveria ter solicitado permis­são ao...

— Nada disto! Agiste como um valente.

O rapaz abandonou sua posição rí­gida de sentinela e durante alguns se­gundos não foi mais do que o pequeno Alano de outros tempos:

— Deveras, papai? Desta vez es­tás contente comigo? Já me perdoaste a fuga e achas que demonstrei ser um bom soldado?

— Batalhas mais sérias mostrarão se realmente manténs as tuas promes­sas.

— Jurei servir com toda minha al­ma e tu, papai, ensinaste-me a cumprir sempre a palavra empenhada.

— Não te faltará ocasião.

— Isto significa que partiremos em breve?

— O margrave Henrique e seus homens estarão aqui hoje à noite e aguardo dia a dia o barão Lievin, que deve vir da Holanda.

— Quando embarcaremos?

— Se o mar se mantiver tranqüilo e se eu achar os navios necessários, muito cedo partiremos.

— Não pudeste ainda conseguir nada?

— Bali! Apenas uma barcaça ca­paz de transportar os soldados do meu exército. É preciso encontrar algo de melhor: esses marinheiros não são tão fáceis e dóceis.

— Deixa que eu possa apoiar-te com Pierrú, de espada em punho.

—- Pequeno guerreiro! Não é es­ta a maneira para conseguir o que que­remos! Vamos, filho, trata de recupe­rar tuas energias para enfrentar a travessia e deixemos de lado toda preo­cupação em relação aos armadores. Vai! Que Deus te guarde!

 

                                                             Capítulo 2

             A CIDADE SANTA

A Providência não tardou em fa­vorecer os esforços do conde Aimery: antes que chegasse o Barão Lievin, descobriu duas naus espaçosas, capazes de transportar o contingente completo dos três comandantes.

Os novos, recém-chegados, demons­traram grande simpatia por Alano, a que apelidaram de "o benjamim dos cruzados", nome muito adequado, pois haveria de tornar-se o predileto da ex­pedição.

Dois dias bastaram para realizar o embarque e, numa bela manhã, cheia de sol, com grande entusiasmo, as ve­las foram desfraldadas. Empurradas por um vento favorável, as duas em­barcações atingiram bem depressa o al­to mar, navegando a todo pano, em direção do Oriente misterioso, objeto de tantos sonhos de Alano, que ia, de pé, à proa, com os cabelos ondulando ao vento. Cantava, todo feliz, por estar já a um passo de uma terra, que lhe prometia numerosas aventuras. Já se imaginava no assalto aos muros fortificados, coroados de ameias e seteiras; via-se destruindo legiões de infiéis; sonhava com o momento em que pu­desse plantar sobre as torres da fortaleza, a bandeira com a cruz encarnada, símbolo dos cruzados... E os sarracenos, batidos e destroçados, deixando para sempre a terra que Jesus pisara em sua santa pregação...

A travessia, iniciada tão auspicio­samente, entretanto, alterou-se à altu­ra da ilha de Rodes. O vento tornou-se mais violento, depois desencadeou uma temível tempestade, jogando as embar­cações e fazendo-as correr o risco de es­barrar na costa e reduzir-se a pedaços. Os pilotos viram-se forçados a buscar refúgio numa pequena enseada, a fim de tratar de consertar os estragos e aguardar a calma. Os cavaleiros cristãos aproveitaram o momento para des­cer a terra e ir cumprimentar os cruza­dos que aí estavam acantonados, na de­fesa da ilha.

Apenas haviam retomado a traves­sia, quando da gávea soou o grito, avi­sando que várias velas apontavam no horizonte: um comboio passava ao lar­go, escoltado por naus de guerra tur­cas. Instantes após, duas delas afas­taram-se do grupo, com a evidente intenção de barrar o caminho as embar­cações cristãs.

Os dois capitães não dissimulavam seu temor, pois um combate dificilmente poderia ser vantajoso. A armada das galeras turcas era incomparavel­mente superior aos dois navios de transporte. Felizmente, porém, o vento for­te que soprava, impediu a manobra inimiga e a noite caiu sem que pu­dessem aproximar-se excessivamente. Aproveitando a escuridão, as duas bar­caças puderam afastar-se e pôr-se a salvo.

Grande foi a desilusão de Alano, que impaciente, aguardava seu primei­ro combate. Uma avaria verificada nu­ma das embarcações veio retardar ain­da mais a travessia. As costas da Síria foram, afinal, atingidas quando as pro­visões de alimento e água escasseavam assustadoramente.

Por fim, numa esplêndida manhã, os cruzados, satisfeitos por haverem concluído a viagem marítima, puderam desembarcar festivamente no porto de Tortosa, ao norte de Trípoli.

— Com a bênção de Deus, — ob­servou o barão de Lievin, — nossa pe­quena tropa, bem depressa há de inte­grar-se no exército cristão.

Por isso, a demora no porto foi reduzida ao mínimo necessário.

Certa manhã, em que se dirigia ao porto na companhia do pai, Alano pre­senciou uma cena de que deveria guar­dar duradoura lembrança, pelo asco e terror que lhe causara. Três mendigos, apoiados às muralhas da cidade, pe­diam, de longe, esmolas. Levado por seu bom coração, Alano tratou de apro­ximar-se para dar-lhes algumas moe­das. Não fizera, porém, muitos pas­sos, e eis que eles, com gestos imperio­sos, ordenaram que se afastasse, er­guendo as mãos carcomidas pelas cha­gas purulentas. As vozes, que se dirigiam para ele, saiam de bocas sem lá­bios, e de rostos devorados por pús­tulas horríveis. Alano sentiu intima­mente um movimento de profundo no­jo e aconchegou-se instintivamente ao pai.

— Quem são esses homens? — murmurou.

— São leprosos, filho! Não te aproxime! — respondeu o conde. Agar­rou de sua bolsa um punhado de moe­das que ofereceu aos enfermos.

A impressão dessa asquerosa visão ficou profundamente gravada na men­te do menino, mesmo depois que dei­xou Tortosa.

Um pequeno grupo de cavaleiros do Rei Balduino IV, que voltava a Jeru­salém, ofereceu-se como guia aos recém-vindos e com eles pusera-se a ca­minho. Pouco depois, os cruzados es­tavam transitando por uma terra aci­dentada, passando ao largo da fronteira, além da qual se viam as sentinelas sarracenas e nômades, que de quando em quando se lançavam em incursões, roubando e matando em território cris­tão; o caminho, como bem depressa o demonstraram os fatos, não era nada seguro. A expedição avançava, portan­to, cautelosamente e não poucas vezes os cruzados se viram constrangidos a usar a espada, seja para se verem livres de alguma patrulha turca que percorria a região, seja para dispersar bandos de nômades assaltantes.

Essas escaramuças, pouco perigo­sas na verdade, tinham, entretanto o mérito de manter sempre alerta a tro­pa e de alimentar-se constantemente a combatividade. Agindo com sabedoria, os barões, depois de haver travado ba­talha, evitavam de perseguir aos fugi­tivos, receosos de se verem atraídos a alguma emboscada.

Essa prudência não era a mais in­dicada para acalmar os entusiasmos guerreiros de Alano; mais de uma vez foi necessário que a autoridade paterna se fizesse sentir, para mantê-lo dentro das linhas.

— Por que deixamos escapar ao inimigo já vencido? Não é este o mo­mento indicado para reduzi-los a pe­daços, a fim de tirar-lhes toda vontade de voltar?

— Estamos aqui com a finalidade de levar ao rei um reforço, de que tem grande necessidade, — respondeu o conde, — não para lançarmo-nos à toa em combates, cujos resultados não po­demos prever, numa terra que quase não conhecemos.

 

Aguardando a chegada, o jovem não poupava nem forças, nem cora­gem; certa noite, voltou ao acampamen­to todo feliz, apresentando no arção da sela uma seta sarracena, profundamen­te cravada.

— Foi um homenzinho pequeno e feio como o diabo que me deu este pre­sente, — dizia brincando. — Enquanto o perseguia, deixou-se cair da sela, a fim de atirar-me esta seta.

—. . . que poderia ter-te ferido gravemente! — resmungou Pierrú. — Desconfia, portanto desses negrinhos, demasiadamente covardes para usar a espada, mas rápidos e competentes co­mo demônios para atirar flechas.

Durante o dia os cruzados ficavam alerta, enquanto à noite, enrolados em seus mantos, dormiam ao ar livre, sob o maravilhoso céu do Oriente, estendi­dos sobre a areia tépida e defendidos por uma tríplice fila de sentinelas. Antes que despontasse o sol já estavam de pé e a caminho, aproveitando as ho­ras em que houvesse menos calor. Quando o sol se tornava causticante dormiam uma sesta indispensável e retomavam novamente o caminho, até que fosse bem escuro.

Embora enfrentasse muitas priva­ções, a tropa mantinha-se na devida forma, pois os chefes eram corajosos, — de modo particular o conde Aimery. Os soldados não se cansavam de elogiá-lo e ao filho:

— Acham-se sempre onde é maior o perigo!

— Co-dividem nosso mantimento e não tocam a própria ração, se todos os demais não estiverem servidos.

— Não fazem montar a tenda, mas dormem em nosso meio, na terra nua.

— Quando faltou água, agüenta­ram tanto quanto nós a sede!

— Não obstante tudo isso, jamais perderam a jovialidade e agüentaram a fadiga igual a qualquer um de nós.

Transcorridos longos dias de ca­minho e enfrentadas numerosas esca­ramuças, a natureza apresentou-se me­nos selvagem e mais sorridente: os cru­zados passaram a percorrer regiões fér­teis e em certa manhã divisaram os bas­tiões de Jerusalém. Todos, imediata­mente, saltaram de seus cavalos, para beijar o chão que Jesus havia pisado e que eles, agora, vinham defender; em seguida, silenciosos e graves, retomaram o caminho, com os corações transbordantes de emoção. Alano, rígido so­bre os estribos, contemplava extasiado a Cidade Santa.

A entrada daquela tropa bem ar­mada e de aspecto tão altivo, causou grande impressão nos curiosos, que se demoravam especialmente em contem­plar aquele pequeno cruzado, cujos olhos felicíssimos brilhavam, num ros­to de anjo, queimado pelo sol, e cas­tigado pelos ventos do deserto.

Apenas os soldados foram aquartelados, os três comandantes dirigiram-se à corte, a prestar homenagem ao Rei Balduino.

Naquele momento, em Jerusalém, reinava um menino. Balduino IV su­cedera ao pai Amaurí I, grande polí­tico e denodado3 chefe, que com as ar­mas e com a diplomacia, enfrentara ao temível Saladino. Sua morte repenti­na deixava o filho de 13 anos, em face de uma situação bem confusa e ameaça­dora. Não obstante, todavia, a pouca idade, o jovem herdeiro do trono era um soberano de grande valor, coisa que soube mostrar imediatamente.

Educado pelo bispo Guilherme de Tiro, um dos homens mais sábios e cul­tos do Oriente, seu espírito e coragem haviam-no desenvolvido maravilhosa­mente.

Infelizmente, o magnífico adoles­cente, sobre cujos ombros pesava tão grave herança, sofria de um mal hor­rível, tanto que na história é conhecido com o nome de "Balduino, o Leproso".

Balduino completara seu décimo quinto ano de vida, quando nossos cru­zados vieram colocar-se às suas ordens. Apenas os capitães foram conduzidos à sua presença, o jovem rei teve um movi­mento de surpresa, ao avistar Alano, que o pai levara consigo.

— Não é costume trazer pajens à cruzada, senhor Aimery, — observou amavelmente.

— Alano não é um pajem, Majes­tade, mas sim meu filho.

— Seu filho?

Balduino quis saber imediatamen­te como o menino fora parar na Terra Santa e recebeu-o com grande amabilidade. Terminada a audiência oficial, quis demorar-se palestrando alguns ins­tantes com ele:

— Fica, Alano! Desejo que me contes maiores particulares sobre tua fuga. Jamais me aconteceu receber combatentes de tua idade... e que, de resto, é bem próxima da minha.

Alano não se fez de rogado e sou­be entremear com tanta vivacidade e entusiasmo o conto de sua fuga do mos­teiro onde estivera, que imediatamen­te conquistou a estima e o afeto do rei. Mesmo antes de terminar a narrativa, já eram bons amigos.

— Agora, que podemos falar sem testemunhas, — disse o pequeno rei, — julgo, caro Alano, que, fugindo daque­la abadia, tiveste uma idéia verdadei­ramente genial.

— Mas, meu pai não era desta opi­nião! — observou o rapaz, fazendo um gesto significativo.

— Que diz agora?

— Não me guarda rancor e acredi­to mesmo que esteja satisfeito por eu acompanhá-lo.

— Tudo isto é providencial: sentia profundamente a falta de um compa­nheiro de minha idade. Excetuando o bom bispo de Tiro, os cavaleiros da cor­te são, às vezes, tão monótonos com suas atitudes cerimoniosas e com as disputas em que andam continuamente metidos. Eu gosto de rir! E tu?

— Oh!... imensamente!

— Muito bem! Estamos de acor­do! Tomo-te a meu serviço pessoal, para que possamos, de quando em quando, entregarmo-nos à louca ale­gria de nossa idade! Mas, que vejo? Afirmaria que minha proposta não te agrada!

— Permite V. Majestade que eu se­ja sincero?

— É o que desejo antes de mais nada!

— Vim à Terra Santa para ser um guerreiro, não um cortesão!

— É este, então, todo teu desejo?

— Sim, Majestade e espero que não lhe desagrade!

— Já temia que tu também, como os outros, quisesses abandonar-me!

— Abandoná-lo? Não penso abso­lutamente nisto!

— Antes de mais nada preciso contar-te uma coisa! Sabes que estou doente?

— Ignorava-o completamente, sire4!

— Sabes que a enfermidade que me devora é tão grave, que só seu no­me assusta aos mais corajosos? Alano, sou um leproso.

— Leproso? — murmurou o me­nino, enquanto, diante de seus olhos, desenhava-se nítida a visão daqueles infelizes, apoiados aos muros da cida­de de Tortosa, visão que ele em vão, procurara afastar de sua mente.

— Antes de ascender ao trono, eu era um menino como tu, vigoroso e cheio de vida, amante dos jogos violentos, para os quais arrastava meus com­panheiros. Um dia em que, capitaneando-os, lançar-me ao assalto de uma co­lina rochosa, toda coberta de juncos e de espinheiros, percebi com grande desgosto, que minha tropa não me acompanhava: os meninos, na ladeira, parados, deitavam gritos de dor!

— Pois bem! — gritei. — Que vos detém?

— Ferimo-nos contra esses terrí­veis juncos e nossas pernas estão en­sangüentadas! Doem muito!

— Observei minhas pernas dilace­radas.

— Vamos, respondi. Não sinto na­da! Era verdade. A princípio, acredi­taram que eu quisesse exibir-me e me açoitaram a barriga da perna com ra­mos de espinheiro, sem que eu sentis­se coisa alguma. Quando a aventura foi contada, minha mãe ficou desola­da; conhecendo esta terra, sabia ela que essa insensibilidade da pele é sinal e conseqüência da lepra em seu primei­ro estágio.

Imediatamente, todos os charlatães do Oriente foram chamados para curar-me. Nenhum remédio, todavia, teve resultado: viram-se, finalmente, cons­trangidos a confirmar os temores de minha mãe e declarar-me incurável.

— Pobre Balduino! — exclamou espontaneamente Alano.

— Aprecio esta tua sinceridade! Despreocupado, não abandonei meus divertimentos, uma vez que, então, na­da sofria. Deves porém, imaginar mi­nha angústia ao perceber que, bem cedo, formou-se um vazio ao meu redor: te­mendo o contágio, a maior parte de meus companheiros abandonou a cor­te, sob vários pretextos. Agora que sa­bes tudo, Alano... farás como os ou­tros?

— Não tema absolutamente, sire!

— Quando te vi entrar, tão alegre e confiante, uma secreta confiança fez com que tratasse de pedir a tua amiza­de; quando, porém, hesitante, pensei que conhecesses meu sofrimento e que houvesses arrumado qualquer descul­pa para fugires como todos os outros.

— Eu não o abandonarei, sire... mas, gosto de combater!

— Por acaso, imaginas que eu fi­que aqui, neste palácio, quando meus barões combatem? Jamais! Tranqüili­za-te, tomaremos parte na festa e com­bateremos um ao lado do outro, nas linhas de frente!

— Então, estou plenamente satis­feito!

— Tomavas-me por um rei de fan­tasia, um boneco coroado, dado unica­mente a divertimentos? Não! O Se­nhor Guilherme de Tiro fez de mim um homem. Não obstante minha mocidade, sei fazer valer minha vontade e eu mesmo governo! Deus sabe que em batalha não sou um maneta!

— Majestade! Espero, assim, tor­nar-me um cavaleiro digno de V. Ma­jestade!

— Não um servo, mas um amigo!

Naquela mesma noite, Alano apres­sou-se em contar ao pai as confiden­cias do jovem soberano; o conde ouviu tudo, sem proferir uma só palavra, aparentemente distraindo-se e brincando com o punho da espada. Em certo mo­mento indagou:

— Que resposta pensas dar ao rei Balduino?

— Já respondi; espero que não te desagrade; prometi ao rei ser-lhe fiel companheiro. Concordas?

— Qualquer outra resposta teria sido indigna do meu sangue! — res­pondeu o conde, com firme decisão. Abraçou ternamente a Alano. Mas, seu amor paterno não tardou em manifes­tar-se e acrescentou: "Ainda assim, filho seja prudente, pois essa doença é terrível".

— Balduino, porém, parece que não esteja sofrendo dela.

— Porque, muito enérgico, tomou a decisão de não se preocupar com ela: como não interrompeu seus diverti­mentos, não abandonou suas expedi­ções militares. Desde que o pai mor­reu meteu-se na luta com um valor sem igual e se o reino dele deve ser curto, prometeu que será ao menos, glorioso.

 

Bem cedo Alano percebeu que, não obstante toda sua coragem, nem sem­pre Balduino conseguia dissimular o sofrimento atroz que lhe provocavam suas crises: seu heroísmo, demonstra­do diante da enfermidade, foi o selo dessa inquebrantável amizade.

O jovem soberano não esperou muito para pôr em prática suas promes­sas; recomeçou a guerra, e, não obstan­te fosse um terrível suplício para ele cavalgar em certos dias, colocou-se à frente de seus soldados. Aparentemen­te incansável, atormentava em contí­nuas investidas as tropas de Saladino; sua audácia quotidianamente renova­da eletrizava aos cavaleiros e arrebata­va Alano: não era simples temeridade, mas destemor frio e calculado, que le­vava á vitória.

Acompanhado por um punhado de cavaleiros, atirava-se como um raio so­bre o exército dos infiéis, obrigando-o a retrocederem ou, então, surgia repentina junto aos muros de um fortim e arra­sava qualquer resistência.

O inimigo, aterrorizado, acredita­va vê-lo em diversos lugares, ao mesmo tempo; pensava que estivesse no norte e ei-lo surgir no sul, com a rapidez de um órfão. Unicamente a visão desse rei menino, à frente de suas tropas, basta­va para semear o pânico entre as filei­ras de maometanos, filhos do profeta.

A seu lado, Alano vibrava incontidamente, brincando com ele, entre os golpes de espada; vigiava e defendia fraternalmente o rei e o riso dos dois jo­vens ouvia-se claro e límpido, em meio ao fragor das armas. O contato quoti­diano e o perigo enfrentado juntos, havia aumentado ainda mais os liames dessa bela amizade: já não podiam vi­ver um sem a companhia do outro. Ao lado do alegre companheiro, o jovem monarca, esquecia o mal implacável.

Certo dia, foi avisado pelos seus exploradores, que Saladino planejava uma súbita incursão contra a importan­te fortaleza de Ascalon; ainda que não tivesse, naquele momento, mais do que quatrocentos homens à disposição, o jovem rei não hesitou um só momen­to. Reunindo imediatamente aquele exército insignificante, conduzi-o tão rapidamente, que chegou a Ascalon muito antes de Saladino. Apenas entra­ra na cidade, viu-se sitiado pelos vinte mil homens do exército egípcio do Sul­tão.

Certo da vitória, Saladino deixou aí alguns batalhões para terminarem o assédio e marchou sobre Jerusalém, que naquele momento se encontrava desguarnecida. Quando seu exército atravessava tranqüilamente um córre­go nos arredores de Montgisard, para seu grande espanto, viu repentinamen­te surgir-lhe em frente o pequeno des­tacamento cristão, que ele acreditava estivesse ainda encerrado nos muros da cidade.

Com uma manobra genial, Balduino, que se apercebera da saída das tro­pas inimigas, esgueirara-se para fora

A batalha de Montgisard e o número de soldados são históricos. Dos muros com os seus, e cortando o ca­minho a Saladino, atingira-o repentina­mente. Foi um ataque furioso e herói­co. Os esquadrões francos combateram com tal vigor, que bem cedo, o grande sultão, com os milhares de Turcos, Ára­bes e Egípcios, recuou e fugiu diante dos quatrocentos cavaleiros do rei le­proso, abandonando um enorme des­pojo.

O pequeno exército franco reentrou triunfante em Jerusalém, mas não para dormir sobre os louros. Ainda que não tendo consigo o forte de suas tro­pas, que combatiam em outros locais,. Balduino voltou a atacar de surpresa, o sultão, com seu punhado de heróis. Mas infelizmente, desta vez, a tática não teve o bom êxito esperado; depois de alguns momentos de confusão, Selim, o melhor lugar-tenente de Saladi­no, que comandava as forças muçul­manas, pôde recuperar o domínio da situação, e lançou-as num violento con­tra-ataque.

Como de costume, ao lado de seu amado rei, Alano combatia como um leão, dando-lhe o máximo de proteção; de repente, um mouro de enorme esta­tura, surgiu atrás de Balduino, empe­nhado na luta. Sem hesitar um instan­te, Alano lançou-se entre ele e o rei; mais ágil e mais rápido que o inimigo, conseguiu atingi-lo mortalmente, mas não sem ter recebido um terrível gol­pe de maça, que o atirou, sem sentidos, sobre o pescoço do animal.

No momento mais crítico da bata­lha, para grande espanto de Balduino, o combate tornou-se menos violento; um movimento de hesitação surgiu en­tre os adversários, fato que, como bom general, ele aproveitou para libertar-se e sabiamente ordenar a retirada. Fa­to estranho, o exército de Selim não os perseguiu; ao contrário, os cavaleiros otomanos abandonaram o campo de ba­talha e desapareceram atrás das dunas de areia, em direção ao deserto.

Imensamente feliz por ter fugido a um desastre que parecia inevitável, Bal­duino não tratou de segui-los, ocupan­do-se, antes, em reunir, ao seu redor, os cavaleiros dispersos.

Só então apercebeu-se do desapare­cimento de Alano, que ele perdera de vista, no momento mais perigoso do combate. Apreensivo e triste, percor­reu o campo de batalha, a fim de pro­curá-lo entre os mortos ou entre os fe­ridos.

Em vão! O corpo do jovem cava­leiro não foi encontrado em nenhum lugar; apenas foi descoberta sua espa­da ao lado do cadáver de um gigantesco; infiel. Como a noite já cairá, Balduino, que, com seus homens não podia per­seguir o adversário, viu-se forçado a regressar a Jerusalém, sem o seu pe­queno amigo e levando a morte na al­ma.

 

                                                               Capítulo 3

           PRISIONEIRO DE INFIÉIS

Recuperando-se de seu longo des­maiou, Alano encontrou-se solidamente amarrado à sela de seu próprio cava­lo, que velozmente galopava em meio a uma numerosa escolta de cavaleiros turcos. A desenfreada carreira durou longo tempo e não terminou senão quando a noite já ia alta, atingido o campo dos infiéis.

A chegada do jovem prisioneiro transformara-se num grande aconteci­mento e foi recebida, no acampamen­to turco, com manifestações de grande alegria. Apenas chegados, o jovem foi desamarrado da sela; em seguida um cavaleiro apressou-se a ajudá-lo a des­cer do cavalo, enquanto alguns servos, com sinais de profundo respeito lhe trariam água quente e perfumada, a fim de limpar-lhe o sangue coagulado que ficara no rosto e nas mãos. Ter­minada esta recepção, foi conduzido, com muitas mesuras para uma tenda suntuosa, revestida de sedas multicores e cujo solo estava coberto com espessos tapetes de lã.

Quando ele se aproximou, um ho­mem esplendidamente vestido, deitado sobre almofadas ergueu-se com atitu­des muito educadas, e convidou-o a as­sentar-se em sua frente, sobre um divã. Os escravos trouxeram imediatamente diversas bebidas e alimentos a que nos­so jovem herói não hesitou em prestar as mais sinceras homenagens, muito surpreendido de ser tratado dessa for­ma, quando aguardara, de parte dos ini­migos, insultos e humilhações.

Ao concluir a refeição, a um sinal do seu anfitrião, que o observava com curiosidade, os servos desapareceram, ficando apenas um intérprete e dois guardas armados até aos dentes, imó­veis como estátuas, nos dois lados do ingresso da tenda.

O intérprete, então, deu início à conversação:

— Nobre Ahmed, irmão e lugar-tenente de nosso Emir Selim, apresen­ta-vos suas saudações e votos de boas vindas ao nosso meio. Lamenta que os riscos da guerra vos hajam tornado pri­sioneiro.

— Lamento-o muito mais do que ele, — respondeu prontamente o jovem — mas, de qualquer forma, sou mui­to grato pela recepção, que, aliás, não compreendi o motivo.

— Meu senhor sabe reconhecer a verdadeira coragem, também entre os inimigos.

— Pede-lhe o que quer fazer co­migo!

— Tratará de devolver-vos a liber­dade apenas chegardes a um entendi­mento com ele, no tocante à soma pa­ra ser entregue como resgate e as con­dições de paz a serem aceitas.

— Não cabe a mim, de forma al­guma, tratar da paz.

— É verdade! Meu senhor espe­ra que a paz que vos imporá, não seja considerada muito dura; ele deseja deixar bem clara a grande vantagem que a captura de vossa pessoa lhe pro­porciona.

— Reduzida vantagem para ele que, ademais, assim o espero, meus companheiros não tardarão a destruir.

— Não espereis nada, nobre se­nhor: sabemos que, de momento, não tendes à disposição que um reduzido número de soldados, diminuídos, aliás, via batalha travada hoje, enquanto nós possuímos forças consideráveis.

— O valor de nossos cavaleiros su­pre largamente seu escasso número.

— No entanto, o mais aconselhá­vel é concluir imediatamente um tra­tado de paz.

— Repito que não tenho autorida­de alguma para tanto.

— Desde o início da campanha, Vossa Majestade nos tem tomado algu­mas fortalezas, — com um valor, aliás, que meu senhor rende as mais sinceras homenagens.

Majestade!... Bruscamente Alano compreendeu o grave engano em que incorriam a respeito de sua pessoa: enganados certamente pela sua estatura, os soldados tomaram-no pelo Rei Balduino, exultando e felicitando-se pela sua captura. Isto explicava a precipitação com que haviam fugido com ele, levando-o longe do campo de batalha; bem como a alegria de sua chegada e todas as cortesias que usavam com ele!

Seus olhos iluminaram-se de feli­cidade, pois percebia que seu caro rei havia escapado à sanha dos inimigos. Alano, que não era nenhum diplomata, não quis desfrutar ainda, por própria conta, o engano dos adversários. Não pôde conter o desejo de vê-los confu­sos, reconhecendo o equívoco, trazendo-lhes assim uma das mais amargas decepções:

— A quem, portanto, acredita es­tar dirigindo-se o lugar-tenente Ahmed? — perguntou.

— A... A Vossa Majestade... A Balduino IV!

— Exatamente o que eu imagina­va! — respondeu dando boas gargalha­das. — O rei Balduino não é daque­les que se deixam aprisionar por qual­quer um.

— Que deseja dizer com isso?

— Não sou o rei; — respondeu erguendo-se. — Sou apenas o escudeiro do rei, imensamente honrado, em minha desventura, de ter sido tomado pelo pró­prio rei e de ter-lhe, assim, certamente, poupado a prisão.

Quando o intérprete traduziu estas palavras, Ahmed teve um pequeno so­bressalto — muito menos, porém, do que o jovem esperava! — Logo recupe­rou seu sorriso.

— É inútil fingir, majestade! Não nos deixaremos enganar com seu estra­tagema.

— Podeis não acreditar-me! Afi­nal, tendes essa liberdade! Ao menos vos avisei, lealmente!

— Não! Nós o vimos combater com a coragem de um leão, sire!

— Obrigado pela homenagem que tributais a mim e a sua Majestade. En­tre nós, a coragem é coisa comum e nosso rei rodeou-se de um exército dig­no dele. Experimentastes bem seu valor em Montgisard e em mil outras circuns­tâncias. Também hoje, ainda que não passássemos de um punhado de ho­mens, a quantos dos vossos não fize­mos tombar...

Enquanto Ahmed hesitava ainda, um mensageiro, coberto de pó, pene­trou na tenda, inclinou-se a poucos passos e entregou-lhe uma mensagem. O príncipe fez saltar o sinete e leu:

"Meu desastrado irmão:

Entendi, através do teu mensagei­ro, que estás convicto de haver aprisio­nado o rei Balduino. Seria realmente uma noticia auspiciosa e seria eu o pri­meiro a cumprimentar-te, se não fosse totalmente falsa. Ainda hoje de manhã vi, com meus próprios olhos, o rei Bal­duino e seus cavaleiros pôr em fuga a uma de nossas patrulhas, no caminho de Jerusalém.

Não havia, portanto, necessidade de, transgredindo formalmente minhas ordens, que arranjasses esse novo pre­texto para fugir, mais uma vez, ao com­bate.

Se algum prisioneiro se fez passar pelo rei, não passa de um vulgar impostor; e se, como imagino, o erro foi teu, nos fizeste perder mais uma bata­lha.

Não tenho nenhum motivo para fe­licitar-te.

Selim, Emir".

 

Ao ler esta mensagem, o rosto de Selim transformou-se: o triunfo cedeu lugar à cólera, seus olhos iluminaram-se de ódio e, erguendo-se de um pulo, atirou-se contra Alano e esbofeteou-o brutalmente.

Surpreso com a agressão, que não aguardava de forma alguma, não teve tempo para desviar-se do golpe, mas, reagindo prontamente, atracou-se com o adversário. Felizmente para este úl­timo, as sentinelas, que não o perdiam de vista, interpuseram-se; imobilizaram o prisioneiro e logo mais, depois de amarrado solidamente, levaram-no embora.

Instantes após encontrava-se atira­do ao chão de uma tenda fétida, aguar­dando que sua sorte fosse decidida. Pe­la meia-noite, alguns cavaleiros apa­nharam-no, deitaram-no de atravessado nu­ma sela e em seguida a coluna partiu. A cavalgada, que lhe causava profundo mal-estar, durou quase toda a noite: fi­nalmente a escolta parou numa gargan­ta rochosa, onde levantou acampamen­to.

Arrancado bruscamente da sela, o jovem foi atirado a um desvão da ro­cha, sentia-se devorado por uma sede tão forte, que seus lábios ressequidos e sua garganta seca seriam incapazes de pronunciar uma só palavra. Não obstante a fadiga, não conseguia conci­liar o sono, pela febre, provocada pe­las feridas e cordas que o amarravam. Em sua cabeça atordoada, apenas um pensamento lancinantemente se repe­tia:

— Prisioneiro! Sou um prisionei­ro! Um vencido!...

Deve ter desmaiado por alguns ins­tantes, pois que, repentinamente, uma mão agarrou-se á dele, em seguida foi-lhe aproximado dos lábios algo que cheirava a couro e a suor. Ainda que tépida, a água parecia-lhe deliciosa. Quando porém, quis agradecer a seu benfeitor, este já desaparecera.

Ao despontar do dia, um carcerei­ro trouxe-lhe um punhado de tâmaras e abriu um pouco as algemas que lhe estreitavam os pulsos; terminada a re­feição, deram-lhe um porongo cheio de leite: em seguida, apertaram novamente as alge­mas e deixaram-no. Um pouco mais tar­de dois guardas vieram buscar o jo­vem prisioneiro, a fim de conduzi-lo â presença de Ahmed, o qual tinha a seu lado um personagem estranho, a quem o príncipe demonstrava uma deferência toda especial, um pouco temerosa, po­rém. Era um homem de alta estatura, de ombros largos e rosto de feições nobres, quase negro, onde dois olhos cintilavam perscrutadores. Esse ho­mem adiantou-se para Alano:

— Que queres de mim? — disse o menino, cheio de desconfiança.

— Venho como amigo, filho, eu não busco que o teu bem!

— Então, poderias libertar-me!

— Isto ainda não está em meu po­der!

— Quem és, então?

— Meu nome, com que me cha­mam aqui, é Omar Ben Ali. Mas, isto não tem importância! É bom que sai­bas que os astros não têm segredos para mim; conheço-lhes a linguagem e pro­metem-te um futuro brilhante, se...

— Não creio nem no influxo dos astros, nem nos adivinhos nem em presságios.

— Pois, cometes um grande erro. Ouve ao menos o que tenho para dizer-te. O príncipe Ahmed aprecia-te muito.

— É fácil de percebê-lo! — res­pondeu Alano, mostrando os pulsos in­chados sob as algemas.

— Admira muito a tua coragem e te ama!

— Há só uma maneira para de­monstrar-me afeto: é dar-me imedia­tamente a liberdade.

— Terás inteira liberdade, se aceitares viver em nosso meio.

— Jurei ao meu rei de combater até à morte!

— À tua idade, um juramento não obriga. Ahmed te tratará como a um filho, mas impõe uma condição.

— Qual?

— Uma coisa muito fácil: basta que tu troques de religião.

— Se o que estás me propondo con­siste apenas nisso, não percas o teu tem­po.

— Pensa bem! Ahmed te ama real­mente, mas não admite que a vontade dele venha a ser afrontada: poderia vingar-se.

— Pois, não o temo: sou cristão e pretendo permanecer cristão até à morte!

— Bela religião esta que te prome­te apenas humilhações e sofrimentos, acompanhando um Deus crucificado. Ofereço-te algo de muito melhor! Dei­xa tudo para mim!

— Morrendo por Cristo, participa­rei de sua glória... É tudo quanto de­sejo!

O mago sacudiu os ombros, com um sorriso de desprezo; em seguida, pousando a mão sobre o ombro de Alano, com um sinal, fez-lhe cair as alge­mas, que o mantinham preso e levou-o consigo.

Uma das paredes da garganta ro­chosa era um penhasco nu, no qual, a um gesto do mago, se abriu uma estrei­ta tenda, suficientemente larga, porém, para deixá-los passar; apenas entraram, a fenda ampliou-se rapidamente, for­mando uma grande e espaçosa gruta. Quando os olhos do menino se habi­tuaram à semi-escuridão, apercebeu-se que estava decorada com tecidos riquís­simos e mobiliada com bom gosto: di­vãs, pequenas mesas redondas, mesas baixas de madeira rosa, almofadas de seda multicor, tapetes suntuosos... um verdadeiro palácio!

— Observa bem, jovem estrangei­ro, — disse o mago, — estou para re­velar-te coisas que até hoje jamais imaginaste e que te ajudarão, sem dúvida alguma, a compreender melhor teus in­teresses. Antes de qualquer coisa, trata de saborear estas frutas...

— Não tenho fome. . .

— Vamos! Come, sem temor al­gum; não contém nem venenos e nem sortilégios...

Enquanto Alano aproveitava a de­liciosa merenda que lhe era servida, o mago continuou a interrogá-lo cortesmente:

— De certo vieste ao Oriente a fim de fazer fortuna!

— Engana-te! Até hoje não pen­sei nisto!

— Tuas riquezas no país dos fran­cos devem ser, então, bem grandes!

— Nunca me preocupei com is­so! Meu pai vendeu a maior parte de seus bens para equipar seu exército.

— Alá!... Que farás, porém, quando voltares a tua terra?

— Deus providenciará!

O mago resmungou qualquer coi­sa e sacudiu os ombros.

— Ainda és muito ingênuo, meu jovem guerreiro, para acreditar na munificência5 de um Deus que não pôde arrancar-te de nossas mãos!

— Se tivesse sido da vontade dele, tê-lo-ia feito! Não duvides!

— De que maneira um Deus nas­cido sobre um punhado de palha pode­ria enriqueçer-te? Um Deus que tra­balhava de marceneiro! Tenho coisas muito melhores para oferecer-te! Ob­serva!

Conduziu Alano para uma mesa baixa, sobre a qual se apoiava um espe­lho de prata pura, cuidadosamente po­lido. Em seguida, pousando a mão ao ombro do menino, constrangiu-o delicadamente a inclinar-se sobre a placa brilhante.

Como se um golpe de hálito o atin­gisse, o espelho tornou-se opaco, vol­tando, poucos instantes depois, ao seu primitivo brilho. Através do lúcido me­tal, Alano viu desenhar-se um mundo desconhecido; a princípio, confusamente, e depois cada vez mais precioso e nítido.

Imensas manadas de ovelhas e de camelos atravessavam idílicas planí­cies; em prados majestosos galopavam com impetuosa vivacidade cavalos de longas crinas; em seguida, mostraram-se imensos oásis, onde centenas de es­cravos atarefavam-se em colher gran­des cestos de tâmaras; logo mais, sur­giu um porto em que, em meio a nu­vens de vapores exóticos, carregavam-se preciosas quantidades de canela, bauni­lha, pimenta e todas as especiarias tão procuradas e estimadas na Europa.

Algumas caravanas provinham dos confins do deserto, carregando as mais belas sedas da índia e da China. Negros, suntuosamente trajados, traziam no pulso falcões encarapuçados ou papa­gaios de penas multicores; alguns escra­vos adornavam mesas de ébano e de madeiras raras, maravilhosos vasos de prata e de ouro, delicadamente trabalhados; ourives estavam atarefados em incrustar rubis, esmeraldas, topázios, berilos, turquesas, opalas, águas mari­nhas; lapidavam diamantes de grandes proporções e teciam colares de pérolas.

Deslumbrado com a visão de tais tesouros, Alano escutou, como se vies­se de um sonho, a voz do mago, que lhe sussurrava ao ouvido:

— Tudo isto será teu... tudo teu! Quero que seja de tua propriedade, se consentires em obedecer-me.

Extasiado por um instante na con­templação de todas essas coisas, Alano libertou-se da mão que lhe apertava o ombro, com um esforço respondeu:

— Fica com as tuas maravilhas, operador de prodígios! Amo ainda mais ao meu Deus, deitado sobre a pa­lha!

— Rapaz! Não falarás assim mais tarde!

— Desejo apenas que Deus me con­serve assim por toda a vida!

— Também preferes as humilha­ções e o escárnio de teus inimigos e dos poderosos? Vamos! Tenho ainda ou­tras coisas, bem melhores, para propor-te! Observa...

Sobre uma das mesas estava depo­sitada uma bandeja de ouro e lançava raios na penumbra; o mago apoiou a mão na nuca de Alano, que se viu forçado a debruçar-se sobre o objeto: nos reflexos da superfície dourada dese­nhou-se outro espetáculo.

Desta vez descortinou uma sala magnificamente ornada e no meio dela mesas suntuosas, cobertas de flo­res maravilhosas, de perfumes eston­teantes, e com baixelas de cristal e ali­mentos raros. Acompanhados por gui­tarras, rabecas, violões e outros instrumentos, muitos jovens convidados, re­petiam alegres canções, guiados por um mancebo de extraordinária beleza, pa­ra quem se dirigiam as aclamações e os aplausos daquela assembléia. A cada estrofe, por ele cantada, com voz quente e insinuante, grandes eram os aplau­sos que o honravam:

— "Viva Alano, o gracioso rei de nossas festas!"

Com grande surpresa, ele reconhe­ceu a si mesmo naquele rei, cheio de glória. Eram para ele que se dirigiam as palavras de exaltação e de aplausos sem fim. Cada qual louvava seu gosto-perfeito; a elegância de seus trajes; a flexibilidade de seu corpo perfeito; a beleza arrebatadora das estrofes de seus poemas; o encanto de sua voz.

Ao seu redor, as mais lindas mo­ças disputavam seus favores, suas palavras e até o mínimo de seus sorrisos, voltando para ele, como uma ardente-homenagem de amor, seus rostos fas­cinantes.

— Toda esta felicidade, todo esse êxtase... toda essa beleza... que dizes? Tudo pode ser teu. Concordas?

Com novo esforço, Alano conse­guiu subtrair-se ao novo espetáculo, que, malgrado seu, encantava-o:

— Que significa isso para mim? — murmurou.

— Significa muito! É próprio da juventude amar a glória e a felicida­de!

— Deixa-me!

— Insensato! Para onde te con­duzirá a tua ridícula obstinação? Que vantagem trouxe ao teu mestre todo o seu poder, que uma simples cruz des­truiu? Tenho coisas ainda melhores. Uma promessa que estás em condições de apreciar! Olha cavaleiro, olha!

Alano, em vão, tentou libertar-se: o mago apanhara de um pequeno cofre um diamante de fabulosas dimensões e cujas arestas projetavam luzes multicores.

Segurando entre as mãos a pedra maravilhosa, colocou-a sob os olhos do rapaz, fazendo-a girar lentamente.

Deslumbrado, o adolescente passou a distinguir um novo espetáculo em ca­da uma das facetas, que sucessivamen­te iam passando sob seus olhares. Sur­giu um acampamento em que, à luz da manhã, cavaleiros apanhavam seus corcéis para seguir um jovem chefe, cheio de ardor; fossos eram superados com uma canção nos lábios; muros imensos tomados de assalto; o êxtase do triunfo; fileiras incontáveis de pri­sioneiros acorrentados; príncipes e reis que se inclinavam diante do Conquista­dor e lhe ofereciam, como homenagem, a própria coroa; grandes multidões de feudatários que se punham ao serviço do Dominador do Mundo.

De todas as bocas explodiam gran­des aclamações:

— Salve! Imperador do Universo! Quando Alano conseguiu distinguir com nitidez as feições do vencedor, mais uma vez surpreendeu-se a ver seu próprio rosto. Estava, portanto, des­tinado a tanta glória?

— Imperador do Universo! Sussurrava-lhe ao ouvido a voz tentado ia! Rei do Mundo! Se o quiseres, sê-lo-ás! És jovem, valoroso, ambicioso, poderás facilmente dominar a face da terra e impor a tua vontade. Terás, ao mesmo tempo, riquezas, glórias e poder!

Hipnotizado por esse espetáculo, que ia de encontro aos mais belos sonhos de sua vida, o jovem, contrariamente à sua vontade, nem conseguia respirar.

— Se quiseres! — repetia o mago com voz insinuante. — Para que tudo isto se torne realidade, basta que pises, ainda que por um momento, esta...

Sobre o tapete de lã, de longos pelos, cobrindo o solo, Alano viu brilhar uma pequena cruz de metal: inclinou-se bruscamente, recolheu-a e apertou-a contra o peito, amorosamente.

Com esta cruz vencerei o mun­do! — disse pondo-a sobre o coração.

Rangendo os dentes, o mago jogou o diamante ao chão, onde explodiu com estrondo semelhante a um trovão: um furacão de inaudita violência varreu a gruta, hurrando como uma matilha de cães enfurecidos; as paredes vacilaram e trevas espessas caíram sobre todas as coisas.

Alano levou aos lábios o crucifixo que havia ajuntado do chão e no mes­mo instante tudo voltou à calma. O jovem encontrou-se sozinho, com as mãos amarradas, deitado num canto da gruta, onde se infiltrava uma luz in­certa: o mago desaparecera sem dei­xar qualquer vestígio.

— Devo ter sonhado, sem dúvida! — disse o rapaz.

Estava ainda atordoado pela série de visões que haviam sucedido diante dos seus olhos, quando se aproxima­ram dois soldados; tiraram-lhe as cor­rentes que lhe amarravam os pés e em­purraram-no para fora. Para poder manter-se erguido e não cair, Alano te­ve que recorrer a toda sua força de von­tade, tanto seus membros estavam en­torpecidos e incapazes de qualquer mo­vimento. Vacilando, viu-se novamen­te introduzido na tenda de Ahmed, a vista do cruel inimigo despertou nova­mente seu espírito de luta: tomou uma posição ereta e fixou o sarraceno nos olhos.

— És o escudeiro do rei e, certa­mente, amigo dele, — Ahmed iniciou com fingida cortesia, — deves, por tan­to, conhecer muitos segredos da vida dele.

— É verdade, S. Majestade Balduino dignou-se fazer de mim um amigo! Sinto-me orgulhoso da confiança que deposita em mim!

— Então, naturalmente, deves es­tar a par dos projetos que preparava contra mim.

— Hum conheço-o muito bem: com­bater o lugar-tenente Ahmed sem quartel e sem descanso!

— Naturalmente, mas de que lado virá o próximo ataque?

— Não sei e mesmo que o soubes­se jamais o contaria!

Ahmed não sentiu qualquer admi­ração pela resposta franca e sincera. Irritou-se.

— Dêm-lhe um bofetão na boca, a fim de castigá-lo por essa inaudita insolência!

Um escravo adiantou-se e bateu com tal violência nos lábios de Alano, que o sangue desceu-lhe aos borbotões pelo peito. Ainda assim, Alano não dei­xou de contemplar altivamente o ad­versário, desafiando-o com o olhar.

— És cristão?

— Deverias estar mais bem informa­do. Naturalmente, que sou cristão. E orgulho-me!

— Dêm-lhe imediatamente dez gol­pes de açoite!

Um mouro retirou da cinta uma dura correia e erguendo-a no ar, dei­xou-a cair dez vezes nas costas do jo­vem, sem arrancar-lhe, porém, uma só lágrima.

Considerando a tua jovem idade, dar-te-ei a liberdade, ainda que renun­cies à tua religião, por um só instante.

— Não renunciarei nem por um segundo!

— Nesse caso, serás reduzido à es­cravidão! Escolhe!

— Sou cristão!

Levaram-no embora e durante três dias foi tratado com rigor insensato: assinalaram-lhe pesadas tarefas, que deveria executar até ao anoitecer, sob um sol causticante, maltratado pelos açoites do feitor e recebendo uma ali­mentação infecta e insuficiente. Todos os dias devia apresentar-se a Ah­med, onde lhe eram formuladas as mes­mas propostas, a que ele, com incansá­vel decisão, respondia negativamente.

À noite, porém, quando jazia acor­rentado, alguém, silenciosamente apro­ximava-se e medicava-lhe cuidadosa­mente as feridas. Já no primeiro dia Alano, que entendia um pouco de ára­be, compreendera que Ahmed não era estimado e nem apreciado pelos seus soldados e oficiais: acusavam-no de ser um comandante brutal e covarde, a tal ponto, que, no momento de enfren­tar o inimigo, invariavelmente ordena­va a retirada. Se o combate não pu­desse ser evitado, encontrava mil des­culpas para fazer avançar suas tropas, enquanto ele ficava na retaguarda, lon­ge de qualquer perigo.

Certa manhã, em que o jovem fora açoitado com maior violência e mais duramente que de costume, Ahmed fez questão de ajuntar à crueldade o sar­casmo:

— Onde se escondem os francos, os teus companheiros e especialmente o tão valoroso rei Balduino, que viriam arrancar-te de minhas mãos?

O rapaz ergueu-se altivamente e em tom resoluto, que deixava transpa­recer um grande desprezo, respondeu:

— Se tu desejasses verdadeiramen­te encontrá-los, bastaria que não fugisses!

Ahmed ergueu-se de um pulo, apa­nhou o açoite que estava nas mãos de um escravo negro e começou ele mes­mo, a bater alucinadamente em Alano:

— Teus amigos são uns covardes! — berrava, espumando de raiva.

— Covarde, Ahmed, entre nós, é aquele que ataca um inimigo indefe­so!

Já fora de si pelo ódio, Ahmed pas­sou a mão na cimitarra e não teria he­sitado assassinar o jovem, se um ofi­cial, que ele não vira entrar e que des­de alguns momentos assistia à cena, não se houvesse colocado entre o carrasco e a vítima. À sua vista, Ahmed recuou e mostrou-se perturbado:

— Príncipe — falou o recém-chegado, com voz glacial, — Venho, como sabes da parte de teu irmão, o emir, que es­tá realmente surpreso de que ainda não te hajas reunido ao seu exército, depois da fuga do outro dia.

— Era minha intenção pôr-me em caminho ainda hoje!

— Tive o desprazer de constatar também, com meus próprios olhos que, contrariando as ordens do emir, con­tinuas a maltratar os teus prisioneiros de guerra e também os condenas a mor­te. Afinal, não sabes que Selim se re­serva expressamente estas condenações?

— É que... este traste acaba de insultar gravemente ao Profeta...

— Nada, nas respostas que eu ou­vi, pode justificar um julgamento tão severo!...

— Não ouviste. . .

— Selim julgará o fato. De agora em diante, esse acusado passa para mi­nha guarda pessoal. Agora, em nome do emir, ordeno-te que te concentres em tua fortaleza e aguardes aí novas ordens.

Pondo a mão sobre o ombro de Alano, levou-o consigo, depois de ter-lhe solto as mãos, sem que Ahmed, lívido de cólera, ousasse pronunciar uma só palavra.

— Muito obrigado por ter-me de­fendido! — disse o jovem, saindo da tenda. — Diga-me, agora, porque me protegeu!

— Devido à tua juventude e ao teu valor; eu te vi de armas em punho na batalha onde foste aprisionado; admi­rei, há poucos instantes, a força de es­pírito com que suportaste os maus tra­tos. De resto, tive ordens expressas de impedir as atrocidades que Ahmed seguidamente comete.

— Pensa que o emir vai libertar-me?

— Não o creio! É pouco prová­vel!

— Então, com que finalidade le­va-me de um tirano a outro?

— Não temas! Selim em nada se parece ao irmão: é tão humano e cora­joso, quanto o outro é cruel e covarde. Podes crer que ele não mostra sua co­ragem, atormentando a crianças. Va­mos! Quero que cuidem de tuas feridas.

— Obrigado!

— Quero que me prometas, não tentarás a fuga!

— Pede-me demais: não desejo outra coisa!

— Promete-me, ao menos, de que não fugirás nesta noite, isto ao menos, me deves!

— Então, assim seja! Tem a minha palavra de cavaleiro.

— Tenho plena e absoluta confian­ça em ti; és, portanto, absolutamente li­vre e poderás locomover-te à vontade no acampamento, até que eu te pro­cure amanhã. Permite, porém, que te dê um conselho: fica na tenda que te será entregue, pois desconfio que Ahmed queira vingar-se. Um acidente pode ocorrer em poucos instantes.

— Dê-me armas e eu não o teme­rei!

— Lamento muito, mas não posso satisfazer teu desejo! Não aceites nem comida nem bebida, a não ser do escra­vo que vou indicar-te.

— Teme que Ahmed me envene­ne?

— Pouco importa! Obedece!

A um sinal do oficial, aproximou-se um velho escravo que examinou as cha­gas de Alano e as tratou com um bálsamo, que quase instantaneamente aplacou o sofrimento. Em seguida, trouxe-lhe uma excelente refeição e de­pois de Alano alimentar-se fartamente, fê-lo deitar numa tenda limpa e confor­tável.

 

                                                              Capítulo 4

                 SELIM, O EMIR

Alano passou uma noite tranqüila, um sono restaurador, pois o escravo misturara ao alimento uma droga me­dicinal, de alto poder reconstituinte.

De manhã, bem cedo, o oficial que o havia arrancado das mãos de Ahmed, veio procurá-lo e requisitou para ele um cavalo, que foi concedido com indisfarçável má vontade!

Grande foi a alegria do jovem ao ver que o animal, que lhe fora entre­gue, era o seu fiel Galará, que os solda­dos de Selim não haviam conseguido ca­valgar.

Não obstante a febre, que ainda o enfraquecia e a vigilância dos guardas, o jovem apreciou bastante a cavalgada. Em pequenas etapas, foi conduzido, aos pés de um fortim, empoleirado sobre montanhas a pique, em lugar selvagem. Aos pés da fortaleza, presas à rocha, amontoavam-se as casas de um peque­no povoado, circundado por verdejantes jardins.

Ao soar de uma trombeta, as portas se abriram e o jovem prisioneiro foi leva­do, através de pátios e galerias, a um pequeno quarto, cuja única janela esta­va guarnecida de sólidas e grossas bar­ras de ferro. Um divã, alguns travessei­ros de seda e uma pequena mesa, cons­tituíam toda a mobília. O velho escravo, do dia anterior, reapareceu, examinou as ataduras, e deu-lhe uma bebida amarga, que imediatamente o fez ador­mecer.

Na manhã seguinte, acordou ágil e bem disposto; saboreou com grande apetite a refeição, que encontrou pron­ta à cabeceira, e aguardou pacientemen­te o momento de comparecer à presen­ça do emir.

Finalmente, este o recebeu numa sala, de modestas dimensões, mas de encantadora arquitetura e mobiliada com gosto refinado. Selim, o melhor lugar-tenente de Saladino, era, ao mesmo tempo, um homem de coração e de no­breza de caráter.

Acolheu com grande bondade o jo­vem prisioneiro, de quem tivera tantas e tão boas informações. De resto, desde o primeiro olhar, Alano conquistou-o, pois mantivera uma atitude digna, não obstante as roupas aos pedaços e o ros­to emaciado pelo sofrimento.

— Contaram-me — falou o emir em língua franca, — que mataste muitos de nossos cavaleiros.

— Em combate nobre e leal, se­nhor emir.

— Sei. Não temes, portanto, a mor­te?

— Um verdadeiro cavaleiro deve encará-la face a face e permanecer sempre pronto. Muito mais temo a de­sonra!

— Sinto-me honrado em poder tri­butar aos francos, pelo seu heroísmo, minha homenagem. Dize-me, porém: o exército franco já se encontra tão reduzido no tocante a homens, que deve re­correr ao recrutamento de meninos?

— Nosso amado rei Balduino, tam­bém é um menino e não obstante isso os seus guerreiros, senhor emir, aprende­ram a temê-lo.

— Por um dever de lealdade, de­vo admiti-lo.

— Somos todos da mesma tempe­ra, senhor: nossas crianças estão do­minadas por tal entusiasmo, que impacientemente aguardam a idade viril, a fim de poderem ajudar seus pais, nas lides de armas.

— Vejo que não esperaste. Que fa­rias de tua liberdade, se me aprouvesse conceder-te?

Alano tomou uma posição altiva, de olhos esfuziantes:

— Partiria imediatamente à pro­cura do exército franco, para colocar-me novamente ao serviço de meu rei.

Selim contemplou-o longamente, com olhos semicerrados, e depois con­tinuou:

— É exatamente esta a resposta que aguardava de ti, mas não penso, de forma alguma, restituir aos meus ini­migos uma ajuda tão valiosa: quero que assumas o compromisso de não fu­gir. Se assim o fizeres, deixar-te-ei ple­na liberdade de movimento.

— Ainda que, como alternativa, de­va ser atirado a mais profunda masmorra estou firmemente decidido a apro­veitar o melhor possível, a primeira oportunidade que me surgir, para fugir.

Longe de irritar-se com estas res­postas altivas, Selim parecia satisfeito com elas:

— Muito me agradas, meu jovem cavaleiro: autorizo-te, portanto, a an­dar livremente dentro dos limites do fortim, e seus jardins. Os muros são altos e as portas fielmente vigiadas, pa­ra que as transponhas. De resto, tenho a intenção de tratar-te muito mais como amigo, do que como prisioneiro.

—Agradeço-lhe imensamente, se­nhor. Se algum dia as alternativas da guerra o submetessem à minha discrição, terei imenso prazer em recordar sua benevolência.

Inclinou-se e, de cabeça erguida afastou-se, enquanto o emir o acompa­nhava com olhar.

— Admiro profundamente a esse pequenino homenzinho! — disse ao ofi­cial que estava ao seu lado. — Infeliz­mente os céus não quiseram dar-me um filho como ele! Ai de quem lhe fizer algo! Desejo, porém, que seja vigiado dia e noite! És o responsável nessa vigi­lância. Vida por vida se ele fugir.

Apenas em liberdade, Alano come­çou a inspecionar cuidadosamente a fortaleza, que devia servir-lhe de pri­são, não tardou a chegar a conclusão de que todas saídas eram estreitamen­te vigiadas e que os muros, na realida­de, não podiam ser escalados.

Passaram-se os dias. Muitas vezes o emir chamava o jovem prisioneiro e passava alguns instantes palestrando com ele.

— Se aceitasses ser meu filho, — disse-lhe bruscamente, um dia — her­darias meu reino.

— Minha fé vale muito mais do que todos os reinos!

— Sei! Deve ser muito bonita e muito nobre, para que tu a sigas tão fielmente!

— O senhor não a conhece?

— Muito pouco.

— Gostaria que lhe contasse algu­ma coisa?

— Sim, gostaria muito, pois bus­co a verdade. Não te sentes muito infe­liz, em nosso meio?

— Embora a gaiola seja de ouro, jamais o pássaro esquece que tem asas!

 

A primavera chegou, e Alano não conseguira nenhuma oportunidade de evasão. Selim era ativo e sua fortaleza extremamente policiada.

Os jardins, com a chegada de no­va estação, retomaram vida, com extra­ordinária exuberância; os rebentos das amendoeiras, dos pessegueiros e das ce­rejeiras abriram-se e as árvores reves­tiram-se de pétalas brancas e rosas; nos prados e nos bosques, os açafrões, os junquilhos e os narcisos pareciam entretidos numa disputa quem melhor se coloria; em seguida os canteiros cobri­ram-se de cores vivazes; todo o jardim sonorizou-se com novos ninhos e can­ções. O límpido regato saltitava em seu leito coberto de seixos multicores e en­tre os ciprestes os jatos de água, da fontezinha tombavam como pérolas iridescentes na piscina de mármore, em cujo bordo pousavam pombas, num contínuo rufar de asas brancas.

Mais do que nunca, nesse cenário paradisíaco, Alano sentia o peso da pri­são. O incipiente sonho de glória e de amizade, contrabalançava o interesse de iluminar a alma benévola de Selim, de quem apreciava a bondade e a reti­dão.

Para distrair-se um pouco, ia às estrebarias, fazia selar Galará e galo­pava pelos pátios e jardins,

Um dia, em que se preparava pa­ra montar, descobriu, na janela do pa­lácio o rostinho de uma graciosa meni­na, que o contemplava com interesse mal dissimulado. Tocado um pouco pela vaidade infantil, saltou à sela e fez com o cavalo uma série de passos, complicados, sob o olhar admirado e inquieto da linda expectadora, sem per­ceber, entretanto, que de outra janela, também o emir o contemplava. Em certo momento surgiu, à entrada do pátio de honra, um jovem cavaleiro mouro, montando um maravilhoso ca­valo árabe, puro sangue; aproximou-se de Alano e, saudando-o com altiva cor­tesia, desafiou-o para uma corrida.

O jovem cruzado aceitou o desafio. Um pouco mais leve que Galará, o ca­valo do mouro superou-o, em pouco, no tocante à velocidade; mas, quando se tratou de saltar obstáculos, o cristão deixou longe seu competidor.

Depois da vitória, erguendo os olhos para a janela onde se encontra­va apoiada sua admiradora, viu-se aplaudido por um gesto gentil, agrade­cido, ele vermelho de satisfação, in­clinou-se graciosamente.

No dia seguinte, o mouro voltou propondo-lhe amansar dois magní­ficos potros árabes, persuadido de que a simples vista daqueles animais ca­prichosos, teria afastado o cruzado da experiência. Enganava-se redondamen­te. Alano entusiasmado aceitou a perigosa competição, que se desenrolou plenamente ao seu contento: coices ou saltos, nem desenfreadas carreiras, puderam fazê-lo perder o equilíbrio; pa­recia soldado no lombo do potro e não apeou, enquanto não dominou comple­tamente toda resistência. Seu concorrente, muito menos seguro, há bons minutos havia deixado os estribos e mancando de uma perna vinha leal­mente apresentar seus cumprimentos ao vencedor.

Como no dia anterior, na mesma janela, um lindo rosto sorria-lhe feliz.

À tarde, quando Alano, para pas­sar o tempo, errava pelos jardins, di­visou em meio a um canteiro uma me­nina ocupada em colher, com modos rápidos e graciosos as flores mais bo­nitas, que amontoava, formando uma braçada multicor.

Enquanto o jovem se detinha dian­te desse encantador espetáculo, ela parou, percebeu a presença do menino e ergueu para ele um rostinho adorável, que a emoção tingia levemente de ver­melho, e em que dois olhos, de gazela negra, emoldurados por longas sobran­celhas, sorriam-lhe. Alano sentiu-se sur­preso diante de tanta beleza e notou imediatamente uma surpreendente se­melhança com o emir Selim: ela equi­valia em doçura e graça, o que ele tinha em energia e dignidade. À reverente saudação, respondeu com um sorriso tímido e feliz e prosseguiu colhendo suas flores, enquanto o jovem conti­nuava passeando. Poucos instantes após, sem tê-la procurado, acha-se no­vamente em face da linda fada, que es­colhera, para acomodar as flores colhi­das, o banco onde, de preferência, Ala­no costumava sentar, num terraço flo­rido, que dominava toda a campanha.

Era ali que o jovem prisioneiro se detinha a espiar o horizonte para ver se, por acaso, não surgiria um esqua­drão de cavaleiros, trazendo a cruz. Circundada pelas flores, a menina es­tava ocupada em separá-las em feixes, colocando-as em vasos de formas elegantes, que uma escrava lhe apresen­tava.

Os olhos dos dois jovens encontraram-se, mas desta vez, ela sorriu com mais decisão, deixando à mostra duas filas de dentes minúsculos e cândidos, enquanto Alano sorria também.

No dia seguinte encontraram-se no­vamente, mas limitaram-se apenas a saudação cerimoniosa.

Cheia de admiração pelo jovem franco, hábil ginete, a donzela desejava imitá-lo na arte de cavalgar: afinal não devia ser assim tão difícil, se ele obtinha tão assinalados êxitos. Há pouco, Selim, que adorava a filha, presentea­ra-a com uma linda égua árabe, doce e pacífica, e ela, novel amazonas, deseja­va ardentemente cavalgar um animal mais vivaz, que lhe permitisse piruetar, como fazia Alano.

Alguns dias depois, na ausência de Selim, viu aproximar-se-lhe o tio Ahmed, de quem, instintivamente, sentia um misto de repulsa e medo. Desta vez, porém, o príncipe vinha todo sor­risos e atenções.

— Parece, minha linda sobrinha — disse — que te sentirias muito feliz se possuísses um animal mais fogoso e mais digno da filha de um emir. Soube desse teu desejo e deixei de propósito meu retiro para proporcionar-te esta sa­tisfação. Assim, poderás constatar pes­soalmente que não sou o homem mau, de que te falaram.

— Mas, tio Ahmed...

— Nunca se deparou a ocasião de oferecer-te um presente. Na entan­to tenho a convicção, de que este vai agradar-te.

Sem dar-lhe tempo para responder, fez sinal a um escravo que se aproxi­masse, conduzindo pela rédea um ma­gnífico potro branco, de grande beleza.

— Oh! Como é lindo, tio!

— Sinto-me feliz de que te agra­de. É teu. Assim entenderás que, se tivesse oportunidade, muitos presen­tes te aguardariam... Cuidado, porém! O animal é um tanto selvagem, e é preciso mantê-lo de rédea curta!

A menina já não ouvia mais nada; bateu as mãos e agradeceu calorosa­mente a Ahmed. Pediu que o encimas­sem, aguardando, com impaciência que lhe surgisse o momento de realizar al­gumas evoluções para impressionar a Alano. Este, numa galeria próxima, se­lava Galará, enquanto, de longe, seguia a cena acima descrita entre tio e sobri­nha, ansioso para ver a jovem cavalgar um animal muito perigoso.

Segurado pelo freio por um dos escravos de Ahmed, o potro fez alguns giros pelo pátio. Em seguida, por or­dem da jovem, o escravo retirou-se, entregando-lhe as rédeas. Não demorou para o animal se apercebesse que estava sen­do cavalgado por alguém que não pos­suía a necessária experiência. Começou a trotar como bem quis e como fosse um tanto fustigado, partiu repentina­mente a todo galope, para frente.

A jovem viu-se perdida. O animal corria, de cabeça baixa, em linha reta, na direção do bastião que fechava o pátio. Atordoada, ela sentiu-se proje­tada no vácuo, acima das ameias ou en­tão esmagada contra a muralha; aban­donou, então, as rédeas, agarrou-se desesperadamente à sela e fechou os olhos.

Em certo momento, porém, sentiu-se arrancada da sela, justamente no instante em que o potro se detinha, er­guendo, num coice espetacular, as pa­tas traseiras. Mão vigorosa agarrou-a e ela sentiu-se segura à sela de Galará, entre os braços de Alano; que conscien­te do perigo que ameaçava à princesinha, o jovem cruzado atirara Galará numa violenta disparada, alcançando o potro, chegara justamente em tempo de agarrar a menina, evitando-lhe uma queda que teria certamente causado a morte.

Quando a jovem se recuperou um pouco da tremenda emoção, dirigiu-se ao cavaleiro e disse-lhe, em francês:

— Alá lhe pague, senhor estrangei­ro! Sem dúvida nenhuma, devo-lhe a vida! — murmurou achegando-se ainda mais como se um resto de terror a sacudisse.

— Tudo está bem, agora, prince­sa! Permita, porém, que lhe aconselhe a não mais montar nesse cavalo vicia­do e mal-domado.

— E' um presente de meu tio Ahmed!

— Seu tio Ahmed a quer muito?

— Não sei! — respondeu em voz baixa. — Não tenho certeza!

Quando a depôs à porta do palácio, ela agradeceu-lhe novamente com sua voz doce e harmoniosa:

— O senhor tem um ânimo no­bre e grande! Bem que poderia ter-me deixado perceber.

— Oh! isto não! É dever de um cavaleiro agir assim!

— Mas, isto não impede em reco­nhecer que arriscou a sua vida para sal­var a filha do seu carcereiro, de seu inimigo!

— Nobre donzela; a constante be­nevolência de seu pai só me permite usar essa palavra em campo de batalha. De resto, minha religião manda que eu retribua o mal com o bem!

— Como deve ser bela e suave, en­tão! A nossa diz: "Olho por olho, den­te por dente!" Mas, então... não com­preendo porque os seus amigos comba­tem tão encarniçadamente aos nossos.

— Jamais teríamos vindo à Pales­tina, de armas em punho, se os seus não se houvessem apossado do sepulcro do Senhor e maltratado os fiéis que aqui aportavam em peregrinação. Para acabar com todos esses vexames, nossos pais e nós tomamos a cruz.

Em vez de entrar no palácio, soli­citou-lhe que se assentasse a seu lado, sobre um banco de mármore:

— Meu nome é Zaní, — disse, — e tenho onze anos!

— Bem cedo completarei quinze e meu nome é Alano. Um cavaleiro às suas ordens.

— Acredita que poderemos ser amigos?

— Por que não? Basta querê-lo Às vezes as horas me parecem tão com­pridas, longe dos meus!

— Eu me sinto tão sozinha neste imenso fortim, cheio de soldados... especialmente quando meu pai não es­tá aqui.

— Serei, portanto, seu irmão maior, Zaní!

— Sentir-me-ia imensamente feliz!

Ainda um pouco pálida, ergueu-se:

— Devo entrar! Vê-lo-ei ainda, se­nhor Alano?

— Certamente, se o desejar, prin­cesa.

 

Naquela noite, Alano viu entrar si­lenciosamente em seu quarto um dos criados mais fiéis do emir.

— Posso falar-lhe, estrangeiro?

— Certamente, Youssef! Que de­seja?

— Antes de mais nada, agradecer-lhe por ter salvo a jovem princesa. Meu senhor ama-a mais do que qual­quer coisa no mundo! Que amargura não teria experimentado se alguma des­graça houvesse acontecido.

— Ora! Qualquer pessoa, de cora­ção bem formado, teria feito o que eu fiz.

— A princesa Zaní é, para mim, muito mais preciosa, que a pupila de meu olho direito, estrangeiro... por isso, de hoje em diante pode contar com toda a dedicação de Youssef!

Alano observou atentamente o ser­vo e disse muito lentamente:

— Agradeço-te. Mas, meu bom Youssef, se amas de verdade a tua prin­cesa, aconselho-te que a vigies com to­do cuidado.

— Que quer dizer, senhor? — Depois de hesitar alguns instantes,

Alano continuou:

— Tenho a impressão de que o príncipe Ahmed tem modos um tanto esquisitos para demonstrar sua amiza­de e dedicação.

— Compreendo! Faz muito tem­po que já desconfiamos dele.

— Que tem ele, portanto, contra esta menina?

— Ahmed sente ciúmes mortais de Selim mal e mal suporta ser-lhe subor­dinado; inveja no irmão a coragem e a bondade, que tanto o elevam diante de seus soldados.

— Se não me engano, Ahmed rei­naria mais feliz, usando o terror!

— Como todos os covardes!

— Já o experimentei pessoalmente!

— Que Alá nos livre de um dia tê-lo como nosso soberano! Infelizmen­te, Selim não possui descendentes mas­culinos, e por isso deseja que Zaní case com algum príncipe, que se assinale por sua humanidade, sabedoria e bon­dade, qualidades que ele aprecia ver colocadas num trono. Ahmed sabe per­feitamente que se a jovem desaparecer antes desse casamento, o reino lhe cai­rá, por direito, nas mãos. Sem a sua coragem, nobre senhor, hoje ele teria atingido o objetivo.

— Então, também tu tens a mes­ma impressão que eu; este incidente foi preparado.

— Tenho certeza!

— O infame ousa atentar contra a vida de uma menina inocente! Oh! Se eu estivesse armado, iria desafiá-lo pa­ra um duelo.

— Ele não ousa atacar abertamen­te ao irmão, não cessa, porém, de de­negri-lo aos olhos dos crentes!

— Como pode fazê-lo?

— Ele sabe que o emir sofre de dúvidas religiosas e que reduz ao mí­nimo a observância dos preceitos do Alcorão. Jamais quis ter mais que uma só esposa, — embora o Alcorão auto­rize diversas. Depois que a mãe de Zaní faleceu, a quem ele amava ternamente, recusou-se em casar de novo. Permite que a filha ande livremente pelo fortim, em vez de fechá-la no harém; mostra-se sempre muito humano com os prisioneiros de guerra.

— Ora! Nisto tudo não vejo nada de mal!

— É verdade! Aos olhos de cer­tos fanáticos, porém, tal comportamen­to, facilmente pode parecer intolerável tibieza.

— Então, ele tem inimigos?

— Ninguém, fora que Ahmed, pois até os mais fanáticos não dão im­portância a esses particulares, diante da bondade e da justiça de Selim.

— É verdade! Desde o instante em que o conheci; senti-me profunda­mente atraído para ele. Tenho-lhe gran­de estima.

— Posso, portanto, contar com sua ajuda, senhor, na defesa de minha ama, especialmente quando o pai não se en­contra aqui?

— Certamente! Nada temas meu caro Youssef. Defendê-la-ei como uma irmãzinha querida!

— Neste caso, senhor, pedirei ao emir que o autorize a andar armado.

 

                                                           Capítulo 5

                   ALANO E ZANÍ

Alano manteve a palavra. Daquele dia em diante seguidamente os dois jo­vens encontravam-se nos jardins, e muito cedo, deixaram de lado as ati­tudes cerimoniosas dos primeiros dias; um ao lado do outro não passavam de duas crianças, de corações simples e puros, felizes por terem a oportunida­de de realizar juntos longos passeios pe­los bosques floridos ou realizar jogos, que lhe permitiam passar alegremente o tempo.

Zaní bem depressa concebeu por esse irmão maior ilimitada admiração, por tê-la salvo porque cuidava dela com tanto cavalheirismo e decisão. Cada pa­lavra que pronunciasse, parecia-lhe uma prova a mais de sua sabedoria; cada juízo que expressasse, era-lhe uma sentença inapelável e as aventuras que ele contava, as mais belas e encantado­ras do mundo.

Ahmed, depois do fracasso de seu ignóbil atentado, retirara-se às pressas para seus domínios; Youssef vigiava no interior do palácio com a fidelida­de de um cão; Alano circundava-a com sua proteção, apenas deixava seus apo­sentos... Zaní sentia-se feliz!

Ainda que muitas vezes o interro­gasse a respeito de sua religião, o jo­vem, a princípio, falara com grande re­serva; afinal, vendo que ela era since­ra, contou-lhe a vida de Cristo e os Evangelhos. Possuía uma queda toda especial para narrar e a pequena maometana, muito inteligente, entusiasma­va-se rapidamente pela suave figura de Jesus, que tanto ama aos pequeninos.

Ávida de maiores conhecimentos fazia perguntas precisas e cheias de bom senso, de que Alano muito se ad­mirava. No entanto, de comum acordo, mantinham estreito segredo sobre es­ses colóquios.

Ao lado de tão graves preocupa­ções, Zaní interessava-se igualmente por tudo que se referisse ao amigo e fazia-lhe perguntas sobre a família.

— Tens ainda alguém que te es­pera no país dos Francos?

— Não tenho mais ninguém: tam­bém meu pai veio a serviço do rei.

— E tua mãe?

Uma onda tristeza anuviou-lhe o rosto:

— Minha mãe morreu alguns anos atrás.

— Tenho a impressão de que ela devia ser muito meiga!

— Sim, certamente! Era muito meiga... muito suave... — respon­deu, enquanto duas lágrimas lhe rola­vam pelas faces. — Se meu pai deu-me sua coragem indômita, ela deixou-me sua piedade e sua ternura. Ensinava--me a ver a Deus nas flores, no sol, nas montanhas, nos rostos daqueles que me amavam! Foi ela que soube pro­teger meu coração em meio a um am­biente de armas e de guerra!

— Se eu a tivesse conhecido, cer­tamente a teria amado muito! — dis­se a menina.

Zaní, porém, não se contentou com isso; para agradá-la, Alano teve de reenvocar as lembranças de seus primeiros anos; as lições recebidas com tanta sua­vidade; sua felicidade ao ver os olhos claros e cheios de amor brilhar felizes; depois, as horas de angústia e de tris­teza, os longos anos de sofrimento que ela passou cravada no leito da última doença, sem jamais soltar um gemido ou uma queixa.

Enquanto falava, Alano revia o heróico sorriso da mãe moribunda; es­cutava mais uma vez seus conselhos; suas palavras de carinho, que iam len­tamente tornando-se mais fracos... Zaní ouvia com amor e comovida.

— Então, uma mãe é tudo isto? Ah! Se eu também tivesse conhecido a minha! Certamente a teria amado ternamente!

Quando falou de Jerusalém e da corte de Balduino IV, a menina fez-lhe inúmeras perguntas sobre o Rei Leproso, do qual ouvira falar muito e cujo valor não lhe era desconhecido. Agra­dava-lhe provocar as confidencias de Alano.

— O teu rei é tão corajoso como tu? — perguntou.

— Muito mais! Mais do que po­des imaginar! Pensa quanta energia é necessária para ficar a cavalo um dia inteiro, segurando-se às vezes na sela, para não cair e ainda arrastar os ou­tros ao combate! Ah! Balduino é um chefe, um verdadeiro rei, sempre presente onde a luta é mais perigosa e vio­lenta.

— Meu pai já me falou do valor dele e nossos soldados acham que ele é invulnerável.

— De certo! Não se preocupa com nada!

— Creio que gostaria dele, tanto quanto gostas! Mas, se és tão amigo de­le, porque ainda não tentou libertar-te?

— Ele deve ter tentado tudo quan­to estava ao seu alcance; certamente per­deu minhas pegadas e, como nunca recebeu notícias minhas, acredita que eu estou morto.

— Se ele é enfermo como dizes a seu redor deve haver pouca alegria.

— Nas horas em que sua enfermi­dade não o atormenta, volta a ser ale­gre e feliz, não obstante os pesados en­cargos de sua função. Especialmente, é tão humilde.

— Acho que lhe queres muito bem!

— Amo-o como a um irmão e não desejo nada neste mundo, quanto o de ver-me novamente a seu lado. Zaní, não podes imaginar quanto Balduino signifique para mim e quanto desejo assemelhar-me com ele! É preciso que eu encontre uma forma de fugir!

— Cala, mau! — interrompeu ela inquieta, pondo-lhe um dedo sobre os lábios. — Então, abandonar-me-ias? Quem me defenderia contra a malda­de de meu tio Ahmed? Quem me fala­ria de Jesus? Alano! E que seria de mim, se fosses embora?

— Voltaria! Sitiaria este fortim! Tomá-lo-ia e haveria de levar-te comi­go à corte do Rei Balduino!

— E papai?

— Levá-lo-ia também, sem fazer-lhe mal algum: tenho certeza de que se transformaria num amigo do rei.

— Quando isso acontecerá?

— Deixemos tudo nas mãos da Providência, Zaní.

Certo dia em que, como de costu­me, os dois jovens palestravam tran­qüilamente, ouviu-se, em dado momen­to, o som de uma fanfarra.

— É papai! — exclamou Zaní, e feliz batia palmas arrastando o amigo até aos bastiões.

Realmente, perto do fortim, via-se avançar uma coluna de cavalaria, sob o estandarte do Profeta. Em pou­cos instantes a praça forte tomou no­va vida e o emir entrou no pátio de honra, precedido pelos seus alferes e seguido por uma magnífica guarda.

Zaní, muito feliz, correu ao seu en­contro e apenas ele saltou do cavalo, atirou-se carinhosamente em seus bra­ços. Depois de beijá-la e abraçá-la ca­rinhosamente, indagou se com sua au­sência tudo correra bem.

— Maravilhosamente! — disse ela. — Alano cuidou muito bem de mim.

— Ah! — exclamou sorrindo. — Vejo que vos tornastes bons amigos, tu e o teu valoroso e pequeno cruzado.

— Com razão, papai! Alano sal­vou-me a vida.

Ela passou, então, a narrar minu­ciosamente o "incidente", tecendo os mais entusiásticos elogios ao jovem companheiro, enquanto Selim escuta­va com uma ruga de preocupação e de suspeita visivelmente desenhada em sua face.

Zaní percebeu-o e graciosamente ameaçou-o com o dedo:

— Para que preocupar-te, papai? Tudo terminou bem e... eis que voltaste!

— Onde se esconde, agora, o teu salvador?

— Mas...

A menina passou a procurar Ala­no por toda parte. O cavaleiro, porém, havia desaparecido.

 

À noite, Youssef apresentou-se no quarto do jovem franco.

— O emir tinha medo que houvesses fugido! — disse.

— Vontade não me falta, meu ca­ro Youssef! Meu azar, é que me vigiam muito bem!

— Paciência! Meu amo deseja ver-te!

Alano ergueu-se e seguiu ao bom servo:

— Está bem! Vamos!

Penetraram na pequena sala, ri­camente decorada, onde o emir gosta­va de ficar. Aguardava-o de pé, junto à janela e com os braços estendidos cor­reu ao encontro do prisioneiro. E dis­se-lhe:

— Amigo Alano, — preciso falar-te de coisas muito sérias. — Tu, Youssef, durante esse tempo, deveras vigiar de tal modo, que as paredes não criem ou­vidos.

— Senhor, pode contar comigo! Quando o fiel servo se retirou, Selim tomou pela mão o jovem cruzado e o fez assentar num divã, junto a si.

— Antes de mais nada, Alano, devo agradecer-te por teres salvo a vi­da de minha pequena Zaní.

— Apenas cumpri o meu dever, senhor emir.

— Já teria agradecido se não te houvesses afastado quando cheguei. Terás de conseguir o perdão de Zaní, por esse teu ato.

— Eu também não lhe devo a vi­da, senhor?

— Ninguém tinha o direito de tirá-la; nada mais fiz do que meu dever de homem. Tu, no entanto, te expuseste ao perigo de perder a tua vida para salvar a da minha filha!

— "Expor-se a perder a vida", pa­rece-me um exagero, neste caso.

— Não! Zaní contou-me tudo de­talhadamente e Youssef, testemunha sincera da cena, completou-me a narra­ção!

— Certamente exageraram: Gala­rá é um cavalo maravilhoso, que logo entendeu quanto eu esperava dele! Todo mérito é dele!

— Não creio em nada de tudo quanto estás dizendo! Mas, não te cha­mei só para agradecer-te; nem para discutir a respeito de tua coragem que muito bem conheço. Alano, atormen­ta-me uma angústia cruel: Youssef as­segurou-me que bem compreendeste a terrível ameaça que pesa sobre Zaní.

— Será que ela desconfia?

— Zaní não pode acreditar no mal e se eu lhe falasse claramente, tornaria a vida um pesadelo contínuo. Desejo tanto que ela seja feliz!

— O senhor pensa que seu irmão, na verdade, seria capaz de atentar con­tra a vida dela?

— Já não tenho a menor dúvida. Tu mesmo tiveste a prova. Eu mesmo não me sinto seguro, senão quando Ahmed está bem longe de meu teto ou quando me sinto rodeado por meus ser­vos fiéis ou defendido pela minha leal guarda. Para mim, porém, o que constitui minha maior segurança, é a co­vardia de meu irmão. Até que se en­contra a meu lado, o miserável não ousa erguer um dedo; apenas, porém, minha ausência se prolonga, tenho to­das as razões para temer pela seguran­ça de Zaní.

— Mas, é realmente preciso que o senhor deixe o fortim?

— Sou um soldado como o és e devo cumprir ordens. Faço-te uma confidencia: Saladino mandou cha­mar-me e partirei dentro de poucos dias.

Alano deu um salto:

— Recomeça a guerra? — Sim.

— Rei Balduino retomou a ofen­siva?

— Conseguiu reagrupar uma par­te de seus exércitos e a campanha que em breve, terá início, anuncia-se durís­sima.

— Eu não estarei lá para comba­ter ao lado de meu rei! — explodiu o adolescente, apertando os punhos.

— O sultão Saladino deu-me or­dem para reunir forças de categoria, pa­ra agüentar o primeiro choque.

— Senhor!... vai deixar-me par­tir!?

— Era justamente essa minha in­tenção, quando me contaram teu gesto cavalheiresco. As ordens de Saladino, entretanto, são formais! Antes que ter­mine esta guerra, nenhuma libertação de prisioneiros francos deve verificar-se, nem que sejam oferecidos elevados resgates. Entendo muito bem como nes­sas circunstâncias, o sultão não deseje colocar à disposição do Rei Balduino soldados do teu quilate. . .

— No entanto...

— Dou-te a minha palavra de hon­ra que serás posto em liberdade tão logo termine esta campanha, seja qual for seu êxito!

— Será tarde demais!

— Para consolar-te, Alano, vou di­rigir um grande apelo a todo teu espí­rito de cavaleiro. O que me preocupa, no momento de partir, é a quase cer­teza de que Ahmed, tornando-se ousa­do com a minha ausência, desta vez fará de tudo para liquidar-me e, sem dúvida, para suprimir Zaní, cuja vida é um obstáculo permanente as suas am­bições.

— Miserável! Velhaco!

— Haveria uma solução muito simples: que eu te adotasse como meu filho ou que tu aceitasses casar com Zaní.

— Tudo isto parte da suposição que eu esteja disposto a renegar minha religião.

— Sei! E não posso pedir-te se­melhante traição; conheço excessiva­mente tua grandeza de alma para acre­ditar que sejas capaz de tal coisa.

— Porque não leva consigo Ah­med, na próxima expedição?

— Ahmed é um covarde, um mau oficial, unicamente preocupado em salvar a própria vida e não foram poucas as bata­lhas perdemos por causa dele. Tenho razões suficientes para temer a ânsia de sua covardia sobre a tropa.

— Leve-o sem entregar-lhe ne­nhum comando!

— Nem assim estaria resolvido o problema. Supõe que eu seja vítima dos azares da guerra; que eu caia no cam­po de batalha, morto, ferido ou prisio­neiro. Neste caso, o comando caberá a meu irmão.

— Saladino o impedirá!

— Não! Meu irmão está nas boas graças dele!

— Porque, então, devemos assus­tar-nos com desgraças que talvez nun­ca ocorram?

— Não me assusto, filho, mas um chefe deve prever tudo. De resto, tive maus presságios; e bem sabes como nós muçulmanos acreditamos nisso. E fo­ram todos presságios de morte!

— Bem... não lhe dará tanta im­portância.

— Ao contrário! Preciso importar-me muito! Não esqueças que Zaní se encontra sempre no meio.

— O fiel Youssef, tão afeiçoado e cheio de dedicação, saberá muito bem defendê-la: conhece todo perigo.

— É verdade! Youssef daria a vi­da por Zaní, mas nada entende das as-tucias que Ahmed passaria a usar. E então...

— O senhor não tem outros ser­vos fiéis?

— Ninguém que possa protegê-la de modo eficiente. Ouve, portanto, o que te proponho: assume o compromis­so de vigiar minha filha, como se fos­ses seu irmão maior e como fizeste até aqui.

— Mas, não passo de um jovem, de um prisioneiro.

— És um cavaleiro. De resto, te darei maior liberdade, contanto que fi­ques aqui! Previ também a tua liberta­ção total. Se por acaso eu viesse a mor­rer, já deixei ordens bem claras: daque­le momento em diante, ninguém mais se oporá a tua partida, mas com a con­dição de que ponhas a salvo a Zaní. Aceitas?

— Dou-lhe a minha palavra de honra: cuidarei dela, corno minha pró­pria irmã.

— Antes que eu assegure os direi­tos dela na minha volta, é mais impor­tante garantir-lhe a vida.

— Defendê-la-ei!

— Se Ahmed me sobreviver, deves levar embora imediatamente a menina.

— Para aonde?

— Não importa onde! Basta que tenha a vida salva!

— Levá-la-ei comigo à corte de Balduino.

— Certamente lá estará em maior segurança, do que aqui, ao alcance do tio.

— Nada terá a temer sob a prote­ção do rei de Jerusalém.

— Reconheço-o! Entregá-la-ei, por­tanto, à proteção de ambos!

— Senhor, até que eu tiver um mo­mento de vida, não tema por ela.

— Muito obrigado pela generosida­de, em relação ao teu carcereiro.

— Não falemos em prisão, senhor emir. O senhor foi o mais benévolo e leal dos adversários. Jamais poderia considerá-lo meu inimigo.

— Se nos encontrássemos no cam­po de batalha?

— Combateríamos valorosamente, mas sem ódio!

— Creio que também poderemos fazer a paz entre nossos reinos e viver como bons vizinhos. Teria sido uma imensa satisfação para mim ter-te co­mo filho... Alá dispôs diferentemen­te.

— A Providência tem desígnios, próprios, senhor!

— Agora, falta-nos estabelecer os devidos planos, que, no caso de ocorrer o que tememos, nos serão muito neces­sários. Antes de qualquer coisa, deves sa­ber que Youssef está ao par de tudo.

— Saberá calar?

— É mudo como um túmulo. En­carreguei-o de manter-se alerta e de avisar-te o mais depressa possível, se me acontecer alguma coisa. Daquele mo­mento em diante, Youssef passará à tua disposição e obedecerá cegamente às tuas ordens. Sacrificar-se-á por ti, de corpo e alma, como o faria para mim.

— Ahmed tem amigos ou cúmpli­ces aqui?

— O número deles aumentará pro­porcionalmente à sorte que tiver; por isso, acho mais indicado não informar Zaní a respeito desses nossos temores e projetos.

— Pobre Zaní!

— Apenas se tiveres necessidade, Youssef te conseguirá armas e dinhei­ro!

— Desejo que volte são e salvo... mas, não vencedor!

— Adeus, Alano! Não peço que me desejes a vitória; reze antes ao teu Deus para que me ilumine.

— Não deixarei de fazê-lo, senhor!

— Sempre procurei a verdade e sofri por causa dela, mas ainda não a achei. Perto de ti, tive a impressão de que me achava no bom caminho. Adeus, meu filho.

Abriu os braços e o jovem cruza­do correspondeu emocionado e esse si­nal de afeição. Depois de havê-lo estrei­tado alguns instantes, o emir soou um gongo e reapareceu Youssef.

— Nada de novo, meu bom Yous­sef?

— Nada, senhor!

— De conformidade com o que te avisei, de hoje em diante o senhor Alano será teu amo, a fim de defender, contigo, a vida da princesa.

O servo inclinou-se, beijou a mão do jovem cavaleiro e disse:

— Ser-lhe-ei fiel como a ti mesmo, senhor emir!

 

                                                             Capítulo 6

         A VITÓRIA DE AHMED

Algumas noites após, o fortim e a vila acocorados a seus pés, amanhece­ram num movimento desusado: vozes de comando, estrépito de armas, ru­mor de carros, nitridos de cavalos, en­fim, os sons que caracterizam um exér­cito em marcha; quando Youssef abriu as janelas do quarto de Alano, infor­mou-o de que emir já partira com to­das suas tropas.

— A esta hora já devem estar mui­to longe!

— E quem fica na guarda do for­tim?

— Um punhado de veteranos e de soldados fiéis!

— São poucos!

— São suficientes, senhor; as defe­sas desta praça forte são praticamente inexpugnáveis. Em qualquer hipóte­se poderemos resistir a um assédio, até que nos venha socorro.

— Ahmed ficou aqui?

— Não! O emir levou-o consigo! — Com todo aquele barulho, Alano não pudera dormir um só instante, atormentado ainda mais pelo pensa­mento de que seu rei Balduino havia voltado a guerra, sem que ele pudesse colocar-se a seu lado. Sentiu um violen­to desejo de tentar um golpe de força; abusar da simplicidade de Youssef e da autoridade que lhe conferira Selim, e fugir. Nada lhe seria mais fácil: o bom servo lhe teria obedecido cegamente.

— A princesa Zaní o espera, se­nhor. — disse Youssef.

Zaní. É verdade, ainda havia Za­ní. Alano dera sua palavra de honra, de que a protegeria. A luta foi breve, mas violenta e venceu o sentimento do de­ver.

Em poucos minutos aprontou-se e dirigiu-se à menina, que estava profun­damente desolada com a partida do pai.

— Somente ontem à noite ele me avisou! — queixou-se a menina.

— Fez muito bem, querida irmã! Que te adiantaria sabê-lo antes? Apenas sofrerias muito mais! Vamos, consola-te!

Diversos dias transcorreram cal­mamente, dias intermináveis para o jo­vem cruzado, pois nenhuma notícia vi­nha do exterior. Os dois meninos reto­maram suas antigas conversações. Zaní demonstrava-se mais do que nunca interessada na religião do amigo e, co­mo Selim, aproximava se aos poucos da fé cristã.

— Alano, quando papai voltar de­veremos falar de tudo isto os três jun­tos. Achas que ele concordará em que eu receba o batismo? Desejo-o cada dia mais ardentemente.

— Não me admiraria se te desse permissão! Afinal, é um homem de co­ração reto.

— Como eu seria feliz!

— Não te apresses tanto! Para che­gar, lá há muitas dificuldades a superar.

— Farei tudo o que for necessá­rio.

— Já te lembraste que, para te tornares cristã, deveras seguramente re­nunciar à tua herança?

— Já percebi a tempo. Mas, que importa? Estou pronta para esse sa­crifício. O que mais me preocupa é a idéia de que posso aborrecer meu pai. Deixemos, porém, estas inquieta­ções e joguemos. Assim, passará mais rapidamente o tempo.

Encontravam-se empenhados em divertir-se, quando, de repente, ouviu-se um grande estrépito, que vinha do povoado, aos pés do fortim.

— Será teu pai, que já está voltan­do? — indagou Alano, preocupado, pois a rápida volta de Selim somente pode­ria ser o resultado de alguma vitória.

Quem surgiu, porém, foi Youssef, todo desfigurado e inclinando-se diante dos dois informou:

— Senhor Alano, tenho notícias para comunicar-lhe.

— Fala logo!

— Desculpe, são unicamente para si! — Chamando-o de lado contou-lhe rapidamente que os tristes pressenti­mentos de Selim se haviam realizado.

— O exército foi destroçado. Ahmed, como fora previsto, fugiu, desde o primeiro ataque, semeando o pânico. Selim, acompanhado por um grupo de veteranos, morreu combatendo. Ahmed, que, por direito terá o título de regente, a esta altura, já deve estar a caminho do fortim, acompanhado pelos que so­breviveram ao desastre. A cavalaria franca vem no encalço.

Alano, diante da notícia, teve ape­nas uma rápida sensação de alegria pe­la vitória cristã; esqueceu-a imediata­mente, comovendo-se com o triste fim de Selim e com o infortúnio que estava para cair sobre Zaní.

— Pobre princesa! — exclamou. — Mas, se chegar aqui Ahmed... Não temos um minuto a perder!

— É o que temo! Quais são as suas ordens, senhor? Neste momento, no fortim ainda todos são fiéis e nin­guém se oporá ao que for feito.

— Devemos fugir antes que Ahmed chegue. Manda selar três bons ca­valos, os melhores que houver e dei­xa-os em prontidão. Pega também uma boa mula de carga, boa quantida­de de víveres e um odre de água. En­quanto isso, avisarei a princesa.

— Devo preparar algumas armas?

— Naturalmente. Traze-me uma boa espada e alguns punhais.

— Para mim, apanharei um arco e uma aljava com flechas.

— Está bem, mas faze depressa!

— Imediatamente!

Enquanto Youssef se retirava, Alano voltou para junto da pequena companheira que, de longe, ansiosa­mente observava seus gestos.

— Más notícias, irmãos?

— Muito más, querida irmãzinha. Vais precisar de toda tua coragem.

Com muito cuidado, tratou de con­tar-lhe os novos infortúnios que, por outro lado, ela já havia pressentido. Quando a menina desabafou a imen­sa dor que lhe ia na alma, revelou-lhe, então, os perigos que corria e as ins­truções que lhe dera o pai.

— Selim deu-me o encargo de vi­giar pela tua vida, irmã. Terás con­fiança em mim? Aceitarás acompa­nhar-me?

— Depois de papai, ninguém po­deria cuidar melhor de mim, do que, tu, meu caro amigo. Aceitarei as tuas decisões e farei tudo o que mandares; tenho muito medo de cair viva nas gar­ras de meu tio!

— Então, partamos, porque o tem­po urge. Não temas, Zaní! Deus nos há de proteger.

Rapidamente atravessaram as por­tas da antiga cidadela e encontraram-se livres, com Youssef, que os aguardava com as cavalgaduras. Uma profunda melancolia havia tomado conta do fortim e de seus defensores. Alano, porém, fazia grandes esforços para dominar os sentimentos de alegria que a próxima liberdade lhe suscitava, ao ver que, finalmente abandonaria essa fortaleza, cujos muros haviam sido sua prisão du­rante tantos meses. Nenhum gesto ou palavra, porém, lhe escaparam dos lá­bios, em atenção ao sofrimento de Zaní.

Apenas se viu no lombo do ani­mal, seu fiel Galará, Alano passou a fustigar as cavalgaduras. Desde muito se informara cuidadosamente sobre o caminho a seguir e sobre as regiões li­mítrofes. Seu plano consistia em alcan­çar o mais depressa possível um gru­po de rochas que se erguiam nos con­fins do deserto. Lá teriam encontrado o local adequado para esconder-se, até que as tropas de Ahmed houvessem pas­sado e talvez também pudessem aguar­dar aí a chegada da cavalaria franca.

Inicialmente, o plano pode ser executado com toda facilidade; decor­ridas algumas horas, já começavam a descobrir as rochas, quando, de repen­te, viram, no horizonte, erguer-se uma espessa nuvem de pó que, com gran­de rapidez, se deslocou ao seu encontro. O coração de Alano preocupou-se: não podia ser o exército franco, cer­tamente eram os vencidos que volta­vam, acompanhando a Ahmed, em busca de segurança atrás das muralhas da fortaleza.

Antes que nossos amigos houves­sem podido esconder-se, a vanguarda os descobrira e já um grupo de cavaleiros vinha a galope para impedir-lhes a fuga. Alano desembainhou a es­pada e defendeu-se furiosamente; bem cedo, porém, compreendeu que toda resistência era inútil e que os golpes a ele atirados poderiam atingir a prince­sa. Para cúmulo, a espada partiu-se nas mãos e foi constrangido a render­-se.

— Capturem-nos vivos! — bradou uma voz rouca! — É uma ordem formal do emir Ahmed.

Alano tentou ainda reagir, mas su­perado pelo grande número de adversá­rios viu-se jogado ao solo, amarrado, atirado novamente ao dorso do cavalo e reconduzido a toda velocidade para a cidadela.

Apenas chegado, deixando a seus oficiais o encargo de fechar as portas e as saídas, e de guarnecer as ameias, Ahmed, cheio de rancor, mandou vir a sua presença os prisioneiros: um lam­pejo de triunfo e de ódio brilhava em seus olhos, miúdos e maus.

— Cão de um nazareno! — gritou. — Quiseste fugir e raptar a filha de meu pranteado irmão, e entregá-la aos meus inimigos. Morrerás, portanto, en­tre atrozes sofrimentos, diante dos olhos dos cruzados. A menos que, — continuou pèrfidamente, — renegues a tua fé.

— E se eu aceitar?

— Serás meu lugar-tentente e me ajudarás a organizar a defesa do fortim.

— Nem para salvar a vida, hei de trair, algum dia, meu Deus e a meu rei.

— Como quiseres! Mas, antes de morreres, verás ainda com teus olhos Zaní reduzida à escravidão.

— Não te bastou fugir como uma lebre do campo de batalha! Ainda queres encarniçar-te contra uma criança indefesa?

— Apliquem-lhe quinze golpes de azorrague! — gritou Ahmed.

Quando a sentença foi executada, Ahmed continuou?

— E, agora, aceitas renegar ao teu Cristo?

— Jamais! — replicou o jovem.

— Morrerás, portanto, sobre os baluartes, quando aparecerem os primeiros cavaleiros cristãos.

Atirado a uma prisão, exausto e machucado, Alano não desanimou; pôs-se a elaborar novos planos de fu­ga. Não se iludia, porém: as coisas estavam tornando-se cada vez mais di­fíceis. Que acontecera com Youssef? Morto ou vivo? Prisioneiro ou conde­nado ele também?

Vencido pela fadiga, não tardou a adormecer. Decorrido pouco tempo, po­rém, foi acordado por uma voz, que o chamava. Ergueu-se. Parecia-lhe que provinha do muro. Curioso!... Apro­ximou-se. Não havia dúvida, alguém o chamava realmente:

— Senhor Alano!

— Eli! Quem me chama?

— Um amigo. Pode remover o ei­xo que se encontra debaixo da janela?

— Tentarei.

Depois de alguns esforços, o eixo ficou-lhe nas mãos e uma das maiores, pedras do muro girou lentamente so­bre uma cavilha, provocando um leve rumor. Em seu lugar apareceu uma passagem estreita e escura, e nela um vulto que Alano imediatamente identificou:

— Youssef!

— Silêncio, senhor! Em frente à sua porta há sentinelas...

— Como conseguiste fugir?

— Quando o cercaram, afastei-me e depois uni-me a eles. Há mais al­guns soldados fiéis à princesa. Os ou­tros, porém, estão com medo de Ahmed. Sofreu muito, meu senhor?

— Ora! Já conheci coisa bem pior! O servo examinou as chagas de Alano, ungiu-as com um bálsamo que lhe diminuiu as dores e lhe restaurou um pouco as forças.

— Agora, coma, senhor!

E colocou-lhe em frente um pou­co de alimento e uma bilha de água.

— Que fizeram com Zaní? — in­dagou o jovem, enquanto atacava a co­mida com apetite.

— Ainda não consegui vê-la. Sou­be, porém, que Ahmed a fechou num dos quartos do harém.

— Maltrataram-na?

— Até agora, não! A defesa da praça forte preocupa muito a Ahmed.

— Não é difícil defendê-la! Nun­ca vi em minha vida um forte tão bem localizado.

— Ahmed nada entende de estra­tégia, o que irrita uma boa parte dos oficiais. E isto para nós é conveniente, pois, até que ele tiver medo dos amigos de Selim, não ousará tocar na prince­sa.

— Haverá alguma forma para fu­gir daqui?

— Não lhe será difícil, senhor! Co­ma e retome seu vigor! Vou levá-lo co­migo através desta passagem que dá pa­ra uma saída secreta.

— Está vigiada?

— Sim, mas apenas uma sentinela se encontra lá.

— Ahmed conhece esta passagem?

— Não creio.

— Então, vamos! A caminho!

Deixaram a prisão, depois de ha­verem cuidadosamente reposto a pedra móvel; alguns degraus quase carcomi­dos conduziram-nos a um corredor, a vinte metros da saída secreta, escassa­mente iluminada, onde se distinguia imóvel a sentinela.

— Aproximar-me-ei do homem para palestrar! Aproveite o momento para liquidá-lo! — disse Youssef.

— Mas, não bastará esbordoá-lo e desacordá-lo? Tenho pavor de matar a traição!

— Só os mortos não falam, se­nhor! Vamos! O tempo urge! A patru­lha da ronda já se avizinha. Superada essa passagem só é preciso atravessar o fosso e depois a liberdade... O seu cavalo aguarda-o à saída da vila.

— E Zaní?

— Cuidarei dela até que o senhor volte com os francos! Vamos, apresse-se.

— Inútil: não parto sem levar co­migo Zaní!

— Arrisca a vida!

— E que me importa? Dei minha palavra de cavaleiro a Selim e prome­ti-lhe não abandonar a menina; prefi­ro morrer a faltar a minha palavra.

— Suplico-lhe, meu amo! Fuja!

— Não falemos mais! Podes levar--me ao quarto onde se acha prisioneira Zaní?

— Sem dúvida, mas...

— Vamos!

— Uma sentinela, armada até aos dentes, vigia à porta...

— Pior para ela! — disse feroz­mente Alano.

— Além disso, uma das mulheres de Ahmed está permanentemente junto à princesa...

— Ai dela! Vamos! — Convencido da inutilidade de seus apelos, Youssef ergueu as mãos aos céus.

— Que Alá nos proteja!

Quando iam entrar no corredor, ou­viram-se passos sob a abóbada, que se iluminou com a luz avermelhada de to­chas. Youssef empurrou o jovem cris­tão de volta ao esconderijo, que haviam recém-abandonado.

— A patrulha!

— Deixemo-la passar!

Os soldados, que iam substituir os companheiros estavam acompanhados por um oficial e por dois homens que traziam um grande recipiente cheio de cal.

— Alto! — gritou o chefe! — Che­gamos. Esta saída poderia proporcio­nar ao inimigo um lugar de acesso fá­cil demais! Murem-na solidamente! Ajudem todos a carregar as pedras amontoadas ali! Façam depressa!

Os dois fugitivos aproveitaram o momento de agitação e de rumor para escapar sem serem vistos. Protegidos pelas sombras da noite conseguiram penetrar no interior do fortim e che­gar até aos quartos do emir, sem que ninguém os visse.

— A guarnição está desorientada! — disse Youssef. — Jamais, quando a co­mandava Selim, teríamos chegado até aqui sem sermos vistos!

Favorecidos por tal negligência, chegaram ao harém, em frente um soldado passeava, à luz de uma tocha. Vendo-os, o homem baixou a lança e bradou:

— Quem está aí? — Serviço do emir!

— Que vindes fazer a estas horas?

— Ordens do príncipe! — respon­deu secamente Alano, imitando o tom arrogante dos criados de Ahmed. — Viemos buscar a princesa para levá-la à presença dele. Apressa-te ou poderias arrepender-te pela demora. Ah­med detestava que alguém se intrometa nestes assuntos.

— Está bem! Não te aborreças! — respondeu o outro.

— Passa-me as chaves e vamos!— Praguejando, o homem apoiou a lança ao muro e apalpou a túnica, pa­ra localizar as chaves. Quando já se inclinava para abrir a porta, Youssef apossou-se da arma e com um golpe violento atirou-o ao chão. O homem tombou como uma pedra; Youssef to­mou-lhe a adaga e o punhal e, em se­guida, com o pé, empurrou-o para o la­do e entrou, com o amo, na prisão de Zaní.

— Tome esta adaga, senhor! — murmurou. Talvez venhamos a ter necessidade dela!

Deitada sobre o divã, a jovem não conseguia conciliar o sono; aos pés da cama, uma mulher forte e má vigiava-a e ameaçava-a continuamente com as iras de Ahmed.

Quando os dois fugitivos entraram a mulher voltou-se:

— Que vindes fazer aqui? — dis­se ela, estendendo a mão para um gon­go de bronze.

Alano, prevendo o gesto, intercep­tou-lhe o instrumento.

— Nenhum barulho! Ordens ur­gentes do emir: devemos transferir imediatamente a princesa para uma das salas do subterrâneo.

— A estas horas?

— Naturalmente! Quererias fazê-lo em pleno dia, para que todos os amigos de Selim se revoltassem? Ahmed quer evitar o escândalo. Portan­to, nada de gritos ou de conversas!

— Tive ordens de não entregar a prisioneira sob nenhum pretexto.

Alano não respondeu.

— Sei. Isto te custará algumas ho­ras de prisão. Virás conosco.

A mulher resmungou nada satisfei­ta, mas cedeu e aproximou-se a Zaní.

— Vamos, de pé! — disse com du­reza, — E que ninguém nos ouça!

Enquanto Alano se aproximava da menina, a dizer-lhe palavras de confor­to e fazer-se conhecer, Youssef, a um sinal, atirou com rapidez uma gros­sa coberta sobre a cabeça da megera e amarrou-a. Como ela se debatia rai­vosamente, cutucou-a uma ou duas vezes com o punhal, fato que a fez tor­nar-se calma e mansinha como uma pomba.

Enquanto Youssef terminava por reduzi-la à impotência, Alano arrastou para o quarto o sentinela, ainda sem sentidos, e amarrou-o solidamente. Em seguida, lançou sobre os ombros de Zaní a capa escura do soldado, e re­tiraram-se precipitadamente, trancan­do a porta.

— Não tenhas medo, irmãzinha! — murmurou o jovem.

— Oh! Já que és tu, tudo correrá bem! Tinha certeza de que virias sal­var-me, mas não esperava que fosse tão depressa.

— Agradece a Youssef.

— Senhor! — exclamou este últi­mo preocupado. Que fará agora? Den­tro de alguns instantes os guardas se darão conta de nossa fuga e do desa­parecimento do soldado.

— Não os esperarei! — respondeu Alano, passando afetuosamente o bra­ço sobre o ombro de sua pequena companheira. Vejamos... o caminho da saída nos foi interceptado.. .

— O senhor mesmo o viu!

— Então, não temos alternativa, que abrir caminho de armas na mão, contra algum grupo de guar­das. Temos ainda amigos de confian­ça?

— Não temos tempo para procurá-los... Oh! Agora me lembro! Co­nheço uma passagem secreta. Uma saída que somente eu sei identificar. Deve, porém, estar em tão mau esta­do, que a princesa não poderá acom­panhar-nos.

— Contigo, irmão, irei até aos con­fins do mundo! — murmurou a meni­na, agarrando-se ao braço de Alano. — Te­nho tanta confiança em ti! E tanto medo de Ahmed!

— A tua confiança tornará possí­vel o êxito em nossa fuga. Youssef, não percamos mais tempo!

O servo conduziu-os, pela sombra, até a um canto dos antigos bastiões, on­de se via uma guarita há muito tempo abandonada. Ergueu uma pesada laje de pedra.

— Essa — disse — É a entrada de um túnel onde foram fincadas barras de ferro, uma sobre a outra. Creio que seja melhor que passe primeiro, se­nhor, mas recomendo-lhe que seja mui­to prudente, assegurando-se, antes de mais nada, que as barras estejam fir­mes. A princesa o seguirá e eu desce­rei por último, depois de haver recolocado a laje.

— Deus nos proteja! — disse Alano e deixou-se resolutamente escorre­gar para dentro do fosso.

— Cuidado, senhor!

— Pronto! Aqui está a primeira barra... a segunda... Vamos, Zaní!

Não obstante todo esforço que a menina fazia para dominar-se, tremia como vara verde e desceu atrás de Alano, ajudada por Youssef.

— Está bem! Está bem! — obser­vou ela, com voz a que tentara dar fir­meza, enquanto desaparecia nas trevas

— Não te apresses. Apóia-te com força. Segue-me com cuidado e tu­do irá bem.

Agarrando-se fortemente, Alano ajudava a pequena companheira a pou­sar os pés nas barras enferrujadas e procurava encorajá-la.

Ainda que a descida fosse já difí­cil, tornou-se espantosamente perigo­sa quando, chegaram ao ar livre, os fu­gitivos, para continuar o caminho, não encontraram que pontas de ferro cur­tíssimas, cravadas entre as pedras dos muralhões.

Depois de grandes esforços e não menor tensão nervosa, chegaram sem maiores novidades, que alguns rasgões nos vestidos de Zaní, a uma plataforma em ruínas, onde começava um antigo caminho de ronda, no fundo do qual se viam os destroços de um posto de guarda.

— Para onde conduz este caminho, Youssef?

— Para o interior do fortim, se­nhor; devido, porém, ao péssimo estado em que se encontra, já ninguém se arrisca a percorrê-lo, depois da última reconstrução do forte.

Enquanto falavam, Alano sentiu o braço de Zaní procurar o seu: as emo­ções dos últimos dias haviam-na can­sado de tal forma, que nada recomen­dava pôr-se em marcha imediatamente. Felizmente, o posto de guarda onde se haviam refugiado, poderia ocultá-los ainda por algum tempo. Youssef es­tendeu sua capa no chão e obrigou a menina a descansar alguns instantes.

— Tome isto, e descanse um pou­co; dentro de alguns instantes estarás em condições de continuar o caminho.

Fê-la tomar um cordial, que trazia consigo, e conduzindo Alano para fora, disse-lhe:

— A aurora está para despontar e já devem ter notado nossa fuga. Apressemo-nos, pois, à luz do dia, seríamos imediatamente reconhecidos pelos sentinelas.

— Deixa descansar a Zaní: falta ainda uma hora para o nascer do sol. Dize-me; antes, como poderemos dei­xar este lugar.

— Os degraus de ferro continuam, senhor!

— Onde? Já não os vejo! Youssef inclinou-se rapidamente e apalpou a rocha com a mão.

— As barras de ferro desaparece­ram! — exclamou consternado.

— E a rocha está a pique neste ponto?

— Sim senhor! Uns quinze me­tros de muro liso nos separam da li­berdade.

— Precisaríamos de uma escada!

— Pensando que poderíamos pre­cisar dela, trouxe comigo uma corda de seda. Deve atingir até ao solo.

— É forte?

— Sem dúvida! Pode agüentar o peso de duas pessoas de minha estatu­ra!

— É suficientemente longa, meu caro Youssef?

— Acredito que não faltará sequer um metro.

— Então, estamos salvos.

— Senhor, para nós tudo não pas­sa de brincadeira, mas nossa princesa poderá usar este meio?

— Vou procurar um bastão ou uma cesta para baixá-la...

— Acompanho-o!

— Acho que seria melhor que descesses tu por primeiro, a fim de cuidar dos cavalos e das provisões para a via­gem.

— Nossos cavalos estão aqui perto na casa de um amigo de plena confian­ça.

— Então, vá e trate de selá-los lo­go e carregá-los!

—- Obedeço, senhor. Que Alá o proteja!

Quando Youssef desceu, deixando-se escorregar ao longo da corda, Alano retomou prudentemente o velho caminho de ronda; as primeiras luzes da madrugada já permitiam que avan­çasse sem ser às apalpadelas; chegou a um portão arruinado e já se prepa­rava para atravessá-lo quando um ru­mor de passos, que vinham aproximando-se dele, o paralisou repentinamente; rápido, recuou, procurando esconder-se na sombra.

Teve só o tempo de ocultar-se que, na penumbra conseguiu divisar, sob o arco, a figura de quem se aproximava. Era um homem de elevada estatura que avançava com grande precaução, por causa do mau caminho. Avançava lentamente e o jovem pôde perceber perfeitamente os golpes de espada, quando a bainha batia contra o muro. Passou por ele e tão próximo, que qua­se se tocaram. Em seguida, avançou na direção que ele viera, até a um ângulo da muralha, onde desapareceu.

Alano estremeceu:

— Quem é esse homem? Se se­guir o caminho de ronda, deparará infalivelmente com Zaní.

Abandonando seu esconderijo, lançou-se o mais depressa que lhe foi pos­sível, nas pegadas do homem. Um gra­ve pressentimento atormentava-o.

Depois da partida dos dois amigos a pequena princesa conciliara por al­guns instantes o sono; ouvindo passos que ressoavam nas imediações, abriu os olhos. Sem mover-se do lugar onde se encontrava, indagou em voz baixa:

— És tu, irmão Alano? Já estás, de volta?

Houve um momento de silêncio. Em seguida ouviu-se uma risada nervo­sa. Erguendo-se um pouco e pousando sobre um cotovelo, ela divisou Ahmed que já estava entrando na plataforma, satisfeito e vencedor.

— Então, minha linda sobrinha, mudaste teu quarto para cá? Esperavas mesmo poder fugir? Já não amas o teu querido tio Ahmed?

Ergueu-se apavorada e gritou:

— Não te aproximes ou eu grito!

— Quem te responderia? Não me escaparas e hás de pagar caro todas as humilhações que teu pai me impôs.

— Cala! Meu pai era justo e reto!

— Antes que hoje anoiteça, saberás tu e teu amigo o que é minha vin­gança.

— Aprisionaste Alano?

— Evidentemente!

— Senhor, não fizemos nada de mal! — gemeu angustiada.

— Sois dois grandes trambolhos em minha vida! Por onde fugiste?

Ainda que apavorada, a menina ca­lou.

— Onde está o teu cúmplice? — gritou.

— Ah! — respondeu ela, mais se­rena. — Mentiste! Alano está em li­berdade e há de salvar-me!

— Onde está ele?

— Eu estava dormindo... não sei para onde foi!

— O teu lindo cavaleiro aprovei­tou o instante em que descansavas pa­ra fugir!

— Não é verdade! Alano não é um covarde!

Sem querer, a menina atingira em cheio o alvo. Preocupado com a orien­tação que os fatos tomavam e não se sentindo animado a agüentar um as­sedio que ameaçava tornar-se rigoroso, Ahmed, informado vagamente de que existia uma passagem secreta, fora a sua procura, e assim poder fugir sozi­nho, caso a situação se tornasse trági­ca.

Viera antes que o sol despontasse para explorar o caminho de ronda, es­perando descobrir algum indício e foi por puro acaso que deparara com a me­nina, de quem ignorava ainda a fuga.

— Cala a boca! — ordenou impe­riosamente. — Ergue-te e vamos!

Não vendo nenhuma possibilidade de fuga, Zaní avançou lentamente, compreendendo que só lhe restava naquela situação, tentar ganhar tempo.

— Não temo! — disse ela. — Alano virá libertar-me!

— Deveras? — perguntou Ahmed, empurrando-a para a plataforma. — Veremos se teu heróico defensor sabe­rá arrancar-te de minhas mãos.

— Por que não? — indagou uma voz.

Ahmed, que estava saindo da guari­ta, ergueu a cabeça surpreso.

— Alano!

— Alano. Sim, e pronto a mostrar-te, já que o queres, que está em condi­ções de defender tua sobrinha. Covarde, só tens coragem mesmo com crianças indefesas.

Ahmed estendeu o braço para pu­xar Zaní e transformá-la em escudo, mas Alano, mais rápido, lançara-se entre ele e a jovem.

— Poderia degolar-te como a um porco, — disse o jovem sacando a ada­ga. — No entanto, concedo-te a honra de combater contra alguém que está quase desarmado. Defende-te, Ahmed porque um de nós dois não verá o sol esta manhã.

Vendo a pequenina lâmina que seu adversário empunhava, o emir sentiu-se encorajado e sacou a cimitarra. A luta afigurava-se desigual e a sorte do jovem comprometida. Ahmed tinha a vanta­gem da arma, da estatura e do vigor; o cruzado, porém, superava-o em agili­dade, ardor e, sobretudo na coragem.

A princípio, limitou-se a aparar os golpes do adversário, uma vez que sua arma, demasiadamente curta, não lhe permitia atacar. Assim mesmo, lutava com grande confiança e não menor tranqüilidade. Ahmed, no entanto com o medo a dominá-lo, esgotava-se em fu­riosos assaltos. Prolongar a luta faria Alano cada vez mais perigoso. Cada minuto que passava, poderia compro­meter o êxito da fuga. De mais a mais, a luz da manhã já permitia divisar perfei­tamente os objetos e dentro de poucos instantes os soldados de vigia, nas ameias, poderiam distinguir o príncipe e certamente viriam em seu socorro. Era preciso superar a força com astúcia.

Ahmed, irritado por não poder des­truir a defesa de seu jovem adversário, viu de repente que os olhos de Alano se iluminavam de felicidade.

— Um momento, Youssef. Liquido a questão! — disse Alano em voz alta.

Julgando-se atacado pelas costas por um novo inimigo, Ahmed teve um momento de fatal distração e voltou-se levemente; aproveitando o instante Alano arrojou-se com a veloci­dade de um raio, e antes que o príncipe pudesse novamente pôr-se em guarda, a adaga do cristão penetrou-lhe no pesco­ço. O miserável abandonou a cimitarra, caiu de joelhos, levou as mãos à gar­ganta que estourava em golfadas de sangue e caiu no vácuo.

Enquanto Zaní, como que hipnoti­zada, contemplava o corpo ensangüen­tado sendo tragado pelo abismo, Alano agarrou-a pela braço e disse-lhe:

— Irmãzinha, preciso que tenhas muita coragem. Daqui a pouco, o dia estará completamente claro. Precisa­mos escapar o mais depressa e só temos um caminho para seguir.

— Este horrível caminho em ruí­nas...

— Não temos outra alternativa; precisamos descer escorregando por es­ta corda.

— Eu... não serei capaz!

— Então, agarra-te em mim. Fe­cha os teus lindos olhos. Arriscaremos assim juntos a vida ou conseguiremos a liberdade.

— Contigo, a liberdade! — murmu­rou corajosa.

Alano pegou a corda com ambas as mãos e, levando o precioso fardo, come­çou a penosa descida. Nos bastiões ha­via já grande agitação; as sentinelas ti­nham descoberto sua presença; alguns soldados de Ahmed acorreram à guari­ta, esforçando-se por alcançá-los; quan­do chegaram, Alano e Zaní já haviam atingido o solo. Algumas flechas sibilaram perto de suas cabeças, mas Alano conseguiu abrigar Zaní junto a uma grande rocha, onde Youssef os aguar­dava com os animais.

Não esperaram mais nada. Saltaram ao lombo dos animais e lançaram-se rapidamente pelo caminho. Sentin­do-se embora insegura e exausta pela sucessão de todos estes acontecimentos, Zaní galopava o melhor que podia, en­tre seus protetores.

Na cidadela, onde fora dado o alar­me, o temor da chegada dos francos e o desaparecimento inesperado de Ah­med, provocaram enorme confusão; an­tes que pudessem lançar-se na persegui­ção dos fugitivos, decorreram preciosos momentos. Graças a essa hesitação, Zaní, Alano e Youssef conseguiram no­tável vantagem, podendo encaminhar--se para o grupo de rochas, onde teriam encontrado certamente um bom refú­gio.

 

                                                                   Capítulo 7

           FINALMENTE LIVRES

Por causa de Zaní, que não estava habituada a cavalgadas dessa natureza, bem depressa tiveram que moderar a velocidade da fuga. De resto Youssef, que se voltava seguidamente, transmi­tia notícias tranqüilizadoras:

— Nenhum cavaleiro no horizon­te, Senhor! Logo estaremos fora de pe­rigo!

— Será que desistiram da persegui­ção? Seria demasiadamente bela!

Penetraram num pequeno vale em direção a um oásis, a fim de proporcio­nar um pouco de descanso e água aos cavalos. De repente, Alano que inspe­cionava os terrenos ao redor, sempre alerta, lançou um grito de alarme:

— Youssef! No alto da colina! Olha!

Sobre a colina que ele indicava, viam-se uns vinte cavaleiros a galope.

— Os francos não viriam por aque­le lado!

— Serão, então, turcos? Como o sa­bes?

— Talvez tenham tomado algum atalho. Conhecem a região melhor do que nós!

— Montemos! Fujamos!... Cora­gem, irmãzinha!

Começou a perseguição. Infeliz­mente, não haviam percorrido uma mi­lha, o cavalo de Zaní tropeçou e caiu; e, tê-la-ia arrastado certamente na queda, se Alano, sempre atento, não a houves­se, aparado no ar.

— Este pobre cavalo quebrou a perna! — disse Youssef. — Apanha o meu cavalo, princesa!

— Nada disso! — protestou Alano. — Se os cavaleiros te apanharem, mas­sacram-te. Zaní vai comigo. É tão leve que Galará não se aperceberá da dife­rença de peso. Creio que a vanguarda da cavalaria franca não pode estar mui­to longe.

— Alá o permita! — murmurou Youssef.

O incidente, porém, havia propor­cionado aos perseguidores ocasião de se aproximarem visivelmente e já se distinguiam suas armas e faces.

— Flecheiros árabes! — gritou o servo. — Que Alá nos proteja!

— Ainda não nos agarraram! — re­plicou o jovem. A toda, meu bom Gala­rá!

A primeira carga de flechas foi ati­rada contra eles, mas não os atingiu; uma segunda, veio levantar um pouco de pó atrás. Os flecheiros, porém, avi­zinhavam-se perigosamente e bem de­pressa uma que outra seta passou sibilando pelos ouvidos dos fugitivos. A cer­to momento, Zaní lançou um grito de dor e vacilou. Alano teve que segurá-la.

— Que tens?

— Estou ferida!

Inclinou-se rapidamente; uma fle­cha havia-a apanhado no ombro e o sangue escorria, maneando-lhe a ves­te.

Naquele momento, Youssef lançou um grito de alegria:

— Senhor, abandonam a persegui­ção.

— Deus seja louvado! — respon­deu Alano reerguendo a cabeça. — Acho que sei o motivo: vês aquela nuvem de pó que se desloca para o norte?

— A cavalaria franca!

Era exatamente o exército dos cru­zados: agora que os fugitivos estavam fora do vale, podiam distinguir perfei­tamente os cavaleiros e ouvir o surdo martelar do trote dos cavalos. Gala­rá sacudiu a cabeça, nitrindo levemen­te.

Tendo passado o perigo, Alano pa­rou, apeou e estendeu sobre a areia a Zani, que desmaiara; inclinou-se sobre ela, e com muito cuidado extraiu-lhe a flecha, que, felizmente, apenas penetra­ra na carne.

— Esta ferida não é grave! — disse Youssef depois de um rápido exame. Observa! A princesa recupera os senti­dos.

— Alano!...

— Como te sentes?

— Onde estou? — perguntou an­gustiada. — Fomos presos?

— Não! Estamos livres!

— Não morrerei?

— Nunca ouvi dizer que alguém morra por causa de uma flechada des­se tipo! — Responde rindo alegre­mente o jovem. — Deveras ser cuida­da e tratada pelas damas da corte!

— E os flecheiros?

— Fugiram! Porque nossos amigos se aproximam.

Youssef tratou e envolveu a ferida com ataduras, Zaní sentiu-se melhor e quis erguer-se, apoiada ao braço de seu amigo.

Encontrando-se no cimo da colina, o pequeno grupo não podia deixar de atrair a atenção dos exploradores fran­cos, que logo se aproximaram. O olhar do jovem cruzado podia agora distin­guir seu belo exército, com todas as bandeiras desfraldadas e admirar entu­siasmado a boa ordem de marcha. O sol fazia cintilar as armaduras e as pon­tas das lanças; Alano, reconhecendo um após o outro os estandartes, sen­tia-se feliz em informar Zaní.

A cer­to momento exultou e de olhos fixos na tropa, exclamou quase estático:

— O rei... Zaní... Balduino avança! Surge a bandeira dele!

Deixando a pequena companheira junto a Youssef, saltou à sela e saiu a toda a disparada em direção à tropa.

 

Já a algum tempo Balduino, a quem nada escapava, havia percebido as três figuras, que se destacavam con­tra o horizonte azul.

— Quem é aquele cavaleiro que numa corrida louca se dirige para cá?

— Desconfiemos, sire. . . traz ar­mas sarracenas. . .

— Sobre a armadura, porém, os­tenta uma cruz... poderia ser.

Alguns guardas já estavam incitan­do suas cavalgaduras a fim de reter o ímpeto da corrida do recém-chegado, quando Alano, parando o cavalo, saltou da sela e correu de braços estendidos gritando em francês:

— Sire, meu rei! Finalmente o re­encontro! — E sem preocupar-se com os que o circundavam, ajoelhou-se e beijou afetuosamente a mão que lhe era estendida.

— Alano, meu irmão! — excla­mou, erguendo-o. — Já não esperava mais ver-te! Chorei-te como morto!

— Caí prisioneiro, sire, não obs­tante todos os meus esforços! É o que de pior nos pode acontecer. Sofria por não poder reunir-me novamente ao meu exército! Graças a Deus, porém, eis-me vivo e ansioso para voltar a com­bater a seu lado.

— Essas palavras bastariam para identificar-te, querido amigo!

— E o meu pai?

— Sempre audaz e forte no atroz sofrimento, acreditava-te morto. Verás logo. Sofreste muito?

— Conheci horas amargas, mas neste momento esqueci tudo.

— Em mãos de quem caíste?

— Prisioneiro de um leal adversá­rio, sire; o emir Selim, que me tratou como filho.

— Selim era um grande soldado! — observou gravemente o rei. Ter-lhe-ia agradecido de muito boa mente o que fez por ti.

— Caiu como um herói no cam­po de batalha.

— Acredito! E que Deus o tenha em sua glória!

— Não duvido, sire; desejo que a benevolência que tendes para com sua memória, seja endereçada a Zaní, fi­lha dele. Entregou-me para que a guar­dasse e a conduzisse à sua corte, majes­tade!

— Onde está ela? No fortim que vamos assediar?

— Pude libertá-la, sire, pois pro­metera que não a abandonaria até que não estivesse em segurança. Ei-la.

Um explorador aproximou-se res­peitosamente:

— Descobrimos um oásis, aqui perto.

— Pararemos alguns instantes, a fim de descansar os homens e dar água aos cavalos. Avise o capitão.

Alguns cavaleiros da escolta acom­panhavam a princesa, que Youssef tra­zia à garupa de Galará. Alano tomou-a pela mão.

— Aproxima-te, Zaní... não te­mas, irmãzinha!

Sem manifestar qualquer embara­ço a menina, com muita desenvoltura, saudou a Balduino:

— A filha de seu leal inimigo, si­re, presta-lhe homenagem. Entrego-me com confiança à sua discrição.

— Princesa: não faltarei à palavra que Alano empenhou. Em memória de seu valoroso pai, não será minha pri­sioneira, mas minha hóspede.

— Tinha certeza de que esta seria a recepção, sire. Sinto-me orgulhosa de sua amizade... Alano já me cha­ma de irmã.

— Já o percebi; e a irmã de meu amigo será minha irmã. Seja bem-vinda entre os francos. Mas... que vejo? Estás ferida?

— Oh! Não é nada! A flecha de um dos soldados de meu tio atingiu-me levemente. Alano diz, porém, que não é coisa grave.

Palestrando, haviam chegado ao oásis, onde, sob o olhar dos sentinelas, os soldados haviam apeado. À sombra de uma rocha, preparadas diversas ca­deiras para Balduino e seu séquito. Ala­no ajudou a menina a apear e deitar comodamente sobre alguns travessei­ros. E, quando já estavam para reco­meçar a história de sua evasão, che­gou, a toda brida, um cavaleiro.

— Chamou-me, majestade?

— Sim, senhor Aimery. E disse­ram-lhe o motivo?

— Não, até agora!

— Devo transmitir-lhe a melhor de todas as notícias.

— Alano.

— A Santa Virgem, ouviu-nos. Re­conhece este jovem guerreiro?

Alano, que não percebera a che­gada do cavaleiro, voltou-se repentina­mente e atirou-se aos braços:

— Papai!

— Meu filho! Eu já te dera por morto e não esperava jamais rever-te!

— Contar-te-ei minha história, pai; permite, porém, antes que te apre­sente àquela que, há alguns meses cha­mo de minha irmã... Espero que a terás como filha.

— Já que és tu que a trazes a mim, será, pois, minha filha! — dis­se o velho fidalgo inclinando-se diante de Zaní.

Dada vazão à felicidade, que todos sentiam pelo feliz reencontro, passou-se, como não podia deixar de ser, às coisas práticas.

— Princesa, — disse o rei Balduino, — é necessário que nós, os cruza­dos, retomemos nosso mister. Não po­demos, todavia, submetê-la aos perigos de uma campanha, nem fazer com que nos siga em nossas correrias. Se per­mite, uma escolta de honra irá conduzi-la numa liteira até Jerusalém, onde se­rá hospedada em meu palácio, com to­das as honras devidas a sua alta linha­gem, e onde encontrará todos os cuida­dos necessários.

— As suas propostas, sire, me pa­recem adequadas e aceito-as plenamen­te — respondeu a menina.

— Apenas esteja concluída esta campanha, voltaremos a encontrar-nos. Forme-se uma escolta para a princesa. Alano, meu irmão, apreciaria coman­dá-la?

Alano não conseguiu dissimular seu desgosto.

— Se for uma ordem!

— Não ordeno coisa alguma, ami­go! Pensava em proporcionar-te ape­nas uma coisa agradável.

— Sire, Zaní sabe perfeitamente quanto me apraz estar ao lado dela, mas também não ignora quanto desejo re­tomar a luta acompanhando meu rei... a menos que V. Majestade não me jul­gue digno.

— Que pensa disto tudo, princesa?

— Conheço o coração de Alano, si­re, e sei quanto deseja recuperar o tem­po perdido. Seria ingrata se o retivesse.

— Acredita que ele está em condi­ções de combater?

— Quando se tem a honra de ser­vir a um rei, que, não obstante aos seus sofrimentos, não foge do campo de batalha, que cuidados poderia ter um homem valente? — interrompeu Alano.

— Quero saber se estás em condi­ções de agüentar esta campanha.

— Experimente.

O conde Aimery estava feliz:

— Abençôo os céus, ao constatar que a prisão não destruiu a tua cora­gem.

— Destruiu? Ao contrário, meu pai!

— É nisto que reconheço o meu sangue! — disse o conde com firmeza. Majestade, permita que o sigamos.

— É o que desejo. Constitui para mim imensa felicidade reencontrar o mais querido companheiro de armas.

— Esta frase, em sua boca, sire, va­le mais do que um ducado.

— Então, a caminho! Princesa, auguro-lhe boa viagem.

— Adeus, Zaní! — disse Alano. — Bre­ve nos veremos!

— Permita que lhe augure a vitó­ria e que Deus do alto dos céus, os guie e livre de todos os perigos.

 

Enquanto marchavam para o as­sédio do fortim, o jovem cavaleiro con­tou ao pai e ao rei as suas aventuras:

— Podem imaginar o meu deses­pero, quando, recuperando-me do des­maio, encontrei-me à mercê dos meus inimigos, eu, que havia jurado jamais render-me.

— Não te rendeste, amigo! Nisso não há desonra alguma!

— Procurei fugir todos os dias, mas Selim vigiava-me muito bem. De resto, mostrou-se sempre ótimo amigo e guardo-lhe grande estima e admira­ção. Estarei errado, papai?

— Fazes bem, filho. O emir era homem leal.

Depois de ter respondido a todas as perguntas que lhe fizeram, Alano disse:

— Creio, sire, que posso ajudá-lo a conquistar rapidamente o fortim.

— Realmente! Conheces a praça forte!

— É uma das que tem melhor fortificações e poucas seriam as possibili­dades de tomá-la, se a guarnição não estivesse desmoralizada, e sem coman­do eficiente. De mais a mais, só a pre­sença de V. Majestade já deixa ator­doados, os assediados.

— Sim... O rei leproso.

— Conheço uma passagem secre­ta que muito nos poderá ajudar na con­quista, sire. Por ela, poderemos chegar rapidamente ao centro do fortim.

— Aproveitaremos, de certo e evitamos um inútil derramamento de sangue!

— Posso, então, oferecer-me como voluntário para conduzir a bom termo esse assalto?

— Isso não é ambição? Não será temerário?

— Não! Existe apenas audácia!

— Explica-nos o teu plano!

— Gostaria de ter comigo vinte ho­mens robustos e leais, de preferência montanheses. Com dez deles penetra­rei na fortaleza e os outros dez me se­guirão de perto. Ao mesmo tempo, Vossa Majestade juntará suas tropas em frente ao ingresso principal e quando avistar um fogo, aceso nas ameias, or­denará o assalto, da forma que julgar mais conveniente.

Antes do anoitecer, o fortim de Selim foi assediado e nosso herói pôde expor, no local, com maiores detalhes, seu plano. Apenas anoiteceu, capita­neando um grupo de homens selecio­nados, Alano guindou-se pela corda até ao velho caminho da ronda e à guari­ta onde combatera com Ahmed. Em seguida, tendo consigo os soldados de reforço subiram pela escada de ferro que o conduziu ao torreão principal, sem que ninguém percebesse a manobra.

Subjugaram e dominaram os pi­quetes de guarda e acenderam um fogo sobre os bastiões. Enquanto isso Balduino ordenava o assalto, aproveitan­do o fato de ter Alano e seus amigos baixando a ponte levadiça.

Uma hora durou o encontro, e o fortim estava em poder dos cruzados.

Concluída a capitulação, Balduino destacou para a fortaleza uma guarnição permanente e em seguida, dirigin­do-se ao amigo:

— Conde Alano, já que és o con­quistador desta fortaleza, dou-te em feudo, com todas as terras que dela de­pendem. Ela te recordará teu rei e tua prisão.

— Como agradecer-lhe, Majestade?

— Continuando tão amigo do rei como o foste até aqui.

— Sire, serei, portanto, um amigo distante. . .

— Ah! Não! Não espero que te feches atrás destes muros. Desejo que fiques ao meu lado. Organizarás, por­tanto a defesa, coisa que saberás fazer com perfeição; em seguida, escolheras um bravo comandante, que te substituirá, enquanto nós continuaremos a combater.

A notícia da morte de Selim, e a captura do fortim melhor guarnecido da região, teve profunda repercussão no campo sarraceno. O próprio Saladino demonstrou-se muito sentido e um certo desânimo abateu-se sobre os guerreiros islamitas, fato que facilitou aos cristãos ocupar toda a região. Por toda parte era conhecido o valor do "rei le­proso". Seu nome era respeitado em todos os confins, respeito conquistado por alto preço, pois a enfermidade que vinha dominando-o, transformava-lhe a vida num verdadeiro martírio.

A campanha, cujo início fora tão promissor, prosseguiu exitosa até ao fim, sendo concluída muito antes do tempo previsto, trazendo às tropas francas não somente grande glória, mas despojos realmente valiosos. Balduino e o amigo retornaram a Jerusa­lém, onde foram recebidos triunfalmente.

Terminados os combates, Alano sentia-se feliz por reencontrar-se com Zaní, de quem continuamente falava ao rei, desejoso de que a conhecesse melhor. A felicidade da menina foi ainda maior, por ver que regressava, ao lado do soberano, são e salvo. Entregue por ordem de Balduino a algu­mas senhoras francesas da corte, Zaní não perdera seu tempo. Tornara-se uma perfeita princesa e, a seu pedido, instruíra-se minuciosamente na reli­gião cristã. Formosa e de coração ale­gre, soubera conquistar a amizade de todas as pessoas que a cercavam. Du­rante os dias em que ficara separada de seu jovem salvador, Zaní não deixa­ra de elogiá-lo por sua coragem e destemor e na corte seu nome tornara-se verdadeiramente popular.

Aqueles dias de guerra e de comba­tes, entre assaltos e privações, haviam transformado nosso herói. Zaní ficou maravilhada ao revê-lo quase homem feito, forte e bronzeado, um tanto ma­gro, mas de coração feliz e bom como nos dias de prisioneiro.

Interessado pelas confidencias que Alano lhe fizera a respeito de Zaní, Bal­duino desejava conhecê-la melhor.

— Acreditas, — perguntou um dia, — que Zaní aceite ficar contigo na com­panhia de um leproso? Meus sofri­mentos não causarão invencível repu­gnância àquela terna e delicada meni­na?

— Não o creia! Seria julgá-la mal: Zaní é uma donzela simples e cheia de dedicação. Tem idéia do que sejam seus sofrimentos, pois muitas vezes falei ne­les; a solidão e a infelicidade, que se abateram sobre sua pessoa, não a as­sustarão.

E assim foi. A princesa jamais de­monstrou repugnância ou hesitação na presença de Balduino. Pelo contrário, com profunda dedicação, tratou-o na enfermidade, detendo-se muitas horas, junto com Alano, alegrando a solidão do rei.

Chegado o Natal, Zaní, satisfazen­do o desejo repetidas vezes manifesta­do, recebeu, das mãos do bispo Guilher­me de Tiro, o santo batismo. O rei Balduino empenhara-se para que a ce­rimônia se realizasse em sua capela e quis servir pessoalmente de padrinho.

Dali por diante, entre uma expedi­ção e outra, a donzela não deixou mais os dois jovens, a quem tratava como irmãos; com Alano participava dos tra­balhos da corte e quando o rei mais sofria com sua enfermidade, servia-lhe de enfermeira, revelando-se hábil e de­dicada. Mas, quando os assuntos de es­tado e a doença deixavam livre a Balduino, os três abandonavam-se a uma incontida alegria e suas risadas juve­nis eram objeto de comentários, entre os grandes da corte, embrulhados em suas roupas de brocado.

 

                                                                 Capítulo 8

                     A corte do rei leproso

Entre alternativas de paz e de luta; de alegrias e sofrimentos; de vitórias e derrotas, os anos passaram. O rei, cada vez mais atormentado pela enfermida­de, a dedicação e a amizade dos dois jovens, não esmorecia.

Certo dia, no mais aceso do com­bate, o conde Aimery tombou de armas em punho, quando mais uma vitória, para a qual largamente contribuíra se anunciava. Recolhido moribundo, foi ainda transportado com vida para o pa­lácio, onde morreu poucos dias depois, nos braços de Alano, e de Zani, sempre considerada filha dileta.

Pouco antes da morte, Alano in­clinou-se sobre o conde e perguntou-lhe:

— Papai, perdoa-me a fuga da abadia, feita sem o teu consentimen­to?

Um sorriso aflorou a seus lábios.

— Há muito tempo que esqueci tudo, meu filho, pois me proporcionas-te uma grande felicidade. Mantém bem altas as tradições de nossa linhagem, e terei orgulho de ti.

Não terminara ainda o luto pela morte do pai, quando a saúde do rei começou a declinar sensivelmente; a lepra, que não perdoa, já o impedia de montar a cavalo. Com sua indômita energia, fazia-se levar ao campo de ba­talha numa liteira, de onde podia continuar comandando as manobras e gal­vanizar, assim, os soldados, com sua presença.

Mais de uma vez, a presença ape­nas desse morto-vivo, bastou para lan­çar a desordem nas fileiras do profeta. Apesar disso, suas forças minguavam e as disputas no palácio, as intrigas que se tramavam em torno a sua sucessão, tornavam ainda mais melancólico o fim de sua vida.

— Já me suprimiram do mundo dos vivos, — confidenciava a Zaní. —Já disputam sobre o destino do meu trono, como se eu não existisse mais.

 

Efetivamente, ao seu redor a rede da intriga e do egoísmo ia cerrando as malhas. Não tendo nem descenden­tes nem irmãos, a coroa, por direito, caberia à irmã maior, a princesa Sibila, a negação total da virtude. O que Balduino possuía de humilde e sábio, ela de vaidosa e leviana.

Em seu louco cérebro compreen­dera que, não podendo participar da guerra, tornava-se necessário en­contrar um marido-soldado, que pudes­se co-dividir a coroa como ela o enten­dia: para ele, as campanhas e as expe­dições; para ela, a vida e o fausto da corte.

Mas, para atingir a esse objetivo, necessitava de um homem que, além de ser um grande guerreiro, não tives­se ambições políticas.

Sua escolha fixara-se em Alano, muito popular na corte.

Vendo-o sempre ao lado do rei ena­morara-se de sua pessoa ágil e vigoro­sa, de seu valor a toda prova e de sua dedicação a causa da coroa.

Simples e reto como no primeiro dia, Alano estava muito longe de sus­peitar que acendera uma chama tão ardente de amor. Não lhe passava pe­la cabeça que projetos e planos se te­ciam ao redor de seu nome.

Sem atinar com os ardentes olha­res de que era alvo, continuava a tra­tá-la com a respeitosa cordialidade, que a irmã do amigo merece.

Zaní, pelo contrário, com sua in­tuição feminina, não tardara a perce­ber o que estava acontecendo; a princí­pio, não prestara maior atenção, tran­qüila por que conhecia a indestrutível retidão de seu amigo. Conhecia porém, demasiadamente a leviana e frívola princesa, cujas aventuras haviam sido alvo de falatórios, para não compreen­der que jamais ela faria feliz ao cora­joso e nobre Alano.

Entre os presentes de núpcias, a in­trigante Sibila deporia aos pés do noi­vo uma coroa real, e essa poderia se­duzir o jovem, tão sequioso de glórias e Zaní não queria, intervindo, correr o risco de destruir a carreira do jovem conde.

Pouco a pouco o comportamento de Sibila em relação a Zani, — que jul­gava sua rival — foi modificando-se; da amizade expansiva passara à reser­va; da reserva à frieza, para chegar, fi­nalmente, à uma hostilidade mal dissi­mulada.

Ao mesmo tempo, a ambiciosa ha­via iniciado de modo claro, o cerco de Alano o qual, na sua imensa simplici­dade, era o único na corte que ignorava realmente o que se passava.

Zaní, em sua delicadeza, cuidara de não tocar no assunto com o amigo de infância. Impondo silêncio aos seus sentimentos, aguardava ansiosa o resul­tado da luta.

Muitas vezes interrogava a si mes­ma se Balduino, que dia a dia vivia mais retirado, estivesse a par de todas as intrigas de sua irmã. Não acredita­va, todavia, de ser seu dever desvendá-los ao rei, temendo que a amizade que unia o monarca a Alano pudesse so­frer. Por isso, quando, certa noite o rei lhe falou no assunto, sobressaltou--se.

— Zaní, irmãzinha querida, depõe por um instante o livro sagrado e res­ponde-me sinceramente; sabes que es­tão preparando uma linda coroa para nosso irmão Alano?

Ela não conseguiu dissimular a palidez que se estendeu sobre o rosto e apertou entre as mãos o volume:

— Ouvi falar vagamente de algu­ma coisa, senhor, — respondeu ela com lealdade, — mas V. Majestade sabe que não presto voluntariamente atenção às tagarelices da corte.

— Não se trata de pura conversa e se as notícias chegaram a teus ouvidos, então o assunto é de domínio público. Que pensa Alano de tudo isto?

— Alano certamente não tem qual­quer idéia a respeito: deve estar muito longe de suspeitar o que se trama. De resto, — acrescentou com calor, — es­ta é minha opinião pessoal.

— É o que eu também penso. E quem então, está tratando de alimentar a opinião pública sobre esse assunto?

— Alano é que não!

— É o que eu julgo Alano é de­masiadamente reto e cândido, para in­trigar. Se ele tentasse, todos lho pode­riam ler no rosto.

— De resto, estima demasiada­mente a V. Majestade para especular de uma forma tão baixa sobre a sua morte.

— Concordo com isso também. E agora outra pergunta: que pensas da hipótese dele ser rei de Jerusalém?

— E é a mim que faz esta pergun­ta?

— A ti, como a única pessoa que, com minha exceção, está em condições de julgar objetivamente!

— Alano é um grande comandan­te!

— Ninguém o sabe melhor do que eu. Isto, todavia, não basta para ocupar um trono: acreditas que ele seja capaz de enfrentar vitoriosamente a toda sor­te de intrigas, de que sempre será mais o mais circundado?

— A imensa candura e retidão, que possui, sempre o impedirão de ser um hábil diplomata.

— Concordo contigo também nes­te assunto. Agora gostaria de saber quem conduz todo esse movimento de opinião pública a favor dele.

— Não tenho idéia a esse respeito, sire.

— Minha graciosa irmã Sibila de­ve estar trabalhando muito nisto!

— Não cabe a mim julgá-la!

— Gostarias que ela casasse com Alano? — indagou com um leve sorri­so.

A jovem empalideceu completa­mente e teve que recorrer a toda força de vontade para responder com voz trê­mula:

— Não formei opinião a esse res­peito.

— Tenho a impressão de que Si­bila está usando cada vez menos de gentileza contigo, desde que circulam todos esses boatos.

— Não o notei.

Depois de um longo silêncio, o rei levantou os olhos para sua companhei­ra e sorriu bondosamente:

— Irmãzinha querida, não temas! Apanha de novo teu livro. É bom que saibas que eu também cuido de ti.

Reabriu o livro e com voz ainda trêmula, retomou o texto sacro, no lo­cal onde suspendera a leitura:

"Não vos preocupeis com nada."

Uma hora depois, Alano, concluí­da a patrulha de ronda, estava de vol­ta e quando se apresentou para fazer seu relatório, encontrou-os conversan­do tranqüilamente. Zaní ergueu-se pa­ra ir-lhe ao encontro e rei Balduino contemplou-o longamente. Àquelas ho­ras de patrulha ao ar livre haviam cau­sado imensa felicidade no coração do jovem capitão e seus olhos brilhavam intensamente.

— Majestade, tudo está em ordem! — exclamou. — E a noite é tão linda!

O rei sorriu e fez sinal aos amigos que se aproximassem. Alano tornara-se homem com todo o vigor de sua ju­ventude, largo de ombros, robusto co­mo um carvalho e Zaní era agora uma donzela cheia de encantos e de uma beleza arrebatadora.

— Irmão Alano, — disse Balduino, — e tu, irmã Zaní: ouvi-me bem por alguns instantes.

— Fale, sire! — responderam am­bos.

— Sinto que as forças me abando­nam e como a ambos eu amo com igual ternura e com ambos deposito a mesma confiança, gostaria de expor-vos meu maior desejo. Permiti que vos fale an­tes como soberano. Alano, tenho uma grave missão para confiar-te.

— Fale senhor! Minha vida é sua!

— O fortim de Selim, teu feudo, está ameaçado. Tenho necessidade, nes­te momento, de um braço vigoroso.

— Está mal defendido?

— Não, mas os sarracenos percor­rem seguidamente a região. Tornam-se necessárias algumas operações de lim­peza. Preciso de um homem de con­fiança: aceitas o encargo?

— Lamento profundamente dei­xá-lo, sire, mas seus desejos são ordens para mim. Quando deverei partir?

— É a resposta que eu aguardava. Agora, falarei como amigo. Irmão, não há necessidade que tu partas sozinho para essa longínqua fortaleza onde es­tarás exposto a todos os perigos.

— Se o julgar conveniente, levarei comigo todos os companheiros que pu­ser a minha disposição.

— Não se trata tanto de compa­nheiros, como de uma companheira. Gostaria que ela tivesse bastante cora­gem para não desmaiar diante do peri­go e que te ame tanto de modo a pro­porcionar-te felicidade.

— Sire!

Zaní e Alano entreolharam-se de tal forma perturbados, que o rei se pôs a rir.

— Amável Zaní, aceitarias tu ser a companheira de meu melhor amigo? A esposa do soldado, sempre guerrean­do? Não! Não me respondas logo! Disse com um pouco de malícia. — Se casares com Alano, quero que seja por amor e não para satisfazer ao meu ca­pricho.

— Por que faz essa pergunta, sire? — replicou a jovem. — Como nosso amigo, deve saber que nós nos amamos a longo tempo.

— Agora só nos falta saber o que pensa Alano de tudo isto!

— Nenhum outro desejo seu, ma­jestade, ser-me-ia mais agradável.

— Então, acertei em cheio! O ca­samento deverá realizar-se aqui, na cor­te, antes do inverno e quero que se re­vista de todo esplendor possível. . . Sim! Esta é a minha vontade: a prin­cesa Zaní e o Duque Alano são dignos do fausto de um rei.

— O Duque Alano, sire?

— Exatamente. Daqui por diante levarás esse título, que teu valor e tua afeição te conquistaram a longo tem­po; será meu presente de casamento.

— O prazer de servir a V. Majes­tade é a maior retribuição.

— Oxalá encontrem toda a felici­dade que mereceis e que eu havia so­nhado para mim mesmo!

O casamento realizou-se logo e com toda pompa, como o desejara o rei. Excetuando a intrigante Sibila, que ardia de raiva por ver destruído todos os seus planos, ninguém encontrara qualquer objeções para ser feita. Os noivos haviam conquistado há muito tempo a simpatia e a amizade plena da corte.

No ano seguinte, satisfazendo um desejo do rei, o jovem casal foi a Jeru­salém a fim de apresentar ao soberano moribundo, seu primogênito, um vigo­roso menino, de nome Balduino.

Infelizmente, o pobre monarca não pôde desfrutar por muito tempo sua preciosa companhia: chegara ao extremo de seu Calvário e essa visita, tão ardentemente desejada, foi sua última alegria sobre a face da terra. Morreu poucos dias depois, nos braços de seus amigos.

Depois de sua morte, seguindo as recomendações recebidas, Alano e Zaní retiraram-se o mais depressa possí­vel para sua fortaleza, felizes por fugi­rem àquele ambiente de intrigas que, depois da morte do rei, desonrou a cor­te de Jerusalém.

Assim, isolados do mundo, um ao lado do outro passaram a viver uma existência ternamente unida, dividindo as alegrias e as angústias, educando seus numerosos filhos nas tradições de fé e honra em que ambos viviam e que constituíam toda sua felicidade. 

 

                                                                                A. M. Hublet  

 

                      

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