Biblio "SEBO"
Alano é um jovem e destemido cristão que foi colocado em um monastério para que seu pai lutasse nas cruzadas. Inconformado ele foge e encontra seu pai convencendo-o a aceitá-lo em suas fileiras. Com apenas quinze anos é um exímio cavaleiro, amigo de seu rei e o orgulho de seu pai.
Numa das batalhas é dado como morto e feito prisioneiro. O que poderia ser o fim é apenas o começo de inúmeras aventuras: torturas, provações contra sua fé e conhecer a doce Zaní, da qual se torna seu guardião e amigo.
Alano mostra aos seus inimigos que é um guerreiro valoroso e a mulçumana Zaní cada dia se torna mais apaixonada por esse cristão.
Capítulo 1
A FUGA
No grande pátio, onde as pombinhas brancas voam ao redor de uma límpida fonte, que repousa sobre colunas delicadamente trabalhadas, um menino, de atitudes desembaraçadas, e ombros largos, passeia impaciente desde o portal da bela igreja românica ao átrio de ingresso da abadia. Seus olhares voltam-se continuamente para a porta abacial de que saem, finalmente, absorvidos em sua palestra, o pai e o abade do mosteiro.
— Desta maneira, reverendíssimo padre, entrego-vos o meu Alano. Tenho certeza de que fareis dele um cristão e um cavaleiro.
— Cuidaremos dele com toda solicitude, nobre senhor. Mas, como poderia ele deixar de seguir quase que instintivamente, as pegadas do pai?
— Lembrai-vos de que é minha única felicidade, — ajuntou o conde Aimery, bruscamente, querendo esconder sua emoção.
— Justamente por isto, peço-vos, Nobre senhor, que reflitais ainda. Não posso compreender vossa partida com destino à Terra Santa.
— Prometi que envergaria a Cruz; somente a longa enfermidade de minha querida esposa pôde impedir-me o cumprimento de meu voto; agora, o céu chamou-a a si; nada mais me resta, que cumprir minha palavra.
— Diante da juventude de Alano, conseguireis certamente a dispensa, se a pedirdes.
— Um Aimery, não se subtrai jamais ao cumprimento da palavra empenhada. Educai vós a meu filho nessas idéias, no amor de Deus e no respeito à honra.
Divisando, então, o jovem que, a certa distância os contemplava, acenou-lhe:
— Vem cá, filho!
Alano aproximou-se de rosto contrafeito e inclinou-se diante do abade, com um gesto cheio de nobreza, no qual, porém transparecia um pouco de inflexibilidade e hostilidade.
— Filho, o reverendíssimo padre, ao meu pedido, concorda em receber-te nesta abadia, onde saberei que estarás sempre em segurança, até que eu cumpra o meu voto.
— Estarei mais perto de ti, pai, se me permitires que te acompanhe!
O abade interveio com um sorriso de condescendência.
— Vamos, Alano! Um menino de treze anos não pode evidentemente correr os riscos de uma Cruzada!
— Saberei mostrar a todos que, para guerrear, já não sou mais uma criança! — protestou com firmeza o jovem. — Meu olhar é seguro, meu braço é forte e a cabeça é firme.
— Naturalmente, meu filho! Conheço a tua coragem, — continuou o conde. No entanto, jovem como és, não tenho direito de te expor a tão grandes canseiras.
— Papai, por favor!
— Não insistas, Alano! Já me decidi. Quero que, esperando-me, aceites voluntariamente a autoridade do padre abade; serás dócil com os monges, cordial com os companheiros que te darão os quais, certamente, não terão teus pendores guerreiros. Quando eu voltar, quero encontrar-te adiantado nos estudos e um grande sábio.
— Papai! O estudo me interessa muito menos que o combate!
—- Vamos, meu filho! Obedece! — aconselhou o abade. Alano olhou-o de viés e já se preparava para responder, quando o conde deu por encerrada a entrevista:
— Adeus, filho, e reza todos os dias para mim!
— Papai, partes logo?
— Talvez precise ainda de oito dias para concluir os preparativos. Coragem!
Abraçou ternamente ao jovem; montou no cavalo que lhe fora trazido pelo escudeiro e partiu sem olhar para trás. O abade apoiou a mão no ombro do rapaz:
— Seja razoável, Alano! Obedece! — repetiu.
O jovem, com um gesto rápido afastou-se e murmurou entre dentes:
— Ainda o alcançarei!
O abade, a quem esta reflexão não escapara, decidira manter sob estreita vigilância o taciturno aluno; contrariamente, porém, às suas previsões, no primeiro e segundo dia, não se verificara nenhum sinal de revolta. No terceiro, Alano tomara uma atitude alegre e dera em tudo provas de uma docilidade perfeita: assistira devotamente aos ofícios; ouvira com paciência as lições do padre Jacinto e concordara em tudo com momentos livres, entretanto passara-os caminhando pelos jardins e pelos claustros, tanto que, depois de uma semana, o bom abade começou a simpatizar com ele.
Confidenciou ao Magister sua satisfação, pelos resultados obtidos:
— Domesticamos rapidamente nosso gavião selvagem, padre Jacinto!
— Eh! Reverendíssimo padre... o gavião pode lembrar-se de um momento a outro de que ainda tem asas! Preferia muito mais vê-lo estudar com empenho, antes que ficar por aí, a andar continuamente pelos jardins.
— Paciência, filho! Este jovem não está destinado a ser monge; sejamos indulgentes para com ele. Não tema!
O pobre abade bem cedo deveria pagar pelo seu fugaz sentimento de vangloria. Durante aquele dia, — era um domingo, — Alano, entre um ofício e o outro, passeou pelos jardins cheios de sombra da abadia, estudando minuciosamente as sebes e as alamedas de carmins.
— Estás procurando ninhos, Alano? — indagou brincando um dos colegas. — Cuidado, que quem anda em busca de ninhos, desagrada a Frei Egídio.
— A mim também! Fica tranquilo.
Antes de anoitecer, retirou-se para sua cela, cantarolando uma velha canção de guerra e deitou-se muito satisfeito com o dia que passara.
Pouco antes da meia-noite, Alano foi acordado pelo som dos sinos que chamavam os monges para o canto de matinas; levantou imediatamente, vestiu-se em silêncio, embora fosse, como seus companheiros, dispensado do ofício noturno. Aproximando-se da porta ouviu longamente os passos dos monges que se afastavam em direção ao coro, até que se diluíram no silêncio; fechou com cuidado a porta e desceu ao claustro, iluminado pela lua.
Tudo estava em paz; o lento salmo das vozes, que lhe vinham da igreja, harmonizava perfeitamente com o silêncio da noite. Na ponta dos pés, Alano chegou a uma pesada porta de carvalho, que dava para os jardins da abadia; afastou lentamente os batentes e escorregou para fora sem ser observado.
A noite era de uma limpidez maravilhosa; os edifícios do mosteiro destacavam-se nitidamente contra o céu, com exceção da igreja, cujos largos vitrais estavam iluminados por uma tênue luz multicor. Silenciosamente Alano acompanhou os muros, passou pela fonte, em que a água saltitava numa bacia de mármore negro, em seguida escondeu-se na sombra escura de uma sebe. Chegou sem dificuldade a um lugar que estudara particularmente durante seus passeios, e, agarrando-se ao tronco nodoso de uma velha árvore, apoiou os pés nas saliências da muralha, atingindo-lhe rapidamente o cimo.
Cavalgando o muro, deu um último olhar ao mosteiro, para assegurar-se de que não fora seguido; com a mão fez uma irônica saudação de despedida em direção ao bom padre abade e em seguida deixou-se cair no prado vizinho. Livre!
Uma vez saído da abadia, rapidamente atingiu a pastagem onde eram recolhidos, à noite, os cavalos, do sítio; entre os fogosos animais não lhe foi difícil distinguir Galará, seu fiel corcel, que lhe obedecia como um cãozinho. Chamou-o com um assobio. O lindo animal imediatamente acorreu, esfregando a cabeça no ombro do dono. Saltar-lhe à garupa; acomodar-se sem sela e sem freio, era uma brincadeira para o jovem filho do conde Aimery, perfeito cavaleiro. Apertando os joelhos, pôs o cavalo a trote, conduzindo perto do pequeno muro que fechava o recinto e, com um rápido esforço, o fez pular.
No outro lado do muro, a estrada branca alargava-se sob o olhar cúmplice da lua, estirando-se na direção de um espesso bosque, onde se perdia. O cavaleiro meteu-se nela e depois, quando julgou que o rumor da disparada já não poderia atingir ao mosteiro, inclinou-se sobre o pescoço de Galará, acariciou-o, falando-lhe em voz baixa, e lançou-o em plena velocidade na direção à aventura, que o aguardava.
O romper do novo dia, encontrou Alano galopando ainda, enquanto cantava uma canção guerreira; ao surgir o primeiro raio de sol, explodiu numa gargalhada, pensando na surpresa do padre Jacinto quando, antes da missa, lançasse para o interior da cela deserta o seu "Benedicamus Domino", agora sem resposta alguma. Divertindo-se com esta lembrança, sofreou o ímpeto do cavalo, para poupar-lhe energias. Pôs-se, então, a cantar a plenos pulmões: o cansaço da alegria da liberdade.
Mais tarde, parou às bordas de um bosque, e deixou Galará pastando, alimentando-se com algumas provisões que havia trazido. Saciado, dormiu diversas horas; ao acordar, colheu amoras dos arbustos vizinhos, e partiu de novo.
Seu plano inicial era o seguinte: alcançar o castelo paterno; esconder-se nos bosques da vizinhança e seguir de longe o exército de seu pai, apenas se houvesse posto em marcha. Chegando, porém às terras de sua propriedade, soube de um pastor, que o identificara, que o Conde Aimery já partira há dois dias, deixando no comando do castelo o mordomo-mor Ugo, com um punhado de homens.
Teve de modificar seus planos uma vez que, entre todos os subalternos do castelo, Ugo, vítima habitual de suas traquinices, era o único que não se deixava influenciar pelo jovem amo.
— Se me descobre, — pensou Alano — aquela cabeça de porongo1, é capaz de mandar-me reconduzir ao mosteiro, no meio de dois homens armados, como um malfeitor. Essa satisfação nunca darei ao reverendíssimo padre abade.
Informou-se, então, minuciosamente da direção tomada pelos cruzados; recomendou vivamente ao pastor de guardar segredo e pôs-se em marcha. Pelo anoitecer, bateu à porta de uma cabana isolada, onde o acolheu uma família de velhos lavradores; com uma fome de lobo, devorou o pão negro e o queijo que lhe foram oferecidos; em seguida, depois de haver alimentado Galará, foi deitar-se satisfeito no monte de feno da estrebaria, onde adormeceu como um justo.
Na manhã seguinte, aceitou muito contente um pão e uma taça de leite; em seguida, depois de haver pago a hospitalidade, não obstante os protestos daquela boa gente, interrogou-os:
— Vistes por acaso passar, há dias, cavaleiros, que ostentavam as minhas cores?
— De certo! Vimos um exército que partia para a Cruzada!
— Perfeitamente! É esse que eu busco!
— Desciam em direção do sul, por aquele lado... tem dois dias de vantagem, senhor!
— Não importa! Hei de alcançá-los!
— Como? Ides também para a cruzada? Tão jovem?
— Saberão qual é a minha idade, pelo vigor dos meus golpes, meu povo! Adeus! Rezai por mim! Mais uma vez, muito obrigado!
O homem forneceu-lhe um freio enferrujado e um pano velho, que lhe serviu de pelego e Alano, mais feliz do que um rei, partiu, cantando a plenos pulmões, canções heróicas.
Depois de dois dias de caminho e de rápida cavalgada, enquanto ultrapassava a serra, do alto de uma colina, descobriu finalmente uma nuvem de pó, que se levantava no meio dos campos de trigo:
Serão eles?
Bem cedo, realmente, seu olhar agudo conseguiu distinguir lanças e elmos que brilhavam, refletindo os últimos raios do sol. Então, pela primeira vez depois da fuga do mosteiro, Alano começou a pensar na acolhida que lhe teria dispensado o pai. Decidiu, porém, não preocupar-se, naquele dia, deixando o assunto para a manhã e deitou-se, envolto em seu manto.
Ao despontar do sol, pôde distinguir perfeitamente os cavaleiros levantando o acampamento; e desta vez reconheceu: sem sombra de dúvida, as cores do pai; então, recomendando-se inteiramente a Nossa Senhora e a São Jorge, montou novamente em Galará e alcançou-os.
Sua chegada imprevista e impetuosa causou impressão nos homens de armas, pois Alano desfrutava, entre os soldados de seu pai, imensa popularidade e afeição. Habituado desde a infância a viver em seu meio, participando dos exercícios militares, aprendera com aqueles homens rudes a manejar a espada e a adaga, com surpreendente destreza. Dotado de grande vigor, não obstante sua pequena estatura, não temia de correr ao assalto junto aos demais e saia-se sempre com grande galhardia.
Na equitação ninguém o superava; posto no dorso de um cavalo ainda antes de caminhar, aprendera a subjugar os animais mais fogosos e teimosos e impor-lhes rapidamente sua vontade.
Se a acolhida dos soldados foi entusiástica, a do conde foi muito diferente. Dissimulando sua alegria por ver novamente o filho, que tanto amava, o cavaleiro passou a tratá-lo com energia e apostrofou-o com voz irada:
— De onde vens? — indagou bruscamente.
— Da abadia... pai, não fui feito para ser monge e sim guerreiro!
— Ah! É isso! Toma nota, então: a primeira lição que o guerreiro deve aprender é saber obedecer.
— Lá a vida me era insuportável! De outro lado, jurei que não ficaria com aquele abade, que me tomou por uma criança. Um Aimery não deve cumprir a palavra empenhada?
O conde, silencioso, pôs-se a caminhar de cá para lá, enquanto em seu espírito alternavam-se o descontentamento por ver que Alano havia desobedecido, a alegria que a presença do filho lhe proporcionava e o temor pelos grandes trabalhos e sacrifícios a que o exporia, se o levasse consigo. No entanto, não podia mandá-lo de volta sozinho nem privar-se de um dos companheiros para escoltá-lo. Finalmente, parando diante do rapaz, que estava confuso, falou-lhe com voz rude:
— No meu exército, não há lugar para um filho desobediente!
— Papai! Por favor!...
— Talvez possa aceitar-te; um soldado a mais!
— Um soldado? É justamente o que eu peço!
— Quero que compreendas bem: serás apenas mais um de meus homens, sem qualquer exceção, nem favor, tomando parte em todos os trabalhos e correndo os mesmos riscos.
— Estamos de acordo!
— Tanto pior! Foste tu que o quiseste: não me culpes amanhã. Eis que pássaras, portanto, a estar sujeito, como todos os teus companheiros, à disciplina militar; à primeira desobediência serás severamente punido!
— De acordo, comandante!
— Toma teu lugar na última fileira da coluna: estarás sob as ordens de Pierrú.
O rapaz despediu-se do pai e correu para o lugar que lhe tinha sido designado, ao lado de Pierrú, velho sargento, tão resmungador quanto valente e que gostava muito do rapaz, sem querer, entretanto, demonstrá-lo.
— Eis um equipamento maravilhoso para ir combater na Terra Santa!— disse Pierrú irônico, dando um olhar de desprezo à suja coberta e às rédeas de linho trançadas de seu novo subordinado. — Se os sarracenos te capturassem com esses arreios, diriam que a armada cristã não passa de um bando de mendigos!
Alano tomou uma atitude altiva e olhou-o firmemente:
— Antes de qualquer coisa, os sarracenos não me aprisionarão. E, depois, se alguém rir de meu equipamento, saberei fazê-lo engolir o riso!
Pierrú resmungou satisfeito com a resposta, mas na etapa seguinte descobriu na bagagem uma sela; um cavaleiro ofereceu-lhe os estribos, um outro deu-lhe as rédeas, de modo que Alano retomou o caminho mais altivo e alegre que nunca.
— Devolverei tudo isto, tirando-o de minha parte do botim, logo após nossa vitória! — prometeu ele.
Nos seis dias seguintes, nem uma vez o conde Aimery dirigiu a palavra ao filho, coisa que muito custou a seu coração e ao coração sensível de Alano. O jovem, porém, teve o máximo cuidado de não queixar-se; e se esse fato lhe arrancou alguma lágrima, somente a noite lhe conheceu o segredo. Durante o dia mostrava-se um cavaleiro modelo, tomando de boamente parte em todas as canseiras, conservando a alegria e o sorriso nos momentos mais agudos. Não suspeitava absolutamente que seu pai estivesse observando em seu jovem rosto, os efeitos do cansaço. Recomendara a Pierrú que dosasse os trabalhos à força do menino. À noite, quando Alano, envolto em seu manto, repousava entre seus rudes companheiros, o conde Aimery, à ronda, parava longamente para contemplá-lo.
Em certa tarde que Alano acompanhava aos homens destacados para a busca de forragem, deram com um bando de malandros, que maltratavam um grupo de viajantes. Apenas se inteirou de quanto acontecia, o jovem lançou-se sobre os bandidos, desembainhando sua pequena adaga, a única arma que lhe era permitido carregar — e serviu-se dela com tal vigor, que os facínoras, atordoados com ataque tão fulminante, fugiram sem opor qualquer resistência, antes que o resto da patrulha tivesse tempo para intervir.
O Conde Aimery exultou de felicidade, quando soube do comportamento corajoso do filho, mas cuidou seriamente em não deixar transparecer coisa alguma. Pierrú resmungou que "não havia necessidade de tanta coragem para fazer debandar um grupo de ladrões...", no entanto, concordou que Alano pendurasse ao bálteo2 uma espada nua, que ele fizera saltar das mãos. dos agressores.
O Conde Aimery chegou por primeiro ao ponto de concentração dos cavaleiros com os quais deveria navegar para a Terra Santa e por isso viu-se encarregado de procurar os navios, que deveriam levar toda a expedição; as buscas, muito difíceis, proporcionaram a seus homens de armas, alguns dias de descanso, bem merecido, aliás.
Certa manhã, o conde mandou chamar o filho e examinou-o com olhar severo; nada, porém, no comportamento do rapaz podia justificar qualquer reprimenda; era um pequeno homem de armas, bem feito e em forma perfeita; as lições de Pierrú e seu desejo de acertar, haviam transformado o garoto despreocupado e brincalhão, num jovem soldado perfeito. Manteve-se imóvel sob o olhar crítico do pai, erguendo para ele um rosto que queria permanecer impassível: o vento e o sol haviam-no bronzeado e emagrecido, dando-lhe uma expressão viril e infantil ao mesmo tempo.
Os olhos do cavaleiro iluminaram-se de felicidade à vista daquele pequeno guerreiro, altivamente de pé em sua frente, cheio de encanto e beleza e, pela primeira vez, dirigiu-lhe a palavra:
— Que é que me contaram a teu respeito? Correste em socorro de viajantes em perigo?
— Não era, por acaso, minha obrigação de cavaleiro, senhor?
— Não te repreendo, meu filho! Bem ao contrário! No dia em que tiveres aprendido a não agir somente em função de tua cabeça, poderás ser um digno cavaleiro de nossa linhagem.
— Deveria ter solicitado permissão ao...
— Nada disto! Agiste como um valente.
O rapaz abandonou sua posição rígida de sentinela e durante alguns segundos não foi mais do que o pequeno Alano de outros tempos:
— Deveras, papai? Desta vez estás contente comigo? Já me perdoaste a fuga e achas que demonstrei ser um bom soldado?
— Batalhas mais sérias mostrarão se realmente manténs as tuas promessas.
— Jurei servir com toda minha alma e tu, papai, ensinaste-me a cumprir sempre a palavra empenhada.
— Não te faltará ocasião.
— Isto significa que partiremos em breve?
— O margrave Henrique e seus homens estarão aqui hoje à noite e aguardo dia a dia o barão Lievin, que deve vir da Holanda.
— Quando embarcaremos?
— Se o mar se mantiver tranqüilo e se eu achar os navios necessários, muito cedo partiremos.
— Não pudeste ainda conseguir nada?
— Bali! Apenas uma barcaça capaz de transportar os soldados do meu exército. É preciso encontrar algo de melhor: esses marinheiros não são tão fáceis e dóceis.
— Deixa que eu possa apoiar-te com Pierrú, de espada em punho.
—- Pequeno guerreiro! Não é esta a maneira para conseguir o que queremos! Vamos, filho, trata de recuperar tuas energias para enfrentar a travessia e deixemos de lado toda preocupação em relação aos armadores. Vai! Que Deus te guarde!
Capítulo 2
A CIDADE SANTA
A Providência não tardou em favorecer os esforços do conde Aimery: antes que chegasse o Barão Lievin, descobriu duas naus espaçosas, capazes de transportar o contingente completo dos três comandantes.
Os novos, recém-chegados, demonstraram grande simpatia por Alano, a que apelidaram de "o benjamim dos cruzados", nome muito adequado, pois haveria de tornar-se o predileto da expedição.
Dois dias bastaram para realizar o embarque e, numa bela manhã, cheia de sol, com grande entusiasmo, as velas foram desfraldadas. Empurradas por um vento favorável, as duas embarcações atingiram bem depressa o alto mar, navegando a todo pano, em direção do Oriente misterioso, objeto de tantos sonhos de Alano, que ia, de pé, à proa, com os cabelos ondulando ao vento. Cantava, todo feliz, por estar já a um passo de uma terra, que lhe prometia numerosas aventuras. Já se imaginava no assalto aos muros fortificados, coroados de ameias e seteiras; via-se destruindo legiões de infiéis; sonhava com o momento em que pudesse plantar sobre as torres da fortaleza, a bandeira com a cruz encarnada, símbolo dos cruzados... E os sarracenos, batidos e destroçados, deixando para sempre a terra que Jesus pisara em sua santa pregação...
A travessia, iniciada tão auspiciosamente, entretanto, alterou-se à altura da ilha de Rodes. O vento tornou-se mais violento, depois desencadeou uma temível tempestade, jogando as embarcações e fazendo-as correr o risco de esbarrar na costa e reduzir-se a pedaços. Os pilotos viram-se forçados a buscar refúgio numa pequena enseada, a fim de tratar de consertar os estragos e aguardar a calma. Os cavaleiros cristãos aproveitaram o momento para descer a terra e ir cumprimentar os cruzados que aí estavam acantonados, na defesa da ilha.
Apenas haviam retomado a travessia, quando da gávea soou o grito, avisando que várias velas apontavam no horizonte: um comboio passava ao largo, escoltado por naus de guerra turcas. Instantes após, duas delas afastaram-se do grupo, com a evidente intenção de barrar o caminho as embarcações cristãs.
Os dois capitães não dissimulavam seu temor, pois um combate dificilmente poderia ser vantajoso. A armada das galeras turcas era incomparavelmente superior aos dois navios de transporte. Felizmente, porém, o vento forte que soprava, impediu a manobra inimiga e a noite caiu sem que pudessem aproximar-se excessivamente. Aproveitando a escuridão, as duas barcaças puderam afastar-se e pôr-se a salvo.
Grande foi a desilusão de Alano, que impaciente, aguardava seu primeiro combate. Uma avaria verificada numa das embarcações veio retardar ainda mais a travessia. As costas da Síria foram, afinal, atingidas quando as provisões de alimento e água escasseavam assustadoramente.
Por fim, numa esplêndida manhã, os cruzados, satisfeitos por haverem concluído a viagem marítima, puderam desembarcar festivamente no porto de Tortosa, ao norte de Trípoli.
— Com a bênção de Deus, — observou o barão de Lievin, — nossa pequena tropa, bem depressa há de integrar-se no exército cristão.
Por isso, a demora no porto foi reduzida ao mínimo necessário.
Certa manhã, em que se dirigia ao porto na companhia do pai, Alano presenciou uma cena de que deveria guardar duradoura lembrança, pelo asco e terror que lhe causara. Três mendigos, apoiados às muralhas da cidade, pediam, de longe, esmolas. Levado por seu bom coração, Alano tratou de aproximar-se para dar-lhes algumas moedas. Não fizera, porém, muitos passos, e eis que eles, com gestos imperiosos, ordenaram que se afastasse, erguendo as mãos carcomidas pelas chagas purulentas. As vozes, que se dirigiam para ele, saiam de bocas sem lábios, e de rostos devorados por pústulas horríveis. Alano sentiu intimamente um movimento de profundo nojo e aconchegou-se instintivamente ao pai.
— Quem são esses homens? — murmurou.
— São leprosos, filho! Não te aproxime! — respondeu o conde. Agarrou de sua bolsa um punhado de moedas que ofereceu aos enfermos.
A impressão dessa asquerosa visão ficou profundamente gravada na mente do menino, mesmo depois que deixou Tortosa.
Um pequeno grupo de cavaleiros do Rei Balduino IV, que voltava a Jerusalém, ofereceu-se como guia aos recém-vindos e com eles pusera-se a caminho. Pouco depois, os cruzados estavam transitando por uma terra acidentada, passando ao largo da fronteira, além da qual se viam as sentinelas sarracenas e nômades, que de quando em quando se lançavam em incursões, roubando e matando em território cristão; o caminho, como bem depressa o demonstraram os fatos, não era nada seguro. A expedição avançava, portanto, cautelosamente e não poucas vezes os cruzados se viram constrangidos a usar a espada, seja para se verem livres de alguma patrulha turca que percorria a região, seja para dispersar bandos de nômades assaltantes.
Essas escaramuças, pouco perigosas na verdade, tinham, entretanto o mérito de manter sempre alerta a tropa e de alimentar-se constantemente a combatividade. Agindo com sabedoria, os barões, depois de haver travado batalha, evitavam de perseguir aos fugitivos, receosos de se verem atraídos a alguma emboscada.
Essa prudência não era a mais indicada para acalmar os entusiasmos guerreiros de Alano; mais de uma vez foi necessário que a autoridade paterna se fizesse sentir, para mantê-lo dentro das linhas.
— Por que deixamos escapar ao inimigo já vencido? Não é este o momento indicado para reduzi-los a pedaços, a fim de tirar-lhes toda vontade de voltar?
— Estamos aqui com a finalidade de levar ao rei um reforço, de que tem grande necessidade, — respondeu o conde, — não para lançarmo-nos à toa em combates, cujos resultados não podemos prever, numa terra que quase não conhecemos.
Aguardando a chegada, o jovem não poupava nem forças, nem coragem; certa noite, voltou ao acampamento todo feliz, apresentando no arção da sela uma seta sarracena, profundamente cravada.
— Foi um homenzinho pequeno e feio como o diabo que me deu este presente, — dizia brincando. — Enquanto o perseguia, deixou-se cair da sela, a fim de atirar-me esta seta.
—. . . que poderia ter-te ferido gravemente! — resmungou Pierrú. — Desconfia, portanto desses negrinhos, demasiadamente covardes para usar a espada, mas rápidos e competentes como demônios para atirar flechas.
Durante o dia os cruzados ficavam alerta, enquanto à noite, enrolados em seus mantos, dormiam ao ar livre, sob o maravilhoso céu do Oriente, estendidos sobre a areia tépida e defendidos por uma tríplice fila de sentinelas. Antes que despontasse o sol já estavam de pé e a caminho, aproveitando as horas em que houvesse menos calor. Quando o sol se tornava causticante dormiam uma sesta indispensável e retomavam novamente o caminho, até que fosse bem escuro.
Embora enfrentasse muitas privações, a tropa mantinha-se na devida forma, pois os chefes eram corajosos, — de modo particular o conde Aimery. Os soldados não se cansavam de elogiá-lo e ao filho:
— Acham-se sempre onde é maior o perigo!
— Co-dividem nosso mantimento e não tocam a própria ração, se todos os demais não estiverem servidos.
— Não fazem montar a tenda, mas dormem em nosso meio, na terra nua.
— Quando faltou água, agüentaram tanto quanto nós a sede!
— Não obstante tudo isso, jamais perderam a jovialidade e agüentaram a fadiga igual a qualquer um de nós.
Transcorridos longos dias de caminho e enfrentadas numerosas escaramuças, a natureza apresentou-se menos selvagem e mais sorridente: os cruzados passaram a percorrer regiões férteis e em certa manhã divisaram os bastiões de Jerusalém. Todos, imediatamente, saltaram de seus cavalos, para beijar o chão que Jesus havia pisado e que eles, agora, vinham defender; em seguida, silenciosos e graves, retomaram o caminho, com os corações transbordantes de emoção. Alano, rígido sobre os estribos, contemplava extasiado a Cidade Santa.
A entrada daquela tropa bem armada e de aspecto tão altivo, causou grande impressão nos curiosos, que se demoravam especialmente em contemplar aquele pequeno cruzado, cujos olhos felicíssimos brilhavam, num rosto de anjo, queimado pelo sol, e castigado pelos ventos do deserto.
Apenas os soldados foram aquartelados, os três comandantes dirigiram-se à corte, a prestar homenagem ao Rei Balduino.
Naquele momento, em Jerusalém, reinava um menino. Balduino IV sucedera ao pai Amaurí I, grande político e denodado3 chefe, que com as armas e com a diplomacia, enfrentara ao temível Saladino. Sua morte repentina deixava o filho de 13 anos, em face de uma situação bem confusa e ameaçadora. Não obstante, todavia, a pouca idade, o jovem herdeiro do trono era um soberano de grande valor, coisa que soube mostrar imediatamente.
Educado pelo bispo Guilherme de Tiro, um dos homens mais sábios e cultos do Oriente, seu espírito e coragem haviam-no desenvolvido maravilhosamente.
Infelizmente, o magnífico adolescente, sobre cujos ombros pesava tão grave herança, sofria de um mal horrível, tanto que na história é conhecido com o nome de "Balduino, o Leproso".
Balduino completara seu décimo quinto ano de vida, quando nossos cruzados vieram colocar-se às suas ordens. Apenas os capitães foram conduzidos à sua presença, o jovem rei teve um movimento de surpresa, ao avistar Alano, que o pai levara consigo.
— Não é costume trazer pajens à cruzada, senhor Aimery, — observou amavelmente.
— Alano não é um pajem, Majestade, mas sim meu filho.
— Seu filho?
Balduino quis saber imediatamente como o menino fora parar na Terra Santa e recebeu-o com grande amabilidade. Terminada a audiência oficial, quis demorar-se palestrando alguns instantes com ele:
— Fica, Alano! Desejo que me contes maiores particulares sobre tua fuga. Jamais me aconteceu receber combatentes de tua idade... e que, de resto, é bem próxima da minha.
Alano não se fez de rogado e soube entremear com tanta vivacidade e entusiasmo o conto de sua fuga do mosteiro onde estivera, que imediatamente conquistou a estima e o afeto do rei. Mesmo antes de terminar a narrativa, já eram bons amigos.
— Agora, que podemos falar sem testemunhas, — disse o pequeno rei, — julgo, caro Alano, que, fugindo daquela abadia, tiveste uma idéia verdadeiramente genial.
— Mas, meu pai não era desta opinião! — observou o rapaz, fazendo um gesto significativo.
— Que diz agora?
— Não me guarda rancor e acredito mesmo que esteja satisfeito por eu acompanhá-lo.
— Tudo isto é providencial: sentia profundamente a falta de um companheiro de minha idade. Excetuando o bom bispo de Tiro, os cavaleiros da corte são, às vezes, tão monótonos com suas atitudes cerimoniosas e com as disputas em que andam continuamente metidos. Eu gosto de rir! E tu?
— Oh!... imensamente!
— Muito bem! Estamos de acordo! Tomo-te a meu serviço pessoal, para que possamos, de quando em quando, entregarmo-nos à louca alegria de nossa idade! Mas, que vejo? Afirmaria que minha proposta não te agrada!
— Permite V. Majestade que eu seja sincero?
— É o que desejo antes de mais nada!
— Vim à Terra Santa para ser um guerreiro, não um cortesão!
— É este, então, todo teu desejo?
— Sim, Majestade e espero que não lhe desagrade!
— Já temia que tu também, como os outros, quisesses abandonar-me!
— Abandoná-lo? Não penso absolutamente nisto!
— Antes de mais nada preciso contar-te uma coisa! Sabes que estou doente?
— Ignorava-o completamente, sire4!
— Sabes que a enfermidade que me devora é tão grave, que só seu nome assusta aos mais corajosos? Alano, sou um leproso.
— Leproso? — murmurou o menino, enquanto, diante de seus olhos, desenhava-se nítida a visão daqueles infelizes, apoiados aos muros da cidade de Tortosa, visão que ele em vão, procurara afastar de sua mente.
— Antes de ascender ao trono, eu era um menino como tu, vigoroso e cheio de vida, amante dos jogos violentos, para os quais arrastava meus companheiros. Um dia em que, capitaneando-os, lançar-me ao assalto de uma colina rochosa, toda coberta de juncos e de espinheiros, percebi com grande desgosto, que minha tropa não me acompanhava: os meninos, na ladeira, parados, deitavam gritos de dor!
— Pois bem! — gritei. — Que vos detém?
— Ferimo-nos contra esses terríveis juncos e nossas pernas estão ensangüentadas! Doem muito!
— Observei minhas pernas dilaceradas.
— Vamos, respondi. Não sinto nada! Era verdade. A princípio, acreditaram que eu quisesse exibir-me e me açoitaram a barriga da perna com ramos de espinheiro, sem que eu sentisse coisa alguma. Quando a aventura foi contada, minha mãe ficou desolada; conhecendo esta terra, sabia ela que essa insensibilidade da pele é sinal e conseqüência da lepra em seu primeiro estágio.
Imediatamente, todos os charlatães do Oriente foram chamados para curar-me. Nenhum remédio, todavia, teve resultado: viram-se, finalmente, constrangidos a confirmar os temores de minha mãe e declarar-me incurável.
— Pobre Balduino! — exclamou espontaneamente Alano.
— Aprecio esta tua sinceridade! Despreocupado, não abandonei meus divertimentos, uma vez que, então, nada sofria. Deves porém, imaginar minha angústia ao perceber que, bem cedo, formou-se um vazio ao meu redor: temendo o contágio, a maior parte de meus companheiros abandonou a corte, sob vários pretextos. Agora que sabes tudo, Alano... farás como os outros?
— Não tema absolutamente, sire!
— Quando te vi entrar, tão alegre e confiante, uma secreta confiança fez com que tratasse de pedir a tua amizade; quando, porém, hesitante, pensei que conhecesses meu sofrimento e que houvesses arrumado qualquer desculpa para fugires como todos os outros.
— Eu não o abandonarei, sire... mas, gosto de combater!
— Por acaso, imaginas que eu fique aqui, neste palácio, quando meus barões combatem? Jamais! Tranqüiliza-te, tomaremos parte na festa e combateremos um ao lado do outro, nas linhas de frente!
— Então, estou plenamente satisfeito!
— Tomavas-me por um rei de fantasia, um boneco coroado, dado unicamente a divertimentos? Não! O Senhor Guilherme de Tiro fez de mim um homem. Não obstante minha mocidade, sei fazer valer minha vontade e eu mesmo governo! Deus sabe que em batalha não sou um maneta!
— Majestade! Espero, assim, tornar-me um cavaleiro digno de V. Majestade!
— Não um servo, mas um amigo!
Naquela mesma noite, Alano apressou-se em contar ao pai as confidencias do jovem soberano; o conde ouviu tudo, sem proferir uma só palavra, aparentemente distraindo-se e brincando com o punho da espada. Em certo momento indagou:
— Que resposta pensas dar ao rei Balduino?
— Já respondi; espero que não te desagrade; prometi ao rei ser-lhe fiel companheiro. Concordas?
— Qualquer outra resposta teria sido indigna do meu sangue! — respondeu o conde, com firme decisão. Abraçou ternamente a Alano. Mas, seu amor paterno não tardou em manifestar-se e acrescentou: "Ainda assim, filho seja prudente, pois essa doença é terrível".
— Balduino, porém, parece que não esteja sofrendo dela.
— Porque, muito enérgico, tomou a decisão de não se preocupar com ela: como não interrompeu seus divertimentos, não abandonou suas expedições militares. Desde que o pai morreu meteu-se na luta com um valor sem igual e se o reino dele deve ser curto, prometeu que será ao menos, glorioso.
Bem cedo Alano percebeu que, não obstante toda sua coragem, nem sempre Balduino conseguia dissimular o sofrimento atroz que lhe provocavam suas crises: seu heroísmo, demonstrado diante da enfermidade, foi o selo dessa inquebrantável amizade.
O jovem soberano não esperou muito para pôr em prática suas promessas; recomeçou a guerra, e, não obstante fosse um terrível suplício para ele cavalgar em certos dias, colocou-se à frente de seus soldados. Aparentemente incansável, atormentava em contínuas investidas as tropas de Saladino; sua audácia quotidianamente renovada eletrizava aos cavaleiros e arrebatava Alano: não era simples temeridade, mas destemor frio e calculado, que levava á vitória.
Acompanhado por um punhado de cavaleiros, atirava-se como um raio sobre o exército dos infiéis, obrigando-o a retrocederem ou, então, surgia repentina junto aos muros de um fortim e arrasava qualquer resistência.
O inimigo, aterrorizado, acreditava vê-lo em diversos lugares, ao mesmo tempo; pensava que estivesse no norte e ei-lo surgir no sul, com a rapidez de um órfão. Unicamente a visão desse rei menino, à frente de suas tropas, bastava para semear o pânico entre as fileiras de maometanos, filhos do profeta.
A seu lado, Alano vibrava incontidamente, brincando com ele, entre os golpes de espada; vigiava e defendia fraternalmente o rei e o riso dos dois jovens ouvia-se claro e límpido, em meio ao fragor das armas. O contato quotidiano e o perigo enfrentado juntos, havia aumentado ainda mais os liames dessa bela amizade: já não podiam viver um sem a companhia do outro. Ao lado do alegre companheiro, o jovem monarca, esquecia o mal implacável.
Certo dia, foi avisado pelos seus exploradores, que Saladino planejava uma súbita incursão contra a importante fortaleza de Ascalon; ainda que não tivesse, naquele momento, mais do que quatrocentos homens à disposição, o jovem rei não hesitou um só momento. Reunindo imediatamente aquele exército insignificante, conduzi-o tão rapidamente, que chegou a Ascalon muito antes de Saladino. Apenas entrara na cidade, viu-se sitiado pelos vinte mil homens do exército egípcio do Sultão.
Certo da vitória, Saladino deixou aí alguns batalhões para terminarem o assédio e marchou sobre Jerusalém, que naquele momento se encontrava desguarnecida. Quando seu exército atravessava tranqüilamente um córrego nos arredores de Montgisard, para seu grande espanto, viu repentinamente surgir-lhe em frente o pequeno destacamento cristão, que ele acreditava estivesse ainda encerrado nos muros da cidade.
Com uma manobra genial, Balduino, que se apercebera da saída das tropas inimigas, esgueirara-se para fora
A batalha de Montgisard e o número de soldados são históricos. Dos muros com os seus, e cortando o caminho a Saladino, atingira-o repentinamente. Foi um ataque furioso e heróico. Os esquadrões francos combateram com tal vigor, que bem cedo, o grande sultão, com os milhares de Turcos, Árabes e Egípcios, recuou e fugiu diante dos quatrocentos cavaleiros do rei leproso, abandonando um enorme despojo.
O pequeno exército franco reentrou triunfante em Jerusalém, mas não para dormir sobre os louros. Ainda que não tendo consigo o forte de suas tropas, que combatiam em outros locais,. Balduino voltou a atacar de surpresa, o sultão, com seu punhado de heróis. Mas infelizmente, desta vez, a tática não teve o bom êxito esperado; depois de alguns momentos de confusão, Selim, o melhor lugar-tenente de Saladino, que comandava as forças muçulmanas, pôde recuperar o domínio da situação, e lançou-as num violento contra-ataque.
Como de costume, ao lado de seu amado rei, Alano combatia como um leão, dando-lhe o máximo de proteção; de repente, um mouro de enorme estatura, surgiu atrás de Balduino, empenhado na luta. Sem hesitar um instante, Alano lançou-se entre ele e o rei; mais ágil e mais rápido que o inimigo, conseguiu atingi-lo mortalmente, mas não sem ter recebido um terrível golpe de maça, que o atirou, sem sentidos, sobre o pescoço do animal.
No momento mais crítico da batalha, para grande espanto de Balduino, o combate tornou-se menos violento; um movimento de hesitação surgiu entre os adversários, fato que, como bom general, ele aproveitou para libertar-se e sabiamente ordenar a retirada. Fato estranho, o exército de Selim não os perseguiu; ao contrário, os cavaleiros otomanos abandonaram o campo de batalha e desapareceram atrás das dunas de areia, em direção ao deserto.
Imensamente feliz por ter fugido a um desastre que parecia inevitável, Balduino não tratou de segui-los, ocupando-se, antes, em reunir, ao seu redor, os cavaleiros dispersos.
Só então apercebeu-se do desaparecimento de Alano, que ele perdera de vista, no momento mais perigoso do combate. Apreensivo e triste, percorreu o campo de batalha, a fim de procurá-lo entre os mortos ou entre os feridos.
Em vão! O corpo do jovem cavaleiro não foi encontrado em nenhum lugar; apenas foi descoberta sua espada ao lado do cadáver de um gigantesco; infiel. Como a noite já cairá, Balduino, que, com seus homens não podia perseguir o adversário, viu-se forçado a regressar a Jerusalém, sem o seu pequeno amigo e levando a morte na alma.
Capítulo 3
PRISIONEIRO DE INFIÉIS
Recuperando-se de seu longo desmaiou, Alano encontrou-se solidamente amarrado à sela de seu próprio cavalo, que velozmente galopava em meio a uma numerosa escolta de cavaleiros turcos. A desenfreada carreira durou longo tempo e não terminou senão quando a noite já ia alta, atingido o campo dos infiéis.
A chegada do jovem prisioneiro transformara-se num grande acontecimento e foi recebida, no acampamento turco, com manifestações de grande alegria. Apenas chegados, o jovem foi desamarrado da sela; em seguida um cavaleiro apressou-se a ajudá-lo a descer do cavalo, enquanto alguns servos, com sinais de profundo respeito lhe trariam água quente e perfumada, a fim de limpar-lhe o sangue coagulado que ficara no rosto e nas mãos. Terminada esta recepção, foi conduzido, com muitas mesuras para uma tenda suntuosa, revestida de sedas multicores e cujo solo estava coberto com espessos tapetes de lã.
Quando ele se aproximou, um homem esplendidamente vestido, deitado sobre almofadas ergueu-se com atitudes muito educadas, e convidou-o a assentar-se em sua frente, sobre um divã. Os escravos trouxeram imediatamente diversas bebidas e alimentos a que nosso jovem herói não hesitou em prestar as mais sinceras homenagens, muito surpreendido de ser tratado dessa forma, quando aguardara, de parte dos inimigos, insultos e humilhações.
Ao concluir a refeição, a um sinal do seu anfitrião, que o observava com curiosidade, os servos desapareceram, ficando apenas um intérprete e dois guardas armados até aos dentes, imóveis como estátuas, nos dois lados do ingresso da tenda.
O intérprete, então, deu início à conversação:
— Nobre Ahmed, irmão e lugar-tenente de nosso Emir Selim, apresenta-vos suas saudações e votos de boas vindas ao nosso meio. Lamenta que os riscos da guerra vos hajam tornado prisioneiro.
— Lamento-o muito mais do que ele, — respondeu prontamente o jovem — mas, de qualquer forma, sou muito grato pela recepção, que, aliás, não compreendi o motivo.
— Meu senhor sabe reconhecer a verdadeira coragem, também entre os inimigos.
— Pede-lhe o que quer fazer comigo!
— Tratará de devolver-vos a liberdade apenas chegardes a um entendimento com ele, no tocante à soma para ser entregue como resgate e as condições de paz a serem aceitas.
— Não cabe a mim, de forma alguma, tratar da paz.
— É verdade! Meu senhor espera que a paz que vos imporá, não seja considerada muito dura; ele deseja deixar bem clara a grande vantagem que a captura de vossa pessoa lhe proporciona.
— Reduzida vantagem para ele que, ademais, assim o espero, meus companheiros não tardarão a destruir.
— Não espereis nada, nobre senhor: sabemos que, de momento, não tendes à disposição que um reduzido número de soldados, diminuídos, aliás, via batalha travada hoje, enquanto nós possuímos forças consideráveis.
— O valor de nossos cavaleiros supre largamente seu escasso número.
— No entanto, o mais aconselhável é concluir imediatamente um tratado de paz.
— Repito que não tenho autoridade alguma para tanto.
— Desde o início da campanha, Vossa Majestade nos tem tomado algumas fortalezas, — com um valor, aliás, que meu senhor rende as mais sinceras homenagens.
Majestade!... Bruscamente Alano compreendeu o grave engano em que incorriam a respeito de sua pessoa: enganados certamente pela sua estatura, os soldados tomaram-no pelo Rei Balduino, exultando e felicitando-se pela sua captura. Isto explicava a precipitação com que haviam fugido com ele, levando-o longe do campo de batalha; bem como a alegria de sua chegada e todas as cortesias que usavam com ele!
Seus olhos iluminaram-se de felicidade, pois percebia que seu caro rei havia escapado à sanha dos inimigos. Alano, que não era nenhum diplomata, não quis desfrutar ainda, por própria conta, o engano dos adversários. Não pôde conter o desejo de vê-los confusos, reconhecendo o equívoco, trazendo-lhes assim uma das mais amargas decepções:
— A quem, portanto, acredita estar dirigindo-se o lugar-tenente Ahmed? — perguntou.
— A... A Vossa Majestade... A Balduino IV!
— Exatamente o que eu imaginava! — respondeu dando boas gargalhadas. — O rei Balduino não é daqueles que se deixam aprisionar por qualquer um.
— Que deseja dizer com isso?
— Não sou o rei; — respondeu erguendo-se. — Sou apenas o escudeiro do rei, imensamente honrado, em minha desventura, de ter sido tomado pelo próprio rei e de ter-lhe, assim, certamente, poupado a prisão.
Quando o intérprete traduziu estas palavras, Ahmed teve um pequeno sobressalto — muito menos, porém, do que o jovem esperava! — Logo recuperou seu sorriso.
— É inútil fingir, majestade! Não nos deixaremos enganar com seu estratagema.
— Podeis não acreditar-me! Afinal, tendes essa liberdade! Ao menos vos avisei, lealmente!
— Não! Nós o vimos combater com a coragem de um leão, sire!
— Obrigado pela homenagem que tributais a mim e a sua Majestade. Entre nós, a coragem é coisa comum e nosso rei rodeou-se de um exército digno dele. Experimentastes bem seu valor em Montgisard e em mil outras circunstâncias. Também hoje, ainda que não passássemos de um punhado de homens, a quantos dos vossos não fizemos tombar...
Enquanto Ahmed hesitava ainda, um mensageiro, coberto de pó, penetrou na tenda, inclinou-se a poucos passos e entregou-lhe uma mensagem. O príncipe fez saltar o sinete e leu:
"Meu desastrado irmão:
Entendi, através do teu mensageiro, que estás convicto de haver aprisionado o rei Balduino. Seria realmente uma noticia auspiciosa e seria eu o primeiro a cumprimentar-te, se não fosse totalmente falsa. Ainda hoje de manhã vi, com meus próprios olhos, o rei Balduino e seus cavaleiros pôr em fuga a uma de nossas patrulhas, no caminho de Jerusalém.
Não havia, portanto, necessidade de, transgredindo formalmente minhas ordens, que arranjasses esse novo pretexto para fugir, mais uma vez, ao combate.
Se algum prisioneiro se fez passar pelo rei, não passa de um vulgar impostor; e se, como imagino, o erro foi teu, nos fizeste perder mais uma batalha.
Não tenho nenhum motivo para felicitar-te.
Selim, Emir".
Ao ler esta mensagem, o rosto de Selim transformou-se: o triunfo cedeu lugar à cólera, seus olhos iluminaram-se de ódio e, erguendo-se de um pulo, atirou-se contra Alano e esbofeteou-o brutalmente.
Surpreso com a agressão, que não aguardava de forma alguma, não teve tempo para desviar-se do golpe, mas, reagindo prontamente, atracou-se com o adversário. Felizmente para este último, as sentinelas, que não o perdiam de vista, interpuseram-se; imobilizaram o prisioneiro e logo mais, depois de amarrado solidamente, levaram-no embora.
Instantes após encontrava-se atirado ao chão de uma tenda fétida, aguardando que sua sorte fosse decidida. Pela meia-noite, alguns cavaleiros apanharam-no, deitaram-no de atravessado numa sela e em seguida a coluna partiu. A cavalgada, que lhe causava profundo mal-estar, durou quase toda a noite: finalmente a escolta parou numa garganta rochosa, onde levantou acampamento.
Arrancado bruscamente da sela, o jovem foi atirado a um desvão da rocha, sentia-se devorado por uma sede tão forte, que seus lábios ressequidos e sua garganta seca seriam incapazes de pronunciar uma só palavra. Não obstante a fadiga, não conseguia conciliar o sono, pela febre, provocada pelas feridas e cordas que o amarravam. Em sua cabeça atordoada, apenas um pensamento lancinantemente se repetia:
— Prisioneiro! Sou um prisioneiro! Um vencido!...
Deve ter desmaiado por alguns instantes, pois que, repentinamente, uma mão agarrou-se á dele, em seguida foi-lhe aproximado dos lábios algo que cheirava a couro e a suor. Ainda que tépida, a água parecia-lhe deliciosa. Quando porém, quis agradecer a seu benfeitor, este já desaparecera.
Ao despontar do dia, um carcereiro trouxe-lhe um punhado de tâmaras e abriu um pouco as algemas que lhe estreitavam os pulsos; terminada a refeição, deram-lhe um porongo cheio de leite: em seguida, apertaram novamente as algemas e deixaram-no. Um pouco mais tarde dois guardas vieram buscar o jovem prisioneiro, a fim de conduzi-lo â presença de Ahmed, o qual tinha a seu lado um personagem estranho, a quem o príncipe demonstrava uma deferência toda especial, um pouco temerosa, porém. Era um homem de alta estatura, de ombros largos e rosto de feições nobres, quase negro, onde dois olhos cintilavam perscrutadores. Esse homem adiantou-se para Alano:
— Que queres de mim? — disse o menino, cheio de desconfiança.
— Venho como amigo, filho, eu não busco que o teu bem!
— Então, poderias libertar-me!
— Isto ainda não está em meu poder!
— Quem és, então?
— Meu nome, com que me chamam aqui, é Omar Ben Ali. Mas, isto não tem importância! É bom que saibas que os astros não têm segredos para mim; conheço-lhes a linguagem e prometem-te um futuro brilhante, se...
— Não creio nem no influxo dos astros, nem nos adivinhos nem em presságios.
— Pois, cometes um grande erro. Ouve ao menos o que tenho para dizer-te. O príncipe Ahmed aprecia-te muito.
— É fácil de percebê-lo! — respondeu Alano, mostrando os pulsos inchados sob as algemas.
— Admira muito a tua coragem e te ama!
— Há só uma maneira para demonstrar-me afeto: é dar-me imediatamente a liberdade.
— Terás inteira liberdade, se aceitares viver em nosso meio.
— Jurei ao meu rei de combater até à morte!
— À tua idade, um juramento não obriga. Ahmed te tratará como a um filho, mas impõe uma condição.
— Qual?
— Uma coisa muito fácil: basta que tu troques de religião.
— Se o que estás me propondo consiste apenas nisso, não percas o teu tempo.
— Pensa bem! Ahmed te ama realmente, mas não admite que a vontade dele venha a ser afrontada: poderia vingar-se.
— Pois, não o temo: sou cristão e pretendo permanecer cristão até à morte!
— Bela religião esta que te promete apenas humilhações e sofrimentos, acompanhando um Deus crucificado. Ofereço-te algo de muito melhor! Deixa tudo para mim!
— Morrendo por Cristo, participarei de sua glória... É tudo quanto desejo!
O mago sacudiu os ombros, com um sorriso de desprezo; em seguida, pousando a mão sobre o ombro de Alano, com um sinal, fez-lhe cair as algemas, que o mantinham preso e levou-o consigo.
Uma das paredes da garganta rochosa era um penhasco nu, no qual, a um gesto do mago, se abriu uma estreita tenda, suficientemente larga, porém, para deixá-los passar; apenas entraram, a fenda ampliou-se rapidamente, formando uma grande e espaçosa gruta. Quando os olhos do menino se habituaram à semi-escuridão, apercebeu-se que estava decorada com tecidos riquíssimos e mobiliada com bom gosto: divãs, pequenas mesas redondas, mesas baixas de madeira rosa, almofadas de seda multicor, tapetes suntuosos... um verdadeiro palácio!
— Observa bem, jovem estrangeiro, — disse o mago, — estou para revelar-te coisas que até hoje jamais imaginaste e que te ajudarão, sem dúvida alguma, a compreender melhor teus interesses. Antes de qualquer coisa, trata de saborear estas frutas...
— Não tenho fome. . .
— Vamos! Come, sem temor algum; não contém nem venenos e nem sortilégios...
Enquanto Alano aproveitava a deliciosa merenda que lhe era servida, o mago continuou a interrogá-lo cortesmente:
— De certo vieste ao Oriente a fim de fazer fortuna!
— Engana-te! Até hoje não pensei nisto!
— Tuas riquezas no país dos francos devem ser, então, bem grandes!
— Nunca me preocupei com isso! Meu pai vendeu a maior parte de seus bens para equipar seu exército.
— Alá!... Que farás, porém, quando voltares a tua terra?
— Deus providenciará!
O mago resmungou qualquer coisa e sacudiu os ombros.
— Ainda és muito ingênuo, meu jovem guerreiro, para acreditar na munificência5 de um Deus que não pôde arrancar-te de nossas mãos!
— Se tivesse sido da vontade dele, tê-lo-ia feito! Não duvides!
— De que maneira um Deus nascido sobre um punhado de palha poderia enriqueçer-te? Um Deus que trabalhava de marceneiro! Tenho coisas muito melhores para oferecer-te! Observa!
Conduziu Alano para uma mesa baixa, sobre a qual se apoiava um espelho de prata pura, cuidadosamente polido. Em seguida, pousando a mão ao ombro do menino, constrangiu-o delicadamente a inclinar-se sobre a placa brilhante.
Como se um golpe de hálito o atingisse, o espelho tornou-se opaco, voltando, poucos instantes depois, ao seu primitivo brilho. Através do lúcido metal, Alano viu desenhar-se um mundo desconhecido; a princípio, confusamente, e depois cada vez mais precioso e nítido.
Imensas manadas de ovelhas e de camelos atravessavam idílicas planícies; em prados majestosos galopavam com impetuosa vivacidade cavalos de longas crinas; em seguida, mostraram-se imensos oásis, onde centenas de escravos atarefavam-se em colher grandes cestos de tâmaras; logo mais, surgiu um porto em que, em meio a nuvens de vapores exóticos, carregavam-se preciosas quantidades de canela, baunilha, pimenta e todas as especiarias tão procuradas e estimadas na Europa.
Algumas caravanas provinham dos confins do deserto, carregando as mais belas sedas da índia e da China. Negros, suntuosamente trajados, traziam no pulso falcões encarapuçados ou papagaios de penas multicores; alguns escravos adornavam mesas de ébano e de madeiras raras, maravilhosos vasos de prata e de ouro, delicadamente trabalhados; ourives estavam atarefados em incrustar rubis, esmeraldas, topázios, berilos, turquesas, opalas, águas marinhas; lapidavam diamantes de grandes proporções e teciam colares de pérolas.
Deslumbrado com a visão de tais tesouros, Alano escutou, como se viesse de um sonho, a voz do mago, que lhe sussurrava ao ouvido:
— Tudo isto será teu... tudo teu! Quero que seja de tua propriedade, se consentires em obedecer-me.
Extasiado por um instante na contemplação de todas essas coisas, Alano libertou-se da mão que lhe apertava o ombro, com um esforço respondeu:
— Fica com as tuas maravilhas, operador de prodígios! Amo ainda mais ao meu Deus, deitado sobre a palha!
— Rapaz! Não falarás assim mais tarde!
— Desejo apenas que Deus me conserve assim por toda a vida!
— Também preferes as humilhações e o escárnio de teus inimigos e dos poderosos? Vamos! Tenho ainda outras coisas, bem melhores, para propor-te! Observa...
Sobre uma das mesas estava depositada uma bandeja de ouro e lançava raios na penumbra; o mago apoiou a mão na nuca de Alano, que se viu forçado a debruçar-se sobre o objeto: nos reflexos da superfície dourada desenhou-se outro espetáculo.
Desta vez descortinou uma sala magnificamente ornada e no meio dela mesas suntuosas, cobertas de flores maravilhosas, de perfumes estonteantes, e com baixelas de cristal e alimentos raros. Acompanhados por guitarras, rabecas, violões e outros instrumentos, muitos jovens convidados, repetiam alegres canções, guiados por um mancebo de extraordinária beleza, para quem se dirigiam as aclamações e os aplausos daquela assembléia. A cada estrofe, por ele cantada, com voz quente e insinuante, grandes eram os aplausos que o honravam:
— "Viva Alano, o gracioso rei de nossas festas!"
Com grande surpresa, ele reconheceu a si mesmo naquele rei, cheio de glória. Eram para ele que se dirigiam as palavras de exaltação e de aplausos sem fim. Cada qual louvava seu gosto-perfeito; a elegância de seus trajes; a flexibilidade de seu corpo perfeito; a beleza arrebatadora das estrofes de seus poemas; o encanto de sua voz.
Ao seu redor, as mais lindas moças disputavam seus favores, suas palavras e até o mínimo de seus sorrisos, voltando para ele, como uma ardente-homenagem de amor, seus rostos fascinantes.
— Toda esta felicidade, todo esse êxtase... toda essa beleza... que dizes? Tudo pode ser teu. Concordas?
Com novo esforço, Alano conseguiu subtrair-se ao novo espetáculo, que, malgrado seu, encantava-o:
— Que significa isso para mim? — murmurou.
— Significa muito! É próprio da juventude amar a glória e a felicidade!
— Deixa-me!
— Insensato! Para onde te conduzirá a tua ridícula obstinação? Que vantagem trouxe ao teu mestre todo o seu poder, que uma simples cruz destruiu? Tenho coisas ainda melhores. Uma promessa que estás em condições de apreciar! Olha cavaleiro, olha!
Alano, em vão, tentou libertar-se: o mago apanhara de um pequeno cofre um diamante de fabulosas dimensões e cujas arestas projetavam luzes multicores.
Segurando entre as mãos a pedra maravilhosa, colocou-a sob os olhos do rapaz, fazendo-a girar lentamente.
Deslumbrado, o adolescente passou a distinguir um novo espetáculo em cada uma das facetas, que sucessivamente iam passando sob seus olhares. Surgiu um acampamento em que, à luz da manhã, cavaleiros apanhavam seus corcéis para seguir um jovem chefe, cheio de ardor; fossos eram superados com uma canção nos lábios; muros imensos tomados de assalto; o êxtase do triunfo; fileiras incontáveis de prisioneiros acorrentados; príncipes e reis que se inclinavam diante do Conquistador e lhe ofereciam, como homenagem, a própria coroa; grandes multidões de feudatários que se punham ao serviço do Dominador do Mundo.
De todas as bocas explodiam grandes aclamações:
— Salve! Imperador do Universo! Quando Alano conseguiu distinguir com nitidez as feições do vencedor, mais uma vez surpreendeu-se a ver seu próprio rosto. Estava, portanto, destinado a tanta glória?
— Imperador do Universo! Sussurrava-lhe ao ouvido a voz tentado ia! Rei do Mundo! Se o quiseres, sê-lo-ás! És jovem, valoroso, ambicioso, poderás facilmente dominar a face da terra e impor a tua vontade. Terás, ao mesmo tempo, riquezas, glórias e poder!
Hipnotizado por esse espetáculo, que ia de encontro aos mais belos sonhos de sua vida, o jovem, contrariamente à sua vontade, nem conseguia respirar.
— Se quiseres! — repetia o mago com voz insinuante. — Para que tudo isto se torne realidade, basta que pises, ainda que por um momento, esta...
Sobre o tapete de lã, de longos pelos, cobrindo o solo, Alano viu brilhar uma pequena cruz de metal: inclinou-se bruscamente, recolheu-a e apertou-a contra o peito, amorosamente.
Com esta cruz vencerei o mundo! — disse pondo-a sobre o coração.
Rangendo os dentes, o mago jogou o diamante ao chão, onde explodiu com estrondo semelhante a um trovão: um furacão de inaudita violência varreu a gruta, hurrando como uma matilha de cães enfurecidos; as paredes vacilaram e trevas espessas caíram sobre todas as coisas.
Alano levou aos lábios o crucifixo que havia ajuntado do chão e no mesmo instante tudo voltou à calma. O jovem encontrou-se sozinho, com as mãos amarradas, deitado num canto da gruta, onde se infiltrava uma luz incerta: o mago desaparecera sem deixar qualquer vestígio.
— Devo ter sonhado, sem dúvida! — disse o rapaz.
Estava ainda atordoado pela série de visões que haviam sucedido diante dos seus olhos, quando se aproximaram dois soldados; tiraram-lhe as correntes que lhe amarravam os pés e empurraram-no para fora. Para poder manter-se erguido e não cair, Alano teve que recorrer a toda sua força de vontade, tanto seus membros estavam entorpecidos e incapazes de qualquer movimento. Vacilando, viu-se novamente introduzido na tenda de Ahmed, a vista do cruel inimigo despertou novamente seu espírito de luta: tomou uma posição ereta e fixou o sarraceno nos olhos.
— És o escudeiro do rei e, certamente, amigo dele, — Ahmed iniciou com fingida cortesia, — deves, por tanto, conhecer muitos segredos da vida dele.
— É verdade, S. Majestade Balduino dignou-se fazer de mim um amigo! Sinto-me orgulhoso da confiança que deposita em mim!
— Então, naturalmente, deves estar a par dos projetos que preparava contra mim.
— Hum conheço-o muito bem: combater o lugar-tenente Ahmed sem quartel e sem descanso!
— Naturalmente, mas de que lado virá o próximo ataque?
— Não sei e mesmo que o soubesse jamais o contaria!
Ahmed não sentiu qualquer admiração pela resposta franca e sincera. Irritou-se.
— Dêm-lhe um bofetão na boca, a fim de castigá-lo por essa inaudita insolência!
Um escravo adiantou-se e bateu com tal violência nos lábios de Alano, que o sangue desceu-lhe aos borbotões pelo peito. Ainda assim, Alano não deixou de contemplar altivamente o adversário, desafiando-o com o olhar.
— És cristão?
— Deverias estar mais bem informado. Naturalmente, que sou cristão. E orgulho-me!
— Dêm-lhe imediatamente dez golpes de açoite!
Um mouro retirou da cinta uma dura correia e erguendo-a no ar, deixou-a cair dez vezes nas costas do jovem, sem arrancar-lhe, porém, uma só lágrima.
Considerando a tua jovem idade, dar-te-ei a liberdade, ainda que renuncies à tua religião, por um só instante.
— Não renunciarei nem por um segundo!
— Nesse caso, serás reduzido à escravidão! Escolhe!
— Sou cristão!
Levaram-no embora e durante três dias foi tratado com rigor insensato: assinalaram-lhe pesadas tarefas, que deveria executar até ao anoitecer, sob um sol causticante, maltratado pelos açoites do feitor e recebendo uma alimentação infecta e insuficiente. Todos os dias devia apresentar-se a Ahmed, onde lhe eram formuladas as mesmas propostas, a que ele, com incansável decisão, respondia negativamente.
À noite, porém, quando jazia acorrentado, alguém, silenciosamente aproximava-se e medicava-lhe cuidadosamente as feridas. Já no primeiro dia Alano, que entendia um pouco de árabe, compreendera que Ahmed não era estimado e nem apreciado pelos seus soldados e oficiais: acusavam-no de ser um comandante brutal e covarde, a tal ponto, que, no momento de enfrentar o inimigo, invariavelmente ordenava a retirada. Se o combate não pudesse ser evitado, encontrava mil desculpas para fazer avançar suas tropas, enquanto ele ficava na retaguarda, longe de qualquer perigo.
Certa manhã, em que o jovem fora açoitado com maior violência e mais duramente que de costume, Ahmed fez questão de ajuntar à crueldade o sarcasmo:
— Onde se escondem os francos, os teus companheiros e especialmente o tão valoroso rei Balduino, que viriam arrancar-te de minhas mãos?
O rapaz ergueu-se altivamente e em tom resoluto, que deixava transparecer um grande desprezo, respondeu:
— Se tu desejasses verdadeiramente encontrá-los, bastaria que não fugisses!
Ahmed ergueu-se de um pulo, apanhou o açoite que estava nas mãos de um escravo negro e começou ele mesmo, a bater alucinadamente em Alano:
— Teus amigos são uns covardes! — berrava, espumando de raiva.
— Covarde, Ahmed, entre nós, é aquele que ataca um inimigo indefeso!
Já fora de si pelo ódio, Ahmed passou a mão na cimitarra e não teria hesitado assassinar o jovem, se um oficial, que ele não vira entrar e que desde alguns momentos assistia à cena, não se houvesse colocado entre o carrasco e a vítima. À sua vista, Ahmed recuou e mostrou-se perturbado:
— Príncipe — falou o recém-chegado, com voz glacial, — Venho, como sabes da parte de teu irmão, o emir, que está realmente surpreso de que ainda não te hajas reunido ao seu exército, depois da fuga do outro dia.
— Era minha intenção pôr-me em caminho ainda hoje!
— Tive o desprazer de constatar também, com meus próprios olhos que, contrariando as ordens do emir, continuas a maltratar os teus prisioneiros de guerra e também os condenas a morte. Afinal, não sabes que Selim se reserva expressamente estas condenações?
— É que... este traste acaba de insultar gravemente ao Profeta...
— Nada, nas respostas que eu ouvi, pode justificar um julgamento tão severo!...
— Não ouviste. . .
— Selim julgará o fato. De agora em diante, esse acusado passa para minha guarda pessoal. Agora, em nome do emir, ordeno-te que te concentres em tua fortaleza e aguardes aí novas ordens.
Pondo a mão sobre o ombro de Alano, levou-o consigo, depois de ter-lhe solto as mãos, sem que Ahmed, lívido de cólera, ousasse pronunciar uma só palavra.
— Muito obrigado por ter-me defendido! — disse o jovem, saindo da tenda. — Diga-me, agora, porque me protegeu!
— Devido à tua juventude e ao teu valor; eu te vi de armas em punho na batalha onde foste aprisionado; admirei, há poucos instantes, a força de espírito com que suportaste os maus tratos. De resto, tive ordens expressas de impedir as atrocidades que Ahmed seguidamente comete.
— Pensa que o emir vai libertar-me?
— Não o creio! É pouco provável!
— Então, com que finalidade leva-me de um tirano a outro?
— Não temas! Selim em nada se parece ao irmão: é tão humano e corajoso, quanto o outro é cruel e covarde. Podes crer que ele não mostra sua coragem, atormentando a crianças. Vamos! Quero que cuidem de tuas feridas.
— Obrigado!
— Quero que me prometas, não tentarás a fuga!
— Pede-me demais: não desejo outra coisa!
— Promete-me, ao menos, de que não fugirás nesta noite, isto ao menos, me deves!
— Então, assim seja! Tem a minha palavra de cavaleiro.
— Tenho plena e absoluta confiança em ti; és, portanto, absolutamente livre e poderás locomover-te à vontade no acampamento, até que eu te procure amanhã. Permite, porém, que te dê um conselho: fica na tenda que te será entregue, pois desconfio que Ahmed queira vingar-se. Um acidente pode ocorrer em poucos instantes.
— Dê-me armas e eu não o temerei!
— Lamento muito, mas não posso satisfazer teu desejo! Não aceites nem comida nem bebida, a não ser do escravo que vou indicar-te.
— Teme que Ahmed me envenene?
— Pouco importa! Obedece!
A um sinal do oficial, aproximou-se um velho escravo que examinou as chagas de Alano e as tratou com um bálsamo, que quase instantaneamente aplacou o sofrimento. Em seguida, trouxe-lhe uma excelente refeição e depois de Alano alimentar-se fartamente, fê-lo deitar numa tenda limpa e confortável.
Capítulo 4
SELIM, O EMIR
Alano passou uma noite tranqüila, um sono restaurador, pois o escravo misturara ao alimento uma droga medicinal, de alto poder reconstituinte.
De manhã, bem cedo, o oficial que o havia arrancado das mãos de Ahmed, veio procurá-lo e requisitou para ele um cavalo, que foi concedido com indisfarçável má vontade!
Grande foi a alegria do jovem ao ver que o animal, que lhe fora entregue, era o seu fiel Galará, que os soldados de Selim não haviam conseguido cavalgar.
Não obstante a febre, que ainda o enfraquecia e a vigilância dos guardas, o jovem apreciou bastante a cavalgada. Em pequenas etapas, foi conduzido, aos pés de um fortim, empoleirado sobre montanhas a pique, em lugar selvagem. Aos pés da fortaleza, presas à rocha, amontoavam-se as casas de um pequeno povoado, circundado por verdejantes jardins.
Ao soar de uma trombeta, as portas se abriram e o jovem prisioneiro foi levado, através de pátios e galerias, a um pequeno quarto, cuja única janela estava guarnecida de sólidas e grossas barras de ferro. Um divã, alguns travesseiros de seda e uma pequena mesa, constituíam toda a mobília. O velho escravo, do dia anterior, reapareceu, examinou as ataduras, e deu-lhe uma bebida amarga, que imediatamente o fez adormecer.
Na manhã seguinte, acordou ágil e bem disposto; saboreou com grande apetite a refeição, que encontrou pronta à cabeceira, e aguardou pacientemente o momento de comparecer à presença do emir.
Finalmente, este o recebeu numa sala, de modestas dimensões, mas de encantadora arquitetura e mobiliada com gosto refinado. Selim, o melhor lugar-tenente de Saladino, era, ao mesmo tempo, um homem de coração e de nobreza de caráter.
Acolheu com grande bondade o jovem prisioneiro, de quem tivera tantas e tão boas informações. De resto, desde o primeiro olhar, Alano conquistou-o, pois mantivera uma atitude digna, não obstante as roupas aos pedaços e o rosto emaciado pelo sofrimento.
— Contaram-me — falou o emir em língua franca, — que mataste muitos de nossos cavaleiros.
— Em combate nobre e leal, senhor emir.
— Sei. Não temes, portanto, a morte?
— Um verdadeiro cavaleiro deve encará-la face a face e permanecer sempre pronto. Muito mais temo a desonra!
— Sinto-me honrado em poder tributar aos francos, pelo seu heroísmo, minha homenagem. Dize-me, porém: o exército franco já se encontra tão reduzido no tocante a homens, que deve recorrer ao recrutamento de meninos?
— Nosso amado rei Balduino, também é um menino e não obstante isso os seus guerreiros, senhor emir, aprenderam a temê-lo.
— Por um dever de lealdade, devo admiti-lo.
— Somos todos da mesma tempera, senhor: nossas crianças estão dominadas por tal entusiasmo, que impacientemente aguardam a idade viril, a fim de poderem ajudar seus pais, nas lides de armas.
— Vejo que não esperaste. Que farias de tua liberdade, se me aprouvesse conceder-te?
Alano tomou uma posição altiva, de olhos esfuziantes:
— Partiria imediatamente à procura do exército franco, para colocar-me novamente ao serviço de meu rei.
Selim contemplou-o longamente, com olhos semicerrados, e depois continuou:
— É exatamente esta a resposta que aguardava de ti, mas não penso, de forma alguma, restituir aos meus inimigos uma ajuda tão valiosa: quero que assumas o compromisso de não fugir. Se assim o fizeres, deixar-te-ei plena liberdade de movimento.
— Ainda que, como alternativa, deva ser atirado a mais profunda masmorra estou firmemente decidido a aproveitar o melhor possível, a primeira oportunidade que me surgir, para fugir.
Longe de irritar-se com estas respostas altivas, Selim parecia satisfeito com elas:
— Muito me agradas, meu jovem cavaleiro: autorizo-te, portanto, a andar livremente dentro dos limites do fortim, e seus jardins. Os muros são altos e as portas fielmente vigiadas, para que as transponhas. De resto, tenho a intenção de tratar-te muito mais como amigo, do que como prisioneiro.
—Agradeço-lhe imensamente, senhor. Se algum dia as alternativas da guerra o submetessem à minha discrição, terei imenso prazer em recordar sua benevolência.
Inclinou-se e, de cabeça erguida afastou-se, enquanto o emir o acompanhava com olhar.
— Admiro profundamente a esse pequenino homenzinho! — disse ao oficial que estava ao seu lado. — Infelizmente os céus não quiseram dar-me um filho como ele! Ai de quem lhe fizer algo! Desejo, porém, que seja vigiado dia e noite! És o responsável nessa vigilância. Vida por vida se ele fugir.
Apenas em liberdade, Alano começou a inspecionar cuidadosamente a fortaleza, que devia servir-lhe de prisão, não tardou a chegar a conclusão de que todas saídas eram estreitamente vigiadas e que os muros, na realidade, não podiam ser escalados.
Passaram-se os dias. Muitas vezes o emir chamava o jovem prisioneiro e passava alguns instantes palestrando com ele.
— Se aceitasses ser meu filho, — disse-lhe bruscamente, um dia — herdarias meu reino.
— Minha fé vale muito mais do que todos os reinos!
— Sei! Deve ser muito bonita e muito nobre, para que tu a sigas tão fielmente!
— O senhor não a conhece?
— Muito pouco.
— Gostaria que lhe contasse alguma coisa?
— Sim, gostaria muito, pois busco a verdade. Não te sentes muito infeliz, em nosso meio?
— Embora a gaiola seja de ouro, jamais o pássaro esquece que tem asas!
A primavera chegou, e Alano não conseguira nenhuma oportunidade de evasão. Selim era ativo e sua fortaleza extremamente policiada.
Os jardins, com a chegada de nova estação, retomaram vida, com extraordinária exuberância; os rebentos das amendoeiras, dos pessegueiros e das cerejeiras abriram-se e as árvores revestiram-se de pétalas brancas e rosas; nos prados e nos bosques, os açafrões, os junquilhos e os narcisos pareciam entretidos numa disputa quem melhor se coloria; em seguida os canteiros cobriram-se de cores vivazes; todo o jardim sonorizou-se com novos ninhos e canções. O límpido regato saltitava em seu leito coberto de seixos multicores e entre os ciprestes os jatos de água, da fontezinha tombavam como pérolas iridescentes na piscina de mármore, em cujo bordo pousavam pombas, num contínuo rufar de asas brancas.
Mais do que nunca, nesse cenário paradisíaco, Alano sentia o peso da prisão. O incipiente sonho de glória e de amizade, contrabalançava o interesse de iluminar a alma benévola de Selim, de quem apreciava a bondade e a retidão.
Para distrair-se um pouco, ia às estrebarias, fazia selar Galará e galopava pelos pátios e jardins,
Um dia, em que se preparava para montar, descobriu, na janela do palácio o rostinho de uma graciosa menina, que o contemplava com interesse mal dissimulado. Tocado um pouco pela vaidade infantil, saltou à sela e fez com o cavalo uma série de passos, complicados, sob o olhar admirado e inquieto da linda expectadora, sem perceber, entretanto, que de outra janela, também o emir o contemplava. Em certo momento surgiu, à entrada do pátio de honra, um jovem cavaleiro mouro, montando um maravilhoso cavalo árabe, puro sangue; aproximou-se de Alano e, saudando-o com altiva cortesia, desafiou-o para uma corrida.
O jovem cruzado aceitou o desafio. Um pouco mais leve que Galará, o cavalo do mouro superou-o, em pouco, no tocante à velocidade; mas, quando se tratou de saltar obstáculos, o cristão deixou longe seu competidor.
Depois da vitória, erguendo os olhos para a janela onde se encontrava apoiada sua admiradora, viu-se aplaudido por um gesto gentil, agradecido, ele vermelho de satisfação, inclinou-se graciosamente.
No dia seguinte, o mouro voltou propondo-lhe amansar dois magníficos potros árabes, persuadido de que a simples vista daqueles animais caprichosos, teria afastado o cruzado da experiência. Enganava-se redondamente. Alano entusiasmado aceitou a perigosa competição, que se desenrolou plenamente ao seu contento: coices ou saltos, nem desenfreadas carreiras, puderam fazê-lo perder o equilíbrio; parecia soldado no lombo do potro e não apeou, enquanto não dominou completamente toda resistência. Seu concorrente, muito menos seguro, há bons minutos havia deixado os estribos e mancando de uma perna vinha lealmente apresentar seus cumprimentos ao vencedor.
Como no dia anterior, na mesma janela, um lindo rosto sorria-lhe feliz.
À tarde, quando Alano, para passar o tempo, errava pelos jardins, divisou em meio a um canteiro uma menina ocupada em colher, com modos rápidos e graciosos as flores mais bonitas, que amontoava, formando uma braçada multicor.
Enquanto o jovem se detinha diante desse encantador espetáculo, ela parou, percebeu a presença do menino e ergueu para ele um rostinho adorável, que a emoção tingia levemente de vermelho, e em que dois olhos, de gazela negra, emoldurados por longas sobrancelhas, sorriam-lhe. Alano sentiu-se surpreso diante de tanta beleza e notou imediatamente uma surpreendente semelhança com o emir Selim: ela equivalia em doçura e graça, o que ele tinha em energia e dignidade. À reverente saudação, respondeu com um sorriso tímido e feliz e prosseguiu colhendo suas flores, enquanto o jovem continuava passeando. Poucos instantes após, sem tê-la procurado, acha-se novamente em face da linda fada, que escolhera, para acomodar as flores colhidas, o banco onde, de preferência, Alano costumava sentar, num terraço florido, que dominava toda a campanha.
Era ali que o jovem prisioneiro se detinha a espiar o horizonte para ver se, por acaso, não surgiria um esquadrão de cavaleiros, trazendo a cruz. Circundada pelas flores, a menina estava ocupada em separá-las em feixes, colocando-as em vasos de formas elegantes, que uma escrava lhe apresentava.
Os olhos dos dois jovens encontraram-se, mas desta vez, ela sorriu com mais decisão, deixando à mostra duas filas de dentes minúsculos e cândidos, enquanto Alano sorria também.
No dia seguinte encontraram-se novamente, mas limitaram-se apenas a saudação cerimoniosa.
Cheia de admiração pelo jovem franco, hábil ginete, a donzela desejava imitá-lo na arte de cavalgar: afinal não devia ser assim tão difícil, se ele obtinha tão assinalados êxitos. Há pouco, Selim, que adorava a filha, presenteara-a com uma linda égua árabe, doce e pacífica, e ela, novel amazonas, desejava ardentemente cavalgar um animal mais vivaz, que lhe permitisse piruetar, como fazia Alano.
Alguns dias depois, na ausência de Selim, viu aproximar-se-lhe o tio Ahmed, de quem, instintivamente, sentia um misto de repulsa e medo. Desta vez, porém, o príncipe vinha todo sorrisos e atenções.
— Parece, minha linda sobrinha — disse — que te sentirias muito feliz se possuísses um animal mais fogoso e mais digno da filha de um emir. Soube desse teu desejo e deixei de propósito meu retiro para proporcionar-te esta satisfação. Assim, poderás constatar pessoalmente que não sou o homem mau, de que te falaram.
— Mas, tio Ahmed...
— Nunca se deparou a ocasião de oferecer-te um presente. Na entanto tenho a convicção, de que este vai agradar-te.
Sem dar-lhe tempo para responder, fez sinal a um escravo que se aproximasse, conduzindo pela rédea um magnífico potro branco, de grande beleza.
— Oh! Como é lindo, tio!
— Sinto-me feliz de que te agrade. É teu. Assim entenderás que, se tivesse oportunidade, muitos presentes te aguardariam... Cuidado, porém! O animal é um tanto selvagem, e é preciso mantê-lo de rédea curta!
A menina já não ouvia mais nada; bateu as mãos e agradeceu calorosamente a Ahmed. Pediu que o encimassem, aguardando, com impaciência que lhe surgisse o momento de realizar algumas evoluções para impressionar a Alano. Este, numa galeria próxima, selava Galará, enquanto, de longe, seguia a cena acima descrita entre tio e sobrinha, ansioso para ver a jovem cavalgar um animal muito perigoso.
Segurado pelo freio por um dos escravos de Ahmed, o potro fez alguns giros pelo pátio. Em seguida, por ordem da jovem, o escravo retirou-se, entregando-lhe as rédeas. Não demorou para o animal se apercebesse que estava sendo cavalgado por alguém que não possuía a necessária experiência. Começou a trotar como bem quis e como fosse um tanto fustigado, partiu repentinamente a todo galope, para frente.
A jovem viu-se perdida. O animal corria, de cabeça baixa, em linha reta, na direção do bastião que fechava o pátio. Atordoada, ela sentiu-se projetada no vácuo, acima das ameias ou então esmagada contra a muralha; abandonou, então, as rédeas, agarrou-se desesperadamente à sela e fechou os olhos.
Em certo momento, porém, sentiu-se arrancada da sela, justamente no instante em que o potro se detinha, erguendo, num coice espetacular, as patas traseiras. Mão vigorosa agarrou-a e ela sentiu-se segura à sela de Galará, entre os braços de Alano; que consciente do perigo que ameaçava à princesinha, o jovem cruzado atirara Galará numa violenta disparada, alcançando o potro, chegara justamente em tempo de agarrar a menina, evitando-lhe uma queda que teria certamente causado a morte.
Quando a jovem se recuperou um pouco da tremenda emoção, dirigiu-se ao cavaleiro e disse-lhe, em francês:
— Alá lhe pague, senhor estrangeiro! Sem dúvida nenhuma, devo-lhe a vida! — murmurou achegando-se ainda mais como se um resto de terror a sacudisse.
— Tudo está bem, agora, princesa! Permita, porém, que lhe aconselhe a não mais montar nesse cavalo viciado e mal-domado.
— E' um presente de meu tio Ahmed!
— Seu tio Ahmed a quer muito?
— Não sei! — respondeu em voz baixa. — Não tenho certeza!
Quando a depôs à porta do palácio, ela agradeceu-lhe novamente com sua voz doce e harmoniosa:
— O senhor tem um ânimo nobre e grande! Bem que poderia ter-me deixado perceber.
— Oh! isto não! É dever de um cavaleiro agir assim!
— Mas, isto não impede em reconhecer que arriscou a sua vida para salvar a filha do seu carcereiro, de seu inimigo!
— Nobre donzela; a constante benevolência de seu pai só me permite usar essa palavra em campo de batalha. De resto, minha religião manda que eu retribua o mal com o bem!
— Como deve ser bela e suave, então! A nossa diz: "Olho por olho, dente por dente!" Mas, então... não compreendo porque os seus amigos combatem tão encarniçadamente aos nossos.
— Jamais teríamos vindo à Palestina, de armas em punho, se os seus não se houvessem apossado do sepulcro do Senhor e maltratado os fiéis que aqui aportavam em peregrinação. Para acabar com todos esses vexames, nossos pais e nós tomamos a cruz.
Em vez de entrar no palácio, solicitou-lhe que se assentasse a seu lado, sobre um banco de mármore:
— Meu nome é Zaní, — disse, — e tenho onze anos!
— Bem cedo completarei quinze e meu nome é Alano. Um cavaleiro às suas ordens.
— Acredita que poderemos ser amigos?
— Por que não? Basta querê-lo Às vezes as horas me parecem tão compridas, longe dos meus!
— Eu me sinto tão sozinha neste imenso fortim, cheio de soldados... especialmente quando meu pai não está aqui.
— Serei, portanto, seu irmão maior, Zaní!
— Sentir-me-ia imensamente feliz!
Ainda um pouco pálida, ergueu-se:
— Devo entrar! Vê-lo-ei ainda, senhor Alano?
— Certamente, se o desejar, princesa.
Naquela noite, Alano viu entrar silenciosamente em seu quarto um dos criados mais fiéis do emir.
— Posso falar-lhe, estrangeiro?
— Certamente, Youssef! Que deseja?
— Antes de mais nada, agradecer-lhe por ter salvo a jovem princesa. Meu senhor ama-a mais do que qualquer coisa no mundo! Que amargura não teria experimentado se alguma desgraça houvesse acontecido.
— Ora! Qualquer pessoa, de coração bem formado, teria feito o que eu fiz.
— A princesa Zaní é, para mim, muito mais preciosa, que a pupila de meu olho direito, estrangeiro... por isso, de hoje em diante pode contar com toda a dedicação de Youssef!
Alano observou atentamente o servo e disse muito lentamente:
— Agradeço-te. Mas, meu bom Youssef, se amas de verdade a tua princesa, aconselho-te que a vigies com todo cuidado.
— Que quer dizer, senhor? — Depois de hesitar alguns instantes,
Alano continuou:
— Tenho a impressão de que o príncipe Ahmed tem modos um tanto esquisitos para demonstrar sua amizade e dedicação.
— Compreendo! Faz muito tempo que já desconfiamos dele.
— Que tem ele, portanto, contra esta menina?
— Ahmed sente ciúmes mortais de Selim mal e mal suporta ser-lhe subordinado; inveja no irmão a coragem e a bondade, que tanto o elevam diante de seus soldados.
— Se não me engano, Ahmed reinaria mais feliz, usando o terror!
— Como todos os covardes!
— Já o experimentei pessoalmente!
— Que Alá nos livre de um dia tê-lo como nosso soberano! Infelizmente, Selim não possui descendentes masculinos, e por isso deseja que Zaní case com algum príncipe, que se assinale por sua humanidade, sabedoria e bondade, qualidades que ele aprecia ver colocadas num trono. Ahmed sabe perfeitamente que se a jovem desaparecer antes desse casamento, o reino lhe cairá, por direito, nas mãos. Sem a sua coragem, nobre senhor, hoje ele teria atingido o objetivo.
— Então, também tu tens a mesma impressão que eu; este incidente foi preparado.
— Tenho certeza!
— O infame ousa atentar contra a vida de uma menina inocente! Oh! Se eu estivesse armado, iria desafiá-lo para um duelo.
— Ele não ousa atacar abertamente ao irmão, não cessa, porém, de denegri-lo aos olhos dos crentes!
— Como pode fazê-lo?
— Ele sabe que o emir sofre de dúvidas religiosas e que reduz ao mínimo a observância dos preceitos do Alcorão. Jamais quis ter mais que uma só esposa, — embora o Alcorão autorize diversas. Depois que a mãe de Zaní faleceu, a quem ele amava ternamente, recusou-se em casar de novo. Permite que a filha ande livremente pelo fortim, em vez de fechá-la no harém; mostra-se sempre muito humano com os prisioneiros de guerra.
— Ora! Nisto tudo não vejo nada de mal!
— É verdade! Aos olhos de certos fanáticos, porém, tal comportamento, facilmente pode parecer intolerável tibieza.
— Então, ele tem inimigos?
— Ninguém, fora que Ahmed, pois até os mais fanáticos não dão importância a esses particulares, diante da bondade e da justiça de Selim.
— É verdade! Desde o instante em que o conheci; senti-me profundamente atraído para ele. Tenho-lhe grande estima.
— Posso, portanto, contar com sua ajuda, senhor, na defesa de minha ama, especialmente quando o pai não se encontra aqui?
— Certamente! Nada temas meu caro Youssef. Defendê-la-ei como uma irmãzinha querida!
— Neste caso, senhor, pedirei ao emir que o autorize a andar armado.
Capítulo 5
ALANO E ZANÍ
Alano manteve a palavra. Daquele dia em diante seguidamente os dois jovens encontravam-se nos jardins, e muito cedo, deixaram de lado as atitudes cerimoniosas dos primeiros dias; um ao lado do outro não passavam de duas crianças, de corações simples e puros, felizes por terem a oportunidade de realizar juntos longos passeios pelos bosques floridos ou realizar jogos, que lhe permitiam passar alegremente o tempo.
Zaní bem depressa concebeu por esse irmão maior ilimitada admiração, por tê-la salvo porque cuidava dela com tanto cavalheirismo e decisão. Cada palavra que pronunciasse, parecia-lhe uma prova a mais de sua sabedoria; cada juízo que expressasse, era-lhe uma sentença inapelável e as aventuras que ele contava, as mais belas e encantadoras do mundo.
Ahmed, depois do fracasso de seu ignóbil atentado, retirara-se às pressas para seus domínios; Youssef vigiava no interior do palácio com a fidelidade de um cão; Alano circundava-a com sua proteção, apenas deixava seus aposentos... Zaní sentia-se feliz!
Ainda que muitas vezes o interrogasse a respeito de sua religião, o jovem, a princípio, falara com grande reserva; afinal, vendo que ela era sincera, contou-lhe a vida de Cristo e os Evangelhos. Possuía uma queda toda especial para narrar e a pequena maometana, muito inteligente, entusiasmava-se rapidamente pela suave figura de Jesus, que tanto ama aos pequeninos.
Ávida de maiores conhecimentos fazia perguntas precisas e cheias de bom senso, de que Alano muito se admirava. No entanto, de comum acordo, mantinham estreito segredo sobre esses colóquios.
Ao lado de tão graves preocupações, Zaní interessava-se igualmente por tudo que se referisse ao amigo e fazia-lhe perguntas sobre a família.
— Tens ainda alguém que te espera no país dos Francos?
— Não tenho mais ninguém: também meu pai veio a serviço do rei.
— E tua mãe?
Uma onda tristeza anuviou-lhe o rosto:
— Minha mãe morreu alguns anos atrás.
— Tenho a impressão de que ela devia ser muito meiga!
— Sim, certamente! Era muito meiga... muito suave... — respondeu, enquanto duas lágrimas lhe rolavam pelas faces. — Se meu pai deu-me sua coragem indômita, ela deixou-me sua piedade e sua ternura. Ensinava--me a ver a Deus nas flores, no sol, nas montanhas, nos rostos daqueles que me amavam! Foi ela que soube proteger meu coração em meio a um ambiente de armas e de guerra!
— Se eu a tivesse conhecido, certamente a teria amado muito! — disse a menina.
Zaní, porém, não se contentou com isso; para agradá-la, Alano teve de reenvocar as lembranças de seus primeiros anos; as lições recebidas com tanta suavidade; sua felicidade ao ver os olhos claros e cheios de amor brilhar felizes; depois, as horas de angústia e de tristeza, os longos anos de sofrimento que ela passou cravada no leito da última doença, sem jamais soltar um gemido ou uma queixa.
Enquanto falava, Alano revia o heróico sorriso da mãe moribunda; escutava mais uma vez seus conselhos; suas palavras de carinho, que iam lentamente tornando-se mais fracos... Zaní ouvia com amor e comovida.
— Então, uma mãe é tudo isto? Ah! Se eu também tivesse conhecido a minha! Certamente a teria amado ternamente!
Quando falou de Jerusalém e da corte de Balduino IV, a menina fez-lhe inúmeras perguntas sobre o Rei Leproso, do qual ouvira falar muito e cujo valor não lhe era desconhecido. Agradava-lhe provocar as confidencias de Alano.
— O teu rei é tão corajoso como tu? — perguntou.
— Muito mais! Mais do que podes imaginar! Pensa quanta energia é necessária para ficar a cavalo um dia inteiro, segurando-se às vezes na sela, para não cair e ainda arrastar os outros ao combate! Ah! Balduino é um chefe, um verdadeiro rei, sempre presente onde a luta é mais perigosa e violenta.
— Meu pai já me falou do valor dele e nossos soldados acham que ele é invulnerável.
— De certo! Não se preocupa com nada!
— Creio que gostaria dele, tanto quanto gostas! Mas, se és tão amigo dele, porque ainda não tentou libertar-te?
— Ele deve ter tentado tudo quanto estava ao seu alcance; certamente perdeu minhas pegadas e, como nunca recebeu notícias minhas, acredita que eu estou morto.
— Se ele é enfermo como dizes a seu redor deve haver pouca alegria.
— Nas horas em que sua enfermidade não o atormenta, volta a ser alegre e feliz, não obstante os pesados encargos de sua função. Especialmente, é tão humilde.
— Acho que lhe queres muito bem!
— Amo-o como a um irmão e não desejo nada neste mundo, quanto o de ver-me novamente a seu lado. Zaní, não podes imaginar quanto Balduino signifique para mim e quanto desejo assemelhar-me com ele! É preciso que eu encontre uma forma de fugir!
— Cala, mau! — interrompeu ela inquieta, pondo-lhe um dedo sobre os lábios. — Então, abandonar-me-ias? Quem me defenderia contra a maldade de meu tio Ahmed? Quem me falaria de Jesus? Alano! E que seria de mim, se fosses embora?
— Voltaria! Sitiaria este fortim! Tomá-lo-ia e haveria de levar-te comigo à corte do Rei Balduino!
— E papai?
— Levá-lo-ia também, sem fazer-lhe mal algum: tenho certeza de que se transformaria num amigo do rei.
— Quando isso acontecerá?
— Deixemos tudo nas mãos da Providência, Zaní.
Certo dia em que, como de costume, os dois jovens palestravam tranqüilamente, ouviu-se, em dado momento, o som de uma fanfarra.
— É papai! — exclamou Zaní, e feliz batia palmas arrastando o amigo até aos bastiões.
Realmente, perto do fortim, via-se avançar uma coluna de cavalaria, sob o estandarte do Profeta. Em poucos instantes a praça forte tomou nova vida e o emir entrou no pátio de honra, precedido pelos seus alferes e seguido por uma magnífica guarda.
Zaní, muito feliz, correu ao seu encontro e apenas ele saltou do cavalo, atirou-se carinhosamente em seus braços. Depois de beijá-la e abraçá-la carinhosamente, indagou se com sua ausência tudo correra bem.
— Maravilhosamente! — disse ela. — Alano cuidou muito bem de mim.
— Ah! — exclamou sorrindo. — Vejo que vos tornastes bons amigos, tu e o teu valoroso e pequeno cruzado.
— Com razão, papai! Alano salvou-me a vida.
Ela passou, então, a narrar minuciosamente o "incidente", tecendo os mais entusiásticos elogios ao jovem companheiro, enquanto Selim escutava com uma ruga de preocupação e de suspeita visivelmente desenhada em sua face.
Zaní percebeu-o e graciosamente ameaçou-o com o dedo:
— Para que preocupar-te, papai? Tudo terminou bem e... eis que voltaste!
— Onde se esconde, agora, o teu salvador?
— Mas...
A menina passou a procurar Alano por toda parte. O cavaleiro, porém, havia desaparecido.
À noite, Youssef apresentou-se no quarto do jovem franco.
— O emir tinha medo que houvesses fugido! — disse.
— Vontade não me falta, meu caro Youssef! Meu azar, é que me vigiam muito bem!
— Paciência! Meu amo deseja ver-te!
Alano ergueu-se e seguiu ao bom servo:
— Está bem! Vamos!
Penetraram na pequena sala, ricamente decorada, onde o emir gostava de ficar. Aguardava-o de pé, junto à janela e com os braços estendidos correu ao encontro do prisioneiro. E disse-lhe:
— Amigo Alano, — preciso falar-te de coisas muito sérias. — Tu, Youssef, durante esse tempo, deveras vigiar de tal modo, que as paredes não criem ouvidos.
— Senhor, pode contar comigo! Quando o fiel servo se retirou, Selim tomou pela mão o jovem cruzado e o fez assentar num divã, junto a si.
— Antes de mais nada, Alano, devo agradecer-te por teres salvo a vida de minha pequena Zaní.
— Apenas cumpri o meu dever, senhor emir.
— Já teria agradecido se não te houvesses afastado quando cheguei. Terás de conseguir o perdão de Zaní, por esse teu ato.
— Eu também não lhe devo a vida, senhor?
— Ninguém tinha o direito de tirá-la; nada mais fiz do que meu dever de homem. Tu, no entanto, te expuseste ao perigo de perder a tua vida para salvar a da minha filha!
— "Expor-se a perder a vida", parece-me um exagero, neste caso.
— Não! Zaní contou-me tudo detalhadamente e Youssef, testemunha sincera da cena, completou-me a narração!
— Certamente exageraram: Galará é um cavalo maravilhoso, que logo entendeu quanto eu esperava dele! Todo mérito é dele!
— Não creio em nada de tudo quanto estás dizendo! Mas, não te chamei só para agradecer-te; nem para discutir a respeito de tua coragem que muito bem conheço. Alano, atormenta-me uma angústia cruel: Youssef assegurou-me que bem compreendeste a terrível ameaça que pesa sobre Zaní.
— Será que ela desconfia?
— Zaní não pode acreditar no mal e se eu lhe falasse claramente, tornaria a vida um pesadelo contínuo. Desejo tanto que ela seja feliz!
— O senhor pensa que seu irmão, na verdade, seria capaz de atentar contra a vida dela?
— Já não tenho a menor dúvida. Tu mesmo tiveste a prova. Eu mesmo não me sinto seguro, senão quando Ahmed está bem longe de meu teto ou quando me sinto rodeado por meus servos fiéis ou defendido pela minha leal guarda. Para mim, porém, o que constitui minha maior segurança, é a covardia de meu irmão. Até que se encontra a meu lado, o miserável não ousa erguer um dedo; apenas, porém, minha ausência se prolonga, tenho todas as razões para temer pela segurança de Zaní.
— Mas, é realmente preciso que o senhor deixe o fortim?
— Sou um soldado como o és e devo cumprir ordens. Faço-te uma confidencia: Saladino mandou chamar-me e partirei dentro de poucos dias.
Alano deu um salto:
— Recomeça a guerra? — Sim.
— Rei Balduino retomou a ofensiva?
— Conseguiu reagrupar uma parte de seus exércitos e a campanha que em breve, terá início, anuncia-se duríssima.
— Eu não estarei lá para combater ao lado de meu rei! — explodiu o adolescente, apertando os punhos.
— O sultão Saladino deu-me ordem para reunir forças de categoria, para agüentar o primeiro choque.
— Senhor!... vai deixar-me partir!?
— Era justamente essa minha intenção, quando me contaram teu gesto cavalheiresco. As ordens de Saladino, entretanto, são formais! Antes que termine esta guerra, nenhuma libertação de prisioneiros francos deve verificar-se, nem que sejam oferecidos elevados resgates. Entendo muito bem como nessas circunstâncias, o sultão não deseje colocar à disposição do Rei Balduino soldados do teu quilate. . .
— No entanto...
— Dou-te a minha palavra de honra que serás posto em liberdade tão logo termine esta campanha, seja qual for seu êxito!
— Será tarde demais!
— Para consolar-te, Alano, vou dirigir um grande apelo a todo teu espírito de cavaleiro. O que me preocupa, no momento de partir, é a quase certeza de que Ahmed, tornando-se ousado com a minha ausência, desta vez fará de tudo para liquidar-me e, sem dúvida, para suprimir Zaní, cuja vida é um obstáculo permanente as suas ambições.
— Miserável! Velhaco!
— Haveria uma solução muito simples: que eu te adotasse como meu filho ou que tu aceitasses casar com Zaní.
— Tudo isto parte da suposição que eu esteja disposto a renegar minha religião.
— Sei! E não posso pedir-te semelhante traição; conheço excessivamente tua grandeza de alma para acreditar que sejas capaz de tal coisa.
— Porque não leva consigo Ahmed, na próxima expedição?
— Ahmed é um covarde, um mau oficial, unicamente preocupado em salvar a própria vida e não foram poucas as batalhas perdemos por causa dele. Tenho razões suficientes para temer a ânsia de sua covardia sobre a tropa.
— Leve-o sem entregar-lhe nenhum comando!
— Nem assim estaria resolvido o problema. Supõe que eu seja vítima dos azares da guerra; que eu caia no campo de batalha, morto, ferido ou prisioneiro. Neste caso, o comando caberá a meu irmão.
— Saladino o impedirá!
— Não! Meu irmão está nas boas graças dele!
— Porque, então, devemos assustar-nos com desgraças que talvez nunca ocorram?
— Não me assusto, filho, mas um chefe deve prever tudo. De resto, tive maus presságios; e bem sabes como nós muçulmanos acreditamos nisso. E foram todos presságios de morte!
— Bem... não lhe dará tanta importância.
— Ao contrário! Preciso importar-me muito! Não esqueças que Zaní se encontra sempre no meio.
— O fiel Youssef, tão afeiçoado e cheio de dedicação, saberá muito bem defendê-la: conhece todo perigo.
— É verdade! Youssef daria a vida por Zaní, mas nada entende das as-tucias que Ahmed passaria a usar. E então...
— O senhor não tem outros servos fiéis?
— Ninguém que possa protegê-la de modo eficiente. Ouve, portanto, o que te proponho: assume o compromisso de vigiar minha filha, como se fosses seu irmão maior e como fizeste até aqui.
— Mas, não passo de um jovem, de um prisioneiro.
— És um cavaleiro. De resto, te darei maior liberdade, contanto que fiques aqui! Previ também a tua libertação total. Se por acaso eu viesse a morrer, já deixei ordens bem claras: daquele momento em diante, ninguém mais se oporá a tua partida, mas com a condição de que ponhas a salvo a Zaní. Aceitas?
— Dou-lhe a minha palavra de honra: cuidarei dela, corno minha própria irmã.
— Antes que eu assegure os direitos dela na minha volta, é mais importante garantir-lhe a vida.
— Defendê-la-ei!
— Se Ahmed me sobreviver, deves levar embora imediatamente a menina.
— Para aonde?
— Não importa onde! Basta que tenha a vida salva!
— Levá-la-ei comigo à corte de Balduino.
— Certamente lá estará em maior segurança, do que aqui, ao alcance do tio.
— Nada terá a temer sob a proteção do rei de Jerusalém.
— Reconheço-o! Entregá-la-ei, portanto, à proteção de ambos!
— Senhor, até que eu tiver um momento de vida, não tema por ela.
— Muito obrigado pela generosidade, em relação ao teu carcereiro.
— Não falemos em prisão, senhor emir. O senhor foi o mais benévolo e leal dos adversários. Jamais poderia considerá-lo meu inimigo.
— Se nos encontrássemos no campo de batalha?
— Combateríamos valorosamente, mas sem ódio!
— Creio que também poderemos fazer a paz entre nossos reinos e viver como bons vizinhos. Teria sido uma imensa satisfação para mim ter-te como filho... Alá dispôs diferentemente.
— A Providência tem desígnios, próprios, senhor!
— Agora, falta-nos estabelecer os devidos planos, que, no caso de ocorrer o que tememos, nos serão muito necessários. Antes de qualquer coisa, deves saber que Youssef está ao par de tudo.
— Saberá calar?
— É mudo como um túmulo. Encarreguei-o de manter-se alerta e de avisar-te o mais depressa possível, se me acontecer alguma coisa. Daquele momento em diante, Youssef passará à tua disposição e obedecerá cegamente às tuas ordens. Sacrificar-se-á por ti, de corpo e alma, como o faria para mim.
— Ahmed tem amigos ou cúmplices aqui?
— O número deles aumentará proporcionalmente à sorte que tiver; por isso, acho mais indicado não informar Zaní a respeito desses nossos temores e projetos.
— Pobre Zaní!
— Apenas se tiveres necessidade, Youssef te conseguirá armas e dinheiro!
— Desejo que volte são e salvo... mas, não vencedor!
— Adeus, Alano! Não peço que me desejes a vitória; reze antes ao teu Deus para que me ilumine.
— Não deixarei de fazê-lo, senhor!
— Sempre procurei a verdade e sofri por causa dela, mas ainda não a achei. Perto de ti, tive a impressão de que me achava no bom caminho. Adeus, meu filho.
Abriu os braços e o jovem cruzado correspondeu emocionado e esse sinal de afeição. Depois de havê-lo estreitado alguns instantes, o emir soou um gongo e reapareceu Youssef.
— Nada de novo, meu bom Youssef?
— Nada, senhor!
— De conformidade com o que te avisei, de hoje em diante o senhor Alano será teu amo, a fim de defender, contigo, a vida da princesa.
O servo inclinou-se, beijou a mão do jovem cavaleiro e disse:
— Ser-lhe-ei fiel como a ti mesmo, senhor emir!
Capítulo 6
A VITÓRIA DE AHMED
Algumas noites após, o fortim e a vila acocorados a seus pés, amanheceram num movimento desusado: vozes de comando, estrépito de armas, rumor de carros, nitridos de cavalos, enfim, os sons que caracterizam um exército em marcha; quando Youssef abriu as janelas do quarto de Alano, informou-o de que emir já partira com todas suas tropas.
— A esta hora já devem estar muito longe!
— E quem fica na guarda do fortim?
— Um punhado de veteranos e de soldados fiéis!
— São poucos!
— São suficientes, senhor; as defesas desta praça forte são praticamente inexpugnáveis. Em qualquer hipótese poderemos resistir a um assédio, até que nos venha socorro.
— Ahmed ficou aqui?
— Não! O emir levou-o consigo! — Com todo aquele barulho, Alano não pudera dormir um só instante, atormentado ainda mais pelo pensamento de que seu rei Balduino havia voltado a guerra, sem que ele pudesse colocar-se a seu lado. Sentiu um violento desejo de tentar um golpe de força; abusar da simplicidade de Youssef e da autoridade que lhe conferira Selim, e fugir. Nada lhe seria mais fácil: o bom servo lhe teria obedecido cegamente.
— A princesa Zaní o espera, senhor. — disse Youssef.
Zaní. É verdade, ainda havia Zaní. Alano dera sua palavra de honra, de que a protegeria. A luta foi breve, mas violenta e venceu o sentimento do dever.
Em poucos minutos aprontou-se e dirigiu-se à menina, que estava profundamente desolada com a partida do pai.
— Somente ontem à noite ele me avisou! — queixou-se a menina.
— Fez muito bem, querida irmã! Que te adiantaria sabê-lo antes? Apenas sofrerias muito mais! Vamos, consola-te!
Diversos dias transcorreram calmamente, dias intermináveis para o jovem cruzado, pois nenhuma notícia vinha do exterior. Os dois meninos retomaram suas antigas conversações. Zaní demonstrava-se mais do que nunca interessada na religião do amigo e, como Selim, aproximava se aos poucos da fé cristã.
— Alano, quando papai voltar deveremos falar de tudo isto os três juntos. Achas que ele concordará em que eu receba o batismo? Desejo-o cada dia mais ardentemente.
— Não me admiraria se te desse permissão! Afinal, é um homem de coração reto.
— Como eu seria feliz!
— Não te apresses tanto! Para chegar, lá há muitas dificuldades a superar.
— Farei tudo o que for necessário.
— Já te lembraste que, para te tornares cristã, deveras seguramente renunciar à tua herança?
— Já percebi a tempo. Mas, que importa? Estou pronta para esse sacrifício. O que mais me preocupa é a idéia de que posso aborrecer meu pai. Deixemos, porém, estas inquietações e joguemos. Assim, passará mais rapidamente o tempo.
Encontravam-se empenhados em divertir-se, quando, de repente, ouviu-se um grande estrépito, que vinha do povoado, aos pés do fortim.
— Será teu pai, que já está voltando? — indagou Alano, preocupado, pois a rápida volta de Selim somente poderia ser o resultado de alguma vitória.
Quem surgiu, porém, foi Youssef, todo desfigurado e inclinando-se diante dos dois informou:
— Senhor Alano, tenho notícias para comunicar-lhe.
— Fala logo!
— Desculpe, são unicamente para si! — Chamando-o de lado contou-lhe rapidamente que os tristes pressentimentos de Selim se haviam realizado.
— O exército foi destroçado. Ahmed, como fora previsto, fugiu, desde o primeiro ataque, semeando o pânico. Selim, acompanhado por um grupo de veteranos, morreu combatendo. Ahmed, que, por direito terá o título de regente, a esta altura, já deve estar a caminho do fortim, acompanhado pelos que sobreviveram ao desastre. A cavalaria franca vem no encalço.
Alano, diante da notícia, teve apenas uma rápida sensação de alegria pela vitória cristã; esqueceu-a imediatamente, comovendo-se com o triste fim de Selim e com o infortúnio que estava para cair sobre Zaní.
— Pobre princesa! — exclamou. — Mas, se chegar aqui Ahmed... Não temos um minuto a perder!
— É o que temo! Quais são as suas ordens, senhor? Neste momento, no fortim ainda todos são fiéis e ninguém se oporá ao que for feito.
— Devemos fugir antes que Ahmed chegue. Manda selar três bons cavalos, os melhores que houver e deixa-os em prontidão. Pega também uma boa mula de carga, boa quantidade de víveres e um odre de água. Enquanto isso, avisarei a princesa.
— Devo preparar algumas armas?
— Naturalmente. Traze-me uma boa espada e alguns punhais.
— Para mim, apanharei um arco e uma aljava com flechas.
— Está bem, mas faze depressa!
— Imediatamente!
Enquanto Youssef se retirava, Alano voltou para junto da pequena companheira que, de longe, ansiosamente observava seus gestos.
— Más notícias, irmãos?
— Muito más, querida irmãzinha. Vais precisar de toda tua coragem.
Com muito cuidado, tratou de contar-lhe os novos infortúnios que, por outro lado, ela já havia pressentido. Quando a menina desabafou a imensa dor que lhe ia na alma, revelou-lhe, então, os perigos que corria e as instruções que lhe dera o pai.
— Selim deu-me o encargo de vigiar pela tua vida, irmã. Terás confiança em mim? Aceitarás acompanhar-me?
— Depois de papai, ninguém poderia cuidar melhor de mim, do que, tu, meu caro amigo. Aceitarei as tuas decisões e farei tudo o que mandares; tenho muito medo de cair viva nas garras de meu tio!
— Então, partamos, porque o tempo urge. Não temas, Zaní! Deus nos há de proteger.
Rapidamente atravessaram as portas da antiga cidadela e encontraram-se livres, com Youssef, que os aguardava com as cavalgaduras. Uma profunda melancolia havia tomado conta do fortim e de seus defensores. Alano, porém, fazia grandes esforços para dominar os sentimentos de alegria que a próxima liberdade lhe suscitava, ao ver que, finalmente abandonaria essa fortaleza, cujos muros haviam sido sua prisão durante tantos meses. Nenhum gesto ou palavra, porém, lhe escaparam dos lábios, em atenção ao sofrimento de Zaní.
Apenas se viu no lombo do animal, seu fiel Galará, Alano passou a fustigar as cavalgaduras. Desde muito se informara cuidadosamente sobre o caminho a seguir e sobre as regiões limítrofes. Seu plano consistia em alcançar o mais depressa possível um grupo de rochas que se erguiam nos confins do deserto. Lá teriam encontrado o local adequado para esconder-se, até que as tropas de Ahmed houvessem passado e talvez também pudessem aguardar aí a chegada da cavalaria franca.
Inicialmente, o plano pode ser executado com toda facilidade; decorridas algumas horas, já começavam a descobrir as rochas, quando, de repente, viram, no horizonte, erguer-se uma espessa nuvem de pó que, com grande rapidez, se deslocou ao seu encontro. O coração de Alano preocupou-se: não podia ser o exército franco, certamente eram os vencidos que voltavam, acompanhando a Ahmed, em busca de segurança atrás das muralhas da fortaleza.
Antes que nossos amigos houvessem podido esconder-se, a vanguarda os descobrira e já um grupo de cavaleiros vinha a galope para impedir-lhes a fuga. Alano desembainhou a espada e defendeu-se furiosamente; bem cedo, porém, compreendeu que toda resistência era inútil e que os golpes a ele atirados poderiam atingir a princesa. Para cúmulo, a espada partiu-se nas mãos e foi constrangido a render-se.
— Capturem-nos vivos! — bradou uma voz rouca! — É uma ordem formal do emir Ahmed.
Alano tentou ainda reagir, mas superado pelo grande número de adversários viu-se jogado ao solo, amarrado, atirado novamente ao dorso do cavalo e reconduzido a toda velocidade para a cidadela.
Apenas chegado, deixando a seus oficiais o encargo de fechar as portas e as saídas, e de guarnecer as ameias, Ahmed, cheio de rancor, mandou vir a sua presença os prisioneiros: um lampejo de triunfo e de ódio brilhava em seus olhos, miúdos e maus.
— Cão de um nazareno! — gritou. — Quiseste fugir e raptar a filha de meu pranteado irmão, e entregá-la aos meus inimigos. Morrerás, portanto, entre atrozes sofrimentos, diante dos olhos dos cruzados. A menos que, — continuou pèrfidamente, — renegues a tua fé.
— E se eu aceitar?
— Serás meu lugar-tentente e me ajudarás a organizar a defesa do fortim.
— Nem para salvar a vida, hei de trair, algum dia, meu Deus e a meu rei.
— Como quiseres! Mas, antes de morreres, verás ainda com teus olhos Zaní reduzida à escravidão.
— Não te bastou fugir como uma lebre do campo de batalha! Ainda queres encarniçar-te contra uma criança indefesa?
— Apliquem-lhe quinze golpes de azorrague! — gritou Ahmed.
Quando a sentença foi executada, Ahmed continuou?
— E, agora, aceitas renegar ao teu Cristo?
— Jamais! — replicou o jovem.
— Morrerás, portanto, sobre os baluartes, quando aparecerem os primeiros cavaleiros cristãos.
Atirado a uma prisão, exausto e machucado, Alano não desanimou; pôs-se a elaborar novos planos de fuga. Não se iludia, porém: as coisas estavam tornando-se cada vez mais difíceis. Que acontecera com Youssef? Morto ou vivo? Prisioneiro ou condenado ele também?
Vencido pela fadiga, não tardou a adormecer. Decorrido pouco tempo, porém, foi acordado por uma voz, que o chamava. Ergueu-se. Parecia-lhe que provinha do muro. Curioso!... Aproximou-se. Não havia dúvida, alguém o chamava realmente:
— Senhor Alano!
— Eli! Quem me chama?
— Um amigo. Pode remover o eixo que se encontra debaixo da janela?
— Tentarei.
Depois de alguns esforços, o eixo ficou-lhe nas mãos e uma das maiores, pedras do muro girou lentamente sobre uma cavilha, provocando um leve rumor. Em seu lugar apareceu uma passagem estreita e escura, e nela um vulto que Alano imediatamente identificou:
— Youssef!
— Silêncio, senhor! Em frente à sua porta há sentinelas...
— Como conseguiste fugir?
— Quando o cercaram, afastei-me e depois uni-me a eles. Há mais alguns soldados fiéis à princesa. Os outros, porém, estão com medo de Ahmed. Sofreu muito, meu senhor?
— Ora! Já conheci coisa bem pior! O servo examinou as chagas de Alano, ungiu-as com um bálsamo que lhe diminuiu as dores e lhe restaurou um pouco as forças.
— Agora, coma, senhor!
E colocou-lhe em frente um pouco de alimento e uma bilha de água.
— Que fizeram com Zaní? — indagou o jovem, enquanto atacava a comida com apetite.
— Ainda não consegui vê-la. Soube, porém, que Ahmed a fechou num dos quartos do harém.
— Maltrataram-na?
— Até agora, não! A defesa da praça forte preocupa muito a Ahmed.
— Não é difícil defendê-la! Nunca vi em minha vida um forte tão bem localizado.
— Ahmed nada entende de estratégia, o que irrita uma boa parte dos oficiais. E isto para nós é conveniente, pois, até que ele tiver medo dos amigos de Selim, não ousará tocar na princesa.
— Haverá alguma forma para fugir daqui?
— Não lhe será difícil, senhor! Coma e retome seu vigor! Vou levá-lo comigo através desta passagem que dá para uma saída secreta.
— Está vigiada?
— Sim, mas apenas uma sentinela se encontra lá.
— Ahmed conhece esta passagem?
— Não creio.
— Então, vamos! A caminho!
Deixaram a prisão, depois de haverem cuidadosamente reposto a pedra móvel; alguns degraus quase carcomidos conduziram-nos a um corredor, a vinte metros da saída secreta, escassamente iluminada, onde se distinguia imóvel a sentinela.
— Aproximar-me-ei do homem para palestrar! Aproveite o momento para liquidá-lo! — disse Youssef.
— Mas, não bastará esbordoá-lo e desacordá-lo? Tenho pavor de matar a traição!
— Só os mortos não falam, senhor! Vamos! O tempo urge! A patrulha da ronda já se avizinha. Superada essa passagem só é preciso atravessar o fosso e depois a liberdade... O seu cavalo aguarda-o à saída da vila.
— E Zaní?
— Cuidarei dela até que o senhor volte com os francos! Vamos, apresse-se.
— Inútil: não parto sem levar comigo Zaní!
— Arrisca a vida!
— E que me importa? Dei minha palavra de cavaleiro a Selim e prometi-lhe não abandonar a menina; prefiro morrer a faltar a minha palavra.
— Suplico-lhe, meu amo! Fuja!
— Não falemos mais! Podes levar--me ao quarto onde se acha prisioneira Zaní?
— Sem dúvida, mas...
— Vamos!
— Uma sentinela, armada até aos dentes, vigia à porta...
— Pior para ela! — disse ferozmente Alano.
— Além disso, uma das mulheres de Ahmed está permanentemente junto à princesa...
— Ai dela! Vamos! — Convencido da inutilidade de seus apelos, Youssef ergueu as mãos aos céus.
— Que Alá nos proteja!
Quando iam entrar no corredor, ouviram-se passos sob a abóbada, que se iluminou com a luz avermelhada de tochas. Youssef empurrou o jovem cristão de volta ao esconderijo, que haviam recém-abandonado.
— A patrulha!
— Deixemo-la passar!
Os soldados, que iam substituir os companheiros estavam acompanhados por um oficial e por dois homens que traziam um grande recipiente cheio de cal.
— Alto! — gritou o chefe! — Chegamos. Esta saída poderia proporcionar ao inimigo um lugar de acesso fácil demais! Murem-na solidamente! Ajudem todos a carregar as pedras amontoadas ali! Façam depressa!
Os dois fugitivos aproveitaram o momento de agitação e de rumor para escapar sem serem vistos. Protegidos pelas sombras da noite conseguiram penetrar no interior do fortim e chegar até aos quartos do emir, sem que ninguém os visse.
— A guarnição está desorientada! — disse Youssef. — Jamais, quando a comandava Selim, teríamos chegado até aqui sem sermos vistos!
Favorecidos por tal negligência, chegaram ao harém, em frente um soldado passeava, à luz de uma tocha. Vendo-os, o homem baixou a lança e bradou:
— Quem está aí? — Serviço do emir!
— Que vindes fazer a estas horas?
— Ordens do príncipe! — respondeu secamente Alano, imitando o tom arrogante dos criados de Ahmed. — Viemos buscar a princesa para levá-la à presença dele. Apressa-te ou poderias arrepender-te pela demora. Ahmed detestava que alguém se intrometa nestes assuntos.
— Está bem! Não te aborreças! — respondeu o outro.
— Passa-me as chaves e vamos!— Praguejando, o homem apoiou a lança ao muro e apalpou a túnica, para localizar as chaves. Quando já se inclinava para abrir a porta, Youssef apossou-se da arma e com um golpe violento atirou-o ao chão. O homem tombou como uma pedra; Youssef tomou-lhe a adaga e o punhal e, em seguida, com o pé, empurrou-o para o lado e entrou, com o amo, na prisão de Zaní.
— Tome esta adaga, senhor! — murmurou. Talvez venhamos a ter necessidade dela!
Deitada sobre o divã, a jovem não conseguia conciliar o sono; aos pés da cama, uma mulher forte e má vigiava-a e ameaçava-a continuamente com as iras de Ahmed.
Quando os dois fugitivos entraram a mulher voltou-se:
— Que vindes fazer aqui? — disse ela, estendendo a mão para um gongo de bronze.
Alano, prevendo o gesto, interceptou-lhe o instrumento.
— Nenhum barulho! Ordens urgentes do emir: devemos transferir imediatamente a princesa para uma das salas do subterrâneo.
— A estas horas?
— Naturalmente! Quererias fazê-lo em pleno dia, para que todos os amigos de Selim se revoltassem? Ahmed quer evitar o escândalo. Portanto, nada de gritos ou de conversas!
— Tive ordens de não entregar a prisioneira sob nenhum pretexto.
Alano não respondeu.
— Sei. Isto te custará algumas horas de prisão. Virás conosco.
A mulher resmungou nada satisfeita, mas cedeu e aproximou-se a Zaní.
— Vamos, de pé! — disse com dureza, — E que ninguém nos ouça!
Enquanto Alano se aproximava da menina, a dizer-lhe palavras de conforto e fazer-se conhecer, Youssef, a um sinal, atirou com rapidez uma grossa coberta sobre a cabeça da megera e amarrou-a. Como ela se debatia raivosamente, cutucou-a uma ou duas vezes com o punhal, fato que a fez tornar-se calma e mansinha como uma pomba.
Enquanto Youssef terminava por reduzi-la à impotência, Alano arrastou para o quarto o sentinela, ainda sem sentidos, e amarrou-o solidamente. Em seguida, lançou sobre os ombros de Zaní a capa escura do soldado, e retiraram-se precipitadamente, trancando a porta.
— Não tenhas medo, irmãzinha! — murmurou o jovem.
— Oh! Já que és tu, tudo correrá bem! Tinha certeza de que virias salvar-me, mas não esperava que fosse tão depressa.
— Agradece a Youssef.
— Senhor! — exclamou este último preocupado. Que fará agora? Dentro de alguns instantes os guardas se darão conta de nossa fuga e do desaparecimento do soldado.
— Não os esperarei! — respondeu Alano, passando afetuosamente o braço sobre o ombro de sua pequena companheira. Vejamos... o caminho da saída nos foi interceptado.. .
— O senhor mesmo o viu!
— Então, não temos alternativa, que abrir caminho de armas na mão, contra algum grupo de guardas. Temos ainda amigos de confiança?
— Não temos tempo para procurá-los... Oh! Agora me lembro! Conheço uma passagem secreta. Uma saída que somente eu sei identificar. Deve, porém, estar em tão mau estado, que a princesa não poderá acompanhar-nos.
— Contigo, irmão, irei até aos confins do mundo! — murmurou a menina, agarrando-se ao braço de Alano. — Tenho tanta confiança em ti! E tanto medo de Ahmed!
— A tua confiança tornará possível o êxito em nossa fuga. Youssef, não percamos mais tempo!
O servo conduziu-os, pela sombra, até a um canto dos antigos bastiões, onde se via uma guarita há muito tempo abandonada. Ergueu uma pesada laje de pedra.
— Essa — disse — É a entrada de um túnel onde foram fincadas barras de ferro, uma sobre a outra. Creio que seja melhor que passe primeiro, senhor, mas recomendo-lhe que seja muito prudente, assegurando-se, antes de mais nada, que as barras estejam firmes. A princesa o seguirá e eu descerei por último, depois de haver recolocado a laje.
— Deus nos proteja! — disse Alano e deixou-se resolutamente escorregar para dentro do fosso.
— Cuidado, senhor!
— Pronto! Aqui está a primeira barra... a segunda... Vamos, Zaní!
Não obstante todo esforço que a menina fazia para dominar-se, tremia como vara verde e desceu atrás de Alano, ajudada por Youssef.
— Está bem! Está bem! — observou ela, com voz a que tentara dar firmeza, enquanto desaparecia nas trevas
— Não te apresses. Apóia-te com força. Segue-me com cuidado e tudo irá bem.
Agarrando-se fortemente, Alano ajudava a pequena companheira a pousar os pés nas barras enferrujadas e procurava encorajá-la.
Ainda que a descida fosse já difícil, tornou-se espantosamente perigosa quando, chegaram ao ar livre, os fugitivos, para continuar o caminho, não encontraram que pontas de ferro curtíssimas, cravadas entre as pedras dos muralhões.
Depois de grandes esforços e não menor tensão nervosa, chegaram sem maiores novidades, que alguns rasgões nos vestidos de Zaní, a uma plataforma em ruínas, onde começava um antigo caminho de ronda, no fundo do qual se viam os destroços de um posto de guarda.
— Para onde conduz este caminho, Youssef?
— Para o interior do fortim, senhor; devido, porém, ao péssimo estado em que se encontra, já ninguém se arrisca a percorrê-lo, depois da última reconstrução do forte.
Enquanto falavam, Alano sentiu o braço de Zaní procurar o seu: as emoções dos últimos dias haviam-na cansado de tal forma, que nada recomendava pôr-se em marcha imediatamente. Felizmente, o posto de guarda onde se haviam refugiado, poderia ocultá-los ainda por algum tempo. Youssef estendeu sua capa no chão e obrigou a menina a descansar alguns instantes.
— Tome isto, e descanse um pouco; dentro de alguns instantes estarás em condições de continuar o caminho.
Fê-la tomar um cordial, que trazia consigo, e conduzindo Alano para fora, disse-lhe:
— A aurora está para despontar e já devem ter notado nossa fuga. Apressemo-nos, pois, à luz do dia, seríamos imediatamente reconhecidos pelos sentinelas.
— Deixa descansar a Zaní: falta ainda uma hora para o nascer do sol. Dize-me; antes, como poderemos deixar este lugar.
— Os degraus de ferro continuam, senhor!
— Onde? Já não os vejo! Youssef inclinou-se rapidamente e apalpou a rocha com a mão.
— As barras de ferro desapareceram! — exclamou consternado.
— E a rocha está a pique neste ponto?
— Sim senhor! Uns quinze metros de muro liso nos separam da liberdade.
— Precisaríamos de uma escada!
— Pensando que poderíamos precisar dela, trouxe comigo uma corda de seda. Deve atingir até ao solo.
— É forte?
— Sem dúvida! Pode agüentar o peso de duas pessoas de minha estatura!
— É suficientemente longa, meu caro Youssef?
— Acredito que não faltará sequer um metro.
— Então, estamos salvos.
— Senhor, para nós tudo não passa de brincadeira, mas nossa princesa poderá usar este meio?
— Vou procurar um bastão ou uma cesta para baixá-la...
— Acompanho-o!
— Acho que seria melhor que descesses tu por primeiro, a fim de cuidar dos cavalos e das provisões para a viagem.
— Nossos cavalos estão aqui perto na casa de um amigo de plena confiança.
— Então, vá e trate de selá-los logo e carregá-los!
—- Obedeço, senhor. Que Alá o proteja!
Quando Youssef desceu, deixando-se escorregar ao longo da corda, Alano retomou prudentemente o velho caminho de ronda; as primeiras luzes da madrugada já permitiam que avançasse sem ser às apalpadelas; chegou a um portão arruinado e já se preparava para atravessá-lo quando um rumor de passos, que vinham aproximando-se dele, o paralisou repentinamente; rápido, recuou, procurando esconder-se na sombra.
Teve só o tempo de ocultar-se que, na penumbra conseguiu divisar, sob o arco, a figura de quem se aproximava. Era um homem de elevada estatura que avançava com grande precaução, por causa do mau caminho. Avançava lentamente e o jovem pôde perceber perfeitamente os golpes de espada, quando a bainha batia contra o muro. Passou por ele e tão próximo, que quase se tocaram. Em seguida, avançou na direção que ele viera, até a um ângulo da muralha, onde desapareceu.
Alano estremeceu:
— Quem é esse homem? Se seguir o caminho de ronda, deparará infalivelmente com Zaní.
Abandonando seu esconderijo, lançou-se o mais depressa que lhe foi possível, nas pegadas do homem. Um grave pressentimento atormentava-o.
Depois da partida dos dois amigos a pequena princesa conciliara por alguns instantes o sono; ouvindo passos que ressoavam nas imediações, abriu os olhos. Sem mover-se do lugar onde se encontrava, indagou em voz baixa:
— És tu, irmão Alano? Já estás, de volta?
Houve um momento de silêncio. Em seguida ouviu-se uma risada nervosa. Erguendo-se um pouco e pousando sobre um cotovelo, ela divisou Ahmed que já estava entrando na plataforma, satisfeito e vencedor.
— Então, minha linda sobrinha, mudaste teu quarto para cá? Esperavas mesmo poder fugir? Já não amas o teu querido tio Ahmed?
Ergueu-se apavorada e gritou:
— Não te aproximes ou eu grito!
— Quem te responderia? Não me escaparas e hás de pagar caro todas as humilhações que teu pai me impôs.
— Cala! Meu pai era justo e reto!
— Antes que hoje anoiteça, saberás tu e teu amigo o que é minha vingança.
— Aprisionaste Alano?
— Evidentemente!
— Senhor, não fizemos nada de mal! — gemeu angustiada.
— Sois dois grandes trambolhos em minha vida! Por onde fugiste?
Ainda que apavorada, a menina calou.
— Onde está o teu cúmplice? — gritou.
— Ah! — respondeu ela, mais serena. — Mentiste! Alano está em liberdade e há de salvar-me!
— Onde está ele?
— Eu estava dormindo... não sei para onde foi!
— O teu lindo cavaleiro aproveitou o instante em que descansavas para fugir!
— Não é verdade! Alano não é um covarde!
Sem querer, a menina atingira em cheio o alvo. Preocupado com a orientação que os fatos tomavam e não se sentindo animado a agüentar um assedio que ameaçava tornar-se rigoroso, Ahmed, informado vagamente de que existia uma passagem secreta, fora a sua procura, e assim poder fugir sozinho, caso a situação se tornasse trágica.
Viera antes que o sol despontasse para explorar o caminho de ronda, esperando descobrir algum indício e foi por puro acaso que deparara com a menina, de quem ignorava ainda a fuga.
— Cala a boca! — ordenou imperiosamente. — Ergue-te e vamos!
Não vendo nenhuma possibilidade de fuga, Zaní avançou lentamente, compreendendo que só lhe restava naquela situação, tentar ganhar tempo.
— Não temo! — disse ela. — Alano virá libertar-me!
— Deveras? — perguntou Ahmed, empurrando-a para a plataforma. — Veremos se teu heróico defensor saberá arrancar-te de minhas mãos.
— Por que não? — indagou uma voz.
Ahmed, que estava saindo da guarita, ergueu a cabeça surpreso.
— Alano!
— Alano. Sim, e pronto a mostrar-te, já que o queres, que está em condições de defender tua sobrinha. Covarde, só tens coragem mesmo com crianças indefesas.
Ahmed estendeu o braço para puxar Zaní e transformá-la em escudo, mas Alano, mais rápido, lançara-se entre ele e a jovem.
— Poderia degolar-te como a um porco, — disse o jovem sacando a adaga. — No entanto, concedo-te a honra de combater contra alguém que está quase desarmado. Defende-te, Ahmed porque um de nós dois não verá o sol esta manhã.
Vendo a pequenina lâmina que seu adversário empunhava, o emir sentiu-se encorajado e sacou a cimitarra. A luta afigurava-se desigual e a sorte do jovem comprometida. Ahmed tinha a vantagem da arma, da estatura e do vigor; o cruzado, porém, superava-o em agilidade, ardor e, sobretudo na coragem.
A princípio, limitou-se a aparar os golpes do adversário, uma vez que sua arma, demasiadamente curta, não lhe permitia atacar. Assim mesmo, lutava com grande confiança e não menor tranqüilidade. Ahmed, no entanto com o medo a dominá-lo, esgotava-se em furiosos assaltos. Prolongar a luta faria Alano cada vez mais perigoso. Cada minuto que passava, poderia comprometer o êxito da fuga. De mais a mais, a luz da manhã já permitia divisar perfeitamente os objetos e dentro de poucos instantes os soldados de vigia, nas ameias, poderiam distinguir o príncipe e certamente viriam em seu socorro. Era preciso superar a força com astúcia.
Ahmed, irritado por não poder destruir a defesa de seu jovem adversário, viu de repente que os olhos de Alano se iluminavam de felicidade.
— Um momento, Youssef. Liquido a questão! — disse Alano em voz alta.
Julgando-se atacado pelas costas por um novo inimigo, Ahmed teve um momento de fatal distração e voltou-se levemente; aproveitando o instante Alano arrojou-se com a velocidade de um raio, e antes que o príncipe pudesse novamente pôr-se em guarda, a adaga do cristão penetrou-lhe no pescoço. O miserável abandonou a cimitarra, caiu de joelhos, levou as mãos à garganta que estourava em golfadas de sangue e caiu no vácuo.
Enquanto Zaní, como que hipnotizada, contemplava o corpo ensangüentado sendo tragado pelo abismo, Alano agarrou-a pela braço e disse-lhe:
— Irmãzinha, preciso que tenhas muita coragem. Daqui a pouco, o dia estará completamente claro. Precisamos escapar o mais depressa e só temos um caminho para seguir.
— Este horrível caminho em ruínas...
— Não temos outra alternativa; precisamos descer escorregando por esta corda.
— Eu... não serei capaz!
— Então, agarra-te em mim. Fecha os teus lindos olhos. Arriscaremos assim juntos a vida ou conseguiremos a liberdade.
— Contigo, a liberdade! — murmurou corajosa.
Alano pegou a corda com ambas as mãos e, levando o precioso fardo, começou a penosa descida. Nos bastiões havia já grande agitação; as sentinelas tinham descoberto sua presença; alguns soldados de Ahmed acorreram à guarita, esforçando-se por alcançá-los; quando chegaram, Alano e Zaní já haviam atingido o solo. Algumas flechas sibilaram perto de suas cabeças, mas Alano conseguiu abrigar Zaní junto a uma grande rocha, onde Youssef os aguardava com os animais.
Não esperaram mais nada. Saltaram ao lombo dos animais e lançaram-se rapidamente pelo caminho. Sentindo-se embora insegura e exausta pela sucessão de todos estes acontecimentos, Zaní galopava o melhor que podia, entre seus protetores.
Na cidadela, onde fora dado o alarme, o temor da chegada dos francos e o desaparecimento inesperado de Ahmed, provocaram enorme confusão; antes que pudessem lançar-se na perseguição dos fugitivos, decorreram preciosos momentos. Graças a essa hesitação, Zaní, Alano e Youssef conseguiram notável vantagem, podendo encaminhar--se para o grupo de rochas, onde teriam encontrado certamente um bom refúgio.
Capítulo 7
FINALMENTE LIVRES
Por causa de Zaní, que não estava habituada a cavalgadas dessa natureza, bem depressa tiveram que moderar a velocidade da fuga. De resto Youssef, que se voltava seguidamente, transmitia notícias tranqüilizadoras:
— Nenhum cavaleiro no horizonte, Senhor! Logo estaremos fora de perigo!
— Será que desistiram da perseguição? Seria demasiadamente bela!
Penetraram num pequeno vale em direção a um oásis, a fim de proporcionar um pouco de descanso e água aos cavalos. De repente, Alano que inspecionava os terrenos ao redor, sempre alerta, lançou um grito de alarme:
— Youssef! No alto da colina! Olha!
Sobre a colina que ele indicava, viam-se uns vinte cavaleiros a galope.
— Os francos não viriam por aquele lado!
— Serão, então, turcos? Como o sabes?
— Talvez tenham tomado algum atalho. Conhecem a região melhor do que nós!
— Montemos! Fujamos!... Coragem, irmãzinha!
Começou a perseguição. Infelizmente, não haviam percorrido uma milha, o cavalo de Zaní tropeçou e caiu; e, tê-la-ia arrastado certamente na queda, se Alano, sempre atento, não a houvesse, aparado no ar.
— Este pobre cavalo quebrou a perna! — disse Youssef. — Apanha o meu cavalo, princesa!
— Nada disso! — protestou Alano. — Se os cavaleiros te apanharem, massacram-te. Zaní vai comigo. É tão leve que Galará não se aperceberá da diferença de peso. Creio que a vanguarda da cavalaria franca não pode estar muito longe.
— Alá o permita! — murmurou Youssef.
O incidente, porém, havia proporcionado aos perseguidores ocasião de se aproximarem visivelmente e já se distinguiam suas armas e faces.
— Flecheiros árabes! — gritou o servo. — Que Alá nos proteja!
— Ainda não nos agarraram! — replicou o jovem. A toda, meu bom Galará!
A primeira carga de flechas foi atirada contra eles, mas não os atingiu; uma segunda, veio levantar um pouco de pó atrás. Os flecheiros, porém, avizinhavam-se perigosamente e bem depressa uma que outra seta passou sibilando pelos ouvidos dos fugitivos. A certo momento, Zaní lançou um grito de dor e vacilou. Alano teve que segurá-la.
— Que tens?
— Estou ferida!
Inclinou-se rapidamente; uma flecha havia-a apanhado no ombro e o sangue escorria, maneando-lhe a veste.
Naquele momento, Youssef lançou um grito de alegria:
— Senhor, abandonam a perseguição.
— Deus seja louvado! — respondeu Alano reerguendo a cabeça. — Acho que sei o motivo: vês aquela nuvem de pó que se desloca para o norte?
— A cavalaria franca!
Era exatamente o exército dos cruzados: agora que os fugitivos estavam fora do vale, podiam distinguir perfeitamente os cavaleiros e ouvir o surdo martelar do trote dos cavalos. Galará sacudiu a cabeça, nitrindo levemente.
Tendo passado o perigo, Alano parou, apeou e estendeu sobre a areia a Zani, que desmaiara; inclinou-se sobre ela, e com muito cuidado extraiu-lhe a flecha, que, felizmente, apenas penetrara na carne.
— Esta ferida não é grave! — disse Youssef depois de um rápido exame. Observa! A princesa recupera os sentidos.
— Alano!...
— Como te sentes?
— Onde estou? — perguntou angustiada. — Fomos presos?
— Não! Estamos livres!
— Não morrerei?
— Nunca ouvi dizer que alguém morra por causa de uma flechada desse tipo! — Responde rindo alegremente o jovem. — Deveras ser cuidada e tratada pelas damas da corte!
— E os flecheiros?
— Fugiram! Porque nossos amigos se aproximam.
Youssef tratou e envolveu a ferida com ataduras, Zaní sentiu-se melhor e quis erguer-se, apoiada ao braço de seu amigo.
Encontrando-se no cimo da colina, o pequeno grupo não podia deixar de atrair a atenção dos exploradores francos, que logo se aproximaram. O olhar do jovem cruzado podia agora distinguir seu belo exército, com todas as bandeiras desfraldadas e admirar entusiasmado a boa ordem de marcha. O sol fazia cintilar as armaduras e as pontas das lanças; Alano, reconhecendo um após o outro os estandartes, sentia-se feliz em informar Zaní.
A certo momento exultou e de olhos fixos na tropa, exclamou quase estático:
— O rei... Zaní... Balduino avança! Surge a bandeira dele!
Deixando a pequena companheira junto a Youssef, saltou à sela e saiu a toda a disparada em direção à tropa.
Já a algum tempo Balduino, a quem nada escapava, havia percebido as três figuras, que se destacavam contra o horizonte azul.
— Quem é aquele cavaleiro que numa corrida louca se dirige para cá?
— Desconfiemos, sire. . . traz armas sarracenas. . .
— Sobre a armadura, porém, ostenta uma cruz... poderia ser.
Alguns guardas já estavam incitando suas cavalgaduras a fim de reter o ímpeto da corrida do recém-chegado, quando Alano, parando o cavalo, saltou da sela e correu de braços estendidos gritando em francês:
— Sire, meu rei! Finalmente o reencontro! — E sem preocupar-se com os que o circundavam, ajoelhou-se e beijou afetuosamente a mão que lhe era estendida.
— Alano, meu irmão! — exclamou, erguendo-o. — Já não esperava mais ver-te! Chorei-te como morto!
— Caí prisioneiro, sire, não obstante todos os meus esforços! É o que de pior nos pode acontecer. Sofria por não poder reunir-me novamente ao meu exército! Graças a Deus, porém, eis-me vivo e ansioso para voltar a combater a seu lado.
— Essas palavras bastariam para identificar-te, querido amigo!
— E o meu pai?
— Sempre audaz e forte no atroz sofrimento, acreditava-te morto. Verás logo. Sofreste muito?
— Conheci horas amargas, mas neste momento esqueci tudo.
— Em mãos de quem caíste?
— Prisioneiro de um leal adversário, sire; o emir Selim, que me tratou como filho.
— Selim era um grande soldado! — observou gravemente o rei. Ter-lhe-ia agradecido de muito boa mente o que fez por ti.
— Caiu como um herói no campo de batalha.
— Acredito! E que Deus o tenha em sua glória!
— Não duvido, sire; desejo que a benevolência que tendes para com sua memória, seja endereçada a Zaní, filha dele. Entregou-me para que a guardasse e a conduzisse à sua corte, majestade!
— Onde está ela? No fortim que vamos assediar?
— Pude libertá-la, sire, pois prometera que não a abandonaria até que não estivesse em segurança. Ei-la.
Um explorador aproximou-se respeitosamente:
— Descobrimos um oásis, aqui perto.
— Pararemos alguns instantes, a fim de descansar os homens e dar água aos cavalos. Avise o capitão.
Alguns cavaleiros da escolta acompanhavam a princesa, que Youssef trazia à garupa de Galará. Alano tomou-a pela mão.
— Aproxima-te, Zaní... não temas, irmãzinha!
Sem manifestar qualquer embaraço a menina, com muita desenvoltura, saudou a Balduino:
— A filha de seu leal inimigo, sire, presta-lhe homenagem. Entrego-me com confiança à sua discrição.
— Princesa: não faltarei à palavra que Alano empenhou. Em memória de seu valoroso pai, não será minha prisioneira, mas minha hóspede.
— Tinha certeza de que esta seria a recepção, sire. Sinto-me orgulhosa de sua amizade... Alano já me chama de irmã.
— Já o percebi; e a irmã de meu amigo será minha irmã. Seja bem-vinda entre os francos. Mas... que vejo? Estás ferida?
— Oh! Não é nada! A flecha de um dos soldados de meu tio atingiu-me levemente. Alano diz, porém, que não é coisa grave.
Palestrando, haviam chegado ao oásis, onde, sob o olhar dos sentinelas, os soldados haviam apeado. À sombra de uma rocha, preparadas diversas cadeiras para Balduino e seu séquito. Alano ajudou a menina a apear e deitar comodamente sobre alguns travesseiros. E, quando já estavam para recomeçar a história de sua evasão, chegou, a toda brida, um cavaleiro.
— Chamou-me, majestade?
— Sim, senhor Aimery. E disseram-lhe o motivo?
— Não, até agora!
— Devo transmitir-lhe a melhor de todas as notícias.
— Alano.
— A Santa Virgem, ouviu-nos. Reconhece este jovem guerreiro?
Alano, que não percebera a chegada do cavaleiro, voltou-se repentinamente e atirou-se aos braços:
— Papai!
— Meu filho! Eu já te dera por morto e não esperava jamais rever-te!
— Contar-te-ei minha história, pai; permite, porém, antes que te apresente àquela que, há alguns meses chamo de minha irmã... Espero que a terás como filha.
— Já que és tu que a trazes a mim, será, pois, minha filha! — disse o velho fidalgo inclinando-se diante de Zaní.
Dada vazão à felicidade, que todos sentiam pelo feliz reencontro, passou-se, como não podia deixar de ser, às coisas práticas.
— Princesa, — disse o rei Balduino, — é necessário que nós, os cruzados, retomemos nosso mister. Não podemos, todavia, submetê-la aos perigos de uma campanha, nem fazer com que nos siga em nossas correrias. Se permite, uma escolta de honra irá conduzi-la numa liteira até Jerusalém, onde será hospedada em meu palácio, com todas as honras devidas a sua alta linhagem, e onde encontrará todos os cuidados necessários.
— As suas propostas, sire, me parecem adequadas e aceito-as plenamente — respondeu a menina.
— Apenas esteja concluída esta campanha, voltaremos a encontrar-nos. Forme-se uma escolta para a princesa. Alano, meu irmão, apreciaria comandá-la?
Alano não conseguiu dissimular seu desgosto.
— Se for uma ordem!
— Não ordeno coisa alguma, amigo! Pensava em proporcionar-te apenas uma coisa agradável.
— Sire, Zaní sabe perfeitamente quanto me apraz estar ao lado dela, mas também não ignora quanto desejo retomar a luta acompanhando meu rei... a menos que V. Majestade não me julgue digno.
— Que pensa disto tudo, princesa?
— Conheço o coração de Alano, sire, e sei quanto deseja recuperar o tempo perdido. Seria ingrata se o retivesse.
— Acredita que ele está em condições de combater?
— Quando se tem a honra de servir a um rei, que, não obstante aos seus sofrimentos, não foge do campo de batalha, que cuidados poderia ter um homem valente? — interrompeu Alano.
— Quero saber se estás em condições de agüentar esta campanha.
— Experimente.
O conde Aimery estava feliz:
— Abençôo os céus, ao constatar que a prisão não destruiu a tua coragem.
— Destruiu? Ao contrário, meu pai!
— É nisto que reconheço o meu sangue! — disse o conde com firmeza. Majestade, permita que o sigamos.
— É o que desejo. Constitui para mim imensa felicidade reencontrar o mais querido companheiro de armas.
— Esta frase, em sua boca, sire, vale mais do que um ducado.
— Então, a caminho! Princesa, auguro-lhe boa viagem.
— Adeus, Zaní! — disse Alano. — Breve nos veremos!
— Permita que lhe augure a vitória e que Deus do alto dos céus, os guie e livre de todos os perigos.
Enquanto marchavam para o assédio do fortim, o jovem cavaleiro contou ao pai e ao rei as suas aventuras:
— Podem imaginar o meu desespero, quando, recuperando-me do desmaio, encontrei-me à mercê dos meus inimigos, eu, que havia jurado jamais render-me.
— Não te rendeste, amigo! Nisso não há desonra alguma!
— Procurei fugir todos os dias, mas Selim vigiava-me muito bem. De resto, mostrou-se sempre ótimo amigo e guardo-lhe grande estima e admiração. Estarei errado, papai?
— Fazes bem, filho. O emir era homem leal.
Depois de ter respondido a todas as perguntas que lhe fizeram, Alano disse:
— Creio, sire, que posso ajudá-lo a conquistar rapidamente o fortim.
— Realmente! Conheces a praça forte!
— É uma das que tem melhor fortificações e poucas seriam as possibilidades de tomá-la, se a guarnição não estivesse desmoralizada, e sem comando eficiente. De mais a mais, só a presença de V. Majestade já deixa atordoados, os assediados.
— Sim... O rei leproso.
— Conheço uma passagem secreta que muito nos poderá ajudar na conquista, sire. Por ela, poderemos chegar rapidamente ao centro do fortim.
— Aproveitaremos, de certo e evitamos um inútil derramamento de sangue!
— Posso, então, oferecer-me como voluntário para conduzir a bom termo esse assalto?
— Isso não é ambição? Não será temerário?
— Não! Existe apenas audácia!
— Explica-nos o teu plano!
— Gostaria de ter comigo vinte homens robustos e leais, de preferência montanheses. Com dez deles penetrarei na fortaleza e os outros dez me seguirão de perto. Ao mesmo tempo, Vossa Majestade juntará suas tropas em frente ao ingresso principal e quando avistar um fogo, aceso nas ameias, ordenará o assalto, da forma que julgar mais conveniente.
Antes do anoitecer, o fortim de Selim foi assediado e nosso herói pôde expor, no local, com maiores detalhes, seu plano. Apenas anoiteceu, capitaneando um grupo de homens selecionados, Alano guindou-se pela corda até ao velho caminho da ronda e à guarita onde combatera com Ahmed. Em seguida, tendo consigo os soldados de reforço subiram pela escada de ferro que o conduziu ao torreão principal, sem que ninguém percebesse a manobra.
Subjugaram e dominaram os piquetes de guarda e acenderam um fogo sobre os bastiões. Enquanto isso Balduino ordenava o assalto, aproveitando o fato de ter Alano e seus amigos baixando a ponte levadiça.
Uma hora durou o encontro, e o fortim estava em poder dos cruzados.
Concluída a capitulação, Balduino destacou para a fortaleza uma guarnição permanente e em seguida, dirigindo-se ao amigo:
— Conde Alano, já que és o conquistador desta fortaleza, dou-te em feudo, com todas as terras que dela dependem. Ela te recordará teu rei e tua prisão.
— Como agradecer-lhe, Majestade?
— Continuando tão amigo do rei como o foste até aqui.
— Sire, serei, portanto, um amigo distante. . .
— Ah! Não! Não espero que te feches atrás destes muros. Desejo que fiques ao meu lado. Organizarás, portanto a defesa, coisa que saberás fazer com perfeição; em seguida, escolheras um bravo comandante, que te substituirá, enquanto nós continuaremos a combater.
A notícia da morte de Selim, e a captura do fortim melhor guarnecido da região, teve profunda repercussão no campo sarraceno. O próprio Saladino demonstrou-se muito sentido e um certo desânimo abateu-se sobre os guerreiros islamitas, fato que facilitou aos cristãos ocupar toda a região. Por toda parte era conhecido o valor do "rei leproso". Seu nome era respeitado em todos os confins, respeito conquistado por alto preço, pois a enfermidade que vinha dominando-o, transformava-lhe a vida num verdadeiro martírio.
A campanha, cujo início fora tão promissor, prosseguiu exitosa até ao fim, sendo concluída muito antes do tempo previsto, trazendo às tropas francas não somente grande glória, mas despojos realmente valiosos. Balduino e o amigo retornaram a Jerusalém, onde foram recebidos triunfalmente.
Terminados os combates, Alano sentia-se feliz por reencontrar-se com Zaní, de quem continuamente falava ao rei, desejoso de que a conhecesse melhor. A felicidade da menina foi ainda maior, por ver que regressava, ao lado do soberano, são e salvo. Entregue por ordem de Balduino a algumas senhoras francesas da corte, Zaní não perdera seu tempo. Tornara-se uma perfeita princesa e, a seu pedido, instruíra-se minuciosamente na religião cristã. Formosa e de coração alegre, soubera conquistar a amizade de todas as pessoas que a cercavam. Durante os dias em que ficara separada de seu jovem salvador, Zaní não deixara de elogiá-lo por sua coragem e destemor e na corte seu nome tornara-se verdadeiramente popular.
Aqueles dias de guerra e de combates, entre assaltos e privações, haviam transformado nosso herói. Zaní ficou maravilhada ao revê-lo quase homem feito, forte e bronzeado, um tanto magro, mas de coração feliz e bom como nos dias de prisioneiro.
Interessado pelas confidencias que Alano lhe fizera a respeito de Zaní, Balduino desejava conhecê-la melhor.
— Acreditas, — perguntou um dia, — que Zaní aceite ficar contigo na companhia de um leproso? Meus sofrimentos não causarão invencível repugnância àquela terna e delicada menina?
— Não o creia! Seria julgá-la mal: Zaní é uma donzela simples e cheia de dedicação. Tem idéia do que sejam seus sofrimentos, pois muitas vezes falei neles; a solidão e a infelicidade, que se abateram sobre sua pessoa, não a assustarão.
E assim foi. A princesa jamais demonstrou repugnância ou hesitação na presença de Balduino. Pelo contrário, com profunda dedicação, tratou-o na enfermidade, detendo-se muitas horas, junto com Alano, alegrando a solidão do rei.
Chegado o Natal, Zaní, satisfazendo o desejo repetidas vezes manifestado, recebeu, das mãos do bispo Guilherme de Tiro, o santo batismo. O rei Balduino empenhara-se para que a cerimônia se realizasse em sua capela e quis servir pessoalmente de padrinho.
Dali por diante, entre uma expedição e outra, a donzela não deixou mais os dois jovens, a quem tratava como irmãos; com Alano participava dos trabalhos da corte e quando o rei mais sofria com sua enfermidade, servia-lhe de enfermeira, revelando-se hábil e dedicada. Mas, quando os assuntos de estado e a doença deixavam livre a Balduino, os três abandonavam-se a uma incontida alegria e suas risadas juvenis eram objeto de comentários, entre os grandes da corte, embrulhados em suas roupas de brocado.
Capítulo 8
A corte do rei leproso
Entre alternativas de paz e de luta; de alegrias e sofrimentos; de vitórias e derrotas, os anos passaram. O rei, cada vez mais atormentado pela enfermidade, a dedicação e a amizade dos dois jovens, não esmorecia.
Certo dia, no mais aceso do combate, o conde Aimery tombou de armas em punho, quando mais uma vitória, para a qual largamente contribuíra se anunciava. Recolhido moribundo, foi ainda transportado com vida para o palácio, onde morreu poucos dias depois, nos braços de Alano, e de Zani, sempre considerada filha dileta.
Pouco antes da morte, Alano inclinou-se sobre o conde e perguntou-lhe:
— Papai, perdoa-me a fuga da abadia, feita sem o teu consentimento?
Um sorriso aflorou a seus lábios.
— Há muito tempo que esqueci tudo, meu filho, pois me proporcionas-te uma grande felicidade. Mantém bem altas as tradições de nossa linhagem, e terei orgulho de ti.
Não terminara ainda o luto pela morte do pai, quando a saúde do rei começou a declinar sensivelmente; a lepra, que não perdoa, já o impedia de montar a cavalo. Com sua indômita energia, fazia-se levar ao campo de batalha numa liteira, de onde podia continuar comandando as manobras e galvanizar, assim, os soldados, com sua presença.
Mais de uma vez, a presença apenas desse morto-vivo, bastou para lançar a desordem nas fileiras do profeta. Apesar disso, suas forças minguavam e as disputas no palácio, as intrigas que se tramavam em torno a sua sucessão, tornavam ainda mais melancólico o fim de sua vida.
— Já me suprimiram do mundo dos vivos, — confidenciava a Zaní. —Já disputam sobre o destino do meu trono, como se eu não existisse mais.
Efetivamente, ao seu redor a rede da intriga e do egoísmo ia cerrando as malhas. Não tendo nem descendentes nem irmãos, a coroa, por direito, caberia à irmã maior, a princesa Sibila, a negação total da virtude. O que Balduino possuía de humilde e sábio, ela de vaidosa e leviana.
Em seu louco cérebro compreendera que, não podendo participar da guerra, tornava-se necessário encontrar um marido-soldado, que pudesse co-dividir a coroa como ela o entendia: para ele, as campanhas e as expedições; para ela, a vida e o fausto da corte.
Mas, para atingir a esse objetivo, necessitava de um homem que, além de ser um grande guerreiro, não tivesse ambições políticas.
Sua escolha fixara-se em Alano, muito popular na corte.
Vendo-o sempre ao lado do rei enamorara-se de sua pessoa ágil e vigorosa, de seu valor a toda prova e de sua dedicação a causa da coroa.
Simples e reto como no primeiro dia, Alano estava muito longe de suspeitar que acendera uma chama tão ardente de amor. Não lhe passava pela cabeça que projetos e planos se teciam ao redor de seu nome.
Sem atinar com os ardentes olhares de que era alvo, continuava a tratá-la com a respeitosa cordialidade, que a irmã do amigo merece.
Zaní, pelo contrário, com sua intuição feminina, não tardara a perceber o que estava acontecendo; a princípio, não prestara maior atenção, tranqüila por que conhecia a indestrutível retidão de seu amigo. Conhecia porém, demasiadamente a leviana e frívola princesa, cujas aventuras haviam sido alvo de falatórios, para não compreender que jamais ela faria feliz ao corajoso e nobre Alano.
Entre os presentes de núpcias, a intrigante Sibila deporia aos pés do noivo uma coroa real, e essa poderia seduzir o jovem, tão sequioso de glórias e Zaní não queria, intervindo, correr o risco de destruir a carreira do jovem conde.
Pouco a pouco o comportamento de Sibila em relação a Zani, — que julgava sua rival — foi modificando-se; da amizade expansiva passara à reserva; da reserva à frieza, para chegar, finalmente, à uma hostilidade mal dissimulada.
Ao mesmo tempo, a ambiciosa havia iniciado de modo claro, o cerco de Alano o qual, na sua imensa simplicidade, era o único na corte que ignorava realmente o que se passava.
Zaní, em sua delicadeza, cuidara de não tocar no assunto com o amigo de infância. Impondo silêncio aos seus sentimentos, aguardava ansiosa o resultado da luta.
Muitas vezes interrogava a si mesma se Balduino, que dia a dia vivia mais retirado, estivesse a par de todas as intrigas de sua irmã. Não acreditava, todavia, de ser seu dever desvendá-los ao rei, temendo que a amizade que unia o monarca a Alano pudesse sofrer. Por isso, quando, certa noite o rei lhe falou no assunto, sobressaltou--se.
— Zaní, irmãzinha querida, depõe por um instante o livro sagrado e responde-me sinceramente; sabes que estão preparando uma linda coroa para nosso irmão Alano?
Ela não conseguiu dissimular a palidez que se estendeu sobre o rosto e apertou entre as mãos o volume:
— Ouvi falar vagamente de alguma coisa, senhor, — respondeu ela com lealdade, — mas V. Majestade sabe que não presto voluntariamente atenção às tagarelices da corte.
— Não se trata de pura conversa e se as notícias chegaram a teus ouvidos, então o assunto é de domínio público. Que pensa Alano de tudo isto?
— Alano certamente não tem qualquer idéia a respeito: deve estar muito longe de suspeitar o que se trama. De resto, — acrescentou com calor, — esta é minha opinião pessoal.
— É o que eu também penso. E quem então, está tratando de alimentar a opinião pública sobre esse assunto?
— Alano é que não!
— É o que eu julgo Alano é demasiadamente reto e cândido, para intrigar. Se ele tentasse, todos lho poderiam ler no rosto.
— De resto, estima demasiadamente a V. Majestade para especular de uma forma tão baixa sobre a sua morte.
— Concordo com isso também. E agora outra pergunta: que pensas da hipótese dele ser rei de Jerusalém?
— E é a mim que faz esta pergunta?
— A ti, como a única pessoa que, com minha exceção, está em condições de julgar objetivamente!
— Alano é um grande comandante!
— Ninguém o sabe melhor do que eu. Isto, todavia, não basta para ocupar um trono: acreditas que ele seja capaz de enfrentar vitoriosamente a toda sorte de intrigas, de que sempre será mais o mais circundado?
— A imensa candura e retidão, que possui, sempre o impedirão de ser um hábil diplomata.
— Concordo contigo também neste assunto. Agora gostaria de saber quem conduz todo esse movimento de opinião pública a favor dele.
— Não tenho idéia a esse respeito, sire.
— Minha graciosa irmã Sibila deve estar trabalhando muito nisto!
— Não cabe a mim julgá-la!
— Gostarias que ela casasse com Alano? — indagou com um leve sorriso.
A jovem empalideceu completamente e teve que recorrer a toda força de vontade para responder com voz trêmula:
— Não formei opinião a esse respeito.
— Tenho a impressão de que Sibila está usando cada vez menos de gentileza contigo, desde que circulam todos esses boatos.
— Não o notei.
Depois de um longo silêncio, o rei levantou os olhos para sua companheira e sorriu bondosamente:
— Irmãzinha querida, não temas! Apanha de novo teu livro. É bom que saibas que eu também cuido de ti.
Reabriu o livro e com voz ainda trêmula, retomou o texto sacro, no local onde suspendera a leitura:
"Não vos preocupeis com nada."
Uma hora depois, Alano, concluída a patrulha de ronda, estava de volta e quando se apresentou para fazer seu relatório, encontrou-os conversando tranqüilamente. Zaní ergueu-se para ir-lhe ao encontro e rei Balduino contemplou-o longamente. Àquelas horas de patrulha ao ar livre haviam causado imensa felicidade no coração do jovem capitão e seus olhos brilhavam intensamente.
— Majestade, tudo está em ordem! — exclamou. — E a noite é tão linda!
O rei sorriu e fez sinal aos amigos que se aproximassem. Alano tornara-se homem com todo o vigor de sua juventude, largo de ombros, robusto como um carvalho e Zaní era agora uma donzela cheia de encantos e de uma beleza arrebatadora.
— Irmão Alano, — disse Balduino, — e tu, irmã Zaní: ouvi-me bem por alguns instantes.
— Fale, sire! — responderam ambos.
— Sinto que as forças me abandonam e como a ambos eu amo com igual ternura e com ambos deposito a mesma confiança, gostaria de expor-vos meu maior desejo. Permiti que vos fale antes como soberano. Alano, tenho uma grave missão para confiar-te.
— Fale senhor! Minha vida é sua!
— O fortim de Selim, teu feudo, está ameaçado. Tenho necessidade, neste momento, de um braço vigoroso.
— Está mal defendido?
— Não, mas os sarracenos percorrem seguidamente a região. Tornam-se necessárias algumas operações de limpeza. Preciso de um homem de confiança: aceitas o encargo?
— Lamento profundamente deixá-lo, sire, mas seus desejos são ordens para mim. Quando deverei partir?
— É a resposta que eu aguardava. Agora, falarei como amigo. Irmão, não há necessidade que tu partas sozinho para essa longínqua fortaleza onde estarás exposto a todos os perigos.
— Se o julgar conveniente, levarei comigo todos os companheiros que puser a minha disposição.
— Não se trata tanto de companheiros, como de uma companheira. Gostaria que ela tivesse bastante coragem para não desmaiar diante do perigo e que te ame tanto de modo a proporcionar-te felicidade.
— Sire!
Zaní e Alano entreolharam-se de tal forma perturbados, que o rei se pôs a rir.
— Amável Zaní, aceitarias tu ser a companheira de meu melhor amigo? A esposa do soldado, sempre guerreando? Não! Não me respondas logo! Disse com um pouco de malícia. — Se casares com Alano, quero que seja por amor e não para satisfazer ao meu capricho.
— Por que faz essa pergunta, sire? — replicou a jovem. — Como nosso amigo, deve saber que nós nos amamos a longo tempo.
— Agora só nos falta saber o que pensa Alano de tudo isto!
— Nenhum outro desejo seu, majestade, ser-me-ia mais agradável.
— Então, acertei em cheio! O casamento deverá realizar-se aqui, na corte, antes do inverno e quero que se revista de todo esplendor possível. . . Sim! Esta é a minha vontade: a princesa Zaní e o Duque Alano são dignos do fausto de um rei.
— O Duque Alano, sire?
— Exatamente. Daqui por diante levarás esse título, que teu valor e tua afeição te conquistaram a longo tempo; será meu presente de casamento.
— O prazer de servir a V. Majestade é a maior retribuição.
— Oxalá encontrem toda a felicidade que mereceis e que eu havia sonhado para mim mesmo!
O casamento realizou-se logo e com toda pompa, como o desejara o rei. Excetuando a intrigante Sibila, que ardia de raiva por ver destruído todos os seus planos, ninguém encontrara qualquer objeções para ser feita. Os noivos haviam conquistado há muito tempo a simpatia e a amizade plena da corte.
No ano seguinte, satisfazendo um desejo do rei, o jovem casal foi a Jerusalém a fim de apresentar ao soberano moribundo, seu primogênito, um vigoroso menino, de nome Balduino.
Infelizmente, o pobre monarca não pôde desfrutar por muito tempo sua preciosa companhia: chegara ao extremo de seu Calvário e essa visita, tão ardentemente desejada, foi sua última alegria sobre a face da terra. Morreu poucos dias depois, nos braços de seus amigos.
Depois de sua morte, seguindo as recomendações recebidas, Alano e Zaní retiraram-se o mais depressa possível para sua fortaleza, felizes por fugirem àquele ambiente de intrigas que, depois da morte do rei, desonrou a corte de Jerusalém.
Assim, isolados do mundo, um ao lado do outro passaram a viver uma existência ternamente unida, dividindo as alegrias e as angústias, educando seus numerosos filhos nas tradições de fé e honra em que ambos viviam e que constituíam toda sua felicidade.
A. M. Hublet
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