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A SÍNDROME DE ANASTÁSIA / Mary Higgins Clark
A SÍNDROME DE ANASTÁSIA / Mary Higgins Clark

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A SÍNDROME DE ANASTÁSIA

 

Com uma mistura de relutância e alívio, Judith fechou o livro que estivera a estudar e pousou a caneta sobre o grosso bloco de notas. Havia horas que trabalhava sem parar, e sentiu que as costas lhe doíam ao afastar da secretária a antiquada cadeira rotativa. O dia estava nublado. Já tinha acendido muito antes o potente candeeiro de secretária que comprara para substituir o candeeiro vitoriano, cheio de franjas, que pertencia ao apartamento mobilado que alugara no bairro de Knightsbridge, em Londres.

 

Esticando os braços e os ombros, Judith dirigiu-se à janela e olhou a Rua Montpelier. Às três e meia, o cinzento dia de Janeiro já começava a deixar-se penetrar pelo crepúsculo que se aproximava, e o ligeiro estremecimento das vidraças da janela revelava-lhe que o vento ainda soprava com força.

 

Sorriu inconscientemente, recordando-se da carta que tinha recebido em resposta à sua consulta sobre o apartamento:

 

Cara Judith Chase,

O apartamento estará disponível de 1 de Setembro a 1 de Maio. As suas referências são muitíssimo satisfatórias e é reconfortante saber que estará ocupada a escrever o seu novo livro. A Guerra Civil na Inglaterra do século XVII tem-se revelado extraordinariamente fértil para os escritores românticos, e é agradável saber que uma autora de sérios romances históricos da sua estatura vai ocupar-se dela. O apartamento é modesto mas espaçoso e penso que o achará apropriado. O elevador encontra-se frequentemente avariado; todavia, três lanços de escadas não assustam ninguém, não lhe parece? Pessoalmente, prefiro subi-los a pé.

 

Acarta terminava com uma assinatura firme e araneiforme: ”Beatrice Ardsley”. Judith sabia, através de amigos comuns, que Lady Ardsley tinha 83 anos.


Tocou no peitoril da janela com as pontas dos dedos e sentiu o ar frio e áspero a abrir caminho do caixilho de madeira. Estremecendo, Judith concluiu que teria ainda tempo para tomar um banho quente, se se apressasse. Lá fora, a rua estava quase vazia. Os poucos peões caminhavam rapidamente, de cabeça curvada, com as golas levantadas. Quando começava a voltar-se, viu uma criança que corria pelo meio da rua, mesmo diante da sua janela. Horrorizada, Judith viu a menina tropeçar e cair. Se um carro voltasse a esquina, o condutor não a veria a tempo. Havia um homem idoso a meio da rua. Judith começou a abrir a janela para lhe gritar que fosse ajudar a criança mas nessa altura apareceu uma jovem, subitamente, que se precipitou para a criança e a ergueu e embalou nos seus braços.

 

Mamã, mamã ouviu-a Judith gritar.

 

Fechou os olhos e enterrou o rosto nas mãos, ouvindo-se a si própria choramingar: Mamã, mamã. ”Oh, meu Deus. Outra vez, não!”

 

Obrigou-se a abrir os olhos. Tal como esperava, a mulher e a criança tinham desaparecido. Só lá estava o velho, caminhando cuidadosamente pelo passeio.

 

O telefone tocou quando estava a pregar um alfinete de diamantes no casaco do seu trajo de cocktail de faille. Era Stephen.

 

Querida, o trabalho hoje correu-te bem? perguntou ele.

 

Muito bem, julgo eu. Judith sentiu a pulsação acelerar-se. Aos 46 anos de idade, o seu coração ainda se punha aos saltos, como o de uma rapariguinha, ao ouvir a voz de Stephen.

 

Judith, tenho um raio de uma reunião de emergência do Ministério e já se está a fazer tarde. Aborrecia-te muito ir ter comigo a casa da Fiona? Eu mando o carro buscar-te?

 

Não faças isso. Um táxi será muito mais rápido. Se te atrasares, é problema do Governo. Se eu me atrasar, o problema é meu.

 

Stephen riu-se:

 

Meu Deus, como tu me facilitas a vida! Baixou a voz. Estou louco por ti, Judith. Vamos ficar na festa só o tempo que parecer conveniente e depois fazemos um jantarzinho tranquilo, sozinhos.

 

Perfeito. Adeus, Stephen. Adoro-te.

 

Judith pousou o auscultador enquanto um sorriso lhe brincava nos lábios. Dois meses antes, tinham-na feito sentar, num jantar, ao lado de Sir Stephen Hallett.

 

O melhor partido de Inglaterra tinha-lhe confidenciado a anfitriã, Fiona Collins. Um autêntico espanto. Encantador. Brilhante. Ministro do Interior. Toda a gente diz que vai ser o próximo primeiro-ministro. E, minha querida Judith, acima de tudo é livre.

 

Encontrei o Stephen Hallett uma ou duas vezes em Washington há alguns anos dissera Judith. Kenneth e eu gostávamos muito dele. Mas eu vim para Inglaterra para escrever um livro e não para me envolver com um homem, por muito encantador que ele seja.

 

Que disparate retorquia Fiona. Já é viúva há dez anos. É tempo suficiente. Já ganhou nome como escritora importante. Minha querida, acredite que é agradável ter um homem em casa, especialmente se a casa vier a ser o n.210 de Downing Street. Algo me diz que fariam um par perfeito. Judith, você é uma mulher bonita mas está sempre a emitir sinais que dizem ”Afaste-se, não estou interessada”. Não faça isso esta noite, por favor.

 

E ela não tinha emitido esses sinais. E nessa noite Stephen tinha-a acompanhado a casa e subido para tomar uma bebida. Tinham conversado até amanhecer. Quando partiu, ele beijou-a levemente nos lábios.

 

Se alguma vez passei uma noite mais agradável na minha vida, não me recordo sussurrou ele.

 

Não foi tão fácil arranjar um táxi como tinha previsto. Judith aguardou uns dez minutos gelados até finalmente aparecer um. Enquanto aguardava no passeio, esforçou-se por evitar olhar para a rua. Aquele era o local exacto onde, da suajanela, vira a criança cair. Ou imaginara vê-la.

 

A casa de Fiona era uma mansão em estilo Regência, em Belgravia. Sendo deputada, Fiona gostava que a comparassem com a acerba Lady Astor. Desmond, o seu marido, presidente de um império editorial que se estendia ao mundo inteiro, era um dos homens mais poderosos de Inglaterra.

 

Depois de deixar o casaco no vestiário, Judith dirigiu-se à sala de toilette adjacente. Nervosamente, aplicou um pouco de baton nos lábios e ajeitou as madeixas de cabelo que o vento havia espalhado. O seu cabelo possuía ainda um tom natural castanho-escuro; ainda não tinha começado a esconder os fios prateados. Um jornalista, que a entrevistara, tinha um dia descrito os seus olhos como sendo de um azul de safira, e a sua pele de porcelana lembrava constantemente a toda a gente que se supunha ser ela inglesa por nascimento e herança.

 

Estava na hora de ir para a sala, para que Fiona a arrastasse de grupo em grupo. Fiona nunca deixava de fazer uma apresentação que soava um pouco a propaganda.

 

A minha queridíssima amiga Judith Chase. Uma das mais prestigiadas escritoras americanas. Prémio Pulitzer. Prémio do Livro Americano. Só não percebo por que é que esta bela criatura se especializou em revoluções quando eu lhe podia fornecer mexericos deliciosos. No entanto, os livros que ela escreveu sobre a Revolução Francesa e a Revolução Americana são simplesmente brilhantes, embora se consigam ler como se fossem romances. Agora está a escrever sobre a Guerra Civil, Charles I e Cromwell. Está absolutamente mergulhada no assunto. Até tenho medo de que ela venha a descobrir alguns segredos vergonhosos, que alguns de nós teríamos preferido não conhecer, sobre os nossos antepassados.

 

Fiona não cessava de fazer estes comentários até ter a certeza de que toda a gente sabia quem Judith era, e depois, quando Stephen chegasse, correria a informar todos de que o ministro do Interior e Judith tinham jantado ao lado um do outro, ali mesmo em sua casa, e agora... nessa altura revirava os olhos e deixava o resto por dizer.

 

À entrada da sala, Judith deteve-se por momentos, a fim de abarcar o ambiente. Cinquenta ou sessenta pessoas, calculou rapidamente; pelo menos metade eram suas conhecidas; gente do Governo, o seu editor inglês, os amigos nobres de Fiona, um dramaturgo famoso... Cruzou-lhe a mente, de passagem, a noção de que, por mais vezes que entrasse naquela sala, nunca deixava de se impressionar com a requintada simplicidade dos tecidos gastos dos sofás antigos, os quadros que poderiam estar expostos em museus, a elegância inexprimível dos belos cortinados que emolduravam as portas que abriam para o jardim.

 

Miss Chase, não é verdade?

 

Sim. Judith aceitou uma taça de champanhe de um criado, enquanto sorria de maneira impessoal a Harley Hutchinson, o colunista e entrevistador televisivo que era o maior coleccionador de mexericos de Inglaterra. Com quarenta e poucos anos, era um homem alto e esbelto, com uns olhos cor de avelã, cheios de curiosidade, e cabelos castanhos, lisos, que lhe caíam sobre a testa.

 

Permite-me que lhe diga que está encantadora esta noite?

 

Muito obrigada. Judith concedeu-lhe um breve sorriso e começou a afastar-se.

 

É sempre um prazer ver uma mulher bonita abençoada por um requintado sentido de moda. É uma coisa que raramente se encontra a nível elevado, no nosso país. Como vai o seu livro? Está a achar a nossa questiúncula Cromwelliana tão interressante como escrever sobre os camponeses franceses e os colonos americanos?

 

Oh, acho que a vossa questiúncula está à mesma altura das outras. Judith sentia que a angústia provocada pela alucinação da criança começava a desaparecer. O sarcasmo velado que Hutchinson usava como arma restaurara-lhe o equilíbrio.

 

Diga-me uma coisa, Miss Chase. Guarda para si o seu manuscrito até estar terminado, ou vai-o mostrando à medida que o escreve? Há escritores que gostam de falar do seu trabalho diário. Por exemplo, Sir Stephen está ao corrente do que tem escrito?

 

Judith achou que já era altura de o ignorar.

 

Ainda não falei à Fiona. Desculpe-me. Sem esperar pela resposta de Hutchinson, atravessou a sala. Fiona estava de costas para ela. Quando Judith a cumprimentou, Fiona voltou-se, deu-lhe dois beijos rápidos, e murmurou:

 

Só um momento, minha querida. Consegui finalmente apanhar o Dr. Patel e quero ouvir o que ele tem para dizer.

 

O Dr. Reza Patel, psiquiatra e neurologista mundialmente famoso. Judith observou-o atentamente. Tinha cerca de 50 anos. Uns olhos negros intensos que fulguravam sob as sobrancelhas grossas. Uma testa que se franzia frequentemente enquanto falava. Cabelos escuros e espessos a emoldurar um rosto sombrio de feições regulares. Um fato cinzento de riscas finas, de bom corte. Além de Fiona, havia um aglomerado de quatro ou cinco pessoas em volta dele. As suas expressões, ao escutá-lo, iam do cepticismo ao respeito temeroso. Judith sabia que a capacidade de Patel de fazer os seus pacientes, sob o efeito da hipnose, regressar à infância e levá-los a descrever experiências traumatizantes, era considerada a maior descoberta da psicanálise daquela geração. Sabia igualmente que a sua nova teoria, a que ele chamava a Síndroma de Anastásia, tinha simultaneamente chocado e alarmado o mundo científico. Penso que ainda passará muito tempo antes que me seja possível provar a minha teoriadizia Patel. Mas, afinal, ainda há dez anos muita gente troçava da minha convicção de que uma combinação de medicamentação benigna e de hipnose poderia libertar os bloqueios que a mente cria para autoprotecção. Hoje em dia, essa teoria é aceite e está a ser utilizada, de maneira geral. Por que motivo teria um ser humano de ser sujeito a anos de psicanálise para descobrir a razão do seu problema, quando esta pode ser descoberta ao fim de poucas consultas?,

 

Mas por certo a Síndroma de Anastásia é muito diferente, não é? protestou Fiona.

 

Diferente, embora notavelmente semelhante. Patel agitou as mãos. Olhe para as pessoas que estão nesta sala. Típicas do creme de la creme de Inglaterra. Inteligentes. Cultas. Chefes natos. Qualquer deles poderia ser o recipiente adequado para fazer vir até nós os grandes chefes dos séculos passados. Imaginem como o mundo estaria muito melhor se pudéssemos contar com os conselhos de Sócrates, por exemplo. Olhem, aí vem Sir Stephen Hallett. Em minha opinião, será um soberbo primeiro-ministro, mas não seria reconfortante saber que Disraeli ou Gladstone o iriam aconselhar? Que fariam praticamente parte do seu ser?

 

Stephen! Judith voltou-se rapidamente e depois deteve-se ao ver Fiona correr a cumprimentá-lo. Reparando que Hutchinson estava a observá-la, permaneceu deliberadamente junto do Dr. Patel, enquanto os outros se afastavam.

 

Doutor, se bem entendo a sua teoria, a Anna Anderson, aquela mulher que afirmou ser Anastásia, estava a ser tratada de um esgotamento nervoso. Acredita que, durante uma sessão em que se encontrava sob hipnose e tinha sido tratada com medicamentos, ela regressou inadvertidamente àquela cave, na Rússia, no momento exacto em que a grã-duquesa Anastásia foi assassinada com o resto da família?

 

Patel acenou afirmativamente com a cabeça.

 

É precisamente essa a minha teoria. O espírito da grã-duquesa abandonou o seu corpo e, em vez de ir para o outro mundo, penetrou no corpo de Anna Anderson. As suas identidades fundiram-se. Anna Anderson tornou-se efectivamente a personificação de Anastásia, com as suas recordações, as suas emoções, a sua inteligência.

 

E a personalidade de Anna Anderson? perguntou Judith.

 

Parece não ter havido conflito. Ela era uma mulher muito inteligente mas rendeu-se voluntariamente à sua nova posição de herdeira sobrevivente do trono da Rússia.

 

Mas porquê Anastásia? Por que não a sua mãe, a czarina, ou qualquer das suas irmãs?

 

Patel ergueu as sobrancelhas.

 

Uma pergunta muito sagaz, Miss Chase, e, ao fazê-la, pôs exactamente o dedo no único problema da Síndroma de Anastásia. A história diz-nos que Anastásia era, de longe, a personalidade mais forte entre as mulheres da família. Talvez as outras aceitassem a morte com resignação e passassem para outro plano. Ela não estava disposta a partir, lutou para permanecer naquela zona temporal e aproveitou-se da presença inadvertida de Anna Anderson para se agarrar à vida.

 

Quer dizer então que as únicas pessoas que, em teoria, poderiam regressar seriam aqueles que morressem contra vontade, que desejassem desesperadamente viver?

 

Exactamente. Por isso falei em Sócrates, que foi forçado a tomar cicuta, em vez de Aristóteles, que morreu de causas naturais. É esse o motivo por que eu estava a falar frivolamente quando disse que Sir Stephen poderia ser o recipiente adequado para absorver a essência de Disraeli. Disraeli morreu tranquilamente, mas um dia possuirei também os conhecimentos suficientes para fazer voltar as pessoas que morreram tranquilamente, mas cuja orientação moral possa voltar a ser necessária. E aí vem Sir Stephen ao seu encontro. Patel sorriu.Permita-me que lhe diga que admiro imensamente os seus livros. A sua cultura é um prazer.

 

Muito obrigada. Tinha de fazer a pergunta. Dr. Patel disse rapidamente, tem conseguido ajudar algumas pessoas a recuperar recordações de muita tenra idade, não tem?

 

Tenho. A sua expressão tornou-se concentrada. Não se trata de uma pergunta ociosa.

 

Pois não.

 

Patel meteu a mão no bolso e entregou-lhe um cartão.

 

Se alguma vez quiser falar comigo, telefone-me, por favor. Judith sentiu uma mão no seu braço e ergueu o rosto para Stephen. Esforçou-se por conservar um tom impessoal na voz.

 

Stephen, que alegria ver-te. Conheces o Dr. Patel? Stephen cumprimentou Patel com uma breve inclinação da cabeÇa e, dando o braço a Judith, encaminhou-a para o outro extremo da sala.

 

Queridamurmurou, em nome de Deus, por que estás a perder o teu tempo com esse charlatão?

 

Ele não é... Judith deteve-se. Stephen Hallett era a ultima pessoa de quem poderia esperar que aprovasse as teorias do Dr. Patel. Os jornais já tinham publicado a sugestão de Patel de que Stephen seria um bom candidato a ser impregnado com o espírito de Disraeli. Sorriu-lhe, deixando de se preocupar com o facto de estarem a ser observados por quase toda a gente da sala.

 

Houve um movimento geral quando a primeira-ministra foi recebida à porta pela anfitriã.

 

Geralmente não venho a muitas destas festas, a não ser por sua causa, minha querida disse ela a Fiona.

 

Stephen passou o braço em volta da cintura de Judith.

 

Já é tempo de conheceres a primeira-ministra, minha querida.

 

Foram jantar ao Brown’s Hotel. Enquanto comiam salada e linguado Véronique, Stephen falou-lhe do seu dia.

 

Talvez tivesse sido o mais frustrante de toda a semana. Que diabo, Judith, a P. M. tem de acabar depressa com as especulações. O país exige eleições. Nós precisamos de um mandato e ela sabe disso. Os Trabalhistas sabem disso, e estamos num impasse. No entanto, compreendo-a. Se ela não se candidata à reeleição, o problema está aí. Quando chegar a minha altura, também sentirei dificuldades em retirar-me da vida pública.

 

Judith começou a brincar com a salada no prato.

 

A vida pública é tudo para ti, não é, Stephen?

 

Durante todos aqueles anos em que Jane esteve doente, foi a minha salvação. Ocupava-me o tempo e o espírito, e todas as minhas energias. Durante os três anos que se passaram desde a morte dela, nem sei dizer-te a quantas mulheres fui apresentado. Saí com algumas delas e apercebi-me de que confundia os seus rostos e os seus nomes. Queres fazer um teste interessante a uma mulher? Quando ela faz planos em que estamos incluídos, fica visivelmente irritada quando chegamos inevitavelmente atrasados? Depois, certa vez, numa fria noite de Novembro, conheci-te em casa da Fiona, e a vida tornou-se diferente. Agora, quando os problemas se acumulam, há uma voz tranquila que me sussurra: ”Daqui a pouco estarás com a Judith.”

 

Estendeu a mão por cima da mesa e acariciou a dela.

 

Agora sou eu a fazer a pergunta. Tu tens uma carreira de sucesso. Já me disseste que chegas a trabalhar durante noites inteiras

e que te fechas dias a fio, quando tens um prazo a cumprir. Eu respeitaria o teu trabalho, como tu respeitarias o meu, mas haveria ocasiões, muitas ocasiões mesmo, em que eu iria precisar de ti para estares presente ao meu lado, ou me acompanhares em viagens ao estrangeiro. Isso seria um fardo para ti, Judith?

 

Judith olhou para o copo. Durante os dez anos que se tinham passado desde a morte de Keneth, tinha criado uma vida nova. Era jornalista do Washington Post quando Kenneth, correspondente da Casa Branca da Rede de Televisão Potomac Cable, tinha morrido num acidente aéreo. O dinheiro que recebera do seguro tinha chegado para abandonar o trabalho e dedicar-se ao projecto que a perseguia desde que lera um livro de Barbara Tuchman. Estava decidida a vir a ser uma escritora séria de romances históricos.

 

As milhares de horas de enfadonhas pesquisas, as longas noites agarrada à máquina de escrever, as revisões e os problemas editoriais, tudo tinha sido compensador. O seu primeiro livro, O Mundo às Avessas, sobre a Revolução Americana, tinha ganho um prémio Pulitzer e tornara-se num best-seller. O seu segundo livro, publicado havia dois anos, sobre a Revolução Francesa, Crepúsculo em Versalhes, tinha tido um êxito igual e recebera um Prémio do Livro Americano. Os críticos consideravam-na ”uma fascinante romancista que possui a cultura de um lente de Oxford”.

 

Judith pousou o olhar em Stephen. A iluminação suave que provinha dos candelabros da parede, cobertos com abat-jours, e da vela, num recipiente de vidro, que tremeluzia sobre a mesa, suavizava as linhas severas do rosto aristocrático do homem e realçava os profundos tons cinzento-azulados dos seus olhos.

 

Penso que, tal como tu, amei o meu trabalho e mergulhei nele, simultaneamente, para fugir ao facto de que, na verdadeira acepção da palavra, não tenho tido uma vida pessoal desde a morte de Kenneth. Houve tempos em que eu conseguia conjugar os prazos a cumprir com divertidos malabarismos destinados a satisfazer as exigências que resultam de se estar casada com um correspondente da Casa Branca. Penso que são maravilhosas as compensações de ser mulher além de escritora.

 

Stephen sorriu e agarrou-lhe na mão.

 

Bem vês, pensamos da mesma maneira, não é assim? Judith retirou a mão.

 

Stephen, há uma coisa que tens de tomar em consideração. Aos 54 anos ainda tens idade para casar com uma mulher que te dê um filho. Eu sempre desejei ter família, mas isso nunca aconteceu. Aos 46 já não acontece, de certeza.

 

O meu sobrinho é um rapaz fantástico e sempre adorou a Mansão de Edge Barton. Terei imenso prazer em deixar-lha, assim como o título que a acompanha, quando chegar a altura. Nesta idade, as minhas energias não se alargam já à paternidade.

 

Stephen subiu ao apartamento dela para tomar um brande. Fizeram um brinde solene, concordando em que nenhum deles desejava atrair publicidade para a sua vida privada. Judith não estava interessada em ser distraída pelas perseguições dos colonistas enquanto escrevia um livro. Quando chegassem as eleições, Stephen pretendia responder a perguntas sobre os seus planos políticos, não sobre o seu namoro.

 

Embora, evidentemente, toda a gente vá adorar-te comentou. Linda, cheia de talento, e órfã de guerra inglesa. Já imaginaste o que eles vão ter para escrever quando descobrirem a nossa ligação?

 

Invadiu-a uma súbita e real recordação do incidente dessa tarde. A criança, ”Mamã, Mamã!”. Na semana anterior, quando se encontrava junto da estátua de Peter Pan nos Jardins de Kensington, tinha sido trespassada pela impressionante sensação de já ali ter estado. Havia dez dias, quase tinha desmaiado na gare de Waterloo, certa de ter ouvido o som de uma explosão, de ter sentido fragmentos de escombros a cair à sua volta...

 

Stephendisse Há uma coisa que está a tornar-se muito importante para mim. Sei que ninguém me procurou, quando fui encontrada em Salisbury, mas eu estava bem vestida, era óbvio que cuidavam bem de mim. Haverá alguma maneira de eu conseguir localizar a minha família? Ajudas-me?

 

Sentiu a tensão invadir os braços de Stephen.

 

Meu Deus, Judith, nem penses nisso! já me contaste todos os esforços que fizeste para localizar os teus parentes e que não encontraste uma única pista. A tua família mais próxima foi provavelmente exterminada durante os ataques aéreos. E mesmo que fosse possível só conseguiríamos localizar algum primo afastado, capaz de ser negociante de drogas ou terrorista. Por favor, por minha causa, nem sequer penses nisso, pelo menos enquanto eu for uma figura pública. Depois disso ajudo-te, prometo.

 

A mulher de César deve estar acima de todas as suspeitas?

 

Ele atraiu-a contra si. Judith sentiu a boa lã do fato dele encostada ao seu rosto, sentiu a força dos braços que a envolviam. Os beijos dele, profundos e exigentes, despertavam-lhe os sentidos, agitavam os seus sentimentos e os desejos que tinha resolutamente posto de parte ao perder Kenneth. Mas, mesmo assim, sabia que não poderia esperar indefinidamente para começar a procurar a sua família.

 

Foi ela a interromper o abraço.

 

Disseste-me que tinhas uma reunião amanhã, de manhã cedo recordou-lhe. E eu vou tentar escrever mais um capítulo esta noite.

 

Os lábios de Stephen acariciaram-lhe a face.

 

Fui buscar lã para me queimar, já vi. Mas tens razão, pelo menos no futuro imediato.

 

Judith viu, da janela, o motorista de Stephen abrir-lhe a porta do Rolls. As eleições eram inevitáveis. Num futuro próximo, andaria naquele Rolls como mulher do primeiro-ministro da Grã-Bretanha? Sir Stephen e Lady Hallett...

 

Amava muito Stephen. Então, porquê aquela ansiedade? Impacientemente, dirigiu-se ao quarto, vestiu uma camisa de dormir e um roupão quente, e regressou à secretária. Poucos minutos depois, encontrava-se profundamente concentrada na elaboração do capítulo seguinte do seu livro sobre a Guerra Civil em Inglaterra. Tinha terminado os capítulos sobre as causas do conflito, os impostos avassaladores, a dissolução do Parlamento, a insistência no direito divino dos reis, a execução de Carlos I, os anos de Cromwell, a restauração da monarquia. Agora estava pronta a escrever sobre o destino dos regicidas, aqueles que tinham planeado, assinado ou elaborado a sentença de morte de Carlos I e iriam conhecer a pronta justiça de seu filho Carlos II.

 

O seu primeiro destino, na manhã seguinte, foi a Conservatória de Registos Públicos em Chancery Lane. Harold Wilcox, o conservador assistente, trouxe-lhe amavelmente pilhas de documentos antigos. Judith teve a sensação de que séculos de poeira se haviam acumulado naquelas páginas.

 

Wilcox admirava incondicionalmente Carlos II.

 

Era um rapaz de perto de 16 anos quando teve de fugir do país para escapar à sorte que ameaçava o seu pai. E era bem esperto. O príncipe conseguiu passar pelas linhas dos Cabeças Redondas em Truro e partir de barco para Jersey, e daí para França. Regressou para chefiar os Realistas, voltou a fugir para França e permaneceu aí, e na Holanda, até a Inglaterra recuperar o juízo e lhe suplicar que voltasse.

 

Esteve perto de Breda. Eu já lá estive observou Judith.

 

É um lugar interessante, não é? E se olharmos bem, encontraremos por lá muita gente com as feições características dos Stuart. Carlos II amava as mulheres. Foi em Breda que ele assinou a famosa declaração, prometendo amnistia aos executadores do seu pai.

 

Não manteve a promessa. Na verdade, essa declaração era uma mentira bem urdida.

 

O que ele escreveu foi que manifestaria misericórdia nos casos em que ela fosse pretendida e merecida. Mas nem ele nem os seus conselheiros pensavam que alguém merecesse essa misericórdia. Foram julgados vinte e nove homens pelo regicídio... a execução de um rei. Outros entregaram-se e foram para a prisão. Os que foram considerados culpados, foram enforcados e esquartejados.

 

Judith acenou afirmativamente com a cabeça.

 

Sim. Mas nunca houve uma explicação clara para o facto de o rei ter assistido à decapitação de uma mulher, Lady Margaret Carew, que era casada com um dos regicidas. Que crime terá ela cometido?

 

Harold Wilcox franziu o sobrolho.

 

Há sempre boatos a rodear os acontecimentos históricos disse. Eu nunca presto atenção aos boatos.

 

O frio desagradável dos últimos dias tinha dado lugar a um sol brilhante e a uma brisa quase balsâmica. Quando saiu da Conservatória, Judith dirigiu-se a pé até Cecil Court e passou o resto da manhã a visitar as livrarias antigas daquela área. Os turistas faziam-se representar em toda a sua força, e ela concluiu que a estação turística durava actualmente doze meses por ano. E então apercebeu-se de que, aos olhos dos ingleses, também era uma turista.

 

Com os braços cheios de livros, decidiu almoçar rapidamente numa das pequenas salas de chá perto de Covent Garden. Enquanto atravessava o mercado cheio de gente, deteve-se para observar os malabaristas e bailarinos, que pareciam especialmente festivos naquele dia agradável em que o mau tempo se suspendera.

 

E então aconteceu. O gemido contínuo e penetrante das sirenes de um alarme aéreo rasgou o ar. As bombas apagaram o sol, caindo na sua direcção; o edifício por detrás dos malabaristas desfez-se, numa massa de tijolos estilhaçados, de onde irrompiam chamas. Sentiu-se quase asfixiada. O calor e o fumo queimavam-lhe o rosto, fechavam-lhe os pulmões. Perdeu a força nos braços e os livros caíram no chão.

 

Freneticamente, estendeu os braços, procurando uma mão.

 

Mamã sussurrou.Mamã, não consigo encontrar-te.Subiu-lhe um soluço à garganta, enquanto o som das sirenes se afastava o sol regressava e o fumo se dissipava. Ao focar de novo os olhos, apercebeu-se de que estava agarrada à manga de uma mulher pobremente vestida que empurrava um carrinho cheio de flores de plástico.

 

Está bem, minha filha? perguntou a mulher. Não vai desmaiar, pois não?

 

Não. Não, já estou bem. Conseguiu apanhar os livros e dirigiu-se a uma sala de chá. Sem olhar para a lista que a criada lhe apresentava, pediu chá e torradas. Quando o chá chegou, as suas mãos ainda tremiam tão violentamente que mal conseguia segurar na chávena.

 

Quando pagava a conta, tirou da carteira o cartão que o Dr. Patel lhe tinha dado na festa de Fiona. Tinha visto uma cabina telefónica em Covent Garden. Falar-lhe-ia daí.

 

Oxalá ele esteja, suplicou enquanto marcava o número.

 

A recepcionista não queria pô-la em comunicação com ele.

 

O Dr. Patel acabou de atender o último paciente. Não tem horas à tarde. Posso marcar uma consulta para a próxima semana.

 

Diga-lhe só o meu nome. Explique-lhe que é uma emergência. Judith cerrou os olhos. O gemido das sereias de ataque aéreo. Ia acontecer outra vez.

 

E então ouviu a voz do Dr. Patel.

 

Tem o meu endereço, Miss Chase. Venha imediatamente.

 

Quando chegou ao escritório da Rua Welbeck, já tinha recuperado parte do seu autocontrole. Uma mulher magra, com uns 40 anos, vestindo uma bata branca e usando o cabelo louro preso atrás num carrapito severo, atendeu-a.

 

Chamo-me Rebecca Wadley disse. Sou assistente do Dr. Patel. O doutor está à sua espera.

 

A sala de recepção era pequena, o consultório era muito grande. Com paredes cor de cereja, uma parede coberta de livros, uma maciÇa secretária de carvalho, diversos cadeirões confortáveis e um divã acolchoado a um canto, dando nas vistas, parecia o escritório de um estudioso. Nada sugeria um ambiente clínico.

 

Subconscientemente, Judith absorveu os detalhes do local, enquanto, a convite dele, depositava os seus sacos numa mesa de mármore junto à porta da sala de recepção. Automaticamente, lançou uma olhadela ao espelho pendurado sobre a mesa e ficou sobressaltada ao ver que o seu rosto estava mortalmente pálido, os lábios acinzentados e as pupilas dos olhos muito dilatadas.

 

Sim, está com o aspecto de alguém que acaba de sofrer um choque disse o Dr. Patel. Venha cá. Sente-se. Conte-me exactamente o que lhe aconteceu.

 

A atitude amistosa que ele tinha tomado na festa desaparecera. Havia uma expressão séria nos seus olhos, tinha um ar grave, enquanto escutava. De vez em quando, interrompia-a, para melhor esclarecimento do que ela dizia.

 

Foi encontrada em criança, com menos de 2 anos, a vaguear em Salisbury. Ou ainda não tinha principiado a falar, ou não conseguia falar por causa do choque. Não tinha qualquer placa de identificação. Para mim, isso sugere que viajava com um adulto. Infelizmente, era vulgar ser a mãe ou a ama quem transportava as placas de identificação de uma criança, quando viajava com ela.

 

O meu vestido e a minha camisola eram feitos à mão disse Judith, e não me parece que isso sugira que eu tivesse sido abandonada.

 

Admira-me que tivesse sido permitida uma adopção observou Patel e, ainda por cima, por um casal americano.

 

A minha mãe adoptiva foi a Wren inglesa que me encontrou. Estava casada com um oficial da Marinha Americana. Estive num orfanato até ter quase 4 anos, altura em que lhes foi permitido levarem-me.

 

Já tinha estado em Inglaterra?

 

Várias vezes. Depois da guerra, o meu pai adoptivo, Edward Chase, esteve no corpo diplomático. Vivemos no estrangeiro, em muitos países, até eu ir para um colégio. Visitámos a Inglaterra e até voltámos ao orfanato. Estranhamente, não guardo qualquer recordação dele. Parecia-me que sempre tinha estado junto deles, e nunca me

 

1 As iniciais WREN correspondem a Women’s Royal Navy Service, ou seja o Corpo Feminino da Marinha Real Inglesa. (N. da T.)

 

preocupei com ele. Mas agora eles já morreram há alguns anos e eu estou a viver em Inglaterra há cinco meses, imersa em história inglesa, É como se todos os meus genes ingleses começassem a agitar-se. Sinto-me em casa. Pertenço a esta terra.

 

E assim todos os bloqueios defensivos que construiu no seu cérebro, em pequena, estão a ser atacados? Patel suspirou. Isso acontece. Mas penso que há mais coisas por detrás dessas alucinações do que pensa. Sir Stephen sabe que veio procurar-me?

 

Judith abanou a cabeça.

 

Não. Na realidade, ficaria até muito aborrecido.

 

Penso que ”charlatão” é a classificação que ele me atribui, não é assim?

 

Judith não respondeu. As suas mãos tremiam. Apertou-as firmemente no regaço.

 

Não importa disse Patel. Vejo aqui três factores. Está a mergulhar na história inglesa... num certo sentido, forçando a sua mente a regressar ao passado. Os seus pais adoptivos morreram e já não experimenta uma sensação de deslealdade para com eles ao procurar a sua família verdadeira. E, finalmente, o facto de viver em Londres está a acelerar o processo. A estátua de Peter Pan nos Jardins de Kensington, que imaginou ver uma criança tocar, pode, provavelmente, ser explicada com a maior facilidade. É muito possível que ali tenha brincado quando era criança. As sirenes dos ataques aéreos, os bombardeamentos. É provável que tenha sofrido ataques aéreos, embora isso não explique que tenha sido abandonada em Salisbury. E agora deseja que eu a ajude?

 

Por favor. Ontem disse que podia fazer que as pessoas regressassem à infância.

 

Nem sempre com êxito. As pessoas de espírito forte, e naturalmente considero-a entre elas, lutam contra a hipnose. Têm a sensação de que a hipnose significa a rendição da sua vontade à de outra pessoa. Por isso necessito da sua permissão para utilizar uma droga leve, se for necessário, para bloquear essa resistência. Pense nisso. Poderá voltar na próxima semana?

 

Na próxima semana?Evidentemente, tinha esperado que ele a tratasse imediatamente. Judith tentou sorrir. Amanhã de manhã telefono à sua recepcionista para marcar uma hora. ComeÇou a dirigir-se para a mesa de mármore, onde deixara a mala e os livros.

 

E então viu-a. A mesma criança. Desta vez saía da sala a correr.

 

Tão perto dela que conseguiu ver o vestido que usava. A camisola de malha. O mesmo conjunto que ela vestia quando tinha sido encontrada em Salisbury, o conjunto que se encontrava guardado num armário, no seu apartamento em Washington.

 

Deu um passo rápido em frente para ver a cara da criança, mas esta, agitando os caracóis louros que lhe cobriam a cabeça, desapareceu.

 

Judith desmaiou.

 

Quando recuperou a consciência, estava estendida no divã do consultório de Patel. Rebecca Wadley segurava um frasco por baixo das suas narinas. O odor pungente do amoníaco fez Judith recuar. Afastou o frasco.

 

Já estou bem disse.

 

Conte-me o que sucedeu ordenou Patel. Que é que viu? Entrecortadamente, Judith descreveu a sua alucinação.

 

Estarei a enlouquecer? perguntou. Isto não é nada meu. Kenneth sempre disse que eu tinha mais juízo que toda a Washington em conjunto. Que é que está a acontecer-me?

 

O que está a acontecer é que está perto de uma descoberta. Mais perto do que eu imaginava. Sente-se suficientemente forte para iniciar já o tratamento? Quer assinar os impressos de autorização necessários?

 

Quero, sim. Judith fechou os olhos enquanto Rebecca Wadley lhe explicava que ia abrir a gola da sua blusa, descalçar-lhe as botas e cobri-la com um cobertor leve. Mas a mão de Judith estava firme ao assinar os impressos que ela lhe entregou.

 

Muito bem, Miss Chase, o doutor vai principiar disse a Dr.a Wadley. Está confortável?

 

Estou. Judith sentiu que lhe arregaçavam a manga, lhe envolviam o braço com algo almofadado. Depois sentiu a picada de uma agulha na mão.

 

Judith, abra os olhos. Olhe para mim. E depois pode começar a sentir-se descontraída.

 

”Stephen”, pensou Judith, olhando para o rosto agora nublado de Reza Patel. ”Stephen...”

 

O espelho decorativo por detrás do divã era, na realidade, espelhado só de um lado, possibilitando a observação e a filmagem das sessões hipnóticas a partir do laboratório, sem distrair os pacientes. Rebecca Wadley dirigiu-se rapidamente ao laboratório. Ligou a câmara de vídeo, o aparelho de televisão, o intercomunicador e os aparelhos que iriam monitorizar a pulsação e a pressão sanguínea de Judith. Cuidadosamente, observou os lentos batimentos cardíacos, o baixamento da pressão, enquanto Judith começava a sucumbir aos esforços de Patel para a hipnotizar.

 

Judith sentia-se a flutuar, sentia que estava a corresponder às suaves sugestões de Patel para se descontrair, que caía num sono tranquilo. ”Não”, pensou. ”Não.” Começou a lutar contra aquele entorpecimento tranquilizante.

 

Não está a corresponder. Está a lutar disse a Dr.a Wadley em voz baixa.

 

Patel acenou afirmativamente com a cabeça e comprimiu o êmbolo da seringa hipodérmica fixada à mão de Judith, introduzindo uma pequena quantidade de droga no seu sistema.

 

Judith esforçava-se por acordar. O corpo avisava-a de que não devia ceder. Começou a lutar para abrir os olhos.

 

Patel voltou a introduzir mais fluido na agulha hipodérmica.

 

Atingiu a dosagem máxima, Doutor. Ela não se vai deixar hipnotizar. Está a libertar-se.

 

Dê-me o frasco de litencum ordenou Patel.

 

Doutor, eu acho que não...

 

Patel já tinha utilizado aquela droga para penetrar bloqueios psicológicos em pacientes profundamente perturbados. Tinha as mesmas características da substância utilizada no tratamento de Anna Anderson, a mulher que afirmava ser a grã-duquesa Anastásia. Era o medicamento que, administrado em quantidade, recriaria a Síndroma de Anastásia, segundo Patel pensava.

 

Rebecca Wadley, que venerava Reza Patel como um génio e o amava como homem, ficou assustada.

 

Reza, não, por favor suplicou.

 

Judith ouvia vagamente as suas vozes. A sensação de entorpecimento estava a passar. Moveu-se.

 

Dê-me o frasco ordenou Patel.

 

Rebecca foi buscá-lo, abriu-o enquanto saía rapidamente do laboratório e entrava no consultório, e ficou a ver Patel extrair uma gota do seu conteúdo e injectá-la na veia de Judith.

 

Judith sentiu que estava a deslizar. O consultório desapareceu. Estava escuro e quente e ela estava a deslizar.

 

A Dr.a Wadley regressou ao laboratório e consultou os monitores. Os batimentos cardíacos de Judith tinham-se tornado novamente mais lentos. A pressão sanguínea estava a baixar.

 

Está controlada.

 

O médico acenou afirmativamente com a cabeça.

 

Judith, vou fazer-lhe algumas perguntas. Vai ser fácil responder. Não sentirá desconforto nem dor. Sentir-se-á quente e confortável, como se estivesse a flutuar. Vamos começar por esta manhã. Fale-me do seu novo livro. Não esteve a fazer pesquisas?

 

Ela estava na Conservatória, a conversar com o conservador assistente, falando a Patel da restauração da monarquia e do facto que tinha descoberto por acaso nas suas primeiras investigações, e que a fascinava.

 

Que facto foi esse, Judith?

 

O rei assistiu à decapitação de uma mulher. Carlos II era notavelmente misericordioso. Foi generoso para com a viúva de Cromwell, até perdoou ao filho de Cromwell, que se tinha tornado Lorde Protector. Afirmou que já tinha sido derramado sangue suficiente em Inglaterra. As únicas execuções a que assistiu foram as dos homens que assinaram a sentença de morte de seu pai. Então, por que haveria de se sentir tão furioso com uma mulher ao ponto de assistir à sua execução?

 

Isso fascina-a?

 

Sim.

 

E depois de sair da Conservatória?

 

Fui até Covent Garden.

 

Rebecca Wadley vigiava e escutava, enquanto o Dr. Patel fazia Judith regressar até ao dia do seu casamento com Kenneth, ao seu décimo sexto aniversário, ao seu quinto aniversário, ao orfanato, à adopção.

 

Judith Chase não era uma mulher vulgar, concluiu a Dr.a Wadley, enquanto a escutava. A clareza das suas recordações era impressionante, mesmo à medida que regressava a pontos cada vez mais remotos da sua infância. A Dr.a Wadley pensou uma vez mais que, por muitas vezes que observasse aquele processo, nunca deixaria de se espantar ao ver um espírito abrir-se e revelar os seus segredos, ao ouvir um adulto sofisticado e cheio de auto-segurança falar com a voz doce e difícil de entender de uma criança pequena.

 

Judith, antes de ser levada para o orfanato, antes de ser encontrada em Salisbury... diga-me de que se lembra.

 

Judith abanava incansavelmente a cabeça de um lado para o outro.

 

Não. Não.

 

O monitor indicou que os batimentos cardíacos de Judith se estavam a acelerar.

 

Ela está a tentar bloqueá-lo disse Wadley rapidamente. E então, horrorizada, viu Patel introduzir mais uma gota na seringa. Doutor, não faça isso.

 

Ela está quase lá. Não posso deixá-la parar agora.

 

A Dr.a Wadley olhou para o ecrã da televisão. O corpo de Judith encontrava-se num estado de total relaxamento. Os seus batimentos cardíacos eram inferiores a quarenta, a tensão arterial era de sete cinco. ”Perigoso”, pensou a Dr.a Wadley, ”demasiado perigoso.” Sabia que existia um zelota em Patel, mas nunca o tinha visto actuar de forma tão irresponsável.

 

Diga-me o que a assustou, Judith. Tente.

 

Judith respirava em arquejos leves e rápidos. Agora as suas frases saíam fragmentadas, a sua voz tinha o tom suave e agudo de uma criança muito pequena. Iam apanhar um comboio. Ela estava agarrada à mão da mamã. Começou a gritar, num choro infantil e assustado.

 

Que está a acontecer? Diz-me. A voz de Patel era suave. Judith agarrou-se ao cobertor e, numa cadência infantil, gritou pela mãe.

 

Eles vêm aí outra vez, como quando estávamos a brincar. Disse a Mamã. ”Foge, foge!” A Mamã já não estava a segurar a minha mão. Está tão escuro... estou a subir as escadas a correr. O comboio está ali... A Mamã disse que íamos apanhar o comboio.

 

Entraste no comboio, Judith?

 

Sim. Sim.

 

Falaste com alguém.

 

Não estava lá ninguém. Eu estava tão cansada. Queria dormir, para que a Mamã estivesse lá quando eu acordasse.

 

Quando é que acordaste?

 

O comboio parou. Já havialuz outra vez. Desci os degraus...Não me lembro de mais nada depois disso.

 

Não faz mal. Não penses mais nisso. És uma menina muito esperta. Podes dizer-me como te chamas?

 

Sarah Marrssh.

 

”Marsh ou Marrish”, pensou Rebecca. Judith estava a falar como uma criança de 2 anos.

 

Quantos anos tens, Sarah?

 

Dois.

 

Sabes quando fazes anos?

 

”Catro” de Maio.

 

Rebecca subiu o volume do aparelho, tomando notas, esforçando-se por entender as palavras arrastadas e infantis.

 

Onde moras, Sarah?

 

Kent Court.

 

É feliz aí?

 

A Mamã chora muito. Eu e a Molly brincamos...

 

Molly? Quem é a Molly, Sarah? A minha irmã. Quero a Mamã. Quero a minha mana. i Judith começou a chorar. Rebecca observou o monitor. A pulsação está a acelerar. Ela está outra vez a lutar.

 

Vamos parar agora disse Patel. Tocou na mão de Judith. Judith, agora vai acordar. Vai sentir-se descansada e renovada. Recordar-se-á de tudo o que me contou.

 

Rebecca suspirou de alívio. ”Graças a Deus”, pensou. Conhecia o desejo em que Patel ardia de experimentar o litencum. Estendeu a mão para desligar o televisor e então olhou o rosto de Judith e viu que estava convulsionada pela angústia e ouviu-a gritar:

 

Parem! Não lhe façam isso!

 

As agulhas dos monitores começaram a oscilar descontroladamente.

 

Fibrilação cardíaca exclamou Rebecca. Patel agarrou nas mãos de Judith.

 

Judith, escute-me. Tem de obedecer-me.

 

Mas Judith não o ouvia. Estava junto de um cepo de execução, no interior da Torre de Londres, em 10 de Dezembro de 1660...

 

Viu, horrorizada, que uma mulher de vestido e capa verde-escuros estava a ser conduzida pelos portões da Torre, por entre a multidão ululante. A mulher parecia ter perto de 50 anos. O seu cabelo castanho estava raiado de fios grisalhos. Caminhava erecta, sem olhar para os guardas que a rodeavam. As suas feições, belamente esculpidas, estavam contorcidas numa máscara de raiva e de ódio. Tinha as mãos atadas à frente, com fios finos, semelhantes a arames, que se cravavam nos pulsos. Uma cicatriz de cor vermelha-viva, em forma de crescente, na base do polegar, brilhava à luz da madrugada.

 

Judith viu a multidão abrir-se para dar passagem a dúzias de soldados que marchavam ordenadamente em direcção a uma tribuna drapejada, perto do local da execução. As fileiras afastaram-se, dando passagem a um jovem esbelto, de chapéu emplumado, calções escuros e casaca bordada. A multidão saudou com entusiasmo enquanto Carlos II erguia a mão, a agradecer. Como que num pesadelo, Judith viu a mulher que estava a ser conduzida para o cepo parar diante de um poste, no qual havia sido espetada uma cabeça humana.

 

Continuai ordenou um soldado, empurrando-a.

 

Negais a despedida a uma esposa? O tom de voz da mulher estava gelado de desprezo.

 

Os soldados empurraram-na até ao local onde o rei se encontrava agora sentado. O dignatório a seu lado leu um pergaminho que segurava nas mãos:

 

Lady Margaret Carew, Sua Majestade considerou impróprio que fosseis enforcada e esquartejada.

 

A multidão em volta começou a apupar. Ela não tem entranhas iguais às da minha mulher? berrou um dos homens. A mulher parecia não os ouvir.

 

Simon Hallett disse amargamente traístes o meu marido. Traístes-me a mim. Se eu conseguir fugir do inferno, encontrarei uma maneira de vos castigar, a vós e aos vossos.

 

Já falasteis de mais. O capitão da guarda agarrou a mulher e tentou empurrá-la para o cepo, onde o carrasco a aguardava. Num último gesto de desafio, ela voltou a cabeça e cuspiu para os pés do rei.

 

Falso! exclamou. Prometesteis misericórdia, homem falso. Foi pena que não vos tivessem cortado a cabeça, quando cortaram a de vosso pai.

 

Um soldado bateu-lhe e arrastou-a para diante.

 

Esta morte é boa de mais para ti. Se fosse eu a mandar, eras queimada viva.

 

Judith arquejou ao notar que entre ela e a prisioneira existia uma extraordinária semelhança. Lady Margaret foi forçada a cair de joelhos.

 

Nunca mais exibirás este troçou um soldado, enquanto lhe cobria o cabelo com uma touca branca.

 

O carrasco ergueu o machado. Este ficou suspenso, por momentos, sob o cepo. Lady Margaret voltou a cabeça. Os seus olhos cravaram-se nos de Edith, suplicantes, irresistíveis.

 

Parem! Não façam isso!gritou Judith e, precipitando-se para a plataforma, lançou-se sobre a condenada e abraçou-a no momento em que o machado caía.

 

Judith abriu os olhos. O Dr. Patel e Rebecca Wadley estavam de pé, junto dela. Sorriu-lhes:

 

Sarah disse. É esse o meu verdadeiro nome, não é?

 

Até que ponto se recorda daquilo que nos contou, Judith?perguntou Patel. O seu tom de voz revelava prudência.

 

Kent Court. Foi a rua de que falei, não foi? Agora já me lembro. A minha mãe. Estávamos perto da gare de caminho-de-ferro. Ela levava-nos pela mão, a mim e à minha irmã. As bombas começaram a cair. Um zumbido de aviões lá em cima. As sirenes. O som dos motores parou. E depois toda a gente desatou a gritar. Algo me bateu na cara. Não conseguia encontrar a minha mãe. Corri e subi para o combóio. E o meu nome... é Sarah, mas isso já lhes disse. Marsh ou Marrish. Ergueu-se e agarrou na mão de Patel. Como posso agradecer-lhe? Pelo menos, já tenho qualquer coisa por onde posso começar a procurar. Aqui mesmo em Londres.

 

Qual é a última coisa de que se recorda, antes de eu a acordar?

 

De Molly. Doutor, eu tinha uma irmã. Mesmo que ela tenha morrido nesse dia, mesmo que a Mãe tenha morrido nesse dia, agora já sei alguma coisa acerca delas. Vou procurar nos registos de nascimento. Vou encontrar a criança que fui.

 

Judith abotoou a blusa, desenrolou a manga arregaçada, passou os dedos pelo cabelo, inclinou-se e procurou as botas.

 

Se eu não conseguir encontrar a minha certidão de nascimento, pode hipnotizar-me outra vez? pediu.

 

Não disse Patel firmemente. Pelo menos, não tão cedo.

 

Depois de Judith partir, Patel voltou-se para Rebecca.

 

Mostra-me os últimos minutos da gravação. Observaram ambos sombriamente a mudança de expressão de Judith de choque e horror para uma raiva cega, e ouviram-na gritar:

 

Parem! Não lhe façam isso!

 

Não lhe façam o quê?inquiriu Rebecca.Que estava Judith Chase a viver?

 

Patel tinha a testa franzida, os olhos cheios de preocupação. Não faço ideia. Tinhas razão, Rebecca, eu não devia ter-lhe
injectado o litencum. Mas talvez esteja tudo bem. Ela não se recordava da experiência que viveu, fosse ela qual fosse.

 

-Não sei, disse a Dr.a Wadley. Pousou a mão no ombro dele.

 

Reza eu tentei avisar-te. Não deves fazer experiências com os nossos pacientes, por muito que desejes ajudá-los. Judith Chase parece estar bem. Oxalá assim seja. Rebecca fez uma pausa. Só há uma coisa em que eu reparei. Reza, Judith tinha uma leve cicatriz em forma de crescente na base do polegar direito quando chegou aqui? Quando procurei uma veia na mão para introduzir a agulha, não a vi. Mas repara na última imagem antes de ela acordar. Lá está a cicatriz.

 

Stephen Hallett nem reparava na bela paisagem campestre inglesa, com uma prematura sugestão primaveril na tarde soalheira, enquanto o conduziam a Chequers, a propriedade rural da primeiraministra. A primeira-ministra tinha ido para lá após a sua breve aparição na festa de Fiona. A sua abrupta convocatória daquela manhã só poderia significar uma coisa: ia finalmente dizer-lhe que tencionava retirar-se. Ia indicar a sua preferência quanto ao seu sucessor na chefia do partido.

 

Stephen sabia que, com excepção de uma mancha na sua carreira, seria inevitavelmente escolhido. Durante quanto tempo aquele terrível escândalo de trinta anos antes continuaria a persegui-lo? Teria destruído as suas actuais possibilidades? A primeira-ministra seria suficientemente generosa para lhe dizer pessoalmente que não poderia apoiá-lo, ou iria comunicar-lhe o seu apoio?

 

Rory, seu motorista havia longo tempo, e Carpenter, o seu guarda-costas do Departamento Especial da Scotland Yard, eram homens muito inteligentes, e sentia que estavam compenetrados da importância da reunião. Quando pararam diante da imponente mansão, Carpenter saiu do carro e fez-lhe continência, enquanto Rory lhe abria a porta do veículo.

 

A primeira-ministra encontrava-se na biblioteca. Embora o calor do sol inundasse a elegante sala, vestia um pesado casacão de malha, e, de certo modo, notava-se a ausência daquela energia vital que a caracterizava sempre. Quando o cumprimentou, até a sua voz tinha Perdido o vigor habitual.

 

Stephen, não é bom perder o gosto pela luta. Estava precisamente a ralhar com a minha psique por me trair de tal maneira.

 

Com certeza, Primeira-Ministra! Stephen deteve-se. Não iria insultá-la com sentimentos ocos. Durante meses, a óbvia fadiga dela tinha sido assunto das especulações dos meios de comunicação.

 

A primeira-ministra fez-lhe sinal para que se sentasse.

 

Tomei uma decisão que é muito difícil. Vou retirar-me da vida pública. Dez anos neste cargo são suficientes para qualquer pessoa. Pretendo passar mais tempo com a minha família. O país está pronto para uma eleição e a campanha deverá ser dirigida por um chefe do partido recém-eleito. Stephen, acho que é o meu sucessor ideal. Tem tudo o que é preciso.

 

Stephen esperou um pouco. Parecia-lhe que a palavra seguinte seria ”mas”. Enganou-se.

 

Não restam dúvidas de que a imprensa vai reavivar o antigo escândalo. Eu própria o mandei investigar de novo.

 

O antigo escândalo. Era um jovem advogado de 25 anos quando tinha ido trabalhar para a firma do seu sogro. Um ano mais tarde, o seu sogro, Reginald Harworth, era condenado, por desvio de fundos dos seus clientes, a cinco anos de prisão.

 

O Stephen foi totalmente ilibado disse a primeira-ministra, mas uma coisa desagradável como essa tem tendência para estar constantemente a vir ao de cimo. Todavia, acho que o país não deverá ser privado da sua capacidade e dos seus serviços por causa do infeliz do seu sogro.

 

Stephen apercebeu-se de que todos os músculos do seu corpo estavam retesados. A primeira-ministra ia apoiá-lo. O rosto dela tomou uma expressão severa.

 

Exijo uma resposta concreta. Existe alguma coisa na sua vida pessoal que possa embaraçar o partido e custar-nos uma eleição?

 

Não existe., Não há nenhuma daquelas mulheres fáceis que gostam de vender a sua história aos jornais? O Stephen é um homem atraente e é viúvo.

 

Ofende-me a sugestão, Primeira-Ministra.

 

Não se ofenda. Preciso de saber. A Judith Chase. Apresentou-ma na noite passada. Conheci o pai dela, o pai adoptivo, penso eu. Encontrámo-nos diversas vezes ao longo dos anos. Ela parece acima de qualquer suspeita.

 

”A mulher de César deve estar acima de qualquer suspeita”, pensou Stephen. Não era isso o que tinha dito Judith na noite anterior? Tenho esperanças de me casar com Judith. Ambos concordámos que não desejamos publicidade pessoal nesta altura.

Muito sensato. Bem, pode considerar-se feliz. Os pais adoptivos

dela eram gente da melhor e ela ainda tem o encanto de ser órfã de guerra inglesa. É uma das nossas. A primeira-ministra sorriu, um sorriso que emprestou calor a todo o seu corpo. Stephen, parabéns. Os Trabalhistas vão dar-nos luta mas havemos de ganhar. O Stephen será o próximo primeiro-ministro e ninguém terá maior gosto que eu em vê-lo apresentar-se a Sua Majestade. Agora seja gentil e sirva-nos uma boa dose de uísque. Precisamos de fazer planos cuidadosos.

 

Quando saiu do consultório de Patel, Judith dirigiu-se imediatamente ao seu apartamento. No táxi, apercebeu-se de que sussurrava ”Sarrah Marsh, Sarah Marrish”. ”Vou gostar do meu verdadeiro nome”, pensou, encantada. No dia seguinte iniciaria a procura da sua certidão de nascimento. Tinha esperanças de ter nascido em Londres. Se as suas recordações estivessem certas, conhecer o seu nome e a data do seu nascimento tornava a busca infinitamente mais fácil. Não era de admirar que não a tivessem conseguido localizar. Se ela se tinha metido num comboio em Londres e seguido até Salisbury, bloqueando depois a recordação do que tinha acontecido, isso explicava a razão por que não tinha aparecido ninguém a procurá-la. Estava certa de que a mãe e Molly tinham morrido naquele dia. ”Mas talvez primos”, pensou Judith. ”Quem sabe se não tenho uma família enorme a viver mesmo ali à esquina?

Chegámos, Miss.

 

Oh!Judith procurou a carteira dentro da mala.Estava distraída.

 

No apartamento, fez uma chávena de chá e dirigiu-se resolutamente para a secretária. Sim, no dia seguinte teria tempo de sobra para iniciar a busca de Sarah Marrish. Naquele dia seria preferível continuar a ser Judith Chase e voltar ao seu livro. Estudou as notas que tinha tomado na Conservatória e pensou de novo naquela mulher, Lady Margaret Carew, que tinha sido executada na presença do reií perguntando a si própria qual teria sido o seu crime.

 

Eram perto de seis horas quando Stephen telefonou. O toque agudo do telefone, tão diferente do dos telefones americanos, arrancou Judith, sobressaltada, da concentração total que experimentava quando escrevia. Admirada, ao ver quanto tempo tinha passado apercebeu-se de que, com excepção do candeeiro da secretária, o apartamento estava às escuras. Estendeu a mão para o telefone, às apalpadelas.

 

Está?

 

Querida, aconteceu alguma coisa? Pareces perturbada. A voz de Stephen revelava preocupação.

 

Santo Deus, não. É que, quando estou a escrever, entro noutro mundo. Levo um minuto ou dois a regressar à Terra.

 

E por isso que escreves tão bem. Jantamos esta noite na minha casa? Tenho notícias interessantes.

 

E eu tenho notícias interessantes também. A que horas?

 

Oito está bem? Eu mando o carro.

 

Oito está óptimo.

 

Pousou o auscultador, sorrindo. Sabia que Stephen detestava perder tempo ao telefone, mas conseguia sempre ser breve sem parecer abrupto. Decidindo que já tinha trabalhado bastante, foi acendendo os candeeiros enquanto atravessava a sala e o pequeno hall, em direcção ao quarto.

 

”Há uma outra coisa terrivelmente inglesa em mim”, pensou, alguns minutos mais tarde, enquanto se descontraía dentro de água quente e perfumada. ”Adoro estas banheiras de ferro com pés em forma de garras.”

 

Tinha tempo para um breve repouso, para se deitar um pouco, pensou, enquanto se cobria com a colcha. Quais seriam as notícias de Stephen? O seu tom era quase neutro, de modo que não deviam ter nada a ver com a eleição, ou teriam? Não, claro que não. Nem mesmo ele tinha assim tanto sangue-frio.

 

Começando a vestir-se, Judith decidiu^se por uma seda estampada que tinha comprado em Itália. Sempre tinha achado que as suas cores vivas se assemelhavam ao efeito de tintas lançadas indiscriminadamente sobre uma paleta. Era um vestido capaz de iluminar a noite de Janeiro, agora nublada. Era um vestido com que se davam notícias agradáveis.

 

Stephen, gostas do nome de Sarah?

 

Deixou o cabelo solto, a roçar a gola do fato. O colar de pérolas que tinha sido da sua mãe, da sua mãe adoptiva. Os brincos de pérolas e diamantes, a fina pulseira de diamantes. Uma noite festiva. Não pareces ter a idade que tens, assegurou à sua imagem no espelho. E então pensou: ”Hoje já tive 2 anos.” Talvez isso ajudasse a recuperar um pouco da juventude. Sorrindo perante a possibilidade, olhou para as mãos, tentando decidir que anéis usar.

 

E então viu-a. A leve marca da cicatriz em forma de crescente na base do polegar. Franzindo a testa, tentou recordar-se de há quanto tempo a tinha. Quando era adolescente, tinha entalado uma mão na porta de um carro e ficado bastante ferida. As cicatrizes da cirurgia plástica tinham levado longo tempo a desaparecer.

 

E agora uma delas estava a reaparecer, pensou. Lindo!

 

Faltavam cinco minutos para as oito. Sabia que o carro já estava à sua espera. Rory chegava sempre cedo.

 

O apartamento citadino de Stephen ficava na Lord North Street. Ele recusou-se a transmitir-lhe as notícias antes de acabarem de jantar e estarem instalados no profundo sofá de costas altas da biblioteca. No fogão de sala ardia um bom fogo e havia uma garrafa de Dom Perignon a gelar num balde de prata. Ele mandou sair os criados e fechou as portas da biblioteca. Solenemente, pôs-se de pé, desenrolhou o champagne, encheu as taças e estendeu-lhe uma.

 

Vamos fazer um brinde.

 

A quê!

 

Às eleições gerais. À garantia da primeira-ministra de que me apoiará como seu sucessor na chefia do partido.

 

Judith pôs-se de pé, de um salto.

 

Stephen, oh meu Deus, Stephen.Tocou com o seu copo no dele. A Inglaterra tem muita sorte.

 

Os seus lábios encontraram-se e permaneceram colados. Depois ele avisou-a:

 

Querida, nem uma palavra disto a ninguém. O plano consiste em eu, nas próximas três semanas, mais ou menos, preparar uma estratégia de campanha, fazer declarações políticas aos órgãos de comunicação, mostrar-me bastante nas conferências da CEE sobre terrorismo e ir discretamente recolhendo apoios.

 

Em Washington chama-se a isso desenvolver o perfil. Os lábios de Judith acariciaram-lhe a testa. Meu Deus, sinto tanto orgulho de ti, Stephen.

 

Ele riu-se.

 

Desenvolver o perfil é exactamente o meu objectivo. Nessa altura, a primeira-ministra anunciará a sua decisão de não se recandidatar.

 

A primeira batalha será quando o partido escolher um novo líder. Há concorrência, mas com o apoio dela vai correr tudo bem. Uma vez que eu tenha sido eleito chefe do partido, a P. M. irá falar com a rainha e pedir a dissolução do Parlamento. As eleições gerais seguem-se um mês depois. Envolveu-a nos braços.

 

E se o nosso partido ganhar as eleições e eu vier a ser primeiro-ministro, nem sei dizer-te o que representa para mim saber que estarás aqui, ao fim do dia. Querida, nunca me tinha apercebido de como me encontrava sozinho, durante todos aqueles anos em que Jáne esteve doente, até àquela noite em casa da Fiona, em que te encontrei. Tão elegantemente vestida. Tão espirituosa e bela. E nos teus olhos aquela sugestão de tristeza.

 

Não estão tristes agora.

 

Voltaram a instalar-se no sofá, ele com as longas pernas apoiadas na mesinha forrada de cabedal, ela aninhada ao lado dele.

 

Conta-me todos os pormenores da tua entrevista com a primeira -ministra exigiu.

 

Bem, garanto-te que, nos primeiros momentos, estava certo de que ela me ia pôr de parte com a maior delicadeza possível. Acho que nunca te falei do meu sogro.

 

Enquanto escutava o relato que Stephen lhe fazia do escândalo, e lhe falava do receio que sentira de que isso lhe custasse o apoio da primeira-ministra, Judith apercebeu-se de que não poderia falar-lhe da sua visita ao Dr. Patel, nem podia pedir a ajuda dele para descobrir o seu passado. Não era de admirar que ele se tivesse oposto tão veementemente ao seu desejo de descobrir a sua verdadeira família. E os jornais não quereriam outra coisa senão descobrir que a futura mulher do primeiro-ministro tinha consultado o controverso Reza Patel.

 

Conta-me agora as tuas notícias disse Stephen. Disseste-me que tinhas boas notícias.

 

Judith sorriu e acariciou-lhe o rosto com a mão.

 

Ainda me lembro de quando Fiona me disse que ia colocar-me ao teu lado, naquele jantar. Disse-me que tu eras absolutamente espantoso. E tinha razão. As minhas notícias empalidecem, depois de ouvir as tuas. Ia falar-te de uma conversa tremendamente interessante que tive hoje com o conservador. Pareceu-me que adorava o facto de Carlos II ser louco por mulheres. Ergueu os lábios para os dele, abraçou-o e sentiu a ávida reacção do homem. ”Oh, meu Deus”, pensou, ”amo-o tanto”. E disse-lho.

 

Na sexta feira à noite foram para a casa de campo de Stephen, em Devon. Durante a viagem de três horas de carro, ele falou-lhe da Mansão de Edge Barton.

 

Fica em Branscombe, uma linda aldeia antiga. Foi construída nos tempos da Conquista Normanda.

 

Há cerca de novecentos anos interrompeu Judith.

 

Não me posso esquecer de que estou a falar com uma historiadora. A família Hallett adquiriu a propriedade quando Carlos II regressou ao trono. Penso que tenhas encontrado algumas referências a ela nas tuas pesquisas. É um local encantador. Não me sinto muito orgulhoso do meu antepassado, Simon Hallett. Aparentemente, era um sujeito muito traiçoeiro. Mas tenho esperanças de que irás adorar Edge Barton tanto como eu.

 

A mansão ficava situada numa saliência perto de uma ravina arborizada. Brilhavam luzes por detrás das janelas de caixilhos, enviando raios de luz para as pedras do exterior. O telhado de ardósia brilhava, sombrio, sob o crescente luar. Do lado esquerdo, uma ala de empenas, com três andares, que Stephen lhe disse ser a mais antiga do edifício, erguia-se majestosamente acima das copas das árvores. Stephen apontou para a porta ao estilo Cromwell, com uma bandeira semicircular e traves brilhantes, perto da ala direita da mansão.

 

Os antiquários passam a vida a suplicar-nos que lhes vendamos aquela porta. De manhã poderás ver o que resta do fosso. Agora está seco, mas aparentemente constituiu uma boa defesa, há mil anos.

 

As pesquisas que fizera para o seu livro tinham posto Judith ao corrente das casas antigas, mas quando o carro parou junto da porta principal de Edge Barton ela apercebeu-se de que, fosse qual fosse a sensação que estava a experimentar, era totalmente diferente das suas reacções perante outras mansões históricas.

 

Stephen observava-lhe a expressão.

 

Bem, querida, parece-me que a aprovas. Sinto-me como se voltasse para casa.

 

De braço dado, exploraram o interior da casa.

 

Há anos que passo aqui muito pouco tempo disse Stephen. Jane estava muito doente. Ela preferia Londres, onde os amigos a podiam visitar mais facilmente. Eu vinha sozinho e permanecia aqui apenas o tempo suficiente para atender o meu eleitorado.

 

A sala de estar, a sala de jantar, o grande salão, o fogão de sala Tudor no quarto por cima da sala, a escadaria normanda da ala antiga as magníficas janelas de forma côncava, a pedra macia e lisa do salão do andar superior que gerações de crianças haviam coberto com desenhos de barcos e pessoas, cavalos e cães, iniciais, nomes e datas. Judith tinha parado a examiná-los quando um criado subiu as escadas.

 

Um telefonema para Sir Stephen.

 

Volto já, querida murmurou ele.

 

Havia um conjunto de iniciais que parecia arder na parede. V. C., 1635. Judith passou os dedos sobre elas.

 

Vincent murmurou Vincent.

 

Como num sonho, atravessou o hall e subiu a escada que levava ao salão de baile no quarto andar. Tudo estava totalmente às escuras. Tacteando a parede, encontrou o interruptor e observou a sala que se ia enchendo de pessoas com trajos formais do século XVII. A cicatriz da sua mão começou a brilhar. Era o dia 18 de Dezembro de 1641...

 

Edge Barton é uma casa magnífica, Lady Margaret.

 

Não posso discordar. O tom de Margaret Carew era frio, ao dirigir-se ao jovem janota, cujos cabelos cuidadosamente encaracolados, feições correctas e roupas afectadas não conseguiam esconder o ar de dissimulação e duplicidade que emanava de Hallett, filho bastardo do duque de Rockingham. O vosso filho Vincent lança-nos olhares mal humorados. Penso que não lhe agrado disse. Terá ele alguma razão para não gostar de vós? Talvez pressinta que estou apaixonado por sua mãe. Na verdade, Margaret, John Carew não é homem para vós. Tínheis 15 anos quando vos casastes com ele. Aos 32 sois mais bela que qualquer outra mulher presente nesta sala. Que idade tem John? Cinquenta? E está praticamente incapacitado, desde que teve o acidente de caça.

 

E é o meu marido que eu amo ternamente. Margaret captou o olhar do filho e acenou-lhe com a cabeça. Rapidamente, ele atravessou a sala, ao seu encontro.

 

Mãe.

 

Era um belo rapaz, alto e bem desenvolvido para os seus 16 anos. As suas feições revelavam nitidamente que era um Carew, mas como Margaret lhe recordava, por brincadeira, podia agradecer-lhe a ela o espesso cabelo castanho e os olhos verde-azulados. Eram característicos da família Russel.

 

Simon, conheceis o meu filho Vincent. Vincent, recordas-te por certo de Simon Hallett.

 

Recordo-me.

 

E de que vos recordais exactamente a meu respeito, Vincent?

 

O sorriso de Hallett era condescendente.

 

Recordo-me de que vos mostrais absolutamente indiferente aos novos impostos que ameaçam toda agente nesta sala. Mas, como observou o meu pai, quando uma pessoa nada tem sobre que pagar impostos é muito fácil prometer lealdade a um monarca que acredita no direito divino dos reis. Não é verdade, Mr. Hallett, que é a esperança da vossa raça que as propriedades que são confiscadas por falta de pagamento dos impostos pela coroa venham um dia a ser entregues aos defensores do rei? A vós mesmo? O meu pai já notou a cobiça nos vossos olhos quando acompanhais os vossos amigos à Mansão de Edge Barton. Será verdade que esta casa tenha um grande fascínio sobre vós, para além do vosso óbvio interesse pela minha mãe?

 

A ira avermelhava o rosto de Hallett.

 

Soi’s impertinente.

 

Lady Margaret riu-se e deu o braço ao filho.

 

Não, é um jovem muito astuto. Acaba de vos transmitir a mensagem exacta que eu lhe pedira que transmitisse. Tendes toda a razão, Mr. Hallett. O meu esposo, Sir John, não se encontra bem e é por isso que não posso incomodá-lo, pedindo-lhe que fale convosco. Não volteis a entrar nesta casa com o pretexto de acompanhar amigos mútuos. Não sois bem-vindo aqui. Se sois efectivamente tão íntimo do rei como pretendeis fazer-nos crer, dizei a Sua Majestade que o motivo por que muitos de nós fugimos da sua Corte é o de não podermos suportar o seu desprezo pelo Parlamento, as suas afirmações de direito divino, a sua indiferença perante as genuínas necessidades e direitos do seu povo. A minha família tem estado tanto na Câmara dos Lordes como na Câmara dos Comuns, desde que o Parlamento foi criado. Corre nas nossas veias o sangue dos Tudor, mas isso não quer dizer que voltemos aos dias em que o único direito que o Monarca reconhecia eram as suas vontades e obstinação.

 

A sala encheu-se de música. Margaret voltou as costas a Hallett, sorriu ao marido, que estava sentado entre amigos, com a bengala a seu lado, e dirigiu-se à pista de dança com o filho.

 

Tens a graciosidade do teu paidisse. Antes do acidente, costumava dizer-lhe que era o melhor dançarino de Inglaterra.

 

Vincent não retribuiu o sorriso da mãe.

 

Mãe, o que vai acontecer?

 

Se Sua Majestade não aceitar as reformas que o Parlamento exige, haverá uma guerra civil.

 

Então eu lutarei pelo lado do Parlamento.

 

Praza a Deus que na altura em que tiveres idade para lutar tudo esteja já resolvido. Até mesmo Carlos deve saber que não pode ganhar esta batalha de consciência.

 

Judith abriu os olhos. Stephen estava a chamá-la. Abanando a cabeça, correu para a escada.

 

Estou aqui em cima, querido. Quando ele a alcançou, Judith rodeou-lhe o pescoço com os braços. Tenho a sensação de sempre ter conhecido Edge Barton.Não reparou que a cicatriz da sua mão, que tinha ostentado um tom vermelho-vivo, voltava a ser uma marca pálida, quase indistinguível.

 

Na segunda-feira, Judith foi de carro até Worcester, para observar o local onde se travara o mais importante conflito da Guerra Civil. Tinha tido lugar naquela cidade em 1651. Dirigiu-se em primeiro lugar à Casa do Comando, o edifício de madeira que servira de quartel-general a Carlos II. Totalmente reconstruída, continha uniformes, elmos e mosquetes, em que os visitantes eram encorajados a pegar. Quando agarrou no uniforme de um capitão do exército de Cromwell, Judith experimentou uma sensação de terrível tristeza. Uma representação audiovisual evocava, de forma realista, o recontro histórico e os acontecimentos que a ele tinham conduzido. Com os olhos a arder, começou a ver o filme, sem se aperceber de que tinha cerrado os punhos.

 

Um assistente entregou-lhe um mapa daquilo a que o museu chamava o Périplo da Guerra Civil, onde estavam marcados os diversos passos da batalha de Worcester. Explicou-lhe:

 

As tropas realistas foram firmemente derrotadas na batalha de Naseby. A guerra terminou efectivamente nesse dia, ganha por Cromwell e pelos Parlamentaristas. Mas continuou a arrastar-se. Travou-se aqui o recontro final. Os Realistas eram chefiados pelo jovem Carlos. Apenas com 21 anos de idade, os historiadores afirmam que ele constituiu ”um incomparável exemplo de coragem”, mas de nada lhe serviu. Tinham perdido quinhentos oficiais em Naseby e nunca se conseguiram recuperar dessa perda.

 

Judith saiu da casa de Comando. Estava um dia típico de Janeiro, frio, um pouco húmido. Ela vestia uma Burberry, com a gola subida em volta do pescoço. Tinha prendido o cabelo num coque, e algumas madeixas tinham-se escapado e vindo emoldurar o seu rosto agora muito pálido, com as pupilas dilatadas.

 

Seguiu o mapa, enquanto percorria a cidade, parando para consultar as suas notas e para anotar impressões. No cimo da Catedral de Worcester olhou para baixo, recordando-se de que, naquele preciso local, Carlos II tinha estado a observar os preparativos de Cromwell para a batalha. E quando se tornara óbvio que a batalha estava perdida, as tropas Realistas tinham avançado para um massacre inevitável, num ataque final contra os Parlamentaristas, a fim de proteger a fuga do seu futuro monarca. Dali tinha partido Carlos para a sua longa e angustiosa jornada através da Inglaterra, até ao santuário em França.

 

”Foi pena que ele escapasse”, pensou Judith amargamente, enquanto a cicatriz da sua mão começava a avermelhar-se. Já não estava diante dela a paisagem invernosa de Worcester. Era uma quente tarde de Julho de 1644, e ela seguia numa carruagem fechada, através de Marston Moor, na esperança de descobrir que Vincent ainda se encontrava vivo...

 

O toque dos tambores acompanhava a marcha de um pequeno destacamento de Cabeças Redondas. À vista da carruagem que se aproximava, duas sentinelas avançaram e barraram-lhe a passagem com longas lanças.

 

Lady Margaret saiu da carruagem. Envergava um vestido simples de linho azul, com uma gola branca de folhos. Caía-lhe dos ombros uma capa a condizer. Com a excepção da sua aliança de casamento, não usava jóia alguma. O seu espesso cabelo castanho, agora raiado de prata, estava preso na nuca. A dor ensombrava os seus olhos azul-esverdeados, os olhos da aristocrática família Russel.

 

Por favor suplicou. Sei que há aí muitos feridos caídos sem tratamento. O meu filho combateu aqui.

 

De que lado?Apergunta do soldado foi acompanhada de um sorriso de escárnio.

 

É oficial do exército de Cromwell.

 

Pelo vosso aspecto, diria que éreis um Realista. Lamento muito, minha senhora, mas já há mulheres de mais a procurar por estes campos. Tenho ordens para não deixar passar mais ninguém. Nós nos ocuparemos dos corpos.

 

Por favor suplicou Margaret. Por favor. Um oficial avançou.

 

Como se chama o vosso filho, minha senhora?

 

Capitão Vincent Carew.

 

O oficial, um tenente de feições vulgares, com trinta e poucos anos de idade, falou com ar grave.

 

Conheço o capitão Carew. Não o vejo desde que a batalha terminou. Estava encarregado do regimento de Langdale. Encontrava-se naquele terreno húmido à direita. Talvez devêsseis começar a procurar por ali.

 

Os campos estavam cobertos de mortos e moribundos. Entre eles moviam-se mulheres de todas as idades, procurando os seus maridos e irmãos, pais e filhos. As armas quebradas e os cavalos mortos davam provas da ferocidade do recontro. O ar quente e abafado da tarde enchia-se de insectos que zumbiam em volta dos corpos caídos. Ouviam-se esporádicos gritos de agonia e dor, quando eram encontrados entes queridos. Margaret começou também a procurar. Muitos dos corpos tinham o rosto voltado para baixo, mas ela não precisava de os voltar. Procurava o cabelo castanho-claro do filho, que se recusara a adoptar o corte em redondo adoptado por muitos dos componentes do exército de Cromwell, um cabelo espesso, encaracolado, a emoldurar um^ rosto juvenil.

 

À sua frente, uma jovem de cerca de 19 anos caiu de joelhos e abraçou-se a um soldado morto, que vestia o uniforme dos realistas. Gemendo, embalou-o nos braços.

 

Edward, meu esposo.

 

Margaret acariciou o ombro da rapariga, num gesto mudo de simpatia. E então constatou o que tinha acontecido. A espada do soldado morto ainda estava apertada na sua mão. Tinha pedaços de pano agarrados. A poucos passos dele, jazia um jovem oficial Parlamentarista, com o peito aberto. Margaret empalideceu ao aperceber-se, instintivamente, de que o tecido que faltava na sua túnica era o que se agarrava à espada do soldado. A cabeça envolta em cabelos castanhos. As belas feições patrícias tão semelhantes às de seu pai. Os olhos azul-esverdeados da família Russel, que a fitavam sem a ver.

 

Vincent, Vincent. Ajoelhou-se ao lado dele, embalou a cabeça do filho contra os seios, aqueles seios que vinte anos antes os seus lábios infantis haviam procurado... Lutarei pelo Parlamento. Praza a Deus que quando tiveres idade para combater, tudo esteja resolvido. Até mesmo Carlos deve saber que não poderá ganhar esta guerra de consciência. A jovem cujo marido tinha morto Vincent começou a gritar:

 

Não... não... não...

 

Margaret olhou-a. Era jovem, pensou. Encontraria outro esposo. Eu nunca mais terei outro filho. Com infinita ternura, beijou Vincent nos lábios e na testa e estendeu-o no terreno pantanoso. O cocheiro ajudá-la-ia a levar o seu corpo para a carruagem. Por momentos deteve-se junto da rapariga que soluçava.

 

Foi uma pena que a espada de vosso marido não tivesse trespassado o coração do reidisse. Se fosse minha, aí encontraria o seu alvo.

 

Judith estremeceu. O sol tinha desaparecido e a força do vento aumentava. Notou que se encontrava perto dela um grupo de turistas. Um deles tentou chamar a atenção do guia:

 

Em que ano foi executado Carlos I?

 

Foi decapitado em 30 de Janeiro de 1649 disse Judith. Quatro anos e meio após a batalha de Marton Moor. Depois sorriu. Desculpe. Não queria intrometer-me. Desceu apressadamente as escadas, ansiosa por se afastar daquele lugar, por regressar ao seu apartamento, acender o fogão de sala, beber um xerês. ”É curioso”, pensou, enquanto guiava através do trânsito crescente, ”quando comecei a escrever este livro sentia muito mais simpatia pelos Realistas. Achava que os Stuarts, desde Mary, eram estúpidos ou manhosos, e que Carlos I era ambas as coisas mas não devia ter sido executado. Quanto mais aprofundo esta pesquisa, mais acredito que o Parlamentarista que assinou a sua sentença de morte tinha razão, e se eu lá estivesse teria assinado com eles...”

 

No dia seguinte, com o coração aos pulos, Judith subiu o degrau baixo que conduzia ao guarda-vento da Conservatória do Registo Civil, St. Catherine’s House, em Kingsway. ”Deus queira que seja aqui”, rezou silenciosamente, recordando-se das histórias que os seus pais adoptivos lhe tinham contado sobre o modo como as autoridades tinham passado a pente fino os registos da paróquia de Salisbury e afixado o seu retrato nas comunidades próximas, na esperança de localizar a sua família. Mas se ela tinha nascido em Londres e subido para o comboio... ”Oxalá seja verdade”, pensou. ”Oxalá seja verdade.”

 

Tinha planeado aquela visita para o dia anterior, mas, ao consultar a sua agenda, verificara que tinha marcado para aquele dia a ida a Worcester e decidira, sem hesitação, manter o seu programa. Teria sido por recear que fosse mais um beco sem saída, que a recordação do bombardeamento perto da estação, os nomes Sarah e Molly Marsh ou Marrish não passassem de detalhes que a sua mente hipnotizada tinha caprichosamente produzido?

 

Ao balcão, teve de esperar numa bicha inesperadamente longa. Pelas conversas que ouvia, constatou que a maior parte das pessoas pretendia localizar antepassados. Quando finalmente foi atendida, o empregado explicou-lhe que os registos de nascimento estavam guardados na primeira secção, arquivados em grandes volumes com indicação dos vários anos.

 

Cada ano está dividido em quatro trimestres e os livros têm as indicações de Março, Junho, Setembro e Dezembro informou o funcionário. Que data pretende?... Quatro ou catorze de Maio? Então terá de procurar no volume de Junho. Contém os registos de Abril, Maio e Junho.

 

A sala parecia uma colmeia em actividade. O único local para se sentar era a uma das mesas semelhantes a longos bancos. Judith despiu a capa verde com capuz que tinha impulsivamente comprado nessa manhã no Harrods.

 

É encantadora, não é? tinha dito a vendedora. E está perfeita para este tempo estranho. Não é muito pesada, mas com uma camisola por baixo fica bastante quente.

 

Judith vestia o seu tipo de roupa favorito, uma camisola de malha grossa, calças e botas. Sem prestar atenção aos olhares de admiração que a seguiam, foi buscar o livro com a indicação de Junho de 1942.

 

Com grande tristeza, descobriu que, sob os apelidos Marsh e Marrish não havia qualquer Sarah nem mesmo Molly registadas. Seria possível que tudo o que dissera sob o efeito da hipnose não passasse de pura fantasia? Voltou à bicha e acabou por conseguir falar de novo com o funcionário.

 

É obrigatório registar o nascimento de uma criança dentro de um mês após o seu nascimento?

 

Exactamente.

 

Então tenho o livro certo.

 

Oh, não necessariamente. O ano de 1942 foi um ano de guerra.

 

É muito possível que o nascimento só tivesse sido registado no trimestre seguinte ou mesmo mais tarde.

 

Judith voltou para a mesa e começou a percorrer com o dedo as páginas dos Marrish e Marsh, procurando a inicial média S. ”Talvez Sarah fosse o nome do meio”, pensou. ”Há pessoas que chamam as crianças pelo nome do meio quando o primeiro nome é igual ao da mãe. Mas não havia qualquer Marsh ou Marrish do sexo feminino com essa inicial. Cada linha continha o apelido e o nome próprio do recém-nascido, o nome de solteira da mãe e a freguesia onde o nascimento tinha ocorrido. E, juntamente com essas informações, havia ainda o número do volume e da página do índice, necessários a fim de se obterem cópias da certidão de nascimento. ”Sem o nome certo, vou acabar num beco sem saída”, pensou.

 

Só saiu à hora de fechar. Doíam-lhe os ombros de tantas horas que passara debruçada sobre os livros enormes. Ardiam-lhe os olhos e sentia a cabeça a latejar. Não ia ser fácil. Se ao menos pudesse pedir ajuda a Stephen... Ele poria funcionários a ajudá-la na sua tarefa. Talvez houvesse meios de pesquisar registos que ela desconhecia... E talvez a sua mente lhe tivesse pregado uma partida e Sarah Marrish ou Marsh não passasse de uma fantasia da sua imaginação.

 

Havia uma chamada de Stephen no gravador do telefone. Ao ouvir a sua voz, ficou mais animada. Apressou-se a marcar o número particular dele.

 

Continuas a queimar pestanas? perguntou-lhe quando ele veio ao telefone.

 

Stephen riu-se.

 

Posso perguntar-te o mesmo. Como correram as coisas em Worcester? Estás impressionada com a nossa falta de amor paternal?

 

Ela tinha deixado implícito que voltaria a Worcester naquele dia. Não iria falar-lhe da pesquisa sobre a sua família, decididamente.

 

Hesitou um pouco e depois disse rapidamente:

 

A pesquisa foi um pouco lenta, hoje, mas são ossos do ofício. Stephen, gostaste tanto do nosso fim-de-semana como eu?

 

Ainda não parei de pensar nele. Pareceu-me um oásis, neste período da minha vida.

 

No sábado e no domingo em Edge Barton tinham andado a cavalo. Stephen tinha seis cavalos no estábulo. O seu próprio cavalo, Market, um cavalo castrado, negro de azevinhe, e Juniper, uma égua, eram os seus favoritos. Eram ambos cavalos de salto. Stephen tinha ficado encantado ao ver que Judith o conseguiu acompanhar no passeio a galope por toda a propriedade, saltando vedações.

 

Tinhas-me dito que montavas menos mal acusou-a ele.

 

Costumava montar muito. Mas nos últimos dez anos mal tive tempo para o fazer.

 

Pois não se nota. Fiquei assustado quando me apercebi de que não te tinha avisado do regato. A menos que o cavaleiro dê por ele, os cavalos têm tendência para borregar.

 

De certo modo, eu esperava que ele lá estivesse tinha ela respondido.

 

Depois de regressarem ao estábulo, tinham desmontado e, de braço dado, dirigiram-se para a casa. Longe dos olhares dos moços de estrebaria, Stephen abraçou-a.

 

Judith, já é definitivo. Dentro de três semanas, a primeira-ministra vai anunciar a sua saída e será escolhido o novo líder do partido.

 

Tu.

 

Tenho o apoio dela. Como te avisei, há vários outros a concorrer ao lugar, mas deve correr tudo bem. As próximas semanas até à eleição vão ser frenéticas. Vamos ter muito pouco tempo para estar juntos. Importas-te?

 

Claro que não. E se eu conseguir acabar o livro enquanto estás em campanha, tanto melhor. A propósito, Sir Stephen, estou encantada por o ver num fato de montar, em vez de num fato completo ou trajo de cerimónia. Com um toquezinho de Ronald Colman, acho eu. Adorava ver filmes antigos a meio da noite, e ele era o meu favorito incondicional. Começo a sentir-me um pouco como os apaixonados de A Noiva Perdida. Smithy e Paula voltaram a encontrar-se quando tinham mais ou menos a nossa idade.

 

Judith! a voz de Stephen parecia vir de muito longe.

 

Stephen, perdoa-me. Estava a pensar em ti e no fim-de-semana e a pensar se, neste momento, estarás parecido com o Ronald Colmi. Lamento desapontar-te, querida, mas a comparação é injusta para o falecido Mr. Colman. Que é que vais fazer esta noite?

 

Vou preparar qualquer coisa para comer e sentar-me à máquina. O trabalho de pesquisa é necessário, mas o livro também tem de avançar.

 

Bem, então acaba-o. Judith, as eleições serão no dia 13 de Março. Agradar-te-ia um discreto casamento em Abril, de preferência em Edge Barton? É o sítio onde me sinto mais em casa, em todo o mundo. E tenho a impressão de que tu também já captaste uma arte dessa sensação.

 

É certo.

 

Quando Judith pousou o auscultador no descanso, apetecia-lhe mais preparar qualquer coisa simples, meter-se na cama e ler um pouco. Mas tinha perdido um dia precioso a fazer compras no Harrods e na Conservatória do Registo Civil.

 

Decidindo não ceder a tentações, tomou um duche, vestiu um pijama e um roupão quentes, aqueceu uma lata de sopa e voltou para a secretária. Com satisfação, folheou o seu trabalho: o primeiro terço era dedicado aos acontecimentos que haviam conduzido à Guerra Civil; a secção média à vida em Inglaterra durante a guerra, às alternâncias das marés da guerra, às oportunidades desperdiçadas de reconciliação entre o rei e o Parlamento, e à prisão, julgamento e execução de Carlos I. Agora já estava a ocupar-se do regresso de Carlos II do exílio em França, da sua promessa de liberdade religiosa, ”liberdade para usar a consciência”, o julgamento dos homens que haviam assinado a sentença de morte de seu pai.

 

Carlos regressou a Inglaterra no dia do seu trigésimo aniversário,

29 de Maio de 1660. Judith pegou na caneta para sublinhar as suas notas sobre o número de petições que ele recebera dos Realistas, assediando-o para obtenção de títulos e das propriedades confiscadas aos partidários de Cromwel.

 

Sentia a cabeça a latejar. A cicatriz da sua mão direita começou a tomar um tom avermelhado.

 

Oh, Vincent sussurrou. Era o dia 24 de Setembro de 1660...

 

Durante os dezasseis anos que decorreram desde a morte de Vincent, Lady Margaret e Sir John viveram discretamente em Edge Barton. Apenas a execução do rei e a derrota dos exércitos Realistas tinham proporcionado algum consolo a Lady Margaret. Pelo menos, a causa por que o seu filho morrera tinha alcançado a vitória. Mas no decurso desses anos, ela e John tinham-se afastado. Perante a sua exacerbada exigência ele tinha assinado com relutância a ordem de execução do rei e nunca se tinha perdoado por o ter feito.

 

O exílio teria sido suficiente dizia-lhe tristemente, muitas vezes. E que conseguimos nós em troca? Um Lorde Protector que toma atitudes de realeza e cujas maneiras puritanas roubaram à Inglaterra a liberdade religiosa e todas as alegrias que outrora conhecíamos.

 

Amar o marido quase tanto como odiara o rei executado, vera decadência de John que se transformava num velho senil, saber que ele não conseguia perdoar-lhe por o ter forçado a ser um regicida, e a saudade constante que sentia do filho perdido tinham modificado Margaret. Sabia que se tinha transformado numa mulher amargurada. O seu mau humor tornou-se famoso e o espelho dizia-lhe que já não se assemelhava à bela e jovem filha do duque de Wakefield, que tinha feito os encantos da Corte antes de se casar com John Carew. Só quando se sentava junto de John, e o ouvia falar cada vez mais do passado, conseguia recordar como a sua vida tinha sido feliz outrora.

 

Carlos II tinha regressado a Inglaterra em Maio. Afirmando que já havia sido derramado sangue de mais, tinha oferecido um perdão geral, excepto para os homens directamente envolvidos na morte de seupai. Quarenta e um dos cinquenta e nove que tinham assinado a sentença de morte estavam ainda vivos. Carlos prometeu mostrar consideração especial por aqueles que se entregassem.

 

Margaret não confiava no rei. Era evidente que restava muito pouco tempo de vida a John. A sua mente começava a falhar. Era frequente chamar por Vincent para que o acompanhasse num passeio a cavalo. Tinha recomeçado a olhar para Margaret com o profundo amor que por ela mostrara durante tantos anos. Falava em ir à corte e em planearem o baile anual em Edge Barton. A sua respiração débil e a sua palidez terrosa diziam a Margaret que o coração de John começava a falhar.

 

Com a ajuda de um punhado de fiéis servidores, imaginou um plano. John partiria para Londres para se entregar ao rei. A carruagem seria vista a deixar a propriedade por todos os rendeiros e habitantes da aldeia. E quando escurecesse a carruagem regressaria. Tinham preparado uns aposentos para John nos quartos secretos, que tinham sido conhecidos em tempos como celas sacerdotais. Ali, no tempo da rainha Isabel I, tinham encontrado refúgio alguns membros do clero Católico, enquanto tentavam fugir para França. Posteriormente, a carruagem seria levada para um local remoto, perto da estrada que levava a Londres, e ser-lhe-ia dado o aspecto de ter sido atacada por salteadores, partindo-se do princípio de que os seus ocupantes teriam sido assassinados.

 

O plano funcionou bem. O cocheiro foi magnificamente pago e posto a caminho das colónias americanas. O criado pessoal de John permaneceu com ele nos aposentos ocultos. Margaret descia à cozinha de noite e, com a ajuda de Dorcas, uma copeira idosa, preparava comida para eles.

 

Quando teve notícias do destino dos regicidas que haviam sido enforcados em Charing Cross e depois esquartejados, Margaret compreendeu que tinha tomado a única decisão possível. John morreria em paz em Edge Barton.

 

Acompanhado por um contingente de soldados realistas, Simon Hallett chegou na madrugada de 2 de Outubro. Margaret tinha acabado de regressar ao seu quarto. Tinha passado toda a noite com John, envolvendo o seu corpo frágil nos seus braços, sentindo o frio que precedia a morte. Sabia que ele teria apenas semanas ou mesmo dias de vida. Apressadamente, enfiou um roupão, atando-o enquanto descia as escadas.

 

Tinham passado dezoito anos desde a última vez em que vira Simon Hallett. Quando a guerra terminara, ele tinha ido juntar-se ao rei no exílio em França. Agora as suas feições outrora fracas tinham endurecido. A arrogância substituíra a expressão astuciosa que outrora a repelira.

 

Lady Margaret, que prazer em voltar a ver-vosdisse sardonicamente, quando ela abriu a grande porta de madeira. Sem esperar pela permissão dela, entrou e olhou em volta. Edge Barton não tem sido bem cuidado desde a última vez em que aqui estive.

 

Enquanto estáveis em França, enlanguescendo aos pés do vosso real senhor, os ingleses que ficaram tiveram de pagar pesados impostos para compensar os custos da guerra. Margaret esperava que os seus olhos não revelassem o terror que sentia, Simon Hallett suspeitaria de que a carruagem de John não tinha sido atacada por salteadores? A ordem que deu aos seus soldados veio confirmar os seus receios.

 

Revistai cada centímetro desta casa. Tem de haver um esconderijo de padres. Mas tomai cuidado. Não causeis estragos. No estado em que se encontra, já sairá caro restaurar a propriedade. Sir John está por aí escondido algures. Não voltamos sem ele.

 

Lady Margaret chamou a si todo o desprezo e desdém que ardiam na sua alma.

 

Estais muito enganado disse a Simon. Meu marido enfrentar-vos-ia com uma espada, se aqui estivesse. ”E fá-lo-ias, John”, pensou, ”se aqui estivesses. Mas tu habitas num passado feliz...”

 

Sala após sala, prosseguiu a pesquisa por toda a casa. Os armários eram abertos, as paredes experimentadas em busca de sons ocos que indicassem passagens secretas. As horas iam passando. Margaret conservava-se sentada no salão grande, perto do fogão de sala que um criado havia acendido, sem saber se deveria ousar ter esperanças. Simon percorria toda a casa, numa crescente impaciência. Finalmente regressou ao salão. Dorcas tinha acabado de trazer chá e pão a Margaret. Margaret percebeu que tudo estava perdido quando viu Simon olhar pensativamente para a idosa mulher. Num salto rápido, que o levou quase ao outro extremo da sala, agarrou a criada pelos braços e torceu-lhos atrás das costas.

 

Tu sabes onde ele está disse. Fala imediatamente.

 

Não sei de que está a falar, senhor, por favor disse Dorcas, tremendo. A sua súplica transformou-se num grito quando Simon lhe torceu de novo os braços e o som terrível de ossos quebrados ecoou pela sala imensa.

 

Eu mostro-lhe onde ele está berrou. Mais não. Mais não.

 

Então mostra. Ainda a torcer-lhe os braços, Simon empurrou a velha soluçante pela grande escadaria acima.

 

Momentos depois, dois soldados arrastavam o corpo agrilhoado de Sir John Carew pelas escadas. Simon Hallett introduziu a espada na bainha.

 

Aquele valete não ficou vivo para lamentar a sua insolência disse a Margaret.

 

Ela ergueu-se, entorpecida, e correu para o marido.

 

Margaret, não me sinto bem disse John, num tom de desorientação. Tenho muito frio. Pede que acendam o fogão da sala. E manda-me o Vincent. Não vi o rapaz durante toda a manhã.

 

Margaret abraçou-o.

 

Eu sigo-te para Londres. Enquanto os soldados encaminhavam John para fora de casa, ela fitou Simon. Até aqueles loucos conseguem ver o estado em que ele está. E se quiserem julgar alguém, julguem-me a mim. Fui eu que exigi a meu marido que assinasse a sentença de morte do rei.

 

Obrigado por essa informação, Lady Margaret. Hallett voltou-se para o oficial em comando. Sois testemunha da sua confissão.

 

Margaret foi impedida de assistir ao julgamento do marido. Os amigos contavam-lhe o que se estava a passar.

 

Disseram que ele se estava a fazer passar por louco, mas tinha elaborado um astuto plano de fuga. Foi condenado como regicida, será executado dentro de três dias.

 

Enforcado em Charing Cross. O seu corpo seria arrastado por cavalos e esquartejado. A sua cabeça exibida na ponta de um poste.

 

Tenho de falar ao rei disse Margaret. Tenho de fazê-lo compreender.

 

Os seus primos não tinham compreendido nem lhe tinham perdoado que tomasse o partido dos Parlamentaristas. Mas ela pertencia a uma das grandes famílias de Inglaterra. Conseguiram uma audiência.

 

No dia em que John seria executado, Margaret foi levada à presença de Carlos II. Tinha ouvido dizer que o rei declarara aos seus conselheiros que estava farto de enforcamentos e não queria Que houvesse mais. Iria suplicar-lhe que permitisse a Sir John uma morte em paz em Edge Barton, oferecendo-se para tomar o seu lugar.

 

Simon Hallett estava de pé, à direita do rei. Divertido, viu Margaret fazer uma profunda vénia.

 

Majestade, antes de escutardes Lady Margaret, que sabe ser muito persuasiva, permitis que apresente outras testemunhas?

 

Estupefacta, Margaret viu entrar o capitão da guarda que tinha prendido John, e ouviu-o declarar ao monarca:

 

Lady Margaret jurou que tinha exigido a seu marido que assinasse a sentença de morte de Vossa Majestade.

 

Mas é isso precisamente que venho dizer-vos. Sir John não queria assiná-la. Nunca me perdoou por o ter forçado a fazê-lo exclamou ela.

 

Majestade interrompeu Simon Hallett. Toda a vida Sir John Carew, a sua carreira militar, os seus anos no Parlamento, demonstram que é um homem de convicções fortes, não um homem que se deixe levar por uma mulher importuna. Não é para o desculpar que digo isto, mas para vos fazer compreender que, apesar da vossa natureza generosa e misericordiosa, estais perante uma mulher que é tão culpada como se ela própria tivesse assinado aquele imperdoável documento. E tenho mais uma pessoa que vos suplico que atendeis... Lady Elizabeth Sethbert.

 

Entrou uma mulher de cerca de 30 anos. Por que lhe parecia reconhecê-la?pensou Margaret. Em breve compreendia a razão. Vincent tinha sido morto pelo marido de Lady Elizabeth.

 

Nunca me esquecerei, Majestade disse Lady Elizabeth, olhando para Margaret com gelado desprezo. Quando eu tinha nos meus braços o corpo do meu marido, feliz por ele ter dado a sua vida por Vossa Majestade, esta mulher disse que lamentava que a sua espada não tivesse trespassado o coração do rei. E disse mesmo: ”Se ela fosse minha, aí teria encontrado o seu alvo.” Quando ela partiu, perguntei o seu nome a um oficial Parlamentarista, visto que era, sem dúvida, uma dama de qualidade. Nunca esquecerei o horror desse momento e já contei este caso a muitas pessoas, razão por que Simon Hallett veio a saber dele.

 

O rei voltou o olhar para Margaret. Ela tinha ouvido dizer que ele se considerava um bom observador de fisionomias e sabia reconhecer o carácter das pessoas pelo estudo das suas feições. Disse:

 

Majestade, estou aqui para reconhecera minha culpa. Fazei de mim o que quiserdes, mas poupai um velho doente de corpo e de espírito.

 

Sir John Carew é suficientemente astuto para se fingir louco, Majestade disse Hallett. E se, com o vosso gracioso perdão, lhe for permitido regressar a Edge Barton, em breve será miraculosamente restituído à saúde. E depois ele e sua mulher continuarão a conspirar com os seus amigos revolucionários, pessoas perigosas que ocupam altas posições. Esta canalha planeia para Vossa Majestade o mesmo destino que sofreu o nosso falecido rei, vosso pai.

 

Estupefacta, Margaret olhou para Simon. Os seus primos haviam-na avisado de que, sob o seu exterior sorridente, Carlos II era perseguido pela premonição de que estava destinado a experimentar o mesmo destino do pai.

 

Mentis!gritou Margaret a Simon. Mentis! Tentou precipitar-se para junto do rei. Majestade, o meu marido,poupai o meu marido.

 

Simon Hallett atirou-se sobre ela, fazendo-a cair no chão, cobrindo o corpo dela com o seu. Ela viu o brilho de uma adaga na sua mão. Pensando que ele tencionava agredi-la, Margaret tentou tirar-lha. A adaga fez-lhe um golpe profundo na base do polegar; depois Simon introduziu-lhe a arma na mão à força, enquanto a punha de pé.

 

íeis assassinar o rei! gritou Simon. Vede, Majestade, ela trouxe uma arma para esta audiência.

 

Margaret compreendeu que era inútil protestar. Escorria-lhe sangue da ferida, enquanto lhe atavam as mãos e era arrastada para longe da real presença. Simon seguiu-a.

 

Quero dar uma palavra a Lady Margaret disse aos guardas. Afastai-vos. Sussurrou-lhe ao ouvido: Neste momento Sir John está a balouçar na ponta de uma corda em Charing Cross e as suas entranhas estão a ser-lhe arrancadas. O rei já me fez baronote. Como recompensa por o ter salvo do vosso louco ataque, poderei pedir, e ser-me-á concedido, Edge Barton.

 

Durante o fim-de-semana, Reza Patel tentara repetidas vezes falar ao telefone com Judith. Quando foi atendido pelo gravador, não quis deixar uma mensagem. Pretendia mostrar-se despreocupado e sugerir-lhe que passasse pelo seu consultório para fazer uma análise ou medir a tensão arterial, a fim de ter a certeza de que a droga hipnótica não a tinha afectado fisicamente.

 

Na segunda-feira ela também não estava. Na terça-feira à tarde, ele e Rebecca ficaram no consultório depois das consultas e voltaram a estudar a gravação da hipnose de Judith.

 

Sucedeu qualquer coisa a nível psíquico disse Patel a Rebecca. Vê--se bem. Olhe para a cara dela. A raiva, o ódio que revela. Que género de pessoa terá Judith trazido consigo? E de onde? Se a minha teoria estiver correcta, o espírito, a essência da grã-duquesa Anastásia invadiram totalmente Anna Anderson. Irá suceder o mesmo a Judith Chase?

 

Judith Chase é uma mulher muito forte recordou-lhe Rebecca. Por isso precisou de receber tanta droga para regressar à infância. Sabes bem que não podes ter a certeza de que a experiência, fosse ela qual fosse, não tivesse terminado quando a acordaste. Ela não se recordava dela. Não será presunção estares tão certo de que demonstraste a Síndroma de Anastásia?

 

Quem me dera estar errado, mas não estou.

 

Então não poderás hipnotizar de novo Judith, fazê-la regressar com a essência que transportou e ordenar-lhe que a abandone lá?

 

Não sei para onde deveria mandá-la. Patel abanou a cabeça. Vou tentar telefonar-lhe de novo.

 

Desta vez alguém levantou o auscultador. O homem fez um sinal a Rebecca, informando-a de que Judith estava a responder. Inclinando-se sobre ele, Rebecca carregou no botão do gravador.

 

Está?

 

Rebecca e Patel entreolharam-se, surpreendidos. Era a voz de Judith, e contudo não era. O timbre era diferente, o tom abrupto e altivo.

 

Miss Chase? Judith Chase?

 

Judith não está aqui.

 

O nome dela sussurrou Rebecca.

 

Importa-se de me dizer o seu nome, minha senhora? É amiga de Miss Chase?

 

Amiga? Nem pensar. A ligação foi interrompida. Patel enterrou a cabeça entre as mãos.

 

Rebecca, que fiz eu? Judith tem duas personalidades. A nova tem consciência da existência de Judith. E já é a dominante.

 

Stephen Hallett só chegou a casa à meia-noite. Tinha passado o dia em reuniões. Já corriam por toda a parte boatos da decisão da primeira-ministra. Não se tinha enganado ao pensar que haveria quem testasse a sua eleição para chefe do partido. Hawkins, um jovem ministro, era dos mais recalcitrantes.

 

Embora não negue os métodos óbvios de Stephen Hallett, devo avisar-vos, a todos e a cada um de vós, que o antigo escândalo virá a lume. Osjornais vão fazer dele gato-sapato. Não se esqueçam de que Stephen esteve à beira de ser condenado.

 

E fui absolvido ripostou Stephen. Tinha ganho a escaramuça Ganharia a eleição e seria chefe do partido. ”Mas, santo Deus”, pensou, enquanto se despia, fatigado, ”que peso ter de viver à sombra do delito de outro homem.” Quando se meteu na cama, olhou para o relógio. Meia-noite. Era tarde de mais para telefonar a Judith. Fechou os olhos. Graças a Deus ela era como era. Graças a Deus ela compreendia o motivo por que não podia permitir-lhe que iniciasse a busca da sua família. Sabia que estava a exigir demasiado dela, ao pedir-lhe isso. Compensá-la-ia durante o resto da sua vida, prometeu a si próprio, quando o sono começava a embalá-lo.

 

A cama de quatro colunas, que pertencia à sua família havia trezentos anos, gemeu quando ele se instalou melhor. Stephen pensou nas alegrias de partilhar aquele leito com Judith, no orgulho que sentiria quando ela o acompanhasse, como sua mulher, às cerimónias oficiais. O seu último pensamento, antes de adormecer, foi que o melhor de tudo seria a sua vida particular em conjunto, no seu adorado refúgio, Edge Barton...

 

À meia-noite e dez, Judith ergueu o olhar, viu as horas e ficou sobressaltada ao constatar que a sopa na bandeja ao seu lado estava fria e que ela própria estava enregelada até aos ossos. ”A concentração é boa, mas isto é uma loucura”, pensou, enquanto se dirigia para a cama. Despindo o roupão, puxou com prazer os cobertores para cima, aconchegando-os em volta do pescoço. Aquela maldita cicatriz na sua mão. Estava muito vermelha. Enquanto a observava, a cicatriz empalideceu. ”Deve ser sinal de velhice, quando as cicatrizes antigas começam a reaparecer”, pensou, enquanto estendia a mão para o candeeiro e apagava a luz.

 

Fechou os olhos e começou a pensar no desejo que Stephen manifestara de se casar em Abril. Faltavam umas dez a onze semanas.

 

”Vou acabar aquele maldito livro e depois começo a fazer compras”,

 

prometeu a si mesma. Apercebeu-se de que tinha ficado encantada

 

Por Stephen ter sugerido que se casassem em Edge Barton. Durante as últimas semanas, as recordações dos seus anos de infância com os seus pais adoptivos, todos os anos que vivera em Washington com Kenneth, tinham começado a desvanecer-se cada vez mais. Era como se a sua vida tivesse principiado na noite em que conhecera Stephen como se todas as fibras do seu ser reconhecessem que a Inglaterra era a sua terra natal. Tinha 46 anos, Stephen 54. Na família dele vivia-se muito. ”Ainda podemos ter uns bons vinte e cinco anos juntos” pensou. Stephen. Aquele aspecto exterior formal e um pouco impressionante, que ocultava um homem solitário e, mesmo, por incrível que parecesse, bastante inseguro. Conhecer o que se passara com o sogro ajudava-a a entender muita coisa...

 

”Preciso de conhecer o meu verdadeiro nome, Stephen”, pensou, ao fechar os olhos. ”A menos que eu tivesse inventado tudo, posso estar perto de o saber, neste momento. Se é verdade que fiquei separada da minha mãe durante um ataque aéreo, hei-de conseguir saber o resto da história. Provavelmente foram ambas mortas naquele dia. Gostaria de poder depor flores nas sepulturas delas, mas prometo-te solenemente que não vou desenterrar quaisquer primos obscuros que possam embaraçar-te.” Adormeceu com o pensamento feliz de que adoraria a sua vida quando fosse Lady Hallett.

 

Judith esteve a trabalhar durante toda a manhã seguinte, observando, com intensa satisfação, o contínuo crescimento da pilha de folhas que se acumulava junto da máquina de escrever. Todos os seus amigos escritores lhe afirmavam que deveria comprar um computador. ”Quando acabar este trabalho”, decidiu, ”faço um período de descanso. Nessa altura hei-de aprender a usar um computador. Não deve ser assim tão difícil habituar-me a um. Kenneth chamava-me A Senhora Habilidosa... dizia que eu deveria ter sido engenheira. Mas”, reconheceu, enquanto se espreguiçava vigorosamente, ”viajar por toda a parte para fazer pesquisas não dá muito jeito para procurar uma impressora.”

 

Quando ela e Stephen estivessem casados, havia de arranjar uma. Ele tinha mostrado tanto receio de que ela não se sentisse feliz quando tivesse que assistir a actos oficiais junto dele, ou não se sentisse suficientemente ocupada quando ficasse sozinha. Pensava com interesse em ambos os aspectos da sua vida. Os dez anos que tinha passado casada com Kenneth tinham sido maravilhosos mas excessivamente agitados, pois ambos estavam a estabelecer as suas carreiras. E o terrrível desapontamento de nunca terem tido filhos. Depois aqueles dez anos de viuvez, em que o trabalho tinha sido o seu objectivo e a sua salvação. ”Passei sempre a vida a correr?”, perguntou a si própria. ”Nunca estive em paz até agora?”

 

O sol entrava pela janela. Oh, estar em Inglaterra, agora que lá é Abril- Ou janeiro, ou qualquer outro mês, em Inglaterra todos a satisfaziam plenamente. Tinha estado durante toda a manhã a escrever sobre o período da restauração em que, como anotara Samuel Pepys no seu diário, se tinham acendido muitas fogueiras e os sinos repicavam alegremente. Faziam-se brindes à saúde do rei e havia de novo postes enfeitados nas aldeias. As cores garridas substituíam o cinzento triste dos Puritanos, o rei e a rainha passeavam a cavalo em Hyde Park.

 

À uma hora, Judith decidiu sair e dar um passeio pela área em redor do Palácio de Whithall, para tentar experimentar a sensação de alívio que sentiam então as pessoas por a monarquia ter sido restaurada sem uma nova guerra civil. Desejava especialmente visitar a estátua do Rei Carlos I. Sendo a mais antiga e a mais bela estátua equestre de Londres, tinha sido entregue a um negociante de sucatas, com instruções para a destruir durante os anos de governo de Cromwell. Reconhecendo o seu grande valor e sendo fiel ao falecido rei, o negociante de sucatas não a tinha destruído, conservando-a escondida até ao regresso de Carlos II. Foi então encomendado um magnífico pedestal e a estátua foi colocada em Trafalgar Square, voltada para Whitehall, para o local onde Carlos tinha sido executado.

 

Tinha estado toda a manhã a trabalhar em roupão. Tomou um duche rápido, aplicou baton nos lábios e pintou os olhos, e depois secou o cabelo com uma toalha, reparando que estava excessivamente longo. Não que tivesse mau aspecto, confessou a si própria enquanto se observava no espelho. ”Mas, quase com 47 anos, será melhor tomar um aspecto mais sofisticado.” Depois ergueu as sobrancelhas. ”Não pareces ter 47, minha filha.” A imagem que o espelho lhe devolveu era tranquilizadora. Cabelos castanhos-escuros com reflexos dourados. Quando era pequena, tinha sido loura. Uma pele de inglesa. O rosto oval, os grandes olhos azuis. ”Gostava de saber se me pareço com a minha verdadeira mãe”, pensou.

 

Vestiu-se rapidamente, envergando calças cinzento-antracite, uma camisola branca de gola alta e botas. ”O meu uniforme”, pensou.

 

Não poderei andar assim vestida na cidade, quando estiver casada com Stephen.” Deteve-se um pouco, para se decidir entre a gabardina Burberry e a capa nova. A capa. Pegou no saco com os blocos de notas e o material de consulta de que poderia necessitar e saiu.

 

Gracioso e calmo, ele cavalga

 

Passando pelo seu Whithall

 

Apenas sopra o vento nocturno

 

Não há multidões, nem rebeldes, nem clamores.

 

Judith recordou-se destes versos do poema de Lionel Johnson quando se encontrava em Trafalgar Square, observando a magnífíca estátua do rei executado. A sua figura imponente, com os cabelos caídos sobre os ombros, a barba bem aparada, a cabeça erguida e o seu porte principesco possuíam, na verdade, uma expressão pacífica. O garanhão que montava parecia escavar o chão. O casco direito estava erguido, como se se encontrasse ansioso por começar a galopar.

 

Contudo, Carlos I foi extremamente odiado, pensou Judith. Como seria hoje o mundo se ele tivesse conseguido destruir o Parlamento? Atrás de si, ouviu um dos inevitáveis grupos de turistas, que se aproximava. O guia esperou até todos se encontrarem reunidos à sua volta, num semicírculo, e começou a sua exibição:

 

Aquilo a que actualmente chamamos Trafalgar Square fazia originalmente parte de Charing Cross explicou. Muito convenientemente, esta estátua foi erguida no preciso local onde os regicidas foram executados, uma subtil forma de vingança para o rei morto, não lhes parece? As execuções não constituíram mortes agradáveis. Os condenados foram enforcados, arrastados por cavalos e esquartejados, e a alguns arrancaram-lhes as entranhas enquanto ainda se encontravam vivos,

 

John a morrer assim... Pobre homem, doente, velho, desorientado...

 

O rei foi decapitado no dia 30 de Janeiro. Se aqui voltarem na próxima terça-feira poderão ver a coroa que a Royal Stuart Society coloca na base do pedestal. Tem sido uma tradição desde que a estátua aqui foi colocada. Por vezes, os turistas e as crianças das escolas, também aqui colocam as suas próprias coroas. É uma cerimónia muito comovente, na verdade.

 

A estátua devia ser arrasada e os tolos que aqui vêm colocar coroas castigados.

 

O guia voltou-se para Judith: Perdão, minha senhora. Disse alguma coisa?

 

Lady Margaret não respondeu. Passou o saco com os livros para a mão esquerda e, com a mão direita, onde brilhava a cicatriz em forma de crescente, colocou os óculos escuros e puxou o capuz para a frente, de modo a ocultar-lhe parte do rosto. Durante algum tempo, caminhou sem destino, descendo o Victoria Embankment, ao longo do Tamisa, até chegar junto do Big Ben e das Casas do Parlamento. Aí se deteve, olhando para os edifícios, sem prestar atenção às pessoas que por ela passavam e que, por vezes, a olhavam com curiosidade.

 

Soavam-lhe aos ouvidos as suas próprias palavras.

 

A estátua devia ser arrasada e os tolos que aqui colocam coroas castigados... Mas como, John? perguntou a si mesma. Como hei-de proceder?

 

Indecisa, começou a descer a Bridge Street, atravessou a Parllament Street, voltou à direita e encontrou-se na Downing Street. As casas no extremo do quarteirão estavam rodeadas por polícias. Uma delas era o número 10 de Downing Street. A residência da primeira-ministra. A futura residência de Stephen Hallett, descendente de Simon Hallett. Margaret sorriu amargamente. ”Levou tanto tempo”, pensou. ”Mas finalmente aqui estou para fazer justiça por John e por mim mesma.”

 

A estátua em primeiro lugar, decidiu. No dia 30 de Janeiro viria com os outros, colocar coroas. Mas a dela conteria um explosivo oculto entre as folhas e as flores.

 

Recordava-se da pólvora que, durante a Guerra Civil, tinha destruído tantas casas. Que explosivos se usariam agora? Dois quarteirões mais adiante, passou por umas obras e deteve-se a observar um jovem operário, musculoso e coberto de suor, a balançar um malho. Um calafrio percorreu-lhe o corpo, fazendo-a estremecer. O machado a ser erguido e a descer velozmente. Aquele horrível momento de agonia, a luta para permanecer viva, sabendo sempre, de certo modo, que voltaria. Reconhecendo que o momento tinha chegado quando Judith Chase se precipitara para a salvar.

 

O operário musculoso tinha visto que ela o olhava. Saiu-lhe dos lábios um assobio penetrante. Ela sorriu, de forma sedutora, e fez-lhe sinal para que viesse ao seu encontro. Quando se separaram, ela tinha-lhe prometido que se encontraria com ele, no seu quarto, às seis horas.

 

Dali partiu para a Biblioteca Central, junto de Leicester Square, onde uma funcionária delicada lhe colocou em frente os livros que ia pedindo, murmurando os títulos à medida que os ia depositando: A Conspiração da Pólvora, Autoridade e Conflito no Século XVII, A História dos Explosivos.

 

Nessa noite, nos braços suados do operário, entre carícias e lisonjas, Margaret confiou-lhe que precisava de deitar abaixo uma cocheira prestes a ruir, na sua propriedade rural, e não tinha dinheiro para pagar a uma equipa de demolição. Rob era tão esperto. Não poderia ajudá-la a conseguir parte do material de que necessitava e explicar-lhe como deveria servir-se dele? Pagar-lhe-ia bem.

 

A boca de Rob esmagou-lhe os lábios.

 

És uma mulher dinamite. Vem ter comigo aqui amanhã à noite, minha filha. O meu irmão vem de Gales. Trabalha numa pedreira. É fácil para ele obter aquilo de que tu precisas.

 

Havia duas chamadas de Stephen no gravador do telefone, quando Judith chegou ao apartamento, às dez horas da noite. Quando às nove e meia tinha entrado num pub no Soho tinha ficado chocada ao ver que horas eram. Aterrorizada, apercebeu-se de que a última recordação que tinha era do momento em que se encontrava junto da estátua de Carlos I. Nessa altura eram cerca de duas horas. Que teria feito durante as horas intermédias? Tinha tencionado ir novamente investigar os registos de nascimento. ”Provavelmente foi isso que eu fiz”, pensou. ”Tendo falhado de novo, talvez tenha tido qualquer espécie de reacção psicológica.” Mas não conseguia encontrar resposta para esta dúvida.

 

Com a testa franzida de preocupação, escutou o pedido urgente de Stephen de que lhe telefonasse. Mas primeiro tomaria um duche, decidiu. O seu corpo estava dorido e sentia-se vagamente suja. Tirou a capa. Que a teria levado a comprá-la? Apercebia-se agora de que não se sentia confortável com ela vestida. Guardou-a no fundo do roupeiro, acariciou a Burberry suavemente.

 

És mais o meu estilo disse em voz alta.

 

Deixou que a água do chuveiro lhe lavasse o rosto e os cabelos e todo o corpo. Água quente, o seu sabonete e o seu champô deliciosamente perfumados, água fria para contrastar. Por qualquer motivo inexplicável, ocorreu-lhe uma citação de Macbeth: Poderá todo o vasto oceano de Neptuno lavar o sangue das minhas mãos? Judith perguntou a si mesma o que a teria feito pensar naquilo. Evidentemente, pensou enquanto se enxugava, aquela maldita cicatriz estava novamente avermelhada.

 

Com o roupão felpudo em volta da cintura estreita, uma toalha a

envolver os cabelos molhados, os pés introduzidos nuns chinelos confortáveis, Judith dirigiu-se ao telefone e ligou para Stephen. A voz dele revelou-lhe imediatamente que tinha estado a dormir.

 

. Querido, perdoa-me disse-lhe.

 

Ele interrompeu-a.

 

Se acordar durante a noite, sentir-me-ei muito melhor sabendo que já falei contigo. Que andaste tu a fazer, querida? A Fiona telefonou-me. Esperava que lá fosses esta noite. Aconteceu alguma coisa?

 

Santo Deus, Stephen, esqueci-me completamente. Judith mordeu a língua, nervosamente.O gravador ficou a receber as chamadas e eu só agora estive a passá-las.

 

Stephen riu-se.

 

Uma mulher muito ocupada. Mas é melhor que te entendas com a Fiona, querida. Ela já estava zangada por não ter podido exibir-me como potencial chefe do partido. Talvez seja melhor deixá-la oferecer-nos uma festa de noivado, depois das eleições. Devemos-lhe muito.

 

Devo-lhe o resto da minha vida disse Judith em voz baixa. Vou telefonar-lhe, logo de manhã. Boa noite, Stephen. Adoro-te.

 

Boa noite, Lady Hallett. Adoro-te.

 

”Desprezo os mentirosos”, pensou Judith, ao pousar o auscultador, ”e acabo de mentir.” No dia seguinte iria consultar o Dr. Patel. Não existia qualquer Sarah Marrish ou Marsh nos registos de Maio de 1942. Teria ela inventado tudo o que lhe havia dito? E, se assim fosse, estaria a sua mente a pregar-lhe novas partidas? Por que teria perdido sete horas naquele dia?

 

Às dez horas da manhã seguinte, a recepcionista do Dr. Reza Patel violou as suas ordens de reter as chamadas telefónicas e ligou para o seu consultório, dizendo-lhe que Miss Chase estava ao telefone e se tratava de uma emergência. Ele e Rebecca tinham discutido de novo o perigo potencial da situação de Judith. Patel premiu os botões e Som alto e gravação do telefone. Avidamente, ele e Rebecca ficaram à escuta, enquanto Judith lhes falava do lapso de sete horas nas suas recordações.

 

Acho que deveria vir cá imediatamente disse-lhe Patel. - Como se deve recordar, assinou uma autorização que me permitia gravar a sua consulta. Gostaria que visse essa gravação. Talvez isso a ajude. Não tenho motivos para pensar que as suas recordações de infância não sejam exactas. E não fique muito preocupada com aquilo que considera uma falha de memória. É uma mulher dotada de uma tremenda capacidade de concentração. Isso tornou-se evidente quando iniciei a hipnose. A própria Judith me disse que chega a trabalhar durante horas, sem se aperceber de que elas passaram.

 

Isso é verdade disse Judith. Mas uma coisa é estar à secretária quando isso acontece e outra muito diferente é estar em Trafalgar Square às duas da tarde e encontrar-me num pub do Soho às nove e meia da noite. Vou já para o seu consultório.

 

Naquele dia envergava calças beges, botas castanhas, uma camisola bege de cachemira, com uma écharpe castanha, bege e amarela presa sobre o ombro. Achou a Burberry quente e confortavelmente familiar, quando a abotoou e afivelou o cinto, voltando a lamentar as trezentas libras que gastara na capa.

 

No consultório de Patel, uma Rebecca estupefacta perguntava:

 

Tenciona mesmo mostrar-lhe a gravação?

 

Só até à altura da regressão dela à infância. Rebecca, ela já está a fazer perguntas. É preciso que se concentre naquele aspecto da sessão e não no que poderá ter-lhe acontecido. Ainda não sabemos como poderemos ajudá-la. E não saberemos, a menos que consigamos perceber o que se está a passar e quem ela está a albergar. Depressa, faz um duplicado da fita até ao ponto em que eu comecei a dizer-lhe que acordasse.

 

No táxi, a caminho do consultório de Patel, Judith apercebeu-se de que estava profundamente preocupada. Ele tinha-lhe dado uma droga. Recordava-se de uma ocasião em que tinha feito uma série jornalística sobre o LSD e os seus efeitos. Tentou recordar-se das consequências do uso do LSD. Alucinações. Perda de memória. Perda de consciência. ”Oh, meu Deus”, pensou, ”que fiz eu?”

 

Mas quando, pouco tempo depois, observou a gravação no monitor de vídeo, sentiu-se profundamente impressionada e comovida com o que estava a ver. As hábeis perguntas de Patel. A sua passagem dos aniversários, o seu casamento com Kenneth, os seus pais adoptivos. O modo como Patel a tinha feito recuar à primeira infância. A sua relutância em falar do bombardeamento. Sentia as lágrimas a arder nos olhos, quando, sob o efeito da hipnose, chorava pela mãe e pela irmã. E então apercebeu-se de uma coisa. Os nomes. Molly. Marrish. Parem a fita, por favor pediu.

 

Claro. Rebecca premiu o botão de pausa no controlo remoto que segurava na mão.

 

Pode andar para trás? Sabem, recordei-me que tinha uma dificuldade na fala, quando era pequena. Disseram-me que eu tinha grande dificuldade em pronunciar os pês. Na gravação, não estou certa de ter ouvido o nome da minha irmã como ”Molly” ou ”Polly”. E suba o som na altura em que eu digo ”Marrish” ou ”Marsh”. Não está muito claro, pois não?

 

Observaram atentamente.

 

É possível disse Patel. Talvez tivesse tentado dizer ”Parrish”.

 

Judith pôs-se de pé.

 

Pelo menos é mais um caminho para as minhas pesquisas... quando acabar os Marsh e Marrish, e com os March e Markey e Markham e Marmac, e sabe Deus quantos outros mais. Doutor, seja franco. Há alguma coisa que eu deva saber acerca deste tratamento? Por que motivo não me recordo de todas aquelas horas de ontem?

 

Sentiu que Patel pesava as palavras. Sentou-se à sua secretária maciça, brincando com um corta papéis. Olhando para o canto do consultório, ela reparou na mesa com o espelho por cima. Estava a dirigir-se para essa mesa quando tivera a visão de uma criança.

 

Reza Patel viu Judith olhar na direcção da mesa e percebeu exactamente o que ela estava a pensar. Aliviado, apercebeu-se de que tinha descoberto uma maneira de lhe responder.

 

Veio ter comigo na semana passada, porque estava a sofrer de repetidas alucinações a que eu preferiria chamar de afluxos de memória. Esse processo continua, talvez de uma maneira ligeiramente diferente. Ontem dirigiu-se à Conservatória do registo de nascimentos. Já aí tinha sofrido um intenso desapontamento. Sugiro que tinha provavelmente entrado lá e feito uma segunda investigação sem resultados positivos. Creio que tenha sido esse o motivo por que o cérebro fez aquilo que lhe tinha sido ensinado que fizesse. Bloqueou a informação. Judith, talvez tenha captado algo significativo, hoje. Talvez o nome que estivesse a tentar pronunciar fosse Parrish em vez de Marrish, ou um nome semelhante a Parrish. Sentiu-se frustrada por não conseguir encontrar rapidamente a informação que pretende. Peço-lhe que dê a si mesma mais uma oportunidade. Veja se tem consciência de algo invulgar, um pensamento que cruze a sua mente e que lhe pareça estranho. A mente possui estranhas maneiras de nos proporcionar pistas quando sondamos o subconsciente. Fazia sentido, mas Judith repetiu a sua pergunta:

 

Então não houve coisa alguma em relação com o tratamento, com o medicamento que utilizou, que pudesse ter provocado este tipo de reacção agora?

 

Rebecca pôs-se a olhar para o dispositivo de controlo remoto que tinha na mão. Reza Patel ergueu os olhos para Judith e fitou-a com firmeza.

 

De maneira nenhuma.

 

Quando Judith saiu, Patel perguntou a Rebecca, desesperado:

 

Que havia de dizer-lhe?

 

A verdade disse Rebecca calmamente.

 

De que serviria aterrorizá-la?

 

Penso que estarias apenas a avisá-la.

 

Judith regressou imediatamente ao seu apartamento. Não queria correr o risco de voltar à Conservatória do registo de nascimentos naquele dia. Em vez disso, instalou-se à secretária rodeada de livros de notas abertos, diante da velha máquina de escrever que conhecia tão bem o toque dos seus dedos. Trabalhou sem parar até ao princípio da tarde, experimentando o^conforto e a segurança de saber que o livro estava a avançar bem. Às duas horas, preparou apressadamente uma sanduíche e um bule de chá e levou a bandeja para o escritório. Numa longa tarde de trabalho poderia completar o capítulo seguinte. Mais tarde iria jantar com Stephen.

 

Às quatro e meia começou a passar a limpo, à máquina, as suas notas sobre os julgamentos dos regicidas. ”Alguns declaravam que os seus julgamentos eram justos, que recebiam mais consideração que a que haviam prestado ao seu rei. De pé, no tribunal apinhado, sob os apupos da multidão Realista, proclamaram firmemente o seu compromisso de consciência, a sua confiança em que o seu Deus os julgaria misericordiosamente.”

 

Afastou os dedos do teclado. A cicatriz da sua mão começou a latejar. Judith afastou a cadeira e olhou para o relógio. Tinha marcado um encontro, não tinha?

 

Lady Margaret dirigiu-se apressadamente ao roupeiro e pegou na capa verde. Julgavas que a podias esconder, Judith?, troçou. Prendeu-a no pescoço, mas, antes de levantar o capuz, ergueu os braços e prendeu o cabelo num rolo sobre a nuca. Agarrando na mala excessivamente grande de Judith, colocou os óculos escuros e saiu do apartamento.

 

Rob aguardava-a no seu quarto. Havia duas latas de cerveja sobre o peitoril da janela.

 

Vens atrasada disse-lhe. Lady Margaret sorriu timidamente:

 

Não foi de propósito. Nem sempre é fácil livrarmo-nos.

 

Onde é que tu moras, amor? perguntou ele, desabotoando a capa e envolvendo-a nos braços.

 

Em Devon. Trouxeste aquilo que prometeste?

 

Temos muito tempo para isso.

 

Uma hora depois, deitada ao lado dele sobre a cama desfeita, Margaret escutava com extasiada admiração as explicações de Rob:

 

Agora já sabes que podes ir pelos ares juntamente com esse material, de modo que tens de prestar atenção ao que eu te vou explicar. Trouxe-te material suficiente para fazer ir pelos ares o Palácio de Buckingham, mas devo confessar-te que gosto de ti. À mesma hora, amanhã à noite?

 

Claro que sim. E já te prometi pagar-te o incómodo. Duzentas libras chegam?

 

Às nove e dez, Judith ergueu o olhar. ”Meu Deus”, pensou, ”o carro deve estar quase a chegar.” Correu para o quarto, a fim de trocar de roupa, e depois decidiu tomar um duche. ”É porque estou excessivamente rígida, de estar tanto tempo sentada”, pensou. Não conseguia compreender por que motivo se sentia novamente um pouco suja.

 

Na segunda-feira, dia 30 de Janeiro, o dia estava frio e desanuviado, o sol brilhava ofuscantemente, o ar estava seco e perfumado. Os professores vigiavam ansiosamente as torrentes de crianças em idade escolar que se reuniam por detrás dos alunos que haviam sido escolhidos para colocar a coroa junto da estátua de Carlos I.

 

Já aí se encontravam empilhadas outras oferendas florais. Tiravam-se fotografias e os grupos escoltados de turistas escutavam atentamente a descrição do drama da vida e morte do rei executado.

 

Lady Margaret já tinha colocado a sua coroa. Agora escutava cinicamente uma criança de 12 anos, de óculos, timidamente orgulhosa que começava a recitar o poema de Lionel Johnson.

 

”Junto à estátua do rei Carlos em Charing Cross”, anunciou o rapaz.

 

Havia um polícia por perto, sorrindo ao ver os rostos sérios das crianças. Os dois que seguravam a coroa mostravam-se obviamente conscientes da sua importância. Como eles estão lavados e a brilhar, pensou o polícia. Educadas crianças britânicas, a homenagear o seu monarca injustamente tratado. O guarda olhou para as coroas já empilhadas contra o pedestal da estátua. Os seus olhos apertaram-se. Fumo. Filtrava-se fumo lentamente através da pilha de flores.

 

Para trás! gritou. Todos para trás! Precipitando-se para eles, correu para as crianças. Voltem-se e fujam, por favor. Todos para trás. Assustadas e desorientadas, as crianças começaram a afastar-se e o círculo em volta da estátua alargou-se. Para trás, estão a ouvir-me bem?trovejou o polícia. Afastem-se daqui!

 

Agora também os turistas, pressentindo o perigo, começavam a fugir.

 

Gelada de raiva, Margaret viu o polícia afastar as coroas de flores, pegar no saco de papel que ela tinha colocado por debaixo destas e atirá-lo para a área desimpedida. Guinchos e gritos de susto misturaram-se com a explosão, enquanto alguns estilhaços caíam sobre a multidão.

 

Ao fugir, Margaret apercebeu-se de que um dos turistas estava a registar toda a cena com a câmara de vídeo. Puxando mais o capuz para a cara, desapareceu no meio da multidão que corria a tratar das crianças feridas. No Big-Ben batia meio-dia.

 

Estava a perder tempo de mais a andar, decidiu Judith, ao atravessar a porta giratória da Conservatória do Registo Civil, ao meio-dia e meia. Era certo que estava a trabalhar desde a madrugada à secretária. Mas não deveria ter levado perto de uma hora a chegar ali, depois de sair do seu apartamento. Essa hora teria sido melhor aproveitada a consultar os registros.

 

Estava a tornar-se cada vez mais difícil esconder de Stephen o que andava a fazer. O interesse dele pelas suas investigações tinha-a encantado, a princípio. Agora que estava a passar regularmente várias horas na Conservatória e na Biblioteca, a examinar registos dos bombardeamentos de 1942 em Londres, sentia que as suas respostas eram excessivamente vagas, quando Stephen a interrogava sobre as suas actividades. ”E estou a ficar muito descuidada”, pensou. Não sabia como poderia ter perdido duzentas libras da sua carteira.

 

Enquanto percorria o caminho já bem conhecido, entre as estantes da Conservatória, pensou: ”E mais uma coisa, Santo Deusnunca mais me lembrei de telefonar à Fiona. Quando fizer um intervalo, telefono-lhe daqui mesmo.” Evitou cuidadosamente começar a procurar nos livros do P até estar convencida de que não existia qualquer registo de nascimento com qualquer derivação possível do nome Marrish que lhe pudesse ter escapado, no mês de Maio, em qualquer volume de 1942.

 

Uma senhora idosa arranjou-lhe amavelmente espaço à mesa cheia de gente.

 

Absolutamente pavoroso, não acha? perguntou. Perante o olhar admirado de Judith, acrescentou:Há meia hora, alguém tentou fazer ir pelos ares a estátua de Carlos I. Há dezenas de crianças com golpes e equimoses. E teriam morrido todas se não fosse um polícia de reacções rápidas que viu fumo e percebeu que havia qualquer coisa. Uma vergonha, não acha? Estes terroristas merecem a pena de morte, e deixe-me que lhe diga, o Parlamento devia tratar disso.

 

Chocada, Judith pediu pormenores.

 

Ainda lá estive há dias disse. O guia falou da cerimónia da colocação das coroas que se faria hoje. As pessoas que colocam bombas devem ser loucas.

 

Ainda a abanar a cabeça de descrença, voltou a pegar nos volumes trimestrais de 1942 e consultou as suas notas. Pensou na gravação que Patel lhe tinha dado. Eu disse ”maio” nitidamente. ”Catro” só poderia ser ”quatro”. Mas não poderia ter querido dizer catorze ou vinte e quatro? É evidente que eu estava a falar de um bombardeamento. A sua investigação tinha-lhe demonstrado que o primeiro bombardeamento tinha caído em Londres a 13 de Junho de 1944. Tinha caído uma bomba perto da estação de Waterloo em 24 de Junho. ”Lembro-me de me meter num comboio”, pensou Judith.

 

Vestia apenas uma camisola leve por cima do vestido, de modo que o tempo devia estar relativamente quente. Suponhamos que íamos a Waterloo nesse dia. A minha mãe e a minha irmã foram mortas. Eu pus-me a vaguear pela estação e subi para um comboio. Fui encontrada na manhã seguinte em Salisbury. Isso poderia explicar o motivo por que ninguém de Londres que pudesse conhecer-me chegou a ver a minha fotografia.”

 

Tinha dito que vivia em Kent Court. Tinha caído uma bomba na Kensington High Street em 13 de Junho de 1944. Alguns dias depois, uma outra tinha atingido a Kensington Church Street. Kensington Court er uma rua residencial na vizinhança.

 

A estátua de Peter Pan ficava nos Jardins de Kensington, o parque que se situava perto dali. Numa das suas alucinações, tinha visto uma criança a tocar na estátua do Peter Pan. Os seus mapas e as suas investigações tinham-lhe provado que, se tivesse vivido na zona de Kensington era possível que tivesse testemunhado o primeiro bombardeamento.

 

Judith começou a tremer. Estava a acontecer de novo. A mesa e as estantes desapareceram. A sala escureceu. A criança. Via-a a tropeçar por entre os escombros, ouvia-a soluçar. O comboio. Aporta aberta. As embalagens e os sacos empilhados no interior.

 

A imagem desapareceu, mas desta vez Judith apercebeu-se de que tinha sido bem-vinda. ”Estou a receber vislumbres de memória”, pensou, triunfantemente. ”Era uma espécie de carruagem de carga. Por isso ninguém me viu. Deitei-me em cima de qualquer coisa e adormeci. AS datas ajustam-se.”

 

No dia seguinte, 25 de Junho de 1944, Amanda Chase, a Wren que estava noiva de um oficial da Marinha Americana, Edward Chase, deparou com uma criança de 2 anos a vaguear em Salisbury, com o seu vestido feito à mão e a sua camisola de malha muito suja. A criança, silenciosa, de olhos muito abertos, incapaz de falar, desconfiada, a princípio, acabou por se acolher nos seus braços amigos. A criança não identificada. A criança que ninguém reclamou, Amanda e Edward Chase foram ao orfanato visitar a menina, a que deram o nome de Judith, e levaram-na a passear. Quando ela começou a falar, chamava-lhes mamã e papá. Dois anos depois, terminados sem êxito os seus esforços para encontrar a sua verdadeira família, Amanda e Edward Chase tinham recebido permissão para adoptar Judith.

 

Judith ainda se recordava do dia em que tinha ficado à espera de que eles a fossem buscar ao orfanato.

 

Posso realmente viver convosco?

 

Amanda, com um sorriso nos seus olhos castanhos, abraçou-a.

 

Fizemos o possível por encontrar quem te perdeu. Mas agora és nossa.

 

Edward Chase, o homem que seria seu pai, alto e silencioso e cheio de amor.

 

Judith, há uma frase já muito gasta, na adopção: ”Nós escolhemos-te”. Neste caso, aplica-se inteiramente.

 

”Eles foram tão bons para mim”, pensou Judith com renovada esperança, ao dar início a mais uma longa e entediante busca nos livros de registo. ”Fui tão feliz com eles.”

 

Edward Chase, que terminara um curso superior em Annapolis, tinha decidido seguir a carreira da Marinha. Depois da guerra, tinha sido adido Militar Naval da Casa Branca. Judith tinha vagas recordações da caça aos Ovos de Páscoa nos relvados da Casa Branca, do presidente Truman a perguntar-lhe o que queria ser quando crescesse. Mais tarde, Edward Chase tinha sido adido militar no Japão, depois embaixador na Grécia e na Suécia.

 

Quem poderia ter desejado melhores pais?, pensou Judith, ao abrir o livro na secção que continha os nomes começados por M. Tinham cerca de trinta anos quando a tinham adoptado, tinham morrido com um intervalo de um ano, havia oito anos, deixando bens consideráveis à sua ”querida filha Judith”.

 

E agora apercebia-se de que o falecimento deles a tinha libertado de uma sensação de culpa e de deslealdade ao tentar encontrar as pessoas que a haviam gerado. As horas foram passando. Marsh. March. Mars. Merritt. Não havia qualquer nome derivado de Marrish, nem qualquer nome começado por M nos registos de Maio de 1942 que tivesse ”Sarah” como primeiro nome ou nome intermédio. Era a altura de procurar em P, na esperança de que talvez tivesse querido dizer ”Parrish”.

 

Os seus dedos percorreram as páginas dos nomes começados por P até alcançar Parrish. Parrish, Ann, Freguesia de Knighsbridge; Parrish, Arnold, Freguesia de Picadilly. E de súbito encontrou

 

Nome da Mãe Freguesia Volume Página

 

Parrish Mary Elizabeth Travers Kensington 6B 32

 

«Parrish! Kensington! Oh, meu Deus», pensou. Conservando o indicador sobre aquela linha, percorreu o resto da página. Parrish, Norman, Freguesia de Chelsea; Parrish, Sarah Courtney, Nome da mãe Travers, Freguesia de Kensington, Volume BB, Página 32. Nem ousando acreditar que compreendia o que estava a ver, Judith correu ao balcão para falar com a funcionária.

 

- Que é que isto quer dizer? - perguntou. A funcionária tinha um pequeno transístor em cima do balcão, com o volume tão baixo que era quase inaudível. Relutantemente, arrancou-se às notícias da BBC. - Que horror, esta história da bomba - disse. Fez uma pausa. Desculpe. Que queria saber?

 

Judith apontou para os nomes Mary Elizabeth e Sarah Courtney Parrish.

 

- Nasceram ambas no mesmo dia. A mãe tem o mesmo nome de solteira. Acha que isto quer dizer que fossem gémeas? - Eu diria que sim. E há sempre muito cuidado em registar qual o gémeo mais velho. Isso representa muitas vezes a herança do título, compreende. Deseja adquirir as certidões de nascimento completas?

 

- Sim, evidentemente. E mais uma pergunta. Polly não é um diminutivo para Mary, em Inglaterra?

 

- Muito frequentemente. A minha prima, por exemplo. Para obter as certidões de nascimento, terá de preencher os devidos impressos e pagar cinco libras por cada uma. Ser-lhe-ão enviadas pelo correio. - Que informações dão? - Muitas-respondeu a funcionária. -Data e local de nascimento. Nome de solteira da mãe. Nome e profissão do pai. Endereço.

 

Judith regressou a pé ao seu apartamento, aturdida. Ao passar por um quiosque de jornais viu os enormes cabeçalhos que falavam da bomba colocada em Trafalgar Square. Imagens de crianças a sangrar enchiam as primeiras páginas. Pesarosa, Judith comprou um jornal e leu-o logo que chegou a casa. «Pelo menos», pensou, «nenhum dos ferimentos pôs em risco a vida de qualquer das crianças.» O jornal estava cheio de notícias sobre a tempestuosa sessão no Parlamento. O ministro do Interior, Sir Stephen Hallett, tinha feito um discurso dramático: «Há muito que defendo a necessidade da aplicação da pena de morte aos terroristas. Essa gente desprezível colocou hoje uma bomba num local onde sabiam que iriam estar presentes crianças das escolas. Se uma só dessas crianças tivesse morrido, não seria justo que os terroristas sentissem o pescoço em perigo? Tenho o acordo do Partido Trabalhista, ou vamos continuar a amimar esses assassinos em potência?

Um outro artigo dizia que o explosivo usado tinha sido gelignite, e que se tinha iniciado uma investigação maciça no sentido de localizar aquisições e comunicações de roubo daquele produto mortal.

 

Judith pousou o jornal e consultou o relógio. Eram quase seis horas. Sabia que Stephen ia telefonar e que seria conveniente poder dizer-lhe que tinha entrado em contacto com Fiona.

 

Fiona estava demasiadamente interessada nos acontecimentos do dia para se zangar com o esquecimento de Judith.

 

Minha querida, que coisa horrível, não acha? O Parlamento está em polvorosa. Depois das eleições, a pena de morte será sem dúvida aplicada. Isso só poderá beneficiar o nosso querido Stephen. As pessoas estão realmente indignadas. Pobre rei Carlos. Presumo que queriam mandar a sua estátua para a sucata. E seria uma pena que isso acontecesse. É absolutamente a estátua equestre mais encantadora de todo o reino. Mas note que há algumas estátuas que eu não me importava nada de ver transformadas em sucata. Há algumas cujos cavalos parecem destinados a puxar carroças, não a serem montados por reis. Oh, valha-nos Deus.

 

Stephen telefonou um quarto de hora mais tarde.

 

Querida, esta noite demoro-me muito. Tenho uma reunião com o comissário da Scotland Yard e alguns dos seus homens.

 

A Fiona falou-me de um alvoroço no Parlamento por causa da bomba. Já há alguma declaração de responsabilidade por parte dos terroristas?

 

Até agora, nada. É por isso que me vou reunir com a Scotland Yard. Como ministro do Interior, os actos de terrorismo caem sob a minha alçada. Tinha esperanças de que, como nação civilizada, quando acabámos com a pena de morte, fosse para sempre, mas o que sucedeu hoje prova, sem dúvida, a necessidade da pena de morte. Penso que seria uma dissuasão.

 

Julgo que muita gente pensa como tu, mas lamento dizer-te que eu não. A ideia de uma execução gela-me o sangue.

 

Há dez anos eu pensava exactamente do mesmo modo disse Stephen tranquilamente. Mas já não. Não, quando tantas vidas inocentes correm perigo constantemente. Querida, estou cheio de pressa. Vou tentar despachar-me o mais cedo possível.

 

Seja qual for a hora a que aqui chegues, estarei à tua espera.

 

Reza Patel e Rebecca Wadley preparavam-se para sair para jantar quando o telefone do consultório começou a tocar. Rebecca levantou o auscultador:

 

- Miss Chase, que prazer ouvi-la. Como tem passado? O doutor está aqui mesmo.

 

Num movimento que já se tornara automático, Patel premiu os botões de som alto e gravação. Ele e Rebecca ouviram Judith falar-lhes da sua descoberta.

 

- Estava ansiosa por falar disto - disse, cheia de felicidade - e apercebi-me de que o doutor e a Rebecca são as duas únicas pessoas vivas que sabem do que se passa e me podem compreender. Doutor, fez um milagre. Sarah Courtney Parrish. É um bonito nome, não lhe parece? Quando receber as certidões de nascimento, terei o endereço. Não é incrível que Polly fosse minha gémea?

 

- Está a transformar-se numa boa detective - observou Patel, esforçando-se por parecer entusiasmado.

 

- Investigações - disse Judith rindo. - Ao fim de algum tempo, aprende-se a seguir pistas. Mas agora tenho de pôr isto de parte durante uns dias. Amanhã tenho de me dedicar à máquina de escrever, e há uma exposição na National Portrait Gallery que quero ver. Apresenta muitas cenas da corte de Carlos I. Deve ser interessante.

 

-A que horas vai lá?-inquiriu Patel imediatamente.-Eu também estou a pensar em vê-la. Talvez possamos tomar uma chávena de chá.

 

- Magnífico. Três horas serve-lhe?

 

Quando ele pousou o auscultador no descanso, Rebecca perguntou a Patel:

 

- Que interesse há em encontrar-se com ela na Galeria?

 

- Não tenho mais motivos para a fazer vir aqui e gostaria de ver se consigo detectar qualquer indicação de modificações da personalidade dela.

 

Judith envergou um pijama de seda cor de pêssego e calçou chinelas a condizer, soltou os cabelos, escovou-os e deixou-os caídos sobre os ombros, retocou a maquilhagem e pulverizou os pulsos com água de colónia Joy. Preparou uma salada e ovos mexidos para o jantar. Juntando-lhes um bule de chá, colocou os pratos na inevitável bandeja e, distraidamente, foi comendo enquanto planeava o capítulo seguinte. Às nove horas, foi buscar um prato com queijo e bolachas e os balões para o brande, e depois voltou para a secretária.

 

Eram onze e um quarto quando Stephen Chegou. O rosto dele estava pálido de fadiga. Abraçou-a em silêncio.

 

- Meu Deus, como é bom estar aqui.

 

Judith massajou-lhe os ombros enquanto ele a beijava. Depois, abraçados, foram sentar-se no sofá de damasco castanhoavermelhado, excessivamente estofado, que constituía, sem dúvida, um dos tesouros de Lady Beatrice Ardsley. Uma antiga cobertura acolchoada, que cobria as costas e os braços, estava entalada por detrás da estrutura e das almofadas, e depois caía protectoramente por cima das almofadas até ao chão. Judith serviu o brande e entregou um copo a Stephen.

 

- Penso que realmente, em honra do futuro primeiro-ministro, devia retirar esta velha protecção e confiar em que tu não porias os pés em cima do precioso sofá de Lady Ardsley.

 

Foi recompensada por um esboço de sorriso.

 

- Tem cuidado. Se fecho os olhos, acabo por passar aí a noite enrolado. Que dia terrível, Judith.

 

- Como correu a reunião com a Scotland Yard?

 

-Bastante bem. Felizmente, havia um turista japonês que estava a filmar tudo com uma câmara de vídeo e vamos ter um filme do que se passou. Também havia muita gente por ali a tirar fotografias. Os meios de comunicação pretendem que essas fotografias lhes sejam entregues. Há uma recompensa substancial para alguma que possa conter uma pista que leve à detenção e condenação do executante. Bem vês, seria uma sorte se a bomba tivesse começado a deitar fumo um minuto ou dois depois de ser colocada. Talvez haja hipótese de se obter uma fotografia de alguém a colocá-la junto ao pedestal da estátua. -Espero que sim. As fotografias daquelas crianças feridas eram comovedoras. -Judith esteve quase a dizer que a tinham feito pensar nas alucinações que tinha tido da criança apanhada pelos bombardeamentos aéreos, mas conteve-se. Era duro, pensou, não poder dizer ao homem que amava tanto, que julgava ter descoberto a sua verdadeira identidade.

 

Havia uma maneira segura de evitar revelar-lhe o seu segredo. Deslizando pelo sofá, envolveu o pescoço de Stephen com os braços.

 

O comissário assistente Philip Barnes era o chefe do Departamento Anti-Terrorista da Scotland Yard. Era um homem pequeno, de voz suave, quase de 50 anos, com cabelos castanhos, que começavam a tornar-se ralos, e olhos cor de avelã. Parecia mais um pároco de província que um funcionário superior da polícia. Os seus homens tinham vindo rapidamente a saber que a voz suave podia transformar-se numa arma contundente quando iam ao tapete por algo, desde um pequeno erro a um erro crasso. Todavia, respeitavam Barnes ao ponto de quase o venerarem, e alguns tinham mesmo a coragem de gostar genuinamente dele.

 

Naquela manhã, o comissário Barnes estava simultaneamente irritado e satisfeito. Irritado por os terroristas terem escolhido um alvo tão pouco significativo como a estátua equestre e por terem escolhido um dia em que a estátua se encontrava rodeada de crianças e turistas; satisfeito por ninguém ter morrido ou ficado ferido com gravidade. E também se sentia frustrado.

 

Não faz sentido que os líbios ou iranianos atacassem a estátua disse. Se o IRA quisesse pôr uma bomba num monumento, teria atacado Cromwell. Foi ele quem dizimou o país deles, não foi o pobre e velho Carlos.

 

Os seus homens ficaram à espera, sabendo que ele não contava com a sua resposta.

 

Quantas fotografias temos? perguntou.

 

Dúzias respondeu o seu ajudante, o comandante Jack Sloane. Sloane era alto e magro e tinha cabelos cor de areia, olhos azul-claros, a pele avermelhada do atleta que pratica desporto durante todo o ano. Irmão de um baronete, era amigo íntimo de Stephen. A mansão rural da sua família, Bindon Manor, situava-se a seis milhas de Edge Barton. Algumas delas ainda não foram reveladas, Sr. Comissário. Estão a sê-lo agora. E também temos aquele filme de vídeo, quando quiser vê-lo. E quanto às investigações sobre o explosivo? Talvez já tenhamos uma pista. O capataz de uma pedreira de Gales tem andado à procura de uma quantidade de gelignite que desapareceu.

 

Quando é que ele deu pela falta?

 

Há quatro dias. O telefone tocou. A secretária do comissário Barnes tinha recebido instruções para só lhe passar as chamadas de uma única pessoa. Sir Stephendisse Barnes, mesmo antes de pegar no telefone.

 

Contou imediatamente a Stephen o que sabia sobre a gelignite desaparecida, as fotografias dos turistas, o filme de vídeo.

 

íamos agora mesmo vê-lo, Sr. Ministro. Voltarei a falar-lhe, se valer a pena.

 

Cinco minutos depois, na sala mergulhada na penumbra, viam a projecção do filme. Tinham esperado ver os habituais resultados obtidos por um fotógrafo amador e ficaram agradavelmente surpreendidos ao deparar com um filme bem focado. O panorama da área de Trafalgar Square. Um primeiro plano da estátua e do seu pedestal. As coroas de flores já colocadas junto deste.

 

Pára ordenou Sloane.

 

O operador de câmara de vídeo, habituado a este tipo de ordens, parou imediatamente o filme.

 

Anda uma ou duas sequências para trás.

 

Que é que viu? perguntou o comissário Barnes.

 

Uma pequena coluna de fumo. Quando a imagem foi feita, a bomba já lá estava.

 

Foi uma pena não terem filmado a pessoa que a colocou! explodiu Barnes. Pronto, continua.

 

As crianças das escolas. Os turistas. Os alunos que seguravam a coroa. O envergonhado início do poema. O polícia a correr para a estátua, forçando as crianças a afastarem-se.

 

Aquele homem devia ser proposto para a Georges Cross1 murmurou Barnes.

 

As pessoas a fugir. A explosão. A câmara a girar em volta.

 

Pára.

 

O operador voltou a parar a câmara e a mostrar as imagens imediatamente anteriores.

 

Aquela mulher de capa e óculos escuros. Percebeu que estava a ser filmada. Vejam a maneira como puxou o capuz para a cara. Todos os outros adultos da multidão correm a socorrer as crianças. Ela está a afastar-se. Sloane voltou-se para um dos seus assistentes. Quero que extraiam a imagem dela de todas as sequências deste filme. Ampliem-na. Vamos a ver se conseguimos identificá-la. Talvez consigamos descobrir alguma coisa.

 

Alguém acendeu as luzes.

 

1 Uma condecoração concedida principalmente a civis, por invulgar heroísmo. (N. da T.)

 

A propósito acrescentou Sloane. Vejam especialmente se algum dos turistas apanhou a mulher da capa, nas suas fotografias.

 

Nessa tarde, ao vestir-se para ir visitar a National Portrait Gallery, Judith decidiu-se, com relutância, a vestir um fato de saia e casaco cinzento-claro e o seu casaco zibelina, e a calçar sapatos de salto alto. Nos últimos dias, desde que Stephen tinha sido eleito chefe do Partido, tinham saído perfis dele em diversos jornais e todos se referiam a ele como sendo o melhor partido e o mais atraente homem solteiro de Inglaterra. Desde Heath que não havia um primeiro-ministro solteiro, notava um dos jornais, e corriam boatos confirmados de que Sir Stephen tinha um caso romântico que iria por certo agradar ao povo inglês.

 

”Essa observação provinha do colunista social Harley Hutchinson. De modo que é melhor eu não sair com o aspecto de uma hippie de Greenwich Village”, pensou Judith, suspirando, enquanto escovava cuidadosamente os cabelos e aplicava sombra e pintura nos olhos. Prendeu depois um alfinete de prata em forma de rosa na lapela do casaco e observou o seu reflexo no espelho.

 

Vinte anos antes, tinha-se casado com Kenneth envergando o tradicional vestido branco e véu e grinalda. Que deveria vestir quando se casasse com Stephen? Um fato de cocktail simples, decidiu. Com a presença de um grupo muito limitado de amigos. Tinha havido perto de trezentas pessoas no Country Club de Chevy Chase, havia vinte anos. ”Acontecer isto duas vezes numa vida”, pensou. ”Ninguém merece tanta felicidade.”

 

Transferiu a carteira e a maquilhagem para a bolsa de camurça cinzenta que condizia com os sapatos de salto alto e que era uma versão mais pequena da sua grande mala de trazer ao ombro. ”Por muito apertadas que as coisas fiquem, preciso do meu bloco de notas”, pensou, pesarosa.

 

A National Portrait Gallery ficava entre a st. Martin’s Place e a Orange Street. A exposição especial apresentava cenas de corte, desde os Tudor ao Stuart. Os quadros tinham sido cedidos por colecções particulares de toda a Inglaterra e Commonwealth, e as figuras menores representadas nos quadros, que podiam ser identificadas, estavam indicadas em placas emolduradas. Quando Judith chegou, a galeria estava ainda cheia, e, divertida, reparou que as pessoas consultavam com interesse as listas impressas das placas obviamente na esperança de localizarem qualquer antepassado esquecido havia muito.

 

Estava particularmente interessada em ver as cenas de Corte em que estivessem representados Carlos I, Oliver Cromwell e Carlos II. Caminhando em sentido inverso, comparou os trajos festivos do ”Alegre Monarca”, Carlos II, com os trajos simples e austeros, de estilo puritano, dos íntimos de Cromwell. As cenas de corte em que apareciam Carlos I e a sua consorte, Henrietta Maria, eram especialmente curiosas. Sabia que, apesar da gelada desaprovação dos Puritanos, a Rainha Henrietta Maria tinha apreciado os quadros vivos. Houve um quadro que lhe atraiu especialmente a atenção. O cenário era o Palácio de Whitehall. O rei e a rainha eram as figuras centrais. Os membros da corte encontravam-se obviamente vestidos para um quadro vivo. Abundavam os cajados de pastores, as asas de anjos, os halos e as espadas de gladiadores.

 

Miss Chase, como está?

 

Judith tinha estado absorvida pelo quadro.

 

Surpreendida, voltou-se e deparou com o Dr. Patel. O seu rosto de feições regulares sorria, mas ela reparou que a expressão dos seus olhos era grave. Tocou-lhe levemente no braço.

 

Doutor, está com um ar muito sombrio. Ele fez uma ligeira vénia.

 

E eu estava a pensar que está muito bonita. Baixou a voz. Digo-lhe uma vez mais que Sir Stephen é realmente um homem de sorte.

 

Judith abanou a cabeça.

 

Aqui não, por favor. Pelo que vejo, esta sala está cheia de jornalistas por todos os lados. Voltou para o quadro.Não o acha fascinante? perguntou. E pensar que foi pintado em 1640, pouco antes de Sua Majestade ter dissolvido o Pequeno Parlamento.

 

Reza Patel olhou o quadro. Na placa por baixo dele lia-se: ”Artista desconhecido. Crê-se que tenha sido pintado entre 1635 e 1640.”

 

Judith apontou para um elegante casal que se encontrava perto do rei sentado.

 

Sir e Lady Margaret Carewdisse a Patel.Estavam ambos preocupados, neste dia. Sabiam o que sucederia se o rei dissolvesse o Parlamento. Os antepassados de Lady Margaret tinham sido Membros do Parlamento desde o seu início. A família dela encontrava-se terrivelmente dividida quanto a lealdades, nessa época.

 

Patel leu as informações contidas na placa. Além do rei e da rainha, do seu filho mais velho Carlos, duque de York, e de meia dúzia de parentes reais, as outras figuras do quadro não estavam identificadas.

 

As suas investigações devem ser extraordinárias disse.

 

Devia tê-las proporcionado aos historiadores daqui.

 

Lady Margaret apercebeu-se de que não deveria ter falado a Reza Patel de si própria e de John. Voltando-se abruptamente, afastou-se dele e começou a caminhar pela galeria. À porta, ele alcançou-a e deteve-a:

 

Miss Chase, Judith. Que aconteceu?

 

Ela fitou-o sobranceiramente. Num tom altivo, disse:

 

Judith não se encontra aqui, neste momento.

 

Quem é a senhora? perguntou ele ansiosamente. Surpreendido, reparou na cicatriz avermelhada na mão direita dela.

 

Ela apontou para o quadro.

 

Já lhe disse. Sou Lady Margaret Carew. Afastando-se dele, abandonou a galeria.

 

Estupefacto, Patel voltou para junto do quadro e observou a figura que Judith tinha indicado ser Lady Margaret Carew. Reparou que existia uma notável semelhança entre ela e Judith.

 

Extremamente apreensivo, saiu da galeria, sem reparar sequer nas pessoas que tentavam cumprimentá-lo. Pelo menos, disse a si próprio, sei quem está presente no corpo de Judith. Agora teria de saber o que tinha acontecido a Margaret Carew e tentar antecipar o seu movimento seguinte.

 

O vento tinha começado a soprar com força. Ia começar a descer a St. Martin’s Place quando sentiu que lhe seguravam no braço.

 

Dr. Patel disse Judith, rindo. Peço imensa desculpa. Estava tão absorvida a observar os quadros que me vim embora, com intenção de regressar a casa, e quase me esqueci de que tínhamos planeado tomar chá juntos. Peço que me perdoe.

 

A mão direita dela. Reza Patel viu a cicatriz ir perdendo cor até se transformar numa linha dificilmente discernível.

 

O dia seguinte, 1 de Fevereiro, trouxe chuva forte e fria. Judith decidiu permanecer no apartamento e trabalhar. Stephen telefonou a dizer que ia à Scotland Yard e depois partia para o campo.

 

Vota Conservador. Vota Hallett disse, brincando. É uma pena que sejas americana, não posso contar com o teu voto.

 

Seria teu disse-lhe Judith. Talvez te ajude saber isto. O meu pai costumava dizer-me que em Chicago metade das pobres almas que estavam no cemitério ainda faziam parte da lista de votantes.

 

. Hás-de ensinar-me como é que isso se faz. Stephen riu-se.

 

O tom alterou-se. Judith, vou passar uns dias a Edge Barton. O problema é que raramente poderei estar em casa, mas gostarias de vir comigo? Saber que estarias lá ao fim do dia representaria muito para mim.

 

Judith hesitou. Por um lado, desejava ardentemente voltar a Edge Barton. Por outro, a total preocupação de Stephen com a campanha que se aproximava deixava-a livre para poder tranquilamente pesquisar o seu passado. Finalmente disse:

 

Eu quero estar lá. Eu quero estar contigo. Mas não trabalho bem, longe da minha secretária. E mal poderemos ver-nos, por isso acho melhor ficar aqui. Quando chegarem as eleições, tenciono expedir o livro completo para o meu editor. Se o conseguir, garanto-te que vou ser uma mulher nova.

 

Uma vez terminada a eleição, não serei tão paciente, querida.

 

Espero que não. Deus te abençoe, Stephen. Amo-te.

 

Na Scotland Yard tinha sido separada uma sala para exposição das fotografias ampliadas que tinham sido feitas. Diversas entre elas apresentavam relances da mulher de óculos escuros e capa. Nenhuma das fotografias oferecia muito mais que um perfil. O capuz quase ocultava o rosto da mulher, mesmo antes de ela o ter puxado mais Para a frente, ao reparar na câmara de vídeo. Todas as fotografias em que ela aparecia tinham sido ampliadas e a sua imagem tinha sido extraída de todas elas.

 

Cerca de um metro e sessenta e cinco observou o comandante Sloane. Muito esbelta, não acha? Não deve pesar mais de cinquenta quilos. Cabelos escuros e uma boca severa. Não ajuda muito, Pois não?

 

O inspector David Lynch entrou na sala, com passos rápidos.

 

Acho que temos qualquer coisa mais, Comandante. Acaba de chegar outro grupo de fotografias. Olhe para estas.

 

As novas fotografias mostravam a mulher da capa a colocar uma coroa na base da estátua de Carlos I. A máquina tinha apanhado um canto de papel castanho por debaixo da coroa.

 

Bom trabalho disse Sloane.

 

Isto é só metade dele disse Lynch. Andámos a fazer perguntas nas construções da área. Um capataz falou-nos de uma mulher muito atraente, com uma capa escura, que esteve a namoriscar um dos seus homens, Rob Watkins, e disse-nos que Watkins se gabou de que ela ia ao quarto dele. Lynch fez uma pausa, gozando antecipadamente o que ia dizer. Acabamos de falar com a dona da casa onde vive Watkins. Há menos de dez dias, ele teve uma visita. Foi lá duas tardes pelas seis horas, e ficou umas duas horas no quarto com ele. Diz que ela tem cabelos pretos, usa óculos escuros, deve ter trinta e muitos ou quarenta e poucos, e usava uma capa verde com um capuz, muito cara, por sinal, segundo diz a dona da casa. Além disso, usava umas botas de cabedal muito boas, uma mala ao ombro, excessivamente grande, e, segundo a mulher diz, ”parecia até ser a rainha, tal era a pose dela. Muito altiva...”

 

Acho que devemos ter uma conversinha com Mr. Rob Watkins, imediatamente disse Sloane. Voltou-se para o seu assistente. Separe todas as fotografias da senhora da capa. Vamos ver se o tipo a consegue detectar no meio da multidão sem lhe darmos ajuda.

 

Outra coisa interessante prosseguiu Lynch. A dona da casa diz que a mulher era indubitavelmente inglesa, mas tinha um jeito estranho de falar.

 

Que é que isso quer dizer? retorquiu Sloane.

 

Pelo que eu depreendi, era a cadência da sua fala que parecia estranha. A dona da casa diz que lhe parecia estar a ouvir um desses filmes antigos em que as pessoas se tratam por ”vós”. ^

 

Abanou a cabeça perante a expressão do comandante Sloane. Sinto muito, Comandante, eu também não percebo.

No dia 10 de Fevereiro, a primeira-ministra fez a sua comunicação havia tanto tempo esperada. Iria falar com a rainha e pedir a Sua Majestade que dissolvesse o Parlamento. Não se recandidataria.

 

No dia 12 de Fevereiro, Stephen foi eleito chefe do Partido Conservador.

 

No dia 16 de fevereiro, a rainha dissolveu o Parlamento e a campanha começou.

 

Judith disse a Stephen, por brincadeira, que, quando queria vê-lo, tinha de ligar a televisão. Quando conseguiam encontrar-se, era geralmente em casa dele. O carro ia buscá-la e Rory dava a volta à casa, deixando-a na porta das traseiras. Assim era possível evitar a atenção dos meios de comunicação, sempre presentes.

 

Contudo, Judith constatou que era uma sorte Stephen estar em campanha durante o período em que ela terminava o seu livro. Aguardava ansiosamente a chegada das certidões de nascimento. A sua disposição ia desde a ansiedade ao medo. E se Sarah Parrish fosse apenas alguém que ela tivesse conhecido quando era pequena? Que faria então?

 

Sabia que, quando estivesse casada com o primeiro-ministro de Inglaterra, nunca mais passaria despercebida. Nessa altura não lhe seria possível uma missão particular como aquela.

 

Stephen telefonava-lhe todas as manhãs e voltava a telefonar a altas horas da noite. Estava frequentemente rouco, de tanto discursar. Ela sentia a fadiga dele, enquanto conversavam.

 

Vai ser muito mais difícil do que prevíamos, querida disse-lhe ele. Os Trabalhistas estão a dar luta, e ao fim de quase uma década de governo Conservador há muita gente que vai votar pela mudança. A preocupação que notava na voz dele era suficiente para que Judith o absolvesse completamente do seu egoísmo por não a ajudar na sua busca de identidade. Só poderia comparar o desapontamento dele se não conseguisse ser primeiro-ministro com a angústia que ela própria sentiria se se sentasse diante da máquina de escrever e subitamente se apercebesse de que já não conseguia escrever, de que perdera o seu dom...

 

Para satisfazer a sua necessidade de acabar o livro e de continuar a sua busca, Judith regulava o despertador cada vez mais cedo. Agora levantava-se às quatro da manhã, trabalhava até ao meio-dia, preparava uma sanduíche e um bule de chá e trabalhava até às onze.

 

De vez em quando punha-se a andar a pé pela zona de Kensington, pensando que, se se concentrasse bastante, um dos antigos prédios de apartamentos que formavam as belas ruas se tornaria subitamente reconhecível. Como desejava voltar a ver a criança fantasma a correr à sua frente, entrando para um prédio que podia ter sido a sua casa. Nas alucinações que experimentara, ter-se-ia visto a si próPria, ou a Polly?, perguntava a si mesma, e era recompensada pelo pensamento imediato: ”Eu andava sempre atrás de Polly. Ela corria mais depressa...” Ajanela do passado abria-se um pouco mais... Porque levariam tanto tempo a chegar as certidões de nascimento? Não era a estação social em Londres. Fiona estava empenhada numa dura luta pelo seu lugar no Parlamento. Era fácil recusar os convites para festas e jantares que Judith recebia. Administrava cuidadosamente o seu tempo e estava certa de não ter sofrido mais lapsos de memória. O Dr. Patel telefonava-lhe regularmente e divertia-a notar que o seu tom de voz, no início da conversa, era sempre apreensivo, como se esperasse que ela lhe revelasse qualquer sinistra aberração. No dia 28 de Fevereiro, terminou a primeira versão do seu livro, leu-a toda e apercebeu-se de que precisava de reescrever muito pouca coisa antes de o enviar ao editor. Nessa noite, Stephen chegou da escócia, onde tinha ido participar na campanha dos candidatos Conservadores.

 

Não se tinham visto durante cerca de dez dias. Quando ela lhe abriu a porta, ficaram a olhar-se durante um longo momento. Stephen suspirou, ao abraçá-la, antes de a beijar. Judith sentiu o calor e a força dos seus braços, o bater do seu coração, quando ele a apertou mais. Os seus lábios encontraram-se e as mãos dela envolveram-lhe o pescoço. Voltou a aperceber-se de que, por muito que tivesse amado Kenneth, era nos braços de Stephen que sentia a realização de tudo quanto era possível entre um homem e uma mulher.

 

Durante as bebidas, compararam impressões, concordando cada um deles em que o outro tinha um aspecto exausto.

 

Querida, estás muito mais magra. Quantos quilos perdeste?

 

Não tenho reparado. Não te preocupes. Recupero tudo quando o livro sair. E a propósito, Sir Stephen, também perdeu alguns quilos.

 

Os americanos pensam que conseguem vender-nos gato por lebre, Estão muito enganados. A propósito, é melhor eu telefonar para casa, para contarem connosco para jantar.

 

Não é preciso. Já mandei buscar. Uma coisa muito simples. Costeletas e salada e uma batata grande, para extrairmos energia dos hidratos de carbono. Serve-te?

 

E nem um único constituinte para me desejar sorte ou me aborrecer por causa dos impostos.

 

Trabalharam juntos na minúscula cozinha, Judith a preparar a salada, Stephen proclamando-se mestre em costeletas grelhadas.

 

Stephen, com as mangas arregaçadas, um avental atado a cobri-lo todo, parecia ir perdendo visivelmente todos os sinais de fadiga.

- Quando era rapaz disse, a minha mãe dispensava os criados todos os domingos, a menos que tivéssemos convidados para o fim-de-semana. Adorava ir para a cozinha e cozinhar para o meu pai e para mim. Sempre sentia falta desses dias maravilhosos em que ficávamos completamente sós. Sugeri que mantivéssemos a tradição quando me casei com Jane.

 

Que é que a Jane disse? perguntou Judith, suspeitando qual seria a resposta.

 

Stephen riu-se.

 

Ficou apavorada. Lançou uma olhadela às costeletas. Mais uns três minutos, penso eu.

 

Salada pronta para a mesa. Batatas e pão já na mesa. Judith passou as mãos por água, enxugou-as e envolveu com elas o rosto de Stephen. Gostavas de instaurar de novo a antiga tradição? Quando não sou escrava da máquina de escrever, sou uma óptima cozinheira.

 

Quatro minutos depois, quando ainda estavam nos braços um do outro, Stephen cheirou o ar e disse, alarmado:

 

Meu Deus, as costeletas!

 

A busca para encontrar a mulher que tinha colocado a bomba na base da estátua do rei Carlos terminou num impasse. O jovem operário da construção civil, Rob Watkins, tinha sido interrogado implacavelmente, mas sem resultados. Identificou imediatamente a mulher da capa escura que se via nas fotografias tiradas à estátua do rei Carlos, como sendo a mulher a quem tinha entregue a gelignite, mas persistiu inflexivelmente na sua versão de que Margaret Carew lhe dissera que tencionava utilizá-la para demolir uma casa velha na sua propriedade de Devonshire. O passado de Watkins foi exaustivamente examinado. A Scotland Yard concluiu que ele era exactamente aquilo que parecia ser: um operário que se considerava um conquistador de mulheres, com um desinteresse total pela política e com um irmão capaz de se apoderar de tudo o que pretendesse numa Pedreira. O fogão de sala da vivenda dos seus pais em Gales tinha acabado de ser construído com valiosas placas de mármore, que condiziam exactamente com o mármore usado no último trabalho do seu irmão.

 

Com relutância, o comissário Philip Barnes acabou por concordar com o seu superior, o comandante Jack Sloane, que Watkins tinha sido utilizado e enganado pela mulher da capa. A insistência de Watkins de que a mulher que dizia chamar-se Margaret Carew tinha uma cicatriz bem visível na base do polegar direito era a única pista em que podiam depositar uma certa esperança.

 

A informação de Watkins foi escondida aos meios de comunicação. Foi acusado de receber mercadorias roubadas e detido sob uma fiança que não podia pagar. Conservaram pendente sobre a sua cabeça a acusação de cumplicidade com uma terrorista, com vista a futura colaboração. Todos os políticos de Inglaterra receberam uma fotografia ampliada da mulher da capa e dos óculos escuros, com instruções para estarem atentos. Foram particularmente instruídos no sentido de procurarem uma mulher de cabelos escuros, com cerca de 40 anos, e com uma cicatriz na mão.

 

À medida que as eleições se aproximavam, a história da bomba foi perdendo interesse. Vendo bem, ninguém tinha ficado gravemente ferido. Grupo algum havia reivindicado a responsabilidade pelo acto. O humor negro começou a fazer a sua aparição nos programas de televisão: ”Pobre Carlos. Não contentes com a ideia de lhe terem cortado a cabeça, trezentos anos depois tentam fazê-lo ir pelos ares. Já é tempo de o deixarem em paz.”

 

E então, a 5 de Março, deu-se a explosão na Torre de Londres, na sala onde estavam expostas Jóias da Coroa. Ficaram feridas quarenta e três pessoas, seis das quais em estado grave, e morreu um guarda e uma idosa turista americana.

 

Na manhã de 5 de Março, Judith apercebeu-se de que não estava satisfeita com a sua descrição da Torre de Londres. Sentiu que não tinha conseguido transmitir o medo aterrador que tinham experimentado os regicidas e os seus cúmplices, que lá tinham sido aprisionados. Sabia que uma visita ao local que estava a descrever podia geralmente ajudá-la a encontrar as sensações que tentava reproduzir. O dia estava seco e ventoso. Abotoou a sua Burberry, atou ao pescoço um lenço de seda, calçou luvas e decidiu não levar a mala ao ombro. As longas horas de trabalho começavam a fatigá-la, tinha de confessar, e o peso da mala começava a provocar-lhe dores no ombro. Em vez dela, meteu dinheiro e um lenço no bolso. Não tencionava tomar notas. Desejava simplesmente passear pela Torre.

 

Como habitualmente, os inevitáveis turistas enchiam os pátios e as salas. Os guias explicavam, numa dúzia de línguas, a história do enorme palácio. ”Em 1066, quando o duque da Normandia foi coroado rei de Inglaterra, começou imediatamente a fortificar Londres contra qualquer possível ataque. Inicialmente, a Torre foi concebida construída como um forte, mas cerca de dez anos mais tarde foi erguida uma maciça torre de pedra que ficou conhecida como a Torre de Londres.”

 

Era uma história que ela conhecia bem, mas Judith encontrou-se a seguir um grupo que estava a ser encaminhado através das torres e salas seleccionadas. As instalações da Torre Sangrenta, onde Sir Walter Raleigh estivera aprisionado durante treze anos, fascinavam os turistas.

 

É maior que o meu apartamento comentou uma jovem.

 

Eram umas instalações muito melhores que as da maior parte dos outros desgraçados, pensou Judith, apercebendo-se de que estava gelada e a tremer de frio. Invadiu-a uma sensação de pânico e de medo, e encostou-se à parede. ”Sai daqui depressa”, disse a si mesma, e depois pensou: ”Não sejas ridícula, é essa a sensação que pretendo transmitir no meu livro.”

 

Com as mãos apertadas dentro dos bolsos, continuou a acompanhar o grupo até à Casa das Jóias da Coroa. ”Desde o tempo dos Tudor, esta torre foi habitada por prisioneiros de categoria”, explicou o guia. ”Durante os anos de Cromwell, o Parlamento mandou fundir os ornamentos da coroação e vendeu as pedras preciosas. Uma perda irreparável. Mas quando Carlos II subiu ao trono, reuniu todas as jóias antigas que conseguiu, e foram feitos novos ornamentos para a sua coroação em 1661.”

 

Judith percorreu lentamente a câmara inferior da Casa das Jóias, detendo-se^para olhar para a colher da Consagração, a Coroa de St. Edward, a Âmbula da Águia, que continha os óleos sagrados para ungir o monarca, o Ceptro, que ostentava o diamante Estrela de África...

 

O Ceptro e a Âmbula foram feitos para a coroação dele, pensou Margaret. John e eu ouvimos falar da grandeza de tudo isto. Óleos para ungir o peito de um homem falso, um ceptro que será empunhado por uma mão vingativa, uma coroa que vai ser colocada na cabeça de mais um déspota.

 

Abruptamente, Margaret passou pelo Guarda da Torre. O quarto onde me prenderam ficava nas Torres Wakefield. Disseram-me que tinha sorte por não ser colocada numa masmorra, enquanto aguardava a execução. Disseram-me que o rei apenas se mostrava misericordioso a esse ponto por eu ser filha de um duque que havia sido amigo de seu pai. Mas arranjaram maneiras de me torturar. Oh, meu Deus, fazia tanto frio, e eles deliciaram-se a descrever-me a morte de John. Morreu a chamar por mim e por Vincent, e espetaram a cabeça dele num poste, num local por onde eu iriapassar a caminho da minha execução. Hallett planeou tudo isto. Hallett veio visitar-me e escarneceu de mim, falando-me da sua vida em Edge Barton.

 

Miss Chase, está bem?

 

A voz solícita do guarda seguiu Margaret, que subia cegamente as escadas de caracol, empurrando os grupos de turistas que se moviam lentamente. No pátio, passou a mão pela testa, notando que a cicatriz estava tão nítida como na altura em que a haviam aprisionado ali. Hallett pegou-me na mão e observou a cicatriz, recordou-se. Disse-me que era uma pena que uma mão tão bonita ficasse assim arruinada. Voltando-se, olhou para o Quartel de Waterloo. A coroa e as jóias criadas para Carlos II nunca serão colocadas na cabeça e nas mãos de Carlos III, jurou a si mesma.

 

Outra vez a mulher da capa verde. O comissário delegado Barnes pareceu cuspir as palavras. Todos os polícias de Londres estavam avisados para a procurarem, e ela conseguiu pôr uma bomba, logo na Torre de Londres! Que é que se passa com os nossos homens?

 

Havia montes de turistas disse Sloane em voz baixa. Uma mulher no meio de um grupo é difícil de distinguir, e este ano usam-se muito as capas. Imagino que os polícias estivessem alerta durante as primeiras semanas, e depois, como não houve novos incidentes, esqueceram-se um pouco da mulher...

 

Ouviu-se uma pancada na porta e entrou apressadamente o inspector Lynch. Os seus dois superiores notaram imediatamente que ele se encontrava abalado.

 

Venho agora do hospital comunicou. O segundo guarda da Casa das Jóias não vai conseguir sobreviver, mas encontra-se suficientemente consciente para falar. Não pára de repetir um nome... Judith Chase.

 

Judith Chase! exclamaram simultaneamente Philip Barnes e Jack Sloane, com igual perplexidade.

 

Santo Deus, homem disse Barnes. Não sabes quem é? A escritora. Simplesmente fantástica. Franziu a testa. Esperem.

Li algures que ela estava a escrever um livro sobre a Guerra Civil, no período entre Carlos I e Carlos II: talvez haja aí qualquer coisa. Na contracapa do último livro dela há uma fotografia da autora... temo-lo em casa. Mande alguém comprá-lo. Podemos comparar a fotografia com as que temos e mostrá-la a Watkins. Judith Chase! Em que mundo estamos a viver?

 

Jack Sloane hesitou um pouco, e depois disse:

 

. Meu Comissário, é muito importante que ninguém saiba que vamos investigar Judith Chase. Eu vou comprar o livro. Não quero que nem a sua secretária saiba do nosso interesse por essa senhora.

 

Barnes franziu a testa.

 

Onde quer chegar?

 

Como sabe, meu Comissário, a casa da minha família fica em Devonshire, a cerca de cinco milhas de Edge Barton, a mansão rural de Sir Stephen Hallett.

 

E então?

 

Miss Chase foi convidada de Sir Stephen em Edge Barton no mês passado. Consta que, logo que terminem as eleições, se vão casar.

 

Philip Barnes dirigiu-se à janela e olhou para fora. Era um gesto que os seus homens reconheciam. Estava a pesar e a analisar o potencial desastre. Sir Stephen, na sua qualidade de ministro do Interior, era o ministro que se ocupava da administração da Justiça. Sir Stephen, se fosse eleito primeiro-ministro, seria o homem mais poderoso do mundo. A sugestão de um escândalo relacionado com ele neste momento poderia facilmente alterar o resultado das eleições.

 

Que é que o guarda disse exactamente? perguntou Lynch. Lynch puxou do seu bloco de notas.

 

Tomei nota, Sr. Comissário. ”Judith Chase. Voltou. Cicatriz.” A fotografia de Judith, recortada da contracapa do livro, foi mostrada a Rob Watkins.

 

É ela! exclamou, mas depois, enquanto os seus interlocutores aguardavam, chocados, a sua expressão tornou-se menos segura. Não. Olhem para as mãos dela. Não tem cicatriz. E a boca, e os olhos. Parecem diferentes, de certo modo. Oh, elas são muito parecidas. Podiam ser irmãs. Pousou a fotografia e encolheu os ombros. Não me importava nada de andar com esta. Vejam se ma conseguem.

 

Revoltada, Judith ouviu a notícia sobre a bomba colocada na Torre de Londres, quando ligou a televisão para escutar o noticiário das onze.

 

Estive lá esta manhã disse a Stephen, quando ele lhe telefonou uns minutos depois. Só queria sentir a atmosfera. Stephen pobre gente. Como é possível ser-se tão cruel?

 

Não sei, querida. Só agradeço a Deus que tu não estivesses naquela sala quando a bomba rebentou. Só sei uma coisa. Se o meu partido ganhar e eu vier a ser primeiro-ministro, vou criar a pena de morte para os terroristas, pelo menos para aqueles que provoquem mortes.

 

Depois do que sucedeu hoje, haverá mais pessoas que concordam contigo, embora eu ainda não consiga. Quando voltas para Londres, querido? Tenho saudades.

 

Vai ser uma semana, aproximadamente, mas, Judith, pelo menos estamos em contagem descendente. Mais dez dias até às eleições, e depois, ganhe ou perca, começaremos a nossa vida.

 

Tu vais ganhar e eu termino a revisão. Estou extremamente satisfeita com o que escrevi esta tarde sobre a Torre. Acho que consegui realmente transmitir o que deverá ter sentido um prisioneiro ali fechado. Adoro quando o trabalho corre bem. Perco completamente o sentido do tempo, mas é uma imersão gloriosa.

 

Depois de se ter despedido de Stephen, Judith dirigiu-se ao quarto e ficou surpreendida ao constatar que as portas da segunda secção do roupeiro, a área que Lady Ardsley tinha reservado para as suas roupas, estavam ligeiramente entreabertas. Provavelmente nunca tinham estado bem fechadas, pensou Judith, enpurrando-as com firmeza até ouvir o estalido do fecho. Não tinha reparado na mochila barata que estava meio escondida por detrás dos vestidos elegantes e fatos de bom corte que constituíam o guarda-roupa londrino de Lady Ardsley.

 

Às dez horas da manhã seguinte, Judith ficou surpreendida ao ouvir o zumbido do intercomunicador da entrada da escada. ”Um dos prazeres de Londres consiste em ninguém nos vir visitar sem telefonar primeiro”, pensou ela. Com relutância, abandonou a secretária e foi atender o intercomunicador. Era Jack Sloane, amigo de Stephen, do Devonshire, que lhe solicitava uns minutos do seu tempo.

 

Era um homem atraente, pensou ela enquanto o via beber o café que tinha aceite imediatamente. Quarenta e cinco, mais ou menos. Muito britânico, com o seu cabelo louro e olhos azuis. Acanhado, com aquele toque de timidez que caracterizava tantos ingleses de boas famílias. Tinha-o encontrado diversas vezes, nas festas de Fiona, e sabia que ele trabalhava para a Scotland Yard. Seria possível que os boatos que corriam sobre ela e Stephen o tivessem feito começar a investigá-la oficialmente? Aguardou, permitindo-lhe que orientasse a conversa.

 

- Foi uma coisa terrível, aquela história da bomba na Torre, ontem - disse ele.

 

-Pavorosa-concordou Judith. - por acaso estive lá de manhã, apenas algumas horas antes de aquilo acontecer. Jack Sloane inclinou-se para a frente. - Miss Chase, Judith, se me permite, é por isso que estou aqui. Ao que parece, um dos guardas da área das Jóias da Coroa reconheceu-a. Falou com ele?

 

Judith suspirou.

 

-Vai achar-me idiota. Eu tinha ido à Torre para captar a atmosfera para um dos capítulos do meu novo livro, que não me estava a soar bem. Receio bem que, quando estou concentrada, me volte para dentro. Se ele falou comigo, não o ouvi.

 

- A que horas foi lá? Cerca das dez e meia, penso eu.

 

- Miss Chase, esforce-se por nos ajudar. Tenho a certeza de que é uma excelente observadora, embora, como diz, estivesse preocupada com a sua pesquisa. Alguém conseguiu fazer entrar uma bomba durante a tarde. Foi um daqueles dispositivos de plástico, mas bastante mal feito, pelo que pudemos constatar. Não poderia ter sido levado para lá mais que alguns minutos antes de explodir. No momento em que o guarda reparou no saco e lhe pegou, detonou. Quando passou pela segurança para entrar na Casa das Jóias, pareceu-lhe que os guardas estavam atentos quando a sua mala passou pelo equipamento de detecção?

 

- Ontem não levei mala. Meti algum dinheiro no bolso da minha gabardina. -Judith sorriu. -Durante os últimos três meses tenho andado a fazer investigações por toda a Inglaterra, e dói-me o ombro de carregar tantos livros e máquinas fotográficas. Ontem apercebi-me de que precisava apenas de dinheiro para os táxis e para o bilhete de entrada, por isso sinto muito, mas não posso ajudá-lo.

 

Sloane pôs-se de pé.

 

Não quer ficar com o meu cartão? perguntou. Por vezes vimos uma coisa e remetemo-la para o subconsciente. Quando obrigamos a nossa mente a um trabalho de pesquisa e recuperação, de modo semelhante ao uso pelos computadores, é espantosa a quantidade de informações úteis que emergem. Estou muito satisfeito por ter tido a sorte de não estar na Torre, na altura em que a bomba explodiu.

 

À tarde já estava sentada à minha secretária disse Judith, apontando para o escritório.

 

Sloane reparou na pilha de páginas dactilografadas ao lado da máquina. É impressionante. Invejo o seu talento.

 

Os olhos dele giravam em volta, registando a disposição do apartamento, enquanto ambos se dirigiam para a porta.

 

Depois das eleições, e quando as coisas tiverem acalmado, sei que a minha família está ansiosa por a conhecer.

 

”Ele sabe do que se passa entre mim e Stephen”, pensou Judith. Sorrindo, estendeu-lhe a mão.

 

Ficaria encantada.

 

Jack Sloane olhou rapidamente para a mão dela. Havia uma marca quase imperceptível de uma antiga cicatriz ou marca de nascença na mão direita de Judith, mas nada que se parecesse com o crescente vermelho-arroxeado que Watkins tinha descrito. ”Uma mulher muito simpática”, pensou, enquanto descia as escadas. No hall de entrada, ia abrir a porta para a rua quando entrou uma senhora idosa que carregava um grande saco com artigos de mercearia. A respiração dela era ofegante. Sloane sabia que o elevador estava avariado.

 

Posso levar-lhe o saco? perguntou.

 

Oh, muito obrigada arquejou a mulher. Estava a perguntar a mim mesma se conseguiria subir os três andares, e tinha a certeza de que o ajudante do porteiro não estaria por aí, como é habitual.

 

Nessa altura lançou-lhe um olhar astuto, como se pensasse que ele poderia estar a tentar entrar no seu apartamento.

 

Jack Sloane percebeu o que ela estava a pensar.

 

Sou amigo de Miss Chase, que mora no terceiro andar disse.

 

Venho agora de casa dela.

 

O rosto da mulher iluminou-se.

 

 

Eu moro do outro lado do patamar, mesmo em frente dela. Que pessoa adorável. E tão bonita! Uma excelente escritora. Sabia que Sir Stephen Hallett a vem visitar? Oh, eu não devia falar disto. Que falta de educação a minha.

 

Subiam as escadas lentamente, levando Jack o saco. Apresentaram-se. Martha Hayward, disse-lhe ela. Mrs. Alfred Hayward. Pelo tom de tristeza com que ela pronunciou este nome, Jack ficou certo de que o marido dela já tinha morrido.

 

Depositou os artigos de mercearia sobre a mesa da cozinha de Mrs. Hayward e, terminada a sua boa acção, preparou-se para sair. Ao despedir-se, fez uma pergunta que nem esperava ouvir sair dos seus lábios:

 

Miss Chase costuma usar uma capa?

 

. Oh, sim disse Mrs. Hayward calorosamente. Já a vi diversas vezes com ela, e é bem bonita. Verde-escura. Quando lha elogiei, no mês passado, disse-me que tinha acabado de a comprar no Harrods.

 

Reza Patel lia o jornal da manhã no seu consultório. A mão que segurava a chávena tremia, enquanto o médico observava as fotografias das vítimas, mortos e feridos, do atentado bombista na Torre de Londres. Felizmente, ou infelizmente, a bomba não tinha atingido o seu alvo. Tinha sido colocada num local onde maiores danos poderia causar às coroas reais e acessórios da coroação, mas, quando o guarda lhe pegara, a força da explosão ocorrera longe das pesadas estruturas de metal que protegiam aqueles incalculáveis tesouros. Os expositores de vidro tinham ficado estilhaçados, mas o seu precioso conteúdo não sofrera danos. Pegar no embrulho tinha custado a vida ao guarda, bem como a vida da turista que se encontrava mais perto dele.

 

Um artigo separado contava a história dos ornamentos reais, como tinham sido quebrados e desmantelados após a execução de Carlos I e recuperados para a coroação de Carlos II.

 

Outra vez Carlos I e Carlos II disse Patel, numa voz angustiada. Foi a Judith. Eu sei.

 

Judith não... Lady Margaret Carew corrigiu Rebecca. Reza, não te sentes na obrigação de ir à Scotland Yard? Ele bateu com o punho na secretária.

 

Não, Rebecca, não. Tenho uma obrigação para com Judith, a de tentar libertá-la desta presença maligna. Mas não sei se posso fazê-lo. Ela é a mais inocente das vítimas, não compreendes? A nossa única esperança reside no facto de ela possuir uma personalidade forte. Anna Anderson submeteu-se voluntariamente à essência da grã-duquesa Anastásia. Judith lutará subconscientemente pela sua própria identidade. Temos de dar-lhe tempo.

 

Patel tentou repetidas vezes, durante o dia, telefonar a Judith mas apenas lhe respondia o gravador. Mesmo antes de sair do consultório, tentou uma vez mais. Judith atendeu-o. Uma Judith cuja voz transbordava de alegria.

 

Dr. Patel, recebi as certidões de nascimento. Imagine que tinham sido mal endereçadas. Por isso levaram tanto tempo a chegar. Nós vivíamos na Kent House em Kensington Court. Lembra-se? Eu tentei dizer-lhe que vivia em Kent Court. Muito parecido, não é? Se eu estiver certa, o nome da minha mãe era Elaine. O meu pai era oficial da RAF, o tenente Jonathan Parrish.

 

Judith, que boas notícias! Que é que vai fazer agora?

 

Amanhã vou a Kent House. Talvez alguém se lembre de qualquer coisa sobre a família, alguém que fosse jovem nessa altura e ainda viva no edifício. Se não resultar, hei-de conseguir consultar os arquivos da RAF. A minha única preocupação é que Stephen saiba de alguma coisa, se eu começar a investigar em arquivos governamentais, e sabe o que ele pensa a este respeito.

 

Eu sei. E como vai o livro?

 

Mais uma semana e estará pronto para editar. Já sabe que as sondagens colocam os Conservadores a ganhar? Não seria maravilhoso eu terminar o livro, ele ganhar as eleições e, como bónus, eu conseguir localizar a minha família?

 

Maravilhoso, na verdade. Mas não se esforce demasiado. Tem tido problemas com lapsos de memória?

 

Nem um. Sento-me à secretária e o dia transforma-se em noite. Quando Patel desligou, olhou para Rebecca, que tinha estado a escutar na extensão.

 

Em que estás a pensar? perguntou-lhe ela.

 

Há esperanças. Quando Judith terminar o livro, deixará de se concentrar na Guerra Civil. Descobrir as suas raízes irá satisfazer a sua fome profunda. O casamento com Sir Stephen ocupá-la-á por completo. O domínio de Lady Margaret desaparecerá. Vamos ver.

 

O comandante Sloane apresentou-se ao comissário delegado Barnes, na Scotland Yard. Apenas o inspector Lynch teve permissão para se reunir a eles.

 

Falou com Miss Chase? perguntou Barnes.

 

Sloane reparou que, durante as semanas que se haviam seguido ao primeiro atentado bombista, no rosto magro de Barnes tinham começado a cavar-se profundas rugas, que lhe corriam ao longo das faces e lhe vincavam a testa. Como chefe do Departamento Antiterrorismo, Barnes era responsável perante o comissário delegado do Crime, que era a pessoa de mais elevado posto na Scotland Yard, depois do comissário. Sabia que Barnes tinha assumido a terrível responsabilidade de não falar aos seus superiores da possível ligação de Judith Chase com os atentados. Qualquer deles teria contactado imediatamente Stephen Hallett. O comissário não gostava de Stephen e acolheria com satisfação qualquer oportunidade de o embaraçar. Sloane admirava a decisão de Barnes de ocultar o nome de Judith; ao mesmo tempo, não invejava a Barnes as consequências que sofreria se estivesse a laborar num erro.

 

O gabinete estava bastante aquecido, mas o dia frio e nublado fazia que Sloane desejasse uma chávena de café. Detestava as notícias que ia ter de transmitir.

 

Barnes carregou no intercomunicador e disse à secretária que retivesse todas as chamadas, hesitou, e depois disse bruscamente:

 

Excepto as óbvias. Recostando-se na cadeira, uniu as mãos, com os indicadores a apontar para cima, o que era sempre um sinal para os seus subordinados de que valia mais responderem às suas perguntas.

 

Falou com ela, Jack disse Barnes com brusquidão. Que houve?

 

Ela não tem cicatriz alguma. Tem, efectivamente, umas ligeiras marcas na mão direita, mas é preciso estar a um centímetro da mão para se verem. Esteve na Torre ontem de manhã, não de tarde. Não falou com o guarda e, se ele falou com ela, não deu por isso.

 

Então a história dela diverge do relato do guarda. Mas que é que ele queria dizer com ”voltou”?

 

Comissário interveio Lynch. Não lhe parece tratar-se da mesma situação que se verificou com Watkins... não a mesma mulher, mas outra muito parecida com ela?

 

Assim parece. Suponho que devemos agradecer a Deus por não termos de prender a futura mulher do próximo primeiro-ministro, se é que é assim disse Barnes. Meus senhores, obviamente o facto de o guarda ter visto Miss Chase e de ela confirmar ter estado na Torre de manhã deve fazer parte do relatório oficial. Mas não demos ênfase... e repito, não demos ênfase alguma... ao ”voltou”. É evidente que alguém que se parece com Miss Chase, a mulher que disse a Watkins que se chamava Margaret Carew, é aquela que procuramos, mas por lealdade para com Miss Chase e Sir Stephen o nome dela não deverá ser arrastado para isto.

 

O comandante Sloane pensou na sua longa amizade com Stephen, e na preocupação que Judith Chase revelara ao falar com ele do atentado. Franzindo a testa e baixando a voz, disse:

 

Há um outro facto que precisa de saber. Judith Chase possui uma dispendiosa capa verde-escura, que comprou no Harrods há um mês.

 

Judith encontrava-se diante da Kent House, no n. 34 de Kensington Court, olhando para os parapeitos em ameias e para a torre ornamentada de um edifício de apartamentos em estilo Tudor. Mary Elizabeth Parrish e Sarah Courtney Parrish haviam sido levadas para aquela casa, após o seu nascimento no Queen Mary Hospital. Tocou à campainha para chamar o porteiro e perguntou a si mesma, ao olhar para o mármore gasto do chão do hall de entrada, se a mente não estaria a pregar-lhe partidas. Lembrar-se-ia efectivamente de correr sobre ele até às escadas, havia tanto tempo?

 

A mulher do porteiro tinha perto de 60 anos. Vestindo uma longa camisola de malha por cima de uma saia de lã deformada, com os pés enfiados em sapatos azuis e brancos de imitação de cabedal, com o rosto simpático despido de maquilhagem mas enquadrado por cabelos brancos ondulados, limitou-se a entreabrir a porta:

 

Sinto muito, mas não temos um único apartamento para alugar disse.

 

Não é para isso que aqui estou. Judith entregou à mulher o seu cartão. Já tinha decidido o que havia de dizer-lhe. A minha tia tinha uma amiga muito querida que viveu neste prédio durante a guerra. Chamava-se Elaine Parrish. Tinha duas filhas pequenas. Já foi há muito tempo, mas a minha tia tinha esperanças de conseguir encontrá-la.

 

Oh, minha filha, não creio que ainda haja registos. O prédio já foi vendido imensas vezes, e de que serviria haver registos de pessoas que saíram? Há quantos anos foi isso? Quarenta e cinco ou cinquenta! Oh, é impossível. A mulher do porteiro começou a fechar a

porta.

Espere um pouco, por favor suplicou-lhe Judith. Sei que está muito ocupada, mas talvez eu pudesse pagar-lhe o tempo que perder.

 

A mulher sorriu.

 

Chamo-me Myrna Brown. Não quer entrar, minha filha? Há realmente uns registos antigos na arrecadação.

 

Duas horas depois, com as unhas falhadas, sentindo-se suja e coberta de poeira por andar a mexer em dossiers velhos, Judith saiu da arrecadação e foi ao encontro de Myrna Brown.

 

Acho que tinha razão. Não há hipótese. Houve um grande movimento nos vinte anos de registos que ali tem. Só há uma coisa. O apartamento quatro B. Pelo que vi, não há registo de ter mudado de inquilinos até há quatro anos.

 

Myrna Brown ergueu as mãos ao ar.

 

Estou a ficar esquecida. Claro! Nós só aqui estamos há três anos, mas o porteiro que se reformou falou-nos de Mrs. Bloxham. Tinha 90 anos quando finalmente decidiu abandonar a casa e ir viver para um lar. Viva como um coral, dizia ele, e saiu daqui sob protesto, mas o filho não queria que ela continuasse a viver sozinha.

 

Quanto tempo viveu ela aqui? Judith começou a sentir a boca seca.

 

Sempre, minha filha. Veio para aqui quando acabou de casar, com 20 anos, creio eu.

 

Ainda é viva?

 

Não faço a mínima ideia. Não é provável, acho eu. Mas nunca se sabe, não é assim?

 

Judith engoliu em seco. Tão perto. Tão perto. Para recuperar a calma, olhou em volta da pequena sala, com o seu garrido papel de parede às flores, um sofá rígido de crina de cavalo e uma cadeira a condizer, aquecedores eléctricos por baixo das longas janelas estreitas.

 

O aquecedor. Ela e Polly tinham feito uma corrida. Ela tropeçara e caíra, embatendo no aquecedor. Lembrava-se do cheiro horrível a cabelos queimados, da sensação dos cabelos agarrados à superfície Metálica. E depois uns braços que a envolviam, acarinhando-a, descendo a escada com ela ao colo, a pedir ajuda. A voz jovem e assustada da sua mãe.

 

O correio de Mrs. Bloxham deve, com certeza, ser-lhe enviado.

 

O correio não pode fornecer endereços, mas por que é que não telefonamos para a administração do prédio? Talvez eles saibam

 

Ao fim da tarde, num carro alugado, Judith atravessava os portões do Lar de Preakness, em Bath. Tinha telefonado antes. Muriel Bloxham continuava a viver lá, embora, segundo lhe disseram, estivesse muito desmemoriada.

 

A enfermeira-chefe levou-a à sala de convívio. Era uma sala de grandes janelas, cheia de sol, com cortinados e alcatifa de cores alegres. Havia quatro ou cinco idosos, nas suas cadeiras de rodas, em volta de um aparelho de televisão. Três mulheres que aparentavam setenta e tal anos conversavam e faziam tricot. Um homem de cabelos brancos e rosto encovado olhava em frente, executando, com uma mão, os movimentos de um maestro. Ao passar por ele, Judith constatou que o homem trauteava uma música em voz baixa com grande exactidão. ”Santo Deus”, pensou, ”pobre gente...”

 

A enfermeira devia ter visto a expressão do seu rosto.

 

É indubitável que há pessoas que vivem mais tempo do que deviam, mas pode estar certa de que todos os nossos pensionistas se sentem aqui muito confortáveis.

 

Judith sentiu que estava a ser censurada.

 

Bem vejo que sim disse em voz baixa. ”Sinto-me tão cansada”, pensou. ”O final do livro, o final da campanha, talvez o final da pista.” Sabia que a enfermeira-chefe pensava, provavelmente, que ela fosse parente da idosa Mrs. Bloxham, talvez uma parente com um complexo de culpa, que vinha fazer uma visita apressada.

 

Estavam junto da janela, que dava para um parque.

 

Viva, Mrs. Bloxham disse a enfermeira-chefe com uma voz animada. Hoje temos companhia. Não fica satisfeita?

 

A mulher, magra e pequena, mas ainda direita na sua cadeira de rodas, disse:

 

O meu filho está nos Estados Unidos. Não espero mais visitas. A sua voz era firme e lúcida.

 

Então isso são maneiras de tratar uma visita? ralhou a enfermeira-chefe.

 

Judith tocou no braço da enfermeira-chefe.

 

Por favor. Nós vamos entender-nos. Havia uma cadeira junto de uma pequena mesa. Puxou-a para junto da idosa senhora e sentou-se. ”Que rosto maravilhoso”, pensou, ”e que olhos ainda tão inteligentes.” O braço direito de Muriel Bloxham estava pousado sobre a manta que a envolvia. Parecia muito fino e encolhido.

 

Afinal quem é a senhora? perguntou Mrs. Bloxham. Sei que estou a ficar velha, mas não a reconheço. A sua voz era fraca mas ainda perfeitamente clara. Sorriu. Quer a conheça, quer não, fico satisfeita por ter companhia.Depois espalhou-se-lhe pelo rosto um ar de consternação. Devia conhecê-la? Dizem-me que estou muito esquecida.

 

Judith apercebeu-se imediatamente de que falar constituía um esforço para a velha senhora. Teria de fazer rapidamente as suas perguntas.

 

Chamo-me Judith Chase. Penso que deve ter conhecido a minha família há muito tempo, e queria fazer-lhe perguntas a esse respeito.

 

Mrs. Bloxham estendeu a mão esquerda e acariciou o rosto de Judith.,

 

É tão bonita. É americana, não é? O meu irmão casou-se com uma americana, mas isso foi há muito tempo.

 

Judith apertou na sua a mão gelada e coberta de veias azuladas da senhora.

 

Estou a falar do que se passou há muito tempo disse. Durante a guerra.

 

O meu filho esteve na guerra disse Mrs. Bloxham. Esteve prisioneiro, mas acabou por voltar. O mesmo não aconteceu com outros. Inclinou a cabeça para o peito e fechou os olhos.

 

”Não vale a pena”, pensou Judith. ”Ela não vai lembrar-se.” Notou que a respiração de Muriel Bloxham se tornava regular. Judith apercebeu-se então de que ela tinha adormecido. Enquanto Mrs. Bloxham dormia, Judith estudou as feições da velha. Blammy tomava conta de mim e da Polly. Fazia-nos biscoitos e lia-nos histórias.

 

Tinha passado quase meia hora quando Muriel Bloxham voltou a abrir os olhos.

 

Desculpe. É o que sucede quando somos velhos disse ela. Os seus olhos estavam novamente cheios de vida.

 

Judith sabia que não podia perder tempo.

 

Mrs. Bloxham, esforce-se por pensar. Lembra-se de uma família de nome Parrish que viveu em Kent House durante a guerra? Bloxham abanou a cabeça.

 

Não, nunca ouvi esse nome.

 

Tente, Blammy suplicou Judith. Tente.

 

Blammy. O rosto de Muriel Bloxham iluminou-se. Nunca mais ninguém me chamou assim desde o tempo das gémeas.

 

Judith esforçou-se por não elevar a voz.

 

As gémeas.

 

Sim. Polly e Sarah. Que lindas meninas. Elaine e Jonathan foram para lá viver quando se casaram. Ela era muito loura. Ele tinha cabelos escuros, era alto e bonito. Que apaixonados eles estavam. Ele foi abatido uma semana depois de as gémeas nascerem. Eu ia lá a casa ajudar Elaine. Estava inconsolável. Depois, quando começaram a cair as primeiras bombas, decidiu levar as meninas para o campo. Nenhum deles tinha família, sabe? Arranjei maneira de ela ficar em casa de uns amigos meus em Windsor. No dia em que elas partiram, caiu uma bomba na estação de caminho-de-ferro.

 

A voz de Mrs. Bloxham estremeceu.

 

Foi terrível. Terrível. E laine morreu. A pequena Sarah ficou feita em pedaços, como muito mais gente. Nunca encontraram o corpo. Polly ficou gravemente ferida.

 

Polly não morreu!

 

O rosto de Mrs. Bloxham tornou-se inexpressivo.

 

Polly?

 

Polly Parrish, Blammy. Que lhe sucedeu? Judith sentiu os olhos encherem-se de lágrimas. Há-de conseguir lembrar-se.

 

Blammy sorriu.

 

Não chore, minha querida. Polly está muito bem. De vez em quando escreve-me. Tem uma livraria em Beverly, no Yorkshire. Chama-se Páginas Parrish.

 

Sinto muito, minha senhora, mas tem de ir-se embora. Já a deixei ficar para além da hora da visita. Havia reprovação no rosto da enfermeira-chefe.

 

Judith pôs-se de pé, inclinou-se e beijou os cabelos da velha senhora.

 

Adeus, Blammy, Deus a abençoe. Hei-de voltar a visitá-la. Enquanto se afastava, ouviu Muriel Bloxham falar à enfermeira-chefe das gémeas que lhe chamavam Blammy.

 

O amplo mecanismo de investigação da Scotland Yard começou a investigar discretamente a vida de Judith Chase. Dentro de alguns dias, os resultados empilhavam-se sobre a secretária do comandante Sloane. Registos que vinham desde a infância, relatórios psicológicos, artigos que ela tinha escrito para o Washington Post, referências oficiais, notas escolares, actividades, clubes, discretos interrogatórios a colegas em Washington, ao seu editor, ao seu contabilista.

 

Tudo isto não passa de um monte de elogios comentou Sloa com Philip Barnes. Não há a mínima sugestão de protestos antigovernamentais ou de filiações radicais, desde que ela nasceu. Três vezes chefe da sua classe na escola interna, residente do conselho de alunas em Wellesley, voluntária para todos os trabalhos, dedicada à caridade. Ainda bem que não nos precipitámos e não revelámos que desconfiávamos dela.

 

Só há aqui um detalhe que me preocupa. Barnes tinha o livro de curso da escola interna aberto na sua frente. Por debaixo da fotografia dela havia a habitual biografia sucinta, e uma frase que ele tinha sublinhado. ”Miss Arranja-Tudo. Diz que quer ser escritora, mas não se admirem se a virem a construir pontes.”

 

Aquelas bombas eram de fabrico caseiro, mas bastante eficazes. Se Watkins só lhe forneceu a gelignite, foi necessária uma certa habilidade mecânica para as preparar, de modo a passarem despercebidas.

 

Não acho isso significativo, Comissário protestou Sloane. As minhas duas irmãs possuem uma habilidade mecânica natural, mas duvido que se servissem dela para fins terroristas.

 

No entanto, quero que continuem a vigiar Miss Chase de noite e de dia. Lynch e Collins, têm alguma coisa a relatar?

 

Nada de especial, Comissário. Ela passa a maior parte do tempo no apartamento, mas ontem foi à Kent House, em Kensington Court. Foi perguntar por uma família que viveu lá há muitos anos... gente conhecida da sua tia.

 

Da tia? Barnes fitou-o, alerta. Ela não tem parentes. Sloane franziu a testa. Era isso que tinha estado a preocupá-lo.

 

Devia ter-me apercebido disso, mas ela saiu da Kent House e foi a um lar em Bath, visitar uma senhora idosa, de modo que tudo me pareceu bastante inocente.

 

Por quem perguntou ela?

 

Não tenho a certeza, Comissário. Quando Lynch tentou falar com a velhota, ela já não se lembrava de nada. Parece que a mente dela já divaga um pouco.

 

- Então sugiro-lhe que vá falar com a velhota e veja se consegue fazê-la falar. Não se esqueça de que Judith Chase foi uma órfã de guerra inglesa. Tanto quanto sabemos, pode ter localizado pessoas do seu passado que estejam a influenciá-la.

 

Barnes pôs-se de pé.

 

Faltam só seis dias para as eleições. Embora sem grande vantagem ainda, penso que os Conservadores vão ganhar. Por isso temos de ilibar absolutamente Judith Chase antes de nos vermos perante a embaraçosa situação de fazer cair o governo antes de ele começar a funcionar!

 

Quando Judith regressou a casa, vinda de Bath, sentia-se como se se tivesse forçado emocional e fisicamente a um ponto que ultrapassava a exaustão. Preparou um banho quente, permaneceu vinte minutos dentro de água e depois envergou uma camisa de dormir e um roupão. Ao olhar-se no espelho, constatou que estava mortalmente pálida, que o seu cabelo estava a precisar de um corte e que o seu rosto estava tão magro que perdera a sua beleza. ”Tenho de conceder a mim mesma um dia de descanso”, pensou, ”amanhã vou fazer uma massagem facial, e arranjar as unhas e o cabelo...” Deixaria o livro em paz por um dia ou dois, e depois voltaria a ler as páginas que tinha marcado para serem revistas. E no dia seguinte iria visitar as Páginas Parrish em Beverly, e descobrir se Blammy estava certa quanto a Polly Parrish...

 

”Polly viva! A minha irmã”, pensou Judith. ”A minha irmã gémea!” A revelação de que poderia ter efectivamente uma parente próxima era simultaneamente entusiasmante e assustadora. ”Vou até lá visitar a loja”, pensou. ”Por agora vou limitar-me a observá-la.” Sabia que não poderia identificar-se a Polly antes de saber mais coisas sobre ela. Mas mais tarde, depois da campanha, Stephen poderia mandar investigá-la. Ele não objectaria a isso, desde que ninguém conhecesse a razão da investigação. ”Mas ela vai passar”, garantiu Judith a si mesma, ao meter-se na cama, demasiado fatigada para aquecer sequer um prato de sopa. ”É curioso ela também se dedicar ao mundo dos livros... Terá ela tentado escrever também?...”

 

Adormeceu tão profundamente que o telefone tocou uma dúzia de vezes antes que ela o ouvisse. A voz preocupada de Stephen acabou de acordá-la.

 

Judith, já estava a ficar preocupado. Estás assim tão cansada?

 

Assim tão feliz disse ela. Vou descansar uns dias para desanuviar a cabeça, depois embrulho o livro e entrego-o.

 

Querida, afinal não vou a Londres antes das eleições. Importas-te?

 

Judith sorriu.

 

Quase fico satisfeita. Pareço uma boneca de trapos. Uns dias mais dar-me-ão a oportunidade de me tornar apresentável.

 

Voltou a adormecer, pensando: ”Stephen, amo-te... Polly, sou eu... A Sarah...”

 

Margaret sentia o seu poder sobre Judith a enfraquecer. Agora que o livro estava pronto, sabia que Judith afastaria a sua atenção da Guerra Civil. Margaret tinha gasto as suas energias a preparar-se para o dia em que controlaria Judith. Agora sabia que podia falar como Judith, sem a cadência que Rob Watkins tinha achado tão divertida. Já se sentia à vontade no mundo de Judith. Tinha-se apercebido naquele dia de algo que escapara por completo a Judith. Estavam a ser seguidas.

 

Havia tanta coisa a fazer. Tinha escolhido o local onde seria colocada a próxima bomba. Teria forças para controlar Judith novamente?

 

O inspector Lynch passou uma boa parte do dia seguinte à porta do salão de beleza do Harrods. Quando Judith de lá saiu às cinco horas, o seu cabelo brilhava, o seu rosto resplandecia, as suas unhas tinham um oval perfeito. Tinha um ar descansado e feliz.

 

”Que estúpida perda de tempo”, pensou Lynch, enquanto a seguia até ao restaurante, onde ela comeu um prato de spaghetti fumegante e bebeu Chianti; depois seguiu-a até casa. ”É tão terrorista como a minha avó”, murmurou para si próprio enquanto ocupava o seu posto dentro de um carro situado do outro lado da rua, em frente da porta do prédio onde ficava o apartamento dela. O seu substituto, Sam Collins, devia estar a chegar. Collins, um polícia de inteira confiança, tinha sido informado de que tinham recebido uma carta anónima a implicar Miss Chase nos atentados bombistas, e, embora achassem a ideia ridícula, tinham de investigar. Tinha sido avisado de que se tratava de um caso ”altamente secreto”.

 

Naquela noite, Lynch reparou que havia luz na janela da frente do apartamento de Judith. Devia ser o escritório, de acordo com a descrição do apartamento feita pelo comandante Sloane, portanto ela estava novamente a trabalhar. Collins chegou alguns minutos depois.

 

Vais ter uma noite tranquila, posso garantir-te disse-lhe Lynch. Ela não é de farras.

 

Collins acenou afirmativamente com a cabeça. Era um homem de feições pesadas que parecia sempre trazer uma lancheira na mão. Lynch sabia que ele era extraordinariamente ágil.

 

Judith não tinha planeado trabalhar, mas depois da massagem facial, da pedicura e manicura, e da cabeleireira, sentia-se tão agradavelmente rejuvenescida que achou que poderia rever as páginas que tinha marcado. A alegria da chamada telefónica da manhã para Beverly tinha-a conservado animada durante todo o dia. As Informações tinham-lhe dado rapidamente o número de telefone das Páginas Parrish. Tinha ligado para lá e perguntado quais as horas a que a livraria estava aberta. Com naturalidade, tinha perguntado:

 

Polly Parrish ainda é a dona? A resposta tinha sido:

 

Oh sim. Deve estar a chegar. Deseja que ela ligue para si?

 

Não é preciso. Obrigada.

 

Judith tinha passado o dia a pensar: ”Amanhã. Amanhã vejo-a.” E, dentro de poucos dias, as eleições estariam terminadas. Nas últimas semanas não tinha pensado nos anos que a aguardavam junto de Stephen. Agora sentia vontade de ir para Edge Barton e passar dias e semanas ininterruptos com ele. Dias e semanas ininterruptos quando Stephen fosse primeiro-ministro? Judith sorriu tristemente já teriam sorte se tivessem horas ininterruptas!

 

Apoiando o queixo com a mão, olhou afectuosamente em volta para a pequena biblioteca de Lady Ardsley, a sala que estava a utilizar como escritório. Volumes antigos misturados com romances da Renascença, bugigangas Vitorianas ao lado de magníficas porcelanas antigas, um naperon engomado em cima de uma mesa Jacobeana muito bela.

 

Edge Barton, com os seus enormes tectos altos e salas magnificamente amplas, as suas janelas graciosas e as portas antigas... O interior estava a precisar dos cuidados e da ternura de uma mulher, de um toque feminino. Parte do mobiliário teria de ser estofado de novo. Os cortinados precisavam de ser substituídos. Judith pensou como seria bom pôr a sua marca em Edge Barton...

 

Volta ao trabalho. O Royal Hospital.

 

Era como se uma ordem lhe tivesse penetrado na mente. Surpreendida, afastou o cabelo que lhe caía sobre a testa e reparou que a cicatriz da mão tinha adquirido um tom vagamente rosado. ”Tenho de consultar um cirurgião plástico por causa desta maldita cicatriz”,prometeu a si mesma. ”É incrível a maneira como aparece e desaparece.

 

capítulo, onde tinha marcado a secção sobre o Hospital Real de Chelsea. Era um belo edifício, magnificamente conservado, que tinha sido construído por Carlos II como residência para veteranos e soldados inválidos.

 

Os veteranos de Carlos II. Os Simon Halletts do país agarrados às abas da casaca do Alegre Monarca! Era assim que lhe chamavam, o Alegre Monarca. Vincent morto em combate, John executado, eu traída e assassinada e o Alegre Monarca constrói uma residência para os seus soldados, onde eles pudessem viver ”como num colégio ou num mosteiro”.

 

Margaret empurrou o livro para o lado, atirando deliberadamente capítulos inteiros para o chão em volta da secretária. Pôs-se rapidamente de pé, dirigiu-se ao quarto e retirou do roupeiro o saco que Rob Watkins lhe tinha dado. Havia mais luz na cozinha. Levou o saco para lá e despejou o seu conteúdo sobre a mesa.

 

Em frente da casa, Collins observava com crescente interesse a sucessão de luzes que se acendiam no apartamento Ardsley. Judith Chase devia ter saído do escritório sem apagar a luz, pelo que, provavelmente, tencionava lá voltar. Faltava apenas um quarto para as oito. A luz acesa do quarto quereria dizer que ela tencionava deitar-se, ou estaria a vestir roupa mais confortável? Viu acender-se a luz da cozinha e consultou o diagrama do apartamento que Sloane lhe tinha dado. As janelas do escritório, da cozinha, da sala e do quarto davam todas para a rua; a porta da entrada e o hall que ligava as salas ficavam do lado de trás.

 

Sam apercebeu-se de que o tempo estava a mudar rapidamente. A noite tinha começado por ser límpida, com estrelas e a lua em quarto crescente. Agora haviam-se acumulado nuvens espessas, obviamente ansiosas por cumprir rapidamente o seu destino.

 

Do interior do seu carro discreto, Sam continuou a vigiar o apartamento. Viu apagarem-se as luzes da cozinha e do quarto. ”Provavelmente mudou de ideias, fez uma chávena de chá”, pensou ele, começando a recostar-se no assento. Subitamente deteve-se. O estore da janela do escritório tinha sido afastado. Por momentos, teve uma visão nítida de Judith Chase. Ela estava a olhar para o seu carro. Vestia roupa para sair.

 

Sam recuou para a obscuridade do interior do carro. ”Ela sabe que estou aqui”, concluiu. ”Está a planear sair.” Tinha inspeccionado o prédio na primeira noite de serviço e sabia que havia uma porta nas traseiras do prédio e um pátio estreito que podia ser utilizado como saída entre os prédios, para a rua de trás.

 

Aguardou um momento e depois concluiu que Judith ia deixar a luz do escritório acesa. Deslizou para fora do carro e correu pelo passeio de cimento que separava as casas. A porta de serviço abriu-se e Judith saiu. Sam recuou e espreitou da esquina do prédio. Havia luz suficiente para perceber que ela tinha vestido uma capa escura. ”Aquela denúncia é capaz de ser fundamentada”, pensou. ”Ela pode estar relacionada com os atentados bombistas! Que irá ela fazer agora? Uma reunião secreta com os terroristas?” Teve uma grata visão de si próprio como um homem que resolvera o caso dos atentados bombistas de Londres. Não seria nada mau para a sua carreira, pensou...

 

Margaret avançava rapidamente pelas ruas com pouco movimento. O homem da Scotland Yard estava, sem dúvida, a dormitar no carro, naquele momento. Por baixo da capa, transportava o embrulho que tinha preparado. Tinha sido inocentemente introduzido num pequeno saco de compras do supermercado mais próximo, vendo-se nitidamente uvas e maçãs pela abertura entre as pegas o tipo óbvio de saco com que entrava num lar de veteranos. As horas de visita deviam estar a chegar ao fim. Tinha pouco tempo.

 

Sam Collins seguia silenciosamente a elegante figura que atravessava rapidamente a cidade e se dirigia para o Tamisa. Cerca de meia hora depois, quando ela voltou para o Royal Hospital Road, abriu os olhos de surpresa. Que iria ela fazer? Iria simplesmente visitar um pensionista? Teria notado que estava a ser seguida e decidido servir-se da porta das traseiras apenas para escapar ao incómodo de um seguidor? Ela vestia uma capa verde-escura, mas a própria mulher de Sam já tinha comentado que as capas estavam muito em moda naquela estação e tinha mesmo comprado uma para oferecer à filha no dia do seu aniversário.

 

O vestíbulo em cúpula do magnífico edifício achava-se cheio de gente, que se deslocava de um lado para o outro. O relógio sobre o balcão da recepção indicava que eram oito e vinte. Sam viu Judith dirigir-se a esse balcão e pousar sobre ele um pequeno saco de fruta. Quando ela recebesse o seu cartão de visitante, ele perguntaria à recepcionista quem era o pensionista que ela ia visitar, decidiu. Mas depois, um instinto infalível fê-lo avançar até ao balcão e colocar-se por detrás dela, como se também fosse pedir um cartão.

 

- Gostaria de visitar Sir John Carew - disse Margaret numa voz baixa e apressada.

 

Carew! Collins deu um passo em frente.

- Posso falar consigo, minha senhora?

 

Margaret voltou-se bruscamente, com os olhos a arder de raiva. Notou que aquele homem corpulento, o homem que a devia ter seguido, estava a olhar para a sua mão. A cicatriz parecia arder, num vivo tom roxo-avermelhado.

 

Pegou no saco que colocara sobre o balcão da recepção e atirou-o pelo vestíbulo fora, contra um trio de porteiros que tinham acabado de entrar no vestíbulo.

 

Instintivamente, Sam compreendeu que o saco continha uma bomba. Em poucos segundos, tinha atravessado o vestíbulo e mergulhou sobre ele...

 

Margaret encontrava-se no pátio quando a bomba detonou, reduzindo o vestíbulo a destroços em voo, paredes que se desmoronavam e vítimas aos gritos. Os vidros das janelas estilhaçaram-se. Um fragmento de vidro roçou-lhe pelo rosto, quando escapava para aprotecção sombria da chuva que começara a cair de mansinho.

 

Reza Patel e Rebecca estavam a ver televisão no seu apartamento quando, durante o noticiário, falaram da tragédia do Hospital Real. Cinco mortos, doze pessoas gravemente feridas. Patel, com o rosto cor de cinza, telefonou a Judith. Ela atendeu imediatamente.

 

-Estou sentada à secretária, Doutor. A trabalhar como habitualmente. - Patel achou que a sua voz soava alegre e normal. Depois Judith riu-se. - Só espero que os meus leitores não tenham a mesma reacção ao meu livro que eu tive esta noite. Adormeci profundamente a lê-lo.

 

”Devo ter estado praticamente inconsciente”, pensou Judith, ao encontrar uma página que não tinha notado, quando apanhara as folhas do chão. Apagou a luz do escritório, dirigiu-se ao quarto e despiu-se rapidamente. Stephen tinha-lhe dito que tinha uma reunião até tarde e não tentaria telefonar-lhe nessa noite.

 

Sentia dores nas pernas. ”Até parece que andei a correr a maratona”, pensou. Achou que uma aspirina a ajudaria a descontrair-se. Observou-se no espelho do armário dos medicamentos quando foi buscar as aspirinas. O seu novo penteado estava todo desmanchado. Os cachos em volta do rosto tinham-se transformado em anéis, e, quando os puxou para trás notou que estavam ligeiramente húmidos, ”Devia estar muito calor no escritório”, concluiu. ”Mas eu nunca transpiro...

Aplicou creme no rosto e ficou surpreendida ao ver uma gota de sangue numa das faces. Tinha um pequeno corte. Não se lembrava de ter sentido coisa alguma durante a massagem facial, mas efectivamente a massagista tinha unhas compridas...

 

Quando se dirigia para a cama, notou, com irritação, que as portas do roupeiro de Lady Ardsley estavam de novo entreabertas. ”Vou atá-las”, pensou. ”Seria terrível que ela passasse por aqui e pensasse que eu andava a mexer nas coisas dela.”

 

Na cama, com as luzes apagadas, tentou descontrair-se, mas as pernas continuavam a doer, a cabeça a latejar, e sentiu-se invadida por uma esmagadora sensação de depressão. ”É por causa de todo este trabalho”, pensou, ”e por não ter falado com Stephen esta noite.” Murmurou ”Stephen e Polly”, mas os nomes não a reconfortaram. Profundamente triste, teve a sensação de que ambos estavam a fugir-lhe.

 

Profundas rugas de desgosto e raiva marcavam o rosto do comissário delegado Barnes. O comandante Sloane e o inspector Lynch, cujos olhos estavam avermelhados de fadiga, ainda conseguiam manter-se direitos nas suas cadeiras junto da secretária de Barnes. Sabiam que, por muito grave que fosse o problema, Barnes não gostava de notar sinais de cansaço. Tinham ambos estado no local do° atentado durante toda a noite, mas em vão. Um médico que chegava ao vestíbulo tinha visto um saco atirado pelo ar e um homem corpulento que corria para ele. O instinto tinha-o feito refugiar-se no corredor - uma reacção que lhe tinha indiscutivelmente salvo a vida. Os feridos não tinham reparado em pessoa alguma com um saco. Os três porteiros, a cujos pés a bomba tinha caído, a recepcionista e o inspector Collins estavam mortos.

 

- A questão - disse abruptamente Barnes - está em saber se Collins seguia Judith Chase. Tudo indica que sim. A outra única possibilidade consiste em ter saído alguém do apartamento dela ou de qualquer outro apartamento do prédio que tenha parecido suspeito a Collins. Telefonou a Miss Chase, Jack?

 

- Telefonei, sim, há uma hora. Servi-me da desculpa, um pouco esfarrapada, de que estávamos desesperados para encontrar uma pista, por muito pequena que fosse, e queríamos saber se ela se recordava de qualquer coisa invulgar que tivesse visto na área das Jóias da Coroa.

 

- Qual foi a resposta dela?

 

-Directa. Absolutamente nada. Repetiu-me que a sua mente andava muito concentrada quando fazia pesquisas. Deixa praticamente de reparar naquilo que a rodeia.

 

- Detectou nervosismo na voz dela? Lynch franziu a testa.

 

- Nervosismo, não, Comissário. Pareceu-me abatida, isso sim. Disse-me que tinha terminado o seu livro e que ele tinha exigido muito dela. Tencionava ficar todo o dia na cama, a lê-lo, e depois ia enviá-lo ao agente.

 

Barnes bateu com o punho na mesa, um gesto que avisava os seus subordinados de que estavam em maus lençóis.

 

-Por que diabo Collins não nos avisou de que ia abandonar o carro? Só levava trinta segundos para se servir do telefone da viatura.

 

- Talvez não dispusesse desses trinta segundos, Comissário. -Ou talvez não se desse a esse trabalho. Raios o partam, Sam era

 

um dos nossos melhores homens. Salvou uma dúzia de vidas, ao atirar-se sobre aquela bomba. Jack, e aquela velhota que Judith Chase foi visitar? Que é que ela disse exactamente?

 

-Absolutamente nada, Comissário. Nem um único pensamento que fizesse sentido. A enfermeira-chefe disse-me que ela tem momentos de absoluta lucidez. Depois a mente dela fica à deriva durante dias seguidos. A única informação que consegui foi que, depois de Miss Chase sair, Mrs. Bloxham falou à enfermeira-chefe de duas irmãs gémeas de 2 anos de idade, Sarah e Polly, que lhe chamavam Blammy. Gémeas! o inspector Lynch deu um salto na cadeira, esquecendo toda a fadiga. Sr. Comissário, como sabe, Judith Chase foi encontrada a vaguear em Salisbury quando tinha 2 anos de idade. Nunca foi reclamada por pessoa alguma, apesar de se apresentar bem vestida. Será possível que ela esteja a tentar encontrar, ou tenha mesmo encontrado, a sua verdadeira família? E tenha localizado uma irmã gémea?

 

Barnes mordeu o lábio inferior e puxou impacientemente para trás as madeixas de cabelo que lhe haviam caído sobre a testa.

 

Uma irmã gémea que se pareça muito com ela e possa ter filiações políticas desagradáveis? Fazia sentido. Meu Deus, amanhã é o dia das eleições. Temos de resolver isto. Judith Chase esteve a fazer perguntas àquela velhota apenas há dois dias. Não me parece que ela tenha encontrado o que procura. Por isso, não podemos ainda partir do princípio de que ela esteja em contacto com pessoas do seu passado. Se não está... e se nós conseguirmos descobrir quem são, e, se necessário, avisá-la para que não entre em contacto com elas... talvez consigamos conservá-la a ela e a Sir Stephen fora disto. Ou, se ela as encontrou e se juntou a más companhias, quero saber disso antes que Sir Stephen seja primeiro-ministro. Jack Sloane pôs-se de pé.

 

               Comissário.

Volte àquele lar! Arranje um psiquiatra. Diga-lhe o que quer saber. Talvez ele tenha uma maneira de interrogar Mrs. Bloxham, se é que é esse o nome dela. A Chase esteve a fazer perguntas à mulher do porteiro da Kent House, no outro dia, não esteve?

             Esteve.

 

Vá até lá e fale outra vez com a mulher do porteiro. Além disso, quero uma lista de todos os pensionistas que estavam na noite passada no Hospital Real. Descubra quais deles tiveram visitas por volta das oito e meia. Fale com essas visitas. Alguém pode ter visto Collins e a pessoa que ele seguia. E, pelo amor de Deus, assegure-se de que Judith Chase não dá um passo sem alguém atrás dela.

 

O telefone sobre a secretária de Barnes começou a tocar insistentemente. A sua secretária parecia sem fôlego.

 

Peço desculpa de interromper. O comissário chefe quer que saiba que Sir Stephen convocou uma reunião de emergência para conhecer os progressos da investigação.

 

Stephen telefonou a Judith às nove horas da manhã seguinte, acordando-a de um sono profundo de exaustão em que tinha caído. A mão dela agarrou o telefone com mais força, ao ouvir a sua voz. Tinha a sensação de ter estado a nadar em água morna e escura, esforçando-se por chegar a terra. Obrigando-se a acordar, murmurou nome dele, e depois apoiou-se sobre um cotovelo, quando ele disse:

 

Estou no carro, querida, a dez minutos da cidade. Vou directamente para uma reunião de emergência com a Scotland Yard. Depois tenho de voltar logo para o campo, mas que tal tomar uma chávena de café com um homem ansioso por te ver?

 

Stephen, que maravilha! Claro.

 

Judith pousou o auscultador e saltou da cama. Ao ver-se no espelho da casa de banho, constatou que tinha os olhos inchados de sono. Havia uma gota de sangue seco no lugar do pequeno golpe da face. ”Estou horrível”, pensou. Fazendo rodar as torneiras do duche, despiu a camisa de dormir, enfiou uma touca e deixou deliberadamente que a água corresse primeiro quente e depois fria, para se libertar da sua letargia.

 

Cobriu o golpe com uma ligeira camada de maquilhagem. Um pouco de blush ajudou a disfarçar a palidez do seu rosto, uma escovadela rápida alisou o penteado perdido. Um caftan de lã macia, com um desenho berrante em redemoinhos cor de laranja, azuis, lilás e fúcsia, sobre fundo preto, envolveu-a em cor. Correu para a cozinha, pôs o café a fazer e começou a pôr a pequena mesa junto da janela. Reparou em qualquer coisa caída no chão e baixou-se para a apanhar. Era um pedaço de arame torcido. De onde teria vindo aquilo? Perguntou a si mesma, ao atirá-lo para a lata do lixo. Ouviu o intercomunicador zumbir. Levantou o auscultador e disse:

 

O café está pronto, senhor. Faça o favor de subir.

 

Quando abriu a porta a Stephen, precipitaram-se nos braços um do outro.

 

Entre goles de café e dentadas nas torradas cobertas de marmelada, Stephen falou-lhe da chocante notícia sobre o atentado bombista no Hospital Real.

Trabalhei até tarde e não acendi o televisor disse Judith. Stephen, que mente pervertida é capaz de colocar uma bomba num lar de veteranos?

 

Não sabemos. É costume surgir um grupo qualquer a reivindicar o acto. Quando isso não sucede, só com muita sorte se consegue descobrir o perpetrador. Os protestos do público, esta manhã, são enormes. Até mesmo o Palácio de Buckingham expressou profunda preocupação, além de ter enviado condolências às famílias das vítimas.

 

Isto terá alguma influência na eleição? Stephen abanou a cabeça.

 

Querida, detestaria passar o resto da vida a pensar que fui eleito por alguém andar a fazer explodir Londres, mas a minha posição inflexível em relação à pena de morte para os terroristas vai certamente pesar nas urnas. Os Trabalhistas não podem mudar de opinião sobre a pena de morte, e o seu pedido de prisão perpétua sem libertação condicional soa muito fraco perante uma nação que pergunta a si mesma se da próxima vez que os seus filhos forem, com a escola, visitar um monumento, ou a um hospital para tirar as amígdalas, poderão ir pelos ares.

 

Os cinco minutos que Stephen dissera que podia demorar-se transformaram-se em trinta. Ao partir, disse-lhe:

 

Judith, estou sinceramente convencido de que vou ganhar as eleições. Se, e quando isso acontecer, serei convocado ao Palácio de Buckingham e Sua Majestade pedir-me-á que forme um novo governo. Não seria apropriado ires a essa reunião, mas importas-te de ir no carro comigo?

 

Não há nada que eu mais deseje.

 

Eu desejo muito mais coisas, mas isso seria um bom começo para o resto das nossas vidas. Stephen beijou-a de novo e estendeu a mão para o puxador da porta. Num movimento involuntário, Judith tocou-lhe no braço e fê-lo voltar-se de novo para ela. Já ouviste alguma vez aquela canção ”Deixa-me ficar, deixa-me ficar nos teus braços”? perguntou quase tristemente.

 

Durante um longo minuto, ele manteve-se abraçado a ela, e Judith ouviu-se a si própria pedir a Deus:

 

Por favor, que nada estrague isto. Por favor.

 

Quando Stephen partiu, serviu-se de outra chávena de café e voltou para a cama. ”Provavelmente fui atacada por um vírus qualquer, insistiu consigo própria. Por isso me sinto tão estranha.” Sabia que não poderia fazer a viagem a Yorkshire naquele dia. ”Vou conceder mais um dia a mim mesma e fazer a revisão final do livro. Não quero sentir-me assim quando vir Polly.”

 

Ao meio-dia, o telefone tocou. O Dr. Patel estava ansioso por saber se ela tencionava ir a Beverley.

 

Só amanhãdisse Judith. Decidi não ir hoje. Desconfio que fui atacada por um vírus. Sinto-me toda dorida. Mas pode estar certo de que lhe telefonarei logo que a veja.

 

Reza Patel esforçou-se por falar com naturalidade:

 

Judith, é perita em assuntos do século XVII. Durante as suas investigações, deparou alguma vez com o nome de Lady Margaret Carew?

 

Claro que sim. Uma mulher fascinante. Ao que parece, convenceu o marido a assinar a sentença de morte de Carlos I, perdeu o seu único filho numa das grandes batalhas da Guerra Civil e depois tentou assassinar Carlos II quando ele subiu ao trono. Ele ficou tão furioso que quis estar presente à execução dela.

 

Sabe qual foi a data da execução?

 

Tenho qualquer coisa sobre o assunto nas minhas notas. Porque pergunta?

 

Patel já previa essa pergunta.

 

Lembra-se de quando nos encontrámos na Portrait Gallery? Estava lá um amigo meu que pensou ter reconhecido Lady Margaret num retrato de grupo. Pelo menos ela parece-se imenso com a mulher que o ramo da sua família renegou. Era só por curiosidade.

 

Vou rever as minhas notas. Mas talvez ele devesse esquecê-la. Lady Margaret só representa problemas.

 

Quando acabaram de falar, Patel voltou-se para Rebecca.

 

Sei que é arriscado, mas a única esperança de Judith é enviá-la de volta ao momento da morte de Lady Margaret. Para fazer isso, tenho de saber exactamente quando ela morreu. Judith não suspeitou de nada.

 

Rebecca Wadley sentia que estava constantemente a ser colocada no papel de Cassandra.

 

Por esta altura, amanhã, quer se dê a conhecer quer não, Judith pode ter a certeza de ter encontrado não só um parente vivo, mas uma irmã gémea. Por que havia de se deixar submeter novamente a hipnose? Tencionas contar-lhe a verdade?

 

. Não! gritou Patel. Claro que não. Não vês o que isso poderia fazer a Judith Chase? Sentir-se-ia moralmente responsável, independentemente de tudo o que eu pudesse dizer-lhe. Tenho de

descobrir uma maneira de a fazer voltar sem conhecer o motivo.

 

Rebecca tinha os jornais da manhã abertos sobre a secretária. Estavam cheios de imagens da carnificina no Hospital Real.

 

Acho melhor que o faças depressa disse a Patel. Quer te agrade, quer não, estás a proteger uma criminosa.

 

O dia passado na cama não ajudou muito Judith. Uma leitura exaustiva do livro permitiu-lhe detectar pequenos erros dactilográficos e frases repetitivas e fê-la aperceber-se de que, se, por um lado, aquele era o seu melhor livro até à data, por outro estava muito mais voltado contra Carlos I e Carlos II do que ela tencionava fazê-lo, no início. ”Defendi fortemente a lei Parlamentar”, pensou, ”e agora teria de voltar a escrevê-lo para o alterar.” De certo modo, não conseguia experimentar a sensação de alívio e de bem-estar que costumava sentir ao terminar um livro.

 

O seu sono dessa noite foi novamente inquieto e, às cinco da manhã, desistiu e deixou-se ficar, acordada, estendida na cama do quarto excessivamente mobilado de Lady Ardsley. ”Que se passa comigo?”, perguntou a si própria. ”Há seis meses, quando cheguei a Inglaterra, não tinha um único ser humano que pudesse considerar da minha família. Agora vou casar-me com o homem que amo e hoje vou ver a minha irmã gémea. Por que estou a chorar?” Limpou as lágrimas impacientemente.

 

Às seis e meia levantou-se para se preparar para a viagem a Beverley. Ia apanhar o comboio das oito e meia. ”Isto não passa de nervos”, disse a si própria, durante o duche e enquanto se vestia. ”Quero ver Polly e estou com medo de a ver.”

 

Passou-lhe pela cabeça que deveria levar a sua capa nova, porque o capuz lhe escondia o rosto, mas, por um motivo qualquer, a ideia desagradou-lhe. Em vez disso, agarrou na sua velha Burberry e procurou no armário um lenço macio que atou em volta da cabeça. Os enormes óculos escuros e o lenço bastariam para ocultar a sua aparência, concluiu, no caso de ela e Polly se parecerem muito.

 

No caminho para a estação parou para mandar fazer uma cópia do livro e enviou o original para o seu agente em Nova Iorque, com uma breve nota. Depois dirigiu-se a Kings Cross, para apanhar o comboio.

 

Como poderia imaginar, pensou, que naquele momento se iria lembrar nitidamente do momento em que as bombas começaram a cair? A sua mão a procurar a da mãe, Polly a gritar, a escuridão, o som de passos em corrida, e ela atrás delas, a soluçar, pensando que a mãe a ia abandonar. Quando entrou no comboio, sentiu como os degraus teriam sido altos para uma criança de 2 anos. Ao instalar-se num assento junto da janela, recordou-se ou julgou recordar-se do esticão do comboio, ao sair da estação de Waterloo. Ainda sentia o saco em que se sentara, rígido e desconfortável. Sacos de correio, pensou, cheios até acima, atados com uma corda. Estava tão absorvida nas suas recordações que nem reparou no homem de rosto magro, com cerca de 40 anos, que estava sentado no banco atrás do seu, do outro lado da coxia, nem suspeitou de que, apesar de se fingir absorvido no jornal da manhã, o inspector David Lynch nunca tirava os olhos dela.

 

Na Scotland Yard também tinha havido progressos.

 

O comandante Sloane tinha ido visitar o lar e encontrara Mrs. Bloxham absolutamente lúcida. Com a voz a tremer de emoção, ela falou-lhe das encantadoras gémeas que viviam com a mãe viúva, no apartamento ao lado do seu, de como a mãe, Elaine Parrish, tinha sido morta durante um ataque aéreo, precisamente na altura em que ia levar as crianças para o campo, de como o corpo da pequena Sarah nunca tinha sido encontrado, de que Polly possuía uma livraria em Beverley, no Yorkshire. No regresso ao trabalho, a sua alegria por ter notícias para contar tinha sido prejudicada pela notícia de que Judith ia a caminho de Yorkshire e estava a ser seguida pelo inspector Lynch.

 

Seria bom que tivéssemos uma oportunidade de investigar Polly Parrish antes que Miss Chase se lhe apresente, se for essa a intenção dela disse ele ao comissário Barnes.

 

Tinha havido outro progresso, se é que se lhe podia chamar assim, disseram a Sloane. O interrogatório aos visitantes do hospital na noite do atentado tinha dado resultados. Um homem que saíra às 22:20 tinha segurado a porta para deixar passar uma mulher de capa verde que passara por ele sem um gesto de agradecimento. Lembrava-se de ter visto uma cicatriz vermelha na sua mão. Alguns passos atrás dela, um homem corpulento tinha segurado a porta antes que ela a fechasse.

 

Então temos outra vez a mulher da cicatriz e da capa disse ”ames. Amanhã trazemos aqui Judith Chase para ser interrogada.

 

Com que fundamento? perguntou Sloane.

 

Com o fundamento de lhe dizermos que achamos que a pessoa que procuramos se parece fortemente com ela e queremos saber se ela conseguiu localizar alguém da sua família. Vamos também perguntar-lhe se conhece uma mulher chamada Margaret Carew.

 

E se ela conhecer? perguntou Sloane.

 

Amanhã realizam-se as eleições. Avisamos Sir Stephen contra ela. Evidentemente, se os jornais sabem da ligação deles, ele poderá ter de se demitir do seu cargo de chefe do partido, o que significa que teremos outro primeiro-ministro.

 

O que seria uma perda terrível para ele e para o país! explodiu Sloane.

 

Uma vergonha ainda maior seria a mulher da capa, seja ela quem for, prosseguir o seu sujo trabalho e estar ligada a ele.

 

A viagem durou três horas. Judith mudou de comboio em Hull. Daí foi uma curta viagem até Beverley. Ao atravessar a praça do mercado, mal se apercebeu da magnífica arquitectura eclesiástica que caracterizava a bela cidade. Um polícia indicou-lhe o caminho para a Queen Mary Lane, a estreita rua lateral onde ficava situada a livraria Páginas Parrish. Corria um vento leve mas frio. Ela puxou o lenço para a frente e subiu a gola da gabardina. Já tinha colocado os grandes óculos escuros. Passou por uma farmácia, uma mercearia, uma florista. Então viu o letreiro. Páginas Parrish. Tinha chegado à livraria.

 

Judith abriu a porta da loja e ouviu o leve toque de uma campainha a anunciar a sua entrada. Uma jovem de rosto simpático, com uns grandes óculos redondos, sentava-se atrás do balcão da caixa. Ergueu o olhar para ela e sorriu, mas continuou a atender um cliente.

 

Judith ficou grata por haver pelo menos meia dúzia de pessoas a pesquisar as prateleiras. Isso deu-lhe tempo para observar o interior da loja. Era um espaço longo e um pouco estreito, em que cada centímetro tinha sido aproveitado sem prejudicar o ambiente confortável de uma biblioteca familiar. Ao fundo, havia uma espécie de sala de estar, com um antigo sofá de cabedal, um enorme cadeirão de veludo e mesas com lâmpadas de leitura. Sentada a trabalhar a uma pesada mesa de carvalho encontrava-se uma mulher, uma mulher cujo perfil fez Judith pensar que estava a ver-se num espelho. O seu coração começou a bater mais depressa e sentiu as mãos húmidas de suor. Polly! Só podia ser Polly.

 

Procura algum livro em especial? Era a jovem do balcão. Judith conseguiu engolir o nó que se havia formado na sua garganta.

 

Estou só a ver o que há, mas tenho a certeza de que hei-de encontrar qualquer coisa que me interesse. Que livraria encantadora.

 

,- É a primeira vez que cá vem, então? A empregada sorriu. Oh, a Páginas Parrish é famosa. Vêm cá pessoas de muito longe, de propósito. E já ouviu falar de Miss Parrish?

 

Judith abanou a cabeça.

 

É uma contadora de histórias famosa. Toda a gente a convida para trabalhar, mas ela prefere ter o seu próprio programa na estação de rádio local, aos domingos, e durante a semana dá duas aulas às crianças para as ensinar a contar histórias. É muito mais fácil fazer isso que viajar. É ela que está ali à secretária. Gostaria de a conhecer?

 

Acho melhor não. Não quero incomodá-la.

 

Não incomoda. Miss Parrish gosta de conhecer os novos clientes.

 

Judith viu-se empurrada até ao fundo da loja. Estava diante da secretária. Polly ergueu o olhar e Judith sentiu o coração a palpitar na garganta.

 

Polly tinha mais alguns quilos que ela. O seu cabelo castanho-escuro estava abundantemente entremeado por fios prateados. O seu rosto, despido de maquilhagem, tinha uma beleza natural, com uma expressão simultaneamente firme e calorosa.

 

Miss Parrish, temos aqui alguém que cá vem pela primeira vez disse a empregada.

 

Polly Parrish sorriu e estendeu-lhe a mão.

 

Agradeço-lhe muito que cá tenha vindo.

 

Judith estendeu também a mão e apercebeu-se de que estava a entrar em contacto físico com a sua gémea.

 

Chamo-me... Chamo-me Judith Kurner disse, utilizando instintivamente o seu nome de casada. ”Polly”, pensou. ”Polly.” Por momentos, sentiu vontade de dizer ”Sou eu, a Sarah”, mas sabia que teria de esperar. Polly era uma famosa contadora de histórias. Tinha o seu próprio programa e aquela loja encantadora. ”Oh, Stephen”, Pensou, ”não vamos ter de esconder esta parente!”

 

O inspector Lynch observava-a de um canto. A sua boca apertou-se num assobio. Com excepção do cabelo, aquela mulher era absolutamente igual a Judith Chase. Não seria uma maravilha investigarem a Parrish e conseguirem ligá-la a um grupo de terroristas? Compreendeu imediatamente que Judith não iria identificar-se à Parrish. ”Está aqui só para observar”, pensou. ”Eis a razão do lenço e dos óculos escuros. Ainda bem que ela possui um tal bom-senso!”

 

Lynch percebeu que desejava ilibar Judith Chase de qualquer suspeita de ser a mulher da capa. Depois de ler os seus livros e o dossier que a Scotland Yard tinha elaborado sobre ela, tinha começado a gostar dela e a admirá-la. Teve de recordar a si próprio que deveria manter uma total de objectividade. E nessa altura franziu o sobrolho.

 

Precisamente no mesmo instante em que Judith se apercebeu do mesmo facto, reparou que Polly Parrish estava sentada numa cadeira de rodas.

 

Eram perto de seis horas quando Judith regressou ao apartamento. Depois de sair de Junto de Polly, tinha ido tomar chá a um pequeno restaurante ao voltar da esquina. A criada irlandesa tinha respondido loquazmente às suas hábeis mas aparentemente naturais perguntas. Polly Parrish tinha sido criada ali mesmo, em Beverley. Tinha sido recolhida por uma família encantadora, ao ter alta do hospital. Tinha ficado com a coluna partida durante um ataque aéreo que lhe matara a mãe e a irmã. Vivia sozinha, numa vivenda encantadora a poucas milhas de distância. Escrevia para diversas revistas e jornais. E, oh, quando ela contava uma história, as pessoas de todas as idades, tanto as crianças como os adultos, escutavam-na deliciadas e bebiam as suas palavras.

 

Digo-lhe uma coisa, é como se ela estivesse a desfiar magia.

 

Ela conta lendas antigas, ou cria as suas próprias histórias? tinha Judith conseguido perguntar, forçando-se a desfazer o nó que a estrangulava.

 

As duas coisas. Nessa altura a criada fez uma pausa na sua narração e disse: Sabe, não consigo deixar de pensar em como ela vive solitária, compreende? Tem montes de amigos, mas não tem ninguém que lhe pertença.

 

”Tem sim, agora tem”, pensou Judith, enquanto pendurava a gabardina. ”Tem-me a mim!”

 

Durante a viagem de regresso a Londres, outras recordações tinham invadido a sua memória. Polly e ela a brincar no apartamento da Kent House. ”Tínhamos carrinhos de bonecas em verga branca iguais”, recordou-se Judith. ”A capa do meu era amarela, a do de polly cor-de-rosa.”

 

O dia seguinte era o dia das eleições. Na estação, tinha comprado os principais jornais. Todos eles previam uma vitória dos Conservadores. Longe de abraçarem o desejo de mudança dos Trabalhistas, todas as sondagens revelavam que o votante médio estava extremamente preocupado com o terrorismo e que a exigência de Sir Stephen Hallett quanto ao regresso da pena de morte levaria muitos Trabalhistas pouco convictos a virar a casaca e a ajudá-lo a tornar-se primeiro-ministro.

 

O livro estava terminado. Tinha encontrado Polly. No dia seguinte, os Conservadores ganhariam as eleições, e, no dia seguinte Stephen seria primeiro-ministro. Como era possível, pensou Judith, que ela não estivesse a transbordar de alegria? Por que razão se sentiria tão intensamente triste, tão desesperada?

 

Fadiga de combate, concluiu, enquanto preparava uma salada e uma omeleta. Sentou-se à mesa da cozinha, a ler os jornais enquanto comia, e lembrou-se de que, na manhã do dia anterior ela e Stephen se tinham sentado lado a lado no banco estreito. Ainda sentia o calor do ombro dele a roçar o seu, a mão dele sobre a sua, enquanto bebiam café. Dentro de dias estaria abertamente ao lado dele. Terminada a eleição, acabaria a necessidade de se esconderem. Sorriu enquanto se servia do chá do gordo bule de porcelana aquele aborrecido colunista, Harley Hutchinson, iria provavelmente afirmar que sempre tinha sabido de tudo!

 

Só depois de ter lavado e enxugado os poucos pratos e os ter arrumado foi até ao escritório e constatou que havia uma mensagem no gravador do telefone. O comandante Jack Sloane da Scotland Yard solicitava-lhe o favor de se deslocar no dia seguinte à Scotland Yard. Poderia, por favor, telefonar-lhe para dizer que hora lhe convinha?

 

Às onze horas do dia das eleições, Sloane encontrava-se no Gabinete do comissário delegado Barnes. A expressão de ambos era sóbria.

 

É uma situação difícil confessou Barnes. Não pretendo dizer ainda a Miss Chase que está a ser investigada. Lynch disse que Polly Parrish, a irmã dela, sem cabelos grisalhos é a Chase por uma pena. Leu as certidões de nascimento e o dossier da RAF sobre o pai?

 

Sloane acenou afirmativamente com a cabeça.

 

Não houve mais descendência.

 

Isso não quer dizer que não possa haver uma prima, ou até mêsmo uma pessoa totalmente estranha, que se pareça imenso com Miss Chase. A única ligação directa que temos é que o Collins estava a vigiar Judith Chase e se encontrava no hospital quando a bomba explodiu. Sabe o que um advogado faria com um testemunho deste tipo? Iria desencantar uma dúzia de mulheres parecidas com a Chase e o caso ficava arrumado.

 

E entretanto teríamos destruído a reputação de Judith Chase.

 

Exactamente.

 

Aquela cicatriz de que o Watkins e a testemunha do hospital falaram... há alguma hipótese de ser falsa, de ela a pintar na mão como um qualquer símbolo esquisito?

 

Pressionámos o Watkins a esse respeito. Ele diz que a examinou de perto, que sentiu a sua textura. Disse que era óbvio que ninguém se tinha ocupado de a coser, contou-nos que, quando estava na cama com ela, lhe tinha pedido que a esfregasse nas suas costas, porque lhe provocava uma certa sensação.

 

A expressão de Jack Sloane espelhou o seu nojo.

 

Judith Chase não é o género de mulher capaz de ir para a cama com esse patife.

 

Nós não sabemos quem é Judith Chase disse Barnes severamente. E já é tempo de o sabermos. Disse-lhe que estivesse aqui às onze, não foi?

 

Disse, sim senhor. E são onze horas.Sloane esperava que Judith não fizesse esperar o comisssário delegado: Barnes tinha a paixão da pontualidade. Não teve que preocupar-se. Nesse momento, a secretária anunciou a chegada de Judith.

 

A vaga insegurança que Judith tinha sentido nos dois últimos dias tinha-a levado a vestir-se cuidadosamente. Como o dia se mostrava primaveril, tinha vestido um fato de saia e um casaco fúcsia, com um corte magnífico, com uma saia justa e um casaco a três quartos semicintado. Atara ao pescoço uma écharpe preta e fúcsia. Tinha pregado no casaco um alfinete de ouro, em forma de unicórnio. A mala de cabedal preta suspensa do ombro condizia com os finos sapatos de salto baixo. Tinha os cabelos soltos a emoldurar-lhe o rosto e a maquilhagem, cuidadosamente aplicada, realçava os tons violeta dos seus olhos azuis.

 

Ao vê-la, ambos pensaram imediatamente que, tanto pelo aspecto como pelo porte, ela seria a escolha perfeita para mulher do primeiro-ministro.

 

Judith estendeu a mão e apertou a do comissário Barnes. Ao apertá-la, este observou-a rapidamente. Não havia cicatriz alguma. Talvez apenas a marca praticamente apagada de um ferimento feito havia longo tempo, nada mais. Nada de pele levantada, nem descoloração. Sentiu-se profundamente aliviado não queria que aquela mulher fosse a culpada.

 

O comandante Sloane viu Barnes observar a mão de Judith. ”Pelo menos, ele já põe isso de parte”, pensou.

 

Barnes entrou directamente no assunto. A única pista sólida que possuíam era que um operário da construção civil tinha dado um explosivo a uma mulher que dizia chamar-se Margaret Carew e que, aparentemente, era muito parecida com Judith.

 

Por acaso conhece alguém com esse nome?

 

Margaret Carew!exclamou Judith. Por acaso houve uma, que viveu no século XVII. Deparei com o nome dela, ao fazer as minhas investigações.

 

Ambos os homens sorriram.

 

Isso não nos ajuda muitodisse Barnes. Também há dez na lista telefónica de Londres, três em Worcester, duas em Bath, seis em Gales. É um nome muito popular. Miss Chase, recebeu alguma visita na terça-feira à noite?

 

Nesta última terça-feira? Não. Fui ao cabeleireiro, jantei num pub e fui directamente para casa. Estive a fazer a revisão final do meu livro. Acabo de o enviar para a editora. Por que pergunta? Judith sentiu as palmas das mãos húmidas de suor. Não tinha sido convidada a ir ali somente por ter estado na Torre no dia da explosão.

 

Não saiu de casa?

 

De maneira nenhuma. Comissário, que está a implicar?

 

Miss Chase, não estou a implicar coisa alguma. O operário que pensamos ter dado o explosivo à mulher que tem estado a fazer explodir bombas viu a sua fotografia na contracapa do seu livro e disse que a mulher que afirmou chamar-se Margaret Carew é parecida consigo. Disse categoricamente que não era a senhora. Na realidade, essa mulher tem uma cicatriz na mão. O guarda da Torre, antes de morrer parecia estar a dizer que a senhora tinha voltado, de modo que aqui também temos uma mulher aparentemente parecida consigo. Temos fotografias tiradas na altura da explosão da bomba junto da estátua equestre, e há uma mulher com uma capa e óculos escuros, que também se parece consigo, numa delas, a colocar um embrulho que contém a bomba, na base da estátua. Essa fotografia foi grandemente ampliada, e a cicatriz é nitidamente visível. O facto é que há alguém que se parece muitíssimo consigo, e que anda a realizar esses actos loucos. Tem alguma ideia de quem possa ser?

 

”Eles sabem de Polly”, pensou Judith. Tinha a certeza absoluta disso. ”Tenho estado a ser vigiada.”

 

Quer dizer, alguém que se pareça comigo ao ponto de ser minha gémea, só que a minha gémea é deficiente. Há quanto tempo anda a seguir-me?

 

Barnes respondeu à pergunta dela com outra.

 

Miss Chase, tem estado em contacto com outros membros da sua família, especialmente com alguém que se pareça muito consigo?

 

Judith pôs-se de pé. ”A cicatriz”, pensava ela, ”a cicatriz.” Lady Margaret Carew. Os lapsos de memória de que tinha falado a Patel.

 

Sir Stephen esteve aqui, numa reunião de alto nível, para conhecer os progressos da investigação. O meu nome foi referido?

 

Não, não foi.

 

Por que não? Ele deveria ter sido informado das vossas preocupações.

 

Sloane respondeu por Barnes.

 

Miss Chase, mesmo nas reuniões ao mais alto nível há fugas para a imprensa. Por sua causa, por causa de Sir Stephen, não queremos que se oiça o mínimo murmúrio sobre o seu nome, a este respeito. Mas a senhora pode ajudar-nos. Tem uma capa verde-escura?

 

Tenho. Não a uso muito. Francamente, a que comprei no Harrods tem sido tão amplamente copiada que metade das mulheres de Londres usa capas iguais, nesta estação.

 

Nós sabemos. Nunca emprestou a sua?

 

Não, nunca. Desejam mais alguma coisa de mim?

 

Nãodisse-lhe Barnes. Por favor, Miss Chase, permita-me que sublinhe...

 

Não vale a pena sublinhar coisa alguma. Por um acto de pura força de vontade, Judith conseguiu que a sua voz continuasse a soar firme.

 

Jack abriu-lhe a porta, em silêncio. Quando a fechou atrás dela, olhou para o seu chefe:

 

Por baixo daquela maquilhagem, ficou branca como um fantasma quando falei da cicatriz disse-lhe Barnes. Mande pôr imediatamente o telefone dela em escuta.

 

Quando regressou ao apartamento, Judith telefonou para o consultório de Patel. Ninguém atendeu. O serviço de atendimento disse-lhe que os doutores Patel e Wadley se encontravam num seminário de dois dias em Moscovo e só voltariam ao fim dessa tarde.

 

Ele que me telefone, sejam as horas que forem disse Judith.

 

Acendeu a televisão e sentou-se, imóvel, diante dela. Apresentaram um fragmento que mostrava Stephen a votar no seu bairro. Havia evidentes traços de fadiga no rosto dele, mas os seus olhos tinham uma expressão de confiança. Por momentos olhou directamente para a câmara e Judith teve a sensação de que ele estava a olhar para ela. ”Oh, meu Deus”, pensou, ”amo-o tanto.”

 

Dirigiu-se à secretária e abriu a agenda, comparando cuidadosamente os dias dos atentados bombistas com os seus próprios programas. Com um desespero crescente, apercebeu-se de que as explosões coincidiam com as alturas em que ela tinha adormecido à secretária, ou não tinha sentido passar as horas enquanto trabalhava.

 

Na semana anterior àquela em que os atentados tinham começado, tinha experimentado lapsos de memória. Tinha falado deles ao Dr. Patel. Por que motivo lhe teria Patel perguntado a data exacta da morte de Margaret Carew? E por que motivo a cicatriz da sua mão se tinha apresentado avermelhada?

 

Voltou a olhar para o televisor, esperando ansiosamente ver imagens de Stephen. Apetecia-lhe estar com ele, sentir-se envolvida pelos seus braços.

 

Preciso de ti, Stephen disse em voz alta. Preciso de ti. Às três horas, ele telefonou. A sua voz soava cheia de júbilo.

 

As coisas só acabam quando chegam ao fim, querida, mas tudo indica que conseguimos.

 

Tu conseguiste. Esforçou-se por se mostrar excitada e feliz. Quando é que tens a certeza?

 

As urnas só fecham às nove e os primeiros resultados só serão conhecidos por volta da meia-noite. Só às primeiras horas da madrugada se conhecerá a tendência geral. Os meios de comunicação prevêm uma vitória retumbante para nós, mas sabemos que poderão haver revezes. Judith, quem me dera que estivesses comigo. A espera seria mais fácil.

 

Sei bem o que tu sentes. Judith agarrou no telefone com mais força, ao sentir que a voz lhe falhava. Amo-te, Stephen. Adeus meu querido. Dirigiu-se ao quarto, vestiu uma camisa de dormir quente e um roupão de flanela e meteu-se na cama. Mesmo com os cobertores por cima, não conseguia parar de tremer. Um desespero profundo tornava-lhe o corpo pesado. Fazer uma chávena de chá parecia-lhe um esforço excessivo. Ficou ali estendida, hora após hora, a olhar para o tecto, sem reparar que tinha escurecido.

 

Às seis horas da madrugada, o Dr. Patel telefonou-lhe de Moscovo.

 

Aconteceu alguma coisa?

 

A pergunta fê-la perder o autocontrole que ainda lhe restava.

 

Sabe bem que sim disse ela. Que é que me fez? A sua voz transformou-se num grito agudo. Que é que me fez quando estive sob hipnose? Por que me perguntou por Margaret Carew?

 

Patel interrompeu-a.

 

Judith, vou agora apanhar um avião de regresso. Vá ao meu consultório às duas horas. Deve ter anotado a data exacta em que Margaret Carew morreu. Tem essa informação?

 

Tenho, mas porquê? Quero saber porquê!

 

Está relacionado com a Síndroma de Anastácia. ”Não”, pensou, ”não é possível.

Forçando-se a sair da cama, tomou um duche, enfiou uma camisola grossa e umas calças, fez chá e torradas e voltou para junto do televisor.

 

Pouco antes do meio-dia, os Trabalhistas admitiram a derrota. Com os olhos a arder de angústia, Judith viu Stephen confirmar a sua vitória na Câmara. O seu discurso de agradecimento aos apoiantes locais e aos seus oponentes pela luta leal que haviam travado, foi vivamente ovacionado. Dali foi levado a Edge Barton, onde uma multidão de simpatizantes aguardava a sua chegada. Viu-o nas escadas, a apertar mãos, com o rosto aberto em sorrisos.

 

Judith ficou a olhar para ele, e para a bela mansão de pedra de que tinha esperado voltar a fazer o seu lar.

 

”Voltar a fazer?”, pensou.

 

Stephen fez um último aceno à multidão e penetrou em Edge Barton. Momentos depois, Judith ouviu o telefone tocar. Sabia que era Stephen. Com um poderoso esforço, conseguiu voltar a parecer excitada e animada.

 

- Eu sabia, eu sabia. Eu sabia! - exclamou. - Parabéns, querido.

 

-Vou partir para Londres agora. Às quatro e meia apresento-me a Sua Majestade. Rory vai buscar-te a tua casa a um quarto para as quatro e leva-te a minha casa. Teremos uns minutos sozinhos antes de eu partir para o Palácio. Só queria poder levar-te comigo, mas não seria próprio. Iremos passar o fim-de-semana em Edge Barton e nessa altura daremos a notícia. Oh, Judith, finalmente, finalmente.

 

Com as lágrimas a escorrer pelo rosto, a voz a tremer, Judith conseguiu convencer Stephen de que estava a chorar de alegria. Quando pousou o auscultador, começou a revistar o apartamento.

 

Na Scotland Yard, O comissário Barnes e o comandante Sloane estavam no gabinete de Barnes, ouvindo pela décima vez a gravação da conversa entre Judith e o Dr. Patel.

 

Barnes escutou, perplexo, a explicação de Sloane sobre a teoria de Patel da Síndroma de Anastásia.

 

- Trazer pessoas de outras eras? Que disparate é esse? Mas será possível que ele tenha hipnotizado Judith Chase e a tenha levado afazer esses atentados? Temos de ter uma conversa com ele antes da chegada de Miss Chase.

 

Quando Judith chegou ao consultório do Dr. Patel, os seus lábios estavam cor de cinza. Os olhos pareciam arder no rosto mortalmente pálido. Levava no braço a capa verde-escura. Segurava na mão uma mala de viagem. Não se apercebeu de que o comissário Barnes e o comandante Sloane se encontravam no laboratório, por detrás do espelho-visor, observando-a e escutando-a.

 

-Não consegui dormir na noite passada - disse a Patel. - Passei o tempo a pensar vezes sem conta em tudo o que me tinha parecido estranho. Sabe uma coisa? Eu andava preocupada porque as portas do roupeiro que Lady Ardsley tinha reservado para seu uso se estavam sempre a abrir. A verdade é que não se abriam sozinhas. Alguém as abria. Eu abria-as. Esta é a minha capa. Que eu saiba, só a usei uma ou duas vezes, e apenas com bom tempo, mas está suja de lama. As botas que eu calço com ela estão sujas de lama. - Deixou cair a capa e as botas em cima de uma cadeira. -E olhe para isto: pó, arames. Pode-se fazer uma bomba de fabrico caseiro com isto. - Cuidadosamente, pousou o saco em cima da mesa antiga com um espelho a condizer, junto da porta. Tenho medo de estar perto deste material. Mas por que é que eu o tenho? Que é que o senhor me fez?

 

Judith, sente-se ordenou Patel. Quando lhe mostrei o vídeo da sua hipnose, não lhe mostrei a fita completa. Compreenderá melhor se a vir agora.

 

No laboratório, Rebecca Wadley observava as expressões incrédulas dos homens da Scotland Yard, ao verem a gravação em vídeo da hipnose de Judith.

 

Isto é o que eu lhe mostrei, até aqui disse Patel, a certa altura. Agora vai ver o resto.

 

Sem acreditar no que via, Judith observou a mudança da sua expressão, o seu grito desesperado, o modo como se contorcia no divã.

 

Dei-lhe aquela droga em excesso. Fê-la recuar até ao período da história de que a sua mente se estava a ocupar. Judith, provou a minha teoria. É possível trazer ao presente uma presença do passado, mas é um poder que não pode ser usado. Quando morreu Lady Margaret Carew?

 

”Isto não pode estar a acontecer-me”, pensou Judith. ”Isto não pode estar a acontecer-me.”

 

Foi decapitada no dia 10 de Dezembro de 1660.

 

Vou fazê-la regressar a esse momento. A Judith presenciou essa execução. Desta vez, afaste-se dela. Não a testemunhe. Não olhe para a cara de Lady Margaret Carew. O contacto visual seria extremamente perigoso. Deixe-a morrer, Judith. Livre-se dela.

 

Patel carregou no botão da secretária e Rebecca saiu do laboratório, trazendo uma bandeja com uma seringa, uma agulha intravenosa e um frasco que continha o litencum. Sloane e Barnes observavam silenciosamente do outro lado do vidro espelhado, ocupando os seus pensamentos com as implicações daquilo que estavam a presenciar.

 

Desta vez, Patel deu a Judith a quantidade máxima de litencum imediatamente, e os monitores indicaram que ela se encontrava num estado de sedação que conduziria as suas funções corporais a um nível quase de coma.

 

Patel sentou-se perto do divã onde ela jazia, com a mão no braço dela.

 

Judith, quando aqui esteve antes, sucedeu uma coisa má. Assistiu à execução de Lady Margaret Carew em 10 de Dezembro de

  1. Agora vai voltar, percorrendo os séculos até essa data e até ao local da execução. Quando lá esteve antes, sentiu pena de Lady Margaret.

 

Tentou salvá-la. Desta vez, lembre-se de que tem de lhe voltar as costas. Deixá-la morrer. Judith, fale comigo. Estamos a 10 de Dezembro de 1660. Vê alguma coisa na sua mente?

 

Lady Margaret subiu os degraus até à plataforma sobre a qual o carrasco a esperava. Quase tinha conseguido dominar Judith, transformar-se nela, e agora tinham-na feito regressar àquele momento horrível. Morrer agora seria trair Vincent e John. Olhou em volta, desvairada. Onde estava Judith? Não conseguia encontrá-la entre a multidão de camponeses grosseiros, cujos rostos estavam vermelhos de excitação. Era um dia de festa, para eles, ver separar a cabeça do seu corpo.

 

Judith chamou. Judith.

 

Há uma grande multidão dizia Judith em voz baixa. Todos gritam. Estão ansiosos pela execução. O rei está num recinto cercado. Oh, repare naquele homem que está junto dele. Parece-se com o Stephen. Estão a trazer Lady Margaret. Ela cuspiu sobre o rei. Está a gritar a Simon Hallett.

 

”Ela não conseguiria identificar as pessoas se Margaret Carew não estivesse ainda ligada a ela”, pensou Patel.

 

Judith, não fique. Volte as costas. Fuja.

 

Margaret viu Judith de costas. Estava a tentar abrir caminho por entre a multidão, mas a multidão estava a avançar e forçava-a a voltar para junto da plataforma. Margaret estava junto do cepo. Mãos fortes obrigaram-na a ajoelhar. Colocaram-lhe a touca branca sobre os cabelos.

 

Judith! gritou ela.

 

Ela está a chamar por mim. Eu não me volto! Não me volto! exclamou judith. Agitava desvairadamente as mãos. Deixem-me passar, deixem-me passar.

 

Fuja ordenou Patel. Não se volte.

 

Judith! gritou Margaret.Olha! Stephen está aqui. Vão executar Stephen. Judith voltou-se e fitou os olhos de Lady Margaret Carew, que exigiam o seu olhar, que a forçavam a fitá-los. Começou a gritar, um grito frenético, aterrorizado.

 

Judith, que foi? Que está a acontecer? perguntou Patel. O sangue. O sangue a jorrar do pescoço dela. A cabeça dela. Mataram-na. Quero voltar para casa. Quero Stephen.

 

Vai voltar para casa, Judith. Vai acordar agora. Vai sentir-se em paz, quente e descansada. Durante alguns minutos vai recordar-se de tudo o que sucedeu e falaremos sobre isso. E depois esquecerá tudo. Lady Margaret Carew deixará de ter significado para si, para além de um personagem que referiu no seu livro. Vai deixar aqui a capa e as botas, e os arames e o pó que trouxe. Estas e todas as recordações deste caso serão destruídas. Vai casar-se com Sir Stephen Hallett e ser muito feliz com ele. Agora acorde, Judith.

 

Ela abriu os olhos e tentou sentar-se. Patel colocou um braço em volta dela.

 

Muito devagar avisou. Fez uma longa e difícil viagem.

 

Foi horrível murmurou ela. Eu julgava saber o que fizeram àquelas pessoas, mas ver até que ponto a multidão estava enlouquecida... Era uma festa para eles. Doutor, agora ela foi-se embora. Mas terei direito a Stephen? Tenho de contar-lhe o que sucedeu.

 

Não vai recordar-se do que sucedeu. Vá ter com Stephen. Conte-lhe o que soube da sua irmã. Depois vá ter com ela. Tenho a certeza de que ela não poderia ser sua gémea sem ser parecida consigo.

 

Corriam lágrimas pelo rosto dela. Impacientemente, enxugou-as e dirigiu-se ao espelho.

 

Por que estou a chorar? perguntou. Estava perplexa. Deve ser por estar tão feliz. Caminhou lentamente até ao espelho.

 

Judith já está a esquecer disse Rebecca Wadley ao comissário Barnes e ao comandante Sloane.

 

Espera que acreditemos no que acabamos de ver? exclamou Barnes.Este dossier vai ser apreendido. Vamos mandar para aqui um guarda para que não toquem em nada. Não nos compete decidir em relação a este caso.

 

Sloane estava a observar Judith. Estava a pintar os olhos. Via o seu rosto reflectido no espelho por cima da mesa antiga. O seu sorriso resplandecia de felicidade.

 

Não me devia ter demorado tanto disse ela a Patel. Não posso deixar o Stephen à espera. Vou acompanhá-lo no carro até ao palácio, onde se vai apresentar à rainha. Oh, Doutor, muito obrigada por me ter ajudado a encontrar a minha irmã.

 

Com um aceno da mão, partiu. Sloane sentiu-se gelar. Havia uma cicatriz vermelha na mão direita dela. No mesmo instante, apercebeu-se de que o saco que ela tinha trazido e colocado sobre a mesa, junto à qual retocara a maquilhagem, se encontrava num ângulo diferente.

 

Meu Deus! exclamou. Vamos fugir daqui! Abriu a porta do laboratório, mas era tarde de mais. A bomba explodiu com estrondo. Pedaços dos corpos de Sloane, Barnes, Patel e Wadley misturaram-se com fragmentos de dossiers, registos e gravações, no consultório desfeito. Depois irromperam chamas e todo o edifício se transformou num holocausto.

 

Lynch seguiu pelas ruas a figura que caminhava rapidamente. Ouviu um estrondo, ao voltar a esquina, começou a voltar-se para trás, mas depois apercebeu-se de que, ao contrário dos outros peões, Judith Chase não tinha abrandado o passo, nem tinha sequer voltado a cabeça na direcção do som. Em vez disso, tinha chamado um táxi. Lynch apanhou outro e ordenou ao motorista que seguisse o dela. Tirou o telefone portátil do bolso e ligou para a central.

 

Judith estava a sair do táxi em frente do seu apartamento e a entrar num Rolls-Royce, quando Lynch foi informado de que o último atentado se tinha verificado no n.B 79 da Welbeck Street. O endereço de Patel! Pediu que ligassem ao gabinete do comandante Sloane. A secretária disse-lhe que o comandante Sloane e o comissário Barnes tinham saído juntos para contactar um tal Dr. Patel. O motorista deles? Não tinham. Tinham levado um dos carros sem distintivo.

 

”Oh, meu Deus, não!”, pensou Lynch. ”Eles estavam no consultório de Patel quando a bomba explodiu!”

 

Havia uma multidão de jornalistas e fotógrafos à porta da casa de Sir Stephen Hallett. Era sempre um momento histórico, quando um primeiro-ministro se ia apresentar à rainha. Lynch aguardou na rua, escondido atrás de uma carrinha da BBC estacionada. Apercebera-se de que ninguém sabia ainda da explosão no consultório de Patel.

 

Alguns minutos depois, a limusina contornou lentamente a casa. O motorista estacionou junto do passeio. As janelas escuras protegiam o interior do carro dos olhares curiosos.

 

Lynch estava certo de que Judith Chase se encontrava dentro do carro. Houve um movimento geral em direcção à porta de entrada quando Sir Stephen saiu, rodeado por encarregados da segurança. O motorista saiu do carro e voltou-se de costas para ele, enquanto esperava que o novo primeiro-ministro chegasse ao passeio.

 

Lynch compreendeu que era a sua oportunidade. Toda a gente estava voltada para a casa. Todos estavam de costas para o carro. Ergueu a gola da gabardina e, puxando a aba do chapéu para os olhos atravessou a rua e abriu a porta do carro.

 

Miss Chase. E nessa altura viu-a. A cicatriz vermelha na mão direita, que ela estava a tentar ocultar com pó de arroz. A senhora é Margaret Carew disse ele, levando a mão ao bolso...

 

Lady Margaret ergueu o olhar e viu a arma que lhe estava apontada. ”Consegui chegar tão longe”, pensou. ”Enganei Judith, servindo-me do nome de Stephen. Matei-a e regressei, e agora está tudo acabado.”

 

Nem se deu ao trabalho de fechar os olhos, quando Lynch premiu o gatilho.

 

O som do disparo perdeu-se entre os aplausos da multidão, enquanto Stephen, apertando mãos pelo caminho, se dirigia para o carro. O seu guarda-costas entrou para o lugar da frente e Rory abriu a porta para ele entrar.

 

Tudo bem, querida? perguntou Stephen, e depois gritou: Judith, Judith, Judith.

 

Margaret sentiu uns braços que a rodeavam e uns lábios que lhe percorriam as faces, ouviu um grito frenético a pedir auxílio. Depois, quando chegou a escuridão final, quando sentiu que avançava para a eternidade, ao encontro de John e Vincent, apercebeu-se de que tinha alcançado a vingança final. Ouvia os soluços de Stephen, sentia as suas lágrimas que se misturavam com o sangue que escorria da sua fronte. ”Simon Hallett”, pensou vitoriosamente. ”Destrocei o coração dele, tal como tu destroçaste o meu.”

 

              TERROR NA REUNIÃO DE CURSO

 

Observou Kay pelo canto do olho. Durante aqueles três dias, tinha tido o cuidado de se manter longe dela, de nunca ser apanhado com ela numa fotografia de grupo. Não tinha sido difícil. Tinham comparecido quase seiscentos alunos àquela reunião. Durante três dias tinham-lhe dado cabo dos nervos, desfiando aquelas fatigantes recordações de todas as parvoíces feitas por miúdos, nos tempos que tinham passado juntos no Liceu de Garden State, em Passaic County, Nova Jérsia.

 

Kay tinha acabado de comer um cachorro-quente. Devia ter sentido qualquer coisa no lábio, porque passou com a ponta do dedo por ele e depois riu-se e meteu o dedo na boca. Naquela noite, havia de segurar aqueles dedos entre os seus.

 

Estava de pé, perto de um grupo. Sabia que o peso que tinha perdido naqueles oito anos, a barba que tinha deixado crescer, as lentes de contacto em vez dos óculos pesados, a zona calva por baixo do cabelo que começava a rarear, tinham modificado o seu aspecto muito mais do que sucedera com a maioria dos alunos. Mas havia coisas que nunca mudavam. Nem um único se tinha aproximado dele e dito: ”Donny, foi bestial apareceres.” Se alguém o tinha reconhecido, não se tinha aproximado dele. Como nos velhos tempos. Ainda se recordava do velho self-service, onde ia buscar a sanduíche embrulhada num guardanapo de papel ao balcão, e andava com ela de mesa em mesa.

 

Desculpa, Donny murmuravam eles, não há lugar.. Finalmente tinha chegado ao ponto de se escapar para a escada de incêndio e comer aí o seu almoço.

 

Mas naquele momento sentia-se satisfeito por, durante aqueles três dias, ninguém lhe ter dado uma palmada nas costas ou apertado a mão ou gritado: ”Foi bestial apareceres.” Tinha conseguido mover-se sempre junto dos grupos, mas sem se misturar, e observar Kay, para poder planear o que pretendia fazer. Dentro de exactamente meia hora ela seria dele.

 

De que classe eras tu?

 

Por momentos ficou sem saber se a pergunta lhe era dirigida. Kay estava a beber uma gasosa. Conversava com uma aluna que tinha pertencido à turma de Donny, uma Virginia qualquer coisa. Os cabelos cor de mel de Kay tinham um tom mais vivo que aquele de que ele se recordava. Mas agora ela vivia em Phoenix. Talvez o sol os tivesse aclarado. Tinha-os cortado curtos em caracóis que lhe emolduravam o rosto. Costumava usá-los caídos sobre os ombros. Talvez a obrigasse a deixá-los crescer outra vez.

 

Kay, deixa crescer o cabelo. O teu marido é que manda. Di-lo-ia em tom de brincadeira, mas falaria a sério.

 

Qual era a pergunta estúpida que aquele estúpido lhe tinha feito? Oh, o ano em que tinha terminado o curso. Voltou-se. Estava a reconhecê-lo, era o novo reitor. Tinha feito os comentários de abertura, na terça-feira anterior.

 

Acabei o curso há oito anos disse Donny.

 

É por isso que não te conheço. Eu só cá estive quatro anos. Gene Pearson.

 

Donny Rubel murmurou.

 

Têm sido três dias fantásticos disse Pearson. Veio montes de gente. Bom espírito de curso. Numa universidade seria de esperar. Mas num liceu... É fantástico.

 

Donny acenou afirmativamente com a cabeça. Pestanejou e fingiu que se voltava por o sol lhe estar a bater nos olhos. Viu que Kay estava a apertar mãos. Ia-se embora.

 

Onde é que vives actualmente? Pearson parecia decidido a prosseguir a conversa.

 

A umas trinta milhas daqui. Prevendo mais perguntas, Donny apressou-se a dizer: Tenho o meu próprio negócio de reparações. A minha carrinha é a minha oficina. Vou fazer reparações a qualquer lado que fique a uma hora de viagem. Bom, tive muito prazer em conhecê-lo, Mr. Pearson.

 

Escuta, talvez gostasses de falar no dia das carreiras. Os miúdos precisam de saber que há alternativas à Faculdade...

 

Donny ergueu a mão, como se não o tivesse ouvido.

 

Tenho de ir. Vou jantar com uns tipos da minha turma. Não deu a Pearson oportunidade de responder. Começou a dirigir-se para a zona dos piqueniques. Tinha-se vestido cuidadosamente, calças de caqui, uma camisola azul de gola alta. Metade dos homens estavam vestidos praticamente da mesma maneira. Tinha querido misturar-se com a multidão, chamar tão pouco a atenção quanto a tinha chamado excessivamente durante os anos que passara no liceu. O único miúdo da aula que usava sobretudo quando todos tinham casaco da escola.

 

Kay atravessava o pequeno bosque que separava a área de piqueniques do parque de estacionamento. A escola era contígua ao parque municipal, ideal para a reunião. E ideal para Donny. Apanhou-a no momento exacto em que ela abria a porta do carro.

 

Miss Wesley disse. Quero dizer, Mrs. Crandell.

 

Ela ergueu o olhar, surpreendida. Ele sabia que, minutos depois, o parque de estacionamento estaria cheio. Tinha de apressar-se.

 

Sou o Donny Rubel disse. Aposto que não me reconhece. Ela mostrou-se um pouco insegura. Depois, aquele sorriso que ele revira tantas vezes, acordado durante a noite, começou a abrir-se.

 

Donny. Que prazer em ver-te. Estás tão diferente. Estás aqui há muito tempo? Como é que eu ainda não te tinha visto?

 

Acabei de chegar explicou ele.É a única pessoa que eu queria ver. Onde é que está instalada?

 

Já o sabia. O Motel Garden View, na Estrada 80.

 

É perfeito disse ele, quando ela respondeu. Vai lá um carro buscar-me dentro de meia hora. Vim de táxi para cá. Haveria possibilidade de me dar uma boleia? Teríamos uma oportunidade de conversar.

 

Ela suspeitaria de alguma coisa? Recordar-se-ia daquela última noite em que lhe tinha dito que não voltaria no período seguinte, que ia casar-se, e ele tinha começado a chorar? Ela hesitou um pouco, e depois disse:

 

Claro que sim, Donny. Vai ser bom recordar os velhos tempos. Sobe.

 

Ele conseguiu baixarse e desatar o atacador enquanto dava a volta ao carro para entrar do lado do passageiro. Quando chegou junto do carro, baixou-se de novo e demorou algum tempo a atar o atacador. Quem olhasse para o carro, juraria que Kay tinha partido sozinha.

 

Kay guiava rapidamente. Esforçava-se por acalmar a sua vaga irrittação pela presença do rapaz ao seu lado. Mike voltaria de Nova Iorque dentro de uma hora e, depois da maneira indecente como o tinha tratado ao telefone, na noite anterior, estava desesperadamente ansiosa por fazer as pazes com ele. Aquela reunião de curso tinha-lhe feito bem. Tinha sido divertido rever os professores com quem tinha trabalhado durante dois anos em que ali tinha dado aulas, e divertido recordar velhos tempos com os seus alunos. Tinha adorado ser professora. Esse era um dos problemas entre ela e Mike. O trabalho dele consistia em montar novas fábricas para a sua companhia, o que significava que nunca ficavam num local mais do que um ano. Doze mudanças em oito anos. Tinha-lhe dito, quando ele a deixara no motel, que dissesse à sua companhia que queria um trabalho permanente

 

Isso parece um ultimato, Kay dissera ele.

 

Talvez seja, Mike respondera ela. Quero raízes. Quero ter um filho. Quero permanecer num local durante tempo suficiente para poder voltar a ensinar. Não posso continuar a andar assim de um lado para o outro. Não posso mesmo.

 

Na noite anterior ele tinha começado a dizer-lhe que a companhia lhe tinha prometido sociedade e uma situação permanente no escritório de Nova Iorque, se ele fizesse mais um trabalho fora. Ela tinha desligado o telefone.

 

Estava tão preocupada com os seus próprios pensamentos que nem reparou no silêncio do seu passageiro, até que ele anunciou:

 

O seu marido foi a uma reunião da Companhia em Nova Iorque. Deve voltar esta noite.

 

Como é que sabes? Kay lançou uma rápida olhadela ao perfil impassível de Donny Rubel e depois cravou de novo os olhos na estrada.

 

Conversei com pessoas que falaram consigo.

 

Julguei que tinhas acabado de chegar ao piquenique.

 

Isso julgou a Kay. Não foi o que eu disse.

 

O ventilador introduzia ar fresco dentro do carro. Kay sentiu subitamente frio, como se a agradável tarde de Junho tivesse refrescado. Estavam a menos de uma milha do motel. Carregou mais no acelerador. Algo a avisou de que não deveria fazer perguntas.

 

Calhou muito bem disse ela. O meu marido tinha a reunião de negócios em Nova Iorque. Eu soube da reunião de curso e...

 

Eu li o Notícias dos Alunos disse-lhe Donny Rubel. Dizia que a professora favorita do Liceu Garden State vinha à reunião.

 

Que simpático da parte deles. Kay tentou rir.

 

Não me reconheceu. Donny parecia satisfeito com o facto. Mas aposto que não se esqueceu de que foi ao baile comigo.

 

Ela tinha dado aulas de inglês e canto coral. A psicóloga orientadora, Marion Martin, tinha sugerido que Donny Rubel devia fazer parte do coro.

É um dos miúdos mais tristes que tenho conhecido disse a Kay. É um zero em desportos, não tem amigos, tenho a certeza de que é inteligente, mas só se afirma academicamente, e sabe Deus que o pobrezinho devia estar atrás do portão quando a beleza foi distribuída. Se o conseguíssemos meter numa actividade em que ele pudesse fazer amigos...

 

Recordava-se dos sinceros esforços dele, das piadas dos outros, até que, num dia em que Donny faltara, ela tinha falado com eles.

 

Tenho uma coisa para lhes dizer, garotos. Acho que estão a ser indecentes. Eles tinham deixado de o incomodar, pelo menos durante o canto coral. Depois do concerto da Primavera, ele costumava vir conversar com ela. Assim tinha ficado a saber que ele não ia ao baile dos estudantes. Tinha convidado três raparigas, e todas o tinham recusado. Num impulso, tinha-lhe sugerido que fosse, de qualquer forma, e jantasse com ela.

 

Sou uma das acompanhantes dissera. Vou gostar que estejas comigo. Recordou-se, aborrecida, de que Donny tinha começado a chorar, no final do baile.

 

Já se via o indicativo do motel. Ela preferiu fingir que não notava que a mão de Donny se tinha movido e tocava na sua perna.

 

Lembra-se que, durante o baile, lhe perguntei se poderia vê-la durante o Verão? Disse-me que ia casar-se e que se ia embora. Tem vivido em muitos lugares. Eu tenho tentado encontrá-la.

 

Tens? Kay esforçou-se por não revelar nervosismo.

 

Tenho. Procurei-a em Chicago, há dois anos, mas tinha ido viver para S. Francisco.

 

Foi pena não te ter visto.

 

Gosta de andar assim de um lado para o outro? Agora tinha pousado a mão sobre o joelho dela.

 

Ei, rapaz, esse joelho é meu. Ela tentou mostrar-se divertida.

 

Eu sei. Está realmente farta de andar assim de um lado para o outro, não está? Não precisa de continuar a fazê-lo.

 

Kay olhou para Donny. Os pesados óculos escuros ocultavam-lhe os olhos e metade do rosto, mas tinha a boca enrugada e parcialmente aberta. Estava a respirar por ela, exalando um silvo quase silencioso, que soava de maneira estranha.

 

Leve o carro até ao fundo do parque e volte à esquerda por detrás do edifício principaldisse ele. Eu digo-lhe onde deve estacionar.

 

A mão dele comprimiu-lhe o joelho. Ela sentiu, antes de ver, a pistola que tinha sido encostada ao seu flanco.

 

Eu sirvo-me dela, pode crer sussurrou ele.

 

Era impossível que aquilo estivesse a acontecer-lhe. Nunca deveria ter-lhe dado boleia. As suas mãos tremiam, quando fez girar o volante, obedecendo às instruções dele. Sentia frio na boca do estômago. Deveria tentar chamar a atenção, talvez com o carro. Ouviu o estalido do fecho de segurança da pistola.

 

Não tente coisa alguma, Kay. Há seis balas nesta arma. Basta-me uma para si, mas não desperdiço as outras. Arrume ao lado dessa carrinha, do outro lado. No último espaço.

 

Ela obedeceu-lhe e apercebeu-se imediatamente de que o seu carro ficaria totalmente escondido em relação às janelas do motel, oculto pela carrinha cinzenta-escura à esquerda.

 

Agora saia do carro e não grite. A mão dele agarrava o seu braço. Ele saiu também, atrás dela. Ouviu-o retirar as chaves da ignição e deixá-las cair no chão. Num movimento rápido, empurrou-a e abriu a porta da carrinha. Com um braço, levantou-a e meteu-a lá dentro e entrou atrás dela. A porta deslizou, fechando-se. Uma escuridão quase total substituiu o brilho do sol do fim da tarde. Kay piscou os olhos.

 

Donny, não faças isto suplicou. Eu sou tua amiga. Conversa comigo, mas não...

 

Sentiu-se empurrada para a frente, tropeçou e caiu sobre um beliche estreito. Algo lhe tapava a cara. Uma mordaça. Em seguida, ele segurou-a com uma mão e, com a outra, colocou-lhe umas algemas em volta dos pulsos, argolas nos tornozelos, e uniu-os com uma pesada corrente de metal. Fez deslizar a porta lateral da carrinha, saltou para fora e fechou-a. Ela ouviu fechar-se a porta da frente e, momentos depois, a carrinha começava a mover-se. Os seus esforços desesperados para atrair as atenções, batendo com as pernas agrilhoadas contra a parte lateral da carrinha, foram abafados pelo ruído dos pneus sobre o macadame.

 

Mike mordeu os lábios impacientemente quando o motorista do táxi abrandou para deixar passar uma carrinha que saía do motel. O seu corpo esbelto e disciplinado vibrava de tensão, ao pedir ao motorista que guiasse mais depressa.

 

Sentia-se mal, por causa da maneira como ele e Kay tinham interrompido a conversa na noite anterior. Tinha estado prestes a ligar outra vez, quando ela desligara o telefone. Mas conhecia Kay. Ela nunca ficava muito tempo zangada. E agora poderia dar-lhe o que ela queria. ”Só mais uma missão, querida. Um ano, no máximo... talvez mesmo seis meses. E depois trazem-me definitivamente para o escritório de Nova Iorque, como sócio.” Se ela quisesse, poderiam construir uma casa naquela área. Ela gostava daquilo. O motorista parou junto da entrada.

 

Mike saltou do carro. Atravessou o hall em longas passadas.

 

Kay e ele estavam no quarto 210. A sua primeira reacção, quando fez rodar a chave e abriu a porta, foi de forte desapontamento. Era um pouco cedo para Kay estar de volta, mas tinha esperado encontrá-la. Era um quarto típico de motel: alcatifa gasta, colcha bege e castanha, cómoda de carvalho envernizado, televisor disfarçado num armário, janelas que davam para o parque de estacionamento. Na noite anterior tinha-se limitado a deixar Kay ali e tinha partido para a primeira reunião de vendas em Nova Iorque. Custava-lhe a recordar-se de como Kay tinha franzido o nariz e dito:

 

Estes quartos. São todos iguais e já estive em tantos.

 

No entanto, como habitualmente, tinha conseguido dar um certo ar caseiro ao quarto. Havia flores frescas numa jarra e, junto desta, três pequenas molduras de prata. Uma das fotografias mostrava-o a ele, segurando uma perca listada acabada de pescar; outra era um instantâneo de Kay em frente do andar que tinham habitado no Arizona; na terceira moldura havia um cartão de Natal com uma fotografia da família da irmã de Kay.

 

Os livros que Kay tinha comprado para ler estavam em cima da mesinha-de-cabeceira. O pente, a escova e o espelho de mão em madrepérola, que tinham pertencido à mãe dela, estavam muito bem arrumados em cima da cómoda. Quando abriu a porta do roupeiro, sentiu o vago perfume dos saquinhos que ela prendia nos cabides de cetim.

 

Inconscientemente, Mike sorriu. Os requintes de Kay constituíam uma contínua fonte de prazer para ele.

 

Decidiu que lhe faria bem tomar um duche rápido. Quando Kay voltasse, conversariam, fariam as pazes e ele levá-la-ia a um jantar festivo. ”Vou ser sócio de pleno direito, Kay. Dentro de um ano. Valeram a pena todas estas mudanças. Eu prometi-te que isto havia de acontecer.” Quando pendurou o fato e enfiou a roupa interior, as meias e a camisa no saco da roupa suja, ocorreu-lhe a ideia de que as mudanças constantes nunca o tinham incomodado porque Kay Conseguia fazer um lar de todos os quartos de motel ou apartamentos alugados em que tinham vivido.

 

Àss seis e um quarto, estava sentado junto da mesa redonda voltada para o parque de estacionamento, a ver as notícias, sempre à escuta da chave a rodar na fechadura.^ Tinha retirado uma garrafa de vinho do frigorífico-bar do quarto. Às seis e meia abriu a garrafa e serviu-se de um copo. Às sete começou a ver Dan Rather, que falava de um novo surto de actividade terrorista. Às sete e meia começou a sentir uma justificável preocupação... ”Muito bem, a Kay ainda está zangada comigo. Se resolveu jantar com os amigos, podia ter deixado um recado.” Às oito, telefonou para a recepção, pela terceira vez, e foi-lhe garantido por uma telefonista já irritada que não havia mensagem alguma para Mr. Crande do quarto 210. Às nove horas, começou a consultar a agenda de Kay e conseguiu descobrir o nome de uma antiga aluna com a qual sabia que Kay se mantinha em contacto. Virginia Murphy O’Neil. Ela atendeu ao primeiro toque. Sim, tinha visto Kay. Kay tinha abandonado o piquenique quando as pessoas começavam a dispersar. Efectivamente, Virgínia tinha até visto Kay partir. Deviam ser cinco e um quarto ou cinco e meia. Estava absolutamente segura de que Kay tinha partido sozinha.

 

Quando acabou de falar com Virginia O’Neil, Mike telefonou à polícia para saber se tinha havido algum acidente entre o liceu e o motel e, ao saber que não tinha havido acidente algum, comunicou o desaparecimento de Kay.

 

As algemas enterravam-se-lhe nos pulsos; as argolas feriam-lhe os tornozelos; a mordaça estava a asfixiá-la.

 

Donny Rubel? Por que estava ele a fazer-lhe isto? Subitamente lembrou-se de Marian Martin, a psicóloga orientadora que lhe tinha pedido que levasse Donny para o coro. Naquela última semana, tinha contado a Marian que convidara Donny a sentarse à sua mesa, no baile dos estudantes. Marian tinha ficado perturbada.

 

Já ouvi falar disso dissera. Donny gabou-se a alguém que tu o convidaste para te acompanhar ao baile. Suponho que é compreensível, dada a maneira como os outros troçam dele, mas mesmo assim... Mas, na realidade, que importância tem isso? Tu vais-te embora, casas-te dentro de duas semanas.

 

”Mas ele não me perdeu de vista durante todos estes anos.” Kay começou a entrar em pânico. Por mais que tentasse, não conseguia vê-lo através da divisória. A carrinha parecia invulgarmente ampla e na semiobscuridade, começavam a distinguir-se os contornos de uma mesa de trabalho diante da tarimba. Por cima dela, havia um painel de cortiça onde estavam fixadas diversas ferramentas. Que faria Donny com elas? Que estaria ele a planear fazer com ela? ”Mike, ajuda-me, por favor.”

 

A estrada parecia subir e descrever inúmeras curvas. A estreita tarimba oscilava e o seu ombro embatia na parede da carrinha. Para onde iriam? Finalmente sentiu que começavam a descer. Mais curvas, mais solavancos, e a carrinha parou.

 

Ouviu o zumbido da divisória a descer.

 

Chegámos. A voz de Donny soava aguda e triunfante. Momentos depois, a parte lateral da carrinha abriu-se com estrondo. Kay encolheu-se quando Donny se inclinou sobre ela. A respiração dele era rápida e quente na sua face, quando lhe retirou a mordaça.

 

Kay, não quero que grite. Estamos a milhas de distância de alguém que pudesse ouvi-la e só conseguirá enervar-me muito. Prometa.

 

Ela inspirou o ar fresco. Sentia a língua grossa e seca.

 

Prometo murmurou. Ele retirou-lhe as argolas e massajou-lhe os tornozelos, solicitamente. Depois retirou-lhe as algemas. Passou um braço em volta dela e levantou-a da tarimba. Sentia as pernas dormentes. Cambaleou e ele quase desceu com ela ao colo o degrau alto da carrinha.

 

O sítio para onde ele a tinha levado era uma velha casa de madeira numa pequena clareira. No alpendre arqueado havia um baloiço enferrujado. As janelas estavam fechadas com tábuas. As grossas árvores em volta da clareira quase tapavam os últimos raios oblíquos de sol. Donny encaminhou-se para a casa, abriu a porta, empurrou-a para dentro e acendeu a luz do tecto.

 

A sala onde se encontravam era pequena e sórdida. Havia um piano vertical que, muito tempo antes, tinha sido pintado de branco, mas a tinta começava a descascar-se mostrando a pintura preta original. Faltavam-lhe várias teclas. Havia um sofá e um cadeirão de veludo, excessivamente estofados, que deviam ter sido de um vermelho-vivo. Entretanto tinham tomado diversos tons que iam do roxo ao cor de laranja. Uma carpete de argolas, manchada, cobria o centro do chão irregular. Sobre uma mesa de metal, uma garrafa de champanhe dentro de um balde de plástico com gelo e dois copos. Ao lado do sofá, uma estante tosca estava atafulhada com cadernos escolares de apontamentos.

 

Vej a disse Donny. Fez Kay voltar-se, para olhar para a parede que ficava em frente do piano. Estava coberta com uma fotografia em tamanho de póster, que a representava a ela, sentada ao lado de Donny, no baile. Suspenso do tecto via-se um cartaz mal pintado Dizia

 

         ”BEM-VINDA AO LAR, KAY”.

 

O detective Jimmy Barrott foi a pessoa designada para acompanhar a comunicação de Michael Grandell, o homem que tinha informado a polícia do desaparecimento da sua mulher. A caminho do Motel Garden View, parou num restaurante de serviço rápido e pediu um hamburger e um café.

 

Comeu enquanto conduzia e, ao chegar ao motel, a sua ligeira dor de cabeça tinha desaparecido e era o mesmo indivíduo cínico de sempre. Ao fim de vinte e cinco anos no gabinete do promotor público, sentia que já tinha visto tudo.

 

O instinto de Jimmy Barrott dizia-lhe que aquilo era uma perda de tempo. Uma mulher de 32 anos vai a uma reunião e não chega a casa cedo. O marido entra em pânico. Jimmy Barrott sabia o que era chegar a casa tarde e não telefonar. Era essa a principal razão por que se tinha divorciado duas vezes.

 

Quando se abriu a porta do quarto 210, teve de confessar que o marido, Michael Grandell, parecia extremamente preocupado. Era um tipo simpático, pensou Jimmy Barrott. Com cerca de um metro e oitenta e três de altura. O tipo de feições fortes de que as mulheres gostam. Mas a primeira pergunta de Mike enfureceu Jimmy:

 

Por que demorou tanto tempo?

 

Jimmy instalou-se numa cadeira junto da mesa e abriu a sua agenda.

 

Escute disse, a sua mulher está umas horas atrasada. Oficialmente, não pode ser dada como desaparecida senão ao fim de vinte e quatro horas, pelo menos. Discutiram?

 

Não lhe escapou a expressão culpada no rosto de Mike.

 

Discutiram sublinhou. É melhor falar-me do assunto e depois podemos pensar para onde é que ela foi acalmar-se.

 

Mike sentiu que estava a contar mal a história. Kay tinha ficado transtornada com a conversa da noite anterior. Tinha desligado o telefone. Mas as coisas não eram como pareciam.

 

Apressou-se a falar-lhe dos antecedentes de ambos. Kay tinha dado aulas no Liceu de Garden State durante dois anos. Tinham-se conhecido em Chicago, em casa da irmã dela, e tinham-se casado lá. Ele nunca tinha conhecido os amigos dela de Nova Jérsia. Não valia a pena telefonar à irmã. Jean, o marido e os filhos estavam a passar férias na Europa.

 

. Dê-me uma descrição do carro pediu Jimmy Barrott. Um Toyota branco de 1986. Placa de matrícula do Arizona. O polícia anotou a matrícula. Vieram para muito longe de carro observou.

 

Eu ia entrar de férias. Decidimos gozá-las em volta da reunião da companhia e da reunião dos alunos. Pensávamos regressar amanhã ao Arizona.

 

Jimmy fechou o livro de apontamentos.

 

O meu palpite é que ela esteja a jantar e a tomar umas bebidas com amigos, e volte dentro de umas horas. Olhou para as molduras em cima da mesa. A sua mulher está em alguma?

 

Nesta. Tinha agarrado na fotografia em frente do prédio. Kay usava shorts e uma T-shirt. Tinha o cabelo preso com um elástico. Parecia ter 16 anos. Com a T-shirt a delinear-lhe os seios, as pernas longas e esbeltas e os pés calçados em sandálias abertas, tinha um ar muito excitante. Mike sentiu que tinha sido essa a reacção do detective.

 

Posso ficar com esta fotografia? sugeriu Jimmy Barrott. Habilmente, retirou-a da moldura. Se ela não tiver voltado durante as próximas vinte e quatro horas, emitir-se-á um relatório dando-a como desaparecida.

 

O instinto fez que Jimmy Barrott desse uma volta ao parque de estacionamento antes de entrar no seu carro. Naquele momento, o parque encontrava-se quase cheio. Havia dois Toyotas brancos, mas nenhum deles tinha placa do Arizona. Nessa altura, um carro isolado, ao fundo do parque de estacionamento, chamou-lhe a atenção. Aproximou-se dele.

 

Cinco minutos depois estava a bater com força à porta do quarto

 

O seu carro está no parque de estacionamento disse a Mike. As chaves estavam no chão. Parece que a sua mulher se foi embora sozinha.

 

Enquanto observava o ar de incredulidade no rosto de Mike, o telefone tocou. Ambos se precipitaram para o atender. Jimmy Barrott alcançou-o primeiro, levantou o auscultador e segurou-o de modo a Poder ouvir o que se dissesse.

 

O ”Está?” de Mike foi quase inaudível. E depois os dois homens ouviram Kay dizer:

 

Mike, desculpa fazer-te isto, mas preciso de tempo para pensar. Deixei o carro no parque. Volta para o Arizona. Está tudo acabado entre nós. Depois contacto contigo para tratarmos do divórcio.

 

Não... Kay... por favor... Não me vou embora sem ti.

 

Ouviu-se um estalido. Jimmy Barrott sentiu uma relutante compaixão pelo jovem chocado e desorientado que estava junto de si. Pegou na fotografia de Kay e colocou-a sobre a mesa.

 

Foi isto mesmo que me fez a minha segunda mulher disse a Mike. A única diferença é que, enquanto eu estava a trabalhar, levou lá os homens das mudanças. Deixou-me com uma caneca de cerveja e a roupa suja.

 

A observação interrompeu o entorpecimento.

 

Mas é isso mesmo disse Mike. Não vê? Apontou para a cómoda. Os acessórios de toilette de Kay. Não ia partir sem eles. A maquilhagem está no armário da casa de banho. O livro que ela estava a ler. Abriu a porta do roupeiro. As roupas dela. Que mulher não leva qualquer coisa pessoal com ela?

 

Ficaria surpreendido se soubesse quantas disse Jimmy Barrott. Sinto muito, Mr. Grandell, mas tenho de considerar isto como uma desavença familiar.

 

Voltou ao seu gabinete para arquivar o relatório e depois seguiu para casa. Mas, mesmo depois de se deitar, Jimmy Barrott não conseguiu adormecer. Os fatos tão bem pendurados, os artigos de toilette tão cuidadosamente arrumados. Algo dentro de si lhe dizia que Kay Crandell os teria levado consigo. Mas ela tinha telefonado.

 

Teria mesmo?

 

Jimmy sentou-se subitamente na cama. Algumas mulheres telefonavam. Ele tinha apenas a palavra de Mike Crandell de que se tratava da voz da sua mulher. E Mike Crandell e a mulher tinham tido uma discussão antes do desaparecimento dela.

 

Passaram-se horas e Mike continuou sentado ao lado do telefone. ”Ela vai telefonar outra vez”, dizia a si próprio. ”Vai mudar de ideias. Vai voltar.”

 

Voltaria?

 

Finalmente, Mike pôs-se de pé. Despiu-se e deixou-se cair na cama, do lado mais próximo do telefone, pronto a levantar o auscultador ao primeiro toque. Depois fechou os olhos e começou a chorar.

 

Kay mordeu o lábio, esforçando-se por não gritar o seu protesto quando Donny interrompeu a ligação. Donny sorria-lhe solicitamente.

 

Foi muito bem, Kay.

 

Ele teria levado a cabo a sua ameaça? Tinha-a prevenido de que se ela não dissesse exactamente o que ele tinha escrito, e de forma convincente, iria ao motel naquela noite e mataria Mike.

 

Estive no seu quarto duas vezes, na semana passada, sabia? dissera-lhe. Faço pequenas reparações no motel. Foi fácil fazer uma chave. Depois tinha-a conduzido ao quarto. O mobiliário consistia numa cama de casal arqueada com uma colcha de felpa barata, uma mesinha de jogo a servir de mesa-de-cabeceira e uma cómoda em mau estado. Gosta da colcha? perguntou Donny. Disse à vendedeira que era um presente para a minha mulher. Ela disse que a maior parte das mulheres gosta da felpa branca. Apontou para o pente, a escova e o espelho que estavam em cima da cómoda. São quase da mesma cor dos seus. Abriu o roupeiro. Gosta das suas novas roupas? São todas de tamanho oito, como as que tinha no motel. Havia algumas saias de algodão e T-shirts, uma gabardina, um roupão, um vestido estampado. Há roupa interior e uma camisa de dormir nas gavetas disse Donny orgulhosamente. E veja, os sapatos também são todos do seu tamanho, sete médio. Comprei-lhe sapatos de ténis, mocassins e sapatos de salto alto. Quero a minha mulher bem vestida.

 

Donny, eu não posso ser tua mulher murmurou ela. Donny fitou-a, perplexo.

 

Mas vai ser. Sempre quis casar-se comigo. Nessa altura, ela reparou na corrente muito bem arrumada a um canto, junto da cama e fixada a uma placa de metal na parede. Donny viu a sua expressão horrorizada. Não se preocupe, Kay. Tenho uma em cada sala. É que, de noite, eu vou ficar a dormir na sala e não quero que tente fugir-me. E durante o dia tenho de ir trabalhar, de modo que quero que fique confortável na sala.

 

Tinha-a levado de novo para a sala e retirado cerimoniosamente a rolha ao champanhe.

 

A nós.

 

Enquanto o via colocar de novo o auscultador no descanso, Kay sentia um gosto desagradável na boca ao recordar-se do champanhe quente e adocicado e dos hamburgers gordurosos que Donny tinha preparado.

 

Durante toda a refeição, ele mantivera-se em silêncio. Depois disse-lhe que acabasse o café, que ele voltava já. Quando regressou, trazia a cara rapada.

 

Só deixei crescer a barba para não me reconhecerem no liceu disse, orgulhosamente.

 

Depois disso, obrigou-a a acabar de beber o champanhe com ele e a telefonar a Mike. Agora tinha suspirado.

 

Kay, deve estar cansada. Vou deixá-la deitar-se cedo. Mas primeiro gostaria de ler-lhe alguns capítulos do meu primeiro caderno a seu respeito. Com um ar arrogante, dirigiu-se à estante e retirou um dos cadernos.

 

”Isto não é possível”, pensou Kay.

 

Mas era possível. Donny instalou-se no cadeirão excessivamente estofado, diante dela. A sala estava fria, agora, mas o suor escorria-lhe pelo rosto e pelos braços e manchava a camisola de gola alta. A sua palidez pouco natural era acentuada pelas olheiras escuras. Quando ele retirara os óculos escuros, Kay notara, com surpresa, como os seus olhos eram azuis. Lembrava-se de que eram castanhos. ”São mesmo castanhos”, disse a si própria. Ele devia usar lentes de contacto azuis. ”Tudo nele é fantasia”, pensou. Ele ergueu o olhar para ela, quase timidamente.

 

Sinto-me como um miúdo de escola disse.

 

Um minúsculo sopro de esperança disse a Kay que talvez ela conseguisse criar uma certa autoridade sobre ele, como professora e aluno. Mas quando ele começou a ler sentiu o pânico apertar-lhe a garganta.

 

”Dia 3 de Junho. Na noite passada fui ao baile do liceu com Kay leu ele. Dançámos todas as músicas. Quando a levei a casa, ela chorou nos meus braços. Disse que a família a estava a obrigar a casar com um homem que não amava e que queria que eu a fosse buscar quando pudesse tomar conta dela. Minha bela Kay, prometo-te que um dia irei buscar-te e serás minha mulher.”

 

Uma noite de insónia e o facto de não haver café no apartamento tornaram Jimmy Barrott invulgarmente irritável. Depois de uma paragem para tomar um café, dirigiu-se ao trabalho. Quando o gabinete do promotor público se esvaziou, Jimmy foi falar com ele.

 

Há qualquer coisa errada disse ao seu chefe em relação àquele problema doméstico que arquivei na noite passada. Queria permissão para investigar o marido. Relatou sucintamente a conversa com Mike, a descoberta do carro, o telefonema.

 

O promotor escutou-o e acenou afirmativamente com a cabeça.

 

Comece a pesquisar disse. Avise-me se precisar de ajuda.

 

Aos primeiros sinais da madrugada, Mike saltou da cama, tomou um duche e fez a barba. Tinha esperança de que o duche, primeiro quente e depois gelado, conseguisse fazer desaparecer o torpor que lhe invadia o cérebro.

 

A certa altura, durante as horas negras da noite, o seu desespero perante o desaparecimento de Kay tinha-se transformado na certeza de que ela nunca o abandonaria daquela maneira. Extraiu um bloco de notas da pasta e, entre goles de café, começou a anotar as possíveis medidas que poderia tomar. Virginia Murphy O’Neil. Tinha estado com Kay mesmo no final do piquenique. Tinha visto Kay partir. Talvez Kay lhe tivesse dito qualquer coisa que não parecesse importante na altura. Iria a casa de Virginia e falaria com ela. O detective Barrott tinha descoberto o carro às dez horas. Mas ninguém sabia a que horas ele tinha sido ali deixado. Iria falar com as empregadas do motel. Talvez alguém tivesse visto Kay sozinha ou acompanhada.

 

Sentia vontade de se sentar junto do telefone, à espera de que Kay telefonasse outra vez, mas isso seria estúpido. Mike sentiu o sangue gelar nas veias à ideia de que talvez ela não pudesse voltar a telefonar-lhe.

 

A sua primeira paragem foi junto da telefonista do motel. Esta garantiu-lhe que estava muito ocupada para dar recados a pessoas que telefonassem, mas teria muito prazer em anotar qualquer chamada Que ele pudesse receber. Ele falou-lhe num tom confidencial:

 

Oiça, já alguma vez se zangou com o seu namorado? Ela riu-se.

 

Todas as noites.

 

Na noite passada discuti com a minha mulher. Ela foi-se embora.

 

Agora eu tenho de sair, mas tenho a certeza absoluta de que ela vai telefonar. Por favor, importa-se de desligar a linha ou qualquer coisa no género, para não se esquecer de lhe dar este recado?

 

Os olhos muito pintados da telefonista brilharam de curiosidade. Leu o bilhete em voz alta. Em maiúsculas, Mike tinha escrito: ”Se telefonar Kay Crandell, diga-lhe que Mike quer falar com ela. Ele concorda com tudo o que ela quer, mas peça-lhe que, por favor, deixe um número de telefone ou a hora a que volta a telefonar.”

 

Nos olhos da operadora havia simpatia e alguma malícia.

 

Não percebo como é que uma mulher pode ser burra ao ponto de o abandonar disse.

 

Mike meteu-lhe uma nota de vinte dólares na mão.

 

Estou a contar que faça de Cupido.

 

Foi em vão, a conversa com os empregados do motel que pudessem ter visto o Toyota branco chegar ao parque de estacionamento. Não havia um encarregado do parque. O único guarda de segurança existente tinha passado a maior parte da noite dentro do motel.

 

Só comecei hoje disse ele a Mike. Caso contrário nem estaria aqui. Na. Nem sombra de problemas. Coçou a cabeça. Pensando melhor, de facto roubaram um carro no ano passado, mas abandonaram-no duas milhas mais adiante. O dono disse que até mesmo um ladrão via que ele não prestava. Riu-se.

 

Duas horas depois, Mike estava a trinta milhas de distância, sentado a uma mesa, em casa de Virginia, diante dela. Era uma rapariga baixa e esbelta, que tinha pertencido ao coro de Kay no último ano em que Kay ensinara no Liceu de Garden State. A cozinha era grande e alegre e abria para uma sala de recreio, cheia de brinquedos. Os gémeos de Virginia, com 2 anos de idade, brincavam ali, com uma energia barulhenta e desinibida.

 

Mike não tentou inventar uma história sobre os motivos por que procurava Kay. Tinha gostado de Virgínia e, instintivamente, confiava nela. Quando terminou, viu a sua preocupação reflectida nos olhos de Virginia.

 

Isso é estranho disse ela. Kay não fazia uma coisa dessas. É demasiado ponderada.

 

Falou muito com ela durante a reunião?

 

Um urso de peluche voou até junto dos pés de Mike. Momentos depois, uma pequena figura corria atrás dele e dava-lhe um pontapé-

 

Porta-te bem, Kevin advertiu Virginia. Explicou a Mike:

 

A minha tia deu ontem os ursos aos miúdos. Diná acarinha o dela. Kevin anda aos pontapés ao dele.

 

”Era isto que Kay pretendia”, pensou Mike. ”Uma casa como esta, filhos.” A ideia trouxe-lhe uma nova e assustadora possibilidade.

 

Houve muita gente que trouxe os filhos à reunião?

 

Oh, havia montes de miúdos por todos os lados. O rosto de Virginia tornou-se pensativo. Sabe que a Kay se mostrou um pouco triste, quando pegou na Diná ao colo, no outro dia, e disse: Todos os meus alunos têm família. Nunca esperei que a minha vida fosse assim.

 

Mike ergueu-se para partir, alguns minutos depois.

 

Que é que vai fazer?perguntou-lhe Virgínia. Ele tirou do bolso a fotografia de Kay. Vou mandar fazer posters e distribuí-los. É a única coisa de que consigo lembrar-me.

 

Quando Donny decidiu finalmente que eram horas de ir para a cama, disse a Kay que se despisse na minúscula casa de banho. Esta continha um pequeno lavatório, uma sanita e um chuveiro improvisado. Entregou-lhe a camisa de dormir que tinha comprado, uma peça de nylon decotada e transparente, debruada com uma imitação de renda. O robe condizia. Enquanto trocava de roupa, Kay esforçava-se desesperadamente por decidir o que havia de fazer se ele a atacasse. Era indubitável que ele conseguiria dominá-la. A sua única esperança consistia em tomar o comando da situação, estabelecer um relacionamento de professora-aluno.

 

Mas quando ela saiu, ele não fez qualquer tentativa para lhe tocar.

 

Meta-se na cama, Kaydisse. Dobrou a colcha para trás. A cama tinha lençóis e almofadas de musselina com flores azuis. Tinham um ar engomado e novo. Ela dirigiu-se para a cama, com firmeza.

 

Estou muito cansada, Donny disse friamente. Quero dormir.

 

Oh, Kay, prometo-lhe que não lhe toco antes de estarmos casados. Tapou-a e disse: Sinto muito, Kay, mas não posso correr o risco de tentar fugir-me enquanto eu durmo. E depois prendeu-a Por um pé à corrente.

 

Ela permaneceu acordada durante toda a noite, tentando rezar, tentando fazer planos, conseguindo apenas sussurrar ”Mike, ajuda-me, Mike, encontra-me”. De madrugada, caiu num sono inquieto.

 

Ao acordar, viu Donny a olhar para ela. Mesmo na semiobscuridade notava-se bem a sua ansiedade. Entre os dentes cerrados, disse:

 

Só queria certificar-me de que se encontrava bem, Kay. É tão bonita a dormir. Estou ansioso por casar-me consigo.

 

Quis que ela lhe preparasse o pequeno-almoço.

 

O seu futuro marido tem muito apetite, Kay. Às oito e meia, instalou-a na sala. Sinto muito, mas tenho de fechar as janelas outra vez. Não posso correr o risco de alguém passar e olhar cá para dentro. Isso nunca acontece, mas por certo há-de compreender. Agrilhoou-a à corrente da sala. Medi-a disse-lhe. Pode ir à casa de banho. Deixo aqui na mesa coisas para fazer sanduíches e um jarro com água e umas gasosas. Pode chegar ao piano. Quero que pratique. E se lhe apetecer ler, pode ler os meus cadernos. São todos a seu respeito, Kay. Durante estes oito anos fui escrevendo para si.

 

Deixou o telefone de gravador dentro do armário fechado a cadeado perto do tecto.

 

Vou deixar o gravador ligado, Kay. Há-de ouvir pessoas telefonar-me para encomendarem trabalhos. Mais ou menos de hora a hora recolho as chamadas no meu telefone da carrinha. Nessa altura, falo consigo, mas a Kay não poderá falar comigo. Sinto muito. Vou ter um dia muito ocupado, de modo que só volto às seis ou sete horas. Ao sair, ergueu-lhe o queixo com a mão. Sinta saudades minhas. Vai sentir saudades minhas, não vai, querida?

 

Deu-lhe um beijo cerimonioso na face. O seu braço apertou-se convulsivamente em volta da cintura dela.

 

Tinha pregado as tábuas nas janelas antes de partir e a fraca luz do tecto projectava sombras por toda a sala. Ela pôs-se de pé em cima do sofá, esticando a corrente até a grilheta lhe roer o tornozelo, mas era impossível chegar ao armário que, ainda por cima, estava fechado a cadeado. Não havia hipóteses de fazer uma chamada.

 

A corrente estava presa a uma placa de metal na parede. Havia quatro parafusos que seguravam a placa. Se conseguisse desaparafusá-los, poderia fugir. Estaria muito longe da auto-estrada? Conseguiria andar depressa com a grilheta no tornozelo e a corrente no braço? Como poderia desaparafusar a placa?

 

Kay pesquisou febrilmente a sala. A faca de plástico tinha saltado quando tentara usá-la na cabeça de um parafuso. Enchiam-se-lhe os olhos de lágrimas de frustração. Arrancou as almofadas do sofá. O estofo estava velho e viam-se as molas, mas não conseguiu soltar qualquer delas.

 

Arrastou-se até ao piano. Se conseguisse alcançar as cordas, talvez encontrasse qualquer coisa afiada que pudesse arrancar.

 

Não encontrou.

 

Não havia maneira de soltar a placa de metal. A sua única esperança residia em aparecer alguém enquanto ele estivesse fora. Mas quem? Havia algum correio em cima da estante. A maior parte estava dirigida a uma caixa postal em Howville. Todos tinham o número da caixa postal escrito a lápis no sobrescrito, pelo que não havia distribuição de correio até ali.

 

O seu olhar caiu sobre as fileiras de cadernos pretos e brancos. Ele tinha-lhe dito que os lesse. Retirou meia dúzia deles e arrastou-se até ao sofá. A luz era fraca, e teve de franzir a testa para se concentrar melhor. Tinha vestido a roupa que usara no piquenique, no dia anterior, querendo conservar a sua própria identidade. Mas o vestido estava amarrotado e sentia-se suja. Suja pela sua presença naquele local, pela recordação das mãos dele a abraçarem-na convulsivamente pela cintura, pela sensação de ser um animal enjaulado por um tratador louco. Esta ideia quase a deixou em estado de histeria. ”Domina-te”, disse a si própria, em voz alta. ”Mike está a tentar encontrar-te. Ele há-de encontrar-te.” Era como se sentisse a intensidade do amor dele. ”Mike. Mike. Amo-te. Não queria continuar a viajar. Queria ficar sempre no mesmo lugar.” Até Donny Rubel sabia disso. E estava a satisfazer o seu desejo. Kay deu consigo a rir alto, com gargalhadas agudas, semelhantes a soluços, que terminaram num frenezim de lágrimas.

 

Mas, pelo menos, sentiu um certo alívio. Ao fim de alguns minutos, enxugou as lágrimas com as costas da mão e começou a ler.

 

Os cadernos eram todos semelhantes. Uma odisseia, contada dia a dia, de uma vida de fantasia que se iniciara na noite do baile. Algumas páginas estavam escritas na forma de planos para o futuro. ”Quando Kay e eu estivermos juntos, iremos acampar no Colorado. Viveremos numa tenda e partilharemos a vida rústica, ao ar livre, dos nossos antepassados. Teremos um saco de dormir duplo e ela dormirá nos meus braços, porque receia um pouco os sons dos animais. Eu protegê-la-ei.” Noutros pontos escrevia como se já vivessem juntos. ”Kay e eu passámos um dia maravilhoso. Fomos a Nova Iorque, o Seaport de South Street. Comprei-lhe uma blusa nova e sapatos de saltos altos azuis. Kay gosta de me dar a mão enquanto passeamos. Ama-me muito e não gosta nada de estar longe de mim. Decidimos que, se um de nós adoecer alguma vez, não correremos o risco de nos separarmos. Não temos medo de morrer juntos. Teremos o céu por toda a eternidade. Somos verdadeiros amantes.”

 

Por vezes tornava-se impossível decifrar a escrita quase ilegível. Kay esforçou-se por não notar a dor de cabeça crescente, à medida que lia caderno após caderno. A profundidade da loucura de Donny colocou-a à beira do pânico. Tinha de acabar de ler todos os cadernos. Algures, fosse como fosse, talvez conseguisse descobrir uma pista sobre a maneira de o convencer a libertá-la, a levá-la a qualquer sítio público. Ele escrevia constantemente sobre passeios com ela.

 

A partir das dez horas, aproximadamente, o telefone começou a tocar. Ela escutava as mensagens que as pessoas iam deixando para Donny. Todos os nervos do seu corpo vibravam ao ouvir aquelas vozes impessoais. Oiçam-me, sentia vontade de gritar. Ajudem-me.

 

Ao que parecia, Donny tinha um movimentado serviço de reparações. Uma chamada de uma pizzaria poderia chegar lá o mais depressa possível? Um dos fornos não estava a funcionar. Diversas donas de casa não poderia ir dar uma olhadela ao televisor? A Videoteca? Uma vidraça partida. Mais ou menos de hora a hora, Donny recolhia as mensagens e depois deixava uma mensagem para ela.

 

Kay querida, tenho muitas saudades suas. Vê como eu estou ocupado? Já fiz duzentos dólares esta manhã. Vou poder tomar bem conta de si.

 

Depois de cada chamada, ela voltava à leitura. Em todos os cadernos, Donny estava constantemente a referir-se à mãe. ”Quando tinha 18 anos, deixou o meu pai ir longe de mais e ficou grávida de mim, e teve de casar-se. O meu pai abandonou-a quando eu ainda era bebé e deitoulhe as culpas de tudo. Nunca serei como o meu pai. Não tocarei em Kay com um dedo antes de nos casarmos. Caso contrário, ela poderia vir a odiar-me e a detestar os nossos filhos.”

 

No penúltimo caderno, ficou a saber dos planos dele. ”Ouvi, na televisão, um padre dizer que os casamentos têm mais probabilidades quando as pessoas já se conhecem há quatro estações. Que há algo no espírito humano, tal como na natureza, que necessita desse ciclo. Eu estive nas aulas da Kay durante o Outono e o Inverno. Vou buscá-la durante a reunião. Ainda será Primavera. Trocaremos os nossos votos, tendo apenas Deus como testemunha, no primeiro dia de Verão. Isso será no domingo, dia 21 de Junho. Nessa altura partiremos juntos, para dar a volta ao país, só nós os dois, amantes.”

 

Aquele dia era quinta-feira, 18 de Junho.

 

Às quatro horas chegou uma chamada do Motel Garden View. Donny poderia passar por lá nessa tarde? Havia dois aparelhos de televisão avariados.

 

O Motel Granden View. Quarto 210. Mike.

 

Donny telefonou alguns minutos depois. A sua voz tinha um som estranho, oco.

 

Está a ver como é, Kay. Faço muitas reparações no motel. Ainda bem que eles telefonaram. Isso dá-me possibilidade de ver se Mike Crandell se vai embora. Espero que tenha estado a praticar as nossas canções. Gostaria de cantar consigo esta noite. Adeus, por agora, minha querida.

 

Havia raiva na voz dele, ao pronunciar o nome de Mike. ”Ele tem medo”, pensou Kay. ”Se alguma coisa alterar os planos dele, enlouquece.” Não podia contrariá-lo. Voltou a colocar os cadernos na estante e arrastou-se até ao piano. Estava irremediavelmente desafinado. As teclas em falta faziam que o que ela tentasse tocar fosse alterado por sons discordantes.

 

Quando Donny chegou, eram perto de oito horas. O rosto dele estava sombrio, furioso.

 

Crandell não se vai embora disse a Kay. Anda a fazer uma data de perguntas a seu respeito. Anda a distribuir fotografias suas.

 

Mike estava no motel. Mike tinha percebido que havia qualquer coisa errada. ”Oh, Mike”, pensou Kay. ”Encontra-me. Eu vou contigo para qualquer lugar que queiras. Terei um filho em Kalamazoo ou Peoria. Que importa onde vivemos, desde que estejamos juntos?”

 

Era como se Donny pudesse ler os seus pensamentos. Deteve-se no umbral da porta, irritado com ela.

 

Não o fez acreditar em si, quando falou com ele na noite passada. A culpa é sua, Kay.

 

Entrou na sala e dirigiu-se para ela. Kay chegou-se para o extremo do sofá e a corrente enterrou-lhe a grilheta no tornozelo. Da carne magoada escorreu um fino fio de sangue, quente e viscoso. Donny reparou.

 

Oh, Kay, isso está a fazê-la sofrer, eu sei. Foi à casa de banho e voltou com um pano embebido em água quente. Ternamente, ergueu-lhe a perna do chão e pousou-a no colo. Agora vai sentir-se muito melhor...garantiu-lhe, envolvendo-lhe o tornozelo com O pano e logo que eu tenha a certeza de que voltou a apaixonar-se por mim, tiro-lhe as correntes. Endireitou-se e os seus lábios roçaram-lhe o ouvido. Vamos chamar o nosso primeiro filho Donald Júnior? perguntou. Tenho a certeza de que vai ser um rapaz

 

Na quinta-feira à tarde, Jimmy Barrott visitou o escritório dos patrões de Michael Crandell, uma firma de engenharia denominada Fields, & Quinlan Brown. Depois de exibir o seu distintivo, foi conduzido ao gabinete de Edward Fields, que ficou chocado ao saber que Kay Crandell desaparecera. Não, não tinham tido notícias de Mike naquele dia, mas isso não era de estranhar. Mike e Kay tencionavam ir até ao Arizona no carro. Mike tinha tirado uma semana de férias. Mike Crandell? Um técnico de primeira categoria. O melhor. Efectivamente, tinham decidido dar-lhe sociedade logo que ele acabasse uma obra que iria começar no mês seguinte, em Baltimore. Sim, eles sabiam que Kay andava aborrecida com tantas mudanças. A maior parte das mulheres pensa assim. Jimmy saberia onde estava Mike?

 

Jimmy Barrott disse, prudentemente, que o mais provável era tudo aquilo não passar de um mal-entendido.

 

Edward Field tomou subitamente um ar muito formal.

 

Mr. Barrottdisse, se isso é tudo conversa e só pretende investigar Mike Crandell, faça a si mesmo o favor de não desperdiçar o seu tempo. Aposto nele a minha reputação e a reputação da firma.

 

Jimmy telefonou para o seu escritório, para saber se havia mensagens para ele. Como não houvesse, seguiu directamente para casa. Não havia muita comida no frigorífico, pelo que decidiu ir a um restaurante chinês. Mas, sem saber como, encontrou-se a caminho do Motel Garden View.

 

Eram nove e meia quando lá chegou. Soube pela recepcionista que Mike tinha andado a distribuir fotografias da mulher a todos os empregados, que tinha dado vinte dólares à telefonista para dar um recado à mulher se ela telefonasse.

 

Não houve qualquer perturbação aqui na noite passada disse o recepcionista nervosamente. Não podia impedi-lo de distribuir as fotografias, mas isto não é o tipo de publicidade que nos agrada.

 

A pedido de Jimmy, o empregado entregou-lhe uma das fotografias, uma ampliação do instantâneo, sob o qual se lia, em letras maiúsculas:

 

KAY CRANDELL DESAPARECIDA; PODE ESTAR DOENTE. TEM 32 ANOS, 1,50 DE ALTURA, PESA 48 KG. DÁ-SE UMA RECOMPENSA SUBSTANCIAL A QUEM INFORME SOBRE O SEU PARADEIRO.

 

Seguia-se o nome de Mike e o número de telefone do motel.

 

Às dez horas, Jimmy bateu à porta do quarto 210. Esta abriu-se imediatamente e Jimmy notou o vivo desapontamento no rosto de Mike ao ver de quem se tratava. Com relutância, Jimmy confessou a si mesmo que Mike Crandell parecia realmente muito preocupado. Tinha as roupas amarrotadas como se tivesse apenas passado pelo sono em sofás. Jimmy passou por ele e viu a pilha de fotocópias da fotografia de Kay em cima da mesa.

 

Onde é que as tem distribuído? perguntou.

 

Sobretudo no motel. Amanhã vou entregá-las nas estações de caminhos-de-ferro e de camionetas, nas cidades em redor, e pedir às pessoas que as ponham nas montras das lojas.

 

Não teve mais notícias? Mike hesitou.

 

Soube qualquer coisa disse-lhe Jimmy Barrott. Que foi? Mike apontou para o telefone.

 

Não confiei em que a telefonista se lembrasse. Pus um gravador esta tarde. Kay telefonou enquanto eu fui buscar um hamburger. Deviam ser oito e meia.

 

Tencionava contar-me isso?

 

Por que havia de fazê-lo? perguntou Mike. Por que havia o senhor de incomodar-se com... com aquilo a que chamou uma desavença doméstica? Havia um leve tom de histeria na sua voz.

 

Jimmy Barrott dirigiu-se ao gravador, enrolou a fita e carregou no botão Play. A mesma voz feminina que tinha ouvido na noite anterior fez-se ouvir de novo.

 

Mike, estou realmente farta. Vai-te embora e pára de espalhar fotografias minhas por aí. É humilhante. Estou aqui porque quero. Ouviu-se o som do auscultador pousado com violência.

 

A minha mulher tem uma voz suave, harmoniosa disse Mike. Esta voz revela tensão, nada mais. Esqueça as palavras que ela disse.

 

Escute disse Jimmy, num tom que, para ele, era muito simpático. As mulheres não terminam um casamento sem uma certa tensão. Eu sei. Até a minha primeira mulher chorou durante o divórcio, e já estava grávida de outro tipo. Falei com os seus patrões. Têm-no em muito boa conta. Por que não volta para o seu trabalho e se dá por muito feliz? Não há mulher que valha isso.

 

O rosto de Mike ficou branco.

 

Telefonaram-me do meu escritório disse Mike. Ofereceram-se para arranjar um detective particular para me ajudar. Talvez aceite.

 

Jimmy Barrott inclinou-se sobre a mesa e retirou a cassete do gravador.

 

Pode dar-me o nome de alguém que possa identificar a voz da sua mulher? perguntou.

 

Mike passou toda a noite sentado, com a cabeça entre as mãos. Às seis e meia, saiu do motel e percorreu as estações de caminhos-de-ferro e de camionagem das cidades vizinhas. Às nove horas estava no Liceu Garden State. Não havia aulas, por causa das férias de Verão, mas o pessoal de escritório continuava a trabalhar. Foi levado ao gabinete do reitor, Gene Pearson. Pearson escutou-o atentamente, com o rosto magro franzido e pensativo.

 

Lembro-me bem da sua mulher disse. Disse-lhe que quando ela desejasse voltar a trabalhar aqui, tinha um lugar garantido. Pelo que os antigos alunos dela me disseram, deve ter sido excelente professora.

 

”Ele ofereceu um cargo a Kay. Teria ela decidido aceitá-lo?

Como é que Kay reagiu?

 

Os olhos de Pearson estreitaram-se.

 

Por acaso, disse-me: ”Tenha cuidado, olhe que eu posso levá-lo a sério”. Subitamente ficou sério. Mr. Crandell, eu compreendo a sua preocupação, mas não vejo como posso ajudá-lo. Pôs-se de pé.

 

Por favor suplicou Mike. Devem ter sido tiradas fotografias durante a reunião. Têm algum fotógrafo oficial?

 

Temos.

 

Quero o nome dele. Preciso de arranjar rapidamente uma série completa das fotografias que foram tiradas. Não pode recusar-me isso.

 

Dirigiu-se seguidamente ao fotógrafo da Center Street a seis quarteirões do liceu. Pelo menos ali o único problema foi o custo. Fez a sua encomenda e voltou ao motel para escutar o gravador. Às onze e meia voltou ao fotógrafo, que tinha feito um monte de reproduções de 20 x 25 cm de todas as fotografias que tinha tirado durante a reunião mais de duzentas fotografias, no total.

 

Com as fotografias debaixo do braço, Mike dirigiu-se a casa de Virginia O’Neil.

 

Durante toda a noite de quinta-feira, Kay não conseguiu dormir sobre o colchão encaroçado, envolta nos seus lençóis novos e ásperos. A sensação que tinha de que, no interior de Donny, algo estava prestes a atingir um nível explosivo, não a deixava descansar. Depois de ter telefonado e deixado a mensagem para Mike, tinha feito o jantar para Donny. Ele tinha trazido latas de carne picada, legumes congelados e vinho. Tinha colaborado com ele, fingindo que era divertido trabalharem juntos.

 

Durante o jantar, tinha-o feito falar de si próprio, da sua mãe. Ele tinha-lhe mostrado uma fotografia da mãe, uma loura esbelta de quarenta e tal anos, com um biquini que teria ficado bem a uma adolescente. Mas Kay tinha ficado toda arrepiada. Havia uma notável semelhança entre ela e a mãe de Donny. Eram do mesmo tipo, embora tão distantes como o A do Z, mas do mesmo tipo, quanto a tamanho, feições e cabelos.

 

Ela casou-se outra vez, há sete anos disse-lhe Donny, numa voz inexpressiva. O marido dela trabalha num dos casinos de Las Vegas. É muito mais velho que ela, mas os filhos dele adoram-na. São da idade dela. Donny mostrou-lhe a fotografia de dois homens de quarenta e tal anos, com os braços em volta da mãe. Ela também os adora.

 

Depois voltou a atenção para a comida que tinha no prato.

 

É muito boa cozinheira, Kay. Gosto disso. A minha mãe não gostava de cozinhar. Na maior parte das vezes eu tinha de comer sanduíches. Ela não parava muito em casa.

 

Depois do jantar, ela tocou piano e cantou com ele. Donny recordava-se das letras de todas as canções que ela ensinara ao coro. Tinha retirado as traves de madeira das janelas, para deixar entrar o ar fresco da noite, mas era evidente que não receava ser ouvido. Ela Perguntou-lhe isso.

 

Já ninguém vem até aqui disse-lhe ele.O lago não tem peixes. Está demasiado poluído para se nadar. Todas as outras casas estão a cair. Estamos seguros, Kay.

 

Quando decidiu que eram horas de ir para a cama, retirou-lhe a corrente da perna e esperou novamente no exterior da casa de banho. Quando saiu do chuveiro, ela ouviu a porta começar a abrir-se, mas, quando ela a fechou bruscamente, ele não voltou a tocar-lhe. Depois quando ela se dirigia rapidamente ao quarto, Donny perguntou-lhe

 

Que é que quer para a ceia do casamento, Kay? Devíamos planear qualquer coisa especial.

 

Ela fingiu ponderar seriamente a questão, e depois abanou a cabeça e disse com firmeza:

 

Não posso fazer plano algum para me casar até ter um vestido branco. Vamos ter de esperar.

 

Não pensei nisso, Kaydisse ele, ajeitando-lhe a roupa da cama e fixando-lhe a grilheta no tornozelo.

 

Estava sempre a adormecer e a acordar. De cada vez que acordava, via Donny aos pés da cama, a olhar para ela. Os seus olhos começavam a abrir-se e ela forçava-os a fecharem-se, mas era impossível enganá-lo. A fraca luz que ele deixara acesa na sala incidia sobre a almofada.

 

Não se preocupe, Kay. Eu sei que está acordada. Fale comigo, querida. Tem frio? Dentro de dias, quando estivermos casados, eu aqueço-a. Às sete horas, levou-lhe café. Ela sentou-se na cama, tendo o cuidado de entalar o lençol e o cobertor por baixo dos braços. O seu ”Obrigada” foi silenciado com um beijo.

 

Não vou trabalhar todo o dia disse-lhe Donny. Estive toda a noite a pensar naquilo que me disse, que não tinha um vestido branco para usar no casamento. Hoje vou comprar-lhe um vestido.

 

A chávena do café começou a tremer na sua mão. Com um tremendo esforço, Kay tentou conservar-se calma. Aquela poderia ser a sua única oportunidade.

 

Donny, desculpadisse. Não quero parecer ingrata, mas as roupas que me compraste não me assentam bem. Todas as mulheres gostam de escolher o seu vestido de casamento.

 

Não tinha pensado nisso disse Donny. Pareceu ficar desconcertado e pensativo. Isso quer dizer que eu teria de a levar à loja. Não sei bem se quero fazer isso. Mas faria tudo para a fazer feliz.

 

Na sexta-feira de manhã, às seis e meia, Jimmy Barrott desistiu de tentar dormir e dirigiu-se à cozinha. Fez uma cafeteira de café, procurou uma esferográfica sobre a mesa e começou a tomar notas no verso de um sobrescrito.

 

  1. Foi Kay Crandell quem fez aqueles telefonemas? Pedir a Virgínia O’Neil que identifique a voz.
  2. Se a voz for a de Kay Crandell, confirmar o nível de tensão no laboratório.
  3. Se Kay Crandell fez os telefonemas, sabia dos posters que Mike Crandell tinha começado a distribuir poucas horas antes, no motel. Como?

 

A última pergunta apagou quaisquer vestígios de sono que ainda permaneciam no cérebro de Jimmy. Tratar-se-ia de alguma estúpida mistificação cozinhada por Mike e Kay Crandell?

 

Às dez e meia, Jimmy Barrott tomava relutantemente parte de um jogo de catch com o seu adversário de dois anos, Kevin O’Neil. Atirou a bola a Kevin, que a apanhou com uma só mão, mas, ao atirá-la, Kevin gritou ”Falhaste!” e Jimmy deixou escapar uma bola fácil.

 

”Falhaste” é a maneira de ele nos hipnotizar explicou Virginia. Não teve dúvida alguma em identificar a voz de Kay.Mas nem parece ela disse Virginia. Miss Wesley, quero dizer, Mrs. Crandell, oh, bolas, ela está sempre a dizer-me que a trate por Kay... Kay tem uma voz agradável. É uma voz sempre calorosa e animada. Isso é a voz dela, mas não é a voz dela.

 

Onde está o seu marido? perguntou Jimmy. Virginia fitou-o, perplexa.

 

Está a trabalhar. É vendedor da Mercantil Exchange.

 

É feliz?

 

Claro que sou feliz. O tom de Virginia era gelado. Posso saber qual a razão dessa pergunta?

 

Como falaria se se fosse embora, com ou sem os miúdos, e abandonasse o seu marido? Sentiria tensão?

 

Virgínia agarrou Kevin segundos antes de ele derrubar a sua gémea.

 

Detective Barrott, se eu deixasse o meu marido, sentar-me-ia a uma mesa com ele e dir-lhe-ia quando e porquê me ia embora. E quer saber uma coisa? Kay Wesley Crandell faria exactamente a mesma coisa. É óbvio que está a projectar para este caso a maneira como pensa que mulheres como Kay e eu agimos. E agora, se não tem mais perguntas, eu tenho muito que fazer. Pôs-se de pé.

 

Mrs. O’Neil disse ele. Falei com Mike Crandell antes de vir aqui. Sei que ele mandou fazer cópias das fotografias tiradas durante a reunião e estará aqui com elas por volta do meio-dia. Volto ao meio-dia. Entretanto, tente lembrar-se se Kay combinou sair com alguém. Ou dê-me os nomes dos membros da faculdade de quem ela Parecia amiga.

 

Virginia separou os gémeos que estavam a lutar pela custódia de um dos ursos de peluche. Mudou de tom.

 

Estou a começar a simpatizar consigo, detective Barrott disse-lhe.

 

A mesma ideia que tinha ocorrido a Jimmy Barrott, que Kay sabia que ele andava a mostrar a fotografia dela poucas horas depois de ter distribuído fotografias no motel, ocorreu a Mike, enquanto se dirigia, de carro, para casa de Virginia O’Neil, com as pilhas de fotografias da reunião.

 

Quando Virginia veio abrir a porta, Mike estava à beira da histeria. A visão do rosto sombrio de Jimmy Barrott constituiu mais um esticão nas cordas já tensas do seu sistema nervoso.

 

Que é que está a fazer aqui?a sua pergunta abrupta saiu quase num grito.

 

Teve consciência da mão de Virginia O’Neil no seu braço, do facto de a casa parecer invulgarmente silenciosa.

 

Mike disse Virginia, o detective Barrott quer ajudar. Estão cá mais algumas mulheres da nossa turma; fizemos sanduíches; vamos todos ver as fotografias.

 

Pela segunda vez em dois dias, Mike sentiu as lágrimas inundarem-lhe os olhos. Desta vez conseguiu engoli-las. Foi apresentado às outras mulheres, Margery, Joan e Dotty, todas alunas do Liceu Garden State nos anos em que Kay lá tinha dado aulas. Sentaram-se todos e observaram as fotografias que Mike tinha trazido.

 

Este é o Bobby... vive em Pleasantwood. Aqui a Kay está a conversar com o John Durkin. A mulher dele é esta. Este...

 

Foi Jimmy Barrott quem colou cada fotografia a uma folha de cartolina, marcou as cabeças de cada pessoa com um número, e depois pediu às mulheres que identificassem todas as pessoas que conheciam. Em breve se tornou óbvio que havia em volta de Kay demasiadas pessoas de que ninguém conseguia lembrar-se.

 

Às três horas, Jimmy disse:

 

Sinto muito, mas não estamos a chegar a parte nenhuma. Sei que têm um novo reitor no liceu. Ele não vai ajudar-nos, mas haverá algum professor que lá esteja há bastante tempo e que possa ajudar-nos a identificar os ex-alunos que as senhoras não conhecem?

 

Virginia e as amigas trocaram longos olhares pensativos. Virginia falou por todas.

 

A Marian Martindisse.Entrou para o Garden State no dia em que foi inaugurado. Reformou-se há dois anos. Vive em Litchfield, Connecticut, actualmente. Esteve para vir à reunião, mas tinha outros compromissos a que não podia faltar.

 

. É dela que precisamos disse Jimmy Barrott. Alguém tem o número de telefone ou a morada dela?

 

A centelha de esperança que tinha começado a arder em Mike quando se apercebera de que Jimmy Barrott estava do seu lado transformou-se em chama. Havia gente a trabalhar com ele, gente que queria ajudá-lo. ”Kay, espera por mim. Eu hei-de encontrar-te.”

 

Virginia já estava a consultar a sua agenda.

 

Está aqui o número de Miss Martin. Começou a marcá-lo.

 

Vina Howard tinha realizado uma ambição de toda a sua vida, ao abrir a loja O Cartel do Trajo em Pleasantwood, Nova Jérsia. Tinha sido vendedora ajudante na firma J. C. Penney antes do seu inexoravelmente infeliz casamento. Quando, ao fim de dezoito anos, tinha finalmente deixado Nick Howard, tinha regressado a casa, a tempo de tratar os pais idosos ao longo de uma série de ataques cardíacos e tromboses. Depois da morte deles, Vina tinha vendido a velha casa, comprado um pequeno apartamento e realizado o sonho da sua vida, abrir uma loja de modas que agradasse à filha adolescente da moderna habitante dos subúrbios. E tinha sido esse erro que passara a ser a sua preocupação quotidiana.

 

Na sexta-feira de manhã, dia 19, Vina estava a endireitar os vestidos no expositor, a polir o vidro por cima do balcão das bijutarias, a ajeitar as cadeiras junto dos cubículos de provas tapados com cortinados, e a murmurar para si própria:

 

Que miúdos horríveis. Chegam aqui e provam tudo o que há. Deixam maquilhagem nas golas. Deixam tudo pelo chão. Esta é a última época que forneço roupas àqueles cretinos.

 

Vina tinha motivos de sobra para estar desanimada. Tinha acabado de mandar forrar o minúsculo gabinete de provas com um dispendioso papel de parede, e um dos garotos tinha escrito a habitual palavra de cinco letras por toda a parede. Ela tinha acabado por conseguir limpá-la, mas o papel tinha ficado todo manchado e rasgado em alguns pontos.

 

E, no entanto, o dia tinha começado de maneira agradável. Por volta das dez e meia, a hora a que chegara Edna, a sua ajudante, a loja estava cheia de gente e a caixa registradora tilintava.

 

Às três e um quarto tinha havido uma pausa, e Vina e Edna tinham conseguido beber uma chávena de café em paz. Edna garantira que o marido seria capaz de esticar o papel que restava, por forma a substituir a zona danificada. Uma Vina visivelmente mais animada tinha um sorriso caloroso no rosto quando a porta da loja se abriu e entrou um casal, composto por uma jovem bonita, de 26 ou 28 anos, vestindo uma saia e uma T-shirt baratas, e um homem de aspecto sinistro, mais ou menos da mesma idade, que a envolvia apertadamente com um braço. O cabelo ruivo e encaracolado do homem dava-lhe o ar de ter acabado de sair do cabeleireiro. Os seus olhos azuis de porcelana brilhavam. Havia neles algo de estranho, pensou Vina. O seu sorriso tornou-se mais rígido. Ultimamente tinha havido uma série de roubos, naquela área, cometidos por gente relacionada com as drogas.

 

Queremos um vestido branco comprido disse-lhe o homem. Tamanho oito.

 

A época dos bailes de estudantes já passou disse Vina inquieta. Não tenho uma grande colecção de vestidos de noite.

 

Este destina-se a um casamento. Vina dirigiu-se à jovem.

 

Tem preferência por algum estilo em especial?

 

Kay tentava desesperadamente descobrir uma maneira de comunicar com aquela mulher. Pelo canto do olho podia ver que a empregada da caixa registadora estava a notar algo de estranho em Donny e nela. Aquela incrível peruca ruiva que ele tinha posto na cabeça. Sabia também que a mão direita de Donny agarrava a pistola dentro do bolso, e que o mais leve esforço da sua parte para alertar aquelas mulheres se transformaria numa sentença de morte para elas.

 

Qualquer coisa de algodão disse. Tem bordado inglês? Ou talvez. jersex? Tinha avistado a sala de provas tapada com um cortinado. Teria de ir até lá sozinha para provar o vestido... Talvez pudesse deixar uma mensagem. Quanto mais vestidos experimentasse, mais tempo teria.

 

Mas havia apenas um vestido branco comprido, de tamanho oito, em bordado inglês.

 

Levamos este disse Donny.

 

Quero experimentá-lo disse Kay firmemente. A sala de provas é ali. Apontou para o gabinete. Dirigiu-se até lá e correu o cortinado. Vê. Só tinha espaço para uma pessoa. O cortinado não chegava ao chão.

 

Está bem, pode experimentá-lo disse Donny. Eu espero aqui fora. Negou firmemente a oferta de Vina para ajudar Kay. Basta que lhe entregue o vestido.

 

Kay despiu a T-shirt e a saia. Freneticamente, olhou em volta do pequeno cubículo. Numa estreita prateleira havia uma caixa com alfinetes. Mas não havia um lápis. Não havia maneira de deixar uma mensagem. Enfiou o vestido pela cabeça e agarrou num alfinete. O papel de parede de um dos lados do cubículo estava manchado e rasgado. Tentou riscar do outro lado a palavra SOCORRO. O alfinete era muito fino. era impossível deslocá-lo rapidamente. Conseguiu fazer um grande S desajeitado.

 

Despache-se, querida. Ela afastou o cortinado.

 

Não consigo chegar a estes botões nas costas disse à vendedora.

 

Enquanto abotoava o vestido, Vina olhava nervosamente para a caixa registadora. Edna abanou ligeiramente a cabeça. Livra-te deles, estava ela a dizer.

 

Kay olhou-se no espelho de corpo inteiro.

 

Não acho que esteja muito bem disse. Não tem mais?

 

Levamos este interrompeu Donny. Fica linda com ele. Puxou de um maço de notas. Despache-se, querida ordenou. Já se está a fazer tarde.

 

No interior do cubículo, Kay despiu o vestido, entregou-o através do cortinado, enfiou a T-shirt e a saia e agarrou noutro alfinete. Com uma das mãos, fingiu estar a ajeitar o cabelo; com a outra, tentava fazer o O no papel de parede, mas era impossível. Voltou-se subitamente ao ouvir Donny afastar o cortinado.

 

Por que leva tanto tempo, querida?perguntou. Ela estava de costas para a parede onde tinha começado a escrever. Continuou a alisar os cabelos com as mãos. Deixou cair o alfinete para trás do corPO e viu os olhos de Donny percorrerem o minúsculo cubículo. Depois, aparentemente satisfeito, agarrou-lhe na mão e, com a caixa debaixo do braço, puxou-a para fora da loja.

 

Marian Martin tinha acabado de plantar as suas novas azaleas quando o apelo do telefone a obrigou a entrar em casa. Era uma mulher alta, de 67 anos de idade, com um corpo esbelto e bem preparado, cabelos curtos e encaracolados e um jeito bondoso e prático.

 

Durante os dois anos que tinham passado desde que se reformara do seu cargo de psicóloga orientadora do Liceu de Garden State e se mudara para aquela tranquila cidade do Connecticut, tinha-se alegremente dedicado à vocação para a qual nunca tinha tido tempo. Agora, o seu jardim inglês constituía um motivo de orgulho para ela. Por isso, a chamada telefónica, naquela tarde de sexta-feira, não tinha sido uma interrupção muito bem recebida, mas quando acabou de escutar Virginia O’Neil, Marian esqueceu-se das dálias que não chegara a plantar.

 

”Kay Wesley”, pensou. ”Uma professora nata. Estava sempre pronta a dedicar-se aos garotos que estavam em dificuldades. Todos os alunos a adoravam. Kay, desaparecida.”

 

Tenho uma série de coisas a fazer disse a Virginia. Mas posso pôr-me a caminho às seis. Devo levar umas duas horas. Tenham as fotografias prontas. Não há um único miúdo que tenha frequentado o Garden State cujo rosto eu não conheça.

 

Quando desligou, acorreu-lhe à memória Wendy Fitzgerald, uma aluna do Garden State que, vinte anos antes, tinha desaparecido durante um piquenique. O seu assassino tinha sido Rudy Kluger, o faz-tudo do liceu. Rudy devia estar a sair da prisão. Marian sentiu a boca seca. ”Isso não, por favor.”

 

Às cinco e quarenta e cinco, tendo atirado a mala que continha os acessórios para passar a noite para dentro do porta-bagagens, seguia a caminho de Nova Jérsia. Enchiam-lhe o espírito os pormenores daquela época horrível, desde a altura em que Wendy Fitzgerald tinha sido dada como desaparecida até ao dia em que o seu corpo tinha sido encontrado. Estava de tal modo invadida pela sua apreensão em relação a Rudy, que se introduziu profundamente no seu subconsciente a noção de que Kay estaria envolvida em qualquer incidente semelhante.

 

Virginia pousou o auscultador.

 

Miss Martin deverá estar aqui por volta das oito disse. Jimmy Barrott empurrou a cadeira para trás.

 

Tenho de ir ao escritório. Se essa psicóloga descobrir alguma coisa esta noite, seja o que for, telefonem para este número. Se não, eu volto amanhã de manhã. Entregou a Virgínia um cartão um tanto deteriorado.

 

As outras mulheres levantaram-se também. Também elas voltariam para trabalhar com Miss Martin no dia seguinte.

 

Mike pôs-se de pé.

 

. Vou distribuir mais fotografias. Depois volto ao motel. Há sempre a hipótese de Kay telefonar outra vez.

 

Desta vez, pregou fotografias de Kay nos postes telefónicos nas ruas principais das cidades por onde passava e nos grandes centros comerciais. Em Pleasantwood quase chocou com uma carrinha que passou subitamente por ele, quando entrava no parque de estacionamento municipal. ”Idiota”, pensou Mike. ”Ainda mata alguém.

Donny tinha estacionado a carrinha no parque municipal por detrás do Cartel do Trajo. Quando saíram da loja, conservou o braço firmemente apertado em volta do corpo de Kay, até chegarem à carrinha, depois abriu a porta lateral e empurrou-a para diante. Kay olhou, desvairada, para o jovem corpulento que punha o seu carro em andamento, dois lotes mais adiante. Por momentos, conseguiu cruzar o seu olhar com o dele, e depois sentiu o cano da pistola encostado ao corpo.

 

Há uma criança no banco de trás daquele carro, Kay disse Donny com suavidade.Se emitir um único som, aquele tipo e o miúdo morrem.

 

Ela sentiu as pernas transformadas em borracha, ao tentar subir para a carrinha.

 

Aqui está a caixa, querida disse Donny em voz alta. Esperou até o outro carro passar por eles, e depois entrou na carrinha e fechou a porta violentamente.

 

Queria avisar aquele tipo, Kay silvou. A mordaça que lhe aplicou na boca ficou cruelmente apertada. Colocou-lhe as algemas e as grilhetas nos tornozelos com rudeza, e passou a corrente pelas argolas. Colocou a caixa junto do beliche dela. Lembre-se do motivo por que comprámos este vestido, Kay, e não se ponha a olhar para outros homens. Abriu um pouco a porta, olhou em volta, e depois abriu-a um pouco mais e saiu. No momento em que a luz se filtrou Para o interior da carrinha, Kay viu um objecto fino e longo, caído no chão, por baixo da bancada de trabalho.

 

Uma chave de parafusos.

 

Se tivesse a chave de parafusos, poderia desaparafusar a placa de metal da parede da casa e talvez tivesse oportunidade de fugir enquanto Donny estava a trabalhar.

 

A carrinha arrancou bruscamente. Donny devia estar com os nervos em ponto de ruptura, para guiar àquela velocidade. ”Meu Deus fazei que a polícia o veja”, pediu ela, ”por favor.” Mas a velocidade da carrinha abrandou perceptivelmente. Ele devia ter-se apercebido de que estava a guiar com excessiva velocidade.

 

Ela voltou-se de lado, baixou lentamente as mãos algemadas e, com as pontas dos dedos, tentou alcançar a chave de parafusos. Lágrimas de raiva e frustração enchiam-lhe os olhos, mas enxugou-as pacientemente. Na semiobscuridade, mal conseguia ver o longo e fino contorno da ferramenta, mas, por mais desesperadamente que tentasse, até as algemas lhe queimarem os ossos do pulso, não conseguiu alcançá-la.

 

Fez rolar o corpo de forma a ficar de costas e puxou as mãos para cima até repousarem sobre os joelhos. A tarimba gemeu, enquanto ela se esforçava por se sentar, fazia descer as pernas, agitava o corpo até ficar quase à beira da tarimba, e estendia as pernas em direcção à chave de parafusos. Estava a menos de dois centímetros do seu alcance. Ignorando as dores terríveis causadas pelas grilhetas, que se enterravam nas suas pernas, estendeu as pontas das sandálias até sentir a lâmina fina, e depois agarrou-a entre as solas das sandálias e puxou a chave de parafusos para a tarimba. Finalmente, esta ficou mesmo por baixo dela. Fez subir as pernas, deixou-se cair de costas e fez descer novamente as mãos até ao chão. A carne magoada enviava sinais de dor, que já nem sentia, porque os seus dedos estavam a fechar-se em volta do cabo da chave de parafusos, agarrando-a, levantando-a.

 

Por momentos repousou, arquejando devido ao esforço, exultante com a sua vitória. Depois os seus dedos apertaram com mais força a ferramenta, quando um novo pensamento a invadiu. Como poderia fazê-la entrar na casa? Não havia espaço para esconder na sua pessoa. A T-shirt barata moldava-lhe o corpo; a saia de algodão não tinha bolsos; as sandálias eram abertas.

 

Estavam quase na cabana. Sentiu a carrinha a voltar, e avançar aos solavancos sobre a estrada de terra. A caixa do vestido voltou-se e roçou-lhe pelo braço. A caixa do vestido. A empregada tinha feit° um nó duplo, ao atar o cordel em volta da caixa. Era impossível desmanchá-lo. Cuidadosamente, Kay meteu os dedos entre a tampa e o fundo da caixa, e depois começou a introduzir lentamente a chave de parafusos pela abertura que os seus dedos faziam. Sentiu a tampa rasgar-se de lado.

 

A carrinha parou. Desesperadamente, empurrou a chave de parafusos, tentando forçá-la a introduzir-se entre as pregas do vestido, e conseguiu deitar a caixa de lado antes que a porta se abrisse.

 

Chegámos, Kay disse Donny inexpressivamente.

 

Ela rezou para que ele não reparasse nas novas marcas que tinha nos pulsos e nos tornozelos, nem no rasgão da caixa. Mas os movimentos dele quando abriu as algemas e as grilhetas e retirou a corrente eram automáticos. Meteu a caixa debaixo do braço sem olhar para ela, abriu a porta da casa e empurrou-a rapidamente para dentro, como se tivesse medo de estar a ser seguido. O interior da cabana estava abafado.

 

O instinto dizia a Kay que deveria tentar acalmá-lo.

 

Estás com fome disse. Não comes há horas. Tinha-lhe dado o almoço quando ele regressara à cabana uma hora antes, mas estava demasiado agitado para comer. Vou fazer-te uma sanduíche e uma limonada disse. Estás a precisar.

 

Ele atirou a caixa do vestido para cima do sofá e fitou-a.

 

Diga-me quanto me ama ordenou. Tinha as pupilas dilatadas e apertava-lhe os pulsos com mais força que as algemas. Respirava em arquejos curtos e irregulares. Aterrorizada, Kay recuou até o veludo áspero do sofá lhe tocar nas pernas. Ele estava prestes a descontrolar-se. Perceberia imediatamente, se ela tentasse acalmá-lo com mentiras. Em vez disso, ela disse secamente:

 

Donny, eu é que queria ouvir-te dizer porque me amas. Dizes que sim, mas estás sempre zangado comigo. Como é que eu posso acreditar-te? Lê-me um dos teus cadernos, enquanto eu preparo qualquer coisa para comermos. Forçou-se a introduzir um tom de fria autoridade na voz. Donny, quero que comeces a ler já.

 

Está bem, eu leio, Miss Wesley. A voz dele tinha perdido o tom irado, tinha-se tornado mais aguda, quase adolescente. Mas primeiro tenho de ir ver as minhas mensagens.

 

Tinha deixado o telefone em cima da mesinha ao lado do sofá, ao saírem. Pegou num bloco de notas, tirou um lápis do bolso e carregou no botão de play. Havia três mensagens. Uma de uma loja de ferragens: Donny poderia lá ir no dia seguinte? O homem que lhes fazia as reparações estava doente. Uma do Motel Garden View: precisavam de ajuda extra para montar equipamento electrónico para um seminário. Precisavam que ele trabalhasse toda a tarde.

 

A última chamada era, obviamente, de um homem idoso. Ouvia-se distintamente a sua respiração asmática, quando se identificou com voz fraca. Clarence Gerber. Poderia Donny passar por sua casa para ver a torradeira? Não aquecia, e a mulher estava a queimar o pão todo, tentando fazer torradas no forno. Seguiu-se uma risada difícil, e o homem acrescentou: ”Ponhanos no topo da lista, Donny. Telefone-me para me dizer quando vem.”

 

Donny pousou o bloco de notas, enrolou a fita do gravador e, desta vez, pôs-se de pé em cima do sofá e guardou o telefone no armário.

 

Não suporto aquele velho, o Gerber disse a Kay. Por mais que eu lhe diga... quando estou a arranjar qualquer coisa dele... mete-se na carrinha e põe-se a conversar comigo, enquanto estou a trabalhar. E tenho de ir ao motel primeiro. Pagam-me logo. Poupei muito dinheiro para nós, Kay. Desceu do sofá. E agora vou-lhe ler. Mostre-me quais os cadernos que ainda não leu.

 

”Senti desde aquele primeiro dia, no coro, quando Kay pousou as mãos no meu peito e me disse que cantasse, que havia algo de especial e de muito belo entre nós” leu Donny, enquanto ia bebendo limonada. A sua voz foi-se acalmando ao falar das inúmeras vezes que ela lhe tinha telefonado e pedido que fosse ter com ela. Sentada diante dele, Kay sentia-se quase incapaz de engolir. Ele repetia vezes sem conta como se sentiria feliz se morresse com ela, como seria glorioso morrer para defender o direito a ela.

 

Parou de ler e sorriu.

 

Oh, já me esquecia disse. Arrancou a peruca ruiva, deixando à vista a calva incipiente e os ralos cabelos castanhos. Inclinou-se para a frente e, pela primeira vez, tirou as lentes de contacto azuis. Fitou-a com as suas pupilas de um castanho baço, com estranhos reflexos verdes. Gosta de mim quando sou eu mesmo? perguntou. Sem esperar pela resposta deu a volta à mesa e pegou nela. Tenho de ir ao motel. Vou deixá-la instalada na sala, Kay.

 

No Cartel do Trajo, Vina Howard e a sua ajudante Edna passaram cinco minutos a falar do casal que tinha comprado o vestido de bordado inglês branco.

 

Podia jurar que ambos tomam drogas afirmou Edna. Mas escuta, tínhamos ambas chegado à conclusão de que tinha sido asneira comprar aquele vestido. Não ias fazer um desconto? Assim, vendeste-o pelo preço marcado. E ainda por cima a dinheiro. Vina concordou.

 

Mas continuo a dizer que ele tinha um aspecto esquisito. Pinta o cabelo. Quase poderia jurá-lo. A porta abriu-se e entrou uma nova cliente. Vina ajudou-a a escolher diversas saias, e depois conduziu-a ao gabinete de provas. A sua exclamação indignada sobressaltou tanto Edna como a cliente.

 

 

 

Olhem para isto explodiu Vina. Com um dedo tremente, apontava para o S serrilhado na parede.Ela ainda era pior que ele exclamou, furiosa. Agora não temos papel que chegue para arranjar as duas paredes. Muito gostava de a apanhar ajeito. Nem mesmo as exclamações de compreensão da cliente, nem Edna a lembrar-lhe que tinham vendido o vestido pelo preço marcado, conseguiram aplacar a indignação de Vina.

 

Vina continuou interiormente furiosa, de tal modo que, quando às seis horas fechou a loja e começou a caminhar em direcção à sua casa, a três quarteirões de distância, olhou para o póster suspenso do poste telefónico e não registou na sua consciência que a mulher cujo rosto estava a ver era a mesma criatura miserável que tinha acabado de lhe estragar o papel da parede.

 

Eram cerca de nove horas quando Mike regressou ao Motel Garden View. A noite tinha-se tornado quente e abafada, e a sua testa cobriu-se de gotas de suor mal saiu do carro com ar condicionado. Começou a dirigir-se ao motel. Uma tontura forçouo a parar e a apoiar-se no carro junto ao qual passava, uma carrinha cinzenta-escura. Apercebeu-se de que não tinha comido, desde a sanduíche que Virginia lhe oferecera. Dirigiu-se ao quarto e ligou o gravador. Não havia mais mensagens.

 

A cafetaria ainda estava aberta. Só havia três ou quatro compartimentos ocupados. Pediu uma sanduíche de carne assada e café. A criada dirigiu-lhe um sorriso compreensivo.

 

O senhor é aquele a quem desapareceu a mulher. Boa sorte. Tenho a certeza de que há-de correr tudo bem. Tenho um pressentimento.

 

Obrigado. ”Quem me dera ter esse pressentimento”, pensou Mike. Por outro lado, pelo menos as pessoas estavam a reparar na fotografia de Kay.

 

A criada saiu de junto dele e regressou com um saco e a conta para o homem sentado dois compartimentos mais adiante.

 

Esta noite trabalha até tarde, hein, Donny? perguntou ela.

 

Já passava das seis horas quando Donny partiu na carrinha. Logo que o ruído do motor se afastou, Kay meteu a mão na caixa do vestido, procurando a chave de parafusos. Se conseguisse soltar a placa de metal da parede, talvez conseguisse chegar ao telefone. Mas, ao estudar o pesado cadeado do armário, percebeu que isso era impossível. Era a placa de metal ou nada.

 

Aproximou-se da placa e acocorou-se no chão. Os parafusos estavam tão bem apertados que pareciam soldados à placa. A chave de parafusos era pequena. Passaram-se minutos, passou-se meia hora, uma hora. Sem tomar consciência do calor, da transpiração que lhe inundava o corpo, do cansaço que lhe entorpecia os dedos, continuou a trabalhar. Finalmente foi recompensada. Um dos parafusos começou a rodar. Com uma lentidão exasperante, foi-se desatarrachando. Finalmente soltou-se por completo. Cuidadosamente, ela enroscou-o apenas o suficiente para que não saltasse, e ocupou-se do parafuso seguinte. Quanto tempo teria passado? Quanto tempo se demoraria Donny?

 

Ao fim de algum tempo, começou a ficar entorpecida. Trabalhava como um robot, inconsciente das dores que lhe percorriam as mãos e os braços, das cãibras nas pernas. Tinha acabado de sentir o segundo parafuso começar a mover-se quando compreendeu que o vago som que escutara era a carrinha a regressar. Freneticamente arrastou-se para o sofá, introduziu a chave de parafusos entre as molas e agarrou no caderno que Donny tinha deixado sobre o sofá.

 

Aporta abriu-se. Os passos pesados de Donny ressoaram sobre as tábuas do chão. Trazia um saco na mão.

 

Trago-lhe um hamburger e uma soda, Kay disse. Vi Mike Crandell na cafetaria. Há fotografias suas por toda a parte. Não foi muito boa ideia obrigar-me a ir fazer compras. Vamos ter de adiantar o nosso casamento um dia. Tenho de ir ao motel de manhã. Eles iam achar estranho que eu não fosse lá. E devem-me dinheiro. Mas quando eu voltar, casamo-nos e vamo-nos embora daqui.

 

A decisão pareceu acalmá-lo. Dirigiu-se a ela e pousou o saco no sofá.

 

Não lhe agrada que, sempre que compro alguma coisa para mim, pense em si? O beijo que lhe deu na testa foi demorado.

 

Kay esforçou-se por não revelar repulsa. Pelo menos, com a fraca luz, ele não podia notar como as suas mãos estavam inchadas. E ele ia trabalhar no motel no dia seguinte de manhã. Isso queria dizer que só lhe restavam umas horas antes de desaparecer com ela.

 

Donny pigarreou.

 

Vou ser um noivo muito nervoso, Kay disse. Vamos praticar os nossos votos de casamento. ”Eu, Donald, recebo-te a ti,

 

Kay...”

 

Tinha decorado completamente as frases do casamento tradicional. A mente de Kay encheu-se de recordações de quando dissera: ”Eu, Kay, recebo-te a ti, Michael. Oh, Mike”, pensou, ”Mike.”

 

Então, Kay? o tom de irritação regressara à voz de Donny.

 

Não tenho uma memória tão boa como a tuadisse ela. Talvez seja melhor escreveres as palavras, para eu as decorar amanhã, quando estiveres a trabalhar.

 

Donny sorriu. À luz fraca, os seus olhos pareciam enterrados nas órbitas, o seu rosto magro ao ponto de parecer esquelético.

 

Acho isso muito agradável disse. Por que não come o seu hamburger?

 

Nessa noite, Kay conservou os olhos resolutamente fechados e forçou a sua respiração a manter-se regular. Tinha consciência de que Donny entrava e saía e a observava, mas a sua mente focava-se apenas no facto de que, mesmo que conseguisse soltar a placa de metal antes do regresso dele, não havia garantia alguma de conseguir escapar-lhe. Até onde conseguiria fugir, através de bosques desconhecidos, com um pé agrilhoado e carregando o peso da placa e da corrente?

 

O trânsito estava difícil na Estrada 95 Sul. Às seis e meia, Marian Martin apercebeu-se de que a ligeira dor de cabeça persistente de que estava a sofrer resultava, provavelmente, do facto de ter comido apenas uma pequena sanduíche ao almoço. Apetecia-lhe imenso uma chávena de chá e um pãozinho. Mas a sensação de urgência que crescia dentro dela obrigou-a a conservar o pé no acelerador até que, às sete e cinquenta, tomou o caminho que levava à vivenda de Virginia O’Neil na cidade de Jefferson.

 

Virginia tinha queijo e bolachas e uma garrafa de vinho gelado à espera, na sala de estar. Cheia de gratidão, Marian mordiscou o queijo, bebeu um pouco de Chablis e observou o ambiente da sala confortavelmente mobilada, com o seu grande piano coberto com folhas de música, num recanto.

 

As folhas de música desencadearam algo na memória de Marian.

 

Tocava piano na aula de canto coral de Kay Wesley, não tocava? De que estou eu a tentar recordar-me em relação a essa aula? perguntou Marian a si própria, em voz alta, com impaciência.

 

O jantar foi frango no forno temperado com limão, com arroz de legumes e uma salada, mas, cheia de fome como estava, Marian mal se apercebeu do que estava a comer. Insistiu em estudar as fotografias da reunião enquanto comia. Rudy Kluger era alto e magro. Tinha trinta e poucos anos na altura em que assassinara Wendy Fitzgerald. Isso queria dizer que teria uns 50 anos agora. Marian passou uma rápida vista de olhos pelas fotografias. Os alunos mais antigos teriam cerca de 40 anos. Não deveria haver muitos homens mais velhos nas fotos.

 

Não havia. Os poucos que encontrou não se assemelhavam nem remotamente a Rudy. Enquanto observava as fotografias, Virginia foi informando que Mike estava a distribuir a fotografia de Kay pelas cidades locais, que o detective encarregado do caso parecera, a princípio, duvidar de que se tratasse de um verdadeiro desaparecimento, mas agora estava a ajudar activamente.

 

Ele vai ficar no escritório até bastante tarde, esta noite, julgo eu disse Virgínia Pediu-me que lhe telefonasse se achássemos que tínhamos descoberto alguma coisa.Puxou a cadeira para mais perto de Marian, enquanto Jack levantava a mesa e preparava o café. Virginia agarrou numa das fotografias. Veja disse, isto foi mesmo no final. Kay tinha acabado de comer um cachorro. Começou a despedir-se das pessoas que a rodeavam. Eu fui a última com quem ela falou. Depois seguiu pelo caminho fora, até ao parque de estacionamento.

 

Marian observou a fotografia. Kay encontrava-se muito perto do caminho. Mas algo captou a atenção de Marian, nos bosques que levavam ao parque de estacionamento.

 

Tem uma lente? perguntou.

 

Alguns minutos depois, estavam ambas de acordo. Quase oculto por detrás de um grande ulmeiro, perto do parque de estacionamento, havia algo que poderia ser um homem que evitava ser visto.

 

Isto provavelmente não quer dizer nada disse Marian, esforçando-se por manter uma voz calma.Mas talvez fosse boa ideia eu falar Já com o tal detective.

 

Jimmy Barrott estava sentado à secretária quando a chamada chegou. Por acaso, estava a estudar o dossier de um certo Rudy Kluger que, vinte anos antes, tinha ”morto e assassinado” uma aluna de 16 anos do Liceu Garden State, depois de a ter levado para os bosques perto da área de piquenique. Rudy Kluger tinha saído da Prisão de Trenton State havia seis semanas e já tinha violado a sua liberdade condicional, não se apresentando à polícia.

 

Jimmy Barrott sentiu um peso no peito ao ouvir a antiga psicóloga orientadora dizer-lhe que, numa das fotografias, lhe parecia ver alguém a esconder-se no bosque, precisamente quando Kay Crandell partia, e que estava muito preocupada por causa de Rudy Kluger.

 

Miss Martin disse Jimmy Barrott. Vou ser franco. Rudy Kluger saiu da prisão. Já andamos à procura dele. Mas pode fazer-me um favor? Faça de conta que Kluger não existe. Veja essas fotografias com objectividade. Não sei porquê, mas tenho a sensação de que a senhora vai descobrir qualquer coisa que vai ajudar-nos.

 

Ele tinha toda a razão quanto à objectividade, ela sabia-o. Marian desligou e recomeçou a estudar as fotografias.

 

Às onze e meia já não conseguia manter os olhos abertos.

 

Já não sou tão jovem como era disse, desculpando-se.

 

O quarto de hóspedes ficava do outro lado do quarto das crianças, no andar de cima. Mesmo assim, Marian ouviu vagamente um dos gémeos chorar, a meio da noite. Voltou a adormecer, mas, durante o breve período em que esteve acordada, apercebeu-se de que algo a estava a preocupar, algo que tinha visto nas fotografias, e que era absolutamente vital recordar.

 

Clarence Gerber não dormiu bem na noite de sexta-feira. Não havia coisa alguma que Brenda mais apreciasse que torradas ao pequeno-almoço, e a torradeira não funcionava havia dois dias. Como Brenda dizia, não valia a pena comprar uma nova, quando Donny Rubel a poderia pôr como nova por dez dólares.

 

Durante essa noite inquieta, Clarence reflectiu em que o verdadeiro problema da reforma consistia em a pessoa nada ter para fazer quando acordava, o que significava não ter coisa alguma de que falar. Agora as irmãs de Brenda passavam tanto tempo lá em casa que ele nunca conseguia conversar com ela. Elas interrompiam-no sempre que começava a dizer alguma coisa.

 

Às cinco da manhã, enquanto Brenda resmungava e ressonava ao seu lado, tão afastada do seu corpo, na cama de casal, quanto lhe era possível sem cair, Clarence concebeu o seu plano. Talvez para Donny não valesse a pena perder tempo a ir lá por dez dólares. Mas Clarence já tinha arquitectado uma solução. Tinha acontecido uma vez ou duas não ter em casa dinheiro quando Donny lhe arranjava alguma coisa, pelo que tinha enviado um cheque a Donny pelo correio. Tinha a morada dele. Algures em Howville. Timber Lane. Era isso. Perto daqueles lagos onde Clarence costumava ir nadar quando era criança. Nessa manhã iria até casa de Donny, deixaria lá a torradeira se ele não estivesse em casa, com uma nota a dizer que a iria buscar logo que estivesse pronta.

 

O sono fechou-lhe as pálpebras. Tinha um meio-sorriso no rosto quando adormeceu. Era bom ter um plano, ter qualquer coisa para fazer ao acordar.

 

Muito antes do amanhecer, Kay ouviu sons de grande actividade na sala. Que estaria Donny a fazer? Escutou o som de objectos que caíam no chão. Donny estava a fazer as malas. A inevitabilidade do que aqueles sons significavam fez que Kay levasse à boca os punhos fechados. Se alguma vez tinha precisado de se manter calma, para evitar as suspeitas dele, seria precisamente durante as próximas horas. A única hipótese que tinha de lhe escapar seria enquanto ele fazia os seus últimos trabalhos e entregas, nessa manhã. Se ele suspeitasse de alguma coisa, partiria imediatamente com ela.

 

Conseguiu imitar um sorriso sonolento quando ele lhe estendeu uma chávena de café, às sete horas.

 

És muito atencioso, Donny murmurou, sentando-se, tendo novamente o cuidado de entalar as cobertas por debaixo dos braços.

 

Ele pareceu ficar satisfeito. Vestia umas calças azuis-escuras e uma camisa branca de mangas curtas. Em vez dos habituais ténis, tinha calçado uns sapatos castanhos-claros muito bem engraxados. Era óbvio que se tinha ocupado especialmente do cabelo. Estava colado ao crânio, como se tivesse usado laca. Os seus olhos de um castanho baço pareciam arder de excitação.

 

Já tenho tudo planeado, Kay disse. Vou arrumar a maior parte das coisas dentro da carrinha antes de partir. Assim, logo que eu voltar, poderemos casarnos e fazer uma pequena refeição de casamento. Terá de ser um pequeno-almoço tardio, porque não quero esperar até tarde. Depois vamo-nos embora. Vou colocar uma mensagem no gravador, a dizer que vou partir para umas longas férias. E vou dizer aos meus melhores clientes, esta manhã, que me vou casar. Assim, ninguém vai estranhar se não regressarmos durante muito tempo.

 

Estava obviamente satisfeito com os seus planos. Inclinou-se e beijou os cabelos de Kay.

 

Talvez, quando tiver um filho, vamos visitar a minha mãe. Ela ria-se sempre de mim quando eu lhe dizia que não conseguia nada com as raparigas. Dizia-me sempre que a única maneira de eu arranjar uma rapariga era amarrá-la. Mas quando ela vir como a Kay é bonita e quanto amamos o nosso filho, aposto que vai pedir-me desculpa.

 

Não deixou Kay vestir-se antes do pequeno-almoço.

 

Vista só o roupão. A intensidade emocional do corpo dele era quase febril. Ela não queria andar ao pé dele com a camisa de noite e o roupão transparentes.

 

Donny, está imenso frio. Empresta-me atua gabardina enquanto esperamos.

 

Ele tinha deixado de fora alguns utensílios e a cafeteira, a torradeira, dois pratos. Tudo o resto estava emalado.

 

Vamos passar a maior parte do tempo em tendas e cabanas até chegarmos a Wyoming, Kay. Não a incomoda um pouco de desconforto, pois não?

 

Ela teve de morder os lábios para conter uma gargalhada histérica. Tinha considerado alguns andares mobilados, muitos deles bastante elegantes, como ”desconfortáveis”. Mike. Mike. Pensar no nome dele transformou o riso numa torrente de lágrimas. ”Não chores”, disse a si própria, ”não chores.”

 

Está a chorar, Kay?Donny inclinou-se sobre a mesa e observou-a. Ela conseguiu engolir as lágrimas.

 

Claro que não. Fingiu-se divertida. Todas as noivas têm os seus ataques de nervos antes do casamento.

 

O amplo afastamento dos lábios dele era a caricatura de um sorriso.

 

Acabe o pequeno-almoço, Kay. Tem de fazer a sua mala. Apresentou-lhe uma mala de um vermelho-vivo.

 

Surpresa! Comprei-a para si. Mas recusou-se a permitir-lhe que vestisse jíeans e uma T-shirt. Não, Kay. Guarde tudo menos o vestido de noiva.

 

Partiu às nove e meia, prometendo que não estaria fora mais de duas a três horas. Na sala, as duas malas velhas dele ladeavam a mala nova vermelha dela. Apenas o poster com a fotografia de ambos no baile do liceu permanecia na parede.

 

Vamos fazer os nossos votos diante dele tinha dito Donny.

 

O vestido de bordado inglês estava-lhe muito apertado nos ombros. Rasgou-se enquanto ela procurava a chave de parafusos entre as molas do sofá. Kay agarrou na chave de parafusos e depois pousou-a e rasgou cuidadosamente a folha de papel onde Donny tinha escrito os votos de casamento. De qualquer modo, ele iria matá-la. Bem podia desafiá-lo ao menos ali, onde, pelo menos, o seu corpo poderia ser um dia encontrado, e Mike poderia deixar de continuar a procurá-la.

 

Com a calma do desespero, pegou na chave de parafusos, levantou-se do sofá e dirigiu-se à placa de metal, arrastando a pesada corrente. Agachou-se, retirou o parafuso já solto, deixou-o cair no chão, e depois aplicou a chave na cabeça do segundo parafuso, aquele que já tinha começado a soltar-se na tarde anterior.

 

Mike chegou a casa dos O’Neil às nove horas.

 

Era um belo dia de Junho, cheio de sol. Custava a crer que algo pudesse estar errado num dia como aquele, pensou Mike. Como num sonho, viu um jovem no relvado vizinho ligar o aspersor de rega. À sua volta, as pessoas dedicavam-se às suas tarefas habituais dos sábados de manhã, ou iam jogar golfe, ou levavam os filhos a passear. Durante as últimas três horas, ele tinha andado a pregar fotografias de Kay nos postes telefónicos em volta dos clubes de natação locais.

 

Abriu a porta de rede e entrou. Os outros já estavam sentados em volta da mesa da cozinha. Virginia e Jack O’Neil, Jimmy Barrott, as três colegas de Virginia. Mike foi apresentado a Marian Martin. Sentiu imediatamente a tensão que pairava no ar. Receando perguntar, olhou, para Jimmy Barrott.

 

Diga-me o que sabe.

 

Não sabemos nada disse-lhe Jimmy Barrott. Pensamos que Miss Martin tenha visto alguém a esconder-se no caminho do parque, mesmo na altura em que Kay deixava o piquenique. Mandámos ampliar essa fotografia. Nem sequer temos a certeza de que não se trate de um ramo de árvore ou qualquer outra coisa. Hesitou, como se fosse prosseguir, e depois disse: Sugiro que não percamos tempo. Vamos continuar a identificar as pessoas que estão nas fotografias.

 

Os minutos passaram. Mike sentia-se inútil. Não podia ajudá-las. Pensou em ir até algumas cidades mais distantes, onde ainda não tivesse deixado fotografias de Kay, mas alguma coisa o prendia ali. Tinha a sensação de que o tempo estava a correr. Pensava que todos a tinham.

 

Às nove e meia, Marian Martin abanou a cabeça com impaciência.

 

Eu julgava que conheceria todas as caras, mas fui estúpida. As pessoas mudam muito. Do que eu preciso é de uma lista dos estudantes que se inscreveram para a reunião. Isso vai ajudar-me.

 

É sábado disse Virginia. A secretaria está fechada. Mas vou telefonar para casa de Gene Pearson. Vive a quatro quarteirões do liceu. É o reitor do Garden State disse ela a Mike.

 

Já estive com ele. Mike recordou-se da relutância de Pearson.

 

Mas, quando chegou, pouco mais de trinta minutos depois, era óbvio que, como Jimmy Barrott, Gene Pearson tinha mudado de atitude. Não se tinha barbeado; parecia ter vestido as roupas que estavam mais à mão; pediu desculpa por se ter demorado tanto.

 

Pearson entregou a Marian a lista de pessoas que tinham vindo à reunião.

 

Em que posso ajudar? - perguntou.

 

O telefone tocou. Todos se sobressaltaram. Virginia atendeu.

 

É para si disse a Jimmy Barrott.

 

Mike tentou decifrar a expressão de Jimmy mas não conseguiu.

 

  1. Leiam-lhe o raio dos direitos e façam-no assinar a declaração disse Jimmy. Vou já para aí.

 

Fez-se um silêncio mortal na cozinha. Jimmy pousou o auscultador e olhou para Mike.

 

Temos estado a tentar localizar um tipo chamado Rudy Kluger, Que tinha saído da prisão. Cumpriu vinte anos por assassinar uma rapariga que raptou da área de piquenique perto do Liceu de Garden State.

 

Mike sentiu uma opressão no peito, enquanto aguardava.

 

Jimmy humedeceu os lábios.

 

Isto pode nada ter a ver com o desaparecimento da sua mulher, mas acabam de apanhar Kluger nesse mesmo bosque. Tentou assaltar uma rapariga que fazia jogging.

 

E pode ter lá estado na quarta-feira disse Mike.

 

É possível.

 

Eu vou consigo. ”Kay”, pensou Mike, ”Kay.”

 

Como se sentisse subitamente que a sua tarefa era inútil, toda a gente à mesa pôs de parte as fotografias. Uma das colegas de Virginia começou a soluçar.

 

Mike, a Kay telefonou-lhe na noite anterior à última recordou Virginia.

 

Mas não na noite passada. E agora o Kluger está a tentar apanhar outra pessoa.

 

Mike acompanhou Jimmy Barrott até ao carro. Tinha a noção de estar a sofrer uma reacção de choque. Não sentia absolutamente nada, nem sofrimento, nem desgosto, nem raiva. Sussurrou de novo o nome de Kay, mas este não evocou emoção alguma.

 

Jimmy Barrott começava a fazer sair o carro em marcha atrás do caminho que levava à casa, quando Jack O’Neil saiu a correr.

 

Esperem aí! gritou. Estão a telefonar do seu escritório. Uma mulher chamada Vina Howard viu um dos posters com a fotografia de Kay e jura que Kay esteve na loja dela em Pleasantwood ontem à tarde.

 

Jimmy Barrott travou bruscamente. Ele e Mike saltaram do carro e correram para dentro da casa. Jimmy agarrou no telefone. Mike e os outros reuniram-se à sua volta. Jimmy fez perguntas e transmitiu instruções. Desligou e dirigiu-se a Mike.

 

A tal Howard e a assistente dela juram ambas que era a Kay. Estava com um tipo de vinte e tal anos. A Howard pensou que eles estivessem drogados, mas depois de falar com a minha gente apercebeu-se de que Kay estava provavelmente aterrorizada. Kay riscou um S no papel de parede do gabinete de provas.

 

Um tipo com vinte e tal anos exclamou Mike. Então não pode ser o Kluger. O alívio misturava-se a um novo receio. Ela tentou escrever qualquer coisa no gabinete de provas. A voz falhou-lhe ao murmurar: Uma palavra começada por S...

 

Devia estar a tentar escrever SOCORRO replicou Jimmy Barrott. A questão é que, pelo menos, sabemos que ela não estava com o Kluger.

 

Mas que fazia ela numa loja de vestidos? perguntou Jack O’Neil.

 

O rosto de Jimmy Barrott revelava descrença.

 

Sei que parece parvoíce, mas estava a comprar um vestido de noiva.

 

. Tenho de falar com essa mulher disse Mike.

 

Ela e a assistente dela chegarão aqui dentro de momentos num carro da esquadra disse Jimmy Barrott. Apontou para a mesa. Há uma hipótese de elas reconhecerem nestas fotografias o tipo que estava com a sua mulher.

 

Clarence Gerber estava espantado ao ver como tudo tinha mudado no caminho para Howville. Nos seus tempos era tudo rústico, com as montanhas e os lagos escondidos. Nunca se tinha desenvolvido como as cidades em volta. A poluição tinha-se instalado havia muitos anos. Os desperdícios das fábricas tinham destruído a natação e a pesca. Mas não contava com a total desolação do local. As casas apodreciam como se tivessem sido definitivamente abandonadas. O ferro-velho e os carros destruídos formavam pilhas de ferrugem nas ravinas ao lado da estrada. Era estranho que um tipo como Donny Rubel vivesse naquele sítio, pensou Clarence.

 

Regressavam-lhe à mente recordações enterradas havia muito tempo. A Timber Lane não dava directamente para a estrada. Teria de chegar àquela bifurcação da estrada, a uma ou duas milhas de distância, percorrer cinco milhas e depois virar à direita, para uma estrada de terra que levava à Timber Lane.

 

Clarence estava satisfeito com o dia soalheiro, satisfeito por o seu carro, já com onze anos, se estar a portar tão bem. Tinha acabado de mudar o óleo, e embora arquejasse um pouco nas subidas, ”tal como eu”, dizia ele, era um bom automóvel. Nada que se pareça com aqueles carros de lata que se vendem hoje em dia a preços que, no seu tempo, chegariam para comprar uma mansão.

 

As irmãs de Brenda tinham chegado ainda antes de ele ter conseguido beber uma chávena de café. Todas ficaram satisfeitas por o ver sair, para poderem falar daquele sujeito que andava a pregar cartazes da mulher desaparecida por toda a região. Clarence tentou imaginar que Brenda tinha desaparecido. Riu-se. Nunca o processariam Por perturbar a paz a pregar fotografias dela por todo o lado.

 

Encontrou a bifurcação da estrada. ”Mantém-te à direita”, disse a si próprio. O letreiro da Timber Lane poderia ter desaparecido, mas ele saberia onde era quando lá chegasse. Levava a torradeira ao seu lado, no banco do carro. Tinha-se lembrado de trazer uma folha de papel em branco e um sobrescrito. Se Donny não estivesse em casa deixar-lhe-ia uma mensagem. Talvez quando voltasse a buscar a torradeira, pudesse fazer uma visita a Donny. Donny devia sentir-se solitário, a viver naquele local. Não parecia haver uma alma por muitas milhas em redor.

 

O segundo parafuso já estava no chão. O terceiro começava a soltar-se. Kay fazia rodar o peso do corpo de um lado para o outro, enquanto fazia girar a chave de parafusos. Começava a sentir o cabo um pouco solto. ”Oh, meu Deus, por favor fazei que ela não se estrague.” Há quanto tempo teria ele partido? Pelo menos uma hora? O telefone tinha tocado duas vezes e as pessoas que haviam ligado tinham recebido a mensagem sobre as férias prolongadas, mas Donny não tinha falado. Endireitou-se e limpou o suor que lhe escorria pela testa. Sentindo tonturas, apercebeu-se de que estava perto da exaustão. Tinha cãibras nas pernas. Embora detestasse a ideia de perder tempo, pôs-se de pé e espreguiçou-se. Voltou-se, e o seu olhar caiu sobre a fotografia do baile, na parede oposta. Enojada, acocorou-se de novo, e, com um assomo de energia, fez rodar o cabo da chave de parafusos. Subitamente apercebeu-se de que ele estava realmente a rodar. O terceiro parafuso estava livre. Arrancou-o e, pela primeira vez, ousou ter esperanças de ter efectivamente uma possibilidade.

 

E nessa altura ouviu o som de um carro, um chiar de travões. Não, não, não. Desanimada, pousou a chave de parafusos no chão e cruzou as mãos. Deixá-lo ver o que estava a fazer. Seria melhor que ele a matasse ali mesmo.

 

A princípio julgou que era imaginação sua. Não podia ser. Mas era. Alguém batia à porta. A voz de um velho gritava:

 

Está alguém em casa?

 

O gemido da sirene do carro da polícia, a velocidade louca passando as luzes vermelhas, fizeram que o percurso de dez milhas entre Pleasantwood e a casa dos O’Neil em Jefferson Township parecesse uma eternidade a Vina Howard e à sua ajudante Edna. ”Eu vi a fotografia daquela mulher ontem à noite”, censurava-se Vina silenciosamente, ”e só me preocupei com o papel de parede. Se ao menos...” De veria ter-lhe parecido óbvio que havia algo de errado. ”O homem estava tão apressado. Ela insistira em experimentar o vestido, tentava ganhar tempo, pedindo outros vestidos. Ele tinha aberto o cortinado do gabinete como se não confiasse nela. ”E eu só pensei no papel de parede.”

 

Jimmy Barrott cortou a palavra a Vina quando ela tentou dizer-lhe tudo isto em casa dos O’Neil.

 

Mrs. Howard, por favor. Nós pensamos que quem raptou Kay Crandell possa estar nestas fotografias. Não se importava de as estudar. Tem a certeza de que ele tinha cabelo ruivo? Tem a certeza de que ele tinha olhos azuis?

 

Absolutamente disse Vina. Nós até comentámos que ele parecia ter saído do cabeleireiro.

 

Marian Martin levantou-se da mesa.

 

Sentem-se aqui. Quero estudar outra vez a lista. Aquela terrível sensação persistente de que lhe estava a passar qualquer coisa... por que estaria a explodir dentro dela? Dirigiu-se à sala dos brinquedos. Gene Pearson seguiu-a.

 

Virginia fez sinal às amigas. Todas se reuniram num sofá semicircular, em frente da sala onde estavam Marian Martin e Gene Pearson.

 

Mike conservou-se junto da mesa, a observar os rostos sérios das duas mulheres de meia idade que tinham visto Kay no dia anterior. Pleasantwood. Ele tinha estado lá.

 

A que horas disse que Kay esteve na sua loja? perguntou a Vina.

 

Por volta das três horas. Talvez às três e um quarto, mais ou menos.

 

Ele tinha saído daquela casa no dia anterior às três horas e tinha-se dirigido para Pleasantwood. Devia ter estado na cidade ao mesmo tempo que Kay. A ironia da situação fê-lo sentir vontade de dar murros na parede.

 

Jack O’Neil estava a empilhar as fotografias que Vina e Edna punham de parte.

 

Não podemos deixar de o encontrar disse Vina a Jimmy Barrott. Basta procurarmos aquele tipo de cabelo. Fez uma pausa e agarrou numa fotografia. Sabe, é estranho. Há qualquer coisa nesta...

 

Que é? perguntou logo Jimmy Barrott.

 

Há qualquer coisa que eu reconheço. Vina mordeu o lábio, irritada. Oh, estou a perder tempo. Já sei o que é. Estou a ver a fotografia daquele. Apontou para o escritório onde Gene Pearson revia a lista da reunião com Marian.

 

Edna tiroulhe a fotografia da mão.

 

Percebo o que queres dizer, mas... Arrastou a voz. Continuou a estudar a fotografia. Pode ser parvoíce disse, mas há qualquer coisa neste homem de barba e óculos escuros...

 

No escritório, Marian Martin estava a estudar a lista de alunos de um novo ponto de vista. Estava à procura de um nome que, por qualquer motivo, lhe tivesse escapado. Estava precisamente a começar a lista dos R quando algo que Virginia disse lhe captou a atenção.

 

Recorda-se de que todas queríamos vestir-nos como Kay Wesley? Ela poderia ter sido a rainha do baile de finalistas quando lá foi tomar conta de nós.

 

”O baile”, pensou Marian Martin. ”Era disso que eu estava a tentar lembrar-me. Donny Rubel, aquele rapaz estranho e introvertido que tinha uma paixão por Kay.” Os seus dedos percorreram a página. Ele tinha-se inscrito para ir à reunião, mas ela não o tinha visto em fotografia alguma. Por isso o nome dele não lhe tinha vindo à memória.

 

Virginia perguntou, alguém viu Donny Rubel na reunião?

 

Virginia olhou para as colegas.

 

Eu não o vi disse lentamente. As outras negaram com a cabeça. Ouvi dizer que ele tem um negócio de reparações, mas foi sempre um solitário prosseguiu Virginia. Duvido que se desse com alguém do liceu, depois de sair. Penso que teria dado por ele, se ele tivesse ido à reunião.

 

Donny Rubel interrompeu Gene Pearson. Tenho a certeza de que falei com ele. Até falámos do negócio de reparações. Pergunteilhe se queria falar no dia das carreiras. Foi mesmo no final do piquenique. Ele estava com tanta pressa que me despachou.

 

Um pouco forte disse Marian Cabelos castanhos-escuros, olhos castanhos. Perto de um metro e oitenta.

 

Não. Este era bastante magro. Tinha barba e pouco cabelo. Por acaso até fiquei surpreendido, quando me disse que tinha terminado o curso oito anos antes. Espere aí. Gene Pearson pôs-se de pé e passou a mão pela cara onde a barba começava a notar-se. Ele ficou numa das fotografias comigo. Vou buscá-la.

 

Como uma só pessoa, Marian Martin, Virginia e as colegas dela correram do escritório para a cozinha. Vina Howard tinha acabado de tirar das mãos da sua ajudante a fotografia de Pearson e Donny Rubel.

 

Ele tinha uma peruca! gritou Vina. Por isso achámos que o cabelo estava tão bem penteado. É este o homem que foi à minha loja.

 

Marian Martin, Virginia e as amigas olhavam para o estranho magro, de barba, que nenhuma delas tinha reconhecido. Mas Gene Pearson gritou:

 

É esse o Rubel! É esse o Rubel!

 

Jimmy Barrott tirou a lista das mãos de Marian. O endereço de Donny Rubel estava junto do nome dele.

 

Timber Lane, Howville disse. Fica a quinze milhas daqui. O carro da polícia está lá fora disse a Mike. Vamos.

 

Clarence Gerber não conseguia acreditar nos seus ouvidos. Uma voz de mulher, dentro da casa, gritava-lhe que fosse buscar ajuda, que telefonasse à polícia, que lhes dissesse que ela era Kay Crandell. E se aquilo não passasse de uma brincadeira, e a pessoa que estava lá dentro estivesse drogada ou coisa parecida? Clarence decidiu tentar espreitar para o interior da casa. Mas era impossível forçar as portas ou as janelas.

 

Não perca tempo gritou Kay. Ele pode voltar a qualquer momento. Vá buscar ajuda. Ele mata-o, se o encontrar aqui.

 

Clarence deu um último empurrão às traves de madeira da janela da frente. Estava fechada por dentro.

 

Kay Crandell disse em voz alta, apercebendo-se de que já tinha ouvido aquele nome. Era a mulher de que Brenda e as irmãs estavam a falar de manhã, aquela cujo marido andava a pregar posters. Era melhor dirigir-se rapidamente à polícia. Esquecendo-se completamente da torradeira que tinha deixado no alpendre, Clarence voltou para o carro e tentou convencer o idoso motor a ganhar velocidade, enquanto este arquejava e gemia sobre o caminho de terra tortuoso e irregular. Kay ouviu o carro arrancar. Que ele chegue a tempo, que ele chegue a tempo. A que distância estaria de um telefone? Quanto tempo levaria a polícia a chegar ali? Dez minutos? Um quarto de hora? Meia hora? Poderia ser tarde de mais. O quarto parafuso continuava bem seguro. Nunca o conseguiria desaparafusar. Mas talvez. Com três parafusos retirados, pôde servir-se da chave de Parafusos para afastar da parede um canto da placa de metal. Começou a fazer passar a corrente pela abertura até poder agarrá-la com ambas as mãos. Arqueou as costas, estendeu os braços e arrastou consigo a corrente, até ser recompensada por um som de trituração de algo a ser arrancado; depois caiu de costas, quando a placa de metal se separou da parede, trazendo ainda agarrado um pedaço de estuque.

 

Kay pôs-se de pé, apalpando o fino fio de sangue no local onde a sua cabeça tinha embatido num braço do sofá. A placa de metal era pesada. Meteu-a debaixo do braço, enrolou a corrente em volta do pulso e dirigiu-se para a porta.

 

Chegou então aos seus ouvidos o som bem conhecido da carrinha a entrar na clareira.

 

A excitação que crescia dentro de Donny tinha-se tornado febril. Tinha desistido de todos os trabalhos. Explicara a todos os seus clientes que se ia casar e fazer umas longas férias. Todos tinham ficado surpreendidos, e depois tinham-lhe dito que estavam muito satisfeitos por ele e que iam sentir a sua falta. Pediram-lhe que entrasse em contacto com eles logo que voltasse.

 

Ele nunca mais voltaria. Em toda a parte para onde ia, estava sempre a encontrar fotografias de Kay. Mike Crandell procurava-a por todos os lados. Donny apalpou a arma que trazia no bolso do casaco. Antes de perder Kay, matá-la-ia a ela e a Mike.

 

Mas não queria pensar em coisas dessas. Tudo iria correr bem. Tinha tratado de todos os detalhes. Dentro de minutos, Kay e ele casar-se-iam e fariam a refeição de casamento. Tinha comprado champanhe e trouxera algumas coisas da charcutaria, além de um bolo de coco que se parecia um pouco com um bolo de casamento. Depois ir-se-iam embora. À noite já estariam na Pensilvânia. Conhecia alguns parques de campismo. Só lhe custava não ter tido tempo para comprar uma camisa de dormir de casamento para Kay. Mas a que ela tinha era bastante bonita.

 

Chegou à bifurcação da estrada. Mais dez minutos. Esperava que Kay tivesse decorado os votos de casamento. Uma noiva de Junho. Gostaria de lhe ter comprado flores. Havia de a compensar.

 

O teu marido vai tomar bem conta de ti, Kay disse em voz alta. O sol estava tão brilhante que, apesar dos óculos escuros, tinha de franzir os olhos. Feliz a noiva para quem o sol brilha hoje. Pensou nos cabelos de Kay manchados pelo sol. Naquela noite, a cabeça dela repousaria no seu ombro. Os braços dela rodeá-lo-iam. Ela dir-lhe-ia quanto o amava.

 

Ouviu o velho carro que se aproximava, antes de o ver. Teve de encostar à berma para o deixar passar. Viu, de relance, uns fartos cabelos brancos e um homem pequeno e magro debruçado sobre o volante. Tinha colocado grandes letreiros que diziam PROIBIDA A PASSAGEM na última curva da estrada que levava à sua casa, e, de qualquer forma, ninguém se incomodaria a aproximar-se de uma casa com tábuas nas janelas. Mesmo assim, Donny sentiu-se fremir de ira. Não queria gente a bisbilhotar por ali.

 

Carregou imprudentemente no acelerador. A carrinha saltava sobre a estrada tortuosa. Cabelos brancos e fartos. Aquele carro. Já o tinha visto em qualquer sítio. Detendo bruscamente a carrinha, Donny recordou-se do telefonema da noite anterior. Clarence Gerber. Era ele que ia no carro.

 

Saltou da carrinha e começou a correr para casa, e então viu a torradeira no alpendre. Recordou-se da maneira empenhada como Gerber guiava o carro. Gerber ia à polícia.

 

Donny saltou de novo para a carrinha. Ainda conseguiria apanhar Gerber. Aquele monte de sucata que ele guiava não conseguiria dar mais de quarenta. Atirá-lo-ia para fora da estrada. E depois... Donny arrancou, cerrando os lábios numa linha fina e impiedosa. E depois voltaria e trataria de Kay, que agora sabia que o tinha atraiçoado.

 

Mike seguia ao lado de Jimmy Barrott, no banco traseiro do carro da polícia, escutando o gemido da sirene. Kay está a quinze milhas de distância, a doze milhas, a oito. ”Meu Deus, se Tu existes, e eu sei que existes, tudo o que quiseres de mim, juro que o farei. Por favor. Por favor”, pensou.

 

A paisagem tinha-se alterado bruscamente. De súbito, já não passavam por bonitas cidades suburbanas, com relvados bem tratados e roseiras em botão. A estrada encontrava-se ladeada por ravinas cobertas de sucata. O trânsito quase tinha desaparecido.

 

Jimmy Barrott estudava um mapa de estradas.

 

Aposto que não há aqui indicativos com nomes de ruas há vinte anos murmurou. Vamos chegar a uma bifurcação da estrada daqui a uma milha disse bruscamente, avisando o polícia que seguia ao volante. Vire para a direita.

 

Estavam quase na bifurcação quando o motorista carregou bruscamente no travão, para evitar atropelar um velho que cambaleava no meio da estrada, com os cabelos cobertos de sangue colados à cabeça. Ao fundo da ravina via-se um carro a arder. Jimmy abriu a porta, saiu e ajudou o velho a entrar no carro da polícia.

 

Clarence Gerber disse, arquejante:

 

Ele atirou-me para fora da estrada. Donny Rubel. Ele tem a Kay Crandell.

 

Mal acreditando no que ouvia, Kay escutou os pneus da carrinha guincharem ao regressarem à estrada. Donny devia ter visto o carro do velho e devia ter suspeitado de qualquer coisa. ”Não deixes que ele lhe faça mal”, suplicou a um Deus que lhe parecia silencioso e distante. Arrastou-se até à porta, puxou o ferrolho e abriu-a. Se aquele velho conseguisse chegar a um telefone, ela teria uma hipótese de salvação. Talvez se pudesse esconder no bosque, até chegar ajuda. Não valia a pena tentar fugir. Mal se podia mexer com o peso que arrastava. O instinto fê-la fechar a porta atrás de si. Se Donny revistasse a casa, ela teria mais uns minutos.

 

Onde deveria tentar esconder-se? O sol brilhava bem alto, no céu, alcançando, impiedosamente, todos os espaços abertos entre os ramos das árvores esparsas e raquíticas. Ele pensaria que ela fugiria pela estrada. Arrastou-se até ao bosque do outro lado da clareira, dirigindo-se a um aglomerado de bordos. Mal tinha chegado lá quando a carrinha voltou a aparecer na estrada e parou. Viu Donny, de arma em punho, avançar com passos decididos para a casa.

 

Confiem em mim. Eu sei para onde vou disse Clarence Gerber a Jimmy Barrott, com a sua voz irregular e trémula. Estive aqui há cinco minutos.

 

O mapa diz... Era evidente que Jimmy Barrott pensava que Gerber estava confundido.

 

Deixe lá o mapa disse Mike. Faça o que ele diz.

 

É um atalho disse-lhe Clarence. Tinha dificuldade em falar. Sentia-se tonto. Mal podia acreditar no que tinha acontecido. Num momento estava a guiar, imprimindo ao seu velho carro a máxima velocidade que conseguia, e no momento seguinte era interceptado e forçado a desviar-se para a direita. Mal tinha tido tempo de ver de relance a carrinha de Donny Rubel, quando as suas rodas começaram a sair da estrada. Se viajasse em qualquer outro carro teria morrido, mas tinha-se agarrado ao volante com todas as suas forças até o carro parar de dar cambalhotas. Tinha sentido o cheiro da gasolina e percebera que tinha de fugir depressa. A porta do seu lado estava presa ao chão, mas tinha conseguido abrir a porta do passageiro e depois subira a ravina.

 

Por aídisse ao motorista. Faça o que eu lhe digo, está bem? Agora vire à direita, passando pelo letreiro de PROIBIDA A PASSAGEM. A casa dele fica numa clareira, duzentos metros mais adiante.

 

Mike viu Barrott e os outros polícias puxarem das armas. ”Kay, está aí, por favor, está aí. Viva. Por favor.” O carro da polícia irrompeu na clareira e deteve-se atrás da carrinha-oficina de Donny Rubel.

 

Kay viu Donny abrir a porta e afastá-la com um pontapé. Quase sentia a fúria dele ao aperceber-se da que ela tinha fugido. A cabana ficava a menos de trinta metros do aglomerado de árvores onde ela se escondera. ”Fazei que ele comece a procurar pela estrada”, suplicou.

 

Momentos depois viu-o no limiar da porta, olhando em volta, desvairado, com a pistola em punho. Encolheu-se, encostando os braços ao corpo. Se ele olhasse para aquele lado, o vestido branco destacar-se-ia entre as folhas e os ramos. Qualquer movimento faria tilintar a corrente.

 

Ouviu o som do veículo que se aproximava e no mesmo instante Donny correu para dentro de casa. Mas não fechou a porta. Ficou parado, à espera. O carro parou atrás da carrinha. Kay viu a lâmpada redonda e vermelha a piscar. Um carro da polícia. ”Tenham cuidado”, pensou, ”tenham cuidado. Ele mata seja quem for.” Viu os dois polícias fardados saírem do carro. Tinham estacionado junto à cabana. As janelas estavam com tábuas. Não havia maneira de poderem ver Donny, que começava a sair para o alpendre, com uma ousada caricatura de sorriso nos lábios, A porta traseira do carro da polícia abriu-se. Saíram dois homens. Mike. Mike estava ali. Os polícias empunhavam as suas pistolas. Moviam-se cautelosamente, encostados à casa. Mike estava com eles. Donny avançava nas pontas dos pés pelo alpendre. Dispararia quando eles voltassem a esquina. Não se imPortava de morrer. Ia matar Mike.

 

A clareira estava mergulhada num silêncio total. Até mesmo os guinchos dos gaios azuis e o zumbido das moscas tinham cessado. Kay teve uma fugaz sensação de fim de mundo. Mike tinha avançado. Estava a menos de um metro da esquina do alpendre onde Donny esperava.

 

Kay saiu de detrás da árvore.

 

Estou aqui, Donny gritou.

 

Viu-o correr na direcção dela, tentou comprimir-se contra a árvore, sentiu a bala roçar-lhe pela testa, ouviu o som de outras detonações, viu Donny cair no chão. Depois Mike começou a correr para ela. Soluçando de alegria, Kay saiu a cambalear da clareira, caindo nos braços que se abriam para a acolher.

 

Jimmy Barrott não era uma pessoa sentimental, mas os seus olhos encontravam-se estranhamente húmidos ao olhar para Kay e Mike, cuja silhueta se recortava contra as árvores, abraçados como se nunca mais tencionassem separar-se.

 

Um dos polícias inclinava-se sobre Donny Rubel.

 

Este foi-se disse a Jimmy.

 

O outro polícia tinha colocado uma ligadura em volta da cabeça de Clarence Gerber.

 

O senhor é dos duros disse a Clarence. São sobretudo lacerações, tanto quanto me parece. Vamos levá-lo ao hospital.

 

Clarence estava a tentar observar todos os detalhes, para contar a Brenda e às irmãs dela. O modo como Kay Crandell tinha tentado atrair o fogo de Donny Rubel, como Donny tinha corrido para ela, a disparar. Como aquele jovem casal se tinha abraçado e como agora choravam nos braços um do outro. Olhou em volta, para, mais tarde, poder descrever a cabana. As mulheres haviam de querer conhecer todos os detalhes. O seu olhar de teve-se em algo que se encontrava no alpendre, e Clarence apressou-se a ir buscá-lo. Ainda que o pudesse considerar um herói, era mesmo de Brenda recordar-lhe que se tinha esquecido de levar a torradeira para casa.

 

               DIA DE SORTE

 

Era uma fria quarta-feira de Novembro. Nora caminhava rapidamente, satisfeita por o metropolitano ficar apenas a dois quarteirões de distância. Jack e ela tinham tido sorte em arranjar um apartamento na Claridge House, quando abrira, seis anos antes. Considerando a maneira como os preços tinham subido em flecha para os novos inquilinos, nunca conseguiriam alugá-lo agora. E a sua localização entre a Oitenta e Sete e a Terceira proporcionava-lhes um fácil acesso ao metropolitano e aos autocarros. E a táxis também. Mas os táxis não estavam incluídos no orçamento deles.

 

Gostaria de ter vestido qualquer coisa mais quente que o casaco que lhe tinha cabido na festa do último filme em que tinha trabalhado. Mas, com o nome do filme a adornar o bolso superior, o casaco constituía uma prova visível de que ela possuía uma sólida experiência de representação.

 

Parou na esquina. A luz estava verde, mas o trânsito estava a contornar a esquina e não valia a pena correr o risco de atravessar. Na semana seguinte era tempo de Acção de Graças. Entre o Dia de Acção de Graças e o Natal, Manhattan seria um longo parque de estacionamento. Tentou não pensar que Jack já não receberia o bónus de Natal da Merrill Lynch. Durante o pequeno-almoço, ele tinha-lhe confessado que fora incluído nos despedimentos da Merrill Lynch, mas que ia iniciar um novo trabalho naquele dia. Mais um emprego.

 

Atravessou rapidamente a rua na altura em que o sinal mudava para vermelho, escapando por pouco a um táxi que atravessava o cruzamento a grande velocidade. O motorista gritou-lhe:

 

Se te esborracharem perdes a graça toda, querida. Nora voltou-se rapidamente. O homem fazia-lhe um gesto obsceno com o dedo médio. Numa reacção reflexa, devolveu-lhe o gesto, mas depois envergonhou-se de o ter feito. Correu ao longo do quarteirão, sem olhar para as montras, rodeando a senhora que dormia num saco de campismo junto a uma loja.

 

Estava prestes a mergulhar nas escadas do metro quando ouviu alguém chamá-la pelo seu nome.

 

Ei Nora, já não falas às pessoas? Por detrás da banca de jornais, Bill Regan, com o rosto curtido enrugado num sorriso que revelava uns dentes nitidamente postiços, estendia-lhe um exemplar dobrado do Times. Anda a sonhar acordada acusou ele.

 

Acho que sim. Ela e Bill tinham-se conhecido por causa do seu encontro diário matinal. Antigo estafeta, já reformado, Bill preenchia os seus dias ajudando o vendedor cego nas horas de ponta da manhã, e depois trabalhando como mensageiro.

 

Mantenho-me ocupado explicara ele a Nora. desde que a May morreu, sinto-me muito solitário em casa. Isto dá-me que fazer. Conheço muita gente simpática e dá-me oportunidade de dar à língua. May sempre disse que eu gostava muito de dar à língua.

 

Ela tinha cometido o erro de, havia quatro meses, no aniversário da morte de May, convidar impulsivamente Bill para ir tomar uma bebida. Agora ele tinha adquirido o hábito de aparecer em sua casa todas as semanas, sempre com uma desculpa qualquer. Jack estava farto daquilo. Depois de entrar no apartamento, Bill ficava grudado durante duas horas pelo menos, até que ela arranjava maneira de o pôr fora ou acabava por o convidar para jantar.

 

Tenho um pressentimento, Nora disse Bill. O pressentimento de que este é o meu dia de sorte. Esta tarde sai um prémio dos grandes.

 

A lotaria estatual tinha atingido treze milhões de dólares. Ninguém ganhava havia seis semanas.

 

Esqueci-me de comprar um bilhete disse Nora. Mas não me sinto em maré de sorte. Procurou trocos no bolso. Tenho de me apressar. Vou a uma audição.

 

Parta uma perna. Bill estava obviamente orgulhoso do seu conhecimento da gíria do espectáculo. Farto-me de lhe dizer. É tal e qual a Rita Hayworth quando fez Gilda. Ainda há-de ser uma estrela.

 

Por momentos os seus olhares cruzaram-se. Nora sentiu-se curiosamente gelada. A habitual expressão triste tinha desaparecido dos olhos azul-claros de Bill. Caíam-lhe sobre a testa madeixas de cabelos branco-amarelados. O seu sorriso parecia postiço.

 

De uma maneira ou de outra, talvez tenhamos ambos sorte disse ela. Até à vista, Bill.

 

No teatro já havia noventa candidatos à sua frente. Deram-lhe um número e tentou encontrar um lugar para se sentar. Aproximou-se dela um rosto conhecido. No ano anterior, ela e Sam tinham conseguido pequenos papéis num filme de Bodganovich.

 

Quantos papéis há? perguntou ela.

 

Dois. Um para mim, outro para ti.

 

. Que engraçado.

 

Era uma hora quando teve oportunidade de ler o papel. Era-lhe impossível saber se tinha ido bem. O produtor e o autor mantinham rostos impassíveis.

 

Foi a uma agência buscar um impresso e depois fez uma audição para um filme publicitário de J. C. Penney. Não era nada mau se conseguisse este; representava pelo menos três dias de trabalho.

 

Havia ainda outro local onde pretendia deixar uma fotografia, mas às quatro e meia decidiu desistir e ir para casa. A incessante sensação de mal-estar que a tinha acompanhado durante todo o dia tinha-se transformado numa nuvem negra de apreensão. Atravessou algumas ruas a pé, até ao metropolitano, chegou à plataforma no preciso momento em que o comboio partia, e instalou-se, com fatigada resignação, num banco coberto de inscrições.

 

Isso deulhe tempo para fazer aquilo que tinha querido fazer durante todo o dia. Pensar. Em Jack. Nela e Jack. No facto de o apartamento deles ir ser transformado em propriedade horizontal e eles não terem dinheiro para o comprar. E Jack a mudar outra vez de emprego. Mesmo em Manhattan havia muitas casas de investimentos. Ele nem sequer lhe tinha dito como se chamava a nova.

 

Era preciso enfrentar a verdade. Jack detestava ser vendedor de títulos. Só tinha começado a trabalhar no ramo para ganhar qualquer coisa enquanto ela tentava ser actriz e ele escrevia, nos fins-de-semana. Tinham chegado a Nova Iorque com os diplomas universitários ainda húmidos, alianças de casamento ainda novas, seguros de que iriam conquistar Manhattan. E agora, seis anos mais tarde, a frustração de Jack começava a revelar-se de muitas maneiras.

 

Entrou na estação um comboio apinhado. Nora entrou nele, abrindo caminho com dificuldade por entre as pessoas e agarrando-se a um varão. Quando conseguiu equilibrar-se na carruagem em movimento, apercebeu-se de que devia ter começado a chover. As pessoas que a rodeavam tinham casacos molhados e a carruagem enchia-se do cheiro pesado e bafiento de sapatos húmidos.

 

O apartamento parecia um oásis, depois do dia que passara. Avista das janelas incluía o rio East, a Ponte de Triborough, e a Mansão Gracie. Nora nem sequer podia imaginar que nenhum deles tivesse nascido em Manhattan. Eram simplesmente nova-iorquinos. Se ao menos ela conseguisse arranjar um papel numa telenovela, ao menos poderia aguentar as finanças por mais algum tempo e dar a Jack a oportunidade de escrever. Quase o tinha conseguido, algumas vezes. Havia de conseguir.

 

Não devia tê-lo censurado, naquela manhã. Ele tinha-se mostrado tão embaraçado, ao confessar que tinha perdido o emprego na Merrill Lynch. Ela tinha-se tornado, inconscientemente, tão crítica, que ele já não podia conversar com ela, ou seria ele que estava a perder a sua autoconfiança? ”Amo-te, Jack”, pensou. Correu à cozinha e retirou do frigorífico um pedaço de queijo e um cacho de uvas. Quando ele chegasse a casa, estariam à sua espera, com uma garrafa de vinho. Enquanto preparava a bandeja, ia buscar os copos de vinho, ajeitava as almofadas do sofá e apagava algumas luzes, de modo a que o ambiente ficasse na penumbra, realçando a vista dos arranha-céus, Nora foi-se sentindo menos preocupada. Só quando entrou no quarto para se despir e vestir uma túnica reparou que a luz do gravador do telefone estava a piscar.

 

Havia uma mensagem. Era de Bill Regan. A sua voz soava excitada, ofegante, e dizia:

 

Nora, não saia. Tenho de ir festejar consigo. Estou aí às sete. Nora, eu bem lhe disse. Eu sabia. É o meu dia de sorte.

 

Oh, meu Deus. Precisamente aquilo de que Jack precisava. Estar com Bill Regan naquela noite. Dia de sorte. Devia ter sido a lotaria. Provavelmente tinha voltado a ganhar umas centenas de dólares. Desta vez ia mesmo ficar toda a noite e insistir em levá-los a jantar a uma cafetaria.

 

Quando^ chegava tarde, Jack telefonava sempre. Naquela noite não o fez. Às seis horas, Nora comeu uma fatia de queijo, às seis e meia serviu-se de um copo de vinho. Se ao menos Jack tivesse chegado cedo naquele dia, teriam tido um pouco de tempo para eles, antes da chegada de Bill.

 

Às sete e meia, nenhum deles tinha chegado. Bill não costumava chegar atrasado. Por certo teria telefonado, se tivesse desistido de lá ir. A sua exasperação misturava-se com alguma preocupação. Quer ele viesse, quer não, a noite estava estragada. E onde estaria Jack?

 

Às oito horas, Nora já não sabia o que fazer. Não sabia o nome do novo emprego de Jack. O serviço de mensagens do Edifício Fisk na Rua Cinquenta e Sete Oeste onde Bill tinha trabalhado estava fechado. Teria havido um acidente? Devia ter visto as notícias locais na televisão. E Bill atravessava sempre o Central Park quando ia visitá-los. Dizia que o exercício lhe fazia bem. Fazia-o mesmo quando chovia. Trinta quarteirões através do parque. Numa noite como aquela não haveria praticantes de jogging. Ter-lhe-ia acontecido alguma coisa?

 

Jack chegou às oito e meia. O seu rosto magro e vivo estava mortalmente pálido, as pupilas dilatadas. Quando ela correu para ele, Jack abraçou-a e começou a embalá-la lentamente.

 

Nora, Nora.

 

Jack, que aconteceu? Tenho estado tão preocupada. Tu e o Bil, ambos tão atrasados...

 

Ele afastou-a.

 

Não me digas que estás à espera de Bill Regan.

 

Estou, ele telefonou. Devia estar cá às sete. Jack, que é que tu tens? Desculpa o que sucedeu esta manhã. Não queria aborrecer-te. Jack, não me importo que mudes de emprego. Só estou preocupada por tua causa... Talvez eu possa desistir do teatro durante algum tempo e arranjar um emprego certo. Dar-te-ia a tua oportunidade. Jack, adoro-te.

 

Ouviu um som estrangulado e sentiu os ombros dele começarem a subir e a descer. Jack estava a chorar. Nora encostou a cabeça dele ao seu rosto.

 

Desculpa, não sabia que te tinha custado tanto.

 

Ele não respondeu, limitou-se a abraçá-la. Nora e Jack. Conheciam-se havia dez anos, desde o primeiro dia na Brown. Ela tinha-se sentido atraída pela tranquila intensidade que sentia nele, pelo seu rosto magro e inteligente, o sorriso rápido que apagava a expressão geralmente séria. O rapaz encontra a sua rapariga. Nenhum deles se tinha interessado por ninguém mais, depois desse primeiro encontro.

 

Ela ajudouo a despir a sua Burberry de imitação.

 

Jack, estás encharcado!

 

Acho que sim. Oh, meu Deus, querida, eu quero falar contigo, mas vou esperar. Dizes que o Bill vem aí. Começou a rir, e depois os seus olhos encheram-se novamente de lágrimas.

 

Como uma criança obediente, seguiu as instruções dela para tomar um duche quente. Tinha-se passado qualquer coisa, mas não podiam falar antes de Bill chegar e se ir embora.

 

Que teria acontecido a Bill Regan? Vivia em Queens. Tinha-lhes mostrado fotografias de uma vivenda modesta. Talvez o número do telefone dele viesse na lista. Parecia-lhe impossível que se tivesse esquecido de lá ir, mas ele tinha 75 anos de idade.

 

Havia uma dúzia de William Regans na lista de Queens. Desesperadamente, Nora espremeu o cérebro, tentando recordar-se do endereço dele. Desligou e foi buscar a sua lista de cartões de Natal. No ano anterior tinha pedido a Bill que lhe desse a sua morada, para poder enviar-lhe um cartão. Armada das informações devidas, voltou a ligar para as informações e obteve o número. Mas ninguém respondeu de casa de Bill.

 

Do quarto veio um som metálico agudo. Que diabo estaria Jack a fazer? A ideia ocorreu-lhe e desapareceu, enquanto marcava de novo o número de Bill. Ele não estava mesmo em casa.

 

Jack saiu do quarto de pijama e roupão. Parecia mais calmo, agora, a intensidade que o envolvia parecia produzir electricidade estática. Bebeu um copo de vinho e atacou vorazmente o prato de queijo.

 

Deves estar cheio de fome. Tenho spaghetti que sobrou na noite passada. Arrependida, Nora dirigiu-se à cozinha.

 

Jack seguiu-a.

 

Não estou aleijado. Começou a fazer uma salada, enquanto ela deitava um pouco de água na massa. Momentos depois, ouviu uma exclamação abafada. Voltou-se. Jack tinha feito um profundo corte num dedo, de onde escorria sangue. Ambas as mãos dele tremiam. Tentou tranquilizá-la. Que estupidez a minha. A faca escorregou-me. Nora, isto não tem importância. Arranja-me um penso ou coisa parecida.

 

Não conseguiu convencê-lo de que o golpe era profundo; talvez precisasse de pontos.

 

Estou a dizer-te que está tudo bem repetiu ele.

 

Jack, há qualquer coisa errada. Por favor, diz-me. Se perdeste a porcaria do emprego, esquece isso. Havemos de nos arranjar.

 

Ele começou a rir, um riso sem alegria que parecia nascer no fundo do peito, um riso que parecia troçar dela e excluí-la.

 

Oh, querida, desculpa conseguiu finalmente dizer. Meu Deus, que noite louca. Vá lá, arranja-me uns pensos rápidos e vamos comer. Depois falamos. Agora estamos ambos muito nervosos.

 

Vou pôr três lugares, para o caso de o Bill aparecer.

 

Por que não pões quatro? Talvez ele tenha engatado uma loura.

 

Jack!

 

Oh, raios, vamos lá comer qualquer coisa e acabar com isto. Comeram em silêncio. O lugar vago à direita de Nora recordava-lhe silenciosamente o facto indiscutível de que Bill deveria ter chegado havia muito tempo. Sob a luz bruxuleante das velas, o penso no dedo de Jack começou a tomar um tom vermelho-vivo que em breve se transformou numa mancha acastanhada e escura.

 

O molho Bolognese era uma especialidade de Nora, mas não conseguia engoli-lo. A cor era muito semelhante à do sangue no dedo de Jack. A apreensão estava a provocar-lhe tensão e os músculos dos ombros começavam a contrair-se. Finalmente afastou a cadeira da mesa.

 

Preciso absolutamente de ligar para a polícia e saber se alguém com a descrição do Bill sofreu um acidente.

 

Nora, Bill faz entregas por toda a Manhattan. Pelo amor de Deus, por que esquadra vais começar?

 

Por aquela que serve o Central Park. Se ele sofreu qualquer acidente ou adoeceu enquanto trabalhava, alguém o levaria para um hospital. Mas sabes a mania que ele tem de atravessar o Central Park a pé.

 

Telefonou para a esquadra local.

 

O Parque tem a sua própria esquadra, a Vigésima Segunda. Vou dar-lhe o número.

 

O sargento da recepção com quem falou foi extremamente tranquilizador.

 

Não, minha senhora, não temos notícia de quaisquer problemas no parque. Até mesmo os assaltantes estão a tentar não se molhar esta noite. Riu-se da sua própria piada. É claro que terei muito gosto em tomar nota do nome e descrição dele e do seu nome. Mas não se preocupe. Provavelmente alguém o reteve.

 

Se ele tivesse ido para o hospital por se sentir mal, os senhores saberiam?

 

Está a brincar comigo. Os únicos casos de emergência que controlamos são os que aparecem com ferimentos de balas ou facas, ou aqueles que nós próprios apanhamos. Não podemos mandar lá um Polícia de cada vez que alguém tem uma dor de barriga. Certo?

 

Então acha que eu devia ir aos bancos dos hospitais? Não fazia mal nenhum.

 

Nora relatou rapidamente a Jack o que o polícia tinha dito e constatou que Jack parecia muito mais calmo.

 

Eu procuro os números, tu ligas disse ele. Começaram pelos principais hospitais de Manhattan. Um homem que parecia ajustar-se à descrição de Bill tinha sido levado para o Roosevelt, sem documentos de identificação. Tinha sido atropelado por um carro por volta das seis e meia na rua Cinquenta e Sete perto da Oitava Avenida. Se fosse Bill Regan, Nora poderia ir lá identificá-lo? Estava em coma e eles precisavam de contactar com os parentes para terem permissão para operar. Ela estava certa de que se tratava de Bill.

 

Ele tem uma sobrinha algures na Marilândiadisse. Se for o Bill, posso ir a casa dele e descobrir o nome dela.

 

Não queria que Jack fosse, mas ele insistiu. Vestiram-se num silêncio sombrio, enquanto o penso ainda húmido de sangue deixava marcas na roupa interior dele, na camisola e nos jeans. Enquanto vestia o blusão, ele apontou para a cama.

 

Nem posso dizer quanto estava ansioso por me meter na cama contigo esta noite.

 

Pretérito? A resposta tinha sido automática. O rosto de Bill pairava na sua mente. Coitado do velhote, com a solidão estampada no rosto e uma necessidade tão grande de falar, falar, falar, tentando agarrar-se a alguém, conseguir que alguém o ouvisse. E, Nora, eu disse cá para mim, não podes ficar em Queens muito mais tempo. A casa não presta para nada sem a May. O telhado tem de ser arranjado, chove lá dentro. Com um pouco de sorte, hei-de ir para a Florida, juntar-me a todos os outros idosos que lá vivem, talvez até vá para um lar no género do do Cocoon onde possa arranjar uma data de amigos novos...

 

Tomaram um táxi para o Hospital Roosevelt. A vítima do acidente encontrava-se numa área da sala de emergências rodeado por cortinados, com tubos enfiados no nariz, uma perna metida em talas, uma agulha de IV introduzida no braço. Tinha uma respiração entrecortada e esporádica. Nora agarrou a mão de Jack, ao olhar para o paciente. Os olhos do homem estavam fechados, uma ligadura cobria-lhe metade do rosto. Mas as finas madeixas de cabelo grisalho eram demasiado esparsas. Bill tinha uma cabeleira farta. Ela deveria ter-se lembrado de lhes dizer isso.

 

Não é Mr. Regan disse Jack ao médico.

 

Quando se afastavam, Nora pediu a Jack que deixasse tratarem-lhe do dedo.

 

. Vamo-nos embora daqui respondeu ele.

 

Apressaram-se a sair, ambos ansiosos por se afastarem do cheiro dos remédios e desinfectantes, da visão de uma maca que estava a entrar.

 

Morto dizia o enfermeiro. O idiota do miúdo meteu-se na frente de um autocarro. Falava num tom furioso e frustrado, como se o peso das desgraças humanas auto-infligidas o esmagasse.

 

O telefone tocava, quando chegaram a casa. Nora correu a atendê-lo.

 

Era o sargento que tinha parecido tão divertido da primeira vez que falara com ela.

 

Mrs. Barton, receio bem que o seu palpite estivesse certo. Encontrámos um corpo no Central Park perto da Rua Setenta e Quatro. A carteira identifica-o como William Regan. Gostaria de pedir-lhe que fizesse uma identificação positiva.

 

O cabelo dele. É farto... de umbranco-amarelado, mas farto, farto de mais para um homem da idade dele? Bem vê, o outro homem foi um engano. Talvez este seja engano também.

 

Mas sabia que não era engano. Tinha sabido naquela manhã que alguma coisa iria suceder a Bill. No momento em que lhe tinha dito adeus, tinha sabido. Sentiu que Jack lhe tirava o telefone da mão. Meio entorpecida, ouviu dizer que sim, que iria à morgue fazer a identificação.

 

Preferia não sujeitar a minha mulher... Está bem, eu compreendo. Pousou o auscultador e voltou-se para ela.

 

Como num espelho estilhaçado, ela viu a sombra acinzentada envolver-lhe os lábios, e um pequeno músculo que palpitava na face dele. Jack ergueu a mão para o fazer parar e ela viu-o vacilar de dor. A ligadura tornou-se vermelha. Depois os braços de Jack envolveram-na.

 

Querida, tenho a certeza de que é o Bill. Eles querem que vamos até lá os dois. Bill tem o crânio fracturado... Não tem dinheiro na carteira. Pensam que fosse um assaltante.

 

Os braços dele pareciam fitas de aço a envolvê-la. Tentou afastá-lo.

 

Estás a magoar-me... Ele pareceu não a ouvir.

 

Nora, vamos ultrapassar isto. Tenta pensar que Bill teve uma vida longa. Amanhã... oh, querida, amanhã, espera por amanhã e verás. O mundo inteiro, tudo te parecerá diferente... será diferente

 

Mesmo através das ondas de choque que a percorriam, dando-lhe uma sensação de descrença e dor, Nora apercebia-se de que a voz de Jack soava diferente, aguda, quase histérica.

 

Jack, larga-me! A voz dela soou num grito. Ele largou-a e ficou a olhar para ela.

 

Desculpa-me, Nora. Estava a magoar-te? Não dei por isso... Oh, meu Deus, vamos lá acabar com isto.

 

Pela terceira vez em menos de duas horas chamaram um táxi. Desta vez tiveram de esperar durante longos e gélidos minutos. Doze mil táxis em Manhattan e todos ocupados.

 

A chuva estava a transformar-se em saraiva. Os flocos duros escapavam à protecção do chapéu de chuva e batiam nas faces de Nora. Nem mesmo a sua gabardina, forrada com a pele de carneiro do casaco que tinha usado na faculdade, conseguia impedi-la de tremer de frio. A gabardina de Jack estava demasiado ensopada para valer a pena vesti-la, e o sobretudo começava a ficar encharcado, enquanto ele corria futilmente de um lado para o outro. Finalmente parou diante deles um táxi com o letreiro de Refeição. A janela abriu-se um pouco.

 

Para onde vão?

 

Para a... quero dizer, para a esquina da Trinta e Um com a rua Um.

 

Está bem. podem entrar. O motorista era loquaz.

 

Guiar um táxi num dia destes é um horror. Vou para casa mais cedo. Está uma boa noite para a gente se meter na cama.

 

Naquela altura já Bill estaria em sua casa, na tal vivenda modesta que ele e May tinham comprado em 1931. Deveria ter morrido na sua cama, pensou Nora. Não merecia ficar caído ao frio e à chuva. Quanto tempo lá teria estado? Teria morrido instantaneamente? Pelo menos isso, pediu ela.

 

Era evidente que o homem que veio ao encontro deles quando entraram no edifício tinha estado à sua espera. Tinha trinta e alguns anos, cabelos cor de areia e uns olhos astutos e apertados. Apresentou-se como o detective Peter Carlson e conduziu-os a um pequeno gabinete.

 

Tenho a certeza de que vão confirmar a identificação, quando virem o corpo disse. Se estão preparados, gostaria que o identificassem imediatamente. Se acham que vê-lo os vai perturbar, talvez seja melhor conversarmos primeiro um pouco.

 

Quero ter a certeza. Ela sabia que ele estava a estudá-los. Que estaria a ver? Deviam parecer dois pintos encharcados. Estaria a perguntar a si mesmo por que motivo ela tinha telefonado tão insistentemente para comunicar uma possível vítima, antes mesmo de ela ser encontrada? Mas os relatórios das pessoas desaparecidas diziam sempre ”Pode ter sido vítima de crime”, não diziam?

 

O pé de Jack tamborilava no chão um staccato constante, irritante, Jack que parecia sempre tão calmo, que tinha de ser forçado para confessar dor ou preocupação. Tinha começado o dia a discutir com ele. Teria quebrado a camada protectora de que ele necessitava?

 

Como que orientados por um ponto oculto, ergueram-se os três ao mesmo tempo.

 

Não vai levar muito tempo.

 

Ela esperava que os levassem para um local onde houvesse filas de mesas. Era assim que se via nos filmes. Mas o detective Carlson levou-os por um corredor até uma janela coberta com um cortinado. Incongruentemente, Nora recordou-se das janelas vidradas da sala dos bebés nos hospitais, e da primeira vez que vira o seu irmão mais pequeno. Quando o cortinado foi corrido, não foi um bebé a berrar a plenos pulmões que viu, mas o rosto imóvel e pálido de Bill Regan. O cadáver encontrava-se coberto com um lençol até ao pescoço, tinha a boca fechada com um adesivo, cobria-lhe a testa uma enorme equimose, acamando o cabelo que, na morte, parecia fino e menos forte.

 

Não há dúvida disse Jack. Segurando-a pelos ombros, tentou afastá-la da janela. Por momentos, ela teve a sensação de estar paralisada, a olhar para a boca de Bill. Era como se o adesivo tivesse sido retirado, sendo substituído pelo sorriso excessivamente brilhante, e, nos seus ouvidos, escutasse de novo a voz áspera e cheia de esperanças:

 

Tenho um pressentimento, Nora, um pressentimento de que este é o meu dia de sorte.

 

De novo no gabinete, no andar de cima, falou ao detective Carlson dessa conversa, do facto de Bill realmente ter sorte na lotaria. Tinha ganho por diversas vezes algumas centenas de dólares e estava sempre certo de que conseguiria a taluda.

 

Quando ele disse ”dia de sorte”, tenho a certeza de que se referia à lotaria. Tenho a certeza absoluta. Penso que fosse mesmo possível que ele tivesse sido uma das pessoas que obteve um prémio grande.

 

Só houve um único premiado disse-lhe o detective Carlson Tanto quanto sei, ninguém foi ainda receber o prémio. Ela reparou que ele fazia rabiscos no bloco, enquanto ia tomando notas.

 

Tem a certeza de que Bill Regan tinha um bilhete?

 

Ele disse-me que tinha.

 

Bem, quando o encontrámos, não tinha. Mas quem lhe roubou a carteira podia bem ter levado o bilhete com o dinheiro, sem saber o que levava. Mas supondo que fosse ele o grande premiado. Acha que ele andaria por aí a falar do assunto? Andar com um bilhete de lotaria é o mesmo que andar com dinheiro.

 

Nora nem se apercebeu de que um meio sorriso lhe tinha aflorado o rosto. Afastou o cabelo da testa, sentindo-o encaracolado por causa da chuva. ”Parece mesmo a Rita Hayworth a fazer de Gilda”, dizia-lhe Bill frequentemente. Gostaria de lhe ter contado que tinha pedido a Gilda na videoteca e tinha constatado que havia realmente uma grande semelhança. Bill teria gostado de ouvir isso. Mas era difícil meter alguma coisa na conversa dele. Era isso que o detective Carlson tinha perguntado.

 

Bill falava pelos cotovelos disse ela. Ele teria falado, sim.

 

Mas disse-me que ele não foi muito específico ao telefone. Só disse que era o seu dia de sorte. Isso poderia referir-se a um aumento, a uma boa gorgeta ao entregar qualquer coisa, encontrar dinheiro na rua. Qualquer coisa, não lhe parece?

 

Eu acho que ele estava a falar da lotaria insistiu Nora.

 

Vamos investigar, mas houve uma série de assaltos naquela área nas últimas três semanas. Havemos de apanhar quem fez aquilo, isso garanto-lhe eu... e se mataram Mr. Regan, vão pagar por isso.

 

Mataram Mr. Regan. Ela nunca tinha pensado em Bill como ”Mr. Regan”.

 

Olhou para Jack. Ele estava a olhar para o chão e tinha recomeçado a tamborilar com o pé. E depois começou a suceder algo de estranho. A sala estava a fechar-se sobre ela. Estava a cair e não conseguia respirar. Tentou gritar ”Jack”, mas os seus lábios não se moviam. Sentiu-se deslizar da cadeira.

 

Quando abriu os olhos, estava estendida num sofá duro, coberto de plástico. Jack colocava-lhe uma compressa fria na testa. Do que lhe parecia uma grande distância, ouviu o detective Carlson perguntar a Jack se ele queria uma ambulância.

 

Já estou bem. Conseguia falar, mas a sua voz era tão fraca que Jack teve de se curvar para captar as suas palavras. Os lábios dela roçaram pelo rosto dele. Quero ir para casa murmurou. Desta vez não tiveram de esperar por um táxi. Carlson, agora menos formal, mandou vir um carro da polícia. Nora tentou desculpar-se: Penso que nunca desmaiei na minha vida... Foi aquela sensação estranha que tive todo o dia, e constatar que ela se tinha tornado verdade...

 

Ajudou-nos muito. Quem dera que todas as pessoas se preocupassem assim tanto com esta pobre gente idosa.

 

Dirigiram-se até à porta de entrada, novamente um trio com movimentos curiosamente sincronizados. Ambos os homens a apoiavam, uma mão firme por baixo de cada braço. Lá fora, a chuva tornara-se menos intensa, mas a temperatura tinha descido abruptamente. Soube-lhe bem o ar frio. Teria sido apenas imaginação, o cheiro a formol dentro daquele edifício?

 

Que é que vai suceder agora? perguntou Jack a Carlson, quando chegou o carro da polícia.

 

Tudo depende da autópsia. Vamos redobrar a vigilância no parque. É uma loucura, alguém andar a passear por lá com uma noite destas. Só lá tínhamos carros, ninguém à paisana. Depois contactamos convosco.

 

Desta vez foi Jack quem insistiu com ela para tomar um duche quente, Jack que estava à sua espera com uma limonada quente e um comprimido para dormir, quando ela saiu da casa de banho.

 

Um comprimido para dormir. Nora olhou para a cápsula vermelha e amarela. Quando é que arranjaste comprimidos para dormir?

 

Oh, quando fui fazer o checkup no mês passado disse que andava com insónias.

 

Que é que o médico pensa disso?

 

Uma ligeira depressão. Nada de importância. Mas não quis preocupar-te. Anda, mete-te na cama.

 

Uma ligeira depressão. E não lhe tinha dito nada. Nora pensou em todas aquelas noites em que se tinha fartado de falar dos bons papéis que tinha conseguido ”São só dois dias de trabalho, mas escuta, o filme é dirigido por Mike Nicols”, as críticas do seu primeiro papel decente fora da Brodway, na Primavera anterior. Jack tinha partilhado a sua alegria, tinha-lhe perguntado se continuaria ao lado dele depois de vir a ser uma estrela, e tinha voltado aos seus empregos sucessivos como vendedor de títulos. O romance que ele tinha finalmente conseguido acabar não tinha obtido êxito junto das diversas editoras: ”Não é exactamente o nosso género, mas volte sempre.” O desencorajamento nos olhos dele, quando lhe tinha dito: ”Ao fim de um dia inteiro a tentar vender, quando sei que não sou um vendedor a tentar ficar excitado quando a taxa sobe e um título qualquer alcança uma taxa tripla, quando isso não me interessa absolutamente nada, não sei, Nora, é como se não conseguisse espremer os miolos. Sento-me à máquina e aquilo que eu queria pôr no papel não sai como eu gostaria. Mas eu sei que está lá. Só que não consigo expressar-me, sabendo que na segunda-feira volto ao Jardim Zoológico.

Ela nem sequer o tinha escutado com atenção. Tinha-lhe dito que se sentia orgulhosa por o primeiro romance dele não ter sido propriamente rejeitado, que algum dia ele seria famoso e falaria às pessoas dessas primeiras rejeições; tudo fazia parte do jogo.

 

O quarto servia de escritório a Jack. A máquina de escrever encontrava-se em cima da pesada secretária de carvalho que tinham comprado em segunda mão. Havia frascos de líquido para emendas, uma chávena sem asa que servia de recipiente para os lápis e os marcadores, a pilha de papel que era o novo livro dele, aquela pilha que ela se apercebeu de que tinha deixado de crescer.

 

Anda, bebe essa limonada e vamos ambos tomar comprimidos para dormir.

 

Ela obedeceu, receando falar, perguntando a si mesma se o seu amor por ele lhe transbordava dos olhos. Não era de admirar que Bill sentisse tanta necessidade de companhia. Se acontecesse alguma coisa a Jack, ela não quereria voltar a acordar.

 

Jack enfiou-se do outro lado da cama, tirou-lhe a chávena da mão e apagou a luz. Os braços dele envolveram-na.

 

Como é aquela canção dos ”dois sonolentos”? Se alguém me dissesse que este dia ia acabar assim...

 

Nora dormiu profundamente e acordou na manhã seguinte com a sensação de ter experimentado inúmeros sonhos. Custava-lhe abrir os olhos, parecia-lhe que tinha as pálpebras coladas. Quando finalmente conseguiu erguer-se sobre um cotovelo, constatou que Jack já tinha saído. Os ponteiros do relógio encontravam-se ambos sobre o nove. Um quarto para as nove. Nunca tinha dormido até tão tarde. Tentando livrar-se da sua letargia, vestiu o roupão e foi até à cozinha.

 

O café estava a fazer, Jack tinha espremido laranjas e feito sumo, mais um dos inúmeros pequenos gestos dele que ela aceitava sem notar. Ele sabia quanto ela gostava de sumo verdadeiro, embora ele próprio se contentasse perfeitamente com os sumos de pacote.

 

Já estava vestido para ir trabalhar. Parecia não ter perdido a tensão do dia anterior. Os círculos escuros em volta dos seus olhos sugeriam que o soporífero não tinha tido grande efeito nele. Quando a beijou, os seus lábios estavam secos e febris.

 

.Agora já sei como ter paz e sossego de manhã. Basta dar-te uma dose de cavalo.

 

A que horas te levantaste?

 

Por volta das cinco. Talvez quatro. Não sei bem.

 

Jack, não vás trabalhar. Senta-te e vamos conversar. Conversar a sério. Tentou disfarçar um bocejo. Oh, meu Deus, eu não consigo acordar. Como é que há pessoas que tomam destas porcarias todas as noites?

 

Escuta, eu tenho de ir. Há coisas de que tenho mesmo que ocupar-me... Volta para a cama e acaba de dormir. Eu volto cedo, nunca depois das quatro, e esta noite nós... esta noite vai ser especial.

 

Um novo bocejo e a sensação de que os olhos queriam fechar-se fizeram Nora compenetrar-se de que não era aquela a melhor altura para tentar sondar Jack.

 

Mas se vieres mais tarde, telefona. Na noite passada fiquei preocupada.

 

Não venho tarde. Juro.

 

Nora desligou a máquina do café, bebeu o copo de sumo de laranja a caminho da cama, e três minutos depois estava a dormir de novo. Desta vez com um sono sem sonhos, e, quando o telefone a acordou duas horas depois, tinha a cabeça desanuviada.

 

Era o detective Carlson.

 

Mrs. Barton, achei que havia de querer saber. Investiguei o lugar onde Bill Regan trabalhava como mensageiro. Ele voltou lá às seis horas, na noite passada, pouco antes de fecharem. Havia lá dois outros homens que se preparavam para partir também. Estava excitado; estava feliz; disse realmente que aquele tinha sido o seu dia de sorte, mas quando lhe perguntaram o que queria dizer fechou-se em copas. Fez uns ares misteriosos. A autópsia está marcada para esta tarde. Mas a nossa teoria é que, considerando o golpe na cabeça e a carteira vazia, ele foi provavelmente atacado pelo assaltante de que andamos atrás.

 

”Está enganado”, pensou Nora. Tentou não parecer muito crítica ao dizer:

 

O que me intriga é o motivo por que, se ele foi assaltado, não lhe levaram a carteira? Penso que Bill nunca trazia mais que alguns dólares. Tinha trocos nos bolsos, ou fichas?

 

Uns dólares em trocos, cerca de seis fichas. Mrs. Barton, sei que não está satisfeita porque se preocupava com Mr. Regan. Quando um assaltante tem tempo, deixa a carteira na vítima. Assim, se for apanhado, não a tem consigo. O velhote tinha uns bolsos fundos. Se um assaltante abrisse a carteira e tirasse o que pretendia, talvez não tivesse tempo para procurar os trocos. Não se pode saber com certeza se Mr. Regan levava ou não dinheiro consigo, pois não?

 

Não, claro que não. E procurou o bilhete da lotaria?

 

A voz de Carlson tornou-se mais formal, com uma sugestão de desaprovação nitidamente evidente.

 

Não havia qualquer bilhete de lotaria, Mrs. Barton. Quando Nora desligou, tinha-lhe ficado na mente uma frase da conversa telefónica. Não está satisfeita. Não, não estava.

 

Estás louca, disse a si própria, quando descia apressadamente a rua. O tempo tinha-se modificado de maneira espectacular. O dia estava soalheiro, a brisa suave um dia mais apropriado para Abril que para Novembro. Ainda bem. Tinha ficado satisfeita por poder usar o seu casaco gravado. A gabardina que usara e o sobretudo de Jack ainda estavam encharcados devido à viagem à morgue na noite anterior. A gabardina que Jack levara para o trabalho no dia anterior continuava encharcada. Ele tinha tido que vestir uma gabardina antiga, naquela manhã. Um vagabundo carregado de sacos estava a extrair deles a colecção de sanduíches meio comidas que tinha pescado na lata do lixo. Onde estaria a velhota dos sacos que tinha visto na véspera?, pensou Nora. Teria arranjado abrigo na noite anterior?

 

Passou pela banca dos jornais sem olhar. O cego a quem ela pertencia devia estar surpreendido por Bill não ter aparecido naquela manhã. Mas não se sentia com forças de lhe falar de Bill, naquele momento.

 

Tomou o Expresso da Avenida Lexington para a Rua Cinquenta e Nove, passou para o comboio RR e dirigiu-se ao Edifício Fisk. O Serviço de Mensageiros Dynamo Express tinha uma única sala no quinto andar. O único mobiliário era uma secretária com um PBX, alguns armários de ficheiros, com gavetas, do tom cinzento dos navios de guerra, e dois longos bancos, sentados nos quais esperavam vários homens pobremente vestidos. Quando ela fechou a porta, o homem que estava à secretária dizia bruscamente:

 

Tu, Louey, vais à Rua Quarenta. Buscar coisas para levar à Broadway e à Dezanove, Agora lê-me isto, para eu ver se percebeste tudo. Não quero que percas tempo a ir ao endereço errado.

 

Um homem magro, sentado a meio do banco, levantou-se de um salto, nervosamente ansioso por agradar. Nora ouviu-o ler dificilmente as instruções, num inglês hesitante.

 

Muito bem. Podes começar.

 

Pela primeira vez, o homem sentado à secretária olhou para Nora. Tinha na cabeça um capachinho que assentava mal. Umas suíças exageradas cobriam-lhe as bochechas, que contrastavam estranhamente com um nariz pequeno e pontiagudo. Os olhos da cor de moedas de cobre sujas percorreram o seu corpo, despindo-a mentalmente.

 

Que posso fazer por si, minha linda menina? A sua voz era agora amável, totalmente diferente do tom sarcástico e intimidante com que falara antes.

 

Quando ela avançou em direcção a ele, começaram a piscar luzes no painel do PBX e soou uma campainha. O homem carregou em diversos botões.

 

Serviço de Mensageiros Dynamo Express, um momento.Sorriu para Nora. Eles que esperem.

 

Já sabia do que se passara com Bill.

 

Esteve aqui um polícia a fazer perguntas, esta manhã. O velho tagarela. Meu Deus, o tipo nunca se calava. Tinha de lhe dar uns berros, para que ele deixasse de perder tempo em todos os lados onde ia. Recebi algumas queixas.

 

Nora apercebeu-se de que deveria ter franzido o sobrolho.

 

Claro que quando digo ”berros” quero dizer que lhe dizia assim: ”Então, Regan, nem toda a gente quer ouvir a história da sua vida.” Olhe, aposto que ele me falou de si. É a actriz. Disse que se parecia com a Rita Hay worth. Por acaso tinha razão... Aguente aí, tenho de atender algumas destas chamadas.

 

Ela aguardou junto da secretária, enquanto ele atendia os telefonemas, anotava informações, despachava mensageiros que voltavam ao escritório. Entretanto, conseguiu fazer-lhe algumas perguntas.

 

Claro, o Bill estava todo excitado na noite passada disse-lhe o gerente. Fartou-se de tagarelar, dizendo que era o dia de sorte dele. Mas não quis dizer porquê. Por brincadeira, perguntei-lhe se tinha engatado alguma pega.

 

Pensa que ele poderá ter dito a alguém?

 

Sei tanto como a senhora.

 

Tem uma lista dos locais onde ele foi ontem? Gostava de falar com as pessoas com quem ele conversou. Ele costuma ir a escritórios? Talvez conheça os recepcionistas ou outras pessoas.

 

Penso que sim. Agora começava a ficar irritado. Mas arranjou-lhe a lista. O dia anterior tinha sido um dia atarefado. Bill tinha feito quinze recados. Nora começou pelo primeiro: 101 Park Avenue, Sandrell e Woodworth, ir buscar um sobrescrito à recepcionista do décimo oitavo andar e entregá-lo no 205 da Central Park Sul.

 

A simpática matrona que era a recepcionista do décimo oitavo andar lembrava-se de Bill.

 

Oh, claro, é um velhote muito simpático. Vem cá muitas vezes. Uma vez mostrou-me a fotografia da mulher. Aconteceu-lhe alguma coisa?

 

Nora já esperava por esta pergunta e sabia como devia responder-lhe.

 

Teve um acidente na noite passada. Eu quero escrever à sobrinha dele. Ele tinha deixado uma mensagem no meu telefone, a dizer que ontem era o dia de sorte dele. Queria contar-lhe isso, explicar-lhe o que ele queria dizer. Ele falou-lhe disso?

 

A recepcionista compreendeu, obviamente, que se tinha tratado de um acidente fatal, e uma breve preocupação pelo homem que tinha conhecido superficialmente passou-lhe pelo rosto como uma nuvem.

 

Oh, que pena. Não, ou antes, sim, na realidade eu estava muito ocupada por isso entreguei-lhe o sobrescrito e disse: Passe um bom dia, Bill, e ele disse qualquer coisa como ”Tenho um pressentimento de que é o meu dia de sorte”.

 

Inconscientemente, a mulher tinha imitado a voz de Bill. Nora sentiu um arrepio ao ouvi-la.

 

Foi exactamente o que ele me disse.

 

A paragem seguinte foi o apartamento na Central Park Sul. A porteira lembrava-se de Bill.

 

Oh, sim, claro, ele deixou um sobrescrito para Mr. Parker. Do contabilista, penso eu. Telefonei-lhe a perguntar se queria que lho fossem entregar à porta, mas Mr. Parker disse-me que ficasse com ele, porque estava quase a descer. Não, ele não me disse nada. Acho que não lhe dei oportunidade. Aquela hora o balcão do correio está sempre cheio de gente.

 

Parecia que, na véspera, toda a gente estava ocupada de mais para atender Bill. Uma secretária, magra como uma lebre, num escritório da Broadway disse a Nora que nunca encorajava os mensageiros a conversar.

 

São como os rapazes das entregas. Mal viramos as costas, roubam-nos a carteira. O seu encolher de ombros, como quem diz ”sabe-como-é”, convidou Nora a partilhar o seu desdém pelos ladrões que tinha de aturar.

 

Depois dessa paragem, Nora apercebeu-se de que nunca conseguiria percorrer toda a lista se não se organizasse melhor. Bill tinha andado aos ziguezagues, de oriente para ocidente, tinha feito algumas paragens no centro da cidade, três na Cinquenta, duas nas Trinta, quatro na parte de baixo da Quinta Avenida e duas na Wall Street. Em vez de seguir exactamente o seu percurso, começou a agrupar os serviços por áreas. Os dois primeiros locais foram visitados em vão. Ninguém se lembrava sequer de quem tinha levado a mensagem. O terceiro, uma escritora que tinha enviado a sua obra ao editor, falou a Nora no escritório do hotel. Sim, tinha pedido o envio de um sobrescrito no dia anterior. Era evidente que não tinha conversado com o mensageiro. Havia algum problema? Não me diga que o livro não foi entregue.

 

Àss três horas, Nora apercebeu-se de que não se tinha dado ao trabalho de comer, que estava a procurar debalde, que Jack ia chegar cedo a casa e queria estar lá com ele. E nessa altura falou com o jovem vendedor da loja de pianos.

 

Ele ergueu esperançadamente o olhar, quando ela entrou. A sala estava vazia, com excepção dos pianos e órgãos expostos, que estavam colocados em diferentes ângulos, para exibir os seus melhores aspectos. Havia um póster que dizia DEIXE QUE A MÚSICA FAÇA PARTE DA SUA VIDA, colocado mesmo por detrás de um pequeno órgão com uma boneca do tamanho de uma criança de 4 anos sentada no banco, com os curtos dedos de pano pousados sobre as teclas.

 

O momentâneo desapontamento do vendedor, ao aperceber-se de que Nora não era uma cliente em potência, desvaneceu-se perante a hipótese de passar algum tempo com outro ser humano. Não lhe parecia que viesse a conservar-se no negócio musical, disse a Nora. Era muito pouco movimentado. Até o gerente confessava que os dias animados tinham passado havia seis ou sete anos. Nessa altura, toda a gente queria um piano. Agora, nem pensar.

 

Na véspera? Um mensageiro? Com uns dentes esquisitos? Oh, claro, um velhote muito simpático. Se tinha falado? Nunca fazia outra coisa! Estava todo excitado. Disse-me que era o seu dia de sorte.

 

Quer dizer que ele disse que se sentia com sorte? apressou-se a perguntar Nora.

 

Não, não foi isso. Lembro-me nitidamente de ele dizer que aquele era o seu dia de sorte. Mas não me disse mais nada, piscou-me o olho quando lhe perguntei o que queria dizer com aquilo.

 

Havia apenas um lugar onde Bill tinha ido depois dessa entrega. Tinha estado na loja dos pianos às 16:10. Logo depois de ter deixado a mensagem no gravador dela. E a paragem antes da loja de pianos tinha sido aquela onde o guarda-livros que aceitara a entrega lhe tinha dito: ”Sim, o velhote disse-me qualquer coisa sobre sentir-se com sorte ou coisa parecida. Eu estava ao telefone e fiz-lhe sinal de que podia ir-se embora. Estava a falar com o patrão e não podia interromper a conversa.”

 

Disse que se sentia com sorte. Tem a certeza de que ele não disse que tinha tido sorte?

 

Tenho a certeza de que ele disse que se sentia com sorte, porque me lembro de pensar que me sentia pessimamente.

 

Ele tinha-se sentido com sorte às 15:45. Às 16:10, na sua paragem seguinte, tinha tido sorte. ”Eu estava certa”, pensou Nora, ”eu sabia.” A extracção da lotaria tinha tido lugar entre as 15:30 e as 16:00. Teria Bill um dos bilhetes premiados? Parou para tomar um café num estabelecimento da Madison Avenue. O rádio estava ligado. No dia anterior tinha havido mil e duzentos premiados com mil dólares, três premiados com cinco mil dólares e um premiado com treze milhões de dólares. O locutor sugeria a quem tivesse comprado um bilhete em Manhattan que verificasse o seu número.

 

Supondo que Bill tinha ganho cinco mil dólares. Isso seria uma fortuna para ele. Já tinha ganho umas centenas por várias vezes. Era estranho como havia pessoas que ganhavam repetidas vezes. Nora reviu a sua lista. Decidiu eliminar todos os locais onde Bill tinha ido antes das 15:30. Assim só lhe restava mais um. Desanimada, constatou que se tratava do World Trade Center. Mas já que tinha ido tão longe, visitaria mais aquele local e depois iria para casa.

 

Quando entrou no metropolitano pela oitava vez nesse dia, Nora perguntou a si mesma como conseguiria Bill manter aquele trabalho. Teria alguma vez admitido que as pessoas não o escutavam, ou os seus dias seriam animados por um encontro com alguém como o jovem vendedor que ficava satisfeito por ter companhia?

 

O metro estava apinhado. Eram três e um quarto. As horas normais não eram assim tão más, mas nas horas de ponta era preciso suspender-se de uma correia ou agarrar-se a um varão. O homem corpulento que estava ao seu lado caiu deliberadamente sobre ela quando o comboio arrancou. Afastou-se rapidamente dele.

 

O andar inferior do World Trade Center estava cheio de gente que atravessava deliberada e apressadamente o grande espaço aberto, desaparecendo nas passagens descendentes, dirigindo-se a outros edifícios, mergulhando em restaurantes e lojas. Era gente bem vestida, na sua maioria. Nora perdeu cinco minutos, ao entrar por engano na torre número dois em vez de na número um.

 

O seu destino era o quadragésimo segundo andar. Ao subir no elevador, pensou que o nome da firma não lhe era desconhecido. Talvez por ter olhado para ele durante todo o dia.

 

Lyons and Becker era uma firma de investimentos. Não excessivamente grande, pelo que podia ver. Isso era bom. Haveria mais hipóteses de alguém se lembrar de Bill.

 

O escritório era pequeno mas bem decorado. Por detrás dele, Nora podia ver alguns gabinetes, onde homens e mulheres jovens negociavam títulos.

 

A recepcionista não se lembrava de ter visto Bill.

 

Mas espere um pouco, por essa hora eu estava no meu intervalo. Vou chamar a rapariga que ficou a substituir-me.

 

A substituta era uma loura de pernas esbeltas e seios excessivamente generosos. Por momentos escutou-a, surpreendida, mas depois abriu um amplo sorriso.

 

Oh, claro disse. Onde tinha eu a cabeça? Claro que me recordo do velhote. Quase se esqueceu do que vinha buscar.

 

Nora aguardou.

 

Eu estava a entregar-lhe o sobrescrito quando ele olhou em volta e avistou um dos nossos vendedores. Voltou-se para a colega. Tu sabes quem é. O Jack Barton, aquele novo muito giro.

 

Nora sentiu frio na boca do estômago. Por isso o nome do escritório lhe tinha parecido conhecido. Era aquela a companhia de que Jack lhe tinha relutantemente falado no dia anterior. O seu novo emprego.

 

Seja como for, o velhote viu o Jack e ficou muito surpreendido. Disse: ”Aquele é o Jack Barton? Ele trabalha aqui?” Eu disse que sim. Jack ia a sair por aquela porta. Com a cabeça indicou a porta de saída do pessoal no outro extremo da sala. E o velhote ficou todo excitado. Disse: ”Tenho de falar ao Jack do meu dia de sorte.” Tive que lhe gritar que levasse o sobrescrito. Pelo amor de Deus, para isso é que ele tinha cá vindo, não é verdade?

 

Tinha de haver um motivo para Jack não lhe ter dito que tinha visto Bill. Que motivo?

 

Nora tentou acalmar o medo que era a confirmação do seu mal-estar da véspera, comprando um jornal e lendo-o durante a viagem de metropolitano, mas as letras pareciam dançar diante dos seus olhos. Quando chegou a casa, a primeira coisa que fez foi ir à casa de banho, onde estavam pendurados os abrigos de ambos, no varão do cortinado do chuveiro. O que ela tinha usado na noite anterior estava completamente seco, apesar de ela ter apanhado chuva durante dez minutos. O sobretudo que Jack tinha levado ao hospital e à morgue, o seu sobretudo bom, estava ainda levemente húmido. Mas a gabardina dele, a que ele tinha vestida quando chegara a casa, na noite anterior, ainda estava encharcada. Ele não tinha apenas vindo a pé desde o metropolitano. Recordou-se de novo da sua fulgurante excitação, da tensão que crepitava como uma corrente eléctrica em volta do corpo dele, da maneira como ele a tinha abraçado e chorado.

 

Que distância teria ele percorrido a pé na noite anterior. Por que teria andado a pé? E quem teria estado com ele?... Ou quem teria ele seguido?

 

Por favor, meu Deus, não choramingou. Não. Ele tinha chegado a casa e ela tinha-o feito tomar duche e tinha telefonado à polícia. Quando tinha saído do quarto, ele tinha-a ajudado a fazer as chamadas. Tinha procurado os números. Mas ela estava ao telefone quando ele saíra do quarto. E, antes disso, ela tinha ouvido aquele som estranho, aquele estalido metálico, e tinha perguntado a si mesma o que estaria ele a fazer.

 

Como uma condenada que se dirige a um destino inexorável, entrou no quarto e procurou, no roupeiro, o cofre de metal que continha os documentos importantes, a licença da casamento de ambos, as apólices de seguro, as certidões de nascimento. Levou o cofre para a cama e abriu-o. A certidão de nascimento de Jack estava ao de cimoLentamente, retirou os papéis um a um, até chegar ao último, um bilhete de lotaria cor-de-rosa e branco. ”Não, Jack”, pensou. ”Não. Tu não. Por mil dólares não. Tu não eras capaz. Tu não farias isso. Tinha de haver uma explicação.

 

Mas quando comparou o número do bilhete com os dos bilhetes premiados na lista do jornal, percebeu tudo. Tinha na mão o bilhete que poderia ser trocado por treze milhões de dólares.

 

Bill Regan tinha sabido que tinha tido sorte. Ela tinha sentido que algo de terrível pairava sobre ela. Olhou em volta, desvairadamente, tentando encontrar uma resposta. O livro estava junto da máquina de escrever de Jack, o livro que não avançava porque ele se sentia incapaz de escrever. Os soporíferos de Jack para a sua ”ligeira depressão”. Depois recordou-se na sua impiedosa repreensão da véspera, de manhã, quando ele, num sussurro embaraçado, murmurara o nome da sua nova companhia e lhe dissera que tinha sido despedido da Merril Lynch... e depois acrescentara, num assomo de dignidade:

 

Fui incluído no despedimento geral. Sucede que eu era um dos que estavam em posição inferior na hierarquia. Não teve nada a ver com o meu trabalho.

 

E assim, no dia anterior, Bill tinha-lhe falado do bilhete, e algo tinha estoirado dentro de Jack. Devia ter visto Bill sair do Edifício Fisk e tinha-o seguido pelo parque.

 

Que havia de fazer? Com uma violenta rejeição, Nora pôs de parte a ideia de contactar a polícia. Jack era a sua vida. Preferia matar-se a abandoná-lo.

 

É o meu dia de sorte. Bill tinha querido ir para a Florida, onde poderia viver num lar com pessoas interessantes como as de Cocoon, Teria merecido essa sorte.

 

Nora estava sentada no sofá da sala quando a chave rodou na fechadura e Jack entrou em casa. Tinha conseguido concentrar-se no facto de que os sofás estavam em muito mau estado e que uma nova cobertura não conseguiria esconder as almofadas descaídas. Embora ainda só passasse um quarto das quatro, o crepúsculo começava a cair, e ela recordou-se de que estavam apenas a um mês do dia mais curto do ano.

 

Levantou-se quando a porta se abriu. Jack trazia um braçado de rosas de longos caules.

 

Nora. A tensão tinha desaparecido. Tinha lamentado com ela a morte de Bill Regan, na noite anterior, mas aquela era a noite dele. Nora, senta-te, espera. Querida, espera um pouco até saberes o que nos aconteceu. Já posso escrever, tu podes ter uma criada, vamos comprar este andar, vamos comprar uma casa no Cabo. Estamos instalados para o resto das nossas vidas. Queria dizer-te ontem quando cheguei a casa. Mas não queria que Bill Regan nos caísse em cima. Por isso esperei. E depois, com o que aconteceu, foi impossível dizer-te.

 

Tu viste o Bill ontem. Jack fitou-a, perplexo.

 

Não, não vi.

 

Ele correu atrás de ti, quando saíste do escritório, às quatro.

 

Então não me apanhou. Nora, não percebes? Ouvi os números da lotaria, ontem à tarde. E pareceu-me que já os tinha visto. Foi uma loucura. Escolhi um bilhete ao acaso. Geralmente quando compro um bilhete, escolho o nosso aniversário de casamento, a data dos nossos aniversários, ou qualquer coisa no género. E depois não conseguia encontrar o raio do bilhete.

 

”Jack, não mintas, não mintas.”

 

Ia ficando maluco. De repente lembrei-me. Quando estava a limpar a minha secretária na Merrill Lynch na semana passada, o bilhete estava em cima dela. A menos que eu o tivesse deitado fora, tinha de estar num dos ficheiros que eu estava a organizar. Fui até lá e vi os ficheiros todos. Nora, ia ficando doido. Mas encontrei-o. Nem conseguia acreditar. Acho que fiquei em estado de choque. Vim a pé até casa. E depois, quando tu disseste que não te importavas de desistir da tua carreira por minha causa, deves ter pensado que eu estava maluco, quando desatei a chorar. Estava ansioso por te contar, mas depois lembrei-me de que o pobre do Bill nos ia cair em cima e resolvi esperar. Tinha de ser uma noite só para nós.

 

Ele não parecia reparar na sua falta de reacção. Entregando-lhe as flores, disse:

 

Espera que eu já to mostro e correu para o quarto.

 

O telefone tocou. Automaticamente, ela levantou o auscultador mas depois desejou não o ter feito. Mas era tarde de mais.

 

Está?

 

Mrs. Barton, fala o detective Carlson. A voz era amistosa. Tenho de dizer-lhe que tinha razão.

 

Eu tinha razão?

 

Sim, foi tão persistente que revistámos outra vez a roupa dele. O pobre velhote tinha um bilhete da lotaria preso ao forro do boné.

 

Ganhou mil dólares ontem. E vai gostar de saber que ele não foi assaltado. Julgo que a excitação foi de mais para ele. Morreu de um ataque cardíaco. Deve ter batido com a cabeça numa pedra, quando caiu. Não... não... não... O grito de Nora uniu-se ao gemido desesperado de Jack que saía do quarto, com o cofre na mão, com as cinzas do bilhete de lotaria a deslizarem, esvoaçando, por entre os seus dedos.

 

               VISÃO DUPLA

 

Jimmy Cleary acocorou-se junto dos arbustos, no exterior do jardim do apartamento de Caroline, em Princeton. Uma espessa madeixa de cabelo caiu-lhe sobre a testa, e ele afastou-a com o gesto estudado que havia acabado por se tornar num maneirismo. A tarde de Maio estava excessivamente húmida e fria para a época. Mesmo assim, a transpiração encharcava-lhe o fato de treino. Humedeceu os lábios com a ponta da língua. Sentia por todo o corpo o formigueiro causado pela excitação nervosa.

 

Fazia naquela noite cinco anos que ele tinha cometido o erro da sua vida. Tinha morto a rapariga errada. Ele, o melhor actor do mundo inteiro, tinha estragado a sua cena máxima. Agora ia corrigir esse erro. Desta vez não haveria enganos.

 

A porta das traseiras do apartamento de Caroline dava para o parque de estacionamento. Nas últimas noites, tinha estudado a área. Na noite anterior, tinha desatarrachado a lâmpada à porta do apartamento, de modo que, naquele momento, a entrada das traseiras estava mergulhada em profunda sombra. Eram 20:15; horas de entrar.

 

Tirou do bolso um instrumento semelhante a um espigão, introduziu-o na fechadura e torceu-o até ouvir um estalido. Com as mãos enluvadas, fez rodar a maçaneta e abriu a porta apenas o suficiente para poder passar. Fechou-a e fez rodar de novo a fechadura. Havia uma corrente interior que ela provavelmente fixava de noite. Óptimo. Naquela noite fechá-los-ia a ambos dentro da casa. Jimmy sentiu um nítido prazer ao imaginar Caroline a fechar cuidadosamente a casa. Seria como a história de fantasmas que acaba assim: ”Agora, ficamos fechados durante o resto da noite.”

 

Encontrava-se na cozinha, que abria directamente, através de um arco, para a sala de estar. Na véspera, tinha-se escondido no exterior da janela da cozinha, a observar Caroline. Havia plantas no peitoril da janela, de modo que o estore não descia até ao fim. Às dez horas, ela tinha saído do quarto, vestindo um pijama às riscas vermelhas e brancas. Enquanto via as notícias, foi fazendo exercícios, dobrando-se pela cintura, de modo que o seu cabelo louro esvoaçava de um ombro para o outro.

 

Voltara para o quarto, onde provavelmente estivera a ler durante algum tempo, porque a luz permanecera acesa durante cerca de uma hora. Poderia facilmente ter acabado com ela nessa altura, mas o seu sentido dramático exigia-lhe que esperasse pelo dia do aniversário.

 

A única luz provinha dos candeeiros da rua, mas não havia muitos sítios onde pudesse esconder-se, naquele apartamento. Podia meter-se debaixo da cama, que tinha um folho de veludo antipoeira. Era uma ideia interessante: poderia aguardar ali, enquanto ela lia, ganhava sono, apagava a luz; esperaria até ela deixar de se mover e a sua respiração se tornar regular. Depois poderia deslizar silenciosamente para fora do seu esconderijo, ajoelhar-se, observá-la do mesmo modo que observara a outra rapariga, e então acordá-la. Mas, antes de se decidir, estudaria outras possibilidades.

 

Quando abriu a porta do roupeiro do quarto, acendeu-se automaticamente uma luz. Jimmy viu, de relance, um saco de viagem quase cheio. Ali não havia lugar para se esconder.

 

Imagine-se uma mulher que tem menos de duas horas de vida. Pressenti-lo-á? Continuará a fazer a sua vida normal? Estas eram as questões hipotéticas que Cory Zola tinha feito numa aula de arte de representar, certa noite. Cory era um professor famoso, que só aceitava alunos que achava que tinham o potencial necessário para virem a ser estrelas. ”Colocou-me na sua aula particular, logo que me fez a audição”, recordou Jimmy naquele momento. ”Ele sabe o que é talento.”

 

Não havia lugar algum onde pudesse esconder-se na sala. Contudo, a porta principal abria directamente para esse compartimento, e havia um roupeiro de canto. A porta do roupeiro estava entreaberta. Dirigiu-se até lá rapidamente, para o observar.

 

Este roupeiro não tinha luz automática. Tirou uma lanterna fina como um lápis de um dos bolsos e projectou a luz para o interior, que era inesperadamente fundo. À frente estava pendurado um pesado saco para roupa, envolto em volumosas camadas de plástico. Era essa a razão por que a porta não fechava. Teria apertado o vestido. Apostaria tudo como se tratava do vestido de noiva dela. Na véspera tinha-a seguido e ela tinha ido a uma loja de artigos para noivas e tinha lá ficado quase meia hora, provavelmente para a prova final Talvez a enterrassem com aquele vestido.

 

A cascata de plásticos constituía um esconderijo perfeito. Jimmy entrou no armário, enfiou-se entre dois casacos de Inverno e uniu-os. E se Caroline se dirigisse ao roupeiro e o descobrisse? O pior que poderia acontecer seria não conseguir matá-la exactamente como tinha planeado. Mas os sacos de viagem do outro roupeiro estavam quase cheios. Provavelmente ela já tinha acabado de fazer as malas. Sabia que ela seguiria de avião para St. Paul na manhã seguinte. Casar-se-ia na próxima semana. Julgava que ia casar-se na próxima semana.

 

Jimmy saiu do roupeiro. Às cinco horas, no seu carro alugado, tinha estado à espera de Caroline, à porta do Gabinete do Promotor Público, em Trenton. Ela tinha trabalhado até tarde. Tinha-a seguido até ao restaurante onde se fora encontrar com Wexford. Tinha ficado à espera, no exterior, e só se tinha ido embora quando, através da montra, os viu encomendar a refeição. Depois tinha vindo directamente para ali. Ela só voltaria daí a uma hora, pelo menos. Serviu-se de uma lata de soda do frigorífico e instalou-se no sofá. Estava na hora de se preparar para o terceiro acto.

 

Tudo tinha começado havia cinco anos e meio, no último semestre da Escola Rawlings de Artes, em Providence. Ele estava no departamento de arte de representar, a estudar teatro. Caroline tinha estudado para ser directora de cena. Ele tinha entrado em algumas peças dirigidas por ela. Anteriormente, tinha desempenhado o papel de Bill em A Morte de um Caixeiro Viajante. Tinha representado tão bem que metade da Escola passara a tratá-lo por Bill.

 

Jimmy bebeu uns goles de soda. Na sua memória, estava de novo na escola e fazia parte do elenco de uma peça, já adulto. Tinha o papel principal. O reitor tinha convidado um velho amigo, um produtor da Paramount, para assistir à estreia, e constava que esse produtor procurava novos talentos. Desde o início que ele e Caroline não concordavam quanto à sua representação do papel. Depois, duas semanas antes da estreia, ela tinha-lhe retirado o papel e tinha-o dado ao Brian Kent. Ainda estava a vê-la, com o cabelo louro preso no alto da cabeça, a blusa pregueada metida para dentro das calças de ganga, o rosto sério e preocupado.

 

Não serves para este papel, Jimmy. Mas acho que estarias perfeito para o segundo papel, o do irmão.

 

O segundo papel. O irmão tinha cerca de seis linhas para dizer. Tinha sentido vontade de suplicar, mas sabia que não valia a pena. Quando Caroline Marshall fazia uma alteração do elenco, nada a fazia mudar de ideias. Ele tinha sentido dentro de si que fazer o papel principal naquela peça seria crucial para a sua carreira. Numa fracção de segundo, tinha decidido matá-la e tinha começado imediatamente a representar. Tinha soltado uma gargalhada despreocupada, um pouco contrafeita, e dito:

 

Caroline, tenho andado a ganhar coragem para te dizer que estou muito atrasado nos estudos. Nem sequer posso pensar em representar.

 

Ela tinha caído. E tinha ficado aliviada. O produtor da Paramount tinha aparecido. Tinha convidado Brian Kent para ir à Costa, fazer um teste para uma nova série. O resto, como se diz em Hollywood, pensou Jimmy, era história. Ao fim de cerca de nove anos a série continuava entre as dez mais vistas, e Brian Kent acabava de assinar o contrato para fazer um filme por três milhões de dólares.

 

Duas semanas após o final do curso, Jimmy tinha ido para St. Paul. A casa da família de Caroline era praticamente uma mansão, mas ele tinha rapidamente descoberto que a porta lateral não estava fechada. Tinha percorrido o andar inferior, subido a ampla escada em curva, passado pela suite do quarto principal. A porta estava aberta. A cama vazia. Depois tinha aberto a porta do quarto seguinte e vira-a: estava deitada e dormia. Ainda lhe parecia ver o quarto dela, a cama de latão com quatro colunas, o brilho sedoso dos caros e macios lençóis de seda. Recordava-se de como se tinha inclinado sobre ela, enrolada no leito, com os cabelos louros a brilhar sobre a almofada. Tinha sussurrado ”Caroline” e ela tinha aberto os olhos, olhado para ele e dito ”Não”.

 

Tinha-a envolvido nos braços e tinha-lhe tapado a boca com as mãos. Ela escutara-o, revelando pânico nos olhos, dizer-lhe que a ia matar, que, se ela não lhe tivesse tirado o papel, ele teria sido visto pelo produtor da Paramount em vez de Brian Kent. Finalmente, ele tinha-lhe dito:

 

Nunca mais voltarás a dirigir uma peça, Caroline. Tens um novo papel. O de vítima.

 

Ela tinha tentado libertar-se dele, mas ele pregara-a à cama e enrolara-lhe a corda em volta do pescoço. Os olhos dela tinham-se desorbitado, aflitivamente cravados nele. Tinha erguido as mãos, com as palmas abertas, suplicantes, e depois tinha-as deixado cair, sem forças, sobre o lençol.

 

Na manhã seguinte, ele aguardara ansiosamente o jornal para o comprar. ”Assassinada Filha de Importante Banqueiro de St. Paul”. Recordava-se ainda de como tinha rido e depois chorado de frustração ao ler as primeiras frases da notícia. O corpo de Lisa Marshall, de 21 anos, foi encontrado esta manhã pela sua irmã gémea.

 

Lisa Marshall. Irmã gémea.

 

A notícia prosseguia assim: A jovem tinha sido estrangulada. As duas gémeas encontravam-se sozinhas em casa. A polícia não conseguiu ainda interrogar Caroline Marshall. Ao ver o corpo da irmã, ficou num estado de profundo choque e encontra-se sob o efeito de sedativos.

 

Havia de contar isto a Caroline, naquela noite. Durante todos aqueles anos, em Los Angeles, tinha assinado jornais de Minneapolis St. Paul, procurando notícias sobre ela. Assim tinha sabido que Caroline estava noiva e se casaria no dia 30 de Maio na semana seguinte. Caroline Marshall, que era advogada do gabinete do Promotor Público de Trenton, Nova Jérsia, ia casar-se com um professor da Universidade de Princeton, o Dr. Sean Wexford. Wexford frequentava um curso mais avançado, quando Jimmy estudava na Rawlings. Tinha dado aulas de psicologia a Jimmy. Perguntava a si mesmo quando Caroline e Wexford tinham começado a namorar. Não andavam juntos quando Caroline estudava na Rawlings. Disso tinha a certeza.

 

Jimmy abanou a cabeça. Levou a lata de soda para a cozinha e despejou-a no caixote do lixo. Caroline devia estar a chegar, agora. Foi à casa de banho e alarmou-se com o ruidoso funcionamento do autoclismo. Depois, com infinito cuidado, introduziu-se no roupeiro e envolveu-se nos casacos de Inverno. Apalpou o fio que trazia no bolso do fato de treino. Tinha sido cortado do mesmo rolo de fio de pesca grosso que tinha usado para estrangular a irmã. Estava pronto.

 

Capuccino, querida? Sean sorria-lhe do outro lado da mesa, onde ardiam velas. Os olhos azul-escuros de Caroline estavam pensativos, com aquele ar de tristeza absoluta que por vezes os invadia.

 

Era compreensível, naquela noite. Era o aniversário da última noite que ela tinha passado com Lisa. Tentando distraí-la, disse: Senti-me como um elefante numa loja de porcelanas quando fui buscar o teu vestido, esta tarde.

 

Caroline ergueu as sobrancelhas.

 

Não o viste, pois não? Dá azar.

 

Nem me deixaram aproximar-me dele. A vendedora fartou-se de pedir desculpa, por não o poderem evitar.

 

Tenho feito tantas correrias nos últimos tempos que emagreci. Tiveram de o emendar.

 

Estás demasiado magra. Vou ter de te engordar em Itália. Massa três vezes por dia.

 

Estou ansiosa. Caroline sorriu-lhe. Adorava a enorme figura de Sean, o modo como o seu cabelo cor de areia parecia sempre um pouco despenteado, o humor nos seus olhos cinzentos. A minha mãe telefonou-me esta manhã. Ainda está preocupada por o meu vestido não ter mangas. Lembrou-me por duas vezes que em Minnesota se diz uma piada: ”Quando é que começa o Verão?

Eu ofereço-me para te aquecer. O teu vestido está no roupeiro da entrada. A propósito, é melhor devolver-te as chaves extra.

 

Fica com elas. Se eu me esquecer de alguma coisa, poderás levar-ma na próxima semana.

 

Quando saíram do restaurante, Caroline acompanhou-o à espaçosa casa Vitoriana que seria a deles, quando regressassem de lua de mel. Deixaria o carro na segunda garagem enquanto estivessem fora. Sean guiou o seu carro até à entrada de acesso, estacionou-o e meteu-se no dela. Ela chegou-se para o lado e ele levou-a até casa, com um braço em volta dela.

 

Jimmy sentia-se orgulhoso porque, mesmo ao fim de estar uma hora parado em pé, sentia-se perfeitamente bem. Estava em boa forma, com a ginástica e as aulas de dança.

 

Tinha passado os últimos cinco anos a estudar, a bater a portas, a tentar ver contratadores de teatro, quase conseguindo trabalho e acabando por ser posto de parte. Para se conseguir um bom agente, era preciso poder demonstrar que já tinha feito alguns bons papéis. Para conseguir contactar os bons contratadores, era preciso ter um agente conhecido. E por vezes diziam-lhe a última coisa que gostaria de ouvir:

 

Você tem o tipo de Brian Kent, e isso não ajuda muito. Esta recordação enfureceu-o e abanou a cabeça. E tudo isto depois de a mãe ter convencido o pai a financiá-lo durante um ano para fazer aquilo a que ele chamava ”tentar representar”.

 

Jimmy sentiu de novo a raiva antiga. O pai nunca tinha gostado do que ele fazia. Quando Jimmy tinha mostrado toda a sua grandeza em A Morte de um Caixeiro Viajante, o pai tinha mostrado orgulho nele? Não. Preferia aplaudir um filho que fosse avançado centro, que participasse do Trofeu Heisman.

 

Jimmy não se tinha incomodado a pedir mais dinheiro quando se acabara aquele que o pai lhe dera. A mãe enviava-lhe todos os meses tudo o que conseguia pôr de parte nas despesas da casa. O velho podia estar cheio de massa, mas era um forreta. Mas teria adorado, oh sim, se fosse James Júnior quem assinara o contrato de três milhões de dólares na semana anterior, em vez de Brian Kent.

 

É o meu filho havia de gritar para todos ouvirem.

 

E assim teria acontecido se, cinco anos antes, Caroline não lhe tivesse tirado o papel e não o tivesse dado a Brian Kent.

 

Jimmy endireitou-se. Tinha ouvido vozes junto da porta de entrada. Caroline. Não vinha sozinha. Uma voz de homem. Jimmy encolheu-se, encostado à parede. Quando a porta se abriu e a luz se acendeu, olhou para baixo e ficou gelado. Entrava luz no roupeiro. Estava certo de que não poderiam vê-lo, mas as pontas das suas sapatilhas gastas de corrida, voltadas para diante, revelavam a sua presença.

 

Caroline olhou em volta, para a sala, quando acendeu a luz. Naquela noite, por um motivo qualquer, a sala parecia-lhe diferente, estranha. Mas, evidentemente, devia ser por causa da noite especial. O aniversário da morte de Lisa. Abraçou Sean e ele afagou-lhe carinhosamente a nuca.

 

Sabes que estiveste toda a noite a milhas de distância?

 

Estou sempre suspensa das tuas palavras. Era uma tentativa de se mostrar despreocupada, mas falhou. A sua voz alterou-se.

 

Caroline, não quero que fiques sozinha esta noite. Deixa-me ficar contigo. Escuta, eu sei por que queres ficar sozinha e compreendo-te. Vai para o teu quarto. Eu estendo-me no sofá.

 

Caroline tentou sorrir.

 

Não, eu estou bem. Envolveu-lhe o pescoço com os braços. Abraça-me com força durante um minuto e põe-te a mexer disse. Vou regular o despertador para as seis e meia. Prefiro arrumar as malas de manhã. Tu conheces-me. Vivinha pela manhã. Murcha à tarde.

 

Não tinha reparado. Os lábios de Sean roçaram-lhe a nuca, a testa, acariciaram-lhe os olhos. Conservou-a entre os braços, sentindo a tensão no seu corpo esguio.

 

Naquela noite, ela tinha-lhe dito:

 

Uma vez passado o aniversário, fico bem. É que durante uns dias, antes dele, tenho a sensação de que a Lisa está comigo. É uma sensação que não pára de crescer dentro de mim. Como hoje. Mas eu sei que amanhã vou estar bem, e vou para casa preparar-me para me casar e ser feliz. Com relutância, Sean libertou Caroline do seu abraço. Ela parecia fatigada, agora, e, curiosamente, isso fazia-a parecer muito jovem. Apesar dos seus 26 anos, naquele momento poderia passar por uma das suas alunas do primeiro ano. Disse-lho.

 

Mas és mais bonita que qualquer delas concluiu. Vai ser incrivelmente agradável que o teu rosto seja a primeira coisa que vou ver de manhã, por toda a minha vida.

 

Todo o corpo de Jimmy Cleary estava encharcado de transpiração. E se ela deixasse Wexford passar ali a noite? Por certo o veriam de manhã, quando Caroline fosse buscar o vestido de noiva ao roupeiro. Estavam abraçados a menos de meio metro do local onde ele se encontrava. E se um deles sentisse o cheiro da transpiração do seu corpo? Mas Wexford ia-se embora.

 

Estou aqui às sete, meu amor disse ele a Caroline.

 

”E vais encontrá-la como ela encontrou a irmã”, pensou Jimmy. É assim que a vais imaginar de manhã, pelo resto da tua vida.

 

Caroline fechou a porta logo que Sean saiu. Por momentos sentiu-se tentada a reabri-la imediatamente, chamar por ele, dizer-lhe que sim, que ficasse com ela. ”Não quero estar só. Mas eu não estou só”, pensou ao retirar a mão do puxador. ”Lisa está tão perto de mim, esta noite. Lisa. Lisa.”

 

Dirigiu-se ao quarto e despiu-se rapidamente. Um duche quente ajudou a aliviar uma parte da tensão que sentia nos músculos do pescoço e das costas. Recordou o modo como as mãos de Sean tinham massajado aqueles músculos. ”Amo-o tanto”, pensou. O seu pijama de riscas vermelhas e brancas estava pendurado na casa de banho. Tinha ido comprar roupa interior e camisas de noite numa boutique da Madison Avenue e tinha-o descoberto.

 

Se gosta dele, é melhor decidir-se depressa tinha-lhe dito a vendedora. Só temos este em vermelho. É confortável e giríssimo.

 

Apenas um. Isso tinha decidido Caroline. Uma das coisas mais difíceis nos últimos cinco anos tinha sido quebrar o hábito de comprar duas peças de cada. Durante anos, sempre que via alguma coisa de que gostava, comprava-a automaticamente em duplicado. lisa fazia o mesmo. Tinham exactamente as mesmas medidas, a mesma altura, o mesmo peso. Mesmo os pais tinham dificuldade em distingui-las. Quando andavam no liceu, a mãe tinha insistido com elas para comprarem vestidos diferentes para o baile. Tinham ido separadamente a lojas diferentes e chegado ambas a casa exactamente com o mesmo vestido de seda branca com pintinhas azuis.

 

No ano seguinte, tinham lacrimosamente concordado com os pais e com a psicóloga do liceu, no sentido de que fariam um favor a si mesmas se frequentassem escolas diferentes e se esquecessem de que eram gémeas idênticas.

 

Serem tão chegadas uma à outra é maravilhoso tinha dito a psicóloga, mas têm de pensarem si mesmas, como dois indivíduos. Nunca conseguirão alcançar a vossa capacidade total a menos que dêem mais espaço uma à outra.

 

Caroline tinha ido para a Rawlings, Lisa para a Southern Cal. Na escola, Caroline divertia-se secretamente por as pessoas pensarem que ela tinha escrito na sua própria fotografia ”À minha melhor amiga”. Até tinham terminado o curso no mesmo dia. A mãe tinha ido à festa de Lisa. O pai à de Caroline.

 

Caroline voltou à sala, lembrou-se de fechar a corrente da porta das traseiras, acendeu o televisor e, com pouco entusiasmo, começou a fazer os seus exercícios de ginástica. Surgiu um anúncio de uma companhia de seguros. ”Não o conforta saber que a sua família fica protegida quando desaparecer?” Caroline fechou o televisor, bruscamente. Apagando a luz da sala, correu para o quarto e enfiou-se entre os lençóis. Deitada de lado, encostou as pernas ao corpo e enterrou o rosto entre as mãos.

 

Sean Wexford não conseguia afastar a sensação de que se deveria ter categoricamente recusado a abandonar Caroline. Ficou sentado dentro do carro, durante alguns minutos, a olhar para a porta. Mas ela precisava de estar só. Abanando a cabeça, Sean tirou do bolso as chaves do carro.

 

Enquanto conduzia o carro, de regresso a casa, as suas emoções oscilavam entre a sua preocupação com Caroline e a ideia de que, daí a uma semana, estariam casados. Como tinha ficado perplexo ao vê-la, no ano anterior, a praticar jogging à sua frente, no campo da universidade de Princeton. Ela só tinha estado numa das aulas dele, na Rawlings. Naquela altura, estava a trabalhar tão afincadamente na sua tese de doutoramento que nem pensava em sair com raparigas. Naquela manhã, havia um ano, ela tinha-lhe falado de ter frequentado a Faculdade de Direito de Columbia, trabalhado para um juiz do Supremo Tribunal de Nova Jérsia e ter ido trabalhar para o gabinete do Promotor Público de Trenton. ”E”, pensou Sean, enquanto conduzia o carro pelo caminho de acesso a sua casa, ”ambos soubemos, ao bebermos juntos aquele primeiro café, o que estava a acontecer-nos.” Arrumou o carro de Caroline atrás do seu e entrou em casa, sorrindo à ideia de que, muito em breve, os carros de ambos estariam sempre estacionados no mesmo caminho de acesso.

 

Jimmy Cleary ficou surpreendido por Caroline ter desligado o televisor tão abruptamente. Voltou a pensar nas questões que Cory Zola tinha posto na aula de teatro: Imagine-se uma mulher que tem menos de duas horas de vida. Ela pressenti-lo-á? Continuará a fazer a sua vida normal? Talvez Caroline estivesse a pressentir o perigo. Quando regressasse à aula, voltaria àquela questão. ”Em minha opinião”, diria, ”há uma aceleração do espírito quando se prepara para abandonar o corpo.” Teve a sensação de que Zola acharia a sua opinião profunda.

 

Jimmy sentiu uma cãibra na perna. Não estava habituado a estar de pé, absolutamente imóvel, durante tanto tempo, mas poderia continuar assim enquanto fosse necessário. Se a intuição de Caroline estivesse a avisá-la do perigo, ela estaria à escuta dos mínimos sons. As paredes daqueles apartamentos não eram muito espessas. Um grito, e alguém poderia ouvi-la. Estava satisfeito por ela ter deixado a porta do quarto aberta. Não teria de se preocupar com o facto de a porta ranger, quando fosse ao encontro dela.

 

Jimmy fechou os olhos. Queria repetir a posição exacta em que tinha estado ao acordar a irmã dela. Um joelho no chão junto da cama, os braços prontos a envolvê-la, as mãos em posição para lhe taparem a boca. Na realidade, tinha permanecido ajoelhado durante um minuto ou dois, antes de acordar a outra rapariga. Provavelmente não se daria a esse luxo, desta vez. O sono de Caroline devia ser leve. O seu espírito dizia-lhe que estivesse atenta.

 

Atenção. Uma bela palavra. Uma palavra para sussurrar do palco. Agora teria a sua carreira teatral. Broadway. Não apenas dinheiro por entrar num filme, mas prestígio. O seu nome nos cartazes.

 

Era Caroline que lhe dava azar, e ela estava prestes a desaparecer.

 

Caroline estava deitada, a tremer. O edredão leve, de penas, não conseguia aquecê-la. Tinha medo. Sentia um medo terrível. Porquê?

 

Lisa sussurrou. Lisa, foi isto o que tu sentiste? Acordaste? Soubeste o que estava a suceder-te? Eu ouvi-te gritar nessa noite e voltei a adormecer?

 

Ainda não o sabia ao certo. Era apenas uma impressão, uma imagem difusa, como num sonho, que lhe surgira na mente nas semanas que se seguiram à morte de Lisa. Tinha falado do assunto a Sean.

 

Penso que posso tê-la ouvido. Talvez se eu me tivesse forçado a acordar...

 

Sean tinha-a feito compreender que a sua reacção era a reacção das famílias das vítimas. A síndroma de ”se ao menos eu”. Naquele último ano, através dele e com ele, tinha começado a sentir paz, a cura. Excepto naquele momento.

 

Caroline voltou-se, na cama, e forçou-se a estender as pernas e os braços. ”Ansiedade irracional e profunda tristeza são sintomas de depressão”, tinha lido algures. ”A tristeza é natural”, pensou. ”É o aniversário, mas não vou ceder à ansiedade. Pensa nos dias felizes com Lisa. Naquela última noite.”

 

A mãe e o pai tinham ido a um seminário de banqueiros, em S. Francisco. Ela e Lisa tinham encomendado uma pizza com tudo, bebido vinho e conversado até se cansarem. Caroline também tinha feito o exame de admissão à Faculdade de Direito, mas ainda não estava certa do que queria fazer.

 

Gostei imenso de estar no grupo de teatro disse a Lisa. Não sou uma boa actriz, mas sei o que é representar bem. Acho que dava uma boa directora de cena. A peça correu muito bem, e Brian Kent, que eu sabia que era a pessoa certa para o papel principal, foi escolhido por um produtor. No entanto, se eu me licenciar em direito, talvez possamos abrir um escritório e dizer às pessoas que recebem o dobro pelo mesmo preço.

 

Tinham ido para a cama por volta das onze horas. Os seus quartos eram adjacentes. Geralmente deixavam a porta aberta, mas Lisa tinha querido ver um espectáculo televisivo e Caroline estava com sono, de modo que atiraram beijos uma à outra e Caroline fechou a porta. ”Se ao menos eu a tivesse deixado aberta”, pensou. ”Por certo a teria ouvido, se ela tivesse tido oportunidade de gritar.”

 

Na manhã seguinte só tinha acordado depois das oito. Lembrava-se de se ter sentado na cama, espreguiçado e pensado como era bom ter acabado as aulas. Como prémio de final de curso, Lisa e ela tinham recebido uma viagem à Europa, nesse Verão.

 

Caroline recordava-se de como tinha saltado da cama e decidido ir buscar café e sumo, e depois tinha colocado os copos, as chávenas e a cafeteira numa bandeja e subido as escadas.

 

A porta de Lisa estava entreaberta. Tinha-a aberto com um pontapé e gritado:

 

Acorda, rapariga! Daqui a uma hora temos ténis.

 

E então tinha visto Lisa. A cabeça inclinada de uma forma pouco natural, o fio enterrado no pescoço, os olhos fora das órbitas e cheios de medo, as palmas das mãos estendidas como se tentasse afastar alguém. Caroline tinha deixado cair a bandeja, derramando café sobre as pernas, tinha conseguido cambalear até ao telefone e marcar o 911, e depois tinha gritado, gritado, até os gritos se transformarem num som rouco e gutural. Acordara no hospital, três dias depois. Disseram-lhe que a polícia a tinha encontrado deitada ao lado de Lisa, com a cabeça dela no seu ombro.

 

A única pista, a marca parcial enlameada de uma sapatilha de corrida, tinha sido encontrada no interior da porta lateral.

 

Mas dissera-lhe mais tarde o chefe dos detectives ele ou ela foram suficientemente educados para limpar o resto da lama no tapete.

 

”Se ao menos tivessem encontrado o assassino de Lisa”, pensou Caroline, estendida no escuro. Todos os detectives achavam que tinha sido alguém que conhecia Lisa. Não tinha havido tentativa de roubo. Nem tentativa de estupro. Tinham interrogado exaustivamente os amigos de Lisa, os rapazes com quem ela tinha saído na escola. Tinha havido um jovem, na turma dela, que estava obcecado por Lisa. Tinha sempre sido um dos principais suspeitos, mas a polícia não tinha conseguido provar que ele estivesse em St. Paul naquela noite.

 

Tinham pensado na possibilidade de erro de identidade, especialmente depois de saberem que nenhuma das jovens tinha dito aos colegas que tinha uma gémea idêntica.

 

A princípio não dissemos porque tínhamos prometido não o fazer. Aquilo tornou-se num jogo para nós dissera Caroline.

 

E os amigos da escola que visitavam a vossa casa?

 

Nós não trazíamos a casa os amigos da escola. Gostávamos de estar juntas durante as férias grandes e as pequenas.

 

”Oh, Lisa”, pensou Caroline, naquele momento. ”Se ao menos eu soubesse porquê. Se ao menos eu tivesse podido ajudar-te naquela noite.” Não tinha sono, mas subitamente sentiu-se fatigada.

 

Finalmente as pálpebras começaram a fechar-se por si. ”Oh, Lisa”, pensou, ”gostava que te sentisses tão feliz como eu. Se ao menos eu pudesse compensar-te.”

 

A janela estava aberta alguns centímetros em baixo. Os fechos laterais de protecção impediam-na de subir mais. Naquela altura, uma rajada de vento fez bater o estore. Caroline sentou-se na cama, assustada, percebeu o que se passara e forçou-se a deitar-se de novo. ”Pára com isso”, disse a si mesma, ”pára com isso.” Fechou deliberadamente os olhos e, ao fim de algum tempo, caiu num sono leve, povoado de sonhos, um sono em que Lisa tentava chamá-la, avisá-la.

 

Era a altura. Jimmy Cleary sentia-o. O roçagar dos lençóis tinha cessado. Não vinha som absolutamente algum do quarto. Deslizou por entre os casacos que o tinham escondido e afastou o saco que continha o vestido de Caroline. As dobradiças produziram um leve som de fricção quando abriu a porta do roupeiro, mas não houve reacção alguma proveniente do quarto. Caroline tinha uma lâmpada nocturna acesa, que projectava apenas a luz suficiente para lhe permitir constatar que o seu sono era inquieto. A sua respiração era regular mas pouco profunda. Voltou diversas vezes a cabeça de um lado para o outro, como se estivesse a protestar.

 

Jimmy apalpou o fio dentro do bolso. Era estranhamente reconfortante pensar que provinha do mesmo rolo do que tinha usado na irmã dela. Aquele até era o mesmo fato de treino que tinha usado cinco anos antes, e calçava as mesmas sapatilhas. Sabia que era um pouco arriscado conservá-las, no caso de a polícia o interrogar, mas nunca tinha conseguido deitá-las fora. Tinha-as guardado num local onde ninguém fazia perguntas. Tinha, evidentemente, usado um nome diferente.

 

Nas pontas dos pés, aproximou-se da cama de Caroline e ajoelhou-se.

 

Conseguiu saborear um minuto inteiro a observá-la, antes que os olhos dela se abrissem e as mãos dele lhe cobrissem a boca.

 

Sean viu o noticiário das dez horas, constatou que não sentia sono algum e abriu um livro que andava com vontade de ler. Minutos depois, pô-lo de parte, impacientemente. Havia algo de errado. Sentia-o tão nitidamente como se visse fumo a sair do quarto ao lado e percebesse que a casa estava a arder. Ia telefonar a Caroline. Saber como ela estava. Por outro lado, talvez ela tivesse conseguido adormecer. Dirigiu-se à garrafeira e serviu-se de uma generosa quantidade de uísque. Alguns goles ajudaram-no a pensar que estava, provavelmente, a agir com excessivo nervosismo.

 

Caroline abriu os olhos ao ouvir sussurrar o seu nome. ”É um pesadelo”, pensou, ”tenho estado a sonhar.” Ia começar a gritar, quando sentiu uma mão tapar-lhe a boca, uma mão dura, musculosa, que lhe esmagava os malares, que lhe fechava os lábios e quase lhe cobria as narinas. Arquejou, com falta de ar. Tentou afastar-se, mas o homem estava a segurá-la com o outro braço. O seu rosto estava perto do dela.

 

Caroline murmurou, vim emendar o meu erro.

 

A luz nocturna projectava estranhas sombras em volta da cama. Aquela voz. Já a tinha ouvido antes. O contorno da sua testa ousada, o queixo quadrado. Os ombros largos. Quem seria?

 

Caroline, a toda-poderosa directora de cena. Reconheceu a voz. Jimmy Cleary. Jimmy Cleary, e nesse mesmo instante percebeu porquê. Como numa cena de um filme, o momento em que tinha dito a Jimmy que ele não servia para o papel perpassou na mente de Caroline. Ele tinha aceite tão bem. Demasiadamente bem. Ela não tinha querido saber que ele estava a representar. Tinha sido mais fácil fazer de conta que ele concordava com a sua decisão. ”E ele matou Lisa, quando queria matar-me amim.A culpa foi minha.” Um gemido escapou-se-lhe dos lábios, morreu na palma da mão dele. ”A culpa foi minha. Minha.”

 

E então ouviu a voz de Lisa, tão nitidamente como se Lisa estivesse a falar-lhe ao ouvido, a dizer-lhe segredos de novo, como faziam quando crianças. A culpa não foi tua, mas será tua se o deixares matar de novo. Não permitas que isso aconteça ao pai e à mãe. Não permitas que isso aconteça a Sean. Envelhece por mim. Tem filhos. Dá a uma filha o meu nome. Tens de viver. Escuta-me. Diz-lhe que não cometeu um erro. Diz-lhe que também me odiavas. Eu ajudo-te.

 

Sentia o calor da respiração de Jimmy Cleary no seu rosto. Ele falava-lhe do papel, de Brian Kent ter sido contratado pelo produtor, do novo contrato de Brian.

 

Vou matar-te exactamente da mesma maneira que matei a tua irmã. Um actor continua a desempenhar o seu papel até ser perfeito nele. Queres ouvir a última coisa que eu disse à tua irmã? Ergueu um pouco a mão para que ela pudesse formular uma resposta.

 

Diz-lhe que tu és eu.

 

Durante uma fracção de segundo, Caroline viu-se com 6 anos de novo. Ela e Lisa estavam a brincar nas fundações de uma casa em construção perto delas. Lisa, sempre mais ousada, sempre segura, seguia à frente, sobre os tijolos.

 

Não sejas medricas instou, vem atrás de mim. Ouviu-se a si mesma murmurar:

 

Adorava ouvir. Quero saber como é que ela morreu, para me rir. Tu mataste mesmo a Caroline. Eu sou a Lisa.

 

Sentiu a mão dele bater-lhe na boca com força selvagem.

 

Alguém tinha alterado o guião. Furiosamente, Jimmy enterrou os dedos nas faces dela. Nas faces de quem? De Caroline? Se já a tinha morto, por que é que a sua sorte não tinha mudado? Sem mover o braço pousado sobre o peito dela, meteu a mão no bolso superior do fato de treino e tirou o fio; ”Acaba com isso”, disse a si próprio. ”Se estiverem ambas mortas, podes ter a certeza de que mataste a Caroline.”

 

Mas era como estar no palco no terceiro acto, sem saber como a peça acabava. Se um actor não conhecesse o clímax, como se poderia esperar que a audiência sentisse qualquer tensão? Porque havia uma audiência, uma audiência invisível chamada destino. Tinha de ter a certeza.

 

Se tentares gritar, não consegues soltar mais que um latido disse-lhe. Foi tudo o que a tua irmã conseguiu.

 

Ela tinha ouvido Lisa, naquela noite.

 

Por isso acena com a cabeça se prometes não gritar. Vou conversar contigo. Talvez, se me conseguires convencer, te deixe ficar viva. Wexford quer que tu sejas a primeira coisa que ele vê todas as manhãs, durante o resto da vida, não é? Ouvio dizer isso.

 

Jimmy Cleary já lá estava quando eles tinham entrado. Caroline sentiu a escuridão cerrar-se à sua volta.

 

Faz o que ele diz! Não te atrevas a desmaiar. A voz autoritária de Lisa. ”Falou a duquesa”, costumava dizer-lhe Caroline, e desatavam ambas a rir.

 

Jimmy flectiu o braço que se encontrava sobre o corpo de Caroline, passou o fio em volta do pescoço dela e atou-o num nó corrediço. Tinha o dobro do comprimento do pedaço que tinha utilizado da última vez. Tinha-lhe ocorrido que, desta vez, faria um nó duplo, um gesto de final de acto, enquanto abandonava a ribalta da morte.

 

O comprimento extra dava-lhe a possibilidade de a manipular. Calmamente, disse-lhe que saísse da cama, que estava com fome, queria que ela lhe preparasse uma sanduíche e café e que estava a segurar no extremo da corda e a puxaria até a estrangular se ela erguesse a voz ou tentasse fazer o que não devia.

 

Faz o que ele diz.

 

Obedientemente, Caroline sentou-se na cama, quando Jimmy retirou o peso do braço de cima do seu corpo. Os pés dela tocaram a madeira fria do chão. Automaticamente, procurou as chinelas.. ”Posso estar morta dentro de segundos e preocupo-me por estar descalça”, pensou. Quando se inclinou para a frente, o fio enterrou-se-lhe no pescoço.

 

Não... por favor. Havia pânico na sua voz.

 

Calada! Sentiu as mãos de Jimmy Cleary no seu pescoço, alargando o fio. Não te mexas tão depressa e não voltes a levantar a voz.

 

Lado a lado, atravessaram a sala e entraram na cozinha. A mão dele pousada na sua nuca. Os seus dedos agarravam o fio. Mesmo solto, ela sentia a sua pressão, como uma tira de aço. Na sua mente, via o fio acinzentado enterrado na garganta de Lisa. Pela primeira vez começou a recordar-se do resto dessa manhã. Tinha ligado para o 911 e começado a gritar. Depois tinha largado o auscultador. O corpo de Lisa estava à beira da cama, como se, no último momento, tivesse tentado fugir. ”A pele dela estava azul, pensei que ela devia ter frio e tentei aquecê-la”, lembrou-se Caroline, ao abrir a porta do frigorífico. ”Dei a volta à cama, meti-me entre os lençóis e abracei-a, e comecei a falar com ela, e tentei retirar-lhe o fio do pescoço, e depois senti que estava a cair.”

 

Agora o fio rodeava o seu pescoço. De manhã, iria Sean encontrá-la como ela encontrara Lisa?

 

Não. Isso não pode acontecer. Faz-lhe uma sanduíche. Faz-lhe café. Age como se estivessem ambos a representar uma grande cena. Diz-lhe como eu era autoritária. Anda. Aproveita as coisas boas e dá-lhes a volta. Culpa-me daquilo que ele me culpar.

 

Caroline olhou para o interior do frigorífico e teve uma rápida sensação de alívio por ter adiado o momento de o esvaziar. Tinha sempre à mão ingredientes para fazer sanduíches a Sean; a mulher que fazia a limpeza levá-los-ia de manhã. Retirou fiambre e queijo, peru, alface, maionese e mostarda. Recordava-se de que, no liceu, quando o elenco da peça saía para fazer uma refeição, Jimmy Cleary pedia sempre uma sanduíche gigante.

 

Como é que eu poderia saber isso? Pergunta-lhe o que é que ele quer.

 

Ergueu o olhar. A única luz provinha do frigorífico, mas os seus olhos começavam a adaptar-se à escuridão. Via nitidamente o inconfundível queixo quadrado que endurecia o rosto de Jimmy Cleary, e a raiva e a confusão no seu semblante. Com a boca seca pelo medo, sussurrou:

 

Que tipo de sanduíche prefere? Peru? Fiambre? Tenho pão integral ou pãezinhos italianos.

 

Sentiu que tinha passado no primeiro teste.

 

Tudo. Mete tudo num pãozinho.

 

Sentiu o fio alargar um pouco. Pôs a chaleira ao lume. Fez a sanduíche rapidamente, empilhando peru e fiambre em cima do queijo, espalhando a alface, cobrindo o pão com maionese e mostarda.

 

Ele fê-la sentar-se ao seu lado, à mesa. Ela serviu-se também de café, forçando-se a bebê-lo. O fio enterrava-se-lhe no pescoço. Ergueu a mão para o alargar.

 

Não lhe toques. Alargou-o ligeiramente.

 

Obrigada. Observou-o enquanto devorava a sanduíche. Fala com ele. Tens de convencê-lo antes que seja tarde de mais.

 

Penso que me disse o seu nome, mas não o fixei. Ele engoliu o último pedaço de sanduíche.

 

Nos cartazes é James Cleary. O meu agente e os meus amigos chamam-me Jimmy.

 

Ele estava a beber o café. Como poderia fazê-lo acreditar, confiar nela? Donde estava sentada, Caroline podia ver o roupeiro da entrada. Tinha estado quase fechado. Era ali que ele tinha estado escondido. Sean tinha querido ficar com ela. Como desejava tê-lo deixado ficar. Naqueles primeiros anos depois da morte de Lisa, tinha havido alturas em que lhe parecia demasiado difícil chegar ao fim do dia. Apenas as pesadas exigências do curso de Direito a tinham impedido de mergulhar numa depressão suicida. Agora revia o rosto de Sean, tão inexprimivelmente adorado. ”Quero viver”, pensou. ”Quero o resto da minha vida.”

 

Jimmy Cleary sentia-se melhor. Nem se tinha apercebido de como estava cheio de fome. De certo modo, aquilo estava a ser melhor que da última vez. Agora estava a representar a cena do gato e do rato. Agora era o juiz. Aquela seria Caroline? Talvez não tivesse cometido um erro, da última vez. Mas se tinha despachado Caroline, por que é que o seu azar não tinha desaparecido? Acabou de beber o café. Os seus dedos enrolaram-se em volta da extremidade do fio, apertando-o ligeiramente. Estendendo a mão, acendeu o candeeiro que estava sobre a mesa. Queria estudar o rosto dela.

 

Diz-me lá então disse descontraidamente. Por que é que eu devo acreditar em ti? E se acreditar em ti, por que hei-de deixar-te viver?

 

Sean despiu-se e tomou um duche. Observou-se atentamente no espelho da casa de banho. Dentro de dez dias faria 34 anos. Caroline ia fazer 27 no dia seguinte. Festejariam os seus aniversários em Veneza. Seria bom sentar-se na Praça de São Marcos com ela, a beber vinho e a escutar os sons suaves dos violinos, e a ver deslizar as gôndolas. Era uma imagem que tinha acorrido à sua mente por diversas vezes, nas últimas semanas. Naquela noite não conseguia. A imagem não se formava no seu espírito.

 

Tinha de falar com Caroline. Envolvendo-se numa espessa toalha de banho, dirigiu-se ao telefone da mesa-de-cabeceira. Era quase meia-noite. Mesmo assim, marcou o número. ”Para o diabo as desculpas”, pensou. ”Vou só dizer-lhe que a amo.”

 

Não é fácil ser-se gémea.Caroline inclinou a cabeça, para poder olhar directamente para Jimmy Cleary. A minha irmã e eu estávamos sempre a discutir. Eu chamava-lhe a Duquesa. Era muito autoritária. Quando éramos pequenas, ela fazia as coisas e arranjava maneira de me culpar. Acabei por a odiar. Por isso fomos para escolas em extremos opostos do continente. Eu queria afastar-me dela. Eu era a sombra dela, a sua imagem no espelho, não era uma pessoa. Naquela última noite, ela queria ver televisão e tinha o televisor avariado. Por isso forçou-me a trocar de quarto. Quando a encontrei, de manhã, acho que desmaiei. Mas, como vê, nem sequer os meus pais deram pelo engano.

 

Caroline abriu os olhos. Baixou a voz, tornando-a íntima, dando-lhe um tom confidencial:

 

Você é um actor, Jimmy. Deve compreender. Quando voltei a mim, todos me chamavam Caroline. Sabe quais foram as primeiras palavras que a minha mãe disse quando eu acordei? ”Oh, Caroline, graças a Deus não foste tu.”

 

Muito bem. Estás a convencê-lo.

 

Tinha 6 anos de novo. Estavam a brincar nas fundações da casa. Lisa corria cada vez mais depressa. Caroline tinha olhado para baixo e sentido tonturas. Mas continuava a esforçar-se por a seguir.

 

Jimmy estava a divertir-se. Sentia-se como um agente a dizer a uma candidata que lhe fizesse uma leitura.

 

Então decidiste, de um momento para o outro, que ias ser a Caroline. Como é que te safaste? Caroline frequentava a Rawlings. Que é que sucedeu quando os amigos de Caroline da Rawlings vieram a tua casa?

 

Caroline acabou o seu café. Detectava lampejos de loucura nos olhos de Jimmy Cleary.

 

Não foi difícil. Choque. Foi essa a desculpa. Os médicos chamaram-lhe amnésia psicológica. Toda a gente foi muito compreensiva.

 

Ou ela era uma belíssima actriz, ou estava a dizer a verdade. Jimmy sentia-se intrigado. Começava a sentir que uma parte da sua raiva estava a desaparecer. Aquela rapariga era diferente de Caroline. Mais meiga. Mais simpática. Sentiu uma relação com ela, uma afinidade que lamentava. Fosse como fosse, não podia deixá-la viva. O único problema estava em que, se ele tinha morto Caroline, se ela não estivesse a mentire ainda não tinha a certeza disso, por que é que a sua sorte não tinha mudado cinco anos antes?

 

Como era encantador o pijama vermelho e branco que ela vestia. Pousou a mão no braço dela e depois retirou-o. Teve um pensamento súbito:

 

E Wexford? Como é que o conheceste?

 

Chocámos um com o outro. Ouvi-o chamar-me ”Caroline” e percebi que era alguém que eu devia conhecer. Disse-me o seu nome quando me encontrou, num dia em que fazíamos jogging e, logo a seguir, falou-me de me ter visto na sua aula, de modo que eu fingi que era assim.

 

Recorda a Jimmy que Sean não ligou à verdadeira Caroline na Rowlings. Diz-lhe que por ti se apaixonou imediatamente.

 

Jimmy mudava constantemente de posição. Caroline disse:

 

Nem sei dizer-lhe quantas vezes Sean me disse que eu era muito mais simpática agora. E isso porque eu não sou a mesma pessoa. Não acha engraçado? Sinto-me satisfeita por partilhar do meu segredo, Jimmy. Durante cinco anos tem sido o meu benfeitor secreto, e finalmente acabo por conhecê-lo. Quer mais café?

 

Ela estaria a tentar aldrabá-lo? Falaria verdade?

 

Tocou-lhe no cotovelo.

 

Sabia-me bem mais café. Ficou de pé, junto dela, um pouco para o lado, enquanto ela aquecia a chaleira no fogão. Era uma rapariga muito bonita. Mas sabia que não poderia deixá-la viver. Acabaria o seu café, levá-la-ia de novo para o quarto e matá-la-ia. Primeiro havia de explicar-lhe a questão do seu azar. Olhou para o relógio. Era meia-noite e meia. Tinha morto a outra irmã à meia-noite e quarenta, a sincronização era perfeita. Veio-lhe à mente a imagem da outra rapariga a estender as mãos como se o quisesse arranhar, os olhos dela ardentes e desorbitados. Às vezes sonhava com aquilo. Durante o dia, a recordação dava-lhe prazer. De noite, fazia-o suar.

 

O telefone tocou.

 

A mão de Caroline apertou convulsivamente a asa da chaleira. Sabia que era Sean. Em outras noites em que tinha sentido que ela estava deprimida, provavelmente sem conseguir dormir, ele tinha-lhe telefonado.

 

Convence Jimmy de que tens de atender o telefone. Tens que dar a entender a Sean que precisas dele.

 

O telefone tocou uma segunda, uma terceira vez.

 

O suor brilhava na testa e sobre o lábio superior de Jimmy.

 

Deixa tocar disse ele.

 

Jimmy, tenho a certeza de que é o Sean. Se eu não responder, ele vai pensar que há qualquer coisa errada. Não o quero aqui. Quero conversar consigo.

 

Jimmy considerou a hipótese. Se fosse Wexford, ela estaria provavelmente a dizer a verdade. O telefone continuava a tocar. Estava ligado a um gravador.

 

Jimmy carregou no botão que tornava a conversa audível, levantou o auscultador e entregou-lho. Apertou o fio de modo a morder-lhe o pescoço.

 

Caroline sabia que a sua voz não poderia soar trémula.

 

Está? Conseguiu parecer sonolenta e foi recompensada por um ligeiro afrouxamento da pressão no pescoço.

 

Caroline querida, estavas a dormir. Desculpa-me. Estava preocupado por estares tão deprimida. Sei o que esta noite representa para ti.

 

Não, ainda bem que telefonaste. Não estava propriamente a dormir. Estava a começar a ficar sonolenta. ”Que é que eu hei-de dizer-lhe?” pensava Caroline desesperadamente.

 

O vestido. O vestido de noiva.

 

É um bocado tarde ouviu Sean dizer. Acabaste de fazer as malas ontem, afinal?

 

Jimmy tocou-lhe no ombro e acenou afirmativamente com a cabeça.

 

Sim. Sentia-me sem sono e acabei de fazer as malas. Jimmy começava a mostrar-se impaciente. Fez-lhe sinal para acabar com a conversa. Caroline mordeu o lábio. Se não conseguisse fazer alguma coisa, era o fim.

 

Sean, adoro-te por me teres telefonado e estou muito bem. Estou pronta às sete e meia. Só uma coisa. Quando embalaram o meu vestido, lembraste-te de lhes dizer para meterem muito papel por baixo das mangas para não se amarrotarem? Pensou: ”Meu Deus, espero que ele não me traia.”

 

Sean sentiu que os dedos que agarravam o auscultador se tornavam pegajosos de suor. O vestido. O vestido de Caroline não tinha mangas. E havia outra coisa. A voz dela tinha um som cavo. Ela não estava na cama. Estava no telefone da cozinha e o botão de som alto tinha sido premido. Não estava sozinha. Com um esforço supremo, conservou a voz calma.

 

Querida, poderia jurar sobre uma pilha de bíblias que a vendedora disse qualquer coisa a esse respeito. Julgo que a tua mãe também tinha telefonado a lembrar-lhe isso. Agora escuta, dorme bem. Vemo-nos pela manhã e não te esqueças de que eu te amo. Conseguiu pousar o auscultador suavemente, e depois tirou a toalha e foi buscar o fato de treino ao roupeiro. As chaves do apartamento de Caroline estavam em cima da cómoda com as chaves do carro. Deveria perder tempo a telefonar à polícia? O telefone do seu carro. Telefonaria enquanto fosse a caminho. ”Meu Deus”, pensou, ”peço-te...”

 

Sean tinha percebido. Caroline pousou o auscultador e olhou para Jimmy.

 

Portaste-te bem disse ele. E sabes uma coisa? Começo a acreditar em ti. Levou-a outra vez para o quarto e forçou-a a deitar-se. Colocou o braço sobre ela, exactamente como tinha feito com a irmã. Depois explicou-lhe o que o seu professor, Cory Zola, lhe tinha dito sobre o seu azar.Estávamos a representar um duelo, na aula, na semana passada, e eu estava furioso. Feri o outro aluno. Zola zangou-se muito comigo. Tentei explicar-lhe que estava a pensar no azar que uma pessoa me tinha dado, e que me fazia estragar tudo. Ele disse-me que não fosse às aulas enquanto não me livrasse dele. Por isso, mesmo que eu acredite que matei a Caroline, da outra vez, tenho de me livrar dessa sensação, porque não posso voltar às aulas sem me ver livre dele,. E, segundo as minhas regras, Lisa... é esse o teu verdadeiro nome, hein?... tu herdaste-a.

 

Os olhos dele chamejavam. Tinha uma expressão vazia, fria. ”Está louco”, pensou Caroline. ”Sean vai levar quinze minutos a chegar aqui. Já passaram três. Ainda faltam doze minutos. Lisa, ajuda-me.”

 

É o Brian Kent que lhe dá azar. ”O Desconhecido do Norte Expresso.”

 

Sentia a boca muito seca. O rosto dele estava muito próximo do seu. Sentia o odor da transpiração que escorria pelo corpo dele. Sentiu os dedos dele começarem a puxar o fio. Conseguiu falar num tom despreocupado.

 

Matar-me não vai resolver nada. É o Brian Kent que lhe dá azar, não eu. Se ele ficar fora do caminho, terá a sua oportunidade. E se eu o matar, ficarei tanto nas suas mãos como você nas minhas.

 

O arquejo de estupefacção dele deu-lhe esperanças. Tocou-lhe na mão.

 

Pare de puxar esse fio, Jimmy, e escute-me durante dois minutos. Deixe-me sentar-me. Veio-lhe de novo à memória aquele dia em que brincava a seguir o chefe, nas fundações da casa nova. A certa altura, tinham chegado a um espaço aberto destinado a uma janela. Lisa tinha saltado para o outro lado. Caroline, alguns passos atrás, tinha hesitado, fechado os olhos e saltado, mal conseguindo ultrapassar o espaço aberto. Estava a dar um salto, naquele momento. Se falhasse, estava tudo perdido. Sean vinha a caminho. Sabia que ele vinha. Só precisava de se manter viva durante os próximos onze minutos.

 

Jimmy afrouxou a pressão do braço, permitindo-lhe que se sentasse. Ela flectiu as pernas e encostou-as ao corpo, envolvendo os joelhos com as mãos. O fio enterrava-se nos músculos do pescoço, mas não ousava pedir-lhe que o afrouxasse mais.

 

Jimmy, disse-me que o seu grande problema era parecer-se muito com Brian Kent. E se acontecesse qualquer coisa a Brian? Iriam precisar de alguém que o substituísse. Então, transforme-se nele. Substitua-o, como eu substituí Caroline. Ele sofre um acidente súbito, eles vão andar frenéticos à procura de alguém para entrar naquele filme. Por que não havia de ser você?

 

Jimmy sacudiu o suor da testa. Ela estava a sugerir-lhe uma nova interpretação do papel que Brian desempenhava na sua vida. Sempre se tinha concentrado em ser uma estrela, em ser maior que Brian, ultrapassá-lo, conseguir uma mesa melhor nos restaurantes, vê-lo desaparecer gradualmente. Nunca tinha pensado no desaparecimento súbito de Brian. E mesmo que matasse aquela rapariga, aquela Lisa, porque agora acreditava que ela fosse Lisa, Brian Kent continuaria a assinar contratos, a pousar para fotografias na revista People. E, o que era pior, os agentes continuariam a dizer-lhe que ele tinha o tipo de Brian Kent.

 

Ele estaria a acreditar nela? Com a língua, Caroline tentou humedecer os lábios. Estavam tão secos que tinha dificuldade em falar.

 

Se me matar agora, descobrem-no, Jimmy, a polícia não é parva. Puseram sempre em dúvida que tivesse sido morta a gémea certa.

 

Ele estava a escutá-la.

 

Jimmy, nós podemos fazer como no Desaparecimento do Norte Expresso. Lembra-se do enredo? Duas pessoas que trocam crimes. Não havia motivos. A sua única diferença está em que levaremos tudo a cabo. Você já fez a sua parte. Tirou-me a Caroline do caminho. Agora deixe-me livrá-lo do Brian Kent.

 

O Desconhecido do Norte Expresso. Jimmy tinha representado uma cena desse filme numa aula. Tinha sido perfeito. Cory Zola tinha dito: ”Jimmy, nasceste para isto.” Os olhos dele percorreram-lhe o rosto. Vejam só, estava a sorrir-lhe. Era das boas. Se ela tinha conseguido convencer a família de que era Caroline, seria capaz de convencer Brian Kent e dar cabo dele. Mas que garantia poderia ter de que ela não desatava a gritar pela polícia, mal saísse de junto dela? Perguntou-lho.

 

Jimmy, tem a melhor garantia do mundo. Sabe que eu sou Lisa. Eles nunca investigaram as impressões digitais de Caroline. Podia entregar-me, se quisesse. Sabe o que isso faria aos meus pais, a Sean? Acha que eles me perdoariam? Cravou os olhos directamente nos de Jimmy, aguardando a sua decisão.

 

Sean saiu de casa a correr, e depois mordeu o lábio, cheio de frustração. O carro de Caroline estava a bloquear o seu. Queria poder telefonar à polícia do caminho. Voltou a correr para casa, agarrou nas chaves dela, tirou o carro dela do caminho e entrou no seu. Enquanto recuava com louca velocidade para a estrada, arrancou o auscultador do telefone e marcou 911.

 

Jimmy experimentava uma estonteante sensação de renascimento. Quantas vezes, em L. A., tinha visto Brian Kent passar ao volante do seu Porsche? Tinham andado quatro anos juntos no liceu, mas Brian nunca lhe tinha concedido mais que uma fria inclinação da cabeça, quando se encontravam. Tudo seria melhor se Brian deixasse de existir. E Lisa era Lisa, estava convencido disso tinha razão. Ele ficaria com ela na mão. Deliberadamente, afrouxou o fio, mas não o retirou do pescoço dela.

 

Vamos supor que eu acredito em ti. Como é que o apanhavas? Caroline esforçou-se por afastar a sensação de desfalecimento que acompanhava a esperança. Que havia de dizer-lhe?

 

Vais para a Costa. Vais procurar Brian.

 

Desesperadamente, procurou uma trama plausível. Voltou a ter 6 anos, saltava sobre as fundações da casa. Os espaços entre os blocos eram cada vez maiores.

 

Veneno. Veneno.

 

Sean tem um amigo, um professor universitário, especializado na história da Medicina. Na semana passada, ao jantar, esteve a falar de que há muitos venenos absolutamente indetectáveis. Descreveu-nos um deles, e o modo de o preparar, a partir de coisas que há em todos os armários de remédios. Bastam umas gotas. No próximo mês, quando voltar da minha lua de mel, tenho de ir à Califórnia, para servir de testemunha. Telefono ao Brian. Afinal fui eu... quero dizer, a Caroline... quem lhe deu a sua oportunidade. Certo?

 

Tem cuidado.

 

Tinha-se distraído. Mas Jimmy não parecia ter notado. Escutava-a atentamente. A transpiração tinha-lhe encaracolado o cabelo de tal modo que lhe caía em caracóis húmidos sobre a testa. Não se lembrava de o cabelo dele ser tão encaracolado. Ele devia ter ido ao cabeleireiro. Agora estava exactamente com o mesmo corte de cabelo que ela tinha visto a Brian Kent no seu último filme.

 

Tenho a certeza de que ele vai ficar satisfeito por me ver prosseguiu. Como se estivesse a estender as pernas por causa das cãibras pousou os pés ao lado da cama.

 

A mão dele estendeu-se e rodeou a extremidade do fio. Ela colocou a mão sobre a dele.

 

Jimmy, há um veneno que leva uma semana, dez dias a actuar. Os sintomas só começam a sentir-se três ou quatro dias depois. Mesmo que haja um inquérito, quem ligaria a um assassínio o facto de Brian ter tomado café com uma antiga colega, que acabou de se casar com um professor de Princeton? É um enredo perfeito.

 

Jimmy deu consigo a acenar afirmativamente com a cabeça. Aquela noite tinha-se transformado num sonho, num sonho que faria recomeçar toda a sua vida. Podia confiar nela. Com uma estonteante clareza, aceitava a verdade do que ela lhe tinha feito ver. Enquanto Brian Kent estivesse vivo, ele, que era o melhor actor do mundo, continuaria desconhecido. A lâmpada nocturna do quarto transformou-se numa luz da ribalta. A sala mergulhada na escuridão era o teatro onde a assistência se sentava. Ele estava de pé, no palco. O público aplaudia. Saboreou esse momento e depois afagou o queixo de Caroline não, de Lisa.

 

Acredito em timurmurou. Quando é que vais à Califórnia?

 

Aguenta. Estás quase salva.

 

Corriam cada vez mais depressa sobre as fundações. Ela não conseguia aguentar mais. Caroline sentiu que a voz lhe falhava ao dizer:

 

Na segunda semana de Julho.

 

As dúvidas de Jimmy que ainda subsistiam desapareceram. Kent deveria iniciar o seu novo filme no dia 1 de Agosto. Se nessa altura estivesse morto, andariam todos loucos à procura de um substituto.

 

Pôs-se de pé e fez Caroline levantar-se.

 

Vou tirar-te essa coisa do pescoço. Lembra-te de que ela fica no meu bolso, para o caso de voltar a precisar dela. Agora vou-me embora. Temos um acordo. Mas se tu não cumprires a tua parte do acordo, uma noite em que o teu professor não esteja, ou numa tarde em que tenhas de parar no sinal vermelho, eu aparecerei.

 

Caroline sentiu o fio afrouxar, sentiu-o retirar-lho por cima da cabeça. Irrompiam-lhe na garganta soluços histéricos de alívio.

 

Está combinado conseguiu dizer.

 

Ele enterrou os dedos nos ombros dela e beijou-a na boca.

 

Não selo os meus acordos com um aperto de mãos disse. É pena não ter mais tempo. Era capaz de me entusiasmar contigo. A sua caricatura de sorriso transformou-se num sorriso aberto. Sinto que o azar já desapareceu. Vem. Dirigiu-se com ela até à porta das traseiras. Estendeu a mão para abrir a corrente.

 

Caroline viu, de relance, o relógio da cozinha. Tinham passado doze minutos desde o telefonema de Sean. Nos próximos trinta segundos, Jimmy ir-se-ia embora e ela poderia fechar a porta e barricar-se. Dentro de alguns minutos Sean chegaria.

 

Novamente a recordação dos 6 anos, da corrida sobre as fundações. Ela tinha olhado para baixo. Estava a cerca de três metros do chão. Lá em baixo havia pedaços de betão quebrado. Lisa deu o último salto sobre um amplo espaço destinado a uma porta...

 

Jimmy abriu a porta. Ela sentiu o ar frio da noite no rosto. Ele voltou-se para ela.

 

Sei que nunca tiveste oportunidade de me ver representar, mas sou um grande actor.

 

Sei que és um grande actor ouviu-se Caroline dizer. Não é verdade que, depois de A Morte de um Caixeiro Viajante, toda a gente no liceu te tratava por Bill?

 

Nas fundações, ela tinha hesitado naquele momento, antes de dar o salto final atrás de Lisa. Tinha perdido o ímpeto. Tinha caído e batido com a cabeça no cimento. Doente de medo, percebeu que uma vez mais não tinha conseguido seguir Lisa.

 

A porta fechou-se bruscamente. Durante uma fracção de segundo, ela e Jimmy fitaram-se.

 

Lisa não teria podido saber disso sussurrou Jimmy. Estiveste a mentir-me. Tu és a Caroline. As mãos dele dirigiram-se ao seu pescoço. Ela tentou gritar, afastando-se dele, voltando-se e correndo, aos tropeções, para a porta da frente. Mas apenas um gemido fraco lhe saiu dos lábios.

 

Sean atravessava a grande velocidade as ruas silenciosas. A telefonista do 911 perguntava-lhe o seu nome, de onde estava a telefonar, qual a natureza da emergência.

 

Mande um carro-patrulha ao número oitenta e um de Priscilla Lane, apartamento 1-Aberrou. Não interessa como é que eu sei se se está a passar alguma coisa. Mande lá um carro.

 

E qual é a natureza da emergência? repetiu a telefonista.

 

As mãos de Jimmy caíram sobre a porta da frente, quando ela tentava abrir a fechadura. Caroline baixou-se e fugiu-lhe, correndo em volta do cadeirão. À luz difusa, viu-se de relance no espelho por cima do sofá, com a presença dele logo atrás. Sentia o hálito dele a queimar-lhe o pescoço. Se ao menos conseguisse viver mais um minuto! Sean estava a chegar. Antes que conseguisse completar o pensamento, Jimmy tinha saltado sobre o cadeirão. Estava diante dela. Viu o fio nas mãos dele. Ele fê-la girar. Sentiu que ele lhe puxava os cabelos, lhe colocava o fio em volta do pescoço, viu o reflexo de ambos no espelho por cima do sofá. Caiu de joelhos e o fio esticou-se. Tentou fugir-lhe, de gatas, e sentiu-o inclinar-se sobre ela.

 

Acabou tudo, Caroline. Chegou realmente a tua vez de seres a vítima.

 

Sean voltou para a rua de Caroline. Os travões guincharam quando os calcou diante da casa. Ouvia sirenes à distância. Correu para casa e experimentou o puxador. Bateu na porta com um punho, enquanto com a outra mão procurava as chaves dentro do bolso. Lembrou-se de que o raio da fechadura de segurança não tinha sido devidamente montada. Era preciso puxar a porta para si, para conseguir abri-la. Na sua ansiedade, não conseguia dar o jeito devido. Teve de dar três voltas à chave antes de soltar a segurança. Depois a outra chave, para a fechadura normal. Por favor...

 

Ela estava de joelhos, agarrada ao fio. Este estava a estrangulála. Ouvia Sean a bater à porta, a chamar por ela. Tão perto, tão perto. Os seus olhos abriram-se mais, à medida que lhe faltava a respiração. Rolavam sobre ela ondas de escuridão. ”Lisa... Lisa... eu tentei.”

 

Não puxes. Inclina-te para trás. Inclina-te para trás, estou a dizer-te.

 

Num esforço final para salvar a vida, Caroline forçou-se para trás, a fazer deslizar o corpo em direcção a Jimmy em vez de se afastar dele. Por momentos, a pressão na garganta afrouxou. Conseguiu respirar um pouco, antes que o fio recomeçasse a apertá-la.

 

Jimmy não queria ouvir as pancadas na porta nem os gritos. Nada mais importava no mundo senão matar aquela mulher que tinha arruinado a sua carreira. Nada mais.

 

A chave rodou na fechadura. Sean abriu a porta de rompante. O seu olhar caiu sobre o espelho por cima do sofá e sentiu que o sangue lhe fugia do rosto.

 

Os olhos dela chamejavam, desorbitados, tinha a boca aberta, as palmas das mãos estendidas, as unhas como garras. Havia uma volumosa figura, vestindo um fato de treino, inclinada sobre ela, estrangulando-a com um fio. Por momentos, Sean ficou paralisado, incapaz de se mover. Nessa altura, o intruso ergueu o olhar e os olhos de ambos cruzaram-se no espelho. E Sean viu, naquela fracção de segundo, ainda incapaz de se mover, a expressão horrorizada que transtornou o rosto do outro homem, e viu-o largar o fio e tapar o rosto com as mãos.

 

Afasta-te de mim! gritou Jimmy. Não te aproximes! Vai-te embora.

 

Sean voltou-se. Caroline estava caída no chão, arrancando o fio que a sufocava. Sean mergulhou pela sala e caiu sobre o homem que a tinha estado a atacar. A força do golpe lançou Jimmy contra a janela. O som dos vidros estilhaçados misturou-se com os seus gritos e o gemido das sirenes, quando os carros-patrulha travaram diante da casa.

 

Caroline sentiu mãos que lhe arrancavam a corda do pescoço. Ouviu um gemido fraco que lhe saía da garganta. Depois a corda soltou-se e o ar penetrou-lhe nos pulmões. A escuridão, uma doce e bemvinda escuridão envolveu-a.

 

Quando acordou, estava estendida no sofá, com uma compressa gelada em volta do pescoço. Sean estava ao seu lado, dando-lhe palmadinhas nas mãos. A sala estava cheia de polícias.

 

Jimmy? a sua voz soava rouca como um grasnido.

 

Já o levaram. Oh, minha querida. Sean abraçou-a, apertando-a contra si, encostando-lhe a cabeça ao peito, acariciando-lhe os cabelos.

 

Por que é que ele começou a gritar? sussurrou ela. Que sucedeu? Mais uns segundos, e eu teria morrido.

 

Ele viu a mesma coisa que eu vi. Tu estavas reflectida no espelho por cima do sofá. Ele está completamente louco. Pensou que estava a ver Lisa. Julgou que ela vinha vingar-se.

 

Sean não a quis deixar. Depois da saída da polícia, estendeu-se ao lado dela no espaçoso sofá, puxou a manta para cima de ambos e abraçou-se a ela.

 

Tenta dormir um pouco. Segura nos seus braços, totalmente exausta, conseguiu adormecer.

 

Ele acordou-a às 6:30.

 

É melhor começares a preparar-te disse. Se te sentes bem, eu vou para casa tomar um duche e vestir-me. O sol invadia a sala.

 

Cinco anos antes, naquela manhã, ela tinha entrado no quarto de Lisa e tinha-a encontrado. Naquela manhã, tinha acordado nos braços de Sean. Ergueu as mãos e colocou-as em volta do rosto dele, adorando a barba que lhe despontava nas faces.

 

Estou bem. De verdade.

 

Depois de Sean sair, dirigiu-se ao quarto. Olhou deliberadamente para a cama, recordando-se do que tinha sentido ao abrir os olhos e ao ver Jimmy Cleary. Tomou um duche, deixando a água quente correr durante longos minutos sobre o corpo e os cabelos, lavando todos os vestígios da presença dele. Vestiu um fato de casaco e calças cor de caqui e colocou um cinto entrançado em volta da cintura. Enquanto escovava o cabelo, reparou no vergão roxo-avermelhado em volta do pescoço. Voltou-se rapidamente.

 

Era como se o tempo estivesse suspenso, à espera que ela fizesse o que tinha de ser feito. Fez a mala e colocou-a, com a sua carteira, perto da porta. E depois fez o que tinha de fazer.

 

Ajoelhou-se no chão, tal como tinha estado ajoelhada enquanto Jimmy Cleary tentava estrangulá-la. Arqueou o corpo para trás e olhou para o espelho. Exactamente como esperava. O fundo do espelho ficava menos de cinco centímetros acima dos seus cabelos. Não havia qualquer hipótese de se ter reflectido nele. Jimmy tinha razão: tinha visto Lisa.

 

Lisa, Lisa, obrigada sussurrou. Não sentiu qualquer resposta. Lisa tinha partido, como Caroline já sabia. Pela última vez, passou-lhe pela mente a ideia de que tinha sido a causa da morte de Lisa, mas conseguiu vencê-la. Tinh a sido um acto do destino, e não iria insultar a memória de Lisa pensando mais nisso. Pôs-se de pé e viu-se reflectida no espelho. Ternamente, levou a ponta dos dedos aos lábios e soprou um beijo. Adeus. Adoro-te disse em voz alta.

 

Ouviu um carro parar na rua. O carro de Sean. Caroline correu para a porta, abriu-a, colocou no exterior a mala e a carteira, e depois pegou no saco de plástico que envolvia o seu vestido de noiva e, com ele nos braços, fechou a porta atrás de si e correu ao encontro dele.

 

               O ANJO PERDIDO

 

Caía neve, naquela noite de véspera de Natal, numa torrente constante de pequenos flocos que fustigavam o ar, cobriam os ramos nus, se aglomeravam nos telhados. Pela madrugada, a tempestade começou a abrandar e um sol precário irrompeu por entre as nuvens.

 

Às seis horas, Susan Ahearn saiu da cama, ligou o termostato e fez café. Tremendo de frio, envolveu a chávena com as mãos. Sentia sempre frio; provavelmente por causa de todos os quilos que tinha perdido desde que Jamie desaparecera.

 

Os seus cinquenta e três quilos não chegavam para cobrir um metro e setenta de altura; os seus olhos, do mesmo verde-azulado dos de Jamie, pareciam grandes de mais para o seu rosto; os malares tinham-se tornado salientes; até mesmo o seu cabelo castanho-claro tinha adquirido um tom mais escuro, que acentuava o tom pálido e o ar magoado que agora apresentava.

 

Sentia-se infinitamente mais velha que os seus 28 anos; três meses antes, tinha passado o dia do seu aniversário a seguir mais uma pista inútil. A criança descoberta no Wisconsin, em casa de pais adoptivos, não era Jamie. Correu a meter-se de novo entre os cobertores, enquanto o ar quente silvava e sussurrava, invadindo a casa isolada, a vinte e duas milhas de Chicago.

 

O quarto tinha um aspecto curiosamente inacabado. Não havia quadros nas paredes, nem cortinados nas janelas, nem alcatifa ou carpetes no soalho de pinho. Havia caixotes fechados, empilhados ao acaso, num canto junto do roupeiro. Jamie tinha desaparecido pouco antes de saírem daquela casa.

 

Tinha sido uma longa noite. Tinha passado acordada a maior parte dela, tentando vencer o medo que era o seu companheiro de todos os momentos. E se nunca mais encontrasse Jamie? E se Jamie fosse mais uma daquelas crianças que simplesmente desaparecem? Para afugentar o vazio da casa, o gemido desolado do vento, o bater das janelas, Susan começou a fazer de conta.

 

És muito madrugadora disse.

 

Imaginou Jamie, com a sua camisa de noite de flanela vermelha e branca, a atravessar o quarto, descalça, e a trepar para a cama, deitando-se ao seu lado.

 

Tens os pés gelados...

 

Eu sei. A avó ia dizer que eu podia morrer. A avó diz sempre isso. Tu dizes que a avó é mórbida. Conta-me a história do Natal.

 

Não me venhas dizer o que diz a avó. Ela não tem grande sentido de humor. Os seus braços em volta de Jamie. Ajeitou os cobertores em volta dela. E agora vamos falar de Nova Iorque na véspera de Natal. Depois de atravessarmos o Central Park num fiacre puxado por cavalos, vamos almoçar no Plaza. É um hotel muito grande e muito bonito. E do outro lado da rua...

 

Vamos ver a loja de brinquedos...

 

A loja de brinquedos mais famosa do mundo. Chama-se F A O Schwarz. Tem comboios, e bonecas, e fantoches, e livros, e tudo.

 

Eu posso escolher três presentes...

 

Pensava que eram dois. Está bem, podem ser três. E depois vamos visitar o Menino Jesus em St. Pat...

 

O nome é Catedral de St. Patrick, mas nós, os irlandeses, somos mais amistosos. Toda a gente lhe chama St. Pat...

 

Fala-me da árvore... e das montras que parecem o país das fadas...

 

Susan conseguiu engolir o resto do café, apesar do nó que sentia na garganta. O telefone começou a tocar e ela tentou dominar os loucos batimentos de esperança do seu coração, ao correr para ele. Jamie! Fazei que seja Jamie!

 

Era a sua mãe, a telefonar da Florida. O tom triste que tinha passado a ser o tom normal da voz da mãe, desde o desaparecimento de Jamie, era especialmente nítido naquele dia. Determinadamente, Susan forçou a sua voz a soar positiva.

 

Não, mãe. Nem uma palavra. É claro que eu lhe teria telefonado... É difícil para todos nós. Não, tenho a certeza de que quero ficar aqui. Não se esqueça de que ela telefonou uma vez... Pelo amor de Deus, mãe, não não acho que ela esteja morta. Tenha dó. Jeff é o pai dela. À sua maneira gosta muito dela...

 

Desligou a chorar, mordendo o lábio para não desatar a soluçar histericamente, libertando todos os seus demónios. Nem mesmo a mãe sabia quanto ela estava a sofrer.

 

Até agora, tinham sido pronunciadas seis sentenças para a prisão de Jeff. O empresário com quem julgava ter casado era, na realidade, um ladrão de jóias internacional. A razão daquela casa afastada, naquela região distante, era proporcionar-lhe um bom esconderijo. Tinha sabido a verdade na Primavera anterior, quando os agentes do FBI tinham vindo prender Jeff, pouco depois de ele ter partido numa das suas ”viagens de negócios”. Nunca tinha voltado, de modo que ela pusera a casa à venda. Estava a fazer preparativos para se mudar para Nova Iorque os quatro anos que lá tinha passado na universidade tinham sido os mais felizes da sua vida. Depois, poucas semanas após o seu desaparecimento, Jeff tinha ido buscar Jamie à escola infantil e tinha-a levado consigo. Isso tinha ocorrido sete meses antes.

 

No caminho para o trabalho, Susan não conseguia livrar-se do medo que o telefonema da mãe tinha desencadeado. Pensas que Jamie está morta? Jeff era absolutamente irresponsável. Quando Jamie tinha 6 meses, tinha-a deixado sozinha em casa para ir comprar cigarros. Quando ela tinha 2 anos, não tinha reparado que ela estava dentro de água fora de pé. Tinha sido salva por um salva-vidas. Como é que ele poderia tomar bem conta dela? Por que é que ele a tinha querido?

 

O escritório de venda de imobiliário estava todo enfeitado com decorações de Natal. Constituíam um grupo simpático, as dezasseis pessoas com quem ela trabalhava, e Susan apreciava os olhares de esperança que lhe dirigiam todas as manhãs. Todos eles queriam ouvir boas notícias sobre Jamie. Naquele dia, ninguém estava muito interessado em trabalhar, mas ela conservou-se ocupada, a rever documentos para futuras vendas. Tudo aquilo em que pegava lhe trazia recordações. Os Wilke um casal que comprava a sua primeira casa porque esperava um bebé; os Conway, a vender a sua grande casa para ficarem mais perto dos netos. Quando acabou de falar com Mrs. Conway, sentiu que as lágrimas, já habituais, lhe enchiam os olhos, e voltou a cabeça.

 

Joan Rogers, a agente da secretária do lado, estava a ler uma revista. Com uma punhalada de dor, leu o título do artigo: ”As Crianças São Sempre Anjos no Dia de Natal.” A página estava semeada de caprichosas fotografias de crianças com túnicas brancas e halos.

 

Susan olhou para as fotografias e, de súbito, estendeu a mão e arrancou freneticamente a revista das mãos de Joan. O anjo do canto superior direito. Uma menina. Com um cabelo tão louro que era quase branco. Mas os olhos. A boca. A curva arredondada do queixo.

 

Jamie sussurrou Susan. Abriu a gaveta da secretária, procurou desastradamente entre as coisas que a enchiam, e descobriu um marcador. Com os dedos trementes, cobriu o cabelo claro da criança da fotografia com a tinta castanha do marcador e viu a imagem do anjo tornar-se igual à fotografia emoldurada sobre a sua secretária.

 

Jamie olhou pensativamente pela janela do quarto para o frio cenário de Inverno, lá fora, tentando não escutar a discussão.

 

O papá e Tina estavam outra vez zangados. Alguém do prédio tinha mostrado ao papá a fotografia dela na revista. O papá gritava:

 

Que é que tu andas a fazer? Ainda acabamos todos na prisão. Quantas outras vezes é que ela posou?

 

Tinham vindo para Nova Iorque no final do Verão, e o papá tinha começado a fazer uma data de viagens sem elas. Tina disse que andava aborrecida e que gostava de trabalhar um pouco como modelo. Mas a mulher com quem ela tinha ido falar tinha dito:

 

Não preciso do seu tipo, mas podíamos usar a menina.

 

Tinha sido fácil posar para a fotografia do anjo. Tinham-lhe pedido que pensasse em qualquer coisa boa, por isso ela tinha pensado na Véspera de Natal e nos planos que ela e a mamã tinham feito para a passar nesse ano em Nova Iorque. Agora ela estava em Nova Iorque e encontrava-se perto de todos aqueles lugares onde a mamã e ela tinham planeado ir mas não era a mesma coisa com o papá e Tina.

 

Perguntei-te quantas vezes posou ela! berrava o papá.

 

Duas ou três vezes gritou Tina.

 

Era mentira. Tinha ido ao estúdio montes de vezes, quando o papá não estava. Mas quando ele estava em Nova Iorque, Tina ”desmarcava-a”.

 

Agora Tina dizia:

 

Que é que queres que eu faça enquanto estás fora? Ler o Dr. Seuss e jogar às cartas?

 

Na rua, lá em baixo, as pessoas passavam apressadas, como se tivessem frio. Tinha nevado durante a noite, mas a neve derretia-se por baixo das rodas dos carros e transformava-se em lama suja. Só pelo canto do olho conseguia ver o Central Park, onde a neve tinha o aspecto bonito que devia ter.

 

Jamie engoliu em seco. Sentia um nó na garganta. Sabia que o Menino Jesus vinha na noite de Natal. Todos os dias tinha rezado para que, nesse ano, quando Deus trouxesse o Menino Jesus, lhe trouxesse também a sua mamã. Mas o papá tinha-lhe dito que a mamã ainda estava muito doente. E naquela noite iam meter-se outra vez num avião e partir para outro lugar qualquer. Parecia que se chamava bananas. Não. Ba-ha-mas.

 

Jamie.

 

A voz de Tina soava sempre zangada, quando a chamava. Sabia que Tina não gostava dela. Estava sempre a dizer ao papá:

 

A miúda é tua.

 

O papá estava sentado à mesa, de roupão de banho. A revista com a sua fotografia tinha sido atirada para o chão e ele estava a ler o jornal. Geralmente dizia-lhe:

 

Bom dia, Princesa mas naquele dia nem sequer deu por ela, quando o foi beijar. O papá não era sempre mau para ela. A única vez que lhe tinha dado uma bofetada, tinha sido quando ela tentara telefonar à^mamã. Tinha acabado de ouvir a voz da mamã ao telefone, a dizer ”É favor deixar uma mensagem”, quando o papá a tinha apanhado. Conseguira dizer: ”As melhoras, mamã. Tenho saudades tuas”, antes que o papá atirasse o telefone ao chão e lhe batesse. Depois disso, ele fechava o telefone, quando ele e Tina saíam. O papá tinha dito que a mamã estava tão doente que podia ficar pior só por falar. Mas a mamã não lhe tinha parecido doente, quando dissera ”É favor deixar uma mensagem”.

 

Jamie sentou-se à mesa, onde a aguardavam os corn-flakes e o sumo de laranja. Era sempre o que Tina punha na mesa para ela.

 

O papá tinha a testa franzida e parecia furioso quando leu em voz alta: ”Os criados pensam que o mais baixo dos dois ladrões pudesse ser uma mulher.” Depois o papá disse:

 

Eu avisei-te de que aquele disfarce te traía.

 

Tina inclinou-se sobre o ombro dele. Tinha o roupão aberto e parecia não caber na camisa de dormir. Tinha os cabelos todos despenteados e soprava anéis de fumo, enquanto lia: ”Pode tratar-se de umtrabalho feito por alguém da casa.” Que mais queres?

 

Seja como for, vamo-nos embora disse o papá. Já trabalhámos de mais nesta cidade.

 

Jamie pensou em todos os apartamentos que tinham andado a ver.

 

Temos de ir para as ba-ha-mas?perguntou. Parecia-lhe tão longe. Cada vez mais longe da mamã. Gostei do apartamento que vimos ontem insistiu. Brincava com os cereais, fazendo rodar a colher em volta deles. Lembras-te que disseste àquela senhora que achavas que era mesmo aquilo que procuravas?

 

Tina riu-se.

 

Bem, de certo modo era, garota.

 

Está calada.O papá parecia muito zangado. Jamie recordou-se de como, na véspera, a mulher lhes tinha mostrado o apartamento, e tinha dito que eles faziam uma bonita família. O papá e Tina vestiam os fatos que costumavam usar quando iam ver apartamentos, e o cabelo de Tina estava preso atrás, num rolo, e Tina quase não usava maquilhagem.

 

Depois do pequeno-almoço, Tina e o papá foram para o quarto deles. Jamie decidiu vestir as calças roxas e a camisa de mangas compridas, às riscas, que tinha vestidas no dia em que o papá a tinha ido buscar à escola e lhe tinha dito que a mamã estava doente e tinha de a levar para casa. Embora já lhe estivessem apertadas, gostava mais delas que das suas roupas novas. Lembrava-se de quando a mamã lhas tinha comprado.

 

Penteou-se; ficava sempre surpreendida ao ver o aspecto esquisito que o seu cabelo tinha agora. Estava exactamente da cor do cabelo de Tina, e quando saíam o papá obrigava-a a chamar ”Mãe” a Tina. Sabia que Tina não era sua mãe, mas sempre tinha chamado mamã à mamã, por isso não se importava muito. Era um nome diferente para uma pessoa diferente.

 

Quando voltou à sala, o papá e Tina estavam vestidos para sair. O papá tinha na mão uma pasta que parecia pesada.

 

Não vou sentir pena de sair daqui esta noite dizia ele. Jamie também não gostava daquela casa. Sabia que era bom viver apenas a um quarteirão do Central Park, mas aquele apartamento era escuro e desarrumado, as mobílias eram velhas e a carpete tinha um rasgão. O papá estava sempre a dizer às pessoas que lhe mostravam os seus apartamentos como estava ansioso por encontrar uma residência realmente boa em Nova Iorque.

 

Tina e eu vamos sairdisse-lhe o papá. Vou fechar as duas fechaduras, para ficares segura. Vai ler ou ver televisão. Depois a Tina leva-te à rua para comprares roupas de Verão para as Bahamas, e podes comprar uns presentes de Natal. Não vai ser bom?

 

Jamie conseguiu sorrir-lhe, enquanto os seus olhos se desviavam para o telefone. O papá tinha-se esquecido de lhe pôr o cadeado. Quando eles saíssem, ia telefonar outra vez à mamã. Queria falar do Natal com a mamã. O papá não ia saber.

 

Esperou alguns minutos, para ter a certeza de que eles já se tinham ido embora. Depois levantou o auscultador. Tinha repetido o número todas as noites, antes de adormecer, para não se esquecer dele. Até sabia que era preciso marcar 1 primeiro. Dizendo os números em voz alta, foi marcando: ”Um... três um dois-cinco quatro...” A chave rodou na fechadura. Ouviu o papá soltar uma imprecação e deixou cair o telefone antes mesmo que ele lho arrancasse das mãos. Ele levou o auscultador ao ouvido, ouviu o som de ligação e depois pousou-o de novo e colocou o cadeado, antes de dizer:

 

Se não fosse Véspera de Natal, desancava-te.

 

Tinha saído de novo. Jamie sentou-se no grande cadeirão, envolveu as pernas com os braços e encostou a cabeça aos joelhos. Sabia que já era muito crescida para chorar. Tinha quase 4 anos e meio. Mesmo assim, teve de morder o lábio para o fazer parar de tremer. Mas, passado um minuto, já estava capaz de fazer de conta.

 

A mamã estava com ela e iam fazer a sua Véspera de Natal especial. Primeiro iam andar de fiacre no Central Park. As campainhas dos cavalos iam tilintar. Depois iam almoçar no grande hotel. Preocupada, reparou que não conseguia lembrar-se do nome do hotel. Franziu a testa, esforçando-se por o fazer voltar. Podia ver o hotel na sua mente. Tinha feito o papá mostrar-lhe onde ficava. Já se lembrava. O Plaza. Depois do almoço, atravessariam a rua e iriam à loja de brinquedos. FAO Swarzzz... Escolheria dois brinquedos. ”Não”, pensou Jamie, ”a mamã disse que eu podia escolher três brinquedos.”

 

Descemos a Quinta Avenida para visitar o Menino Jesus e depois...

 

Tina dizia que ela era uma chata, sempre a perguntar onde ficava tudo. Mas agora sabia exactamente como ir dali até à Quinta Avenida e como encontrar todos os lugares que ela e a mamã tinham planeado ver juntas. A mamã tinha andado a estudar em Nova Iorque. Mas isso tinha sido muito tempo antes... talvez a mamã se tivesse esquecido de como encontrar os lugares, mas Jamie sabia. De olhos fechados, deu a mão à mamã e disse:

 

A árvore grande e bonita fica mesmo além...

 

O número de telefone da revista vinha na capa. Os dedos de Susan pareciam voar sobre as teclas: 212... Sem reparar que os outros se reuniam em volta da sua secretária, aguardou enquanto o telefone tocava. ”Por favor, fazei que eles não estejam fechados hoje, por favor.”

 

A telefonista que finamente a atendeu esforçou-se por ser prestável.

 

Sinto muito, mas não está quase ninguém aqui. Uma criança modelo? Essa informação deverá estar na secção de contabilidade, que está fechada. Importa-se de telefonar no dia 26?

 

Numa torrente de palavras, Susan falou-lhe de Jamie.

 

Tem mesmo que me ajudar. Como é que pagam a uma criança que posa? Não têm um endereço?

 

A telefonista interrompeu-a.

 

Um momento. Tem de haver uma maneira de se saber. Passaram alguns minutos. Susan agarrava-se ao auscultador,

 

mal se apercebendo de que alguém a agarrava pelos ombros. Joan, querida Joan, que por acaso estava a ler aquele artigo. Quando a telefonista regressou, vinha triunfante.

 

Consegui apanhar um dos editores em casa. A criança que utilizámos para aquele artigo veio da Agência de Modelos Lehman. Vou dar-lhe o número.

 

Puseram Susan em contacto com Dora Lehman. Em fundo, ouviam-se os sons de uma festa de Natal. A voz estridente mas amistosa e Lehman disse:

 

Claro, a Jamie é uma das minhas miúdas. Claro, mora aqui. Fez um belo trabalho na semana passada.

 

Ela está em Nova Iorque!gritou Susan. Ouviu vagamente os gritos de alegria que soaram por detrás dela.

 

Dora Lehman não tinha o endereço de Jamie.

 

Essa tal Tina costumava vir aqui buscar os cheques de Jamie. Mas tenho um número de telefone. Era para ser utilizado apenas se surgisse um trabalho muito importante. Tina disse-me que fingisse que me tinha enganado no número, se o marido atendesse.

 

Susan anotou o número, louca de impaciência, e conseguiu não desligar quando a Lehman insistia com ela para levar lá a Jamie quando fosse a Nova Iorque.

 

Joan impediu-a de ligar.

 

Só vais alertá-los. Temos de falar com a polícia de Nova Iorque. Eles localizarão o endereço. Tu mete-te já num avião.

 

Ao fim de tantos meses de espera, poder fazer qualquer coisa. Alguém procurou os horários dos aviões. O próximo que ela poderia apanhar partia de O’Hare ao meio-dia. Mas quando tentou fazer a reserva, a empregada quase riu.

 

Não há um único lugar vago nos aviões que saem hoje de Chicago disse. As suas súplicas levaram-na a um vicepresidente.

 

Venha até cá disse-lhe ele. Vamos metê-la nesse avião, nem que seja preciso bater no piloto.

 

Joan acabou de falar com a polícia de Nova Iorque exactamente na altura em que ela desligou o telefone. Susan levou alguns momentos a perceber que o rosto de Joan estava sombrio, que a excitação tinha desaparecido dos seus olhos.

 

Jeff acaba de ser preso por um roubo que ele e aquela mulher... Tina... com quem ele estava a viver cometeram na noite passada. Uma vizinha pensa ter visto Jamie e a mulher chegarem num táxi quando ele estava a entrar para o carro da polícia. Se Tina sabe que Jeff está preso, sabe Deus para onde ela vai desaparecer com a Jamie.

 

O papá e a Tina não estiveram ausentes muito tempo. Jamie sabia ver as horas e ambos os ponteiros estavam sobre o onze quando eles voltaram. Tina disse-lhe que vestisse o casaco porque iam ao Bloomingdale.

 

Não era divertido fazer compras com Tina. Jamie reparou que até a senhora que lhes vendeu as roupas ficou surpreendida por Tina não parecer interessar-se pelo que comprava. Disse apenas:

 

Oh, ela precisa de uns fatos de banho, uns calções e umas blusas. Isso serve para ela.

 

Depois foram à secção de brinquedos.

 

O teu pai disse que podias escolher umas coisas disse-lhe Tina.

 

Não lhe apetecia comprar nada. As bonecas, com os seus olhos brilhantes e vestidos cheios de folhos, não conseguiam ser tão bonitas como a ratinha Minnie de trapos com que dormia em casa. Mas Tina ficou tão zangada quando ela disse que não queria levar coisa alguma, que acabou por apontar para uns livros e disse que os levava.

 

Tomaram um táxi para o apartamento, mas, quando o motorista parou junto ao passeio, Tina começou a agir de maneira estranha. Havia dois carros da polícia estacionados à frente e Jamie viu o papá sair do prédio entre dois polícias. Começou a apontar para ele, mas Tina deu-lhe um beliscão num joelho e disse ao motorista:

 

Esqueci-me de uma coisa. Leve-nos outra vez ao Bloomingdale, por favor.

 

Jamie encolheu-se no banco. O papá tinha falado da polícia, naquela manhã. O papá estaria metido em sarilhos? Não ousou perguntar a Tina. A boca de Tina tinha aquele ar mau, e os dedos de que se tinha servido para lhe beliscar o joelho continuavam no ar, prontos a atacar de novo.

 

De regresso ao Bloomingdale, Tina fez apenas compras para ela própria. Comprou uma mala, um vestido, um casaco e um chapéu, e uns grandes óculos escuros. Depois de pagar, Tina retirou todas as etiquetas e disse à vendedora que tinha decidido levar as roupas novas já vestidas.

 

Quando saiu do Bloomingdale, parecia uma pessoa completamente diferente. O seu casaco branco e as calças de cabedal estavam dentro da mala. O casaco novo era preto como aquele que ela usava quando iam procurar apartamentos; tinha coberto todo o cabelo e os óculos escuros eram tão grandes que mal se lhe via a cara.

 

Jamie estava cheia de fome. Durante todo o dia, só tinha comido os corn-flakes e o sumo de laranja. A rua estava apinhada. Passavam pessoas carregadas de embrulhos. Algumas pareciam preocupadas e fatigadas. Outras tinham um ar feliz. Havia um Pai Natal na esquina e as pessoas deitavam dinheiro na caixa junto dele.

 

Perto da esquina, viu um carrinho de cachorros quentes e sodas, com um guarda-sol por cima. Timidamente, Jamie puxou pela manga de Tina.

 

Eu podia... Importas-te que eu... Por um motivo qualquer, sentia um nó na garganta. Estava cheia de fome. Não sabia por que é que o papá estava com os polícias e sabia que Tina não gostava dela.

 

Tina tinha estado a tentar chamar um táxi.

 

És uma chata disse. Está bem, mas despacha-te.

 

Jamie pediu um cachorro quente com mostarda e uma Coca-Cola. O táxi chegou antes que o homem pusesse a mostarda, e Tina disse:

 

Despacha-te! Deixa lá a mostarda.

 

No táxi, Jamie esforçou-se por comer com cuidado, para não deixar cair migalhas. O motorista voltou-se para trás e disse a Tina:

 

Eu sei que a miúda não sabe ler. E a senhora, sabe?

 

Oh, desculpe, não reparei. Tina apontou para o letreiro. Diz ali que não se pode comer neste táxi. Espera até chegarmos à estação.

 

A estação era um edifício muito, muito grande, cheio de gente. Meteram-se numa longa bicha. Tina estava sempre a olhar em volta, como se estivesse com medo de alguma coisa. Quando chegaram ao balcão, perguntou pelas camionetas para Boston. O homem disse que havia uma às duas e vinte que elas podiam apanhar. Nessa altura, um polícia começou a dirigir-se para elas. Tina voltou a cara para o lado e disse, entre dentes:

 

Valha-me Deus.

 

Jamie perguntou a si mesma se o polícia as iria meter num carro, como ao papá. Mas ele nem se aproximou delas. Começou a falar com dois homens que estavam a discutir. A mamã sempre lhe tinha dito que os polícias eram amigos dela, mas sabia que em Nova Iorque devia ser diferente, porque o papá e a Tina estavam sempre com medo deles.

 

Tina levou-a para um sítio onde havia pessoas sentadas em filas de cadeiras. Havia uma senhora idosa que dormia com a mão em cima da mala. Tina disse:

 

Agora, Jamie, esperas aqui por mim. Tenho de ir fazer uma coisa, e pode levar algum tempo. Acaba o teu cachorro e a tua Coca-Cola e não fales com ninguém. Se alguém falar contigo, diz que estás com aquela senhora.

 

Jamie sentiu-se satisfeita por se sentar e ter possibilidade de comer. O cachorro estava frio e preferia que tivesse mostarda, mas, mesmo assim, soube-lhe bem. Viu Tina subir na escada rolante.

 

Esperou durante muito, muito tempo. Ao fim de algum tempo, começou a sentir as pálpebras pesadas e acabou por adormecer. Quando acordou, havia muita gente a passar apressada, como se estivesse atrasada para qualquer coisa. A senhora idosa que estava sentada ao seu lado estava a abaná-la:

 

Estás sozinha? perguntou, preocupada.

 

Não, a Tina deve estar a chegar. Tinha dificuldade em falar, ainda estava com muito sono.

 

Estás aqui há muito tempo?

 

Jamie não tinha a certeza, por isso disse outra vez:

 

A Tina deve estar a chegar.

 

Então está bem. Tenho de apanhar a minha camioneta. Não fales com ninguém até a Tina chegar. A senhora idosa pegou na mala como se estivesse muito pesada e começou a afastar-se.

 

Jamie tinha de ir à casa de banho. Tina ficaria furiosa se ela não esperasse ali, mas tinha mesmo de ir à casa de banho. Não sabia onde ficava a casa de banho e gostava de saber como havia de encontrá-la, se não podia perguntar a ninguém. Nessa altura, ouviu a mulher que estava na cadeira atrás da dela dizer à amiga:

 

Vamos ao toilette antes de nos irmos embora.

 

Jamie sabia que aquilo queria dizer que iam à casa de banho. Tina dizia sempre ”toilette”. Pegou no embrulho com as roupas novas e os livros e seguiu-as tão de perto que parecia que estava com elas.

 

Na casa de banho havia tanta gente, e muitas crianças como ela, que era fácil entrar e sair sem que lhe prestassem atenção. Lavou as mãos e saiu da suja casa de banho logo que pôde. Reparou pela primeira vez no grande relógio de parede. O ponteiro pequeno estava sobre o quatro. O grande estava sobre o um. Isso queria dizer que passavam cinco minutos das quatro. O homem do balcão tinha dito a Tina que a próxima camioneta saía às duas e vinte.

 

Jamie deteve-se, compreendendo que Tina nunca tinha pensado em levá-la consigo na camioneta... Tina não ia voltar.

 

Jamie sabia que, se ficasse ali, acabaria por vir um polícia falar com ela. Não sabia para onde ir. O papá não estava em casa e a Tina tinha-se ido embora. Talvez se ela telefonasse à mamã, mesmo que a mamã estivesse doente, ela mandasse alguém. Mas não tinha dinheiro. Gostava tanto de ver a mamã. Sabia que ia começar a chorar. Era Véspera de Natal, e ela e a mamã deveriam estar juntas.

 

As portas grandes; ao fundo da estação havia gente que entrava e saía por elas. Devia ser a saída para a rua. A caixa era pesada. A guita cortava-lhe os dedos, apesar das luvas. Sabia o que podia fazer. O apartamento ficava entre a Rua Cinquenta e Oito e a Sétima Avenida. Era esse o endereço que o papá e a Tina davam sempre aos motoristas dos táxis. Se conseguisse encontrar o apartamento, poderia andar um quarteirão mais até ao Central Park. Aí já sabia onde ficava o Plaza. Podia fazer o jogo do faz-de-conta. Ia fingir que a mamã estava com ela e que tinham andado de carruagem pelo parque e ido almoçar ao Plaza. Depois iria à loja de brinquedos em frente ao Plaza, tal como ela e a mamã tinham planeado. Desceria a Quinta Avenida e iria visitar o Menino Jesus e ver a grande árvore e as montras da Lord and Taylor.

 

Estava na rua. Começava a escurecer e o vento fustigava-lhe as faces. Sentia muito frio, sem chapéu. Um homem de camisola cinzenta e avental branco vendia jornais. Não queria que ele percebesse que ela estava sozinha, por isso apontou para uma mullher com um bebé ao colo que se esforçava por abrir um carrinho.

 

Temos de ir para a esquina de Rua Cinquenta e Oito com a Sétima Avenida disse ao homem.

 

Ainda têm de andar muito disse ele. Apontou com a mão. São dezoito quarteirões naquela direcção e um quarteirão naquela.

 

Jamie esperou até que ele estivesse a dar o troco a outra pessoa e depois atravessou a rua a correr e começou a subir a Oitava Avenida, uma figurinha minúscula, com um anorak cor-de-rosa e os cabelos quase brancos a emoldurar-lhe o rosto.

 

O avião partiu atrasado e levou uma hora e quarenta minutos a chegar ao Aeroporto de La Guardia. Eram três horas quando aterrou. Susan atravessou o terminal a correr, tentando não ver as alegres boas-vindas que os outros passageiros recebiam.

 

Enquanto o táxi serpenteava por entre o trânsito da Ponte da Rua Cinquenta e Nove, tentou não pensar que era aquele o dia que ela e Jamie tencionavam passar em Nova Iorque. Estava um dia frio e nublado e o motorista disse-lhe que provavelmente iria nevar de novo. Tinha a pala contra o sol coberta com fotografias da família.

 

Vou guardar o carro, depois desta viagem, e vou para casa, para junto dos miúdos. Tem filhos?

 

Na esquadra, havia um tenente Garrigan à sua espera, no gabinete.

 

Encontrou a Jamie?

 

Não, mas posso garantir-lhe que estamos a cobrir todos os aeroportos e estações de camionagem. Mostrou-lhe um cartaz com uma fotografia. Este é o seu ex-marido, Jeff Randall?

 

É assim que ele se chama agora?

 

Em Nova Iorque é Jeff Randall. Em Boston, Washington, Chicago e numa dúzia de outras cidades, tem outro nome. Parece que ele e a namorada se têm feito passar por pessoas abastadas, de fora da cidade, em busca de um apartamento em Nova Iorque. O facto de levarem a menina com eles, tornava tudo mais convincente. Ele tinha com ele bilhetes de avião tencionavam fugir para Nassau esta tarde.

 

Susan viu compaixão nos olhos dele.

 

Posso falar com Jeff? perguntou.

 

Ele não tinha mudado durante aquele ano. O mesmo cabelo castanho ondulado, os mesmos olhos azuis inocentes, o mesmo sorriso franco, o mesmo jeito preocupado e protector.

 

Susan, que bom ver-te. Estás com muito bom aspecto. Mais magra, mas fica-te muito bem.

 

Era como se fossem velhos amigos que se encontravam por acaso.

 

Para onde é que essa mulher teria levado a Jamie? perguntou Susan. Apertou as mãos uma contra a outra, receando agredi-lo.

 

De que é que estás a falar?

 

Estavam sentados um na frente do outro, no pequeno gabinete apertado. O ar despreocupado de Jeff dava a impressão de que as algemas nos seus pulsos não passavam de uma miragem. Era como se os polícias de ambos os lados deles fossem estátuas, de tal modo ignorava a sua presença. O tenente continuava sentado à secretária, já sem compaixão nos olhos.

 

Já vai passar suficientes anos na prisão, sem precisar de lhes juntar uma acusação de rapto disse. Penso que a sua ex-mulher não faria essa acusação, se a sua filha for encontrada imediatamente.

 

Ele não quis responder a quaisquer perguntas, nem mesmo quando Susan se descontrolou e lhe gritou:

 

Eu mato-te, se lhe acontecer alguma coisa. Teve de morder o punho, para conter os soluços desgarrados, quando levaram Jeff para dentro.

 

O tenente levou-a para uma sala de espera. Tinha um banco de cabedal e algumas revistas velhas. Alguém lhe trouxe café. Susan tentou rezar, mas não conseguia encontrar as palavras. Apenas um pensamento lhe ecoava na mente, insistentemente. ”Quero a Jamie. Quero a Jamie.”

 

Às quatro e dez, o tenente Garrigan disse-lhe que um empregado da Estação de Camionagem se recordava de que uma mulher com uma criança, parecida com a descrição de Jamie, tinha comprado bilhetes para a camioneta das duas e vinte para Boston. Estavam a telegrafar para que confirmassem isso numa das paragens para descanso. Às quatro e meia tinha sido concluído que elas não iam na camioneta. A um quarto para as cinco, Tina foi presa no Aeroporto de Newark, quando tentava apanhar um avião para Los Angeles.

 

O tenente Garrigan tentou mostrar-se optimista, ao contar a Susan o que tinham sabido.

 

Tina deixou a Jamie sentada na sala de espera do Terminal de Canionagem. Um dos polícias de trânsito ainda está de serviço. Lembra-se de ter visto uma criança que corresponde à descrição dela sair com duas mulheres.

 

Podem tê-la levado para qualquer lado murmurou Susan. Que género de pessoas não levam logo à polícia uma criança perdida?

 

Há mulheres que levariam uma criança perdida primeiro para casa, para perguntarem aos maridos o que haviam de fazer disse o tenente. Acredite que é muito melhor que isso tenha acontecido. Quer dizer que ela está segura. Nem quero pensar na Jamie a passear sozinha por Manhattan num dia como o de hoje. Há uma série de tarados nas ruas, durante os feriados. Andam à procura de crianças que se tenham perdido dos adultos.

 

Devia ter notado no rosto de Susan, porque se apressou a acrescentar:

 

Vamos tentar fazer um apelo através da rádio e transmitir a fotografia dela no noticiário da noite. A tal Tina diz que Jamie conhece o endereço do apartamento e o número do telefone. Temos um guarda no apartamento, para o caso de alguém telefonar. Talvez preferisse esperar lá. Fica a poucos quarteirões daqui. Levamo-la lá num carro da polícia.

 

Havia um polícia jovem a ver televisão na sala. Susan percorreu o apartamento, reparando num prato com um resto de corn flakes já secos na mesa da cozinha, nos livros para colorir empilhados ao seu lado. Um quarto mais pequeno... A cama estava por fazer, havia a marca de uma cabeça na almofada. Jamie tinha dormido ali na noite anterior. A camisa de dormir dobrada em cima da cadeira. Pegou-lhe e encostou-a ao peito, como se Jamie pudesse materializar-se. Jamie tinha estado ali poucas horas antes, mas não sentia a sua presença naquele quarto.

 

Susan sentia um aperto nos pulmões, um tremor nos lábios, a histeria a crescer dentro do seu peito. Dirigiu-se à janela, abriu-a e inspirou o ar^frio. Olhando para baixo, podia ver o trânsito na Sétima Avenida. À esquerda, na Central Park sul, estavam alinhados os fiacres puxados por cavalos. Avista turvou-se-lhe, ao ver uma família voltar da Sétima Avenida para a Central Park Sul. A mãe e o pai seguiam adiante. Os seus três filhos seguiam-nos, com os dois rapazes aos encontrões, a menina mesmo atrás deles.

 

A Véspera de Natal. Ela e Jamie deveriam estar ali, juntas. Aquele iria ser o seu dia especial. Um pensamento súbito e irracional atravessou-lhe subitamente a mente E se Jamie não estivesse com as tais mulheres... E se ela estivesse sozinha?

 

O polícia, cuja atenção se afastou imediatamente da televisão, tomou nota dos locais que ela lhe indicava.

 

Vou telefonar ao tenente prometeu. Vamos passar a Quinta Avenida a pente fino, à procura dela. Susan agarrou no casaco. E eu também.

 

Jamie sentia os pés cansados. Tinha-se fartado de andar. A princípio tinha contado os quarteirões, mas depois tinha visto que os letreiros nas esquinas indicavam os números. Quarenta e três, quarenta e quatro. Não gostava de andar por ali. Não havia muitas lojas com montras bonitas e as senhoras que estavam encostadas aos prédios e aos portais vestiam-se como a Tina.

 

Tomava muito cuidado para andar sempre junto de pais com outras crianças. A mamã tinha-lhe falado disso.

 

Se alguma vez te perderes, vai sempre ter com alguém que tenha crianças. Mas ela não queria falar com aquelas pessoas. Queria brincar o jogo do faz-de-conta.

 

Percebeu logo quando chegou à Rua Cinquenta e Oito. Conhecia as lojas. Aquele era o sítio onde iam comer pizzas. Aquele era o quiosque onde o papá comprava os jornais. O apartamento ficava naquele quarteirão.

 

Um homem veio ter com ela e pegou-lhe na mão. Tentou libertar-se, mas em vão.

 

Estás sozinha, não estás, querida? sussurrou ele.

 

O homem não lhe largava a mão. Sorria, mas, de certo modo, achava-o assustador. Era difícil ver-lhe os olhos, porque pareciam duas fendas. Vestia um casaco sujo e as calças pareciam muito largas. Ela sabia que não devia dizer-lhe que estava sozinha.

 

Não disse rapidamente. A mamã e eu estamos com fome. Apontou para apizzaria e uma senhora que estava a comprar pizza olhou para ela e sorriu-lhe.

 

O homem largou-lhe a mão.

 

Pensei que precisavas de ajuda.

 

Jamie esperou até ele atravessar a rua e depois começou a correr. Quando estava três prédios mais adiante, viu um carro da polícia parar diante do apartamento. Durante um minuto ficou com medo de que viessem buscá-la a ela também. Mas depois uma mulher saiu do carro e correu para o prédio e o carro foi-se embora. Esfregou os olhos com as costas da mão. Só os bebés é que choravam.

 

Quando passou pelo prédio do apartamento, conservou a cabeça baixa. Não queria que alguém a visse e a fizesse parar e a levasse também para a prisão. Mas a caixa era tão pesada. Quando passou pelo prédio, deteve-se, por um minuto, e colocou a caixa por detrás das floreiras de pedra. Talvez pudesse ficar ali durante algum tempo. De qualquer modo, mesmo que alguém a levasse, ela já não precisava dos fatos de banho nem dos calções. Já não ia para as baha-mas.

 

Era muito mais fácil caminhar sem a caixa. Voltou a esquina e olhou para trás. O homem de casaco sujo vinha a segui-la. Isso assustou-a um pouco. Ficou satisfeita por passarem algumas pessoas por ela, um pai, uma mãe e dois filhos. Chegou-se a eles. O grupo chegou à esquina e voltou à direita. Ela sabia que era aquele o seu caminho. O Central Park ficava do outro lado da rua. Viu algumas pessoas subirem para os fiacres. Já podia começar o jogo do faz-de-conta.

 

Susan percorreu rapidamente a Central Park Sul, falando com todos os cocheiros dos fiacres. Os arreios dos cavalos estavam enfeitados com fitas e campainhas. Os fiacres tinham lâmpadas vermelhas e verdes.

 

Os cocheiros queriam todos ajudá-la. Estudaram a fotografia de Jamie publicada na revista.

 

Que menina tão bonita... Parece mesmo um anjo. Todos prometeram avisar se a vissem. No Plaza, Susan falou com o porteiro, com os empregados da recepção, com a hospedeira do Palm Court. O hall estava coberto de decorações natalícias. O restaurante Palm Court, no centro do hall, estava cheio de gente bem vestida que bebericava cocktailss, de pessoas que tinham feito as suas últimas compras e se deliciavam, fatigadas, com um chá e sanduíches requintadas.

 

Susan conservava a revista aberta na fotografia de Jamie. Perguntava a toda a gente:

 

Viram esta criança?

 

Viu-se reflectida num espelho perto do elevador. A humidade tinha-lhe encaracolado os cabelos em volta da cara e sobre os ombros. O seu rosto estava muito pálido, mas era o rosto que Jamie teria quando crescesse. Se chegasse a crescer.

 

Ninguém no Plaza se recordava de ter visto uma criança sozinha. Dirigiu-se em seguida ao F A O Schwarz. A loja de brinquedos estava cheia de pessoas que faziam as suas últimas compras, agarrando ursos de peluche, jogos e bonecas. Dirigiu-se ao segundo andar. Uma empregada estudou cuidadosamente a fotografia.

 

Não tenho a certeza. Tenho estado sempre muito ocupada. Mas esteve aqui uma menina que me pediu uma ratinha Minnie de pano. O pai quis comprar-lha, mas ela disse que não. Achei estranho. Sim, efectivamente tinha uma nítida semelhança com essa criança.

 

Mas estava com o pai murmurou Susan, acrescentando: Obrigada e afastou-se demasiado rapidamente para ouvir a empregada dizer que tinha pensado que o homem fosse o pai da criança.

 

A empregada viu Susan chegar à escada rolante. Pensando bem, que criança deseja tão obviamente um brinquedo e não deixa o pai comprar-lho? E havia qualquer coisa esquisita naquele homem. Ignorando uma cliente, a empregada saiu de detrás do balcão, tentando apanhar Susan. Tarde de mais Susan já tinha desaparecido.

 

Ver a Minnie tinha dado a Jamie vontade de chorar. Mas não podia deixar que aquele homem lhe comprasse um presente. Sabia disso. Sentia-se assustada por ele continuar a segui-la.

 

No exterior da loja de brinquedos, as ruas já não estavam tão cheias, agora. Provavelmente iam todos para casa. Numa das esquinas, havia pessoas a cantar canções de Natal. Parou a ouvi-las. Sabia que o homem que vinha a segui-la tinha parado também. As cantoras tinham bonés em vez de chapéus. Uma delas sorriu-lhe, quando a canção terminou. Jamie sorriu-lhe também, e a mulher disse:

 

Não estás sozinha, pois não, minha filha? Não era propriamente mentir, porque estava a fingir que estava com a mamã, e Jamie disse:

 

A mamã veio comigo. Está além. Apontou para um grupo de pessoas que olhava para a montra de uma loja e apressou-se ajuntar-se a elas.

 

Na Catedral de St. Patrick parou e olhou em volta. Finalmente viu o presépio. Havia muita gente em volta, mas o Menino Jesus não estava na manjedoura. Havia um homem que colocava velas novas nos castiçais e Jamie ouviu uma senhora perguntar-lhe onde estava o Menino Jesus.

 

É colocado durante a Missa do Galo disse ele.

 

Jamie conseguiu descobrir um lugar mesmo em frente da manjedoura. Murmurou uma prece que dizia havia longo tempo: ”Quando vieres esta noite, traz a mamã contigo. Por favor.”

 

Havia tanta gente que vinha à igreja. O órgão começou a tocar. Gostava de o ouvir. Seria bon sentar-se ali, onde estava bem e aquecida, e descansar um pouco. Mas, de certo modo, o facto de dizer à senhora que estava a cantar que a mamã estava com ela tinha feito que isso parecesse verdade. Agora tinha de ir ver a árvore e as montras da Lord and Taylor. Depois disso, se o homem ainda andasse atrás dela, talvez lhe perguntasse o que havia de fazer. Se ele gostava tanto dela, ao ponto de andar a segui-la, talvez quisesse tomar conta dela.

 

Os olhos de Susan percorriam os rostos das crianças por que passava. Uma menina fê-la arquejar, com o seu cabelo dourado, o casaco vermelho. Mas não era Jamie. A espaços, havia voluntários vestidos de Pai Natal a recolher dinheiro para as obras de caridade. Mostrou a todos a fotografia de Jamie. A uma esquina da Rua Cinquenta e Três havia um coro de Exército de Salvação. Uma das cantoras tinha visto uma menina que se parecia muito com Jamie. Mas a criança tinha dito que estava com a mãe.

 

O tenente Garrigan apanhou-a quando estava prestes a entrar na catedral. Vinha num carro da polícia. Susan viu piedade nos olhos dele, ao olhar para a fotografia que ela trazia na mão.

 

Receio que esteja a perder o seu tempo, Susan disse. Um motorista da Trailways disse que seguiam duas mulheres e uma criança na viagem das quatro e dez que saiu da Estação Principal. Isso conjuga-se com a hora a que o polícia as viu.

 

Susan sentiu os lábios a tremer.

 

Para onde foram?

 

Saíram na Pascack Road, em Washington, Nova Jérsia. A polícia de lá foi muito cooperativa. Penso que ainda há hipóteses de recebermos um telefonema das mulheres... se elas a levaram. A CBS concordou em deixá-la fazer um apelo especial antes do noticiário das sete. Mas temos de apressar-nos.

 

Não podíamos descer a Quinta até à Lord and Taulor? pediu Susan. Não sei... tenho um pressentimento...

 

Perante a insistência dela, o carro da polícia seguiu lentamente. A cabeça de Susan voltava-se de um lado para o outro, para ver as pessoas de um lado e do outro da rua. Numa voz sem timbre, contou-lhe que uma vendedora tinha visto uma criança igual à Jamie mas que estava com o pai; uma cantora do exército de Salvação tinha visto uma criança igual à Jamie, que estava com a mãe.

 

Insistiu em que parassem em frente da Lord and Taylor. Havia pessoas que faziam bicha, pacientemente, para ver as montras.

 

Acho que se a Jamie estivesse em Nova Iorque e se lembrasse... Mordeu o lábio. Sabia que o tenente Garrigan pensava que estava a ser tola.

 

A menina do anorak azul e verde. Do mesmo tamanho de Jamie. Não. Aquela criança quase escondida por detrás do homem corpulento. Observou-a ansiosamente e depois abanou a cabeça.

 

O tenente Garrigan tocou-lhe na manga.

 

Sinceramente, acho que a melhor coisa que pode fazer pela Jamie é ir à televisão fazer o seu apelo.

 

Susan concordou, com relutância.

 

Jamie observava os patinadores. Deslizavam pela pista em frente da árvore de Natal, como bonecos vivos. Antes de o papá a levar, a mamã e ela costumavam ir patinar num lago perto da casa delas... A mamã tinha-lhe comprado uns patins de principiante.

 

A árvore era tão grande que ela nem percebia como podiam ter-lhe posto as lâmpadas. No ano anterior a mamã tinha tido que subir a um escadote para enfeitar a árvore delas e Jamie tinha-a ajudado, entregando-lhe os enfeites.

 

Jamie apoiou o queixo nas mãos. Conseguia olhar para a pista mesmo por cima da grade. Na sua mente, começou a conversar com a mamã. ”Podemos vir patinar aqui no próximo ano? Os meus patins ainda me servirão? Ou talvez eu possa dá-los e receber uns maiores?” Podia ver a mamã a sorrir e a responder: ”Não, acho que vamos enfiar os teus pezinhos nos patins antigos.”

 

Jamie voltou as costas à árvore. Havia mais um sítio onde tinha de ir. Ver as montras da Lord and Taylor. O homem e a mulher que estavam ao seu lado tinham dado as mãos. Tocou no braço da mulher.

 

A minha mãe pediu-me que lhe perguntasse a que distância fica a Lord and Taylor.

 

Mais doze quarteirões. Era muito. Mas tinha de acabar o jogo do faz-de-conta. Tinha começado a nevar com mais força. Meteu as mãos dentro das mangas e curvou a cabeça para a neve não lhe cair nos olhos. Nem olhou, para ver se o homem continuava a segui-la sabia que sim. Mas enquanto ela caminhasse perto das outras pessoas, ele não se aproximaria.

 

O carro da polícia parou junto dos estúdios da CBS, na Rua Cinquenta e Sete, perto da Décima Primeira Avenida. O tenente Garrigan entrou com ele. Mandaram-nos ao andar superior, e um assistente de produção falou com Susan.

 

vamos chamar a este segmento ”O Anjo Perdido”. Vamos apresentar um grande plano da fotografia da Jamie e depois a senhora poderá fazer um apelo especial.

 

Susan esperou a um canto do estúdio de televisão. Algo lhe parecia prestes a explodir dentro dela. Era como se estivesse a ouvir a voz de Jamie a chamar por ela. O tenente Garrigan esperava, ao seu lado. Agarrou-lhe no braço.

 

Diga-lhes que mostrem a fotografia. Peçam a outra pessoa que faça o apelo. Eu tenho de voltar lá. Um agudo ”sshhh” fê-la compreender que estava a erguer a voz, que podia ser captada pelos microfones. Puxou pela manga do tenente. Por favor, eu tenho de voltar lá.

 

Jamie esperou na bicha, para passar em frente das montras da Lord and Taylor. Eram tão bonitas como a mamã tinha dito, pareciam quadros tirados dos seus livros de Histórias e Fadas, só que as figuras mexiam-se, curvavam-se e acenavam. Deu consigo a acenar-lhes também. Eram pessoas a fingir. Era como se compreendessem o seu jogo do faz-de-conta.

 

No ano que vem murmurou Jamie eu e a mamã voltamos cá juntas. Queria ficar ali, continuar a ver as bonitas figuras inclinarem-se, girarem e sorrirem, mas havia alguém que estava sempre a dizer:

 

Por favor, continuem a andar. Muito obrigado.

 

O pior era que o jogo do faz-de-conta tinha acabado. Tinha ido a todos os sítios onde ela e a mamã tencionavam ir. Agora não sabia o que havia de fazer. Tinha a testa húmida de neve e puxou o cabelo para trás. Sentia o ar frio na cabeça.

 

Não queria parar de olhar para as montras. Encostou-se à corda, para que as pessoas pudessem passar por ela.

 

Estás perdida, não estás, minha querida? Ergueu o olhar.

 

Era o homem que andava a segui-la. Falava tão baixo que ela mal tinha conseguido ouvi-lo. Se souberes onde vives, eu posso levar-te lá murmurou ele.

 

Uma bolha de esperança cresceu no peito de Jamie.

 

Pode telefonar à minha mãe?perguntou. Eu sei o número.

 

Claro que sim. Vamos já. Pegou-lhe na mão.

 

Continuem a andar, por favor repetiu a voz.

 

Anda sussurrou o homem. Temos de ir.

 

Havia qualquer coisa que afligia Jamie. Era mais que o cansaço, o frio e a fome. Estava assustada. Agarrou-se ao rebordo da montra, olhou para as figuras e murmurou a sua prece ao Menino Jesus: ”Por favor. Por favor, faz que a mamã venha agora.”

 

O carro da polícia parou junto ao passeio.

 

Eu sei que pensa que eu estou doida disse Susan. A sua voz tornou-se arrastada, enquanto observava a multidão ainda compacta em volta das montras. A neve começava a cair com força e as pessoas estavam a levantar as golas dos casacos e a puxar para a frente os lenços e os capuzes. Havia muitas crianças na bicha, mas era impossível ver-lhes os rostos, porque estavam voltadas para as montras. Abria a porta do carro quando ouviu o tenente Garrigan dizer ao motorista:

 

Sam, já viste quem está naquela bicha? É aquele maldito tarado que não compareceu ao julgamento. Vamos!

 

Chocada, Susan viu-os correr pelo passeio, atravessar a bicha, agarrar os braços de um homem magro, com um casaco sujo e trazerem-no rapidamente para o carro. E nessa altura viu-a. A pequena figura que não se voltou para trás como os restantes espectadores surpreendidos, a pequena figura com o seu desconhecido cabelo cor de ouro-esbranquiçado, envolvendo umas faces e uma nuca que ela conhecia tão bem.

 

Estonteada, Susan avançou ao encontro de Jamie. Os seus braços esfomeados estenderam-se, inclinou-se e escutou a prece que Jamie continuava a repetir: ”Por favor, faz que a mamã venha agora.”

 

Susan caiu de joelhos.

 

Jamie murmurou.

 

Jamie pensou que continuava a brincar ao faz-de-conta.

 

Jamie.

 

Não era a fingir. Jamie voltou-se, rapidamente, e sentiu uns braços que a envolviam. Mamã. Era a mamã. Abraçou-se ao pescoço da mamã. Enterrou a cabeça no ombro da mamã. A mamã estava a apertá-la com tanta força. A mamã estava a embalá-la. A mamã não parava de repetir o seu nome.

 

Jamie. Jamie.A mamã estava a chorar. E, em volta delas, as pessoas sorriam, felicitavam-nas, batiam palmas. E, nas montras do país das fadas, as lindas bonecas continuavam a curvar-se e a acenar.

 

Jamie acariciou a face da mamã.

 

Eu sabia que tu vinhas murmurou.

 

                                                                                Mary Higgins Clark  

 

                      

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