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A SITUAÇÃO HUMANA / Aldous Huxley
A SITUAÇÃO HUMANA / Aldous Huxley

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A SITUAÇÃO HUMANA

 

Em 1959 Aldous Huxley pronunciou uma série de conferências na Universidade da Califórnia, Santa Barbara. O curso realizou-se em duas partes, de fevereiro a maio e de setembro a dezembro. O tema foi "A situação humana", como Huxley afirmou numa carta:

"Meu modesto tema é 'A situação humana', e começarei com os fundamentos biológicos o estado do planeta, população, hereditariedade relacionada com ambiente. Depois, passarei ao grande determinante da civilização moderna - a técnica, em todos os campos da atividade humana, e seus efeitos na ordem social e política. Depois, falarei do indivíduo e suas potencialidades, e o que talvez possamos fazer para que se realizem. E um projeto muito vasto - mas vale a pena empreendê-lo, mesmo inadequadamente, como antídoto para a especialização e fragmentação da formação académica"7.

As conferências foram um pouco modificadas para fins de publicação. Omitiram-se algumas repetições, sempre que isso não prejudicasse a clareza nem interferisse na fluência do texto. Todos os preâmbulos às conferências foram deixados de lado. A oitava conferência, intitulada "O futuro está em nossas mãos", foi omitida por praticamente um sumário das precedentes. Sempre que possível, incluímos as referências.

Passaram-se dezoito anos desde que essas conferências foram pronunciadas. Embora parte da informação que nos fornecem esteja superada, deixamos tudo intacto.

Aldous Huxley realizou essas e outras conferências similares em outras instituições (entre elas o Instituto de Tecnologia de Massachusetts e a Fundação Menninger). A série de Santa Barbara é sem dúvida a mais abrangente, por isso foi escolhida para publicação.

Sou grato a Laura Huxley pelo estímulo e sugestões. Também quero agradecer a Corona Machemer, da Harper & Row, por sua valiosa colaboração.

Piero Ferrucci

1 Huxley, Aldous. "Aldous Huxley to Matthew Huxley, 8 January 1959". In: Letters of Aldous Huxley. Londres, Chatto & Windus, 1969, p. 860.


 

         Educação integrada

         Conferência pronunciada em 9.2.1959.

Como todos sabemos, aprender pouco é algo perigoso. Mas excesso de aprendizado altamente especializado também é uma coisa perigosa, e por vezes pode ser ainda mais perigoso do que aprender só um pouco. Um dos principais problemas da educação superior agora é conciliar as exigências da muita aprendizagem, que é essencialmente uma aprendizagem especializada, com as exigências da pouca aprendizagem, que é a abordagem mais ampla, mas menos profunda, dos problemas humanos em geral.

Esse é, sem dúvida, um problema novo. Meu avô, T. H. Huxley, um homem que jamais se sentia feliz exceto quando tinha três ou quatro empregos de tempo integral de uma só vez, teve entre esses empregos a criação, em 1870, da moderna educação inglesa. Trabalhou bastante em educação elementar e secundária em Londres e também muito fez para transformar a Universidade de Londres numa universidade moderna, quer dizer, uma universidade com alto grau de especialização em vários campos. O interessante é que, no começo de 1890, ele já estava profundamente preocupado com o problema da especialização excessiva. Três anos antes de morrer, elaborou um plano para coordenar vários departamentos especializados da Universidade de Londres, de modo a criar alguma espécie de educação integrada.

Não preciso acrescentar que os planos de meu avô jamais foram executados, e que o problema da educação integrada permanece exatamente o que era - apesar de dizer respeito a todos os que se ligam a esse campo de atividade, e apesar de ter-se efetuado uma série de tentativas de resolvê-lo. Essas tentativas incluíram o simples acréscimo de informações hu-manísticas à informação científica especializada; a coordenação da ciência e humanidades através de uma abordagem histórica, o que tem certos méritos; e os programas dos Cem Grandes Livros, estreitamente relacionados a isso. Não creio que nenhuma dessas tentativas seja plenamente satisfatória. Meu pressentimento é que uma educação integrada ideal exige uma abordagem do tema em termos de problemas humanos fundamentais. Quem somos? Qual a natureza da natureza humana? Como devemos nos relacionar com o planeta em que vivemos? Como viveremos juntos satisfatoriamente? Como devemos desenvolver nossas potencialidades individuais? Qual a relação entre natureza e formação? Se começarmos com esses problemas, e os tornarmos centrais, poderemos reunir informações de uma série bastante grande das disciplinas atualmente separadas. Penso que provavelmente esse é o único modo de podermos criar uma forma realmente integrada de educação.

Entrementes, porém, essa educação integrada não existe. Aqui, penso, está o motivo pelo qual uma pessoa como eu, que tem o que podemos chamar de ignorância enciclopédica em muitos campos, pode ser útil a uma instituição de aprendizagem altamente especializada como esta. Um homem de letras pode exercer uma função valiosa no mundo, juntando uma porção de assuntos e mostrando as relações entre eles. É uma questão de construir pontes.

Temos uma palavra interessante, "pontifex", ou construtor de pontes. E o termo latino usado para designar os membros do colégio de sacerdotes em Roma, cujo chefe é chamado "pontifex maximus". (Na verdade, a etimologia aceita de "pontifex" provavelmente é falsa. Estou quase certo de que a palavra original não era "pontifex", mas "puntifex", o que, em linguagem antiga, pré-latina, o oscano, significava aquele que realiza sacrifícios aplacadores. Os romanos traduziram a palavra em sua língua como "pontifex", fazedores de pontes.) Num contexto religioso, "pontifex" significa o que constrói uma ponte entre a Terra e o Céu, entre material e espiritual, entre humano e divino. Toda a ideia de "pontifex", construtor de pontes, é muito proveitosa, e podemos meditar sobre ela e usá-la de maneira muito produtiva.


No contexto presente, a função do literato é pois, precisamente, construir pontes entre arte e ciência, entre fatos objetivãmente observados e experiência imediata, entre moral e avaliações científicas. Há toda sorte de pontes a construir, e é isso que tentarei fazer no decurso destas palestras.

Mas resta um grande problema com o qual o homem de letras se defronta quando tenta construir pontes. E interessante retroceder na história da literatura e ver que esse problema foi considerado com atenção por Wordsworth, no fim do século XVIII, no prefácio de Lyrical ballads ("Baladas líricas")'. Diz ele que as mais remotas descobertas do químico, do botânico, do mineralogista, não são tema menos adequado ao poeta do que qualquer outro tema, desde que sejam assuntos interessantes para os seres humanos em geral e possam ser analisados na medida do que fazem ao homem como "ser que goza e sofre" . Isso é muito verdadeiro. Se os efeitos da ciência devem ser incorporados à arte, precisam tornar-se algo mais do que meras abstrações e generalizações: precisam tornar-se fatos da experiência imediata, que signifiquem algo, fatos com conteúdo emocional. Mas aqui enfrentamos mais uma vez um círculo vicioso, pois, se está claro que os fatos da ciência não podem ser material adequado para poesia e literatura em geral, enquanto não assumirem conotações emocionais, envolvendo-nos como pessoas, também está claro que dificilmente assumirão esse matiz emocional, inserindo-se na sensibilidade humana geral, a não ser que já tenham sido artisticamente expressos - pois é função do artista abrir ao resto da comunidade vastas áreas de valor e significado. Pode-se dizer que os padrões de emoção e valor da vida humana são criados pelo artista, que encontra expressão e forma verbal adequadas para tornar conhecido e interessante o que antes era desconhecido ou desinteressante. Assim, pegamos o dilema pelos chifres: precisamos de fatos científicos tingidos de emoção antes de podermos avaliá-los inteiramente em termos emocionais. Suponho que o caminho para fora desse círculo vicioso seja a chegada providencial de algum génio imenso, que romperá esse círculo e de alguma forma criará para nós o aparato verbal necessário para que os fatos e teorias da ciência possam transformar-se em um material apropriado para a arte. Naturalmente não podemos prever como e quando tal génio aparecerá, mas o vento sopra onde quer e possivelmente esse misterioso construtor de pontes, esse pontifex maximus, algum dia existirá.

Certamente não sou um pontifex maximus, mas um pontifex minimus pode servir por enquanto. O problema é encontrar um vocabulário adequado com o qual tratar esses problemas. No momento, temos uma grande variedade de vocabulários: o da fala comum, o da prosa literária, o sublime vocabulário da poesia e o vocabulário abstraio da teoria científica (também temos o vocabulário absolutamente catastrófico dos livros escolares, que acho muito penosos de ler. Não admira que, revestidos de tal vocabulário, os fatos e teorias científicas não nos pareçam importantes, a nós, enquanto "seres que gozam e sofrem" - ou talvez os achemos importantes enquanto causadores de sofrimento, não de gozo).

 

1P ar a facilitar a leitura, traduzi no texto os títulos das obras. Mantive porém o original nas notas de rodapé, exceto para obras notoriamente conhecidas em português. (N. da T.)

 

Wordsworth, William, prefácio à segunda edição de Lyrical ballads.

O que por ora nos falta é a forma verbal para expressarmos a combinação do fato e da teoria científicos com nossa experiência direta.

Não há como exagerar a necessidade de palavras. Há uma história muito interessante e instrutiva ligada ao pintor francês Degas e ao poeta francês igualmente grande, Mallar-mé. Degas costumava escrever versos nas horas livres. Um dia encontrou Mallarmé e disse-lhe: "Mallarmé, é uma coisa terrível, não sei o que está acontecendo. Tenho ideias maravilhosas, mas, quando as escrevo, os versos são muito ruins, e não é realmente poesia". Mallarmé respondeu: "Meu caro Degas, poesia não se faz de ideias, faz-se com palavras". É exatamente essa capacidade de transformar ideias em palavras com um poder de penetração de raios X que identifica o grande homem de letras.


Podemos dizer que todo o programa que precisamos executar, se quisermos obter um ponto de vista integrado, resume-se numa extraordinária passagem de Shakespeare, em que Hotspur diz:

"Mas o pensamento é o escravo da vida, e a vida, o bobo do tempo; E o tempo, que vigia o mundo inteiro, Precisa ter um fim"1.

É uma dessas coisas fantásticas que encontramos em Shakespeare; em algumas linhas ele esboça toda uma filosofia, e depois passa para outro assunto. "O pensamento é o escravo da vida", não podemos pensar abstratamente sem nos envolvermos como seres fisiológicos, como membros desta comunidade viva no planeta; e "a vida é o bobo do tempo", o tempo que passa corrói as coisas todas e produz mudanças constantes; e ainda assim, "o tempo, que vigia o mundo inteiro, precisa ter um fim", pois existe também um lado espiritual e religioso da vida - o tempo precisa ter um fim no mundo atemporal e eterno. São esses três mundos - o da abstração e dos conceitos, o da experiência imediata e observação objetiva, e o mundo da visão espiritual - que precisam ser reunidos em qualquer ponto de vista integrador.

 

1 Shakespeare, William. Henrique IV. Parte I, ato V, cena IV, Unhas 81-83. (Nota da tradutora: não tentei uma recriação artística dos poemas citados nas conferências, mas apenas transpor as ideias e até certo ponto dar uma noção do seu ritmo.)

 

Não preciso dizer que é uma proposta bastante difícil. Como poderemos descrever, por exemplo, uma experiência mística? O que precisamos é de uma linguagem que nos permita falar de uma experiência pessoal muito profunda em termos de conceitos filosóficos, em termos de bioquímica e em termos teológicos. No momento esses são três vocabulários totalmente separados e desconectados; nosso problema é descobrir um vocabulário literário, artístico, que nos possibilitará passar sem ruptura grave de um ponto de vista a outro, de um universo do discurso a outro. Quando o problema é colocado numa forma específica como essa, podemos ver o quanto é difícil. Realmente precisamos de um poeta como Shakespeare - um pontifex maximus - para resolvê-lo por nós. Entrementes, farei o que puder, com meus limitados recursos, para continuar, e verei o que posso fazer para construir pontes.

Troquemos agora nossa metáfora de engenharia por uma metáfora muito expressiva da vida doméstica, e falemos no que se chamou de "celibato do intelecto". O problema de todo o conhecimento especializado é ser uma série organizada de celibatos. Os diversos-assuntos vivem em suas celas monásticas, apartados uns dos outros, e simplesmente não se casam entre si, nem produzem os filhos que deveriam gerar. O problema é tentar arranjar casamentos entre esses vários assuntos, na esperança de produzir uma geração valiosa. E o celibato não existe apenas entre os diferentes aspectos do intelecto; é também um celibato das paixões, um celibato dos instintos. O tema do isolamento das paixões é um traço muito característico da literatura contemporânea. Se formos assistir a certas peças de teatro - por exemplo, de Tennessee Williams, um dramaturgo de enorme talento, que admiro muito -, veremos um celibato quase absoluto das paixões. Elas existem num estado quimicamente puro, sem nenhuma ligação com o intelecto. Vivem uma existência inteiramente própria. Se tomássemos essas peças como um retrato da vida contemporânea, certamente ficaríamos muito decepcionados, como estive pensando outro dia quando assisti a uma delas, muito bem representada, no teatro. O simples fato de representá-la exigiu uma apaixonada combinação de pessoas usando o intelecto e mantendo a vontade firmemente fixada no tema, que era uma negação completa da realidade, do ponto de vista do qual as paixões são divorciadas da inteligência e das atividades voluntárias dos seres humanos.

De qualquer modo, o que precisamos fazer é arranjar casamentos, ou melhor, trazer de volta ao seu estado original de casados os diversos departamentos do conhecimento e das emoções, que foram arbitrariamente separados e levados a viver em isolamento em suas celas monásticas. Podemos parodiar a Bíblia e dizer: "Que o homem não separe o que a natureza juntou"; não permitamos que a arbitrária divisão académica em disciplinas rompa a teia densa da realidade, transformando-a em absurdo.


Mas aqui deparamos com um problema muito grave: qualquer forma de conhecimento superior exige especialização. Precisamos nos especializar para entrar mais profundamente em certos aspectos separados da realidade. Mas se a especialização é absolutamente necessária, pode ser absolutamente fatal, se levada longe demais. Por isso, precisamos descobrir algum meio de tirar o maior proveito de ambos os mundos - aquele mundo altamente especializado da observação objetiva e da abstração intelectual, e aquele que podemos chamar o mundo casado da experiência imediata, no qual nada pode ser apartado. Somos as duas coisas, intelecto e paixão, nossas mentes têm conhecimento objetivo do mundo exterior e da experiência subjetiva. Descobrir métodos para unir esses mundos separados, mostrar a relação entre eles, é, penso eu, a mais importante tarefa da educação moderna.

Gostaria de citar uma frase muito bela, de uma carta escrita por T. H. Huxley a Charles Kingsley, por ocasião da morte do filho pequeno de Huxley, de quatro anos de idade. Kingsley escrevera-lhe uma carta de condolências, e meu avô respondeu escrevendo extensamente sobre todo o problema da imortalidade e da posição do cientista no mundo moderno. Ele disse:

"Parece-me que a ciência ensina da maneira mais elevada e firme a grande verdade, personificada na concepção cristã de uma submissão absoluta à vontade de Deus. Sen-tarmo-nos diante do destino como uma criança pequena, e estarmos preparados para renunciar a qualquer noção preconcebida, seguindo humildemente para seja quais forem os abismos aos quais a natureza nos guia, ou não aprenderemos coisa alguma'".

Vemos que o processo científico é intrinsecamente um processo ético, um lado da ciência muito pouco enfatizado no presente. A humildade do cientista diante do fato e da observação é de tremenda importância do ponto de vista ético. Viu-se isso claramente no tempo de Francis Bacon, que, embora não sendo um cientista muito sério, expôs uma série de ideias gerais de grande significação para o desenvolvimento da ciência nos séculos XVII e XVIII. Bacon era hostil aos filósofos escolásticos, até mesmo aos filósofos gregos, que se atreviam a fazer afirmações sobre o universo sem se ciarem ao trabalho de descobrir o que os fatos realmente eram. Há uma porção de passagens notáveis em Bacon, onde ele fala sobre a iniquidade desses filósofos. Fala de Platão e Aristóteles como criminosos (a hostilidade de Bacon em relação a Platão e Aristóteles era bastante injusta. Afinal, Aristóteles foi um importante observador científico). Há uma famosa passagem em Advancement of learning ("Progresso da aprendizagem") onde ele diz que os escolásticos eram como aranhas tecendo teias com fios que saíam de suas próprias cabeças, sem consideração para com o que acontecia no mundo, e que as teias eram admiráveis pela fi-nura do fio e pelo artesanato, mas sem qualquer substância ou fruto2. Da mesma forma, no prefácio a um de seus livros menores, A história dos ventos, fala de maneira muito eloquente e intensa sobre a qualidade ética da ciência:

 

Huxley, Leonard. "Thomas H. Huxley to Charles Kingsley, 23 Sep-tember 1860". In: Life and letters of Thomas Henry Huxley. Nova York, Appleton, 1900. v. l, p. 235. 2 Bacon, Francis. Advancement of learning. Ato l, cena IV, linha 3.

 

"Por isso, se tivermos alguma humildade em relação ao Criador; se tivermos alguma reverência e amor pelas Suas obras; se tivermos alguma caridade para com os homens ou algum desejo de aliviar suas misérias e necessidades; se tivermos algum amor pelas verdades naturais; alguma aversão pelas trevas; e algum desejo de purificar o entendimento; a humanidade deverá ter o maior interesse e desejo de, pelo menos por algum tempo, deixar de lado suas filosofias prepósteras, fantásticas e hipotéticas (que cativaram a experiência e infantilmente triunfaram sobre as obras de Deus); agora, porém, com submissão e veneração, condescendem em pegar e examinar o Volume da Criação; meditar algum tempo sobre ele; e, fazendo operar uma mente bem purgada de opiniões, ídolos e falsas noções, familiarizar-se com ele"1.

Essa é uma passagem esplêndida e sobre a qual se devia meditar, porque é exatamente a relutância em aceitar noções preconcebidas e em transformar a sua própria opinião numa tese e não numa hipótese de trabalho que identifica um cientista genuíno e constitui a natureza ética essencial da atividade científica.


Bacon tinha certeza de que um dos valores da ciência estava em seus frutos, que ela poderia fazer muito para abrandar a indigência e os sofrimentos do homem. Sabemos que é realmente assim. Mas a ciência pode fazer também outras coisas, coisas das quais hoje estamos dolorosamente conscientes. Como Bacon jamais se cansou de dizer, conhecimento sem amor pode ser muito corrupto, até mau. Ele censurava filósofos como Platão e Aristóteles, não apenas porque lhes faltava humildade para estudar fatos objetivos, e basear seus raciocínios sobre esses fatos, mas porque tinham perseguido o conhecimento unicamente pela satisfação intelectual, não por amor ou para ajudar os seres humanos.

Agora, o sapato passou para o outro pé: os vaidosos filósofos da atualidade são membros da escola científica que esqueceu a humildade científica. Todos estamos familiarizados, por exemplo, com a extrema arrogância dos primeiros behavioristas. Lendo alguns dos primeiros escritos de J. B. Watson, ficamos absolutamente espantados de ver que qualquer pessoa que se dissesse cientista pudesse fazer afirmações tão mirabolantes e ignorar uma parte tão grande da experiência humana. A "cientistas" desse tipo, Bacon teria certamente feito a acusação de serem: a) presunçosos e b) sem amor, única coisa que pode tornar precioso e valioso o conhecimento.

 

1 Bacon, Francis. Silva silvarum: the phaenomena of the universe. Londres, Knapton,

1735,v.3,p.5.

 

Nosso problema é reunir de alguma forma os diferentes aspectos do mundo assim como o conhecemos, recriar o estado de união com o qual nos familiariza a experiência direta. Pois estamos familiarizados com o fato de que o mundo dos conceitos e abstrações é equilibrado pelo mundo da experiência imediata, e que a experiência interior existe simultaneamente com a descrição objetiva da natureza construída sobre inferências. Mas qual a relação filosófica entre esses dois lados do nosso conhecimento, interior e exterior? Inclino-me a pensar que cientistas com mente filosófica, como Max Planck, estão certos ao imaginar que os dois mundos, abstraio e imediato, são apenas aspectos da mesma realidade, que a realidade básica é um monismo neutro, visto de um lado como física atómica (por exemplo) e de outro como experiência imediata de valor, amor, emoção. Não podemos entrar nesse tema no momento, mas eu queria mencioná-lo e frisar que a construção dessa ponte fundamental é um problema muito, muito urgente em nosso mundo.

Deliberadamente mantive este curso o mais vago e geral que me foi possível, para não avançar demais nem fingir que sei demais. Nossa tarefa será analisar vários aspectos da situação humana, para vermos como se pode construir pontes entre fatos e valores. Começarei com uma consideração sobre o homem em relação ao planeta, pois vivemos neste planeta e, gostemos ou não, temos de nos ajeitar com isso indefinidamente. Lamento dizer que toda essa história de ir a Marte e coisas assim me parece um absurdo. É muito mais importante vermos o que podemos fazer com a Terra, e infelizmente o que estamos fazendo com ela é desastroso. Tentarei primeiro mostrar o que estamos fazendo com nosso ambiente planetário, e considerar os corolários desses fatos, e ver que Weltanschauung nos ajudaria a remediá-los. Depois falarei sobre a relação entre as fontes de que dispomos agora e aquelas de que disporemos no futuro. Construirei uma ténue ponte hipotética até o futuro.

Depois disso, penso que deveremos nos voltar para os problemas estritamente biológicos do indivíduo, discutir o homem do ponto de vista da hereditariedade e do ponto de vista do seu meio ambiente, e tentar estabelecer uma espécie de equilíbrio entre esses dois fatores que influenciam tão profundamente nossa existência. O problema do homem na sociedade virá a seguir, e nele gastarei algum tempo discutindo o que me parece ser o fator sociológico mais importante dos tempos modernos: o crescimento da tecnologia e o que podemos chamar de tecnicização de todos os aspectos da vida humana. Depois passarei a outros aspectos da vida social, e espero, no momento devido, conseguir chegar ao problema do indivíduo, ao problema das potencialidades humanas e do que pode ser feito para que se realizem aquelas que de momento permanecem em grande parte latentes em muitas pessoas. Não é preciso dizer que nessa relação haverá debates sobre arte e problemas da criação e compreensão.

 

1 Visão de mundo. " (N. do E.)

 

Andaremos muito longe nessa busca de pontes. Quando chegarmos ao fim, teremos coberto uma grande parte de terreno e também estaremos muito entediados com o que tenho a dizer, mas felizmente poderei então sumir discretamente.


         O homem e seu planeta

         Pronunciada em 16.2.1959.

Qual nossa relação com o planeta? O que estamos fazendo com o mundo no qual vivemos e como estamos tratando esse mundo? Como ele provavelmente nos tratará se continuarmos tratandoo dessa maneira?

Começarei a responder com duas citações da Bíblia. A primeira vem dos Salmos: "As árvores do Senhor estão cheias de seiva: os cedros do Líbano que ele plantou" (Salmos 104:16). A segunda vem dos Cânticos de Salomão, em que o rosto da amada é comparado aos cedros: "Sua face é como o Líbano, bela como os cedros" (Cânticos de Salomão 5:15). Essas grandes árvores têm uma qualidade mística. Todos ouvimos falar nelas em nossa infância; há hospitais com seu nome, e tornaram-se uma palavra familiar. Lembro-me de que, da primeira vez em que fui ao Oriente Médio, uma das coisas que mais me interessaram foi exatamente ver os cedros-do-líbano.

O Líbano é um país muito pequeno, que consiste numa faixa costeira com apenas alguns quilómetros de largura, ao pé de altas montanhas que se erguem a'mais de três mil metros. A extensão da cordilheira é de mais ou menos duzentos quilómetros, com quarenta ou cinquenta quilómetros de largura, e quando fui subindo por ela de carro esperei encontrar cedros-do-líbano em profusão, como sem dúvida ou-trora existiram. Rodamos e rodamos horas a fio subindo imensas colinas e finalmente, depois de muitos quilómetros de terra absolutamente estéril, chegamos a um lugar no qual havia aproximadamente quatrocentos cedros. Sobrevoando essa região mais tarde, vi dois ou três desses bosques, e creio que restam cerca de mil e quinhentos ou dois mil cedros. É tudo o que resta de uma gigantesca floresta que forneceu ao rei Salomão os madeiramentos para seu templo - se estão lembrados, Salomão fez um tratado com Heiram, rei de Tiro, no qual Heiram concordou em que as vigas deviam ser trazidas até a costa, levadas de balsa para qualquer porto que Salomão indicasse e depois arrastadas até Jerusalém - e isso forneceu suprimentos de madeira ao Egito por séculos a fio, pois esse país não tem árvores próprias, exceto palmeiras.

Isso ilustra de maneira muito impressionante o que o homem tem feito ao seu planeta no curso dos séculos. Tem encontrado abundância na natureza, e em quase todos os casos devastou inteiramente o que encontrou.

Aqui tivemos uma floresta magnífica, com árvores excelentes. Vocês as devem ter visto em jardins botânicos - os espécimes agora crescem por toda a Europa, para onde foram exportados, e adaptam-se muito bem em regiões de climas temperados. Mas, como disse Chateaubriand, "lês fôreis precèdent lês peuples, et lês déserts lês suivent"'. Durante o tempo em que está na Terra algo entre meio meio milhão e um milhão de anos -, o homem tem sido, mais e mais, uma profunda força geológica. Mudou a face do planeta sobre o qual vive, por vezes para melhor, mas demasiadas vezes para pior.

No século XIX, a escola ambiental falou do ambiente como culturas condicionantes e criadoras, mas deixou de lado o fato de que as culturas condicionam o ambiente - que o homem certamente fez quase tanto para mudar o seu ambiente quanto o ambiente fez para moldar o curso da história.

De modo geral, podemos dizer que a compreensão do homem como transformador da natureza não existiu antes do século XVIII. A primeira grande obra clássica sobre o assunto foi escrita em 1865 por George Perkins Marsh, que foi o primeiro embaixador americano no novo reino da Itália. Nesse livro, Marsh colecionou todo o material possível sobre o assunto homem e natureza e trabalhou numa espécie de contexto filosófico. Foi um dos precursores nesse campo, e o livro ainda é muito valioso2.

 

"As florestas precedem as civilizações, e os desertos as seguem." (N. da T.)

2 Man and nature, reescrito e republicado como The Earth as modified by human action, reimpressão da edição de 1878pela Scholarly Press, de St. Clair, Michigan, EUA.

 

Comecemos falando sobre as contribuições positivas que o homem deu para a mudança do planeta. Por exemplo, a maioria dos ecólogos agora concorda em que as pastagens tropicais, e possivelmente as temperadas, foram realmente criadas pelo homem e foram por ele mantidas em seu estado de campos abertos por centenas de milhares de anos. Penso que a mais importante contribuição do homem foi levar plantas ou animais valiosos de uma parte da Terra à outra. Em épocas clássicas, árvores como o pessegueiro, a ameixeira, a nogueira e a amendoeira foram levadas do Oriente Próximo, do Oriente Médio e mesmo do Extremo Oriente para o Mediterrâneo; plantas forraginosas de valor, como a alfaia e certos tipos de trevo, foram trazidas do Mediterrâneo e aclimatadas em toda a Europa e mais tarde no Novo Mundo; plantas como ervilhas e vinhas foram transportadas do Ocidente à China. A introdução de batatas no Velho Mundo, vindas do Novo, foi algo revolucionário, assim como a importação de trigo indiano da América Central e do Sul para a África, Ásia e sul da Europa.

O que é verdade quanto às plantas também o é em relação aos animais. O caso mais evidente é a importação do cavalo para o Novo Mundo. Os índios americanos caçavam sempre a pé antes de os espanhóis e os primeiros colonizadores ingleses introduzirem o cavalo. Os índios da América do Norte adaptaram-se rapidamente a esse novo quadrúpede, bem como os povos da América do Sul. O único animal doméstico que os inças, por exemplo, possuíam era o lhama - a alpaca e a vicunha -, capaz de carregar cerca de dez ou quinze quilos no lombo. Mas era tudo o que tinham, exceto "animais de carga" humanos, para transportar coisas acima e abaixo desses extraordinários caminhos montanhosos dos Andes. Também adotaram o carneiro, que entrou no folclore índio dos Andes e tornou-se ali uma espécie de animal nativo.

Uma importação interessante do Oriente para a Europa foi a do gato. Ele veio do Egito (o gato selvagem nativo da Europa ocidental jamais foi domesticado) e não se adaptou muito bem na Europa ocidental, até o começo da Idade Média. Podemos ver na antiga história de fadas de Dick Wit-tington, por exemplo, como os gatos eram valiosos e admirados. Na lei saxônia que precedia a conquista da Inglaterra, o gato era tão valioso que um homem que matasse o gato de outro devia pagar por isso com trigo suficiente para fazer uma pilha que cobrisse o gato suspenso pela cauda.

Outra importação de animal do Oriente para a Europa foi a preciosa galinha doméstica. Ela foi trazida da índia para o mundo clássico e desde então tem estado conosco pondo ovos. E estranho pensar que no começo do período clássico as pessoas não dispunham de ovos para comer.

Essas são algumas das transformações boas, de enorme importância, que o homem trouxe ao planeta. Agora temos de considerar o reverso da medalha. O homem tem vivido demasiadamente no planeta à moda de um parasita que se sustenta daquele a quem infesta. Se muitos parasitas são bastante ajuizados para não destruir seu hospedeiro porque destruiriam a si mesmos, o homem não é um desses parasitas ajuizados. Ao contrário, muitas vezes viveu em seu hospedeiro fazendo tudo para arruiná-lo totalmente.

Quais são algumas das maneiras pelas quais o homem se mostrou mais destrutivo? Começaremos com os animais - uma história muito deprimente, pois estamos eliminando criaturas de extraordinária beleza e interesse, e fazemos isso com rapidez cada vez maior. Se olharmos as estatísticas compiladas pela Sociedade Internacional de Proteção à Natureza, nos inteiraremos de que cinquenta espécies, só de mamíferos, foram eliminadas durante o século XIX, outras quarenta perderam-se desde 1900, e seiscentas espécies provavelmente estão condenadas à extinção no presente. Há o caso do pombo viajante, que existiu outrora em quantidades tão fantásticas que seus revôos escureciam o sol. Nos dias da colonização, e logo depois da Independência, uma das diversões dos habitantes era sair para as florestas onde os pombos faziam ninho, derrubar os ninhos com os filhotes, encher carroças inteiras com essas criaturinhas e rodar para casa. Obviamente não conseguiam comer a maior parte, e muitos eram simplesmente jogados fora para apodrecer à margem do caminho. A mesma coisa aconteceu com o bisonte, do qual outrora havia de cinquenta a sessenta milhões de cabeças nas pradarias. Agora, o pombo viajante está completamente extinto, e restam apenas alguns poucos milhares de bisontes.

Outro caso muito singular é o do rinoceronte indiano, hoje praticamente extinto devido à superstição humana, especialmente dos chineses: encarava-se o chifre do rinoceronte como uma espécie de filtro ou amuleto amoroso, e pagavam-se preços enormes por ele. Lembro que anos atrás visitei o grande armazém das docas de Londres, onde se descarregava e leiloava marfim, chifre, casco de tartaruga e conchas de ostras. Fiquei muito surpreso ao ver que o chifre do rinoceronte era vendido a um preço consideravelmente superior ao do marfim, unicamente por causa do vasto mercado chinês para aquilo que se supunha um afrodisíaco - coisa que o chifre obviamente não era. Para satisfazer a superstição humana, essas interessantes criaturas foram car-neadas, e sua espécie está desaparecendo rapidamente na África.

Em muitos lugares do mundo o crocodilo também está desaparecendo. Sentiremos falta desse animal tão pouco simpático porque ele realiza uma função muito importante, que agora está sendo descoberta: os crocodilos matam os inimigos dos peixes, bem como os elementos fracos e enfermos entre os peixes. A pesca tornou-se bem pior nos lugares em que os crocodilos desapareceram.

As grandes espécies selvagens da África apenas sobrevivem porque em várias partes desse continente há parques nacionais onde esses animais são cuidadosamente protegidos. Provavelmente continuarão a sobreviver, para benefício da ciência e encanto das pessoas que desejam sair do mundo humano, demasiadamente humano, e ver como se parece o resto da criação.

Pensemos agora no mundo vegetal. Começaremos com as florestas. Já falei sobre os cedrosdo-líbano, uma imensa floresta de árvores magníficas que virtualmente desapareceram, deixando as montanhas expostas à erosão. Em muitos lugares todo o topo foi lavado, e nada resta senão a rocha nua; tais lugares, é óbvio, jamais poderão ser reflorestados, e essa mesma situação ocorre a toda hora em todas as partes do mundo.

O homem destruiu florestas deliberadamente desde o período da caça: para limpar as florestas - e aumentar a visibilidade - as tribos caçadoras tendiam a queimar a vegetação rasteira, permitindo que o cervo fosse caçado muito mais facilmente do que o seria em uma floresta densa. E desde que começou a agricultura, provavelmente em cerca de 8000 a.C., os homens têm derrubado (e queimado) florestas a fim de criar novos campos de cultivo. Todo o processo foi apressado depois do início da Idade do Ferro, quando se tornou possível romper, com os arados de ferro, solos duros demais para os arados de madeira usados no passado. Outro invento importante para apressar o desenvolvimento da agricultura apareceu pelo século XVIII, quando um recurso aparentemente muito simples, o arreio de peito, permitiu aos cavalos puxarem um peso muito maior e com muito mais força do que com a antiga forma de arreios. Esses avanços tecnológicos, somados a um lento mas constante aumento de população, naturalmente causaram a derrubada de imensas florestas.

Igualmente importante em tempos mais recentes, em especial na destruição das florestas que rodeavam centros urbanos, foi o uso da madeira como combustível. Se lermos a Enciclopédie de Diderot, encontraremos um relato muito, muito interessante de como se fornecia madeira a Paris, para aquecimento. Todas as florestas que havia ao redor de Paris tinham sido exauridas, e a madeira vinha de centenas de quilómetros além, flutuando em grandes balsas pelo Sena e seus afluentes abaixo. Depois as balsas eram ancoradas nos cais de Paris, e a madeira, distribuída. Diderot, um dos poucos intelectuais do século XVIII que se interessou profundamente pelo progresso tecnológico de seu tempo, afirmou que isso não podia continuar, e que a única esperança era usar carvão para aquecimento; na verdade, nesse período começou-se a empregar carvão em grande escala, o que ajudou a salvar as florestas da destruição total.

Além do aquecimento, a madeira era empregada na indústria. Todos os minérios eram fundidos à base de carvão, até que pela primeira vez se fabricou aço com coque, no começo do século XVIII, de modo que, onde havia metalurgias, houve uma prodigiosa destruição de florestas.


Isso aconteceu também onde quer que houvesse indústrias de fabricação de vidro. Embora o vidro seja uma invenção bastante antiga - cerca de 3000 a.C. -, era muito caro e difícil de produzir até o aperfeiçoamento da arte de soprar vidro, no primeiro século da era cristã. Essa invenção levou rapidamente à formação de indústrias de vidro ao redor do Mediterrâneo e mais ao norte, como na Inglaterra e em Colónia, resultando numa enorme derrubada de florestas.

Outra razão muito importante para a destruição de florestas foi a construção de casas e, mais significativo ainda, de navios. E interessante notar como as madeiras adequadas para construir navios se exauriram depressa na Europa ocidental. A armada francesa não conseguia encontrar madeira adequada em seu próprio território desde o fim do século XVII, e teve de ser suprida com madeira vinda até da Albânia. No tempo de sua grande expansão naval no século XVI, os espanhóis dependiam não apenas de madeira do seu país, mas de madeira vinda do Báltico. Encontraremos uma referência a isso no Diário de Pepys, que diz: "Sabe Deus de onde virá o nosso carvalho". E, na verdade, o carvalho estava acabando. No século XVIII, período da supremacia naval britânica, o carvalho para seus navios vinha predominantemente do Novo Mundo - da Nova Inglaterra e da costa leste desse continente. Quanto ao resto, era teca do império indiano. Afortunadamente, talvez, a Batalha de Hampton Roads, em 1862, mostrou que o navio de ferro era infinitamente superior ao de madeira, e consequentemente a construção de navios deixou de ser motivo para arrasar florestas de crescimento lento.

A área onde melhor vemos a devastação de árvores é no Velho Mundo, mais visivelmente ainda no antigo mundo civilizado ao redor do Mediterrâneo. Também aparece com terrível nitidez no noroeste, aqui e ali nos Grandes Lagos. Naturalmente ainda há grandes florestas nos Estados Unidos, mas o corte anual de madeira excede em cinquenta por cento o crescimento anual. É bastante óbvio que não se pode continuar com esse tipo de coisa por muito tempo e esperar ter muitas florestas.

As florestas da Europa costumavam descer da parte norte até a costa do Mediterrâneo. Hoje há muito poucas áreas na costa do Mediterrâneo em que ainda se podem ver traços das antigas florestas. Ao sul da França, a leste de Hyères, há uma floresta de duzentos e cinquenta quilómetros quadrados, chamada Forêt dês Morts; é tudo o que resta da grande floresta primitiva, que já desaparecera em grande parte mesmo nos tempos clássicos, e que simplesmente sumiu na Idade Média, em grande parte por causa das indústrias de vidro e sabão de Marselha, e dos estaleiros de Toulon e Marselha.

Para os que se interessam por pintura de paisagem, é curioso notar que o que consideramos a paisagem típica da Provença, assim como a vemos nos quadros de Cézan-ne, é uma paisagem relativamente moderna. Representa colinas que foram devastadas, deixando seus ossos expostos. Provavelmente muitas delas são casos sem esperança e jamais poderão ser reflorestadas. Parecem muito pitorescas, mas devemos lembrar que são produto de degeneração e destruição. A mesma coisa aplica-se a outras partes do Mediterrâneo. Se formos à Tunísia e entrarmos terra adentro, partindo do porto de Susa, veremos um gigantesco anfiteatro romano, El Djem, que perde em tamanho só para o Coliseu e está plantado no meio do deserto. El Djem situava-se numa província que se chamava Frugifera ao tempo dos romanos, isto é, a província que dava frutos. Hoje em dia está quase totalmente deserta, com algumas choupanas árabes espalhadas ao pé da grande construção. Esse quadro ocorre repetidamente. Homero fala dos altos carvalhos e pinheiros da Sicília. Agora, pode-se cruzar a Sicília de um lado a outro e dificilmente ver uma só árvore. Há alguns poucos lugares em que se tentou o reflorestamento, mas essa região outro-ra extremamente bem provida de florestas e de madeira está quase totalmente nua. Isso acontece também na Grécia, Palestina, Síria, Espanha e no sul da Itália.

Agora precisamos passar a outra área de destruição, pelo menos tão importante quanto a destruição de florestas - e resultante em parte dela: a destruição do solo.

O solo é um organismo vivo. Deve sua fertilidade à existência de grande número de comunidades ecológicas em seu interior, organismos micro e macroscópicos de toda a sorte. Mas a superfície do solo, que contém quase toda a sua fertilidade, não é funda. Os 2,8 bilhões de pessoas que agora habitam o planeta dependem de uma cobertura de solo que raramente tem mais de vinte e cinco centímetros de espessura - e demora de trezentos a mil anos para criar dois centímetros e meio, de modo que vemos o extremo perigo de qualquer processo de destruição do solo.

Naturalmente a erosão do solo é um fenómeno permanente; é um dos processos regulares de transformação geológica. Mas há uma diferença enorme entre a erosão lenta da natureza, entregue a si mesma, e a erosão rápida e destrutiva provocada pelo homem, que retira da terra sua cobertura vegetal, corta as florestas, arranca o capim ou usa maus métodos agrícolas, que deixam a terra vulnerável aos ventos e à chuva. Infortunadamente, como vimos, o homem comete esses crimes contra a natureza há longo tempo.

Curiosamente, uma das melhores descrições da erosão foi feita por Platão em seu diálogo, o Crítias, em que ele fala de sua terra nativa, a Atiça. Vale a pena lê-la porque é notavelmente acurada. Ele diz:

"Em comparação com o que existia então, restam apenas os ossos de um corpo devastado, como no caso das pequenas ilhas, tendo desaparecido todas as partes mais ricas e macias do solo, sobrando o mero esqueleto da terra. Mas no estado primitivo desse país, suas montanhas eram altas colinas cobertas de solo, e as pradarias de Peleu, cheias de rica terra, e havia abundância de florestas nas montanhas. Ainda há traços das florestas, pois, embora algumas das montanhas agora apenas ofereçam sustentação para ervas, há não muito tempo ainda se viam telhados de madeira cortada de árvores que ali eram bastante grandes para cobrir a maior das casas; e havia muitas grandes árvores cultivadas pelo homem, fornecendo abundância de alimento para o gado. Mais ainda, a terra gozava do benefício das chuvas anuais, não perdendo, como agora, as águas que correm da terra nua diretamente para o mar, mas tendo abundante suprimento em toda parte e recebendo a água em si e guardando-a no solo de argila, deixava cair nas cavidades as torrentes que absorvia das alturas, fazendo aparecer por toda parte fontes e rios abundantes, dos quais ainda se podem observar monumentos sagrados nos lugares em que outrora existiam as fontes; e isso prova a verdade do que afirmo.

"Esse era o estado natural do país, que era cultivado por verdadeiros agricultores, como bem podemos acreditar, que faziam da agricultura seu ofício e eram amantes da honra."1

Platão descreve essa erosão assustadora que já acontecia no quinto século antes de Cristo, mas atribui qualidades quase divinas aos agricultores que obviamente causaram essa erosão. Mais ou menos como fez há quarenta anos Ells-worth Huntington2, Platão atribuiu todos os problemas não ao homem, mas a uma mudança do clima. Pensou que o que acontecera à Ática fora causado por uma série de inundações. Mas creio que, se ele não estivesse tão interessado em ideias platónicas, e se preocupasse um pouco mais com o que os agricultores faziam, provavelmente teria visto que eram precisamente esses divinos lavradores que deixavam o solo arruinado e empobrecido como os gregos do seu tempo o encontraram - e Deus sabe que era relativamente fértil, comparado ao de agora. Pode-se dizer que talvez Platão devesse ter devotado mais atenção a esses terríveis problemas práticos da natureza, em lugar dos problemas metafísicos abstratos que o ocupavam.

E pode-se dizer algo parecido sobre Sócrates, que afirmou não ver objetivo em sair dos muros da cidade, porque tudo o que o interessava estava dentro deles, e seu ofício se ligava unicamente aos homens.

Aqueles entre vocês que estão familiarizados com a literatura dos conservacionistas saberão que imensa quantidade de terra foi destruída aqui pelo desregramento, num período extraordinariamente curto. A mesma coisa acontece em muitas outras áreas do mundo; há vastas áreas de erosão na China, África, América do Sul, e no sul da Europa. E esse terrível processo prossegue, mais e mais, tornando-se tanto mais perigoso quanto mais pessoas nascem neste mundo e precisam ser sustentadas, e a pressão crescente leva os camponeses e fazendeiros a tentarem arrancar cada vez mais do solo.

 

1 Platão, Crítias.

2 Geógrafo americano, 1876-1947.

 

A combinação da destruição pelo homem e do crescimento populacional é um fato assustador. É claramente um dos maiores problemas com que a humanidade se defronta no presente. Mas não devemos pensar que todas as pessoas foram destruidoras todo o tempo e em toda parte. Ao contrário, em muitos lugares do mundo, gente bastante primitiva mostrou notável compreensão quanto à preservação e conservação do solo. Tive ocasião de visitar, neste verão, as regiões inças dos Andes. Ver os terraços inças erguendo-se do chão junto ao rio Urubamba, a oitocentos ou mil metros, na encosta da montanha, é algo excepcional. Alguns dos terraços mais bem cuidados são feitos de pedra bem alinhada, e alguns são usados ainda hoje - permitem uma agricultura bastante intensiva em degraus incrivelmente íngremes (muitas vezes de trinta e cinco graus). Se formos a um lugar como Machupicchu, uma fantástica cidade construída sobre uma elevação, descobriremos que sua população, que era bastante pequena - provavelmente não mais de dois ou três mil habitantes -, conseguiu sobreviver por dois ou três séculos, pelo menos, com esse elaborado sistema de terraços. Também encontraremos extraordinários exemplos de terraços na Indonésia e nas Filipinas: entre os igo-rotes, nas Filipinas, há uma maravilhosa cultura de arroz. Veremos o mesmo em Java, e há bons motivos para supor que muitos desses terraços para cultivar arroz foram usados por mil ou talvez dois mil anos.

Essas são realizações notáveis, mas uma das coisas mais entristecedoras é dar-se conta de que os bons exemplos que tantas pessoas nos deram em tantas partes do mundo não foram seguidos em outras. Veremos os remanescentes dos antigos terraços inças do período pré-espanhol a cinquenta quilómetros de Cuzco, onde a pior prática de agricultura foi usada no cultivo da cevada, e onde se vê a mais terrível corrosão e erosão. Admira-nos que os fazendeiros modernos não tenham seguido essa indicação; evidentemente, como disse alguém, a maior lição da história é que ninguém jamais aprende as lições da história'.

Similarmente, é extraordinário que os métodos de arar segundo os contornos naturais do solo, que agora vêm sendo aplicados mais e mais na agricultura deste país, não foram realmente desenvolvidos senão há trinta anos passados, embora há cento e cinquenta anos o processo já fosse evidente para Thomas Jefferson, que falou sobre erosão e exaustão do solo. Esses fatos nos perturbam ainda mais quando notamos que, devido à crescente pressão da população sobre as fontes de recursos, resta-nos extraordinariamente pouco tempo.

Há vários instrumentos poderosos de destruição do solo que o homem empregou durante os séculos, mas o mais desastroso é provavelmente o superpastoreio, que tem sido usado pelo menos desde a domesticação de carneiros e cabras - provavelmente há sete ou oito mil anos. Temos aqui uma questão bem irónica: geralmente sentimos grande simpatia por Abel, e não gostamos nada de Caim, mas não esqueçamos que Abel era o homem que tinha carneiros e cabras, e Caim, o agricultor. Na verdade, se houvesse algum homicídio justificado, provavelmente teria sido a destruição de Abel por Caim, porque os seguidores de Abel executaram incríveis façanhas de destruição por todo o mundo. Tanto o carneiro como a cabra são altamente destrutivos; são animais de lábios finos, que arrancam a grama pelas raízes e não deixam nada. O carneiro cometeu destruições terríveis na Espanha. Um dos piores capítulos da história espanhola é o de Mesta, grande cooperativa de pastores que estavam em permanente conflito com os agricultores e, no curso de trezentos anos, conseguiram transformar a Espanha praticamente num deserto.

Vale a pena mencionar algo que foi descoberto apenas nos últimos anos. Supunha-se que o sul da Itália tivesse adquirido seu atual aspecto estéril pelo fim do Império Romano, tendo a derrocada da agricultura naquele período causado o desflorestamento e a perda de fertilidade. Mas uma recente descoberta mostrou que não é bem assim. Durante a guerra, a Real Força Aérea fez um mapa quase completo da Itália, fotografando-a cuidadosamente com luz oblíqua, que permite ver traços arqueológicos. Para surpresa geral, viu-se que o que previamente se supunha ser estéril desde o Império Romano era na verdade bem fértil naqueles tempos e mesmo no Obscurantismo. Podem-se distinguir sinais de campos cultivados, terraços e alicerces de casas de agricultores. Agora se sabe que a destruição dessa área fértil, coberta de florestas, no sul da Itália, foi consequência da introdução dos métodos de pastoreio espanhóis durante os séculos XII e XIII, que arruinaram totalmente o país e o deixaram no seu presente estado de desolação.

1 Hegel, Filosofia da história. Introdução: "O que a experiência e a história ensinam é isso

- que as pessoas e os governos jamais aprenderam nada com a história, nem agiram segundo princípios dela deduzidos ".

As cabras são muito mais ativas do que os carneiros e podem até trepar em árvores para comer seu alimento. É fantástico o que a cabra conseguiu destruir; inclui toda a bacia do Mediterrâneo. Uma das piores coisas que as cabras fazem é evitar que as florestas se reproduzam: atacam os brotos novos quando surgem e comem tudo o que está acima do solo.

Uma das poucas coisas realmente boas que se pode dizer em favor dos britânicos e sua ocupação de Chipre é que persuadiram os moradores da extremidade oeste da ilha, a parte coberta de matas, a desistir de suas cabras em favor das árvores. Tudo foi feito democraticamente. Os administradores iam de aldeia em aldeia e falavam sobre as relativas vantagens das cabras e das florestas: as cabras têm consideráveis vantagens aqui e agora, mas as vantagens das florestas no futuro são muito maiores. Um grande número de aldeões foi persuadido a prender suas cabras e a desistir de certa parte delas, tendo como resultado uma notável revi-vescência de florestas nas montanhas do oeste de Chipre. Similarmente, não há no Líbano absolutamente nenhuma perspectiva de reflorestamento (onde ainda seria possível) enquanto as cabras não forem controladas. O Líbano é politicamente dividido em linhas religiosas - os muçulmanos, os drusos, os maronitas, os arménios, os gregos ortodoxos. Contaram-me a história do bispo maronita que chegou ao ministro da Agricultura e disse: "O senhor gostará de saber, Excelência, que estamos indo muito bem com nossas cabras nas montanhas, mas lamento dizer que as cabras ortodoxas ainda estão causando uma enorme devastação".

Apesar de todas as restrições legais, as cabras continuam provocando terríveis devastações. Fizeram-se grandes esforços na Argélia e Tunísia para controlar legalmente as cabras, mas é quase impossível impor a lei, e a destruição prossegue. E, em Madagáscar, o governo, que devia ter sido mais inteligente, introduziu uma valiosa espécie de cabra que produz um pêlo muito útil; o resultado é que agora, vinte e cinco anos depois, só restam vinte por cento da floresta.

Se o superpastoreio é de grande importância para criar condições de erosão, igualmente importante, e talvez mais importante porque existe há mais tempo, é o fogo. Já vimos que o homem usou o fogo deliberadamente desde os primórdios dos tempos, para limpar a terra a fim de facilitar a caça e a agricultura. As florestas da Europa ocidental foram grandemente devastadas pelo fogo vemos traços disso até mesmo nos nomes de localidades da Inglaterra: "Brentwood" significa "madeira queimada"; "Bridly" significa "abrigo queimado" ou "clareira queimada". Mas muito mais destrutivos do que os esforços deliberados do homem têm sido os incêndios acidentais, resultantes da falta de cuidado do mesmo homem.

Os geólogos constatam um notável aumento de cinzas fósseis no começo do Período Pleistoceno, cerca de um milhão de anos atrás, o que parece indicar que, mesmo naquele período tão remoto, o homem ou seus ancestrais quase humanos descobriram o fogo. De qualquer modo, sabemos que o homem de Pequim, que data indubitavelmente de duzentos e cinquenta mil anos atrás (possivelmente de meio milhão de anos atrás), conhecia o fogo e que desde então ocorreram incêndios acidentais.

Uma das grandes tragédias deste país tem sido a fabulosa quantidade de florestas destruídas por incêndios acidentais. O registro é inacreditável: nesta costa, em Washington, houve incêndios em 1865 e 1868, um dos quais destruiu um milhão de acres; outro, seiscentos mil acres. Houve muito poucos incêndios na área antes que os colonizadores chegassem, em 1847; depois dessa data, eles foram incessantes. Houve o grande incêndio de Idaho e Montana, em 1910, que destruiu oito bilhões e meio de pés de madeira de corte, e um dos piores, o incêndio de Tillamook, em 1933, que destruiu doze bilhões e meio de pés. Isso é o que os Estados Unidos teriam consumido em um ano e foi aniquilado em um simples incêndio de uma semana. Calculou-se que no Oregon, desde a primeira colonização, em 1908, quando se instalou proteção contra o fogo, foram cortados e usados cerca de trinta e dois bilhões de pés de madeira de corte, enquanto quarenta bilhões foram destruídos acidentalmente por fogo. Agora se criaram organizações de combate ao fogo, mas qualquer um que veja a dificuldade de controlar até mesmo um pequeno incêndio na Califórnia tivemo-los recentemente - compreende que ainda é muito difícil controlar essa máquina de destruição. Se refletirmos que em países como o Chile os incêndios florestais estão totalmente fora de controle e grassam por semanas a fio, enegrecendo áreas imensas, entenderemos a enorme importância dessa força geológica humana.

O que o homem infelizmente está fazendo a este mundo forma um quadro melancólico. Há muito poucas maneiras de torná-lo menos melancólico. Numa das próximas conferências tentarei lançar uma ponte desde esses fatos até o problema moral, o problema de quais deveriam ser nossos pontos de vista filosóficos sobre a natureza. Pois devemos pensar nesses fatos brutos não apenas de maneira prática, e sim também numa forma metafísica, estética e ética. Sinto que é terrivelmente importante pensarmos assim a respeito de toda a nossa natureza, não apenas como tecnólogos, não apenas como pessoas que querem comer e precisam conseguir comida, mas como seres humanos completos, com natureza moral e estética, e tendências filosóficas.

 

         Mais natureza na arte

         Pronunciada em 2.4.1959.

Em minha última conferência apresentei o aspecto fac-tual da situação em que o homem se encontra com relação a esse planeta, a história bastante sombria da maneira como ele assolou e em grande parte destruiu o mundo - o lar no qual viaja pelo universo. Nesta conferência quero falar sobre acontecimentos do outro lado da ponte. Quero falar sobre o lado psicológico ou humano, porque sinto que devemos tentar reunir esses dois aspectos da vida geralmente separados, o puramente factual e científico e o puramente humano.

Comecemos com os problemas práticos envolvidos. Hoje sabemos o suficiente para consertar boa parte do prejuízo causado ao nosso planeta e evitar que ocorram novos danos. A informação e o conhecimento necessários existem. Mas, como de costume, há uma grande lacuna entre a habilidade para fazer uma coisa e a probabilidade de que ela seja feita. E muito fácil descrever os métodos de conservação que deveriam ser postos em prática de imediato, mas é extraordinariamente difícil executar o que sabemos que somos capazes de fazer.

Primeiramente, a fim de efetuar um programa de conservação satisfatório, temos de comunicar-nos com um número imenso de seres humanos. Afinal, há no mundo várias centenas de milhões de camponeses e trabalhadores de fazendas que precisam ser influenciados de alguma maneira, se quisermos executar eficazmente a conservação, e precisam trabalhar segundo as linhas diretivas dentro das quais sabemos que devem trabalhar. Apenas estabelecer relações com essa gente já é um dos maiores problemas. E, uma vez que as relações estiverem estabelecidas, há o problema de persuadilos a renunciar aos velhos métodos tradicionais em favor de métodos modernos e melhores. Mais ainda, essas grandes cifras estão aumentando rapidamente. E quanto mais aumenta a pressão da população sobre as fontes de recursos, mais urgente se torna a necessidade do homem de produzir alimento, e maior a tentação de usar métodos explorativos. O homem simplesmente não tem escolha senão viver para o próximo ano, e tem de fazer o melhor que puder para extrair sua vida do solo, que muitas vezes já foi prejudicado e está em condições precárias. Os alemães têm um bom termo para esse tipo de economia explorativa: chamam-na Raubwirtschaft (economia de saque).

Agora temos que considerar um simples fato psicológico. É extremamente difícil para os seres humanos seguir um curso que, embora possa ser manifestamente bom a longo prazo, impõe pesadas tarefas a curto prazo. Esse é um problema muito sério, com o qual teremos de nos defrontar em muitos outros contextos. Como poderemos, por meios democráticos, persuadir as pessoas a adotarem medidas que são excelentes a longo prazo, mas que podem causar algum desconforto a curto prazo? Como persuadiremos as pessoas a não explorarem o solo, quando precisam desesperadamente de comida, e quando essa necessidade cresce ano a ano? Não é apenas uma questão de organização e capital; é uma questão de fazer as pessoas aceitarem certas ideias. O problema é que parece excessivamente difícil atingir os incontáveis milhões de pessoas que precisam ser doutrinadas e fazer com que ajam segundo o que sabemos ser cientificamente o melhor método de fazer as coisas, sem considerável controle e coerção totalitaristas.

A única alternativa à coerção «é a persuasão e a educação. Infelizmente esses métodos democráticos exigem tempo, e, por causa da rapidez com que a população cresce, há muito pouco tempo. Mesmo assim, como estamos engajados na ideia democrática, precisamos pensar em termos de educação e persuasão, e por isso precisamos pensar no melhor clima mental para lidarmos corretamente com o planeta no qual vivemos. E isso envolve uma reconsideração do problema ético, o problema da filosofia geral de vida, e problemas de expressão e sensibilidade artísticas.

Comecemos pelo problema ético: qual deveria ser a relação da raça humana com o mundo


onde vive? Eu diria que a consideração mais óbvia que emerge dos fatos expostos na conferência passada é que a lei dourada é boa não só para as atitudes do homem para com outro homem, mas também para a sua maneira de lidar com animais inferiores e mesmo com o mundo inanimado. A regra - faça com os outros o que você deseja que lhe façam - não se aplica meramente ao homem, mas à natureza em geral. Há uma base utilitarista evidente para esse ponto de vista ético. Se queremos ser bem tratados pela natureza, temos de tratar bem a natureza: na verdade, se prejudicamos ou destruímos a natureza, ela nos prejudicará e nos destruirá.

Vale a pena mencionar que esse ponto de vista ético, segundo o qual a natureza é encarada como detentora de direitos e nós como tendo deveres para com ela, não se encontra na nossa tradição ocidental, nem na tradição teoló-gico-escolástica da Idade Média, que ainda permanece ortodoxa nas igrejas mais conservadoras. Ao contrário, temos o que me parece uma formação chocante, de que os animais não têm alma. Por isso não têm direitos, e nós não temos deveres para com eles; consequentemente, podem ser tratados como coisas. Sinto que essa é uma doutrina altamente indesejável e também muito irrealista, porque não apenas não temos direito de tratar animais como coisas, mas posso dizer mais, não temos direito nem de tratar coisas como coisas. Se tratarmos objetos inanimados como coisas que podemos explorar à vontade, as consequências serão desastrosas. Precisamos tratar o planeta como se fosse um organismo vivo, com todo o amor, cuidado e compreensão que um organismo vivo merece. Se não o tratarmos assim, destruiremos o mundo no qual vivemos, e esse mundo destruído se voltará contra nós e nos destruirá.

Uma ideia que muito ajuda nesse contexto é a ideia grega de hybris. Hybris significa violência desregrada inspirada pela arrogância, presunção e orgulho. Os gregos insistiam em que os deuses não lidariam com um homem arrogante que cometesse hybris. E o fato interessante é que, no pensamento grego, podia-se cometer hybris não apenas em relação a outros seres humanos, mas à natureza. Na tragédia de Esquilo, Os persas, um dos crimes de Xerxes foi ter cometido hybris não apenas contra os gregos - invadindo-os -, mas também contra a natureza. Para nós, o crime particular contra a natureza que ele cometeu pareceria bastante perdoável - construir uma ponte de barcos através do Helesponto -, mas o princípio parece correto e verdadeiro: somos capazes de cometer crimes de violência contra a natureza, e eles são tão ruins como os crimes de desregrada violência cometidos contra os homens. É lamentável que essa ideia não tenha entrado na tradição judaico-cristã, onde a noção fundamental é que o homem é o rei da natureza de alguma forma, e está apartado dela e livre para fazer dela o que bem entender.

A ideia de o homem estar apartado da natureza é na verdade bastante recente. O homem primitivo jamais teve essa ideia; ele sempre se considerou parte da natureza, íntima e fundamentalmente ligado a ela e inserido nela. Essa ideia foi expressa por povos primitivos em noções como o totemismo, que define as relações do homem com animais e até sua identidade com eles; rituais de fertilidade, que insistem no fato de que os processos sexuais humanos são idênticos aos da natureza, e que há uma conexão profundamente enraizada entre ambos; e em noções de politeísmo e da divindade dos objetos naturais. Esse era o padrão primitivo do mundo, e remanescentes dele continuaram por séculos depois da aceitação do cristianismo nos chamados cultos de fei-tiçaria da Europa ocidental, por exemplo, que eram essencialmente antigos cultos de fertilidade que haviam sobrevivido desde tempos muito antigos. Contudo, de modo geral, o conceito que o homem primitivo tinha de sua unidade com a natureza foi abandonado no mundo civilizado durante um período que começou pelo século VIII ou VII antes de Cristo; toda a concepção então mudou para a ideia de que, de alguma forma, o homem está separado da natureza. Esse processo é percebido na índia com o surgimento do jainis-mo e do budismo; é visto no Oriente Próximo com o surgimento dos profetas hebreus; é visto na Grécia com o surgimento de Pitágoras e da religião órfica.

Agora houve, por assim dizer, uma contra-revolução. De um modo curioso, podemos dizer que a revolução realizada por Darwin há cerca de cem anos - estamos no centenário da Origem das espécies - foi uma revolução que se afastou da noção judaico-cristã tradicional da relação entre homem e natureza e voltou à primitiva ideia da união do homem com a natureza. Parece que passamos por um caminho em espiral através do estágio totêmico - um estágio muito antigo na evolução cultural - para uma fase mais autoconsciente em que se traçou uma linha nítida entre homem e natureza, e voltamos a um ponto imediatamente acima do estágio totêmico, análogo a ele no nível científico. Vemos a velha intuição da natureza transformada nas ideias da ecologia. Vemos o totemismo transformado na ciência do comportamento animal. Vemos o politeísmo transformado na nova filosofia biológica do organicismo - a ideia de organismos dentro de um organismo maior.

E perfeitamente claro, se pensamos nisso, que somos uma unidade indissolúvel com a natureza e dependemos completamente do ambiente natural. Qualquer pessoa pode fazer uma experiência bem simples para descobrir o quanto depende do ambiente natural, embora viva num mundo de automóveis e televisões. Basta que coloque um grampo de roupas no nariz e tape a boca para ver que não consegue viver sem seu ambiente natural por mais de sessenta segundos.

Não apenas dependemos fisicamente do ambiente externo, mas dependemos dele psicologicamente, de modo muito interessante. Isso foi demonstrado por experiências conduzidas recentemente por D. O. Hebb, na Universidade McGill, no Canadá, e por John C. Lilly, no Instituto Nacional de Saúde, em Washington, sobre os efeitos do que se chama "ambiente limitado". Se os indivíduos são completamente apartados dos estímulos externos, começam a acontecer as coisas mais extraordinárias - a maioria muito desagradáveis. Visões estranhas e horripilantes e imagens de pesadelos invadem a mente, de modo que descobrimos que os estímulos do mundo externo são necessários até mesmo para simplesmente nos manter em nosso juízo perfeito. Não apenas precisamos do mundo exterior para nos manter vivos, mas precisamos dele para não enlouquecer. Entrando mais detidamente nesse assunto, vemos que nossa dependência psicológica e fisiológica direta não se relaciona apenas ao nosso ambiente imediato, mas a outros, muito remotos no espaço e no tempo. É óbvio, por exemplo, que toda a nossa vida depende de acontecimentos físicos que ocorrem no Sol. Também é bastante claro que nossa existência continuada depende de fatos ocorridos em montanhas distantes e nas regiões polar e tropical, onde se forma o nosso clima. Países superpopulosos como a Inglaterra e a maior parte dos países da Europa ocidental dependem, para sua mera existência, de eventos que sucedem longe e completamente fora de sua jurisdição política. O que acontecerá à Europa ocidental se o Novo Mundo não tiver mais excedentes exportáveis? (O professor Paul Sears, de Yale, prevê que isso provavelmente acontecerá em 1980.) Ninguém sabe, mas o problema I é de extrema importância em nosso pensamento político.

Também dependemos de fatos que aconteceram em tempos bem remotos. A maior parte do mundo ainda depende enormemente de carvão e petróleo, produtos de fatos acontecidos no passado distante; assim, encontramo-nos ligados ao mundo da maneira mais íntima possível. Os detalhes dessa ligação com o mundo, e com todas as partes do mundo, num todo único e quase orgânico, são estudados na ciência da ecologia, uma ciência muito recente - a palavra foi inventada por Ernst Haeckel há menos de cem anos - que revelou que os organismos existem em comunidades singularmente equilibradas, e que esse equilíbrio pode ser facilmente perturbado.

Tornou-se muito claro no estudo da ecologia que o homem irrompeu em lugares onde os anjos receavam andar, e, com ignorância, arrogância e estupidez, perturbou esse equilíbrio de maneira alarmante. Na conferência anterior, falei sobre desflorestamento e erosão, que são os exemplos mais graves, mas há outros similares, em escala menor. O interessante é que, depois que o equilíbrio foi perturbado, descobrimos o quanto era delicado; e também entendemos que é incrivelmente difícil prever quais serão os resultados de nossas ações quando perturbamos o equilíbrio de nossos sistemas, nos quais a perturbação de um só elemento tirará do seu equilíbrio o sistema todo. Peguemos um simples exemplo de alguns anos atrás, quando o Serviço Florestal tentou fazer algo para ajudar uma espécie de cervo que vivia na floresta Kaibab, na garganta norte do Grand Canyon. Restavam apenas poucos milhares desses cervos. O Serviço Florestal pensou que os coitados estavam sendo perseguidos por muitos leões da montanha e ordenou o abate de boa parte desses leões. O resultado foi que, em poucos anos, a população de cervos passou de quatro mil para quase cem mil. Os cervos devoraram toda a pastagem da floresta Kaibab; houve epidemias terríveis, e eles começaram a morrer como moscas. Só quando os leões da montanha foram reintroduzidos e mataram os cervos enfermiços é que se restabeleceu um equilíbrio estável. Gradualmente, a floresta se recuperou daquele superpastoreio, e o número de cervos aumentou bastante.

Esse tipo de coisa acontece o tempo todo. Na Escandinávia, mataram-se falcões porque estes abatiam aves de caça. As aves de caça multiplicaram-se, apanharam doenças, quase desapareceram, e os falcões tiveram de ser reintroduzidos. Mas muito pior é o resultado da eliminação dos hipopótamos em grandes áreas da África. A população de peixes nos lagos e rios onde eles viviam dependia em grande parte, para sua nutrição, dos diminutos animais que vinham do excremento dos hipopótamos. Como estes tivessem sido destruídos, toda a população de peixes foi-se igualmente, e os nativos passaram a ter muito menos proteína para comer. Assim, entendemos que, lidando com esses equilíbrios ecológicos extremamente delicados, agimos da maneira mais desajeitada, sem saber o que estamos fazendo.

Não apenas perturbamos o equilíbrio destruindo elementos, mas também o perturbamos introduzindo elementos novos. A introdução do caranguejo chinês no Havaí e nas Antilhas foi um desastre, e desastre ainda maior foi a introdução do coelho na Austrália, Patagônia e outras partes do mundo. O único lugar em que a introdução do coelho não foi um desastre foi no Ceilão, onde felizmente eles foram mantidos em número reduzido pelas serpentes venenosas - que podem nos ser extremamente úteis e fazer-nos mais bem do que mal, apesar de não as apreciarmos muito.

Tudo isso demonstra que devemos ser imensamente cautelosos em relação ao mundo. Apenas através de uma combinação de amor e conhecimento poderemos nos dar bem nele, e somente assim poderemos dominar a natureza. Precisamos lembrar que o homem é um ser paradoxal: é um só com a natureza, mas é um animal absolutamente único, pois pode ter consciência da sua posição e pode influenciar a natureza de maneira intensa, muitas vezes aterradora. Quer gostemos disso ou não, está bem claro que de agora em diante precisamos assumir a responsabilidade pelo que acontece em nosso planeta, porque, se não a assumirmos e não agirmos conforme nosso conhecimento da natureza e nosso afeto por ela, destruiremos o chão sobre o qual vivemos, e nossa espécie acabará.

Eu disse que com o darwinismo voltamos à posição primitiva, mas num nível mais alto: reconhecemos nossa unidade com a natureza e tentamos agir de maneira racional quanto a ela. Penso que vale a pena fazer aqui uma digressão, dizendo que a concepção moderna da natureza tem muito em comum com os pontos de vista tradicionais dos chineses, que, de maneira não muito científica mas intuitiva, anteciparam em muitos aspectos o pensamento científico moderno. O pensamento chinês sobre a natureza semprefoi bem diverso do ocidental. Em primeiro lugar, diferentemente dos filósofos europeus, os chineses jamais pensaram em termos de substância. Os filósofos europeus sempre indagaram: Por que é assim e assim? Os chineses jamais fizeram essa pergunta; sempre perguntaram: Quais são as relações entre tal e tal, entre isso e aquilo? Atualmente, é característico da ciência moderna pensar mais em relações do que em substância. Os chineses pensaram não só em termos de relações, mas em termos de harmonias pré-estabelecidas, de ação e reação mútuas em campos de força.

Na China essas noções vão até a fundação da filosofia taoísta, provavelmente no século VI a.C.; já em Chuang Tsu, século IV a.C., vemos a formulação bem clara de uma filosofia extremamente próxima do moderno organicismo. A ideia chinesa era de que as coisas são o que são, e agem umas sobre as outras da maneira que agem, em virtude de sua posição num sistema de padrões. Os chineses falavam em padrões individuais submetidos ao Grande Padrão, o Tão. Não se incomodaram com a ideia da causa mecânica (que é extremamente difícil de aplicar a entidades biológicas), e desde tempos bem antigos pensaram em termos orgânicos. Singularmente, essa concepção orgânica ou organís-mica da vida foi levada para a Europa no século XVIII e teve profunda influência no filósofo europeu Leibnitz, que se interessou pelas traduções da filosofia chinesa trazidas da China por padres jesuítas, especialmente a filosofia de Chu Hsi, um neoconfucionista do século XII que combinara a noção de taoísmo com as do confucionismo. A filosofia de Leibnitz, por sua vez, influenciou grandemente filósofos or-ganicistas como Whitehead, Needham, Bertalanffy, Smuts e Lloyd Morgan. A ideia chinesa fundamental do Tão foi comparada a uma espécie de campo de força cósmico, que é campo de força não apenas no mundo físico mas no mundo espiritual: as coisas são o que são, e agem como agem, simplesmente por causa da sua posição nos padrões cósmicos.

Uma ética e uma filosofia são muito importantes na criação de uma atmosfera mental adequada, na qual possamos agir corretamente para com o nosso ambiente natural, mas precisamos mais do que uma ética e mais do que uma filosofia. Precisamos de uma estética, uma sensibilidade organizada que polarize de maneira artística nossas emoções em relação ao mundo. Sou um velho e incorrigível words-worthiano; considero Wordsworth um dos quatro ou cinco aiores poetas ingleses, um homem que contribuiu com ideias de enorme importância sobre qual deveria ser nossa relação com o mundo. A ideia de Wordsworth era que homem e natureza são intimamente interligados, que a moralidade depende de nossas relações com o mundo, e que nosso senso da divindade pode ser poderosamente mediado por nossas relações com o mundo natural. Diz, por exemplo:

"Um frémito numa floresta primaveril

Pode ensinar-nos mais sobre o homem,

Sobre o bem e sobre o mal

Do que todos os sábios deste mundo"1.

Também fala, em The excursion ("A excursão"), em ser:

"Arrebatado numa silenciosa comunicação, que transcende Os ofícios imperfeitos de rezar e de louvar"2.

Ele sentia com muita intensidade esse relacionamento espiritual do homem com a natureza e percebia sua importância. Também notou que na natureza o homem poderia descobrir sua própria mente mais profunda, que na sua relação com a natureza poderia descobrir sua espontaneidade e uma experiência de vida imediata, não sofisticada.

A mais recente evolução na poesia e arte europeias que Wordsworth representa relaciona-se estreitamente com a literatura e a arte do Extremo Oriente. Na poesia e pintura paisagística chinesa e japonesa encontramos imagens que, curiosamente, profetizam a atitude wordsworthiana diante da natureza; nessa estranha forma artística do Japão chamada haikai, um pequeno poema de dezessete sílabas, encontramos isso repetidamente expresso de maneira abreviada e engenhosa. Consideremos, por exemplo, um poema de Basho, que diz:

"A ponte pênsil Vinhedos rastejantes Enlaçam nossa vida"3

 

1 Wordsworth, William. The tables turned,/?p. 21-24.

2 Wordsworth, William. The excursion, 7, pp. 215-216.

3 Blytb, R. H. Haikai. Hokuseido, 1952, v. 4, p. 13.

 

Uma ponte de substância viva enlaça o homem com o mundo material, como Wordsworth diz nas memoráveis palavras sobre a Abadia de Tintem:

"... a sublime percepção De algo mais profundamente fundido, Cuja moradia é a luz dos sóis poentes, E o oceano circular, e o ar vivo, E o céu azul, e a humana mente"'.

Essa ideia, característica do século XIX no Ocidente, era lugar-comum no Extremo Oriente muitos séculos antes. Vemos isso não só na poesia, mas no surgimento da pintura paisagística.


Paisagens virtualmente sem figuras eram pintadas na China pelo menos mil anos antes de aparecerem na Europa. Existe algo profundamente religioso na pintura de paisagens, na medida em que parece explorar e expressar aquela camada do inconsciente que está além do inconsciente pessoal e que, parece-me, é um tanto quanto impessoal e não tão imediatamente ligada a mim quanto o mundo exterior. Assim, o valor da pintura de paisagens não está apenas em apresentar-nos imagens do mundo exterior, mas em apresentar-nos, da maneira mais poderosa possível, imagens dessa essência profunda e básica da Mente, da qual a mente individual se alimenta. Esse "misticismo da natureza", como tem sido chamado - termo bastante infeliz, mas não creio que possamos inventar outro -, foi, no século XIX, algo de extraordinária importância, e penso que representou uma reação muito salutar contra as devastações da Revolução Industrial, que cobriu o mundo inteiro de incrível horror, provocou a enorme expansão das cidades e impingiu ao homem um ambiente tecnológico.

A reação wordsworthiana continuou, imitada e levada adiante por muitos outros poetas, neste país por Whitman, especialmente em alguns dos breves ensaios de Specimen days, com uma espécie de tranquilidade que muita poesia não tem. Sentimos na poesia de Whitman que ele se dirigia a uma plateia muito grande, mas nos pequenos ensaios de Specimen days, descrevendo sua vida no interior depois da doença, temos a impressão de que falava para si mesmo. Descreve-se sentado junto a um lago, observando o martim-pescador, ou haurindo uma sensação de vida ao contemplar os brotos de um freixo, ou sentado debaixo de um carvalho; são descrições maravilhosamente belas, e pode-se ver o valor religioso da atitude wordsworthiana em relação à natureza, naquele apressado mundo em expansão da moderna tecnologia.

No mundo presente, e esse fato me inquieta, o misticismo da natureza da pintura de paisagens do século XIX, e da sua poesia, parece ter-se evaporado em grande quantidade. É como se os artistas contemporâneos se tivessem resignado diante do novo ambiente tecnológico e não prestassem muita atenção ao ambiente natural. Vimos, na pintura, o afastamento da pintura paisagística para a pintura não-representativa, para o uso de formas abstraías que pretendem ser simbólicas, expressando acontecimentos da mente, mas que para mim são bem menos expressivas do que as paisagens, nas quais, por exemplo, Constable, Turner, os impressionistas ou os pintores Sung exprimiram estados de sua mente.

 

1 Wordsworth, William. Lines composed a few miles above Tintem Abbey. pp. 95-99.

 

Na poesia, vemos algo parecido. Pessoalmente, julgo boa parte da poesia contemporânea abstraía demais para o meu gosto. Há uma grande íendência para usar fraseologia absíraía a fim de escapar à descrição concreía e facíual das coisas naíurais, passando para descrições de algum aspecto da nossa civilização íecnológica. De minha paríe, sou basíaníe aníiquado para seníir que gosíaria de ver ouíra reação na poesia, em direção a uma poesia da naíureza, a um misíicismo e uma piníura paisagísíica da naíureza como aníigameníe. Naíuralmeníe, não poderia ser a mesma coisa; jamais poderemos repeíir o que aconíeceu no passado. Mas a íendência geral seria num seníido de saúde e genuíno seníimenío religioso, que nos faria muito mais bem no momento preseníe.

Vemos, pois, que esíamos em posição de remendar o dano que causamos ao planeia e prevenir danos maiores. Mas será exíremameníe difícil porque há muitos faíores agindo coníra isso. E precisamos de uma aímosfera meníal certa, na qual pareça naíural que as pessoas façam o que devem fazer em relação ao nosso planeia. Precisamos de uma exíensão do nosso aíual sisíema de éíica; precisamos de uma filosofia, alguma forma do que eu chamaria idealismo realísíico, que harmonize o homem com a naíureza e dê conía de iodos os fatos. E, fmalmeníe, precisamos não apenas de uma boa éíica e uma boa filosofia, mas de uma boa arte, que nos dará os íermos em que poderemos seníir e pensar sobre esse problema - uma arte que, lamento dizer, creio não exisíir hoje por causa da reação coníra suas manifesíações prévias no século XIX. Mas sinto que ela merece volíar e receber ioda a aíenção dos jovens talentos.

 

         A explosão populacional

         Pronunciada em 9.3.1959.

Hoje quero comentar o que está acontecendo à espécie humana e refletir um pouco em como deveriam ser nossa filosofia e nossa visão ética sobre tal assunto. Esta conferência é essencialmente a respeito das cifras humanas e sua relação com o bem-estar e os valores humanos em geral.

Não é preciso dizer que qualquer estimativa acurada de cifras humanas é muito recente, mas podemos extrapolar para o passado e chegar ao que parecem ser conclusões bastante boas. Embora haja xlifcrenças relativamente grandes entre os especialistas, os números a que chegam em geral concordam. Concordam em/que no período pré-agrícola, por exemplo, na Era Paleolítica mais antiga, quando o homem era um ser que apenas buscava alimento, provavelmente não havia mais de vinte milhões de seres humanos em todo este planeta. Mais para o fim do Período Paleolítico, depois de se inventar a caça organizada, esse número provavelmente dobrou. Podemos fazer uma estimativa bruta do que um povo de caça organizada podia fazer, porque sabemos quantos índios havia na América do Norte quando chegou o homem branco - não mais do que um milhão em todo o continente norte-americano, a leste das montanhas Rochosas -, e isso nos dá uma indicação de como a densidade da população é baixa numa economia baseada na caça. A Grande Revolução chegou em cerca de 6000 a.C., com a invenção da agricultura, e a criação de cidades no milénio seguinte. Em cerca de 1000 a.C., depois de cinco mil anos de agricultura, havia provavelmente cerca de cem milhões de pessoas no mundo. No começo da era cristã, esse número era pouco mais do que o dobro: algo entre duzentos e duzentos e cinquenta milhões - menos da metade da população atual da China. A população aumentou muito lentamente nos anos seguintes; por vezes houve longos períodos de estacionamento e até épocas de redução, como nos anos imediatamente após 1348, quando a Peste Negra matou trinta por cento da população da Europa e ninguém sabe quanto da população da Ásia.

Quando os peregrinos chegaram a este país, estima-se que a população do mundo era o dobro do que fora no primeiro milénio - quer dizer, dobrara em seiscentos anos, um ritmo extremamente lento. Mas a partir de então, de meados do século XVII, com o começo da Revolução Industrial e a primeira importação de alimento das terras recém-desenvolvidas do Novo Mundo, a população começou a crescer muito mais rapidamente do que jamais crescera em tempos anteriores. Ao tempo da Declaração da Independência, a população mundial era de provavelmente cerca de setecentos milhões; deve ter ultrapassado a marca do primeiro bilhão logo no início do século XIX, e estava em um bilhão e quatrocentos milhões quando nasci, na década de 1890. O fato impressionante é que, desde então, a população do planeta dobrou mais uma vez. Passou de um bilhão e quatrocentos milhões, o que já é o dobro do que era quando se assinou a Independência, para dois bilhões e oito-centos milhões. E o ritmo de aumento atual é tamanho que provavelmente a população dobrará outra vez em menos de cinquenta anos.

Assim, os índices de crescimento aumentaram junto com o aumento absoluto em números. A taxa líquida de crescimento não chegou a um por cento ao ano até o começo deste século. Agora, subiu a uma média de 1,6 por cento ao ano no mundo inteiro, e há muitas áreas em que excede a dois por cento, chegando mesmo a três por cento ou mais. Um aumento de três por cento, computado anualmente (a população aumenta como aumenta o dinheiro, a juros compostos), dobra a população em vinte e cinco anos, e um aumento de 1,5 por cento dobra a população em cerca de cinquenta anos; assim, uma porcentagem de 1,6 de crescimento dobrará a população em pouco menos de cinquenta anos. O fato de que o índice de crescimento jamais atingiu um por cento até o século XX, e que nesse curto período desde 1905, quando atingiu esse ponto, já chegou à cifra de 1,6 por cento, é algo extraordinário. Demonstra que estamos vivendo num mundo para o qual não há nenhum precedente histórico, e que temos de nos resignar a pensar, em termos inteiramente


novos, em um problema sobre o qual nossos pais jamais tiveram de pensar tão intensamente.

Mencionei que no presente há grandes diferenças de índice de crescimento em diferentes partes do mundo. A Europa ocidental teve o seu grande crescimento populacional durante os séculos XVIII e XIX. Embora o ritmo jamais tenha chegado nem a um por cento ao ano, naquele tempo o crescimento foi rápido e espantoso. Agora a população da Europa atingiu cerca de quatrocentos milhões e está aumentando em menos de um por cento ao ano; pensamos que levará cerca de cem anos para duplicar novamente. Entrementes, em outras partes do mundo que não tiveram grande aumento populacional no século XIX, a população começou a crescer em ritmo acelerado. Estamos agora vendo aquilo que aconteceu na Europa há cem ou cento e cinquenta anos acontecer em escala muito grande na Ásia, África, América do Sul e ilhas do Caribe. Assim, o aumento é consideravelmente menor na maior parte do mundo ocidental do que é no mundo africano ou asiático.

Levemos em conta os motivos para as fases de crescimento populacional no passado. O homem primitivo era limitado por seus métodos de coletar alimento. A coleta de alimento perambular por aí apanhando bolotas de carvalho, caracóis, sapos e outras coisas - podia obviamente sustentar apenas uma população muito pequena. Quando a caça se torna organizada quando surgem as flechas, quando se inventam os arcos, quando surge a caça com fogo e se organizam tribos inteiras para perseguir a caça -, então um número consideravelmente maior de pessoas pode ser sustentado. Assim, os especialistas acham que a população duplicou naquele período. Com o advento da agricultura, há um grande aumento imediato de população, quando se torna possível elevar em muito o nível de produção, fundar cidades e criar a divisão do trabalho e o que chamamos civilização. A era proto-agrícola perdurou com pequenas alterações até o fim do século XVII, quando tivemos o começo da Revolução Industrial juntamente com os primeiros resultados da exploração de terras virgens do Novo Mundo. Sem o suprimento da comida barata do Novo Mundo, provavelmente teria sido impossível à Europa industrializar-se como o fez; mas o acidente histórico através do qual subitamente se abriram enormes extensões de terra possibilitou tirar do campo muitos camponeses, na Europa, colocá-los em fábricas e mante-los alimentados enquanto construíam a nova sociedade industrial. Foi o suprimento extra de comida que iniciou o moderno avanço da população; todas as espécies vivem segundo seu suprimento de comida, e depois são eliminadas na medida em que seu número excede o alimento.

Um fator novo baseado em descobertas de fisiologia e medicina entrou nesse quadro nos últimos anos: o fator saúde pública. O que está acontecendo agora não é um aumento da taxa de natalidade - na verdade, em muitos casos essa taxa diminuiu um pouco -, mas é a taxa de mortalidade que baixou espantosamente, em especial com a adoção de medidas de saúde pública. A mudança começou no século XIX, quando as pessoas compreenderam, por exemplo, que precisavam usar água limpa. Mesmo antes da descoberta de Pasteur sobre as bactérias, as pessoas começavam a entender o fato de que ser limpo era uma coisa boa.

Nesse contexto é interessante ler algo sobre os primeiros esforços dos discípulos de Jeremy Bentham, filósofo uti-litarista, para limpar a cidade de Londres. Os ricos, que viviam em determinada área de Londres, haviam sido totalmente indiferentes às condições assombrosas que reinavam na parte leste da cidade. Mas quando a cólera e outras doenças, como o tifo, que devastavam a região leste, começaram a invadir as regiões mais elegantes do setor oeste, decidiram que deviam fazer alguma coisa. Homens como Sir James Kay-Shuttleworth conseguiram, em quarenta anos, transformar Londres de um buraco pestilento e revoltante numa cidade relativamente limpa. O resultado foi um crescimento dramático na expectativa de vida: a expectativa de vida na antiga Roma fora de cerca de trinta anos, assim como na moderna Ásia; a expectativa de vida nos Estados Unidos e Grã-Bretanha agora é de cerca de setenta anos.

Hoje, com as mais novas armas da saúde pública, podem-se produzir as mais surpreendentes mudanças revolucionárias em muito pouco tempo. As duas armas mais poderosas são os antibióticos e os inseticidas - junto com a descoberta de que a malária e a febre amarela, por exemplo, são produzidas por insetos, e outras doenças tropicais também se transmitem através de pequenos animais. Consideremos o caso do Ceilão1, onde a população se mantinha quase estacionaria devido à malária endémica. Depois do fim da Segunda Guerra Mundial, equipes de saúde pública foram enviadas para o Ceilão com DDT, e a malária foi totalmente eliminada em menos de cinco anos. Na Europa, por outro lado, a malária foi endémica durante séculos (vêem-se referências constantes a ela nas peças de Shakespeare sob o termo "ague"). Em Londres foram necessários pelo menos trezentos anos de drenagem de solo e secagem da área ao longo do estuário do Tamisa para eliminar o mosquito e consequentemente a malária.

 

1 Atual Sri Lanka (N. do E.).

 

Enquanto três séculos de trabalho duro foram exigidos na Inglaterra para eliminar a malária, no Ceilão, com métodos modernos, não foram precisos mais do que cinco anos! E quais foram os resultados? Salvamos as pessoas das misérias da malária; grande parte delas teria morrido dessa doença no começo da vida ou na meia-idade. Mas enquanto o índice de mortalidade decresceu quase a níveis europeus, o índice de natalidade permaneceu o que era quando três ou quatro em cada cinco crianças morriam regularmente e era preciso produzir famílias grandes para preservar a raça. O resultado é que a população do Ceilão agora cresce a três por cento ao ano, o que significa que dobrará em vinte e quatro anos. Mas a terra não é elástica. Embora alguma terra nova comece a produzir porque agora pode ser arada devido à destruição do mosquito da malária, ainda não será suficiente; e entrementes já surgiram problemas inacreditáveis. E cada vez mais difícil alimentar a população com recursos locais, e as safras exportáveis, como a do chá e da borracha, não bastam para comprar alimento suficiente. O capital vem com muita dificuldade porque simplesmente não há bastante dinheiro circulando para as pessoas economizarem. E ninguém sabe o que acontecerá quando a população duplicar.

Essa mesma situação é particularmente chocante em muitas ilhas, onde não há possibilidade de expansão. E muito impressionante em Maurício, como também em algumas ilhas do Mediterrâneo, como a Sardenha e a Sicília; é um problema terrível em todas as ilhas do Caribe. No ano passado falei com o primeiro-ministro da Federação do Caribe, Sir Grantley Adams (que foi anteriormente primeiro-ministro de Barbados), e ele contou-me do estado de sua ilha natal. Agora, Barbados tem uma população de quinhentas e cinquenta pessoas por quilómetro quadrado, com apenas uma indústria, a do açúcar, e nenhuma outra fonte de recursos, e ninguém tem a menor ideia de como vão se ajeitar no futuro; Barbados está em situação apenas um pouco pior do que muitas outras ilhas. É preciso encarar o fato doloroso de que essa comunidade, que recentemente conseguiu sua independência, é provavelmente algo inviável do ponto de vista económico, e que provavelmente a situação piorará com o correr do tempo, devido à crescente pressão da população sobre as fontes de recursos. A mesma situação pode ser vista no Egito, onde no momento algo como vinte e cinco milhões de pessoas tentam obter seu sustento de cinco milhões de acres de terra arável. Aqui podemos colocar entre parênteses a razão pela qual a política egípcia tem sido tão difícil para o Ocidente nos últimos anos. E uma razão biológica; essas pessoas não podem viver de seus próprios recursos, e precisam fazer com que pessoas com capital invistam em seus país. E completamente inútil encarar a política de um país como o Egito e de muitos outros países sob um ponto de vista unicamente político. E preciso pensar em termos de biologia para obter certa compreensão e formular qualquer teoria razoável.

Perguntemo-nos agora quais as alternativas práticas que temos diante desse problema do crescimento populacional. Uma alternativa é não fazer nada em especial, apenas deixar as coisas continuarem como estão, mas as consequências são bem claras: o problema será resolvido pela natureza do modo como ela sempre resolve problemas de superpopulação. Quando qualquer população animal excede os recursos disponíveis, essa população tende a: a) morrer de fome, ou b) sofrer de graves enfermidades epidêmicas e epizoóticas. Na população humana podemos entrever que o controle natural do crescimento ilimitado da população será precisamente esse: haverá pestilência, fome e, como somos seres humanos e não animais, haverá guerra organizada, que reduzirá os números àquilo que a terra pode suportar. O que a natureza nos ensina é que é extraordinariamente perigoso perturbar qualquer dos seus equilíbrios fundamentais, e que estamos num processo de perturbação de um equilíbrio fundamental da maneira mais drástica e alarmante. O problema é: vamos restaurar o equilíbrio pela maneira natural, que é brutal e totalmente desumana, ou vamos restaurá-lo de algum modo inteligente, racional e humano? Se deixarmos as coisas como estão, a natureza certamente resolverá o problema a seu modo, e não ao nosso.

Outra alternativa é aumentar a produção industrial e agrícola de maneira que possam ficar no mesmo nível do crescimento da população. Mas essa solução seria muito parecida com o que acontece em Alice através do espelho. Lembrem-se de que Alice e a Rainha Vermelha estão disputando uma corrida incrível. Para espanto de Alice, depois de correrem até ficarem completamente sem fôlego, encontram-se exatamente no mesmo lugar, e Alice diz: "Bem, no nosso país. . . em geral a gente chegaria a qualquer outro ponto correndo depressa e por tanto tempo como nós corremos".

"Mas que país lento!", diz a Rainha. "Aqui, sabe, é preciso correr o mais que se pode, para ficar no mesmo lugar. Se a gente quer chegar a outro lugar, é preciso correr pelo menos duas vezes mais depressa!"1

Essa é uma parábola cómica da situação trágica em que nos encontramos. Precisamos trabalhar, fazer um esforço enorme, apenas para ficarmos onde estamos; e onde estamos não é uma posição muito desejável porque, conforme indicam as mais recentes cifras das Nações Unidas, cerca de dois terços da raça humana vive hoje de uma dieta de duas mil calorias ou menos ao dia quando o ideal é cerca de três mil. Isso é definitivamente uma dieta de subnutrição.

Mais ainda, todos os observadores de organizações agrícolas e de alimentação e de outras organizações internacionais ocupadas com esse problema concordam em que a situação é hoje pior do que era há trinta ou quarenta anos; o indivíduo médio tem menos para comer, e menos bens, do que tinha no passado. Se, há cerca de trinta anos, mais ou menos cinquenta por cento da população do mundo era definitivamente subnutrida, hoje em dia quase sessenta e cinco por cento está nessa condição. O motivo dessa piora constante é claro: num país como México, Guatemala ou Ceilão, onde a população aumenta três por cento ao ano, toda a produção, agrícola e industrial, 'teria de crescer igualmente três por cento ao ano a fim de preservar ao menos o nível presente e não satisfatório de vida. Se quisermos alguma melhora, o aumento da produção terá de ser certamente de quatro por cento, e preferivelmente de cinco por cento ao ano. Mas é muito difícil manter um crescimento de dois a três por cento ao ano na produção agrícola, quanto mais de quatro por cento. Isso foi feito no Japão durante quarenta ou cinquenta anos, com o mais extraordinário esforço e singular engenho dos japoneses, mas é muito improvável que possa ser feito em muitas outras partes do mundo, especialmente nos países subdesenvolvidos, onde há uma espantosa falta de capital. Afinal de contas, o capital é a margem que resta quando as necessidades básicas da população foram satisfeitas, mas na maioria dos países subdesenvolvidos as necessidades fundamentais da população jamais são satisfeitas.

 

JCarroll, Lewis. Alice através do espelho, cap. 2.

 

E inacreditável como é pequeno o capital que um país como a índia consegue levantar. As últimas cifras das Nações Unidas que vi mostram que a maioria dos países ocidentais têm à sua disposição cerca de setenta vezes o capital dos países subdesenvolvidos, quando no presente os países subdesenvolvidos precisam de cerca de setenta vezes mais capital do que os países desenvolvidos. A situação ilustra o terrível significado e a afirmação dolorosamente verdadeira do Evangelho, "a quem tiver será dado, e dos que nada têm será tirado até mesmo isso que possuem" (Mateus 25:29).

Junto com a falta de capital, nos países subdesenvolvidos há grande carência de mão-deobra especializada, o que é tão necessário para o aumento da produção quanto suprimentos adequados de capital, de modo que parece extremamente difícil prever a possibilidade de aumentar suficientemente a produção para que ela apenas se mantenha equilibrada com o crescimento populacional, quanto mais superá-lo. Isso quanto à segunda alternativa.

A terceira alternativa é tentar aumentar a produção tanto quanto possível, e ao mesmo tempo tentar restabelecer o equilíbrio entre o índice de natalidade e o de mortalidade por meios pelo menos não tão cruéis quanto os da natureza - por métodos humanos e inteligentes. Nesse contexto é interessante notar que a ideia de limitar o crescimento da população não é em absoluto algo novo. Em muitas sociedades primitivas, e mesmo em algumas das sociedades altamente civilizadas da antiguidade, empregavam-se métodos anticoncepcionais onde havia ameaça de superpopulação. Os métodos incluíam alguns que acharíamos muito indesejáveis, embora menos temíveis do que os meios naturais. O mais comum era o infanticídio - matar ou deixar morrer, abandonando, nas montanhas, crianças indesejadas, do sexo errado, portadoras de alguma deficiência leve ou coisas assim. O aborto também era muito comum. E havia muitas sociedades em que ordens religiosas estritas impunham longos períodos de continência sexual entre o nascimento de cada filho. Mas nos séculos XIX e XX vários métodos de controle de natalidade, menos assustadores, foram inventados, e é teoricamente concebível que sejam aplicados no mundo inteiro.

Mas o que é teoricamente possível muitas vezes é quase impossível na prática. Há dificuldades colossais na maneira de implantar uma limitação de população em grande escala; se o controle da mortalidade é muito fácil nas condições modernas, o controle de natalidade é extremamente difícil. A razão é muito simples: o controle da mortalidade - por exemplo, de enfermidades infecciosas - pode ser realizado por um grupo de especialistas e uma força de trabalho bastante reduzida de pessoas não treinadas e exige pequeno investimento de capital. No caso do Ceilão, a malária foi eliminada simplesmente colocando-se DDT em pântanos e lagos, e desinfetando-se também o interior das casas. Similarmente, cavar poços para obter água limpa é um procedimento bem barato. Mas quando se trata de aumentar a produção, ou de limitar a taxa de natalidade, confrontamo-nos com problemas que só podem ser resolvidos pela cooperação da população inteira. Aumentar a produção agrícola exige um imenso trabalho educacional entre milhões de pequenos proprietários, camponeses e fazendeiros, e qualquer política de controle de natalidade exige a cooperação de toda a população adulta. Assim, é provável que o atual estado de desequilíbrio continue por um bom tempo.

O problema do controle da taxa de natalidade é infinitamente complexo. Não é apenas um problema de medicina, de química, de bioquímica; é também um problema de sociologia, psicologia, teologia e educação. Tem de ser atacado em dez frentes simultaneamente se quisermos ter alguma esperança de resolvê-lo. Antes de mais nada, tem de haver grande quantidade de pesquisa fundamental em biologia e em todo o problema da reprodução, na esperança de produzir um anticoncepcional oral satisfatório, que possa ser distribuído de modo fácil e barato a grandes massas de população. No ano passado, conversei com pesquisadores do Instituto Rockefeller, que me disseram que ainda há muita pesquisa de base a ser feita. Não sabemos o suficiente para produzir um anticoncepcional oral satisfatório. Infelizmente aplica-se pouco dinheiro nessa pesquisa; em geral, investe-se muito mais dinheiro na pesquisa física e química do que na biológica, e muito mais vai para outras áreas da pesquisa biológica do que para essa área particular. Contudo, presumindo que se aplique nesse problema dinheiro e habilidade suficientes, ele provavelmente se resolverá em dez anos, e então poderemos manufaturar em grande quantidade algo satisfatório. Mas dentro de dez anos a população da terra terá crescido quinhentos milhões.

Então temos de levar em conta o tempo exigido para que o novo contraceptivo oral seja aceito por incontáveis milhões de homens e mulheres de todo o mundo. Uma interessante pesquisa foi realizada anos atrás sobre esse tipo de problema pelos ingleses Beatrice e Sidney Webb. Eles estudaram o tempo médio que uma ideia, a princípio revolucionária e chocante, levava para ser aceita por toda a população. Chegaram à conclusão de que o tempo médio é de vinte e oito anos mais ou menos uma geração. E muito difícil persuadir adultos a mudarem seus pontos de vista; eles precisam morrer antes que uma nova geração possa aceitar novas ideias. Se levarmos dez anos para produzir quimica-mente o que desejamos, através de pesquisa básica, e mais vinte e oito anos para fazer com que o produto seja aceito, a população da Terra terá aumentado em um bilhão e meio de habitantes. Mais uma vez, estamos diante de uma terrível parábola de Alice através do espelho, correndo a fim de ficarmos parados no mesmo lugar.

Meramente do ponto de vista técnico e temporal, estamos numa situação crítica. Mas também devemos considerar o ponto de vista político. Teria de haver sem dúvida um acordo mundial ou acordos regionais para uma política geral de população que permitisse controlar satisfatoriamente a situação. Mas não há nenhuma perspectiva de que exista qualquer acordo político nesse sentido, no momento presente.

O problema é que os líderes políticos não pensam em termos biológicos. Eis uma especulação bem interessante: o que teria acontecido se o único homem com bastante experiência em biologia prática, e que fosse político, tivesse se tornado presidente dos Estados Unidos? Estou me referindo a Henry Wallace, que foi sem dúvida um péssimo político, mas que pensou em termos biológicos. Ajudando a desenvolver o milho híbrido, ele fez algo inquestionavelmente bom para toda a raça humana - provavelmente é mais do que se pode dizer de qualquer outro homem público de que posso me lembrar. Talvez, se tivéssemos um homem desses como presidente, toda a ideia sobre tais problemas tivesse sido afastada do campo político, onde eles são insolúveis, e encaminhada para o terreno da biologia, onde possivelmente haverá solução. Talvez tivéssemos uma orientação muito mais sensata a longo prazo do que essa que agora todos os partidos perseguem - que é, a longo prazo, como tocar lira de maneira monstruosamente frívola e irresponsável enquanto Roma arde. Brincamos com o terrível tema da política do poder nacionalista, enquanto nosso problema fundamental é se a raça humana pode sobreviver em condições decentes, expandindo-se da forma como se expande, e o que faremos para preservar o mundo num estado tolerável para nossos netos e bisnetos. Infelizmente perdemos nossa oportunidade, e nunca houve no comando de um grande Estado alguém que pensasse em termos biológicos.

Outro problema que penso ser necessário mencionar em relação ao crescimento das cifras humanas é o educacional. O crescimento rapidíssimo torna quase impossível fornecer educação básica para todos. Fizeram-se esforços imensos, especialmente desde o fim da Segunda Guerra Mundial, para prover educação elementar ao mundo todo. Mas permanece o fato de que, apesar de todos os esforços, o número de analfabetos hoje é maior do que jamais foi - os dados foram publicados pela UNESCO há dois meses. Temos hoje oitocen-tos milhões de crianças para educar, mas também setecen-tos milhões de adultos analfabetos. Nos países subdesenvolvidos: a) não há recursos para a construção de escolas, b) não há dinheiro para pagar professores e c) não há, nem de longe, suficientes professores adequadamente preparados. Mesmo neste país, o mais rico do mundo, ouvem-se graves queixas de salas de aula superlotadas, de insuficiência de escolas, e assim por diante. Imaginem quais serão os problemas em países como o México, Brasil ou Ceilão, onde há uma taxa muito maior de crescimento populacional e muito menos recursos, tanto em dinheiro quanto em pessoal preparado. Assim, defrontamo-nos com a terrível probabilidade de que continuaremos tendo mais adultos analfabetos do que antes. Devemos lembrar que esses adultos serão analfabetos não dentro do quadro da civilização tradicional - quando não importava muito se eram analfabetos ou não -, mas no conjunto de uma civilização tradicional que sofreu uma derrocada completa e está sendo substituída pelo que há de pior em nossa civilização ocidental.

Precisamos perguntar-nos qual a atitude mais correta diante de tais problemas. Chegamos ao outro lado da ponte. Passamos do mundo dos fatos ao mundo dos valores. Nossa opinião sobre tudo isso depende do que julgamos ser o fim e o objetivo da vida humana. Se acreditamos que seja promover a política e o nacionalismo, precisaremos de boa quantidade de alimento para canhões, embora até essa proposição se torne duvidosa diante da guerra nuclear. Mas se, como penso que a maioria de nós concordaria, o objetivo da vida humana é concretizar potencialidades individuais ao máximo de seus limites, e da melhor maneira possível, e criar uma sociedade que facilite tal concretização, então poderemos pensar de maneira racional e filosófica sobre o problema da população. Vemos que em muitos e muitos casos o esforço de melhorar a qualidade humana é prejudicado pelo simples aumento da quantidade humana; muitas vezes qualidade é incompatível com quantidade. Vimos que só quantidade torna irrealizáveis as potencialidades educacionais do mundo. Vimos que a pressão de enormes cifras de seres humanos sobre as fontes de recursos torna quase impossível melhorar os níveis materiais de vida, que afinal têm de ser elevados a um mínimo para que se possam concretizar quaisquer das possibilidades superiores: embora seja bem verdade que o homem não pode viver só de pão, menos ainda poderá viver sem pão, e, se não tivermos pão suficiente, não conseguiremos nada mais. Apenas quando o homem tiver pão, apenas quando sua barriga estiver cheia, haverá alguma esperança, de que, da situação humana, emerja alguma coisa mais.

Depois, existe o problema político. Está bastante claro que quando a população pressiona mais e mais fortemente as fontes de recursos, a situação económica tende a tornar-se mais e mais precária. E como há, nas situações precárias, uma tendência para o governo centralizado assumir mais e mais controle, existe por isso uma tendência para formas totali-taristas de governo, o que certamente nós, do Ocidente, consideramos muito indesejável. Mas se perguntarem se a democracia é possível numa população em que dois terços das pessoas vivem de duas mil calorias diárias, e um terço vive com mais de três mil, a resposta será não, porque as pessoas que vivem com menos de duas mil calorias simplesmente não terão bastante energia para participar da vida política do seu país e por isso serão governadas pelas bem nutridas e cheias de energia. Mais uma vez, a quantidade age contra a qualidade.

Outro resultado para mim muito perturbador e doloroso da quantidade afetando a qualidade na vida humana é que massas cada vez maiores de pessoas vivem confinadas em cidades gigantescas e que por isso mais e mais pessoas vivem sem contato com o ambiente natural, sendo, ao contrário, rodeadas por um ambiente intoleravelmente lúgubre e sórdido. Pensando nisso veremos que provavelmente nunca houve uma cidade bela com mais de dois ou três mil habitantes, porque uma cidade bela é bela em relação ao ambiente natural que a cerca. Podemos ter cidades com magníficas áreas centrais, como Washington; mas quando saímos das áreas centrais, não podemos dizer que Washington seja muito bonita, porque andamos por quilómetros quadrados de cortiços extraordinariamente sombrios e áreas residenciais de classe média de segunda categoria. O mesmo acontece em relação a outras cidades ainda bem maiores, como Nova York, Londres e Tóquio. Há quilómetros e quilómetros de assustadora miséria, onde as crianças jamais vêem um só objeto natural, mas apenas feios objetos produzidos pelo homem. Essa situação é uma chaga no mundo atual, e até onde posso ver se tornará muito pior. Não posso evitar de sentir que é um estado de coisas muito prejudicial ao espírito humano.

Por fim, o crescimento ilimitado da população praticamente garante que nossos recursos planetários serão destruídos, e que em cem ou duzentos anos uma espécie humana imensamente hipertrofiada terá se tornado um tipo de câncer neste planeta, arruinando o semi-organismo em que vivemos. É uma previsão muito deprimente.

Penso que, desse último ponto de vista, podemos dizer que o problema de quantidade e qualidade é realmente uma questão religiosa. Pois, afinal, o que é a religião senão uma preocupação com o destino do indivíduo e com o destino da sociedade e da raça em geral? Isso está muito bem colocado nos Evangelhos, quando nos dizem que o Reino de Deus está dentro de nós, mas ao mesmo tempo devemos contribuir para que se funde o Reino de Deus na Terra. Não podemos negligenciar nenhum desses dois aspectos do destino humano, pois se negligenciarmos o aspecto populacional, geral e quantitativo do destino, condenaremos a nós próprios ou certamente a nossos filhos e netos como indivíduos. Condená-los-emos a um tipo de vida que nos pareceria intolerável e que certamente eles também acharão intolerável.

Não há objeções teológicas precisas à limitação da população. A maior parte das organizações religiosas do mundo atual, dentro e fora do cristianismo, aceitam-na. Mas a Igreja Católica Romana não admite nenhum método de controle da população, exceto aquele que foi promulgado e permitido em 1932 - o assim chamado método do ciclo mensal. Infelizmente, esse método, experimentado em escala considerável num país subdesenvolvido como. a índia, não se mostrou muito eficaz. O fato de a Igreja reconhecer esse problema foi demonstrado muito claramente em 1954, no primeiro Congresso de População das Nações Unidas, realizado em Roma, quando o falecido papa deixou evidente, numa alocução aos delegados, que o problema da população é muito grave e pediu aos fiéis que se engajassem na luta para resolvê-lo.

Não sei se a presente atitude da Igreja em relação aos métodos do controle de natalidade mudará. Um dos seus principais argumentos contra os métodos atualmente em uso, e possivelmente outros futuros, é que são "antinatu-rais". Precisamente o mesmo argumento foi usado na Idade Média, até 1515, contra o interesse financeiro. O argumento baseava-se em afirmações de Aristóteles de que o dinheiro é algo estéril e não tem direito de se multiplicar. Uma alusão a isso encontra-se no Mercador de Veneza, onde António, falando com Shylock, menciona o "metal estéril" que dá cria e pergunta: "Ou o seu ouro e sua prata são ovelhas e carneiros?"1 Que as criaturas vivas procriassem era certo, mas era errado que o dinheiro se multiplicasse. Essa posição modificou-se gradualmente; a última mudança aconteceu no Concilio de Latrão, em 1515. Não sei se uma mudança similar acontecerá na posição quanto aos métodos "antina-turais" de controle de natalidade. Seja como for, todo mundo concorda em princípio que a superpopulação é um grande perigo, e agora as diferenças são apenas questão de opinião.

Podemos, pois, concluir dizendo que a superpopulação é um dos maiores problemas com que nos defrontamos e que a opção que nos resta é ou deixar o problema ser resolvido pela natureza, da maneira mais pavorosa possível, ou encontrar algum método humano e inteligente de resolvê-lo, aumentando ao mesmo tempo a produção e controlando a taxa de natalidade e a de mortalidade, e, de um modo ou outro, formar uma orientação política internacional comum sobre o assunto. Para mim, os mais importantes pré-requisitos para essa solução são, primeiramente, consciência do problema; depois, compreensão de que esse é um problema profundamente religioso, um problema do destino humano. Nossa esperança é, como sempre, que sejamos realisticamente idealistas.

 

1 Shakespeare, William. O mercador de Veneza. Ato I, cena 111, Unhas 95, 135.

 

         Até que ponto o pecado original é original?

         Pronunciada em 16.3.59.

Até aqui falei sobre a situação humana no contexto planetário, que é o mais vasto possível. Nesta conferência, quero descer a uma escala bem menor, a do indivíduo, discutindo genética e meio ambiente, suas relações com nossos ideais políticos e filosofia geral de vida.

Começarei com uma pergunta: até que ponto o pecado original é original? E uma indagação que preocupou homens de todos os países durante longo tempo. Até que ponto é original isso que parece ser a maldade fundamental do homem, tão fortemente sublinhada pelo cristianismo ortodoxo? Até que ponto é original o que pode ser chamado de "virtude original", mais fortemente acentuada nas tradições taoísta e hindu (que chama a natureza básica do homem de atman e é idêntica à natureza básica da divindade), mas que também está na tradição cristã - o que os quakers chamavam de "a luz interior", e os místicos medievais costumavam chamar scintilla animae (centelha da alma), ou a "sindérese"?

Essa questão do pecado original e-da virtude original foi colocada desde que o homem começou a filosofar sobre si mesmo e tem sido respondida de inúmeras maneiras. Na tradição hindu foi respondida pela teoria do carma: cada um de nós vem ao mundo como produto final de uma série inumerável de vidas passadas, que de alguma forma devem ser cumpridas vida após vida. Essa é a ideia da hereditariedade; nosso destino original é pré-ordenado em existências prévias, por nós herdadas. Na tradição grega, o problema é debatido, de um lado, em termos da relação entre homem e deuses, e de outro, em termos de uma necessidade que ninguém pode mudar e que domina até os deuses. Finalmente chegamos à tradição judaico-cristã, que discutia essa questão em termos de graça e livre-arbítrio, natureza e graça, predestinação e salvação através de boas obras.

O problema da predestinação está resumido em quatro curiosas linhas de um poema de Matthew Prior - um poema surpreendente, pois Prior geralmente escrevia versos frí-volos e encantadores, enquanto este é um poema longo e reflexivo sobre problemas religiosos:

"Poderia o condenado Judas, antes de cair, Evitar os terrores do inferno por vir? Poderia Paulo negar, resistir, não abraçar O Céu que se impunha, e a Graça a jorrar?"'

Na história da teologia cristã, todo o problema foi esmiuçado na grande controvérsia entre Pelágio e Santo Agostinho, no século V. Vale a pena entrar em detalhes quanto a isso porque parece resumir, no contexto da tradição antiga, um problema que ainda nos preocupa: o problema da natureza e formação.

Aparentemente, Pelágio era britânico, da Escócia ou talvez da Irlanda. Foi educado na tradição da igreja britânica daquele período, profundamente afetada pela igreja oriental, mais do que pela romana. Pelágio foi até Roma em 400, já homem de meia-idade. Encontrou a cidade como ela seria em geral ainda muitos séculos depois: um verdadeiro poço de iniquidade; mas também viu, e isso o perturbou muito, que os romanos justificavam seu comportamento com a doutrina agostiniana da total depravação do homem e da ligação da vontade com o mal. Garantida a verdade dessa doutrina, por que fazer qualquer esforço para portar-se um pouco melhor?

Evidentemente, Pelágio era um exemplo de espírito prático e empirismo britânicos, e decidiu que era necessária uma reforma das instituições sociais e uma auto-ajuda. Estava convencido de que o homem podia melhorar a si próprio, por esforço individual, e tornar decentes e respeitáveis as instituições sociais. Ele negava a originalidade do pecado original, e essa era sua grande heresia. Negou que o pecado de Adão afetasse qualquer pessoa exceto o próprio Adão; negou que esse pecado continuasse afetando toda a raça humana e insistiu em que todas as crianças nasciam inocentes, como Adão nascera inocente. Isso era o oposto da doutrina de Santo Agostinho, que afirmava que as crianças nasciam com pecado original e, se não fossem balizadas, certamente seriam condenadas. Santo Agostinho até afirmava, em termos bem pitorescos, que o inferno estava pavimentado com um mosaico de crianças menores de um palmo, o que consideramos hoje uma doutrina um tanto aterradora, mas que ainda assim sobrevêm logicamente da ideia de que o pecado original seja original.

 

1 Prior, Matthew. Predestination, a põem. pp. 85-88.

 

Não podemos entrar nos detalhes da controvérsia, que foi muito importante para a história do dogma cristão, mas vale a pena mencionar certas peculiaridades da doutrina de Pelágio. Este insistia em que os homens nascem sem qualquer característica herdada. Disse que nascem non pleni (não plenos) e sem caráter; que nascem sine virtude, ita et sine vitio1, quer dizer, sem virtude e sem vício, sem tendências inatas nem para o bem nem para o mal; que cada homem se torna o que é, bom ou mau, em virtude do meio que o cerca e de suas reações a esses meio. Tais ideias afastavam-se grandemente das de Santo Agostinho e da doutrina ortodoxa da Igreja daquele tempo, e foram condenadas; mas nos doze séculos seguintes tentou-se resolver os conceitos teológicos de pelagianismo ou semipelagianismo de um lado, e extremado agostinismo de outro.

A outra figura importante que aparece no pelagianismo é Helvécio, um dos pensadores do século XVIII, quando as pessoas começavam a acreditar no inevitável progresso - crença vinculada à convicção de que o homem é determinado principalmente pela natureza do seu ambiente e progride na medida em que melhora esse ambiente. Helvécio teve muita influência em seu tempo, embora hoje seja pouco lido. Reafirmou a doutrina de Pelágio de que o homem nasce sem características hereditárias e que se torna o que é em virtude do que aprende e de como reage às influências ambientais. Helvécio fez a afirmação de certa forma espantosa de que, com educação adequada, qualquer pastorzinho de Cévennes podia tornar-se um Isaac Newton. Esse tipo de visão prevaleceu consideravelmente entre os pensadores do chamado Iluminismo do século XVIII e certos resquícios ainda são encontrados entre os utilitaristas do século XIX.

 

1 Santo Agostinho. De peccato originali. Cena XIII, linha 14.

 

No nível biológico encontramos, também no século XVIII, na França, a interessante figura de Lamarck, que insistia em que o ambiente podia criar fatores hereditários - em resumo, insistia na hereditariedade das características adquiridas. Esse ponto de vista foi atacado no século XIX, primeiro por Darwin e depois, em detalhados estudos de genética, por Mendel e seus seguidores. Hoje em dia não creio que os geneticistas aceitem a teoria de Lamarck, exceto talvez os russos, seguidores de Lissenko, que afirmam poder modificar um espécime vegetal através de alterações no ambiente, de tal modo que as mudanças ocorridas na planta serão herdadas. Essas afirmações, até onde sei, nunca foram comprovadas, e a maioria dos geneticistas é totalmente contrária a elas.

Pouco antes de Lissenko iniciar sua pregação na Rússia, tivemos aqui neste país o fenómeno do behaviorismo de J. B. Watson, em seus inícios, quando Watson fez algumas afirmações notáveis, paralelas às de Helvécio. Afirmou, por exemplo, que não conseguia encontrar prova de faculdades humanas herdadas para a música e a matemática e que o comportamento humano era inteiramente determinado por causas ambientais. Creio que essa posição se modificou um pouco, mas ainda hoje os behavioristas tendem a negar fatores hereditários. Na monumental obra Science and human behavior ("Ciência e comportamento humano"), do professor Skinner, há exatamente uma página dedicada a fatores hereditários, e todo o resto preocupa-se com a determinação do comportamento através do condicionamento ambiental. Em termos teológicos, podemos dizer que pessoas com inclinações behavioristas tendem a ser pelagianas, enquanto aquelas com inclinação geneticista tendem a ser agostinianas. Como de costume, a verdade está em algum lugar entre esses dois extremos. Parece perfeitamente claro que fatores hereditários - natureza - e fatores de meio ambiente - a educação - são igualmente importantes, e que na verdade não podemos nunca isolar as duas coisas.

Embora por longo tempo se tentasse ignorar fatores hereditários, penso que vale a pena interessar-se pelo que é original - herdado - no ser humano. Em geral, quando subimos na escala evolucionária, vemos que a variedade de espécies aumenta, e não há dúvida de que, quando atingimos o ser humano, encontramos a maior variabilidade de todas as espécies que conhecemos. Há entre os seres humanos extraordinárias diferenças herdadas, tais como as anatómicas. Talvez o melhor dos recentes atlas de anatomia, o de Anson, publicado em 1950 ', sejo o primeiro a acentuar a imensa variedade dos seres humanos ao nível biológico. Anson usa seis gravuras diferentes para mostrar-nos as variações comuns da mão humana. Precisa de pelo menos doze ilustrações para mostrar o coração humano em suas variações mais comuns (há pessoas que escreveram sobre o coração dizendo que talvez seja mais variável do que o rosto humano - afirmação surpreendente quando pensamos no quanto diferem os rostos humanos).

Há muitos outros modos de variação do ser humano, do ponto de vista anatómico. Por exemplo, peguemos o intestino, esse órgão tão importante. Comparando-se pessoas magras com pessoas gordas, a diferença entre peso e comprimento do intestino é fantástica: o intestino da pessoa gorda pesa o dobro do da pessoa magra e pode ser pelo menos cinquenta por cento mais comprido; consequentemente, é muito mais eficiente na sua função, e é por isso que a pessoa gorda tende a engordar mesmo comendo pouco, enquanto a pessoa magra não engorda mesmo comendo muito. Encontramos o mesmo tipo de diferença nas glândulas endócrinas. A pituitária pode pesar entre trezentos e cinquenta e mil e cem miligramas em pessoas perfeitamente normais. A tireói-de pode pesar de oito a cinquenta gramas, a paratireóide de cinquenta a trezentos miligramas, a glândula reprodutora masculina de dez a quarenta e cinco gramas. O peso dos ovários pode variar de dois a dez gramas, e o número de óvulos contidos em ovários normais pode variar de um mínimo de trinta mil a um máximo de quatrocentos mil. A glândula pineal pode pesar um mínimo de trinta e um máximo de quatrocentos miligramas, e o pâncreas normal pode ter desde duzentas mil até um milhão e(OÍtocentas mil ilhotas de Langerhans.

Da mesma forma, há grandes diferenças nas reações fisiológicas. Como recentemente indicaram homens que fazem experiências com a percepção do gosto, como Albert Blakes-lee, há substâncias que para algumas pessoas parecem salgadas, para outras, azedas, para outras, amargas, e para outras, doces. Há também diferenças enormes na acuidade da visão periférica. Em geral, podemos dizer que essas diferenças anatómicas e fisiológicas, indubitavelmente genéticas, são de imensa importância porque de certa forma se refletem em nossa vida mental e psíquica.

 

1 Anson, Barry Josepb. An atlas of human anatomy. Filadélfia, W. B. Saunders, 1950.

 

As enormes diferenças psíquicas e mentais que percebemos entre os seres humanos correlacionam-se primeiramente com diferenças na estrutura do sistema nervoso. É certo, por exemplo, que os cérebros são muito diferentes entre si, em número, forma e arranjo dos neurônios. Embora não saibamos exatamente como essas diferenças físicas afetam psicologicamente as pessoas, sem dúvida há um efeito sobre nossa maneira de pensar e nosso caráter. A segunda correlação genética entre diferenças de caráter e temperamento é a capacidade de diferentes indivíduos de produzirem várias enzimas que controlam o metabolismo e a ação nervosa. Torna-se cada vez mais claro que isso tem imensa importância. A terceira correlação é provavelmente o suprimento de sangue, que também é decisivo e varia muito entre os seres humanos: o coração de certas pessoas bombeia muito mais sangue e muito mais rapidamente do que o de outras, as artérias de algumas pessoas são mais eficientes no transporte de sangue para as diferentes partes do corpo, e assim por diante. Por isso, temos aqui a base gepética para muitas das diferenças psicológicas observadas; elas não são determinadas unicamente pelo meio que nos cerca.

Uma das razões por que a moderna psiquiatria negligenciou tão espantosamente o fator genético em psicologia é exatamente porque negligenciou no homem o fator corporal. Se examinarmos o corpo, fica evidente que há enormes diferenças genéticas entre os seres humanos. Mas se ignorarmos o corpo, concentrando-nos só em traços psíquicos, isso não fica tão óbvio, embora por inferência fique claro que as grandes diferenças físicas entre as pessoas devam se refletir em diferenças psíquicas. Sempre me espanto ao ler a literatura da psiquiatria moderna e ver que os pais da ciência, Freud, Jung e Rank, não deram quase nenhuma atenção ao aspecto físico dos seres humanos, e por isso ignoraram o lado genético de seus problemas. Podemos ler os chamados relatórios de casos e jamais sabermos quem são as personagens. Consegue-se uma descrição da sra. X, mas jamais nos dizem se ela pesa quarenta e cinco quilos ou cento e vinte e cinco quilos; no entanto há obviamente uma considerável diferença psicológica entre uma mulher de quarenta e cinco quilos e outra de cento e vinte e cinco. Aqui está o sr. Y, que vive muito mal, mas jamais nos contam se ele se parece com um boi ou um gafanhoto, se se parece com uma pantera ou uma medusa. Obviamente isso causa uma diferença prodigiosa, mas podemos ler livros e mais livros de relatórios de casos na moderna psiquiatria, sem jamais encontrarmos menção a esses fatos tão óbvios. Só Adler faz algumas referências ao aspecto físico da personalidade humana.

Assim como é muito importante que os médicos do corpo entendam que a mente influencia o corpo, também os psicólogos devem entender que o corpo influencia a mente e que muitas dessas influências são obviamente de caráter genético, e que por isso há fatores hereditários em quase todas as perturbações psicológicas. O caso mais evidente, que até onde sei jamais foi discutido na literatura psiquiátrica, é a pergunta: se todos os nossos distúrbios psicológicos se devem a experiências traumáticas na infância, por que não somos todos loucos? Pois todos tivemos graves experiências traumáticas e ainda assim apenas alguns de nós somos loucos e um número relativamente grande permanece sadio. Mais uma vez, vemos que fenómenos como complexo de Édipo e rivalidade fraterna devem agir sobre um substrato biológico que é diferente em casos diferentes.

Há pessoas que não têm resistência psicológica, assim como há outras que, indubitavelmente por razões genéticas, têm muito pouca resistência física à infecção. Isso é de enorme importância, pois se podemos, por meios biológicos, corrigir uma baixa resistência às infecções, será perfeitamente possível corrigir ou disfarçar, por meios bioquímicos ou nu-tricionais, as anomalias genéticas que tornam certas pessoas muito mais inclinadas a sofrer de traumas psicológicos do que outras. Infelizmente quase não se encontra referência a tudo isso na literatura psicológica; ao contrário, existe uma espécie de dogma, que se pode chamar o dogma do determinismo ambiental, que ignora quase sistamaticamente o fator fisiológico.

Esse estado de coisas não é universal, e digo com prazer que nos últimos anos tem havido na psiquiatria um forte movimento não-ortodoxo em favor do que se chama uma psicologia constitucional. O trabalho pioneiro nesse campo está sendo realizado por William H. Sheldon e seus colaboradores, bem como por George Draper e C. W. Dupertuis (no campo da medicina constitucional), que estão investigando a relação entre enfermidade e certas peculiaridades hereditárias do corpo.

O que Sheldon tem mostrado é que estamos completamente enganados ao pensar em "tipos" humanos. O problema é que, devido à natureza da nossa língua, gostamos de pensar em termos de pequenos compartimentos separados e tipos bem marcados, e é muito difícil falar sobre um contínuo de qualquer espécie. No mundo da física, quando as pessoas tiveram de falar sobre o universo como um contínuo, precisaram inventar uma linguagem especial a d hoc, a linguagem do cálculo, e outras formas de linguagem matemática. A mesma coisa acontece em problemas psicológicos. Como Sheldon demonstrou, e como deve ser verdade, os seres humanos não variam em saltos e por isso não podem ser classificados como de um tipo ou de outro. Ao contrário, há entre eles uma variação contínua; e não é uma variação entre dois pólos - sempre temos a assustadora tendência de pensar em dicotomias - mas é muito mais realisticamente descrita como uma variação contínua entre três pólos.

Não poderei entrar hoje nas classificações de Sheldon, mas penso que são extremamente realistas e que esse sistema nos ajuda a ver que as diversas variações genéticas entre tipo físico e temperamento - relações entre psique e caráter - sempre foram intuitivamente entendidas por dramaturgos e ficcionistas. Nenhum dramaturgo é idiota o bastante para colocar a personalidade de um Falstaff no corpo de um Cássio; nenhum ficcionista daria a personalidade de um Pickwick ao corpo de um Scrooge. A lógica da fala de César, em Júlio César, nos é evidente:

"Quero ter ao meu redor homens gordos, De cabelos alisados1, que dormem toda a noite. Aquele Cássio tem um ar esquálido e faminto, Pensa demais: homens assim são perigosos"2.

Cássio pensa demais, mas não se parece com o que Sheldon chamaria o ectomorfo extremo, que pensa muito mas nunca age, ou age apenas debilmente. Ele é dessas pessoas perigosas, que pensam muito e têm o suficiente do que Sheldon chama de "fator mesomórfíco", que o faz agir intensa e eficientemente - e tem de menos aquilo que se chama "fator endomórfico", o fator da alegria e da bondade. Cássio é o típico fanático, e penso que podemos imaginá-lo fisicamente parecido com Savonarola, que tinha o mesmo tremendo poder de pensamento ligado a um ímpeto terrível e a um mínimo de bondade e compaixão humana.

 

Cabelos alisados: em inglês, "sleek-headed", de cabelo untado e liso, aplicando-se o termo "sleek" também para coisas ou pessoas untuosas, até subservientes (N. da T.)

2 Shakespeare, William, Júlio César. Ato I, cena II, linhas 115-116.

 

Peguem, por exemplo, um poeta do qual gosto muito, Chaucer, e leiam o prólogo dos Canterbury tales. Ficarão surpresos com a quantidade de características psíquicas que transparecem nas detalhadas descrições do tipo físico de cada personagem do poema. É um exemplo extraordinário de quanto pode ser feito com um mínimo de análise psicológica mas um máximo de alusão à diferença física entre as pessoas. Temos uma ideia bastante boa de quem essas pessoas são, simplesmente porque houve uma descrição admiravelmente vivida de suas características externas.

O sistema tripolar de Sheldon também é interessante à medida que corresponde muito estreitamente ao sistema tripolar da tradição religiosa da índia. (No sistema cristão, temos antes uma dicotomia entre a maneira de ser de Marta e a de Maria, o caminho da ação e o da contemplação, embora também no sistema cristão se reconheça que provavelmente em Marta há mais de um aspecto a ser considerado.) Podemos ler toda a evolução da teoria psicoteológica indiana no Bhagavad-Gita. Os seres humanos são divididos em três classes principais: os que adoram as divindades pela devoção e prática do que chamam bhakti yoga, ou adoração devocio-nal; aqueles cuja adoração é localizada predominantemente no campo da ação, cumprindo deveres de maneira altruísta, e que praticam a karma yoga; e os que adoram através da contemplação ou do conhecimento, os praticantes da jnana yoga. Esses correspondem intimamente aos três pólos de Sheldon. O endomorfo extremo seria inevitavelmente levado à prática da devoção emocional; o mesomorfo seria levado por um caminho de ação ditada pelo daver; e o ectomorfo extremo seria dirigido para uma vida de introversão e contemplação.

Aqui podemos notar algo muito curioso: mesmo reconhecendo essas diferenças de temperamento, os psiquiatras identificaram apenas uma dicotomia. Por exemplo, a insistência de Jung sobre a diferença entre introvertido e extrovertido é uma divisão em dois. Ele deixou absolutamente de ver que há dois tipos muito diferentes de extrovertido: o extrovertido impetuoso, que deseja dominar coisas ou pessoas - o mesomorfo de Sheldon; e o extrovertido emotivo, bondoso - o endomorfo de Sheldon - que deseja derramar suas emoções e conquistar a confiança de todo mundo e dar-se bem com todos. Esses dois tipos de extrovertido são tão diferentes entre si como são diferentes do introvertido - o ectomorfo de Sheldon -, que não deseja nenhuma dessas coisas.

A tendência atual de menosprezar a importância dos fatores genéticos relaciona-se com certas doutrinas políticas e filosóficas. O marxismo ortodoxo, por exemplo, baseia-se na ideia do determinismo ambiental e não gosta da ideia de diferenças congénitas. Neste país, possivelmente por uma democracia mal interpretada, sente-se que dar demasiada importância às diferenças congénitas e imutáveis entre as pessoas é algo não-democrático - e também muito deprimente. Lembro que, anos atrás, meu irmão contou-me que uma revista de divulgação lhe havia pedido um artigo sobre genética. Ele escreveu o artigo, e foi pago por isso, mas o editor disse que lamentava não poder publicá-lo porque os leitores ficariam deprimidos com as conclusões relativas às diferenças genéticas inatas entre as pessoas.

Infelizmente, a essência da natureza não é particularmente democrática no sentido napoleônico da palavra - pois ele dizia que o que estava fazendo abriria caminho para os novos talentos. É interessante que, apesar de Lissenko ter permissão de afirmar que pode transformar cevada em trigo, o que certamente não pode, os russos decidiram que, para conseguir homens e mulheres capazes de exercitar eficientemente a liderança, precisam fazer uma cuidadosa seleção de pessoas geneticamente bem dotadas. Vemos que, na sua evolução atual, a educação russa é essencialmente uma educação aristocrática, concentrada em gente do mais alto Qi e maior talento, sem se esforçar para impor a todos o verniz de uma educação universal. Na verdade, a educação universal termina bem cedo, mas intensifica-se a educação da camada superior, criando-se uma verdadeira oligarquia. E curioso constatar que, embora a teoria marxista se oponha ao destaque de fatores genéticos no ser humano, as exigências da vida prática num país marxista fizeram com que os russos precisassem dedicar mais atenção às pessoas altamente dotadas do que se faz nos países democráticos. Mas esse tipo de aristocracia, ou, para ser mais exato, de meritocracia - palavra recentemente usada na Inglaterra por antropólogos que falam na gradual emergência desse fenómeno por lá - certamente se desenvolverá por toda parte em que as sociedades tecnológicas o exijam. Teremos sociedades estratificadas, baseadas principalmente nas diferentes capacidades das pessoas de serem aprovadas em exames e passarem por formas de treinamento mais especializadas e intensivas.

Essas discussões foram mais ou menos factuais; temos de passar agora para o outro lado da ponte. Quais as consequências, no mundo dos valores e no mundo do pensamento, da enorme variabilidade genética entre os seres humanos? Uma consequência dessa variabilidade é que a liberdade é algo muito precioso. Afinal, se fôssemos todos iguais, como acreditavam Helvécio, Pelágio e Watson no começo de sua carreira, não haveria sentido na liberdade; o que fosse bom para um, seria bom para todos. É a variabilidade humana - o fato de que o alimento de um é veneno de outro - que nos impõe o dever de preservar a liberdade individual e encorajar a tolerância, evitar que as maiorias reprimam as minorias, e finalmente o dever de permitir aos povos certa autodeterminação de suas vidas.

Na tradição religiosa» a variabilidade herdada foi expressa na doutrina de que as almas humanas individuais são de valor infinito, embora isso não tenha evitado que as igrejas organizadas tentassem forçar os fiéis a um só padrão. Temos sempre essa tensão entre a variação genética e o fato de que a sociedade de modo geral gosta de criar um padrão de vida humana único e manuseáveí. Como de costume, a questão é tirar o maior proveito dos dois mundos, descobrir como poderemos ter uma sociedade estável e viável que dê espaço para as enormes variações que empiricamente existem entre os seres humanos.

A imposição de padrões pelas sociedades a seus extremamente diversificados indivíduos tem variado muito em diferentes períodos históricos e diferentes níveis de cultura. Nas culturas mais primitivas, onde as sociedades eram pequenas e ligadas a tradições muito estreitas, a pressão para o conformismo é naturalmente muito intensa. Quem ler literatura de antropologia ficará espantado com a natureza fantástica de algumas das tradições às quais os homens tiveram de se adaptar. A vantagem de uma sociedade grande e complexa como a nossa é permitir à variedade de seres humanos expressar-se de muitas maneiras; não precisa haver uma adaptação intensa, como a encontramos em pequenas sociedades primitivas. Mesmo assim, em toda sociedade sempre há um impulso para a conformidade, imposto de fora pela lei e pela tradição, e que os indivíduos impõem sobre si mesmos, tentando imitar o que a sociedade considera o tipo ideal.

A esse respeito, recomendo um livro muito importante do filósofo francês Jules de Gaultier, publicado há cerca de cinquenta anos, chamado Bovarismo'. O nome vem da heroína do romance de Flaubert, Madame Bovary, no qual essa jovem mulher infeliz sempre tentava ser o que não era. Gaultier generaliza isso e diz que todos temos tendência a tentar ser o que não somos, a querer ser o que a sociedade na qual crescemos julga desejável. Ele diz que todo mundo tem um "ângulo bovarístico", e que o de algumas pessoas é bastante estreito; aquilo que elas são intrinsecamente, pela hereditariedade, não difere muito do que tentam fazer de si mesmas pela imitação. Mas algumas pessoas têm ângulos bovarísticos de noventa graus, outras até de cento e oitenta, e tentam ser exatamente o oposto daquilo que são por natureza. Os resultados são em geral desastrosos. Mesmo assim, um dos mecanismos através dos quais a sociedade consegue que as pessoas se conformem a ela é criar um ideal e fazer com que as pessoas o imitem voluntariamente. (Não é por nada que o livro provavelmente mais lido e mais influente da devoção cristã se chama Imitação de Cristo.) Infelizmente, como vemos muito bem pelo estudo da delinquência juvenil, nem sempre o ideal que imitamos é o melhor. Há imitação de Al Capone, infelizmente, e imitação do jovem durão que anda por aí surrando pessoas; há imitação de cantores de rock-and-roll, e assim por diante. O processo sempre existe, em qualquer sociedade, e sempre existirá. O que devemos descobrir é algum método para aproveitar ao máximo esse impulso social de conformidade, salvaguardando, ao mesmo tempo, a variabilidade genética dos indivíduos.

E importante acentuar que, a fim de tirar o maior proveito da variabilidade genética, teremos de melhorar ao máximo o ambiente que nos cerca. Só quando todos tiverem oportunidades iguais de nutrição e educação poderemos ver bem quais são essas capacidades inatas, pois elas não estarão mascaradas pelos efeitos da má nutrição ou pela ausência de facilidades educacionais e poderão desenvolver-se ao máximo. Contrariamente ao que muitos dos antigos euge-nistas diziam, não basta apenas esterilizar os incapazes e tentar fazer procriar os mais aptos; é absolutamente necessário termos uma sociedade que acentue a importância de um bom meio ambiente, para sermos capazes de ver quais as plenas possibilidades genéticas de homens e mulheres, rapazes e moças, como indivíduos.

 

1 Gaultier, Jules de. Lê bovarysme. Paris, Mercure de France, 1902. 70

 

Podemos, resumir dizendo que esses fatos sobre varia-bilidade humana parecem mostrar, primeiro, que liberdade e tolerância são de enorme importância, e, segundo, que um ambiente decente - igual para todos e melhorando igualmente para todos - é decisivo. É vital não pressionar pessoas geneticamente diferentes para que sejam como todo mundo, e, dentro dos limites da lei e da ordem, tentar e permitir que todo indivíduo se desenvolva conforme as leis de seu próprio ser, e conforme o princípio religioso de que a alma individual é infinitamente valiosa. Nosso ideal deveria ser o que o filósofo de Chicago, Charles Morris, descreveu em seu livro The open self('O eu aberto"): uma sociedade aberta, constituída de eus abertos.

 

         Guerra e nacionalismo

         Pronunciada em 13.4.59.

Nesta conferência falarei sobre um dos traços mais perturbadores da nossa atual situação humana: guerra e nacionalismo.

Vale a pena começar com algumas palavras sobre guerra e nacionalismo no contexto mais abstraio e geral da biologia e da semântica. Seguidamente ouvimos dizer que a guerra é inevitável porque o homem é um animal belicoso, mas, falando biologicamente, a guerra - conflito entre grupos organizados da mesma espécie - é um fenómeno muito raro. Naturalmente há uma predação contínua de uma espécie sobre outra, mas na verdade há somente duas criaturas que fazem guerra: uma é a formiga cortadeira, a outra, o homem. Essas duas criaturas têm em comum a instituição da propriedade. As formigas cortadeiras de um ninho recolhem grande quantidade de alimento; os membros do ninho vizinho chegam em verdadeiros exércitos para tomar posse desse alimento. Apesar de a formiga cortadeira não possuir linguagem e por isso não ter sistema conceituai de princípios ou noções éticas, tais guerras podem durar bastante tempo. Observou-se que algumas duraram cinco ou seis semanas, o que é muito tempo para um animal sem sistema de linguagem.

O ser humano, quando faz guerra, pode prosseguir por muito mais tempo do que a formiga porque possui linguagem e sistema conceituai. Somos capazes de manter a luta e a matança mesmo depois de passar a paixão do momento porque podemos instigar-nos, através de conceitos, princípios, imperativos categóricos, a fazer o que sentimos que temos de fazer. Pensemos na frase de Matthew Arnold, "tarefas decididas em horas de reflexão poderão ser cumpridas em horas de melancolia"1. Isso é verdade não apenas quanto a tarefas positivas, tarefas que encaramos como construtivas, decididas em horas de reflexão, mas infelizmente também é verdade quanto a tarefas decididas em horas de paixão e preconceito, frequentemente com caráter muito destrutivo.

É por termos um sistema simbólico e podermos formular ideais e imperativos categóricos que é impossível aos seres humanos adquirir tanto santidade pura como puro diabolismo - persistir no mais alto nível de caridade e compreensão, e no mais baixo nível de perversidade e loucura. O animal jamais poderá ser anjo ou santo, lunático ou demónio, porque vive por assim dizer numa condição de intermitência. Podemos ver isso quando dois cães lutam; começarão com tremendo frenesi e então, subitamente, um deles se sentará para se cocar e tudo estará esquecido. Mas isso é impossível para os seres humanos porque eles têm motivo para lutar; têm palavras que dizem que é certo lutar; têm imperativos categóricos segundo os quais é seu dever lutar e não fugir.

O conflito - não a guerra - é frequente entre membros da mesma espécie. Mas a seleção natural tomou muito cuidado para que o conflito entre animais da mesma espécie raramente chegue a uma conclusão fatal. Sempre pensamos no lobo, por exemplo, como um animal particularmente sinistro e feroz. Na verdade, conforme observaram naturalistas - temos um bom relato disso no livro de Konrad Lorenz, King Solomorís ring ("O anel do rei Salomão") - os lobos nunca combatem até morrer. Sentindo que está derrotado, o lobo expõe sua garganta ao adversário, de modo que, se quiser, o adversário pode imediatamente achar a jugular, seccioná-la e matar o inimigo; mas, devido à ação benevolente da seleção natural, o lobo vencedor acha psicologicamente impossível morder. Em vez disso, começa a rosnar e afasta-se. Pode-se ver que há para isso boas razões evolucionistas; se os lobos machos habitualmente lutassem até a morte por causa das fêmeas, em breve a espécie terminaria. E é interessante ver que a injunção de mostrar a outra face, tão raramente praticada pelos homens, é constante e instintivamente praticada pelos lobos.

A guerra, que pode ser descrita como um estado de coisas culturalmente baseado na situação natural de conflito, é precisamente o oposto disso, porque consiste em levar o conflito organizado ao limite da destruição e não é instintiva. E muito importante lembrar que tanto a guerra quanto o poder motivador que leva o homem à guerra são socialmente condicionados porque assim percebemos que não há nada de biologicamente inevitável nessa terrível coisa que nos ameaça. Por ser um fenómeno socialmente condicionado, poderemos, se quisermos, descondicioná-lo e livrarnos dele.

 

1 Arnold, Mattbew, Morality. pp. 5-6.

 

A guerra é condicionada por sistemas simbólicos humanos, e na nossa vida moderna o sistema simbólico é o nacionalismo. Podemos dizer que o nacionalismo é uma espécie de teologia

- um sistema de conceitos, ideais e diretivas éticas - baseada numa ligação natural e instintiva ao nosso lugar de origem e a pessoas familiares, mas estendido, por meio da nossa capacidade de abstração e generalização, para bem além da natural afeição pela terra natal e pela família. O nacionalismo usa todos os recursos da educação para criar uma lealdade artificial para com áreas com as quais o indivíduo não tem muita relação e para com pessoas que jamais viu.

Devemos agora analisar rapidamente a pergunta: como definir nação? Têm-se feito muitas tentativas nesse sentido e é muito curioso que nenhuma abranja todos os casos. Não podemos dizer que uma nação seja uma população que ocupa uma só área geográfica, porque há casos de nações que ocupam áreas bem separadas, como, no momento, o Paquistão. Não podemos dizer que o conceito de nação esteja necessariamente relacionado com a fala de uma mesma língua, porque há muitas nações em que as pessoas falam várias línguas - mesmo num lugar pequeno como a Suíça há três línguas principais, e na índia há centenas, sendo vinte ou trinta delas muito importantes. (Há um considerável patriotismo linguístico no contexto nacional da índia, que tende a produzir forças centrífugas bem fortes.) Existe a definição de que uma nação é algo composto por uma só raça, mas isso é muito inadequado; mesmo se ignorarmos o fato de que ninguém sabe exatamente o que é uma raça, só neste país dez por cento dos habitantes pertencem a raças não-caucasianas e ainda assim são claramente americanos, no mais amplo sentido da palavra. Finalmente, a única definição que a antiga Liga das Nações conseguiu encontrar para nação (presumo que a mesma definição tenha sido adotada pelas Nações Unidas) foi de que nação é uma sociedade com meios de fazer guerra. Assim, a mais frágil e a menor nação que tenha algum tipo de máquina de guerra, por exemplo, a Líbia, é uma nação, mas uma imensa unidade geográfica com uma população enorme como a Califórnia não é uma nação, porque não tem máquina de fazer guerra.

E singular ver como essa definição bizarramente arbitrária de nação como sociedade capaz de fazer guerra afetou a história. Lembro-me de que há vinte anos, quando viajava pela América Central, li a história da região e fiquei muito impressionado com a extraordinária história do nacionalismo naquela parte do mundo. Vale a pena olhar essa história com certa minúcia porque é como uma experiência de laboratório em pequena escala, que pode ser estudada mais facilmente do que acontecimentos em grande escala que ocorrem na Europa e em outras partes do mundo. O nacionalismo chegou à América Central depois de 1821, quando as colónias espanholas se revoltaram contra a coroa da Espanha porque a ideia do direito divino dos reis fora destroçada por Napoleão quando este impôs seu irmão José para o trono da Espanha. (A brutal retirada, por Napoleão, dessa peça-chave no grande arco da lealdade espanhola provocou o colapso do arco inteiro.) O resultado, na América Central, foi que cada província do que fora o império espanhol declarou-se nação, e mesmo alguns departamentos dentro das províncias declararam-se nações, tendo de ser reconquistados pelas províncias como um todo. Apenas por acaso não existe entre a Guatemala e o México um pequeno Estado chamado Quezaltenango; esse Estado declarou sua independência, mas foi reconquistado pelo resto da Guatemala.

O que aconteceu quando de repente nasceu o nacionalismo nessa área? A população é fundamentalmente a mesma por toda parte: uma minoria de espanhóis e, abaixo deles, os mestiços, os ladinos e os índios, que ficaram quase intocados politicamente e não acompanharam a marcha geral dos acontecimentos. Sua religião, misto de catolicismo e antigas religiões índias, e seus interesses económicos também eram muito parecidos. As pessoas tinham vivido juntas e em paz por quase trezentos anos porque todos eram súditos do mesmo rei. Depois, do dia para a noite, as províncias tornaram-se nações - que são por definição máquinas de fazer guerra - e gastaram boa parte do século seguinte lutando selvagemente umas contra as outras. Essas escaramuças não tinham caráter económico; eram quase sempre de ordem ideológica, entre federalistas e nãofederalistas, liberais e conservadores.

Isso apresenta uma imagem simplificada e em pequena escala, extraordinariamente interessante, da natureza arbitrária de todo o aparelho nacionalista. Num momento você não é uma nação, no outro é. Na Alemanha, desde 1870, os alemães não eram alemães; eram súditos do reino da Saxônia, ou da Bavária, etc., e a Alemanha não era Alemanha, mas Alemanhas. Abruptamente, do dia para a noite, as Alemanhas foram unidas num só país e o nacionalismo alemão foi sistematicamente encorajado. (O início do nacionalismo germânico pode ter se dado antes, sob Napo-leão, mas só quando a nação se uniu politicamente é que a teologia do nacionalismo começou a ser oficialmente ensinada.)

A história do nacionalismo moderno começa com a Revolução Francesa e o surgimento de uma nação-Estado consciente de si própria. O traço curioso e irónico disso é que o tremendo fervor que brotou entre os revolucionários pela nova teologia nacionalista foi o que ajudou Napoleão a estender suas conquistas pela Europa. Em 1811 ele teve intenção de instalar um novo Santo Império Romano, com sua capital em Paris e sua segunda cidade em Roma, e pretendia consolidá-lo pelo mais elaborado sistema de legitimidade e nobreza. Mas esqueceu totalmente o fator nacionalismo. No processo de conquistar um império, ele provocara os sentimentos de nacionalismo nas pessoas que agredira, e de repente todo esse sonho internacionalista caiu por terra diante do nacionalismo da Alemanha, Áustria e Rússia. Exatamente aquilo que o ajudara a conquistar suas vitórias vi-rou-se contra ele, e finalmente o destruiu.

O nacionalismo teve um papel importantíssimo na história do século XIX. E interessante notar que Karl Marx, um homem muito inteligente e hábil, parece ter subestimado enormemente o poder do nacionalismo. Nesse assunto, aquela mente tão astuta e penetrante foi bem menos realista do que a mente de Giuseppe Mazzini, que era bastante menos aguda, mas construiu uma espécie de teologia idealista do nacionalismo e viu o enorme poder latente nele. Marx parece ter realmente imaginado que o patriotismo nacional em breve seria substituído pelo patriotismo de classe. A história mostrou que estava completamente errado, e ele ficaria bem surpreso ao ver que, hoje em dia, a ideologia do comunismo é o principal instrumento do nacionalismo russo.

O fervor nacionalista ainda persiste e recentemente conquistou bom número de novos convertidos. Todas as nações que foram colónias exibem um ardor nacionalista idêntico ao que se espalhou pela Europa há cento e cinquenta anos. É um fervor proporcional ao seu ódio pelas potências que os tinham colonizado, mas completamente desproporcional à sua capacidade de ser nações-Estados eficientes e modernas. Essa é uma das tragédias atuais; vemos um imenso desejo de independência nacional e um fervor tremendo, quase religioso, quanto a isso, bastante desligados dos fatores económicos e culturais. Isso produzirá, em muitos casos, uma sensação de frustração, o caos social, e provavelmente várias formas de ditadura.

Com o sentimento nacionalista ainda tão forte, estaríamos justificados dizendo que o nacionalismo é a religião que prevalece no século XX, e durante quase todo o século XIX. Parece que continuará sendo a religião dominante por longo tempo. É como se tivéssemos retrocedido do monoteísmo que surgiu na Judéia e se desenvolveu sob o cristianismo para uma religião particularmente desastrosa - uma religião decisiva que coloca valor absoluto em partes fragmentárias da humanidade e condena os que a aceitam a uma disputa crónica com seus vizinhos. Em 1862, Lorde Acton disse sobre o nacionalismo que ele não deseja liberdade e prosperidade; aspira unicamente a criar a nação, que é uma espécie de ideia abstraía, as normas e o modelo do Estado político. E acrescentou que os resultados seriam não apenas a ruína material, mas também moral, e creio que foi uma profecia notavelmente astuta1.

Devemos lembrar sempre que tudo o que está acontecendo agora, tal como o crescimento


explosivo da população e o avanço tecnológico em todos os aspectos da vida humana, acontece no contexto do nacionalismo. Consequentemente, tudo acontece de maneira muito perigosa, precisamente porque se realiza no contexto do que parece ser o fervor quase-religioso mais forte do nosso tempo, e numa ordem mundial que, por definição, engaja numa guerra mútua os que acreditam nessa teologia e força-os a se prepararem continuamente para a guerra.

 

1 Dalberg-Acton, John Emerich Edward. "National", Home and Foreign Review,y'w/. 1962. O ensaio foi republicado na coleção das obras de Lorde Acton, The history of freedom and other essays. Londres, Macmillan, 1907, pp. 270-300.

 

Esse ethos da guerra foi reduzido a um absurdo, como afirmam muitas pessoas, mesmo as que agora se preparam para a guerra. Esta atingiu um ponto em que não pode haver vencedores, e o único objetivo que se pode conseguir é a completa destruição dos combatentes e provavelmente a destruição de enormes áreas, não apenas da civilização mas da própria vida. Todo mundo sabe disso, e ainda assim todas as pessoas que ocupam postos de decisão no mundo atual - não são muitas - estão tão completamente aprisionadas pelo sistema teológico-nacionalista que se encontram sob a compulsão de prosseguir seja como for, preparando-se para algo que sabem que deve ser catastrófico. Vemos esse espetáculo extraordinário e paradoxal de habilidade, conhecimento, devoção, trabalho e dinheiro sem precedentes ser esbanjado em projetos que não poderão levar à vida, à liberdade, à felicidade, mas apenas à miséria, à servidão e à morte.

A racionalização de tudo isso é, em todos os casos, o velho adágio romano "Si vis pacem para bellum" ("Se queres a paz prepara-te para a guerra"). Infortunadamente, todo mundo agiu conforme esse provérbio nos últimos dois mil anos ou coisa assim, tendo como resultado, segundo disse Pitirim Sorokin, de Harvard, em seu livro mais elaborada-mente documentado, que a maioria das grandes nações do mundo têm gasto de quarenta a sessenta anos de cada século fazendo guerra'. Os preparativos para a guerra sempre levaram à guerra, e parece não haver motivo especial para supor que a presente corrida armamentista não tenha o mesmo fim.

Uma das coisas mais alarmantes sob a presente administração é que esse acúmulo de armas tornou-se parte vital da economia ocidental, em particular da economia americana, que depende inteiramente do gasto, pelo governo, de cerca de quarenta bilhões de dólares por ano na indústria de armamentos. Parece-me trágico que essa preparação, que só pode ser preparação para a morte, seja hoje a base da prosperidade do Ocidente. O fenómeno não é novo; a recuperação da Grande Depressão dos anos 30 não foi completa enquanto não começou o rearmamento sistemático. Na Inglaterra, um enorme programa habitacional foi posto em execução no fim da década de 30, mas não eliminou totalmente o desemprego; nem o bem-elaborado New Deal o eliminou nos Estados Unidos. Foi só com a resposta à ameaça de Hitler, quando os armamentos começaram a ser manufaturados em escala muito grande, que finalmente se baniu o fantasma do desemprego. É um paradoxo terrível e grotesco que a prosperidade do Ocidente se devesse ao fenómeno Hitler. E hoje em dia vemos a mesma coisa: o medo da competição russa, que causa o gasto de somas enormes em armamento, é a pedra fundamental e o alicerce da nossa prosperidade atual. Há uma espécie de disfarçado interesse na preservação desse sistema, e será preciso muita coragem e reflexão para romper com isso e encontrar alguns meios alternativos para manter a economia em andamento.

 

1 Sorokin, Pitirim. The ways and power of Io vê. Boston, Beacon Press, 1954.

 

Será fácil conseguir tal mudança? Há uma escola de pensamento que diz que a guerra é inevitável, que ela é o nosso destino. Mas qual a definição de destino? Não creio que possamos falar nos termos antiquados de uma influência externa que prevê o que nos acontecerá e cria uma espécie de plano com o qual temos de nos conformar. A ideia sociológica de destino está muito próxima da que foi elaborada por Tolstói em seu Guerra e paz, a ideia de que fatos históricos são determinados não pelas escolhas dos indivíduos ou pequenos grupos, mas pela soma de inumeráveis pequenas decisões, tomadas por incontáveis seres humanos anónimos, que formam uma tendência geral em certa direção. No momento, porém, devido à notável concentração de poder no mundo moderno, isso não é verdade; de ambos os lados da Cortina de Ferro há relativamente poucas pessoas tomando decisões. Vemos hoje cerca de dois terços de todos os bens da economia industrial americana nas mãos de quinhentas corporações, e entre essas quinhentas, um número menor é que realmente possui o poder decisprio. Membros dessa elite organizada estão nas posições decisórias, no alto da pirâmide dos que ditam as regras neste país, onde vemos uma espécie de triunvirato do poder: os mais altos poderes políticos, os mais altos poderes militares e os mais altos poderes económicos representam uma extraordinária concentração de forças e de poder económico, possibilitando-nos imaginar um meio de sair dessa dificuldade.

Está bastante claro o perigo que surge quando o poder cai nas mãos de poucas pessoas. Como disse Lorde Acton, "O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe de maneira absoluta"1. Mas, por outro lado, a concentração de poder encoraja-nos porque significa que o problema da guerra não está fora do nosso controle, não se tornou ainda um problema de forças completamente inumanas, e o fator humano poderá desempenhar um grande papel nessa situação. Se as pessoas com enormes poderes são homens de razoável boa vontade, e se for possível influenciar suas decisões, estaremos em melhor posição do que se dependêssemos inteiramente da piedade de forças não-humanas, que nos empurram inexoravelmente em outra direção.

 

1 Ddberg-Acton, John Emerich Edward, Life of Mandell Creighton.

 

Agora temos de perguntar: que podemos fazer na situação atual? Como sair dessa corrida em direção à catástrofe? Andamos e andamos, e sabemos que ali está o precipício. Haveremos de cair nele? Não sei; mas não penso que seja inevitável. O meio mais óbvio de que dispomos, e pelo qual podemos sair dessa situação terrível, é a exortação moral, é suplicar às pessoas que se comportem, que sejam boas e que tenham juízo. Infelizmente a exortação moral não consegue mudar uma linha política - embora seja um erro ignorar o seu valor. E importantíssimo tentarmos combater essa estranha insensibilidade moral e essa indiferença diante da violência em larga escala, que parece ter desabado sobre uma parte tão grande do mundo. Aceitamos como natural e inevitável a destruição de populações inteiras. Aceitamos como inevitável a existência de armas absolutas e do genocídio, como se não houvesse alternativa.

Parece haver nessa questão de sensibilidade moral uma espécie de padrão duplo. Lembrome de que, logo após a Guerra da Coreia, uma série de artigos afirmou que, durante a guerra, a maioria dos soldados da infantaria americana jamais disparara seus rifles e que a verdadeira mortandade fora feita, de longe, pela artilharia e por bombardeio aéreo. Isso parece mostrar que há uma intensa sensibilidade moral nas relações face a face, que some quando a relação se faz à distância e é por assim dizer, abstraía e generalizada. A era das bombas de saturação e da bomba H é também a era do Estado que cuida da previdência social; a era da preparação maciça para a guerra biológica e da mais assustadora indiferença pelos extermínios em massa é também a era em que se protesta violentamente quando mandamos cães ao espaço em Sputniks e se dá particular atenção a crueldades cometidas contra crianças.

É singular vermos a diferença entre a atual postura diante das atrocidades em massa e o que costumava acontecer no passado. Lembro-me de que, durante a Segunda Guerra Mundial, depois de se lançarem bombas de saturação na cidade de Magdeburgo, em grande parte reduzida a ruínas fumegantes, fiquei impressionado com a observação de um comentarista especializado, dizendo que a última vez que isso acontecera a Magdeburgo fora durante a Guerra dos Trinta Anos, quando os exércitos de Tilly haviam saqueado a cidade. Eu andara lendo alguma coisa a esse respeito e recordo o calafrio de horror que perpassou a Europa quando se publicaram notícias sobre o saque de Magdeburgo, e ele se tornou conhecido em vários países do Ocidente. Como foi diferente a reação durante a Segunda Guerra Mundial, quando se encarou uma destruição semelhante como algo que simplesmente tinha de ser feito - rotina - e não havia motivos para uma grande perturbação.

Sinto que houve uma profunda mudança até mesmo durante a minha própria existência. Quando eu era menino, ainda acreditávamos, com uma espécie de extremo otimismo vitoriano, que todo aquele que usasse cartola, tomasse banho todos os dias e fosse à igreja aos domingos era incapaz de cometer as atrocidades que os turcos tinham cometido contra os arménios. Mas na Primeira Guerra Mundial descobrimos que até pessoas que tomavam banho todos os dias e usavam cartola eram capazes de fazer esse tipo de coisa. A bondade do homem civilizado, que era tida como certa quando eu era menino, mudara para uma tida-como-certa maldade inata no homem, para quem tudo era possível. Desde então temos tido cada vez mais certeza do lado destrutivo do ser humano e comentado da maneira mais natural as destruições em grande escala. Até as crianças, com o tipo de brinquedos com que lidam hoje, acham isso natural. Fiquei muito chocado outro dia, vendo um grupo de crianças na rua - a menorzinha chorava amargamente e ouvi-a dizendo às demais: "Dê-me a metralhadora!" Fiquei realmente chocado.

E extremamente importante para qualquer pessoa ligada à educação, às letras e à religião tentar fechar essa fissura esquizofrênica da nossa sensibilidade moral. Não podemos continuar separando o Estado que tem previdência social da arma genocida absoluta; precisamos de alguma forma estender a sensibilidade que age no primeiro caso para a área do segundo, na qual não está funcionando. Embora eu não creia que seus efeitos imediatos sejam surpreendentes, essa é uma tarefa da maior importância, que tem de ser feita. Precisamos criar a atmosfera correta na qual se possa efetuar uma ação política adequada.

Passemos agora da moral à política. Aqui, vemos imediatamente que a maioria das pessoas envolvidas na corrida armamentista consideram utópica qualquer outra alternativa. Mas, afinal de contas, não estarão elas sendo um pouco uto-pistas? Uma política que todos admitem que é uma política para uma destruição total não será utópica? Todos se dizem realistas, mas eu diria que são realistas utopistas. São realistas quanto aos meios que empregam - nada mais realista do que a maneira como abordam o problema da arma absoluta e de como empregá-la - mas nada poderia ser menos realista do que os fins propostos, porque não há fim em vista senão o extermínio da raça humana. Por outro lado, o idealista utopista vive na estratosfera, implora a todos que sejam bonzinhos e ajuizados, mas não oferece um método prático de implantar essas boas intenções. O que precisamos é de uma espécie de idealismo realista, ou realismo idealista, que ofereça alguma proposição sensata e torne possível transferir o conflito a outro nível, que não envolverá tantos horrores.

Permitam-me citar algo que escrevi em 1946, num pequeno livro chamado Science, liberty and peace ("Ciência, liberdade e paz"), em que debati esses pontos e disse ser absolutamente necessário tentar fazer com que toda a atenção da política seja transferida dos problemas insolúveis do poder para os problemas solúveis e mesmo mais urgentes das ne-necessidades humanas. Isso foi o que escrevi a propósito da Conferência de São Francisco:

"Na Conferência de São Francisco, os únicos problemas debatidos foram os do poder. O problema fundamental da humanidade - conseguir alimento suficiente - foi relegado a um obscuro comité internacional-de agricultura. Contudo, é absurdamente óbvio que, se desejarmos um acordo internacional genuíno, terá de ser um acordo que considere os problemas que, primeiro, são de vital interesse às grandes massas da humanidade, e, segundo, podem ser resolvidos sem recorrermos à guerra, e sem ameaça de guerra"'.

Ainda penso que é verdade, e alegra-me ver que mais e mais pessoas se colocam na mesma posição, que o único modo aceitável de conflito com o outro grande bloco de poder, que será de imensa vantagem para os dois blocos e para as grandes massas humanas, será exatamente um conflito para ver quem pode prover os dois terços da humanidade que hoje vivem em miséria e subnutrição com meios que lhe assegurem uma forma de vida decente para si e seus filhos. Infelizmente, as pessoas que tomam as decisões são sempre muitíssimo bem nutridas e não se preocupam muito com o problema da subsistência. Elas subsistem bem demais, provavelmente, em muitos casos, e seu problema principal é o do poder: quem oprimirá quem? Mas as massas humanas preocupam-se com a subsistência, e seu problema primordial é: de onde virá minha próxima refeição? Dois terços da raça humana pertencem a essa gente subnutrida, em geral completamente esquecida. As pessoas que tomam as decisões jamais consultam verdadeiramente essas massas sobre o que elas gostariam. Se fossem consultadas, se fosse instituído um plebiscito de toda a população mundial, uma pesquisa Gallup, poderíamos fazer-lhes essa pergunta: Vocês preferem o atual sistema de política do poder e corridas armamentistas ou preferem ter o suficiente para comer? Não se pode ter as duas coisas, porque está bastante claro que países que gastam de quarenta a cinquenta por cento de seus orçamentos em armamentos não-produtivos não podem melhorar as condições agrícolas das nações mais atrasadas ou ajudá-las a se industrializarem. Enquanto prosseguir o atual sistema de política do poder e preparação para a guerra dentro do contexto nacionalista, persistirá a miséria desses dois terços do mundo, que crescem com rapidez espantosa e em breve serão mais de dois terços.

 

1 Huxley, Aldous. Science, liberty and peace. Nova York, Harper & Row, 1946, pp. 73-74.

 

Nesse contexto eu gostaria de ler algumas passagens de uma carta enviada pelo presidente Sukarno, da Indonésia, ao periódico inglês Afew Statesman, no verão passado. O Afew Statesman apresentara uma série de cartas muito interessantes, a primeira de Bertrand Russell, depois de Nikita Khruchov, e uma do secretário John Foster Dulles. Finalmente, o presidente Sukarno escreveu:

"Nós, da Ásia, não passamos de peões no jogo dos po-deres nucleares. . . Contudo, seria muito tolo ignorar a opinião asiática. Com toda a sinceridade, digo-lhes que estamos cada vez mais ressentidos com a presente situação. Os asiáticos são as principais vítimas dos fracassos e da bancarrota moral do Ocidente.

Nós, da Ásia, não os consideramos salvadores da civilização ou pioneiros do futuro; vemolos como agentes da morte - a nossa morte. . .

Negamos absolutamente o direito do Ocidente de continuar pondo em perigo a nós e ao nosso futuro.. . Está mais do que em tempo de o Ocidente, comunista e anticomunista igualmente, recuar da beira da completa falência moral. É explicitamente tarefa sua utilizar a habilidade e técnica da sua ciência para fins pacíficos. Um décimo do tesouro e da habilidade usados para produzir as suas armas de hidrogénio poderia salvar o meu país. . .

Não há dúvida quanto ao fato de que o Ocidente dá liderança moral à Ásia. Para nós, essa sua liderança moral significou primeiramente colonialismo e agora a bancarrota filosófica, moral, política e social de uma corrida de armas nucleares. . .

Vocês, do Ocidente, estão abrindo mais brechas entre a humanidade; também estão perdendo a batalha para conquistarem os corações e as mentes dos homens.'"

Penso que é muito importante vermo-nos como os outros nos vêem e entendermos que é isso que os líderes dos infortunados dois terços do mundo pensam de nós, e esperam de nós.

Não posso entrar em detalhes sobre qual deveria ser a orientação a ser seguida. Tal orientação foi exposta, de maneira lúcida e excelente, num livro do professor Wright Mills, da Universidade de Colúmbia: The causes o f World W ar Three ("As causas da Terceira Guerra Mundial"), que recomendo a todos vocês. Ele expõe o que pensa ser uma orientação idealisticamente realista para o Ocidente, e também coloca linhas diretivas para mudanças na postura e modos de pensar americanos, que permitiriam pressionar o que ele chama de "elite do poder", os tomadores de decisões no topo da pirâmide social. Entrementes, ele invoca seus companheiros intelectuais, educadores e escritores para que façam tudo o que puderem para ajudar a preparar a atmosfera moral em que uma tal mudança poderia acontecer.

Vou encerrar estas observações mencionando que talvez agora seja o momento propício para chegarmos a uma espécie de acordo, não porque eu pense que os corações tenham mudado, mas porque os avanços da tecnologia estão deixando a situação atual precária demais, e de uma maneira totalmente nova. Como assinalou um recente artigo publicado no Boletim dos Cientistas Atómicos, agora é possível que pelo menos doze nações, algumas bastante pequenas, produzam a bomba de hidrogénio em cinco anos, ou, se executarem um programa intensivo, até mais cedo; e a última coisa que qualquer uma das três grandes potências nucleares deseja é que a bomba de hidrogénio caia nas mãos de qualquer outro. Obviamente, a situação mundial se tornaria muito precária e o poder das grandes potências ficaria seriamente comprometido. Se Liechtenstein e Mónaco tivessem a bomba, em certo sentido estariam no mesmo nível dos Estados Unidos e da União Soviética, coisa que nenhum desses países toleraria. Por isso penso que há uma chance melhor de termos um início de desarmamento; isso consistiria em banir os testes nucleares, tornando muito difícil ou impossível para qualquer outra nação produzir uma bomba. Penso que esse banimento de testes é hoje mais provável de ser negociado do que antes, e tornar-se-á cada vez mais provável conforme crescerem as capacidades das pequenas nações de produzirem a bomba de maneira pouco dispendiosa.

 

1 New Statesman, 28.6.1958, p. 828. 84

 

Também penso que, se atacarmos esse problema em todas as frentes simultaneamente - na frente moral, na política, na da persuasão, na tecnológica -, há uma esperança considerável de podermos sair dessa situação terrível na qual, ai de nós, conseguimos nos meter com nossa insensatez e também com nossas boas intenções. Podemos entrever uma possibilidade de não irmos até a beira do precipício, mas de recuarmos a tempo.

 

         Q futuro do mundo

         Pronunciada em 20.4.1959. 86

Antes de começar uma série de previsões, penso que vale a pena dizer algumas palavras sobre as diferentes concepções que o homem tem do futuro. A maior parte de nós não entende que nossa visão do futuro é um fenómeno recente, ou que os modos como se tem olhado o futuro dentro e fora da nossa tradição são muito diferentes da nossa atual maneira de vê-lo. Os hindus têm uma ideia cíclica do tempo - a noção de que há uma recorrência eterna e de que o tempo repete sempre o mesmo padrão. Conforme a ideia dos hindus, agora estamos na última fase de um dos grandes ciclos, o Kali Yuga, a Idade do Ferro. Estamos nela há dois mil anos e aparentemente teremos de prosseguir por mais trinta e cinco mil anos, durante os quais as coisas vão piorar o tempo todo segundo os hindus, "ainda não vimos nada". Depois disso haverá uma explosão geral, e então, depois de muitos milhões de anos, poderemos recomeçar numa Idade de Ouro. Uma visão similar do tempo existia entre os antigos gregos: havia um grande ano que se repetia continuamente.

Nossa atual visão do futuro é'totalmente outra. A noção de uma recorrência eterna, que ao tempo de Nietzsche foi pregada por alguns filósofos, realmente está fora de enfoque. Pensamos no tempo não como algo que gira e gira, mas como algo que se move irreversivelmente numa direção. A ideia toda é expressa na noção científica da entropia crescente: movemo-nos continuamente em uma direção e a vida é uma temporária anulação da entropia dentro de um sistema maior.

Na tradição cristã, em vez de recorrência eterna, havia a ideia de uma criação definida no tempo (conforme o arcebispo Ussher, o mundo teria sido criado em 4004 a.C.) e um final definido, que provavelmente aconteceria muito em breve - portanto, um completo desinteresse pelo futuro. Ê assim que o professor J. B. Bury, que escreveu talvez o mais interessante livro sobre o assunto, resume a ideia cristã: "Segundo a teoria cristã, esboçada pelos padres da Igreja, especialmente por Santo Agostinho, todo o movimento da história tem por finalidade assegurar a felicidade de uma pequena porção da raça humana em algum outro mundo, sem postular um futuro desenvolvimento da história humana na terra"1.

Assim, também mudamos muito em relação a essa tradição cristã. Podemos dizer que a antiga noção cristã do futuro, que seria melhor e mais feliz, era a noção do que vulgarmente se chama "boa vida no céu". Isso mudou profundamente durante os séculos XVIII e XIX, chegando a uma nova concepção do que se poderia chamar "boa vida na terra" - a ideia de um mundo que melhora através de indefinidos períodos de tempo. Essa ideia de um progresso, que alguns pensadores consideraram absolutamente inevitável e outros, condicional, mas que de qualquer modo segue adiante e provavelmente atingirá um grau de perfeição num futuro distante, substitui a antiga ideia de uma Idade de Ouro no passado por uma súbita queda (como na tradição cristã) ou uma deterioração gradual (nas tradições orientais).

Assim como no passado a velha concepção de "boa vida no céu" justificava tanto a resignação diante de uma sorte intolerável na terra como a perseguição, essa ideia de "boa vida na terra" estimulou a resignação e a perseguição. Sob a orientação antiga, estava certo, na deliciosa expressão de Santo Agostinho, usar uma "aspereza benigna" para com os here-ges, a fim de salvaguardar sua bem-aventurança eterna no outro mundo. Destruí-los neste mundo não era nada, comparado com o bem que lhes estávamos fazendo, salvando-os para a vida eterna. Da mesma forma, vemos no mundo moderno as mais espantosas perseguições e extermínios acontecendo não em nome de Deus, mas em nome dos tempos extraordinariamente bons que nossos tataranetos terão no século XXII. A ideia é que, se liquidarmos bastante gente agora, surgirá dentro de duzentos anos essa época maravilhosa que não terá fim e melhorará mais e mais. As pessoas costumavam compensar-se das misérias desta vida refletindo na vida que teriam no mundo por vir; essa mesma resignação à miséria presente encontra-se hoje nas pessoas que refletem sobre os tempos muito melhores que virão no futuro.

 

JBury, J. B. The idea of progress. Nova York, Macmillan, 1932, p. 56.

 

A ideia compensadora de uma vida melhor no céu teve papel muito grande na vida social do mundo. Muitos historiadores concordam em que o movimento Wesley, no século XVIII, garantiu a Inglaterra contra uma violenta revolução. As condições intoleráveis criadas nas primeiras gerações da Revolução Industrial tornaram-se suportáveis para as massas operárias, que viviam em condições de indescritível desgraça, por essa ardente pregação da felicidade que teriam após a morte. Da mesma maneira, parece ter havido entre os oprimidos e miseráveis do século XIX um sentimento real de que esses tempos maravilhosos, que chegariam ao mundo em dois ou três séculos, eram uma compensação pelas misérias presentes. Temos algumas expressões literárias muito interessantes dessa ideia no século XIX. Uma das primeiras encontra-se no poema de Tennyson, "Locksley Hall", publicado em 1842. E um poema singular. O herói é um jovem que sofreu uma amarga decepção amorosa, e que se consola não com filosofia ou religião, mas refletindo sobre a marcha do progresso e as coisas maravilhosas que acontecerão no futuro. Fala sobre o crescimento da sabedoria e das virtudes, e finalmente sobre o parlamento dos homens, a federação mundial.

Alguns anos depois, no mesmo ano da publicação da Origem das espécies, vemos Victor Hugo, na França, falando até mais liricamente sobre o progresso e seu significado para o homem. Ele tem uma passagem fantástica, em que fala num homem navegando pelo espaço numa espécie de embarcação mágica. Essa embarcação é o cálculo de Newton montado sobre as odes de Píndaro 'mistura de inspiração e ciência -, e o homem navega vestido de luz em direção a um futuro puro e divinal, à virtude, a um luminoso conhecimento, ao fim dos tormentos e desastres, à abundância, calma, riso e felicidade, e à união com as coisas celestiais. Isso ocupa centenas de linhas. Era claramente a marca da religião em Victor Hugo, e talvez a maioria das personalidades literárias do século XIX sentisse mais ou menos a mesma coisa. Mas há algumas exceções. Em Alfred de Vigny, por exemplo, temos uma reação tremendamente cética às primeiras estradas de ferro. Ele não estava nem um pouco convencido, como estavam Victor Hugo e o historiador francês Jules Michelet, de que as ferrovias fossem transportar a raça humana para a paz e a virtude universais. Ao contrário, falou do perigo potencial que as novas maquinarias representavam para o homem, o perigo de que as máquinas pudessem realmente escravizar seu criador. É interessante ver que esse quadro sombrio aparece exatamente quando havia um desenfreado otimismo em relação ao progresso técnico.

Fora do mundo literário, encontramos essas mesmas ideias fortemente expressas por ocasião da primeira das feiras mundiais, a Grande Mostra de 1851, em Londres. Ela foi inaugurada pelo príncipe-consorte, a 1.° de maio de 1851; ele a designou como concretização da unidade entre os homens. Nas sóbrias colunas do Times de Londres havia também editoriais entusiásticos dizendo que a mostra previa a paz universal, e que esse 1.° de maio era a primeira manhã, desde a Criação, em que todos acorriam de todas as partes do mundo para realizarem um ato comum.

Esse tremendo entusiasmo contagiou quase todo mundo, mas é interessante notar que os guardiães da ortodoxia cristã consideraram muito perigosa e herética essa nova religião do progresso. Na publicação Syllabus1, de 1864, o papa Pio IX registra como um dos graves erros (que devem ser apontados e condenados) a ideia de que o pontífice romano devesse concordar e reconciliar-se com o progresso, o liberalismo e a civilização moderna. Era definitivamente uma heresia, que não podia ser aceita. Vemos a incompatibilidade entre a nova visão dos tempos e da evolução do homem na terra e a visão tradicional, agostiniana, do tempo na terra como algo desimportante, e um futuro melhor como algo que só existiria para alguns poucos, e em outro mundo.

Em 1859, chegamos ao ano crucial da publicação da Origem das espécies, que introduz a nova concepção científica de um mundo evolucionário, que começou num passado imensamente distante, e, sem qualquer solução de continuidade entre as formas inferiores e as formas humanas mais elevadas, continuará indefinidamente rumo ao futuro. A teoria evolucionista como tal não é nem otimista nem pessimista, mas pode ser interpretada de qualquer um desses dois pontos de vista. Têm havido movimentos progressivos na evolução - é absurdo dizer que um ser humano não é superior a uma ameba. Ele é claramente superior. Ao mesmo tempo, porém, é bastante evidente que o processo evolucionário não foi progressivo em todas as linhas; muitas espécies se extinguiram ou estagnaram completamente, e o mundo hoje está cheio do que poderia ser chamado de fósseis vivos.

Por isso, embora tenha havido nitidamente uma linha de progresso dentro da linha de evolução, não se pode dizer que, aplicada especificamente ao ser humano, a teoria da evolução justifique pessimismo ou otimismo.

 

1 Lista em que o papa colocava ideias condenadas pela Igreja, espécie de "Index" de pensamentos. (N. da T.)

 

A interpretação que prevaleceu na última metade do século XIX foi a otimista. Havia pessimistas, como Eduard von Hartmann, mas eles tinham muito menos influência do que alguém como Herbert Spencer, que desenvolveu uma filosofia evolucionista muito elaborada e essencialmente otimista. A inevitabilidade do progresso parecia óbvia a Spencer; ele a considerava uma lei com validade igual à da lei da gravidade de Newton. (Infelizmente toda a sua teoria assumia na sua base a herança das características adquiridas, que hoje em dia temos motivos para acreditar serem falsas.) Não há dúvida de que Spencer exerceu prodigiosa influência na segunda metade do século XIX e que havia uma visão do futuro muito otimista, uma crença de que o progresso acontecia o tempo todo e provavelmente continuaria acontecendo. Lembro o brilho dourado dessa teoria otimista quando eu era criança, a noção de que nós, que tínhamos a sorte de viver nas partes mais civilizadas do mundo, éramos incapazes de fazer o tipo de coisas que as pessoas faziam no passado remoto ou que ainda faziam em lugares não-civilizaydos. Se alguém, na minha infância, perguntasse a mim ou a meus pais se pensavam que durante a minha vida veríamos um ressurgimento da escravatura em larga escala, de tortura, perseguição por ideias heréticas, deportações em massa, teríamos respondido, "É absolutamente impossível!" Mesmo assim, vimos essas coisas pavorosas e nossa esperança quanto à inevitabilidade do progresso foi grandemente abalada. Estamos convencidos de que vivemos num mundo de mudança incessante, mas não de que essa mudança leve necessariamente a uma direção que nosso sistema de valores consideraria excelente. Se usarmos de suficiente inteligência e boa vontade provavelmente poderemos conseguir um alto grau de progresso, mas isso depende de nós e não há nada nos processos de mudança em si que torne isso obrigatório.

Esse otimismo moderado é a visão mais notória do futuro, mas outro fato interessante é que, com a chegada da bomba de hidrogénio, a tecnologia humana reintroduziu no pensamento ocidental a antiga ideia escatológica do fim do mundo. O fim súbito e catastrófico do mundo de que fala a literatura apocalíptica - noção que passamos a considerar insustentável e absurda - tornou-se, uma vez mais, uma possibilidade real. E, mais uma vez, depende de nós que exista ou não um futuro indefinido.

Pensemos agora, do nosso ponto de vista atual, no que possivelmente acontecerá no futuro. Começamos com uma visão ampla fornecida há cinco anos por Sir Charles Darwin, físico e neto do naturalista, num interessante li-vrinho chamado The next million years ("O próximo milhão de anos"). À primeira vista, pareceria impossível prever o que acontecerá dentro de um milhão de anos; mas, paradoxalmente, é mais fácil profetizar sobre lapsos muito grandes de tempo do que sobre outros menores. O motivo é bastante óbvio. Quando lidamos com grandes lapsos de tempo, lidamos com cifras enormes, e o comportamento médio de um grande número de coisas ou de pessoas ou de fatos é mais predizível do que o comportamento de pequenos grupos ou de acontecimentos individuais. Vemos a evidência disso ao nosso redor. Nenhum adivinho dos que conhecemos jamais fez fortuna predizendo o futuro, mas nenhuma companhia de seguros jamais entrou em falência. O motivo é que a companhia de seguros prevê o futuro de milhões e por isso pode ter certeza de lucro, enquanto o adivinho prevê a sorte apenas de uma pessoa, e provavelmente terá mais chances de errar do que de acertar. Isso também acontece em relação às previsões de grandes períodos de tempo. Os altos e baixos tendem a nivelar-se, e talvez se possa projetar no futuro uma linha gefal.

A visão de Sir Charles Darwin é simplesmente a de que o homem é uma espécie selvagem

- ele não foi domestica-do. Um animal doméstico tem um dono que lhe ensina truques e controla sua procriação, esterilizando-o ou cruzando-o com tipos definidos, e por isso assegura certo padrão à geração futura. Mas o homem não tem dono, e até mesmo suas tentativas de autodomesticação estão condenadas à frustração, na medida em que a minoria dominante, que faz a domes-ticação, também permanece selvagem. Por isso, na opinião de Darwin, o homem jamais transcenderá as limitações impostas ao animal selvagem. Seja o que for que aconteça em breves períodos da história, a longo prazo a espécie humana, como todas as outras espécies selvagens, viverá até o limite extremo de seu suprimento de comida, com uma grande parte em estado de semi-inanição o tempo todo. Isso continuará com altos e baixos, Idades de Ouro e Idades de Ferro, durante os dez mil séculos que ele divisa. Depois de um milhão de anos podemos esperar que a espécie seja extinta ou tenha evoluído para uma espécie bastante diferente.

E um ponto de vista bastante sombrio, e não creio que seja inteiramente justificado. Sir Charles Darwin não dá crédito à raça humana pela sua extraordinária porção de ingenuidade e sua habilidade em escapar quando fica acuada em cantinhos muito estreitos, e talvez não o faça por sua excepcional resistência. A espécie humana é provavelmente a mais resistente de todas as espécies animais. Pode existir em todos os ambientes imagináveis e suportar as mais impressionantes pressões e fadigas, aparentemente saindo-se melhor do que todas as outras espécies. Por isso, talvez, essa previsão de longo prazo, que tem suas justificações filosóficas, acabe se revelando errónea, devido à notável capacidade do homem de nos fazer surpresas.

Entrementes, devemos levar em consideração o curto prazo, que nos interessa mais. Quais as nossas possibilidades a curto prazo? Comecemos com as perspectivas políticas e militares que nos fazem frente de imediato. Elas foram debatidas há alguns anos por Bertrand Russell e parece-me que suas conclusões são extremamente realistas e sensatas. Ele diz que há três possibilidades. Primeiro, se entrarmos numa guerra nuclear, há a possibilidade de extinção completa da espécie e talvez de toda a vida na Terra, se ela for bastante prolongada e executada com armas suficientemente mortais. Mas isso é improvável no presente estado da tecnologia.

A segunda possibilidade é de que a guerra nuclear resulte no retorno ao barbarismo. Nas circunstâncias atuais, essa segunda alternativa parece ter boas probabilidades, porque um complexo sistema industrial como este do qual dependemos tem analogias muito estreitas com um sistema ecológico da natureza. Na natureza, quando perturbamos um elemento num sistema ecológico, tiramos do equilíbrio o sistema inteiro. Analogamente, se destruíssemos completamente um ou alguns elementos do complexo sistema industrial, e se por alguma razão acontecesse uma elevada mortandade entre o pessoal especialmente treinado de quem dependemos para seu funcionamento, parece provável que todo o sistema industrial iria por água abaixo - seria virtualmente impossível prosseguir sem uma ou outra parcela dele - e o resultado seria o retorno ao barbarismo. Devemos ter em mente que as enormes populações atuais do mundo são capazes de viver unicamente porque possuem esse complicadíssimo complexo industrial e de comunicação. Se isso desmoronasse, imensas quantidades de pessoas provavelmente morreriam de fome, e naturalmente os sobreviventes entrariam em guerras civis para obterem as poucas fontes de recursos restantes. O imenso número de mortes que seguiria imediatamente à explosão de uma bomba H seria seguido por um número maior ainda de mortes, e um caos sem tamanho.

Também seria muito difícil reconstruir o sistema, porque, depois de uma grave guerra atómica, a humanidade não recomeçaria do ponto onde tivesse parado: começaria muitos séculos aquém. Quando o sistema foi originalmente construído, com máquinas e ferramentas bastante primitivas, havia abundância de fontes de recursos. As minas de metal eram muito ricas e bastante fáceis de explorar. Hoje, depois de cento e cinquenta anos de exploração, isso não é bem assim. Seria muito difícil para qualquer povo reduzido a um nível primitivo reconstruir uma civilização complexa com base nas empobrecidas fontes que sobraram, particularmente nos países agora altamente desenvolvidos. Teríamos um paradoxo: seria mais fácil reconstruir uma civilização industrial nas partes do mundo que não tivessem sido previamente industrializadas, e mais difícil reconstruí-la naquelas que tivessem sido industrializadas antes e que tivessem reduzido grandemente suas fontes de minério.

A terceira alternativa que Lorde Russell prevê é a criação de um único governo mundial, que ocorreria ou pela força, como resultado da vitória de uma potência numa guerra nuclear - quer dizer, se alguma potência pudesse sair vitoriosa disso - que é como se construíram sempre os antigos impérios; ou pela ameaça da força, pelo medo do que poderia acontecer e como resultado de ponderação, de ideais humanitários e de diminuição do egoísmo. Essa seria, naturalmente, a maneira desejável de se criar o que Wendell Wilkie chamou "um mundo"; mas devemos confessar que os precedentes históricos não são muito encorajadores. Peguemos o caso da Itália. Desde o tempo de Dante, todo italiano inteligente viu que era essencial manter a Itália unida, mas na verdade a Itália não ficou unida senão em 1870, e isso pela força militar dos piemonteses. E até hoje encontramos italianos do sul da Sicília que falam amarga-gamente do tempo em que os piemonteses desceram para a Itália e a transformaram à força num só país. A mesma coisa acontece na Alemanha. A unificação final da Alemanha veio depois da Guerra Franco-Prussiana, e foi essencialmente um ato de força. Vemos a mesma coisa na construção de uma França unificada pela força e pela astúcia de Riche-lieu, no século XVII. Se no futuro houver uma unificação por conquista, eu diria que, se o Ocidente vencery veremos uma espécie muito superior e atualizada do Império Romano, como foi no tempo dos Antoninos; se o Oriente vencer, veremos um tipo bem menos agradável de império, em que os ocidentais sentiriam estar vivendo do lado errado, e intensamente discriminados.

Podemos esperar a união das nações num governo único, o que é infinitamente desejável? Podemos esperar que isso aconteça por meios democráticos? Podemos esperar uma nação manifestamente boa para todos, a longo prazo, mas que a curto prazo cause desconforto e até sofrimento para muitas pessoas, como caminho a ser tomado por uma sociedade democrática em tempos de paz? Parece-me duvidoso que isso aconteça porque há imensos interesses investidos nisso - não meramente aqueles dos governantes, embora governantes de um Estado soberano não desejem tornar-se meros administradores de província. Similarmente, os donos de fábricas não desejam subordinar seus lucrativos interesses a um sistema de impostos, ou subordinar-se aos interesses de alguma unidade bem mais ampla, fora dos atuais limites do país, onde haverá fábricas eficientes, que farão concorrência às suas. Há os interesses de muitos trabalhadores, que poderiam ser transferidos de seus empregos, ou simplesmente desempregados e forçados a migrar para outras partes do país. Há também os interesses dos intelectuais, que não desejam mudar suas ideias, e também os interesses pessoais de todo mundo - ninguém quer mudar as condições em que viveu na infância.

De modo geral podemos dizer que só quando ameaçados por outrem os seres humanos estão dispostos a se unir e aceitar provações a curto prazo, em troca de bens a longo prazo; estão prontos a se unir sob ameaça de guerra ou de catástrofes. Indubitavelmente, a melhor coisa para obter um governo mundial através de leis seria uma invasão de Marte. Mas, infelizmente, é improvável que isso ocorra. E possível, porém, persuadirmo-nos de que afinal os seres humanos são seus próprios marcianos, que com superpopulação e superor-ganização e supertecnicização cometemos enormes agressões contra nós mesmos? Podemos nos unir contra nós mesmos, para nosso próprio interesse? Pode ser que, com educação adequada e propaganda, possa-se fazer prevalecer esse ponto de vista, de que o que consideramos um sereno tempo de paz não o é, mas que há uma ameaça real pendendo sobre nós o tempo todo, contra a qual temos o maior interesse em nos unir. Isso é uma especulação bastante remoía, mas é possível que algum desses argumentos enfim convença as pessoas a se unirem, formando um governo no qual todos viverão juntos segundo a lei.

Essas me parecem as possibilidades militares e políticas imediatas. Agora analisemos brevemente as possibilidades técnicas e industriais. Para os que desejam saber mais a esse respeito, eu aconselharia que lessem, de Harrison Brown, Challenge of marís future1 ("O desafio do futuro do homem"), e o livro de Brown, Weir e Bonner, The nex hun-dred year ("Os próximos cem anos"), onde estão todas as cifras. Considerando que a quantidade de capital planetário consumido pelos Estados Unidos desde o fim da Primeira Guerra Mundial foi maior do que todo o metal, combustíveis e minerais consumidos por toda a raça humana antes disso, entendemos que fantástico escoamento de recursos está ocorrendo. A fim de sustentar nossa atual civilização, precisamos de quinhentos quilos de aço por cabeça cada ano, onze quilos e meio de cobre, treze de chumbo, três toneladas e meia de pedra, cascalho e areia, duzentos e cinquenta quilos de cimento, duzentos de argila, cem de sal, cinquenta de fosfato - ao todo cerca de vinte toneladas; e, ainda por cima, cada membro da população requer o equivalente a oito toneladas de carvão para fornecer-lhe energia cada ano.

Vemos que os recursos usados na moderna civilização tecnológica é algo inacreditavelmente grande. Uma das consequências, conforme mencionei, é que as minas facilmente acessíveis estão em grande parte exauridas. Há cinquenta anos atrás uma boa mina de cobre continha cinco por cento desse mineral; hoje, as minas dificilmente fornecem mais de meio por cento de cobre. E isso certamente prosseguirá. Teremos de trabalhar em minas cada vez mais pobres, até que finalmente estaremos explorando granito e água do mar para retirarmos os metais e minerais de que precisamos. Teoricamente isso pode ser feito, e mesmo na prática vemos que se pode fazê-lo, mas sem dúvida será necessário muito mais trabalho para conseguir matérias-primas do que hoje em dia, e será preciso uma imensa mecanização, muito além de tudo que possamos divisar hoje em dia.

 

1 Brown, Harrison. Challenge of man's future. Nova York, Viking, s. d.

Brown, Harrison:   Weir, John; Bonner, James. The next hundred years. Nova York, Viking, 1966.

 

Quanto tempo durarão nossas fontes de recursos no planeta? As estimativas variam muito, de algumas centenas de anos a alguns milhares, mas está bastante claro que, mais cedo ou mais tarde, as minas mais ricas estarão exauridas.

Aqui o dr. Harrison Brown colocou uma questão: qual a possibilidade de o homem ser capaz de fazer a transição de uma vida industrial baseada em minas ricas para uma vida industrial baseada em minas mais pobres, transição essa que exigirá uma incrível quantidade de engenho e habilidade? Como Bertrand Russell, o dr. Brown oferece três alternativas. Uma é de que conseguiremos fazer a transição, mas teremos uma civilização industrial mundial controlada por uma autoridade totalitária. A segunda possibilidade é que a transição se faça e tenhamos uma sociedade industrial mundial livre, devotada à plena realização dos seres humanos; mas esta alternativa, embora obviamente a mais desejável, é muito difícil de obter e manter. A terceira possibilidade, que o dr. Brown julga ser a mais provável das três, é que dentro dos próximos mil anos ou coisa assim, caso escapemos à guerra, estaremos revertendo gradualmente ao estado agrário.

Pensemos agora em algumas das possibilidades e previsões mais imediatas à nossa frente. Comecemos com a bioquímica, onde autoridades como Albert Szent-Gyorgyi estão certas de que encontraremos meios para controlar a população, estabilizando assim as condições mundiais e possibilitando uma espécie de desenvolvimento razoável. Ele não leva em conta que o problema não é só bioquímico, mas sociológico, psicológico, filosófico e religioso, embora pelo menos no nível bioquímico eu penso que podemos esperar tal evolução. Quanto à produção de alimento, parece não haver dúvida de que pode ser enormemente intensificada pelo desenvolvimento de novas variedades de plantas através de mutação dirigida, criação e domesticação de vários tipos de bactérias e fungos para produzir diferentes tipos de substâncias alimentícias, e novos métodos de encontrar água. Stephen Riess está trabalhando em métodos para encontrar a chamada "água juvenil", possibilitando a irrigação de vastas áreas, no momento infecundas. Parece bem claro que, se pudéssemos estabilizar a população, seria possível alimentá-la adequadamente - embora provavelmente numa dieta vegetariana, uma vez que a dieta à base de carne é muito dispendiosa.

Certamente também haverá avanços na química. Espero que um dos mais importantes resulte da pesquisa básica em fotossíntese, no campo do que pode ser chamado química de radiação. Com certeza se encontrarão inúmeros processos que podem se efetuar sob radiação controlada não apenas na luz solar, mas em radiações mais fortes, agora que temos grandes pilhas atómicas. Serão possíveis tipos completamente novos de síntese química.

Incidentalmente, tudo isso acontecerá como resultado de pesquisa básica, não pesquisa ad hoc. Ainda nos inclinamos à obsessão de que devemos pesquisar para resolver um problema particular, mas as descobertas básicas somente aparecem como resultado da pesquisa básica. Li outro dia uma observação muito divertida do dr. Szent-Gyòrgyi sobre a natureza da pesquisa básica. Ele disse:

"Quando cheguei a este país, há dez anos, tive a maior dificuldade em encontrar meios para minha pesquisa básica. As pessoas me perguntavam: o que está fazendo, para que serve isso? Eu tive de dizer que não servia para coisa alguma. Então perguntavam: mas então o que é exatamente que você vai fazer? E eu tinha de responder: não sei, pesquisa é isso mesmo. Assim, a pergunta seguinte era: como espera que gastemos nosso dinheiro com você, sç nem sabe o que está fazendo, nem por que o faz? E a essa pergunta eu não podia responder".

Tais perguntas já não se fazem mais tão seguidamente. Mesmo assim, há muito que melhorar.

Dos mundos biológico e químico, passemos ao mundo humano. No campo da psicofarmacologia veremos provavelmente desenvolvimentos extraordinários, como resultado da pesquisa no metabolismo básico, com a criação de um ambiente melhor para o sistema nervoso central e a consequente eliminação de muitas perturbações mentais e enfermidades psicofísicas. Podemos também ver o tipo de aplicação científica de que o eminente geneticista, professor Hermann Muller, fala - a aplicação de métodos eugênicos para melhoria da matéria-prima humana. Muller especula sobre o que chama "parentesco adotivo" e a possibilidade de se criar uma nova moral, na qual as pessoas pensariam que é mais importante gerar filhos que fossem os melhores possíveis no campo natural, em vez de filhos que reproduzissem exatamente as idiossincrasias e fraquezas dos pais. Isso seria possível através do parentesco adotivo de crianças concebidas pela união de células reprodutivas derivadas de matérias-primas que representassem o mais alto ideal dos pais. Mais cedo ou mais tarde a eugenia será praticada, embora certamente cause uma tremenda revolução em nossas atuais ideias éticas sobre o assunto. Pode-se acrescentar que a primeira nação que praticar tais métodos eugênicos, como os que o professor Muller advoga, será em algumas décadas muitíssimo superior às suas rivais - o que me parece outra razão pela qual deveríamos tentar, o mais depressa possível, de um modo ou de outro, conseguir o ideal de "um mundo"; no contexto do nacionalismo, a eugenia se tornaria um instrumento de grande poder e perigo.

Depois, chegamos aos processos puramente psicológicos. Obviamente a psicologia ainda está em sua infância, e podemos prever notável desenvolvimento para ela. Talvez em duas ou três gerações se compreendam os processos do pensamento criativo, se descubra como podem ser sistematizados, como podem ser ensinados, como os seres humanos podem ser educados de forma a viver no auge de suas potencialidades, em lugar de usarem apenas pequena parte de sua capacidade. Esses avanços puramente psicológicos, somados aos da psicofarmacologia, provavelmente melhorarão em muito o desempenho dos seres» humanos. Se forem adicionados a processos eugênicos, podemos prever com considerável confiança uma melhora notável do ser humano. O que Emerson disse há muito tempo, que todos os homens se enfeitam com a memória da sociedade, mas nenhum homem melhora com ela, deixará de ser verdade. Pode até mesmo ser possível agora conseguir que os homens melhorem e assim melhorem a sociedade. Embora ninguém saiba se esse desejo será realizado ou não, estamos certos de qaepode ser realizado agora.

Falemos brevemente sobre avanços mecânicos. Provavelmente os mais importantes estarão relacionados com os grandes computadores eletrônicos, que nos permitirão realizar façanhas de pensamento e solução de problemas de que nunca seríamos capazes antes e que, por isso mesmo, abrirão para a ação racional áreas nas quais ela era impossível no passado. Talvez até seja possível uma orientação racional das decisões - saber quais são todas as possibilidades em um campo e escolher as melhores. No passado, tais decisões tinham de ficar inteiramente a cargo da intuição dos políticos, mas agora podem ser controladas pelos fatos e pela razão baseada nos fatos. Outro dia li um número recente da revista H ar per's sobre um fascinante aparelho eletrônico, novo, usado para fazer pesquisa em números antigos de revistas científicas. Essa é uma tarefa impressionante; há muitos milhares de jornais publicados todos os anos, há um repertório de milhões deles, e é incrivelmente difícil descobrir o que se fez nessa selva de material. Agora, desenvolveu-se uma máquina na qual se pode colocar uma fita magnética para a qual se transfere o que os jornais dizem sobre o assunto, e em pouco tempo a máquina dirá onde encontrar o que desejamos.

E não podemos esquecer nossos amigos, os Sputiniks e os satélites. Esses serão muito úteis, não tanto em relação ao espaço, mas à terra. Poderão dar excelentes informações sobre o tempo. (Fiquei impressionado lendo outro dia uma afirmação do dr. Wernher von Braun, dizendo que serão enviados ao espaço satélites, alguns deles ligados entre si por rádio, numa espécie de cadeia elétrica que permitirá que programas de televisão sejam transmitidos globalmente a qualquer momento. É uma grave ameaça, mas está aí!)

Concluindo, parece bem claro que se nos abrem enormes possibilidades, que estamos no umbral de sérias descobertas na nossa própria natureza e na natureza exterior. Se pudermos resolver os problemas políticos e demográficos básicos, podemos criar um mundo incalculavelmente superior. Não sei se conseguiremos isso ou não, mas precisamos compreender que provavelmente o futuro imediato é muito importante no que tange a tais possibilidades. Harrison Brown resumiu isso dizendo que, sem dúvida, os próximos cem anos serão mais críticos do que quaisquer outros que a humanidade já teve de enfrentar. É uma perspectiva que não nos permite grandes euforias, mas penso que é real.

Há mais de cinquenta anos, Tolstói disse que, numa sociedade mal organizada como a .nossa, onde pequenas minorias governam a maioria, qualquer avanço científico e conquista da natureza fortalecem a ação da minoria contra a maioria. Depende de nós decidir se essas conquistas da natureza e do conhecimento devem ser usadas para fins terríveis e desumanos, ou se devem ser empregadas para criar o tipo de progresso com que sonhamos - e, na verdade, um tipo de progresso com que ninguém jamais sonhou, porque as potencialidades que agora se divisam jamais estiveram presentes antes na história do mundo.

 

         A vida individual do homem

         Pronunciada em 21.9.1959.

Nesta conferência debaterei a relação entre o homem no nível macroscópico e o homem no nível microscópico ou individual. Qual a relação entre o indivíduo e sua sociedade e o processo histórico em que ambos estão envolvidos? Parece uma questão trivial e óbvia, mas acho que na verdade é de considerável importância; não há nada auto-evidente sobre a relação do indivíduo com a massa maior de vida histórica e social dentro da qual ele se insere.

Começarei com uma analogia física, não biológica, porque as analogias biológicas, tão frequentemente usadas para discutir asssuntos sociológicos, são essencialmente falsas. Não creio, por exemplo, que a sociedade seja um organismo, como muitas pessoas disseram. Um organismo é uma criatura com vida própria, capaz de dirigir-se, com consciência de seus órgãos e alguma espécie de sistema nervoso central; a sociedade não parece ter nenhuma dessas características. Estaremos bem mais perto da verdade dizendo que a sociedade é uma organização dentro da qual se instalam os organismos individuais.

A analogia que desejo usar é muito simples: a analogia dos gases e das moléculas individuais que os compõem. As leis dos gases lidam com interdependência de volume, pressão e temperatura. São leis bastante simples e extremamente instrutivas e úteis para a nossa atividade com gases de qualquer quantidade considerável. Mas as moléculas das quais o gás se compõem não têm pressão nem temperatura, e quase nenhum volume, de modo que as leis que se aplicam aos gases não se aplicam de modo algum às suas moléculas. Os únicos atributos das moléculas que são importantes para o comportamento dos gases são a energia cinética e a tendência à movimentação casual. É a combinação desses dois tributos que, caso as moléculas apareçam em número suficiente, leva ao comportamento característico dos gases conforme as formulações de suas leis. O ponto que devemos enfatizar é que as leis dos gases são inteiramente diversas das leis das moléculas, e que o que é verdade para uma esfera não tem quase nenhuma importância para a outra.

Da mesma maneira vemos que há uma profunda diferença entre as generalizações que podemos fazer sobre sociedades e sobre indivíduos. Com empada para com os indivíduos não podemos dizer nada sobre a sociedade; e vice-versa, das generalizações que inferimos da observação da sociedade não podemos dizer nada sobre o comportamento dos indivíduos. Vemos isso claramente pelas estatísticas constantemente publicadas em jornais. Sabemos que, conforme as estatísticas das companhias de seguro, a expectativa média de vida é de sessenta e sete anos para os homens e setenta e dois para as mulheres. Mas isso não nos diz nada sobre quando é provável que o sr. e a sra. Jones morram. Então, existe esse abismo: a vida do indivíduo, que é uma vida autoconsciente, uma vida de sentimentos, de vontade, de necessidades e intenções, não se aplica à sociedade. As generalizações que podem ser feitas na esfera mais ampla, a social, são possíveis unicamente porque estão envolvidos números muito grandes e consideráveis durações de tempo.

De modo geral, vemos que, quanto maiores os números envolvidos em qualquer acontecimento natural, tanto mais precisas são as generalizações - as assim chamadas leis naturais - que podemos formular. Essa foi uma das grandes descobertas do século XIX, que Ludwig Boltzmann deixou bem clara na sua obra clássica a respeito do calor. A mesma noção básica está por trás de toda a teoria darwiniana, que na verdade foi a constatação do comportamento médio de enorme número de indivíduos. O número de indivíduos dentro das sociedades é muito pequeno quando comparados ao número de moléculas dentro de uma unidade de gás ou de átomos num corpo humano. Consequentemente, as generalizações que podemos fazer da observação da sociedade têm muito mais exceções do que as leis da física e química (e não são tão precisas e acuradas). Mesmo assim certamente podemos fazer algumas generalizações sobre a sociedade como um todo, e, embora muitos sociólogos tenham tentado ir longe demais na sua formulação, tais leis têm valor real e são capazes de nos dar algum poder de predizer o futuro. Contudo, chegando ao comportamento individual, vemos que um conhecimento dessas leis não é de particular utilidade não nos ajuda a predizer o que Tom, Dick e Harry vão fazer. Há uma diferença básica entre as ciências naturais e as ciências históricas. As naturais procuram reduzir a diversidade à unidade, encontrando similaridades entre objetos ou eventos, e fazendo uma generalização sobre eles, enquanto que no estudo da história, em pequena escala, e no estudo da biografia, nossa preocupação dirige-se a casos particulares. No mundo da ciência natural seria preciso ignorar um milagre caso ele ocorresse, porque um milagre é algo que jamais se repete e que sucede fora da lei geral das médias; mas se acontecesse um milagre na esfera histórica, certamente deveríamos levá-lo em consideração.

Pensemos agora na relação indivíduo e história. Cada vida individual corre paralela a um setor do movimento histórico geral do período em que a pessoa vive. Mas até que ponto existimos na história? Até que ponto um indivíduo está na história do seu tempo? Para começar, teremos de fazer a pergunta: o que é história? O ideal seria que a história fosse o registro de tudo o que acontece; claro que não poderia existir um registro desses porque é complexo demais para se executar, e de qualquer modo as mudanças e acasos do passado praticamente eliminaram toda a informação sobre períodos mais antigos. Na verdade, o que os historiadores descrevem como história são apenas aqueles aspectos do passado que, conforme sua própria filosofia de vida, consideram particularmente importantes e significativos. Tomemos o exemplo do que um historiador filosófico, Arnold Toynbee, diz sobre a história do nosso tempo.

"O que será destacado como acontecimento eminente do nosso tempo por historiadores futuros, talvez daqui a séculos, olhando para a primeira metade do século XX e tentando ver suas atividades e experiências naquela proporção justa que por vezes a perspectiva no tempo revela? Não creio que seja qualquer desses acontecimentos sensacionais, trágicos ou catastróficos da economia ou política, que ocupam as manchetes dos jornais e nossas mentes; nem guerras, revoluções, massacres, deportações, fome, fartura ou inflação, mas algo de que temos apenas vaga consciência e que seria difícil transformarmos em manchete. . .

"Historiadores futuros dirão, penso eu, que o grande acontecimento do século XX foi o impacto da civilização ocidental sobre todas as outras sociedades vivas no mundo daquela época'".

Mas se o impacto do Ocidente sobre outras culturas é o fato histórico realmente importante do nosso tempo, então virtualmente nenhum de nós está na história, pois não temos consciência subjetiva desse impacto do Ocidente sobre outras culturas, ou do impacto de outras culturas sobre o Ocidente.

Caso similar é o século XIII, geralmente encarado pelos historiadores modernos como uma das grandes idades de ouro do espírito humano, a idade do escolasticismo e das grandes catedrais. Mas se lermos as obras de quaisquer dos moralistas, contemporâneos de São Tomás de Aquino e dos construtores de catedrais, veremos que todos concordam em que sua era foi de decadência, que os homens nunca foram tão imorais e delinquentes, que eram muito mais ignorantes do que no passado, e assim por diante. Quem está com a razão? As pessoas que realmente viveram no tempo do escolasticismo e dos construtores de catedrais estiveram certas pensando que o seu tempo era de decadência, ou estamos nós correios pensando que foi uma idade de ouro, em que o espírito humano se desenvolveu extraordinariamente? É uma pergunta que fica em aberto; provavelmente em certo sentido os dois estão correios. Mas o que ficou bem claro é que aquilo que vivemos subjetivãmente está longe de ser a essência da história, assim como a perceberão os historiadores do futuro. Temos de ter consciência do curioso fato de que vivemos em dois mundos, e nosso mundo individual não corresponde ao mundo em grande escala com o qual lida o filósofo da história.

Até que ponto a vida individual, paralela à grande torrente da história, está realmente dentro dela? O fato mais espantoso sobre qualquer vida individual é que um terço dela se passa inteiramente fora da história, e mesmo fora do espaço e do tempo, no que concerne à experiência subjetiva: um terço de nossa vida se passa no sono, no qual do ponto de vista interior, não estamos nem no tempo nem no espaço. Nem estamos na história; apenas passamos fora do mundo da história num estado de temporário não-ser. E um estado absolutamente essencial para nós porque nele nos refugiamos de nossas atividades terrivelmente egoístas a fim de recuperarmos um pouco da saúde e sanidade que estamos sempre minando com nossas atividades conscientes.

 

1 Toynbee, Arnold. Civilization on trial. Nova York, Oxford University Press, 1948, pp. 213-

214.

 

Shakespeare tem uma passagem belíssima sobre o sono, em Macbeth:

"O sono que trama a emaranhada seda das preocupações,

Morte da vida de cada dia, refrigério da dura lida,

Bálsamo de mentes feridas, curso paralelo da grande natureza,

Principal alimento no banquete da vida"1.

O sono é exatamente isso - o extraordinário acesso a uma nova vida e uma nova visão que nos chegam durante essas oito horas, das vinte e quatro, em que podemos escapar de nós mesmos. Até o mais violento fanático ou o mais perigoso bandido, durante esse terço de sua vida, nesse momento de inteira inconsciência em que pode esquecer seu ego, de alguma forma se reconcilia com a profunda e divina fonte de todo o ser. E um pensamento belíssimo o de que mesmo um Hitler, um Himmler, um Gêngis Khan e um Jay Gould, mesmo um Richelieu, puderam esquecer por momentos as terríveis preocupações do dia.

Um fato muito interessante, quando falamos em organizações sociais, é a descoberta de que elas nunca dormem. As organizações sociais vivem por assim dizer num estado de insónia crónica; jamais se afastam de si mesmas, jamais se abrem para novos caminhos de vida e conhecimento. São corrigidas, de tempos em tempos, apenas pelos indivíduos - que conseguem o benefício do sono e por isso podem reformar organizações sociais de maneira racional. Como disse o sr. Bumble, "a lei é uma mula" - porque a lei nunca dorme . A Igreja sofre de coisa semelhante. Havia um hino que eu cantava frequentemente na escola, e uma de suas estrofes diz:

"Agradecemos-Te porque Tua Igreja vigilante Não dorme enquanto a Terra busca a Luz, O mundo inteiro, atenta, cuida e guarda, E não descansa, seja dia ou seja noite".

Essa insónia vigilante pode ser a causa de fatos deploráveis na história eclesiástica. A Igreja foi reformada periodicamente por gente que tirava inspiração do sono e da profundeza da mente, e por causa disso ela permanece saudável como está. Mas sofre dos defeitos de todas as organizações, na medida em que, não sendo organismo, mas apenas organização, não tem capacidade de afastar-se e tirar férias de si mesma; jamais dorme, e não consegue se recuperar.

Para voltar ao indivíduo e ao quanto ele está na história, vemos que há muitos períodos em sua vida, além daqueles gastos dormindo, em que ele fica fora da história. Esses incluem a primeira infância e a maior parte da infância. Durante esses períodos, o homem vive uma vida quase exclusivamente privada, na qual acontecimentos públicos têm nele uma influência mínima. Isso também é verdadeiro quanto à velhice e decrepitude, e períodos de enfermidade; nesses, o indivíduo fica tão abatido que se afasta totalmente da vida pública, e por causa de sua atenção reduzida, e da dor crónica, e da frustração, vive fora de qualquer relação com o mundo exterior. Por fim, o ato mais privado e não-histórico de todos é o ato de morrer, no qual há uma redução da atenção até o indivíduo ser totalmente retirado do mundo da história. E verdade que houve homens eminentes que tentaram permanecer históricos mesmo em seu leito de morte. Há uma história dolorosa sobre Daniel Webster, que falava demais com seus amigos enquanto morria, e queixou-se, perguntando: "Acaso eu disse algo indigno de Daniel Webster?" Parece uma coisa terrível que nesse momento de sua vida um homem sentisse necessidade de ainda ser uma personagem pública e histórica, preocupando-se em ser digno de sua própria reputação.

Se somarmos todos os períodos durante os quais estamos fora da história - sono, infância, extrema velhice e decrepitude, e ainda enfermidade -, veremos que de seu tempo médio de vida, setenta anos, o indivíduo provavelmente passa cerca de quarenta anos excluído da história. Simplesmente não participa das grandes generalizações históricas que os sociólogos e historiadores fazem.

Porém, mesmo enquanto ser maduro e consciente, o homem gasta grande parte de sua vida num contexto puramente privado e não-histórico. A definição de vida privada que mais aprecio é a dada pelo ensaísta russo Vassíli Rozanov feita há cerca de trinta ou quarenta anos. Ele disse que vida privada é "beliscar o nariz e olhar o pôr-do-sol"?. E uma definição muito bela; se a interpretarmos de maneira mais geral, veremos que seu verdadeiro significado é que vida privada consiste em gozar nossas reações puramente fisiológicas, estéticas e inspiradoras. Naturalmente, tendemos a racionalizar e explicar essas experiências em termos da cultura dominante. Mesmo assim elas permanecem surpreendentemente privadas e separadas do movimento histórico geral do tempo em que vivemos.

Parece-me importante ver as histórias de alguns poetas e outros artistas em relação ao tempo em que viveram. Wordsworth escreveu suas Lyrical ballads ("Baladas líricas") e todo o Theprelude ("O prelúdio") e as grandes odes (incluindo a "Ode Intimations of immortality") entre 1795 e 1807, quer dizer, no auge do que foi até há pouco tempo o mais impressionante período de mudanças da história europeia - o período da Revolução Francesa e das Guerras Napoleônicas, que inauguraram a época moderna. Embora Wordsworth fale, em The prelude, sobre suas reações à Revolução Francesa, a coisa realmente importante em toda essa quantidade de poesia é o misticismo da natureza, que é o que nos atinge hoje e que faz de Wordsworth um poeta vivo, importante para o mundo moderno.

Uma das contemporâneas de Wordsworth foi Jane Austen; Orgulho e preconceito foi escrito em 1796 e os outros romances entre 1811 e 1816. Mas não apenas a vida de Jane Austen quase não foi afetada pelos consideráveis acontecimentos que ocorriam no mundo ao seu redor, como praticamente todas as suas personagens permanecem intocadas. Uma ou duas vezes há uma leve alusão - alguns dos homens talvez usem uniforme - mas é tudo. É singular pensar-se que esses romances, com sua análise tão íntima e irónica da vida familiar cotidiana, tenham sido escritos no meio da mais fantástica transformação dos tempos modernos. Outro exemplo - um homem no qual estive muito interessado por algum tempo - foi o filósofo francês Maine de Biran, o maior metafísico do século XVIII. Sabemos muita coisa sobre sua vida particular, porque ele deixou um diário muito detalhado, que abrangia quase todos os anos de sua vida adulta. É interessante ver o que se passava na mente de Maine de Biran no começo do verão de 1794, o ano da execução de Danton e o ano em que o poder de Robes-pierre chegou ao auge e o Terror estava em pleno andamento. Maine de Biran vivia em sua própria residência, no campo, bem longe de Paris. Escreveu: "Hoje, 27 de maio, tive uma experiência bela demais para ser esquecida. Eu estava passeando sozinho alguns minutos antes do pôr-do-sol. . ." E segue uma passagem bastante longa em que diz que a noite da natureza o encheu de uma espécie de êxtase words-worthiano, um arrebatamento sucedendo a outro, e, continua ele, "se eu pudesse perpetuar esse estado, teria encontrado na terra as alegrias do céu"1.

 

1 Rozanov, Vassíli Vassílievitch.   Solitária,   Nova   York,   Liverright, 1927, p. 96.

 

Durante os Cem Dias, Biran aproximou-se mais da história. Ao tempo da primeira abdicação de Napoleão, passara entusiasticamente para o campo dos monarquistas - sempre fora um leal sustentador do rei -, de modo que, quando Napoleão retornou de Elba, ficou numa posição muito desconfortável e desagradável. Mas, mesmo então, conseguiu escapar para o mundo da pura especulação intelectual: "Vivo neste mundo de especulação, estranho a todos os interesses do mundo exterior. Essas especulações me ajudam a não pensar nos atos dos meus semelhantes e isso é uma sorte, pois não posso pensar neles exceto para odiá-los e desprezá-los" . Da mesma forma, num século anterior temos o testemunho de Montaigne, que diz em sua maneira maravilhosamente franca e honesta: "Nunca poderei enfatizar suficientemente o modo como consegui manter a paz interior, passando metade da minha vida em casa, enquanto meu país desmoronava"3.

Esses fatos são de enorme significação. Mostram que mesmo essa catastrófica história em pequena escala, de curto alcance, que prossegue o tempo todo na sua maneira violenta e brutal, e que, como diz Toynbee, ocupa "as manchetes de nossos jornais e apenas a superfície da nossa mente", não nos envolve muito. Embora a certa altura possamos ser dolorosamente envolvidos, na maior parte do tempo continuamos a viver de modo intenso nossas vidas particulares.

Essa foi a experiência de muitas pessoas durante as catástrofes dos últimos anos, embora um assunto muito importante, que devemos sublinhar é que nos tempos atuais - especialmente em países totalitários, mas agora cada vez mais também nos democráticos - as autoridades governamentais empenham-se em evitar que as pessoas escapem para dentro de suas vidas privadas durante momentos de crise. Hitler objetava fortemente a que as pessoas vivessem em seus universos pessoais, e os russos ainda fazem isso, insistindo em que todo mundo se comprometa e se envolva na história imediata. Seria muito difícil para um Maine de Biran ou uma Jane Austen viver tão completamente apartados do momento histórico, especialmente porque guerras e revoluções envolvem populações inteiras ao invés de pequenos grupos de profissionais combatentes.

 

1 Biran, Maine de. Oeuvres, Paris, FelixAlcan, 1920, v. l, pp.

2 Monbrun, A. de Ia Vallette. Essai de biographie historique et psycho-logique: Maine de Biran, Paris, Fontemoing, 1914, p. 265.

3 Montaigne, Michel de. Works, Boston, Sheldon, 1862, v. 3, p. 376.

 

Mesmo assim a diferença entre vida privada e pública, entre biografia e história, ainda é muito grande. Vemos claramente, pela natureza dos nossos jornais, que a maioria das pessoas se interessa pouco pela vida pública de seu tempo. A maior parte do espaço dos jornais é dedicada aos fatos mais sensacionais da vida privada, como assassinatos e divórcios, e uma parte bem pequena é dedicada à ponderação sobre os grandes fatos históricos do nosso tempo. Essa é a diferença mais impressionante entre os jornais do mundo ocidental e os jornais de regimes totalitários, onde quase não se concede espaço para as aventuras particulares, e as ideias nas quais se baseia a vida pública são constantemente marteladas no leitor pelos artigos de propaganda. Isso, imagino eu, torna os jornais incrivelmente monótonos, mas serve aos objetivos dos governantes, que são os de doutrinar seus subordinados e fazê-los seguir numa certa direção, com uma só mentalidade.

Uma das melhores maneiras de encarar o divórcio entre vida pública e privada é analisar a ideia e o fato do progresso. Em que extensão o progresso é um fato em nossa vida privada? O progresso é um mito moderno que surgiu no tempo da Renascença e floresceu nos séculos XVIII e XIX. Previamente, a ideia fora de que o homem tivera uma idade de ouro no passado, e desde então andava constantemente montanha abaixo. A partir da Renascença a idade de ouro ficou no futuro, e o homem subia a encosta. Houve várias versões do mito. Havia uma ideia muito popular no século XVIII de que se nos livrássemos dos reis e dos padres automaticamente chegaria a Idade de Ouro. Depois, houve o mito do século XIX, de que a industrialização traria a paz universal. Essa expressão do mito morreu dolorosamente durante o século atual; a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa infligiram-lhe um duro golpe, e ele foi finalmente aniquilado pelos eventos mais recentes da Segunda Guerra Mundial e da bomba atómica.

Mas, embora o mito já não exista, podemos dizer que o progresso é um fato. Existe claramente um traço de progresso na ordem natural - o progresso básico fundamental do inorgânico ao orgânico, a evolução de moléculas gigantes que podiam reproduzir-se e que tornaram a vida possível, a passagem de formas extremamente simples a formas mais complexas, capazes de se adaptar a diferentes ambientes e finalmente até de controlá-los. Vemos o progresso de animais que produzem filhotes através de ovos e animais que produzem embriões e controlam a temperatura dentro do corpo, e depois animais que desenvolvem um sistema nervoso altamente organizado. Embora seja evidente que tudo quanto se desenvolveu no passado ainda existe hoje - as moléculas gigantes persistem na forma de vírus, assim como também persistem os organismos unicelulares mesmo assim, na linha mestra do desenvolvimento, existe algo que podemos descrever inequívoca e legitimamente como progresso. A mesma coisa parece acontecer na esfera humana, em que a evolução deixou em grande parte de ser biológica e hereditária. Ainda temos a mesma capacidade inata de nossos ancestrais, mas - porque temos linguagem e podemos acumular conhecimentos usamos essa capacidade de maneira muito mais eficaz hoje do que no passado para controlarmos nosso ambiente. Podemos dizer, com toda a razão, que houve um genuíno progresso, embora ainda se possa andar pelo mundo e encontrar povos neolíticos e até paleolíticos.

A questão então é: pode-se observar esse progresso objetivãmente, mas até que ponto o poderemos experimentar? Obviamente o progresso biológico original jamais foi objeto de experiência, em parte pela boa razão de que há dois bilhões de anos não havia ninguém para experimentá-lo de modo consciente. Mesmo depois do surgimento do ser humano, durante quase todo o seu tempo na terra, ele foi, como indivíduo, completamente incapaz de experimentar o progresso, porque este acontecia muito lentamente.

Mas agora as mudanças progressivas no campo da tecnologia e das ideias acontecem em lapsos de tempo medidos por décadas ou menos. Assim, ao menos teoricamente, deveria ser possível para o indivíduo ter uma experiência subjetiva direta do progresso. E até certo ponto isso realmente acontece. Mesmo assim, é verdade que, embora observemos o progresso, leiamos sobre ele, vejamos sinais dele em edifícios e novos tipos de aviões, e assim por diante, não o experimentamos grandemente de maneira subjetiva.

Há muitas razões pelas quais não experimentamos tanto quanto talvez esperássemos fazê-lo. Para começar, a vida humana não é uma ação progressiva. Sobe até certo ponto, permanece num planalto, depois desce. Na medida em que a vida humana é intrinsecamente não-pro-gressiva, não podemos esperar que haja em muitas fases uma experiência subjetiva muito intensa do progresso que pode ser objetivamente observado. É muito difícil pedir às pessoas que prestem atenção ao mundo que sobe e desce enquanto elas mesmas estão tendo seus altos e baixos. Em segundo lugar, o homem tem uma capacidade quase infinita de considerar as coisas como certas. Quando algo novo acontece, é espantoso por um dia ou dois, depois é aceito como parte da ordem das coisas. O que hoje é um teto dourado sobre nossa cabeça, torna-se - quando subimos e chegamos até ele apenas um assoalho sob nossos pés, ao qual não damos atenção. E devemos também lembrar que toda criança nasce no mundo tal qual ele é no momento, e não tem experiência do mundo como era anteriormente. Para uma criança nascida hoje, a televisão e os aviões a jato são parte da ordem das coisas. Ela não tem ideia do tipo de mundo em que eu fui criado, um mundo de cavalos e trens, embora essas coisas, que para ela são curiosos legados neolíticos, ainda existam. Essa é outra razão pela qual é muito difícil experimentarmos o progresso subjetivãmente, como se experimentam outros aspectos da vida pública e histórica: a maior parte de nós preocupa-se apenas com os fatos de nossas vidas privadas, relações familiares, brigas, ciúmes, compaixão, sexo e mexericos. Estamos unicamente envolvidos na vida da molécula, não na vida do gás.

Por todos esses motivos, pois - porque o lapso de nossa vida é tão breve e o progresso no passado foi tão lento, porque consideramos as coisas como certas, porque a vida humana em si é não-progressiva, e porque vivemos e queremos viver tanto em nossa vida pessoal isolada, ilhada -, por tudo isso, esses grandes fatos objetivos são muito pouco experimentados por nós e vivemos num estranho mundo anfíbio. O homem é um anfíbio múltiplo, vivendo em muitos mundos duplos e levando muitas vidas duplas, e uma delas é sem dúvida essa vida de ser individual inserido numa história que podemos ver objetivamente, mas não experimentamos. O dr. Johnson, que era extremamente duro em relação a idealismo e pretensões, tem uns versos que expressam tudo isso muito claramente. Não é uma boa poesia, mas é um bom epigrama:

"Como é pequena, em tudo o que o humano coração suporta, A parcela que qualquer lei ou rei provoca ou cura"1.

Podemos acrescentar a reis e senhores2 itens como tecnologia e inventos científicos, e veremos que isso continua sendo verdadeiro: há uma pequena parcela da história que sentimos subjetivãmente como algo de suprema importância para nós. Como diz o dr. Johnson, "acontecimentos públicos não molestam o homem"3 e as notícias de uma batalha perdida nunca fizeram com que "um homem comesse menos ao jantar"4. E, vice-versa, as notícias de uma novidade científica ou de uma grande descoberta jamais fizeram um homem comer mais ao jantar.

Esse estado anfíbio entre sociedade e indivíduo, história e biografia, é um tipo de existência bizarra e desconfortável.

Mas temos de aceitá-la, e em todos os processos de educação precisamos preparar os jovens a viverem nos dois mundos - viver da melhor maneira possível seu mundo individual, e, se possível, manter um interesse inteligente pelo mundo histórico. Provavelmente jamais conseguirão sentir subjeti vãmente, como deveriam, o mundo histórico - ou talvez não devam mesmo; penso que é uma grande bênção não o sentirmos subjeti vãmente a maior parte do tempo. De qualquer modo, deverão ter consciência dele intelectual e objetivãmente, para serem cidadãos úteis. Pois esse é sempre o problema com os seres humanos - compreender que são anfíbios e saber que precisam tirar o maior proveito deste mundo e daquele.

 

1 Linhas para o final do poema de Oliver Goldsmith, "The traveller or A prospect of Society". Cf. The poems of Samuel Johnson. Oxford, Clarendon Press, 1941, p. 380.

Nos versos, Johnson falava em reis e leis (laws). (N. da T.)

3 Boswell, James. Life of Johnson, 15.5.1783.

4 Ibid., 18.9.1760.

 

Concluirei esse breve esboço de nosso estado anfíbio com uma passagem que sempre me comoveu muito, de um estranho poeta do fim do período elizabetano, Lorde Brooke:

"Oh, a Humanidade vive em triste condição!

Nasce sob uma Lei, mas prendem-na a outra:

 

Tende à vaidade, querem-na humilde,

Surgiu enferma e querem-na saudável:

O que quer a Natureza com essa dúbia Lei?

E assim nos dilaceram a Razão e a Paixão!"'

Fulke Greville, Lorde Brooke, "Chorus sacerdotum ", de Mustapha.

 

         Q problema da natureza humana

         Pronunciada em 28.9.1959.

Na conferência passada, debatemos a relação bastante curiosa entre vida individual e vida pública, histórica. Nas conferências seguintes, falarei sobre o indivíduo. Tentarei colocar e responder à questão: quem somos, exatamente? Que tipo de criatura é o ser humano? Seremos, como disse Descartes, um ego totalmente individualizado, cuja essência é a consciência, e que se relaciona apenas com uma parte de matéria dentro do corpo? E é a matéria inteiramente diversa da realidade, sendo a extensão sua única essência? Ou somos, como se inclinam a dizer os empiristas modernos, uma unidade monística corpo-alma? Está o eu completamente ilhado por todos os outros eus, ou há alguma espécie de meio psíquico no qual os eus estão mergulhados, de modo que o indivíduo não esteja totalmente apartado das outras mentes?

Quero começar comentando o que as pessoas pensavam sobre a natureza humana no passado. Os termos em que discutiam o problema eram naturalmente muito diversos dos termos que nós usamos; elas lidavam fundamentalmente com os mesmos fatos, mas em diferentes quadros de referência teórica. Mesmo assim, penso que vale a pena fazer essa excursão histórica, porque o que as pessoas pensavam sobre a natureza humana no passado lança bastante luz sobre o problema.

Começarei com a teoria do homem encontrada na fonte original da civilização ocidental, os poemas de Homero. A melhor maneira de começar é lendo uma passagem do livro 19 da iliada, onde se relata a terrível disputa entre Agamênon e Aquiles. Agamênon desculpa-se com o irado Aquiles por ter roubado sua namorada, Briseida, e explica por que fez isso. Ele diz:

"Não mereço censura. Foi Zeus, meu destino e a Fúria, que anda nas trilhas da escuridão, que cegaram meu julgamento naquele dia em que tirei a namorada de Aquiles. O que poderia eu fazer? Nesses momentos há um poder que assume o comando, Ate, a filha mais velha de Zeus, que nos cega, espírito maldito, adejando pela cabeça dos homens, corrompendo-os, abatendo ora esse, ora aquele. Ora, até Zeus certa vez foi cegado por ela, e sabe-se que Zeus está acima de todos os homens e deuses"1.

Em vez de considerar isso uma maneira de fugir à responsabilidade, Aquiles aceita a explicação de coração aberto e diz: "Como pode um homem ficar tão absolutamente cego pelo Pai Zeus!"2.

A criatura de que Agamênon fala nessa passagem é uma personagem muito interessante. Nos trágicos gregos posteriores, a palavra "Ate" significa desastre de modo geral, mas nos poemas homéricos "Ate" é o estado mental que leva ao desastre - desvario, cegueira moral, arrebatamento, que leva os homens a fazerem coisas contra seu melhor juízo e mesmo contra seus interesses mais elementares.

Vemos aqui que aquilo que deveríamos chamar impulsos inconscientes em termos de século XIX é explicado, antes de Cristo, como intervenção de fora por forças sobrenaturais. Em uma palavra, toda a teoria de Homero baseia-se na ideia de possessão divina ou diabólica. Os deuses intervém diretamente, ou intervém por algum agente como Ate - que é também uma criatura divina - e nos levam a fazer coisas más e desprezíveis.

Além das más intervenções, há também em Homero intervenções boas, em que os poderes sobrenaturais de repente chegam e nos ajudam. A palavra "menos" ocorre frequentemente na Ilíada e na Odisseia, significando poder, força, acesso do homem a algum novo conhecimento ou habilidade, capacidade de fazer algo difícil ou impossível. Menos subitamente virá sobre um homem numa batalha, ou virá a ele num conselho, dando-lhe inteligência e sabedoria. Até animais são capazes de menos; um cavalo pode subitamente ter muito menos e galopar muito mais depressa do que antes. Assim, vemos que os dois lados do que chamamos o eu inconsciente estão representados por dois tipos de intervenções sobrenaturais.

 

1 Homero. Ilíada, XIX, 87-100 (a tradução é minha, diretamente do texto inglês. L. L.). * Ibid., 282.

 

Em Homero, uma intervenção pode se dar tanto através de um deus conhecido - Zeus, ou o agente imediato de Zeus, ou Atena, ou qualquer um dos outros deuses - como de alguma criatura sobrenatural desconhecida. Nesse caso, diz-se que a intervenção foi feita por um daimon, um deus anónimo de qualquer espécie. A ideia de daimon aparece na Grécia clássica. Os conselhos de Sócrates - a pequena voz que ele ouvia avisando-o para deixar de fazer coisas indevidas - era a voz de um daimon, um ser divino. Um aspecto interessante do que Sócrates tem a dizer sobre essas intervenções irracionais, vindas do que chamaremos abaixo o umbral da consciência, é a ideia de que há vários tipos de loucura. Há uma loucura natural, devida à enfermidade, e há dois tipos de loucura sobrenatural: a loucura destrutiva, causada por Ate ou por um dos deuses que quer nos aniquilar, e a loucura boa, que Platão divide em quatro categorias - a loucura profética (ilustrada pelo Oráculo de Delfos); a loucura ritualística dionisíaca da catarse orgiás-tica; a loucura poética; e a loucura erótica. Sócrates diz em certa passagem que "as maiores bênçãos nos chegam através da loucura"1, desde que tenhamos em vista que a loucura nos vem por um dom divino.

Vale a pena notar aqui que a ideia de possessão por seres sobrenaturais exercia grande influência na mente humana e era aceita como explicação racional de muitas formas estranhas de comportamento humano, e isso continuou até o século XVII. Casualmente fiz um estudo sobre esse fenómeno como ocorria no século XVII. Escrevi um livro sobre o comentado caso dos Demónios de Loudun, história da assim chamada possessão de todo um convento de freiras. Lendo os teólogos, moralistas, e mesmo a maioria dos doutores do período, vemos que a ideia de possessão demoníaca parecia absolutamente óbvia naqueles dias. Até que se tenha uma teoria adequada do eu subliminar, a ideia de possessão é completamente lógica e sensata. Parece ser o único meio de explicar esses estranhos fenómenos.

 

1 Platão, Pedro, 224 a.

 

E interessante ver, nesse contexto, como os gregos lidavam terapeuticamente com muitos dos problemas psicológicos que hoje tratamos com drogas ou psicoterapia. Estados de ansiedade, pensavam eles, podiam ser tratados satisfatoriamente fazendo as pessoas participarem das orgias dionisíacas, grandes danças que se realizavam por horas a fio até que as pessoas entrassem numa espécie de êxtase ou caíssem num estado de exaustão. Mais tarde vieram as danças coribânticas, que serviam de diagnóstico e de catarse. Até onde podemos ver, a dança coribântica primeiro fazia ouvir certos tipos de músicas, cada um dos quais expressava a personalidade de algum deus, e então, vendo a que música a pessoa doente reagia, entendia-se qual o deus responsável pela possessão. As pessoas não somente entravam na dança catártica, mas, no fim da dança, executavam os ritos exigidos e os sacrifícios adequados, obtendo assim uma absolvição que indubitavelmente ajudava a consumar a cura.

Esse tipo de coisa ainda existe no presente. No ano passado, no Brasil, tive oportunidade de testemunhar várias danças de macumba (são chamadas "macumba" no Rio, "candomblé" na Bahia). São adaptações brasileiras de ritos tribais da África ocidental, praticadas por negros que se encontram em condições de grande pobreza e levam vida bastante intolerável, de grande frustração. Livram-se de suas frustrações acumuladas nas noites de sábado, não embebedando-se, mas de uma maneira muito mais satisfatória: dançando do pôr-do-sol até o amanhecer. Eu diria que os resultados terapêuticos dessas danças de sábados à noite são equivalentes a pelo menos seis meses de psicanálise de diva, a cinquenta dólares cada sessão. E os gregos faziam isso regularmente - era o que, em termos gregos, se podia chamar terapia de grupo.

A maior parte das pessoas cultas deixou de acreditar em possessão pelo fim do século XVII, e houve um curioso interregno durante o século XVIII e boa parte do XIX, quando não se deu explicação satisfatória para esses estranhos fenómenos. Ou eram simplesmente ignorados, ou explicados à maneira da Comissão Francesa que julgou o caso de Mesmer (Benjamin Franklin participou dela), que afirmou que o mesmerismo - hoje chamado hipnotismo - era algo vagamente denominado "imaginação", e assim resolveu o caso.

Não foi senão na segunda parte do século XIX que a teoria do inconsciente como força dinâmica foi desenvolvida para explicar os fatos da hipnose experimental e da histeria, sistematicamente estudados em Paris por Jean-Martin Char-cot e em Viena por Josef Breuer e Sigmund Freud. Essa teoria forneceu a primeira alternativa realmente satisfatória à hipótese da possessão.

Penso ser importante notar que, à sua maneira, Homero foi muito realista subjetivãmente, embora não objetivãmente; pois muitos dos súbitos impulsos ou pressentimentos ou visões que até pessoas normais têm são sentidos como invasões do exterior ou intervenções sobrenaturais. Entre pessoas em estado mental fora do normal, a sensação de ser possuído por forças externas é muito forte. Tais pessoas ouvem vozes e têm alucinações, e é quase impossível não acreditar em que uma força alheia as está atacando.

Como problema de história da cultura, é interessante ver como a "explicação" para esses fenómenos universais e permanentes - o que as pessoas "vêem" e "ouvem" - variou em diferentes épocas, devido à diferente Weltans-chauung aceita no momento. A ideia de possessão sobrenatural perdurou desde o tempo de Homero e por toda a época cristã, até pelo menos o século XVII. Depois, em meados do século XIX, após o surgimento do espiritualismo, muitas pessoas consideraram fenómenos como os produzidos pelas irmãs Fox, em 1848, como possessão por espíritos dos mortos e não por seres sobrenaturais.

Em tempos modernos as explicações são em muitos casos bem diferentes. Como a maioria das pessoas que publicaram livros e se tornaram personalidades públicas, recebo muitas cartas não solicitadas, algumas das quais provêm do que suponho ser a franja de lunáticos (por vezes temos a impressão de que essa franja é como a de um xale espanhol: mais franja do que xale). Nos últimos anos, recebi pelo menos uma dúzia dessas cartas patéticas, e lembro-me disso porque há poucos dias recebi uma da Suécia, de um senhor que me escreveu há muito tempo, em 1952, sobre o mesmo problema. Exatamente como nas outras cartas, ele se queixa de ser bombardeado por uma espécie nova de rádio, que ele diz estar nas mãos de um grupo que descreve como "comunistashomossexuais-e-fascistas", que envia mensagens e as bombeia para dentro da mente dele; e o pobre homem está num estado terrível, e não consegue ajuda porque a polícia sueca está mancomunada com seus inimigos, e assim por diante. Esse é um fenómeno muito comum. Tais experiências, sentidas como invasão e que teriam sido interpretadas no passado como possessão por seres sobrenaturais ou possivelmente por espíritos de mortos, aparecem agora como possessão por algum instrumento eletrônico. Nada muda, mas tudo muda. As experiências fundamentais permanecem as mesmas, mas o quadro cultural no qual as explicamos varia profundamente de século para século.

Agora, voltemos por um momento a Homero, para vermos qual é exatamente a natureza do eu. Falamos em impulsos irracionais profundos, produzidos (em termos de Homero) pela intervenção de seres sobrenaturais. Mas qual é a personalidade humana na qual tais intervenções se realizam? O interessante em Homero é que, para ele, não existe uma alma permanente. A palavra "psique" é por ele usada, mas jamais em relação à mente de uma pessoa em vida. Refere-se apenas à coisa que deixa o corpo no último suspiro e que se torna então um fantasma como aqueles que Ulisses vê no Hades. Tais espíritos são insubstanciais - não são personalidades - e, se estão lembrados, podem comunicar-se com Ulisses unicamente depois que ele os alimenta com sangue. Ele faz um sacrifício e derrama o sangue na valeta; as almas bebem um pouco, assumem um pouco de matéria, e conseguem falar com ele.

Esse é o único uso que Homero faz do termo "psique". De resto, encara a personalidade de maneira bem parecida com a visão que dela têm muitos psicólogos empíricos modernos, uma espécie de feixe de complexos simbióticos. Existe o ego, mais ou menos equivalente ao que ele chama de noos, o lado racional do homem. Outras forças dentro da personalidade incluem o thymos, o órgão do sentimento, que é um dos mais importantes; localiza-se no peito, e muitas vezes sobe às narinas e à cabeça. Depois existe o diafragma, chamado fren, que significa mente, órgão da paixão, vida. O ventre também desempenha um papel importante, como na tradição judaica, onde as entranhas são o lugar da compaixão e o coração, o das afeições.

A psicologia de Homero é curiosamente parecida com a psicologia do começo do budismo, embora Homero não seja tão incrível e escrupulosamente sistemático. A ideia inicial do budismo é de que o homem é anatta, sem uma alma substancial. Consiste num grupo de skandhas, que são complexos, parte fisiológicos parte emocionais, compostos parte do lado apetitivo e parte do lado reflexivo e intelectual do homem. Todos os fatos do comportamento humano podem ser explicados com esses skandhas, bem como Homero pensava que todos os fatos do comportamento humano podiam ser explicados em termos de thymos, fren, noos, ego, e assim por diante.

Um dos fatos mais interessantes sobre a psicologia homérica, no qual ela se parece muito com a antiga psicologia hindu, é que virtualmente não há referências à vontade. Parece-nos muito estranho que esses psicólogos mais antigos não falem na vontade, mas, se não temos uma alma una e controladora, a ideia de vontade deixa de ser importante, e parece plausível viver sem ela. Na cerimonia do matrimonio, à pergunta "Você quer essa mulher como sua esposa?", responderíamos "Sim, quero": mas o herói homé-rico, se fosse totalmente lógico, diria "Bem, meu thymos e meu fren estão de acordo, e apesar de meu noos ter certas reservas, seguirei minhas vísceras, ainda mais que sinto definitivamente os sintomas de estar possuído por Afrodite".

A ideia da multiplicidade de forças semi-independentes debilmente reunidas dentro do corpo-mente, cuja simbiose constitui a personalidade, foi comentada pelo professor Martin P. Nilsson, que escreveu há alguns anos na Harvard Theological Review que "o ensinamento pluralista sobre a alma fundamenta-se na natureza das coisas, e só nossos hábitos de pensamento fazem parecer surpreendente que o homem possua várias almas"'. Homero não era filósofo, mas um observador muito apurado - pode ser chamado uma espécie de paleo-empirista - e de certa forma antecipou o julgamento de Hume sobre a natureza do ser humano. Pois Hume insistiu em que não existe um eu observável. Tudo o que observamos é "uma coleção enfeixada de diferentes percepções, que se sucedem com inconcebível rapidez, e estão em perpétuo fluxo e movimento"2.

Isso quanto à posição de Homero de que o homem não tem alma substancial, desligável do corpo, mas é um feixe de forças simbióticas semi-independentes, meio fisiológicas, meio psicológicas. Essa era a noção corrente em cerca de 800 a.C. Mas cerca de quatrocentos anos mais tarde, a noção grega de personalidade era inteiramente outra. Em Sócrates e Platão vemos que é evidente que o homem tem uma alma unitária, que essa alma é independente e pode sobreviver após a morte do corpo. Surge a questão: qual a razão dessa mudança profunda? Por algum tempo, era moda dizer-se que talvez tivesse havido influência da índia, mas os especialistas mais recentes tendem a acreditar que a influência importante nesse período veio do norte. Foi no século VII a.C. que os gregos começaram a penetrar na área do mar Negro e a fundar colónias em suas costas. Lá entraram em contato com os cítios, que praticavam uma forma xamanista de religião, tal como ainda é praticada na Sibéria e Ásia central - ou foi praticada até os habitantes daquelas partes do mundo se converterem ao marxismo.

Nilsson, Martin P. "Letter to professor Arthur D. Nock on some fundamental concepts in the science of religion." Harvard Theological Review, 42 (2):89. 2 Hume, David. A treatise of human nature. A to I, cena IV, linha 6.

O xamã era um homem da medicina que estabelecia contato com os deuses, mas fazia isso de uma maneira fundamentalmente diversa da maneira como o Oráculo de Del-fos, a pítia de íielfos, o fazia. A pítia era o que os gregos chamavam entheos: tinha o deus dentro dela, estava plena do deus - de nentheosn vem nossa palavra "entusiasmo" - e o deus falava através dela na primeira pessoa. Apoio, quando falava através da pítia, dizia "eu", exatamente como o médium moderno fala com a voz de quem o controla. O xamã, ao contrário, fazia algo bem diferente. Não esperava que o

deus entrasse nele, saía para procurar por ele. Praticava o que em jargão mediúnico moderno se chama "clari-vidência viajora". Entrava em transe e saía de si mesmo, andando pelo mundo, entrando em contato com divindades, e vendo o que acontecia em outros lugares.

Se a clarividência é ou não um fato, não sei dizer. Mas certas pessoas acreditam que ela existe. Elas têm a capacidade de aparentemente saírem de si mesmas, conseguirem informação em lugares distantes, e entrarem em contato com o que parecem ser entidades divinas. Também parecem ter capacidade de entrar em contato com existências anteriores. Uma das coisas interessantes sobre os -xamãs é que lembravam suas existências anteriores como xamãs de outros tempos, e o fato de serem reencarnações de gente que tivera o mesmo poder no passado era uma das coisas que lhes dava poder de serem xamãs no presente.

Os eruditos modernos tendem a acreditar que o surgimento dos homens santos órficos na Grécia deveu-se essencialmente a influências xamanistas do mar Negro, e que de fato homens santos órficos como Epimênides eram xamãs. Não há dúvida de que Pitágoras foi profundamente influenciado pelos homens santos órficos e retirou deles muitos traços do seu sistema, que por sua vez influenciou filósofos posteriores.

No sistema de Pitágoras, a reencarnação já não era considerada privilégio de poucas pessoas excepcionais (os xa-mãs). Era democratizada e acessível a todos. Isso teve um efeito teológico e psicológico muito profundo, porque a reencarnação cessava de ser uma recompensa e fonte de poder como fora para os xamãs. Agora, a reencarnação era uma espécie de castigo, e cada pessoa vivia uma vida que na verdade era o inferno de suas vidas anteriores, uma espécie de miséria e horror da qual só se desejava escapar. Assim, já vemos entre as pessoas influenciadas pelo pensamento órfico a ideia do pecado original, de que ninguém é inocente, de que todos os homens são maus -poneroi, como diziam os gregos.

E assim encontramos, desde Pitágoras, essa nova noção de uma alma unitária substancial, aprisionada num corpo por ofensas que cometeu em vidas anteriores. A frase "soma sema" ("corpo é sepultura") começa a ocorrer em grego nos séculos V e IV a.C., ideia absolutamente oposta a tudo que jamais entrou na mente de Homero, para quem o corpo não era uma sepultura mas uma parte da personalidade. Com uma espécie de canonização dessas ideias por Sócrates e Platão, temos o começo do dualismo mente-corpo, que mais tarde foi sistematizado e cientificamente tratado por Descartes, e que sempre marcou o pensamento cristão. Essa distinção entre mente e corpo, e a ideia de que o corpo é muito mau e que o espírito de certa forma é alheio ao lado animal e à natureza em geral - esse ponto de vista semi-maniqueísta - está muito distante da tradição hebraica, que aceita plenamente a vida do corpo. Mesmo assim, apesar de o cristianismo derivar da tradição hebraica, esse lado grego dualista e puritano, que vem dos órficos e vai até Platão, muitas vezes predomina.

Vale a pena perder um momento comentando o ponto de vista hebraico em relação à alma. Nas primeiras partes do Velho Testamento não existe alma imortal. O homem é recompensado nesta terra, e a alma e o corpo estão completamente unidos. A personalidade é mente-corpo, e, exatamente como Homero não tem palavra para a alma substancial, o hebraico do Velho Testamento não tem palavra para a concepção geral de corpo. Parece tão óbvio que os dois estão juntos que não é preciso fazer a distinção. Por outro lado, houve numerosas palavras para os vários órgãos do corpo, e no Velho Testamento, bem como no Novo, vemos que ideias psicológicas são constantemente expressas em termos fisiológicos. As entranhas de José "anelavam por seu irmão" (Génese 43:30) e a misericórdia de Deus é equiparada a entranhas por Isaías. São Paulo exorta os colos-senses a terem "entranhas misericordiosas, bondosas, humildade de pensamento, brandura e resignação ao sofrimento" (Colossenses 3:12). Nos Filipenses ele exorta seus correspondentes pelas entranhas de Cristo (1:8), e fala nas "entranhas de misericórdias" (2:1). Nos Salmos vemos constantes referências aos rins, que têm um profundo significado psicológico. Deus "experimenta o coração e os rins" (Salmos 7:9) e testa a fé do homem: "meus rins também me instruem" (Salmos 16:7); "Examina-me, Senhor, e prova-me; experimenta meus rins e meu coração" (Salmos 26:2); "Assim meu coração ficou cheio de dor e meus rins estavam aflitos" (Salmos 73:21), e assim por diante.

Essa referência constante às expressões físicas da personalidade e condições de comportamento perpassa o Velho Testamento da maneira mais realista. Há uma espécie de protoempirismo que, como em Homero, acentua a grande importância do lado fisiológico do homem. E, com a moderna evolução da endocrinologia, entendemos hoje que essas coisas são perfeitamente verdadeiras. Os rins, ou melhor, a adrenalina, hormônio segregado pelas glândulas situadas acima deles, são de enorme importância para nós. Ter mais ou menos adrenalina, ou nenhuma adrenalina no sangue, faz uma profunda diferença para a personalidade. Descobrimos que muitas experiências súbitas e violentas, que nos parecem totalmente irracionais, e que experimentamos, como se fossem intervenções externas, na verdade devem-se a súbitas intensificações fisiológicas de materiais químicos criados no corpo.

Falando nessas mudanças química* de mente-corpo, devíamos também mencionar a química externa, que vem do exterior e pode produzir profundos efeitos sobre a mente. Como disse Housman:

"O malte pode mais do que Milton ao justificar os desínios de Deus para o homem'"

 

1 Housman, Alfred Edward. A shropshire lad, /, XII.

 

E há muitos produtos químicos bem mais eficazes do que a cerveja. Incidentalmente, uma das mais fascinantes veredas da história da religião é a que traça o uso de produtos químicos em várias religiões com o objetivo de mudar

0 estado de alma e produzir entusiasmo, o sentimento deter deus em si. Quase toda a tradição religiosa em algum tempo usou tais produtos químicos transformadores da mente, desde o vinho dos ritos de Dioniso à cerveja dos ritos celtas, ou o peyote dos ritos de muitos índios norteamericanos. Entrar nesse campo nos levaria muito longe, mas essas tradições religiosas, que hoje começam a ser investigadas, nos fazem simpatizar muito mais com a maneira empírica e semifisiológica de encarar a mente, usada entre os hebreus e no tempo de Homero.

Tentemos agora resumir o que tem acontecido. Podemos dizer que a história da psicologia, desde o tempo de Homero, tomou a forma de uma espiral. Começamos com mente-corpo, essa personalidade que não tem uma alma isolada que a controla. Passamos para a ideia de uma alma que pode ser separada, ideia desenvolvida por Platão. E, recentemente, parecemos ter voltado a uma posição "acima" da de Homero - uma espécie de empirismo científico, onde nos inclinamos a aceitar a ideia de um composto mente-corpo de elementos frouxamente associados, que não formam necessariamente uma alma unitária.

Permanece ainda a questão de existir ou não, debaixo desse arranjo humano ou budista de skandhas, uma espécie de ego puro, ou atman, como dizem os hindus. Isso é algo que debateremos em outras conferências, mas hoje eu gostaria de citar algumas palavras de Bertrand Russell sobre o assunto: "Não se deduz (da visão de Hume sobre a personalidade humana) que não exista um eu simples; conclui-se apenas que não podemos saber se ele existe ou não, e que, o eu, exceto como um feixe de percepções, não pode entrar em nenhuma parte do nosso conhecimento"1. Inclino-me a discutir isso. Penso que provavelmente há métodos pelos quais o nosso puro ego, ou eu, ou atman, pode entrar em nossa consciência, e falarei nesses métodos em outras conferências. Mas, entrementes, devemos ter em mente que, como diz Russell, a existência de um agregado frouxamente ligado de poderes não significa necessariamente que não exista uma alma una, ou atman. Apenas significa que é extremamente difícil, embora não impossível, contactar com ela.

 

1 Russell Bertrand. A history of western philosophy, Simon and Schuster, Nova York,

1945, p. 683.

 

         Pronunciada em 5.10.1959.

Quero começar dando uma resposta em termos contemporâneos à pergunta extremamente difícil de quem somos nós.

Comecemos com a noção do "eu". O "eu" continua sendo algo muito semelhante ao que era no tempo de Homero - quer dizer, o ser consciente de si mesmo, que usa símbolos verbais, que é capaz de usar a razão, que vê o antes e o depois. Esse "eu" foi definido em sua forma essencial por Descartes como a criatura que pensa: "cogito ergo sum" - penso, logo existo. Mais recentemente, começando com Maine de Biran, no século XVIII, e continuando com Schopenhauer, Nietzsche, e depois Henri Bergson, William James e John Dewey, o "eu" também foi definido como a criatura que quer. Em vez de cogito ergo sum, a frase deveria ser volo ergo sum - quero, logo existo.

Eu diria que, de fato, o "eu", o ser autoconsciente, é a criatura que quer e que pensa. Essa criatura habitualmente se confronta com o que Maine de Biran chamou "resistências orgânicas". Em uma palavra, o "eu" está rodeado de uma porção de não-eus dentro do seu próprio organismo; é apenas um entre um número considerável de fatores muito importantes e dinâmicos.

Começaremos pensando nesses não-eus ao nível do corpo, porque esse é o nível básico em que funciona o inconsciente. Em seu nível mais profundo, o inconsciente é o corpo. Somos comandados por essa estranha inteligência dentro de nosso organismo físico, que age e faz coisas extraordinárias sem que saibamos como. Um exemplo óbvio do que o corpo pode fazer separado do "eu" é o que acontece quando o "eu" dá uma ordem. Quero que minha mão se erga no ar. Quero realmente, mas não tenho a menor ideia de como esse ato é executado. Descobrimos, depois de longa e árdua pesquisa, que os processos envolvidos no ato de erguer a mão são incrivelmente complexos, mas, como ser autoconsciente, não tenho nenhuma ideia de quais sejam. Apenas dou uma ordem e deixo que "alguém" a execute. Mais ainda, esse "alguém" trabalha de maneira infalível, se o deixamos executar os processos principais da nossa existência física. As batidas do coração, a digestão, respiração, secreções glandulares, o processo de cura - todas essas coisas acontecem sem que o "eu" as possa auxiliar. Na verdade, o que chamamos doenças psicossomáticas são consequências do "eu" e do inconsciente pessoal interferindo nos procedimentos quase infalíveis, aliás, desse eu mais profundo dentro de nós.

O que é, então, esse "eu mais profundo" no nível psicológico? Realmente não temos no momento uma denominação satisfatória para ele, embora no passado tenhamos tido alguns nomes. Na psicologia e fisiologia aristotélicas havia uma espécie de trindade da alma: a alma racional, que era a alma pertencente ao "eu", e as almas vegetativa e animal, que cuidavam dos processos fisiológicos no corpo. Devemos então, pensar em termos dessa estranha espécie de inteligência fisiológica, que cuida de nós sem que saibamos como ela cumpre seu trabalho, e que não podemos auxiliar, mas na qual podemos interferir.

Podemos observar essa inteligência fisiológica em certos animais. Existe, naturalmente, a inteligência dos instintos, que é notável e tem sido desenvolvida pela evolução através de milhões de anos. Mas acima das ações instintivas, existem ações executadas pelo "não-eu" - a alma vegetativa ou enteléquia - que não são nada instintivas e que revelam um grau excepcional de inteligência e objetivo.

Talvez um dos mais fantásticos exemplos dessa espécie de inteligência fisiológica seja a habilidade do papagaio de imitar a voz humana. O papagaio provavelmente escuta a voz humana; tem consciência, até onde os papagaios podem ter consciência - e suponho que sejam conscientes; interessa-se de alguma forma no que está sendo dito; então deseja - sabe Deus como - reproduzir esse som humano; e alguma outra coisa entra em cena. A notável inteligência fisiológica do papagaio, que é infinitamente mais inteligente do que o próprio papagaio, começa a manipular literalmente centenas de músculos no aparelho fonador do papagaio - um aparelho produtor de ruídos essencialmente diferente do aparelho humano: o papagaio não tem dentes nem palato macio, sua língua é totalmente diversa da nossa, suas cordas vocais são diferentes, e ele tem bico. Mas é capaz de reproduzir a fala humana articulada tão bem que por vezes até os seres humanos se enganam. E muito frequentemente, com seu curioso senso de humor, os papagaios aborrecem os cães imitando seus donos e chamando-os. Quanto mais pensamos nesse extraordinário comportamento, mais curioso nos parece; não tem nada a ver com instinto, nem com sobrevivência biológica. Mas, por alguma razão desconhecida, os papagaios desejam imitar, e sua inteligência fisiológica é capaz de preparar os músculos necessários para reproduzir os sons como eles os ouvem, com uma precisão que nenhuma mente apenas consciente poderia igualar.

Algo muito parecido ocorre com crianças bem pequenas. O fato de que bem cedo os bebés sorriem quando vêem um rosto sorridente é resultado de um processo imitativo. Quando esses bebés vêem um sorriso, algo neles começa a organizar os músculos de modo a reproduzi-lo.

Vemos então que muito acima das meras faculdades vegetativas - o poder de manter o coração pulsando, respiração e digestão funcionando - a inteligência fisiológica é capaz de desempenhos ad hoc muito notáveis. Na nossa vida consciente eles acontecem o tempo todo. Visualizamos algo que queremos fazer, e isso é feito - não pelo "eu", mas por essa coisa extraordinária que carregamos dentro de nós. É um dos fatos fisiológicos básicos com os quais o "eu" se associa, um dos poderes com os quais tem de conviver.

Outro fato fisiológico com o qual o«"eu" tem de conviver é a morfologia do corpo, sua forma e estrutura. Que influências têm elas sobre nossa vida psíquica? Obviamente o fato mais extraordinário nos seres humanos é serem muito diferentes uns dos outros - o que ilustra a tendência evolucionista geral de que, quanto mais alto na escala de evolução estiver uma espécie, tanto mais profundas as variações dentro dela: a espécie mais altamente variável é o Homo sapiens.

Junto com essas variações morfológicas, há também variações bioquímicas excepcionais dentro da espécie humana, e é possível levar-se a vida humana adiante com arranjos bioquímicos bastante diferentes. Essa variabilidade bioquímica é uma das coisas que mais aborrecem os farmacêuticos, porque infelizmente os seres humanos reagirão de modos inteiramente diversos à mesma droga; o desejo de todo cientista é ter um padrão com o qual trabalhar, e o ser humano está muito, muito distante de ser padronizado. Essa tremenda variabilidade do organismo físico está na base de todas as nossas ideias morais sobre a excelência da democracia e o valor de coisas como tolerância e viver-e-deixar-viver.

Parece óbvio que criaturas tão extremamente diferentes umas das outras fisicamente sejam diferentes entre si psicologicamente. Seria surpreendente se diferenças hereditárias tão grandes quanto as que podemos observar entre um indivíduo e outro não se relacionassem com consideráveis diferenças em seu comportamento e sua estrutura psicológica geral. Na verdade, entender a interdependência do comportamento mental e da estrutura físiea é algo que remonta à Antiguidade. Isto foi formulado por Hipócrates, pai da medicina ocidental, que falou em dois tipos físicos principais - o que ele chamava o tipo "tísico" e o tipo "apoplético". O apoplético é o tipo grande, corpulento, tendendo à gordura, o típico político ou homem de negócios, que na velhice terá uma síndrome cardíaco-renal. Essa ainda é uma variedade de ser humano que reconhecemos claramente. O tísico foi um leve engano. Hipócrates obviamente pensou que o tipo magro e esguio era particularmente sujeito à tísica ou tuberculose, mas não há nenhuma prova disso.

Aristóteles tem uma abordagem muito curiosa do problema mente-corpo. Tentou correlacionar características mentais com apenas uma característica física. Por exemplo, interessava-se muito pelo formato do nariz. Também estava interessado na semelhança dos seres humanos com certos tipos de animais, e os classificava dessa maneira de modo que pessoas de aparência leonina tinham personalidade leonina - ou melhor, eram como ele supunha que fossem os leões; e não temos certeza de como eles sejam. Existe um vago fundo de verdade nisso; se olharmos para uma fotografia de Garibaldi, veremos que ele se parece com um leão, e era um homem leonino. Mas é um sistema de correlações muito grosseiro.

Com Galeno, no começo de nossa era, obtemos uma tipologia muito mais elaborada, uma correlação entre mente e corpo em termos dos quatro humores - sangue, bílis negra, bílis amarela e fleuma. É interessante ver que essa teoria psicofísica tão antiga deixou traços em nosso vocabulário corrente. Ainda falamos em pessoas de temperamento sanguíneo, temperamento fleumático, pessoas coléricas, pessoas melancólicas com preponderância da bílis negra, e assim por diante. Eram noções bastante adequadas - médicos e fisiologist&s continuaram falando nesses termos até o século XVIII - e ajudaram as pessoas a pensar sobre as correlações fundamentais de corpo e mente.

Em tempos mais recentes - desde o fim do século XVIII - temos uma abordagem mais científica desse problema. Os franceses foram pioneiros no campo: Leon Rostan falou em três tipos de pessoas, o type digestive, o type musculaire e o type cerebral - os tipos digestivo, muscular e cerebral. Isso demonstra uma observação muito acurada. No mesmo século, porém mais tarde, apareceu G. Viola, na Itália, também falando de uma divisão tríplice que ele chamava tipos físicos macro visceral, normo visceral e micro vis-ceral1. Esses termos, quando explicados, são bastante semelhantes àqueles usados por Rostan; referem-se ao tronco curto da pessoa magra de pernas compridas, ao tronco médio da pessoa musculosa, e ao tronco pesado, relativamente longo, da pessoa corpulenta.

Em nossos dias temos estudos importantes de Ernst Kretschmer, que fez algumas correlações muito interessantes entre tipos físicos e certos tipos de insanidade. Ele começou com uma divisão tríplice - o tipo atlético, o pícnico e o astênio - mas (infelizmente) reduziu-os a dois, o pícnico ou gordo, corpulento, e o leptossômico, ou magro e leve.

Mais recentemente, o dr. William H. Sheldon, juntamente com seus colaboradores, examinou esse assunto de maneira mais científica e minuciosa, com uma poderosa técnica de análise e quantificação das diferenças físicas entre seres humanos em termos de um quadro .tripolar de referências que discutimos há alguns dias.

Sheldon chama os três pólos de endomorfia, mesomor-fia e ectomorfia. Endomorfia é o pólo que, no seu extremo, resulta nas pessoas corpulentas, gordas e macias, com reações lentas e tendência a aumentar de peso, tornando-se muito gordas na velhice. São de certa forma "pessoas intestinais". Muitas vezes seu intestino tem o dobro do peso e comprimento do intestino de um ectomorfo extremo. Elas têm um surpreendente poder de assimilação, e sentem-se bem no mundo, pois têm uma imensa capacidade de absorver alimento e continuar vivas. Os mesomorfos são "pessoas de músculos", com ossos pesados e músculos poderosos. Podemos vê-las todos os dias em fotografias das páginas de esporte dos jornais; os jogadores de futebol profissionais pertencem todos a esse tipo incrível. Tendem a ter pescoço forte e uma pele bastante áspera, com vincos no rosto. Têm grande resistência e força, e, como veremos quando chegarmos às correlações com o temperamento, tendem a ser agressivas - políticos, homens de negócios, soldados e assim por diante. Os ectomorfos são magros, leves, de músculos finos, cuja proporção de área de superfície para massa é muito alta, e cujo sistema nervoso consequentemente está muito mais próximo da superfície do que no meso-morfo ou endomorfo. São por assim dizer construídos em torno de um sistema nervoso muito mais vulnerável, estando mais próximo do exterior, e muito mais sensível do que o dos outros dois.

 

Huxley usa o termo "macro-splanchnic, literalmente "macro-es-plâncnico", que significa "macrovisceral", e preferi essa segunda forma. (N. da T.)

 

Sheldon inventou um método para quantificar as diferentes quantidades de cada componente num ser humano. A quantidade varia de um a sete em uma escala de sete pontos, e qualquer padrão individual pode ser expresso em tais dígitos. Eu, por exemplo, sou um tipo 1-2-7, quer dizer, tenho um mínimo de endomorfia, um pouco de mesomorfia, o que me permite sobreviver, e um máximo de ectomorfia. Não é um tipo muito comum; os tipos perto da média são os mais comuns. Certa vez Sheldon me disse que a maior parte das pessoas do meu tipo estão em hospícios - tenho muita sorte por estar do lado de fora.

Uma coisa que Sheldon acentua como muito importante no arranjo físico é o que ele chama "displasia", a desar-monia entre diferentes regiões do corpo. Certas regiões do corpo podem mostrar uma proporção dos três fatores bem diferente daquela de outras regiões. E o tipo característico da tragédia da pessoa que quer ser atleta: um menino que tem bastante mesomorfia para querer tornar-se um atleta pode infelizmente ter extremidades muito ectomórficas, de modo que simplesmente não tem nos braços, pulsos e tornozelos a força suficiente para sustentá-lo em suas ambições atléticas; gostaria de ser um atleta, mas simplesmente não pode. Essas displasias provavelmente desempenham importante papel na delinquência juvenil. Há outra displasia muito comum, e que também pode causar sérias perturbações psicológicas. Pode provavelmente ser encontrada na "Arizona Maine Chance", de Elizabeth Arden, para damas que têm um torso clássico mas infelizmente sofrem da displasia dos quadris, que tendem a se salientar demais, precisando de tratamento local muito demorado. Outro fator que Shel-don enfatiza é o que chama "ginandromorfía". Todos nós temos certa semelhança com o sexo oposto, mas alguns podem ter bastante. Um grau muito elevado de ginandromorfía age como uma espécie de displasia total e pode causar grandes perturbações psíquicas.

Devemos agora analisar a relação entre essas diferenças físicas e o temperamento das pessoas que as têm. Sheldon conseguiu estabelecer um nível bastante alto de correlação entre o padrão físico de qualquer indivíduo e um padrão de temperamento, que ele mede numa escala em termos de intensidade. Usando cerca de sessenta traços psicológicos fundamentais, vinte para cada um dos três componentes, ele constatou que há uma relação bastante estreita - o desvio comumente não vai além de um ponto - entre padrões físicos e de temperamento. Em casos em que o desvio entre padrão de temperamento e padrão físico tem mais de dois pontos, a pessoa está sob uma tensão permanente muito grande. Desvios de mais de dois pontos aparentemente nunca são encontrados, exceto em instituições para doentes mentais.

O motivo do desvio é que as pressões sociais exigem que as pessoas se portem de certa maneira, que não é a maneira segundo a qual sua psique normalmente lhes "diria" que se portassem. Antropólogos demonstraram como essa tendência pode ser poderosa, especialmente em sociedades primitivas, que exercem uma pressão prodigiosa sobre seus membros. Margaret Mead mostrou, em seu estudo dos índios pueblos, que eles desaprovam profundamente qualquer pessoa com um padrão de comportamento tipicamente meso-morfo. Não gostam de pessoas que são, em nossos termos, agressivas, liderantes e impulsivas. Querem que as pessoas se conformem, querem pessoas que tenham um comportamento comum dentro da tribo.

Na nossa própria cultura, a educação progressiva representa uma valorização quase exclusiva do ponto de vista mesomórfico, e de alguma forma do endomórfíco. Crianças infortunadas, que nasceram com tendências introvertidas, são obrigadas a correr e conviver com outras, e sentem-se absolutamente desgraçadas, porque o que desejam é privacidade e não ser arrastadas com grandes rebanhos de gente.

Mas isso agora se tornou moda, assim como antigamente era moda tentar reprimir o mesomorfo e o endomorfo, impor restrições sociais sobre o endomorfo, que é transbordante e emocional, e impor restrições quase físicas à exuberante energia do mesomorfo. Podemos ver as civilizações antigas e observar os padrões sociais em que foram criadas para fazerem exatamente isso.

Sempre foi um grande problema o que fazer com homens de músculos poderosos com um tremendo impulso para comando. Uma das respostas na Idade Média era metê-los em ordens religiosas de cavaleiros e mandá-los lutar com os maometanos. Isso os deixava fora do caminho no que dizia respeito aos europeus, e assim estavam comprometidos e obrigados a andar na linha por toda sorte de códigos e tradições. Ao mesmo tempo, encontravam-se meios para proteger os introvertidos, sem muita energia muscular, fundando conventos aos quais poderiam se recolher. Isso permitia às várias pessoas encontrarem na sociedade os nichos que melhor lhes convinham, e os mais violentos não conseguiam causar muito prejuízo aos seus semelhantes.

Acontece que os categóricos imperativos internos de temperamento e psique são tão fortes em certos indivíduos que, apesar da grande pressão social, começam a tentar agir como Napoleão, acabando por ser gravemente oprimidos pelo resto da sociedade. Isso mostra que, mesmo sob as mais graves pressões sociais, os impulsos fundamentais do temperamento, fisicamente determinados, podem causar às pessoas problemas sociais bastante graves. E a moral é que não devemos tentar moldar e esmagar pessoas no leito de Pro-custo da nossa momentânea concepção popular de virtude humana e sim permitir-lhes, tanto .quanto possível, que se desenvolvam segundo seu temperamento.

Analisemos agora brevemente os principais traços de temperamento ligados aos três traços físicos - endomorfia, mesomorfia e ectomorfia. Os endomorfos - gente gorda, redonda, intestinal

- distinguem-se pela relaxação, por gostarem de conforto, de cerimonia e de comida - sobretudo de comer em público. São bons na rotina, têm uma amabi-lidade universal e indiscriminada. São extremamente sociá-veis, gostam de gente, não têm dificuldade de comunicação. Na verdade, estão se comunicando o tempo todo. São extrovertidos ao extremo. Sob influência do álcool, tornam-se ainda mais alegres e amáveis.

O mesomorfo extremo é uma pessoa impulsiva, que ama o poder, é indiferente aos demais, tende a ser grosseira e espezinha os outros. E o típico sujeito agressivo. Pode fazer isso educadamente, mas mesmo assim é agressivo. Tende a ser barulhento. Ri alto, ronca alto, fala alto e tem todos os traços de um eficiente soldado ou político. Se olharmos as fotos do cavalheiro que recentemente visitou nossas praias (Nikita Khruchov), veremos que é o tipo marcante-mente mesomorfo-endomorfo. Tem endomorfia bastante para ser alegre quando quer, comunicando-se bem com as pessoas, mas tem, por outro lado, o terrível ímpeto do temperamento somatotônico, que aparece na mesomorfia. In vino ventas: sob influência do álcool, a pessoa altamente somatotônica tende a ser ainda mais agressiva; é aquele tipo que se mete em brigas nos bares e torna-se muito desagradável, sendo bem diferente dos alegres beberrões da escala endomórfíca.

O ectomorfo, o cerebrotônico, é essencialmente um introvertido e vive em permanente estado de contenção. Suas ações são contidas. Tem grande dificuldade de comunicação. Não é nada sociável. Considera o endomorfo de emoções transbordantes superficial, trivial e vulgar, e horroriza-se com a energia do mesomorfo. Gosta muito de privacidade e não faz muito ruído. Sob influência do álcool, simplesmente sente-se enfermo.

Era o que eu desejava comentar sobre a mais elaborada correlação científica já feita entre físico e temperamento. Acho espantoso que isso tenha sido tão negligenciado pela psicologia freudiana e neofreudiana, mas, infelizmente, entre muitas escolas atuais de psicologia, a importância de diferenças físicas hereditárias é tristemente subestimada no estudo da psique humana. Quero citar uma breve passagem de um livro recente do professor Norman Brown, Life against death ("A vida contra a morte"). Ele critica os neofreudia-nos, acusando-os de pensar excessivamente em termos puramente psicológicos, e objeta ao que chama o "materialismo" do próprio Freud. Ele diz: "Com a perda do materialismo freudiano do corpo, a psicologia cai nas mãos dos neofreu-dianos, e também dos junguianos, tornando-se mais uma vez o que era antes da revolução freudiana: uma psicologia da alma autónoma" '. Mas quando passamos dessa generalização a fatos específicos do caso e vemos o que o professor Brown, que é um freudiano ardente, tem a dizer sobre o "materia-lismo freudiano do corpo", vemos que o materialismo consiste numa preocupação com acontecimentos de duas partes do corpo somente: a boca e o ânus. É extraordinário que o "materialismo freudiano do corpo" se reduza a essa preocupação incrivelmente limitada, com uma parte tão infini-tesimal do organismo físico. Afinal de contas, somos muito mais do que essas duas extremidades do nosso corpo, e sabemos que nossos corpos têm a maior influência sobre o nosso comportamento e o do de outras pessoas.

 

Brown, Norman. Life against death, Wesleyan University, Middle-town (Conn.), 19)9, p. 204.

 

Os psicólogos agem como se fôssemos almas desencarnadas, ou almas ligadas apenas às duas pontas do tubo digestivo, e nada mais, como Freud queria nos fazer acreditar. Tudo isso se torna mais singular quando vemos um escritor e psiquiatra tão penetrante e filosófico como Erich Fromm, outro neofreudiano, definindo temperamento corno as qualidades psíquicas enraizadas num "soma" constitucionalmente determinado. Essa é uma definição admirável. Ele diz também ser muito importante que os psicólogos levem em conta essas diferenças de temperamento. E diz que isso indubitavelmente acontecerá no futuro. Mas ele próprio não presta maior atenção a elas, ignora o fato de já existir uma vasta literatura sobre o assunto, e age como se nada jamais tivesse sido feito.

Não apenas as principais escolas de psiquiatria hoje em dia são indiferentes à relação entre psique e físico, mas vemos a mesma indiferença no behaviorismo. Temos, por exemplo, em Science and human behavior ("Ciência e comportamento humano"), de B. F. Skinner, uma ciência do comportamento humano bastante desenvolvida, que é, digamos, exatamente como a ciência das leis do movimento. Mas as leis do movimento são ilustradas de maneiras muito diversas por uma onda que se quebra, uma flecha disparada e uma borboleta. Parece-me evidente que as leis do comportamento são ilustradas de modos bem diferentes conforme a psique e o temperamento da pessoa, mas existe um mínimo de referência às diferenças físicas e temperamentais básicas entre as pessoas.

Sheldon também fez um trabalho muito importante no campo da enfermidade mental. Baseado em fotografias padronizadas de três mil esquizofrênicos de vários hospitais de doenças mentais, chegou a conclusões muito interessantes. Primeiramente, viu que o antigo conceito de Kretschmer de que a esquizofrenia era amplamente ligada a um alto grau de ectomoríia é verdadeiro. Mas ele vai adiante e diz que Kretschmer não esclareceu que em grande parte desses casos não havia apenas ectomorfia, mas um alto grau de desarmo-nia no corpo, o que se refletia nitidamente numa desarmo-nia do temperamento. Consequentemente, é preciso ponderar que, se a esquizofrenia pode ser precipitada por experiências traumáticas, essas experiências são sentidas como traumáticas porque ocorrem em pessoas marcadamente ectomórficas, com alto grau de displasia. Não teriam efeitos tão desastrosos em pessoas de configuração diferente.

Aqui vemos mais uma vez a enorme importância sociológica das ideias de Sheldon. Se há pessoas que podemos identificar como predestinadas à esquizofrenia, há muito que podemos fazer no campo da educação diferenciada para protegê-las de choques que as perturbem. E provavelmente também existe algo a fazer no campo farmacológico, porque parece bastante claro que a maior parte dos esquizofrênicos têm alguma anomalia bioquímica. Presumivelmente a experiência traumática acentua a anomalia bioquímica, que por sua vez torna as pessoas mentalmente esquizofrênicas, o que de sua parte as torna mais sujeitas a tais experiências traumáticas - e assim instala-se um círculo vicioso. A importância de descobrir-se um modo de controlar esse flagelo, o mais grave que no momento aflige a humanidade civilizada, evidencia-se quando constatamos que mais de cinquenta por cento dos leitos hospitalares deste país são ocupados por esquizofrênicos. Atualmente esse é o nosso maior problema de saúde, e não está sendo resolvido pelo tipo de psicote-rapia de que dispomos, em grande parte porque a psicote-rapia tem ignorado as correlações físicas da enfermidade.

Um caso muito interessante de correlação entre físico e caráter encontra-se na imagem tradicional de Cristo. Ele tem sido pintado há cerca de dois mil anos, e se olharmos sua imagem tradicional, vemo-lo sempre representado como alguém com alto grau de ectomorfia. Com base no estudo de muitas centenas dessas imagens, Sheldon diz que a figura média de Cristo na arte cristã é um tipo 2-3-5, quer dizer, tem certa quantidade de endomorfia, que lhe dá poder de comunicação e simpatia; um pouquinho mais de mesomor-fia, que lhe dá o impulso messiânico e o poder de transmitir sua mensagem; e um alto grau de ectomorfia, que lhe dá a vida contemplativa e a doutrina de restrição que perpassa toda a ortodoxia do cristianismo. Um dos grandes problemas do cristianismo tem sido o que fazer com os mesomorfos extremados. No passado, eles foram controlados pelas várias ordens de cavalaria e por elaborados processos educacionais, todos baseados numa visão de vida cerebrotônica, com sua ideia de restrição e controle.

Está bastante claro que sempre houve, entre os cristãos, uma intuição de que essa era a forma física inevitável do Salvador. É interessante que nos raros casos em que os artistas se afastaram dessa norma tradicional, sua representação nos deixa bastante chocados. Alguns artistas representaram Cristo como muito mais mesomorfo. Há uma famosa pintura da Ressurreição, de Piero delia Francesca, que mostra essa tremenda figura atlética erguendo-se da sepultura. E um quadro magnífico, mas curiosamente fora da visão tradicional de Cristo. Também há figuras de Cristo musculo-sas e poderosas em muitas pinturas de Rubens. Vendo alguns desses quadros, William Blake compôs o poeminha que diz:

"Pensei que Cristo fosse um carpinteiro,

E não um criado de cervejaria, meu senhor"1.

Devemos ressaltar aqui que nenhum artista jamais representou Cristo com um alto grau de endomorfia. Nisso o cristianismo difere grandemente do confucionismo, pois algumas das figuras sagradas chinesas são tipicamente endo-morfas - grandes, macias e confortáveis. Na verdade, o sistema confucionista é essencialmente endomorfo. É um sistema de relaxação, de grande preocupação com a família, de cerimonia, nada parecido com o sistema cristão. Tem um tipo diferente de embasamento temperamental.

Vemos, pois, que no nível mais profundo nosso inconsciente equivale à nossa constituição: somos determinados pelo que somos física e psiquicamente. É lógico que o ambiente desempenha um papel muito importante, mas tem essa importância porque somos as pessoas que somos. É importante referirmo-nos a esse nível físico profundo do inconsciente porque é inútil falar sobre o inconsciente se não o vemos como algo enraizado nas diferenças constitucionais que fazem de nós os indivíduos que somos.

 

1 Blake, William. On art and artists, XXVL 136

 

         O inconsciente

         Pronunciada em 12.10.1959.

O inconsciente pode agir em quaisquer circunstâncias para nossa vantagem ou desvantagem - é, ao mesmo tempo, negativo e positivo, criativo e destrutivo. Na teoria freudiana ortodoxa há muito mais preocupação com o que podemos chamar o lado negativo do inconsciente do que com o positivo. Isso foi inevitável, pois a teoria foi desenvolvida num contexto terapêutico; afinal, Freud trabalhava com neuróticos na Viena do fim do século XIX.

Publicou-se recentemente uma série de textos de Freud, chamada pelo editor Creativity and the unconscious ("Criatividade e o inconsciente"). Lendo esses textos, encontramos pouquíssimo sobre criatividade; mesmo discutindo o lado positivo, Freud tinha pouca contribuição a dar.

Quanto ao lado positivo do inconsciente, eu diria que o trabalho do psicólogo pioneiro F. W. H. Myers é muito mais esclarecedor do que o de Freud. Myers era cerca de quinze anos mais velho do que Freud mas morreu quarenta anos antes dele. Sua grande obra, Human personality and its survival o f bodily death ("A personalidade humana e sua sobrevivência após a morte corporal"), postumamente publicada em 1902, permanece, depois de quase sessenta anos, uma mina de informação sobre o assunto, especialmente sobre o lado criativo e positivo do inconsciente. E um livro que recomendo a qualquer pessoa que deseje informar-se sobre os aspectos positivos daquilo que Freud tratava no lado negativo.

Comecemos agora com o inconsciente negativo e com certas expressões idiomáticas que usamos constantemente. A linguagem contém grande dose de sabedoria fossilizada, e muitas expressões idiomáticas lançam boa luz sobre os conceitos que se teve nos diversos séculos sobre os problemas do homem. Usamos frases como "Não sei o que foi que me deu"; "Devo ter estado louco"; "Devo ter estado fora de mim"; "Ele não estava em si quando fez isso"; "Não sei que coisa me possuiu na hora". Na última frase voltamos diretamente à ideia de possessão demoníaca que encontramos em Homero e na Bíblia. E muito significativo encontrar nessas expressões idiomáticas um quadro tão claro de um ego rodeado por forças irracionais que irrompem sobre ele continuamente e o compelem a fazer coisas que ele realmente não deseja fazer.

O inconsciente pode ser considerado como a representação mental de certas anomalias físicas; um tipo de influência inconsciente negativa se deve a defeitos físicos congénitos de um tipo ou de outro. O defeito físico de um Qi extremamente baixo, ou de algum tipo de malformação, causa, no nível inconsciente, terríveis sentimentos de inferioridade, que precisam ser compensados. Defeitos no sistema endo-crinológico produzem resultados psicológicos muito estranhos, sentidos como barreiras, obstáculos e compulsões ao nível inconsciente, e que interferem no "eu" consciente quando este vai fazer o que deseja fazer.

Depois, devemos ponderar o que acontece com pessoas que nascem com um certo tipo de temperamento mas que vivem numa sociedade em que esse temperamento é pouco valorizado ou até encarado como anormal ou vergonhoso. Nesse contexto, vale a pena citar um pequeno poema muito comovente de William Blake:

"Oh! por que nasci com rosto diferente?

Por que não nasci como o resto de minha raça?

Quando apareço, espantam-se; quando falo, ofendem-se,

Então fico passivo e calado, e perco meus amigos. Então desonro meus [versos, desprezo meus quadros,

Degrado minha pessoa e castigo minha personalidade;


E a pena é meu terror, o lápis minha desgraça; Enterro meus talentos, [minha fama está morta'".

 

1 Blake, William. Letter to Thomas Butts, 16.8.1803.

 

Eis um retrato vivido do que acontece a uma pessoa com um certo tipo de temperamento, que se encontra numa sociedade em que esse temperamento é muito desvalorizado e outros tipos de temperamento são considerados os únicos decentes e aceitáveis. Outro exemplo é a situação aflitiva em que se encontra uma criança cerebrotônica muito introvertida numa escola onde é compelida a dar-se bem com todos, 'a estar constantemente com outras pessoas, a participar das brincadeiras, etc.

- todas coisas completamente opostas à sua natureza mais profunda. O resultado é que no seu inconsciente acontece toda sorte de perturbações, e muitas vezes ela contrai uma neurose. Freud foi parcialmente responsável por essa "revolução somatotônica", afirmando tantas vezes que a maneira extrovertida de viver é que é saudável para todos. Freud era pessoalmente um extrovertido, de um tipo bastante agressivo, e sem dúvida essa maneira de viver era saudável para ele, mas parece perfeitamente óbvio, pela observação, que esse não é o modo saudável para todas as pessoas, e que qualquer tentativa de forçá-las a adotar essa maneira de viver, contra tendências congénitas e enraizadas, provavelmente terá efeitos muito perturbadores sobre o inconsciente.

Logo depois das influências do físico vêm as influências das enfermidades, particularmente as crónicas - e muita doença crónica é na verdade de origem psicossomática. O ego consciente começa a interferir no que Aristóteles chamou de "alma vegetativa" - a sabedoria do corpo; o corpo então entra num ritmo errado, e os processos psicológicos normais são perturbados. O ego sente-se mais frustrado do que nunca e por sua vez interfere no funcionamento normal do corpo, de modo que todo o processo gira e gira num terrível círculo vicioso, com mente e corpo prejudicandose cada vez mais.

As religiões enfatizam muito a miséria humana. A religião cristã insiste em que este mundo é um vale de lágrimas, e os budistas dizem: "Eu lhe mostro sofrimento", significando o mundo que nos rodeia, e "mostro-lhe o fim do sofrimento", que é a estrada para a luz. Provavelmente cerca de um terço da miséria humana é inevitável, porque somos seres que sentem, vivendo num universo que em grande parte nada sente e que não se preocupa com nosso bem-estar. Mas cerca de dois terços da nossa miséria são estritamente de fabricação doméstica, produto da ignorância, estupidez, e, em menor escala, da malícia. A moral é, como diria a Duquesa em Alice, livrar-se da estupidez e da ignorância, o que naturalmente é muito mais fácil dizer do que fazer.

Devemos agora considerar aquele aspecto do inconsciente negativo que tem sido a preocupação específica dos psicanalistas e que é extremamente importante como parte do quadro todo: o lado do inconsciente representado pela repressão. Freud disse que da teoria da repressão obtemos nossa teoria do inconsciente. O que acontece é que, especialmente na infância, temos certas necessidades, desejos e objetivos que não se conformam com os padrões culturais ao nosso redor e que cedo aprendemos a considerar ignomi-niosos. Por isso, empurramo-los para uma área da mente em que não temos mais consciência deles. Contudo, as necessidades reprimidas continuam a existir e exercem uma influência grande e muito perniciosa sobre nossos pensamentos, sentimentos e atos, ao nível consciente. A idade durante a qual a pressão cultural mais pesa sobre nós é a primeira infância e a infância, e é nesse período que acontece a maior parte da obra de repressão.

Não são apenas necessidades, desejos e objetivos igno-miniosos o que reprimimos. Também reprimimos incidentes dolorosos demais para pensarmos sobre eles. Simplesmente não podemos aguentar a lembrança de certas coisas que nos aconteceram, e consequentemente empurramo-las para onde não possam mais ser vistas. Na neurose, então, sofremos a punição por coisas que fizemos e que nos aconteceram muitos anos atrás, bem como a punição por desejos e necessidades reprimidas.

Junto com a repressão interior em nome de ideais culturais e conceitos de dever anda o condicionamento externo, e esse é de igual importância na história do inconsciente negativo. O condicionamento pode acontecer não importa qual o estado do sujeito, mas, como mostrou Pavio v, é mais eficiente quando o sujeito está sob grande tensão física ou mental. Quando o paciente tem dores ou medo, ou alguma emoção violenta - angústia ou até alegria - fica peculiarmente suscetível ao condicionamento. E durante esses períodos de resistência mais baixa que os reflexos condicionados se instalam mais facilmente e são mais permanentes. Pávlov achava muito difícil livrar-se do condicionamento que fora imposto a cães sob estado de grande tensão. E precisamente essas técnicas pavlovianas foram usadas na chamada lavagem cerebral tanto de inimigos como de amigos (provavelmente a lavagem cerebral é mais intensamente usada em operários comunistas na China do que foi até mesmo em prisioneiros na Guerra da Coreia). Se é bem claro que algum condicionamento é essencial e bom, é igualmente claro que muito condicionamento é indesejável e pode produzir graves problemas na vida futura.

Vemos, pois, que grande parte de nosso inconsciente negativo se deve primeiro à repressão, depois ao condicionamento indesejável que nos foi imposto em épocas precoces, muitas vezes sob circunstâncias de tensão, e que continua agindo sobre nós de maneira muito semelhante à sugestão pós-hipnótica. A neurose é o fracasso do ego consciente em lidar com os fatos do momento, em termos adequados ao momento. Em vez de lidar com o que acontece agora, a pessoa neurótica lida com os fatos em termos de sentimentos reprimidos e memórias escondidas do passado, totalmente irrelevantes diante do que está acontecendo no presente. De certa forma, podemos dizer que toda a psico-terapia é essencialmente uma limpeza da memória. Não é questão de livrar-se de fatos recordados - precisamos lembrar a tabuada, as aulas de geografia, e assim por diante. É uma questão de livrar a memória dos estados emocionais dolorosos, que nos levam a agir de maneira totalmente inadequada no momento presente. Não estamos reagindo ao agora; estamos reagindo ao então. Consequentemente, tudo o que fazemos é totalmente sem sentido.

Há muito tempo sabe-se que a memória em sua forma não regenerada é uma faculdade perigosa, que pode nos causar muito mal. Encontramos passagens interessantes sobre isso na literatura budista, e há não muito tempo encontrei uma passagem sobre o problema da memória nos escritos de São João da Cruz, grande autor místico espanhol do século XVI. Ele diz: "Esse esvaziamento da memória, apesar de suas vantagens não serem tão grandes quanto as do estado de união, mas apenas porque libeçta a alma de muita dor, sofrimento e tristeza, além de imperfeições e pecados, é em si mesmo um grande bem'". Talvez possamos duvidar de que os métodos mecânicos de esvaziar a memória, empregados nos monastérios católicos, sejam muito eficazes. Mesmo assim é bastante óbvio que essas pessoas estavam no caminho certo. Não há dúvida de que uma terapia realmente eficaz faria uso de alguns dos métodos empregados na religião, combinados com os vários métodos de análise e terapia de catarse, que podem servir, em condições modernas, para limpar a memória.

 

1 São João da Cruz. Ascensão ao monte Carmelo.

 

Isso quanto ao lado negativo do inconsciente - primeiro o lado negativo devido a influências físicas, depois o lado negativo devido à repressão e ao condicionamento externo. Agora, voltemo-nos para o que penso ser muito mais importante: o lado positivo do inconsciente. Comecemos novamente com as frases coloquiais que indicam a natureza da contribuição positiva do inconsciente em nossa vida. Usamos frases como: "De repente isso me ocorreu"; "De repente me dei conta"; "Tive uma ideia brilhante"; "Uma ideia maravilhosa me veio à cabeça"; "O violinista deu um concerto inspirado"; "O padre falou como se estivesse inspirado". Voltamos à antiga ideia bíblica e homérica de possessão sobrenatural, desta vez uma possessão boa, não-demo-níaca. Homero apela às Musas para que o ajudem, e fala sobre menestréis que cantam "pelos deuses" frase notável -, e mais tarde, na história grega, vemos os relatos da pítia de Delfos, que recebia os oráculos de Apoio.

Vemos assim que quando usamos palavras como "inspirado", o que fazemos sem qualquer pensamento especial, estamos continuando uma tradição muito antiga; similarmente, vemos que a Bíblia está cheia dessas mesmas ideias. São Paulo, na Epístola aos Hebreus, diz: "Deus, que em tempos diversos e de várias maneiras falou no passado aos nossos pais, através dos profetas" (Hebreus 1:1). Quando olhamos as próprias obras dos profetas vemos que eles se consideram instrumentos passivos, muitas vezes relutantes. Não estão particularmente ansiosos por se submeterem ao influxo de algum poder não-racional e muito maior, mas não têm escolha. Mais tarde, no começo dos tempos cristãos, temos relatos da recepção passiva e involuntária dos primeiros cristãos daquilo que chamavam "charismata" - dons do espírito que vinham involuntariamehte a certas pessoas.

Consideremos agora o inconsciente positivo em sua relação com a vida cotidiana. Olhando cuidadosamente a nossa experiência diária, vemos que o "eu" consciente raramente aparece com uma ideia brilhante - é uma espécie de faculdade operária. Temos constantemente a impressão de que nossas melhores ideias vêm de uma área da mente que não é a nossa mente consciente; frases tais como "Isso me ocorreu" são boas representações desse fato.

0 mecanismo do inconsciente deve ser visto mais ou menos como segue: assimilamos conscientemente um material que é então passado a algum nível do inconsciente (Freud fala nesse nível como pré-consciência, mas eu penso que há camadas mais profundas, além do inconsciente reprimido, para onde vai esse material). Lá ele se submete a um processo de digestão e organização, e então é apresentado à mente consciente na forma de alguma ideia que muitas vezes sentimos ser extremamente brilhante e esclarecedora, que a mente consciente não poderia ter produzido.

Como esse é um fenómeno tão cotidiano, podemos julgá-lo trivial e não pensar muito nele. Mas ficamos muito surpresos por fenómenos mais inusitados do mesmo tipo, como a inspiração artística. E um fato significativo que em muitas línguas indo-européias a palavra usada para designar "poeta" e a utilizada para "visionário" seja a mesma. Em latim, a palavra vales significa as duas coisas, visionário e poeta; o mesmo acontece com a palavra irlandesa/?//. A ideia é de que o poeta recebe inspiração de alguma outra fonte que não a mente consciente, e é notável que tantos poetas modernos tenham sentido o mesmo. Goethe diz: "As canções me fazem, não sou eu quem faz as canções"1. O poeta francês Lamartine escreve: "Não sou eu quem pensa; minhas ideias pensam por mim"2. Alfred de Musset diz: "A pessoa não trabalha realmente, ela escuta. É como se um estranho estivesse sussurrando em nosso ouvido"3. E Shelley faz uma observação muito curiosa: "A mente criativa é um carvão que se extingue, e que alguma influência invisível, como um vento inconstante, desperta para um clarão transitório" 4.

Há uma frase muito surpreendente, que resume toda essa ideia, nos escritos de um filósofo alemão romântico, Franz von Baader, que diz que Descartes estava inteiramente errado com seu "cogito ergo sum". O que ele deveria ter dito efa "cogitof ergo sum" - rião "penso", mas "sou pensado, por isso existo"5. Na medida em que sou um ego consciente, penso, por isso existo. Mas na medida em que sou um inconsciente criador, e na medida em que meu ego consciente pede a colaboração do inconsciente criador, sou pensado, e por isso existo, numa escala mais importante do que existiria se fosse apenas um ego consciente com meu próprio pensamento particular sendo meu próprio pensamento particular algo estritamente limitado.

 

1 Bielschowsky, Albert. The life of Goethe, Putnam, Nova York, 1912. v. 3, p. 31.

Sorokin, Pitirim. The ways and power of Io vê, Beacon Press, Boston, 1954. p. 108.

3 Chabaneix, Paul. Lê subconscient chez lês artistes, lês savants et lês écrivains, Baillière, Paris, 1897. p. 201.

4 Shelley, Percy Bysshe.       "A defence   of poetry", in   Essays,   letters from abroad, translations and fragments by Percy Bysshe Shelley. Edward Moxon, Londres, 1952. v. l, p. 41.

5 Baader, Franz Xavier von. Sammtliche Werke, Leipzig, 1857-1860.

 

O que pode ser chamado génio é a emergência de material útil dos níveis profundos do inconsciente, que é então transformado pelo eu consciente numa forma apropriada. Edison disse que génio é nove décimos de transpiração e só um décimo de inspiração, mas tem de haver primeiro inspiração, depois o trabalho sobre ela. Génio é a colaboração harmoniosa das duas partes do nosso ser; é abertura para o que j az debaixo de nós, no nível inconsciente, e a capacidade de moldar esse material em formas que deverão comunicar e transmitir às outras pessoas algo dos significados e sentimentos que o artista original teve.

Não devemos imaginar que todas essas emergências sejam da mais alta qualidade. Infelizmente pode brotar do inconsciente a mais absoluta tolice e estupidez. Um exemplo penoso é o de Voltaire, que se orgulhava sobretudo de ser um poeta trágico. Infelizmente, ele era um trágico muito ruim. Há uma carta extraordinária em que ele relata como escreveu sua tragédia Catiline, que tem cinco atos, em alexandrinos rimados, e que ele completou em uma semana. "Ninguém", escreveu Voltaire, "que não sentisse o toque do génio poderia imaginar tal façanha."' Sem dúvida isso é verdade, mas infelizmente a peça é totalmente ilegível. Nesse caso o génio não produziu um resultado genial.

A maior parte da inspiração do tipo não-genial é aquela demonstrada pelas pessoas que têm o dom da escrita automática, que se sentam com uma caneta e deixam jorrar os textos. A grande maioria desses textos é completamente desinteressante e sem sentido, mas vem das profundezas, exatamente como a inspiração genial ocorre aos homens de génio. A diferença é que, no caso dos homens de génio, o que emerge é de muito melhor qualidade, e a obra que eles então produzem em estado consciente leva a criação final a um nível em que pode ser apreciada por outras pessoas e considerada de grande significação e importância.

 

1 Voltaire. "Letter to Charles Jean-François Henault, 14 August 1749", in: Besterman, Theodore, ed. Voltaire's correspondence. Genebra, Institui et Musée Voltaire, Lês Délices, 1956. (3434)

 

Outro tipo bastante estranho de intervenção do inconsciente criador é ilustrado pelos casos dos chamados meninos que fazem cálculos. De vez em quando lemos nos jornais a história de uma criança que consegue executar os mais espantosos cálculos mentais - encontrar em cinquenta segundos a raiz cúbica de um número de sete algarismos, etc. Quero citar o caso encantador de um menino calculador inglês, chamado Blyth, nascido em 1819. Essa história é contada pelo irmão dele.

O menininho, Benjamin, e seu pai estavam dando um passeio antes do café da manhã - o pai gostava de fazer uma breve caminhada antes do café -, e de repente o menino perguntou: "Papai, a que horas eu nasci?"

O pai disse: "Quatro da manhã".

"E que horas são agora?"

"Sete horas e cinquenta minutos."

O menino andou em silêncio algumas centenas de metros, e depois deu o número de segundos que vivera (tinha então mais ou menos seis anos). O pai não tentou conferir a cifra na hora, mas quando chegou em casa sentou-se com lápis e papel, calculou tudo e foi até o menino, dizendo: "Sinto muito dizer que você omitiu 172.800 segundos".

O menino disse: "Ora, papai, você esqueceu os dois dias dos anos bissextos, em 1820 e 1824". O pai teve um colapso'.

Por que motivo algumas crianças têm esse poder fantástico, e que mente possuem capaz de fazer esse tipo de coisa? Em séculos recentes houve dois meninos calculadores que, crescendo, tornaram-se homens de génio de primeira linha: André Marie Ampere, na França, e Karl Friedrich Gauss, na Alemanha. Houve muitos outros casos em que meninos calculadores se tornaram matemáticos notáveis e homens inteligentes, mas houve também muitos que, ao crescer, tornaramse completamente medíocres ou até meio debilóides. O mais estranho caso é o de um alemão chamado Dase, que viveu em meados do século XIX. Ele era incapaz de compreender o primeiro livro de Euclides, mas tinha tão inacreditável faculdade de somar de cabeça que o governo prussiano lhe pagou o salário de uma vida inteira para descobrir os fatores de todos os números entre sete e oito milhões. Passou a vida fazendo isso com uma incrível rapidez. Não tinha absolutamente nenhum poder de raciocínio, e ainda assim conseguia fazer essas somas extraordinárias (que hoje em dia seriam feitas por aparelhos eletrônicos).

 

1 Myers, F. W. H. Human personality and its survival of bodily death. University Books, NewHydePark, 1961. p. 76.

 

Falemos rapidamente no assunto sono. Estamos bem e saudáveis unicamente porque o ego tira férias durante um terço de cada dia. Se permanecêssemos o tempo todo acordados, sem dúvida estaríamos bem doentes, ou loucos. E enquanto o ego está fora do caminho, durante o sono, podemos dizer que aquilo que se chama alma vegetativa funciona, sem interferência desse intolerável eu e do inconsciente pessoal, e nos mantém saudáveis.

Mas existe alguma atividade durante o sono: o sonho. Naturalmente a maior parte dos sonhos se referem a coisas que aconteceram durante o dia, antes de dormirmos, ou em tempos muito recentes; mas alguns sonhos, como indicaram os freudianos, referem-se de um modo simbólico a material soterrado. Outros parecem participar da natureza do que Jung chamou "os grandes sonhos", referindo-se ao que denomina material arquetípico, num nível bastante mais baixo do inconsciente. Alguns sonhos nem mesmo parecem referir-se a isso, mas a algo que não tem nenhuma relação particular com a psique humana.

Esses sonhos arquetípicos, e de um outro mundo, levam-nos a um outro fenómeno muito estranho do inconsciente, o fenómeno das visões, que abordaremos hoje e aprofundaremos em outra conferência.

Visões espontâneas parecem ser bastante comuns. Blake as tinha o tempo todo, e possuímos alguns relatos bem curiosos da natureza de suas visões - por exemplo, de como ele chegou a fazer desenhos de Sir William Wallace, herói escocês, e de Eduardo I:

"(Blake) estava sentado, meditando, como fizera muitas vezes, sobre os feitos heróicos e a dura sorte do herói escocês (Sir William Wallace), quando, como um lampejo de luz, uma nobre figura apareceu diante dele; e instantaneamente ele soube, por alguma voz interior, que era Sir William Wallace. Sentiu que era uma aparição espiritual, que poderia desvanecer-se tão instantaneamente como viera; e, arrebatado pela visão, pediu ao herói que permanecesse mais alguns momentos ali, para que pudesse fazer um esboço dele. O guerreiro escocês, nessa visão, parecia tão fiel ao seu retrato mental histórico como seu nobre espectro era fiel à viril figura de sua pessoa desenhada; pois, com sua cortesia habitual, sorriu para o jovem pintor; depois o fantasma desvaneceu-se, e Eduardo I substituiu-o, permanecendo também tempo bastante para ser desenhado"1.

Existe também o relato muito interessante de John Varley, de como Blake desenhou a famosa cabeça do fantasma da pulga:

"Fiquei convencido, pelo seu modo de agir, de que ele tinha diante de si uma imagem real, pois em certo momento parou e começou a fazer em outro lugar do papel um desenho separado da boca da pulga, que o espírito abrira, de modo que ele não podia continuar com o primeiro esboço enquanto ela não cerrasse a boca outra vez"2.

Outro célebre visionário foi o cientista e homem de negócios sueco do século XVIII, Swedenborg, que tinha visões fartamente elaboradas e detalhadas da vida no outro mundo, que devem ter-lhe ocorrido com um senso de absoluta veracidade. E existe toda a série de visionários na tradição da Igreja, começando com Santa Erigida da Suécia, no século XIII, que tinha visões da Paixão de Cristo com elaborados detalhes, terminando com Catherine Emmerich, que morreu no começo do século XIX.

Infelizmente tais visões não correspondem umas às outras, e por isso é impossível dizer se algumas delas são realmente visões cognitivas e verídicas. Na maioria dos casos, provavelmente temos de colocá-las no quadro do que se pode designar como a faculdade ficcional3 que está no fundo da mente. Essa faculdade muito peculiar parece estar presente, até certo ponto, em todas as mentes, e pode ser evocada por vários métodos que descreveremos mais tarde, embora em certos casos ocorra espontaneamente.

 

1 Wilson, Mona. The life of William Blake, Oxford University Press, Londres, 1971. p. 310.

2 Varley, John. A treatise on zodiacal physiognomy, Londres, 1828. pp. 54-55. A cabeça da pulga com a boca fechada está na ilustração 6 da obra de Varley, e uma cabeça composta com a boca aberta na ilustração 5. O desenho completo de Blake do "Fantasma da pulga" aparece na p. 94 de The Blake-Varley sketchbook of 1819, com introdução e notas de Martin Butlin (Heinemann, Londres, 1969). 1 Huxley usa o termo "story-telling faculty", "faculdade de contar histórias". (N. da T.)

 

Vale a pena mencionar que, quando Homero e os poetas que o seguiram pediam inspiração às Musas, não pediam habilidade poética. Pediam assunto. Diziam: "Por favor, diga-me o que realmente aconteceu no cerco de Tróia" (ou o que realmente aconteceu durante essas histórias místicas). Hesíodo fica encantado quando a Musa lhe fornece alguns novos nomes. Os apelos às Musas podem, pois, ser vistos como apelos a essa faculdade ficcional no fundo de nossas mentes. Quanto à execução estilística, isso os poetas antigos conheciam muito bem e podiam fazer com suas mentes conscientes.

Chegamos agora a um assunto muito melindroso, o da parapsicologia. Em muitos círculos académicos esse é considerado um tema bastante obsceno, uma espécie de pornografia intelectual. Na verdade, há alguns círculos académicos onde, penso, seria mais respeitável estudar obras do marquês de Sade do que obras do dr. J. B. Rhine. Mesmo assim, eu ainda acredito que fenómenos como telepatia, clarivi-dência e pré-cognição realmente ocorrem. Penso que é impossível estudar a enorme massa de evidência acumulada nos relatórios e atas da Society For Psychical Research (Sociedade de Pesquisa Psíquica), e o trabalho experimental feito nos últimos anos na Universidade de Duke e outras universidades sem chegar a essa conclusão.

Por que tantos cientistas, que aliás têm as mentes abertas, recusam-se até mesmo a considerar essa evidência? O motivo é que os fatos, se são fatos, não têm sentido em termos da Weltanschauung que hoje aceitamos como mais ou menos axiomática. Não têm sentido especialmente em termos da nossa visão da natureza humana e sua relação com o universo. Na verdade, a maior parte de nós ainda está inconscientemente influenciada pela hipótese de Descartes sobre a natureza humana e sua relação com o mundo. Descartes insistia em que o mundo se dividia em duas metades, uma delas a matéria, outra a mente, e que o homem se dividia em corpo e mente. Considerava a metade material do mundo como sendo composta de uma substância, mas a metade mental compunha-se de inumeráveis substâncias, sendo cada mente individual uma unidade separada e impenetrável de uma natureza substancial. Uma unidade jamais podia reagir diretamente com outras unidades, e só podia reagir com matéria em relação à matéria de seu próprio corpo, e, através do corpo, com outros pedaços de matéria.

A essência dessa substância mental, insistia Descartes, era a consciência. Já rejeitamos essa ideia, mas parece-me que agora, à luz da moderna psicologia, e, eu diria, da parapsicologia, temos de revisar mais ainda as ideias cartesianas. Precisamos insistir em que não apenas tem a mente esse grande lado inconsciente, como o lado inconsciente não está encerrado na sua fímbria mais inferior. Ao contrário, ele toca uma espécie de meio psíquico do qual as mentes humanas são cristalizadas, e através do qual tornam-se capazes de estabelecer contato com outras mentes.

A ideia cartesiana de um puro dualismo dentro do homem precisa ser superada. Devemos pensar no homem como sendo composto de três fatores: um corpo; o que os filósofos ocidentais chamam do ego puro, os filósofos orientais chamam de atman e São Paulo' chamava de pneuma; e uma psique, que não é uma unidade separada e impermeável, mas antes algo composto. Talvez tenhamos de pensar que as partículas psicológicas elementares das quais se compõe a psique são, no sentido mais vago da palavra, ideias; essas partículas elementares podem então ser organizadas em complexos, como o que os budistas chamam de skandhas, e a coisa toda ligada para formar uma unidade bastante precária e instável, que chamamos o eu. Essa instabilidade fica provada pelo que acontece a ela nos casos de desordem mental, e mesmo sob condições muito estressantes da vida normal.

Temos então esse quadro de um eu precário e instável, em relação com um inconsciente que não está encerrado nos níveis mais baixos, nem nos superiores, mas está aberto dos dois lados, de modo que são possíveis comunicações com outras mentes ou com uma Mente fora dele. Isso nos deixa numa posição filosoficamente desconfortável, porque tal concepção simplesmente não se adapta à imagem do mundo aceita no momento. O problema está sendo debatido por dois eminentes filósofos contemporâneos, C. D. Broad, de Cambridge, e H. Haverley Price, de Oxford, nenhum dos quais chegou ainda a uma resposta satisfatória.

De momento, pois, precisamos aceitar uma espécie de noção ambivalente da natureza humana. Para objetivos mais práticos, teremos de pensar em termos de um monismo neutro, onde mente e corpo são aspectos da mesma substância. Mas também teremos de pensar, à luz dos fatos da parapsi-cologia, que até certo ponto a mente é independente do corpo e pode existir numa espécie de meio psíquico; que as ideias podem ter uma vida própria e entrar no nosso sistema de ideias de um modo muito peculiar, difícil de entender; e que talvez as ideias persistam muito depois que os corpos ligados às mentes em que elas foram originariamente inventadas tiverem morrido. Talvez haja uma espécie de reservatório dessa vida mental, no qual estamos mergulhados; e, acima disso, desenvolvendo-o e interpene-trando-o, talvez também tenhamos de postular algo que William James chamou de "consciência cósmica", e que Bergson chamava "mente".

Deixarei esse tema nesse ponto muito insatisfatório, como um problema filosófico não resolvido, simplesmente porque não sei como resolvê-lo e não creio que de momento alguém o saiba. Mas tenho certeza de que será resolvido, cedo ou tarde. Entrementes, temos de prosseguir da melhor maneira possível nesta situação bizarra e anómala em que nos encontramos.

 

         Linguagem

         Pronunciada em 26.10.1959.

Quero começar esta análise da linguagem com alguns textos de diferentes autores que lançam bastante luz sobre o assunto. O primeiro é da autobiografia de Helen Keller, onde ela descreve como descobriu a linguagem quando era criança:

"(Minha professora) trouxe meu chapéu, e compreendi que íamos sair para o sol. Esse pensamento, se é que uma sensação sem palavras pode ser chamada pensamento, me fez saltar de alegria.

"Andamos pelo caminho até a casa do poço, atraídas pelo perfume da madressilva com que era recoberto. Alguém estava atirando água, e minha professora colocou minha mão sob a torneira. Quando a torrente fria jorrou na minha mão, ela soletrou na outra a palavra 'água', primeiro devagar, depois depressa. Fiquei quieta, toda a minha atenção fixada nos movimentos de seus dedos. De repente, senti uma consciência nebulosa, como de algo esquecido - um frémito de pensamento que retornava; e de alguma forma o mistério da linguagem me foi revelado. Então eu soube que 'á-g-u-a' significava a maravilhosa coisa fria que corria na minha mão. Aquela palavra viva despertou minha alma, iluminou-a, dando-lhe esperança e alegria, tornando-a livre! Ainda havia barreiras, é verdade, mas barreiras que o tempo poderia anular.

"Deixei a casa do poço ansiosa por aprender. Tudo tinha um nome, e cada nome fazia nascer um novo pensamento. Quando voltamos para casa, cada objeto que eu tocava parecia fremir de vida. Era porque eu via tudo com a estranha, nova visão que se me abrira."'

Agora, confrontemos com essa uma série de outras citações, começando com algumas de Goethe. Goethe foi um dos mestres supremos da palavra, e é muito interessante ver esse grande manipulador de palavras falando constantemente contra a linguagem. Em certa parte ele diz: "Gefúhl ist alies; Name ist Schall undRouch" ("Sentimento é tudo; nome é apenas som e fumaça"). E existe a famosa citação:

"Grau, teurer Freund, ist alie theorie, Und grún dês Lebens goldner Baum "3.

("Cinzenta é toda a teoria, verde a dourada árvore da vida.")

E mais ainda:

"Falamos demais. Devíamos falar menos e desenhar mais. Pessoalmente, eu gostaria de renunciar à fala e, como a natureza orgânica, comunicar em esboços tudo o que tenho a dizer. Essa figueira, essa pequena serpente, o casulo no peitoril de minha janela, aguardando silenciosamente o seu futuro, tudo são sinais importantes. Na verdade, a pessoa capaz de decifrar adequadamente seus significados em breve estaria capacitada a dispensar todas as palavras faladas ou escritas. Quanto mais penso nisso, mais reconheço que existe algo de fútil, medíocre, até ridículo na fala"4.

Talleyrand, o grande diplomata francês do começo do século XIX e um dos grandes mestres da vida prática, disse que "a fala foi dada ao homem para disfarçar seus pensamentos" 5, o que sem dúvida era verdade no caso dele. Outra observação interessante sobre a linguagem foi feita pelo grande filósofo existencialista cristão Kierkegaard, que disse que o objetivo da linguagem é ajudar e fortalecer as pessoas a se absterem de agir. Isso é, em certo sentido, uma evolução da frase do Evangelho, que diz: "Nem todo aquele que disser 'Senhor, Senhor' entrará no Reino dos Céus" (Mateus 7:21).

 

' Keller, Helen. The story of my life, Grosset & Dunlap, Nova York, 1905, p. 23.

Goethe, Johann Wolfgang von. Faust, /. Marthens Garten, 3456-3457.

3 Ibid., Studierzimtner, 2038-2039.

4 Goethe, Johantt   Wolfgang von.   Conversations with J.   D.   Faik (1809).

Frase atribuída a Talleyrandpor Harel em sua peça Lê nain jaune.

 

0 que se requer, então, não é devoção ou especulação teológica, mas ação direta. Por outro lado, vemos que a linguagem pode ter horríveis efeitos promovendo a ação, especialmente a má ação. Como Hitler escreveu, "Toda propaganda efetiva tem de limitar-se a muito poucos pontos e a usá-los como slogans"1.

Vemos uma série de comentários sobre linguagem e religião nas Epístolas de São Paulo comentários mais curiosos ainda quando se pondera que precisamente a linguagem das Epístolas de São Paulo dominou toda a cena cristã durante 1900 anos. Paulo diz, em uma frase muito conhecida: "A letra mata, mas o espírito vivifica" (II Coríntios 3:6). E "Deveríamos servir no novo espírito e não na letra antiga" (Romanos 7:6).

Finalmente, há uma passagem das obras de John Locke sobre a linguagem em relação à filosofia. Embora escrita há quase trezentos anos, ainda é muito atual:

"Formas de linguagem vagas ou insignificantes e linguagem abusiva foram por tanto tempo consideradas mistérios da ciência, e palavras duras ou mal empregadas foram tomadas por estudos profundos ou alta especulação, que não será fácil persuadir os que falam e os que ouvem de que elas não são senão disfarces da ignorância e empecilho ao conhecimento verdadeiro" .

Tais citações evidenciam a curiosa atitude ambivalente que sempre tivemos em relação à linguagem, e certamente ainda temos, e que prevaleceu durante séculos. A frase que abre o Evangelho segundo São João, "No princípio era o Verbo" (João 1:1), é completamente verdadeira no que diz respeito ao começo do mundo estritamente humano. Não há dúvida de que a forma de vida estritamente humana surgiu quando foi possível ao homem falar. A linguagem é o que nos torna humanos. Infelizmente, é também o que nos torna humanos demais. De um lado, é a mãe da ciência e da filosofia, e de outro produz toda sorte de superstição, preconceito e loucura. Ajuda-nos e nos destrói; torna possível a civilização e também produz aqueles assustadores conflitos que degradam a civilização.

 

1 Hitler, Adolf. Mein Kampf. Reynal and Hitchcock, Nova York, 1939.

2 Locke, John. An essay concerning human understanding, "Epislle to the Reaãer".

 

O comportamento humano difere do animal exatamente porque seres humanos podem falar, e animais não. Mesmo os animais inteligentes, por não poderem falar, não podem fazer coisas que nos parecem absolutamente rudimentares, que crianças bem pequenas poderiam fazer assim que aprendessem a falar.

Houve uma interessante experiência realizada pelo grande psicólogo gestaltista alemão Wolfgang Kõhler, que trabalhou por muitos anos com chimpanzés. Kõhler constatou que seus chimpanzés podiam usar pauzinhos como instrumentos para puxar bananas penduradas fora do seu alcance. Eram inteligentes o bastante para ver que esse instrumento - o pauzinho - podia ser usado para encompridar seu braço e alcançar a banana. Mas Kõhler constatou que os animais só usavam o pauzinho para apanhar a banana se os dois, banana e pauzinho, estivessem à vista ao mesmo tempo. Se a banana estivesse diante deles e o pauzinho atrás, não conseguiam usar o pauzinho; não conseguiam manter a banana em mente o tempo suficiente para olhar em torno e apanhar o pauzinho, e então usá-lo.

O motivo é bastante claro. Temos palavras para banana e pauzinho, que nos permitem pensar sobre esses objetos quando não estão à vista. Até uma criança pequena, conhecendo as palavras "banana" e "pauzinho", tem uma noção conceituai de sua relação, e consequentemente pode pensar em "pauzinho" em conjunção com "banana", mesmo quando o pauzinho estiver atrás dela; e poderá lembrar-se disso até apanhar o pauzinho e pegar as «bananas.

O fato de os animais não poderem reter seu conhecimento das coisas por um período longo, e consequentemente perderem interesse nelas, explica seu comportamento (para nós) absurdo em muitas situações. Eles interrompem constantemente uma linha de ação para fazer alguma outra coisa, e podem voltar à primeira atividade ou esquecer a coisa toda. Em contrapartida, graças à linguagem, os seres humanos são capazes de perseguir um objetivo, ou de reagir em relação a um princípio ou um ideal por longos períodos de tempo. Em certo sentido, podemos dizer que a linguagem é um recurso que permite aos seres humanos continuarem a fazer a sangue frio o bem e o mal que os animais só conseguem fazer a sangue quente, sob influência de alguma paixão.

Essa continuidade é ilustrada não apenas na vida de seres humanos individuais; é ilustrada também de maneira muito convincente na vida das sociedades inteiras, onde a linguagem pode ser descrita como um recurso para conectar o presente com o passado e o futuro. Se a concepção lamarquiana da herança das características adquiridas é totalmente inaceitável, e biologicamente irreal, é verdadeira no nível social, psicológico e linguístico: a linguagem fornece-nos meios para tirarmos vantagens dos frutos da experiência passada. Existe uma coisa chamada herança social. As aquisições de nossos ancestrais são-nos transmitidas pela linguagem escrita e falada, e por isso podemos herdar características adquiridas não pelo plasma do embrião mas pela tradição.

Infelizmente, a tradição pode transmitir tanto as coisas boas quanto as más. Pode transmitir preconceitos e superstições, assim como ciência e códigos éticos decentes. Mais uma vez vemos a estranha ambivalência desse dom extraordinário. E como os contos de fadas, em que há uma fada boa e outra má, mas nesse caso o dom da fada boa, que é esse surpreendente dom da linguagem, também é o dom da fada má. É uma das ironias do nosso destino que a coisa maravilhosa que Helen Keller descreve tão eloquentemente como doadora de vida e criadora do pensamento também seja uma das coisas mais perigosas e destrutivas que temos.

No começo da vida humana, como uma aventura estritamente humana, havia o Verbo. Mas o que acontece quando não há linguagem? O que acontece em crianças bem pequenas e animais? Qual a vida do que pode ser chamada experiência imediata? Vale a pena fazer aqui uma pequena digressão para analisar algumas das ideias da filosofia hindu. Os filósofos hindus sempre afirmaram que a coisa que cria nosso mundo especificamente humano é o que chamam nama-rupa (nome-eforma). Nome pode ser definido como forma subjetivizada, e forma é a projeção do nome no mundo exterior; e as duas coisas criam para os seres humanos esse mundo de objetos separados que existem no tempo. Contudo, o indivíduo iluminado vai além da gramática. Ele tem o que podemos chamar "uma gramática que transcende a experiência" que lhe permite viver na consciência da continuidade divina do mundo, e ver um continuamente manifesto em muitos. A pessoa iluminada existe, por assim dizer, depois do surgimento da linguagem; vive na linguagem e depois passa para além dela. Mas que espécie de mundo existe antes que a linguagem seja introduzida? Que tipo de mundo é o mundo da experiência imediata não-verbalizada?

William James falou no mundo da experiência imediata, numa frase muito característica, como "uma confusão cheia de cores e zumbidos"' dando ideia de que o animal e a criancinha vivem num caos de sensações. Mas investigações recentes na etologia dos animais e nas percepções de crianças pequenas revelaram que a experiência imediata realmente não é tanto zumbido e cor quanto James supunha. O que emerge mais surpreendentemente das experiências científicas recentes é que a percepção não é uma recepção passiva de material do mundo exterior; é um processo ativo de seleção e imposição de padrões. O sistema nervoso dos animais e dos seres humanos é projetado de tal maneira que automaticamente peneira, daquela confusão de cores e zumbidos, aqueles elementos biologicamente úteis. Quanto aos animais, ele seleciona dessa confusão precisamente os elementos que os ajudam a sobreviver; o animal vê somente duas classes de objetos - os comestíveis e os perigosos.

Uma das coisas que têm sido reveladas no estudo do universo animal é o quanto muitos deles são limitados e estranhos. O grande biólogo alemão barão J. J. con Uexkull escreveu muito sobre o que chamava o Umwelt dos animais, os diferentes universos em que vivem criaturas de diferentes classes e espécies. O assunto é fascinante. Faz com que percebamos como é arbitrária nossa ideia da realidade, embora nossa ideia da realidade seja incomparavelmente maior do que a do mais alto dos animais inferiores. Deus sabe que tipo de mundo habitaria uma criatura com sentidos mais eficientes e mente melhor do que a nossa!

Como exemplo do quanto são estranhos alguns desses universos animais, quero citar o caso da rã, que me foi comunicado recentemente por Patrick D. Wall, do Instituto de Tecnologia de Massachussets. Aparentemente, as novas pesquisas com rãs indicam que, embora elas tenham olhos mecanicamente muito bons, sua visão é extremamente limitada. Obviamente a confusão colorida e cheia de zumbidos chega aos seus olhos, mas o que seu sistema nervoso seleciona, das inumeráveis sensações que chegam, é limitado àquilo que se move. Podemos imaginar uma rã sentada sobre uma folha de lírio aquático, olhando a água. Há um peixinho nadando, e enquanto ele nada a rã o enxerga; o peixinho se imobiliza por um momento, e imediatamente some do universo da rã; quando recomeça a nadar, voltar a entrar no mundo da rã, e assim prossegue. O universo da rã deve, pois, ser absolutamente estranho, uma contínua emergência e desaparecimento de objetos.

 

1 James, William. Some problems of philosophy. Longmans, Nova York, 1948, p. 48.

 

Qual seria a filosofia de uma rã - a metafísica dos aparecimentos e desaparecimentos? Talvez haja um Platão das rãs, que invente os mais extraordinários sistemas para explicar essa fantástica realidade.

Universos muito mais limitados são os de animais de níveis de organização ainda mais baixos que a rã. Mesmo animais como cães e macacos têm universos bem diferentes do nosso. Simplesmente não percebem certas coisas que para nós são muito importantes. O cão não percebe o pôr-do-sol ou as flores numa árvore, que nos parecem muito belos. Apenas cheira o tronco da árvore, e encontra nela algo muito satisfatório.

Quando chegamos aos seres humanos, vemos que o sistema nervoso faz uma seleção dessa confusão de zumbidos e cores, da mesma maneira que o sistema nervoso animal, mas não escolhe tão rigorosamente. Pela consciência humana passa muito mais do que jamais passará pela do animal, mesmo os animais superiores. Na mente humana penetra uma quantidade tão imensa de realidade, há tamanha profusão de material, que nisso James tem razão: apesar da seleção neurológica e da abstração, a profusão é uma confusão. E é aqui que entra a linguagem. Processamos um nível mais alto de abstração por meio da linguagem, e selecionamos dessa maneira consciente, semiconsciente ou pré-consciente aqueles materiais que nos são biologicamente úteis; e, como não estamos inteiramente à mercê de nossas necessidades biológicas, também escolhemos aqueles materiais que são importantes socialmente, ou do ponto de vista estético, ou seja o que for.

Os materiais que obtemos pela abstração são imediatamente traduzidos por símbolos que podemos compreender. Evidentemente, temos essa tendência inata de transformar todas as nossas experiências em símbolos mais ou menos equivalentes, bem como uma necessidade inata de ordem e significação. Os símbolos podem ser do tipo não-verbal, mas a linguagem é, de longe, o sistema simbólico mais organizado. E é pela linguagem que impomos uma ordem simbólica e um significado simbólico à profusão que, como foi apreendida diretamente, nos parece terrivelmente confusa.

Esse processo de abstração e seleção nos é extremamente útil do ponto de vista biológico. Na verdade está bastante claro que não poderíamos viver sem ele. E-nos útil, como cientistas e tecnólogos, no nosso esforço de controlarmos o ambiente. Também nos é útil como seres sociais. Mas aqui chegamos mais uma vez à ambivalência do processo linguístico e simbólico. Se impomos ordem e significado à nossa experiência imediata, é-nos igualmente fácil impor uma ordem e um significado mau ou bom. Saboreamos o processo de simbolização; é como se fosse uma espécie de prazer, a arte pela arte. Mas muitas vezes, no nosso entusiasmo de impor ordem e significado à experiência imediata, através de símbolos, fazemos uma enorme confusão de experiências e criamos um padrão simbólico que nos mete numa série interminável de problemas.

Vale a pena citar alguns exemplos de como essa pre-mência de ordem e significado de certa forma se desvia. Uma das áreas nas quais o ser humano tentou impor sua própria ordem e significado é a da astronomia. Desde os tempos mais remotos, o homem ergueu o olhar para os corpos celestes, o Sol, a Lua, os planetas e as estrelas, e sentiu-se perplexo com o extraordinário mistério da sua existência. Tentou impor a esse mistério uma ordem e um significado que têm sentido para ele como um ser muito humano; em muitos casos, como vemos quando estudamos a história, ele cometeu profundos erros em relação à ordem e ao significado dos corpos celestes erros que o prejudicaram grandemente em sua vida social e individual.

Consideremos a atitude do homem diante dos eclipses. Desde tempos imemoriais, os eclipses foram considerados como fenómenos que auguram desgraças. Sentia-se que se ligavam intimamente à vida humana* - e sempre de maneira muito perigosa. Em 27 de agosto de 413 a.C. houve um eclipse da Lua. Esse eclipse foi de grande importância histórica, porque foi observado por Nícias e os atenienses, que naquele momento sitiavam Siracusa, na Sicília. Eles tinham tido grandes dificuldades e estava bastante claro que teriam de ir para casa, ou enfrentariam problemas ainda piores. Um eclipse era algo de muito mau agouro, segundo o sistema simbólico dos atenienses; na sua busca de ordem e significado para o universo, tinham decidido que nenhuma jornada devia começar durante a aproximação de um eclipse. Por isso, Nícias resolveu adiar o retorno para Atenas em pelo menos um mês. Consequentemente, sua frota foi destruída, e todo o seu exército aprisionado pelos siracusanos.

Com nossa fome e sede de ordem e significado, se não tivermos paciência de olhar a verdadeira natureza da ordem e do significado, mas insistirmos em que o universo é significativo no quadro dos nossos desejos e vontades tão humanos, certamente teremos problemas.

Exemplo similar do grande perigo de colocar o universo num sistema errado de símbolos foi dado pelos astecas. Também eles queriam dar certa ordem e sentido aos fenómenos celestes, e concentraram-se basicamente no Sol. Infelizmente, antropomorfizaram-no e sentiram que, para manter-se vivo, o Sol precisava de alimento constante - e uma das coisas que imaginavam que o Sol necessitasse era sangue, que obtinham através do sacrifício de vítimas humanas. Como sabem todos os que leram a história asteca, eles tinham o método desagradável de arrancar o coração do peito da vítima, no sacrifício, e erguê-lo para o Sol. A necessidade de prover o Sol com um suprimento contínuo de sangue humano impôs aos astecas a política externa de atacar constantemente seus vizinhos para obter vítimas. Faziam o possível para não matá-los em combates, mas para apanhá-los vivos levavam-nos para a Cidade do México e sacrificavam-nos numa média de vinte mil ao ano. Não é preciso dizer que, com esse procedimento, não ficaram muito populares entre seus vizinhos; quando os espanhóis chegaram, muitos vizinhos do reino asteca passaram para o lado deles, o que explica o milagroso sucesso de Cortês e seu pequeno bando em derrubar o império asteca.

Esses dois exemplos mostram como é perigoso tentar impor ordem e significado simbólicos ao mundo antes de realmente compreendermos como esse mundo é. Mesmo assim, sempre faremos isso, porque é muito difícil para os seres humanos tolerarem o mistério como tal - o que o teólogo Rudolpf Otto chama o Mysterium tremendum do mundo. É tão terrível e inexplicável que o homem sempre teve de pôr uma cortina de fumaça de símbolos entre esse mundo e ele próprio. Podemos dizer que uma das funções da linguagem é ser um instrumento para tirar o mistério do mistério. Sempre fizemos isso, e inquestionavelmente os historiadores futuros verão que ainda o fazemos, talvez não tão flagrantemente como os astecas e os gregos mas ainda em alto grau.

Essa tendência de impor uma ordem e um significado prematuros ao universo está ilustrada na cultura da Idade Média. Como diz o grande historiador francês de arte medievai Emile Mâle, na Idade Média a ideia de uma coisa era sempre mais real do que a coisa em si'. O estudo de coisas por si próprias não fazia sentido para os homens que pensavam. A tarefa do estudante da Natureza era descobrir a verdade eterna que Deus desejava que cada coisa exprimisse. Podemos hoje em dia perguntar quais eram as verdades eternas expressas pelas coisas individuais na Idade Média: não eram generalizações baseadas na humilde observação dos fatos. Os sábios medievais simplesmente não estavam interessados na humilde observação dos fatos. Interessavam-se apenas em ilustrar, no mundo exterior, algo que tinham lido nas Escrituras ou nos filósofos gregos que consideravam autoridades.

Podemos dizer que a relação adequada entre palavras e coisas foi invertida em toda a Idade Média. Presumo que a relação adequada seja que as palavras são símbolos arbitrários, representando as coisas. Mas os medievais pensavam de maneira oposta. Encaravam as coisas como ilustrações de algum princípio abstraio geral, encontrado em Aristóteles ou em algum lugar das Escrituras. Lendo literatura medieval, no começo ficamos muito entretidos com o fenómeno extraordinário da botânica alegórica, das parábolas da história natural e da astronomia que prevê a sorte. Mas logo - aqui falo de mim mesmo - ficamos oprimidos pela terrível hu-manização da natureza. Temos a sensação de sermos lançados num mundo em que tudo tem uma sufocante humanidade, em vez de ser diferente da humanidade. Para usar uma frase de Gerard Manley Hopkins, o mundo medieval é aquele em que tudo "tem sujeira de gente e cheiro de gente"2. Só quando se modificou essa inversão da relação entre palavras e coisas, como resultado de um interesse novo na ciência, entramos num mundo onde a Natureza é repousantemen-te diversa desse mundo tão humano.

Cremos, em nossos dias, que os aspectos mais apavorantes da vida contemporânea surgiram exatamente dessa relação errada entre símbolos e palavras. Todas as tiranias totalitárias de hoje fundamentaram-se na relação errada entre coisas e palavras; as palavras não foram encaradas por elas como símbolos arbitrários representando coisas, mas as coisas foram consideradas como ilustrações das palavras.

 

1 Mâle, Emile. The Gothic image, Harper & Row, Nova York, 1958, pp. 27-28.

2 Hopkins, Gerard Manley. "God's grandeur", I, 7, In: The poems of Gerard Manley Hopkins, Oxford University Press, London, 1967, p. 66.

 

Vejamos, por exemplo, toda a doutrina nazista. Ela teria sido impossível se judeus e ciganos, como indivíduos, tivessem sido encarados tal qual eram - cada um uma personalidade humana. Mas não era assim que os encaravam. Ao contrário, cada pessoa era reduzida a uma mera ilustração de um rótulo pejorativo; a palavra "judeu" ou "cigano" era considerada uma categoria. E os indivíduos humanos, que na verdade eram as únicas realidades, eram assimilados por essa categoria; eram transformados em meras ilustrações de uma categoria ruim, e como tal podiam ser exterminados com uma consciência bem tranquila: o que se exterminava não era realmente um ser humano, mas apenas a ilustração de uma ideia.

Vemos a mesma coisa nos regimes comunistas, onde seres humanos individuais são tratados globalmente apenas como ilustrações de capitalismo, imperialismo, burguesia canibal, e assim por diante, tratados como algo subumano, que é permitido destruir. Não há dúvida de que essa tendência é uma das mais perigosas que temos de enfrentar. E um dos mais altos preços que pagamos pelo inestimável benefício da linguagem. Somos forçados a aceitar - porque aceitamos a gramática e a sintaxe da nossa língua - a ideia de que classes inteiras de coisas reais são, na verdade, meras expressões de algum princípio diabólico.

Podemos entrar em guerra apenas se os indivíduos humanos engajados nela foram esquecidos e o lado adversário equiparado à concretização de uma abstração má. E isso, de fato, o que toda a propaganda de guerra está fazendo pessoas do nosso lado acreditarem: que <as pessoas do lado adversário são apenas concretização de abstrações muito más. Penso que os países democráticos não podem ir tão longe nesse campo quanto o fizeram outros, mas ainda assim o perigo é assustador.

Vamos agora refletir, num nível intelectual, sobre os perigos de dar-se uma ordem e um significado errados a este mundo. Há alguns anos, estive muito interessado na história do que era chamado "magnetismo animal" e mais tarde se designou por "hipnotismo". Examinando a história desse tema tão estranho durante o século XIX, ficamos espantados com a atitude da medicina oficial, e, até certo ponto, da ciência oficial em geral. A Weltanschauung vitoriana assumira certa forma, e a necessidade de ordem e significado acentuara o fato de que objetos materiais eram muito mais reais do que acontecimentos psicológicos; por isso era impossível para a maioria dos médicos agir de maneira científica ou até racional diante do fenómeno do magnetismo animal, ou hipnose.

Toda a teoria da anestesia hipnótica foi desenvolvida por James Esdaile em 1846, antes da descoberta do clorofór-mio e do éter, e antes da invenção da cirurgia asséptica e dos antissépticos. Esdaile não apenas era capaz de realizar grande número de operações que jamais tinham sido realizadas, mas conseguiu reduzir a taxa de mortalidade pós-cirúrgica de vinte e nove para cinco por cento. Poder-se-ia pensar que os médicos prestaram atenção a isso, mas tudo o que Esdaile recebeu como recompensa por seus esforços foi ser expulso da entidade a que pertencia, ser chamado de curandeiro e charlatão, e ser proibido de praticar a medicina. E extraordinário que o livro de texto recentemente publicado pelo dr. Milton Marmor, o anestesiologista do Hospital Cedro do Líbano, de Los Angeles, comece exatamente onde Esdaile parou há cento e treze anos, e que apenas pelo desgosto profissional e académico diante de ideias pouco familiares um procedimento de imenso valor ficasse completa ou virtualmente inexplorado por mais de um século'. Não foi apenas má intenção; os membros da profissão médica que perseguiram Esdaile e seus seguidores eram totalmente prisioneiros de seu sistema de ordem e significado, que fora desenvolvido nos dois últimos séculos, e não podiam escapar dele.

0 futuro sem dúvida nos mostrará que há muitas prisões semânticas nas quais estamos confinados hoje em dia, e que não nos permitem pensar claramente sobre diversos assuntos muito importantes. Sem devida, daqui a um século será óbvio para os historiadores, mas não o é para nós, quais são essas prisões. Apenas podemos ter certeza de que há muitas delas.

 

1 Marmor, Milton J. Hypnosis in anesthesiology, Springfield (III.), C. C. Thomas, 1959.

 

         Arte

         Pronunciada em 7.11.1959.

Nesta conferência tentarei abordar um assunto insuportavelmente vasto - a arte - e como ela se relaciona com o indivíduo humano. Quando refletimos sobre isso, sobre o enorme papel desempenhado pela arte na história humana - e a grande importância que o homem sempre atribuiu à arte -, vemos que é uma coisa bem estranha. É preciso ponderar quais os motivos disso e quais as relações entre arte e vida humana. O assunto é vasto, e posso apenas tentar abordar vários aspectos.

Vimos que em geral o homem tem o que chamamos necessidade de ordem e de significado. Nosso sistema nervoso fornece uma profusão de experiências, uma profusão tão grande que nos parece uma confusão. Consequentemente, mesmo depois que nosso sistema nervoso procedeu à seleção da realidade imediata, ficamos desnorteados e de alguma forma temos de curar esse nosso desnorteamento. Queremos pensar em nós mesmos como seres coerentes, vivendo num mundo coerente, que faz sentido. Mas, a fim de vivermos num mundo desses, temos de criá-lç, impondo sobre o mundo da nossa experiência um padrão de ordem e significado, e fazemos isso impondo-lhe um sistema de símbolos.

Podemos dizer que a ciência, a arte e a filosofia são três maneiras de dar sentido ao mundo em que vivemos. A ciência e a filosofia preocupam-se em explicar o mundo em termos do menor número possível de princípios gerais que possam dar significado à profusão que nosso sistema nervoso nos apresenta. A ordem e o significado procurados pelo artista e impostos por'ele na confusão-profusão do mundo é de tipo diferente. O artista não procura explicar o mundo em termos de beleza. Para usar uma frase originalmente empregada por Clive Bell, que, embora vaga, é muito útil, o artista dá ordem ao mundo em termos de "forma signifi-cante". O que é tentar perceber as formas inerentes à natureza, e encontrar uma equivalência simbólica para essas formas, que ele então impõe ao mundo a fim de produzir a ordem que sente ser tão importante, e que, na verdade, todos julgamos ser muito importante.

O artista busca impor essa ordem de beleza e de forma significante às realidades externa e interna dentro de si próprio. Quer sempre ver-se em relação com o mundo, e criar simbolicamente uma harmonia na qual ambos se encaixem. Nesse ponto - levando em conta conscientemente tanto o mundo interno quanto o externo - a arte difere em muito da maioria das ciências.

As ordens e significados que o artista impõe ao mundo são naturalmente de qualidades muito diversas. Existem ordens boas e más. Há significados bons e maus. Uma ordem pode não ser bastante ordenada - e teremos uma obra de arte caótica - ou pode ser ordenada demais - e teremos uma obra rígida, convencional, monótona em seu formalis-mo. Ou ainda podemos ter uma ordem na qual os elementos com os quais se cria o sistema simbólico são excelentes, mas o arranjo total fracassa. Inversamente, podemos ter um arranjo globalmente bom, de elementos bem inadequados. E ocasionalmente conseguimos um arranjo excelente de elementos excelentes nesse caso teremos uma obra-prima. Mas, como todos sabemos, obras-primas de arte são muito raras.

Da mesma maneira, podemos ter diferentes graus de excelência nos significados dados pelos artistas ao mundo. Podemos ter significados que são nobres e outros ignóbeis. Podemos ter significados fiéis à natureza, e realistas, e outros profundamente irrealistas. Podemos ter significados vulgares e desagradáveis, e outros refinados e importantes. Vemos, pois, que aqui entra a importância social da arte; podemos dizer que o estilo de vida em qualquer sociedade dada, dentro de um certo período, é, pelo menos em parte, ditado pela qualidade da arte que domina nesse tempo. Se a arte é boa, e as pessoas se interessam por ela, de modo geral o que chamamos estilo de vida será bom. Se a arte dominante for ruim, o estilo de vida pode deixar muito a desejar em elegância e nobreza. De certa maneira, erros e falhas estéticas podem ter consequências sociais. Uma obra de arte ruim pode ser um insulto social; pode fazer muito mal - ou pode deixar de fazer muito bem. As melhores obras de arte ajudam-nos a nos conhecermos e a conhecermos nossas relações com o mundo, enquanto obras de arte ruins e inferiores nos encorajam na nossa fraqueza, e nos encorajam a vermos o mundo de maneira desinteressante e insignificante.

Podemos dizer que o cidadão que gritava, em Júlio César: "Rasguem-no em pedaços por seus versos ruins", estava certo, e que o homem que escreve maus versos comete um crime contra a sociedade'.

0 grande artista tem de agir com compreensão e simpatia. A grandeza do grande artista depende exatamente da amplidão e intensidade de sua simpatia. Tem havido, naturalmente, artistas extremamente bem-dotados, cuja visão era extraordinariamente estreita. Eles produziram obras de arte notáveis dentro de um âmbito muito restrito, mas de modo geral artistas que o mundo sempre reconheceu como os maiores são aqueles com a maior simpatia. Pessoas que combinam intensidade com amplitude são, por assim dizer, capazes de assimilar uma maior quantidade de material, e ordená-lo, do que o artista menor.

Walt Whitman tem observações interessantes sobre a simpatia. Ele diz:

"As mensagens dos grandes poetas a cada homem e mulher são: venham até nós em termos iguais; só então poderão entender-nos; não somos melhores do que vocês; em nós existe o que existe em vocês; gostamos daquilo que vocês podem gostar. Pensaram que poderia existir apenas um Supremo? Afirmamos que pode haver incontáveis Supremos, e que um não compensa outro, assim como uma vista não compensa a outra" .

Há uma linha em "Canção de mim mesmo" em que Whitman diz: "Quem quer que ande um oitavo de milha sem simpatia caminha para seu próprio funeral, trajando sua mortalha"3. E outra passagem famosa: "Sou o homem. . . sofri. . . estive lá"4. Essas linhas sobre simpatia são seguidas por uma espantosa série de identificações, nas quais o poeta se identifica com diversas classes da humanidade sofredora. Identifica-se com o escravo caçado, com uma vítima do massacre do Álamo, com um marujo no Eonhomme Richard. E curioso comparar essa rapsódia whitmaniana, que é muito bela, com a expressão muito mais clássica da mesma ideia em "Strayed reveller", de Matthew Arnold, onde ele fala do poeta que vê o mundo tão claramente quanto os deuses o vêem, mas também de modo muito diferente, na medida em que está identificado com o mundo e sofre com o que vê.

 

1 Sbakespeare, William, Júlio César, ato III, cena III, linha 34.

Whitman, Walt. Prefácio à primeira edição de Leaves of grass (1855).

3 Songofmyself, (48)1265.

4 Ibid., (33) 827.

 

O poema pode ser resumido nessas palavras: "Eis o preço que os deuses cobram pela canção, para tornar-se o que cantamos"1.

O processo é o de tornar-se e depois expressar o que nos tornamos com os mais poderosos e penetrantes símbolos possíveis; é uma questão de encontrar um equivalente simbólico de experiência imediata da simpatia e apresentá-lo da maneira mais nobre e refinada possível. Quando o artista falha em colocá-lo numa forma que nos pareça nobre, de-frontamo-nos com o problema da arte ruim e das más consequências sociais que ela pode ter.

Aqui eu gostaria de fazer uma pequena digressão sobre dois aspectos da arte que estão sempre presentes: a arte como comunicação e a arte como terapia. Todos os poetas sublinharam o fato de que a arte é uma terapia. Falam repetidamente no poder da arte de livrar o poeta das emoções e pensamentos dolorosos que o torturam - livrá-lo deles na medida em que ele lhes dá atenção e os expressa. A moderna psicoterapia tem dado grande importância a esse lado catár-tico e terapêutico da arte. Incontáveis pessoas com problemas psicológicos viram que conseguem grande alívio dando expressão artística a suas ideias; a pressão dolorosa dentro delas afrouxa-se, e vivem de maneira muito melhor.

Contudo, o que vemos hoje em dia, lamento dizer, é que muita gente que assume a arte de maneira diletante e extrai dela uma boa dose de prazer confunde as duas funções da arte, e imagina que, como a arte que produz é terapêutica para ela, dará prazer a outras pessoas. Isso, ai de nós, não é sempre verdade. A pintura que fiz, que pode ser muito boa para mim, pode deixar vocês doentes; isso é algo que, infelizmente, muita gente julga difícil de entender. Penso que devíamos deixar bem claro que a arte como comunicação é um trabalho para pessoas especialmente dotadas, mas a arte como terapia é algo que provavelmente todo mundo deveria praticar para seu próprio bem. Se deixarmos isso claro, e deixarmos claro para nós mesmos que a arte como terapia não é necessariamente o mesmo que a arte como comunicação, seriam evitadas as aborrecidas confusões e decepções que afetam muitos artistas amadores.

 

1 Arnold, Matthew. The strayed reveller to Ulysses,/?p. 103-105. 166

 

Voltemos agora ao problema da arte contrastada com a ciência e a filosofia. Na ciência e na filosofia provavelmente há dois métodos principais de explicar a realidade. Um é o método de concentrar a atenção nos elementos atómicos da realidade. Isso é representado na antiguidade clássica pela obra de Demócrito e Lucrécio e é a metodologia básica da física e química modernas, começando com Galileu e Newton. Nós o vemos aplicado, no nível psicológico, no beha-viorismo.

O outro método é o método formal de concentrar a atenção nas Gestalten da natureza, nas formas apresentadas em larga escala. No período clássico, essa abordagem formal foi representada de maneiras diversas por Platão e Aristóteles, e na ciência moderna vemos isso na toxonomia, na anatomia comparativa e na morfologia. Incidentalmente, a palavra "morfologia" foi inventada por Goethe, de modo que tem uma conotação profundamente artística e poética; na moderna psicologia, vemo-la representada pela escola da Gestalt.

Na maioria dos casos a arte tem estado mais interessada na segunda abordagem da realidade, embora tenhamos abordagens atómicas. Na literatura moderna, encontramos exemplos em Mulheres apaixonadas, de D. H. Lawrence, nos romances de Dorothy Richardson, e em partes dos romances de James Joyce, onde a atenção parece concentrada em elementos psicológicos tão pequenos - por assim dizer átomos psicológicos - que estão abaixo do nível da personagem e da narrativa.

Há aqui uma analogia com as menores partículas da física e química. Na química, a molécula está abaixo do nível da cor e da temperatura. O átomo e as partículas subatômicas estão mais baixo ainda - estão abaixo até mesmo do nível da química. Mesmo assim, na literatura e na ciência, as "partículas elementares", quando bem usadas, dão-nos visões notáveis da realidade.

No campo da música encontramos algo análogo nas obras do compositor francês Pierre Boulez, onde os sons são quase atómicos - abaixo do nível da melodia e das formas ordinárias de construção. Algo desse tipo pode ser visto também em algumas manifestações de arte nãorepresentativa.

Penso que algumas pinturas de Jackson Pollock podem ser vistas dessa maneira, como arte na qual o artista se concentrou nos elementos atómicos da forma - que estão abaixo do nível do padrão no sentido ordinário e certamente abaixo do nível da representação de objetos naturais.

Essas abordagens atómicas, se bem feitas, podem ser extraordinariamente interessantes, embora eu pense que depois de certo tempo talvez nos cansemos delas. Em geral, a arte concentrouse nos elementos formais; não se concentrou nos átomos que compõem a realidade, mas nos padrões gerais. Procurou esses padrões no mundo exterior e, através dos equivalentes simbólicos, tentou impor uma ordem e significado abrangentes à realidade, que julga tão confusa.

Aqui preciso fazer outra breve digressão para analisar a natureza das formas simbólicas que os artistas têm escolhido. A arte pode ser dividida em duas grandes classes: as formas de arte que lidam com a realidade espacial, e aquelas que lidam com a realidade onde se emprega o elemento tempo. Nos dois casos veremos que os símbolos usados pelos artistas se relacionam com padrões que ocorrem no mundo exterior.

Consideremos primeiramente um dos fundamentos da arte espacial, que também é um dos fundamentos dos objetos vivos no mundo natural: a questão da simetria e assimetria. Como vemos ao examinar criaturas vivas, há duas formas principais de simetria: a simetria do animal vivo livre, que é uma simetria bilateral - os dois lados do animal combinam entre si, mas a parte dianteira e a posterior diferem; o animal tem cabeça e cauda e move-se em uma direção. Isso é radicalmente diferente da simetria radial, que encontramos em muitas flores e naqueles animais que não são sésseis nem livres - que não têm capacidade de se mover intencionalmente em nenhuma direção, mas ficam imóveis ou flutuam passivamente.

Examinando a maneira pela qual os artistas usaram a simetria em seus símbolos, vemos que, onde ocorre a simetria radial como símbolo, ela está sempre associada com ideias de repouso e descanso. Os símbolos com simetria bilateral parecem ter algo dinâmico e poderoso. Isso é ilustrado de maneira surpreendente quando comparamos as cúpulas e arcos redondos da arquitetura bizantina e romana com as torres e arcos pontudos do gótico. Os primeiros dão-nos uma forte impressão de quietude e repouso. Os outros dão-nos uma impressão igualmente poderosa de dinâmica decisão, movimento e direção. Vemos, pois, que existe uma relação forte e estreita entre o significado dos símbolos e os fatos do mundo exterior, que observamos e inconscientemente transferimos para nossos símbolos.

As relações matemáticas dentro dos padrões do mundo exterior são muitas vezes próximas ou idênticas às relações matemáticas dentro das formas simbólicas que julgamos satisfatórias na arte. Por exemplo, a Seção Dourada, que fundamenta praticamente todo o processo de composição na arte ocidental, é frequentemente encontrada na natureza; relações matemáticas como a série Fibonacci e a espiral loga-rítmica ocorrem tanto na natureza quanto na arte, e nos parecem absolutamente satisfatórias. As relações matemáticas usadas por animais como o que os modernos etologistas chamam de "mecanismos de liberação" (releasing mechanisms) são padrões muito simples e evidentes, facilmente reconhecidos mesmo por animais de nível bastante inferior, e os seres humanos os julgam esteticamente significantes.

Da mesma maneira, vemos que os ritmos naturais são usados em símbolos temporais. Afinal, em todas as formas de arte temporal (poesia, drama, narrativa, dança, música) encontramos os mesmos símbolos elementares: repetições, variações sobre um tema, ritmos de natureza mais ou menos circular, ou ritmos que agem por assim dizer numa linha ondulante ou reta. Analogias de tudo isso são encontradas na natureza. O movimento dos corpos celestes, o ciclo do crescimento, os ritmos de respiração, a atividade cardíaca, os movimentos peristálticos e assim por diante, e os ritmos mais irregulares, como os de fome e saciedade, todos encontram sua analogia nas várias artes que contêm um elemento de tempo. O homem olha o mundo exterior, vê ao seu redor ritmos cósmicos e fisiológicos, faz uma analogia deles nas suas artes temporais, e usa-os para impor um padrão rítmico e repetitivo àquilo que Alfred North Whitehead chama "o fluxo do perpétuo perecimento". Ele dá ordem e sentido a algo que, se não for ordenado, talvez seja aterrador - o movimento em direção a uma escuridão inevitável no futuro. O homem precisa elaborar esses padrões para dar sentido, coerência e significado ao fluxo do tempo; ele os deriva de elementos naturais, reforça-os em seu sistema de símbolos e depois os reimpõe sobre a natureza, para torná-la mais coerente em sua própria mente.

Analisemos agora o que faz o artista quando decide criar. Psicologicamente, o que ele faz pode ser descrito grosso modo da seguinte maneira: ele dá atenção a algo que, dentro ou fora dele, desperta seu interesse, e que deseja reduzir a símbolos e expressar. Depois, abre-se a qualquer coisa que possa surgir em sua mente e enriquecer suas ideias sobre aquilo a que está prestando atenção, permitindo-lhe impor uma ordem mais elaborada e sutil ao sistema simbólico que irá criar.

Qualquer coisa que entre em sua mente pode ser usada nesse processo - associações com acontecimentos da vida passada, conhecimentos científicos ou filosóficos, coisas observadas aqui e ali no mundo externo - tudo é trigo para o seu moinho. Tais elementos são então harmonizados pela imaginação e expressos nos termos simbólicos apropriados para a arte em questão.

A definição de imaginação que Coleridge deu é muito famosa e provavelmente estão familiarizados com ela, mas penso que vale a pena lê-la outra vez. Ele a define como:

 

"... o poder que se revela a si mesmo no equilíbrio ou reconciliação de qualidades opostas ou discordantes, da igualdade com a diferença; do geral com o concreto; da ideia com a imagem; do individual com o representativo; do senso de novidades e frescor com objetos antigos e familiares...

             M *

 

Essa reunião de objetos disparatados, muitas vezes irrelevantes ou mesmo mutuamente hostis, do conhecimento ou de experiência, e sua fusão num todo, é extremamente importante para todas as análises de artistas.

Dentro do que chamamos "escala molecular" da arte, é a metáfora que ilustra, na literatura, o poder da imaginação. A metáfora é essencialmente uma reunião, pela imaginação, de elementos disparatados e irrelevantes, fazendo deles um todo novo, que nos surpreende quando o lemos, porque confere um novo significado e ordem não só aos elementos que reúne mas ao ponto que eles ilustram.

Quero dar alguns exemplos de boas metáforas. Primeiro, a metáfora sobre o sono, em Macbeth: "O sono que trama a seda emaranhada dos cuidados"2. Aqui, a metáfora é o novelo da seda que um gatinho, brincando, emaranha; o sono alisa tudo e ordena novamente. É uma metáfora muito bela e forte.

1Coleridge, Samuel Taylor. Biographia literária, Londres, 1817. 2 Shakespeare, William. Macbeth, ato II, cena II, linha 37.

Analisemos a metáfora que encontramos em A tempestade, onde Próspero diz: "As mais fortes maldições são palha / No fogo do sangue" '. Novamente uma metáfora poderosa. E aqui vale a pena notar como essas metáforas dependem de certo contexto económico e social. Para uma criança criada num apartamento na cidade, essa metáfora nada significa. Ela nunca viu palha, e, se mora num apartamento bem aquecido, nunca viu uma fogueira. Se estivesse escrevendo isso, provavelmente diria: "As mais fortes maldições são celulóide no curto-circuito do sangue". De qualquer modo, se tivemos a sorte de sermos criados no interior, vendo fogueiras, essa metáfora nos parecerá muito interessante e re-veladora. O mesmo tipo de ilustração da força e violência do desejo aparece em outra metáfora shakespeariana: "Pois essas tetas de leite / que atrás das grades da janela exibem-se aos olhos dos homens"2.

Penso numa metáfora surprendente de um dos poemas de Gerard Manley Hopkins, que fala no horror de ser um ego isolado: "O fermento do espírito azeda uma massa insí-pida"3. A tragédia religiosa de ser um eu egoísta, que resiste a Deus, é poderosamente ilustrada nessa metáfora tão doméstica do fermento no pão.

Eis uma bela metáfora de Júlio César, quando Pórcia diz a Brutus: "Acaso habito apenas os subúrbios / de vosso prazer?"4.

Desejo ler aqui todo um extraordinário poema chamado "Prayer" ("Oração"), de Gorge Herbert. O poema é uma série de extravagantes mas muito belas metáforas, que exemplificam o poder imaginativo de reunir elementos disparados para ilustrar o ponto em questão:

"Oração, banquete das igrejas, século dos anjos,

Hálito de Deus no homem que renasce,

Alma em paráfrase, coração peregrino,

Prumo cristão sondando céus e terras;

Máquina contra o Todo-Poderoso, torre de pecados,

Trovão invertido, lança-perfurando-o-lado-de-Cristo

Mundo de seis dias transposto em uma hora,

Som que as coisas todas ouvem e receiam;

Brandura e paz, e alegria, e amor, e bênção,

Exaltado Maná, prazer dos mais intensos,

Céu nas coisas ordinárias, homem ataviado,

Via-láctea, ave do Paraíso,

Sinos de igreja além das estrelas, sangue das almas,

Terra dos sabores; algo compreendido".

 

1 Id., The tempest, ato IV, cena I, linha 52.

2 Sbakespeare, William. Timon of Atkens, ato IV, cena III, linhas 115-116.

3 Hopkins,   Gerará Manley.   "Sonnet 67". In: Gardner,   W. H. & Mackenzie, N. H., eds. The poems of Gerard Manley Hopkins, Oxford University Press, Londres, 1957, p. 12.

4 Shakespeare, William. Júlio César, ato II, cena l, linhas 285-286.

 

O final é extraordinário: toda essa série de metáforas extravagantes termina com "algo compreendido". E é verdade que tais metáforas, onde a imaginação reuniu elementos de todas as partes, nos permitem entender o misterioso processo da oração, que Herbert, cristão extasiado, comenta.

0 sistema chinês de escrita lança uma interessante luz sobre as metáforas. Os chineses usam ideogramas que, em muios casos, são metáforas cristalizadas. Reúnem elementos disparatados, simbolizados por um único caráter e que representam certas ideias. O caráter que representa "bom" contém os dois caracteres de mulher e criança - símbolo belo e tocante. Mas os chineses eram pessoas muito realistas, e sabiam, como disse Bacon, que as mulheres e crianças eram penhores da boa sorte, e que um homem que possui penhores da boa sorte está de muitos modos tolhido. Consequentemente, o símbolo para mulher em conjunção com outro símbolo que, no sentido literal, representa "quadrado", significa "embaraço". O chinês que vê esses símbolos é estimulado a pensar naquilo que os símbolos representam e no seu significado, o que a nossa escrita alfabética, embora bem mais eficiente e prática do que a chinesa, nunca consegue.

Em grande escala, a imaginação harmoniza esses pequenos elementos da arte e outros padrões muito maiores no grande todo da obra de arte completa. Aqui devo enfatizar algo em que acredito fortemente, embora muitos críticos contemporâneos discordem. Acredito intensamente que há uma hierarquia de perfeições. Podemos ter uma perfeição artística em escala bem pequena, mas é uma perfeição de ordem inferior à perfeição em grande escala, que envolve a harmonização de muitos aspectos da experiência. A canção "Fulljathomfive thy father lies" ("Vosso pai jaz a cinco braças de profundidade")' é uma perfeição. Não há dúvida quanto a isso. E uma pequena peça de poesia incrivelmente bela. Mas direi que essa perfeição é de ordem inferior à perfeição de Macbeth ou Hamlet, que combinam uma imensa massa de material, formando um todo artisticamente satisfatório.

 

1 Shakespeare, William. A tempestade, ato I, cena II, linha 394.

 

Eu diria, por exemplo, na esfera das artes visuais, que uma peça de cerâmica Sung é perfeita, mas essa perfeição é de ordem inferior à de, digamos, uma das melhores paisagens Sung, que harmoniza um grande número de elementos. Uma peça de tapeçaria ou um tapete podem ser perfeitos, mas é uma perfeição de ordem inferior à da Assunção de El Greco, da N atividade de Piero, ou do Dois de Maio de Goya. E se posso arriscar-me a criticar uma manifestação de arte contemporânea, penso que muitas obras não-represen-tativas, embora muito belas, são obras de uma perfeição de ordem inferior à de qualquer das grandes composições que mencionei antes, simplesmente porque harmonizam muito menos elementos. Uma obra como a N atividade, ou o Dois de Maio, harmoniza não apenas sistemas de forma e cor muito complicados, mas também toda sorte de sentimentos humanos e julgamentos éticos de valor.

Há um tipo de puritanismo moderno que pensa que esses julgamentos, chamados literários, deveriam ser inteiramente omitidos das obras de arte. Não sei por quê, levando em conta que os seres humanos usaram a arte para se expressar nos últimos cinco mil anos. Mas meu ponto de vista é que, se podemos ter uma obra de arte que harmoniza todos esses elementos, sua perfeição será superior à de outra que harmoniza apenas poucos elementos.

Entremos na questão dos diferentes tipos de arte. Há cento e cinquenta anos presumia-se que havia apenas uma espécie satisfatória de arte visual, a da .renascença grega ou romana. Superamos isso simplesmente porque sabemos bem mais do que nossos pais. A fotografia e a antropologia colocaram à nossa disposição todo o quadro da arte de pelo menos cem mil anos. Agora vimos as obras do homem paleolí-tico; culturas inteiramente novas que simplesmente não eram conhecidas quando eu era menino têm chegado ao nosso conhecimento. Sabemos agora que há muitos tipos diferentes de arte, e que como diz Whitman, há muitas formas do Supremo, todas com direito a existência própria.

Vemos desde o começo grandes diferenças nos estilos das obras visuais. Nas cavernas de Lascaux, na França, podemos ver que há vinte mil anos o homem pintava figuras animais de um modo fantasticamente naturalista. Usava o que Erich Jaensch e seus companheiros psicólogos chamam "imagem eidética"; ele tinha de alguma forma a capacidade de projetar na parede da caverna, com absoluta fidelidade, o que vira. Mas mil anos mais tarde, quando chegamos à arte neolítica, encontramos uma abordagem totalmente diferente: tudo está representado de forma inteiramente simbólica. A figura humana e animal foram reduzidas ao mais abstraio tipo de expressionismo.

Vemos o expressionismo intenso e violento de muitos tipos da dita arte primitiva - arte africana, polinésia, pré-colombiana - projetando sentimentos internos da maneira mais forte possível em formas exteriores, distorcidas pelo extraordinário poder da emoção que está sendo despejada nelas. Temos arte envolvendo o que podemos chamar empa-tia, claramente ilustrada nas pinturas de paisagem chinesas e no Impressionismo. Temos a arte puramente decorativa, a arte do arabesco, que os muçulmanos estavam condenados a praticar porque não lhes permitiam representar formas humanas. E temos uma espécie de arte arquitetônica - construção de formas geométricas, como vemos no Cubismo, e a arte da pura fantasia, a arte surrealista. Todas elas foram ilustradas alguma vez, em alguma parte do mundo, e todas são métodos perfeitamente legítimos de dar ordem e significado ao mundo, pois uma não desvaloriza a outra. Todas são "supremos" de igual valor, e uma perfeição pode ser obtida em cada uma delas.

Quero concluir com algumas palavras sobre a mais difícil das artes, a música. A música é um campo muito misterioso da arte porque os símbolos de que faz uso são remotos em relação à nossa experiência imediata. Na literatura usamos palavras que têm significado «pré-fixado, e na pintura usamos formas do mundo exterior que nos são bastante familiares. Mas na música usamos sons que parecem ter uma vida própria, apartada do mundo exterior, e um ritmo que, embora tenha analogias com ritmos naturais, é estranhamente independente deles. E como todos os grandes músicos insistem em dizer, e como qualquer pessoa que tenha ouvido e compreendido música concorda, a música tem uma espécie de significado cognitivo. Diz algo sobre a natureza do universo, Beethoven insistia muito nisso, e encontramos afirmações parecidas de quase todos os grandes compositores. Eles têm essa sensação intensa de que o que estão dizendo não é apenas um desenho de sons.

Numa base estritamente individual, esses ritmos complicados nos dizem algo sobre os ritmos igualmente complicados da vida interior do homem. Esses são provavelmente inexprimíveis em palavras, mas muitas coisas não podem ser expressadas em palavras. Compreendemos a impossibilidade de expressar música em palavras quando lemos uma "explicação" dizendo: "Nesse momento Beethoven expressava sua agonia por estar separado de sua amada", ou coisa assim. O programa seguinte dirá: "Nesse momento Beethoven ria estentoreamente da comédia da vida humana".

Tudo isso prova que as palavras são meios muito insuficientes para dizer o que é a música

- é um tipo muito obscuro e sutil de movimentos dentro da mente-corpo e do espírito. E talvez a música seja ao mesmo tempo o universo em movimento. Parece exprimir uma espécie de dinamismo puro e não-físico do mundo exterior. Parece até exprimir algo que Bergson descreveu quando falou em William James:

"As poderosas emoções que agitam a alma em momentos especiais são forças tão reais quanto essas que interessam aos físicos; o homem não as cria mais do que cria a luz ou calor. Segundo James, estamos mergulhados numa atmosfera repassada por grandes correntes espirituais"'.

Isso pode soar como uma visão mística do que a música representa, e do que na verdade todas as artes representam; mas meu sentimento pessoal é de que há nisso uma profunda verdade.

Todas as artes, embora falem sobre nós em nossa relação com a experiência imediata, dizem-nos ao mesmo tempo algo sobre a natureza do mundo, sobre as misteriosas forças que sentimos em torno de nós e sobte a ordem cósmica da qual parecemos ter, por vezes, algum lampejo de compreensão.

 

Bergson, Henri. Prefácio a William James. Lê pragmatisme. Flamma-rion, Paris, 1911.

 

         O homem e a religião

         Pronunciada em 23.11.1959.

Gostaria de começar lendo duas ou três linhas do capítulo 21 do Livro do Apocalipse. Esse capítulo contém uma descrição de Nova Jerusalém, e termina assim: "E a rua da cidade era puro ouro, como se fosse vidro transparente. E não vi nela nenhum templo: pois Deus Todo-Poderoso e o Cordeiro são o seu templo" (Apocalipse 21:21-22).

Da mesma maneira não havia templo - nem religião no sentido comum da palavra - no Éden. Adão e Eva não exigiam o aparato comum da religião porque estavam em condições de ouvir a voz do Senhor quando Ele passeava "pelo jardim no frescor do dia" (Génese 3:8).

Lendo o Livro do Génese vemos que a religião, no sentido convencional, começou só depois da expulsão de Adão e Eva do Paraíso, e que o primeiro registro dela é a construção dos dois altares por Caim e Abel. Esse foi, pois, o começo da primeira guerra religiosa. Caim era um agricultor um vegetariano, como Hitler - e Abel era um pastor e um carnívoro. Estavam apaixonadamente divididos em suas diferentes ocupações, e isso lhes conferiu uma espécie de absolutismo religioso, com o triste resultado que conhecemos.

No terceiro capítulo do Génese, depois do nascimento de Seth, o terceiro filho de Adão, há referência a uma nova fase na religião. O versículo diz: "E também a Seth nasceu um filho; e ele o chamou de Enós, e então os homens começaram a invocar o nome do Senhor" (Génese 4:26).

Esses dois grupos de referências evidenciam que há duas espécies principais de religião: a religião da experiência imediata - nas palavras do Génese, a religião de quem ouve a voz de Deus passeando no Paraíso ao frescor do dia, a religião do contato direto com o divino do mundo; e a religião dos símbolos, a religião da imposição de ordem e significado ao mundo através de símbolos verbais e não-verbais e a sua manipulação, a religião do conhecimento a respeito do divino, e não de um contato direto com ele. Esses dois tipos de religião sempre existiram, e vamos comentá-los.

Comecemos com a religião como manipulação de símbolos para impor ordem e sentido ao fluxo da experiência. Na prática, vemos que há dois tipos de religiões manipula-doras de símbolos: a religião do mito e a religião do credo e da teologia. Obviamente o mito é uma espécie de filosofia não-lógica; ele expressa na forma de uma história ou, muitas vezes, de alguma imagem visual, ou até na forma de uma dança ou de um ritual complicado, algum sentimento generalizado sobre a natureza do mundo e da experiência humana em relação a isso. O mito não é pretensioso, não afirma ser estritamente verdadeiro. Ele apenas exprime nossos sentimentos sobre a experiência. Mas embora seja uma filosofia não-lógica é muitas vezes uma filosofia bem profunda, exatamente por ser não-lógica e não-discursiva. Permite reunir, na história, na imagem, na pintura, na escultura ou na dança, uma série das partes disparatadas e até aparentemente inco-mensuráveis ou incompatíveis da nossa experiência. Reúne-as e mostra que são um todo indissolúvel, exatamente como as experimentamos. Nesse sentido, ele é o tipo mais profundo de simbolismo. Por exemplo, o mito da Grande Mãe, que atravessa todas as religiões antigas, mostra a mãe como princípio de vida, fecundidade, fertilidade, bondade e compaixão nutritiva mas, ao mesmo tempo, ela é princípio de morte e destruição. No hinduísmo, Kali é ao mesmo tempo a mãe infinitamente bondosa e amorosa e a aterradora deusa da destruição, que usa um colar de caveiras e bebe sangue de seres humanos usando uma caveira como cálice. Essa imagem é profundamente realista; se damos vida, temos necessariamente de dar morte, porque a vida sempre termina na morte e tem de ser renovada pela morte. Se tais mitos são verdadeiros ou não é questão bastante irrelevante; apenas expressam nossas reações ao mistério do mundo em que vivemos.

Vemos que antigas religiões míticas e não-lógicas associam-se frequentemente ao que chamamos exercícios espirituais, mas que são na verdade exercícios psicofísicos. Usando canto, dança e gestos, produzem um tipo genuíno de revelação. As tensões físicas causadas por nossa vida ansiosa e egoísta são afrouxadas. Esse relaxamento através de gestos físicos constitui o que os quakers chamavam uma "abertura" através da qual as forças mais profundas da vida dentro e fora de nós podem fluir mais livremente. E muito interessante ver que, mesmo dentro da nossa própria tradição, essa ocasional desinibição por razões religiosas tem influências profundas e muito salutares. Os quakers eram chamados ''quakers'9 simplesmente porque se sacudiam1. As reuniões dos primeiros quakers seguidamente terminavam com grande parte da assembleia entregando-se aos mais estranhos tipos de movimentos corporais, profundamente rela-xantes, e que por assim dizer permitiam o influxo do espírito.

Enquanto se sacudiam, os quakers tinham o mais alto grau de inspiração e estavam no auge de seu poder espiritual. Vemos o mesmo fenómeno nos shakers e no movimento religioso contemporâneo chamado Subud - pessoas reunidas iniciando movimentos involuntários e violentos, que produzem alívio e permitem a muitas pessoas o influxo e o perpassar de profundas forças espirituais. Aqui eu gostaria de citar o eminente sábio francês islamita Emile Dermenghem, que diz que a moderna Europa - isso naturalmente inclui a moderna América - é quase a única a impor a renúncia à participação do corpo nas buscas do espírito, devido à respeitabilidade burguesa e ao puritanismo gálico2. Na índia, assim como no Islã, os cantos, ritmos e dança são exercícios espirituais. Mas apenas pequenos recantos de nossa tradição demonstraram, dando permissão para usar o corpo, que o espírito pode ficar mais liberto, fato que é óbvio quando estudamos a história das religiões orientais.

 

Em inglês, "to quake" significa "estremecer, sacudir-se". (N. da T.)

Dermenghem,   Emile.   Viés   dês   saints   musulmains.   Editions Ba-connier, Argel, p. 285.

 

A religião como um sistema de crenças é um tipo de religião muito diferente, e é o mais importante do Ocidente. Os dois tipos de religião - a do contato direto com o divino e a do sistema de crenças - têm coexistido no Ocidente, mas os místicos sempre constituíram uma minoria entre as religiões oficiais manipuladoras de símbolos, e o relacionamento tem sido uma simbiose mais ou menos desconfortável. Os membros da religião oficial em geral encaravam os místicos como pessoas difíceis, que traziam problemas. Até fizeram trocadilhos com a palavra, chamando o misticismo de "mist-cisma" - uma doutrina confusa e contraditória, que não se conforma facilmente com a autoridade. Os místicos, de sua parte, têm falado daqueles que se devotam à religião simbólica não exatamente com desprezo - porque não sentem desprezo - mas com tristeza e compaixão, porque sentem que a busca e manipulação de símbolos é incapaz de conseguir, pela natureza das coisas, o que eles consideram o objetivo supremo: a união com Deus. William Blake, que era essencialmente místico, expressava-se em termos bastante violentos sobre aqueles dos quais discordava. Ele tem um poeminha que diz: "Venha cá, rapaz, diga-me o que está vendo aí", e o rapaz responde: "Um tolo preso numa armadilha religiosa"1.

Na tradição do cristianismo ocidental, os místicos tiveram sua posição tolerada nos primórdios do desenvolvimento cristão pela perpetuação do que se chama uma fraude piedosa. Pelo século VI apareceu uma série de volumes cristãos neoplatônicos, assinados por Dionísio, o Areopagita, primeiro discípulo de São Paulo em Atenas. Esses volumes foram considerados de valor quase apostólico, na medida em que Dionísio fora o primeiro discípulo de São Paulo. Na verdade, os livros foram escritos ou no fim do quinto ou no começo do sexto século da era cristã, na Síria. O autor desconhecido simplesmente assinou o nome de Dionísio, o Aeropagita, a fim de tornar os livros mais bem aceitos por seus companheiros. Era um neoplatonista que adotara o cristianismo, e combinava a doutrina da filosofia neoplatônica e as práticas do êxtase com as doutrinas cristãs. Essa fraude piedosa teve grande sucesso. O livro foi traduzido para o latim no século IX pelo filósofo Scotus Erigena, e assim entrou na tradição da Igreja ocidental, agindo como,uma espécie de baluarte e garantia da minoria mística dentro da Igreja. Só em tempos recentes a fraude foi reconhecida como tal. Entremen-tes, num desses estranhos e irónicos volteios do destino, essa curiosa peça forjada teve um grande e benéfico papel na tradição cristã ocidental.

 

1 Blake, William. Lacedaemonian instruction.

 

Devemos analisar agora a relação entre a religião da experiência imediata e aquela precipuamente interessada em símbolos. Nesse contexto, existe uma observação muito esclarecedora do abade John Chapman, um beneditino que foi um dos grandes líderes espirituais do século XX. Suas cartas espirituais são de grande interesse; obviamente ele tivera uma. profunda experiência mística e era capaz de ajudar outros ao longo da mesma trilha. Em uma de suas cartas, comenta a grande dificuldade de reconciliar - não apenas reunir - misticismo e cristianismo:

"São João da Cruz é como uma esponja cheia de cristianismo: podemos espremer tudo dela, e permanece a plena teoria mística. Consequentemente, por mais ou menos quinze anos odiei São João da Cruz, chamando-o de budista. Amava Santa Teresa e lia-a repetidamente. Ela é primeiramente cristã,.só depois mística. Depois achei que, no que dizia respeito à oração, eu desperdiçara quinze anos'".

Naturalmente nesse contexto o abade Chapman não falava em "oração" como reza petitória. Falava no que se chama a oração da quietude, oração de quem aguarda pelo Senhor num estado de passividade alerta, permitindo que os mais profundos elementos da mente venham à superfície. Dionísio, o Areopagita, insistiu constantemente, em Teologia mística e outros livros seus, que, a fim de relacionar-se diretamente com Deus e não apenas saber coisas a respeito de Deus, era preciso ir além de símbolos e conceitos. Segundo Dionísio, eles são na verdade obstáculos para a experiência imediata do divino. Empiricamente todos os mestres espirituais, tanto do mundo oriental como do ocidental, constataram que isso é verdade. Um exemplo surpreendente vem dos escritos de JeanJacques Olier, um dirigente espiritual muito conhecido do século XVII, produto da Contra-Reforma e da renovação da teologia mística na França, ao tempo de Luís XIII. Ele escreveu: "A sagrada luz da fé é tão pura que iluminações especiais são impuras comparadas com ela, mesmo pensamentos sobre os santos ou a Virgem Santa, ou sobre Jesus Cristo em Sua Humanidade, são como empecilhos à visão do Deus puro"2.

Isso parece uma afirmação muito estranha e ousada, especialmente de parte de um teólogo da Contra-Reforma, e ainda assim representa uma reafirmação clara do passado. O que Olier chama "a visão do Deus puro" é, falando psicologicamente, a experiência mística. Isso é uma coisa; a crença em proposições sobre Deus, a crença em dogmas e afirmações teológicas e liturgias inspiradas por essas afirmações é algo totalmente diferente.

 

1 Chapman, John, abade. Spiritual letters, Londres, 193?.

2 Frase extraída de Icard, M. H. I. Doctrine de M. Olier expliquée par sã vie et par sés écrits. Paris, Seminário de Saint-Sulpice, 1889. Citada por Bremond, Henri. A literary history of religious thought in France. Society for Promoting Christian Knoivledge, Londres, 1936, v. 3, p. 428.

 

Nesse contexto, eu gostaria de citar as palavras de um eminente teólogo dominicano contemporâneo, padre Victor White, escritor muito interessante já que é um teólogo e psicoterapeuta que trabalhou muito com Jung e é bastante familiarizado com as teorias e a prática da moderna psicologia. Ele diz:

"A concepção de Freud sobre a religião como uma neurose universal (não é) totalmente desprovida de verdade e valor - uma vez que compreendamos essa terminologia. Devemos lembrar que, para ele, não só religião, mas sonhos, fantasias espontâneas, lapsos de linguagem e de escrita - tudo quanto foge à inexequível ideia de consciência completa é considerado de alguma forma anormal e patológico (Cf. Freud, Psicopatologia da vida cotidiana). Mas a teologia também confirmará que, nos credos e cultos exteriores, a religião emerge da relativa inconsciência do homem, de sua incom-prensão e desarmonia com a mente criativa por trás do universo, e de seus próprios conflitos e divisões internas. Tal religião, em linguagem teológica, é resultado da queda do homem da sua integridade e inocência originais, e seu afastamento da visão divina nesta terra" l.

A religião da experiência direta do divino tem sido considerada privilégio de muito poucas pessoas. Pessoalmente, não penso que isso seja necessariamente verdade. Penso que praticamente todas as pessoas são capazds dessa experiência imediata, desde que ajam da maneira correta e estejam preparadas para fazer o que for preciso. Mas aceitamos como certo que os místicos são uma pequena minoria entre uma vasta maioria que deve contentar-se com a religião dos credos, símbolos, livros sagrados, liturgias e organizações.

Crença é um assunto muito importante. Um dos maiores best sellers dos últimos anos chama-se The power ofbelief^O poder da crença"). O título é muito bom, porque a crença é uma enorme fonte de poder. Tem poder para o próprio crente e permite-lhe exercer poder sobre outros. De certa maneira, ela realmente move montanhas. Como qualquer outra fonte de poder, a crença pode ser usada para o bem ou para o mal, com igual eficiência em ambos os casos. Vimos em nossos dias o espetáculo aterrador de Hitler quase conquistando o mundo inteiro pelo poder da crença em algo que não apem s era obviamente errado, mas profundamente mau.

 

White, Victor. God and the unconscious. London Harvill Press, 1952, pp. 45-46.

 

Essa possibilidade da crença, tão constantemente cultivada dentro das religiões de manipulação de símbolos, é ambivalente. Como consequência, a religião como sistema de crenças sempre foi uma força ambivalente. Ela prbduz ao mesmo tempo a humildade e o que os poetas medievais chamam de "prelado altivo", o tirano eclesiástico. Produz a mais alta forma de arte e a mais baixa forma de superstição. Acende as chamas da caridade e também as fogueiras da Inquisição e aquela que queimou Servet na Genebra de Calvino. Produz São Francisco e Elizabeth Fry, mas também produz Torquemada e Kramer e Springer, autores do Malleus maleficorum ("Malho dos feiticeiros"), o grande manual dos caçadores de bruxas publicado no ano em que Colombo descobriu a América. Produz George Fox, mas também o arcebispo Laud. Essa tremenda força da religião como sistema teológico sempre foi ambivalente, exatamente por causa da estranha natureza da crença e da estranha capacidade do homem de inventar respostas fantásticas quando envolve-se em especulações filosóficas.

De modo geral, os mitos têm sido menos perigosos do que os sistemas teológicos porque são menos precisos e têm menos pretensões. Onde existem sistemas teológicos exige-se que as proposições sobre fatos do passado e futuro, e sobre a estrutura do universo, sejam absolutamente verdadeiras; consequentemente, a relutância em aceitá-las é encarada como rebelião contra Deus, merecedora do mais severo castigo. E vemos que, de fato, segundo o registro histórico, esses sistemas têm sido usados como justificação para quase todos os atos de agressão e expansão imperialista. Quase não há um só crime em grande escala na história que não tenha sido cometido em nome de Deus. Isso foi resumido há muitos séculos no hexâmetro de Lucrécio: "Tantum religio potuit suadere malorum'" ("Tão grandes males a religião persuadiu o homem a cometer"). E ele deveria ter acrescentado: "Tan-tum religio potuit suadere bonorum" ("Também persuadiu o homem a fazer tão grandes bens"). No entanto, o bem tem de ser pago com uma grande dose de mal.

 

1 Lucrécio, De rerum natura, 7, 101. 182

 

O fato de a religião, como sistema de símbolos teológicos, causar disputas, deu origem não só às Cruzadas e jihads de uma religião contra a outra, mas a uma grande quantidade de atritos internos dentro da mesma religião. O odium theologicum, o ódio teológico, é notório por sua virulência, e as guerras religiosas dos séculos XVI e XVII tiveram um inacreditável grau de ferocidade. Nesse contexto, penso que deveríamos recordar que hoje estamos habituados a dizer: "Ah, que grandes males o naturalismo como filosofia causou ao mundo!" - mas do ponto de vista histórico, o supernaturalismo trouxe males igualmente grandes, talvez maiores. Não devemos nos deixar levar por esse tipo de retórica.

Mencionei anteriormente a extraordinária capacidade de filósofos e teólogos de produzirem ideias fantásticas, que depois dignificam com o nome de dogma ou revelação. Como exemplo, eu gostaria de citar alguns fatos sobre uma das ideias básicas do cristianismo, a ideia da redenção. A informação que tenho aqui baseia-se no excelente artigo, um longo ensaio sobre o assunto, da Encyclopaedia ofreligion and ethics ("Enciclopédia de religião e ética") de Hastings. O ensaio é do dr. Adams Brown, que foi professor de teologia no Seminário Teológico União, em Nova York. Ele esboçou a história de sua doutrina com grande lucidez e resumiu-a muito convincentemente no final. Quero passar rapidamente por ela, porque ilustra de maneira clara os perigos de uma religião manipuladora de símbolos.

No começo do cristianismo, a morte de Cristo era considerada ou como um sacrifício conforme -pacto divino, comparável ao do cordeiro pascal na religião judaica, ou como um resgate, comparável ao preço pago por um escravo para obter sua liberdade ou ao preço pago por um prisioneiro de guerra como fiança. As duas ideias são mencionadas nos Evangelhos. Mais tarde, numa teologia pós-evangélica, veio a noção de que a morte de Cristo era a expiação sangrenta pelo pecado original. Isso se baseou na ideia muito antiga de que qualquer erro requeria uma expiação com sofrimento do pecador ou de um substituto do pecador. No Velho Testamento, lemos que o pecado de Davi fazendo o censo de seu povo foi punido com uma praga que matou setenta mil dos seus súditos, mas não matou Davi.

Nos tempos patrísticos encontramos uma profunda diferença nesse assunto entre teólogos gregos e latinos. Os teólogos gregos não se preocupavam principalmente com a morte de Cristo; interessavam-se pela vida, e a morte era, por assim dizer, apenas um incidente na vida. Sua visão da redenção era que ela existia não para salvar o homem da culpa, mas para salvá-lo da corrupção na qual caíra depois da queda de Adão e Eva. Consequentemente, a vida era mais importante do que a morte. Irineu diz que Cristo veio e viveu a vida do homem a fim de que o homem pudesse viver uma vida comparável à dele - e que essa era a qualidade salvadora da redenção.

Entre os padres latinos enfatizava-se algo bem diferente. A ideia era de que o homem estava sendo redimido não principalmente de corrupção, mas de culpa. Era redimido do castigo que lhe fora imposto pelo pecado de Adão. Onde os teólogos gregos consideravam Deus como o Espírito Absoluto, os teólogos latinos o consideravam Governador e Legislador, com a mente de um advogado romano (sua teologia tende a usar termos legais). A doutrina evoluiu lentamente, mas em Santo Agostinho vemos uma ênfase contínua ao horror do pecado original e à ideia de que a culpa é totalmente herdada por todos os membros da raça humana, de modo que uma criança não batizada necessariamente irá direto para o inferno.

Esse ponto de vista desenvolveu-se pelos séculos, e houve um longo período de discussão sobre a questão do resgate. A quem se pagava o resgate da morte de Cristo? Muitos teólogos insistiam em que o resgate era pago a Satanás, que Deus lhe entregara o mundo, mas desejava recuperá-lo e tinha de pagar a Satanás esse enorme preço pelo privilégio. Por outro lado teólogos que insistiam em que o resgate era pago para satisfazer a honra de Deus, que fora infinitamente ofendido, e a única reparação por uma ofensa infinita era um pagamento infinito, a morte do Deushomem, Cristo.

A segunda visão das coisas prevaleceu na doutrina mais ou menos oficial formulada por Santo Anselmo, no século XII. Anselmo disse que a morte dessa Pessoa infinita produziu um excedente de pagamento, constituindo uma espécie de fundo de méritos que podia ser usado para a absolvição dos pecados. Baseada nessa doutrina, a Igreja medieval aumentou a prática de vender indulgências, o que acabou provocando a Reforma.

Na Reforma encontramos Calvino, que sentia que uma justiça de retribuição era uma parte essencial do caráter de Deus e que Cristo estava realmente sofrendo a punição que devia ser dada ao homem. "O Cristo", são as palavras que usou, "carregou o peso da ira Divina. . . e experimentou todos os sinais do Deus irado e vingativo."' Esse ponto de vista foi modificado pelos arminianos e socinianos e por Hugo Grotius nos séculos XVI e XVII, e gradualmente cedeu lugar a uma visão mais ética e espiritual no moderno protestantismo.

Agora gostaria de citar a passagem em que o professor Adams Brown resume toda essa história tão estranha:

"O caráter redentor da morte de Cristo fundamenta-se ora em sua qualidade penal como sofrimento ora no seu caráter ético como obediência. É representado ora como um resgate para redimir o homem de Satanás, ora como satisfação para honrar Deus, ora como penalidade exigida pela Sua Justiça. Sua necessidade fundamenta-se na natureza das coisas, ou é explicado como resultado de um acordo devido ao mero capricho de Deus, ou atendendo Seu senso de conveniência. Os meios pelos quais seus benefícios são repassados ao homem são por vezes de concepção mística, como na teologia grega dos Sacramentos: concebidos legalmente, como na fórmula protestante da imputação; e ainda moral e espiritualmente concebidos, como nas teorias mais pessoais do protestantismo recente. Apreciando diferenças tão extremas, podemos ser tentados a indagar, como o fizeram alguns críticos recentemente, se isso é um elemento essencial na doutrina cristã, ou simplesmente um legado de primitivas ideias cuja presença no sistema cristão pode se constituir antes numa perplexidade do que numa ajuda à fé. Mas as diferenças que discutimos não são maiores do que as que existem em todas as outras doutrinas cristãs"2.

As razões para essas diferenças mesmo em doutrinas particulares devem ser procuradas nas diferenças fundamentais da concepção que o homem tem de Deus e de Sua relação com o mundo. Onde se pensa em Deus como o Espírito Absoluto, a redenção é concebida como os teólogos gregos a concebiam; na teologia do catolicismo romano, e dos começos do protestantismo, Deus é concebido principalmente como governador e juiz, e a fraseologia legal parece uma expressão natural da fé religiosa; onde entram em primeiro plano as doutrinas éticas, como na visão moderna da redenção, usa-se uma espécie de linguagem ética e espiritual. Essa confusão indica as extraordinárias dificuldades que enfrentamos quando embarcamos numa teologização sistemática da experiência, em termos conceituais e simbólicos. As vantagens que certamente decorrem de uma expressão teológica acurada parecem-me anuladas pelas grandes desvantagens que a história da religião organizada torna evidentes.

 

1 Calvino. Institutiones romanae religionis, ato II, cena XVI, linha II.

Brown, Adams. "Expiation and atonement". In: Hastings, James, ed. Encyclopaedia of religion and ethics. Scribner, Nova York, 1925, v. 5, p. 650.

 

Qual tem sido a atitude de quem advoga a religião como experiência imediata em relação à religião expressa por símbolos? Meister Eckhart, um dos maiores místicos da Idade Média, expressa isso de uma forma extrema: "Por que falas em Deus? Tudo o que disseres Dele não será verdade"1. Aqui devemos fazer uma breve digressão sobre o uso da palavra "verdade" na literatura religiosa. A palavra "verdade" é usada em pelo menos três sentidos: como sinónimo de Realidade, quando dizemos "Deus é verdade", o que significa que Deus é o Fato Primordial; é usada no sentido de experiência imediata, como no Quarto Evangelho, em que se diz que Deus tem de ser adorado "em espírito e verdade" (João 4:24), significando uma apreensão imediata da Realidade Divina; e por fim é usada no sentido comum da palavra, como correspondência entre proposições simbólicas e o fato a que se referem. Eckhart foi teólogo e místico, e não negaria que até certo ponto a verdade no terceiro sentido é possível em teologia. Ele teria dito que algumas proposições teológicas certamente eram mais verdadeiras do que outras. Mas teria negado que houvesse qualquei possibilidade de que o fim último do homem, a união com Deus - verdade no segundo sentido -, fosse obtido pela manipulação de símbolos teológicos.

 

1 Eckbart, Meister. Die lateinischen Werke. Stuttgart, s. ed., 1938, p. 92.

 

Essa insistência na ineficácia da religião simbólica para o fim último da união com Deus foi acentuada por todas as religiões orientais. Vemos isso na literatura do hinduísmo, do budismo mahayana, do taoísmo e assim por diante. Hui-neng diz que a verdade nunca foi pregada por Buda, pois o homem precisa entendê-la dentro de si mesmo, e que o que sabemos do ensinamento de Buda não é o ensinamento de Buda, que tem de ser uma experiência interior. E temos a frase paradoxal:

"Qual é o ensinamento último de Buda? Você não o entenderá enquanto não o tiver em si". E o autor prossegue dizendo: "Não seja tão ignorante a ponto de confundir o dedo que aponta com a lua para a qual você está apontando", e diz que o hábito de imaginar que o dedo que aponta a lua condena ao fracasso total todos os esforços de entendermos a união com a realidade. Houve até mestres do zen que prescreveram que qualquer pessoa que usasse a palavra "buda" tivesse a boca lavada com sabão, porque estava muito longe do objetivo da experiência imediata.

Essa foi a atitude habitual dos místicos em todos os tempos, mas sobretudo no Oriente, onde a filosofia é profundamente diversa da do Ocidente. A filosofia oriental sempre foi o que posso chamar de operacionalismo transcendental; começa com alguém fazendo algo como o eu, e depois dessa experiência passa a especular e teorizar sobre o significado da experiência. Em contraposição, quase todos os filósofos ocidentais, especialmente na filosofia moderna, fazem pura especulação baseada em conhecimento teórico, que acaba apenas em conclusões teóricas. Contudo, têm havido muitas exceções a essa regra no Ocidente, especialmente entre os místicos, que insistiram, tão fortemente quanto seus parceiros orientais, na necessidade de experiência direta e na ineficácia dos símbolos e do pensamento discursivo comum. São João da Cruz diz categoricamente: "Nada que a imaginação possa conceber ou o entendimento compreender nesta vida é ou pode ser um meio aproximado de união com Deus"1.

A mesma ideia é expressa pelo grabde místico anglicano do século XVIII, William Law:

"Encontrar ou conhecer Deus na realidade através de quaisquer provas externas, ou por qualquer coisa que não seja o próprio Deus tornado manifesto e evidente, é algo que você não conseguirá, aqui nem depois. Pois nem Deus nem o céu nem o inferno nem o Diabo nem a carne podem ser conhecidos em você ou por você, senão na sua própria existência e manifestação em você. E todo o pretenso conhecimento de qualquer dessas coisas, além e sem essa evidência de seu nascimento dentro de você, é apenas aquele conhecimento que o cego tem da luz que jamais entrou nele"'.

 

1 São João da Cruz. The ascent of mount Carmel.

 

O que é a experiência mística? Presumo que seja essencialmente ter consciência, e, enquanto experiência, identificar-se com uma forma de consciência pura, uma consciência não-estruturada e transpessoal que, por assim dizer, corre rio acima da consciência discursiva ordinária do cotidiano. E uma consciência não-egoísta, uma espécie de consciência sem forma nem tempo, que aparece subjacente à consciência do eu separado no tempo.

Por que esse tipo de consciência deveria ser considerado valioso? Penso que seja por duas razões. Primeiro, por causa da sensibilidade evidente dos calores. Como diria Wil-liam Law, é intrinsecamente valioso, como a beleza é intrin-secamente valiosa, mas muito mais que isso. Segundo, é valioso porque, como experiência empírica, produz no pensamento caráter e emoções, mudanças que o experimenta-dor e os que o rodeiam consideram muito desejáveis. Torna possível um senso de unidade e solidariedade com o mundo. Torna possível aquele tipo de amor e compaixão que não julgam, tão enfatizados pelos Evangelhos, onde Cristo diz: "Não julgueis para não serdes julgados" (Mateus 7:1). Santa Catarina de Siena, em seu leito de morte, enfatizou esse ponto com grande intensidade: "Por nenhuma razão, seja qual for, devemos julgar a ação das criaturas ou seus motivos. Mesmo quando vemos que é pecado, não devemos julgá-lo, mas termos uma santa e sincera compaixão, e oferecer isso a Deus com oração humilde e devota"2.

0 místico é capaz desse tipo de vida. E capaz de entender organicamente frases tão portentosas que para a pessoa comum são muito difíceis de entender - frases como "Deus é amor" (I João 4:8), e "Ainda que ele me abandone, confiarei nele" (Jó 13:15)

 

1 Huxley, Aldous.   The   perennial   philosophy, Chatto   &   Windus, Londres, 1957, p. 150.

2 Relato do testamento espiritual de Santa Catarina de Siena, escrito por   Tommaso   di Petra   e   citado   em   Jorgensen,   Johannes.   Saint Catherine of Siena. Longmans, Nova York, 1939.

 

Há outros frutos da experiência mística. Há certamente uma superação do medo da morte, uma convicção de que a alma se tornou idêntica ao Princípio Absoluto que se expressa em sua totalidade a cada momento. Há uma aceitação do sofrimento e um desejo apaixonado de aliviar o sofrimento alheio. Há uma combinação do que os budistas chamam Prajmaparamita, que é a sabedoria da outra praia, com Maha-karuna, que é a compaixão universal. Como diz Eckhart, o que é assimilado na contemplação é gasto em amor. Esse é o valor da experiência. Quanto à teologia dela, é muito simples e resumível em três palavras que são a base de virtualmente toda a religião e filosofia hindu: Tat Twam asi ("Vós sois isso"), cujo sentido é que a parte mais profunda da alma é idêntica à Natureza Divina, que o Atman, a alma profunda, é o mesmo que o Brahman, o Princípio Universal, ou, nas palavras de Eckhart, que o fundo da alma é o mesmo que o fundo de Deus. E a ideia da luz interior, a scintilla animas (centelha da alma); os escolásticos tinham para ela uma expressão técnica: sindérese.

Devo agora me referir brevemente aos meios para se chegar a esse estado. Tem sido constantemente enfatizado que os meios não consistem em atividade mental nem em raciocínio discursivo; consistem no que, falando sobre arte, Roger Fry costumava chamar "passividade alerta" ou o que o moderno místico americano, grande mestre de erudição Frank Laubach, chamou "sensibilidade determinada". Não se faz nada, mas toma-se a decisão de ser sensível para deixar que alguma coisa seja feita em nós. Alguns dos maiores mestres da vida espiritual ocidental expressaram isso. São Francisco de Sales, escrevendo à sua discípula Santa Joana de Chantal diz: "Você me diz que não faz nada na oração. Mas o que deseja fazer na oração, senão apresentar a Deus o seu nada?"' E Santa Joana de Chantal escreve em uma de suas cartas:

"A Sua (de Deus) graça usou em mim esse método de devoção, que consiste em simplesmente contemplar e perceber Sua divina presença, na qual me senti totalmente perdida, absorvida, repousando Nele. E essa graça me tem sido dada continuamente, apesar de que, na minha falta de fé, eu lhe tenha resistido muito, permitindo que entrassem em minha mente temores de ficar inútil nessa condição, de modo que, desejando também fazer alguma coisa, estraguei tudo"2.

 

1 São Francisco de Sales, Oeuvres choisies. Royer, Paris, 1843, p. 299.

2 Bremond, Henri. A literary history of religious thought in France. Society for Promoting Christian Knoivledge, Londres, 1936, v. 2, p. 406.

 

Essa atitude dos mestres da oração é, em última análise, exatamente a mesma recomendada por qualquer professor de habilidade psicofísica. O homem que nos ensina a jogar golfe ou ténis, o professor de canto ou de piano, dirão a mesma coisa: é preciso de alguma forma combinar atividade com relaxamento, é preciso soltar o eu tenso, a fim de deixar esse eu mais profundo dentro de nós, no qual interferimos, emergir e realizar seus milagres.

Em certo sentido podemos dizer que estamos todo o tempo tentando entrar na nossa própria luz. Nossos eus superficiais eclipsam nossos eus mais profundos, e não permitem que apareça essa branda força, que é dentro de nós um fato imparcial. Na verdade, a totalidade da técnica de eficiência em qualquer campo, incluindo essa forma mais alta de eficiência espiritual, é um processo de des-eclipsar, um processo de sair da nossa própria luz. Naturalmente não é preciso formular esse processo em termos teológicos. Pessoalmente, acredito que o eu mais profundo em nós é de alguma forma um contínuo com a mente do universo, ou como quer que o queiram chamar. Mas, como digo, não é preciso aceitar isso.

Vemos que não há conflito entre a abordagem mística da religião e a científica, porque o misticismo não nos obriga a nenhuma declaração radical sobre a estrutura do universo. Podemos praticar misticismo em termos inteiramente psicológicos, e com base num completo agnosticismo no que diz respeito às ideias conceituais da religião ortodoxa, e ainda assim obter o conhecimento - gnose - e os frutos do conhecimento serão os frutos do espírito: amor, alegria, paz e capacidade de ajudar outras pessoas. E, como disse Cristo no Evangelho, "a árvore se conhece pelo fruto" (Mateus 12:33).

 

         História natural das visões

         Pronunciada em 7.12.1959.

Começarei esta conferência com uma pergunta. É uma daquelas que parecem inocentes, mas que são extremamente perquiridoras e profundas, como aquelas que as crianças per-guntadeiras fazem a seus pais e estes simplesmente não sabem responder, por isso dizem: "Ora, isso é bobagem, vá brincar". É uma pergunta como "por que a grama é verde?" Para responder a essa pergunta teremos de enveredar pela botânica, bioquímica, física, astronomia e até metafísica ou teologia. Da mesma forma, essa pergunta que farei, embora talvez não tão inquisidora como "por que a grama é verde?", leva-nos bem longe. A pergunta é: por que as pedras preciosas são preciosas? Veremos que, tentando responder a isso, seguiremos um longo caminho até o problema da estrutura da mente e da relação do que posso chamar as mais estranhas e remotas áreas da mente com todos os aspectos culturais, religiosos e filosóficos de nossa vida.

Por que as pedras preciosas são preciosas? No momento em que começamos a pensar nisso, parece esquisito que no curso da história as pessoas tenham gasto tanto tempo, energia e dinheiro juntando calhaus transparentes e de variadas cores, armazenando-os, burilando-os, atribuindo-lhes as mais elaboradas formas, e lutando por eles. Obviamente não há justificativa económica. Naturalmente, se alguém tem um monte de pedras preciosas, uma vez que são preciosas por convenção, isso é uma boa ajuda económica. Mas as pedras preciosas em si não nos ajudam de maneira fundamental. Não podemos comer pedras preciosas, não podemos arar a terra com pedras preciosas, não há nada que elas possam fazer por nós.

Mesmo do ponto de vista puramente estético, a preciosidade das pedras preciosas é muito estranha. Ficamos admirados pensando por que elas têm tamanho encanto. Não se pode dizer que sejam belas como são belas as obras de arte. Uma obra de arte é bela porque suas partes são lindamente harmonizadas. Uma obra de arte musical ou visual ou poética é sempre um sistema, mas uma pedra preciosa é apenas um objeto; é como uma só nota retirada de uma peça musical. Se tocarmos uma só nota, embora ela possa ter bastante encanto, não nos parece algo intrinsecamente muito belo, mas quanto às pedras preciosas, as pessoas gastarão energia e tempo e dinheiro tentando consegui-las. Vemos, pois, que deve haver algo na pedra preciosa a que a mente humana reage de maneira obscura e imprevisível.

Uma das razões do nosso interesse em pedras preciosas é dada no Fédon, onde Sócrates fala sobre o mundo ideal, uma ideia metafísica básica de Platão. Sócrates diz que há um mundo ideal, do qual o nosso mundo é em certo sentido uma cópia bastante ruim, e que esse mundo fica acima e além do mundo material:

"Nessa outra terra as cores são muito mais puras e brilhantes do que aqui embaixo. As montanhas e pedras têm uma aparência mais rica, uma transparência mais viva, e maior intensidade de matiz. As pedras preciosas deste mundo inferior, nossas apreciadas cornalinas, topázios, esmeraldas, jaspes e todas as demais não são senão minúsculas fragmentos dessas pedras lá de cima. Na outra terra não há senão pedras preciosas, iguais em beleza a qualquer das nossas gemas"'.

Platão acrescenta que a visão desta terra é "uma visão que agrada aos olhos de quem a contempla" . E uma observação singular, porque deixa claro que, quando Platão fala no mundo ideal, não fala apenas de um conceito metafísico. Esse outro mundo tem uma paisagem com pedras e montanhas, e essas pedras e montanhas têm exatamente a qualidade das pedras preciosas do nosso mundo. Mais do que mera abstração filosófica, é algo que existe na mente humana, é parte do nosso mundo interior de pensamento, sentimento e conhecimento, e que, de certa forma, podemos realmente ver. Esse mundo interior é o que chamo o mundo das visões, e relaciona-se intimamente com a preciosidade das pedras preciosas. Mas antes de entrarmos no assunto, quero falar um pouco sobre as diversas regiões do mundo interior do homem.

 

lPlatão, Fédon, 110. ' Ibid, 777.

 

Carregamos dentro de nossas cabeças um universo amplo e variado, com regiões estranhas, regiões que a grande parte de nós não penetra na maioria do tempo, mas que estão sempre lá. Existe o mundo da memória, da fantasia e imaginação, e dos sonhos estreitamente ligados ao que os freudianos e junguianos chamam inconsciente pessoal. Há o mundo do que Jung chama o inconsciente coletivo, com formas e símbolos arquetípicos que parecem comuns a todos os seres humanos. E há, finalmente, o mais remoto de todos os nossos mundos interiores, a que chamo o mundo das visões. É literalmente outro mundo, muito diferente dos mundos pessoais da nossa experiência.

Quero agora discorrer um pouco sobre essas classificações, primeiro sobre o mundo da memória. A memória é algo indizivelmente estranho, como deve ter descoberto todo aquele que alguma vez pensou sobre ela, e um dos mais estranhos fatos sobre a memória é poder ser ela dividida em dois tipos bem separados e distintos. Há uma memória que podemos chamar de evocação completa, reviver no presente uma experiência passada; e há o que normalmente chamamos memória - uma forma muito mais vaga e condensada.

A evocação completa é algo que poucas pessoas parecem ser capazes de fazer o tempo inteiro. Diz-se que o grande romancista americano Thomas Wolfe tinha capacidade para evocação completa. Sendo eu mesmo um romancista, posso ver que isso seria uma grande .vantagem, mas por outro lado deve ser algo muito difícil de lidar porque deve ser difícil saber a hora de parar. Se temos capacidade completa e absoluta de evocar tudo o que nos aconteceu, podemos continuar escrevendo pelo tempo que nossa vida durar, sem jamais chegarmos a um final, e é o que vemos nos livros de Wolfe. Mas também vemos nos seus livros uma vividez extraordinária em tudo o que ele visualizava.

A maior parte de nós não dispõe dessa capacidade à vontade, mas em certas circunstâncias ela pode ser despertada em um bom número de pessoas. Pode ser despertada, por exemplo, pela hipnose. A pessoa hipnotizada pode trazer à superfície toda sorte de material que esqueceu conscientemente - e nos seus mínimos detalhes. Algo como a evocação completa pode também ser provocado num estado de devaneio, especialmente se a pessoa em devaneio é preparada e ajudada por um psiquiatra ou psicólogo capaz. E há certas drogas que ajudarão a despertar as lembranças. Na Segunda Guerra Mundial, a fadiga dos combates, resultando em colapsos, muitas vezes com cegueira, surdez ou paralisia histéricas, era tratada com hipnose, ou, quando não havia tempo, com drogas como sódio amital ou éter, que de alguma forma reduziam a fronteira entre consciente e inconsciente, permitindo a evocação do material traumático que causava o problema. Os psiquiatras ficavam, assim, em condições de produzir uma catarse desse material, fazendo esses infelizes soldados saírem de seu estado traumático.

A hipnose e as drogas parecem ter comprovado que todas as nossas experiências são armazenadas na mente e, em circunstâncias favoráveis, podem ser completamente lembradas. Há pouco tempo, um eminente cirurgião canadense, Wilder Penfíeld, fez experiências bem interessantes em suas operações no cérebro de pessoas com epilepsia devida a dano cerebral. Como sabemos, o cérebro não sente dor, e as operações se realizam com anestesia local suficiente apenas para permitir a abertura do crânio. Enquanto os pacientes estavam na mesa, Penfíeld tocava com um minúsculo eletrodo certas áreas do lobo temporal, o que causava evocação completa de incidentes acontecidos há muitos anos. Assim deu-se o fenómeno singular de o paciente viver ao mesmo tempo em dois mundos: a sala de operações e algum outro local, distante talvez milhares de milhas e muitos anos. O toque do eletrodo fízera-o subitamente evocar aquilo em sua intensidade plena, com todas as emoções sentidas na ocasião. Tocando-se novamente em determinado ponto, reproduzia-se exatamente a mesma evocação, como se tocassem outra vez o mesmo disco. Creio que ninguém sabe se essa peculiaridade de evocação localizada no cérebro é exclusiva de pacientes epilépticos, e espero que ninguém faça experiência abrindo buracos no crânio de pessoas normais para obter a resposta. Mas vemos que há possibilidade de induzir a evocação total por meios físicos.

Nas raras ocasiões em que acontece, essa evocação plena é obviamente do maior interesse. Nunca aconteceu comigo, mas pessoas que a sentiram acharam-na muito excitante e terapêutica. Podem livrar-se de toda sorte de material que está por assim dizer envenenando as áreas mais baixas de sua mente.

Em confronto com a evocação completa de nossa memória total temos de colocar nossas memórias comuns, que são de ordem bem diferente (embora a evocação completa presumivelmente possibilite a evocação limitada de memórias comuns). A memória comum é um tipo de Sumário ou resenha de fatos passados que alguma área de nossa mente - o que alguns psicólogos chamam o pré-consciente - prepara para nós extraindo-a da evocação total. Essa resenha tem certo valor utilitário - ajuda-nos na vida cotidiana e obviamente tem valor biológico e social. A seleção feita pela mente pré-consciente em nossa memória total é, pois, realizada à luz de nossa filosofia geral de vida; tem de conformar-se ao nosso sentimento geral do que seja felicidade. Muitos aspectos que, na evocação total, consideraríamos traumáticos ou irrelevantes, são omitidos na memória comum, e só aqueles aspectos biologicamente ou socialmente úteis permanecem.

Voltemo-nos agora para o mundo da fantasia e imaginação. Ele varia enormemente entre pessoas diferentes e nas mesmas pessoas em momentos diversos. Podemos ter fantasias e sonhos acordados e imaginações das mais vagas ou das mais elaboradas e detalhadas. Elas podem percorrer toda uma gama, desde a incoerência quase completa, como no estado de delírio, até o tipo mais elaborado e organizado de história narrada ou dramatizada. Na sua forma mais elaborada, temos uma verdadeira faculdade ficcional, ou de "contar histórias", que existe em todo o ser humano de forma bastante incompleta e latente, mas que é altamente desenvolvida numas poucas pessoas.

Antes de falar nessas pessoas nas quais a faculdade ficcional é muito desenvolvida, quero dizer que é possível, pela hipnose ou devaneio (que é bem parecido com a hipnose), induzi-la em pessoas que normalmente não a demonstram com muita intensidade. Frequentemente essas elaboradas histórias são interpretadas pelos que as ouvem como relatos de vidas prévias em Atlântida ou Lemúria, mas não creio que tenhamos necessariamente de acreditar nisso porque é claro que todos temos potencialmente a faculdade ficcional e que algumas pessoas a tem mais poderosamente; elas são capazes, por assim dizer, de chegar muito facilmente a essa área da mente pré-consciente, e trazer o material à superfície. Lembro que, quando pequeno, no internato, costumávamos contar histórias quando as luzes se apagavam. A maioria das histórias, nem é preciso dizer, eram bastante enfadonhas, mas havia um menino que jamais esquecerei. Não era muito brilhante, mas tinha esse dom excepcional de ficar despejando aventuras extraordinárias sem nenhuma dificuldade, noite após noite, numa espécie de seriado sem fim, que nos mantinha acordados horas a fio.

Temos grandes contadores de histórias no mundo dos romances. Alexandre Dumas não teve dificuldade em fazer fluir o Conde de Monte Cristo e Oi três mosqueteiros sem uma pausa para respirar - simplesmente jorraram dele. Num nível de arte mais elevado, temos um exemplo muito interessante dessa faculdade de contar histórias em nível inconsciente ou pré-consciente no caso de Robert Louis Ste-venson, que nos conta em seu livro Através das pradarias que todos os seus contos lhe eram fornecidos pelo seu inconsciente, ou em estado de devaneio, ou em verdadeiros sonhos, enquanto ele dormia. Referiu-se a essa outra parte da sua mente como "os duendes", pessoinhas de lenda que habitavam sua cabeça e produziam material que, no estado consciente, ele apenas anotava e elaborava. Diz Stevenson que, quando menino, os duendes costumavam produzir material de maneira eventual, mas quando precisou ganhar a vida como escritor colaboraram produzindo coisas vendáveis.

Chegamos agora ao mundo dos sonhos, que é uma espécie de forma incoerente do mundo ficcional. Há os sonhos ordinários, que obviamente lidam com fatos que preocupam o inconsciente pessoal, e há o que Jung chama os grandes sonhos, que lidam com o que ele designa por insconsciente coletivo - os grandes símbolos humanos permanentes, que perpassam toda a história humana e parecem ser comuns a quase toda a humanidade.

Finalmente, além de todos esses, existe o mundo da experiência visionária, que de certa forma é um outro mundo real, diferente do mundo do inconsciente pessoal e mesmo do coletivo. Tem algo de muito estranho. Antes de entrarmos numa descrição do que se passa nessa área remota da mente, quero falar um pouco sobre o grau em que essa região distante é acessível ao consciente dos seres humanos. Se olharmos as biografias de poetas, pintores e músicos eminentes, veremos que alguns eram capazes de entrar espontaneamente nesse mundo visionário. Podiam passar quase a seu bel-prazer do mundo da experiência comum para o mundo da experiência visionária. William Blake era capaz de entrar quase a qualquer hora nesse mundo de visões. E verdade que, por alguns anos, no meio de sua vida, ele ficou incapaz de entrar nesse mundo, mas mais tarde recuperou essa faculdade, e até o fim dos seus dias continuou passando do mundo ordinário de mesas e cadeiras a alguma coisa bem diferente, o mundo que descreve em seus poemas e livros proféticos e que ilustra com menor sucesso - porque era muito melhor poeta que pintor - em seus vários desenhos e quadros.

Além desses poetas - não posso dar a lista deles -, podemos dizer sem dúvida que há muitas pessoas comuns - comuns quanto ao seu poder de expressão - que têm esse dom de passar do mundo cotidiano para o mundo visionário e voltar. Elas não têm o poder dos poetas e pintores inspirados de expressar o que viram, mas mesmo assim possuem essa capacidade de ingressar no mundo tão estranho da mente.

No passado, valorizava-se muito a capacidade de ter visões, e qualquer pessoa que as tivesse podia jactar-se delas. Os que hoje em dia as têm inclinam-se a calar a boca, com medo de serem mandadas para o hospício, mas nada há de intrinsecamente doentio em ter visões. E verdade que muitas pessoas loucas têm visões, mas muitas pessoas sadias também as têm, e sabem perfeitamente que as estão tendo. Uma pessoa que tem visões só chega a ficar louca se não sabe que tem visões e as mistura com a vida real - ou fica tão obcecada por suas visões que não consegue mais voltar à vida real. Gente que tem o poder de entrar no mundo das visões e voltar dele delicia-se com os dois mundos.

Como é que as pessoas conseguem entrar nesse mundo visionário? Até aqui falamos nas que, por alguma razão, são constituídas de modo a poderem ir e vir entre o mundo ordinário e o das visões. Não sabem como; simplesmente acontece. Mas há métodos de transportar para esse mundo visionário pessoas que normalmente não conseguem entrar nele. Alguns métodos são psicológicos; outros envolvem mudanças na química do corpo, que, por alguma razão que não entendemos, permitem a essas áreas distantes da mente irem até o consciente. Vemos que, sob hipnose, algumas pessoas podem não apenas atravessar o mundo da ficção, mas ir bem além, até o mundo das visões. É bastante incomum, mas indubitavelmente isso acontece.

Um método de induzir visões por meios psicológicos é o do completo isolamento, descoberto empiricamente por muitas tradições religiosas do mundo. Os monges cristãos da Tebaida, no Egito, nos séculos III e IV, descobriram que, entrando em completo isolamento no deserto, eram capazes de induzir visões, algumas de natureza celestial, mas muitas de qualidade demoníaca. Qualquer pessoa que tenha frequentado galerias de arte no mundo terá visto muitas pinturas sobre as tentações de Santo António - um dos assuntos prediletos dos pintores medievais e do começo da Renascença - mostrando o eremita atormentado pelas mais horrendas visões.

A técnica do isolamento completo foi seguida na índia desde tempos imemoriais. Nas velhas tradições hindus, e na tradição tibetana, temos relatos de habitantes da floresta que viviam em cavernas bem no alto do Himalaia e, isolando-se totalmente, abriam-se ao mundo visionário. O interessante é que ultimamente esses procedimentos têm sido imitados, e de certa forma aperfeiçoados, em vários laboratórios de psicologia, especialmente nos estudos de "ambiente limitado" de D. O. Hebb, na Universidade McGill, e John Lilly, no Instituto Nacional de Saúde.

As pessoas são colocadas num lugar em que não podem ver nem ouvir coisa alguma, e em casos extremos são mergulhadas num banho tépido, de modo que praticamente não há mudança de sensações na pele. Em algumas horas, começarão a ter extraordinárias experiências visionárias.

Evidentemente, o que impede que todos tenhamos visões continuadas é que temos contínuas experiências do mundo externo. Quando os estímulos do mundo exterior são cortados, o cérebro e a mente, seja como for que se associem, deixam brotar as mais notáveis visões, algumas assustadoras - muitos dos experimentadores interromperam suas experiências porque as visões eram desagradáveis demais -, mas algumas muito positivas e belas.

Esses são os dois principais métodos psicológicos de obter acesso ao reino das visões. Depois, há métodos que causam modificações na química do corpo. São mudanças de dois tipos: as produzidas indiretamente e as produzidas diretamente. Mudanças indiretas têm sido produzidas em todas as culturas, desde tempos imemoriais, pelo jejum, que, se prolongado por algum tempo, causa profundas modificações na química do corpo, o que por sua vez facilita a entrada no mundo visionário. Como demonstraram os antropólogos, jejuar com o objetivo específico de conseguir visões foi praticado em todo este continente, entre os índios americanos. E nas grandes tradições religiosas do resto do mundo, o jejum foi praticado em parte por mortificação - a ideia de que, castigando o corpo neste mundo, não seremos punidos no outro -, mas também porque se julgava empirica-mente que o jejum facilitava o ingresso no mundo das visões, e mesmo no mundo místico, que fica além do visionário.

Outro método de alterar a química do corpo, muito praticado na índia, são os exercícios respiratórios, que objetivam suspensões prolongadas da respiração; quando a respiração é suspensa por uma período longo, ficamos com uma alta concentração de dióxido de carbono no sangue, e sabemos empiricamente que uma alta concentração de dióxido de carbono produz experiências visionárias. A inalação de uma mistura de dióxido de carbono e oxigénio produzirá rapidamente condições mentais muito peculiares e, em algumas pessoas, a evocação de material enterrado na memória, ou então visões.

Depois, existem os métodos diretos de mudar a química do corpo, que, como demonstraram os historiadores da religião, têm sido usados vez ou outra em quase todas as tradições religiosas do mundo, provocando experiências visionárias com drogas. No Oriente Médio e na Grécia, o álcool era livremente usado para esse fim - existem até referências a isso no Velho Testamento. Muitas das escolas menos importantes dos profetas, muito desaprovadas pelas outras escolas, tentavam usar o álcool com o propósito de entrar no mundo das visões. Muitas outras drogas foram usadas haxixe, ópio e outras mais -, a maioria muito prejudiciais, mas algumas delas drogas naturais, que abrem a consciência à experiência visionária e parecem ser relativamente inofensivas à fisiologia, não viciando de modo algum. O mais conhecido dos relativamente inofensivos indutores, de visões é o cogumelo sagrado do México, descrito há alguns anos por meu amigo Gordon Wasson, na revista Life'. O princípio ativo desses cogumelos, chamado psilocibina, foi sintetizado no ano passado pelo dr. Albert Hoffman, da Suíça, que também sintetizou essa droga extraordinária chamada ácido lisérgico (LSD-25). Outro indutor de visões natural, usado desde os tempos mais remotos no sudoeste deste país e cujo uso se difundiu até o Canadá, é o cacto peyote, cujo princípio ativo, a mescalina, foi sintetizada há trinta ou quarenta anos. Atualmente, a maioria dos experimentadores no campo da exploração de áreas remotas da mente estão usando LSD, que pode ser empregado em doses incrivelmente pequenas, como 0,0001 grama, e produzir efeitos visionários incomuns.

 

1 Life, 42 (19): 100, maio de 1957.

 

São esses os principais métodos de entrar no mundo visionário. Examinemos agora a natureza desse mundo, e vejamos de que maneira ele tem importância na nossa pergunta inicial, "por que as pedras preciosas são preciosas?" Examinando o mundo visionário, descobrimos alguns fatos interessantes. Por exemplo, as visões são muito estranhas, mas não casuais; obedecem a certas leis. A visão de cada pessoa é única, mas todas essas visões únicas parecem pertencer grosso modo a uma família; são, por assim dizer, membros da mesma espécie. Isso é evidenciado por histórias de coleções de casos como aquelas reunidas por Heinrich Klíiver em sua monografia sobre o peyote, publicada há mais de vinte anos, e pela obra daqueles que fizeram experiências com LSD e mescalina nos últimos anos.

0 mais alto fator comum na experiência visionária é a experiência de uma luz subjetiva. Isso ocorre na forma mais transcendental de visão, a forma de visão, por assim dizer, modulada na experiência mística plena. Nessas formas superiores de visão a luz é indiferenciada; é o que a literatura budista chama "a luz pura do vácuo". O exemplo com o qual quase todos estamos familiarizados é o de São Paulo, na estrada de Damasco, quando subitamente viu essa luz arrebatadora e ao mesmo tempo escutou uma voz dizendo: "São Paulo, por que me persegues?" (Atos 9:4). O efeito dessa luz subjetiva foi tão prodigioso que o deixou cego poi vários dias. E o caso de São Paulo não é único. O filósofo neoplatonista Plotino teve várias dessas experiências místicas profundas no curso de sua vida. Conta-nos que todas se associavam à mesma tremenda luz, e usa uma frase que resume na sua própria experiência muito do que Platão dissera quinhentos anos antes, em relação ao mundo ideal. Plotino diz que tudo reluz no mundo da pura inteligência, e que no mundo dos sentidos a coisa mais bela é o fogo'. Essa afirmação começa a lançar alguma luz sobre por que pedras preciosas são preciosas: a qualidade brilhante e luminosa do mundo das visões é, de certa forma, refletida, no nosso mundo, em coisas luminosas como o fogo.

Outro caso bem conhecido de experiência com uma luz incomum é o de Maomé. A revelação que lhe foi dada e fez dele um profeta foi acompanhada de uma luz tão terrível - ele foi acordado por ela - que Maomé caiu desmaiado. Mais perto do nosso tempo, no século XVI, temos o exemplo do grande místico católico São João da Cruz. Tentara reformar a sua ordem religiosa, mas seus companheiros de monastério não queriam ser reformados e o puseram na prisão. Enquanto estava lá, teve uma série de experiências com luz incomum. Numa delas diz-se que a luz foi vista pelo seu carcereiro, outro frade da ordem. Quando finalmente ele conseguiu escapar da cela, foi seguindo uma luz que veio e lhe mostrou a saída. Um pouco mais tarde, temos o grande místico protestante Jacob Boehme descrevendo experiências do mesmo tipo, nas quais era rodeado e engolido por uma tremenda luz.

 

1 Protino. Enneads. Ato III cena VIII, linha 30. 200

 

Essa experiência da pura luz do vácuo é uma experiência visionária que podemos considerar a mais elevada, a mais mística. Num nível mais baixo, as luzes parecem estar recortadas e incorporar-se a diferentes objetos, pessoas e imagens. E como se uma tremenda luz branca fosse refratada através de um prisma, e se desfizesse em luzes de cores diferentes. Nessa forma inferior de visão temos uma intensificação da luz associada de alguma forma à faculdade ficcional, de modo que há visões de grande complexidade e elaboração nas quais a luz tem um papel muito grande, mas não é a luz pura e alva das grandes teofanias.

Como exemplo dessa luz colorida das visões inferiores, quero citar o caso de Weir Mitchell, um psicólogo muito conhecido do fim do século passado, que descreveu suas próprias experiências com o peyote. O que descreveu foi primeiramente uma visão de formas geométricas coloridas e tridimensionais, que se concretizavam em esculturas, mosaicos e tapeçarias; depois, apareceu uma imensa forma arquite-tural, uma grande torre gótica incrustada com o que pareciam ser gemas de tamanho tão grande que semelhavam frutos translúcidos; depois havia imensas e magníficas paisagens, também com objetos luminosos como gemas; e a experiência terminou com uma visão do oceano com ondas maravilhosamente coloridas e jóias rutilantes rolando no meio delas.

Muitas outras pessoas tiveram visões similares - as visões espontâneas de Blake, por exemplo, eram essencialmente da mesma natureza. Um dos fatos interessantes sobre essas visões é que, quando se vêem figuras, elas não apenas são de extraordinária majestade - Blake as descreve como serafins e diz que tinham quarenta metros de altura -, mas, quando se vêem seus rostos, não são como os rostos de ninguém que se conheça; são apresentados a ele pela sua própria mente como uma forma completamente estranha.

Isso é muito interessante do ponto de vista teológico, na medida em que toda a teologia dos anjos não se baseia, como muitos pensam, na ideia de que os anjos sejam almas dos mortos. Os anjos são uma espécie totalmente diferente; não pertencem em absoluto à espécie humana. Penso que há uma base realmente psicológica nessa visão teológica da natureza dos anjos, pois quando nas visões se vêem figuras, não são pessoas que conhecemos. Seja o que for que, na nossa mente, cria tais visões, apresenta-nos algo totalmente novo, que parece não ter nada a ver com nossa vida privada, nem mesmo com a vida arquetípica da humanidade como um todo. E literalmente um outro mundo.

Há um bom motivo para supor que muitas crianças têm esse tipo de experiência visionária e que não apenas têm visões com olhos fechados, mas vêem a luminosidade preter-natural do mundo visionário no mundo exterior. Esse é outro traço comum daqueles que têm experiências visionárias. É como se algo da claridade do que Platão chama o mundo ideal transbordasse no mundo normal, de modo que ele é visto como transfigurado e de uma incrível beleza. Penso que provavelmente um bom número de crianças percebem o mundo dessa forma e depois, no decurso do tempo, perdem essa capacidade. Tal perda foi descrita muito vivida-mente na ode de Wordsworth em Intimations of immortality ("Intimações da imortalidade"), que começa:

"Houve um tempo em que campina, bosque e rio,

A terra e todas as visões comuns,

A mim pareciam *

Revestidas de luz celestial,

Na glória e no frescor de um sonho"'

Depois, gradualmente, isso desapareceu. Com o tempo, o que Wordsworth chama "sombras da prisão"2 fecharam-se em torno dele, e o mundo, longe de estar transfigurado, pareceu como ordinariamente o vemos, enfadonho e sombrio.

 

1 Wordsworth,   William. Ode. Intimations of itnmortality from re-collections of early childhood, 1-5.

2 Ibid., 67.

 

Eu gostaria também de ler uma passagem muito bela de Centuries of meditations ("Séculos de meditações"), de Thomas Traherne, que viveu cento e cinquenta anos antes de Wordsworth e que descreve em prosa suas próprias experiências de criança:

"A poeira e pedras da rua eram preciosas como ouro. . . As árvores verdes, quando pela primeira vez as vi através de um dos portões, arrebataram-me e deliciaram-me, sua doçura e singular beleza fizeram meu coração saltar e quase enlouquecer de êxtase - eram coisas tão estranhas e maravilhosas! Os Homens! Oh, que criaturas veneráveis e reverendas me pareciam os anciãos! Querubins imortais! E os jovens, anjos cintilantes e luminosos, e donzelas como estranhas peças seráficas de vida e beleza! Rapazes e meninas correndo nas ruas, e brincando, eram jóias em movimento. . . A Eternidade manifestava-se na Luz do Dia, e algo infinito aparecia por trás de cada coisa. . . com o tempo, fui me corrompendo e aprendi outros recursos deste mundo. Que hoje desaprendo, e me torno outra vez criancinha, para poder entrar no Reino de Deus"'.

Em outra passagem ele fala no Reino de Deus como o mundo exterior visto de maneira visionária:

"O mundo é um espelho de infinita beleza, mas nenhum homem vê isso. É um Templo de Majestade, mas nenhum homem observa isso. Seria uma região de Luz e Paz, se os homens não a inquietassem. É o Paraíso de Deus. . . É o lugar dos Anjos, e o Portão do Céu"2.

Esse é o mundo transfigurado pela experiência visionária, um mundo cmef muitos poetas e muitas pessoas que não são poetas têna visto. É uma experiência que as pessoas têm depois da convalescença, quando parecem renascer no mundo e de súbito, com essa espécie de perspectiva visionária, percebem a sua milagrosa beleza.

Há certos aspectos da luz comum do sol que podem produzir essa perspectiva visionária do mundo. Eu gostaria de ler outro belo poema de Wordsworth, onde ele descreve o efeito do pôr-do-sol:

 

lTraherne, Thomas. Centuries of meditations, século 111, 3. 2 Ibid., século I, 31.

"Nenhum som ressoa, mas uma profunda

E solene harmonia invade

Passo a passo o vale

E penetra as clareiras.

Imagens distantes se aproximam

Invocadas pelo milagroso poder

Dessa radiante luz, que veste

Com matizes de jóias tudo o que toca.

Numa visão estranhamente clara

Manadas agrupam-se na encosta;

Chifres rutilantes se entrevêem;

Dourados rebanhos aparecem.

Tranquila é tua hora, purpúrea noite!

Mas uma esperança divina, um desejo,

Habita meu espírito, e não posso crer

Que essa beleza só a ti pertença!

Mundos não iluminados pelo sol

Enviam uma parcela desse dom;

Uma centelha da pompa celestial se espalha

No solo que os pastores ingleses trilham!" 1

 

Isso é muito belo, e indica a maneira espontânea pela qual o poeta interpreta em termos sobrenaturais o fenómeno natural do pôr-do-sol. Parece ser algo inevitável.

Finalmente começamos a ver por que as pedras preciosas são preciosas. Penso que são preciosas porque são os objetos do mundo exterior que mais se parecem com as coisas que as pessoas vêem no mundo visionário. O rubi ou a esmeralda é como o fruto translúcido que o místico vê incrustado nas rochas e na arquitetura do mundo visionário. Eles têm essa qualidade de pedra preciosa que pode ser vista em certas circunstâncias, no mundo exterior, por um olho que perdeu sua natural obscuridade. As jóias não apenas são valiosas para nós porque nos lembram o que se passa no mundo visionário, mas também produzem, em si mesmas, uma espécie de visão. A maior parte de nós raramente tem experiências visionárias, mas todos as temos potencialmente, e penso que objetos como jóias de alguma forma nos lembram o que acontece no fundo de nossa cabeça e nos impelem para esse outro mundo. Há uma frase muito usada na literatura mais antiga: diz-se que uma visão nos "transporta" - somos transportados pelos objetos visionários no mundo exterior em direção ao mundo visionário que j az dentro de nós, e do qual uma parte da nossa mente tem sempre alguma consciência. E exatamente essa dupla função que torna preciosa a pedra preciosa: ela nos lembra do que acontece no mundo visionário e nos transporta para ele.

 

Wordsworth, William. Composed upon an evening of extraordinary splendour and beauty, //.

 

Há muitos aspectos da arte que realmente só se compreendem quando levamos em conta esse estranho aspecto da nossa mente que é capaz de experiências visionárias. Há vários modos de produzir obras de arte visionárias; o mais óbvio é fazê-la com materiais intrinsecamente indutores de visões, como jóias e metais preciosos. Vemos que em quase todas as religiões o altar se baseia nesses materiais que induzem visões. Os cálices ornados com jóias e as superfícies brilhantes têm uma dupla influência sobre nós: lembram-nos o mundo extraordinário que carregamos em nós, e nos transportam, pelo menos em parte, em sua direção.

Há numerosos outros modos de produzir obras de arte visionárias, que não posso comentar em detalhes, mas concluirei mencionando o fato muito curioso e interessante de que a maior parte das artes populares na história tiveram muito a ver com a experiência visionária. Um exemplo disso é uma arte profundamente popular durante a Idade Média - a arte do vidro colorido, uma das mais magníficas de todas as artes.

Como as pedras preciosas não eram muito comuns na Europa ocidental, há frequentes referências ao vidro em relação a experiências visionárias. Na tradição galesa, as "ilhas dos abençoados" são chamadas "Inisvitrin", as ilhas de Vidro; similarmente, havia uma feira de tradição teutônica, uma montanha de vidro em que viviam as almas dos mortos. No Apocalipse, o autor fala no lago de vidro e nas ruas de ouro de Jerusalém, que eram translúcidas como vidro. Encontramos isso nas literaturas hindu, chinesa, japonesa. E quase sempre esse mesmo quadro, quase palavra por palavra o tipo de visão que Weir Mitchel teve sob influência do peyote.

A popularidade do vidro colorido como forma de arte é evidente pelo fato de que, nos séculos XII e XIII, quando se fizeram os grandes vidros coloridos da Europa ocidental, colocavam-se caixas de coleta em todas as igrejas para obter fundos para colocar vi trais, e contemporâneos daqueles tempos relatam que as caixas estavam sempre cheias. Evidentemente as pessoas tinham paixão por essas obras extraordinárias, que podiam converter toda uma catedral numa única imensa pedra preciosa. Qualquer pessoa que tenha visitado Chartres ou a Sainte-Chapelle, em Paris, sabe como é entrar numa construção que é uma vasta jóia. A experiência é intensamente indutora de visões.

Há outras artes populares que vêm desde tempos imemoriais e são especificamente indutoras de visões. Os fogos de artifício eram muito populares nos dias do Império Romano - quase tão populares quanto as lutas de gladiadores - e eram de uma extraordinária sofisticação. Com os avanços na tecnologia da química eles alcançaram uma espécie de apogeu no século XIX, quando grandes espetáculos de fogos de artifício desempenharam importante papel no 4 de Julho aqui e no 14 de Julho na França, em coroações e canonizações, e assim por diante, para entretenimento do povo, sendo muito apreciados.

Outra arte popular é a arte da ostentação, usada por reis e sacerdotes para aumentar seu prestígio. As roupagens incrivelmente elaboradas das figuras eclesiásticas e reais colaboravam muito para o prestígio de quem as usava, dando ao mesmo tempo grande prazer ao povo, que viajava milhas para ver uma grande procissão ou cerimonia. O mais notável desses espetáculos nos tempos atuais foi a coroação da rainha Elizabeth II, que, ao contrário dos espetáculos passados, preservou-se para o futuro. Graças à iluminação, às câmeras de cinema, aos filmes coloridos, esse espetáculo permanecerá em sua fantasticamente rica e bela elaboração como notável ilustração para a posteridade.

Estreitamente ligado à ostentação está o teatro. Este sempre andou de mãos dadas com o drama. O drama é a vida humana em ação, e o espetáculo é o mundo visionário mostrado no palco. As mais altas manifestações disso foram vistas nas máscaras elizabetanas e jacobinas dos séculos XVI e XVII. O espetáculo tornou-se bem mais visionário em tempos recentes, como resultado dos avanços tecnológicos. Graças à invenção do espelho parabólico, no fim do século XVIII, permitindo a projeção de uma estreita fita de luz, à invenção da luz de ribalta em 1824 e à descoberta da eletricidade na década de 1880, somos capazes de lançar sobre as figuras do palco uma luz que jamais se viu, produzindo o efeito visionário de uma intensa cor e luz preternaturais. A apoteose disso são os grandes filmes coloridos, os grandes espetáculos e os grandes documentários em cores, que têm realmente um efeito visionário.

Numa escala mais modesta, podemos ver isso atualmente nas ruas como decoração natalina

- essencialmente um tipo de arte visionária popular. Essas luzinhas cintilantes lembram-nos um outro mundo; parecem mágicas. Nós as chamamos lâmpadas de fantasia, como chamávamos lanterna mágica ao projetor de imagens luminosas. Assim vemos que na mente popular sempre existiu uma curiosa consciência do mundo visionário, e uma resposta à arte visionária mais rudimentar. Existe algo que julgo muito comovente nessas decorações de Natal. São infelizmente comercializadas e absurdas, mas mesmo assim são sintomas do estranho fato de que todos carregamos, no fundo de nossas mentes, esse misterioso outro mundo que chamei o mundo das visões.

 

         Potencialidades humanas latentes

         Pronunciada em 14.12.1959.

Nesta conferência desejo falar sobre um assunto que tem a maior importância para todos nós: a possibilidade de concretizar as potencialidades humanas. Penso que não precisamos nos envaidecer imaginando que já realizamos todas as potencialidades com que nascemos. Muitas, em quase todos nós, podem ter sido liberadas e concretizadas. É fato histórico que os seres humanos concretizaram poderes e faculdades que no passado jaziam totalmente latentes ou inconcebíveis. Nosso aparato biológico não mudou muito desde o período Paleolítico Superior, e agora usamos muito mais eficazmente o mesmo equipamento natural que tínhamos há quinze ou vinte mil anos passados. Esse fato é muito encorajador. Mostra que o homem pode tirar de si mesmo mais coisas, sem necessariamente transformar-se biologicamente.

Antes de começarmos a discutir o problema de como essas potencialidades humanas podem ser concretizadas, é preciso falar das necessidades humanas, pois é só em relação às necessidades que podemos discutir as potencialidades. Podemos começar com as necessidades biológicas básicas do homem, que são a necessidade de comida e de preservação da vida diante dos elementos e dos inimigos humanos ou naturais. Essas duas necessidades biológicas fundamentais devem ser satisfeitas para que o homem pelo menos sobreviva. Depois, subindo a escala, encontramos necessidades estritamente psicológicas, como a necessidade aparentemente universal de dar e receber amor. Essa necessidade tem sido fortemente enfatizada por antropólogos e psicólogos que destacaram que, se não for satisfeita na infância, a criança crescerá como um psicopata ou mesmo um imbecil do ponto de vista moral.

Estreitamente ligada à necessidade de amor está a necessidade de pertencer, de satisfazer o que Adler chamou Ge-meinschaftgefúhl, o sentimento de comunidade com as outras pessoas. Depois, existe a necessidade de respeito e reconhecimento por outras pessoas, que é uma necessidade muito intensa, e a necessidade - um pouco mais rarefeita - de auto-respeito: temos de ser capazes de pensar em nós mesmos com alguma espécie de estima.

Depois vêm outras necessidades, ainda mais rarefeitas, mas mesmo assim (em certas pessoas, e sob condições favoráveis) bastante fortes: a de satisfazer a curiosidade; a de satisfazer a fome de conhecimento - conhecimento só pelo conhecimento, não necessariamente por causas utilitárias; a necessidade de ordem e sentido na vida; e a necessidade de expressão - somos animais criadores de símbolos, e evidentemente temos um desejo real de expressar o que sentimos e pensamos em termos de símbolos. Por fim, há a necessidade de crescer até o limite de nossas capacidades, de concretizar nossas potencialidades - que é uma necessidade básica quando as condições para seu surgimento forem favoráveis. Penso na primeira linha do soneto de Mallarmé sobre Edgar Allan Põe, "Tel qu'en lui-même enfin 1'éternité lê change" ("Assim como a eternidade finalmente o transforma em si mesmo")'. Mas não precisamos esperar pela eternidade. Creio que é possível tornarmo-nos nós mesmos a forma mais plena de transcendência do eu, mesmo nesta vida. E certamente vale a pena tentar.

Vemos dessa lista que tais necessidades são organizadas numa espécie de hierarquia. Se as necessidades biológicas primárias não são satisfeitas, as outras simplesmente nem serão sentidas. Não apenas elas não serão realrzadas e satisfeitas, mas nem entrarão em nossa consciência. Um homem que está faminto preocupa-se apenas com uma ideia, a de comida. Reduziu-se a algo subumano - um estômago vazio e uma carcaça macilenta -, nada mais. A mesma coisa acontece com a segurança. Se estamos continuamente ameaçados, é extraordinariamente difícil sentir qualquer outra das necessidades superiores. Se a fome for satisfeita, é possível sentir e até satisfazer as necessidades de amor e de pertencer mesmo vivendo num estado de insegurança crónica, mas certamente não será possível sentir as necessidades superiores de conhecimento e crescimento interior, e as outras necessidades puramente humanas.

allarmé, Stéphane. "Lê tombeau d'Edgar Põe". In Poésies. Galli-mard, Paris, 1942.

Depois, chegamos às necessidades psicológicas primárias. A não ser que as necessidades de amor, de pertencer, de respeito e auto-respeito sejam satisfeitas, é muito difícil que as necessidades intrinsecamente humanas, de conhecimento, ordem e sentido, expressão e crescimento, sequer sejam sentidas - e muito mais difícil serem atualizadas na prática e alcançarem uma plenitude. Essas necessidades nascem conosco, sem dúvida; são quase instintos. Sei que hoje em dia a palavra "instinto" é uma má palavra, que os psicólogos absolutamente não apreciam, mas inclino-me a concordar com o grande etologista Konrad Lorenz quando diz que chegou o tempo de tirar do instinto a sua má reputação, pois parece-me que, seja como for que chamemos essas coisas, elas são tendências inatas. Neste contexto julgo muito útil a ideia de A. H. Maslow de que essas necessidades básicas podem ser descritas como instintos fracos. Não são do tipo de instinto absoluto, como o que compele uma ave a fazer seu ninho; são instintos condicionais, tendências que surgirão desde que as necessidades biológicas e psicológicas inferiores tenham sido satisfeitas. Quando essas necessidades superiores se apresentam, estamos em condições de, pelo menos, satisfazê-las e assim concretizar as potencialidades latentes que jazem dentro de nós.

Parece-me que, à luz do que temos dito, podemos falar realisticamente sobre toda essa controvérsia natureza/formação. Obviamente nem a natureza nem a formação existem independentemente. Chegamos ao mundo como um corpo específico, com necessidades inatas, e entramos em contato com um ambiente específico. Por outro lado, o ambiente específico tem de agir sobre uma parcela hereditária específica, um pacote que lhe é entregue. Os dois são sempre sinérgicos agindo juntos de maneira contínua. O caso é que os fatores hereditários só podem expressar-se plenamente quando as condições ambientais são mais favoráveis. Num ambiente ruim, mesmo os melhores fatores hereditários podem ser mascarados ou abafados; é preciso o melhor tipo de ambiente para sermos capazes de desenvolver nossas capacidades inatas latentes. Assim, se quisermos ser eugenistas, também teremos de ser reformadores sociais, porque não vale a pena criar uma magnífica raça de seres humanos se as condições sob as quais eles vivem são tão ruins que as qualidades com que dotamos a raça não podem se desenvolver. Por outro lado, não vale a pena ter um magnífico ambiente se o material hereditário sobre o qual o ambiente tem de agir é de baixa qualidade. Sempre precisamos pensar nesses dois fatores - nutrição e formação, hereditariedade e ambiente - como termos absolutamente inseparáveis, ambos tendo de se desenvolver ao máximo.

Quais são as circunstâncias em que os seres humanos são mais capazes de realizar suas potencialidades e expressar efetivamente seus poderes latentes? A observação mostra que parece haver circunstâncias que permitem um máximo de expressão ao poder humano. Uma é o momento de crise. Temos visto o fato extraordinário de que, numa crise, muitas pessoas não apenas se portam muito bem mas revelam capacidades que jamais mostraram antes. A outra circunstância em que se dá uma demonstração excepcional de poder humano é quando ocorre uma espécie de irrupção de alegria e criatividade - o que Homero chamava de menos -, quando alguma espécie de influxo divino entra precipitadamente e, por assim dizer, nos ergue a um nível superior, onde somos capazes de ser mais do que o nosso eu comum.

Mas, para ser uma crise, a crise tem de ser breve; a crise que se torna crónica, que prossegue por tempo demasiado, leva inevitavelmente ao colapso. Os membros mais fracos da sociedade em crise entram em colapso bastante cedo; os mais fortes podem aguentar mais, mas também eles a longo prazo se desintegram sob uma pressão prolongada. A moral é que simplesmente temos de evitar essa pressão prolongada, especialmente porque, bem antes que os seres humanos realmente entrem em colapso, a vida de modo geral se torna tão limitada e estreita, e por fim subumana, que é quase impossível atender às necessidades superiores do indivíduo e da sociedade. Da mesma maneira não podemos nos fiar em momentos de júbilo e criatividade. O espírito sopra onde quer, e não sabemos quando essas coisas virão. E possível, como mencionarei mais tarde, que no futuro aprendamos a controlar esses momentos de ímpeto e, até certo ponto, a produzi-los quando quisermos; no momento, não podemos. Assim, não podemos nos fiar nem na crise nem nessas irrupções de poder. Mas podemos apoiar-nos no desempenho bastante bom dos seres humanos numa sociedade que satisfaz suas necessidades básicas e ao menos lhes dá oportunidade de satisfazer as superiores. Na verdade, é em uma sociedade razoavelmente boa, com pessoas adequadamente alimentadas e livres de frustrações demasiadamente terríveis, que podemos esperar a melhor realização possível das potencialidades humanas.

A fim de que as potencialidades individuais pudessem ser desenvolvidas em todos os indivíduos, deveríamos ter uma sociedade perfeita. Esse é um resultado que devemos desejar com fervor, mas não parece que seja concretizado dentro de um prazo previsível. Por isso, não perderei tempo discutindo as reformas sociais desejáveis para ajudar os indivíduos a concretizarem suas potencialidades. Isso nos levaria longe demais. O que farei é falar sobre certas falhas óbvias, e analisar os meios pelos quais elas podem ser corrigidas e assim beneficiar o indivíduo e, indiretamente, a sociedade, dentro de uma estrutura social não muito diversa da nossa.

Como, então, vamos melhorar as circunstâncias da vida individual de modo a que nossas necessidades superiores sejam satisfeitas? Que métodos usaremos para tornar realizáveis as nossas potencialidades? Permitam-me tocar muito rapidamente em uma possibilidade que ainda é em grande parte apenas uma possibilidade e não um fato realizado. E o que podemos chamar abordagem farmacológica do problema. Há um ano mais ou menos, cientistas soviéticos anunciaram que estavam empenhados num plano de cinco anos para encontrar métodos farmacológicos de aumentar a eficiência e resistência mental dos indivíduos, sem nenhum prejuízo maior para o corpo. Os farmacólogos dizem-me que provavelmente isso não é um sonho impossível; ao contrário, é bem provável que se encontrem produtos químicos que não prejudicam seriamente o corpo, e podem ajudar a mente na sua tarefa de concretizar potencialidades latentes.

Podemos imaginar um produto químico similar, mas muito superior aos chamados energkadores psíquicos, que já fizeram um trabalho notável na psicoterapia, em casos de depressão. É possível imaginar substâncias que produziriam uma grande euforia - a irrupção de alegria, uma das condições da eficiência humana - e que também poderiam causar uma redução na barreira que normalmente separa a mente consciente da pré-consciente. Isso permitiria que o que Lawrence Kubie chama a mente pré-consciente ou criativa chegasse mais facilmente à superfície e nos fornecesse o tipo de inspiração para a criação artística e para a eficácia na vida, que é essencial para o pleno desenvolvimento do ser humano.

Pode também haver produtos químicos que nos permitam ser mais alerta, mais capazes de suportar tensão, ou mais pacientes e mais amáveis. Todos sabemos que é mais sábio abordarmos um chefe depois do almoço do que antes - provavelmente ele se sente bem mais feliz depois do almoço do que quando está com fome. E todos temos experiência de como uma xícara de café ou chá pode influenciar nosso estado de ânimo. Parece não haver motivo para não se descobrirem substâncias que sejam tão relativamente inofensivas como o chá ou o café, mas que sejam consideravelmente mais poderosas na sua influência sobre a mente.

Está bastante claro, entretanto, que a farmacologia provavelmente não conseguirá isso sozinha. Precisamos ter, junto com ela, algum tipo de processo educacional. Atualmente ensinamos nossos filhos a adquirirem conhecimento de coisas úteis, a terem compreensão do que é o quê, e a se comportarem como seres humanos civilizados, se possível. Mas não treinamos as mentes-corpos, que têm de aprender e precisam viver. Damos a eles o conhecimento e as injunções morais, mas não os treinamos de modo a que possam concretizá-las. Essa é uma das graves falhas do nosso atual sistema ético e educacional.

Analisemos os campos em que poderia ser de maior utilidade esse treinamento da mentecorpo. O mais básico e mais importante é obviamente o campo da percepção. A fim de sobreviver, de realizar nossas necessidades e desejos, e desenvolver nossas potencialidades latentes, precisamos de um aparato perceptual eficiente. Treinar a percepção é algo cuja importância estamos apenas começando a entender. Analisemos os efeitos imbecilizantes que a má visão tem sobre os seres humanos: resulta em hábitos de leitura pobres, retardamento na escola, e toda a série de reações neuróticas e anti-sociais a esse retardamento, que pode então produzir delinquência juvenil.

Ver é, como andar e falar, uma atividade que se aprende. Não nascemos vendo com perfeição. Aprendemos a ver perfeitamente, e isso é um ato em parte fisiológico, em parte mental. Podemos ajudar a realizar potencialidades simplesmente ensinando às crianças aquilo que chamei, num livro que escrevi há alguns anos, "a arte de ver". Recentemente essa arte de ver foi muito comentada em círculos ortodoxos, e isso me divertiu bastante, pois vi que muitas das proposições que expus, seguindo um notável pioneiro no campo, o dr. W. H. Bates, morto em 1930 - e pelas quais nós dois fomos chamados tolos e charlatães - estão sendo agora adotadas por homens profissionalmente interessados no problema da visão e sua relação com a educação e problemas sociais.

Não há tempo de entrar nos detalhes do treinamento da arte de ver ou da leitura corretiva. A evidência do que uma visão ruim pode fazer às crianças, e um relato das técnicas empregadas não apenas na leitura corretiva mas mais detidamente na arte de ver, encontram-se num pequeno mas expressivo e interessante artigo do dr. James Curran, publicado há dois anos no Optometrical Weekly e que traz consigo uma extensa biografia. Parece estar bem claro, entretanto que esse tipo de treinamento pode ser usado não apenas te-rapeuticamente mas também como prevenção. E pode ser usado concomitantemente com todos os sistemas de ensino, desde os primeiros anos.

Penso que podemos generalizar e dizer que quanto mais discrimina ti vás, agudas, precisas, são nossas percepções, melhor será nossa inteligência em geral. E bem verdade que certos tipos de inteligência, tal como a que é requerida para a análise lógica, podem existir sem um aparato perceptual muito desenvolvido; mas também penso ser verdadeiro que a inteligência para as situações da vida e atividades mentais é menos rarefeita e especializada do que na análise lógica. Para esses tipos de inteligência requer-se realmente uma capacidade perceptual mais desenvolvida. Temos de aprender a ver o que significa sermos o que somos e onde o somos. Temos de conhecer o que nos rodeia; temos de saber como reagimos ao que nos rodeia; temos de saber o que acontece dentro dos nossos corpos; e temos de ter uma ideia clara do que estamos pensando, sentindo, desejando e querendo. Em outras palavras, precisamos obedecer à velha máxima socrá-tica -já era uma máxima bem velha mesmo no tempo de Sócrates: "Conhece a ti mesmo".

Antes de continuarmos a discutir meios positivos de conhecermos a nós mesmos, analisemos os obstáculos mais comuns, em nosso mundo, para o autoconhecimento. O maior obstáculo para termos consciência - generalizada (ou aguda) consciência discriminativa - é a neurose. A neurose pode ser definida em um de seus aspectos como uma fixação em um único aspecto da vida, um "olhar o mundo" através de um particular jogo de lentes que distorcem, tornando-nos incapazes de ver um ângulo maior da vida e perceber realis-ticamente o que acontece ao nosso redor. Como vimos, a maioria das neuroses deve-se claramente a fatos acontecidos no passado, muitas vezes na primeira infância, e o que acontece é que somos influenciados agora por fatos que aconteceram então - reagimos ao presente em termos do passado. A cura das neuroses, seja como for realizada, é um método pelo qual a pessoa pode ser retirada dessa obsessão inconsciente e levada à consciência plena dos fatos que acontecem agora, dando-se-lhe a capacidade de responder adequadamente e realisticamente a esses fatos presentes.

Gente não-neurótica ou relativamente não-neurótica também enfrenta obstáculos no caminho da consciência - obstáculos que são descritos frequentemente na literatura -, por exemplo, preocupação monomaníaca com um só interesse ou dominação por uma só paixão, tal como avareza ou amor pelo poder, ou prazer sexual só pelo próprio prazer, separado do amor. Tudo isso costumava ser chamado por moralistas antiquados de "as paixões", e são essencialmente limitações da consciência. São cortinas que confinam nossa visão a um corpo muito pequeno, e evitam que tenhamos consciência de nós mesmos e de tudo o que acontece ao nosso redor.

Outro obstáculo muito comum à tomada de consciência é uma espécie de intelectualismo deslocado. É o tipo de intelectualismo que considera palavras e conceitos como algo mais real e importante do que acontecimentos e coisas concretas. Há um relato muito divertido, nos diários de Goncourt, de um homem eminente que sucumbiu a esse tipo de obstáculo à consciência. Ernest Renan, o grande sábio francês do século XIX, que gostava muito de falar sobre estética, discorria demoradamente sobre a beleza, a verdade, etc., quando de repente Edmond Goncourt o interrompeu perguntando: "Qual a cor do papel de parede da sua sala de jantar?" Renan não tinha a menor ideia. Obviamente, não tinha muita base factual para discutir a beleza; estava apenas discutindo um contexto teórico, e não experiências imediatas - que são na verdade as únicas experiências de beleza.

Outro obstáculo à consciência é o hábito e a rotina. Os dois são muito valiosos. Permitemos poupar muito tempo e fazer coisas sem importância - na medida em que tudo é sem importância - com rapidez e eficiência. Mas também são muito perigosos. Se nos tornarmos vítimas de nossos hábitos e da rotina, tendemos a reagir aos fatos presentes sem espontaneidade. Tendemos a reagir a eles em termos de algo que aprendemos no passado, e não como se fossem o aqui e o agora.

0 ideal seria que tirássemos o melhor proveito dos dois mundos, e essa é sempre a moral a que chegamos. Precisamos ter bastante consciência do inusitado de cada fato, aqui e agora, para sermos capazes de reagir apropriada e espontaneamente a ele. Ao mesmo tempo, precisamos ter suficiente consciência da semelhança dos fatos atuais com fatos passados, para permitir que nossa experiência passada nos ajude a ser mais eficientes em nossa experiência imediata. Mas, em muitos casos, constatamos que nossa confiança no hábito, nas palavras e nos conceitos tende a cegar-nos para a realidade imediata à nossa frente. Seria uma coisa muito boa se as crianças fossem treinadas para entender a importância do hábito e do não-hábito, embora eu não saiba exatamente como se faz isso.

Analisemos agora algumas das maneiras positivas pelas quais a consciência perceptual pode ser aumentada. Aqui devo mencionar um livro que penso que vale a pena ler; sua tese não chega a ser novidade, como mostrarei em alguns minutos (ela vem de milhares de anos atrás), mas é bastante moderna no contexto atual, onde esquecemos muitas coisas importantes. O livro é Gestalt therapy ("Terapia da Gestalt") de Perls, Hefferline e Goodman1. Seu método de lidar com problemas neuróticos é ensinar as pessoas a terem consciência - esse é o começo da sua terapia e eles prescrevem meios para a tomada de consciência dos fatos externos. Sugerem, por exemplo, que deveríamos compor frases começando com "aqui e agora, eu percebo" (seja lá o que for) "a luz dos meus olhos, esses objetos brilhantes à minha frente, essa coisa vermelha, esse papel amarelo, várias dores que talvez eu esteja sentindo", e assim por diante. Esses exercícios extraordinariamente simples e aparentemente infantis, de prestar atenção às coisas, são muito úteis para ajudar-nos a sair da nossa absurda preocupação com o passado e o futuro, com devaneios, e com lembranças agradáveis e desagradáveis que ocupam tanto de nosso tempo e energia - em resumo, levam-nos do pântano do não-real para o tempo presente e dão-nos a possibilidade de ao menos reagirmos realística e adequadamente ao que está acontecendo. Esses autores especificam uma série de outros exercícios, tais como transferir o foco de atenção para uma conscientização dos objetos em relação ao seu pano de fundo (ver como as coisas do fundo, relativamente obscuras, vêm à frente quando lhes damos atenção, e como o que estava à frente pode tornar-se um objeto lateral ou de fundo). Falam na importância da consciência aguda dos fatos dentro do corpo e da mente. Em geral, o processo todo é um treinamento persistente da consciência perceptual básica, que precisamos para exercitar todas as outras funções da mente-corpo.

 

1 Perls, Frederick S.; Hefferline, Ralph F.; Goodman, Paul. Gestalt therapy. Julian Press, Nova York, 1951.

 

Essa obra dos terapeutas gestaltistas não é nova - no nosso século. Um notável psicoterapeuta suíço, o dr. Roger Vittoz, que morreu em 1925 - lembro que naquele tempo ouvi falar em seus métodos, mas nunca o vi -, teve grande sucesso lidando com neuroses. Até onde se pode ver, ele era muito mais bem sucedido do que os psicanalistas; seu método era essencialmente treinar os pacientes a terem consciência das ações aparentemente mais triviais (porque nenhuma ação é totalmente trivial). Era um processo de cair em si e aprender a usar a vontade e a ter consciência de tudo o que está sendo feito. Quando Vittoz morreu, seu método foi completamente negligenciado. Essa é uma das coisas trágicas que estão sempre acontecendo na história das ideias: excelentes ideias são produzidas e trabalhadas, mas por várias razões sociológicas são muitas vezes totalmente esquecidas por um longo período. As ideias de Vittoz não combinaram com as noções psicológicas correntes naquele tempo. As pessoas preferiam, a essa abordagem direta e simples, que segundo os relatos teve muito sucesso, os métodos mais rarefeitos e muito mais complicados da psicanálise.

0 que é muito interessante é que tanto Vittoz como os terapeutas gestaltianos estão realmente revivendo procedimentos correntes em vários sistemas da filosofia e psicologia orientais há um ou dois mil anos. Essa coisa de ter verdadeira consciência de tudo, dentro e fora, é um procedimento normal na psicologia budista, tântrica e zen. Existe, por exemplo, um texto introduzido por um diálogo entre Shiva, o grande deus, e sua mulher, Parvati. Parvati pergunta a Shiva o segredo de sua profunda consciência - a consciência do Tat Twam asi, o "vós sois isso", a consciência de que a Atman é idêntico ao Brahman. Shiva começa a dar-lhe uma lista de cento e dezoito exercícios de conscientização, que ele diz serem muito úteis para obter essa consciência última. São exercícios de tomada de consciência de todas as situações da vida, desde comer ou jantar até espirrar, dormir ou fazer amor, sonhar ou entrar em devaneio. É a série mais lógica de exercícios de conscientização que conheço, e é muito curioso ver que essa descoberta sociológica de imenso valor permaneceu como uma espécie de vaga superstição oriental, com a qual nem nos incomodamos. Agora, depois de tantos anos, está emergindo e provará ser de grande valor'.

Permitam-me abordar outra técnica de conscientização na qual John Dewey tinha grande interesse. Refiro-me à técnica desenvolvida por F. M. Alexander (que morreu aos oitenta anos) para se ter consciência da postura adequada - a relação adequada sobretudo entre pescoço e tronco que permite o melhor funcionamento possível ao organismo psi-cofísico. Dewey, que estudara a técnica com Alexander, escreveu introduções a três dos livros de Alexander; numa delas diz que considera que essa técnica é para a educação o que a educação é para a vida em geral, quer dizer, a coisa que dá à educação a possibilidade de fazer algo realmente bom. Mas, entre as centenas de milhares de educadores que seguiram Dewey, virtualmente nenhum, até onde sei, deu qualquer atenção a esse método de treinar a mente-corpo, que Dewey considerava de primária importância na educação; permitiram que a ideia simplesmente morresse, e, segundo sei, há apenas uma escola nos Estados Unidos em que ela é aplicada na educação de crianças. Eis outro exemplo de uma ideia importante, reconhecida por um filósofo de primeira linha como de imensa importância teórica e prática, deixada de lado porque não combina com os pontos de vista correntes na época.

Desejo prosseguir agora com os outros meios de treinar a mente-corpo. Uma forma muito importante de treinamento é o da imaginação. Aqui recomendo A educação pela arte, de Herbert Read, em que ele fala na possibilidade de treinar a imaginação das crianças de modo* que possam manter, durante a vida adulta, a notável faculdade da fantasia eidética, que a maioria das crianças parece ter. Geralmente o intenso poder de visualização desaparece na época da puberdade, e parece não haver motivo para que isso não se preserve e não permaneça como fonte de prazer e benefício intelectual para os seres humanos, mesmo os adultos. Na Gestalt tbe-rapy também se prescrevem muitos exercícios interessantes no uso da imaginação, para soltar a mente de seus velhos maus hábitos de pensar e sentir. Não posso entrar neles agora, mas vale a pena examiná-los. Ajudam a nos tirar da ilusão de uma espécie de personalidade falsa, que criamos com nossos maus hábitos.

 

1 Reps, Paul. "Centering". In: Zen flesh, Zen bonés. Anchor Books, Garden City, 1961, p.157.

 

Parece bastante claro que qualquer desenvolvimento da atenção deve andar de mãos dadas com o desenvolvimento do nosso conhecimento da linguagem e conceitos. Se tivermos consciência de nossa experiência direta, temos também de ter consciência da relação entre a experiência direta e o mundo dos símbolos, linguagem e conceitos no qual vivemos. Somos como icebergs. Flutuamos na realidade imediata, mas projetamo-nos nos ventos da doutrina, na medida em que nos erguemos da experiência imediata para o mundo dos conceitos. Pois é bastante certo que não existe algo como a experiência imediata absoluta, e que todas as nossas experiências têm um certo matiz linguístico, assim como não há dúvida de que somos capazes de ir muito mais longe na experiência imediata do que geralmente fazemos. Assim, é muito importante termos consciência da relação entre as experiências imediatas e as palavras, do que pensamos sobre elas, como as expressamos e explicamos. Em outras palavras, a evolução da linguística e da semântica no século XX deveria influir na educação em todos os níveis. Penso que deveria haver um treinamento simultâneo da mente-corpo na percepção, imaginação e uso da linguagem. Tudo isso me parece inter-relacionado de maneira essencial.

Agora, estreitamente ligados aos problemas da tomada de consciência em geral estão os problemas do amor. Amor e conhecimento estão muito unidos. Amor sem conhecimento é importante, conhecimento sem amor muitas vezes é desumano. No mundo, como o vemos hoje, há obviamente muito conhecimento sem amor e muito amor sem conhecimento - sem falar numa porção de ódios sem conhecimento, muito fáceis de identificar, que existem por aí. Nosso problema é encontrar algum meio de possibilitar que mais seres humanos amem de maneira consciente, com conhecimento.

Estranhamente, podemos aprender muito no terreno do amor com alguns povos primitivos. Em anos recentes, antropólogos têm investigado toda sorte de organizações psicológicas e sociais que nunca poderemos observar em condições de laboratório. (Por isso é tão importante que esses povos primitivos sejam cuidadosa e afetuosamente observados antes que todos desapareçam e sejam totalmente homogeneizados pela onda da tecnologia e propaganda.) Nesse assunto de amor temos extraordinários exemplos de inteligência primitiva. Margaret Mead descreveu as surpreendentes práticas dos arapesh, uma minúscula tribo da Nova Guiné, uma sociedade essencialmente nãoviolenta e cooperativa. Eles davam o maior valor ao amor e à amizade e desenvolveram métodos, aplicados desde a mais tenra infância, para encorajar e implementar esses ideais de amor. A dra. Mead conta que a mãe arapesh, quando amamenta seu bebé, murmura continuamente a palavra "bom, bom", e enquanto o bebé suga o leite e a mãe murmura isso, ela esfrega a criança contra o cão ou o porco da família, ou algum ser humano do círculo familiar ou mesmo fora dele, de modo que a criança cresce com uma espécie de reflexo condicionado para sentir confiança, amor e bondade das outras pessoas.

Vocês poderão dizer que é apenas um reflexo condicionado, mas todos somos influenciados por reflexos condicionados, o tempo todo, de modo que podemos ver que nossos reflexos condicionados são antes bons do que maus. Penso que há - como muitos sociólogos mostraram desde que se publicaram as descobertas sobre os arapesh, há alguns anos - muito espaço para que aprendamos muita coisa dessa gente bem simples, que descobriu métodos para aumentar o amor e intensificar a qualidade deste na sociedade.

Outra instituição de sociedades primitivas que talvez possamos tomar emprestada, e que também tende a aumentar o amor e diminuir a frustração, é a família múltipla, que encontramos em muitas sociedades polinésias. Uma criança pode ter ali muitos lares potenciais. Todo um grupo de pessoas assume a responsabilidade pela criança, que, assim que começa a dar os primeiros passos, é livre para ir de um lugar a outro. Em todos esses lugares ela terá direitos e responsabilidades. Esse sistema supera muitas das grandes desvantagens de que sofremos devido à estrutura familiar extremamente limitada em que estamos hoje condenados a viver. No passado, a estrutura familiar no Ocidente cobria um número muito maior de pessoas, porque as pessoas viviam na mesma aldeia e sempre havia muitas gerações presentes, bem como tias e primos, e assim por diante. Mas o método poli-nésio parece ser ainda melhor do que o que tivemos por aqui, e bem melhor do que o que temos no presente. Talvez seja uma ideia fantástica, mas não vejo por que, por exemplo, não deveríamos criar uma espécie de clube de adoção mútua, fora das cooperativas de baby-sitting que estão se tornando tão comuns no mundo moderno. Parece-me que seria uma vantagem enorme.

Analisemos por fim um problema muito doloroso, o do preconceito e da hostilidade mútua, tanto internacional como nacional. Muito se estudou esse problema do preconceito, de como reduzilo, ou de como intensificar os bons sentimentos entre grupos raciais, religiosos ou de diferentes classes. A natureza das pesquisas e métodos usados e seus resultados foram resumidos por Gordon Allport em seu livro The na-ture of prejudice ("A natureza do preconceito"). Sinto dizer que a conclusão de Allport é relativamente pessimista. Ele diz que a evidência prova que possivelmente quatro quintos dos americanos adultos estão afetados por preconceitos, e que há evidências que o levam a crer que será dificílimo mudar essa "ignominiosa proporção". Será quase impossível, apesar de todos os esforços que vêm sendo desenvolvidos por métodos legislativos, propaganda, cooperação de grupos, terapia individual, ensino escolar e todo o resto. Alguns desses métodos são mais eficazes do que outrps, e pode ser que se descubram métodos novos no futuro. A posição de Allport é de que, embora o prognóstico não seja lá muito brilhante, devemos buscar meios para intensificar os bons sentimentos e reduzir os preconceitos.

Um dos problemas básicos está expresso num epigrama de William Blake: "Damn braces. Bless relaxes'' ("A maldição reforça. A bênção relaxa.")'. Isso naturalmente significa que as emoções negativas têm dividendos psicológicos maiores do que algumas mornas emoções positivas. Sem dúvida, o dividendo psicológico mais alto é pago pelo amor, mas o ódio dá dividendos bem maiores do que a mera tolerância ou aceitação. É trágico que o ódio nos dê mais lucro do que as virtudes plácidas; o problema é: como intensificarmos o morno calor da mera tolerância, tornando-o um pouco mais cálido e forte? Podemos conseguir que os bons sentimentos - não apenas a ausência de mau sentimento - substituam os sentimentos maus? Penso que uma das coisas que, a longo prazo, pode ajudar a minimizar o desejo de emoções negativas como forma de estímulo será exatamente o treinamento da percepção.

 

1 Blake, William. "The marriage ofHeaven andHell", Proverbs of Hell.

 

Não há dúvida de que a pessoa com percepções treinadas acha o mundo muito mais interessante do que alguém com percepções não-treinadas, e por isso a primeira pessoa poderá precisar menos das excitações substitutas dos filmes de bangue-bangue e histórias de assassinatos, ou excitações muito mais perigosas proporcionadas pelo antagonismo racional e por orgias nacionalistas. Penso que, se em todo o mundo, mais uma vez segundo uma frase de Blake, fossem limpas as portas da percepção, tudo seria visto tal como é: infinito. E se tivéssemos todas as portas da nossa percepção lavadas, e se habitualmente víssemos o mundo como infinito e sagrado, obviamente acharíamos muito menos necessário nos empenharmos em brigas, ataques a minorias ou atividades contra estrangeiros. Assim, todas essas coisas agem em conjunto. Esperemos que, cedo ou tarde, encontremos um método que, combinando a consciência com esses vários treinamentos para bons sentimentos, possa aumentar a soma da decência humana, e possibilitar a realização de muitas de nossas potencialidades latentes.

Com isso chego perto do fim, agradecendo pela paciência que tiveram em escutar o que, receio, foi uma série meio desconexa de discursos. Todo mundo aqui foi extremamente amável comigo. A única crítica que recebi dizia respeito a algumas pessoas que pensei terem dado contribuições importantes, como W. H. Sheldon. Posso estar errado, e Sheldon pode estar errado, mas acontece que penso que ele está certo. Sobre isso, direi apenas o que já disse: não é necessariamente verdade que, por ser ortodoxa num certo momento, uma doutrina esteja correta. Houve no passado demasiados exemplos de ortodoxias que acabaram se revelando profundamente erradas; por isso ninguém precisa pensar que é necessário aceitar tudo dentro do ponto de vista ortodoxo.

Encerro com uma observação que Oliver Cromwell fez em sua carta de 3 de agosto de 1650 à Assembleia Geral da Igreja da Escócia: "Exorto-vos, pelas entranhas de Cristo, a que penseis ser possível que estejais errados". Sinto que tais palavras deveriam ser escritas em ouro sobre cada mesa de conferência, e cada porta de igreja. Afinal, exprimem uma das grandes descobertas dos tempos modernos - a hipótese, que substituiu a ideia do dogma ou da doutrina. Podemos formar uma hipótese e estar perfeitamente preparados para alterá-la quando aparecerem fatos novos; não precisamos nos prender a ela a qualquer preço, e martirizar outras pessoas por causa dela. E, com essas últimas palavras - que espero poder aceitar que talvez eu esteja errado -, despeço-me de vocês. 

 

                                                                                Aldous Huxley  

 

                      

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