Biblio VT
XX
? Deveríamos ter escolhido o dourado... ? disse Beatrice movendo-se sobre si mesma e observando o vestido com atenção para convencer-se de que não era muito ostentoso para aquela ocasião ? tem bastante decote...
? Mas seu seio não aparece. A renda de seda branca evita que se aprecie ? argumentou Lorinne enquanto tentava colocar as últimas forquilhas no cabelo da inquieta moça.
? Não pensa que é muito atrevido? ? Perguntou ao mesmo tempo em que detinha seus movimentos fazendo com que a criada soprasse aliviada ao poder finalizar sua tarefa.
? O malva é o ideal para tomar o chá. Se tivesse escolhido o esmeralda eu lhe teria feito mudar de ideia. Esse sim é um vestido atrevido. Ainda não sei como a senhora Stone permitiu sua compra ? expôs antes de emitir um sorrisinho perverso.
? Mas é lindo... ? murmurou a jovem caminhando para o objeto e tocando com cuidado o tecido.
? Esse deve usar na festa. Estou segura de que deixará a mais de um cavalheiro com a boca aberta e com uma dor terrível no flanco ? comentou a donzela zombadora.
? Por quê? ? Beatrice arqueou as sobrancelhas, olhou-a com atenção e caminhou para ela.
? Não imagina por quê? ? Assinalou com seriedade. Logo, ao descobrir que com efeito a jovem não sabia a que se referia, explicou-lhe. ? Como acredita que atuarão as esposas desses maridos? ? Esperou uma resposta e ao não obtê-la, continuou. ? Minha querida senhorita Brown, esses desafortunados cavalheiros serão golpeados pelos duros cotovelos de suas mulheres ? disse antes de soltar uma gargalhada.
? Não seja boba... ? sussurrou desenhando um leve sorriso em seu rosto. ? Ninguém será capaz de me olhar dessa forma sabendo que sou a pupila do duque. Todo mundo teme zangá-lo.
? Mas sua Excelência não poderá controlar os olhares...
De repente alguém deu uns pequenos golpes na porta. Depois que Beatrice deu sua permissão, o senhor Stone fez ato de presença. Como era habitual nele, mostrou-se sério, frio, imperturbável.
? Senhorita Brown, informo-lhe que os convidados acabam de chegar. Sua Excelência a espera para recebê-los.
? Descerei agora mesmo ? manifestou depois de tragar saliva.
? Obrigado ? respondeu o mordomo antes de despedir-se.
Quando fechou a porta, Beatrice levou a mão direita ao peito sentindo a agitação que se ocultava em seu interior. Seria capaz de convencer ao incrédulo senhor Wadlow da nova versão? Que provas lhe pediriam para confirmar que ela não era uma cortesã? E, sobretudo... como atuaria o duque se o homem se comportasse indevidamente com ela? De repente sentiu medo e um estranho enjôo a sacudiu com ímpeto. Temerosa por um possível desmaio, caminhou devagar para o leito e se agarrou com força a um dos dosséis.
? Não se preocupe, tudo sairá bem ? sussurrou Lorinne. Vendo-a tão aturdida, aproximou-se, estendeu os braços para abraçá-la e a tentou reconfortar com o apertão. ? O duque cuidará de você como tem feito desde que entrou nesta casa. Esse filho do demônio não se atreverá a lhe magoar porque, se o fizer, estou segura que não sairá ileso daqui ? sussurrou. Depois de suas palavras, a donzela lhe deu um beijo na bochecha, a fez girar para a porta e a empurrou brandamente até que conseguiu tirará-la da habitação.
Quando Beatrice se propôs a descer as escadas, parou para observar o duque. Este se encontrava imóvel no hall com o olhar cravado na entrada e manifestando certa rigidez em seu corpo. Estava tenso, mais do que esperou encontrar em um homem que se caracterizava por manter uma extraordinária serenidade e autoridade. Sem dúvida, o que acontecesse durante a visita do doutor e sua esposa, inquietava-lhe.
A moça pensou que era lógico que se encontrasse daquele modo, posto que lhe urgisse resolver um tema que lhe causava tristeza. Não era agradável que lhe seguissem considerando o sucessor das atrocidades realizadas por seu pai. Embora ele tampouco lutou com afã para fazê-las desaparecer. Por muito que lhe explicou desejar ser uma pessoa diferente, antes de ser ferido no duelo comportava-se com a mesma insolência que seu progenitor. Entretanto, todo mundo merece uma segunda oportunidade e possivelmente era o momento de recebê-la.
Com suavidade desceu as escadas sem deixar de observá-lo. Durante um breve instante, no qual este colocou sua mão direita nas costas, apreciou que enrugava a testa com força. Não podia receber ao casal daquela maneira, tinha que relaxá-lo. Se antes que estes pusessem um pé no lar e a perturbação não desaparecesse, a história mentirosa terminaria em um fracasso inevitável.
William não tranquilizou sua mente nem um só instante desde que a moça lhe revelou seu passado. Não cessava de imaginá-la perambulando sozinha, caminhando exausta e contornando centenas de perigos aos quais teria enfrentado. Cada vez que pensava nisso o sangue lhe fervia, irritava-se e queria golpear algo para poder quebrar com a mão. Embora aquelas divagações lhe enfurecessem, mais ira lhe provocava havê-la conduzido para a situação em que se encontrava agora. Por sua culpa a moça deveria enfrentar os falatórios de todo um povoado para demonstrar ser inocente e decorosa. E tudo porque ele não era capaz de deixá-la partir, de aprender a viver sem ela.
«Se tanto a necessito, ? disse ? deveria atuar com rapidez. O muro está quase terminado e então, tal como lhe prometi, terei que deixá-la partir».
Mas a única forma encontrada para evitar aquela desgraça não podia levá-la a cabo, não até que averiguasse os sentimentos que ela tinha para com ele.
? Se franzir o cenho com tanta frequência, envelhecerá logo – sussurrou-lhe Beatrice atrás dele.
? Desculpe-me, não a ouvi descer... ? começou a dizer William enquanto dava a volta para receber como era devido à jovem. Ao apreciar sua beleza e como aquele vestido de cor malva ressaltava sua figura, tragou saliva e sentiu como seu corpo se debilitava. Estava linda, encantadora, possivelmente até mais do que deveria mostrar ao casal. Entretanto, quem pode diminuir a mágica beleza que brota da simplicidade?
? Quer que eu me coloque ao seu lado ou prefere que permaneça uns passos atrás? ? Perguntou.
Era uma pergunta aparentemente infantil, mas não podia ser assim quando a moça revelava em seu rosto uma imensa zombaria.
? Se lhe oferecer o braço e você o aceitar, acredita que a senhora Wadlow terá que ser assistida por seu querido marido após sofrer um desmaio? ? Respondeu William à dita brincadeira.
? Então, a melhor opção será que fique ao seu lado, mas com certa distância ? disse ao mesmo tempo em que dava uns passos para sua esquerda.
As vozes dos convidados se escutaram detrás da porta, Brandon estava no exterior para lhes indicar para onde deviam caminhar. William olhou para a entrada, logo observou à moça e, sem saber a razão que conduziu a tal atrevimento, inclinou a cabeça para ela e lhe sussurrou com suavidade.
? Esqueci-me de lhe dizer que está linda.
Beatrice abriu os olhos como pratos ao escutar o suave murmúrio do duque em seu ouvido. Começaram a lhe suar as mãos, seu seio se elevava com ímpeto devido à respiração agitada, os joelhos começaram a dobrar-se pela perturbação que aquelas suaves palavras lhe provocaram. Era a primeira vez que lhe oferecia um elogio e, apesar de tentar lhe subtrair importância a um fato tão minúsculo, não o conseguiu. Por uma estranha razão, se ele se sentia orgulhoso dela, ela notava como crescia uma imensa felicidade em sua alma.
? Se forem tão amáveis de me seguir ? falou o senhor Stone. ? Conduzirei-lhes até a presença de sua Excelência.
? Pelo amor de Deus, Graham, isto é enorme! ? Exclamou a esposa, sem poder apartar o olhar de tudo o que se achava ao seu redor.
? Centre-se no importante, Irina. Você, como perita em propagar falácias, deve descobrir se esses dois estão nos mentindo. Como já sabe, nossa credibilidade diminuiu grandemente entre nossas amizades e, se deseja continuar sendo a esposa de um respeitado doutor, temos que achar a verdade.
? Não se preocupe querido ? disse sorrindo e lhe dando uns pequenos golpes com sua mão esquerda no braço que a sustentava. ? Encontrarei-a antes de beber o último gole de chá.
Brandon, ao escutar a conversação nada dissimulada dos convidados, apertou os dentes, abriu a porta e mostrou uma careta que tentava assemelhar-se a um sorriso.
? Senhor Wadlow, senhora Wadlow, bem-vindos ? saudou o duque com voz grave.
? Boa tarde, senhor. Obrigado por aceitar nossa visita ? comentou o doutor com um sorriso malicioso. Aproximou-se de William e estendeu a mão para lhe saudar. Logo olhou de esguelha à Beatrice e se dirigiu para ela. ? Alegro-me de vê-la em tão bom estado, senhorita Brown.
? Muito obrigada. Na verdade, devo tudo a você e ao seu magnífico trabalho. Ficaram apenas as marcas na perna ? comentou sorridente.
? Querida, esta é a jovem de quem te falei ? explicou Graham apartando-se para a direita para que a mulher se aproximasse de Beatrice. ? Senhorita Brown, minha esposa, a senhora Wadlow.
? Encantada ? disse a moça mostrando o mesmo sorriso sardônico que, instantes antes, tinha exibido o doutor.
Não tinha feito uma ideia de como seria a mulher do famoso médico, mas lhe chamou muito a atenção que ela fosse bastante mais alta que ele. Com uma compleição magra, mais do que estabeleciam os ícones de beleza, usava um vestido que enfatizava a estreita cintura e exaltava seu busto. Beatrice admirou o cabelo, era o mais dourado que tinha visto até agora. Era um loiro tão intenso que poderia confundir-se com o branco. E era jovem, muito mais jovem que seu marido, que exibia uma barba grisalha cuidada, um cabelo cortado à perfeição e uns olhos repletos de maldade.
? Encontra-se melhor? OH, meu Deus! Quando Graham me narrou a tenebrosa história que tinha padecido e as sequelas que poderia sofrer, quase desmaio ? explicou com aparente horror.
? Mas graças à intervenção de seu marido hoje posso caminhar como se nada daquilo tivesse acontecido ? sorriu outra vez.
? Deveríamos nos dirigir para o salão e continuar ali o bate-papo ? interveio William perplexo ante a hipócrita atitude dos três. Tinha pensado que Beatrice se enfureceria ao ter em frente a ela o culpado de sua agonia, mas de novo o deixava assombrado, atônito e orgulhoso.
? É claro ? afirmou a moça. ? Os cavalheiros poderiam ir à frente ? murmurou à Irina segurando-a pelo braço com familiaridade. ? Estou segura que ambos conhecem o caminho melhor que nós.
? Confunde-se, senhorita Brown ? interveio com rapidez o doutor. ? Salvo o dia em que vim para tratá-la, jamais estive neste lugar ? resmungou Graham ante tal atrevimento.
? Desculpe-me! ? Exclamou Beatrice com semblante desconcertado. ? Acreditei escutar que você era amigo do anterior duque de Rutland.
? Que nada! ? Deixou escapar Irina ante tal afirmação. ? Ninguém que se considerasse respeitável teria visitado esta mansão durante as aparições daquele homem.
? Ah, não? ? Perguntou com um aparente assombro.
? O pai de sua Excelência, ? começou a explicar a mulher depois dos passos dos cavalheiros ? era um homem desonroso e abrigava sob seu teto mulheres... como o diria eu para não escandalizá-la?
? Prostitutas ? apontou William com voz séria. Embora seu tom não refletisse o que sentia em realidade. Ao princípio apertou os dentes pela ousadia da moça, mas depois de ver a cara de espanto que mostrou o doutor, não cessou de repetir-se que a reunião iria ser mais amena do que pensava.
? Por isso alguém proclamou por Rowsley que sou sua... ? Beatrice tentou simular um desmaio ante o descobrimento. A senhora Wadlow lhe segurou com força o braço e olhou furiosa ao seu marido, este retornou com rapidez para a jovem para examiná-la.
? Não se preocupe ? disse a moça recompondo-se. ? Foi só um pequeno enjôo ao recordar as calúnias que um ser perverso e malicioso comentou sobre mim sem me conhecer.
? Encontra-se melhor? ? Interrompeu William tentando aparentar preocupação.
? É claro, sua Excelência, prossigam. Nós partiremos atrás.
O duque continuou seu caminho para o salão. Ao seu lado permanecia o doutor com o cenho franzido e absolutamente em silêncio. Depois deles andavam as mulheres. Quando entraram no salão, elas se sentaram perto da mesa redonda que havia justo ao lado de uma das janelas, onde podiam admirar o exterior do lar. Eles decidiram permanecer de pé ao seu lado.
? Então, ? rompeu o silêncio Irina ? conforme nos informaram, é você a pupila de sua Excelência.
? Sim. Minha mãe, amiga de uma irmã de uma amiga da irmã de outra amiga da atual duquesa de Rutland, encomendou-lhe a árdua tarefa de ser meu tutor ? explicou olhando-a fixamente aos olhos.
? Não teve mais alternativa? Desculpe meu atrevimento, milord, mas tem que compreender que uma moça tão jovem, tão bonita e com tantas possibilidades de encontrar um bom tutor em Londres, não entendo como terminou neste lugar.
? Desculpo-a, senhora Wadlow, eu pensei o mesmo quando minha mãe me informou sobre sua decisão. Mas depois de minha desgraça, de me converter em um ser incapaz de realizar nada sem a ajuda de meu fiel mordomo e de não supor perigo algum para a senhorita, insisti que era a melhor opção para limpar o bom nome que ostento ? sentenciou.
Beatrice não respirou. Ficou tão assombrada pela exposição do duque que não soube como atuar. Se sorrisse mostraria a estes seu apoio à declaração de inutilidade do homem, mas se pelo contrário, franzisse o cenho, apertava os dentes e seus punhos pela dor que lhe tinham causado as palavras, daria a entender aquilo que nem ela mesma era capaz de assimilar.
? Como já expliquei à encantadora senhora Brace, o duque é muito inteligente, mais do que deseja aparentar – interveio. ? E como tutor, não tenho queixa alguma, embora eu lhe diga que é bastante exigente.
O casal se dirigiu um olhar furtivo, mas tanto o duque como Beatrice o captaram. Estes se olharam interrogantes, como se ainda não acreditassem na versão contavam.
? É o momento do chá ? esclareceu William. Caminhou para um lado da cortina e puxou com delicadeza uma corda que pendia do teto. Ato seguido apareceu o senhor Stone.
? Sim, milord?
? Estamos preparados para tomar o chá ? afirmou.
Brandon fez uma suave reverência e, cinco minutos depois de sua marcha, duas criadas levavam em suas mãos umas bandejas de prata com as xícaras e massas.
Não houve bate-papo enquanto saboreavam a deliciosa infusão. Entretanto, William apostava o único braço são que o casal não cessava de refletir sobre quais perguntas fazer à moça para confirmar o que deviam descobrir. De repente, o doutor até aquele momento sentado ao lado de sua mulher para ingerir o chá e saborear alguns doces, pousou a taça sobre a mesa e se levantou com decisão.
? Sabe tocar o piano, senhorita Brown? ? Perguntou enquanto se dirigia ao instrumento situado no outro lado do salão. ? Se a memória não me falhar, nosso duque, quando tinha a precoce idade de dez anos, era um magnífico pianista.
William abriu os olhos como pratos. Um nó enorme lhe impediu de tragar o último sorvo de chá que tinha tomado. Tentou falar para oferecer qualquer desculpa, que o piano estava desafinado, que tinha se quebrado alguma tecla, algo que o tirasse do apuro, mas foi impossível.
? Não dizia você nunca tinha aparecido em Haddon Hall, salvo quando me visitou? ? Beatrice, assombrada pela maldade do homem, replicou-lhe com a mesma perversidade.
? Não precisava aparecer por estas lareiras para escutar as pessoas falarem sobre o incrível talento que possuía lorde Rutland com este instrumento ? sorria de orelha a orelha. Seus olhos mostravam uma escura e maléfica satisfação. Dizia-se a si mesmo ter encontrado o que havia se proposto. Que cortesã alcançaria tal capacidade? Elas só eram peritas em agradar sexualmente aos homens e deixavam de lado um estudo tão importante como a arte da música.
? Sim, por favor, toque alguma peça! ? encorajou Irina a decisão de seu marido com grande exaltação. ? Eu adoraria escutá-la. Apesar de meus constantes intentos por aprender a tocar esse instrumento, nasci sem esse dom. Conforme me disse meu último professor, não tenho um bom ouvido.
? Como podem apreciar ? interrompeu William mal-humorado. ? Não sou o homem apropriado para instruir com precisão nessa habilidade. Muito temo que...
? É claro! ? Exclamou Beatrice elevando-se de seu assento e caminhando para onde permanecia o senhor Wadlow e o instrumento. ? Como já disse, o duque é um bom tutor e, embora não possa me deleitar com uma interpretação, ele sim tem bom ouvido e sabe como transmiti-lo.
Absorto, assombrado e com o corpo tão intumescido que não era capaz de mover-se, William admirou a pequena figura dirigindo-se com elegância para o lugar. A moça se sentou após acomodar seu vestido ao assento, arrumou o suporte das partituras e olhou-as com atenção.
? Alguma peça em especial? ? A jovem arqueou as sobrancelhas e sorriu. Sentia seu pulso acelerado, os dedos começavam a mostrar rigidez e lhe suavam as palmas. Fazia pouco mais de um ano que não tocava o piano e, caso aquele maquiavélico personagem lhe pedisse algo especial, não poderia evitar cometer um engano. Sem saber por que olhou ao duque. Este estava absorto em algum pensamento doloroso porque franzia o cenho, tinha o olhar perdido e apertava a mandíbula. Quis lhe sorrir, transmitir-lhe serenidade para acalmar sua inquietação, mas... quem a calmaria?
? A que você desejar ? respondeu Graham sem deixar de regozijar-se.
Nesse momento e ante o assombro dos três, William se levantou do assento e caminhou para a jovem, colocou-se atrás dela e pousou a mão em seu ombro. Apertou-o com suavidade e lhe sussurrou:
? Beatrice...
O quente tato e escutar seu nome com aquela aveludada voz deixou a moça congelada. Notou um calafrio tão extraordinário e jurou que sua temperatura tinha baixado dez graus de repente. Elevou o queixo, afirmou com a cabeça como se este lhe tivesse indicado o que devia tocar, e colocando as mãos sobre as teclas iniciou a harmoniosa melodia.
Durante os quatro minutos e meio que durou Spring Waltz de Chopin, os três ouvintes foram incapazes de mover-se para interrompê-la com um minúsculo ruído. Quase não puderam respirar pela elegância e os sentimentos transmitidos em suas notas. Beatrice, apesar de suas dúvidas, não cometeu nem um só engano mesmo sentindo a terrível angústia que lhe causou a música. Recordou seus pais sentados na poltrona enquanto ela lhes deleitava com um interminável repertório. Aquela composição em especial os fazia segurar-se pela mão e mostrar sem pudor à sua filha o amor incondicional que se professavam. Naquele tempo ela sonhou encontrar um homem que lhe declarasse aquele afeto, que a protegesse, que a amasse sem objeções, sem restrições absurdas produzidas pela formalidade de uma sociedade repleta de insensibilidade.
Mas seus sonhos foram destroçados dramaticamente. Rememorou a dor sentida ao ser assaltada por seu violador, pelo dano que lhe produziu ao desflorá-la e como, destroçada, ficou estendida no chão chorando incapaz de levantar-se para seguir vivendo. Deveria tê-la matado com aquela faca que lhe apertava a garganta e finalizar assim o calvário que viveriam seus queridos pais depois do penoso anúncio.
Quando a peça estava a ponto de finalizar, a imagem do duque apareceu em sua mente sem poder evitá-lo. Recordou o dia do acidente e quando retornou para oferecer-lhe sua ajuda e ela o rejeitou, o momento no qual foi atacada e, depois de pensar que não seguiria vivendo, abrir os olhos e encontrar a figura esbelta do duque ao seu lado, cuidando-a, protegendo-a apesar de sua incapacidade. Recordou seu rosto zangado ao descobri-la vestida de criada, da tarde em que lhe abriu seu coração para fazê-la partícipe de suas desgraças. Do passeio, de sua dor e de como a tinha cuidado nessa tarde. Tampouco pôde evitar analisar seus sentimentos por ele. Seus aborrecimentos, suas atitudes altivas, dos incontáveis enfrentamentos... e soube por que tinha lutado com tanto ímpeto para apartá-lo de seu lado, porque o amava.
Estava apaixonada por ele e, embora pensasse que jamais desejaria deitar-se junto a um homem, ele fez com que toda sua decisão desaparecesse. Desejava-o com toda sua alma e isso lhe produzia pavor.
? Lindo... ? murmurou Irina levantando-se de seu assento para dirigir-se a ela.
Beatrice se incorporou e girou para o duque, quem permanecia ainda às suas costas. Elevou seu olhar para ele e não ocultou as lágrimas que emanavam sem cessar.
? Sinto muito todo o ocorrido ? disse o doutor ao contemplar a cena entre ambos. ? De verdade que o sinto e se sua Excelência deseja revogar o convite, compreenderei-o.
? O convite segue em pé ? comentou com firmeza. Não lhe olhou. Tinha seus olhos cravados na moça e não foi capaz de mover-se de seu lado, como ditavam os perfeitos comportamentos sociais, ao perceber sua debilidade.
? É hora de partir ? apontou Irina segurando seu marido pelo braço e dirigindo-o para a saída. ? Não se incomode em nos acompanhar, milord, meu marido saberá como sair daqui. ? William só pôde assentir com um leve movimento de cabeça.
Quando o casal fechou a porta, a senhora Wadlow agarrou com ímpeto o braço de seu marido e lhe sussurrou.
? Errou, querido. Não é sua concubina, mas sim a futura duquesa de Rutland.
O duque ao advertir que estavam sozinhos, estendeu sua mão e abraçou Beatrice. Deixou que seu rosto molhasse seu peito, que choramingasse tudo o que necessitasse, enquanto lhe sussurrava palavras de consolo.
«Sempre me terá ao seu lado. Não me separarei de ti até que você me peça isso», repetia uma e outra vez. A moça esticou seus braços e o aferrou ainda mais ao seu corpo. Necessitava aquilo que lhe prometia, precisava o ter ao seu lado, necessitava que jamais se afastasse dela.
? Minha pequena Beatrice... ? murmurou apartando-a com suavidade. Dirigiu sua mão para o lado direito do rosto feminino e lhe apartou as lágrimas, a seguir fez o mesmo com o esquerdo. ? Não sei de onde veio, nem como conseguiu chegar até aqui, mas dou graças a Deus por se cruzar em minha vida.
Beatrice elevou o queixo e deixou que este contemplasse sua tristeza. Permitiu que a reconfortasse e, quando percebeu sua boca se aproximando da sua, fechou os olhos para que a beijasse como tantas vezes tinha sonhado. Ao sentir a ternura em seus lábios, uma explosão de felicidade lhe percorreu o corpo. Ao princípio apenas lhe roçou e soluçou ao notar que se afastava, mas antes de poder abrir os olhos para certificar-se de que partia, o duque voltou a beijá-la. Entretanto, este beijo foi diferente. Toda aquela ternura dava passo a uma incrível paixão. Conquistava-a, fazia-a dele, hipnotizava-a até tal ponto que desejou sentir a mão dele acariciando seu tremente corpo. Não devia fazê-lo, não era adequado sentir, depois do acontecido, um desejo incontrolável de notar o calor de sua pele junto à sua, mas lhe resultava difícil não o fazer porque o amava.
William aproximou devagar os lábios para os de Beatrice e apenas os roçou, temia que ao tocá-los ela se arrependesse. Entretanto, ao escutá-la esboçar um pequeno e imperceptível gemido de necessidade, voltou a estender a mão e, segurando-a pela cintura, atraiu-a para ele. Deixando-se levar, transformou um terno e suave beijo em uma explosão de desejo. Saboreou sem descanso o interior e mesclou seu fôlego com o dela. Sua língua conquistou com suavidade e lentidão, tentando provocar em cada movimento mais paixão na jovem. De repente, um intenso calor lhe percorreu o corpo, convertendo o suave e terno beijo em um mais tórrido, enérgico e dominante. Era dele. Aquela pequena mulher era só dele.
? Desculpe minha ousadia ? disse William quando se separou dela para que não pudesse captar a excitação que lhe tinha provocado à aproximação. ? Não devia me aproveitar de sua aflição.
? Não se desculpe, foi culpa de ambos ? comentou com pesar ao entender que o duque se arrependia de beijá-la.
? Mas jurei que jamais tocaria a uma mulher sem seu consentimento ? esclareceu dando uns passos para trás.
? Cumpriu sua promessa, sua Excelência. Permiti-lhe me beijar e agora, se me desculpar, desejo me retirar ao meu quarto.
? É claro ? respondeu aflito.
Com a cabeça abaixada e com um visível pesar, Beatrice saiu do salão, subiu as escadas, alcançou seu quarto, fechou a porta e se tombou na cama para chorar.
Por outro lado, o duque quis correr para ela e lhe explicar que suas palavras não tinham sido acertadas. Que ele desejava beijá-la com toda sua alma. Mas apertou as solas de suas botas no chão e não o fez. Depois de escutar como a moça fechava a porta, girou-se para o móvel, tirou uma garrafa de brandy e se serviu uma taça que bebeu de um sorvo.
XXI
Durante os dias posteriores, Beatrice evitou qualquer encontro com o duque. Recusou seus convites para almoçar, tomar o chá ou inclusive jantar juntos pondo como desculpa as múltiplas tarefas que devia realizar para a festa. Embora pudesse sentir a presença do duque ao seu lado em cada coisa que fazia ou em cada passo que dava pela casa. O que pretendia fazer, falar do ocorrido enquanto almoçavam? Se tanta ansiedade lhe provocava o acontecido, por que não se deteve antes de fazê-lo? Por que, em seu segundo beijo, em vez de afastar-se, sua boca se chocou contra a dela com a mesma intensidade que uma onda do mar em um escarpado? Milhares de perguntas rondavam sua mente sem cessar, mas suas respostas não a convenciam. Na intimidade que lhe proporcionava a solidão de seu quarto, rememorava uma e outra vez aquele momento. Via-o ao seu lado tentando fazer desaparecer as lágrimas, apertando seu rosto contra seu peito. Recordava seu olhar e a expressão deste, não havia maldade nele, mas sim ternura, carinho, apreço.
Sentiu de novo o abraço, como a estreitava em seu corpo para consolá-la e, sobretudo, sua mente não cessou de evocar o momento do beijo. O primeiro terno, suave, com medo. Mas depois de escutá-la soluçar pelo distanciamento de sua boca, o segundo foi apaixonado, ávido e possessivo.
«Se tivesse sido em outro tempo, ? meditou na tarde do sábado enquanto esperava sentada sobre o leito a chegada de Lorinne ? acreditaria que se aproveitava da minha debilidade. Mas agora, depois de compreender quem é em realidade, não posso pensar isso. Ele já não é a pessoa que conheci em Londres. Aquele homem libertino, egoísta e petulante morreu».
Seguia divagando sobre as possíveis razões pelas quais o duque se desculpou, quando bateram na porta.
? Adiante ? deu permissão em voz baixa.
? Boa tarde, preparada para deixar todos os convidados com os flancos doloridos? ? Comentou a donzela com um sorriso.
? Estou esgotada... ? indicou ao mesmo tempo em que se lançou de costas sobre a cama e estendeu os braços. ? Não poderiam postergá-la?
? Venha, não seja folgazona! Está escondida nesta habitação há mais de duas horas! ? Lorinne se aproximou dela, segurou-a pela mão e a levantou com rapidez. ? Não temos muito tempo. Conforme me indicou o senhor Stone, logo chegarão os primeiros convidados.
? Tão cedo? ? Soltou a moça assombrada.
? Sua Excelência enviou dois convites a duas pessoas muito importantes para ele e, conforme comentam, pediu-lhes que viessem antes da cerimônia ? explicou enquanto se dirigia para a poltrona situada ao lado esquerdo da cama. Pegou o espartilho e o mostrou à moça. Esta enrugou o nariz ante o desagrado que lhe produzia voltar a embutir-se nesse tipo de objetos.
? Quem são essas pessoas? ? Aproximou-se da donzela, girou-se e deixou que esta começasse com a árdua tarefa.
? Amigos do duque. ? Apertou tanto os cordões do espartilho que deixou a moça sem respiração. ? Companheiros que permaneceram ao seu lado durante as longas temporadas em Londres. Não posso comentar muito sobre eles porque não tive o prazer de conhecê-los em pessoa, mas conforme contam outros criados, um é o senhor Federith Cooper, o sobrinho do senhor Clain e futuro barão de Sheiton. Ao passar sua infância em Rowsley, foi o único menino que visitava o senhor e, ao que parece, tão intensa foi e é sua amizade que o irmão do duque sentia, e sente, ciúmes deles. ? Voltou a girá-la para certificar que o objeto se ajustava como devia ao pequeno corpo. Quando se conformou, dirigiu-se para o roupeiro, pegou o vestido esmeralda acetinado e após sorrir maliciosamente, foi para a jovem.
? E o outro? ? Beatrice levantou os braços para que Lorinne lhe pusesse o vestido que, segundo ela, ia provocar certa queimação aos cavalheiros que a admirassem. Embora não estivesse muito segura de que isso ocorresse porque todo mundo temia e respeitava ao duque. Quem iria ser tão incauto de lhe enfurecer em sua própria casa?
? Ninguém, salvo o casal Stone, viu-o. Conhecemos seu nome porque os criados encarregados de lhe fazer chegar a missiva nos contaram ? disse com uma aura de mistério.
? E? – Insistiu, na espectativa.
? Chama-se Roger Bennett, futuro marquês de Riderland. Conforme tenho entendido... ? deu a volta à moça e abotoou suas costas ? o senhor Stone jamais se agradou dessa amizade ? disse ao mesmo tempo em que colocava suas mãos nos ombros semidesnudos e a conduzia para a penteadeira para penteá-la. ? Parece ser um homem inconsequente, um aventureiro, um jogador inveterado e quem conduziu sua Excelência pelo mau caminho.
? E esse tal Roger... decidiu vir? ? Perguntou com certa inquietação. Apesar de não ter escutado falar de nenhum dos dois cavalheiros, o mero feito de saber que procediam de Londres provocou-lhe um sobressalto. E se coincidiu com algum deles nas poucas festas que assistiu? Como era lógico se suportavam essa desafortunada fama, sua mãe evitou qualquer aproximação com estes, mas... eles teriam reparado em sua presença?
? Sim! Claro que virão! ? Exclamou entusiasmada. ? E por fim descobriremos o rosto desse fantasma!
Não pôde ficar quieta depois da informação. Seu interior foi incapaz de manter a calma enquanto Lorinne trabalhava com afinco para realizar um penteado que, conforme apontou, deixaria descoberto o esbelto pescoço e o voluptuoso decote. Tampouco prestou atenção aos intermináveis comentários da donzela sobre sua beleza, quão fascinados ficariam os convidados e como, ao terminar o baile, todos os maliciosos rumores se resolveriam. Nada disso chamou sua atenção, porque não cessava de perguntar-se se algum daqueles cavalheiros a reconheceria em algum momento. Fazendo um grande esforço, foi rememorando todos os que se aproximaram dela. Foi impossível recordar os rostos ou os nomes. Tinha passado muito tempo. Entretanto, só um rosto seguia atormentando-a a cada dia, o do maldito conde de Rabbitwood. Um calafrio a açoitou com tanta força que seu pêlo se arrepiou.
? Não se preocupe, senhorita Brown, tudo sairá bem ? tentou consolá-la a donzela, esfregando seus braços como se tivesse frio. ? Levante-se! Deixe que a contemple!
Beatrice se levantou devagar e olhou os pés embainhados em uns sapatos de seda clara com uma linda borda dourada. Apreciou a suavidade do vestido, uns volumosos babados começavam dois palmos antes de chegar ao chão e finalizavam na cintura onde uma pequena faixa de pedraria de prata embelezava sua cintura. Pensou nesse instante que era muito atrevido levar seus braços cobertos com tão somente uma fina renda que começava nos ombros e terminava nos cotovelos, mas enquanto subia o olhar, a beleza do vestido a conquistou. Quando chegou ao decote e percebeu que era mais insinuante do que pretendia, toda aquela felicidade começou a desaparecer.
? Está linda, senhorita Brown, só lhe falta uma coisa. ? Dirigiu-se para a cômoda que havia ao lado da porta e pegou uma caixa marrom.
? O que é? ? Perguntou curiosa.
? Não sei, milord me deu isso antes de eu entrar ? disse sorridente ao mesmo tempo em que mostrava a caixa de joias fechada.
? Estava aí fora, no corredor te esperando? ? Perguntou alarmada. Arqueou as sobrancelhas, abriu os olhos no máximo e observou a caixa com medo.
? Penso que pretendia te chamar à porta para oferecer-lhe em pessoa, mas minha aparição interrompeu seus desejos ? continuou sem poder apagar o sorriso de seu rosto. Em Haddon Hall não se podia ocultar nada e, sobretudo quando se tratava dos estados emocionais do dono da casa. Todo o serviço era consciente dos sentimentos que o duque professava para com a moça e os dela para com ele. Só esperavam que ambos fossem conscientes. ? Abrirá em algum momento? ? Insistiu a donzela ao ver o estupor no semblante da moça.
Com as mãos trementes, Beatrice abriu o porta joias. Quando a tampa se elevou e contemplou o que havia em seu interior, seus joelhos se dobraram tanto que Lorinne segurou-a pelo braço para que não caísse no chão.
? Não posso aceitar... ? murmurou ao mesmo tempo em que tentou recuperar as forças.
? Não diga bobagens! Quer aparecer ante toda essa gente nua? ? Perguntou a donzela zangada.
? É um presente muito... ? sussurrou dando a volta e abaixando a cabeça.
? Está segura de que é um presente? Não cabe a possibilidade de que o duque os tenha emprestado? ? Continuou com irritação enquanto se colocava em frente a ela para lhe mostrar de novo as joias.
Beatrice as contemplou de novo. O cofre guardava uma tiara singela com duas faixas muito finas de diamantes unidas entre si no centro por uma grande aguamarina ovalada, um colar da mesma forma salvo que suas faixas eram um pouco mais grossas, uns brincos que faziam jogo com ambos os complementos salvo que estes eram muito pequenos, quase inapreciáveis de longe. Mas ficou absorta ao ver o bracelete. Todas as que usara antes não eram mais largas que uma linha de costura, entretanto aquela devia medir uma décima parte de uma polegada.
? Muito ostentoso! ? Exclamou depois de admirá-las.
? Rogo-lhe, deixe-me que as coloque. Prometo-lhe que se não lhe agradarem, devolverei-as ao duque ? afirmou.
A moça fechou os olhos enquanto Lorinne lhe colocava as joias. Não queria olhá-las, não queria confirmar que gostava e muito menos queria exibir joias que, se a mente não lhe falhava, a avó do duque usava na pintura do salão no qual dançariam. O que pensariam os convidados ao descobrir tal ousadia? Beatrice suspirou profundamente. Não era boa ideia, por muito que a donzela insistisse, não era sensato aparecer com elas porque, se tentavam apaziguar um rumor, ofereceriam-lhes outro mais suculento.
? Pode abrir os olhos... ? sussurrou a donzela ao finalizar.
A jovem levantou as pálpebras com pesar, dirigiu-se para o espelho da penteadeira e ficou aniquilada. Eram lindas, mais do que tinha pensado. Entretanto, não podia usá-las.
? Sigo pensando que... ? começou a dizer ao mesmo tempo em que girou-se para Lorinne.
Uns golpes interromperam o que pretendia expor. Surpreendida por não esperar a ninguém mais em seu quarto, dirigiu-se para a porta e ela mesma a abriu. O senhor Stone era o causador de não poder finalizar o que ia comentar a Lorinne.
? Sim, senhor Stone? ? Perguntou preocupada.
? Sua Excelência a espera. Deseja sua companhia o antes possível. ? O mordomo a observou com atenção e, para assombro de Beatrice, sorriu-lhe. ? Se me permite a ousadia, senhorita Brown, está magnífica.
? Obrigada, senhor Stone, ? sorriu-lhe ? é um elogio muito adulador vindo de você.
? Bom, se não precisa de minha ajuda, ? interveio Lorinne com uma vontade terrível de abandonar o dormitório ? continuarei com outros afazeres.
A moça entrecerrou os olhos e a olhou com aborrecimento. Claro que necessitava dos seus serviços, porque antes da aparição do mordomo estava a ponto de dizer que lhe despojasse das joias, mas ao final desistiu do intento. Deu uns passos para diante, fechou a porta, suspirou e que acontecesse o que Deus quisesse.
William, como de costume, encerrou-se na biblioteca para poder pensar com claridade. Durante os dias seguintes à aparição dos Wadlow, sua mente não lhe deixava tranquilo. Milhares de perguntas surgiam nela procurando respostas coerentes. Onde tinha aprendido a senhorita Brown a tocar o piano? Como sabia tomar o chá com tanta mestria? Por que erguia suas costas com tanta retidão que mal tocava o respaldo da cadeira? Nada disso encaixava com a história que a moça lhe tinha contado. Se ela era uma humilde criada, por que se comportava como as jovens da alta sociedade? Tinha-a visto levantar seu queixo de forma adequada, caminhar com passos curtos tal e como deviam fazê-lo as senhoritas, falar quando lhe perguntavam. Só rompia os protocolos de um comportamento adequado quando se enfurecia ao escutar os ataques verbais que as visitas ofereciam a ele.
De repente um sorriso apareceu em seu rosto. Lembrou-se da cara de espanto que o doutor mostrou quando ela fez referência às suas possíveis visitas a Haddon Hall. O médico empalideceu e o negou com rapidez enquanto que ele apertava com força a mandíbula para não soltar uma sonora gargalhada. Também atuou à defensiva quando o casal minimizou suas capacidades como tutor. Defendeu-lhe argumentando que para ser um bom professor não devia exibir seus talentos, que bastava saber expressá-los com palavras. Sempre tentava proteger sua integridade sem lhe importar a sua.
Então recordou as palavras que o senhor Stone se atreveu a lhe dizer: «Pode ser que lhe minta. Possivelmente não esteja dizendo a verdade». Agora não lhe cabia dúvidas disso, mas se não era a filha de uns camponeses falecidos, quem era em realidade? E... por que tinha castigado a si mesma afastando-se do resto do mundo?
? Milord, ? interrompeu suas divagações o senhor Stone ? o senhor Cooper e o senhor Bennett acabam de chegar.
? Obrigado, Brandon. Saio agora mesmo.
O mordomo se retirou e William respirou profundamente, tentando acalmar a terrível inquietação que o açoitava.
«Mudarão meus sentimentos por ela se descobrir que não é quem diz ser?», perguntou-se enquanto caminhava para a porta. Não necessitou de tempo para responder-se, pensou um não com veemência.
? Meu querido Manners! ? Exclamou Roger ao vê-lo aparecer. Com passo veloz se aproximou do duque e lhe deu um forte abraço. ? Te vejo muito bem, meu amigo.
? O mesmo digo de ti, vilão ? respondeu sorridente.
? Não me diga isso que me rompe o coração ? disse com falsa tristeza.
? Como denominaria você a um amigo que não oferece notícias às pessoas que o apreciam? ? Arqueou as sobrancelhas sem deixar de perder o sorriso.
? Estive em viagem. Parti para a incrível e maravilhosa França. Segundo meu pai, o ar de Londres estava me enlouquecendo e quis mudá-lo ? explicou com zombaria.
? E? ? William seguia com as sobrancelhas elevadas.
? OH, mon ami... Rien n’a changé. Les femmes sont très affectueuses en France et les hommes d’excellents joueurs.(1) Assim por muito que trabalhei em me curar dessas enfermidades, fui incapaz de obtê-lo ? afirmou com uma aparente tristeza.
? Então, depois de tudo, segue sendo o mesmo velho patife de sempre? ? Perguntou o duque sem deixar de rir.
? Muito ao meu pesar, sim ? respondeu com aflição.
? Ham-ham ? pigarreou Federith na entrada.
? Federith! ? William caminhou para ele e o abraçou com força. ? Obrigado por vir. ? Olhou atrás do homem e ao não encontrar o que procurava, perguntou-lhe preocupado: ? E a senhora Cooper?
? Não se encontra bem. A gravidez está sendo mais complicada do que esperávamos ? explicou com serenidade.
? Gravidez? ? Clamou Roger movendo seu corpo para Federith.
? Não sabe? ? Disse William. — Nosso querido Cooper se casou com lady Caroline e logo se converterá em um estimado pai.
? William... ? advertiu-lhe o aludido.
? Federith não eleve suas armas antes de confirmar que a guerra começou. Muito ao meu pesar, este tempo de retiro me tem feito entender que cada um deve assumir suas próprias decisões e outros, por muito que não estejamos de acordo com elas, devemos respeitá-las. Por isso, meu amigo, apóio-te e te apoiarei sempre ? afirmou sem hesitações.
? Bom, ? interveio Roger ? onde está essa concubina cuja honra devemos salvar?
? Não sou a concubina de ninguém, cavalheiro, sou a pupila do duque de Rutland ? sentenciou Beatrice no alto das escadas.
William elevou o olhar para ela no preciso instante que iria soltar uma gargalhada, embora não conseguiu que brotasse de sua boca nem um minúsculo ruído. A deslumbrante mulher o deixou sem fôlego, sem ar nos pulmões e inclusive sem pulso. O vestido se agarrava ao seu torso aumentando voluptuosamente seu seio e enfatizando a diminuta cintura. A claridade do tecido que cobria desde seus ombros até o cotovelo mostrava a aveludada pele feminina. Como nas anteriores ocasiões, seu cabelo estava recolhido para trás, mas desta vez adornado com uns laboriosos desenhos. O duque sorriu sutilmente ao não achar mechas que entorpecessem a visão de seu rosto, nem que incomodassem a moça ao menear a cabeça.
Beatrice desceu as escadas majestosamente, rebolando os quadris com sublime sensualidade. Possivelmente nem ela mesma chegava a alcançar a beleza e o erotismo que emanava, mas ele o captou. William estufou seu peito de orgulho ao apreciar que usava as joias que tinha dado à criada. Tinha duvidado se as aceitaria porque durante os dias anteriores evitou encontrar-se com ele para falar do acontecido. Mas lhe satisfez ver sobre sua cabeça a tiara com a aguamarina, como brilhavam os pequenos diamantes em suas orelhas, a sutileza com que movia o bracelete no pulso e, sobretudo, a graça com que o colar tentava desviar o olhar de qualquer atrevido para o decote. Pensou para si que, sem dúvida, as joias guardadas desde que sua avó faleceu estavam esperando-a para resplandecer de novo. Tentando recuperar a confiança e serenidade que devia manter durante o baile, aproximou-se das escadas, estendeu a mão para que a jovem a tomasse e a dirigiu para onde se encontravam imóveis seus amigos.
? Senhorita Brown, o tagarela é o senhor Bennett e estou seguro que, se deseja seguir respirando ao amanhecer, retirará as inoportunas palavras que comentou sobre você ? asseverou em tom irritado.
? Bien sûr! Je suis très désolé(2) ? respondeu Roger inclinando-se para a moça para beijar-lhe a mão. — Ravi de vous connaître, mademoiselle.(3)
? Moi aussi, monsieur(4) ? replicou Beatrice com um perfeito acento francês.
? Fantastique!(5) Não sabia que nosso duque conhecia o idioma do amor ? disse olhando-o de canto de olho.
? Pois se a memória não ficou transtornada pelo disparo, ? comentou com assombro ? jamais o estudei.
? Uma irmã de meu pai, ? começou a dizer como desculpa ao seu lapso ? ficou viúva e decidiu viver conosco durante uma temporada. Seu marido foi um marinheiro francês e ela teve que aprender a língua.
? OH, que tragédia! ? Interveio Federith até agora em silêncio e atento à situação que observavam seus olhos.
? Senhorita Brown, ele é o senhor Cooper. O único amigo que possuo desde minha infância.
? Encantada de lhe conhecer, senhor. Ouvi falar maravilhas sobre você ? declarou ao mesmo tempo em que lhe oferecia a mão para que a beijasse.
? Que honra! Foi William quem lhe informou? ? Arqueou as sobrancelhas, sorriu com suavidade e olhou seu amigo de esguelha.
? Não, foram os criados. Segundo eles, nosso duque teve dois bons amigos com os quais viveu em Londres. Você, o respeitável senhor Cooper, futuro barão de Sheiton e... ? olhou para Roger para não perder nem um só gesto quando escutasse o que se propunha ? o senhor Bennett, futuro marquês de Riderland e de quem dizem que é um irresponsável, um libertino, um jogador inveterado e a quem culpam da vida inapropriada do nosso duque.
William liberou uma grande gargalhada que foi acompanhada por outra que realizou Federith. Entretanto, Roger não mostrou nenhum tipo de simpatia.
? Deveria me indicar quem lhe informou sobre essas calúnias ? disse mal-humorado. ? Tenho que me bater em duelo por minha honradez.
? A sinceridade dói, não é? ? Comentou jocoso Federith golpeando com suavidade as costas de seu amigo.
? Bom, ? atuou William ? seria conveniente que nos dirigíssemos para algum lugar da casa para falar sobre o tema pelo qual lhes requeri. Logo chegarão os primeiros convidados e eu gostaria de lhes pôr a par do acontecido.
Os amigos assentiram e, colocando-se junto ao duque, os três cavalheiros se dirigiram para a habitação em que o duque se sentia mais seguro: a biblioteca. Beatrice considerou andar atrás dos passos deles, observando as figuras dos três homens que, conforme concluiu, tinham atemorizado aos pais das filhas casadouras e dos maridos ausentes. Não lhe cabia dúvida que o mais alto deles era o duque. Mas a figura dos três era muito semelhante, possuíam umas costas robustas e as pernas muito longas. Entretanto, o cabelo do duque era escuro, o do senhor Cooper loiro e o do senhor Bennett uma mescla de ambos. William, como lhe tinha renomado o senhor Cooper e que até esse momento Beatrice não descobrira, mostrava um olhar escuro e inclusive em algumas ocasiões tão negro que dava pavor. Os olhos de Cooper eram de um verde intenso, assemelhando-se a erva que aparecia em plena primavera. Os do senhor Bennett eram azuis. A moça os comparou com a cor que exibia o céu em um dia sem nuvens, embora duvidasse se a intensidade era similar.
«Três cavalheiros, ? disse para si ? três homens tão extraordinários quanto perigosos».
? Então... ? começou Federith a falar quando Beatrice fechou a porta e se sentou na poltrona contigua a que estava acostumado a ocupar William ? você vivia na suja cabana que nosso amigo possui junto ao rio Wye, é correto? ? A moça assentiu e este começou a perambular com as mãos agarradas atrás das costas. ? Ele a descobriu e por alguma inexplicável razão que nos indicará em breve, deixou-a viver ali. ? A jovem confirmou de novo com um suave movimento de cabeça. ? Ao encontrar-se desamparada, desprotegida e exposta ao terrível perigo de uma manada de lobos que vive no bosque, foi atacada por eles. Ele, estranhamente, ? arqueou as sobrancelhas ? decidiu passear à alvorada por suas terras e a descobriu ferida. Conduziu-a até Haddon, chamou o senhor Wadlow, o doutor veio e a atendeu com rapidez. Depois, justo antes de abandonar este lar, ambos os cavalheiros tiveram um pequeno encontro no qual discutiram sobre o repugnante comportamento de nosso amigo para com a cortesã. Correto?
Beatrice olhou ao duque atônita. Ninguém lhe tinha comentado que ambos os cavalheiros tinham tido a ocasião de discutir os pormenores de sua estadia em Haddon Hall. Tomou ar e abriu a boca para confirmar a narração do senhor Cooper, mas William se adiantou às suas palavras.
? Como pôde comprovar durante todos estes anos, ao correr o sangue de meu pai por minhas veias, ninguém duvida de que sou outro monstro ? esclareceu com serenidade.
? Bem, isso eu sei, mas minha pergunta é... como foi tão insensato de deixá-la abandonada nesse maldito lugar? ? Levantou o tom de sua voz e girando sobre seus calcanhares para enfrentar o duque.
? Eu o pedi ? respondeu rápidamente a moça.
? O que lhe pediu, o que? ? Participou Roger até agora calado e atento.
? Ele me devia um favor e lhe informei que saldaria sua dívida me deixando viver nesse pequeno refúgio ? respondeu elevando seu queixo e com aparente aprumo.
? Mon Dieu!(6) Você é uma inconsequente! Acaso não pensou o que poderia acontecer ao dono dessa cabana se tivesse morrido? ? disse com aborrecimento e aproximando-se da moça com passo firme.
? Roger... acalme-se. ? William ao observar a ira de seu amigo, dirigiu-se para Beatrice, colocou-se em frente a ela e parou a aproximação de seu amigo colocando sua mão no peito. ? Não estamos aqui para julgar as decisões da senhorita Brown, nem que razão a fez atuar dessa forma. Só quero que sua honra se reestabeleça porque ela não é minha prostituta.
? Nem tampouco sua pupila, William! ? Exclamou Bennett sem diminuir seu aborrecimento. ? Não recorda o que te aconteceu na última vez? Esqueceu o que te fez ficar como está? Não, claro que não, e possivelmente a senhorita Brown tampouco ? sorriu maléfico.
? Roger! ? Gritou Federith tentando que deixasse de falar.
? Se por acaso não foi informada desse incidente, minha querida senhorita Brown, ? disse com ironia ? a causa daquele duelo foi o engano insistente de uma esposa que, deitada nos braços do nosso amigo, afirmava em qualquer parte que era viúva.
? Cale-se, Roger! ? Voltou a clamar Federith.
? Eu gostaria que partisse da minha casa ? falou William com dureza.
? Quer que eu parta? Quer que não te proteja? Acaso esqueceu o que significa a amizade? ? Perguntou Roger sem diminuir sua fúria. ? Não, meu amigo. Não vou partir, seguirei ao seu lado como nos velhos tempos, mas desta vez não deixarei que cometa uma imprudência. Se o que deseja é que todo mundo pense ser ela é sua pupila e não sua prostituta, levarei a cabo minha missão e afirmarei com veemência qualquer coisa que me peça.
William se afastou da moça. Antes de dar dois passos para a corda com o qual chamava o senhor Stone, observou a cara de espanto de Beatrice. Estava aterrorizada pela violenta atuação de Roger e pelas ofensivas palavras que tinham emanado de sua boca. Apreciou também umas lágrimas que dissimuladamente tirou do pálido rosto. Com passo decidido se aproximou da corda, puxou com suavidade e, em silêncio e sob o atento olhar de seus amigos, esperou a chegada do mordomo.
? Acompanhe senhorita Brown à sala de jantar. Deve confirmar que os serviços que ofereceremos aos comensais estão em perfeita ordem ? ordenou ao Brandon ao entrar na habitação.
Beatrice levantou o olhar e examinou a dureza de seu semblante durante uns instantes. Havia fúria naquele rosto e os olhos se obscureceram ainda mais. Quis rejeitar a ordem, mas se encontrava tão frágil, desanimada e triste que, sem mediar palavra e com a cabeça encurvada, levantou-se e se dirigiu para o mordomo.
? Acompanhe-me, senhorita Brown. Acredito que a senhora Stone queria lhe pedir um conselho sobre a sobremesa que deveriam oferecer. Segue duvidando se oferece duas bolas ou três de sorvete. ? Falou com calma e, para surpresa de William, com uma ternura imprópria no criado.
Os três cavalheiros observaram a figura aflita da jovem. William apertou sua mandíbula com tanta força que lhe apareceu uma pequena dor de cabeça enquanto Federith meditava aquilo que sua mente de repente lhe mostrava. Roger, embora sentisse lástima pela angústia que mostrava a moça, não fez nada para controlar a irritação que sentia.
? Devemos nos acalmar. ? Federith foi o primeiro em falar depois que a porta se fechou. ? E William, tanto Roger como eu escutaremos com atenção o que esconde com tanto afinco.
O duque caminhou para a chaminé, apoiou o braço sobre a pedra e abaixou a cabeça.
? Amo-a ? disse sufocado. ? Amo Beatrice com todo meu coração. Não sei de onde procede, nem como chegou até minhas terras, mas o que sei é que se ela se afastar do meu lado, morrerei.
? Mon dieu! ? Exclamou Roger aplacando sua ira com rapidez. ? Podia ter começado por aí! ? Caminhou para seu amigo, deu-lhe uma forte palmada nas costas e, quando William girou para ele, deu-lhe um forte abraço.
? Sabia que algum dia encontraria a mulher que te roubaria esse coração gelado ? comentou Federith sorridente e repetindo o afeto carinhoso de Roger. ? Mas tem que pensar com clareza, William. Embora não se importe de onde procede a moça, deve averiguar quem é em realidade.
? Não me importa! ? Exclamou o duque com firmeza.
? Mas deve fazê-lo. Quem sabe que passado pode ocultar uma jovem como ela? ? Federith olhou com atenção seu amigo. Em verdade não sabia quem era a moça por quem se apaixonou.
Ele sim. Tinha-a reconhecido assim que a viu. Apesar de suas mudanças físicas, não ficava nenhuma dúvida de que era a filha do barão de Montblanc. Agora devia sopesar quando era o melhor momento para revelar a identidade da jovem ao seu amigo e como reagiria ao escutar a verdade.
XXII
Beatrice, apesar de seus intentos por aparentar entusiasmo quando a senhora Stone lhe perguntava pelos últimos detalhes, não podia deixar de sentir-se triste. As palavras do senhor Bennett não cessavam de lhe assaltar e, por muito que lhe custasse admiti-lo, tinha razão. Jamais pensou nas consequências que sofreria o duque se ela tivesse morrido. Não só o teriam acusado de assassinato, mas sim o encarcerariam sem duvidá-lo. Aflita pela loucura que cometeu sem pensar, sentou-se em uma das cadeiras que rodeavam a mesa da cozinha.
? O que te acontece, pequena? ? Perguntou Hanna aproximando-se dela por trás e lhe beijando a bochecha.
? Posso lhe fazer uma pergunta? ? Seu fio de voz era tão fraco que a anciã assustada se sentou ao seu lado.
? Todas as que desejar ? respondeu agarrando com força as mãos da jovem.
? O que teria acontecido se o duque não tivesse me encontrado na cabana?
? Quando foi ferida? ? Hanna arqueou as sobrancelhas.
? Não. A primeira vez que me viu, quando o encontrei ferido ? esclareceu.
? Se não o tivesse encontrado, o duque haveria falecido e todos os que habitam nesta casa também ? afirmou sem duvidá-lo. ? Apesar dos intentos que tem feito as pessoas para mostrar que é um ser desumano, os que lhe conhecem desde que saiu das vísceras de sua mãe sabem que não é certo.
? E se eu houvesse falecido depois do ataque? ? Girou-se para a mulher para não perder nenhum detalhe de sua expressão.
? Todos nós teríamos sentido dor por sua desgraça, mas ele... ? levantou-se do assento e caminhou para os fogões.
? Mas ele? ? Insistiu elevando-se também da cadeira e posicionando-se ao seu lado.
? Ele não se recuperaria jamais da perda ? sussurrou.
? Por que, senhora Stone? Pode me dizer por que sabia que me responderia isso? ? Seu tom soava afogado, como se alguém a estivesse estrangulando.
? Isso terá que perguntar a ele. Se for sensato, dir-lhe-á a verdade.
Beatrice a olhou durante uns instantes. Sem desviar o olhar da mesa, ficou calada duvidando sobre se deveria insistir ou não um pouco mais no tema. Quando abriu a boca decidida continuar a conversa que começara, a porta da cozinha se abriu.
? Estava procurando-a ? disse William com uma emoção estranha. ? Acabam de chegar os primeiros convidados e temos que recebê-los adequadamente. ? Dirigiu o olhar para Hanna e lhe falou. ? Senhora Stone, tudo preparado?
? É claro! ? Exclamou com entusiasmo. ? Não haverá uma festa no condado de Derbyshire que alcance a nossa. ? Os olhos da anciã brilhavam de gozo. Não havia dúvida que a mulher adorava ao duque e que, vê-lo feliz depois de tanto tempo sumido na escuridão, fazia-a muito ditosa.
? Nesse caso, ? estendeu o braço para Beatrice ? se for amável em me acompanhar.
A moça assentiu com suavidade, aferrou seu braço ao do homem e juntos saíram da cozinha para a recepção. Hanna o observou em silêncio e rezou pedindo a Deus que o moço não deixasse passar a oportunidade de abrir seu coração.
Até que não dirigiu seus olhos verdes para o exterior da mansão e descobriu as incontáveis carruagens estacionadas no jardim, permaneceu tranquila, sossegada, mas quando foi incapaz de enumerá-los, seu corpo se encheu de pavor e notou um tremorzinho inoportuno nos joelhos. Já acontecia, não havia possibilidade de cancelar nada, só podia respirar e desenhar um enorme sorriso no rosto.
Os convidados subiam pelas escadas saudando com entusiasmo aos casais que se encontravam ao seu passo. Os casais ascendiam agarrados pelos braços enquanto que os jovens, com ou sem idade de propostas conjugais, seguiam-lhes muito de perto. Como era de esperar, os maridos exibiam sóbrios trajes de jaqueta que cobriam com uma enorme capa e estilizadas cartolas, as esposas, ao contrário deles, apresentavam um extenso colorido que tentavam ocultar sob seus casacos. Beatrice observou com atenção os penteados destas: caracóis, coques embelezados por flores, incríveis entrelaçados e inclusive uma ou outra parecia atrever-se a mostrar o típico penteado de sua rainha. De repente, as vozes do público deixaram de escutar-se ao longe. A jovem começou a notar certo sufoco percorrer seu corpo, as mãos escorregavam devido ao suor e precisou tragar várias vezes para fazer desaparecer o nó de saliva que lhe apertava a garganta. Mas então, um pequeno calor que provinha de sua orelha fez com que todos os sufocos desaparecessem. O duque foi quem, ao lhe sussurrar, ofereceu-lhe aquele hálito quente.
? Tranquilize-se, tudo sairá bem e, se algum destes honoráveis assistentes desejarem te magoar, não ficará mais remedeio que enfrentar a minha ira. ? E sem pensá-lo, aproximou sua boca da pálida bochecha feminina e lhe deu um terno beijo.
? Sua Excelência... ? advertiu Brandon com seriedade ? o senhor e a senhora Jenkins.
? Boa tarde, milord ? saudou um homem de avançada idade que apertava com força um monóculo em seu olho esquerdo. ? Obrigado por seu convite. A minha esposa ficou muito feliz ao receber a notícia ? estendeu a mão para afiançar a saudação.
? Boa tarde, senhor Jenkins. Causa-me pena saber que só sua esposa recebeu com agrado a missiva ? disse sem apagar o sorriso de seu rosto.
? Não dê atenção a este resmungão! ? Exclamou rapidamente a senhora Jenkins. ? Ele também se sentiu ditoso. ? A mulher era mais baixa que Beatrice, mas tinha um corpo bastante volumoso. Vestia um rigoroso luto e a renda que adornava seu vestido conseguia cobrir até o pescoço.
? Senhor Jenkins e senhora Jenkins lhes apresento à senhorita Brown, minha pupila.
? É uma honra conhecê-la, senhorita Brown ? disse o ancião ao mesmo tempo em que tomava a mão juvenil para beijá-la. ? Em Rowsley não há outro tema de conversação salvo a sua inesperada aparição.
? Igualmente, senhor. Embora lhe advirta que os rumores proclamados sobre minha permanência em Haddon Hall são falsos. Não sou a prostituta do duque, mas como já bem foi dito, sua pupila ? expôs sem hesitações. Não lhe tinha tremido a voz. Não tinha mostrado a inquietação que sentia no interior. Seus sentimentos pareciam controlados, mas quando William a olhou e sorriu para lhe mostrar sua conformidade, ruborizou-se e um estranho calor começou a emergir do mais profundo de seu ser.
? Falatórios! ? Exclamou a anciã mal-humorada. ? As pessoas estão tão aborrecidas que se dedicam a divulgar mentiras de outros. Não faça conta, senhorita Brown, todo mundo quer lhe machucar porque conseguiu o que ninguém alcançou. ? Aproximou-se de Beatrice e lhe deu um sonoro beijo.
? E o que não conseguiram, senhora Jenkins? ? Perguntou sorridente.
? Seu coração ? sentenciou antes de agarrar o braço de seu marido e caminhar para o lugar que lhe indicava um dos criados.
? Sua Excelência ? o voltou a reclamar Brandon. ? O senhor e a senhora Brace.
? Milord, senhorita Brown ? disse o pároco com cordialidade. Estendeu a mão para o duque para saudá-lo e logo fez o mesmo com a moça.
? Beatrice! ? Exclamou Lídia abraçando a jovem com força. ? Está linda! Parece uma autêntica rainha.
? Boa tarde, Lídia ? respondeu em voz baixa. Ainda se encontrava em estado de choque pelas palavras da atrevida anciã. Como iria ela roubar o coração de um homem que, conforme diziam, não possuía? ? Bem-vinda ? exalou quando a mulher deixou de abraçá-la com tanto ímpeto e pôde tomar um pouco de ar.
? Está bem? ? Arqueou a mulher as sobrancelhas ao vê-la tão pálida.
? Sim, embora tenha que admitir que acabasse ficando muito cansada com a preparação ? expôs.
? Bom, calma, tudo está lindo e... – aproximou-se de seu ouvido para sussurrar ? segundo os novos rumores, toda Rowsley espera conhecer a famosa pupila.
? Não sei se tomo isso como um elogio ou como uma ofensa ? disse Beatrice sorridente.
? Bobagens! Já verá como ao final todos esses arrogantes terminarão comendo em sua mão!
? Lídia, por favor, comporte-se! ? Exclamou o senhor Brace zangado ao escutar a ousadia de sua mulher.
? Sua Excelência ? voltou a interromper Brandon.
? Bom, queira nos desculpar, ? comentou a senhora Brace segurando seu marido e caminhando para onde outro criado lhes conduzia ? deixaremos que outros tenham também seu tempo de recepção.
? O senhor e a senhora Payne ? prosseguiu o mordomo.
Depois de quase uma hora recebendo aos assistentes, por fim William e Beatrice puderam dirigir-se para o salão para acompanhá-los. O duque lhe ofereceu de novo seu braço e ela o aceitou. Com passo firme, fizeram sua entrada. A moça teve que respirar com profundidade antes de acessar o interior. Um incessante desgosto lhe impedia de conseguir manter-se em equilíbrio.
? Relaxe, ? sussurrou-lhe William ? o mais difícil já passou. Agora fica conversar, dar-lhe de comer e dançar.
Beatrice olhou-o de esguelha e sorriu levemente. Apesar de suas constantes palavras de encorajamento, ela não achava a paz que necessitava para poder aguentar as próximas horas. Dirigida pelo duque, introduziram-se no salão onde descobriram que os homens se colocaram no lado esquerdo e as mulheres no direito. A moça liberou o braço do homem e, depois de respirar profundamente, dirigiu-se para o grupo feminino. Esperava que a senhora Brace, a senhora Wadlow e a inesperada senhora Jenkins a ajudassem em qualquer infortúnio.
? Gostaria de nos dar sua opinião? ? Perguntou a esposa do senhor Wood, um comerciante que teve sorte nos afortunados investimentos no estrangeiro.
? Se forem tão amáveis de me indicar do que se trata, tentarei-o ? disse a moça sorridente.
? A opinião da esposa do pároco é que nossos vestidos se verão influenciados satanicamente pela moda europeia. Conforme acredito, se as tendências evoluírem, a visão que a sociedade tem não nos prejudicará, mas sim, ao contrário, nos fortalecerá ? expôs com seriedade.
? Isso é absurdo! ? Exclamou Lídia sufocada. ? Uma mulher deve mostrar respeito, reparo e castidade. Acaso não viu que esses vestidos deixam visíveis os tornozelos?
? Possivelmente algum dia possamos votar ? murmurou com suavidade uma moça que se colocava ao lado da senhora Jenkins.
? É muito jovem para pensar essas coisas – respondeu-lhe com ternura a senhora Wadlow. ? Embora se isso for verdade, seria a primeira em levar minha cédula. Estou cansada de sofrermos pelas decisões dos homens. Se alguma vez uma mulher estiver no poder, muitas das atrocidades que eles fazem sem pensar, seriam desculpadas.
Beatrice olhou para o grupo de cavalheiros. Sorriam e pareciam manter umas conversações divertidas. Ela riu levemente ao imaginar a cara que fariam os maridos após escutar as opiniões das dóceis mulheres. De repente, seus olhos se dirigiram para uns olhos azulados que a observavam com atenção. A moça pensou que o senhor Bennett seguia zangado com ela por ter posto em perigo seu amigo, mas quando esteve a ponto de apartar o olhar, o homem lhe ofereceu uma suave saudação com a cabeça e lhe sorriu.
? Se forem tão amáveis, ? disse o duque em voz alta depois de ser informado por Brandon que a sala de jantar estava preparada – dirijamos-nos para o salão contiguo onde nos servirão um suculento jantar.
Cada marido procurou seu par. As jovens solteiras caminhavam juntas e os moços atrás, em grupo. Pouco a pouco tomaram assento. William, como anfitrião, sentou-se em um extremo da mesa, justo a que havia ao lado das mesas onde os pratos estavam ocultos embaixo de grandes tampas de metal. Beatrice duvidou onde devia colocar-se. Olhava um assento e este era ocupado com rapidez. Olhava para outro e ocorria o mesmo.
? Nosso William não foi um verdadeiro cavalheiro ? comentou Roger atrás dela. ? Venha comigo, acompanharei-a ao seu assento. ? Ofereceu-lhe o braço e ela apoiou sua mão com delicadeza. ? Encontra-se bem? Tratou-a adequadamente esse grupo de galinhas? ? Beatrice esteve a ponto de soltar uma gargalhada ao escutá-lo, mas se conteve e só esboçou um leve sorriso.
? Não imagina o que pensam essas galinhas – sussurrou-lhe divertida. ? Muitas delas lhes deixariam sem essa virilidade que tanto desejam aparentar.
? OH, mon Dieu! Espero que meu coração seja racional e não se apaixone por uma mulher assim.
? Não estou tão segura disso, senhor Bennett. Não sei por que acredito que se apaixonará por uma mulher muito parecida com você ? disse zombadora.
? Será jovem? ? Arqueou as sobrancelhas.
? Se Deus for justo, não ? sentenciou com o mesmo tom jocoso.
Quando Beatrice descobriu a cadeira que devia ocupar, petrificou-se. Esse não era seu lugar, posto que fosse o espaço que devia guardar-se para a futura duquesa e ela não devia invadi-lo. Procurou com o olhar ao William, pedindo-lhe auxílio, mas ele assentiu com a cabeça, dando-lhe permissão para acomodar-se nele.
? Então, senhorita Brown... ? começou a falar o ancião senhor Jenkins ? você é a pupila de lorde Rutland.
? Sim, senhor ? respondeu tentando não derrubar os talheres que segurava nas mãos.
? E, que tal é como professor?
? Excelente! ? Exclamou Irina com rapidez. ? Outro dia tivemos o prazer de vê-lo com nossos próprios olhos e escutá-lo com nossos ouvidos.
? Ah, sim? ? Perguntou o ancião arqueando as sobrancelhas.
? A senhorita Brown nos deleitou com uma formosa valsa de Chopin ? interveio o senhor Wadlow.
? Qual delas? Porque Chopin é famoso pela composição de inumeráveis valsas.
? Primavera ? disse William em tom sério, protetor, dominante. ? A valsa mais formosa que Chopin tem composto em sua famosa vida.
Beatrice o olhou nos olhos e observou a severidade de seu rosto. Como lhe tinha prometido, velava por ela.
? Conforme contam, ? interveio Federith ? essa valsa o compôs para uma jovem pela qual se apaixonou perdidamente. Acredito que estiveram comprometidos em segredo, mas que a família desta anulou o acordo quando descobriram sua enfermidade.
? OH, que dramático! ? Exclamou uma das jovens que se abanou com a mão, enquanto tentava esconder com esse gesto os furtivos olhares para Roger.
? O amor pode ser tão doloroso como formoso – continuou. ? Às vezes, quando você acha que encontrou a pessoa que irá acompanhá-lo no bem e no mal, tudo desaparece sem ser capaz de evitá-lo.
Beatrice o olhou com tristeza. Enquanto não escutou as palavras sobre tal afirmação não meditou sobre isso. Não entendia como podiam existir matrimônios desventurados pelos acordos que realizavam os progenitores assim que a prole nascia. Seus pais se amaram desde crianças e, embora tivessem passado mais de trinta anos desde que se comprometeram e casaram, seguiam amando-se como no primeiro dia.
? Por isso, mon ami... ? disse com rapidez Roger para fazer desaparecer o estado de tristeza que as palavras de seu amigo tinham produzido. ? Jamais haverá uma senhora Bennett por minha parte! ? Alguns cavalheiros sorriram brandamente, umas damas murmuraram sobre a desafortunada revelação e outras, sobretudo as jovens casadouras, emitiram suspiros de pena.
Depois da pequena reunião, os convidados se dispuseram a degustar os pratos que lhes serviam. Beatrice, cada vez que lhe era possível, observava ao duque. Este, em mais de uma ocasião, parecia inquieto ao ter que ser ajudado pelo senhor Stone. A jovem teve o inapropriado desejo de levantar-se e colocar-se ao seu lado para ocultar aquilo que tanto lhe alterava, mas não podia fazê-lo. Ele tinha que mostrar-se tal como era e se isso incluía esconder a mão nas alças de suas jaquetas, que assim fosse. Entretanto, o que o homem não sabia era que, em que pese a acreditar uma pessoa débil e inútil, não o era. Bastava-lhe tão somente o suave movimento da cabeça para demonstrar seu poder. Todos os que lhe rodeavam o consideravam uma pessoa com caráter, julgamento e impetuosidade e Beatrice pôde confirmá-lo ao ver como os cavalheiros, depois de suas exposições, dirigiam as olhadas para o duque esperando que ele assentisse.
Um suave murmúrio começou quando apareceu a sobremesa. Ao final a senhora Stone decidiu colocar sobre uma pequena parte de pudim uma bolinha de sorvete. Isso deixou os convidados maravilhados. Alguns, como indicaram ao levar o primeiro pedaço à boca, nunca tinham provado o sorvete e outros nunca o tinham misturado com pudim. Fosse como fosse, todos ficaram encantados com a inovação, incluída a senhora Brace, que não deixava de sorrir e pôr os olhos em branco em cada colherada.
? É hora do baile ? informou William ao perceber que todo mundo tinha terminado. ? Se não desejarem mover seus pés ao ritmo da música, habilitamos uma sala em que se oferecerá licor e onde poderão apostar tudo o que tiverem nos bolsos.
Depois do anúncio, os convidados se levantaram e se dirigiram para as diferentes salas. Beatrice esperou para tomar a mão de William, mas este não chegou a tempo, o jovem Bennett se aproximou e a ofereceu.
? Espero que não tenha a primeira dança reservada – disse-lhe com um enorme e bonito sorriso.
? Não, por enquanto ninguém me pediu nenhuma peça ? respondeu colocando sua mão sobre seu braço.
? Não será por falta de vontade, minha querida senhorita Brown. ? Caminhou devagar para o salão onde, inclusive antes de entrar, escutava-se a melodiosa música.
? Então, o que você crê que impede a todos esses cavalheiros de dançar comigo? ? Arqueou as sobrancelhas e o olhou zombadora.
? O medo – sussurrou-lhe enquanto a colocava em frente a ele para iniciar a dança.
? Medo de mim? ? Perguntou surpreendida e um tanto desconcertada.
? Não, de William. Imagino que ninguém é tão louco para tocar a sua pupila ? disse levantando a mão e fazendo-a girar.
? Salvo você ? comentou depois da volta.
? Eu jamais a tocaria com perversidade. Por muitas barbaridades que lhe tenham contado sobre mim, respeito e respeitarei as mulheres de quem considero meus irmãos ? declarou antes de lhe segurar a cintura e começar uns pequenos saltos para o lado direito.
A moça foi incapaz de falar depois de escutar o que o senhor Bennett lhe declarava. Ficou tão surpreendida que não pôde ouvir os intérpretes nem confirmar se seus passos tinham sido os adequados. Por que lhe havia dito isso?
«As joias! ? Exclamou para si. ? Foram as joias!». Meditou uma e outra vez sobre a inoportuna decisão de Lorinne para que as exibisse quando, terminou a canção e começou a seguinte.
Despediu-se de Roger com um leve movimento de cabeça, tentou dirigir-se para o grupo de mulheres quando alguém a chamou.
? Conceder-me-ia esta dança? ? Perguntou Federith estendendo a mão direita com a palma para cima.
? É claro. Será uma grande honra ? comentou sorridente.
Federith a conduziu de novo para o centro do salão, saudou-a com uma exagerada reverência e a segurou pela cintura. A peça a dançar era uma valsa.
? Está se divertindo, senhorita Brown?
? Sim. E você? ? O casal deu uma pequena volta sobre eles mesmos e continuaram com suavidade.
? Mais do que pensei ? respondeu esboçando um leve sorriso.
A música continuava tocando. Beatrice acreditou que depois da última afirmação de Federith, este resolveria sua conversação, mas justo quando estava a ponto de acabar, no último giro entre eles, sua boca se aproximou muito ao seu ouvido para lhe perguntar.
? Conhecemo-nos de algum lugar?
? Se tiver vivido longe daqui, acredito que não ? disse tentando dissimular seu sobressalto.
? De onde disse que era? William não fez alusão a isso.
? Imagino que o duque se preocupou com coisas mais importantes como compreender por que sua esposa não lhe acompanha e por que disse aquelas palavras tão tristes no jantar ? indicou sem respirar e pedindo desculpas a Deus por magoar um homem que, com o coração quebrado, explicava a dor que causa amar a uma pessoa que não lhe correspondia.
? Está grávida ? respondeu depois de respirar e fazer restabelecer sua pose.
? Felicidades! ? Exclamou com alegria. ? Estará você muito feliz de converter-se em pai ? continuou falando enquanto Federith a conduzia para o grupo de mulheres.
? Sinto-me muito ditoso de esperar um filho, embora minha esposa esteja passando muito mal. Mal pode mover-se pela casa e se cansa tanto que, como pode imaginar, seria imprudente fazê-la viajar.
? É óbvio.
? Obrigado pelo bate-papo, senhorita Brown.
? Obrigada pela dança, senhor Cooper.
Federith, com o aprumo que lhe caracterizava, dirigiu-se para o grupo de cavalheiros que se encontravam no lado oposto das mulheres. Aproximou-se de William, disse-lhe algo ao ouvido e logo abandonou a habitação. Beatrice sentia seu coração na garganta e notava como suas pernas começavam a cambalear-se. Com rapidez procurou uma cadeira onde sentar-se.
? Encontra-se bem? ? Quis saber a senhora Wadlow preocupada.
? Só cansada. Essas duas danças calorosas me deixaram exausta ? explicou.
Uma vez que recuperou o fôlego, olhou ao duque, que falava com um dos convidados. Beatrice, ao ver como franzia o cenho, tentou recordar quem era o homem que incomodava William com suas palavras, mas não o conseguiu. Brandon tinha anunciado tantos nomes e ela estava tão nervosa que, em algum momento da recepção, ela deixou de prestar atenção.
? Senhorita Brown... ? uma voz estranha para ela apareceu pela sua direita.
? Sim? ? Perguntou arqueando as sobrancelhas e sorrindo.
? Permitiria-me a seguinte dança? ? No olhar do moço Beatrice observou algo estranho. Não conseguia saber o que era, mas não tinha a mesma claridade que a mostrada pelos amigos do duque. ? Se não estiver muito cansada, é claro ? continuou, mas ao estender a mão para ela, evitou qualquer negação.
Contra sua vontade, a moça se levantou e, apoiando sua mão sobre o braço do jovem, retornou ao centro do salão. Todos os casais estavam parados, as mulheres em frente aos homens. O primeiro acorde soou e eles lhes ofereceram as mãos direitas. Elas as agarraram e, depois de três notas seguidas em dó menor, começaram a dança. O moço seguia com os olhos cravados nela. Observando cada detalhe de seu corpo, cada parte de pele que estava sem cobrir. Em uma das breves aproximações que houve na dança, Beatrice escutou como inspirava com força para apanhar o aroma que ela desprendia. Tentou manter o sorriso, a postura, mas era incapaz de aguentar por mais tempo aquelas suarentas palmas pegas ao seu corpo.
Sua mente procurou alguma desculpa coerente para cessar a dança e deixar de sentir aquela repugnante angústia. Não obstante, não achou nenhuma até que elevou o olhar e observou como o duque abandonava a sala e se dirigia para o balcão. Caminhava sereno, reto e saudava seu passo como se nada lhe perturbasse. Entretanto, Beatrice sabia que algo grave tinha ocorrido. Talvez aquele homem tivesse lhe dito algo que lhe provocou tal irritação e ele decidiu sair para tomar um ar.
«Isso!», exclamou a moça para si. Parou-se em seco, olhou ao moço com tristeza.
? Desculpe-me, estou mais cansada do que pensei.
? Posso ajudá-la em algo? Um copo de água, talvez? ? Estendeu sua mão para segurar o pequeno braço e dirigi-la de novo para o lugar onde se encontravam as mulheres.
? Não se incomode. Acredito que o ar fresco da noite me sentará bem ? indicou.
? Como desejar ? respondeu o moço com um sorriso de orelha a orelha ao acreditar que lhe insinuava que se afastassem da multidão.
? Não me acompanhe, posso fazê-lo sozinha. Além disso, como vou retirar da sala um galante com tantas propostas na sala? ? Dirigiu seu olhar para as jovenzinhas e sorriu.
? Elas não me interessam, senhorita Brown ? disse com firmeza e certo mal-estar.
? Pois a mim, você, tampouco. ? Segurou com suavidade o vestido com ambas as mãos, fez uma pequena inclinação e, sem parar para contemplar a irritação que devia expressar o moço, caminhou decidida para o exterior.
Tal como tinha imaginado, a lua cheia brilhava com esplendor. Os campos pareciam como se começasse a amanhecer. Beatrice percorreu com o olhar todo o comprido corrimão. Onde estava? Para que lugar tinha ido? Avançou uns passos e deixou que seus olhos se adaptassem melhor à mudança de luz. De repente sorriu. O duque permanecia de pé no lado esquerdo do balaústre. Mal podia vê-lo com claridade porque se colocou ao final deste. Com segurança, Beatrice caminhou para ele. Quanto mais se aproximava, mais euforia sentia, mais rápido pulsava seu coração, as mãos lhe suavam e voltou a notar aquelas vespas fincando incessantemente seu ferrão no estômago. Freou os passos ao situar-se atrás das costas do homem que parecia não ser consciente de sua presença.
? Não entendo como pode olhar para o chão quando deve admirar a beleza da lua ? falou com um suave fio de voz.
? Senhorita Brown! ? Exclamou assombrado e girando-se para ela. ? O que faz aqui?
? O mesmo queria lhe perguntar. Por que nos abandonou? ? Deu um passo, um só passo, para colocar-se ao seu lado e para que a lua lhe mostrasse o rosto do homem que, sem lugar a dúvidas, amava.
? Precisava tomar o ar fresco da noite ? mentiu. Colocou sua mão direita nas costas e com tom grave disse. ? Não estava dançando com o jovem Rawson?
? Cansei-me com rapidez ? respondeu sem apartar seu olhar do rosto viril. Observou como este voltava a enrugar a testa e apertar os lábios.
? Pois não deveria fatigar-se. Muitos dos cavalheiros convidados me pediram permissão para lhe solicitar uma dança ? continuou com o tom sério, impessoal.
? E o concedeu? ? Perguntou assombrada.
? O que quer que lhes diga? ? Girou-se para ela e franziu ainda mais o cenho. ? Digo-lhes que não?
? Exato! Diga-lhes que deve velar pela saúde de sua pupila e que se me deixarem exausta amanhã serei incapaz de aprender algo.
William a olhou com assombro e soltou uma sonora gargalhada que acompanhou Beatrice. De repente, apartou a mão de suas costas e a dirigiu para a bochecha da moça.
? Deveria partir. Não é apropriado que nos descubram aqui sozinhos. As pessoas poderiam...
? Não gosta de dançar? ? Interrompeu-lhe antes que continuasse dizendo o que ela não queria escutar.
? Eu gostava, mas deixei de fazê-lo. ? Apartou a mão do rosto da moça e a colocou no corrimão.
? Por quê? ? Beatrice se aproximou tanto a ele que pôde notar como a tiara que embelezava seu cabelo tocava o braço do homem.
? Por que crê?
? Está sem dançar desde...? ? Uma imensa tristeza sacudiu o pequeno corpo da moça. Seus olhos verdes se cravaram no rosto do homem. A lua o iluminava e revelava o pesar que sofria. Sem pensar duas vezes, a moça esticou sua mão direita para a alça da jaqueta e a separou, deixando que o braço inerte do duque caísse para o chão.
? Como se atreve...? ? Começou a dizer William zangado.
? Quero minha dança ? sussurrou a moça sem fazer diminuir sua decisão apesar de observar o aborrecimento que mostrava o duque em seu rosto. Segurou a mão esquerda entre a sua, colocou a direita em sua cintura, elevou o olhar e prosseguiu. ? Concede-me isso?
? Beatrice... ? murmurou tão baixo que nem ela mesma pôde escutá-lo com claridade.
De repente começou a soar sua valsa, que havia tocado na tarde com os Wadlow. A jovem pousou sua cabeça no peito viril e deixou que William a dirigisse. Não foi uma dança tão impetuosa como a do senhor Bennett, nem tão precisa como a realizada com o senhor Cooper e, nem muito menos a moça decidiu separar-se do duque com a necessidade que lhe urgiu com o jovem Rawson. Foi tão diferente quanto estranho. A mão esquerda de Beatrice segurou a do duque com tanto ímpeto que desejou que este o sentisse. O queixo de William se apoiava com suavidade sobre seu cabelo e inspirava com suavidade a essência da jovem. Os ligeiros vaivéns fizeram com que ambos os corpos se tocassem sem pudor. Cada nota musical incitava a não se separarem, a não se afastarem um do outro. Beatrice fechou os olhos e deixou que umas lágrimas de emoção banhassem suas bochechas. Não quis faze-las desaparecer enxugando-as no colete dele. Não podia eliminar os sinais que oferecia seu coração ao sentir por fim o que era um amor verdadeiro.
A serenidade tinha desaparecido. Era a primeira vez em sua vida que as pernas lhe tremiam apesar de senti-las fortes. Não podia respirar. Faltava-lhe o ar e não escutava o pulsar de seu coração. Teve que partir da sala para não ser testemunha de como o filho do presunçoso senhor Rawson, pedia permissão para que este dançasse com ela.
«À sua Excelência não importará, porque, conforme apreciei, é a apresentação de sua pupila e não da futura duquesa de Rutland, não é?». E o que lhe tinha respondido? Nada, só franziu o cenho e, graças à rápida intervenção de Roger, não lhe respondeu que se lhe ocorresse tocá-la, matá-lo-ia. E agora, apesar de fugir de Beatrice para que fosse feliz com outra pessoa e não com um ser incapaz de picar a carne e cortá-la ao mesmo tempo, estava dançando com ele. A pequena mulher que não lhe alcançava o ombro, era a única pessoa que tinha insistido em dançar segurando sua inutilidade para apertá-la com os suaves dedos femininos. A única mulher que o tinha cuidado e, em vez de debilitá-lo, elogiava-o, oferecia-lhe o empurrão que necessitava para ser o homem que uma vez foi. William apertou com suavidade o queixo no cabelo da moça para que esta o olhasse. Ela, entendendo seu gesto, elevou com delicadeza o queixo deixando que o homem apreciasse suas lágrimas de emoção.
? Beatrice... Beatrice... ? sussurrou aproximando sua boca das bochechas e beijando o lugar por onde as gotas as tinham molhado.
? William... ? murmurou fechando os olhos.
? Repete meu nome outra vez, suplico-lhe ? aproximou seus lábios dos dela tanto que, com o mínimo movimento, acariciavam-se.
? William, meu querido William... ? ao escutar seu nome da boca da moça, este sentiu um gozo tão imenso que lhe resultou estranho ao mesmo tempo em que formoso.
Fez com que sua boca impactasse com a dela com tanta intensidade como necessidade. Desta vez não começou com uma carícia leve, esperando ser rejeitado a qualquer momento, mas sim a beijou com força, com decisão, com toda a paixão que sentia e que não podia ocultar por mais tempo.
Beatrice foi incapaz de abrir os olhos. A razão disso não era a vergonha que deveria sentir ao ser beijada sem pudor nem reparo, mas sim as pálpebras que lhe pesavam devido à paixão. A queimação de sua virilha fervia e as vespas se liberavam de seu estômago após furá-lo. Sentiu-se ditosa e perturbada ao notar que o membro do duque começava a endurecer. Mas não tinha medo. Estava segura de que se ela parasse, este cessaria também sem pedir explicações ou sem obrigá-la a fazer aquilo que não desejava. De repente surgiu uma estranha frieza em sua boca. Atordoada pelas sensações que lhe causavam ser beijada pelo duque, abriu os olhos e contemplou uns olhos escuros repletos de fogo.
? Quero que saiba que a respeito e que meus beijos para você são incontroláveis ? sussurrou à meia voz devido ao seu estado de excitação.
? Quero que saiba que o respeito e que meus beijos... ? tentou repetir antes que o duque voltasse a beijá-la com aquela ansiedade que lhe mostrava o muito que a desejava.
? Cof, cof! ? Alguém tossiu próximo a eles.
? Roger! ? Exclamou William assombrado. ? O que faz aí? ? Avançou um passo para o homem e cobriu com seu corpo o de Beatrice.
? Vim lhes advertir que as pessoas murmuram sobre onde se encontrarão o tutor e a pupila ? disse reticente. ? Imaginei que ao luzir esta noite uma deliciosa lua cheia, o... tutor teria saído ao balcão para explicar à sua... pupila que essa preciosidade tem quatro fases: minguante, crescente, nova e cheia. Equivoco-me?
? Acompanhe-a ao interior, eu entrarei por aquela janela alí e ninguém pensará se estava com seu tutor vendo a lua ou se recuperando das insistentes garras de um jovenzinho descarado ? resmungou.
? Refere-se ao inofensivo Rawson? ? Arqueou as sobrancelhas e mostrou um amplo sorriso.
? O próprio ? disse William sério.
? Mon amie... ? sussurrou Roger após aproximar sua boca do ouvido de seu amigo. ? Nós fomos mais perigosos que esse jovenzinho inexperiente. Se não recordar mal, ao final conseguíamos elevar as pomposas saias.
William ficou petrificado. Não soube como tomar as palavras de seu amigo. Tragou saliva, girou-se para Beatrice e, apesar da presença de Roger, beijou-a com doçura nos lábios.
? Ele te conduzirá de novo ao salão. Não desejo que as pessoas finalizem um rumor e comecem outro.
? E você? ? Colocou as palmas ao redor do rosto masculino e o olhou aos olhos.
? Quando puser esta mão em seu lugar, farei ato de presença pela entrada principal. Se alguém me perguntar, direi-lhe que meu mordomo requeria minha presença para resolver um tema urgente.
? Mas...
? Allez, mademoiselle(7). Os convidados nos esperam ? estendeu o braço e Beatrice, cabisbaixa, aceitou-o. Devagar, caminharam para a entrada.
William teve que apoiar-se no corrimão para não cair. As palavras de seu amigo tinham lhe causado tamanha debilidade que quase o fizeram ajoelhar-se. Sentia-se um miserável, um canalha por ter feito sofrer os maridos de suas amantes. Agora entendia o padecimento e a vergonha daqueles homens que, depois de descobrir que seu amor não era correspondido, eram humilhados. Agora entendia a razão pela qual ele jamais quis apaixonar-se e oferecer seu coração a uma mulher.
Apartou as lágrimas de seu rosto, caminhou com integridade para a entrada e se dirigiu para a sala onde o licor e as apostas incrementavam a felicidade dos convidados.
XXIII
À manhã seguinte, Beatrice era incapaz de levantar-se, estava exausta do baile e das emoções que viveu nele. Só conseguiu levantar um pouco as pestanas quando Lorinne entrou na habitação e correu as cortinas para que a luz entrasse no interior.
? Boa tarde, que tal se encontra? ? Disse a donzela aproximando-se de sua cama e sentando-se nela.
? Cansada, mais do que acreditei ao me deitar ontem ? comentou sonolenta.
? Pois tem que preparar-se, sua Excelência a espera na biblioteca, deseja conversar com você antes de almoçar – informou-lhe. No rosto da criada se desenhou um sorriso tão enorme que Beatrice a olhou com os olhos entreabertos. ? A festa resultou mais produtiva do que se imaginou, não é?
? Não sei a que se refere ? disse enquanto se sentava sobre o colchão e apartava os lençóis de suas pernas.
? Quero dizer que todo mundo ficou contente. Ninguém pôs queixa alguma e a você viu-se muito feliz. ? Levantou-se e caminhou para o roupeiro para procurar um vestido para a moça. Só ficavam dois por usar: um dourado, que rejeitou sem nem o ver, e um de cor rosa.
? Feliz? ? Levantou-se com rapidez, aproximou-se da bacia e se lavou o rosto.
? Acaso fingia? ? Perguntou surpreendida a moça.
? Não, Lorinne, sentia-me muito feliz, mas tem que compreender que devido aos rumores que se propagaram por Rowsley quis que todo mundo soubesse que não me preocupavam porque não eram certos.
? Bem... ? disse a donzela lhe colocando o vestido escolhido. ? Então, depois de desculpar esse cochicho e de deixar claro que você é a pupila de nosso senhor, o que acontecerá agora?
A pergunta resultou tão dolorosa para Beatrice como um bofetão na cara. As palavras inocentes da moça despertaram-na bruscamente do sonho, aquele que inventou com tanta insistência para outros que terminou por acreditar ela mesma. Como tinha sido tão tola? Como foi tão inconsequente? Para o duque ela era a senhorita Brown não a senhorita Lowell, filha do barão de Montblanc. Para ele, seus pais faleceram e a verdade era que viviam na residência familiar que possuíam nos subúrbios de Londres. Para ele somente era uma camponesa e a realidade era que se tratava da filha ultrajada de um barão...
? Sinto se minhas palavras a ofenderam ? comentou Lorinne com tristeza. ? Não foi minha intenção perturbá-la.
? Não! ? Exclamou a jovem girando-se para ela e exibindo um sorriso. ? Não se sinta culpada de nada, foi sincera e lhe agradeço isso. Tem razão, Lorinne, não tinha pensado no futuro. Estava tão entretida com a festa e em fazer desaparecer esses rumores que tinha esquecido qual é meu verdadeiro lugar neste mundo.
? Mas eu... eu não quero que... ? tentou desculpar-se a compungida moça.
? Calma. Não se preocupe, se tudo sair como espero, logo poderei te responder essa pergunta. ? Deu-lhe um pequeno beijo na bochecha, olhou-se no espelho e, depois de ajeitar o vestido, dirigiu-se para o lugar onde a esperava o duque.
Fazia um magnífico dia ou isso lhe parecia? William não pôde conciliar o sonho. Foi incapaz de fechar os olhos e descansar depois do acontecido com Beatrice. Ela o amava. Não o disse com palavras, mas sim com feitos. Quem, salvo uma mulher apaixonada, pode contemplar uma fealdade como algo belo? Quem, salvo uma mulher que ama a um homem, chora pela emoção que lhe produz um beijo?
O duque caminhou para a janela e contemplou com admiração o exterior de seu lar. Aquele bosque que no passado lhe pareceu o lugar mais tenebroso, já não o era. Para ele, aquelas paragens selvagens eram seus salvadores porque graças a eles, Beatrice estava ao seu lado. De repente sorriu. Recordou a sensação de liberdade que lhe produziu a dança com a moça e como lhe separou a alça, segurou-lhe a mão que tanto se esforçava em ocultar e, sob o amparo de seu corpo, dançaram sem medo. Era sua mulher, disso não tinha a menor dúvida. Fez saber-se aos seus amigos, aos seus irmãos.
«Amo-a, amo a senhorita Brown.» Sim, claro que a amava e ela a ele, mas... que passo devia dar agora?
Em circunstâncias normais teria aparecido na casa dos pais dela e, depois de expor seus propósitos, eles revelariam à filha suas intenções. Entretanto, Beatrice estava sozinha, não tinha ninguém a quem pedir sua mão.
«Tenho que pedir a ela mesma? ? Perguntou-se enquanto caminhava para a porta para receber a jovem. ? Ou possivelmente...».
De repente se lembrou da conversação que a moça manteve com Roger quando lhe respondeu em francês. Se não lhe falhava a memória comentou que tinha uma tia viúva que permaneceu em seu lar durante um tempo.
«Se lhe perguntar onde reside sua tia, ? continuou divagando ? posso viajar até lá e pedir sua mão».
Voltou a sorrir. Quanto mais o meditava, mais loucura lhe parecia, mas disse a si mesmo que se o conseguisse, seria o disparate mais formoso que tinha feito por alguém até o momento.
? Senhor... ? interrompeu Brandon, as divagações com sua presença na sala ? a senhorita Brown está preparada. Deseja recebê-la aqui?
? É claro! ? Exclamou eufórico. Outra vez seu coração deixava o compassado pulsar para converter-se em um infinito galopar de meia dúzia de corcéis.
? Senhorita Brown... ? disse o senhor Stone abrindo ainda mais a porta.
? Bom dia, senhor ? saudou Beatrice com uma pequena reverência.
? Descansou bem? ? Perguntou o duque colocando a mão direita em suas costas e retendo a ânsia de abraçá-la.
? Muito bem, e você?
Brandon fechou a porta e sem mover-se do lugar escutou como o duque caminhava com rapidez para a jovem. Percebeu em seus olhos quando ela apareceu, toda a escuridão desapareceu após vê-la e, embora tentasse dissimular, um enorme sorriso lhe cruzou o rosto. O mordomo suspirou profundamente, sorriu e se dirigiu para a cozinha. Tinha que dar a razão, de novo, à sua esposa. Apesar de lhe dizer uma e outra vez que suas ideias eram desatinadas e absurdas, demonstrava-lhe que, em temas sentimentais, sempre ganhava.
? De verdade conseguiu descansar? ? William agarrava a cintura da jovem com força. Tinha-a beijado já três vezes desde que o mordomo os deixou sozinhos. Mas apesar de saber que eram muitas em tão pouco tempo, não podia deixar de fazê-lo. Tinha sentido tanto sua falta, tinha sentido tanta saudade durante sua breve separação.
? Sim, de verdade. Embora possa lhe assegurar que ainda sigo cansada ? comentou sorridente.
? Se quiser retirar-se para continuar seu repouso, entenderei ? disse com tristeza.
? Já o farei depois de almoçar. ? Elevou-se nas pontas dos pés e voltou a tocar os lábios que tanto prazer lhe oferecia.
? Parece-me uma ideia bastante aceitável... ? Apertou-a com tanto ímpeto ao seu corpo que esta encurvou as costas. Ao serem conscientes das contorções que deviam realizar para desculpar a diferença de altura, ambos riram a gargalhadas.
? Nunca tinha visto tantos livros ? indicou Beatrice ao liberar-se do corpo de William e caminhar para eles. Em sua casa havia muitos livros, mas não tantos como apreciavam seus olhos.
? Imagino... ? disse com pesar o duque ao imaginar que uma jovem tão ávida em cultivar sua sabedoria e intelecto teria sentido falta de não possuir mais fontes de conhecimento ao seu alcance.
? Não se entristeça ? falou com rapidez girando-se para ele. ? Acredito que me interpretou mal. Quis dizer que nunca vi tantos livros juntos ? esboçou uma leve risada. ? Quantos pode haver? Uma centena? Duas, possivelmente? ? Caminhou com lentidão para as grandes estantes e tentou fazer um cálculo aproximado.
? Posso lhe assegurar que, apesar de permanecer nesta estadia quase todo o meu tempo, nunca parei para contá-los. ? Dirigiu seus passos para ela e se colocou atrás de suas costas.
? Qual, de todos estes, é o seu preferido? ? Voltou-se para ele e, de novo, observou um olhar repleto de desejo, de necessidade, de luxúria. Só lhe bastou um leve sorriso para que William voltasse a beijá-la com tanta paixão que, se não a tivesse sugurado pela cintura, teria caído ao chão.
? O conde de Montecristo ? sussurrou após tomar o ar que faltava aos seus pulmões.
? Do que se trata? ? Perguntou interessada. Por muito que tentasse afastar-se da boca do duque, este lhe agarrava com tanto ímpeto que não conseguia separar-se nem a largura de uma linha de costurar.
? Parece-me estranho que uma jovem que fala francês e sabe tocar o piano como uma deusa, não saiba de que história falo ? disse jocoso.
? Não diga bobagens! ? Exclamou ruborizada.
? Se quer saber o que esconde o livro, leia-o. Talvez te faça compreender um pouco mais a escuridão que guardo em meu interior ? murmurou com voz melosa.
? Mostre-me ele ? pediu com euforia.
O duque emitiu um pequeno grunhido pelo desagrado que lhe produzia separar-se dela, mas não podia evitar agradá-la, muito ao seu pesar, liberou o corpo da moça e retornou às estantes. Durante um comprido tempo esteve revisando títulos até que ao final o encontrou.
? Aqui o tem – mostrou-o. ? Vai começar a ler agora? ? Arqueou as sobrancelhas e desenhou um sorriso malicioso.
? Pode pô-lo sobre a mesa, já o farei mais tarde.
Tal como lhe indicou, o homem o pousou sobre a mesa, girou-se para ela para abraçá-la de novo quando bateram na porta.
? Adiante! ? Grunhiu.
? Meu senhor, o almoço está preparado ? informou Brandon timidamente.
? Obrigado. Faça saber que não demoraremos.
Quando os deixou a sós, o homem finalizou aquilo que tinha pensado. Depois de enchê-la de beijos e de abraços, recuperaram a compostura e se dirigiram para o salão.
? Desculpe, milord. ? A voz agitada do mordomo lhes impediu de acessar ao lugar.
? Sim? ? Franziu o cenho e dirigiu ao ancião um olhar fulminante.
? O senhor Cooper e o senhor Bennett acabam de chegar ? informou.
? Faça-os passar. Podem nos acompanhar ao almoço se o desejarem ? disse com voz mais suave.
? Senhor, comentaram-me que desejam falar com você agora e em privado ? explicou com certa alteração.
? Não se preocupe, senhor. Como lhe disse, preciso descansar um pouco mais para recuperar a energia que perdi ontem ? intercedeu Beatrice ao observar a tensão que cresceu depois da notícia. ? Com sua permissão. ? A jovem fez uma pequena reverência e, sem deixar que ele se negasse, subiu as escadas que a conduziam ao seu dormitório. Era o mais apropriado naquele momento. Não só pelo desejo de ambos os cavalheiros em manter um bate-papo privado com o duque, mas sim porque ela também necessitava de tempo para pensar quando seria o melhor momento para abandonar o homem que amava.
Zangado ao mesmo tempo em que intrigado, William retornou à biblioteca para receber a inoportuna visita. Que assunto era tão urgente para que seus amigos perturbassem um momento tão esplêndido? O que teria acontecido para requerer, com tanto afã, um bate-papo privado? Ansioso por averiguar o que acontecia, os escassos segundos que demoraram em aparecer lhe resultaram uma eternidade.
? Boa tarde, William ? disse Federith ao entrar na habitação.
? Mon amie ? saudou Roger.
O duque esteve a ponto de lhes gritar como apareciam sem prévio aviso, mas quando observou os rostos aflitos de ambos, acalmou-se com rapidez.
? O que acontece? ? Inquiriu William olhando primeiro a um e logo ao outro.
? Advirto-te, meu amigo, que eu não sabia nada disto ? esclareceu Roger em tom suave depois de fechar a porta.
? O que acontece? ? Repetiu o homem em tom mais severo.
? Deveria se sentar, William. O que vai escutar pode te debilitar tanto que necessitará de um assento onde se apoiar ? começou a falar Federith ao mesmo tempo em que caminhava para ele.
? A mim? Por quê? O que aconteceu? Trata-se do Lausson? ? Perguntou sem pausa enquanto tomava assento e ficava sem ar.
? Acreditei que estava equivocado, ? continuou falando Cooper ? mas depois de passar a noite em claro pensando sobre isso e recordando, confirmei minhas suspeitas. ? William voltou a olhar ao Roger e logo ao Federith esperando que falassem claramente. ? Recorda à família do barão Montblanc?
? Não com a precisão que tem você ? esclareceu com aborrecimento.
? Recorda o que lhes aconteceu? Recorda a razão pela qual o barão te visitou em Southwark? ? Insistiu. Sabia que aquilo mataria seu amigo, que o levaria a um abismo de tristeza do qual jamais se recuperaria, mas o queria como se o mesmo sangue percorresse suas veias e jamais poderia perdoar-se se não lhe explicasse a verdadeira origem da senhorita Brown.
? A que vem isso agora? ? William franziu o cenho e tentou levantar-se, mas a mão de Roger o impediu.
? Sim, lembra-se ? determinou Federith.
? É óbvio que o faço! Acaso crê que sou tão insensível de não recordar a tragédia dessa família? A jovem terminou suicidando-se! ? Gritou.
? E se te dissesse que não morreu, que segue viva ? continuou falando Cooper.
? O que? ? Os esforços por levantar-se e deixar de escutar coisas que só lhe produziam um profundo e amargo sentimento de culpabilidade desapareceu de repente.
? OH, mon Dieu! Isto é mais duro do que eu pensava! Ama-a, adora-a! Acaso não se dá conta do dano que lhe vai provocar? ? Gritou zangado Roger enfrentando seu amigo e lhe colocando no peito um dedo acusador.
? Deve sabê-lo. Ele deve saber que a senhorita Brown é em realidade a senhorita Lowell, filha do barão de Montblanc.
? Mentira! ? Clamou William elevando-se com rapidez de seu assento. — É mentira! Ela é a filha de uns camponeses que morreram pela cólera!
? O amor te cegou, meu amigo, ? disse com pesar Federith ? e não pôde ver a realidade. Crê que uma camponesa poderia tocar uma peça tão difícil de Chopin sem praticá-la com frequência? Crê que uma camponesa poderia falar um francês daquele nível? Até o Roger se assombrou por sua incrível pronúncia.
William começou a enjoar-se. Tudo ao seu redor dava voltas. Mal podia ver com claridade. Esticou a mão direita para alcançar o assento. Não o conseguiu e, apesar de seus amigos correrem para que não tocasse o chão, seus joelhos impactaram sobre ele.
? Não pode ser verdade... ? sussurrou afogado. ? Está equivocado. Minha Beatrice não é...
? Sinto muito. Juro-te por minha honra que me dói te dizer isto, mas não poderia me considerar teu amigo se não te informasse sobre a verdade da mulher que ama e a quem, estou seguro, deseja lhe pedir em matrimônio ? explicou enquanto ele e Roger lhe ajudavam a sentar-se.
? Como vou pedir em matrimônio uma harpia? A uma mulher com experiência em enganar homens? ? Gritou tão alto que uma terrível dor de cabeça lhe sacudiu.
? Segue pensando que o conde de Rabbitwood disse a verdade? ? Perguntou Federith pousando seu braço sobre o ombro esquerdo de seu amigo. ? Pensa um pouco, William. O que nos contou sobre ela?
? Que veio andando desde algum lugar até encontrar a cabana do bosque ? expôs com voz mais apagada e olhando para o chão. Levou-se a mão direita para a testa e sentiu falta de sua esquerda. Antes, pressionar a cabeça com ambas as mãos acalmava sua dor e sua ansiedade.
? Quando a encontrou? ? Continuou o senhor Cooper com o interrogatório para que seu amigo conseguisse eliminar a fúria e conseguisse pensar com clareza.
? Depois de conhecer a notícia de seu matrimônio, embebedei-me e, em um ato de loucura, cavalguei sobre um dos meus cavalos. Algo o assustou e caí ao chão. No golpe fiquei inconsciente. Pensei que seria a última vez que veria a luz, mas quando despertei, ela me tinha salvado a vida. ? Não podia falar com clareza, asfixiava-se e, preso do desespero que estava vivendo, começou a chorar.
? O que te pediu em troca? ? Interveio Roger surpreso ao descobrir que aquela miúda figura tinha tido a coragem de salvar a um homem que lhe ultrapassava em tamanho e peso.
? Que a deixasse viver na cabana. Que não a incomodasse. Que a deixasse permanecer o resto de seu existir em solidão.
? O que aconteceu depois? ? Agora a pergunta era realizada pelo Federith.
? Tal como me pediu, deixei-a viver sozinha durante um tempo. Mas fui incapaz de deixar de pensar nela. Não me explicava como uma moça tão jovem e tão indefesa tentava se afastar do resto da sociedade. ? William elevou a cabeça e deixou que seus amigos observassem como as lágrimas banhavam seu rosto.
? Entende-o agora? Descobriu por que Beatrice desejava essa forma de vida? ? Apertou-lhe com força o ombro e o duque levantou sua mão direita para pousá-la sobre a de seu amigo.
? Sabe que lhe apoiaremos na decisão que tomar ? Confirmou Roger aproximando-se de seu amigo e imitando ao Federith no outro ombro. ? Diga-nos o que deseja fazer e o faremos ? sentenciou.
William dirigiu o olhar para a janela. Agora o dia não lhe parecia tão lindo, resultava-lhe frio, nublado, tenebroso. Depois de meditar o que desejava fazer, levantou-se com tanta força do assento que ambos os amigos deram uns passos para trás. Caminhou para a porta, abriu-a e começou a gritar.
? Brandon! Brandon!
? Sim, milord? O que ocorre? ? O ancião jogou uma rápida olhada aos convidados e compreendeu que nada bom tinha acontecido durante aquela conversação.
? Prepara um pouco de bagagem, amanhã partiremos para Londres na carruagem do senhor Cooper ? disse com firmeza.
? Uma longa temporada? ? Perguntou o mordomo desconcertado.
? Se tudo sair bem, estaremos de retorno em uma semana. Se sair mal, eu não retornarei nunca ? declarou.
XXIV
Esperou que seus amigos partissem para fazer o que tinha pensado. Pegou cinco folhas de papel, estendeu-as sobre a mesa e escreveu com seu punho e letra suas últimas vontades em cada uma. A primeira iria destinada ao senhor Gibbs, o administrador, informava-lhe do acontecido da aparição da senhorita Lowell e como, por decisão própria, determinou partir a Londres para finalizar o que não fez no passado. Explicou-lhe também os passos que devia seguir se algum de seus familiares, especialmente sua mãe, tentasse anular seu testamento. Não se esqueceu dos quais estavam ao seu serviço, indicando onde deviam instalar-se após seu falecimento e a quantia que lhes pertencia por seus anos de trabalho. Para finalizar insistiu na decisão sobre a mudança de proprietários da residência em Southwark. Esta seria dada de presente ao casal Stone como agradecimento a sua fidelidade, cuidado e por ocupar o lugar que deveriam desempenhar seus pais.
Reescreveu a carta três vezes mais. Uma estava dirigida ao Roger, outra ao Federith e a última para Beatrice. As missivas destinadas aos homens foram colocadas em distintos envelopes e as fechou com seu selo de cera vermelha. A única que ficava por guardar era a de Beatrice. Ele olhou de lado a última folha de papel em branco, respirou fundo e pôs em palavras o que seu coração ditava. Quando terminou, assinou-a, meteu-a em outro envelope, pôs-lhe o selo e a escondeu entre as páginas do livro O conde de Montecristo. Se tudo saísse bem, ela jamais conseguiria lê-la, mas se, pelo contrário, o destino o impedisse de voltar para seu lado, saberia que a amava apesar de descobrir a verdade.
Cabisbaixo, subiu as escadas devagar. Encontrava-se tão triste que, dar um passo e logo o outro, resultou-lhe um trabalho dificílimo. Conforme chegava ao final da escada, sem saber a razão, recordou o momento no qual a moça abriu os olhos e, depois de observá-lo, começou a gritar descontroladamente. Agora sabia a causa de sua alteração: o delírio da febre lhe mostrava de novo a atroz cena da violação. Não dizia a ele que não a tocasse, nem que tivesse piedade, a não ser ao maldito Rabbitwood.
«Morrerá em minhas mãos!», exclamou William formando com sua mão um duro punho e apertando a mandíbula.
? Meu senhor ? começou a dizer Brandon no patamar do corredor. ? Deseja alguma coisa mais?
? Só uma. Sobre a escrivaninha encontrará várias cartas, pega só a destinada ao senhor Gibbs e a faça chegar ao cavalariço. Quero que a tenha esta mesma tarde ? disse com tom cansado. Olhou ao mordomo e, observando que este esperava mais ordens finalizou. ? Isso é tudo. Descansa o resto do dia. A viagem será muito longa.
? Até manhã então, milord.
? Até manhã ? repetiu.
William se dirigiu para seu quarto com a intenção de descansar um momento antes de pedir a Beatrice que o acompanhasse no jantar. Como era de supor, seu ajudante de câmara lhe estava esperando para despi-lo.
? Senhor... ? saudou-lhe.
? Deixe-me em camisa e meias ? indicou com austeridade.
O moço assentiu e começou a despi-lo em silêncio. Quando lhe despojou de todos os objetos menos as assinaladas, despediu-se e o deixou sozinho. William caminhou para o espelho e observou seu reflexo. Não encontrou ao homem que era, nem tampouco o homem que acreditava ser. Seguia sendo um canalha, um ser desprezível. Com uma intensa fúria, começou a atirar tudo o que encontrou ao seu redor. Como tinha sido tão imbecil? Quem se acreditou ser para não escutar as preces de um homem destroçado? Por que afirmou categoricamente que ela mentia? Por que não duvidou disso nem um segundo? Possivelmente a resposta se encontrava em que, naquele momento, ele era tão vilão como o conde.
Envergonhado, William continuou destroçando o que encontrava em seu passo. Nunca tinha desatado uma ira semelhante. Sempre tinha guardado os sentimentos em seu interior com um férreo autocontrole. Até quando falou com Roger e Federith sobre a tristeza que sentiu pela morte da filha do barão, não exibiu mais lástima que a que pôde mostrar se Lala, a cachorrinha de sua mãe, houvesse falecido. Quebrado de dor, exausto pelo esforço, sentou-se, levou-se a mão direita para o rosto e começou a chorar.
Beatrice despertou assustada. Entre sonhos tinha escutado um grande estrondo, mas, ao levantar-se e observar ao seu redor, não achou nada estranho. Com muito sigilo, dirigiu-se para a porta. Depois de abri-la e olhar a um lado e ao outro do corredor tampouco encontrou nada que lhe explicasse seu sobressalto. Pensando que tudo foi produto de sua imaginação, decidiu retornar ao interior do quarto, mas então ouviu com clareza outro ruído que procedia claramente da habitação de William. Sem diminuir o passo, dirigiu-se para lá.
Durante o curto trajeto não parava de pensar que podia ter ocorrido qualquer acidente e que ninguém tinha ido para auxiliá-lo. Presa no pânico, não chamou antes de entrar e, quando descobriu o destroço que mostrava o interior, foi incapaz de avançar. Seu olhar procurou o duque. Mal podia apreciar a grande silhueta deste na penumbra. De repente escutou um suave lamento. Olhou para o lugar de onde procedia a pequena choramingação e achou ao culpado desta. William permanecia sentado sobre a cama e lhe dava as costas, por isso não tinha percebido sua presença. Inclinava-se para diante como se sentisse uma intensa dor em seu estômago.
? William... ? murmurou, mas o homem não a escutou. Seguia sem saber que ela tinha entrado.
Sem pensar em como reagiria o duque quando a descobrisse, caminhou com cuidado. Esquivou-se dos cristais quebrados e dos itens que se encontravam espalhados pelo chão. Não parou de andar até que se colocou em frente a ele.
? William, o que acontece?
? Beatrice! ? Exclamou o homem dando um salto ante o assombro em vê-la. ? O que faz aqui?
? Escutei um ruído e me assustei ? disse com um suave fio de voz.
? Não deveria estar aqui, poderiam ver-te. ? William foi incapaz de apartar o olhar do pequeno corpo imóvel.
A expressão de terror de seu rosto e a confusão de seu olhar lhe indicava que estava preocupada e ele se sentiu ditoso e ao mesmo tempo zangado por lhe provocar tal temor. Respirou fundo ao observar a beleza natural de Beatrice. Era a mesma que tinha mostrado na cabana, salvo que nesses momentos seu corpo não estava coberto de barro. Sua cabeleira, até agora recolhida como ditavam as normas, estendia-se pelas costas ocultando os delicados ombros. A diminuta figura, vestida com uma fina camisola de algodão branco, apreciava-se através do tecido. O homem tragou saliva ao distinguir as auréolas tintas de marrom e a escuridão de seu triângulo feminino. Devia fazer que partisse o antes possível dali. Não podia permanecer dessa forma tão erótica ao seu lado.
? O que aconteceu? Que notícia recebeu para que tivesse reações desta maneira? ? Esticou as mãos e as pousou sobre o entristecido rosto.
? Não deve preocupar-se com isso, Beatrice. ? Sua mão direita pressionou a esquerda da jovem e inclinou a cabeça para esse lado. Reconfortava-lhe tanto sentir a calidez de sua pele que, por um momento, esqueceu a razão de seu aborrecimento.
? Não deveria me preocupar ou não quer que me preocupe? ? Continuou com uma voz aveludada.
? Beatrice... ? sussurrou.
Fechou durante uns instantes os olhos e deixou que as mãos da jovem acariciassem sua barba.
? William... ? falou sem mal mover os lábios. Apoiou os dedos dos pés no chão e se elevou. Queria beijá-lo. Queria tranquilizá-lo com o suave tato de seus lábios.
? Minha pequena Beatrice... ? disse ao mesmo tempo em que baixava sua boca para a dela.
? Meu grande William... ? suas mãos se deslizaram para o cabelo e entrelaçando seus dedos nele, cortou a pequena distância que lhes separava.
A boca dele tocou com suavidade a dela. Não queria um beijo apaixonado, muito menos a tendo perto com uma camisola transparente, porque sabia que assim que sua mão acariciasse o corpo feminino sobre o fino tecido seria incapaz de parar a luxúria que despertaria.
? Só isso? ? Perguntou desconcertada ao perceber como os lábios do duque abandonavam os seus.
? Desejo muito mais, Beatrice. Mais do que pode imaginar, ? esclareceu com aparente firmeza ? mas não farei nada que você não queira fazer.
Beatrice cravou seus olhos nos dele e percebeu a veracidade de suas palavras. Não lhe cabia dúvida que se dissesse não, ele a respeitaria imediatamente. De repente, a jovem notou como seu pêlo se elevava, como seu coração se alterava e como aquela queimação que ardia sob seu ventre aumentava pela sinceridade do homem.
? Quero que me beije ? disse enfim. ? Quero que me toque... Quero ser tua assim como você será meu.
? Está segura? ? Perguntou depois de tragar saliva.
O desejo queimava seu corpo. Podia perceber na garganta o agitado bombeamento de seu coração. Dava-lhe permissão para entrar em seu corpo, e fazê-la sua. Entretanto, embora a ideia de tomá-la parecesse maravilhosa, assaltou-lhe a dúvida. O que aconteceria se não retornasse? O que pensaria a moça se a fazia dele e não voltasse jamais?
? Não o deseja? ? Beatrice, ao observar seu cenho franzido e uma inquietação estranha, apartou suas mãos do rosto do duque e começou a retroceder.
? Se o desejo? ? Agarrou-a pelo braço com força e a atraiu para ele com tanto ímpeto que ambos os rostos ficaram a um escasso palmo. ? Mais que tudo neste mundo!
E voltou a beijá-la, mas desta vez não controlou a paixão nem o ardor que sentia por ela. Sua língua invadiu a boca da jovem com energia e necessidade, antecipando-lhe o que aconteceria a seguir. Sua mão, até agora pega à cintura, começou a lhe acariciar as costas, os ombros, o pescoço... William mordeu com cuidado o lábio inferior, fazendo com que ela abrisse os olhos e o contemplasse. Queria que fosse consciente do homem que tinha ao seu lado, que lhe mostraria o que significava fazer amor.
? É tão bela... ? sussurrou enquanto a palma percorria devagar o pescoço, o decote, os seios. ? Desejo-te tanto... ? beijou-a de novo ao mesmo tempo em que continuava acariciando o tremente corpo feminino.
Beatrice percebeu com clareza cada carícia, cada toque e para onde se dirigia. Não lhe importou. Encontrava-se em um estado de atordoamento tão maravilhoso que não queria que parasse. Esticou de novo as mãos buscando-o. Desta vez suas palmas não apreciaram a sedosidade de seu cabelo, mas sim o quente peito viril. A pequena abertura de sua regata liberava o escuro e encaracolado pêlo do homem. Intrigada por averiguar o tato que teria, enredou seus dedos nele, pareceu-lhe suave e ao mesmo tempo robusto.
? Diga-me que pare, diga-me e me afastarei desta loucura... ? gemeu William ao notar as mãos dela em seu corpo.
? Não... ? murmurou. ? Não quero que pare esta loucura porque eu também a desejo ? respondeu ao mesmo tempo em que suas mãos baixavam e agarravam o objeto para tirar-lhe.
Era a segunda vez que contemplava o torso do duque. A primeira quando limpou a pequena ferida que se fez depois do acidente, mas então não o observou com o desejo nem com a lascívia que sentia nesse momento. Olhou a cicatriz da ferida, mal ficava rastro daquela lesão. Estendeu uma mão e a acariciou com suavidade.
? Ninguém até agora tinha visto... ? disse em voz baixa.
A moça soube com rapidez do que falava. Deteve a carícia que realizava no peito e a dirigiu por volta da mão esquerda que sempre ocultava dos outros e a acariciou. Apesar de ser mais magra que a outra, seguia sendo formosa. Sua pele, seu pêlo... era muito similar à direita. Nada do que observava lhe provocou espanto, ao contrário, sentiu-se ditosa por poder tocar e admirar.
? Siga acariciando-me, William, não pare ? comentou acercando sua boca do torso para beijá-lo.
Mas o homem foi incapaz de fazê-lo. Ao notar os lábios dela jogou a cabeça para trás e soluçou de prazer. Beatrice sorriu ao compreender o que produziam suas carícias. Aí estava, uma inexperiente na arte do amor deixando imóvel a quem, supostamente, era todo um professor. Entretanto, queria que continuasse, que não cessasse de tocá-la. Para despertá-lo desse transe, retirou-se com suavidade, segurou a mão direita e a colocou em seu estômago.
? Toque-me ? sussurrou.
O duque ficou tão pasmado que não soube como atuar. Nunca tinha perdido uma ocasião para despir uma mulher, embora nenhuma fosse Beatrice. Nem tampouco desejava apagar com suas carícias, as aberrações produzidas por outro homem. Mas lhe dava permissão, concedia-lhe a honra de fazê-la sua. Retirou a mão do ventre da jovem para segurar com força a camisola. Foi subindo-a devagar, sem pressa. Admirando a figura feminina. Quando este subiu até seus ombros, William grunhiu zangado. Não podia tirar-lhe. Não sem que lhe custasse mais esforço do que desejava realizar. Embora, para sua surpresa, a moça conduziu as mãos para o objeto e lhe ajudou a despojar-lhe.
? Linda... ? murmurou aproximando sua boca dos seios. ? É muito linda para mim. ? Lambeu e absorveu um mamilo para depois continuar com o outro.
Sua mão percorreu de novo o pescoço, os ombros e os seios nus da moça. Quis seguir o percurso de seu corpo até chegar aos quadris, mas em troca, segurou-a pela mão e a levou até a cama e fez com que se recostasse.
Ela tentou abrir os olhos e averiguar o que fazia William, mas não foi possível, pesavam-lhe tanto que não podia levantar as pestanas.
? Tão cálida, tão excitada, tão minha... ? murmurou o duque ao mesmo tempo em que a beijava com avidez.
Não voltou a falar até que sua boca se colocou sobre o púbis. Surpreendida, Beatrice realizou um suave movimento com as pernas, tentando fecha-las. William elevou seu rosto para olhá-la e lhe sussurrou:
? Não te farei mal, meu amor. Só quero despertar mais desejo para mim. Quer que o faça? Quer que aumente sua necessidade enquanto me alimento de ti?
? Sim... ? ronronou presa da paixão.
? Bem, então me mostre o lugar onde minha fome será saciada.
Beatrice obedeceu e uma estranha cãibra a sacudiu com intensidade e elevou, sem ser consciente disso, os quadris. William jogou o braço sobre estes para que não pudessem elevar-se mais. Voltou a introduzir a cabeça entre as pernas e a beijou com a mesma magnitude e paixão que quando beijava sua boca. Primeiro suave, para que se fosse acostumando às suas carícias e logo... intenso, demolidor!
? William! William! ? Exclamou a jovem entre soluços. ? OH, Meu Deus!
Ouvi-la gemer seu nome foi mais formoso que escutá-la tocar o piano. Resultou-lhe tão prazeiroso que notou como começava a molhar seu próprio calção. Levou-o a um estado tão supremo de desejo que um rastro de gotas brotava de seu sexo. Ele estava preparado para possuí-la, mas... e ela?
? Beatrice, minha amada ? disse ao mesmo tempo em que subia sobre ela. ? Quer que eu continue? Quer que eu entre em ti?
A jovem conseguiu levantar as pestanas para contemplá-lo. Apesar de suas bochechas estarem cobertas com a espessa barba, podia ver um intenso rubor. Estendeu as mãos para o rosto dele e o dirigiu para sua boca lhe deixando bem claro que consentia o passo seguinte.
Sem mais o que perguntar, o homem deixou que o beijasse o tempo que necessitasse. Depois que seus lábios se afastaram, ajoelhou-se em frente aos seus quadris, levou-se a mão para a calça e liberou seu sexo. Devagar, lento e percebendo o ardor de seu corpo, William foi penetrando-a até que ambos os quadris se roçaram. Esticou a mão para a cintura da moça e começou a realizar suaves vaivéns enquanto observava o rosto da jovem. Segundo a intensidade de seus gemidos, invadia-a com mais força, com mais vigor.
? Meu amor! ? Gritou ao sentir os primeiros espamos.
? William! ? Respondeu ela com gemidos ao sentir como seu corpo se convulsionava descontroladamente. ? OH, William!
Um intenso alarido brotou da boca do homem quando chegou ao clímax apesar de ser consciente de que poderiam lhe escutar os criados, mas não queria interromper o gozo que lhe provocou chegar ao orgasmo com a mulher que amava. Não podia fazer desaparecer essas convulsões que agitavam seu corpo com tanta intensidade que caiu sobre ela. Tentou recompor-se enquanto se colocava ao seu lado. Dirigiu sua palma para a bochecha e sorriu feliz ao perceber o fogo que desprendia.
? Amo-te, Beatrice. Amo-te e te amarei sempre ? estendeu sua mão para a cintura e a aproximou mais dele.
? Por que me dá a sensação de que se despede de mim? ? Disse sem olhá-lo.
? Não me despeço, meu amor. Jamais poderia me afastar de ti, ? aproximou sua boca do cabelo da jovem e o beijou ? mas é certo que tenho que partir amanhã para Londres.
? Sabia! ? Exclamou ao mesmo tempo em que se separava do duque, girou-se para ele e apoiou os joelhos no colchão.
? Beatrice, por favor – suplicou-lhe. ? Não vá.
? Por que, William, por que deve partir amanhã? O que lhe disseram Roger e Federith esta tarde para que tenha feito isso? ? Estendeu a mão e fez um semicírculo para assinalar o destroço que havia sobre o chão.
? Trata-se da minha mãe ? disse após meditar com rapidez que desculpa lhe oferecer para que não saísse da habitação correndo.
? A duquesa? ? Elevou as sobrancelhas e retornou devagar ao seu lado para que voltasse a abraçá-la.
? Ela decidiu ignorar certas decisões de meu pai e quer despojar meu irmão de uma propriedade que lhe pertence. ? William apertou a mandíbula e lhe pediu, mentalmente, desculpa por sua mentira.
? Por quê? Por que quereria uma mãe magoar seu filho?
? Porque Lausson se casou com uma criada e ela nunca esteve de acordo com esse enlace. – Beijou-a de novo no cabelo e inspirou seu aroma a sabão. Precisava levar consigo essa lembrança, ela ao seu lado, mostrando sua nudez sem pudor e ele abraçando-a com toda a intensidade que podia.
? E você, o que fará? ? Um suave bocejo brotou atrás da pergunta.
? Pôr ordem e fazer com que a normalidade se restabeleça.
? Demorará em retornar? – Aconchegou tudo o que pôde seu corpo com o do duque.
? Uma semana, no máximo dez dias. ? Segurou o lençol e a cobriu. ? Esperar-me-á, não é? ? Perguntou com certa inquietação.
? Não me moverei daqui até que retorne, prometo-lhe ? afirmou isso sem titubear.
? Beatrice... ? murmurou colocando seu queixo sobre a cabeça desta.
? O que? ? Voltou a bocejar.
? Amo-te.
Não tinha conciliado o sonho. Era incapaz de fazê-lo depois do acontecido. Não só a tinha feito dele, mas sim, preso da paixão, não se preocupou em tomar medidas pertinentes para não a deixar grávida. Amaldiçoou-se uma e outra vez por tal temeridade. Agora, se ela estivesse grávida, não só perderia o prazer de viver o resto de seus anos junto à mulher que amava, mas sim tampouco poderia desfrutar de cuidar e proteger seu filho. Em silêncio saiu da cama, caminhou para a saída e, antes que o ajudante de câmara aparecesse, ele o recebeu no corredor.
? Milord, não deseja que o atenda em seus aposentos? ? Perguntou assombrado.
? Não. Prefiro me vestir na habitação contigua. ? Caminhou devagar para ela.
Aproximadamente uma hora depois, a carruagem de Federith parava aos pés das escadas de Haddon Hall. Brandon abriu a porta e deixou que o duque subisse com orgulho.
? Bonjour... ? disse Roger sonolento. Reclinou-se no assento direito e estendia suas longas pernas para a esquerda, deixando um pequeno espaço que era ocupado por Federith.
? Bom dia – saudou-lhe Cooper. ? Segue querendo enfrentar a morte por ela?
? Jamais estive mais seguro de oferecer minha vida por alguém ? asseverou.
Federith deu uns golpezinhos na parede da carruagem e o cocheiro tocou os cavalos.
XXV
Os raios do sol atravessavam os cristais sem nada que o impedisse. À Beatrice, depois de sentir um estranho calor nas bochechas e despertar, sentiu falta de que William não tivesse deslocado as cortinas. Acaso não sentia o mesmo pudor que ela ao exibir seu corpo nu pela habitação? A pergunta à fez sorrir e percebeu que sua parte íntima começava a palpitar como na noite anterior. Ruborizou-se devido ao desejo incontrolável que despertou ao recordar os beijos, as carícias e os vaivéns do homem ao fazê-la sua.
Com urgência apartou os lençóis e, ajoelhada sobre o colchão, foi procurando com o olhar onde estaria sua camisola.
? OH! ? Exclamou entre risadas ao achá-la detrás da poltrona.
Sem parar de rir ao recordar a cena em que ela se despojou do objeto, aproximou-se dela, vestiu-se e se manteve de pé observando ao seu redor. Agora, com a claridade do dia, podia apreciar melhor o destroço que tinha provocado William. Perguntou-se por que a duquesa castigava seu filho por haver se casado com uma criada. Podia entender que uma mãe desejasse o melhor para seu filho, mas e se nesse matrimônio achava a felicidade? Por que não queria deixá-lo viver em paz? De repente, ao permanecer de pé, algo úmido percorreu o interior de suas pernas e uma vergonha muito grande fez com que sua pele avermelhasse.
? Meu Deus! ? Gritou depois de colocar a mão sobre a boca para que não se escutasse. Enjoada pelo pensamento que lhe rondou pela cabeça, sentou-se na poltrona. ? Não pode ser... ? murmurou. ? Ele terá sabido como controlar...
Para confirmar o que começava a suspeitar, levantou-se devagar a camisola. Suas mãos lhe tremiam, o coração tinha deixado de pulsar e segurou a respiração.
«Não!», pensou aterrorizada. Estava a ponto de ficar a chorar quando escutou uns passos pelo corredor. Sobressaltada, levantou-se da poltrona e se escondeu atrás dela. Não podiam descobri-la no quarto do duque. Ninguém em Haddon Hall podia chegar a imaginar o que tinha acontecido entre ela e ele na noite anterior.
Quando o silêncio voltou a reinar, levantou-se, caminhou para a porta, abriu-a e, depois de comprovar que não havia ninguém pelos arredores, correu para seu dormitório. Uma vez dentro, fechou devagar e se lançou à cama para chorar desconsolada.
? Quer que suba para despertá-la? ? Perguntou Lorinne a Hanna.
Depois dos afazeres diários, decidiram sentar-se ao redor da pequena mesa da cozinha para descansar, mas a criada estava preocupada. Tinha aparecido bem cedo no dormitório da moça e ela não estava. Quando lhe informou do desaparecimento à senhora Stone, a mulher lhe explicou, com uma mentira, que durante a noite a jovem se levantou sonâmbula e, como era perigoso despertá-la, deixaram-na pernoitar na habitação onde se deitou.
? Precisa descansar. Podemos deixá-la dormir um momento mais ? respondeu a mulher levando dois copos de suco para a mesa. ? Embora saltasse o almoço, poderá jantar tudo o que anseie.
? Pobrezinha... ? murmurou Lorinne olhando o copo que a anciã colocou em frente a ela. ? De todos os passados possíveis que imaginei, jamais pensei nesse.
? Eu tampouco... ? suspirou. Seus olhos se encheram de lágrimas. Tentou faze-las desaparecer piscando várias vezes, mas foi em vão.
? Espero que nosso senhor coloque em seu lugar àquele mal nascido! ? Exclamou antes de beber um sorvo do suco. ? A justiça deve cair sobre esse violador!
? Crê de verdade que sua Excelência deixará nas mãos da justiça o acontecido com a senhorita Lowell? ? Perguntou a anciã abaixando a cabeça.
? O que outra coisa pode fazer? Imagino que falará com os pais da senhorita, explicar-lhes-á o ocorrido e farão as pesquisas pertinentes até ver entre as grades o maldito conde, não?
? O duque não aceitará isso ? afirmou a anciã com pesar.
? Então, o que fará? ? Inquiriu atemorizada.
? O único que pode fazer um homem apaixonado ? assegurou.
? Santo céu! Não será capaz de...! Morrerá! ? Exclamou a donzela após levar uma mão para seu peito.
Beatrice abriu seus olhos quando um estranho rugido brotou de seu estômago. Tinha muita fome porque não tinha comido nada na noite da festa, mas, ante a possibilidade de estar grávida, não desejava sair da habitação. Acreditava que se permanecesse ali o tempo suficiente, terminaria despertando de um estranho sonho. Apesar de seus intentos por ficar no dormitório, os rugidos se fizeram tão intensos e constantes que se deu por vencida. Levantou-se da cama, retirou as cortinas para apreciar o dia e ficou atônita quando percebeu que o sol estava se escondendo. Que hora seria? Quanto tinha dormido?
Desconcertada e ao mesmo tempo inquieta, dirigiu-se para o vestidor e agarrou o único vestido que ficava sem pôr. Lorinne não gostava da cor dourada, por isso não o escolheu com antecedência, entretanto, pareceu-lhe formoso. As dobras na saia terminavam com uma elaborada renda cinzenta, o torso era tão suave e firme que não necessitava espartilho para aumentar seu seio, as mangas cobriam o braço por completo e ao final, justo nas costuras dos pulsos, a mesma renda o embelezava. Depois de vestir-se, olhou-se no espelho, ela mesma se recolheu o cabelo em um tenso coque. Suspirou para encontrar serenidade e abandonou a sala.
Resultou-lhe estranho não ver William ao final das escadas. Sua mente lhe fez pensar que estava ali, com suas mãos nas costas, olhando para a entrada sem ser consciente de sua presença. Ela recordava a grandiosidade de seu porte, a elegante figura, o olhar e o sorriso que lhe oferecia quando a observava aproximar-se. Teve que respirar com profundidade para não se debilitar de novo. Seus sentimentos para com o duque tinham mudado muito. Já não albergava ódio ou rejeição para com ele. Agora o necessitava ao seu lado mais que nunca.
Com pesar foi descendo as escadas muito devagar. Justo no momento que chegou ao hall, escutou uma conversação entre mulheres. Eram Hanna e Lorinne, ambas se encontravam na cozinha. Sem perder mais tempo, acelerou seu passo e se dirigiu para elas.
? Moça! ? Exclamou Hanna ao ver Beatrice parada na porta. Estava pálida, abatida. ? Vêem, sente-se. ? Caminhou para ela e a abraçou com força. ? Tem que estar morta de fome, não é?
? Sim, senhora Stone. Agora mesmo comeria uma vaca inteira ? disse com um leve sorriso.
? Pois vaca não tenho preparada, mas com certeza um bom caldo e um bife com verduras lhe saciarão o apetite. ? Conduziu-a até a cadeira, apartou-a e deixou que se sentasse.
? Necessita que lhe ajude em algo? ? Perguntou Lorinne sem poder fazer desaparecer o espanto de seu rosto.
? Possivelmente mais tarde, Lorinne. Virá-me bem um momento de companhia ? respondeu com suavidade.
Antes de poder terminar a frase, Hanna lhe tinha colocado sobre a mesa a terrina de sopa, os talheres e um copo de vinho. Sem ser capaz de continuar falando, Beatrice tomou com rapidez o caldo quente. Este começou a lhe esquentar o estômago e inclusive todo o corpo. Continuou com o segundo prato e não começou a articular palavra até que tomou o vinho.
? Sabem, não é? ? Quis saber se elas tinham descoberto onde dormiu na noite passada.
? Claro, aqui nada se oculta ? respondeu Lorinne sentando-se ao seu lado.
? Mas o duque resolverá logo o tema com a duquesa e retornará ao seu lar ? interveio a anciã antes que a conversação tomasse outro tema.
? Não entendo como uma mãe pode fazer tanto dano ? assinalou Beatrice com uma aparente aflição. Entretanto, em seu interior a alegria alcançava o nível mais alto. Ninguém tinha descoberto seu segredo.
? No fundo não é má ? respondeu Hanna. ? É uma mulher com princípios sociais muito acentuados. Os pais dela foram bastante estritos em sua educação e isso não se elimina com facilidade.
A donzela olhava a uma e à outra sem entender do que falavam. Todos os criados sabiam a razão pela qual o duque partira a Londres e pensou que ela, ao ser o principal motivo, saberia a verdade, mas conforme estava descobrindo, o amo a seguia protegendo apesar de estar longe.
? Ahh..., mas querer castigar seu filho dessa maneira ? comentou com pena.
? Lausson tem caráter e saberá como atuar ? afirmou a anciã.
? E se pode solucionar ele mesmo o problema, por que requer a presença do duque? ? Arqueou as sobrancelhas e cravou os olhos na mulher.
? Ele ostenta o título e deve colocar ordem ? respondeu Hanna retirando os pratos vazios. ? E você deveria descansar um pouco mais. Vi fantasmas com mais cor!
Beatrice assentiu devagar. Levantou-se de seu assento e caminhou para a porta. Lorinne fazia o mesmo. Acreditando que a necessitaria caminhou atrás dela.
? Vou descansar na biblioteca. Possivelmente leia um pouco. Está o fogo aceso?
? Sim. Faz umas horas que um dos criados o acendeu – informou-lhe a senhora Stone sem apartar a vista da jovem.
? Não precisa me acompanhe, Lorinne. Se não se importar, desejo ficar sozinha ? disse antes de abrir a porta e dirigir-se para a biblioteca.
O aroma de William se estendia pela pequena sala. Podia fechar os olhos e sentir sua presença sem dificuldade. Avançou devagar para a poltrona no qual estava acostumado a sentar-se e a acariciou com delicadeza.
«Por quê? Por que não posso te apartar de meus pensamentos? Por que sinto falta de sua presença?», perguntava-se sem cessar enquanto se afastava da poltrona.
Perambulou pelo interior durante um momento. Perguntava-se uma e outra vez a razão pela qual tinha mudado seus planos de fuga. Sem saber a causa, levou suas mãos para o ventre e o apalpou com suavidade. Se de verdade estivesse grávida, se de verdade esperasse um filho do duque, ele decidiria casar-se com ela e cedo ou tarde descobriria a verdade.
«Mas se parto e tenho seu filho em minhas vísceras, que vida poderei lhe oferecer?».
Desconsolada, fez com que seus passos a conduzissem para a escrivaninha e quase rompeu a chorar quando observou o livro preferido do duque. Esticou a mão para ele e deixou que suas gemas acariciassem a capa. «Se quer saber o que esconde o livro, leia-o. Talvez te faça compreender um pouco mais a escuridão que guardo em meu interior». Recordou com exatidão as palavras que William mencionou ao lhe haver perguntado sobre a trama que ocultavam as folhas. Queria saber a verdade do homem que amava? Queria compreendê-lo? A resposta foi um enorme sim.
Sorridente e com um estímulo para esperar a ansiada volta do duque, Beatrice agarrou o livro com tanto ímpeto que, assombrada, descobriu que algo caía ao chão e se escondia sob a mesa. Abaixou-se para pegá-lo e quando leu seu nome no envelope, as mãos lhe tremeram tanto que o papel não parava de sacudir-se.
Com estupidez, olhou o reverso e ficou gelada ao ver o selo do duque. Agitada, caminhou para a poltrona, sentou-se, apoiou a carta sobre seus joelhos e começou a abri-la. Em seu interior encontrou duas folhas.
“Para minha querida Beatrice, a mulher que amo com todo meu coração.
Se estiver lendo esta missiva é porque, muito ao meu pesar, não consegui finalizar a tarefa que me levou até Londres, mas não se sinta culpada, era meu dever e como tal, terei morrido feliz. Quero que saiba que te amo e que o breve tempo que passamos juntos desfrutei com intensidade. Jamais pensei que uma mulher me roubaria o coração, mas você o fez. Acredito que o conseguiu no dia em que abri os olhos e encontrei-a ao meu lado, cuidando-me, olhando minha fealdade com preocupação. Nesse momento, uma estranha emoção que não soube definir até que permaneceu ao meu lado brotou sem que eu pudesse evitá-lo. Não sei se o sentimento é mútuo. Tenho a esperança de que seja assim. Comecei a acreditar quando te dava o primeiro beijo e não me rejeitou. Quando te olhava e não apartava seus olhos verdes dos meus. Quando seu corpo se debilitava entre meus braços. Se minhas divagações não forem corretas, peço-te mil desculpas.
Como meu amor é real, decidi fazer justiça e arrumar o passado. Não sinta piedade por mim, eu não a tenho. Não se pode ter tal caridade a um ser desprezível, uma pessoa que não resolveu um tema tão horrendo por ser vaidoso. Mas retificar é de sábios e eu, embora não o seja, quero desculpar meu engano. Recordará a conversação que mantive com Roger e Federith. Bem, eles sabiam quem você era. Perdoe-me por não me haver dado conta de sua verdadeira identidade, apenas me fixei em ti. Agora me arrependo disso. Possivelmente, se o tivesse feito, nada daquilo te teria acontecido.
Não chore, meu amor. Sei que o está fazendo e me entristece saber que suas lágrimas percorrem seu belo rosto por minha culpa. Quero que saiba que não parti de seu lado porque não desejo permanecer contigo o resto da minha vida. Não é assim. Afastei-me de ti porque quero fazer aquele bastardo pagar todo o dano que te fez. Não. Não pude esquecer isso e viver como se nada daquilo tivesse acontecido. Ele te desonrou, humilhou-te e te fez abandonar seu lar para viver as penúrias às quais foi exposta.
Tenho que restabelecer sua honra. Tenho que recuperar seu posto na sociedade. E é meu dever fazer justiça à mulher que amo. Por último, quero que saiba, que embora não volte a te beijar nem te abraçar, estarei ao seu lado protegendo-a como tantas vezes te jurei, quando jazia ferida gravemente em meu quarto. Por isso, tem outra carta. É uma réplica de meu próprio punho e letra. Duas estão em posse dos únicos amigos que tive e a outra a tem o senhor Gibbs, meu administrador. Quero te demonstrar o muito que te quero e quão afortunado fui ao seu lado. Desejo que saiba, que embora tenha morrido no duelo, tê-lo-ei feito feliz porque meus últimos pensamentos serão para ti.
Amo-te e te amarei sempre.
William.”
A carta escorregou de suas mãos sem que ela percebesse enquanto sua mente se paralisava, até o ponto de não ser capaz de pensar com clareza ou emitir um gemido. Sentia as lágrimas lhe queimar a pele e seu coração romper-se como o cristal e o único que atinou a pensar era que elas deviam sabê-lo. Não havia nada em Haddon Hall que elas não soubessem.
? Senhora Stone! Senhora Stone! ? Gritou com força. Levantou-se de seu assento, inclinou-se para segurar a carta e não teve forças para levantar-se de novo. ? Senhora Stone!
? O que acontece? ? Perguntou a anciã depois de abrir a porta com tanta impetuosidade que golpeou a parede.
? Sabia ? disse apertando os dentes e olhando ao chão. ? Todos sabiam!
? Minha querida menina... ? murmurou sem mover-se da entrada. Segurou-se as mãos e controlou o desejo de correr para ela para abraçá-la.
? Todos sabiam! Todos! ? Gritou com voz rouca. ? E ninguém foi capaz de freá-lo ? chorou com ferocidade. ? Ninguém!
? Ninguém pode ir contra a vontade de seu senhor... ? sussurrou a mulher em meio ao seu pranto.
? Maldita seja a honra! Maldita seja a dignidade! Acaso não entendem que ele morrerá? ? Clamou tão forte que notou como se danificavam suas cordas vocais. ? Morrerá!
? Não se pode fazer nada... ? respondeu a anciã.
? Não se pode fazer nada?! ? Repetiu com tanta ira que seu corpo se sacudiu. ? Se Deus é misericordioso, estarei gerando um filho do duque e você me diz que... não se pode fazer nada para impedir que o matem!
? OH, santo Deus! ? Exclamou Hanna levando as mãos para o rosto.
? É claro que se pode tentar fazer algo. ? A voz serena de Lorinne surgiu atrás da anciã. ? Sua Excelência partiu na carruagem do senhor Cooper e deixou a sua nas cavalariças. Mathias poderia prepará-lo e nos conduzir até Londres ? sugeriu a criada.
? Bobagens! ? Gritou Hanna. ? Como pretende que a senhorita Lowell parta daqui?
? Preparem ? ordenou Beatrice. Aquela opção lhe pareceu à única alternativa possível.
? Senhorita... ? murmurou Hanna.
? Diga ao Mathias que partiremos nesta mesma noite. Se não descansarmos, poderemos chegar a Londres a tempo para impedir esta loucura.
? É claro! ? Respondeu Lorinne antes de pôr-se a correr.
? É uma loucura, pequena ? indicou a anciã imóvel.
? O que faria você para salvar a vida do homem que ama e possível pai de seu filho?
Sem nada mais que acrescentar, Beatrice saiu da biblioteca e se dirigiu ao seu dormitório. Não tinha muito que preparar, mas a intimidade de seu quarto lhe viria bem para repensar sobre tudo o que tinha acontecido.
XXVI
? Que horas são? ? William apoiou a cabeça nas paredes almofadadas da carruagem enquanto observava pela janela como uma tênue chuva caía sem cessar. Tinha chegado a Londres, à cidade sem sol, ao ambiente úmido, à frieza que desprendiam as edificações.
? É a hora do chá ? respondeu Federith depois de olhar seu relógio de bolso.
? Qual é seu plano? Percorrer as ruas em sua busca? ? Perguntou Roger, que tinha se acostumado a estirar as pernas sobre o assento de frente.
? Primeiro tenho o dever de falar com seus pais. Precisam saber que sua filha ainda vive e que durante todo este tempo esteve sob meu cuidado ? esclareceu com serenidade.
? E logo lhes pedirá perdão? Ou lhes informará que está apaixonado por sua filha e que morrerá por esse amor? ? Questionou Federith zangado.
? O barão deve conhecer a verdade ? confirmou William com o cenho franzido.
? Mon dieu! C’est très romantique!(8) Um homem que luta pelo amor de sua futura esposa pondo sua própria vida em perigo. Se os barões não lhe derem seu consentimento para se casar com ela, perderam o julgamento ? assegurou Roger com aparente diversão. Baixou os pés, olhou ao duque de lado e bateu várias vezes a coxa esquerda para acalmar a dor que tentava ocultar.
? Quero que me faça um favor ? expôs o duque olhando a quem tocava sua perna. ? Deve averiguar onde podemos encontrar ao Rabbitwood.
? Onde crê que estará um homem inocente e respeitoso como ele numa sexta-feira à tarde? ? Argumentou ao mesmo tempo em que arqueava as sobrancelhas. Ao ver que William estava tão absorto em seus pensamentos que não lhe tinha entendido exclamou: ? No clube! Que melhor lugar para desfrutar de um bom jogo, bom uísque e a aparição de maridos endemoninhados?
? Averigua-o ? disse sem prestar atenção às zombarias de Roger. ? Se estiver certo, depois da minha visita aos Montblanc, dirigirei-me para lá e lhe reclamarei meu duelo ? indicou antes de olhar de novo as ruas e refletir o que estaria fazendo Beatrice naqueles momentos.
Embora a senhora Stone lhe prometesse que a teria muito entretida lhe ensinando a cozinhar, não estava muito seguro disso. Suspeitava que a jovem em qualquer momento abandonasse aqueles trabalhos e inventaria outras novas. Desenhou um pequeno sorriso ao recordar a pose que punha quando se zangava, aquelas dobras divertidas que lhe apareciam na testa, àqueles lábios apertados como se fosse uma menina travessa e sem esquecer suas mãos na cintura para acentuar seu aborrecimento. Sentia falta dela. Apesar de ter passado tão só uns dias afastado dela, sentia saudades mais do que supunha. Imaginou-a de novo em sua cama e disse que jamais tinha visto um anjo dormir com tanta tranquilidade.
Uma imensa angústia lhe percorreu o peito. Não voltaria a vê-la. Não voltaria a beijar aqueles lábios apertados nem sentiria sua pele ardente depois de ser amada. Mas deveria fazer o correto. Tinha que liberá-la de seu passado e deixá-la retornar à vida que abandonou.
? Não pensou em deixar nas mãos da justiça o incidente?
A intervenção de Federith rompeu o estranho silêncio que se produziu entre os três.
Ninguém até aquele momento se atreveu a lhe oferecer essa alternativa, mas para Cooper, William era seu irmão e por isso queria que não pusesse em perigo sua vida. No passado salvou-se estando em plenas faculdades, mas agora, com uma mão imprestável e sem haver tocado em uma arma desde a última vez, suas possibilidades de sobreviver eram escassas.
? Justiça? ? Inquiriu o duque apartando o olhar da janela e dirigindo-a ao seu amigo. ? Diz-o a sério? Acaso não recorda minha imparcialidade quando o barão veio à minha casa rogando por esclarecer o caso de sua filha?
? Calma, cavalheiros ? interrompeu Roger para tranquilizar seus amigos. Não queria que a alteração que viviam nesses instantes produzisse uma disputa tendo em conta que William estava a ponto de enfrentar-se. ? Federith, acaso não ficou clara sua decisão antes de partir? William é um homem apaixonado e é lógico que queira resolver o tema com venerabilidade.
? Está louco? Por acaso essa viagem à França perturbou sua mente? ? Respondeu o aludido. ? Pode morrer! Entende-me? Morrer!
? E morrerei feliz sabendo que cumpri com meu dever ? pronunciou William antes de inundar-se em outro comprido silêncio.
Quando escutaram a voz do cocheiro fazendo parar aos cavalos, os três se olharam e, sem dizer nenhuma palavra, assentiram. O primeiro em sair foi Federith. Uma vez que pisou no chão se arrumou a capa, colocou-se o chapéu e deu uns passos adiante para que os outros saíssem com facilidade. Seguiu-lhe William, que foi atendido por Brandon antes que seus pés abandonassem a pequena escada metalizada. Finalmente apareceu Roger. Sua atitude despreocupada chamou a atenção de seus amigos. Ao descobrir o olhar que ambos lhe ofereciam sorriu e disse:
? Se me desculparem, tenho que ir atrás de um vilão. Conforme dizem, os que são da mesma índole se encontram com facilidade.
? Não quis expressar isso ao te pedir que procurasse... ? começou a dizer William.
? Não o disse você, digo-o eu. Enfim, ver-nos-emo dentro de uma hora. Se quando terminarem não me acharem no interior da carruagem, imagina onde me encontrarão. ? Estendeu sua capa pelos ombros, colocou-se o chapéu e se dirigiu para o clube de cavalheiros Reform.
Com o mesmo ritmo ao andar, os dois amigos caminharam para a porta da residência do barão Montblanc. Era uma pequena casa de duas plantas com um jardim ao seu redor. A William pareceu um lar muito singelo para um barão, mas ao momento recordou que Federith, na noite antes do duelo e na conversação que mantiveram sobre Beatrice, explicou que a família Lowell mal passava dois meses ao ano nesse lugar. Então, justo nesse momento sopesou algo que não tinha tido em conta durante a viagem. Seria a época em que eles desfrutavam de sua vida em Londres? Rezando para que fosse assim e que nessa mesma noite terminasse seu calvário, adiantou-se a Federith, esticou a mão para a aldrava de bronze e a golpeou três vezes. Imediatamente, a porta se abriu e lhes recebeu um criado mais idoso que Brandon.
? Boa tarde, cavalheiros – saudou-lhes. ? O que desejam?
? Boa tarde, sou o duque de Rutland e o cavalheiro que me acompanha é lorde Cooper. Pode perguntar ao barão se é tão amável de nos conceder uma entrevista?
? Sua Excelência... ? disse o criado assombrado. Fez uma reverência e lhes cedeu o passo para o interior da moradia. ? Se esperarem uns instantes, informarei ao barão.
? É claro. ? William ofereceu o chapéu e a capa a Brandon enquanto observava com curiosidade o lugar onde tinha vivido sua amada Beatrice. Estava a ponto de comentar com Federith a calidez que desprendia um lugar tão singelo quando uma porta se abriu e apareceu o mordomo.
? O barão e a baronesa lhes receberão na saleta – informou-lhes.
Federith tirou a capa e o chapéu para oferecer-lhe ao criado. Logo colocou sua mão esquerda sobre o ombro de William e o apertou.
? Vamos...
Com passo firme ambos entraram na habitação. Igual ao saguão, a sala era um lugar com móveis e equipamento muito singelos. Mas William não se centrou no mobiliário, mas sim na atitude carinhosa com a qual o casal se olhou antes que ele desse dois passos para o interior. Esse era o olhar que queria ver o resto de sua vida no rosto de Beatrice, uma mescla de amor e ternura.
? Boa tarde. Minha esposa e eu estamos agradecidos por sua presença em nosso humilde lar ? esclareceu. A baronesa se levantou da poltrona e fez uma pequena reverência, o barão se aproximou de ambos e lhes estendeu a mão. ? Se forem tão amáveis de tomar assento.
? Se não lhe importar, ficarei de pé ? indicou William com voz serena. Olhou de esguelha à baronesa e achou uma grande semelhança com sua amada Beatrice. Ambas as mulheres tinham o cabelo escuro, uma figura pequena e os olhos mais verdes que jamais tinha contemplado.
? Como desejar ? respondeu inquieto o barão.
? Dispunhamo-nos a tomar o chá, querem nos acompanhar? ? Perguntou Elisabeth com nervosismo.
A presença do homem que tinha rejeitado de forma categórica a inocência de sua filha não lhe resultava grata, mas seu marido a chamou à ordem quando se negou a recebê-lo. Assim em quão único pensava era que motivo lhe tinha conduzido até eles e quando partiria.
? Não, obrigado ? respondeu Federith ao ver que seu amigo não respondia.
? Bom, milord, a que se deve sua visita? ? Perguntou o senhor Lowell.
? Em primeiro lugar, quero lhes pedir perdão por não ter atendido seus rogos no caso de sua filha ? começou a explicar após respirar profundamente. ? Comportei-me como um vilão, um ser cruel, um miserável...
? Obrigada por suas palavras, ? interrompeu-lhe a baronesa ? mas sua desculpa chega um ano tarde.
? Elisabeth! ? Recriminou-lhe o barão.
? Tem você toda a razão, mas lhe rogo que me escute ? prosseguiu o duque enquanto confirmava que, não só tinha herdado seu físico, mas sim também seu temperamento. ? A senhorita Lowell está viva e durante este tempo viveu sob meus cuidados.
? Como diz? ? O barão, desconcertado ao escutar as palavras sobre sua querida filha, estendeu a mão para sua mulher. Ela se levantou com rapidez, segurou-lhe para que não caísse e o conduziu até a poltrona.
? Faz aproximadamente quatro meses tive um grave acidente em minha propriedade de Derbyshire. Uma jovem que se fazia chamar Beatrice Brown foi quem me salvou a vida. A moça vivia no refúgio de caça que possuo junto ao rio Wye e como pagamento à sua piedade, rogou-me que a deixasse viver ali. Não lhe neguei isso e mantive minha promessa até que foi atacada por uma manada de lobos. Depois de encontrá-la à beira da morte, decidi levá-la para minha casa até que sarasse. Com o tempo, e após conhecê-la, meus sentimentos para com ela foram... mudando. ? Tentou manter aquela calma que tinha tido até o momento. Entretanto, agora vinha a parte mais dura para ele, mostrar suas emoções aos outros.
? Está nos dizendo que manteve sob seu teto a nossa filha e que não foi capaz de nos informar até agora? ? Elevou sua voz a baronesa.
? Ele não sabia quem era ela, senhora ? interveio Federith. ? O duque não a reconheceu e não tinha motivos para duvidar sobre sua identidade. Fui eu quem lhe informou do verdadeiro nome da jovem.
? Onde está minha filha? ? Perguntou o barão vigorosamente, segurou a mão de sua esposa e, graças à sua ajuda, pôde levantar-se de novo.
? Em Haddon Hall ? respondeu William.
? O que faz você aqui e minha filha lá? ? Grunhiu dando uns passos para o duque.
? Não queria que ela sofresse e acreditei que devia mantê-la à margem disto. Além disso, Beatrice não sabe o verdadeiro motivo pelo qual voltei para Londres.
? E qual é esse motivo, milord? ? Quis saber a baronesa sentindo um nó na garganta. Que o duque se referisse à sua filha com seu nome de batismo e que dissesse que seus sentimentos para ela tinham mudado, faziam-na imaginar-se algo de tudo impensável.
? Recuperar a honra de Beatrice ? disse com firmeza William.
? Por que quer fazer tal coisa? ? Elisabeth o olhou sem piscar. Ela acreditava saber a resposta, mas desejava escutar de sua boca. Precisava ouvir como a dor que lhes provocou no passado, tanto a ela como a seu marido, agora açoitava seu frio coração.
? Porque a amo ? respondeu sem duvidá-lo.
? O que pretende fazer? ? Depois de escutar as palavras do duque, o barão relaxou seu corpo, caminhou para sua esposa e entrelaçou suas mãos com as dela.
? Esta noite desafiarei ao conde de Rabbitwood a um duelo à morte ? indicou enquanto apertava com força a mandíbula.
? Acredita que aceitará? ? Prosseguiu falando o barão. ? Acredita que aquele canalha consentirá em pôr em risco sua vida para demonstrar que sua história é certa?
? É claro. Apesar de minhas cicatrizes sigo sendo o duque de Rutland e se Rabitwood não deseja ficar como o covarde que em realidade é, não poderá negar-se.
? E foi capaz de olhar a minha filha aos olhos e não lhe dizer a verdade? ? Inquiriu zangada Elisabeth. Se estavesse certa, e poucas vezes se equivocava, esse homem não só amava a sua filha, mas sim ela também amava a ele.
? Foi o mais correto ? sussurrou William olhando ao chão. ? Não desejo... não posso permitir que...
? Porque também lhe ama, não é? ? Disse Elisabeth após soltar com força o ar dos pulmões.
? Quando pretende que se celebre? ? Interveio o senhor Lowell ao estar seguro que, se sua mulher seguia falando, ao final seria ela quem apertaria o gatilho.
? Amanhã à alvorada, em Hyde Park. ? William olhou ao barão mostrando mais segurança em si mesmo que nunca.
? Bem, se aquele homem aceitar seu desafio, faça-me saber. Ali estarei. Agora, se nos desculpar, minha mulher e eu precisamos ficar sozinhos ? comentou o barão com serenidade.
? É claro. Boas...
? Quero que me escute antes de sair desta habitação ? falou Elizabeth apesar dos dramalhões de seu marido. ? Pergunte-se o que deseja uma mulher e não o que deseja um homem. Talvez, se lhe houvesse dito a verdade, teria descoberto que não há nada mais importante como ter ao seu lado a pessoa que ama.
? Elisabeth!
? Acredito, baronesa, que minha eleição foi à correta ? respondeu William. Fez uma pequena inclinação com a cabeça, golpeou suas botas e partiu seguido por Federith.
Nenhum dos dois fez alusão às palavras da senhora Lowell, embora ambos não cessassem de meditar sobre isso. Quando abandonaram a residência Montblanc, William olhou a ambos os lados da rua procurando Roger, este não se encontrava pelos arredores nem tampouco onde lhes havia dito. Em silêncio subiram à carruagem e o cocheiro agitou os cavalos.
O clube não tinha mudado nada em sua ausência. Seguiam as mesmas mesas, as mesmas cadeiras e inclusive os mesmos homens jogando cartas e bebendo o ansiado licor. Federith lhe tinha advertido que sua presença naquele lugar despertaria certo interesse, mas a William já não importava o que as pessoas murmurassem atrás de seu passo. Tinha algo que fazer e queria terminá-lo o quanto antes.
Ignorou as saudações daqueles que antes do duelo o idolatravam e depois lhe desprezaram. Caminhou com integridade pelo corredor central até parar-se em frente à porta em que deveria encontrar-se com seu oponente. Sua ira era desmensurada, seu coração pulsava sem freio e lhe tremia o corpo. Agora entendia por que os doídos maridos que o desafiaram se alteravam ante sua presença, enfrentar-se com a pessoa que fere sua alma sem escrúpulos não proporciona tranquilidade alguma.
Com decisão abriu a porta e acessou ao interior. Mal podia ver com claridade, já que a fumaça cobria a habitação, mas quando seus olhos se acostumaram à escuridão, percebeu cinco figuras ao redor da mesa. Roger ao lhe ver, sorriu. Ele tirara o casaco e fumava um dos charutos que tanto gostava. Tentando manter a calma, William se aproximou da mesa.
? Veio bem a tempo, William. O conde de Rabbitwood estava a ponto de me contar aquela história que narra sem parar sobre a ardilosa filha do barão Montblanc, não é assim? ? Olhou ao conde e desenhou um grande sorriso.
? Rutland! ? Exclamou com alegria o conde quando descobriu a figura do duque ao seu lado. ? Quanto tempo! ? Levantou-se para estender sua mão, mas a apartou com rapidez ao sentir um estranho ódio para sua pessoa.
? É um maldito bastardo, um descarado e um violador ? grunhiu William sem mover-se.
? O que está dizendo? ? Perguntou entre risadas. ? Tanto lhe afetou o disparo que não me recorda? ? Perguntou dirigindo-se ao Roger, que seguia sentado na cadeira com atitude aparentemente serena.
? Eu o desafio! ? Clamou William atirando a luva sobre a mesa.
? Pela honra de quem? ? Continuou jocoso.
? Pela honra da senhorita Lowell, filha do barão Montblanc ? gritou com força para que todos os presentes o escutassem.
? Por uma morta? Quer morrer por alguém que já não respira? ? Sua diversão era tal que não podia deixar de mostrar um enorme sorriso. ? Meu Deus! ? Exclamou em tom divertido. ? Que pavor! Um duelo com um incapaz! Aceito-o? O que fariam vocês, cavalheiros? Recolho essa luva? Possivelmente seja a da sua mão esquerda e como podem apreciar, já não lhe faz falta. ? Levantou as sobrancelhas e soltou uma sonora gargalhada.
De repente a mesa saiu voando, pulverizando pelo chão tudo o que havia sobre ela. O que aconteceu depois ocorreu tão rápido que ninguém foi capaz de impedi-lo. Roger se levantou de seu assento, segurou o pescoço do conde e o apertou contra a parede. Nesse momento todos os cavalheiros menos um se largaram dali. O único que ficou sentado foi o jovem senhor Pearson.
? Reza ao seu Deus, ? grunhiu Roger no ouvido do conde ? porque se meu amigo não te matar, farei-o eu. ? E depois de ver como o rosto do miserável começava a ficar violáceo pela falta de oxigênio, soltou-o.
Rabbitwood respirou com dificuldade durante uns instantes. Seus olhos, acreditou-se sairiam disparados de suas órbitas, começavam a encher-se de lágrimas. Quando se recuperou, ergueu-se, esticou a camisa com força e olhou com receio ao duque. Era conhecida sua destreza ao disparar, mas agora não tinha nada que temer. O homem que o desafiava não era o mesmo que conheceu no passado. Depois de meditar sobre isso, voltou a desenhar um sorriso em seu rosto.
? Está bem. Aceito seu duelo. Imagino que não lhe fará falta saber quando e onde, não é?
? Amanhã, à alvorada, em Hyde Park e não sorria tanto, o duelo será à morte ? disse William com decisão.
? Como desejar, mas quero que saiba uma coisa, Rutland... ? comentou reticente enquanto agarrava a jaqueta de seu traje ? quando cair no chão morto recorde que o adverti.
Roger se equilibrou sobre Rabbitwood, mas desta vez Federith esteve atento e impediu que lhe agredisse agarrando com força o torso de seu amigo. Enquanto ambos os homens discutiam se tinha sido acertada ou não a intervenção, William observava como o desafiado caminhava sem mostrar inquietação. Era a mesma atitude que ele tinha exibido no passado. Sem preocupação. Sem tristeza pelo dano causado. Sem arrependimento. Entretanto, o destino lhe havia devolvido todas e cada uma de suas más ações e o rol tinha mudado, agora não era o desafiado, mas sim o desafiador.
? Desperte ? sussurrou Lorinne à Beatrice. ? Chegamos.
A moça apartou com rapidez a manta que a resguardava do frio e saiu da carruagem sem pensar duas vezes. Em várias ocasiões esteve a ponto de perder o equilíbrio. Não tinha descansado durante a viagem, mal tinha comido e estava acostumada a dormir quando o esgotamento era muito maior que sua tenacidade. Durante os dias que passou no interior da carruagem rezava a Deus para que acontecesse algo que impedisse o duelo: uma tormenta, que o bastardo do Rabbitwood não o aceitasse, e inclusive teria perdoado que Roger, porque Federith seria incapaz, embebedasse William até o ponto de que não pudesse sustentar-se em pé. Qualquer coisa lhe valia se evitasse a terrível desgraça.
Ao colocar-se em frente à porta da propriedade, olhou ao seu redor e não sentiu como se voltasse para casa, seu verdadeiro lar se encontrava onde William estivesse. Agarrou a aldrava e não cessou de golpear até que o mordomo lhe abriu a porta.
? Senhorita! OH, santo céu! A senhorita está em casa! A senhorita retornou! ? Exclamou o ancião movendo-se de um lado a outro do saguão para que todo mundo pudesse lhe escutar.
De repente, a entrada do salão onde estavam acostumados a permanecer os três quando não tinham visitas se abriu e apareceu sua mãe. Beatrice correu para ela quando Elisabeth estendeu seus braços.
? Minha menina! Minha pequena menina! ? Exclamou a mãe depois de romper a chorar.
? Mãe! Mãe! Não imagina quanto senti sua falta!
? OH, querida! Já não terá que partir de novo. Tudo mudará... tudo mudará... ? sussurrava-lhe sem deixar de lhe beijar as bochechas e as mãos.
? Tem-no feito! Aquele maldito conde aceitou o duelo! ? Exclamou apartando-se da calidez que lhe ofereciam as mãos de sua mãe. Girou-se sobre si mesma, olhou para o chão e prosseguiu: ? Não cheguei a tempo? Celebrou-se o duelo?
? Não ? respondeu Elisabeth caminhando para ela.
? Quando será? Onde? Mãe, o suplico! Não deixe que morra! Amo-o! ? Exclamou entre intensos soluços.
? Seu pai partiu faz dez minutos. Não vai em carruagem, mas sim andando. Um dos amigos do duque veio por ele. Conforme escutei, o duelo se celebrará em Hyde Park. Se partir agora, possivelmente chegue a tempo.
? Mathias! ? Gritou ao moço. ? Sabe chegar a Hyde Park?
? Não, senhorita Lowell. Jamais estive em Londres ? respondeu segurando a boina e apertando-a entre suas mãos.
? Eu sim! ? Exclamou Lorinne.
? Você? ? Perguntou Beatrice assombrada.
? É uma longa história, senhorita Lowell. Possivelmente, quando retornarmos a Haddon Hall a conte ? disse a donzela ao mesmo tempo em que corriam para o exterior da casa.
? Posso lhes acompanhar? ? Perguntou com certa inquietação Elisabeth.
? Vamos, mamãe! Necessitarei de sua ajuda se por acaso não me derem atenção! ? Gritou Beatrice abrindo a porta da carruagem.
Lorinne saltou sobre o assento para segurar as rédeas e, quando escutou que a porta se fechava, tocou com tanta força aos corcéis que Beatrice e sua mãe saltaram no assento durante o breve trajeto. Elisabeth entrelaçou suas mãos com as de sua filha e juntas começaram a rezar. Não deixaram de fazê-lo até que escutaram o grunhido que empregou a criada para fazer frear aos cavalos.
? Corre! ? Gritou-lhe a mãe girando a manivela com ímpeto.
A moça saltou sobre o chão, segurou-se o vestido e correu para o interior do parque. Quanto mais perto estava do lugar onde se supunha serem celebrados os duelos, sua respiração se voltava mais entrecortada, o pulso aumentava a um ritmo desumano e começavam a lhe tremer as pernas. De repente escutou uma voz e, sem duvidá-lo se dirigiu para ela, mas toda sua esperança se esfumou em um golpe quando observou a horrorosa cena.
Suas lágrimas começaram a percorrer seu rosto de novo e seu coração deixou de pulsar. William dava as costas ao Rabbitwood. Em sua mão elevava uma arma e parecia murmurar algo. Beatrice recordou as últimas frases da carta que lhe escreveu: «Quero que saiba, que embora tenha morrido no duelo, terei morrido feliz porque meus últimos pensamentos serão para ti». Estaria pensando nela? Quis gritar para que freassem aquela loucura, mas não lhe brotava a voz. Era incapaz de dizer algo. Ouviu como alguém contava.
? Dez, nove, oito, sete...
Ajoelhou-se. Levou as palmas para o rosto e o cobriu com elas. Não queria ver como morria o homem que amava. Não queria ver como dava sua vida por ela. Não queria...
O som de um só disparo provocou que vários bandos de pássaros elevassem seu vôo. Beatrice seguia chorando, rezando pela alma de William.
? Um médico! ? Escutou que alguém gritou. ? Está vivo? Segue vivo?
De repente, os passos de um grupo de pessoas se ouviram aproximar-se. A moça era incapaz de olhar para aquele lugar. Não queria ver o corpo de William estendido sobre o chão. Os passos cessaram. Depois houve silêncio e logo só ouviu um caminhar.
? Minha pequena Beatrice... ? murmurou William ao seu lado.
? William! William! ? Exclamou com alegria a moça enquanto se levantava e saltava sobre ele.
? Meu amor, o que faz aqui? Por que não ficou em casa? ? Depositou-a com cuidado no chão. Deixou que lhe abraçasse a cintura e colocasse a cabeça em seu peito.
? Por que acredita que estou aqui, William? ? Soluçou enquanto levantava o rosto para o homem. ? Porque te amo. Amo-te mais que a minha própria vida, honra ou o que esta maldita sociedade pense. Se tivesse te acontecido algo, eu... eu... teria morrido contigo, entende? Haveria mor...! ? A boca de William se chocou com a de Beatrice ao mesmo tempo em que a atraía com força para seu corpo.
Beijou-a durante tanto tempo que ambos ficaram sem fôlego.
Ali, diante de todos os presentes, mostraram seu amor. As pessoas que os olhavam foram testemunhas de como dois corações pulsavam em harmônia, de como dois corpos tremiam ao permanecer unidos e de como, dois seres a quem seu passado fez manter-se em solidão, a vida lhes dava uma segunda oportunidade para serem felizes e poderem amar.
XX
? Deveríamos ter escolhido o dourado... ? disse Beatrice movendo-se sobre si mesma e observando o vestido com atenção para convencer-se de que não era muito ostentoso para aquela ocasião ? tem bastante decote...
? Mas seu seio não aparece. A renda de seda branca evita que se aprecie ? argumentou Lorinne enquanto tentava colocar as últimas forquilhas no cabelo da inquieta moça.
? Não pensa que é muito atrevido? ? Perguntou ao mesmo tempo em que detinha seus movimentos fazendo com que a criada soprasse aliviada ao poder finalizar sua tarefa.
? O malva é o ideal para tomar o chá. Se tivesse escolhido o esmeralda eu lhe teria feito mudar de ideia. Esse sim é um vestido atrevido. Ainda não sei como a senhora Stone permitiu sua compra ? expôs antes de emitir um sorrisinho perverso.
? Mas é lindo... ? murmurou a jovem caminhando para o objeto e tocando com cuidado o tecido.
? Esse deve usar na festa. Estou segura de que deixará a mais de um cavalheiro com a boca aberta e com uma dor terrível no flanco ? comentou a donzela zombadora.
? Por quê? ? Beatrice arqueou as sobrancelhas, olhou-a com atenção e caminhou para ela.
? Não imagina por quê? ? Assinalou com seriedade. Logo, ao descobrir que com efeito a jovem não sabia a que se referia, explicou-lhe. ? Como acredita que atuarão as esposas desses maridos? ? Esperou uma resposta e ao não obtê-la, continuou. ? Minha querida senhorita Brown, esses desafortunados cavalheiros serão golpeados pelos duros cotovelos de suas mulheres ? disse antes de soltar uma gargalhada.
? Não seja boba... ? sussurrou desenhando um leve sorriso em seu rosto. ? Ninguém será capaz de me olhar dessa forma sabendo que sou a pupila do duque. Todo mundo teme zangá-lo.
? Mas sua Excelência não poderá controlar os olhares...
De repente alguém deu uns pequenos golpes na porta. Depois que Beatrice deu sua permissão, o senhor Stone fez ato de presença. Como era habitual nele, mostrou-se sério, frio, imperturbável.
? Senhorita Brown, informo-lhe que os convidados acabam de chegar. Sua Excelência a espera para recebê-los.
? Descerei agora mesmo ? manifestou depois de tragar saliva.
? Obrigado ? respondeu o mordomo antes de despedir-se.
Quando fechou a porta, Beatrice levou a mão direita ao peito sentindo a agitação que se ocultava em seu interior. Seria capaz de convencer ao incrédulo senhor Wadlow da nova versão? Que provas lhe pediriam para confirmar que ela não era uma cortesã? E, sobretudo... como atuaria o duque se o homem se comportasse indevidamente com ela? De repente sentiu medo e um estranho enjôo a sacudiu com ímpeto. Temerosa por um possível desmaio, caminhou devagar para o leito e se agarrou com força a um dos dosséis.
? Não se preocupe, tudo sairá bem ? sussurrou Lorinne. Vendo-a tão aturdida, aproximou-se, estendeu os braços para abraçá-la e a tentou reconfortar com o apertão. ? O duque cuidará de você como tem feito desde que entrou nesta casa. Esse filho do demônio não se atreverá a lhe magoar porque, se o fizer, estou segura que não sairá ileso daqui ? sussurrou. Depois de suas palavras, a donzela lhe deu um beijo na bochecha, a fez girar para a porta e a empurrou brandamente até que conseguiu tirará-la da habitação.
Quando Beatrice se propôs a descer as escadas, parou para observar o duque. Este se encontrava imóvel no hall com o olhar cravado na entrada e manifestando certa rigidez em seu corpo. Estava tenso, mais do que esperou encontrar em um homem que se caracterizava por manter uma extraordinária serenidade e autoridade. Sem dúvida, o que acontecesse durante a visita do doutor e sua esposa, inquietava-lhe.
A moça pensou que era lógico que se encontrasse daquele modo, posto que lhe urgisse resolver um tema que lhe causava tristeza. Não era agradável que lhe seguissem considerando o sucessor das atrocidades realizadas por seu pai. Embora ele tampouco lutou com afã para fazê-las desaparecer. Por muito que lhe explicou desejar ser uma pessoa diferente, antes de ser ferido no duelo comportava-se com a mesma insolência que seu progenitor. Entretanto, todo mundo merece uma segunda oportunidade e possivelmente era o momento de recebê-la.
Com suavidade desceu as escadas sem deixar de observá-lo. Durante um breve instante, no qual este colocou sua mão direita nas costas, apreciou que enrugava a testa com força. Não podia receber ao casal daquela maneira, tinha que relaxá-lo. Se antes que estes pusessem um pé no lar e a perturbação não desaparecesse, a história mentirosa terminaria em um fracasso inevitável.
William não tranquilizou sua mente nem um só instante desde que a moça lhe revelou seu passado. Não cessava de imaginá-la perambulando sozinha, caminhando exausta e contornando centenas de perigos aos quais teria enfrentado. Cada vez que pensava nisso o sangue lhe fervia, irritava-se e queria golpear algo para poder quebrar com a mão. Embora aquelas divagações lhe enfurecessem, mais ira lhe provocava havê-la conduzido para a situação em que se encontrava agora. Por sua culpa a moça deveria enfrentar os falatórios de todo um povoado para demonstrar ser inocente e decorosa. E tudo porque ele não era capaz de deixá-la partir, de aprender a viver sem ela.
«Se tanto a necessito, ? disse ? deveria atuar com rapidez. O muro está quase terminado e então, tal como lhe prometi, terei que deixá-la partir».
Mas a única forma encontrada para evitar aquela desgraça não podia levá-la a cabo, não até que averiguasse os sentimentos que ela tinha para com ele.
? Se franzir o cenho com tanta frequência, envelhecerá logo – sussurrou-lhe Beatrice atrás dele.
? Desculpe-me, não a ouvi descer... ? começou a dizer William enquanto dava a volta para receber como era devido à jovem. Ao apreciar sua beleza e como aquele vestido de cor malva ressaltava sua figura, tragou saliva e sentiu como seu corpo se debilitava. Estava linda, encantadora, possivelmente até mais do que deveria mostrar ao casal. Entretanto, quem pode diminuir a mágica beleza que brota da simplicidade?
? Quer que eu me coloque ao seu lado ou prefere que permaneça uns passos atrás? ? Perguntou.
Era uma pergunta aparentemente infantil, mas não podia ser assim quando a moça revelava em seu rosto uma imensa zombaria.
? Se lhe oferecer o braço e você o aceitar, acredita que a senhora Wadlow terá que ser assistida por seu querido marido após sofrer um desmaio? ? Respondeu William à dita brincadeira.
? Então, a melhor opção será que fique ao seu lado, mas com certa distância ? disse ao mesmo tempo em que dava uns passos para sua esquerda.
As vozes dos convidados se escutaram detrás da porta, Brandon estava no exterior para lhes indicar para onde deviam caminhar. William olhou para a entrada, logo observou à moça e, sem saber a razão que conduziu a tal atrevimento, inclinou a cabeça para ela e lhe sussurrou com suavidade.
? Esqueci-me de lhe dizer que está linda.
Beatrice abriu os olhos como pratos ao escutar o suave murmúrio do duque em seu ouvido. Começaram a lhe suar as mãos, seu seio se elevava com ímpeto devido à respiração agitada, os joelhos começaram a dobrar-se pela perturbação que aquelas suaves palavras lhe provocaram. Era a primeira vez que lhe oferecia um elogio e, apesar de tentar lhe subtrair importância a um fato tão minúsculo, não o conseguiu. Por uma estranha razão, se ele se sentia orgulhoso dela, ela notava como crescia uma imensa felicidade em sua alma.
? Se forem tão amáveis de me seguir ? falou o senhor Stone. ? Conduzirei-lhes até a presença de sua Excelência.
? Pelo amor de Deus, Graham, isto é enorme! ? Exclamou a esposa, sem poder apartar o olhar de tudo o que se achava ao seu redor.
? Centre-se no importante, Irina. Você, como perita em propagar falácias, deve descobrir se esses dois estão nos mentindo. Como já sabe, nossa credibilidade diminuiu grandemente entre nossas amizades e, se deseja continuar sendo a esposa de um respeitado doutor, temos que achar a verdade.
? Não se preocupe querido ? disse sorrindo e lhe dando uns pequenos golpes com sua mão esquerda no braço que a sustentava. ? Encontrarei-a antes de beber o último gole de chá.
Brandon, ao escutar a conversação nada dissimulada dos convidados, apertou os dentes, abriu a porta e mostrou uma careta que tentava assemelhar-se a um sorriso.
? Senhor Wadlow, senhora Wadlow, bem-vindos ? saudou o duque com voz grave.
? Boa tarde, senhor. Obrigado por aceitar nossa visita ? comentou o doutor com um sorriso malicioso. Aproximou-se de William e estendeu a mão para lhe saudar. Logo olhou de esguelha à Beatrice e se dirigiu para ela. ? Alegro-me de vê-la em tão bom estado, senhorita Brown.
? Muito obrigada. Na verdade, devo tudo a você e ao seu magnífico trabalho. Ficaram apenas as marcas na perna ? comentou sorridente.
? Querida, esta é a jovem de quem te falei ? explicou Graham apartando-se para a direita para que a mulher se aproximasse de Beatrice. ? Senhorita Brown, minha esposa, a senhora Wadlow.
? Encantada ? disse a moça mostrando o mesmo sorriso sardônico que, instantes antes, tinha exibido o doutor.
Não tinha feito uma ideia de como seria a mulher do famoso médico, mas lhe chamou muito a atenção que ela fosse bastante mais alta que ele. Com uma compleição magra, mais do que estabeleciam os ícones de beleza, usava um vestido que enfatizava a estreita cintura e exaltava seu busto. Beatrice admirou o cabelo, era o mais dourado que tinha visto até agora. Era um loiro tão intenso que poderia confundir-se com o branco. E era jovem, muito mais jovem que seu marido, que exibia uma barba grisalha cuidada, um cabelo cortado à perfeição e uns olhos repletos de maldade.
? Encontra-se melhor? OH, meu Deus! Quando Graham me narrou a tenebrosa história que tinha padecido e as sequelas que poderia sofrer, quase desmaio ? explicou com aparente horror.
? Mas graças à intervenção de seu marido hoje posso caminhar como se nada daquilo tivesse acontecido ? sorriu outra vez.
? Deveríamos nos dirigir para o salão e continuar ali o bate-papo ? interveio William perplexo ante a hipócrita atitude dos três. Tinha pensado que Beatrice se enfureceria ao ter em frente a ela o culpado de sua agonia, mas de novo o deixava assombrado, atônito e orgulhoso.
? É claro ? afirmou a moça. ? Os cavalheiros poderiam ir à frente ? murmurou à Irina segurando-a pelo braço com familiaridade. ? Estou segura que ambos conhecem o caminho melhor que nós.
? Confunde-se, senhorita Brown ? interveio com rapidez o doutor. ? Salvo o dia em que vim para tratá-la, jamais estive neste lugar ? resmungou Graham ante tal atrevimento.
? Desculpe-me! ? Exclamou Beatrice com semblante desconcertado. ? Acreditei escutar que você era amigo do anterior duque de Rutland.
? Que nada! ? Deixou escapar Irina ante tal afirmação. ? Ninguém que se considerasse respeitável teria visitado esta mansão durante as aparições daquele homem.
? Ah, não? ? Perguntou com um aparente assombro.
? O pai de sua Excelência, ? começou a explicar a mulher depois dos passos dos cavalheiros ? era um homem desonroso e abrigava sob seu teto mulheres... como o diria eu para não escandalizá-la?
? Prostitutas ? apontou William com voz séria. Embora seu tom não refletisse o que sentia em realidade. Ao princípio apertou os dentes pela ousadia da moça, mas depois de ver a cara de espanto que mostrou o doutor, não cessou de repetir-se que a reunião iria ser mais amena do que pensava.
? Por isso alguém proclamou por Rowsley que sou sua... ? Beatrice tentou simular um desmaio ante o descobrimento. A senhora Wadlow lhe segurou com força o braço e olhou furiosa ao seu marido, este retornou com rapidez para a jovem para examiná-la.
? Não se preocupe ? disse a moça recompondo-se. ? Foi só um pequeno enjôo ao recordar as calúnias que um ser perverso e malicioso comentou sobre mim sem me conhecer.
? Encontra-se melhor? ? Interrompeu William tentando aparentar preocupação.
? É claro, sua Excelência, prossigam. Nós partiremos atrás.
O duque continuou seu caminho para o salão. Ao seu lado permanecia o doutor com o cenho franzido e absolutamente em silêncio. Depois deles andavam as mulheres. Quando entraram no salão, elas se sentaram perto da mesa redonda que havia justo ao lado de uma das janelas, onde podiam admirar o exterior do lar. Eles decidiram permanecer de pé ao seu lado.
? Então, ? rompeu o silêncio Irina ? conforme nos informaram, é você a pupila de sua Excelência.
? Sim. Minha mãe, amiga de uma irmã de uma amiga da irmã de outra amiga da atual duquesa de Rutland, encomendou-lhe a árdua tarefa de ser meu tutor ? explicou olhando-a fixamente aos olhos.
? Não teve mais alternativa? Desculpe meu atrevimento, milord, mas tem que compreender que uma moça tão jovem, tão bonita e com tantas possibilidades de encontrar um bom tutor em Londres, não entendo como terminou neste lugar.
? Desculpo-a, senhora Wadlow, eu pensei o mesmo quando minha mãe me informou sobre sua decisão. Mas depois de minha desgraça, de me converter em um ser incapaz de realizar nada sem a ajuda de meu fiel mordomo e de não supor perigo algum para a senhorita, insisti que era a melhor opção para limpar o bom nome que ostento ? sentenciou.
Beatrice não respirou. Ficou tão assombrada pela exposição do duque que não soube como atuar. Se sorrisse mostraria a estes seu apoio à declaração de inutilidade do homem, mas se pelo contrário, franzisse o cenho, apertava os dentes e seus punhos pela dor que lhe tinham causado as palavras, daria a entender aquilo que nem ela mesma era capaz de assimilar.
? Como já expliquei à encantadora senhora Brace, o duque é muito inteligente, mais do que deseja aparentar – interveio. ? E como tutor, não tenho queixa alguma, embora eu lhe diga que é bastante exigente.
O casal se dirigiu um olhar furtivo, mas tanto o duque como Beatrice o captaram. Estes se olharam interrogantes, como se ainda não acreditassem na versão contavam.
? É o momento do chá ? esclareceu William. Caminhou para um lado da cortina e puxou com delicadeza uma corda que pendia do teto. Ato seguido apareceu o senhor Stone.
? Sim, milord?
? Estamos preparados para tomar o chá ? afirmou.
Brandon fez uma suave reverência e, cinco minutos depois de sua marcha, duas criadas levavam em suas mãos umas bandejas de prata com as xícaras e massas.
Não houve bate-papo enquanto saboreavam a deliciosa infusão. Entretanto, William apostava o único braço são que o casal não cessava de refletir sobre quais perguntas fazer à moça para confirmar o que deviam descobrir. De repente, o doutor até aquele momento sentado ao lado de sua mulher para ingerir o chá e saborear alguns doces, pousou a taça sobre a mesa e se levantou com decisão.
? Sabe tocar o piano, senhorita Brown? ? Perguntou enquanto se dirigia ao instrumento situado no outro lado do salão. ? Se a memória não me falhar, nosso duque, quando tinha a precoce idade de dez anos, era um magnífico pianista.
William abriu os olhos como pratos. Um nó enorme lhe impediu de tragar o último sorvo de chá que tinha tomado. Tentou falar para oferecer qualquer desculpa, que o piano estava desafinado, que tinha se quebrado alguma tecla, algo que o tirasse do apuro, mas foi impossível.
? Não dizia você nunca tinha aparecido em Haddon Hall, salvo quando me visitou? ? Beatrice, assombrada pela maldade do homem, replicou-lhe com a mesma perversidade.
? Não precisava aparecer por estas lareiras para escutar as pessoas falarem sobre o incrível talento que possuía lorde Rutland com este instrumento ? sorria de orelha a orelha. Seus olhos mostravam uma escura e maléfica satisfação. Dizia-se a si mesmo ter encontrado o que havia se proposto. Que cortesã alcançaria tal capacidade? Elas só eram peritas em agradar sexualmente aos homens e deixavam de lado um estudo tão importante como a arte da música.
? Sim, por favor, toque alguma peça! ? encorajou Irina a decisão de seu marido com grande exaltação. ? Eu adoraria escutá-la. Apesar de meus constantes intentos por aprender a tocar esse instrumento, nasci sem esse dom. Conforme me disse meu último professor, não tenho um bom ouvido.
? Como podem apreciar ? interrompeu William mal-humorado. ? Não sou o homem apropriado para instruir com precisão nessa habilidade. Muito temo que...
? É claro! ? Exclamou Beatrice elevando-se de seu assento e caminhando para onde permanecia o senhor Wadlow e o instrumento. ? Como já disse, o duque é um bom tutor e, embora não possa me deleitar com uma interpretação, ele sim tem bom ouvido e sabe como transmiti-lo.
Absorto, assombrado e com o corpo tão intumescido que não era capaz de mover-se, William admirou a pequena figura dirigindo-se com elegância para o lugar. A moça se sentou após acomodar seu vestido ao assento, arrumou o suporte das partituras e olhou-as com atenção.
? Alguma peça em especial? ? A jovem arqueou as sobrancelhas e sorriu. Sentia seu pulso acelerado, os dedos começavam a mostrar rigidez e lhe suavam as palmas. Fazia pouco mais de um ano que não tocava o piano e, caso aquele maquiavélico personagem lhe pedisse algo especial, não poderia evitar cometer um engano. Sem saber por que olhou ao duque. Este estava absorto em algum pensamento doloroso porque franzia o cenho, tinha o olhar perdido e apertava a mandíbula. Quis lhe sorrir, transmitir-lhe serenidade para acalmar sua inquietação, mas... quem a calmaria?
? A que você desejar ? respondeu Graham sem deixar de regozijar-se.
Nesse momento e ante o assombro dos três, William se levantou do assento e caminhou para a jovem, colocou-se atrás dela e pousou a mão em seu ombro. Apertou-o com suavidade e lhe sussurrou:
? Beatrice...
O quente tato e escutar seu nome com aquela aveludada voz deixou a moça congelada. Notou um calafrio tão extraordinário e jurou que sua temperatura tinha baixado dez graus de repente. Elevou o queixo, afirmou com a cabeça como se este lhe tivesse indicado o que devia tocar, e colocando as mãos sobre as teclas iniciou a harmoniosa melodia.
Durante os quatro minutos e meio que durou Spring Waltz de Chopin, os três ouvintes foram incapazes de mover-se para interrompê-la com um minúsculo ruído. Quase não puderam respirar pela elegância e os sentimentos transmitidos em suas notas. Beatrice, apesar de suas dúvidas, não cometeu nem um só engano mesmo sentindo a terrível angústia que lhe causou a música. Recordou seus pais sentados na poltrona enquanto ela lhes deleitava com um interminável repertório. Aquela composição em especial os fazia segurar-se pela mão e mostrar sem pudor à sua filha o amor incondicional que se professavam. Naquele tempo ela sonhou encontrar um homem que lhe declarasse aquele afeto, que a protegesse, que a amasse sem objeções, sem restrições absurdas produzidas pela formalidade de uma sociedade repleta de insensibilidade.
Mas seus sonhos foram destroçados dramaticamente. Rememorou a dor sentida ao ser assaltada por seu violador, pelo dano que lhe produziu ao desflorá-la e como, destroçada, ficou estendida no chão chorando incapaz de levantar-se para seguir vivendo. Deveria tê-la matado com aquela faca que lhe apertava a garganta e finalizar assim o calvário que viveriam seus queridos pais depois do penoso anúncio.
Quando a peça estava a ponto de finalizar, a imagem do duque apareceu em sua mente sem poder evitá-lo. Recordou o dia do acidente e quando retornou para oferecer-lhe sua ajuda e ela o rejeitou, o momento no qual foi atacada e, depois de pensar que não seguiria vivendo, abrir os olhos e encontrar a figura esbelta do duque ao seu lado, cuidando-a, protegendo-a apesar de sua incapacidade. Recordou seu rosto zangado ao descobri-la vestida de criada, da tarde em que lhe abriu seu coração para fazê-la partícipe de suas desgraças. Do passeio, de sua dor e de como a tinha cuidado nessa tarde. Tampouco pôde evitar analisar seus sentimentos por ele. Seus aborrecimentos, suas atitudes altivas, dos incontáveis enfrentamentos... e soube por que tinha lutado com tanto ímpeto para apartá-lo de seu lado, porque o amava.
Estava apaixonada por ele e, embora pensasse que jamais desejaria deitar-se junto a um homem, ele fez com que toda sua decisão desaparecesse. Desejava-o com toda sua alma e isso lhe produzia pavor.
? Lindo... ? murmurou Irina levantando-se de seu assento para dirigir-se a ela.
Beatrice se incorporou e girou para o duque, quem permanecia ainda às suas costas. Elevou seu olhar para ele e não ocultou as lágrimas que emanavam sem cessar.
? Sinto muito todo o ocorrido ? disse o doutor ao contemplar a cena entre ambos. ? De verdade que o sinto e se sua Excelência deseja revogar o convite, compreenderei-o.
? O convite segue em pé ? comentou com firmeza. Não lhe olhou. Tinha seus olhos cravados na moça e não foi capaz de mover-se de seu lado, como ditavam os perfeitos comportamentos sociais, ao perceber sua debilidade.
? É hora de partir ? apontou Irina segurando seu marido pelo braço e dirigindo-o para a saída. ? Não se incomode em nos acompanhar, milord, meu marido saberá como sair daqui. ? William só pôde assentir com um leve movimento de cabeça.
Quando o casal fechou a porta, a senhora Wadlow agarrou com ímpeto o braço de seu marido e lhe sussurrou.
? Errou, querido. Não é sua concubina, mas sim a futura duquesa de Rutland.
O duque ao advertir que estavam sozinhos, estendeu sua mão e abraçou Beatrice. Deixou que seu rosto molhasse seu peito, que choramingasse tudo o que necessitasse, enquanto lhe sussurrava palavras de consolo.
«Sempre me terá ao seu lado. Não me separarei de ti até que você me peça isso», repetia uma e outra vez. A moça esticou seus braços e o aferrou ainda mais ao seu corpo. Necessitava aquilo que lhe prometia, precisava o ter ao seu lado, necessitava que jamais se afastasse dela.
? Minha pequena Beatrice... ? murmurou apartando-a com suavidade. Dirigiu sua mão para o lado direito do rosto feminino e lhe apartou as lágrimas, a seguir fez o mesmo com o esquerdo. ? Não sei de onde veio, nem como conseguiu chegar até aqui, mas dou graças a Deus por se cruzar em minha vida.
Beatrice elevou o queixo e deixou que este contemplasse sua tristeza. Permitiu que a reconfortasse e, quando percebeu sua boca se aproximando da sua, fechou os olhos para que a beijasse como tantas vezes tinha sonhado. Ao sentir a ternura em seus lábios, uma explosão de felicidade lhe percorreu o corpo. Ao princípio apenas lhe roçou e soluçou ao notar que se afastava, mas antes de poder abrir os olhos para certificar-se de que partia, o duque voltou a beijá-la. Entretanto, este beijo foi diferente. Toda aquela ternura dava passo a uma incrível paixão. Conquistava-a, fazia-a dele, hipnotizava-a até tal ponto que desejou sentir a mão dele acariciando seu tremente corpo. Não devia fazê-lo, não era adequado sentir, depois do acontecido, um desejo incontrolável de notar o calor de sua pele junto à sua, mas lhe resultava difícil não o fazer porque o amava.
William aproximou devagar os lábios para os de Beatrice e apenas os roçou, temia que ao tocá-los ela se arrependesse. Entretanto, ao escutá-la esboçar um pequeno e imperceptível gemido de necessidade, voltou a estender a mão e, segurando-a pela cintura, atraiu-a para ele. Deixando-se levar, transformou um terno e suave beijo em uma explosão de desejo. Saboreou sem descanso o interior e mesclou seu fôlego com o dela. Sua língua conquistou com suavidade e lentidão, tentando provocar em cada movimento mais paixão na jovem. De repente, um intenso calor lhe percorreu o corpo, convertendo o suave e terno beijo em um mais tórrido, enérgico e dominante. Era dele. Aquela pequena mulher era só dele.
? Desculpe minha ousadia ? disse William quando se separou dela para que não pudesse captar a excitação que lhe tinha provocado à aproximação. ? Não devia me aproveitar de sua aflição.
? Não se desculpe, foi culpa de ambos ? comentou com pesar ao entender que o duque se arrependia de beijá-la.
? Mas jurei que jamais tocaria a uma mulher sem seu consentimento ? esclareceu dando uns passos para trás.
? Cumpriu sua promessa, sua Excelência. Permiti-lhe me beijar e agora, se me desculpar, desejo me retirar ao meu quarto.
? É claro ? respondeu aflito.
Com a cabeça abaixada e com um visível pesar, Beatrice saiu do salão, subiu as escadas, alcançou seu quarto, fechou a porta e se tombou na cama para chorar.
Por outro lado, o duque quis correr para ela e lhe explicar que suas palavras não tinham sido acertadas. Que ele desejava beijá-la com toda sua alma. Mas apertou as solas de suas botas no chão e não o fez. Depois de escutar como a moça fechava a porta, girou-se para o móvel, tirou uma garrafa de brandy e se serviu uma taça que bebeu de um sorvo.
XXI
Durante os dias posteriores, Beatrice evitou qualquer encontro com o duque. Recusou seus convites para almoçar, tomar o chá ou inclusive jantar juntos pondo como desculpa as múltiplas tarefas que devia realizar para a festa. Embora pudesse sentir a presença do duque ao seu lado em cada coisa que fazia ou em cada passo que dava pela casa. O que pretendia fazer, falar do ocorrido enquanto almoçavam? Se tanta ansiedade lhe provocava o acontecido, por que não se deteve antes de fazê-lo? Por que, em seu segundo beijo, em vez de afastar-se, sua boca se chocou contra a dela com a mesma intensidade que uma onda do mar em um escarpado? Milhares de perguntas rondavam sua mente sem cessar, mas suas respostas não a convenciam. Na intimidade que lhe proporcionava a solidão de seu quarto, rememorava uma e outra vez aquele momento. Via-o ao seu lado tentando fazer desaparecer as lágrimas, apertando seu rosto contra seu peito. Recordava seu olhar e a expressão deste, não havia maldade nele, mas sim ternura, carinho, apreço.
Sentiu de novo o abraço, como a estreitava em seu corpo para consolá-la e, sobretudo, sua mente não cessou de evocar o momento do beijo. O primeiro terno, suave, com medo. Mas depois de escutá-la soluçar pelo distanciamento de sua boca, o segundo foi apaixonado, ávido e possessivo.
«Se tivesse sido em outro tempo, ? meditou na tarde do sábado enquanto esperava sentada sobre o leito a chegada de Lorinne ? acreditaria que se aproveitava da minha debilidade. Mas agora, depois de compreender quem é em realidade, não posso pensar isso. Ele já não é a pessoa que conheci em Londres. Aquele homem libertino, egoísta e petulante morreu».
Seguia divagando sobre as possíveis razões pelas quais o duque se desculpou, quando bateram na porta.
? Adiante ? deu permissão em voz baixa.
? Boa tarde, preparada para deixar todos os convidados com os flancos doloridos? ? Comentou a donzela com um sorriso.
? Estou esgotada... ? indicou ao mesmo tempo em que se lançou de costas sobre a cama e estendeu os braços. ? Não poderiam postergá-la?
? Venha, não seja folgazona! Está escondida nesta habitação há mais de duas horas! ? Lorinne se aproximou dela, segurou-a pela mão e a levantou com rapidez. ? Não temos muito tempo. Conforme me indicou o senhor Stone, logo chegarão os primeiros convidados.
? Tão cedo? ? Soltou a moça assombrada.
? Sua Excelência enviou dois convites a duas pessoas muito importantes para ele e, conforme comentam, pediu-lhes que viessem antes da cerimônia ? explicou enquanto se dirigia para a poltrona situada ao lado esquerdo da cama. Pegou o espartilho e o mostrou à moça. Esta enrugou o nariz ante o desagrado que lhe produzia voltar a embutir-se nesse tipo de objetos.
? Quem são essas pessoas? ? Aproximou-se da donzela, girou-se e deixou que esta começasse com a árdua tarefa.
? Amigos do duque. ? Apertou tanto os cordões do espartilho que deixou a moça sem respiração. ? Companheiros que permaneceram ao seu lado durante as longas temporadas em Londres. Não posso comentar muito sobre eles porque não tive o prazer de conhecê-los em pessoa, mas conforme contam outros criados, um é o senhor Federith Cooper, o sobrinho do senhor Clain e futuro barão de Sheiton. Ao passar sua infância em Rowsley, foi o único menino que visitava o senhor e, ao que parece, tão intensa foi e é sua amizade que o irmão do duque sentia, e sente, ciúmes deles. ? Voltou a girá-la para certificar que o objeto se ajustava como devia ao pequeno corpo. Quando se conformou, dirigiu-se para o roupeiro, pegou o vestido esmeralda acetinado e após sorrir maliciosamente, foi para a jovem.
? E o outro? ? Beatrice levantou os braços para que Lorinne lhe pusesse o vestido que, segundo ela, ia provocar certa queimação aos cavalheiros que a admirassem. Embora não estivesse muito segura de que isso ocorresse porque todo mundo temia e respeitava ao duque. Quem iria ser tão incauto de lhe enfurecer em sua própria casa?
? Ninguém, salvo o casal Stone, viu-o. Conhecemos seu nome porque os criados encarregados de lhe fazer chegar a missiva nos contaram ? disse com uma aura de mistério.
? E? – Insistiu, na espectativa.
? Chama-se Roger Bennett, futuro marquês de Riderland. Conforme tenho entendido... ? deu a volta à moça e abotoou suas costas ? o senhor Stone jamais se agradou dessa amizade ? disse ao mesmo tempo em que colocava suas mãos nos ombros semidesnudos e a conduzia para a penteadeira para penteá-la. ? Parece ser um homem inconsequente, um aventureiro, um jogador inveterado e quem conduziu sua Excelência pelo mau caminho.
? E esse tal Roger... decidiu vir? ? Perguntou com certa inquietação. Apesar de não ter escutado falar de nenhum dos dois cavalheiros, o mero feito de saber que procediam de Londres provocou-lhe um sobressalto. E se coincidiu com algum deles nas poucas festas que assistiu? Como era lógico se suportavam essa desafortunada fama, sua mãe evitou qualquer aproximação com estes, mas... eles teriam reparado em sua presença?
? Sim! Claro que virão! ? Exclamou entusiasmada. ? E por fim descobriremos o rosto desse fantasma!
Não pôde ficar quieta depois da informação. Seu interior foi incapaz de manter a calma enquanto Lorinne trabalhava com afinco para realizar um penteado que, conforme apontou, deixaria descoberto o esbelto pescoço e o voluptuoso decote. Tampouco prestou atenção aos intermináveis comentários da donzela sobre sua beleza, quão fascinados ficariam os convidados e como, ao terminar o baile, todos os maliciosos rumores se resolveriam. Nada disso chamou sua atenção, porque não cessava de perguntar-se se algum daqueles cavalheiros a reconheceria em algum momento. Fazendo um grande esforço, foi rememorando todos os que se aproximaram dela. Foi impossível recordar os rostos ou os nomes. Tinha passado muito tempo. Entretanto, só um rosto seguia atormentando-a a cada dia, o do maldito conde de Rabbitwood. Um calafrio a açoitou com tanta força que seu pêlo se arrepiou.
? Não se preocupe, senhorita Brown, tudo sairá bem ? tentou consolá-la a donzela, esfregando seus braços como se tivesse frio. ? Levante-se! Deixe que a contemple!
Beatrice se levantou devagar e olhou os pés embainhados em uns sapatos de seda clara com uma linda borda dourada. Apreciou a suavidade do vestido, uns volumosos babados começavam dois palmos antes de chegar ao chão e finalizavam na cintura onde uma pequena faixa de pedraria de prata embelezava sua cintura. Pensou nesse instante que era muito atrevido levar seus braços cobertos com tão somente uma fina renda que começava nos ombros e terminava nos cotovelos, mas enquanto subia o olhar, a beleza do vestido a conquistou. Quando chegou ao decote e percebeu que era mais insinuante do que pretendia, toda aquela felicidade começou a desaparecer.
? Está linda, senhorita Brown, só lhe falta uma coisa. ? Dirigiu-se para a cômoda que havia ao lado da porta e pegou uma caixa marrom.
? O que é? ? Perguntou curiosa.
? Não sei, milord me deu isso antes de eu entrar ? disse sorridente ao mesmo tempo em que mostrava a caixa de joias fechada.
? Estava aí fora, no corredor te esperando? ? Perguntou alarmada. Arqueou as sobrancelhas, abriu os olhos no máximo e observou a caixa com medo.
? Penso que pretendia te chamar à porta para oferecer-lhe em pessoa, mas minha aparição interrompeu seus desejos ? continuou sem poder apagar o sorriso de seu rosto. Em Haddon Hall não se podia ocultar nada e, sobretudo quando se tratava dos estados emocionais do dono da casa. Todo o serviço era consciente dos sentimentos que o duque professava para com a moça e os dela para com ele. Só esperavam que ambos fossem conscientes. ? Abrirá em algum momento? ? Insistiu a donzela ao ver o estupor no semblante da moça.
Com as mãos trementes, Beatrice abriu o porta joias. Quando a tampa se elevou e contemplou o que havia em seu interior, seus joelhos se dobraram tanto que Lorinne segurou-a pelo braço para que não caísse no chão.
? Não posso aceitar... ? murmurou ao mesmo tempo em que tentou recuperar as forças.
? Não diga bobagens! Quer aparecer ante toda essa gente nua? ? Perguntou a donzela zangada.
? É um presente muito... ? sussurrou dando a volta e abaixando a cabeça.
? Está segura de que é um presente? Não cabe a possibilidade de que o duque os tenha emprestado? ? Continuou com irritação enquanto se colocava em frente a ela para lhe mostrar de novo as joias.
Beatrice as contemplou de novo. O cofre guardava uma tiara singela com duas faixas muito finas de diamantes unidas entre si no centro por uma grande aguamarina ovalada, um colar da mesma forma salvo que suas faixas eram um pouco mais grossas, uns brincos que faziam jogo com ambos os complementos salvo que estes eram muito pequenos, quase inapreciáveis de longe. Mas ficou absorta ao ver o bracelete. Todas as que usara antes não eram mais largas que uma linha de costura, entretanto aquela devia medir uma décima parte de uma polegada.
? Muito ostentoso! ? Exclamou depois de admirá-las.
? Rogo-lhe, deixe-me que as coloque. Prometo-lhe que se não lhe agradarem, devolverei-as ao duque ? afirmou.
A moça fechou os olhos enquanto Lorinne lhe colocava as joias. Não queria olhá-las, não queria confirmar que gostava e muito menos queria exibir joias que, se a mente não lhe falhava, a avó do duque usava na pintura do salão no qual dançariam. O que pensariam os convidados ao descobrir tal ousadia? Beatrice suspirou profundamente. Não era boa ideia, por muito que a donzela insistisse, não era sensato aparecer com elas porque, se tentavam apaziguar um rumor, ofereceriam-lhes outro mais suculento.
? Pode abrir os olhos... ? sussurrou a donzela ao finalizar.
A jovem levantou as pálpebras com pesar, dirigiu-se para o espelho da penteadeira e ficou aniquilada. Eram lindas, mais do que tinha pensado. Entretanto, não podia usá-las.
? Sigo pensando que... ? começou a dizer ao mesmo tempo em que girou-se para Lorinne.
Uns golpes interromperam o que pretendia expor. Surpreendida por não esperar a ninguém mais em seu quarto, dirigiu-se para a porta e ela mesma a abriu. O senhor Stone era o causador de não poder finalizar o que ia comentar a Lorinne.
? Sim, senhor Stone? ? Perguntou preocupada.
? Sua Excelência a espera. Deseja sua companhia o antes possível. ? O mordomo a observou com atenção e, para assombro de Beatrice, sorriu-lhe. ? Se me permite a ousadia, senhorita Brown, está magnífica.
? Obrigada, senhor Stone, ? sorriu-lhe ? é um elogio muito adulador vindo de você.
? Bom, se não precisa de minha ajuda, ? interveio Lorinne com uma vontade terrível de abandonar o dormitório ? continuarei com outros afazeres.
A moça entrecerrou os olhos e a olhou com aborrecimento. Claro que necessitava dos seus serviços, porque antes da aparição do mordomo estava a ponto de dizer que lhe despojasse das joias, mas ao final desistiu do intento. Deu uns passos para diante, fechou a porta, suspirou e que acontecesse o que Deus quisesse.
William, como de costume, encerrou-se na biblioteca para poder pensar com claridade. Durante os dias seguintes à aparição dos Wadlow, sua mente não lhe deixava tranquilo. Milhares de perguntas surgiam nela procurando respostas coerentes. Onde tinha aprendido a senhorita Brown a tocar o piano? Como sabia tomar o chá com tanta mestria? Por que erguia suas costas com tanta retidão que mal tocava o respaldo da cadeira? Nada disso encaixava com a história que a moça lhe tinha contado. Se ela era uma humilde criada, por que se comportava como as jovens da alta sociedade? Tinha-a visto levantar seu queixo de forma adequada, caminhar com passos curtos tal e como deviam fazê-lo as senhoritas, falar quando lhe perguntavam. Só rompia os protocolos de um comportamento adequado quando se enfurecia ao escutar os ataques verbais que as visitas ofereciam a ele.
De repente um sorriso apareceu em seu rosto. Lembrou-se da cara de espanto que o doutor mostrou quando ela fez referência às suas possíveis visitas a Haddon Hall. O médico empalideceu e o negou com rapidez enquanto que ele apertava com força a mandíbula para não soltar uma sonora gargalhada. Também atuou à defensiva quando o casal minimizou suas capacidades como tutor. Defendeu-lhe argumentando que para ser um bom professor não devia exibir seus talentos, que bastava saber expressá-los com palavras. Sempre tentava proteger sua integridade sem lhe importar a sua.
Então recordou as palavras que o senhor Stone se atreveu a lhe dizer: «Pode ser que lhe minta. Possivelmente não esteja dizendo a verdade». Agora não lhe cabia dúvidas disso, mas se não era a filha de uns camponeses falecidos, quem era em realidade? E... por que tinha castigado a si mesma afastando-se do resto do mundo?
? Milord, ? interrompeu suas divagações o senhor Stone ? o senhor Cooper e o senhor Bennett acabam de chegar.
? Obrigado, Brandon. Saio agora mesmo.
O mordomo se retirou e William respirou profundamente, tentando acalmar a terrível inquietação que o açoitava.
«Mudarão meus sentimentos por ela se descobrir que não é quem diz ser?», perguntou-se enquanto caminhava para a porta. Não necessitou de tempo para responder-se, pensou um não com veemência.
? Meu querido Manners! ? Exclamou Roger ao vê-lo aparecer. Com passo veloz se aproximou do duque e lhe deu um forte abraço. ? Te vejo muito bem, meu amigo.
? O mesmo digo de ti, vilão ? respondeu sorridente.
? Não me diga isso que me rompe o coração ? disse com falsa tristeza.
? Como denominaria você a um amigo que não oferece notícias às pessoas que o apreciam? ? Arqueou as sobrancelhas sem deixar de perder o sorriso.
? Estive em viagem. Parti para a incrível e maravilhosa França. Segundo meu pai, o ar de Londres estava me enlouquecendo e quis mudá-lo ? explicou com zombaria.
? E? ? William seguia com as sobrancelhas elevadas.
? OH, mon ami... Rien n’a changé. Les femmes sont très affectueuses en France et les hommes d’excellents joueurs.(1) Assim por muito que trabalhei em me curar dessas enfermidades, fui incapaz de obtê-lo ? afirmou com uma aparente tristeza.
? Então, depois de tudo, segue sendo o mesmo velho patife de sempre? ? Perguntou o duque sem deixar de rir.
? Muito ao meu pesar, sim ? respondeu com aflição.
? Ham-ham ? pigarreou Federith na entrada.
? Federith! ? William caminhou para ele e o abraçou com força. ? Obrigado por vir. ? Olhou atrás do homem e ao não encontrar o que procurava, perguntou-lhe preocupado: ? E a senhora Cooper?
? Não se encontra bem. A gravidez está sendo mais complicada do que esperávamos ? explicou com serenidade.
? Gravidez? ? Clamou Roger movendo seu corpo para Federith.
? Não sabe? ? Disse William. — Nosso querido Cooper se casou com lady Caroline e logo se converterá em um estimado pai.
? William... ? advertiu-lhe o aludido.
? Federith não eleve suas armas antes de confirmar que a guerra começou. Muito ao meu pesar, este tempo de retiro me tem feito entender que cada um deve assumir suas próprias decisões e outros, por muito que não estejamos de acordo com elas, devemos respeitá-las. Por isso, meu amigo, apóio-te e te apoiarei sempre ? afirmou sem hesitações.
? Bom, ? interveio Roger ? onde está essa concubina cuja honra devemos salvar?
? Não sou a concubina de ninguém, cavalheiro, sou a pupila do duque de Rutland ? sentenciou Beatrice no alto das escadas.
William elevou o olhar para ela no preciso instante que iria soltar uma gargalhada, embora não conseguiu que brotasse de sua boca nem um minúsculo ruído. A deslumbrante mulher o deixou sem fôlego, sem ar nos pulmões e inclusive sem pulso. O vestido se agarrava ao seu torso aumentando voluptuosamente seu seio e enfatizando a diminuta cintura. A claridade do tecido que cobria desde seus ombros até o cotovelo mostrava a aveludada pele feminina. Como nas anteriores ocasiões, seu cabelo estava recolhido para trás, mas desta vez adornado com uns laboriosos desenhos. O duque sorriu sutilmente ao não achar mechas que entorpecessem a visão de seu rosto, nem que incomodassem a moça ao menear a cabeça.
Beatrice desceu as escadas majestosamente, rebolando os quadris com sublime sensualidade. Possivelmente nem ela mesma chegava a alcançar a beleza e o erotismo que emanava, mas ele o captou. William estufou seu peito de orgulho ao apreciar que usava as joias que tinha dado à criada. Tinha duvidado se as aceitaria porque durante os dias anteriores evitou encontrar-se com ele para falar do acontecido. Mas lhe satisfez ver sobre sua cabeça a tiara com a aguamarina, como brilhavam os pequenos diamantes em suas orelhas, a sutileza com que movia o bracelete no pulso e, sobretudo, a graça com que o colar tentava desviar o olhar de qualquer atrevido para o decote. Pensou para si que, sem dúvida, as joias guardadas desde que sua avó faleceu estavam esperando-a para resplandecer de novo. Tentando recuperar a confiança e serenidade que devia manter durante o baile, aproximou-se das escadas, estendeu a mão para que a jovem a tomasse e a dirigiu para onde se encontravam imóveis seus amigos.
? Senhorita Brown, o tagarela é o senhor Bennett e estou seguro que, se deseja seguir respirando ao amanhecer, retirará as inoportunas palavras que comentou sobre você ? asseverou em tom irritado.
? Bien sûr! Je suis très désolé(2) ? respondeu Roger inclinando-se para a moça para beijar-lhe a mão. — Ravi de vous connaître, mademoiselle.(3)
? Moi aussi, monsieur(4) ? replicou Beatrice com um perfeito acento francês.
? Fantastique!(5) Não sabia que nosso duque conhecia o idioma do amor ? disse olhando-o de canto de olho.
? Pois se a memória não ficou transtornada pelo disparo, ? comentou com assombro ? jamais o estudei.
? Uma irmã de meu pai, ? começou a dizer como desculpa ao seu lapso ? ficou viúva e decidiu viver conosco durante uma temporada. Seu marido foi um marinheiro francês e ela teve que aprender a língua.
? OH, que tragédia! ? Interveio Federith até agora em silêncio e atento à situação que observavam seus olhos.
? Senhorita Brown, ele é o senhor Cooper. O único amigo que possuo desde minha infância.
? Encantada de lhe conhecer, senhor. Ouvi falar maravilhas sobre você ? declarou ao mesmo tempo em que lhe oferecia a mão para que a beijasse.
? Que honra! Foi William quem lhe informou? ? Arqueou as sobrancelhas, sorriu com suavidade e olhou seu amigo de esguelha.
? Não, foram os criados. Segundo eles, nosso duque teve dois bons amigos com os quais viveu em Londres. Você, o respeitável senhor Cooper, futuro barão de Sheiton e... ? olhou para Roger para não perder nem um só gesto quando escutasse o que se propunha ? o senhor Bennett, futuro marquês de Riderland e de quem dizem que é um irresponsável, um libertino, um jogador inveterado e a quem culpam da vida inapropriada do nosso duque.
William liberou uma grande gargalhada que foi acompanhada por outra que realizou Federith. Entretanto, Roger não mostrou nenhum tipo de simpatia.
? Deveria me indicar quem lhe informou sobre essas calúnias ? disse mal-humorado. ? Tenho que me bater em duelo por minha honradez.
? A sinceridade dói, não é? ? Comentou jocoso Federith golpeando com suavidade as costas de seu amigo.
? Bom, ? atuou William ? seria conveniente que nos dirigíssemos para algum lugar da casa para falar sobre o tema pelo qual lhes requeri. Logo chegarão os primeiros convidados e eu gostaria de lhes pôr a par do acontecido.
Os amigos assentiram e, colocando-se junto ao duque, os três cavalheiros se dirigiram para a habitação em que o duque se sentia mais seguro: a biblioteca. Beatrice considerou andar atrás dos passos deles, observando as figuras dos três homens que, conforme concluiu, tinham atemorizado aos pais das filhas casadouras e dos maridos ausentes. Não lhe cabia dúvida que o mais alto deles era o duque. Mas a figura dos três era muito semelhante, possuíam umas costas robustas e as pernas muito longas. Entretanto, o cabelo do duque era escuro, o do senhor Cooper loiro e o do senhor Bennett uma mescla de ambos. William, como lhe tinha renomado o senhor Cooper e que até esse momento Beatrice não descobrira, mostrava um olhar escuro e inclusive em algumas ocasiões tão negro que dava pavor. Os olhos de Cooper eram de um verde intenso, assemelhando-se a erva que aparecia em plena primavera. Os do senhor Bennett eram azuis. A moça os comparou com a cor que exibia o céu em um dia sem nuvens, embora duvidasse se a intensidade era similar.
«Três cavalheiros, ? disse para si ? três homens tão extraordinários quanto perigosos».
? Então... ? começou Federith a falar quando Beatrice fechou a porta e se sentou na poltrona contigua a que estava acostumado a ocupar William ? você vivia na suja cabana que nosso amigo possui junto ao rio Wye, é correto? ? A moça assentiu e este começou a perambular com as mãos agarradas atrás das costas. ? Ele a descobriu e por alguma inexplicável razão que nos indicará em breve, deixou-a viver ali. ? A jovem confirmou de novo com um suave movimento de cabeça. ? Ao encontrar-se desamparada, desprotegida e exposta ao terrível perigo de uma manada de lobos que vive no bosque, foi atacada por eles. Ele, estranhamente, ? arqueou as sobrancelhas ? decidiu passear à alvorada por suas terras e a descobriu ferida. Conduziu-a até Haddon, chamou o senhor Wadlow, o doutor veio e a atendeu com rapidez. Depois, justo antes de abandonar este lar, ambos os cavalheiros tiveram um pequeno encontro no qual discutiram sobre o repugnante comportamento de nosso amigo para com a cortesã. Correto?
Beatrice olhou ao duque atônita. Ninguém lhe tinha comentado que ambos os cavalheiros tinham tido a ocasião de discutir os pormenores de sua estadia em Haddon Hall. Tomou ar e abriu a boca para confirmar a narração do senhor Cooper, mas William se adiantou às suas palavras.
? Como pôde comprovar durante todos estes anos, ao correr o sangue de meu pai por minhas veias, ninguém duvida de que sou outro monstro ? esclareceu com serenidade.
? Bem, isso eu sei, mas minha pergunta é... como foi tão insensato de deixá-la abandonada nesse maldito lugar? ? Levantou o tom de sua voz e girando sobre seus calcanhares para enfrentar o duque.
? Eu o pedi ? respondeu rápidamente a moça.
? O que lhe pediu, o que? ? Participou Roger até agora calado e atento.
? Ele me devia um favor e lhe informei que saldaria sua dívida me deixando viver nesse pequeno refúgio ? respondeu elevando seu queixo e com aparente aprumo.
? Mon Dieu!(6) Você é uma inconsequente! Acaso não pensou o que poderia acontecer ao dono dessa cabana se tivesse morrido? ? disse com aborrecimento e aproximando-se da moça com passo firme.
? Roger... acalme-se. ? William ao observar a ira de seu amigo, dirigiu-se para Beatrice, colocou-se em frente a ela e parou a aproximação de seu amigo colocando sua mão no peito. ? Não estamos aqui para julgar as decisões da senhorita Brown, nem que razão a fez atuar dessa forma. Só quero que sua honra se reestabeleça porque ela não é minha prostituta.
? Nem tampouco sua pupila, William! ? Exclamou Bennett sem diminuir seu aborrecimento. ? Não recorda o que te aconteceu na última vez? Esqueceu o que te fez ficar como está? Não, claro que não, e possivelmente a senhorita Brown tampouco ? sorriu maléfico.
? Roger! ? Gritou Federith tentando que deixasse de falar.
? Se por acaso não foi informada desse incidente, minha querida senhorita Brown, ? disse com ironia ? a causa daquele duelo foi o engano insistente de uma esposa que, deitada nos braços do nosso amigo, afirmava em qualquer parte que era viúva.
? Cale-se, Roger! ? Voltou a clamar Federith.
? Eu gostaria que partisse da minha casa ? falou William com dureza.
? Quer que eu parta? Quer que não te proteja? Acaso esqueceu o que significa a amizade? ? Perguntou Roger sem diminuir sua fúria. ? Não, meu amigo. Não vou partir, seguirei ao seu lado como nos velhos tempos, mas desta vez não deixarei que cometa uma imprudência. Se o que deseja é que todo mundo pense ser ela é sua pupila e não sua prostituta, levarei a cabo minha missão e afirmarei com veemência qualquer coisa que me peça.
William se afastou da moça. Antes de dar dois passos para a corda com o qual chamava o senhor Stone, observou a cara de espanto de Beatrice. Estava aterrorizada pela violenta atuação de Roger e pelas ofensivas palavras que tinham emanado de sua boca. Apreciou também umas lágrimas que dissimuladamente tirou do pálido rosto. Com passo decidido se aproximou da corda, puxou com suavidade e, em silêncio e sob o atento olhar de seus amigos, esperou a chegada do mordomo.
? Acompanhe senhorita Brown à sala de jantar. Deve confirmar que os serviços que ofereceremos aos comensais estão em perfeita ordem ? ordenou ao Brandon ao entrar na habitação.
Beatrice levantou o olhar e examinou a dureza de seu semblante durante uns instantes. Havia fúria naquele rosto e os olhos se obscureceram ainda mais. Quis rejeitar a ordem, mas se encontrava tão frágil, desanimada e triste que, sem mediar palavra e com a cabeça encurvada, levantou-se e se dirigiu para o mordomo.
? Acompanhe-me, senhorita Brown. Acredito que a senhora Stone queria lhe pedir um conselho sobre a sobremesa que deveriam oferecer. Segue duvidando se oferece duas bolas ou três de sorvete. ? Falou com calma e, para surpresa de William, com uma ternura imprópria no criado.
Os três cavalheiros observaram a figura aflita da jovem. William apertou sua mandíbula com tanta força que lhe apareceu uma pequena dor de cabeça enquanto Federith meditava aquilo que sua mente de repente lhe mostrava. Roger, embora sentisse lástima pela angústia que mostrava a moça, não fez nada para controlar a irritação que sentia.
? Devemos nos acalmar. ? Federith foi o primeiro em falar depois que a porta se fechou. ? E William, tanto Roger como eu escutaremos com atenção o que esconde com tanto afinco.
O duque caminhou para a chaminé, apoiou o braço sobre a pedra e abaixou a cabeça.
? Amo-a ? disse sufocado. ? Amo Beatrice com todo meu coração. Não sei de onde procede, nem como chegou até minhas terras, mas o que sei é que se ela se afastar do meu lado, morrerei.
? Mon dieu! ? Exclamou Roger aplacando sua ira com rapidez. ? Podia ter começado por aí! ? Caminhou para seu amigo, deu-lhe uma forte palmada nas costas e, quando William girou para ele, deu-lhe um forte abraço.
? Sabia que algum dia encontraria a mulher que te roubaria esse coração gelado ? comentou Federith sorridente e repetindo o afeto carinhoso de Roger. ? Mas tem que pensar com clareza, William. Embora não se importe de onde procede a moça, deve averiguar quem é em realidade.
? Não me importa! ? Exclamou o duque com firmeza.
? Mas deve fazê-lo. Quem sabe que passado pode ocultar uma jovem como ela? ? Federith olhou com atenção seu amigo. Em verdade não sabia quem era a moça por quem se apaixonou.
Ele sim. Tinha-a reconhecido assim que a viu. Apesar de suas mudanças físicas, não ficava nenhuma dúvida de que era a filha do barão de Montblanc. Agora devia sopesar quando era o melhor momento para revelar a identidade da jovem ao seu amigo e como reagiria ao escutar a verdade.
XXII
Beatrice, apesar de seus intentos por aparentar entusiasmo quando a senhora Stone lhe perguntava pelos últimos detalhes, não podia deixar de sentir-se triste. As palavras do senhor Bennett não cessavam de lhe assaltar e, por muito que lhe custasse admiti-lo, tinha razão. Jamais pensou nas consequências que sofreria o duque se ela tivesse morrido. Não só o teriam acusado de assassinato, mas sim o encarcerariam sem duvidá-lo. Aflita pela loucura que cometeu sem pensar, sentou-se em uma das cadeiras que rodeavam a mesa da cozinha.
? O que te acontece, pequena? ? Perguntou Hanna aproximando-se dela por trás e lhe beijando a bochecha.
? Posso lhe fazer uma pergunta? ? Seu fio de voz era tão fraco que a anciã assustada se sentou ao seu lado.
? Todas as que desejar ? respondeu agarrando com força as mãos da jovem.
? O que teria acontecido se o duque não tivesse me encontrado na cabana?
? Quando foi ferida? ? Hanna arqueou as sobrancelhas.
? Não. A primeira vez que me viu, quando o encontrei ferido ? esclareceu.
? Se não o tivesse encontrado, o duque haveria falecido e todos os que habitam nesta casa também ? afirmou sem duvidá-lo. ? Apesar dos intentos que tem feito as pessoas para mostrar que é um ser desumano, os que lhe conhecem desde que saiu das vísceras de sua mãe sabem que não é certo.
? E se eu houvesse falecido depois do ataque? ? Girou-se para a mulher para não perder nenhum detalhe de sua expressão.
? Todos nós teríamos sentido dor por sua desgraça, mas ele... ? levantou-se do assento e caminhou para os fogões.
? Mas ele? ? Insistiu elevando-se também da cadeira e posicionando-se ao seu lado.
? Ele não se recuperaria jamais da perda ? sussurrou.
? Por que, senhora Stone? Pode me dizer por que sabia que me responderia isso? ? Seu tom soava afogado, como se alguém a estivesse estrangulando.
? Isso terá que perguntar a ele. Se for sensato, dir-lhe-á a verdade.
Beatrice a olhou durante uns instantes. Sem desviar o olhar da mesa, ficou calada duvidando sobre se deveria insistir ou não um pouco mais no tema. Quando abriu a boca decidida continuar a conversa que começara, a porta da cozinha se abriu.
? Estava procurando-a ? disse William com uma emoção estranha. ? Acabam de chegar os primeiros convidados e temos que recebê-los adequadamente. ? Dirigiu o olhar para Hanna e lhe falou. ? Senhora Stone, tudo preparado?
? É claro! ? Exclamou com entusiasmo. ? Não haverá uma festa no condado de Derbyshire que alcance a nossa. ? Os olhos da anciã brilhavam de gozo. Não havia dúvida que a mulher adorava ao duque e que, vê-lo feliz depois de tanto tempo sumido na escuridão, fazia-a muito ditosa.
? Nesse caso, ? estendeu o braço para Beatrice ? se for amável em me acompanhar.
A moça assentiu com suavidade, aferrou seu braço ao do homem e juntos saíram da cozinha para a recepção. Hanna o observou em silêncio e rezou pedindo a Deus que o moço não deixasse passar a oportunidade de abrir seu coração.
Até que não dirigiu seus olhos verdes para o exterior da mansão e descobriu as incontáveis carruagens estacionadas no jardim, permaneceu tranquila, sossegada, mas quando foi incapaz de enumerá-los, seu corpo se encheu de pavor e notou um tremorzinho inoportuno nos joelhos. Já acontecia, não havia possibilidade de cancelar nada, só podia respirar e desenhar um enorme sorriso no rosto.
Os convidados subiam pelas escadas saudando com entusiasmo aos casais que se encontravam ao seu passo. Os casais ascendiam agarrados pelos braços enquanto que os jovens, com ou sem idade de propostas conjugais, seguiam-lhes muito de perto. Como era de esperar, os maridos exibiam sóbrios trajes de jaqueta que cobriam com uma enorme capa e estilizadas cartolas, as esposas, ao contrário deles, apresentavam um extenso colorido que tentavam ocultar sob seus casacos. Beatrice observou com atenção os penteados destas: caracóis, coques embelezados por flores, incríveis entrelaçados e inclusive uma ou outra parecia atrever-se a mostrar o típico penteado de sua rainha. De repente, as vozes do público deixaram de escutar-se ao longe. A jovem começou a notar certo sufoco percorrer seu corpo, as mãos escorregavam devido ao suor e precisou tragar várias vezes para fazer desaparecer o nó de saliva que lhe apertava a garganta. Mas então, um pequeno calor que provinha de sua orelha fez com que todos os sufocos desaparecessem. O duque foi quem, ao lhe sussurrar, ofereceu-lhe aquele hálito quente.
? Tranquilize-se, tudo sairá bem e, se algum destes honoráveis assistentes desejarem te magoar, não ficará mais remedeio que enfrentar a minha ira. ? E sem pensá-lo, aproximou sua boca da pálida bochecha feminina e lhe deu um terno beijo.
? Sua Excelência... ? advertiu Brandon com seriedade ? o senhor e a senhora Jenkins.
? Boa tarde, milord ? saudou um homem de avançada idade que apertava com força um monóculo em seu olho esquerdo. ? Obrigado por seu convite. A minha esposa ficou muito feliz ao receber a notícia ? estendeu a mão para afiançar a saudação.
? Boa tarde, senhor Jenkins. Causa-me pena saber que só sua esposa recebeu com agrado a missiva ? disse sem apagar o sorriso de seu rosto.
? Não dê atenção a este resmungão! ? Exclamou rapidamente a senhora Jenkins. ? Ele também se sentiu ditoso. ? A mulher era mais baixa que Beatrice, mas tinha um corpo bastante volumoso. Vestia um rigoroso luto e a renda que adornava seu vestido conseguia cobrir até o pescoço.
? Senhor Jenkins e senhora Jenkins lhes apresento à senhorita Brown, minha pupila.
? É uma honra conhecê-la, senhorita Brown ? disse o ancião ao mesmo tempo em que tomava a mão juvenil para beijá-la. ? Em Rowsley não há outro tema de conversação salvo a sua inesperada aparição.
? Igualmente, senhor. Embora lhe advirta que os rumores proclamados sobre minha permanência em Haddon Hall são falsos. Não sou a prostituta do duque, mas como já bem foi dito, sua pupila ? expôs sem hesitações. Não lhe tinha tremido a voz. Não tinha mostrado a inquietação que sentia no interior. Seus sentimentos pareciam controlados, mas quando William a olhou e sorriu para lhe mostrar sua conformidade, ruborizou-se e um estranho calor começou a emergir do mais profundo de seu ser.
? Falatórios! ? Exclamou a anciã mal-humorada. ? As pessoas estão tão aborrecidas que se dedicam a divulgar mentiras de outros. Não faça conta, senhorita Brown, todo mundo quer lhe machucar porque conseguiu o que ninguém alcançou. ? Aproximou-se de Beatrice e lhe deu um sonoro beijo.
? E o que não conseguiram, senhora Jenkins? ? Perguntou sorridente.
? Seu coração ? sentenciou antes de agarrar o braço de seu marido e caminhar para o lugar que lhe indicava um dos criados.
? Sua Excelência ? o voltou a reclamar Brandon. ? O senhor e a senhora Brace.
? Milord, senhorita Brown ? disse o pároco com cordialidade. Estendeu a mão para o duque para saudá-lo e logo fez o mesmo com a moça.
? Beatrice! ? Exclamou Lídia abraçando a jovem com força. ? Está linda! Parece uma autêntica rainha.
? Boa tarde, Lídia ? respondeu em voz baixa. Ainda se encontrava em estado de choque pelas palavras da atrevida anciã. Como iria ela roubar o coração de um homem que, conforme diziam, não possuía? ? Bem-vinda ? exalou quando a mulher deixou de abraçá-la com tanto ímpeto e pôde tomar um pouco de ar.
? Está bem? ? Arqueou a mulher as sobrancelhas ao vê-la tão pálida.
? Sim, embora tenha que admitir que acabasse ficando muito cansada com a preparação ? expôs.
? Bom, calma, tudo está lindo e... – aproximou-se de seu ouvido para sussurrar ? segundo os novos rumores, toda Rowsley espera conhecer a famosa pupila.
? Não sei se tomo isso como um elogio ou como uma ofensa ? disse Beatrice sorridente.
? Bobagens! Já verá como ao final todos esses arrogantes terminarão comendo em sua mão!
? Lídia, por favor, comporte-se! ? Exclamou o senhor Brace zangado ao escutar a ousadia de sua mulher.
? Sua Excelência ? voltou a interromper Brandon.
? Bom, queira nos desculpar, ? comentou a senhora Brace segurando seu marido e caminhando para onde outro criado lhes conduzia ? deixaremos que outros tenham também seu tempo de recepção.
? O senhor e a senhora Payne ? prosseguiu o mordomo.
Depois de quase uma hora recebendo aos assistentes, por fim William e Beatrice puderam dirigir-se para o salão para acompanhá-los. O duque lhe ofereceu de novo seu braço e ela o aceitou. Com passo firme, fizeram sua entrada. A moça teve que respirar com profundidade antes de acessar o interior. Um incessante desgosto lhe impedia de conseguir manter-se em equilíbrio.
? Relaxe, ? sussurrou-lhe William ? o mais difícil já passou. Agora fica conversar, dar-lhe de comer e dançar.
Beatrice olhou-o de esguelha e sorriu levemente. Apesar de suas constantes palavras de encorajamento, ela não achava a paz que necessitava para poder aguentar as próximas horas. Dirigida pelo duque, introduziram-se no salão onde descobriram que os homens se colocaram no lado esquerdo e as mulheres no direito. A moça liberou o braço do homem e, depois de respirar profundamente, dirigiu-se para o grupo feminino. Esperava que a senhora Brace, a senhora Wadlow e a inesperada senhora Jenkins a ajudassem em qualquer infortúnio.
? Gostaria de nos dar sua opinião? ? Perguntou a esposa do senhor Wood, um comerciante que teve sorte nos afortunados investimentos no estrangeiro.
? Se forem tão amáveis de me indicar do que se trata, tentarei-o ? disse a moça sorridente.
? A opinião da esposa do pároco é que nossos vestidos se verão influenciados satanicamente pela moda europeia. Conforme acredito, se as tendências evoluírem, a visão que a sociedade tem não nos prejudicará, mas sim, ao contrário, nos fortalecerá ? expôs com seriedade.
? Isso é absurdo! ? Exclamou Lídia sufocada. ? Uma mulher deve mostrar respeito, reparo e castidade. Acaso não viu que esses vestidos deixam visíveis os tornozelos?
? Possivelmente algum dia possamos votar ? murmurou com suavidade uma moça que se colocava ao lado da senhora Jenkins.
? É muito jovem para pensar essas coisas – respondeu-lhe com ternura a senhora Wadlow. ? Embora se isso for verdade, seria a primeira em levar minha cédula. Estou cansada de sofrermos pelas decisões dos homens. Se alguma vez uma mulher estiver no poder, muitas das atrocidades que eles fazem sem pensar, seriam desculpadas.
Beatrice olhou para o grupo de cavalheiros. Sorriam e pareciam manter umas conversações divertidas. Ela riu levemente ao imaginar a cara que fariam os maridos após escutar as opiniões das dóceis mulheres. De repente, seus olhos se dirigiram para uns olhos azulados que a observavam com atenção. A moça pensou que o senhor Bennett seguia zangado com ela por ter posto em perigo seu amigo, mas quando esteve a ponto de apartar o olhar, o homem lhe ofereceu uma suave saudação com a cabeça e lhe sorriu.
? Se forem tão amáveis, ? disse o duque em voz alta depois de ser informado por Brandon que a sala de jantar estava preparada – dirijamos-nos para o salão contiguo onde nos servirão um suculento jantar.
Cada marido procurou seu par. As jovens solteiras caminhavam juntas e os moços atrás, em grupo. Pouco a pouco tomaram assento. William, como anfitrião, sentou-se em um extremo da mesa, justo a que havia ao lado das mesas onde os pratos estavam ocultos embaixo de grandes tampas de metal. Beatrice duvidou onde devia colocar-se. Olhava um assento e este era ocupado com rapidez. Olhava para outro e ocorria o mesmo.
? Nosso William não foi um verdadeiro cavalheiro ? comentou Roger atrás dela. ? Venha comigo, acompanharei-a ao seu assento. ? Ofereceu-lhe o braço e ela apoiou sua mão com delicadeza. ? Encontra-se bem? Tratou-a adequadamente esse grupo de galinhas? ? Beatrice esteve a ponto de soltar uma gargalhada ao escutá-lo, mas se conteve e só esboçou um leve sorriso.
? Não imagina o que pensam essas galinhas – sussurrou-lhe divertida. ? Muitas delas lhes deixariam sem essa virilidade que tanto desejam aparentar.
? OH, mon Dieu! Espero que meu coração seja racional e não se apaixone por uma mulher assim.
? Não estou tão segura disso, senhor Bennett. Não sei por que acredito que se apaixonará por uma mulher muito parecida com você ? disse zombadora.
? Será jovem? ? Arqueou as sobrancelhas.
? Se Deus for justo, não ? sentenciou com o mesmo tom jocoso.
Quando Beatrice descobriu a cadeira que devia ocupar, petrificou-se. Esse não era seu lugar, posto que fosse o espaço que devia guardar-se para a futura duquesa e ela não devia invadi-lo. Procurou com o olhar ao William, pedindo-lhe auxílio, mas ele assentiu com a cabeça, dando-lhe permissão para acomodar-se nele.
? Então, senhorita Brown... ? começou a falar o ancião senhor Jenkins ? você é a pupila de lorde Rutland.
? Sim, senhor ? respondeu tentando não derrubar os talheres que segurava nas mãos.
? E, que tal é como professor?
? Excelente! ? Exclamou Irina com rapidez. ? Outro dia tivemos o prazer de vê-lo com nossos próprios olhos e escutá-lo com nossos ouvidos.
? Ah, sim? ? Perguntou o ancião arqueando as sobrancelhas.
? A senhorita Brown nos deleitou com uma formosa valsa de Chopin ? interveio o senhor Wadlow.
? Qual delas? Porque Chopin é famoso pela composição de inumeráveis valsas.
? Primavera ? disse William em tom sério, protetor, dominante. ? A valsa mais formosa que Chopin tem composto em sua famosa vida.
Beatrice o olhou nos olhos e observou a severidade de seu rosto. Como lhe tinha prometido, velava por ela.
? Conforme contam, ? interveio Federith ? essa valsa o compôs para uma jovem pela qual se apaixonou perdidamente. Acredito que estiveram comprometidos em segredo, mas que a família desta anulou o acordo quando descobriram sua enfermidade.
? OH, que dramático! ? Exclamou uma das jovens que se abanou com a mão, enquanto tentava esconder com esse gesto os furtivos olhares para Roger.
? O amor pode ser tão doloroso como formoso – continuou. ? Às vezes, quando você acha que encontrou a pessoa que irá acompanhá-lo no bem e no mal, tudo desaparece sem ser capaz de evitá-lo.
Beatrice o olhou com tristeza. Enquanto não escutou as palavras sobre tal afirmação não meditou sobre isso. Não entendia como podiam existir matrimônios desventurados pelos acordos que realizavam os progenitores assim que a prole nascia. Seus pais se amaram desde crianças e, embora tivessem passado mais de trinta anos desde que se comprometeram e casaram, seguiam amando-se como no primeiro dia.
? Por isso, mon ami... ? disse com rapidez Roger para fazer desaparecer o estado de tristeza que as palavras de seu amigo tinham produzido. ? Jamais haverá uma senhora Bennett por minha parte! ? Alguns cavalheiros sorriram brandamente, umas damas murmuraram sobre a desafortunada revelação e outras, sobretudo as jovens casadouras, emitiram suspiros de pena.
Depois da pequena reunião, os convidados se dispuseram a degustar os pratos que lhes serviam. Beatrice, cada vez que lhe era possível, observava ao duque. Este, em mais de uma ocasião, parecia inquieto ao ter que ser ajudado pelo senhor Stone. A jovem teve o inapropriado desejo de levantar-se e colocar-se ao seu lado para ocultar aquilo que tanto lhe alterava, mas não podia fazê-lo. Ele tinha que mostrar-se tal como era e se isso incluía esconder a mão nas alças de suas jaquetas, que assim fosse. Entretanto, o que o homem não sabia era que, em que pese a acreditar uma pessoa débil e inútil, não o era. Bastava-lhe tão somente o suave movimento da cabeça para demonstrar seu poder. Todos os que lhe rodeavam o consideravam uma pessoa com caráter, julgamento e impetuosidade e Beatrice pôde confirmá-lo ao ver como os cavalheiros, depois de suas exposições, dirigiam as olhadas para o duque esperando que ele assentisse.
Um suave murmúrio começou quando apareceu a sobremesa. Ao final a senhora Stone decidiu colocar sobre uma pequena parte de pudim uma bolinha de sorvete. Isso deixou os convidados maravilhados. Alguns, como indicaram ao levar o primeiro pedaço à boca, nunca tinham provado o sorvete e outros nunca o tinham misturado com pudim. Fosse como fosse, todos ficaram encantados com a inovação, incluída a senhora Brace, que não deixava de sorrir e pôr os olhos em branco em cada colherada.
? É hora do baile ? informou William ao perceber que todo mundo tinha terminado. ? Se não desejarem mover seus pés ao ritmo da música, habilitamos uma sala em que se oferecerá licor e onde poderão apostar tudo o que tiverem nos bolsos.
Depois do anúncio, os convidados se levantaram e se dirigiram para as diferentes salas. Beatrice esperou para tomar a mão de William, mas este não chegou a tempo, o jovem Bennett se aproximou e a ofereceu.
? Espero que não tenha a primeira dança reservada – disse-lhe com um enorme e bonito sorriso.
? Não, por enquanto ninguém me pediu nenhuma peça ? respondeu colocando sua mão sobre seu braço.
? Não será por falta de vontade, minha querida senhorita Brown. ? Caminhou devagar para o salão onde, inclusive antes de entrar, escutava-se a melodiosa música.
? Então, o que você crê que impede a todos esses cavalheiros de dançar comigo? ? Arqueou as sobrancelhas e o olhou zombadora.
? O medo – sussurrou-lhe enquanto a colocava em frente a ele para iniciar a dança.
? Medo de mim? ? Perguntou surpreendida e um tanto desconcertada.
? Não, de William. Imagino que ninguém é tão louco para tocar a sua pupila ? disse levantando a mão e fazendo-a girar.
? Salvo você ? comentou depois da volta.
? Eu jamais a tocaria com perversidade. Por muitas barbaridades que lhe tenham contado sobre mim, respeito e respeitarei as mulheres de quem considero meus irmãos ? declarou antes de lhe segurar a cintura e começar uns pequenos saltos para o lado direito.
A moça foi incapaz de falar depois de escutar o que o senhor Bennett lhe declarava. Ficou tão surpreendida que não pôde ouvir os intérpretes nem confirmar se seus passos tinham sido os adequados. Por que lhe havia dito isso?
«As joias! ? Exclamou para si. ? Foram as joias!». Meditou uma e outra vez sobre a inoportuna decisão de Lorinne para que as exibisse quando, terminou a canção e começou a seguinte.
Despediu-se de Roger com um leve movimento de cabeça, tentou dirigir-se para o grupo de mulheres quando alguém a chamou.
? Conceder-me-ia esta dança? ? Perguntou Federith estendendo a mão direita com a palma para cima.
? É claro. Será uma grande honra ? comentou sorridente.
Federith a conduziu de novo para o centro do salão, saudou-a com uma exagerada reverência e a segurou pela cintura. A peça a dançar era uma valsa.
? Está se divertindo, senhorita Brown?
? Sim. E você? ? O casal deu uma pequena volta sobre eles mesmos e continuaram com suavidade.
? Mais do que pensei ? respondeu esboçando um leve sorriso.
A música continuava tocando. Beatrice acreditou que depois da última afirmação de Federith, este resolveria sua conversação, mas justo quando estava a ponto de acabar, no último giro entre eles, sua boca se aproximou muito ao seu ouvido para lhe perguntar.
? Conhecemo-nos de algum lugar?
? Se tiver vivido longe daqui, acredito que não ? disse tentando dissimular seu sobressalto.
? De onde disse que era? William não fez alusão a isso.
? Imagino que o duque se preocupou com coisas mais importantes como compreender por que sua esposa não lhe acompanha e por que disse aquelas palavras tão tristes no jantar ? indicou sem respirar e pedindo desculpas a Deus por magoar um homem que, com o coração quebrado, explicava a dor que causa amar a uma pessoa que não lhe correspondia.
? Está grávida ? respondeu depois de respirar e fazer restabelecer sua pose.
? Felicidades! ? Exclamou com alegria. ? Estará você muito feliz de converter-se em pai ? continuou falando enquanto Federith a conduzia para o grupo de mulheres.
? Sinto-me muito ditoso de esperar um filho, embora minha esposa esteja passando muito mal. Mal pode mover-se pela casa e se cansa tanto que, como pode imaginar, seria imprudente fazê-la viajar.
? É óbvio.
? Obrigado pelo bate-papo, senhorita Brown.
? Obrigada pela dança, senhor Cooper.
Federith, com o aprumo que lhe caracterizava, dirigiu-se para o grupo de cavalheiros que se encontravam no lado oposto das mulheres. Aproximou-se de William, disse-lhe algo ao ouvido e logo abandonou a habitação. Beatrice sentia seu coração na garganta e notava como suas pernas começavam a cambalear-se. Com rapidez procurou uma cadeira onde sentar-se.
? Encontra-se bem? ? Quis saber a senhora Wadlow preocupada.
? Só cansada. Essas duas danças calorosas me deixaram exausta ? explicou.
Uma vez que recuperou o fôlego, olhou ao duque, que falava com um dos convidados. Beatrice, ao ver como franzia o cenho, tentou recordar quem era o homem que incomodava William com suas palavras, mas não o conseguiu. Brandon tinha anunciado tantos nomes e ela estava tão nervosa que, em algum momento da recepção, ela deixou de prestar atenção.
? Senhorita Brown... ? uma voz estranha para ela apareceu pela sua direita.
? Sim? ? Perguntou arqueando as sobrancelhas e sorrindo.
? Permitiria-me a seguinte dança? ? No olhar do moço Beatrice observou algo estranho. Não conseguia saber o que era, mas não tinha a mesma claridade que a mostrada pelos amigos do duque. ? Se não estiver muito cansada, é claro ? continuou, mas ao estender a mão para ela, evitou qualquer negação.
Contra sua vontade, a moça se levantou e, apoiando sua mão sobre o braço do jovem, retornou ao centro do salão. Todos os casais estavam parados, as mulheres em frente aos homens. O primeiro acorde soou e eles lhes ofereceram as mãos direitas. Elas as agarraram e, depois de três notas seguidas em dó menor, começaram a dança. O moço seguia com os olhos cravados nela. Observando cada detalhe de seu corpo, cada parte de pele que estava sem cobrir. Em uma das breves aproximações que houve na dança, Beatrice escutou como inspirava com força para apanhar o aroma que ela desprendia. Tentou manter o sorriso, a postura, mas era incapaz de aguentar por mais tempo aquelas suarentas palmas pegas ao seu corpo.
Sua mente procurou alguma desculpa coerente para cessar a dança e deixar de sentir aquela repugnante angústia. Não obstante, não achou nenhuma até que elevou o olhar e observou como o duque abandonava a sala e se dirigia para o balcão. Caminhava sereno, reto e saudava seu passo como se nada lhe perturbasse. Entretanto, Beatrice sabia que algo grave tinha ocorrido. Talvez aquele homem tivesse lhe dito algo que lhe provocou tal irritação e ele decidiu sair para tomar um ar.
«Isso!», exclamou a moça para si. Parou-se em seco, olhou ao moço com tristeza.
? Desculpe-me, estou mais cansada do que pensei.
? Posso ajudá-la em algo? Um copo de água, talvez? ? Estendeu sua mão para segurar o pequeno braço e dirigi-la de novo para o lugar onde se encontravam as mulheres.
? Não se incomode. Acredito que o ar fresco da noite me sentará bem ? indicou.
? Como desejar ? respondeu o moço com um sorriso de orelha a orelha ao acreditar que lhe insinuava que se afastassem da multidão.
? Não me acompanhe, posso fazê-lo sozinha. Além disso, como vou retirar da sala um galante com tantas propostas na sala? ? Dirigiu seu olhar para as jovenzinhas e sorriu.
? Elas não me interessam, senhorita Brown ? disse com firmeza e certo mal-estar.
? Pois a mim, você, tampouco. ? Segurou com suavidade o vestido com ambas as mãos, fez uma pequena inclinação e, sem parar para contemplar a irritação que devia expressar o moço, caminhou decidida para o exterior.
Tal como tinha imaginado, a lua cheia brilhava com esplendor. Os campos pareciam como se começasse a amanhecer. Beatrice percorreu com o olhar todo o comprido corrimão. Onde estava? Para que lugar tinha ido? Avançou uns passos e deixou que seus olhos se adaptassem melhor à mudança de luz. De repente sorriu. O duque permanecia de pé no lado esquerdo do balaústre. Mal podia vê-lo com claridade porque se colocou ao final deste. Com segurança, Beatrice caminhou para ele. Quanto mais se aproximava, mais euforia sentia, mais rápido pulsava seu coração, as mãos lhe suavam e voltou a notar aquelas vespas fincando incessantemente seu ferrão no estômago. Freou os passos ao situar-se atrás das costas do homem que parecia não ser consciente de sua presença.
? Não entendo como pode olhar para o chão quando deve admirar a beleza da lua ? falou com um suave fio de voz.
? Senhorita Brown! ? Exclamou assombrado e girando-se para ela. ? O que faz aqui?
? O mesmo queria lhe perguntar. Por que nos abandonou? ? Deu um passo, um só passo, para colocar-se ao seu lado e para que a lua lhe mostrasse o rosto do homem que, sem lugar a dúvidas, amava.
? Precisava tomar o ar fresco da noite ? mentiu. Colocou sua mão direita nas costas e com tom grave disse. ? Não estava dançando com o jovem Rawson?
? Cansei-me com rapidez ? respondeu sem apartar seu olhar do rosto viril. Observou como este voltava a enrugar a testa e apertar os lábios.
? Pois não deveria fatigar-se. Muitos dos cavalheiros convidados me pediram permissão para lhe solicitar uma dança ? continuou com o tom sério, impessoal.
? E o concedeu? ? Perguntou assombrada.
? O que quer que lhes diga? ? Girou-se para ela e franziu ainda mais o cenho. ? Digo-lhes que não?
? Exato! Diga-lhes que deve velar pela saúde de sua pupila e que se me deixarem exausta amanhã serei incapaz de aprender algo.
William a olhou com assombro e soltou uma sonora gargalhada que acompanhou Beatrice. De repente, apartou a mão de suas costas e a dirigiu para a bochecha da moça.
? Deveria partir. Não é apropriado que nos descubram aqui sozinhos. As pessoas poderiam...
? Não gosta de dançar? ? Interrompeu-lhe antes que continuasse dizendo o que ela não queria escutar.
? Eu gostava, mas deixei de fazê-lo. ? Apartou a mão do rosto da moça e a colocou no corrimão.
? Por quê? ? Beatrice se aproximou tanto a ele que pôde notar como a tiara que embelezava seu cabelo tocava o braço do homem.
? Por que crê?
? Está sem dançar desde...? ? Uma imensa tristeza sacudiu o pequeno corpo da moça. Seus olhos verdes se cravaram no rosto do homem. A lua o iluminava e revelava o pesar que sofria. Sem pensar duas vezes, a moça esticou sua mão direita para a alça da jaqueta e a separou, deixando que o braço inerte do duque caísse para o chão.
? Como se atreve...? ? Começou a dizer William zangado.
? Quero minha dança ? sussurrou a moça sem fazer diminuir sua decisão apesar de observar o aborrecimento que mostrava o duque em seu rosto. Segurou a mão esquerda entre a sua, colocou a direita em sua cintura, elevou o olhar e prosseguiu. ? Concede-me isso?
? Beatrice... ? murmurou tão baixo que nem ela mesma pôde escutá-lo com claridade.
De repente começou a soar sua valsa, que havia tocado na tarde com os Wadlow. A jovem pousou sua cabeça no peito viril e deixou que William a dirigisse. Não foi uma dança tão impetuosa como a do senhor Bennett, nem tão precisa como a realizada com o senhor Cooper e, nem muito menos a moça decidiu separar-se do duque com a necessidade que lhe urgiu com o jovem Rawson. Foi tão diferente quanto estranho. A mão esquerda de Beatrice segurou a do duque com tanto ímpeto que desejou que este o sentisse. O queixo de William se apoiava com suavidade sobre seu cabelo e inspirava com suavidade a essência da jovem. Os ligeiros vaivéns fizeram com que ambos os corpos se tocassem sem pudor. Cada nota musical incitava a não se separarem, a não se afastarem um do outro. Beatrice fechou os olhos e deixou que umas lágrimas de emoção banhassem suas bochechas. Não quis faze-las desaparecer enxugando-as no colete dele. Não podia eliminar os sinais que oferecia seu coração ao sentir por fim o que era um amor verdadeiro.
A serenidade tinha desaparecido. Era a primeira vez em sua vida que as pernas lhe tremiam apesar de senti-las fortes. Não podia respirar. Faltava-lhe o ar e não escutava o pulsar de seu coração. Teve que partir da sala para não ser testemunha de como o filho do presunçoso senhor Rawson, pedia permissão para que este dançasse com ela.
«À sua Excelência não importará, porque, conforme apreciei, é a apresentação de sua pupila e não da futura duquesa de Rutland, não é?». E o que lhe tinha respondido? Nada, só franziu o cenho e, graças à rápida intervenção de Roger, não lhe respondeu que se lhe ocorresse tocá-la, matá-lo-ia. E agora, apesar de fugir de Beatrice para que fosse feliz com outra pessoa e não com um ser incapaz de picar a carne e cortá-la ao mesmo tempo, estava dançando com ele. A pequena mulher que não lhe alcançava o ombro, era a única pessoa que tinha insistido em dançar segurando sua inutilidade para apertá-la com os suaves dedos femininos. A única mulher que o tinha cuidado e, em vez de debilitá-lo, elogiava-o, oferecia-lhe o empurrão que necessitava para ser o homem que uma vez foi. William apertou com suavidade o queixo no cabelo da moça para que esta o olhasse. Ela, entendendo seu gesto, elevou com delicadeza o queixo deixando que o homem apreciasse suas lágrimas de emoção.
? Beatrice... Beatrice... ? sussurrou aproximando sua boca das bochechas e beijando o lugar por onde as gotas as tinham molhado.
? William... ? murmurou fechando os olhos.
? Repete meu nome outra vez, suplico-lhe ? aproximou seus lábios dos dela tanto que, com o mínimo movimento, acariciavam-se.
? William, meu querido William... ? ao escutar seu nome da boca da moça, este sentiu um gozo tão imenso que lhe resultou estranho ao mesmo tempo em que formoso.
Fez com que sua boca impactasse com a dela com tanta intensidade como necessidade. Desta vez não começou com uma carícia leve, esperando ser rejeitado a qualquer momento, mas sim a beijou com força, com decisão, com toda a paixão que sentia e que não podia ocultar por mais tempo.
Beatrice foi incapaz de abrir os olhos. A razão disso não era a vergonha que deveria sentir ao ser beijada sem pudor nem reparo, mas sim as pálpebras que lhe pesavam devido à paixão. A queimação de sua virilha fervia e as vespas se liberavam de seu estômago após furá-lo. Sentiu-se ditosa e perturbada ao notar que o membro do duque começava a endurecer. Mas não tinha medo. Estava segura de que se ela parasse, este cessaria também sem pedir explicações ou sem obrigá-la a fazer aquilo que não desejava. De repente surgiu uma estranha frieza em sua boca. Atordoada pelas sensações que lhe causavam ser beijada pelo duque, abriu os olhos e contemplou uns olhos escuros repletos de fogo.
? Quero que saiba que a respeito e que meus beijos para você são incontroláveis ? sussurrou à meia voz devido ao seu estado de excitação.
? Quero que saiba que o respeito e que meus beijos... ? tentou repetir antes que o duque voltasse a beijá-la com aquela ansiedade que lhe mostrava o muito que a desejava.
? Cof, cof! ? Alguém tossiu próximo a eles.
? Roger! ? Exclamou William assombrado. ? O que faz aí? ? Avançou um passo para o homem e cobriu com seu corpo o de Beatrice.
? Vim lhes advertir que as pessoas murmuram sobre onde se encontrarão o tutor e a pupila ? disse reticente. ? Imaginei que ao luzir esta noite uma deliciosa lua cheia, o... tutor teria saído ao balcão para explicar à sua... pupila que essa preciosidade tem quatro fases: minguante, crescente, nova e cheia. Equivoco-me?
? Acompanhe-a ao interior, eu entrarei por aquela janela alí e ninguém pensará se estava com seu tutor vendo a lua ou se recuperando das insistentes garras de um jovenzinho descarado ? resmungou.
? Refere-se ao inofensivo Rawson? ? Arqueou as sobrancelhas e mostrou um amplo sorriso.
? O próprio ? disse William sério.
? Mon amie... ? sussurrou Roger após aproximar sua boca do ouvido de seu amigo. ? Nós fomos mais perigosos que esse jovenzinho inexperiente. Se não recordar mal, ao final conseguíamos elevar as pomposas saias.
William ficou petrificado. Não soube como tomar as palavras de seu amigo. Tragou saliva, girou-se para Beatrice e, apesar da presença de Roger, beijou-a com doçura nos lábios.
? Ele te conduzirá de novo ao salão. Não desejo que as pessoas finalizem um rumor e comecem outro.
? E você? ? Colocou as palmas ao redor do rosto masculino e o olhou aos olhos.
? Quando puser esta mão em seu lugar, farei ato de presença pela entrada principal. Se alguém me perguntar, direi-lhe que meu mordomo requeria minha presença para resolver um tema urgente.
? Mas...
? Allez, mademoiselle(7). Os convidados nos esperam ? estendeu o braço e Beatrice, cabisbaixa, aceitou-o. Devagar, caminharam para a entrada.
William teve que apoiar-se no corrimão para não cair. As palavras de seu amigo tinham lhe causado tamanha debilidade que quase o fizeram ajoelhar-se. Sentia-se um miserável, um canalha por ter feito sofrer os maridos de suas amantes. Agora entendia o padecimento e a vergonha daqueles homens que, depois de descobrir que seu amor não era correspondido, eram humilhados. Agora entendia a razão pela qual ele jamais quis apaixonar-se e oferecer seu coração a uma mulher.
Apartou as lágrimas de seu rosto, caminhou com integridade para a entrada e se dirigiu para a sala onde o licor e as apostas incrementavam a felicidade dos convidados.
XXIII
À manhã seguinte, Beatrice era incapaz de levantar-se, estava exausta do baile e das emoções que viveu nele. Só conseguiu levantar um pouco as pestanas quando Lorinne entrou na habitação e correu as cortinas para que a luz entrasse no interior.
? Boa tarde, que tal se encontra? ? Disse a donzela aproximando-se de sua cama e sentando-se nela.
? Cansada, mais do que acreditei ao me deitar ontem ? comentou sonolenta.
? Pois tem que preparar-se, sua Excelência a espera na biblioteca, deseja conversar com você antes de almoçar – informou-lhe. No rosto da criada se desenhou um sorriso tão enorme que Beatrice a olhou com os olhos entreabertos. ? A festa resultou mais produtiva do que se imaginou, não é?
? Não sei a que se refere ? disse enquanto se sentava sobre o colchão e apartava os lençóis de suas pernas.
? Quero dizer que todo mundo ficou contente. Ninguém pôs queixa alguma e a você viu-se muito feliz. ? Levantou-se e caminhou para o roupeiro para procurar um vestido para a moça. Só ficavam dois por usar: um dourado, que rejeitou sem nem o ver, e um de cor rosa.
? Feliz? ? Levantou-se com rapidez, aproximou-se da bacia e se lavou o rosto.
? Acaso fingia? ? Perguntou surpreendida a moça.
? Não, Lorinne, sentia-me muito feliz, mas tem que compreender que devido aos rumores que se propagaram por Rowsley quis que todo mundo soubesse que não me preocupavam porque não eram certos.
? Bem... ? disse a donzela lhe colocando o vestido escolhido. ? Então, depois de desculpar esse cochicho e de deixar claro que você é a pupila de nosso senhor, o que acontecerá agora?
A pergunta resultou tão dolorosa para Beatrice como um bofetão na cara. As palavras inocentes da moça despertaram-na bruscamente do sonho, aquele que inventou com tanta insistência para outros que terminou por acreditar ela mesma. Como tinha sido tão tola? Como foi tão inconsequente? Para o duque ela era a senhorita Brown não a senhorita Lowell, filha do barão de Montblanc. Para ele, seus pais faleceram e a verdade era que viviam na residência familiar que possuíam nos subúrbios de Londres. Para ele somente era uma camponesa e a realidade era que se tratava da filha ultrajada de um barão...
? Sinto se minhas palavras a ofenderam ? comentou Lorinne com tristeza. ? Não foi minha intenção perturbá-la.
? Não! ? Exclamou a jovem girando-se para ela e exibindo um sorriso. ? Não se sinta culpada de nada, foi sincera e lhe agradeço isso. Tem razão, Lorinne, não tinha pensado no futuro. Estava tão entretida com a festa e em fazer desaparecer esses rumores que tinha esquecido qual é meu verdadeiro lugar neste mundo.
? Mas eu... eu não quero que... ? tentou desculpar-se a compungida moça.
? Calma. Não se preocupe, se tudo sair como espero, logo poderei te responder essa pergunta. ? Deu-lhe um pequeno beijo na bochecha, olhou-se no espelho e, depois de ajeitar o vestido, dirigiu-se para o lugar onde a esperava o duque.
Fazia um magnífico dia ou isso lhe parecia? William não pôde conciliar o sonho. Foi incapaz de fechar os olhos e descansar depois do acontecido com Beatrice. Ela o amava. Não o disse com palavras, mas sim com feitos. Quem, salvo uma mulher apaixonada, pode contemplar uma fealdade como algo belo? Quem, salvo uma mulher que ama a um homem, chora pela emoção que lhe produz um beijo?
O duque caminhou para a janela e contemplou com admiração o exterior de seu lar. Aquele bosque que no passado lhe pareceu o lugar mais tenebroso, já não o era. Para ele, aquelas paragens selvagens eram seus salvadores porque graças a eles, Beatrice estava ao seu lado. De repente sorriu. Recordou a sensação de liberdade que lhe produziu a dança com a moça e como lhe separou a alça, segurou-lhe a mão que tanto se esforçava em ocultar e, sob o amparo de seu corpo, dançaram sem medo. Era sua mulher, disso não tinha a menor dúvida. Fez saber-se aos seus amigos, aos seus irmãos.
«Amo-a, amo a senhorita Brown.» Sim, claro que a amava e ela a ele, mas... que passo devia dar agora?
Em circunstâncias normais teria aparecido na casa dos pais dela e, depois de expor seus propósitos, eles revelariam à filha suas intenções. Entretanto, Beatrice estava sozinha, não tinha ninguém a quem pedir sua mão.
«Tenho que pedir a ela mesma? ? Perguntou-se enquanto caminhava para a porta para receber a jovem. ? Ou possivelmente...».
De repente se lembrou da conversação que a moça manteve com Roger quando lhe respondeu em francês. Se não lhe falhava a memória comentou que tinha uma tia viúva que permaneceu em seu lar durante um tempo.
«Se lhe perguntar onde reside sua tia, ? continuou divagando ? posso viajar até lá e pedir sua mão».
Voltou a sorrir. Quanto mais o meditava, mais loucura lhe parecia, mas disse a si mesmo que se o conseguisse, seria o disparate mais formoso que tinha feito por alguém até o momento.
? Senhor... ? interrompeu Brandon, as divagações com sua presença na sala ? a senhorita Brown está preparada. Deseja recebê-la aqui?
? É claro! ? Exclamou eufórico. Outra vez seu coração deixava o compassado pulsar para converter-se em um infinito galopar de meia dúzia de corcéis.
? Senhorita Brown... ? disse o senhor Stone abrindo ainda mais a porta.
? Bom dia, senhor ? saudou Beatrice com uma pequena reverência.
? Descansou bem? ? Perguntou o duque colocando a mão direita em suas costas e retendo a ânsia de abraçá-la.
? Muito bem, e você?
Brandon fechou a porta e sem mover-se do lugar escutou como o duque caminhava com rapidez para a jovem. Percebeu em seus olhos quando ela apareceu, toda a escuridão desapareceu após vê-la e, embora tentasse dissimular, um enorme sorriso lhe cruzou o rosto. O mordomo suspirou profundamente, sorriu e se dirigiu para a cozinha. Tinha que dar a razão, de novo, à sua esposa. Apesar de lhe dizer uma e outra vez que suas ideias eram desatinadas e absurdas, demonstrava-lhe que, em temas sentimentais, sempre ganhava.
? De verdade conseguiu descansar? ? William agarrava a cintura da jovem com força. Tinha-a beijado já três vezes desde que o mordomo os deixou sozinhos. Mas apesar de saber que eram muitas em tão pouco tempo, não podia deixar de fazê-lo. Tinha sentido tanto sua falta, tinha sentido tanta saudade durante sua breve separação.
? Sim, de verdade. Embora possa lhe assegurar que ainda sigo cansada ? comentou sorridente.
? Se quiser retirar-se para continuar seu repouso, entenderei ? disse com tristeza.
? Já o farei depois de almoçar. ? Elevou-se nas pontas dos pés e voltou a tocar os lábios que tanto prazer lhe oferecia.
? Parece-me uma ideia bastante aceitável... ? Apertou-a com tanto ímpeto ao seu corpo que esta encurvou as costas. Ao serem conscientes das contorções que deviam realizar para desculpar a diferença de altura, ambos riram a gargalhadas.
? Nunca tinha visto tantos livros ? indicou Beatrice ao liberar-se do corpo de William e caminhar para eles. Em sua casa havia muitos livros, mas não tantos como apreciavam seus olhos.
? Imagino... ? disse com pesar o duque ao imaginar que uma jovem tão ávida em cultivar sua sabedoria e intelecto teria sentido falta de não possuir mais fontes de conhecimento ao seu alcance.
? Não se entristeça ? falou com rapidez girando-se para ele. ? Acredito que me interpretou mal. Quis dizer que nunca vi tantos livros juntos ? esboçou uma leve risada. ? Quantos pode haver? Uma centena? Duas, possivelmente? ? Caminhou com lentidão para as grandes estantes e tentou fazer um cálculo aproximado.
? Posso lhe assegurar que, apesar de permanecer nesta estadia quase todo o meu tempo, nunca parei para contá-los. ? Dirigiu seus passos para ela e se colocou atrás de suas costas.
? Qual, de todos estes, é o seu preferido? ? Voltou-se para ele e, de novo, observou um olhar repleto de desejo, de necessidade, de luxúria. Só lhe bastou um leve sorriso para que William voltasse a beijá-la com tanta paixão que, se não a tivesse sugurado pela cintura, teria caído ao chão.
? O conde de Montecristo ? sussurrou após tomar o ar que faltava aos seus pulmões.
? Do que se trata? ? Perguntou interessada. Por muito que tentasse afastar-se da boca do duque, este lhe agarrava com tanto ímpeto que não conseguia separar-se nem a largura de uma linha de costurar.
? Parece-me estranho que uma jovem que fala francês e sabe tocar o piano como uma deusa, não saiba de que história falo ? disse jocoso.
? Não diga bobagens! ? Exclamou ruborizada.
? Se quer saber o que esconde o livro, leia-o. Talvez te faça compreender um pouco mais a escuridão que guardo em meu interior ? murmurou com voz melosa.
? Mostre-me ele ? pediu com euforia.
O duque emitiu um pequeno grunhido pelo desagrado que lhe produzia separar-se dela, mas não podia evitar agradá-la, muito ao seu pesar, liberou o corpo da moça e retornou às estantes. Durante um comprido tempo esteve revisando títulos até que ao final o encontrou.
? Aqui o tem – mostrou-o. ? Vai começar a ler agora? ? Arqueou as sobrancelhas e desenhou um sorriso malicioso.
? Pode pô-lo sobre a mesa, já o farei mais tarde.
Tal como lhe indicou, o homem o pousou sobre a mesa, girou-se para ela para abraçá-la de novo quando bateram na porta.
? Adiante! ? Grunhiu.
? Meu senhor, o almoço está preparado ? informou Brandon timidamente.
? Obrigado. Faça saber que não demoraremos.
Quando os deixou a sós, o homem finalizou aquilo que tinha pensado. Depois de enchê-la de beijos e de abraços, recuperaram a compostura e se dirigiram para o salão.
? Desculpe, milord. ? A voz agitada do mordomo lhes impediu de acessar ao lugar.
? Sim? ? Franziu o cenho e dirigiu ao ancião um olhar fulminante.
? O senhor Cooper e o senhor Bennett acabam de chegar ? informou.
? Faça-os passar. Podem nos acompanhar ao almoço se o desejarem ? disse com voz mais suave.
? Senhor, comentaram-me que desejam falar com você agora e em privado ? explicou com certa alteração.
? Não se preocupe, senhor. Como lhe disse, preciso descansar um pouco mais para recuperar a energia que perdi ontem ? intercedeu Beatrice ao observar a tensão que cresceu depois da notícia. ? Com sua permissão. ? A jovem fez uma pequena reverência e, sem deixar que ele se negasse, subiu as escadas que a conduziam ao seu dormitório. Era o mais apropriado naquele momento. Não só pelo desejo de ambos os cavalheiros em manter um bate-papo privado com o duque, mas sim porque ela também necessitava de tempo para pensar quando seria o melhor momento para abandonar o homem que amava.
Zangado ao mesmo tempo em que intrigado, William retornou à biblioteca para receber a inoportuna visita. Que assunto era tão urgente para que seus amigos perturbassem um momento tão esplêndido? O que teria acontecido para requerer, com tanto afã, um bate-papo privado? Ansioso por averiguar o que acontecia, os escassos segundos que demoraram em aparecer lhe resultaram uma eternidade.
? Boa tarde, William ? disse Federith ao entrar na habitação.
? Mon amie ? saudou Roger.
O duque esteve a ponto de lhes gritar como apareciam sem prévio aviso, mas quando observou os rostos aflitos de ambos, acalmou-se com rapidez.
? O que acontece? ? Inquiriu William olhando primeiro a um e logo ao outro.
? Advirto-te, meu amigo, que eu não sabia nada disto ? esclareceu Roger em tom suave depois de fechar a porta.
? O que acontece? ? Repetiu o homem em tom mais severo.
? Deveria se sentar, William. O que vai escutar pode te debilitar tanto que necessitará de um assento onde se apoiar ? começou a falar Federith ao mesmo tempo em que caminhava para ele.
? A mim? Por quê? O que aconteceu? Trata-se do Lausson? ? Perguntou sem pausa enquanto tomava assento e ficava sem ar.
? Acreditei que estava equivocado, ? continuou falando Cooper ? mas depois de passar a noite em claro pensando sobre isso e recordando, confirmei minhas suspeitas. ? William voltou a olhar ao Roger e logo ao Federith esperando que falassem claramente. ? Recorda à família do barão Montblanc?
? Não com a precisão que tem você ? esclareceu com aborrecimento.
? Recorda o que lhes aconteceu? Recorda a razão pela qual o barão te visitou em Southwark? ? Insistiu. Sabia que aquilo mataria seu amigo, que o levaria a um abismo de tristeza do qual jamais se recuperaria, mas o queria como se o mesmo sangue percorresse suas veias e jamais poderia perdoar-se se não lhe explicasse a verdadeira origem da senhorita Brown.
? A que vem isso agora? ? William franziu o cenho e tentou levantar-se, mas a mão de Roger o impediu.
? Sim, lembra-se ? determinou Federith.
? É óbvio que o faço! Acaso crê que sou tão insensível de não recordar a tragédia dessa família? A jovem terminou suicidando-se! ? Gritou.
? E se te dissesse que não morreu, que segue viva ? continuou falando Cooper.
? O que? ? Os esforços por levantar-se e deixar de escutar coisas que só lhe produziam um profundo e amargo sentimento de culpabilidade desapareceu de repente.
? OH, mon Dieu! Isto é mais duro do que eu pensava! Ama-a, adora-a! Acaso não se dá conta do dano que lhe vai provocar? ? Gritou zangado Roger enfrentando seu amigo e lhe colocando no peito um dedo acusador.
? Deve sabê-lo. Ele deve saber que a senhorita Brown é em realidade a senhorita Lowell, filha do barão de Montblanc.
? Mentira! ? Clamou William elevando-se com rapidez de seu assento. — É mentira! Ela é a filha de uns camponeses que morreram pela cólera!
? O amor te cegou, meu amigo, ? disse com pesar Federith ? e não pôde ver a realidade. Crê que uma camponesa poderia tocar uma peça tão difícil de Chopin sem praticá-la com frequência? Crê que uma camponesa poderia falar um francês daquele nível? Até o Roger se assombrou por sua incrível pronúncia.
William começou a enjoar-se. Tudo ao seu redor dava voltas. Mal podia ver com claridade. Esticou a mão direita para alcançar o assento. Não o conseguiu e, apesar de seus amigos correrem para que não tocasse o chão, seus joelhos impactaram sobre ele.
? Não pode ser verdade... ? sussurrou afogado. ? Está equivocado. Minha Beatrice não é...
? Sinto muito. Juro-te por minha honra que me dói te dizer isto, mas não poderia me considerar teu amigo se não te informasse sobre a verdade da mulher que ama e a quem, estou seguro, deseja lhe pedir em matrimônio ? explicou enquanto ele e Roger lhe ajudavam a sentar-se.
? Como vou pedir em matrimônio uma harpia? A uma mulher com experiência em enganar homens? ? Gritou tão alto que uma terrível dor de cabeça lhe sacudiu.
? Segue pensando que o conde de Rabbitwood disse a verdade? ? Perguntou Federith pousando seu braço sobre o ombro esquerdo de seu amigo. ? Pensa um pouco, William. O que nos contou sobre ela?
? Que veio andando desde algum lugar até encontrar a cabana do bosque ? expôs com voz mais apagada e olhando para o chão. Levou-se a mão direita para a testa e sentiu falta de sua esquerda. Antes, pressionar a cabeça com ambas as mãos acalmava sua dor e sua ansiedade.
? Quando a encontrou? ? Continuou o senhor Cooper com o interrogatório para que seu amigo conseguisse eliminar a fúria e conseguisse pensar com clareza.
? Depois de conhecer a notícia de seu matrimônio, embebedei-me e, em um ato de loucura, cavalguei sobre um dos meus cavalos. Algo o assustou e caí ao chão. No golpe fiquei inconsciente. Pensei que seria a última vez que veria a luz, mas quando despertei, ela me tinha salvado a vida. ? Não podia falar com clareza, asfixiava-se e, preso do desespero que estava vivendo, começou a chorar.
? O que te pediu em troca? ? Interveio Roger surpreso ao descobrir que aquela miúda figura tinha tido a coragem de salvar a um homem que lhe ultrapassava em tamanho e peso.
? Que a deixasse viver na cabana. Que não a incomodasse. Que a deixasse permanecer o resto de seu existir em solidão.
? O que aconteceu depois? ? Agora a pergunta era realizada pelo Federith.
? Tal como me pediu, deixei-a viver sozinha durante um tempo. Mas fui incapaz de deixar de pensar nela. Não me explicava como uma moça tão jovem e tão indefesa tentava se afastar do resto da sociedade. ? William elevou a cabeça e deixou que seus amigos observassem como as lágrimas banhavam seu rosto.
? Entende-o agora? Descobriu por que Beatrice desejava essa forma de vida? ? Apertou-lhe com força o ombro e o duque levantou sua mão direita para pousá-la sobre a de seu amigo.
? Sabe que lhe apoiaremos na decisão que tomar ? Confirmou Roger aproximando-se de seu amigo e imitando ao Federith no outro ombro. ? Diga-nos o que deseja fazer e o faremos ? sentenciou.
William dirigiu o olhar para a janela. Agora o dia não lhe parecia tão lindo, resultava-lhe frio, nublado, tenebroso. Depois de meditar o que desejava fazer, levantou-se com tanta força do assento que ambos os amigos deram uns passos para trás. Caminhou para a porta, abriu-a e começou a gritar.
? Brandon! Brandon!
? Sim, milord? O que ocorre? ? O ancião jogou uma rápida olhada aos convidados e compreendeu que nada bom tinha acontecido durante aquela conversação.
? Prepara um pouco de bagagem, amanhã partiremos para Londres na carruagem do senhor Cooper ? disse com firmeza.
? Uma longa temporada? ? Perguntou o mordomo desconcertado.
? Se tudo sair bem, estaremos de retorno em uma semana. Se sair mal, eu não retornarei nunca ? declarou.
XXIV
Esperou que seus amigos partissem para fazer o que tinha pensado. Pegou cinco folhas de papel, estendeu-as sobre a mesa e escreveu com seu punho e letra suas últimas vontades em cada uma. A primeira iria destinada ao senhor Gibbs, o administrador, informava-lhe do acontecido da aparição da senhorita Lowell e como, por decisão própria, determinou partir a Londres para finalizar o que não fez no passado. Explicou-lhe também os passos que devia seguir se algum de seus familiares, especialmente sua mãe, tentasse anular seu testamento. Não se esqueceu dos quais estavam ao seu serviço, indicando onde deviam instalar-se após seu falecimento e a quantia que lhes pertencia por seus anos de trabalho. Para finalizar insistiu na decisão sobre a mudança de proprietários da residência em Southwark. Esta seria dada de presente ao casal Stone como agradecimento a sua fidelidade, cuidado e por ocupar o lugar que deveriam desempenhar seus pais.
Reescreveu a carta três vezes mais. Uma estava dirigida ao Roger, outra ao Federith e a última para Beatrice. As missivas destinadas aos homens foram colocadas em distintos envelopes e as fechou com seu selo de cera vermelha. A única que ficava por guardar era a de Beatrice. Ele olhou de lado a última folha de papel em branco, respirou fundo e pôs em palavras o que seu coração ditava. Quando terminou, assinou-a, meteu-a em outro envelope, pôs-lhe o selo e a escondeu entre as páginas do livro O conde de Montecristo. Se tudo saísse bem, ela jamais conseguiria lê-la, mas se, pelo contrário, o destino o impedisse de voltar para seu lado, saberia que a amava apesar de descobrir a verdade.
Cabisbaixo, subiu as escadas devagar. Encontrava-se tão triste que, dar um passo e logo o outro, resultou-lhe um trabalho dificílimo. Conforme chegava ao final da escada, sem saber a razão, recordou o momento no qual a moça abriu os olhos e, depois de observá-lo, começou a gritar descontroladamente. Agora sabia a causa de sua alteração: o delírio da febre lhe mostrava de novo a atroz cena da violação. Não dizia a ele que não a tocasse, nem que tivesse piedade, a não ser ao maldito Rabbitwood.
«Morrerá em minhas mãos!», exclamou William formando com sua mão um duro punho e apertando a mandíbula.
? Meu senhor ? começou a dizer Brandon no patamar do corredor. ? Deseja alguma coisa mais?
? Só uma. Sobre a escrivaninha encontrará várias cartas, pega só a destinada ao senhor Gibbs e a faça chegar ao cavalariço. Quero que a tenha esta mesma tarde ? disse com tom cansado. Olhou ao mordomo e, observando que este esperava mais ordens finalizou. ? Isso é tudo. Descansa o resto do dia. A viagem será muito longa.
? Até manhã então, milord.
? Até manhã ? repetiu.
William se dirigiu para seu quarto com a intenção de descansar um momento antes de pedir a Beatrice que o acompanhasse no jantar. Como era de supor, seu ajudante de câmara lhe estava esperando para despi-lo.
? Senhor... ? saudou-lhe.
? Deixe-me em camisa e meias ? indicou com austeridade.
O moço assentiu e começou a despi-lo em silêncio. Quando lhe despojou de todos os objetos menos as assinaladas, despediu-se e o deixou sozinho. William caminhou para o espelho e observou seu reflexo. Não encontrou ao homem que era, nem tampouco o homem que acreditava ser. Seguia sendo um canalha, um ser desprezível. Com uma intensa fúria, começou a atirar tudo o que encontrou ao seu redor. Como tinha sido tão imbecil? Quem se acreditou ser para não escutar as preces de um homem destroçado? Por que afirmou categoricamente que ela mentia? Por que não duvidou disso nem um segundo? Possivelmente a resposta se encontrava em que, naquele momento, ele era tão vilão como o conde.
Envergonhado, William continuou destroçando o que encontrava em seu passo. Nunca tinha desatado uma ira semelhante. Sempre tinha guardado os sentimentos em seu interior com um férreo autocontrole. Até quando falou com Roger e Federith sobre a tristeza que sentiu pela morte da filha do barão, não exibiu mais lástima que a que pôde mostrar se Lala, a cachorrinha de sua mãe, houvesse falecido. Quebrado de dor, exausto pelo esforço, sentou-se, levou-se a mão direita para o rosto e começou a chorar.
Beatrice despertou assustada. Entre sonhos tinha escutado um grande estrondo, mas, ao levantar-se e observar ao seu redor, não achou nada estranho. Com muito sigilo, dirigiu-se para a porta. Depois de abri-la e olhar a um lado e ao outro do corredor tampouco encontrou nada que lhe explicasse seu sobressalto. Pensando que tudo foi produto de sua imaginação, decidiu retornar ao interior do quarto, mas então ouviu com clareza outro ruído que procedia claramente da habitação de William. Sem diminuir o passo, dirigiu-se para lá.
Durante o curto trajeto não parava de pensar que podia ter ocorrido qualquer acidente e que ninguém tinha ido para auxiliá-lo. Presa no pânico, não chamou antes de entrar e, quando descobriu o destroço que mostrava o interior, foi incapaz de avançar. Seu olhar procurou o duque. Mal podia apreciar a grande silhueta deste na penumbra. De repente escutou um suave lamento. Olhou para o lugar de onde procedia a pequena choramingação e achou ao culpado desta. William permanecia sentado sobre a cama e lhe dava as costas, por isso não tinha percebido sua presença. Inclinava-se para diante como se sentisse uma intensa dor em seu estômago.
? William... ? murmurou, mas o homem não a escutou. Seguia sem saber que ela tinha entrado.
Sem pensar em como reagiria o duque quando a descobrisse, caminhou com cuidado. Esquivou-se dos cristais quebrados e dos itens que se encontravam espalhados pelo chão. Não parou de andar até que se colocou em frente a ele.
? William, o que acontece?
? Beatrice! ? Exclamou o homem dando um salto ante o assombro em vê-la. ? O que faz aqui?
? Escutei um ruído e me assustei ? disse com um suave fio de voz.
? Não deveria estar aqui, poderiam ver-te. ? William foi incapaz de apartar o olhar do pequeno corpo imóvel.
A expressão de terror de seu rosto e a confusão de seu olhar lhe indicava que estava preocupada e ele se sentiu ditoso e ao mesmo tempo zangado por lhe provocar tal temor. Respirou fundo ao observar a beleza natural de Beatrice. Era a mesma que tinha mostrado na cabana, salvo que nesses momentos seu corpo não estava coberto de barro. Sua cabeleira, até agora recolhida como ditavam as normas, estendia-se pelas costas ocultando os delicados ombros. A diminuta figura, vestida com uma fina camisola de algodão branco, apreciava-se através do tecido. O homem tragou saliva ao distinguir as auréolas tintas de marrom e a escuridão de seu triângulo feminino. Devia fazer que partisse o antes possível dali. Não podia permanecer dessa forma tão erótica ao seu lado.
? O que aconteceu? Que notícia recebeu para que tivesse reações desta maneira? ? Esticou as mãos e as pousou sobre o entristecido rosto.
? Não deve preocupar-se com isso, Beatrice. ? Sua mão direita pressionou a esquerda da jovem e inclinou a cabeça para esse lado. Reconfortava-lhe tanto sentir a calidez de sua pele que, por um momento, esqueceu a razão de seu aborrecimento.
? Não deveria me preocupar ou não quer que me preocupe? ? Continuou com uma voz aveludada.
? Beatrice... ? sussurrou.
Fechou durante uns instantes os olhos e deixou que as mãos da jovem acariciassem sua barba.
? William... ? falou sem mal mover os lábios. Apoiou os dedos dos pés no chão e se elevou. Queria beijá-lo. Queria tranquilizá-lo com o suave tato de seus lábios.
? Minha pequena Beatrice... ? disse ao mesmo tempo em que baixava sua boca para a dela.
? Meu grande William... ? suas mãos se deslizaram para o cabelo e entrelaçando seus dedos nele, cortou a pequena distância que lhes separava.
A boca dele tocou com suavidade a dela. Não queria um beijo apaixonado, muito menos a tendo perto com uma camisola transparente, porque sabia que assim que sua mão acariciasse o corpo feminino sobre o fino tecido seria incapaz de parar a luxúria que despertaria.
? Só isso? ? Perguntou desconcertada ao perceber como os lábios do duque abandonavam os seus.
? Desejo muito mais, Beatrice. Mais do que pode imaginar, ? esclareceu com aparente firmeza ? mas não farei nada que você não queira fazer.
Beatrice cravou seus olhos nos dele e percebeu a veracidade de suas palavras. Não lhe cabia dúvida que se dissesse não, ele a respeitaria imediatamente. De repente, a jovem notou como seu pêlo se elevava, como seu coração se alterava e como aquela queimação que ardia sob seu ventre aumentava pela sinceridade do homem.
? Quero que me beije ? disse enfim. ? Quero que me toque... Quero ser tua assim como você será meu.
? Está segura? ? Perguntou depois de tragar saliva.
O desejo queimava seu corpo. Podia perceber na garganta o agitado bombeamento de seu coração. Dava-lhe permissão para entrar em seu corpo, e fazê-la sua. Entretanto, embora a ideia de tomá-la parecesse maravilhosa, assaltou-lhe a dúvida. O que aconteceria se não retornasse? O que pensaria a moça se a fazia dele e não voltasse jamais?
? Não o deseja? ? Beatrice, ao observar seu cenho franzido e uma inquietação estranha, apartou suas mãos do rosto do duque e começou a retroceder.
? Se o desejo? ? Agarrou-a pelo braço com força e a atraiu para ele com tanto ímpeto que ambos os rostos ficaram a um escasso palmo. ? Mais que tudo neste mundo!
E voltou a beijá-la, mas desta vez não controlou a paixão nem o ardor que sentia por ela. Sua língua invadiu a boca da jovem com energia e necessidade, antecipando-lhe o que aconteceria a seguir. Sua mão, até agora pega à cintura, começou a lhe acariciar as costas, os ombros, o pescoço... William mordeu com cuidado o lábio inferior, fazendo com que ela abrisse os olhos e o contemplasse. Queria que fosse consciente do homem que tinha ao seu lado, que lhe mostraria o que significava fazer amor.
? É tão bela... ? sussurrou enquanto a palma percorria devagar o pescoço, o decote, os seios. ? Desejo-te tanto... ? beijou-a de novo ao mesmo tempo em que continuava acariciando o tremente corpo feminino.
Beatrice percebeu com clareza cada carícia, cada toque e para onde se dirigia. Não lhe importou. Encontrava-se em um estado de atordoamento tão maravilhoso que não queria que parasse. Esticou de novo as mãos buscando-o. Desta vez suas palmas não apreciaram a sedosidade de seu cabelo, mas sim o quente peito viril. A pequena abertura de sua regata liberava o escuro e encaracolado pêlo do homem. Intrigada por averiguar o tato que teria, enredou seus dedos nele, pareceu-lhe suave e ao mesmo tempo robusto.
? Diga-me que pare, diga-me e me afastarei desta loucura... ? gemeu William ao notar as mãos dela em seu corpo.
? Não... ? murmurou. ? Não quero que pare esta loucura porque eu também a desejo ? respondeu ao mesmo tempo em que suas mãos baixavam e agarravam o objeto para tirar-lhe.
Era a segunda vez que contemplava o torso do duque. A primeira quando limpou a pequena ferida que se fez depois do acidente, mas então não o observou com o desejo nem com a lascívia que sentia nesse momento. Olhou a cicatriz da ferida, mal ficava rastro daquela lesão. Estendeu uma mão e a acariciou com suavidade.
? Ninguém até agora tinha visto... ? disse em voz baixa.
A moça soube com rapidez do que falava. Deteve a carícia que realizava no peito e a dirigiu por volta da mão esquerda que sempre ocultava dos outros e a acariciou. Apesar de ser mais magra que a outra, seguia sendo formosa. Sua pele, seu pêlo... era muito similar à direita. Nada do que observava lhe provocou espanto, ao contrário, sentiu-se ditosa por poder tocar e admirar.
? Siga acariciando-me, William, não pare ? comentou acercando sua boca do torso para beijá-lo.
Mas o homem foi incapaz de fazê-lo. Ao notar os lábios dela jogou a cabeça para trás e soluçou de prazer. Beatrice sorriu ao compreender o que produziam suas carícias. Aí estava, uma inexperiente na arte do amor deixando imóvel a quem, supostamente, era todo um professor. Entretanto, queria que continuasse, que não cessasse de tocá-la. Para despertá-lo desse transe, retirou-se com suavidade, segurou a mão direita e a colocou em seu estômago.
? Toque-me ? sussurrou.
O duque ficou tão pasmado que não soube como atuar. Nunca tinha perdido uma ocasião para despir uma mulher, embora nenhuma fosse Beatrice. Nem tampouco desejava apagar com suas carícias, as aberrações produzidas por outro homem. Mas lhe dava permissão, concedia-lhe a honra de fazê-la sua. Retirou a mão do ventre da jovem para segurar com força a camisola. Foi subindo-a devagar, sem pressa. Admirando a figura feminina. Quando este subiu até seus ombros, William grunhiu zangado. Não podia tirar-lhe. Não sem que lhe custasse mais esforço do que desejava realizar. Embora, para sua surpresa, a moça conduziu as mãos para o objeto e lhe ajudou a despojar-lhe.
? Linda... ? murmurou aproximando sua boca dos seios. ? É muito linda para mim. ? Lambeu e absorveu um mamilo para depois continuar com o outro.
Sua mão percorreu de novo o pescoço, os ombros e os seios nus da moça. Quis seguir o percurso de seu corpo até chegar aos quadris, mas em troca, segurou-a pela mão e a levou até a cama e fez com que se recostasse.
Ela tentou abrir os olhos e averiguar o que fazia William, mas não foi possível, pesavam-lhe tanto que não podia levantar as pestanas.
? Tão cálida, tão excitada, tão minha... ? murmurou o duque ao mesmo tempo em que a beijava com avidez.
Não voltou a falar até que sua boca se colocou sobre o púbis. Surpreendida, Beatrice realizou um suave movimento com as pernas, tentando fecha-las. William elevou seu rosto para olhá-la e lhe sussurrou:
? Não te farei mal, meu amor. Só quero despertar mais desejo para mim. Quer que o faça? Quer que aumente sua necessidade enquanto me alimento de ti?
? Sim... ? ronronou presa da paixão.
? Bem, então me mostre o lugar onde minha fome será saciada.
Beatrice obedeceu e uma estranha cãibra a sacudiu com intensidade e elevou, sem ser consciente disso, os quadris. William jogou o braço sobre estes para que não pudessem elevar-se mais. Voltou a introduzir a cabeça entre as pernas e a beijou com a mesma magnitude e paixão que quando beijava sua boca. Primeiro suave, para que se fosse acostumando às suas carícias e logo... intenso, demolidor!
? William! William! ? Exclamou a jovem entre soluços. ? OH, Meu Deus!
Ouvi-la gemer seu nome foi mais formoso que escutá-la tocar o piano. Resultou-lhe tão prazeiroso que notou como começava a molhar seu próprio calção. Levou-o a um estado tão supremo de desejo que um rastro de gotas brotava de seu sexo. Ele estava preparado para possuí-la, mas... e ela?
? Beatrice, minha amada ? disse ao mesmo tempo em que subia sobre ela. ? Quer que eu continue? Quer que eu entre em ti?
A jovem conseguiu levantar as pestanas para contemplá-lo. Apesar de suas bochechas estarem cobertas com a espessa barba, podia ver um intenso rubor. Estendeu as mãos para o rosto dele e o dirigiu para sua boca lhe deixando bem claro que consentia o passo seguinte.
Sem mais o que perguntar, o homem deixou que o beijasse o tempo que necessitasse. Depois que seus lábios se afastaram, ajoelhou-se em frente aos seus quadris, levou-se a mão para a calça e liberou seu sexo. Devagar, lento e percebendo o ardor de seu corpo, William foi penetrando-a até que ambos os quadris se roçaram. Esticou a mão para a cintura da moça e começou a realizar suaves vaivéns enquanto observava o rosto da jovem. Segundo a intensidade de seus gemidos, invadia-a com mais força, com mais vigor.
? Meu amor! ? Gritou ao sentir os primeiros espamos.
? William! ? Respondeu ela com gemidos ao sentir como seu corpo se convulsionava descontroladamente. ? OH, William!
Um intenso alarido brotou da boca do homem quando chegou ao clímax apesar de ser consciente de que poderiam lhe escutar os criados, mas não queria interromper o gozo que lhe provocou chegar ao orgasmo com a mulher que amava. Não podia fazer desaparecer essas convulsões que agitavam seu corpo com tanta intensidade que caiu sobre ela. Tentou recompor-se enquanto se colocava ao seu lado. Dirigiu sua palma para a bochecha e sorriu feliz ao perceber o fogo que desprendia.
? Amo-te, Beatrice. Amo-te e te amarei sempre ? estendeu sua mão para a cintura e a aproximou mais dele.
? Por que me dá a sensação de que se despede de mim? ? Disse sem olhá-lo.
? Não me despeço, meu amor. Jamais poderia me afastar de ti, ? aproximou sua boca do cabelo da jovem e o beijou ? mas é certo que tenho que partir amanhã para Londres.
? Sabia! ? Exclamou ao mesmo tempo em que se separava do duque, girou-se para ele e apoiou os joelhos no colchão.
? Beatrice, por favor – suplicou-lhe. ? Não vá.
? Por que, William, por que deve partir amanhã? O que lhe disseram Roger e Federith esta tarde para que tenha feito isso? ? Estendeu a mão e fez um semicírculo para assinalar o destroço que havia sobre o chão.
? Trata-se da minha mãe ? disse após meditar com rapidez que desculpa lhe oferecer para que não saísse da habitação correndo.
? A duquesa? ? Elevou as sobrancelhas e retornou devagar ao seu lado para que voltasse a abraçá-la.
? Ela decidiu ignorar certas decisões de meu pai e quer despojar meu irmão de uma propriedade que lhe pertence. ? William apertou a mandíbula e lhe pediu, mentalmente, desculpa por sua mentira.
? Por quê? Por que quereria uma mãe magoar seu filho?
? Porque Lausson se casou com uma criada e ela nunca esteve de acordo com esse enlace. – Beijou-a de novo no cabelo e inspirou seu aroma a sabão. Precisava levar consigo essa lembrança, ela ao seu lado, mostrando sua nudez sem pudor e ele abraçando-a com toda a intensidade que podia.
? E você, o que fará? ? Um suave bocejo brotou atrás da pergunta.
? Pôr ordem e fazer com que a normalidade se restabeleça.
? Demorará em retornar? – Aconchegou tudo o que pôde seu corpo com o do duque.
? Uma semana, no máximo dez dias. ? Segurou o lençol e a cobriu. ? Esperar-me-á, não é? ? Perguntou com certa inquietação.
? Não me moverei daqui até que retorne, prometo-lhe ? afirmou isso sem titubear.
? Beatrice... ? murmurou colocando seu queixo sobre a cabeça desta.
? O que? ? Voltou a bocejar.
? Amo-te.
Não tinha conciliado o sonho. Era incapaz de fazê-lo depois do acontecido. Não só a tinha feito dele, mas sim, preso da paixão, não se preocupou em tomar medidas pertinentes para não a deixar grávida. Amaldiçoou-se uma e outra vez por tal temeridade. Agora, se ela estivesse grávida, não só perderia o prazer de viver o resto de seus anos junto à mulher que amava, mas sim tampouco poderia desfrutar de cuidar e proteger seu filho. Em silêncio saiu da cama, caminhou para a saída e, antes que o ajudante de câmara aparecesse, ele o recebeu no corredor.
? Milord, não deseja que o atenda em seus aposentos? ? Perguntou assombrado.
? Não. Prefiro me vestir na habitação contigua. ? Caminhou devagar para ela.
Aproximadamente uma hora depois, a carruagem de Federith parava aos pés das escadas de Haddon Hall. Brandon abriu a porta e deixou que o duque subisse com orgulho.
? Bonjour... ? disse Roger sonolento. Reclinou-se no assento direito e estendia suas longas pernas para a esquerda, deixando um pequeno espaço que era ocupado por Federith.
? Bom dia – saudou-lhe Cooper. ? Segue querendo enfrentar a morte por ela?
? Jamais estive mais seguro de oferecer minha vida por alguém ? asseverou.
Federith deu uns golpezinhos na parede da carruagem e o cocheiro tocou os cavalos.
XXV
Os raios do sol atravessavam os cristais sem nada que o impedisse. À Beatrice, depois de sentir um estranho calor nas bochechas e despertar, sentiu falta de que William não tivesse deslocado as cortinas. Acaso não sentia o mesmo pudor que ela ao exibir seu corpo nu pela habitação? A pergunta à fez sorrir e percebeu que sua parte íntima começava a palpitar como na noite anterior. Ruborizou-se devido ao desejo incontrolável que despertou ao recordar os beijos, as carícias e os vaivéns do homem ao fazê-la sua.
Com urgência apartou os lençóis e, ajoelhada sobre o colchão, foi procurando com o olhar onde estaria sua camisola.
? OH! ? Exclamou entre risadas ao achá-la detrás da poltrona.
Sem parar de rir ao recordar a cena em que ela se despojou do objeto, aproximou-se dela, vestiu-se e se manteve de pé observando ao seu redor. Agora, com a claridade do dia, podia apreciar melhor o destroço que tinha provocado William. Perguntou-se por que a duquesa castigava seu filho por haver se casado com uma criada. Podia entender que uma mãe desejasse o melhor para seu filho, mas e se nesse matrimônio achava a felicidade? Por que não queria deixá-lo viver em paz? De repente, ao permanecer de pé, algo úmido percorreu o interior de suas pernas e uma vergonha muito grande fez com que sua pele avermelhasse.
? Meu Deus! ? Gritou depois de colocar a mão sobre a boca para que não se escutasse. Enjoada pelo pensamento que lhe rondou pela cabeça, sentou-se na poltrona. ? Não pode ser... ? murmurou. ? Ele terá sabido como controlar...
Para confirmar o que começava a suspeitar, levantou-se devagar a camisola. Suas mãos lhe tremiam, o coração tinha deixado de pulsar e segurou a respiração.
«Não!», pensou aterrorizada. Estava a ponto de ficar a chorar quando escutou uns passos pelo corredor. Sobressaltada, levantou-se da poltrona e se escondeu atrás dela. Não podiam descobri-la no quarto do duque. Ninguém em Haddon Hall podia chegar a imaginar o que tinha acontecido entre ela e ele na noite anterior.
Quando o silêncio voltou a reinar, levantou-se, caminhou para a porta, abriu-a e, depois de comprovar que não havia ninguém pelos arredores, correu para seu dormitório. Uma vez dentro, fechou devagar e se lançou à cama para chorar desconsolada.
? Quer que suba para despertá-la? ? Perguntou Lorinne a Hanna.
Depois dos afazeres diários, decidiram sentar-se ao redor da pequena mesa da cozinha para descansar, mas a criada estava preocupada. Tinha aparecido bem cedo no dormitório da moça e ela não estava. Quando lhe informou do desaparecimento à senhora Stone, a mulher lhe explicou, com uma mentira, que durante a noite a jovem se levantou sonâmbula e, como era perigoso despertá-la, deixaram-na pernoitar na habitação onde se deitou.
? Precisa descansar. Podemos deixá-la dormir um momento mais ? respondeu a mulher levando dois copos de suco para a mesa. ? Embora saltasse o almoço, poderá jantar tudo o que anseie.
? Pobrezinha... ? murmurou Lorinne olhando o copo que a anciã colocou em frente a ela. ? De todos os passados possíveis que imaginei, jamais pensei nesse.
? Eu tampouco... ? suspirou. Seus olhos se encheram de lágrimas. Tentou faze-las desaparecer piscando várias vezes, mas foi em vão.
? Espero que nosso senhor coloque em seu lugar àquele mal nascido! ? Exclamou antes de beber um sorvo do suco. ? A justiça deve cair sobre esse violador!
? Crê de verdade que sua Excelência deixará nas mãos da justiça o acontecido com a senhorita Lowell? ? Perguntou a anciã abaixando a cabeça.
? O que outra coisa pode fazer? Imagino que falará com os pais da senhorita, explicar-lhes-á o ocorrido e farão as pesquisas pertinentes até ver entre as grades o maldito conde, não?
? O duque não aceitará isso ? afirmou a anciã com pesar.
? Então, o que fará? ? Inquiriu atemorizada.
? O único que pode fazer um homem apaixonado ? assegurou.
? Santo céu! Não será capaz de...! Morrerá! ? Exclamou a donzela após levar uma mão para seu peito.
Beatrice abriu seus olhos quando um estranho rugido brotou de seu estômago. Tinha muita fome porque não tinha comido nada na noite da festa, mas, ante a possibilidade de estar grávida, não desejava sair da habitação. Acreditava que se permanecesse ali o tempo suficiente, terminaria despertando de um estranho sonho. Apesar de seus intentos por ficar no dormitório, os rugidos se fizeram tão intensos e constantes que se deu por vencida. Levantou-se da cama, retirou as cortinas para apreciar o dia e ficou atônita quando percebeu que o sol estava se escondendo. Que hora seria? Quanto tinha dormido?
Desconcertada e ao mesmo tempo inquieta, dirigiu-se para o vestidor e agarrou o único vestido que ficava sem pôr. Lorinne não gostava da cor dourada, por isso não o escolheu com antecedência, entretanto, pareceu-lhe formoso. As dobras na saia terminavam com uma elaborada renda cinzenta, o torso era tão suave e firme que não necessitava espartilho para aumentar seu seio, as mangas cobriam o braço por completo e ao final, justo nas costuras dos pulsos, a mesma renda o embelezava. Depois de vestir-se, olhou-se no espelho, ela mesma se recolheu o cabelo em um tenso coque. Suspirou para encontrar serenidade e abandonou a sala.
Resultou-lhe estranho não ver William ao final das escadas. Sua mente lhe fez pensar que estava ali, com suas mãos nas costas, olhando para a entrada sem ser consciente de sua presença. Ela recordava a grandiosidade de seu porte, a elegante figura, o olhar e o sorriso que lhe oferecia quando a observava aproximar-se. Teve que respirar com profundidade para não se debilitar de novo. Seus sentimentos para com o duque tinham mudado muito. Já não albergava ódio ou rejeição para com ele. Agora o necessitava ao seu lado mais que nunca.
Com pesar foi descendo as escadas muito devagar. Justo no momento que chegou ao hall, escutou uma conversação entre mulheres. Eram Hanna e Lorinne, ambas se encontravam na cozinha. Sem perder mais tempo, acelerou seu passo e se dirigiu para elas.
? Moça! ? Exclamou Hanna ao ver Beatrice parada na porta. Estava pálida, abatida. ? Vêem, sente-se. ? Caminhou para ela e a abraçou com força. ? Tem que estar morta de fome, não é?
? Sim, senhora Stone. Agora mesmo comeria uma vaca inteira ? disse com um leve sorriso.
? Pois vaca não tenho preparada, mas com certeza um bom caldo e um bife com verduras lhe saciarão o apetite. ? Conduziu-a até a cadeira, apartou-a e deixou que se sentasse.
? Necessita que lhe ajude em algo? ? Perguntou Lorinne sem poder fazer desaparecer o espanto de seu rosto.
? Possivelmente mais tarde, Lorinne. Virá-me bem um momento de companhia ? respondeu com suavidade.
Antes de poder terminar a frase, Hanna lhe tinha colocado sobre a mesa a terrina de sopa, os talheres e um copo de vinho. Sem ser capaz de continuar falando, Beatrice tomou com rapidez o caldo quente. Este começou a lhe esquentar o estômago e inclusive todo o corpo. Continuou com o segundo prato e não começou a articular palavra até que tomou o vinho.
? Sabem, não é? ? Quis saber se elas tinham descoberto onde dormiu na noite passada.
? Claro, aqui nada se oculta ? respondeu Lorinne sentando-se ao seu lado.
? Mas o duque resolverá logo o tema com a duquesa e retornará ao seu lar ? interveio a anciã antes que a conversação tomasse outro tema.
? Não entendo como uma mãe pode fazer tanto dano ? assinalou Beatrice com uma aparente aflição. Entretanto, em seu interior a alegria alcançava o nível mais alto. Ninguém tinha descoberto seu segredo.
? No fundo não é má ? respondeu Hanna. ? É uma mulher com princípios sociais muito acentuados. Os pais dela foram bastante estritos em sua educação e isso não se elimina com facilidade.
A donzela olhava a uma e à outra sem entender do que falavam. Todos os criados sabiam a razão pela qual o duque partira a Londres e pensou que ela, ao ser o principal motivo, saberia a verdade, mas conforme estava descobrindo, o amo a seguia protegendo apesar de estar longe.
? Ahh..., mas querer castigar seu filho dessa maneira ? comentou com pena.
? Lausson tem caráter e saberá como atuar ? afirmou a anciã.
? E se pode solucionar ele mesmo o problema, por que requer a presença do duque? ? Arqueou as sobrancelhas e cravou os olhos na mulher.
? Ele ostenta o título e deve colocar ordem ? respondeu Hanna retirando os pratos vazios. ? E você deveria descansar um pouco mais. Vi fantasmas com mais cor!
Beatrice assentiu devagar. Levantou-se de seu assento e caminhou para a porta. Lorinne fazia o mesmo. Acreditando que a necessitaria caminhou atrás dela.
? Vou descansar na biblioteca. Possivelmente leia um pouco. Está o fogo aceso?
? Sim. Faz umas horas que um dos criados o acendeu – informou-lhe a senhora Stone sem apartar a vista da jovem.
? Não precisa me acompanhe, Lorinne. Se não se importar, desejo ficar sozinha ? disse antes de abrir a porta e dirigir-se para a biblioteca.
O aroma de William se estendia pela pequena sala. Podia fechar os olhos e sentir sua presença sem dificuldade. Avançou devagar para a poltrona no qual estava acostumado a sentar-se e a acariciou com delicadeza.
«Por quê? Por que não posso te apartar de meus pensamentos? Por que sinto falta de sua presença?», perguntava-se sem cessar enquanto se afastava da poltrona.
Perambulou pelo interior durante um momento. Perguntava-se uma e outra vez a razão pela qual tinha mudado seus planos de fuga. Sem saber a causa, levou suas mãos para o ventre e o apalpou com suavidade. Se de verdade estivesse grávida, se de verdade esperasse um filho do duque, ele decidiria casar-se com ela e cedo ou tarde descobriria a verdade.
«Mas se parto e tenho seu filho em minhas vísceras, que vida poderei lhe oferecer?».
Desconsolada, fez com que seus passos a conduzissem para a escrivaninha e quase rompeu a chorar quando observou o livro preferido do duque. Esticou a mão para ele e deixou que suas gemas acariciassem a capa. «Se quer saber o que esconde o livro, leia-o. Talvez te faça compreender um pouco mais a escuridão que guardo em meu interior». Recordou com exatidão as palavras que William mencionou ao lhe haver perguntado sobre a trama que ocultavam as folhas. Queria saber a verdade do homem que amava? Queria compreendê-lo? A resposta foi um enorme sim.
Sorridente e com um estímulo para esperar a ansiada volta do duque, Beatrice agarrou o livro com tanto ímpeto que, assombrada, descobriu que algo caía ao chão e se escondia sob a mesa. Abaixou-se para pegá-lo e quando leu seu nome no envelope, as mãos lhe tremeram tanto que o papel não parava de sacudir-se.
Com estupidez, olhou o reverso e ficou gelada ao ver o selo do duque. Agitada, caminhou para a poltrona, sentou-se, apoiou a carta sobre seus joelhos e começou a abri-la. Em seu interior encontrou duas folhas.
“Para minha querida Beatrice, a mulher que amo com todo meu coração.
Se estiver lendo esta missiva é porque, muito ao meu pesar, não consegui finalizar a tarefa que me levou até Londres, mas não se sinta culpada, era meu dever e como tal, terei morrido feliz. Quero que saiba que te amo e que o breve tempo que passamos juntos desfrutei com intensidade. Jamais pensei que uma mulher me roubaria o coração, mas você o fez. Acredito que o conseguiu no dia em que abri os olhos e encontrei-a ao meu lado, cuidando-me, olhando minha fealdade com preocupação. Nesse momento, uma estranha emoção que não soube definir até que permaneceu ao meu lado brotou sem que eu pudesse evitá-lo. Não sei se o sentimento é mútuo. Tenho a esperança de que seja assim. Comecei a acreditar quando te dava o primeiro beijo e não me rejeitou. Quando te olhava e não apartava seus olhos verdes dos meus. Quando seu corpo se debilitava entre meus braços. Se minhas divagações não forem corretas, peço-te mil desculpas.
Como meu amor é real, decidi fazer justiça e arrumar o passado. Não sinta piedade por mim, eu não a tenho. Não se pode ter tal caridade a um ser desprezível, uma pessoa que não resolveu um tema tão horrendo por ser vaidoso. Mas retificar é de sábios e eu, embora não o seja, quero desculpar meu engano. Recordará a conversação que mantive com Roger e Federith. Bem, eles sabiam quem você era. Perdoe-me por não me haver dado conta de sua verdadeira identidade, apenas me fixei em ti. Agora me arrependo disso. Possivelmente, se o tivesse feito, nada daquilo te teria acontecido.
Não chore, meu amor. Sei que o está fazendo e me entristece saber que suas lágrimas percorrem seu belo rosto por minha culpa. Quero que saiba que não parti de seu lado porque não desejo permanecer contigo o resto da minha vida. Não é assim. Afastei-me de ti porque quero fazer aquele bastardo pagar todo o dano que te fez. Não. Não pude esquecer isso e viver como se nada daquilo tivesse acontecido. Ele te desonrou, humilhou-te e te fez abandonar seu lar para viver as penúrias às quais foi exposta.
Tenho que restabelecer sua honra. Tenho que recuperar seu posto na sociedade. E é meu dever fazer justiça à mulher que amo. Por último, quero que saiba, que embora não volte a te beijar nem te abraçar, estarei ao seu lado protegendo-a como tantas vezes te jurei, quando jazia ferida gravemente em meu quarto. Por isso, tem outra carta. É uma réplica de meu próprio punho e letra. Duas estão em posse dos únicos amigos que tive e a outra a tem o senhor Gibbs, meu administrador. Quero te demonstrar o muito que te quero e quão afortunado fui ao seu lado. Desejo que saiba, que embora tenha morrido no duelo, tê-lo-ei feito feliz porque meus últimos pensamentos serão para ti.
Amo-te e te amarei sempre.
William.”
A carta escorregou de suas mãos sem que ela percebesse enquanto sua mente se paralisava, até o ponto de não ser capaz de pensar com clareza ou emitir um gemido. Sentia as lágrimas lhe queimar a pele e seu coração romper-se como o cristal e o único que atinou a pensar era que elas deviam sabê-lo. Não havia nada em Haddon Hall que elas não soubessem.
? Senhora Stone! Senhora Stone! ? Gritou com força. Levantou-se de seu assento, inclinou-se para segurar a carta e não teve forças para levantar-se de novo. ? Senhora Stone!
? O que acontece? ? Perguntou a anciã depois de abrir a porta com tanta impetuosidade que golpeou a parede.
? Sabia ? disse apertando os dentes e olhando ao chão. ? Todos sabiam!
? Minha querida menina... ? murmurou sem mover-se da entrada. Segurou-se as mãos e controlou o desejo de correr para ela para abraçá-la.
? Todos sabiam! Todos! ? Gritou com voz rouca. ? E ninguém foi capaz de freá-lo ? chorou com ferocidade. ? Ninguém!
? Ninguém pode ir contra a vontade de seu senhor... ? sussurrou a mulher em meio ao seu pranto.
? Maldita seja a honra! Maldita seja a dignidade! Acaso não entendem que ele morrerá? ? Clamou tão forte que notou como se danificavam suas cordas vocais. ? Morrerá!
? Não se pode fazer nada... ? respondeu a anciã.
? Não se pode fazer nada?! ? Repetiu com tanta ira que seu corpo se sacudiu. ? Se Deus é misericordioso, estarei gerando um filho do duque e você me diz que... não se pode fazer nada para impedir que o matem!
? OH, santo Deus! ? Exclamou Hanna levando as mãos para o rosto.
? É claro que se pode tentar fazer algo. ? A voz serena de Lorinne surgiu atrás da anciã. ? Sua Excelência partiu na carruagem do senhor Cooper e deixou a sua nas cavalariças. Mathias poderia prepará-lo e nos conduzir até Londres ? sugeriu a criada.
? Bobagens! ? Gritou Hanna. ? Como pretende que a senhorita Lowell parta daqui?
? Preparem ? ordenou Beatrice. Aquela opção lhe pareceu à única alternativa possível.
? Senhorita... ? murmurou Hanna.
? Diga ao Mathias que partiremos nesta mesma noite. Se não descansarmos, poderemos chegar a Londres a tempo para impedir esta loucura.
? É claro! ? Respondeu Lorinne antes de pôr-se a correr.
? É uma loucura, pequena ? indicou a anciã imóvel.
? O que faria você para salvar a vida do homem que ama e possível pai de seu filho?
Sem nada mais que acrescentar, Beatrice saiu da biblioteca e se dirigiu ao seu dormitório. Não tinha muito que preparar, mas a intimidade de seu quarto lhe viria bem para repensar sobre tudo o que tinha acontecido.
XXVI
? Que horas são? ? William apoiou a cabeça nas paredes almofadadas da carruagem enquanto observava pela janela como uma tênue chuva caía sem cessar. Tinha chegado a Londres, à cidade sem sol, ao ambiente úmido, à frieza que desprendiam as edificações.
? É a hora do chá ? respondeu Federith depois de olhar seu relógio de bolso.
? Qual é seu plano? Percorrer as ruas em sua busca? ? Perguntou Roger, que tinha se acostumado a estirar as pernas sobre o assento de frente.
? Primeiro tenho o dever de falar com seus pais. Precisam saber que sua filha ainda vive e que durante todo este tempo esteve sob meu cuidado ? esclareceu com serenidade.
? E logo lhes pedirá perdão? Ou lhes informará que está apaixonado por sua filha e que morrerá por esse amor? ? Questionou Federith zangado.
? O barão deve conhecer a verdade ? confirmou William com o cenho franzido.
? Mon dieu! C’est très romantique!(8) Um homem que luta pelo amor de sua futura esposa pondo sua própria vida em perigo. Se os barões não lhe derem seu consentimento para se casar com ela, perderam o julgamento ? assegurou Roger com aparente diversão. Baixou os pés, olhou ao duque de lado e bateu várias vezes a coxa esquerda para acalmar a dor que tentava ocultar.
? Quero que me faça um favor ? expôs o duque olhando a quem tocava sua perna. ? Deve averiguar onde podemos encontrar ao Rabbitwood.
? Onde crê que estará um homem inocente e respeitoso como ele numa sexta-feira à tarde? ? Argumentou ao mesmo tempo em que arqueava as sobrancelhas. Ao ver que William estava tão absorto em seus pensamentos que não lhe tinha entendido exclamou: ? No clube! Que melhor lugar para desfrutar de um bom jogo, bom uísque e a aparição de maridos endemoninhados?
? Averigua-o ? disse sem prestar atenção às zombarias de Roger. ? Se estiver certo, depois da minha visita aos Montblanc, dirigirei-me para lá e lhe reclamarei meu duelo ? indicou antes de olhar de novo as ruas e refletir o que estaria fazendo Beatrice naqueles momentos.
Embora a senhora Stone lhe prometesse que a teria muito entretida lhe ensinando a cozinhar, não estava muito seguro disso. Suspeitava que a jovem em qualquer momento abandonasse aqueles trabalhos e inventaria outras novas. Desenhou um pequeno sorriso ao recordar a pose que punha quando se zangava, aquelas dobras divertidas que lhe apareciam na testa, àqueles lábios apertados como se fosse uma menina travessa e sem esquecer suas mãos na cintura para acentuar seu aborrecimento. Sentia falta dela. Apesar de ter passado tão só uns dias afastado dela, sentia saudades mais do que supunha. Imaginou-a de novo em sua cama e disse que jamais tinha visto um anjo dormir com tanta tranquilidade.
Uma imensa angústia lhe percorreu o peito. Não voltaria a vê-la. Não voltaria a beijar aqueles lábios apertados nem sentiria sua pele ardente depois de ser amada. Mas deveria fazer o correto. Tinha que liberá-la de seu passado e deixá-la retornar à vida que abandonou.
? Não pensou em deixar nas mãos da justiça o incidente?
A intervenção de Federith rompeu o estranho silêncio que se produziu entre os três.
Ninguém até aquele momento se atreveu a lhe oferecer essa alternativa, mas para Cooper, William era seu irmão e por isso queria que não pusesse em perigo sua vida. No passado salvou-se estando em plenas faculdades, mas agora, com uma mão imprestável e sem haver tocado em uma arma desde a última vez, suas possibilidades de sobreviver eram escassas.
? Justiça? ? Inquiriu o duque apartando o olhar da janela e dirigindo-a ao seu amigo. ? Diz-o a sério? Acaso não recorda minha imparcialidade quando o barão veio à minha casa rogando por esclarecer o caso de sua filha?
? Calma, cavalheiros ? interrompeu Roger para tranquilizar seus amigos. Não queria que a alteração que viviam nesses instantes produzisse uma disputa tendo em conta que William estava a ponto de enfrentar-se. ? Federith, acaso não ficou clara sua decisão antes de partir? William é um homem apaixonado e é lógico que queira resolver o tema com venerabilidade.
? Está louco? Por acaso essa viagem à França perturbou sua mente? ? Respondeu o aludido. ? Pode morrer! Entende-me? Morrer!
? E morrerei feliz sabendo que cumpri com meu dever ? pronunciou William antes de inundar-se em outro comprido silêncio.
Quando escutaram a voz do cocheiro fazendo parar aos cavalos, os três se olharam e, sem dizer nenhuma palavra, assentiram. O primeiro em sair foi Federith. Uma vez que pisou no chão se arrumou a capa, colocou-se o chapéu e deu uns passos adiante para que os outros saíssem com facilidade. Seguiu-lhe William, que foi atendido por Brandon antes que seus pés abandonassem a pequena escada metalizada. Finalmente apareceu Roger. Sua atitude despreocupada chamou a atenção de seus amigos. Ao descobrir o olhar que ambos lhe ofereciam sorriu e disse:
? Se me desculparem, tenho que ir atrás de um vilão. Conforme dizem, os que são da mesma índole se encontram com facilidade.
? Não quis expressar isso ao te pedir que procurasse... ? começou a dizer William.
? Não o disse você, digo-o eu. Enfim, ver-nos-emo dentro de uma hora. Se quando terminarem não me acharem no interior da carruagem, imagina onde me encontrarão. ? Estendeu sua capa pelos ombros, colocou-se o chapéu e se dirigiu para o clube de cavalheiros Reform.
Com o mesmo ritmo ao andar, os dois amigos caminharam para a porta da residência do barão Montblanc. Era uma pequena casa de duas plantas com um jardim ao seu redor. A William pareceu um lar muito singelo para um barão, mas ao momento recordou que Federith, na noite antes do duelo e na conversação que mantiveram sobre Beatrice, explicou que a família Lowell mal passava dois meses ao ano nesse lugar. Então, justo nesse momento sopesou algo que não tinha tido em conta durante a viagem. Seria a época em que eles desfrutavam de sua vida em Londres? Rezando para que fosse assim e que nessa mesma noite terminasse seu calvário, adiantou-se a Federith, esticou a mão para a aldrava de bronze e a golpeou três vezes. Imediatamente, a porta se abriu e lhes recebeu um criado mais idoso que Brandon.
? Boa tarde, cavalheiros – saudou-lhes. ? O que desejam?
? Boa tarde, sou o duque de Rutland e o cavalheiro que me acompanha é lorde Cooper. Pode perguntar ao barão se é tão amável de nos conceder uma entrevista?
? Sua Excelência... ? disse o criado assombrado. Fez uma reverência e lhes cedeu o passo para o interior da moradia. ? Se esperarem uns instantes, informarei ao barão.
? É claro. ? William ofereceu o chapéu e a capa a Brandon enquanto observava com curiosidade o lugar onde tinha vivido sua amada Beatrice. Estava a ponto de comentar com Federith a calidez que desprendia um lugar tão singelo quando uma porta se abriu e apareceu o mordomo.
? O barão e a baronesa lhes receberão na saleta – informou-lhes.
Federith tirou a capa e o chapéu para oferecer-lhe ao criado. Logo colocou sua mão esquerda sobre o ombro de William e o apertou.
? Vamos...
Com passo firme ambos entraram na habitação. Igual ao saguão, a sala era um lugar com móveis e equipamento muito singelos. Mas William não se centrou no mobiliário, mas sim na atitude carinhosa com a qual o casal se olhou antes que ele desse dois passos para o interior. Esse era o olhar que queria ver o resto de sua vida no rosto de Beatrice, uma mescla de amor e ternura.
? Boa tarde. Minha esposa e eu estamos agradecidos por sua presença em nosso humilde lar ? esclareceu. A baronesa se levantou da poltrona e fez uma pequena reverência, o barão se aproximou de ambos e lhes estendeu a mão. ? Se forem tão amáveis de tomar assento.
? Se não lhe importar, ficarei de pé ? indicou William com voz serena. Olhou de esguelha à baronesa e achou uma grande semelhança com sua amada Beatrice. Ambas as mulheres tinham o cabelo escuro, uma figura pequena e os olhos mais verdes que jamais tinha contemplado.
? Como desejar ? respondeu inquieto o barão.
? Dispunhamo-nos a tomar o chá, querem nos acompanhar? ? Perguntou Elisabeth com nervosismo.
A presença do homem que tinha rejeitado de forma categórica a inocência de sua filha não lhe resultava grata, mas seu marido a chamou à ordem quando se negou a recebê-lo. Assim em quão único pensava era que motivo lhe tinha conduzido até eles e quando partiria.
? Não, obrigado ? respondeu Federith ao ver que seu amigo não respondia.
? Bom, milord, a que se deve sua visita? ? Perguntou o senhor Lowell.
? Em primeiro lugar, quero lhes pedir perdão por não ter atendido seus rogos no caso de sua filha ? começou a explicar após respirar profundamente. ? Comportei-me como um vilão, um ser cruel, um miserável...
? Obrigada por suas palavras, ? interrompeu-lhe a baronesa ? mas sua desculpa chega um ano tarde.
? Elisabeth! ? Recriminou-lhe o barão.
? Tem você toda a razão, mas lhe rogo que me escute ? prosseguiu o duque enquanto confirmava que, não só tinha herdado seu físico, mas sim também seu temperamento. ? A senhorita Lowell está viva e durante este tempo viveu sob meus cuidados.
? Como diz? ? O barão, desconcertado ao escutar as palavras sobre sua querida filha, estendeu a mão para sua mulher. Ela se levantou com rapidez, segurou-lhe para que não caísse e o conduziu até a poltrona.
? Faz aproximadamente quatro meses tive um grave acidente em minha propriedade de Derbyshire. Uma jovem que se fazia chamar Beatrice Brown foi quem me salvou a vida. A moça vivia no refúgio de caça que possuo junto ao rio Wye e como pagamento à sua piedade, rogou-me que a deixasse viver ali. Não lhe neguei isso e mantive minha promessa até que foi atacada por uma manada de lobos. Depois de encontrá-la à beira da morte, decidi levá-la para minha casa até que sarasse. Com o tempo, e após conhecê-la, meus sentimentos para com ela foram... mudando. ? Tentou manter aquela calma que tinha tido até o momento. Entretanto, agora vinha a parte mais dura para ele, mostrar suas emoções aos outros.
? Está nos dizendo que manteve sob seu teto a nossa filha e que não foi capaz de nos informar até agora? ? Elevou sua voz a baronesa.
? Ele não sabia quem era ela, senhora ? interveio Federith. ? O duque não a reconheceu e não tinha motivos para duvidar sobre sua identidade. Fui eu quem lhe informou do verdadeiro nome da jovem.
? Onde está minha filha? ? Perguntou o barão vigorosamente, segurou a mão de sua esposa e, graças à sua ajuda, pôde levantar-se de novo.
? Em Haddon Hall ? respondeu William.
? O que faz você aqui e minha filha lá? ? Grunhiu dando uns passos para o duque.
? Não queria que ela sofresse e acreditei que devia mantê-la à margem disto. Além disso, Beatrice não sabe o verdadeiro motivo pelo qual voltei para Londres.
? E qual é esse motivo, milord? ? Quis saber a baronesa sentindo um nó na garganta. Que o duque se referisse à sua filha com seu nome de batismo e que dissesse que seus sentimentos para ela tinham mudado, faziam-na imaginar-se algo de tudo impensável.
? Recuperar a honra de Beatrice ? disse com firmeza William.
? Por que quer fazer tal coisa? ? Elisabeth o olhou sem piscar. Ela acreditava saber a resposta, mas desejava escutar de sua boca. Precisava ouvir como a dor que lhes provocou no passado, tanto a ela como a seu marido, agora açoitava seu frio coração.
? Porque a amo ? respondeu sem duvidá-lo.
? O que pretende fazer? ? Depois de escutar as palavras do duque, o barão relaxou seu corpo, caminhou para sua esposa e entrelaçou suas mãos com as dela.
? Esta noite desafiarei ao conde de Rabbitwood a um duelo à morte ? indicou enquanto apertava com força a mandíbula.
? Acredita que aceitará? ? Prosseguiu falando o barão. ? Acredita que aquele canalha consentirá em pôr em risco sua vida para demonstrar que sua história é certa?
? É claro. Apesar de minhas cicatrizes sigo sendo o duque de Rutland e se Rabitwood não deseja ficar como o covarde que em realidade é, não poderá negar-se.
? E foi capaz de olhar a minha filha aos olhos e não lhe dizer a verdade? ? Inquiriu zangada Elisabeth. Se estavesse certa, e poucas vezes se equivocava, esse homem não só amava a sua filha, mas sim ela também amava a ele.
? Foi o mais correto ? sussurrou William olhando ao chão. ? Não desejo... não posso permitir que...
? Porque também lhe ama, não é? ? Disse Elisabeth após soltar com força o ar dos pulmões.
? Quando pretende que se celebre? ? Interveio o senhor Lowell ao estar seguro que, se sua mulher seguia falando, ao final seria ela quem apertaria o gatilho.
? Amanhã à alvorada, em Hyde Park. ? William olhou ao barão mostrando mais segurança em si mesmo que nunca.
? Bem, se aquele homem aceitar seu desafio, faça-me saber. Ali estarei. Agora, se nos desculpar, minha mulher e eu precisamos ficar sozinhos ? comentou o barão com serenidade.
? É claro. Boas...
? Quero que me escute antes de sair desta habitação ? falou Elizabeth apesar dos dramalhões de seu marido. ? Pergunte-se o que deseja uma mulher e não o que deseja um homem. Talvez, se lhe houvesse dito a verdade, teria descoberto que não há nada mais importante como ter ao seu lado a pessoa que ama.
? Elisabeth!
? Acredito, baronesa, que minha eleição foi à correta ? respondeu William. Fez uma pequena inclinação com a cabeça, golpeou suas botas e partiu seguido por Federith.
Nenhum dos dois fez alusão às palavras da senhora Lowell, embora ambos não cessassem de meditar sobre isso. Quando abandonaram a residência Montblanc, William olhou a ambos os lados da rua procurando Roger, este não se encontrava pelos arredores nem tampouco onde lhes havia dito. Em silêncio subiram à carruagem e o cocheiro agitou os cavalos.
O clube não tinha mudado nada em sua ausência. Seguiam as mesmas mesas, as mesmas cadeiras e inclusive os mesmos homens jogando cartas e bebendo o ansiado licor. Federith lhe tinha advertido que sua presença naquele lugar despertaria certo interesse, mas a William já não importava o que as pessoas murmurassem atrás de seu passo. Tinha algo que fazer e queria terminá-lo o quanto antes.
Ignorou as saudações daqueles que antes do duelo o idolatravam e depois lhe desprezaram. Caminhou com integridade pelo corredor central até parar-se em frente à porta em que deveria encontrar-se com seu oponente. Sua ira era desmensurada, seu coração pulsava sem freio e lhe tremia o corpo. Agora entendia por que os doídos maridos que o desafiaram se alteravam ante sua presença, enfrentar-se com a pessoa que fere sua alma sem escrúpulos não proporciona tranquilidade alguma.
Com decisão abriu a porta e acessou ao interior. Mal podia ver com claridade, já que a fumaça cobria a habitação, mas quando seus olhos se acostumaram à escuridão, percebeu cinco figuras ao redor da mesa. Roger ao lhe ver, sorriu. Ele tirara o casaco e fumava um dos charutos que tanto gostava. Tentando manter a calma, William se aproximou da mesa.
? Veio bem a tempo, William. O conde de Rabbitwood estava a ponto de me contar aquela história que narra sem parar sobre a ardilosa filha do barão Montblanc, não é assim? ? Olhou ao conde e desenhou um grande sorriso.
? Rutland! ? Exclamou com alegria o conde quando descobriu a figura do duque ao seu lado. ? Quanto tempo! ? Levantou-se para estender sua mão, mas a apartou com rapidez ao sentir um estranho ódio para sua pessoa.
? É um maldito bastardo, um descarado e um violador ? grunhiu William sem mover-se.
? O que está dizendo? ? Perguntou entre risadas. ? Tanto lhe afetou o disparo que não me recorda? ? Perguntou dirigindo-se ao Roger, que seguia sentado na cadeira com atitude aparentemente serena.
? Eu o desafio! ? Clamou William atirando a luva sobre a mesa.
? Pela honra de quem? ? Continuou jocoso.
? Pela honra da senhorita Lowell, filha do barão Montblanc ? gritou com força para que todos os presentes o escutassem.
? Por uma morta? Quer morrer por alguém que já não respira? ? Sua diversão era tal que não podia deixar de mostrar um enorme sorriso. ? Meu Deus! ? Exclamou em tom divertido. ? Que pavor! Um duelo com um incapaz! Aceito-o? O que fariam vocês, cavalheiros? Recolho essa luva? Possivelmente seja a da sua mão esquerda e como podem apreciar, já não lhe faz falta. ? Levantou as sobrancelhas e soltou uma sonora gargalhada.
De repente a mesa saiu voando, pulverizando pelo chão tudo o que havia sobre ela. O que aconteceu depois ocorreu tão rápido que ninguém foi capaz de impedi-lo. Roger se levantou de seu assento, segurou o pescoço do conde e o apertou contra a parede. Nesse momento todos os cavalheiros menos um se largaram dali. O único que ficou sentado foi o jovem senhor Pearson.
? Reza ao seu Deus, ? grunhiu Roger no ouvido do conde ? porque se meu amigo não te matar, farei-o eu. ? E depois de ver como o rosto do miserável começava a ficar violáceo pela falta de oxigênio, soltou-o.
Rabbitwood respirou com dificuldade durante uns instantes. Seus olhos, acreditou-se sairiam disparados de suas órbitas, começavam a encher-se de lágrimas. Quando se recuperou, ergueu-se, esticou a camisa com força e olhou com receio ao duque. Era conhecida sua destreza ao disparar, mas agora não tinha nada que temer. O homem que o desafiava não era o mesmo que conheceu no passado. Depois de meditar sobre isso, voltou a desenhar um sorriso em seu rosto.
? Está bem. Aceito seu duelo. Imagino que não lhe fará falta saber quando e onde, não é?
? Amanhã, à alvorada, em Hyde Park e não sorria tanto, o duelo será à morte ? disse William com decisão.
? Como desejar, mas quero que saiba uma coisa, Rutland... ? comentou reticente enquanto agarrava a jaqueta de seu traje ? quando cair no chão morto recorde que o adverti.
Roger se equilibrou sobre Rabbitwood, mas desta vez Federith esteve atento e impediu que lhe agredisse agarrando com força o torso de seu amigo. Enquanto ambos os homens discutiam se tinha sido acertada ou não a intervenção, William observava como o desafiado caminhava sem mostrar inquietação. Era a mesma atitude que ele tinha exibido no passado. Sem preocupação. Sem tristeza pelo dano causado. Sem arrependimento. Entretanto, o destino lhe havia devolvido todas e cada uma de suas más ações e o rol tinha mudado, agora não era o desafiado, mas sim o desafiador.
? Desperte ? sussurrou Lorinne à Beatrice. ? Chegamos.
A moça apartou com rapidez a manta que a resguardava do frio e saiu da carruagem sem pensar duas vezes. Em várias ocasiões esteve a ponto de perder o equilíbrio. Não tinha descansado durante a viagem, mal tinha comido e estava acostumada a dormir quando o esgotamento era muito maior que sua tenacidade. Durante os dias que passou no interior da carruagem rezava a Deus para que acontecesse algo que impedisse o duelo: uma tormenta, que o bastardo do Rabbitwood não o aceitasse, e inclusive teria perdoado que Roger, porque Federith seria incapaz, embebedasse William até o ponto de que não pudesse sustentar-se em pé. Qualquer coisa lhe valia se evitasse a terrível desgraça.
Ao colocar-se em frente à porta da propriedade, olhou ao seu redor e não sentiu como se voltasse para casa, seu verdadeiro lar se encontrava onde William estivesse. Agarrou a aldrava e não cessou de golpear até que o mordomo lhe abriu a porta.
? Senhorita! OH, santo céu! A senhorita está em casa! A senhorita retornou! ? Exclamou o ancião movendo-se de um lado a outro do saguão para que todo mundo pudesse lhe escutar.
De repente, a entrada do salão onde estavam acostumados a permanecer os três quando não tinham visitas se abriu e apareceu sua mãe. Beatrice correu para ela quando Elisabeth estendeu seus braços.
? Minha menina! Minha pequena menina! ? Exclamou a mãe depois de romper a chorar.
? Mãe! Mãe! Não imagina quanto senti sua falta!
? OH, querida! Já não terá que partir de novo. Tudo mudará... tudo mudará... ? sussurrava-lhe sem deixar de lhe beijar as bochechas e as mãos.
? Tem-no feito! Aquele maldito conde aceitou o duelo! ? Exclamou apartando-se da calidez que lhe ofereciam as mãos de sua mãe. Girou-se sobre si mesma, olhou para o chão e prosseguiu: ? Não cheguei a tempo? Celebrou-se o duelo?
? Não ? respondeu Elisabeth caminhando para ela.
? Quando será? Onde? Mãe, o suplico! Não deixe que morra! Amo-o! ? Exclamou entre intensos soluços.
? Seu pai partiu faz dez minutos. Não vai em carruagem, mas sim andando. Um dos amigos do duque veio por ele. Conforme escutei, o duelo se celebrará em Hyde Park. Se partir agora, possivelmente chegue a tempo.
? Mathias! ? Gritou ao moço. ? Sabe chegar a Hyde Park?
? Não, senhorita Lowell. Jamais estive em Londres ? respondeu segurando a boina e apertando-a entre suas mãos.
? Eu sim! ? Exclamou Lorinne.
? Você? ? Perguntou Beatrice assombrada.
? É uma longa história, senhorita Lowell. Possivelmente, quando retornarmos a Haddon Hall a conte ? disse a donzela ao mesmo tempo em que corriam para o exterior da casa.
? Posso lhes acompanhar? ? Perguntou com certa inquietação Elisabeth.
? Vamos, mamãe! Necessitarei de sua ajuda se por acaso não me derem atenção! ? Gritou Beatrice abrindo a porta da carruagem.
Lorinne saltou sobre o assento para segurar as rédeas e, quando escutou que a porta se fechava, tocou com tanta força aos corcéis que Beatrice e sua mãe saltaram no assento durante o breve trajeto. Elisabeth entrelaçou suas mãos com as de sua filha e juntas começaram a rezar. Não deixaram de fazê-lo até que escutaram o grunhido que empregou a criada para fazer frear aos cavalos.
? Corre! ? Gritou-lhe a mãe girando a manivela com ímpeto.
A moça saltou sobre o chão, segurou-se o vestido e correu para o interior do parque. Quanto mais perto estava do lugar onde se supunha serem celebrados os duelos, sua respiração se voltava mais entrecortada, o pulso aumentava a um ritmo desumano e começavam a lhe tremer as pernas. De repente escutou uma voz e, sem duvidá-lo se dirigiu para ela, mas toda sua esperança se esfumou em um golpe quando observou a horrorosa cena.
Suas lágrimas começaram a percorrer seu rosto de novo e seu coração deixou de pulsar. William dava as costas ao Rabbitwood. Em sua mão elevava uma arma e parecia murmurar algo. Beatrice recordou as últimas frases da carta que lhe escreveu: «Quero que saiba, que embora tenha morrido no duelo, terei morrido feliz porque meus últimos pensamentos serão para ti». Estaria pensando nela? Quis gritar para que freassem aquela loucura, mas não lhe brotava a voz. Era incapaz de dizer algo. Ouviu como alguém contava.
? Dez, nove, oito, sete...
Ajoelhou-se. Levou as palmas para o rosto e o cobriu com elas. Não queria ver como morria o homem que amava. Não queria ver como dava sua vida por ela. Não queria...
O som de um só disparo provocou que vários bandos de pássaros elevassem seu vôo. Beatrice seguia chorando, rezando pela alma de William.
? Um médico! ? Escutou que alguém gritou. ? Está vivo? Segue vivo?
De repente, os passos de um grupo de pessoas se ouviram aproximar-se. A moça era incapaz de olhar para aquele lugar. Não queria ver o corpo de William estendido sobre o chão. Os passos cessaram. Depois houve silêncio e logo só ouviu um caminhar.
? Minha pequena Beatrice... ? murmurou William ao seu lado.
? William! William! ? Exclamou com alegria a moça enquanto se levantava e saltava sobre ele.
? Meu amor, o que faz aqui? Por que não ficou em casa? ? Depositou-a com cuidado no chão. Deixou que lhe abraçasse a cintura e colocasse a cabeça em seu peito.
? Por que acredita que estou aqui, William? ? Soluçou enquanto levantava o rosto para o homem. ? Porque te amo. Amo-te mais que a minha própria vida, honra ou o que esta maldita sociedade pense. Se tivesse te acontecido algo, eu... eu... teria morrido contigo, entende? Haveria mor...! ? A boca de William se chocou com a de Beatrice ao mesmo tempo em que a atraía com força para seu corpo.
Beijou-a durante tanto tempo que ambos ficaram sem fôlego.
Ali, diante de todos os presentes, mostraram seu amor. As pessoas que os olhavam foram testemunhas de como dois corações pulsavam em harmônia, de como dois corpos tremiam ao permanecer unidos e de como, dois seres a quem seu passado fez manter-se em solidão, a vida lhes dava uma segunda oportunidade para serem felizes e poderem amar.
XX
? Deveríamos ter escolhido o dourado... ? disse Beatrice movendo-se sobre si mesma e observando o vestido com atenção para convencer-se de que não era muito ostentoso para aquela ocasião ? tem bastante decote...
? Mas seu seio não aparece. A renda de seda branca evita que se aprecie ? argumentou Lorinne enquanto tentava colocar as últimas forquilhas no cabelo da inquieta moça.
? Não pensa que é muito atrevido? ? Perguntou ao mesmo tempo em que detinha seus movimentos fazendo com que a criada soprasse aliviada ao poder finalizar sua tarefa.
? O malva é o ideal para tomar o chá. Se tivesse escolhido o esmeralda eu lhe teria feito mudar de ideia. Esse sim é um vestido atrevido. Ainda não sei como a senhora Stone permitiu sua compra ? expôs antes de emitir um sorrisinho perverso.
? Mas é lindo... ? murmurou a jovem caminhando para o objeto e tocando com cuidado o tecido.
? Esse deve usar na festa. Estou segura de que deixará a mais de um cavalheiro com a boca aberta e com uma dor terrível no flanco ? comentou a donzela zombadora.
? Por quê? ? Beatrice arqueou as sobrancelhas, olhou-a com atenção e caminhou para ela.
? Não imagina por quê? ? Assinalou com seriedade. Logo, ao descobrir que com efeito a jovem não sabia a que se referia, explicou-lhe. ? Como acredita que atuarão as esposas desses maridos? ? Esperou uma resposta e ao não obtê-la, continuou. ? Minha querida senhorita Brown, esses desafortunados cavalheiros serão golpeados pelos duros cotovelos de suas mulheres ? disse antes de soltar uma gargalhada.
? Não seja boba... ? sussurrou desenhando um leve sorriso em seu rosto. ? Ninguém será capaz de me olhar dessa forma sabendo que sou a pupila do duque. Todo mundo teme zangá-lo.
? Mas sua Excelência não poderá controlar os olhares...
De repente alguém deu uns pequenos golpes na porta. Depois que Beatrice deu sua permissão, o senhor Stone fez ato de presença. Como era habitual nele, mostrou-se sério, frio, imperturbável.
? Senhorita Brown, informo-lhe que os convidados acabam de chegar. Sua Excelência a espera para recebê-los.
? Descerei agora mesmo ? manifestou depois de tragar saliva.
? Obrigado ? respondeu o mordomo antes de despedir-se.
Quando fechou a porta, Beatrice levou a mão direita ao peito sentindo a agitação que se ocultava em seu interior. Seria capaz de convencer ao incrédulo senhor Wadlow da nova versão? Que provas lhe pediriam para confirmar que ela não era uma cortesã? E, sobretudo... como atuaria o duque se o homem se comportasse indevidamente com ela? De repente sentiu medo e um estranho enjôo a sacudiu com ímpeto. Temerosa por um possível desmaio, caminhou devagar para o leito e se agarrou com força a um dos dosséis.
? Não se preocupe, tudo sairá bem ? sussurrou Lorinne. Vendo-a tão aturdida, aproximou-se, estendeu os braços para abraçá-la e a tentou reconfortar com o apertão. ? O duque cuidará de você como tem feito desde que entrou nesta casa. Esse filho do demônio não se atreverá a lhe magoar porque, se o fizer, estou segura que não sairá ileso daqui ? sussurrou. Depois de suas palavras, a donzela lhe deu um beijo na bochecha, a fez girar para a porta e a empurrou brandamente até que conseguiu tirará-la da habitação.
Quando Beatrice se propôs a descer as escadas, parou para observar o duque. Este se encontrava imóvel no hall com o olhar cravado na entrada e manifestando certa rigidez em seu corpo. Estava tenso, mais do que esperou encontrar em um homem que se caracterizava por manter uma extraordinária serenidade e autoridade. Sem dúvida, o que acontecesse durante a visita do doutor e sua esposa, inquietava-lhe.
A moça pensou que era lógico que se encontrasse daquele modo, posto que lhe urgisse resolver um tema que lhe causava tristeza. Não era agradável que lhe seguissem considerando o sucessor das atrocidades realizadas por seu pai. Embora ele tampouco lutou com afã para fazê-las desaparecer. Por muito que lhe explicou desejar ser uma pessoa diferente, antes de ser ferido no duelo comportava-se com a mesma insolência que seu progenitor. Entretanto, todo mundo merece uma segunda oportunidade e possivelmente era o momento de recebê-la.
Com suavidade desceu as escadas sem deixar de observá-lo. Durante um breve instante, no qual este colocou sua mão direita nas costas, apreciou que enrugava a testa com força. Não podia receber ao casal daquela maneira, tinha que relaxá-lo. Se antes que estes pusessem um pé no lar e a perturbação não desaparecesse, a história mentirosa terminaria em um fracasso inevitável.
William não tranquilizou sua mente nem um só instante desde que a moça lhe revelou seu passado. Não cessava de imaginá-la perambulando sozinha, caminhando exausta e contornando centenas de perigos aos quais teria enfrentado. Cada vez que pensava nisso o sangue lhe fervia, irritava-se e queria golpear algo para poder quebrar com a mão. Embora aquelas divagações lhe enfurecessem, mais ira lhe provocava havê-la conduzido para a situação em que se encontrava agora. Por sua culpa a moça deveria enfrentar os falatórios de todo um povoado para demonstrar ser inocente e decorosa. E tudo porque ele não era capaz de deixá-la partir, de aprender a viver sem ela.
«Se tanto a necessito, ? disse ? deveria atuar com rapidez. O muro está quase terminado e então, tal como lhe prometi, terei que deixá-la partir».
Mas a única forma encontrada para evitar aquela desgraça não podia levá-la a cabo, não até que averiguasse os sentimentos que ela tinha para com ele.
? Se franzir o cenho com tanta frequência, envelhecerá logo – sussurrou-lhe Beatrice atrás dele.
? Desculpe-me, não a ouvi descer... ? começou a dizer William enquanto dava a volta para receber como era devido à jovem. Ao apreciar sua beleza e como aquele vestido de cor malva ressaltava sua figura, tragou saliva e sentiu como seu corpo se debilitava. Estava linda, encantadora, possivelmente até mais do que deveria mostrar ao casal. Entretanto, quem pode diminuir a mágica beleza que brota da simplicidade?
? Quer que eu me coloque ao seu lado ou prefere que permaneça uns passos atrás? ? Perguntou.
Era uma pergunta aparentemente infantil, mas não podia ser assim quando a moça revelava em seu rosto uma imensa zombaria.
? Se lhe oferecer o braço e você o aceitar, acredita que a senhora Wadlow terá que ser assistida por seu querido marido após sofrer um desmaio? ? Respondeu William à dita brincadeira.
? Então, a melhor opção será que fique ao seu lado, mas com certa distância ? disse ao mesmo tempo em que dava uns passos para sua esquerda.
As vozes dos convidados se escutaram detrás da porta, Brandon estava no exterior para lhes indicar para onde deviam caminhar. William olhou para a entrada, logo observou à moça e, sem saber a razão que conduziu a tal atrevimento, inclinou a cabeça para ela e lhe sussurrou com suavidade.
? Esqueci-me de lhe dizer que está linda.
Beatrice abriu os olhos como pratos ao escutar o suave murmúrio do duque em seu ouvido. Começaram a lhe suar as mãos, seu seio se elevava com ímpeto devido à respiração agitada, os joelhos começaram a dobrar-se pela perturbação que aquelas suaves palavras lhe provocaram. Era a primeira vez que lhe oferecia um elogio e, apesar de tentar lhe subtrair importância a um fato tão minúsculo, não o conseguiu. Por uma estranha razão, se ele se sentia orgulhoso dela, ela notava como crescia uma imensa felicidade em sua alma.
? Se forem tão amáveis de me seguir ? falou o senhor Stone. ? Conduzirei-lhes até a presença de sua Excelência.
? Pelo amor de Deus, Graham, isto é enorme! ? Exclamou a esposa, sem poder apartar o olhar de tudo o que se achava ao seu redor.
? Centre-se no importante, Irina. Você, como perita em propagar falácias, deve descobrir se esses dois estão nos mentindo. Como já sabe, nossa credibilidade diminuiu grandemente entre nossas amizades e, se deseja continuar sendo a esposa de um respeitado doutor, temos que achar a verdade.
? Não se preocupe querido ? disse sorrindo e lhe dando uns pequenos golpes com sua mão esquerda no braço que a sustentava. ? Encontrarei-a antes de beber o último gole de chá.
Brandon, ao escutar a conversação nada dissimulada dos convidados, apertou os dentes, abriu a porta e mostrou uma careta que tentava assemelhar-se a um sorriso.
? Senhor Wadlow, senhora Wadlow, bem-vindos ? saudou o duque com voz grave.
? Boa tarde, senhor. Obrigado por aceitar nossa visita ? comentou o doutor com um sorriso malicioso. Aproximou-se de William e estendeu a mão para lhe saudar. Logo olhou de esguelha à Beatrice e se dirigiu para ela. ? Alegro-me de vê-la em tão bom estado, senhorita Brown.
? Muito obrigada. Na verdade, devo tudo a você e ao seu magnífico trabalho. Ficaram apenas as marcas na perna ? comentou sorridente.
? Querida, esta é a jovem de quem te falei ? explicou Graham apartando-se para a direita para que a mulher se aproximasse de Beatrice. ? Senhorita Brown, minha esposa, a senhora Wadlow.
? Encantada ? disse a moça mostrando o mesmo sorriso sardônico que, instantes antes, tinha exibido o doutor.
Não tinha feito uma ideia de como seria a mulher do famoso médico, mas lhe chamou muito a atenção que ela fosse bastante mais alta que ele. Com uma compleição magra, mais do que estabeleciam os ícones de beleza, usava um vestido que enfatizava a estreita cintura e exaltava seu busto. Beatrice admirou o cabelo, era o mais dourado que tinha visto até agora. Era um loiro tão intenso que poderia confundir-se com o branco. E era jovem, muito mais jovem que seu marido, que exibia uma barba grisalha cuidada, um cabelo cortado à perfeição e uns olhos repletos de maldade.
? Encontra-se melhor? OH, meu Deus! Quando Graham me narrou a tenebrosa história que tinha padecido e as sequelas que poderia sofrer, quase desmaio ? explicou com aparente horror.
? Mas graças à intervenção de seu marido hoje posso caminhar como se nada daquilo tivesse acontecido ? sorriu outra vez.
? Deveríamos nos dirigir para o salão e continuar ali o bate-papo ? interveio William perplexo ante a hipócrita atitude dos três. Tinha pensado que Beatrice se enfureceria ao ter em frente a ela o culpado de sua agonia, mas de novo o deixava assombrado, atônito e orgulhoso.
? É claro ? afirmou a moça. ? Os cavalheiros poderiam ir à frente ? murmurou à Irina segurando-a pelo braço com familiaridade. ? Estou segura que ambos conhecem o caminho melhor que nós.
? Confunde-se, senhorita Brown ? interveio com rapidez o doutor. ? Salvo o dia em que vim para tratá-la, jamais estive neste lugar ? resmungou Graham ante tal atrevimento.
? Desculpe-me! ? Exclamou Beatrice com semblante desconcertado. ? Acreditei escutar que você era amigo do anterior duque de Rutland.
? Que nada! ? Deixou escapar Irina ante tal afirmação. ? Ninguém que se considerasse respeitável teria visitado esta mansão durante as aparições daquele homem.
? Ah, não? ? Perguntou com um aparente assombro.
? O pai de sua Excelência, ? começou a explicar a mulher depois dos passos dos cavalheiros ? era um homem desonroso e abrigava sob seu teto mulheres... como o diria eu para não escandalizá-la?
? Prostitutas ? apontou William com voz séria. Embora seu tom não refletisse o que sentia em realidade. Ao princípio apertou os dentes pela ousadia da moça, mas depois de ver a cara de espanto que mostrou o doutor, não cessou de repetir-se que a reunião iria ser mais amena do que pensava.
? Por isso alguém proclamou por Rowsley que sou sua... ? Beatrice tentou simular um desmaio ante o descobrimento. A senhora Wadlow lhe segurou com força o braço e olhou furiosa ao seu marido, este retornou com rapidez para a jovem para examiná-la.
? Não se preocupe ? disse a moça recompondo-se. ? Foi só um pequeno enjôo ao recordar as calúnias que um ser perverso e malicioso comentou sobre mim sem me conhecer.
? Encontra-se melhor? ? Interrompeu William tentando aparentar preocupação.
? É claro, sua Excelência, prossigam. Nós partiremos atrás.
O duque continuou seu caminho para o salão. Ao seu lado permanecia o doutor com o cenho franzido e absolutamente em silêncio. Depois deles andavam as mulheres. Quando entraram no salão, elas se sentaram perto da mesa redonda que havia justo ao lado de uma das janelas, onde podiam admirar o exterior do lar. Eles decidiram permanecer de pé ao seu lado.
? Então, ? rompeu o silêncio Irina ? conforme nos informaram, é você a pupila de sua Excelência.
? Sim. Minha mãe, amiga de uma irmã de uma amiga da irmã de outra amiga da atual duquesa de Rutland, encomendou-lhe a árdua tarefa de ser meu tutor ? explicou olhando-a fixamente aos olhos.
? Não teve mais alternativa? Desculpe meu atrevimento, milord, mas tem que compreender que uma moça tão jovem, tão bonita e com tantas possibilidades de encontrar um bom tutor em Londres, não entendo como terminou neste lugar.
? Desculpo-a, senhora Wadlow, eu pensei o mesmo quando minha mãe me informou sobre sua decisão. Mas depois de minha desgraça, de me converter em um ser incapaz de realizar nada sem a ajuda de meu fiel mordomo e de não supor perigo algum para a senhorita, insisti que era a melhor opção para limpar o bom nome que ostento ? sentenciou.
Beatrice não respirou. Ficou tão assombrada pela exposição do duque que não soube como atuar. Se sorrisse mostraria a estes seu apoio à declaração de inutilidade do homem, mas se pelo contrário, franzisse o cenho, apertava os dentes e seus punhos pela dor que lhe tinham causado as palavras, daria a entender aquilo que nem ela mesma era capaz de assimilar.
? Como já expliquei à encantadora senhora Brace, o duque é muito inteligente, mais do que deseja aparentar – interveio. ? E como tutor, não tenho queixa alguma, embora eu lhe diga que é bastante exigente.
O casal se dirigiu um olhar furtivo, mas tanto o duque como Beatrice o captaram. Estes se olharam interrogantes, como se ainda não acreditassem na versão contavam.
? É o momento do chá ? esclareceu William. Caminhou para um lado da cortina e puxou com delicadeza uma corda que pendia do teto. Ato seguido apareceu o senhor Stone.
? Sim, milord?
? Estamos preparados para tomar o chá ? afirmou.
Brandon fez uma suave reverência e, cinco minutos depois de sua marcha, duas criadas levavam em suas mãos umas bandejas de prata com as xícaras e massas.
Não houve bate-papo enquanto saboreavam a deliciosa infusão. Entretanto, William apostava o único braço são que o casal não cessava de refletir sobre quais perguntas fazer à moça para confirmar o que deviam descobrir. De repente, o doutor até aquele momento sentado ao lado de sua mulher para ingerir o chá e saborear alguns doces, pousou a taça sobre a mesa e se levantou com decisão.
? Sabe tocar o piano, senhorita Brown? ? Perguntou enquanto se dirigia ao instrumento situado no outro lado do salão. ? Se a memória não me falhar, nosso duque, quando tinha a precoce idade de dez anos, era um magnífico pianista.
William abriu os olhos como pratos. Um nó enorme lhe impediu de tragar o último sorvo de chá que tinha tomado. Tentou falar para oferecer qualquer desculpa, que o piano estava desafinado, que tinha se quebrado alguma tecla, algo que o tirasse do apuro, mas foi impossível.
? Não dizia você nunca tinha aparecido em Haddon Hall, salvo quando me visitou? ? Beatrice, assombrada pela maldade do homem, replicou-lhe com a mesma perversidade.
? Não precisava aparecer por estas lareiras para escutar as pessoas falarem sobre o incrível talento que possuía lorde Rutland com este instrumento ? sorria de orelha a orelha. Seus olhos mostravam uma escura e maléfica satisfação. Dizia-se a si mesmo ter encontrado o que havia se proposto. Que cortesã alcançaria tal capacidade? Elas só eram peritas em agradar sexualmente aos homens e deixavam de lado um estudo tão importante como a arte da música.
? Sim, por favor, toque alguma peça! ? encorajou Irina a decisão de seu marido com grande exaltação. ? Eu adoraria escutá-la. Apesar de meus constantes intentos por aprender a tocar esse instrumento, nasci sem esse dom. Conforme me disse meu último professor, não tenho um bom ouvido.
? Como podem apreciar ? interrompeu William mal-humorado. ? Não sou o homem apropriado para instruir com precisão nessa habilidade. Muito temo que...
? É claro! ? Exclamou Beatrice elevando-se de seu assento e caminhando para onde permanecia o senhor Wadlow e o instrumento. ? Como já disse, o duque é um bom tutor e, embora não possa me deleitar com uma interpretação, ele sim tem bom ouvido e sabe como transmiti-lo.
Absorto, assombrado e com o corpo tão intumescido que não era capaz de mover-se, William admirou a pequena figura dirigindo-se com elegância para o lugar. A moça se sentou após acomodar seu vestido ao assento, arrumou o suporte das partituras e olhou-as com atenção.
? Alguma peça em especial? ? A jovem arqueou as sobrancelhas e sorriu. Sentia seu pulso acelerado, os dedos começavam a mostrar rigidez e lhe suavam as palmas. Fazia pouco mais de um ano que não tocava o piano e, caso aquele maquiavélico personagem lhe pedisse algo especial, não poderia evitar cometer um engano. Sem saber por que olhou ao duque. Este estava absorto em algum pensamento doloroso porque franzia o cenho, tinha o olhar perdido e apertava a mandíbula. Quis lhe sorrir, transmitir-lhe serenidade para acalmar sua inquietação, mas... quem a calmaria?
? A que você desejar ? respondeu Graham sem deixar de regozijar-se.
Nesse momento e ante o assombro dos três, William se levantou do assento e caminhou para a jovem, colocou-se atrás dela e pousou a mão em seu ombro. Apertou-o com suavidade e lhe sussurrou:
? Beatrice...
O quente tato e escutar seu nome com aquela aveludada voz deixou a moça congelada. Notou um calafrio tão extraordinário e jurou que sua temperatura tinha baixado dez graus de repente. Elevou o queixo, afirmou com a cabeça como se este lhe tivesse indicado o que devia tocar, e colocando as mãos sobre as teclas iniciou a harmoniosa melodia.
Durante os quatro minutos e meio que durou Spring Waltz de Chopin, os três ouvintes foram incapazes de mover-se para interrompê-la com um minúsculo ruído. Quase não puderam respirar pela elegância e os sentimentos transmitidos em suas notas. Beatrice, apesar de suas dúvidas, não cometeu nem um só engano mesmo sentindo a terrível angústia que lhe causou a música. Recordou seus pais sentados na poltrona enquanto ela lhes deleitava com um interminável repertório. Aquela composição em especial os fazia segurar-se pela mão e mostrar sem pudor à sua filha o amor incondicional que se professavam. Naquele tempo ela sonhou encontrar um homem que lhe declarasse aquele afeto, que a protegesse, que a amasse sem objeções, sem restrições absurdas produzidas pela formalidade de uma sociedade repleta de insensibilidade.
Mas seus sonhos foram destroçados dramaticamente. Rememorou a dor sentida ao ser assaltada por seu violador, pelo dano que lhe produziu ao desflorá-la e como, destroçada, ficou estendida no chão chorando incapaz de levantar-se para seguir vivendo. Deveria tê-la matado com aquela faca que lhe apertava a garganta e finalizar assim o calvário que viveriam seus queridos pais depois do penoso anúncio.
Quando a peça estava a ponto de finalizar, a imagem do duque apareceu em sua mente sem poder evitá-lo. Recordou o dia do acidente e quando retornou para oferecer-lhe sua ajuda e ela o rejeitou, o momento no qual foi atacada e, depois de pensar que não seguiria vivendo, abrir os olhos e encontrar a figura esbelta do duque ao seu lado, cuidando-a, protegendo-a apesar de sua incapacidade. Recordou seu rosto zangado ao descobri-la vestida de criada, da tarde em que lhe abriu seu coração para fazê-la partícipe de suas desgraças. Do passeio, de sua dor e de como a tinha cuidado nessa tarde. Tampouco pôde evitar analisar seus sentimentos por ele. Seus aborrecimentos, suas atitudes altivas, dos incontáveis enfrentamentos... e soube por que tinha lutado com tanto ímpeto para apartá-lo de seu lado, porque o amava.
Estava apaixonada por ele e, embora pensasse que jamais desejaria deitar-se junto a um homem, ele fez com que toda sua decisão desaparecesse. Desejava-o com toda sua alma e isso lhe produzia pavor.
? Lindo... ? murmurou Irina levantando-se de seu assento para dirigir-se a ela.
Beatrice se incorporou e girou para o duque, quem permanecia ainda às suas costas. Elevou seu olhar para ele e não ocultou as lágrimas que emanavam sem cessar.
? Sinto muito todo o ocorrido ? disse o doutor ao contemplar a cena entre ambos. ? De verdade que o sinto e se sua Excelência deseja revogar o convite, compreenderei-o.
? O convite segue em pé ? comentou com firmeza. Não lhe olhou. Tinha seus olhos cravados na moça e não foi capaz de mover-se de seu lado, como ditavam os perfeitos comportamentos sociais, ao perceber sua debilidade.
? É hora de partir ? apontou Irina segurando seu marido pelo braço e dirigindo-o para a saída. ? Não se incomode em nos acompanhar, milord, meu marido saberá como sair daqui. ? William só pôde assentir com um leve movimento de cabeça.
Quando o casal fechou a porta, a senhora Wadlow agarrou com ímpeto o braço de seu marido e lhe sussurrou.
? Errou, querido. Não é sua concubina, mas sim a futura duquesa de Rutland.
O duque ao advertir que estavam sozinhos, estendeu sua mão e abraçou Beatrice. Deixou que seu rosto molhasse seu peito, que choramingasse tudo o que necessitasse, enquanto lhe sussurrava palavras de consolo.
«Sempre me terá ao seu lado. Não me separarei de ti até que você me peça isso», repetia uma e outra vez. A moça esticou seus braços e o aferrou ainda mais ao seu corpo. Necessitava aquilo que lhe prometia, precisava o ter ao seu lado, necessitava que jamais se afastasse dela.
? Minha pequena Beatrice... ? murmurou apartando-a com suavidade. Dirigiu sua mão para o lado direito do rosto feminino e lhe apartou as lágrimas, a seguir fez o mesmo com o esquerdo. ? Não sei de onde veio, nem como conseguiu chegar até aqui, mas dou graças a Deus por se cruzar em minha vida.
Beatrice elevou o queixo e deixou que este contemplasse sua tristeza. Permitiu que a reconfortasse e, quando percebeu sua boca se aproximando da sua, fechou os olhos para que a beijasse como tantas vezes tinha sonhado. Ao sentir a ternura em seus lábios, uma explosão de felicidade lhe percorreu o corpo. Ao princípio apenas lhe roçou e soluçou ao notar que se afastava, mas antes de poder abrir os olhos para certificar-se de que partia, o duque voltou a beijá-la. Entretanto, este beijo foi diferente. Toda aquela ternura dava passo a uma incrível paixão. Conquistava-a, fazia-a dele, hipnotizava-a até tal ponto que desejou sentir a mão dele acariciando seu tremente corpo. Não devia fazê-lo, não era adequado sentir, depois do acontecido, um desejo incontrolável de notar o calor de sua pele junto à sua, mas lhe resultava difícil não o fazer porque o amava.
William aproximou devagar os lábios para os de Beatrice e apenas os roçou, temia que ao tocá-los ela se arrependesse. Entretanto, ao escutá-la esboçar um pequeno e imperceptível gemido de necessidade, voltou a estender a mão e, segurando-a pela cintura, atraiu-a para ele. Deixando-se levar, transformou um terno e suave beijo em uma explosão de desejo. Saboreou sem descanso o interior e mesclou seu fôlego com o dela. Sua língua conquistou com suavidade e lentidão, tentando provocar em cada movimento mais paixão na jovem. De repente, um intenso calor lhe percorreu o corpo, convertendo o suave e terno beijo em um mais tórrido, enérgico e dominante. Era dele. Aquela pequena mulher era só dele.
? Desculpe minha ousadia ? disse William quando se separou dela para que não pudesse captar a excitação que lhe tinha provocado à aproximação. ? Não devia me aproveitar de sua aflição.
? Não se desculpe, foi culpa de ambos ? comentou com pesar ao entender que o duque se arrependia de beijá-la.
? Mas jurei que jamais tocaria a uma mulher sem seu consentimento ? esclareceu dando uns passos para trás.
? Cumpriu sua promessa, sua Excelência. Permiti-lhe me beijar e agora, se me desculpar, desejo me retirar ao meu quarto.
? É claro ? respondeu aflito.
Com a cabeça abaixada e com um visível pesar, Beatrice saiu do salão, subiu as escadas, alcançou seu quarto, fechou a porta e se tombou na cama para chorar.
Por outro lado, o duque quis correr para ela e lhe explicar que suas palavras não tinham sido acertadas. Que ele desejava beijá-la com toda sua alma. Mas apertou as solas de suas botas no chão e não o fez. Depois de escutar como a moça fechava a porta, girou-se para o móvel, tirou uma garrafa de brandy e se serviu uma taça que bebeu de um sorvo.
XXI
Durante os dias posteriores, Beatrice evitou qualquer encontro com o duque. Recusou seus convites para almoçar, tomar o chá ou inclusive jantar juntos pondo como desculpa as múltiplas tarefas que devia realizar para a festa. Embora pudesse sentir a presença do duque ao seu lado em cada coisa que fazia ou em cada passo que dava pela casa. O que pretendia fazer, falar do ocorrido enquanto almoçavam? Se tanta ansiedade lhe provocava o acontecido, por que não se deteve antes de fazê-lo? Por que, em seu segundo beijo, em vez de afastar-se, sua boca se chocou contra a dela com a mesma intensidade que uma onda do mar em um escarpado? Milhares de perguntas rondavam sua mente sem cessar, mas suas respostas não a convenciam. Na intimidade que lhe proporcionava a solidão de seu quarto, rememorava uma e outra vez aquele momento. Via-o ao seu lado tentando fazer desaparecer as lágrimas, apertando seu rosto contra seu peito. Recordava seu olhar e a expressão deste, não havia maldade nele, mas sim ternura, carinho, apreço.
Sentiu de novo o abraço, como a estreitava em seu corpo para consolá-la e, sobretudo, sua mente não cessou de evocar o momento do beijo. O primeiro terno, suave, com medo. Mas depois de escutá-la soluçar pelo distanciamento de sua boca, o segundo foi apaixonado, ávido e possessivo.
«Se tivesse sido em outro tempo, ? meditou na tarde do sábado enquanto esperava sentada sobre o leito a chegada de Lorinne ? acreditaria que se aproveitava da minha debilidade. Mas agora, depois de compreender quem é em realidade, não posso pensar isso. Ele já não é a pessoa que conheci em Londres. Aquele homem libertino, egoísta e petulante morreu».
Seguia divagando sobre as possíveis razões pelas quais o duque se desculpou, quando bateram na porta.
? Adiante ? deu permissão em voz baixa.
? Boa tarde, preparada para deixar todos os convidados com os flancos doloridos? ? Comentou a donzela com um sorriso.
? Estou esgotada... ? indicou ao mesmo tempo em que se lançou de costas sobre a cama e estendeu os braços. ? Não poderiam postergá-la?
? Venha, não seja folgazona! Está escondida nesta habitação há mais de duas horas! ? Lorinne se aproximou dela, segurou-a pela mão e a levantou com rapidez. ? Não temos muito tempo. Conforme me indicou o senhor Stone, logo chegarão os primeiros convidados.
? Tão cedo? ? Soltou a moça assombrada.
? Sua Excelência enviou dois convites a duas pessoas muito importantes para ele e, conforme comentam, pediu-lhes que viessem antes da cerimônia ? explicou enquanto se dirigia para a poltrona situada ao lado esquerdo da cama. Pegou o espartilho e o mostrou à moça. Esta enrugou o nariz ante o desagrado que lhe produzia voltar a embutir-se nesse tipo de objetos.
? Quem são essas pessoas? ? Aproximou-se da donzela, girou-se e deixou que esta começasse com a árdua tarefa.
? Amigos do duque. ? Apertou tanto os cordões do espartilho que deixou a moça sem respiração. ? Companheiros que permaneceram ao seu lado durante as longas temporadas em Londres. Não posso comentar muito sobre eles porque não tive o prazer de conhecê-los em pessoa, mas conforme contam outros criados, um é o senhor Federith Cooper, o sobrinho do senhor Clain e futuro barão de Sheiton. Ao passar sua infância em Rowsley, foi o único menino que visitava o senhor e, ao que parece, tão intensa foi e é sua amizade que o irmão do duque sentia, e sente, ciúmes deles. ? Voltou a girá-la para certificar que o objeto se ajustava como devia ao pequeno corpo. Quando se conformou, dirigiu-se para o roupeiro, pegou o vestido esmeralda acetinado e após sorrir maliciosamente, foi para a jovem.
? E o outro? ? Beatrice levantou os braços para que Lorinne lhe pusesse o vestido que, segundo ela, ia provocar certa queimação aos cavalheiros que a admirassem. Embora não estivesse muito segura de que isso ocorresse porque todo mundo temia e respeitava ao duque. Quem iria ser tão incauto de lhe enfurecer em sua própria casa?
? Ninguém, salvo o casal Stone, viu-o. Conhecemos seu nome porque os criados encarregados de lhe fazer chegar a missiva nos contaram ? disse com uma aura de mistério.
? E? – Insistiu, na espectativa.
? Chama-se Roger Bennett, futuro marquês de Riderland. Conforme tenho entendido... ? deu a volta à moça e abotoou suas costas ? o senhor Stone jamais se agradou dessa amizade ? disse ao mesmo tempo em que colocava suas mãos nos ombros semidesnudos e a conduzia para a penteadeira para penteá-la. ? Parece ser um homem inconsequente, um aventureiro, um jogador inveterado e quem conduziu sua Excelência pelo mau caminho.
? E esse tal Roger... decidiu vir? ? Perguntou com certa inquietação. Apesar de não ter escutado falar de nenhum dos dois cavalheiros, o mero feito de saber que procediam de Londres provocou-lhe um sobressalto. E se coincidiu com algum deles nas poucas festas que assistiu? Como era lógico se suportavam essa desafortunada fama, sua mãe evitou qualquer aproximação com estes, mas... eles teriam reparado em sua presença?
? Sim! Claro que virão! ? Exclamou entusiasmada. ? E por fim descobriremos o rosto desse fantasma!
Não pôde ficar quieta depois da informação. Seu interior foi incapaz de manter a calma enquanto Lorinne trabalhava com afinco para realizar um penteado que, conforme apontou, deixaria descoberto o esbelto pescoço e o voluptuoso decote. Tampouco prestou atenção aos intermináveis comentários da donzela sobre sua beleza, quão fascinados ficariam os convidados e como, ao terminar o baile, todos os maliciosos rumores se resolveriam. Nada disso chamou sua atenção, porque não cessava de perguntar-se se algum daqueles cavalheiros a reconheceria em algum momento. Fazendo um grande esforço, foi rememorando todos os que se aproximaram dela. Foi impossível recordar os rostos ou os nomes. Tinha passado muito tempo. Entretanto, só um rosto seguia atormentando-a a cada dia, o do maldito conde de Rabbitwood. Um calafrio a açoitou com tanta força que seu pêlo se arrepiou.
? Não se preocupe, senhorita Brown, tudo sairá bem ? tentou consolá-la a donzela, esfregando seus braços como se tivesse frio. ? Levante-se! Deixe que a contemple!
Beatrice se levantou devagar e olhou os pés embainhados em uns sapatos de seda clara com uma linda borda dourada. Apreciou a suavidade do vestido, uns volumosos babados começavam dois palmos antes de chegar ao chão e finalizavam na cintura onde uma pequena faixa de pedraria de prata embelezava sua cintura. Pensou nesse instante que era muito atrevido levar seus braços cobertos com tão somente uma fina renda que começava nos ombros e terminava nos cotovelos, mas enquanto subia o olhar, a beleza do vestido a conquistou. Quando chegou ao decote e percebeu que era mais insinuante do que pretendia, toda aquela felicidade começou a desaparecer.
? Está linda, senhorita Brown, só lhe falta uma coisa. ? Dirigiu-se para a cômoda que havia ao lado da porta e pegou uma caixa marrom.
? O que é? ? Perguntou curiosa.
? Não sei, milord me deu isso antes de eu entrar ? disse sorridente ao mesmo tempo em que mostrava a caixa de joias fechada.
? Estava aí fora, no corredor te esperando? ? Perguntou alarmada. Arqueou as sobrancelhas, abriu os olhos no máximo e observou a caixa com medo.
? Penso que pretendia te chamar à porta para oferecer-lhe em pessoa, mas minha aparição interrompeu seus desejos ? continuou sem poder apagar o sorriso de seu rosto. Em Haddon Hall não se podia ocultar nada e, sobretudo quando se tratava dos estados emocionais do dono da casa. Todo o serviço era consciente dos sentimentos que o duque professava para com a moça e os dela para com ele. Só esperavam que ambos fossem conscientes. ? Abrirá em algum momento? ? Insistiu a donzela ao ver o estupor no semblante da moça.
Com as mãos trementes, Beatrice abriu o porta joias. Quando a tampa se elevou e contemplou o que havia em seu interior, seus joelhos se dobraram tanto que Lorinne segurou-a pelo braço para que não caísse no chão.
? Não posso aceitar... ? murmurou ao mesmo tempo em que tentou recuperar as forças.
? Não diga bobagens! Quer aparecer ante toda essa gente nua? ? Perguntou a donzela zangada.
? É um presente muito... ? sussurrou dando a volta e abaixando a cabeça.
? Está segura de que é um presente? Não cabe a possibilidade de que o duque os tenha emprestado? ? Continuou com irritação enquanto se colocava em frente a ela para lhe mostrar de novo as joias.
Beatrice as contemplou de novo. O cofre guardava uma tiara singela com duas faixas muito finas de diamantes unidas entre si no centro por uma grande aguamarina ovalada, um colar da mesma forma salvo que suas faixas eram um pouco mais grossas, uns brincos que faziam jogo com ambos os complementos salvo que estes eram muito pequenos, quase inapreciáveis de longe. Mas ficou absorta ao ver o bracelete. Todas as que usara antes não eram mais largas que uma linha de costura, entretanto aquela devia medir uma décima parte de uma polegada.
? Muito ostentoso! ? Exclamou depois de admirá-las.
? Rogo-lhe, deixe-me que as coloque. Prometo-lhe que se não lhe agradarem, devolverei-as ao duque ? afirmou.
A moça fechou os olhos enquanto Lorinne lhe colocava as joias. Não queria olhá-las, não queria confirmar que gostava e muito menos queria exibir joias que, se a mente não lhe falhava, a avó do duque usava na pintura do salão no qual dançariam. O que pensariam os convidados ao descobrir tal ousadia? Beatrice suspirou profundamente. Não era boa ideia, por muito que a donzela insistisse, não era sensato aparecer com elas porque, se tentavam apaziguar um rumor, ofereceriam-lhes outro mais suculento.
? Pode abrir os olhos... ? sussurrou a donzela ao finalizar.
A jovem levantou as pálpebras com pesar, dirigiu-se para o espelho da penteadeira e ficou aniquilada. Eram lindas, mais do que tinha pensado. Entretanto, não podia usá-las.
? Sigo pensando que... ? começou a dizer ao mesmo tempo em que girou-se para Lorinne.
Uns golpes interromperam o que pretendia expor. Surpreendida por não esperar a ninguém mais em seu quarto, dirigiu-se para a porta e ela mesma a abriu. O senhor Stone era o causador de não poder finalizar o que ia comentar a Lorinne.
? Sim, senhor Stone? ? Perguntou preocupada.
? Sua Excelência a espera. Deseja sua companhia o antes possível. ? O mordomo a observou com atenção e, para assombro de Beatrice, sorriu-lhe. ? Se me permite a ousadia, senhorita Brown, está magnífica.
? Obrigada, senhor Stone, ? sorriu-lhe ? é um elogio muito adulador vindo de você.
? Bom, se não precisa de minha ajuda, ? interveio Lorinne com uma vontade terrível de abandonar o dormitório ? continuarei com outros afazeres.
A moça entrecerrou os olhos e a olhou com aborrecimento. Claro que necessitava dos seus serviços, porque antes da aparição do mordomo estava a ponto de dizer que lhe despojasse das joias, mas ao final desistiu do intento. Deu uns passos para diante, fechou a porta, suspirou e que acontecesse o que Deus quisesse.
William, como de costume, encerrou-se na biblioteca para poder pensar com claridade. Durante os dias seguintes à aparição dos Wadlow, sua mente não lhe deixava tranquilo. Milhares de perguntas surgiam nela procurando respostas coerentes. Onde tinha aprendido a senhorita Brown a tocar o piano? Como sabia tomar o chá com tanta mestria? Por que erguia suas costas com tanta retidão que mal tocava o respaldo da cadeira? Nada disso encaixava com a história que a moça lhe tinha contado. Se ela era uma humilde criada, por que se comportava como as jovens da alta sociedade? Tinha-a visto levantar seu queixo de forma adequada, caminhar com passos curtos tal e como deviam fazê-lo as senhoritas, falar quando lhe perguntavam. Só rompia os protocolos de um comportamento adequado quando se enfurecia ao escutar os ataques verbais que as visitas ofereciam a ele.
De repente um sorriso apareceu em seu rosto. Lembrou-se da cara de espanto que o doutor mostrou quando ela fez referência às suas possíveis visitas a Haddon Hall. O médico empalideceu e o negou com rapidez enquanto que ele apertava com força a mandíbula para não soltar uma sonora gargalhada. Também atuou à defensiva quando o casal minimizou suas capacidades como tutor. Defendeu-lhe argumentando que para ser um bom professor não devia exibir seus talentos, que bastava saber expressá-los com palavras. Sempre tentava proteger sua integridade sem lhe importar a sua.
Então recordou as palavras que o senhor Stone se atreveu a lhe dizer: «Pode ser que lhe minta. Possivelmente não esteja dizendo a verdade». Agora não lhe cabia dúvidas disso, mas se não era a filha de uns camponeses falecidos, quem era em realidade? E... por que tinha castigado a si mesma afastando-se do resto do mundo?
? Milord, ? interrompeu suas divagações o senhor Stone ? o senhor Cooper e o senhor Bennett acabam de chegar.
? Obrigado, Brandon. Saio agora mesmo.
O mordomo se retirou e William respirou profundamente, tentando acalmar a terrível inquietação que o açoitava.
«Mudarão meus sentimentos por ela se descobrir que não é quem diz ser?», perguntou-se enquanto caminhava para a porta. Não necessitou de tempo para responder-se, pensou um não com veemência.
? Meu querido Manners! ? Exclamou Roger ao vê-lo aparecer. Com passo veloz se aproximou do duque e lhe deu um forte abraço. ? Te vejo muito bem, meu amigo.
? O mesmo digo de ti, vilão ? respondeu sorridente.
? Não me diga isso que me rompe o coração ? disse com falsa tristeza.
? Como denominaria você a um amigo que não oferece notícias às pessoas que o apreciam? ? Arqueou as sobrancelhas sem deixar de perder o sorriso.
? Estive em viagem. Parti para a incrível e maravilhosa França. Segundo meu pai, o ar de Londres estava me enlouquecendo e quis mudá-lo ? explicou com zombaria.
? E? ? William seguia com as sobrancelhas elevadas.
? OH, mon ami... Rien n’a changé. Les femmes sont très affectueuses en France et les hommes d’excellents joueurs.(1) Assim por muito que trabalhei em me curar dessas enfermidades, fui incapaz de obtê-lo ? afirmou com uma aparente tristeza.
? Então, depois de tudo, segue sendo o mesmo velho patife de sempre? ? Perguntou o duque sem deixar de rir.
? Muito ao meu pesar, sim ? respondeu com aflição.
? Ham-ham ? pigarreou Federith na entrada.
? Federith! ? William caminhou para ele e o abraçou com força. ? Obrigado por vir. ? Olhou atrás do homem e ao não encontrar o que procurava, perguntou-lhe preocupado: ? E a senhora Cooper?
? Não se encontra bem. A gravidez está sendo mais complicada do que esperávamos ? explicou com serenidade.
? Gravidez? ? Clamou Roger movendo seu corpo para Federith.
? Não sabe? ? Disse William. — Nosso querido Cooper se casou com lady Caroline e logo se converterá em um estimado pai.
? William... ? advertiu-lhe o aludido.
? Federith não eleve suas armas antes de confirmar que a guerra começou. Muito ao meu pesar, este tempo de retiro me tem feito entender que cada um deve assumir suas próprias decisões e outros, por muito que não estejamos de acordo com elas, devemos respeitá-las. Por isso, meu amigo, apóio-te e te apoiarei sempre ? afirmou sem hesitações.
? Bom, ? interveio Roger ? onde está essa concubina cuja honra devemos salvar?
? Não sou a concubina de ninguém, cavalheiro, sou a pupila do duque de Rutland ? sentenciou Beatrice no alto das escadas.
William elevou o olhar para ela no preciso instante que iria soltar uma gargalhada, embora não conseguiu que brotasse de sua boca nem um minúsculo ruído. A deslumbrante mulher o deixou sem fôlego, sem ar nos pulmões e inclusive sem pulso. O vestido se agarrava ao seu torso aumentando voluptuosamente seu seio e enfatizando a diminuta cintura. A claridade do tecido que cobria desde seus ombros até o cotovelo mostrava a aveludada pele feminina. Como nas anteriores ocasiões, seu cabelo estava recolhido para trás, mas desta vez adornado com uns laboriosos desenhos. O duque sorriu sutilmente ao não achar mechas que entorpecessem a visão de seu rosto, nem que incomodassem a moça ao menear a cabeça.
Beatrice desceu as escadas majestosamente, rebolando os quadris com sublime sensualidade. Possivelmente nem ela mesma chegava a alcançar a beleza e o erotismo que emanava, mas ele o captou. William estufou seu peito de orgulho ao apreciar que usava as joias que tinha dado à criada. Tinha duvidado se as aceitaria porque durante os dias anteriores evitou encontrar-se com ele para falar do acontecido. Mas lhe satisfez ver sobre sua cabeça a tiara com a aguamarina, como brilhavam os pequenos diamantes em suas orelhas, a sutileza com que movia o bracelete no pulso e, sobretudo, a graça com que o colar tentava desviar o olhar de qualquer atrevido para o decote. Pensou para si que, sem dúvida, as joias guardadas desde que sua avó faleceu estavam esperando-a para resplandecer de novo. Tentando recuperar a confiança e serenidade que devia manter durante o baile, aproximou-se das escadas, estendeu a mão para que a jovem a tomasse e a dirigiu para onde se encontravam imóveis seus amigos.
? Senhorita Brown, o tagarela é o senhor Bennett e estou seguro que, se deseja seguir respirando ao amanhecer, retirará as inoportunas palavras que comentou sobre você ? asseverou em tom irritado.
? Bien sûr! Je suis très désolé(2) ? respondeu Roger inclinando-se para a moça para beijar-lhe a mão. — Ravi de vous connaître, mademoiselle.(3)
? Moi aussi, monsieur(4) ? replicou Beatrice com um perfeito acento francês.
? Fantastique!(5) Não sabia que nosso duque conhecia o idioma do amor ? disse olhando-o de canto de olho.
? Pois se a memória não ficou transtornada pelo disparo, ? comentou com assombro ? jamais o estudei.
? Uma irmã de meu pai, ? começou a dizer como desculpa ao seu lapso ? ficou viúva e decidiu viver conosco durante uma temporada. Seu marido foi um marinheiro francês e ela teve que aprender a língua.
? OH, que tragédia! ? Interveio Federith até agora em silêncio e atento à situação que observavam seus olhos.
? Senhorita Brown, ele é o senhor Cooper. O único amigo que possuo desde minha infância.
? Encantada de lhe conhecer, senhor. Ouvi falar maravilhas sobre você ? declarou ao mesmo tempo em que lhe oferecia a mão para que a beijasse.
? Que honra! Foi William quem lhe informou? ? Arqueou as sobrancelhas, sorriu com suavidade e olhou seu amigo de esguelha.
? Não, foram os criados. Segundo eles, nosso duque teve dois bons amigos com os quais viveu em Londres. Você, o respeitável senhor Cooper, futuro barão de Sheiton e... ? olhou para Roger para não perder nem um só gesto quando escutasse o que se propunha ? o senhor Bennett, futuro marquês de Riderland e de quem dizem que é um irresponsável, um libertino, um jogador inveterado e a quem culpam da vida inapropriada do nosso duque.
William liberou uma grande gargalhada que foi acompanhada por outra que realizou Federith. Entretanto, Roger não mostrou nenhum tipo de simpatia.
? Deveria me indicar quem lhe informou sobre essas calúnias ? disse mal-humorado. ? Tenho que me bater em duelo por minha honradez.
? A sinceridade dói, não é? ? Comentou jocoso Federith golpeando com suavidade as costas de seu amigo.
? Bom, ? atuou William ? seria conveniente que nos dirigíssemos para algum lugar da casa para falar sobre o tema pelo qual lhes requeri. Logo chegarão os primeiros convidados e eu gostaria de lhes pôr a par do acontecido.
Os amigos assentiram e, colocando-se junto ao duque, os três cavalheiros se dirigiram para a habitação em que o duque se sentia mais seguro: a biblioteca. Beatrice considerou andar atrás dos passos deles, observando as figuras dos três homens que, conforme concluiu, tinham atemorizado aos pais das filhas casadouras e dos maridos ausentes. Não lhe cabia dúvida que o mais alto deles era o duque. Mas a figura dos três era muito semelhante, possuíam umas costas robustas e as pernas muito longas. Entretanto, o cabelo do duque era escuro, o do senhor Cooper loiro e o do senhor Bennett uma mescla de ambos. William, como lhe tinha renomado o senhor Cooper e que até esse momento Beatrice não descobrira, mostrava um olhar escuro e inclusive em algumas ocasiões tão negro que dava pavor. Os olhos de Cooper eram de um verde intenso, assemelhando-se a erva que aparecia em plena primavera. Os do senhor Bennett eram azuis. A moça os comparou com a cor que exibia o céu em um dia sem nuvens, embora duvidasse se a intensidade era similar.
«Três cavalheiros, ? disse para si ? três homens tão extraordinários quanto perigosos».
? Então... ? começou Federith a falar quando Beatrice fechou a porta e se sentou na poltrona contigua a que estava acostumado a ocupar William ? você vivia na suja cabana que nosso amigo possui junto ao rio Wye, é correto? ? A moça assentiu e este começou a perambular com as mãos agarradas atrás das costas. ? Ele a descobriu e por alguma inexplicável razão que nos indicará em breve, deixou-a viver ali. ? A jovem confirmou de novo com um suave movimento de cabeça. ? Ao encontrar-se desamparada, desprotegida e exposta ao terrível perigo de uma manada de lobos que vive no bosque, foi atacada por eles. Ele, estranhamente, ? arqueou as sobrancelhas ? decidiu passear à alvorada por suas terras e a descobriu ferida. Conduziu-a até Haddon, chamou o senhor Wadlow, o doutor veio e a atendeu com rapidez. Depois, justo antes de abandonar este lar, ambos os cavalheiros tiveram um pequeno encontro no qual discutiram sobre o repugnante comportamento de nosso amigo para com a cortesã. Correto?
Beatrice olhou ao duque atônita. Ninguém lhe tinha comentado que ambos os cavalheiros tinham tido a ocasião de discutir os pormenores de sua estadia em Haddon Hall. Tomou ar e abriu a boca para confirmar a narração do senhor Cooper, mas William se adiantou às suas palavras.
? Como pôde comprovar durante todos estes anos, ao correr o sangue de meu pai por minhas veias, ninguém duvida de que sou outro monstro ? esclareceu com serenidade.
? Bem, isso eu sei, mas minha pergunta é... como foi tão insensato de deixá-la abandonada nesse maldito lugar? ? Levantou o tom de sua voz e girando sobre seus calcanhares para enfrentar o duque.
? Eu o pedi ? respondeu rápidamente a moça.
? O que lhe pediu, o que? ? Participou Roger até agora calado e atento.
? Ele me devia um favor e lhe informei que saldaria sua dívida me deixando viver nesse pequeno refúgio ? respondeu elevando seu queixo e com aparente aprumo.
? Mon Dieu!(6) Você é uma inconsequente! Acaso não pensou o que poderia acontecer ao dono dessa cabana se tivesse morrido? ? disse com aborrecimento e aproximando-se da moça com passo firme.
? Roger... acalme-se. ? William ao observar a ira de seu amigo, dirigiu-se para Beatrice, colocou-se em frente a ela e parou a aproximação de seu amigo colocando sua mão no peito. ? Não estamos aqui para julgar as decisões da senhorita Brown, nem que razão a fez atuar dessa forma. Só quero que sua honra se reestabeleça porque ela não é minha prostituta.
? Nem tampouco sua pupila, William! ? Exclamou Bennett sem diminuir seu aborrecimento. ? Não recorda o que te aconteceu na última vez? Esqueceu o que te fez ficar como está? Não, claro que não, e possivelmente a senhorita Brown tampouco ? sorriu maléfico.
? Roger! ? Gritou Federith tentando que deixasse de falar.
? Se por acaso não foi informada desse incidente, minha querida senhorita Brown, ? disse com ironia ? a causa daquele duelo foi o engano insistente de uma esposa que, deitada nos braços do nosso amigo, afirmava em qualquer parte que era viúva.
? Cale-se, Roger! ? Voltou a clamar Federith.
? Eu gostaria que partisse da minha casa ? falou William com dureza.
? Quer que eu parta? Quer que não te proteja? Acaso esqueceu o que significa a amizade? ? Perguntou Roger sem diminuir sua fúria. ? Não, meu amigo. Não vou partir, seguirei ao seu lado como nos velhos tempos, mas desta vez não deixarei que cometa uma imprudência. Se o que deseja é que todo mundo pense ser ela é sua pupila e não sua prostituta, levarei a cabo minha missão e afirmarei com veemência qualquer coisa que me peça.
William se afastou da moça. Antes de dar dois passos para a corda com o qual chamava o senhor Stone, observou a cara de espanto de Beatrice. Estava aterrorizada pela violenta atuação de Roger e pelas ofensivas palavras que tinham emanado de sua boca. Apreciou também umas lágrimas que dissimuladamente tirou do pálido rosto. Com passo decidido se aproximou da corda, puxou com suavidade e, em silêncio e sob o atento olhar de seus amigos, esperou a chegada do mordomo.
? Acompanhe senhorita Brown à sala de jantar. Deve confirmar que os serviços que ofereceremos aos comensais estão em perfeita ordem ? ordenou ao Brandon ao entrar na habitação.
Beatrice levantou o olhar e examinou a dureza de seu semblante durante uns instantes. Havia fúria naquele rosto e os olhos se obscureceram ainda mais. Quis rejeitar a ordem, mas se encontrava tão frágil, desanimada e triste que, sem mediar palavra e com a cabeça encurvada, levantou-se e se dirigiu para o mordomo.
? Acompanhe-me, senhorita Brown. Acredito que a senhora Stone queria lhe pedir um conselho sobre a sobremesa que deveriam oferecer. Segue duvidando se oferece duas bolas ou três de sorvete. ? Falou com calma e, para surpresa de William, com uma ternura imprópria no criado.
Os três cavalheiros observaram a figura aflita da jovem. William apertou sua mandíbula com tanta força que lhe apareceu uma pequena dor de cabeça enquanto Federith meditava aquilo que sua mente de repente lhe mostrava. Roger, embora sentisse lástima pela angústia que mostrava a moça, não fez nada para controlar a irritação que sentia.
? Devemos nos acalmar. ? Federith foi o primeiro em falar depois que a porta se fechou. ? E William, tanto Roger como eu escutaremos com atenção o que esconde com tanto afinco.
O duque caminhou para a chaminé, apoiou o braço sobre a pedra e abaixou a cabeça.
? Amo-a ? disse sufocado. ? Amo Beatrice com todo meu coração. Não sei de onde procede, nem como chegou até minhas terras, mas o que sei é que se ela se afastar do meu lado, morrerei.
? Mon dieu! ? Exclamou Roger aplacando sua ira com rapidez. ? Podia ter começado por aí! ? Caminhou para seu amigo, deu-lhe uma forte palmada nas costas e, quando William girou para ele, deu-lhe um forte abraço.
? Sabia que algum dia encontraria a mulher que te roubaria esse coração gelado ? comentou Federith sorridente e repetindo o afeto carinhoso de Roger. ? Mas tem que pensar com clareza, William. Embora não se importe de onde procede a moça, deve averiguar quem é em realidade.
? Não me importa! ? Exclamou o duque com firmeza.
? Mas deve fazê-lo. Quem sabe que passado pode ocultar uma jovem como ela? ? Federith olhou com atenção seu amigo. Em verdade não sabia quem era a moça por quem se apaixonou.
Ele sim. Tinha-a reconhecido assim que a viu. Apesar de suas mudanças físicas, não ficava nenhuma dúvida de que era a filha do barão de Montblanc. Agora devia sopesar quando era o melhor momento para revelar a identidade da jovem ao seu amigo e como reagiria ao escutar a verdade.
XXII
Beatrice, apesar de seus intentos por aparentar entusiasmo quando a senhora Stone lhe perguntava pelos últimos detalhes, não podia deixar de sentir-se triste. As palavras do senhor Bennett não cessavam de lhe assaltar e, por muito que lhe custasse admiti-lo, tinha razão. Jamais pensou nas consequências que sofreria o duque se ela tivesse morrido. Não só o teriam acusado de assassinato, mas sim o encarcerariam sem duvidá-lo. Aflita pela loucura que cometeu sem pensar, sentou-se em uma das cadeiras que rodeavam a mesa da cozinha.
? O que te acontece, pequena? ? Perguntou Hanna aproximando-se dela por trás e lhe beijando a bochecha.
? Posso lhe fazer uma pergunta? ? Seu fio de voz era tão fraco que a anciã assustada se sentou ao seu lado.
? Todas as que desejar ? respondeu agarrando com força as mãos da jovem.
? O que teria acontecido se o duque não tivesse me encontrado na cabana?
? Quando foi ferida? ? Hanna arqueou as sobrancelhas.
? Não. A primeira vez que me viu, quando o encontrei ferido ? esclareceu.
? Se não o tivesse encontrado, o duque haveria falecido e todos os que habitam nesta casa também ? afirmou sem duvidá-lo. ? Apesar dos intentos que tem feito as pessoas para mostrar que é um ser desumano, os que lhe conhecem desde que saiu das vísceras de sua mãe sabem que não é certo.
? E se eu houvesse falecido depois do ataque? ? Girou-se para a mulher para não perder nenhum detalhe de sua expressão.
? Todos nós teríamos sentido dor por sua desgraça, mas ele... ? levantou-se do assento e caminhou para os fogões.
? Mas ele? ? Insistiu elevando-se também da cadeira e posicionando-se ao seu lado.
? Ele não se recuperaria jamais da perda ? sussurrou.
? Por que, senhora Stone? Pode me dizer por que sabia que me responderia isso? ? Seu tom soava afogado, como se alguém a estivesse estrangulando.
? Isso terá que perguntar a ele. Se for sensato, dir-lhe-á a verdade.
Beatrice a olhou durante uns instantes. Sem desviar o olhar da mesa, ficou calada duvidando sobre se deveria insistir ou não um pouco mais no tema. Quando abriu a boca decidida continuar a conversa que começara, a porta da cozinha se abriu.
? Estava procurando-a ? disse William com uma emoção estranha. ? Acabam de chegar os primeiros convidados e temos que recebê-los adequadamente. ? Dirigiu o olhar para Hanna e lhe falou. ? Senhora Stone, tudo preparado?
? É claro! ? Exclamou com entusiasmo. ? Não haverá uma festa no condado de Derbyshire que alcance a nossa. ? Os olhos da anciã brilhavam de gozo. Não havia dúvida que a mulher adorava ao duque e que, vê-lo feliz depois de tanto tempo sumido na escuridão, fazia-a muito ditosa.
? Nesse caso, ? estendeu o braço para Beatrice ? se for amável em me acompanhar.
A moça assentiu com suavidade, aferrou seu braço ao do homem e juntos saíram da cozinha para a recepção. Hanna o observou em silêncio e rezou pedindo a Deus que o moço não deixasse passar a oportunidade de abrir seu coração.
Até que não dirigiu seus olhos verdes para o exterior da mansão e descobriu as incontáveis carruagens estacionadas no jardim, permaneceu tranquila, sossegada, mas quando foi incapaz de enumerá-los, seu corpo se encheu de pavor e notou um tremorzinho inoportuno nos joelhos. Já acontecia, não havia possibilidade de cancelar nada, só podia respirar e desenhar um enorme sorriso no rosto.
Os convidados subiam pelas escadas saudando com entusiasmo aos casais que se encontravam ao seu passo. Os casais ascendiam agarrados pelos braços enquanto que os jovens, com ou sem idade de propostas conjugais, seguiam-lhes muito de perto. Como era de esperar, os maridos exibiam sóbrios trajes de jaqueta que cobriam com uma enorme capa e estilizadas cartolas, as esposas, ao contrário deles, apresentavam um extenso colorido que tentavam ocultar sob seus casacos. Beatrice observou com atenção os penteados destas: caracóis, coques embelezados por flores, incríveis entrelaçados e inclusive uma ou outra parecia atrever-se a mostrar o típico penteado de sua rainha. De repente, as vozes do público deixaram de escutar-se ao longe. A jovem começou a notar certo sufoco percorrer seu corpo, as mãos escorregavam devido ao suor e precisou tragar várias vezes para fazer desaparecer o nó de saliva que lhe apertava a garganta. Mas então, um pequeno calor que provinha de sua orelha fez com que todos os sufocos desaparecessem. O duque foi quem, ao lhe sussurrar, ofereceu-lhe aquele hálito quente.
? Tranquilize-se, tudo sairá bem e, se algum destes honoráveis assistentes desejarem te magoar, não ficará mais remedeio que enfrentar a minha ira. ? E sem pensá-lo, aproximou sua boca da pálida bochecha feminina e lhe deu um terno beijo.
? Sua Excelência... ? advertiu Brandon com seriedade ? o senhor e a senhora Jenkins.
? Boa tarde, milord ? saudou um homem de avançada idade que apertava com força um monóculo em seu olho esquerdo. ? Obrigado por seu convite. A minha esposa ficou muito feliz ao receber a notícia ? estendeu a mão para afiançar a saudação.
? Boa tarde, senhor Jenkins. Causa-me pena saber que só sua esposa recebeu com agrado a missiva ? disse sem apagar o sorriso de seu rosto.
? Não dê atenção a este resmungão! ? Exclamou rapidamente a senhora Jenkins. ? Ele também se sentiu ditoso. ? A mulher era mais baixa que Beatrice, mas tinha um corpo bastante volumoso. Vestia um rigoroso luto e a renda que adornava seu vestido conseguia cobrir até o pescoço.
? Senhor Jenkins e senhora Jenkins lhes apresento à senhorita Brown, minha pupila.
? É uma honra conhecê-la, senhorita Brown ? disse o ancião ao mesmo tempo em que tomava a mão juvenil para beijá-la. ? Em Rowsley não há outro tema de conversação salvo a sua inesperada aparição.
? Igualmente, senhor. Embora lhe advirta que os rumores proclamados sobre minha permanência em Haddon Hall são falsos. Não sou a prostituta do duque, mas como já bem foi dito, sua pupila ? expôs sem hesitações. Não lhe tinha tremido a voz. Não tinha mostrado a inquietação que sentia no interior. Seus sentimentos pareciam controlados, mas quando William a olhou e sorriu para lhe mostrar sua conformidade, ruborizou-se e um estranho calor começou a emergir do mais profundo de seu ser.
? Falatórios! ? Exclamou a anciã mal-humorada. ? As pessoas estão tão aborrecidas que se dedicam a divulgar mentiras de outros. Não faça conta, senhorita Brown, todo mundo quer lhe machucar porque conseguiu o que ninguém alcançou. ? Aproximou-se de Beatrice e lhe deu um sonoro beijo.
? E o que não conseguiram, senhora Jenkins? ? Perguntou sorridente.
? Seu coração ? sentenciou antes de agarrar o braço de seu marido e caminhar para o lugar que lhe indicava um dos criados.
? Sua Excelência ? o voltou a reclamar Brandon. ? O senhor e a senhora Brace.
? Milord, senhorita Brown ? disse o pároco com cordialidade. Estendeu a mão para o duque para saudá-lo e logo fez o mesmo com a moça.
? Beatrice! ? Exclamou Lídia abraçando a jovem com força. ? Está linda! Parece uma autêntica rainha.
? Boa tarde, Lídia ? respondeu em voz baixa. Ainda se encontrava em estado de choque pelas palavras da atrevida anciã. Como iria ela roubar o coração de um homem que, conforme diziam, não possuía? ? Bem-vinda ? exalou quando a mulher deixou de abraçá-la com tanto ímpeto e pôde tomar um pouco de ar.
? Está bem? ? Arqueou a mulher as sobrancelhas ao vê-la tão pálida.
? Sim, embora tenha que admitir que acabasse ficando muito cansada com a preparação ? expôs.
? Bom, calma, tudo está lindo e... – aproximou-se de seu ouvido para sussurrar ? segundo os novos rumores, toda Rowsley espera conhecer a famosa pupila.
? Não sei se tomo isso como um elogio ou como uma ofensa ? disse Beatrice sorridente.
? Bobagens! Já verá como ao final todos esses arrogantes terminarão comendo em sua mão!
? Lídia, por favor, comporte-se! ? Exclamou o senhor Brace zangado ao escutar a ousadia de sua mulher.
? Sua Excelência ? voltou a interromper Brandon.
? Bom, queira nos desculpar, ? comentou a senhora Brace segurando seu marido e caminhando para onde outro criado lhes conduzia ? deixaremos que outros tenham também seu tempo de recepção.
? O senhor e a senhora Payne ? prosseguiu o mordomo.
Depois de quase uma hora recebendo aos assistentes, por fim William e Beatrice puderam dirigir-se para o salão para acompanhá-los. O duque lhe ofereceu de novo seu braço e ela o aceitou. Com passo firme, fizeram sua entrada. A moça teve que respirar com profundidade antes de acessar o interior. Um incessante desgosto lhe impedia de conseguir manter-se em equilíbrio.
? Relaxe, ? sussurrou-lhe William ? o mais difícil já passou. Agora fica conversar, dar-lhe de comer e dançar.
Beatrice olhou-o de esguelha e sorriu levemente. Apesar de suas constantes palavras de encorajamento, ela não achava a paz que necessitava para poder aguentar as próximas horas. Dirigida pelo duque, introduziram-se no salão onde descobriram que os homens se colocaram no lado esquerdo e as mulheres no direito. A moça liberou o braço do homem e, depois de respirar profundamente, dirigiu-se para o grupo feminino. Esperava que a senhora Brace, a senhora Wadlow e a inesperada senhora Jenkins a ajudassem em qualquer infortúnio.
? Gostaria de nos dar sua opinião? ? Perguntou a esposa do senhor Wood, um comerciante que teve sorte nos afortunados investimentos no estrangeiro.
? Se forem tão amáveis de me indicar do que se trata, tentarei-o ? disse a moça sorridente.
? A opinião da esposa do pároco é que nossos vestidos se verão influenciados satanicamente pela moda europeia. Conforme acredito, se as tendências evoluírem, a visão que a sociedade tem não nos prejudicará, mas sim, ao contrário, nos fortalecerá ? expôs com seriedade.
? Isso é absurdo! ? Exclamou Lídia sufocada. ? Uma mulher deve mostrar respeito, reparo e castidade. Acaso não viu que esses vestidos deixam visíveis os tornozelos?
? Possivelmente algum dia possamos votar ? murmurou com suavidade uma moça que se colocava ao lado da senhora Jenkins.
? É muito jovem para pensar essas coisas – respondeu-lhe com ternura a senhora Wadlow. ? Embora se isso for verdade, seria a primeira em levar minha cédula. Estou cansada de sofrermos pelas decisões dos homens. Se alguma vez uma mulher estiver no poder, muitas das atrocidades que eles fazem sem pensar, seriam desculpadas.
Beatrice olhou para o grupo de cavalheiros. Sorriam e pareciam manter umas conversações divertidas. Ela riu levemente ao imaginar a cara que fariam os maridos após escutar as opiniões das dóceis mulheres. De repente, seus olhos se dirigiram para uns olhos azulados que a observavam com atenção. A moça pensou que o senhor Bennett seguia zangado com ela por ter posto em perigo seu amigo, mas quando esteve a ponto de apartar o olhar, o homem lhe ofereceu uma suave saudação com a cabeça e lhe sorriu.
? Se forem tão amáveis, ? disse o duque em voz alta depois de ser informado por Brandon que a sala de jantar estava preparada – dirijamos-nos para o salão contiguo onde nos servirão um suculento jantar.
Cada marido procurou seu par. As jovens solteiras caminhavam juntas e os moços atrás, em grupo. Pouco a pouco tomaram assento. William, como anfitrião, sentou-se em um extremo da mesa, justo a que havia ao lado das mesas onde os pratos estavam ocultos embaixo de grandes tampas de metal. Beatrice duvidou onde devia colocar-se. Olhava um assento e este era ocupado com rapidez. Olhava para outro e ocorria o mesmo.
? Nosso William não foi um verdadeiro cavalheiro ? comentou Roger atrás dela. ? Venha comigo, acompanharei-a ao seu assento. ? Ofereceu-lhe o braço e ela apoiou sua mão com delicadeza. ? Encontra-se bem? Tratou-a adequadamente esse grupo de galinhas? ? Beatrice esteve a ponto de soltar uma gargalhada ao escutá-lo, mas se conteve e só esboçou um leve sorriso.
? Não imagina o que pensam essas galinhas – sussurrou-lhe divertida. ? Muitas delas lhes deixariam sem essa virilidade que tanto desejam aparentar.
? OH, mon Dieu! Espero que meu coração seja racional e não se apaixone por uma mulher assim.
? Não estou tão segura disso, senhor Bennett. Não sei por que acredito que se apaixonará por uma mulher muito parecida com você ? disse zombadora.
? Será jovem? ? Arqueou as sobrancelhas.
? Se Deus for justo, não ? sentenciou com o mesmo tom jocoso.
Quando Beatrice descobriu a cadeira que devia ocupar, petrificou-se. Esse não era seu lugar, posto que fosse o espaço que devia guardar-se para a futura duquesa e ela não devia invadi-lo. Procurou com o olhar ao William, pedindo-lhe auxílio, mas ele assentiu com a cabeça, dando-lhe permissão para acomodar-se nele.
? Então, senhorita Brown... ? começou a falar o ancião senhor Jenkins ? você é a pupila de lorde Rutland.
? Sim, senhor ? respondeu tentando não derrubar os talheres que segurava nas mãos.
? E, que tal é como professor?
? Excelente! ? Exclamou Irina com rapidez. ? Outro dia tivemos o prazer de vê-lo com nossos próprios olhos e escutá-lo com nossos ouvidos.
? Ah, sim? ? Perguntou o ancião arqueando as sobrancelhas.
? A senhorita Brown nos deleitou com uma formosa valsa de Chopin ? interveio o senhor Wadlow.
? Qual delas? Porque Chopin é famoso pela composição de inumeráveis valsas.
? Primavera ? disse William em tom sério, protetor, dominante. ? A valsa mais formosa que Chopin tem composto em sua famosa vida.
Beatrice o olhou nos olhos e observou a severidade de seu rosto. Como lhe tinha prometido, velava por ela.
? Conforme contam, ? interveio Federith ? essa valsa o compôs para uma jovem pela qual se apaixonou perdidamente. Acredito que estiveram comprometidos em segredo, mas que a família desta anulou o acordo quando descobriram sua enfermidade.
? OH, que dramático! ? Exclamou uma das jovens que se abanou com a mão, enquanto tentava esconder com esse gesto os furtivos olhares para Roger.
? O amor pode ser tão doloroso como formoso – continuou. ? Às vezes, quando você acha que encontrou a pessoa que irá acompanhá-lo no bem e no mal, tudo desaparece sem ser capaz de evitá-lo.
Beatrice o olhou com tristeza. Enquanto não escutou as palavras sobre tal afirmação não meditou sobre isso. Não entendia como podiam existir matrimônios desventurados pelos acordos que realizavam os progenitores assim que a prole nascia. Seus pais se amaram desde crianças e, embora tivessem passado mais de trinta anos desde que se comprometeram e casaram, seguiam amando-se como no primeiro dia.
? Por isso, mon ami... ? disse com rapidez Roger para fazer desaparecer o estado de tristeza que as palavras de seu amigo tinham produzido. ? Jamais haverá uma senhora Bennett por minha parte! ? Alguns cavalheiros sorriram brandamente, umas damas murmuraram sobre a desafortunada revelação e outras, sobretudo as jovens casadouras, emitiram suspiros de pena.
Depois da pequena reunião, os convidados se dispuseram a degustar os pratos que lhes serviam. Beatrice, cada vez que lhe era possível, observava ao duque. Este, em mais de uma ocasião, parecia inquieto ao ter que ser ajudado pelo senhor Stone. A jovem teve o inapropriado desejo de levantar-se e colocar-se ao seu lado para ocultar aquilo que tanto lhe alterava, mas não podia fazê-lo. Ele tinha que mostrar-se tal como era e se isso incluía esconder a mão nas alças de suas jaquetas, que assim fosse. Entretanto, o que o homem não sabia era que, em que pese a acreditar uma pessoa débil e inútil, não o era. Bastava-lhe tão somente o suave movimento da cabeça para demonstrar seu poder. Todos os que lhe rodeavam o consideravam uma pessoa com caráter, julgamento e impetuosidade e Beatrice pôde confirmá-lo ao ver como os cavalheiros, depois de suas exposições, dirigiam as olhadas para o duque esperando que ele assentisse.
Um suave murmúrio começou quando apareceu a sobremesa. Ao final a senhora Stone decidiu colocar sobre uma pequena parte de pudim uma bolinha de sorvete. Isso deixou os convidados maravilhados. Alguns, como indicaram ao levar o primeiro pedaço à boca, nunca tinham provado o sorvete e outros nunca o tinham misturado com pudim. Fosse como fosse, todos ficaram encantados com a inovação, incluída a senhora Brace, que não deixava de sorrir e pôr os olhos em branco em cada colherada.
? É hora do baile ? informou William ao perceber que todo mundo tinha terminado. ? Se não desejarem mover seus pés ao ritmo da música, habilitamos uma sala em que se oferecerá licor e onde poderão apostar tudo o que tiverem nos bolsos.
Depois do anúncio, os convidados se levantaram e se dirigiram para as diferentes salas. Beatrice esperou para tomar a mão de William, mas este não chegou a tempo, o jovem Bennett se aproximou e a ofereceu.
? Espero que não tenha a primeira dança reservada – disse-lhe com um enorme e bonito sorriso.
? Não, por enquanto ninguém me pediu nenhuma peça ? respondeu colocando sua mão sobre seu braço.
? Não será por falta de vontade, minha querida senhorita Brown. ? Caminhou devagar para o salão onde, inclusive antes de entrar, escutava-se a melodiosa música.
? Então, o que você crê que impede a todos esses cavalheiros de dançar comigo? ? Arqueou as sobrancelhas e o olhou zombadora.
? O medo – sussurrou-lhe enquanto a colocava em frente a ele para iniciar a dança.
? Medo de mim? ? Perguntou surpreendida e um tanto desconcertada.
? Não, de William. Imagino que ninguém é tão louco para tocar a sua pupila ? disse levantando a mão e fazendo-a girar.
? Salvo você ? comentou depois da volta.
? Eu jamais a tocaria com perversidade. Por muitas barbaridades que lhe tenham contado sobre mim, respeito e respeitarei as mulheres de quem considero meus irmãos ? declarou antes de lhe segurar a cintura e começar uns pequenos saltos para o lado direito.
A moça foi incapaz de falar depois de escutar o que o senhor Bennett lhe declarava. Ficou tão surpreendida que não pôde ouvir os intérpretes nem confirmar se seus passos tinham sido os adequados. Por que lhe havia dito isso?
«As joias! ? Exclamou para si. ? Foram as joias!». Meditou uma e outra vez sobre a inoportuna decisão de Lorinne para que as exibisse quando, terminou a canção e começou a seguinte.
Despediu-se de Roger com um leve movimento de cabeça, tentou dirigir-se para o grupo de mulheres quando alguém a chamou.
? Conceder-me-ia esta dança? ? Perguntou Federith estendendo a mão direita com a palma para cima.
? É claro. Será uma grande honra ? comentou sorridente.
Federith a conduziu de novo para o centro do salão, saudou-a com uma exagerada reverência e a segurou pela cintura. A peça a dançar era uma valsa.
? Está se divertindo, senhorita Brown?
? Sim. E você? ? O casal deu uma pequena volta sobre eles mesmos e continuaram com suavidade.
? Mais do que pensei ? respondeu esboçando um leve sorriso.
A música continuava tocando. Beatrice acreditou que depois da última afirmação de Federith, este resolveria sua conversação, mas justo quando estava a ponto de acabar, no último giro entre eles, sua boca se aproximou muito ao seu ouvido para lhe perguntar.
? Conhecemo-nos de algum lugar?
? Se tiver vivido longe daqui, acredito que não ? disse tentando dissimular seu sobressalto.
? De onde disse que era? William não fez alusão a isso.
? Imagino que o duque se preocupou com coisas mais importantes como compreender por que sua esposa não lhe acompanha e por que disse aquelas palavras tão tristes no jantar ? indicou sem respirar e pedindo desculpas a Deus por magoar um homem que, com o coração quebrado, explicava a dor que causa amar a uma pessoa que não lhe correspondia.
? Está grávida ? respondeu depois de respirar e fazer restabelecer sua pose.
? Felicidades! ? Exclamou com alegria. ? Estará você muito feliz de converter-se em pai ? continuou falando enquanto Federith a conduzia para o grupo de mulheres.
? Sinto-me muito ditoso de esperar um filho, embora minha esposa esteja passando muito mal. Mal pode mover-se pela casa e se cansa tanto que, como pode imaginar, seria imprudente fazê-la viajar.
? É óbvio.
? Obrigado pelo bate-papo, senhorita Brown.
? Obrigada pela dança, senhor Cooper.
Federith, com o aprumo que lhe caracterizava, dirigiu-se para o grupo de cavalheiros que se encontravam no lado oposto das mulheres. Aproximou-se de William, disse-lhe algo ao ouvido e logo abandonou a habitação. Beatrice sentia seu coração na garganta e notava como suas pernas começavam a cambalear-se. Com rapidez procurou uma cadeira onde sentar-se.
? Encontra-se bem? ? Quis saber a senhora Wadlow preocupada.
? Só cansada. Essas duas danças calorosas me deixaram exausta ? explicou.
Uma vez que recuperou o fôlego, olhou ao duque, que falava com um dos convidados. Beatrice, ao ver como franzia o cenho, tentou recordar quem era o homem que incomodava William com suas palavras, mas não o conseguiu. Brandon tinha anunciado tantos nomes e ela estava tão nervosa que, em algum momento da recepção, ela deixou de prestar atenção.
? Senhorita Brown... ? uma voz estranha para ela apareceu pela sua direita.
? Sim? ? Perguntou arqueando as sobrancelhas e sorrindo.
? Permitiria-me a seguinte dança? ? No olhar do moço Beatrice observou algo estranho. Não conseguia saber o que era, mas não tinha a mesma claridade que a mostrada pelos amigos do duque. ? Se não estiver muito cansada, é claro ? continuou, mas ao estender a mão para ela, evitou qualquer negação.
Contra sua vontade, a moça se levantou e, apoiando sua mão sobre o braço do jovem, retornou ao centro do salão. Todos os casais estavam parados, as mulheres em frente aos homens. O primeiro acorde soou e eles lhes ofereceram as mãos direitas. Elas as agarraram e, depois de três notas seguidas em dó menor, começaram a dança. O moço seguia com os olhos cravados nela. Observando cada detalhe de seu corpo, cada parte de pele que estava sem cobrir. Em uma das breves aproximações que houve na dança, Beatrice escutou como inspirava com força para apanhar o aroma que ela desprendia. Tentou manter o sorriso, a postura, mas era incapaz de aguentar por mais tempo aquelas suarentas palmas pegas ao seu corpo.
Sua mente procurou alguma desculpa coerente para cessar a dança e deixar de sentir aquela repugnante angústia. Não obstante, não achou nenhuma até que elevou o olhar e observou como o duque abandonava a sala e se dirigia para o balcão. Caminhava sereno, reto e saudava seu passo como se nada lhe perturbasse. Entretanto, Beatrice sabia que algo grave tinha ocorrido. Talvez aquele homem tivesse lhe dito algo que lhe provocou tal irritação e ele decidiu sair para tomar um ar.
«Isso!», exclamou a moça para si. Parou-se em seco, olhou ao moço com tristeza.
? Desculpe-me, estou mais cansada do que pensei.
? Posso ajudá-la em algo? Um copo de água, talvez? ? Estendeu sua mão para segurar o pequeno braço e dirigi-la de novo para o lugar onde se encontravam as mulheres.
? Não se incomode. Acredito que o ar fresco da noite me sentará bem ? indicou.
? Como desejar ? respondeu o moço com um sorriso de orelha a orelha ao acreditar que lhe insinuava que se afastassem da multidão.
? Não me acompanhe, posso fazê-lo sozinha. Além disso, como vou retirar da sala um galante com tantas propostas na sala? ? Dirigiu seu olhar para as jovenzinhas e sorriu.
? Elas não me interessam, senhorita Brown ? disse com firmeza e certo mal-estar.
? Pois a mim, você, tampouco. ? Segurou com suavidade o vestido com ambas as mãos, fez uma pequena inclinação e, sem parar para contemplar a irritação que devia expressar o moço, caminhou decidida para o exterior.
Tal como tinha imaginado, a lua cheia brilhava com esplendor. Os campos pareciam como se começasse a amanhecer. Beatrice percorreu com o olhar todo o comprido corrimão. Onde estava? Para que lugar tinha ido? Avançou uns passos e deixou que seus olhos se adaptassem melhor à mudança de luz. De repente sorriu. O duque permanecia de pé no lado esquerdo do balaústre. Mal podia vê-lo com claridade porque se colocou ao final deste. Com segurança, Beatrice caminhou para ele. Quanto mais se aproximava, mais euforia sentia, mais rápido pulsava seu coração, as mãos lhe suavam e voltou a notar aquelas vespas fincando incessantemente seu ferrão no estômago. Freou os passos ao situar-se atrás das costas do homem que parecia não ser consciente de sua presença.
? Não entendo como pode olhar para o chão quando deve admirar a beleza da lua ? falou com um suave fio de voz.
? Senhorita Brown! ? Exclamou assombrado e girando-se para ela. ? O que faz aqui?
? O mesmo queria lhe perguntar. Por que nos abandonou? ? Deu um passo, um só passo, para colocar-se ao seu lado e para que a lua lhe mostrasse o rosto do homem que, sem lugar a dúvidas, amava.
? Precisava tomar o ar fresco da noite ? mentiu. Colocou sua mão direita nas costas e com tom grave disse. ? Não estava dançando com o jovem Rawson?
? Cansei-me com rapidez ? respondeu sem apartar seu olhar do rosto viril. Observou como este voltava a enrugar a testa e apertar os lábios.
? Pois não deveria fatigar-se. Muitos dos cavalheiros convidados me pediram permissão para lhe solicitar uma dança ? continuou com o tom sério, impessoal.
? E o concedeu? ? Perguntou assombrada.
? O que quer que lhes diga? ? Girou-se para ela e franziu ainda mais o cenho. ? Digo-lhes que não?
? Exato! Diga-lhes que deve velar pela saúde de sua pupila e que se me deixarem exausta amanhã serei incapaz de aprender algo.
William a olhou com assombro e soltou uma sonora gargalhada que acompanhou Beatrice. De repente, apartou a mão de suas costas e a dirigiu para a bochecha da moça.
? Deveria partir. Não é apropriado que nos descubram aqui sozinhos. As pessoas poderiam...
? Não gosta de dançar? ? Interrompeu-lhe antes que continuasse dizendo o que ela não queria escutar.
? Eu gostava, mas deixei de fazê-lo. ? Apartou a mão do rosto da moça e a colocou no corrimão.
? Por quê? ? Beatrice se aproximou tanto a ele que pôde notar como a tiara que embelezava seu cabelo tocava o braço do homem.
? Por que crê?
? Está sem dançar desde...? ? Uma imensa tristeza sacudiu o pequeno corpo da moça. Seus olhos verdes se cravaram no rosto do homem. A lua o iluminava e revelava o pesar que sofria. Sem pensar duas vezes, a moça esticou sua mão direita para a alça da jaqueta e a separou, deixando que o braço inerte do duque caísse para o chão.
? Como se atreve...? ? Começou a dizer William zangado.
? Quero minha dança ? sussurrou a moça sem fazer diminuir sua decisão apesar de observar o aborrecimento que mostrava o duque em seu rosto. Segurou a mão esquerda entre a sua, colocou a direita em sua cintura, elevou o olhar e prosseguiu. ? Concede-me isso?
? Beatrice... ? murmurou tão baixo que nem ela mesma pôde escutá-lo com claridade.
De repente começou a soar sua valsa, que havia tocado na tarde com os Wadlow. A jovem pousou sua cabeça no peito viril e deixou que William a dirigisse. Não foi uma dança tão impetuosa como a do senhor Bennett, nem tão precisa como a realizada com o senhor Cooper e, nem muito menos a moça decidiu separar-se do duque com a necessidade que lhe urgiu com o jovem Rawson. Foi tão diferente quanto estranho. A mão esquerda de Beatrice segurou a do duque com tanto ímpeto que desejou que este o sentisse. O queixo de William se apoiava com suavidade sobre seu cabelo e inspirava com suavidade a essência da jovem. Os ligeiros vaivéns fizeram com que ambos os corpos se tocassem sem pudor. Cada nota musical incitava a não se separarem, a não se afastarem um do outro. Beatrice fechou os olhos e deixou que umas lágrimas de emoção banhassem suas bochechas. Não quis faze-las desaparecer enxugando-as no colete dele. Não podia eliminar os sinais que oferecia seu coração ao sentir por fim o que era um amor verdadeiro.
A serenidade tinha desaparecido. Era a primeira vez em sua vida que as pernas lhe tremiam apesar de senti-las fortes. Não podia respirar. Faltava-lhe o ar e não escutava o pulsar de seu coração. Teve que partir da sala para não ser testemunha de como o filho do presunçoso senhor Rawson, pedia permissão para que este dançasse com ela.
«À sua Excelência não importará, porque, conforme apreciei, é a apresentação de sua pupila e não da futura duquesa de Rutland, não é?». E o que lhe tinha respondido? Nada, só franziu o cenho e, graças à rápida intervenção de Roger, não lhe respondeu que se lhe ocorresse tocá-la, matá-lo-ia. E agora, apesar de fugir de Beatrice para que fosse feliz com outra pessoa e não com um ser incapaz de picar a carne e cortá-la ao mesmo tempo, estava dançando com ele. A pequena mulher que não lhe alcançava o ombro, era a única pessoa que tinha insistido em dançar segurando sua inutilidade para apertá-la com os suaves dedos femininos. A única mulher que o tinha cuidado e, em vez de debilitá-lo, elogiava-o, oferecia-lhe o empurrão que necessitava para ser o homem que uma vez foi. William apertou com suavidade o queixo no cabelo da moça para que esta o olhasse. Ela, entendendo seu gesto, elevou com delicadeza o queixo deixando que o homem apreciasse suas lágrimas de emoção.
? Beatrice... Beatrice... ? sussurrou aproximando sua boca das bochechas e beijando o lugar por onde as gotas as tinham molhado.
? William... ? murmurou fechando os olhos.
? Repete meu nome outra vez, suplico-lhe ? aproximou seus lábios dos dela tanto que, com o mínimo movimento, acariciavam-se.
? William, meu querido William... ? ao escutar seu nome da boca da moça, este sentiu um gozo tão imenso que lhe resultou estranho ao mesmo tempo em que formoso.
Fez com que sua boca impactasse com a dela com tanta intensidade como necessidade. Desta vez não começou com uma carícia leve, esperando ser rejeitado a qualquer momento, mas sim a beijou com força, com decisão, com toda a paixão que sentia e que não podia ocultar por mais tempo.
Beatrice foi incapaz de abrir os olhos. A razão disso não era a vergonha que deveria sentir ao ser beijada sem pudor nem reparo, mas sim as pálpebras que lhe pesavam devido à paixão. A queimação de sua virilha fervia e as vespas se liberavam de seu estômago após furá-lo. Sentiu-se ditosa e perturbada ao notar que o membro do duque começava a endurecer. Mas não tinha medo. Estava segura de que se ela parasse, este cessaria também sem pedir explicações ou sem obrigá-la a fazer aquilo que não desejava. De repente surgiu uma estranha frieza em sua boca. Atordoada pelas sensações que lhe causavam ser beijada pelo duque, abriu os olhos e contemplou uns olhos escuros repletos de fogo.
? Quero que saiba que a respeito e que meus beijos para você são incontroláveis ? sussurrou à meia voz devido ao seu estado de excitação.
? Quero que saiba que o respeito e que meus beijos... ? tentou repetir antes que o duque voltasse a beijá-la com aquela ansiedade que lhe mostrava o muito que a desejava.
? Cof, cof! ? Alguém tossiu próximo a eles.
? Roger! ? Exclamou William assombrado. ? O que faz aí? ? Avançou um passo para o homem e cobriu com seu corpo o de Beatrice.
? Vim lhes advertir que as pessoas murmuram sobre onde se encontrarão o tutor e a pupila ? disse reticente. ? Imaginei que ao luzir esta noite uma deliciosa lua cheia, o... tutor teria saído ao balcão para explicar à sua... pupila que essa preciosidade tem quatro fases: minguante, crescente, nova e cheia. Equivoco-me?
? Acompanhe-a ao interior, eu entrarei por aquela janela alí e ninguém pensará se estava com seu tutor vendo a lua ou se recuperando das insistentes garras de um jovenzinho descarado ? resmungou.
? Refere-se ao inofensivo Rawson? ? Arqueou as sobrancelhas e mostrou um amplo sorriso.
? O próprio ? disse William sério.
? Mon amie... ? sussurrou Roger após aproximar sua boca do ouvido de seu amigo. ? Nós fomos mais perigosos que esse jovenzinho inexperiente. Se não recordar mal, ao final conseguíamos elevar as pomposas saias.
William ficou petrificado. Não soube como tomar as palavras de seu amigo. Tragou saliva, girou-se para Beatrice e, apesar da presença de Roger, beijou-a com doçura nos lábios.
? Ele te conduzirá de novo ao salão. Não desejo que as pessoas finalizem um rumor e comecem outro.
? E você? ? Colocou as palmas ao redor do rosto masculino e o olhou aos olhos.
? Quando puser esta mão em seu lugar, farei ato de presença pela entrada principal. Se alguém me perguntar, direi-lhe que meu mordomo requeria minha presença para resolver um tema urgente.
? Mas...
? Allez, mademoiselle(7). Os convidados nos esperam ? estendeu o braço e Beatrice, cabisbaixa, aceitou-o. Devagar, caminharam para a entrada.
William teve que apoiar-se no corrimão para não cair. As palavras de seu amigo tinham lhe causado tamanha debilidade que quase o fizeram ajoelhar-se. Sentia-se um miserável, um canalha por ter feito sofrer os maridos de suas amantes. Agora entendia o padecimento e a vergonha daqueles homens que, depois de descobrir que seu amor não era correspondido, eram humilhados. Agora entendia a razão pela qual ele jamais quis apaixonar-se e oferecer seu coração a uma mulher.
Apartou as lágrimas de seu rosto, caminhou com integridade para a entrada e se dirigiu para a sala onde o licor e as apostas incrementavam a felicidade dos convidados.
XXIII
À manhã seguinte, Beatrice era incapaz de levantar-se, estava exausta do baile e das emoções que viveu nele. Só conseguiu levantar um pouco as pestanas quando Lorinne entrou na habitação e correu as cortinas para que a luz entrasse no interior.
? Boa tarde, que tal se encontra? ? Disse a donzela aproximando-se de sua cama e sentando-se nela.
? Cansada, mais do que acreditei ao me deitar ontem ? comentou sonolenta.
? Pois tem que preparar-se, sua Excelência a espera na biblioteca, deseja conversar com você antes de almoçar – informou-lhe. No rosto da criada se desenhou um sorriso tão enorme que Beatrice a olhou com os olhos entreabertos. ? A festa resultou mais produtiva do que se imaginou, não é?
? Não sei a que se refere ? disse enquanto se sentava sobre o colchão e apartava os lençóis de suas pernas.
? Quero dizer que todo mundo ficou contente. Ninguém pôs queixa alguma e a você viu-se muito feliz. ? Levantou-se e caminhou para o roupeiro para procurar um vestido para a moça. Só ficavam dois por usar: um dourado, que rejeitou sem nem o ver, e um de cor rosa.
? Feliz? ? Levantou-se com rapidez, aproximou-se da bacia e se lavou o rosto.
? Acaso fingia? ? Perguntou surpreendida a moça.
? Não, Lorinne, sentia-me muito feliz, mas tem que compreender que devido aos rumores que se propagaram por Rowsley quis que todo mundo soubesse que não me preocupavam porque não eram certos.
? Bem... ? disse a donzela lhe colocando o vestido escolhido. ? Então, depois de desculpar esse cochicho e de deixar claro que você é a pupila de nosso senhor, o que acontecerá agora?
A pergunta resultou tão dolorosa para Beatrice como um bofetão na cara. As palavras inocentes da moça despertaram-na bruscamente do sonho, aquele que inventou com tanta insistência para outros que terminou por acreditar ela mesma. Como tinha sido tão tola? Como foi tão inconsequente? Para o duque ela era a senhorita Brown não a senhorita Lowell, filha do barão de Montblanc. Para ele, seus pais faleceram e a verdade era que viviam na residência familiar que possuíam nos subúrbios de Londres. Para ele somente era uma camponesa e a realidade era que se tratava da filha ultrajada de um barão...
? Sinto se minhas palavras a ofenderam ? comentou Lorinne com tristeza. ? Não foi minha intenção perturbá-la.
? Não! ? Exclamou a jovem girando-se para ela e exibindo um sorriso. ? Não se sinta culpada de nada, foi sincera e lhe agradeço isso. Tem razão, Lorinne, não tinha pensado no futuro. Estava tão entretida com a festa e em fazer desaparecer esses rumores que tinha esquecido qual é meu verdadeiro lugar neste mundo.
? Mas eu... eu não quero que... ? tentou desculpar-se a compungida moça.
? Calma. Não se preocupe, se tudo sair como espero, logo poderei te responder essa pergunta. ? Deu-lhe um pequeno beijo na bochecha, olhou-se no espelho e, depois de ajeitar o vestido, dirigiu-se para o lugar onde a esperava o duque.
Fazia um magnífico dia ou isso lhe parecia? William não pôde conciliar o sonho. Foi incapaz de fechar os olhos e descansar depois do acontecido com Beatrice. Ela o amava. Não o disse com palavras, mas sim com feitos. Quem, salvo uma mulher apaixonada, pode contemplar uma fealdade como algo belo? Quem, salvo uma mulher que ama a um homem, chora pela emoção que lhe produz um beijo?
O duque caminhou para a janela e contemplou com admiração o exterior de seu lar. Aquele bosque que no passado lhe pareceu o lugar mais tenebroso, já não o era. Para ele, aquelas paragens selvagens eram seus salvadores porque graças a eles, Beatrice estava ao seu lado. De repente sorriu. Recordou a sensação de liberdade que lhe produziu a dança com a moça e como lhe separou a alça, segurou-lhe a mão que tanto se esforçava em ocultar e, sob o amparo de seu corpo, dançaram sem medo. Era sua mulher, disso não tinha a menor dúvida. Fez saber-se aos seus amigos, aos seus irmãos.
«Amo-a, amo a senhorita Brown.» Sim, claro que a amava e ela a ele, mas... que passo devia dar agora?
Em circunstâncias normais teria aparecido na casa dos pais dela e, depois de expor seus propósitos, eles revelariam à filha suas intenções. Entretanto, Beatrice estava sozinha, não tinha ninguém a quem pedir sua mão.
«Tenho que pedir a ela mesma? ? Perguntou-se enquanto caminhava para a porta para receber a jovem. ? Ou possivelmente...».
De repente se lembrou da conversação que a moça manteve com Roger quando lhe respondeu em francês. Se não lhe falhava a memória comentou que tinha uma tia viúva que permaneceu em seu lar durante um tempo.
«Se lhe perguntar onde reside sua tia, ? continuou divagando ? posso viajar até lá e pedir sua mão».
Voltou a sorrir. Quanto mais o meditava, mais loucura lhe parecia, mas disse a si mesmo que se o conseguisse, seria o disparate mais formoso que tinha feito por alguém até o momento.
? Senhor... ? interrompeu Brandon, as divagações com sua presença na sala ? a senhorita Brown está preparada. Deseja recebê-la aqui?
? É claro! ? Exclamou eufórico. Outra vez seu coração deixava o compassado pulsar para converter-se em um infinito galopar de meia dúzia de corcéis.
? Senhorita Brown... ? disse o senhor Stone abrindo ainda mais a porta.
? Bom dia, senhor ? saudou Beatrice com uma pequena reverência.
? Descansou bem? ? Perguntou o duque colocando a mão direita em suas costas e retendo a ânsia de abraçá-la.
? Muito bem, e você?
Brandon fechou a porta e sem mover-se do lugar escutou como o duque caminhava com rapidez para a jovem. Percebeu em seus olhos quando ela apareceu, toda a escuridão desapareceu após vê-la e, embora tentasse dissimular, um enorme sorriso lhe cruzou o rosto. O mordomo suspirou profundamente, sorriu e se dirigiu para a cozinha. Tinha que dar a razão, de novo, à sua esposa. Apesar de lhe dizer uma e outra vez que suas ideias eram desatinadas e absurdas, demonstrava-lhe que, em temas sentimentais, sempre ganhava.
? De verdade conseguiu descansar? ? William agarrava a cintura da jovem com força. Tinha-a beijado já três vezes desde que o mordomo os deixou sozinhos. Mas apesar de saber que eram muitas em tão pouco tempo, não podia deixar de fazê-lo. Tinha sentido tanto sua falta, tinha sentido tanta saudade durante sua breve separação.
? Sim, de verdade. Embora possa lhe assegurar que ainda sigo cansada ? comentou sorridente.
? Se quiser retirar-se para continuar seu repouso, entenderei ? disse com tristeza.
? Já o farei depois de almoçar. ? Elevou-se nas pontas dos pés e voltou a tocar os lábios que tanto prazer lhe oferecia.
? Parece-me uma ideia bastante aceitável... ? Apertou-a com tanto ímpeto ao seu corpo que esta encurvou as costas. Ao serem conscientes das contorções que deviam realizar para desculpar a diferença de altura, ambos riram a gargalhadas.
? Nunca tinha visto tantos livros ? indicou Beatrice ao liberar-se do corpo de William e caminhar para eles. Em sua casa havia muitos livros, mas não tantos como apreciavam seus olhos.
? Imagino... ? disse com pesar o duque ao imaginar que uma jovem tão ávida em cultivar sua sabedoria e intelecto teria sentido falta de não possuir mais fontes de conhecimento ao seu alcance.
? Não se entristeça ? falou com rapidez girando-se para ele. ? Acredito que me interpretou mal. Quis dizer que nunca vi tantos livros juntos ? esboçou uma leve risada. ? Quantos pode haver? Uma centena? Duas, possivelmente? ? Caminhou com lentidão para as grandes estantes e tentou fazer um cálculo aproximado.
? Posso lhe assegurar que, apesar de permanecer nesta estadia quase todo o meu tempo, nunca parei para contá-los. ? Dirigiu seus passos para ela e se colocou atrás de suas costas.
? Qual, de todos estes, é o seu preferido? ? Voltou-se para ele e, de novo, observou um olhar repleto de desejo, de necessidade, de luxúria. Só lhe bastou um leve sorriso para que William voltasse a beijá-la com tanta paixão que, se não a tivesse sugurado pela cintura, teria caído ao chão.
? O conde de Montecristo ? sussurrou após tomar o ar que faltava aos seus pulmões.
? Do que se trata? ? Perguntou interessada. Por muito que tentasse afastar-se da boca do duque, este lhe agarrava com tanto ímpeto que não conseguia separar-se nem a largura de uma linha de costurar.
? Parece-me estranho que uma jovem que fala francês e sabe tocar o piano como uma deusa, não saiba de que história falo ? disse jocoso.
? Não diga bobagens! ? Exclamou ruborizada.
? Se quer saber o que esconde o livro, leia-o. Talvez te faça compreender um pouco mais a escuridão que guardo em meu interior ? murmurou com voz melosa.
? Mostre-me ele ? pediu com euforia.
O duque emitiu um pequeno grunhido pelo desagrado que lhe produzia separar-se dela, mas não podia evitar agradá-la, muito ao seu pesar, liberou o corpo da moça e retornou às estantes. Durante um comprido tempo esteve revisando títulos até que ao final o encontrou.
? Aqui o tem – mostrou-o. ? Vai começar a ler agora? ? Arqueou as sobrancelhas e desenhou um sorriso malicioso.
? Pode pô-lo sobre a mesa, já o farei mais tarde.
Tal como lhe indicou, o homem o pousou sobre a mesa, girou-se para ela para abraçá-la de novo quando bateram na porta.
? Adiante! ? Grunhiu.
? Meu senhor, o almoço está preparado ? informou Brandon timidamente.
? Obrigado. Faça saber que não demoraremos.
Quando os deixou a sós, o homem finalizou aquilo que tinha pensado. Depois de enchê-la de beijos e de abraços, recuperaram a compostura e se dirigiram para o salão.
? Desculpe, milord. ? A voz agitada do mordomo lhes impediu de acessar ao lugar.
? Sim? ? Franziu o cenho e dirigiu ao ancião um olhar fulminante.
? O senhor Cooper e o senhor Bennett acabam de chegar ? informou.
? Faça-os passar. Podem nos acompanhar ao almoço se o desejarem ? disse com voz mais suave.
? Senhor, comentaram-me que desejam falar com você agora e em privado ? explicou com certa alteração.
? Não se preocupe, senhor. Como lhe disse, preciso descansar um pouco mais para recuperar a energia que perdi ontem ? intercedeu Beatrice ao observar a tensão que cresceu depois da notícia. ? Com sua permissão. ? A jovem fez uma pequena reverência e, sem deixar que ele se negasse, subiu as escadas que a conduziam ao seu dormitório. Era o mais apropriado naquele momento. Não só pelo desejo de ambos os cavalheiros em manter um bate-papo privado com o duque, mas sim porque ela também necessitava de tempo para pensar quando seria o melhor momento para abandonar o homem que amava.
Zangado ao mesmo tempo em que intrigado, William retornou à biblioteca para receber a inoportuna visita. Que assunto era tão urgente para que seus amigos perturbassem um momento tão esplêndido? O que teria acontecido para requerer, com tanto afã, um bate-papo privado? Ansioso por averiguar o que acontecia, os escassos segundos que demoraram em aparecer lhe resultaram uma eternidade.
? Boa tarde, William ? disse Federith ao entrar na habitação.
? Mon amie ? saudou Roger.
O duque esteve a ponto de lhes gritar como apareciam sem prévio aviso, mas quando observou os rostos aflitos de ambos, acalmou-se com rapidez.
? O que acontece? ? Inquiriu William olhando primeiro a um e logo ao outro.
? Advirto-te, meu amigo, que eu não sabia nada disto ? esclareceu Roger em tom suave depois de fechar a porta.
? O que acontece? ? Repetiu o homem em tom mais severo.
? Deveria se sentar, William. O que vai escutar pode te debilitar tanto que necessitará de um assento onde se apoiar ? começou a falar Federith ao mesmo tempo em que caminhava para ele.
? A mim? Por quê? O que aconteceu? Trata-se do Lausson? ? Perguntou sem pausa enquanto tomava assento e ficava sem ar.
? Acreditei que estava equivocado, ? continuou falando Cooper ? mas depois de passar a noite em claro pensando sobre isso e recordando, confirmei minhas suspeitas. ? William voltou a olhar ao Roger e logo ao Federith esperando que falassem claramente. ? Recorda à família do barão Montblanc?
? Não com a precisão que tem você ? esclareceu com aborrecimento.
? Recorda o que lhes aconteceu? Recorda a razão pela qual o barão te visitou em Southwark? ? Insistiu. Sabia que aquilo mataria seu amigo, que o levaria a um abismo de tristeza do qual jamais se recuperaria, mas o queria como se o mesmo sangue percorresse suas veias e jamais poderia perdoar-se se não lhe explicasse a verdadeira origem da senhorita Brown.
? A que vem isso agora? ? William franziu o cenho e tentou levantar-se, mas a mão de Roger o impediu.
? Sim, lembra-se ? determinou Federith.
? É óbvio que o faço! Acaso crê que sou tão insensível de não recordar a tragédia dessa família? A jovem terminou suicidando-se! ? Gritou.
? E se te dissesse que não morreu, que segue viva ? continuou falando Cooper.
? O que? ? Os esforços por levantar-se e deixar de escutar coisas que só lhe produziam um profundo e amargo sentimento de culpabilidade desapareceu de repente.
? OH, mon Dieu! Isto é mais duro do que eu pensava! Ama-a, adora-a! Acaso não se dá conta do dano que lhe vai provocar? ? Gritou zangado Roger enfrentando seu amigo e lhe colocando no peito um dedo acusador.
? Deve sabê-lo. Ele deve saber que a senhorita Brown é em realidade a senhorita Lowell, filha do barão de Montblanc.
? Mentira! ? Clamou William elevando-se com rapidez de seu assento. — É mentira! Ela é a filha de uns camponeses que morreram pela cólera!
? O amor te cegou, meu amigo, ? disse com pesar Federith ? e não pôde ver a realidade. Crê que uma camponesa poderia tocar uma peça tão difícil de Chopin sem praticá-la com frequência? Crê que uma camponesa poderia falar um francês daquele nível? Até o Roger se assombrou por sua incrível pronúncia.
William começou a enjoar-se. Tudo ao seu redor dava voltas. Mal podia ver com claridade. Esticou a mão direita para alcançar o assento. Não o conseguiu e, apesar de seus amigos correrem para que não tocasse o chão, seus joelhos impactaram sobre ele.
? Não pode ser verdade... ? sussurrou afogado. ? Está equivocado. Minha Beatrice não é...
? Sinto muito. Juro-te por minha honra que me dói te dizer isto, mas não poderia me considerar teu amigo se não te informasse sobre a verdade da mulher que ama e a quem, estou seguro, deseja lhe pedir em matrimônio ? explicou enquanto ele e Roger lhe ajudavam a sentar-se.
? Como vou pedir em matrimônio uma harpia? A uma mulher com experiência em enganar homens? ? Gritou tão alto que uma terrível dor de cabeça lhe sacudiu.
? Segue pensando que o conde de Rabbitwood disse a verdade? ? Perguntou Federith pousando seu braço sobre o ombro esquerdo de seu amigo. ? Pensa um pouco, William. O que nos contou sobre ela?
? Que veio andando desde algum lugar até encontrar a cabana do bosque ? expôs com voz mais apagada e olhando para o chão. Levou-se a mão direita para a testa e sentiu falta de sua esquerda. Antes, pressionar a cabeça com ambas as mãos acalmava sua dor e sua ansiedade.
? Quando a encontrou? ? Continuou o senhor Cooper com o interrogatório para que seu amigo conseguisse eliminar a fúria e conseguisse pensar com clareza.
? Depois de conhecer a notícia de seu matrimônio, embebedei-me e, em um ato de loucura, cavalguei sobre um dos meus cavalos. Algo o assustou e caí ao chão. No golpe fiquei inconsciente. Pensei que seria a última vez que veria a luz, mas quando despertei, ela me tinha salvado a vida. ? Não podia falar com clareza, asfixiava-se e, preso do desespero que estava vivendo, começou a chorar.
? O que te pediu em troca? ? Interveio Roger surpreso ao descobrir que aquela miúda figura tinha tido a coragem de salvar a um homem que lhe ultrapassava em tamanho e peso.
? Que a deixasse viver na cabana. Que não a incomodasse. Que a deixasse permanecer o resto de seu existir em solidão.
? O que aconteceu depois? ? Agora a pergunta era realizada pelo Federith.
? Tal como me pediu, deixei-a viver sozinha durante um tempo. Mas fui incapaz de deixar de pensar nela. Não me explicava como uma moça tão jovem e tão indefesa tentava se afastar do resto da sociedade. ? William elevou a cabeça e deixou que seus amigos observassem como as lágrimas banhavam seu rosto.
? Entende-o agora? Descobriu por que Beatrice desejava essa forma de vida? ? Apertou-lhe com força o ombro e o duque levantou sua mão direita para pousá-la sobre a de seu amigo.
? Sabe que lhe apoiaremos na decisão que tomar ? Confirmou Roger aproximando-se de seu amigo e imitando ao Federith no outro ombro. ? Diga-nos o que deseja fazer e o faremos ? sentenciou.
William dirigiu o olhar para a janela. Agora o dia não lhe parecia tão lindo, resultava-lhe frio, nublado, tenebroso. Depois de meditar o que desejava fazer, levantou-se com tanta força do assento que ambos os amigos deram uns passos para trás. Caminhou para a porta, abriu-a e começou a gritar.
? Brandon! Brandon!
? Sim, milord? O que ocorre? ? O ancião jogou uma rápida olhada aos convidados e compreendeu que nada bom tinha acontecido durante aquela conversação.
? Prepara um pouco de bagagem, amanhã partiremos para Londres na carruagem do senhor Cooper ? disse com firmeza.
? Uma longa temporada? ? Perguntou o mordomo desconcertado.
? Se tudo sair bem, estaremos de retorno em uma semana. Se sair mal, eu não retornarei nunca ? declarou.
XXIV
Esperou que seus amigos partissem para fazer o que tinha pensado. Pegou cinco folhas de papel, estendeu-as sobre a mesa e escreveu com seu punho e letra suas últimas vontades em cada uma. A primeira iria destinada ao senhor Gibbs, o administrador, informava-lhe do acontecido da aparição da senhorita Lowell e como, por decisão própria, determinou partir a Londres para finalizar o que não fez no passado. Explicou-lhe também os passos que devia seguir se algum de seus familiares, especialmente sua mãe, tentasse anular seu testamento. Não se esqueceu dos quais estavam ao seu serviço, indicando onde deviam instalar-se após seu falecimento e a quantia que lhes pertencia por seus anos de trabalho. Para finalizar insistiu na decisão sobre a mudança de proprietários da residência em Southwark. Esta seria dada de presente ao casal Stone como agradecimento a sua fidelidade, cuidado e por ocupar o lugar que deveriam desempenhar seus pais.
Reescreveu a carta três vezes mais. Uma estava dirigida ao Roger, outra ao Federith e a última para Beatrice. As missivas destinadas aos homens foram colocadas em distintos envelopes e as fechou com seu selo de cera vermelha. A única que ficava por guardar era a de Beatrice. Ele olhou de lado a última folha de papel em branco, respirou fundo e pôs em palavras o que seu coração ditava. Quando terminou, assinou-a, meteu-a em outro envelope, pôs-lhe o selo e a escondeu entre as páginas do livro O conde de Montecristo. Se tudo saísse bem, ela jamais conseguiria lê-la, mas se, pelo contrário, o destino o impedisse de voltar para seu lado, saberia que a amava apesar de descobrir a verdade.
Cabisbaixo, subiu as escadas devagar. Encontrava-se tão triste que, dar um passo e logo o outro, resultou-lhe um trabalho dificílimo. Conforme chegava ao final da escada, sem saber a razão, recordou o momento no qual a moça abriu os olhos e, depois de observá-lo, começou a gritar descontroladamente. Agora sabia a causa de sua alteração: o delírio da febre lhe mostrava de novo a atroz cena da violação. Não dizia a ele que não a tocasse, nem que tivesse piedade, a não ser ao maldito Rabbitwood.
«Morrerá em minhas mãos!», exclamou William formando com sua mão um duro punho e apertando a mandíbula.
? Meu senhor ? começou a dizer Brandon no patamar do corredor. ? Deseja alguma coisa mais?
? Só uma. Sobre a escrivaninha encontrará várias cartas, pega só a destinada ao senhor Gibbs e a faça chegar ao cavalariço. Quero que a tenha esta mesma tarde ? disse com tom cansado. Olhou ao mordomo e, observando que este esperava mais ordens finalizou. ? Isso é tudo. Descansa o resto do dia. A viagem será muito longa.
? Até manhã então, milord.
? Até manhã ? repetiu.
William se dirigiu para seu quarto com a intenção de descansar um momento antes de pedir a Beatrice que o acompanhasse no jantar. Como era de supor, seu ajudante de câmara lhe estava esperando para despi-lo.
? Senhor... ? saudou-lhe.
? Deixe-me em camisa e meias ? indicou com austeridade.
O moço assentiu e começou a despi-lo em silêncio. Quando lhe despojou de todos os objetos menos as assinaladas, despediu-se e o deixou sozinho. William caminhou para o espelho e observou seu reflexo. Não encontrou ao homem que era, nem tampouco o homem que acreditava ser. Seguia sendo um canalha, um ser desprezível. Com uma intensa fúria, começou a atirar tudo o que encontrou ao seu redor. Como tinha sido tão imbecil? Quem se acreditou ser para não escutar as preces de um homem destroçado? Por que afirmou categoricamente que ela mentia? Por que não duvidou disso nem um segundo? Possivelmente a resposta se encontrava em que, naquele momento, ele era tão vilão como o conde.
Envergonhado, William continuou destroçando o que encontrava em seu passo. Nunca tinha desatado uma ira semelhante. Sempre tinha guardado os sentimentos em seu interior com um férreo autocontrole. Até quando falou com Roger e Federith sobre a tristeza que sentiu pela morte da filha do barão, não exibiu mais lástima que a que pôde mostrar se Lala, a cachorrinha de sua mãe, houvesse falecido. Quebrado de dor, exausto pelo esforço, sentou-se, levou-se a mão direita para o rosto e começou a chorar.
Beatrice despertou assustada. Entre sonhos tinha escutado um grande estrondo, mas, ao levantar-se e observar ao seu redor, não achou nada estranho. Com muito sigilo, dirigiu-se para a porta. Depois de abri-la e olhar a um lado e ao outro do corredor tampouco encontrou nada que lhe explicasse seu sobressalto. Pensando que tudo foi produto de sua imaginação, decidiu retornar ao interior do quarto, mas então ouviu com clareza outro ruído que procedia claramente da habitação de William. Sem diminuir o passo, dirigiu-se para lá.
Durante o curto trajeto não parava de pensar que podia ter ocorrido qualquer acidente e que ninguém tinha ido para auxiliá-lo. Presa no pânico, não chamou antes de entrar e, quando descobriu o destroço que mostrava o interior, foi incapaz de avançar. Seu olhar procurou o duque. Mal podia apreciar a grande silhueta deste na penumbra. De repente escutou um suave lamento. Olhou para o lugar de onde procedia a pequena choramingação e achou ao culpado desta. William permanecia sentado sobre a cama e lhe dava as costas, por isso não tinha percebido sua presença. Inclinava-se para diante como se sentisse uma intensa dor em seu estômago.
? William... ? murmurou, mas o homem não a escutou. Seguia sem saber que ela tinha entrado.
Sem pensar em como reagiria o duque quando a descobrisse, caminhou com cuidado. Esquivou-se dos cristais quebrados e dos itens que se encontravam espalhados pelo chão. Não parou de andar até que se colocou em frente a ele.
? William, o que acontece?
? Beatrice! ? Exclamou o homem dando um salto ante o assombro em vê-la. ? O que faz aqui?
? Escutei um ruído e me assustei ? disse com um suave fio de voz.
? Não deveria estar aqui, poderiam ver-te. ? William foi incapaz de apartar o olhar do pequeno corpo imóvel.
A expressão de terror de seu rosto e a confusão de seu olhar lhe indicava que estava preocupada e ele se sentiu ditoso e ao mesmo tempo zangado por lhe provocar tal temor. Respirou fundo ao observar a beleza natural de Beatrice. Era a mesma que tinha mostrado na cabana, salvo que nesses momentos seu corpo não estava coberto de barro. Sua cabeleira, até agora recolhida como ditavam as normas, estendia-se pelas costas ocultando os delicados ombros. A diminuta figura, vestida com uma fina camisola de algodão branco, apreciava-se através do tecido. O homem tragou saliva ao distinguir as auréolas tintas de marrom e a escuridão de seu triângulo feminino. Devia fazer que partisse o antes possível dali. Não podia permanecer dessa forma tão erótica ao seu lado.
? O que aconteceu? Que notícia recebeu para que tivesse reações desta maneira? ? Esticou as mãos e as pousou sobre o entristecido rosto.
? Não deve preocupar-se com isso, Beatrice. ? Sua mão direita pressionou a esquerda da jovem e inclinou a cabeça para esse lado. Reconfortava-lhe tanto sentir a calidez de sua pele que, por um momento, esqueceu a razão de seu aborrecimento.
? Não deveria me preocupar ou não quer que me preocupe? ? Continuou com uma voz aveludada.
? Beatrice... ? sussurrou.
Fechou durante uns instantes os olhos e deixou que as mãos da jovem acariciassem sua barba.
? William... ? falou sem mal mover os lábios. Apoiou os dedos dos pés no chão e se elevou. Queria beijá-lo. Queria tranquilizá-lo com o suave tato de seus lábios.
? Minha pequena Beatrice... ? disse ao mesmo tempo em que baixava sua boca para a dela.
? Meu grande William... ? suas mãos se deslizaram para o cabelo e entrelaçando seus dedos nele, cortou a pequena distância que lhes separava.
A boca dele tocou com suavidade a dela. Não queria um beijo apaixonado, muito menos a tendo perto com uma camisola transparente, porque sabia que assim que sua mão acariciasse o corpo feminino sobre o fino tecido seria incapaz de parar a luxúria que despertaria.
? Só isso? ? Perguntou desconcertada ao perceber como os lábios do duque abandonavam os seus.
? Desejo muito mais, Beatrice. Mais do que pode imaginar, ? esclareceu com aparente firmeza ? mas não farei nada que você não queira fazer.
Beatrice cravou seus olhos nos dele e percebeu a veracidade de suas palavras. Não lhe cabia dúvida que se dissesse não, ele a respeitaria imediatamente. De repente, a jovem notou como seu pêlo se elevava, como seu coração se alterava e como aquela queimação que ardia sob seu ventre aumentava pela sinceridade do homem.
? Quero que me beije ? disse enfim. ? Quero que me toque... Quero ser tua assim como você será meu.
? Está segura? ? Perguntou depois de tragar saliva.
O desejo queimava seu corpo. Podia perceber na garganta o agitado bombeamento de seu coração. Dava-lhe permissão para entrar em seu corpo, e fazê-la sua. Entretanto, embora a ideia de tomá-la parecesse maravilhosa, assaltou-lhe a dúvida. O que aconteceria se não retornasse? O que pensaria a moça se a fazia dele e não voltasse jamais?
? Não o deseja? ? Beatrice, ao observar seu cenho franzido e uma inquietação estranha, apartou suas mãos do rosto do duque e começou a retroceder.
? Se o desejo? ? Agarrou-a pelo braço com força e a atraiu para ele com tanto ímpeto que ambos os rostos ficaram a um escasso palmo. ? Mais que tudo neste mundo!
E voltou a beijá-la, mas desta vez não controlou a paixão nem o ardor que sentia por ela. Sua língua invadiu a boca da jovem com energia e necessidade, antecipando-lhe o que aconteceria a seguir. Sua mão, até agora pega à cintura, começou a lhe acariciar as costas, os ombros, o pescoço... William mordeu com cuidado o lábio inferior, fazendo com que ela abrisse os olhos e o contemplasse. Queria que fosse consciente do homem que tinha ao seu lado, que lhe mostraria o que significava fazer amor.
? É tão bela... ? sussurrou enquanto a palma percorria devagar o pescoço, o decote, os seios. ? Desejo-te tanto... ? beijou-a de novo ao mesmo tempo em que continuava acariciando o tremente corpo feminino.
Beatrice percebeu com clareza cada carícia, cada toque e para onde se dirigia. Não lhe importou. Encontrava-se em um estado de atordoamento tão maravilhoso que não queria que parasse. Esticou de novo as mãos buscando-o. Desta vez suas palmas não apreciaram a sedosidade de seu cabelo, mas sim o quente peito viril. A pequena abertura de sua regata liberava o escuro e encaracolado pêlo do homem. Intrigada por averiguar o tato que teria, enredou seus dedos nele, pareceu-lhe suave e ao mesmo tempo robusto.
? Diga-me que pare, diga-me e me afastarei desta loucura... ? gemeu William ao notar as mãos dela em seu corpo.
? Não... ? murmurou. ? Não quero que pare esta loucura porque eu também a desejo ? respondeu ao mesmo tempo em que suas mãos baixavam e agarravam o objeto para tirar-lhe.
Era a segunda vez que contemplava o torso do duque. A primeira quando limpou a pequena ferida que se fez depois do acidente, mas então não o observou com o desejo nem com a lascívia que sentia nesse momento. Olhou a cicatriz da ferida, mal ficava rastro daquela lesão. Estendeu uma mão e a acariciou com suavidade.
? Ninguém até agora tinha visto... ? disse em voz baixa.
A moça soube com rapidez do que falava. Deteve a carícia que realizava no peito e a dirigiu por volta da mão esquerda que sempre ocultava dos outros e a acariciou. Apesar de ser mais magra que a outra, seguia sendo formosa. Sua pele, seu pêlo... era muito similar à direita. Nada do que observava lhe provocou espanto, ao contrário, sentiu-se ditosa por poder tocar e admirar.
? Siga acariciando-me, William, não pare ? comentou acercando sua boca do torso para beijá-lo.
Mas o homem foi incapaz de fazê-lo. Ao notar os lábios dela jogou a cabeça para trás e soluçou de prazer. Beatrice sorriu ao compreender o que produziam suas carícias. Aí estava, uma inexperiente na arte do amor deixando imóvel a quem, supostamente, era todo um professor. Entretanto, queria que continuasse, que não cessasse de tocá-la. Para despertá-lo desse transe, retirou-se com suavidade, segurou a mão direita e a colocou em seu estômago.
? Toque-me ? sussurrou.
O duque ficou tão pasmado que não soube como atuar. Nunca tinha perdido uma ocasião para despir uma mulher, embora nenhuma fosse Beatrice. Nem tampouco desejava apagar com suas carícias, as aberrações produzidas por outro homem. Mas lhe dava permissão, concedia-lhe a honra de fazê-la sua. Retirou a mão do ventre da jovem para segurar com força a camisola. Foi subindo-a devagar, sem pressa. Admirando a figura feminina. Quando este subiu até seus ombros, William grunhiu zangado. Não podia tirar-lhe. Não sem que lhe custasse mais esforço do que desejava realizar. Embora, para sua surpresa, a moça conduziu as mãos para o objeto e lhe ajudou a despojar-lhe.
? Linda... ? murmurou aproximando sua boca dos seios. ? É muito linda para mim. ? Lambeu e absorveu um mamilo para depois continuar com o outro.
Sua mão percorreu de novo o pescoço, os ombros e os seios nus da moça. Quis seguir o percurso de seu corpo até chegar aos quadris, mas em troca, segurou-a pela mão e a levou até a cama e fez com que se recostasse.
Ela tentou abrir os olhos e averiguar o que fazia William, mas não foi possível, pesavam-lhe tanto que não podia levantar as pestanas.
? Tão cálida, tão excitada, tão minha... ? murmurou o duque ao mesmo tempo em que a beijava com avidez.
Não voltou a falar até que sua boca se colocou sobre o púbis. Surpreendida, Beatrice realizou um suave movimento com as pernas, tentando fecha-las. William elevou seu rosto para olhá-la e lhe sussurrou:
? Não te farei mal, meu amor. Só quero despertar mais desejo para mim. Quer que o faça? Quer que aumente sua necessidade enquanto me alimento de ti?
? Sim... ? ronronou presa da paixão.
? Bem, então me mostre o lugar onde minha fome será saciada.
Beatrice obedeceu e uma estranha cãibra a sacudiu com intensidade e elevou, sem ser consciente disso, os quadris. William jogou o braço sobre estes para que não pudessem elevar-se mais. Voltou a introduzir a cabeça entre as pernas e a beijou com a mesma magnitude e paixão que quando beijava sua boca. Primeiro suave, para que se fosse acostumando às suas carícias e logo... intenso, demolidor!
? William! William! ? Exclamou a jovem entre soluços. ? OH, Meu Deus!
Ouvi-la gemer seu nome foi mais formoso que escutá-la tocar o piano. Resultou-lhe tão prazeiroso que notou como começava a molhar seu próprio calção. Levou-o a um estado tão supremo de desejo que um rastro de gotas brotava de seu sexo. Ele estava preparado para possuí-la, mas... e ela?
? Beatrice, minha amada ? disse ao mesmo tempo em que subia sobre ela. ? Quer que eu continue? Quer que eu entre em ti?
A jovem conseguiu levantar as pestanas para contemplá-lo. Apesar de suas bochechas estarem cobertas com a espessa barba, podia ver um intenso rubor. Estendeu as mãos para o rosto dele e o dirigiu para sua boca lhe deixando bem claro que consentia o passo seguinte.
Sem mais o que perguntar, o homem deixou que o beijasse o tempo que necessitasse. Depois que seus lábios se afastaram, ajoelhou-se em frente aos seus quadris, levou-se a mão para a calça e liberou seu sexo. Devagar, lento e percebendo o ardor de seu corpo, William foi penetrando-a até que ambos os quadris se roçaram. Esticou a mão para a cintura da moça e começou a realizar suaves vaivéns enquanto observava o rosto da jovem. Segundo a intensidade de seus gemidos, invadia-a com mais força, com mais vigor.
? Meu amor! ? Gritou ao sentir os primeiros espamos.
? William! ? Respondeu ela com gemidos ao sentir como seu corpo se convulsionava descontroladamente. ? OH, William!
Um intenso alarido brotou da boca do homem quando chegou ao clímax apesar de ser consciente de que poderiam lhe escutar os criados, mas não queria interromper o gozo que lhe provocou chegar ao orgasmo com a mulher que amava. Não podia fazer desaparecer essas convulsões que agitavam seu corpo com tanta intensidade que caiu sobre ela. Tentou recompor-se enquanto se colocava ao seu lado. Dirigiu sua palma para a bochecha e sorriu feliz ao perceber o fogo que desprendia.
? Amo-te, Beatrice. Amo-te e te amarei sempre ? estendeu sua mão para a cintura e a aproximou mais dele.
? Por que me dá a sensação de que se despede de mim? ? Disse sem olhá-lo.
? Não me despeço, meu amor. Jamais poderia me afastar de ti, ? aproximou sua boca do cabelo da jovem e o beijou ? mas é certo que tenho que partir amanhã para Londres.
? Sabia! ? Exclamou ao mesmo tempo em que se separava do duque, girou-se para ele e apoiou os joelhos no colchão.
? Beatrice, por favor – suplicou-lhe. ? Não vá.
? Por que, William, por que deve partir amanhã? O que lhe disseram Roger e Federith esta tarde para que tenha feito isso? ? Estendeu a mão e fez um semicírculo para assinalar o destroço que havia sobre o chão.
? Trata-se da minha mãe ? disse após meditar com rapidez que desculpa lhe oferecer para que não saísse da habitação correndo.
? A duquesa? ? Elevou as sobrancelhas e retornou devagar ao seu lado para que voltasse a abraçá-la.
? Ela decidiu ignorar certas decisões de meu pai e quer despojar meu irmão de uma propriedade que lhe pertence. ? William apertou a mandíbula e lhe pediu, mentalmente, desculpa por sua mentira.
? Por quê? Por que quereria uma mãe magoar seu filho?
? Porque Lausson se casou com uma criada e ela nunca esteve de acordo com esse enlace. – Beijou-a de novo no cabelo e inspirou seu aroma a sabão. Precisava levar consigo essa lembrança, ela ao seu lado, mostrando sua nudez sem pudor e ele abraçando-a com toda a intensidade que podia.
? E você, o que fará? ? Um suave bocejo brotou atrás da pergunta.
? Pôr ordem e fazer com que a normalidade se restabeleça.
? Demorará em retornar? – Aconchegou tudo o que pôde seu corpo com o do duque.
? Uma semana, no máximo dez dias. ? Segurou o lençol e a cobriu. ? Esperar-me-á, não é? ? Perguntou com certa inquietação.
? Não me moverei daqui até que retorne, prometo-lhe ? afirmou isso sem titubear.
? Beatrice... ? murmurou colocando seu queixo sobre a cabeça desta.
? O que? ? Voltou a bocejar.
? Amo-te.
Não tinha conciliado o sonho. Era incapaz de fazê-lo depois do acontecido. Não só a tinha feito dele, mas sim, preso da paixão, não se preocupou em tomar medidas pertinentes para não a deixar grávida. Amaldiçoou-se uma e outra vez por tal temeridade. Agora, se ela estivesse grávida, não só perderia o prazer de viver o resto de seus anos junto à mulher que amava, mas sim tampouco poderia desfrutar de cuidar e proteger seu filho. Em silêncio saiu da cama, caminhou para a saída e, antes que o ajudante de câmara aparecesse, ele o recebeu no corredor.
? Milord, não deseja que o atenda em seus aposentos? ? Perguntou assombrado.
? Não. Prefiro me vestir na habitação contigua. ? Caminhou devagar para ela.
Aproximadamente uma hora depois, a carruagem de Federith parava aos pés das escadas de Haddon Hall. Brandon abriu a porta e deixou que o duque subisse com orgulho.
? Bonjour... ? disse Roger sonolento. Reclinou-se no assento direito e estendia suas longas pernas para a esquerda, deixando um pequeno espaço que era ocupado por Federith.
? Bom dia – saudou-lhe Cooper. ? Segue querendo enfrentar a morte por ela?
? Jamais estive mais seguro de oferecer minha vida por alguém ? asseverou.
Federith deu uns golpezinhos na parede da carruagem e o cocheiro tocou os cavalos.
XXV
Os raios do sol atravessavam os cristais sem nada que o impedisse. À Beatrice, depois de sentir um estranho calor nas bochechas e despertar, sentiu falta de que William não tivesse deslocado as cortinas. Acaso não sentia o mesmo pudor que ela ao exibir seu corpo nu pela habitação? A pergunta à fez sorrir e percebeu que sua parte íntima começava a palpitar como na noite anterior. Ruborizou-se devido ao desejo incontrolável que despertou ao recordar os beijos, as carícias e os vaivéns do homem ao fazê-la sua.
Com urgência apartou os lençóis e, ajoelhada sobre o colchão, foi procurando com o olhar onde estaria sua camisola.
? OH! ? Exclamou entre risadas ao achá-la detrás da poltrona.
Sem parar de rir ao recordar a cena em que ela se despojou do objeto, aproximou-se dela, vestiu-se e se manteve de pé observando ao seu redor. Agora, com a claridade do dia, podia apreciar melhor o destroço que tinha provocado William. Perguntou-se por que a duquesa castigava seu filho por haver se casado com uma criada. Podia entender que uma mãe desejasse o melhor para seu filho, mas e se nesse matrimônio achava a felicidade? Por que não queria deixá-lo viver em paz? De repente, ao permanecer de pé, algo úmido percorreu o interior de suas pernas e uma vergonha muito grande fez com que sua pele avermelhasse.
? Meu Deus! ? Gritou depois de colocar a mão sobre a boca para que não se escutasse. Enjoada pelo pensamento que lhe rondou pela cabeça, sentou-se na poltrona. ? Não pode ser... ? murmurou. ? Ele terá sabido como controlar...
Para confirmar o que começava a suspeitar, levantou-se devagar a camisola. Suas mãos lhe tremiam, o coração tinha deixado de pulsar e segurou a respiração.
«Não!», pensou aterrorizada. Estava a ponto de ficar a chorar quando escutou uns passos pelo corredor. Sobressaltada, levantou-se da poltrona e se escondeu atrás dela. Não podiam descobri-la no quarto do duque. Ninguém em Haddon Hall podia chegar a imaginar o que tinha acontecido entre ela e ele na noite anterior.
Quando o silêncio voltou a reinar, levantou-se, caminhou para a porta, abriu-a e, depois de comprovar que não havia ninguém pelos arredores, correu para seu dormitório. Uma vez dentro, fechou devagar e se lançou à cama para chorar desconsolada.
? Quer que suba para despertá-la? ? Perguntou Lorinne a Hanna.
Depois dos afazeres diários, decidiram sentar-se ao redor da pequena mesa da cozinha para descansar, mas a criada estava preocupada. Tinha aparecido bem cedo no dormitório da moça e ela não estava. Quando lhe informou do desaparecimento à senhora Stone, a mulher lhe explicou, com uma mentira, que durante a noite a jovem se levantou sonâmbula e, como era perigoso despertá-la, deixaram-na pernoitar na habitação onde se deitou.
? Precisa descansar. Podemos deixá-la dormir um momento mais ? respondeu a mulher levando dois copos de suco para a mesa. ? Embora saltasse o almoço, poderá jantar tudo o que anseie.
? Pobrezinha... ? murmurou Lorinne olhando o copo que a anciã colocou em frente a ela. ? De todos os passados possíveis que imaginei, jamais pensei nesse.
? Eu tampouco... ? suspirou. Seus olhos se encheram de lágrimas. Tentou faze-las desaparecer piscando várias vezes, mas foi em vão.
? Espero que nosso senhor coloque em seu lugar àquele mal nascido! ? Exclamou antes de beber um sorvo do suco. ? A justiça deve cair sobre esse violador!
? Crê de verdade que sua Excelência deixará nas mãos da justiça o acontecido com a senhorita Lowell? ? Perguntou a anciã abaixando a cabeça.
? O que outra coisa pode fazer? Imagino que falará com os pais da senhorita, explicar-lhes-á o ocorrido e farão as pesquisas pertinentes até ver entre as grades o maldito conde, não?
? O duque não aceitará isso ? afirmou a anciã com pesar.
? Então, o que fará? ? Inquiriu atemorizada.
? O único que pode fazer um homem apaixonado ? assegurou.
? Santo céu! Não será capaz de...! Morrerá! ? Exclamou a donzela após levar uma mão para seu peito.
Beatrice abriu seus olhos quando um estranho rugido brotou de seu estômago. Tinha muita fome porque não tinha comido nada na noite da festa, mas, ante a possibilidade de estar grávida, não desejava sair da habitação. Acreditava que se permanecesse ali o tempo suficiente, terminaria despertando de um estranho sonho. Apesar de seus intentos por ficar no dormitório, os rugidos se fizeram tão intensos e constantes que se deu por vencida. Levantou-se da cama, retirou as cortinas para apreciar o dia e ficou atônita quando percebeu que o sol estava se escondendo. Que hora seria? Quanto tinha dormido?
Desconcertada e ao mesmo tempo inquieta, dirigiu-se para o vestidor e agarrou o único vestido que ficava sem pôr. Lorinne não gostava da cor dourada, por isso não o escolheu com antecedência, entretanto, pareceu-lhe formoso. As dobras na saia terminavam com uma elaborada renda cinzenta, o torso era tão suave e firme que não necessitava espartilho para aumentar seu seio, as mangas cobriam o braço por completo e ao final, justo nas costuras dos pulsos, a mesma renda o embelezava. Depois de vestir-se, olhou-se no espelho, ela mesma se recolheu o cabelo em um tenso coque. Suspirou para encontrar serenidade e abandonou a sala.
Resultou-lhe estranho não ver William ao final das escadas. Sua mente lhe fez pensar que estava ali, com suas mãos nas costas, olhando para a entrada sem ser consciente de sua presença. Ela recordava a grandiosidade de seu porte, a elegante figura, o olhar e o sorriso que lhe oferecia quando a observava aproximar-se. Teve que respirar com profundidade para não se debilitar de novo. Seus sentimentos para com o duque tinham mudado muito. Já não albergava ódio ou rejeição para com ele. Agora o necessitava ao seu lado mais que nunca.
Com pesar foi descendo as escadas muito devagar. Justo no momento que chegou ao hall, escutou uma conversação entre mulheres. Eram Hanna e Lorinne, ambas se encontravam na cozinha. Sem perder mais tempo, acelerou seu passo e se dirigiu para elas.
? Moça! ? Exclamou Hanna ao ver Beatrice parada na porta. Estava pálida, abatida. ? Vêem, sente-se. ? Caminhou para ela e a abraçou com força. ? Tem que estar morta de fome, não é?
? Sim, senhora Stone. Agora mesmo comeria uma vaca inteira ? disse com um leve sorriso.
? Pois vaca não tenho preparada, mas com certeza um bom caldo e um bife com verduras lhe saciarão o apetite. ? Conduziu-a até a cadeira, apartou-a e deixou que se sentasse.
? Necessita que lhe ajude em algo? ? Perguntou Lorinne sem poder fazer desaparecer o espanto de seu rosto.
? Possivelmente mais tarde, Lorinne. Virá-me bem um momento de companhia ? respondeu com suavidade.
Antes de poder terminar a frase, Hanna lhe tinha colocado sobre a mesa a terrina de sopa, os talheres e um copo de vinho. Sem ser capaz de continuar falando, Beatrice tomou com rapidez o caldo quente. Este começou a lhe esquentar o estômago e inclusive todo o corpo. Continuou com o segundo prato e não começou a articular palavra até que tomou o vinho.
? Sabem, não é? ? Quis saber se elas tinham descoberto onde dormiu na noite passada.
? Claro, aqui nada se oculta ? respondeu Lorinne sentando-se ao seu lado.
? Mas o duque resolverá logo o tema com a duquesa e retornará ao seu lar ? interveio a anciã antes que a conversação tomasse outro tema.
? Não entendo como uma mãe pode fazer tanto dano ? assinalou Beatrice com uma aparente aflição. Entretanto, em seu interior a alegria alcançava o nível mais alto. Ninguém tinha descoberto seu segredo.
? No fundo não é má ? respondeu Hanna. ? É uma mulher com princípios sociais muito acentuados. Os pais dela foram bastante estritos em sua educação e isso não se elimina com facilidade.
A donzela olhava a uma e à outra sem entender do que falavam. Todos os criados sabiam a razão pela qual o duque partira a Londres e pensou que ela, ao ser o principal motivo, saberia a verdade, mas conforme estava descobrindo, o amo a seguia protegendo apesar de estar longe.
? Ahh..., mas querer castigar seu filho dessa maneira ? comentou com pena.
? Lausson tem caráter e saberá como atuar ? afirmou a anciã.
? E se pode solucionar ele mesmo o problema, por que requer a presença do duque? ? Arqueou as sobrancelhas e cravou os olhos na mulher.
? Ele ostenta o título e deve colocar ordem ? respondeu Hanna retirando os pratos vazios. ? E você deveria descansar um pouco mais. Vi fantasmas com mais cor!
Beatrice assentiu devagar. Levantou-se de seu assento e caminhou para a porta. Lorinne fazia o mesmo. Acreditando que a necessitaria caminhou atrás dela.
? Vou descansar na biblioteca. Possivelmente leia um pouco. Está o fogo aceso?
? Sim. Faz umas horas que um dos criados o acendeu – informou-lhe a senhora Stone sem apartar a vista da jovem.
? Não precisa me acompanhe, Lorinne. Se não se importar, desejo ficar sozinha ? disse antes de abrir a porta e dirigir-se para a biblioteca.
O aroma de William se estendia pela pequena sala. Podia fechar os olhos e sentir sua presença sem dificuldade. Avançou devagar para a poltrona no qual estava acostumado a sentar-se e a acariciou com delicadeza.
«Por quê? Por que não posso te apartar de meus pensamentos? Por que sinto falta de sua presença?», perguntava-se sem cessar enquanto se afastava da poltrona.
Perambulou pelo interior durante um momento. Perguntava-se uma e outra vez a razão pela qual tinha mudado seus planos de fuga. Sem saber a causa, levou suas mãos para o ventre e o apalpou com suavidade. Se de verdade estivesse grávida, se de verdade esperasse um filho do duque, ele decidiria casar-se com ela e cedo ou tarde descobriria a verdade.
«Mas se parto e tenho seu filho em minhas vísceras, que vida poderei lhe oferecer?».
Desconsolada, fez com que seus passos a conduzissem para a escrivaninha e quase rompeu a chorar quando observou o livro preferido do duque. Esticou a mão para ele e deixou que suas gemas acariciassem a capa. «Se quer saber o que esconde o livro, leia-o. Talvez te faça compreender um pouco mais a escuridão que guardo em meu interior». Recordou com exatidão as palavras que William mencionou ao lhe haver perguntado sobre a trama que ocultavam as folhas. Queria saber a verdade do homem que amava? Queria compreendê-lo? A resposta foi um enorme sim.
Sorridente e com um estímulo para esperar a ansiada volta do duque, Beatrice agarrou o livro com tanto ímpeto que, assombrada, descobriu que algo caía ao chão e se escondia sob a mesa. Abaixou-se para pegá-lo e quando leu seu nome no envelope, as mãos lhe tremeram tanto que o papel não parava de sacudir-se.
Com estupidez, olhou o reverso e ficou gelada ao ver o selo do duque. Agitada, caminhou para a poltrona, sentou-se, apoiou a carta sobre seus joelhos e começou a abri-la. Em seu interior encontrou duas folhas.
“Para minha querida Beatrice, a mulher que amo com todo meu coração.
Se estiver lendo esta missiva é porque, muito ao meu pesar, não consegui finalizar a tarefa que me levou até Londres, mas não se sinta culpada, era meu dever e como tal, terei morrido feliz. Quero que saiba que te amo e que o breve tempo que passamos juntos desfrutei com intensidade. Jamais pensei que uma mulher me roubaria o coração, mas você o fez. Acredito que o conseguiu no dia em que abri os olhos e encontrei-a ao meu lado, cuidando-me, olhando minha fealdade com preocupação. Nesse momento, uma estranha emoção que não soube definir até que permaneceu ao meu lado brotou sem que eu pudesse evitá-lo. Não sei se o sentimento é mútuo. Tenho a esperança de que seja assim. Comecei a acreditar quando te dava o primeiro beijo e não me rejeitou. Quando te olhava e não apartava seus olhos verdes dos meus. Quando seu corpo se debilitava entre meus braços. Se minhas divagações não forem corretas, peço-te mil desculpas.
Como meu amor é real, decidi fazer justiça e arrumar o passado. Não sinta piedade por mim, eu não a tenho. Não se pode ter tal caridade a um ser desprezível, uma pessoa que não resolveu um tema tão horrendo por ser vaidoso. Mas retificar é de sábios e eu, embora não o seja, quero desculpar meu engano. Recordará a conversação que mantive com Roger e Federith. Bem, eles sabiam quem você era. Perdoe-me por não me haver dado conta de sua verdadeira identidade, apenas me fixei em ti. Agora me arrependo disso. Possivelmente, se o tivesse feito, nada daquilo te teria acontecido.
Não chore, meu amor. Sei que o está fazendo e me entristece saber que suas lágrimas percorrem seu belo rosto por minha culpa. Quero que saiba que não parti de seu lado porque não desejo permanecer contigo o resto da minha vida. Não é assim. Afastei-me de ti porque quero fazer aquele bastardo pagar todo o dano que te fez. Não. Não pude esquecer isso e viver como se nada daquilo tivesse acontecido. Ele te desonrou, humilhou-te e te fez abandonar seu lar para viver as penúrias às quais foi exposta.
Tenho que restabelecer sua honra. Tenho que recuperar seu posto na sociedade. E é meu dever fazer justiça à mulher que amo. Por último, quero que saiba, que embora não volte a te beijar nem te abraçar, estarei ao seu lado protegendo-a como tantas vezes te jurei, quando jazia ferida gravemente em meu quarto. Por isso, tem outra carta. É uma réplica de meu próprio punho e letra. Duas estão em posse dos únicos amigos que tive e a outra a tem o senhor Gibbs, meu administrador. Quero te demonstrar o muito que te quero e quão afortunado fui ao seu lado. Desejo que saiba, que embora tenha morrido no duelo, tê-lo-ei feito feliz porque meus últimos pensamentos serão para ti.
Amo-te e te amarei sempre.
William.”
A carta escorregou de suas mãos sem que ela percebesse enquanto sua mente se paralisava, até o ponto de não ser capaz de pensar com clareza ou emitir um gemido. Sentia as lágrimas lhe queimar a pele e seu coração romper-se como o cristal e o único que atinou a pensar era que elas deviam sabê-lo. Não havia nada em Haddon Hall que elas não soubessem.
? Senhora Stone! Senhora Stone! ? Gritou com força. Levantou-se de seu assento, inclinou-se para segurar a carta e não teve forças para levantar-se de novo. ? Senhora Stone!
? O que acontece? ? Perguntou a anciã depois de abrir a porta com tanta impetuosidade que golpeou a parede.
? Sabia ? disse apertando os dentes e olhando ao chão. ? Todos sabiam!
? Minha querida menina... ? murmurou sem mover-se da entrada. Segurou-se as mãos e controlou o desejo de correr para ela para abraçá-la.
? Todos sabiam! Todos! ? Gritou com voz rouca. ? E ninguém foi capaz de freá-lo ? chorou com ferocidade. ? Ninguém!
? Ninguém pode ir contra a vontade de seu senhor... ? sussurrou a mulher em meio ao seu pranto.
? Maldita seja a honra! Maldita seja a dignidade! Acaso não entendem que ele morrerá? ? Clamou tão forte que notou como se danificavam suas cordas vocais. ? Morrerá!
? Não se pode fazer nada... ? respondeu a anciã.
? Não se pode fazer nada?! ? Repetiu com tanta ira que seu corpo se sacudiu. ? Se Deus é misericordioso, estarei gerando um filho do duque e você me diz que... não se pode fazer nada para impedir que o matem!
? OH, santo Deus! ? Exclamou Hanna levando as mãos para o rosto.
? É claro que se pode tentar fazer algo. ? A voz serena de Lorinne surgiu atrás da anciã. ? Sua Excelência partiu na carruagem do senhor Cooper e deixou a sua nas cavalariças. Mathias poderia prepará-lo e nos conduzir até Londres ? sugeriu a criada.
? Bobagens! ? Gritou Hanna. ? Como pretende que a senhorita Lowell parta daqui?
? Preparem ? ordenou Beatrice. Aquela opção lhe pareceu à única alternativa possível.
? Senhorita... ? murmurou Hanna.
? Diga ao Mathias que partiremos nesta mesma noite. Se não descansarmos, poderemos chegar a Londres a tempo para impedir esta loucura.
? É claro! ? Respondeu Lorinne antes de pôr-se a correr.
? É uma loucura, pequena ? indicou a anciã imóvel.
? O que faria você para salvar a vida do homem que ama e possível pai de seu filho?
Sem nada mais que acrescentar, Beatrice saiu da biblioteca e se dirigiu ao seu dormitório. Não tinha muito que preparar, mas a intimidade de seu quarto lhe viria bem para repensar sobre tudo o que tinha acontecido.
XXVI
? Que horas são? ? William apoiou a cabeça nas paredes almofadadas da carruagem enquanto observava pela janela como uma tênue chuva caía sem cessar. Tinha chegado a Londres, à cidade sem sol, ao ambiente úmido, à frieza que desprendiam as edificações.
? É a hora do chá ? respondeu Federith depois de olhar seu relógio de bolso.
? Qual é seu plano? Percorrer as ruas em sua busca? ? Perguntou Roger, que tinha se acostumado a estirar as pernas sobre o assento de frente.
? Primeiro tenho o dever de falar com seus pais. Precisam saber que sua filha ainda vive e que durante todo este tempo esteve sob meu cuidado ? esclareceu com serenidade.
? E logo lhes pedirá perdão? Ou lhes informará que está apaixonado por sua filha e que morrerá por esse amor? ? Questionou Federith zangado.
? O barão deve conhecer a verdade ? confirmou William com o cenho franzido.
? Mon dieu! C’est très romantique!(8) Um homem que luta pelo amor de sua futura esposa pondo sua própria vida em perigo. Se os barões não lhe derem seu consentimento para se casar com ela, perderam o julgamento ? assegurou Roger com aparente diversão. Baixou os pés, olhou ao duque de lado e bateu várias vezes a coxa esquerda para acalmar a dor que tentava ocultar.
? Quero que me faça um favor ? expôs o duque olhando a quem tocava sua perna. ? Deve averiguar onde podemos encontrar ao Rabbitwood.
? Onde crê que estará um homem inocente e respeitoso como ele numa sexta-feira à tarde? ? Argumentou ao mesmo tempo em que arqueava as sobrancelhas. Ao ver que William estava tão absorto em seus pensamentos que não lhe tinha entendido exclamou: ? No clube! Que melhor lugar para desfrutar de um bom jogo, bom uísque e a aparição de maridos endemoninhados?
? Averigua-o ? disse sem prestar atenção às zombarias de Roger. ? Se estiver certo, depois da minha visita aos Montblanc, dirigirei-me para lá e lhe reclamarei meu duelo ? indicou antes de olhar de novo as ruas e refletir o que estaria fazendo Beatrice naqueles momentos.
Embora a senhora Stone lhe prometesse que a teria muito entretida lhe ensinando a cozinhar, não estava muito seguro disso. Suspeitava que a jovem em qualquer momento abandonasse aqueles trabalhos e inventaria outras novas. Desenhou um pequeno sorriso ao recordar a pose que punha quando se zangava, aquelas dobras divertidas que lhe apareciam na testa, àqueles lábios apertados como se fosse uma menina travessa e sem esquecer suas mãos na cintura para acentuar seu aborrecimento. Sentia falta dela. Apesar de ter passado tão só uns dias afastado dela, sentia saudades mais do que supunha. Imaginou-a de novo em sua cama e disse que jamais tinha visto um anjo dormir com tanta tranquilidade.
Uma imensa angústia lhe percorreu o peito. Não voltaria a vê-la. Não voltaria a beijar aqueles lábios apertados nem sentiria sua pele ardente depois de ser amada. Mas deveria fazer o correto. Tinha que liberá-la de seu passado e deixá-la retornar à vida que abandonou.
? Não pensou em deixar nas mãos da justiça o incidente?
A intervenção de Federith rompeu o estranho silêncio que se produziu entre os três.
Ninguém até aquele momento se atreveu a lhe oferecer essa alternativa, mas para Cooper, William era seu irmão e por isso queria que não pusesse em perigo sua vida. No passado salvou-se estando em plenas faculdades, mas agora, com uma mão imprestável e sem haver tocado em uma arma desde a última vez, suas possibilidades de sobreviver eram escassas.
? Justiça? ? Inquiriu o duque apartando o olhar da janela e dirigindo-a ao seu amigo. ? Diz-o a sério? Acaso não recorda minha imparcialidade quando o barão veio à minha casa rogando por esclarecer o caso de sua filha?
? Calma, cavalheiros ? interrompeu Roger para tranquilizar seus amigos. Não queria que a alteração que viviam nesses instantes produzisse uma disputa tendo em conta que William estava a ponto de enfrentar-se. ? Federith, acaso não ficou clara sua decisão antes de partir? William é um homem apaixonado e é lógico que queira resolver o tema com venerabilidade.
? Está louco? Por acaso essa viagem à França perturbou sua mente? ? Respondeu o aludido. ? Pode morrer! Entende-me? Morrer!
? E morrerei feliz sabendo que cumpri com meu dever ? pronunciou William antes de inundar-se em outro comprido silêncio.
Quando escutaram a voz do cocheiro fazendo parar aos cavalos, os três se olharam e, sem dizer nenhuma palavra, assentiram. O primeiro em sair foi Federith. Uma vez que pisou no chão se arrumou a capa, colocou-se o chapéu e deu uns passos adiante para que os outros saíssem com facilidade. Seguiu-lhe William, que foi atendido por Brandon antes que seus pés abandonassem a pequena escada metalizada. Finalmente apareceu Roger. Sua atitude despreocupada chamou a atenção de seus amigos. Ao descobrir o olhar que ambos lhe ofereciam sorriu e disse:
? Se me desculparem, tenho que ir atrás de um vilão. Conforme dizem, os que são da mesma índole se encontram com facilidade.
? Não quis expressar isso ao te pedir que procurasse... ? começou a dizer William.
? Não o disse você, digo-o eu. Enfim, ver-nos-emo dentro de uma hora. Se quando terminarem não me acharem no interior da carruagem, imagina onde me encontrarão. ? Estendeu sua capa pelos ombros, colocou-se o chapéu e se dirigiu para o clube de cavalheiros Reform.
Com o mesmo ritmo ao andar, os dois amigos caminharam para a porta da residência do barão Montblanc. Era uma pequena casa de duas plantas com um jardim ao seu redor. A William pareceu um lar muito singelo para um barão, mas ao momento recordou que Federith, na noite antes do duelo e na conversação que mantiveram sobre Beatrice, explicou que a família Lowell mal passava dois meses ao ano nesse lugar. Então, justo nesse momento sopesou algo que não tinha tido em conta durante a viagem. Seria a época em que eles desfrutavam de sua vida em Londres? Rezando para que fosse assim e que nessa mesma noite terminasse seu calvário, adiantou-se a Federith, esticou a mão para a aldrava de bronze e a golpeou três vezes. Imediatamente, a porta se abriu e lhes recebeu um criado mais idoso que Brandon.
? Boa tarde, cavalheiros – saudou-lhes. ? O que desejam?
? Boa tarde, sou o duque de Rutland e o cavalheiro que me acompanha é lorde Cooper. Pode perguntar ao barão se é tão amável de nos conceder uma entrevista?
? Sua Excelência... ? disse o criado assombrado. Fez uma reverência e lhes cedeu o passo para o interior da moradia. ? Se esperarem uns instantes, informarei ao barão.
? É claro. ? William ofereceu o chapéu e a capa a Brandon enquanto observava com curiosidade o lugar onde tinha vivido sua amada Beatrice. Estava a ponto de comentar com Federith a calidez que desprendia um lugar tão singelo quando uma porta se abriu e apareceu o mordomo.
? O barão e a baronesa lhes receberão na saleta – informou-lhes.
Federith tirou a capa e o chapéu para oferecer-lhe ao criado. Logo colocou sua mão esquerda sobre o ombro de William e o apertou.
? Vamos...
Com passo firme ambos entraram na habitação. Igual ao saguão, a sala era um lugar com móveis e equipamento muito singelos. Mas William não se centrou no mobiliário, mas sim na atitude carinhosa com a qual o casal se olhou antes que ele desse dois passos para o interior. Esse era o olhar que queria ver o resto de sua vida no rosto de Beatrice, uma mescla de amor e ternura.
? Boa tarde. Minha esposa e eu estamos agradecidos por sua presença em nosso humilde lar ? esclareceu. A baronesa se levantou da poltrona e fez uma pequena reverência, o barão se aproximou de ambos e lhes estendeu a mão. ? Se forem tão amáveis de tomar assento.
? Se não lhe importar, ficarei de pé ? indicou William com voz serena. Olhou de esguelha à baronesa e achou uma grande semelhança com sua amada Beatrice. Ambas as mulheres tinham o cabelo escuro, uma figura pequena e os olhos mais verdes que jamais tinha contemplado.
? Como desejar ? respondeu inquieto o barão.
? Dispunhamo-nos a tomar o chá, querem nos acompanhar? ? Perguntou Elisabeth com nervosismo.
A presença do homem que tinha rejeitado de forma categórica a inocência de sua filha não lhe resultava grata, mas seu marido a chamou à ordem quando se negou a recebê-lo. Assim em quão único pensava era que motivo lhe tinha conduzido até eles e quando partiria.
? Não, obrigado ? respondeu Federith ao ver que seu amigo não respondia.
? Bom, milord, a que se deve sua visita? ? Perguntou o senhor Lowell.
? Em primeiro lugar, quero lhes pedir perdão por não ter atendido seus rogos no caso de sua filha ? começou a explicar após respirar profundamente. ? Comportei-me como um vilão, um ser cruel, um miserável...
? Obrigada por suas palavras, ? interrompeu-lhe a baronesa ? mas sua desculpa chega um ano tarde.
? Elisabeth! ? Recriminou-lhe o barão.
? Tem você toda a razão, mas lhe rogo que me escute ? prosseguiu o duque enquanto confirmava que, não só tinha herdado seu físico, mas sim também seu temperamento. ? A senhorita Lowell está viva e durante este tempo viveu sob meus cuidados.
? Como diz? ? O barão, desconcertado ao escutar as palavras sobre sua querida filha, estendeu a mão para sua mulher. Ela se levantou com rapidez, segurou-lhe para que não caísse e o conduziu até a poltrona.
? Faz aproximadamente quatro meses tive um grave acidente em minha propriedade de Derbyshire. Uma jovem que se fazia chamar Beatrice Brown foi quem me salvou a vida. A moça vivia no refúgio de caça que possuo junto ao rio Wye e como pagamento à sua piedade, rogou-me que a deixasse viver ali. Não lhe neguei isso e mantive minha promessa até que foi atacada por uma manada de lobos. Depois de encontrá-la à beira da morte, decidi levá-la para minha casa até que sarasse. Com o tempo, e após conhecê-la, meus sentimentos para com ela foram... mudando. ? Tentou manter aquela calma que tinha tido até o momento. Entretanto, agora vinha a parte mais dura para ele, mostrar suas emoções aos outros.
? Está nos dizendo que manteve sob seu teto a nossa filha e que não foi capaz de nos informar até agora? ? Elevou sua voz a baronesa.
? Ele não sabia quem era ela, senhora ? interveio Federith. ? O duque não a reconheceu e não tinha motivos para duvidar sobre sua identidade. Fui eu quem lhe informou do verdadeiro nome da jovem.
? Onde está minha filha? ? Perguntou o barão vigorosamente, segurou a mão de sua esposa e, graças à sua ajuda, pôde levantar-se de novo.
? Em Haddon Hall ? respondeu William.
? O que faz você aqui e minha filha lá? ? Grunhiu dando uns passos para o duque.
? Não queria que ela sofresse e acreditei que devia mantê-la à margem disto. Além disso, Beatrice não sabe o verdadeiro motivo pelo qual voltei para Londres.
? E qual é esse motivo, milord? ? Quis saber a baronesa sentindo um nó na garganta. Que o duque se referisse à sua filha com seu nome de batismo e que dissesse que seus sentimentos para ela tinham mudado, faziam-na imaginar-se algo de tudo impensável.
? Recuperar a honra de Beatrice ? disse com firmeza William.
? Por que quer fazer tal coisa? ? Elisabeth o olhou sem piscar. Ela acreditava saber a resposta, mas desejava escutar de sua boca. Precisava ouvir como a dor que lhes provocou no passado, tanto a ela como a seu marido, agora açoitava seu frio coração.
? Porque a amo ? respondeu sem duvidá-lo.
? O que pretende fazer? ? Depois de escutar as palavras do duque, o barão relaxou seu corpo, caminhou para sua esposa e entrelaçou suas mãos com as dela.
? Esta noite desafiarei ao conde de Rabbitwood a um duelo à morte ? indicou enquanto apertava com força a mandíbula.
? Acredita que aceitará? ? Prosseguiu falando o barão. ? Acredita que aquele canalha consentirá em pôr em risco sua vida para demonstrar que sua história é certa?
? É claro. Apesar de minhas cicatrizes sigo sendo o duque de Rutland e se Rabitwood não deseja ficar como o covarde que em realidade é, não poderá negar-se.
? E foi capaz de olhar a minha filha aos olhos e não lhe dizer a verdade? ? Inquiriu zangada Elisabeth. Se estavesse certa, e poucas vezes se equivocava, esse homem não só amava a sua filha, mas sim ela também amava a ele.
? Foi o mais correto ? sussurrou William olhando ao chão. ? Não desejo... não posso permitir que...
? Porque também lhe ama, não é? ? Disse Elisabeth após soltar com força o ar dos pulmões.
? Quando pretende que se celebre? ? Interveio o senhor Lowell ao estar seguro que, se sua mulher seguia falando, ao final seria ela quem apertaria o gatilho.
? Amanhã à alvorada, em Hyde Park. ? William olhou ao barão mostrando mais segurança em si mesmo que nunca.
? Bem, se aquele homem aceitar seu desafio, faça-me saber. Ali estarei. Agora, se nos desculpar, minha mulher e eu precisamos ficar sozinhos ? comentou o barão com serenidade.
? É claro. Boas...
? Quero que me escute antes de sair desta habitação ? falou Elizabeth apesar dos dramalhões de seu marido. ? Pergunte-se o que deseja uma mulher e não o que deseja um homem. Talvez, se lhe houvesse dito a verdade, teria descoberto que não há nada mais importante como ter ao seu lado a pessoa que ama.
? Elisabeth!
? Acredito, baronesa, que minha eleição foi à correta ? respondeu William. Fez uma pequena inclinação com a cabeça, golpeou suas botas e partiu seguido por Federith.
Nenhum dos dois fez alusão às palavras da senhora Lowell, embora ambos não cessassem de meditar sobre isso. Quando abandonaram a residência Montblanc, William olhou a ambos os lados da rua procurando Roger, este não se encontrava pelos arredores nem tampouco onde lhes havia dito. Em silêncio subiram à carruagem e o cocheiro agitou os cavalos.
O clube não tinha mudado nada em sua ausência. Seguiam as mesmas mesas, as mesmas cadeiras e inclusive os mesmos homens jogando cartas e bebendo o ansiado licor. Federith lhe tinha advertido que sua presença naquele lugar despertaria certo interesse, mas a William já não importava o que as pessoas murmurassem atrás de seu passo. Tinha algo que fazer e queria terminá-lo o quanto antes.
Ignorou as saudações daqueles que antes do duelo o idolatravam e depois lhe desprezaram. Caminhou com integridade pelo corredor central até parar-se em frente à porta em que deveria encontrar-se com seu oponente. Sua ira era desmensurada, seu coração pulsava sem freio e lhe tremia o corpo. Agora entendia por que os doídos maridos que o desafiaram se alteravam ante sua presença, enfrentar-se com a pessoa que fere sua alma sem escrúpulos não proporciona tranquilidade alguma.
Com decisão abriu a porta e acessou ao interior. Mal podia ver com claridade, já que a fumaça cobria a habitação, mas quando seus olhos se acostumaram à escuridão, percebeu cinco figuras ao redor da mesa. Roger ao lhe ver, sorriu. Ele tirara o casaco e fumava um dos charutos que tanto gostava. Tentando manter a calma, William se aproximou da mesa.
? Veio bem a tempo, William. O conde de Rabbitwood estava a ponto de me contar aquela história que narra sem parar sobre a ardilosa filha do barão Montblanc, não é assim? ? Olhou ao conde e desenhou um grande sorriso.
? Rutland! ? Exclamou com alegria o conde quando descobriu a figura do duque ao seu lado. ? Quanto tempo! ? Levantou-se para estender sua mão, mas a apartou com rapidez ao sentir um estranho ódio para sua pessoa.
? É um maldito bastardo, um descarado e um violador ? grunhiu William sem mover-se.
? O que está dizendo? ? Perguntou entre risadas. ? Tanto lhe afetou o disparo que não me recorda? ? Perguntou dirigindo-se ao Roger, que seguia sentado na cadeira com atitude aparentemente serena.
? Eu o desafio! ? Clamou William atirando a luva sobre a mesa.
? Pela honra de quem? ? Continuou jocoso.
? Pela honra da senhorita Lowell, filha do barão Montblanc ? gritou com força para que todos os presentes o escutassem.
? Por uma morta? Quer morrer por alguém que já não respira? ? Sua diversão era tal que não podia deixar de mostrar um enorme sorriso. ? Meu Deus! ? Exclamou em tom divertido. ? Que pavor! Um duelo com um incapaz! Aceito-o? O que fariam vocês, cavalheiros? Recolho essa luva? Possivelmente seja a da sua mão esquerda e como podem apreciar, já não lhe faz falta. ? Levantou as sobrancelhas e soltou uma sonora gargalhada.
De repente a mesa saiu voando, pulverizando pelo chão tudo o que havia sobre ela. O que aconteceu depois ocorreu tão rápido que ninguém foi capaz de impedi-lo. Roger se levantou de seu assento, segurou o pescoço do conde e o apertou contra a parede. Nesse momento todos os cavalheiros menos um se largaram dali. O único que ficou sentado foi o jovem senhor Pearson.
? Reza ao seu Deus, ? grunhiu Roger no ouvido do conde ? porque se meu amigo não te matar, farei-o eu. ? E depois de ver como o rosto do miserável começava a ficar violáceo pela falta de oxigênio, soltou-o.
Rabbitwood respirou com dificuldade durante uns instantes. Seus olhos, acreditou-se sairiam disparados de suas órbitas, começavam a encher-se de lágrimas. Quando se recuperou, ergueu-se, esticou a camisa com força e olhou com receio ao duque. Era conhecida sua destreza ao disparar, mas agora não tinha nada que temer. O homem que o desafiava não era o mesmo que conheceu no passado. Depois de meditar sobre isso, voltou a desenhar um sorriso em seu rosto.
? Está bem. Aceito seu duelo. Imagino que não lhe fará falta saber quando e onde, não é?
? Amanhã, à alvorada, em Hyde Park e não sorria tanto, o duelo será à morte ? disse William com decisão.
? Como desejar, mas quero que saiba uma coisa, Rutland... ? comentou reticente enquanto agarrava a jaqueta de seu traje ? quando cair no chão morto recorde que o adverti.
Roger se equilibrou sobre Rabbitwood, mas desta vez Federith esteve atento e impediu que lhe agredisse agarrando com força o torso de seu amigo. Enquanto ambos os homens discutiam se tinha sido acertada ou não a intervenção, William observava como o desafiado caminhava sem mostrar inquietação. Era a mesma atitude que ele tinha exibido no passado. Sem preocupação. Sem tristeza pelo dano causado. Sem arrependimento. Entretanto, o destino lhe havia devolvido todas e cada uma de suas más ações e o rol tinha mudado, agora não era o desafiado, mas sim o desafiador.
? Desperte ? sussurrou Lorinne à Beatrice. ? Chegamos.
A moça apartou com rapidez a manta que a resguardava do frio e saiu da carruagem sem pensar duas vezes. Em várias ocasiões esteve a ponto de perder o equilíbrio. Não tinha descansado durante a viagem, mal tinha comido e estava acostumada a dormir quando o esgotamento era muito maior que sua tenacidade. Durante os dias que passou no interior da carruagem rezava a Deus para que acontecesse algo que impedisse o duelo: uma tormenta, que o bastardo do Rabbitwood não o aceitasse, e inclusive teria perdoado que Roger, porque Federith seria incapaz, embebedasse William até o ponto de que não pudesse sustentar-se em pé. Qualquer coisa lhe valia se evitasse a terrível desgraça.
Ao colocar-se em frente à porta da propriedade, olhou ao seu redor e não sentiu como se voltasse para casa, seu verdadeiro lar se encontrava onde William estivesse. Agarrou a aldrava e não cessou de golpear até que o mordomo lhe abriu a porta.
? Senhorita! OH, santo céu! A senhorita está em casa! A senhorita retornou! ? Exclamou o ancião movendo-se de um lado a outro do saguão para que todo mundo pudesse lhe escutar.
De repente, a entrada do salão onde estavam acostumados a permanecer os três quando não tinham visitas se abriu e apareceu sua mãe. Beatrice correu para ela quando Elisabeth estendeu seus braços.
? Minha menina! Minha pequena menina! ? Exclamou a mãe depois de romper a chorar.
? Mãe! Mãe! Não imagina quanto senti sua falta!
? OH, querida! Já não terá que partir de novo. Tudo mudará... tudo mudará... ? sussurrava-lhe sem deixar de lhe beijar as bochechas e as mãos.
? Tem-no feito! Aquele maldito conde aceitou o duelo! ? Exclamou apartando-se da calidez que lhe ofereciam as mãos de sua mãe. Girou-se sobre si mesma, olhou para o chão e prosseguiu: ? Não cheguei a tempo? Celebrou-se o duelo?
? Não ? respondeu Elisabeth caminhando para ela.
? Quando será? Onde? Mãe, o suplico! Não deixe que morra! Amo-o! ? Exclamou entre intensos soluços.
? Seu pai partiu faz dez minutos. Não vai em carruagem, mas sim andando. Um dos amigos do duque veio por ele. Conforme escutei, o duelo se celebrará em Hyde Park. Se partir agora, possivelmente chegue a tempo.
? Mathias! ? Gritou ao moço. ? Sabe chegar a Hyde Park?
? Não, senhorita Lowell. Jamais estive em Londres ? respondeu segurando a boina e apertando-a entre suas mãos.
? Eu sim! ? Exclamou Lorinne.
? Você? ? Perguntou Beatrice assombrada.
? É uma longa história, senhorita Lowell. Possivelmente, quando retornarmos a Haddon Hall a conte ? disse a donzela ao mesmo tempo em que corriam para o exterior da casa.
? Posso lhes acompanhar? ? Perguntou com certa inquietação Elisabeth.
? Vamos, mamãe! Necessitarei de sua ajuda se por acaso não me derem atenção! ? Gritou Beatrice abrindo a porta da carruagem.
Lorinne saltou sobre o assento para segurar as rédeas e, quando escutou que a porta se fechava, tocou com tanta força aos corcéis que Beatrice e sua mãe saltaram no assento durante o breve trajeto. Elisabeth entrelaçou suas mãos com as de sua filha e juntas começaram a rezar. Não deixaram de fazê-lo até que escutaram o grunhido que empregou a criada para fazer frear aos cavalos.
? Corre! ? Gritou-lhe a mãe girando a manivela com ímpeto.
A moça saltou sobre o chão, segurou-se o vestido e correu para o interior do parque. Quanto mais perto estava do lugar onde se supunha serem celebrados os duelos, sua respiração se voltava mais entrecortada, o pulso aumentava a um ritmo desumano e começavam a lhe tremer as pernas. De repente escutou uma voz e, sem duvidá-lo se dirigiu para ela, mas toda sua esperança se esfumou em um golpe quando observou a horrorosa cena.
Suas lágrimas começaram a percorrer seu rosto de novo e seu coração deixou de pulsar. William dava as costas ao Rabbitwood. Em sua mão elevava uma arma e parecia murmurar algo. Beatrice recordou as últimas frases da carta que lhe escreveu: «Quero que saiba, que embora tenha morrido no duelo, terei morrido feliz porque meus últimos pensamentos serão para ti». Estaria pensando nela? Quis gritar para que freassem aquela loucura, mas não lhe brotava a voz. Era incapaz de dizer algo. Ouviu como alguém contava.
? Dez, nove, oito, sete...
Ajoelhou-se. Levou as palmas para o rosto e o cobriu com elas. Não queria ver como morria o homem que amava. Não queria ver como dava sua vida por ela. Não queria...
O som de um só disparo provocou que vários bandos de pássaros elevassem seu vôo. Beatrice seguia chorando, rezando pela alma de William.
? Um médico! ? Escutou que alguém gritou. ? Está vivo? Segue vivo?
De repente, os passos de um grupo de pessoas se ouviram aproximar-se. A moça era incapaz de olhar para aquele lugar. Não queria ver o corpo de William estendido sobre o chão. Os passos cessaram. Depois houve silêncio e logo só ouviu um caminhar.
? Minha pequena Beatrice... ? murmurou William ao seu lado.
? William! William! ? Exclamou com alegria a moça enquanto se levantava e saltava sobre ele.
? Meu amor, o que faz aqui? Por que não ficou em casa? ? Depositou-a com cuidado no chão. Deixou que lhe abraçasse a cintura e colocasse a cabeça em seu peito.
? Por que acredita que estou aqui, William? ? Soluçou enquanto levantava o rosto para o homem. ? Porque te amo. Amo-te mais que a minha própria vida, honra ou o que esta maldita sociedade pense. Se tivesse te acontecido algo, eu... eu... teria morrido contigo, entende? Haveria mor...! ? A boca de William se chocou com a de Beatrice ao mesmo tempo em que a atraía com força para seu corpo.
Beijou-a durante tanto tempo que ambos ficaram sem fôlego.
Ali, diante de todos os presentes, mostraram seu amor. As pessoas que os olhavam foram testemunhas de como dois corações pulsavam em harmônia, de como dois corpos tremiam ao permanecer unidos e de como, dois seres a quem seu passado fez manter-se em solidão, a vida lhes dava uma segunda oportunidade para serem felizes e poderem amar.
XX
? Deveríamos ter escolhido o dourado... ? disse Beatrice movendo-se sobre si mesma e observando o vestido com atenção para convencer-se de que não era muito ostentoso para aquela ocasião ? tem bastante decote...
? Mas seu seio não aparece. A renda de seda branca evita que se aprecie ? argumentou Lorinne enquanto tentava colocar as últimas forquilhas no cabelo da inquieta moça.
? Não pensa que é muito atrevido? ? Perguntou ao mesmo tempo em que detinha seus movimentos fazendo com que a criada soprasse aliviada ao poder finalizar sua tarefa.
? O malva é o ideal para tomar o chá. Se tivesse escolhido o esmeralda eu lhe teria feito mudar de ideia. Esse sim é um vestido atrevido. Ainda não sei como a senhora Stone permitiu sua compra ? expôs antes de emitir um sorrisinho perverso.
? Mas é lindo... ? murmurou a jovem caminhando para o objeto e tocando com cuidado o tecido.
? Esse deve usar na festa. Estou segura de que deixará a mais de um cavalheiro com a boca aberta e com uma dor terrível no flanco ? comentou a donzela zombadora.
? Por quê? ? Beatrice arqueou as sobrancelhas, olhou-a com atenção e caminhou para ela.
? Não imagina por quê? ? Assinalou com seriedade. Logo, ao descobrir que com efeito a jovem não sabia a que se referia, explicou-lhe. ? Como acredita que atuarão as esposas desses maridos? ? Esperou uma resposta e ao não obtê-la, continuou. ? Minha querida senhorita Brown, esses desafortunados cavalheiros serão golpeados pelos duros cotovelos de suas mulheres ? disse antes de soltar uma gargalhada.
? Não seja boba... ? sussurrou desenhando um leve sorriso em seu rosto. ? Ninguém será capaz de me olhar dessa forma sabendo que sou a pupila do duque. Todo mundo teme zangá-lo.
? Mas sua Excelência não poderá controlar os olhares...
De repente alguém deu uns pequenos golpes na porta. Depois que Beatrice deu sua permissão, o senhor Stone fez ato de presença. Como era habitual nele, mostrou-se sério, frio, imperturbável.
? Senhorita Brown, informo-lhe que os convidados acabam de chegar. Sua Excelência a espera para recebê-los.
? Descerei agora mesmo ? manifestou depois de tragar saliva.
? Obrigado ? respondeu o mordomo antes de despedir-se.
Quando fechou a porta, Beatrice levou a mão direita ao peito sentindo a agitação que se ocultava em seu interior. Seria capaz de convencer ao incrédulo senhor Wadlow da nova versão? Que provas lhe pediriam para confirmar que ela não era uma cortesã? E, sobretudo... como atuaria o duque se o homem se comportasse indevidamente com ela? De repente sentiu medo e um estranho enjôo a sacudiu com ímpeto. Temerosa por um possível desmaio, caminhou devagar para o leito e se agarrou com força a um dos dosséis.
? Não se preocupe, tudo sairá bem ? sussurrou Lorinne. Vendo-a tão aturdida, aproximou-se, estendeu os braços para abraçá-la e a tentou reconfortar com o apertão. ? O duque cuidará de você como tem feito desde que entrou nesta casa. Esse filho do demônio não se atreverá a lhe magoar porque, se o fizer, estou segura que não sairá ileso daqui ? sussurrou. Depois de suas palavras, a donzela lhe deu um beijo na bochecha, a fez girar para a porta e a empurrou brandamente até que conseguiu tirará-la da habitação.
Quando Beatrice se propôs a descer as escadas, parou para observar o duque. Este se encontrava imóvel no hall com o olhar cravado na entrada e manifestando certa rigidez em seu corpo. Estava tenso, mais do que esperou encontrar em um homem que se caracterizava por manter uma extraordinária serenidade e autoridade. Sem dúvida, o que acontecesse durante a visita do doutor e sua esposa, inquietava-lhe.
A moça pensou que era lógico que se encontrasse daquele modo, posto que lhe urgisse resolver um tema que lhe causava tristeza. Não era agradável que lhe seguissem considerando o sucessor das atrocidades realizadas por seu pai. Embora ele tampouco lutou com afã para fazê-las desaparecer. Por muito que lhe explicou desejar ser uma pessoa diferente, antes de ser ferido no duelo comportava-se com a mesma insolência que seu progenitor. Entretanto, todo mundo merece uma segunda oportunidade e possivelmente era o momento de recebê-la.
Com suavidade desceu as escadas sem deixar de observá-lo. Durante um breve instante, no qual este colocou sua mão direita nas costas, apreciou que enrugava a testa com força. Não podia receber ao casal daquela maneira, tinha que relaxá-lo. Se antes que estes pusessem um pé no lar e a perturbação não desaparecesse, a história mentirosa terminaria em um fracasso inevitável.
William não tranquilizou sua mente nem um só instante desde que a moça lhe revelou seu passado. Não cessava de imaginá-la perambulando sozinha, caminhando exausta e contornando centenas de perigos aos quais teria enfrentado. Cada vez que pensava nisso o sangue lhe fervia, irritava-se e queria golpear algo para poder quebrar com a mão. Embora aquelas divagações lhe enfurecessem, mais ira lhe provocava havê-la conduzido para a situação em que se encontrava agora. Por sua culpa a moça deveria enfrentar os falatórios de todo um povoado para demonstrar ser inocente e decorosa. E tudo porque ele não era capaz de deixá-la partir, de aprender a viver sem ela.
«Se tanto a necessito, ? disse ? deveria atuar com rapidez. O muro está quase terminado e então, tal como lhe prometi, terei que deixá-la partir».
Mas a única forma encontrada para evitar aquela desgraça não podia levá-la a cabo, não até que averiguasse os sentimentos que ela tinha para com ele.
? Se franzir o cenho com tanta frequência, envelhecerá logo – sussurrou-lhe Beatrice atrás dele.
? Desculpe-me, não a ouvi descer... ? começou a dizer William enquanto dava a volta para receber como era devido à jovem. Ao apreciar sua beleza e como aquele vestido de cor malva ressaltava sua figura, tragou saliva e sentiu como seu corpo se debilitava. Estava linda, encantadora, possivelmente até mais do que deveria mostrar ao casal. Entretanto, quem pode diminuir a mágica beleza que brota da simplicidade?
? Quer que eu me coloque ao seu lado ou prefere que permaneça uns passos atrás? ? Perguntou.
Era uma pergunta aparentemente infantil, mas não podia ser assim quando a moça revelava em seu rosto uma imensa zombaria.
? Se lhe oferecer o braço e você o aceitar, acredita que a senhora Wadlow terá que ser assistida por seu querido marido após sofrer um desmaio? ? Respondeu William à dita brincadeira.
? Então, a melhor opção será que fique ao seu lado, mas com certa distância ? disse ao mesmo tempo em que dava uns passos para sua esquerda.
As vozes dos convidados se escutaram detrás da porta, Brandon estava no exterior para lhes indicar para onde deviam caminhar. William olhou para a entrada, logo observou à moça e, sem saber a razão que conduziu a tal atrevimento, inclinou a cabeça para ela e lhe sussurrou com suavidade.
? Esqueci-me de lhe dizer que está linda.
Beatrice abriu os olhos como pratos ao escutar o suave murmúrio do duque em seu ouvido. Começaram a lhe suar as mãos, seu seio se elevava com ímpeto devido à respiração agitada, os joelhos começaram a dobrar-se pela perturbação que aquelas suaves palavras lhe provocaram. Era a primeira vez que lhe oferecia um elogio e, apesar de tentar lhe subtrair importância a um fato tão minúsculo, não o conseguiu. Por uma estranha razão, se ele se sentia orgulhoso dela, ela notava como crescia uma imensa felicidade em sua alma.
? Se forem tão amáveis de me seguir ? falou o senhor Stone. ? Conduzirei-lhes até a presença de sua Excelência.
? Pelo amor de Deus, Graham, isto é enorme! ? Exclamou a esposa, sem poder apartar o olhar de tudo o que se achava ao seu redor.
? Centre-se no importante, Irina. Você, como perita em propagar falácias, deve descobrir se esses dois estão nos mentindo. Como já sabe, nossa credibilidade diminuiu grandemente entre nossas amizades e, se deseja continuar sendo a esposa de um respeitado doutor, temos que achar a verdade.
? Não se preocupe querido ? disse sorrindo e lhe dando uns pequenos golpes com sua mão esquerda no braço que a sustentava. ? Encontrarei-a antes de beber o último gole de chá.
Brandon, ao escutar a conversação nada dissimulada dos convidados, apertou os dentes, abriu a porta e mostrou uma careta que tentava assemelhar-se a um sorriso.
? Senhor Wadlow, senhora Wadlow, bem-vindos ? saudou o duque com voz grave.
? Boa tarde, senhor. Obrigado por aceitar nossa visita ? comentou o doutor com um sorriso malicioso. Aproximou-se de William e estendeu a mão para lhe saudar. Logo olhou de esguelha à Beatrice e se dirigiu para ela. ? Alegro-me de vê-la em tão bom estado, senhorita Brown.
? Muito obrigada. Na verdade, devo tudo a você e ao seu magnífico trabalho. Ficaram apenas as marcas na perna ? comentou sorridente.
? Querida, esta é a jovem de quem te falei ? explicou Graham apartando-se para a direita para que a mulher se aproximasse de Beatrice. ? Senhorita Brown, minha esposa, a senhora Wadlow.
? Encantada ? disse a moça mostrando o mesmo sorriso sardônico que, instantes antes, tinha exibido o doutor.
Não tinha feito uma ideia de como seria a mulher do famoso médico, mas lhe chamou muito a atenção que ela fosse bastante mais alta que ele. Com uma compleição magra, mais do que estabeleciam os ícones de beleza, usava um vestido que enfatizava a estreita cintura e exaltava seu busto. Beatrice admirou o cabelo, era o mais dourado que tinha visto até agora. Era um loiro tão intenso que poderia confundir-se com o branco. E era jovem, muito mais jovem que seu marido, que exibia uma barba grisalha cuidada, um cabelo cortado à perfeição e uns olhos repletos de maldade.
? Encontra-se melhor? OH, meu Deus! Quando Graham me narrou a tenebrosa história que tinha padecido e as sequelas que poderia sofrer, quase desmaio ? explicou com aparente horror.
? Mas graças à intervenção de seu marido hoje posso caminhar como se nada daquilo tivesse acontecido ? sorriu outra vez.
? Deveríamos nos dirigir para o salão e continuar ali o bate-papo ? interveio William perplexo ante a hipócrita atitude dos três. Tinha pensado que Beatrice se enfureceria ao ter em frente a ela o culpado de sua agonia, mas de novo o deixava assombrado, atônito e orgulhoso.
? É claro ? afirmou a moça. ? Os cavalheiros poderiam ir à frente ? murmurou à Irina segurando-a pelo braço com familiaridade. ? Estou segura que ambos conhecem o caminho melhor que nós.
? Confunde-se, senhorita Brown ? interveio com rapidez o doutor. ? Salvo o dia em que vim para tratá-la, jamais estive neste lugar ? resmungou Graham ante tal atrevimento.
? Desculpe-me! ? Exclamou Beatrice com semblante desconcertado. ? Acreditei escutar que você era amigo do anterior duque de Rutland.
? Que nada! ? Deixou escapar Irina ante tal afirmação. ? Ninguém que se considerasse respeitável teria visitado esta mansão durante as aparições daquele homem.
? Ah, não? ? Perguntou com um aparente assombro.
? O pai de sua Excelência, ? começou a explicar a mulher depois dos passos dos cavalheiros ? era um homem desonroso e abrigava sob seu teto mulheres... como o diria eu para não escandalizá-la?
? Prostitutas ? apontou William com voz séria. Embora seu tom não refletisse o que sentia em realidade. Ao princípio apertou os dentes pela ousadia da moça, mas depois de ver a cara de espanto que mostrou o doutor, não cessou de repetir-se que a reunião iria ser mais amena do que pensava.
? Por isso alguém proclamou por Rowsley que sou sua... ? Beatrice tentou simular um desmaio ante o descobrimento. A senhora Wadlow lhe segurou com força o braço e olhou furiosa ao seu marido, este retornou com rapidez para a jovem para examiná-la.
? Não se preocupe ? disse a moça recompondo-se. ? Foi só um pequeno enjôo ao recordar as calúnias que um ser perverso e malicioso comentou sobre mim sem me conhecer.
? Encontra-se melhor? ? Interrompeu William tentando aparentar preocupação.
? É claro, sua Excelência, prossigam. Nós partiremos atrás.
O duque continuou seu caminho para o salão. Ao seu lado permanecia o doutor com o cenho franzido e absolutamente em silêncio. Depois deles andavam as mulheres. Quando entraram no salão, elas se sentaram perto da mesa redonda que havia justo ao lado de uma das janelas, onde podiam admirar o exterior do lar. Eles decidiram permanecer de pé ao seu lado.
? Então, ? rompeu o silêncio Irina ? conforme nos informaram, é você a pupila de sua Excelência.
? Sim. Minha mãe, amiga de uma irmã de uma amiga da irmã de outra amiga da atual duquesa de Rutland, encomendou-lhe a árdua tarefa de ser meu tutor ? explicou olhando-a fixamente aos olhos.
? Não teve mais alternativa? Desculpe meu atrevimento, milord, mas tem que compreender que uma moça tão jovem, tão bonita e com tantas possibilidades de encontrar um bom tutor em Londres, não entendo como terminou neste lugar.
? Desculpo-a, senhora Wadlow, eu pensei o mesmo quando minha mãe me informou sobre sua decisão. Mas depois de minha desgraça, de me converter em um ser incapaz de realizar nada sem a ajuda de meu fiel mordomo e de não supor perigo algum para a senhorita, insisti que era a melhor opção para limpar o bom nome que ostento ? sentenciou.
Beatrice não respirou. Ficou tão assombrada pela exposição do duque que não soube como atuar. Se sorrisse mostraria a estes seu apoio à declaração de inutilidade do homem, mas se pelo contrário, franzisse o cenho, apertava os dentes e seus punhos pela dor que lhe tinham causado as palavras, daria a entender aquilo que nem ela mesma era capaz de assimilar.
? Como já expliquei à encantadora senhora Brace, o duque é muito inteligente, mais do que deseja aparentar – interveio. ? E como tutor, não tenho queixa alguma, embora eu lhe diga que é bastante exigente.
O casal se dirigiu um olhar furtivo, mas tanto o duque como Beatrice o captaram. Estes se olharam interrogantes, como se ainda não acreditassem na versão contavam.
? É o momento do chá ? esclareceu William. Caminhou para um lado da cortina e puxou com delicadeza uma corda que pendia do teto. Ato seguido apareceu o senhor Stone.
? Sim, milord?
? Estamos preparados para tomar o chá ? afirmou.
Brandon fez uma suave reverência e, cinco minutos depois de sua marcha, duas criadas levavam em suas mãos umas bandejas de prata com as xícaras e massas.
Não houve bate-papo enquanto saboreavam a deliciosa infusão. Entretanto, William apostava o único braço são que o casal não cessava de refletir sobre quais perguntas fazer à moça para confirmar o que deviam descobrir. De repente, o doutor até aquele momento sentado ao lado de sua mulher para ingerir o chá e saborear alguns doces, pousou a taça sobre a mesa e se levantou com decisão.
? Sabe tocar o piano, senhorita Brown? ? Perguntou enquanto se dirigia ao instrumento situado no outro lado do salão. ? Se a memória não me falhar, nosso duque, quando tinha a precoce idade de dez anos, era um magnífico pianista.
William abriu os olhos como pratos. Um nó enorme lhe impediu de tragar o último sorvo de chá que tinha tomado. Tentou falar para oferecer qualquer desculpa, que o piano estava desafinado, que tinha se quebrado alguma tecla, algo que o tirasse do apuro, mas foi impossível.
? Não dizia você nunca tinha aparecido em Haddon Hall, salvo quando me visitou? ? Beatrice, assombrada pela maldade do homem, replicou-lhe com a mesma perversidade.
? Não precisava aparecer por estas lareiras para escutar as pessoas falarem sobre o incrível talento que possuía lorde Rutland com este instrumento ? sorria de orelha a orelha. Seus olhos mostravam uma escura e maléfica satisfação. Dizia-se a si mesmo ter encontrado o que havia se proposto. Que cortesã alcançaria tal capacidade? Elas só eram peritas em agradar sexualmente aos homens e deixavam de lado um estudo tão importante como a arte da música.
? Sim, por favor, toque alguma peça! ? encorajou Irina a decisão de seu marido com grande exaltação. ? Eu adoraria escutá-la. Apesar de meus constantes intentos por aprender a tocar esse instrumento, nasci sem esse dom. Conforme me disse meu último professor, não tenho um bom ouvido.
? Como podem apreciar ? interrompeu William mal-humorado. ? Não sou o homem apropriado para instruir com precisão nessa habilidade. Muito temo que...
? É claro! ? Exclamou Beatrice elevando-se de seu assento e caminhando para onde permanecia o senhor Wadlow e o instrumento. ? Como já disse, o duque é um bom tutor e, embora não possa me deleitar com uma interpretação, ele sim tem bom ouvido e sabe como transmiti-lo.
Absorto, assombrado e com o corpo tão intumescido que não era capaz de mover-se, William admirou a pequena figura dirigindo-se com elegância para o lugar. A moça se sentou após acomodar seu vestido ao assento, arrumou o suporte das partituras e olhou-as com atenção.
? Alguma peça em especial? ? A jovem arqueou as sobrancelhas e sorriu. Sentia seu pulso acelerado, os dedos começavam a mostrar rigidez e lhe suavam as palmas. Fazia pouco mais de um ano que não tocava o piano e, caso aquele maquiavélico personagem lhe pedisse algo especial, não poderia evitar cometer um engano. Sem saber por que olhou ao duque. Este estava absorto em algum pensamento doloroso porque franzia o cenho, tinha o olhar perdido e apertava a mandíbula. Quis lhe sorrir, transmitir-lhe serenidade para acalmar sua inquietação, mas... quem a calmaria?
? A que você desejar ? respondeu Graham sem deixar de regozijar-se.
Nesse momento e ante o assombro dos três, William se levantou do assento e caminhou para a jovem, colocou-se atrás dela e pousou a mão em seu ombro. Apertou-o com suavidade e lhe sussurrou:
? Beatrice...
O quente tato e escutar seu nome com aquela aveludada voz deixou a moça congelada. Notou um calafrio tão extraordinário e jurou que sua temperatura tinha baixado dez graus de repente. Elevou o queixo, afirmou com a cabeça como se este lhe tivesse indicado o que devia tocar, e colocando as mãos sobre as teclas iniciou a harmoniosa melodia.
Durante os quatro minutos e meio que durou Spring Waltz de Chopin, os três ouvintes foram incapazes de mover-se para interrompê-la com um minúsculo ruído. Quase não puderam respirar pela elegância e os sentimentos transmitidos em suas notas. Beatrice, apesar de suas dúvidas, não cometeu nem um só engano mesmo sentindo a terrível angústia que lhe causou a música. Recordou seus pais sentados na poltrona enquanto ela lhes deleitava com um interminável repertório. Aquela composição em especial os fazia segurar-se pela mão e mostrar sem pudor à sua filha o amor incondicional que se professavam. Naquele tempo ela sonhou encontrar um homem que lhe declarasse aquele afeto, que a protegesse, que a amasse sem objeções, sem restrições absurdas produzidas pela formalidade de uma sociedade repleta de insensibilidade.
Mas seus sonhos foram destroçados dramaticamente. Rememorou a dor sentida ao ser assaltada por seu violador, pelo dano que lhe produziu ao desflorá-la e como, destroçada, ficou estendida no chão chorando incapaz de levantar-se para seguir vivendo. Deveria tê-la matado com aquela faca que lhe apertava a garganta e finalizar assim o calvário que viveriam seus queridos pais depois do penoso anúncio.
Quando a peça estava a ponto de finalizar, a imagem do duque apareceu em sua mente sem poder evitá-lo. Recordou o dia do acidente e quando retornou para oferecer-lhe sua ajuda e ela o rejeitou, o momento no qual foi atacada e, depois de pensar que não seguiria vivendo, abrir os olhos e encontrar a figura esbelta do duque ao seu lado, cuidando-a, protegendo-a apesar de sua incapacidade. Recordou seu rosto zangado ao descobri-la vestida de criada, da tarde em que lhe abriu seu coração para fazê-la partícipe de suas desgraças. Do passeio, de sua dor e de como a tinha cuidado nessa tarde. Tampouco pôde evitar analisar seus sentimentos por ele. Seus aborrecimentos, suas atitudes altivas, dos incontáveis enfrentamentos... e soube por que tinha lutado com tanto ímpeto para apartá-lo de seu lado, porque o amava.
Estava apaixonada por ele e, embora pensasse que jamais desejaria deitar-se junto a um homem, ele fez com que toda sua decisão desaparecesse. Desejava-o com toda sua alma e isso lhe produzia pavor.
? Lindo... ? murmurou Irina levantando-se de seu assento para dirigir-se a ela.
Beatrice se incorporou e girou para o duque, quem permanecia ainda às suas costas. Elevou seu olhar para ele e não ocultou as lágrimas que emanavam sem cessar.
? Sinto muito todo o ocorrido ? disse o doutor ao contemplar a cena entre ambos. ? De verdade que o sinto e se sua Excelência deseja revogar o convite, compreenderei-o.
? O convite segue em pé ? comentou com firmeza. Não lhe olhou. Tinha seus olhos cravados na moça e não foi capaz de mover-se de seu lado, como ditavam os perfeitos comportamentos sociais, ao perceber sua debilidade.
? É hora de partir ? apontou Irina segurando seu marido pelo braço e dirigindo-o para a saída. ? Não se incomode em nos acompanhar, milord, meu marido saberá como sair daqui. ? William só pôde assentir com um leve movimento de cabeça.
Quando o casal fechou a porta, a senhora Wadlow agarrou com ímpeto o braço de seu marido e lhe sussurrou.
? Errou, querido. Não é sua concubina, mas sim a futura duquesa de Rutland.
O duque ao advertir que estavam sozinhos, estendeu sua mão e abraçou Beatrice. Deixou que seu rosto molhasse seu peito, que choramingasse tudo o que necessitasse, enquanto lhe sussurrava palavras de consolo.
«Sempre me terá ao seu lado. Não me separarei de ti até que você me peça isso», repetia uma e outra vez. A moça esticou seus braços e o aferrou ainda mais ao seu corpo. Necessitava aquilo que lhe prometia, precisava o ter ao seu lado, necessitava que jamais se afastasse dela.
? Minha pequena Beatrice... ? murmurou apartando-a com suavidade. Dirigiu sua mão para o lado direito do rosto feminino e lhe apartou as lágrimas, a seguir fez o mesmo com o esquerdo. ? Não sei de onde veio, nem como conseguiu chegar até aqui, mas dou graças a Deus por se cruzar em minha vida.
Beatrice elevou o queixo e deixou que este contemplasse sua tristeza. Permitiu que a reconfortasse e, quando percebeu sua boca se aproximando da sua, fechou os olhos para que a beijasse como tantas vezes tinha sonhado. Ao sentir a ternura em seus lábios, uma explosão de felicidade lhe percorreu o corpo. Ao princípio apenas lhe roçou e soluçou ao notar que se afastava, mas antes de poder abrir os olhos para certificar-se de que partia, o duque voltou a beijá-la. Entretanto, este beijo foi diferente. Toda aquela ternura dava passo a uma incrível paixão. Conquistava-a, fazia-a dele, hipnotizava-a até tal ponto que desejou sentir a mão dele acariciando seu tremente corpo. Não devia fazê-lo, não era adequado sentir, depois do acontecido, um desejo incontrolável de notar o calor de sua pele junto à sua, mas lhe resultava difícil não o fazer porque o amava.
William aproximou devagar os lábios para os de Beatrice e apenas os roçou, temia que ao tocá-los ela se arrependesse. Entretanto, ao escutá-la esboçar um pequeno e imperceptível gemido de necessidade, voltou a estender a mão e, segurando-a pela cintura, atraiu-a para ele. Deixando-se levar, transformou um terno e suave beijo em uma explosão de desejo. Saboreou sem descanso o interior e mesclou seu fôlego com o dela. Sua língua conquistou com suavidade e lentidão, tentando provocar em cada movimento mais paixão na jovem. De repente, um intenso calor lhe percorreu o corpo, convertendo o suave e terno beijo em um mais tórrido, enérgico e dominante. Era dele. Aquela pequena mulher era só dele.
? Desculpe minha ousadia ? disse William quando se separou dela para que não pudesse captar a excitação que lhe tinha provocado à aproximação. ? Não devia me aproveitar de sua aflição.
? Não se desculpe, foi culpa de ambos ? comentou com pesar ao entender que o duque se arrependia de beijá-la.
? Mas jurei que jamais tocaria a uma mulher sem seu consentimento ? esclareceu dando uns passos para trás.
? Cumpriu sua promessa, sua Excelência. Permiti-lhe me beijar e agora, se me desculpar, desejo me retirar ao meu quarto.
? É claro ? respondeu aflito.
Com a cabeça abaixada e com um visível pesar, Beatrice saiu do salão, subiu as escadas, alcançou seu quarto, fechou a porta e se tombou na cama para chorar.
Por outro lado, o duque quis correr para ela e lhe explicar que suas palavras não tinham sido acertadas. Que ele desejava beijá-la com toda sua alma. Mas apertou as solas de suas botas no chão e não o fez. Depois de escutar como a moça fechava a porta, girou-se para o móvel, tirou uma garrafa de brandy e se serviu uma taça que bebeu de um sorvo.
XXI
Durante os dias posteriores, Beatrice evitou qualquer encontro com o duque. Recusou seus convites para almoçar, tomar o chá ou inclusive jantar juntos pondo como desculpa as múltiplas tarefas que devia realizar para a festa. Embora pudesse sentir a presença do duque ao seu lado em cada coisa que fazia ou em cada passo que dava pela casa. O que pretendia fazer, falar do ocorrido enquanto almoçavam? Se tanta ansiedade lhe provocava o acontecido, por que não se deteve antes de fazê-lo? Por que, em seu segundo beijo, em vez de afastar-se, sua boca se chocou contra a dela com a mesma intensidade que uma onda do mar em um escarpado? Milhares de perguntas rondavam sua mente sem cessar, mas suas respostas não a convenciam. Na intimidade que lhe proporcionava a solidão de seu quarto, rememorava uma e outra vez aquele momento. Via-o ao seu lado tentando fazer desaparecer as lágrimas, apertando seu rosto contra seu peito. Recordava seu olhar e a expressão deste, não havia maldade nele, mas sim ternura, carinho, apreço.
Sentiu de novo o abraço, como a estreitava em seu corpo para consolá-la e, sobretudo, sua mente não cessou de evocar o momento do beijo. O primeiro terno, suave, com medo. Mas depois de escutá-la soluçar pelo distanciamento de sua boca, o segundo foi apaixonado, ávido e possessivo.
«Se tivesse sido em outro tempo, ? meditou na tarde do sábado enquanto esperava sentada sobre o leito a chegada de Lorinne ? acreditaria que se aproveitava da minha debilidade. Mas agora, depois de compreender quem é em realidade, não posso pensar isso. Ele já não é a pessoa que conheci em Londres. Aquele homem libertino, egoísta e petulante morreu».
Seguia divagando sobre as possíveis razões pelas quais o duque se desculpou, quando bateram na porta.
? Adiante ? deu permissão em voz baixa.
? Boa tarde, preparada para deixar todos os convidados com os flancos doloridos? ? Comentou a donzela com um sorriso.
? Estou esgotada... ? indicou ao mesmo tempo em que se lançou de costas sobre a cama e estendeu os braços. ? Não poderiam postergá-la?
? Venha, não seja folgazona! Está escondida nesta habitação há mais de duas horas! ? Lorinne se aproximou dela, segurou-a pela mão e a levantou com rapidez. ? Não temos muito tempo. Conforme me indicou o senhor Stone, logo chegarão os primeiros convidados.
? Tão cedo? ? Soltou a moça assombrada.
? Sua Excelência enviou dois convites a duas pessoas muito importantes para ele e, conforme comentam, pediu-lhes que viessem antes da cerimônia ? explicou enquanto se dirigia para a poltrona situada ao lado esquerdo da cama. Pegou o espartilho e o mostrou à moça. Esta enrugou o nariz ante o desagrado que lhe produzia voltar a embutir-se nesse tipo de objetos.
? Quem são essas pessoas? ? Aproximou-se da donzela, girou-se e deixou que esta começasse com a árdua tarefa.
? Amigos do duque. ? Apertou tanto os cordões do espartilho que deixou a moça sem respiração. ? Companheiros que permaneceram ao seu lado durante as longas temporadas em Londres. Não posso comentar muito sobre eles porque não tive o prazer de conhecê-los em pessoa, mas conforme contam outros criados, um é o senhor Federith Cooper, o sobrinho do senhor Clain e futuro barão de Sheiton. Ao passar sua infância em Rowsley, foi o único menino que visitava o senhor e, ao que parece, tão intensa foi e é sua amizade que o irmão do duque sentia, e sente, ciúmes deles. ? Voltou a girá-la para certificar que o objeto se ajustava como devia ao pequeno corpo. Quando se conformou, dirigiu-se para o roupeiro, pegou o vestido esmeralda acetinado e após sorrir maliciosamente, foi para a jovem.
? E o outro? ? Beatrice levantou os braços para que Lorinne lhe pusesse o vestido que, segundo ela, ia provocar certa queimação aos cavalheiros que a admirassem. Embora não estivesse muito segura de que isso ocorresse porque todo mundo temia e respeitava ao duque. Quem iria ser tão incauto de lhe enfurecer em sua própria casa?
? Ninguém, salvo o casal Stone, viu-o. Conhecemos seu nome porque os criados encarregados de lhe fazer chegar a missiva nos contaram ? disse com uma aura de mistério.
? E? – Insistiu, na espectativa.
? Chama-se Roger Bennett, futuro marquês de Riderland. Conforme tenho entendido... ? deu a volta à moça e abotoou suas costas ? o senhor Stone jamais se agradou dessa amizade ? disse ao mesmo tempo em que colocava suas mãos nos ombros semidesnudos e a conduzia para a penteadeira para penteá-la. ? Parece ser um homem inconsequente, um aventureiro, um jogador inveterado e quem conduziu sua Excelência pelo mau caminho.
? E esse tal Roger... decidiu vir? ? Perguntou com certa inquietação. Apesar de não ter escutado falar de nenhum dos dois cavalheiros, o mero feito de saber que procediam de Londres provocou-lhe um sobressalto. E se coincidiu com algum deles nas poucas festas que assistiu? Como era lógico se suportavam essa desafortunada fama, sua mãe evitou qualquer aproximação com estes, mas... eles teriam reparado em sua presença?
? Sim! Claro que virão! ? Exclamou entusiasmada. ? E por fim descobriremos o rosto desse fantasma!
Não pôde ficar quieta depois da informação. Seu interior foi incapaz de manter a calma enquanto Lorinne trabalhava com afinco para realizar um penteado que, conforme apontou, deixaria descoberto o esbelto pescoço e o voluptuoso decote. Tampouco prestou atenção aos intermináveis comentários da donzela sobre sua beleza, quão fascinados ficariam os convidados e como, ao terminar o baile, todos os maliciosos rumores se resolveriam. Nada disso chamou sua atenção, porque não cessava de perguntar-se se algum daqueles cavalheiros a reconheceria em algum momento. Fazendo um grande esforço, foi rememorando todos os que se aproximaram dela. Foi impossível recordar os rostos ou os nomes. Tinha passado muito tempo. Entretanto, só um rosto seguia atormentando-a a cada dia, o do maldito conde de Rabbitwood. Um calafrio a açoitou com tanta força que seu pêlo se arrepiou.
? Não se preocupe, senhorita Brown, tudo sairá bem ? tentou consolá-la a donzela, esfregando seus braços como se tivesse frio. ? Levante-se! Deixe que a contemple!
Beatrice se levantou devagar e olhou os pés embainhados em uns sapatos de seda clara com uma linda borda dourada. Apreciou a suavidade do vestido, uns volumosos babados começavam dois palmos antes de chegar ao chão e finalizavam na cintura onde uma pequena faixa de pedraria de prata embelezava sua cintura. Pensou nesse instante que era muito atrevido levar seus braços cobertos com tão somente uma fina renda que começava nos ombros e terminava nos cotovelos, mas enquanto subia o olhar, a beleza do vestido a conquistou. Quando chegou ao decote e percebeu que era mais insinuante do que pretendia, toda aquela felicidade começou a desaparecer.
? Está linda, senhorita Brown, só lhe falta uma coisa. ? Dirigiu-se para a cômoda que havia ao lado da porta e pegou uma caixa marrom.
? O que é? ? Perguntou curiosa.
? Não sei, milord me deu isso antes de eu entrar ? disse sorridente ao mesmo tempo em que mostrava a caixa de joias fechada.
? Estava aí fora, no corredor te esperando? ? Perguntou alarmada. Arqueou as sobrancelhas, abriu os olhos no máximo e observou a caixa com medo.
? Penso que pretendia te chamar à porta para oferecer-lhe em pessoa, mas minha aparição interrompeu seus desejos ? continuou sem poder apagar o sorriso de seu rosto. Em Haddon Hall não se podia ocultar nada e, sobretudo quando se tratava dos estados emocionais do dono da casa. Todo o serviço era consciente dos sentimentos que o duque professava para com a moça e os dela para com ele. Só esperavam que ambos fossem conscientes. ? Abrirá em algum momento? ? Insistiu a donzela ao ver o estupor no semblante da moça.
Com as mãos trementes, Beatrice abriu o porta joias. Quando a tampa se elevou e contemplou o que havia em seu interior, seus joelhos se dobraram tanto que Lorinne segurou-a pelo braço para que não caísse no chão.
? Não posso aceitar... ? murmurou ao mesmo tempo em que tentou recuperar as forças.
? Não diga bobagens! Quer aparecer ante toda essa gente nua? ? Perguntou a donzela zangada.
? É um presente muito... ? sussurrou dando a volta e abaixando a cabeça.
? Está segura de que é um presente? Não cabe a possibilidade de que o duque os tenha emprestado? ? Continuou com irritação enquanto se colocava em frente a ela para lhe mostrar de novo as joias.
Beatrice as contemplou de novo. O cofre guardava uma tiara singela com duas faixas muito finas de diamantes unidas entre si no centro por uma grande aguamarina ovalada, um colar da mesma forma salvo que suas faixas eram um pouco mais grossas, uns brincos que faziam jogo com ambos os complementos salvo que estes eram muito pequenos, quase inapreciáveis de longe. Mas ficou absorta ao ver o bracelete. Todas as que usara antes não eram mais largas que uma linha de costura, entretanto aquela devia medir uma décima parte de uma polegada.
? Muito ostentoso! ? Exclamou depois de admirá-las.
? Rogo-lhe, deixe-me que as coloque. Prometo-lhe que se não lhe agradarem, devolverei-as ao duque ? afirmou.
A moça fechou os olhos enquanto Lorinne lhe colocava as joias. Não queria olhá-las, não queria confirmar que gostava e muito menos queria exibir joias que, se a mente não lhe falhava, a avó do duque usava na pintura do salão no qual dançariam. O que pensariam os convidados ao descobrir tal ousadia? Beatrice suspirou profundamente. Não era boa ideia, por muito que a donzela insistisse, não era sensato aparecer com elas porque, se tentavam apaziguar um rumor, ofereceriam-lhes outro mais suculento.
? Pode abrir os olhos... ? sussurrou a donzela ao finalizar.
A jovem levantou as pálpebras com pesar, dirigiu-se para o espelho da penteadeira e ficou aniquilada. Eram lindas, mais do que tinha pensado. Entretanto, não podia usá-las.
? Sigo pensando que... ? começou a dizer ao mesmo tempo em que girou-se para Lorinne.
Uns golpes interromperam o que pretendia expor. Surpreendida por não esperar a ninguém mais em seu quarto, dirigiu-se para a porta e ela mesma a abriu. O senhor Stone era o causador de não poder finalizar o que ia comentar a Lorinne.
? Sim, senhor Stone? ? Perguntou preocupada.
? Sua Excelência a espera. Deseja sua companhia o antes possível. ? O mordomo a observou com atenção e, para assombro de Beatrice, sorriu-lhe. ? Se me permite a ousadia, senhorita Brown, está magnífica.
? Obrigada, senhor Stone, ? sorriu-lhe ? é um elogio muito adulador vindo de você.
? Bom, se não precisa de minha ajuda, ? interveio Lorinne com uma vontade terrível de abandonar o dormitório ? continuarei com outros afazeres.
A moça entrecerrou os olhos e a olhou com aborrecimento. Claro que necessitava dos seus serviços, porque antes da aparição do mordomo estava a ponto de dizer que lhe despojasse das joias, mas ao final desistiu do intento. Deu uns passos para diante, fechou a porta, suspirou e que acontecesse o que Deus quisesse.
William, como de costume, encerrou-se na biblioteca para poder pensar com claridade. Durante os dias seguintes à aparição dos Wadlow, sua mente não lhe deixava tranquilo. Milhares de perguntas surgiam nela procurando respostas coerentes. Onde tinha aprendido a senhorita Brown a tocar o piano? Como sabia tomar o chá com tanta mestria? Por que erguia suas costas com tanta retidão que mal tocava o respaldo da cadeira? Nada disso encaixava com a história que a moça lhe tinha contado. Se ela era uma humilde criada, por que se comportava como as jovens da alta sociedade? Tinha-a visto levantar seu queixo de forma adequada, caminhar com passos curtos tal e como deviam fazê-lo as senhoritas, falar quando lhe perguntavam. Só rompia os protocolos de um comportamento adequado quando se enfurecia ao escutar os ataques verbais que as visitas ofereciam a ele.
De repente um sorriso apareceu em seu rosto. Lembrou-se da cara de espanto que o doutor mostrou quando ela fez referência às suas possíveis visitas a Haddon Hall. O médico empalideceu e o negou com rapidez enquanto que ele apertava com força a mandíbula para não soltar uma sonora gargalhada. Também atuou à defensiva quando o casal minimizou suas capacidades como tutor. Defendeu-lhe argumentando que para ser um bom professor não devia exibir seus talentos, que bastava saber expressá-los com palavras. Sempre tentava proteger sua integridade sem lhe importar a sua.
Então recordou as palavras que o senhor Stone se atreveu a lhe dizer: «Pode ser que lhe minta. Possivelmente não esteja dizendo a verdade». Agora não lhe cabia dúvidas disso, mas se não era a filha de uns camponeses falecidos, quem era em realidade? E... por que tinha castigado a si mesma afastando-se do resto do mundo?
? Milord, ? interrompeu suas divagações o senhor Stone ? o senhor Cooper e o senhor Bennett acabam de chegar.
? Obrigado, Brandon. Saio agora mesmo.
O mordomo se retirou e William respirou profundamente, tentando acalmar a terrível inquietação que o açoitava.
«Mudarão meus sentimentos por ela se descobrir que não é quem diz ser?», perguntou-se enquanto caminhava para a porta. Não necessitou de tempo para responder-se, pensou um não com veemência.
? Meu querido Manners! ? Exclamou Roger ao vê-lo aparecer. Com passo veloz se aproximou do duque e lhe deu um forte abraço. ? Te vejo muito bem, meu amigo.
? O mesmo digo de ti, vilão ? respondeu sorridente.
? Não me diga isso que me rompe o coração ? disse com falsa tristeza.
? Como denominaria você a um amigo que não oferece notícias às pessoas que o apreciam? ? Arqueou as sobrancelhas sem deixar de perder o sorriso.
? Estive em viagem. Parti para a incrível e maravilhosa França. Segundo meu pai, o ar de Londres estava me enlouquecendo e quis mudá-lo ? explicou com zombaria.
? E? ? William seguia com as sobrancelhas elevadas.
? OH, mon ami... Rien n’a changé. Les femmes sont très affectueuses en France et les hommes d’excellents joueurs.(1) Assim por muito que trabalhei em me curar dessas enfermidades, fui incapaz de obtê-lo ? afirmou com uma aparente tristeza.
? Então, depois de tudo, segue sendo o mesmo velho patife de sempre? ? Perguntou o duque sem deixar de rir.
? Muito ao meu pesar, sim ? respondeu com aflição.
? Ham-ham ? pigarreou Federith na entrada.
? Federith! ? William caminhou para ele e o abraçou com força. ? Obrigado por vir. ? Olhou atrás do homem e ao não encontrar o que procurava, perguntou-lhe preocupado: ? E a senhora Cooper?
? Não se encontra bem. A gravidez está sendo mais complicada do que esperávamos ? explicou com serenidade.
? Gravidez? ? Clamou Roger movendo seu corpo para Federith.
? Não sabe? ? Disse William. — Nosso querido Cooper se casou com lady Caroline e logo se converterá em um estimado pai.
? William... ? advertiu-lhe o aludido.
? Federith não eleve suas armas antes de confirmar que a guerra começou. Muito ao meu pesar, este tempo de retiro me tem feito entender que cada um deve assumir suas próprias decisões e outros, por muito que não estejamos de acordo com elas, devemos respeitá-las. Por isso, meu amigo, apóio-te e te apoiarei sempre ? afirmou sem hesitações.
? Bom, ? interveio Roger ? onde está essa concubina cuja honra devemos salvar?
? Não sou a concubina de ninguém, cavalheiro, sou a pupila do duque de Rutland ? sentenciou Beatrice no alto das escadas.
William elevou o olhar para ela no preciso instante que iria soltar uma gargalhada, embora não conseguiu que brotasse de sua boca nem um minúsculo ruído. A deslumbrante mulher o deixou sem fôlego, sem ar nos pulmões e inclusive sem pulso. O vestido se agarrava ao seu torso aumentando voluptuosamente seu seio e enfatizando a diminuta cintura. A claridade do tecido que cobria desde seus ombros até o cotovelo mostrava a aveludada pele feminina. Como nas anteriores ocasiões, seu cabelo estava recolhido para trás, mas desta vez adornado com uns laboriosos desenhos. O duque sorriu sutilmente ao não achar mechas que entorpecessem a visão de seu rosto, nem que incomodassem a moça ao menear a cabeça.
Beatrice desceu as escadas majestosamente, rebolando os quadris com sublime sensualidade. Possivelmente nem ela mesma chegava a alcançar a beleza e o erotismo que emanava, mas ele o captou. William estufou seu peito de orgulho ao apreciar que usava as joias que tinha dado à criada. Tinha duvidado se as aceitaria porque durante os dias anteriores evitou encontrar-se com ele para falar do acontecido. Mas lhe satisfez ver sobre sua cabeça a tiara com a aguamarina, como brilhavam os pequenos diamantes em suas orelhas, a sutileza com que movia o bracelete no pulso e, sobretudo, a graça com que o colar tentava desviar o olhar de qualquer atrevido para o decote. Pensou para si que, sem dúvida, as joias guardadas desde que sua avó faleceu estavam esperando-a para resplandecer de novo. Tentando recuperar a confiança e serenidade que devia manter durante o baile, aproximou-se das escadas, estendeu a mão para que a jovem a tomasse e a dirigiu para onde se encontravam imóveis seus amigos.
? Senhorita Brown, o tagarela é o senhor Bennett e estou seguro que, se deseja seguir respirando ao amanhecer, retirará as inoportunas palavras que comentou sobre você ? asseverou em tom irritado.
? Bien sûr! Je suis très désolé(2) ? respondeu Roger inclinando-se para a moça para beijar-lhe a mão. — Ravi de vous connaître, mademoiselle.(3)
? Moi aussi, monsieur(4) ? replicou Beatrice com um perfeito acento francês.
? Fantastique!(5) Não sabia que nosso duque conhecia o idioma do amor ? disse olhando-o de canto de olho.
? Pois se a memória não ficou transtornada pelo disparo, ? comentou com assombro ? jamais o estudei.
? Uma irmã de meu pai, ? começou a dizer como desculpa ao seu lapso ? ficou viúva e decidiu viver conosco durante uma temporada. Seu marido foi um marinheiro francês e ela teve que aprender a língua.
? OH, que tragédia! ? Interveio Federith até agora em silêncio e atento à situação que observavam seus olhos.
? Senhorita Brown, ele é o senhor Cooper. O único amigo que possuo desde minha infância.
? Encantada de lhe conhecer, senhor. Ouvi falar maravilhas sobre você ? declarou ao mesmo tempo em que lhe oferecia a mão para que a beijasse.
? Que honra! Foi William quem lhe informou? ? Arqueou as sobrancelhas, sorriu com suavidade e olhou seu amigo de esguelha.
? Não, foram os criados. Segundo eles, nosso duque teve dois bons amigos com os quais viveu em Londres. Você, o respeitável senhor Cooper, futuro barão de Sheiton e... ? olhou para Roger para não perder nem um só gesto quando escutasse o que se propunha ? o senhor Bennett, futuro marquês de Riderland e de quem dizem que é um irresponsável, um libertino, um jogador inveterado e a quem culpam da vida inapropriada do nosso duque.
William liberou uma grande gargalhada que foi acompanhada por outra que realizou Federith. Entretanto, Roger não mostrou nenhum tipo de simpatia.
? Deveria me indicar quem lhe informou sobre essas calúnias ? disse mal-humorado. ? Tenho que me bater em duelo por minha honradez.
? A sinceridade dói, não é? ? Comentou jocoso Federith golpeando com suavidade as costas de seu amigo.
? Bom, ? atuou William ? seria conveniente que nos dirigíssemos para algum lugar da casa para falar sobre o tema pelo qual lhes requeri. Logo chegarão os primeiros convidados e eu gostaria de lhes pôr a par do acontecido.
Os amigos assentiram e, colocando-se junto ao duque, os três cavalheiros se dirigiram para a habitação em que o duque se sentia mais seguro: a biblioteca. Beatrice considerou andar atrás dos passos deles, observando as figuras dos três homens que, conforme concluiu, tinham atemorizado aos pais das filhas casadouras e dos maridos ausentes. Não lhe cabia dúvida que o mais alto deles era o duque. Mas a figura dos três era muito semelhante, possuíam umas costas robustas e as pernas muito longas. Entretanto, o cabelo do duque era escuro, o do senhor Cooper loiro e o do senhor Bennett uma mescla de ambos. William, como lhe tinha renomado o senhor Cooper e que até esse momento Beatrice não descobrira, mostrava um olhar escuro e inclusive em algumas ocasiões tão negro que dava pavor. Os olhos de Cooper eram de um verde intenso, assemelhando-se a erva que aparecia em plena primavera. Os do senhor Bennett eram azuis. A moça os comparou com a cor que exibia o céu em um dia sem nuvens, embora duvidasse se a intensidade era similar.
«Três cavalheiros, ? disse para si ? três homens tão extraordinários quanto perigosos».
? Então... ? começou Federith a falar quando Beatrice fechou a porta e se sentou na poltrona contigua a que estava acostumado a ocupar William ? você vivia na suja cabana que nosso amigo possui junto ao rio Wye, é correto? ? A moça assentiu e este começou a perambular com as mãos agarradas atrás das costas. ? Ele a descobriu e por alguma inexplicável razão que nos indicará em breve, deixou-a viver ali. ? A jovem confirmou de novo com um suave movimento de cabeça. ? Ao encontrar-se desamparada, desprotegida e exposta ao terrível perigo de uma manada de lobos que vive no bosque, foi atacada por eles. Ele, estranhamente, ? arqueou as sobrancelhas ? decidiu passear à alvorada por suas terras e a descobriu ferida. Conduziu-a até Haddon, chamou o senhor Wadlow, o doutor veio e a atendeu com rapidez. Depois, justo antes de abandonar este lar, ambos os cavalheiros tiveram um pequeno encontro no qual discutiram sobre o repugnante comportamento de nosso amigo para com a cortesã. Correto?
Beatrice olhou ao duque atônita. Ninguém lhe tinha comentado que ambos os cavalheiros tinham tido a ocasião de discutir os pormenores de sua estadia em Haddon Hall. Tomou ar e abriu a boca para confirmar a narração do senhor Cooper, mas William se adiantou às suas palavras.
? Como pôde comprovar durante todos estes anos, ao correr o sangue de meu pai por minhas veias, ninguém duvida de que sou outro monstro ? esclareceu com serenidade.
? Bem, isso eu sei, mas minha pergunta é... como foi tão insensato de deixá-la abandonada nesse maldito lugar? ? Levantou o tom de sua voz e girando sobre seus calcanhares para enfrentar o duque.
? Eu o pedi ? respondeu rápidamente a moça.
? O que lhe pediu, o que? ? Participou Roger até agora calado e atento.
? Ele me devia um favor e lhe informei que saldaria sua dívida me deixando viver nesse pequeno refúgio ? respondeu elevando seu queixo e com aparente aprumo.
? Mon Dieu!(6) Você é uma inconsequente! Acaso não pensou o que poderia acontecer ao dono dessa cabana se tivesse morrido? ? disse com aborrecimento e aproximando-se da moça com passo firme.
? Roger... acalme-se. ? William ao observar a ira de seu amigo, dirigiu-se para Beatrice, colocou-se em frente a ela e parou a aproximação de seu amigo colocando sua mão no peito. ? Não estamos aqui para julgar as decisões da senhorita Brown, nem que razão a fez atuar dessa forma. Só quero que sua honra se reestabeleça porque ela não é minha prostituta.
? Nem tampouco sua pupila, William! ? Exclamou Bennett sem diminuir seu aborrecimento. ? Não recorda o que te aconteceu na última vez? Esqueceu o que te fez ficar como está? Não, claro que não, e possivelmente a senhorita Brown tampouco ? sorriu maléfico.
? Roger! ? Gritou Federith tentando que deixasse de falar.
? Se por acaso não foi informada desse incidente, minha querida senhorita Brown, ? disse com ironia ? a causa daquele duelo foi o engano insistente de uma esposa que, deitada nos braços do nosso amigo, afirmava em qualquer parte que era viúva.
? Cale-se, Roger! ? Voltou a clamar Federith.
? Eu gostaria que partisse da minha casa ? falou William com dureza.
? Quer que eu parta? Quer que não te proteja? Acaso esqueceu o que significa a amizade? ? Perguntou Roger sem diminuir sua fúria. ? Não, meu amigo. Não vou partir, seguirei ao seu lado como nos velhos tempos, mas desta vez não deixarei que cometa uma imprudência. Se o que deseja é que todo mundo pense ser ela é sua pupila e não sua prostituta, levarei a cabo minha missão e afirmarei com veemência qualquer coisa que me peça.
William se afastou da moça. Antes de dar dois passos para a corda com o qual chamava o senhor Stone, observou a cara de espanto de Beatrice. Estava aterrorizada pela violenta atuação de Roger e pelas ofensivas palavras que tinham emanado de sua boca. Apreciou também umas lágrimas que dissimuladamente tirou do pálido rosto. Com passo decidido se aproximou da corda, puxou com suavidade e, em silêncio e sob o atento olhar de seus amigos, esperou a chegada do mordomo.
? Acompanhe senhorita Brown à sala de jantar. Deve confirmar que os serviços que ofereceremos aos comensais estão em perfeita ordem ? ordenou ao Brandon ao entrar na habitação.
Beatrice levantou o olhar e examinou a dureza de seu semblante durante uns instantes. Havia fúria naquele rosto e os olhos se obscureceram ainda mais. Quis rejeitar a ordem, mas se encontrava tão frágil, desanimada e triste que, sem mediar palavra e com a cabeça encurvada, levantou-se e se dirigiu para o mordomo.
? Acompanhe-me, senhorita Brown. Acredito que a senhora Stone queria lhe pedir um conselho sobre a sobremesa que deveriam oferecer. Segue duvidando se oferece duas bolas ou três de sorvete. ? Falou com calma e, para surpresa de William, com uma ternura imprópria no criado.
Os três cavalheiros observaram a figura aflita da jovem. William apertou sua mandíbula com tanta força que lhe apareceu uma pequena dor de cabeça enquanto Federith meditava aquilo que sua mente de repente lhe mostrava. Roger, embora sentisse lástima pela angústia que mostrava a moça, não fez nada para controlar a irritação que sentia.
? Devemos nos acalmar. ? Federith foi o primeiro em falar depois que a porta se fechou. ? E William, tanto Roger como eu escutaremos com atenção o que esconde com tanto afinco.
O duque caminhou para a chaminé, apoiou o braço sobre a pedra e abaixou a cabeça.
? Amo-a ? disse sufocado. ? Amo Beatrice com todo meu coração. Não sei de onde procede, nem como chegou até minhas terras, mas o que sei é que se ela se afastar do meu lado, morrerei.
? Mon dieu! ? Exclamou Roger aplacando sua ira com rapidez. ? Podia ter começado por aí! ? Caminhou para seu amigo, deu-lhe uma forte palmada nas costas e, quando William girou para ele, deu-lhe um forte abraço.
? Sabia que algum dia encontraria a mulher que te roubaria esse coração gelado ? comentou Federith sorridente e repetindo o afeto carinhoso de Roger. ? Mas tem que pensar com clareza, William. Embora não se importe de onde procede a moça, deve averiguar quem é em realidade.
? Não me importa! ? Exclamou o duque com firmeza.
? Mas deve fazê-lo. Quem sabe que passado pode ocultar uma jovem como ela? ? Federith olhou com atenção seu amigo. Em verdade não sabia quem era a moça por quem se apaixonou.
Ele sim. Tinha-a reconhecido assim que a viu. Apesar de suas mudanças físicas, não ficava nenhuma dúvida de que era a filha do barão de Montblanc. Agora devia sopesar quando era o melhor momento para revelar a identidade da jovem ao seu amigo e como reagiria ao escutar a verdade.
XXII
Beatrice, apesar de seus intentos por aparentar entusiasmo quando a senhora Stone lhe perguntava pelos últimos detalhes, não podia deixar de sentir-se triste. As palavras do senhor Bennett não cessavam de lhe assaltar e, por muito que lhe custasse admiti-lo, tinha razão. Jamais pensou nas consequências que sofreria o duque se ela tivesse morrido. Não só o teriam acusado de assassinato, mas sim o encarcerariam sem duvidá-lo. Aflita pela loucura que cometeu sem pensar, sentou-se em uma das cadeiras que rodeavam a mesa da cozinha.
? O que te acontece, pequena? ? Perguntou Hanna aproximando-se dela por trás e lhe beijando a bochecha.
? Posso lhe fazer uma pergunta? ? Seu fio de voz era tão fraco que a anciã assustada se sentou ao seu lado.
? Todas as que desejar ? respondeu agarrando com força as mãos da jovem.
? O que teria acontecido se o duque não tivesse me encontrado na cabana?
? Quando foi ferida? ? Hanna arqueou as sobrancelhas.
? Não. A primeira vez que me viu, quando o encontrei ferido ? esclareceu.
? Se não o tivesse encontrado, o duque haveria falecido e todos os que habitam nesta casa também ? afirmou sem duvidá-lo. ? Apesar dos intentos que tem feito as pessoas para mostrar que é um ser desumano, os que lhe conhecem desde que saiu das vísceras de sua mãe sabem que não é certo.
? E se eu houvesse falecido depois do ataque? ? Girou-se para a mulher para não perder nenhum detalhe de sua expressão.
? Todos nós teríamos sentido dor por sua desgraça, mas ele... ? levantou-se do assento e caminhou para os fogões.
? Mas ele? ? Insistiu elevando-se também da cadeira e posicionando-se ao seu lado.
? Ele não se recuperaria jamais da perda ? sussurrou.
? Por que, senhora Stone? Pode me dizer por que sabia que me responderia isso? ? Seu tom soava afogado, como se alguém a estivesse estrangulando.
? Isso terá que perguntar a ele. Se for sensato, dir-lhe-á a verdade.
Beatrice a olhou durante uns instantes. Sem desviar o olhar da mesa, ficou calada duvidando sobre se deveria insistir ou não um pouco mais no tema. Quando abriu a boca decidida continuar a conversa que começara, a porta da cozinha se abriu.
? Estava procurando-a ? disse William com uma emoção estranha. ? Acabam de chegar os primeiros convidados e temos que recebê-los adequadamente. ? Dirigiu o olhar para Hanna e lhe falou. ? Senhora Stone, tudo preparado?
? É claro! ? Exclamou com entusiasmo. ? Não haverá uma festa no condado de Derbyshire que alcance a nossa. ? Os olhos da anciã brilhavam de gozo. Não havia dúvida que a mulher adorava ao duque e que, vê-lo feliz depois de tanto tempo sumido na escuridão, fazia-a muito ditosa.
? Nesse caso, ? estendeu o braço para Beatrice ? se for amável em me acompanhar.
A moça assentiu com suavidade, aferrou seu braço ao do homem e juntos saíram da cozinha para a recepção. Hanna o observou em silêncio e rezou pedindo a Deus que o moço não deixasse passar a oportunidade de abrir seu coração.
Até que não dirigiu seus olhos verdes para o exterior da mansão e descobriu as incontáveis carruagens estacionadas no jardim, permaneceu tranquila, sossegada, mas quando foi incapaz de enumerá-los, seu corpo se encheu de pavor e notou um tremorzinho inoportuno nos joelhos. Já acontecia, não havia possibilidade de cancelar nada, só podia respirar e desenhar um enorme sorriso no rosto.
Os convidados subiam pelas escadas saudando com entusiasmo aos casais que se encontravam ao seu passo. Os casais ascendiam agarrados pelos braços enquanto que os jovens, com ou sem idade de propostas conjugais, seguiam-lhes muito de perto. Como era de esperar, os maridos exibiam sóbrios trajes de jaqueta que cobriam com uma enorme capa e estilizadas cartolas, as esposas, ao contrário deles, apresentavam um extenso colorido que tentavam ocultar sob seus casacos. Beatrice observou com atenção os penteados destas: caracóis, coques embelezados por flores, incríveis entrelaçados e inclusive uma ou outra parecia atrever-se a mostrar o típico penteado de sua rainha. De repente, as vozes do público deixaram de escutar-se ao longe. A jovem começou a notar certo sufoco percorrer seu corpo, as mãos escorregavam devido ao suor e precisou tragar várias vezes para fazer desaparecer o nó de saliva que lhe apertava a garganta. Mas então, um pequeno calor que provinha de sua orelha fez com que todos os sufocos desaparecessem. O duque foi quem, ao lhe sussurrar, ofereceu-lhe aquele hálito quente.
? Tranquilize-se, tudo sairá bem e, se algum destes honoráveis assistentes desejarem te magoar, não ficará mais remedeio que enfrentar a minha ira. ? E sem pensá-lo, aproximou sua boca da pálida bochecha feminina e lhe deu um terno beijo.
? Sua Excelência... ? advertiu Brandon com seriedade ? o senhor e a senhora Jenkins.
? Boa tarde, milord ? saudou um homem de avançada idade que apertava com força um monóculo em seu olho esquerdo. ? Obrigado por seu convite. A minha esposa ficou muito feliz ao receber a notícia ? estendeu a mão para afiançar a saudação.
? Boa tarde, senhor Jenkins. Causa-me pena saber que só sua esposa recebeu com agrado a missiva ? disse sem apagar o sorriso de seu rosto.
? Não dê atenção a este resmungão! ? Exclamou rapidamente a senhora Jenkins. ? Ele também se sentiu ditoso. ? A mulher era mais baixa que Beatrice, mas tinha um corpo bastante volumoso. Vestia um rigoroso luto e a renda que adornava seu vestido conseguia cobrir até o pescoço.
? Senhor Jenkins e senhora Jenkins lhes apresento à senhorita Brown, minha pupila.
? É uma honra conhecê-la, senhorita Brown ? disse o ancião ao mesmo tempo em que tomava a mão juvenil para beijá-la. ? Em Rowsley não há outro tema de conversação salvo a sua inesperada aparição.
? Igualmente, senhor. Embora lhe advirta que os rumores proclamados sobre minha permanência em Haddon Hall são falsos. Não sou a prostituta do duque, mas como já bem foi dito, sua pupila ? expôs sem hesitações. Não lhe tinha tremido a voz. Não tinha mostrado a inquietação que sentia no interior. Seus sentimentos pareciam controlados, mas quando William a olhou e sorriu para lhe mostrar sua conformidade, ruborizou-se e um estranho calor começou a emergir do mais profundo de seu ser.
? Falatórios! ? Exclamou a anciã mal-humorada. ? As pessoas estão tão aborrecidas que se dedicam a divulgar mentiras de outros. Não faça conta, senhorita Brown, todo mundo quer lhe machucar porque conseguiu o que ninguém alcançou. ? Aproximou-se de Beatrice e lhe deu um sonoro beijo.
? E o que não conseguiram, senhora Jenkins? ? Perguntou sorridente.
? Seu coração ? sentenciou antes de agarrar o braço de seu marido e caminhar para o lugar que lhe indicava um dos criados.
? Sua Excelência ? o voltou a reclamar Brandon. ? O senhor e a senhora Brace.
? Milord, senhorita Brown ? disse o pároco com cordialidade. Estendeu a mão para o duque para saudá-lo e logo fez o mesmo com a moça.
? Beatrice! ? Exclamou Lídia abraçando a jovem com força. ? Está linda! Parece uma autêntica rainha.
? Boa tarde, Lídia ? respondeu em voz baixa. Ainda se encontrava em estado de choque pelas palavras da atrevida anciã. Como iria ela roubar o coração de um homem que, conforme diziam, não possuía? ? Bem-vinda ? exalou quando a mulher deixou de abraçá-la com tanto ímpeto e pôde tomar um pouco de ar.
? Está bem? ? Arqueou a mulher as sobrancelhas ao vê-la tão pálida.
? Sim, embora tenha que admitir que acabasse ficando muito cansada com a preparação ? expôs.
? Bom, calma, tudo está lindo e... – aproximou-se de seu ouvido para sussurrar ? segundo os novos rumores, toda Rowsley espera conhecer a famosa pupila.
? Não sei se tomo isso como um elogio ou como uma ofensa ? disse Beatrice sorridente.
? Bobagens! Já verá como ao final todos esses arrogantes terminarão comendo em sua mão!
? Lídia, por favor, comporte-se! ? Exclamou o senhor Brace zangado ao escutar a ousadia de sua mulher.
? Sua Excelência ? voltou a interromper Brandon.
? Bom, queira nos desculpar, ? comentou a senhora Brace segurando seu marido e caminhando para onde outro criado lhes conduzia ? deixaremos que outros tenham também seu tempo de recepção.
? O senhor e a senhora Payne ? prosseguiu o mordomo.
Depois de quase uma hora recebendo aos assistentes, por fim William e Beatrice puderam dirigir-se para o salão para acompanhá-los. O duque lhe ofereceu de novo seu braço e ela o aceitou. Com passo firme, fizeram sua entrada. A moça teve que respirar com profundidade antes de acessar o interior. Um incessante desgosto lhe impedia de conseguir manter-se em equilíbrio.
? Relaxe, ? sussurrou-lhe William ? o mais difícil já passou. Agora fica conversar, dar-lhe de comer e dançar.
Beatrice olhou-o de esguelha e sorriu levemente. Apesar de suas constantes palavras de encorajamento, ela não achava a paz que necessitava para poder aguentar as próximas horas. Dirigida pelo duque, introduziram-se no salão onde descobriram que os homens se colocaram no lado esquerdo e as mulheres no direito. A moça liberou o braço do homem e, depois de respirar profundamente, dirigiu-se para o grupo feminino. Esperava que a senhora Brace, a senhora Wadlow e a inesperada senhora Jenkins a ajudassem em qualquer infortúnio.
? Gostaria de nos dar sua opinião? ? Perguntou a esposa do senhor Wood, um comerciante que teve sorte nos afortunados investimentos no estrangeiro.
? Se forem tão amáveis de me indicar do que se trata, tentarei-o ? disse a moça sorridente.
? A opinião da esposa do pároco é que nossos vestidos se verão influenciados satanicamente pela moda europeia. Conforme acredito, se as tendências evoluírem, a visão que a sociedade tem não nos prejudicará, mas sim, ao contrário, nos fortalecerá ? expôs com seriedade.
? Isso é absurdo! ? Exclamou Lídia sufocada. ? Uma mulher deve mostrar respeito, reparo e castidade. Acaso não viu que esses vestidos deixam visíveis os tornozelos?
? Possivelmente algum dia possamos votar ? murmurou com suavidade uma moça que se colocava ao lado da senhora Jenkins.
? É muito jovem para pensar essas coisas – respondeu-lhe com ternura a senhora Wadlow. ? Embora se isso for verdade, seria a primeira em levar minha cédula. Estou cansada de sofrermos pelas decisões dos homens. Se alguma vez uma mulher estiver no poder, muitas das atrocidades que eles fazem sem pensar, seriam desculpadas.
Beatrice olhou para o grupo de cavalheiros. Sorriam e pareciam manter umas conversações divertidas. Ela riu levemente ao imaginar a cara que fariam os maridos após escutar as opiniões das dóceis mulheres. De repente, seus olhos se dirigiram para uns olhos azulados que a observavam com atenção. A moça pensou que o senhor Bennett seguia zangado com ela por ter posto em perigo seu amigo, mas quando esteve a ponto de apartar o olhar, o homem lhe ofereceu uma suave saudação com a cabeça e lhe sorriu.
? Se forem tão amáveis, ? disse o duque em voz alta depois de ser informado por Brandon que a sala de jantar estava preparada – dirijamos-nos para o salão contiguo onde nos servirão um suculento jantar.
Cada marido procurou seu par. As jovens solteiras caminhavam juntas e os moços atrás, em grupo. Pouco a pouco tomaram assento. William, como anfitrião, sentou-se em um extremo da mesa, justo a que havia ao lado das mesas onde os pratos estavam ocultos embaixo de grandes tampas de metal. Beatrice duvidou onde devia colocar-se. Olhava um assento e este era ocupado com rapidez. Olhava para outro e ocorria o mesmo.
? Nosso William não foi um verdadeiro cavalheiro ? comentou Roger atrás dela. ? Venha comigo, acompanharei-a ao seu assento. ? Ofereceu-lhe o braço e ela apoiou sua mão com delicadeza. ? Encontra-se bem? Tratou-a adequadamente esse grupo de galinhas? ? Beatrice esteve a ponto de soltar uma gargalhada ao escutá-lo, mas se conteve e só esboçou um leve sorriso.
? Não imagina o que pensam essas galinhas – sussurrou-lhe divertida. ? Muitas delas lhes deixariam sem essa virilidade que tanto desejam aparentar.
? OH, mon Dieu! Espero que meu coração seja racional e não se apaixone por uma mulher assim.
? Não estou tão segura disso, senhor Bennett. Não sei por que acredito que se apaixonará por uma mulher muito parecida com você ? disse zombadora.
? Será jovem? ? Arqueou as sobrancelhas.
? Se Deus for justo, não ? sentenciou com o mesmo tom jocoso.
Quando Beatrice descobriu a cadeira que devia ocupar, petrificou-se. Esse não era seu lugar, posto que fosse o espaço que devia guardar-se para a futura duquesa e ela não devia invadi-lo. Procurou com o olhar ao William, pedindo-lhe auxílio, mas ele assentiu com a cabeça, dando-lhe permissão para acomodar-se nele.
? Então, senhorita Brown... ? começou a falar o ancião senhor Jenkins ? você é a pupila de lorde Rutland.
? Sim, senhor ? respondeu tentando não derrubar os talheres que segurava nas mãos.
? E, que tal é como professor?
? Excelente! ? Exclamou Irina com rapidez. ? Outro dia tivemos o prazer de vê-lo com nossos próprios olhos e escutá-lo com nossos ouvidos.
? Ah, sim? ? Perguntou o ancião arqueando as sobrancelhas.
? A senhorita Brown nos deleitou com uma formosa valsa de Chopin ? interveio o senhor Wadlow.
? Qual delas? Porque Chopin é famoso pela composição de inumeráveis valsas.
? Primavera ? disse William em tom sério, protetor, dominante. ? A valsa mais formosa que Chopin tem composto em sua famosa vida.
Beatrice o olhou nos olhos e observou a severidade de seu rosto. Como lhe tinha prometido, velava por ela.
? Conforme contam, ? interveio Federith ? essa valsa o compôs para uma jovem pela qual se apaixonou perdidamente. Acredito que estiveram comprometidos em segredo, mas que a família desta anulou o acordo quando descobriram sua enfermidade.
? OH, que dramático! ? Exclamou uma das jovens que se abanou com a mão, enquanto tentava esconder com esse gesto os furtivos olhares para Roger.
? O amor pode ser tão doloroso como formoso – continuou. ? Às vezes, quando você acha que encontrou a pessoa que irá acompanhá-lo no bem e no mal, tudo desaparece sem ser capaz de evitá-lo.
Beatrice o olhou com tristeza. Enquanto não escutou as palavras sobre tal afirmação não meditou sobre isso. Não entendia como podiam existir matrimônios desventurados pelos acordos que realizavam os progenitores assim que a prole nascia. Seus pais se amaram desde crianças e, embora tivessem passado mais de trinta anos desde que se comprometeram e casaram, seguiam amando-se como no primeiro dia.
? Por isso, mon ami... ? disse com rapidez Roger para fazer desaparecer o estado de tristeza que as palavras de seu amigo tinham produzido. ? Jamais haverá uma senhora Bennett por minha parte! ? Alguns cavalheiros sorriram brandamente, umas damas murmuraram sobre a desafortunada revelação e outras, sobretudo as jovens casadouras, emitiram suspiros de pena.
Depois da pequena reunião, os convidados se dispuseram a degustar os pratos que lhes serviam. Beatrice, cada vez que lhe era possível, observava ao duque. Este, em mais de uma ocasião, parecia inquieto ao ter que ser ajudado pelo senhor Stone. A jovem teve o inapropriado desejo de levantar-se e colocar-se ao seu lado para ocultar aquilo que tanto lhe alterava, mas não podia fazê-lo. Ele tinha que mostrar-se tal como era e se isso incluía esconder a mão nas alças de suas jaquetas, que assim fosse. Entretanto, o que o homem não sabia era que, em que pese a acreditar uma pessoa débil e inútil, não o era. Bastava-lhe tão somente o suave movimento da cabeça para demonstrar seu poder. Todos os que lhe rodeavam o consideravam uma pessoa com caráter, julgamento e impetuosidade e Beatrice pôde confirmá-lo ao ver como os cavalheiros, depois de suas exposições, dirigiam as olhadas para o duque esperando que ele assentisse.
Um suave murmúrio começou quando apareceu a sobremesa. Ao final a senhora Stone decidiu colocar sobre uma pequena parte de pudim uma bolinha de sorvete. Isso deixou os convidados maravilhados. Alguns, como indicaram ao levar o primeiro pedaço à boca, nunca tinham provado o sorvete e outros nunca o tinham misturado com pudim. Fosse como fosse, todos ficaram encantados com a inovação, incluída a senhora Brace, que não deixava de sorrir e pôr os olhos em branco em cada colherada.
? É hora do baile ? informou William ao perceber que todo mundo tinha terminado. ? Se não desejarem mover seus pés ao ritmo da música, habilitamos uma sala em que se oferecerá licor e onde poderão apostar tudo o que tiverem nos bolsos.
Depois do anúncio, os convidados se levantaram e se dirigiram para as diferentes salas. Beatrice esperou para tomar a mão de William, mas este não chegou a tempo, o jovem Bennett se aproximou e a ofereceu.
? Espero que não tenha a primeira dança reservada – disse-lhe com um enorme e bonito sorriso.
? Não, por enquanto ninguém me pediu nenhuma peça ? respondeu colocando sua mão sobre seu braço.
? Não será por falta de vontade, minha querida senhorita Brown. ? Caminhou devagar para o salão onde, inclusive antes de entrar, escutava-se a melodiosa música.
? Então, o que você crê que impede a todos esses cavalheiros de dançar comigo? ? Arqueou as sobrancelhas e o olhou zombadora.
? O medo – sussurrou-lhe enquanto a colocava em frente a ele para iniciar a dança.
? Medo de mim? ? Perguntou surpreendida e um tanto desconcertada.
? Não, de William. Imagino que ninguém é tão louco para tocar a sua pupila ? disse levantando a mão e fazendo-a girar.
? Salvo você ? comentou depois da volta.
? Eu jamais a tocaria com perversidade. Por muitas barbaridades que lhe tenham contado sobre mim, respeito e respeitarei as mulheres de quem considero meus irmãos ? declarou antes de lhe segurar a cintura e começar uns pequenos saltos para o lado direito.
A moça foi incapaz de falar depois de escutar o que o senhor Bennett lhe declarava. Ficou tão surpreendida que não pôde ouvir os intérpretes nem confirmar se seus passos tinham sido os adequados. Por que lhe havia dito isso?
«As joias! ? Exclamou para si. ? Foram as joias!». Meditou uma e outra vez sobre a inoportuna decisão de Lorinne para que as exibisse quando, terminou a canção e começou a seguinte.
Despediu-se de Roger com um leve movimento de cabeça, tentou dirigir-se para o grupo de mulheres quando alguém a chamou.
? Conceder-me-ia esta dança? ? Perguntou Federith estendendo a mão direita com a palma para cima.
? É claro. Será uma grande honra ? comentou sorridente.
Federith a conduziu de novo para o centro do salão, saudou-a com uma exagerada reverência e a segurou pela cintura. A peça a dançar era uma valsa.
? Está se divertindo, senhorita Brown?
? Sim. E você? ? O casal deu uma pequena volta sobre eles mesmos e continuaram com suavidade.
? Mais do que pensei ? respondeu esboçando um leve sorriso.
A música continuava tocando. Beatrice acreditou que depois da última afirmação de Federith, este resolveria sua conversação, mas justo quando estava a ponto de acabar, no último giro entre eles, sua boca se aproximou muito ao seu ouvido para lhe perguntar.
? Conhecemo-nos de algum lugar?
? Se tiver vivido longe daqui, acredito que não ? disse tentando dissimular seu sobressalto.
? De onde disse que era? William não fez alusão a isso.
? Imagino que o duque se preocupou com coisas mais importantes como compreender por que sua esposa não lhe acompanha e por que disse aquelas palavras tão tristes no jantar ? indicou sem respirar e pedindo desculpas a Deus por magoar um homem que, com o coração quebrado, explicava a dor que causa amar a uma pessoa que não lhe correspondia.
? Está grávida ? respondeu depois de respirar e fazer restabelecer sua pose.
? Felicidades! ? Exclamou com alegria. ? Estará você muito feliz de converter-se em pai ? continuou falando enquanto Federith a conduzia para o grupo de mulheres.
? Sinto-me muito ditoso de esperar um filho, embora minha esposa esteja passando muito mal. Mal pode mover-se pela casa e se cansa tanto que, como pode imaginar, seria imprudente fazê-la viajar.
? É óbvio.
? Obrigado pelo bate-papo, senhorita Brown.
? Obrigada pela dança, senhor Cooper.
Federith, com o aprumo que lhe caracterizava, dirigiu-se para o grupo de cavalheiros que se encontravam no lado oposto das mulheres. Aproximou-se de William, disse-lhe algo ao ouvido e logo abandonou a habitação. Beatrice sentia seu coração na garganta e notava como suas pernas começavam a cambalear-se. Com rapidez procurou uma cadeira onde sentar-se.
? Encontra-se bem? ? Quis saber a senhora Wadlow preocupada.
? Só cansada. Essas duas danças calorosas me deixaram exausta ? explicou.
Uma vez que recuperou o fôlego, olhou ao duque, que falava com um dos convidados. Beatrice, ao ver como franzia o cenho, tentou recordar quem era o homem que incomodava William com suas palavras, mas não o conseguiu. Brandon tinha anunciado tantos nomes e ela estava tão nervosa que, em algum momento da recepção, ela deixou de prestar atenção.
? Senhorita Brown... ? uma voz estranha para ela apareceu pela sua direita.
? Sim? ? Perguntou arqueando as sobrancelhas e sorrindo.
? Permitiria-me a seguinte dança? ? No olhar do moço Beatrice observou algo estranho. Não conseguia saber o que era, mas não tinha a mesma claridade que a mostrada pelos amigos do duque. ? Se não estiver muito cansada, é claro ? continuou, mas ao estender a mão para ela, evitou qualquer negação.
Contra sua vontade, a moça se levantou e, apoiando sua mão sobre o braço do jovem, retornou ao centro do salão. Todos os casais estavam parados, as mulheres em frente aos homens. O primeiro acorde soou e eles lhes ofereceram as mãos direitas. Elas as agarraram e, depois de três notas seguidas em dó menor, começaram a dança. O moço seguia com os olhos cravados nela. Observando cada detalhe de seu corpo, cada parte de pele que estava sem cobrir. Em uma das breves aproximações que houve na dança, Beatrice escutou como inspirava com força para apanhar o aroma que ela desprendia. Tentou manter o sorriso, a postura, mas era incapaz de aguentar por mais tempo aquelas suarentas palmas pegas ao seu corpo.
Sua mente procurou alguma desculpa coerente para cessar a dança e deixar de sentir aquela repugnante angústia. Não obstante, não achou nenhuma até que elevou o olhar e observou como o duque abandonava a sala e se dirigia para o balcão. Caminhava sereno, reto e saudava seu passo como se nada lhe perturbasse. Entretanto, Beatrice sabia que algo grave tinha ocorrido. Talvez aquele homem tivesse lhe dito algo que lhe provocou tal irritação e ele decidiu sair para tomar um ar.
«Isso!», exclamou a moça para si. Parou-se em seco, olhou ao moço com tristeza.
? Desculpe-me, estou mais cansada do que pensei.
? Posso ajudá-la em algo? Um copo de água, talvez? ? Estendeu sua mão para segurar o pequeno braço e dirigi-la de novo para o lugar onde se encontravam as mulheres.
? Não se incomode. Acredito que o ar fresco da noite me sentará bem ? indicou.
? Como desejar ? respondeu o moço com um sorriso de orelha a orelha ao acreditar que lhe insinuava que se afastassem da multidão.
? Não me acompanhe, posso fazê-lo sozinha. Além disso, como vou retirar da sala um galante com tantas propostas na sala? ? Dirigiu seu olhar para as jovenzinhas e sorriu.
? Elas não me interessam, senhorita Brown ? disse com firmeza e certo mal-estar.
? Pois a mim, você, tampouco. ? Segurou com suavidade o vestido com ambas as mãos, fez uma pequena inclinação e, sem parar para contemplar a irritação que devia expressar o moço, caminhou decidida para o exterior.
Tal como tinha imaginado, a lua cheia brilhava com esplendor. Os campos pareciam como se começasse a amanhecer. Beatrice percorreu com o olhar todo o comprido corrimão. Onde estava? Para que lugar tinha ido? Avançou uns passos e deixou que seus olhos se adaptassem melhor à mudança de luz. De repente sorriu. O duque permanecia de pé no lado esquerdo do balaústre. Mal podia vê-lo com claridade porque se colocou ao final deste. Com segurança, Beatrice caminhou para ele. Quanto mais se aproximava, mais euforia sentia, mais rápido pulsava seu coração, as mãos lhe suavam e voltou a notar aquelas vespas fincando incessantemente seu ferrão no estômago. Freou os passos ao situar-se atrás das costas do homem que parecia não ser consciente de sua presença.
? Não entendo como pode olhar para o chão quando deve admirar a beleza da lua ? falou com um suave fio de voz.
? Senhorita Brown! ? Exclamou assombrado e girando-se para ela. ? O que faz aqui?
? O mesmo queria lhe perguntar. Por que nos abandonou? ? Deu um passo, um só passo, para colocar-se ao seu lado e para que a lua lhe mostrasse o rosto do homem que, sem lugar a dúvidas, amava.
? Precisava tomar o ar fresco da noite ? mentiu. Colocou sua mão direita nas costas e com tom grave disse. ? Não estava dançando com o jovem Rawson?
? Cansei-me com rapidez ? respondeu sem apartar seu olhar do rosto viril. Observou como este voltava a enrugar a testa e apertar os lábios.
? Pois não deveria fatigar-se. Muitos dos cavalheiros convidados me pediram permissão para lhe solicitar uma dança ? continuou com o tom sério, impessoal.
? E o concedeu? ? Perguntou assombrada.
? O que quer que lhes diga? ? Girou-se para ela e franziu ainda mais o cenho. ? Digo-lhes que não?
? Exato! Diga-lhes que deve velar pela saúde de sua pupila e que se me deixarem exausta amanhã serei incapaz de aprender algo.
William a olhou com assombro e soltou uma sonora gargalhada que acompanhou Beatrice. De repente, apartou a mão de suas costas e a dirigiu para a bochecha da moça.
? Deveria partir. Não é apropriado que nos descubram aqui sozinhos. As pessoas poderiam...
? Não gosta de dançar? ? Interrompeu-lhe antes que continuasse dizendo o que ela não queria escutar.
? Eu gostava, mas deixei de fazê-lo. ? Apartou a mão do rosto da moça e a colocou no corrimão.
? Por quê? ? Beatrice se aproximou tanto a ele que pôde notar como a tiara que embelezava seu cabelo tocava o braço do homem.
? Por que crê?
? Está sem dançar desde...? ? Uma imensa tristeza sacudiu o pequeno corpo da moça. Seus olhos verdes se cravaram no rosto do homem. A lua o iluminava e revelava o pesar que sofria. Sem pensar duas vezes, a moça esticou sua mão direita para a alça da jaqueta e a separou, deixando que o braço inerte do duque caísse para o chão.
? Como se atreve...? ? Começou a dizer William zangado.
? Quero minha dança ? sussurrou a moça sem fazer diminuir sua decisão apesar de observar o aborrecimento que mostrava o duque em seu rosto. Segurou a mão esquerda entre a sua, colocou a direita em sua cintura, elevou o olhar e prosseguiu. ? Concede-me isso?
? Beatrice... ? murmurou tão baixo que nem ela mesma pôde escutá-lo com claridade.
De repente começou a soar sua valsa, que havia tocado na tarde com os Wadlow. A jovem pousou sua cabeça no peito viril e deixou que William a dirigisse. Não foi uma dança tão impetuosa como a do senhor Bennett, nem tão precisa como a realizada com o senhor Cooper e, nem muito menos a moça decidiu separar-se do duque com a necessidade que lhe urgiu com o jovem Rawson. Foi tão diferente quanto estranho. A mão esquerda de Beatrice segurou a do duque com tanto ímpeto que desejou que este o sentisse. O queixo de William se apoiava com suavidade sobre seu cabelo e inspirava com suavidade a essência da jovem. Os ligeiros vaivéns fizeram com que ambos os corpos se tocassem sem pudor. Cada nota musical incitava a não se separarem, a não se afastarem um do outro. Beatrice fechou os olhos e deixou que umas lágrimas de emoção banhassem suas bochechas. Não quis faze-las desaparecer enxugando-as no colete dele. Não podia eliminar os sinais que oferecia seu coração ao sentir por fim o que era um amor verdadeiro.
A serenidade tinha desaparecido. Era a primeira vez em sua vida que as pernas lhe tremiam apesar de senti-las fortes. Não podia respirar. Faltava-lhe o ar e não escutava o pulsar de seu coração. Teve que partir da sala para não ser testemunha de como o filho do presunçoso senhor Rawson, pedia permissão para que este dançasse com ela.
«À sua Excelência não importará, porque, conforme apreciei, é a apresentação de sua pupila e não da futura duquesa de Rutland, não é?». E o que lhe tinha respondido? Nada, só franziu o cenho e, graças à rápida intervenção de Roger, não lhe respondeu que se lhe ocorresse tocá-la, matá-lo-ia. E agora, apesar de fugir de Beatrice para que fosse feliz com outra pessoa e não com um ser incapaz de picar a carne e cortá-la ao mesmo tempo, estava dançando com ele. A pequena mulher que não lhe alcançava o ombro, era a única pessoa que tinha insistido em dançar segurando sua inutilidade para apertá-la com os suaves dedos femininos. A única mulher que o tinha cuidado e, em vez de debilitá-lo, elogiava-o, oferecia-lhe o empurrão que necessitava para ser o homem que uma vez foi. William apertou com suavidade o queixo no cabelo da moça para que esta o olhasse. Ela, entendendo seu gesto, elevou com delicadeza o queixo deixando que o homem apreciasse suas lágrimas de emoção.
? Beatrice... Beatrice... ? sussurrou aproximando sua boca das bochechas e beijando o lugar por onde as gotas as tinham molhado.
? William... ? murmurou fechando os olhos.
? Repete meu nome outra vez, suplico-lhe ? aproximou seus lábios dos dela tanto que, com o mínimo movimento, acariciavam-se.
? William, meu querido William... ? ao escutar seu nome da boca da moça, este sentiu um gozo tão imenso que lhe resultou estranho ao mesmo tempo em que formoso.
Fez com que sua boca impactasse com a dela com tanta intensidade como necessidade. Desta vez não começou com uma carícia leve, esperando ser rejeitado a qualquer momento, mas sim a beijou com força, com decisão, com toda a paixão que sentia e que não podia ocultar por mais tempo.
Beatrice foi incapaz de abrir os olhos. A razão disso não era a vergonha que deveria sentir ao ser beijada sem pudor nem reparo, mas sim as pálpebras que lhe pesavam devido à paixão. A queimação de sua virilha fervia e as vespas se liberavam de seu estômago após furá-lo. Sentiu-se ditosa e perturbada ao notar que o membro do duque começava a endurecer. Mas não tinha medo. Estava segura de que se ela parasse, este cessaria também sem pedir explicações ou sem obrigá-la a fazer aquilo que não desejava. De repente surgiu uma estranha frieza em sua boca. Atordoada pelas sensações que lhe causavam ser beijada pelo duque, abriu os olhos e contemplou uns olhos escuros repletos de fogo.
? Quero que saiba que a respeito e que meus beijos para você são incontroláveis ? sussurrou à meia voz devido ao seu estado de excitação.
? Quero que saiba que o respeito e que meus beijos... ? tentou repetir antes que o duque voltasse a beijá-la com aquela ansiedade que lhe mostrava o muito que a desejava.
? Cof, cof! ? Alguém tossiu próximo a eles.
? Roger! ? Exclamou William assombrado. ? O que faz aí? ? Avançou um passo para o homem e cobriu com seu corpo o de Beatrice.
? Vim lhes advertir que as pessoas murmuram sobre onde se encontrarão o tutor e a pupila ? disse reticente. ? Imaginei que ao luzir esta noite uma deliciosa lua cheia, o... tutor teria saído ao balcão para explicar à sua... pupila que essa preciosidade tem quatro fases: minguante, crescente, nova e cheia. Equivoco-me?
? Acompanhe-a ao interior, eu entrarei por aquela janela alí e ninguém pensará se estava com seu tutor vendo a lua ou se recuperando das insistentes garras de um jovenzinho descarado ? resmungou.
? Refere-se ao inofensivo Rawson? ? Arqueou as sobrancelhas e mostrou um amplo sorriso.
? O próprio ? disse William sério.
? Mon amie... ? sussurrou Roger após aproximar sua boca do ouvido de seu amigo. ? Nós fomos mais perigosos que esse jovenzinho inexperiente. Se não recordar mal, ao final conseguíamos elevar as pomposas saias.
William ficou petrificado. Não soube como tomar as palavras de seu amigo. Tragou saliva, girou-se para Beatrice e, apesar da presença de Roger, beijou-a com doçura nos lábios.
? Ele te conduzirá de novo ao salão. Não desejo que as pessoas finalizem um rumor e comecem outro.
? E você? ? Colocou as palmas ao redor do rosto masculino e o olhou aos olhos.
? Quando puser esta mão em seu lugar, farei ato de presença pela entrada principal. Se alguém me perguntar, direi-lhe que meu mordomo requeria minha presença para resolver um tema urgente.
? Mas...
? Allez, mademoiselle(7). Os convidados nos esperam ? estendeu o braço e Beatrice, cabisbaixa, aceitou-o. Devagar, caminharam para a entrada.
William teve que apoiar-se no corrimão para não cair. As palavras de seu amigo tinham lhe causado tamanha debilidade que quase o fizeram ajoelhar-se. Sentia-se um miserável, um canalha por ter feito sofrer os maridos de suas amantes. Agora entendia o padecimento e a vergonha daqueles homens que, depois de descobrir que seu amor não era correspondido, eram humilhados. Agora entendia a razão pela qual ele jamais quis apaixonar-se e oferecer seu coração a uma mulher.
Apartou as lágrimas de seu rosto, caminhou com integridade para a entrada e se dirigiu para a sala onde o licor e as apostas incrementavam a felicidade dos convidados.
XXIII
À manhã seguinte, Beatrice era incapaz de levantar-se, estava exausta do baile e das emoções que viveu nele. Só conseguiu levantar um pouco as pestanas quando Lorinne entrou na habitação e correu as cortinas para que a luz entrasse no interior.
? Boa tarde, que tal se encontra? ? Disse a donzela aproximando-se de sua cama e sentando-se nela.
? Cansada, mais do que acreditei ao me deitar ontem ? comentou sonolenta.
? Pois tem que preparar-se, sua Excelência a espera na biblioteca, deseja conversar com você antes de almoçar – informou-lhe. No rosto da criada se desenhou um sorriso tão enorme que Beatrice a olhou com os olhos entreabertos. ? A festa resultou mais produtiva do que se imaginou, não é?
? Não sei a que se refere ? disse enquanto se sentava sobre o colchão e apartava os lençóis de suas pernas.
? Quero dizer que todo mundo ficou contente. Ninguém pôs queixa alguma e a você viu-se muito feliz. ? Levantou-se e caminhou para o roupeiro para procurar um vestido para a moça. Só ficavam dois por usar: um dourado, que rejeitou sem nem o ver, e um de cor rosa.
? Feliz? ? Levantou-se com rapidez, aproximou-se da bacia e se lavou o rosto.
? Acaso fingia? ? Perguntou surpreendida a moça.
? Não, Lorinne, sentia-me muito feliz, mas tem que compreender que devido aos rumores que se propagaram por Rowsley quis que todo mundo soubesse que não me preocupavam porque não eram certos.
? Bem... ? disse a donzela lhe colocando o vestido escolhido. ? Então, depois de desculpar esse cochicho e de deixar claro que você é a pupila de nosso senhor, o que acontecerá agora?
A pergunta resultou tão dolorosa para Beatrice como um bofetão na cara. As palavras inocentes da moça despertaram-na bruscamente do sonho, aquele que inventou com tanta insistência para outros que terminou por acreditar ela mesma. Como tinha sido tão tola? Como foi tão inconsequente? Para o duque ela era a senhorita Brown não a senhorita Lowell, filha do barão de Montblanc. Para ele, seus pais faleceram e a verdade era que viviam na residência familiar que possuíam nos subúrbios de Londres. Para ele somente era uma camponesa e a realidade era que se tratava da filha ultrajada de um barão...
? Sinto se minhas palavras a ofenderam ? comentou Lorinne com tristeza. ? Não foi minha intenção perturbá-la.
? Não! ? Exclamou a jovem girando-se para ela e exibindo um sorriso. ? Não se sinta culpada de nada, foi sincera e lhe agradeço isso. Tem razão, Lorinne, não tinha pensado no futuro. Estava tão entretida com a festa e em fazer desaparecer esses rumores que tinha esquecido qual é meu verdadeiro lugar neste mundo.
? Mas eu... eu não quero que... ? tentou desculpar-se a compungida moça.
? Calma. Não se preocupe, se tudo sair como espero, logo poderei te responder essa pergunta. ? Deu-lhe um pequeno beijo na bochecha, olhou-se no espelho e, depois de ajeitar o vestido, dirigiu-se para o lugar onde a esperava o duque.
Fazia um magnífico dia ou isso lhe parecia? William não pôde conciliar o sonho. Foi incapaz de fechar os olhos e descansar depois do acontecido com Beatrice. Ela o amava. Não o disse com palavras, mas sim com feitos. Quem, salvo uma mulher apaixonada, pode contemplar uma fealdade como algo belo? Quem, salvo uma mulher que ama a um homem, chora pela emoção que lhe produz um beijo?
O duque caminhou para a janela e contemplou com admiração o exterior de seu lar. Aquele bosque que no passado lhe pareceu o lugar mais tenebroso, já não o era. Para ele, aquelas paragens selvagens eram seus salvadores porque graças a eles, Beatrice estava ao seu lado. De repente sorriu. Recordou a sensação de liberdade que lhe produziu a dança com a moça e como lhe separou a alça, segurou-lhe a mão que tanto se esforçava em ocultar e, sob o amparo de seu corpo, dançaram sem medo. Era sua mulher, disso não tinha a menor dúvida. Fez saber-se aos seus amigos, aos seus irmãos.
«Amo-a, amo a senhorita Brown.» Sim, claro que a amava e ela a ele, mas... que passo devia dar agora?
Em circunstâncias normais teria aparecido na casa dos pais dela e, depois de expor seus propósitos, eles revelariam à filha suas intenções. Entretanto, Beatrice estava sozinha, não tinha ninguém a quem pedir sua mão.
«Tenho que pedir a ela mesma? ? Perguntou-se enquanto caminhava para a porta para receber a jovem. ? Ou possivelmente...».
De repente se lembrou da conversação que a moça manteve com Roger quando lhe respondeu em francês. Se não lhe falhava a memória comentou que tinha uma tia viúva que permaneceu em seu lar durante um tempo.
«Se lhe perguntar onde reside sua tia, ? continuou divagando ? posso viajar até lá e pedir sua mão».
Voltou a sorrir. Quanto mais o meditava, mais loucura lhe parecia, mas disse a si mesmo que se o conseguisse, seria o disparate mais formoso que tinha feito por alguém até o momento.
? Senhor... ? interrompeu Brandon, as divagações com sua presença na sala ? a senhorita Brown está preparada. Deseja recebê-la aqui?
? É claro! ? Exclamou eufórico. Outra vez seu coração deixava o compassado pulsar para converter-se em um infinito galopar de meia dúzia de corcéis.
? Senhorita Brown... ? disse o senhor Stone abrindo ainda mais a porta.
? Bom dia, senhor ? saudou Beatrice com uma pequena reverência.
? Descansou bem? ? Perguntou o duque colocando a mão direita em suas costas e retendo a ânsia de abraçá-la.
? Muito bem, e você?
Brandon fechou a porta e sem mover-se do lugar escutou como o duque caminhava com rapidez para a jovem. Percebeu em seus olhos quando ela apareceu, toda a escuridão desapareceu após vê-la e, embora tentasse dissimular, um enorme sorriso lhe cruzou o rosto. O mordomo suspirou profundamente, sorriu e se dirigiu para a cozinha. Tinha que dar a razão, de novo, à sua esposa. Apesar de lhe dizer uma e outra vez que suas ideias eram desatinadas e absurdas, demonstrava-lhe que, em temas sentimentais, sempre ganhava.
? De verdade conseguiu descansar? ? William agarrava a cintura da jovem com força. Tinha-a beijado já três vezes desde que o mordomo os deixou sozinhos. Mas apesar de saber que eram muitas em tão pouco tempo, não podia deixar de fazê-lo. Tinha sentido tanto sua falta, tinha sentido tanta saudade durante sua breve separação.
? Sim, de verdade. Embora possa lhe assegurar que ainda sigo cansada ? comentou sorridente.
? Se quiser retirar-se para continuar seu repouso, entenderei ? disse com tristeza.
? Já o farei depois de almoçar. ? Elevou-se nas pontas dos pés e voltou a tocar os lábios que tanto prazer lhe oferecia.
? Parece-me uma ideia bastante aceitável... ? Apertou-a com tanto ímpeto ao seu corpo que esta encurvou as costas. Ao serem conscientes das contorções que deviam realizar para desculpar a diferença de altura, ambos riram a gargalhadas.
? Nunca tinha visto tantos livros ? indicou Beatrice ao liberar-se do corpo de William e caminhar para eles. Em sua casa havia muitos livros, mas não tantos como apreciavam seus olhos.
? Imagino... ? disse com pesar o duque ao imaginar que uma jovem tão ávida em cultivar sua sabedoria e intelecto teria sentido falta de não possuir mais fontes de conhecimento ao seu alcance.
? Não se entristeça ? falou com rapidez girando-se para ele. ? Acredito que me interpretou mal. Quis dizer que nunca vi tantos livros juntos ? esboçou uma leve risada. ? Quantos pode haver? Uma centena? Duas, possivelmente? ? Caminhou com lentidão para as grandes estantes e tentou fazer um cálculo aproximado.
? Posso lhe assegurar que, apesar de permanecer nesta estadia quase todo o meu tempo, nunca parei para contá-los. ? Dirigiu seus passos para ela e se colocou atrás de suas costas.
? Qual, de todos estes, é o seu preferido? ? Voltou-se para ele e, de novo, observou um olhar repleto de desejo, de necessidade, de luxúria. Só lhe bastou um leve sorriso para que William voltasse a beijá-la com tanta paixão que, se não a tivesse sugurado pela cintura, teria caído ao chão.
? O conde de Montecristo ? sussurrou após tomar o ar que faltava aos seus pulmões.
? Do que se trata? ? Perguntou interessada. Por muito que tentasse afastar-se da boca do duque, este lhe agarrava com tanto ímpeto que não conseguia separar-se nem a largura de uma linha de costurar.
? Parece-me estranho que uma jovem que fala francês e sabe tocar o piano como uma deusa, não saiba de que história falo ? disse jocoso.
? Não diga bobagens! ? Exclamou ruborizada.
? Se quer saber o que esconde o livro, leia-o. Talvez te faça compreender um pouco mais a escuridão que guardo em meu interior ? murmurou com voz melosa.
? Mostre-me ele ? pediu com euforia.
O duque emitiu um pequeno grunhido pelo desagrado que lhe produzia separar-se dela, mas não podia evitar agradá-la, muito ao seu pesar, liberou o corpo da moça e retornou às estantes. Durante um comprido tempo esteve revisando títulos até que ao final o encontrou.
? Aqui o tem – mostrou-o. ? Vai começar a ler agora? ? Arqueou as sobrancelhas e desenhou um sorriso malicioso.
? Pode pô-lo sobre a mesa, já o farei mais tarde.
Tal como lhe indicou, o homem o pousou sobre a mesa, girou-se para ela para abraçá-la de novo quando bateram na porta.
? Adiante! ? Grunhiu.
? Meu senhor, o almoço está preparado ? informou Brandon timidamente.
? Obrigado. Faça saber que não demoraremos.
Quando os deixou a sós, o homem finalizou aquilo que tinha pensado. Depois de enchê-la de beijos e de abraços, recuperaram a compostura e se dirigiram para o salão.
? Desculpe, milord. ? A voz agitada do mordomo lhes impediu de acessar ao lugar.
? Sim? ? Franziu o cenho e dirigiu ao ancião um olhar fulminante.
? O senhor Cooper e o senhor Bennett acabam de chegar ? informou.
? Faça-os passar. Podem nos acompanhar ao almoço se o desejarem ? disse com voz mais suave.
? Senhor, comentaram-me que desejam falar com você agora e em privado ? explicou com certa alteração.
? Não se preocupe, senhor. Como lhe disse, preciso descansar um pouco mais para recuperar a energia que perdi ontem ? intercedeu Beatrice ao observar a tensão que cresceu depois da notícia. ? Com sua permissão. ? A jovem fez uma pequena reverência e, sem deixar que ele se negasse, subiu as escadas que a conduziam ao seu dormitório. Era o mais apropriado naquele momento. Não só pelo desejo de ambos os cavalheiros em manter um bate-papo privado com o duque, mas sim porque ela também necessitava de tempo para pensar quando seria o melhor momento para abandonar o homem que amava.
Zangado ao mesmo tempo em que intrigado, William retornou à biblioteca para receber a inoportuna visita. Que assunto era tão urgente para que seus amigos perturbassem um momento tão esplêndido? O que teria acontecido para requerer, com tanto afã, um bate-papo privado? Ansioso por averiguar o que acontecia, os escassos segundos que demoraram em aparecer lhe resultaram uma eternidade.
? Boa tarde, William ? disse Federith ao entrar na habitação.
? Mon amie ? saudou Roger.
O duque esteve a ponto de lhes gritar como apareciam sem prévio aviso, mas quando observou os rostos aflitos de ambos, acalmou-se com rapidez.
? O que acontece? ? Inquiriu William olhando primeiro a um e logo ao outro.
? Advirto-te, meu amigo, que eu não sabia nada disto ? esclareceu Roger em tom suave depois de fechar a porta.
? O que acontece? ? Repetiu o homem em tom mais severo.
? Deveria se sentar, William. O que vai escutar pode te debilitar tanto que necessitará de um assento onde se apoiar ? começou a falar Federith ao mesmo tempo em que caminhava para ele.
? A mim? Por quê? O que aconteceu? Trata-se do Lausson? ? Perguntou sem pausa enquanto tomava assento e ficava sem ar.
? Acreditei que estava equivocado, ? continuou falando Cooper ? mas depois de passar a noite em claro pensando sobre isso e recordando, confirmei minhas suspeitas. ? William voltou a olhar ao Roger e logo ao Federith esperando que falassem claramente. ? Recorda à família do barão Montblanc?
? Não com a precisão que tem você ? esclareceu com aborrecimento.
? Recorda o que lhes aconteceu? Recorda a razão pela qual o barão te visitou em Southwark? ? Insistiu. Sabia que aquilo mataria seu amigo, que o levaria a um abismo de tristeza do qual jamais se recuperaria, mas o queria como se o mesmo sangue percorresse suas veias e jamais poderia perdoar-se se não lhe explicasse a verdadeira origem da senhorita Brown.
? A que vem isso agora? ? William franziu o cenho e tentou levantar-se, mas a mão de Roger o impediu.
? Sim, lembra-se ? determinou Federith.
? É óbvio que o faço! Acaso crê que sou tão insensível de não recordar a tragédia dessa família? A jovem terminou suicidando-se! ? Gritou.
? E se te dissesse que não morreu, que segue viva ? continuou falando Cooper.
? O que? ? Os esforços por levantar-se e deixar de escutar coisas que só lhe produziam um profundo e amargo sentimento de culpabilidade desapareceu de repente.
? OH, mon Dieu! Isto é mais duro do que eu pensava! Ama-a, adora-a! Acaso não se dá conta do dano que lhe vai provocar? ? Gritou zangado Roger enfrentando seu amigo e lhe colocando no peito um dedo acusador.
? Deve sabê-lo. Ele deve saber que a senhorita Brown é em realidade a senhorita Lowell, filha do barão de Montblanc.
? Mentira! ? Clamou William elevando-se com rapidez de seu assento. — É mentira! Ela é a filha de uns camponeses que morreram pela cólera!
? O amor te cegou, meu amigo, ? disse com pesar Federith ? e não pôde ver a realidade. Crê que uma camponesa poderia tocar uma peça tão difícil de Chopin sem praticá-la com frequência? Crê que uma camponesa poderia falar um francês daquele nível? Até o Roger se assombrou por sua incrível pronúncia.
William começou a enjoar-se. Tudo ao seu redor dava voltas. Mal podia ver com claridade. Esticou a mão direita para alcançar o assento. Não o conseguiu e, apesar de seus amigos correrem para que não tocasse o chão, seus joelhos impactaram sobre ele.
? Não pode ser verdade... ? sussurrou afogado. ? Está equivocado. Minha Beatrice não é...
? Sinto muito. Juro-te por minha honra que me dói te dizer isto, mas não poderia me considerar teu amigo se não te informasse sobre a verdade da mulher que ama e a quem, estou seguro, deseja lhe pedir em matrimônio ? explicou enquanto ele e Roger lhe ajudavam a sentar-se.
? Como vou pedir em matrimônio uma harpia? A uma mulher com experiência em enganar homens? ? Gritou tão alto que uma terrível dor de cabeça lhe sacudiu.
? Segue pensando que o conde de Rabbitwood disse a verdade? ? Perguntou Federith pousando seu braço sobre o ombro esquerdo de seu amigo. ? Pensa um pouco, William. O que nos contou sobre ela?
? Que veio andando desde algum lugar até encontrar a cabana do bosque ? expôs com voz mais apagada e olhando para o chão. Levou-se a mão direita para a testa e sentiu falta de sua esquerda. Antes, pressionar a cabeça com ambas as mãos acalmava sua dor e sua ansiedade.
? Quando a encontrou? ? Continuou o senhor Cooper com o interrogatório para que seu amigo conseguisse eliminar a fúria e conseguisse pensar com clareza.
? Depois de conhecer a notícia de seu matrimônio, embebedei-me e, em um ato de loucura, cavalguei sobre um dos meus cavalos. Algo o assustou e caí ao chão. No golpe fiquei inconsciente. Pensei que seria a última vez que veria a luz, mas quando despertei, ela me tinha salvado a vida. ? Não podia falar com clareza, asfixiava-se e, preso do desespero que estava vivendo, começou a chorar.
? O que te pediu em troca? ? Interveio Roger surpreso ao descobrir que aquela miúda figura tinha tido a coragem de salvar a um homem que lhe ultrapassava em tamanho e peso.
? Que a deixasse viver na cabana. Que não a incomodasse. Que a deixasse permanecer o resto de seu existir em solidão.
? O que aconteceu depois? ? Agora a pergunta era realizada pelo Federith.
? Tal como me pediu, deixei-a viver sozinha durante um tempo. Mas fui incapaz de deixar de pensar nela. Não me explicava como uma moça tão jovem e tão indefesa tentava se afastar do resto da sociedade. ? William elevou a cabeça e deixou que seus amigos observassem como as lágrimas banhavam seu rosto.
? Entende-o agora? Descobriu por que Beatrice desejava essa forma de vida? ? Apertou-lhe com força o ombro e o duque levantou sua mão direita para pousá-la sobre a de seu amigo.
? Sabe que lhe apoiaremos na decisão que tomar ? Confirmou Roger aproximando-se de seu amigo e imitando ao Federith no outro ombro. ? Diga-nos o que deseja fazer e o faremos ? sentenciou.
William dirigiu o olhar para a janela. Agora o dia não lhe parecia tão lindo, resultava-lhe frio, nublado, tenebroso. Depois de meditar o que desejava fazer, levantou-se com tanta força do assento que ambos os amigos deram uns passos para trás. Caminhou para a porta, abriu-a e começou a gritar.
? Brandon! Brandon!
? Sim, milord? O que ocorre? ? O ancião jogou uma rápida olhada aos convidados e compreendeu que nada bom tinha acontecido durante aquela conversação.
? Prepara um pouco de bagagem, amanhã partiremos para Londres na carruagem do senhor Cooper ? disse com firmeza.
? Uma longa temporada? ? Perguntou o mordomo desconcertado.
? Se tudo sair bem, estaremos de retorno em uma semana. Se sair mal, eu não retornarei nunca ? declarou.
XXIV
Esperou que seus amigos partissem para fazer o que tinha pensado. Pegou cinco folhas de papel, estendeu-as sobre a mesa e escreveu com seu punho e letra suas últimas vontades em cada uma. A primeira iria destinada ao senhor Gibbs, o administrador, informava-lhe do acontecido da aparição da senhorita Lowell e como, por decisão própria, determinou partir a Londres para finalizar o que não fez no passado. Explicou-lhe também os passos que devia seguir se algum de seus familiares, especialmente sua mãe, tentasse anular seu testamento. Não se esqueceu dos quais estavam ao seu serviço, indicando onde deviam instalar-se após seu falecimento e a quantia que lhes pertencia por seus anos de trabalho. Para finalizar insistiu na decisão sobre a mudança de proprietários da residência em Southwark. Esta seria dada de presente ao casal Stone como agradecimento a sua fidelidade, cuidado e por ocupar o lugar que deveriam desempenhar seus pais.
Reescreveu a carta três vezes mais. Uma estava dirigida ao Roger, outra ao Federith e a última para Beatrice. As missivas destinadas aos homens foram colocadas em distintos envelopes e as fechou com seu selo de cera vermelha. A única que ficava por guardar era a de Beatrice. Ele olhou de lado a última folha de papel em branco, respirou fundo e pôs em palavras o que seu coração ditava. Quando terminou, assinou-a, meteu-a em outro envelope, pôs-lhe o selo e a escondeu entre as páginas do livro O conde de Montecristo. Se tudo saísse bem, ela jamais conseguiria lê-la, mas se, pelo contrário, o destino o impedisse de voltar para seu lado, saberia que a amava apesar de descobrir a verdade.
Cabisbaixo, subiu as escadas devagar. Encontrava-se tão triste que, dar um passo e logo o outro, resultou-lhe um trabalho dificílimo. Conforme chegava ao final da escada, sem saber a razão, recordou o momento no qual a moça abriu os olhos e, depois de observá-lo, começou a gritar descontroladamente. Agora sabia a causa de sua alteração: o delírio da febre lhe mostrava de novo a atroz cena da violação. Não dizia a ele que não a tocasse, nem que tivesse piedade, a não ser ao maldito Rabbitwood.
«Morrerá em minhas mãos!», exclamou William formando com sua mão um duro punho e apertando a mandíbula.
? Meu senhor ? começou a dizer Brandon no patamar do corredor. ? Deseja alguma coisa mais?
? Só uma. Sobre a escrivaninha encontrará várias cartas, pega só a destinada ao senhor Gibbs e a faça chegar ao cavalariço. Quero que a tenha esta mesma tarde ? disse com tom cansado. Olhou ao mordomo e, observando que este esperava mais ordens finalizou. ? Isso é tudo. Descansa o resto do dia. A viagem será muito longa.
? Até manhã então, milord.
? Até manhã ? repetiu.
William se dirigiu para seu quarto com a intenção de descansar um momento antes de pedir a Beatrice que o acompanhasse no jantar. Como era de supor, seu ajudante de câmara lhe estava esperando para despi-lo.
? Senhor... ? saudou-lhe.
? Deixe-me em camisa e meias ? indicou com austeridade.
O moço assentiu e começou a despi-lo em silêncio. Quando lhe despojou de todos os objetos menos as assinaladas, despediu-se e o deixou sozinho. William caminhou para o espelho e observou seu reflexo. Não encontrou ao homem que era, nem tampouco o homem que acreditava ser. Seguia sendo um canalha, um ser desprezível. Com uma intensa fúria, começou a atirar tudo o que encontrou ao seu redor. Como tinha sido tão imbecil? Quem se acreditou ser para não escutar as preces de um homem destroçado? Por que afirmou categoricamente que ela mentia? Por que não duvidou disso nem um segundo? Possivelmente a resposta se encontrava em que, naquele momento, ele era tão vilão como o conde.
Envergonhado, William continuou destroçando o que encontrava em seu passo. Nunca tinha desatado uma ira semelhante. Sempre tinha guardado os sentimentos em seu interior com um férreo autocontrole. Até quando falou com Roger e Federith sobre a tristeza que sentiu pela morte da filha do barão, não exibiu mais lástima que a que pôde mostrar se Lala, a cachorrinha de sua mãe, houvesse falecido. Quebrado de dor, exausto pelo esforço, sentou-se, levou-se a mão direita para o rosto e começou a chorar.
Beatrice despertou assustada. Entre sonhos tinha escutado um grande estrondo, mas, ao levantar-se e observar ao seu redor, não achou nada estranho. Com muito sigilo, dirigiu-se para a porta. Depois de abri-la e olhar a um lado e ao outro do corredor tampouco encontrou nada que lhe explicasse seu sobressalto. Pensando que tudo foi produto de sua imaginação, decidiu retornar ao interior do quarto, mas então ouviu com clareza outro ruído que procedia claramente da habitação de William. Sem diminuir o passo, dirigiu-se para lá.
Durante o curto trajeto não parava de pensar que podia ter ocorrido qualquer acidente e que ninguém tinha ido para auxiliá-lo. Presa no pânico, não chamou antes de entrar e, quando descobriu o destroço que mostrava o interior, foi incapaz de avançar. Seu olhar procurou o duque. Mal podia apreciar a grande silhueta deste na penumbra. De repente escutou um suave lamento. Olhou para o lugar de onde procedia a pequena choramingação e achou ao culpado desta. William permanecia sentado sobre a cama e lhe dava as costas, por isso não tinha percebido sua presença. Inclinava-se para diante como se sentisse uma intensa dor em seu estômago.
? William... ? murmurou, mas o homem não a escutou. Seguia sem saber que ela tinha entrado.
Sem pensar em como reagiria o duque quando a descobrisse, caminhou com cuidado. Esquivou-se dos cristais quebrados e dos itens que se encontravam espalhados pelo chão. Não parou de andar até que se colocou em frente a ele.
? William, o que acontece?
? Beatrice! ? Exclamou o homem dando um salto ante o assombro em vê-la. ? O que faz aqui?
? Escutei um ruído e me assustei ? disse com um suave fio de voz.
? Não deveria estar aqui, poderiam ver-te. ? William foi incapaz de apartar o olhar do pequeno corpo imóvel.
A expressão de terror de seu rosto e a confusão de seu olhar lhe indicava que estava preocupada e ele se sentiu ditoso e ao mesmo tempo zangado por lhe provocar tal temor. Respirou fundo ao observar a beleza natural de Beatrice. Era a mesma que tinha mostrado na cabana, salvo que nesses momentos seu corpo não estava coberto de barro. Sua cabeleira, até agora recolhida como ditavam as normas, estendia-se pelas costas ocultando os delicados ombros. A diminuta figura, vestida com uma fina camisola de algodão branco, apreciava-se através do tecido. O homem tragou saliva ao distinguir as auréolas tintas de marrom e a escuridão de seu triângulo feminino. Devia fazer que partisse o antes possível dali. Não podia permanecer dessa forma tão erótica ao seu lado.
? O que aconteceu? Que notícia recebeu para que tivesse reações desta maneira? ? Esticou as mãos e as pousou sobre o entristecido rosto.
? Não deve preocupar-se com isso, Beatrice. ? Sua mão direita pressionou a esquerda da jovem e inclinou a cabeça para esse lado. Reconfortava-lhe tanto sentir a calidez de sua pele que, por um momento, esqueceu a razão de seu aborrecimento.
? Não deveria me preocupar ou não quer que me preocupe? ? Continuou com uma voz aveludada.
? Beatrice... ? sussurrou.
Fechou durante uns instantes os olhos e deixou que as mãos da jovem acariciassem sua barba.
? William... ? falou sem mal mover os lábios. Apoiou os dedos dos pés no chão e se elevou. Queria beijá-lo. Queria tranquilizá-lo com o suave tato de seus lábios.
? Minha pequena Beatrice... ? disse ao mesmo tempo em que baixava sua boca para a dela.
? Meu grande William... ? suas mãos se deslizaram para o cabelo e entrelaçando seus dedos nele, cortou a pequena distância que lhes separava.
A boca dele tocou com suavidade a dela. Não queria um beijo apaixonado, muito menos a tendo perto com uma camisola transparente, porque sabia que assim que sua mão acariciasse o corpo feminino sobre o fino tecido seria incapaz de parar a luxúria que despertaria.
? Só isso? ? Perguntou desconcertada ao perceber como os lábios do duque abandonavam os seus.
? Desejo muito mais, Beatrice. Mais do que pode imaginar, ? esclareceu com aparente firmeza ? mas não farei nada que você não queira fazer.
Beatrice cravou seus olhos nos dele e percebeu a veracidade de suas palavras. Não lhe cabia dúvida que se dissesse não, ele a respeitaria imediatamente. De repente, a jovem notou como seu pêlo se elevava, como seu coração se alterava e como aquela queimação que ardia sob seu ventre aumentava pela sinceridade do homem.
? Quero que me beije ? disse enfim. ? Quero que me toque... Quero ser tua assim como você será meu.
? Está segura? ? Perguntou depois de tragar saliva.
O desejo queimava seu corpo. Podia perceber na garganta o agitado bombeamento de seu coração. Dava-lhe permissão para entrar em seu corpo, e fazê-la sua. Entretanto, embora a ideia de tomá-la parecesse maravilhosa, assaltou-lhe a dúvida. O que aconteceria se não retornasse? O que pensaria a moça se a fazia dele e não voltasse jamais?
? Não o deseja? ? Beatrice, ao observar seu cenho franzido e uma inquietação estranha, apartou suas mãos do rosto do duque e começou a retroceder.
? Se o desejo? ? Agarrou-a pelo braço com força e a atraiu para ele com tanto ímpeto que ambos os rostos ficaram a um escasso palmo. ? Mais que tudo neste mundo!
E voltou a beijá-la, mas desta vez não controlou a paixão nem o ardor que sentia por ela. Sua língua invadiu a boca da jovem com energia e necessidade, antecipando-lhe o que aconteceria a seguir. Sua mão, até agora pega à cintura, começou a lhe acariciar as costas, os ombros, o pescoço... William mordeu com cuidado o lábio inferior, fazendo com que ela abrisse os olhos e o contemplasse. Queria que fosse consciente do homem que tinha ao seu lado, que lhe mostraria o que significava fazer amor.
? É tão bela... ? sussurrou enquanto a palma percorria devagar o pescoço, o decote, os seios. ? Desejo-te tanto... ? beijou-a de novo ao mesmo tempo em que continuava acariciando o tremente corpo feminino.
Beatrice percebeu com clareza cada carícia, cada toque e para onde se dirigia. Não lhe importou. Encontrava-se em um estado de atordoamento tão maravilhoso que não queria que parasse. Esticou de novo as mãos buscando-o. Desta vez suas palmas não apreciaram a sedosidade de seu cabelo, mas sim o quente peito viril. A pequena abertura de sua regata liberava o escuro e encaracolado pêlo do homem. Intrigada por averiguar o tato que teria, enredou seus dedos nele, pareceu-lhe suave e ao mesmo tempo robusto.
? Diga-me que pare, diga-me e me afastarei desta loucura... ? gemeu William ao notar as mãos dela em seu corpo.
? Não... ? murmurou. ? Não quero que pare esta loucura porque eu também a desejo ? respondeu ao mesmo tempo em que suas mãos baixavam e agarravam o objeto para tirar-lhe.
Era a segunda vez que contemplava o torso do duque. A primeira quando limpou a pequena ferida que se fez depois do acidente, mas então não o observou com o desejo nem com a lascívia que sentia nesse momento. Olhou a cicatriz da ferida, mal ficava rastro daquela lesão. Estendeu uma mão e a acariciou com suavidade.
? Ninguém até agora tinha visto... ? disse em voz baixa.
A moça soube com rapidez do que falava. Deteve a carícia que realizava no peito e a dirigiu por volta da mão esquerda que sempre ocultava dos outros e a acariciou. Apesar de ser mais magra que a outra, seguia sendo formosa. Sua pele, seu pêlo... era muito similar à direita. Nada do que observava lhe provocou espanto, ao contrário, sentiu-se ditosa por poder tocar e admirar.
? Siga acariciando-me, William, não pare ? comentou acercando sua boca do torso para beijá-lo.
Mas o homem foi incapaz de fazê-lo. Ao notar os lábios dela jogou a cabeça para trás e soluçou de prazer. Beatrice sorriu ao compreender o que produziam suas carícias. Aí estava, uma inexperiente na arte do amor deixando imóvel a quem, supostamente, era todo um professor. Entretanto, queria que continuasse, que não cessasse de tocá-la. Para despertá-lo desse transe, retirou-se com suavidade, segurou a mão direita e a colocou em seu estômago.
? Toque-me ? sussurrou.
O duque ficou tão pasmado que não soube como atuar. Nunca tinha perdido uma ocasião para despir uma mulher, embora nenhuma fosse Beatrice. Nem tampouco desejava apagar com suas carícias, as aberrações produzidas por outro homem. Mas lhe dava permissão, concedia-lhe a honra de fazê-la sua. Retirou a mão do ventre da jovem para segurar com força a camisola. Foi subindo-a devagar, sem pressa. Admirando a figura feminina. Quando este subiu até seus ombros, William grunhiu zangado. Não podia tirar-lhe. Não sem que lhe custasse mais esforço do que desejava realizar. Embora, para sua surpresa, a moça conduziu as mãos para o objeto e lhe ajudou a despojar-lhe.
? Linda... ? murmurou aproximando sua boca dos seios. ? É muito linda para mim. ? Lambeu e absorveu um mamilo para depois continuar com o outro.
Sua mão percorreu de novo o pescoço, os ombros e os seios nus da moça. Quis seguir o percurso de seu corpo até chegar aos quadris, mas em troca, segurou-a pela mão e a levou até a cama e fez com que se recostasse.
Ela tentou abrir os olhos e averiguar o que fazia William, mas não foi possível, pesavam-lhe tanto que não podia levantar as pestanas.
? Tão cálida, tão excitada, tão minha... ? murmurou o duque ao mesmo tempo em que a beijava com avidez.
Não voltou a falar até que sua boca se colocou sobre o púbis. Surpreendida, Beatrice realizou um suave movimento com as pernas, tentando fecha-las. William elevou seu rosto para olhá-la e lhe sussurrou:
? Não te farei mal, meu amor. Só quero despertar mais desejo para mim. Quer que o faça? Quer que aumente sua necessidade enquanto me alimento de ti?
? Sim... ? ronronou presa da paixão.
? Bem, então me mostre o lugar onde minha fome será saciada.
Beatrice obedeceu e uma estranha cãibra a sacudiu com intensidade e elevou, sem ser consciente disso, os quadris. William jogou o braço sobre estes para que não pudessem elevar-se mais. Voltou a introduzir a cabeça entre as pernas e a beijou com a mesma magnitude e paixão que quando beijava sua boca. Primeiro suave, para que se fosse acostumando às suas carícias e logo... intenso, demolidor!
? William! William! ? Exclamou a jovem entre soluços. ? OH, Meu Deus!
Ouvi-la gemer seu nome foi mais formoso que escutá-la tocar o piano. Resultou-lhe tão prazeiroso que notou como começava a molhar seu próprio calção. Levou-o a um estado tão supremo de desejo que um rastro de gotas brotava de seu sexo. Ele estava preparado para possuí-la, mas... e ela?
? Beatrice, minha amada ? disse ao mesmo tempo em que subia sobre ela. ? Quer que eu continue? Quer que eu entre em ti?
A jovem conseguiu levantar as pestanas para contemplá-lo. Apesar de suas bochechas estarem cobertas com a espessa barba, podia ver um intenso rubor. Estendeu as mãos para o rosto dele e o dirigiu para sua boca lhe deixando bem claro que consentia o passo seguinte.
Sem mais o que perguntar, o homem deixou que o beijasse o tempo que necessitasse. Depois que seus lábios se afastaram, ajoelhou-se em frente aos seus quadris, levou-se a mão para a calça e liberou seu sexo. Devagar, lento e percebendo o ardor de seu corpo, William foi penetrando-a até que ambos os quadris se roçaram. Esticou a mão para a cintura da moça e começou a realizar suaves vaivéns enquanto observava o rosto da jovem. Segundo a intensidade de seus gemidos, invadia-a com mais força, com mais vigor.
? Meu amor! ? Gritou ao sentir os primeiros espamos.
? William! ? Respondeu ela com gemidos ao sentir como seu corpo se convulsionava descontroladamente. ? OH, William!
Um intenso alarido brotou da boca do homem quando chegou ao clímax apesar de ser consciente de que poderiam lhe escutar os criados, mas não queria interromper o gozo que lhe provocou chegar ao orgasmo com a mulher que amava. Não podia fazer desaparecer essas convulsões que agitavam seu corpo com tanta intensidade que caiu sobre ela. Tentou recompor-se enquanto se colocava ao seu lado. Dirigiu sua palma para a bochecha e sorriu feliz ao perceber o fogo que desprendia.
? Amo-te, Beatrice. Amo-te e te amarei sempre ? estendeu sua mão para a cintura e a aproximou mais dele.
? Por que me dá a sensação de que se despede de mim? ? Disse sem olhá-lo.
? Não me despeço, meu amor. Jamais poderia me afastar de ti, ? aproximou sua boca do cabelo da jovem e o beijou ? mas é certo que tenho que partir amanhã para Londres.
? Sabia! ? Exclamou ao mesmo tempo em que se separava do duque, girou-se para ele e apoiou os joelhos no colchão.
? Beatrice, por favor – suplicou-lhe. ? Não vá.
? Por que, William, por que deve partir amanhã? O que lhe disseram Roger e Federith esta tarde para que tenha feito isso? ? Estendeu a mão e fez um semicírculo para assinalar o destroço que havia sobre o chão.
? Trata-se da minha mãe ? disse após meditar com rapidez que desculpa lhe oferecer para que não saísse da habitação correndo.
? A duquesa? ? Elevou as sobrancelhas e retornou devagar ao seu lado para que voltasse a abraçá-la.
? Ela decidiu ignorar certas decisões de meu pai e quer despojar meu irmão de uma propriedade que lhe pertence. ? William apertou a mandíbula e lhe pediu, mentalmente, desculpa por sua mentira.
? Por quê? Por que quereria uma mãe magoar seu filho?
? Porque Lausson se casou com uma criada e ela nunca esteve de acordo com esse enlace. – Beijou-a de novo no cabelo e inspirou seu aroma a sabão. Precisava levar consigo essa lembrança, ela ao seu lado, mostrando sua nudez sem pudor e ele abraçando-a com toda a intensidade que podia.
? E você, o que fará? ? Um suave bocejo brotou atrás da pergunta.
? Pôr ordem e fazer com que a normalidade se restabeleça.
? Demorará em retornar? – Aconchegou tudo o que pôde seu corpo com o do duque.
? Uma semana, no máximo dez dias. ? Segurou o lençol e a cobriu. ? Esperar-me-á, não é? ? Perguntou com certa inquietação.
? Não me moverei daqui até que retorne, prometo-lhe ? afirmou isso sem titubear.
? Beatrice... ? murmurou colocando seu queixo sobre a cabeça desta.
? O que? ? Voltou a bocejar.
? Amo-te.
Não tinha conciliado o sonho. Era incapaz de fazê-lo depois do acontecido. Não só a tinha feito dele, mas sim, preso da paixão, não se preocupou em tomar medidas pertinentes para não a deixar grávida. Amaldiçoou-se uma e outra vez por tal temeridade. Agora, se ela estivesse grávida, não só perderia o prazer de viver o resto de seus anos junto à mulher que amava, mas sim tampouco poderia desfrutar de cuidar e proteger seu filho. Em silêncio saiu da cama, caminhou para a saída e, antes que o ajudante de câmara aparecesse, ele o recebeu no corredor.
? Milord, não deseja que o atenda em seus aposentos? ? Perguntou assombrado.
? Não. Prefiro me vestir na habitação contigua. ? Caminhou devagar para ela.
Aproximadamente uma hora depois, a carruagem de Federith parava aos pés das escadas de Haddon Hall. Brandon abriu a porta e deixou que o duque subisse com orgulho.
? Bonjour... ? disse Roger sonolento. Reclinou-se no assento direito e estendia suas longas pernas para a esquerda, deixando um pequeno espaço que era ocupado por Federith.
? Bom dia – saudou-lhe Cooper. ? Segue querendo enfrentar a morte por ela?
? Jamais estive mais seguro de oferecer minha vida por alguém ? asseverou.
Federith deu uns golpezinhos na parede da carruagem e o cocheiro tocou os cavalos.
XXV
Os raios do sol atravessavam os cristais sem nada que o impedisse. À Beatrice, depois de sentir um estranho calor nas bochechas e despertar, sentiu falta de que William não tivesse deslocado as cortinas. Acaso não sentia o mesmo pudor que ela ao exibir seu corpo nu pela habitação? A pergunta à fez sorrir e percebeu que sua parte íntima começava a palpitar como na noite anterior. Ruborizou-se devido ao desejo incontrolável que despertou ao recordar os beijos, as carícias e os vaivéns do homem ao fazê-la sua.
Com urgência apartou os lençóis e, ajoelhada sobre o colchão, foi procurando com o olhar onde estaria sua camisola.
? OH! ? Exclamou entre risadas ao achá-la detrás da poltrona.
Sem parar de rir ao recordar a cena em que ela se despojou do objeto, aproximou-se dela, vestiu-se e se manteve de pé observando ao seu redor. Agora, com a claridade do dia, podia apreciar melhor o destroço que tinha provocado William. Perguntou-se por que a duquesa castigava seu filho por haver se casado com uma criada. Podia entender que uma mãe desejasse o melhor para seu filho, mas e se nesse matrimônio achava a felicidade? Por que não queria deixá-lo viver em paz? De repente, ao permanecer de pé, algo úmido percorreu o interior de suas pernas e uma vergonha muito grande fez com que sua pele avermelhasse.
? Meu Deus! ? Gritou depois de colocar a mão sobre a boca para que não se escutasse. Enjoada pelo pensamento que lhe rondou pela cabeça, sentou-se na poltrona. ? Não pode ser... ? murmurou. ? Ele terá sabido como controlar...
Para confirmar o que começava a suspeitar, levantou-se devagar a camisola. Suas mãos lhe tremiam, o coração tinha deixado de pulsar e segurou a respiração.
«Não!», pensou aterrorizada. Estava a ponto de ficar a chorar quando escutou uns passos pelo corredor. Sobressaltada, levantou-se da poltrona e se escondeu atrás dela. Não podiam descobri-la no quarto do duque. Ninguém em Haddon Hall podia chegar a imaginar o que tinha acontecido entre ela e ele na noite anterior.
Quando o silêncio voltou a reinar, levantou-se, caminhou para a porta, abriu-a e, depois de comprovar que não havia ninguém pelos arredores, correu para seu dormitório. Uma vez dentro, fechou devagar e se lançou à cama para chorar desconsolada.
? Quer que suba para despertá-la? ? Perguntou Lorinne a Hanna.
Depois dos afazeres diários, decidiram sentar-se ao redor da pequena mesa da cozinha para descansar, mas a criada estava preocupada. Tinha aparecido bem cedo no dormitório da moça e ela não estava. Quando lhe informou do desaparecimento à senhora Stone, a mulher lhe explicou, com uma mentira, que durante a noite a jovem se levantou sonâmbula e, como era perigoso despertá-la, deixaram-na pernoitar na habitação onde se deitou.
? Precisa descansar. Podemos deixá-la dormir um momento mais ? respondeu a mulher levando dois copos de suco para a mesa. ? Embora saltasse o almoço, poderá jantar tudo o que anseie.
? Pobrezinha... ? murmurou Lorinne olhando o copo que a anciã colocou em frente a ela. ? De todos os passados possíveis que imaginei, jamais pensei nesse.
? Eu tampouco... ? suspirou. Seus olhos se encheram de lágrimas. Tentou faze-las desaparecer piscando várias vezes, mas foi em vão.
? Espero que nosso senhor coloque em seu lugar àquele mal nascido! ? Exclamou antes de beber um sorvo do suco. ? A justiça deve cair sobre esse violador!
? Crê de verdade que sua Excelência deixará nas mãos da justiça o acontecido com a senhorita Lowell? ? Perguntou a anciã abaixando a cabeça.
? O que outra coisa pode fazer? Imagino que falará com os pais da senhorita, explicar-lhes-á o ocorrido e farão as pesquisas pertinentes até ver entre as grades o maldito conde, não?
? O duque não aceitará isso ? afirmou a anciã com pesar.
? Então, o que fará? ? Inquiriu atemorizada.
? O único que pode fazer um homem apaixonado ? assegurou.
? Santo céu! Não será capaz de...! Morrerá! ? Exclamou a donzela após levar uma mão para seu peito.
Beatrice abriu seus olhos quando um estranho rugido brotou de seu estômago. Tinha muita fome porque não tinha comido nada na noite da festa, mas, ante a possibilidade de estar grávida, não desejava sair da habitação. Acreditava que se permanecesse ali o tempo suficiente, terminaria despertando de um estranho sonho. Apesar de seus intentos por ficar no dormitório, os rugidos se fizeram tão intensos e constantes que se deu por vencida. Levantou-se da cama, retirou as cortinas para apreciar o dia e ficou atônita quando percebeu que o sol estava se escondendo. Que hora seria? Quanto tinha dormido?
Desconcertada e ao mesmo tempo inquieta, dirigiu-se para o vestidor e agarrou o único vestido que ficava sem pôr. Lorinne não gostava da cor dourada, por isso não o escolheu com antecedência, entretanto, pareceu-lhe formoso. As dobras na saia terminavam com uma elaborada renda cinzenta, o torso era tão suave e firme que não necessitava espartilho para aumentar seu seio, as mangas cobriam o braço por completo e ao final, justo nas costuras dos pulsos, a mesma renda o embelezava. Depois de vestir-se, olhou-se no espelho, ela mesma se recolheu o cabelo em um tenso coque. Suspirou para encontrar serenidade e abandonou a sala.
Resultou-lhe estranho não ver William ao final das escadas. Sua mente lhe fez pensar que estava ali, com suas mãos nas costas, olhando para a entrada sem ser consciente de sua presença. Ela recordava a grandiosidade de seu porte, a elegante figura, o olhar e o sorriso que lhe oferecia quando a observava aproximar-se. Teve que respirar com profundidade para não se debilitar de novo. Seus sentimentos para com o duque tinham mudado muito. Já não albergava ódio ou rejeição para com ele. Agora o necessitava ao seu lado mais que nunca.
Com pesar foi descendo as escadas muito devagar. Justo no momento que chegou ao hall, escutou uma conversação entre mulheres. Eram Hanna e Lorinne, ambas se encontravam na cozinha. Sem perder mais tempo, acelerou seu passo e se dirigiu para elas.
? Moça! ? Exclamou Hanna ao ver Beatrice parada na porta. Estava pálida, abatida. ? Vêem, sente-se. ? Caminhou para ela e a abraçou com força. ? Tem que estar morta de fome, não é?
? Sim, senhora Stone. Agora mesmo comeria uma vaca inteira ? disse com um leve sorriso.
? Pois vaca não tenho preparada, mas com certeza um bom caldo e um bife com verduras lhe saciarão o apetite. ? Conduziu-a até a cadeira, apartou-a e deixou que se sentasse.
? Necessita que lhe ajude em algo? ? Perguntou Lorinne sem poder fazer desaparecer o espanto de seu rosto.
? Possivelmente mais tarde, Lorinne. Virá-me bem um momento de companhia ? respondeu com suavidade.
Antes de poder terminar a frase, Hanna lhe tinha colocado sobre a mesa a terrina de sopa, os talheres e um copo de vinho. Sem ser capaz de continuar falando, Beatrice tomou com rapidez o caldo quente. Este começou a lhe esquentar o estômago e inclusive todo o corpo. Continuou com o segundo prato e não começou a articular palavra até que tomou o vinho.
? Sabem, não é? ? Quis saber se elas tinham descoberto onde dormiu na noite passada.
? Claro, aqui nada se oculta ? respondeu Lorinne sentando-se ao seu lado.
? Mas o duque resolverá logo o tema com a duquesa e retornará ao seu lar ? interveio a anciã antes que a conversação tomasse outro tema.
? Não entendo como uma mãe pode fazer tanto dano ? assinalou Beatrice com uma aparente aflição. Entretanto, em seu interior a alegria alcançava o nível mais alto. Ninguém tinha descoberto seu segredo.
? No fundo não é má ? respondeu Hanna. ? É uma mulher com princípios sociais muito acentuados. Os pais dela foram bastante estritos em sua educação e isso não se elimina com facilidade.
A donzela olhava a uma e à outra sem entender do que falavam. Todos os criados sabiam a razão pela qual o duque partira a Londres e pensou que ela, ao ser o principal motivo, saberia a verdade, mas conforme estava descobrindo, o amo a seguia protegendo apesar de estar longe.
? Ahh..., mas querer castigar seu filho dessa maneira ? comentou com pena.
? Lausson tem caráter e saberá como atuar ? afirmou a anciã.
? E se pode solucionar ele mesmo o problema, por que requer a presença do duque? ? Arqueou as sobrancelhas e cravou os olhos na mulher.
? Ele ostenta o título e deve colocar ordem ? respondeu Hanna retirando os pratos vazios. ? E você deveria descansar um pouco mais. Vi fantasmas com mais cor!
Beatrice assentiu devagar. Levantou-se de seu assento e caminhou para a porta. Lorinne fazia o mesmo. Acreditando que a necessitaria caminhou atrás dela.
? Vou descansar na biblioteca. Possivelmente leia um pouco. Está o fogo aceso?
? Sim. Faz umas horas que um dos criados o acendeu – informou-lhe a senhora Stone sem apartar a vista da jovem.
? Não precisa me acompanhe, Lorinne. Se não se importar, desejo ficar sozinha ? disse antes de abrir a porta e dirigir-se para a biblioteca.
O aroma de William se estendia pela pequena sala. Podia fechar os olhos e sentir sua presença sem dificuldade. Avançou devagar para a poltrona no qual estava acostumado a sentar-se e a acariciou com delicadeza.
«Por quê? Por que não posso te apartar de meus pensamentos? Por que sinto falta de sua presença?», perguntava-se sem cessar enquanto se afastava da poltrona.
Perambulou pelo interior durante um momento. Perguntava-se uma e outra vez a razão pela qual tinha mudado seus planos de fuga. Sem saber a causa, levou suas mãos para o ventre e o apalpou com suavidade. Se de verdade estivesse grávida, se de verdade esperasse um filho do duque, ele decidiria casar-se com ela e cedo ou tarde descobriria a verdade.
«Mas se parto e tenho seu filho em minhas vísceras, que vida poderei lhe oferecer?».
Desconsolada, fez com que seus passos a conduzissem para a escrivaninha e quase rompeu a chorar quando observou o livro preferido do duque. Esticou a mão para ele e deixou que suas gemas acariciassem a capa. «Se quer saber o que esconde o livro, leia-o. Talvez te faça compreender um pouco mais a escuridão que guardo em meu interior». Recordou com exatidão as palavras que William mencionou ao lhe haver perguntado sobre a trama que ocultavam as folhas. Queria saber a verdade do homem que amava? Queria compreendê-lo? A resposta foi um enorme sim.
Sorridente e com um estímulo para esperar a ansiada volta do duque, Beatrice agarrou o livro com tanto ímpeto que, assombrada, descobriu que algo caía ao chão e se escondia sob a mesa. Abaixou-se para pegá-lo e quando leu seu nome no envelope, as mãos lhe tremeram tanto que o papel não parava de sacudir-se.
Com estupidez, olhou o reverso e ficou gelada ao ver o selo do duque. Agitada, caminhou para a poltrona, sentou-se, apoiou a carta sobre seus joelhos e começou a abri-la. Em seu interior encontrou duas folhas.
“Para minha querida Beatrice, a mulher que amo com todo meu coração.
Se estiver lendo esta missiva é porque, muito ao meu pesar, não consegui finalizar a tarefa que me levou até Londres, mas não se sinta culpada, era meu dever e como tal, terei morrido feliz. Quero que saiba que te amo e que o breve tempo que passamos juntos desfrutei com intensidade. Jamais pensei que uma mulher me roubaria o coração, mas você o fez. Acredito que o conseguiu no dia em que abri os olhos e encontrei-a ao meu lado, cuidando-me, olhando minha fealdade com preocupação. Nesse momento, uma estranha emoção que não soube definir até que permaneceu ao meu lado brotou sem que eu pudesse evitá-lo. Não sei se o sentimento é mútuo. Tenho a esperança de que seja assim. Comecei a acreditar quando te dava o primeiro beijo e não me rejeitou. Quando te olhava e não apartava seus olhos verdes dos meus. Quando seu corpo se debilitava entre meus braços. Se minhas divagações não forem corretas, peço-te mil desculpas.
Como meu amor é real, decidi fazer justiça e arrumar o passado. Não sinta piedade por mim, eu não a tenho. Não se pode ter tal caridade a um ser desprezível, uma pessoa que não resolveu um tema tão horrendo por ser vaidoso. Mas retificar é de sábios e eu, embora não o seja, quero desculpar meu engano. Recordará a conversação que mantive com Roger e Federith. Bem, eles sabiam quem você era. Perdoe-me por não me haver dado conta de sua verdadeira identidade, apenas me fixei em ti. Agora me arrependo disso. Possivelmente, se o tivesse feito, nada daquilo te teria acontecido.
Não chore, meu amor. Sei que o está fazendo e me entristece saber que suas lágrimas percorrem seu belo rosto por minha culpa. Quero que saiba que não parti de seu lado porque não desejo permanecer contigo o resto da minha vida. Não é assim. Afastei-me de ti porque quero fazer aquele bastardo pagar todo o dano que te fez. Não. Não pude esquecer isso e viver como se nada daquilo tivesse acontecido. Ele te desonrou, humilhou-te e te fez abandonar seu lar para viver as penúrias às quais foi exposta.
Tenho que restabelecer sua honra. Tenho que recuperar seu posto na sociedade. E é meu dever fazer justiça à mulher que amo. Por último, quero que saiba, que embora não volte a te beijar nem te abraçar, estarei ao seu lado protegendo-a como tantas vezes te jurei, quando jazia ferida gravemente em meu quarto. Por isso, tem outra carta. É uma réplica de meu próprio punho e letra. Duas estão em posse dos únicos amigos que tive e a outra a tem o senhor Gibbs, meu administrador. Quero te demonstrar o muito que te quero e quão afortunado fui ao seu lado. Desejo que saiba, que embora tenha morrido no duelo, tê-lo-ei feito feliz porque meus últimos pensamentos serão para ti.
Amo-te e te amarei sempre.
William.”
A carta escorregou de suas mãos sem que ela percebesse enquanto sua mente se paralisava, até o ponto de não ser capaz de pensar com clareza ou emitir um gemido. Sentia as lágrimas lhe queimar a pele e seu coração romper-se como o cristal e o único que atinou a pensar era que elas deviam sabê-lo. Não havia nada em Haddon Hall que elas não soubessem.
? Senhora Stone! Senhora Stone! ? Gritou com força. Levantou-se de seu assento, inclinou-se para segurar a carta e não teve forças para levantar-se de novo. ? Senhora Stone!
? O que acontece? ? Perguntou a anciã depois de abrir a porta com tanta impetuosidade que golpeou a parede.
? Sabia ? disse apertando os dentes e olhando ao chão. ? Todos sabiam!
? Minha querida menina... ? murmurou sem mover-se da entrada. Segurou-se as mãos e controlou o desejo de correr para ela para abraçá-la.
? Todos sabiam! Todos! ? Gritou com voz rouca. ? E ninguém foi capaz de freá-lo ? chorou com ferocidade. ? Ninguém!
? Ninguém pode ir contra a vontade de seu senhor... ? sussurrou a mulher em meio ao seu pranto.
? Maldita seja a honra! Maldita seja a dignidade! Acaso não entendem que ele morrerá? ? Clamou tão forte que notou como se danificavam suas cordas vocais. ? Morrerá!
? Não se pode fazer nada... ? respondeu a anciã.
? Não se pode fazer nada?! ? Repetiu com tanta ira que seu corpo se sacudiu. ? Se Deus é misericordioso, estarei gerando um filho do duque e você me diz que... não se pode fazer nada para impedir que o matem!
? OH, santo Deus! ? Exclamou Hanna levando as mãos para o rosto.
? É claro que se pode tentar fazer algo. ? A voz serena de Lorinne surgiu atrás da anciã. ? Sua Excelência partiu na carruagem do senhor Cooper e deixou a sua nas cavalariças. Mathias poderia prepará-lo e nos conduzir até Londres ? sugeriu a criada.
? Bobagens! ? Gritou Hanna. ? Como pretende que a senhorita Lowell parta daqui?
? Preparem ? ordenou Beatrice. Aquela opção lhe pareceu à única alternativa possível.
? Senhorita... ? murmurou Hanna.
? Diga ao Mathias que partiremos nesta mesma noite. Se não descansarmos, poderemos chegar a Londres a tempo para impedir esta loucura.
? É claro! ? Respondeu Lorinne antes de pôr-se a correr.
? É uma loucura, pequena ? indicou a anciã imóvel.
? O que faria você para salvar a vida do homem que ama e possível pai de seu filho?
Sem nada mais que acrescentar, Beatrice saiu da biblioteca e se dirigiu ao seu dormitório. Não tinha muito que preparar, mas a intimidade de seu quarto lhe viria bem para repensar sobre tudo o que tinha acontecido.
XXVI
? Que horas são? ? William apoiou a cabeça nas paredes almofadadas da carruagem enquanto observava pela janela como uma tênue chuva caía sem cessar. Tinha chegado a Londres, à cidade sem sol, ao ambiente úmido, à frieza que desprendiam as edificações.
? É a hora do chá ? respondeu Federith depois de olhar seu relógio de bolso.
? Qual é seu plano? Percorrer as ruas em sua busca? ? Perguntou Roger, que tinha se acostumado a estirar as pernas sobre o assento de frente.
? Primeiro tenho o dever de falar com seus pais. Precisam saber que sua filha ainda vive e que durante todo este tempo esteve sob meu cuidado ? esclareceu com serenidade.
? E logo lhes pedirá perdão? Ou lhes informará que está apaixonado por sua filha e que morrerá por esse amor? ? Questionou Federith zangado.
? O barão deve conhecer a verdade ? confirmou William com o cenho franzido.
? Mon dieu! C’est très romantique!(8) Um homem que luta pelo amor de sua futura esposa pondo sua própria vida em perigo. Se os barões não lhe derem seu consentimento para se casar com ela, perderam o julgamento ? assegurou Roger com aparente diversão. Baixou os pés, olhou ao duque de lado e bateu várias vezes a coxa esquerda para acalmar a dor que tentava ocultar.
? Quero que me faça um favor ? expôs o duque olhando a quem tocava sua perna. ? Deve averiguar onde podemos encontrar ao Rabbitwood.
? Onde crê que estará um homem inocente e respeitoso como ele numa sexta-feira à tarde? ? Argumentou ao mesmo tempo em que arqueava as sobrancelhas. Ao ver que William estava tão absorto em seus pensamentos que não lhe tinha entendido exclamou: ? No clube! Que melhor lugar para desfrutar de um bom jogo, bom uísque e a aparição de maridos endemoninhados?
? Averigua-o ? disse sem prestar atenção às zombarias de Roger. ? Se estiver certo, depois da minha visita aos Montblanc, dirigirei-me para lá e lhe reclamarei meu duelo ? indicou antes de olhar de novo as ruas e refletir o que estaria fazendo Beatrice naqueles momentos.
Embora a senhora Stone lhe prometesse que a teria muito entretida lhe ensinando a cozinhar, não estava muito seguro disso. Suspeitava que a jovem em qualquer momento abandonasse aqueles trabalhos e inventaria outras novas. Desenhou um pequeno sorriso ao recordar a pose que punha quando se zangava, aquelas dobras divertidas que lhe apareciam na testa, àqueles lábios apertados como se fosse uma menina travessa e sem esquecer suas mãos na cintura para acentuar seu aborrecimento. Sentia falta dela. Apesar de ter passado tão só uns dias afastado dela, sentia saudades mais do que supunha. Imaginou-a de novo em sua cama e disse que jamais tinha visto um anjo dormir com tanta tranquilidade.
Uma imensa angústia lhe percorreu o peito. Não voltaria a vê-la. Não voltaria a beijar aqueles lábios apertados nem sentiria sua pele ardente depois de ser amada. Mas deveria fazer o correto. Tinha que liberá-la de seu passado e deixá-la retornar à vida que abandonou.
? Não pensou em deixar nas mãos da justiça o incidente?
A intervenção de Federith rompeu o estranho silêncio que se produziu entre os três.
Ninguém até aquele momento se atreveu a lhe oferecer essa alternativa, mas para Cooper, William era seu irmão e por isso queria que não pusesse em perigo sua vida. No passado salvou-se estando em plenas faculdades, mas agora, com uma mão imprestável e sem haver tocado em uma arma desde a última vez, suas possibilidades de sobreviver eram escassas.
? Justiça? ? Inquiriu o duque apartando o olhar da janela e dirigindo-a ao seu amigo. ? Diz-o a sério? Acaso não recorda minha imparcialidade quando o barão veio à minha casa rogando por esclarecer o caso de sua filha?
? Calma, cavalheiros ? interrompeu Roger para tranquilizar seus amigos. Não queria que a alteração que viviam nesses instantes produzisse uma disputa tendo em conta que William estava a ponto de enfrentar-se. ? Federith, acaso não ficou clara sua decisão antes de partir? William é um homem apaixonado e é lógico que queira resolver o tema com venerabilidade.
? Está louco? Por acaso essa viagem à França perturbou sua mente? ? Respondeu o aludido. ? Pode morrer! Entende-me? Morrer!
? E morrerei feliz sabendo que cumpri com meu dever ? pronunciou William antes de inundar-se em outro comprido silêncio.
Quando escutaram a voz do cocheiro fazendo parar aos cavalos, os três se olharam e, sem dizer nenhuma palavra, assentiram. O primeiro em sair foi Federith. Uma vez que pisou no chão se arrumou a capa, colocou-se o chapéu e deu uns passos adiante para que os outros saíssem com facilidade. Seguiu-lhe William, que foi atendido por Brandon antes que seus pés abandonassem a pequena escada metalizada. Finalmente apareceu Roger. Sua atitude despreocupada chamou a atenção de seus amigos. Ao descobrir o olhar que ambos lhe ofereciam sorriu e disse:
? Se me desculparem, tenho que ir atrás de um vilão. Conforme dizem, os que são da mesma índole se encontram com facilidade.
? Não quis expressar isso ao te pedir que procurasse... ? começou a dizer William.
? Não o disse você, digo-o eu. Enfim, ver-nos-emo dentro de uma hora. Se quando terminarem não me acharem no interior da carruagem, imagina onde me encontrarão. ? Estendeu sua capa pelos ombros, colocou-se o chapéu e se dirigiu para o clube de cavalheiros Reform.
Com o mesmo ritmo ao andar, os dois amigos caminharam para a porta da residência do barão Montblanc. Era uma pequena casa de duas plantas com um jardim ao seu redor. A William pareceu um lar muito singelo para um barão, mas ao momento recordou que Federith, na noite antes do duelo e na conversação que mantiveram sobre Beatrice, explicou que a família Lowell mal passava dois meses ao ano nesse lugar. Então, justo nesse momento sopesou algo que não tinha tido em conta durante a viagem. Seria a época em que eles desfrutavam de sua vida em Londres? Rezando para que fosse assim e que nessa mesma noite terminasse seu calvário, adiantou-se a Federith, esticou a mão para a aldrava de bronze e a golpeou três vezes. Imediatamente, a porta se abriu e lhes recebeu um criado mais idoso que Brandon.
? Boa tarde, cavalheiros – saudou-lhes. ? O que desejam?
? Boa tarde, sou o duque de Rutland e o cavalheiro que me acompanha é lorde Cooper. Pode perguntar ao barão se é tão amável de nos conceder uma entrevista?
? Sua Excelência... ? disse o criado assombrado. Fez uma reverência e lhes cedeu o passo para o interior da moradia. ? Se esperarem uns instantes, informarei ao barão.
? É claro. ? William ofereceu o chapéu e a capa a Brandon enquanto observava com curiosidade o lugar onde tinha vivido sua amada Beatrice. Estava a ponto de comentar com Federith a calidez que desprendia um lugar tão singelo quando uma porta se abriu e apareceu o mordomo.
? O barão e a baronesa lhes receberão na saleta – informou-lhes.
Federith tirou a capa e o chapéu para oferecer-lhe ao criado. Logo colocou sua mão esquerda sobre o ombro de William e o apertou.
? Vamos...
Com passo firme ambos entraram na habitação. Igual ao saguão, a sala era um lugar com móveis e equipamento muito singelos. Mas William não se centrou no mobiliário, mas sim na atitude carinhosa com a qual o casal se olhou antes que ele desse dois passos para o interior. Esse era o olhar que queria ver o resto de sua vida no rosto de Beatrice, uma mescla de amor e ternura.
? Boa tarde. Minha esposa e eu estamos agradecidos por sua presença em nosso humilde lar ? esclareceu. A baronesa se levantou da poltrona e fez uma pequena reverência, o barão se aproximou de ambos e lhes estendeu a mão. ? Se forem tão amáveis de tomar assento.
? Se não lhe importar, ficarei de pé ? indicou William com voz serena. Olhou de esguelha à baronesa e achou uma grande semelhança com sua amada Beatrice. Ambas as mulheres tinham o cabelo escuro, uma figura pequena e os olhos mais verdes que jamais tinha contemplado.
? Como desejar ? respondeu inquieto o barão.
? Dispunhamo-nos a tomar o chá, querem nos acompanhar? ? Perguntou Elisabeth com nervosismo.
A presença do homem que tinha rejeitado de forma categórica a inocência de sua filha não lhe resultava grata, mas seu marido a chamou à ordem quando se negou a recebê-lo. Assim em quão único pensava era que motivo lhe tinha conduzido até eles e quando partiria.
? Não, obrigado ? respondeu Federith ao ver que seu amigo não respondia.
? Bom, milord, a que se deve sua visita? ? Perguntou o senhor Lowell.
? Em primeiro lugar, quero lhes pedir perdão por não ter atendido seus rogos no caso de sua filha ? começou a explicar após respirar profundamente. ? Comportei-me como um vilão, um ser cruel, um miserável...
? Obrigada por suas palavras, ? interrompeu-lhe a baronesa ? mas sua desculpa chega um ano tarde.
? Elisabeth! ? Recriminou-lhe o barão.
? Tem você toda a razão, mas lhe rogo que me escute ? prosseguiu o duque enquanto confirmava que, não só tinha herdado seu físico, mas sim também seu temperamento. ? A senhorita Lowell está viva e durante este tempo viveu sob meus cuidados.
? Como diz? ? O barão, desconcertado ao escutar as palavras sobre sua querida filha, estendeu a mão para sua mulher. Ela se levantou com rapidez, segurou-lhe para que não caísse e o conduziu até a poltrona.
? Faz aproximadamente quatro meses tive um grave acidente em minha propriedade de Derbyshire. Uma jovem que se fazia chamar Beatrice Brown foi quem me salvou a vida. A moça vivia no refúgio de caça que possuo junto ao rio Wye e como pagamento à sua piedade, rogou-me que a deixasse viver ali. Não lhe neguei isso e mantive minha promessa até que foi atacada por uma manada de lobos. Depois de encontrá-la à beira da morte, decidi levá-la para minha casa até que sarasse. Com o tempo, e após conhecê-la, meus sentimentos para com ela foram... mudando. ? Tentou manter aquela calma que tinha tido até o momento. Entretanto, agora vinha a parte mais dura para ele, mostrar suas emoções aos outros.
? Está nos dizendo que manteve sob seu teto a nossa filha e que não foi capaz de nos informar até agora? ? Elevou sua voz a baronesa.
? Ele não sabia quem era ela, senhora ? interveio Federith. ? O duque não a reconheceu e não tinha motivos para duvidar sobre sua identidade. Fui eu quem lhe informou do verdadeiro nome da jovem.
? Onde está minha filha? ? Perguntou o barão vigorosamente, segurou a mão de sua esposa e, graças à sua ajuda, pôde levantar-se de novo.
? Em Haddon Hall ? respondeu William.
? O que faz você aqui e minha filha lá? ? Grunhiu dando uns passos para o duque.
? Não queria que ela sofresse e acreditei que devia mantê-la à margem disto. Além disso, Beatrice não sabe o verdadeiro motivo pelo qual voltei para Londres.
? E qual é esse motivo, milord? ? Quis saber a baronesa sentindo um nó na garganta. Que o duque se referisse à sua filha com seu nome de batismo e que dissesse que seus sentimentos para ela tinham mudado, faziam-na imaginar-se algo de tudo impensável.
? Recuperar a honra de Beatrice ? disse com firmeza William.
? Por que quer fazer tal coisa? ? Elisabeth o olhou sem piscar. Ela acreditava saber a resposta, mas desejava escutar de sua boca. Precisava ouvir como a dor que lhes provocou no passado, tanto a ela como a seu marido, agora açoitava seu frio coração.
? Porque a amo ? respondeu sem duvidá-lo.
? O que pretende fazer? ? Depois de escutar as palavras do duque, o barão relaxou seu corpo, caminhou para sua esposa e entrelaçou suas mãos com as dela.
? Esta noite desafiarei ao conde de Rabbitwood a um duelo à morte ? indicou enquanto apertava com força a mandíbula.
? Acredita que aceitará? ? Prosseguiu falando o barão. ? Acredita que aquele canalha consentirá em pôr em risco sua vida para demonstrar que sua história é certa?
? É claro. Apesar de minhas cicatrizes sigo sendo o duque de Rutland e se Rabitwood não deseja ficar como o covarde que em realidade é, não poderá negar-se.
? E foi capaz de olhar a minha filha aos olhos e não lhe dizer a verdade? ? Inquiriu zangada Elisabeth. Se estavesse certa, e poucas vezes se equivocava, esse homem não só amava a sua filha, mas sim ela também amava a ele.
? Foi o mais correto ? sussurrou William olhando ao chão. ? Não desejo... não posso permitir que...
? Porque também lhe ama, não é? ? Disse Elisabeth após soltar com força o ar dos pulmões.
? Quando pretende que se celebre? ? Interveio o senhor Lowell ao estar seguro que, se sua mulher seguia falando, ao final seria ela quem apertaria o gatilho.
? Amanhã à alvorada, em Hyde Park. ? William olhou ao barão mostrando mais segurança em si mesmo que nunca.
? Bem, se aquele homem aceitar seu desafio, faça-me saber. Ali estarei. Agora, se nos desculpar, minha mulher e eu precisamos ficar sozinhos ? comentou o barão com serenidade.
? É claro. Boas...
? Quero que me escute antes de sair desta habitação ? falou Elizabeth apesar dos dramalhões de seu marido. ? Pergunte-se o que deseja uma mulher e não o que deseja um homem. Talvez, se lhe houvesse dito a verdade, teria descoberto que não há nada mais importante como ter ao seu lado a pessoa que ama.
? Elisabeth!
? Acredito, baronesa, que minha eleição foi à correta ? respondeu William. Fez uma pequena inclinação com a cabeça, golpeou suas botas e partiu seguido por Federith.
Nenhum dos dois fez alusão às palavras da senhora Lowell, embora ambos não cessassem de meditar sobre isso. Quando abandonaram a residência Montblanc, William olhou a ambos os lados da rua procurando Roger, este não se encontrava pelos arredores nem tampouco onde lhes havia dito. Em silêncio subiram à carruagem e o cocheiro agitou os cavalos.
O clube não tinha mudado nada em sua ausência. Seguiam as mesmas mesas, as mesmas cadeiras e inclusive os mesmos homens jogando cartas e bebendo o ansiado licor. Federith lhe tinha advertido que sua presença naquele lugar despertaria certo interesse, mas a William já não importava o que as pessoas murmurassem atrás de seu passo. Tinha algo que fazer e queria terminá-lo o quanto antes.
Ignorou as saudações daqueles que antes do duelo o idolatravam e depois lhe desprezaram. Caminhou com integridade pelo corredor central até parar-se em frente à porta em que deveria encontrar-se com seu oponente. Sua ira era desmensurada, seu coração pulsava sem freio e lhe tremia o corpo. Agora entendia por que os doídos maridos que o desafiaram se alteravam ante sua presença, enfrentar-se com a pessoa que fere sua alma sem escrúpulos não proporciona tranquilidade alguma.
Com decisão abriu a porta e acessou ao interior. Mal podia ver com claridade, já que a fumaça cobria a habitação, mas quando seus olhos se acostumaram à escuridão, percebeu cinco figuras ao redor da mesa. Roger ao lhe ver, sorriu. Ele tirara o casaco e fumava um dos charutos que tanto gostava. Tentando manter a calma, William se aproximou da mesa.
? Veio bem a tempo, William. O conde de Rabbitwood estava a ponto de me contar aquela história que narra sem parar sobre a ardilosa filha do barão Montblanc, não é assim? ? Olhou ao conde e desenhou um grande sorriso.
? Rutland! ? Exclamou com alegria o conde quando descobriu a figura do duque ao seu lado. ? Quanto tempo! ? Levantou-se para estender sua mão, mas a apartou com rapidez ao sentir um estranho ódio para sua pessoa.
? É um maldito bastardo, um descarado e um violador ? grunhiu William sem mover-se.
? O que está dizendo? ? Perguntou entre risadas. ? Tanto lhe afetou o disparo que não me recorda? ? Perguntou dirigindo-se ao Roger, que seguia sentado na cadeira com atitude aparentemente serena.
? Eu o desafio! ? Clamou William atirando a luva sobre a mesa.
? Pela honra de quem? ? Continuou jocoso.
? Pela honra da senhorita Lowell, filha do barão Montblanc ? gritou com força para que todos os presentes o escutassem.
? Por uma morta? Quer morrer por alguém que já não respira? ? Sua diversão era tal que não podia deixar de mostrar um enorme sorriso. ? Meu Deus! ? Exclamou em tom divertido. ? Que pavor! Um duelo com um incapaz! Aceito-o? O que fariam vocês, cavalheiros? Recolho essa luva? Possivelmente seja a da sua mão esquerda e como podem apreciar, já não lhe faz falta. ? Levantou as sobrancelhas e soltou uma sonora gargalhada.
De repente a mesa saiu voando, pulverizando pelo chão tudo o que havia sobre ela. O que aconteceu depois ocorreu tão rápido que ninguém foi capaz de impedi-lo. Roger se levantou de seu assento, segurou o pescoço do conde e o apertou contra a parede. Nesse momento todos os cavalheiros menos um se largaram dali. O único que ficou sentado foi o jovem senhor Pearson.
? Reza ao seu Deus, ? grunhiu Roger no ouvido do conde ? porque se meu amigo não te matar, farei-o eu. ? E depois de ver como o rosto do miserável começava a ficar violáceo pela falta de oxigênio, soltou-o.
Rabbitwood respirou com dificuldade durante uns instantes. Seus olhos, acreditou-se sairiam disparados de suas órbitas, começavam a encher-se de lágrimas. Quando se recuperou, ergueu-se, esticou a camisa com força e olhou com receio ao duque. Era conhecida sua destreza ao disparar, mas agora não tinha nada que temer. O homem que o desafiava não era o mesmo que conheceu no passado. Depois de meditar sobre isso, voltou a desenhar um sorriso em seu rosto.
? Está bem. Aceito seu duelo. Imagino que não lhe fará falta saber quando e onde, não é?
? Amanhã, à alvorada, em Hyde Park e não sorria tanto, o duelo será à morte ? disse William com decisão.
? Como desejar, mas quero que saiba uma coisa, Rutland... ? comentou reticente enquanto agarrava a jaqueta de seu traje ? quando cair no chão morto recorde que o adverti.
Roger se equilibrou sobre Rabbitwood, mas desta vez Federith esteve atento e impediu que lhe agredisse agarrando com força o torso de seu amigo. Enquanto ambos os homens discutiam se tinha sido acertada ou não a intervenção, William observava como o desafiado caminhava sem mostrar inquietação. Era a mesma atitude que ele tinha exibido no passado. Sem preocupação. Sem tristeza pelo dano causado. Sem arrependimento. Entretanto, o destino lhe havia devolvido todas e cada uma de suas más ações e o rol tinha mudado, agora não era o desafiado, mas sim o desafiador.
? Desperte ? sussurrou Lorinne à Beatrice. ? Chegamos.
A moça apartou com rapidez a manta que a resguardava do frio e saiu da carruagem sem pensar duas vezes. Em várias ocasiões esteve a ponto de perder o equilíbrio. Não tinha descansado durante a viagem, mal tinha comido e estava acostumada a dormir quando o esgotamento era muito maior que sua tenacidade. Durante os dias que passou no interior da carruagem rezava a Deus para que acontecesse algo que impedisse o duelo: uma tormenta, que o bastardo do Rabbitwood não o aceitasse, e inclusive teria perdoado que Roger, porque Federith seria incapaz, embebedasse William até o ponto de que não pudesse sustentar-se em pé. Qualquer coisa lhe valia se evitasse a terrível desgraça.
Ao colocar-se em frente à porta da propriedade, olhou ao seu redor e não sentiu como se voltasse para casa, seu verdadeiro lar se encontrava onde William estivesse. Agarrou a aldrava e não cessou de golpear até que o mordomo lhe abriu a porta.
? Senhorita! OH, santo céu! A senhorita está em casa! A senhorita retornou! ? Exclamou o ancião movendo-se de um lado a outro do saguão para que todo mundo pudesse lhe escutar.
De repente, a entrada do salão onde estavam acostumados a permanecer os três quando não tinham visitas se abriu e apareceu sua mãe. Beatrice correu para ela quando Elisabeth estendeu seus braços.
? Minha menina! Minha pequena menina! ? Exclamou a mãe depois de romper a chorar.
? Mãe! Mãe! Não imagina quanto senti sua falta!
? OH, querida! Já não terá que partir de novo. Tudo mudará... tudo mudará... ? sussurrava-lhe sem deixar de lhe beijar as bochechas e as mãos.
? Tem-no feito! Aquele maldito conde aceitou o duelo! ? Exclamou apartando-se da calidez que lhe ofereciam as mãos de sua mãe. Girou-se sobre si mesma, olhou para o chão e prosseguiu: ? Não cheguei a tempo? Celebrou-se o duelo?
? Não ? respondeu Elisabeth caminhando para ela.
? Quando será? Onde? Mãe, o suplico! Não deixe que morra! Amo-o! ? Exclamou entre intensos soluços.
? Seu pai partiu faz dez minutos. Não vai em carruagem, mas sim andando. Um dos amigos do duque veio por ele. Conforme escutei, o duelo se celebrará em Hyde Park. Se partir agora, possivelmente chegue a tempo.
? Mathias! ? Gritou ao moço. ? Sabe chegar a Hyde Park?
? Não, senhorita Lowell. Jamais estive em Londres ? respondeu segurando a boina e apertando-a entre suas mãos.
? Eu sim! ? Exclamou Lorinne.
? Você? ? Perguntou Beatrice assombrada.
? É uma longa história, senhorita Lowell. Possivelmente, quando retornarmos a Haddon Hall a conte ? disse a donzela ao mesmo tempo em que corriam para o exterior da casa.
? Posso lhes acompanhar? ? Perguntou com certa inquietação Elisabeth.
? Vamos, mamãe! Necessitarei de sua ajuda se por acaso não me derem atenção! ? Gritou Beatrice abrindo a porta da carruagem.
Lorinne saltou sobre o assento para segurar as rédeas e, quando escutou que a porta se fechava, tocou com tanta força aos corcéis que Beatrice e sua mãe saltaram no assento durante o breve trajeto. Elisabeth entrelaçou suas mãos com as de sua filha e juntas começaram a rezar. Não deixaram de fazê-lo até que escutaram o grunhido que empregou a criada para fazer frear aos cavalos.
? Corre! ? Gritou-lhe a mãe girando a manivela com ímpeto.
A moça saltou sobre o chão, segurou-se o vestido e correu para o interior do parque. Quanto mais perto estava do lugar onde se supunha serem celebrados os duelos, sua respiração se voltava mais entrecortada, o pulso aumentava a um ritmo desumano e começavam a lhe tremer as pernas. De repente escutou uma voz e, sem duvidá-lo se dirigiu para ela, mas toda sua esperança se esfumou em um golpe quando observou a horrorosa cena.
Suas lágrimas começaram a percorrer seu rosto de novo e seu coração deixou de pulsar. William dava as costas ao Rabbitwood. Em sua mão elevava uma arma e parecia murmurar algo. Beatrice recordou as últimas frases da carta que lhe escreveu: «Quero que saiba, que embora tenha morrido no duelo, terei morrido feliz porque meus últimos pensamentos serão para ti». Estaria pensando nela? Quis gritar para que freassem aquela loucura, mas não lhe brotava a voz. Era incapaz de dizer algo. Ouviu como alguém contava.
? Dez, nove, oito, sete...
Ajoelhou-se. Levou as palmas para o rosto e o cobriu com elas. Não queria ver como morria o homem que amava. Não queria ver como dava sua vida por ela. Não queria...
O som de um só disparo provocou que vários bandos de pássaros elevassem seu vôo. Beatrice seguia chorando, rezando pela alma de William.
? Um médico! ? Escutou que alguém gritou. ? Está vivo? Segue vivo?
De repente, os passos de um grupo de pessoas se ouviram aproximar-se. A moça era incapaz de olhar para aquele lugar. Não queria ver o corpo de William estendido sobre o chão. Os passos cessaram. Depois houve silêncio e logo só ouviu um caminhar.
? Minha pequena Beatrice... ? murmurou William ao seu lado.
? William! William! ? Exclamou com alegria a moça enquanto se levantava e saltava sobre ele.
? Meu amor, o que faz aqui? Por que não ficou em casa? ? Depositou-a com cuidado no chão. Deixou que lhe abraçasse a cintura e colocasse a cabeça em seu peito.
? Por que acredita que estou aqui, William? ? Soluçou enquanto levantava o rosto para o homem. ? Porque te amo. Amo-te mais que a minha própria vida, honra ou o que esta maldita sociedade pense. Se tivesse te acontecido algo, eu... eu... teria morrido contigo, entende? Haveria mor...! ? A boca de William se chocou com a de Beatrice ao mesmo tempo em que a atraía com força para seu corpo.
Beijou-a durante tanto tempo que ambos ficaram sem fôlego.
Ali, diante de todos os presentes, mostraram seu amor. As pessoas que os olhavam foram testemunhas de como dois corações pulsavam em harmônia, de como dois corpos tremiam ao permanecer unidos e de como, dois seres a quem seu passado fez manter-se em solidão, a vida lhes dava uma segunda oportunidade para serem felizes e poderem amar.
Dama Beltrán
O melhor da literatura para todos os gostos e idades