Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A SOLTEIRONA / Honoré de Balzac
A SOLTEIRONA / Honoré de Balzac

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

“Trata-se, talvez, de uma das novelas menos conhecidas e comentadas de Balzac, mas que constitui, entretanto, uma de suas mais completas, vivas e bem cuidadas galerias de tipos humanos. A figura do cavaleiro de Valois, representativa de uma época decadente, símbolo da galanteria, da graça, da frivolidade de um tempo morto, foi traçada em riscos finos, com uma arte acabada de miniaturista. É minuciosa e delicada como uma pintura em esmalte, feita de cores suaves como uma tapeçaria bordada durante longos anos por mãos pacientes de mulher—mãos ociosas de castelã que borda para encher as horas vazias, junto à lareira, e não mãos diligentes de operária que se apressam para ganhar o pão—,um pouco desbotada, parecendo saída de uma arca antiga, mas conservando ainda sua beleza primitiva, que consta da combinação de tons meditadamente escolhidos, de cercaduras rebuscadas, de caprichos do desenho. Em contraposição a essa imagem, ergue-se o retrato de Du Bousquier, homem brutal e maciço, também símbolo de uma era, e de uma era de força, de violência e de renovação. Empastado em pinceladas largas, grossas, com uma profusão de tintas e de cores: mãos de tinta sobre mãos de tinta, cores sobre cores, o ex-fornecedor dos exércitos de Napoleão é a outra personagem central da novela. Ambos, roídos de egoísmo e ambição; o primeiro encaminhando-se para seus fins em passos miúdos e leves, contemplando o retrato da princesa Goritza—única emoção pura e durável de sua vida de solteirão—na tampa de sua caixa de rapé, agitando-se em gestos corteses, em mesuras palacianas, em ditos espirituosos de velho cortesão, mas animado pela mesma vontade impiedosa de vencer que impele para a frente seu rival Du Bousquier, que segue em passadas bruscas, batendo os tacões de suas botas, sacudindo as mãos peludas, esmagando resistências, ignorando preconceitos e escrúpulos. Ambos intrigantes e sagazes, muito superiores ao meio mesquinho onde foram cair, e dispostos a tirar desse meio tudo o que lhes possa dar em conforto, triunfos e satisfações. Entre ambos, a desafiar-lhes a cobiça, a gorda e plácida figura da solteirona simplória, ardente de desejos sufocados sob virtudes cristãs e quase monásticas, inconsciente do enredo armado à sua volta e que tem, como prêmio, alma boa e cândida, inteligência embotada, coração infantil num corpo disforme, velha donzela feita para a maternidade, e que, no decorrer desta história, se livra do ridículo pela sua humilde tragédia de destino falhado, de vocação perdida, de vida gasta inutilmente em mãos que não saberão fazê-la desabrochar. Há, na srta. Cormon, um acúmulo de forças benéficas desperdiçadas que a transformam em vítima de mal-entendidos dolorosos e um pouco grotescos. Outras figuras menos importantes, mas tão nítidas quanto essas três: a do padre Sponde, distraído e bondoso, sábio e incapaz, bem-intencionado e estéril, e a do moço Atanásio, gênio desconhecido, amante ignorado, rico de pensamentos e pobre de dinheiro; a dos dois padres, um plantado na terra firme de suas intransigências católicas, e o outro, o juramentado, com as velhas virtudes cristãs que já ninguém entende, apóstolo que ninguém ouve, espécie de santo a quem as convicções políticas de seus paroquianos hão de sempre recusar a merecida auréola; a da vivaz Susana, que troca a honra pela sedução da cidade grande e do luxo; a da sra. Granson, transbordante de um inútil amor maternal que não bastará nem sequer para salvar-lhe a vida do filho; as dos criados familiares e intrometidos; e, como fundo comum a todos esses quadros, a tonalidade cinzenta e lisa da vida da província.
Nesta história, na realidade mais cruel do que pode parecer ao leitor desatento, nem um só destino se completa, nem uma só possibilidade consegue florescer. A cidade pequena devora todas as existências, apara as asas de todos os sonhos, acaba reduzindo personagens e situações ao molde comum das coisas mesquinhas, ou, quando não, oferece a solução desesperada da fuga ou da morte. Susana vai para Paris, Atanásio afoga-se no rio, a castidade forçada murcha o instinto maternal da solteirona, o padre morre, depois de ter visto a sobrinha infeliz e as árvores de seu jardim derrubadas, Du Bousquier nunca será deputado e o próprio cavaleiro acaba perdendo suas graças palacianas. Confesso que a decadência do cavaleiro, com seu colete manchado de espirros de rapé, suas barrigas de perna postiças colocadas ao contrário, suas roupas esgarçadas, seus brinquinhos de brilhantes embaçados de pó, me deu um aperto no coração. E confesso que sofri ao ver posta em leilão a sagrada caixinha de rapé com o retrato da princesa Goritza na tampa. O leitor também sofrerá ao ser arrematada essa relíquia de amor, porque, como eu própria, não saberá resistir à sedução desse devasso e encantador cavaleiro.
Esse não será, por certo, o maior romance de Balzac, não será mesmo um dos maiores, mas a humanidade que nele se move é a humanidade autêntica de A comédia humana; humanidade imperfeita como a humanidade de carne e sangue, cheia de vícios e de virtudes, de possibilidades e de recuos, de promessas e de decepções, produto do meio em que se agita; humanidade feita de falhas e de defeitos, mas, apesar disso, ou talvez por isso mesmo, humanidade cheia de verdade e de vida.
E para que dizer mais? É um romance de Balzac, isto é, o levantamento de uma época, a reprodução de uma sociedade; um pouco da história de todos nós, das nossas ambições, das nossas renúncias e das nossas esperanças.”

 


 

 

I - A CASTA SUSANA E OS DOIS ANCIÃES

Muitas pessoas devem ter encontrado em certas províncias da França um número maior ou menor de cavaleiros de Valois, pois existia um na Normandia, outro em Bourges, um terceiro florescia em 1816 na cidade de Alençon, e talvez o Midi possuísse também o seu. Mas o recenseamento dessa tribo valoisiana não tem aqui nenhuma importância. Todos esses cavaleiros, entre os quais havia alguns que eram tão Valois quanto Luís XIV era Bourbon, se conheciam tão pouco, mutuamente, que não se podia falar de uns com os outros. Todos eles, aliás, deixavam em perfeita tranquilidade os Bourbon no trono da França, pois é fato sobejamente demonstrado que Henrique IV se tornou rei por falta de um herdeiro varão no primeiro ramo de Orléans, dito de Valois. Se existem Valois, são descendentes de Carlos de Valois, duque de Angoulême, filho de Carlos IX e de Maria Touchet, cuja posteridade masculina se extinguiu, até prova em contrário, na pessoa do abade de Rothelin; e os Valois-Saint-Rémy, que procedem de Henrique II, acabaram igualmente com a famosa La Motte-Valois, implicada no Caso do Colar (O Caso do Colar deu-se pouco antes da Revolução Francesa, em 1784. Ávido de conciliar a benevolência da rainha Maria Antonieta, que lhe testemunhava antipatia, o cardeal de Rohan, esmoleiro-mor da França, deixou-se iludir por uma intrigante, a condessa La Motte-Valois, que lhe fez crer que a soberana desejava ardentemente um colar, recusado pelo rei. O cardeal comprou o colar, de mais de quinhentos diamantes, por um milhão e seiscentos mil francos, a crédito, e entregou-o a um pretenso emissário da rainha. Decorrido o prazo, não pôde pagar a primeira prestação e aconselhou os joalheiros a procurarem a rainha, por cuja ordem agira. O rei mandou prender o prelado e encarcerá-lo na Bastilha; mas o caso tomou rumo político e o parlamento absolveu o cardeal para humilhar a soberana, já muito impopular. A condessa La Motte-Valois foi fustigada publicamente, marcada com ferro em brasa e encarcerada, mas pouco tempo depois conseguiu fugir e juntar-se ao marido, o qual, condenado in contumaciam às galés, levava uma vida alegre em Londres com o lucro da venda de alguns brilhantes do famoso colar.).

Cada um desses cavaleiros foi, se as informações não mentem, um velho fidalgo comprido, seco e sem fortuna, como o da cidade de Alençon. O de Bourges tinha emigrado, o de Turenne se escondera, o de Alençon guerreara durante a Vendeia e tomara parte, até certo ponto, no movimento dos chouans. A maior parte da mocidade deste último passara-se em Paris, onde a Revolução o surpreendeu aos trinta anos, no meio de suas conquistas amorosas. Aceito pela alta aristocracia da província como um verdadeiro Valois, o cavaleiro de Valois de Alençon distinguia-se, como os seus homônimos, por suas maneiras excelentes, e parecia um homem de boa companhia. Jantava fora diariamente, e jogava todas as noites. Graças a um de seus defeitos, que consistia em contar uma multidão de anedotas sobre o reinado de Luís XV e os começos da Revolução, passava por um homem muito espirituoso. Quem ouvisse suas historietas pela primeira vez, sempre as achava muito bem narradas. O cavaleiro de Valois tinha, aliás, a virtude de não repetir seus chistes pessoais e de nunca falar de seus amores; mas suas graças e seus sorrisos cometiam deliciosas indiscrições. Usava do privilégio que têm os velhos fidalgos voltairianos de nunca ir à missa, porém todos sentiam uma indulgência excessiva pela sua falta de religião, em favor de seu devotamento à causa da realeza. Um de seus encantos mais notáveis era o modo, sem dúvida imitado de Molé (Molé: François-René Molé (1743-1802), ator francês que se especializou nos papéis de elegantes do Antigo Regime.), de tirar o tabaco de uma velha caixa de ouro, ornada com o retrato de uma certa princesa Goritza, húngara sedutora, célebre pela sua beleza no fim do reinado de Luís XV... Ligado durante a mocidade a essa ilustre estrangeira, falava sempre dela com emoção, e batera-se em duelo, por sua causa, com o sr. de Lauzun (Sr. de Lauzun: Armand-Louis de Gomant (1747-1793), duque de Lauzun, ou, depois da morte do tio, duque de Biron; general francês célebre pelas suas aventuras galantes e sua mocidade tempestuosa. Tomou parte na guerra da Independência americana; embora aderisse à Revolução e comandasse as tropas da República contra os revoltosos da Vendeia, foi executado durante o Terror.). Contando, então, aproximadamente cinquenta e oito anos, só confessava cinquenta, e tinha direito a essa fraude inocente, porque, entre as vantagens concedidas às pessoas secas e louras, conservava esse corpo ainda juvenil, que resguarda tanto os homens como as mulheres das aparências da velhice. Sim; deveis ficar bem certos de que toda a vida, ou toda a elegância, que é a expressão da vida, reside principalmente no corpo, na silhueta.

Entre as propriedades do cavaleiro assinalava-se o nariz prodigioso com que a Natureza o dotara. Esse nariz dividia vigorosamente um rosto pálido em duas seções, que pareciam não se conhecer, e das quais apenas uma corava durante o trabalho da digestão. E, nestes tempos em que a fisiologia se ocupa tanto com o coração do homem, esse é um fato digno de nota. Tal incandescência colocava-se à esquerda. Embora as pernas altas e finas, o corpo magricela e a tez lívida do sr. de Valois não anunciassem muita saúde, ele comia, no entanto, como um lobo, e pretendia ter uma doença designada na província sob o nome de “fígado quente”, sem dúvida para desculpar seu apetite excessivo. A circunstância de seu rubor apoiava tal pretensão; mas, num país em que as refeições se desenvolvem numa linha de trinta ou quarenta pratos e durante quatro horas, o estômago do cavaleiro parecia um benefício concedido pela Natureza a essa boa cidade. Segundo alguns médicos, essa vermelhidão na face esquerda denota um coração pródigo. A vida galante do cavaleiro confirmava essas asserções científicas, cuja responsabilidade, felizmente, não pesa sobre o historiador. Apesar desses sintomas, o sr. de Valois tinha uma organização nervosa e, por conseguinte, vivaz. Se seu fígado ardia, para empregar uma velha expressão, seu coração não queimava menos. Se seu rosto oferecia algumas rugas, se seus cabelos eram prateados, um observador instruído teria visto nessas coisas os estigmas da paixão e os sulcos do prazer. Com efeito, os “pés de galinha” característicos mostravam essas rugas elegantes, tão apreciadas na Corte de Citera (Citera, hoje Cérigo: ilha grega em que Vênus tinha um templo magnífico; na linguagem poética, o reino da galanteria.). No faceiro sr. de Valois tudo revelava os costumes de um homem dado às mulheres (ladie’s man); era tão minucioso em suas abluções que a vista de suas faces causava prazer, pois pareciam escovadas com alguma água maravilhosa. A parte do crânio que os cabelos já ralos recusavam cobrir brilhava como marfim. Suas sobrancelhas, como seus cabelos, fingiam juventude pela regularidade que o pente lhes imprimia.

Sua pele, já tão branca, parecia mais branca ainda pelo uso de algum preparado secreto. Sem usar perfumes, o cavaleiro exalava como que um aroma de mocidade que refrescava o ambiente. Suas mãos de fidalgo, cuidadas como as de uma dama, atraíam o olhar pelas unhas cor-de-rosa e bem aparadas. Enfim, sem seu nariz magistral e superlativo, chegaria a parecer embonecado. É preciso, porém, resolver-me a estragar finalmente esse retrato pela confissão de uma mesquinharia: o cavaleiro botava algodão nos ouvidos e conservava ainda nas orelhas dois brinquinhos representando cabeças de negro em diamantes, admiravelmente trabalhadas; mas justificava esse apêndice singular dizendo que, desde que tinha furado as orelhas, suas enxaquecas haviam desaparecido: ele tivera enxaquecas!... Não queremos fazer o cavaleiro passar por um homem perfeito; mas não devem ser perdoados aos velhos celibatários, cujo coração envia tanto sangue até a face, esses ridículos adoráveis, fundados talvez em segredos sublimes? Aliás, o cavaleiro de Valois compensava suas cabeças de negro com tantas outras graças que a sociedade podia considerar-se suficientemente indenizada. Despendia, realmente, muitos esforços para esconder a idade e agradar às suas relações. Cumpre assinalar, primeiramente, o cuidado extremo que dava à sua roupa branca, única distinção que as pessoas de bom-tom podem ter hoje na indumentária; a roupa de baixo do cavaleiro era sempre aristocraticamente fina e alva. Quanto ao seu traje, embora de um asseio notável, era usado, mas sem manchas nem dobras. A conservação da roupa parecia um prodígio às pessoas que reparavam na afetada indiferença do cavaleiro sobre esse assunto; não chegava ao ponto de raspar a fazenda com um pedaço de vidro, apuro inventado pelo príncipe de Gales; o sr. de Valois, porém, seguia os rudimentos da alta elegância inglesa com uma fatuidade pessoal que não saberia ser apreciada pela gente de Alençon. Não deve a sociedade ter consideração pelas pessoas que tanto se esforçam por ela? Não há, nisso, o cumprimento do mais difícil preceito do Evangelho, que é o de pagar o mal com o bem?

Essa frescura de traje, esse apuro permanente condizia com os olhos azuis, com os dentes de marfim e com a figura loura do cavaleiro. Somente esse Adônis aposentado não tinha nada de másculo em seu aspecto, e parecia empregar o disfarce da indumentária para esconder as ruínas causadas pelo serviço militar da galanteria. Para falar com franqueza, a voz produzia como que uma antítese da loura delicadeza do cavaleiro. A menos que se adotasse a opinião de alguns observadores do coração humano, e se chegasse à conclusão de que o cavaleiro tinha a voz de acordo com o nariz, seu órgão vocal surpreenderia por sons amplos e redundantes. Sem possuir o volume dos baixos colossais, o timbre dessa voz agradava por um médio estofado, semelhante aos acentos da trompa inglesa, resistentes e doces, fortes e aveludados.

Repudiando a roupa ridícula ainda conservada por alguns monarquistas, o cavaleiro modernizara-se francamente; mostrava-se sempre vestido por uma casaca marrom de botões dourados, calças justas em seda com fivelas de ouro, um colete branco sem bordados e uma gravata apertada sem colarinho de camisa—último vestígio da antiga indumentária francesa, ao qual não tinha sabido renunciar porque essa moda lhe proporcionava a oportunidade de mostrar o pescoço de abade comendatário. Seus sapatos recomendavam-se por fivelas de ouro, quadradas, de que a geração atual já não guarda lembranças, e que se aplicavam no couro negro envernizado. O cavaleiro deixava ver duas correntes de relógio que pendiam paralelamente de cada bolso de seu colete, outro vestígio das modas do século XVIII, que os Incroyables (Incroyables: nome dado, durante o Diretório, aos moços da oposição monarquista, que se distinguiam por grande afetação no traje, nos costumes e na linguagem.) não tinham desdenhado sob o Diretório. Essa roupa de transição, que unia dois séculos, o cavaleiro a trazia com uma graça de marquês, cujo segredo se perdeu no palco francês desde o dia em que desapareceu Fleury (Fleury: Abraham-Joseph Bénard, dito Fleury (1750-1822), comediante francês que desempenhava sobretudo papéis de petimetres.), último aluno de Molé. A vida privada desse solteirão, aparentemente aberta a todos os olhares, era, na realidade, misteriosa. Ocupava um apartamento modesto, para não dizer pior, situado na Rue du Cours, no segundo andar de uma casa pertencente à sra. Lardot, lavadeira de roupa fina mais afreguesada da cidade. Essa circunstância explicava o apuro excessivo de sua roupa branca. Quis a desgraça que um dia Alençon pudesse acreditar que o cavaleiro nem sempre se tivesse comportado como fidalgo, e que se tivesse casado secretamente, em seus velhos dias, com uma certa Cesarina, mãe de uma criança que cometera a imprudência de vir sem ser chamada.

— Ele tinha—disse então um certo sr. du Bousquier—dado a mão àquela que durante tanto tempo lhe emprestara o ferro de engomar.

Essa horrível calúnia entristeceu os velhos dias do delicado fidalgo, pois o atingiu justamente no momento em que cultivava uma esperança (que constitui a cena atual) longamente acariciada, e à qual havia feito muitos sacrifícios. A sra. Lardot alugava ao cavaleiro de Valois dois quartos no segundo andar de sua casa pela módica importância de cem francos anuais. Jantando fora todos os dias, o digno fidalgo só voltava em casa para dormir. Sua única despesa, portanto, era o almoço, invariavelmente composto de uma xícara de chocolate, acompanhada de manteiga e frutas, conforme a estação. Só acendia a lareira nos invernos mais inclementes, e apenas à hora de levantar. Entre onze e quatro horas, passeava, lia os jornais e fazia visitas. Assim que se instalara em Alençon, tinha confessado nobremente sua situação de miséria, dizendo que toda a sua fortuna consistia em seiscentas libras de rendas em usufruto, única sobra da opulência antiga—soma que lhe mandava pagar, em quatro prestações, seu antigo homem de negócios, em cujas mãos se achava o título de outorga. Realmente, um banqueiro da cidade pagava-lhe, trimestralmente, cento e cinquenta libras mandadas por um certo sr. Bordin, de Paris, derradeiro procurador do Chlet (Châtelet) (Châtelet: havia duas fortalezas da antiga Paris com este nome: o grande Châtelet, à margem direita do Sena, que era a sede da jurisdição criminal de Paris, e foi demolido em 1802; o pequeno Châtelet, na margem esquerda, que servia de prisão.). Todos souberam desses pormenores por causa do absoluto segredo pedido pelo cavaleiro à primeira pessoa que lhe recebeu as confidências. O sr. de Valois colheu os frutos de seus infortúnios: passou a ter seu talher sempre posto nas casas mais distintas de Alençon e foi convidado para todas as festas. Seus talentos de jogador, de narrador, de pessoa amável e de boa companhia foram tão apreciados que perdia toda graça a reunião a que não comparecesse o “conhecedor” da cidade. Os donos de casa, as damas, todos precisavam de sua caretinha de aprovação. Quando, num baile, uma mulher ouvia o velho cavaleiro dizer: “Está encantadora! Seu vestido é muito elegante!”, sentia-se mais feliz com esse elogio do que com o desespero da rival. O sr. de Valois era o único homem capaz de pronunciar com graça certas frases do tempo antigo. As expressões meu coração, minha joia, meu tesouro, minha princesa, todos os diminutivos amorosos do ano de 1770 tomavam uma sedução irresistível em sua boca; e tinha, enfim, o privilégio dos superlativos. Suas lisonjas, de que era, aliás, avaro, conquistavam-lhe as simpatias das velhas e envaideciam todo mundo, até mesmo os funcionários administrativos, de que o cavaleiro não tinha a menor necessidade. No jogo, portava-se com uma distinção que o distinguiria em qualquer roda: nunca se queixava, elogiava os adversários quando perdiam; jamais tentava empreender a educação dos parceiros demonstrando-lhes a maneira correta de efetuar a jogada. Quando, no momento de dar as cartas, se estabelecia uma dessas nauseabundas dissertações habituais, o cavaleiro puxava a caixa de rapé, com um gesto digno de Molé, olhava para a princesa Goritza, levantava a tampa com dignidade, amassava a pitada, pulverizava-a, enrolava-a, moldava-a num montinho; e, quando as cartas estavam dadas, já ele havia entupido os antros do nariz e tornado a colocar a princesa no bolso do colete, sempre do lado esquerdo! Só um fidalgo do bom século (Bom século: o século XVIII; grande século: o século XVII.) (por oposição ao grande século) poderia ter inventado essa transição entre um silêncio desprezível e um epigrama que ninguém teria compreendido. Aceitava de bom grado os pexotes, dos quais sabia tirar partido. A admirável igualdade de seu humor fazia com que muita gente dissesse a seu respeito: “Admiro o cavaleiro de Valois!”.

Suas conversas, seus modos, tudo nele parecia tão louro quanto sua pessoa. Aplicava-se em nunca ferir nem desagradar a homens ou mulheres. Indulgente para com os vícios de conformação, assim como para com os defeitos do espírito, ouvia pacientemente, com o auxílio da princesa Goritza, as pessoas que lhe contavam as pequenas misérias cotidianas da vida de província: o ovo mal cozido do almoço, o leite que azedara à hora do café, as minúcias grotescas sobre a saúde, o acordar em sobressalto, os sonhos, as visitas. O cavaleiro possuía um olhar lânguido, uma atitude clássica para fingir compaixão capazes de torná-lo um ouvinte delicioso; exclamava um ah!, um ora!, um E que fez então? com uma oportunidade encantadora. Morreu sem que jamais alguém suspeitasse que ficava relembrando os capítulos mais ardentes de seu romance com a princesa Goritza, durante todo o tempo em que durava essa avalanche de tolices. Alguém já terá pensado no serviço que um sentimento extinto pode prestar à sociedade? Alguém já terá notado quanto o amor é sociável e útil? Isso explica por que motivo o cavaleiro continuava a ser o predileto da cidade, apesar de seus lucros constantes no jogo e embora nunca saísse de um salão sem levar aproximadamente seis libras ganhas na partida. Seus prejuízos, que, aliás, alardeava em altas vozes, eram muito raros.

Todos aqueles que o conheceram confessam jamais haver encontrado, em lugar algum, nem mesmo no Museu Egípcio de Turim, outra múmia tão gentil. Em nenhum país do mundo o parasitismo assumiu formas assim graciosas. Nunca o mais concentrado egoísmo se mostrou tão prestativo nem menos ofensivo do que o desse fidalgo; chegava a equivaler a uma amizade dedicada. Quem pedisse ao cavaleiro um favorzinho qualquer, capaz de incomodá-lo, acabaria plenamente convencido de que ele nada poderia fazer no caso ou que o estragaria se se intrometesse; e ainda acabaria saindo de sua casa apaixonado por ele.

Para explicar a existência problemática do cavaleiro, o historiador, premido pela Verdade—essa cruel libertina—,deve contar que, ultimamente, depois dos tristes dias gloriosos de julho (Os tristes dias gloriosos de julho... Dera-se o nome de “os três dias gloriosos” (les trois journées glorieuses) aos dias 27, 28 e 29 de julho de 1830, quando uma revolução desencadeada pelas retrógradas Ordenações de 25 de julho do autoritário Carlos X o destronou e pôs em seu lugar o liberal Luís Felipe. Balzac chama-os tristes por ser partidário de Carlos X.), Alençon veio a saber que a soma ganha no jogo pelo sr. de Valois atingia por semestre a quantia aproximada de cento e cinquenta escudos, e o espirituoso cavaleiro tivera a coragem de mandar para si mesmo sua renda vitalícia, a fim de não parecer sem recursos num país onde se gosta do positivo. Muitos de seus amigos (já estava morto nessa ocasião, note-se esse ponto!) contestaram tenazmente tal circunstância, tratando-a de fábula e considerando o cavaleiro de Valois um fidalgo respeitável e digno, caluniado pelos Liberais. Felizmente para os jogadores espertos, haverá sempre nas galerias quem os defenda. Envergonhados de terem de justificar um erro, esses admiradores negam-no intrepidamente; que ninguém os acuse de obstinação, pois esses homens têm o sentimento de sua dignidade: os governos lhes dão o exemplo dessa virtude que consiste em enterrar secretamente os seus mortos, sem cantar o Te Deum de suas derrotas. Se, na realidade, o cavaleiro tivera esse gesto de esperteza, que, por certo, lhe teria valido a estima do cavaleiro de Gramont (Cavaleiro de Gramont: famoso folgazão do século XVII. Suas Memórias, recolhidas por Hamilton, constituem divertida crônica da vida frívola das Cortes da França e da Inglaterra, naquela época.), um sorriso do barão de Foeneste (Barão de Foeneste: personagem principal do romance satírico Aventuras do barão de Foeneste (1617-1630), de Agrippa d’Aubigné, redigido em forma de diálogo, e em que o barão, católico mentiroso, dado a fanfarronadas, conta suas aventuras a seu amigo Enay, protestante de tendências pacatas e que se contenta com uma vida simples e retirada.), um aperto de mão do marquês de Moncada (Marquês de Moncada: talvez se trate de D. Francisco de Moncade, conde de Ossuna (1586-1635), general espanhol, pacificador dos Países Baixos, gentil-homem culto e espirituoso.), isso impediria, por acaso, que ele tivesse sido o conviva amável, o homem espirituoso, o jogador inalterável, o maravilhoso narrador que fazia as delícias de Alençon? Quando tantas pessoas são obrigadas a pagar rendas vitalícias a outras, que haverá de mais natural do que se pagar uma, voluntariamente, ao nosso melhor amigo? Mas Laio está morto (Mas Laio está morto... Laio era pai de Édipo, rei de Tebas. A expressão equivale, em francês, à nossa “Inês é morta”, isto é, “o caso está liquidado”, “não adianta falar nisso” ou “não se pode dar remédio”.)... Ao fim de quinze anos desse padrão de vida, o cavaleiro economizara dez mil e tantos francos. Quando da volta dos Bourbon, um de seus amigos, o senhor marquês de Pombreton, antigo tenente dos mosqueteiros negros, lhe tinha, ao que diziam, restituído mil e duzentas pistolas que o cavaleiro lhe emprestara para emigrar. Esse acontecimento causou sensação e foi oposto, mais tarde, às pilhérias inventadas pelo Constitutionnel quanto à maneira de pagar dívidas usada por alguns emigrados. Ouvindo qualquer referência a esse gesto nobre do marquês de Pombreton, o pobre cavaleiro corava até mesmo na face direita. Todos, então, se alegraram pelo sr. de Valois, que deu para consultar as pessoas de dinheiro sobre o emprego que deveria dar a essa migalha de fortuna. Confiante nos destinos da Restauração, colocou o dinheiro na Dívida Pública, no momento em que as rendas valiam 56 francos e 25 cêntimos. Os srs. de Lenoncourt, de Navarreins, de Fontaine e de La Billardière (Srs. de Lenoncourt, de Navarreins, de Fontaine e de La Billardière: todas personagens inventadas da alta aristocracia de A comédia humana.), que o conheciam, lhe tinham, segundo o que ele próprio afirmava, conseguido uma pensão de cem escudos, pagas pela bolsa particular do rei, e lhe enviaram a Cruz de São Luís. Nunca se soube por que meios o velho cavaleiro obteve essas duas solenes consagrações de seu título e de sua qualidade, mas o que é certo é que o diploma da Cruz de São Luís o autorizava a usar a patente de coronel reformado, em razão de seus serviços nos exércitos católicos do Oeste. Além de sua ficção de rendas em usufruto, o cavaleiro teve, portanto, autenticamente, mil francos de rendimentos. Apesar dessa melhoria, não modificou em nada nem o modo de viver nem os hábitos; apenas, a fita vermelha acertava maravilhosamente em sua casaca marrom e pareceu completar a fisionomia do fidalgo. Desde 1802, costumava lacrar suas cartas com um sinete de ouro, muito velho e mal gravado, mas onde os Castéran, os D’Esgrignon, os Troisville podiam ver que ele trazia partido, de França, com uma gémina de goles posta em barra e de goles com cinco macles de ouro, unidos e apontados em cruz. O escudo com um chefe de sable carregado de uma cruz pátea de prata. Por timbre, o elmo de cavaleiro. Por divisa, Valeo (Valeo: verbo latino cujo sentido é “valho” ou “estou forte”.). Com essas armas nobres, o suposto bastardo dos Valois devia e podia subir em todas as carruagens reais deste mundo.

Muitas pessoas invejaram a doce existência desse solteirão, cheia de partidas de bóston, de gamão, de perde-ganha, de uíste e de piquet bem jogadas, de jantares bem digeridos, de pitadas de tabaco aspiradas com graça, de passeios tranquilos. Quase toda a gente de Alençon julgava essa vida isenta de ambições e de interesses graves; mas nenhum homem tem a vida tão simples quanto a imaginam aqueles que o invejam. Nas aldeias mais esquecidas iremos encontrar moluscos humanos, rotíferos mortos na aparência, mas que têm a paixão dos lepidópteros ou da conquiliologia, e que se infligem a si mesmos sacrifícios infinitos por não sei que espécie de borboletas ou pela concha Veneris (Concha Veneris: concha de Vênus; nome latino de uma espécie de conchas bivalves.). E o cavaleiro não somente tinha as suas conchas como, ainda, alimentava um desejo ambicioso, perseguido com uma profundeza digna de Sixto V (Sixto V: papa de 1585 a 1590, eleito sucessor de Gregório XIII, porque os cardeais o acreditavam moribundo: mal se viu eleito, porém, jogou fora as muletas e pôs-se a desenvolver atividade febril, reformando as ordens eclesiásticas, intervindo nas dissensões religiosas da França etc.): queria casar-se com uma solteirona rica, sem dúvida na intenção de utilizá-la como estribo para galgar as altas esferas da Corte. Nisso estava o segredo de seu porte real e de sua estada em Alençon.

Uma quarta-feira, muito cedinho, nos meados da primavera do ano 16 (Ano 16 (do calendário Revolucionário): 1807.) (de acordo com sua maneira de falar), no momento em que vestia o velho roupão de damasco verde e florido, o cavaleiro ouviu, apesar do algodão nos ouvidos, os passos leves de uma pessoa que subia as escadas. Dentro em pouco, bateram três pancadas discretas em sua porta. Sem esperar resposta, uma bonita rapariga esgueirou-se como uma enguia no apartamento do solteirão.

— Ah, és tu, Susana?—perguntou o cavaleiro, sem interromper a operação iniciada, que consistia em afiar a lâmina da navalha numa tira de couro.—Que vens fazer aqui, diabinho do meu coração?

— Venho contar-lhe uma coisa que talvez lhe cause tanta pena quanto prazer.

— Trata-se de Cesarina?

— Pouco estou me importando com a sua Cesarina!—disse ela com uma expressão ao mesmo tempo travessa, grave e descuidada.

Essa encantadora Susana, cuja aventura cômica ia exercer tão grande influência no destino das principais personagens desta história, era uma das operárias da sra. Lardot.

Agora uma palavra sobre a topografia da casa.

As oficinas ocupavam o andar térreo. O pequeno pátio servia para estender nas cordas de crina os lenços bordados, os cabeções, os corpetes, os punhos, as camisas de refolhos, as gravatas, as rendas, os vestidos bordados, toda a fina roupa branca das melhores casas da cidade. O cavaleiro pretendia saber, pelo número de corpetes da mulher do recebedor geral os pormenores de suas intrigas, porque havia camisas de refolhos e gravatas em correlação com os corpetes e os cabeções. Embora podendo, por essa escrituração em partes dobradas, adivinhar tudo a respeito dos encontros amorosos da cidade, o cavaleiro jamais cometeu uma indiscrição, nunca disse um epigrama suscetível de fazer com que uma casa lhe fechasse as portas (e, no entanto, tinha espírito!). Assim, o cavaleiro de Valois pôde ser julgado um homem de atitudes superiores, e cujos talentos, como os de tantos outros, perderam-se num círculo estreito. Somente—e porque era um homem, afinal!—o cavaleiro não se privava de certas olhadelas incisivas que faziam com que as mulheres estremecessem. Todas, entretanto, passaram a gostar dele, desde o instante em que reconheceram quanto era profunda a sua discrição e verdadeira a sua simpatia pelas fraquezas bonitas.

A primeira operária, factótum da sra. Lardot, solteirona de quarenta e cinco anos, feia de meter medo, morava no cômodo contíguo ao do cavaleiro. No andar superior, não havia senão as mansardas onde punham a roupa para secar durante o inverno. Cada apartamento, como o do cavaleiro, constava de dois quartos arejados, dando um para a rua e outro para o pátio. No primeiro andar, abaixo do cavaleiro, residia um velho paralítico e surdo, avô da sra. Lardot, antigo corsário chamado Grévin, que servira sob as ordens do almirante Simeuse (Almirante Simeuse: ilustre marinheiro do século XVIII, inventado por Balzac para dar um pai distinto ao marquês João de Simeuse, personagem de Um caso tenebroso.), nas Índias.

A sra. Lardot, que ocupava a outra habitação do primeiro andar, tinha tanta indulgência pela gente de alta condição que podia passar por cega em tudo quanto dissesse respeito ao cavaleiro. Para ela, o sr. de Valois era um monarca absoluto e tudo quanto ele fizesse lhe parecia bem-feito. Se uma de suas operárias se tornasse culpada de uma felicidade atribuída ao cavaleiro, a sra. Lardot teria dito:—Ele é tão amável!

Assim, embora essa casa fosse de vidro como todas as casas da província, tornava-se secreta como uma caverna de bandidos, em se tratando do sr. de Valois.

Confidente nato de intriguinhas de oficina, o cavaleiro nunca passava diante da porta, que estava geralmente aberta, sem dar alguma coisa às suas gatinhas: chocolate, doces, fitas, rendas, uma cruz de ouro, toda a espécie de quinquilharias que tanto agradam às grisettes (Grisette: esta palavra, que primitivamente designava uma espécie de fazenda leve e barata, passou a designar as pessoas que a usavam, e em particular as costureirinhas de costumes fáceis.). Por isso, o bom cavaleiro era adorado por essas meninas. As mulheres possuem um instinto que lhes permite adivinharem os homens que as amam pelo simples fato de usarem saias, que se sentem felizes junto delas e que nunca pensam em lhes pedir tolamente os juros de suas amabilidades. Têm, a esse respeito, o faro do cão que, num grupo, vai diretamente ao homem para quem os animais são sagrados. De sua vida de outrora o cavaleiro empobrecido conservava a necessidade de proteção galante que distinguia antigamente o grão-senhor. Sempre fiel ao sistema das petites maisons (Petite maison: nome que se dava, no fim do século XVII e no século XVIII, a residências luxuosas em que os grão-senhores da época abrigavam seus amores ilegítimos; chamavam-se também folies.), gostava de enriquecer as mulheres, únicos seres que sabem receber, porque são os únicos que sempre podem pagar.

Não é extraordinário que, num tempo em que os escolares, mal saídos dos colégios, procuram desencavar um símbolo ou selecionar mitos, ninguém tenha ainda explicado as mulheres galantes do século XVIII? Não corresponderão elas ao torneio do século XV? Em 1550, os cavalheiros batiam-se pelas suas damas; em 1750, exibiam as amantes em Longchamps; hoje, fazem correr os seus cavalos; em todas as épocas, o fidalgo sempre tentou criar um modo de vida que lhe fosse próprio e exclusivo. Os sapatos de ponta virada do século XIV transformaram-se nos saltos vermelhos do século XVIII, e o luxo das amantes constituía, em 1750, uma ostentação semelhante à dos sentimentos da Cavalaria Errante.

Mas o cavaleiro já não podia arruinar-se por amante alguma! Em vez dos bombons envoltos em notas de banco, oferecia galantemente um saco de rebuçados. Digamo-lo, porém, para a glória de Alençon: esses rebuçados eram aceitos mais alegremente do que a Duthé (Duthé: Rosalie Duthé, famosa cortesã.) recebia outrora um vestido bordado a ouro ou alguma equipagem do conde de Artois (Conde de Artois: nome que usava Carlos X (1757-1834) antes de ser coroado rei da França, em 1824. Durante sua mocidade, o futuro rei distinguiu-se por extraordinária devassidão.). Todas essas grisettes tinham compreendido a majestade decaída do cavaleiro de Valois e guardavam um segredo profundo sobre as suas familiaridades domésticas. Quando, em algumas casas, as interrogavam a respeito do cavaleiro de Valois, elas falavam gravemente do fidalgo, envelhecendo-o de propósito; no que contavam, ele aparecia como um senhor respeitável, cuja vida era uma flor de santidade; em casa, porém, todas lhe teriam pousado sobre os ombros, como papagaios. Sabendo que ele gostava de conhecer os segredos que as lavadeiras surpreendem no seio das famílias, iam, de manhã, contar-lhe os mexericos de Alençon, e, por isso, o cavaleiro chamava-as suas “gazetas de saias”, seus “folhetins vivos”. Nunca o sr. de Sartines (Sr. de Sartines: Gabriel de Sartines ou Sartine (1729-1801), político francês, chefe de polícia, depois ministro da Marinha.) teve espiões tão inteligentes nem tão baratos, nem que soubessem conservar tanta dignidade no meio de tanta velhacaria de espírito. Note-se que, enquanto almoçava, o cavaleiro, ao ouvi-las, divertia-se como um bem-aventurado.

Susana, uma de suas favoritas, espirituosa, ambiciosa, tinha a envergadura de uma Sophie Arnould (Sophie Arnould (1744-1802): cantora da Ópera de Paris, famosa por sua beleza e seu espírito.), sendo, aliás, tão bela quanto a mais bela cortesã jamais convidada por Ticiano para posar, sobre veludos negros, ajudando-lhe o pincel a fazer uma Vênus. Seu rosto, porém, embora fino no traçado dos olhos e da fronte, pecava, embaixo, por contornos comuns. Era a beleza normanda, fresca, brilhante, nédia, a carne de Rubens que se deveria casar com os músculos de Hércules-Farnese, e não a Vênus de Médicis, essa graciosa mulher de Apolo.

— Vamos lá, minha filha, conta-me a tua historiazinha ou a tua grande aventura.

O que, de Paris a Pequim, teria chamado a atenção sobre o cavaleiro era a doce paternidade de seus modos com essas grisettes; elas lhe lembravam as raparigas galantes de outrora, as ilustres rainhas da Ópera, cuja celebridade foi europeia durante um bom terço do século XVIII. Todo fidalgo que conviveu em tempos idos com essa nação feminina, esquecida agora como todas as grandes coisas, como os jesuítas e os Flibusteiros, como os Abades e os Traficantes, conquistou uma indulgência irresistível, uma facilidade graciosa, uma despreocupação desprovida de egoísmo, todo o incógnito de Júpiter em visita a Alcmena (Alcmena: personagem mitológica, esposa de Anfitrião, à qual Júpiter seduziu tomando, para esse fim, a aparência do marido.), do rei que finge deixar-se enganar, por todos e por tudo, que manda para o diabo a superioridade de seus raios, e quer comer seu Olimpo em loucuras, em ceias finas, em profusões femininas, e, principalmente, longe de Juno. Apesar de seu velho roupão de damasco verde, apesar da nudez do quarto em que recebia, e onde havia, no chão, uma tapeçaria ordinária em vez de tapete, antiquadas poltronas sebentas, cujas paredes eram forradas de papel de estalagem e ofereciam aqui os perfis de Luís XVI e dos membros de sua família traçados num salgueiro, ali o sublime testamento impresso em forma de urna, enfim todos os sentimentalismos inventados pelos monarquistas sob o Terror; apesar de suas ruínas, o cavaleiro, barbeando-se diante de uma velha penteadeira enfeitada de rendas ordinárias, simbolizava o século XVIII!... Todas as graças libertinas de sua juventude vinham à tona, e ele parecia rico de trezentas mil libras de dívidas, com sua carruagem à espera em frente à porta. Era tão grande quanto Berthier (Berthier: Louis Alexandre Berthier (1753-1815), marechal da França, major-general do Grande Exército.), durante a derrota de Moscou, comunicando ordens aos batalhões de um exército que já não existia.

— Senhor cavaleiro—disse-lhe Susana com um jeito engraçado—,parece-me que não tenho nada para lhe contar; basta-lhe olhar para mim.

E Susana postou-se de perfil, de maneira a apresentar às palavras que acabara de proferir um comentário de advogado. O cavaleiro, que era—e não haverá quem o ponha em dúvida—um sujeito finório, abaixou o olho direito sobre a rapariga, segurando sempre a navalha oblíqua ao pescoço, e fingiu compreender.

— Bem, bem, minha joia, conversaremos daqui a pouco. Mas estás te adiantando muito, pelo que vejo.

— Mas, senhor cavaleiro, então devo esperar até que minha mãe me espanque, que a sra. Lardot me ponha na rua? Se eu não partir quanto antes para Paris, nunca poderei casar-me aqui, onde os homens são tão ridículos.

— Que queres, minha filha? A sociedade está se transformando. As mulheres, tanto quanto a nobreza, são vítimas da pavorosa desordem que se prepara. Depois da confusão política, vem a confusão nos costumes. Ai de nós! Em breve a mulher terá deixado de existir (tirou o algodão para limpar os ouvidos); vai perder muito lançando-se no sentimento; vai ficar com os nervos retorcidos, e nunca mais terá aquele bom prazer do nosso tempo, desejado sem constrangimento, aceito sem afetação, e no qual não se usavam os desmaios senão como um meio para se atingir os fins; (limpou as cabecinhas de negro). Vão arranjar doenças que só se curam com infusões de flores de laranjeira. (desatou a rir). Enfim, o casamento se tornará uma coisa (tomou as pinças de depilar) muito aborrecida, e era tão alegre no meu tempo! Os reinados de Luís XIV e de Luís XV, toma nota disto, minha filha, foram as despedidas dos costumes mais belos deste mundo.

— Mas, senhor cavaleiro—disse a rapariga—,trata-se dos costumes e da honra da sua Susaninha, e espero que o senhor não a abandone!

— Nem diga isso!—exclamou o cavaleiro, terminando de pentear-se.—Preferia perder meu nome!

— Ah!—murmurou Susana.

— Escuta aqui, minha sonsinha—chamou o cavaleiro, refestelando-se numa grande poltrona, dessas que tinham outrora o nome de duchesse e que a sra. Lardot lhe havia finalmente conseguido.

Puxou a magnífica Susana, prendendo-lhe as pernas entre os joelhos. E ela, tão altiva na rua, ela, que tantas vezes recusara a fortuna oferecida por alguns homens de Alençon, tanto por dignidade quanto porque lhes desprezava a mesquinhez, não resistia ao gesto do cavaleiro. Susana estendeu seu suposto pecado ao cavaleiro, tão audaciosamente que esse velho pecador, que já sondara muitos outros mistérios em existências bem mais ardilosas, de um único olhar desvendou todo o embuste. Estava convencido de que nunca uma rapariga seria capaz de se valer de uma desonra verdadeira, mas desdenhou derrubar a armação dessa bonita mentira, e não lhe tocou.

— Estamos nos caluniando—disse-lhe o cavaleiro, sorrindo com inimitável finura—,somos tão casta quanto a bela criatura de que usamos o nome; podemos casar sem temor, mas não queremos vegetar aqui, temos sede de Paris, onde as mulheres encantadoras enriquecem quando são inteligentes, e nós não somos nenhuma tola. Portanto, queremos ir ver se a capital dos prazeres nos reservou alguns jovens cavaleiros de Valois, carruagens, diamantes, um camarote na Ópera. Os russos, os ingleses, os austríacos trouxeram milhões, mamãe, ao fazer-nos tão bela, destinou-nos um dote talhado nessas fortunas... E, afinal, somos patriotas, e queremos ajudar a França a retomar seu dinheiro no bolso desses senhores. Hum, hum, meu carneirinho do diabo, isso tudo foi muito bem imaginado. A sociedade em que vives vai espernear um pouco, mas o sucesso justifica tudo. O que é muito mau é não se ter dinheiro, e essa é a doença de que sofremos ambos. Como temos muito espírito, pensamos em tirar partido de nossa bonita honrazinha, logrando um velho solteirão; mas esse velhote, meu coraçãozinho, conhece o alfa e o ômega das astúcias femininas, o que significa que seria mais fácil fazeres um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que me obrigares a acreditar que tenho qualquer culpa no teu caso. Vai para Paris, minha menina, vai para lá à custa da vaidade de um celibatário; não te impedirei de agir assim, posso até mesmo ajudar-te, porque o solteirão, Susana, é o cofre-forte natural das moças. Mas não me metas nessa história. Escuta aqui, minha princesa, tu, que conheces a vida, podes me causar muito prejuízo e muitas dificuldades; prejuízo? Poderias impedir meu casamento numa região em que se dá tanta importância aos costumes de cada um; muitas dificuldades? Com efeito, mesmo que estivesses em apuro, o que eu nego, sua espertalhona, bem sabes, meu bem, que eu não possuo mais nada, que sou tão pobre quanto Job. Ah! Se eu me casasse com a srta. Cormon, se eu ficasse rico, certamente haveria de te preferir a Cesarina. Sempre me pareceste fina como o ouro de dourar chumbo, e és feita para o amor de um homem importante. Acho-te tão inteligente que a peça que pretendes pregar-me não me espanta nem um pouco, eu a esperava. Isso equivale, para uma moça, a se desfazer da bainha da sua espada. Para agir assim, meu anjo, precisa-se ter ideias superiores. Por isso, mereces a minha estima!

E confirmou-a nas faces, à maneira dos bispos...

— Mas, senhor cavaleiro, juro-lhe que está enganado e que...

Corou sem ousar prosseguir, pois o cavaleiro, num único olhar, tinha adivinhado, penetrado todo o seu plano.

— Sim, eu te entendo; queres que te acredite. Pois bem, eu te acredito. Mas segue o meu conselho e vai à casa do sr. du Bousquier. Não levas a roupa lavada à casa dele há cinco ou seis meses? Pois eu te pergunto o que se passa entre os dois; conheço-o, porém sei que ele tem amor-próprio, que é solteirão, muito rico, com duas mil e quinhentas libras de rendas, de que não gasta nem oitocentas. Se és tão inteligente quanto suponho, hás de ver Paris à custa dele. Vai, minha gazela, vai enredá-lo nas tuas malhas, mas trata de ser macia como o fio de seda, e, a cada palavra, dá uma laçada dupla e um nó; ele é homem que teme o escândalo, e se te deu qualquer motivo para que o ponhas na berlinda... enfim, compreendes, não é? Ameaça-o de fazer queixa às Damas da Junta de Caridade. Aliás, ele é ambicioso. Pois bem: um homem pode atingir qualquer posição por intermédio da mulher. Não tens bastante beleza e inteligência para fazeres a fortuna de teu marido? Olha, pestinha: podes rivalizar sem susto com qualquer dama da Corte.

Susana, iluminada pelas últimas palavras do cavaleiro, ardia de desejo de correr à casa de Du Bousquier. Para não sair bruscamente demais, começou a interrogar o cavaleiro, enquanto o ajudava a vestir-se. Adivinhando o efeito de suas instruções, o cavaleiro, para favorecer a saída de Susana, pediu-lhe que mandasse Cesarina levar-lhe o chocolate feito todas as manhãs pela sra. Lardot. Susana esquivou-se para ir ao encontro de sua vítima, de que, a seguir, damos a biografia.

Procedente de uma velha família de Alençon, Du Bousquier ficava a meio caminho entre o burguês e o fidalgote de província. Seu pai exercera as funções judiciais de presidente de tribunal. Achando-se sem recursos após a morte do pai, Du Bousquier, como todos os provincianos arruinados, foi procurar fortuna em Paris. Metera-se nos negócios ao começar a Revolução. A despeito do que dizem os republicanos, que vivem montados na probidade revolucionária, nem todos os negócios dessa época eram muito claros. Um espião político, um agiota, um municionário, um homem que fazia confiscar os bens dos emigrados, para, agindo de acordo com o Síndico da Comuna, comprá-los e revendê-los, um ministro e um general, estavam também todos eles metidos nos negócios. De 1793 a 1799, Du Bousquier foi empreiteiro de víveres para o Exército francês. Possuía então um magnífico palacete, era um dos figurões das finanças, fazia negócios de sociedade com Ouvrard (Ouvrard: Gabriel-Julien Ouvrard (1770-1846), homem de negócios pouco escrupuloso, fornecedor de munições durante a República e o Império.), recebia e levava a vida escandalosa do tempo, uma vida de Cincinato (Uma vida de Cincinato: evidentemente só na aparência, pois Cincinato (séc. V a.C.) é célebre exatamente pela sua integridade.), de sacos de trigo colhido sem esforço, de rações roubadas, de petites maisons cheias de amantes, onde oferecia lindas festas aos Diretores da República. O cidadão Du Bousquier foi um dos familiares de Barras (Barras: visconde Paul de Barras (1755-1829), político, membro da Convenção e do Diretório. Foi ele quem confiou ao jovem Bonaparte a missão de reduzir Toulon à obediência (1793) e que mais tarde o fez nomear chefe do Exército da Itália; depois, porém, ficou hostil a Napoleão e se opôs ao seu golpe de Estado de 18 de Brumário.), vivia em ótimos termos com Fouché, dava-se muito bem com Bernadotte (Bernadotte: Charles Bernadotte (1763-1829), marechal da França que se distinguiu nas Guerras da Revolução e do Império. Adotado por Carlos XIII, tornou-se rei da Suécia em 1818, sob o nome de Carlos XIV. Contrário ao golpe de Estado de 18 de Brumário, sempre conservou certa hostilidade a Napoleão, a cujos inimigos se ligaria em 1813, quando os exércitos imperiais iam invadir a Suécia, sua pátria adotiva.) e julgou tornar-se ministro jogando-se de olhos fechados no partido que agiu secretamente contra Bonaparte até Marengo (Marengo: aldeia da Itália, famosa pela vitória de Napoleão, ainda primeiro cônsul, sobre os austríacos, em 14 de junho de 1800. Na realidade, trata-se de três batalhas distintas, as duas primeiras das quais foram desfavoráveis aos franceses, a ponto de o general Melas, chefe do Exército austríaco, ter mandado anunciar a vitória em Viena; a terceira foi ganha graças à chegada de Desaix. A inesperada vitória de Napoleão fez abandonar aos adversários do primeiro cônsul a conspiração que preparavam contra ele.). Se não fosse a carga de Kellermann (Kellermann: François-Christophe Kellermann (1735-1820), duque de Valmy, general francês, vencedor da batalha de Valmy.) e a morte de Desaix (Desaix: Louis Charles Antoine Desaix (1768-1800), general francês que seguiu Bonaparte no Oriente e conquistou o Alto Egito. Foi morto durante a carga de cavalaria decidida por ele e que, vinda no último instante, transformou a derrota de Marengo em vitória.), Du Bousquier teria sido um grande homem de Estado; pouco faltara para isso. Era um dos funcionários superiores do governo inédito que Napoleão obrigou a retirar-se aos bastidores em 1793 (Vide Um caso tenebroso. (Nota de Balzac.)). A vitória pertinazmente obtida em Marengo foi a derrota desse partido, que já tinha mandado imprimir proclamações para voltar ao sistema da Montanha, caso o primeiro cônsul sucumbisse. Convencido da impossibilidade de um triunfo, Du Bousquier jogou a maior parte de sua fortuna na baixa e conservou dois mensageiros no campo de batalha; o primeiro partiu no momento em que Melas (Melas: barão Michel Melas (1729-1806), general austríaco, derrotado por Napoleão em Marengo.) estava vitorioso; mas, na mesma noite, após um intervalo de quatro horas, o segundo veio proclamar a derrota dos austríacos. Du Bousquier amaldiçoou Kellermann e Desaix, mas não ousou amaldiçoar o primeiro cônsul, que lhe devia milhões. Essa alternativa entre os milhões a receber e a ruína total privou o fornecedor do uso de suas faculdades; ficou imbecilizado durante vários dias; abusara da vida por tantos excessos que a queda desse raio o encontrou sem forças. A liquidação das dívidas do Estado (A liquidação das dívidas do Estado operou-se em março de 1801, atribuindo-se aos credores títulos de renda de 5% na proporção do quarto das importâncias devidas.) permitia-lhe conservar algumas esperanças; mas, apesar de seus presentes corruptores, encontrou o ódio de Napoleão contra os fornecedores que haviam jogado na derrota. O sr. de Fermon, com tanta graça apelidado Fermons la caisse (Fermons la caisse: “Fechemos a caixa”. Em francês, fermon e fermons pronunciam-se da mesma forma (“fermõ”).), deixou Du Bousquier sem um vintém. Mais ainda do que suas manobras na Bolsa, desagradaram ao primeiro cônsul a imoralidade da vida privada, as relações desse fornecedor com Barras e Bernadotte, e, por isso, riscou seu nome da lista dos recebedores gerais, na qual, usando um resto de crédito, Du Bousquier conseguira fazer com que Alençon o inscrevesse. De sua opulência, Du Bousquier conservou apenas mil e duzentos francos de rendas em usufruto, inscritas na Dívida Pública, emprego de capital devido ao simples acaso, e que o salvou da miséria. Ignorando o resultado da liquidação, seus credores não lhe deixaram senão mil francos de rendas consolidadas, mas que lhe foram todos pagos pelas recuperações e pela venda de seu palacete de Beauséant. Assim, depois de ter passado rente à falência, o especulador conservou todo o seu nome. Homem arruinado pelo primeiro cônsul, e precedido pela reputação colossal devida às relações que mantivera com os chefes dos governos passados e à sua vida faustosa, seu reinado passageiro interessou a cidade de Alençon, onde dominava secretamente o sentimento monarquista. Furioso com Bonaparte, Du Bousquier, contando as misérias do primeiro cônsul, os excessos de Josefina e as anedotas secretas de dez anos de revolução, se viu muito bem acolhido. Nesse tempo, embora fosse já quadragenário, fez-se passar como homem de trinta e seis anos. De estatura média, gordo como um fornecedor, exibindo vaidosamente suas pernas de procurador libertino, tinha a fisionomia fortemente marcada, o nariz chato com as narinas cheias de pelos e olhos negros sob as sobrancelhas cerradas, de olhar tão fino quanto o do sr. de Talleyrand, mas um pouco apagado; conservava as barbatanas ( Barbatanas (em francês, nageoires): nome que se dava durante a Revolução às suíças (em francês, favoris).) republicanas. Seus cabelos castanhos eram muito compridos; enriquecidas de pequenos tufos de pelos em cada falange, suas mãos ofereciam a prova de uma forte musculatura, impressa nas grossas veias azuladas e salientes. Tinha, enfim, o peito de Hércules-Farnese e ombros capazes de sustentar os fundos públicos. Só se veem ombros semelhantes, hoje, no Tortoni (Hércules-Farnese: estátua antiga de Glicão de Atenas, personificação da força viril. - Tortoni: trata-se do célebre café de literatos que existiu à esquina da Rue Taitbout e do Boulevard des Italiens, frequentado pela jeunesse dorée da época.). Essa prodigalidade de vida máscula era admiravelmente descrita por uma expressão em uso durante o último século, e que hoje mal se compreende: no estilo galante da outra época, Du Bousquier teria passado por um verdadeiro pagador de atrasados. Mas, como acontecia com o cavaleiro de Valois, havia em Du Bousquier certos sintomas que destoavam do aspecto geral de sua pessoa. Assim, o antigo fornecedor não tinha a voz de acordo com seus músculos, o que não significa que possuísse esse filete magro de voz que sai às vezes da boca dessas focas de dois pés: tinha, ao contrário, uma voz forte mas sufocada, da qual só se pode dar uma ideia comparando-a ao barulho que faz um serrote cortando um pedaço de madeira tenra e molhada; era, em suma, a voz de um especulador exausto.

Durante muito tempo Du Bousquier manteve o uso da roupa que estava em moda no momento de sua glória: as botas de canhões, as meias de seda branca, a calça curta em lã de nervuras cor de canela, o colete à Robespierre e a casaca azul. Apesar dos títulos que o ódio do primeiro cônsul lhe conferia junto às sumidades monarquistas da província, o sr. Du Bousquier nunca foi recebido nas sete ou oito famílias que compunham o Faubourg Saint-Germain de Alençon, e cujas casas eram frequentadas pelo cavaleiro de Valois. Tentou a princípio casar-se com a srta. Armanda, irmã de um dos nobres mais considerados da cidade e do qual Du Bousquier contava tirar grande partido para seus projetos ulteriores, pois sonhava com uma desforra brilhante. Foi rejeitado. Consolou-se com a compensação que lhe ofereceu uma dezena de famílias ricas, que haviam, outrora, fabricado o célebre point d’Alençon (Point d’Alençon: espécie de renda famosa na França.), possuidoras de pastagens e de gado, negociantes de linho por atacado, e junto às quais o acaso podia proporcionar-lhe um bom partido. O solteirão acabou por concentrar suas esperanças na perspectiva de um feliz casamento, que suas capacidades, aliás, pareciam prometer, pois não lhe faltava uma certa habilidade financeira que muitas pessoas faziam frutificar. Semelhante ao jogador arruinado que dirige os neófitos, indicava especulações, pesando cuidadosamente os meios, as oportunidades e o modo de agir. Passava por ser um bom administrador, e por várias vezes surgiu a ideia de nomeá-lo prefeito de Alençon; porém a recordação de suas negociatas nos governos republicanos prejudicou-o e jamais conseguiu atingir esse posto. Todos os governos que se seguiram, mesmo o dos Cem Dias (Cem Dias: o tempo decorrido entre 20 de março de 1815, volta de Napoleão em Paris, e 22 de junho, data de sua segunda abdicação.), recusaram nomeá-lo prefeito de Alençon, cargo que ambicionava e que, se o houvesse obtido, lhe permitiria ajustar casamento com uma solteirona sobre quem recaíra sua escolha definitiva. A aversão do governo imperial lançara-o primitivamente no partido monarquista, onde se manteve apesar das injúrias que ali recebia; mas, quando, no primeiro regresso dos Bourbon (O primeiro regresso dos Bourbon ocorreu em junho de 1814; o segundo, um ano depois, após os Cem Dias.), viu mantida a recusa, sentiu pelos Bourbon um ódio tão profundo quanto secreto, pois continuou, na aparência, fiel às suas opiniões. Tornou-se chefe do Partido Liberal de Alençon, o diretor invisível das eleições, e causou à Restauração todo o mal possível, pela habilidade de suas manobras sonsas e pela perfídia de seus ardis. Du Bousquier, como todos aqueles que não podem mais viver senão pela cabeça, tinha nos seus sentimentos de aversão a tranquilidade de um regato aparentemente fraco, mas inesgotável. Seu ódio era como o do negro, tão calmo, tão paciente, que enganava o inimigo. Sua vingança, incubada durante quinze anos, não se fartou com vitória alguma, nem mesmo com o triunfo dos dias de Julho de 1830.

Não era sem segunda intenção que o cavaleiro de Valois mandava Susana à casa de Du Bousquier. O Liberal e o Monarquista se haviam adivinhado mutuamente, apesar da sábia dissimulação com que escondiam de toda a cidade sua esperança comum. Os dois solteirões eram rivais. Ambos tinham formado o plano de desposar essa srta. Cormon, de quem o sr. de Valois acabara de falar com Susana. Ambos aninhados dentro dessa ideia, encouraçados de indiferença, esperavam o momento em que um acaso qualquer lhes entregasse a solteirona. Assim, mesmo que não os separasse toda a distância alargada entre eles pelos sistemas de que ambos ofereciam uma expressão tão viva, os dois celibatários teriam sido inimigos por causa dessa rivalidade. As épocas desbotam nos homens que as atravessam. Essas duas personagens provavam tal axioma pela oposição das cores e tonalidades impressas em suas fisionomias respectivas, em seus discursos, em suas ideias e em seus hábitos. Um, abrupto, enérgico, gestos largos e bruscos, de palavra breve e rude, escuro de tom, de cabeleira, de olhar, terrível na aparência, impotente na realidade como uma insurreição, representava bem a República. O outro, doce e polido, elegante, cuidado, chegando aos seus fins pelos meios lentos, mas infalíveis, da diplomacia, fiel ao gosto, era uma imagem da era palaciana. Os dois inimigos se encontravam quase diariamente, no mesmo campo. A guerra era cortês e benigna por parte do cavaleiro, mas Du Bousquier não usava de tantas formalidades, embora conservando as conveniências exigidas pela sociedade, pois não queria ser expulso da arena. Eles dois, entretanto, e eles somente, entendiam-se bem. Apesar da finura de observação que a gente da província tem para com os interesses miúdos do meio em que vive, ninguém desconfiava da rivalidade dos dois homens. O cavaleiro de Valois ocupava um plano superior, nunca tendo pedido a mão da srta. Cormon, enquanto Du Bousquier, tendo entrado em ação após haver falhado junto à casa mais nobre da região, já fora recusado. Mas o cavaleiro atribuía ainda possibilidades ao rival, e, por isso, pensou em feri-lo com um golpe de Jarnac (Golpe de Jarnac: golpe inesperado e decisivo, por alusão a um famoso duelo em que o conde Guy Chabot de Jarnac, em 1547, matou La Châteigneraie.), profundamente enterrado com uma lâmina temperada e afiada como era Susana. Já lançara a sonda nas águas de Du Bousquier; e veremos que não se enganara em nenhuma de suas suposições.

Susana partiu num passo ligeiro da Rue du Cours, passou pela Rue de la Porte de Séez e pela Rue du Bercail e entrou na Rue du Cygne, onde, há cinco anos, Du Bousquier comprara uma casinha de província, construída em pedras cinzentas, semelhantes aos blocos de granito normando ou de ardósia bretã. Ali, o antigo fornecedor se estabelecera com mais conforto do que qualquer outra pessoa na cidade, pois tinha conservado alguns móveis dos seus tempos de esplendor; mas, insensivelmente, os hábitos da província acabaram por obscurecer os clarões do Sardanapalo (Sardanapalo: personagem lendária, último descendente de Nino, fundador de Nínive, e da famosa Semíramis; tipo de príncipe devasso, efeminado e covarde.) decaído. Os vestígios de seu antigo luxo faziam naquela casa o efeito de um lustre num celeiro. Tanto nas grandes coisas como nas pequenas, faltava harmonia, esse liame de toda obra humana ou divina. Sobre uma cômoda de linhas bonitas encontrava-se um jarro de água com tampa, como só se veem iguais na Bretanha. No assoalho de seu quarto estendia-se um lindo tapete, mas, em desacordo, havia, nas janelas, cortinas de uma ignóbil chita estampada. A lareira de pedra mal pintada contrastava com um formoso relógio, desonrado pela vizinhança de um par de castiçais ordinários. A escada, por onde todos subiam sem limpar os sapatos, nunca tinha levado uma só mão de tinta. As portas, finalmente, mal pintadas por um operário da região, espantavam o olhar com suas tonalidades berrantes. Essa casa era igual à época simbolizada por Du Bousquier e oferecia um amontoado confuso de porcarias e de coisas magníficas. Considerado como um homem de recursos, Du Bousquier levava, entretanto, a vida parasita do cavaleiro; e há de ser sempre rico aquele que não gasta seus rendimentos. Só tinha um criado, que era uma espécie de João Bocó, rapaz da terra, muito tolo, moldado lentamente às exigências de Du Bousquier, que lhe ensinara, como a um orangotango, a limpar as salas, espanar os móveis, encerar as botas, escovar as roupas e ir buscá-lo à noite com uma lanterna quando o tempo estava encoberto, de tamancos, quando chovia. Como certas criaturas, o rapaz só vivia para um vício: a gulodice. Frequentemente, quando alguém oferecia banquetes de gala, Du Bousquier lhe fazia trocar o casaco de algodãozinho azul, com grandes bolsos balouçantes sempre cheios de coisas—um lenço, um facão, uma fruta ou um bolo duro—,por uma libré, e levava-o para ajudar a servir. Renato, então, se fartava em companhia dos outros criados. Essa obrigação, que Du Bousquier transformara em recompensa, lhe valia a mais absoluta discrição do criado.

— Por aqui, senhorita?—perguntou Renato a Susana, vendo-a entrar.—Não é seu dia, não temos roupa, hoje, para mandar à sra. Lardot.

— Toleirão—disse-lhe Susana, rindo.

A linda moça subiu, deixando Renato acabar de comer uma tigelada de papa de trigo cozido no leite. Du Bousquier, ainda na cama, ruminava seus planos de fortuna, porque já não podia ser senão ambicioso, como todos os homens que espremeram demais a laranja do prazer. Assim, num homem bem organizado, as paixões que procedem do cérebro hão de sempre sobreviver às paixões emanadas do coração.

— Eis-me aqui—disse Susana, sentando-se na cama e fazendo ranger os cortinados nos varões de ferro, por um movimento bruscamente despótico.

— Que é isso, meu encanto?—perguntou o solteirão, sentando-se.

— Senhor—disse gravemente Susana—,deve estar espantado de me ver chegar dessa maneira, mas o fato é que me acho em circunstâncias que me obrigam a não me importar com os mexericos e os comentários.

— Mas a que vem tudo isso?—exclamou Du Bousquier, cruzando os braços.

— Então não compreende?—insistiu Susana.—Eu sei—continuou ela, fazendo um gracioso muxoxo—como é ridículo uma pobre rapariga vir aborrecer um homem por uma coisa que em geral se considera uma ninharia. Mas, se o senhor me conhecesse bem, se soubesse de tudo quanto eu sou capaz pelo homem que tivesse por mim uma dedicação igual à que tenho pelo senhor, estou certa de que nunca se arrependeria de ter casado comigo. Não é aqui, naturalmente, que eu lhe posso ser útil em alguma coisa, mas, se fôssemos para Paris, logo haveria de ver a que altura eu poderia levar um homem de espírito e de recursos como o senhor, num momento como este, em que estão reformando a administração de alto a baixo e em que os estrangeiros são os donos de tudo. Enfim, seja dito entre nós, o caso em questão é alguma desgraça? Não será, ao contrário, uma felicidade, que o senhor compraria caro um dia? Em que se interessa, para quem trabalha o senhor?

— Para mim mesmo, ora essa!—bradou brutalmente Du Bousquier.

— Velho monstro! Pois nunca há de ser pai!—disse Susana, dando à frase um tom de maldição profética.

— Vamos, nada de tolices, Susana! Parece que ainda estou sonhando!

— Mas que evidências exige, então?—exclamou Susana, levantando-se.

Du Bousquier esfregou o gorro de algodão na cabeça, imprimindo-lhe um movimento rotativo, num gesto de energia brigona que indicava a prodigiosa fermentação de suas ideias.

— Mas é que ele está mesmo acreditando—disse Susana consigo mesma—e sente-se envaidecido. Meu Deus, como é fácil lograr os homens!

— Susana, que diabo quer você que eu faça? É uma coisa tão extraordinária... Eu que pensava... O fato é que... Mas não, não, isso não pode ser...

— Que está dizendo? Não pode casar comigo?

— Ah! Quanto a isso, é claro que não. Eu tenho compromissos.

— E com quem? Com a srta. Armanda ou com a srta. Cormon, que já o recusaram ambas? Escute, sr. Du Bousquier, minha honra não precisa de guardas para arrastá-lo à Pretoria. Não me faltarão maridos, e eu não quero um homem incapaz de apreciar o quanto valho. Um dia poderá arrepender-se da maneira como está me tratando agora, porque coisa alguma neste mundo, nem ouro nem prata, me fará restituir-lhe o que lhe pertence, se recusar aceitá-lo hoje.

— Mas, Susana, estás mesmo certa?

— Ah, meu senhor!—proferiu a grisette, envolvendo-se em sua virtude.—Por quem está me tomando? Não lhe recordo as palavras que me deu, e que levaram à perdição uma pobre rapariga, cujo único defeito é o de ter tanta ambição quanto amor.

Du Bousquier estava entregue a mil sentimentos contraditórios, à alegria, à desconfiança, ao cálculo. Resolvera há muito tempo casar-se com a srta. Cormon, porque a Carta Constitucional (A Carta Constitucional foi promulgada por Luís XVIII em 1814.), a respeito da qual acabara de ruminar, oferecia à sua ambição a magnífica estrada política da Deputação. Ora, o casamento com a solteirona deveria colocá-lo tão alto na cidade que conseguiria adquirir grande influência. Assim, a tempestade provocada pela maliciosa Susana mergulhou-o num violento embaraço. Sem essa esperança secreta, ter-se-ia casado com Susana sem refletir e colocar-se-ia à frente do Partido Liberal de Alençon. Semelhante casamento o faria renunciar à melhor sociedade, para recair na classe burguesa dos negociantes, dos ricos fabricantes, dos criadores que, decerto, o carregariam em triunfo como seu candidato. Du Bousquier já previa o partido da Esquerda. Não escondia essa deliberação solene, e passava a mão pela cabeça, cuja nudez estava à mostra, pois o gorro tinha caído. Como todas as pessoas que ultrapassam a meta prevista e vão além do que esperavam, Susana ficou estupefata. Para esconder seu espanto, tomou a atitude melancólica de uma rapariga enganada diante do sedutor; mas, intimamente, ria como se estivesse numa festa, em alegre companhia.

— Minha cara menina, eu não caio em semelhantes embustes; eu é que não!

Tal foi a frase breve pela qual o antigo fornecedor finalizou as deliberações secretas. Du Bousquier vangloriava-se de pertencer a essa escola de filósofos cínicos que não querem ser logrados pelas mulheres e as incluem todas na mesma classe suspeita. Esses espíritos fortes, que são geralmente homens fracos, têm um catecismo para uso das mulheres. Para eles, desde a rainha até a modista, são todas essencialmente libertinas, levianas, tratantes, assassinas, até mesmo um pouco velhacas, congenitamente mentirosas e incapazes de pensar senão em ninharias. Para eles, as mulheres são bailarinas malfazejas, que se deve deixar dançar, cantar e rir; nelas, não veem nada de santo nem de grandioso; para eles não existe a poesia dos sentidos, mas apenas a sensualidade grosseira. Assemelham-se a comilões que tomam a cozinha pela sala de jantar. Nessa jurisprudência, a mulher, quando não é constantemente tiranizada, acaba reduzindo o homem à condição de escravo. Ainda sob esse aspecto, Du Bousquier era o oposto do cavaleiro de Valois.

Proferindo essa frase, jogou o gorro aos pés da cama, como o papa Gregório teria feito com o círio que derrubava ao fulminar uma excomunhão, e Susana ficou sabendo, dessa forma, que o solteirão usava chinó.

— Lembre-se, sr. Du Bousquier, de que, ao vir procurá-lo aqui, cumpri o meu dever—disse-lhe ela, majestosamente.—Lembre-se de que fui obrigada a lhe oferecer minha mão e a lhe pedir a sua; mas lembre-se, também, de que pus na minha atitude a dignidade da mulher que se respeita; não me rebaixei a ponto de chorar como uma tola, não insisti, não o atormentei. Agora conhece minha situação. Já sabe que eu não posso continuar aqui em Alençon; minha mãe me espancaria, e a sra. Lardot, que vive a cavalo sobre os princípios, agarrada a eles como se os passasse a ferro, me mandaria para o olho da rua. Pobre operária que eu sou, que me resta fazer? Ir para o hospital? Mendigar meu pão? Nunca! Prefiro atirar-me no Briante ou no Sarthe. Mas não é mais simples ir para Paris? Minha mãe poderá descobrir um pretexto para me mandar para lá: um tio que me chama, uma tia moribunda, uma senhora que deseja proteger-me. Basta ter o dinheiro necessário para a viagem e para tudo o que o senhor sabe...

Essa notícia tinha mil vezes mais importância para Du Bousquier do que para o cavaleiro de Valois; mas só os dois estavam de posse desse segredo, que só será desvendado pelo desfecho desta história. Por enquanto, basta dizer que a mentira de Susana causava uma tal confusão nas ideias do solteirão que ele se achava incapaz de refletir seriamente. Sem essa perturbação e sem sua alegria interior, porque o amor-próprio é um velhaco que nunca deixa escapar sua vítima, teria pensado que uma rapariga honesta como Susana, cujo coração não estava ainda estragado, teria morrido cem vezes antes de entabular semelhante discussão e de lhe pedir dinheiro. Reconheceria no olhar da grisette a cruel covardia do jogador, capaz de assassinar para conseguir a importância de uma aposta.

— Então irias a Paris?

Ouvindo essa frase, Susana teve um lampejo de alegria que lhe dourou os olhos cinzentos, mas o feliz Du Bousquier não viu nada.

— Iria, sim, senhor!

Du Bousquier expandiu-se em queixas estranhas: acabava de fazer o último pagamento de sua casa, tinha de pagar o pintor, o pedreiro, o marceneiro; mas Susana deixava-o falar, à espera de que estipulasse a quantia. Du Bousquier ofereceu cem escudos. Susana fez o que, em estilo de bastidor, se chama uma falsa retirada, e dirigiu-se para a porta.

— E então, aonde vais?—perguntou Du Bousquier, inquieto.—Eis a bela vida de solteiro—pensou ele.—Quero que o diabo me carregue se me lembro de lhe ter amarrotado outra coisa além do corpete! E, paf, ela se baseia numa brincadeira para arrancar à gente um cheque à queima-roupa!

— Mas, senhor—disse Susana chorando—,vou à casa da sra. Granson, tesoureira da Sociedade Maternal, que, conforme me disseram, tirou quase de dentro do rio uma pobre rapariga nas minhas condições.

— A sra. Granson!

— Sim—disse Susana—,a prima da srta. Cormon, que é presidente da Sociedade Maternal. Sem lhe faltar com o respeito, as senhoras da cidade criaram uma instituição que impedirá muitas pobres criaturas de destruírem seus próprios filhos; olhe, por ter feito isso, condenaram à morte uma em Mortagne, a linda Faustina d’Argentan; vai fazer três anos que isso aconteceu.

— Toma, Susana—disse Du Bousquier estendendo-lhe uma chave—,abre tu mesma a secretária, tira o saco que já está aberto; contém ainda seiscentos francos; é tudo quanto eu possuo.

O ar abatido do velho solteirão mostrava que estava agindo de má vontade.

— Velho avarento!—pensou Susana.—Hei de contar a todos que usas chinó.

Comparava Du Bousquier ao delicioso cavaleiro de Valois, que não lhe dera nada, mas que a compreendera, aconselhara e trazia no coração as raparigas de sua classe.

— Se estás me enganando, Susana—proferiu ele, vendo-a com a mão na gaveta—,eu te...

— Mas, meu senhor—disse ela, interrompendo-o com a insolência de uma princesa—,o senhor não me daria esse dinheiro, se eu o pedisse?

Reconduzido ao terreno da galanteria, o fornecedor recordou-se de seus bons tempos, e resmungou um grunhido de adesão. Susana tomou a sacola e saiu, deixando-se beijar na testa pelo solteirão, que parecia dizer: “Eis um direito que me custou caro. Mas isso é preferível a ser arrastado aos tribunais por um advogado como sedutor de uma rapariga acusada de infanticídio”.

Susana escondeu a sacola numa espécie de bolsa de vime fino que tinha no braço e amaldiçoou a avareza de Du Bousquier, porque contava com mil francos.

Quando lhe entra no corpo o demônio de um desejo e desde que botou o pé no caminho do engodo e da velhacaria, uma rapariga pode ir muito longe.

Caminhando pela Rue du Bercail, a bela engomadeira ia pensando que a Sociedade Maternal presidida pela srta. Cormon talvez lhe completasse a quantia em que avaliara suas despesas e que, para uma grisette de Alençon, representava uma importância considerável. Além disso, odiava Du Bouquier. O solteirão parecera temer a confidência de seu suposto crime à sra. Granson; ora, Susana, mesmo se arriscando a não conseguir um só vintém da Sociedade Maternal, quis, ao abandonar Alençon, enlear o antigo fornecedor nas peias indeslindáveis de uma intriga de província. Há sempre na grisette um pouco do espírito malfazejo do macaco. Assim, Susana entrou em casa da sra. Granson compondo um rosto desesperado.

A sra. Granson, viúva de um tenente-coronel de artilharia, morto em Iena, possuía por toda fortuna o magro montepio de novecentos francos, cem escudos de rendimentos próprios e mais um filho cuja educação e manutenção lhe haviam devorado as economias. Ocupava, na Rue du Bercail, um desses tristes andares térreos que, ao passar pela rua principal das cidadezinhas do interior, o forasteiro abrange num único olhar. Era uma porta bastarda, encabeçando três degraus em pirâmide; um corredor de entrada conduzia a um pátio interior, em cuja extremidade se achava uma escada coberta por uma galeria de madeira. De um lado do corredor, a sala de jantar e a cozinha; do outro, um salão que servia para todas as finalidades, e o quarto da viúva. Atanásio Granson, rapaz de vinte e três anos, alojado numa mansarda acima do primeiro andar desse prédio, concorria para as despesas da casa com os seiscentos francos de um empreguinho que a influência de sua parenta, srta. Cormon, lhe conseguira na Prefeitura da cidade, onde trabalhava no cartório do Registro Civil.

Por essas indicações, todos podem imaginar a sra. Granson no seu frio salão de cortinas amarelas e móveis forrados de veludo de Utrecht amarelo, apanhando, depois da saída de suas visitas, os capachos que colocava diante de cada cadeira, para que não se sujasse o ladrilho vermelho envernizado; depois, voltando à sua poltrona e retomando o seu trabalho na mesinha de costura colocada debaixo do retrato do tenente-coronel de artilharia, entre as duas janelas, lugar de onde os seus olhos se enfiavam pela Rue du Bercail inteira e viam passar toda a gente. Era uma mulher simplória, vestida com uma singeleza aburguesada que harmonizava com seu rosto pálido e como que laminado pelo desgosto. Em todos os acessórios desse lar, onde, aliás, se respiravam os costumes íntegros e severos da província, notava-se a mais rigorosa modéstia da pobreza.

Nesse momento, mãe e filho estavam na sala de jantar, tomando uma refeição composta de café, manteiga e rabanetes. Para que se compreenda o prazer que a visita de Susana iria causar à sra. Granson, é preciso explicar os segredos íntimos da mãe e do filho.

Atanásio Granson era um rapaz magro e pálido, de estatura mediana, com um rosto encovado onde seus olhos negros, crepitantes de pensamento, pareciam duas manchas de carvão. As linhas um pouco torturadas de sua face, o traço sinuoso de sua boca, seu queixo bruscamente arrebitado, o corte regular de uma fronte de mármore, uma expressão de melancolia causada pelo sentimento da miséria, em contradição com o poder que sabia possuir, tudo, nele, indicava um homem de talento aprisionado. Em qualquer outro lugar que não fosse a cidade de Alençon, o aspecto de sua pessoa lhe teria valido a proteção dos homens superiores ou das mulheres que reconhecem o gênio incógnito. Se não era o gênio, era, ao menos, a forma que o gênio costuma assumir; se não era a força de um grande coração, era o brilho que ela imprime ao olhar. Embora pudesse exprimir a mais elevada sensibilidade, o envelope da timidez destruía nesse moço até mesmo as graças da juventude, assim como os gelos da miséria impediam sua audácia de se revelar. A vida de província, sem finalidade, sem aprovações, sem estímulo, descrevia um círculo, dentro do qual agonizava esse pensamento que não tinha ainda sequer chegado à alvorada de seu dia. Aliás, Atanásio tinha essa altivez selvagem que a pobreza exalta nos homens de escol, que os engrandece durante a luta com os seres e as coisas, mas que, desde o início da vida, opõe obstáculos à sua elevação, ao seu triunfo. O gênio procede de duas maneiras: ou toma o que lhe serve onde o encontra, como fizeram Napoleão e Molière, assim que lhe aparece a oportunidade, ou espera que ela lhe vá ao encontro, depois de se ter pacientemente revelado. O jovem Granson pertencia à classe de homens de talento que se ignoram e se desencorajam facilmente. Sua alma era contemplativa. Vivia mais pelo pensamento do que pela ação. Talvez parecesse incompleto àqueles que não compreendem o gênio sem as cintilações apaixonadas do francês; mas era poderoso no mundo do espírito, e devia chegar, por uma sequência de emoções furtadas ao vulgar, a essas determinações súbitas que o revelam e que fazem com que os tolos digam: “É um louco”.

O desprezo que a sociedade extravasa sobre a pobreza ia matando Atanásio; o calor enervante de uma solidão que nada arejava ia afrouxando o arco sempre retesado, e a alma se fatigava nesse horrível jogo sem resultados. Atanásio era um homem que se poderia colocar entre as mais belas ilustrações da França; mas essa águia, fechada numa gaiola, sem alimento, deveria morrer de fome, depois de ter contemplado com olhos ardentes as campinas do espaço e os Alpes onde paira o gênio.

Embora seus trabalhos na Biblioteca da Cidade não despertassem atenção, ele escondia no fundo da alma seus pensamentos de glória, porque podiam prejudicá-lo; mas enterrava ainda mais profundamente o segredo de seu coração, uma paixão que lhe encovava as faces e amarelecia a fronte. Amava sua parente afastada, essa srta. Cormon que o cavaleiro de Valois e Du Bousquier, esses dois rivais desconhecidos, cercavam e espreitavam. Esse amor fora gerado pelo cálculo. A srta. Cormon passava por ser uma das pessoas mais ricas da cidade; o pobre menino tinha sido, portanto, levado a amá-la pelo desejo de felicidade material, pelo anelo mil vezes formado de dourar os velhos dias de sua mãe, pela vontade do bem-estar necessário aos homens que vivem pelo pensamento; mas esse ponto de partida tão inocente agora desonrava sua paixão aos seus próprios olhos. Temia, além disso, o ridículo que a sociedade lançaria sobre o amor de um moço de vinte e três anos por uma mulher de quarenta. No entanto, era uma paixão verdadeira, pois tudo o que, nesse gênero, possa parecer falso em outros lugares torna-se realidade na província. Efetivamente, os hábitos provincianos, sendo sem acasos, sem movimento nem mistério, forçam a necessidade do casamento. Nenhuma família aceita um rapaz de costumes dissolutos. Embora possa parecer natural, nas capitais, a ligação de um jovem como Atanásio com uma bonita moça como Susana, na província causará susto e dissolverá previamente o casamento de um rapaz pobre, enquanto a fortuna de um bom partido faz perdoar qualquer antecedente desagradável. Entre a depravação de certas ligações e o amor sincero, um homem de caráter, sem fortuna, não tem o direito de hesitar: prefere as desgraças da virtude às desgraças do vício. Mas, na província, são raras as mulheres que um moço pode amar: não conseguiria obter uma rapariga formosa e rica, numa região em que tudo é cálculo, e não lhe permitiriam escolher uma rapariga formosa e pobre, porque isso seria, como dizem os provincianos, juntar-se a fome com a vontade de comer; e, finalmente, a solidão monástica é perigosa para a mocidade. Essas reflexões explicam o motivo por que a vida de província se baseia tão fortemente no casamento. Por isso é que os temperamentos fortes e vivazes, forçados a se apoiar sobre a independência da miséria, acabam abandonando essas frias regiões onde o pensamento é perseguido por uma indiferença brutal, onde nem uma só mulher pode ou quer transformar-se em irmã de caridade junto a um homem de ciência ou de arte. Quem compreenderia a paixão de Atanásio pela srta. Cormon? Não seriam as pessoas ricas, esses sultões da sociedade que se cercam de haréns, nem os burgueses que seguem a estrada larga batida pelos preconceitos, nem as mulheres que, não desejando entender a paixão dos artistas, lhes impõem a pena de talião de suas próprias virtudes, supondo que os dois sexos se governam pelas mesmas leis. Aqui, talvez, seria conveniente apelar para os jovens que sofrem de seus desejos reprimidos no momento em que todas as forças se retesam, para os artistas doentes de seu gênio abafado pelo abraço sufocante da miséria, para os talentos que, a princípio perseguidos e sem amparo, tantas vezes sem amigos, acabaram por triunfar da dupla angústia da alma e do corpo igualmente doloridos. Esses conhecem bem os lancinantes ataques do câncer que devorava Atanásio; eles também agitaram essas longas e cruéis deliberações feitas em presença de fins tão grandiosos, para os quais não descobrem os meios; eles também sofreram esses abortos desconhecidos, em que a desova do gênio atravanca um areal estéril. Esses sabem que a grandeza dos desejos está em proporções com a força da imaginação. Quanto mais alto se lançam, mais baixo eles caem; e quantos laços se despedaçam nessas quedas! Sua visão aguda descobriu, como a de Atanásio, o futuro brilhante que os esperava e do qual só se julgavam separados por uma gaze esticada; essa gaze, que não lhes detinha o olhar, a sociedade transforma-a num muro de bronze. Impelidos por uma vocação, pelo sentimento da arte, eles também tentaram muitas vezes transformar em meios para alcançar um fim os sentimentos que a sociedade materializa incessantemente.

Então a província calcula e combina o casamento no intuito de conseguir para si mesma o bem-estar (Este trecho, como o anterior, refere-se ao próprio Balzac, que via a solução de todos os seus problemas de artista pobre e “doente de seu gênio” num casamento rico. (Ver a introdução ao romance.)), e é proibido a um pobre artista, ao homem de ciência, de lhe dar um duplo destino, de fazê-lo servir à salvação de seu pensamento, assegurando-lhe a existência?

Agitado por esses pensamentos, Atanásio Granson apenas considerou, a princípio, seu casamento com a srta. Cormon como um modo de resolver sua vida, que ficaria fixada; poderia, então, lançar-se até a glória, tornar a mãe feliz, e sabia-se capaz de amar fielmente a srta. Cormon. Em breve sua própria vontade criou, sem que ele o percebesse, uma paixão verdadeira: pôs-se a estudar a solteirona, e, em consequência do prestígio que o hábito exerce, acabou por só ver suas belezas e por esquecer seus defeitos. Num rapaz de vinte e três anos, os sentidos têm uma importância tão grande no amor! Eles têm um fogo que produz uma espécie de prisma entre seus olhos e a mulher. A esse respeito, o abraço com que Querubim prende Marcelina no palco (O abraço com que Querubim prende Marcelina no palco... Alusão a um episódio de O casamento de Fígaro, de Beaumarchais; alusão, aliás, um tanto errada, pois em nenhuma cena da peça Querubim abraça Marcelina no palco. Balzac, que está citando de memória, deve ter pensado na cena em que o jovem Querubim, adolescente cujo coração desperta à aproximação do amor, conta a Susana como a presença de qualquer mulher o perturba. A todas gostaria de fazer uma confissão de amor; até Marcelina, a governanta de meia-idade, que encontrou no quintal, dá-lhe essa tentação.) é um rasgo de gênio de Beaumarchais. Mas, se viermos a pensar que, na profunda solidão em que a miséria deixava Atanásio, a srta. Cormon era a única figura submetida à sua atenção, a única que atraía incessantemente o seu olhar, a única sobre a qual a luz caía em cheio, não acabaremos achando essa paixão natural? Esse sentimento tão profundamente oculto cresceu dia a dia. Os desejos, os sofrimentos, a esperança, as meditações avolumavam na calma e no silêncio o lago em que cada hora pingava a sua gota d’água, e que se estendia na alma de Atanásio. E, quanto mais se alargava o círculo interior que a imaginação, auxiliada pelos sentidos, descrevia, mais a srta. Cormon se tornava imponente e mais crescia a timidez de Atanásio. A mãe adivinhara tudo. E, como mulher da província, calculava ingenuamente, consigo mesma, as vantagens do negócio. Pensava que a srta. Cormon se julgaria muito feliz de ter para marido um jovem de vinte e três anos, cheio de talento, capaz de honrar a família e o país, mas os obstáculos que a pouca fortuna de Atanásio e a idade da srta. Cormon opunham a esse casamento lhe pareciam intransponíveis: só contava com a paciência para vencê-los. Da mesma forma que Du Bousquier e que o cavaleiro de Valois, tinha sua política, e mantinha-se à espreita das circunstâncias, esperando a hora propícia com essa finura que dão o interesse e a maternidade. A sra. Granson não desconfiava do cavaleiro de Valois, mas supunha que Du Bousquier, embora recusado, conservasse pretensões. Inimiga hábil e secreta do velho fornecedor, a sra. Granson lhe fazia um mal incrível para servir o filho, a quem, aliás, nada dissera de seus ardis dissimulados. Agora, quem não compreenderá a importância que ia adquirir a confidência da mentira de Susana, feita à sra. Granson? Que arma entre as mãos da dama de caridade, tesoureira da Sociedade Maternal! Como ela ia espalhar maciamente a notícia, esmolando para a casta Susana!

Nesse momento, Atanásio, pensativamente apoiado na mesa, remexia a colher na tigela vazia, contemplando com os olhos preocupados essa pobre sala de ladrilhos vermelhos, de cadeiras de palhinha, de aparador de madeira pintada, de cortinas cor-de-rosa e brancas que pareciam um tabuleiro de xadrez, forrada por um papel de cabaré, e que comunicava com a cozinha por uma porta envidraçada. Como estava encostado no aquecedor, em frente da mãe, e como o aquecedor ficava quase diante da porta, seu rosto pálido, bem iluminado pela claridade da rua, emoldurado por belos cabelos negros, seus olhos animados pelo desespero e acesos pelos pensamentos da manhã ofereceram-se de repente ao olhar de Susana. A grisette, que possuía certamente o instinto da miséria e dos sofrimentos do coração, ressentiu essa faísca elétrica, partida não se sabe de onde, que não se explica, que negam certos espíritos fortes, mas cujo choque simpático foi sentido por muitas mulheres e homens. É ao mesmo tempo uma luz que clareia as trevas do futuro, um pressentimento dos gozos puros do amor compartilhado, a certeza da compreensão mútua. E, principalmente, como que um toque de mão de mestre no teclado dos sentidos. O olhar fica fascinado por uma atração irresistível, o coração se emociona, as melodias da felicidade ressoam na alma e nos ouvidos, uma voz grita:—É ele. Depois, muitas vezes a reflexão joga uma ducha de água fria sobre essa ardente emoção, e tudo passa. Num momento, tão rápido quanto o riscar de um corisco, Susana recebeu uma rajada de pensamentos no coração. Um raio de amor verdadeiro tisnou as ervas daninhas desabrochadas ao sopro da libertinagem e da dissipação. Compreendeu quanto perdia em santidade e grandeza levantando contra si mesma um falso que a desonrava. O que na véspera não era a seus olhos senão uma brincadeira tornou-se uma sentença grave proferida contra sua pessoa. Recuou diante do sucesso. Mas a impossibilidade do resultado, a pobreza de Atanásio, a vaga esperança de enriquecer e de voltar de Paris com as mãos cheias para lhe dizer: “Eu te amava!”, a fatalidade, em suma, secou essa chuva benfazeja. A ambiciosa grisette pediu, com modos tímidos, um momento de atenção à sra. Granson, que a levou para o quarto. Ao sair, Susana olhou para Atanásio uma segunda vez, e, ao vê-lo na mesma atitude, reprimiu as lágrimas. Quanto à sra. Granson, essa estava radiante de alegria. Tinha afinal uma arma terrível contra Du Bousquier, e podia feri-lo de morte. Prometeu, portanto, à pobre rapariga seduzida o apoio de todas as damas de caridade, de todas as comanditárias da Sociedade Maternal. Já entrevia uma dúzia de visitas para fazer, que iriam ocupar todo o seu dia e durante as quais acumularia sobre a cabeça de Du Bousquier uma tempestade pavorosa. O cavaleiro de Valois, embora prevendo o desenvolvimento que o caso tomaria, não contava, entretanto, com todo o escândalo que seria provocado.

— Meu querido filho—disse a sra. Granson a Atanásio—,sabes que vamos jantar em casa da srta. Cormon. Trata um pouco mais de tua roupa. Fazes mal em descuidar assim tua aparência; andas vestido como um salteador. Põe tua camisa bonita, de refolhos, tua casaca de casimira verde de Elbeuf. Tenho minhas razões—acrescentou ela com uma expressão finória.—Aliás, a srta. Cormon está de partida para o Prébaudet, e irá muita gente à sua casa, hoje. Quando um rapaz está em idade de casar, deve servir-se de todos os meios para agradar. Meu Deus, se as moças quisessem dizer a verdade, ficarias muito espantado, meu filho, de saber o que é que as apaixona. Às vezes, basta que um homem tenha passado a cavalo à frente de um batalhão de artilheiros, ou que tenha aparecido no baile com roupas um pouco apertadas. Às vezes, um certo porte da cabeça, uma atitude melancólica fazem supor uma vida inteira; inventamos um romance de acordo com o herói; acontece que ele não é senão um tolo, mas o casamento está feito. Observa o cavaleiro de Valois, examina-o, imita suas maneiras; vê como ele se apresenta com desembaraço; não tem nada do teu modo desajeitado. Fala um pouco, dir-se-ia que não sabes nada, tu que conheces o hebraico de cor!

Atanásio escutou-a, espantado mas submisso, depois levantou-se, tomou o boné e dirigiu-se para a Prefeitura, conjeturando: “Teria minha mãe adivinhado meu segredo?”. Passou pela Rue du Val-Noble, onde morava a srta. Cormon, pequeno prazer que gozava todas as manhãs, imaginando mil coisas extravagantes: “Ela nem desconfia, certamente, que está passando neste momento, diante de sua casa, um moço que saberia amá-la, que lhe seria fiel, que nunca lhe daria um só desgosto, que lhe deixaria dispor de sua fortuna como entendesse, sem se meter. Meu Deus! Que fatalidade! Na mesma cidade, a dois passos uma da outra, duas pessoas se acham nas circunstâncias em que nós estamos, e nada pode aproximá-las. E se eu lhe falasse esta noite?”.

Enquanto isso, Susana voltava para casa pensando no pobre Atanásio; e, como muitas outras mulheres que desejaram sacrificar-se por homens adorados além das forças humanas, sentia-se capaz de lhe fazer, com seu belo corpo, um estribo para que ele atingisse prontamente a coroa que lhe cabia.

Agora é necessário entrar na casa da solteirona para a qual convergiam tantos interesses, e onde os atores desta cena, excetuando-se Susana, deveriam encontrar-se todos na mesma noite. Essa grande e linda criatura, bastante audaciosa para queimar os seus navios, como Alexandre (Queimar os seus navios como Alexandre... Na realidade é de Agátocles, tirano de Siracusa (séc. IV a.C.), e não de Alexandre, que se conta que, desejoso de vencer sua inimiga tradicional, Cartago, desembarcou na costa africana e queimou seus navios para assim não deixar a seus soldados outra alternativa além da vitória.), no início da vida, e para começar a luta por uma falta suposta, desapareceu do teatro depois de ter introduzido na peça um violento motivo de interesse. Seus votos, aliás, foram realizados. Deixou a cidade natal alguns dias depois, munida de dinheiro e de roupas bonitas, entre as quais se achava um magnífico vestido de veludo verde e um delicioso chapéu verde forrado de cor-de-rosa, dado pelo sr. de Valois, presente que ela preferia a todas as outras coisas, mesmo ao dinheiro das senhoras da Sociedade Maternal. Se o cavaleiro tivesse ido a Paris no momento em que ela brilhava nessa capital, Susana teria certamente abandonado tudo por ele. Semelhante à casta Susana da Bíblia (Segundo a Bíblia (Apêndice do Livro de Davi), dois juízes idosos, que se apaixonaram pela bela Susana, sua vizinha, não podendo obter-lhe os favores, acusaram-na falsamente de adultério e a condenaram à morte. A inocente beldade foi salva pelo jovem Daniel, que fez os acusadores caírem em contradição.), que os velhos mal haviam entrevisto, ela se estabeleceu em Paris, feliz e cheia de esperanças, enquanto toda a cidade de Alençon chorava suas desgraças, pelas quais as senhoras das duas Sociedades de Caridade e de Maternidade tinham revelado tanta simpatia.

Podendo, talvez, oferecer a imagem de uma dessas belas normandas que um médico sábio declarou constituírem um terço da consumação que a monstruosa Paris faz nesse gênero, Susana manteve-se, entretanto, nas regiões mais elevadas e decentes da vida galante. Numa época em que, conforme dizia o sr. de Valois, a Mulher não existia mais, ela foi simplesmente Madame du Valnoble; teria sido, em outros tempos, a rival das Ródope, das Impéria, das Ninon (Ródope: célebre cortesã grega do século VI a.C., contemporânea de Safo. Adquiriu riquezas consideráveis, e, segundo uma lenda, teria mandado construir a terceira pirâmide. Certo dia, quando se banhava num rio, uma águia carregou uma de suas sandálias e deixou-a cair sobre os joelhos do rei do Egito. Este, encantado com a forma do pé que a sandália deixava adivinhar, não descansou até descobrir a proprietária e casar com ela. - Impéria: cortesã italiana (1455-1511), famosa por sua beleza e seu espírito, muito celebrada em Roma durante os pontificados de Júlio II e de Leão X.). Um dos mais distintos escritores da Restauração (Este escritor distinto é Teodoro Gaillard, como veremos em Os comediantes sem o saberem.) tomou-a sob sua proteção. Talvez se case com ela? É jornalista, e está, portanto, acima da opinião, pois fabrica uma opinião nova de seis em seis anos.


II - A SRTA. CORMON


Na França, em quase todas as prefeituras de segunda ordem, existe um salão onde se reúnem pessoas consideráveis e consideradas, que não são ainda, entretanto, a nata da sociedade. O dono e a dona de casa figuram entre as sumidades do lugar e são recebidos em todos os lugares aonde queiram ir; não se realiza na cidade uma festa, um jantar diplomático, sem que eles sejam convidados; mas a gente dos castelos, os pares que possuem boas terras, a alta sociedade do departamento não lhes frequentam a casa e se mantêm junto a eles nos termos de uma visita feita e retribuída, de um jantar ou de uma recepção aceita e paga. Esse salão misto, onde se encontram a pequena nobreza de cargos fixos, o clero, a magistratura, exerce grande influência. A razão e o espírito do país residem nessa sociedade sólida e sem fausto, onde todos conhecem os rendimentos do vizinho, onde se professa uma perfeita indiferença pelo luxo e pelo vestuário, julgados verdadeiras criancices comparados com as pastagens de dez ou doze jeiras, cuja aquisição foi chocada durante anos e motivou imensas combinações diplomáticas. Inabalável nos seus preconceitos bons ou maus, esse cenáculo segue o mesmo caminho, sem olhar para a frente nem para trás. Não admite coisa alguma vinda de Paris sem um longo exame, recusa as casimiras assim como as inscrições no Grande Livro da dívida pública, caçoa das novidades, não lê nada e quer ignorar tudo: ciência, literatura, invenções industriais. Obtém a transferência de um prefeito que não lhe convém, e, caso o administrador resista, isola-o à moda das abelhas que cobrem de cera o caracol que lhes invade a colmeia. É aí, finalmente, que as tagarelices muitas vezes se tornam sentenças solenes. Por isso, embora nesses salões só se realizem partidas de jogo, as mulheres ali surgem de longe em longe, para buscar uma aprovação de sua conduta, uma consagração de sua importância. Essa supremacia concedida a uma casa fere frequentemente o amor-próprio de alguns naturais do lugar, que se consolam avaliando as despesas que ela acarreta e de que eles se aproveitam. Quando não se encontra uma fortuna bastante considerável para manter a casa aberta, os figurões escolhem para lugar de reunião, como fazia a gente de Alençon, a residência de uma pessoa inofensiva, cuja vida determinada, cujo temperamento ou posição deixam todos perfeitamente à vontade, sem fazer sombra nem às vaidades nem aos interesses de cada qual. Há muito tempo, assim, que a alta sociedade de Alençon se reunia em casa da solteirona, cuja fortuna, sem que o soubesse, estava sob a mira da sra. Granson, sua prima em terceiro grau, e dos dois solteirões de que acabamos de revelar as manobras secretas.

A srta. Cormon vivia em companhia do tio materno, antigo vigário-geral do Bispado de Séez, outrora seu tutor, e de quem devia herdar. A família, nessa época constando apenas de Rosa-Maria-Vitória Cormon, já tinha figurado, em tempos idos, entre as mais consideráveis da província. Embora plebeia, emparelhava-se com a nobreza, com a qual se tinha muitas vezes ligado por casamentos, e fornecera outrora intendentes aos duques de Alençon, inúmeros juízes à Magistratura e vários bispos ao Clero. O sr. Sponde, avô materno da srta. Cormon, foi eleito pela Nobreza para os Estados Gerais, e o sr. Cormon, seu pai, pelo Terceiro-Estado, mas nenhum dos dois aceitou a missão. Durante cem anos, aproximadamente, as filhas se tinham casado com fidalgos da província, de forma que essa família espalhara tantos rebentos pelo Ducado que abrangia todas as árvores genealógicas. Nenhuma outra burguesia podia se parecer mais com a nobreza.

Construída durante o reinado de Henrique IV por Pedro Cormon, intendente do último duque de Alençon, a casa onde habitava a srta. Cormon sempre pertencera à sua família. Entre todos os seus bens visíveis, esse era o que mais estimulava a cobiça de seus dois velhos namorados. No entanto, em vez de produzir rendimentos, esse prédio era um motivo de despesas. Mas é tão raro se encontrar numa cidade de província uma habitação situada no centro, sem má vizinhança, bela por fora, cômoda por dentro, que Alençon inteira compartilhava dessa inveja. O velho palacete era construído precisamente no meio da Rue du Val-Noble, chamada por corrupção o Val-Nobre, sem dúvida por causa da depressão que faz no terreno o Briante, riachinho que atravessa Alençon. A forte arquitetura produzida pela época de Maria de Médicis (Maria de Médicis (1573-1642): rainha da França a partir de 1599, regente após a morte do marido Henrique IV, em 1610, durante a menoridade de seu filho, Luís XIII.) tornava essa casa notável. Embora construída em granito, pedra difícil de ser trabalhada, seus ângulos, as esquadrias de suas janelas e portas eram decorados por saliências talhadas à ponta de diamante. Compunha-se de um pavimento acima do andar térreo; seu telhado, extremamente elevado, apresentava janelas salientes, com tímpanos esculpidos, muito elegantemente encaixadas na calha forrada de chumbo, ornada exteriormente por balaústres. Entre cada janela projetava-se uma gárgula, figurando uma goela fantástica de animal sem corpo, que vomita água sobre grandes pedras furadas por cinco buracos. Os dois torrões eram terminados pelos ramos de flores em chumbo, símbolos da burguesia, pois só aos nobres era outrora permitido o direito de terem galo-dos-ventos. Do lado do pátio, à direita, ficam as cocheiras e as estrebarias; à esquerda, a cozinha, o depósito de lenha e a lavanderia. Um dos batentes da larga porta por onde entravam os carros ficava aberto e era guarnecido por uma portinhola baixa, com claraboia e campainha, que permitia aos transeuntes avistar, no meio do vasto pátio, um canteiro de flores cuja terra amontoada era retida por uma cercazinha de alfeneiros. Algumas roseiras das quatro estações, goivos, escabiosas, lírios e giestas de Espanha compunham o canteiro, em volta do qual costumavam colocar, durante a boa estação, caixotes de loureiros, romanzeiros e murtas. Impressionado pelo asseio minucioso que distinguia esse pátio e suas dependências, um estrangeiro poderia adivinhar a solteirona. O olhar que presidia essas coisas devia ser um olhar desocupado, investigador, conservador menos por temperamento do que por necessidade de ação. Só uma solteirona, preocupada em empregar seus dias sempre vazios, poderia mandar arrancar a erva entre os lajedos, limpar o alto dos muros, exigir que o chão fosse continuamente varrido, nunca deixar abertas as cortinas de couro da cocheira. Só ela seria capaz de introduzir, por falta do que fazer, uma espécie de asseio holandês numa provinciazinha isolada entre a Bretanha e a Normandia, terra em que se professa com orgulho uma indiferença crassa pelo conforto. Nunca o cavaleiro de Valois nem Du Bousquier subiam os degraus da escada de dois lances, que envolvia o patamar em forma de tribuna, sem pensar um que aquele palacete convinha a um par de França e outro que o prefeito da cidade deveria residir ali. Uma porta-janela comunicava esse saguão com uma antecâmara, onde havia uma segunda porta semelhante, saindo para outro patamar, do lado do jardim. Essa espécie de galeria ladrilhada de vermelho, apainelada até a altura de um homem, era o hospital dos retratos da família doentes: alguns tinham um olho estragado, outros sofriam de um ombro avariado; este segurava o chapéu em mão que já não existia, aquele tinha uma perna amputada. Ali se depositavam os casacos, os tamancos, as galochas, os guarda-chuvas, os toucados e as peliças. Era o arsenal em que cada visitante deixava a bagagem, à entrada, e a retomava à saída. Para isso, ao longo das paredes, havia uma banqueta, onde se sentavam os criados que chegavam armados de lanternas, e um grande aquecedor a fim de combater o vento frio que vinha ao mesmo tempo do pátio e do jardim. A casa, portanto, era dividida em duas partes iguais. De um lado, dando para o pátio, ficava o socavão da escada, e, dando para o jardim, uma espaçosa sala de jantar, seguida de uma copa que comunicava com a cozinha; do outro, ficava um salão de quatro janelas, depois duas peças pequenas, uma com vista para o jardim e formando a saleta de estar, outra abrindo para o pátio e servindo de gabinete. O primeiro andar continha um apartamento completo para uma família e os aposentos onde residia o velho padre Sponde. As mansardas deviam, sem dúvida, oferecer muitos alojamentos há longo tempo habitados pelos ratos e camundongos, cujos altos feitos noturnos eram contados ao cavaleiro de Valois pela srta. Cormon, espantadíssima da inutilidade dos meios empregados contra eles.

O jardim, que media aproximadamente cinquenta varas quadradas, era margeado pelo rio Briante, ou Brillante, assim chamado por causa das parcelas de mica que palhetam seu leito em todo o resto de seu percurso que não seja a Rue du Val-Noble, por onde suas águas magras passam carregadas das tintas e sujeiras lançadas pelas indústrias da cidade. A margem oposta ao jardim da srta. Cormon era atravancada, como em todas as cidades de província por onde passa um rio, de casas onde se exercem profissões diversas; mas, por felicidade, em frente do palacete só vivia gente sossegada, burgueses, um padeiro, um limpador de nódoas, marceneiros. Esse jardim, cheio de flores comuns, era naturalmente terminado por um terraço formando cais, tendo uma escadinha que descia até o Brillante. Na balaustrada do terraço, imaginem-se grandes jarrões de porcelana azul e branca, plantados de goivos; à direita e à esquerda, ao longo dos muros vizinhos, suponham-se dois parapeitos de tílias talhados em quadrado; assim se terá uma ideia da paisagem cheia de singeleza pudica, de castidade tranquila, de vistas modestas e burguesas oferecidas pela beira oposta e suas casas ingênuas, as águas raras do Brillante, o jardim, seus dois parapeitos colados de encontro aos muros vizinhos, e o venerável edifício dos Cormon. Que paz! Que calma! Nada de pomposo, como nada de transitório; tudo, aí, parecia eterno.

O andar térreo pertencia, portanto, à recepção. Tudo indicava a velha, inalterável província. O grande salão quadrado de quatro portas e quatro janelas era modestamente revestido de painéis em madeira trabalhada, pintados de cinzento. Um único espelho, oblongo, achava-se sobre o aquecedor, e o alto do tremó representava o Dia conduzido pelas Horas, pintado em aquarela. Esse gênero de pintura infestava todas as bandeiras de porta, onde o artista inventara essas “estações” que, numa grande parte das casas do centro da França, fazem com que se acabe por detestar os intoleráveis Amores ocupados em ceifar, patinar, semear ou atirar flores uns nos outros. Cada janela era ornada por cortinas de seda adamascada verde, arrepanhadas por cordões de grossas borlas, desenhando enormes baldaquins. A mobília forrada de tapeçaria, feita de madeira pintada e envernizada, distinguia-se pelas formas contornadas, tão em moda no último século, e oferecia em seus medalhões as fábulas de La Fontaine; mas algumas beiradas das cadeiras e das poltronas já tinham sido serzidas. Dividindo o teto pelo meio, uma trave grossa sustentava um velho candelabro de cristal de rocha, embrulhado num forro verde. No aquecedor havia dois vasos de Sèvres, azuis, velhas girândolas presas no tremó e uma pêndula cujo assunto, tomado da última cena de O desertor (O desertor: ópera cômica de Sedaine com música de Monsigny (1769).), atestava a voga prodigiosa da obra de Sedaine. Essa pêndula de cobre dourado se compunha de onze personagens, medindo cada um quatro polegadas de altura: no fundo, o desertor saía da prisão entre seus soldados; no primeiro plano, uma jovem desmaiada lhe mostrava o indulto. A lareira, as pás e as tenazes eram de um estilo análogo ao do relógio. Os painéis das paredes tinham como ornamento os mais recentes retratos da família, um ou dois Rigaud e três quadros a pastel de Latour (Rigaud: Hyacinthe Rigaud (1659-1743), pintor francês, retratista, autor de famosos retratos de Luís XIV, Bossuet etc.—Latour: Maurice Quentin de La Tour (1704-1785), pastelista francês, célebre por seus retratos.). Quatro mesas de jogo, um tabuleiro de gamão, uma mesa de piquet atravancavam essa peça imensa, que era, aliás, a única assoalhada. O gabinete de trabalho, inteiramente apainelado de velho charão vermelho, preto e dourado, devia valer, alguns anos mais tarde, um preço exorbitante, de que a srta. Cormon não tinha a menor ideia; mas, mesmo que lhe tivessem oferecido mil escudos por painel, ela não os venderia, pois tinha o costume de não se desfazer de coisa alguma. A província acredita sempre nos tesouros escolhidos pelos antepassados. A inútil saleta era forrada por essa velha estamparia de seda, hoje tão procurada por todos os amadores de gênero chamado Pompadour. A sala de jantar, lajeada de pedras pretas e brancas, sem teto, mas de traves pintadas, era mobiliada por esses enormes aparadores com tampos de mármore, exigidos, na província, pelas batalhas travadas com os estômagos. As paredes, pintadas a fresco, representavam uma latada de flores. Os assentos eram de cana envernizada, e as portas, em nogueira natural. Tudo completava o ar patriarcal que se respirava no exterior como no interior dessa casa. O gênio da província conservara tudo: nada era novo nem antigo, jovem nem decrépito. Em tudo se fazia sentir uma fria exatidão.

Todos os turistas da Bretanha e da Normandia, do Maine e do Anjou devem ter visto, nas capitais dessas províncias, certas casas que se pareciam mais ou menos com o palacete dos Cormon, pois ele era, no seu gênero, o arquétipo das casas burguesas de uma grande parte da França, e merece, portanto, seu lugar nesta obra que explica costumes e representa ideias. Quem já não sabe quanto era calma e rotineira a vida nesse velho edifício?

A casa dos Cormon tinha também a sua biblioteca, que se achava situada um pouco abaixo do nível do Brillante, bem encadernada e resguardada. A poeira, ao invés de prejudicá-la, fazia-a valer. As obras eram ali conservadas com o cuidado que se dispensa, nessas províncias privadas de vinhedos, aos produtos mais naturais, primorosos, recomendáveis por seus perfumes antigos e produzidos pelos prelos da Borgogne, da Touraine, da Gascogne e do Midi. O preço dos transportes era muito alto para que se mandasse buscar vinho ordinário.

O fundo da sociedade que frequentava a casa da srta. Cormon compunha-se de cento e cinquenta pessoas, aproximadamente. Algumas iam para o campo; estas estavam doentes; aquelas, viajando pelo departamento, para tratar de negócios; mas existiam certos fiéis que, exceto nas recepções a convite, compareciam todos os dias, tais como as pessoas forçadas, por hábito ou dever, a permanecer na cidade. Eram todos, geralmente, de idade madura; entre eles, poucos tinham viajado; a maioria ficara na província, e alguns, até, se tinham metido no levante dos chouans. Já se começava a falar sem temor nessa guerra, desde que haviam chegado recompensas para os defensores da boa causa. O sr. de Valois, um dos promotores da última escaramuça, em que pereceu o marquês de Montauran, traído pela própria amante, e na qual se ilustrou o famoso Marche-à-Terre, que fazia, então, tranquilamente, o comércio de gado nos arredores de Mayenne, dava, havia seis meses, a chave de algumas boas peças pregadas a um velho republicano chamado Hulot, comandante de uma meia brigada aquartelada em Alençon de 1798 a 1800, e que deixara recordações no lugar (Ver A Bretanha em 1799. (Nota de Balzac.)).

As mulheres compareciam vestidas com simplicidade, exceto às quartas-feiras, dia em que a srta. Cormon dava jantar e em que os convidados da última quarta-feira pagavam sua vista de digestão. As quartas-feiras tinham grande concorrência; a assembleia era numerosa, e convidados e visitantes vestiam-se in fiocchi (In fiocchi (em italiano): em traje de gala.), algumas mulheres levavam costuras, tricôs, tapeçarias à mão; certas jovens trabalhavam sem acanhamento em desenhos para o ponto de Alençon, de cujo produto se mantinham. Vários maridos levavam as mulheres por política, porque sabiam que iriam encontrar poucos rapazes; não se podia balbuciar nenhuma palavrinha ao ouvido sem chamar a atenção; assim, não havia perigo, para as donzelas nem as mulheres, de se ouvir qualquer dito de amor.

Todas as tardes, às seis horas, a longa antecâmara se enchia de seu mobiliário; cada visitante trazia quer uma bengala, quer um capote, quer uma lanterna. Todas essas pessoas se conheciam tão bem, os hábitos eram tão patriarcais que, se por acaso o velho padre Sponde ou a srta. Cormon estivesse ainda no quarto, nem a arrumadeira Pérotte nem o criado Jacquelin nem a cozinheira ia avisá-los. O que chegasse primeiro esperava pelo segundo; depois, quando havia número para um piquet ou uíste ou um bóston, os frequentadores costumeiros começavam o jogo, sem esperar pelo padre Sponde ou pela senhorita.

Quando escurecia, Jacquelin ou Pérotte atendia ao toque da campainha e acendia as luzes. Vendo o salão iluminado, o padre Sponde para lá se dirigia lentamente.

Todas as noites, o gamão, a mesa de piquet, as três mesas de bóston e a de uíste ficavam completas, o que dava uma média de vinte e cinco a trinta pessoas, contando com as que ficavam conversando; mas às vezes compareciam mais de quarenta. Jacquelin, então, acendia o gabinete e a saleta. Entre oito e nove horas começavam a chegar na antecâmara os criados que iam buscar os patrões; e, a menos que houvesse uma revolução, às dez horas não havia mais ninguém nas salas. A essa hora, as visitas saíam em grupos pelas ruas, dissertando sobre os lances do jogo ou continuando algumas observações sobre as pastagens que tinham em vista, sobre as partilhas das sucessões, sobre as desavenças que separavam os herdeiros, sobre as pretensões da sociedade aristocrática. Parecia a saída de um teatro, em Paris.

Certas pessoas, falando muito de poesia, de que não entendem nada, investem contra os hábitos da província. Mas ponhamos a fronte na mão esquerda, apoiemos o pé na barra da lareira, encostemos o cotovelo no joelho; depois, se já estivermos iniciados no conjunto doce e liso que apresentam essa paisagem, essa casa e seu interior, a companhia e seus interesses aumentados pela pequenez dos espíritos, como o ouro batido entre as folhas de pergaminho, perguntaremos ainda o que é a vida humana? Procuremos decidir entre aquele que gravou patos nos obeliscos egípcios e aquele que jogou bóston durante vinte anos com Du Bousquier, o sr. de Valois, a srta. Cormon, o presidente do Tribunal, o procurador do rei, o padre Sponde, a sra. Granson, e tutti quanti (Tutti quanti: todos quantos são. Expressão italiana que se emprega para encerrar uma enumeração.)? Se a repetição certa e cotidiana dos mesmos passos no mesmo caminho não é a felicidade, ela a imita tão bem que as pessoas, levadas pelas tempestades de uma vida agitada a refletir sobre os benefícios da tranquilidade, dirão que essa é que é felicidade. Para avaliar a importância do salão da srta. Cormon, bastará dizer que Du Bousquier, estatístico nato da sociedade, tinha calculado que as pessoas que o frequentavam possuíam cento e trinta e uma vozes no Colégio Eleitoral e reuniam um milhão e oitocentas mil libras de rendimentos em latifúndios na província. A cidade de Alençon não estava, entretanto, inteiramente representada por esse salão; a alta sociedade aristocrática tinha o seu, e havia ainda o salão do recebedor-geral, que era como um albergue administrativo mantido pelo governo, onde se dançava, intrigava, borboleteava, amava e ceava. Esses dois outros salões comunicavam com o da srta. Cormon por meio de algumas pessoas mistas, e vice-versa; mas o salão Cormon julgava com severidade as coisas que se passavam nos dois outros campos: criticava o luxo dos jantares, ruminava os sorvetes dos bailes, discutia a conduta das mulheres, os vestidos, as invenções novas que ali surgiam.

A srta. Cormon, espécie de razão social sob a qual se compreendia uma companhia imponente, devia necessariamente ser o ponto de mira de dois ambiciosos tão profundos quanto o cavaleiro de Valois e Du Bousquier. Para um e para outro, ali estava a Deputação e, por conseguinte, o pariato para o nobre, e uma Recebedoria Geral para o fornecedor. Tão dificilmente se cria um salão dominador na província como em Paris; e aquele já estava criado. Casar com a srta. Cormon seria reinar em Alençon. Atanásio, único dos três pretendentes que não calculava mais nada, amava tanto a pessoa quanto a fortuna. Para empregar a linguagem da época, não havia um drama singular na situação dessas quatro personagens? Não se nota qualquer coisa de estranho nessas três rivalidades silenciosamente comprimidas em torno de uma solteirona que não as adivinhava, apesar de seu desmesurado e legítimo desejo de se casar? Mas, embora todas essas circunstâncias tornem o celibato dessa solteirona um caso extraordinário, não é difícil explicar como e por que, apesar de sua fortuna e de seus três pretendentes, ela ainda estava solteira. Primeiro, segundo a jurisprudência da casa, a srta. Cormon sempre tivera o desejo de desposar um fidalgo; mas, de 1789 a 1799, as circunstâncias foram muito desfavoráveis à sua pretensão. Mesmo desejando ser mulher de condição, tinha um medo terrível do tribunal revolucionário. Esses dois sentimentos, de força igual, tornaram-na estacionária, por uma lei tão verdadeira em estética quanto em estática. Esse estado de incerteza, aliás, agrada às donzelas, enquanto se julgam jovens e com direito a escolher um marido.

A França bem sabe que o sistema político adotado por Napoleão produziu muitas viúvas. Sob esse governo, as herdeiras ficaram em número desproporcionado com o dos rapazes casadouros. Quando o Consulado restabeleceu a ordem interior, as dificuldades exteriores tornaram o casamento da srta. Cormon tão difícil quanto no passado. Se, por um lado, Rosa-Maria-Vitória recusava desposar um velho, por outro, o temor do ridículo e as circunstâncias impediam-na de casar com um rapazinho novo. Ora, as famílias casavam cedo os seus rapazes, a fim de livrá-los do alcance da conscrição. Enfim, por uma teimosia de proprietária, também não se casaria com um soldado, pois não tomava um homem para devolvê-lo ao imperador; queria conservá-lo só para si. De 1804 até 1815, foi-lhe, portanto, impossível lutar com as moças que disputavam os partidos decentes, escasseados pelo canhão. Além de sua predileção pela nobreza, a srta. Cormon teve a mania muito desculpável de querer ser amada desinteressadamente. Não se pode avaliar até onde a levara esse desejo. Empregara todo o espírito em armar mil ciladas a seus adoradores a fim de lhes descobrir o verdadeiro sentimento. Seus laços foram tão bem armados que os infelizes se deixaram enlear e sucumbiram nas provas extravagantes que ela lhes impunha sem que o percebessem. A srta. Cormon não os estudava; espionava-os. Uma palavra dita sem pensar, um gracejo que ela às vezes compreendia mal era quanto bastava para fazê-la rejeitar esses postulantes como indignos; este não tinha coração nem delicadeza, aquele mentia e não era cristão; um queria tosquiar seus bosques e cunhar moedas sob o véu do casamento, o outro não tinha um gênio que combinasse com o seu e não a faria feliz; aqui, adivinhava uma gota hereditária; lá, antecedentes imorais assustavam-na. Como a Igreja, exigia um belo padre para seus altares; depois, queria ser desposada por sua falsa fealdade e seus supostos defeitos, como as mulheres o querem por qualidades que não possuem e por belezas hipotéticas. A ambição da srta. Cormon tinha sua fonte nos mais delicados sentimentos da mulher; contava brindar o amante desvendando-lhe mil virtudes depois do casamento, como outras mulheres descobrem as mil imperfeições que disfarçaram cuidadosamente; mas foi mal compreendida: a nobre criatura não encontrou senão almas vulgares em que reinava o cálculo dos interesses positivos e que nada entendiam dos belos cálculos do sentimento. Quanto mais se encaminhava para essa época fatal, tão engenhosamente chamada de segunda mocidade, mais sua desconfiança aumentava. Aplicava-se em se apresentar sob a luz mais desfavorável e representava tão bem seu papel que os últimos aliciados hesitaram em ligar sua sorte à de uma pessoa cujo virtuoso jogo de cabra-cega exigia um estudo de que poucos homens são capazes, pois todos preferem uma virtude já feita. O temor constante de ser procurada só pela sua fortuna tornava-a inquieta, suspeitosa demais; escorraçou a gente rica: e a gente rica podia contrair grandes casamentos; temia a gente pobre, recusando-lhes o desinteresse de que fazia tanta questão em caso semelhante; dessa forma, suas exclusões e as circunstâncias limitaram estranhamente o número dos homens assim selecionados, como grãos de ervilha num tabuleiro.

À custa de tantos projetos de casamento desmanchados, a pobre criatura, levada a desprezar os homens, acabou por considerá-los sob uma luz falsa. Seu gênio contraiu, necessariamente, uma misantropia íntima, lançando certa tonalidade de amargura em suas conversas e alguma severidade em seu olhar. Seu celibato determinou uma rigidez crescente em seus costumes, pois ela tentava aperfeiçoar-se em desespero de causa. Nobre vingança! Lapidou para Deus o diamante bruto rejeitado pelo homem. Em breve a opinião pública lhe foi contrária, pois o público aceita a sentença que uma pessoa livre pronuncia contra si mesma não se casando, por falta de partidos ou porque os recusou. Todos julgam que essa recusa é baseada em razões secretas, sempre mal interpretadas. Este dizia que ela era malconformada, aquele lhe atribuía mil defeitos secretos; mas a pobre criatura era pura como um anjo e cheia de boa vontade, pois a natureza a destinara a todos os prazeres, a todas as felicidades, a todas as fadigas da maternidade.

No entanto, a srta. Cormon não encontrava em sua própria pessoa a auxiliar obrigada de seus desejos. Não tinha outra beleza senão a que se chama tão impropriamente “beleza do diabo”, e que consiste numa grande frescura de mocidade, beleza que, teologicamente falando, o diabo não saberia ter, a menos que se queira explicar essa expressão pela constante vontade que ele tem de se refrescar. Os pés da herdeira eram largos e chatos; suas pernas, que mostrava muitas vezes pela maneira com que, sem a menor malícia, arrepanhava o vestido quando saía de casa ou da igreja de Saint-Léonard nos dias de chuva, não podiam ser tomadas pelas pernas de uma mulher. Eram pernas nervosas, de panturrilhas pequenas, salientes e cabeludas, como as de um marinheiro. A cintura largona, uma gordura de ama de leite, braços fortes e carnudos, mãos vermelhas, tudo nela se harmonizava com as formas convexas e com a rechonchuda brancura das belezas normandas. Olhos de cor indecisa, e à flor do rosto, davam à sua face, cujos contornos arredondados não tinham a menor nobreza, um ar de espanto, uma expressão simplória de carneiro, que ficavam bem numa solteirona: se Rosa não fosse inocente, teria aparentado inocência. Seu nariz aquilino contrastava com a fronte pequena, pois é raro que esse formato de nariz não acompanhe uma fronte larga e bela. Apesar de seus grossos lábios vermelhos, indício de grande bondade, essa testa anunciava pobreza de ideias, o que fazia supor que o coração não fosse dirigido pela inteligência; ela devia ser benfazeja sem graça. Ora, costuma-se censurar severamente os defeitos da Virtude, e aceitar com indulgência as qualidades do Vício. Cabelos castanhos, de um comprimento extraordinário, emprestavam à figura de Rosa Cormon essa beleza que é o resultado da força e da abundância—principais características de sua pessoa. Nos tempos de suas pretensões, Rosa fazia questão de se colocar sempre de três quartos, a fim de mostrar a orelha muito bonita, bem destacada no meio do branco azulado de seu pescoço e de suas têmporas, realçada por sua enorme cabeleira. Vista assim, em roupa de baile, podia parecer bela. Suas formas protuberantes, sua estatura, sua saúde vigorosa arrancavam aos oficiais do Império essa exclamação: “Que belo pedaço de mulher!”. Mas, com o correr dos anos, a gordura elaborada por uma vida tranquila e casta se tinha insensivelmente espalhado tão mal por esse corpo que acabara destruindo as proporções primitivas. Nesse momento, colete algum podia modelar quadris na pobre rapariga, que parecia talhada numa só peça. Já não existia a harmonia jovem de seu busto, e sua excessiva amplidão fazia temer que, ao se abaixar, ela fosse arrastada por essas massas superiores; mas a natureza a dotara de um contrapeso natural que tornava inútil a mentirosa precaução das anquinhas. Tudo nela era natural. Triplicando-se, o queixo diminuíra o comprimento do pescoço e embaraçava o porte da cabeça. Rosa não tinha rugas, mas pregas, e os engraçados diziam que, para não se cortar, ela usava pó de arroz nas articulações, como se faz com as crianças de colo. Essa criatura nutrida oferecia a um rapaz desvairado de desejos, como Atanásio, o gênero de atrações que deveria seduzi-lo. As imaginações jovens, essencialmente ávidas e corajosas, gostam de se estender sobre esses belos lençóis vivos. Era a perdiz roliça, apetitosa para a faca de um guloso. Muitos parisienses elegantes e endividados se teriam resignado a fazer com muita exatidão a felicidade da srta. Cormon. Mas a coitada já tinha mais de quarenta anos! Nessa época, depois de ter combatido muito tempo para introduzir em sua vida os interesses que formam a mulher, e forçada, entretanto, a continuar solteira, fortificava-se na virtude pelas mais severas práticas religiosas. Recorrera à religião, essa grande consoladora das virgindades bem guardadas! Seu confessor dirigia-a nesciamente, nos últimos três anos, pela estrada das macerações, e recomendava-lhe o uso da disciplina, que, segundo afirma a medicina moderna, produz o efeito oposto ao que dela esperava um pobre sacerdote de limitados conhecimentos de higiene. Essas práticas absurdas começavam a espalhar uma lividez monástica no rosto de Rosa Cormon, que às vezes se desesperava ao ver sua tez branca contrair os tons amarelados que anunciam a maturidade. A ligeira penugem que ornava os cantos de seu lábio superior começava a espalhar-se, desenhando como que uma fumaça. As têmporas tomavam uns tons reluzentes. Enfim, a decadência começava.

Toda Alençon sabia de modo autêntico que o sangue atormentava a srta. Cormon. Ela fazia suas confidências ao cavaleiro de Valois, dizendo-lhe o número de escalda-pés que tomava e combinando com ele refrigerantes. O finório compadre tirava então a caixa de rapé, e, em forma de conclusão, contemplava a princesa Goritza.

— O verdadeiro calmante—dizia então—seria um belo e bom marido, minha querida senhorita.

— Mas em quem confiar?—respondia ela.

O cavaleiro caçava então os grãos de tabaco que se metiam nas dobras das calças e do colete. Para todo mundo, esse gesto seria muito natural, mas causava sempre inquietações à pobre donzela. A violência dessa paixão sem objeto era tão grande que Rosa não ousava mais olhar para um homem face a face, tanto temia demonstrar nos olhos o sentimento que a pungia. Por um capricho, que talvez não fosse senão a continuação de seus antigos processos, tinha tanto medo de ser acusada de loucura parecendo fazer a corte aos homens que podiam ainda lhe convir, e pelos quais se sentia atraída, que chegava a tratá-los com pouca delicadeza. A maioria das pessoas de sua roda, incapazes de lhe apreciar os motivos, sempre tão nobres, explicavam sua maneira de proceder para com seus cocelibatários como a vingança de uma recusa recebida ou prevista.

Ao começar o ano de 1815, Rosa atingia quarenta e dois anos—idade fatal que não confessava. Seus desejos adquiriram então uma intensidade que se aproximava da monomania, pois compreendeu que toda possibilidade de progenitura acabaria por se perder; e o que ela desejava acima de tudo, na sua celeste ignorância, era ter filhos.

Não havia em toda a cidade de Alençon uma pessoa só que atribuísse a essa virtuosa criatura um único anseio das licenças amorosas: ela amava em bloco, sem nada imaginar do amor. Era uma Agnès católica, incapaz de inventar uma única das astúcias da Agnès de Molière (Agnès: personagem da Escola de mulheres, de Molière, pupila de Arnolfo, homem de certa idade que a educa mantendo-a na maior ingenuidade para depois casar com ela; ela, porém, engana-o antes mesmo do casamento.).

Havia alguns meses que punha suas esperanças num acaso. O licenciamento das tropas imperiais e a reconstituição do Exército real operavam certos movimentos no destino de muitos homens, que voltavam, uns com meio-soldo, outros com ou sem montepio, para sua cidade natal, todos tendo o desejo de corrigir a má sorte e de chegar a um fim—que, para a srta. Cormon, podia ser um delicioso começo. Seria difícil não encontrar, entre aqueles que voltariam para os arredores, algum bravo militar respeitável, válido principalmente, de idade proporcional à sua, cujo caráter serviria de passaporte às opiniões bonapartistas. Talvez mesmo descobrisse algum que, para reaver uma posição perdida, se fizesse monarquista. Esse cálculo sustentou ainda durante os primeiros meses do ano a srta. Cormon na severidade de sua atitude. Mas os militares que foram residir na cidade eram todos velhos ou jovens demais, bonapartistas extremados ou pessoas de maus costumes, em situações incompatíveis com os hábitos, a posição e a fortuna da srta. Cormon. E assim, dia a dia, ela ia desesperando. Os oficiais superiores tinham todos aproveitado a vantagem de sua posição, durante o domínio napoleônico, para casar, e agora se tornavam monarquistas no interesse da família.

Por mais que a srta. Cormon implorasse a Deus a graça de lhe enviar um marido para que pudesse ser cristãmente feliz, estava sem dúvida escrito que ela morreria virgem e mártir, porque não se apresentava nenhum homem que tivesse o jeito de um marido.

As conversas travadas todas as noites em sua casa faziam tão bem o policiamento do Estado Civil que não chegava um só estrangeiro em Alençon sem que ela fosse informada de seus costumes, de sua fortuna e de sua condição. Mas Alençon não é uma cidade que atraia o estrangeiro; não fica no caminho de nenhuma capital; não tem acasos. Os marinheiros que se dirigem de Brest a Paris nem sequer param em Alençon.

A pobre Rosa acabou por compreender que estava reduzida aos indígenas; por isso, seus olhos tomavam às vezes uma expressão feroz, a que o malicioso cavaleiro correspondia com um olhar fino, tomando a tabaqueira e contemplando a princesa Goritza. O sr. de Valois sabia que na jurisprudência feminina a primeira fidelidade é uma garantia de futuro. Mas devemos confessar que a srta. Cormon tinha pouco espírito: não entendia nada do manejo da caixa de rapé. E redobrava de vigilância, para combater o espírito do mal. Uma rígida devoção e princípios severos continham seus cruéis sofrimentos nos mistérios da vida privada. Todas as noites, quando ficava sozinha, pensava em sua mocidade perdida, em sua frescura fanada, nos anseios da natureza insatisfeita; e, enquanto ia imolando suas paixões ao pé da cruz, comprometia-se, se por acaso surgisse um homem de boa vontade, a aceitá-lo com todos os defeitos que tivesse, sem o submeter a nenhuma prova. Sondando essas boas disposições, em certas noites mais árduas do que as outras, ia até o ponto de desposar, em pensamento, um segundo-tenente, um fumante que se propunha, à custa de cuidados, indulgência e doçura, em transformar no sujeito melhor deste mundo; chegava mesmo a aceitá-lo crivado de dívidas. Mas era necessário o silêncio da noite para esses matrimônios fantásticos, em que lhe aprazia representar o papel sublime de anjo da guarda. No dia seguinte, embora Pérotte encontrasse o leito de sua patroa numa terrível desordem, já a senhorita tinha retomado toda a sua dignidade; no dia seguinte, depois do café, só queria um homem de quarenta anos, bom proprietário, bem conservado—quase um rapaz...

O padre Sponde era incapaz de auxiliar a sobrinha, por pouco que fosse, nessas manobras matrimoniais. Era um sujeito simplório, de setenta anos de idade, aproximadamente, que atribuía os desastres da Revolução Francesa a algum desígnio da Providência, empenhada em ferir uma Igreja dissoluta. Embrenhara-se no caminho, há muito tempo abandonado, trilhado outrora pelos solitários que iam para o céu—levava uma vida ascética, sem ênfase, sem triunfo exterior. Escondia do mundo as obras de caridade, as orações contínuas e as mortificações que praticava. Pensava que todos os padres deviam agir assim durante a tormenta, e pregava pelo exemplo. Embora oferecendo ao mundo um rosto risonho e calmo, acabara por se desapegar inteiramente dos interesses mundanos: pensava unicamente nos infelizes, nas necessidades da Igreja e em sua própria salvação. Deixara à sobrinha a administração de seus bens. Rosa entregava-lhe os rendimentos, e ele lhe pagava uma pensão módica, a fim de poder gastar o resto em esmolas secretas e em donativos à Igreja. Todas as suas afeições se concentravam na sobrinha, que o considerava como um pai; mas era um pai distraído, não concebendo as agitações da carne e agradecendo a Deus ter mantido sua querida filha no celibato, pois ele próprio havia, desde a mocidade, adotado o sistema de São João Crisóstomo, que escreveu: “O estado de virgindade estava tão acima do estado de casamento quanto o Anjo estava acima do Homem”. Habituada a respeitar o tio, a srta. Cormon não ousava iniciá-lo nos desejos que lhe inspirava uma mudança de estado. O padre, por sua vez, habituado aos costumes da casa, não teria apreciado a introdução de um novo dono. Preocupado com as misérias que aliviava, perdido nos abismos da oração, o padre Sponde tinha distrações frequentes, interpretadas pela gente de seu grupo como caduquice; de poucas palavras, mantinha um silêncio afável e indulgente. Era um homem alto, seco, de modos graves, solenes, cujo rosto exprimia sentimentos suaves, uma grande calma interior, e que, por sua presença, imprimia a essa casa uma santa autoridade. Gostava muito do voltairiano cavaleiro de Valois. Esses dois majestosos destroços da Nobreza e do Clero, embora de costumes diferentes, reconheciam-se pelos seus traços gerais. Aliás, o cavaleiro, no seu trato com o padre Sponde, se mostrava tão untuoso quanto se mostrava paternal com as suas grisettes.

Algumas pessoas poderão acreditar que a srta. Cormon se servia de todos os meios para atingir seus fins; que, entre os artifícios legítimos permitidos às mulheres, valia-se do enfeite, decotando-se, desdobrando as garridices negativas de um magnífico porte de armas. Puro engano! Era heroica e imóvel nas suas roupagens, como um soldado na sua guarita. Seus vestidos, seus chapéus, seus adornos, tudo era confeccionado por modistas de Alençon, duas irmãs corcundas que tinham certo bom gosto. Apesar das insistências dessas duas artistas, a srta. Cormon negava-se aos embustes da elegância; queria parecer abastada em tudo: carnes e plumas; mas talvez os pesados feitios de seus vestidos combinassem com sua fisionomia. Caçoe quem quiser da pobre criatura. Hão de achá-la sublime as almas generosas que nunca se importam com a forma que toma o sentimento e que o admiram sempre que o encontram—seja lá onde for. Aqui, algumas mulheres levianas tentarão, talvez, sofismar quanto à verossimilhança desta narrativa, afirmando que não existe na França mulher tão tola que desconheça a arte de pescar um homem, e que a srta. Cormon é uma dessas exceções monstruosas, que o bom senso impede de apresentar como tipo; que, por mais virtuosa e tola que seja uma rapariga, sempre descobre uma isca para armar o anzol com que deseja apanhar o peixe. Essas críticas, porém, não ficarão de pé se nos lembrarmos de que a sublime religião católica, apostólica e romana domina ainda na Bretanha e no antigo ducado de Alençon. A piedade e a fé não admitem essas sutilezas. A srta. Cormon seguia pelo caminho da salvação, preferindo as desgraças de sua virgindade infinitamente prolongada às desgraças de uma mentira, ao pecado de um ardil. Numa rapariga armada da disciplina, a virtude não podia transigir; assim, o amor ou o cálculo deviam ir ao seu encontro resolutamente. E depois—tenhamos a coragem de fazer uma observação cruel nestes tempos em que a religião não é mais considerada senão como um meio por alguns, como uma poesia por outros—a devoção causa uma oftalmia moral. Por uma graça providencial, veda às almas em caminho para a eternidade a visão de muitas pequenas coisas terrestres. Numa palavra: as devotas são estúpidas em muitos sentidos. Essa estupidez, aliás, prova a força com que elas trasladam o espírito para as regiões celestes. Embora o voltairiano sr. de Valois pretendesse ser extremamente difícil decidir se as pessoas estúpidas se tornam naturalmente devotas, ou se a devoção tem por efeito tornar estúpidas as raparigas de espírito. Pensemos bem nisso: a mais pura virtude católica, com suas amorosas aceitações de todos os cálices, com sua piedosa submissão às ordens de Deus, com sua crença na marca do dedo divino em todas as argilas da vida, é a luz misteriosa que escoará nos últimos refolhos desta história para lhes dar todo o relevo, e que, decerto, os engrandecerá aos olhos daqueles que ainda têm Fé. E, afinal, se há tolice, por que não se trataria das desgraças da tolice, como se trata das desgraças do gênio? A primeira é um elemento social infinitamente mais abundante do que o segundo.

Assim, a srta. Cormon pecava aos olhos do mundo pela divina ignorância das virgens. Ela não era observadora—fato demonstrado pelo seu comportamento para com os pretendentes. Neste momento exato, qualquer moça de dezesseis anos que ainda não leu um único romance já teria lido cem capítulos de amor nos olhares de Atanásio. No entanto, a srta. Cormon neles não via nada, nem pressentia, no tremor de sua palavra, a força de um sentimento que não ousava revelar-se. Tímida, não adivinhava a timidez alheia. Capaz de inventar os requintes de grandeza sentimental que a haviam, primitivamente, perdido, não os reconhecia, porém, em Atanásio. Esse fenômeno moral não parecerá extraordinário às pessoas que sabem que as qualidades do coração podem ser tão independentes das qualidades do espírito quanto as faculdades do gênio são independentes das nobrezas da alma. São tão raros os homens completos que Sócrates—uma das pérolas mais belas da humanidade—convinha, com um frenólogo de seu tempo (Um frenólogo do tempo de Sócrates: alusão ao fisiognomonista Zopiro, que, segundo a tradição, encontrou um dia Sócrates no meio de seus discípulos e, depois de tê-lo examinado cuidadosamente, declarou que ele nascera com pendores viciosos. Como os discípulos se pusessem a rir, Sócrates confessou-lhes que tinha realmente péssimas inclinações, mas que as vencera com a força de sua vontade.), que tinha nascido para ser um sujeito ordinário. Um grande general pode salvar seu país em Zurique (Um grande general etc. Balzac está evidentemente aludindo a casos concretos. O grande general de que se trata é, sem a menor dúvida, Masséna, que em 1799, perto de Zurique, infligiu derrota decisiva ao Exército de Korsakof, salvando a França da invasão; sabe-se que o caráter desse grande capitão não estava à altura de seus talentos militares, pois era de uma cupidez e de uma avareza que se tornaram proverbiais. As outras alusões são menos claras, talvez por se referirem a personagens vivas, ao passo que Masséna estava morto desde 1817.) e entrar em entendimentos com os fornecedores. Um banqueiro de probidade duvidosa pode ser homem de Estado. Um grande músico pode conceber cantos sublimes e tornar-se um falsário. Uma mulher de sentimento pode ser uma grande tola. Finalmente, uma devota pode ter uma alma sublime, sem ouvir os sons partidos de uma bela alma, a seu lado. Também na ordem moral se encontram os mesmos caprichos produzidos pelas enfermidades físicas.

Essa boa criatura, que se desesperava de fazer suas compotas e geleias só para si e para o velho tio, estava quase se tornando ridícula. Aqueles que simpatizavam com ela pelas suas qualidades e alguns, também, pelos seus defeitos zombavam de seus casamentos falhados. Em várias conversas perguntavam o que seria feito de tantos bens, das economias da srta. Cormon e da sucessão do tio. Há muito tempo suspeitavam-na de ser, no fundo, apesar das aparências, uma mulher original. Na província não se pode ser original: é ter ideias incompreendidas pelos outros, e lá se exige a igualdade dos espíritos assim como a igualdade dos costumes. Desde 1804, o casamento da srta. Cormon se tinha tornado uma coisa tão problemática que a frase casar-se com a srta. Cormon ficou proverbial em Alençon e equivalia à mais irônica das negações.

É preciso, realmente, que o espírito motejador constitua uma das mais imperiosas necessidades da França, para que essa criatura excelente provocasse o escárnio em Alençon. Não só recebia em sua casa toda a cidade, era piedosa, caritativa e incapaz de dizer uma maldade, mas ainda concordava com o caráter geral e as práticas dos habitantes, que a amavam como ao símbolo mais puro de suas vidas; porque ela se tinha incrustado nos usos da província, nunca a abandonara, compartilhava-lhe dos preconceitos, desposava-lhe os interesses, adorava-a. Apesar de suas dezoito mil libras de rendimentos em latifúndios, fortuna considerável na província, vivia no mesmo pé de igualdade de outras casas menos ricas.

Quando se dirigia para suas terras do Prébaudet, ia numa velha caleça de vime, suspensa em dois correões de couro branco, puxada por uma gorda égua asmática, e fechada apenas por duas cortinas de couro avermelhadas pelo tempo. Essa caleça, conhecida em toda a cidade, recebia de Jacquelin tantos cuidados quanto a mais bela carruagem de Paris. A senhorita tinha-lhe apego; servia-se dela há doze anos, fato que realçava com a alegria triunfante da avareza feliz. A maior parte dos habitantes era grata à srta. Cormon por não exibir um luxo que humilharia os demais. É de supor que, se tivesse mandado buscar em Paris uma carruagem nova, esse fato provocaria mais críticas irônicas do que os seus casamentos desmanchados. Aliás, o carro mais brilhante deste mundo a teria levado ao Prébaudet da mesma forma que a velha caleça. Ora, a província, que vê somente os fins, pouco se importa com a beleza dos meios, desde que sejam eficientes.

Para completar a pintura dos costumes íntimos dessa casa, é necessário agrupar, em torno da srta. Cormon e do padre Sponde, Jacquelin, Josette (Josette: evidente lapso de Balzac. A mesma personagem apareceu, antes, sob o nome de Pérotte.) e Marieta, a cozinheira, que se empregavam em fazer a felicidade do tio e da sobrinha. Jacquelin: homem de quarenta anos, grosso e curto, avermelhado, moreno, com um tipo de marinheiro bretão, estava a serviço da casa há vinte e dois anos. Servia à mesa, cuidava da égua, tratava do jardim, encerava os sapatos do padre, dava recados, cortava lenha, guiava a caleça, ia buscar a aveia, a palha e o feno no Prébaudet, e ficava na antecâmara, à noite, tão dorminhoco quanto uma marmota.

Dizia-se que estava apaixonado por Josette, rapariga de trinta e seis anos, que teria sido despedida pela srta. Cormon se viesse a casar. Por isso, esses dois pobres-diabos iam acumulando os ordenados e se amavam em silêncio, esperando e desejando o casamento da senhorita como os judeus esperam o Messias. Josette, nascida entre Alençon e Mortagne, era pequena e gorducha; seu rosto, que se assemelhava a um damasco enlameado, não deixava de ter certo caráter e espírito. Passava por governar a patroa. Josette e Jacquelin, confiantes num desenlace feliz, escondiam uma satisfação que fazia presumir que esses dois namorados sacavam por conta do futuro. Marieta, a cozinheira, igualmente na casa há quinze anos, sabia temperar todos os pratos apreciados no lugar.

Talvez fosse preciso contar ainda com a velha égua normanda, baia-castanha, que puxava a caleça da srta. Cormon até os seus campos do Prébaudet, porque os cinco habitantes da casa tinham por esse bicho uma afeição maníaca. Chamava-se Penélope, e servia há oito anos; era tão bem tratada, atendida com tanta regularidade que Jacquelin e a senhorita esperavam aproveitá-la durante dez anos mais. Esse animal constituía um motivo perpétuo de conversa e de preocupação. Parecia que a pobre srta. Cormon, não tendo nenhuma criança a que pudesse dedicar sua maternidade insatisfeita, transferisse seus sentimentos para esse bem-aventurado animal. Penélope impedira-a de ter canários, gatos e cachorros, família fictícia de que se cercam todos os entes solitários no meio da sociedade.

Esses quatro servidores fiéis—pois a inteligência de Penélope se elevara até a desses bons empregados, enquanto a deles se abaixara até a regularidade muda e submissa do bicho—iam e vinham pela casa, dia após dia, executando as mesmas tarefas com a infalibilidade da mecânica. Mas, como eles diziam em sua linguagem, tinham “comido a sobremesa antes da sopa”. A srta. Cormon, como todas as pessoas nervosamente agitadas por um pensamento fixo, ia ficando difícil, rabugenta, menos por temperamento do que pela necessidade de gastar suas energias.

Não podendo se ocupar de um marido, de filhos e dos cuidados que eles exigem, empenhava-se em minúcias. Falava durante horas inteiras sobre ninharias, sobre uma dúzia de toalhas marcadas com a letra Z, que descobria empilhadas antes das de letra O.

— Onde estava Josette com a cabeça?!—exclamava.—Josette não toma conta de mais nada?

Durante oito dias seguidos ficava perguntando se Penélope comera aveia às duas horas, porque uma única vez Jacquelin se atrasara. Sua imaginação miúda alimentava-se de insignificâncias. Uma camada de poeira esquecida pelo espanador, fatias de pão mal torradas por Marieta, o atraso de Jacquelin em fechar as janelas para proteger a cor dos móveis contra os raios do sol, todas essas grandes pequenas coisas geravam pendências graves, nas quais a senhorita se encolerizava. E afirmava que tudo estava mudando, que já não reconhecia os seus criados de outrora; estavam se estragando porque ela era boa demais! Um dia Josette lhe entregou o “Dia do Cristão” em vez da “Quinzena de Páscoa”. À noite, toda a cidade foi informada dessa desgraça. A senhorita tinha sido forçada a voltar de Saint-Léonard até em casa, e sua partida súbita da igreja, onde tinha forçado todas as cadeiras a se arredarem, fez supor enormidades. Por isso, foi obrigada a contar aos amigos a causa do incidente.

— Josette—disse ela com doçura—,que semelhante coisa nunca se repita!

Sem que o suspeitasse, a srta. Cormon sentia-se muito feliz por essas briguinhas, que serviam de emunctório a seus azedumes. O espírito tem suas exigências: como o corpo, precisa de sua ginástica. Marieta, Josette e Jacquelin aceitavam essas desigualdades de gênio como os lavradores aceitam as intempéries da atmosfera. As três boas criaturas diziam: “O tempo está bom” ou “Está chovendo”. Às vezes, de manhã cedinho, na cozinha, conjecturavam qual seria o humor da senhorita ao levantar-se.

Enfim, necessariamente, a srta. Cormon tinha acabado por contemplar a si mesma no infinitamente pequeno de sua vida. Ela e Deus, seu confessor e sua roupa lavada, as compotas que tinha para fazer e os ofícios que tinha para ouvir, seu tio para cuidar tinham absorvido sua inteligência fraca. Para ela, os átomos da vida se avolumavam em virtude de uma ótica própria das pessoas egoístas por natureza ou por acaso. Sua saúde perfeita dava uma importância assustadora ao menor embaraço surgido em seus tubos digestivos. Vivia, aliás, sob a férula da medicina de nossos antepassados, e tomava por ano quatro purgativos de precaução, capazes de fazer Penélope estourar, mas que a revigoravam.

Se, ao vesti-la, Josette descobrisse uma espinha nas omoplatas ainda acetinadas da senhorita, isso era motivo para minuciosas perquirições nos diferentes pratos das refeições de toda a semana. Que triunfo, quando Josette lembrava à patroa certa lebre apimentada demais que devia ter provocado aquela espinha! Com que alegria ambas exclamavam: “Não há dúvida, foi mesmo a lebre”!

— Marieta a temperou demais—reclamava a senhorita.—Eu sempre recomendo que ela a faça quase sem temperos para meu tio e para mim, mas Marieta não tem mais memória do que...

— Do que a lebre—atalhava Josette.

— É verdade—respondia a senhorita—,ela não tem mais memória do que a lebre. Você disse muito bem, Josette.

Quatro vezes por ano, no começo de cada estação, a srta. Cormon ia passar alguns dias em suas terras do Prébaudet.

Estava-se, então, em meados de maio, época em que a senhorita queria ver se suas macieiras tinham nevado bem, expressão do lugar que exprime o efeito produzido sob essas árvores pela queda das flores. Quando o amontoado circular das pétalas caídas assemelha-se a uma camada de neve, o proprietário pode esperar uma colheita abundante de cidra. Ao mesmo tempo que media assim os seus tonéis, vigiava também as reparações que o inverno tornava necessárias; determinava, ainda, as modificações em seu jardim, seu pomar e sua horta, de onde tirava numerosas provisões. Cada estação exigia seus cuidados especiais.

A senhorita costumava oferecer, antes da partida, um jantar de despedida aos seus fiéis, embora devesse estar de volta três semanas mais tarde. Sua partida era sempre uma notícia que alvoroçava Alençon. Os habituais frequentadores de sua casa, que lhe deviam uma visita atrasada, iam todos vê-la nesse dia. Suas salas de recepção ficavam repletas; todos lhe desejavam boa viagem, como se ela estivesse a caminho de Calcutá. Depois, no dia seguinte, de manhã, os negociantes postavam-se à porta de suas lojas. Pequenos e grandes ficavam vendo a passagem da caleça, e pareciam dizer uma novidade, repetindo uns para os outros:

— Então a srta. Cormon vai para o Prébaudet!

Aqui, dizia um:

— A esta, nada lhe falta!

— Pois olha, meu caro—respondia o vizinho—,é uma criatura muito boa. Se o dinheiro caísse sempre em mãos semelhantes, não se veria um só mendigo por estes lados...

Mais adiante, outro:

— Sim, senhor! Não me admiro se os nossos vinhedos das terras altas estiverem em flor; eis a srta. Cormon que vai para o Prébaudet! Por que será que ela não se casou até agora?

— Eu bem que me casaria com ela—garantia um engraçado—,o casamento é feito pela metade: uma das partes consente, mas a outra não quer! Qual! É para o sr. du Bousquier que o forno está esquentando!

— O sr. du Bousquier?... Ela não o aceitou!

À noite, em todas as reuniões, dizia-se gravemente: “A srta. Cormon partiu” ou “Como é que vocês foram deixar a srta. Cormon partir?”.

A quarta-feira escolhida por Susana para o seu escândalo era, por acaso, essa quarta-feira de adeus, em que a srta. Cormon deixava Josette quase louca com os embrulhos que tinham para levar.

Portanto, durante o dia, tinham-se dito e feito na cidade coisas que emprestavam o mais vivo interesse a essa assembleia de despedida. A sra. Granson tocara a campainha de dez casas, enquanto a srta. Cormon cuidava dos preparativos da viagem e o esperto cavaleiro de Valois jogava piquet em casa da srta. Armanda, irmã do velho marquês d’Esgrignon (A nobre família D’Esgrignon, inventada pelo romancista, desempenha papel importante no segundo romance do díptico As rivalidades: O gabinete das antiguidades.) e rainha do salão aristocrático. A ninguém era indiferente a atitude que tomaria durante a reunião o sedutor, mas parecia importantíssimo ao cavaleiro e à sra. Granson verificar a maneira como a srta. Cormon receberia a notícia, em sua dupla qualidade de rapariga núbil e de presidenta da Sociedade Maternal. Quanto ao inocente Du Bousquier, este passeava na avenida, começando a crer que Susana o enganara; e essa suspeita confirmava-o em seus princípios com relação às mulheres.

Nesses dias de gala, a mesa ficava posta, em casa da srta. Cormon, desde três e meia da tarde. Nesse tempo, o mundo elegante de Alençon jantava, em casos especiais, às quatro horas. Durante o Império, aí se jantava ainda, como outrora, às duas horas da tarde; mas ceava-se depois.

Um dos prazeres que a srta. Cormon mais apreciava, sem usar de malícia, mas que se baseava certamente no egoísmo, consistia na indizível satisfação de se ver vestida como uma dona de casa que vai receber seus hóspedes. Quando se punha, assim, em grande aparato, insinuava-se um raio de esperança nas trevas de seu coração. Uma voz lhe dizia que a natureza não podia ter sido tão pródiga em vão e que surgiria um homem audacioso. Seu desejo se refrescava como refrescara o corpo. Contemplava-se nas suas roupas de aparato com uma espécie de embriaguez, e essa satisfação continuava quando descia para lançar seus olhares temíveis no salão, no gabinete e na saleta. Passeava por tudo com o contentamento ingênuo do rico que pensa a todo instante que é rico e que nada lhe faltará. Olhava os móveis eternos, as antiguidades, os charões, e pensava que essas coisas tão belas exigiam um dono. Depois de ter admirado a sala de jantar, a mesa oblonga onde se estendia uma toalha cor de neve, ornada de cerca de vinte talheres colocados a igual distância; depois de ter verificado o batalhão de garrafas que indicara e que exibiam etiquetas honrosas; depois de haver meticulosamente verificado os nomes escritos em pedacinhos de papel pela mão trêmula do padre—única tarefa que lhe cabia em casa e que motivava graves discussões sobre o lugar de cada conviva -; então, a senhorita ia, com todos os seus adornos, ao encontro do tio. Nesse momento—o mais bonito do dia—o padre passeava no terraço, ao longo do Brillante, ouvindo o canto dos pássaros aninhados na ramaria, longe da ameaça dos caçadores e das crianças. Durante essas horas de espera, nunca a senhorita chegava perto do padre Sponde sem lhe fazer algumas perguntas disparatadas, a fim de arrastar o bom velhote numa discussão que pudesse diverti-lo. Segue a explicação desse seu hábito, pois essa particularidade completará a pintura do caráter dessa excelente pessoa.

A srta. Cormon considerava que um de seus deveres era conversar: não porque fosse tagarela; tinha, infelizmente, muito poucas ideias e conhecia muito poucas frases para discorrer; mas julgava cumprir, assim, uma das obrigações sociais prescritas pela religião, que nos manda ser agradáveis ao próximo. Esse preceito custava-lhe tanto que já consultara seu diretor, o padre Couturier, sobre esse ponto de civilidade pueril e honesta. Apesar da humilde observação de sua penitente, que lhe narrou o árduo trabalho interior ao qual sujeitava o espírito para encontrar o que dizer, o velho padre, tão firme quanto a disciplina, lhe havia lido todo um trecho de São Francisco de Sales (Um trecho de São Francisco de Sales: isto é, um trecho de sua Introdução à vida devota, que abrange uma série de cartas de orientação espiritual para as pessoas da sociedade.) sobre os deveres da mulher de sociedade, sobre a alegria decente da cristã piedosa que deve reservar toda sua severidade para si mesma, mostrando-se, porém, amável e fazendo com que, em sua casa, nunca o próximo se aborreça. Assim penetrada de seus deveres, e querendo, a qualquer preço, obedecer ao seu diretor, que lhe mandara conversar com amenidade, a pobre criatura, quando via a palestra cair, suava em seu colete, de tanto que sofria tentando emitir ideias para reanimar as discussões extintas. Soltava, então, ditos estranhos, como, por exemplo: ninguém pode estar em dois lugares ao mesmo tempo, a menos que seja um passarinho, com o qual, um dia, provocara, não sem sucesso, uma discussão sobre a ubiquidade dos apóstolos—discussão de que não entendera uma só palavra.

Saídas como essa lhe valiam, no seu círculo, o apelido de boa srta. Cormon. Na boca dos intelectuais do grupo, tal expressão significava que ela era ignorante como uma toupeira e um pouco abobalhada; mas muitas pessoas, tão ingênuas quanto ela mesma, tomavam o epíteto no seu verdadeiro sentido e respondiam:—É mesmo! A srta. Cormon é excelente!

Fazia, às vezes, perguntas tão absurdas, sempre no intuito de ser agradável aos hóspedes e de cumprir seus deveres sociais, que toda a roda estourava na risada. Perguntava, por exemplo, o que fazia o governo com os impostos que vinha recebendo há tanto tempo; por que a Bíblia não tinha sido impressa no tempo de Jesus Cristo, já que era da autoria de Moisés.

Era da mesma força que aquele country gentleman que, ouvindo constantemente falar da Posteridade, na Câmara dos Comuns, se levantou para fazer esse speech que ficou célebre: “Meus senhores, estou sempre ouvindo falar aqui na Posteridade, e gostaria muito de saber: o que essa potência já fez pela Inglaterra?”.

Em circunstâncias semelhantes, o cavaleiro de Valois levava em socorro da solteirona todas as forças de sua diplomacia inteligente, assim que descobria um sorriso nos lábios dos semiletrados impiedosos. O velho fidalgo, que gostava de enriquecer as mulheres, emprestava espírito à srta. Cormon, sustentando-a paradoxalmente. Cobria-lhe tão bem a retirada que às vezes nem parecia ter a solteirona proferido uma tolice.

Um dia, ela confessou com toda a seriedade que não sabia qual a diferença existente entre os bois e os touros. O encantador cavaleiro impediu as risadas, respondendo que os bois só podiam ser os tios das bezerras. Uma outra vez, ouvindo falar muito em criação de animais e na dificuldade que representa essa atividade, conversa frequente numa região em que se acha o soberbo Haras du Pin, compreendeu que os cavalos provinham das coberturas, e perguntou por que é que não faziam duas coberturas por ano? O cavaleiro atraiu os risos sobre sua própria pessoa.—É muito possível—disse ele. Os assistentes prestaram atenção.—A culpa—continuou ele—vem dos naturalistas que ainda não souberam constranger as éguas a uma gestação que dure menos de onze meses.

A pobre criatura sabia tão pouco o que era um cruzamento como sabia distinguir um boi de um touro.

O sr. de Valois servia uma ingrata, porque nunca a srta. Cormon compreendeu uma única de suas cavalheirescas intervenções. Vendo a conversa reanimada, achava que não era tão tola quanto o imaginava. Um dia, afinal, acabou por se estabelecer na sua ignorância, como o duque de Brancas (Duque de Brancas: Charles de Villars, duque de Brancas (1618-1681), cortesão de uma distração lendária, que alguns inimigos dizem ter sido propositadamente exagerada por ele mesmo. Sua distração forneceu anedotas à sra. de Sévigné, a La Bruyère e a Tallemant des Réaux.), herói dos distraídos, se instalou na vala onde tinha caído, e de tal maneira se acomodou confortavelmente que, quando foram levantá-lo, perguntou o que lhe queriam. Desde essa época, bastante recente, a srta. Cormon perdeu todo o receio e passou a ter uma segurança que dava às suas saídas qualquer coisa da solenidade com que os ingleses realizam suas tolices patrióticas e que é como que a enfatuação da estupidez.

Chegando perto do tio com um passo magistral, ia ruminando a pergunta que lhe faria para arrancá-lo desse silêncio que a magoava sempre, porque o julgava entediado.

— Meu tio—disse-lhe ela, pendurando-se em seu braço e colando-se alegremente a seu lado (era ainda uma de suas ficções; pensava: “Assim é que eu faria, se tivesse um marido!”)—,se tudo acontece aqui embaixo pela vontade de Deus, então há uma razão para todas as coisas?

— Certamente—assegurou gravemente o padre Sponde, que queria bem à sobrinha e sempre se deixava arrancar de suas meditações com uma paciência angélica.

— Então, se eu fico solteira (é uma suposição), é porque Deus quer?

— Sim, minha filha—respondeu o padre.

— Mas, no entanto, como nada me impede de me casar amanhã, a vontade de Deus pode ser destruída pela minha?

— Isso seria verdade, se nós conhecêssemos a verdadeira vontade de Deus—declarou o antigo prior da Sorbonne.—Nota, minha filha, que sempre dizes se?

A pobre rapariga, que esperara arrastar o tio numa discussão matrimonial por um argumento ad omnipotentem (Argumento ad omnipotentem: argumento ao todo-poderoso, expressão forjada sobre a de argumento “ad hominem”, isto é, argumento com que se confunde um adversário opondo-se-lhe suas próprias palavras ou ações.), ficou estupefata; mas as pessoas de espírito obtuso seguem a terrível lógica das crianças, que consiste em ir de resposta em pergunta, lógica muitas vezes embaraçosa.

— Mas, meu tio, Deus não fez as mulheres para que fiquem solteiras; senão, elas deveriam ser todas solteiras ou todas casadas. Há injustiça na distribuição dos papéis.

— Minha filha—disse o bom padre—,estás contra a Igreja que prescreve o celibato como o melhor caminho para se chegar a Deus.

— Mas se a Igreja tem razão, e caso todo mundo fosse bom católico, o gênero humano se extinguiria então, meu tio?

— Tens inteligência demais, Rosa; não se precisa de tanta para se ser feliz.

Semelhante afirmação suscitou um sorriso satisfeito nos lábios da pobre criatura, confirmando-a na boa opinião que começava a ter de si mesma. E eis como todo mundo, nossos amigos e nossos inimigos são os cúmplices de nossos defeitos!

Nesse momento, a conversa foi interrompida pela chegada sucessiva dos convidados. Nesses dias de aparato, essas cenas locais provocavam pequenas familiaridades entre os empregados da casa e as visitas. Marieta dizia ao presidente do Tribunal, guloso de alto bordo, ao vê-lo passar:

— Ah! sr. du Ronceret, eu fiz couve-flor gratinada em sua intenção, porque a senhorita sabe como o senhor gosta desse prato, e me disse: “Faça-o bem gostoso, Marieta, que vamos ter o senhor presidente”.

— Essa boa srta. Cormon!—respondia o justiceiro da região.—Marieta, você as cozinhou no molho, em vez de cozinhá-las no caldo? Ficam mais untuosas!...

O presidente não desdenhava entrar na câmara do conselho em que Marieta proferia suas sentenças; lançava nas panelas o olhar de gastrônomo e dava opinião.

— Boa tarde, minha senhora—dizia Josette à sra. Granson, que cortejava a  arrumadeira—,a senhorita não a esqueceu e mandou preparar um prato de peixe.

O cavaleiro de Valois dizia a Marieta, com o tom ligeiro de um grão-senhor que se familiariza:

— E então, querida artista, a quem eu concederia a Cruz da Legião de Honra, há hoje algum pratinho especial?

— Se há! Uma lebre que veio do Prébaudet, sr. de Valois, e que pesava quatorze libras!

— Boa rapariga!—exclamava o cavaleiro, crismando Josette com um beijo na face.—Ah! Então pesava quatorze libras!

Du Bousquier não fora convidado. A srta. Cormon, fiel ao sistema acima exposto, tratava mal esse quinquagenário, por quem experimentava sentimentos inexplicáveis, presos nos mais profundos refolhos de seu coração; embora o tivesse recusado, às vezes se arrependia. Tinha ao mesmo tempo o pressentimento de que acabaria por desposá-lo e um terror que a impedia de desejar esse casamento. Sua alma, estimulada por essas ideias, preocupava-se com Du Bousquier. Sem o confessar, sentia-se influenciada pelas formas hercúleas do republicano. Embora não entendendo as contradições da srta. Cormon, a sra. Granson e o cavaleiro de Valois tinham surpreendido os olhares ingênuos, coados de esguelha, cuja significação era bastante clara para que ambos tentassem arruinar as esperanças do antigo fornecedor, já desmentidas, mas na certa ainda conservadas.

Dois convidados, desculpados previamente por suas funções, faziam-se esperar: um era o sr. du Coudrai, conservador das hipotecas; o outro, o sr. Choisnel, antigo intendente da casa D’Esgrignon, tabelião da alta aristocracia que o recebia com uma distinção merecida por suas virtudes, e que possuía, aliás, considerável fortuna.

Chegando os dois retardatários, Jacquelin lhes disse, impedindo-os de se dirigirem ao salão:

- Eles todos estão no jardim.

Os estômagos estavam sem dúvida impacientes, porque, à vista do conservador das hipotecas—um dos homens mais amáveis da cidade e que só tinha o defeito de haver desposado, por dinheiro, uma velhota insuportável e de cometer pavorosos trocadilhos de que era o primeiro a achar graça—,se ergueu o leve ruído confuso com que se acolhem os últimos a chegar, em semelhantes circunstâncias. Esperando o anúncio oficial do jantar, a companhia passeava pelo terraço, ao longo do Brillante, olhando a vegetação fluvial, o mosaico do leito do rio e o traçado tão bonito das casas acocoradas na outra margem, as velhas galerias de madeira, as janelas com peitoris em ruína, as escoras oblíquas de algum quarto avançado sobre o rio, os jardinzinhos onde secavam trapos, a oficina do marceneiro, enfim todas essas misérias de cidade pequena a que a proximidade da água, um salgueiro chorão debruçado, flores, uma roseira comunicam não sei que graça, digna do pincel de um paisagista.

O cavaleiro estudava todas as fisionomias, porque tinha sabido que o seu boato se espalhara sem dificuldades nas melhores rodas da cidade; mas ninguém falava ainda em voz alta dessa grande notícia, em Susana e em Du Bousquier. A gente da província possui no mais alto grau a arte de destilar mexericos: o momento para comentar essa estranha aventura ainda não tinha chegado; era preciso que primeiro todos a tivessem meditado. Portanto, dizia-se ao ouvido:

— Você sabe?

— Sei.

— Du Bousquier?

— E a bela Susana.

— A srta. Cormon ainda não sabe de nada?

— Não.

Era o piano da bisbilhotice, cujo rinforzando ia estourar quando estivessem saboreando o segundo prato. De repente, o cavaleiro de Valois reparou na sra. Granson, que tinha arvorado um chapéu verde com raminhos de primaveras, e viu que sua fisionomia cintilava. Seria vontade de começar o concerto? Embora semelhante notícia equivalesse a uma mina de ouro para ser explorada na vida monótona dessas personagens, o observador e desconfiado cavaleiro julgou reconhecer na boa mulher a expressão de um sentimento mais intenso: a alegria causada pelo triunfo de um interesse pessoal!... Virou-se logo para observar Atanásio, e surpreendeu-o no silêncio significativo de uma concentração profunda. Pouco depois, um olhar lançado pelo rapaz ao busto da senhorita, que se assemelhava bastante a dois timbales de regimento, acendeu na alma do cavaleiro uma luz súbita. Esse clarão lhe permitiu entrever todo o passado.

— Ai, diacho!—pensou ele.—A que golpe de cabresto estou exposto!

Aproximou-se da srta. Cormon a fim de poder oferecer-lhe o braço e conduzi-la à sala de jantar. A solteirona tinha pelo cavaleiro uma consideração respeitosa, pois certamente seu nome e o lugar que ocupava entre as constelações aristocráticas do departamento faziam dele o ornamento mais brilhante de seu salão. Intimamente, a srta. Cormon desejava, há doze anos, transformar-se em sra. de Valois. Esse nome era um galho a que se prendiam as ideias que enxameavam de seu cérebro a respeito da nobreza, da posição e das qualidades exteriores de um partido; mas, se o cavaleiro era o homem escolhido pelo coração, pelo espírito, pela ambição, essa velha ruína, embora penteada como um São João Batista de procissão, assustava a srta. Cormon. Se via nele um fidalgo, a mulher não via um marido. A indiferença afetada pelo cavaleiro quanto ao casamento e, sobretudo, a suposta pureza de seus costumes numa casa cheia de grisettes prejudicavam muito o sr. de Valois, ao contrário de suas previsões. Esse fidalgo, que agira tão acertadamente no caso das rendas vitalícias, enganava-se agora.

Sem que ela própria o desconfiasse, a opinião da srta. Cormon sobre o cavaleiro podia traduzir-se da seguinte forma: “Que pena que ele não seja um pouco libertino!”.

Os observadores do coração humano verificaram a simpatia das devotas pelos patifes, espantando-se desse gosto, que julgam pouco cristão. Mas, afinal, que mais belo destino para uma mulher virtuosa, senão o de purificar, à maneira do carvão, as águas turvas do vício? Como não compreenderam que essas nobres criaturas, reduzidas, pela rigidez de seus princípios, a nunca transgredir a fidelidade conjugal, devem naturalmente desejar um marido de alta experiência prática! Os patifes, em geral, são grandes homens no amor. Assim, a pobre rapariga gemia por encontrar seu vaso de eleição partido em dois pedaços. Só Deus poderia soldar, numa única peça, o cavaleiro de Valois e Du Bousquier.

Para que se possa entender bem a importância das poucas palavras que o cavaleiro e a srta. Cormon iam trocar, é necessário expor dois casos graves que agitavam a cidade e dividiam as opiniões. Du Bousquier, aliás, estava misteriosamente metido em ambos. Um dizia respeito ao cura de Alençon, que havia, outrora, prestado juramento constitucional (Havia prestado juramento constitucional... Parte do clero francês aderiu à constituição civil do clero votada em 1790. Na época da Restauração essa adesão passou a ser considerada crime pelos monarquistas.), e que vencia, nesse momento, as repugnâncias católicas ostentando as mais altas virtudes. Esse cura foi um Cheverus (Cheverus: Jean-Louis-Anne Lefèbvre de Cheverus (1768-1836), eclesiástico francês que recusou o juramento à Constituição revolucionária e emigrou; chamado à América do Norte, chegou a ser bispo de Boston; depois, de volta à França, foi nomeado bispo de Mountauban e, no fim de sua vida, cardeal. Famoso pelo altruísmo, pela tolerância e pelo espírito conciliador.) em ponto menor, e tão estimado que a cidade inteira chorou-lhe a morte. A srta. Cormon e o padre Sponde pertenciam a essa Pequena Igreja sublime em sua ortodoxia, que foi, para a Corte de Roma, o mesmo que os ultras seriam para Luís XVIII. O padre, principalmente, não reconhecia uma Igreja que transigira à força com os constitucionais. Esse cura não era recebido na casa Cormon, cujas simpatias iam todas para o vigário de Saint-Léonard, paróquia aristocrática de Alençon. Du Bousquier, liberal fervoroso que se ocultava sob a pele de um monarquista, sabia quantos pontos de contato se tornam necessários aos descontentes, que formam o fundo de todas as oposições. Já tinha, portanto, agrupado em torno do cura as simpatias da classe média.

Eis o segundo caso. Sob a inspiração desse diplomata grosseiro, brotara em Alençon a ideia de construir um teatro. Os Seíds (Seíd: escravo e primeiro adepto de Maomé; a palavra, afrancesada por Voltaire, é hoje um nome comum da língua francesa (séide) e significa “satélite”, “agente de crimes”.) de Du Bousquier não conheciam o seu Maomé, mas isso não lhes diminuía o ardor na defesa do que julgavam ser sua própria concepção. Atanásio era um dos mais exaltados partidários da construção da sala de espetáculos, e vinha pleiteando, nas seções da Prefeitura, a vitória de uma causa que todos os jovens tinham abraçado.

O fidalgo ofereceu o braço à solteirona para passear; ela o aceitou, agradecendo-lhe a atenção por um olhar feliz. O cavaleiro mostrou-lhe Atanásio com um ar fino.

— A senhorita, que é tão sensata no julgamento das convenções sociais, e a quem esse rapaz é ligado por alguns laços...

— Muito afastados—interrompeu ela.

— Não deveria a senhorita—continuou o cavaleiro—usar de sua ascendência sobre a mãe e sobre ele próprio, para impedi-lo de se perder? Ele já não é muito religioso, e tomou o partido do juramentado; mas isso ainda não é nada. O que é muito mais grave é que ele está se lançando estouvadamente no caminho da oposição, sem procurar saber que influência seu comportamento atual exercerá no seu futuro! Está intrigando para conseguir a construção do teatro; e nem percebe que serve os interesses de Du Bousquier, esse republicano disfarçado....

— Meu Deus, sr. de Valois—respondeu ela—,a mãe dele vive dizendo que é um rapaz de muito espírito, e ele nem sabe dizer dois; está sempre plantado diante dos outros, como um terno...

— Que não pensa em nada!—completou o conservador das hipotecas.—Peguei essa no ar (Peguei essa no ar: o trocadilho, aliás péssimo, do conservador das hipotecas, só existe no texto francês. A srta. Cormon, que desconhece a palavra terme (antigamente, baliza cuja parte superior ostentava um busto de Termo, deus dos limites), substituiu-a por terne (“terno”) na expressão feita: “Está plantado como um termo”. Ao ouvir terne, o trocadilhista apressa-se em lançar Qui ne pense à rien, frase cujos dois vocábulos iniciais, pronunciados juntos quine (“quina”), formam outra palavra de loteria.). Apresento meus deveres ao cavaleiro de Valois—acrescentou, cumprimentando o fidalgo com a ênfase atribuída por Henri Monnier a Joseph Prud’homme (Joseph Prud’homme: tipo moderno da nulidade satisfeita e da banalidade magistral, encontráveis na pequena burguesia, criado por Henri Monnier em suas Cenas populares. Suas frases ocas e sonoras (como: “Esta é a minha opinião e compartilho-a” ou “ O carro do Estado navega sobre um vulcão”) talvez tenham servido de modelo às do conselheiro Acácio, de Eça de Queirós.), símbolo da classe a que pertencia o conservador das hipotecas.

O sr. de Valois correspondeu com a saudação seca e protetora do nobre que mantém distância; depois rebocou a srta. Cormon até alguns jarros de flores mais adiante, a fim de que o intrometido compreendesse que ele não desejava ser espionado.

— Como quer a senhorita—disse o cavaleiro em voz baixa, debruçando-se ao ouvido da srta. Cormon—que os rapazes educados nesses detestáveis liceus imperiais tenham ideias? São os bons costumes e os hábitos nobres que produzem as grandes ideias e os belos amores. Vendo-o, não é difícil adivinhar que esse pobre moço vai se tornar completamente imbecil e morrerá de morte triste. Não vê como ele está lívido, macilento?

— A mãe alega que ele trabalha muito—respondeu inocentemente a solteirona—,passa as noites em claro, mas fazendo o quê? Lendo, escrevendo. Que futuro pode isso proporcionar a um rapaz: escrever durante a noite?

— Mas isso o consome—retomou o cavaleiro, tentando reconduzir o pensamento da solteirona para o terreno onde esperava fazer com que tomasse Atanásio em horror.—Os costumes desses liceus imperiais eram realmente horríveis.

— Oh! Sim—disse a ingênua srta. Cormon.—Não é que eles saíam a passeio com tambores abrindo a marcha? Os professores tinham menos religião do que os pagãos. E botavam essas pobres crianças de uniforme, exatamente como as tropas! Que ideia!

— E eis o produto!—disse o cavaleiro, mostrando Atanásio.—No meu tempo, nunca um rapaz teria vergonha de olhar para uma mulher bonita; e ele abaixa os olhos quando vê a senhorita! Esse jovem me assusta, porque me interessa. Diga-lhe que pare de intrigar com os bonapartistas por causa dessa sala de espetáculos, como vem fazendo. Quando esses mocinhos não o pedirem mais insurrecionalmente, porque essa palavra, para mim, é sinônimo de constitucionalmente, a autoridade construirá o teatro. Depois, diga também à mãe dele que vele sobre o filho.

— Oh! Ela o impedirá de se dar com essa gente de meio-soldo e de sociedade baixa, estou certa. Vou falar com ela, porque ele poderia perder o emprego na Prefeitura. E de que viveriam ambos, depois? Isso até faz tremer...

Assim como o sr. de Talleyrand dizia da esposa (A sra. de Talleyrand era mulher de grande beleza e pouco espírito. As gafes que frequentemente cometia davam lugar a divertidos comentários na alta sociedade.), o cavaleiro disse para si mesmo, olhando a srta. Cormon: “Que me descubram outra mais tola! Palavra de fidalgo! A virtude que anula a inteligência não será um vício? Mas que mulher adorável para um homem de minha idade! Que princípios! Que ignorância!”.

Percebe-se que esse monólogo, dirigido à princesa Goritza, travou-se enquanto o cavaleiro tomava uma pitada de rapé.

A sra. Granson adivinhou que o cavaleiro estava falando de Atanásio. Apressada em conhecer o resultado dessa conversa, seguiu a srta. Cormon, que se encaminhava para o rapaz, pondo diante de si seis pés de dignidade. Mas, nesse momento, Jacquelin apareceu para anunciar à senhorita que a mesa estava servida. A solteirona lançou um olhar de apelo ao cavaleiro. O galante conservador das hipotecas, que começava a ver nas maneiras do fidalgo a barreira que por essa época os nobres de província erguiam entre eles e a burguesia, ficou encantado de suplantá-lo; estando perto da srta. Cormon, arredondou o braço, oferecendo-lhe, e ela foi forçada a aceitá-lo. Por política, o cavaleiro precipitou-se para a sra. Granson.

— A srta. Cormon—disse-lhe ele, andando com lentidão atrás de todos os convivas—,minha cara senhora, tem o maior interesse pelo seu querido Atanásio, mas esse interesse está se dissipando por culpa de seu filho: é irreligioso e liberal, agita-se por causa desse teatro, frequenta bonapartistas, simpatiza com o cura constitucional. Essa atitude pode fazer com que perca o cargo na Prefeitura. A senhora sabe o cuidado com que o governo do rei está se depurando. E onde é que seu caro Atanásio, uma vez demitido, encontrará novo emprego? Deve esforçar-se em não ser malvisto pela Administração.

— Senhor cavaleiro—disse a pobre mãe amedrontada—,quanta gratidão eu lhe devo! O senhor tem razão, meu filho é vítima de más companhias, e eu vou esclarecê-lo.

Num único olhar, o cavaleiro já tinha há muito tempo penetrado a natureza de Atanásio. Reconhecera o elemento pouco maleável das convicções republicanas, às quais, nessa idade, um moço sacrifica tudo, apaixonado por essa palavra liberdade, tão mal definida, tão pouco compreendida, mas que, para as pessoas desdenhadas, é uma bandeira de revolta; e, para eles, a revolta é a vingança. Atanásio persistiria em sua fé, porque suas opiniões eram tecidas com suas dores de artista, com suas amargas contemplações do Estado social. Ignorava ainda que aos trinta e seis anos, na época em que o homem julgou os homens (Aos trinta e seis anos, na época em que o homem julgou os homens... No momento de escrever A solteirona, Balzac tinha trinta e seis anos feitos e já modificara suas primeiras opiniões e concepções.), as relações e os interesses sociais, as opiniões às quais primeiro sacrificou todo o futuro deveriam modificar-se nele, como em todos os homens verdadeiramente superiores.

Ficar fiel ao partido de esquerda de Alençon equivalia a ganhar a aversão da senhorita. Quanto a isso, o cavaleiro vira certo. Assim, essa sociedade, tão calma na aparência, tinha as mesmas agitações intestinas que os círculos diplomáticos, onde a astúcia, a habilidade, as paixões, os interesses se agrupam em torno das questões mais graves de Império a Império.

Os convivas cercavam finalmente a mesa carregada pelo primeiro serviço, e todos comiam como se come na província, sem nenhuma vergonha de ter bom apetite, e não como em Paris, onde parece que os maxilares se movem por leis suntuárias que se empenham em desmentir as leis da anatomia. Come-se, em Paris, beliscando, escamoteando todo o prazer, enquanto na província as coisas se passam naturalmente, e a existência se concentra, talvez em demasia, sobre esse grande e universal meio de existência a que Deus condenou suas criaturas. Foi no fim desse primeiro serviço que a srta. Cormon teve a mais célebre de suas saídas, de que se falou durante mais de dois anos e que ainda hoje se comenta nas reuniões da pequena burguesia de Alençon, cada vez que se trata de seu casamento. A conversa, tornada muito verbosa e animada no momento em que atacavam a última entrada, girava naturalmente em torno do caso do teatro e do cura juramentado. Cheios do fervor que agitava o monarquismo em 1816, aqueles que, mais tarde, seriam chamados de jesuítas da região queriam expulsar o padre Francisco de sua cúria. Du Bousquier, que o sr. de Valois suspeitava ser o sustentáculo desse padre, o promotor dessas intrigas, e nas costas de quem o fidalgo teria, aliás, lançado todas as culpas com sua habilidade habitual, estava na berlinda sem advogado para defendê-lo. Atanásio, que era o único conviva bastante franco para sustentar Du Bousquier, não estava à altura de expor suas ideias diante dos potentados de Alençon, que ele, por sinal, achava estúpidos. Os rapazes da província são os únicos que ainda conservam uma atitude respeitosa diante das pessoas de certa idade, não ousando enfrentá-las nem contradizê-las. A conversa, atenuada pelo efeito de deliciosos patos com azeitonas, repentinamente caiu por completo. A srta. Cormon, com ciúmes de seus próprios patos, tentou lutar, defendendo Du Bousquier, representado ali como um pernicioso artesão de intrigas, capaz de arredar montanhas.

— Pois eu—disse ela—acreditava que o sr. Du Bousquier só se ocupasse com criancices.

Nas presentes circunstâncias, esse dito alcançou um sucesso prodigioso. A srta. Cormon obteve um belo sucesso e fez a princesa Goritza cair, batendo com o nariz na mesa. O cavaleiro, que não esperava um gracejo tão oportuno de sua dulcineia, ficou tão maravilhado que não encontrou, a princípio, palavras bastante elogiosas. Aplaudiu sem ruído, como se aplaude nos Italiens, simulando um aplauso com as pontas dos dedos.

— Ela é adoravelmente espirituosa—disse ele à sra. Granson.—Sempre afirmei que ela, um dia, acabaria por descobrir as baterias.

— Mas na intimidade ela é encantadora—respondeu a viúva.

— Na intimidade, minha senhora, todas as mulheres têm espírito.

Assim que se acalmou o riso homérico, a srta. Cormon perguntou qual era a razão de seu sucesso. Começou, então, o fortíssimo do mexerico. Du Bousquier foi pintado sob os traços de um pai Gigogne (Pai Gigogne: alusão a mãe Gigogne, personagem cômica do antigo teatrinho de bonecos, que representava a fecundidade e aparecia em cena com uma multidão de criancinhas que lhe saem de baixo das saias. Mais tarde apareceu também no cenário dos grandes teatros em companhia de Arlequim e de Polichinelo.) celibatário, de um monstro que, nos últimos quinze anos, povoava sozinho o Asilo dos Expostos; a imoralidade de seus costumes revelava-se afinal! E era digna de suas saturnais parisienses etc. etc. Conduzida pelo cavaleiro de Valois, mais hábil dos diretores de orquestra nesse gênero, a ouverture desse disse me disse foi magnífica.

— Não sei—disse ele com uma expressão cheia de bonomia—o que poderia impedir um Du Bousquier de se casar com uma srta. Susana Não Sei de Quê; como é mesmo que a chamam? Suzette! Embora hospedado em casa da sra. Lardot, eu só conheço essas meninas de vista. Mas se essa Suzon é uma rapariga alta e bonita, impertinente, de olhos cinzentos, cintura fina, pés pequenos, a que eu mal prestei atenção mas cuja atitude me pareceu bastante insolente, ela é muito superior, como maneiras, a Du Bousquier. Aliás, Susana tem a fidalguia da beleza; sob esse aspecto, tal casamento seria, para ela, muito desigual. Todos aqui sabem que o imperador José teve a curiosidade de ver, em Luciennes, a Du Barry (Madame du Barry: Jeanne Bécu, condessa Du Barry (1743-1793), favorita de Luís XV, decapitada no período do Terror; teve em Luciennes ou Louveciennes, perto de Versalhes, um esplêndido castelo, onde viveu e ofereceu magníficas recepções até ser detida.), oferecendo-lhe o braço para levá-la a passeio; a pobre mulher, surpreendida com tanta honra, hesitava em aceitá-lo. “A beleza será sempre rainha”, disse-lhe o imperador. E notem que era um alemão da Áustria—acrescentou o cavaleiro.—Mas, acreditem, a Alemanha, que passa por ser, aqui, muito rústica, é um país de nobre cavalheirismo e de belas maneiras, sobretudo nas regiões próximas da Polônia e da Hungria, onde se acham as...

Aí, o cavaleiro estacou, temendo cair numa alusão à sua felicidade pessoal; apenas retomou a caixa de rapé e confiou o resto da anedota à princesa que há trinta e seis anos lhe sorria.

— Essa expressão foi muito delicada para Luís XV—disse Du Ronceret.

— Mas creio que se trata do imperador José—corrigiu a srta. Cormon com um arzinho entendido.

— Senhorita—disse o cavaleiro, vendo os olhares maliciosos trocados pelo presidente, o tabelião e o conservador—,a Madame du Barry era a Susana de Luís XV, circunstância bastante conhecida de todos os libertinos que nós somos, mas que as moças não devem saber. Sua ignorância prova que a senhorita é um diamante sem jaça; as corrupções históricas não a atingem.

O padre Sponde olhou graciosamente para o cavaleiro de Valois, inclinando a cabeça em sinal de aprovação laudatória.

— A senhorita não conhece história?

— Se estão misturando Luís XV com Susana, como querem que eu saiba a sua história?—respondeu angelicamente a srta. Cormon, contente de ver a travessa dos patos vazia e a conversa tão reanimada que, ouvindo-lhe a resposta, todos os convivas riram de boca cheia.

— Coitadinha!—disse o padre Sponde.—Quando uma desgraça acontece, a Caridade, que é um amor divino, tão cego quanto o amor pagão, não deve mais procurar as causas. Minha sobrinha, você é presidenta da Associação de Maternidade; é preciso socorrer essa menina, que dificilmente conseguirá encontrar casamento.

— Pobre menina!—exclamou a srta. Cormon.

— Acham que Du Bousquier se casará com ela?—perguntou o presidente do Tribunal.

— Se fosse um homem de bem, deveria casar-se—disse a sra. Granson.—Mas, realmente, meu cachorro Azor tem costumes mais honestos...

— E, no entanto, Azor é um grande fornecedor—observou com finura o Conservador das hipotecas, tentando passar do trocadilho à frase de espírito.

Na sobremesa, ainda se falava em Du Bousquier, que sugeria mil gracejos, tornados fulminantes pelo vinho. Cada conviva, arrastado pelo Conservador, respondia a um trocadilho por outro trocadilho. Assim, Du Bousquier era um pai-de-todos, um pai-da-vida, um pai-de-manada, um pai-dos-burros, um pai-velho, e até mesmo um pai... ciente. Fora um caso de pai... chão. A questão era de pais contra a paz. Não se mostrara um pai perfeito e nunca seria prefeito; não era um santo-padre nem um padre-cura nem um padre-mestre nem um padrinho; e também não era um padrão.

— Em todo caso, não é um pai-de-família - disse o padre Sponde com uma gravidade que pôs fim aos risos.

— Nem um pai-nobre - acrescentou o cavaleiro.

O Clero e a Nobreza tinham descido à arena do trocadilho, conservando toda a dignidade.

— Silêncio!—recomendou o conservador das hipotecas.—Ouço o rangido das botas de Du Bousquier, e agora, mais do que nunca, ele está metido em botas difíceis de descalçar...

É frequente um homem ignorar os boatos que correm a seu respeito: uma cidade inteira se ocupa de sua pessoa, calunia-o, exalta-o. Se não tiver amigos, não saberá de nada. Ora, o inocente Du Bousquier, Du Bousquier que almejava ser culpado e fazia votos para que Susana não houvesse mentido, Du Bousquier exibiu uma soberba ignorância: ninguém lhe falara das revelações de Susana, e todos, aliás, julgavam inconveniente interrogá-lo num caso em que o interessado às vezes possui segredos que o obrigam a calar-se. Assim, Du Bousquier pareceu provocador e um tanto fátuo, quando os convidados saíram da sala de jantar para tomar café no salão, onde já se encontravam algumas pessoas vindas para passar a noite. A srta. Cormon, aconselhada pelo seu pudor, não ousava olhar para o sedutor perigoso; apoderou-se de Atanásio e passou a pregar-lhe moral, expondo-lhe os mais estranhos lugares-comuns de política monarquista e moral religiosa.

Não possuindo, como o cavaleiro de Valois, uma caixa de rapé ornada de princesas para ajudá-lo a suportar esse chuveiro de bobagens, o pobre poeta ouvia com ar estúpido aquela a quem adorava, olhando para seu monstruoso busto que conservava esse repouso total, atributo das grandes massas. Seus desejos produziam nele uma espécie de embriaguez que transformava a vozinha clara da solteirona num doce murmúrio, e suas ideias sem relevo em motivos cheios de espírito. O amor é um moedeiro falso que muda continuamente os vinténs em moedas de ouro, e que muitas vezes, também, torna as moedas de ouro vinténs de cobre.

— E então, Atanásio, promete?

Essa frase final veio golpear o ouvido do feliz moço como um ruído que nos acorda de sobressalto.

— Prometer o quê, senhorita?—perguntou ele.

A srta. Cormon levantou-se bruscamente, olhando para Du Bousquier, que se parecia, naquele momento, com o deus gordo e lendário que a República emprega nos seus escudos. Encaminhou-se para a sra. Granson, e disse-lhe ao ouvido:

— Minha pobre amiga, seu filho é idiota! O liceu perdeu-o—acrescentou, lembrando-se da insistência com que o cavaleiro de Valois falara da má educação ministrada nos liceus.

Que choque! Sem o saber, Atanásio tivera ocasião de lançar seus tições no sarmento amontoado no coração da solteirona. Se a tivesse ouvido, poderia ter-lhe feito entender sua paixão: porque, na agitação em que se achava a srta. Cormon, uma única palavra bastaria. Mas essa estúpida avidez que caracteriza o amor verdadeiro e jovem o perdera, como às vezes uma criança cheia de vida se mata por ignorância.

— Afinal, que disseste à srta. Cormon?—perguntou a sra. Granson ao filho.

— Nada.

— Nada?! Então explicarei isso!—pensou ela, transferindo para o dia seguinte os negócios importantes, pois não dava bastante valor ao caso ocorrido, julgando Du Bousquier perdido no espírito da solteirona.

Em breve as quatro mesas se guarneceram de dezesseis jogadores. Quatro pessoas preferiram um piquet, jogo mais caro e no qual se perdia muito dinheiro. O sr. Choisnel, o procurador do rei e duas senhoras foram jogar um gamão no gabinete de charão vermelho. Acenderam-se as luzes; depois, a flor da sociedade da srta. Cormon agrupou-se em frente à lareira, nas poltronas de encosto alto, em torno das mesas, e cada casal recém-chegado perguntava à senhorita:

— Então vai mesmo amanhã para o Prébaudet?

— Mas é preciso—respondia ela.

A dona da casa parecia preocupada. A sra. Granson foi a primeira a reparar no estado pouco natural em que se encontrava a solteirona: a srta. Cormon estava pensando.

— Em que está pensando, prima?—perguntou finalmente, descobrindo-a sentada na saleta.

— Estou pensando nessa pobre rapariga. Não sou a presidenta da Sociedade Maternal? Vou lhe entregar dez escudos para a coitada.

— Dez escudos!—exclamou a outra.—Mas você nunca deu tanto assim!

— Mas, minha cara, é tão natural ter filhos!

Essa frase imoral, vinda do coração, deixou estupefata a tesoureira da Sociedade Maternal. Evidentemente, Du Bousquier crescera no conceito da srta. Cormon.

— Na verdade—disse a sra. Granson—,Du Bousquier não é só um monstro, é também um infame. Quando se causa um prejuízo a alguém, não se deve indenizá-lo? Não compete a ele, mais do que a nós, socorrer essa pequena, que, no fim das contas, me parece uma criatura muito à toa, porque havia em Alençon gente melhor do que esse cínico Du Bousquier? É preciso ser muito libertina para se haver com ele!

— Cínico! Seu filho está lhe ensinando, minha cara, palavras latinas completamente incompreensíveis. Não quero, decerto, desculpar o sr. Du Bousquier; mas explique-me por que uma mulher é libertina, preferindo um homem a outro.

— Cara prima, se você se casasse com meu filho Atanásio, nada seria mais natural; ele é jovem, é belo, cheio de futuro, e será, um dia, a glória de Alençon; só que todo mundo pensaria que você escolheu um rapaz muito moço para ser muito feliz; as más-línguas diriam que você fez sua provisão de felicidade, para que ela nunca lhe venha a faltar; haveria mulheres invejosas que a acusariam de depravação; mas de que adiantaria isso? Você seria amada sincera e imensamente. Se Atanásio lhe parece idiota, minha cara, é porque ele tem ideias demais; os extremos se tocam. Vive, decerto, como uma menina de quinze anos; nunca rolou nas impurezas de Paris, ele!... Pois bem, mude os termos, como dizia meu pobre marido: foi o mesmo que aconteceu com Du Bousquier em relação a Susana. Você seria caluniada pelas más-línguas; mas, no caso de Du Bousquier, tudo é verdade. Está compreendendo?

— Tão pouco como se me falasse grego—disse a srta. Cormon, que arregalava os olhos, concentrando todas as forças da inteligência.

— Pois bem, prima, já que é preciso botar os pingos nos ii, Susana não pode amar Du Bousquier. E se o coração não entra nesse caso...

— Mas, prima, com que é, então, que se ama, se não for com o coração?

Nesse ponto, a sra. Granson disse consigo mesma o que o cavaleiro já tinha pensado: “Essa pobre prima é inocente demais; chega a ir além do que é permitido”.

— Cara menina—continuou em voz alta—,parece-me que as crianças não se concebem unicamente pelo espírito.

— Sim, senhora, minha cara, pois a Santa Virgem...

— Mas, meu bem, Du Bousquier não é o Espírito Santo!

— É verdade—respondeu a solteirona—,é um homem, um homem cuja atitude o torna bastante perigoso para que os amigos o aconselhem a se casar.

— A prima pode conseguir esse resultado...

— Sim?! E como?—interrogou a solteirona, com o entusiasmo da caridade cristã.

— Não o recebendo em sua casa até que ele a tenha tornado esposa. A prima, em sinal de respeito pelos bons costumes e pela religião, deve manifestar, nesta circunstância, uma reprovação exemplar.

— Quando eu voltar do Prébaudet tornaremos a falar nisso, minha cara prima. Vou consultar meu tio e o padre Couturier—disse a srta. Cormon, tornando ao salão, que se achava, nesse momento, em plena animação.

As luzes, os grupos de mulheres bem-vestidas, o tom solene, o ar magistral dessa assembleia tornavam a srta. Cormon e toda a companhia muito orgulhosas dessa aparência aristocrática. Para muitas pessoas, não havia nada melhor em Paris, na mais alta sociedade. Du Bousquier, que jogava uíste com o sr. de Valois e duas senhoras idosas, a sra. du Coudrai e a sra. du Ronceret, era o objeto de uma curiosidade sonsa. Sob o pretexto de apreciar o jogo, algumas moças se aproximavam da mesa e olhavam para ele de modo tão singular, embora disfarçadamente, que o solteirão acabou por acreditar que havia algum esquecimento na sua indumentária.

— Minha cabeleira postiça estará torta?—pensou ele, acometido de uma dessas inquietações capitais, que acometem os solteirões.

Aproveitou-se de uma jogada má, que terminava um sétimo rubber, para sair da mesa.

— Não posso tocar numa carta sem perder—disse ele.—Sou decididamente muito infeliz no jogo.

— E feliz em outras coisas—disse o cavaleiro, lançando-lhe um olhar cheio de finura.

Esse dito fez, naturalmente, a volta do salão, onde todos se deliciaram com o gracejo encantador do cavaleiro, que era o Príncipe de Talleyrand da região.

— Não há como o sr. de Valois para descobrir essa espécie de coisas—disse a sobrinha do cura de Saint-Léonard.

Du Bousquier foi mirar-se no espelhinho oblongo, acima do Desertor, e não viu nada de extraordinário em sua pessoa.

Depois de inúmeras repetições do mesmo texto, variado em todos os tons, por volta das dez horas começou a partida, ao longo do cais da comprida antecâmara. A srta. Cormon acompanhou até a porta algumas de suas favoritas, de quem se despedia, com um beijo, no patamar da escada. Uns grupos se dirigiam para a estrada de Bretanha e o Castelo, outros para o bairro voltado para o Sarthe. Começaram, então, os comentários que, há vinte anos, ressoavam àquelas horas nessa rua. Era inevitavelmente:

— A srta. Cormon estava bem esta noite.

— A srta. Cormon? Pois eu a achei esquisita.

— Como o pobre padre está caindo! Repararam como ele cochila? Não sabe mais onde estão as cartas; está ficando muito distraído.

— Em breve passaremos pelo desgosto de perdê-lo.

— Que noite bonita! Teremos bom tempo amanhã!

— As macieiras vão se encher de flores.

— Você ganhou o jogo, mas, quando fica de parceria com o sr. de Valois, é sempre assim.

— Quanto ganhou o cavaleiro?

— Mas, esta noite, ganhou três ou quatro francos. Ele não perde nunca.

— É mesmo. E vocês já pensaram que o ano tem trezentos e sessenta e cinco dias, e que, por esse preço, o jogo dele vale uma granja?

— Ah! Mas que jogadas esta noite!

— Os senhores têm muita sorte, já estão em casa; mas nós ainda temos que atravessar quase toda a cidade.

— Não os lamento, pois bem podiam possuir um carro, deixando de andar a pé.

— Ah! Meu amigo, nós temos uma filha para casar, que nos tira uma roda, e a manutenção de nosso filho em Paris nos leva a outra.

— Então pretendem mesmo fazer dele um magistrado?

— Que se pode fazer dos rapazes? E depois, não é vergonha servir o rei.

Às vezes, uma discussão sobre a cidra ou o linho, sempre exposta nos mesmos termos, e que voltava nas mesmas épocas, ia se desenrolando pelo caminho. Um observador do coração humano que morasse naquela rua acabaria por saber em que mês estava, ouvindo aquela conversa. Mas, nesse momento, ela foi exclusivamente engraçada, porque Du Bousquier, que caminhava sozinho à frente dos grupos, cantarolava, sem desconfiar de quanto era oportuna a conhecida canção: “Mulher sensível, ouves o canto dos passarinhos?” etc. Para uns, Du Bousquier era um homem muito hábil e que vinha sendo mal compreendido. Desde que fora confirmado no seu posto por uma nova instituição real, o presidente Ronceret se inclinava para Bousquier. Para outros, o fornecedor era um homem perigoso, de maus costumes, capaz de tudo. Na província, como em Paris, os homens em foco se assemelham a essa estátua do belo conto alegórico de Addison (Addison: Joseph Addison (1672-1719), escritor inglês, autor de deliciosos sketches.), pela qual se batiam dois cavalheiros, chegando cada um por seu lado à encruzilhada onde a tinham erguido: um dizia que era branca, outro afirmava que era preta; depois, quando estavam ambos por terra, viram que era branca na face direita e negra na esquerda. E um terceiro cavalheiro, vindo em socorro de ambos, achou-a vermelha.

Voltando para casa, o cavaleiro de Valois pensava:

— É tempo de espalhar o boato de meu casamento com a srta. Cormon. A notícia sairá do salão dos D’Esgrignon, irá direto até Séez, em casa do Bispo, voltará pelos Vigários Gerais até o cura de Saint-Léonard, que não deixará de dizer ao padre Couturier; assim, a srta. Cormon encontrará essa bomba de mecha acesa nas suas obras vivas. O velho marquês d’Esgrignon convidará o padre Sponde para jantar, a fim de terminar um mexerico que poderia prejudicar a srta. Cormon se eu o desmentisse, e a mim se ela me recusar. O padre há de ser bem empulhado, e a srta. Cormon não resistirá a uma visita da srta. de Gordes, que saberá convencê-la da grandeza e do futuro desse enlace. A herança do padre representa mais de cem mil escudos, as economias da moça devem representar mais de duzentas mil libras; tem o palacete, o Prébaudet e quinze mil libras de rendimentos. Uma palavra a meu amigo, o conde de Fontaine, e eis-me prefeito de Alençon, deputado: depois, quando me vir sentado na bancada de direita, hei de chegar até o pariato, gritando as senhas do rei.

De volta para casa, a sra. Granson teve uma conversa veemente com o filho, que não quis compreender a ligação existente entre suas opiniões e seus amores. Foi a primeira contenda que perturbou a harmonia desse pobre lar.

No dia seguinte, às nove horas, a srta. Cormon, empacotada na caleça com Josette, desenhando-se como uma pirâmide sobre o oceano de suas bagagens, subia a Rue de Saint-Blaise, em direção ao Prébaudet, onde deveria surpreendê-la o acontecimento que precipitou seu casamento, e que não podia ser previsto nem pela sra. Granson nem por Du Bousquier nem pelo sr. de Valois nem pela própria srta. Cormon. O acaso é o maior de todos os artistas.


III - AS DECEPÇÕES

 

No dia seguinte ao da sua chegada ao Prébaudet, a srta. Cormon estava ocupada muito inocentemente, às oito horas da manhã, em escutar, durante o café, os diversos relatórios do guarda e do jardineiro, quando Jacquelin fez vigorosa irrupção na sala de jantar.

— Senhorita—disse ele todo despenteado—,o senhor seu tio lhe mandou um mensageiro, o filho da velha Grosmort, com uma carta. O rapaz saiu de Alençon antes do amanhecer, e não é que já chegou? Correu quase tão depressa quanto Penélope. Não acha que se deve dar um copo de vinho ao moço?

— Que poderá ter acontecido, Josette? Meu tio estaria...

— Se estivesse, não escreveria—atalhou a arrumadeira, adivinhando os temores da patroa.

— Depressa! Depressa!—ordenou a srta. Cormon, depois de ter lido as primeiras linhas.—Jacquelin que atrele Penélope. Dá um jeito, minha filha, de ter toda a bagagem pronta dentro de meia hora—disse ela a Josette.—Vamos voltar para a cidade...

— Jacquelin!—gritou Josette, excitada pelo sentimento que o rosto da srta. Cormon exprimia.

Jacquelin, instruído por Josette, apareceu, dizendo:

— Mas, senhorita, Penélope está comendo a ração de aveia.

— Eh! Que tenho eu com isso! Quero partir imediatamente.

— Mas, senhorita, vai chover.

— Pois bem, ficaremos molhados.

— A casa está caindo—resmungou Josette, ofendida pelo silêncio da patroa, que lia e relia a carta.—Acabe ao menos de tomar o café. Não se apoquente assim; veja só como está vermelha.

— Estou vermelha, Josette?!—e foi mirar-se num espelho cujo estanho estava caindo e que lhe ofereceu a imagem de seus traços duplamente alterados.

“Meu Deus!”, pensou a srta. Cormon. “Se eu fosse ficar feia!”

— Vamos, Josette, vamos, minha filha, veste-me. Quero ficar pronta antes de Jacquelin ter atrelado Penélope. Se não puderes meter meus embrulhos no carro, prefiro deixá-los aqui a perder um só minuto.

Se os leitores compreenderam o excesso de monomania a que o desejo de casar tinha levado a srta. Cormon, na certa compartilharão de suas emoções. O digno tio anunciava à sobrinha que o sr. de Troisville, antigo militar a serviço da Rússia, neto de um de seus melhores amigos, desejava retirar-se para Alençon e lhe pedia hospitalidade, valendo-se da amizade que unira o padre a seu avô, o visconde de Troisville, chefe de esquadrão sob Luís XV. O antigo vigário-geral, apavorado, suplicava com insistência à sobrinha que voltasse a fim de ajudá-lo a receber o hóspede e lhe fazer as honras da casa, porque a carta sofrera algum atraso e o sr. de Troisville podia lhe cair nos braços àquela mesma tarde. Depois da leitura dessa carta, podia-se pensar nos cuidados que pedia o Prébaudet? Nesse momento, o guarda e o granjeiro, testemunhas da agitação da patroa, esperavam calados que ela desse as suas ordens. Quando a detiveram na passagem, a fim de obter instruções, pela primeira vez em sua vida a srta. Cormon, solteirona despótica que decidia de tudo no Prébaudet, sem ouvir a opinião de ninguém, respondeu-lhes: Façam como quiserem!, ferindo-os de espanto, porque a patroa levava o cuidado administrativo até o extremo de contar as frutas e registrá-las por qualidade, a fim de dirigir o consumo segundo o número de cada espécie.

— Pareço estar sonhando!—pensou Josette, vendo a patroa voar pelas escadas como um elefante a que Deus tivesse dado asas.

Em breve, apesar de uma chuva cerrada, a senhorita saiu do Prébaudet, deixando o pessoal de rédeas soltas. Jacquelin não ousou assumir a responsabilidade de apressar o trotezinho habitual da pacífica Penélope (Penélope: personagem da Odisseia, de Homero, esposa de Ulisses, rei lendário de Ítaca, que, envolvido em aventuras, levou dez anos a voltar ao seu reino após o fim da Guerra de Troia. Requestada por vários pretendentes, ela iludiu-os prometendo que esposaria um deles no dia em que acabasse um bordado iniciado na ausência do marido. Desfazia, porém, de noite o que bordava de dia, e conseguiu, graças a esse estratagema, adiar a decisão e esperar a volta de Ulisses, que acabou com seus rivais.), que, semelhante à bela rainha de que usava o nome, parecia dar tantos passos para trás quantos dava para a frente. Reparando nessa lentidão, a senhorita ordenou a Jacquelin, com voz azeda, que obrigasse a galopar, nem que fosse à custa do chicote, a pobre égua espantada—tão grande era seu medo de não ter tempo de arrumar convenientemente a casa para receber o sr. de Troisville. Calculava que o neto de um amigo de seu tio não podia ter mais de quarenta anos; como militar, seria solteiro na certa, e, portanto, fazia a si mesma a promessa de, com auxílio do tio, não deixar sair de casa o sr. de Troisville no mesmo estado civil em que lá entraria. Embora Penélope estivesse galopando, a srta. Cormon, preocupada com suas toilettes e sonhando com uma primeira noite de núpcias, disse várias vezes a Jacquelin que iam muito devagar. Remexia-se no carro sem responder às perguntas de Josette, e falava sozinha como uma pessoa que forma grandes projetos. Finalmente, a caleça atingiu a rua principal de Alençon, que se chama Rue de Saint-Blaise, entrando pelo lado de Mortagne, mas que, nas proximidades do Hôtel du More, toma o nome de Rue de la Porte de Séez, e se torna Rue du Bercail ao desembocar na estrada da Bretanha.

Todos podem imaginar que, se a partida da srta. Cormon costumava fazer tanto ruído, maior barulho fez a sua volta, no dia seguinte ao da instalação no Prébaudet, por uma chuva torrencial que lhe fustigava o rosto sem que ela parecesse dar por isso. Todos notaram o galope louco de Penélope, o ar velhaco de Jacquelin, a hora matinal, os embrulhos empilhados, a conversa animada da srta. Cormon com Josette e, sobretudo, a impaciência de ambas. Os bens da casa de Troisville achavam-se situados entre Alençon e Mortagne. Josette conhecia os diversos ramos da família de Troisville. Uma palavra pronunciada pela senhorita quando atingiam o calçamento de Alençon informara Josette a respeito da aventura; logo se estabelecera uma discussão entre as duas, e acabaram por decidir que o Troisville esperado devia ser um fidalgo entre os quarenta e os quarenta e dois anos, solteiro, nem rico nem pobre. A senhorita já se via viscondessa de Troisville.

— É meu tio que não me diz nada, que não sabe de nada, que não se informa de nada! Oh! Como isso é bem do meu tio! Seria capaz de esquecer o nariz, se não o tivesse preso na cara!

Nunca notaram que, em circunstâncias como essa, as solteironas se tornam como Ricardo III, espirituosas, ferozes, ousadas, prometedoras, e, como amanuenses embriagados, não respeitam mais coisa alguma?

Dentro em pouco, a cidade de Alençon, instruída num minuto, desde o alto da Rue de Saint-Blaise até a Porte de Séez, desse regresso precipitado, acompanhado de ocorrências graves, ficou perturbada em todas as suas vísceras públicas e domésticas. As cozinheiras, os negociantes, os transeuntes espalharam a novidade de porta em porta; depois, a notícia subiu até as esferas superiores. Em breve as palavras: “A srta. Cormon já voltou!”, estouravam como uma bomba em todos os lares.

Nesse momento, Jacquelin saltou do banco, polido por um processo que os marceneiros ignoram, onde se sentava na parte dianteira da caleça; abriu a grande porta verde, redonda em cima, fechada em sinal de luto, porque, durante a ausência da srta. Cormon, não se realizava a assembleia. Os fiéis é que costumavam receber e festejar, uns após outros, o padre Sponde. O cavaleiro de Valois pagava a dívida convidando-o para jantar em casa do marquês d’Esgrignon.

Jacquelin chamou familiarmente Penélope, que tinha deixado no meio da rua; a égua, habituada a essa manobra, deu a volta sozinha, atravessou a porta e virou no pátio de modo a não estragar o canteiro de flores. Jacquelin pegou as rédeas e conduziu o carro até em frente ao patamar.

— Marieta!—gritou a srta. Cormon.

Mas Marieta estava ocupada em fechar a porta.

— Senhora?

— O moço ainda não chegou?

— Ainda não, senhora.

— E meu tio?

— Seu tio está na igreja.

Jacquelin e Josette estavam nesse momento no primeiro degrau da escada, e estendiam as mãos para içar a patroa, em pé no carro, equilibrada sobre o varal e agarrando-se nas cortinas. A senhorita atirou-se-lhes nos braços, porque há já dois anos não ousava utilizar o estribo de ferro, em malhas duplas, fixado ao varal por um horrível mecanismo de grossas cavilhas de aço. Quando se viu no patamar, a srta. Cormon contemplou sua corte com satisfação.

— Vamos, vamos, Marieta, deixe a porta da rua e venha cá.

— A casa está caindo—avisou Jacquelin a Marieta, quando a cozinheira passou perto do carro.

— Vamos ver, minha filha, que provisões você tem?—perguntou a srta. Cormon, sentando-se na banqueta da comprida antecâmara, como uma pessoa aniquilada de cansaço.

— Ora! Não tenho nada—respondeu Marieta, com as mãos nas cadeiras.—A senhorita sabe muito bem que, durante sua ausência, o senhor padre sempre janta fora; ainda ontem eu fui buscá-lo em casa da srta. Armanda.

— Mas onde está ele?

— O senhor padre está na igreja e só volta às três horas.

— Meu tio não pensa em nada. Então ele não deveria ter dito a você para ir ao mercado! Marieta, vá agora; sem jogar dinheiro fora, não poupe nada, compre tudo o que houver de bom, de apetitoso, de delicado. Pergunte nas diligências como se podem conseguir patês. Quero também caranguejos dos canais do Brillante. Que horas são?

— Falta um quarto para as nove.

— Meu Deus, Marieta, não perca tempo em conversas, a pessoa esperada por meu tio pode chegar de um momento para outro; se fosse preciso lhe dar almoço, estaríamos em maus lençóis.

Marieta virou-se para a suada Penélope, e olhou Jacquelin com uma expressão que significava: “A senhorita, desta vez, vai fisgar um marido”.

— Agora, nós, Josette—continuou a solteirona—,temos que ver onde faremos dormir o sr. de Troisville.

Com que felicidade foi pronunciada essa frase: ver onde faremos dormir o sr. de Troisville (pronuncie-se Tréville); quantas ideias nessas palavras! A solteirona estava inundada de esperança.

— Não quer acomodá-lo no quarto verde?

— O do senhor Bispo? Não, não; fica muito perto do meu—disse a srta. Cormon.—Isso é bom para o monsenhor, que é um santo homem.

— Dê-lhe o apartamento de seu tio.

— É tão nu que seria indecente.

— Pois então, senhorita, mande arrumar uma cama em sua saleta, que tem uma lareira. Moreau há de encontrar na loja uma cama pouco mais ou menos igual à fazenda das tapeçarias.

— Você tem razão, Josette. Está muito bem; corra à loja de Moreau e combine com ele tudo o que é preciso fazer, você está autorizada por mim. Se a cama (a cama do sr. de Troisville!) puder ser trazida esta tarde sem que o sr. de Troisville o perceba, no caso de chegar quando Moreau estiver aqui, fica tudo resolvido. Se Moreau não se comprometer a isso, instalarei o sr. de Troisville no quarto verde, embora ali o sr. de Troisville fique realmente muito perto de mim.

Josette já estava a caminho; a patroa chamou-a.

— Explique tudo direito a Jacquelin—exclamou com uma voz formidável e cheia de pavor—,que ele mesmo vá à loja de Moreau. É minha roupa, que tenho de mudar! Se eu fosse surpreendida assim pelo sr. de Troisville, sem meu tio para recebê-lo! Oh! Meu tio, meu tio! Venha, Josette, venha vestir-me.

— Mas Penélope...—disse imprudentemente Josette.

Os olhos da srta. Cormon faiscaram pela primeira e única vez em sua vida.

— Sempre Penélope! Penélope para cá, Penélope para lá! Será por acaso Penélope a patroa?

— Mas ela está alagada de suor, e ainda não comeu a aveia!

— Pois que estoure!—explodiu a srta. Cormon; “mas que eu me case”, pensou ela.

Ouvindo essa expressão que lhe pareceu um homicídio, Josette ficou estupefata durante uns segundos; depois desceu a escada aos pulos, obedecendo a um gesto da patroa.

— A senhorita está com o diabo no corpo, Jacquelin!—foi a primeira coisa que Josette disse.

Assim tudo ficou assentado nesse dia, para produzir o grande choque que iria decidir a vida da srta. Cormon. A cidade já estava de pernas para o ar em consequência das cinco circunstâncias agravantes que acompanharam a volta da srta. Cormon, a saber: a chuva torrencial; o galope de Penélope esbaforida, suada e de barriga vazia; a hora matinal; os embrulhos em desordem; e o ar esquisito da solteirona assombrada. Mas quando Marieta invadiu o mercado para comprar tudo o que lá havia, quando Jacquelin foi à principal loja de móveis de Alençon, na Rue de la Porte de Séez, a dois passos da igreja, para procurar uma cama, houve motivos de sobra para as mais graves conjecturas. Discutiram essa estranha aventura na alameda, no passeio público; preocupou toda gente, até mesmo a srta. Armanda, em casa de quem se encontrava o cavaleiro. Com dois dias de intervalo a cidade de Alençon era agitada por acontecimentos tão capitais que algumas boas mulheres diziam:

— Mas é o fim do mundo!

A última novidade era resumida, em todas as casas, por essa frase:

— Que estará acontecendo aos Cormon?

O padre Sponde, interrogado com grande habilidade quando saiu de Saint-Léonard para passear na alameda com o padre Couturier, respondeu sem mistérios que estava esperando o visconde de Troisville, fidalgo a serviço da Rússia durante a emigração, e que voltava para morar em Alençon. Das duas horas às cinco, uma espécie de telégrafo labial funcionou na cidade, informando todos os habitantes de que a srta. Cormon tinha finalmente arranjado marido por correspondência, e que ia casar-se com o visconde de Troisville. Aqui se dizia:

— Moreau já está fazendo a cama.

Ali, a cama tinha seis pés. O leito era de quatro pés em casa da sra. Granson, na Rue du Bercail. Era só um leito de repouso em casa de Ronceret, onde Bousquier fora jantar. A pequena burguesia afirmava que a cama ia custar mil e cem francos. Em geral comentavam que isso era vender a pele do lobo, antes de caçá-lo. Mais adiante, contavam que as carpas tinham subido de preço. Marieta correra mercado para fazer uma devastação total. No alto da Rue de Saint-Blaise, Penélope já esticara as canelas. Esse falecimento era posto em dúvida no palacete do Recebedor-Geral. Entretanto, parecia autêntico, na Prefeitura, que o animal expirara ao transpor a porta do palacete Cormon, de tal forma a solteirona se precipitara com rapidez sobre sua presa. O seleiro que morava no canto da Rue Séez foi bastante ousado para ir perguntar se acontecera alguma coisa ao carro da senhorita, só na intenção de descobrir se Penélope estava morta. Do alto da Rue de Saint-Blaise até a ponta da Rue du Bercail, todos souberam que, graças aos cuidados de Jacquelin, Penélope, essa silenciosa vítima da intemperança da dona, ainda estava viva, mas parecia muito doente. Em toda a estrada da Bretanha, o visconde de Troisville era um cadete sem vintém, porque os bens de Perche pertenciam ao marquês de Troisville, par de França que tinha dois filhos. Esse casamento era uma felicidade para o pobre emigrado, e o visconde era o que servia para a srta. Cormon. A aristocracia da estrada da Bretanha aprovava o casamento; a solteirona não poderia fazer um melhor emprego de sua fortuna. Mas, na burguesia, o sr. de Troisville era um general russo que combatera contra a França e voltava com uma enorme fortuna ganha na corte de São Petersburgo; era um estrangeiro, um dos aliados que os Liberais odiavam. Sorrateiramente, o padre Sponde negociara tal casamento. Todas as pessoas que tinham direito de entrar em casa da srta. Cormon como em suas próprias casas planejaram ir visitá-la à noite.

Durante essa agitação transurbana, que quase fez esquecer Susana, a srta. Cormon estava também agitadíssima. Conhecia sentimentos completamente novos. Olhando para o salão, a saleta, o gabinete, a sala de jantar, experimentou uma apreensão cruel. Uma espécie de demônio apontou-lhe esse velho luxo, motejando; as belas coisas que admirava desde menina ficaram sob suspeita, acusadas de velhice. Sentiu, finalmente, esse temor que se apodera de quase todos os autores, quando leem uma obra que julgavam perfeita para algum crítico exigente ou enfastiado: as situações novas parecem usadas; as frases mais corretas, mais trabalhadas mostram-se capengas ou caolhas; as imagens careteiam e se contrariam; o que é falso salta aos olhos. Da mesma maneira a infeliz solteirona tremia imaginando nos lábios do sr. de Troisville um sorriso de desprezo por esse salão de bispo; temia vê-lo lançar um olhar frio na antiquada sala de jantar; tinha medo, afinal, de que a moldura envelhecesse o quadro. Se essas antiguidades fossem lançar sobre sua pessoa os reflexos da velhice? Essa interrogação arrepiou-lhe os cabelos. Nesse momento, teria dado a quarta parte de suas economias para restaurar a casa num minuto, por um prodígio de varinha de condão. Qual o general mais fátuo que não tenha estremecido na véspera de uma batalha? A pobre criatura achava-se entre um Austerlitz e um Waterloo (Em Austerlitz, na Morávia, Napoleão obteve uma de suas maiores vitórias sobre os exércitos reunidos da Áustria e da Rússia em 2 de dezembro de 1805; em Waterloo, na Bélgica, foi vencido pelos ingleses e os prussianos em 18 de junho de 1815.).

— Sra. viscondessa de Troisville!—pensava ela.—Que belo nome! Nossos bens iriam, ao menos, para uma boa família.

Estava sobressaltada por uma irritação que mexia com os seus mais sutis centros nervosos e suas papilas há tanto tempo afogadas em gordura. Todo seu sangue, fustigado pela esperança, estava em movimento. Sentia-se com forças até mesmo para conversar com o sr. de Troisville, se fosse possível. É inútil falar da atividade com que funcionaram Josette, Jacquelin e Marieta, Moreau e seus empregados. Foi uma correria diligente de formigas ocupadas com os ovos. Tudo o que um cuidado cotidiano já tornava tão limpo foi de novo passado, esfregado, escovado, lavado. As porcelanas dos grandes dias viram a luz do sol. As roupas de mesa adamascadas, numeradas A, B, C, D, foram extraídas das profundezas onde jaziam sob a guarda tríplice de envelopes defendidos por formidáveis linhas de alfinetes. Interrogaram as mais preciosas fileiras da biblioteca. Enfim, a srta. Cormon sacrificou três garrafas dos famosos licores da sra. d’Amphoux (Sra. d’Amphoux: personagem real, dona de uma famosa destilaria de Bordeaux.), a mais ilustre das destiladoras de além-mar, nome caro aos amadores. Graças à dedicação de seus lugares-tenentes, a senhorita pôde aprontar-se para o combate. As diversas armas, os móveis, a bateria da cozinha, a artilharia da copa, os víveres, as munições, os corpos da reserva, tudo ficou preparado em toda a linha. Jacquelin, Marieta e Josette receberam ordem de trajar roupas de gala. A grama do jardim foi aparada.

A solteirona lamentou não poder entender-se com os rouxinóis alojados nas árvores a fim de obter que dessem uma audição de suas árias mais maviosas.

Pelas quatro horas, no momento em que o padre Sponde acabava de chegar, e quando a senhorita julgava ter, em vão, arrumado a mesa com a máxima faceirice e encomendado um jantar excepcionalmente delicado, ouviu-se no Val-Noble o estalo de um chicote de cocheiro.

- É ele! - pensou a solteirona, recebendo as chicotadas no coração.

Com efeito, anunciado por tanto barulho, um certo cabriolé da posta, no qual se achava um homem sozinho, causara tal sensação ao descer a Rue de Saint-Blaise e ao virar a Rue du Cours que alguns garotinhos e pessoas adultas o haviam seguido, e ficavam, agora, agrupados diante da porta da casa Cormon para vê-lo entrar. Jacquelin, que também farejava seu próprio casamento, ouvira o estalo na Rue de Saint-Blaise e abrira largamente a porta do pátio. O postilhão, que era seu conhecido, considerou ponto de honra fazer a volta com habilidade, e parou bem em frente ao patamar. Quanto a esse cocheiro, todos compreendem que partiu lindamente embriagado por Jacquelin. O padre adiantou-se para receber o hóspede, cujo carro foi despojado com a presteza que poderiam empregar ladrões profissionais. O cabriolé foi metido na cocheira, a porta de entrada bem fechada, e não houve mais traços da chegada do sr. de Troisville, em poucos minutos. Nunca duas substâncias químicas se misturaram com mais prontidão do que a casa Cormon absorveu o visconde de Troisville. A senhorita, com o coração batendo como um lagarto agarrado por um pastor, ficou heroicamente em sua poltrona, ao canto da lareira. Josette abriu a porta, e o visconde de Troisville, seguido pelo padre Sponde, surgiu aos olhos da solteirona.

— Minha sobrinha, eis aqui o visconde de Troisville, neto de um de meus companheiros de colégio. Senhor de Troisville, eis minha sobrinha, srta. Cormon.

— Ah! Que bom tio! Como ele colocou bem a questão!—pensou Rosa-Maria-Vitória.

Para pintá-lo em duas palavras: o visconde de Troisville era um Bousquier aristocrata. Havia entre ambos toda a diferença que separa o gênero vulgar do gênero nobre. Se os dois estivessem lado a lado, seria impossível ao mais exaltado liberal negar a aristocracia. A força do visconde tinha toda a distinção da elegância; suas formas conservavam uma dignidade magnífica; tinha olhos azuis, cabelos negros, tez azeitonada, e não devia contar mais de quarenta e seis anos. Parecia um belo espanhol conservado nos gelos da Rússia. Os modos, o andar, a atitude, tudo denunciava o diplomata que correra toda a Europa. A indumentária era a de um homem de fino trato em viagem. Como parecesse cansado, o padre Sponde convidou-o a passar para o quarto que lhe fora destinado, e ficou boquiaberto quando a sobrinha abriu a saleta transformada em quarto de dormir. A sra. Cormon e o tio deixaram, então, o nobre estrangeiro cuidando de suas coisas com o auxílio de Jacquelin, que lhe trouxera toda a bagagem de que necessitava. Tio e sobrinha foram passear ao longo do rio, esperando que o sr. de Troisville se aprontasse. Embora o padre Sponde estivesse, por um acaso singular, mais distraído do que de costume, a srta. Cormon não se mostrava menos preocupada do que ele. Caminhavam em silêncio. Nunca a solteirona encontrara um homem tão sedutor quanto o olímpico visconde. Não podia dizer, à moda alemã: “Eis meu ideal”, mas sentia-se tomada da cabeça aos pés, e pensava: “Eis o que me serve!”.

Voou, de repente, até a cozinha, para saber se o jantar podia sofrer atraso, sem perder nada de suas qualidades.

— O sr. de Troisville é muito amável, meu tio—disse ao voltar.

— Mas, minha filha, ele ainda não disse nada!—exclamou o padre, rindo.

— Vê-se logo pelas suas maneiras, pela fisionomia. Será solteiro?

— Não sei de nada—respondeu o padre, pensando numa discussão sobre a graça divina, travada aquela tarde com o padre Couturier.—O sr. de Troisville me escreveu que desejava comprar uma casa. Se fosse casado, não teria vindo sozinho—continuou, com ar despreocupado, porque não podia admitir que a sobrinha pensasse em se casar.

— É rico?

— É o caçula de um ramo cadete. O avô dele comandou esquadras; mas o pai desse moço fez um mau casamento.

— Moço!—repetiu a solteirona.—Mas parece-me, meu tio, que ele tem bem seus quarenta e cinco anos—disse ela, porque sentia um desejo excessivo de comparar a idade de ambos.

— Sim—concordou o padre.—Mas um quadragenário parece jovem a um pobre padre de setenta anos, Rosa.

Nesse momento, Alençon inteira sabia que o sr. visconde de Troisville tinha chegado em casa da srta. Cormon. Em breve, o estrangeiro reuniu-se aos donos da casa, e começou a admirar a vista do Brillante, o jardim e o palacete.

— Senhor padre—disse ele—,toda minha ambição seria a de encontrar uma habitação semelhante a esta.

A solteirona quis ver uma declaração nessa frase, e abaixou os olhos.

— A senhorita deve gostar de viver aqui, pois não?—continuou o visconde.

— Como não gostar! A casa é de nossa família desde o ano de 1574, época em que um dos nossos antepassados, intendente do duque de Alençon, comprou este terreno e mandou construí-la—disse a srta. Cormon.—Foi feita sobre estacas.

Jacquelin tendo anunciado o jantar, o sr. de Troisville ofereceu o braço à feliz rapariga, que se esforçou por não se apoiar demasiadamente, pois tinha muito medo de parecer oferecer-se!

— Tudo é muito harmonioso aqui—disse o visconde sentando-se à mesa.

— Nossas árvores estão cheias de pássaros que nos dão harmonias baratas; ninguém lhes faz mal, e todas as noites cantam rouxinóis.

— Estou me referindo ao interior da casa—observou o cavaleiro, que não se deu o trabalho de estudar a srta. Cormon e não reconheceu a nulidade de sua inteligência.—Sim, tudo está de acordo, tudo tem seu valor exato: os tons das cores, os móveis, a fisionomia.

— No entanto, ela nos custa muito, os impostos são enormes—respondeu a excelente criatura, impressionada pela palavra valor.

— Ah! Os impostos são altos, aqui?—perguntou o cavaleiro, que, preocupado com suas ideias, não percebeu o jogo de disparates.

— Não sei—disse o padre.—Minha sobrinha se encarregou da administração de nossas duas fortunas.

— Os impostos são uma miséria para as pessoas ricas—continuou a srta. Cormon, que não quis parecer avarenta.—Quanto aos móveis, pretendo deixá-los como estão, a não ser que eu me case; porque então será preciso que tudo aqui seja ao gosto do dono.

— A senhora tem grandes princípios, senhorita—disse o visconde sorrindo—,e fará um homem feliz.

— Nunca ninguém me disse uma coisa tão bonita—pensou a solteirona.

O visconde cumprimentou a srta. Cormon sobre o serviço, a mesa, a arrumação da casa, confessando que julgara fosse a província atrasada, e a estava achando muito confortável.

“Que palavra será essa, meu Deus do céu?”, pensou ela. “Onde está o cavaleiro de Valois para responder por mim. Confortável? Haverá várias palavras dentro disso? Vamos, coragem, é talvez uma palavra russa, eu não sou obrigada a entender.”

— Mas—continuou em voz alta, sentindo a língua solta pela eloquência que quase todas as criaturas humanas adquirem nas circunstâncias capitais—saiba o senhor que temos aqui a mais brilhante sociedade. A cidade se reúne justamente em minha casa. O senhor poderá julgar daqui a pouco, porque alguns de nossos fiéis terão sido, certamente, informados de minha volta, e virão visitar-me. Temos o cavaleiro de Valois, fidalgo da antiga Corte, homem de espírito e de fino gosto; e temos ainda o sr. marquês d’Esgrignon e a irmã, srta. Armanda—mordeu a língua e reconsiderou:—,moça notável no seu gênero—acrescentou então.—Quis ficar solteira a fim de deixar toda a fortuna para o irmão e o sobrinho.

— Ah!—fez o visconde.—Sim, dos D’Esgrignon eu me lembro.

— Alençon é muito alegre—continuou a solteirona, lançada a todo pano.—Há muitos divertimentos; o recebedor-geral dá bailes, o prefeito é uma pessoa amável, o senhor bispo nos honra às vezes com uma visita...

— Então—disse o cavaleiro sorrindo—,fiz muito bem de querer voltar, como as feras, para morrer na toca.

— Eu também—disse a solteirona—sou como a fera: morro onde me prendo.

O visconde tomou o provérbio da hera (O provérbio francês, involuntariamente transformado pela srta. Cormon, é este: Je suis comme le lierre, je meurs où je m’attache. (Sou como a hera, morro onde me prendo). Por ignorância, a senhorita substitui lierre por lièvre (lebre).), assim transformado, como uma brincadeira, e sorriu.

— Ah! Tudo vai bem—supôs a solteirona.—Eis enfim um que me compreende!

A conversa girou em torno de generalidades. Por um desses misteriosos poderes desconhecidos, indefiníveis, a srta. Cormon desencavava do cérebro, sob a pressão de seu desejo de ser amável, todos os torneios verbais do cavaleiro de Valois. As coisas se passavam como num duelo em que o diabo em pessoa parece ajustar o cano da pistola. Nunca adversário foi visado com tanta mira e exatidão. O visconde era por demais educado e habituado aos hábitos de boa sociedade para fazer o elogio do excelente jantar; mas seu silêncio era um louvor. Bebendo os vinhos deliciosos, servidos profusamente por Jacquelin, parecia reconhecer amigos e encontrá-los com prazer muito vivo, porque o verdadeiro amador não aplaude; goza. Informou-se com curiosidade sobre os preços dos terrenos, das casas, dos sítios. Fez a srta. Cormon descrever longamente o lugar do confluente do Brillante e do Sarthe. Espantou-se por ser a cidade construída tão longe do rio; a topografia de Alençon despertava seu interesse. O silencioso padre deixava a sobrinha sustentar a palestra. Realmente, a senhorita julgou ter ganho a simpatia do visconde, que lhe sorria com graça, e que se comprometeu durante esse jantar muito mais do que seus desvelados pretendentes se haviam comprometido em quinze dias. Assim, todos podem ficar certos de que nunca outro conviva foi agasalhado de mais cuidadinhos, envolto de mais gentis atenções. Dir-se-ia um amante querido, de volta ao lar feliz. A senhorita previa o momento em que o visconde queria mais pão; chocava-o com os olhos; assim que ele virava a cabeça, servia-lhe jeitosamente um suplemento da iguaria que parecera apreciar; seria capaz de fazê-lo estourar, se fosse um homem guloso; mas que deliciosa amostra não estava dando do que seria capaz de fazer em amor! Não cometeu a tolice de se depreciar; abriu valorosamente todas as velas ao vento, arvorou todos os seus pavilhões, fez-se passar pela rainha de Alençon e gabou as compotas que sabia fazer. Finalmente, pescou elogios, falando em si mesma, como se todos os seus arautos estivessem mortos. Percebeu que agradava ao visconde, porque seu desejo a transformara tanto que se tinha quase tornado mulher. Não foi sem um deslumbramento interior que ouviu, à sobremesa, idas e vindas na antecâmara e barulhos no salão, anunciando a chegada de suas visitas habituais. Chamou a atenção do tio e do sr. de Troisville para essa solicitude, apontando-a como a prova da afeição que lhe tinham, quando era, na realidade, efeito da curiosidade lancinante que se apoderara de Alençon inteira. Impaciente de se mostrar em toda a sua glória, a srta. Cormon disse a Jacquelin que tomariam o café e o licor no salão, onde o criado foi exibir, diante da elite da sociedade, as magnificências de um licoreiro de Saxe que só saía do armário duas vezes por ano. Todas essas circunstâncias foram observadas pela companhia, entretida em criticar na surdina.

— Diacho!—exclamou Du Bousquier.—Só licores da sra. d’Amphoux, que nunca servem senão nos grandes dias santificados!

— Não há dúvidas. O casamento foi tratado, há já um ano, por correspondência—disse o sr. du Ronceret.—O diretor dos Correios recebe aqui, há já um ano, cartas com o selo de Odessa.

A sra. Granson estremeceu. O cavaleiro de Valois, embora tivesse jantado por quatro, pálido até no lado esquerdo do rosto, sentiu que ia trair seu segredo, e disse:

— Não acham que está fazendo frio hoje? Eu estou gelado.

— É a vizinhança da Rússia—disse Du Bousquier.

O cavaleiro olhou para ele com um ar que significava: “Bem lançado”. A srta. Cormon apareceu tão radiosa, tão triunfante que a acharam bela. Esse brilho extraordinário não era devido somente ao sentimento; toda a massa de seu sangue turbilhonava dentro dela desde a manhã, e seus nervos estavam agitados pelo pressentimento de uma grande crise: todas essas circunstâncias tinham sido necessárias para torná-la tão diferente de si mesma. Foi com felicidade que ela fez a apresentação solene do visconde ao cavaleiro, do cavaleiro ao visconde, de Alençon em peso ao sr. de Troisville, do sr. de Troisville à gente de Alençon. Por um acaso fácil de explicar, o visconde e o cavaleiro, duas naturezas aristocráticas, uniram-se imediatamente no mesmo diapasão; reconheceram-se; e ambos se olharam como homens da mesma esfera. Começaram a conversar, em pé, diante da lareira. Formou-se um círculo em volta deles, e, embora travada sotto voce (Sotto voce (em italiano): baixinho.), a conversa dos dois foi ouvida num religioso silêncio. Para apreender bem o sentido desta cena, é preciso imaginar a srta. Cormon ocupada em servir o café de seu suposto pretendente, com as costas viradas para a chaminé.

SR. DE VALOIS—O senhor visconde, ao que dizem, vem instalar-se aqui?

SR. DE TROISVILLE—Sim, senhor, venho para procurar uma casa... (A srta. Cormon vira-se, com a xícara na mão.) E é preciso que seja espaçosa, para alojar... (a srta. Cormon estende a xícara) minha família. (Os olhos da solteirona se perturbam.)

SR. DE VALOIS—O senhor é casado?

SR. DE TROISVILLE—Há dezesseis anos, com a filha da princesa Scherbelloff.

A srta. Cormon caiu fulminada: Du Bousquier, que a viu cambalear, precipitou-se, recebendo-a nos braços, e abriram a porta a fim de que ele pudesse passar sem obstáculos, com aquele fardo enorme. Aconselhado por Josette, o fogoso republicano encontrou forças para carregar a solteirona até o quarto e deitá-la na cama. Josette, armada de tesouras, cortou o colete exageradamente apertado. Du Bousquier jogou com brutalidade gotas d’água no rosto da srta. Cormon e no busto, que se esparramou como uma inundação do rio Loire. A doente abriu os olhos, viu Du Bousquier, e o pudor arrancou-lhe um grito quando reconheceu aquele homem. Deixando entrar seis mulheres, à frente das quais se achava a sra. Granson radiante de alegria, Du Bousquier retirou-se. Que fizera o cavaleiro enquanto isso? Fiel a seu sistema, tinha coberto a retirada.

— Esta pobre srta. Cormon—disse ele ao sr. de Troisville, olhando para a assembleia, cujos risos foram reprimidos por esse olhar aristocrático—vive horrivelmente atormentada pelo sangue. Não quis fazer uma sangria antes de ir para o Prébaudet (suas terras), e eis o resultado dos movimentos do sangue na primavera.

— Ela veio debaixo de chuva esta manhã—disse o padre Sponde—,pode ter apanhado um resfriado que motivou essa pequena revolução a que é sujeita. Mas não será nada.

— Ainda anteontem ela me dizia que não a tinha há já três meses, acrescentando que isso seria capaz de lhe pregar uma peça—continuou o cavaleiro.

— Ah! Tu és casado?—pensou Jacquelin, olhando para o sr. de Troisville, que bebia o café aos golinhos.

O fiel empregado aderiu ao desapontamento da patroa, adivinhou-o, e levou de volta os licores da sra. d’Amphoux, oferecidos ao celibatário e não ao marido de uma russa. Todas essas pequenas minúcias foram registradas, e deram motivo a caçoadas. O padre Sponde conhecia a razão da viagem do fidalgo; mas, por um efeito de sua distração, nada dissera, não imaginando que a sobrinha pudesse ter o menor interesse no sr. de Troisville. Quanto ao visconde, preocupado com o objetivo de sua viagem, e, como muitos maridos, com pouca pressa de falar na mulher, não tivera ocasião de se dizer casado; julgava, aliás, que a senhorita já o soubesse. Du Bousquier reapareceu e foi exaustivamente interrogado. Uma das seis senhoras desceu, anunciando que a srta. Cormon estava passando muito melhor e que seu médico já havia chegado; mas devia ficar na cama, pois havia a necessidade urgente de uma sangria. Em breve o salão ficou cheio. A ausência da srta. Cormon permitiu que as senhoras conversassem sobre a cena tragicômica, aumentada, comentada, embelezada, historiada, enfeitada, bordada, colorida, ornamentada, que acabara de se passar e que iria, no dia seguinte, fazer Alençon em peso ocupar-se da srta. Cormon.

— Aquele bom Du Bousquier! Como ele a carregava! Que punhos! Que força!—disse Josette à patroa.—Estava pálido por sua causa; continua apaixonado pela senhora.

Essa frase fechou esse dia terrível e solene. Durante a manhã seguinte, as menores circunstâncias dessa comédia corriam em todas as casas de Alençon, e—confessemos para a vergonha dessa cidade—provocavam um riso universal.

No entanto, a srta. Cormon, a quem a sangria fizera muito bem, teria parecido sublime aos mais intrépidos motejadores, se fossem testemunhas da nobre dignidade, da magnífica resignação cristã que a animou, quando, no dia seguinte, deu o braço a seu mistificador involuntário para ir almoçar. Cruéis farsistas, que zombastes dela, porque não a vistes, enquanto dizia ao visconde:

— A sra. de Troisville dificilmente encontrará aqui um apartamento que lhe convenha; favoreça-me, senhor, aceitando minha casa durante todo o tempo em que estiverem procurando outra, na cidade.

— Mas, senhorita, tenho duas meninas e dois meninos; iríamos incomodá-la muito.

— Não me recuse o favor—disse ela, com um olhar cheio de tristeza.

— Eu lhe fiz esse convite na carta que lhe mandei—disse o padre—,mas que o senhor não recebeu.

— Então, meu tio, o senhor sabia...

A pobre criatura interrompeu-se. Josette soltou um suspiro. Nem o visconde de Troisville nem o tio perceberam nada. Depois do almoço, o padre Sponde levou o sr. de Troisville para, conforme tinham combinado na véspera, mostrar-lhe em Alençon as casas que poderia comprar ou os terrenos convenientes para a construção.

Ficando sozinha no salão, a srta. Cormon disse a Josette, com um ar desolado:

— Minha filha, a estas horas estou sendo a fábula da cidade inteira.

— Pois bem, senhorita, case-se!

— Mas, minha filha, não estou preparada para fazer uma escolha.

— Ora! Se eu estivesse em seu lugar, ficaria com Du Bousquier.

— Josette, o sr. de Valois diz que ele é tão republicano!

— Esses senhores nem sabem o que dizem: pretendem que ele roubava a República; ora, isso é prova de que ele não gostava dela.

— Essa rapariga é extraordinariamente inteligente—pensou a srta. Cormon, que ficou sozinha, entregue às suas perplexidades.

Compreendia que um casamento rápido era o único meio de impor silêncio à cidade. Aquele último revés, evidentemente tão vergonhoso, era de natureza a fazê-la tomar uma resolução extrema, porque as pessoas desprovidas de espírito só com dificuldade conseguem sair dos caminhos bons ou maus por onde enveredaram.

Os dois solteirões tinham compreendido a situação em que se encontraria a solteirona. Assim, ambos decidiram visitá-la durante o dia, para saber notícias, e, em estilo de rapaz, dar o bote. O sr. de Valois julgou que a circunstância exigia um preparo meticuloso; tomou um banho, cuidou-se de maneira extraordinária. Pela primeira e última vez, Cesarina viu-o usar, com uma incrível habilidade, um toque de carmim. Quanto a Du Bousquier, esse, republicano grosseiro, animado por sua vontade rude, não prestou a menor atenção a suas roupas, e foi o primeiro a chegar. Essas pequeninas coisas decidem a sorte dos homens, assim como a dos impérios. A carga de Kellermann em Marengo, a chegada de Blücher ( Blücher: Gebhard Leberecht von Blücher (1742-1819), general prussiano, derrotado por Napoleão em Ligny, mas que em Waterloo chegou a tempo de salvar Wellington e vencer assim a batalha.) em Waterloo, o desdém de Luís XIV pelo príncipe Eugênio (Príncipe Eugênio: Eugênio de Savoia (1663-1736), de origem francesa, um dos maiores generais dos tempos modernos, vencedor dos turcos em muitas batalhas; combateu pela Áustria contra a França, ganhando a batalha de Malplaquet em 1709, mas perdendo a de Denain em 1712. O príncipe destinou-se primeiro à carreira eclesiástica, e foi pedir a Luís XIV um emprego na sua Corte. A recusa do rei fê-lo abandonar a profissão e a pátria, e em 1683 entrou ao serviço da Áustria.), o cura de Denain (O cura de Denain: segundo a tradição, Villars teria ganho a batalha de Denain por haver atendido a uma observação do cura desse lugar, que, passeando ao longo das fortificações de Eugênio e admirando-lhes a perfeição, assinalou nelas um único ponto fraco.); todas essas grandes causas de triunfo ou de catástrofes são registradas pela História; mas ninguém as aproveita para aprender a não descuidar coisa alguma nos pequenos fatos da vida. Em consequência, vejam o que acontece: a duquesa de Langeais (Ver História dos Treze. (Nota de Balzac.)) torna-se freira por não ter tido dez minutos de paciência, o juiz Popinot transfere para o dia seguinte o interrogatório do marquês D’Espard (Ver A interdição. (Nota de Balzac.)), Carlos Grandet vem por Bordeaux em vez de voltar pelo caminho de Nantes (Ver Eugênia Grandet.), e chamam-se esses acontecimentos acasos, fatalidades! Uma camada quase invisível de carmim a ser aplicada matou as esperanças do cavaleiro de Valois; esse fidalgo não poderia morrer senão dessa maneira: vivera pelas Graças, morreria por suas mãos. Enquanto o cavaleiro lançava um último olhar a sua aparência, o gordo Du Bousquier entrava no salão da solteirona pesarosa. Essa entrada coincidiu com um pensamento favorável ao republicano, através de uma série de reflexões, nas quais, entretanto, o cavaleiro tinha todas as vantagens.

“Deus o quer”, pensou a solteirona, vendo Du Bousquier.

— Senhorita, espero que não ache nenhum mal na minha pressa em me apresentar. Não quis confiar no toleirão do Renato para saber notícias suas, e vim em pessoa.

— Vou perfeitamente bem—respondeu ela com voz emocionada.—Agradeço-lhe, sr. Du Bousquier—continuou, depois de uma pausa, e com voz muito acentuada—,o trabalho que tomou e o que eu lhe dei ontem...

Lembrava-se de que estivera nos braços de Du Bousquier, e semelhante acaso lhe pareceu, mais do que tudo, uma ordem do céu. Tinha sido vista pela primeira vez por um homem com o espartilho aberto, o corpete desatado, e seus tesouros violentamente lançados fora de seu escrínio.

— Carregava-a com tanto gosto que a achei leve.

Aqui, a srta. Cormon olhou para Du Bousquier como nunca tinha olhado para nenhum homem no mundo. Encorajado, o fornecedor lançou-lhe um olhar terno, que a atingiu no coração.

— É pena—acrescentou ele—que isso não me tenha dado o direito de guardá-la eternamente para mim.—Ela ouvia com um ar encantado.—Desmaiada, ali, naquela cama, seja dito entre nós, a senhorita estava deslumbrante; nunca vi na minha vida criatura mais bela, e olhe que eu já vi muitas mulheres!... As mulheres gordas têm isso de bom: são soberbas de se ver, basta que se mostrem para que logo triunfem!

— O senhor quer caçoar de mim—disse a solteirona—,e isso não está direito, num momento em que a cidade inteira talvez interprete mal o que me aconteceu ontem.

— Tão certo como eu me chamar Du Bousquier, senhorita, nunca mudei de sentimento a seu respeito, e sua primeira recusa não me desencorajou.

A solteirona tinha os olhos baixos. Houve um momento de silêncio cruel para Du Bousquier. Mas a srta. Cormon tomou sua resolução. Levantou as pálpebras. Rolavam lágrimas de seus olhos. Olhou para Du Bousquier ternamente.

— Pois se é assim—disse ela com voz trêmula—,prometa-me somente, senhor, viver como cristão, nunca contrariar meus hábitos religiosos, deixar-me senhora de escolher meus diretores, e eu lhe concedo minha mão—disse ela, estendendo-lhe a mão.

Du Bousquier segurou essa boa mão gorducha, cheia de escudos, e beijou-a santamente.

— Mas—disse ela, permitindo o beijo—peço ainda uma coisa.

— Está concedida, e, se for impossível, ela se fará (reminiscência de Beaujon) (Beaujon: Nicolas Beaujon (1718-1786), banqueiro francês conhecido por sua libertinagem, seu espírito e suas larguezas.).

— Ai!—continuou a solteirona.—Por meu amor, é preciso que o senhor se encarregue de um pecado que é enorme, bem sei, pois a mentira é um dos sete pecados capitais; mas o senhor se confessará depois, não é? Nós dois faremos penitência...—Entreolharam-se ternamente.—Aliás, talvez possa ser considerada como uma dessas mentiras que a Igreja chama de oficiosas.

“Será ela como Susana?”, dizia consigo mesmo Du Bousquier.

— Que felicidade! E então, senhorita?—disse em voz alta.

— É preciso que possa fazer o sacrifício...

— Sim?

— De dizer que esse casamento estava combinado, entre nós dois, há seis meses.

— Mulher encantadora—disse o fornecedor com o ar de um homem que faz um ato de abnegação—,sacrifícios como esse só se fazem por uma criatura adorada durante dez anos.

— Apesar dos meus rigores, então?—perguntou ela.

— Sim, apesar dos seus rigores.

— Senhor Du Bousquier, eu o julgava mal.

Tornou a estender-lhe a grossa mão vermelha, que Du Bousquier tornou a beijar. Nesse momento, a porta se abriu, os dois noivos olharam para ver quem entrava, e avistaram o delicioso mas tardio cavaleiro de Valois.

— Ah!—disse ele ao entrar.—Ei-la de pé, bela rainha.

Ela sorriu ao cavaleiro e sentiu um aperto no coração. O sr. de Valois, notavelmente jovem e sedutor, tinha o aspecto de Lauzun entrando no Palais-Royal, nos aposentos de Mademoiselle (Lauzun: Antoine Nonpar de Caumont, conde e depois duque de Lauzun (1633-1723), cortesão famoso pela paixão que soube inspirar a Mademoiselle, nome com que se costuma designar a srta. de Montpensier, prima de Luís XIV.).—Eh! Caro Du Bousquier—disse com ironia, de tal forma se sentia seguro do sucesso.—O sr. de Troisville e o padre Sponde estão examinando sua casa como dois avaliadores.

— Por mim—disse Du Bousquier—,se o visconde de Troisville a quiser, ela será dele por quarenta mil francos. Tornou-se completamente inútil para mim. Se a senhorita me permite... É preciso mesmo que isso se saiba. Senhorita, posso contar?

— Pode.

— Pois bem, seja o primeiro, meu caro cavaleiro, a quem eu comunique...—(a srta. Cormon baixou os olhos), a honra, disse o antigo fornecedor, o favor que a senhorita me faz, e que eu guardei em segredo durante alguns meses. Vamos nos casar dentro de alguns dias, o contrato já está redigido, e o assinaremos amanhã. O senhor compreende que, nestas circunstâncias, minha casa da Rue du Cygne me será inútil. Estava procurando comprador, em sigilo, e o padre Sponde, que o sabia, conduziu, naturalmente, à minha casa, o sr. de Troisville...

Essa enorme mentira aparentava de tal forma as cores da verdade que o cavaleiro acreditou. Meu caro cavaleiro era como a desforra de todas as derrotas anteriores, tomada por Pedro, o Grande, sobre Carlos XII em Pultava. Com isso, Du Bousquier se vingava deliciosamente de mil indiretas ferinas que recebera em silêncio; mas, no seu triunfo, fez um gesto de rapaz, passou a mão pelo topete postiço e... arrancou-o.

— Felicito a ambos—disse o cavaleiro com expressão agradável—e desejo que terminem como nos contos de fadas: Foram muito felizes e tiveram muitos filhos! - E amassava uma pitada de rapé.—Mas o senhor se esqueceu de que... usa um chinó—acrescentou com voz sarcástica.

Du Bousquier corou; segurava o topete postiço a dez polegadas do crânio. A srta. Cormon ergueu os olhos, viu a nudez do crânio, e baixou-os por pudor. Nunca um sapo fixou sobre a presa olhar mais venenoso do que o olhar lançado por Du Bousquier sobre o cavaleiro.

— Canalhas de aristocratas que sempre me desdenhastes, algum dia eu vos esmagarei!—pensou ele.

O cavaleiro de Valois julgou ter reconquistado todas as vantagens. Mas a srta. Cormon não era mulher que entendesse a conexão posta pelo cavaleiro entre seus desejos e um topete postiço; aliás, mesmo que a tivesse compreendido, sua mão já não lhe pertencia. Em breve, o sr. de Valois verificou que tudo estava perdido. Com efeito, a inocente criatura, vendo aqueles dois homens silenciosos, quis ocupá-los.

— Por que não jogam uma partida de piquet?—sugeriu ela, sem malícia.

Du Bousquier sorriu, e, como futuro dono da casa, foi buscar a mesa de piquet. E, quer tivesse perdido a cabeça, quer desejasse ficar ali para estudar as causas do desastre, e remediar, o cavaleiro deixou-se constranger, como um carneiro levado ao matadouro. Tinha recebido o golpe mais violento que podia atingir um homem, e, por menos do que isso, um fidalgo se sentiria atordoado. Em breve, o digno padre Sponde e o visconde de Troisville regressaram. Imediatamente a srta. Cormon se levantou, correu para a antecâmara, tomou o tio à parte e lhe contou sua resolução ao ouvido. Informada de que a casa da Rue du Cygne convinha ao sr. de Troisville, pediu ao noivo que lhe fizesse o favor de dizer que o tio sabia que estava para vender. Não ousou confiar essa mentira ao padre, com medo de uma distração. Com mais vigor do que uma ação virtuosa, a mentira prosperou. À noite, Alençon inteira sabia da grande novidade. Há já quatro dias, a cidade estava animada como nos dias nefastos de 1814 e de 1815. Uns riam, outros admitiam o casamento; estes criticavam, aqueles aprovavam. A classe média de Alençon alegrou-se com a notícia, em que via uma conquista. No dia seguinte, em casa de amigos, o cavaleiro de Valois disse uma frase cruel:

— Os Cormon acabam por onde começaram: de intendente a fornecedor, foi um pulo!

A escolha feita pela srta. Cormon atingiu Atanásio no coração, mas ele não deixou transpirar as horríveis agitações de que foi presa. Ao ser informado do casamento, estava em casa do presidente Du Ronceret, onde sua mãe jogava uma partida de bóston. A sra. Granson olhou o filho pelo espelho, e o achou pálido; mas ele o estava desde pela manhã, pois já ouvira falar vagamente nesse casamento. A srta. Cormon era uma carta na qual Atanásio jogara a vida, e o frio pressentimento de uma catástrofe já o envolvia. Quando a alma e a imaginação aumentaram a significação da desgraça, quando a transformaram num fardo pesado demais para os ombros e para a fronte, quando vem a faltar uma esperança longamente acariciada, cujas realizações aplacariam o abutre ardente que rói o coração, quando não tem mais fé em si próprio, apesar de suas forças, nem no futuro, apesar do poder divino, então o homem se destrói. Atanásio era um fruto da educação imperial. A fatalidade, essa religião do imperador, desceu do trono até as últimas fileiras do Exército, até os bancos do colégio. Atanásio fixou os olhos no jogo da sra. du Ronceret com um estupor que podia tão bem passar por indiferença que a sra. Granson julgou haver-se enganado quanto aos sentimentos do filho. A aparente despreocupação de Atanásio explicava sua recusa em fazer a esse casamento o sacrifício de suas opiniões liberais, palavra que acabava de ser criada para o imperador Alexandre, e que procedia, creio, da Madame de Staël por intermédio de Benjamin Constant. A partir dessa noite fatal, o infeliz jovem habituou-se a passear pelo sítio mais pitoresco do Sarthe, num lugar da margem que os desenhistas que se ocuparam com Alençon escolhiam para tirar pontos de vista. Há moinhos nesse local, e o rio alegra os prados. As margens do Sarthe são guarnecidas por árvores de formas elegantes e bem lançadas. Embora plana, essa paisagem não é desprovida das graças decentes que distinguem a França, onde os olhos nunca se cansam com um dia oriental e nunca se entristecem com brumas constantes. É um local solitário. Na província, ninguém presta atenção a uma vista bonita, ou porque estejam todos enfastiados desses aspectos, ou porque se trate de uma falha de poesia na alma. Se existe na província um passeio público, uma planície, uma aleia de onde se descobre uma rica perspectiva—esse é um lugar aonde não irá ninguém. Atanásio amava essa solidão animada pela água, onde os prados reverdecem sob os primeiros sorrisos do sol primaveril. Aqueles que ali o avistavam, sentado à sombra de um olmeiro, e que recebiam seu olhar profundo diziam às vezes à sra. Granson:

— Seu filho tem qualquer coisa.

— Eu sei o que ele está fazendo!—respondia a mãe com ares satisfeitos, dando a entender que ele meditava uma grande obra.

Atanásio não se meteu mais em política, nunca mais deu uma opinião; mas pareceu, em diversas circunstâncias, bastante alegre, alegre de ironia, como aqueles que, sozinhos, insultam o mundo inteiro. Esse rapaz, alheio a todas as ideias, a todos os prazeres da província, interessava a bem pouca gente, nem era, sequer, motivo de curiosidade. Se falavam dele à sra. Granson, era por causa dela. Não houve uma alma que simpatizasse com a de Atanásio; nem uma mulher nem um amigo chegou-se a ele para secar-lhe as lágrimas, e ele as lançou no Sarthe. Se a magnífica Susana tivesse passado por ali, quantas desgraças não teria gerado esse encontro, porque esses dois seres se teriam amado! Um dia, no entanto, ela passou por lá. A ambição de Susana teve início na narrativa de uma aventura bastante extraordinária que, em 1799, aproximadamente, começara no Auberge du More. Essa história (Essa história é contada em A Bretanha em 1799.) devastara seu cérebro de criança. Uma rapariga de Paris, bela como os anjos, tinha sido encarregada pela polícia de despertar o amor do marquês de Montauran, que era um dos chefes enviados pelos Bourbon para comandar os chouans. Encontrara-o precisamente no Auberge du More, de volta de sua expedição de Mortagne; seduziu-o e entregou-o. Essa fantástica pessoa, esse poder da beleza sobre o homem, tudo, no caso de Maria de Verneuil e do marquês de Montauran, deslumbrou Susana; e sentiu, desde a idade da razão, o desejo de escarnecer dos homens. Assim, alguns meses após sua fuga, não se recusou a atravessar a cidade natal para ir à Bretanha com um artista. Quis ver Fougères, onde se dera o desenlace da aventura do marquês de Montauran, e percorrer o teatro dessa guerra pitoresca, cujas tragédias, ainda pouco conhecidas, haviam embalado sua infância. E, depois, desejava atravessar Alençon em tão brilhante companhia e tão bem metamorfoseada que ninguém a reconheceu. Contava deixar, num só momento, sua mãe protegida, para sempre, contra a miséria, e enviar delicadamente ao pobre Atanásio a quantia que, na nossa época, representa para o gênio o mesmo que representavam, na Idade Média, o cavalo de combate e a armadura que Rebeca conseguiu para Ivanhoé (Ivanhoé: romance histórico de Walter Scott (1827). Uma das suas personagens é Rebeca, moça judia que inspira violenta paixão ao protagonista, um templário.).

Passou-se um mês nas mais estranhas alternativas quanto ao casamento da srta. Cormon. Houve um partido de Incrédulos que negou o casamento e um partido de Crentes que o afirmou. Ao fim de quinze dias, o partido dos Incrédulos sofreu um vigoroso revés: a casa de Du Bousquier foi vendida por quarenta e três mil francos ao sr. de Troisville, que não queria senão uma casa simples em Alençon, porque contava ir para Paris mais tarde, depois do falecimento da princesa Scherbelloff; desejava esperar pacificamente essa herança, ocupando-se em reconstituir suas terras. Isso parecia positivo. Os Incrédulos não se deixaram abater. Pretenderam que, casado ou não, Du Bousquier fazia um excelente negócio: sua casa lhe custara apenas vinte e sete mil francos. Os Crentes foram derrotados por essa peremptória afirmação dos Incrédulos. Choisnel, tabelião da srta. Cormon, não ouvira ainda uma só palavra a respeito do contrato, disseram ainda os Incrédulos. Os Crentes, firmes em sua fé, alcançaram, no vigésimo dia, assinalada vitória sobre os Incrédulos. O sr. Lepressoir, tabelião dos Liberais, foi à casa da srta. Cormon, onde lavrou o contrato. Foi o primeiro dos numerosos sacrifícios que a srta. Cormon devia fazer ao marido. Du Bousquier tinha um ódio profundo por Choisnel: atribuía-lhe a primeira recusa sofrida por parte da srta. Armanda, e a recusa da srta. Armanda ditara, a seu ver, a da srta. Cormon. O velho atleta do Diretório agiu tão bem junto à nobre criatura que, pensando ter julgado mal a bela alma do fornecedor, pretendeu expiar seus erros: sacrificou o tabelião ao amor! Comunicou-lhe, entretanto, o contrato, e Choisnel, que era um homem digno de Plutarco, defendeu por escrito os interesses da srta. Cormon. Era apenas essa circunstância que atrasava o casamento. A srta. Cormon recebeu várias cartas anônimas. Soube, para seu grande espanto, que Susana era uma rapariga tão virgem quanto ela mesma o seria, e que o sedutor de topete postiço não podia ter tomado a menor parte em semelhantes aventuras. A srta. Cormon desdenhou as cartas anônimas, mas escreveu a Susana, na finalidade de esclarecer a religião da Sociedade Maternal. Susana, que sem dúvida fora informada do futuro casamento de Du Bousquier, confessou a astúcia, mandou mil francos para a Associação e falou muito mal do velho fornecedor...

A srta. Cormon convocou a Associação de Maternidade, que se reuniu em sessão extraordinária, na qual foi tomada a firme decisão de nunca mais socorrer as desgraças em perspectiva, mas somente as que já houvessem acontecido. Não obstante essas ocorrências, que agitavam a cidade em mexericos destilados com gulodice, publicavam-se os banhos na Igreja e na Pretoria. Atanásio se viu forçado a preparar os atos. Por medida de pudor público e de segurança geral, a noiva foi para o Prébaudet, onde Du Bousquier, armado de suntuosos e atrozes ramalhetes, aparecia pela manhã e voltava à noite para jantar. Afinal, num triste e chuvoso dia de junho, ao meio-dia, realizou-se na paróquia de Alençon, à vista da cidade em peso, o casamento da srta. Cormon com Du Bousquier. Os noivos se dirigiram de casa à Prefeitura e da Prefeitura à igreja numa caleça, magnífica para Alençon, que Du Bousquier mandara vir, em segredo, de Paris. A perda do carro velho foi uma espécie de calamidade aos olhos da cidade inteira. O seleiro da Porte de Séez lançou altos brados, porque perdia cinquenta francos de rendimentos que lhe proporcionavam os consertos. Alençon viu com pavor o luxo se intrometer na cidade pela casa Cormon. Temiam o encarecimento dos gêneros, a alta no preço dos aluguéis e a invasão do mobiliário parisiense. Houve pessoas tão mordidas pela curiosidade que chegaram a dar alguns níqueis a Jacquelin para ver de perto a caleça atentatória à economia da região. Os dois cavalos comprados na Normandia também assustaram muito.

— Se começamos a comprar, nós mesmos, os nossos cavalos—disse o grupo que frequentava a casa de Ronceret—,não mais os poderemos vender à gente que vem procurá-los.

Apesar de tolo, o raciocínio pareceu profundo, pois dizia respeito ao impedimento que teria o país de açambarcar o dinheiro estrangeiro. Para as províncias, a riqueza das nações consiste menos na ativa rotação do dinheiro do que numa estéril acumulação. Enfim, a mortífera profecia da solteirona se realizou. Penélope sucumbiu à pleurisia que a atacara quarenta dias antes do casamento; nada pôde salvá-la. A sra. Granson, Marieta, a sra. de Coudrai, a sra. Ronceret, toda a cidade, em suma, reparou que a sra. Du Bousquier entrara na igreja com o pé esquerdo!, presságio tanto mais terrível pois que já a expressão A Esquerda tomava um sentido político. O padre encarregado de ler a fórmula abriu, por acaso, o livro no De profundis. Assim, esse casamento foi acompanhado de circunstâncias tão fatais, tão tempestuosas, tão fulminantes que ninguém augurou nada de bom. E tudo foi de mal a pior. Não houve festa de núpcias, porque os recém-casados partiram para o Prébaudet. Os costumes parisienses iam, portanto, vencer os costumes provincianos, diziam. À noite, Alençon comentou todas essas tolices. Houve uma explosão quase geral de irritação nas pessoas que contavam com um desses casamentos de Gamache (Gamache: abastado camponês, em cuja casa Dom Quixote e Sancho Pança, no romance de Cervantes, tomam parte num suntuoso banquete de núpcias.), que se fazem sempre na província, e que a sociedade considera como lhe sendo devidos. O casamento de Marieta (Marieta... Lapso evidente do autor; deveria ler-se “Josette”.) e de Jacquelin realizou-se alegremente: foram as duas únicas pessoas que desmentiram as profecias sinistras.

Du Bousquier quis empregar o lucro conseguido na venda de sua casa em restaurar e modernizar o palacete Cormon. Decidiu passar duas estações no Prébaudet, e para lá levou seu tio Sponde. Na cidade, onde todos pressentiram que Du Bousquier iria arrastar a região na via funesta do conforto, a notícia espalhou o pavor. Esse medo ainda aumentou quando a gente da cidade avistou certa manhã Du Bousquier voltando do Prébaudet para o Val-Noble a fim de vigiar os trabalhos, num tílburi arrastado por um novo cavalo, tendo ao lado Renato em libré.

O primeiro ato de sua administração tinha sido o de colocar todas as economias da mulher em rendas sobre o Grande Livro da Dívida Pública, que estavam cotadas a 67 francos e 50 centavos. No espaço de um ano, durante o qual jogou constantemente na alta, construiu uma fortuna pessoal quase tão considerável quanto a da esposa. Mas os presságios fulminantes, as inovações perturbadoras foram ultrapassados por um acontecimento que se prendia a esse matrimônio e o fez parecer ainda mais funesto. Na própria noite da cerimônia, Atanásio e a mãe se encontravam, após o jantar, diante de um foguinho de lenha miúda, que a criada lhes acendia, à sobremesa, no salão.

— Pois é, iremos esta noite à casa do presidente Ronceret, já que estamos sem a srta. Cormon—disse a sra. Granson.—Meu Deus! Nunca me habituarei a chamá-la sra. Du Bousquier; esse nome me dilacera os lábios.

Atanásio olhou para a mãe com um ar melancólico e constrangido; não podia mais sorrir, e queria de qualquer modo saudar esse ingênuo pensamento que suavizava sua ferida, sem curá-la.

— Mamãe—disse ele, retomando a voz de sua infância, de tal maneira foi doce a sua voz, e retomando, ao mesmo tempo, essa apelação abandonada há tantos anos.—Minha querida mamãe, não vamos sair ainda; está tão bom aqui, diante desse fogo!

A mãe ouviu, sem compreender, essa súplica suprema de uma dor mortal.

— Fiquemos, meu filho—disse ela.—Certamente prefiro ficar contigo, ouvir os teus projetos a ir jogar um bóston em que posso perder meu dinheiro.

— Estás tão bonita esta noite, gosto de te olhar. Depois, eu estou numa corrente de ideias que se harmonizam com este salãozinho onde já sofremos tanto.

— E onde sofreremos ainda, meu pobre Atanásio, até o dia em que teus trabalhos triunfem. Estou acostumada à miséria; mas tu, meu tesouro, ver tua bela mocidade passada sem prazer! A tua vida é só de trabalho! Esse pensamento é uma doença para tua mãe; ele me tortura de noite, e, de manhã, ele me acorda. Meu Deus! Meu Deus! Que vos fiz eu? Por que crime me punis assim?

Deixou a poltrona, tomou uma cadeirinha e colou-se de encontro a Atanásio, de modo a poder encostar a cabeça no peito do filho. Há sempre a graça do amor numa maternidade sincera. Atanásio beijou a mãe nos olhos, nos cabelos grisalhos, na fronte, com a vontade santa de apoiar a alma em todos os pontos onde apoiava os lábios.

— Nunca triunfarei—disse ele, tentando iludir a mãe quanto à funesta resolução que lhe rolava pela cabeça.

— Ora! Não vais perder a coragem! Como tu mesmo dizes, o pensamento pode tudo. Com dez frascos de tinta, dez resmas de papel e sua vontade forte, Lutero não transtornou a Europa inteira? Pois bem! Serás ilustre, e farás o bem com os mesmos meios que lhe serviram para fazer o mal. Não disseste isso? Estás vendo? Eu te escuto falar. Compreendo-te mais do que o imaginas, porque eu te trago ainda no meu seio, e o menor dos teus pensamentos ecoa dentro de mim, como, outrora, o mais leve de teus movimentos.

— Nunca triunfarei aqui, entendes, mamãe? E eu não te quero dar o espetáculo de minhas aflições, de minhas lutas, de minhas angústias. Oh! minha mãe, deixa-me partir de Alençon; quero ir sofrer longe de ti.

— Quero estar sempre a teu lado—respondeu orgulhosamente a mãe.—Sofrer sem tua mãe, tua pobre mãe, que seria tua criada, se fosse preciso, que se esconderá, para não te prejudicar, se o desejares; tua mãe, que nem assim te acusaria de orgulho! Não, não, Atanásio, nunca nos separaremos.

Atanásio abraçou-se à mãe com o ardor de um agonizante que se agarra à vida.

— Eu o quero, entretanto. Sem isso, tu me perderás. Esse sofrimento duplo, o teu e o meu, me mataria. É preferível que eu viva, não é?

A sra. Granson olhou para o filho com uma expressão alucinada.

— É isso então o que andas planejando! Bem me disseram. Assim, vais partir!

— Sim.

— Não partirás sem me dizer tudo, sem me prevenir. Precisas de um enxoval, de dinheiro. Tenho moedas de ouro cosidas na minha saia de baixo; quero te dar todas elas.

Atanásio chorou.

— É só o que eu queria te dizer—concluiu ele.—Agora, vou levar-te à casa do Presidente. Vamos...

Saíram. Atanásio deixou a mãe no limiar de entrada da casa onde ia passar o serão. Olhou muito tempo a luz que se escoava pelos intervalos das venezianas; colou-se a elas e sentiu a mais frenética das alegrias quando, ao fim de um quarto de hora, escutou a mãe dizer:

- Grande independência de coração!

— Pobre mãe! Eu te enganei!—exclamou então, encaminhando-se para as margens do Sarthe.

Chegou diante do belo olmeiro sob o qual meditara tanto durante quarenta dias, e até onde levara duas pedras para se sentar. Contemplou essa formosa natureza então iluminada pela lua; reviu em algumas horas todo o seu futuro de glória: passou pelas cidades emocionadas ao seu nome; ouviu os aplausos da multidão; respirou o incenso das festas; adorou toda a sua vida sonhada; lançou-se radioso em radiosos triunfos; ergueu sua própria estátua; evocou todas as suas ilusões para lhes dizer adeus num último banquete olímpico. Essa magia fora possível durante um momento, mas, agora, para sempre se dissipara. Nesse momento supremo, enlaçou sua bela árvore, a que se prendera como a um amigo; depois colocou as duas pedras, uma em cada bolso da sobrecasaca, que abotoou. Saíra propositalmente sem chapéu. Reconheceu o lugar profundo que escolhera há muito tempo; deixou-se escorregar resolutamente, evitando fazer barulho; e fez muito pouco. Quando, às nove e meia, aproximadamente, a sra. Granson voltou para casa, a criada não lhe falou em Atanásio, entregou-lhe uma carta; a sra. Granson abriu-a e leu essas poucas palavras: “Minha boa mãe, vou partir, não me queira mal!”.

— Bonita coisa fez ele, aí!—exclamou a sra. Granson.—E a roupa, e o dinheiro! Ele me escreverá, e irei ter com ele. Esses pobres filhos sempre se julgam mais espertos do que o pai e a mãe.

E foi se deitar tranquila.

O Sarthe tivera no dia anterior uma cheia prevista pelos pescadores. Essas cheias de águas turvas trazem enguias arrastadas dos rios. Ora, um pescador tinha estendido suas redes no lugar em que o pobre Atanásio se jogara, acreditando que nunca o encontrariam. Pelas seis horas da manhã, o pescador puxou esse jovem corpo. As duas ou três amigas que a pobre viúva possuía empregaram mil precauções, preparando-a para receber esse horrível despojo. Como facilmente se imagina, a notícia desse suicídio teve grande repercussão em Alençon. Na véspera, o pobre homem de gênio não contava com um único protetor; no dia seguinte ao da sua morte, mil vozes exclamavam:

— Eu o teria ajudado!

É tão cômodo a gente se fazer passar por caridosa, grátis! Esse suicídio foi explicado pelo cavaleiro de Valois. Com espírito de vingança, o fidalgo contou o ingênuo, sincero, belo amor de Atanásio pela srta. Cormon. Esclarecida pelo cavaleiro, a sra. Granson recordou mil pequenas circunstâncias, e confirmou-lhe as palavras. A história se tornou tocante; algumas mulheres choraram. A dor concentrada e muda da sra. Granson foi pouco compreendida. Há, para as mães de luto, duas espécies de dor. Muitas vezes, o mundo conhece o segredo da perda que sofreram; o filho, apreciado, admirado, jovem ou belo, na estrada larga e a caminho da fortuna, ou já glorioso, provoca o pesar universal: o mundo se associa ao luto, e o atenua engrandecendo-o. Mas há a dor das mães, que são as únicas a saber que homem era o seu filho; as únicas que receberam os sorrisos; as únicas que observaram os tesouros dessa vida tão cedo cortada; essa dor esconde os seus crepes fúnebres, cuja cor faz empalidecer a dos outros lutos, mas não se pode descrever, e, felizmente, são poucas as mulheres que sabem qual a corda do coração que foi, para sempre, arrancada. Antes de a sra. Du Bousquier voltar à cidade, a presidenta Ronceret, uma de suas melhores amigas, já tinha ido lançar esse cadáver sobre as rosas de sua alegria, contar-lhe a que amor se tinha recusado; derramou-lhe devagarinho algumas gotas de absinto no mel de seu primeiro mês de casamento. De volta a Alençon, a sra. Du Bousquier encontrou por acaso a sra. Granson na esquina do Val-Noble. O olhar da mãe morrendo de desgosto atingiu a outra no coração. Esse olhar continha, ao mesmo tempo, mil maldições numa só, mil chispas num único raio. A sra. Du Bousquier sentiu-se apavorada; esse olhar lhe pressagiara, lhe desejara a desgraça.

Na própria noite da catástrofe, a sra. Granson, uma das pessoas mais contrárias ao cura da cidade, e que apoiava o vigário de Saint-Léonard, estremeceu pensando na inflexibilidade das doutrinas católicas professadas pelo seu partido. Após ter posto, ela em pessoa, o filho numa mortalha, como o fizera a mãe do Salvador, a sra. Granson dirigiu-se, com a alma agitada por uma terrível angústia, à casa do juramentado. Encontrou o modesto sacerdote ocupado em armazenar o cânhamo e o linho que dava para fiar a todas as mulheres, a todas as moças pobres da cidade, a fim de que o trabalho nunca faltasse às operárias, caridade bem compreendida que salvou mais de um casal, incapaz de mendigar. O padre deixou o cânhamo e apressou-se em levar a sra. Granson para a sala onde a mãe dolorosa reconheceu, na ceia posta, a frugalidade de seu próprio lar.

— Senhor padre, venho suplicar-lhe...

Desfez-se em lágrimas, sem poder terminar.

— Já sei o que a traz aqui—respondeu o santo homem—,mas eu confio na senhora, e em sua parenta, a sra. Du Bousquier, para acalmar o monsenhor em Séez. Sim, rezarei pelo seu desgraçado filho; sim, direi missas por ele; mas evitemos o escândalo e não permitamos que os maus desta cidade se reúnam na igreja... Eu sozinho, sem clero durante a noite...

— Sim, sim, como o senhor quiser, contanto que ele fique em terra santa—disse a pobre mãe, pegando a mão do padre e beijando-a.

Aproximadamente à meia-noite, um caixão foi clandestinamente levado à paróquia por quatro rapazes, camaradas prediletos de Atanásio. Ali estavam algumas amigas da sra. Granson, grupo de mulheres enlutadas e veladas; e mais, ainda, os sete ou oito moços que tinham recebido algumas confidências desse talento que se extinguira. Quatro tochas iluminavam o caixão coberto de crepe. O cura, servido por um sacristão discreto, rezou a missa fúnebre. Depois, o suicida foi conduzido sem barulho para um canto do cemitério, onde uma cruz de madeira enegrecida, sem inscrição, serviu para indicar à mãe o seu lugar. Atanásio viveu e morreu nas trevas. Nenhuma voz acusou o cura; o bispo guardou silêncio. A piedade da mãe redimiu a impiedade do filho.

Alguns meses mais tarde, uma noite, a pobre mulher, insensata de dor, por uma dessas sedes inexplicáveis que os infelizes têm de mergulhar os lábios no seu cálice amargo, quis ver o lugar onde o filho se afogara. Seu instinto talvez lhe dissesse que havia pensamentos para recolher debaixo do olmeiro; talvez, também, desejasse ver as coisas que o filho tinha visto pela última vez. Há mães que morreriam desse espetáculo; outras que a ele se entregam com uma santa adoração. Os pacientes anatomistas da natureza humana nunca repetiriam demais as verdades contra as quais devem esboroar-se as educações, as leis e os sistemas filosóficos. Digamos isso muitas vezes: é absurdo querer encaixar os sentimentos em fórmulas idênticas; produzindo-se em cada homem, eles combinam com os elementos que lhe são próprios e tomam sua fisionomia particular.

A sra. Granson viu de longe aproximar-se uma mulher, que exclamou:

— Foi, então, aqui!

Uma única pessoa chorou naquele lugar, como ali chorava a mãe. Essa criatura era Susana. Chegando de manhã ao Auberge du More, tinha sabido da catástrofe.

Se o pobre Atanásio estivesse vivo, ela poderia ter feito aquilo que as pessoas nobres, sem dinheiro, sonham fazer, e que nunca ocorreria a um rico; teria enviado alguns mil francos, escrevendo no envelope: Dinheiro devido a seu pai por um companheiro que o restitui. Essa astúcia angelical tinha sido inventada por Susana durante a viagem.

A cortesã avistou a sra. Granson, e afastou-se precipitadamente, depois de lhe dizer:

- Eu o amava!

Fiel à sua natureza, Susana não deixou Alençon sem transformar em flores de nenúfar as flores de laranjeira que coroavam a recém-casada. Foi a primeira a declarar que a sra. Du Bousquier nunca seria senão a srta. Cormon. De um só golpe de língua vingou ao mesmo tempo Atanásio e o querido cavaleiro de Valois.

Alençon foi testemunha de um suicídio contínuo muito mais entristecedor que o de Atanásio. Este foi prontamente esquecido pela sociedade, que quer e deve olvidar prontamente os seus mortos. O pobre cavaleiro de Valois morreu em vida, suicidou-se cada manhã durante catorze anos. Três meses depois do casamento de Du Bousquier, a sociedade notou, não sem espanto, que as camisas do cavaleiro estavam ficando ruças e que seus cabelos não eram penteados com regularidade. Desgrenhado, o cavaleiro de Valois não existia mais! Alguns dentes de marfim desertaram, sem que os observadores do coração humano pudessem descobrir o corpo a que tinham pertencido, se eram da legião estrangeira ou indígenas, vegetais ou animais, se fora a idade que os arrancara ao cavaleiro ou se tinham sido esquecidos dentro de alguma gaveta. A gravata enrolou, torceu-se, indiferente à elegância. As cabeças de negro empalideceram sob a sujeira. As rugas do rosto preguearam, enegreceram e a pele ficou parecendo um pergaminho. As unhas incultas orlavam-se às vezes de uma beirada de veludo preto. O colete mostrava-se sulcado por espirros de rapé, esquecidos, que se espalharam como folhas do outono. Só raramente eram renovados os algodões dos ouvidos. A tristeza instalou-se em sua fronte e escorreu seus tons amarelecidos no fundo das rugas. Enfim, as ruínas tão sabiamente reprimidas fenderam esse belo edifício e provaram quanto é grande o poder da alma sobre o corpo: pois que o homem louro, o cavaleiro, o jovem herói morreu quando a esperança falhou. Até então, o nariz do cavaleiro sempre se produzira sob formas graciosas; nunca havia deixado cair nem úmidas pastilhas negras nem gotas de âmbar; mas o nariz do cavaleiro, besuntado de rapé que desbordava das narinas, e desonrado pelos espirros que se aproveitavam da goteira situada no meio do lábio superior; esse nariz, que já não se preocupava em parecer amável, revelou os enormes cuidados que o cavaleiro tomava outrora com sua pessoa, e fez compreender, por sua extensão, a grandeza, a persistência dos planos desse homem relativos à srta. Cormon. O cavaleiro se viu esmagado por um trocadilho de Du Coudrai, a quem, aliás, fez destituir. Foi essa a primeira vingança executada pelo benigno cavaleiro; mas o trocadilho era assassino e ultrapassava todos os que já cometera o conservador das hipotecas. O sr. du Coudrai, observando essa revolução nasal, deu ao cavaleiro o nome de Nérestan (Há aqui um jogo de palavras intraduzível em português. O trocadilhista alude ao mesmo tempo a Nérestan, personagem de Zaira (tragédia de Voltaire, em que o sultão Orosmane suspeita Nérestan de ser o amante de sua favorita Zaira, quando na realidade é irmão dela) e ao fato de o infeliz cavaleiro ficar apenas com o seu enorme nariz (nez restant = “o nariz ficando”), tendo perdido a partida definitivamente.).

Dentro em pouco, as anedotas imitaram os dentes; depois as frases de espírito se tornaram raras; o apetite, porém, sustentou-se; o fidalgo salvou somente o estômago nesse naufrágio de todas as suas esperanças; preparava com descaso as pitadas de rapé, mas era com entusiasmo que ainda comia. O leitor adivinhará o desastre que esse acontecimento provocou nas ideias do cavaleiro, quando souber que já não tinha conversas tão frequentes com a princesa Goritza. Um dia, chegou a aparecer em casa da srta. Armanda levando na parte dianteira da tíbia o enchimento postiço com que costumava engrossar a barriga da perna. Essa bancarrota de graças foi horrível, juro; e impressionou Alençon inteira. O quase rapaz transformado em velho de repente, essa personagem que, sob o acabrunhamento da alma, passara dos cinquenta aos noventa anos, amedrontou a sociedade. Mais tarde, ele confessou o segredo: esperara, espreitara a srta. Cormon; caçador paciente, preparara o tiro durante dez anos, e deixara escapar a presa! Enfim, a República impotente derrotara a valente Aristocracia, e em plena Restauração. A forma triunfara do fundo, o espírito fora vencido pela matéria, a diplomacia, pela insurreição. Última desgraça! Uma grisette despeitada revelou o segredo das manhãs do cavaleiro, que, desde então, passou por um libertino. Os Liberais lhe atribuíram as crianças enjeitadas de Du Bousquier, e o Faubourg Saint-Germain de Alençon aceitou-as com muito orgulho; riu e perguntou: “Esse bom cavaleiro! Que queriam vocês que ele fizesse?”. Lamentou o cavaleiro, acolheu-o no seio, reanimou seus sorrisos, e um ódio terrível se acumulou sobre a cabeça de Du Bousquier. Onze pessoas passaram para o partido dos D’Esgrignon e abandonaram o salão Cormon.

O principal efeito desse casamento foi o de desenhar os partidos em Alençon. A casa D’Esgrignon representou a alta aristocracia, porque os Troisville, de regresso, dela fizeram parte. A casa Cormon, sob a hábil influência de Du Bousquier, constituía essa opinião fatal que, sem ser verdadeiramente liberal nem resolutamente monarquista, gerou os 221 (Os 221... Trata-se dos 221 deputados que, em resposta à fala do trono de Carlos X, assinaram o memorial de 2 de março de 1830, o qual motivou a dissolução das Câmaras e a publicação das famosas ordenanças, causa da Revolução de Julho e da queda de Carlos X.) no dia em que se definiu a luta entre o mais augusto, o maior, o único poder verdadeiro, a Realeza, e o mais falso, o mais inconstante, o mais opressivo dos poderes, o poder chamado parlamentar, exercido pelas assembleias eletivas. O salão Du Ronceret, secretamente aliado ao salão Cormon, foi ousadamente liberal.

Na sua volta do Prébaudet, o padre Sponde passou por sofrimentos cruéis, que recalcou no fundo da alma e silenciou diante da sobrinha. Mas com a srta. Armanda ele se abriu, confessando-lhe que, loucura por loucura, teria preferido o cavaleiro de Valois ao sr. Du Bousquier. Nunca o estimado cavaleiro teria o mau gosto de contrariar um pobre velho que já não contava senão com alguns dias de vida. Du Bousquier destruíra tudo dentro de casa. Com lágrimas rolando de seus olhos apagados, o padre contou à srta. Armanda:

— Senhorita, não tenho mais a coberta sob a qual passeei durante cinquenta anos! Minhas tílias bem-amadas foram postas abaixo! No momento de minha morte, a República ainda me aparece sob a forma de uma horrível confusão a domicílio!

— É preciso perdoar a sua sobrinha—disse o cavaleiro de Valois.—As ideias republicanas são o primeiro erro da juventude que busca a liberdade, mas que encontra o mais horrível dos despotismos, o da canalha impotente. Sua pobre sobrinha não foi castigada por onde pecou.

— Que vai ser de mim numa casa onde dançam mulheres nuas pintadas nas paredes? Onde encontrarei novamente as tílias a cuja sombra eu lia meu breviário?!

Como Kant, que não soube coordenar seus pensamentos quando derrubaram o pinheiro que costumava contemplar durante suas meditações, assim também o bom padre não pôde alcançar o mesmo impulso em suas orações ao caminhar através das aleias sem sombra. Du Bousquier tinha mandado plantar um jardim inglês!

— Ficou melhor—dizia a sra. Du Bousquier sem o pensar, mas o padre Couturier autorizara-a a cometer muitas coisas para agradar ao marido.

Essa restauração tirou todo o brilho, a singeleza, o ar patriarcal da velha casa. Semelhante ao cavaleiro de Valois, cujo descuido podia passar por uma abdicação, da mesma forma a majestade burguesa do salão dos Cormon deixou de existir quando ele se tornou branco e dourado, mobiliado de otomanas de acaju e forrado de seda azul. A sala de jantar, com decorações modernas, fez com que os pratos não parecessem tão quentes e com que não se comesse tão bem como outrora. O sr. du Coudrai disse que sentia os trocadilhos presos na garganta pelas figuras pintadas nas paredes, que o fitavam em cheio nos olhos. No exterior, a província ainda se revelava; mas o interior da casa acusava o fornecedor do Diretório. Era todo o mau gosto de um agente de câmbio: colunas de estuque, portas de espelho, perfis gregos, molduras secas, todos os estilos misturados, uma ostentação fora de propósito. A cidade de Alençon criticou durante oito dias esse luxo que parecia incrível; porém, alguns meses depois, orgulhou-se dele, e vários fabricantes ricos renovaram o mobiliário e arrumaram belos salões. Os móveis modernos começaram a aparecer na cidade. Até lâmpadas astrais (Lâmpada astral: denominação de uma lâmpada de azeite inventada por Argand e que, na época, representava a última palavra em matéria de iluminação.) foram vistas!

O padre Sponde foi um dos primeiros a penetrar nas infelicidades secretas que esse casamento devia trazer para a vida íntima de sua bem-amada sobrinha. O caráter de simplicidade nobre que governava a existência de ambos desde o primeiro inverno se perdeu, pois Du Bousquier, durante toda essa estação, deu dois bailes por mês. Ouvir os violinos e a música profana das festas mundanas nessa casa tão santa! O padre rezava, de joelhos, enquanto durava essa alegria! Depois, o sistema político desse grave salão foi aos poucos se pervertendo. O vigário-geral adivinhou Du Bousquier; estremeceu ao som de sua voz imperiosa; percebeu algumas lágrimas nos olhos da sobrinha quando ela perdeu o governo de sua fortuna e que o marido lhe deixou somente a administração da rouparia, da mesa e das coisas que formam o lote comum das mulheres. Rosa não teve mais ordens para dar. A vontade do patrão era a única a que obedeciam Jacquelin, tornado exclusivamente cocheiro, Renato, o criado, e um cozinheiro-chefe vindo de Paris, porque Marieta não foi mais do que ajudante de cozinha. A sra. Du Bousquier só tinha agora Josette em quem mandar. Quem não sabe o quanto custa renunciar aos hábitos deliciosos do poder? Se o triunfo da vontade é um dos prazeres embriagadores da vida dos grandes homens, ele constitui a vida toda para os entes limitados. É preciso ter sido ministro e caído em desgraça para conhecer a dor amarga que torturou a sra. Du Bousquier, quando se viu reduzida ao mais completo hilotismo. Subia muitas vezes no carro contra a vontade, visitava pessoas que não lhe convinham, não tinha mais o manejo de seu querido dinheiro, ela que já tivera a liberdade de gastar o que quisesse e que, então, não gastava nada. Todo limite imposto não inspira o desejo de passar além? Os mais vivos sofrimentos não vêm sempre do livre-arbítrio contrariado? Esses começos foram rosas. Cada concessão feita à autoridade marital fora então aconselhada pelo amor que a pobre criatura sentia pelo esposo. Du Bousquier, a princípio, portou-se admiravelmente com a mulher; foi excelente, apresentou-lhe razões aceitáveis para cada nova usurpação. Aquele quarto, há tanto tempo deserto, ouviu à noite a voz do casal sentado ao canto da lareira. Assim, durante os dois primeiros anos de seu casamento, a sra. Du Bousquier se mostrou muito satisfeita. Tinha esse arzinho deliberado, esperto, que distingue as esposas recentes, depois de um casamento por amor. O sangue não a atormentava mais. Essa atitude derrotou os zombeteiros, desmentiu os boatos que circulavam a respeito de Du Bousquier e desconcertou os observadores do coração humano. Rosa-Maria-Vitória temia tanto, desagradando ao esposo, desafiando-o, perder-lhe o afeto e ser privada de sua companhia que lhe teria sacrificado tudo, mesmo o tio. As pequenas alegrias tolas da sra. Du Bousquier enganaram o pobre padre Sponde, que suportou melhor seus sofrimentos pessoais, imaginando que a sobrinha fosse feliz. A princípio, Alençon também pensou assim. Mas havia um homem mais difícil de enganar do que a cidade inteira! O cavaleiro de Valois, refugiado no monte sagrado da alta aristocracia, passava a vida em casa dos D’Esgrignon; escutava as maledicências e as tagarelices, e pensava noite e dia na maneira de não morrer sem vingança. Já tinha derrubado o homem dos trocadilhos; queria, agora, atingir Du Bousquier no coração. O pobre padre compreendeu as covardias do primeiro e último amor de sua sobrinha; apavorou-se ao adivinhar a natureza hipócrita do sobrinho, e suas pérfidas manobras. Embora Du Bousquier se dominasse, pensando na herança do tio, e não quisesse causar-lhe nenhum desgosto, armou-lhe um último golpe, que o levou ao túmulo. Se o leitor quiser explicar a palavra intolerância pela expressão firmeza de princípios, se não quiser condenar na alma católica do antigo vigário-geral o estoicismo que Walter Scott nos faz admirar na alma puritana do pai de Jeanie Deans (Jeanie Deans: protagonista de A prisão de Edimburgo, de Walter Scott.), se quiser reconhecer na Igreja romana o potius mori quam foedari (Potius mori quam foedari: “Antes morrer do que perder a honra”. Frase atribuída ao cardeal Jaime de Portugal (século XV).) que louvamos na opinião republicana, compreenderá, então, a dor que se apoderou do grande padre Sponde quando viu, no salão do sobrinho, o padre apóstata, renegado, relapso, herético, o inimigo da Igreja, o cura culpado de juramento constitucional. Du Bousquier, cuja ambição secreta era dominar o país, quis, para primeiro penhor de seu poder, reconciliar o vigário de Saint-Léonard com o cura da paróquia, e conseguiu seus fins. Sua mulher julgou realizar obra de paz, onde, para o incomutável abade, havia apenas traição. O sr. Sponde se viu sozinho em sua fé. O bispo foi à casa de Du Bousquier e pareceu satisfeito com a cessação das hostilidades. As virtudes do padre Francisco tinham vencido tudo, exceto o católico romano capaz de exclamar com Corneille:

“Quanta virtude, ó Deus, vós me fazeis odiar!” (Último verso do ato III de Pompeu, de Corneille; em francês: Ô ciel, que de vertus vous me faites haïr!)

O padre morreu quando expirou a Ortodoxia na diocese.

Em 1819, a sucessão do padre Sponde aumentou as rendas territoriais da sra. Du Bousquier para vinte e cinco mil libras, sem contar nem o Prébaudet nem a casa do Val-Noble. Foi por esse tempo que Du Bousquier restituiu à mulher o capital das economias que ela lhe entregara, e fez com que o empregasse na compra das terras contíguas ao Prébaudet, tornando esse domínio, assim, um dos mais consideráveis do departamento, pois as terras pertencentes ao padre Sponde limitavam com as do Prébaudet. Ninguém conhecia a fortuna pessoal de Du Bousquier, pois ele empregara os capitais no banco dos Keller (Os Keller: família de banqueiros de A comédia humana. Francisco Keller, que assistiu ao baile descrito em A paz conjugal, foi mais tarde síndico da falência de Guilherme Grandet (ver Eugênia Grandet).), em Paris, cidade aonde ia quatro vezes por ano. Mas, nessa época, era considerado o homem mais rico do departamento do Orne. Esse homem hábil, eterno candidato dos Liberais, ao qual sempre faltaram sete ou oito votos em todas as batalhas eleitorais travadas sob a Restauração, repudiava ostensivamente os Liberais, desejando eleger-se como monarquista ministerial, sem jamais conseguir vencer as repugnâncias da administração, apesar dos socorros da Congregação (Congregação: fundada em 1801 pelo ex-jesuíta Delpuits, com o objeto declarado de defender a fé e os bons costumes; fechada por Napoleão, reorganizada em 1814, cada vez mais forte pela adesão de personalidades influentes, a Congregação teve fim com a queda de Carlos X.) e da Magistratura, esse republicano odiento, devorado de ambição, resolveu lutar ao lado da monarquia e da aristocracia, no momento em que ambas triunfavam. Apoiou-se no sacerdócio pelas enganadoras aparências de uma piedade bem simulada: acompanhou a mulher à missa, deu dinheiro para os conventos da cidade, sustentou a Congregação do Sagrado Coração, pronunciou-se a favor do clero em todas as ocasiões em que o clero combateu a cidade, o departamento ou o Estado. Sustentado secretamente pelos Liberais, protegido pela Igreja, permanecendo monarquista constitucional, costeou sem cessar a aristocracia do departamento a fim de arruiná-la, e arruinou-a. Atento aos erros cometidos pelas sumidades nobiliárias e pelo governo, realizou, com o auxílio da burguesia, todos os melhoramentos que a Nobreza, o Pariato e o Ministério deveriam inspirar, dirigir, e que no entanto entravavam, em consequência das ciumadas tolas dos poderes na França. A opinião constitucional foi vitoriosa no caso do cura, na construção do teatro, em todas as questões de engrandecimento pressentidas por Du Bousquier, que as fazia propor pelo partido liberal, ao qual aderia no mais aceso dos debates, invocando o bem do país. Du Bousquier industrializou o departamento. Acelerou a prosperidade da província, para ódio das famílias localizadas na estrada da Bretanha. Preparava, assim, sua vingança contra a gente dos castelos, e sobretudo contra os D’Esgrignon, no seio dos quais, um dia, esteve na iminência de enfiar um punhal envenenado. Forneceu capitais para o alevantamento das manufaturas de rendas de Alençon; reavivou o comércio dos linhos; a cidade teve a sua fiação. Inscrevendo-se, assim, em todos os interesses e no coração da massa, fazendo o que a Realeza não fazia, Du Bousquier não arriscava um vintém. Sustentado por sua fortuna, podia esperar as realizações que muitas vezes as pessoas empreendedoras, mas de poucos meios, são forçadas a abandonar em mãos de sucessores mais felizes. Tomou atitudes de banqueiro. Esse Laffitte (Laffitte: Jacques Laffitte (1767-1844), famoso homem de Estado, que mudou de partido muitas vezes. Homem de confiança e banqueiro de Napoleão, sob a Restauração foi nomeado governador do Banco de França, de 1814 a 1819. Em 1817 defendeu a liberdade de imprensa; em 1824 sustentou o ministério Villèle, ultrarrealista; em 1830, depois de hesitar um pouco tomou partido pela insurreição, e foi quem mais contribuiu para que o trono fosse oferecido a Luís Felipe, que depois o nomeou chefe do Governo.) em ponto menor comanditava todas as invenções novas, tomando suas precauções. Fazia bons negócios fazendo o bem do povo; era o motor dos Seguros, o protetor das novas empresas de carros públicos; sugeria requerimentos para pedir à administração as estradas e as pontes necessárias.

Assim prevenido, o governo via uma usurpação de sua autoridade. Inabilmente as lutas se travavam, porque o bem da região exigia que a Prefeitura cedesse. Du Bousquier irritava a nobreza da província contra a nobreza da Corte e o pariato. Enfim, foi ele quem preparou a pavorosa adesão de uma grande parte do monarquismo constitucional à luta sustentada pelo Journal des Débats e o sr. de Chateaubriand contra o trono, oposição ingrata baseada em interesses indignos, e que foi uma das causas do triunfo da burguesia e do jornalismo em 1830. Portanto, Du Bousquier, como as pessoas que representava, teve a felicidade de ver passar o enterro da Realeza, sem o acompanhamento de nenhuma simpatia da província, desafeiçoada pelos milhares de causas que ainda não foram completamente enumeradas aqui. O velho republicano, carregado de missas, tendo representado durante quinze anos uma comédia a fim de satisfazer sua vendeta, foi quem derrubou, em pessoa, a bandeira branca (A bandeira branca era a dos Bourbon; depois da Revolução de 1830, Luís Felipe adotou a bandeira tricolor, que continua em uso hoje.) da Prefeitura, sob os aplausos do povo. Nenhum outro homem, em França, lançou sobre o novo trono erguido em agosto de 1830 um olhar mais embriagado de alegre vingança. Para ele, a ascensão ao trono do ramo mais moço era o triunfo da Revolução. Para ele, o triunfo da bandeira tricolor era a ressurreição da Montanha, que, dessa vez, iria abater os fidalgos por processos mais seguros que o da guilhotina, por isso que sua ação seria menos violenta. O pariato sem hereditariedade, a Guarda Nacional que junta no mesmo campo o merceeiro da esquina e o marquês, a abolição dos morgadios, solicitada por um burguês-advogado, a Igreja católica privada de sua supremacia, todas as invenções legislativas de agosto de 1830 foram, para Du Bousquier, a mais sábia aplicação dos princípios de 1793. Desde 1830, esse homem é recebedor-geral. Para chegar ao cargo, apoiou-se em suas relações com o duque de Orléans (O duque de Orléans, pai de Luís Felipe, era o príncipe conhecido sob o nome de Felipe Igualdade, que desempenhou grande papel durante a Revolução, à qual aderiu em boa hora, chegando a votar, na Convenção, a morte de seu primo Luís XVI. Nem por isso deixou de perecer no cadafalso em 1793.), pai do rei Luís Felipe, e com o sr. de Folmon, antigo intendente da velha duquesa viúva de Orléans. Deram-lhe oitenta mil libras de rendas. Aos olhos de sua cidade, o sr. Du Bousquier é um homem de bem, um homem respeitável, invariável em seus princípios, íntegro, serviçal. Alençon lhe deve sua associação ao movimento industrial que a torna o primeiro elo pelo qual a Bretanha se prenderá talvez, um dia, a isso que se chama civilização moderna.

Alençon, que não possuía, em 1816, dois carros particulares, viu, em dez anos, rolar em suas ruas caleças, cupês, landôs, cabriolés e tílburis, sem nenhum espanto. A princípio amedrontados de ver os preços das coisas aumentando, os proprietários e burgueses reconheceram, mais tarde, que esse aumento tinha influência financeira sobre seus rendimentos. As palavras proféticas do presidente Ronceret: “Du Bousquier é um homem muito forte!” foram adotadas pela região.

Mas, infelizmente, para a mulher de Du Bousquier essa definição foi um horrível contrassenso. O marido em nada se parecia com o homem público e político. Esse grande cidadão, tão liberal fora de casa, tão indulgente, animado de tanto amor pelo país, no lar era despótico e perfeitamente desprovido de amor conjugal. Esse homem, tão profundamente astuto, hipócrita, ardiloso, esse Cromwell (Cromwell: Oliver Cromwell (1599-1658), grande estadista britânico, protetor da república inglesa, de que foi o criador.) do Val-Noble, comportava-se, em família, como se comportava junto à aristocracia, a quem acariciava para degolar. Como seu amigo Bernadotte, calçou com luva de veludo a mão de ferro. A mulher não lhe deu filhos. Acharam-se, assim, justificadas a acusação de Susana e as insinuações do cavaleiro de Valois. Mas a burguesia liberal, a burguesia monarquista-constitucional, os fidalgotes de província, a magistratura e o partido-padre, como dizia o Constitutionnel, puseram a culpa na sra. Du Bousquier. Quando Du Bousquier a desposara, já era tão velha!, alegavam. Aliás, que felicidade para a pobre mulher, pois em sua idade era muito perigoso dar à luz! Se a sra. Du Bousquier confiava, chorando, seus desesperos periódicos à sra. du Coudrai, à sra. du Ronceret, ambas lhe diziam:

— Mas você é louca, minha cara, você nem sabe o que está querendo, um filho seria a sua morte!

Além disso, vários homens que punham as esperanças no triunfo de Du Bousquier faziam cantar seus louvores pelas esposas. A velhota era assassinada por essas frases cruéis.

— Você teve muita sorte, minha cara, de casar com um homem capaz; você evitará as desgraças das mulheres que se casaram com pessoas sem energia, incapazes de dirigir suas fortunas, de guiar seus filhos.

— Seu marido fez de você a rainha do lugar, minha beleza. Ah! Esse nunca há de deixá-la em situação difícil! É ele quem manda em Alençon.

— Mas eu gostaria—dizia a pobre mulher—que ele não se importasse tanto com o público e que...

— A senhora é muito exigente, minha cara sra. Du Bousquier, todas as mulheres invejam seu marido.

Mal julgada pela sociedade, que começara por não lhe dar razão, a cristã encontrou em seu interior um vasto campo onde desdobrar suas virtudes. Viveu em lágrimas sem cessar de oferecer ao mundo um rosto plácido. Para uma alma piedosa, não era um crime esse pensamento que lhe bicava sempre o coração? “Eu amava o cavaleiro de Valois, e sou a mulher de Du Bousquier!” Também o amor de Atanásio se erguia diante dela sob a forma de um remorso que a perseguia nos sonhos. A morte do tio, consumido pelos desgostos, tornou seu futuro ainda mais doloroso, porque ela pensou sempre nos sofrimentos que o velho deveria ter sentido ao verificar a mudança das doutrinas políticas e religiosas na casa Cormon. Às vezes a infelicidade cai com a rapidez do raio, como acontecera à sra. Granson; mas, quanto à solteirona, ela se espalhou como uma gota de óleo que não deixa o pano senão depois de o haver lentamente embebido.

O cavaleiro de Valois foi o malicioso artesão do infortúnio da sra. Du Bousquier. Tomou a peito desenganar sua religião iludida; pois o cavaleiro, tão entendido em amor, adivinhou Du Bousquier casado como já adivinhara Du Bousquier solteiro. Mas era difícil surpreender o profundo republicano: seu salão estava naturalmente fechado ao cavaleiro de Valois, assim como a todos os que, nos primeiros dias de seu casamento, haviam renegado a casa Cormon. Era, além disso, superior ao ridículo, possuía uma fortuna imensa, reinava em Alençon, e importava-se tanto com a mulher quanto Ricardo III se teria importado de ver estourar o cavalo com o auxílio do qual tivesse ganho uma batalha. Para agradar ao marido, a sra. Du Bousquier tinha rompido com a casa D’Esgrignon, aonde não ia mais; quando, porém, o marido a deixava sozinha durante suas estadas em Paris, ela fazia, então, uma visita à srta. Armanda. Ora, dois anos após seu casamento, precisamente por ocasião da morte do padre Sponde, a srta. Armanda chegou-se à sra. Du Bousquier, à saída de Saint-Léonard, onde ambas tinham assistido a uma missa negra rezada por alma do padre. A generosa criatura julgou que nessas circunstâncias devia consolações à herdeira em lágrimas. Foram juntas, conversando sobre o querido morto, de Saint-Léonard ao Passeio, e, do Passeio, atingiram o palacete proibido, para onde a srta. Armanda arrastou a sra. Du Bousquier pelo encanto de sua conversa. A pobre mulher desesperada talvez estivesse gostando de falar sobre o tio com uma pessoa de quem seu tio gostava tanto. E queria, também, receber os cumprimentos do velho marquês, que há três anos não via. Era uma e meia da tarde; encontrou lá o cavaleiro de Valois, vindo para jantar, e que, cumprimentando-a, lhe tomou as mãos.

— E então, querida, virtuosa e muito prezada senhora—disse-lhe com voz comovida—,nós perdemos nosso santo amigo; compartilhamos a sua dor; sim, sua perda é também nossa, e tão sentida aqui quanto em sua casa... mais ainda—acrescentou, fazendo alusão a Du Bousquier.

Depois de algumas palavras de oração fúnebre, em que cada um apresentou sua frase, o cavaleiro tomou galantemente o braço da sra. Du Bousquier e passou-o debaixo do seu, apertando-o com adoração. Levou-a, assim, para o vão de uma janela.

— É feliz, ao menos?—perguntou com expressão paternal.

— Sim—disse ela, baixando os olhos.

Ouvindo esse sim, a sra. de Troisville, filha da princesa Scherbellof, e a velha marquesa de Castéran foram juntar-se ao cavaleiro, acompanhadas pela srta. Armanda. Todos foram passear no jardim esperando a hora do jantar, sem que a sra. Du Bousquier, imbecilizada pelo sofrimento, percebesse que as senhoras e o cavaleiro armavam uma pequena conspiração de curiosidade. “Já que a temos entre as mãos, procuremos descobrir a solução da charada”, era a frase escrita nos olhares que essas pessoas trocavam.

— Para que sua felicidade fosse completa—disse a srta. Armanda—a senhora deveria ter filhos, um menino bonito como meu sobrinho...

Uma lágrima rolou dos olhos da sra. Du Bousquier.

— Ouvi dizer que a senhora era a única culpada nesse caso, que tem medo de uma gravidez—declarou o cavaleiro.

— Eu?!—espantou-se ela, ingenuamente.—Eu compraria um filho por cem anos de inferno!

À questão assim colocada, estabeleceu-se uma discussão, conduzida com excessiva delicadeza pela sra. viscondessa de Troisville e a velha marquesa de Castéran. Ambas enrodilharam tão bem a pobre criatura que ela lhes livrou, sem desconfiar, os segredos de sua intimidade conjugal. A srta. Armanda tomara o braço do cavaleiro, afastando-se com ele, a fim de deixar as três mulheres conversando sobre o casamento. A sra. Du Bousquier foi então informada a respeito de mil decepções de seu casamento; e, como continuava tolinha, divertiu suas confidentes por deliciosas ingenuidades. Embora no primeiro momento o falso matrimônio da srta. Cormon fizesse rir a cidade inteira, em breve iniciada quanto às manobras de Du Bousquier, a sra. Du Bousquier, entretanto, ganhou a estima e a simpatia de todas as mulheres. Enquanto a srta. Cormon perseguira o casamento sem conseguir casar-se, todos caçoavam dela; mas, quando souberam da situação excepcional em que a colocava a severidade de seus princípios religiosos, todos a admiraram. Essa pobre sra. Du Bousquier substituiu Essa boa srta. Cormon. Assim, durante algum tempo, o cavaleiro de Valois conseguiu tornar Du Bousquier ridículo e odioso, mas o ridículo acabou por esmorecer; e, quando cada qual acabou de fazer seu comentário a respeito, a maledicência cessou. Afinal, muita gente era de opinião que, aos cinquenta e sete anos, o mundo republicano tinha direito à aposentadoria. Essa circunstância envenenou o ódio que Du Bousquier sentia pela casa D’Esgrignon a um tal ponto que ela o tornou impiedoso no dia da vingança. A sra. Du Bousquier recebeu a ordem de nunca pôr os pés naquela casa. Em represália à peça que lhe pregara o cavaleiro de Valois, Du Bousquier, que acabava de criar o “Correio do Orne”, fez inserir o seguinte anúncio:

 

“Será concedida uma inscrição de mil francos de rendimentos à pessoa que puder demonstrar a existência de um certo sr. de Pombreton, antes, durante ou depois da Emigração”.

 

Embora seu casamento fosse essencialmente negativo, a sra. Du Bousquier sempre lhe descobriu algumas vantagens: não era, em todo caso, preferível interessar-se pelo homem mais notável da cidade a viver sozinha? Du Bousquier era certamente melhor do que os cachorros, os gatos, os canários que os celibatários adoram, porque ele, ao menos, sempre tinha pela mulher um sentimento mais real e desinteressado do que o das criadas, dos confessores e dos captadores de heranças. Mais tarde, ela viu no marido o instrumento da cólera celeste, pois reconheceu pecados inúmeros em todos os seus desejos de casamento; considerou-se justamente castigada pelas desgraças que causara à sra. Granson e pela morte antecipada do tio. Obediente a essa religião que ordena sejam beijadas as varas da flagelação, ela gabava o marido, aprovando-o publicamente; mas, no confessionário ou à noite, em suas orações, ela chorava frequentemente, pedindo perdão a Deus pelas apostasias do marido, que pensava o contrário do que dizia, que desejava a morte da aristocracia e da Igreja, essas duas religiões da casa Cormon. Achando em si mesma todos os seus sentimentos melindrados e imolados, mas forçada pelo dever a fazer a felicidade do esposo, a não prejudicá-lo em nada, e presa a ele por uma indefinível afeição, oriunda, talvez, do hábito, sua vida era um perpétuo contrassenso. Casara-se com um homem cuja conduta e opiniões odiava, mas de que devia ocupar-se com uma ternura obrigatória. Sentia-se muitas vezes no céu, quando Du Bousquier comia suas compotas, quando ele achava o jantar gostoso; velava para que seus menores desejos fossem satisfeitos. Se ele esquecia o envoltório do jornal em cima da mesa, em vez de jogá-lo fora, a sra. Du Bousquier dizia:

— Renato, deixe isso, não foi à toa que o patrão o deixou aí.

Quando Du Bousquier partia para uma viagem, ela cuidava do capote, da roupa branca; tomava as mais minuciosas precauções para atender à sua felicidade material. Quando ele ia para o Prébaudet, ficava consultando o barômetro desde a véspera para saber se o tempo estaria bom. Espreitava suas vontades em seu olhar, à maneira de um cachorro que, mesmo dormindo, vê e ouve seu dono. Se o gordo Du Bousquier, vencido por esse amor tão ordeiro, segurava-lhe a cintura, beijava-lhe a fronte e lhe dizia:—És uma boa mulher!—,lágrimas de prazer vinham aos olhos da pobre criatura. É provável que Du Bousquier se julgasse obrigado a certas compensações que lhe conciliavam o respeito de Rosa-Maria-Vitória, porque a virtude católica não ordena uma dissimulação tão perfeita quanto o foi a da sra. Du Bousquier. Mas muitas vezes a santa mulher ficava muda, ouvindo as conversas travadas em sua casa por pessoas cheias de ódio que se escondiam sob as opiniões monárquico-constitucionais. Estremecia de medo prevendo a perda da Igreja; de vez em quando arriscava uma observação estúpida, um argumento que Du Bousquier, com um olhar, cortava pelo meio. As contrariedades dessa existência, assim passada aos repelões, acabaram por imbecilizar a sra. Du Bousquier, que achou mais simples e mais digno concentrar a inteligência sem produzi-la exteriormente, resignando-se a levar uma vida puramente animal. Passou então a ter uma submissão de escrava, e considerou obra meritória aceitar o rebaixamento a que o marido a constrangeu. A obediência às vontades maritais nunca lhe provocara o menor murmúrio. A ovelha tímida caminhou, desde essa época, na direção que o pastor lhe apontou; não deixou mais o seio da Igreja e entregou-se às mais severas práticas religiosas, sem pensar em Satanás nem em suas pompas nem em suas obras. Ofereceu, assim, a mais pura reunião das virtudes cristãs, e Du Bousquier tornou-se, certamente, um dos homens felizes do reino de França e de Navarra.

— Ela será tola até o último suspiro—disse o cruel Conservador destituído, que, entretanto, jantava em sua casa duas vezes por semana.

Essa história seria estranhamente incompleta se não mencionasse a coincidência da morte do cavaleiro de Valois com a morte da mãe de Susana. O cavaleiro morreu com a monarquia, em agosto de 1830. Foi juntar-se ao cortejo do rei Carlos X em Nonancourt, e acompanhou-o piedosamente até Cherbourg (Carlos X, depois da luta de três dias (27 a 29 de julho de 1830), em que suas tropas foram derrotadas pelos revolucionários, partiu de Rambouillet para Cherbourg, onde embarcou para a Inglaterra. Nunca mais voltou à França.), com todos os Troisville, os Castéran, os Verneuil (Os Troisville, os Castéran, os Verneuil: famílias de alta aristocracia inventadas por Balzac.) etc. O velho fidalgo levara consigo cinquenta mil francos, soma a que montavam suas economias e o preço de seus rendimentos; ofereceu-a a um dos fiéis amigos de seu senhor para transmiti-la ao rei, objetando sua morte próxima e dizendo que essa quantia vinha das bondades de sua majestade e que, finalmente, o dinheiro do último dos Valois pertencia à Coroa. Não se sabe se o fervor de seu zelo venceu as repugnâncias do Bourbon que abandonava seu belo reino de França sem levar um só vintém, e que se sentiu certamente enternecido pela dedicação do cavaleiro; o que é certo é que Cesarina, legatária universal do sr. de Valois, recolheu apenas seiscentas libras de rendas. O cavaleiro voltou a Alençon, atingido cruelmente tanto pela dor quanto pela fadiga, e expirou quando Carlos X tocou em terra estrangeira.

A sra. de Valnoble e seu protetor, que temia então as vinganças do partido liberal, acharam-se felizes de encontrar um pretexto para ir, incógnitos, à aldeia onde morrera a mãe de Susana. Na venda que se efetuou em consequência do falecimento do cavaleiro de Valois, Susana, desejando possuir uma lembrança de seu primeiro e bom amigo, fez com que, no leilão, a caixa de rapé atingisse o preço excessivo de mil francos, e arrematou-a. Só o retrato da princesa Goritza valia essa importância. Dois anos depois, um rapaz elegante, que fazia coleção de belas caixas de rapé do século anterior, obteve de Susana a do cavaleiro, recomendada pelo seu maravilhoso acabamento. A joia confidente dos mais belos amores do mundo, e o prazer de toda uma velhice, acabou sendo exposta numa espécie de museu particular. Se os mortos têm conhecimento das coisas que acontecem neste mundo, o rosto do cavaleiro, nesse momento, deve ter corado na face esquerda.

Mesmo que esta história não tivesse outro efeito senão o de inspirar um santo medo aos possuidores de algumas relíquias adoradas e fazê-los recorrer a um codicilo para estatuir imediatamente sobre a sorte dessas lembranças preciosas de uma felicidade desaparecida, legando-as a mãos fraternais, mesmo assim ela teria prestado imenso serviço à parte cavalheiresca e amorosa do público; mas ela contém moralidade bem mais elevada!... Pois não está ela demonstrando a necessidade de um novo ensino? Não está reclamando da solicitude tão esclarecida dos ministros da instrução pública a criação de cadeiras de antropologia, ciência em que a Alemanha nos leva a dianteira? Os mitos modernos são ainda menos compreendidos do que os antigos, embora estejamos sendo devorados por eles. Os mitos nos cercam de todos os lados, servem para tudo, explicam tudo. Se, como quer a Escola Humanitária, eles são os fachos da História, salvarão os impérios de todas as revoluções, desde que os professores de história façam penetrar até as massas departamentais as explicações necessárias. Se a srta. Cormon fosse letrada, se houvesse existido no departamento do Orne um professor de antropologia, se ela, enfim, tivesse lido Ariosto (O poeta italiano, Ludovico Ariosto (1474-1533), autor da epopeia Orlando furioso.), poderiam jamais acontecer as terríveis desgraças de sua vida conjugal? Teria talvez procurado entender por que o poeta italiano nos mostra Angélica preferindo Medoro, que era um louro cavaleiro de Valois, a Orlando, cuja égua morrera, e que só sabia ficar furioso. Não seria Medoro a figura mítica dos cortesãos da realeza feminina e Orlando o mito das revoluções desordenadas, enraivecidas, impotentes, que destroem tudo sem nada produzir? Publicamos aqui, declinando toda responsabilidade, essa opinião de um aluno do sr. Ballanche. Não nos chegou nenhuma informação relativa às cabecinhas de negro em diamantes. Todos podem ver hoje a sra. de Valnoble na Ópera. Graças à educação inicial que lhe deu o cavaleiro de Valois, ela tem quase o ar de uma mulher sem nenhuma falta, sendo, no entanto, uma dessas mulheres de que há tanta falta (A respeito dessas duas espécies de mulheres, as mulheres comme il faut e as comme il en faut, há uma verdadeira dissertação em Outro estudo de mulher.).

A sra. Du Bousquier vive ainda, o que equivale dizer que sofre ainda.

Ao atingir a idade de sessenta anos, época em que as mulheres fazem certas confissões, ela disse em segredo à sra. Coudrai, cujo marido reassumiu o cargo em agosto de 1830, que não suportava a ideia de morrer donzela.

Paris, outubro de 1836

 

 

                                                                  Honoré de Balzac

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

 

 

      

 

 

O melhor da literatura para todos os gostos e idades