Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A SOMBRA DA SUSPEITA
É espantoso verificar a rapidez com que acontece. O pouco tempo que separa a aflição da tragédia. Uns escassos segundos sem ar e o cérebro começa a deixar de funcionar. Não há tempo para lutar. Não há tempo, sequer, para entrar em pânico.
Qual jibóia a sufocar a presa até à morte, o nó aperta-se cada vez mais. Os pensamentos que explodem no cérebro são irrelevantes. Mexe-te! Agarra na corda. Respira! A comunicação entre os neurónios está interrompida, as ordens do cérebro não são transmitidas aos músculos dos braços. Não há coordenação.
A grossa corda emite um som dilacerante, à medida que o peso do corpo a estica. A viga range.
O corpo vira-se ligeiramente para um lado e para o outro. Os braços erguem-se em hediondos espasmos, em câmara lenta. É uma dança macabra de marioneta: braços que se levantam e baixam; mãos que se agitam e contorcem; dedos que se dobram. Os joelhos tentam dobrar-se para cima, depois voltam a endireitar-se. Todos os sinais indiciam uma lesão cerebral.
As sinistras contorções continuam. Os segundos arrastam-se, acompanhando a dança da morte. Um minuto. Dois. Quatro. A corda e a viga rangem, cortando o silêncio que reina no quarto. Os olhos estão abertos, mas vazios. A boca move-se numa derradeira e vã tentativa de inspirar o ar. É o décimo de segundo mais exacto e intenso da vida: a última batida do coração antes da morte.
Então, tudo termina.
Finalmente.
O flash explode num clarão de luz branca e a cena fica congelada no tempo...
Deviam enforcar o filho da puta que inventou esta merda resmungou Sam Kovac, libertando, por fim, uma pastilha de nicotina do seu amachucado invólucro metalizado, semelhante aos dos comprimidos.
A pastilha ou a embalagem?
As duas. Não consigo abrir a porcaria da embalagem e mais valia mascar um bocado de merda de gato.
E em que é que isso seria diferente de um cigarro? perguntou Nikki Liska.
Caminhavam por entre a pequena multidão que enchia o amplo vestíbulo pintado de branco. Polícias que saíam para ir fumar um cigarro nas escadarias da Prefeitura de Minneapolis, polícias que regressavam depois de terem satisfeito o vício, e um ou outro cidadão ocasional à procura de algo que justificasse os impostos que pagava.
Mal-humorado, Kovac olhou pelo canto do olho para Liska, que só a custo e apelando a uma enorme força de vontade conseguia acompanhar as suas passadas. Ele sempre achara que Deus a fizera assim baixa porque, se tivesse a estatura de Janet Reno, tomaria conta do mundo. Era esse o tipo de energia que ela possuía... e uma postura de se lhe tirar o chapéu.
Que percebes tu disso? desafiou-a.
O meu ex-marido fumava. De vez em quando chegava mesmo a lamber o cinzeiro. Foi por isso que nos divorciámos. Eu recusava-me a meter a língua na boca dele.
Jesus, Tinks, escusavas de me contar isso.
Fora ele que lhe pusera aquela alcunha: Tinks, "a Sininho dos esteróides".
Cabelo louro, tipo nórdico, cortado à Peter Pan desgrenhado, olhos de um azul profundo. Feminina mas inconfundivelmente atlética. Desancara mais gente desde que trabalhava ali do que metade dos tipos que ele conhecia. Entrara para a Brigada de Homicídios há... Quanto tempo já passara? Cinco ou seis anos. Perdera-lhes a conta. Ele já por lá andava há mais tempo do que conseguia lembrar-se. Tinha a impressão de que passara ali a totalidade dos seus quarenta e quatro anos de vida. A maior parte de uma carreira de vinte e três anos, isso de certeza. Faltavam-lhe sete. Completaria os trinta de que precisava para a reforma e passaria os dez seguintes a pôr o sono em dia. Às vezes perguntava a si mesmo porque não se ficara pelos vinte, mudando depois de rumo. A verdade é que não descobrira nenhum outro rumo, e deixou-se ficar.
Liska esgueirou-se por entre dois agentes uniformizados, de aspecto tenso, que bloqueavam o acesso à Sala 126, a dos Assuntos Internos.
Ei, isso foi o menos importante. Estava mais preocupada com o sítio onde ele queria enfiar a pila.
Kovac deixou escapar um som de constrangimento e asco, fazendo uma careta.
Liska sorriu, travessa e triunfante.
Ela chamava-se Brandi.
Os gabinetes do Departamento de Investigação Criminal tinham sido remodelados recentemente. As paredes eram cor de sangue seco. Kovac não fazia ideia se isso fora intencional ou estava apenas na moda. Provavelmente tratava-se da última hipótese. O resto também não fora especialmente concebido tendo em conta o facto de as salas irem ser ocupadas por polícias. Os cubículos, estreitos e escuros, poderiam perfeitamente albergar um rebanho de contabilistas.
Ele preferia os buracos temporários em que tinham estado durante a remodelação: uma sala imunda e desgastada cheia de velhas secretárias, com polícias igualmente desgastados a candidatarem-se a uma boa dor de cabeça sob as luzes fluorescentes. A Brigada dos Homicídios apinhada numa sala, a dos Roubos na outra a seguir, metade dos tipos que tratavam dos crimes de natureza sexual enfiados numa despensa. Aquilo é que era ambiente.
Qual é a situação do caso Nixon?
A voz fez parar Kovac tão de repente como se um anzol se lhe tivesse prendido ao colarinho. Mastigou a pastilha de nicotina ainda com mais força. Liska continuou em frente.
Escritórios novos, novo tenente, novas chatices. O gabinete do tenente da Brigada dos Homicídios dispunha de uma emblemática porta giratória. Aquele era só um ponto de paragem no percurso ascendente dos oficialecos que tinham mais de gestores do que de polícias. Pelo menos este último, Leonard, voltara a pô-los a trabalhar aos pares, em vez de fazer como o anterior, que os torturara com a ideia peregrina de os pôr a trabalhar em turnos rotativos, e que lhes roubara a todos umas boas horas de sono.
O que, evidentemente, não significava que este não fosse também um cretino.
Ainda temos de ver disse Kovac. O Elwood acabou de chegar com um sujeito que acha que trará novidades ao homicídio do Truman.
Leonard corou intensamente. Tinha uma pele fina, bem irrigada de sangue, e usava o cabelo louro-cinza cortado à escovinha.
Que raio andam vocês a fazer às voltas com o caso Truman? Isso foi há quanto tempo? Uma semana? Sabem bem a quantidade de crimes violentos que já ocorreram desde então.
Nesse momento Liska entrou, finalmente, com a cara de polícia mais séria que arranjou.
Nós estamos convencidos de que este tipo é reincidente, Lou. É provável que esteja envolvido no caso Nixon's no Truman. O pessoal dos gangues já diz que os Bloods deviam mudar de nome, e passar a chamar-se Dead Presidents.
Kovac riu-se ao ouvir aquela voz, um misto de latido e ronco.
Como se esses atrasados mentais pudessem reconhecer um presidente, mesmo que ele lhes mijasse em cima.
Liska ergueu os olhos para ele.
O Elwood levou-o para o quarto das visitas. Vamos até lá, antes que ele o deixe ir-se embora.
Leonard recuou, de sobrolho franzido. Não tinha lábios e as orelhas espetavam-se-lhe perpendicularmente na cabeça, como as de um chimpanzé. Kovac pusera-lhe a alcunha de Oficial Macaco. Estava com ar de quem ficaria com o dia estragado se solucionasse um caso de homicídio.
Não se preocupe - tranquilizou-o Kovac. Há mais crimes violentos no sítio de onde aquele veio.
Afastou-se antes de Leonard poder reagir e dirigiu-se para a sala de interrogatórios juntamente com Liska.
Quer dizer que este tipo também andou metido no caso Nixon?
Não faço ideia. O Leonard gostou da hipótese.
Aquele nabo... resmungou Kovac. Alguém devia levá-lo até ali fora e mostrar-lhe a tabuleta da porta. Ainda diz "Homicídios", não?
Na última vez em que olhei, dizia.
O tipo só está preocupado com os crimes violentos.
Os crimes violentos de hoje são os homicídios de amanhã.
É, isso dava uma tatuagem do caraças. Sei exactamente onde ele podia pô-la.
Mas tu precisarias de um capacete de mineiro para a ler. Ofereço-te um no Natal.
Liska abriu a porta e Kovac entrou à sua frente na sala, que era do tamanho de um guarda-fatos espaçoso. O arquitecto tê-la-ia descrito como "acolhedora". De acordo com as últimas teorias sobre como interrogar meliantes, a mesa era pequena e redonda. Sem nenhum lado dominante. Eram todos iguais. Compinchas. Confidentes.
Não havia ninguém sentado diante dela.
Elwood Knutson estava de pé, no canto mais próximo, fazendo lembrar um urso dos desenhos animados da Disney de chapéu. Jamal Jackson encontrava-se no canto oposto, próximo da estante vazia e completamente sem préstimo embutida na parede, e debaixo do suporte da câmara de vídeo exigida pela lei do Minnesota para mostrar que não se extraíam confissões aos suspeitos através de agressões físicas.
A atitude de Jackson assentava-lhe tão mal como a roupa que vestia. As calças de ganga, que teriam servido a Elwood, escorregavam-lhe dos quadris finos. Um casacão preto e vermelho, as cores do seu gangue, enfunava-se em torno do seu tronco. Tinha o lábio inferior da grossura de uma mangueira de jardim, e espetou-o na direcção de Kovac.
Pá, isto é falso. Eu não apaguei ninguém. Kovac compôs uma expressão interrogativa.
Não? Bom, então deve haver algum engano. Virou-se para Elwood e abriu as mãos. Pareceu-me ouvir-te dizer que o gajo era este, Elwood. Ele garante que não.
Devo ter-me enganado - confessou Elwood. As minhas maiores desculpas, Mister Jackson.
Vamos mandá-lo para casa num dos nossos carros-patrulha declarou Kovac. Talvez até anunciemos à sua vizinhança, pelo megafone, que não foi nossa intenção prendê-lo. Que não passou tudo de um grande mal-entendido.
Jackson ficou a olhar fixamente para Kovac, com o lábio proeminente a subir e a descer.
Podemos dizer-lhes que anunciem especificamente que sabemos que não esteve envolvido no assassínio do Deon Truman. Assim não restarão dúvidas sobre o que nos levou a trazê-lo para cá. Não queremos que, por nossa culpa, andem a circular por aí boatos desagradáveis sobre si.
Vai-te lixar, pá! gritou Jackson, agora com voz mais aguda. Querem ver-me morto?
Kovac riu-se.
Ei, tu disseste que não foste tu. Óptimo. Mandamos-te para casa.
E a malta fica a pensar que eu vos disse alguma coisa. Põem-me logo na horizontal. Merda!
Jackson deu alguns passos de um lado para o outro, repuxando as trancinhas que se lhe espetavam da cabeça em todas as direcções. Tinha as mãos algemadas à frente. Olhou para Kovac com raiva.
Mete-me na cadeia, filho da puta.
Não posso. E tu a pedires com tanto jeitinho... Lamento.
Eu estou preso insistiu Jamal.
Não, se estás inocente.
Já fiz muita porcaria.
Então, agora confessas? perguntou Liska. Jackson fitou-a, incrédulo.
Quem é esta agora? A tua namorada?
Não insultes a senhora advertiu Kovac. Ias a contar-nos que tiraste o pio ao Deon Truman.
Ia uma ova!
Então, quem foi?
Vai-te lixar, pá. Não te conto a ponta de um corno.
Elwood, vê se o homem chega a casa em grande estilo.
Mas eu estou preso, queixou-se Jackson. Metam-me na choldra!
Vai-te lixar disse Kovac. A prisão está superlotada. Não é nenhum hotel. Porque é que lhe deitaste a mão, Elwood?
Pareceu-me que andava a vadiar.
Delito pequeno.
O tanas! gritou Jackson, ultrajado. Espetou os dois indicadores em direcção a Elwood. Tu bem me viste a vender crack Ali mesmo, à esquina da Chicago com a Vinte e Seis.
Ele estava na posse de crack quando o prendeste? perguntou Kovac.
Não, senhor. Mas tinha um cachimbo.
Livrei-me da mercadoria!
Posse de objectos ligados à droga... observou Liska, impassível. Grande coisa. Solta-o. Não merece o tempo que estamos a gastar com ele.
Vai-te lixar, cabra! desferiu-lhe Jackson. Não to deixava chupar por nada deste mundo.
Preferia arrancar os olhos com um prego enferrujado. Liska avançou para ele, trespassando-o com o brilho azul dos seus olhos. Mantém-no dentro das calças, Jackson. Se viveres o suficiente, pode ser que encontres algum tipo simpático na prisão que to faça.
Ele hoje não vai para prisão nenhuma anunciou Kovac, impaciente. Acabemos com isto. Tenho de ir a uma festa.
Jackson jogou a sua cartada no momento em que Kovac se virava para a porta. Agarrou numa das prateleiras soltas da estante e atacou-o pelas costas. Elwood, apanhado de surpresa, gritou uma obscenidade e saltou demasiado tarde. Kovac virou-se para trás a tempo de levar com o canto da prateleira, que lhe abriu um lenho por cima da sobrancelha esquerda.
Merda!
Porra!
Kovac caiu de joelhos com a visão toldada como que por uma negra teia de aranha. Quando embateu no chão, este pareceu-lhe de borracha.
Elwood agarrou Jackson pelos pulsos e esticou-lhe os braços para cima, o que fez com que a tábua fosse pelos ares e embatesse na parede nova, onde deixou uma marca. Então, de repente, Jackson gritou e foi-se abaixo do joelho esquerdo. A meio da queda voltou a gritar, arqueando as costas. Elwood deu um pulo para trás, de olhos esbugalhados.
Liska atacara Jackson por trás e enfiara-lhe um joelho no meio das costas, enquanto o homem ia de rosto ao chão.
A porta abriu-se e apareceu uma meia dúzia de agentes, de armas em riste. Liska ergueu um pequeno bastão retráctil preto, com um ar surpreendido e inocente.
Vejam só o que encontrei no bolso do meu casaco!
Inclinou-se junto de um dos ouvidos de Jackson e murmurou-lhe em voz sedutora:
Parece que tenho de satisfazer um dos teus desejos, Jackson. Estás preso.
Isso dá-te um ar amaricado.
É a voz da autoridade que fala, Tippen? interpôs Liska.
Vai-te foder, Tinks.
Isso é um não ou um desejo?
Desataram todos a rir à volta da mesa, o tipo de riso grosseiro e áspero de quem não faz outra coisa senão conviver com os aspectos mais desagradáveis da vida. O humor dos polícias é bruto e mordaz, porque o mundo com que lidam é um lugar rude e selvagem. Não têm tempo nem paciência para ditos subtis ou espirituosos.
O grupo instalara-se numa mesa de canto no Patrick's, um bar com um nome irlandês com donos e gerentes suecos. Num dia vulgar, àquela hora, o bar, estrategicamente colocado a uma distância equidistante entre o Departamento de Polícia de Minneapolis e o Gabinete do Procurador de Hennepin County, estava sempre a abarrotar de agentes: polícias do turno do dia acabados de sair de serviço e a prepararem-se para ir à sua vida; polícias reformados incapazes de se dar com seres humanos vulgares depois de largarem o emprego; polícias de giro à procura de jantar e de convívio, a fazerem tempo antes de iniciarem o seu turno.
Não se tratava de um dia como os outros. A multidão habitual fora engrossada por altas patentes da polícia, políticos locais e pessoal da imprensa. Uma clientela indesejável que aumentava a tensão que reinava no ar já azulado de fumo e conversas. Uma equipa de reportagem, enviada por uma das estações locais, começara a instalar-se perto da janela da frente.
Devias ter insistido em pontos a sério. Daqueles à moda antiga prosseguiu Tippen.
Sacudiu a cinza do cigarro e levou-o aos lábios, inalando profundamente, atento à equipa de televisão. O seu rosto tinha parecenças com o focinho de um mastim: longo e afável, com um bigode grisalho farfalhudo e olhos escuros ferozmente inteligentes. Detective do gabinete do xerife local, fizera parte da equipa interdepartamental que trabalhara nos homicídios do Cremador, já há mais de um ano. Alguns dos membros desse grupo tinham-se tornado amigos e desenvolvido este tipo de hábito: encontravam-se num bar para beber, falar do seu trabalho e insultar-se uns aos outros.
Assim ficava com uma horrível cicatriz à Frankenstein observou Liska.
Com este penso fico com uma cicatriz fina e direitinha... do tipo das que as mulheres acham sexy.
As mulheres sádicas comentou Elwood. Tippen esboçou um sorriso.
Existe algum outro tipo?
Claro. As que vão na tua conversa retorquiu Liska. Masoquistas.
Tippen atingiu-a com uma pipoca.
Kovac mirou-se atentamente ao espelho da caixa de pó-de-arroz de Liska. O corte na sua testa fora desinfectado e nas Urgências do Centro Médico de Hennepin County tratado por uma completamente estoirada médica de banco, que era também o sítio onde eram tratados ou enfiados num saco preto os membros dos gangues. Fora embaraçoso aparecer ali com algo menos que um ferimento de bala, e a jovem médica fizera-lhe sentir que não passara anos a queimar as pestanas para pôr pensos rápidos. A atracção sexual não fizera parte do quadro.
Verificou os estragos com um olhar crítico. O seu rosto anguloso, vincado por marcas de stresse, exibia algumas cicatrizes e um nariz adunco e torto que ia muito bem com a boca retorcida e sardónica que espreitava por baixo do bigode indispensável de agente da polícia. O cabelo era mais grisalho do que castanho. Uma vez por mês, pagava dez dólares a um barbeiro norueguês para o cortar, o que, provavelmente, explicava o facto de ter tendência para espetar.
Nunca fora bonito no sentido habitual da palavra; no entanto, também nunca afastara as mulheres, pelo menos por causa da aparência. Mais uma cicatriz não faria diferença.
Liska observou-o enquanto bebia um gole da sua cerveja.
Dá-te personalidade, Sam.
O que me dá é dor de cabeça resmungou Kovac, devolvendo-lhe a caixa de pó-de-arroz. Já tenho toda a Personalidade de que preciso.
Bem, eu dava-te um beijinho no dói-dói, mas já dei cabo da rótula ao tipo que te fez isso. Acho que cumpri a minha parte.
E ainda te admiras de estar solteira observou Tippen.
Liska soprou-lhe um beijo.
Quem me quiser aturar também tem de aturar o meu bastão, e já agora, Tip, chupa-mo.
A porta da frente escancarou-se, deixando entrar uma lufada de ar gelado juntamente com um novo grupo de clientes. Não houve um só polícia que não ficasse instantaneamente de antenas no ar e o nível da tensão subiu um pouco mais. Era uma reacção corporativa aos intrusos.
O homem do momento declarou Elwood, à medida que a multidão reconhecia de quem se tratava e soltava uma saudação. Vem confraternizar com as massas da plebe antes da sua ascensão.
Kovac não fez comentários. Ace Wyatt detivera-se à entrada, de sobretudo de pêlo de camelo assertoado, fazendo lembrar uma espécie de Capitão América, mestre de todos os detectives. Queixo quadrado, sorriso imaculado, aperaltado que nem o apresentador de um concurso de televisão. Provavelmente dera dez dólares de gorjeta ao cabeleireiro e recebera um "tratamento especial" da menina que lavava as cabeças.
Será que ele usa maquilhagem? perguntou Tippen num sussurro. Ouvi dizer que manda tingir as pestanas.
É o que acontece quando se vai para Hollywood observou Elwood.
Eu cá não me importava de passar por essa indignidade disse Liska sarcasticamente. Já ouviram falar na quantidade de massa que ele está a receber por aquele programa?
Tippen inspirou demoradamente o fumo do seu cigarro e depois exalou-o. Kovac olhou para o comandante Ace Wyatt através da nuvem de fumo. Haviam trabalhado no mesmo departamento por uns tempos. Parecia já ter decorrido uma centena de anos. Ele apenas passara dos furtos para os homicídios. Wyatt fora direitinho ao topo, transformara-se numa lenda e estava em vias de se mudar de vez para o lado daqueles que realmente mandavam naquela trampa toda. Brilhara dentro do departamento e depois dividira o seu tempo com a televisão, conservando o seu lugar de chefe do Departamento de Investigação Criminal e aparecendo num programa de Minneapolis que era do tipo de Os mais Procurados na América. O programa, intitulado Tempo de Crime, ia passar a nível nacional.
Detesto aquele gajo.
Pegou no uísque que era suposto não misturar com os analgésicos que andava a tomar e bebeu o resto de um só trago.
Inveja? espicaçou Liska.
De quê? De ser parvalhão?
Não estejas a armar-te, Kovak. És tão parvalhão como qualquer homem aqui presente.
Kovac soltou um resmungo gutural, desejando subitamente estar noutro sítio qualquer. Por que raio viera? Sofrera uma agressão medianamente grave, uma desculpa perfeita para se levantar e pôr ao fresco. A verdade é que não tinha nenhum local acolhedor para onde voltar: apenas uma casa vazia com um aquário vazio na sala de estar. Os peixes tinham morrido de fome numa altura em que ele fizera setenta e duas horas seguidas no caso do Cremador. Não se dera ao cuidado de os substituir.
Estar numa festa oferecida por Ace Wyatt tornava-o mais masoquista do que qualquer mulher que tivesse saído com Tippen. Terminou a bebida. Logo que Wyatt desanuviasse a entrada com a sua pose, ele poderia esgueirar-se por entre a multidão e sair. Talvez fosse até ao bar onde a malta da Quinta Esquadra parava. Esses estavam-se nas tintas para Ace Wyatt.
No instante em que tomou a decisão, Wyatt reparou nele e aproximou-se de imediato com um sorriso esfuziante, seguido por um quarteto de acólitos. Abriu caminho por entre a multidão, tocando em mãos e ombros como se fosse o papa a distribuir bênçãos apressadas.
Kovak, seu velho cavalo de guerra! gritou, fazendo-se ouvir acima das outras vozes. Apertou vigorosamente a mão a Sam.
Kovac levantou-se da cadeira e sentiu o chão mover-se sob os pés. Deviam ser os efeitos secundários do seu encontro imediato com a prateleira, ou a mistura de medicamentos e álcool. De ser o alvo das atenções de Wyatt é que não era de certeza. O estupor a tratá-lo por Kovak Detestava a alcunha. As pessoas que o conheciam bem usavam-na sobretudo para o provocar.
Um dos acompanhantes acercou-se um pouco mais e o flash da polaróide por pouco não o cegou.
Mais uma para o álbum de recordações declarou o acólito, um tipo de trinta e tal anos, cabelos negros brilhantes e olhos azul-cobalto. Tinha o ar de quem podia saltar directamente dali para um papel numa telenovela de fazer suspirar sopeiras.
Ouvi dizer que levaste mais uma porrada em defesa do bem público - gritou-lhe Wyatt, sorridente. Jesus, retira-te enquanto é tempo. Pira-te enquanto ainda tens cabeça!
Já só me faltam sete anos respondeu-lhe Kovac, e o pessoal de Hollywood não está interessado em mim. A propósito, parabéns.
Obrigado. Conseguir que o programa seja visto a nível nacional é uma grande conquista.
Para a conta bancária de Ace Wyatt, pensou Kovac, mas não o dizendo de viva voz. Que se lixasse. Ele nunca fora apreciador de fatos de marca feitos à medida nem de ir à manicura uma vez por semana. Era apenas um polícia. Nunca quisera ser outra coisa. Ace Wyatt sempre aspirara a mais alto, a melhor, mais brilhante, mais rápido; visara os galões dourados da vida... e conseguira-os a todos.
Ainda bem que pudeste vir à festa, Sam.
Ei, sou um polícia. Comida de borla, bebidas à discrição... Contem comigo.
A atenção de Ace já procurava alguma mão mais importante para apertar. O acólito captou-lhe a atenção e direccionou-a para a câmara de televisão. O sorriso de Wyatt erradiou várias centenas de watts mais.
Liska saltou da cadeira qual boneco de dentro de uma caixa de surpresa e estendeu a mão a Wyatt antes que este pudesse continuar em frente.
Comandante Wyatt. Nikki Liska, da Brigada de Homicídios. É um prazer. Adoro o seu programa.
Kovac olhou a colega de cenho franzido.
É a minha parceira. Ambição loura.
Seu cão velho cheio de sorte proferiu Wyatt com uma espécie de chauvinismo prazenteiro.
Os músculos retesaram-se no maxilar de Liska, como se tivesse sido obrigada a engolir algo desagradável.
Acho a sua ideia de fortalecer o elo entre as comunidades e as suas forças policiais através do programa e da Internet uma inovação brilhante.
Wyatt absorveu o elogio.
A América tem uma cultura multimedia declarou em voz alta, enquanto a repórter da televisão, uma morena de blazer vermelho-vivo, se aproximava um pouco mais, de microfone na mão. Wyatt voltou-se de frente para a câmara, inclinando-se de modo a ouvir a pergunta da mulher.
Kovac olhou para Liska com desaprovação.
Ei, talvez ele me ofereça trabalho como consultora técnica. Podia perfeitamente sê-lo observou Liska com um esgar travesso nos lábios. Seria o meu trampolim para trabalhar com o Mel Gibson.
Vou à casa de banho.
Kovac abriu caminho por entre o magote de gente que viera enfrascar-se com as bebidas oferecidas por Ace Wyatt e enfardar as asinhas de frango picantes e o queijo frito. Metade das pessoas presentes nunca havia contactado com Wyatt, muito menos trabalhado com ele, mas estavam dispostas a celebrar alegremente a sua reforma. Por um bar com bebidas à discrição, até celebrariam o aniversário do diabo.
Deteve-se ao fundo da sala e observou a cena, tornada ainda mais surrealista pelas decorações natalícias que reflectiam o brilho dos projectores da televisão. Um mar de gente... muitos rostos conhecidos; no entanto, ele sentia-se tremendamente só. Vazio. Era altura de se meter numa briga a sério ou ir embora.
Liska não se afastava do pessoal de Wyatt, tentando fazer-se simpática com o acólito principal. Wyatt fora apertar a mão a uma loura atraente, de ar grave, que parecia vagamente familiar. Pousou-lhe a mão esquerda no ombro e inclinou-se para lhe segredar algo ao ouvido. Elwood ia-se enchendo no bufete. Tippen tentava namoriscar com uma empregada de mesa que olhava para ele como se tivesse acabado de pisar alguma coisa.
Tão cedo não dariam pela sua falta. E depois, a sua ausência não passaria de um pensamento fugidio.
Onde está o Kovac? Foi-se embora? Passa aí os amendoins.
Dirigiu-se para a porta.
Tu eras o melhor agente em exercício! berrou uma voz que o álcool tornara arrastada. Aquele que não estiver de acordo que venha falar comigo! Vá! Vá! Eu daria as minhas malditas pernas pelo Ace Wyatt!
Quem assim gritava, perdido de bêbedo, encontrava-se sentado numa cadeira de rodas no alto dos três degraus que conduziam ao bar principal, onde Wyatt se encontrava. O bêbedo não dispunha de pernas para dar. As suas já estavam fora de acção há vinte anos. Delas nada mais restara além de ossos delgados e músculos atrofiados. Em contraste, o rosto era gordo e avermelhado e o tronco parecia um barril.
Kovac abanou a cabeça e deu um passo em direcção à cadeira de rodas, tentando chamar a atenção do velho.
Ei, Mikey! Ninguém está a discordar disse-lhe. Mike Fallen fitou-o sem o reconhecer, com os olhos vidrados de lágrimas.
Ele é um herói! Não tentem dizer o contrário! declarou, irado. Desviou um braço na direcção de Wyatt. Eu amo aquele homem! Eu amo aquele homem como um filho!
A voz do velho foi-se abaixo ao pronunciar a última palavra, e o seu rosto contorceu-se com uma dor que nada tinha a ver com a quantidade de Old Crow emborcada nas últimas horas.
Wyatt perdeu o seu sorriso glamoroso e fez menção de se aproximar de Mike Fallen no preciso instante em que a mão deste pousava na roda da sua cadeira. Kovac avançou de imediato, esbarrando noutro bêbedo.
A cadeira precipitou-se pelos degraus e projectou o seu ocupante. Mike Fallen caiu no chão como um saco de batatas.
Kovac afastou o bêbedo para o lado e voou pelos degraus abaixo. A multidão recuara, apanhada de surpresa. Wyatt ficara paralisado a uns três metros de distância, de olhos postos em Mike Fallen com uma expressão de desagrado.
Kovac baixou-se, apoiando-se num joelho.
Ei, Mikey, toca a levantar. Voltaste a confundir a cara com o cu.
Alguém endireitou a cadeira de rodas. O velho rolou de modo a ficar de barriga para cima e fez uma tentativa patética para se sentar, esparramando-se no meio do chão como uma foca acabada de dar à costa. Um tipo que Kovac conhecia da secção de furtos pegou-lhe num dos lados, enquanto Kovac fazia o mesmo do outro, e juntos, içaram o velho de novo para cima da cadeira.
As pessoas que estavam por perto desviaram o olhar, embaraçadas com o acontecido. Fallen tinha a cabeça baixa numa demonstração abjecta de humilhação, uma visão que Kovac jamais teria desejado ter.
Conhecia Mike Fallen desde o seu primeiro dia na polícia. Nessa altura, não havia nenhum membro de patrulha em Minneapolis que não conhecesse "Iron" Mike. Tinham seguido o seu exemplo e as suas ordens. E muitos deles haviam chorado que nem crianças quando Mike Fallen fora baleado. Mas vê-lo naquele estado, inválido em todos os aspectos, era de cortar o coração.
Kovac ajoelhou-se ao lado da cadeira de rodas e pousou a mão no ombro de Fallen.
Vá, Mike, fiquemos por aqui, está bem? Eu levo-te a casa.
Estás bem, Mike? perguntou Ace Wyatt com ar aborrecido, tendo-se, finalmente, aproximado. Fallen estendeu-lhe a mão trémula, mas nem mesmo quando Wyatt lha apertou foi capaz de erguer os olhos. Falou com voz entaramelada.
Gosto de ti como um irmão, Ace. Como um filho. Tu sabes. Não sou capaz de dizer...
Não precisas de dizer nada, Mike. Não precisas.
Desculpa. Desculpa murmurou o velho repetidamente, cobrindo a cara com a outra mão. Do nariz caía-lhe um bocado de muco que lhe chegava ao colo. Molhara as calças.
Kovac apercebeu-se, através da sua visão periférica, de que o pessoal da imprensa começara a aproximar-se, como abutres.
Vou levá-lo a casa disse a Wyatt, levantando-se. Wyatt olhou para Mike Fallen.
Obrigado, Sam murmurou. És um bom homem.
O que eu sou é um parvo. Mas também não tenho mais nada que fazer.
A loura desaparecera, mas a morena da televisão esgueirara-se novamente para junto de Wyatt.
Aquele é o Mike Fallen, não é? O agente Fallen do caso Thorne dos anos setenta?
O acólito de cabelo preto apareceu repentinamente e afastou-se com a mulher, segredando-lhe algo misterioso ao ouvido.
Wyatt recompôs-se, afastando-se e fazendo sinal aos jornalistas, com ar reprovador, para que continuassem o seu trabalho.
Foi apenas um pequeno incidente, rapazes. Continuemos.
Kovac olhou para o homem que soluçava na cadeira de rodas.
Continuemos.
Realmente foi para isto que esta noite contratei uma baby-sitter disse Liska. Para poder levar um bêbedo a casa de carro. Já aturei o suficiente disto quando andava de uniforme.
Deixa de ser sacana ordenou-lhe Kovac. Bastava-te dizer: "Não", colega.
Claro. E fazer má figura em frente do "Sr. Serviços Comunitários". Só espero que ele tenha registado a minha generosidade e se lembre de mim quando lhe for pedir para entrar no programa disse Liska, a brincar.
A mim pareceu-me que estavas a atirar-te ao assistente dele para mais alguma coisa.
Liska deu-lhe um beliscão no braço, tentando não desatar a rir.
Isso não é verdade! Que é que julgas que eu sou?
O que é que ele julgaria que és? Aí é que reside a verdadeira questão.
Ele não me julgaria nada.
Não julgou. Há uma diferença. Liska fingiu amuar:
Salta à vista que é gay.
Salta à vista.
Percorreram mais alguns quarteirões em silêncio, com os pára-brisas a varrer a neve que começara a cair. Mike Fallen ia sentado a um canto do banco de trás, a tresandar a urina e a ressonar.
Trabalhaste com ele, foi? perguntou Liska, indicando o passageiro com um gesto de cabeça.
Todos trabalhavam com o "Iron" Mike quando entrei para a polícia. Ele é que era um autêntico cavalo de guerra. Sempre disponível para tudo. "Porque assim é que está certo", dizia. Era assim que um polícia devia ser. E é precisamente ele que leva um tiro na espinha. Nunca é com nenhum preguiçoso de merda que só anda a fazer tempo para chegar à reforma.
Na vida nada é justo.
Grande novidade. Mas ao menos deu cabo do canastro ao tipo que disparou sobre ele.
Isso foi no caso Thorne.
Lembras-te?
Nessa altura eu era uma criança, Matusalém.
Há vinte anos? troçou Kovac. Se calhar andavas entretida com o capitão da equipa de futebol.
Um grande defesa contrapôs Liska. E deixa-me que te diga que não era em vão que lhe chamavam o Mãos.
Caramba resmungou Kovac, com um dos cantos da boca a tremer-lhe de tanto esforço que fazia para não se rir. Tinks, tu és danada.
Alguém tem de te pôr bem-disposto. Entregas-te demasiado ao mau humor.
Olha quem fala...
Conta lá como foi o caso Thorne.
O Bill Thorne era polícia. Fazia patrulhas há anos. Não cheguei a conhecê-lo. Na altura eu era caloiro na polícia. Ele morava num bairro acima do antigo liceu da zona ocidental, onde um grupo de malta da polícia vivia na altura. Um dia, o Mike ia a patrulhar a zona e viu algo de estranho a passar-se na casa do Thorne. Ligou a avisar e depois foi ele mesmo até lá.
Devia ter esperado por reforços.
Pois devia. Grande erro. Mas ele viu o carro do Thorne. Era um bairro cheio de polícias. Seja como for, havia um tipo que fazia pequenos serviços na vizinhança. Um vagabundo. O Thorne tentara afastá-lo algumas vezes, mas a mulher tinha pena do homem e pagava-lhe para lavar janelas. Por acaso, o Thorne tinha razão: o tipo não era boa peça. Entrou-lhe em casa e violou-lhe a mulher.
"O Thome estava de serviço nessa noite mas precisou de voltar a casa para ir buscar não sei o quê. O bandido encontrara uma arma e utilizou-a para atingir o Thorne. Matou-o.
"Então, o Mike apareceu e entrou. O estupor disparou. O Mike também disparou sobre ele. Atingiu o tipo mas também levou um tiro. Na altura, o Ace morava no outro lado da rua. A dado momento, a mulher do Thorne foi chamá-lo, histérica. Foi ele quem manteve o Mike vivo até a ambulância chegar.
Isso explica o que aconteceu hoje à noite.
Sim concordou Kovac com ar pensativo. Pelo menos em parte.
Havia muitas histórias sobre o "Iron" Mike Fallen, o herói caído, e o velho Mike Fallen, um alcoólico patético. É uma profissão demasiado cheia de histórias tristes e de bêbedos ainda mais tristes.
O passageiro do banco de trás tombou para a frente e vomitou no chão do carro quando Kovac parou em frente da casa do próprio Fallen.
Kovac soltou uma exclamação e bateu com a testa no volante.
Liska abriu a porta do seu lado e olhou para ele.
Cá se fazem, cá se pagam. Quem não vai limpar aquilo sou eu, colega.
Vista de fora, a casa era pequena e limpa, num bairro de casas pequenas e limpas. No interior, a história era diferente. A mulher de Fallen morrera há anos. Cancro. Ele vivia agora sozinho. O local cheirava a bafio e a cebola refogada.
As divisões eram poucas e a mobília reduzida ao mínimo, para a cadeira de rodas de Mike poder circular. Uma bizarra mistura de tralha muito antiga e objectos requintados. No meio da sala de estar e voltada para uma televisão a cores com um ecrã gigante encontrava-se uma poltrona reclinável. O divã era uma relíquia dos anos setenta. A sala de jantar dava a impressão de não ser utilizada há décadas e estava provavelmente tal qual Mrs. Fallen a deixara, excepto as garrafas de bebida que se viam em cima da mesa.
O pequeno espaço do quarto estava quase todo ocupado por duas camas gémeas, uma atravancada de roupa, a outra um emaranhado de lençóis. Roupa suja fora atirada para o sítio onde se via um cesto a deitar por fora. Em cima da mesa-de-cabeceira via-se uma garrafa de uísque Maker's Mark, ao lado de um frasco de compota com a fotografia de Barney, o Dinossauro. Na outra ponta do quarto, a cómoda da falecida exibia fotografias de família, meia dúzia delas virada para baixo.
Peço-te desculpa. Peço-te mesmo muita desculpa murmurou Mike quando Kovac se lançou à tarefa árdua de o pôr na cama.
Liska descobriu um cesto para roupa e colocou nele a que ali estava suja, de nariz franzido, mas sem se queixar.
Esquece isso, Mike. Não é nada que não nos aconteça a todos de vez em quando proferiu Kovac.
Meu Deus, estou todo mijado.
Não te preocupes com isso.
Desculpa. Onde estás a trabalhar, Sam?
Homicídios.
Fallen soltou uma risada débil e zombeteira, de bêbedo.
Grande figurão. Demasiado bom para usar uniforme.
Kovac suspirou e endireitou-se, olhando para as fotografias ao fundo do quarto. Fallen tinha dois filhos. O mais novo, Andy, era polícia. Estivera algum tempo nos furtos. Quando as endireitou, Kovac descobriu que eram dele as fotografias viradas para baixo.
O puto tinha bom aspecto. Atlético, bonito. Havia uma fotografia sua com equipamento de basebol. Tinha uma constituição esplêndida: compacto, felino. Uma outra fotografia mostrava-o no seu uniforme, no final do curso da Academia da Polícia. O orgulho e a alegria de Fallen, a prosseguir a tradição da família.
Que tal está o Andy?
Está morto murmurou Fallen.
Kovac virou-se abruptamente.
O quê?
Fallen desviou o rosto. Parecia frágil sob a luz do candeeiro, a pele empalidecida e enrugada como um velho pergaminho.
Está morto para mim disse suavemente. Depois, fechou os olhos e apagou-se.
A tristeza e o derrotismo patentes nas palavras de Mike Fallen perturbaram Kovac durante todo o percurso de regresso ao Patrick's, onde deixou Liska a inteirar-se dos últimos acontecimentos da festa. Largou-a na esquina e seguiu pelas ruas transversais que começavam a encher-se de neve, afastando-se do centro da cidade, rumo ao seu bairro algo decadente.
A rua era dominada por árvores antigas, cujas raízes deformavam os passeios, fazendo lembrar uma auto-estrada de Los Angeles depois de um terramoto. As casas empilhavam-se umas contra as outras, algumas grandes e quadradas, divididas em apartamentos, outras mais pequenas. Um dos lados da rua exibia uma fila heterogénea de carros, enquanto o outro em frente não tinha nenhum, para facilitar a remoção da neve.
A casa mesmo à esquerda da de Kovac estava engalanada para o Natal por tudo o que era lado. Dava a impressão de estar prestes a soçobrar sob o peso das luzes coloridas. Havia um Pai Natal e um veado montados no telhado. Um outro Pai Natal subia pela chaminé, enquanto um terceiro ficava no relvado em frente, voltado para os outros dois. Perto deste viam-se os Reis Magos de visita ao Menino Jesus no presépio. Todo o pátio estava iluminado por projectores de luz.
Kovac atravessou pesadamente o passeio até sua casa e entrou, sem se dar ao trabalho de acender a luz. A que vinha do lado era mais do que suficiente. A sua casa não diferia muito da de Mike Fallen no que dizia respeito à escassez de mobília. O último divórcio deixara-lhe algumas peças desprezadas que ele nunca se dera ao incómodo de substituir ou completar. Ele próprio não passava de um rejeitado, pelo que estava tudo a condizer. O único capricho que se permitira nos últimos anos fora o aquário. Uma lamentável tentativa para trazer outras criaturas vivas para dentro de casa.
Não havia fotografias de crianças nem de família. Dois casamentos fracassados pareciam não ter deixado nada de que se pudesse orgulhar. Tinha muitas recordações dolorosas e uma filha que não via desde tenra idade. De certo modo, era como se ela tivesse morrido. Mas era mais como se nunca houvesse existido. Após o divórcio, a mãe voltara a casar com uma pressa inesperada e a nova família mudara-se para Seattle. Kovac não vira a filha crescer, nunca brincara com ela nem a vira seguir o seu exemplo e entrar para a polícia. Ele treinara-se para não pensar nas oportunidades perdidas... sempre que possível.
Subiu ao seu quarto, porém a cama não o interessava. Sentia a cabeça a latejar. Sentou-se no sofá ao lado da janela e ficou a olhar para o espalhafatoso espectáculo de luzes da casa ao lado.
Está morto para mim, dissera Mike Fallen.
O que levaria um homem a dizer semelhante coisa de um filho que fora, nitidamente, o grande orgulho da sua vida? Porque teria cortado aquele elo quando já lhe restava tão pouco?
Kovac tirou o pacote de pastilhas de nicotina do bolso e atirou-o para o cesto dos papéis; em seguida, pegou no maço de Salem meio cheio que tinha em cima da mesa-de-cabeceira e acendeu um cigarro.
Quem iria dizer-lhe que não o fizesse?
A fotografia transmite uma sensação falsa. A maioria das pessoas tê-la-ia olhado de relance, sentindo imediatamente um acesso de repulsa, classificando-a logo de brincadeira de mau gosto.
O fotógrafo não pertence a esta categoria de pessoas.
O artista vai examinando a fotografia e começa por sentir uma sensação de choque, logo seguida por uma amálgama estranha e complexa de emoções: horror, fascínio, alívio, culpa. Subjacente a tudo isso, uma outra dimensão de sentimentos mais sombria: uma certa excitação... uma sensação de controlo... de poder. Sentimentos que são assustadores, repugnantes.
Tirar a vida proporciona uma tremenda sensação de poder. Tirar uma vida: a frase implica privar outra criatura viva da sua energia e juntá-la à força da sua própria vida. A ideia é sinistramente atractiva. Viciante para determinado tipo de indivíduos: aqueles que matam por desporto.
Eu não sou assim. Jamais poderia ser assim.
Ainda a afirmação está a ser feita, já lembranças de outra morte faíscam, imagem a imagem, na memória: violência, movimento, sangue, ruído a rumorejar nos ouvidos, um grito interior de ensurdecer que não pode ser escutado. Depois, o silêncio, a imobilidade... e a aterradora tomada de consciência: Eu fiz aquilo.
E a excitação... e o poder...
Os sentimentos tenebrosos atravessam a alma como uma serpente, sinuosos e brilhantes. A consciência estremece no seu rasto. O medo irrompe como uma maré enchente.
O fotógrafo olha fixamente para a imagem captada de um corpo a balouçar na ponta de uma corda, a imagem reflectida no espelho, no espelho onde se lê uma única palavra rabiscada. Lamento.
Lamento muito.
O Andy Fallen morreu.
Liska deu a notícia a Kovac à porta dos gabinetes do Departamento de Investigação Criminal. Kovac ficou sem fôlego.
O quê?
O Andy Fallen morreu. Um amigo encontrou-o hoje de manhã. Parece que foi suicídio.
Santo Deus! murmurou Kovac, sentindo a mesma desorientação com que acordara naquela manhã ao levantar-se da cama demasiado depressa, com a cabeça a latejar. Visualizou Mike Fallen, frágil e lívido; ouviu-o proferir as palavras: Está morto para mim. Santo Deus.
Liska fitou-o, expectante.
Kovac obrigou-se mentalmente a recompor-se.
Quem está disponível?
O Springer e o Copeland respondeu a detective, olhando para o lado a ver se não havia ninguém à escuta. Estavam disponíveis. Pretérito passado. Calculei que quisesses tomar conta do caso, por isso agarrei nele.
Não sei se hei-de agradecer-te, se desejar que os teus pais fossem adeptos do controlo da natalidade resmungou Kovac, dirigindo-se para o seu cubículo.
Conhecias o Andy?
Não. Não verdadeiramente. Encontrei-o algumas vezes. Suicídio. Caramba, não quero ser eu a dizer ao Mike.
Preferes que seja alguém fardado a fazê-lo? Ou um tipo qualquer de medicina legal? perguntou Liska, com ar de censura.
Kovac inspirou com força e fechou os olhos por um instante, enquanto o fardo lhe assentava nos ombros.
Não.
O destino ligara-o a "Iron" Mike anos antes e isso voltara a acontecer na noite anterior. O mínimo que podia fazer era tentar minimizar o sofrimento do velhote. Que fosse um rosto conhecido a dar-lhe a notícia.
Não achas que devíamos deitar imediatamente mãos ao trabalho? sugeriu Liska, olhando em volta à procura de Copeland e de Springer. Tentar controlar as coisas desde já? Ainda por cima, o Andy era nosso colega.
Pois é admitiu Kovac, olhando para a luz que piscava no seu telefone. Vamos tomar já conta disto antes que o Leonard nos atire mais algum "homicídio de amanhã".
Andy Fallen morava numa casa de um só piso mas com telhado alto, mesmo no extremo norte do bairro chique de Uptown. Albergando figuras em plena ascensão, tanto social como profissional, Uptown ficava, afinal de contas, a sul da chamada Downtown, o que nunca fizera nenhum sentido para Kovac. Calculava que se chamava Uptown só por as pessoas como ele não lhe puderem chegar. A zona comercial era uma área cheia de locais de lazer e de diversão: pastelarias, restaurantes para yuppies, galerias de arte e cinemas. As habitações a ocidente, perto do lago das Ilhas e o lago Calhoun, custavam os olhos da cara. Fallen vivia suficientemente para norte e para este poder pagar uma casa naquela zona com o seu salário de polícia solteiro.
Em frente da casa, encostados ao passeio, estavam dois carros-patrulha. Liska subiu o carreiro apressadamente e cheia de ansiedade, como acontecia sempre que se tratava de um novo caso. Kovac foi atrás dela, abominando aquilo que os esperava.
Esperem até ver o que está lá dentro comentou o agente uniformizado que lhes abriu a porta. Este é de manual.
Falava quase num tom brejeiro. Lidava há demasiado tempo com a morte, chegara a um ponto em que os mortos tinham deixado de ser pessoas para si, apenas corpos. Todos os polícias ficam assim, ou então abandonam o trabalho de rua antes de perder por completo a sanidade mental. Não podem permitir que a morte os afecte de modo pessoal sempre que deparam com ela. Kovac sabia que não era, de certeza, nenhuma excepção. Mas daquela vez seria diferente. Já era.
Liska lançou ao agente um daqueles olhares que todos os detectives passam a ter logo no início de carreira.
Onde está o cadáver?
No quarto. Lá em cima.
Quem o encontrou?
Um "amigo" respondeu o polícia de novo num tom quase de escárnio, traçando as aspas no ar com os dedos. Está na cozinha, lavado em lágrimas.
Kovac leu o nome escrito na chapa que o agente trazia ao peito, inclinando-se para a frente e chegando-se muito perto.
Burgess?
Exactamente respondeu ele, resistindo nitidamente ao impulso de recuar.
Liska escrevinhou o nome e o número do agente no seu bloco de apontamentos.
Foi o primeiro a chegar ao local? perguntou Kovac.
Fui.
E serviu-se dessa sua boca para falar com o tipo que encontrou o cadáver?
Burgess franziu o sobrolho, com ar desconfiado.
Sim...
Kovac aproximou-se ainda mais do agente.
Burgess, você é sempre assim tão burro ou hoje é um dia especial?
O polícia corou, começando a ficar com as feições congestionadas.
Mantenha essa boca calada ordenou Kovac. A vítima era polícia e o pai também. Mostre mais respeito.
Burgess cerrou os lábios e deu um passo atrás, com uma expressão de frieza.
Sim, senhor.
Não quero ninguém aqui metido, a não ser que tenha um crachá ou seja da medicina legal. Entendido?
Sim, senhor.
E quero a lista de todos os nomes e números de quem entrar e sair por aquela porta. Posso ficar descansado?
Sim, senhor.
Bolas! Ele não gostou nada do que lhe disseste sussurrou Liska em tom divertido, enquanto deixavam Burgess à porta e se dirigiam para as traseiras da casa.
Não? Ele que se lixe retorquiu Kovac. Olhando de relance para a colega. O Andy Fallen era maricas?
Homossexual corrigiu Liska. Como queres tu que eu saiba? Não me dou com tipos dos Assuntos Internos. Por quem me tomas?
Queres saber mesmo? perguntou Kovac, acrescentando logo a seguir: Ele estava nos Assuntos Internos? Não admira que o Mike tenha dito que o rapaz estava morto.
A cozinha era toda em verde em tons de floresta, com incrustações em madeira pintada de branco, e estava impecavelmente arrumada. Era a cozinha de alguém que não se limitava a saber pôr o microondas a funcionar: bastante ampla, tinha panelas e tachos pendurados numa grade de ferro colocada por cima de uma bancada central com tampo de granito, onde se via uma série de facas, de vários tamanhos, enfiadas num suporte de madeira.
No canto mais afastado da divisão estava o "amigo", sentado a uma mesa redonda aninhado junto de uma janela de sacada, com o rosto enfiado entre as mãos. Era um indivíduo bem-parecido, de fato escuro completo. Cabelo ruivo, cortado à moda. Rosto rectangular. Cheio de ângulos acentuados e de sardas. Estas destacavam-se na pele que o stresse e a luz acinzentada e fria que entrava pela janela empalidecera. Quando entraram, mal deu pela presença deles.
Liska mostrou-lhe a sua identificação e procedeu às apresentações.
Soubemos que encontrou o corpo, Mister...
Pierce disse o homem com voz enrouquecida, fungando. Steve Pierce. Sim. Fui eu... que o encontrei.
Sabemos que é terrivelmente penoso para si, Mister Pierce, mas teremos de falar consigo assim que terminarmos. Compreende?
Não, respondeu o jovem, sacudindo a cabeça. Não compreendo nada disto. Não consigo acreditar. Pura e simplesmente, não sou capaz de acreditar.
Os nossos pêsames disse Liska de imediato.
Ele não faria uma coisa destas lamentou-se com voz entaramelada, olhando fixamente para o tampo da mesa. Ele não faria uma coisa destas. Não é possível.
Kovac não teceu comentários. Ao subirem as escadas, sentiu-se invadir por uma sensação crescente de temor.
Estou com um mau pressentimento em relação a isto, Tinks murmurou, calçando as luvas de borracha. Ou então é um ataque de coração que aí vem. Agora que deixei finalmente de fumar é que me vai dar.
Bem, não me morras no local do crime advertiu-o Liska. A papelada seria uma enorme chatice.
Estás cheia de compaixão.
Mais vale isso do que aquilo de que tu estás cheio. Não vais ter ataque cardíaco nenhum.
O segundo andar da casa devia ter sido, em tempos, um sótão, que depois fora elegantemente convertido no quarto do dono da casa. As vigas de madeira tinham ficado à mostra, criando um efeito de galeria alta. Um lugar bonito e íntimo para morrer, pensou Kovac, abarcando a cena com um olhar.
O cadáver pendia de uma tradicional corda de laço corrediço, alguns centímetros atrás da cama de quatro colunas. A corda fora passada por cima de uma viga do tecto e amarrada algures na cabeceira da cama, estando a ponta oculta por esta. A cama encontrava-se impecavelmente feita; ninguém dormira ou se sentara nela. Kovac anotou mentalmente esses pormenores, concentrado na vítima. Recordou as fotografias que vira deitadas de face para baixo em cima da cómoda do quarto de Mike Fallen na noite anterior: o jovem bem-parecido, o atleta exímio, o polícia de rosto franco, acabado de entrar na corporação, ao lado de um Mike que sorria orgulhosamente. Viu a mesma fotografia da formatura na Academia da Polícia em cima da cómoda de Andy Fallen. Um puto com bom aspecto, lembrava-se de ter pensado.
Agora o rosto atraente perdera a cor, estava distorcido, arroxeado e intumescido, a boca paralisada numa espécie de esgar zombeteiro. Os olhos apresentavam-se semiabertos e enevoados. Já estava assim há algum tempo. Um dia ou mais, calculou Kovac com base na aparente falta de rigidez, na tensão da pele, no cheiro. O odor repugnantemente adocicado do início da decomposição misturava-se com o da urina e de fezes retardadas. Na morte, os músculos tinham relaxado e tanto a bexiga como os intestinos haviam despejado o seu conteúdo no chão.
O corpo estava nu. Os braços pendiam-lhe de lado, as mãos, com os punhos cerrados, ligeiramente afastadas das ancas e viradas para a frente. Os calcanhares tinham manchas escuras: era a lividez da morte, o sangue a fixar-se no ponto mais baixo das extremidades. Os pés, a não mais de uns centímetros do chão, estavam inchados e roxos.
Kovac acocorou-se, pegou num dos tornozelos e premiu o polegar contra a carne, levantando-o em seguida. Viu que a pele ficava com uma mancha esbranquiçada, porém nada aconteceu. O sangue coagulara há muito. A perna estava fria ao toque.
Havia um espelho de corpo inteiro encostado à parede, a uns três metros do corpo. Reflectia-o na sua totalidade, o reflexo distorcido pelo ângulo do espelho. A palavra "Lamento" fora escrita no vidro com algo escuro.
Sempre achei estes tipos dos Assuntos Internos esquisitos.
Kovac olhou para os dois polícias uniformizados que se encontravam de pé, a cerca de três metros de distância, a olharem para o espelho com um sorriso malicioso. Usavam os dois o cabelo à escovinha, praticamente não tinham pescoço, e o maior era senhor de uma cabeça quadrada como um bloco de cimento. As placas com os nomes diziam "Rubel" e "Ogden".
Ei, seus idiotas! - chamou-os Kovac em tom seco. Ponham-se a andar do local do crime. Que raio se passa com vocês? A passearem-se pela casa toda!
É um suicídio esclareceu o mais feio, como se fosse uma declaração muito importante.
Kovac sentiu o sangue subir-lhe ao rosto.
Não me queiras dar lições, meu asno. Não percebes nada disto. Talvez daqui a vinte anos ganhes o direito a dar a tua opinião. Agora ponham-se ao fresco. Desçam e tomem conta da zona. Não quero que ninguém passe da rua aqui para dentro. E mantenham-me essas bocarras caladas. Onde há um cadáver, há um jornalista. Se leio uma palavra sobre isto declarou, apontando para o espelho, saberei quem se vai lixar. Entendido?
Os agentes entreolharam-se, carrancudos, e dirigiram-se para as escadas.
Um paneleiro dos Assuntos Internos dá cabo do seu próprio canastro disse o mais feio ao colega por entre dentes. Então onde é que está o crime? Cá por mim, prestou a todos um favor.
Kovac olhou para o cadáver. Via Liska a cirandar de um lado para o outro, anotando cada pormenor, desenhando o traçado do quarto, a disposição da mobília ou de algo que pudesse ser considerado significativo. Trabalhavam à vez na recolha de dados no local do crime. Agora era a altura de ele tirar fotografias preliminares com a polaróide.
Começou pelo quarto em si, depois passou lentamente para o cadáver, fotografando-o de todos os ângulos. Cada disparo da máquina imprimia a imagem na sua cabeça: o corpo sem vida daquele que fora filho de Mike Fallen; a viga de onde pendia a corda de nó corrediço; o aparelho de ginástica para praticar step da Reebok que estava mesmo atrás do corpo, suficientemente perto para ter sido o que Andy Fallen utilizara para passar desta para melhor; o espelho. Lamento.
Lamento. Sim, era de lamentar.
Teria Andy Fallen lamentado? O quê? Ou a palavra teria sido escrita por outra pessoa?
O aquecimento central automático disparou e o corpo começou a girar ligeiramente, qual pinhata gigantesca. O reflexo no espelho acompanhava-o, como um macabro par de dança.
Nunca percebi por que razão as pessoas se despem para se suicidar comentou Liska.
É simbólico. Como que se libertam do seu invólucro terreno.
A mim é que ninguém me apanha nua.
Se calhar ele não se suicidou sugeriu Kovac.
Achas que alguém lhe poderá ter feito isto? Ou obrigado a fazer? O homicídio por enforcamento é raro.
Que achas do pormenor do espelho? perguntou Kovac, embora para si não se tratasse de uma pergunta.
Liska observou o cadáver nu por um momento e depois olhou para o espelho, captando uma faixa com o seu próprio reflexo junto ao de Andy Fallen.
Ouve lá disse calmamente. Terá sido um azar de auto-erotismo? Nunca tinha visto nenhum.
Kovac não fez comentários, tentando imaginar o que iria dizer a Mike. Já não era nada bom ter de explicar o que era a asfixia auto-erótica a desconhecidos, o que já lhe acontecera umas duas vezes ao longo da carreira. Mas outra, completamente diferente, era dizer a um polícia da linha dura e da velha guarda que o filho tentara atingir o orgasmo inibindo a entrada de oxigénio no seu organismo, e acabara por se estrangular no decorrer do processo.
Mas porquê a mensagem? reflectiu Liska em voz alta. Lamento cheira-me a suicídio. Porque escreveria ele aquilo, se tentava apenas masturbar-se?
Kovac passou a mão pelo alto da cabeça a latejar e estremeceu.
Sabes, há dias em que não compensa sair da cama.
Pois, mas... tens aqui a tua opção. Sempre achei que mais vale um dia mau vivo do que qualquer outro morto.
Não me fodas murmurou Kovac.
Liska acocorou-se em frente do espelho para examinar as letras mais de perto. Olhou para o reflexo de Kovac.
Em frente de um cadáver, decerto que não. Não sou esse tipo de rapariga.
Sabes bem do que falo.
Pois sei. Levantou-se lentamente, perdeu a postura irónica e tocou-lhe no braço, fitando-o com uma expressão de gravidade nos olhos azuis. Desculpa, Sam. Como se o velho "Iron" Mike já não tivesse sofrido o suficiente.
Kovac olhou para a colega durante uns momentos, viu a pequena mão pousada na manga do seu casaco e ainda pensou, por breves instantes, em agarrar nela. Só pelo conforto do contacto com outro ser humano. Ela não usava anéis, "para não confundir potenciais interessados", dissera. Tinha as unhas curtas e sem verniz.
Pois é sussurrou ele.
No piso de baixo ouviu-se um grito, seguido de um ruído de queda violento; depois, mais berros. Liska lançou-se escadas abaixo como uma cabra-montês. Kovac seguiu-a, ruidosamente.
Rubel tentava arrancar Steve Pierce de cima do corpo prostrado de Ogden.
Sai de cima dele! gritava Rubel.
Pierce, enraivecido, libertou-se violentamente e desferiu um pontapé em Ogden. Deve ter acertado, a calcular pelo som do embate e pelo berro decorrente. Rubel voltou a agarrar em Pierce, rodeando-lhe o pescoço com o braço grosso e puxando-o para trás e para cima, berrando-lhe ao ouvido.
Já disse para o largares!
Ogden, ao tentar pôr-se de pé, escorregou no soalho envernizado. As solas grossas das suas botifarras de polícia esmagaram cacos de vidro e louça. Agarrou-se a uma das pontas do armário contra o qual chocara e içou-se, pondo tudo o que restara no seu interior a chocalhar. Tinha a cara às manchas e o nariz a sangrar. Limpou-o com uma das mãos, esbugalhando os olhos de incredulidade. Devia ter mais uns vinte quilos do que Steve Pierce.
Estás preso, cretino! gritou, apontando um dedo ensanguentado a Pierce.
Larga o homem! gritou Liska a Rubel.
O rosto de Pierce ficara arroxeado devido ao aperto em volta do pescoço. Rubel largou-o e ele caiu sobre os joelhos, respirando com dificuldade. Arquejou e olhou para Ogden com os olhos cheios de raiva.
Grande filho da puta!
Ninguém está preso declarou Kovac, metendo-se entre os dois.
Quero-os fora daqui! exigiu Pierce com voz rouca; erguendo-se com dificuldade. Ponha-os fora daqui!
Você... principiou Ogden.
Kovac atingiu-o no peito com o gume da sua mão esticada. Foi como se batesse num pedaço de granito.
Boca calada! Fora daqui!
Rubel começou a andar, com ar emproado, seguido de Ogden, a espumar de raiva. Kovac seguiu-os até à sala de estar.
O que foi que lhe disseram?
Nada retorquiu Rubel.
Estava a falar com a outra mula. Disseste-lhe algum disparate, não? Jesus, que pergunta! É o mesmo que indagar se a merda é castanha comentou Kovac com desdém.
Ele atirou-se a mim disse Ogden com ar indignado. Atacou um agente da polícia.
Ai foi? troçou Kovac com uma aspereza que se lhe notava no rosto. Queres ir até ali, Ogden? Queres fazer um relatório a contar os pormenores deste pequeno incidente? Queres que Mister Pierce preste declarações? Queres que o teu supervisor saiba o cretino que tu és?
O polícia amuou e tirou um lenço imundo do bolso, que levou ao nariz.
Já terás muita sorte se ele não der parte de ti à Comissão de Direitos do Cidadão e não processar o departamento advertiu Kovac. Agora ponham-se a mexer daqui para fora e vão ao vosso trabalho.
Rubel foi o primeiro a sair pela porta da frente, de mandíbulas cerradas e olhos franzidos. Ogden seguiu ao seu lado até à rua, a premir o lenço ensanguentado contra o nariz com uma mão e a gesticular com a outra na tentativa de convencer o seu parceiro de algo a que o mesmo não queria dar ouvidos.
A carrinha com o pessoal do laboratório de polícia parara atrás do carro-patrulha, à beira do passeio. De cada um dos lados da rua chegaram dois veículos fechados. Malta da imprensa. Kovac ficou imediatamente alerta. Voltou para dentro de casa, apanhando Burgess a mexer numa série de videocassetes que estavam numa estante, ao lado da televisão.
Não toques em nada! ordenou secamente. Vai lá para fora e mantém os jornalistas à distância. Nada de comentários! Achas que és capaz de fazer isso ou tenho de te explicar melhor?
Burgess baixou a cabeça.
E quero todas as matrículas do quarteirão anotadas e verificadas. Entendido?
Sim, senhor respondeu o polícia por entre dentes, desaparecendo logo em seguida.
Aonde é que eles vão buscar estes tipos? perguntou Kovac, voltando para a cozinha.
Criam-nos no Norte, como bestas de carga respondeu Liska, indo ter com ele à arcada que dava para a divisão. O Ogden disse uma piada sobre um maricas a menos. O Pierce perdeu a cabeça. Quem pode censurá-lo?
Excelente murmurou Kovac. Só esperemos que ele não dê com a língua nos dentes sobre o assunto. A morte do Andy Fallen já é suficientemente terrível. O que menos falta nos faz é comunicar a toda a área metropolitana para que lado arrumava ele a pila.
Nessa altura chegou a equipa de perícia criminal, trazendo as suas malas e máquinas fotográficas a reboque. O local seria novamente fotografado e gravado em vídeo. Toda a área seria passada a pente fino, e tudo coberto de pó para detectar impressões digitais. Se houvesse alguma prova a recolher, esta seria fotografada, a sua posição exacta medida e anotada; seria classificada, marcada e guardada com grande cuidado, seguindo todos os procedimentos que garantissem a sua aceitação por um tribunal. Enquanto isso, o corpo de Andy Fallen continuaria ali pendurado, aguardando a chegada da equipa de medicina legal.
Kovac pôs o criminalista responsável a par do que sabia e encaminhou o grupo para o piso de cima.
Nikki Liska levara Steve Pierce de novo para junto da mesa da cozinha; ele sentara-se, contrafeito, esfregando a garganta dorida com a mão. Tinha sangue de Ogden nos nós dos dedos. Desapertara a gravata e desabotoara o colarinho. O fato escuro ficara mole e amarrotado.
Importa-se que nos sentemos, Steve? perguntou Kovac.
Pierce não respondeu. Fosse como fosse, assim fizeram. Kovac tirou um microgravador do bolso, ligou-o e colocou-o em cima da mesa.
Esta nossa conversa ficará gravada, Steve explicou com ar despreocupado. Assim teremos a certeza de que ficaremos conhecedores de todos os pormenores quando voltarmos para a esquadra para passar os nossos relatórios ao papel. Tem alguma objecção?
Pierce respondeu que não com a cabeça, com ar fatigado, e passou uma mão pelo cabelo.
Preciso que responda em voz alta, Steve.
Sim. Claro. Muito bem. Tentou aclarar a garganta. Rugas de angústia vincavam-lhe os lados da boca. Vão... tirá-lo dali agora? perguntou, mal conseguindo acabar de proferir as últimas palavras.
Isso irá ser feito agora pela equipa de medicina legal explicou Liska.
Pierce olhou para ela como se só naquele momento se desse conta de que teria de haver uma autópsia. Os seus olhos voltaram a encher-se de lágrimas e, num esforço para se recompor, desviou-os para a janela, de onde se via o quintal coberto de neve.
Que faz na vida, Steve? perguntou Kovac.
Investimentos. Trabalho na Daring-Landis.
Mora aqui? Nesta casa?
Não.
O que foi que o trouxe cá esta manhã?
O Andy ficou de ir tomar café comigo ao Uptown Caribou ontem. Queria contar-me não sei o quê. Não apareceu. Não atendeu os meus telefonemas. Fiquei preocupado; por isso passei por aqui.
Qual era a sua relação com o Andy Fallen?
Somos amigos respondeu. Presente do indicativo. Desde a faculdade. Companheiros. Sabe como é.
Será melhor que nos elucide disse Kovac. Que tipo de companheiros?
Pierce franziu a testa.
Sabe como é, saíamos para uma cerveja e uma piza, um jogo de basquete de vez em quando. Juntávamo-nos para assistir ao Monday Night Football. Coisas de homens.
Nada de mais... íntimo?
Kovac observou atentamente o rosto do indivíduo. Pierce corou até à raiz dos cabelos.
Que está a insinuar, detective?
Estou a perguntar se os dois mantinham um relacionamento sexual respondeu Kovac, calmo e impassível.
Pierce deu a impressão de que a cabeça ia rebentar-lhe.
Sou heterossexual. Não que isso seja da sua conta.
Há um cadáver lá em cima observou Kovac. Isso faz com que seja da minha conta. E quanto a Mister Fallen?
O Andy era homossexual afirmou Pierce, com uma expressão de ressentimento e amargura nos olhos. Isso já justifica a sua morte?
Kovac abriu as mãos num gesto de impotência.
Ei, a mim não me interessa quem enfia o quê aonde. Preciso apenas de enquadrar a minha investigação.
O senhor lida muito bem com as palavras, detective.
Referiu que o Andy queria falar-lhe de qualquer coisa interveio Liska, metendo-se rapidamente na conversa para atrair a atenção do indivíduo para si. Kovac poderia assim ficar atento aos tiques faciais. Sabe do que se tratava?
Não. Ele não disse.
Quando é que falou com ele pela última vez? perguntou Kovac.
Pierce lançou-lhe um olhar de lado, ainda ressentido.
Hum, penso que foi na sexta-feira. A minha noiva estava ocupada nessa noite; portanto, dei um pulo até cá para ver o Andy. Ultimamente andávamos um bocado afastados. Vim sugerir-lhe que nos encontrássemos para tomar um café ou algo do género. Para pormos a conversa em dia.
Portanto, era suposto vocês dois encontrarem-se ontem, mas o Andy não apareceu.
Liguei algumas vezes para aqui, mas só apanhei o atendedor de chamadas. Ele não retribuiu os telefonemas. Foi então que resolvi passar por cá. Para ver se estava tudo bem.
O que o levou a achar que ele não estava... pura e simplesmente... ocupado? Que talvez tivesse tido de ir trabalhar mais cedo?
Pierce fitou Kovac com ar irado.
- Desculpe-me por me preocupar com os meus amigos. Se calhar podia ser apenas um cretino como o senhor. Nesta altura, podia estar sentado à minha secretária. Ter-me-ia poupado o desgosto de ver...
Calou-se mal a imagem lhe veio novamente à lembrança. Ainda tinha o rosto avermelhado mas agora com um brilho um pouco baço, continuando a olhar pela janela como, se a visão da neve, branca e serena, tivesse o condão de o acalmar e apaziguar. Como é que entrou na casa? perguntou Kovac. Tem chave?!
A porta não estava fechada à chave. Ele já alguma vez tinha falado de suicídio? Parecia deprimido? quis saber Liska. Mostrava-se.. frustrado. Um pouco desanimado, de facto, mas não ao ponto de se matar. Eu simplesmente não acredito nisso. Ele não teria feito semelhante coisa sem primeiro tentar procurar a ajuda de alguém.
Era o que os sobreviventes tentavam sempre pensar no início. A experiência ensinara-o a Kovac. Preferiam acreditar que o ser amado lhes pediria ajuda antes de dar o passo fatal. Nunca queriam admitir que talvez não tivessem dado por algum indício. Se se provasse que Andy Fallen se suicidara. Steve Pierce acabaria por começar a pensar se não teria havido uma série de sinais que lhe haviam escapado por ser egoísta, medroso ou cego. Desanimado com quê? Pierce esboçou um gesto de impotência. Não sei. Trabalho. Ou talvez a família. Sei que havia problemas entre ele e o pai.
E quanto a outros relacionamentos? perguntou Liska. Ele andava com alguém?
Não.
Como pode ter a certeza? inquiriu Kovac. Não vivia aqui. Não andavam sempre juntos. Só se encontravam para uns copos ocasionais.
Éramos amigos.
Apesar disso, não sabe o que andava a preocupá-lo, Não sabe ao certo até que ponto estaria deprimido.
Conheço o Andy. Ele não teria posto termo à própria vida insistiu Pierce, começando a ficar impaciente.
Além de a porta não estar fechada à chave prosseguiu
Liska, notou se faltava alguma coisa ou havia algo fora do lugar?
Não que eu desse por isso. Mas também não andei a ver. Vim à procura do Andy.
Steve, sabia se o Andy se entregava a algumas práticas sexuais incomuns? perguntou Kovac.
Pierce levantou-se da cadeira com um salto, atirando-a ao chão.
Vocês são inacreditáveis!
Olhou agitadamente em volta, como que à procura de uma testemunha ou de uma arma.
Kovac lembrou-se das facas que se encontravam sobre a bancada central e da raiva que viu no rosto de Pierce quando este socara Ogden. Pôs-se de pé e colocou-se entre Pierce e o conjunto de facas.
Isto não é pessoal, Steve. É o nosso trabalho explicou-lhe. Precisamos de clarificar a situação o mais possível.
Vocês não passam de uma cambada de sádicos! gritou Pierce. O meu amigo está morto e...
E eu não o conhecia de lado nenhum observou Kovac persuasivamente. Assim como também não o conheço a si de lado nenhum. Não posso asseverar que não o tenha morto você mesmo.
Isso é absurdo!
Mas sabe uma coisa? prosseguiu Kovac. Encontro um indivíduo pendurado numa corda, morto, em frente de um espelho... Chame-me púdico se quiser, mas acho muito estranho. Sabe, sou levado a pensar que talvez ele andasse metido em coisas pouco vulgares. Mas... se calhar... também é esse o seu caso. Talvez não se surpreenda com cenas destas. Quem sabe se, de vez em quando, não se asfixia ligeiramente para se vir? Ou então comete alguma outra excentricidade do género. Se for esse o caso, se você e o Fallen andavam envolvidos em algo desse tipo, mais vale que nos conte agora, Steve.
Pierce começara a chorar, as lágrimas escorriam-lhe e tinha os músculos do rosto tensos, como se tentasse reprimir a torrente de emoções brutais que o devassavam.
Não.
Não, vocês não andavam envolvidos nesse tipo de coisas... ou não, não nos quer contar? incitou-o Kovac.
Pierce fechou os olhos e deixou pender a cabeça.
Santo Deus. Não posso acreditar que isto esteja a acontecer. O fardo pareceu de repente demasiado pesado e ele deixou-se cair no chão de joelhos, dobrando-se sobre si próprio com a cabeça entre as mãos. Porque é que isto está a acontecer?
Kovac observava-o, sentindo-se invadir pela detestada e familiar sensação de remorso. Acocorou-se ao lado de Steve Pierce e pousou-lhe a mão no ombro.
É o que tentamos sempre descobrir, Steve proferiu suavemente. É provável que nem sempre apreciem os nossos métodos. E também podem não gostar do que descobrimos. Mas no fim é o que todos nós queremos: a verdade.
Kovac ainda não acabara de proferir aquelas palavras e já sabia que, quando descobrissem a verdade, ninguém quereria aceitá-la. A razão que conduzira à morte de Fallen não poderia, pura e simplesmente, ser pacífica.
A casa de Mike Fallen parecia, de certo modo, mais solitária à luz fria e cinzenta do dia. A noite tinha o condão de aconchegar um bairro; as casas pareciam mais aninhadas umas contra as outras como um rebanho, apenas com faixas de escuridão aveludada de permeio. De dia, a luz, os caminhos, as cercas e a neve separavam-nas e isolavam-nas.
Kovac olhou para a casa, sem saber se Mike já saberia de algum modo do sucedido. Isso às vezes acontecia com as pessoas. Como se uma onda de choque se tivesse de alguma maneira libertado do local de morte, alcançando-as mais depressa do que a velocidade do som ou do mensageiro.
Está morto para mim.
Duvidava que Mike Fallen se lembrasse das palavras que proferira; no entanto, elas ainda ecoavam aos ouvidos de Kovac, sentado dentro do seu carro, sozinho. Deixara Liska na esquadra para iniciar a investigação. Ela entraria em contacto com o supervisor de Andy Fallen a fim de saber em que caso andara ele a trabalhar e qual fora o seu comportamento ultimamente. Pediria que lhe enviassem o dossiê do falecido e indagaria se este consultara o psiquiatra do departamento.
Kovac trocaria de lugar com ela sem hesitar, porém o seu sentido de dever era demasiado forte. Amaldiçoou-se Por isso e saiu do carro. Quando se era um ser humano decente, havia dias muito difíceis de suportar.
Espreitou para dentro de casa através da pequena janela de vidro rectangular que havia na porta da frente. A sala parecia mais miserável do que na noite anterior. As paredes precisavam de uma pintura. O divã já devia ter ido para o lixo há anos. Um estranho contraste com a poltrona reclinável e o televisor de ecrã gigante.
Tocou à campainha e bateu várias vezes na porta, depois aguardou, impaciente, tentando não imaginar o que um desconhecido pensaria da sua própria sala de estar com o aquário vazio. Um dia daqueles teria de arranjar uma vida própria fora do trabalho.
As mãos agitaram-se-lhe, inquietas, dentro dos bolsos. Meteu uma pastilha elástica na boca sentindo picadas nervosas na nuca, como se tivesse formigas debaixo da pele. Bateu de novo. Lampejos da noite anterior vieram-lhe à memória: Mike Fallen. O velho polícia, alquebrado, rejeitado, deprimido, bêbedo... Não havia sinal de vida dentro de casa. Nenhum movimento. Nem som.
Enterrando-se na neve até aos tornozelos, deu a volta por um dos lados da casa, à procura de uma janela de quarto. Seria uma informação esplêndida para o noticiário das seis da tarde! Pai e filho polícias suicidam-se. Paul Harvey provavelmente escolheria aquela notícia para deprimir toda a América à hora do almoço. Morte sem sentido a acompanhar salada de frango e Big Macs.
Encontrou uma escada na garagem minúscula, que estava a abarrotar com aquele tipo de tralhas que mal se utilizam e vão sendo acumuladas ao longo da vida. A maior parte do espaço era ocupada por um Subaru Outback adaptado para um condutor deficiente. Algum outro polícia devia tê-lo trazido de volta do Patrick's depois da festa, ou alguém levara Mike até ao bar e depois desaparecera no meio da multidão quando a confusão começara. Alguém que não quisera que um bêbedo lhe vomitasse no banco de trás.
No quarto de Mike Fallen, a persiana estava levantada. Mike encontrava-se deitado de costas sobre a cama, um braço para cada lado, a cabeça virada, de boca aberta. Kovac suspendeu a respiração e tentou aperceber-se de algum sinal de que o coração de Mike ainda lhe batia sob o tecido fino da camisola interior.
Ei, Mike! chamou, batendo na janela.
Fallen não se mexeu.
Mike Fallen!
O velho deu um pulo à segunda série de batidas, abrindo os olhos apenas ligeiramente, aflito com a luz. Ao ver um rosto comprimido contra o vidro da janela, soltou um som rude de medo.
Mike, é o Sam Kovac!
Fallen balançou-se de modo a sentar-se na cama, tossindo e libertando-se de uma noite de catarro acumulado.
Que raio estás a fazer aqui? gritou. Passaste-te? Kovac colocou as mãos de lado, na cara, num esforço
para ver melhor.
Tens de me deixar entrar, Mike. Precisamos de falar. O seu hálito enevoava o vidro e ele limpou-o com a manga do casaco.
Fallen fez má cara e mandou-o desandar com um gesto.
Deixa-me em paz. Não preciso de sermões teus.
Sermões sobre o quê?
Ontem à noite. Já foi suficientemente mau ter feito o que fiz. Não preciso de que me esfreguem o nariz na porcaria.
Ali sentado em roupa interior, tinha um ar patético: o tronco bojudo de pernas finas, a barba por fazer e os olhos raiados de sangue. Passou a mão pela cabeça com o cabelo cortado à escovinha e estremeceu, apalpando-a cuidadosamente.
Vá, deixa-me entrar. É importante insistiu Kovac.
Fallen olhou para ele de olhos franzidos, tentando calcular a importância do assunto. Ninguém detesta tanto uma surpresa como um polícia.
Por fim levantou uma mão num gesto de derrota.
Debaixo do tapete da entrada das traseiras está uma chave.
Uma chave debaixo do tapete da entrada repetiu Kovac, lançando um olhar de esguelha ao velho ao pousar a chave em cima do balcão da cozinha. Caramba, Mike, tu foste polícia. Tinhas obrigação de saber que isto não se faz.
Fallen não lhe ligou importância. A cozinha cheirava a gordura e a cebola refogada. As cortinas estavam tesas de tão antigas. As bancadas estavam apinhadas de chávenas, copos, pratos, caixas de cereais e um frasco gigante de laxante rodeado de medicamentos todos misturados. As portas dos armários inferiores tinham sido todas retiradas, expondo o seu conteúdo: pacotes de puré de batata instantâneo, legumes enlatados, uma caixa quase cheia de sopas Campbell.
Fallen não se preocupara em vestir as calças. Rolava pela pequena divisão na sua cadeira, as pernas peludas e atrofiadas afastadas para o lado, a fim de não estorvarem. Desencantou um frasco de Tylenol de cima da bancada e serviu-se de um copo de água do frigorífico.
Que raio é assim tão importante? perguntou com voz roufenha, embora Kovac não tivesse dificuldade em ver a tensão nos seus ombros, como que a preparar-se para o que estava para vir. Estou com uma ressaca de deitar abaixo uma vaca.
Mike. Kovac esperou que Fallen se virasse para ele e o fitasse; depois, respirou fundo. O Andy morreu. Lamento.
De chofre. Assim, sem mais nem menos. As pessoas achavam sempre que era melhor dar uma má notícia com muitos rodeios. Isso apenas fazia com que o receptor tivesse oportunidade para entrar em pânico imaginando várias possibilidades terríveis. Ele aprendera há muito a resolver o assunto dizendo tudo de uma vez.
Fallen desviou o olhar com o maxilar a tremer-lhe.
Ainda não sabemos o que aconteceu.
O que queres dizer com essa de não saberem o que aconteceu? perguntou Fallen. Levou um tiro? Foi esfaqueado? Sofreu um acidente de automóvel? Começou a ficar furioso, já que a raiva era mais fácil, mais familiar do que a dor. Um rubor nasceu-lhe na base da garganta e foi subindo. Tu és detective. Alguém morreu. Não és capaz de me dizer como é que isso aconteceu? Por amor de Deus!
Kovac fez-lhe a vontade.
Pode ter sido um acidente. Ou, então, suicídio, Mike.
Encontrámo-lo enforcado. Quem me dera não ter de to dizer, mas é assim mesmo. Lamento mesmo muito.
Lamento. Tal como com Andy. Voltou a visualizar a palavra escrita no espelho sobre o reflexo da imagem de Andy Fallen. Nu. Inchado. A apodrecer. Lamento não significava grande coisa perante tudo aquilo.
Mike deu a impressão de encolher e mirrar. Os pequenos olhos avermelhados encheram-se de lágrimas, que lhe deslizaram pelas faces como contas de vidro.
Oh, meu Deus exclamou. Era uma súplica, não uma imprecação. Oh, meu santo Deus.
Levou a mão trémula à boca. Grande e inchada, como um pedaço de carne; no entanto, parecia frágil, a pele fina e cheia de manchas. Um som de sofrimento aterrador libertou-se da sua alma.
Kovac desviou o olhar, concedendo ao homem pelo menos essa privacidade. Aquela era a parte pior para o mensageiro: ultrapassar aqueles primeiros momentos de agonia, momentos que não deviam ser testemunhados por ninguém.
Isso e o facto de saber que teria de se intrometer naquela mágoa com as perguntas habituais.
Fallen fez girar subitamente a cadeira e saiu da cozinha. Kovac deixou-o ir. As perguntas podiam esperar. Andy já estava morto, e provavelmente pela sua própria mão, de propósito ou não. Que diferença faziam dez minutos?
Encostou-se ao tampo do armário e contou os frascos de comprimidos. Eram sete, de vidro acastanhado, e destinavam-se ao tratamento de todo o tipo de doenças, desde indigestões a arritmias, insónias e dores. Mike dispunha, ao menos, de muitos químicos para o ajudarem.
Maldito sejas! Maldito sejas!
Os gritos chegaram ao mesmo tempo que o som de estrondos e de vidro a partir-se. Kovac precipitou-se para fora da cozinha e percorreu o curto corredor.
Maldito sejas! gritava Mike Fallen, espatifando uma fotografia emoldurada contra a esquina da cómoda. O metal barato dobrou-se como se fosse argila. Os fragmentos de vidro espalharam-se por toda a cómoda.
Mike! Pára com isso!
Maldito sejas! gritou o velho de novo, agitando os braços e a moldura danificada, lançando fragmentos de vidro pelo quarto fora. Maldito sejas!
Kovac agarrou o pulso de Mike, ainda convencido de que as maldições eram contra si. A moldura da fotografia voou pelo quarto como um Frisbee, embatendo contra a parede e caindo no chão de madeira. Fallen continuou a debater-se com uma força espantosa num homem da sua idade. O braço que lhe ficara livre abateu-se sobre o tampo da cómoda, atirando com mais fotografias emolduradas para o chão. Kovac colocou-se atrás da cadeira de rodas e inclinou-se de maneira desajeitada, tentando conter o ex-colega. Em desespero, Fallen lançou a cabeça para trás, atingindo-o violentamente na cana do nariz. O sangue irrompeu de imediato, em jacto.
Raios, Fallen, pára com isso!
O sangue escorreu-lhe pelo queixo e caiu no ombro de Fallen, no ouvido e no cabelo.
O velho atirou-se contra a cómoda a soluçar, repetindo o gesto várias vezes. A energia foi-o abandonando a pouco e pouco a cada movimento, até ele ficar com a cabeça apoiada sobre o tampo coberto de fragmentos de vidro, agitando apenas as mãos. Socando, socando, batendo, batendo.
Kovac recuou, limpando o sangue do nariz com a manga do casaco, enquanto procurava atabalhoadamente um lenço. Acercou-se do local onde os primeiros destroços tinham aterrado e tentou empurrá-los com a ponta do pé. Os sapatos e a parte inferior das calças estavam ensopados por ter caminhado pelo meio da neve, só naquele momento se apercebendo do frio e dos seus efeitos. Não sentia os dedos dentro dos sapatos.
De lenço comprimido contra o nariz para conter a hemorragia, agachou-se e pegou na fotografia com a mão livre. Andy Fallen na formatura da Academia de Polícia. Andy sorridente, com Mike a seu lado na cadeira de rodas, agora com uma linha tortuosa a separá-los como um relâmpago. Sacudiu o resto dos fragmentos de vidro e tentou endireitar a moldura.
Mike, disse calmamente. Ontem à noite afirmaste que o Andy estava morto para ti. O que querias dizer com isso?
Fallen continuava com a cabeça apoiada à cómoda, de olhos postos no vazio. Não respondeu. Kovac teve de olhar bem para ele para se certificar de que o velho não estava morto. Seria o culminar de um dia amaldiçoado... e ainda nem sequer eram duas da tarde.
Vocês dois andavam com problemas? perguntou.
Eu amava aquele rapaz respondeu Fallen debilmente, continuando sem se mexer. Ele era as minhas pernas. O meu coração. Tudo o que eu não podia ser.
Mas...
A palavra pairava no ar, sem ser pronunciada. Kovac tinha a sensação de que sabia aonde conduziria. Olhou em volta para as fotografias dispersas de Andy Fallen. Bonito e atlético. E homossexual.
Um tipo duro e da velha guarda jamais aceitaria aquilo de bom grado. Caramba, Kovac também não sabia como ele próprio encararia a questão se se tratasse de um filho seu.
Eu adorava aquele filho murmurou Mike. Mas ele estragou tudo. Estragou tudo.
Aquela afirmação fez com que a dor se avivasse ainda mais, o que ficou bem patente no rosto atormentado. Corou intensamente com o esforço de tentar conter as lágrimas... ou talvez de libertá-las. Era difícil determinar qual seria mais difícil para um homem como "Iron" Mike.
Kovac limpou o nariz distraidamente e depois voltou a guardar o lenço no bolso do casaco. Pegou, com calma, em todas as fotografias e meteu-as dentro da gaveta da cómoda, para quando a raiva passasse e a necessidade de recordações se instalasse.
As perguntas estavam ali, alinhadas na sua cabeça, automáticas, ordenadas, rotineiras. Quando é que contactaste o Andy pela última vez? Ele falou-te do caso em que estava a trabalhar? Em que condições mentais se encontrava ele na ultima vez em que se falaram? Alguma vez mencionou o suicídio? Andava deprimido? Conhecias os seus amigos, os seus amantes?
Nenhuma dessas perguntas lhe chegou aos lábios. Mais tarde.
Queres que eu telefone a alguém, Mike?
Fallen não respondeu. A dor rodeava-o como um campo de forças. A única voz que escutava era a dos remorsos na sua cabeça, não sentia nenhuma dor além da que lhe devassava a parte mais profunda da alma. Alheara-se de tudo o que o rodeava, até mesmo dos bocados de vidro que lhe dilaceravam a face.
Kovac deixou escapar um suspiro longo e profundo, reparando numa fotografia que ainda ficara no chão, meio enfiada debaixo da cómoda. Puxou-a para fora e olhou para um passado que parecia mais longínquo do que Marte. Os Fallen todos juntos antes de uma tragédia atrás de outra os ter separado. Mike, a mulher e os seus dois rapazes.
Se quiseres, chamo o teu outro filho propôs.
Não tenho mais filho nenhum retorquiu Mike Fallen. Um pôs-me de parte há anos e eu fiz o mesmo ao outro. Uma façanha do caraças, hein, Kovak.
Kovac olhou para a fotografia durante mais um instante e depois colocou-a em cima das outras. A confissão provocou-lhe uma sensação de vazio interior, um eco das emoções do velho. Ou talvez fossem as suas próprias emoções. Ele não estava menos só na vida do que Mike Fallen.
É verdade, Mike, uma façanha do caraças.
Liska, no vestíbulo, olhava para a porta da Sala 126. Assuntos Internos. O nome evocava imagens de antros de interrogatório com lâmpadas nuas e oficiais das SS de cassetetes de borracha na mão.
O "Esquadrão dos Ratos". Tivera poucos motivos para contactar com eles ao longo da sua carreira, nunca fora alvo de investigação por parte daquele sector da polícia. Sabia que a missão dos Assuntos Internos era banir os maus polícias, não perseguir os bons. Porém, o medo e o ódio eram instintivos na maioria dos polícias. Eram unidos, protegiam-se uns aos outros. Os Assuntos Internos não, viravam-se contra os da sua própria espécie. Como canibais.
A aversão acentuou-se ainda mais em Liska.
No Departamento de Polícia de Minneapolis, iam para os Assuntos Internos os tipos espertalhões, os lambe-botas e os que não tinham escrúpulos. Pessoas destinadas a tarefas de gestão. Nascidas para ser odiadas pelos seus pares. Do tipo dos que eram constantemente atirados ao chão pelos putos no recreio e passavam a vida a correr para o professor a fazer queixinhas. Daqueles que não inspiravam nem admiração nem lealdade.
Liska lembrou-se de Andy Fallen pendurado numa corda no seu quarto, e perguntou a si mesma quem poderia ter-se virado contra ele.
Entrou no gabinete dos Assuntos Internos antes que tivesse tempo para voltar novamente para trás. Não havia cabeças humanas enfiadas em estacas aguçadas. Algemas presas às paredes, também não. Pelo menos na área da recepção.
Liska, da Brigada de Homicídios anunciou, brandindo a insígnia diante da recepcionista.
Vim falar com a tenente Savard.
Calculou que a mulher estivesse no início da casa dos cinquenta. Roliça e de ar grave, não fez perguntas, exigência inerente à função. Ligou à tenente.
A seguir à zona de recepção, avistou três gabinetes; um estava às escuras, outro com a luz acesa e fechado e, ao olhar para o terceiro, que tinha a porta aberta, reparou num indivíduo magro, de fato completo e gravata, profundamente embrenhado numa conversa com um tipo baixo, de cabelo platinado cortado à escovinha e uma parca de um verde-fosforescente.
... não gosto nada de que me passem a perna declarava o da parca, num tom de voz alto e irritante. Isto tem sido um pesadelo desde o princípio. Agora dizes-me que vão entregar o caso a outro.
Na verdade, o caso está encerrado. Eu serei o teu contacto, caso precises de algum. É pura cortesia da parte do departamento. Receio nada poder fazer relativamente à mudança de pessoal explicou o de fato e gravata. As circunstâncias escapam ao nosso controlo. O sargento Fallen já não se encontra entre nós.
O tipo engravatado reparou no olhar fixo de Liska. Franziu a testa, deu a volta à secretária e fechou a porta.
A tenente Savard está à sua espera anunciou a recepcionista no tom abafado de um mestre-de-cerimónias de funerais.
O gabinete de Savard apresentava-se imaculado. Não se via a habitual tralha acumulada pelos polícias. Havia um lugar para tudo e tudo estava no seu lugar. O mesmo se podia dizer da tenente. Sentada à sua secretária, onde não se via um objecto fora do lugar, vestia um fato preto de muito bom corte. Andaria à volta dos cinquenta, possuía feições simétricas e uma pele de porcelana perfeita. O cabelo louro-cinza, de aspecto impecável, estava cortado à altura do queixo, em ondas de recorte engenhoso que lhe davam um certo ar negligé, mas que, muito provavelmente, requeriam alguns cuidados diários para ter aquele aspecto.
Liska resistiu ao impulso de tocar no seu cabelo cortado à rapaz.
Liska, da Brigada de Homicídios declarou à laia de apresentação, abstendo-se de estender a mão. Estou aqui por causa do Andy Fallen.
Sim murmurou Savard, quase como se falasse para si mesma. Com certeza.
Parecia demasiado feminina para fazer justiça à fama que tinha, pensou Liska. Amanda Savard fora descrita como dura, calma, arguta e fria como uma lâmina de aço temperado.
Liska sentou-se numa cadeira. Inexpressiva, descontraída, controlada. Fosse como fosse, uma boa fachada. Puxou do seu bloco de apontamentos e de uma caneta.
É uma tragédia horrível observou Savard, levantando-se com cuidado. Como se sofresse das costas mas não quisesse demonstrá-lo. A mão com que pegou na chávena de café tremia ligeiramente. Eu gostava do Andy. Era bom rapaz.
Que género de polícia era?
Dedicado. Consciencioso.
Quando é que o viu pela última vez?
Domingo à tarde. Precisávamos de falar de uns assuntos relacionados com o caso em que andava a trabalhar. Não estava satisfeito com os resultados.
E onde estiveram?
Em casa dele.
Não é um pouco íntimo?
Savard não pestanejou.
O Andy era homossexual. Eu andava na zona a fazer umas compras de Natal. Telefonei-lhe a perguntar se podia passar lá por casa.
A que horas foi?
Cerca das oito. Saí de lá às nove e meia.
Ele fez alguma referência a alguém de quem estivesse à espera?
Não.
E qual era o seu estado de espírito quando o deixou?
Parecia óptimo. Tínhamos falado de tudo o que havia a tratar.
No entanto, ele não se apresentou no trabalho no dia seguinte.
Não. Pedira para ser dispensado na segunda-feira. Compras de Natal, disse. Se eu fizesse a menor ideia...
Desviou o olhar, levando uns segundos a recompor a sua postura de impassibilidade.
Ele dera recentemente algum sinal de que andava com problemas emocionais?
Savard deixou escapar um sorriso delicado, aparentemente perdida na beleza agreste da fotografia a preto e branco de uma paisagem invernosa pendurada na parede.
Dera, sim. Andava calado. Triste. Emagrecera. Eu sabia que estava a ter problemas com um caso. E que tinha uma vida pessoal um pouco problemática. Mas nunca pensei que fosse um perigo para si mesmo. O Andy era muito reservado.
Andava no psiquiatra?
Não que eu soubesse. Agora desejaria ter insistido mais nisso.
Sugerira-lho?
Costumo dizer claramente ao pessoal do meu departamento que por alguma razão temos um psicólogo. Os Assuntos Internos podem ser um osso muito duro de roer. É um trabalho que provoca um stresse considerável.
Pois é. Dar cabo da vida de outros polícias pode ter as suas chatices murmurou Liska, escrevendo no seu bloco.
Os polícias é que dão cabo de si próprios, sargento replicou Savard, agora com um lampejo de aço a notar-se-lhe na voz. Nós impedimo-los de darem cabo da vida de outras pessoas. O nosso trabalho é importante.
Não foi minha intenção dizer que não era.
Claro que foi.
Liska agitou-se na cadeira, desviando o olhar dos gélidos olhos verdes de Savard.
Perdi um investigador excelente prosseguiu Savard. E um jovem de quem muito gostava. Acha que não o sinto, sargento? Acha que o chamado "Esquadrão dos Ratos" tem água gelada nas veias?
Liska baixou os olhos.
Não, minha senhora. Lamento.
Tenho a certeza de que sim. Está aí sentada a tentar adivinhar se transmitirei isto ao tenente, seu superior, ou não.
Liska não respondeu porque Savard estava absolutamente dentro da razão. Preocupava-se mais com a possibilidade daquela asneira prejudicar a sua carreira do que em ter aborrecido Savard em termos pessoais. Era triste mas verdadeiro. Quando não andava entretida a meter o pé na argola, punha a sua carreira à frente de tudo. Comportamento habitual, em ambos os casos. A ambição profissional fazia parte da mentalidade de sobrevivente que a fizera manter a cabeça à tona da água a vida toda. A outra era uma malfadada tendência que mais de uma vez lhe tolhera os passos.
Não se preocupe, sargento declarou Savard. Não me ressinto por tão pouco.
Passado um instante de constrangimento, Liska perguntou:
Acha que o Andy Fallen se matou?
Savard franziu a testa delicadamente.
Tem alguma outra ideia? Segundo me disseram, enforcou-se.
Foi encontrado pendurado numa corda, de facto.
Santo Deus, não acha que ele...
A tenente calou-se antes de conseguir proferir a palavra. Assassinado. Tinha uma detective da Brigada de Homicídios sentada à sua frente.
Pode ter sido um acidente continuou Liska. Não podemos pôr a asfixia auto-erótica de lado. Neste momento, não sabemos o que pode ter acontecido.
Um acidente repetiu Savard, baixando as pestanas. Isso também seria terrível, mas é sem dúvida melhor do que as alternativas. Seja como for, o enforcamento não é uma maneira fácil de morrer.
Pousou a mão na base do pescoço por breves instantes e depois retirou-a.
Cá por mim, qualquer maneira de morrer nada tem de divertido observou Liska. A forca, ao menos, é rápida. Não se leva muito tempo a perder os sentidos. Uns dois minutos.
A ideia do que esses dois minutos seriam ocorreu-lhes ao mesmo tempo. Liska engoliu em seco.
Em que andava ele a trabalhar? Esse tal caso de que falaram no domingo à tarde. Do que se tratava?
Não estou autorizada a dizer.
Estou a investigar uma morte, tenente. E se o Andy Fallen não se matou? E se ele morreu em consequência de um dos seus casos?
Aguardou que Savard cedesse, não vendo nenhum indício de que tal fosse acontecer tão depressa.
Sargento Liska, o Andy andava deprimido salientou Savard calmamente. Foi encontrado enforcado. Tanto quanto sei, a sua casa não mostrava sinais de vandalização, não é verdade? As pessoas não dizem que suspeitam de um suicídio se a porta foi deitada abaixo com um pontapé e a aparelhagem de som desapareceu... Eu não vejo nenhum crime, sargento prosseguiu a tenente. Vejo, sim, uma tragédia.
O que foi não interessa contrapôs Liska. A minha função é descobrir os pormenores. Estou apenas a tentar fazer o meu trabalho, tenente. Gostaria de ver os ficheiros dos casos que o Andy tinha entre mãos, assim como os seus apontamentos.
Está fora de questão. Aguardaremos até que os médicos legistas se pronunciem.
Estamos no Natal salientou Liska. Os suicídios são aos montes. Poderão levar dias até chegar ao Fallen.
Savard não vacilou.
As nossas investigações são algo muito sério, sargento. Não quero que certos pormenores sejam abordados, a não ser que se torne absolutamente necessário. A carreira de alguém poderá ser prejudicada.
Pensei que esse era o vosso objectivo observou Liska, pondo-se de pé.
Fechou o seu bloco de apontamentos, enfiou-o no bolso do casaco e fez uma pequena careta.
Merda. Lá pisei outra vez o risco. Desculpe proferiu sem o menor remorso. Bem, quando estiver a queixar-se ao meu superior sobre a minha impertinência, não se esqueça de lhe comunicar o facto de não querer colaborar com uma investigação de homicídio, tenente Savard. Talvez ele seja mais bem-sucedido a convencê-la do que eu.
Esboçou uma saudação trocista e saiu. A recepcionista nem para ela olhou. A porta do gabinete do homem de fato e gravata continuava fechada. Liska podia ouvir o tom de uma discussão, mas não o conteúdo. O que porventura trouxera ali o homem da parca de néon tinha a ver com Andy Fallen. O caso estava a ser passado a outro.
Saiu para o corredor e olhou para os dois lados. Deserto, pelo menos naquele momento. O edifício transmitia muitas vezes essa impressão, embora estivesse a abarrotar de polícias, criminosos, funcionários públicos e cidadãos. Foi até junto do bebedouro que se encontrava em frente à Sala 126, ao fundo do corredor, e aguardou.
Passaram-se pelo menos três minutos antes de a porta se abrir e o indivíduo da parca verde sair. O tom de vermelho que trazia no rosto combinava pessimamente com a cor da parca. O homem acercou-se do bebedouro, molhou os dedos na água e premiu-os delicadamente contra as faces. Respirou fundo por entre os lábios franzidos, nitidamente a fazer um esforço para se acalmar.
Por vezes... este local é frustrante comentou Liska. O homem virou abruptamente a cabeça na sua direcção. Os seus olhos verdes eram brilhantes, claros, translúcidos e desconfiados.
Eu também não obtive o que queria ali dentro confidenciou Liska, acercando-se um pouco. Não faça cerimónias e odeie-os à vontade. Não há quem não deteste este departamento. É o que eu sinto, e olhe que trabalho aqui.
Mais uma razão para isso, não é? observou o homem. Pelo que vi, isto é realmente detestável.
Liska olhou-o de olhos franzidos.
Você é polícia? Dos narcóticos, não? Caso contrário, conhecê-lo-ia.
Ele era tão polícia como o rapaz que lhe levava o jornal, mas o facto de ter feito a pergunta abonou a seu favor. De perto, ficou admirada ao descobrir que ele era praticamente da sua altura... e uns bons quatro centímetros vinham-lhe das solas de um par de sapatos francamente extravagantes. Petite era a palavra que melhor o descrevia. Usava base, brilho nos lábios e tinha cinco argolas numa das orelhas.
Apenas um cidadão preocupado respondeu o homem, olhando de um lado para o outro do corredor.
E o que é que o preocupa?
A injustiça.
Veio ao lugar certo. Teoricamente. Liska tirou um cartão do bolso do blusão e entregou-lho. Talvez esteja apenas a falar com as pessoas erradas.
O homem pegou no cartão. A manicura dele era melhor que a sua. Olhou-o como se tentasse memorizá-lo.
Talvez disse o homem, enfiando o cartão no bolso e afastando-se.
Neil Fallen afastara-se não só do pai como também da cidade. Kovac dirigiu o carro para oeste, enveredando pela 394, uma via rápida de várias faixas que depois ficava reduzida a quatro, a seguir a duas, passando ainda a duas sem bermas de segurança antes de se transformar numa estrada estreita e serpenteante que acompanhava o contorno das margens irregulares do lago Minnetonka. À beira das outras estradas secundárias asfaltadas que se estendiam à volta do lago erguiam-se velhas mansões em tempos construídas por barões e industriais das serrações de madeira, assim como novos casarões, erguidos recentemente por atletas e estrelas de rock. Aqui, porém, as faixas de terreno disponível eram demasiado limitadas para servir qualquer propósito de ostentação. Havia cabanas empoleiradas nas margens, agachadas à sombra de pinheiros altíssimos. Algumas eram casas de Verão, outras, barracões de pesca que deviam ter tido imenso movimento há uma ou duas décadas atrás, outras, ainda, eram modestas habitações permanentes.
O irmão de Andy Fallen era dono de uma colecção variada de cabanas aglomeradas numa ponta de terra que se estendia entre o lago e uma encruzilhada. O Bar e Loja de Isco Fallen acocorava-se à beira da estrada, um edifício não muito maior do que uma garagem com capacidade para três carros, construído com tábuas finas de madeira pintadas de verde e janelas demasiado pequenas que lhe davam um ar mesquinho. Os vidros brilhavam sob os anúncios de néon que publicitavam as cervejas Miller e Coors, assim como isco vivo.
A ideia de um almoço tardio mirrou e morreu na barriga vazia de Kovac.
Enfiou a campana, um velho Chevy Caprice, no parque de estacionamento diminuto e coberto de gelo, desligou o motor e ouviu-o matraquear antes de parar. Há mais de um ano que andava com aquele carro de serviço. Na altura nenhum mecânico fora capaz de lhe tirar os soluços e fazer com que o aquecimento fornecesse um pouco mais de calor. Requisitara um outro veículo, mas a papelada fora parar a um buraco negro burocrático onde ninguém lhe atendia os telefonemas. As suas façanhas como condutor deviam ter algo a ver com o facto; no entanto, preferia pensar que o queriam lixar. Assim, ficava com uma desculpa para se mostrar chateado.
Grande parte do espaço do bar era dominado por uma mesa de bilhar. Nas paredes, forradas com velhas tábuas de celeiro, estavam penduradas dúzias de fotografias de pessoas presumivelmente clientes exibindo peixes acabados de pescar. Na televisão, colocada num suporte de parede alto, passava uma telenovela. No lado de dentro do balcão em forma de ferradura encontrava-se uma mulher cheia de saliências e reentrâncias, de cabelo fino e cigarro pendurado ao canto da boca, a limpar uma caneca de cerveja com um trapo sebento. Nota mental de Kovac: beber pela garrafa. A um canto do balcão, via-se um velho habitante do lago, com metade dos dentes, sentado num banco alto, com um boné vermelho imundo enfiado de esguelha na cabeça.
A Hope nunca faria semelhante coisa à Bo, zombou a mulher. Ele é o amor do raio da vida dela.
Era, corrigiu o velho. Então, tu não andas atenta, Maureen? O Stephano meteu-lhe um microchip no cérebro que a torna má como o demónio. Agora chamam-lhe "Bruxa" Gina.
Isso são tretas declarou Maureen, quase com um centímetro de cinza incandescente na ponta do cigarro.
Kovac aclarou a garganta.
O Neil Fallen?
A mulher mirou-o dos pés à cabeça.
O que é que anda a vender?
Más notícias.
Está nas traseiras. Ricos amigos.
Ela fez-lhe sinal em direcção à porta da cozinha.
A divisão estava atafulhada como uma loja de artigos de Carnaval e tresandava a gordura rançosa e a trapos com restos de comida azeda. Ou talvez aquele fedor viesse de peixes do rio mortos. Kovac manteve as mãos enfiadas nos bolsos do sobretudo e este bem aconchegado contra si. Tentou não imaginar onde Neil guardava o isco vivo.
Fallen estava à entrada de um barracão que servia de armazém. Fazia lembrar o velho Mike vinte e tal anos antes: tinha a constituição de um touro, com um rosto carnudo e avermelhado, e os cantos da boca ligeiramente descaídos. Viu Kovac atravessar o pátio, puxou a máscara de soldador para a cara e retomou o seu trabalho no patim de uma mota de neve. As faúlhas saltavam, como um minúsculo fogo-de-artífício brilhando contra o fundo escuro do barracão.
Neil Fallen? perguntou Kovac, tentando fazer-se ouvir acima do barulho. Tirou a sua identificação do bolso e mostrou-a, mantendo-se afastado do alcance das faúlhas. Kovac. Polícia de Minneapolis.
Fallen recuou, desligou o maçarico e levantou a máscara protectora. Estava impassível.
Ele morreu.
Kovac deteve-se a cerca de um metro da mota de neve.
Já lhe telefonaram?
Não. Sei apenas que mandam sempre um polícia dar a notícia. Vocês foram mais família para ele do que eu. Tirou o lenço vermelho do bolso do fato-macaco e limpou o suor que lhe escorria do rosto, apesar de a temperatura da tarde se encontrar abaixo dos vinte graus. Então, o que foi? O coração? Ou embebedou-se e caiu da maldita cadeira?
Não estou aqui por causa do seu pai elucidou Kovac.
Neil olhou para ele como se o detective tivesse começado a falar grego.
Estou aqui por causa do Andy. Morreu. Lamento.
O Andy...
O seu irmão.
Por amor de Deus, eu sei que é meu irmão ripostou Fallen com maus modos.
Pousou o maçarico em cima de uma bancada de trabalho com mãos trémulas, tirando depois desajeitadamente as luvas grossas e sujas de soldador. Arrancou a máscara da cara com um safanão e atirou-a para longe, como se ela o queimasse. Foi parar ao meio de um monte de latas de gasolina vazias.
Morreu? balbuciou, ofegante. Morreu, como? Como pode ter morrido? Não pode ser.
Parece que foi suicídio. Ou acidente.
Suicídio? repetiu Fallen. Merda. Respirando mais a custo, foi até junto de um armário de metal enferrujado situado ao lado da bancada de trabalho e tirou de dentro dele uma garrafa meio vazia de Old Crow, de onde bebeu dois bons tragos. Depois, pousou a garrafa e dobrou-se para a frente com as mãos em cima dos joelhos, murmurando uma longa fiada de imprecações. O Andy! Cuspiu no chão. Suicídio. Cuspiu de novo. Jesus. Deu dois passos para fora do barracão e vomitou sobre a neve.
Cada pessoa reage de maneira diferente.
Kovac remexeu dentro dos bolsos do sobretudo, mas a única coisa que encontrou foi um bocado de pastilha de nicotina. Merda.
Meu Deus murmurou Fallen. Voltou para trás e foi sentar-se num tronco de árvore que servia de banco. Colocou a garrafa de Old Crow entre os pés. O Andy...
Eram chegados? perguntou Kovac, encostando-se à bancada.
Fallen sacudiu a cabeça e passou os dedos pelos cabelos espessos cor de ferrugem.
Acho que em tempos fomos. Ou talvez nunca. Quando éramos miúdos, ele tinha-me muito respeito por eu ser mais velho, mais teso. Por fazer frente ao velho. Mas ele foi sempre o preferido do "Iron" Mike. Odiei-o muitas vezes por isso.
Deixou escapar um som que significava que há muito ultrapassara aquele sentimento, embora Kovac notasse que ainda se lhe notava uma certa amargura na voz. A sua experiência dizia-lhe que os ressentimentos familiares são quase sempre postos completamente de parte, se é que chegam mesmo a surgir. As pessoas preferem passar-lhes um pano por cima, como se fossem uma peça de mobília velha e feia.
Ele parecia o protótipo do jovem americano, lá isso parecia recordou Neil, remexendo na ferida antiga. O grande atleta. O bom estudante. Seguiu as pisadas do pai.
Fallen baixou os olhos para o chão, a boca reduzida a um traço fino e duro.
Ele era tudo o que o velho desejava num filho acrescentou. Pelo menos, o Mike assim pensava. Eu não era nada disso.
Meteu a mão dentro do fato-macaco e tirou um cigarro e um isqueiro do bolso. Ao exalar a primeira grande baforada de fumo, murmurou:
Que se lixem.
Depois deixou excapar uma gargalhada desprovida de humor e tomou mais um gole de Old Crow.
Viam-se muito? perguntou Kovac.
Fallen abanou a cabeça, embora Kovac ficasse sem saber se era uma resposta positiva ou negativa ou se tentava assim refazer-se da notícia.
Ele aparecia aí, de vez em quando. Gostava de pescar. Guardava o seu equipamento aqui, e também o barco, no Inverno. Acho que era assim uma espécie de obrigação de parente. Como se achasse que tinha o dever de colaborar no meu negócio. O Andy possuía um grande sentido de dever.
Quando é que falou com ele pela última vez?
Passou por cá no domingo, mas não falei com ele. Tinha que fazer. Estava cá um tipo a comprar uma mota de neve.
Quando é que tiveram a última conversa séria?
Séria? Há mais ou menos um mês, acho.
Sobre o quê?
Fallen esboçou uma expressão de enfado.
Queria dizer-me que tencionava assumir a verdade. O facto de ser maricas. Como se eu precisasse de ouvir aquilo.
Não sabia que ele era homossexual?
Claro que sabia. Há anos. Desde o liceu. Percebi logo. Não precisou de mo dizer. Tomou mais um gole de bebida e puxou mais uma fumaça do cigarro. Uma vez, eu disse-o ao velho. Há muito tempo. Só porque estava lixado. Farto daquilo. Cansado de ouvir "Porque não te pareces mais com o teu irmão?"
Riu-se então muito alto, como se tivesse dito uma piada hilariante.
Ena, pá. Por pouco não me partiu o queixo, tal a força com que me bateu. Nunca o vi tão furioso. Se em vez disso lhe tivesse dito que a Virgem Maria era uma puta, não teria ficado naquele estado. Eu ousara manchar o nome do filhinho de ouro. Se ele não estivesse preso àquela cadeira, ter-me-ia posto o cu negro de tanto pontapé.
Como é que o Andy lhe pareceu quando lhe contou?
Fallen reflectiu na pergunta por instantes.
Tenso respondeu, por fim.
Acho que deve ter sido um trauma para ele. Tinha contado ao Mike. A cena não deve ter sido nada bonita. Quem não gostaria de assistir era eu. Até me admira que o velho não tenha tido um ataque.
Aspirou o fumo do cigarro, atirou a beata para o chão e esmagou-a com a ponta da sua bota de trabalho.
Apesar de tudo, foi esquisito, sabe? Senti pena do Andy. Eu já desiludira o velho vezes sem conta. Ele não.
Voltou a vê-lo depois disso?
Umas duas vezes. Veio cá pescar. Cedi-lhe uma das minhas barracas. Numa outra ocasião, tomámos uns copos. Penso que ele queria que voltássemos a dar-nos como irmãos, mas, merda, que tínhamos nós em comum a não ser o velho? Nada. Como é que o Mike encarou a questão? perguntou Fallen em voz baixa, olhando para o chão. Refiro-me à morte do Andy. Expeliu uma baforada de fumo pelas narinas dilatadas. Foi ele que o mandou cá? Não foi capaz de me telefonar para mo dizer pessoalmente. Jamais conseguiria admitir que o filho perfeito, afinal de contas, não era assim tão perfeito. É mesmo do Mike. Se não leva a dele avante, é um cretino.
Agarrou na garrafa de Old Crow, levantou-se e dirigiu-se para a porta.
Que se lixem.
Kovac seguiu-o, encolhido dentro do seu sobretudo. Estava a arrefecer, um tipo de frio que trespassava até aos ossos. A cabeça doía-lhe e sentia o nariz a latejar.
Fallen deu a volta à esquina do armazém e parou, ficando a olhar para as pequenas cabanas de pesca em mau estado que alugava no Verão. Estas encontravam-se à beira das margens do Minnetonka, mas naquela altura do ano não havia propriamente margens. A neve espalhava-se pela terra e pelo gelo do lago, tornando uma zona quase indistinta da outra. A paisagem era um mar de branco que se estendia a perder de vista no horizonte cor de laranja.
Como é que ele o fez?
Enforcou-se.
Hum.
Apenas isso: Hum. Depois deixou-se ficar no mesmo sítio mais algum tempo, enquanto o vento soprava uma fina camada de névoa de um lado do lago para o outro. Talvez ele não tivesse conhecido o irmão tão bem como Steve Pierce. Ou quem sabe houvera alturas em que desejara ver o irmão morto e por isso já não tivesse tanta dificuldade em aceitar o seu desaparecimento, fosse por que meio fosse.
Quando éramos putos, brincávamos aos cowboys contou. Eu era sempre o tipo que se lixava. Fazia sempre de mau da fita. O Andy era sempre o xerife. É curioso ver as voltas que a vida dá.
Mantiveram-se calados durante mais uns momentos. Kovac imaginava Fallen a rever todas aquelas velhas recordações. Dois rapazinhos, com a vida toda pela frente, dois chapéus de cowboy baratuchos, a cavalo em vassouras. Futuros brilhantes conspurcados pelas invejas, tensões e desilusões do crescimento.
As imagens de infância diluíam-se na recordação de Andy Fallen pendurado, nu, numa corda.
Importa-se que eu beba um gole disso? perguntou Kovac, indicando a garrafa com a cabeça.
Fallen passou-lha.
Não está de serviço?
Estou sempre de serviço. Não sei fazer mais nada admitiu Kovac. Mas não digo nada aos meus chefes, e você também não.
Fallen virou-se de novo para o lago. Ei, eles que se lixem.
O vizinho encontrava-se no jardim em frente de casa a recolher lâmpadas de natal fundidas quando Kovac estacionou o carro. Kovac parou a meio do seu carreiro e ficou a vê-lo desatarraxar uma lâmpada do halo da Virgem Maria e enfiá-la num saco de lixo.
Metade delas podia apagar-se que mesmo assim eu continuava a ter a impressão de viver ao lado do Sol observou Kovac.
O vizinho olhou para ele com um misto de ofensa e apreensão, apertando o saco de lixo contra o peito. Era um homenzinho com cerca de setenta anos, tinha um aspecto muito envelhecido e uns olhinhos de expressão malévola. Usava um boné de bombardeiro vermelho, com as abas laterais caídas de lado como se fossem as orelhas de um cão.
Onde está o seu espírito natalício? perguntou.
Perdi-o na quarta noite que passei sem pregar olho por causa da porcaria das suas luzes. Não pode pôr essa merda a acender e a apagar a horas certas?
Vê-se mesmo que não percebe nada disto retorquiu o vizinho, com desprezo.
O que eu sei é que você não regula bem da cabeça.
Quer que eu provoque uma oscilação de corrente? É o que aconteceria se passasse a vida a ligar e a desligar estas luzes. Uma oscilação de corrente. Capaz de pôr o bairro inteiro às escuras.
Era uma sorte retorquiu Kovac, entrando em casa. Ligou a televisão para ter alguma companhia, aqueceu um resto de lasanha e sentou-se no sofá a depenicar o jantar. Perguntou a si mesmo se naquela noite Mike Fallen não estaria também em frente do seu televisor de ecrã gigante, a tentar comer, a tentar disfarçar temporariamente a sua dor nos gestos rotineiros.
No decurso da sua carreira, Kovac vira muita gente atravessar a ténue linha entre a normalidade e a realidade surreal que era ver a vida virada de pernas para o ar por um crime violento. Em regra, nunca pensava muito no assunto. Não era nenhum assistente social. A sua função era resolver o crime e continuar em frente. Naquela noite, porém, reflectiu no assunto, porque Mike era polícia. E talvez por mais algumas razões.
Abandonando a lasanha e a televisão, foi até à sua secretária e remexeu dentro de uma gaveta, de onde tirou uma agenda que já não via a luz do dia há meia década. Procurou o primeiro nome da ex-mulher. Marcou o número e aguardou, mas desligou assim que ouviu o atendedor de chamadas. Era uma voz masculina. O segundo marido.
Fosse como fosse, o que é que tinha para dizer? Esta manhã encontrei um cadáver que me fez lembrar de que tenho um filho.
Não. Lembrara-lhe que não tinha nenhum.
Deambulou de volta à sala-de-estar com o aquário vazio e um apresentador de notícias no televisor. Sentia-se demasiado parecido com o velho "Iron" Mike sentado no seu sofá articulado em frente de um ecrã gigante, só no mundo, apenas com as suas recordações amargas e esperanças logradas. E um filho morto.
Kovac considerava quase sempre que era mais feliz não tendo uma vida a sério. O trabalho proporcionava-lhe segurança. Sabia o que esperar. Sabia quem era. Sabia onde se encaixava. Sabia o que fazer. Sem a polícia, não sabia nada disso.
Havia destinos piores do que a carreira de um polícia. De uma maneira geral, ele gostava do trabalho que fazia, exceptuando a politiquice que lhe estava inerente. Era bom a executá-lo. Sem espalhafato nem ostentação. Sem o estilo extravagante de Ace Wyatt, sempre a aparecer nas parangonas dos jornais e sempre pronto a espetar o queixo de granito na presença de uma máquina fotográfica ou de filmar. Bom, porém, no que importava verdadeiramente. Deixa-te ficar no que fazes melhor murmurou. Depois, virou as costas ao jantar, agarrou no casaco e saiu. O duplex onde Steve Pierce morava ficava numa rua insípida, demasiado perto da auto-estrada de Lowry Hill, O bairro estava cheio de yuppies e indivíduos ligados às artes, com dinheiro suficiente para restaurar as velhas moradias. Aquela zona, porém, fora cortada em pequenos ângulos bizarros quando as principais artérias de tráfego de Hennepin e de Lyndale haviam sido alargadas, vários anos antes, e continuava fragmentada, não só física como psicologicamente.
Os vizinhos de Steve não tinham ornamentações natalícias extravagantes a esgotar as reservas da Estação Eléctrica dos Estados do Norte. Tudo era de bom gosto e sem ostentação. Uma coroa aqui. Um festão ali. Por muito que Kovac detestasse o seu bairro, achava aquele ainda menos a seu gosto. A rua transmitia a sensação de um lugar onde os habitantes não tinham a menor ligação entre si, nem mesmo a animosidade.
Naquela noite, sentia-se perfeitamente enquadrado ali.
Deixou-se ficar dentro do carro, estacionado na rua onde Pierce morava, à espera, a reflectir. A reflectir que se calhar Andy Fallen não deixava a porta destrancada. A reflectir que Steve Pierce parecia saber muito e, ainda assim, nada sobre o seu velho amigo. A reflectir que aquela história não se ficava pelo que parecia e Steve Pierce revelava tudo o que sabia.
As pessoas passavam a vida a mentir à polícia. Não apenas os maus e os culpados. A mentira não é discriminatória. As pessoas inocentes mentem. As mães de crianças pequenas mentem. As avós de cabelos brancos mentem. Todos mentem à polícia. Dá a impressão de que se trata de algo imbuído no código genético humano.
Steve Pierce mentia. Kovac não tinha a menor dúvida sobre isso. Precisava apenas de estreitar o campo de possíveis mentiras e decidir se alguma delas era importante para o esclarecimento da morte de Andy Fallen.
Tirou um maço de Salem de debaixo do banco do passageiro, levou-o até ao nariz, cheirou-o profundamente, depois voltou a pôr os cigarros no mesmo sítio e saiu do carro.
Pierce veio abrir a porta em fato-de-treino, o odor a bom uísque a pairar em torno dele como água-de-colónia e um cigarro pendurado ao canto da boca. Nas horas que se tinham seguido à sua descoberta do cadáver de Andy, a sua aparência física degradara-se ao ponto de parecer um homem que se debatia com uma doença terminal há muito tempo. Esquelético, pálido, olhos raiados de sangue. Ergueu um dos cantos da boca num esgar trocista, enquanto puxava uma fumaça do cigarro e expirava.
Oh, vejam-me só. Então não é que estou perante o famoso Espírito do Natal Presente? Desta vez trouxe o seu cassetete de borracha? É que, sabe, acho que ainda não fui suficientemente maltratado. Encontro o meu melhor amigo morto, sou atacado pelo Hulk Hogan em uniforme de polícia e um detective idiota atormenta-me. A lista ainda não é suficientemente extensa. Um pouco de tortura vinha mesmo a calhar. Abriu muito os olhos e a boca, fingindo-se chocado. Merda! Lá se foi o meu segredo! Assim já fica a saber das minhas inclinações sado-masoquistas!
Olhe disse Kovac. Este dia também não tem sido dos meus preferidos. Tive de ir informar um homem que prezo muito de que o filho provavelmente se matou.
Será que ele o ouviu sequer? perguntou Pierce.
O quê?
O Mike Fallen. Será que ele lhe deu ouvidos quando lhe falou do Andy?
Kovac franziu o sobrolho.
Não teve outro remédio.
Pierce fixou o olhar na rua escura, atrás de Kovac, como se parte de si ainda se apegasse à ténue ilusão de que Andy Fallen se materializaria, vindo do meio da sombra, subindo o passeio. O peso da realidade derrotou-o. Atirou a ponta de cigarro para o chão.
Preciso de uma bebida disse, virando-se e afastando-se da porta aberta.
Kovac foi atrás dele, abrangendo o local com o olhar. Cores fortes e mobília de carvalho num qualquer estilo revivalista, de que ele não saberia o nome. Não percebia nada de decoração; porém, sabia reconhecer qualidade e preços altos. As paredes do vestíbulo eram uma miscelânea de fotografias artísticas sobre fundo branco requintadamente emolduradas a preto.
Entraram numa pequena sala com paredes azul-escuras e poltronas de couro, da cor de uma luva de basebol. Pierce foi até um pequeno bar de canto muito bem fornecido e deitou nova dose de Macallan no seu copo. Cinquenta dólares a garrafa. Kovac sabia-o porque lhe tinham pedido que contribuísse com algum para que o departamento pudesse oferecer uma garrafa daquela marca ao último tenente que lá estivera, quando este se fora embora. Ele, pessoalmente, nunca dera mais de vinte dólares por uma garrafa de bebida na sua vida.
O irmão do Andy contou-me que ele passou por lá há cerca de um mês para lhe dizer que queria pôr tudo em pratos limpos informou Kovac, encostando-se de lado ao bar. Pierce franziu a testa ao ouvir aquela frase e entreteve-se a limpar uma condensação imaginária no tampo do balcão em pedra-sabão. Imagino que o velho não tenha gostado nada disso, pois não?
De que valia contar-lhe? A voz de Pierce estava tensa da raiva que tentava disfarçar. Claro, papá, continuo a ser o mesmo filho que te deu tanto orgulho em todos aqueles jogos de futebol proferiu com profundo sarcasmo, sem se dirigir a ninguém em especial. Simplesmente, gosto de levar no cu, nada mais. Emborcou o uísque como se fosse sumo de maçã. Meu Deus, o que esperava ele? Não devia ter tocado no assunto. Era deixar que o velho visse o que queria ver. Afinal de contas é o que todas as pessoas querem.
Há quanto tempo sabia que o Andy era gay?
Não sei. Não marquei no calendário.
Um mês? um ano! Dez anos?
Há algum tempo respondeu, impaciente. Que diferença faz?
Ele ainda não se assumira só perante a família? Todas as outras pessoas com quem convivia sabiam? Os amigos, os colegas?
Ele não era nenhum travesti ou algo do género retorquiu Pierce com secura. Ninguém tinha nada a ver com isso a não ser que o Andy assim quisesse. Estivemos no mesmo quarto na faculdade. Foi nessa altura que me contou. Eu não me importei. Não interessava. Sempre sobravam mais garotas para mim, não é? Concorrência graúda fora da área de engate.
Por que diabo lhes terá dito agora? perguntou Kovac. Ao pai, ao irmão? Que foi que o levou a isso? As pessoas simplesmente não tomam uma decisão dessas de uma hora para a outra. Algo as impele. Valerá a pena prosseguir esta conversa? É que, se não vale, prefiro ficar aqui sozinho a beber até cair para o lado. Você não me parece pessoa para ficar aqui sentado, Steve observou Kovac. Desencostou-se do bar e apoiou-se a um dos avantajados sofás em pele. Também cheiravam a luva de basebol. O que devia ter custado um preço extra. Pierce mantinha-se hirto perante o olhar perscrutador de Kovac. As pessoas chegavam mesmo a mentir com a sua linguagem corporal... ou tentavam. Isso raramente era tão bem-sucedido como a variante verbal. O seu amigo deu um grande passo ao assumir-se afirmou Kovac. E aterrou de queixo, pelo menos com o pai. É um tipo de rejeição capaz de abalar uma pessoa. Uma pessoa como o Andy, chegada ao pai, desejosa de lhe agradar... Não. Escreveu um pedido de desculpas no espelho. Porque o faria se estava apenas a divertir-se, a aliviar-se? Não sei. Só sei que ele jamais se mataria, nada mais. Ou, quem sabe, talvez não tenha sido o Andy a escrever aquilo sugeriu Kovac. Talvez tenha recebido a visita de um namorado. Se calhar puseram-se com brincadeiras, a coisa deu para o torto... O namorado assustou-se... Por acaso sabe o nome de algum dos seus companheiros?
Não.
Nenhum? Apesar de serem tão amigos? Parece estranho.
A sua vida sexual não me interessava. Não tinha nada a ver comigo. Tomou mais um gole de uísque e ficou a olhar fixamente para uma tomada eléctrica na parede oposta da sala.
Esta manhã disse-me que ele não andava com ninguém. Nessa altura fiquei com a impressão de que se interessava.
O que me traz à lembrança comentou Pierce que já tivemos esta conversa, detective. Não quero repetir a experiência.
Kovac abriu as mãos.
Ei, Steve, você parece-me um homem ansioso por desabafar qualquer coisa. Sabe que tem aqui uns ouvidos à disposição, não sabe?
O que eu sei é que não tenho nada de interesse para lhe dizer.
Kovac alisou o bigode com a mão, continuando pelo queixo abaixo.
Tem a certeza?
Ouviu-se um barulho de chaves na porta, o que deu a Pierce a oportunidade para se esquivar. Kovac seguiu-o até ao vestíbulo. Uma loura de cair para o lado acabara de entrar e descalçava as botas baixas ao mesmo tempo que pousava os sacos de compras em cima da mesinha.
Frango com alho e bife tártaro. O estômago de Kovac rumorejou e ele lembrou-se da lasanha que ficara em cima da mesa da sala com uma ternura que ela não merecia.
Já te disse que não me apetece comer, Joss.
Precisas de meter algo no estômago, queridinho ciciou a loura com meiguice, despindo o casaco. Tinha umas feições perfeitas, os olhos inacreditavelmente grandes. O cabelo, que lhe chegava aos ombros, parecia feito de fios de seda dourado-clara. Esperava que o aroma te abrisse o apetite.
Pendurou o casaco num bengaleiro de carvalho que parecia ter uma centena de anos e valer uma pequena fortuna. Ao virar-se, reparou em Kovac pela primeira vez e empertigou-se. Pareceu ficar tão desagradavelmente surpreendida como uma rainha que depara com um camponês que entre nos seus aposentos sem ser convidado. Majestosa no porte e no desdém. Apesar de descalça, era da altura de Pierce e tinha um ar atlético. Vestia com a despreocupação conservadora de alguém que nasceu em berço de ouro: tecidos caros, estilo tradicional; calças compridas de lã creme e um blazer azul-marinho, uma camisola de gola alta cor de marfim que Parecia espantosamente macia.
Kovac mostrou-lhe a identificação.
Kovac. Homicídios. Estou aqui por causa do Andy Fallen. Lamento incomodar, minha senhora.
Homicídios? exclamou a jovem com uma surpresa prudente, abrindo mais os olhos. Eram castanhos, como os do Bambi. Mas o Andy não foi assassinado.
Temos de ter tanta certeza disso quanto a senhora...
Jocelyn Daring, apresentou-se ela, embora não estendesse a mão. Sou a noiva do Steve.
E a filha do patrão aventurou-se Kovac, lembrando-se de onde Pierce lhe dissera que trabalhava.
Está a passar das marcas, Kovac advertiu Pierce.
Desculpem... mas vão-se habituando. Estou sempre a passar das marcas. Acho que não fui educado como devia ser.
O olhar que Jocelyn lhe lançou teria arrasado qualquer um, mas Kovac não se ralou. Estava atarefado a pensar que, para este tipo de gente, Steve Pierce era um arrivista, o que implicava que, para o aceitarem, tinha de ser um tipo direitinho e sem esqueletos no armário. A noiva pousou a mão no braço de Steve Pierce num gesto que pareceu a Kovac simultaneamente possessivo e reconfortante. Não desviou o olhar de Kovac.
Existe alguma razão válida para a sua presença aqui, detective? O Steve sofreu um choque terrível hoje. Gostaríamos de ficar algum tempo sozinhos para podermos assimilar o desgosto. Além disso, ele não tem culpa de que o Andy se tenha suicidado.
Pierce nem sequer a fitou. Tinha o olhar fixo no corredor, para lá da porta aberta da sala... ou noutra dimensão. Não era difícil imaginar o que via. A questão estava em saber o que isso significava para si, e se o peso da emoção que o avassalava tinha alguma coisa a ver com culpa. E, se assim fosse, que tipo de culpa.
Vim apenas fazer umas perguntas, nada mais disse Kovac. Tentar clarificar quem era o Andy, quem eram os seus amigos, o que o poderá ter levado a galgar a beira do precipício... se é que o fez voluntariamente. Sabe como é, tentar descobrir se ele teve alguma desilusão recente, se pôs fim a alguma relação, contratempos pessoais de qualquer tipo.
Jocelyn Daring abriu a pequena bolsa preta que pousara em cima da mesinha, ao lado das compras, e tirou de dentro dela um cartão de visita profissional. Possuía uns dedos longos e elegantes e umas unhas que brilhavam como pérolas puras. O diamante quadrangular do anel que ostentava no dedo médio esquerdo poderia ter engasgado uma cabra.
Se tiver mais perguntas a fazer, que tal telefonar primeiro? sugeriu.
Kovac pegou no cartão e lançou-lhe um olhar rápido, erguendo uma sobrancelha.
Advogada?
O Steve contou-me das ameaças de que foi alvo hoje de manhã. Não permitirei que tal volte a acontecer. Compreende?
Pierce continuava a não olhar para ela. Kovac anuiu.
Claro. Sou um pouco lento, mas acho que começo a ver como as coisas são.
Passou por eles ao dirigir-se para a porta, depois deteve-se ao pousar a mão no puxador e olhou para trás. Jocelyn Daring colocara-se em frente de Steve Pierce, ficando de novo entre Kovac e o noivo, protegendo-o.
Conhecia o Andy Fallen, Miss Daring? perguntou Kovac.
Sim respondeu simplesmente. Sem lágrimas. Sem tensão ou desgosto.
Os meus sentimentos pela sua perda disse Kovac, saindo para o frio.
Pequena e vulgar, a casa de Liska erguia-se ao lado de meia dúzia de outras iguais, numa rua sem nome, próxima de Saint Paul. "Perto da Grande Avenida", era o que diziam as pessoas que ali viviam, pois a Grande Avenida era precisamente isso: grande. Ladeada de lindas mansões restauradas por antigos barões das madeiras. A mansão do governador ficava na Grande Avenida. Nem mesmo o facto de o mesmo ter sido um profissional de luta livre americana conseguia desprestigiar o bairro. Versão Saint Paul da Uptown, o coração da Grande Avenida era uma zona afamada de butiques e restaurantes requintados.
O bairro de Liska não diferia muito do de Andy Fallen: ficava suficientemente afastado do perímetro chique para ser acessível a um salário único. Teoricamente, o ex-marido de Liska dava a sua contribuição para o sustento dos filhos, o que era suposto aliviar os encargos financeiros da mãe. Mas havia uma considerável diferença entre o que o tribunal estipulara que "Speed" Archer lhe pagasse e o que ele realmente lhe dava.
Fora o que ela arranjara ao casar-se com um polícia da Brigada de Narcóticos. São tipos que vivem demasiado tempo perto de mais do precipício; a linha entre quem são no trabalho e quem são na vida civil torna-se, muitas vezes, tremendamente indistinta. Para Speed, essa linha já não existia. Ele já não sabia viver de outra maneira.
Olhando para o passado, Liska sabia que captara indícios dessa impetuosidade desde o princípio, quando ainda andavam ambos de uniforme. Admitia que isso fora, em parte, o que a atraíra nele. Isso, um sorriso deslumbrante e um belo traseiro. Mas se bem que a impetuosidade pudesse ser um traço desejável num amante, não o era num pai. O sorriso conseguira levá-la a perdoar-lhe várias vezes. O traseiro, pelo que se viera a provar, revelara-se uma característica perniciosa. Demasiadas mulheres queriam pôr-lhe as mãos em cima.
Remexeu nas polaróides tiradas a Andy Fallen e perguntou a si mesma se os amantes dele teriam sido da sua opinião. Fallen fora um homem extremamente bem-parecido antes do rigor mortis se instalar. Tivera o tipo de aspecto que fazia com que as mulheres lamentassem a concorrência do mesmo sexo.
Espalhou as fotografias sobre o tampo da mesa da sua sala de estar, com um exemplar do St. Paul Pioneer Press mesmo à mão para as tapar caso um dos filhos aparecesse ali, apesar de já ser tarde e tanto Kyle como RJ. se terem ido deitar uma hora antes. Já não era a primeira vez que um ou outro ia ter com ela de pijama e olhos ensonados, para se aninhar no seu colo enquanto ela tentava descontrair-se a ver televisão ou a ler um livro.
Parte de si desejava que isso acontecesse naquele momento, para poder esquecer as fotografias e tentar ser um ser humano normal durante algum tempo. Estava com uma grande dor de cabeça e os maxilares doíam-lhe de tanto rilhar os dentes. Naquele dia, para cúmulo, fora pressionada pelo tenente Leonard enquanto esperava que Kovac chegasse, o que não chegara a acontecer. Jamal Jackson andava a ameaçar processá-la por brutalidade. Não tinha com que prová-lo, mas isso não o impediria de contratar um advogado nojento qualquer da União Americana das Liberdades Civis e transformar-lhe a vida num inferno até o processo ser arquivado. Fossem as acusações comprovadas ou não, o caso ficaria registado na sua ficha. A seguir teria o Departamento dos Assuntos Internos à perna enquanto ela tentava fazer-lhes o mesmo.
Estupendo. Se o incidente tivesse acontecido uma semana atrás, talvez tivesse conhecido Andy Fallen antes de este se tornar cadáver.
Analisou as fotografias sem passar pelo choque ou a repulsa que uma pessoa vulgar sentiria. Há muito que ultrapassara essa reacção instintiva. Olhou-as como agente da polícia, procurando aquilo que poderiam dizer-lhe. De repente lembrou-se de que Andy Fallen também já tivera doze anos, tal como Kyle, o seu filho mais velho.
Sentiu um tremor de medo atravessá-la, transpondo insidiosamente as suas defesas, devido ao cansaço. O receio de não andar a dedicar tempo suficiente aos filhos estava sempre presente na sua mente, atormentando-a. Dava a impressão de que andavam sempre em movimento acelerado. Os rapazes não tinham mãos a medir com a escola, os escuteiros e o hóquei. Ela estava assoberbada com o trabalho, o esforço de manter a casa, pôr comida na mesa, assinar autorizações escolares para os filhos, aparecer nas reuniões de pais e professores e resolver mil outros assuntos inerentes às suas funções de mãe. Ficavam todos tão exaustos que, ao final do dia, poucas energias lhes restavam. Como é que ela poderia saber se algum deles andava a desviar-se do caminho certo?
Lera algures que as experiências com auto-asfixia erótica eram comuns entre os adolescentes do sexo masculino. Todos os anos um número razoável de mortes de rapazes rotuladas de suicídio escondiam, na verdade, acidentes de auto-erotismo. Kyle, aos doze anos, ainda continuava mais interessado no Nintendo do que em raparigas, mas a puberdade estava ao virar da esquina. Liska gostaria de ficar de guarda a essa esquina, para afastar quaisquer perigos com o seu bastão.
Tentou não pensar nisso, concentrando-se em Andy Fallen. Se aquela morte fora acidental, então qual a razão da palavra escrita no espelho? Se aquele tipo de prática sexual era habitual nele, teria Steve Pierce conhecimento dela? Era provável que não, se eram apenas amigos. Se fossem mais do que isso... Se Pierce mentia, fá-lo-ia para proteger a memória de Fallen ou a sua própria pessoa?
O Manual de Diagnóstico e Estatística de Perturbações Mentais, em quarta edição, encontrava-se em cima da mesa, aberto na página 529, e o cabeçalho dizia: "Masoquismo Sexual". O que as pessoas aprendiam a fazer para se satisfazer era espantoso. As fantasias iam desde a violação à sujeição física, ao espancamento, à utilização de excreções fisiológicas e ao uso de fraldas. A meio da página, encontrou o que procurava.
Uma forma especialmente perigosa de masoquismo sexual, chamada "hipoxifilia", implica a excitação sexual através da privação de oxigénio... As actividades que incluem a privação de oxigénio podem ser levadas a cabo a sós ou com um parceiro. Por vezes, ocorrem mortes acidentais derivadas do mau funcionamento do equipamento, de erros na colocação do nó ou laço, ou de outros erros... O masoquismo sexual é, normalmente, crónico, e a pessoa tende a repetir o mesmo acto masoquista.
A sós ou com um parceiro. A reacção inicial de Pierce à pergunta sobre os hábitos sexuais de Fallen fora de indignação; porém, a indignação podia servir para encobrir uma série de outras emoções: embaraço, medo, culpa. Steve Pierce afirmara ser heterossexual. Talvez estivesse a tentar ocultar o facto de não o ser, ou de andar a dar umas escapadelas no outro lado dessa linha. Ou quem sabe se dizia a verdade e Andy Fallen tinha outros parceiros? Quem podia saber?
Precisavam de aprofundar o conhecimento dos dados relativos à vida privada de Andy Fallen. Se ele tivesse tido sorte, haveria algo a descobrir. Quem quer que espiolhasse a vida privada de Liska nada teria encontrado. Ela já não se lembrava do último convite decente que tivera para sair. Nunca convivera com ninguém senão polícias, e estes davam namorados muito pouco recomendáveis. Por outro lado, os homens com profissões normais achavam-na um pouco intimidante de mais. A ideia de uma namorada capaz de manejar um bastão e empunhar uma pistola de nove milímetros era demasiado para um homem vulgar. Por isso, que havia uma rapariga de fazer? E ainda por cima, quando se era mãe de dois filhos?
Sentiu alguém na porta da frente uma fracção de segundo antes de ouvir o débil som da fechadura a ser aberta. Uma onda de adrenalina percorreu-lhe o corpo. Levantou-se do sofá com um salto, de olhos sempre postados na porta, e estendeu a mão para o telefone sem fios. Desejaria que este fosse, antes, a sua arma, porém esta ficava guardada num armário sempre que estava em casa, uma precaução necessária para a segurança dos rapazes e seus amigos. O bastão, no entanto, encontrava-se sempre ao alcance da mão. A sua mão direita fechou-se em torno da empunhadura almofadada e deu-lhe uma sacudidela experiente que o fez esticar-se em todo o seu comprimento.
Colocou-se atrás da porta, do lado das dobradiças, quando esta começou a abrir-se lentamente, tomando posição, de bastão em riste.
Um fantoche de Cartman, o boneco da série televisiva South Park, apareceu a espreitar pela porta com a sua cabeça anafada.
Ei, minha senhora, ia dar-me um tiro no cu? Liska foi percorrida por uma sensação de alívio e raiva
que a deixou toda arrepiada.
Raios partam, Speed, devia mesmo dar-te um tiro no cu! Um dia disparo através da porta e deixo-te a sangrar no degrau da frente. Era muito bem feito.
Isso são modos de falar com o pai dos teus filhos? perguntou Speed, acabando de entrar e fechando a porta.
Já não era a primeira vez que Liska preferia que ele não tivesse ficado com uma chave da casa. Não gostava de o ver a entrar e a sair da sua vida e da dos rapazes à sua vontade, mas também queria manter uma relação amistosa com ele, para bem de Kyle e R.J. Speed não passava de um cretino, mas era pai deles, e os filhos precisavam de um pai.
Os rapazes ainda estão acordados?
São onze e meia da noite, Speed. Não era de esperar que algum deles estivesse a pé. Eu vivo no mundo real, onde as pessoas têm de se levantar cedo de manhã.
Speed encolheu os ombros e tentou aparentar inocência. Outras mulheres teriam ficado rendidas, mas Liska estava demasiado habituada àquela expressão e à falta de sinceridade que lhe era inerente.
O que é que tu queres?
Speed esboçou o sorriso travesso de um pirata de romance. Devia ter andado a trabalhar num caso, reflectiu Liska. Tinha o cabelo louro cortado quase rente à militar e não se barbeava há dias. Vestia um camuflado sujo e surrado, com uma velha camisola preta por baixo. Apesar disso, ainda tinha um ar sexy como o diabo. Mas ela já há muito era imune àqueles encantos.
Podia dizer que te quero a ti experimentou ele, aproximando-se dela.
Pois retorquiu Liska, sem se deixar impressionar, e eu ainda era capaz de te pôr K.O. Dá-me uma razão.
O sorriso desvaneceu-se. Instantaneamente.
Será que não posso passar por cá para dar um brinquedo aos meus filhos? perguntou ele, tirando a marioneta da mão. Que raio se passa contigo, Nikki? Tens de ser sempre assim tão irascível?
Entras-me à socapa pela casa dentro às onze e meia da noite, pregas-me um susto do caraças e queres que fique satisfeita por te ver? Não te parece natural?
Eu não entrei à socapa. Tenho chave.
Pois é, tens chave. E também tens telefone, não? Não poderias utilizá-lo de vez em quando em vez de me entrares por aqui dentro como um tornado?
Speed não se deu ao trabalho de responder. Nunca o fazia quando as perguntas lhe desagradavam. Colocou o fantoche em cima da mesinha e pegou numa das fotografias de Andy Fallen.
É este o género de merda que deixas por aí à vista dos meus filhos?
Teus filhos... murmurou Liska, arrancando-lhe a fotografia da mão. Como se fizesses mais do que forneceres-lhes alguma ajuda material... e apenas pela metade. Porque será que eles nunca são os teus filhos quando adoecem, precisam de roupa nova ou se metem nalgum sarilho?
Serei mesmo obrigado a ouvir isto? insurgiu-se Speed, fazendo uma careta.
Tu é que vieste a minha casa. Ouves o que eu quiser dizer.
Pai!
Mal acabara de proferir a exclamação, já R. J. atravessava a sala. Atirou-se ao pai e rodeou-lhe as pernas com os braços. Liska pousou o bastão precipitadamente e puxou o jornal para cima deste e das polaróides, apesar de ninguém estar a prestar-lhes a menor atenção.
RJ., meu homenzinho! exclamou Speed, sorrindo e batendo com a palma da mão aberta na do filho e acocorando-se em seguida em frente dele.
A partir de agora quero que me tratem por Rocket declarou R.J., esfregando um dos olhos para espantar o sono. Tinha o cabelo louro espetado em tufos no cimo da cabeça. O seu pijama dos Minnesota Vikings, herdado de Kyle, ficava-lhe demasiado grande. Quero ter uma alcunha como tu, pai.
Rocket. Eu gosto declarou Speed. Acho mesmo fixe, homenzinho.
O fantoche foi descoberto e entretiveram-se os dois a brincar ao South Park durante cinco minutos. A paciência de Liska começou a esgotar-se.
RJ., olha que já é muito tarde lembrou, detestando o seu papel e odiando Speed por obrigá-la a fazer de má da fita, com a sua mera presença. Ele entrava e saía da vida dos rapazes quando muito bem entendia, todo animação, alegria e aventura. Ela, na sua qualidade de progenitora com a custódia dos filhos, achava que não lhes dava o suficiente nesse aspecto, cabendo-lhe a parte desagradável da disciplina e das obrigações enfadonhas. Amanhã é dia de escola.
O filho ergueu para ela os olhos azuis que eram uma réplica dos seus, fitando-a com desânimo.
Mas o papá acabou de chegar!
Então, zanga-te com o papá. Ele é que achou uma bela ideia aparecer a meio da noite, quando, em princípio, toda a gente deve estar a dormir.
Tu não estavas a dormir lembrou RJ.
Mas eu não tenho dez anos. Quando chegares aos trinta e dois, podes ficar a pé metade da noite a trabalhar.
Hei-de ser polícia à paisana e trabalhar nos narcóticos como o pai.
O que tu vais é meter-te debaixo dos lençóis daqui a dois minutos, menino.
Tenho de obedecer, Rocket. É melhor ficarmos por aqui.
Posso levar o Cartman comigo?
Claro.
Despenteou o cabelo ao filho, desviando de imediato a atenção para a sua ex-mulher.
Liska ainda se inclinou para dar um beijo na face de RJ., porém este já se afastara e seguia pelo corredor fora a falar com o fantoche com voz de desenho animado. Assim que ficou fora do alcance da vista e do som, Liska olhou para Speed com ar furioso.
És um estupor sibilou, esforçando-se por falar em voz baixa quando a sua vontade era desatar aos berros com ele. Não vieste aqui para ver o RJ...
Rocket.
... nem o Kyle. Deixaste-o completamente desestabilizado. Vai passar metade da noite acordado.
Lamento.
Lamentas uma ova. Isso contigo nunca acontece observou Liska com amargura. Porque vieste cá, Speed! Aposto que não foi para me pagares o dinheiro que me deves.
Speed respirou fundo.
Na semana que vem. Prometo disse, com um ar de contrição bem ensaiado. Neste momento estou a trabalhar num caso, mas na próxima semana...
Poupa-me. Que tal deixares-te de fitas e ires à tua vida? sugeriu Liska, tirando o jornal de cima das polaróides. Juntou as fotografias num monte. Tive um dia muito cansativo. Gostaria de me ir deitar, se não te importas.
Speed não proferiu palavra durante um minuto, depois apontou para a fotografia que estava ao de cima.
Alguém meu conhecido? perguntou calmamente. Ouvi dizer que um dos vossos se matou. É ele?
Parece que sim. Um tipo dos Assuntos Internos. Tu não o conhecias.
Ambos tinham começado por trabalhar em Saint Paul; Speed ficara, mas ela fora para Minneapolis, no outro lado do rio. Ele conhecia muitos agentes daquela área sobretudo detectives das brigadas de narcóticos e de homicídios mas não tinha razão nenhuma para saber quem era Andy Fallen. Ninguém fazia grande gosto em conhecer agentes dos Assuntos Internos.
Tirou a fotografia da mão de Liska e examinou-a atentamente.
Que raio de maneira de dar cabo do próprio canastro. Imagino que os tipos dos Assuntos Internos não saibam disparar uma arma. Será?
Sabe-se lá o que passa pela cabeça das pessoas observou Liska.
Houvera uma altura, no seu casamento, em que partilhavam pormenores relativos a casos e ajudavam-se um ao outro na resolução dos mesmos. Ela recordava esses tempos como os "momentos dourados", o breve período que antecedera a infidelidade e a rivalidade profissional que acabaram por destruir a sua relação.
Talvez não tenha sido opção dele adiantou Liska.
Jesus! Vocês, os dos homicídios! Atirou a fotografia de novo para cima da mesinha. Não vale a pena matar a cabeça, Nikki. Para quê atormentares-te a olhar para isso? O tipo acabou consigo mesmo. A morte pela forca ou é suicídio ou acidente, não assassínio. Dá o caso por encerrado e passa ao seguinte.
Quando os tipos da medicina legal me disserem para eu largar o caso, assim farei, não antes retorquiu ela. É o meu trabalho. Eu funciono assim.
Pois. Mas escusas de trazer isso para casa contigo.
Não me acuses de corromper os teus filhos observou Liska em tom azedo. Ouviste o que o RJ disse. Quer ir para os narcóticos. Não podia escolher pior.
Claro que podia. Podia ir para os Assuntos Internos. Olha como acabam.
Liska não olhou para a fotografia em que Speed pegara. Não precisava.
Muito bem. Basta de conversa simpática por esta noite. Foi... o costume. Sabes onde fica a porta.
Speed não se mexeu. Compôs a sua expressão de pessoa séria. Liska suspirou.
Sabes, vim mais para saber como vocês estavam confessou. Ouvi dizer que te encontravas com este caso entre mãos, Nikki. Imaginei que fosse difícil... por ele ser polícia e pertencer aos Assuntos Internos. Como aconteceu com o teu pai.
O meu pai não se matou objectou Liska demasiado depressa e na defensiva. O descuido fê-la sentir-se vulnerável.
Eu sei, mas toda essa questão dos Assuntos Internos...
Uma coisa não tem nada a ver com a outra declarou ela secamente.
Speed reflectiu nas opções. Liska não tinha dificuldade em imaginá-lo a pensar na melhor maneira de lidar com ela. De a levar à certa.
Speed abriu as mãos num gesto solidário, do amigo que apenas faz uma sugestão.
Ainda assim... Bem, podes arrumar o assunto assim que os médicos legistas disserem que foi suicídio. Ou então desistes. Um caso como este dificilmente precisa de dois detectives. O Kovac que fique com ele sozinho.
Táctica errada. Liska ficou furiosa com a sugestão de que não era suficientemente corajosa para lidar com a questão.
O que se passa contigo? O caso foi-me atribuído e tenciono trabalhar nele até estar terminado.
Óptimo. Eu só... Soltou um longo suspiro de pesar e passou a mão pelo cabelo. Continuo a preocupar-me contigo, Nikki, nada mais. Temos um passado comum. Isso representa alguma coisa... mesmo para um cretino como eu.
Liska não respondeu. Não confiava nem na sua voz nem no emaranhado de emoções que se formara dentro de si. As preocupações dele eram inesperadas e ela não estava preparada para a maneira como a faziam sentir: vulnerável, carente. Palavras que não desejava associar a si mesma.
Speed meteu a mão dentro do bolso do blusão e tirou um cigarro, que colocou entre os lábios.
Bem, disse em voz suave, erguendo a mão para lhe tocar na face. Não digas que nunca tentei fazer algo Por ti.
Liska afastou-se e virou o rosto para o lado.
Pois, disse ele, deixando cair o braço. Sei onde fica a porta. Até qualquer dia, Nikki.
Ele já pousara a mão na maçaneta da porta quando ela conseguiu falar.
Hum... Speed... obrigada pelo teu cuidado. Estou óptima. Sou perfeitamente capaz de resolver o assunto. É só mais um caso.
Claro. Como quiseres. Daqui a um dia e tal já te vês livre dele.
Lançou-lhe um último olhar prolongado e Liska teve a sensação de que ele desejava dizer algo mais. Porém, não o fez. Depois, saiu.
Liska foi trancar a porta e apagou as luzes. Reuniu as fotografias de Andy Fallen e levou-as para o quarto, onde as guardou dentro da sua pasta. A seguir foi dar uma espreitadela aos rapazes, que faziam de conta que dormiam, escovou os dentes, vestiu uma enorme T-shirt da Academia Nacional do FBI e meteu-se na cama, onde ficou a olhar para o tecto e a ver o passado girar na sua mente como um carrossel.
Rememorou o baile de liceu onde dançara com o pai. Tinha então treze anos e sentia-se atormentada. Embaraçada. As suas outras emoções faziam com que os remorsos lhe dessem a impressão de ter um pedregulho no estômago. O pai estava a seu lado, hirto, de olhos baixos, tão envergonhado quanto ela por estar diante das pessoas. Um homem robusto, de olhos azuis perscrutantes, com o lado esquerdo do rosto flácido e descaído, como se todos os nervos lhe tivessem sido extirpados com uma tesoura. As pessoas olhavam para eles... não só por causa do rosto do pai mas também pelas histórias que corriam: insinuações de corrupção na polícia, agentes a fazerem dinheiro com a droga, uma investigação levada a cabo pelos Assuntos Internos...
Nikki sabia que nada daquilo era verdade. Parecia acreditar nisso ainda mais fortemente que o pai, o que a enfurecia. Ele estava inocente. Porque não lutara com mais ganas para o provar? Porque não lhes cuspira na cara? Negar, desafiar, actuar. Em vez disso, aparecia em público de cabeça baixa para disfarçar a vergonha que sentia e a doença de Bell que o stresse provocara. Palavras como fraco e sem espinha dorsal passavam pela cabeça da filha como poeira agitada pela brisa. À medida que lhe iam atravessando a mente, o sentimento de culpa aprofundava-se e o ressentimento tornava-se mais acutilante.
A investigação arrastara-se durante quase ano e meio, acabando por dar em nada. Não foram levantadas acusações. Em princípio, todos deviam esquecer e perdoar. Nessa altura já a saúde de Thomas Liska começara a deteriorar-se gravemente. Dois anos mais tarde, morreu de cancro no pâncreas.
Foi uma noite muito longa.
O corpo foi descoberto.
Suicídio. Acidente. Tragédia.
Ninguém falou em assassínio.
Será mesmo um assassínio, se é ditado pela necessidade, se é acompanhado pelo remorso?
Lamento...
O facto de outras pessoas já saberem incomoda, apesar de não suspeitarem de nada. Como se desconhecidos estivessem a invadir o que devia permanecer privado. A intimidade da morte fora partilhada apenas pelos dois. O resultado final seria um acontecimento público.
Isso vulgariza de certo modo a experiência.
Na fotografia, Andy Fallen tem o olhar fixo, a derradeira centelha de vida extingue-se-lhe nos olhos semiabertos, a língua sai-lhe por entre os lábios ligeiramente afastados.
A expressão parece assumir um ar acusador.
Lamento...
A fotografia, segura na mão, é levada aos lábios, a imagem da morte beijada.
Lamento...
Porém, na mesma altura em que o pedido de desculpas é feito, a excitação aumenta.
Liska irrompeu pelo cubículo dentro, o rosto crispado pela raiva e as faces rosadas pelo frio. Kovac observou-a com preocupação, pois conhecia aquele ar e sabia o que significava para o decorrer do seu dia. Apesar de tudo, quando ela se aproximou intempestivamente dele, não se mexeu. Liska desferiu-lhe uma palmada no braço esquerdo com o máximo de força que pôde. Foi como se tivesse sido atingido por um autêntico martelo.
Ai!
Isso foi por me teres abandonado ontem à noite! anunciou-lhe ela. Estive à tua espera e por isso o Leonard apanhou-me desprevenida e deu-me um sermão sobre o caso do Nixon e a impossibilidade absoluta de o Jamal Jackson estar incriminado nele. Agora meteu na cabeça que o Jackson é capaz de se queixar de prisão indevida e de se servir disso no processo que quer levantar ao departamento.
Que processo? perguntou Kovac, esfregando a zona magoada.
O processo com que o Jackson está a ameaçar. Brutalidade. Contra mim.
Kovac ergueu os olhos para o alto, enfadado.
Ora, por amor de Deus. Temos na nossa posse o vídeo com ele a cascar em mim. Ele que tente processar-nos. Se o Leonard pensa que o Jackson tem o caso ganho, é tão burro que merecia ir para o Guinness. Eles devem ter algum recorde para isso.
Eu sei concordou Liska, atirando a bolsa para dentro de uma das gavetas da secretária e deixando cair a pasta em cima da cadeira. Desculpa ter-te aleijado. Tive uma noite péssima. O Speed apareceu lá em casa. Pouco dormi.
Oh, Deus me acuda. Não me vais falar de sexo, pois não?
O rosto de Liska voltou a ensombrar-se e, atravessando o cubículo, deu-lhe nova palmada no mesmo sítio. Ai! A cabeçorra de Elwood espreitou do outro lado da meia parede.
Será preciso chamar a polícia?
Porquê? perguntou Liska, despindo o casaco. A estupidez agora é crime?
Kovac esfregou o braço.
Acho que disse o que não devia.
Mais uma vez acrescentou Elwood. Foi ela que te fez isso ao nariz?
Kovac tentou ver-se no ecrã apagado do monitor do seu computador, embora já soubesse qual era o aspecto do seu nariz: inchado, avermelhado e abatatado como o de um bêbedo crónico. Ao menos não fora partido pela enésima vez.
Maus tratos infligidos aos homens pelas mulheres observou Elwood. Um dos grandes tabus da nossa sociedade. Pode ser que os Serviços de Apoio à Vítima te inscrevam num grupo de ajuda, Sam. Queres que telefone à Kate Conlan?
Kovac atirou-lhe uma esferográfica.
Que tal ires dar uma volta ao bilhar grande?
Liska instalou-se na sua cadeira e fê-la girar na direcção do colega, mostrando-se taciturna e talvez um pouco contristada.
Não dormi nada porque o meu cérebro preferiu permanecer acordado a reflectir no estupor que o meu ex-marido é, entre outros tópicos deliciosos. Que aconteceu ao teu nariz? O "Iron" Mike recusou-se a ouvir que o filho tinha preferências sexuais bizarras?
Foi um acidente explicou Kovac. Ele não recebeu a notícia nada bem. Ele e o Andy tinham tido uma briga, provavelmente há cerca de um mês, altura em que o Andy lhe falou da sua orientação sexual. Não me parece a notícia que um pai receba de bom grado. Que foi que conseguiste nos Assuntos Internos?
Trabalho perdido. A tenente "Ice Bitch" deu-me muita conversa, mas nenhuma informação. Afirma que não quer comprometer uma investigação dos Assuntos Internos. Alguém poderá ficar com a carreira prejudicada.
Pensei que o objectivo deles era esse.
Liska encolheu os ombros.
Ela foi a casa do Fallen no sábado à noite, entre as oito e as nove e meia, para falar de um caso que não estava a correr-lhe bem, a ele. Diz que lhe pareceu óptimo quando saiu. Contou-me que ele andara deprimido. Que não lhe ordenara que consultasse o psiquiatra, mas que lho sugerira.
Sabe-se se ele seguiu o conselho dela?
Informação confidencial.
Ninguém falará até o médico legista terminar o seu trabalho adiantou Kovac. Estão todos à espera de ouvir a palavra suicídio, e nesse caso já não terão de a pronunciar sequer, e quem quiser saber por que razão esse rapaz se matou que vá para o diabo. Se é que o fez.
Liska pegou numa esferográfica com um olho raiado de sangue em plástico colado na ponta. Um dos muitos tesouros bizarros que existiam por ali. Achavam graça oferecer aquele tipo de presentes uns aos outros. O bem mais precioso que Kovac tinha era um dedo falso, de aspecto muito realista, que parecia ter sido decepado da respectiva mão com uma serra para metal. Adorava surpreender as pessoas com ele, deixando-o dentro de pastas de arquivo ou de secretárias. Fora o presente mais bizarro que alguma mulher lhe dera... e, estranhamente, proporcionava-lhe o deleite mais simples que se podia imaginar. Dois casamentos fracassados com mulheres "normais", e divertia-se imenso com uma garota que o presenteava com partes de corpo decepadas. Que quereria isso dizer?
Vais à autópsia? perguntou-lhe Liska.
Para quê? Já me bastou ver o puto morto. Não preciso de o ver todo esquartejado para nada. O irmão dele contou-me que o Andy foi vê-lo há cerca de um mês. Tencionava assumir a sua homossexualidade publicamente. Dissera-o ao Mike e a coisa não correu bem.
Essa altura coincide com a sua aparente depressão.
Pois é. Não há dúvida de que cheira a suicídio disse Kovac. Tanto quanto sei, os tipos do laboratório não encontraram nada de estranho.
Não, não encontraram, mas os boatos que começaram a circular não dizem isso observou Liska. O Tippen contou-me que ontem à noite não se falava de outra coisa no Patrick's. Que tinham encontrado todo o tipo de brinquedos sexuais e pornografia gay. Ora onde é que achas que um boato desse tipo poderá ter começado?
Kovac mostrou-se carrancudo.
Com os três idiotas de uniforme. Onde é que viste o Tippen tão cedo?
No Café Caribou. Ele tem o péssimo costume de lá ir tomar um café duplo, de máquina.
Os polícias a sério devem tomar o que há aqui, na sala de convívio. Manda a tradição.
O Natal é uma tradição corrigiu-o Liska. O mau café podemos evitar. Bem, vamos lá a isto. Tenho uma preocupação relacionada com toda esta questão sexual prosseguiu Liska. E se o Andy Fallen estava em plena farra? Digamos que ele e um companheiro se puseram a fazer habilidades com uma corda e as coisas deram para o torto. O Fallen morre. O companheiro entra em pânico e sai de cena. Tanto quanto sei, trata-se de um crime. Segundo homem: depravado e indiferente. No mínimo.
Também já pensei nisso comentou Kovac. Ontem à noite fui falar com o Steve Pierce. Parece um homem com algo a pesar-lhe bastante na consciência.
O que foi que ele disse?
Nada de especial. Fomos interrompidos pela sua noiva: a adorável Miss Jocelyn Daring, advogada.
Liska ergueu as sobrancelhas em sinal de alerta.
Daring? Como em Daring-Landis, a firma onde ele trabalha?
Foi o que eu deduzi. Ninguém me corrigiu. Liska soltou um assobio baixo.
Aí está um facto interessante. Já chegou alguma informação da recolha de impressões digitais?
Não, mas devemos contar com impressões do Pierce. Eram amigos.
O telefone de Liska tocou e ela virou-se para atender.
Kovac voltou-se para o seu computador e ligou-o. Contava inteirar-se antecipadamente do relatório preliminar sobre a morte de Andy Fallen. Mais ou menos uma semana depois da autópsia, receberiam os relatórios de medicina legal. Antes disso ligaria para a morgue para se informar sobre os exames bioquímicos e para tentar acelerar o andamento do processo.
O tenente Leonard apareceu de repente no cubículo.
Kovac. No meu gabinete. Já.
Liska manteve a cabeça baixa enquanto falava ao telefone, evitando o contacto visual. Kovac reprimiu um suspiro profundo e foi atrás de Leonard.
Uma das paredes do gabinete do tenente estava ocupada por um calendário enorme, pontilhado por autocolantes redondos às cores. Vermelho para os homicídios em aberto, preto para os casos resolvidos. Laranja para agressões em aberto, azul para os que estavam despachados. Combate ao crime pela coordenação de cores. Simples e organizado. A merda que aqueles gajos ensinavam nas aulas de gestão.
Leonard colocou-se atrás da secretária, de mãos apoiadas nas ancas e uma expressão sorumbática na cara de parvo. Usava uma camisola de tweed castanho em cima de uma camisa e uma gravata. As mangas da camisola eram demasiado compridas. A figura, no seu todo, fazia lembrar a Kovac um macaco de trapos que tivera em criança.
Hoje, ao fim do dia, receberá um relatório preliminar do Departamento de Medicina Legal sobre o Fallen.
Kovac sacudiu ligeiramente a cabeça, como se tivesse água nos ouvidos.
O quê? Disseram-me que ainda levavam pelo menos uns quatro ou cinco dias até lhe mexerem sequer.
Alguém meteu uma cunha. Pelo Mike Fallen acrescentou Leonard. Ele é um herói no departamento. Ninguém deseja que sofra mais do que o necessário por causa do acontecido. O que, dadas as circunstâncias que rodearam o suicídio...
A sua boca sem lábios contorceu-se como um verme.
Questão odiosa: suicida nu, com vislumbres de perversão sexual.
Pois é observou Kovac. O tipo não teve consideração nenhuma ao escolher aquela maneira de se matar. Se foi o que aconteceu. É um embaraço para o departamento.
Essa consideração é secundária mas não deixa de ser válida observou Leonard na defensiva. A comunicação social anda sempre ansiosa por nos dar má imagem.
Bem, isto representa o coroar de tudo. Primeiro são os polícias da zona da Baixa que passam os turnos em clubes de strip. Agora acontece este caso. Isto por aqui é uma autêntica Sodoma e Gomorra.
Agradeço que guarde esse tipo de comentários para si mesmo, sargento. Não quero ninguém a falar com os órgãos de informação sobre este caso. Hoje, ao fim do dia, farei uma declaração oficial. A morte prematura do sargento Fallen foi um trágico acidente. Lamentamos o seu desaparecimento e transmitimos à família as nossas mais sinceras condolências. Recitou as palavras decoradas, treinando assim a dimensão e o impacto que lhes desejava dar.
Seco, breve e objectivo comentou Kovac. Soa bem, desde que seja verdade.
Leonard olhou fixamente para ele.
Tem alguma razão para achar que não seja verdade, sargento?
De momento, não. Seria bom dispor de alguns dias para juntar algumas pontas soltas. Assim como se faz numa investigação, sabe. E se foi alguma brincadeira sexual que correu mal? Pode haver responsabilidade de terceiros.
Dispõe de alguma prova de que mais alguém esteve no local?
Não.
E já o informaram de que ele tinha problemas de depressão e andava a consultar o psiquiatra do departamento?
Hum... Já, admitiu Kovac, achando que era, pelo menos, uma meia verdade.
Ele tinha... problemas prosseguiu Leonard, pouco à vontade com o assunto.
Sei que era homossexual, se é a isso que se refere.
Não agite as águas retorquiu Leonard com secura.
Mostrando-se repentinamente muito interessado na papelada que tinha na secretária, sentou-se e abriu uma pasta de arquivo. Isso não traz benefícios nenhuns. O Fallen matou-se acidentalmente ou de propósito. Quanto mais depressa despacharmos o assunto, melhor. Você tem mais casos em aberto.
Oh, sem dúvida concordou Kovac secamente. Os meus assassínios de amanhã.
Os seus quê?
Nada, tenente.
Encerre este caso e volte ao do Nixon. O procurador não me larga por causa disso. A luta contra a violência dos gangues é uma prioridade.
Pois é, pensou Kovac, ao voltar para o seu cubículo. Nada como manter esses bandos de marginais sossegados para aplacar os vereadores.
Disse de si para si que devia estar contente. O seu desejo de resolver rapidamente o caso Fallen não era menor do que o de Leonard, embora os seus motivos fossem diferentes. Leonard estava-se nas tintas para "Iron" Mike. Se calhar até nunca conhecera o homem. A preocupação de Leonard tinha a ver com o departamento. Kovac queria ver o caso terminado para bem de Mike e o mesmo queria quem quer que telefonara à medicina legal para acelerar os exames. E, no entanto, Kovac recusava-se a admitir aquele aperto na boca do estômago, tão familiar como o toque de uma amante. Sobretudo, considerando há quanto tempo não tinha nenhuma.
Liska atirou-lhe o casaco.
Precisas de um cigarro, não é, Sam?
Que dizes? Ando a tentar largar o vício. Grande ajuda me dás.
Então, fazia-te bem apanhares uma grande fartura de ar fresco. Para limpar os pulmões da nicotina.
Acercou-se um pouco e lançou-lhe um olhar significativo. Quando se voltou para a porta, ele seguiu-a.
O caso do Fallen está encerrado disse-lhe Kovac, enfiando o casaco ao saírem do cubículo.
Liska lançou-lhe o mesmo olhar com que brindara Leonard, ainda que mais intenso.
Já se sabe o que a autópsia vai revelar.
O quê?
Todos esperam a determinação de suicídio. Apenas lhe chamarão acidental, por consideração para com o Mike. Hoje receberemos um relatório preliminar e uma bênção do Leonard. Lá em cima ninguém quer que o Mike... ou o departamento... fique ainda mais embaraçado com os pormenores sórdidos.
Pois, acredito que não observou Liska, empalidecendo subitamente.
Só voltou a falar quando chegaram ao exterior. Kovac não precisou de lhe pedir para se explicar. Já trabalhavam juntos há tempo suficiente para ele saber ler o que lhe ia na cabeça. O facto de serem parceiros implicava uma grande intimidade, não no sentido sexual, mas sim psicológico, emocional. Quanto mais estivessem em sintonia um com o outro, melhor podiam trabalhar juntos. Liska era a melhor colega que já tivera. Entendiam-se e respeitavam-se um ao outro.
Percorreu um emaranhado de corredores ao lado dela, até saírem por uma pequena porta na zona do edifício voltada a norte. O Sol brilhava, tornando a neve ofuscante. O céu exibia um azul-claro da cor de um ovo de tordo. Estava um dia enganosamente bonito, fazendo-se sentir uma ligeira friagem da brisa de forte. Não se avistava vivalma naquele lanço de degraus, que ficava completamente na sombra e apanhava com o vento todo. As pessoas preferiam ir para o lado sul, como aves do Árctico em busca de calor.
Quando o vento lhe bateu na cara, Kovac estremeceu. Afundou as mãos nos bolsos do sobretudo e, encurvando os ombros, voltou-se de costas para o vento.
O Leonard disse-te que o caso do Fallen estava encerrado observou Liska.
É finalizar e arquivar.
Quem é que fez acelerar o processo?
Alguém mais alto na cadeia alimentar.
Liska olhou para o cimo da rua, ficando com os músculos do rosto tensos. O vento despenteou-lhe o cabelo curto e humedeceu-lhe os olhos. Kovac teve o pressentimento de que não iria gostar de ouvir o que ela tinha para lhe dizer.
Então, o que é que tanto te chateia? perguntou-lhe, irritado. Aqui fora está um frio de rachar.
Acabei de receber o telefonema de alguém que afirma saber o que o Andy Fallen tinha entre mãos.
Esse alguém tem nome?
Ainda não. Mas vi-o ontem nos Assuntos Internos. Mais um cliente insatisfeito.
A pressão no estômago de Kovac acentuou-se, incómoda.
E, segundo esse alguém, em que andava o Fallen a trabalhar?
Num homicídio.
Homicídio? exclamou Kovac, incrédulo. Desde quando é que os Assuntos Internos se metem nisso? Nem pensar. Os homicídios vão sempre parar à brigada, pois os tipos dos Assuntos Internos nem o próprio cu conseguem encontrar num quarto às escuras. Como é que o Fallen poderia estar a trabalhar num homicídio sem o nosso conhecimento? Isso são tretas.
Poderia estar se nós o considerássemos encerrado proferiu Liska. Lembras-te do Eric Curtis?
Curtis! Aquele agente de patrulha que estava de folga? O malandro que o despachou está na cadeia. Como é que ele se chamava? Vermin?
Verma. Renaldo Verma.
Uma fiada de roubos e agressões a vítimas gay. Quantos foram? Três ou quatro em ano e meio.
Quatro. Duas das vítimas morreram. O Curtis foi o último.
O mesmo modus operandi dos outros, não é? Amarrados, espancados, roubados.
Sim, mas o Eric Curtis era polícia salientou Liska.
E depois?
Depois, era polícia e gay. Segundo o meu homem misterioso, meses antes da sua morte, o Curtis queixou-se aos Assuntos Internos de o perseguirem no trabalho devido às suas preferências sexuais.
- E estás a querer insinuar que algum polícia o matou Por causa disso? indignou-se Kovac. Meu Deus, Tinks, se preferes acreditar numa coisa dessas, talvez devesses candidatar-te ao lugar do Fallen.
Vai-te lixar, Kovac. Detesto os Assuntos Internos. Odeio o que eles fazem às pessoas. Nem imaginas como os abomino. O certo é que o Curtis era polícia, gay e agora está morto. O Andy Fallen andava a trabalhar nesse caso, era gay e agora está morto observou, mostrando que ela própria não gostava das possíveis implicações do que dizia pela expressão taciturna do seu rosto. Apesar disso, fez frente a Kovac e defendeu o seu ponto de vista. Liska era assim: nenhum trabalho era demasiado mau ou feio. Não hesitava em fazer o que era necessário.
E acabaram de me dizer que o dossiê sobre o Fallen está praticamente fechado afirmou Kovac, passeando o olhar pela rua.
A coisa também não te agrada, pois não, Sam? Sente-lo lá no fundo, não é?
O colega não lhe respondeu imediatamente. Deixou a ideia rolar pela sua cabeça como um filme, enquanto os sinos do relógio da Prefeitura começavam a dar as horas com o White Christmas.
Não, disse por fim. Não me agrada absolutamente nada.
Ficaram ambos calados por instantes. Os automóveis passavam por eles, na Rua 4. O vento soprava pelos túneis construídos junto dos prédios, fazendo agitar as bandeiras hasteadas no edifício federal no outro lado da rua.
É provável que o Andy Fallen se tenha suicidado adiantou Liska. Nada na cena levava a crer noutro desfecho. Quanto a este tipo que acabou de me telefonar, quem poderá dizer se ele se está nas tintas para o Andy Fallen? Se calhar o assassínio do Curtis é apenas o instrumento de que dispõe para chamar a atenção e acha que chegaremos lá pela porta das traseiras... Mas... e se não for assim, Sam? O Andy Fallen só nos tem a nós. E o Mike também. Tu é que me ensinaste isto. Para quem trabalhamos?
Para a vítima murmurou ele, com o mau presságio ainda a atazanar-lhe o fundo do estômago.
Eles trabalhavam para a vítima. Kovac inculcara esse princípio em inúmeras pessoas que formara. As vítimas não podiam defender-se. Competia ao detective apresentar todas as perguntas pertinentes, indagar, investigar e não deixar pedra por virar enquanto a verdade não fosse encontrada. Às vezes era fácil. Outras, não.
Que mal terá fazer mais algumas perguntas? observou Kovac, ciente de que poderia estar a acrescentar uma linha à lista das "Famosas Últimas Palavras Susceptíveis de Se Transformarem em Epitáfio".
Eu fico com a morgue. Liska aconchegou o casaco e voltou-se de novo para a porta. Tu encarregas-te dos Assuntos Internos.
Sargento, já falei com a sua colega declarou a tenente Savard, mal olhando para ele e continuando a dar vazão à pilha de relatórios que tinha sobre a secretária. E, caso não tenha sido informado, a morte do Andy Fallen foi considerada um acidente.
Em tempo recorde ironizou Kovac.
Ao ouvir a observação, a tenente dos Assuntos Internos fez incidir nele toda a sua atenção. O verde dos seus olhos era quase inimaginável. Límpido e gélido, olhando para as pessoas sob umas sobrancelhas bastante mais escuras que o louro-cinza do seu cabelo. O contraste acentuava a seriedade cortante da sua expressão. Kovac não pôde deixar de pensar que ela devia intimidar terrivelmente muitos agentes com aquele olhar.
Ele já andava há demasiado tempo naquela vida para sentir medo. Sentia-se imune. Ou talvez fosse, simplesmente, estúpido.
Encontrava-se sentado na cadeira em frente da secretária da tenente, com os pés cruzados. Ele próprio passara brevemente por aquele departamento, havia uma eternidade, quando ele ainda era dirigido por um polícia a sério, não um lambe-botas qualquer a tentar brilhar na sua ascensão promocional. Não sentira vergonha por trabalhar ali. Não apreciava os maus polícias. Mas também não gostara muito da experiência.
Nesse tempo não havia tenentes com aquele aspecto.
Eles foram muito simpáticos em analisar tudo tão dePressa, não acha? observou. Tendo em conta o trabalho que têm na morgue nesta altura do ano. Caramba, têm corpos empilhados uns sobre os outros como se fossem toros de madeira.
Cortesia profissional, limitou-se a retorquir Savard.
Kovac deu consigo a observar os lábios da tenente. Formavam um arco perfeito e estavam cobertos por uma camada impecável de batom.
Pois... Bem, prosseguiu, acho que devo mais ou menos a mesma cortesia ao velho Mike, sabe. Conhece-o? O Mike Fallen?
Os olhos da tenente regressaram aos papéis.
Ouvi falar nele. Hoje conversámos ao telefone e apresentei-lhe os meus sentimentos.
Pois é, a senhora é demasiado jovem. Não devia andar por aqui no tempo do "Iron" Mike. Deve ter... o quê? Trinta e sete, trinta e oito?
A tenente olhou para ele como se tivesse algo azedo na boca.
Isso não é da sua conta, sargento. Quando tentar adivinhar a idade de uma mulher, erre sempre para menos, não para mais.
Kovac agitou-se.
Fiquei assim tão longe?
Não, esteve bastante perto. Eu é que sou vaidosa. E agora, se não se importa... Pegou nuns papéis e endireitou-os uns com os outros. Uma chamada de atenção subtil para que ele se retirasse.
Só queria algumas respostas para umas tantas perguntas.
Não precisa de perguntas nem respostas. Não tem nenhum caso para investigar.
Mas tenho o Mike lembrou-lhe ele. Estou só a tentar encaixar alguns aspectos para depois lhos transmitir. Não é nada fácil um pai perder um filho. Se o facto de lhe falar sobre os últimos dias do Andy o ajudar, não hesitarei em fazê-lo. Não é pedir nada do outro mundo, não acha?
Será, se pretender informações confidenciais decorrentes de uma investigação deste departamento disse Savard, empurrando a cadeira para longe da secretária.
Tentara dispensá-lo friamente. Agora experimentaria pô-lo fora à força. Kovac deixou-se ficar sentado por um instante, só para a aborrecer e levá-la a perceber que não se livraria dele assim com tanta facilidade. A tenente deu a volta à secretária para lhe indicar a porta. Ele esperou que ela passasse junto da sua cadeira e depois levantou-se, fazendo-a hesitar. Ela deu meio passo atrás, franzindo o sobrolho e recuando, contrariada.
Estou a par do caso Curtis avançou Kovac.
Então sabe que afinal de contas não precisa de falar comigo, não é?
Um sorriso estranho distendeu um dos cantos da boca de Kovac.
Não chegou a este posto à conta da treta da igualdade de oportunidades para ambos os sexos, pois não, tenente?
Pode crer que possuo qualificações mais que necessárias para o desempenho das minhas funções, sargento Kovac.
Havia algo parecido com divertimento na sua voz, mas era mais sombrio. Ironia, talvez. Ele não conseguia imaginar o motivo, ou qual a origem, ou porque se teria ela permitido dizer-lhe aquilo. Já deixara de ter importância para ele; no entanto, arquivou a curiosidade sobre o facto no seu cérebro, não fosse dar-se o caso de precisar dela mais tarde.
Kovac cruzou os braços e encostou-se à beira da secretária da tenente Savard; esta aproximou-se da porta. Os olhos verdes deixavam transparecer irritação. A cólera corava-lhe ligeiramente as maçãs do rosto. Era assim, pensou ele, que a televisão gostava das tenentes: com classe, polidas, muito elegantes nos seus fatos de calças e casaco cinzentos cor de aço. Frias, controladas, sub-repticiamente sensuais.
Demasiada classe para o teu bico, pensou Kovac. Uma tenente. Jesus. Porque estava ele sequer a olhar?
Sabia que o Andy Fallen era gay? perguntou-lhe.
A sua vida pessoal não me dizia respeito.
Não foi isso que perguntei.
Sim, disse-me que era homossexual.
Antes da sua ida a casa dele no domingo à noite?
Começa a abusar da sua sorte, sargento advertiu Savard. Já lhe disse que não responderei às suas perguntas. Será que quer que eu fale com o tenente seu superior Por causa disto?
Pode telefonar-lhe, embora ele agora esteja a ensaiar o seu discurso: "Foi um acidente trágico... Portanto, larguem o caso..."
Devia estar a praticá-lo consigo.
Já lhe fiz a minha crítica... Não tem ritmo e não dá para dançar. O que ele fazia bem era ficar-se pelo trabalhinho burocrático que tem e deixar a política de lado.
Tenho a certeza de que a sua opinião conta muito para ele.
Pois é. Absolutamente nada retorquiu Kovac. A sua significará mais, se resolver ir por esse caminho. Chamar-me-á ao seu gabinete para me dizer que... ou faço o meu trabalho como ele quer, ou fico suspenso. Um mês sem salário. E tudo porque estou a tentar fazer algo de decente por outro polícia. A vida é uma merda, alguns dias mais que outros. Mas que hei-de fazer? Enforcar-me?
O rosto de Savard ensombrou-se.
Essa não teve graça, sargento.
Nem era para ter. Tenho a certeza de que percebeu a minha intenção: não esquecer o Andy Fallen. Se quiser, mostro-lhe as polaróides. Tirou uma de dentro de um dos bolsos interiores do casaco e mostrou-a como se fosse um mágico a fazer um truque de cartas. É algo que custa a ver, não acha?
A tenente empalideceu profundamente. Ficou com ar de quem queria bater-lhe com qualquer coisa.
Guarde isso.
Kovac virou a foto para si e mirou-a com a indiferença de quem já vira centenas de imagens como aquela.
A tenente conhecia-o. Tinha uma certa ligação com ele. Lamenta a sua morte. Imagine o que o pai não sente.
Guarde isso insistiu ela. Notava-se-lhe um tremor quase imperceptível na voz ao acrescentar: Por favor.
Kovac voltou a enfiar a polaróide dentro do bolso do casaco.
Preocupa-se o suficiente para ajudar um pobre pai a ficar sem dúvidas?
O Mike Fallen duvida de que a morte do Andy tenha sido um acidente? inquiriu a tenente.
O Mike tem dúvidas sobre quem o Andy era.
Savard afastou-se dele, guardando uns minutos de silêncio, reflectindo, ponderando.
Ninguém conhece ninguém. Verdadeiramente, não. A maior parte de nós nem sequer se conhece a si própria.
Kovac observou-a, intrigado pelo súbito enveredar pela via filosófica. A tenente parecia mais preocupada em reflectir do que em estar na defensiva.
Eu sei exactamente quem sou, tenente observou ele.
E quem é o senhor, sargento Kovac?
Sou precisamente aquilo que tem à sua frente respondeu ele, erguendo os braços de lado. Sou um polícia de pés bem assentes no chão, cumpridor, dentro de um fato barato de armazém. Sou um estereótipo andante e falante. Como mal, bebo de mais e fumo... embora esteja a tentar largar o vício e ache que devia ganhar mais pontos a favor do meu carácter por isso. Não corro maratonas, não faço tai chi nem componho óperas nos meus tempos livres. Quando tenho uma pergunta a fazer, não hesito. As pessoas nem sempre gostam disso, mas elas que se fodam... Desculpe o palavrão: outro mau hábito que admito. Ah, mais uma coisa: sou teimoso que nem um burro.
Savard ergueu uma sobrancelha.
Deixe-me adivinhar. É divorciado, não é?
Duas vezes, mas isso não me impede de voltar a tentar. Debaixo deste uniforme barato bate o coração de um romântico incurável.
Existe alguma outra espécie?
Kovac preferiu não responder. Seria melhor.
Portanto, quero fazer isto pelo Mike prosseguiu ele. Informar-me por aí sobre o filho, tentar compor uma imagem com a qual ele possa viver. Ajudar-me-á a fazer isso?
Savard reflectiu por um momento, digeriu a proposta e dissecou-a, pesando os prós e os contras.
O Andy Fallen era um bom investigador disse por isso Foi sempre muito esforçado. Às vezes, até era de mais.
O que quer isso dizer? De mais?
Apenas que o trabalho era tudo para ele. Empenhava-se demasiado e ressentia-se excessivamente com os fracassos.
Ele teve algum fracasso nos últimos tempos? O caso Curtis?
O assassino do agente Curtis está na cadeia a aguardar julgamento.
Renaldo Verma.
Se tem conhecimento disso, então também devia saber que neste departamento não há nenhum caso a correr relacionado com o Eric Curtis.
Acho que não, ainda por cima com o vosso investigador morto.
O caso foi encerrado antes do que aconteceu a Andy.
O Curtis queixou-se de perseguição?
Savard não respondeu.
Kovac sentiu a sua paciência esgotar-se.
Olhe, posso ir informar-me junto do agente de ligação com os homossexuais. O Curtis deve ter-lhe dado conhecimento de que ia falar convosco. Depois terei de cá voltar, e acho que já me aturou mais do que gostaria.
Sim disse a tenente, deixando a resposta suspensa por instantes. O agente Curtis apresentara uma queixa pouco tempo antes de morrer. O facto suscitou algum interesse por parte do departamento quando ele foi assassinado. Mas as provas apontavam apenas para Verma, de modo que o caso foi encerrado com o acordo da defesa.
E os nomes dos agentes envolvidos?
Permanecerão confidenciais.
Posso desenterrá-los.
Pode desenterrar o que quiser disse Savard. Mas não o fará aqui. O caso está arquivado e não vejo razão para o reabrir.
Se o assassino está preso, por que razão o Fallen andava tão perturbado?
Não faço ideia. O Andy passou o último mês muito preocupado. Só ele é que poderia dizer-lhe qual o motivo e porquê. Não fez de mim sua confidente. E eu não gosto de especular. Ninguém pode saber o que se passa no coração de outra pessoa. Existem demasiadas barreiras.
Claro que pode. Kovac olhou-a nos olhos com um olhar fixo que tentou ultrapassar as barreiras dela. Sem sucesso, reconheceu. Aquelas muralhas eram espessas. Uma mulher não chegava àquele posto deixando transparecer fraqueza. É preciso estar disposto a pôr a merda de lado afirmou ele. Eu ando metade do tempo metido nela até aos joelhos. Já nem sequer me importo com o fedor.
A tenente não fez nenhuma observação, embora Kovac tivesse a impressão de que tinha muito para dizer, que as palavras subiam dentro dela como água contra um dique. Sentia bem a tensão que a dominava. Mas viu que acabou por se controlar.
Pegue na sua picareta e vá escavar noutro lado, sargento Kovac. Abriu a porta, oferecendo-lhe a visão da sala de espera. Não lhe direi mais nada além do que já disse.
Kovac levou o seu tempo a chegar à porta. Ao passar em frente de Amanda Savard, parou: um tudo-nada demasiado próximo dela para a deixar incomodada. Suficientemente perto para captar a fragrância subtil do seu perfume. Para lhe ver a pulsação sob a pele delicada da covinha na base do pescoço. Suficientemente perto para sentir como que um zunido eléctrico passar-lhe por baixo da pele.
Sabe, algo me diz que não será assim, tenente observou suavemente. Obrigado por me ter recebido.
Renaldo Verma era um rato sebento. De compleição esguia, possuía o aspecto nervoso e desgastado de um viciado no crack de longa data, o que correspondia à realidade. Era difícil imaginá-lo a dominar alguém, muito menos um agente da polícia. E no entanto confessara-se culpado de homicídio em segundo grau por espancar um homem até à morte com um bastão de basebol. O seu currículo ia do tráfico de droga ao assalto e ao roubo. A agressão e o assassínio tinham sido adições recentes ao seu repertório, mas mostrara-se hábil em ambas. Caíra num esquema de roubos e assaltos que mostrava traços que ultrapassavam os da sua conduta habitual. Os psicólogos gostavam de lhe chamar "assinatura", actos cometidos durante o crime e que, apesar de não serem necessários à sua concretização, satisfaziam alguma necessidade interior. Provavelmente teria acabado por se transformar num assassino em série se tivesse sido mais habilidoso na fuga.
Verma entrou na sala de interrogatórios com ar gingão, como se tivesse algo de que se orgulhar. Sentou-se diante de Kovac e estendeu imediatamente as mãos para o maço de Salem que estava em cima da mesa. Tinha-as compridas e ossudas, como as patas de um roedor, e a pele marcada por lesões que eram, muito provavelmente, sinal de sida.
Não devia falar consigo sem a presença do meu advogado declarou, soprando o fumo pelas narinas. O nariz era fino e comprido, com duas saliências ao longo da cana. Por cima do lábio superior, usava um bigode fino como um lápis, que parecia uma sombra de sujidade. Tinha uma maneira afectada, algo efeminada, de falar, e uma linguagem corporal elaborada. Quando o fazia, toda a parte superior do seu corpo balançava, se dobrava e torcia, como se estivesse a ouvir música de dança na sua cabeça.
Então, chame-o, disse Kovac, levantando-se. Eu é que não tenho tempo para essa merda. Quando ele cá chegar, já não estarei aqui e você terá de pagar a conta.
Quem tem de pagar a conta são os contribuintes retorquiu Verma, reprimindo uma risada, o que lhe encurvou os ombros e meteu o peito para dentro. Quero lá saber.
Pois é, vejo que se está nas tintas para tudo observou Kovac. Portanto acha que me vai impingir só aquilo que quiser, pois está à espera de uma troca. O pior é que é demasiado tarde para isso. Fez a cama onde se vai deitar, de acordo com o procurador. E fê-la num sítio bonito: a penitenciária de Saint Cloud.
Não fiz, não contrapôs Verma com confiança e presunção, agitando um dedo em direcção a Kovac. Fi-la em Oak Park Heights. Quem não vai para o meio daquelas muralhas de granito sou eu. Aquilo é medieval. Vou para Heights. Foi o combinado. Tenho lá amigos.
Kovac tirou uma folha de papel de dentro do bolso interior do sobretudo, consultou-a como se se tratasse de algo pouco mais importante do que o recibo da sua conta de lavandaria e voltou a guardá-la.
Bem, como quiser.
Verma estreitou os olhos de desconfiança.
Que quer dizer? Fizemos um acordo. Está feito. Kovac encolheu os ombros, indiferente.
Seja como for, quero falar consigo acerca do assassínio do Eric Curtis.
Não fui eu.
Sabe quantos biltres dizem o mesmo? contrapôs Kovac. Dos que vão a fritar na cadeira eléctrica não escapa um. Será que preciso de lhe lembrar de que não estamos no Ritz-Carlton?
Admiti a culpa no homicídio do Franz. Mas não era minha intenção matá-lo.
Claro que não. Como é que poderia saber que a cabeça humana não consegue aguentar tanta pancada?
Eu não fui lá para dar cabo dele esclareceu Verma, amuado.
Oh, já estou a ver. A culpa foi dele, por estar em casa quando você lá entrou para o roubar. Não há dúvida de que o tipo foi um idiota. Você até devia ser condecorado por o tirar de circulação.
Verma levantou-se.
Ei, não estou aqui para que você me foda, Kovac.
Pois claro, tenho a certeza de que tem algum figurão importante à sua espera para o fazer. Acha que ele também irá até Saint Cloud? Ou você terá de estar de volta a tempo do encontro?
Verma apontou o cigarro para Kovac, deixando cair cinza no tampo da mesa.
Já disse que não vou para Saint Cloud. Fale com o meu advogado.
O seu advogado, o funcionário público estafado e mal pago de Hennepin County? Dar-lhe-ei uma palavrinha. Verei se se lembra do seu nome. Pôs-se de pé, deu a volta à mesa e pousou uma mão no ombro ossudo de Verma. Sente-se, Mister Verma.
O traseiro de Verma bateu no assento da cadeira com um baque. Depois de esmagar a ponta do cigarro no tampo da mesa, acendeu outro.
Eu não matei nenhum polícia.
Pois, pois. Então foi o procurador que se lembrou de lhe fazer essa acusação, assim, sem mais nem menos? Kovac fez uma careta, voltando a sentar-se no seu lugar. Não me lixe. Imputou-lhe esse crime porque se encaixava em si que nem ginjas. O modo de actuação era semelhante ao dos outros.
E depois? Nunca ouviu falar em imitações?
Não me parece que alguém queira tomá-lo como modelo.
É? Então porque é que consegui o acordo? perguntou Verma presunçosamente. Eles não tinham maneira de me acusar desse homicídio. Não havia impressões digitais. Nem testemunhas.
Não? Bem, então agora você é o Homem Invisível, não? Mas então, se não limpou o sarampo ao Curtis, como é que explica o aparecimento do relógio dele no seu apartamento?
Para mim foi um choque insistiu Verma. Não fui eu que lá o pus de certeza. Maldito Timex. Porque haveria eu de roubá-lo?
É um belo instrumento retorquiu Kovac. Podia dar-lhe jeito no sítio para onde vai. Conhecia o Eric Curtis continuou. Ele prendeu-o por aliciamento... duas vezes.
Verma encolheu os ombros, amuou e baixou timidamente as pestanas.
Não fiquei ressentido. Na última vez, ofereci-lhe uma de borla. Ele era giro. Respondeu-me: "Fica para a próxima." Quem me dera que tivesse aceite.
Portanto, você passou lá por casa dele para concretizar o combinado. Uma coisa conduziu a outra...
Não, declarou Verma com firmeza. Olhou Kovac bem nos olhos e inalou profundamente o fumo do cigarro, que depois projectou em jacto directamente contra o peito de Kovac. Olhe, Kovak, esses outros polícias quiseram culpar-me do assassínio do Curtis, mas não conseguiram. O procurador tentou, mas também não teve sorte.
Inclinou-se sobre a mesa, tentando tornar-se sedutor. Kovac sentiu-se arrepiar.
Sei que está cheio de tesão murmurou Verma. Mas olhe que não pode enfiá-lo em mim.
Preferia enfiá-lo numa tomada eléctrica.
Verma atirou-se contra as costas da cadeira a rir como um demente.
Fala como um homem que não sabe o que perde. Soltou uma risadinha e depois espetou a língua para fora da boca o mais que pôde, movendo-a obscenamente. Não quer que o chupe, Kovak? Que tal eu enfiar-lhe a minha língua pelo cu acima?
Deus meu!
Kovac afastou violentamente a cadeira para longe da mesa. Tirou um cachecol castanho do bolso do sobretudo que pendurara nas costas da cadeira, atravessou a sala até ao canto onde estava a câmara de vídeo presa na parede e tapou-a com ele.
Verma endireitou-se na cadeira e levou a mão à base do pescoço.
Ei, pá, para que fez isso?
Ora esta, Renaldo! sussurrou Kovac, voltando para a mesa com expressão admirada. Então não é que o vídeo deixou de funcionar!
Verma tentou escapulir-se da sua cadeira, mas Kovac apanhou-o pela nuca e imobilizou-o firmemente, inclinando-se sobre o seu ombro, por trás.
A única coisa que quero enfiar pelo seu cu acima é a biqueira do meu sapato disse em voz branda. Acabe com essa treta, Mister Vermin. Acha que eu não tenho gente em Saint Cloud que me deve favores?
Eu não vou para... A pressão acentuou-se no seu pescoço, cortando-lhe a palavra. Os ombros chegavam-lhe às orelhas.
O filho da minha irmã trabalha lá como guarda mentiu Kovac. É um moçoilo rude, que veio directamente da quinta, onde tratava de vacas leiteiras. Não tem grande esperteza, mas é leal que nem um cão. Tem um feitio dos diabos.
Está bem! Está bem!
Kovac largou-o e voltou para a sua cadeira.
Não o censuro por tentar disse Verma, amuado, estendendo a mão para os Salem. Kovac tirou-lhos do seu alcance, sacudiu um para fora do maço, meteu-o entre os lábios e acendeu-o, dizendo de si para si que era um gesto táctico e não uma cedência ao vício. Que modos rudes os seus observou Verma, fazendo-se de tímido. Muito excitante.
Mister Vermin...
Que foi? perguntou o indivíduo com um gesto desabrido de exasperação. Que é que você quer de mim, Kovak. Que eu diga que colaborei no caso Curtis? Vá-se foder. O acordo está feito e eu não o matei. O procurador não mandou o caso para os jornais porque não podem provar nada. Mas ficará registado no meu currículo. Dirão que me apanharam em flagrante no caso do Franz e pouparam ao Estado o dinheiro de um julgamento. Por mim, tudo bem. Não me ralarei nada que a rapaziada de Heights pense que dei cabo de um polícia. Mas não tive nada a ver com a morte do Curtis. Se querem saber quem foi, perguntem ao Springer, um sargento vosso dos Homicídios. Ele sabe quem tratou da saúde ao Curtis.
Kovac ficou calado por momentos, como se não estivesse a prestar grande atenção. Manteve-se a olhar para o ar, fumando, a pensar como era realmente doentio sentir o prazer da nicotina a assentar nos pulmões.
É? disse por fim, voltando-se de novo para Verma. Então por que razão ele não prendeu o filho da puta?
Pelo facto de o filho da puta ser outro polícia.
Isso é o que você diz.
Quem o diz é aquele bonitão dos Assuntos Internos.
Não sei de quem fala disse Kovac, ficando tenso.
Magro, musculoso, bonito, parece um modelo do Versace. Verma fechou os olhos e soltou um murmúrio. Uma delícia.
Pois, pois. Quer dizer que esse tal espertalhão dos Assuntos Internos vem falar consigo e diz-lhe, sem mais nem menos, que acha que quem deu cabo do Curtis foi um polícia?
Verma amuou e encolheu-se. Kovac teve vontade de lhe dar um tabefe.
Pois é, foi o que me pareceu observou. O que é que ele lhe perguntou?
Verma encolheu os ombros.
Isto e aquilo. Coisas sobre o homicídio. Sobre a investigação.
E que foi que você lhe disse?
Porque não lhe pergunta?
Porque lho estou a perguntar a si. Devia ficar satisfeito com isso, Renaldo. Estou a dar-lhe um tratamento especial.
Disse-lhe que não matei o Curtis e que não me interessa quantos polícias querem que eu diga o contrário. Nem ele. Nem o Springer. Nem o de uniforme.
Qual de uniforme?
O que me fez isto disse, apontando para o alto mais saliente dos dois que exibia na cana do nariz. Disse que eu estava a resistir.
Peço desculpa em nome do departamento afirmou Kovac sem qualquer tipo de arrependimento. Esse tal tipo de uniforme tem nome?
Um tipo enorme descreveu Verma. Pus-lhe o nome de Garanhão. Ele não gostou. O colega chamava-lhe B.O. Com isso já ele não se importava queixou-se, esboçando um gesto esvoaçante com a mão à laia de protesto. Mas acho que era por causa de algo mais além do cheiro que tinha. Li o nome na placa que trazia ao peito, pouco antes de me dar o murro. Ogden.
Ogden repetiu Kovac, com a cabeça à roda com a imagem que rapidamente lhe ocorreu: Steve Pierce a lutar no chão da cozinha de Andy Fallen com um brutamontes. O brutamontes a pôr-se de pé com dificuldade, o sangue a espirrar-lhe do nariz.
O Verma conseguiu um acordo porque a vossa gente meteu a pata na poça declarou Chris Logan sem mais rodeios, mexendo na papelada abundante que tinha em cima da secretária. Fale ao Cal Springer em encadeamento de provas. Pergunte-lhe se sabe minimamente o que é um mandado de busca.
Houve algum problema com as provas? perguntou Kovac, de pé, à porta do pequeno gabinete de Logan, pronto a abordar o procurador, que deveria apresentar-se no tribunal dali a cinco minutos.
Logan praguejou por entre dentes, ainda de olhos postos na confusão que se acumulava em cima da sua secretária, de mãos nas ancas. Era do tipo alto e atlético. No início da casa dos trinta, era bem-parecido e tinha uma tarefa árdua sobre os ombros. Um tipo duro, com uma licenciatura em Direito e um feitio temperamental.
Era um bom profissional. O braço direito de Ted Sabin, que raramente levava pessoalmente um caso a tribunal.
Foi uma asneira do princípio ao fim murmurou Logan.
Meteu a mão no cesto dos papéis que tinha ao lado da secretária e vasculhou no meio de documentos amachucados, papéis de rebuçados vazios, sacos rotos de metade dos sítios que faziam comida para fora. Pegou num bocado de papel amarelo amachucado do tamanho de uma bola de basebol, que abriu para examinar. Passado um bocado, suspirou de alívio e rolou os olhos para o alto. Enfiou a folha na pasta e dirigiu-se para a porta.
Kovac foi atrás dele, caminhando a seu lado.
Tenho de ir para o tribunal disse Logan, abrindo caminho por entre as pessoas que enchiam o átrio em frente dos gabinetes da procuradoria.
Eu próprio não tenho muito tempo retorquiu Kovac. Perguntou a si mesmo se Savard concretizara a ameaça de telefonar ao seu chefe. A mulher era demasiado impenetrável para se ter a certeza de uma coisa ou outra. Ia-se lá saber quando é que Leonard o chamaria para uma "conversa séria".
Apanharam um elevador vazio e Kovac impediu que outras pessoas entrassem, brandindo a identificação.
Assunto da polícia, pessoal. Desculpem disse, carregando no botão de fechar a porta com a mão livre.
Logan parecia infeliz, mas o certo é que andava quase sempre com aquele ar.
Só tínhamos provas circunstanciais disse. Antecedentes criminais, motivo, o modus operandi do Verma. Mas não apareceu nenhuma testemunha que o colocasse no local, além de também não haver provas legais. Nem impressões digitais. Fibras. Fluidos corporais. O Verma ejaculou nos outros locais de crime. Com o Curtis, não. Não sabemos porquê. Talvez alguma coisa o tenha feito abandonar o local do crime mais cedo. Talvez não conseguisse levantá-lo. Quem sabe? Tudo pode ter acontecido.
Então, qual foi o acordo no que diz respeito ao relógio? perguntou Kovac na altura em que o elevador parou e as portas se abriram, revelando uma colmeia humana em plena actividade.
O átrio do piso onde funcionavam as salas de tribunal estava permanentemente repleto de espertalhões, advogados de fama duvidosa, perdedores, gente atemorizada, desnorteada. Todos chamados a alimentar-se na máquina que era o sistema judicial de Hennepin County.
Ora bem, um idiota qualquer uniformizado afirmou tê-lo encontrado sobre a cómoda do Verma, mas o certo é que aquilo cheirava a aldrabice informou Logan, dirigindo-se para a porta de uma das salas. Nem pensar em levar o caso a tribunal. Tendo em conta os últimos processos contra o vosso departamento, o Sabin nem sequer quis tentar.
Nem mesmo sendo a vítima um polícia observou Kovac com ar de desaprovação.
Logan encolheu os ombros e seguiu em direcção à mesa dos consultores jurídicos que ficava mais próxima do sistema de ventilação que funcionava melhor naquela sala.
Não poderíamos ter ganho o caso. A prefeitura não queria mais outro processo. De que valia fazer força para isso? Conseguimos que o Verma admitisse a sua culpa no caso Franz. Vai lá ficar dentro.
Homicídio em segundo grau.
Ainda leva às costas agressão intencional e roubo. Não é coisa pouca. Além disso, matou o Franz com o seu próprio bastão de basebol. Uma arma casual. Como poderíamos argumentar premeditação?
Alguma vez se teve a impressão de o Verma não ter morto o Curtis?
Correram boatos de que o Curtis teria sido perseguido por outros colegas de patrulha por ser gay. Mas nada parecia justificar um homicídio e as provas circunstanciais diziam VERMA em letras bem gordas.
Kovac suspirou e olhou em volta. O oficial de diligências gracejava com o escrivão. A advogada de defesa, uma mulher atarracada, com o cabelo grisalho e frisado apanhado num coque e uns óculos enormes de aros claros, pousou a sua enorme pasta em cima da mesa destinada à defesa e aproximou-se de Logan com um sorriso tolo e pretensioso no rosto.
Última oportunidade de acordo, Chris.
Nem pensar, Phyllis respondeu Logan, tirando um dossiê da grossura de uma Bíblia de dentro da pasta. Nada de facilitar a vida a tarados que se dedicam à pornografia infantil.
É uma pena que não sinta o mesmo em relação a assassinos observou Kovac, afastando-se.
O que foi que te deu para ires falar com o Verma? perguntou Liska, tirando uma batata frita do tabuleiro de plástico encarnado em que viera a comida pedida por Kovac. Chegara atrasada. Ele não esperara por ela para fazer o seu pedido. Um mentiroso de merda acrescentou.
Conhece-lo?
Não. Passou uma segunda batata frita pelo monte de ketchup que o colega tinha no prato. São todos uns mentirosos de merda. É a minha generalização do dia.
Queres comer alguma coisa? perguntou-lhe Kovac, fazendo sinal à empregada de mesa.
Não. Continuarei a comer do que tens aí.
Uma ova. Já me deves noventa e duas mil batatas fritas. Nunca mandas vir para ti.
Engordam muito.
O quê? E engordam menos se for eu que as mando vir?
Liska esboçou um sorriso breve.
Exactamente. Além disso, vais engordar por deixares de fumar. Estou a fazer-te um favor. Porque foste ter com o Verma?
Kovac largou o hambúrguer, perdendo parte do apetite. Escolhera o Patrick's por hábito, e já se arrependera. A casa encontrava-se, como sempre, atravancada de polícias. Ele pedira uma mesa ao fundo e acomodara-se no seu canto. Era um pouco assim que se sentia: encurralado contra a parede. Não gostara do que Verma lhe contara nem daquilo a que Leonard aludira; não lhe agradava saber que, se decidisse continuar a vasculhar a vida de Andy Fallen, a maioria dos outros jogadores seriam colegas seus e, muito provavelmente, nem todos inocentes.
Porque não vejo a razão por que os Assuntos Internos andariam metidos no caso Curtis. A Savard não me quis contar nada confidenciou Kovac, em voz baixa. Talvez andassem à procura do verdadeiro assassino, como o teu gajo disse. Ou, quem sabe, a investigação ainda estivesse a decorrer. Gostava de me inteirar melhor da questão antes de ir ter com o Springer para lhe fazer umas perguntas.
O Cal Springer seria incapaz de encontrar merda num pasto de vacas declarou Liska, pedindo então a uma empregada de mesa de ar desleixado que lhe trouxesse uma Coca-Cola. Mas nunca ouvi ninguém dizer que fosse corrupto.
Não passa de um idiota declarou Kovac. De um parvalhão pomposo. Gasta mais tempo a tentar organizar reuniões sindicais do que a trabalhar nos casos que tem entre mãos. Ainda assim, esse caso do Curtis parecia não levantar dúvidas. Nem mesmo o Springer devia ter podido dar cabo dele. Mas o Verma afirma que não foi obra sua.
Liska abriu muito os olhos e a boca.
Oh! Um homem inocente na cadeia!
Pois é, a pureza em pessoa corroborou Kovac com grande sarcasmo. Mas já vais ver qual foi o acordo. Ele afirma que o relógio foi posto em casa dele por um polícia. O Ogden.
Liska ficou apreensiva.
O Ogden? Aquele de ontem?
Sem tirar nem pôr. Uma alegação como essa levaria imediatamente os Assuntos Internos a intervir. O Logan disse-me que a situação cheirava tão mal que o Sabin não lhe queria mexer. E o Ted Sabin não é tipo para fugir de algo que lhe cheire mal. Sobretudo tendo em conta que o Curtis era polícia.
O Curtis era um polícia homossexual lembrou-lhe Liska. Que foi aparentemente vítima de um criminoso que ataca homossexuais. Achas que o prefeito e os seus assessores querem a atenção da imprensa focada nisso?
Kovac concordou com ela com um movimento de sobrancelhas.
O Verma também afirma que quem deu cabo do canastro ao Curtis foi um polícia.
Então, por que motivo nunca soubemos de nada disto? perguntou Liska, claramente perturbada por ter sido deixada de fora.
Aí está uma boa pergunta. Os Assuntos Internos só se meteram no caso aqui há um mês. O Verma está na cadeia pelo menos há dois. Talvez ninguém saiba que eles andavam atrás do caso. Mesmo que o Springer soubesse alguma coisa, de certeza não daria com a língua nos dentes. As chatices seriam tantas que nem ousaria falar. A ideia ainda conseguiu fazê-lo soltar uma pequena gargalhada. Ah! Ah! Os Assuntos Internos atrás do Cal Springer. Tem a sua piada.
Liska não achou graça; porém, Kovac nem reparou.
Se calhar, ninguém soube até o Andy Fallen lhes contar alvitrou a detective.
És capaz de marcar uma reunião com o teu homem misterioso e obter mais pormenores?
Liska fez uma careta.
Ele é que tem de me telefonar. Esta manhã não quis dar-me o seu número. Parecia nervoso.
A julgar pelo que lá ouviste ontem, os dos Assuntos Internos têm o nome e o número dele.
Mas não nos vão dá-lo. Nem mesmo podemos pedi-lo. O nosso caso está oficialmente encerrado.
Estará encerrado quando eu assim o entender declarou Kovac, apercebendo-se, com pouco entusiasmo, de que se tornara cioso do que era seu. Aquele caso era seu. Não queria que ninguém lhe dissesse como trabalhar nele, nem quando suspendê-lo ou algo do género. Ele só largava um caso depois de se dar por satisfeito. Ali, ainda estava muito longe disso.
Desta vez não será assim tão simples disse Liska. Adivinha quem fez com que o cadáver do Andy Fallen saltasse a fila de espera na morgue.
Kovac mostrou-se de mau humor.
Não irei ficar nada satisfeito, pois não?
É garantido.
Kovac suspirou e empurrou o seu prato na direcção da colega.
Ah, merda. Quem?
Liska separou a parte encetada do hambúrguer, depois Pegou na sanduíche e deu-lhe uma valente dentada, ficando com ketchup a escorrer-lhe da boca. Limpou-o com um guardanapo e depois fitou-o nos olhos.
O Ace Wyatt.
Esse cretino resmungou Kovac.
Para fazer um favor ao Mike.
Pois. A fazer valer o seu prestígio. A nós é que não fez favor nenhum de certeza.
Tomou um gole de cerveja e olhou à sua volta na sala, recordando a noite em que ali decorrera a festa da reforma de Ace Wyatt: demasiado barulhenta, a abarrotar de gente, quente e cheia de fumo. Viu Mike Fallen no meio do chão e a expressão tensa no rosto de Ace Wyatt.
Reflectiu no fardo que era ter um homem a quem se devia a vida, fazendo com que isso jamais caísse no esquecimento. A obrigação nunca terminava. Ace Wyatt continuava a valer a Mike Fallen, a pedir favores por ele. Era provável que a influência de Wyatt tivesse levado a que a morte de Andy Fallen fosse classificada de acidental em vez de suicídio, poupando Mike a esse fardo e libertando o seguro de vida de Andy.
Recebeste os relatórios? perguntou Kovac. O Stone já os finalizou?
Quem fez a autópsia não foi o Stone mas sim o Upshaw.
Upshaw? Quem diabo é o Upshaw?
Um tipo qualquer novo. Até engraçado, se gostarmos de tipos que passam o dia com as mãos enfiadas em cadáveres. Eu dispenso, obrigada disse Liska, acabando de engolir o último pedaço de hambúrguer.
Reparaste em mais algum pormenor nele? Como, por exemplo, só ter metade do cérebro?
Pelo menos metade, diria mesmo. Não se babava. Se percebe ou não do seu trabalho... ainda é demasiado cedo para saber.
Óptimo.
O relatório preliminar diz que o Fallen morreu de asfixia. Não foram encontrados nenhuns ferimentos significativos no corpo. Nem sinais de luta. Ele teve relações sexuais?
O Upshaw disse que não encontrou nenhum sémen onde devia estar. Portanto, ou se tratou de alguma brincadeira que deu para o torto, ou estavam a praticar sexo seguro, ou guardavam o grande acontecimento para o fim. Ou não teve nada a ver com sexo.
Resultados de exames tóxicológicos?
Por enquanto, ainda não há nada escrito, mas posso telefonar ao Barkin. Ele diz que o Fallen tinha um nível de alcoolemia muito baixo. E um barbitúrico, algo chamado "zolpidem", um soporífero com o nome comercial de Ambien. Isso teria maior consistência que uma brincadeira sexual, apesar de a quantidade não ser de modo algum letal, mesmo em combinação. Há muitos suicidas que se drogam para amenizar a coisa. Agora se eles encontrassem Rohypnol ou algo do género, isso seria outra história. Ninguém planeia divertir-se a violar-se a si próprio, excepto, talvez, um masoquista solitário.
Kovac franziu o sobrolho perante uma ideia que ainda não estava muito clara.
Alguém verificou o conteúdo do armário de medicamentos do Andy Fallen?
Na altura não se achou que havia motivos para isso.
Eu quero saber.
Não te darão autorização para tal.
Para que preciso eu de uma autorização? Quem é que se oporá?
Liska encolheu os ombros e chupou pela palhinha a sua Coca-Cola, passeando o olhar pela sala. Recostou-se, de rosto inexpressivo mas com o olhar subitamente severo e atento.
O que foi? quis saber Kovac.
O Cal Springer vem aí. Está com ar de quem comeu demasiados jalapenos e não consegue livrar-se dos gases.
Springer movia-se por entre a multidão como uma figura de madeira, os músculos retesados de raiva, o rosto corado de ira, frio ou ambas as coisas. Possuía uma cara comPrida e achatada, com um nariz longo e adunco, tudo isso encimado por uma cabeleira desordenada de caracóis castanho-acinzentados. O seu olhar abateu-se sobre Kovac, o que O fez precipitar-se em frente e ir contra a empregada de mesa de ar desleixado. Esta entornou uma cerveja e praguejou, pelo que Springer se perdeu em desculpas desajeitadas.
Kovac sacudiu a cabeça com ar de censura.
Ei, Cal, ouvi dizer que punhas as mulheres de rastos. Não sabia que era no sentido literal.
Springer apontou-lhe um dedo.
O que estiveste tu a fazer com o Renaldo Verma?
Dançámos o tango e fumámos um cigarro.
O advogado dele ligou-me hoje à tarde. Ninguém o informou daquele encontro. Nem a mim.
Ninguém tinha nada que o informar a ele. O Verma concordou em falar comigo. Se ele quisesse, tinha chamado o advogado. E desde quando é que eu tenho de te pedir licença para limpar o cu?
O caso é meu.
E está encerrado. Já não tens nada a ver com isso. Qual é o problema?
Springer olhou de relance em volta, como quem está prestes a revelar importantes segredos de Estado.
Não está encerrado.
Oh, por causa dos Assuntos Internos, não é? perguntou Kovac em voz alta.
Springer parecia agoniado.
Eles não têm nada contra ti, pois não? perguntou-lhe Liska. Quero dizer, não foste tu que colocaste o relógio em casa dele, pois não, Cal?
Eu não fiz nada.
O que em ti é o mais normal disse Kovac. Se isso fosse considerado crime, estavas feito.
Springer fitou-o com um olhar irado.
Conduzi uma investigação isenta. Trabalhei no caso segundo as regras. O Verma não tem nada por onde me pegar. Nem os Assuntos Internos.
Então, porque estás a perder tempo a tentar chatear-me?
Springer respirou fundo, susteve a respiração durante uns segundos, como um homem que tenta expelir algo do seu corpo, fazendo força.
Mantém-te afastado disto, Kovac. Acabou. O caso está encerrado, assim como tudo o que se lhe relaciona.
Bem, vê se te decides, Cal. Está encerrado ou não? perguntou Kovac, observando-o com ar pensativo. Reparou que Liska também fazia o mesmo, embora se notasse uma certa tensão na sua expressão, como se a perturbasse ver Cal Springer tentar dominar os nervos.
A tenente dos Assuntos Internos disse-me que não há nada de novo em relação ao caso do Curtis afirmou Kovac. Pelo menos hoje. O investigador que ela tinha no caso morreu.
Eu sei murmurou Springer, desviando o olhar, o rosto a adquirir a coloração normal. Já soube. Suicídio. Uma pena.
É o que dizem.
Springer olhou de novo para ele.
O que quer isso dizer?
Kovac encolheu os ombros.
Nada. É só uma maneira de falar.
Springer avaliou o que acabara de ouvir por instantes, assim como as opções que tinha. Por fim, os ombros descaíram-lhe e o ar saiu-lhe dos pulmões.
Olha disse. Não posso ter os Assuntos Internos em cima de mim. Tenciono candidatar-me a delegado sindical.
Tê-los em cima de ti até deve ajudar-te.
Só se tipos como tu se derem ao cuidado de votar. Possuo planos mais importantes para a minha vida do que tu, Kovac. Agradeço que não me dês cabo deles.
Kovac viu-o afastar-se, reparou que voltava a dar um encontrão na mesma empregada de mesa contra quem chocara à entrada, com a mente nitidamente longe do Patrick's.
Segundo as regras troçou Kovac. Que regras achas que serão? Conselhos Práticos de Investigação de Homicídios para Tolos?
Liska não lhe respondeu. Virara-se de lado para ver Springer sair; no entanto, parecia olhar para algo muito mais distante. Talvez a uma distância de anos-luz, pensou Kovac. Estendeu o braço por cima da mesa e tocou-lhe no ombro.
Ei, essa foi boa observou. Digna de registo.
Deixa o homem em paz, Sam disse a detective, voltando-se para a frente. O Springer é boa pessoa. Não merece o que os Assuntos Internos possam fazer-lhe por dá cá aquela palha.
Se ele souber alguma coisa, quero ser informado.
Hei-de descobrir.
Kovac observou-a. A colega fugiu ao seu olhar. Parecia ter apenas catorze anos e estar na posse de um segredo tremendo. O conhecimento de que o capitão da equipa de futebol bebia cerveja e fumava cigarros. Viu-a estender a mão hesitantemente para a última batata frita e passar a ponta desta pelo monte de ketchup, que começara a coagular.
Passa-se alguma coisa contigo? perguntou-lhe calmamente.
Liska contorceu os lábios no seu velho sorriso trocista.
Claro respondeu. São as minhas hormonas. Tens alguma solução para isso?
Se ficaste com as hormonas alteradas por causa do Cal Springer, tenho vontade de te dar um banho de água gelada com uma mangueira.
Nem penses. Acabei de comer retorquiu ela. Foi um dia muito longo. E a noite também. Vou para casa.
Pensei que não querias ter nada a ver com os Assuntos Internos.
E não quero declarou Liska, atarefando-se a recolher a sua tralha. Como é que isso me impede de descobrir o que o Springer sabe? Ele também não quer ter nada a ver com eles.
Como queiras.
Liska tinha direito a um mistério ou dois, supunha, embora a ideia não lhe agradasse.
Levantou-se e deixou algumas notas em cima da mesa, depois tirou o sobretudo do cabide onde estava pendurado, ao fundo do banco.
Vou ver o que o Andy Fallen tinha no seu armário de medicamentos.
Sam Kovac, o detective em serviço permanente.
Que mais tenho eu para fazer com o meu tempo?
Nada, pelo que se vê. De vez em quando, não tens vontade de algo mais? perguntou-lhe Liska, deslizando para fora do banco.
Nem por isso. Não ligou à imagem de Amanda Savard que lhe veio à cabeça. Era demasiado ridícula para ser apelidada, sequer, de fantasia. Quando não se deseja nada, não se fica desiludido por nada se conseguir.
O estacionamento em altura recebera o nome de um polícia morto a sangue-frio numa pizaria em Lake Street. Liska lembrava-se sempre do facto quando se atrasava e tinha de ir à procura do seu carro sozinha, ou quando estava cansada e a encarar o futuro com pessimismo. Naquela noite, era tudo junto. A hora de ponta passara, o estacionamento parecia deserto e ela não ia nada bem-disposta. Kovac voltara ao gabinete para ir buscar a chave da casa de Fallen. Ela não aceitara a oferta do colega para a acompanhar até ao carro.
Sentiu os pêlos eriçarem-se-lhe na nuca. Parou abruptamente e voltou-se para trás, perscrutando as sombras com o olhar. O som ribombava em volta e ecoava no labirinto de cimento, tornando difícil identificar a sua origem. A porta de um carro a bater tanto poderia vir do nível de cima como do de baixo. Um barulho de passos poderia vir da ponta da fila. Ou dali mesmo atrás. Os estacionamentos em altura são os locais preferidos dos ladrões e dos violadores. Os vagabundos, na sua maioria bêbedos ou dementes, gostam das rampas para se abrigar e para as utilizar como casa de banho quando são expulsos de lugares como as bibliotecas públicas.
Liska sentia o ar a queimar-lhe os pulmões enquanto aguardava, atenta, virando-se lentamente, com uma das mãos enfiada dentro do casaco para sentir o punho da arma que levava à cintura.
Não viu ninguém nem ouviu nada de especial. Talvez estivesse apenas enervada, mas era por uma causa justa. Passara o dia a investigar a morte de dois polícias. Sentia-se como se alguém lhe tivesse colocado uma almofada sobre a cabeça e lhe batesse com um ferro. Queria a sua casa, os seus fatos de treino, os seus filhos, algumas horas durante as quais pudesse ignorar o facto de se ter oferecido para remexer num vespeiro dos Assuntos Internos.
Que grande disparate o meu murmurou, desprendendo o coldre da arma e tirando as chaves do bolso do casaco.
Agora tinha de arranjar uma maneira habilidosa de obter a informação de Cal Springer. Sem fazer ondas. Indispensável.
Era extremamente difícil imaginar Springer metido em algo desonesto. Era uma pessoa que raramente aceitava um almoço, quanto mais meter-se numa conspiração, mas não havia como negar o cheiro a medo que deixara escapar. Era um odor que a sua memória associava ao pai. Algo que ela detestava.
Porque não dei ouvidos à minha mãe? murmurou. "Aprende um ofício, Nikki. Cosmética. Hotelaria. Sê ambiciosa. Arranja um emprego onde possas usar uma saia bonita. Quem sabe, conhecer o homem dos teus sonhos."
O Saturn azul-escuro que lhe servia de escritório móvel e de táxi encontrava-se na ponta da fila, encostado à parede, num sítio demasiado escuro para o seu gosto, agora que a noite caíra. De nariz no ar, pronta para uma fuga rápida, carregou no botão do controlo remoto e praguejou por entre dentes. Nada aconteceu. Nenhum clique de fechaduras a destrancarem-se. Nenhumas luzes a piscar. O carro andava a funcionar mal há semanas, umas vezes trabalhava, outras não. Liska, por seu lado, é que parecia andar sempre a trabalhar e nunca arranjava tempo para o levar à oficina. Não parecia motivo para grande preocupação. Até dar consigo sozinha no meio de uma rampa de estacionamento às escuras.
Um baque e um barulho de raspão fizeram-na imobilizar-se pela segunda vez. De um outro nível do estacionamento, chegava-lhe a chiadeira de protesto de uns pneus. Sentia uma presença no piso em que se encontrava. Outro ser humano. A sensação bulia-lhe com os nervos. Ela nunca engolira essas patranhas sobre racionalizar e tentar perceber o que se passa, pelo menos numa situação em que se sentisse realmente em perigo. Habituara-se a confiar mais nos instintos do que na opinião de psicólogos de trazer por casa. Se sentia que algo estava mal, era porque, com toda a probabilidade, qualquer coisa estava mal.
Ei! Quem está aí? perguntou, voltando-se lentamente. A rapariga valente. A voz que mostrava coragem e impunha respeito. As batidas do seu coração tinham acelerado bastante.
Foi-se aproximando do carro, a chave na mão esquerda e a direita a dirigir-se de novo para o coldre, de onde tirou a arma. Tentou acertar no buraco da fechadura com a ponta da chave, mas falhou uma, duas vezes. Mantinha os olhos perscrutando em volta, da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, captando... algo... alguém. O lado sombrio de uma coluna de cimento que parecia um tudo-nada grossa, vagamente distorcida.
Liska pestanejou e tentou focar o olhar. Estava demasiado escuro. Poderia ter sido qualquer coisa, ou nada.
A chave encontrou a fechadura. Deslizou para dentro do Saturn, fechou a porta, accionou o comando central de fecho das portas, mas não obteve resposta. Amaldiçoou o carro e pôs o motor a trabalhar, carregou de novo no botão e dessa vez teve o prazer de ouvir o mecanismo funcionar. Continuava de olhos fixos na coluna, a uns metros de distância. Não via nenhum movimento, mas continuava a ter a sensação de que estava ali uma criatura viva a observá-la.
Eram horas de ir embora.
Atirou a pasta para cima do banco do passageiro, para o meio de toda aquela tralha de mãe trabalhadora, uma confusão com pior aspecto que o do costume, e que se espalhava também pelo chão. Correio, lixo, um saco do Burger King, um par de revistas, um ténis de um dos rapazes, alguns super-heróis em plástico. E muito vidro partido.
O coração voltou a acelerar.
A janela do lado do passageiro desaparecera, reduzida a mil fragmentos de vidro que jaziam sobre o banco e no chão do carro, misturados com o correio e o lixo, o saco do Burger King, o ténis perdido de RJ. e os super-heróis. Devia ser obra de algum drogado, pensou Liska, provavelmente fora o fantasma que quase vira ou ouvira sombras, que agora se escondia, à espera de que ela se fosse embora para poder ir partir o vidro da janela de mais alguém, à procura de algo de valioso para roubar. Era a explicação mais plausível.
Ligou o motor e engrenou uma mudança. Desceria até ao nível da rua e telefonaria da área bem iluminada onde ficava a cabina do encarregado do parque, a pedir um carro-patrulha.
Uma luzinha vermelha começou a piscar no mostrador, indicando que o motor estava a precisar de uma visita à oficina.
Pois sim. E a mim, quem é que me faz uma revisão? resmungou, fazendo sair o automóvel do lugar de estacionamento.
Iluminou a coluna com os faróis. Nada. Ninguém. Tentou libertar-se da tensão, respirando fundo; porém, esta não desapareceu.
Olhou pelo espelho retrovisor ao passar pela coluna e captou uma imagem qualquer. Vislumbrou uma figura masculina de pé, junto a um carro grande, três lugares depois daquele onde estivera estacionada.
Uma pessoa num parque de estacionamento não tinha nada de especial. Todos os automóveis acabavam por ser levados por alguém, mais tarde ou mais cedo. Normalmente abre-se uma porta e acende-se uma luz. Mas não foi o que aconteceu. O tipo desapareceu de vista. Liska desviou o olhar do espelho e observou sobre o ombro esquerdo. Tinha a mão direita pousada na arma que colocara no assento, a seu lado: uma pequena e eficaz Sib Sauer, num tamanho que se encaixava perfeitamente na sua mão e, não obstante, capaz de derrubar um touro que investisse contra ela.
De onde é que ele viera? Estivera à coca de outra pessoa, ao ponto de lhe doerem os olhos e os ouvidos. Nunca ninguém se aproximara dela pela rampa sem que desse por isso.
Ei!
A voz atingiu-a como uma bala. Liska virou rapidamente a cabeça para a direita e viu que um homem se precipitava Para o carro, enfiando a cabeça e parte do torso pela janela.
Ei! gritou ele de novo. O seu rosto parecia ter sido esculpido em madeira com um canivete. De traços marcados, sujo. Dentes amarelos. Barba imunda. Olhos escuros, de expressão selvagem.
Passe para cá cinco dólares!
Liska carregou no acelerador. Os pneus chiaram no cimento. O homem gritou de raiva, agarrando com as mãos rudes os ferros do encosto de cabeça do banco do passageiro da frente. Liska pegou na Sig e apontou-a à cabeça do indivíduo.
Saia do meu carro! Sou da polícia!
O homem abriu a boca e soltou um tremendo rugido de raiva.
Liska tinha a arma a poucos centímetros da boca dele.
Larga o carro, patife!
Servindo-se da mão livre, virou o volante para a esquerda e depois carregou nos travões, fazendo o Saturn derrapar. Um dos painéis da retaguarda bateu numa carrinha e o bêbedo largou o encosto do banco e foi projectado para fora da janela.
Liska parou o carro, apeou-se com um salto e deu a volta ao automóvel de arma firmemente em riste. O bêbedo jazia, enrodilhado sobre si próprio, em frente da traseira de um velho e imundo Cadillac dos anos setenta, parecendo morto de tão imóvel, com os olhos fechados. Merda, só lhe faltava aquela: ter morto alguém. O vigilante da área de estacionamento subiu a rampa a correr, vindo do piso de baixo: um tipo gordo que mal cabia no seu uniforme, com uma parca demasiado pequena e aberta, para deixar sair a barriga de cerveja proeminente.
Jesus, minha senhora! exclamou, por entre sorvos de ar. Estavam vinte graus e ele suava qual cavalo de corrida, com o cabelo castanho colado à cabeçorra. Ao ver a arma, esbugalhou os olhos e ergueu os braços.
Sou da polícia informou-o Liska. Este homem está preso. Há algum segurança de serviço?
Hum... está a fazer um intervalo.
Óptimo. Na espelunca de strip ao fundo do quarteirão, não é?
O vigilante abriu e fechou a boca algumas vezes. Liska apalpou o bêbedo em busca de sinais de vida. Respirava regularmente e a pulsação estava boa. Não havia sangue à vista. Tirou um par de algemas do bolso do casaco e prendeu uma delas ao pulso do indivíduo.
Tem algum telemóvel consigo? perguntou a detective, olhando para o vigilante.
Tenho, sim, senhora.
Ligue para o Cento e Doze. Peça a comparência da polícia e de uma ambulância.
O homem parecia prestes a deitar a correr para se esconder.
Sim, senhora. Pareceu-me ouvi-la dizer que era da polícia.
Faça o que eu digo.
O bêbedo entreabriu um dos olhos raiados de sangue e tentou focar a vista em Liska.
Não passas de um rapaz declarou. Dá-me cinco dólares.
Liska fitou-o, irada.
Tens o direito de não falar. Aproveita.
Prendeu a outra algema ao manipulo do Cadillac. Em seguida voltou ao Saturn e tirou uma enorme lanterna de patrulha Maglite do porta-luvas. O objecto era pesado e tinha a grossura de um cacete. Quando ela saiu do carro, o vigilante continuava com os braços no ar.
Liska fitou-o com pouca paciência.
Não ficou de telefonar?
Não queria fazer movimentos precipitados.
Oh, por amor de Deus!
Acendeu a Maglite com a mão esquerda, enfiou a Sig no coldre e começou a subir a rampa.
Onde vai? perguntou o vigilante.
À procura do papão. Faça a chamada, como lhe disse.
Eram quase dez horas da noite quando Liska estacionou em frente de casa, exausta e aborrecida. Ainda mais ficou ao ver o carro de Speed a bloquear o acesso à sua garagem. Não importava que não conseguisse enfiar o carro lá dentro por causa da acumulação de tralha. Era uma questão de princípio.
Ficou sentada no Saturn, a gelar, pois o aquecimento não conseguia competir com o frio que entrava pela janela partida. Não encontrara o seu fantasma na rampa. Os colegas que chamara prenderam o bêbedo, Edward Cedes, e acompanharam a ambulância até ao hospital, onde se entreteriam a beber café e a namoriscar com as enfermeiras nas urgências, enquanto esperavam que Edward recebesse alta. De pouco o podiam acusar, a não ser que conseguissem provar que fora ele quem partira o vidro da janela, acto que Liska não presenciara. Algo lhe dizia que não fora o que acontecera. Gedes poderia ter quebrado o vidro e ficado à espera que ela aparecesse para depois se atirar a ela, mas achava que não fora esse o caso.
Não faltava nada no carro, não que lá tivesse alguma coisa de valor guardada. Ninguém o arrombaria para roubar os super-heróis de RJ. O porta-luvas não fora aberto. Não haviam tocado na aparelhagem de som. Quase desejou que o tivessem feito. O roubo de algo daria sentido ao arrombamento. A única coisa, dentro do carro, que fora mexida fora a sua correspondência, de pouca importância. No entanto, alguém disposto a arrombar o seu carro numa garagem pública dispunha agora da morada de sua casa.
O fantasma no meio das sombras.
Porquê o seu carro, de entre todos os que estavam no estacionamento?
Agarrou nas suas coisas e dirigiu-se para casa. Ninguém deu pela sua entrada. Na sala de estar decorria uma batalha. A um canto havia uma tenda improvisada com um cobertor. As cadeiras da sala de jantar tinham sido arrastadas para perto da árvore de Natal, onde, voltadas ao contrário, simulavam um forte. Os rapazes, em pijama e com as caras pintadas com tinta de camuflagem, corriam à sua volta, brandindo sabres de laser em plástico, fazendo barulho suficiente para deitar a casa abaixo. O seu ex-marido encontrava-se acocorado atrás do sofá, com um robe de banho por cima da roupa, um trapo preto amarrado em volta da cabeça e uma espada de samurai refulgente na mão.
Bem-vinda a casa, mamã proferiu Liska, pousando a bolsa em cima da mesa da casa de jantar. O teu dia correu bem? Nem por isso respondeu a si mesma. Mas obrigada pela preocupação. Sabe-me bem voltar para casa, onde tudo está em ordem e tranquilo e eu me sinto estimada por todos.
Kyle foi o primeiro a parar abruptamente, desaparecendo-lhe o sorriso do rosto e começando a olhar ora para a mãe, ora para o pai.
Dois anos mais velho do que R.J., lembrava-se bem das hostilidades que tinham pautado o fim do casamento e era sensível à tensão que permanecera entre os pais.
Olá, mãe cumprimentou, olhando depois para o brinquedo que tinha na mão e pondo-o de lado, como se tivesse ficado atrapalhado por ser apanhado a brincar. Possuía o ar sedutor do pai, mas uma seriedade que faltava nos genes de Speed.
Olá, grandalhão respondeu Liska, aproximando-se do filho para lhe passar a mão pelo cabelo e dar um beijo na testa. Kyle estava de olhos baixos.
RJ guinchava que nem um porco e corria em círculos brandindo o seu sabre com um empenho inabalável, recusando-se teimosamente a admitir a presença da mãe. Liska olhou para Speed, sentindo-se invadir pela habitual sensação de raiva.
Ei, Speed, engraçado encontrar-te aqui. De novo. Quase pareces um pai ou coisa do género. Onde está a Heather?
Mandei-a para casa retorquiu ele, endireitando-se. Porque havias de pagar a uma baby-sitter sem ser preciso? Eu hoje à noite dispunha de algum tempo livre.
És muito gentil em te preocupares com as minhas questões financeiras disse Liska, sentindo uma vontade terrível de acrescentar: especialmente se considerarmos que nunca te dás ao cuidado de contribuir para a causa. Mas conteve-se, pensando nos filhos.
Já passa há muito da hora de deitar, meninos declarou, fazendo, mais uma vez, de má da fita e sentindo-se ressentida com Speed por isso. Façam o favor de ir lavar a cara e escovar os dentes.
Kyle fez menção de sair da sala, mas RJ. olhou para ela com os olhos muito abertos e depois soltou um berro de enregelar o sangue e deu um salto no ar, gesticulando com os braços e as pernas ao melhor estilo ninja.
Kyle foi até junto do irmão e agarrou-lhe num braço.
Acaba com isso, cabeça de burro ordenou com o tom mais severo que conseguiu arranjar.
Liska não o repreendeu.
Sei que tiveste uma infância ao deus-dará disse Liska a Speed depois de os rapazes saírem da sala. Mas os teus filhos andam na escola. E para isso precisam de dormir um determinado número de horas.
Deitarem-se tarde uma noite não os matará, Nikki.
Não.
Mas porque havias de escolher esta noite?, apeteceu-lhe perguntar. No entanto, tinha receio de desatar a chorar se o fizesse. Estava demasiado esgotada para aturar Speed e o hambúrguer de Kovac já fora digerido há muito. Esfregou a cara com as mãos e afastou-se dele, atravessando a sala de jantar e dirigindo-se para a cozinha, onde começou a remexer num dos armários de baixo.
Apercebeu-se de que Speed se pusera à entrada, encostado à porta. Tirara o robe, mostrando uma T-shirt preta dos Aerosmith, colada ao peito e à barriga, ambos sem qualquer tipo de adiposidade. As mangas curtas tinham sido puxadas para cima, revelando os braços de músculos bem torneados. Via-se bem que exercício físico não lhe faltava.
Queres falar sobre isso? perguntou-lhe ele.
Desde quando é que falamos do que quer que seja?
Podemos começar esta noite.
Esta noite não quero começar nada.
Tirou do armário uma caixa contendo sacos de plástico azuis translúcidos para o lixo e examinou o tamanho e a resistência de um deles.
Para já, terá de servir.
De servir para quê?
Alguém deu cabo de uma das janelas do meu carro. Quando se vai pela auto-estrada faz uma ventania dos diabos.
Malditos drogados murmurou Speed. Roubaram alguma coisa?
Não.
Limitaram-se a partir a janela?
E a remexer na correspondência publicitária que estava no banco da frente.
Tens a certeza de que só lá tinhas isso? Nenhuma documentação relacionada com os cartões de crédito? Nenhuma conta do telemóvel? Nada do género?
Nada disso.
Não tocaram na aparelhagem de som?
A quem interessaria? É um Saturn. Tem um rádio. Quem o iria querer?
O facto de não terem levado nada não me agrada.
A mim também não. Abriu uma gaveta e procurou um rolo de fita adesiva. Quem me dera que tivessem levado o carro. A luz do motor começou a acender. Com a sorte que tenho, ainda fico sem carro.
Andas a trabalhar nalgum caso em que alguém possa querer chatear-te? perguntou Speed, dobrando compulsivamente um dos sacos até o reduzir ao mais pequeno quadrado possível.
Liska pensou no homem da parca fosforescente, em Cal Springer, nos Assuntos Internos, no agente Ogden e nos dois polícias mortos. Sacudiu a cabeça, olhando para o saco.
Nada de especial.
Ele está demasiado próximo, pensou. Não o quero assim. Sobretudo esta noite.
Ouvi dizer que o médico legista já deu o parecer sobre o teu tipo dos Assuntos Internos observou ele. Acidente, foi?
Liska encolheu os ombros ao de leve e tentou descolar a ponta encetada do adesivo.
Assim o seguro paga afirmou ela.
Tens alguma outra opinião?
O que eu penso não interessa. O Leonard diz que o caso está encerrado.
Se tencionas continuar a investigar, interessa. Qual é a tua ideia? Que aquilo lhe aconteceu por causa de alguma investigação que andava a fazer? Achas que algum polícia corrupto o linchou? As coisas não andam nada bem lá por fora, Nikki. O que pode andar a acontecer no Departamento de Polícia de Minneapolis que leve alguém a cometer semelhante acto?
Eu cá não penso nada disse Liska impaciente. E não estou dentro do que se passa nos Assuntos Internos. Seja como for, não importa. A tenente ordenou o encerramento do caso.
Portanto, está encerrado disse Speed. Já não tens nada a ver com ele. Deve ser um alívio.
Claro retorquiu ela sem convicção. Sentia-o a observá-la, aguardando o que ela teria mais para dizer.
Nikki...
Notava-se frustração na sua voz, e também uma certa ternura. Talvez demasiada, até. Ou apenas ela tivesse vontade de que fosse assim. Ele tocou-lhe no queixo e ela ergueu os olhos para ele, sustendo a respiração. Muitos aspectos na relação entre os dois tinham azedado no decorrer dos últimos anos, mas nunca a ligação física. Ele sempre a excitara fisicamente... e, para seu eterno desespero, provavelmente nunca tal deixaria de acontecer. A química nada tinha a ver com ciúmes, rivalidades ou infidelidade.
Vocês vão beijar-se ou não?
RJ! exclamou Liska, enquanto Speed expirava ruidosamente. Não se fazem perguntas dessas às pessoas. É falta de educação.
E então? O garoto não conseguira retirar todos os vestígios da tinta da cara. Liska inclinou-se e beijou-lhe uma pequena mancha que tinha na testa.
E então, gosto muito de ti disse-lhe ela. São horas de ir para a cama.
Mas o pai...
Já estava de saída completou Liska, olhando significativamente para Speed.
Estás sempre a mandá-lo embora.
Deixa-te disso, Rocket interveio Speed, levantando o filho e pondo-o às cavalitas. Vou meter-te na cama e contar-te como foi que uma vez prendi um matulão dos grandes.
Liska viu-os sair da cozinha, desejando, em parte acompanhá-los. Não por querer dar qualquer impressão de que possuíam uma vida familiar normal. Tinha vontade de ir com eles porque sentia ciúmes do elo que Speed estabelecera com os miúdos. Mas não era nada bonito deixar-se levar por esse tipo de sentimentos. Nem pela vontade de que o ex-marido lhe tocasse.
Pegou no saco de plástico e no rolo de fita adesiva e saiu pela porta da cozinha, grata pelo impacte do vento frio da noite.
Que grande estilo murmurou, enquanto tapava a abertura da janela com o saco e o prendia com a fita. Nada como um bocado de fita adesiva para dar classe a um carro.
A vizinhança encontrava-se tranquila. A noite mostrava-se límpida e fria, com um céu coberto de estrelas como era raro ela ver naquela zona da cidade. O vizinho deste lado da casa trabalhava na United Way. No outro lado, vivia um casal empregado na 3M há muitos anos. Nunca nenhum deles vira um tipo enforcado na ponta de uma corda. Ali de pé, no meio do bairro, Liska sentiu-se subitamente só, diferente e à parte das outras pessoas devido às experiências que tivera e viria a ter. À parte, sobretudo naquela noite, pela violência de que fora vítima.
Alguém que não conhecia e não podia identificar tinha a sua morada.
Olhou para o passeio e para a rua. Não passava nenhum carro... Não se viam olhos a observá-la do meio da escuridão... Nenhum movimento estranho junto da janela do seu quarto...
A vulnerabilidade não era uma sensação conhecida nem apetecível. Trespassava-a e subjugava-a como um arrepio de febre. A antecipação do medo. Uma espécie de fraqueza. Uma sensação de vulnerabilidade. De isolamento.
Apetecia-lhe bater em alguém.
Finalmente, sós.
Liska assustou-se e deu meia volta, reconhecendo a voz uma fracção de segundo antes de ficar cara a cara com o ex-marido.
Raios, Speed! Porque será que ainda não morreste?
Não sei. Há muito tempo que ando à espera de que me mates. O sorriso dele iluminou a escuridão.
Tiveste sorte em eu não ter uma arma na mão observou ela.
Se calhar, continuo a ter sorte por ainda não a teres na mão.
Enfiou as mãos nos bolsos do casaco já usado e tirou um maço de Marlboro e um isqueiro. Acendeu um cigarro.
Neste momento não te dava um tiro disse Liska. Quero encerrar esta noite. Se disparasse sobre ti, teria de ficar a pé até às tantas com a detenção e tudo o resto. Não vale o trabalho.
Caramba, obrigado.
Estou cansada, Speed. És capaz de te ir embora?
Speed inalou profundamente o fumo do cigarro e olhou para a rua, onde um carro passava, sem parar. Liska reparou nele pelo canto do olho e aconchegou mais o casaco contra si. Amanhã ligas a alguém para te vir arranjar esse vidro, está bem? disse Speed, deixando cair cinza do cigarro ao indicar o carro com um gesto.
Até já estou ao telefone mentalmente.
É que esse saco de plástico dá imenso nas vistas e é um perigo.
Obrigada por te preocupares com a minha segurança.
És a mãe dos meus filhos.
O que diz muito sobre a minha capacidade de julgamento, não é?
Ei! Speed olhou-a directamente nos olhos e atirou o cigarro para a neve. Não me digas que te arrependes dos rapazes.
Liska não desviou o seu olhar.
Não me arrependo dos rapazes. Nem por um instante.
Mas arrependes-te de nós dois.
Porque fazes isto? perguntou Liska com ar fatigado. Parece um pouco tarde de mais para arrependimentos e recriminações, Speed. O nosso casamento morreu há muito tempo.
Speed tirou as chaves do bolso e destacou a que queria.
O arrependimento é uma perda de tempo. Há que viver o momento. Nunca se sabe qual vai ser o último.
E com essa frase animadora... Liska voltou-se para ir para casa.
Quando ia a passar pelo marido, este agarrou-a por um braço. Apetecia-lhe beijá-la. Ela podia vê-lo nos seus olhos, senti-lo na tensão do seu corpo. Mas não o desejava, esperando que ele também pudesse vê-lo e senti-lo.
Passa bem, Nikki disse-lhe Speed suavemente. És demasiado ousada para teu próprio bem.
Sou aquilo que tenho de ser retorquiu ela.
Speed sorriu-lhe tristemente ao ouvir as palavras e largou-a.
Pois é. Foi uma pena eu nunca ter sido aquilo de que precisavas.
Eu não diria... nunca observou ela, porém sem o fitar. Manteve os olhos no chão.
Não o viu afastar-se, apenas fazer marcha atrás com o carro pelo carreiro e enveredar pela rua. Ficou ali até o vermelho das luzes traseiras se diluir na distância. Estava novamente sozinha, pensou, olhando para o remendo que pusera na janela do seu carro. Ou assim esperava.
Subiu os degraus das traseiras e entrou em casa. Trancou a porta e acendeu as luzes. Quando ia a retirar-se para o seu quarto, sozinha, um carro escuro passou na rua... pela segunda vez.
A casa de Andy Fallen era um ponto escuro no bairro, destacando-se apenas pelo reflexo das luzes do alpendre do vizinho na faixa amarela que a polícia estendera diante da porta da frente.
Kovac afastou a fita e serviu-se da chave para entrar. Uma casa acabada de ser passada a pente fino por uma unidade de investigação criminal dava sempre a sensação de ter sido violada. O local fora vasculhado, examinado e devassado por uma dúzia, ou mais, de desconhecidos, sem a aprovação do dono da casa. Os objectos pessoais haviam sido remexidos e a privacidade violada. Tinham sido feitos juízos de valor, observações. Tudo isso parecia pairar no ar como um cheiro a azedo. Não obstante, Kovac tentava imaginar aquele lar na esperança, se possível, de entrar nas divisões e aperceber-se de como a vítima fora antes de ficar reduzida a um corpo sem vida.
Começou pela sala de estar, com a árvore de Natal, um pinheiro artificial, decorado com luzinhas claras e uma fita de contas vermelhas. Ajoelhou-se a fim de examinar melhor as etiquetas presas aos poucos presentes embrulhados, tomando nota dos nomes. A maioria era de Andy Fallen, dirigidos a Kirk, Aaron, Jessica... Teria de comparar os nomes próprios com os que constavam da agenda de telefones e tentar obter uma lista dos amigos. Faria o mesmo com os cartões de Natal que enchiam um pequeno cesto em cima da mesinha da sala.
Passando à zona de lazer, examinou os títulos escritos nas lombadas das cassetes de vídeo. O Milagre da Rua 34. Duas Semanas de Prazer, com Fred Astaire e Bing Crosby. Do Céu Caiu Uma Estrela, um filme que principiava com um homem que queria pôr termo à vida, mas acabava com todas as tolices nauseantes de um final feliz ao estilo de Hollywood. Nenhum anjo chamado Clarence salvara Andy Fallen do seu destino. A experiência de Kovac que os anjos nunca aparecem quando fazem falta.
Atravessou a sala de jantar, a caminho das escadas. A divisão parecia ter tido pouco uso, como acontece com a maioria das salas de jantar.
A casa de banho principal, que ficava no topo das escadas, estava cheia com a habitual variedade de coisas de que um homem necessita diariamente. Não havia toalhas penduradas. Se as houvesse, podiam ter sido examinadas em busca de cabelos ou fluidos humanos e os resíduos enviados para comparações de ADN. Se a morte de Fallen tivesse sido nitidamente criminosa ou declarada como tal, ele poderia mandar os peritos de investigação criminal examinar os resíduos das canalizações das louças sanitárias, em busca de pêlos e cabelos. Tinha experiência de que esse tipo de indícios físicos nunca constituíam prova determinante; no entanto, os advogados adoravam juntá-los aos seus dados. Mas aquele caso estava oficialmente encerrado e ninguém se poria à pesca de pêlos púbicos na banheira de Andy Fallen.
Na prateleira do armário de medicamentos de Fallen havia um frasco de Zoloft. Antidepressivo. Dr. Seiros. Kovac tomou nota de todas as informações pertinentes e deixou o frasco no mesmo sítio. Havia também um outro de Tylenol e ainda um de melatonina. Nada de Ambien.
O cheiro a morte pairava no quarto, sobrepondo-se a uma camada de desodorizante ambiental. As superfícies tinham sido empoadas para a obtenção de impressões digitais, e em cima da cómoda e das mesas-de-cabeceira ainda se viam vestígios de pó. De resto, o quarto estava impecável como o de um hotel novo. A colcha azul encontrava-se pressurosamente esticada sobre a cama de quatro colunas. Kovac puxou-a para trás num dos cantos. Lençóis limpos. Andy Fallen, ao contrário de seu pai, não juntava pilhas de roupa suja nem copos com restos de uísque. Tinha o guarda-fato arrumado. Guardava nas gavetas da cómoda a roupa interior dobrada e as meias, aos pares.
Na mesa-de-cabeceira ao lado da cama via-se um romance de capa rija, que contava a história da jornada atribulada de um jovem pela imensidão do Alasca. Se calhar suficientemente depressivo para garantir mais um Zoloft ou dois. Dentro da gaveta encontrava-se um walkman, meia dúzia de cassetes destinadas ao relaxamento e à meditação e um par de rebuçados de mel e limão para a tosse. Na mesa do outro lado avistou uma colecção de pequenas velas cremes dentro de uma caixa de metal trabalhado. E, dentro da gaveta, caixas de fósforos de vários restaurantes e bares, juntamente com uma embalagem de lubrificante íntimo. Kovac fechou a gaveta e, olhando à sua volta, pensou em Andy Fallen. O bom filho. Meticuloso. Pacato. Sempre a esforçar-se por dar o melhor de si. Guardando os seus segredos em gavetas e armários metafóricos. Sobre a cómoda via-se a mesma fotografia que Mike destruíra no seu acesso de cólera e dor: Andy na cerimónia de formatura da Academia de Polícia. Arrumada a um canto, em segurança. Uma lembrança que Andy Fallen preservara e relembrara todos os dias da sua vida, apesar da tensão entre si e o pai.
Kovac sentiu a tristeza invadi-lo insidiosamente, roubando-lhe a energia. Talvez fosse por isso que ele nunca se esforçara por ser nada mais além de polícia. Vira demasiadas famílias ficarem completamente destruídas. Arruinadas por expectativas irrealistas e não realizadas. Ninguém se contenta nunca com o que tem. É próprio da natureza humana querer mais, querer melhor, querer o que fica fora do nosso alcance.
Encheu os pulmões de ar e fez uma pausa antes de sair do quarto. Captou um leve odor a fumo de cigarro antigo.. A princípio pensou que fosse da sua própria roupa, depois voltou a cheirar o ar. Não. Era um odor sob um outro qualquer, que o disfarçava. Um ambientador com cheiro a bosque sobre o de tabaco queimado. Ténue, mas presente.
Não se viam cinzeiros no quarto. Nem maços encetados. Não encontrara indício de fumadores em nenhuma outra divisão da casa. O pessoal do laboratório criminal não tinha autorização para fumar em serviço.
Steve Pierce fumava. Kovac recordou de novo a impressão com que ficara de que Pierce tinha algo a pesar-lhe na consciência. Pensou em Miss Daring, com os seus olhos de
corça.
Centrou novamente a sua atenção na cama. Impecavelmente feita. Lençóis lavados. Nem sequer se tinham sentado nela. Não era estranho? Fallen fora encontrado pendurado a poucos centímetros da mesma, de costas para ela. Na óptica de Kovac, nada mais natural do que um homem que estivesse a preparar a cena para o seu suicídio, ou algum jogo sexual, sentar-se, a certa altura, na beira da cama a reflectir no assunto antes de enfiar a cabeça numa corda. Foi até ao sítio onde o corpo de Fallen estivera pendurado e verificou a distância até à cama. Apenas um, ou talvez dois passos. Olhou, carrancudo, para a sua imagem no espelho de corpo inteiro. Lamento.
A palavra ainda lá estava. Tinham encontrado o marcador que provavelmente fora utilizado para a escrever. Nada de especial. Um marcador de tinta permanente Sharpie deixado em cima da cómoda. Kovac tomou mentalmente nota para telefonar a perguntar que impressões digitais havia nele.
Na terça-feira tinham tirado as impressões digitais a Pierce na cozinha lá de baixo. Operação de rotina. Pierce não ficara nada satisfeito com isso. Por saber que podiam encontrá-las no quarto do amigo? Na frente da gaveta da mesa-de-cabeceira onde estava o lubrificante K-Y1 Numa das colunas? No espelho? Na Sharpie preta?
O cenário não era inverosímil: Pierce e Fallen, amantes secretos, gostavam de brincadeiras fora do comum. A coisa correra mal, Fallen morrera, Pierce entrara em pânico. Ou talvez não tivesse sido tão inocente assim. Havia a possibilidade de Fallen querer que Pierce se comprometesse com ele e largasse a noiva. Talvez Steve Pierce tivesse visto o seu futuro confortável na Daring-Landis ir pelo cano abaixo quando Fallen ameaçara denunciá-lo. Ou então Steve Pierce voltara lá na segunda-feira para se certificar de que não deixara nenhuma pista e depois telefonara à Polícia, compondo a cena do melhor amigo, em estado de choque.
Deitou uma última olhada ao quarto e depois voltou a descer as escadas. Na cozinha, verificou se havia remédios guardados dentro dos armários. Nenhum. Nem copos usados em cima do balcão do lava-louça. Este continha pouca coisa: três pratos, alguns talheres, vários tipos de copos e chávenas de café. Dois copos para vinho. Ao lado da cozinha, por trás de um par de portas providas de persianas, havia um compartimento com uma máquina de lavar e secar roupa, dentro da qual se viam toalhas e lençóis.
Ou Andy Fallen quisera pôr a casa em ordem antes de morrer ou alguém desejara fazê-lo depois disso. A segunda possibilidade fez com que os nervos de Kovac começassem a zunir.
No piso principal, ao fundo do corredor que se estendia a seguir às escadas que conduziam ao andar superior, havia duas divisões. A mais pequena era um quarto de hóspedes que nada mostrava de especial. A maior fora convertida em escritório e tinha uma modesta secretária, estantes e um par de armários de ficheiros. Kovac acendeu o candeeiro da secretária e examinou as gavetas desta, tendo o cuidado de não deixar sinais.
Conhecia muitos polícias que guardavam processos antigos. Ele próprio tinha uma cave cheia deles. Se Deus existisse, Andy Fallen teria um duplicado do seu processo sobre a investigação do assassínio de Curtis. E se assim fosse, havia boas probabilidades de o ter arrumado na letra C.
A primeira gaveta de arquivo continha informações financeiras pessoais e recibos de impostos. A segunda continha pastas de cartolina castanha impecavelmente arrumadas, com os apelidos escritos nas lombadas em letras maiúsculas traçadas com cuidado, seguidas por grupos numéricos de oito dígitos. Nenhum dizia Curtis. Nem Ogden. Springer também não.
Kovac recostou-se na cadeira da secretária de Andy Fallen, fê-la girar e inclinar-se para trás. Se a investigação do caso Curtis fora uma obsessão para Fallen, teria de haver um arquivo. As gavetas de arquivo não estavam trancadas, Qualquer pessoa podia tê-las aberto à socapa e levado material. Ogden veio-lhe à lembrança, embora o agente não parecesse capaz de semelhante subterfúgio. Partir blocos de cimento com a testa, sim. Golpes de mão astuciosos, não, Mas, enfim, não se poderia saber quem estivera naquela casa entre a morte de Fallen e a descoberta do seu corpo. Passara-se demasiado tempo entre um momento e outro, demasiados vizinhos não se preocupavam com o que se passava ao lado.
Sopesou prós e contras na sua cabeça, tentando encontrar uma maneira de chegar ao arquivo que se encontrava nos Assuntos Internos, mas não lhe ocorreu nada. Todas as vias se encontravam bloqueadas pela adorável tenente Savard. Sem ela não podia chegar ao arquivo e ela não fazia tenção de o deixar avançar. Fosse em que aspecto fosse.
Podia vê-la tal como quando tinham estado, frente a frente, junto da secretária no seu gabinete. Um rosto como os que saíam nas capas das revistas de Hollywood nos tempos do preto e branco e de Veronika Lake. No entanto, algo lhe dizia que o que se ocultava sob aquele aspecto era um mistério digno de qualquer grande detective, real ou de ficção. Sentia vontade de entrar por aquela porta secreta e descobrir como ela, de facto, era.
Não querias mais nada, Kovac murmurou de si para si, espantado e embaraçado consigo mesmo. Tu e a tenente Savard. Ora, como se isso pudesse acontecer.
Foi então que reparou que, enquanto perdia tempo a pensar numa mulher fora do seu alcance, algo faltava em cima da secretária de Andy Fallen. Não havia computador. A impressora, essa, estava lá. Kovac voltou a examinar o conteúdo das gavetas e encontrou uma caixa com disquetes virgens. Puxou a gaveta com pastas de arquivo para fora e verificou que cada uma continha uma disquete. Foi até à estante e encontrou, na colecção de manuais de instruções para telefone/fax, impressora e aparelhagem estéreo, um relativo a um computador portátil ThinkPad da IBM.
Então, onde está ele? perguntou em voz alta. Continuava a reflectir nas possibilidades quando um som penetrou no seu subconsciente agudo, electrónico, vindo de outro lado da casa. Um bip, seguido pelo rangido de uma tábua do chão. Apagou o candeeiro da secretária com um gesto brusco, mergulhando a sala na escuridão. Pousou automaticamente a mão na Glock que tinha no seu coldre, dirigindo-se, ao mesmo tempo, para a porta, onde se deteve até os seus olhos se adaptarem à escuridão, deslizando depois para o corredor. Levado pelo hábito, fora apagando as luzes à medida que ia avançando de sala para sala na sua investigação. Não queria atrair a atenção dos vizinhos. A única luz era agora a que entrava pelos painéis de vidro da porta da frente. A suficiente para mostrar os contornos de uma pessoa.
Kovac puxou da Glock com a mão direita e localizou o botão da luz do vestíbulo com a esquerda.
A figura que estava ao pé da porta de entrada aproximou uma das mãos do rosto.
Kovac susteve a respiração, à espera do clique de um gatilho.
Sim, sou eu disse uma voz masculina. Já aqui estou na casa. Vou...
Alto! Polícia! gritou Kovac, acendendo a luz. O homem assustou-se e soltou um grito, esbugalhando os olhos e depois agachando-se no chão e erguendo a mão esquerda como que a proteger-se de balas. No telemóvel, ouvia-se uma voz a berrar.
Não, está tudo bem, comandante Wyatt disse, baixando lentamente a mão livre. Mantinha o telemóvel contra o ouvido. É apenas um esforçado agente a fazer o seu trabalho.
Kovac olhou demorada e severamente para o indivíduo que tinha à sua frente, mantendo a Glock empunhada pois estava furioso e queria demonstrá-lo. Reconheceu o rosto de o ter visto na festa. Era o bonitão de cabeleira preta e todo ele a feder a Ace Wyatt.
Desligue o telemóvel ordenou Kovac rudemente. O bonitão fitou-o com espanto.
Mas é...
Desligue o maldito telemóvel, seu janota. Que veio aqui fazer? Esta zona foi isolada pela polícia.
O assistente de Wyatt desligou o aparelho com um clique e enfiou-o no bolso interior do seu requintado sobretudo cor de antracite.
O comandante Wyatt pediu-me que viesse ter com ele aqui. Seria de esperar que fosse razão suficiente...
Seria de esperar que pudesse enganar-se interrompeu-o Kovac com maus modos, acercando-se sem desviar a arma. Eu podia ter estoirado a sua linda cabeça. Já ouviu falar em campainhas de porta?
Porque tocaria eu à campainha da casa de um homem morto?
Porque haveria, sequer, de cá vir?
O comandante Wyatt vem a caminho com o Mike Fallen. Mister Fallen precisa de escolher a roupa com que o filho será enterrado explicou o indivíduo, utilizando uma entoação que dava a impressão de estar a falar com um empregado ignorante e boçal. Eu trabalho para o comandante Wyatt. Chamo-me Gavin Gaines, para o caso de se cansar de me tratar por outros nomes.
O sorriso era um tudo-nada demasiado divertido, pensou Kovac. Parvalhões com educação universitária era o tipo de gente que menos apreciava.
Posso voltar ao normal? perguntou Gaines, de mãos afastadas. No exterior, ouviu-se a porta de um automóvel bater.
Não arme em espertinho advertiu Kovac, enfiando de novo a Clock no coldre. Não conseguirá nada. O que é que faz exactamente para essa espécie de Capitão América?
Assistente pessoal, relações públicas, ligação aos órgãos de comunicação social. Tudo o que for preciso.
Tradução: lambe-botas, moço de recados, pau para toda a obra.
Ele precisa da sua ajuda para trazer Mister Fallen para aqui? disse Kovac, indo até à porta e abrindo-a. Ou isso dá-lhe cabo do visual?
Gaines apertou fortemente os dentes perfeitos.
Como disse, estou aqui para o que for preciso. Gosto de ser prestável.
Foram necessários os dois para ajudar Mike Fallen, um autêntico peso morto, a subir os degraus. Pior do que quando estivera bêbedo, pensou Kovac. A dor aumentara, de certo modo, a sua massa corporal; o desespero que ela causara tirara-lhe as forças. Ace Wyatt trouxe a cadeira de rodas.
Sam, ouvi dizer que por pouco não deste cabo deste meu assistente brincou Wyatt, a armar-se em engraçado.
Se estás a pagar-lhe por neurónios cerebrais, provavelmente ele tem de te dar algum troco observou Kovac. O bom senso não abunda.
O que te leva a dizer semelhante coisa? O Gavin não tinha razão nenhuma para não entrar. Não podia imaginar que cá estivesse alguém. A propósito, o que fazes aqui?
Estou a dar a habitual vista de olhos respondeu Kovac. À procura de pormenores.
Sabes que a morte do Andy foi considerada acidental lembrou Wyatt em voz baixa, de olhos postos em Mike Fallen, espapaçado na sua cadeira de rodas.
Gaines encontrava-se ligeiramente afastado, de pé, com as mãos cruzadas à sua frente e a olhar com ar distante na direcção da árvore de Natal. Uma pose que, certamente, aprendera com os actores que fazem de agentes secretos nos filmes.
Já me constou disse Kovac. Foi muita generosidade tua, Ace, dar um jeito às coisas como fizeste.
Wyatt não se apercebeu da ironia mordente na voz de Kovac.
Bem, para que valia prolongar o sofrimento do Mike? Dizer que era um suicídio iria servir os interesses de quem?
Da companhia de seguros. Que se lixem.
O Mike deu tudo pelo departamento continuou Wyatt. As pernas. O filho. O mínimo que podiam fazer era pagar o prémio do seguro e assim darem-lhe uma ajuda.
Portanto, fizeste força para que isso acontecesse.
A minha última boa acção como comandante de polícia. Esboçou um arremedo fatigado do seu sorriso famoso. A sua pele parecia algo amarelada sob a luz do vestíbulo, e as rugas ao canto dos olhos mostravam-se mais cavadas do que há duas noites atrás. Não tinha nenhuma maquilhagem.
A sua última boa acção. Era adequado, pensou Kovac, considerando que o caso que lançara Ace Wyatt no estrelato dentro do departamento fora o mesmo que deitara Mike Fallen abaixo.
Onde está o meu rapaz? perguntou Mike com a voz a trovejar.
Wyatt desviou o olhar.
Kovac acocorou-se ao lado da cadeira de rodas.
Ele partiu, Mikey. Lembras-te? Contei-te.
Fallen fitou-o com uma expressão vazia, olhos ausentes. Mas sabia. Sabia que o seu filho partira, sabia que teria de enfrentar esse facto, lidar com ele, seguir em frente. Mas podia fingir só por algum tempo... Um velho devia ter esse direito.
Se quiser, posso encarregar-me da escolha da roupa, comandante ofereceu-se Gaines, aproximando-se das escadas.
Queres, Mike? perguntou Kovac. Queres que seja um desconhecido a escolher o que o teu rapaz vai levar para o outro mundo?
Ele não vai para lá tartamudeou Fallen com desalento. Ele matou-se. É um pecado mortal.
Não há a certeza, Mikey. Pode ter sido um acidente, como já foi dito.
Fallen fitou-o durante uns segundos.
Eu sei. Eu sei o que ele era. Sei o que fazia.
Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas e começou a tremer.
Não consigo perdoar-lhe, Sam sussurrou, agarrando-se ao braço de Kovac. Deus me ajude. Não consigo perdoar-lhe. Odeio-o. Odeio-o pelo que andava a fazer!
Não fales assim, Mike disse Wyatt. Isso não é verdade.
Deixa-o desabafar interrompeu Kovac bruscamente. Ele sabe o que realmente sente.
Porque é que ele não se portou como devia ser? murmurou Fallen, falando para si mesmo ou para o seu Deus, aquele que não abria as portas do Céu aos gays, aos suicidas e a quem quer que não se enquadrasse dentro dos parâmetros de normalidade determinados pela estreiteza mental de Mike Fallen. Porquê?
Kovac tocou ao de leve na cabeça do velho. A bênção de polícia para polícia.
Vá, Mikey. Vamos a isto.
Deixaram a cadeira de rodas ao fundo das escadas. Gaines e Kovac transportaram, mais uma vez, Mike Fallen.
Wyatt completava a procissão. Sentaram o velho na beira da cama, de costas voltadas para o espelho onde estava escrito o pedido de desculpas pela morte do filho. Mas não havia nada a fazer em relação ao cheiro - um cheiro que todos os polícias conheciam demasiado bem.
Mike Fallen baixou a cabeça e começou a chorar silenciosamente, perdido no tormento de não perceber porque tudo correra tão mal para o filho. Gaines foi até à janela e ficou a olhar para fora. Wyatt manteve-se aos pés da cama, de olhos fixos no espelho e cenho franzido.
Kovac abriu o guarda-fatos e tirou alguns fatos de Andy Fallen, perguntando a si mesmo quem faria aquilo por si quando chegasse a sua vez.
Gostas de algum destes, Mike? perguntou, aproximando-se do velho com um fato azul numa mão e outro, cinzento-escuro, na outra.
Fallen não respondeu. Olhava fixamente para a fotografia que estava sobre a cómoda, ao fundo do quarto. A que mostrava Andy no dia da sua formatura na Academia de Polícia. Uma fracção de segundo de orgulho e alegria.
Um homem nunca devia sobreviver aos seus filhos declarou debilmente. Devia morrer antes de eles poderem despedaçar-lhe o coração.
Um homem nunca devia sobreviver aos seus filhos.
Ele nunca deveria tê-lo feito.
Não o fizera.
Podia ver a cena a desenrolar-se diante dos seus olhos com a mesma clareza como se ainda não tivessem decorrido vinte anos: a noite silenciosa; o chiar dos seus sapatos; o som da própria respiração.
A casa parece enorme. Um jorro de adrenalina. A porta das traseiras está escancarada.
Na cozinha. Luzes fluorescentes brancas debaixo das filas de armários a zunir como cabos de alta voltagem. Mergulhar na escuridão. Quartos às escuras, luar brilhante a entrar pelas janelas. Um silêncio que prime os tímpanos como dedos. Segundos que passam em ritmo retardado.
Ele move-se com agilidade. (A sensação é vívida, apesar de já não conseguir sentir nada da cintura para baixo há vinte anos. Recorda a tensão sentida em cada músculo do seu corpo nas pernas, nas costas, os dedos da mão esquerda a rodearem fortemente a coronha da sua arma, as contracções do coração.)
É então que acontece. Surpresa perante algo que não consegue recordar com clareza. A morte num súbito clarão branco-azulado. Uma explosão violenta. A força do impacte fá-lo tombar de costas ao mesmo tempo que dispara, como reflexo.
Agente abatido.
Cego. Surdo. A flutuar.
Incredulidade. Pânico. Libertação.
Estou morto.
Desejaria ter ficado assim.
Olha para a escuridão, escuta a sua própria respiração, a sua própria fragilidade e mortalidade, e interroga-se, pela milionésima vez, porque não morreu naquela noite. Desejou-o vezes sem conta; no entanto, nunca fez nada nesse sentido, faltou-lhe a coragem. Em vez disso, continuou vivo, enfrascando-se com amargura, bebida e medicamentos. Vinte anos no purgatório. Sem nunca emergir por não querer encarar os demónios cara a cara.
Naquele momento enfrentava um. Apesar de muito medicado, vê-o claramente e reconhece-o tal como é: o Demónio da Verdade. O Anjo da Morte.
Fala-lhe calma e brandamente. Vê a sua boca mexer-se, mas o som vem de dentro da sua própria cabeça.
É tempo de morrer, Mike. Um homem nunca deve sobreviver aos seus filhos.
Olha para o seu velho revólver de serviço, volumoso, de calibre trinta e oito, com uma enorme cicatriz gravada na coronha no sítio onde a bala que lhe seccionara a espinal medula raspara a caminho do seu corpo. A arma com a qual tinham dito que matara o seu criminoso naquela noite, a derradeira noite da sua carreira.
Ouve um pequeno grito de medo e calcula que tenha vindo do seu próprio corpo, embora pareça longínquo. As mãos tentam empurrar as rodas da sua cadeira, como se o seu corpo estivesse a tentar escapar ao destino que a sua mente já aceitou. Estranho.
Não sabe se com Andy terá sido assim: o medo a aumentar à medida que o nó se apertava em volta do seu pescoço. Deus, as sensações que a imagem põe à solta dentro dele! Embaraço, raiva. Culpa, amor e ódio.
Eu adorava-o, diz, com a fala entaramelada. A saliva escorre-lhe de um dos cantos da boca. Eu adorava-o, mas também o odiava! Ele é que fez aquilo. Foi por culpa dele.
Proferir aquelas palavras era como enfiar uma faca no peito e retorcê-la repetidamente. Mas não conseguia deixar de o dizer, de o pensar, de odiar Andy, de se odiar a si mesmo. Que espécie de homem odeia o seu próprio filho? Gritou de novo, um lamento sonoro, agonizante, que sobe e desce, sobe e desce como uma sirene de alarme. Somente o demónio o escuta. Ele está sozinho no mundo, sozinho na noite. Sozinho com o seu demónio, o Anjo da Morte.
Um homem nunca devia sobreviver aos seus filhos. Devia morrer antes de eles poderem despedaçar-lhe o coração. Ou antes de ele quebrar o deles. Tu mataste-o. Odiava-lo. Mataste-o.
Mas também o amava. Não vês?
Eu vi o que lhe fizeste, como lhe partiste o coração. Ele fez tudo por ti, e tu mataste-o.
Não, não revolta-se ele, sentindo as lágrimas. O pânico e a angústia incham-lhe como um tumor na base da garganta. Ele não me deu ouvidos. Eu disse-lhe. Disse-lhe... Amaldiçoado seja. Soluça. Maldito maricas.
As lágrimas de dor brotam-lhe num choro arrasador e ele agita os braços contra o demónio, movendo as mãos como se fossem patas.
Tu mataste-o.
Como poderia fazê-lo? gritou. Era o meu lindo menino!
Queres libertar-te disso, Mike? Acaba com a dor.
Acabar com a dor...
A voz seduz, é tentadora. Ele volta a gritar, quase sufocando com o medo que lhe sobe à garganta.
Acaba com a dor.
É pecado!
É a tua redenção.
Fá-lo, Mike.
Acaba com isso.
O cano frio do revólver de serviço toca-lhe na face. As lágrimas rolam sobre o aço negro.
Acaba com a dor.
Depois de todos aqueles anos.
Fá-lo.
Soluçando, ele abre a boca e fecha os olhos.
O clarão é ofuscante. A explosão é ensurdecedora.
Está feito.
O fumo evola-se em fiapos sinuosos no ar silencioso.
O tempo passa. Um momento. Dois. Respeito pelos mortos.
Depois outro clarão, e o zunir eléctrico de um motor.
O Anjo da Morte enfia a fotografia num bolso, volta-se e afasta-se.
Ela despertou de um sono agitado e cheio de sonhos e viu-o. Ele estava de pé, ao lado da sua cama, com a luz granulosa que se esgueirava pela porta da casa de banho a incidir-lhe nas costas: era uma silhueta enorme, sem rosto, com ombros que pareciam montanhas.
O pânico explodiu-lhe no peito como uma bomba. Estilhaços dele cravaram-se-lhe na garganta, fazendo-a ofegar com falta de ar. Abriram caminho até ao seu estômago como se fossem metralha. O choque provocou-lhe espasmos nos músculos dos braços e das pernas.
Foge!
Ele ergueu ambas as mãos e largou algo quando ela fez menção de se levantar do colchão. Ela viu aquilo aproximar-se como que em movimento lento: o corpo grosso e ondulante de uma serpente. Distinguia-lhe claramente as cores: o ventre em tom cremoso, o desenho a castanho e negro do dorso.
Agitando os braços, lançou-se para cima e para a frente. Durante uma fracção de segundo a confusão dominou-lhe o raciocínio, fazendo-a hesitar. O mundo ficou negro como breu. Não conseguia ver. Não era capaz de sentir. Parecia que lhe faltavam os pés por baixo de si, embora corresse o mais que podia.
Algo a atingiu junto do olho e na face, do lado direito. A força pareceu a de uma marreta a embater-lhe no crânio. A sua cabeça projectou-se para trás e ficou com a impressão de que gritara. Depois todo o movimento parou e ela apercebeu-se de que aquilo que a atingira fora o chão.
Oh, meu Deus, parti o pescoço.
Ele ainda está no quarto.
Não consigo mexer-me. Sentiu a consciência esvair-se de si como algo escorregadio. Agarrou-se a ela com toda a força de vontade que conseguiu reunir, obrigando o seu cérebro a continuar a funcionar.
Se conseguisse mexer as pernas... Sim.
Se conseguisse mexer os braços... Sim.
Fez força sobre as mãos e levantou-se lentamente do chão. Sentia a cabeça pesada como uma bola de bowling e o pescoço frágil como um palito partido. Ficou sobre os joelhos e rodeou o rosto com as mãos, sentindo a dor começar a pulsar. A consciência ia e vinha na sua mente. Branco brilhante, depois escuridão. Branco brilhante, depois escuridão.
Não era real.
Não acontecera.
No entanto, não fora um sonho, um sonho a sério. Parecia mais uma alucinação. Ela estivera acordada mas não consciente. Terrores nocturnos, chamavam-lhe os especialistas. A experiência tornara-a um deles. Anos e anos de experiência.
A seguir veio a conhecida onda de desespero. Ela quis gritar, mas não foi capaz. O entorpecimento protector começara já a instalar-se. Contrariada, submeteu-se-lhe com resignação e, devagar e insegura, pôs-se de pé.
Ainda com uma das mãos contra a cabeça, acendeu o candeeiro da mesa-de-cabeceira. Não havia ninguém no quarto. A luz reflectida no papel da parede arrancava um acolhedor brilho das riscas em tom creme. A cama estava vazia, a cabeceira estofada mostrava-se despojada da sua habitual camada de almofadas. Atirara-as ao chão, assim como o copo de água que costumava ter em cima da mesa-de-cabeceira. O tapete cor de marfim exibia uma mancha escura. O relógio jazia no chão, ao pé do copo vazio: quatro e trinta e nove da manhã.
Moveu-se cuidadosamente, cheia de dores, e foi até à cama, cujas cobertas puxou para trás. Não havia serpente nenhuma. A zona do seu cérebro habitada pela lógica dizia-lhe que nunca houvera nenhuma serpente; no entanto, vasculhou o chão com o olhar. Quase esperara ver a forma escura e esguia desaparecer debaixo da porta do armário.
Esforçou-se por controlar a respiração, um exercício que lhe era quase tão familiar como respirar. Tinha a cabeça a latejar. A dor era como uma faca no pescoço. Sentiu-se agoniada. Apercebeu-se, a pouco e pouco, de algo peganhento na mão que apoiava na cabeça e soube que era tempo de verificar os danos.
Amanda Savard olhou-se ao espelho da casa de banho, dando-se conta vagamente do que a rodeava e se reflectia em torno da sua imagem. Suave, elegante, feminino: o ambiente que criara para si própria a fim de se sentir segura e confortável. Eram as mesmas palavras que normalmente descreviam a imagem que apresentava ao mundo, mas naquele momento tinha o aspecto de quem acabara de sair de cinco assaltos num ringue de pugilismo. A zona à volta do seu olho direito estava inchada devido ao impacte da queda e apresentava um tom vermelho-vivo no local onde o contacto com a alcatifa lhe raspara a pele. A cor sobressaía vivamente em contraste com a palidez do seu rosto. Premiu levemente dois dedos em torno dos ferimentos, em busca de fracturas, e a dor fê-la soprar o ar por entre os dentes.
Como explicaria aquilo? Como poderia ocultá-lo? Quem acreditaria nela?
Tirou uma toalha do armário, molhou-a em água fria e comprimiu-a contra as zonas magoadas, rilhando os dentes tal era a vontade de se encolher. Tomou três comprimidos de Tylenol e voltou para o quarto. Despiu desajeitadamente a camisa de dormir, que ensopara de suor, e enfiou uma camisola largueirona e umas calças de treino.
A casa estava em silêncio. O painel do sistema de segurança na parede ao lado da porta do quarto mostrava que tudo se encontrava normal. Ela fizera a ronda do costume à casa antes de se deitar, verificando as fechaduras. Apesar disso, o sentido de perigo prevalecia. Sabia, por experiência, que só lhe restava dar mais uma volta pela casa e certificar-se de que não havia nenhum intruso ali dentro.
Tirou a sua pistola da gaveta da mesa-de-cabeceira e saiu para o corredor, movendo-se como uma velha de noventa anos. Acendeu as luzes todas da casa e andou de quarto em quarto a examinar todas as janelas e todas as fechaduras. Deixou tudo aceso. A luz era uma coisa boa. A luz expulsava os fantasmas das sombras. Esses fantasmas perseguiam-na há tanto tempo que admirava que ainda tivessem capacidade para a assustar. Eram conhecidos, como se fossem da família, e odiados com igual intensidade.
No seu escritório, Kenny Loggins fez-se ouvir mal ela ligou a aparelhagem estéreo que tinha na estante. Uma canção tranquila e suave que falava de férias e recordações de casa. As emoções que evocava nela eram o vazio, a solidão e a tristeza; no entanto, deixou-a tocar.
Gostava daquela salinha nas traseiras da casa. O espaço era acolhedor e sentia-se em segurança; além disso, dava para o quintal, que era muito resguardado e cheio de comedouros para aves. Vivia em Plymouth, um subúrbio que se estendia em torno de pântanos, bosques e do lago Medicine.
De vez em quando via um veado a aproveitar o que caía dos comedouros no chão, embora naquela noite nenhum andasse a defrontar-se com a luz de segurança. As três fotografias que lhes tirara da janela estavam agora penduradas na parede do escritório, em pequenas molduras. Uma delas exibia uma imagem-fantasma, o seu próprio reflexo no vidro sobreposto ao animal, que a fitava.
Correu as persianas, demasiado agitada para se expor ao mundo exterior naquela noite. Necessitava de se sentir enclausurada. Quando precisava de se isolar do mundo, o seu quarto era o seu santuário. O escritório era o seu santuário quando precisava de isolar-se das sombras da sua vida.
Naquela noite, não havia como escapar do que quer que fosse.
Tinha a secretária arrumada, tudo impecavelmente organizado. Contas e documentos devidamente arquivados, clipes num recipiente magnético, canetas num de madeira de cerejeira. Não havia fotografias, apenas algumas recordações, entre elas um crachá guardado no canto mais afastado. A lembrar-lhe constantemente a razão pela qual, antes de mais nada, se tornara polícia. Raramente olhava para ele, mas naquele momento pegou-lhe e ficou a observá-lo durante algum tempo, sentindo o ácido a arder-lhe no estômago.
Aberto sobre a superfície desimpedida da secretária estava um exemplar do Minneapolis Star Tribune, aberto nas páginas que a maioria das pessoas saltava a caminho da secção de desporto. O artigo que lhe interessava era diminuto, enfiado quase ao fundo. MORTE CONSIDERADA ACIDENTAL. Nem sequer trazia fotografia.
Achava uma pena, pensou. Ele era tão bonito. Mas na maior parte da área metropolitana, nunca mereceria mais do que umas quantas linhas dactilografadas, lidas superficialmente e esquecidas. Já passado.
Nunca te esquecerei, Andy sussurrou.
Como poderia? Eu é que te matei.
Apertou fortemente a mão em torno do crachá, até as saliências lhe magoarem os dedos.
Quando Amanda Savard chegou ao edifício da Prefeitura, Minneapolis ainda estava mergulhada na escuridão. A maioria das luzes que brilhavam nas janelas dos escritórios voltadas para a rua tinha ficado acesa durante a noite. Nunca ninguém chegava àquela hora, o que lhe permitiu enfiar-se no seu gabinete sem ser vista. Quanto mais tempo o pudesse evitar, melhor. Embora não houvesse como fugir ao funeral que decorreria naquela tarde. Ao menos poderia assistir com os óculos escuros adequados à ocasião. Mesmo naquele momento, apesar das escassas probabilidades de dar de caras com outro ser humano, não deixava de levar os óculos escuros com aros suficientemente largos para disfarçar os danos que infligira a si própria. Pusera um amplo lenço preto de veludo em volta da cabeça e do pescoço, com as pontas elegantemente atiradas sobre os ombros. A sua intenção não era dar nas vistas, mas sim esconder-se.
O som dos tacões das botas ressoou no velho piso, fazendo os seus passos ecoar no átrio vazio. A distância que a separava da Sala 126, em frente, parecia enorme. Tinha as mãos a transpirar dentro das luvas. Agarrava nas chaves com demasiada força. A adrenalina provocada pelo sonho ainda não desaparecera por completo, e os seus resquícios deixavam-na simultaneamente agitada e exausta. Quando menos esperava, era dominada por uma tontura. Fraquejavam-lhe as pernas e a cabeça latejava. Não conseguia virar o pescoço para a direita e sentia vómitos.
Enfiou a chave na fechadura e deu-lhe a volta; os pêlos da nuca arrepiaram-se-lhe. Mas o vestíbulo estava vazio, tudo o que podia ver dele. Passou pela área de recepção dos Assuntos Internos sem se dar ao cuidado de acender as luzes, e foi directamente para o seu gabinete, onde deixara o candeeiro da secretária aceso.
A salvo. Por uma hora ou duas. Pendurou o lenço e o casaco no cabide de parede montado perto da porta e deu a volta à secretária. Tirou os óculos escuros a fim de se examinar ao espelho da sua caixa de pó-de-arroz. Como se entre a sua casa e aquele local tivesse podido ocorrer algum milagre.
Os raspões em torno do olho direito estavam feios, vermelhos e a brilhar devido ao gel antibiótico com que os untara. Não tivera possibilidade de os cobrir com base de maquilhagem e nem pensar em usar pensos naquela zona do rosto. A área que rodeava o olho encontrava-se inchada e com nódoas negras e roxas.
Que olho negro tão feio.
O som da voz fez com que Amanda Savard desse um pulo. Ainda quis voltar-se de costas, mas percebeu que era demasiado tarde. Sentiu-se invadir pelo embaraço e pela vergonha, logo seguidos de raiva e ressentimento. Agarrou nos óculos escuros e voltou a colocá-los.
Kovac encontrava-se à porta, fazendo lembrar uma figura de um romance policial de Raymond Chandler: sobretudo de colarinho levantado, mãos enfiadas nos bolsos e um velho chapéu de feltro enterrado até à testa.
Imagino que levar na cara seja um risco habitual para quem trabalha nos Assuntos Internos.
Se me quiser ver, sargento, marque uma entrevista disse ela no tom mais gélido que conseguiu.
Já a vi.
Algo no modo como ele falou fê-la sentir-se vulnerável. Como se Kovac tivesse visto mais do que a evidência física do que lhe acontecera, algo mais profundo e importante.
Já mostrou isso a um médico? perguntou ele, aproximando-se mais um pouco. Tirou o chapéu de feltro da cabeça e pousou-o sobre a secretária; a seguir, passou a mão pelo cabelo curto. Tinha os olhos franzidos e pousados nos estragos que ela infligira a si mesma. Está com mau aspecto.
Estou óptima declarou a tenente, grata por se poder escudar atrás da secretária. Afastou-se até à outra ponta com o pretexto de guardar a sua caixa de pó-de-arroz e meter a bolsa dentro de uma gaveta. Acometeu-a nova tontura, que a obrigou a apoiar-se à secretária com uma das mãos para não cair.
E eu devia tratar de falar com o outro tipo, não?
Não há outro tipo. Dei uma queda.
De onde? Um edifício de três andares?
Não lhe diz respeito.
Se alguém lhe fez isso, diz.
Ele era pago para proteger e servir, como dizia o dístico. Não era nada de pessoal. Ela não teria desejado que fosse.
Já lhe disse! Caí.
Kovac não acreditava. Ela percebia-o bem. Era um polícia, e dos bons. Ela tratara de se informar. Sam Kovac tinha anos de experiência a detectar os timbres de mentiras. E embora ela não estivesse propriamente a mentir, também não estava propriamente a falar verdade.
Viu o olhar de Kovac deslizar para a sua mão esquerda, à procura de uma aliança. Para saber se teria havido um marido que infligisse maus tratos. O único anel que usava estava na mão direita. Uma esmeralda que passara pelas sucessivas mulheres da família de sua mãe nos últimos cem anos.
Acredite no que lhe digo, sargento. Não sou mulher para deixar que um homem se safe com um acto destes afiançou.
Ele ainda pensou em acrescentar algo mais mas depois ponderou e acabou por se conter.
Não veio cá para se inteirar do meu bem-estar.
Ontem à noite, encontrei o Cal Springer disse Kovac. Ficará orgulhosa em saber que ele ainda anda a suar as estopinhas por causa da sua investigação.
Não estou interessada no Cal Springer. Já lhe disse que o caso Curtis está encerrado. A investigação estava cheia de erros, mas nenhuma das alegações de comportamento indevido foi provada. Seja como for, nenhuma que se aguentasse em tribunal.
A incompetência é o forte do Cal, mas ele é demasiado medricas para se atrever a dar um passo que pusesse a sua carreira em perigo. E quanto ao Ogden? Ouvi dizer que enfiou o relógio do Curtis em casa do Verma.
Pode prová-lo?
Não, não posso. O Andy Fallen poderia? O Ogden estava no local do crime quando a minha parceira e eu fomos a casa do Fallen na terça-feira.
Não, não poderia prová-lo. Encerrámos o caso respondeu a tenente Savard, esforçando-se por manter a concentração diante de novo acesso de instabilidade. A dor atingia-a como um martelo. Ia passar a outras incumbências.
Não por opção. Por ordem. Ordem dela.
O Ogden sabia disso?
Sim, sabia. O que estava ele a fazer lá? Em casa do Andy?
A ver o panorama.
Isso é asqueroso.
E estúpido, mas, para começar, não creio que ele seja dos tipos mais brilhantes que temos entre nós.
Interrogou-o sobre a sua presença no local?
Não tenho o direito de interrogar ninguém, tenente lembrou-lhe Kovac. O caso está encerrado. Classificado como acidente trágico. Recorda-se?
É improvável que o esqueça.
Parti do princípio de que o Ogden e o colega tinham respondido a uma chamada via rádio. Não tinha razão para pensar que os movia algum outro motivo para ali estarem. Uma pergunta idiota: havia algum problema entre ele e o Fallen? O Ogden ameaçara-o?
Não, tanto quanto sei. Eu diria que não havia mais animosidade do que o habitual.
Vocês estão todos habituados a pessoas que vos odeiam.
E o senhor também, sargento.
Não os da minha própria gente.
A tenente Savard deixou passar a observação.
O ressentimento faz parte desta vida prosseguiu ele. As pessoas que cometem actos criminosos não gostam de sofrer as suas consequências. Nesse aspecto, os maus polícias são piores do que os criminosos. Acham que podem esconder-se atrás do seu estatuto. Quando se sabe que não podem...
Posso consultar o ficheiro do caso disse ela, deixando escapar um suspiro longo e cuidadosamente controlado. Sentia calor e inundava-a o suor. Precisava de se sentar, mas não queria mostrar fraqueza diante dele, nem queria que ele pensasse que ela chamaria o caso ao computador enquanto ele esperava. Não conto descobrir nada. Seja como for, nós dois sabemos bem, no fundo do coração, que, apesar do que o médico legista declarou, o Andy provavelmente suicidou-se.
Eu não permito que o meu coração se envolva nestas questões, tenente. É mais abaixo que se situam os meus instintos.
Sabe do que falo. Ele não foi assassinado.
O que sei é que está morto insistiu Kovac teimosamente. E sei que não devia estar.
O mundo está cheio de tragédias, sargento Kovac declarou Amanda Savard, respirando um tudo-nada demasiado depressa. Esta foi a que nos calhou esta semana. Talvez fizesse mais sentido para nós se se tratasse de um crime, mas não foi. Isso significa que aceitamos o facto e continuamos em frente.
E o que está a fazer? perguntou ele, aproximando-se da ponta da secretária onde a tenente se encontrava. A aceitar o facto?
A tenente Savard teve a impressão de que já não estavam a falar de Andy Fallen. Ele parecia estar a olhar para as marcas no seu rosto... o que conseguia ver delas fora dos óculos. Fez menção de dar um passo atrás mas o chão pareceu faltar-lhe debaixo dos pés. A escuridão fechou-se à sua volta e a tontura envolveu-a como uma vaga encrespada.
Kovac acercou-se rapidamente dela, sustendo-a pelos braços. A tenente apoiou as mãos no peito dele para se amparar.
Precisa de consultar um médico insistiu Kovac.
Não. Ficarei bem. Só preciso de me sentar um pouco. Afastou-o de si, querendo libertar-se. Ele não a largou.
Em vez disso, virou-a e, quando os joelhos dela se foram de novo abaixo, sentou-a na cadeira. Kovac tirou-lhe os óculos de sol da cara e examinou-lhe os olhos.
Quantos vê de mim? perguntou.
Um chega.
Siga o meu dedo ordenou, movendo-o diante do rosto da tenente de um lado para o outro, depois para baixo e para cima. Ele exibia uma expressão séria. Os seus olhos eram castanhos, um pouco esfumados, com um toque de azul nas profundezas. Mais interessante de perto que de longe, pensou ela distraidamente.
Meu Deus murmurou ele, ao ver a área em torno do olho direito de Amanda Savard. Rodeou-lhe suavemente esse lado do rosto com uma das mãos enormes, premindo ao de leve os ossos com o polegar. Aposto em como isto vai deixar uma cicatriz.
Não seria a primeira disse ela em voz branda.
A mão dele imobilizou-se. O seu olhar encontrou o dela, perscrutando. Ela desviou o seu.
Precisa de consultar um médico advertiu Kovac, encostando-se à secretária. Deve ter uma forte lesão. Fala a voz da experiência.
Apontou para o penso que lhe mantinha o ferimento acima do olho esquerdo fechado. A zona circundante mostrava-se arroxeada.
Sofreu algum tipo de lesão? perguntou Amanda Savard - Isso poderá explicar algumas coisas.
Não. A minha cabeça parece granito. Afinal de contas talvez nós os dois tenhamos algo em comum observou ele, como se já houvesse reflectido na questão.
Imagino que tenha trabalho a fazer, sargento disse a tenente Savard, aproximando a sua cadeira da secretária e esperando que o movimento não a entontecesse o suficiente para cair para o lado ou vomitar. Kovac não se mexeu. Aquela proximidade constrangia-a. Ele poderia levantar a mão e tocar-lhe no cabelo, no rosto, como fizera há poucos instantes.
Não lhe agradava que Kovac se mantivesse daquele lado da secretária. Aquele espaço pertencia-lhe. Ele quebrara uma barreira e decerto se apercebera desse facto.
A tenente não quer falar do Andy Fallen observou Kovac com lentidão. Porque será?
Porque ele está morto e eu sinto-me responsável.
Acha que devia ter previsto uma situação como aquela. Mas às vezes é impossível prosseguiu Kovac. Às vezes, estamos a contar com uma coisa e a vida atinge-nos com um soco vindo não sabemos de onde.
Fingiu desferir um soco no olho ferido dela, detendo-se a escassos milímetros.
Amanda Savard olhou para ele.
É provável que tenha algum homicídio autêntico para investigar disse-lhe, estendendo a mão para o telefone. Sugiro-lhe que deite mãos ao trabalho.
Kovac viu-a marcar o número de acesso às mensagens. Ele não lhe parecia feliz, mas ela também nunca o vira nesse estado de alma. Talvez nunca lhe acontecesse.
Temos algo mais em comum, sargento, pensou ela.
Relutante, Kovac deu a volta à secretária e pegou no chapéu.
Nem sempre a bravura é sinal de inteligência, Amanda observou ele.
Agradeço que me trate por tenente Savard. Kovac esboçou um meio sorriso.
Pois. Eu sei. Quis apenas ouvir como soava.
Deteve-se por um instante. Quando visitou o Andy no domingo à noite, tomaram um copo de vinho?
Eu não bebo vinho. Tomámos café.
Hum. Sabia que o Andy mudou os lençóis da cama e pôs roupa a lavar antes de se matar? perguntou. Esquisito, não acha?
A tenente Savard não fez nenhum comentário.
Vemo-nos no funeral disse Kovac, saindo a seguir.
Ela ficou a vê-lo desaparecer, enquanto as mensagens passavam sem que as escutasse.
Há quarenta anos que os agentes da polícia gostavam de tomar o pequeno-almoço num local chamado Cheap Charlie, que ficava num baldio a nordeste da Metrodome. A casa, a cair de velha, com uma fachada dos anos cinquenta, imunda, poder-se-ia dizer que cuspira na face do progresso, da recessão, das mudanças nas pessoas e de tudo o mais que pudesse ter-se modificado no decorrer dos seus anos de vida. O Cheap Charlie não precisava de mudar. A sua clientela era constituída por polícias. As décadas passariam; porém, eles nunca mudariam. A tradição mantinha-se.
Era provável que Mike Fallen tivesse comido ali nos seus tempos de recruta, pensou Liska, olhando para o local através do saco de plástico azul que lhe servia de janela no lugar do passageiro. Tivera sorte e apanhara um lugar para estacionar mesmo em frente, quando um carro-patrulha saíra.
Ela também comera ali nos seus tempos de recruta. Talvez todos eles tivessem sido servidos pela mesma empregada de mesa, uma mulher cujo nome sempre fora Cheeks. No auge da vida, Cheeks ter-se-ia parecido com uma tâmia com a boca cheia de nozes. Toda bochechas, sem queixo e com um nariz que não era mais do que um botão de rosa. Nos anos entretanto decorridos, a gravidade exercera o seu noder sobre ela, ao ponto de lhe deverem ter mudado a alcunha para Jowls, no entanto continuara a ser Cheeks.
Naquela manhã ela encontrava-se ao balcão, uma boneca engelhada de olhos reduzidos a fendas e uma torre decadente de cabelo pintado de preto, a servir café e a fumar um cigarro, em desafio a todas as regras de higiene conhecidas. Nenhum dos polícias presentes se atreveria a dar-lhe uma reprimenda, e a casa era um mar de uniformes e bigodes. Muitos detectives também tomavam ali o pequeno-almoço. De vez em quando, Kovac encontrava-se entre eles. Tradição.
Liska foi até ao balcão e sentou-se num lugar vago ao lado de Elwood Knutson, percorrendo a sala com o olhar.
Elwood, pensei que eras demasiado fino para comer aqui.
E sou declarou o agente, olhando para um prato com restos de bacon e ovos. Mas como resolvi experimentar a dieta de proteínas, achei que não haveria lugar melhor para esse tipo de pequeno-almoço. E qual é a tua desculpa?
Já não tenho um bom ataque de azia há muito tempo.
Vieste ao lugar certo.
Bingo murmurou Liska para si própria ao avistar Ogden, que se encaixara num cubículo ao fundo da sala e estava com ar de quem já não tinha os intestinos a funcionar bem há muito tempo. O ângulo não lhe permitia ver quem lhe fazia companhia ao pequeno-almoço e aguentava com o mau humor bem patente no seu rosto.
Elwood não se virou, optando antes por analisar Liska.
Algo que eu devesse saber?
Algo que talvez saibas. Lembras-te daquele agente chamado Curtis, que foi assassinado fora de serviço?
Lembro. Parte de uma lista de homicídios de homossexuais. Obra de um assassino em série.
Segundo parece. Que sabes tu sobre perseguição a homossexuais no departamento?
Elwood mordiscou a ponta de uma fatia de bacon com ar pensativo. Tinha um chapéu castanho cor de rato de abas reviradas na cabeça, com a parte da frente descaída.
Sei que acho deplorável perseguir ou discriminar alguém com base na preferência sexual respondeu..
Quem somos nós para escolher pelos outros? O amor é difícil de encontrar...
Obrigada. Muito bonito. Hei-de mandar a tua morada para a União Americana de Liberdades Civis disse Liska secamente. Não estamos a falar de ti, Elwood.
Então de quem estamos a falar?
Liska olhou discretamente em redor, para se certificar de que não havia ninguém à escuta.
Estou a falar da gente de uniforme. Como são as coisas nas trincheiras? Política do departamento de polícia à parte, qual é a atitude predominante entre o pessoal? Constou-me que o Curtis se queixou de perseguição aos Assuntos Internos. Porque o terá feito? Ainda estão a deixar entrar tipos da pré-história no clube? Pensei que isso já tinha acabado com o Rodney King e os tumultos de Los Angeles.
Infelizmente, o cargo parece que os atrai comentou Elwood. É o crachá. É como acenar com uma moeda reluzente a um macaco.
O agente uniformizado que estava atrás de Liska inclinou-se para o lado e lançou um olhar desagradável a Elwood.
Deve ter sido orangotango na encarnação anterior segredou Liska. Tomou um gole do café que Cheeks lhe servira, o que lhe lembrou que tinha de mudar o óleo ao Saturn. Seja como for, sei que a investigação do caso Curtis foi um fiasco enorme.
Coisa do Springer. A própria concepção dele já foi um fiasco enorme.
Sem dúvida, mas, segundo ouvi dizer, quem deu cabo daquela investigação foi um agente uniformizado. Um tipo enorme chamado Ogden. Conhece-lo?
Receio que não frequentemos os mesmos círculos sociais.
Estaria mais preocupada se o fizesses observou Liska, deslizando para fora do banco.
Abriu caminho em direcção ao cubículo, esquivando-se aos cumprimentos, de olhos fixos em Ogden. Este ainda não dera por ela e a conversa que mantinha com o indivíduo ainda oculto começara a tornar-se mais intensa. Liska não conseguia distinguir as palavras, mas a ira era patente. Teria preferido abordá-lo por trás, sem ele dar por isso, mas a sala era demasiado estreita. Quando, finalmente, ele a viu, endireitou-se bruscamente, quase deitando abaixo um copo com sumo de laranja.
Eu, no seu lugar, preferia sumo de ameixa observou ela. Consta que esses esteróides podem transformar a barriga de uma pessoa em cimento.
Não sei do que fala retorquiu Ogden. Não sou nenhum viciado em esteróides.
Liska sentiu um baque no estômago quando viu quem Ogden tinha a fazer-lhe companhia ao pequeno-almoço. Cal Springer. E este não teria ficado com ar mais culpado se fosse apanhado com uma prostituta.
Viva, Cal. Companhia interessante a tua. É assim que pretendes fazer-te passar por bonzinho aos olhos dos Assuntos Internos? A andares com o tipo que acham que deu cabo do teu caso? Se calhar as pessoas estão enganadas a teu respeito. Talvez sejas tão burro como pareces.
Porque não te metes na tua vida, Liska?
Nesse caso, não seria grande detective, pois não? salientou ela. Olha, Cal, não estou aqui para te chatear. Digo apenas que parece mal, nada mais. Se queres dedicar-te à política, devias pensar nestes pormenores.
Springer virou-se para a janela. Por ali não era possível desfrutar de nenhuma vista. Os vidros estavam embaciados pelo fumo, pela condensação das respirações e pelo ar saturado de gordura.
Por onde anda o teu parceiro, Cal? perguntou Liska. Preciso de falar com ele.
Férias. Duas semanas no Havaí.
Springer dava a impressão de que teria preferido duas semanas no inferno àquela conversa.
Liska virou-se para Ogden e perguntou-lhe à queima-roupa:
Por que razão tu e o teu parceiro estavam em casa do Andy Fallen, no outro dia?
Ogden coçou o alto achatado da cabeça. Via-se-lhe a pele do crânio, branca e leitosa, por entre os cabelos finos e ralos.
Captei a chamada pelo rádio.
E por acaso estavam na vizinhança, não é?
Exactamente.
Mas que azar o vosso.
Os olhinhos de Ogden faziam lembrar dois berlindes caídos em cima de um prato de puré de batata. Endireitou os ombros encurvados.
A tua atitude não me agrada, Liska.
Liska riu-se.
A minha atitude não te agrada? Repara proferiu, inclinando-se de modo a ficar bem perto do rosto do colega, estás alguns ramos abaixo de mim na árvore evolutiva da polícia. Se eu quiser, posso dizer-te o que muito bem entendo, que ninguém ouvirá as tuas queixas. Agora se eu não gostar da tua atitude... e não gosto... aí é que já haverá problema. Por que razão lá foram? voltou a perguntar.
Já te disse, ouvimos a chamada.
O Burgess respondeu primeiro. Ele foi o primeiro a chegar.
Pensámos que pudesse precisar de ajuda.
Com um cadáver.
Ele estava sozinho. Não podia garantir a segurança do local.
Portanto, tu e o Rubel caíram lá e tomaram conta de tudo. E só por feliz coincidência é que viram que a vítima era o investigador dos Assuntos Internos que andava em cima de vocês por causa do fiasco do caso Curtis.
Exactamente.
Liska abanou a cabeça de espanto.
Vocês andavam a partir pedra com a cabeça quando vos seleccionaram para a Academia de Polícia? Qual foi a ideia? Querem os Assuntos Internos novamente em cima de vocês?
Ogden olhou em volta, fazendo cara feia a quem lhe pareceu que estivesse a ouvir a conversa.
Respondemos a uma chamada. Como poderíamos saber que o morto era o Fallen?
Mas, quando souberam, não se foram embora. Espalharam as vossas impressões digitais pela casa toda...
E então? Ele suicidou-se. Ninguém o matou.
Vocês não sabiam. Continuam sem saber. E não têm nada a ver com isso enquanto andarem de uniforme.
A medicina legal determinou que não foi crime, contrapôs Ogden.
Também não era nenhum espectáculo desportivo, mas vocês não conseguiram resistir, pois não? Tiraram algumas polaróides para depois, nos vestiários, partilhar com o resto dos tipos que não gramam os homossexuais, não é verdade?
Ogden deslizou para fora do banco e levantou-se. Liska tentou não sair de onde estava, mas teve de recuar um passo, se não, seria empurrada. Uma enorme veia em ziguezague sobressaiu na testa do sujeito, fazendo lembrar um raio. Os seus olhos eram frios e inexpressivos como botões. O arrepio de medo que a percorreu foi instintivo, o que em si também era assustador. Liska não estava habituada a sentir medo.
Não tenho de te dar explicações, Liska declarou Ogden, em tom simultaneamente sereno e sarcástico.
Liska olhou-o directamente nos olhos sem vacilar, ciente de que estava a provocar um touro com demasiada ousadia. Talvez não fosse a táctica mais inteligente, mas fora a que escolhera e só lhe restava levá-la por diante.
Dás-me cabo de mais um possível local de crime e não terás de dar explicações a mais ninguém, Ogden. Perderás o crachá.
A veia pulsava como numa cena de filme de terror, e o colarinho demasiado apertado deixou passar um fluxo excessivo de sangue para o rosto.
- Ei, B.O., vamos à nossa vida ouviu ela.
Liska sabia que se tratava do parceiro de Ogden, Rubel, que se aproximava deles vindo da parte da frente. Ainda assim, não se afastou de Ogden. De certeza que as costas é que nunca lhe voltaria. Ele dava a impressão de não ser capaz de desviar o olhar fixo nela. A raiva que o assolava crescia a cada respiração ofegante. Ela podia vê-lo, senti-lo.
As fotografias tiradas no local onde ocorrera o homicídio de Curtis faiscaram na mente de Liska. Raiva. Matança. Um crânio humano esmagado como uma abóbora.
As pessoas à sua volta tinham começado a olhar. Cal Springer levantou-se do seu lugar e dirigiu-se apressadamente para a porta de saída, quase esbarrando com Rubel.
Anda daí, B.O., vamos ao trabalho ordenou Rubel.
Ogden olhou finalmente para o colega e a tensão quebrou-se como um galho. Liska sentiu o ar escapar-lhe dos pulmões. Rubel lançou-lhe um olhar breve por trás dos óculos espelhados.
Dos dois ele era, sem dúvida, o mais bem-parecido. Cabelo escuro, queixo quadrado, uma espécie de David de Miguel Angelo insuflado. Ao vê-lo encaminhar Ogden em direcção à porta, Liska calculou que fosse o cérebro do par. A livrar Ogden de sarilhos, muito à semelhança do que fizera naquele dia, em casa de Fallen.
Liska foi atrás deles até ao passeio. Dirigiam-se para o parque de estacionamento que ficava à esquina, no outro lado da rua.
Ei, Rubel! chamou. Ele voltou-se para ela. Também quero falar contigo. A sós. Quando terminares o turno vai aos escritórios do Departamento de Investigação Criminal.
Ele não respondeu. Tão-pouco mudou de expressão. Ele e Ogden afastaram-se, abrangendo todo o passeio com a largura conjunta dos seus ombros. Se a morte de Fallen não tivesse sido classificada como um acidente ou suicídio, Ogden teria decerto figurado na lista de suspeitos. Seria estúpido ao ponto de aparecer no local? Talvez não. Ao responder a uma chamada por causa de um cadáver, ficara com uma excelente oportunidade para espalhar legitimamente as suas impressões digitais pela casa de Andy Fallen.
Como é que se obriga um homem a suicidar-se?
Liska foi percorrida por uma sensação de frio e percebeu que a mesma não tinha a ver com a temperatura mas sim com o facto de estar a olhar para outro polícia e a tentar ver o que havia de corrupto nele.
A pequena campainha da porta do Cheap Charlie soou nas suas costas quando esta se abriu.
Corrige-me se estou errado disse-lhe Elwood, mas estava convencido de que não investigávamos casos encerrados.
Liska viu os agentes meterem-se num carro-patrulha. Rubel ia ao volante. Ogden, no lugar do atirador. O carro baixou consideravelmente quando este se sentou no banco do lado do passageiro.
Para quem trabalhamos nós, Elwood?
Em termos técnicos ou figurados?
Para quem trabalhamos nós, Elwood? repetiu. Kovac incutira aquele princípio em todos eles.
Para a vítima.
O meu patrão não me notificou oficialmente para suspender os meus serviços disse Liska, sem ponta do seu humor habitual.
Elwood respirou fundo.
Tinks, para alguém tão determinado em ir para a frente, dedicas muito tempo a lixar-te.
Pois é concordou Liska, tirando as chaves do carro do bolso do casaco. Não tenho juízo nenhum.
O mundo está cheio de tragédias, sargento Kovac.
A caminho da casa de Mike Fallen, a voz de Amanda Savard não lhe saía da cabeça. A sua mente pregava-lhe a partida de a fazer soar sensualmente enrouquecida. Tornava o jogo de luz e sombra no seu rosto dramático e suave, a expressão dos seus olhos cheia de mistério.
Essa parte não fugia à realidade. Amanda Savard era um quebra-cabeças, e ele achara sempre os quebra-cabeças demasiado tentadores. Normalmente era bastante bom a solucioná-los; no entanto, o instinto dizia-lhe que aquele seria mais difícil que a maioria, e que a probabilidade de ser bem sucedido não era grande. Não tinha a menor dúvida de que ela não apreciaria os seus esforços.
Agradeço que me trate por tenente Savard.
"Amanda", dissera ele, só para a provocar. Ela não gostaria de saber que ele pronunciava o seu nome, nem estando sozinho nem encontrando-se na sua presença. Talvez ainda menos. Como não estava ali para o escutar, não lhe podia dar ordens, e controlar era o mais importante para ela. Teria gostado de saber porquê, que acontecimentos teriam feito dela a mulher que era. "Por que tragédia passaste, Amanda?"
Ela não usava aliança de casamento. Não havia fotografias de familiares próximos no escritório. Não parecia o género de mulher capaz de permitir que um tipo lhe pusesse um olho negro e se ficasse a rir.
Ele não acreditara na explicação da queda. A localização dos hematomas era demasiado suspeita. Quem dava uma queda e ia directamente com a cara ao chão? A primeira reacção era pôr as mãos em frente para evitar o tipo de dano que lhe fora feito. Amanda não tinha uma única marca nas mãos.
A ideia de alguém agredir uma mulher enojava-o e enfurecia-o. A ideia de aquela mulher específica o permitir confundia-o.
Quando enveredou pela faixa de acesso à casa de Mike Fallen, pôs as suas dúvidas de lado. Não se via nenhum carro no acesso nem no passeio em frente. Ninguém atendeu à porta.
Kovac puxou do seu telemóvel e ligou o número de Mike, o que escrevinhara num pedaço de papel. Ninguém atendeu. Nada mais natural que Mike estar a dormir ou inconsciente devido à bebida ou a tranquilizantes, e Kovac aceitava qualquer dessas possibilidades. No fundo, o que queria era alguns minutos sozinho dentro daquela casa.
Deu a volta e foi até à garagem. O carro encontrava-se lá. Seguiu até às traseiras e tirou a chave de debaixo do tapete da entrada.
A casa estava em silêncio. Não se ouvia o menor barulho de televisão, rádio ou duche a correr. O velho encontrava-se provavelmente morto para o mundo. Não devia ter pressa nenhuma em enfrentar o dia em que levaria o filho a enterrar.
Kovac foi até ao balcão da cozinha atravancado com os medicamentos que, de uma maneira ou outra, mantinham Mike Fallen a funcionar, e vasculhou os frascos. Prilosec, Darvocret, Ambien.
Ambien, também conhecido como zolpidem. O barbitúrico encontrado na corrente sanguínea de Andy Fallen. Kovac ficou a olhar para o frasco, sentindo um aperto no estômago. Destapou-o e olhou para dentro. Vazio. A receita era de trinta comprimidos com instruções para tomar um antes de deitar quando necessário. A data em que fora aviado era 7 de Novembro.
Talvez o facto de tanto o pai como o filho utilizarem o mesmo material para se alhear do mundo não passasse de uma simples coincidência. O Ambien é um medicamento para dormir muito conhecido. No entanto, não havia nenhum frasco em casa de Andy, o que parecia estranho. Se ele o tomara na noite da sua morte, então onde estava o frasco? Não estava no armário dos medicamentos, no cesto do lixo ou na mesa-de-cabeceira. O frasco de Mike encontrava-se vazio, mas o velho poderia ter tomado os comprimidos todos de acordo com as instruções. Por outro lado, se "sempre que necessário" significava duas ou três vezes por semana, então não havia justificação para a enorme quantidade de comprimidos que faltava.
Kovac deixou as possibilidades passarem-lhe pela cabeça sem controlo nem censura. Nenhuma delas era agradável, mas o seu trabalho era mesmo assim e ele já estava habituado. Não podia permitir-se confiar, anular e filtrar as probabilidades através do filtro da negação, como a maioria das pessoas fazia. Não se preocupava muito com o facto. Não ficava deprimido, como acontecia a outros colegas seus. A simples verdade das verdades era a de que as pessoas, mesmo com bons princípios, cometiam regularmente actos que prejudicavam o próximo, até mesmo os próprios filhos.
Ainda assim, era-lhe impossível imaginar um cenário em que Mike Fallen desempenhasse um papel directo na morte de seu filho. As limitações do velho tornavam-no impossível. Andy também podia ter tirado os comprimidos da reserva do pai, mas isso não lhe parecia nada provável. Ou podia tê-los obtido de um amigo. Pensou novamente nos lençóis e nas toalhas metidas na máquina de lavar, na escassa loiça recém-lavada.
Ei, Mike! Estás acordado? chamou. É o Kovac!
Não obteve resposta.
Voltou a colocar o frasco de medicamento em cima do balcão e saiu da pequena cozinha atravancada. A casa transmitia uma sensação de calma que não lhe agradava, como se se encontrasse vazia. Talvez Neil já tivesse ido buscar Mike, mas o funeral ainda só era dali a algumas horas. Mike também podia ter outros parentes que estivessem, naquele preciso momento, a consolá-lo, a dar-lhe café e a dizer-lhe o que era habitual naquelas alturas, mas Kovac achava inprovável. Conhecera sempre Mike Fallen como uma pessoa solitária. Isolada primeiro pela sua rudeza, depois pela sua amargura. Era difícil imaginar alguém a amá-lo como é costume as pessoas amarem-se umas às outras no seio de famílias unidas. Não que Kovac fosse grande conhecedor da matéria. Tinha a sua própria família espalhada aos quatro ventos. Nunca via ninguém.
Olhou para as divisões vazias da casa de Mike Fallen e perguntou a si mesmo se não estaria diante do que o esperava a ele próprio no futuro.
Mike? É o Kovac chamou de novo, enveredando pelo pequeno corredor que ia dar aos quartos.
O primeiro impacte foi o do cheiro. Não insuportável, mas inconfundível. O pavor apertou-lhe o peito como se tivesse uma bigorna em cima. O seu coração bateu contra ele como um punho a martelar numa porta.
Praguejou por entre dentes, tirando a Clock do seu coldre. Empurrou a porta do quarto de hóspedes com o pé. Nada. Ninguém. Apenas camas gémeas vazias, com colchas brancas de lã e uma imagem de Jesus, em tons de sépia, numa moldura metálica barata, pendurada na parede.
Mike?
Aproximou-se da porta do quarto de Fallen, adivinhando as imagens que iria encontrar no outro lado, imagens essas que já lhe invadiam a mente. Não obstante, manteve-se de lado enquanto rodava a maçaneta. Encheu os pulmões de ar e empurrou a porta com o pé.
O quarto encontrava-se no mesmo estado de desarrumação que da última vez em que o vira. As fotografias emolduradas que Fallen espatifara ainda estavam empilhadas onde Kovac as deixara. A cama continuava por fazer. O copo de vidro ainda se encontrava em cima da mesa-de-cabeceira com um resto de uísque dentro. As mesmas roupas sujas espalhadas pelo chão.
Kovac olhou em volta, perdido por um momento, tentando aclarar as imagens que lhe enchiam a cabeça. Ali onde estava, o cheiro era mais forte. Sangue, excrementos e urina. O mordente travo metálico da pólvora. A porta da casa de banho ficava mesmo à sua frente. Fechada.
Colocou-se de lado e bateu, chamando de novo Fallen Pelo nome, embora não suficientemente alto para se ouvir a si próprio. Rodou a maçaneta e abriu a porta com um empurrão.
A cortina do duche dava a impressão de alguém ter parido sobre ela. Tinha bocados de tecido e cabelo agarrados.
"Iron" Mike Fallen estava sentado na sua cadeira de rodas, em roupa interior, a cabeça e os ombros atirados para trás e os braços pendentes ao lado do corpo. As pernas finas, cabeludas e inúteis pendiam para a esquerda. Tinha a boca aberta e os olhos esbugalhados, como se, no derradeiro instante, tivesse compreendido que a realidade da morte era surpreendentemente diferente do que imaginara.
Ai, Mike disse Kovac suavemente.
O hábito de sempre levou-o a entrar com cautela na divisão, apreendendo automaticamente os pormenores, mesmo enquanto outra parte do seu cérebro reflectia na própria perda que aquilo representava para si. Mike Fallen ajudara-o a abrir caminho, determinara um padrão, tornara-se uma lenda a honrar. Como um pai, em muitos aspectos. Melhor que isso, supunha, considerando o relacionamento difícil que tinha com os próprios filhos. Já fora suficientemente mau ver o velho amargurado, revoltado e numa atitude patética. Vê-lo morto em roupa interior era a derradeira indignidade.
A parte de trás do seu crânio desaparecera, dando lugar a um buraco enorme. Um pedaço de escalpe prendia-se à coroa da cabeça através de um amontoado de cabelos grisalhos ensanguentados. Tecido cerebral e minúsculos fragmentos de osso tinham-se espalhado pelo chão. Neste via-se, à direita de Fallen, um velho revólver de serviço, de calibre trinta e oito, ali caído, como se o seu corpo, no estertor da morte, para ali o tivesse atirado.
"Iron" Mike Fallen, apenas mais um polícia que punha termo à própria vida com a arma com que protegera os seus concidadãos. Só Deus sabia quantos o faziam todos os anos. Demasiados. Passavam as suas carreiras como se fizessem parte de uma irmandade, mas morriam sozinhos porque nenhum sabia como lidar com o stresse e todos tinham medo de falar nisso a alguém. Não importava que tivessem de devolver o crachá. Um polícia era um polícia até ao dia da sua morte.
Para Mike Fallen, esse dia fora aquele. O dia em que o filho seria enterrado.
Um homem nunca devia sobreviver aos seus filhos. Devia morrer antes de eles poderem despedaçar-lhe o coração.
Kovac tocou na garganta do velho com dois dedos. Mera formalidade, embora soubesse de pessoas que tinham sobrevivido a tal tipo de ferimentos. Ou melhor, conhecera algumas cujos corações haviam continuado a bater durante algum tempo pelo facto de os danos terem sido feitos a uma parte do crânio menos útil. Não era propriamente sobreviver.
Sentiu que Fallen estava frio. O rigor mortis começara a imstalar-se no seu rosto e pescoço, embora ainda não na parte superior do corpo. Kovac, baseado nesse facto, calculou que a morte tivesse ocorrido nas últimas cinco ou seis horas. Duas ou três da madrugada. As horas mais solitárias da noite. As horas que pareciam estender-se interminavelmente quando um homem ficava acordado a pensar nas realidades mais tristes da sua vida.
Kovac saiu da casa de banho e da própria casa, e deteve-se no alpendre das traseiras a olhar para o nada. Acendeu um cigarro e fumou-o, sentindo os dedos enregelar com o frio. Tinha as luvas no bolso, mas não se deu ao trabalho de as calçar. Às vezes era bom sofrer. Sentir a dor física como uma afirmação de vida, como a aceitação de um sofrimento mais profundo.
Gostaria de ter à mão um copo de uísque para fazer um brinde ao velho, mas isso teria de esperar. Terminou o cigarro e pegou no seu telemóvel.
Fala Kovac, dos homicídios. Tragam-me o material do costume, rapazes. Tenho aqui um cadáver disse. E mandem a vossa melhor equipa. Ele era um dos nossos.
Quando Liska chegou, encontrava-se sentado no degrau da frente, friorentamente enrolado no seu sobretudo e a fumar o seu segundo cigarro.
Por amor de Deus, Tinks, qual é a tua intenção? Alarmar todo o bairro? perguntou ele quando a colega se apeou do carro. Era o dela, o Saturn, com o saco de plástico a tapar a janela.
Achas que o guarda-nocturno do bairro chamará a polícia? perguntou ela, aproximando-se pelo passeio.
Provavelmente dava-te um tiro em plena rua. Atirar primeiro, perguntar depois. A América no limiar do novo milénio.
Se eu tiver sorte, ainda acerta no depósito de combustível e estoira com aquela porcaria. Esta semana dava-me jeito fazer um intervalo.
A ti e a mim disse Kovac. Olhou para o carro da colega com um aceno de cabeça significativo, enquanto Liska subia os degraus cobertos de neve, ignorando a rampa da cadeira de rodas, desimpedida. Então, que aconteceu?
Liska encolheu os ombros.
Apenas mais uma vítima do declínio moral. Em pleno estacionamento, imagina.
O mundo está a tornar-se um inferno.
Sempre vamos recebendo ao fim do mês.
Descobriram alguma coisa?
Não que eu visse. Não havia nada de valor, excepto a minha morada na correspondência publicitária.
Kovac exprimiu preocupação.
Isso não me agrada.
Pois é, realmente... A tua mãe alguma vez te disse que se te sentares no cimento frio ficas com hemorróidas?
Não. Levantou-se com esforço, enregelado. O que me disse é que cegaria se me masturbasse.
Não precisava dessa imagem na minha cabeça.
O que vais encontrar ali dentro supera tudo isso observou Kovac, inclinando-se para a frente a fim de esmagar a beata e atirá-la para o lado do degrau, onde foi cair atrás de uma moita de zimbros.
Durante um momento nenhum dos dois falou, enquanto uma tensão constrangedora se instalava à sua volta.
Lamento de verdade, Sam disse Liska suavemente. Sei que o tinhas em grande conta.
Kovac suspirou.
São sempre os duros que caem com as suas próprias armas.
Liska deu-lhe um pequeno encontrão.
Ei, se fizeres isso, eu reanimo-te para poder eu mesma dar-te um tiro.
Kovac tentou sorrir mas não conseguiu; desviou o olhar para a porta do lado. O vizinho de Fallen colocara figuras dos três Reis Magos montados em camelos, a caminho do presépio do Menino Jesus, recortadas em contraplacado, em frente da sua janela panorâmica. Um schnauzer de perna alçada aliviava-se contra um dos camelos.
Não sou assim tão duro, Tinks confessou.
Tinha a impressão de que toda a sua velha armadura enferrujara e ia caindo como escamas, camada após camada, deixando-o exposto. O que era pior? Ser demasiado duro para sentir, demasiado inacessível para ser tocado, ou estar disponível ao contacto com a vida e as emoções das outras pessoas, ser magoado por esse contacto? Uma escolha dos diabos, num dia como aquele. Era como tentar escolher entre ser esfaqueado ou espancado, pensou.
Óptimo.
Liska pousou uma das mãos nas costas do colega e encostou a cabeça ao seu ombro por alguns instantes. O contacto proporcionou-lhe conforto, como algo fresco contra uma queimadura.
Mais valia ser aberto, decidiu, voltando a reflectir na questão inicial. Mesmo que doesse demasiadas vezes. Ocasionalmente tinha-se aquela sensação. Rodeou os ombros da parceira com o braço e apertou-a ao de leve.
Obrigado.
De nada. Na verdade brincou Liska, afastando-se com expressão séria, tenho uma reputação a defender. E por falar em gente com reputação... Adivinhas que meninos eu vi a comer juntos esta manhã no Chez Chuck? Kovac aguardou. O Cal Springer e o Bruce Ogden.
Diabos me levem!
Não têm muito a ver um com o outro, não é? Ficaram contentes por te ver?
Pois, tão contentes como se tivessem apanhado uma carrada de piolhos. Cá por mim acho que o encontro não foi planeado. O Cal suava que nem um monge numa casa de putas. Mal teve oportunidade, pôs-se a milhas.
Anda demasiado nervoso para quem foi safo de qualquer acusação.
Também acho. E o Ogden... Olhou para a rua, como que a tentar encontrar aí algo com que pudesse compará-lo. Um carro de recolha de lixo passava pesada e vagarosamente. Esse tipo faz lembrar um barril de pólvora prestes a explodir. Adorava espreitar o que tem dentro dos bolsos.
A tenente Savard disse-me que ia consultar o arquivo do Fallen no que se refere à investigação sobre o Curtis. Ver que notas ele pode ter tirado sobre o Ogden, se este o ameaçou, esse tipo de coisa.
Mas não to deixa ver.
Não.
Estás a perder qualidades, Sam. Kovac reprimiu uma gargalhada.
Que qualidades? Espero que ela fique tão farta de mim que me dê o que eu quero para depois me ver à distância. Terapia de aversão.
Bem, também te digo que se eu não fosse tão tesa, esta manhã, o Ogden ter-me-ia feito sentir um pouco de medo admitiu Liska. Ali estávamos nós, ele a enfrentar-me cara a cara e na minha cabeça a passarem só imagens do Curtis... espancado até à morte com um bastão de basebol.
Kovac reflectiu na questão.
Pensaste que se calhar o Ogden é que andava a perseguir o Curtis e deu-lhe cabo do canastro por se queixar aos Assuntos Internos. Mas olha que o Ogden nunca teria participado na investigação do caso Curtis se constasse que ele o perseguira no passado. Essa merda só acontece nos filmes.
Pois é concordou Liska com um suspiro. Se tu fosses o Mel Gibson e eu a Jodie Foster, isso podia acontecer.
O Mel Gibson é baixo.
Está bem. Se fosses... o Bruce Willis.
Esse é baixo e careca.
O Al Patino?
Esse dá a impressão de que um camião o arrastou por uma estrada coberta de cascalho.
Liska ergueu os olhos.
Meu Deus! O Harrison Ford?
Está a ficar velho.
Tu também salientou Liska, voltando a olhar para a rua. Onde está a Brigada de Investigação Criminal?
Como não trouxera chapéu, tinha a orla das orelhas rosada pelo frio.
A resolver uma situação doméstica terminal respondeu Kovac. Repara nisto: a mulher diz que se fartou de o estupor do marido a violar sempre que ela desmaiava de tão bêbeda... depois de passar nove anos naquilo. Esfaqueou-o no peito, rosto e virilhas com uma garrafa de vodca partida.
Uau. Homicídio autêntico.
Dos bons. Seja como for, ainda vão demorar um pouco.
Nesse caso, vou eu tirando as polaróides. Estendeu a mão para receber as chaves do carro do colega e ir lá buscar a máquina.
De acordo com as regras. Toda a morte violenta era trabalhada como um homicídio.
Kovac voltou para dentro de casa, dessa vez acompanhado pela colega, e começou a tirar apontamentos. A rotina proporcionava um certo conforto, desde que não se recordasse de que a vítima fora seu mentor toda uma vida. Liska não disse nenhuma das piadas sombrias a que costumava recorrer para atenuar os horrores de um cenário de morte. Durante algum tempo, o único som que se ouviu foi o clique da máquina, seguido do zumbido do motor eléctrico do enrolador, tirando uma fotografia horrível atrás de outra. Kovac ergueu os olhos do seu bloco de apontamentos.
Liska acocorara-se em frente de Fallen, olhando para ele como se esperasse que o morto lhe respondesse a algumas perguntas feitas telepaticamente.
O que foi? perguntou Kovac.
A detective não respondeu; levantou-se e olhou de parede a parede a estreita casa de banho, depois para trás de si e Para a frente. Ficou com uma expressão intrigada, dando um pequeno estalo com a boca.
Porque terá ele entrado às arrecuas?
Ha?
Esta divisão é estreita, já para não falar dos obstáculos que a sanita e o lavatório representam. Porque entraria de costas? Não deve ter sido nada fácil. Para quê dar-se a esse trabalho?
Kovac reflectiu sobre o velho e a pergunta.
Se entrasse de frente, quem quer que abrisse a porta daria de caras com a parte amassada da sua cabeça. Talvez tenha querido preservar uma certa dignidade.
Se assim fosse teria tido a consideração de se vestir minimamente, não achas? Aquela roupa interior não mostra que houvesse grande preocupação com o respeito dos outros.
Os suicidas nem sempre fazem sentido. Alguém que enfia uma trinta e oito pela boca não está exactamente na posse plena das suas faculdades. E tu sabes tão bem como eu que muita gente dá cabo de si na casa de banho. Parece que depois têm de limpar eles próprios a porcaria.
Liska manteve-se calada. A sua atenção incidia no chão, forrado com um oleado encardido que vinte anos antes fora talvez de cor branca. Atrás de Fallen, via-se um jacto de sangue pontilhado por fragmentos de osso e pedaços de matéria cerebral que faziam lembrar macarrão demasiado cozido. À sua frente: nada. A cortina do duche era uma desgraça; a porta por onde tinham entrado, pelo contrário, encontrava-se limpa.
Quem entrasse... ou saísse... da divisão, tinha o caminho desimpedido à sua frente. Não teria de pisar sangue nem deixar impressões digitais.
Se ele tivesse sido um milionário casado com uma mulher jovem e bonita, diria que estás com um excelente faro, Tinks observou Kovac. Mas ele não passava de um velho amargurado numa cadeira de rodas, acabado de perder o filho preferido. Que motivos lhe restavam para continuar a viver? Estava destroçado por causa do Andy, não se conseguia perdoar a si próprio por não ter feito as pazes com o rapaz. Portanto, rolou até aqui na cadeira, posicionou-se assim e deu um tiro na mona. E fê-lo de maneira a nenhum de nós entrar por aqui dentro e pisar-lhe os miolos.
Liska apontou a máquina fotográfica para a pistola caída no chão e tirou uma fotografia.
Deve ser a velha arma de serviço dele sugeriu Kovac. Quando dermos uma vista de olhos pela casa, descobriremos que a tinha dentro de uma caixa velha de sapatos ao fundo do armário, pois é aí que os polícias da velha guarda costumam guardar as suas armas. Esboçou um sorriso amargo. É onde eu tenho a minha, para o caso de ma quereres ir lá tirar. Somos patéticas criaturas de padrões e hábitos. Olhou fixamente para Fallen. Alguns de nós mais patéticos que outros.
Pareces um tanto amargurado contigo mesmo, Kovak comentou Liska, entregando-lhe as fotografias.
Kovac enfiou-as no bolso interior do casaco.
Como é que posso olhar para uma cena destas e não estar?
O som de uma porta exterior a fechar chegou-lhes de outro lado da casa. Kovac afastou-se de bom grado do cadáver e foi andando pelo corredor.
Já não era sem tempo berrou, parando abruptamente ao mesmo tempo que Neil Fallen se detinha de supetão sob a arcada que dividia as salas de estar e de jantar.
Dava a impressão de que andara a rolar no chão. Tinha o cabelo espetado num dos lados, exibia um hematoma arroxeado no alto da maçã do rosto e o lábio superior estava rachado. Parecia ter dormido com o fato castanho que trazia vestido. A gravata barata estava torta e o colarinho desabotoado. Dificilmente o teria conseguido fechar, pois era óbvio que comprara a camisa alguns tempos antes de adquirir aquele pescoço e desde então ainda não tivera ocasião de a usar.
Sorveu o ar várias vezes, recompondo-se.
Por amor de Deus, ele nem sequer pôde deixar isto para mim? exclamou, passando do choque à raiva. Nem sequer posso levá-lo de carro à maldita casa funerária? Teve, mais uma vez, de vos chamar? O filho da mãe...
Está morto, Neil disse Kovac sem mais delongas. Tudo indica que disparou sobre si mesmo. Lamento muito.
Fallen ficou a olhar para ele durante todo um minuto; em seguida, sacudiu a cabeça de incredulidade.
Você está sempre a fazer de Anjo da Morte, não está?
Apenas de mensageiro.
Fallen voltou-se como quem vai sair pela porta da frente, por onde entrara, mas limitou-se a ficar ali, com as mãos nas ancas e os ombros de touro a subir e a descer.
Kovac aguardou, pensando noutro cigarro e no tal copo de uísque que sentira vontade de beber há pouco. Lembrou-se da garrafa de Old Crow que Neil tinha consigo em frente do barracão no dia em que lhe fora falar do irmão e de terem ficado ao frio a partilhá-la e a verem a neve a varrer a superfície gelada do lago. Parecia já ter sido há um ano.
Quando é que falou com o Mike pela última vez? perguntou ele, reagindo profissionalmente, como sempre.
Ontem à noite. Pelo telefone.
Que horas eram?
Fallen começou a rir de maneira rude e incongruente.
Você é um achado, Kovac comentou, começando a andar de um lado para o outro no pequeno espaço circular que ficava para lá da ponta mais afastada da mesa de jantar. O meu irmão e o meu pai morrem no espaço de uma semana e você a atacar-me com interrogatórios. É realmente o máximo. Vi o velho cinco vezes nos últimos dez anos e você pensa que talvez o tenha morto. Porque me daria a esse trabalho?
Não foi por essa razão que fiz a pergunta, mas, já que tocou no assunto, onde esteve esta madrugada, entre a meia-noite e as quatro?
Vá-se foder.
Agora não estou para isso.
Estive em casa, na cama.
Tem uma esposa ou namorada que o confirmem?
Tenho uma esposa. Estamos separados. Fallen olhou em volta como que à procura de uma terceira entidade que testemunhasse o que lhe estava a acontecer naquele momento, mas não havia ninguém. Cada vez mais enraivecido e frustrado, passeou mais um pouco e sacudiu a cabeça.
Esboçou um pequeno gesto de agressão a Kovac e voltou a recuar, agitando um indicador no ar com o rosto deformado por uma careta.
Eu odiava aquele velho filho da mãe! Odiava-o! Lágrimas esgueiraram-se-lhe por entre os olhos fortemente fechados e deslizaram-lhe pelas faces.
Mas ele era meu pai disse, sustendo um soluço. E agora morreu. Não admito que me venha com merdas!
Parou de andar de um lado para o outro e dobrou-se sobre si com as mãos apoiadas nos joelhos, como se tivesse recebido um murro no estômago. Gemeu guturalmente.
Meu Deus, vou vomitar.
Kovac desviou-se de modo a bloquear o caminho para a casa de banho; no entanto, Fallen dirigiu-se para a cozinha e saiu pela porta das traseiras.
Kovac ia atrás dele mas parou ao ver a brigada a entrar pela porta da frente. Ainda bem. Quando pôde ir ter com Neil Fallen aos degraus da porta da cozinha, já toda e qualquer pirotecnia gastrintestinal terminara. Fallen estava encostado ao corrimão a olhar para o quintal e a beber de um recipiente de metal achatado. Tinha a pele ligeiramente acinzentada e os olhos raiados de vermelho. Não deu mostras de dar pela presença de Kovac; no entanto, apontou para um carvalho despido de folhas no canto mais afastado do quintal.
Aquela era a árvore dos enforcamentos disse sem emoção, quando eu e o Andy éramos miúdos.
E brincavam aos cowboys.
E aos piratas, ao Tarzan e sei lá que mais. Ele devia ter voltado cá para fazer o que fez. O Andy enforcado no quintal, o "Iron" Mike dentro de casa com a cabeça rebentada por um tiro. Eu podia chegar, meter-me com o carro dentro da garagem e morrer asfixiado.
Que tal lhe pareceu o Mike ontem à noite ao telefone?
Um parvalhão, como de costume. "Quero estar no raio da casa funerária às dez da manhã." A imitação não era das melhores mas, ainda assim, razoável. "Fazes o favor de estar aqui a horas." Maldito velho idiota! murmurou, limpando o nariz molhado com a mão enluvada.
Que horas eram? Estou a tentar fazer um enquadramento do que aconteceu e quando explicou Kovac. Precisamos de pôr isso no papel.
Fallen olhou para a árvore e encolheu os ombros.
Não sei. Não reparei. Umas nove, ou coisa assim.
Não pode ser. Às nove estive eu com ele em casa do seu irmão.
Fallen olhou para Kovac.
O que estava você a fazer lá?
A dar uma vista de olhos. Há que atar algumas pontas soltas.
Tais como, por exemplo? O Andy enforcou-se. Como pode ainda estar com dúvidas sobre isso?
Gosto de saber o porquê das coisas observou Kovac. Sou esquisito nisso. Quero analisar aquilo em que estava a trabalhar, o que se passava na sua vida pessoal, coisas desse tipo. Preencher as lacunas, ficar com a imagem completa. Percebe o que quero dizer?
Se Fallen percebia, não gostava. Voltou-se e bebeu novo gole do seu pequeno recipiente.
Estou habituado a que pessoas morram continuou Kovac. Os traficantes de droga matam-se uns aos outros por dinheiro. Os drogados acabam uns com os outros pela droga. Maridos e mulheres matam-se por ódio. A loucura tem um método. Se alguém como o seu irmão, um tipo que tinha tudo a seu favor, faz o que faz, preciso de tentar perceber a razão disso.
Boa sorte.
O que foi que lhe aconteceu à cara?
Fallen tentou desviar a atenção de si. Tocou no hematoma com a mão, como que a retirar-lhe importância.
Nada. Ontem à noite travei-me de razões com um cliente no parque de estacionamento.
Por que motivo?
Ele fez uma observação. Eu levei a mal e disse algo acerca das preferências sexuais dele e de uma ovelha. Ele fez pontaria à minha cara e teve sorte.
Isso é agressão salientou Kovac. Chamou a polícia?
Fallen soltou uma gargalhada nervosa.
Essa é boa. Polícia era ele.
Polícia? Desta cidade?
Não estava fardado.
Como é que soube que era polícia?
Que pergunta! Topo-os à distância.
Ficou com o nome? O número do crachá?
Nem mais. Depois de ele me atirar ao chão, pedi-lhe o número do crachá. Seja como for, não estou para preencher questionários. O tipo era apenas um cretino qualquer que conhecia o Andy.
Como era fisicamente?
Como a maioria dos polícias espalhados pelo mundo respondeu Fallen, impaciente.
Enfiou o recipiente no bolso do casaco, tirou um maço de cigarros para fora e iniciou o ritual, atrapalhando-se com as luvas e os dedos entorpecidos pelo frio... ou pelos nervos. Praguejou, acendeu o cigarro e puxou duas fumaças com força.
Olhe, preferia não ter dito nada. Não quero ter a mínima ligação ao assunto. Já me meti em sarilhos suficientes. Quando estou atestado, falo de mais.
Grandalhão? Baixote? Branco? Negro? Velho? Jovem?
Fallen ficou de má cara e nitidamente enervado. Parecia que, de repente, a pele deixara de lhe assentar bem. Evitou o olhar de Kovac.
Nem mesmo sei se o reconheceria se voltasse a vê-lo. Aquilo não significou nada. Não teve a menor importância.
Pode ter querido dizer muita coisa insistiu Kovac. O seu irmão trabalhava nos Assuntos Internos. Inimigos não lhe faltavam.
Mas matou-se repisou Fallen. Foi o que aconteceu, não foi? Enforcou-se. O caso está encerrado.
Parece que é o que todos desejam.
E você, não?
Eu quero a verdade... seja ela qual for.
Neil Fallen riu-se e depois serenou, olhando de novo Para o quintal... ou para o passado.
Então, escolheu a família errada, Kovac. Os Fallen nunca foram muito dedicados à verdade sobre o que quer que fosse. Mentimos a nós mesmos, sobre nós mesmos e a nossa vida. É o que fazemos melhor.
O que quer isso dizer?
Nada. Somos a típica família americana, nada mais. Pelo menos éramos, até dois terços de nós se suicidarem esta semana.
Será que alguém que estivesse lá por perto seria capaz de identificar esse tipo de ontem à noite? perguntou Kovac, naquele momento mais preocupado com a possibilidade de Ogden ter ido até ao bar de Neil Fallen do que com a dinâmica de desmoronamento da família Fallen.
Eu estava a trabalhar sozinho.
Outros clientes?
Talvez. Jesus, murmurou Fallen, quem me dera ter-lhe dito que fui contra uma porta.
Não seria a primeira pessoa a tentá-lo hoje disse Kovac. Portanto, a briga foi antes ou depois de falar com o Mike?
Fallen soprou fumo pelo nariz. Chateado.
Depois, acho. Que diferença faz?
Ele estava completamente fora de si quando o vi. Sedado ou algo do género. Se falou com ele a seguir, calculo que tivesse desabafado para cima de si.
Calculou bem. Quando se tratava de me dar na cabeça, ele estava sempre à altura observou Fallen, amargo. Nunca nada estava suficientemente bem. Nada compensava.
Compensava o quê?
O facto de eu não ser como ele ou como o Andy. Tudo levaria a crer que, depois de descobrir que o Andy era maricas... Bem, ele já morreu, portanto que diferença faz? Terminou. Finalmente.
Olhou para o carvalho mais uma vez, depois atirou o resto do cigarro para a neve e consultou as horas.
Tenho de ir para a funerária. Talvez consiga enterrar um antes de o outro arrefecer.
Lançou um olhar de esguelha a Kovac e abriu a porta.
Não se ofenda, Kovac, mas espero nunca mais voltar a vê-lo.
Kovac não respondeu. Ficou no degrau a olhar para a árvore de brincadeiras dos irmãos Fallen, imaginando dois rapazitos com a vida pela frente, a brincar aos bons e aos maus; os elos da fraternidade a ligarem os caminhos das suas vidas, delineando as suas forças, fraquezas e ressentimentos.
Se havia algo de que as pessoas nunca se recuperavam era da infância. Se havia um elo que nunca podia ser verdadeiramente quebrado, para o bem ou para o mal, era o da família.
Virou e revirou os pensamentos na cabeça qual urso a levantar as pedras para tentar achar algum tipo de larva de insecto. Pensou nos Fallen e nas invejas, desilusões e ressentimentos entre eles. Pensou no polícia sem rosto com quem Neil Fallen brigara no parque de estacionamento do bar e casa de isco.
Ogden teria sido estúpido ao ponto de ir até lá? Porquê? Ou talvez a palavra estúpido não fosse a indicada. Em que teria ele pensado lucrar? Se calhar, era aí que estava a resposta.
Kovac, ao reflectir no assunto, não conseguia deixar de pensar que Neil Fallen nem sequer pedira para ver o pai. A família da vítima normalmente fazia-o. A maioria das pessoas recusava-se a acreditar na má notícia até ver o corpo com os seus próprios olhos. Neil Fallen não o fizera. E, quando dissera que se sentia agoniado, não dera um passo sequer em direcção à casa de banho. Fora direito à porta de trás.
Talvez precisasse de apanhar ar. Possivelmente não pedira para ver o cadáver do pai morto porque era do tipo de pessoas que não precisava do impacte visual para aceitar a realidade da morte, ou, quem sabe, não tivesse estômago para semelhante coisa.
Ou talvez devessem fazer exames às mãos de Neil Fallen em busca de indícios de pólvora.
A porta das traseiras abriu-se e Liska enfiou a cabeça no lado de fora.
Os abutres aterraram.
Kovac soltou um resmungo. Ele ganhara algum tempo telefonando a pedir apoio através do seu telemóvel, mas a telefonista devia chamar a equipa pelo rádio, e não havia repórter na área metropolitana que não tivesse uma antena de recepção. As notícias de um cadáver nunca deixam de atrair os necrófagos.
Segundo a imprensa, o público tem o direito de tomar conhecimento das tragédias de desconhecidos.
Queres que trate do assunto? perguntou Liska.
Não. Eu presto as declarações decidiu Kovac, pensando na vida de Mike Fallen, na dor, na perda, no amor amargo e nas oportunidades perdidas. Que tal achas isto? A vida é uma merda e, às tantas, morre-se.
Liska arqueou uma sobrancelha e falou com intenso sarcasmo:
Isso. Terá direito a cabeçalho.
Fez menção de voltar para dentro. Kovac deteve-a com uma pergunta.
Ei, Tinks, quando viste o Ogden esta manhã, deu-te a impressão de que tinha andado à pancada?
Não. Porquê?
Na próxima vez em que o vires, pergunta-lhe o que estava a fazer no bar do Fallen ontem à noite. Vê se consegues um aumento.
Liska ficou incomodada.
Ele esteve no bar do Fallen?
Provavelmente. O Fallen afirma que lhe apareceu por lá um polícia a dizer piadas e os dois pegaram-se no parque de estacionamento.
Descreveu o Ogden?
Não. Deixou cair a sua pequena bomba e depois fechou-se como uma ostra. Age como um homem que tem medo de alguma coisa. Da vingança, por exemplo.
Porque se daria o Ogden ao trabalho de ir até tão longe? Mesmo se... Caramba, especialmente se nada tivesse a ver com o Andy Fallen ou o homicídio do Curtis. Ir até lá e andar à pancada com o Neil Fallen? Nem mesmo o Ogden é assim tão estúpido.
É o que estou a pensar. E a pergunta lógica que se segue é: então, se isso não aconteceu, porque estaria o Neil Fallen a mentir?
O Neil Fallen, cujo pai está na casa de banho sem parte de trás da cabeça?
Neil Fallen, que andava amargurado com ressentimentos antigos. Neil Fallen que admitira ter um feitio conflituoso e agressivo. Neil Fallen, cheio de mágoa em relação ao irmão e de ódio ao pai, mesmo depois da morte de ambos!
Façamos algumas investigações sobre Mister Fallen propôs Kovac. Encarrega o Elwood disso, se não andar demasiado ocupado. Eu falarei com alguns dos seus clientes. Tentarei descobrir se mais alguém viu esse polícia-fantasma.
Certo.
Kovac lançou um último olhar sombrio à árvore.
Certifica-te de que o pessoal da medicina legal toma os cuidados devidos com as mãos do Mike. Afinal de contas, podemos estar perante um homicídio.
Não seria um funeral de polícia como os que aparecem nos noticiários do horário nobre. A igreja não estaria cheia de uniformes vindos de todos os cantos do estado. Não se veria nenhuma caravana de carros-patrulha a caminho do cemitério. Ninguém tocaria Amazing Grace numa gaita-de-foles. Andy Fallen não tombara na frente de combate. A sua morte não fora heróica.
O edifício nem sequer parecia uma igreja, pensou Kovac ao deixar o carro no parque de estacionamento e ao caminhar em direcção à casa baixa coberta de tijoleira. À semelhança da maioria das igrejas construídas nos anos setenta, mais fazia lembrar um edifício público. O único pormenor que indiciava a realidade era a cruz de ferro, fina e estilizada, que se erguia na frente. Isso e o letreiro iluminado exterior, perto da avenida.
IGREJA DE SÃO MIGUEL
ADVENTO: À ESPERA DE UM MILAGRE?
MISSAS SEMANAIS: 7 DA MANHÃ
SÁBADOS: 5 DA TARDE DOMINGOS:
9 DA MANHÃ E 11 DA NOITE
Como se os milagres tivessem lugar sempre àquelas horas marcadas. O carro fúnebre encontrava-se estacionado no passeio circular em frente da entrada lateral. Para Andy Fallen não haveria milagres. Talvez se tivesse aparecido ali no sábado às cinco da tarde...
O vento colou o sobretudo de Kovac em volta das suas pernas. Para não perder o chapéu, baixou a cabeça. A temperatura do ar estava bastante baixa. De vários pontos do parque de estacionamento chegavam pessoas para o velório. Polícias. Polícias. Três civis juntos um homem e duas mulheres perto dos trinta. Os polícias vinham à paisana e ele não os conhecia; no entanto, podia identificá-los com a mesma facilidade que Neil Fallen. Era o porte, os modos, os olhos, o bigode.
As pessoas iam entrando no edifício e juntavam-se no vestíbulo, enquanto o órgão fazia soar os acordes de uma música fúnebre. Kovac renovou a si mesmo a promessa de não ter funeral quando morresse. Os colegas podiam beber um copo à sua memória no Patrick's e, quem sabe, Liska trataria de dar rumo às suas cinzas. Atirá-las para os degraus da Prefeitura, por exemplo, onde se juntariam às dos milhares de cigarros ali fumados diariamente pela malta da polícia. Parecia adequado. Àquilo é que, de certeza, não submeteria as pessoas: ficarem ali de pé a olhar umas para as outras, a ouvir a música horrorosa do órgão e a sufocar com o cheiro das flores.
Colocou o seu chapéu no bengaleiro mas não despiu o sobretudo; deixou-se ficar de parte a ver os civis a aproximarem-se, em grupos de três, de outro pequeno aglomerado de conhecidos seus. Iria para junto deles mais tarde. Depois. Depois de todos terem partilhado a experiência de enterrar o amigo. Gostaria de saber se algum deles teria estado suficientemente próximo de Andy Fallen para partilhar a mesma preferência sexual.
Impossível dizer. Pela sua experiência, as pessoas de aparência mais normal podiam estar envolvidas nos actos mais bizarros. Os amigos de Andy Fallen pareciam a nata da sua geração. Bem trajados, impecavelmente penteados, rostos empalidecidos pelo desgosto sob o avermelhado das faces açoitadas pelo vento. Não se podia distinguir quem era gay de quem era heterossexual ou de quem dava Para os dois lados.
As portas voltaram a abrir-se e Steve Pierce segurou numa delas para deixar Jocelyn Daring passar à sua frente. Com os seus requintados casacos pretos de caxemira, faziam um casal bonito: Jocelyn, uma escultural boneca de porcelana, com o cabelo louro impecavelmente penteado para trás e preso por um laço de veludo preto. Podia não sentir a falta do melhor amigo do noivo, mas sabia como vestir-se para a ocasião. Parecia amuada. Pierce mantinha-se a seu lado, perto do bengaleiro, com um olhar infinitamente distante. Não a ajudou a despir o casaco. Ela disse-lhe algo e ele respondeu-lhe com maus modos. Kovac não conseguiu perceber as palavras, porém foram ditas num tom duro e a reacção dela fora amuar ainda mais. Seguiram pela igreja dentro sem se tocar.
Não faziam um casal feliz.
Kovac passou as portas envidraçadas e olhou para o enlutado grupo de pessoas ali reunido. Os bancos corridos eram em aço cromado e as cadeiras, presas umas às outras, em plástico preto. Não havia sítio para ajoelhar, nem estátuas arrepiantes da Virgem ou dos santos adornadas com cabelo humano verdadeiro. O lugar nada tinha de intimidante, não transmitia nenhuma sensação de que Deus mirava os Seus aterrorizados mortais do alto da Sua grandiosidade. Nada que se parecesse com os tempos em que Kovac era miúdo, altura em que comer carne numa sexta-feira de Quaresma era passagem segura para o Inferno. Ele temera e respeitara a Igreja da sua juventude. Aquele lugar era tão assustador como ir a uma prelecção na biblioteca pública.
Pierce e Daring tinham-se sentado na coxia central, a meio da sala. De repente, Pierce levantou-se e voltou para trás, seguido pelo olhar constante da namorada. Tinha os olhos fixos no chão e tirou um cigarro e um isqueiro do bolso do casaco enquanto caminhava. Kovac afastou-se das portas. Pierce, que atravessou o vestíbulo e saiu para o exterior, não reparou nele.
Kovac seguiu-o e colocou-se à sua direita no amplo degrau de cimento, a pouca distância. Pierce não olhou para ele.
Passo a vida a dizer a mim mesmo que vou deixar de fumar confessou Kovac, sacudindo um cigarro de dentro do seu maço de Salem. Prendeu-o entre os lábios e acendeu-o com um isqueiro Bic com símbolos natalícios. Mas, sabe que mais? Nunca consigo. Até gosto. Todos tentam fazer-me sentir culpado por isso e eu caio na conversa. Como se achasse que mereço ou algo do género. Digo então que vou abandonar o vício, mas isso nunca acontece.
Pierce olhou-o pelo canto do olho e acendeu o seu próprio cigarro com um isqueiro esguio, todo cromado, que fazia lembrar uma bala gigante. As mãos tremiam-lhe. Desviou o olhar para a rua e exalou lentamente.
Acho que a natureza é mesmo assim prosseguiu Kovac, arrependendo-se de não ter posto o chapéu antes de sair. Sentia o calor de todo o corpo a fugir-lhe rapidamente pelo alto da cabeça. Todos carregam consigo um fardo de chatices do qual acham que devem sentir-se culpados. Como se isso os tornasse, de certo modo, melhores. Como se houvesse alguma lei contra quem quer apenas ser como é.
Existem muitas leis contra isso observou Pierce, ainda de olhos fixos na rua. Depende de quem se é.
Kovac deixou a observação sem resposta durante algum tempo. Aguardou. Pierce abrira a porta. Apenas uma fenda.
Bem, claro, se se é uma prostituta ou um passador de droga. Ou referia-se a algo menos óbvio? Pierce soprou uma torrente de fumo. Como quando se é gay sugeriu Kovac.
Pierce agitou os ombros e engoliu em seco, fazendo a maçã-de-adão subir e descer.
Isso dependeria da pessoa a quem perguntasse.
Estou a perguntar-lhe a si. Acha que se trata de algo que uma pessoa deva esconder?
Depende da pessoa. E das circunstâncias que a rodeiam.
Como, por exemplo, estar noivo da filha do patrão adiantou Kovac.
Ficou a ver o seu míssil atingir o alvo em cheio. Pierce chegou mesmo a recuar um passo.
Acho que já lhe disse que não sou gay declarou em tom ríspido. Olhou de um lado para o outro, para se certificar de que ninguém estava à escuta.
Pois disse.
Então, pelos vistos não acreditou em mim. Cada vez mais furioso.
Kovac inalou lentamente o fumo do seu cigarro. Tinha todo o tempo do mundo.
Deseja perguntar à minha noiva? Gostaria que lhe fízéssemos um vídeo connosco em plena função sexual?
Ainda mais fúria.
Algum pedido relativo a posições?
Kovac não respondeu.
Deseja uma lista das minhas antigas namoradas?
Kovac limitou-se a fixá-lo, deixando a raiva brotar dele.
E esta ainda continuava a crescer dentro de Pierce, uma espécie de agitação frenética que estava a ter dificuldade em conter.
Sou polícia há muitos anos, Steve disse-lhe, por fim. Sei ver quando alguém está a esconder-me algo. Você anda com muito peso extra.
As veias dos olhos de Pierce davam a impressão de que lhe iam saltar.
Acabei de perder o meu melhor amigo desde os tempos da faculdade. Dei com ele morto. Éramos como irmãos. Acha que um homem não pode chorar terrivelmente por outro sem que ambos sejam homossexuais? É assim que é a sua vida, sargento? Emparedam-se a vocês mesmos com medo do que os outros possam pensar de vocês se souberem a verdade?
Estou-me nas tintas para o que os outros pensam de mim declarou Kovac prosaicamente. Não me aquece nem arrefece. Não ando a tentar impressionar ninguém. Já vi demasiadas pessoas carregar pedregulhos de um lado para o outro, todos os dias, até o peso deles as arrastar para o fundo e as matar de uma maneira ou outra. Você tem a oportunidade de se livrar de um deles.
Não preciso disso.
Ele vai a enterrar hoje. Se souber algo, isso não irá para debaixo da terra com ele, Steve. Ficará pendurado ao seu pescoço até você se libertar.
Não sei de nada. Soltou uma gargalhada áspera que saiu para o ar frio juntamente com uma nuvem de fumo e hálito quente. Não sei nada de nada.
Se esteve lá naquela noite...
Não sei com quem é que o Andy andava a fornicar, sargento declarou Pierce amargamente, fazendo virar a cabeça de várias pessoas que iam a caminho da igreja. Comigo é que não era.
As veias sobressaíam-lhe no pescoço. Tinha o rosto tão vermelho como o cabelo. Os olhos azuis estavam reduzidos a fendas a transbordar de veneno e lágrimas. Atirou o seu cigarro ao chão e esmagou-o com a ponta de um sapato caro.
E agora, se me dá licença, sou um dos portadores do féretro. Tenho de ir transportar o corpo do meu melhor amigo.
Kovac deixou-o ir e acabou de fumar, reflectindo que muita gente o teria achado cruel pelo que acabara de fazer. Ele não concordava. Pensou em Andy Fallen enforcado na ponta de uma corda. O que ele fazia era pela vítima. A vítima estava morta: poucas coisas eram mais cruéis que a morte.
Esmagou o resto do cigarro e depois apanhou as duas pontas, que foi deitar dentro de uma planta envasada perto da porta. Viu, através do vidro da porta, que o caixão fora levado para uma sala ao lado. Os transportadores estavam a receber instruções de um homem entroncado que pertencia à agência funerária.
Neil Fallen encontrava-se de parte, com ar impassível. Ace Wyatt pousou uma mão no ombro do encarregado do funeral e disse-lhe algo ao ouvido. Gaines, o assistente para todo o serviço, estava por perto, pronto para o que fosse necessário.
Vai entrar, sargento? Ou fica a ver dos lugares mais baratos?
Kovac focou o seu olhar no débil reflexo que aparecera no vidro ao seu lado. Era Amanda Savard, em estilo Veronika Lake. Os óculos de sol elegantíssimos, o lenço de veludo em torno da cabeça. Não era estilo, pensou, mas sim um disfarce. Havia uma grande diferença.
Como está a cabeça? perguntou.
Só me dói o orgulho.
Pois. O que é uma pequena contusão para uma fulana dura como você?
Embaraçosa respondeu a tenente. E seria menos se você me desse algum espaço.
Kovac quase riu.
Não me conhece muito bem, tenente.
- Não o conheço absolutamente nada, sargento observou Amanda Savard, agarrando no manípulo da porta com a pequena mão enluvada. Deixemos tudo como está.
Era o mesmo que acenar com uma bandeira vermelha. Kovac sentiu curiosidade em saber se ela teria noção do facto... e, assim sendo, qual seria então a jogada.
Tu e a tenente dos Assuntos Internos. Não querias mais nada, Kovac.
Eu não desisto das coisas observou, fazendo-a olhar de relance para ele sobre o ombro. Mais vale que o fique a saber.
Inescrutável por trás dos óculos escuros, Amanda Savard não fez comentários e entrou na igreja. Kovac seguiu-a. Ansioso por punição. A procissão formada pelo caixão e pelos enlutados acompanhantes subira coxia acima. O organista tocava mais uma deprimente música de morte.
A tenente Savard escolheu um banco ao fundo, numa fila até então vazia. Não pareceu dar por Kovac quando este deslizou para o seu lado. Não cantou o hino, não se juntou às orações ou responsórios que estavam a ser entoados. Não tirou os óculos de sol, nem baixou o lenço ou desabotoou o casaco. Era como se estivesse fechada dentro de um casulo, isolada dos pensamentos do mundo exterior pelas camadas de roupa. Envolvida nos seus próprios pensamentos sobre Andy Fallen.
Kovac observou-a pelo canto do olho, achando que era um cretino por estar a desafiar o destino daquela maneira, a pressioná-la demasiado. Uma palavra dela e ele ficava suspenso. Por outro lado, parecia boa ideia dar a impressão de que, até ver, alinhara com os Assuntos Internos. Não que qualquer das pessoas que compunham aquela multidão parecesse importar-se.
Todas as atenções, e não apenas no caso de Amanda Savard, pareciam voltadas para o íntimo de cada um. Ninguém prestava verdadeira atenção ao padre, que não conhecera minimamente Andy Fallen e só podia falar dele porque alguém lhe fornecera alguns dados. Como acontecia na maioria dos funerais, fosse o que fosse que o padre que presidia à cerimónia declarasse, não tinha a menor importância. O que importava era o panorama de recordações que passava pela cabeça de cada pessoa, os recortes mentais e emocionais de experiências vividas com o falecido.
Kovac foi analisando rostos, curioso em saber quais, se é que houvera mesmo algum, ocultavam recordações de intimidade com Andy Fallen; memórias de paixões partilhadas, de perversões divididas. Qual daquelas pessoas ajudara a colocar a corda em volta do pescoço de Andy Fallen, e depois entrara em pânico quando as coisas correram mal? Qual delas conhecia a peça que faltava no quebra-cabeças do estado de espírito de Andy Fallen: ter-se-ia ele realmente suicidado?
Quantas estariam verdadeiramente interessadas em saber? O caso fora encerrado. O padre fazia de conta que a palavra suicídio jamais fora mencionada numa mesma frase que contivesse o nome de Andy Fallen. Dali a pouco, o jovem estaria debaixo da terra, enterrado, uma recordação a caminho do esquecimento.
Chegou a altura dos elogios. Neil Fallen agitou-se no seu lugar, olhando furtivamente para um lado e para o outro, como que a ver se algum dos presentes reparava que ele não se levantava para falar do irmão no próprio funeral deste. Steve Pierce olhava para os pés com ar de quem estava com dificuldade em respirar adequadamente. Kovac, enquanto aguardava, sentiu uma pressão semelhante no seu próprio peito. Os estudiosos da mente classificavam situações com grande carga emocional como aquela como momentos stressantes, que podiam desencadear acções, confissões e testemunhos. Mas estava-se no Minnesota, um lugar onde as pessoas eram pouco dadas a falar abertamente das suas emoções. O momento passou sem dramas.
Amanda Savard levantou-se, despiu o casaco e, de óculos e lenço postos, caminhou com toda a elegância e o porte de uma rainha até à zona diante do altar. O padre afastou-se Para lhe dar lugar no púlpito.
Sou a tenente Amanda Savard disse num tom simultaneamente calmo e autoritário. O Andy trabalhava comigo. Era um agente excelente, um investigador dedicado e talentoso, e uma pessoa maravilhosa. Ficámos todos mais ricos por o termos conhecido e estamos agora mais pobres com o seu desaparecimento prematuro. Obrigada.
Simples. Eloquente. Voltou para o banco com a cabeça baixa. Misteriosa. Kovac levantou-se e saiu para a coxia a fim de a deixar passar para o seu lugar. As pessoas olhavam. Provavelmente para Amanda Savard. Se calhar admiradas por verem um tipo como ele sentado ao lado de uma mulher como ela.
Kovac retribuiu-lhes o olhar, num desafio silencioso. O de Steve Pierce cruzou-se com o seu por um breve momento, depois desviou-se. Ace Wyatt levantou-se e dirigiu-se para o púlpito, ajeitando os punhos da camisa.
Por amor de Deus! indignou-se Kovac, arrependendo-se logo a seguir ao ver que uma mulher sentada numa das filas mais à frente se virava para lhe lançar um olhar indignado. Já viram este tipo? Sempre pronto a aparecer na fotografia.
A tenente Savard olhou-o de sobrancelha erguida.
Aquele tipo era capaz de pôr o rabo de fora numa janela de décimo andar e acompanhar o hino nacional com peidos se isso lhe trouxesse publicidade continuou ele.
Um dos cantos da boca perfeita de Amanda Savard curvou-se num sorriso contrariado.
Conheço o comandante Wyatt há muito tempo. Kovac estremeceu.
Meti o pé na poça, não foi?
Sem dúvida.
Sou sempre assim. Por isso é que tenho este aspecto.
Travei conhecimento com o Andy Fallen quando este era ainda um rapaz principiou Wyatt com todo o talento dramático de um actor de teatro amador. O facto de estar prestes a tornar-se uma estrela na televisão nacional era testemunho do declínio dos padrões do público americano. Não conheci o Andy Fallen, o homem, muito bem, mas sei de que cepa era feito. Coragem, integridade e determinação. Sei-o porque lidei de perto com o pai, o "Iron" Mike Fallen. Todos nós conhecíamos o Mike. Todos nós respeitávamos o homem e as suas opiniões, e temíamos a sua ira quando fazíamos asneira. O melhor polícia que já conheci. Após uma pausa expressiva, prosseguiu: É com a mais profunda tristeza que me vejo obrigado a anunciar o falecimento do Mike Fallen ontem à noite.
A multidão foi percorrida por um murmúrio. Amanda Savard empertigou-se bruscamente, como quem levara uma cacetada, e a sua pele clara empalideceu no mesmo instante. A sua respiração tornou-se ofegante.
Wyatt prosseguiu.
Inconformado com a morte do filho... Kovac inclinou-se para a tenente.
Sente-se bem, tenente?
Com licença disse ela, levantando-se abruptamente.
Kovac pôs-se de pé para a deixar passar. Amanda Savard precipitou-se para a coxia, por pouco não o atirando para cima da cadeira. A sua vontade era correr por ali fora, sair da igreja e continuar simplesmente a afastar-se a toda a velocidade. Mas não o fez. Ninguém por quem passou lhe lançou mais do que um olhar breve, a atenção colectiva fixa em Wyatt, no púlpito. Ninguém pareceu ouvir as batidas violentas do seu coração ou o rugir do sangue nas suas veias.
Empurrou a porta envidraçada que dava para o vestíbulo e enveredou pelo corredor, em busca dos lavabos das senhoras, que encontrou. A luz era fraca e a divisão cheirava a perfume de ambientador artificial. Ainda tinha a voz de Ace Wyatt dentro da cabeça, o que desencadeava nela uma sensação de pânico. Depois, apercebeu-se de que o som vinha de um altifalante pendurado no alto da parede.
Arrancou o lenço e os óculos, quase desatando a chorar quando a haste destes lhe raspou na zona da contusão. Apertou violentamente os óculos para conter a ameaça de acesso de lágrimas e procurou, tacteando, as torneiras. A água explodiu no lavatório, salpicando-a. Não se importou. Reteve-a entre as mãos em forma de concha e banhou o rosto.
Sentia a cabeça às voltas e as pernas fracas. Encostou-se ao lavatório, agarrando-se-lhe com uma das mãos enquanto, com a outra, se apoiava à parede em frente. Tentou reprimir a náusea, implorou a Deus que a ajudasse a ultrapassar aquele mau bocado, esquecendo convenientemente que deixara de acreditar há muito em qualquer poder supremo.
Por favor, por favor, por favor pronunciou, dobrada sobre si mesma, com a cabeça quase apoiada no lavatório. Via mentalmente Andy Fallen a olhar para ela com ar acusador e irado. Ele estava morto. Agora, também Mike Fallen.
Inconformado com a morte do filho...
Tenente? chamou Kovac, mesmo do outro lado da porta. Amanda? Está aí? Algum problema?
A tenente Savard tentou endireitar-se e esforçou-se por respirar fundo de modo a falar com voz segura. Não foi capaz nem de uma coisa nem de outra.
S... sim, estou respondeu, estremecendo perante a debilidade do tom da sua voz. Estou óptima. Obrigada.
A porta abriu-se e Kovac entrou sem hesitação, indiferente ao pudor de alguma outra mulher que pudesse estar ali dentro. Parecia arrebatado.
Estou bem, sargento Kovac.
Claro, salta à vista disse, aproximando-se dela. Está mesmo melhor do que esta manhã, quando a encontrei cheia de tonturas, ao pé da sua secretária. Sente muitas vezes essa vontade compulsiva de tomar banho vestida? perguntou ele, olhando para os caracóis molhados pegados à sua face e para as manchas escuras de água no fato.
Senti-me um pouco tonta justificou-se a tenente, premindo a testa com uma mão. Respirou fundo pela boca e fechou os olhos por um instante.
Kovac pousou-lhe uma mão no ombro e ela encolheu-se, sentindo vontade de fugir mas contendo-se. Olhou para ele através do espelho e viu-lhe preocupação nos olhos escuros. Olhou para si mesma e ficou estupefacta com o ar vulnerável que exibia naquele momento... pálida e desesperada.
Vá, tenente disse Kovac com suavidade, deixe-me levá-la a um médico.
Não.
Devia ter-lhe dito que tirasse a mão de cima de si, mas o peso desta era sólido, forte e reconfortante, mesmo que não se pudesse abandonar a ele como quereria, e precisava. Percorreu-a um arrepio. Ela não devia desejar nem precisar de nada, muito menos daquele homem.
Olhou para o reflexo da mão dele no seu ombro. Era uma mão grande, larga, com dedos grossos. Mãos de operário, pensou, apesar de o trabalho de Kovac ser feito com a mente e não com as mãos. Os dedos dele retesaram-se por um breve instante.
Bem, ao menos saiamos daqui sugeriu Kovac. Este maldito perfume do ambientador é capaz de sufocar um bode.
Posso cuidar de mim anunciou Amanda Savard. A sério. Seja como for, obrigada.
Venha daí incitou-a Kovac novamente, virando-se para a porta e levando-a consigo, determinado. Anos de prática a empurrar bêbedos, vítimas e pessoas nos mais variados estados de choque facilitavam-lhe a operação. Tenho o seu casaco no vestíbulo.
A tenente soltou-se e voltou para junto do lavatório, pegando nos seus óculos escuros e voltando a pô-los com cuidado. O lenço de veludo estava manchado de água mas, ainda assim, colocou-o com cuidado. Kovac observava-a.
Pensei que só conhecia o Mike Fallen de nome observou.
Exacto. Falei com ele, evidentemente. Sobre o Andy.
No entanto, a maneira como reagiu à notícia da sua morte pareceu um tanto excessiva.
Já lhe disse que me senti tonta retorquiu a tenente. De facto o anúncio da morte do Mike Fallen não teve nada a ver com isso. É uma tragédia, evidentemente...
Ouvi dizer que o mundo está cheio delas.
Sem dúvida.
Satisfeita com o lenço, passou por Kovac e saiu à sua velocidade própria. Havia que não mostrar fraqueza. Demasiado tarde para isso.
Ele deixara o seu casaco dobrado sobre uma mesa cheia de boletins da igreja. Amanda Savard pegou nele e começou a vesti-lo, sendo obrigada a parar apenas com um braço enfiado na manga por causa da dor que lhe vinha do pescoço e de uma das omoplatas. Kovac ajudou-a com o resto, colocando-se um tudo-nada demasiado perto dela por trás, encurralando-a entre si e a mesa.
Eu sei disse ele suavemente, está óptima. Teria sido capaz de o fazer sozinha.
Amanda Savard deu um passo para o lado e passou por ele de lado, dirigindo-se para o vestíbulo. O órgão começara a tocar de novo e o cheiro agridoce do incenso saturava o ar.
Não permitirei que vá a guiar sozinha, tenente declarou Kovac, pondo-se a seu lado. Se está com tonturas, não ficará em segurança atrás de um volante.
Estou bem. Já passou.
Dou-lhe uma boleia. Eu próprio ia voltar para a esquadra.
Eu vou para casa.
Nesse caso, levo-a até lá.
Fica-lhe fora do caminho. Kovac abriu-lhe a porta.
Não tem importância. Assim poderei fazer-lhe algumas perguntas durante o percurso.
Caramba, será que nunca pára? exclamou Amanda Savard por entre dentes.
Não. Nunca. Já lhe disse: não desisto! Nunca até obter o que quero.
Kovac pegou-lhe numa das mãos mas a tenente tentou libertar-se, com o coração aos saltos e os olhos muito abertos por trás dos óculos escuros. Apesar do lenço e dos óculos, sentia-se nua na frente dele.
As chaves.
Assim que ouviu a palavra, os músculos da sua mão distenderam-se e ele fez-lhe deslizar a chave de entre os dedos. Um grande erro táctico. Ela não queria que Kovac a levasse a casa. Não queria o interesse dele. Estava habituada a uma posição de poder, mas, apesar de a sua patente ser superior à dele, Kovac tinha mais anos e experiência que ela. A noção de tal fazia-a sentir-se subordinada, qual menina a dar-se ares de grande importância.
Se tem alguma pergunta a fazer, esteja à vontade disse ela, cruzando os braços. O vento soprava, gelado e agreste. A temperatura baixara no decorrer da hora em que tinham estado dentro da igreja. O Sol começava já a declinar no céu enevoado e invernoso. Depois, agradeço que me devolva as chaves, sargento.
O Andy Fallen alguma vez lhe falou do irmão?
Não.
Por acaso contou-lhe que andava a encontrar-se com alguém... a namorar... ou que estava a ter problemas na sua vida pessoal?
Já lhe disse uma vez: a vida pessoal dele não era da minha conta. Porque insiste no assunto, sargento?
Kovac tentou aparentar inocência, mas Amanda Savard duvidava que mesmo em criança tivesse conseguido ser convincente. Havia em Kovac uma maturidade mundana que ultrapassava largamente a sua idade.
Sou pago para investigar lembrou ele.
Para investigar crimes. Que eu saiba, não houve nenhum.
O Mike Fallen perdeu metade da cabeça declarou Kovac. Só me afastarei deste caso depois de me certificar de que ninguém fez esse trabalho por ele.
A tenente Savard olhou-o através dos óculos escuros.
Porque acha que alguém matou o Mike Fallen? O comandante Wyatt disse que foi suicídio.
O comandante Wyatt pronunciou-se antes de tempo. A investigação está a decorrer. Quando saí do local do crime para vir para aqui, o corpo dele ainda nem tinha arrefecido.
Não faria o menor sentido alguém assassinar o Mike Fallen argumentou a tenente.
Quem disse que tem de fazer sentido? retorquiu Kovac. Alguém se chateia, perde as estribeiras, ataca. Pum, assassínio. Alguém guarda ressentimentos durante demasiado tempo, farta-se da situação, algo acende a centelha. Pum, uma pessoa morre. Todos os dias deparo com situações dessas, tenente.
Mister Fallen não estava bem de saúde. Acabara de perder o filho. Presumo que os indícios encontrados no local da sua morte apontem para suicídio. Não parece mais lógico que tenha sido ele a premir o gatilho do que pensar que foi alguma outra pessoa a fazê-lo?
Claro. Mas, enfim, um assassino esperto também pode ter raciocinado assim salientou Kovac.
Deve haver pouco trabalho na Brigada de Homicídios salientou a tenente Savard, já que um dos seus melhores detectives pode gastar todo o seu tempo em casos já resolvidos.
Quanto mais lido com as pessoas envolvidas com o Andy e o Mike menos considero essas mortes como casos já resolvidos. Conhecia o Andy. Afirma que tinha amizade por ele. Quer que me afaste disto achando que há a possibilidade de não ter sido ele a pôr a corda em volta do próprio pescoço? Quer que eu largue tudo, mesmo tendo a impressão de que o Mike não enfiou aquela trinta-e-oito na boca sem ajuda? Que espécie de polícia seria eu se o fizesse?
As portas da igreja abriram-se atrás deles e os acompanhantes do enterro saíram, encolhidos com o frio e apressando-se em direcção ao parque de estacionamento. Kovac localizou Steve Pierce e Jocelyn Daring, esta a tentar dar o braço ao noivo e este a repeli-la. Quase a seguir vinham Ace Wyatt e o seu assistente adulador. Wyatt parecia impenetrável ao frio, de ombros empertigados e queixo espetado. O seu olhar abateu-se sobre Kovac como um míssil teleguiado.
Sam, disse com a sua voz grave, própria de artista da televisão, ouvi dizer que tu é que encontraste o Mike. Santo Deus, que tragédia.
A sua morte ou eu tê-lo encontrado?
As duas coisas, suponho. Pobre Mike. Não conseguiu aguentar o fardo. Estou convencido de que sentia uma culpa tremenda pela morte do Andy, pelas diferenças que nunca foram ultrapassadas entre os dois. É uma pena...
Olhou para a tenente Savard e cumprimentou-a com um aceno de cabeça.
Amanda, prazer em vê-la, malgrado a ocasião.
Como vai, comandante? Apesar dos óculos, Kovac reparou que ela olhava para além de Wyatt, não para ele. Notícia terrível a que nos deu sobre o Mike Fallen acrescentou. Lamento o sucedido. Sei que ambos tinham uma história em comum.
Pobre Mike observou Wyatt em voz comovida, desviando o olhar. Deixou passar um instante de silêncio, como que por respeito, e depois respirou fundo, recompondo-se. Vejo que conhece o Sam.
Melhor do que gostaria comentou Amanda Savard, tirando as chaves da mão de Kovac, Se os cavalheiros me dão licença...
Estava mesmo a dizer aqui à tenente que me espanta que o Mike estivesse tão perturbado ontem à noite com o suicídio do Andy, que era um pecado mortal e tudo, e depois fosse para casa e metesse a arma à boca disse Kovac, impedindo Amanda de se afastar. Não faz sentido, pois não?
Quem diz que tem de fazer sentido? perguntou a tenente sarcasticamente.
A Amanda tem razão salientou Wyatt. O Mike não estava no seu juízo perfeito, não é?
Quando o vi parecia pouco coerente observou Kovac. E tu, Ace? Levaste-o a casa. Como te pareceu que estava quando o deixaste?
Gaines olhou para o seu relógio.
Comandante...
Eu sei, Gavin. A reunião com o pessoal do gabinete do procurador.
E faltar ao enterro? admirou-se Kovac. Lá se ia uma sessão de fotografias. Mas teve o bom senso de não expressar o pensamento em voz alta.
Foi adiado informou-o Gaines. Um problema qualquer com o equipamento.
Ah! Dificuldades técnicas. Frio como o Caraças para Cavar o Buraco. Perdoe-me a graça, tenente.
Não me parece que tenha perdão, sargento Kovac disse Amanda Savard secamente. E com esta me despeço, senhores.
Ergueu uma mão num gesto de despedida e afastou-se pelo parque de estacionamento coberto de neve. Kovac deixou-a ir, sentindo que tentar detê-la naquele momento, com testemunhas por perto, seria atravessar uma linha que já estivera muito perto de cruzar. Permitiu-se ficar a olhar para ela por um instante.
Sam, não deves estar a pensar seriamente que o Mike foi assassinado disse Wyatt.
Sou um detective dos homicídios. Kovac pôs o chapéu na cabeça. Para mim são todos assassinados. É a minha habitual postura mental. Que horas eram quando deixaste o Mike em casa?
Gaines interrompeu.
Comandante, se quiser ir andando para a reunião, eu posso encarregar-me disto.
Também come a comida por ele e limpa-lhe o rabo? perguntou Kovac, recebendo um olhar gélido do assistente.
Está a reter o comandante, que tem de ir a uma reunião muito importante, sargento Kovac disse Gaines concisamente, movendo-se de modo a colocar-se subtilmente entre eles. Eu estive junto de Mister Fallen e do comandante ontem à noite. Posso responder às suas perguntas tão bem como o comandante Wyatt.
Não é preciso, Gavin observou Wyatt. Quando aqui chegar com o carro, o Sam e eu já teremos terminado a conversa.
Kovac mostrou-se presunçoso.
Isso, seu engomadinho. Vá andando e ponha o carro a trabalhar. Nós dois podemos encontrar-nos por aí mais tarde para eu registar as suas declarações. Assim, já terá do que se queixar.
Gaines não gostava de ser superado nem posto de lado. Os olhos azuis estavam gelados como o cimento debaixo dos seus pés, o queixo elegante espetado. No entanto, dirigiu a Wyatt uma pequena inclinação de cabeça, acatando a sua ordem, e afastou-se em direcção a um Lincoln Continental preto.
Que elegante cão de guarda arranjaste, Wyatt observou Kovac.
O Gavin é o meu braço direito. Ambicioso, determinado, ferozmente leal. Sem ele não estaria onde estou. Tem um futuro brilhante. Às vezes peca por excesso de zelo, mas eu poderia dizer o mesmo de ti, Sam. Não vi nada na morte do Mike que pudesse indiciar um crime, a não ser que eu comece a ficar enferrujado... o que não é verdade.
Kovac enfiou as mãos nos bolsos do sobretudo e suspirou.
Ele era um dos nossos, Ace. O Mike era especial. Claro, talvez a lenda fosse mais especial do que o homem, mais importante, mas ainda assim... Sinto que lhe devo uma boa investigação. Compreendes o que quero dizer? Tu também devias fazê-lo, considerando a tua própria história com ele.
Dói pensar que a porta está a fechar-se sobre esse capítulo das nossas vidas. Custa a acreditar que ele se foi comentou Wyatt calmamente, olhando para o lado do parque de estacionamento quando o tubo de escape do Lincoln preto deixou sair uma nuvem de vapor frio.
Para ele devia ser um alívio enorme, pensou Kovac. A noite em que ocorrera o assassínio de Thorne, há todos aqueles anos, fora um momento definitivo na vida de Ace Wyatt e de Mike Fallen. Nessa noite, a vida de cada um deles sofrera uma reviravolta, nunca mais voltaria a ser a mesma, ficando para sempre ligados pelo momento que fizera de Mike Fallen um aleijado e de Ace Wyatt um herói. Desaparecido Mike, o peso desse fardo devia ter abrandado, uma sensação simultaneamente de alívio e confusão. Como poderia haver um Ace Wyatt se não havia um Mike Fallen para contrabalançar?
Eram perto das dez e meia da noite quando deixámos o Mike em sua casa explicou Wyatt. Estava calado. Mergulhado no seu desgosto. A mim não me passava pela cabeça o que poderia estar a pensar, caso contrário, tentaria detê-lo. Os seus lábios esboçaram um sorriso irónico; o automóvel acabara de se aproximar. Ou, quem sabe, essa tragédia teria sido ainda maior. Ele sofria há muitos anos. Agora, acabou. Deixa-o partir, Sam. Ficou finalmente em paz.
Gaines saiu do carro e foi dar a volta para abrir a porta do lado do passageiro. Wyatt entrou sem acrescentar palavra e o Lincoln afastou-se no meio de uma nuvem de fumo de escape. O Lone Ranger e o Tonto a desaparecerem pelo crepúsculo dentro.
Kovac deixou-se ficar no passeio mais algum tempo, o único que restara do grupo que fora acompanhar Andy Fallen à sua última morada. Até o padre desaparecera.
Lone Ranger murmurou Kovac, começando a atravessar o parque de estacionamento com as mãos metidas nos bolsos e os ombros encurvados para fazer frente ao vento.
O Neil Fallen tem cadastro.
Kovac, que estava a despir o sobretudo, parou a meio.
Isso foi rápido.
Trabalho feito com gosto comentou Elwood, espreitando por cima do cubículo.
Liska estava sentada na sua cadeira, com uma expressão maliciosa de duende travesso a iluminar-lhe o rosto. Quando captava alguma coisa esquisita num caso, ficava outra, pensou Kovac. A excitação era de tal modo intensa que por pouco não ganhava carácter sexual. Kovac não tinha memória de jamais haver estado assim tão entusiasmado com um trabalho, e a sua profissão era o grande amor da sua vida. Talvez precisasse de começar a pensar em terapia hormonal.
O cadastro é já antigo... selado, evidentemente, embora eu tenha conseguido autorização para lhe dar uma espreitadela prosseguiu Liska. Passou sete anos no exército. Requisitei a sua folha de serviços. No ano em que saiu, foi preso por agressão. Cumpriu dezoito meses.
Qual foi a façanha?
Meteu-se numa rixa num bar. Pôs o tipo em coma durante uma semana.
Mau feitio, mau feitio, Neil.
Kovac acabou de despir o sobretudo e pendurou-o no bengaleiro, reflectindo. O escritório assemelhava-se à habitual colmeia alvoroçada de actividade permanente. Telefones tocavam, alguém ria. Um rapagão de vinte e tal anos, com piercings múltiplos, cabelo oxigenado e espetado em picos e as calças a cair-lhe do rabo passou, algemado, a caminho da sala de interrogatórios. No tempo de Mike Fallen, aquele visual teria bastado para que alguém lhe desse um pontapé no rabo.
Então, se tinha cadastro, como é que ele conseguiu obter uma licença para servir bebidas alcoólicas? perguntou Kovac, instalando-se na sua cadeira.
Não conseguiu, respondeu Elwood.
Vem cá para dentro, por amor de Deus queixou-se Kovac. Estou a ficar com o pescoço rígido.
Liska sorriu e deu-lhe um encontrão na cadeira com a ponta da bota.
Devias estar grato pela sensação.
Muito engraçada.
Elwood deu a volta e entrou no cubículo, de faxe na mão.
A licença do bar foi emitida pelas autoridades locais de Excelsior em nome de Cheryl Brewster, que meses depois se tornou Cheryl Fallen.
Ah, a consorte ausente observou Kovac.
Que em breve será ex-consorte corrigiu Liska. Telefonei-lhe para casa. É enfermeira. Faz o turno da noite em Fairview Ridgedale. Diz que se vai divorciar dele e, segundo ela, quanto mais depressa melhor. "Filho da puta mau e bêbedo..." Apenas um exemplo dos termos carinhosos com que se lhe referiu.
Caramba, e eu que o achei um tipo tão simpático observou Kovac. Quer então dizer que à mulher é que atribuíram a licença para abrir o bar. Que acontecerá quando ela o largar?
A sorte do Neil acaba, nada mais respondeu Liska. Podem vender o bar mais a licença, desde que o novo proprietário seja aceite pelas autoridades. O Neil podia arranjar outra pessoa para isso, mas ainda não aconteceu. A Cheryl diz que ele anda a tentar arranjar dinheiro para comprar o resto do negócio e esquecer a licença, mas parece que também ainda não conseguiu juntar dinheiro para isso. Mesmo que o obtivesse, ela diz que aquilo não dá nada de jeito sem o bar, portanto... Perguntei-lhe se achava que ele teria tentado pedir dinheiro emprestado à família. Ela riu-se e disse que o Mike não daria ao Neil nem o troco de uma moeda de dez centavos, quanto mais dinheiro suficiente para comprar o resto do negócio... apesar de, segundo ela, o Mike ter muito.
Entre os detectives isso chama-se motivo salientou Elwood.
Gostaria de saber se ele tentou arranjar o dinheiro junto do Andy disse Kovac, com ar pensativo.
Ele disse à Cheryl que ia ver se o Andy estaria interessado em investir, mas ela não sabe se lhe chegou a perguntar informou Liska. Podemos perguntar ao Pierce. É bem possível que ele tenha dado alguns conselhos financeiros ao Andy.
Mas se o Pierce achasse que o irmão do Andy talvez tivesse alguma coisa a ver com a morte do amigo, porque não o teria dito? perguntou Elwood.
Kovac concordou com um aceno de cabeça.
Porque não apontar o dedo em vez de agir como se o peso estivesse sobre os seus ombros?
Analisemos os apontamentos tirados nos interrogatórios feitos aos vizinhos do Fallen. Veremos se falhámos algum e faremos algumas chamadas em seguida. Talvez alguém possa identificar um carro, ou saber se ele andava a sair com alguém. Elwood, tens tempo para dar uma vista de olhos na agenda do Fallen e telefonar aos amigos dele?
Arranjarei.
De qualquer modo, temos de abordar de novo parte da vizinhança declarou Liska.
Porquê?
Porque a primeira passagem foi feita por aqueles nossos dois caros colegas, o Ogden e o Rubel.
Kovac resmungou.
Esplêndido. Era só o que nos faltava: o Ogden a dizer às pessoas que não viram nada.
Se algum espertinho viu alguém que não ele ou o Rubel... como o Neil Fallen ou o Pierce... até o Ogden teria inteligência suficiente para nos chamar a atenção para isso observou Liska.
Portanto resta-nos esperar que os nossos coleguinhas fardados tenham falhado esse alguém.
Quem falhou quem? perguntou Leonard, parando abruptamente junto do cubículo.
Kovac fingiu procurar uma pasta de arquivo sobre a sua secretária, escondendo os apontamentos que tirara sobre a morte de Andy Fallen.
O tipo que desancou o Nixon respondeu. O guarda-costas do Deene Combs. Resta-nos esperar que o pessoal dele não tenha conseguido tirar o pio a quem esteja minimamente a par do que aconteceu.
Voltaste a falar com a mulher? Refiro-me à que o taxista viu entrar no edifício quando o criminoso fugiu.
Cinco vezes.
Então, insiste. Ela é a chave. Sabemos que ela pode dar-nos informações.
É escusado afirmou Kovac. Ela vai levar tudo para a cova.
Se o Nixon não denunciar o estupor ele mesmo, a Chamiqua Jones não o fará por ele salientou Liska.
Leonard dirigiu-lhe um olhar de desagrado.
Falem novamente com ela. Vão até ao seu local de trabalho. Hoje. Não quero que esses malandros pensem que podem sair impunes.
Kovac olhou de relance para Liska, que baixou os olhos para o chão, escondendo a sua impaciência. A lógica, no que se referia ao caso Nixon, era a de que Wyan Nixon aldrabara o seu patrão, Deene Combs, numa pequena negociata de droga e este dera-lhe uma boa lição, mas ninguém dava com a língua nos dentes, nem mesmo Nixon. O procurador, que queria tornar mais visível aos olhos do público uma linha de conduta dura contra traficantes de droga, garantira que a prefeitura apresentaria queixa mesmo que Nixon não o fizesse. Mas sem testemunhas não havia caso e o motorista de táxi não vira o suficiente para fornecer uma descrição pormenorizada do atacante.
É um buraco sem saída observou Kovac. Ninguém testemunhará o que quer que seja. De que vale?
Leonard franziu ainda mais a cara de macaco.
Vale porque é o teu trabalho, Kovac.
Eu sei qual é o meu trabalho.
Sabes? Parece-me que tens andado a redefinir os teus Parâmetros.
Não sei do que fala.
O caso Fallen está encerrado. Larga-o da mão.
Soube do que aconteceu ao Mike? perguntou Kovac, achando que já deviam ter ido encher os ouvidos a Leonard. Apostava em como fora Amanda Savard. A tenente não o queria tão perto, tão demasiado próximo dela, ameaçando abrir uma brecha na muralha que cuidadosamente erigira à sua volta. Wyatt estava-se nas tintas para o que se passava no pequeno mundo de Kovac. A única coisa que lhe interessava era chegar ao seu acontecimento mediático seguinte.
Leonard pareceu confuso.
Suicidou-se, não foi?
Não estou muito certo do que aconteceu.
Enfiou o cano da arma na boca.
Assim pareceu.
Ficámos com algumas dúvidas, tenente observou Liska. A posição do corpo, por exemplo.
Estás a querer dizer que a cena foi montada?
Montada não direi, mas um pouco conveniente de mais. E não há bilhete de suicida.
Isso nada significa. Muitos suicidas não deixam nenhuma mensagem.
O filho mais velho deixou algumas pistas... e um registo.
Quero investigar um pouco disse Kovac. Talvez o Mike tenha posto termo à vida, mas... e se não o fez? Temos o dever para com ele de não deixar que o caso seja rotulado de suicídio por ser a solução mais simples.
Vejamos o que os médicos legistas têm a dizer observou Leonard com relutância, desagradado com a possibilidade de um caso de suicídio levantar dúvidas, especialmente aquele, com Wyatt e o resto da chefia de olho no assunto. Entretanto, vão falar com a Chamiqua Jones. Hoje. Quero que o procurador deixe de me chatear com o caso Nixon.
Preferia espetar agulhas em mim próprio a ir ao Mail of America durante a época do Natal.
Kovac, que dirigia o Caprice pela 494 em plena hora de ponta, rumo a leste, olhou para Liska de relance.
Onde é que está o teu espírito consumista?
A morrer de falta de oxigénio no fundo da minha conta bancária. Fazes alguma ideia do que os putos querem receber no Natal hoje em dia?
Armas semiautomáticas?
O RJ. deu-me uma lista que parece o catálogo publicitário do Toys R Us.
Vê o lado positivo das coisas, Tinks. Não to enviou de um centro de detenção juvenil.
Quem disse que dar um curso superior a um filho custa um milhão de dólares não tomou o Natal em consideração.
Kovac mudou de faixa contornando um tipo careca que ia firmemente agarrado ao volante de um Geo verde cor de ranho, a oitenta à hora. Matrícula do Iowa.
Agricultores dum raio resmungou Kovac. Só sabem andar com um campo de milho de cada lado.
Atravessou duas faixas para apanhar a saída pretendida. A sua condução arrancava, normalmente, críticas a Liska, mas esta nada disse, aparentemente perdida nos seus pensamentos sobre a data festiva.
Kovac recordou o Natal do ano a seguir à partida da mulher. Ele mandara presentes para a filha. Bonecos de peluche. Uma boneca de trapos. Merdas do género. Coisas que esperava que fossem do agrado de uma menina. As caixas tinham sido devolvidas por abrir. Ele fora entregar tudo a uma instituição de beneficência para crianças e a seguir enfrascara-se até cair. Acabou por se pegar com um Pai Natal do Exército de Salvação em frente da Prefeitura e apanhara uma suspensão de um mês, sem pagamento.
Ele é teu filho observou. Dá-lhe algo que queira de verdade e deixa-te de sovinices. Não passa de dinheiro.
Liska fitou-o.
O que é que ele quer, realmente? perguntou-lhe Kovac, pouco à vontade com o olhar perscrutador da colega.
Quer que eu e o Speed voltemos a viver juntos.
Oh, meu Deus! E há algum perigo de isso acontecer?
Liska ficou calada um pouco de tempo de mais; entravam naquele momento na vasta rampa a ocidente do centro comercial. Kovac olhou de novo para ela, aguardando uma resposta.
O inferno já gelou? perguntou Liska na defensiva. Isso ter-me-á escapado nos noticiários?
O tipo é um cretino. Não preciso que mo digas.
Estou só a lembrar esse pormenor.
Kovac estacionou e memorizou o nível e o número de fila. Era um dos doze mil, setecentos e cinquenta espaços de estacionamento do centro comercial. Não é o sítio indicado para as pessoas se esquecerem de onde puseram o carro. O Mall of America faz lembrar um labirinto gigantesco e sofisticado de vários andares, com os corredores amplos a abarrotar de seres humanos frenéticos que andam apressadamente de piso em piso. O maior centro comercial dos Estados Unidos - quinhentas lojas, um espaço comercial de vários milhões de metros quadrados e, mesmo assim, com pontos de venda a retalho insuficientes para aqueles que procuram o objecto ideal para mandar embrulhar e devolver dois dias depois do Natal. A natureza humana.
O barulho que vinha do parque de diversões denominado Camp Snoopy era contínuo: o troar impreciso da montanha-russa pontuado pelos guinchos dos clientes. Na escadaria que se erguia na entrada do Macy's estava a juntar-se um coro de liceu, cujos rapazes e raparigas deambulavam de um lado para o outro, pouco ligando às ordens gritadas pelo seu maestro.
Passaram as três lojas do Centro de Imaginação Lego, com a sua torre de relógio de sete metros e meio, um enorme dinossauro, a estação espacial, e ainda um dirigível feito com cento e trinta e oito mil e duzentas e quarenta peças suspenso sobre tudo aquilo.
Kovac enveredou pela Old Navy, lançando um olhar de desagrado à montra cheia de fatos de treino, T-shirts e feias roupas acolchoadas.
Olha para esta merda.
Revivalismo dos anos setenta elucidou Liska. Camisolas que parecem ter saído todas engelhadas da máquina de lavar roupa, mas que mesmo assim vendem.
Achei isto muito feio logo na primeira vez em que cá viemos. Olhar para esta tralha traz-me lembranças desagradáveis dos tempos do liceu.
A empregada a quem Kovac mostrou a sua identificação era uma rapariga de brinco no lábio, óculos de aros revirados para cima, que lhe davam um ar felino, e cabelo castanho que parecia ter sido atacado por uma criança de cinco anos armada com uma tesoura.
A gerente da casa está?
Eu sou a gerente. Estão aqui por causa do tipo que se põe atrás das prateleiras a mostrar o coiso às mulheres?
Não.
Deviam fazer alguma coisa em relação a ele.
Vou pô-lo na minha lista. A Chamiqua Jones está a trabalhar?
Está. Os olhos da rapariga pareciam enormes por trás dos óculos.
Queremos apenas fazer-lhe umas perguntas informou Liska. Não está metida em nenhum problema.
A rapariga de olhos de gata pareceu céptica mas não fez nenhum comentário, levando-os até aos gabinetes de prova.
Chamiqua Jones, que tinha vinte e poucos anos, parecia andar já pelos quarenta e possuía uma constituição de barril de duzentos e trinta litros encimado por uma cabeleira cor de ferrugem. Montava guarda ao pé dos gabinetes de prova, controlando prováveis consumidores e larápios de lojas.
É naquela porta além, querida indicou a uma cliente, sacudindo a cabeça e murmurando entre dentes depois da mesma se afastar. Como se fosses capaz de enfiar esse teu cu branco e gordo dentro dessas calças.
Olhou de relance para Kovac e Liska e depois entrou num dos cubículos para ir buscar um monte de calças de ganga ali deixadas.
Vocês, de novo.
Viva, Chamiqua.
Não gosto nada que venham chatear-me no emprego, Kovac.
Eu aqui cheio de saudades tuas e é assim que me recebes? Achava que já estávamos a tornar-nos velhos amigos.
Jones não sorriu.
Ainda fazes com que me matem, isso é que é.
Continua a não ter nada a dizer sobre o Nixon? perguntou Liska.
O presidente? Não. Nada. Eu nem sequer era nascida. Ouvi dizer que era um safado, mas não o serão todos?
Há testemunhas que a colocam na cena da agressão, Chamiqua.
Aquele taxista chanfrado? exclamou a rapariga, levando as calças de ganga para cima de uma mesa. Está a mentir. Eu nunca vi agressão nenhuma. Já o disse a vocês todos.
Não viu um homem a atirar-se ao Wyan Nixom e a desancá-lo com um ferro?
Não, senhora. Só sei que o Wyan Nixon não é flor que se cheire. Sobretudo para mim.
Dobrou as calças com movimentos rápidos e experientes. Tinha as mãos papudas, com dedos curtos e de pele esticada. Fizeram lembrar a Kovac aqueles pequenos balões a que se pode dar a forma de animais. A vendedora desviou o olhar para um rapaz atarracado, com um boné de spandex branco justo que fazia lembrar um preservativo para o crânio. Kovac nunca lhe pusera a vista em cima; no entanto, não lhe deixava dúvidas sobre o que era: todo músculo. Uns bons oitenta quilos de ruindade de sociopata. Devia ter uns dezasseis ou dezassete anos, mas não era nenhum miúdo. Encontrava-se junto de um mostruário rotativo de peças de roupa de lã para a neve, fazendo-o girar sem o ver, com os olhos impassíveis e gélidos cravados em Chamiqua Jones.
Tenho muito que fazer declarou a vendedora, indo abrir um cubículo fechado com uma das chaves que lhe pendiam do aro de plástico verde-fosforescente que usava enfiado num dos pulsos.
Kovac voltou as costas ao monte de músculos.
Podemos oferecer-lhe protecção, Chamiqua. O procurador quer o Deene Combs atrás das grades.
Protecção troçou ela. Que protecção? Recambiam-me nalguma camioneta barata para um motel cheio de pulgas em Gary, Indiana? Escondem-me? Abanou a cabeça de um lado para o outro, trazendo nova pilha de roupa para cima da mesa. Eu sou uma pessoa decente, Kovac. Tenho dois empregos. Estou a criar três bons filhos. Muito obrigada mas quero viver para os ver completar os estudos. O Wyan Nixon pode muito bem proteger o seu cu preto. Eu cá faço o mesmo com o meu.
Sabe que o procurador pode acusá-la de encobrir provas advertiu Liska, lançando o isco. Obstrução à justiça, recusa em colaborar...
Jones ergueu as mãos à sua frente, lançando um olhar rápido ao rapaz do boné semelhante a um preservativo.
Então, ponham-me as algemas e levem-me. Não tenho nada a dizer sobre o Wyan Nixon nem sobre o Deene Combs. Não vi absolutamente nada.
Kovac sacudiu a cabeça.
Hoje, não. Até um dia destes, Chamiqua.
Espero que não.
Hoje ninguém me ama queixou-se Kovac. Liska puxou de um cartão de visita e pousou-o sobre o monte de calças de ganga dobradas.
Se mudar de ideias, ligue-me.
Jones rasgou o cartão ao meio quando se iam a afastar.
Quem pode censurá-la? observou Kovac entre dentes, lançando um olhar de poucos amigos ao rapaz do boné em forma de preservativo ao passar por ele.
Ela está preocupada com os filhos disse Liska. Eu faria o mesmo. Fosse como fosse, não seria capaz de meter o Deene Combs na cadeia. Tu sabes que não foi ele próprio quem fez aquilo ao Nixon. A rapariga podia denunciar um estupor como aquele que está a vigiá-la e ainda assim ser morta pelo sarilho em que se meteu, e para quê? De onde aquele veio, há mais um milhar.
Pois é. Fiquemos por aqui. Um malandro desanca outro malandro. É menos um malandro na rua durante algum tempo. Quem se importa? Ninguém.
Alguém tem de se importar corrigiu-o Liska. Nós temos de nos preocupar.
Kovac olhou para a colega.
Porque somos o único obstáculo entre a sociedade e a anarquia?
Por favor retorquiu ela, com ar grave. Porque a nossa taxa de sucesso conta muito para a promoção. A sociedade que se lixe. Tenho filhos para pôr na faculdade.
Kovac riu.
Tinks, consegues sempre perspectivar as questões correctamente.
Alguém tem de impedir que fiques rabugento.
Eu nunca sou rabugento.
És sempre rabugento.
Não sou rabugento, mas ando ressentido corrigiu-a ele quando passavam em frente ao Café Rainforest, onde o altifalante deixava escapar sons de trovões e chuva, e um dos papagaios berrava que nem uma banshee. Havia bicha para entrar. Há uma diferença salientou Kovac. Ser rabugento é passivo. Estar ressentido é activo. Andar ressentido é como ter um passatempo.
Todas as pessoas precisam de ter um passatempo concordou Liska. O meu é a busca mercenária de dinheiro fácil.
Deu uma guinada em direcção à entrada da Sam Goody, onde se via um cartaz recortado com a imagem de Ace Wyatt quase em tamanho natural, com os braços a rodear, com ar protector, uma caixa cheia de cassetes de vídeo com o título "Proactivo": Sugestões Profissionais da Polícia para não Se Tornar Uma Vítima. Colocou os óculos escuros e foi pôr-se ao lado a fazer pose.
Que tal? Ficamos bem juntos? perguntou a colega, sorrindo. Não achas que ele precisa de uma figura feminina para lhe alargar as perspectivas? Se fosse preciso, eu até usava biquini.
Kovac olhou para a figura de cartão com má cara.
Porque não vais até ao terceiro andar e arranjas trabalho no Hooters? Ou então podias ir passear pela Hennepin Avenue.
Sou uma mercenária, não uma prostituta. Há uma diferença.
Não, não há.
Sim, há. Uma mercenária não utiliza a vagina.
Jesus. Sentiu-se corar. Nunca tens vergonha? Liska riu-se.
Por causa de quê? Do que digo ou da minha busca aparentemente desavergonhada de uma melhoria na minha conta bancária?
A mim educaram-me a não falar de... dessas... Corou ainda mais, enquanto seguiam pelo corredor fora.
Vaginas?
Kovac lançou-lhe um olhar furibundo ao ver que umas pessoas que passavam se viravam para olhar para eles.
Isso talvez explique porque não tens nenhuma à tua disposição especulou Liska. Precisas de ser mais aberto, Sam. De te pôr em sintonia com o lado feminino da tua alma.
Se eu conseguisse entrar em contacto com o meu próprio lado feminino, não precisaria de ter... uma dessas... à minha disposição.
Boa. E podias ter o teu próprio programa na TV: Detective de Homicídios Hermafrodita. Pensa no êxito que isso iria obter. Poderias deixar de ter inveja do Ace Wyatt.
Eu não tenho inveja do Ace Wyatt.
Pois, claro. E eu sou a Heather Locklear.
O que tu desejas é o assistente dele. É dele que andas atrás disse Kovac.
Liska arregalou os olhos.
O Gaines? Por favor. O tipo é gay.
É gay ou não está interessado?
Não faz a menor diferença. Kovac riu-se.
Tinks, de qualquer forma, és demasiado mulher para ele. O tipo é um emproado. E o Wyatt, um grande parvalhão. Merecem-se um ao outro.
Pois é, todo aquele serviço à comunidade, ajudar as pessoas, trabalhar com as vítimas... Que safado.
Kovac ficou ainda mais carrancudo.
Toda aquela publicidade, todas aquelas promoções, todo aquele dinheiro de Hollywood. O Ace Wyatt nunca fez nada que não fosse em benefício próprio.
Salvou a vida do Mike Fallen.
E tornou-se uma lenda.
É, tenho a certeza de que foi premeditado. Kovac fez uma careta com o gosto desagradável que lhe
veio à boca.
Está bem. Fez uma única coisa decente e desinteressada na vida admitiu, passando pelas portas e dando de caras com o vento frio e o cheiro dos escapes. Isso não significa que não seja um parvalhão.
As pessoas são complexas.
Pois é concordou Kovac. Por isso é que as detesto. Com um psicopata, ao menos sabe-se com o que se conta.
O turno mudara e, quando voltaram ao gabinete, Leonard já não se encontrava lá, o que lhes poupou terem de comunicar o insucesso com Chamiqua Jones. Liska ainda pensou em fazer uns telefonemas da sua secretária, mas mudou de ideias. Não conseguia libertar-se da impressão de que todos os que a rodeavam estavam de ouvido à escuta: tudo porque as perguntas que precisava de fazer tinham a ver com outros polícias.
Sempre se considerara forte, capaz de levar a cabo toda e qualquer tarefa que lhe fosse atribuída; no entanto teria preferido qualquer tipo de caso àquele, com excepção do assassínio de uma criança. Nada era pior do que trabalhar num crime perpetrado contra uma criança. Ao recolher as suas coisas e ao sair do escritório, perguntou a si mesma o que faria se a estrada da sua promoção a conduzisse aos Assuntos Internos. Tomaria outra.
A caminhada até ao estacionamento foi fria, com o vento a morder-lhe as faces e as orelhas. A ida para casa não seria muito melhor. Não conseguira arranjar tempo para telefonar para a oficina que lhe trataria da substituição do vidro da janela. Era pena que o vidro partido diminuísse as possibilidades de o carro ser roubado. Se isso acontecesse, pelo menos o seguro arranjava-lhe um veículo de substituição.
Quem estava na cabina era o mesmo indivíduo gordo. Reconheceu-a e baixou a cabeça, receando chamar a sua atenção. Liska desviou o olhar e apalpou o bolso, sentindo o peso reconfortante do seu bastão. Por instantes ainda pensara em estacionar noutro sítio qualquer, mas acabara por voltar ao local do crime. Montar de novo no cavalo, e de olho, ao mesmo tempo, em quem pudesse ter feito aquilo. Se tivesse sorte, conseguiria dominar o seu medo e apanhá-lo só com uma cajadada, embora parecesse improvável que o seu homem misterioso ainda andasse por ali. A não ser que a tivesse escolhido especificamente como seu alvo.
Nada roubado. Nada fora do sítio, excepto o correio...
A patrulha recebera instruções para, naquele dia, ir passando pelo labirinto de cimento do estacionamento. O aparecimento regular de uma presença policial sob a forma de um carro-patrulha destinava-se a afastar os vagabundos, que deviam ter ido todos para o outro lado da rua mijar pelos cantos de estacionamento de Gateway e experimentar todas as portas de carros em busca de uns trocados.
O Saturn encontrava-se estacionado no terceiro espaço de uma fila quase vazia, de nariz para fora. Ninguém assaltara nenhum dos outros. Liska passou por ele, inspeccionando a zona. Aquele nível do estacionamento estava calmo, meio deserto. Voltou para junto do seu carro e entrou. Trancou as portas, ligou o motor e o aquecimento e tirou o telemóvel da bolsa. Marcou o número do agente de ligação com os homossexuais e ficou a olhar para a luz vermelha do VERIFICAR MOTOR a piscar no seu painel de instrumentos, enquanto o telefone soava na outra ponta.
Maldito carro. Teria de pensar em trocá-lo. Talvez em Janeiro, desde que as suas finanças sobrevivessem ao Natal. Poderia candidatar-se a um veículo de serviço. O espaço extra seria óptimo para acomodar os rapazes, mais os amigos e o equipamento de hóquei. Se conseguisse fazer com que Speed lhe desse o dinheiro que lhe devia...
Está?
É o David Dungen?
Sim, sou eu.
David, fala a sargento Liska, dos homicídios. Se puder dispor de uns minutos, gostaria de lhe fazer algumas perguntas.
Uma pausa precavida.
Sobre o quê?
O Eric Curtis.
O do homicídio? O caso está encerrado.
Eu sei. Tem a ver com um caso relacionado.
Falou com os Assuntos Internos?
Sabe como eles são. Não gostam nada de prestar esclarecimentos nem de partilhar informações.
Há uma razão para isso disse Dungen. São questões melindrosas. Eu não posso fornecer informações de mão beijada a qualquer pessoa que as peça.
Eu não sou qualquer pessoa. Sou detective dos homicídios. Não lhe faço as perguntas por sentir algum tipo de curiosidade mórbida.
Isto tem alguma coisa a ver com o outro caso?
Serei sincera consigo, David. Trato-te pelo primeiro nome. És meu colega. Podes estar à vontade comigo. Neste momento, está tudo em ponto morto. Se eu conseguir alguma coisa para levar ao meu tenente...
Dungen nada disse durante um momento, depois, finalmente:
Preciso de saber qual é o seu número de identificação.
Eu dou-lho, mas não quero que nada disto fique registado. Compreende, não é?
De novo uma pausa carregada de significado.
E porquê?
Porque muita gente levaria a mal, se bem me entende. Ando a investigar alguns aspectos relacionados com o Curtis porque alguém mo pediu pessoalmente. Não sei se sairá alguma coisa daí. Não posso ir ter com o meu chefe e apresentar-lhe palpites e impressões esquisitas. Preciso de algo real.
Daquela vez o agente ficou em silêncio durante tanto tempo que Liska começou a achar que a chamada caíra.
Qual é o seu número? perguntou ele, por fim.
Liska respirou fundo, de alívio, sem fazer ruído. O cheiro dos gases emanados pelo tubo de escape era forte. Abriu uma fenda na janela mas deixou o motor a trabalhar. Estava demasiado frio para o desligar. Deu a Dungen o seu número juntamente com o do seu telefone, esperançada de que ele não telefonasse a Leonard a confirmá-los.
Está bem anuiu Dungen, satisfeito. Que gostaria de saber?
Sei que o Curtis se queixou aos Assuntos Internos de que andava a ser perseguido por alguém no trabalho. Que sabe sobre isso?
Sei que ele recebeu algumas cartas cheias de ódio. Do tipo das notas de resgate, com letras cortadas de revistas. "Todos os maricas devem morrer. Por isso é que inventaram a sida." Tudo à volta disso. A raiva costumeira contra os homossexuais, tudo cheio de erros de gramática e de sintaxe.
Tinha de ser um polícia disse Liska secamente.
Oh, foi um polícia. Sem a menor dúvida. Duas cartas estavam no seu cacifo. Outra foi encontrada no carro dele a seguir ao turno. O remetente partiu o vidro do lado do passageiro para a fazer chegar ao destinatário.
Liska olhou para a sua janela, tapada por um bocado de plástico azul, e sentiu um arrepio percorrê-la.
Ele tinha alguma ideia de quem se tratava?
Disse que não. Terminara uma relação alguns meses antes, mas jurou que não fora o ex-namorado.
E esse era alguém do departamento?
Era, mas nunca se assumira. Uma das razões que os levou a terminar a relação. O Curtis queria que ele fosse honesto sobre as suas opções.
O Curtis assumira-se como homossexual.
Sim, mas de maneira discreta. Não era nenhum militante veemente. Fartara-se apenas de viver uma mentira. Queria que o mundo fosse um lugar onde as pessoas pudessem ser o que são sem temerem pelas suas vidas. É irónico que tenha sido morto por outro gay.
Sabe quem era o ex-namorado dele?
Não. Sei que o Curtis mudara algumas vezes de parceiro de patrulha, mas isso não quer dizer nada. Não suspeitava de nenhum deles. De qualquer modo, não era da minha conta. Não sou investigador. O meu trabalho era tomar nota da sua queixa e trabalhar em ligação com os Assuntos Internos e o seu supervisor.
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Lembra-se do nome dos parceiros de patrulha dele?
Na altura andava com um colega chamado Ben Engle. Quanto aos outros, não me lembro. Ele não tinha nada a apontar ao Engle. Parecia que se davam bem.
Quando o encontraram assassinado, achou que fora a pessoa que enviara as tais cartas?
Bem, sim, claro que foi o meu primeiro receio. Foi terrível. Quero dizer, nós... ou seja, os agentes homossexuais... já fomos todos vítimas de perseguições e de preconceitos em maior ou menor grau. Temos muitos colegas com cérebros pequenos e corpanzis cheios de músculos. Há aí um monte de gente cujo principal interesse na vida é o culturismo. Mas o assassínio teria conduzido tudo para um nível diferente... e muito, muito feio. Só de pensar era assustador. Mas felizmente acabou por se ver que não foi o caso.
Acredita que o Curtis foi morto pelo Renaldo Verma?
Acredito. Você não?
Há pessoas que não estão convencidas.
Ah... exclamou, como se a lâmpada do entendimento tivesse acabado de acender. Esteve a falar com o Ken Ibsen.
O nome nada significava para Liska, mas esta adaptou-o ao rosto do homem com a parca verde fosforescente. Dungen tomou o seu silêncio por assentimento.
É o maior criador de teorias de conspiração, sem contar com o Oliver Stone declarou.
Acha que ele é um excêntrico?
Penso que é um exibicionista. O palco do clube onde trabalha não lhe chega. Tem uma longa história de processos arquivados por discriminação e perseguição sexual. Conhecia o Eric Curtis... ou afirma tê-lo conhecido... e portanto isso deu-lhe uma razão para fazer pontaria ao departamento. E agora foi ter com vocês porque os Assuntos Internos fartaram-se de ouvir as suas teorias acrescentou Dungen.
Na verdade, ele veio ter comigo porque o agente dos Assuntos Internos com quem trabalhava foi encontrado morto.
O Andy Fallen. Sim. Foi uma pena.
Conhecia o Fallen?
Falei com ele por causa da investigação. Não o conhecia pessoalmente.
Era gay.
- Isto não é nenhum clube, sargento. Nós não jogamos todos no mesmo grupo observou Dungen. Imagino que Mister Ibsen tenha encontrado uma maneira de inserir a morte de Fallen na sua mais recente teoria. Tudo faz parte de uma conspiração mais ampla para ocultar a ameaça de sida na polícia.
O Curtis tinha sida?
Era seropositivo. Não sabia?
Sou nova no jogo. Ainda preciso de me pôr em dia em muitos aspectos disse Liska, mas parte do seu cérebro já a rearranjar o quadro das hipóteses, tomando aquela novidade bombástica em consideração. Ele era seropositivo e continuava a trabalhar nas ruas?
Não - informou o seu supervisor. Veio ter comigo primeiro. Tinha medo de perder o emprego. Disse-lhe que isso não podia acontecer. O departamento não pode discriminar um agente por motivo de doença. É anticonstitucional. O Curtis teria sido retirado das ruas e ser-lhe-ia atribuído outro tipo de tarefa. Claro que é um risco demasiado grande e também para o departamento, na forma de potenciais processos de indemnização ter um agente seropositivo nas ruas, a lidar com situações de acidente e de ferimentos, situações em que o agente pode ferir-se e correr o risco de infectar alguém.
Na altura em que o Curtis foi perseguido, quem mais sabia que tinha sida? Estariam outros colegas a par do assunto?
Tanto quanto sei, ele não contou a ninguém. Eu disse-lhe que era obrigado a informar todos com quem tivera relações íntimas. Não sei se o fez disse Dungen. O assassino não deveria saber. Quem seria estúpido ao ponto de se atirar a alguém que tivesse sida com um bastão de basebol?
Liska podia ver o local do crime na sua cabeça. Sangue espalhado por todo o lado, nas paredes, tecto, candeeiros; a salpicar tudo, à medida que o assassino ia espancando Eric Curtis com o bastão de basebol.
Quem, sabendo a verdade, se exporia a sangue contaminado?
Alguém que desconhecesse as formas de transmissão da doença ou alguém que não se importasse com isso. Alguém suficientemente arrogante para acreditar na sua própria imortalidade. Alguém já infectado.
Quando é que o Fallen falou consigo pela última vez sobre o caso? perguntou Liska, massajando a têmpora direita com um polegar, sentindo começar a despontar aí uma dor de cabeça. Carregou no botão para subir a janela, achando que ela deixava entrar mais fumo que oxigénio. Recentemente?
Não. O caso foi encerrado. O tipo fez um acordo. Para que quer saber tudo isto, sargento? perguntou Dungen, desconfiado. Pensei que o Andy Fallen se tinha suicidado.
Pois é disse Liska. Ando apenas a tentar descobrir a razão, nada mais. Obrigada pelo seu tempo, David.
Um dos melhores truques de quem fazia perguntas: saber quando desistir. Liska investira no telefonema, mais uma vez na dúvida se o mesmo não se voltaria contra si se chegasse aos ouvidos de Leonard. A perspectiva fê-la sentir-se agoniada. Ou talvez fosse do monóxido de carbono, pensou, apenas meio divertida. Sentia-se um pouco tonta.
Desligou o motor e saiu do carro, inalando uma grande golfada de ar fresco ao mesmo tempo que se apoiava no tecto do Saturn.
Sargento Liska.
A voz trespassou-a como uma lâmina. Virou-se abruptamente e viu Rubel a uns seis metros. Não ouvira o elevador nem escutara passos nas escadas. Ele parecia, simplesmente, ter-se materializado ali.
Tentei apanhá-la no escritório disse ele. Já tinha saído.
Já passa um bocado do fim do teu turno, não? Ele aproximou-se calmamente, parecendo cada vez maior. Continuava a não ter expressão, mesmo sem os óculos espelhados.
Papelada.
E encontrou-me aqui... como?
Rubel fez um gesto na direcção da Ford Explorer preta, estacionada em frente, pouco depois do Saturn.
Coincidência.
Uma ova, pensou Liska. Com tanto lugar para estacionar na Baixa de Minneapolis...
O mundo é pequeno disse ela, secamente. Encostou-se de novo ao carro, tentando controlar a debilidade nas pernas, e enfiou as mãos nos bolsos do casaco, rodeando o cabo do seu bastão com os dedos.
De que me queria falar? perguntou Rubel, detendo-se a escassos centímetros dela. Um tudo-nada demasiado perto para o seu gosto, facto que ele provavelmente não ignorava.
Da possibilidade de o seu colega não o ter posto a par das coisas. Se não se importa. Rubel não respondeu.
Sabia que os Assuntos Internos andavam a investigar o Ogden por ter manipulado provas na investigação do caso Curtis?
Isso são águas passadas.
Seja como for, vocês responderam a uma chamada para a casa do investigador. De quem foi a ideia brilhante?
A chamada chegou pelo rádio. Estávamos na vizinhança.
Vocês são muito dados a coincidências.
Não tínhamos maneira de saber que o morto era o Fallen.
Ficaram a sabê-lo assim que lá chegaram. Devia ter tirado o Ogden de lá. Parece que anda sempre a safá-lo de broncas. Porque não fez o mesmo quando chegaram a casa do Fallen?
Rubel ficou a fitá-la durante um longo espaço de tempo, o que a amedrontou. Liska sentia a cabeça a latejar ao ritmo das pulsações. O estômago andava-lhe às voltas.
Se desconfia de alguma actuação incorrecta da nossa parte disse ele, por fim, porque não fala no problema aos Assuntos Internos?
É o que quer que eu faça?
Não o fará porque o caso está encerrado. O Fallen suicidou-se.
Isso não significa que tenha chegado ao fim. O que não significa que eu não vá ainda falar com o vosso supervisor...
Faça favor.
Há quanto tempo é parceiro do Ogden? perguntou Liska.
Três meses.
Com quem andava antes?
Com o Larry Porter. Saiu da esquadra. Foi trabalhar para a de Plymouth. Pode confirmar tudo isto junto do nosso supervisor. Se quiser falar com ele.
Notava-se um laivo de presunção na sua voz, como se soubesse que ela não iria ter com o supervisor dele com receio de que isso chegasse aos ouvidos de Leonard.
Sabe, estou a tentar livrá-lo de sarilhos, Rubel observou Liska com irritação. Não quero ter problemas com os meus colegas fardados. Nós precisamos de vocês. Mas também é indispensável que não nos lixem os locais de crime. É sempre possível deslindar um caso no local onde decorreu. E se viermos a descobrir que o Andy Fallen foi morto por alguém? Achas que um advogado de defesa não irá fazer com que pareçamos todos uns grandessíssimos nabos se souber que o Ogden andou por lá a chafurdar em tudo?
Defendeu o seu ponto de vista observou Rubel, calmamente. Não voltará a acontecer.
Começou a afastar-se na direcção da sua carrinha.
O seu parceiro é um caso perdido, Rubel disse-lhe Liska. Se ele tem o tipo de problemas que eu penso, faria melhor em distanciar-se.
Rubel fixou-a por sobre o ombro.
Eu sei o que preciso de saber, sargento. Desviou o olhar para o carro dela e acrescentou: É melhor mandar arranjar essa janela. Se a encontro assim, sou obrigado a mandá-la encostar.
Liska viu-o afastar-se e meter-se na sua carrinha. Sentiu a pele dos braços arrepiar-se e os pêlos finos da nuca levantarem-se. A Explorer começou a trabalhar com um rugido, deixando escapar fumo pelo tubo de escape. Depois de fazer marcha atrás, afastou-se, deixando-a novamente sozinha.
Não sabia o que era mais assustador: se Ogden com o seu temperamento acirrado pelos esteróides, se Rubel com a sua calma sinistra. Que par aquele.
Respirando fundo pela primeira vez desde que Rubel a assustara, afastou-se do Saturn e obrigou-se a caminhar, esperando libertar-se da estranha fraqueza que se lhe espalhara pelos músculos dos braços e das pernas. Olhou para a sua janela tapada com um saco do lixo e perguntou a si mesma se não estaria a ser paranóica vendo um segundo sentido no conselho de Rubel para que a mandasse reparar. Ele não precisaria de lhe arrombar o carro para obter a sua morada. Os agentes da polícia tinham várias maneiras de aceder facilmente a esse tipo de informação.
No entanto, alguém podia ter quebrado o vidro por outra razão. Por raiva. Para a assustar. Como uma jogada destinada a lançar a suspeita de algum futuro crime contra ela sobre alguém como o velho bêbedo que tentara assaltá-la. No carro. Nenhuma das opções era animadora.
Olhava para a janela quando se deu conta, a pouco e pouco, de que algo pendia da traseira do Saturn. Talvez fosse um bocado de neve, pensou. Mais uma razão para detestar o Inverno: os montículos imundos de neve que se acumulam atrás dos pneus congelam até à densidade do granito se não forem rapidamente removidos.
Quando Liska se aproximou para sacudir aquilo com o pé, apercebeu-se de que não se tratava do que lhe parecera ver. O que lhe chamara a atenção não se acumulava atrás do pneu, mas pendia, sim, do tubo de escape.
Inclinou-se para a frente e a náusea subiu-lhe pelo esófago. A dor nas suas têmporas intensificou-se. Extremamente perturbada, teve de se apoiar com uma das mãos ao porta-bagagens a fim de poder acocorar-se junto da traseira do carro.
Um trapo branco imundo fora enfiado no tubo de escape.
Um suor frio humedeceu-lhe a pele.
Para todos os efeitos, alguém tentara, simplesmente, matá-la.
O telemóvel começou a tocar dentro do seu bolso. Liska levantou-se, ainda a tremer, e apoiou-se ao carro para o tirar para fora e atender.
Liska, homicídios.
Sargento Liska, precisamos de nos encontrar.
A voz era conhecida. Desta vez, tinha um nome para ela: Ken Ibsen.
Quando e onde?
Ei, ruiva, tenho umas perguntas sobre asfixia auto-erótica para te fazer.
Kate Conlan olhou para Kovac. Rene Russo devia ter tido aquele aspecto estupendo nos seus bons tempos, pensou ele. Ela prendeu uma madeixa de cabelo rebelde atrás de uma das orelhas. Um pequeno sorriso puxou-lhe um dos cantos da boca sensual para cima.
Fico muito lisonjeada por te teres lembrado de mim, Sam. Entra convidou, afastando-se da porta para lhe dar passagem. O John e eu estávamos precisamente a falar na possibilidade de enveredarmos por alguns jogos sexuais esquisitos.
Eu não precisava de tomar conhecimento disso.
Tu é que puxaste o assunto. Dá-me o sobretudo. Kovac entrou no vestíbulo e esfregou os sapatos no capacho.
A casa está excelente.
Obrigada. Estou a gostar de viver aqui nos subúrbios. Sabe bem ter espaço disse Kate. Além disso, gozamos do benefício acrescentado de ninguém me querer assassinar aqui, ou me proporcionar uma morte horrorosa na cave.
Atirou aquela para o ar como se dissesse que era óptimo não terem formigas em casa. Oh, aqueles assassinos em série irritantes. A verdade era que Kate estivera muitíssimo perto de se tornar, ela própria, uma vítima, em vez de advogada das vítimas, que era o seu trabalho. Kovac estivera no local nesse dia, juntamente com John Quinn. Kovac ficara com a inalação de fumo. Quinn, com a rapariga.
A história da minha vida.
Tu és o máximo, ruiva.
Acompanha-me ao santuário interior convidou Kate, seguindo à frente por um amplo corredor de soalho polido e tapetes orientais vermelhos. Em cima da mesinha do corredor estava um enorme gato de pêlo comprido. Quando Kovac ia a passar, tocou-lhe com uma das patinhas.
Ora viva, Thor.
O gato soltou um pequeno rugido agudo, saltou para o chão com um baque e afastou-se pelo corredor fora com a cauda fartamente peluda espetada no ar.
Entraram numa saleta com abundância de painéis de madeira manchados de luz e as paredes pintadas de verde-escuro. Perto de um par de portas envidraçadas que conduziam ao exterior, encontrava-se uma árvore de Natal. O fogo crepitava numa lareira de pedra rústica. Ao lado desta, um enorme cachorro labrador dormia profundamente, esparramado sobre uma almofada. Thor, o gato, aproximou-se dele e ficou a olhá-lo com ar desconfiado e desdenhoso.
A um canto da sala estavam duas secretárias ao lado uma da outra, ambas plenamente equipadas com computador, telefone e faxe, e a habitual parafernália relacionada com o trabalho de escritório. John Quinn encontrava-se sentado a uma delas, atento ao ecrã do computador.
Olha o que o gato trouxe cá para dentro disse-lhe Kate.
Quinn virou-se para ver, tirando os óculos.
Sam! Que bom ver-te.
Não estejas assim tão animado disse Kate prontamente. Ele quer falar sobre a sua vida sexual. Dos prazeres das aventuras auto-eróticas.
Kovac corou.
Não estou assim tão desesperado.
Quinn acercou-se dele e apertou-lhe a mão. Vigoroso e atlético, estava agora com melhor aspecto do que quando se tinham encontrado durante o caso do Cremador, mais de um ano antes. Quinn tinha agora uma descontracção que na altura não possuía e o ar acossado desaparecera-lhe dos olhos escuros. Era, ao que parecia, o que o amor e a tranquilidade podiam fazer por uma pessoa.
Depois do caso do Cremador, Quinn deixara o FBI, onde fora o melhor de entre os melhores psiquiatras. Demasiados casos, demasiada morte, demasiado stresse acabaram por deitá-lo abaixo. O departamento tinha fama de estoirar com os seus melhores profissionais, e fora o que fizera a Quinn, com a colaboração prestimosa deste. No entanto, o facto de quase ter perdido Kate nas mãos de um assassino representara um alerta. Quinn trocara a polícia pela consulta privada e pelo ensino... e pela vida com Kate. Um acordo, sob todos os pontos de vistas, benéfico.
Senta-te convidou Quinn, indicando um par de espaçosos sofás em frente da lareira. Em que estás a trabalhar, Sam?
Num aparente suicídio que foi classificado como acidente mas pode ter sido outra coisa.
O tipo dos Assuntos Internos? perguntou Kate, entregando a Kovac um copo de uísque simples.
A seguir sentou-se ao lado do marido no outro sofá, pousando os pés em cima da mesinha.
Precisamente esse.
Encontraram-no enforcado, não foi? perguntou Quinn. Estava nu?
Estava.
Algum sinal de masturbação?
Não.
Fantasia, representação de papel, submissão?
Não, mas havia um espelho de corpo inteiro onde podia ver-se respondeu Kovac, e onde alguém escreveu a palavra "Lamento" com um marcador.
Quinn ficou com ar pensativo.
Ele tinha algum tipo de acolchoamento de protecção entre a corda e o pescoço? perguntou Kate. Ela própria trabalhara no antigo Departamento de Ciências do Comportamento do FBI... Noutra encarnação, dizia ela.
Não.
Kate mostrou-se intrigada. Quinn levantou-se do sofá e aproximou-se de um conjunto de prateleiras situadas ao fundo da sua secretária.
Os praticantes da asfíxiofilia auto-erótica... os mais sofisticados e experientes... não se arriscam a que a corda lhes deixe uma marca no pescoço observou Kate. Que explicação arranjariam para dar aos colegas, aos familiares, aos amigos?
Kovac meteu a mão num dos bolsos interiores do casaco.
Tenho aqui algumas das polaróides tiradas. Colocou-as sobre a mesinha. Kate olhou-as sem reagir, beberricando o seu gin tónico.
Encontraram algumas cassetes com conteúdo sexual? quis saber Quinn, regressando ao sofá com um par de livros e uma cassete de vídeo.
Duas Semanas de Prazer, com Fred Astaire e Bing Crosby respondeu Kovac. Imagino que algumas pessoas possam argumentar que o filme está cheio de mensagens homossexuais subliminares ou algum outro disparate do género.
Isso é um pouco mais subtil do que eu estava a pensar observou Quinn, indo ligar a televisão e o vídeo, e inserindo depois a cassete.
Nada de pornografia: homossexual, heterossexual ou outra. A propósito, a vítima era gay, se é que isso importa.
Não importa. Não existem dados a sugerir que esta obsessão seja mais comum nos gays do que nos heterossexuais observou Quinn. Perguntei-te se havia cassetes porque muita gente dada a este tipo de diversão gosta de se filmar a si própria, para mais tarde poder reviver o momento.
Voltou para o sofá, aninhou-se ao lado de Kate e carregou num botão do controlo remoto. Kovac inclinou-se para a frente com os braços apoiados nas coxas e os olhos postos no ecrã, evitando diligentemente olhar para a mão que Kate pousara com naturalidade no estômago do marido.
O espectáculo que decorria no ecrã era sórdido, triste e patético. Tratava-se de um vídeo amador feito por um homem que acabou por registar a sua própria morte acidental. Era um indivíduo gorducho, careca, demasiado peludo, vestido com cabedais. Armara o cenário cuidadosamente, examinando o nó complicado da corda pendurada, segundo parecia, dentro de uma garagem ou de um barracão de arrumações. Tapara o fundo com lençóis brancos, e posicionara estrategicamente dois manequins femininos, vestidos com trajes do tipo dominador. Gastou três minutos a prender um pequeno chicote à mão de uma das suas testemunhas silenciosas. Como música de fundo, o Need You Tonight, dos INXS.
Depois de satisfeito com o cenário, aproximou-se de um espelho de corpo inteiro e procedeu à sua própria pequena comédia, com diálogo e tudo. Sentenciou-se um castigo, enfiou uma máscara de punição negra na cabeça e enrolou uma longa echarpe de seda preta em volta do pescoço, dando-lhe várias voltas. Depois foi a dançar até ao patíbulo improvisado, acariciando-se e exibindo-se para os manequins. Subiu para cima do banco e enfiou o laço da corda no pescoço. Afagou a sua erecção e afastou um dos pés do banco, depois o outro.
Os dedos dos seus pés roçavam o chão, uma posição que não poderia manter por muito tempo. O laço apertou-se. Ainda não se apercebera de que estava em maus lençóis. Continuava entretido com a sua fantasia. A certa altura começou a ter dificuldades com o equilíbrio. Estendeu um dos pés de novo para o banco, mas este escorregou para trás. O nó apertou-se ainda mais quando ele tentou chegar ao banco e puxá-lo para a frente com o pé. Largou o pénis para agarrar na sua corda de segurança, mas como se virara para o lado no seu esforço para alcançar o banco, não conseguiu chegar-lhe.
Depois, era demasiado tarde. Demasiado rápido. Segundos mais tarde, a sua dança transformava-se num filme de terror.
Estão a ver com que rapidez tudo dá para o torto? salientou Quinn. Um par de segundos a mais, uma ligeira falha... e tudo termina.
Meu Deus murmurou Kovac. Vejam lá se não se enganam e devolvem esta cassete ao Blockbuster.
Kovac sabia que o vídeo fazia parte da videoteca de Quinn. A sua especialidade eram os homicídios de carácter sexual.
Ali sentados, assistiam à morte de um homem da mesma maneira que outras pessoas veriam um vídeo sobre as férias do vizinho. Quando o tipo deixou de se debater e os seus braços baixaram pela última vez, Quinn desligou o aparelho. O enforcamento não excedera, do princípio ao fim, quatro minutos.
Nem sempre isto decorre no meio de tanta cerimónia observou Quinn. Mas não é invulgar. Não que algum destes pormenores seja vulgar. Numa estimativa por alto, crê-se que todos os anos ocorrem cerca de mil mortes provocadas por fantasias auto-eróticas confirmadas neste país, mais cerca de três ou quatro vezes esse número em diagnósticos errados que as classificam como suicídios ou outra coisa qualquer.
Mas essas são só as pessoas que erram os seus cálculos e não escapam às geringonças que engendraram acrescentou Kate. Quem sabe quantos não praticam de facto a asfixia auto-erótica e não se saem mal. Não encontraste nenhum familiar ou amigo que sugerisse que ele se entregava a esse tipo de actividade?
O irmão contou-me que costumavam brincar aos enforcados quando eram miúdos. Sabem como é, cowboys, jogos de guerra, coisas do género. Nada de bizarro. Mas já alguma vez viram membros da mesma família cometerem este tipo de coisa juntos?
Já há pouca coisa que eu não tenha visto, Sam respondeu Quinn. Isso ainda não vi, mas não há dúvida de que pode acontecer. Eu nunca digo "nunca", porque quando acho que já encontrei de tudo, aparece alguém com algo ainda pior do que eu já imaginara. Qual é a tua opinião sobre o irmão?
É do género brutamontes. Não me parece dado a actividades sexuais bizarras, mas posso estar enganado. Muito ressentimento em relação ao irmão mais novo.
E quanto a amigos? perguntou Kate.
O melhor amigo diz que não, que o Fallen não era dado a práticas excêntricas, mas não há dúvida de que esconde algo.
O melhor amigo... Homem ou mulher? quis saber Kate.
Homem, alegadamente heterossexual, comprometido com alguém de nível social elevado. A vítima, como já disse, era gay. Acabara de se assumir perante a sua família.
Achas que poderiam ter sido amantes? perguntou Quinn.
Considero possível. Isso explicaria a palavra escrita no espelho. A situação fugiu ao controlo, correu mal, o amigo entrou em pânico...
Kate examinou as fotografias, abanando a cabeça.
Isto não me parece um jogo. Continuo a dizer que ele tomaria algumas precauções com o pescoço. Parece mais um suicídio.
Então porquê o espelho? desafiou Quinn.
Auto-humilhação.
Enquanto eles discutiam sobre pormenores em que Kovac reflectira vezes sem conta, este foi folheando os livros que Quinn trouxera: Psicologia da Anormalidade e Vida Moderna, Manual de Sexologia Forense, Mortes Auto-Eróticas. Uma leitura ligeira. Já estudara as fotografias no capítulo "Modos de Morte" da Investigação Prática de Homicídios, que ilustravam, foto atrás de foto de um paspalho atrás de outro, mortes provocadas por inventos elaborados com cordas, roldanas, mangueiras de aspiradores e sacos de plástico para o lixo artefactos destinados a proporcionar orgasmos mais prolongados e intensos. Pessoas rodeadas de brinquedos sexuais bizarros e de pornografia doentia. Pessoas que viviam em caves imundas sem janelas. Vencidos.
Ele não parece encaixar-se nesta chusma observou Kovac.
Nunca encontras nenhum Rockefeller ou Kennedy nesses livros salientou Kate. Isso não significa que eles não possam ser tão doentes ou pior ainda. Quer apenas dizer que são ricos.
Quinn concordou.
Os estudos mostram que este comportamento atinge todos os estratos socioeconómicos. Mas não deixas de ter razão, Sam. A cena tem qualquer coisa que não está certa. Está tudo demasiado limpo e arrumado. E a ausência de qualquer parafernália sexual... A cena que aqui vemos não condiz. Há alguma razão para crer que não foi um suicídio?
Motivos e suspeitas que me chegaram aos ouvidos.
Assassinar através de enforcamento é raro lembrou Quinn. É tremendamente difícil de concretizar sem deixar sinais. Algum ferimento de defesa nas mãos ou nos braços?
Nada.
Contusões na cabeça?
Não. Não tenho o relatório completo da autópsia comigo, mas o médico que o esquartejou não falou à Liska de nenhuma ferida na cabeça disse Kovac. Da toxicologia disseram que ele tomara uma bebida e um soporífero... Não uma overdose, apenas um ou dois.
Isso parece suicídio.
Mas não encontrei vestígios do frasco de comprimidos em lado nenhum da casa. Se o tinha, não o guardava no seu espaço habitual para medicamentos nem foi receitado pelo seu psiquiatra.
Ele andava num psiquiatra?
Depressão ligeira. Tinha um frasco de Zoloft no seu armário de medicamentos. Falei com o médico hoje à tarde.
O médico achava que ele tinha tendências suicidas?
Não, mas também não ficou admirado.
Portanto, estás com um verdadeiro berbicacho entre mãos observou Quinn.
Infelizmente ninguém quer ouvir falar no assunto. O caso está encerrado. Ando a pôr a minha carreira em risco por uma vítima que todos querem enterrada. Nesta altura já estaria debaixo da terra se não tivesse ficado este frio dos diabos.
Recolheu as fotografias, guardou-as de novo no bolso do casaco e dirigiu um sorriso pesaroso ao casal sentado à sua frente.
Mas, enfim, que mais hei-de fazer com o meu tempo? Não tenho vida própria nem nada.
Recomendo que arranjes uma aconselhou Quinn, piscando o olho a Kate, que lhe sorriu, cheia de amor.
Kovac pôs-se de pé.
Muito bem. Vou-me embora antes que vocês os dois fiquem embaraçados.
O que eu acho é que nós é que estamos a embaraÇar-te, Sam disse Kate, levantando-se do sofá.
Também é isso.
Quinn e Kate acompanharam-no à porta. A última imagem com que ficou deles antes de aquela se fechar foi a de um casal a voltar, abraçado, para dentro do seu lar aconchegado. Diabos o levassem se aquilo não o deixava magoado, Pensou, ligando o motor.
Detestava admiti-lo. Desejaria poder mentir a si mesmo, mas a verdade é que andara meio apaixonado por Kate durante quase cinco anos, mas nunca tomara qualquer iniciativa. Porque não se permitia tentar. Quem não arrisca não perde. O que poderia uma mulher como ela ver num tipo como ele?
Agora, já nada havia a fazer. Encarar essa realidade deixava uma sensação de vazio no mais recôndito da sua alma. Ali sentado, no meio da escuridão, não havia como escapar-lhe. Nunca se sentira tão só.
Amanda Savard veio-lhe espontaneamente à lembrança. Bonita, em sofrimento, perseguida por algo que ele não conseguia sequer imaginar. Queria dizer a si próprio que ela apenas fazia parte do quebra-cabeças, que era apenas isso o que lhe interessava nela. Mas naquela noite não havia em si espaço para a mentira. A verdade estava mesmo ali, logo abaixo da superfície. Ele desejava-a.
Naquela zona, a noite chegava mais cedo do que na cidade. A casa de Kate e Quinn localizava-se, tecnicamente, em Plymouth, mas tratava-se mais de campo do que de um subúrbio. O caminho até lá partia de uma estrada secundária pouco concorrida. Tinham um pequeno lago praticamente nas traseiras. Poucas luzes, menos trânsito. Naquela noite, sentado dentro do seu carro, que parara na berma da estrada secundária, nada o distraía da proximidade excessiva do que sentia.
Afinal de contas talvez houvesse alguma vantagem em ter um vizinho que iluminava a casa como se fosse um hotel reles de Las Vegas.
Ken Ibsen não conseguia libertar-se da sensação de que alguém o vigiava, mas, enfim, isso também não representava nenhuma novidade. Desde que toda aquela confusão começara, sentia como que um gigantesco olho malévolo a pairar sobre ele, seguindo todos os seus passos. E o pior era que ele nada fizera para que isso acontecesse. Esforçara-se ao máximo para ser um cidadão consciencioso e um bom amigo, e tudo o que recebera em troca dos seus cuidados fora escárnio e problemas. Eric morrera. O homem injustamente acusado do seu assassínio estava na cadeia e ninguém se importava com o facto de não ser culpado aparentemente nem o próprio condenado. O mundo enlouquecera por completo.
Andy Fallen fora o único a interessar-se por descobrir a verdade sobre o que acontecera a Eric, e agora estava morto. Ken considerava-se cheio de sorte por estar vivo. Haver gente que o achava um louco que só via conspirações à sua volta talvez não fosse assim tão mau.
Liska, porém, parecia genuinamente interessada na verdade.
Então, onde diabo se metera?
Concordara em encontrar-se com ele às dez e meia da noite. Logo após o seu primeiro espectáculo. Ele teria de voltar para o palco uma hora depois. Consultou o delicado relógio que usava por cima da luva branca e suspirou, libertando um delicado fio de fumo de cigarro. Eram dez e cinquenta e cinco da noite. Dali até ao clube seriam uns bons cinco minutos a pé, de saltos altos, e precisaria de retocar o baton...
Naquele momento, desejaria ter marcado o encontro nos bastidores; porém, não quisera que ouvidos estranhos escutassem a conversa. E o parque de estacionamento atrás do Boys Will Be Girls era um sítio demasiado animado para encontros clandestinos, mesmo com aquele frio. Não queria que Liska ouvisse o tipo do carro ao lado a gozar com uma mamada enquanto Ken tentava contar-lhe o que sabia acerca do movimento organizado de ódio anti-homossexual que minava a polícia de Minneapolis. A credibilidade era uma questão importante. Já era suficientemente mau ter de se encontrar com a detective assim vestido.
Ele esperava que a detective visse para além da maquilhagem e da fatiota, mas, enfim, as pessoas tinham dificuldade em ultrapassar esse aspecto, não era? Os julgamentos eram quase sempre feitos com base no que estava à vista e nos estereótipos. A maioria das pessoas naquele café, ao vê-lo ali sentado, vestido de mulher, pensaria que era um travesti ou transexual, que, para o heterossexual comum, são termos equivalentes. Ele não era nem uma coisa nem outra. A maior parte das pessoas teriam ideias preconcebidas em relação ao seu modo de andar, falar, gostos, aversões, talentos. Algumas dessas ideias estariam certas, mas a maioria não.
O que ele era, isso sim, era um homem gay dotado de uma voz excepcional e de um grande talento para a imitação. Era um actor sério, que trabalhava num emprego ridículo porque dava bom dinheiro. Gostava de jogar bilhar e usar calças de ganga. Tinha um cão weimaraner, que nunca enfeitava com fatiotas. Preferia bife a quiche e não suportava a Bette Midler.
A maioria das pessoas é mais do que o seu estereótipo.
Beberricou o café e cruzou as pernas, devolvendo o olhar ao velho que o observava do outro lado da sala. Só para armar em imbecil, fez uma boquinha e mandou um beijo pelo ar ao idoso idiota.
Em vez de se sentir pouco à vontade vestido de Marilyn Monroe, dominava-o uma sensação de segurança por trás da cabeleira platinada e da pesada maquilhagem de palco. Esgueirara-se para dentro do café pela entrada das traseiras e instalara-se numa mesa de canto para evitar dar nas vistas perante os outros clientes. Não eram muitos. Estava demasiado frio para as pessoas se darem ao trabalho de sair de casa numa noite de semana. O facto até favorecia o plano de Ken: um lugar público sem grande parte do público presente.
Agora só precisava que Liska aparecesse.
Tomou mais um gole do seu café e ficou atento à porta.
Liska deixou escapar uma baforada de vapor azulado enquanto esperava em mais um sinal vermelho. Estava atrasada. Alterada. Furiosa. Tivera dificuldade em arranjar alguém que lhe ficasse com os filhos até tarde, logo naquela noite. Passara uma hora e meia ao telefone, a ligar para todas as pessoas de que se lembrara, enquanto Kyle se queixava de que ela prometera ajudá-lo na matemática e RJ. lhe exprimia o seu desagrado espalhando os seus super-heróis em cima da mesa de jantar para depois os varrer teatralmente para o chão.
Acabara por telefonar a Speed. De má vontade. Detestando ter de o fazer. Não havia coisa pior para ela do que precisar de recorrer a ele abertamente por algum motivo. Sobretudo quando se tratava dos filhos. Era suposto ser auto-suficiente, tinha de ser auto-suficiente, era auto-suficiente. Mas, em vez disso, sentia-se incompetente, um fracasso, e uma mãe incapaz. Frustrava-a imenso saber que, se as circunstâncias fossem inversas, Speed teria feito exactamente a mesma coisa sem o menor problema. Não se teria dado ao trabalho de fazer inúmeros telefonemas a baby-sitters, nem se teria achado um incapaz.
Sentiu um nó de emoção a apertar-lhe a garganta e os olhos a arder com lágrimas. Apanhara-o pelo telemóvel, no ginásio, onde estava com o resto dos fortalhaços da esquadra, e ele resmungara por ela lhe interromper o exercício. Liska duvidava que ele tivesse parado imediatamente ou dispensado o duche. Levara um tempo infinito a chegar a casa. Cretino. Por conseguinte, estava atrasada.
A luz mudou e ela ultrapassou um Cadillac, virando rapidamente à direita. Não sabia quanto tempo Ibsen esPeraria. Fizera um dramalhão, armara-se em informante caprichoso e recusara-se a contar-lhe a história pelo telefone, insistindo num frente a frente. Ela desejava acreditar que ele tinha algo importante a dizer-lhe, mas, dada a disposição com que se encontrava naquela noite, sentia-se mais inclinada a acreditar que ele seria tudo o que Dungen dissera, e que ela estava a passar por tudo isto e a arriscar a sua carreira só para, no fim de contas, concluir que não passara de uma perfeita idiota.
Ainda assim, apesar do cinismo fervilhante que a dominava, Liska acreditava que estava a mexer num ninho de vespas prontas a picar e não num caso encerrado, e que Ken Ibsen chanfrado ou não tinha um papel naquilo tudo. Se ele esperasse cinco minutos mais, talvez ela descobrisse que papel era esse.
Ela já não vinha. Repetira mentalmente a ideia no decorrer dos últimos dez minutos. Entretanto, fora-se entretendo a rabiscar num guardanapo, desenhando uma caricatura de si mesmo com aqueles trajes, escrevendo apontamentos ao acaso.
Se calhar, ela não acreditara nele. Talvez tivesse dado ouvidos àquela víbora do David Dungen, que a envenenara contra si. Dungen, o traidor. Dungen, a marioneta manipulada pelas altas patentes da esquadra. Ele não era mais do que um gay disponível e afável que não se importava de preencher o posto simbólico de liaison. O Departamento de Polícia de Minneapolis não queria saber das preocupações dos seus agentes homossexuais.
Claro, Ken não o sabia por experiência própria; no entanto, tinha a certeza disso. Eric aludira ao caso demasiadas vezes. O posto de ligação fora criado para dar conversa aos homossexuais. Consequentemente, o departamento não se preocupara a sério com a perseguição que Eric sofrera. Consequentemente, fomentara o ambiente de ódio que conduzira à morte de Eric. Consequentemente, escreveu Ken no seu guardanapo, sublinhando a palavra, o departamento devia ser responsabilizado por uma morte por negligência.
Se ao menos o tribunal reconhecesse o seu direito de apresentar queixa. Ele não era parente de Eric Curtis. Não tinham sido casados - o casamento entre pessoas do mesmo sexo era (inconstitucionalmente, segundo o seu ponto de vista) contra a lei. Portanto, as suas queixas não chegariam ao tribunal.
Claro, os polícias antiquados e preconceituosos podiam ameaçar pessoas pelas suas preferências íntimas, mas permitir que indivíduos carinhosos exprimissem o seu amor... Não que ele e Curtis tivessem estado apaixonados. Tinham sido amigos. Bem... conhecidos, com potencial para se tornarem amigos. Sabia-se lá o que poderiam ter sido.
A campainha por cima da porta do café soou e arrancou Ken aos seus pensamentos, dando-lhe nova esperança. Mais uma vez, porém, esmoreceu. O cliente acabado de chegar era um tipo com mau aspecto, envergando um velho casaco de camuflado do exército.
E ela que não aparecia.
Onze e dezoito.
Apagou o resto do cigarro, enfiou o guardanapo onde estivera a rabiscar no bolso do casaco comprido a imitar pele de leopardo e saiu pelas traseiras.
Não que gostasse de andar por becos. Aquele emaranhado de ruas secundárias era muito utilizado por bêbedos, drogados e sem-abrigo, que podiam assim fugir à polícia. Essa era, também, a sua intenção. Já não era a primeira vez que a bófía o chateava por andar assim vestido pelas ruas. Como se qualquer puta de rua pudesse fazer o tipo de trabalho a que ele se dedicava. Idiotas. E, claro, partiam sempre do princípio de que qualquer homem de cabeleira loura e vestido era um prostituto. Depois, havia também a questão de não ter propriamente arranjado muitos amigos entre os polícias de patrulha com a sua diligente busca da verdade sobre a morte de Eric.
Aquele beco estava horrivelmente escuro e com aspecto tenebroso. Os prédios formavam um desfiladeiro de cimento sinistro. A escuridão só era interrompida, intermitentemente, pelas fracas lâmpadas que encimavam as portas das traseiras de locais de comércio duvidoso. Todo o contentor do lixo, toda a caixa constituía um sítio de esconderijo potencial para um predador ou um necrófago.
Como se os seus pensamentos tivessem atraído o mal, de repente uma forma apareceu, vinda de detrás do contentor do lixo, uns metros mais ao fundo do beco. A ponta de um cigarro brilhava, incandescente, qual olho maléfico no meio do escuro.
Ken tropeçou e escorregou no gelo cheio de imundícies e teve de se apoiar à parede de um edifício. Ao sentir uma das unhas falsas soltar-se, praguejou. No espectáculo a seguir teria de manter as luvas calçadas. Não haveria tempo para substituir a que se desprendera. Maldita Liska.
A figura ao fundo do beco não se mexeu. A casa por trás do espectro era um salão de tatuagem. O tipo de lugar onde os fregueses apanham sida e hepatite com agulhas infectadas.
Ken meteu a mão no bolso à procura do seu spray de pimenta e continuou a andar, mantendo-se o mais afastado possível, junto do outro lado do beco. O clube ficava a dois quarteirões de distância.
Sustinha a respiração a cada passada. Todos os dias praticava jogging para manter a forma e aguentava-se em cima de saltos altos melhor do que a maioria das mulheres, mas não tinha vontade de experimentar correr com eles.
Sentia o olhar fixo do espectro sobre si. Esperava que os olhos se transformassem em dois pontos vermelhos incandescentes, como os de um lobo.
Chegou junto da porta que dava para o salão de tatuagens, pronto a saltar e com a mão transpirada em volta do spray de pimenta, apesar do frio. O coração palpitava-lhe por trás do peito coberto pela fatiota de palco.
Deus, ele não queria morrer vestido de drag queen. Quase podia imaginar os fotógrafos do local do crime a andarem à sua volta, os agentes a troçar. Se ele escapasse vivo àquela noite, talvez mandasse fazer uma tatuagem a dizer
EU NÃO SOU UM TRAVESTI
O espectro atirou ao chão o cigarro, cuja ponta incandescente descreveu um arco luminoso no meio da escuridão, e de repente lançou-se em frente. Ken desatou a fugir. Escorregava, perseguido por um riso roufenho. O seu tornozelo direito cedeu sob o corpo e ele caiu, esparramando-se no meio do chão sem a menor elegância. A dor que sentiu parecia ser provocada por incontáveis martelos que lhe batessem ao mesmo tempo nos dois joelhos, num dos cotovelos, num dos lados do osso ilíaco, no queixo. Soltou um grito, desesperado e débil, que se diluiu contra o tijolo e o cimento.
Esforçou-se por se pôr de pé, agarrando-se a tudo a que pudesse deitar mão. Segurou-se a uma ponta de um contentor de lixo e içou-se, resvalando e batendo contra ele. Tinha as meias de náilon rotas. Sentia o frio e a humidade na pele nua. Apercebera-se de costuras do seu vestido a rebentar quando fizera força com as pernas para se levantar.
Virou a cabeça para trás. O espectro, ainda a rir, voltara-se e entrara novamente no salão de tatuagens. Estupor.
Ken encostou-se ao contentor a respirar, ofegante, sentindo o ar gelado a raspar-lhe a garganta.
Maldita Liska. Começou a pensar em lhe enviar a sua conta de lavandaria.
Continuou pelo beco abaixo, a coxear. Um dos sapatos perdera o salto, e sentia um tornozelo magoado. Levou uma mão à boca e ao queixo e, ao afastá-la, viu a luva branca manchada de sangue e lama. Maldição. Se tivesse de levar pontos, o seu patrão atirar-se-ia ao ar. Os dois quarteirões estavam a parecer-lhe muito mais longos do que no princípio da noite. E com os arranjos que iria ter de fazer, nem pensar em aparecer no último espectáculo.
O fim do beco estava próximo. Não havia trânsito na rua secundária. Só se via um carro escuro estacionado à beira do passeio próximo. Podia ver o porta-bagagens, nada mais. Não lhe despertou a menor curiosidade até uma fracção de segundo antes de a sombra corpulenta e negra de um homem se abater sobre a entrada do beco, altura em que foi dominado pelo calafrio gélido de uma premonição horrível.
Vou morrer esta noite.
O porta-bagagens do carro abriu-se e a sua luz iluminou um rosto tapado por uma máscara preta de esqui. O homem meteu a mão dentro do carro, de onde retirou uma barra de ferro.
Ken Ibsen deteve-se e ficou imóvel por um momento, que pareceu, simultaneamente, real e irreal. Depois voltou-se com lentidão, achando que, afinal de contas, o melhor era voltar para trás. O menor dos males. Mas não havia como fazê-lo. E não havia mal menor. O caminho da fuga, atrás de si, fora bloqueado por outro homem igualmente mascarado. Uma silhueta corpulenta, com algo na mão.
Ele podia sentir a maldade que emanava deles à medida que se iam aproximando, diminuindo a distância de cada lado. O medo atingiu-o como um raio e fê-lo desatar a gritar, tirando o spray do bolso e tentando desengatilhá-lo. O atacante da barra de ferro fez um movimento rápido, e o braço de Ken ficou a pender-lhe de lado, partido e inútil. O cilindro metálico caiu no chão como um bocado de lixo.
Ainda pensou em correr, mas o ferro atingiu-o num dos joelhos, e o osso estilhaçou-se como vidro.
Pensou em gritar a pedir ajuda, mas sentiu o queixo desfazer-se e os dentes saltarem-lhe da boca como se fossem pastilhas elásticas.
Não quero morrer vestido de "drag queen", pensou. Depois, tudo ficou negro.
Liska estacionou o Saturn no passeio de uma zona onde era proibido parar, a um quarteirão de distância do café que Ibsen escolhera para se encontrarem. Estava atrasadíssima. Maldito fosse Speed por ter levado tanto tempo.
Os escassos clientes estavam sentados em grupos de dois ou três, afastados uns dos outros o mais possível, concentrados nas suas conversas. Quando Liska entrou, ninguém levantou os olhos para ela. Dirigiu-se imediatamente ao balcão, onde o único empregado visível estava a ler um livro da grossura das Páginas Amarelas.
O que está a estudar? perguntou, mostrando-lhe a sua identificação.
O barman fitou-a por detrás de uns óculos à moda. Possuía olhos castanhos expressivos e o tipo de rosto fino e elegante com que os pintores retratam Jesus Cristo.
Estou a tentar perceber porque é que o meu pai anda a gastar um dinheirão na minha faculdade para eu poder aprender a preparar capuchinos. Olhou de relance para a identificação de Liska. Veio prender-me por me fazer passar por um estudante de Medicina?
Não. Fiquei de me encontrar aqui com uma pessoa já há um grande bocado. Um tipo baixo, esguio, de cabelo platinado.
O estudante de Medicina disse que não com a cabeça.
Não vi ninguém com esse aspecto. Esteve aqui um travesti vestido à Marilyn Monroe. Parecia estar à espera de alguém, mas depois foi-se embora. Não era nenhum encontro romântico, pois não?
Não. Há quanto tempo essa Marilyn Monroe se foi embora?
Dez, vinte minutos. Saiu pelas traseiras. Trabalha no Boys Will Be Girls. De vez em quando aparecem aqui, no intervalo dos espectáculos. Tirando isso, nada mais sei sobre o assunto apressou-se a acrescentar.
Um travesti murmurou Liska de si para si, virando-se. Esta noite está cada vez melhor.
O seu importante informador andava vestido à Marilyn Monroe. Padres e banqueiros raramente se transformavam em informadores, lembrou a si mesma. E quando o faziam, era por serem, secretamente, pervertidos ou ladrões.
E admirava-se a mãe de que ela não tivesse namorado...
Percorreu o corredor, passou pelos lavabos e chegou junto da porta das traseiras do café. O estudante de Medicina seguia-a como um cachorrinho.
Conhece alguém no Instituto de Medicina Legal? perguntou-lhe ele. É que, como as coisas estão, mais vale eu tirar patologia, pelo menos não corro o risco de ser acusado de negligência médica.
Claro que conheço lá gente respondeu Liska. Se aguentar o cheiro, até não é um mau trabalho.
Empurrou a porta e olhou para fora. O beco estava escuro, molhado e sujo. Deveria haver uns ratos e uns órfãos maltrapilhos para completar o cenário, pensou, e foi então que reparou numa sombra debruçada como um abutre sobre um vulto a uns dez metros de distância. Encontrava-se numa pequena zona iluminada pela luz proveniente da porta das traseiras de um estabelecimento comercial qualquer. A criatura olhou várias vezes na direcção de Liska, como um coiote apanhado a chafurdar no lixo... desejoso de deitar a correr mas detestando ter de desistir do tesouro que encontrara. Desviou-se apenas o suficiente para que a luz fraca incidisse sobre o seu achado, e os pormenores da cena começaram a ser registados no cérebro de Liska: um sapato de mulher, uma perna nua, um vislumbre de cabelo claro.
Ei, você! gritou ela, puxando da arma e movendo-se de modo a ficar protegida pelo caixote do lixo. Polícia! Afaste-se do corpo! Em seguida ordenou ao estudante de Medicina: Chame o Cento e Doze. Peça para mandarem a polícia e uma ambulância. Diga-lhes que houve uma agressão. Rápido.
O coiote deitou a fugir. Liska pôs-se instantaneamente em movimento, correndo e gritando, de arma apontada e sem saber se o homem estava armado e se viraria para disparar. Viu-o tropeçar e vacilar, perdendo alguns segundos preciosos a tentar recuperar o equilíbrio. Liska alcançou-o e atirou-o ao chão, enfiando-lhe um joelho nas costas e agarrando num pedaço de colarinho e cabelo gorduroso com a mão esquerda enquanto, com a direita, lhe apontava a arma.
Está preso, filho da puta! Quieto!
Eu não fiz nada!
O fedor a uísque barato e a vomitado emanava dele como um miasma doentio. Tentou levantar-se mas Liska bateu-lhe na base da nuca com a coronha da sua Sig.
Eu disse quieto!
Mas eu não fiz nada!
Se eu ganhasse um dólar por cada malandro que me diz isso, teria uma mansão com piscina.
Pergunte ao Beano! Foram os outros tipos!
Boca calada! Os outros tipos.
Olhou para a vítima, mais atrás. Não conseguia distinguir-lhe as feições, nem mesmo via se respirava. Algemou as mãos do "coiote" atrás das costas.
Fique aí. Não se levante. Não se mexa.
Mas não fui eu queixou-se o homem.
Repita isso mais uma vez e eu dou-lhe um tiro. Calado!
O indivíduo começou a chorar, enquanto Liska se aproximava da vítima.
A senhora está bem? perguntou.
Uma pergunta estúpida, só para obter algum tipo de resposta. Um gemido, um queixume, qualquer coisa.
Acocorou-se junto do corpo e meteu a mão por entre a massa despenteada de cabelo louro-platinado para tentar sentir a pulsação na garganta. A princípio pareceu-lhe que estava a olhar para a parte de trás do crânio, uma amálgama sangrenta de ossos amolgados e sem feições. De repente a vítima soltou um suspiro prolongado e trémulo; um som horrível, sem expressão, entrecortado; e ela viu bolhas no sangue que saía do que devia ter sido uma boca.
Oh, meu Deus sussurrou Liska, encontrando a pulsação ténue e irregular com a ponta dos dedos trémulos. Afastou cuidadosamente os cabelos para trás com a outra mão. Era uma cabeleira postiça, que se libertou com facilidade, revelando um cabelo curto platinado e manchado com o sangue que saía de uma fractura craniana. Ken Ibsen.
Jazia no meio do chão como uma boneca de trapos deitada fora, os membros dobrados em ângulos esquisitos. Segurava num bocado de papel um guardanapo. Liska tirou-o de entre os dedos em convulsões e ergueu-o à luz fraca. Rabiscos. Provavelmente feitos enquanto esperara pela sua chegada. Palavras desgarradas e pequenos desenhos. Uma frase chamou-lhe a atenção: morte por negligência.
O estudante de Medicina aproximou-se a correr.
Já vêm a caminho.
Ainda mal acabara de proferir as palavras, já uma sirene se ouvia ao longe.
Trouxe uma lanterna disse o rapaz, fazendo incidir o feixe de luz sobre o rosto da vítima.
A lanterna tombou para o chão. O estudante de Medicina virou-se e vomitou, começando a ter dúvidas sobre a sua futura carreira.
Ela sentiu-o atrás de si antes de olhar. A consciência do facto inundou-a como uma maré cheia, chegando-lhe à base da garganta, ameaçando saltar-lhe da boca num grito. O medo retesou-lhe os músculos das costas, dificultando-lhe a vontade de se virar para trás. Era como se vestisse um colete-de-forças.
Ele estava no meio das sombras que enchiam a sala de estar, onde o luar que entrava pelas janelas lhe tornava os contornos definidos sem, no entanto, permitir que ela lhe divisasse as feições. Não proferiu palavra. Enquanto ela o observou, não se mexeu. Pensaria ele que, se não se mexesse, ficaria invisível? Ela tivera essa ideia nos seus tempos de criança: Se conseguir ficar quieta, não me verão.
Inversamente, perguntou a si mesma se, fazendo de conta que não o via, ele não desapareceria.
Afastou-se, tentando não se apressar, e entrou na sala de jantar. Não o ouviu segui-la. Deveria ter escutado o som dos sapatos dele no seu soalho; porém, tal não aconteceu. Apesar disso, quando olhou para trás, viu-o no mesmo sítio. No meio das sombras do corredor, a olhar para si.
Susteve a respiração até ter a impressão de que alguém a estrangulava. Depois apercebeu-se, com um acesso de puro pânico, de que alguém o fazia. As manápulas dele fecharam-se em torno da sua garganta, por trás, e os dedos premiram os pequenos ossos vitais. Ela agarrou-se às mãos dele e tentou libertar-se. Ele puxou-a para trás, contra ele, e esforçou-se por deitá-la por terra. A adrenalina percorreu-lhe o corpo e, de repente, ela conseguiu soltar-se do aperto e sorver o ar sofregamente. Olhou então para trás quando ia deitar a correr, e viu-o nitidamente: era Andy Fallen, com o rosto arroxeado e intumescido, os olhos parados e a língua a sair-lhe pela boca.
Foi então que acordou. Saltou do sofá e despertou mal os seus pés tocaram no chão. Cambaleante, chocou contra o baú de viagem antigo que lhe servia de mesinha de sala. Tacteou a garganta com dedos agitados, arranhando-se ao puxar violentamente o fecho da sua camisola de gola alta para baixo. Da macia camisola de algodão que vestira para se sentir aconchegada e segura. Ensopara-a de suor.
Começou então a chorar, apercebendo-se do que acontecera, reflectindo na série de vezes em que já passara por aquilo, sem saber se alguma vez se libertaria. Deixou-se cair no chão de joelhos e envolveu o rosto com as mãos, gemendo de dor ao tocar nos sítios magoados.
Sentia-se muito cansada. Física, mental e emocionalmente. Cansada por não conseguir dormir, do stresse, dos pesadelos e dos remorsos. Santo Deus, de tudo.
Por um breve instante imaginou como seria ter alguém junto de si, alguém que a abraçasse e consolasse dos fardos que a vida lhe impunha. Fantasia tola. O seu destino era ficar sozinha, quer o desejasse ou não. O destino era mesmo isso: não nos pedia a opinião, não tinha em consideração o que se queria ou precisava. Portanto ali ficou, sentada em plena noite, tremendo devido à tensão e à transpiração que agora lhe enregelava a pele. A tentar não chorar porque não servia de nada. Chorar era apenas um desgaste de energias que não podia permitir-se, uma das poucas lições úteis que o pai lhe ensinara.
Fechou os olhos e iniciou o exercício respiratório que lhe abrandaria as batidas do coração e acalmaria os nervos. De súbito, lembrou-se de uma mão forte no seu ombro, de uma força sólida ao seu lado. Via os olhos escuros de Sam Kovac reflectidos no espelho do lavabo das senhoras. Sentia a sua preocupação, escutava-a na sua voz. Por um segundo apenas tentou imaginar o que poderia ter sido voltar-se para ele, apoiar a cabeça no seu peito e deixá-lo rodeá-la com os seus braços.
Kovac era uma rocha, uma âncora. Parecia tão ligado à terra que ela duvidava que alguma coisa pudesse tirar-lhe o equilíbrio. Não que ela jamais o viesse a descobrir. Ele era o último homem que ela deixaria olhar para dentro de si e tentar domar as serpentes que se contorciam na sua cabeça. O seu destino era combatê-las sozinha, e assim faria. Já assim era há muito tempo. Acontecia apenas que naquela noite... naquela noite sentia-se muito cansada e muito só...
Respirou fundo e obrigou-se a levantar. Procedeu à busca obrigatória nas divisões do piso térreo, percorrendo a casa como uma zumbi, sem de facto ver o que quer que fosse, sem consciência de que procurava algo que não podia ser visto. Terminou na sala de estar, onde ficou a olhar demoradamente para a parede onde pendurara as fotografias tiradas ao longo dos anos. Pretos e brancos, paisagens e naturezas-mortas. Belas, vazias, áridas, desoladas. Uma projecção do íntimo do fotógrafo, diria um psicólogo.
O tempo passou sem dar por isso. Devia estar ali de pé há cinco minutos, ou uma hora, quando a campainha da porta soou. O som sobressaltou-a, deixando-a sem saber se voltara à dimensão em que sonhava acordada ou se o choque a fizera sair dela, ou se aquilo fazia parte do pesadelo seguinte e na verdade não estava acordada.
Tocaram de novo à campainha. Ela foi até à porta com o coração a bater violentamente e espreitou pelo ralo. Era Kovac. Não muito certa de não ter sido a sua mente a inventar a imagem, abriu a porta.
Vi as suas luzes acesas disse ele à laia de explicação por se encontrar ali.
Amanda Savard ficou a olhar para ele.
Imaginei que estivesse acordada continuou Kovac. Enganei-me?
Ela ajeitou o cabelo instintivamente e ia a ocultar a pisadura à volta de um dos olhos, mas parou. Olhou para si mesma a fim de se certificar de que estava vestida.
Eu... ah... adormeci no sofá.
Nesse caso desculpe tê-la acordado.
Que deseja, sargento?
Kovac apoiava-se ora num pé ora no outro, de mãos enfiadas nos bolsos do sobretudo e os ombros encurvados.
Sair deste frio já não seria mau. Encolhendo-se ao sentir o frio da noite, a tenente Savard voltou para dentro do vestíbulo, deixando-o segui-la. Olhou para a sua imagem reflectida no espelho por cima da mesinha e ficou aterrada. Olheiras profundas, tez empalidecida, cabelo caído e despenteado. Parecia arrasada e perdida. Acossada. Teria preferido que ele a encontrasse nua: ao menos não prestaria atenção suficiente ao rosto para se interrogar sobre o seu estado mental.
Estarei a interromper... qualquer coisa... com alguém importante? perguntou o detective abruptamente.
Só se os demónios contarem, pensou ela.
Que está aqui a fazer?
Encontrava-me na vizinhança.
Amanda Savard captou o reflexo dele no espelho. Mirava-a, analisava-a, o que a levou a virar-se repentinamente para ele, estremecendo com a dor que sentiu no pescoço e no ombro.
Plymouth não fica na sua jurisdição.
Não estou de serviço. Tenho amigos nesta zona. O John Quinn. Já ouviu falar nele?
Sim, já ouvi.
Tinha umas perguntas para lhe fazer sobre o seu rapaz, o Andy. Continuo convencido de que não morreu sozinho nem por opção. Pode ter sido um acidente admitiu, mas, se assim foi, não estava sozinho. Portanto, alguém abandonou o local do crime e eu quero saber quem foi, pois terá de responder a algumas perguntas, não é?
Amanda Savard alisou as rugas que o sono pusera na sua camisola de gola alta. Mal conseguia conter-se para não ajeitar de novo o cabelo com a outra mão. Detestava que ele a visse assim. Vulnerável... A palavra pulsava no seu cérebro como um nervo que tivesse levado uma pancada de martelo.
Que foi que Mister Quinn lhe disse?
Não conseguia olhá-lo nos olhos. Como se não pudesse ver-se o mau estado em que se encontrava se não estabelecesse contacto visual directo. Se ficar quieta, eles não me verão...
Teve algumas ideias respondeu Kovac, indo colocar-se em frente dela. Nem sempre ligo muito a essas questões da psiquiatria. Sabe, às vezes as pessoas fazem coisas porque não prestam. Mas também acontece o passado não as largar... ao ponto de as levar a praticar esses actos.
A determinação de um perfil é um instrumento para caçar assassinos em série observou a tenente Savard. Não está a lidar com um assassino em série. Nem sequer se trata de um crime.
A família Fallen é capaz de discordar, já que dois deles morreram no espaço de uma semana observou Kovac. Seja como for, quando ia a sair lá de casa, lembrei-me de si, tenente.
Porquê?
No funeral, esqueci-me de lhe perguntar se sempre tinha dado uma olhadela ao tal ficheiro. O da investigação que o Fallen andava a fazer sobre o caso Curtis-Ogden.
Agora está a tentar dizer-me que o Ogden era o amante gay secreto e é um potencial assassino em série? Não estou a entendê-lo, sargento.
Tento apenas apreender todos os factos, para ficar com uma imagem o mais nítida possível. Aprendi, já faz muito tempo, que, se um investigador se concentra apenas num aspecto de um caso, corre o risco de perder peças cruciais do quebra-cabeças. Como é que se pode saber onde tudo encaixa se não se vê a imagem completa? Então, sempre consultou o tal ficheiro?
Amanda Savard olhou para o seu gabinete, que dava para a sala de estar, e sentiu vontade de ir até lá e fechar a porta.
Não, não tive oportunidade.
Kovac voltou a colocar-se na sua linha de visão.
Podemos sentar-nos? Parece-me que está a precisar, tenente. Sem ofensa.
Convidá-lo a sentar-se significaria que não me importo de que fique por um período de tempo indefinido, sargento salientou a tenente Savard. Não é o caso.
Kovac ignorou a indelicadeza.
Então, senta-se a tenente. Eu fico de pé. Parece um pouco abalada.
Era talvez a terceira vez naquele dia que ele lhe tocava e ela lho permitia. Kovac guiou-a, de mãos nos seus ombros, até ao sofá Windsor encostado à parede. Ela sentia-se como uma menina, frágil e desajeitada. Podia ter-lhe dito que se fosse embora; no entanto, uma parte de si não o desejava. Raiva, frustração e vergonha acoitavam-se no seu íntimo, juntamente com anseios que raramente admitia ter.
Sabe, procurei-o em casa do Andy disse Kovac. Tentei ver se havia alguma cópia do caso Curtis-Ogden lá no escritório. Queria saber o que andava ele a investigar, qual era a sua perspectiva sobre os factos, se fora ameaçado, coisas desse género, tudo o que pudesse dar-me uma ideia sobre a sua vida, o seu estado de espírito. Mas não havia pasta de arquivo nenhuma e o computador dele nem sequer estava lá. Um portátil da IBM. Tem alguma pista sobre esse pormenor? Tê-lo-á ele deixado no seu gabinete de trabalho?
Não faço ideia. Não creio. Talvez o deixasse no carro. Se calhar perdeu-o. Ou então está numa loja. Sabe-se lá se foi roubado.
Talvez tenha sido roubado por alguém que não queria que uma pessoa como eu visse algo que lá está dentro. Pegou numa pequena figura esculpida do Pai Natal que estava sobre a mesinha e observou-a.
Amanda Savard suspirou.
Consultarei o arquivo esta manhã. É tudo, sargento?
Não.
Pousou a figurinha e aproximou-se dela, inclinando-se. Puxou-lhe o queixo para cima e fitou-a nos olhos.
Como se sente?
Sinto a pulsação na minha garganta. Estou entontecida. Vulnerável. Santo Deus, lá estava aquela palavra outra vez.
Estou óptima. Apenas fatigada. Gostaria de me ir deitar.
Kovac passou-lhe lentamente o indicador em frente dos olhos, tal como fizera no gabinete dela naquela manhã. De um lado para o outro. Para cima e para baixo. Continuava a segurar-lhe o queixo com a mão esquerda.
Não se ofenda, tenente disse suavemente, mas, apesar de ser uma mulher muito bonita, está com um aspecto terrível.
Amanda Savard arqueou uma sobrancelha.
Caramba, porque haveria eu de me ofender com isso? Kovac não lhe respondeu. Observava o raspão, as linhas
do seu rosto... sempre com a mão a segurar-lhe o queixo... O seu olhar demorou-se na sua boca. Ela sentiu um sobressalto.
Sabe que é sussurrou ele. Bonita. Amanda Savard desviou o rosto para o lado, respirando com dificuldade.
Devia ir-se já embora, sargento.
Pois devia admitiu Kovac. Antes que me suspenda por tê-la elogiado. Mas antes disso, quero uma coisa.
A tenente Savard reuniu as últimas energias que lhe restavam e conseguiu adoptar a expressão imperiosa que utilizava todos os dias. O que não fez Kovac recuar um milímetro.
Trate-me por Sam pediu ele, com um pequeno sorriso a erguer-lhe um dos cantos da boca. Só para ouvir como soa.
Eu não posso querer isto, pensou ela, sentindo o medo a formar-lhe um nó apertado no estômago. Não posso desejá-lo. Não posso precisar dele.
Agora é melhor ir... sargento Kovac.
Ele nada fez por um momento e ela susteve a respiração tentando, inutilmente, adivinhar o que lhe ia na cabeça. Por fim, afastou a mão do rosto dela. Recuou e endireitou-se.
Se descobrir alguma coisa naquele arquivo, telefone-me.
Amanda Savard pôs-se de pé, sentindo-se insegura e cruzando os braços sobre o peito. Kovac deteve-se junto da porta.
Boa noite... Amanda. Encolheu os ombros, ainda com o pequeno sorriso nos lábios. O que é mais uma suspensão para um cavalo velho como eu?
O frio intenso entrou no vestíbulo quando ele saiu. Amanda Savard trancou a porta e apoiou-se a ela, relembrando o calor dos dedos dele contra a sua pele. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.
Subiu as escadas com lentidão. O candeeiro de mesa que tinha no quarto já estava aceso e assim ficaria toda a noite. Despiu a camisola e vestiu uma camisa de dormir e enfiou-se na cama. Tomou um pouco da bebida que tinha no copo em cima da mesa-de-cabeceira e engoliu um comprimido. Depois pousou cuidadosamente a cabeça na almofada sobre o lado esquerdo da cabeça, e esperou pelo sono de olhos abertos, sentindo-se de tal maneira só que cada ponto do seu ser lhe doía. Boa noite... Sam...
Liska preferia que fosse um pesadelo. Tudo aquilo: o facto de o seu informador ser um travesti em coma, de ela ter passado metade da noite gelada até aos ossos num beco sujo, de o carro de Speed se encontrar em frente de sua casa e ele lá dentro dela, à espera.
Estacionou à beira do passeio, tentando recordar-se das regras de emergência para a neve, fatidicamente certa de que ficaria com o carro escalavrado por um limpa-neves e que, para piorar ainda mais as coisas, seria multada. Que se lixe, pensou, saindo do carro e dirigindo-se para a porta. Ao menos ficaria com o seguro, que lhe daria para comprar outro carro. Um Chevette usado, talvez, tendo em conta o caminho que a sua carreira estava a levar.
O candeeiro da mesinha estava com a luz reduzida e a televisão passava um anúncio das cassetes de vídeo do programa de exercícios Tae-Bo. Billy Blanks oferecia auto-estima e esclarecimento espiritual através do kickboxing. Speed e RJ. dormiam, lado a lado, no sofá, pai e filho sem tirar nem pôr. O cabelo até se lhes espetava nos mesmos sítios. RJ. tinha um pijama com o Homem-Aranha. O fantoche de Cartman estava preso debaixo de um dos braços.
Liska ficou a olhar para eles, detestando as emoções que a visão despertava em si. Sentia-se saudosa, carente, magoada. Que injusto era enfrentar uma situação daquelas numa noite assim, depois de tudo o que acontecera. Premiu a mão contra a boca e lutou contra os sentimentos como se fossem demónios.
Maldito sejas. Não sabia se dissera as palavras em voz alta ou se apenas as imaginara, se estava a amaldiçoar o ex-marido ou a si mesma.
Speed abriu um olho, fitou-a, a seguir olhou para o filho. Levantou-se do sofá devagar e com cuidado, tapando depois RJ. com uma ponta da coberta.
É assim tão mau? perguntou suavemente, aproximando-se dela.
A pergunta era sobre o momento, sobre o modo como ela o fitava, como se sentia ao vê-lo ali. Mas Liska preferiu dar-lhe outra interpretação.
O meu informador drag queen está na Unidade de Cuidados Intensivos com uma cara que só o Picasso apreciaria. Segundo as duas testemunhas... uma das quais tentava roubar valores do corpo do tipo... foi atacado por ninjas armados de tubos de ferro.
Os ninjas não utilizam tubos de ferro.
Por favor, não te armes em engraçadinho, Speed. Neste momento não consigo suportar isso.
Pensei que gostavas de mim assim, engraçadinho. É uma das minhas melhores qualidades.
Liska limitou-se a desviar o olhar.
Ei, deixa-te disso. Não pode ser assim tão mau, ainda estás de pé.
É pior do que mau sussurrou ela.
Queres falar sobre o assunto?
Tradução: Queres apoiar-te em mim, desabafar comigo, deixar-me ajudar-te a carregar o fardo? Sim, mas não mo permitirei.
Nikki murmurou Speed, aproximando-se demasiado. Tocou-lhe na face com a mão quente, enfiou-lhe os dedos pelo cabelo curto da nuca e aproximou-se dela com o outro braço. Não precisas de ser sempre durona.
Sim, preciso.
Esta noite, não disse ele, roçando-lhe os lábios pela têmpora.
Liska sentiu-se percorrer por um estremecimento, ao mesmo tempo que tentava combater a vontade imensa de se fundir contra ele, de o deixar abraçá-la.
Qual é a pior parte? perguntou ele.
Saber que acabarás por me deixar. Recear que talvez me engane e não o fizesses, mas não te darei a oportunidade de o provar porque estou farta dos desgostos que me tens dado.
Reprimiu as lágrimas e respondeu:
Pensar que ele teve aquele fim porque não cheguei a tempo.
O tipo é um delator, Nikki. Levou uma tareia por esse facto e não por tua causa.
Mas se eu tivesse lá estado....
Tê-la-ia apanhado noutra altura qualquer.
Não sei se sobreviverá. Nem sei se o desejará observou Liska. Havias de ver o que lhe fizeram, Speed. Foi horrível.
Não faças isso a ti mesma, Nikki. Sabes que não é bom.
Um polícia aprende cedo a não se deixar levar por aquele tipo de emoções. A estrada para a loucura estava coberta de remorsos. Kovac lembrara-lhe o mesmo quando ela lhe telefonara do local a falar da agressão a Ibsen. Ainda assim, era difícil não se culpar. Ibsen estivera lá à sua espera.
Devem ter-lhe quebrado os ossos todos da cara contou Liska. Partiram-lhe os braços, uma clavícula, costelas, um joelho. Enfiaram-lhe um cano pelo ânus.
Jesus!
Liska respirou fundo e deixou escapar a confissão que mais lhe custava sobre o assunto:
E o pior é que estou convencida de que eram polícias.
Speed parou. Liska sentia-lhe o coração a bater sob a mão.
Por Deus, Nikki, o que foi que te deu? Considerares que outros polícias...
Prefiro que não seja verdade declarou. Não quero participar numa coisa dessas. É suposto sermos os bons. Não quero ser eu a provar o contrário.
A perspectiva era-lhe odiosa, sentia-a como um vírus no seu sangue e estremeceu com a intrusão. Speed apertou-a ainda mais contra si. Ela deixou. Porque a noite ia a meio e ela sentia-se muito só. Porque seria só por um instante. Porque o toque e o cheiro dele eram conhecidos. Porque quando ele se fosse embora, ela teria de carregar o fardo sozinha.
Detesto isto sussurrou Liska, ciente de que se referia a algo mais do que o caso. Também odiava o facto de se sentir carente, ter de ser sempre dura, as contradições, as lágrimas que lhe ardiam nos olhos e os conflitos que sentia por estar nos braços do ex-marido.
O que te leva a pensar que eram polícias? perguntou Speed com a suavidade com que um amante sussurra palavras de carinho.
Por isso é que ele ia encontrar-se comigo... para me falar de um polícia corrupto.
Talvez tenha sido outro tipo de crime. As drag queens não são nada bem aceites em determinados círculos.
Liska afastou-se de Speed e fitou-o.
Claro, eu acredito nesse tipo de coincidência, assim como no Pai Natal e nos coelhos da Páscoa.
Afastou-se dele e foi ajeitar o cobertor em cima do filho, indo em seguida desligar a televisão.
Ainda é sobre o tipo dos Assuntos Internos que morreu? perguntou Speed.
Em parte. Liska quase se riu. É sobre um caso de homicídio com um assassino condenado que foi encerrado e sobre um suicídio-barra-acidente igualmente dado como resolvido. Estranho que alguém tenha sido espancado quase até à morte por causa disso, não achas?
De quem desconfias?
De um agente. Ninguém teu conhecido respondeu, virando-se depois para ele e mirando-o com a atenção própria de um polícia. Speed estava sem sapatos, vestia umas calças de ganga que lhe pendiam, descaídas, do ventre liso, e uma T-shirt que salientava um físico invejável. O polícia que havia nela veio à superfície. Ou talvez conheças. Pareces andar a fazer muita musculação ultimamente. O tipo de que falo é um fanático do culturismo.
Frequenta o ginásio da esquadra de Saint Paul?
Andas a fazer exercício na esquadra como um polícia normal?
A entrada é livre. Já tenho muitos sítios onde gastar o meu salário.
Não consigo imaginar quais sejam murmurou Liska. Nunca vejo sinais disso.
Speed abriu a boca para lhe responder, porém Liska ergueu a mão para lhe lembrar a presença de RJ. Dormia, mas ninguém poderia garantir até que ponto ou que sons penetrariam, ou não, no seu subconsciente. Esforçava-se sempre por não discutir com Speed em frente dos rapazes. Nem sempre conseguia, mas tentava.
Desculpa disse. Esta foi excessiva. Sabes, esta noite estou um bocado alterada. O que eu queria dizer era que sei que muitos agentes de ambas as esquadras praticam exercício naquele ginásio da universidade... o Steele's. Lembrei-me de que talvez tivesses visto esse tipo por lá.
Speed deixou-se ficar ali por um momento mais, esforçando-se por combater a mágoa. Liska podia vê-lo no seu rosto. RJ. fazia o mesmo quando se sentia injustiçado. Ela via-o a rechaçar mentalmente cada acusação e cada observação cortante, para assim reforçar a sua sensação de afronta.
Já pedi desculpa lembrou-lhe ela.
Tu sabes que eu ando a tentar, Nikki lamentou-se Speed, o mártir ferido. Ando a tentar ajudar os rapazes como posso. Já te disse que arranjarei algum dinheiro dentro em breve...
Eu sei...
Mas estás sempre a bater na mesma tecla, não é? Porquê, Nikki? Odeias-me assim tanto? Ou é por teres medo de ainda sentires algo por mim?
Acertou em cheio, pensou ela.
É só o hábito.
Acaba com isso disse ele em voz branda, sem desviar os olhos dos dela. Aproximou-se e tocou-lhe na face com a mão. Preocupo-me contigo, Nikki. Não tenho medo de o dizer, mesmo que tu tenhas.
Inclinou a cabeça e tocou nos lábios dela com os seus, um beijo suave que demorou algum tempo, mas ficou-se por ali. Liska teve a impressão de que o coração lhe subia à garganta, apertando-a.
Tem cuidado, Nikki aconselhou ele, afastando-se. Com o caso ou contigo?, apeteceu-lhe perguntar. Depois concluiu: Ambos.
Quando nos voltamos contra os da nossa própria espécie, arranjamos inimigos perigosos.
Se este tipo é quem eu penso, à minha espécie é que não pertence.
Era assim que tinha de encarar a questão, pensou, enquanto Speed ia até à porta da frente, calçava as botas e enfiava o casaco. Se Ogden fosse um assassino e o tipo de besta capaz de espancar um homem e violá-lo com um cano de ferro, então o facto de ser portador de um crachá era a pior ofensa que podia existir.
O que é que tens contra ele? Algo consistente? Liska disse que não com a cabeça.
Palpites, pressentimentos. Esta drag queen tinha algo para me contar. Cá por mim, esse agente tem muitas culpas no cartório. Quanto mais não seja, talvez passe o caso para os narcóticos disse ela, dirigindo-lhe uma espécie de sorriso de esguelha, enquanto se aproximava da porta.
Se o gajo anda a tomar esteróides, o seu temperamento será imprevisível advertiu Speed. É perigoso.
O que não é propriamente uma novidade para mim. Seja como for, obrigada por cuidares dos rapazes. E pela preocupação.
Não quero agradecimentos observou Speed, apanhando-a desprevenida. Mal teve tempo de se dar conta da expressão nos olhos dele; já a rodeara com os braços e beijava-a. Dessa vez, não ao de leve. Quente, ávido, exigente. Quando ele a largou, ela sentiu os lábios magoados.
Speed saiu imediatamente. Ela ouviu o bater da porta do carro, o barulho do motor a ser ligado. Só então tocou nos lábios com dois dedos.
Preciso tanto disto como de uma carrada de piolhos murmurou Liska.
Lançou um segundo olhar para RJ., preferindo não perturbar o seu sono, baixou a luz do candeeiro e foi-se deitar, sem grandes esperanças de vir a adormecer.
O mostrador luminoso do relógio marcava 3:19 quando O telefone tocou.
O silêncio no outro lado da linha era de alguém a suster a respiração. Ou, se calhar, quem sustinha a respiração era ela.
Ouviu então um sussurro que lhe fez eriçar os pêlos dos braços.
Mais vale não despertar a fera adormecida.
As fotografias encontram-se em cima de uma mesa de trabalho estreita, sob o reflexo do cone de luz proveniente do candeeiro da secretária. É a única luz naquela divisão. O silêncio reina na sala.
As fotografias estão impecavelmente alinhadas umas ao lado das outras. A vida explodindo. Jactos de sangue. Fragmentos de osso. Paisagem morta. Um esboço sobre a destruição. Um testemunho da fragilidade do corpo humano. Abstracto. Violento. Sádico e patético.
Tudo levado a cabo demasiado facilmente.
Um mal necessário, mas ainda assim... devia ter sido impossível. O conceito devia ter sido tão amoral que a execução simplesmente não pudesse ter sido possível.
Execução.
A palavra provoca um acesso de emoções passadas. Pesar, mágoa, alívio, excitação. Medo. Medo do que fora feito, do excesso de excitação naquele instante derradeiro. Medo de que algo humano, algo civilizado, algo vulnerável, pudesse ser substituído... ou tivesse já sido substituído há muito tempo.
Mas, se isso fosse verdade, o sono teria chegado com facilidade, em vez de se manter ao largo.
Observação: Uma autópsia não é uma boa maneira de começar o dia.
A ideia passou pela cabeça de Kovac ao sentar-se na cadeira da sua secretária, com uma chávena de café de má qualidade na mão. De Liska, nem sinal. O gabinete encontrava-se num momento de acalmia. Ele conseguira esgueirar-se para dentro sem que praticamente ninguém o visse, o que o deixava satisfeito. Precisava de uns minutos para reflectir, reorganizar ideias. Pegou nas polaróides tiradas no local da morte de Mike Fallen e espalhou-as sobre a papelada que negligenciava já há dias.
Sentia uma desconfortável incerteza no limiar da sua consciência, algo pouco definido, de contornos imprecisos, uma sombra. Poderia ter rotulado o caso de suicídio e deixá-lo encerrado, dependente só da burocracia da medicina legal. O pior era aquela sensação e o facto de Neil Fallen começar a mostrar tantas camadas estragadas como uma cebola podre.
Kovac deixou o olhar passear sobre as fotografias quase sem as focar, esperando ver algo que lhe tivesse escapado. Esperando, ao mesmo tempo, nada ver. A ideia de que fora "Iron" Mike a optar por ir desta para melhor era, sem dúvida, preferível à alternativa.
Vistas assim, quase podia imaginar as fotografias como arte abstracta, e não imagens de um homem que conhecera durante vinte anos. Era sem dúvida mais fácil olhar para as fotografias do que ter estado na sala de autópsias a ver um seu conhecido a ser cortado às fatias e aos quadrados.
Maggie Stone, a médica legista de Hennepin County, procedera pessoalmente à autópsia. Apesar de excentricidades como andar com armas escondidas e mudar de cor de cabelo de seis em seis meses, Stone era a melhor. Quando dizia que uma coisa era assim, era mesmo. Kovac conhecia-a há anos. Tinham o tipo de relacionamento que lhe permitia pedir-lhe alguns favores, como o de assistir à autópsia de um velho amigo às primeiras horas da madrugada. Stone não tivera a menor hesitação. Já nada chocava quem passava a vida a abrir os mortos para extrair de dentro deles os órgãos internos e seus segredos.
Kovac ficou, pois, na sala de autópsias, a uma distância suficiente do corpo para não estorvar Stone e Lars, a sua assistente, que se movimentavam em torno da marquesa de aço inoxidável a executar o seu trabalho. Uma maneira dos diabos de começar a manhã.
Liska entrou no cubículo com ar esverdeado e sem cor nas faces apesar de vir do exterior, onde a temperatura estava muito baixa. Meteu a bolsa numa gaveta e despiu o casaco sem proferir palavra.
Como vai o teu informador?
Parece que sobreviverá. Mais ou menos. Acabo de chegar do hospital.
Está consciente?
Não. Mas como não se enrolou sobre si como um feto, eles acham que não houve nenhum dano cerebral importante. Os ossos partidos sararão e diz-me lá quem é que se rala por ele ter sido submetido a uma colostomia? observou com sarcasmo. E parecer-se com o Homem-Elefante? Um mal menor, em comparação com a ida para debaixo da terra.
Não foste tu quem lhe fez aquilo, Tinks lembrou Kovac em voz branda.
Liska evitou fitá-lo nos olhos.
Eu sei. Estou a tentar ultrapassar os remorsos. A sério. Mas ao voltar a vê-lo... Respirou fundo e desabafou. Se lá tivesse chegado a horas...
O sentimento de culpa não muda as coisas, rapariga. Ele tomou as suas próprias opções e tu fizeste o melhor que podias.
Liska assentiu.
É frustrante, nada mais. Mas hei-de superar isto.
Eu sei. E tu sabes que eu estou aqui para o que for preciso.
Liska fitou-o com amizade, apreço e um brilhozinho nos olhos.
Obrigada.
É para isso que os parceiros servem. Apoiam-se um ao outro.
Não me faças chorar, Kovac pediu Liska com uma careta de troça. Terei de te magoar.
Cuidado advertiu ele. Posso gostar. Sou um tipo solitário. Fez uma pausa. Então, quais são as directivas neste caso? Tomas conta dele?
Tenho de falar com o Leonard disse Liska. O Ibsen era meu informador. Eu estive na cena do crime. Eu é que recebo o telefonema para não mexer no assunto.
Esse telefonema foi um erro estúpido de quem o fez. Se fosse uma agressão vulgar, jamais terias recebido uma chamada relacionada com o acontecido.
Liska concordou.
Estúpido até dizer chega. Agora tenho algo para levar aos Assuntos Internos e utilizar para ter acesso aos arquivos sobre a investigação do caso Curtis. Porque haveria alguém de me ameaçar para que me mantivesse afastada de um caso encerrado se não houvesse uma óptima razão para o reabrir?
Alguma pista sobre a identidade de quem telefonou?
O número era de uma cabina pública de um sítio qualquer. Portanto, vê-se que o tipo teve miolos suficientes para não ser localizado. Também não tenho a menor esperança de encontrar alguma testemunha do telefonema.
E quanto ao Ogden e ao Rubel? O álibi deles aguenta-se?
Liska emitiu um som de desprezo.
Que álibi? Estavam a jogar bilhar na cave do Rubel. E adivinha quem estava com eles? O Cal Springer.
Bem aconchegados.
O tipo é tão medricas que era capaz de jurar que estavam todos na Lua na altura, se os outros dois lhe dissessem para dizer isso. Devem ter fotografias dele a pôr-se numa cabra disse Liska, enojada. Seja como for, quem ficou encarregue do caso Ibsen foi o Castleton. Ele e o supervisor de turno disseram ambos que eu seria bem-vinda para ajudar se o Leonard autorizasse.
O Leonard vai fazer-te a cabeça em água por andares a meter-te nos casos dos Assuntos Internos.
Liska encolheu os ombros.
Que culpa tenho eu de o tipo só ter querido falar comigo? Segundo o que ouvi, o resto do departamento mandou-o passear. Ninguém quis ouvir falar da sua teoria de uma conspiração por causa da sida.
Quem é que tem sida?
O Eric Curtis era seropositivo. O caso muda de figura, não é? Que homofóbico espancaria um gay até à morte, correndo o risco de entrar em contacto com sangue contaminado?
Kovac franziu o sobrolho, recordando a sua visita ao indivíduo a quem atribuíam o homicídio de Curtis.
Quase que apostava que o Verma tem sida.
Mas se o Verma foi o autor do crime, então quem é que está a tentar manter-me ao largo? O tipo está preso.
Ficaram a olhar um para o outro por instantes, Kovac a girar na sua cadeira.
Continuo convencido de que foi o Ogden disse.
Eu também. É a minha aposta.
Tem cuidado. Liska assentiu.
Como foi a autópsia do Mike?
Até agora, nenhuma revelação estrondosa. Debaixo das unhas, só porcaria. Tinha algumas contusões nas costas das mãos, mas não se concluiu que fossem ferimentos de defesa. A laceração da pele não era recente e sabemos que ele dera uma queda há pouco tempo, o que poderia explicar quaisquer marcas. Assim sendo, a Maggie Stone não podia afirmar que a descoloração era uma contusão genuína. As mãos estavam muito lívidas devido à posição do corpo.
E quanto a resíduos de pólvora?
Em ambas as mãos. Não significa que alguém não o tenha forçado a enfiar o cano da arma na boca, mas isso também não pode ser provado.
Então, não chegamos a parte alguma com a autópsia concluiu Liska. A Maggie Stone vai classificar a morte como suicídio.
Não fará nada até chegarem os resultados do laboratório, e além disso prometeu informar-me de tudo... já para não falar do facto de a papelada normalmente levar descaminho, se bem percebes o que quero dizer.
Liska sorriu.
Acho que a doutora Stone não se importava nada de ser desencaminhada por ti, se bem percebes o que quero dizer.
Kovac sentiu-se corar. Reviu mentalmente Amanda Savard, não Maggie Stone. A expressão dos seus olhos quando lhe pegara no queixo: vulnerabilidade. Forçou uma careta.
Não vou para a cama com nenhuma mulher que ganhe a vida a dissecar pessoas. Seja como for, ela dar-nos-á algum tempo, mas para já bem podíamos ter um milagre. Também lhe pedi que fosse dar uma vista de olhos à autópsia do Andy Fallen. Para o caso de o Upshaw ter metido os pés pelas mãos.
Precisam de um milagre? perguntou Elwood, entrando no cubículo. Envergava uma grossa camisola de lã mohair por cima da camisa e da gravata, o que o fazia parecer um mamute peludo.
Eu venderia a alma declarou Kovac.
Isso seria um pouco contraditório, visto os milagres estarem associados a altos poderes positivos salientou Elwood. Vende antes a alma ao diabo.
Vais apresentar-lhe os meus cumprimentos se não te apressas a contar o que descobriste.
Uma vizinha viu a carrinha do Neil Fallen estacionada em frente da casa do Mike a altas horas da noite de quarta-feira. Para ser mais preciso, à uma e nove da madrugada. Ontem consultei os relatórios com as declarações que os agentes recolheram. Foram a essa casa, mas a proprietária não estava. Quem veio à porta foi a mulher da limpeza. Portanto fui até lá, e acertei.
Kovac levantou-se de um pulo.
Assim é que é!
A mulher viu a carrinha a estacionar, mas não ouviu o tiro? perguntou Liska, com ar duvidoso.
Sofre de insónias e usa uma prótese auditiva explicou Elwood. Tem oitenta e três anos. Mas vivacidade não lhe falta.
Que tal é a visão dela?
Excelente, graças ao binóculo Bausch and Lomb que tem na mesinha da sala.
Iluminação?
Projectores nos cantos da casa. É a chefe da brigada de vigilância do bairro. Não identificou a carrinha, mas tomou nota do número da matrícula.
Ela não quererá ficar com o meu lugar depois de o Leonard me despedir?
Viu-o sair? perguntou Kovac.
À uma e trinta e seis.
Isso é mais cedo do que a altura da morte determinada pela médica legista, mas registarei.
Kovac meteu as fotografias de Mike Fallen dentro de uma gaveta, olhou para o ecrã em branco do seu computador e tentou endireitar a gravata. Manda buscar o Neil Fallen para ser interrogado disse ao Elwood. Eu dou a notícia a Leonard.
Que raio vem a ser isto? perguntou Neil Fallen. Dois agentes de uniforme tinham-no ido buscar à loja
para o levarem até à esquadra. O fato-macaco sujo parecia o mesmo que vestia no dia em que Kovac lhe fora falar do irmão. Tinha as mãos escuras de porcaria e óleo.
Caramba, o meu irmão e o meu pai estão mortos e... e... vocês arrastam-me até aqui como se fosse um criminoso! vociferava Fallen, passeando de um lado para o outro dentro do espaço limitado da sala de interrogatórios. A mesma sala onde Jamal Jackson partira a cabeça a Kovac. Sem uma explicação. Sem um pedido de desculpa...
Você é um criminoso declarou Kovac de modo prosaico. Sabemos da sua condenação por agressão, Neil. Achava que não iríamos investigar? E agora, que tal dar-me a mim uma explicação e um pedido de desculpa?
De pé, com os braços cruzados e de costas apoiadas contra a parede ao lado do espelho duplo, observava a reacção de Fallen. Liska estava em frente, encostada à outra parede. Elwood postara-se junto da porta. Ninguém se servira das cadeiras e da simpática mesinha redonda. A luz vermelha luzia na câmara de vídeo.
Fallen fítou-o com raiva.
Isso foi há muito tempo e além do mais não passou de uma treta. Foi um acidente.
Então você teve acidentalmente uma briga com um tipo num bar e deu-lhe acidentalmente pancada até o deixar em coma? interveio Liska. Como é que isso acontece?
Foi uma luta. Ele caiu e bateu com a cabeça. Kovac olhou para Elwood.
Não foi o que o Caim disse sobre o Abel?
Acho que sim.
E que tal pedir-me desculpa por me ter mentido ontem, Neil? perguntou Kovac. Que tal explicar-me o que estava a fazer em casa do seu pai à uma da manhã na noite em que ele morreu?
De repente, Fallen perdeu toda a energia. Mas ainda tentou manter parte da raiva que se lhe lia na expressão. Sob esta havia uma camada de confusão, depois desconfiança e, por fim, medo.
De que é que está a falar? Eu... eu não sei de nada.
Acabe com isso disse Liska. Um vizinho do seu pai viu a sua carrinha em frente da casa à uma da manhã.
Você disse-me ontem que a última vez que tinha falado com o seu pai fora ao telefone naquela noite lembrou Kovac, fazendo uma pausa.
Os olhos de Fallen percorriam a sala como se pudesse encontrar uma explicação algures.
Por que razão me pregou essa mentira, Neil? Ficou atrapalhado porque não conseguiu convencer o seu pai a dar-lhe o dinheiro de que precisava para dar à sua ex-mulher pela parte dela no negócio? Se é que foi disso que falaram durante a chamada de vinte e três minutos que lhe fez do seu bar às onze e sete da noite.
Fallen engoliu o ar precipitadamente umas duas vezes, qual asmático à beira de um ataque. Esfregou o pescoço de lado com a manápula imunda.
Kovac mudou preguiçosamente o peso do corpo de um pé para o outro.
Está a ficar com aquele ar de "Oh, merda!", Neil. Não achas, Tinks?
Oh, merda! repetiu a detective. Está a sentir o cu apertado, Neil? Acha que eu não ligava para a companhia de telefones a pedir a lista dos seus telefonemas? perguntou Kovac. Deve achar que sou muito estúpido, Neil.
Porque o faria? perguntou Fallen, nervoso. Eu não sou suspeito de nada. Jesus, o meu pai acabou de se matar...
E eu estou farto de o ouvir lembrar-me esse facto. Eu é que o encontrei com a cabeça rebentada. Acha que preciso de que esteja sempre a lembrar-me disso? Essa estratégia não serve de nada, Neil. Se alguém tem uma morte violenta como foi o caso do Mike, ela é investigada disse Kovac. Sabe quem são os primeiros? A família. É que ninguém tem mais motivos para dar cabo do canastro de alguém do que um parente. Você próprio me disse que odiava o Mike. Acresce o facto de precisar de dinheiro para pagar à sua quase ex-mulher, e o Mike lho recusar. A isso chama-se motivo.
O medo começou a vir à superfície. Os movimentos de Fallen tornaram-se espasmódicos. O suor brilhou-lhe no lábio superior. Recuou, indo pôr-se no vão da estante embutida na parede. Todas as prateleiras tinham sido retiradas.
Mas era o meu velho. Eu não lhe faria uma coisa dessas. Era o meu pai.
Que passou trinta e tal anos a dizer-lhe que não prestava, que não chegava aos calcanhares do seu irmão maricas. É aquilo a que chamamos uma ferida antiga e infectada.
Ele era um filho da mãe declarou Fallen. Não digo o contrário, mas não o matei. Quanto à cabra da Cheryl, ela não tem nada a ver com a maneira como vou arranjar o dinheiro. Hei-de pagar-lhe a parte que lhe cabe.
Ou perde o negócio em que tem andado a estafar-se observou Liska. Não há fúria pior do que uma mulher amarga e vingativa. Eu sei porque sou assim.
Falei com a sua ex-mulher disse Kovac. Deu-me a impressão de que estava a perder a paciência, de que não tardaria a exigir-lhe o dinheiro. Pediu-o ao seu irmão?
Fallen sacudiu a cabeça como se tivesse levado uma pancada no ouvido, sem querer acreditar na volta inesperada que a sua vida estava a sofrer. Desviou o olhar de Liska para Kovac.
Agora também vão dizer que o matei?
Não estamos a dizer que matou alguém, Neil. Apenas lhe fazemos perguntas pertinentes em relação ao nosso caso, nada mais. Além disso, salientamos-lhe como as coisas parecem do ponto de vista da polícia.
Enfie o seu ponto de vista pelo cu acima, Kovac. O caso do Andy não é vosso. Acabou. Morto e enterrado. Pó és e ao pó voltarás. Os vossos chefes deram o caso por encerrado.
Kovac arqueou uma sobrancelha.
E por que razão está a repetir isso?
Estou apenas a dizer que acabou.
Mas, sabe, neste caso temos de considerar um padrão de comportamento determinado, Neil. Uma coisa é um membro de uma família dar cabo de si. Agora dois numa semana? Aí o caso muda de figura. Você odiava ambos. Está a passar um momento difícil tanto emocional como financeiramente. São tudo factores stressantes, que podem desencadear sabe-se lá o quê... Que poderão ser o suficiente para fazer com que um tipo perca a cabeça. Você tem um cadastro de comportamento agressivo...
Não matei ninguém.
O que estava a fazer em casa do Mike àquelas horas da noite?
Fui ver se ele precisava de alguma coisa respondeu Fallen, desviando o olhar. Tocou na cara, logo abaixo da equimose que se lhe via numa das maçãs do rosto. Tínhamos estado a falar. Não gostei do tom da voz dele.
Do tom da voz dele ou do que ele lhe disse? perguntou Kovac. Sabemos que tem andado a beber. Já mo confessou. Contou-me que estava suficientemente bebido para arranjar confusão com um cliente que achou ser um polícia. O seu velho disse-lhe alguma coisa que o enfurecesse?
Não foi nada disso.
Então, como é que foi? Está a tentar convencer-me de que as coisas na sua família andavam na paz e na harmonia do Senhor?
Não, mas...
Contou-me que o Mike andava sempre a chateá-lo. Dessa vez as coisas correram de maneira diferente? De que falaram?
Já ontem lhe disse: das horas a que ele queria estar na casa funerária.
Sim, já ontem me disse. Mas porque omitiu o facto de não ter gostado da maneira de falar dele? Não referiu o facto de ter ficado aborrecido. Na verdade, se a memória me não engana, até lhe chamou velho sacana. Porque não me contou que tinha lá ido a casa ver como ele estava?
Fallen virou-se lentamente, a mão esquerda a massajar a testa, a direita apoiada na anca.
Ele matou-se depois de eu sair disse, baixando a voz. Não foi grande coisa ter ido lá vê-lo, não é? O único filho vivo que lhe restava...
O que é que ele queria? O que foi que disse? Kovac aguardou, ficando a ver Fallen a agitar-se no seu pequeno círculo. Encurvara os ombros como se se esforçasse por dominar uma dor no estômago. Estava corado. Respirou fundo por duas vezes. Enfiou a mão num dos bolsos do fato-macaco e tirou um maço de Marlboro.
Desculpe, Mister Fallen disse Elwood, mas aqui é proibido fumar.
Fallen lançou-lhe um olhar raivoso e tirou um cigarro do maço.
Então, ponham-me fora.
Kovac acercou-se lentamente dele.
Não creio que essa conversa tenha sido sobre as necessidades do Mike, Neil observou suavemente, mudando de estratégia. Acho mais provável que tenha sido sobre aquilo de que você precisava. Estou convencido de que estava bêbedo e furioso quando lá foi a casa, e que discutiram sobre o dinheiro. E que depois da conversa ficou ainda mais furioso ao pensar naquilo de que precisava e que o seu velho não lhe queria dar, na maneira como ele gostara do Andy e o desprezara a si. Ficou de tal maneira enraivecido que se meteu na carrinha e foi-lho despejar na cara.
Ele estava meio bêbedo, cheio de comprimidos murmurou Fallen. Foi o mesmo que falar para um nabo. Não ligou nenhuma ao que eu tinha para lhe dizer. Foi sempre assim.
Recusou-se a dar-lhe o dinheiro. Fallen abanou a cabeça e riu-se.
Nem sequer me quis ouvir. Só queria falar do Andy. Do amor que tinha pelo Andy. De como o Andy o desiludira. Do facto de o Andy querer despertar a fera adormecida.
Kovac olhou para Liska, que se endireitou abruptamente.
Ele utilizou essa expressão? perguntou a detective. Despertar a fera adormecida? Porque a terá usado?
Não sei retorquiu Fallen secamente. Imagino que por o Andy ter assumido publicamente a sua opção sexual. Se ele não tivesse dito a ninguém que era maricas, o velho não teria de enfrentar o problema. "Depois de todos estes anos", repetia ele. Como se não fosse justo ter-lho dito naquela altura. Como se lho devesse ter dito quando tinha dez anos, ou esperado que o velho morresse. Meu Deus!
Isso deve tê-lo posto fora de si observou Kovac. Tinha bebido bastante. Pegara-se com o tal cliente. Você ali em carne e osso e o Andy morto, e ele que não se calava, o Andy isto, o Andy aquilo.
Foi o que eu lhe disse. O Andy morreu. Não será melhor enterrá-lo e seguir em frente?
Puxou uma fumaça do cigarro e expeliu-a com força. Ficara com a cara muito vermelha. Franziu os olhos para melhor poder recordar... ou para conter as lágrimas. Olhou para o espelho duplo sem o ver.
Eu cheguei-me a ele e gritei-lhe: "O Andy não passava de um maricas do caraças e ainda bem que morreu!"
Gritou as palavras sob o impulso das emoções que se acumulavam na sua garganta. Tapou os olhos com a mão esquerda, o cigarro a arder-lhe no meio dos dedos.
E ele? O que fez?
Fallen chorava, as lágrimas escorriam-lhe por trás da mão com que tapava os olhos, e soltava sons atormentados, aos sacões.
O que foi que o Mike disse quando ouviu essas palavras, Neil?
Ele., ele ba... bateu-me.
E qual foi a sua reacção?
Oh, meu Deus...
O que foi que lhe fez então, Neil? incitou Kovac suavemente, chegando-se mais perto.
Eu tam... também lhe ba... bati. Oh, meu Deus! Dobrou-se sobre si, soluçando, tapando o rosto com ambas as mãos. E agora está morto. Estão os dois mortos. Oh, meu Deus!
Kovac tirou-lhe o cigarro de entre os dedos, inalando o fumo, ansioso por um. Pousou-o em cima da mesa com pesar, provocando uma pequena queimadura na superfície granulosa de madeira.
Matou-o, Neil? perguntou em tom brando. Matou o Mike?
Fallen abanou a cabeça em sinal negativo, ainda de mãos no rosto.
Não.
Podemos examinar as suas mãos em busca de resíduos de pólvora alertou Liska.
Faremos aquilo a que se dá o nome de análise de activação de neutrões explicou Kovac. Não interessa quantas vezes tenha lavado as mãos depois disso. A força do impacte faz com que partículas microscópicas fiquem embebidas na sua pele. São detectáveis mesmo muitas semanas depois.
Estava a fazer bluff, a jogar uma cartada táctica. O teste só podia demonstrar se uma pessoa entrara em contacto com bário e antimónio componentes da pólvora e com um milhão de outras misturas, naturais e fabricadas pelo homem. Sob o ponto de vista prático, até um resultado positivo teria pouca validade legal, e esta ainda seria menor em tribunal. Decorrera demasiado tempo entre o incidente e o exame. Os advogados de defesa ganham a vida a argumentar que o tempo contribui para a contaminação da prova. Os peritos forenses pagos passam a vida a contradizer-se sobre estas matérias. Mas era provável que Neil Fallen desconhecesse tudo isso.
Bateram à porta e Elwood afastou-se da frente desta. O tenente Leonard enfiou a cabeça dentro da sala. Estava com ar de poucos amigos.
Sargento, posso dar-lhe uma palavrinha?
Estou a meio de um assunto neste momento disse Kovac, impaciente.
Leonard limitou-se a fitá-lo num silêncio eloquente. Kovac olhou de novo para Neil Fallen e reprimiu um suspiro de enfado. Se o homem tinha algo a confessar, aquele seria o momento ideal: enquanto estava emocionalmente fragilizado, antes de ter a oportunidade de armar as defesas e recompor-se, antes de fazer valer os seus direitos.
Kovac sentia-se como um lançador de basebol substituído quando ainda estava com a força toda.
Virou-se para Liska.
Acho que a seguir és tu disse entre dentes.
Sargento... repetiu Leonard.
Kovac saiu da sala e entrou na do lado, de onde Leonard estivera a assistir ao interrogatório através do vidro. Reinava a escuridão. Um cinema com uma janela a fazer de ecrã. Ace Wyatt encontrava-se ao pé dessa janela de braços cruzados, olhando para Neil Fallen através do vidro espesso. Manteve a mesma posição durante alguns segundos mais; depois, seguiu-se a expressão que dizia: "Tenho assuntos muito graves em que pensar." Era a mesma com que aparecia nos cartazes espalhados pela cidade a publicitar o seu programa de televisão.
Porque estás a fazer uma coisa destas, Sam? perguntou Wyatt. Será que esta família ainda não sofreu o bastante?
Isso depende. Se por acaso aquele ali tiver morto os outros dois, a resposta será negativa.
A autópsia mostrou algo que eu desconheça?
Porque haverias de saber alguma coisa? desafiou-o Kovac. A Maggie Stone não tem o costume de divulgar esse tipo de informação.
Wyatt ignorou a pergunta, colocando-se acima da curiosidade do vulgar polícia de rua.
Estás a tratá-lo como se partisses do princípio de que o Mike foi assassinado.
Temos boas razões para acreditar que foi declarou Kovac. Tirou as polaróides do bolso interior do casaco e espalhou-as sobre o parapeito da janela. Primeiro, fê-lo na casa-de-banho. Há muito boa gente que faz isso, mas para ele seria um trabalhão entrar lá com a cadeira às arrecuas. A Liska é que deu por esse pormenor. Eu pensei que ele talvez quisesse deixar-nos um cenário mais limpo, mas faz mais sentido que uma outra pessoa qualquer se tenha dado a esse trabalho. Quando é que foi a última vez em que o velho Mike se importou com os outros? A arma estava guardada na gaveta do armário do quarto dele. Porque não deu ele simplesmente o tiro na cabeça lá? Não me parece que se preocupasse em não sujar o quarto. Aquilo assemelhava-se a uma pocilga. Em seguida, prosseguiu: Além disso, há o cadastro do Neil Fallen, o seu historial de problemas com o velho, o facto de ter mentido quanto à ida lá a casa.
Mas a altura em que ele lá esteve e a da morte não coincidem salientou Leonard.
Isso pode ter sido alterado por outros factores insistiu Kovac. É o que a Maggie Stone lhe dirá.
Mas a autópsia não revelou nada de conclusivo acerca de um assassínio, pois não? perguntou Wyatt.
Kovac encolheu um ombro, desviando os olhos das fotografias para a sala de interrogatórios e vice-versa. Neil Fallen estava sentado, de cotovelos apoiados na mesa e com a cabeça entre as mãos. Liska, ao seu lado, inclinava-se para ele.
Se algo aconteceu naquela noite, mais vale contar-nos já, Neil disse calmamente, como uma amiga. Tire isso do peito. É um fardo demasiado pesado.
Fallen disse que não com a cabeça.
Eu não o matei.
A sua voz soava fina e distante, vinda da televisão montada sobre um suporte de parede próximo da janela. A câmara da sala de interrogatórios incidia sobre os intervenientes, fazendo-os parecer pequenos e distorcidos.
Bati-lhe repetiu Fallen. Fiz isso. Bati-lhe na cara. O meu próprio pai. E ele naquela maldita cadeira de rodas. E agora está morto.
Vamos fazer a tal análise disse Kovac a Leonard e a Wyatt. Veremos se conseguimos obter alguma coisa dele através do medo.
E se não conseguirem? perguntou Leonard.
Aí pedimos-lhe desculpa pela maçada e tentamos outro meio qualquer.
Wyatt franziu o sobrolho.
Porque não esperam pelo relatório da Maggie Stone? Não vale a pena atormentar este homem desnecessariamente. O Mike era um dos nossos...
Precisamente por isso é que merece que façamos mais do que seguir as regras declarou Kovac, sentindo a ira aumentar dentro de si. Queres que eu me limite a despachar este caso, Ace? Queres que eu vá ter com a Maggie Stone e faça com que ela assine em como também se tratou de um acidente? Para que tudo fique no silêncio dos deuses e o "Iron" Mike continue a ser uma lenda sem mácula? Meu Deus! E se este mentecapto lhe deu cabo do canastro?
Kovac avisou Leonard com secura. Kovac lançou-lhe um olhar furioso.
O que foi? Estamos na Brigada de Homicídios. Investigamos mortes violentas. O Mike Fallen sofreu uma morte violenta e nós preferimos olhar para o lado porque pensamos que ele se matou, porque daqui a cinco anos podemos ser nós a aparecer nas polaróides. O suicídio faz demasiado sentido para nós porque sabemos o que este trabalho pode fazer a um homem, como pode deixá-lo desprovido de tudo.
E talvez seja por isso que preferes pensar que foi outra coisa qualquer, Sam disse Wyatt. Porque se o Mike não se matou, talvez tu também não o faças.
Não. Eu não prefiro essa versão. A Liska é que me chamou a atenção para essa possibilidade. A mim talvez me tivesse escapado. Mas ela fez bem em aprofundar a investigação, em encarar o caso como qualquer outro possível homicídio. Há aqui demasiado em jogo para que baste lamentar.
Estou só a pensar em mostrar o devido respeito para com quem resta da família dele justificou-se Wyatt. Pelo menos até a médica legista nos dar algo de concreto.
Bem, isso é óptimo. E se tivesses algo a dizer sobre o assunto, talvez eu te desse ouvidos. Mas... ou eu estava a sonhar acordado ou dei comigo na festa da tua reforma, Ace. Estou-me perfeitamente nas tintas para o que tu pensas sobre a minha investigação.
Ace Wyatt corou intensamente. Leonard interveio.
Está a passar das marcas, Kovac.
Que marcas são essas? As dos lambe-botas? murmurou Kovac, afastando-se. Gaines, o assistente de Wyatt, estava a um canto da sala a olhar para ele com o sorriso presunçoso de um estudante queixinhas. Kovac lançou-lhe um olhar de desdém e voltou-se para a janela.
Se passei das marcas, peço desculpa disse, sem sinceridade. Tem sido uma semana dos diabos.
Não, disse Wyatt com um suspiro tenso. Tens razão, Sam. Não tenho nada que me pronunciar sobre este assunto. A investigação é vossa. Se querem punir o Neil Fallen e arranjar um processo ao departamento por precisarem de tempo no sofá do psiquiatra, não me compete interferir. É uma vergonha e preferia que não tivesse de ser assim.
Pois é, eu também gostava que houvesse paz no mundo e que os Vikings vencessem a supertaça antes de eu morrer disse Kovac. Sabes como é, Ace. O homicídio é uma coisa feia.
Se é que se trata disso.
Se é que se trata disso. Mas, se for, apanharei o malandro que o fez. Independentemente de quem seja.
Voltou para junto da janela e ficou a observar.
O senhor é destro ou canhoto, Mister Fallen? perguntou Elwood.
Canhoto.
Elwood pousou um pequeno estojo em cima da mesa. Fallen ficou a olhar para o equipamento, endireitando-se na cadeira.
Vamos passar uma solução com cinco por cento de ácido nítrico pelo seu polegar e pelo indicador explicou Liska. Não dói.
De repente, Kovac desviou o olhar para as fotografias tiradas no local da morte de Mike Fallen.
Jesus! exclamou, pegando numa fotografia e depois noutra, observando-as e colocando-as depois de lado. Uma após outra. A sua pulsação acelerou.
O que foi? perguntou Wyatt.
Estava ali, apesar de não ter sido capaz de ver. Olhou para a última fotografia.
Agradeço que levante a mão esquerda, Mister Fallen pediu Elwood, preparando uma mecha.
Neil Fallen fez menção de estender a mão, que tremia visivelmente.
Kovac ergueu a fotografia contra o vidro da janela. A imagem do pai ao lado da do filho. Mike Fallen, mirrado e seco, ensanguentado, quase sem cabeça; a arma que o matara tombada no chão, do lado direito da sua cadeira, tendo-lhe, segundo parecia, caído da mão quando a vida o abandonara.
Mister Fallen?
A entoação na voz de Elwood despertou a atenção de Kovac.
Mister Fallen, preciso que estenda a sua mão.
Não.
Neil Fallen afastou a cadeira da mesa e levantou-se.
Não. Recuso-me. Não sou obrigado a fazer isto. Não o farei.
Não é nada de especial lembrou Liska. Se o tiro não foi dado por si.
Fallen recuou, deitando a cadeira ao chão.
Eu não matei ninguém. Se pensam que fui eu, acusem-me ou vão-se lixar. Vou-me embora.
Elwood virou-se para a janela.
Kovac olhava fixamente para a fotografia, enquanto Neil Fallen saía porta fora, intempestivamente.
O Mike Fallen era canhoto declarou, olhando para Wyatt. O Mike Fallen foi assassinado.
O Mike Fallen era canhoto declarou Kovac. Para se matar, pegaria na arma com a mão esquerda.
Imitou o acto em frente das pessoas reunidas no gabinete de Leonard: o tenente, Liska, Elwood e Chris Logan, do Gabinete do Procurador de Hennepin County.
Segura na mão esquerda com a direita continua, enfia o cano na boca e carrega no gatilho. Pum! Já está. Morreu. O coice afasta-lhe os braços do corpo. Portanto, a arma deve ter saltado para longe dele. Ou talvez tenha lá ficado... na esquerda... ao mesmo tempo que esse braço se desvia para o lado. O que não é possível é que caia à direita da cadeira.
Tem a certeza de que ele era canhoto? perguntou Logan. O advogado parecia ter sido submetido a uma ventania do Árctico ao atravessar a rua desde a Prefeitura: tinha o cabelo escuro todo despenteado e as bochechas avermelhadas. Franzia o sobrolho, formando um V com a testa.
Tenho a certeza asseverou Kovac. Não percebo por que razão isso me passou despercebido no local. Talvez porque fazia todo o sentido o Mike Fallen ter-se matado.
Mas o filho devia saber que ele era canhoto.
O Neil também o é argumentou Kovac. Portanto, ajuda o velho a ir desta para melhor, afasta a arma e Pousa-a, tudo com a mão esquerda. Ou seja, à direita do Mike.
As rugas na testa de Logan acentuaram-se.
Isso é demasiado inconsistente. Têm mais alguma coisa? Impressões digitais na arma?
Não. Há impressões do Mike na arma, mas estão esborratadas. Talvez como se alguém tivesse posto as mãos por cima das dele.
Talvez não chega. Talvez ele tivesse as mãos a suar e tivesse dificuldade em pegar na arma como devia ser. Talvez as marcas ficassem esborratadas depois de a arma lhe ter escorregado das mãos após apertar o gatilho.
Uma testemunha viu o Neil Fallen no local do crime nessa noite esclareceu Elwood.
Mas o Fallen mentiu nesse ponto acrescentou Kovac.
Mas foram duas ou três horas antes da hora a que se pensa ter ocorrido a morte, não?
Liska meteu-se na conversa:
Ele não se dava bem com o Mike. Muito ressentimento acumulado e ciúmes. O Mike não lhe emprestou o dinheiro de que precisava. O Fallen reconhece ter discutido com o pai. Admite ter-lhe batido.
Mas não admite tê-lo morto.
Kovac praguejou.
É isso o que vocês querem que façamos agora? Que vos sirvamos os malfadados criminosos numa bandeja de prata? Mascarados de peru de Natal, com a confissão assinada pendurada no bico?
Estas informações não me chegam. O advogado dele tira-o daqui em cinco minutos. Vocês determinaram o motivo, mais nada. A hora não coincide com o que a médica legista aponta no relatório. Não dispõem de provas físicas, de testemunhas. Está bem, o tipo mentiu-vos. Toda a gente mente à polícia. Após uma pausa, prosseguiu: Vocês não têm dados suficientes para o prender. Eu não tenho dados suficientes para o levar a julgamento. Arranjem provas de que ele estava no local do crime quando alguém ouviu um tiro. Descubram sangue do velho nos sapatos dele. Algo. Qualquer coisa.
Se o Neil agarrou na arma por cima das mãos do Mike, então deixou impressões digitais suas na pele do velho salientou Liska.
Agora já será difícil detectar isso disse Kovac. A Maggie Stone e a Lars já lhe cortaram as unhas, examinaram as mãos em busca de ferimentos de defesa...
Vale a pena tentar insistiu Liska. Serve-te do teu charme para a convenceres, Sam.
Kovac desviou os olhos.
E que tal um mandado de busca para a casa do Neil Fallen? Para podermos encontrar os sapatos com sangue.
Dactilografe um pedido de mandado e tem a minha bênção para ir ter com o juiz Lundquist ordenou Logan, consultando as horas. Estou ansioso por apanhar esse filho da mãe, se foi ele que acabou com o velho. Enfiou o sobretudo. Mas o caso tem de ter pernas para andar. Caso contrário, é mais um fracasso para a imprensa se deleitar e quem não quer ser apanhado a fazer asneira sou eu. Em seguida, anunciou: Tenho de ir. Estão à minha espera no gabinete do juiz.
Saiu porta fora antes de alguém poder objectar.
É o lado negativo de se ser um advogado com ambições políticas observou Elwood. Ele só correrá riscos bem calculados se souber que irá vencer.
O Logan é esperto interpôs Leonard. O departamento não pode sofrer outro fiasco.
Tradução: Metemos água e a chefia desanca o Leonard, pensou Kovac. Com Ace Wyatt a orquestrar a investida dos bastidores. E a pancadaria ainda sobra para ele e para Liska. Elwood talvez se safe, já que está na periferia do caso.
Eu trato do pedido propôs Kovac.
Liska desligou o computador e agarrou no seu cinturão.
Não será melhor arranjarmos uma unidade da polícia local para montar guarda à casa do Neil Fallen? perguntou Elwood. Eles hão-de querer participar na busca. E na sua jurisdição.
Leonard ainda começou a dizer algo, porém Kovac interrompeu-o, ignorando a autoridade que o tenente tinha para dirigir o caso.
Telefona ao Tippen. Vê de que maneira nos pode ajudar. Se alguém da unidade de detectives vai entrar na festa, prefiro que seja ele.
Sam, tenho de ir anunciou Liska. O Ibsen voltou a si. Faço falta na busca?
Não, vai andando.
O supervisor do turno da noite telefonou-me disse Leonard em voz alta, fazendo-a parar quando já ia a sair. - Concordei que prestasse assistência ao Castleton no caso da agressão ao Ibsen. Imagino que queira saber.
Obrigada, tenente agradeceu ela, tentando, sem sucesso, não parecer atrapalhada. Tencionava falar-lhe nisso. O Ibsen é meu informador.
Talvez quando voltar possa tirar cinco minutos para me falar do que ele a tem informado.
Claro, depois.
Virou-se e afastou-se, lançando um olhar expressivo a Kovac.
Boa sorte, Tinks desejou-lhe ele. Espero que o tipo já tenha voltado completamente a si.
Se fizer algo mais do que babar-se, já me posso dar por satisfeita.
"Voltar a si", como veio a verificar-se, não correspondia exactamente à realidade. Ibsen entreabrira um olho e gemera. A reacção do pessoal médico das Urgências do Centro Médico de Hennepin County fora enchê-lo de morfina.
Tinha um ar encolhido, frágil e patético ali na cama, todo enfaixado e ligado a uma variedade de máquinas. Ninguém se encontrava sentado ao seu lado, a rezar a Deus para que o poupasse. Nem uma única pessoa o fora ver, segundo o pessoal das Urgências, apesar de terem notificado o seu patrão do Boys Will Be Girls e de este ter, presumivelmente, contado o sucedido aos amigos de Ibsen no clube. Ao que parecia, não tinha nenhuns. Mas também se podia dar o caso de o facto de o terem espancado de maneira tão brutal fosse o suficiente para que os que o conheciam preferissem não o assumir.
Consegue ouvir-me, Mister Ibsen? perguntou Liska, pela terceira vez.
Ibsen jazia com a cabeça virada para ela, de olhos abertos mas desfocados. Há quem ache que as palavras chegam até ao cérebro dos doentes no mais profundo estado de coma. Quem era ela para o negar?
Apanharemos as pessoas que lhe fizeram isto prometeu-lhe.
Polícias. Só de o imaginar sentia-se agoniada. Aquele crime fora cometido por polícias. Era um sacrilégio contra o uniforme que usavam. Os danos não se ficavam por Ken Ibsen. Estendiam-se à imagem da corporação, à confiança que era suposto o público ter nos agentes que o protegiam. Odiava Ogden e Rubel por traírem essa confiança e por minarem a sua fé na comunidade policial, que considerara como uma segunda família durante a maior parte da sua vida.
Não era ingénua. Sabia que nem todos os polícias eram honestos. Havia muito malandro a passear-se de crachá. Mas homicídio e tentativa de homicídio? Lá bem no seu íntimo, ainda se recusava a acreditar. Mas Ken Ibsen era a prova (pouco) viva disso.
Eles têm muito por que responder sussurrou, afastando-se.
No lado de fora, ao pé da porta do quarto, montava guarda um agente uniformizado, entretido com uma revista sobre pesca. Hess, era o nome que se lia no cartão de identificação. Um tipo gordo à espera da reforma ou de um ataque cardíaco, o que chegasse primeiro. Lançou a Liska um esgar de sorriso: "Ah, é apenas uma rapariga." Teve vontade de lhe dar um pontapé na cadeira. De lhe arrancar a revista das mãos e bater-lhe na cabeça com ela. Não se podia dar ao luxo de fazer nem uma coisa nem outra.
De que esquadra é, Hess?
Terceira.
Sabe porque o chamaram para esta zona da cidade? O agente encolheu os ombros.
Porque estava disponível para vigiar este gajo. Parecia não ter interesse em saber por que motivo não tinham entregue a tarefa a alguém de uma esquadra ali da Baixa. Aproveitava aquele tempo para aprofundar os seus conhecimentos sobre isco para peixe. Liska insistira numa pessoa de fora, receando que a solidariedade entre colegas de esquadra pudesse pôr Ibsen em risco, tal como comprometera o presumível local de crime de Andy Fallen, onde os primeiros agentes a atender a chamada tinham permitido a Ogden e Rubel entrar na casa. Não tinha pensado que ter um estafermo como Hess ali à porta também pudesse ser igualmente perigoso.
O Castleton já passou por cá?
Não.
Alguém mais da esquadra?
Não.
Se alguém que não seja médico ou enfermeiro entrar neste quarto, quero ser imediatamente informada.
Hum... Hum...
Se alguém entrar neste quarto... seja quem for... quero que levante esse cu da cadeira e fique a ver pelo vidro. Enquanto esteve aí sentado todo entretido, eu podia tê-lo morto cinco vezes.
Hess fez beicinho ao ouvir aquilo, desagradado por ser uma mulher a dizer-lhe como devia fazer o seu trabalho, ainda por cima uma que tinha idade suficiente para ser sua filha.
E já que está aqui murmurou Liska por entre dentes, ao afastar-se, peça para lhe fazerem um transplante de personalidade.
Desceu no elevador até ao nível da rua a pensar em Ogden e Rubel, até onde iriam, se estariam, ou não, dispostos a tentar algo ali no hospital. Parecia demasiado arriscado, mas, se estavam relacionados com o assassínio de Eric Curtis, se tinham algo a ver com a morte de Andy Fallen, se estavam dispostos a fazer a outro ser humano o que tinham feito a Ken Ibsen, então tal significava que, para eles, não havia limites.
No entanto, também talvez não quisessem Ibsen morto. No caso de pretenderem enviar uma mensagem às pessoas para que não se metessem com eles. Vivo, seria um símbolo mais horrendo. Perguntou a si mesma porque teriam esperado até àquela altura para tomar aquela medida. Porque não quando a investigação estivera no auge? Talvez Ibsen não os preocupasse tanto como o interesse dela em reabrir o caso. Afinal de contas, até ali ninguém dera grande crédito a Ibsen.
Óptimo. Isso significava que tinham transformado Ibsen num exemplo para ela, e ela é que era a verdadeira razão por que ele jazia agora num leito de hospital.
Para apanharem o Ibsen naquele beco tinham de andar a vigiá-lo, pensou. Provavelmente faziam-lhe o mesmo a ela. A omnisciência parecia a palavra de ordem daquela parelha. Mas também não passavam de dois, lembrou a si mesma.
Springer corroborara o álibi deles. Dungen, o agente de ligação com os homossexuais, comentara com ela que na esquadra havia bastante animosidade homofóbica. Mas quantos polícias estariam dispostos a chegar ao ponto de agredir e assassinar? Ou de serem coniventes com isso? Ela preferia não ter de descobrir.
Saiu do elevador de cabeça baixa, perdida nos seus pensamentos e tentando estabelecer prioridades no que precisava de fazer. Queria telefonar ao último parceiro de patrulha que Curtis tivera. Como se chamava ele? Engle. E Castleton encarregara-a de ir aos Assuntos Internos inteirar-se das conversas que Ibsen tivera com eles. Tinha de ligar a Kovac para o actualizar relativamente a Ibsen e saber os resultados da busca feita a casa de Neil Fallen. Era provável que naquele momento estivesse no gabinete do juiz Lindquist.
Tirou o telemóvel do bolso e levantou os olhos para procurar um sítio afastado do fluxo de pessoas para parar. Rubel encontrava-se uns três metros mais ao fundo do corredor, à paisana, parado a olhar para ela com ar inexpressivo. O tempo como que parou durante um segundo, o suficiente para Liska se aperceber de que ele tinha algo na mão, mas nesse momento alguém lhe deu um encontrão por trás. Rubel caminhou em frente, ajeitando os óculos metalizados com uma das mãos e enfiando a outra num dos bolsos do casaco.
Que raio está aqui a fazer? perguntou-lhe Liska, atravessando-se-lhe no caminho.
Vim tomar uma vacina contra a gripe.
O Ibsen está sob vigilância.
Porque havia eu de me ralar com isso? Ele não tem nada a ver comigo.
Pois é, creio que tens razão retorquiu Liska. Sobre o teu parceiro é que ele tinha muito para contar.
Rubel encolheu os ombros.
O Ogden está fora de suspeita. Tanto quanto sei, os Assuntos Internos acharam que o tipo não tinha nada de interessante para dizer.
Alguém pensa que tem. Daqui a um par de meses, ele dará com a língua nos dentes que lhe restarem.
Como eu disse ao Castleton prosseguiu Rubel, estou completamente a leste do assunto. O Ogden, o Springer e eu estávamos a jogar bilhar na minha cave.
Essa desculpa faz lembrar mesmo aquela dos miúdos: "O cão comeu o meu trabalho de casa."
Quem é inocente não está constantemente preocupado em ter um álibi retorquiu ele, olhando de relance por cima do ombro para o sítio de onde viera. Se me dá licença, sargento...
Pois é. Tu, o Ogden e os vossos colegas que desprezam os gays são uma autêntica cambada de meninos de coro observou Liska, cheia de pena por não ter altura suficiente para falar com ele cara a cara. Assim, ele via para lá do cimo da sua cabeça. Sabe, não são os Eric Curtis e os Andy Fallen que trazem vergonha ao departamento observou ela. São os matulões sem pescoço como vocês, que se acham no direito de ter rédea livre para esmagar aqueles que não se enquadram no vosso ideal atrofiado de perfeição humana. Vocês é que deviam ser corridos da corporação. E se eu descobrir a mínima prova contra vocês, podem crer que vos dou cabo da vida.
Isso soa a ameaça, sargento.
Sim? Telefona aos Assuntos Internos respondeu-lhe Liska, seguindo pelo corredor de onde Rubel viera. Sentiu os olhos dele nas suas costas até virar a esquina.
Posso ajudá-la, miss? perguntou-lhe a recepcionista sentada a uma secretária.
Liska olhou em volta. Havia uma pequena área de cadeiras com gente de ar miserável sentada, à espera. O letreiro por cima da secretária dizia LABORATÓRIO.
É aqui que dão as vacinas contra a gripe?
Não, minha senhora. Aqui são as análises ao sangue. Para levar a vacina contra a gripe terá de ir ao posto de vacinação. Volte pelo corredor por onde veio e...
Liska murmurou um "obrigada" e afastou-se.
Vou processar a polícia! vociferou Neil Fallen, com as botifarras a fazer ranger a neve comprimida que cobria a faixa que percorria incessantemente de um lado para o outro, à esquerda de Kovac. Tinha a cabeça descoberta e o vento forte que soprava do lago despenteava-lhe o cabelo. De olhos arregalados e veias do pescoço salientes, parecia um louco.
Kovac acendeu um cigarro, inalou profundamente e exalou um fio delgado de fumo que desapareceu de imediato. Deviam estar uns quinze graus abaixo de zero.
Faça isso, Neil incentivou. É um desperdício de dinheiro que não tem, mas quero lá saber!
Detenção sem qualquer motivo...
Não está preso.
Perseguição...
Temos um mandado. Aí já não pode fazer nada, Neil lembrou, calmo.
O Sol fazia brilhar fracamente a sua luz amarelada através da cerrada cortina formada pela queda de neve. Os abrigos para pescadores que pontilhavam a margem mais próxima do lago pareciam encolhidos uns contra os outros para se proteger do frio.
Fallen parou, ofegante, ficando a ver, através da porta escancarada, os agentes a passarem a pente fino os materiais guardados na oficina. A casa apresentara como única prova o facto de não haver nenhuma mulher a viver lá.
Eu não matei ninguém declarou Fallen enfaticamente.
Kovac observou-o pelo canto do olho.
Então, não tem de se preocupar. Vá tomar uma cerveja.
Tippen, o detective da polícia local, estava à direita de Kovac, também a fumar, e a olhar para a boca cavernosa do barracão. Tinha a gola da sua parca levantada até às orelhas e um boné às riscas vermelhas e brancas enfiado na cabeça.
Pensei que tinhas deixado de fumar disse a Kovac.
E deixei.
Não estás a ser muito coerente, Sam.
Pois é, bem... Sabes que há um gato da banda desenhada com um chapéu parecido com esse?
Não me digas, Sam! disse Tippen, sem se dar por achado. Onde pára a Liska?
Andas mesmo caidinho por ela.
Ando agora! Estava apenas a querer saber de uma colega.
Implora. A Tinks gosta disso. Está num sítio mais quente do que este, a trabalhar noutra perspectiva.
Até no Alasca faz menos frio do que aqui.
Que perspectiva? perguntou Fallen.
Não é da sua conta, Neil. Ela tem outros casos.
Eu não matei o meu pai.
Já o disse lembrou Kovac, com a atenção presa no barracão. Elwood vinha a sair, segurando um fato-macaco de sarja castanha pelos ombros.
Fallen deu um pulo, como se tivesse recebido um choque eléctrico.
Isso não é o que estão a pensar.
E o que é que eu estou a pensar, Neil?
Posso explicar.
O que achas, Sam? perguntou Elwood. A mim parece-me sangue.
O fato-macaco estava imundo. Por cima da sujidade, via-se o que parecia ser sangue e matéria orgânica, tudo seco.
Kovac virou-se para Neil Fallen.
Aqui tem o que penso, Neil. Penso que está preso. Tem o direito de ficar calado...
Cal Springer metera baixa por doença. Liska estacionou o carro em frente da casa do colega e ficou a olhar para ela durante uns instantes, antes de desligar o motor. Cal e a mulher viviam num dos inúmeros becos de Eden Prairie, que ficava nos arredores da cidade. A casa tinha o que os agentes imobiliários designariam por "suave estilo contemporâneo", ou seja, sem estilo. Quem voltasse para casa naquele bairro depois de uma noitada pelos bares arriscava-se a entrar na casa do vizinho e só dar pelo engano quando acordasse de manhã.
Apesar de tudo, era agradável e Liska não se teria importado nada de morar num lugar parecido. Perguntou-se onde arranjaria Cal dinheiro para aquilo. O escalão em que se encontrava e os anos de serviço que tinha davam-lhe um bom ordenado, mas assim tanto também não. Além disso, ela sabia que ele tinha uma filha em Saint Olaf, um colégio interno caro na estrada para Northfield. Talvez fosse Mrs. Cal quem trazia para casa os grandes proventos. A ideia passou-lhe pela cabeça: Cal Springer, uma espécie de chulo.
Aproximou-se da porta da frente e tocou à campainha. Tapou o ralo com o dedo.
Quem é? ouviu a voz de Springer perguntar de dentro de casa. O tom de voz parecia o de um tipo que está à espera de que o fisco venha prendê-lo por viver acima das suas posses.
Elana, do Serviço de Acompanhantes disse Liska em voz bem alta. Vim para o espancamento que marcou para as quatro da tarde, Mister Springer!
Rais te partam, Liska! A porta abriu-se e Springer olhou para ela, furioso, tentando depois ver se algum vizinho escutara. Não podias ter um pouco mais de consideração? Eu vivo aqui.
Claro! Porque haveria eu de tentar envergonhar-te diante de desconhecidos?
Passou por baixo do braço de Springer e entrou no vestíbulo, uma área com ladrilhos claros, paredes descoloridas e a balaustrada também sem cor de uma escada que conduzia ao segundo piso.
Sabes que não devias ter uma escada que desemboque mesmo na porta de entrada? perguntou ela. É mau para o teu feng shui. O bom chi sai-te todo porta fora.
Estou doente anunciou Springer.
Se calhar é por causa disso. Falta de chi. Dizem que deve ter sido o que matou o Bruce Lee. Li na revista In Style. Lançou-lhe um olhar perscrutante dos pés à cabeça e reparou no cabelo sujo e na pele acinzentada, nos papos sob os olhos raiados de sangue. Estava com um aspecto péssimo. Ou então foi de andares com tipos como o Rubel e O Ogden. Companhia esquisita para ti, Cal, não achas?
Os meus amigos não são da tua conta.
São quando tenho a certeza de que espancaram um homem até o deixarem em coma enquanto tu estavas, alegadamente, a jogar bilhar com eles.
Eles não podiam ter feito uma coisa dessas declarou ele, sem, no entanto, olhar para ela. Estivemos em casa do Rubel.
É o que Mistress Cal me vai dizer quando eu lhe perguntar?
Não está em casa.
Mas acabará por voltar.
Liska tentava colocar-se em frente do colega. Springer desviava-se constantemente. Vestia umas calças castanhas largueironas que já tinham visto melhores dias, e uma camisola cinzenta com as mangas enroladas até meio dos braços. Nem mesmo fora de serviço conseguia vestir-se com o mínimo esmero.
Seja como for, que tens tu a ver com isso? perguntou ele, irritado.
Estou a prestar assistência ao Castleton neste caso de agressão. A vítima ia encontrar-se comigo. Tinha algo de interessante a dizer-me sobre o homicídio do Curtis. Sabes que mais, agora que alguém se deu a todo aquele trabalho para o calar, ainda mais curiosa estou por saber o que ele tinha para me contar. Já sabes como eu sou nestas coisas, Cal. Pareço um gato atrás de um rato. Não descanso enquanto não o apanhar.
Springer emitiu um som do fundo da garganta e levou a mão ao estômago. O seu olhar desviou-se até à porta aberta da casa de banho que ficava no vão da escada.
Porque andas com aqueles dois tipos de uniforme, Cal? Por amor de Deus, tu és um detective. E deves ter... o quê? Uns quinze anos de serviço a mais do que eles, não? Sem ofensa, mas porque haveriam eles de se dar contigo?
Olha, já te disse... Não estou a sentir-me bem, Liska lembrou ele, olhando novamente de relance para a casa de banho. Não te importas de ter esta conversa comigo noutra altura qualquer?
Depois de eu ter feito todo este caminho até aqui? exclamou Liska, ofendida. Que bom anfitrião me saíste. No entanto, tens aqui uma bela casa.
Foi até à ponta do vestíbulo e olhou para a sala de estar com lareira de pedra e sofás bem estofados. Havia uma árvore de Natal demasiado cheia de enfeites e de fios brilhantes.
As rendas aqui devem ser de arrasar, não?
O que é que isso te preocupa? perguntou Springer, exasperado.
Não me preocupo. Não tenho é dinheiro para uma casa destas. Como é que consegues?
Liska fitou-o nos olhos, apanhando-o desprevenido por um segundo e notando neles uma expressão de desânimo. Ficou com a nítida ideia de que Cal Springer andava provavelmente a jogar sempre na defensiva, de uma maneira ou outra, e talvez as suas expectativas se gorassem.
O som da porta da garagem a abrir chamou-lhe a atenção e pareceu ficar um tanto mais maldisposto do que até ali.
É a minha mulher. De volta do trabalho.
Ah, sim? Que faz ela? É neurocirurgiã? Oh, que disparate o meu disse Liska. Se fosse, já teria tratado da tua falta de bom senso.
É professora elucidou Springer, massajando a barriga com a mão.
Ah, compreendo, isso explica o bom estilo de vida. As professoras têm excelentes salários.
Entre os dois, ganhamos bem disse Springer, sempre na defensiva.
Suficientemente bem para estarem com dívidas até ao pescoço, pensou Liska.
Mas uma promoção vem sempre a calhar, não é? Claro que depois do fiasco com o caso Curtis, isso já é um pouco improvável. Portanto, estás a pensar em concorrer ao lugar de delegado e mostrar aos chefes que talvez tenhas jeito para funções de gestão. Certo?
Calvin? Cheguei. Era uma voz macia e doce, que veio da cozinha. Trouxe o Imodium.
Estamos aqui, Patsy.
Estamos?
Ouviu-se o barulho de sacos de compras a serem pousados e logo a seguir Mrs. Cal entrou no vestíbulo com o seu ar estereotipado de professora de meia-idade. Ligeiramente forte, um tudo-nada desleixada, óculos grandes, cabelo fino e esparso.
Sou a Nikki Liska, Mistress Springer apresentou-se Liska, de mão estendida.
Do trabalho especificou Cal.
Acho que já nos encontrámos uma vez numa festa. disse Liska.
Mrs. Cal parecia confusa. Ou talvez apreensiva.
Veio saber do Calvin? A barriga dele não tem andado nada bem.
Pois é. Bom, na verdade precisava de lhe fazer umas perguntas.
Springer colocara-se atrás da mulher. O rosto abatido parecia feito de cera. O seu olhar dava a impressão de estar focado noutra dimensão, numa dimensão em que podia ver a sua vida a esboroar-se como queijo muito velho.
Mrs. Cal exibiu uma expressão intrigada.
Perguntas sobre o quê?
Sabe onde o Cal esteve ontem à noite por volta das onze, onze e meia?
Os olhos de Mrs. Cal encheram-se de lágrimas por trás dos óculos demasiado grandes. Olhou de relance sobre o ombro para o marido.
O que se passa?
Responde apenas à pergunta, Patsy disse-lhe Springer impaciente. Não é nada de especial.
Liska aguardou, com um peso no peito, a pensar na sua própria mãe quando os Assuntos Internos tinham lá ido a casa fazer perguntas. Ela conhecia aquela sensação de vulnerabilidade, de estar a ser traída, denunciada pelos próprios colegas.
Ontem à noite, o Cal saiu disse Patsy Springer suavemente. Com uns amigos.
Springer, atrás dela, passou uma mão pela cara e tentou reprimir um suspiro.
Não proferiu Liska, de olhos postos nele. Essas pessoas com quem o Cal saiu não são amigos dele, Mistress Springer. Espero, para seu próprio bem, que tenha acabado de me dizer uma mentira.
Basta, Liska! exclamou Springer, interpondo-se entre as duas. Não tens o direito de vir a minha casa chamar mentirosa à minha mulher.
Liska não se deu por achada; tirou as luvas do bolso do casaco e calçou uma, depois a outra.
Não ligaste nenhuma ao que eu te disse, Cal observou calmamente. Afasta-te antes de seres apanhado na engrenagem. Nada do que possam saber sobre ti é tão mau como o que eles fizeram.
De que está ela a falar, Cal? perguntou Mrs. Springer, mostrando agora medo na voz.
Springer olhou para Liska com raiva.
Sai da minha casa.
Liska assentiu e depois lançou um último olhar àquela bonita casa, e um outro a Cal Springer, um homem no auge do desespero.
Pensa nisso, Calvin disse-lhe. Tens conhecimento do que eles lhe fizeram. Provavelmente sabes mais do que isso. Eles usam o mesmo crachá que nós dois, e isso está errado. Sê homem e fá-los parar.
Springer desviou o olhar, de mão a comprimir a barriga e o suor a humedecer-lhe a pele cor de cinza. Não respondeu.
Liska saiu para o frio do fim de tarde, entrou no carro e seguiu para Minneapolis, desejosa de se encontrar na sua modesta casa com os seus filhos.
Quais são as probabilidades de aquele sangue pertencer ao "Iron" Mike? perguntou Tippen, com um copo de cerveja à sua frente.
Estavam sentados no Patrick's, no meio do pessoal mais rijo que tinha o hábito de ali se reunir todos os dias depois do primeiro turno e dos que só ali iam uma vez por semana, à sexta-feira à noite.
Praticamente nenhumas respondeu Kovac, que tirou uma mão-cheia da mistura de aperitivos da taça que estava sobre a mesa e se pôs a escolher os amendoins e os pretzels. Há muito que desconfiava de que aquelas porcarias pequeninas e duras disfarçadas de pipocas eram, na verdade, unhas dos dedos dos pés cortadas. Ele teria de estar na frente do velho quando a arma disparou. A porcaria foi na direcção contrária. Acho que o sangue que se vê no fato-macaco dele não é mais do que aquilo que o Neil Fallen afirma ser: restos de peixe. Mas isso não significa que não tenha morto o velho. E agora temo-lo na cadeia, onde pode não ter a vida fácil e resolver-se a contar a sua história.
Como é fím-de-semana, só lá para terça ou quarta-feira é que teremos os resultados do laboratório interpôs Elwood. Se ele tiver alguma coisa para contar, calculo que o faça no domingo à noite.
Confissão no Sabat observou Tippen, abanando a cabeça com a sabedoria da experiência. Muito simbólico.
Diz antes muito católico corrigiu Kovac. Pelo menos, foi assim que ele foi educado. O Neil Fallen não é nenhum assassino inveterado. Se acabou com o pai, não será capaz de viver com os remorsos durante muito tempo.
Olha que não sei, Sam observou Tippen. Não temos todos nós remorsos por algum motivo? Carregamos com eles a vida toda, como se fossem lastro. São algo que nos deprime e nos impede de alcançar a verdadeira felicidade. Fazem-nos lembrar que não somos merecedores, dão-nos uma desculpa para não nos esforçarmos muito.
A maioria de nós não deu cabo do próprio pai. Esse tipo de sentimento de culpa fica de fora disse Kovac. De certo modo.
Levantou-se da mesa, desejando não ter de o fazer.
Aonde é que vais? perguntou Tippen. É a tua vez de pagar.
Kovac tirou a carteira e deixou cair algumas notas em cima da mesa.
Vou ver se não facilito a vida a uma certa pessoa.
Ao fundo do quarteirão onde Steve Pierce morava, alguém dava uma festa de Natal. Música, conversas e risos vinham do prédio, enquanto uma nova revoada de convidados chegava. Kovac voltou a encostar-se contra o seu carro por um momento e ficou a observar, enquanto terminava o cigarro. Depois atirou a beata para a sarjeta e dirigiu-se para a porta.
Via-se luz nas janelas do duplex de Pierce. O Lexus dele encontrava-se estacionado em frente. Poderia ter ido até à festa do vizinho, mas Kovac duvidava. Naquele ano, Steve Pierce não se juntaria às festividades da época. Era extremamente difícil parecer alegre e espirituoso com o peso da perda, do desgosto e da culpa sobre os ombros. Kovac esperava que a noiva não estivesse, deixando Pierce sozinho e vulnerável.
É malhar neles quando estão em baixo murmurou, tocando à campainha.
O tempo passou e ele insistiu. Mais adiante, havia mais convidados a chegar. Um deles, um tipo com um cachecol vermelho, entrou no jardim a correr e abraçou um outro vestido de boneco de neve, começando a cantar: Bem-Vindo Seja o Natal.
Meu Deus, você de novo murmurou Pierce ao abrir a porta. Já ouviu falar de telefones?
Prefiro o contacto pessoal, Steve. Mostra o meu empenhamento.
Pierce estava com pior aspecto do que na noite em que encontrara o cadáver de Andy Fallen. Vestia a mesma roupa. Tresandava a um misto de tabaco, uísque e suor - o tipo de suor proveniente da perturbação emocional. Era um cheiro diferente do suor derivado do esforço físico, mais acre e pungente. Tinha um copo meio cheio de uísque na mão e um cigarro a pender-lhe dos lábios. Dava a impressão de que não se barbeava desde o funeral.
Está empenhado em me meter na cadeia disse.
Só se cometeu algum crime.
Pierce riu-se. Estava quase bêbedo, mas provavelmente não se permitia exagerar, atenuar a dor por completo. Kovac desconfiava que ele preferia continuar a sofrer e que o uísque lhe permitia manter o sofrimento a um nível tolerável.
O Neil Fallen está preso informou Kovac. Tudo indica que matou o pai. Gostaria de ouvir a sua opinião sobre isso.
Bem. Pierce ergueu o copo. Isso requer um brinde. Faça favor de entrar, sargento convidou, afastando-se da porta aberta.
Kovac seguiu-o.
Um brinde à prisão do Neil ou à morte do Mike?
Aos dois acontecimentos. Mereciam-se um ao outro.
Entraram na saleta de paredes azul-escuras. Kovac fechou a porta atrás de si, para ganhar um minuto ou dois no caso de a namorada aparecer.
Até que ponto conhece o Neil?
Pierce tirou outro copo do pequeno armário por cima do bar, deitou-lhe um pouco de Macallan e a seguir voltou a encher o seu.
Suficientemente bem para saber que é um malandro. Colérico, invejoso, mesquinho, mau. A ovelha negra da família. Estendeu o copo acabado de preparar a Kovac. Eu costumava dizer ao Andy que o deviam ter trocado na maternidade quando era bebé. Não conseguia perceber como pudera sair daquela matilha de pit bulls. Era tão decente, tão bom e gentil.
Os seus olhos avermelharam-se, e ele foi até à janela estreita que dava para um dos lados da casa. O vizinho do lado tinha tudo às escuras.
Era muito melhor que eles prosseguiu, com a noção de injustiça e de frustração a enrouquecer-lhe a voz. Mesmo assim não foi capaz de lhes levar a melhor.
Kovac bebeu um gole de uísque, percebendo imediatamente porque custava cinquenta dólares a garrafa. O ouro derretido devia ter o mesmo gosto saboroso.
Ele foi o preferido do pai durante muito tempo observou, de olhos fixos em Pierce. Deu a volta a um dos sofás para ficar num ângulo mais favorável. Imagino que lhe tenha custado muito ser rejeitado pelo velho. Andava sempre a tentar pôr-se de bem com ele. Como se tivesse qualquer coisa de que se desculpar. Queria que o velho compreendesse algo que um tipo como ele jamais seria capaz de entender. Eu bem dizia ao Andy para deixar de se preocupar com isso, que não poderia mudar a mentalidade das pessoas, mas ele não me dava ouvidos.
Como é que ele tencionava pôr-se de bem com o pai? Qual seria a moeda de troca?
Pierce encolheu os ombros.
Não havia nenhuma. Era apenas isso. O Andy achava que poderiam fazer algo juntos. Escrever as memórias do velho ou qualquer coisa do género. De vez em quando falava nisso, dizia que se soubesse mais sobre o pai poderia entendê-lo melhor, encontrar algum ponto em comum com ele. Queria saber mais sobre o tiro que o pusera numa cadeira de rodas, esse momento decisivo na vida do Mike. Mas o velho não dava valor ao esforço. Recusava-se a falar no que acontecera. Não gostava de se pronunciar sobre o que sentia. Duvido de que dispusesse do vocabulário certo para isso. A capacidade de autodiscernimento não ocupa um lugar importante na vida de tipos como o Mike Fallen, ou o Neil.
E quanto ao Neil? perguntou Kovac. Ele afirma que o facto de o irmão se assumir como homossexual não lhe fez diferença nenhuma.
Pierce riu-se.
Claro. Estupor presumido. Ele já odiava o Andy.
Achava que o facto de ser heterossexual lhe trazia vantagens em relação ao velho. Já não era a ovelha negra. Na cabeça dos parolos, a homossexualidade é um crime.
O Andy via-o muitas vezes?
De vez em quando ele tentava armar em macho, em fazer coisas de irmão com o Neil. Caça, pesca, esse tipo de entretenimento. Absoluta perda de tempo. O Neil não queria compreender o Andy, nem gostar dele. A única coisa que pretendia dele era dinheiro.
Pedia dinheiro ao Andy?
Claro. Primeiro para aproveitar uma oportunidade de investimento. Eu aconselhei o Andy a não se meter nisso. Que desse o dinheiro ao Neil se não se importasse de nunca mais lhe pôr a vista em cima. Investimento? Só rindo. Mais valia enfiar o dinheiro pela sanita abaixo.
Que foi que o Andy fez?
Despachou-o. Foi dizendo que talvez mais tarde, na esperança de que o Neil acabasse por desistir. Bebeu um pouco mais de uísque e murmurou: Oportunidade de investimento!
Tanto quanto sabe, alguma vez se pegaram fisicamente?
Pierce disse que não com a cabeça. Chupou o cigarro até ao filtro e apagou a beata a um canto do vidro da janela. Não. O Andy não lutaria com o irmão. Sentia-se demasiado culpado por ser melhor que o resto da família. Porquê? Acha que foi o Neil quem o matou?
Isso ainda continua em aberto.
Acho pouco provável. A esperteza do Neil não chega a esse ponto. Nesta altura, já o teriam apanhado.
E apanhámos lembrou-lhe Kovac.
Ainda assim... Sabe ao que me refiro. Voltou ao bar para encher o seu copo pela enésima vez. O Neil é do tipo desleixado, não acha? Deixaria o local devastado, impressões digitais por todo o lado.
Talvez.
Não teria escrito aquilo no espelho, não tinha nada para lamentar. Por amor de Deus, se calhar, nem é capaz de soletrar a palavra lamento. Ele é que devia ter morrido afirmou Pierce amargamente, bebendo mais uísque, avivando a sua raiva, deitando mais combustível nas chamas. É um ser humano execrável. Não faz sentido que alguém tão bom como o Andy...
As lágrimas subiram-lhe aos olhos como uma maré viva, fazendo-o engasgar-se na sua tentativa de as reprimir, o que não conseguiu. Praguejou e atirou o copo de uísque contra o tampo do bar, onde se estilhaçou, espalhando bebida e fragmentos de vidro por todo o lado.
Meu Deus! gritou, tapando a cabeça com os braços, como que a proteger-se dos golpes com que um poder mais elevado o poderia punir pelos seus pecados. Vacilou para um lado e para o outro, soluçando; sons secos e cavos que lhe dilaceravam a garganta. Oh, meu Deus!
Kovac esperou, deixando-o sentir a sua dor, dando-lhe tempo para que enfrentasse o diabo cara a cara. Passado um pouco, afirmou:
Você amava-o.
Parecia estranho dizer semelhante coisa a um homem. Porém, ao testemunhar a dor de Steve Pierce, achou que gostaria que outro ser humano, homem ou mulher, gostasse tanto dele. Mas também se podia dar o caso de aquilo que tinha diante de si derivar de um sentimento de culpa.
É verdade admitiu Pierce num sussurro torturado. Kovac pousou a mão no ombro de Pierce, que se encolheu e afastou.
Mantinha uma relação com ele.
Ele queria que eu a admitisse, que me assumisse. Mas eu não podia. As pessoas não compreendem. De maneira nenhuma. Mesmo quando dizem que entendem, não é verdade. Já o vi. Sei o que é dito por trás. As piadas, a troça, a falta de respeito. Sei o que acontece. A minha carreira... Tudo aquilo por que trabalhei... Eu... eu... Calou-se, sufocado, como se a argumentação não fosse convincente nem mesmo aos seus próprios ouvidos. Deixou-se afundar num dos sofás de couro, de rosto entre as mãos. Ele não compreendia. Eu não podia...
Kovac pousou o seu copo.
Você estava lá, Steve? Na noite em que o Andy morreu?
Pierce sacudiu a cabeça e ficou assim, inclinando-a para um lado e para o outro, tentando, ao mesmo tempo, recompor-se.
Não - respondeu por fim. Como lhe disse, vi-o na quinta-feira à noite. As amigas da Jocelyn organizaram-lhe uma festa de despedida de solteira. Eu já não o via há um mês. Tínhamos discutido sobre a questão e... Já não estávamos juntos há muito tempo. Nem nos falávamos.
Ele andava com alguém?
Não sei. Talvez. Uma noite vi-o num bar com um indivíduo, mas ignoro se havia alguma coisa entre os dois.
Conhecia-o? Esse tal indivíduo?
Não.
Que aspecto tinha?
Lembrava um actor. Cabelo escuro, sorriso fantástico. Não sei se estavam mesmo juntos.
O que aconteceu quando foi vê-lo na quinta-feira à noite?
Voltámos a discutir. Ele queria que eu contasse a verdade à Joss.
Você enfureceu-se.
Senti-me frustrado.
Há quanto tempo andavam os dois envolvidos? Pierce esboçou um gesto vago com a mão.
Esporadicamente, desde a faculdade. A princípio, pensei que era apenas... para experimentar... curiosidade. Mas continuei a... precisar... e a viver essa outra vida... e não conseguia ver uma maneira de me afastar. Caramba, estou noivo da filha do Douglas Daring. Casamos daqui a um mês. Como poderia...?
Já não era a primeira vez que discutiam sobre isso.
Vezes sem conta. Discutíamos, afastávamo-nos durante algum tempo, reatávamos, ignorávamos a questão, ele começava a ficar deprimido...
Deixou a frase no ar e ficou ali sentado, encurvado como um velho, com a expressão turva de mágoa e arrependimento.
Ele seria capaz de dizer algo à Jocelyn? perguntou Kovac.
Não, não era pessoa para isso. Competia-me a mim, era minha responsabilidade. E eu não concordava de maneira nenhuma.
Ele estava furioso?
Estava magoado corrigiu Pierce, ficando depois calado durante algum tempo. Não quero acreditar que se suicidou, porque não sou capaz de imaginar que possa ter sido eu o responsável por isso.
Os seus olhos encheram-se novamente de lágrimas, que ele comprimiu entre as pestanas.
Mas receio que o tenha feito sussurrou. Não fui suficientemente homem para assumir o que sou, e agora se calhar a pessoa que eu mais amava no mundo está morta por causa disso. Nesse caso, fui eu que o matei. Amava-o e matei-o.
O silêncio ficou a pairar entre eles por um instante, só se ouvia o murmúrio do rádio em fundo, sintonizado numa daquelas estações de pseudo-yazz que parecem transmitir sempre a mesma música, construída à volta do lamento preguiçoso de um trompete. Kovac suspirou e pensou no que devia fazer a seguir. Nada, calculou. Não valia a pena pressionar mais Pierce. Aquele era o seu segredo, o fardo que carregava nos ombros. O seu castigo era suportá-lo o resto da vida.
Tenciona contar à Jocelyn?
Não.
É uma mentira muito grande, Steve.
Não importa.
Para si talvez não, mas não acha que ela merece um pouco mais?
Serei um bom marido, até um bom pai. Fazemos um par espantoso, não acha? É o que a Joss quer: um boneco bem-parecido, em tamanho natural, para vestir, exibir e brincar ao faz-de-conta. É o que tenho feito durante a maior parte da minha vida.
E entra para a Daring-Landis, e daí em diante todos vivem infelizes para sempre.
Nunca ninguém dará sequer por isso.
O estilo americano.
É casado, Kovac?
Duas vezes.
Portanto é um perito.
Na parte da infelicidade. Acabei por concluir que era mais barato e mais fácil ser infeliz sozinho.
Permaneceram calados durante um longo momento.
Devia dizer-lhe, Steve. Para bem dos dois.
Não.
Kovac viu a porta que dava para o vestíbulo abrir-se lentamente e sentiu-se percorrer por um arrepio de temor. Jocelyn Daring estava à entrada, ainda de casaco vestido. Ele não sabia há quanto tempo ela ali se encontrava, mas, a julgar pela expressão do seu rosto, há tempo suficiente. Tinha as faces sulcadas de lágrimas e rímel. Os lábios estavam esvaídos de cor. Pierce olhou para ela e não proferiu palavra. A boca dela abriu-se num esgar de escárnio.
Grande e estúpido filho da mãe!
Cuspiu as palavras como se disparasse balas; a seguir, atravessou a sala a guinchar como uma fada má, de olhos esbugalhados de fúria.
Kovac apanhou-a pela cintura no momento em que ela se lançava sobre Pierce. Jocelyn gritou e estrebuchou, socou-o com os punhos e acertou-lhe na testa, onde lhe abriu o corte que começara a cicatrizar. Deu-lhe um pontapé e escapou-se dos seus braços, agarrando num castiçal de estanho que se encontrava em cima de uma mesa.
Estúpido filho da mãe. gritou de novo, tomando balanço e acertando em Pierce, que não se mexera, num dos lados da cabeça. Eu disse-te para não falares com ele! Eu disse-te! Eu disse-te!
Kovac voltou a agarrar nela por trás e esforçou-se por fazê-la recuar. Ela tinha um corpo ginasticado e forte; além disso, era alta e movia-a uma fúria sobre-humana.
Pierce nada fazia para se defender. O sangue escorria-lhe, vivo, pelo lado da cabeça. Passou-lhe os dedos por cima e espalhou algum pela face.
Eu amava-te! Eu amava-te! gritou Jocelyn, quase incoerentemente. Porque havias de contar? Eu podia ter resolvido tudo.
De repente a fúria esvaiu-se e ela desfaleceu, a soluçar. Kovac conduziu-a até uma cadeira e ajudou-a a sentar-se. Sem forças, deixou-se escorregar para o chão, onde se enrolou como uma bola, batendo no sofá com os punhos.
Eu podia ter resolvido tudo. Eu podia ter...
Kovac inclinou-se e tirou-lhe o castiçal da mão. O sangue que lhe escorria da própria ferida pingou na camisola dela. Caxemira azul-celeste.
Acho que tem razão, sargento observou Pierce, olhando fixamente para a mão ensanguentada. Se calhar é mais fácil ser infeliz sozinho.
O vizinho conseguira descobrir cerca de dois metros quadrados de pátio ainda desocupados, de modo que acrescentara algo mais à montagem: um painel luminoso com a contagem decrescente das horas e minutos para a chegada do Pai Natal.
Kovac ficou a olhar para aquilo durante algum tempo, hipnotizado pelos números que passavam constantemente, e perguntou a si mesmo até onde iria a suspensão se o prendessem por destruição de propriedade privada. Quantos ícones luminosos e espalhafatosos da hipercomercialização da data festiva conseguiria destruir antes de que o agradável balanço da ferramenta utilizada o levasse a passar das marcas, conduzindo-o de um delito menor para algo pior? Poderia confessar-se culpado e, ainda assim, conservar o seu crachá?
Acabou por não se sentir com energia para vandalizar coisa nenhuma e foi, simplesmente, para casa. Estava tão vazia como antes, com excepção do cheiro do lixo que devia ter ido pôr no contentor da esquina nessa manhã.
Lar, doce lar.
Despiu o sobretudo, atirou-o para cima do divã e foi até à casa de banho pequena do vestíbulo lavar-se e verificar os danos. O golpe por cima do seu olho esquerdo estava com mau aspecto, tinha crosta e apresentava-se sujo de sangue seco. Devia ter ido ao hospital tratar daquilo, mas não o fizera. Passou-lhe uma toalha molhada por cima, o que lhe doeu, depois desistiu, lavou as mãos e tomou três Tylenol.
Na cozinha, abriu o frigorifico, tirou uma sanduíche de carne para fora e cheirou-a. Sempre estava melhor do que o lixo...
De sanduíche na mão, encostou-se ao balcão e escutou o silêncio, relembrando a cena em casa de Pierce. Jocelyn Daring, louca de raiva, dor e ciúme, a atirar-se ao noivo.
Eu disse-te para não falares com ele... Porque havias de contar?... Eu amava-te! Eu amava-te!
Porque havias de contar? Palavras estranhas, pensou. Como se a homossexualidade de Pierce fosse um segredo já do seu conhecimento, apesar de ele não lhe ter contado nem fazer tenções de tal.
Recordou a noite em que a conhecera, o modo como ela se comportara em relação a Pierce: possessiva, protectora; o olhar cautelosamente impassível quando ele lhe perguntara se conhecia Andy Fallen.
É o que a Joss quer: um boneco bem-parecido em tamanho natural, para vestir, exibir e brincar ao faz-de-conta...
Ela era surpreendentemente forte. Kovac ainda sentia os músculos dos braços a doer-lhe da força que tivera de fazer para a segurar.
Pensativo, levou a sanduíche à boca para lhe dar uma dentada. O seu pager começou a apitar antes de poder fazer o teste às salmonelas. O ecrã mostrava o número de telefone de Liska. Ligou para a colega e aguardou.
Liska atendeu o telefone.
Casa da Dor. Fazemos entregas ao domicílio.
Pois. Quero mais uma pancada na cabeça, e para sobremesa um pontapé nos dentes.
Lamento. Não há tempo para brincadeiras. Mas vai ser o teu dia de sorte. O Deene Combs lançou os tentáculos cá para fora e acertou em alguém. Um dos filhos da Chamiqua Jones morreu.
O que foi que te aconteceu? perguntou Liska, olhando para Kovac de cenho franzido quando este se apeou.
Foi uma mulher desprezada.
Tu não tens nenhuma mulher para desprezar.
Porque haveria isso de limitar as minhas oportunidades de sofrer? perguntou ele, olhando em volta.
O bairro onde Chamiqua Jones vivia era modesto, as casas uns velhos monstros tortos construídos na primeira metade do século anterior e mais tarde divididas em apartamentos. Mas não uma estrumeira, bem longe disso. As famílias que ali viviam eram pobres mas, na sua maioria, faziam o melhor que podiam umas pelas outras. Os bandos e os passadores de crack eram inimigos bem piores do que os brancos que moravam nos subúrbios circundantes.
Era nisso que Kovac pensava enquanto se ia aproximando do grupo de polícias fardados e de pessoal do laboratório forense que já ali se encontrava.
Um pequeno corpo jazia no meio da rua, junto de um monte de neve. Haviam-no tapado. A neve estava manchada de sangue. Chamiqua Jones estava ali perto, a chorar, a gritar, a balançar-se de um lado para o outro enquanto amigos e vizinhos tentavam confortá-la e ampará-la.
Os miúdos andavam a brincar no monte de neve disse Liska. Segundo um deles, um carro com três ou quatro malandros passou ao pé, um deles meteu a cabeça de fora e chamou por Jones. Quando viu qual das crianças reagia, disparou sobre ela. Um dos tiros apanhou-a na cara, os outros dois no tronco.
Caramba.
Não foi propriamente uma mensagem subtil.
De quem é o caso?
Do Tom Michaels.
Michaels, ao ouvir o seu nome, interrompeu a conversa que estava a ter com um dos colegas uniformizados e acercou-se imediatamente deles. Encorpado e a exalar energia por todos os poros, usava o cabelo todo esticado para trás com montes de gel para disfarçar o facto de parecer ter à volta de dezassete anos. Não resultava. Era um polícia excelente.
Sam, eu sabia que tu e a Liska tinham estado ligados ao caso da agressão ao Nixon explicou. Calculei portanto que gostariam de ser imediatamente informados sobre isto.
Acho que fizeste bem, obrigado agradeceu Kovac. Alguma identificação do atirador?
Michaels fez uma careta.
Resposta: não. Nem haveria. A filha de Chamiqua Jones morrera porque a mãe fora incitada a prestar declarações contra um dos gorilas de Deene Combs. Os líderes cívicos e religiosos da vizinhança fariam uma manifestação irada a pedir justiça e cidadãos corajosos oferecer-se-iam para ripostar, mas ninguém o faria. Não depois daquilo. E quem poderia censurá-los?
Eu bem lhe disse!
O grito fez virar as cabeças. Chamiqua Jones dirigia-se intempestivamente para eles, fixando em Kovac os olhos cheios de lágrimas, dor e raiva. Apontou um dedo para ele.
Eu disse-lhe que ainda me matavam! Olhe o que eles fizeram! Olhe o que eles fizeram! Mataram a minha menina! Mataram a minha Chantal! Que vai fazer agora por mim, Kovac?
Lamento muito, Chamiqua disse Kovac, ciente de como era horrivelmente inadequado o seu pedido de desculpas.
Chamiqua olhou raivosamente para ele e para Liska.
Lamenta? A minha filha está morta! Eu disse-lhes para me deixarem em paz, mas vocês tinham de continuar a insistir. Testemunhe, Chamiqua, disse-me você. Conte o que viu ou enfiamos o seu rabo negro na cadeia, disse. Eu disse-lhe o que iria acontecer! Eu disse-lhe!
Bateu o mais violentamente que pôde com os punhos no peito de Kovac, que a deixou desabafar. Depois recuou, olhando-o iradamente porque não conseguiu resolver nada.
Odeio-o! gritou.
Kovac ficou calado. Chamiqua não queria ouvi-lo dizer como se sentia desgostoso, ou como desejaria que aquilo não tivesse acontecido. Ela não lhe perdoaria nem o absolveria por ter aquele trabalho, por obedecer a ordens. Não ficaria impressionada por saber que ele se fizera polícia porque queria ajudar as pessoas, para tentar contribuir com o seu quinhão para tornar o mundo um lugar melhor e mais seguro. Chamiqua estava-se nas tintas para ele, excepto no ódio.
Mistress Jones, se pudermos fazer alguma coisa...
Já fizeram o suficiente respondeu Chamiqua Jones com amargura. Tem filhos, detective?
Dois rapazes.
Então, peça a Deus que nunca a faça passar pelo mesmo que eu. Isso é que pode fazer.
Virou-lhes as costas e voltou para junto do cadáver da filha. Ninguém tentou detê-la.
Isto é um horror comentou Michaels em voz baixa, vendo Chamiqua Jones puxar o lençol e tocar na cabeça ensanguentada da filha. Se as pessoas pudessem entregar-nos malandros como o Combs, nada disto aconteceria. Mas, como este tipo de coisa ocorre, ninguém tem coragem para isso.
Tentámos convencer o Leonard a deixar a mulher em paz disse Kovac. A tentar apanhar o Combs por meio de outra abordagem. Mas ele achava que, se conseguíssemos deitar a mão ao tipo que agrediu o Nixon, ele poderia entregar o Combs.
Michaels emitiu um som de troça.
Disparate. Nenhum malandro dá com um ferro na cabeça de um tipo e depois denuncia quem o mandou.
Isso já nós sabemos bem.
E a Chamiqua é que paga as favas observou Liska, incapaz de desviar os olhos da mãe em pranto.
Se precisares de alguma coisa de nós em relação ao caso Nixon, é só pedires ofereceu Kovac.
E vice-versa retorquiu Michaels.
Kovac posou a mão no ombro de Liska quando Michaels voltou ao trabalho.
A vida é uma merda e a noite ainda está no começo disse. Anda daí, Tinks. Ofereço-te um café. Podemos chorar no ombro um do outro.
Não, obrigada respondeu Liska com ar ausente, ainda de olhos postos em Chamiqua Jones quando começaram a andar. Preciso de voltar para casa, para junto dos meus filhos.
Kovac levou-a até ao seu carro e ficou a vê-la afastar-se, desejando ter alguém à sua espera em casa.
Liska foi para casa sentindo uma terrível sensação de urgência. Era um pressentimento pavoroso, uma sensação de catástrofe iminente. Não conseguia libertar-se da ideia de que, enquanto apresentava as condolências à mãe de uma criança morta, algo de horrível acontecera aos seus próprios filhos. Conduziu depressa. Ignorando leis de trânsito e limites de velocidade, sentindo quase como se as palavras que Chamiqua Jones lhe dirigira tivessem sido uma maldição. Sabia que era uma estupidez, mas não se importava.
A sua qualidade de detective dos homicídios fazia com que lidasse regularmente com a morte. À semelhança da maioria dos colegas, há muito que aprendera a enfrentá-la com dureza. Era algo indispensável para manter a sanidade mental. No entanto, não havia imunidade possível perante o assassínio de uma criança. Não havia como fugir às emoções: a raiva e a tristeza pela brevidade da jovem vida, as coisas que a criança jamais experimentaria; a pesada sensação de culpa que dizia que a morte poderia ter sido, de alguma maneira, evitada. Os adultos podiam cuidar de si. Muitas vezes as opções de vida de uma vítima adulta colocavam a pessoa na situação que colocava um fim à sua existência. Mas as crianças nunca escolhiam correr riscos. As crianças dependiam dos adultos para que as suas vidas se mantivessem seguras.
Liska sentia esse fardo naquele momento, ao virar para sair da Grand Avenue, e avistando a sua casa. Ainda estava de pé. O que já era um bom começo. Não ardera até aos alicerces na sua ausência. Não importava que a baby-sitter lhe tivesse afirmado que estava tudo bem dez minutos antes, quando lhe ligara do seu telemóvel.
Parou na beira do passeio, saiu do carro e apressou-se em direcção à casa, remexendo nas chaves.
Os rapazes estavam em pijama, estendidos de barriga para baixo em frente da televisão, hipnotizados com o jogo de vídeo com que se entretinham. Liska largou a bolsa, descalçou os sapatos e atravessou a sala a correr, ignorando o cumprimento da baby-sitter. Deixou-se cair de joelhos no meio dos filhos e rodeou cada um deles com um braço, desencadeando protestos veementes.
Ei!
Deste cabo da minha oportunidade!
Estava a ganhar!
Não estavas nada!
Estava, sim!
Liska puxou-os para perto de si e inalou profundamente o cheiro a cabelo lavado e a pipocas feitas no microondas.
Adoro-vos, miúdos. Adoro-vos!
Estás fria! queixou-se RJ.
Kyle lançou-lhe um olhar especulativo.
Adoras-me o suficiente para me deixares passar a noite em casa do Jason? Telefonou a perguntar se eu podia ir.
Esta noite? repetiu Liska, abraçando-o com mais força. Fechou os olhos para reprimir as lágrimas tolas e inesperadas de alívio e alegria. Nem pensar, meu caro. Amanhã, talvez. Esta noite, não. Esta noite, não.
A baby-sitter foi para casa. Liska brincou com os filhos até estes não conseguirem manter os olhos abertos por mais tempo e depois levou-os até ao quarto, ficando ainda à porta a vê-los dormir.
Mais calma, certa de que se encontravam todos de saúde e em segurança, Liska foi verificar as fechaduras da casa e depois preparou um banho de espuma um mimo feminino raro. O calor penetrou-lhe nos músculos, libertando a tensão, a ansiedade, a sensação de toxicidade que ficava sempre depois de trabalhar num local de crime, como se o mal pairasse no ar. Fechou os olhos e descansou a cabeça contra uma toalha enrolada, tendo uma chávena de chá fumegante na beira da banheira, ao alcance da mão. Tentou apagar tudo da cabeça e apenas divagar, apenas existir, por uns minutos. Um perfeito luxo.
Depois de ficar completamente descontraída, abriu os olhos, secou as mãos e pegou na pilha de correio que deixara na beira do lavatório. Nada de contas. Apenas um pequeno monte do que pareciam ser cartões de boas-festas. Mais uma vez, iria deixar os seus para enviar só Deus sabia quando.
Havia um cartão da sua tia Ciei, que vivia em Milwaukee; um outro com a fotografia do primo Phil, fazendeiro produtor de leite, e de sua família, todos com T-shirts a dizer TEM LEITE?; um elegante cartão comprado num supermercado de uma amiga da faculdade com quem não falava há tanto tempo que ela ainda o endereçava a "Mr. e Mrs.", porque adoravam as pessoas entregar-se àquele incómodo? Daria assim tanto trabalho fazer uma limpeza no livro de moradas?
O último envelope vinha endereçado apenas a ela. Mais um rótulo de computador, sem remetente. Estranho. Era, nitidamente, um cartão. O envelope era vermelho. Enfiou o corta-papel sob a ponta dobrada. Um cartão normal, com BOAS FESTAS impresso na frente. Algo caiu de dentro dele quando Liska o abriu, e ela, praguejando, pegou de imediato no quadrado escuro que acabara de tombar sobre a água com espuma.
Era uma polaróide. Não. Eram três fotografias presas umas às outras.
Fotografias dos seus filhos.
O sangue gelou nas veias de Liska. A sua pele ficou toda arrepiada. As mãos começaram a tremer-lhe. Uma fora tirada com os seus filhos na bicha para a camioneta do colégio. A segunda mostrava-os a brincar com um amigo enquanto a camioneta se afastava da paragem ao fundo da rua. A terceira fora tirada quando percorriam o passeio, em direcção a casa. Em todas elas, alguém desenhara um círculo, a marcador preto, em torno da cabeça dos rapazes. Dentro do cartão vinha apenas um número de telefone dactilografado.
Liska pousou o cartão e as fotografias, içou-se para fora da banheira, envolveu o corpo a pingar numa toalha e agarrou no telefone portátil. Tremia tanto que só à terceira é que marcou bem o número. Aguardou. Ao quarto toque ouviu-se um atendedor de chamadas transmitir uma voz gravada que a trespassou como um raio de medo.
"Viva. Fala Ken. Estou fora a fazer algo tão excitante que neste momento não me é possível atender o seu telefonema..."
Pois era. Jazia numa cama de hospital na Unidade de Cuidados Intensivos. Ken Ibsen.
Mais uma para a lista das "Famosas Últimas Palavras Susceptíveis de Se Transformarem em Epitáfio": Na altura parecia uma boa ideia.
Kovac tocou à campainha antes que pudesse mudar de ideias. Percebeu quando ela espreitou pelo ralo da porta. Sentia a sua presença, sabia que o escrutinava, indecisa. Por fim a porta abriu-se e ela apareceu à sua frente.
Sim, tenho telefone disse-lhe ele. São vários e sei como utilizá-los.
Então porque não o faz? perguntou Amanda Savard.
Poderia ter-me dito que não.
Ter-lhe-ia dito que não.
Está a ver?
Não o convidou a entrar. Franziu os olhos ao reparar na testa dele.
Andou à luta?
Kovac tocou no sítio com os dedos, lembrando-se de que não chegara a acabar de limpar o sangue da ferida.
Um acidente que tive, apesar de inocente, na guerra de outra pessoa.
Não compreendo.
Eu também não observou Kovac, recordando a cena em casa de Steve Pierce. Não interessa.
O que o trouxe cá?
O Mike Fallen foi assassinado.
Amanda Savard abriu muito os olhos.
O quê?
Alguém o matou. Neste momento tenho o filho dele, o Neil, metido na prisão a reflectir sobre o poder purificador da confissão.
Santo Deus murmurou Amanda Savard, abrindo a porta um pouco mais. Que tem contra ele?
Na verdade, nada. Interrogámo-lo. Se não fosse o fim-de-semana e se ele tivesse um advogado esperto, neste momento estava no seu bar admitiu Kovac. Por outro lado, ele teve oportunidade, motivo e uma reacção negativa.
Acha que foi ele.
Penso que o Neil é a prova de que o material genético devia ser vigiado. É uma pessoa mesquinha, má e revoltada, amargurada com o facto de ninguém o amar apesar de ser como é. Tal filho, tal pai acrescentou com um trejeito irónico nos lábios.
Pensei que o Mike Fallen era seu amigo.
Respeitei o que o Mike representava no trabalho. Era um polícia da velha guarda.
Kovac olhou para a rua que ficava atrás de si, por onde um carro ia a passar lentamente. Um casal à procura do número de determinada casa. Gente normal a caminho de outra festa de Natal. Provavelmente não tinham chegado àquele bairro depois de saírem do local de um crime.
Se calhar, eu gostava dele porque quero que alguém goste de mim quando estiver velho e assim tão ressentido.
Foi disso que veio aqui à procura? perguntou Amanda Savard. Carinho?
Kovac encolheu os ombros.
Esta noite até me contentava com um pouco de pena.
Tenho muito pouco disso disponível.
Kovac teve a impressão de que ela quase se permitira sorrir. Via-lhe uma brandura nos olhos que não lhe notara antes.
E quanto a uísque?
É algo que também não tenho.
Eu também não. Bebo-o retorquiu-lhe ele.
Precisamente, você é um estereótipo. O herói trágico.
Um viciado no trabalho, divorciado duas vezes, que fuma e bebe. Não sei o que isso tem de heróico. Para mim tresanda a fracasso,
mas talvez eu tenha padrões irrealistas.
O que o trouxe cá, sargento? Não vejo o que as novidades sobre o Mike Fallen tenham a ver comigo.
Aparentemente para me fazer ficar ao frio enquanto dá cabo da minha auto-estima com a sua indiferença impiedosa.
Ao esboço de sorriso veio juntar-se uma expressão quase divertida.
Está a ser pouco subtil, não está?
Considero a subtileza uma perda de tempo. Sobretudo depois de beber. Já apreciei o tal uísque de que estamos a falar.
A beber e a conduzir? Acho que se o convidar a entrar para tomar uma chávena de café estarei a fazer um serviço público.
Estará a fazer-me um serviço a mim. A única coisa que aquece de mais no meu carro é o radiador.
Amanda Savard suspirou e abriu mais a porta.
Kovac aproveitou a oportunidade antes que ela mudasse de ideias. Ganhar a guerra por desgaste. A casa estava aquecida, cheirava a fogo de lenha e a café. A lar. A casa dele era fria e cheirava a lixo.
Acho que se calhar está a ter um fraquinho por mim, tenente.
Hum, hum... na minha cabeça retorquiu Amanda Savard, afastando-se.
Kovac descalçou os sapatos e seguiu-a, atravessando uma pequena sala de jantar formal até chegar à cozinha em estilo rústico. Envergava uma descontraída túnica ampla e esvoaçante, cor de salva. Algo semelhante ao que uma das antigas estrelas de cinema de Hollywood usaria, calculou ele. O cabelo caía-lhe em torno da cabeça em suaves ondas louro-prateadas. Uma imagem extremamente atractiva, não fora a rigidez que se lhe notava nas costas e no pescoço quando se movia, pressupondo dor. Pensou, mais uma vez, na história da queda que ela contara. Obviamente ninguém vivia com ela, não lhe via nenhum namorado por ali, sexta-feira à noite.
Como se sente? perguntou-lhe.
Estou óptima.
Amanda Savard tirou uma caneca de cerâmica de um armário e encheu-a com o conteúdo do recipiente que se mantinha aquecido na máquina. A cozinha estava suavemente iluminada pelas luzinhas amarelas encaixadas sob os armários e no tecto.
Presumo que o Neil Fallen não tenha álibi.
Nenhum que tenha validade em tribunal respondeu Kovac, encostando-se a um dos balcões. As pessoas nunca acreditam que os outros estavam em casa, sozinhos na cama. Suspeitam sempre que no resto do mundo todos, com excepção deles, estão a fazer sexo ou a cometer crimes.
Leite? Açúcar?
Simples, obrigado.
Nenhuma prova física?
Segundo creio, nenhuma que seja detectada em laboratório.
Não deixou impressões digitais na arma?
Não.
Então, o que o levou a considerar que se tratou de um homicídio? Algo que a Medicina Legal descobriu?
O local. A posição da arma. Não devia ter caído no sítio onde estava. Se o Mike carregou no gatilho, não poderia estar.
A tenente entregou-lhe a caneca com café, tomou um gole do seu e reflectiu:
É triste que a vida dele tivesse de terminar assim. O seu próprio filho... imaginem... disse, olhando para o chão. Lamento.
Pois é. Sabe, ele teve a oportunidade de compor as coisas com o Andy, mas não a aproveitou. Depois disso, foi tudo por água abaixo. Provou o café, admirado por não lhe encontrar nenhum sabor exótico. Era café comum. Ao que parece, o Andy queria fazer algo com o Mike relacionado com o homicídio do Thorne. Escrever a história do Mike ou algo do género.
A sério? O Mike contou-lhe?
Não. Um amigo do Andy é que falou no assunto. O Mike recusou-se a fazê-lo. Calculo que chafurdar nas recordações e partilhá-las são duas coisas diferentes. O Andy alguma vez lhe falou no assunto?
Amanda Savard pousou a chávena e cruzou os braços sobre o peito, voltando a encostar-se ao balcão.
Não que me lembre. Porque o faria?
Nenhuma razão. Pensei que talvez lho tivesse mencionado casualmente, já que era amiga do Ace Wyatt. Só isso.
Não somos amigos. É meu conhecido. Temos amigos comuns.
Seja como for. Calculo que ele tenha desistido da ideia disse Kovac. Não encontrei nada no escritório dele relacionado com isso. Nenhum ficheiro, recortes de jornal ou algo do género. A não ser que todo esse material esteja no mesmo sítio onde foi parar a sua cópia do caso Curtis-Ogden. O mesmo lugar onde está o seu computador portátil. Onde quer que seja.
O que acha que ele esperava ganhar ao vasculhar o passado do pai?
Kovac encolheu os ombros.
Um melhor entendimento das coisas, imagino. O que o Mike foi nestes últimos vinte anos começou na noite daquele tiroteio. Ou talvez fosse apenas bisbilhotice, tentando obter a consideração do velho fazendo-se interessado no seu passado. A Amanda poderá dizer melhor do que eu. O Andy era um lambe-botas?
Precisava de agradar retorquiu ela, depois de reflectir. De ser bem-sucedido. Por isso teve tanta dificuldade em aceitar o encerramento do caso Curtis-Ogden. Queria ter sido ele a dizer que não havia mais nada a fazer, não vê-lo terminado pelo facto de o Verma assumir a culpa.
Acho que conheço a sensação admitiu Kovac com um sorriso tímido. Não devo gastar tempo a indagar sobre a morte do Andy Fallen... ou mesmo sobre a sua vida... mas quero saber. Tenho de me dar por satisfeito. Só terminará quando eu quiser. É assim que eu sou.
Isso faz de si um bom polícia.
Faz de mim um grandessíssimo chato. Certa vez, um comandante disse-me que sou pago para investigar crimes, não para os resolver.
O que foi que lhe respondeu? Kovac riu-se.
Na cara? "Sim, senhor." A minha conta bancária não aguentaria uma suspensão. Nas costas? Chamei-lhe algo que não devo dizer em frente de uma senhora.
Amanda Savard pegou de novo na sua chávena de café e bebeu um pouco, olhando para ele com uma expressão vagamente divertida e especulativa. Sexy, pensou ele, para uma mulher com um olho deitado abaixo. Linda, com ou sem equimoses.
A propósito proferiu ela, desviando o olhar, dei uma vista de olhos ao ficheiro. O Ogden atacou verbalmente o Andy várias vezes durante a investigação, mas isso é costume. Fez-lhe algumas ameaças veladas... o que também é vulgar. Depois, o Verma fez o seu acordo e ponto final. Encerrado o caso, não houve adendas ao ficheiro. O Ogden deixou de ter motivo para manter o contacto.
E quanto ao Rubel, o parceiro do Ogden?
Sobre ele, nada. Não creio que fosse esse o nome do seu parceiro na altura do incidente. Acho que era Porter. Larry Porter. Para todos os efeitos acrescentou ela, pessoalmente acredito que o Ogden tinha culpas no cartório. Estou convencida de que colocou o relógio do Curtis no apartamento do Verma. Só não houve maneira de o provar. Tínhamos ido tão longe quanto podíamos com base no que havia.
E depois de o Verma fazer o acordo, seria atacada pelo sindicato pelo facto de perseguir o Ogden. E os chefes a chateá-la por se estar nas tintas para o sindicato acrescentou Kovac. É paga para investigar, não para resolver.
E tenho de viver com a ideia de que o Andy se matou em parte por causa disso murmurou Amanda Savard em voz baixa.
Talvez admitiu Kovac. Ou, se calhar, matou-se porque o amante se recusou a assumir a situação. Ou porque achou que o pai talvez nunca voltasse a amá-lo porque ele se assumira como homossexual. Ou, quem sabe, nem sequer se suicidou... Veja, talvez até nem tenha sido culpa sua prosseguiu ele. Mas, mesmo assim, permite que a ideia a torture continuou. Punir-se-á e pensará numa dúzia de maneiras através das quais poderia ter evitado que acontecesse... se tivesse sido suficientemente rápida ou arguta, ou fosse capaz de adivinhar o futuro em folhas de chá.
Vejo que sou um livro aberto.
Não. Não é redarguiu Kovac calmamente, pensando que Amanda era uma das pessoas mais difíceis de entender que já conhecera. Sempre atenta, cautelosa. O que a tornava ainda mais misteriosa aos seus olhos. Queria saber quem ela era realmente e porque se tornara assim. Desejava passar para além das muralhas. É apenas o que eu faço também, nada mais prosseguiu ele. É o que a minha parceira faria. Tento lembrar-me de que é a prova de que não nos afastámos completamente da raça humana. Embora às vezes pense que ficaria melhor se o fizesse.
O peso da noite acabrunhava-o cada vez mais, as emoções comprimiam-se contra as suas próprias muralhas. Durante algum tempo, conseguira mantê-las ao largo: a imagem da rua cheia de carros-patrulha; o corpo da criança e a neve manchada de sangue.
Foi até uma janela de vidros alta que dava para uma passagem. Uma luz de segurança iluminava o recanto de um pátio. A Lua aclarava o que ficava a seguir, arrancando reflexos à neve que emprestavam ao ambiente uma tonalidade azulada. Paisagem de sonho. A propriedade estava rodeada de árvores que impediam os olhares curiosos da vizinhança.
Esta noite tive uma perda confessou Kovac. A filha da testemunha de uma agressão que eu andava a investigar. Uma menina morta a tiro só para servir de aviso à vizinhança.
Como é que isso pode ter sido culpa sua?
Kovac via-a a aproximar-se cada vez mais. A luz filtrada do exterior incidia-lhe no rosto, qual véu de gaze fina que lhe dava um tom de pérola. Macieza, pensou ele. Pele macia, cabelo macio suavemente ondulado, lábios que pareciam macios como cetim. Ele tentou não ver as muralhas de pontas aguçadas; preferia fazer de conta que não existiam.
Kovac abanou a cabeça.
Não é. De facto, não é. Quando se olha para uma situação como aquela, vê-se uma criança inocente morta a tiro no meio da rua. O atirador se calhar tem catorze anos e deram-lhe o trabalho por ser um novato, e ele aceitou porque um assassínio faz com que se torne parte do bando. Mataram a pobre menina para assustar pessoas que já estão quase a achar que a vida é demasiado difícil para se preocuparem com outra coisa que não seja a sua própria defesa. Fazem-no para assustar a mãe que não queria ver um traficante de droga levar uma tareia e fosse como fosse não testemunharia porque a sua primeira preocupação era ficar viva o tempo suficiente para criar os filhos de maneira a não se tornarem sociopatas.
Olha-se para tudo isto e há muitas culpas a lançar em volta. Mas eu também faço parte dessa fotografia. Em princípio, devo proteger as pessoas, não fazer com que as matem. E esta noite tive de lá estar, olhar a mulher na cara e apresentar-lhe condolências, como se isso servisse de alguma coisa.
Culpabilizar-se também não serve de nada salientou Savard.
Ela encontrava-se mesmo à sua direita. Poderia ter-lhe pegado na mão. Kovac susteve a respiração como se ela fosse alguma criatura selvagem que fugisse ao menor movimento seu.
Fazemos o melhor que podemos disse ela suave e introspectivamente. E ainda nos punimos por isso. Eu tentei tomar as minhas opções com a ideia de que era o melhor que podia fazer. Às vezes, a pessoa sofre durante o processo, mas eu decidi pela razão certa. Isso devia contar para alguma coisa, não acha?
Kovac virou-se, lentamente, para Amanda, em parte ainda receoso de que ela pudesse fugir. A necessidade de segurança era tão pungente nos olhos dela que até lhe doeu vê-la. Um vislumbre do lado de lá da muralha.
Pois devia respondeu ele. Que será que temos cá dentro que não o permite?
Tenho medo de saber confessou ela, com os olhos brilhantes de lágrimas.
Acho que também eu.
Fitou-o por um momento e depois sussurrou:
Você é um bom homem, Sam Kovac. A boca dele esboçou um sorriso.
Importa-se de repetir?
Você...
Kovac tocou-lhe nos lábios com um dedo. Transmitiam exactamente a sensação que imaginara.
Não. O meu nome. Diga-o de novo. Só para eu ouvir como soa.
Moveu a mão de modo a envolver-lhe o rosto. Uma única lágrima, que a luz tornava prateada, deslizou pela face de Amanda. O nome escapou-lhe por entre os lábios, acompanhado de um suspiro trémulo.
Sam...
Kovac inclinou a cabeça e tomou-lhe a palavra na boca ao tocar-lhe nos lábios com os seus. Hesitantemente. Pedindo. Sustendo fortemente a sua própria respiração, mesmo quando o desejo se espalhava nas suas veias como uma torrente cálida.
Amanda ergueu as mãos lentamente e apoiou-as nos antebraços dele, não para o afastar de si, mas para lhe tocar. A sua boca tremeu sob a dele, não de medo, mas de anseio. Aceitando. Desejando. A sua língua tocou na dele.
O beijo prosseguiu. O tempo ficou suspenso. Ele afastou ao de leve a boca da dela e sussurrou o seu nome. Tomou-a docemente nos braços como se fosse feita de vidro. Quando ergueu a cabeça de novo e mergulhou o seu olhar no dela, Amanda proferiu uma única palavra:
Fica.
Kovac permaneceu completamente imóvel, com excepção do seu coração, que pulsava, acelerado.
Tens a certeza?
Amanda inclinou-se para cima e encostou de novo os seus lábios aos dele.
Fica... Sam... Por favor...
Ele não voltou a perguntar. Possivelmente a vida dela era tão vazia como a sua. Talvez as suas almas reconhecessem a mesma dor em cada um. Talvez ela só precisasse de ser abraçada, e ele queria abraçar, acarinhar. Provavelmente não importava porquê.
Amanda conduziu-o ao piso de cima, até um quarto que tinha o seu perfume no ar e nos lençóis. Em cima do toucador viam-se objectos dela: brincos, um relógio, uma bandolete de veludo preto para o cabelo. O candeeiro sobre a mesa-de-cabeceira emitia uma luz cor de âmbar, uma luz que lhe banhou a pele à medida que ele a foi despindo. Nunca vira nada tão delicado, nunca se sentira tão emocionado com a entrega de uma mulher.
Amanda passou-lhe um preservativo que tirou de uma gaveta da mesa-de-cabeceira; ele abriu a embalagem. Não falaram. Tudo foi dito com um toque, um olhar, um murmúrio trémulo, um suspiro vibrante. Ela guiou-o para dentro de si. Ele penetrou-a e pensou que o coração lhe parava. Moveram-se juntos, ao ritmo de uma batida forte.
Desejo. Ardor. Paixão. Imersão. Langor. Urgência. Fundiram-se um no outro. O sabor a sal na pele, a café na língua. A sensação de quente e húmido, rijo e macio. Quando ela atingiu o clímax, fê-lo num crescendo de gemidos entrecortados e sons sem palavras e desesperados de desejo. Para ele, chegou como um relâmpago. O seu corpo estremeceu e arqueou-se, e teve a impressão de que gritou, embora não soubesse ao certo.
Ele nunca deixou de a beijar. Mesmo depois. Mesmo enquanto ela adormecia nos seus braços, passava os lábios sobre os dela, sobre a sua face, o seu cabelo. Sentia, no seu íntimo, medo de que aquela oportunidade não voltasse a repetir-se e queria aproveitar ao máximo aquele momento, aquela noite. A certa altura, a exaustão envolveu-o como um cobertor e fechou os olhos, adormecendo.
Quando Kovac acordou, pensou que tivera um sonho espantoso. Depois, abriu os olhos.
Amanda.
Ela estava deitada ao seu lado, enrolada contra si, a dormir tranquilamente. Ele tapou-lhe o ombro desnudo com o cobertor e ela suspirou. A luz do candeeiro da mesa-de-cabeceira incidia-lhe sobre o rosto, chamando a atenção dele para as equimoses e pisaduras que ela tinha em redor de um dos olhos e na maçã do rosto do mesmo lado. Sentiu um aperto no estômago só de pensar que ele podia ter, devia ter, tocado naqueles sítios ao fazerem amor, provocando-lhe dor. A ideia de a magoar fazia-o sentir-se mal. Se ele alguma vez viesse a saber quem fora o homem que lhe fizera aquilo, descobriria o seu rasto e espancá-lo-ia.
Kovac esfregou o peito com a mão, tendo a impressão de que lhe tinham dado um pontapé. Caramba, dormira com uma tenente.
Apaixonara-se por uma tenente.
Não há dúvida de que sabes escolhê-las, Kovac.
Que iria ela pensar quando abrisse os olhos. Que cometera um erro? Que perdera a cabeça? Ficaria embaraçada ou furiosa? Ele não sabia. O certo era que o que tinham partilhado fora muitíssimo especial e ele jamais se arrependeria.
Deslizou cuidadosamente para fora da cama, enfiou as calças e foi pelo corredor fora à procura de uma casa de banho, pois não queria acordar Amanda com o barulho da água. Encontrou uma casa de banho para visitas, com atoalhados requintados e sabonetes decorativos que provavelmente não se destinavam a uso. Ainda assim, serviu-se do que havia. A imagem de si que viu no espelho mostrou-o duro, desgastado, evidenciando a idade e os efeitos de uma vida com mais desilusões do que alegrias. Que diabo veria uma mulher nele?, interrogou-se.
Tomou banho e voltou pelo corredor, captando o cheiro a café feito que vinha do piso de baixo. Tinham deixado a máquina ligada.
Desceu à cozinha e desligou-a, servindo-se de uma chávena do que restara. Bebericando o café, deambulou pela casa, apagando as luzes à medida que ia passando pelas divisões.
Amanda Savard criara um refúgio muito agradável para si própria. A mobília era confortável e convidativa. As cores suaves e tranquilizantes. O estranho, porém, era não se ver nada de pessoal - fotografias de família, amigos ou de si mesma. Numerosas fotografias emolduradas, a preto e branco, de lugares sem ninguém. Recordou-se de que vira algumas do mesmo género no escritório dela e sentiu curiosidade em saber o significado que teriam para ela. Queria ver algo que falasse da vida de Amanda. Mas talvez fosse apenas o que estava à vista. Deus sabia quão poucos indícios existiam naquela casa sobre ela. Um desconhecido teria descoberto mais pormenores sobre ele no cubículo onde trabalhava.
Ao chegar à sala de estar, pegou num atiçador e remexeu nas brasas incandescentes que esmoreciam na lareira, quebrando-as e separando-as. Fechou as portas de vidro e foi desligar a luz do jarrão cor de gengibre que fazia de candeeiro na mesinha ao lado do sofá. Havia um livro ao lado. Sobre como gerir o stresse.
A seguir à sala de estar, por trás de mais umas janelas de vidro altas, via-se mais uma sala, de luzes acesas e uma aparelhagem estéreo a tocar suavemente. Parecia a mesma estação de jazz ligeiro que Steve Pierce escutava quando fora visitá-lo.
Kovac entrou e desligou-a. Era o escritório de Amanda. Mais um adorável oásis de madeira de cerejeira e fotografias de nada. Ele ainda só vira uma secretária com aquela arrumação na montra de uma loja de materiais de escritório. Uma perfeição daquele tipo revelava uma necessidade de ordem e controlo. Nada de demasiado surpreendente naquele aspecto. Os pequenos compartimentos das prateleiras por cima da secretária exibiam algumas recordações que o fizeram sorrir: uma pequena estatueta de uma mãe-tigre a rolar com a sua cria; uma colecção de pisa-papéis em vidro colorido que eram mais obras de arte do que instrumentos de trabalho; um brinquedo contra o stresse que era uma pequena criatura de borracha cujos olhos se arregalavam quando apertada; um crachá.
Curioso, pegou-lhe e examinou-o. Era dos antigos. Reconheceu-o dos tempos em que entrara para a polícia, já fazia muito tempo.
Sem dúvida, anterior ao tempo de Amanda, o que significava que pertencera a alguém que lhe fora querido.
Cidade de Minneapolis. Crachá número 1428.
Era o primeiro objecto que lhe via em casa vagamente ligado ao seu passado, e tinha de se relacionar com o trabalho. Talvez a sua vida fosse realmente tão vazia como parecia.
Voltou a colocar o crachá no mesmo lugar, desligou as luzes e saiu da sala, com a luz que vinha do piso de cima a orientar os seus passos. Subiu as escadas a pensar em se enfiar de novo debaixo dos lençóis, sentindo o corpo macio e quente contra o seu. Não experimentava aquele tipo de conforto há tanto tempo que já quase nem se lembrava de como era.
Não!
O grito soou quando ele ia a meio das escadas. Kovac subiu o resto dos degraus dois a dois e correu para o quarto.
Não! Não!
Amanda!
A tenente Savard estava sentada no meio da cama, de olhos muito abertos, braços a agitarem-se no ar, a lutar contra algo que somente ela conseguia ver na sua cabeça.
Não! Não! Pára!
Amanda?
Kovac deteve-se ao lado da cama, sem saber o que fazer. Era uma visão estranha. Ela parecia estar acordada; no entanto, não dava mostras de reparar na presença dele, ali de pé. Lenta e cuidadosamente, Kovac tocou-lhe no ombro com uma mão.
Amanda? Querida, acorda.
Ela retraiu-se ao seu toque e afastou-se para a ponta da cama, de olhos esbugalhados. Kovac agarrou-lhe num braço o mais suavemente que pôde e não o largou.
Amanda, sou eu, o Sam. Estás acordada?
Ela pestanejou então, libertando-se do pesadelo em que estivera mergulhada. Inclinou a cabeça para trás e olhou para ele, já o vendo, e a confusão que se lhe espelhou no rosto foi quanto bastou para lhe despedaçar o coração.
Está tudo bem, querida, tiveste um pesadelo. Agora está tudo bem. Está tudo bem.
Puxou-a para si e ela enroscou-se contra ele como uma criança. Todo o corpo lhe tremia. Kovac susteve-a com um braço e puxou o cobertor para cima dela com a outra mão.
Lamento sussurrou ela. Lamento.
Chiu... Não há nada a lamentar. Tiveste um pesadelo. Já passou. Não deixarei que nada de mal te aconteça.
Oh, meu Deus sussurrou Amanda, angustiada e constrangida.
Kovac limitou-se a abraçá-la.
Está tudo bem.
Não - disse ela, afastando-se. De cabeça baixa, sem olhar para ele. Não, não está. Lamento.
Levantou-se da cama, encontrou um robe de seda no meio dos lençóis e vestiu-o, tapando-se como se tivesse vergonha de que ele a visse.
Lamento muito repetiu, continuando a não olhar para ele.
Kovac nada disse, enquanto ela atravessava apressadamente o quarto e desaparecia na casa de banho. A tal sensação veio de novo: a de que não teria uma segunda oportunidade com ela, que tudo se resumiria àquela noite. Ele vira-a no seu aspecto mais vulnerável. Amanda Savard teria imensa dificuldade em lidar com a situação.
Kovac suspirou fundo, levantou-se e procurou a camisa, que vestiu. Sabendo exactamente que não era o passo mais acertado, foi até à porta da casa de banho e bateu.
Amanda? Estás bem?
Sim, estou bem, obrigada.
O tom formal da voz dela fê-lo estremecer, reconhecendo nele uma das suas defesas preferidas, uma maneira de manter as pessoas à distância. Ele optou, de propósito, pelo outro caminho.
Querida, não precisas de ter vergonha. O nosso tipo de trabalho faz com que tenhamos todos pesadelos. Havias de ver alguns dos meus.
A água corria, depois foi fechada. Não se ouviu mais nenhum som. Ele imaginava-a a olhar-se fixamente ao espelho, tal como fizera ainda há pouco. Não iria gostar do que via: as marcas no seu rosto, a palidez da sua pele, a expressão dos seus olhos.
Quando a maçaneta da porta rodou, ele afastou-se. Amanda saiu e deteve-se, com os braços enrolados em volta do corpo e fugindo aos seus olhos.
Não foi nada boa ideia...
Não digas isso discordou Kovac.
Amanda fechou os olhos por um segundo e depois continuou:
Penso que ambos precisávamos de algo esta noite, e foi bom, mas agora...
Foi melhor que bom insistiu ele, entrando no seu espaço e obrigando-a a fitá-lo. Ela não o fez.
Agora quero que te vás embora.
Não vou.
Por favor, não tornes a situação mais embaraçosa do que já é.
Não tem de ser absolutamente nada embaraçosa.
Eu não ando com pessoas ligadas ao meu trabalho.
Ah, não? Com quem andas, então?
Isso não é da tua conta.
Hum... eu acho que é, contrariou ele.
Amanda suspirou e desviou o olhar.
Não quero ter nenhuma relação. Mais vale que o diga já para que possamos acabar com isto e cada um de nós possa seguir o seu caminho.
Eu não quero acabar com isto protestou Kovac, tocando nela, segurando-lhe ternamente nos braços.. Amanda, não faças isso.
Amanda desviou a cara e fixou o olhar no chão.
Por favor, vai-te embora.
Não conseguia ocultar a emoção que lhe fazia tremer a voz. Ele apercebeu-se claramente dos sentimentos que a dominavam: dor, tristeza. Sentiu o mesmo por ela no seu próprio coração.
Por favor... Sam... sussurrou ela. Ele inclinou a cabeça e tocou-lhe na face com os lábios. Acariciou-lhe o cabelo com a mão. Lamento. Amanda fechou os olhos, tentando conter o fluxo de lágrimas. Por favor...
Está bem murmurou ele. Está bem. Afastou-se dela e procurou o resto das suas roupas. Ela não se mexeu. Depois de pronto, voltou a aproximar-se dela e tocou-lhe no rosto com as costas da mão.
Tranca a porta depois de eu sair. Preciso de saber que ficas em segurança.
Amanda anuiu e acompanhou-o à porta.
No vestíbulo da entrada, Kovac calçou os sapatos e vestiu o sobretudo, procurando as luvas num dos bolsos. Ela não o olhou nos olhos uma única vez. Ele tentou esperar que ela se manifestasse, ficando ali à espera ao pé da porta, mas ela não só não o fitou como também não proferiu palavra. Ele teve vontade de a puxar para si e de a beijar. Mas os homens já não podiam afirmar-se dessa maneira e, fosse como fosse, não devia ser a melhor estratégia a desenvolver em relação a Amanda. Ela precisava de carinho e tempo; espaço suficiente para não se sentir ameaçada, embora não tanto que lhe permitisse retrair-se.
Como se tu te achasses capaz de ir com isto para a frente.
Seja qual for a decisão que tomares disse ele, por fim, isto não foi um erro, Amanda.
Ela nada disse e ele saiu, sentindo o frio da noite no rosto.
Aqui está a tua realidade, Kovac, pensou enquanto a porta se fechava e trancava atrás de si. Cá fora no frio. Sozinho.
Não era nada a que não estivesse já habituado, mas, agora que sentira o gosto de como poderia ser, custava ainda mais.
Voltou para a cidade por estradas vazias, para uma casa e uma cama vazias, e passou o resto da noite acordado a pensar no vazio da sua vida.
Liska estacionou à beira do passeio, mal lançando um olhar ao relógio do painel de instrumentos. As manhãs de sábado em sua casa significavam hóquei num clube juvenil. Kyle e RJ. iniciavam o dia no gelo, às seis da manhã. Ela deixara-os sob o olhar vigilante de um amigo que investigava crimes de natureza sexual na esquadra de Saint Paul e também tinha dois rapazes seus no mesmo clube. Nenhum adulto se atreveria a aproximar daquelas crianças estando Milo de olho nelas.
Naquele momento, mal passava das sete e meia, mas o Sol começava a despontar. À maioria das pessoas que morava em Eden Prairie ainda estava provavelmente a dormir depois da ressaca do eggnog bebido nas festas de Natal de sexta-feira à noite. Liska não queria saber disso.
Passara os quarenta e cinco minutos de caminho até ali a acumular a sua raiva como se fosse uma fornalha a ponto de rebentar. Tanto se lhe dava que tivesse de deitar a porta abaixo a pontapé e de o arrastar pelo rabo peludo para fora da cama. Iria falar com Cal Springer e este iria escutar.
Acercou-se intempestivamente da porta da frente da casa demasiado bonita e carregou insistentemente na campainha; a seguir, bateu com os punhos nela. Podia ouvi-la a tocar no interior, sem mais nenhum som. Não se via vivalma por perto. Os carros que haviam passado a noite estacionados por ali tinham os vidros cobertos de espessa geada. As jovens árvores delgadas dos jardins estavam cobertas de neve. A respiração de Liska condensava-se no ar. Estava tão frio que respirar até doía.
A porta abriu-se e Mrs. Cal, vestindo um robe de flanela, apareceu, a olhar para ela com a pequena boca aberta de admiração.
Onde é que ele está? perguntou Liska, entrando sem ser convidada.
Patsy Springer recuou.
O Calvin? O quê? O que quer a esta hora? Eu não...
Liska lançou-lhe um olhar que arrancaria confissões aos criminosos mais empedernidos.
Onde é que ele está?
A voz de Cal chegou do lado da cozinha.
Quem é, Patsy?
Liska passou pela esposa, enfiando uma mão dentro da sua própria bolsa enquanto se dirigia para o seu alvo. Cal estava sentado à mesa de carvalho no recanto do pequeno-almoço, envergando a mesma roupa que tinha na véspera, com um ovo escalfado e uma tigela de Malt-O-Meal à sua frente. Quando a viu, ficou de boca aberta como um peixe.
O que estás a fazer aqui? perguntou. Esta é a minha casa, Liska...
Liska tirou as polaróides da bolsa e pousou-as em cima da mesa, ao lado do prato dele. Springer fez menção de se levantar. Ela agarrou-lhe numa mão-cheia de cabelo e reteve-o no mesmo sítio, perto dela, ignorando o seu gemido de dor.
Estes são os meus filhos, Cal declarou, esforçando-se por não lhe gritar na cara. Estás a vê-los? Estás a olhar para isto?
O que se passa contigo?
Estou furiosa. Estes são os meus rapazes. Sabes quem me mandou estas fotografias, Cal? Tens duas hipóteses.
Não sei o que vieste fazer aqui! exclamou ele, tentando levantar-se de novo.
Liska puxou-lhe os cabelos e prendeu-os com os dedos ainda com mais força. Mrs. Cal estava à entrada da cozinha, de mãos postas no peito.
Ela é doida, Calvin. É doida!
Foram o Ogden e o Rubel que mas mandaram declarou Liska, agarrando numa das fotos com a mão livre. Espetou-a diante da cara de Cal Springer. Não o posso provar, mas sei que foram eles. É com esta gente que andas, Cal. Aqui tens os merdosos que eles são. Não hesitam em ameaçar crianças. E tu a protegê-los. Para mim, isso faz de ti um deles.
Calvin? guinchou a mulher. Queres que chame o Cento e Doze?
Cala a boca, Patsy! gritou-lhe o marido.
Se alguém tocar num fio de cabelo de um destes rapazes continuou Liska, eu mato essa pessoa. Falo a sério, Cal. Dou cabo dela e nunca ninguém encontrará os bocados. Percebeste?
Ele tentou libertar-se da colega. Liska deu-lhe mais um puxão ao cabelo e bateu-lhe na testa com os nós dos dedos.
Aiii!
Seu estúpido filho da puta! gritou-lhe ela. O que se passa contigo? Como é que podes andar metido com gente daquela?
Atirou-o para longe de si abruptamente e ele caiu da cadeira, começando a recuar no chão como um caranguejo.
És desprezível! gritou Liska.
Agarrou na tacinha com o ovo escalfado e atirou-lho. Ele ergueu os braços para se proteger e caiu para trás, batendo com a cabeça num armário. O som assemelhou-se ao de um tiro. Mrs. Springer gritou.
Tu vais ter com o Castleton, verme asqueroso ordenou Liska, e contas-lhe onde não estiveste na terça-feira à noite. Vais aos Assuntos Internos. Não há nada que eles mais adorem do que um pedaço de merda lamuriento e sem valor como tu. Ou denuncias aquelas bestas ou torno a tua carreira tão miserável que nem Job aguentaria. Ninguém. Ninguém ameaça os meus filhos em vão!
Atirou-lhe a tigela de cereais à laia de último ponto de exclamação, depois agarrou nas fotografias e enfiou-as de novo na bolsa. Springer ficou onde estava, com os cereais a escorrerem-lhe pela cara.
Liska respirou fundo duas vezes para se recompor e olhou para Patsy Springer.
Desculpe ter interrompido o seu pequeno-almoço disse, com a voz ainda a tremer de fúria.
Mrs. Springer soltou um gritinho gutural e correu para um canto da cozinha.
Eu saio sozinha disse Liska.
Abandonou a casa ainda a tremer de tal forma que parecia que estava sob o efeito de um ataque.
Quando entrou no Saturn, deixou escapar um suspiro.
Bem disse em voz alta, rodando a chave e ligando o motor. Já me sinto melhor.
Porque havias de contar? Eu podia ter resolvido tudo...
Que diabo quereria Jocelyn Daring dizer com aquilo?
Kovac estava sentado numa pequena poltrona no quarto de Andy Fallen, de olhos postos no vazio. Recordava a entrada de Jocelyn Daring no estúdio de Pierce. A expressão do seu rosto. A fúria nos seus olhos. Se ele não tivesse lá estado para a suster, até que ponto teria magoado Pierce?
Provavelmente devia tê-la prendido pelo que ela fizera. A violência doméstica gozava de tolerância zero na legislação do Minnesota. Mesmo que a vítima não quisesse apresentar queixa, o estado fazia-o. Mas ele não dera esse passo. Qualquer advogado poderia invocar circunstâncias atenuantes. Pobre Jocelyn que, ao ouvir o noivo confessar que era homossexual, perdera a cabeça por um momento e atirara-se a ele. Para quê juntar o insulto à injúria recebida?
Porque ela talvez tivesse resolvido terminar o trabalho.
Saíra de casa voluntariamente, em silêncio, arrastando consigo uma mala a rebentar de roupa para o carro da sua madrinha de casamento. Steve Pierce fora de táxi até ao serviço de urgências mais próximo, onde afirmaria que escorregara no gelo e partira a cabeça.
O amor ao estilo americano.
Amor...
Kovac tentou afastar esse pensamento e concentrar-se antes no local da morte de Andy Fallen. Essa era parte da razão que o levara ali: para pensar noutra coisa que não no facto de estar completamente apanhado por uma senhora com divisas de tenente e um problema qualquer grave dentro da cabeça. Tentava não se pôr a adivinhar qual seria a origem daquele pesadelo recorrente, esforçando-se por não pensar que o que acontecera não fora um incidente isolado e que, por isso, ela lhe pedira que se retirasse... por ter medo de que voltasse a repetir-se e ele quisesse saber porquê. Fora para ali a fim de fugir precisamente a esses pensamentos.
Tão-pouco queria pensar no que sentira ao fazer amor com ela ou na espantosa sensação protectora que o acometera em relação a Amanda quando a tivera nos seus braços depois do pesadelo. Poria a cabeça a trabalhar, algo em que, ainda assim, era realmente muito bom. O trabalho nunca o mandava dar uma volta.
O cheiro a morte continuava a pairar no quarto. Kovac enfiou o nariz numa chávena de Caribou e inalou profundamente.
Acho que se o convidar a entrar para tomar uma chávena de café estarei a fazer um serviço público...
Pestanejou, fazendo com que a imagem de Amanda à porta de sua casa a olhar para ele se desvanecesse. Precisava de reflectir numa outra loura.
Pergunta: Poderia Jocelyn Daring ter morto o amante gay do seu noivo? Sim. Tivera oportunidade? Ele não sabia nem podia perguntar-lhe. O caso encontrava-se oficialmente encerrado; fora-lhe vedado o direito de interrogar mais alguém. Pierce mencionara estar com ela na noite da morte de Andy Fallen? Se ela tivera a oportunidade e a aproveitara, como teria feito? Como apanhara Fallen na cama? Nunca ninguém sugerira que ele desse para os dois lados. Todos tinham falado com demasiada consideração dele para imaginar que pudesse ir para a cama com a noiva do amante. Portanto, havia esse problema.
Pensou nos soporíferos, nos copos de vinho no lava-louça.
Talvez...
Pergunta seguinte: Se ela o tivesse drogado, fazendo com que perdesse os sentidos, tê-lo-ia conseguido pendurar? Teria sido capaz de levantar o peso morto de um homem?
Ficou a olhar para a cama, depois para a viga de onde a corda pendera. Levantou-se do sofá e foi sentar-se na beira da cama, voltando depois a pôr-se de pé para se ir colocar no sítio onde o corpo estivera pendurado. O espelho de corpo inteiro encontrava-se exactamente no mesmo sítio; a palavra "Lamento" aparecia escrita por altura do ventre. O espelho estava sujo com pó detector de impressões digitais, porém não fora confiscado como prova por não ter sido cometido nenhum crime. Kovac olhou para ele e tentou visualizar Jocelyn Daring sentada na cama atrás de si.
Teria sido possível fazer com que a vítima ficasse na posição de sentada na beira da cama, para a seguir lhe colocar a corda em volta do pescoço e depois içá-la com ela, prendendo-a por fim ao poste da cama. Talvez. Quanto teria Andy Fallen pesado? Setenta, oitenta quilos? Um peso acrescido, visto tratar-se de um corpo inconsciente, inerte. Jocelyn era forte, mas...
Embora uma mulher tivesse de fazer um esforço tremendo para levar a cabo o que ele acabara de imaginar, um homem, pelo contrário, não teria grande dificuldade em fazê-lo.
Poderia Neil Fallen ter seguido o mesmo plano básico? Morto o irmão por não lhe emprestar o dinheiro, por não ser um fracassado como ele, por ter inveja ou por querer punir o pai antes de fazer o mesmo com ele?
Kovac voltou a sentar-se no mesmo sofá. Observou a arrumação impecável do quarto; recordava-se perfeitamente de ver a cama feita. Achara muito estranho Andy não se ter sentado nela antes de se matar. E o facto de haver lençóis lavados na máquina.
Quem é que punha a roupa a lavar e depois se matava?
Pensou na casa de Neil Fallen quando a passara a pente fino graças ao mandado de busca. Encontrara nela o tipo de imundície e de desarrumação que dava aos homens solteiros má fama. Pierce definira-o bem: o Neil é do tipo desleixado não acha?... Deixaria o local devastado, impressões digitais por todo o lado...
Neil Fallen nunca mudara um lençol na vida. Em sua casa, não haviam encontrado o menor indício de que soubesse pôr uma máquina de lavar louça a funcionar.
Então, quem? Quem mais disporia de um motivo? O problema de Ogden com os Assuntos Internos fora ultrapassado. A não ser que Fallen tivesse descoberto algo novo. E isso talvez nunca viessem a descobrir, excepto se encontrassem os apontamentos pessoais de Fallen sobre o caso. Mas como poderia um abrutalhado como Ogden engendrar um esquema com todo aquele requinte? Não estava na sua natureza. Para ele era mais natural desancar uma pessoa com um tubo de ferro, isso sim. Como teria Ogden chegado sequer à soleira da porta? Fallen não o teria deixado entrar em casa. Se calhar, de pistola em punho.
Não havia dúvida de que Liska, ao analisar a perspectiva Curtis-Ogden, mexera num vespeiro...
Quanto a Steve Pierce, Kovac achava que este já confessara tudo o que tinha a confessar. Não via Pierce a assassinar o amante a sangue-frio, dando a Fallen uma morte como a que tivera. Se o tivesse amado como parecia, não o poderia ter humilhado àquele ponto. E, segundo Kate Conla, a perspectiva de jogo sexual não se adaptava ao caso.
Kovac suspirou.
Fala comigo, Andy.
A solução da maioria dos homicídios não requer um Sherlock Holmes. A trama verdadeiramente insolúvel constitui a excepção, não a regra. A maioria das pessoas são mortas por alguém conhecido, por uma razão simples.
Os telefonemas feitos aos amigos que constavam na agenda pessoal de Andy tinham dado em nada. Havia muito poucos. Demasiados anos passados numa vida secreta. Pierce fora o único que referira tê-lo visto, pouco tempo antes, na companhia de outro homem. Seria outro amante? A maioria das pessoas era morta por alguém conhecido, por uma razão simples.
Vida privada: família, amigos, amantes, ex-amantes.
Vida profissional: colegas, inimigos adquiridos no trabalho ou por causa do trabalho.
Desconhecia que outros casos Andy tivera no seu currículo. A tenente Savard recusava-se a dar-lhe essa informação, sobretudo porque aquela morte não fora classificada como homicídio. Não parecia preocupada com a possibilidade de que alguém envolvido num dos casos pudesse ser um assassino. Portanto Kovac voltou ao único caso sobre o qual nada sabia: Curtis-Ogden.
Não. Isso não era exactamente verdade. Segundo Pierce, Andy andava às voltas com o caso Thorne. Mas o que poderia vir de um caso encerrado há vinte anos... além do ressentimento do pai?
O que trouxe Kovac de volta ao suicídio. Talvez um tipo como Andy... todo certinho, necessitado de aprovação e de controlo... Era provável que um tipo assim mudasse de lençóis antes de enfiar o pescoço numa corda.
A maioria das pessoas era morta por alguém conhecido, por uma razão simples. Eles próprios. Suicídio. Depressão.
Para a morte não era preciso nada mais complicado do que isso.
Era pena que ele não se contentasse com essa explicação.
Era sábado e a Brigada de Homicídios tinha pouco movimento. Leonard nunca aparecia por ali ao fim-de-semana. Os detectives de turno estavam, na sua maioria, de serviço. Às vezes, as pessoas davam um pulo ao escritório para pôr alguma papelada em dia. Kovac, como não dispunha de vida pessoal, passava a maior parte dos sábados lá.
Pendurou o sobretudo e sentiu curiosidade em saber o que estaria Amanda a fazer com o seu sábado. Estaria a pensar nele, no que acontecera? Recordaria o momento em que ele se preparava para sair, rescrevendo-o mentalmente de modo a pedir-lhe que ficasse?
Deixou-se cair na sua cadeira e olhou para o telefone.
Não. Não, não lhe telefonaria. No entanto agarrou no auscultador, para ouvir as mensagens que lhe tinham deixado. Para o caso de... Não havia nenhuma. Suspirou e consultou o seu ficheiro Rolodex, marcando depois um número.
Registos, fala Turvey.
A voz na outra ponta soava enrouquecida de catarro.
Russell, sua velha toupeira. Porque não arranjas vida própria?
Ora! Para que raio quereria eu isso? Por amor de Deus? Se tivesse de me dar com gente normal... O velho emitiu um som gorgolejante. Que horror! Mais valia pôr-me num macaco.
Claro, estou a visualizar.
Russell Turvey: sessenta e tal anos de idade, cara de Popeye, cigarro a pender-lhe do canto da boca, barriga do tamanho de uma bola de basquete, a pôr-se num macaco.
Turvey riu, tossiu e escarrou. Os seus pulmões pareciam dois sacos de plástico meio cheios de gelatina.
Kovac pegou no maço de Salem que comprara no caminho e atirou-o para o cesto do lixo.
De que é que precisas, Sam? É legal?
Claro.
Ora, merda. Assim não tem graça. A velhice está a tornar-te chato. Ei, aquilo que aconteceu ao "Iron" Mike foi uma pena, ha? Soube que foste tu que o encontraste. São sempre esses durões a darem cabo do próprio canastro.
Pois é, mas se calhar não foi ele. É o que ando a tentar descobrir.
Não brinques comigo! Quem desperdiçaria uma bala com um velhadas bolorento como ele?
Mantenho-te informado prometeu Kovac. Escuta, Russ. No outro dia, encontrei um velho crachá numa loja de quinquilharias. Tenho curiosidade em saber a quem pertenceu. Podes descobrir-me isso?
Claro. Se eu não puder, conheço quem pode. Não tenho mais nada para fazer senão estar aqui a pentear macacos.
Dás cabo de mim com essas imagens, Russell.
Ora. Vem até cá e tira uma fotografia para o teu álbum de recordações. Qual é o número do crachá?
Um quatro dois oito. Parece-me dos anos setenta. É só por curiosidade.
Verei o que descubro.
Obrigado. Fico a dever-te um favor.
Apanha o estupor que deu cabo do Mike. Ficaremos quites.
Farei o que puder.
Eu conheço-te, Sam. Farás muito mais do que isso, e um estupor qualquer das chefias é que ficará com os louros.
É a vida, Russ.
Brrr. Eles que se fodam. Tossiu para o telefone e desligou.
Kovac foi buscar os cigarros ao cesto dos papéis, dobrou o maço ao meio e voltou a atirá-lo para o mesmo sítio.
Ligou o computador e passou a hora seguinte a conhecer Jocelyn Daring. Finalizara o liceu com distinção, onde se tornara uma jogadora de hóquei exímia. Atlética. Forte... Isso já ele sabia. Agressiva... Também o verificara pessoalmente. Fora a quarta no seu curso de Direito na Universidade do Minnesota. Ambiciosa. Trabalhadora. Os registos na Direcção de Viação mostraram-lhe que gostava de carregar no acelerador e não ligava nenhuma aos parquímetros. Isso poderia sugerir um certo desprezo pelas regras... ou assim o diriam John Quinn e os seus estudiosos de perfis psicológicos.
Porém, não descobriu nenhum registo criminal, nenhuma notícia de jornal que a denunciasse a escapulir-se de um restaurante sem pagar a conta ou algo do género. Na verdade, não contara descobrir nada desse tipo. Mesmo que Jocelyn tivesse um historial de comportamento incorrecto, a sua família possuía dinheiro suficiente para o encobrir.
O mesmo já não se passara com o clã dos Fallen, como Kovac podia ver ao dar uma vista de olhos pelos arquivos que Elwood lhe arranjara sobre Neil. As fraquezas da vida de Neil eram algo do domínio público. As condenações por agressões, problemas fiscais, violações às regras sanitárias no bar, desavenças com o Departamento de Recursos Naturais por ultrapassar os limites legais praticamente em relação a todas as criaturas vivas que tinham a sua própria temporada de protecção.
O padrão era querer mais do que aquilo a que tinha direito. Um homem cheio de ressentimentos contra a autoridade. O oposto total do seu irmão - algo de que Neil culpava Andy, sem a menor dúvida, embora tal devesse ter acontecido precisamente ao contrário. Andy vira Neil fazer asneiras e provocar confusão, o que o levara a seguir exactamente na direcção oposta, para agradar ao pai. E assim fora até ao fim, com a excepção imperdoável de ter confessado ao velho a verdade sobre a sua sexualidade.
Pobre rapaz. Chegara mesmo a esforçar-se por compreender Mike Fallen através das experiências por este vividas. O que havia para perceber? Os tipos como Mike Fallen não eram muito complicados. Aí é que Neil levara vantagem em relação a Andy: ele entendera Mike perfeitamente.
Não tenho nada a declarar, Kovac. Só na presença do meu advogado.
Neil Fallen olhou-o com raiva, pondo-se a andar de um lado para o outro em frente da porta da sala de interrogatórios. O fato-macaco cor de laranja da prisão assentava-lhe com naturalidade, exceptuando o facto de dever estar sujo de terra e óleo. Tivera de subir a bainha das calças para não tropeçar nelas.
Isto não tem nada a ver consigo, Neil disse Kovac, sentado na cadeira de plástico com um dos tornozelos em cima do joelho. O cúmulo da descontracção.
Então porque veio cá? Não tenho nada para lhe dizer.
Já mo disse. Vejo, portanto, que não está interessado na oportunidade de se safar daqui para fora.
Como poderei safar-me daqui para fora se não tenho nada a ver com isto?
Boa-fé.
Fallen franziu profundamente a testa.
Boa-fé? Enfie isso no cu.
Para um tipo que se afirma heterossexual, mostra muita vontade em me enfiar algo pelo cu acima observou Kovac.
Vá à merda! ripostou Fallen com secura, arrependendo-se, tardiamente, do que dissera. Resmungou e passeou um pouco mais. Vou processá-lo, Kovac. A si e a essa esquadra de polícia corrupta a que pertence.
Kovac suspirou, com ar de tédio.
Olhe, Neil, você diz-me que é inocente. Que não seria capaz de matar o seu velho.
E não seria.
Então, ajude-me a compreender alguns aspectos. Só lhe peço isso. A compreensão é a chave para o conhecimento. Sabe, o polícia é amigo das pessoas disse, como se estivesse a falar com um catraio de quatro anos. E, se não é, elas lixam-se. Faça com que eu goste de si, Neil.
Fallen encostou-se à parede ao lado da porta e cruzou os braços, reflectindo.
O meu advogado não quer que eu fale consigo sem ele estar presente.
A partir do momento em que o arranjou, nada do que possa dizer sem ele presente pode ser utilizado contra si. Neste momento nada o poderá prejudicar. Só servirá para se ajudar a si mesmo. Eu nunca quis que fôssemos inimigos, Neil. Raios, dividimos uma garrafa de uísque. Você é um tipo trabalhador e decente. Tal como eu.
Fallen aguardou, de lábio inferior espetado.
Trouxe-lhe uns cigarros disse Kovac, estendendo-lhe o maço.
Fallen acercou-se e aceitou-os, fazendo uma careta.
Estão todos dobrados!
Ei, mas mesmo assim ardem.
Raios partam resmungou ele tirando, no entanto, um, que tentou endireitar. Kovac passou-lhe um isqueiro.
Tenho apenas curiosidade em relação a alguns aspectos ligados ao Andy... e olhe que eu não acho que você o tenha morto. Nem mesmo sei se alguém o fez. Todos afirmam que ele andava deprimido. Quero apenas ficar com uma imagem mais nítida.
Fallen cerrou os olhos por trás da nuvem de fumo, pensando: pergunta complicada.
Compreende, sou detective de homicídios prosseguiu Kovac. Quando alguém morre de repente, desconfio de todos os que estão à volta. Não é nada pessoal. Se o meu velho aparecesse morto, tenho muita pena mas desconfiaria da minha mãe. Mas, neste caso, há que encarar a questão de outro ponto de vista. Digamos que o Andy queria aproximar-se de novo do vosso pai. Pretendia, por assim dizer, uma oportunidade para o reconquistar. Portanto, tentou fazer algumas coisas com o Mike, conversar com ele, passar algum tempo junto dele. Se calhar até lhe comprou aquela televisão enorme que tinha na sala de estar...
Quem lhe comprou aquilo foi o Wyatt elucidou Fallen, sem hesitar. Sentou-se e olhou para o cigarro torto.
O quê?
O Ace Wyatt. O anjo-da-guarda do velho observou Fallen sarcasticamente. Foi sempre assim, desde o tiroteio. O Wyatt ajudou-o a pagar as contas do hospital, comprou coisas lá para casa, e também para o Andy e para mim. O Mike dizia sempre que com os polícias era mesmo assim: ajudavam-se uns aos outros. Era uma obrigação, dizia. Mas não passava disso mesmo. O Wyatt nunca quis gastar tempo com o velho ou qualquer de nós. Quando lá ia a casa, até parecia que tinha medo de apanhar pulgas. Grande parvalhão.
Claro, ter-vos comprado assim coisas é bastante esquisito.
Eu sempre achei que ele se sentia culpado pelo facto de o Mike ter apanhado aquela bala. Ainda por cima, o Wyatt morava mesmo no outro lado da rua e foi a ele que o Thorne telefonou a pedir ajuda. Quem deveria estar naquela cadeira de rodas era ele. Mas o Mike chegou primeiro.
Kovac digeriu a teoria, pensando que talvez Fallen estivesse a ver a questão do lado certo. Mike recebera o tiro em vez de Ace Wyatt e nunca mais o deixara esquecê-lo. Lá se ia a lenda nobre por água abaixo, arrastada pela chuva ácida da realidade.
Quando o Mike precisava de alguma coisa, telefonava ao Wyatt continuou Neil, fumando o cigarro em forma de L. E não pense que ele não mo atirava à cara sempre que podia. Quem devia ter tomado conta dele era eu. À treta do filho mais velho. Como se ele alguma vez me tivesse ajudado.
Que idade tinha o Andy na altura do tiroteio?
Sete ou oito, acho. Porquê?
Alguém me disse que ele quis sentar-se e ter uma conversa com o Mike sobre o que acontecera. Para tentar compreender melhor o vosso pai.
Fallen riu-se, tossiu e puxou nova fumaça do cigarro retorcido.
É verdade, o Andy era mesmo assim, todo sensibilidade. Que havia a compreender? O Mike era um velho filho da mãe cheio de amargura, nada mais.
Creio que o Mike nunca quis falar no sucedido. O Andy tocou nesse assunto?
Neil reflectiu por um momento, dando a impressão de que tentava lembrar-se.
Acho que me disse algo sobre a questão numa das últimas vezes em que nos encontrámos. Qualquer coisa relacionada com o facto de o Mike não querer que ele remexesse em feridas antigas. Não prestei grande atenção. De que valia desenterrar tudo aquilo? Observou Kovac por um momento. Porque se importa com isso?
Kovac revolveu mentalmente a informação, misturando-a com o que já sabia, tentando recordar algo que lhe parecera ouvir Mike dizer num dos últimos dias da sua vida.
Estou só a pensar proferiu, apenas para dizer alguma coisa. O Andy tinha alguns problemas de depressão. Se realmente fosse muito importante para ele voltar a dar-se com o velho e este não estivesse pelos ajustes, aí talvez ele se fosse abaixo e optasse por se matar. E se calhar o Mike culpara-se...
Bem, seria a primeira vez. Fallen terminou o cigarro e esmagou a ponta com a sola do sapato. O Mike tinha um lema: nunca arcar com as culpas quando as podia atirar para cima de outra pessoa.
Kovac viu que horas eram no relógio.
Portanto, se você agora está inclinado para a possibilidade de suicídio, quando é que eu saio daqui? perguntou-lhe Neil.
Está fora da minha alçada, Neil respondeu-lhe Kovac, pondo-se de pé. Foi até à porta e carregou no botão para chamar o carcereiro. Não tenho culpa. São esses estupores dos advogados. Se pudesse, ajudava-o. Fique com os cigarros. É o mínimo que posso fazer.
Todas as quintas-feiras, o Minneapolis Star Tribune publicava o horário de filmagens do Crime Time com Ace Wyatt na coluna dos espectáculos. Parte do chamariz do programa residia na interacção de Wyatt com o público. Não era muito melhor do que a porcaria de um programa de vendas, pensara Kovac nas poucas vezes em que o vira. Ou algo do Canal de Culinária. Ace Wyatt: o Mestre Cuca do cumprimento da lei.
O crime do dia estava a ser transmitido a partir de um ringue de hóquei nos arredores do Parque Saint Louis. Um homicídio perpetrado com uma pedra de curling, uma história sobre a falta de desportivismo. Kovac mostrou o crachá ao segurança postado junto da corda que delimitava a passagem para a arquibancada descoberta do recinto e entrou para o meio da "Ace Mania".
Tinham estendido uma carpete vermelha de três metros e meio por três metros e meio sobre uma parte do gelo. A câmara de televisão encontrava-se num dos cantos da mesma, manobrada por um técnico com ar entediado, que fazia lembrar um Gandhi de blazer. Um outro cameraman, esse de patins para o gelo e câmara portátil em punho, estava encostado à armação de uma das balizas. Quatro rãs sortudos tinham sido escolhidos para se sentar na zona de penalização. Por trás, havia mais uma centena deles. Viam-se muitas mulheres de físico avantajado e homens mais velhos corpulentos e vestindo camisolas vermelhas a dizer PRÓ ACTIVO!
Agora precisamos de silêncio, pessoal gritou uma mulher magra e franzina, de óculos de armação preta e um casaco que parecia feito de alcatifa áspera verde-azeitona. Bateu as palmas três vezes e a multidão calou-se obedientemente.
O director, um indivíduo gordo que comia uma tablete de chocolate Slim-Fast, gritou aos dois actores:
Aos vossos lugares! Que desta vez saia certo!
Um dos actores, um homem de cinquenta anos que envergava um camisolão de padrão nórdico e o que parecia uns colãs azuis, deslizou pelo gelo agitando os braços espasmodicamente, como se fossem hélices.
Estou preocupado, Donald queixou-se. Como é que querem que me sinta um jogador de curling quando há uma baliza de hóquei mesmo ali?
Nas filmagens não aparece, Keith. Ninguém verá a rede. Tenta abstrair-te. Se não é o que fazes sempre.
O actor foi ocupar a sua posição. O director abanou a cabeça com ar de enfado. Kovac avistou Wyatt sentado longe do público, a acabar de retocar a sua maquilhagem. Abraçados um ao outro para se protegerem do frio que reinava no recinto, um casal com um ar hollywoodesco colocara-se por trás, sorrindo alegremente enquanto Gaines lhes tirava uma fotografia. Era uma rapariga com ar de anoréctica, que tinha o cabelo ruivo brilhante penteado bem no alto da cabeça, e um indivíduo de vinte e tal anos com um casaco de cabedal preto e óculos rectangulares minúsculos.
Mais uma para o álbum de recordações, disse Gaines.
O flash luziu e a polaróide cuspiu o seu produto.
O público não parece importar-se com o frio observou o indivíduo.
Gaines brindou-os com o seu sorriso cativante.
Eles adoram o comandante Wyatt. Em todas as filmagens temos de recusar a entrada a montes de gente. Deliram por estar aqui. Que importa um pouco de frio?
A rapariga não parava quieta e esfregava as mãos nos braços.
Nunca tive tanto frio na minha vida! Ainda não me senti quente um só minuto desde que saí do avião. Como é que as pessoas conseguem viver neste sítio?
Acha que isto é que é frio? interveio Kovac, soltando um som de desdém. Venha cá em Janeiro. Pensará que morreu e foi parar à Sibéria. É mais frio do que o cu de um coveiro.
A rapariga olhou para ele como se estivesse perante uma criatura bizarra no jardim zoológico. O sorriso de Gaines desvaneceu-se.
Sargento Kovac. É um prazer vê-lo por cá cumprimentou, com secura.
Para mim também retribuiu Kovac, lançando, mais uma vez, um olhar desdenhoso à cena. Não vou ao circo todos os dias. Tenho um trabalho a sério.
Yvette Halston apresentou-se a ruiva. Vice-presidente, desenvolvimento criativo, programas televisivos da Warner Brothers.
O sujeito, por sua vez, estendeu a mão.
Kelsey Vroman, vice-presidente, realidade ao vivo. Realidade ao vivo.
Kovac. Sargento. Homicídios.
Sam! exclamou Wyatt, levantando-se da sua cadeira e mandando a maquilhadora embora. Tirou o babete de papel absorvente que tivera preso por cima das abas sobrepostas do seu fato italiano azul-marinho e atirou-o para o lado. O que te traz cá? Já recebeste o resultado dos testes laboratoriais das provas do Fallen?
Os VIP da Warner Brothers ficaram de orelhas espetadas ao ouvirem conversa de polícia a sério.
Ainda não.
Fiz alguns telefonemas. Vão tratar do assunto ainda hoje.
Óptimo. Obrigado, Ace agradeceu Kovac sem entusiasmo. Na verdade, vim fazer-te umas perguntas sobre outro assunto. Tens um minuto?
Gaines colocou-se ao lado de Wyatt, de prancheta na mão, tentando mostrar-lhe um horário.
Comandante, o Donald quer fazer esta parte antes da uma. O resto do pessoal do curling recebeu indicação para cá estar no máximo até à uma e meia, para a parte da entrevista. Assim sendo teremos de tirar trinta minutos à hora de almoço. O pessoal do sindicato vai ter um ataque.
Nesse caso interrompam para o almoço agora ordenou Wyatt.
Mas eles estão prontos para a filmagem.
Então, também estarão prontos depois de almoço, ou não será?
Sim, mas...
Qual é o problema, Gavin?
Sim, Gavin repetiu Kovac. Qual é o problema? Gaines brindou Kovac com um olhar frio.
Se bem me lembro, o senhor é que chamou a atenção para o facto de o comandante Wyatt já estar retirado da polícia observou. Ele tem outras obrigações que não são as de resolver os seus casos por si, mas é um homem demasiado decente para o mandar embora.
Gavin... admoestou Wyatt. Para mim não há obrigação mais importante do que a investigação de um homicídio.
Os VIP ficaram a babar-se só de ouvir aquilo.
Ace, ronronou a ruiva, está a servir de consultor num caso? Não nos contou! Isso pode ser tão excitante! Que achas, Kelsey?
Podíamos organizar uma rubrica semanal com vários departamentos ligados ao cumprimento da lei. Polícia, Procuradoria-Geral, FBI. Para passar no fim do programa. Cinco minutos mano a mano, detective a detective. O Ace oferece os seus conhecimentos, como num serviço de consultadoria. Eu gosto da ideia. Traz uma sensação de proximidade e de vitalidade. Não acha, Gavin?
Talvez resultasse muito bem concordou Gaines diplomaticamente. Mas neste momento o que me preocupa é o nosso horário.
Trataremos disso, Gavin disse Wyatt, dando o assunto por encerrado e voltando-se de novo para Kovac. Vamos até lá a cima, Sam. Podes comer alguma coisa enquanto falamos. O nosso fornecedor é fabuloso. Foi o Gavin quem o descobriu. Faz as melhores quiches que já provei.
Wyatt foi à frente, subindo os degraus de cimento que levavam a uma sala com uma janela enorme que dava para o ringue. A comida fora artisticamente disposta sobre uma mesa longa coberta por uma toalha vermelha, e a fazer de centro de mesa tinha o dossiê de recortes de jornais de Crime Time. Wyatt não se aproximou do bufete, mas fez sinal a Kovac para que se servisse.
Não gosto de comer enquanto estamos a filmar explicou, abrindo uma garrafa de água. Assim, fico mais seguro de mim.
Tens de estar muito atento a tudo. E não podes pôr o pé em ramo verde, pensou Kovac. Wyatt dava a impressão de já não se descontrair há cinco horas.
Sei que não achas este programa nada de especial, Sam disse, mas olha que servimos um objectivo muito real. Contribuímos para a solução de crimes, ajudamos as pessoas a defender-se e a prevenir o crime.
Fazendo bom dinheiro.
O que não é nenhum crime.
Não. Por mim, tudo bem disse Kovac, folheando desplicentemente a pasta de recortes, e parando nas páginas que mostravam a festa de reforma de Wyatt. Em pose descontraída, como se pudesse haver algo que se assemelhasse a descontracção numa fotografia de Ace, várias polaróides do grande homem em toda a sua glória. Uma fotografia de Wyatt a apertar a mão a Kovac, Kovac com ar de quem acabara de pegar numa enguia. Uma pose com uma repórter do Canal Cinco. Ace Wyatt a falar descontraidamente com Amanda Savard. O olhar de Kovac demorou-se.
Também não gosto de brincadeiras com o trabalho comentou Kovac, tentando recordar-se se a vira lá naquela noite, apesar de andar demasiado ocupado a sentir pena de si próprio. Já me disseram que estou a ficar rabugento depois de velho, mas isso são tretas. Sempre fui assim.
Tu não és velho, Sam salientou Wyatt. És mais novo que eu, e olha onde cheguei. Uma segunda carreira notável. No topo do mundo.
Eu provavelmente ficar-me-ei só por uma carreira até alguém me dar um tiro observou Kovac. O que me lembra a razão que me trouxe aqui.
O Mike adiantou Wyatt, acenando com a cabeça em sinal afirmativo. Descobriste mais alguma pista sobre o filho, o Neil?
Para dizer a verdade, estou aqui mais por causa do Andy.
As sobrancelhas de Wyatt franziram-se.
O Andy? Não compreendo.
Sinto-me curioso em relação ao porquê de toda a questão disse, à laia de explicação. Sei que ele andava às voltas com o homicídio do Thorne, pensando que o Mike talvez gostasse de se entregar a recordações e assim, quem sabe, haver uma aproximação entre os dois.
Ah...
Ele falou contigo. Colocou a questão em tom afirmativo, como se tivesse visto os apontamentos, deixando pouco espaço para qualquer negação do facto, apesar de nada saber sobre o mesmo.
É verdade assentiu Wyatt. Ele abordou-me. Sei que o Mike nem quis ouvir falar no assunto. Recordações penosas.
Para ti também. Wyatt anuiu.
Foi uma noite terrível. Mudou para sempre a vida de todos os envolvidos.
Amarrou-te aos Fallen como se fosses da família.
De certo modo, sim. Não se passa por uma coisa dessas com outro agente sem que fique uma ligação.
Especialmente dadas as circunstâncias.
Que queres dizer?
Contigo a morar no outro lado da rua. Com os Thorne a telefonarem-te a pedir ajuda, embora o Mike lá chegasse primeiro. Não podias deixar de sentir que o Mike de certo modo levou aquele balázio no teu lugar, não foi? O Mike, se calhar, também foi dessa opinião.
São os meandros do destino observou Wyatt com um suspiro dramático. O meu caminho continuaria. O do Mike, não.
Também deve ter havido um pouco de sentimento de culpa. Não te poupaste a esforços para valer ao Mike durante todos estes anos.
Wyatt manteve-se calado durante um momento. Kovac perguntou a si mesmo o que a maquilhagem esconderia. Surpresa? Raiva?
Onde queres chegar com isto, Sam?
Kovac encolheu os ombros ligeiramente e tirou uma pequena cenoura de uma travessa da mesa.
Sei que o Mike se aproveitou de ti durante todos estes anos, Ace afirmou, partindo a cenoura ao meio. Só gostaria de saber... contigo a dar o grande passo em direcção a Hollywood... a fazer muito dinheiro... se ele não tentaria espremer-te ainda um pouco mais.
Kovac viu o rosto de Wyatt empalidecer.
A direcção que estás a tomar não me agrada observou calmamente. Esforcei-me por compensar o Mike e a sua família. E é bem possível que ele se tenha aproveitado dos meus remorsos por não ter sido eu a ficar naquela cadeira de rodas. Mas isso era entre mim e o Mike, e é assim que deve continuar. Ambos merecemos mais do que o que tu estás a pensar.
Não estou a pensar em nada, Ace. Não me pagam para pensar. São apenas conjecturas minhas, nada mais. Sabes como sou, tenho de dissecar muito bem as coisas para ver como funcionam.
O trabalho tornou-te demasiado cínico, Sam. Talvez seja tempo de mudares de linha.
Kovac estreitou ligeiramente os olhos, perscrutando Wyatt, tentando perceber se se tratava de uma ameaça. Wyatt poderia fazer um dos seus famosos telefonemas e estava tudo acabado. Diria adeus à carreira ou passaria uma eternidade enfiado no Departamento dos Registos a ouvir Russell Turvey a expectorar. E para quê? Para revelar a horrível verdade que era Ace Wyatt sentir remorsos por estar vivo e inteiro? Mesmo que Mike lhe tivesse tentado arrancar algum extra, a ideia de Wyatt o matar à conta desse facto parecia ridícula.
A não ser que a razão pela qual apoiara Mike Fallen durante todos aqueles anos tivesse a ver com algum outro tipo de remorso.
Até que ponto conhecias os Thorne?
Nesse momento Gaines bateu à porta e entrou na sala, olhando para Wyatt com ar interrogativo.
Desculpe, comandante. O Kelsey e a Yvette foram comprar umas parcas. Estão todos a almoçar. Virá juntar-se ao público ou isto ainda vai demorar muito? perguntou, acentuando o isto com um olhar a Kovac. Tirou uma pequena escova do bolso e passou-a ao de leve na lapela de Wyatt.
Não. Terminámos.
Kovac enfiou a cenoura na boca e mastigou-a lentamente, ficando a ver Wyatt afastar-se. Seguiu-o a uma certa distância e observou-o a misturar-se com a multidão de gente que tinha tão pouco a fazer na vida que desperdiçava um sábado a assistir àquela merda.
Como eu, pensou com um pequeno sorriso trocista, e foi-se embora.
Os arquivos on-line do Minneapolis Star Tribune datavam de 1990. Kovac passou a tarde numa sala da Biblioteca de Hennepin County a forçar os olhos nas microfichas, lendo e relendo os artigos escritos sobre o homicídio de Thorne e o tiroteio de Mike Fallen. Descreviam a história tal qual ele a recordava.
Kenneth Weagle, o sem-abrigo faz-tudo que trabalhara para a mulher do agente Bill Thorne, perdera-se, segundo parecia, de amores por ela. Naquela noite fora até lá a casa, sabendo que o marido se encontrava de serviço. Estivera naquele bairro tempo suficiente para se aperceber das idas e vindas dos residentes. Atacara Evelyn Thorne no seu quarto, violara-a, espancara-a e depois começara a saquear a casa. Quis o acaso que Bill Thorne precisasse de voltar a casa, onde entrara sem suspeitar de nada. Weagle disparara sobre ele com uma arma que Thorne guardava lá em casa. A certa altura, Mrs. Thorne conseguira telefonar para Ace Wyatt, que morava em frente. Mike Fallen, porém, chegara primeiro do que o vizinho.
Bill Thorne teve um funeral de herói, com toda a pompa e circunstância. O artigo estava acompanhado de fotografias: o longo cortejo de carros da polícia, uma imagem desfocada da viúva, de óculos escuros, a ser consolada por amigos e familiares. Segundo o artigo, Evelyn, a mulher de Thorne, sobrevivera, assim como uma filha de dezassete anos. Na fotografia, a viúva fazia lembrar um pouco Grace Kelly, pensou Kovac. Teria gostado de saber se alguma delas ainda estaria a viver na zona. Talvez algum dos velhos companheiros de Bill Thorne soubesse informá-lo. Evelyn Thorne era, por ocasião do acidente, uma mulher relativamente nova. Naquela altura, devia ter uns cinquenta e oito anos, e a filha, trinta e sete.
Se Andy Fallen andara a informar-se sobre o caso, na esperança de compreender um pouco melhor o que se passara, já devia ter feito todo aquele trabalho. Mas não havia arquivo nenhum. Kovac pensou em pedir a Amanda que o deixasse dar uma vista de olhos ao gabinete de Fallen, consultar o computador onde trabalhava. O homicídio de Thorne era um caso dos Assuntos Internos. Talvez ela não se importasse.
Tu nem sequer sabes se ela volta a falar contigo, Kovac.
Aí é que estava.
Senhor? A voz da bibliotecária sobressaltou-o. Voltou-se para trás e viu-a ao pé de si.
A biblioteca vai fechar informou a funcionária em tom de desculpa. Lamento, mas tem de sair.
Kovac pegou nas fotocópias que tirara dos artigos e saiu de novo para o frio da rua. A tarde dera lugar à noite, embora mal passasse das cinco. Os sem-abrigo que tinham estado todo o dia no ambiente aquecido da biblioteca haviam sido, tal como ele, convidados a sair. Deambulavam pelo passeio, afastando-se instintivamente de Kovac, que lhes cheirava a polícia. Se calhar, a bibliotecária tomara-o por um deles. Não se barbeara, passara a tarde a puxar pelos cabelos e a esfregar os olhos. Ali de pé no meio da rua fria, naquela zona sombria da cidade, sentia-se parte do grupo. Só, desligado.
Tentou ligar para o telemóvel de Liska mas foi reencaminhado para o serviço de mensagens; ainda pensou em utilizar o pager, mas depois desistiu. Dirigiu-se a casa, para, sozinho, mais descontraído e num ambiente mais quente, pensar melhor.
O vizinho acrescentara a toda aquela confusão mais uma figura do Pai Natal, inclinado para a frente, recortado em madeira pintada e exibindo uns noventa centímetros de traseiro. Hilariante. Virara-o precisamente para a janela da sala de estar de Kovac. Que classe.
Kovac ainda pensou em pegar na arma e fazer um buraco mesmo no meio do traseiro do Pai Natal. Estás a ver o humor da coisa, cretino?
A casa ainda cheirava a lixo, embora já o tivesse levado para fora. Era como o cheiro a cadáver em casa de Andy Fallen. Atirou as fotocópias dos artigos sobre o caso Thorne para cima da mesinha da sala e entrou na cozinha. Queimou uns grãos de café no forno para se livrar do cheiro um truque que aprendera nos locais de crime. Teria de passar aquela sugestão às senhoras das rubricas de truques caseiros das revistas femininas. "O que fazer em caso de decomposição de cadáver pútrido".
Foi ao piso de cima, tomou um banho, vestiu umas calças de ganga, meias de lã e uma camisola velha, voltando depois para baixo para ver se comia alguma coisa, embora não sentisse grande apetite. Precisava de calorias para manter a cabeça a funcionar. Se era mesmo o que queria fazer naquela noite.
O único material comestível na casa era uma caixa de Frosted Flakes. Comeu uma mão-cheia, a seco, e serviu-se de um pouco do uísque que comprara a caminho de casa. Macallan. Que se lixasse.
Sintonizou a aparelhagem na tal estação de jazz manhoso e aproximou-se da janela, onde ficou a escutar a música e a bebericar Macallan, de olhos postos no traseiro do Pai Natal.
A minha vida é isto.
Não sabia há quanto tempo ali estava quando tocaram à campainha. O som era tão pouco familiar que foram precisos três toques para reagir.
Amanda Savard encontrava-se à entrada, com o lenço de veludo preto a envolver-lhe a cabeça, ocultando as feridas. Algumas, pelo menos.
Bem disse Kovac, também deves ser detective. Não consto na lista telefónica.
Posso entrar?
Kovac desviou-se para o lado e convidou-a a entrar com um gesto da mão que empunhava o copo de uísque.
Não esperes grande coisa. Recebo imensas sugestões da revista Casa e Jardim, mas falta-me tempo.
Amanda foi até ao meio da sala de estar e retirou o lenço da cabeça; porém, manteve os óculos escuros e as luvas. Também não se sentou.
Vim pedir desculpa disse, olhando para além de Kovac, que ficou sem saber se ela conseguia ver, ou não, o traseiro do Pai Natal dali, mas, se era o caso, não se deu por achada.
Porquê? perguntou ele. Por teres dormido comigo? Ou por me teres posto a andar depois?
Amanda parecia muito pouco à vontade. Juntou as mãos, depois levou uma delas até ao cabelo, perto das equimoses.
Eu... eu não estava... não tencionava... Calou-se, premiu os lábios e fechou os olhos por um instante. Eu não sou... não tenho facilidade em... partilhar a minha vida... com outras pessoas. E lamento se...
Kovac pousou o copo na mesinha e aproximou-se dela. Tocou-lhe na face, acariciando-lhe a zona perto da contusão com o polegar. Sentiu-lhe a pele fria, como se ela tivesse estado lá fora muito tempo, antes de arranjar coragem para se aproximar da sua porta.
Não precisas de pedir desculpa de nada, Amanda disse-lhe ele suavemente. Não tenhas pena por mim, nem de mim.
Ela fitou-o nos olhos. O lábio inferior tremia-lhe ligeiramente.
Não tenho jeito nenhum para isto confessou ela.
Não fales.
Kovac inclinou a cabeça e tocou na boca dela com a sua. Não com paixão, mas sim algo mais suave. Os lábios dela ficaram mais quentes e descontraíram-se, abrindo-se aos dele.
Não posso ficar sussurrou Amanda, com a voz tensa devido à luta que porventura travava intimamente.
Chiu...
Kovac beijou-a de novo. O lenço caiu no chão. Ele fez deslizar os seus lábios pelo pescoço abaixo e despiu-lhe o casaco.
Sam...
Amanda... Os lábios dele roçaram-lhe o côncavo da orelha. Quero-te.
O corpo de Amanda foi percorrido por um estremecimento. Ele sentiu-o sob as suas mãos, ao fazê-las deslizar pelas suas costas. Ela virou a cabeça e a sua boca encontrou a dele. Foi um beijo trémulo. Hesitante, mas ávido. Ansioso, mas a medo. Ela abriu os olhos e fitou-o por entre lágrimas.
Não sei o que podemos ter disse. Não sei o que posso dar-te.
Não importa respondeu ele, com a verdade do momento. Podemos ter isto. Podemos ter o agora.
Kovac sentia o coração dela a bater contra o seu peito, marcando a passagem do tempo. Adivinhava nela a tristeza, o vazio, a solidão, o conflito. Reconheceu esse estado de alma nela, reagiu e perdeu-se nele enquanto se deixavam deslizar para cima do sofá.
Podiam ter aquilo. Podiam ter aquele momento. Mesmo que não pudessem ter mais, ele nada possuía, comparativamente, que valesse alguma coisa.
Não posso ficar disse Amanda suavemente. Encontrava-se nos braços de Kovac, ambos deitados no sofá que haviam coberto com o casaco dela. Ela gostava de sentir o corpo dele contra o seu, as suas pernas entrelaçadas nas dele; a sensação de estar enroscada nele, a ilusão de serem inseparáveis. Mas não passava de uma ilusão que ela não podia alimentar. O conhecimento desse facto deixava-a vazia. Oca, isolada.
Kovac tocou-lhe na nuca e premiu-lhe os lábios contra a testa.
Não tens de o fazer, mas podes... se quiseres. Até devo ter lençóis lavados.
Não reagiu ela, forçando-se a mexer, a sentar-se. Juntou as roupas e tapou-se. Não posso.
Kovac apoiou-se sobre um dos cotovelos e passou-lhe meigamente os dedos pelos cabelos que lhe emaranhara.
Amanda, não me importo com a origem dos pesadelos. Percebes o que quero dizer? Não interessa. Não me assusta que os tenhas.
Interessa-me a mim, assusta-me a mim, apeteceu-lhe a ela dizer, mas calou-se.
Se tiveres necessidade, podes partilhá-los comigo afirmou ele. Acredita que já vi e ouvi de tudo.
Claro que aquilo não era verdade, porém ela também não lho salientou. Aprendera há muito a saber quando argumentar e quando ficar calada.
Kovac, atrás dela, suspirou.
A casa de banho fica ao fundo do corredor, à direita.
Kovac viu-a sair da sala, meio vestida. Se aquilo era tudo o que ela lhe iria dar, sempre era melhor do que alguma vez esperara. Ela que mantivesse os seus segredos. Ele estava farto de relações profundas; portanto, para quê tentar outra vez? Sabia, no entanto, que não era bem assim. Amanda era um mistério, um quebra-cabeças. Ele só descansaria depois de chegar ao coração dela. Reservada como era, ressentir-se-ia com a intrusão, e ele acabaria por destruir o que existia entre ambos.
Vestiu-se, passou a mão pelo cabelo e sentou-se no braço do sofá a beber o seu uísque enquanto esperava por ela. Ela voltou para a sala com o mesmo aspecto com que chegara. Linda, reservada, disfarçada.
Não sei que te dizer confessou Amanda, voltada para o aquário vazio.
Então, não me digas nada. Vocês, os chefes, são sempre assim retorquiu ele, fazendo uma careta. Não tem forçosamente de haver um plano.
Amanda mostrou-se preocupada ao ouvir a observação. Kovac aproximou-se dela e tocou-lhe na face com as costas da mão.
Às vezes, precisamos apenas de seguir um rasto e ver aonde vai dar observou Sam Kovac, filósofo. Escutem-me só. Como se eu soubesse do que estou a falar. Eu próprio sou um duplo perdedor. Cada rasto que sigo termina num túnel por onde vem um comboio na minha direcção. Tenho de me limitar a ser apenas polícia. Nisso é que sou bom.
Amanda conseguiu esboçar um sorriso. Mas ficou de novo séria ao reparar no que estava em cima da mesinha da sala. Franziu a testa.
O que é isto?
O caso Thorne. O tiroteio do Mike Fallen. O Andy andava a dar-lhe uma vista de olhos. Tento apenas ver se descubro alguma coisa.
É seguir o rasto e ver aonde vai dar disse Amanda com ar ausente. Espalhou as páginas ao acaso, limitando-se a olhar para elas.
História triste. Tu eras demasiado nova para te lembrares.
Triste murmurou Amanda, olhando para a fotografia pouco nítida da viúva a ser consolada pela família.
A vida é um poço de surpresas observou Kovac.
Sim, sem dúvida.
Endireitou-se e ajustou o lenço de veludo, respirou fundo e olhou de novo para além do ombro dele.
Diz apenas "Até um dia destes, Sam" pediu-lhe ele. É muito melhor do que adeus.
Amanda tentou sorrir mas não conseguiu; depois, ergueu-se na ponta dos pés e beijou-o na face, apertando-lhe os ombros com as mãos.
Lamento sussurrou-lhe.
Depois partiu e a única coisa que lhe restou para se aquecer foi a garrafa de uísque de cinquenta dólares.
Não lamentas tanto como eu murmurou, ficando à porta a vê-la afastar-se de carro.
Na casa ao lado, um aparelhómetro contava os minutos que faltavam para o Natal.
O telefone tocou e ele apressou-se pressurosamente a atender. Não importava quem fosse.
Fala do Clube dos Corações Solitários disse. As inscrições estão abertas. A tristeza adora companhia.
Aceitam masoquistas? perguntou Liska.
Se trouxer um sádico, entram dois pelo preço de um.
Que andas a fazer, Kovak, Metido em casa com pena de ti mesmo?
Não tenho mais ninguém de quem sentir pena. A minha vida é uma concha vazia.
Arranja um cão disse-lhe a colega secamente. Adivinha quem foi o parceiro do Eric Curtis até cerca de um ano antes de ele ser assassinado.
Kovac tomou um gole de Macallan.
Se me disseres que foi o Bruce Ogden, saio deste filme, Jodie.
O Derek Rubel elucidou Liska. E adivinha quem esteve ontem no Centro Médico de Hennepin County a fazer uma análise ao sangue e depois mentiu sobre isso?
O Derek Rubel.
Mereces um charuto.
Diabos me levem murmurou Kovac.
A ti não te levarão disse Liska. Mas aposto que o Derek Rubel não escapa.
O Steele's era o tipo de ginásio onde era obrigatório suar e gemer. Não havia classes de aeróbica ou de ioga. Era tudo ferro e aço, corpos firmes e traseiros super-rijos, com música heavy metal a explodir da aparelhagem estéreo. O ambiente fazia lembrar o de uma oficina de mecânica e o odor a gente com excesso de testosterona ia ao ponto de fazer arder os olhos de uma pessoa normal.
Liska mostrou o crachá à rapariga de ar enfadado que se encontrava na recepção e entrou no salão principal de pesos e halteres. Deteve-se a um canto por momentos, observando a pequena multidão, secretamente estupefacta com os físicos masculinos que ali estavam. Era espantoso ver aquilo em que um humano vulgar podia transformar-se através de um comportamento obsessivo bem aplicado e, nalguns casos, dos milagres da química moderna. Quase todos os indivíduos que se encontravam naquele ginásio tinham a constituição do Incrível Hulk.
Rubel estava a um canto, a ajudar alguém numa plataforma. Envergava uma T-shirt preta com as mangas cortadas curtas, de modo a poderem acomodar antebraços da grossura de presuntos. Tinha os músculos tão bem definidos que poderia servir de modelo vivo numa aula de anatomia humana.
Liska abriu caminho por entre o emaranhado de gente que levantava pesos, dando conta do instante em que Rubel a avistou, apesar de não olhar directamente para ela. Sentiu a mudança de energia no ar. Aproximou-se da bancada onde Bruce Ogden estava deitado e olhou para o rosto feio do agente que, muito vermelho, estrebuchava e suava abundantemente sob um haltere carregado de discos de ferro do tamanho de rodas de camião. Lançou um olhar a Rubel.
Ele faz este barulho todo na cama?
Não faço ideia.
Cá por mim perguntava à namorada, mas, tanto quanto sei, nunca teve nenhuma. Inclinou-se de novo sobre Ogden e fez uma careta pesarosa. As putas não contam. Lamento.
Ogden soltou um berro e empurrou o haltere para cima.
Que quer, sargento? perguntou Rubel. Estamos no meio de um trabalho.
Eu diria que estão concordou Liska, terrivelmente séria, mostrando parte do ódio que sentia por aqueles dois homens. Estão metidos em trabalhos até ao pescoço. E reparem que vim cá pessoalmente dizer-vos isso na cara. Não fiz nenhum telefonema anónimo de um telefone público. Nem mandei fotografias pelo correio. Tenho tomates maiores do que os vossos juntos.
Ogden prendeu o haltere no suporte e sentou-se, resfolegando, com o suor a escorrer-lhe da cara como se fosse água da chuva.
Ai é? Já tínhamos ouvido dizer isso de si.
Liska ergueu os olhos.
Lá vêm vocês outra vez com problemas com os homossexuais. És o máximo, Ogden. Se deixasses de fazer tanta força para pareceres um grande heterossexual todo machão e exercitasses o cérebro, talvez não estivesses metido nesta merda. Mas agora a esperteza já não te vale de nada. Quando vocês resolveram envolver os meus filhos, passaram das marcas. Já não há como recuar. No entanto, como é contra a lei arrancar-vos o coração do peito e pô-lo diante dos vossos olhos enquanto morrem, vou meter-vos na cadeia.
Não sei do que fala disse Rubel, sem a menor emoção.
Liska fitou-o nos olhos e fê-lo esperar.
O Cal Springer está nas minhas mãos. É meu. Dei-lhe a volta. E agora é que a brincadeira começa declarou com um deleite malicioso. O primeiro a chegar ao procurador consegue o acordo. Amanhã ao meio-dia, o Cal e eu temos uma reunião no gabinete do Sabin. Ogden esboçou um sorriso desdenhoso.
Conversa não te falta, Liska. Não tens nada a apontar que valha a pena.
Não podes ter a ponta de um corno acrescentou Rubel, ainda friamente. Não há caso.
Liska sorriu para ele.
Continua a pensar assim, querido. E que tal gastares algum tempo a reflectir no que acontece na prisão a tipos bonitos como tu? Ouvi dizer que é complicado. Mas, enfim, talvez até gostes. - Estendeu a mão e deu-lhe uma pancadinha no peito. É pena que o Eric não esteja vivo para nos contar.
Bangue! Em cheio entre os olhos. Rubel não vacilou, não mudou de expressão, mas sentiu o golpe com a mesma força de impacte de uma bala. Liska apercebeu-se da onda de choque que ressaltou dele, facto de que ele teve noção. Ela saboreou o momento. Talvez um milhar de momentos como aquele compensassem o que sentira quando vira as fotografias de Kyle e RJ.
Ou talvez não.
Virou-se para se ir embora e estacou. Foi apenas um instante. Rubel e Ogden provavelmente nem deram por isso. Duvidava que tivesse hesitado mais do que uma fracção de segundo. Porém, nessa fracção de segundo foi estabelecido um contacto visual. Uns três metros mais à frente, a fazer um intervalo nos exercícios de uma máquina Smith, encontrava-se Speed.
Tens a certeza de que a activação pela voz funciona? perguntou Springer em tom queixoso. E se o mecanismo não liga?
Barry Castleton estava ajoelhado no chão, em frente dele, a prender-lhe o microgravador à barriga flácida. Castleton, na sua qualidade de responsável pelo caso Ibsen, tivera de ser alertado quando Springer cedera. Liska queria tomar conta do assunto pessoalmente, mais por razões pessoais do que pelo que aquilo lhe traria de bom, mas não poderia pô-lo de parte e ficar bem consigo mesma. Castleton, na casa dos quarenta, afro-americano, com tendência para se vestir como um professor inglês, era bom polícia e boa pessoa. Se ela tinha de partilhar aquilo, não se importava de o fazer com ele.
Não estejas preocupado proferiu Castleton, tentando tranquilizar Springer. É à prova de tolos.
Kovac troçou.
Nada resiste a um tolo talentoso. Encontravam-se todos na cozinha de Springer: este, Castleton, Tippen, do departamento do xerife local (para cobrirem qualquer confusão relativa às jurisdições), Liska e Kovac. Mrs. Springer fora passar uns dias a casa de uma irmã. Liska não sabia se ela voltaria depois de tudo aquilo passar. Provavelmente. Mas também faltava ver se Cal escaparia a uma detenção e ficaria ali para a receber.
O primeiro passo em falso dado por Springer naquela história fora fazer de conta que não vira Ogden colocar provas falsas em casa de Renaldo Verma. Ao fazê-lo, ficara nas mãos do agente. Uma coisa era um polícia uniformizado meter o pé na argola, outra era o detective responsável numa investigação de homicídio fazê-lo, pois era um alvo muito maior e ficaria a perder muito mais. Cal Springer, já com a mania das grandezas a dominá-lo, não podia dar-se ao luxo de perder.
Não estou a sentir-me bem queixou-se Springer.
Realmente já me cheirou, Cal resmungou Castleton, pondo-se de pé.
Liska interrompeu o seu vaivém, aproximou-se de Springer e deu-lhe um pequeno pontapé.
Ai! refilou ele, inclinando-se para massajar a perna.
Uma pessoa pode morrer por tua causa e tu queixas-te de que não te sentes bem! exclamou Liska, indignada. Os meus filhos foram ameaçados porque não foste suficientemente homem para dizer que não a Bruce Ogden.
Ele podia ter-me feito perder o emprego defendeu-se Springer.
E agora quem vai para a prisão és tu. Grande escolha, Cal.
Tu não compreendes.
Liska fitou-o com incredulidade.
Não, realmente não. Nunca compreenderei. Deixaste o Ogden colocar provas falsas para poderes encerrar um caso e conquistares mais uma vitória para a tua lista.
Que diferença fazia ao Verma? argumentou Springer. O tipo é um assassino. Sabíamos que tinha sido ele! E... e... a vítima era um dos nossos. Não podíamos deixá-lo safar-se dessa!
Como te atreves a fingir preocupação com a justiça? indignou-se Liska, falando-lhe com toda a secura. Não foi por motivação, foi por racionalização. O motivo que te fez olhar para o lado em relação ao Verma foi do teu próprio interesse.
Oh, não me digas que nunca fizeste nada para progredires na carreira troçou Springer.
Nunca viciei uma investigação. Alguma vez te ocorreu a possibilidade de que o Verma não tenha morto o Curtis, um polícia gay seropositivo, que mudou de colega de turno três vezes em cinco anos e já tinha apresentado queixas formais de perseguição?
Quando prendi o Verma pelo assassínio do Franz? Não.
Ora, deixa-te disso, Springer insurgiu-se Castleton. Quem prendeu o Verma por matar o Franz foi o Bobby Kerwin. Tu nem sequer estavas em cena.
Springer cerrou os maxilares.
Foi uma maneira de falar. O Verma foi considerado culpado por um homicídio idêntico e por mais quantos assaltos? Porque não haveria de o prender?
O facto de não teres nenhuma prova física poderia ter pesado no caso sugeriu Tippen.
Springer fez-lhe uma cara de poucos amigos.
Caramba, porque hei-de desconfiar de outro polícia? Falámos com todos os ex-parceiros do Curtis. Não soubemos de nada de especial.
Nesse caso é porque não lhes destes ouvidos declarou Liska. Engle, o último companheiro do Curtis, contou-me... e não me conhece de lado nenhum... que achava que havia algo entre o Curtis e o Rubel. Não to disse quando andaste a investigar o homicídio do Curtis?
Não se alongou retorquiu Springer. Quero dizer, olha para o Rubel. De maricas não tem nada. E... e porque haveria ele de matar o Curtis? Já tinham deixado de ser parceiros há imenso tempo.
Por causa da sida, grande nabo. Se o Curtis infectou o Rubel com uma doença incurável, eu chamaria a isso motivo, não achas?
Springer respirou fundo.
E não estranhaste o facto de, alguns meses depois de o Curtis ser assassinado, o Derek Rubel, que fora um dos seus parceiros, se tornar repentinamente parceiro do tipo que viciara as provas do caso? perguntou Liska.
Springer parecia à beira de um ataque de nervos; porém, receava demasiado Liska para se manifestar. Estava muito vermelho. Tremia.
As pessoas estão sempre a mudar de parceiro. Além disso, nessa altura já o caso estava encerrado.
Ah, pois, o caso estava encerrado. Portanto, que mal havia em atribuí-lo a alguém inocente? A pessoa cometera um outro acto igualmente mau. E, no que te dizia respeito, tu já estavas sob o jugo do Ogden. Ele podia muito bem ter-te denunciado aos Assuntos Internos lembrou Liska. Claro, ter-lhe-ia saído caro. Mas para ti teria sido ainda pior. Portanto, quando o Rubel e o Ogden precisaram de um álibi para quinta-feira à noite, este só precisou de pegar no telefone e ligar para ti.
O Ogden teria dado cabo da minha carreira.
Os maus polícias é que dão cabo das suas carreiras comentou Liska calmamente, lembrando-se de que fora o que Amanda Savard lhe dissera quando fora aos Assuntos Internos por altura da descoberta do cadáver de Andy Fallen. Parecia já ter decorrido um ano. O que eles fizeram ao Ken Ibsen não te incomoda? perguntou ainda.
Springer desviou a cara para o lado, envergonhado. Ele não se incomodara o suficiente para interferir, e por isso alguém quase pagara com a vida.
Gostaria de arrastar esse teu cu de merda até ao hospital e obrigar-te a estar ao lado da cama do Ken Ibsen quando os médicos vão examiná-lo acrescentou Liska. Adorava tirar-lhe a memória do que eles lhe fizeram naquele beco e implantá-la para sempre no teu cérebro, para que revivesses aquele ataque todos os dias do resto da tua vida miserável.
Já disse que lamento! gritou Springer.
Pois sim.
Kovac interpôs-se entre os dois e puxou Liska pelo braço.
Anda, Tinks. Eles não tardam aí. Escondamo-nos para a festa surpresa.
Levou-a para a despensa de Springer, um pequeno compartimento interior com prateleiras onde se viam enlatados e louça suplementar. Liska encostou-se a um dos grupos de prateleiras, Kovac ao outro.
Já os apanhaste, Tinks disse Kovac calmamente.
Já morderam o isco, mas não o anzol. Quero-os debaixo do meu cacete e dentro das minhas algemas.
Então, não devias maltratar tanto a única pessoa que tos pode entregar.
Ele merece pior.
Ele merece exactamente o que lhe disseste: reviver o ataque ao Ken Ibsen durante o resto da vida. Mas teremos de nos contentar com a sua carreira arruinada e o seu traseiro ranhoso enfiado na cadeia.
Eles ameaçaram os meus meninos, Sam lembrou Liska, estremecendo de novo com a recordação. Sabes, não tenho feito outra coisa a semana inteira senão pensar em que indivíduo, por mais homofóbico que fosse, espancaria um homem até à morte, ao ponto de ficar exposto a tanto sangue? Não conseguia perceber. Todos os tipos que conheço assim têm pavor da sida. Pensam que podem apanhá-la nos tampos das sanitas, num aperto de mão, só de respirarem o mesmo ar. Tinha de ser alguém completamente ignorante em relação ao risco, ou então que já estivesse infectado. Foi então que vi o Rubel no hospital...
O Rubel não odiava o Curtis por ser gay disse Kovac. Matou-o porque foi infectado por ele. Vingança.
E o Ogden viciou as provas em relação ao Verma para proteger o Rubel, pois são amantes.
São uns malandros, Tinks. E tu apanhaste-os. Tocou afectuosamente no ombro da colega. Estou orgulhoso de ti, pequena.
Obrigada. Liska desviou os olhos e mordeu o lábio. Achas que o Springer consegue levá-los a colaborar em relação ao Andy Fallen?
Talvez. Se é que foram eles.
Tippen enfiou a cabeça na despensa.
Os convidados chegaram. Todos aos seus lugares.
Liska tirou a arma do coldre e examinou-a. Kovac fez o mesmo. Os dados estavam lançados. Eles permaneceriam onde se encontravam, enquanto Cal Springer tentaria fazer com que Ogden e Rubel se incriminassem, ficando tudo registado em gravação. Assim que ouvissem o suficiente, fechariam a ratoeira a Rubel e Ogden, na cozinha, e viria gente do departamento do xerife local, para apoiar a detenção.
Tocaram à campainha. Ouviu-se o som de vozes, embora Liska não conseguisse distinguir as palavras. Imaginou Springer a cumprimentar os seus amigos, a convidá-los a entrar, assegurando-lhes que estava do seu lado. Mas o tom das vozes mudou abruptamente e ouviram Cal Springer gritar: Não! A palavra foi imediatamente cortada por um tiro.
Merda! berrou Kovac, saltando para fora da despensa.
Liska veio logo atrás dele.
Mãos ao alto, polícia! gritou Castleton. Mais três tiros.
Kovac lançou-se em direcção à sala de estar, baixando-se.
Liska saiu pela porta de serviço que dava para a garagem, enfiando depois pela que ia dar à rua.
Rubel e Ogden corriam para a carrinha do primeiro, uma dúzia de metros à frente de Liska, de armas em punho.
Rubel! gritou Liska, disparando e refugiando-se, logo de seguida, atrás da porta.
Obteve dois disparos rápidos como resposta, um deles espatifando o caixilho superior da porta. Ouviram-se três tiros vindos não se sabia de onde, e um homem gritou.
O motor da carrinha começou a trabalhar ruidosamente e a viatura voltou para trás, saindo do passeio em frente da casa de Springer. Liska afastou ligeiramente a porta, viu Rubel enfiar a mão pela janela e um lampejo de luz faiscar na ponta da sua arma.
Dois carros da polícia, de sirenes a apitar, aproximavam-se, céleres, da entrada estreita do beco. Rubel nem sequer abrandou, fazendo pontaria para o espaço entre as duas viaturas. Uma delas ainda lhe bateu no lado do passageiro com um ruído forte! Rubel continuou em frente, ganhando velocidade, enquanto um dos carros da polícia dava meia volta para o perseguir.
Bruce Ogden jazia no carreiro de acesso à casa, rolando sobre si mesmo como uma foca acabada de dar à praia, tentando, em vão, chegar à costa.
Liska dirigiu-se para ele, de arma em riste, e afastou-lhe a pistola com um pontapé. Kovac veio a correr do passeio.
O Springer morreu!
Ajudem-me! Ajudem-me! guinchou Ogden. Por baixo dele, uma mancha escura espalhava-se pelo piso coberto de gelo. Liska fixou o olhar nele, pensando em Ibsen.
Uma viatura do Departamento da Polícia de Eden Prairie parou ruidosamente em frente e dois agentes apearam-se, aproximando-se a correr.
Não toquem em nada sem luvas ordenou Liska, recuando. Esse homem é um risco para a saúde pública.
De quem foi a brilhante ideia? quis saber Leonard, olhando Kovac nos olhos.
Tínhamos de agir com rapidez explicou Liska. Queríamos gravar as declarações do Ogden e do Rubel antes de eles terem possibilidade de se escudar atrás de um advogado.
Encontravam-se na sala de estar de Cal Springer, onde a lareira permanecia apagada e a árvore de Natal por acender. Cal estava naquele momento a ser enfiado dentro de um saco, para depois seguir para a morgue. Levara um tiro à queima-roupa, mesmo no meio do peito.
Nunca nos passou pela cabeça que isto pudesse acontecer confessou Kovac.
Eu ainda vi o Rubel e o Ogden a tentarem tirá-lo de casa disse Castleton. Provavelmente para o levarem para um lado qualquer e darem-lhe sumiço. O Springer apercebeu-se disso. Tentou recuar. O Rubel deu-lhe um tiro antes que eu pudesse fazer alguma coisa.
Meu Deus! exclamou Leonard, olhando desconsoladamente para a maca em que o pessoal de medicina legal transportava o morto dentro do saco. A imprensa vai ter um dia em cheio com isto.
Ah, pois, e também falta transmitir o sucedido a Mistress Springer, pensou Liska.
Toda a polícia da área metropolitana e dos distritos vizinhos tem a identificação do Rubel disse Castleton.
Ele talvez se desfaça da carrinha e roube outra viatura afirmou Kovac. Agora não tem nada a perder. Quando o apanharmos, vai dentro por dois homicídios e uma agressão agravada. Nunca mais verá a luz do dia.
O chefe da polícia de Eden Prairie entrou na sala.
Tenente Leonard? Temos gente da imprensa à espera.
Leonard soltou uma imprecação por entre dentes e retirou-se.
Liska foi até à cozinha de Springer e ligou pelo telemóvel a saber dos rapazes. Speed, que vinha do lado da lavandaria, deteve-se à entrada e ficou a olhar para ela.
Estás bem? perguntou.
Não.
Liska baixou a cabeça e marcou o número do telefone de Milo Foreman. Speed aguardou, ouvindo-a explicar a situação em poucas palavras e perguntar se os rapazes podiam ficar por lá até domingo. Depois, enfiou o aparelho num dos bolsos do casaco.
Gostaria de saber porque estás aqui, Speed disse ela, mas...
Ouvi o pedido de apoio pelo rádio.
Não me digas... Não terás vindo simplesmente atrás do Ogden e do Rubel desde o tal ginásio que não costumas frequentar?
Speed esfregou a barba que lhe despontava no queixo e desviou o olhar.
Que andavas tu a fazer lá, Speed!
Um grande suspiro.
Tenho estado emprestado aos narcóticos de Minneapolis. Tiveram conhecimento de um problema de esteróides dentro da esquadra. Precisavam de uma cara desconhecida.
Há quanto tempo? perguntou ela, sentindo a raiva, a mágoa e a frustração aumentar dentro de si.
Ele voltou a hesitar antes de responder.
Os últimos dois meses.
Liska riu-se e sacudiu a cabeça.
Porque doera tanto!, perguntou a si mesma. Nem sequer devia estar admirada. Talvez não o estivesse. Mas tinha de admitir que houvera aquele lampejo de esperança, aquela faúlha minúscula... Depois de todos aqueles anos, ele ainda conseguira apagá-la. O que ela não percebia era porque não havia já morrido espontaneamente.
Quer dizer que o teu súbito interesse na minha vida e nos rapazes...
É genuíno, Nikki.
Ora, não me venhas com essa.
Speed aproximou-se dela.
Sei que tinhas topado o Ogden e o Rubel. Estavam no ginásio na tarde em que descobriste a questão do Fallen.
E depois de me veres metida no assunto, qual era a tua intenção? perguntou ela. Sem nunca me dizeres uma palavra...
Não posso falar sobre os casos em que trabalho, Nikki. Sabes muito bem.
Oh, mas já não tens problemas em me sacar informações sobre um caso meu observou Liska. Todas as perguntas que ele lhe fizera naquela semana vieram-lhe à lembrança. Saíste-me cá um sacana...
Speed acercou-se novamente dela, fazendo-a recuar até à bancada, tentando parecer triste, preocupado e magoado com a fraca opinião que ela fazia dele. Liska afastou-se, fugindo a qualquer contacto com ele.
Nikki, eu estava atento à tua segurança, à dos rapazes...
Como? perguntou ela. Escondendo-me tudo? Não me deixando saber que nos guardavas?
Não me pediste propriamente para ficar por perto.
Não tentes atirar as culpas para cima de mim!
Speed abriu as mãos num gesto de desânimo e retrocedeu um passo.
Achei que podia velar pela vossa segurança sem comprometer a minha investigação ou a tua.
Para que eu não arruinasse o teu caso, se o meu desse para o torto? inquiriu Liska. Ou tencionavas aparecer no fim, como o Super-Homem, e salvar o dia a todos? Seria um belo ponto a favor no teu currículo, não seria? Apanhavas os maus, ficavas com a rapariga...
Speed começava a perder a paciência, como sempre acontecia quando o charme e a dissimulação não o safavam.
Se é o que realmente pensas, Nikki...
Liska respirou fundo e reprimiu as suas emoções.
Acho melhor ires embora. Tenho trabalho a fazer. Speed conteve mais um suspiro, recompôs-se mentalmente e tentou parecer de novo muito amigo e preocupado.
Olha, sei que esta não é a altura, nem o lugar apropriado. Só queria certificar-me de que estavas bem. Talvez passe lá por casa mais tarde...
Nem penses.
Se quiseres, amanhã à tarde saio com os rapazes.
O que eu quero disse Liska, fixando o olhar na porta, porque lhe custava fitá-lo é não te pôr os olhos em cima durante uns tempos, Speed.
Compreendeu, por fim, que não se sairia bem daquela. O charme e o visual podiam servir-lhe de muito no dia-a-dia do seu mundo, mas, com ela, os disfarces já haviam perdido a eficácia. Pelo menos até à próxima vez em que ela se sentisse suficientemente fragilizada para acreditar nele.
Sai com os rapazes amanhã se quiseres estar com eles. Mas não o faças para chegar a mim.
Ele hesitou um instante, como se tivesse algo mais para dizer, mas depois absteve-se. Voltou a sair por onde entrara.
Liska deixou-se ficar no mesmo sítio, a olhar para o chão e a tentar aclarar a mente, retomar a dinâmica do trabalho, estar-se nas tintas para ele, ser dura. Mais uma vez. Reparou em Kovac, junto da arcada que dava para a parte principal da casa.
Porque é que nunca mais aprendo? perguntou ela.
Porque és uma cabeça dura.
Obrigada.
Nada como uma para reconhecer outra. Aproximou-se da colega e rodeou-lhe os ombros com um braço. Vá, Tinks, ou resolves ir atrás daquele tipo e enfiar-lhe dois balázios na cabeça ou o trabalho aqui está terminado. Por hoje é tudo. Vai para casa. Eu mando um carro-patrulha lá ficar em frente.
Liska fez uma careta.
Eu não preciso de...
Ai isso é que precisas. Tu é que descobriste a careca a Rubel, rapariga. E ele conhece a tua morada.
Um calafrio percorreu-lhe a espinha como um dedo gelado.
Sabes disse Liska, apoiando a cabeça no ombro do colega, há dias em que gostaria de ser empregada de mesa.
Por volta das seis da manhã, a notícia da caça ao homem movida ao agente Derek Rubel atraíra repórteres de todas as grandes redes informativas. Minneapolis estava a abarrotar de equipas altamente equipadas. Kovac, Liska, Tippen e Castleton tinham recebido ordens para não falar do assassínio de Cal Springer. As entrevistas seriam conduzidas por Leonard, pelo procurador de Hennepin County e pelo chefe da polícia de Eden Prairie.
O FBI fora chamado para colaborar no caso, assim como o Departamento de Investigação Criminal do Minnesota. As patrulhas das auto-estradas dos estados do Minnesota e do Wisconsin tinham ambas helicópteros no ar e procediam a uma busca exaustiva do Explorer preto de Rubel, um trabalho desgastante em resposta a cada falso alarme que aparecia. O Minnesota estava cheio de Ford Explorers pretos. Nenhum dos que foram detidos e inspeccionados pertencia a Rubel.
Amigos e vizinhos haviam sido interrogados quanto aos seus hábitos, tentando-se assim fazer uma lista de prováveis locais de esconderijo. Vários agentes foram enviados para uma zona de caça que ficava perto de Zimmerman, propriedade conjunta de meia dúzia de agentes. Não havia sinal de que Rubel tivesse estado na cabana.
Ogden, que recebera dois tiros durante a luta, fora levado de helicóptero para o Centro Médico de Hennepin County, sendo a sua situação considerada estável depois de três horas de cirurgia. Ainda iria ser interrogado, mas o sindicato já colocara um advogado à porta do seu quarto no hospital.
Kovac trabalhou a noite toda, preferindo bater à porta de perfeitos desconhecidos a passar a noite na sua casa vazia. Pela manhã, as suas aptidões sociais tinham-se esgotado. Passou o testemunho a Elwood e foi para casa.
O vizinho encontrava-se em frente da sua residência, ao sol frígido da manhã, com o seu boné aos quadrados, a tirar neve do pátio com uma pá.
Malditos cães escutou-o Kovac a resmungar, quando saiu do carro. Ao ouvir a porta bater, o velho ergueu a cabeça e lançou um olhar a Kovac através dos seus óculos de estrábico.
Ei, ouvimos falar naquela caça ao homem! gritou, sobrepondo a sua excitação à antipatia que nutria por Kovac. Um polícia assassino, hein? Você está metido nisso?
Sou o tipo de quem eles andam à procura disse Kovac. Enlouqueci por não poder dormir devido à iluminação tresloucada de um vizinho meu.
O homem ficou sem saber se devia ficar ofendido ou encarar a observação com bom humor.
Que história a desse tipo comentou o homem. Passou tudo na televisão. Hoje até vão dar um Crime Time especial sobre o assunto.
Mais uma razão para me pôr a ler um livro resmungou Kovac.
O vizinho não ligou ao comentário.
O melhor programa que a televisão tem.
A realidade ao vivo.
Conhece aquele tipo? O Ace? É formidável. Aquilo é que é um polícia a sério.
Já foi mulher elucidou Kovac, abrindo a porta. O vizinho teve um pequeno sobressalto. Olhou para Kovac de olhos muito franzidos.
Você é doido! declarou, indo procurar fezes de cão e neve amarelada no outro lado do pátio.
Kovac entrou em casa. O seu olhar incidiu directamente no sofá e ficou parado no mesmo sítio antes de se dar conta do que acontecera.
Alguém estivera ali.
O material que trouxera da biblioteca encontrava-se espalhado por todo o tampo da mesinha da sala. Tinham aberto a sua pasta, que estava no chão, meio escondida atrás de uma cadeira. Alguém escavacara o ecrã do televisor.
O ar da sala dava a impressão de estar mais espesso e a crepitar de electricidade. Kovac podia senti-lo na pele. A sua pulsação acelerou. Abriu o sobretudo e enfiou discretamente a mão, tirando a sua arma do coldre. Pegou no telemóvel com a outra mão e marcou o 112.
Comunicou o arrombamento enquanto ia passando cuidadosamente uma vista de olhos pela casa, divisão após divisão, dando conta dos estragos, tentando ver se o criminoso ainda estava ali dentro. As gavetas da sua secretária estavam no meio do chão. Tinham vasculhado a cómoda. O dinheiro que deixara sobre o tampo desaparecera, juntamente com um relógio caro que ganhara num sorteio numa conferência sobre o cumprimento da lei. Aquilo cheirava a roubo. Provavelmente algum drogado à procura de material para empenhar.
Foi ao armário da sua casa de banho e viu, aliviado, que a sua velha pistola de calibre trinta e oito continuava dentro da caixa de sapatos na prateleira.
De volta ao piso inferior, descobriu que o intruso entrara pela porta da cozinha. Um trabalho que parecia ter sido embaraçosamente simples. Levaria uma boa descompostura pela falta de protecção na sua casa, pensou Kovac quando, ao virar-se, deparou com a porta que dava para a cave escancarada.
Carregou no interruptor e aguardou. Nada. Desceu os primeiros degraus e depois acocorou-se, ainda razoavelmente oculto pela parede.
A cave nunca tinha sido acabada. Tinha lá posto um desumidificador com o qual combatia a humidade das paredes e do chão de cimento. Não havia mobília, nada que despertasse o menor interesse num ladrão, apenas latas meio cheias de tinta e caixotes e caixotes de cartão contendo velhas pastas de arquivo.
Caixas que tinham sido tiradas das prateleiras e despejadas pelo chão.
O telemóvel tocou, no seu bolso.
Kovac.
Liska. Encontraram a carrinha do Rubel. No lago Minnetonka. Saiu da estrada, desceu por uma ribanceira e enfiou-se no gelo.
Quer dizer que ele morreu?
Eu disse que encontraram a carrinha. O Rubel não estava lá.
A atmosfera que se vivia nas margens do lago Minnetonka não diferia muito da que se fazia sentir no dia de abertura da temporada de pesca. A estreita faixa de rodagem estava repleta de carros e carrinhas de órgãos de informação estacionados. Algumas pessoas deambulavam de um lado para o outro, à espera de que algo acontecesse. A polícia delimitara um perímetro para lá do qual só o seu pessoal podia passar. Vários representantes dos órgãos de comunicação social tinham já determinado o seu território. O maior cenário era, de longe, o do Crime Time. O pessoal do ringue de patinagem no gelo já estava instalado o mais perto possível da fita amarela que isolava o local do crime.
Kovac ficou a olhar. Ace Wyatt, protegido por uma grossa parca, encontrava-se na carpete vermelha que era a sua imagem de marca, diante de um grupo de espectadores. Atrás dele, para lá da fita amarela, um tractor puxara a carrinha de Derek Rubel para fora do gelo, até à margem, e esta tinha todas as portas escancaradas, enquanto o pessoal do laboratório forense do Departamento de Investigação Criminal do Minnesota lhe dava uma vista de olhos ali mesmo, antes de o veículo ser transportado para a garagem de Saint-Paul, onde cada fio de cabelo e partícula de matéria nele existentes seriam catalogados e examinados ao microscópio.
Kovac levou um certo tempo a apreender toda a cena, tentando imaginar o local sem aquela multidão. Esta ocupava uma faixa estreita e comprida da margem do lago que fora considerada pouco vocacionada para área de desenvolvimento. Viam-se duas casinhas, suficientemente próximas para se poderem alcançar a pé numa noite fria, mas não ao ponto de alguma testemunha poder ter visto um homem a saltar de um veículo quando este se precipitava para dentro do lago.
Tippen aproximou-se com o seu chapéu à gato da banda desenhada e as mãos enfiadas nos bolsos da sua avantajada parca.
Foram ver as casas. Uma está vazia. A outra não, mas não tem ninguém nem se vê nenhuma viatura. Estão a tentar descobrir alguém que saiba do paradeiro do proprietário... ou antes, onde ele possa estar. Até agora, nada.
A esta hora, se calhar o Rubel anda por aí com o cadáver do proprietário metido na bagageira do seu Buick alvitrou Kovac. Que pesadelo.
Podes crer. O Minnesota já não atrai este tipo de atenções desde o Andrew Cunanan.
O Andrew Cunanan não era polícia. Este tem todos os ingredientes ao gosto de Hollywood.
Kovac localizou os representantes da Warner Brothers num dos cantos da carpete de Wyatt, mesmo atrás do gordo Donald, o director. A ruiva adquirira uma parca que parecia feita de folha de alumínio. Gaines aproximara-se deles e parecia estar a explicar-lhes algo, apontando para o lago onde, à distância, cabanas de pesca pontilhavam a paisagem coberta de neve.
Kovac olhou novamente em redor, tentando orientar-se o que era difícil para um citadino acabado de cair em pleno labirinto à volta do Minnetonka. Tinha, no entanto, a impressão de que o sítio onde Neil Fallen vivia ficava para aquelas bandas. Devia ser para lá que Gaines apontava, embora, para Kovac, as cabanas de pesca não diferissem umas das outras.
Wyatt estava a ser maquilhado, enquanto um tipo corpulento colocava um fotómetro ao lado da sua cabeça e dizia uns números em voz alta.
Olha-me só para aquele tipo! comentou Kovac.
O pessoal dele já cá estava a montar tudo ainda antes de nós chegarmos disse Tippen. É o que faz ter amigos em lugares importantes, mesmo para um género de programa medíocre como este.
Sobretudo num género de programa medíocre como este. A realidade ao vivo.
Do lago soprou uma rajada de vento que fez com que o cachecol vermelho de Wyatt lhe tapasse o rosto. O director praguejou, depois virou-se e repetiu as imprecações para a mulher com o casaco que parecia uma alcatifa, anunciando então que todos deviam ir para os seus lugares, dirigindo-se em seguida para a caravana oficial do Crime Time estacionada na estrada.
Os cameramen puxaram de cigarros. A do casaco de alcatifa aproximou-se de Wyatt e compôs-lhe o cachecol, seguida de perto pelos produtores da Warner Brothers. Gaines fez uma pausa para pegar na chávena de café fumegante que um subalterno lhe entregava.
Kovac juntou-se à multidão, lançando um olhar de poucos amigos ao segurança que avançou para ele na ponta da carpete. O homem recuou.
Nada como estar no local onde as coisas acontecem, não é, Ace? observou Kovac.
É uma pena eu não poder dizer o mesmo de ti, Sam. Wyatt mantinha-se perfeitamente imóvel enquanto a mulher do casaco de alcatifa lhe compunha o incomodativo cachecol de maneira artística e adequada. Ouvi dizer que tu mais a tua parceira estiveram metidos no fiasco de ontem à noite.
É verdade. Bem, eu sou um polícia a sério, não me limito a brincar ao faz-de-conta na televisão. Como sabes, muita merda pode acontecer no mundo real e com tipos verdadeiramente maus.
E o senhor pôs-lhe mesmo o pé em cima, não foi? ironizou Gaines, entregando o café a Wyatt.
Passei-lhe a nado por cima, meu menino. Tem de ser, se é o que tenho de fazer para chegar aonde quero. Você deve saber qual é o sabor, já que é um lambe-cus profissional. Agora já dão diplomas para isso?
Estamos muito ocupados, sargento declarou Gaines, secamente.
Eu sei, e depressa vos deixarei em paz para que possam voltar à pesquisa da cura para o cancro. Só preciso de fazer uma pergunta aqui ao "Capitão América".
Wyatt reprimiu um bocejo.
Começas a enervar-me, Sam.
Sim, tenho jeito para isso admitiu Kovac. Fiquei curioso, depois da nossa conversa de ontem, de modo que fui ler novamente os artigos sobre o caso Thorne.
É uma história dramática como poucas, Ace. Já não me lembrava. Devias fazer um especial sobre aquilo. O filme da semana, talvez. A estação podia passá-lo para valorizar o novo programa.
O programa terá sucesso pelos seus próprios méritos disse Wyatt friamente. Não tenciono rentabilizar aquela noite.
Kovac riu-se.
Não fizeste outra coisa a tua carreira inteira. Porquê parar agora?
Não! berrou Wyatt. Essa nunca foi a minha intenção! O que aconteceu com a minha carreira na altura foi alheio à minha vontade.
Virou-se para a mulher que continuava de volta dele a ajeitar-lhe a roupa.
Deixe-me o malfadado cachecol em paz!
Os indivíduos da Warner Brothers olharam para Wyatt, depois um para o outro, em seguida para Gaines, em pânico por terem ficado fora da história.
É uma história trágica explicou Kovac.
Razão precisamente pela qual o comandante não quer falar nela disse Gaines, interpondo-se entre Kovac e Wyatt. Dirigiu-se aos produtores: Um amigo do comandante foi morto, outro ficou paraplégico. Por aí já podem compreender por que razão ele não quer reviver o trauma.
Não, não podem ignorar insistiu Kovac. Foi nessa noite que o Ace se tornou um herói. Salvou a vida a outro polícia. É uma história mesmo digna de Hollywood. O Ace tem muito êxito com o programa, todos na América quererão ouvi-la. Virou-se para Wyatt. Só gostaria de saber uma coisa, Ace prosseguiu Kovac, inclinando a cabeça de modo a olhar para lá de Gaines. Tens mantido contacto com a Evelyn Thorne ao longo destes anos? Lembrei-me de que talvez ela gostasse de saber do falecimento do Mike.
Não respondeu Wyatt. Nunca mais falámos. Kovac ficou admirado.
Perdeste o contacto com a Evelyn Thorne tendo ficado tão ligado ao Mike? Depois de tudo aquilo por que passaram?
Precisamente por causa disso murmurou Wyatt.
Quando o Andy Fallen falou contigo sobre o caso, referiu se, já comunicara com ela? Ou com a filha deles?
Não me recordo.
Bem, tenho a certeza de que isso está nos apontamentos dele disse Kovac. Só ainda não os encontrei. Depois te direi. Para o caso de quereres falar com ela.
Precisamos de ficar sozinhos no cenário, sargento disse Gaines, tentando fazê-lo recuar. Vamos transmitir isto esta noite. Tentar ajudar a clarificar a confusão que vocês criaram.
É muita generosidade tua, garoto proferiu Kovac. Assim fico livre para tratar de outro assunto. Obrigado.
Kovac afastou-se, lançando um olhar ao segurança.
Devias ter-te antes dedicado à luta livre. É gente melhor do que esta.
Cidadãos, aqui têm, mais uma vez, a fotografia do assassino identificado que está a ser alvo da caça ao homem que se desenrola esta noite.
Wyatt possuía aquela característica que se associa, muitas vezes, à águia e ao seu ar de superioridade. Olhar de aço. Queixo saliente. Uma expressão que inspirava temor e confiança.
Este é o rosto do agente Derek Rubel. Conhecido por ter assassinado um colega da polícia. Suspeito de vários outros crimes brutais. Este homem anda algures a monte no nosso país esta noite, e os cidadãos terão de se armar de coragem e diligência para trazer este animal até à justiça.
"Se virem o Derek Rubel, não se aproximem dele em nenhuma circunstância. Este homem é extremamente perigoso. Que faria a senhora, cidadã Jane?
Eu iria ao telefone mais próximo e ligaria para a Polícia responde a mulher.
Chamam outro membro da assistência.
Eu tomava nota da matrícula!
Seja PROActivo! grita o público em coro.
O número da linha especial e o endereço da Internet aparecem no ecrã.
O televisor fica preto.
Admirável.
Um testamento aos poderes da redenção e da penitência.
Um serviço comunitário. Dar poder aos que não o têm.
A agitação volta.
Um medo a arder na boca do estômago e a irradiar para fora.
Medo da descoberta.
Medo da morte.
Medo do conhecimento interior das próprias capacidades quando ameaçado.
Há a sensação de que o mundo gira cada vez mais depressa, tornando-se cada vez mais pequeno, tornando a descoberta inevitável.
É só uma questão de tempo.
A ideia repete-se incessantemente, enquanto o olhar perscruta as fotografias da morte.
É só uma questão de tempo.
Kovac tem de morrer.
Adoro aquele programa declarou Liska ao desligar o telefone.
Kovac, no outro lado do cubículo, fez cara feia. Tinha o computador ligado e o auscultador do telefone preso entre a orelha e o ombro.
Os telefones da linha especial não pararam de tocar depois da passagem do programa ontem à noite.
Quantas pistas são autênticas? perguntou ele.
Basta uma. Mas qual é o teu problema com aquilo? perguntou Liska.
Detesto...
Além de detestares o Ace Wyatt.
Kovac ficou amuado.
Isso só por si já basta.
Olha para o que aquele programa origina. Ensina as pessoas sem poder de intervenção a erguer a voz e a participar de alguma maneira. Se o Cal Springer tivesse prestado atenção à sua mensagem, a esta hora o Derek Rubel não andava por aí à solta.
É toda aquela questão da realidade ao vivo.
Tu adoras Os Mais Procurados da América.
Isso é diferente. O programa do Wyatt é uma paródia. Que virá a seguir? Julgamentos interactivos? As pessoas a poderem ligar e votar culpado ou inocente?
Já têm disso nalguns programas.
Óptimo. E na próxima temporada podem assistir às execuções no Texas pela televisão. Talvez consigam que o Regis Philbin seja o apresentador resmungou Kovac.
Com quem estás tu a falar? perguntou Liska ao reparar, finalmente, que o colega continuava de auscultador na mão.
Com o Frank Sinatra.
Kovac, esse já morreu.
Estou à espera. É a Donna, da companhia de telefones. Seja como for... E se o programa dá a alguém uma sensação falsa de poder e essa pessoa comete uma estupidez e acaba por morrer?
E se alguém acaba por morrer porque é cobarde e estúpido, e não assiste ao programa?
Detesto o Ace Wyart.
A Warner Brothers está a promovê-lo a "Capitão América".
A sua garganta emitiu um som estrangulado de indignação.
Caramba, foram aqueles malditos produtores. Roubaram-me essa!
Telefona ao teu agente de Hollywood.
Tu é que queres a fama, Tinks, não eu.
Desde que a ganhe a apanhar o Rubel, não a ser morta por ele.
Kovac ia a perguntar-lhe como estava ela, de verdade, quando, por fim, alguém falou na outra ponta da linha.
Desculpa ter-te feito esperar, Sam. Que queres de mim?
Olá, Donna. Preciso de umas informações sobre determinado número de Minneapolis.
Tens autorização?
Não precisamente.
Então, nada feito.
Bem... o tipo está morto. Quem se importará?
Que me dizes da família dele?
Uns mortos, outros na cadeia.
E quanto ao procurador distrital?
Preciso apenas de esclarecer um pormenor, Donna. Não será apresentado em tribunal.
Hum... Eu não te dei nada, estás a compreender?
Ainda não, mas ainda não perdi a esperança. Donna, ao ouvir o gracejo, riu-se. Uma fulana de classe.
Kovac deu-lhe o número de Andy Fallen e desligou.
De que andas à procura? perguntou Liska.
Ainda não sei bem admitiu ele. Quero dar uma vista de olhos à lista de telefonemas do Andy e ver se encontro alguma coisa. O Andy, na sua tentativa de se aproximar do Mike através das experiências por ele vividas, andava a remexer no homicídio do Thorne. Quando dei mostras de também o querer fazer, o Wyatt ficou indignado. Quero ver...
Andas obcecado, Sam observou Liska. Que tal atribuíres o homicídio do Andy ao Rubel? Se é que foi um homicídio.
Não. Não tem nada a ver. Olha para o que o Rubel fez: espancou um tipo quase até à morte com um ferro, fez o mesmo a outro com um bastão de basebol, disparou sobre uma pessoa à queima-roupa. Onde está o requinte?
Mas tu disseste que o Pierce te contou que viu o Andy com outro tipo. E se era o Rubel? Talvez fizesse sentido. O Andy andava de olho no Ogden por este ser corrupto. Ninguém sabia que ele e o Rubel tinham uma ligação. Este, através da sua ligação com o Curtis, que fora seu parceiro de patrulha, aproximou-se do Andy para avaliar o caso do lado de dentro, por assim dizer. O Andy aproxima-se demasiado da verdade... Estás a ver?
Nem pensar. O Rubel era parceiro do Ogden...
Não no início da investigação. Que alguém saiba, na altura não havia ligação entre os dois. O Rubel fora parceiro de patrulha do Curtis, mas este jurou que nenhum dos seus anteriores colegas o perseguiu.
Até ele infectar um.
E se o Andy por acaso descobriu que o Rubel tinha sida... Deixou que Kovac terminasse o pensamento por si e depois acrescentou: Vou inserir a fotografia do Rubel no meio de uma série de outras e mostrá-la ao Pierce.
Isso, concordou Kovac. Entretanto, quem é que me entrou lá em casa? Porque haveria de ser o Rubel? Eu não tenho nenhuma prova que o possa incriminar.
Podia ter sido qualquer pessoa, sabe-se lá porquê. Provavelmente algum drogado à procura do teu pé-de-meia. Ou, quem sabe, terá sido algum outro estupor de cuja saúde andes a tratar por qualquer outro delito. Não tem necessariamente de estar relacionado com o Fallen.
Kovac reflectiu na possibilidade. Ele tinha outros casos a decorrer... Ao terceiro toque, pegou no telefone.
Homicídios. Kovac.
Kovac, daqui fala a Maggie Stone. Consultei o tal processo... o do Andy Fallen.
-E?
Ele já foi enterrado?
Acho que não. Porquê?
Gostaria de o ter aqui outra vez. Desconfio que foi assassinado.
O gabinete de Maggie Stone no Instituto de Medicina Legal de Hennepin County sempre lembrara a Kovac histórias sobre loucos cujos corpos eram encontrados mumificados no meio de resmas de jornais, revistas e lixo acumulados durante vários anos. A sala estava atravancada de jornais, revistas profissionais, livros sobre medicina forense e publicações sobre veículos de duas rodas. Quando o tempo estava bom, Maggie Stone deslocava-se numa Harley Hog.
Fez sinal a Kovac para que entrasse no gabinete com uma mão, enquanto, na outra, segurava um donut com geleia. Do centro do donut escorria um líquido avermelhado que se assemelhava demasiado a parte do material exposto nas fotografias espalhadas em cima da secretária.
Alguma vez lê alguma coisa destas? perguntou Kovac.
A médica legista examinou uma das fotografias através de uns óculos de ler e de uma lupa de secretária iluminada.
Ler o quê?
Naquele mês, o cabelo dela exibia uma peculiar tonalidade de café com leite, cortado à laia de duende e pegado à cabeça com gel. Na maioria dos dias, dava a impressão de que não se servia de uma escova desde os anos oitenta.
O que foi que encontrou?
Muito bem. Fez girar o braço articulado da lupa de maneira a que Kovac pudesse olhar através dela do outro lado da secretária. Aquilo que espero encontrar num enforcamento é uma contusão no pescoço em forma de V ou arranhões, obviamente decorrentes do contacto da corda com a pele explicou, apontando para as marcas. E você encontrou-o pendurado. Sabemos que estava enforcado. No entanto, também estou a ver o que parecem ser vestígios de uma contusão rectilínea em torno do pescoço.
Acha portanto que ele foi estrangulado e depois pendurado?
A contusão não é nítida. Quem olhasse para este caso com a ideia preconcebida de que se tratava de um suicídio, nem sequer dava por ela. Mas eu sinto que está lá. Se tiver razão, suspeito que o assassino possa ter posto um elemento qualquer de protecção entre o nó e o pescoço da vítima. Se tivermos sorte e a casa funerária não se tiver esmerado muito a preparar o corpo, talvez ainda consiga retirar umas fibras da garganta. E se a contusão ainda lá estiver, aposto em como há mais na zona da nuca.
Recostou-se, fechou os punhos e estendeu-os para a frente a fim de demonstrar a sua ideia.
Se o assassino aperta o nó com as mãos, os nós dos dedos comprimem-se contra a nuca, deixando várias contusões. Se se tratar de um garrote, nesse caso a pressão no ponto onde o nó se cruza e aperta cria uma contusão única e profunda.
Não há nenhuma fotografia da nuca?
Não. Admito que esta não foi a mais apurada das autópsias. Mas o cadáver chegou já com o pressuposto de que se trataria de um suicídio e ao que parece houve telefonemas da vossa parte a pedir o máximo de rapidez por causa da família.
Da minha parte é que não foi corrigiu-a Kovac, olhando para as fotografias de cenho franzido. Examinou as contusões, que mal se viam, na garganta de Andy Fallen, logo abaixo das marcas nítidas que o nó da corda deixara.
Os nervos do seu estômago começaram a revolver-se agitadamente. Eu estou ao nível daqueles que se lixam sempre. Essa pressão partiu de um ponto mais alto da cadeia alimentar.
Essa pressão partira de Ace Wyatt.
Kovac debruçou-se sobre o balcão e apanhou Russell Turvey confortavelmente instalado a folhear um exemplar da Hustler.
Por amor de Deus, Russell. Agradeço que não me peças para te apertar a mão.
Turvey soltou um berro e resmungou, enquanto o seu peito emitia sons que se assemelhavam aos de um trovão à distância.
Kovak! Merda! Se pudesses também fazias o mesmo.
Contigo não.
Turvey riu de novo, atirando a revista para debaixo da sua cadeira. Agarrou-se ao balcão e rodou para a frente, sem se levantar.
Ouvi dizer que o Springer foi desta para melhor observou, fixando o olho estrábico em Kovac, enquanto o outro ia para a esquerda. Nunca gostei dele.
Como se isso tivesse tornado a morte de Cal Springer inevitável.
Também lá estavas prosseguiu Turvey.
Juro que não carreguei no gatilho. A Liska pode testemunhar.
Na! A Liska... ronronou com uma expressão digna de um póster dedicado à lascívia. Ela é lésbica?
Que ideia!
Nem sequer... Agitou uma mão.
Não declarou Kovac enfaticamente. Passemos a outro assunto, está bem? Vim cá por um motivo.
Turvey fez-lhe um gesto com a mão.
Qual?
Preciso de consultar um ficheiro antigo. O do caso Thorne. Não sei qual é o número do processo mas conheço as datas...
Não interessa disse Turvey. Não está cá.
Tens a certeza?
Estou aqui todos os dias. Achas que não conheço os cantos a isto?
Mas...
Sei que não se encontra aqui porque alguém dos Assuntos Internos veio cá buscá-lo há uns meses. O filho do Mike Fallen. Nessa altura, não estava cá. Assim como não está agora.
E tu não sabes onde pára?
Não.
Kovac suspirou e fez menção de se ir embora, desejoso de saber quem o teria ou disporia de uma cópia.
É curioso que me peças por esse, agora observou Turvey.
Por que razão dizes isso?
Porque eu descobri a quem pertencia o crachá cujo número me pediste que procurasse no outro dia. Era do Bill Thorne.
Amanda Savard tinha o crachá de Bill Thorne em cima da sua secretária, em casa.
Kovac deixou-se ficar no mesmo sítio, tentando perceber o que aquilo quereria dizer.
Lembro-me bem do Bill Thorne comentou Turvey, coçando o queixo protuberante. Na altura fazia patrulhas na Terceira Esquadra. Era o tipo mais cruel que se possa imaginar.
Tens a certeza? perguntou Kovac.
Turvey ficou com uma expressão admirada.
Se tenho a certeza? Uma vez, vi-o dar cabo dos dentes a uma prostituta só por esta lhe ter mentido.
Tens a certeza de que o crachá era do Thorne?
Sim, tenho a certeza.
Kovac afastou-se, sentindo as palavras de Turvey a martelar-lhe na cabeça.
Amanda Savard tinha o crachá de Bill Thorne em cima da sua secretária.
Foi até à casa de banho dos homens, abriu a torneira da água fria e molhou o rosto; depois, apoiou-se ao lavatório e ficou a olhar fixamente para o espelho.
A sua mente recuou no tempo, recordando imagens dela, dos dois. Pensou na noite do sábado anterior. Tinham feito amor no sofá dele. E às tantas ela, enquanto se preparava para sair, vira os artigos que ele trouxera da biblioteca e espalhara em cima da mesinha da sala.
O que é isto?
O caso Thorne. O tiroteio do Mike Fallen. O Andy andava a dar-lhe uma vista de olhos. Tento apenas ver se descubro alguma coisa. A vida é um poço de surpresas, comentara ele.
Subiu ao primeiro piso, repleto de polícias e de repórteres em busca de novidades sobre a caça a Rubel, onde o movimento era superior ao habitual. Ninguém pareceu reparar nele. Parou a um canto da cena a olhar, por sobre a multidão, para a Sala 126.
Amanda devia estar no seu gabinete. Era provável que os Assuntos Internos andassem atarefados a desenterrar porcarias sobre Ogden e Rubel, revendo quaisquer relatórios sobre problemas anteriores relacionados com qualquer dos dois. A tenente Savard seria provavelmente chamada a explicar a algum comandante porque fora a investigação sobre a relação de Ogden com o caso Curtis arquivada. Porque não teriam feito nenhuma referência a Rubel na altura?
Se lá fosse naquele momento, talvez a apanhasse nalgum intervalo. E... que mais? Confrontá-la-ia como um marido enganado? Visionou mentalmente a cena. Sentiu a humilhação. Não iria.
Um dos repórteres deu por ele e a vida voltou rapidamente ao seu ritmo normal.
Ei, Kovac chamou o indivíduo, aproximando-se e tentando manter a voz baixa para não alertar a concorrência. Ouvi dizer que esteve no local do crime no sábado à noite. O que aconteceu?
Kovac ergueu a mão e voltou-lhe as costas.
Não faço comentários.
Mergulhou na antessala, abriu caminho por entre a multidão que tentava ludibriar a recepcionista, e dirigiu-se para o gabinete principal. Liska já se fora embora. Donna, da companhia de telefones, dera-lhe a lista dos registos telefónicos de Andy Fallen dos últimos três meses. Ia servir-lhe de distracção. Podia tratar daquele assunto enquanto o seu cérebro virava e revirava a questão de Amanda. Ligou o computador, acedeu a uma lista telefónica inversa, ordenada pelos números, e começou à procura.
A grande maioria dos números era confidencial. Viviam-se tempos em que todos desejavam o anonimato... e evitar os operadores de telemarketing. Os números constantes na lista não tinham grande interesse. Mike, Neil, restaurantes que serviam para fora. Havia várias chamadas para um local chamado Hazelwood Home. Kovac procurou nas Páginas Amarelas on-line e descobriu o lugar discretamente descrito como "unidade de assistência". Assistência a quê? Talvez um lar de terceira idade para Mike? Embora Mike Fallen não desse mostras de necessitar de nada do género. De uma empregada doméstica, sem dúvida. Não de um lar para a terceira idade.
Ao dar início à investigação da lista, Kovac começara pelos números não identificados e, na maioria dos casos, deparara com atendedores de chamadas. Um deles pertencia a Amanda Savard. Fallen telefonara-lhe várias vezes para casa nos últimos dias da sua vida.
Andy Fallen andara a remexer no caso Thorne. Amanda Savard tinha o crachá de identificação de Bill Thorne na sua secretária.
Negara friamente que Andy tivesse mencionado o facto de andar a investigar o caso Thorne.
Maldição! Se ao menos ele estivesse na posse dos apontamentos de Fallen. Os ficheiros deviam estar algures... assim como o seu computador portátil...
Ou ele podia ir ao gabinete de Amanda e perguntar-lhe à queima-roupa por que motivo tinha com ela a identificação de Thorne.
Algo dentro de si aconselhou-o a não o fazer.
Ela estava na posse do crachá de Bill Thorne. Vira Andy Fallen na noite da sua morte. Estivera em sua casa. Andy telefonara-lhe várias vezes para casa pouco antes de morrer.
Adoro um quebra-cabeças, pensou, sentindo uma sensação quase de vício a atravessá-lo como uma vergastada.
Amanda Savard fora para a cama com ele. Duas vezes. Ele andava a vasculhar a morte de Andy Fallen. Andy Fallen andara a vasculhar a morte de Bill Thorne. Amanda tinha o crachá de identificação de Thorne.
Ligou para Hazelwood Home.
Hazelwood Home era uma unidade de assistência psiquiátrica.
Kovac agarrou no sobretudo e no chapéu e saiu.
O vento deslizava sobre a neve, levantando uma tal poalha no ar que o lar de Hazelwood Home parecia, visto da estrada, envolto em nevoeiro. Antiga residência privada, era uma homenagem ampla e excessiva a Frank Lloyd Wright. O edifício, comprido, baixo e de linhas horizontais, dava a impressão de estar acocorado no solo. Árvores antigas e enormes pontilhavam os terrenos cobertos de neve em redor, e a paisagem tinha um aspecto amplo e pantanoso, o que era comum a oeste de Minneapolis.
Kovac estacionou debaixo de um telheiro para carros à entrada e passou em frente de vários anúncios alusivos às festividades que se aproximavam. O Natal num dos lados do vestíbulo, o Hanukkah1 no outro. A impressão que dominava a entrada era a de escuridão. O tecto de vigas parecia demasiado baixo.
Procurou o elemento do pessoal mais jovem e de ar menos experiente a trabalhar na recepção e aproximou-se. Era uma jovem com aparência de querubim, cujos caracóis louros faziam lembrar os de um cão-d'água. O nome indicado na etiqueta era "Amber". Os olhos de Amber abriram-se muito quando Kovac lhe mostrou a sua identificação, servindo-se dela para a afastar da mulher mais velha que estava ao telefone.
Ele está perto daqui? perguntou-lhe a rapariga, preocupada.
Desculpe?
Aquele tipo respondeu ela num sussurro. O assassino. Veio cá à procura dele?
Kovac inclinou-se para a jovem.
Não posso dizer sussurrou-lhe em resposta.
Oh, meu Deus.
Preciso de lhe fazer umas perguntas, Amber disse Kovac puxando de uma fotografia de Andy Fallen que tirara de casa de Mike. Já viu este homem aqui?
A jovem pareceu desiludida por a fotografia não ser de Derek Rubel, mas recompôs-se animadamente.
Sim, já o vi. Esteve cá algumas vezes.
Há pouco tempo?
Nas últimas semanas. Também é da polícia informou ela, estreitando os olhos. Pelo menos foi o que disse.
Que veio ele cá fazer? Com quem falou? perguntou Kovac, sempre de olho na mulher mais velha na outra ponta da secretária. Num lugar como Hazelwood, a discrição devia ser regra. Amber parecia demasiado inocente para compreender o significado da palavra.
Veio visitar Mistress Thorne respondeu com simplicidade, de olhos brilhantes.
Tem de compreender, sargento. A Evelyn vive no seu próprio mundo esclareceu a médica enquanto percorriam o longo corredor em direcção ao quarto de Evelyn Thorne. Dará pela sua presença. Poderá falar consigo. Mas a conversa será consigo própria.
A psiquiatra era uma mulher roliça, de ar afável e com uma abundante cabeleira loura.
Quero apenas fazer-lhe umas perguntas sobre um polícia que veio vê-la algumas vezes explicou Kovac. O sargento Fallen. Falou consigo?
A médica pareceu constrangida.
Falei muito pouco com Mister Fallen. Desconhecia que se encontrasse aqui por motivos profissionais. Disse-me que era sobrinho da Evelyn. Perguntou-me se ela alguma vez falava no assassínio do marido.
E fala?
Não. Nunca. Ficou assim pouco depois da morte dele.
E nunca mais voltou ao normal?
Nunca mais. Há dias em que se mostra melhor que noutros, mas a sua mente está quase sempre ausente. Sente-se mais segura assim.
A médica espreitou pelo vidro a meio da porta do quarto de Evelyn Thorne e depois bateu duas vezes antes de entrar.
Evelyn, tem uma visita. É Mister Kovac.
Kovac parou mal entrou, como se tivesse levado um murro no estômago. Evelyn Thorne estava sentada numa poltrona, a olhar pela janela e envergando um fato de treino azul. Era magra, um tipo de magreza de origem nervosa. Tinha o cabelo completamente branco. Usava-o penteado para trás e preso com uma bandolete de veludo. Ele achara-a parecida com Grace Kelly na fotografia do jornal. Na realidade, parecia-se muito mais com outra pessoa.
Virou a cabeça para olhar para ele. Os seus olhos pareciam um pouco ausentes, porém a sua boca curvou-se num sorriso de contentamento.
Eu conheço-o!
Não, minha senhora, não conhece disse Kovac, aproximando-se dela.
Mister Kovac precisa de lhe fazer algumas perguntas sobre o jovem que veio vê-la, Evelyn disse a médica.
A idosa não ligou importância à médica.
Foi amigo do meu marido disse a Kovac.
A médica lançou um olhar entendido ao detective e retirou-se.
O quarto era espaçoso, mobilado normalmente, com excepção da cama de hospital, tapada com uma bonita colcha florida. Um lugar nada mau para passar o tempo enquanto está dentro da sua própria realidade, pensou Kovac. Devia ser bastante caro. Estaria Wyatt a pagar aquela conta também? Não admirava que precisasse de ir para Hollywood.
Foi muito gentil em vir disse Evelyn Thorne formalmente. Faça o favor de se sentar.
Kovac instalou-se na cadeira em frente dela e estendeu-lhe a fotografia que mostrara a Amber.
Mistress Thorne, lembra-se do Andy Fallen? Veio vê-la há pouco tempo.
A velha senhora pegou na fotografia, ainda a sorrir.
Oh, tão bonito? É seu filho?
Não, minha senhora. É o filho do Mike Fallen. Lembra-se dele? Era agente da polícia. Foi a sua casa na noite em que o seu marido morreu.
Kovac ficou sem saber se ela escutara ou não uma palavra do que ele dissera.
Crescem tão depressa observou, levantando-se da poltrona e aproximando-se de uma pequena estante onde se viam muitas revistas e uma Bíblia.
Eu também tenho fotografias disse, pegando numa das revistas do fundo. Ela pensa que as levou todas. Não gosta de ter fotografias à mostra, sobretudo da família. Mas eu tive de ficar com algumas.
Tirou um envelope castanho de dentro da revista, que abriu para puxar as fotografias.
A minha filha declarou orgulhosamente, estendendo-as a Kovac. Este não lhes quis tocar, como se assim, sem mesmo olhar para elas, se mantivesse alheado da verdade. Mas Evelyn Thorne enfiou-lhas nas mãos.
Nas fotografias, estava mais nova. Um pouco mais magra. O cabelo era diferente. Mas era impossível não reconhecer a filha de Evelyn e Bill Thorne: Amanda Savard.
Amanda Savard era filha de Bill Thorne. Ele recordava-se apenas de um pormenor relativo aos artigos de jornal antigos que vira: Thorne deixara mulher e uma filha. Nada mais. Nenhum nome, nenhuma fotografia.
Savard era o apelido de solteira de Evelyn. Essa informação ainda ele conseguira sacar-lhe. Amanda devia tê-lo assumido depois do assassínio. Caso contrário, jamais teria conseguido entrar para a Polícia sem as pessoas a ligarem ao acontecido.
Andy Fallen trabalhava para Amanda Savard, filha de Bill Thorne. Andara a investigar o homicídio de Bill Thorne, a noite em que Mike Fallen fora baleado, a mesma em que Ace Wyatt se tornara um herói. Ace Wyatt passara anos a custear despesas a Mike Fallen. Andy Fallen estava morto. Mike Fallen estava morto...
Kovac deixou-se ficar dentro do carro que enfiara no parque de estacionamento, não iluminado, do edifício onde estavam os escritórios da Wyatt Productions. Ia no seu terceiro cigarro em duas horas e sentia a cabeça a latejar. Dia dos diabos. Sentia-se derreado. Velho. Oco. Curiosamente, sempre se considerara demasiado cínico para ficar desiludido ou desapontado. Tu é que tens piada, Kovac.
O edifício era vulgaríssimo, com dois pisos, tal como milhares de outros nos subúrbios da zona ocidental. O parque de estacionamento esvaziara na última hora após o fim do dia de trabalho, e os advogados e o dentista que também partilhavam o edifício tinham entrado nos seus veículos frios, dirigindo-se para a rua por entre a névoa dos fumos dos tubos de escape dos carros, metendo-se pelo meio das bichas da hora de ponta na 494.
Wyatt aguardava a sua chegada. Já há dez minutos. Kovac deixara-o esperar, preferindo que o pessoal administrativo saísse. O Lincoln encontrava-se estacionado num lugar reservado, em frente do edifício. Kovac parara três filas mais atrás, sozinho. O seu pager soou e viu que era Leonard. Que se lixasse.
Saiu do carro e atravessou o espaço até ao edifício, onde entrou depois de atirar o resto do cigarro mesmo para junto da porta, sem se importar com o sítio onde cairia. O balcão circular da recepção estava vazio, o telefone tocava. Um quadro na parede indicava que as Wyatt Productions ficavam no segundo piso.
Kovac não ligou ao elevador e subiu as escadas, entrando na antessala sem ser notado. À semelhança do resto do edifício, tudo era em cinzento - a carpete, as paredes, o acolchoamento da mobília quadrada. As paredes encontravam-se cobertas sobretudo com fotografias do grande homem a receber condecorações por este ou aquele feito notável, a ser homenageado pelos seus serviços e dedicação em prol da comunidade. Fotografias suas com celebridades locais, figuras lendárias na aplicação da lei, estrelas de cinema no meio de cenários de filmes realizados na área metropolitana.
O homem nunca deparara com nenhuma câmara para a qual não voltasse o seu lado mais favorável. E isso também se aplicava a Evelyn Thorne.
Kovac fungou e abanou a cabeça.
A maçaneta da porta que dava para o gabinete de Wyatt rodou e o som de vozes ouviu-se em altos e baixos.
... esse tipo de publicidade... inaceitável, Gavin. dizia Wyatt.
... a situação pode ser ultrapassada... negar... respondia Gaines.
Raios partam, tem de... imagem... por amor de Deus, o meu público é o americano médio.
Lamento...
A porta voltou a fechar-se completamente. Kovac acercou-se mais um pouco, esforçando-se por ouvir. De repente, Gaines saiu, com um aspecto corado e irritado.
O que se passa, seu peralvilho? perguntou Kovac. O dia está a ser difícil para os seus costados?
Sei que não aprecia o meu trabalho, sargento disse-lhe o homem. Mas não precisa de o salientar sempre que nos encontramos.
Mas eu gosto da maneira como fica com as narinas a tremer, Gavin.
Gaines parecia mesmo à beira de um ataque de nervos.
O comandante Wyatt tem estado à sua espera.
Óptimo. Tenho muito que fazer disse Kovac. Passou a porta e depois voltou-se para o assistente e braço direito de Wyatt. Pode ir, Gaines. O comandante não irá precisar de si. Vamos apenas falar dos velhos tempos.
Wyatt estava junto a uma janela, a olhar para o nada. A noite caíra fazia uma hora. Via Kovac reflectido no vidro.
Ainda não há notícias do Rubel disse. Uma declaração de facto.
Saberás dele ainda antes de mim.
Não devias andar a participar nas buscas?
Com os teus cidadãos todos a bater tudo o que é sítio por aí? Eles trá-lo-ão amarrado de pés e mãos. Poderá ser o teu convidado especial no próximo programa.
Wyatt concordou.
Talvez o faça. A ideia de entrevistar ocasionalmente um indivíduo do lado dos maus agrada-me. Para o público ver como uma mente distorcida funciona.
Passara demasiado tempo com os VIP da Warner Brothers.
Tenho outros casos entre mãos disse Kovac, fingindo-se chocado. A Maggie Stone está convencida de que o Andy foi estrangulado antes de o pendurarem.
A cor esvaiu-se do rosto do comandante.
O quê?
Marcas na garganta explicou Kovac, passando um dedo pelo pescoço à laia de demonstração. Ténues mas presentes. O médico que fez a autópsia não deu por elas. Pedi à doutora Stone que voltasse a verificar pessoalmente a autópsia, só para o caso de o tipo novo que lá está ter falhado algum aspecto... tendo sido pressionado para acelerar o exame. Foi óptimo, não achas? Caso contrário, ele ainda levava aquele segredinho para a cova.
Porquê...? Kovac não tinha dificuldade em ver Wyatt a dar voltas mentalmente, tentando recompor-se, esforçando-se por parecer inteligente e ignorante ao mesmo tempo. Pensas que teve alguma coisa a ver com o Rubel?
Pessoalmente, não respondeu Kovac. Acho uma coincidência muito estranha que primeiro o Andy morra e pareça ter-se suicidado, que depois seja a vez do pai e a morte deste seja classificada também como suicídio. Não te parece estranho?
Wyatt compôs a sua famosa expressão grave.
Então, achas que o Neil é responsável pelos dois homicídios?
Kovac ignorou a pergunta, sentindo-se demasiado impaciente e emocionalmente enervado para dançar um minuete mental.
Descobri o paradeiro da Evelyn Thorne. O Andy também o fez. Achas que irei ter o mesmo fim que ele, ou que o Mike?
Não sei do que falas.
Caramba, Ace exclamou Kovac, sentindo a paciência a esgotar-se. Não tenho tempo para esta merda! Está tudo relacionado com o Thorne! O Andy descobriu algo que aconteceu naquela noite, algo que ninguém viu na altura porque não havia vontade disso ou porque assim ficava tudo em família. Eram polícias. O Thorne era polícia, tu, o Mike. O único morto civil era o pobre estupor do Weagle.
O Weagle atacou a Evelyn! exclamou Wyatt. Ele... ele espancou-a. Violou-a. Disparou sobre o Bill. Matou-o. Atingiu o Mike.
Será? duvidou Kovac. Sabes, faz-me confusão, Ace, que se na altura as coisas aconteceram como consta, as pessoas interessadas naquele caso, ligadas a ele, estejam agora todas mortas.
Wyatt foi-se colocar atrás da sua secretária. Recuando ou procurando protecção... Kovac não desviou os olhos dele um segundo sequer, com todos os músculos do seu corpo tensos, pronto a entrar em acção. Posicionou-se de maneira a poder ver simultaneamente Wyatt e a porta.
O que foi que a Evelyn te contou? Perguntou Wyatt. Ela não está no seu estado normal. Os médicos certamente te informaram de que delira frequentemente.
Tu disseste-me que tinhas perdido o contacto com ela, que não sabias onde se encontrava.
Estava a tentar protegê-la. A Evelyn nunca recuperou do que aconteceu. Foi sempre... frágil. Naquela noite, algo ficou destruído na sua mente. Os médicos nunca conseguiram fazê-la recuperar. Retirou-se para um lugar seguro, um mundo muito seu, onde parece estar quase sempre feliz.
Ela mostrou-me fotografias continuou Kovac. Do bairro onde morava, de churrascos, amigos. Sabes, não tinha um único retrato do Bill. Nenhuma fotografia do marido.
Recordações penosas.
Penosas até que ponto? perguntou Kovac. Wyatt fechou os olhos e passou as mãos pelo cabelo.
De que serve estar a falar de tudo isto, Sam? Já se passaram vinte anos.
Kovac fitou-o, passeou o olhar pelo luxuoso gabinete de executivo, pensou na carreira que Ace Wyatt fizera a partir da noite em que alguém matara Bill Thorne. E se fosse tudo uma mentira? Uma casa de cartas de baralho? Uma lenda nascida do sangue? E se Andy Fallen descobrira a resposta a essa pergunta precisamente na altura em que Wyatt se preparava para passar o programa para nível nacional?
Há uma soma grande de cadáveres, Ace disse Kovac. Se não vês o que isso significa, então, estás no lugar errado.
Wyatt baixou a máscara, compondo uma expressão de granito.
Não me apresentaste uma única prova de que estas mortes estejam relacionadas umas com as outras ou ligadas ao passado. Recuso-me a acreditar nisso.
Reconheço que, por enquanto, ainda estou a investigar admitiu Kovac. Provavelmente na mesma linha que o Andy. Mas estou convencido de que ele encontrou algo... razão pela qual está morto... e acho que sei onde o guardou. Se lá estiver, Ace, virá para a minha mão. É melhor para todos que se saiba já tudo. Percebes do que falo? De ti. Da Amanda Savard. Sei que ela é filha do Thorne. Wyatt olhou para Kovac sem o ver.
Dizes que achas que eu fiz algo de errado observou com secura. Enganas-te. Não fiz. Não se ganha nada em agitar poeiras antigas, Sam. Podemos prejudicar pessoas, carreiras, bom nome. Para nada.
Eu acho que duas pessoas morreram por causa disso declarou Kovac. Aí está o que é importante, Ace. Estou-me nas tintas para o resto.
Kovac dirigiu-se para a porta e pousou a mão na maçaneta, olhando para a lenda. Um homem de quem nunca gostara, mas de quem, apesar de tudo, tinha pena.
A Evelyn mandou-te cumprimentos disse calmamente, saindo em seguida.
Sentia-se tão cansada.
O dia de trabalho chegara ao fim. Amanda Savard fechara-se no seu gabinete. Escondendo-se. Evitando a imprensa, adiando o regresso a casa. Apagou as luzes, com excepção do candeeiro da sua secretária, e ficou sentada, deixando-se envolver pelo silêncio. Que alívio ficar sozinha, pensou, olhando para a fotografia que ela mesma tirara, revelara e emoldurara anos atrás. Uma paisagem de Inverno.
Era essa a razão por que fotografava paisagens em vez de pessoas: a tranquilidade. Se ela conseguisse encontrá-la no que a rodeava, poderia ter a esperança de a alcançar interiormente... nem que fosse só por um instante. Ao menos enquanto estivesse perdida na beleza agreste da fotografia. Durante esses momentos escassos, talvez conseguisse aliviar a tensão que palpitava no seu íntimo.
Naquela noite, a tranquilidade não durou. O seu cérebro foi invadido por uma cacofonia de sons. Perguntas iradas, perguntas rudes, exigências, directivas. Tudo isso e a mensagem electrónica que recebera de Hazelwood Home. Sentia-se tão cansada.
Kovac já sabia.
Fora apenas uma questão de tempo. Ela sempre soubera, no seu íntimo, que aquilo ia acontecer. Esperara por algo mais: uma dobra no tempo onde os acontecimentos pudessem ficar retidos, reprimidos, separados, isolados. Que ideia deliciosa. Se fosse possível. Mas o passado era venenoso e difícil de reprimir, extravasando o topo das muralhas que ela erguera.
Fechou os olhos e conjurou uma imagem, a recordação fugidia de um tempo em que se sentira segura e amada. Desejara fervorosamente conformar-se. Não queria continuar a carregar o fardo. Estava tão cansada...
Quando abriu novamente os olhos, ele estava à sua frente. O pânico crispou-lhe o peito como um punho e ficou sem perceber se aquele instante era real ou imaginário. Ultimamente os pesadelos vinham com tanta frequência que se tornava mais difícil saber.
Ele manteve-se no meio das sombras, inexpressivo, calado, com a gola do sobretudo levantada. Ela começou a experimentar uma sensação de pavor crescente dentro de si.
Tu és filha do Bill Thorne declarou ele, apontando-lhe uma arma.
Kovac conduziu calmamente, rememorando tudo, tentando colocar os factos de que tomara conhecimento naquele dia por ordem cronológica, colmatando as falhas com suposições lógicas. Tentando não reagir a nenhum deles de maneira emocional. Tentando não se deixar dominar pela sensação de traição. Tentando não lembrar a si mesmo que tivera razão logo desde o início: que era melhor não desejar algo mais.
O bar de Neil Fallen estava encerrado, com ar de abandono. Todo o lugar parecia um bairro de lata que até os vagabundos tinham desprezado as cabanas grosseiras, os barracões de pesca, a oficina, o barracão onde Fallen guardava os barcos: tudo completamente às escuras e desprovido de vida, com excepção dos ratos. A única luminosidade era a que provinha das luzes de segurança num par de postes e do letreiro da Coors que zunia na minúscula janela do bar.
Kovac estacionou na zona iluminada e apeou-se. Tirou a sua Maglite de debaixo do monte de tralha que juncava o chão atrás do seu assento e depois foi ao porta-bagagens, onde remexeu em sacos de papel e outras coisas até encontrar, finalmente, a barra de ferro de mudar pneus.
O vento não amainara. A temperatura descera. Não estava uma noite boa para passear ao luar. Apesar disso, Kovac fê-lo, descendo até ao barracão dos barcos. Com todos os seus sentidos bem despertos, estava hiperconsciente do frio, do modo como lhe afectava o nariz, os pulmões; hiperconsciente do som dos seus sapatos na neve compacta. Deteve-se perto do barracão e olhou para a margem e para a linha costeira.
O luar não lhe permitia ver o sítio onde a carrinha de Derek Rubel perfurara o gelo, mas não era longe. Ali, no meio das construções vazias de um local remoto e ermo, Kovac achou que aquele era o tipo de sítio onde um homem poderia desaparecer de uma dimensão para outra e nunca mais voltar a ser visto.
Havia um segredo que valia a pena desvendar. Arquivou-o mentalmente para futura referência. Tinha a sensação de que, depois de tudo aquilo terminar, a fuga iria parecer uma opção excelente.
A arma disparou com um som ensurdecedor. Amanda foi projectada para trás, agitando espasmodicamente os braços para o lado.
Foi então que acordou.
O gabinete estava vazio.
Ela encontrava-se sentada à sua secretária, com o coração a pulsar com violência e a respiração extremamente ofegante, como se tivesse acabado de correr mais de um quilómetro. Sentia o cheiro do seu próprio suor. Tinha as roupas empapadas. As emoções foram subindo cada vez mais dentro dela, sufocando-a. Esmagando-a. Um soluço dilacerante escapou-lhe da garganta e ela atirou-se sobre a secretária, fazendo tombar o candeeiro e deitando tudo abaixo com o agitar convulsivo dos braços. Martelou com os punhos no tampo, chorando, revoltando-se, furiosa, aterrada.
Depois de a adrenalina se dissipar e a fúria desaparecer, recostou-se na sua cadeira e obrigou a sua mente a funcionar.
Por muito que se tivesse iludido ao longo de todos aqueles anos, fora sempre uma questão de tempo.
Tempo que chegara ao fim.
Abriu uma das gavetas da secretária e tirou a arma.
Kovac arrancou o fecho da velha porta com a ajuda da barra de ferro. Este soltou-se com cadeado e tudo, e ele entrou no barracão. Acendeu a lanterna a fim de poder encontrar o botão da luz.
Ali guardados, a passar o Inverno, encontravam-se cerca de seis barcos de vários tamanhos e feitios. Kovac deu uma volta por entre eles, olhando para os respectivos nomes. Hang Time, Miss Peach, Azure II. Escolheu um chamado Wiley Trout e subiu a escada. Quando voltou a descer, trazia uma mochila volumosa e pesada presa por uma das tiras.
Largue isso, Kovac.
Kovac ergueu a mochila para o lado e suspirou.
E se não a largar?
Eu mato-o já aí.
Não seria melhor matar-me depois e fazer com que pareça ter sido um suicídio? Quando disse que faria tudo o que fosse preciso pelo comandante, falava a sério.
Sim, falava a sério concordou Gaines. Pouse o saco.
Se calhar pensa que contém algo de valioso.
O que contém não importa. Pouse-o.
Ah exclamou Kovac, voltando a cabeça para tentar ver o que Gaines tinha apontado às suas costas. Mas olhe que aqui dentro só há uma resma de papel em farripas. Mas você matar-me-á primeiro e preocupar-se-á com as provas depois. Sei que pode parecer um lugar comum, mas olhe que desta não se safará, Gaines. É demasiado tarde. Há muita gente a par da verdade.
Acho que não, discordou o assistente de Wyatt, com ar confiante. Vocês desconfiam, mas não sabem de nada. Andam só às apalpadelas, e estão sozinhos. Não se trata de nenhuma investigação oficial. Nem sequer falaram ao Leonard das vossas suspeitas. A partir de agora deixam de ter qualquer prova. As únicas pessoas cientes daquilo de que o Andy Fallen andava à procura não contam. O Neil Fallen foi hoje formalmente acusado do assassínio do pai. A médica legista não alterará o relatório da morte do Andy.
Parece muito seguro de tudo isso observou Kovac. O Wyatt é que lhe disse que iria fazer com que tudo se passasse dessa maneira?
O Wyatt não tem conhecimento de nada.
Ele não sabe que você matou por ele, que você se livrou de pessoas que poderiam ter arruinado a sua imagem aos olhos do público americano? Mas que grande generosidade a sua, Gavin. Ele devia dar-lhe um bónus... Ou será que isso virá depois? Quando ele se estabelecer, quando o programa se tornar um grande êxito e o dinheiro começar a entrar a rodos? Será nessa altura que você lhe mostra as fotografias, a gravação de vídeo ou as provas que porventura ocultou? Que lhe mostra o quanto o ama.
Cale a boca.
E como irá explicar a minha morte? perguntou Kovac, dando um pequeno jeito aos pés e alterando imperceptivelmente a sua posição. Continuava a não ver o que Gaines tinha na mão. Mas escute o que lhe digo, seu janota. Não permitirei que pareça um suicídio. Não me vou abaixo sem dar luta.
Eu tenho umas ideias. Pouse o saco.
Com o Andy foi fácil, não foi? continuou Kovac. Ele foi ter com o Wyatt e fez-lhe umas perguntas inocentes. Você reparou que o seu chefe ficou nervoso. Talvez tenha decidido investigar um pouco, tentando saber o que o Andy tinha na manga. Se calhar ele nem se dá conta do que tem, portanto também não se preocupa. Você é um sujeito bem-parecido, e ele também. Saem juntos algumas vezes. Quando passa lá por casa com uma garrafa de vinho, ele não acha estranho...
Eu não queria matá-lo desabafou Gaines, e Kovac apercebeu-se da emoção na sua voz, um misto de arrependimento e satisfação. Não sou nenhum assassino.
É, sim. Achou que ele sabia de algo que pudesse arruinar o seu futuro. Planeou tudo. Drogou-o. Estrangulou-o quando estava desmaiado, para que não pudesse debater-se. A seguir pendurou-o numa viga e deixou que o nó fizesse o resto do trabalho.
Eu não queria.
Até aposto em como ficou a vê-lo estrebuchar e contorcer-se. É fantástico verificar a rapidez com que acontece, não é?
Já lhe disse que tive muita pena insistiu Gaines. A sério. Mas ele poderia ter deitado tudo a perder. Poderia ter acabado com o comandante Wyatt. Trabalhei arduamente de mais para esta oportunidade. Está lá, mesmo ao nosso alcance. Começa a concretizar-se: o programa, o contrato com a estação televisiva. Ele teria estragado tudo. A troco de nada. Por causa de algo que aconteceu há vinte anos. Por algo que não pode ser mudado. Eu não podia permitir que isso acontecesse.
Sabe o que sucedeu naquela noite? perguntou Kovac.
Sei que o Mike Fallen estava a par de tudo. Mantinha-se calado porque o Wyatt lhe pagava para isso. O Andy chegara a essa conclusão. Se convencesse o pai a falar... Eu não podia deixar essa possibilidade em aberto.
O Wyatt deve desconfiar, Gavin. Acha que ele quererá tê-lo por perto se souber que você é um assassino? Caramba, o homem é um polícia! Apresenta um programa sobre a aplicação da lei. Se for esperto, ele próprio lhe enfiará a corda no pescoço e safará o seu coiro. Pense no programa especial que isso daria.
Largue a merda do saco!
Você é um assassino repetiu Kovac. Ele descobre e...
Ele também é! gritou Gaines. Largue o estupor do saco!
Kovac não teve tempo de digerir a revelação. Apercebeu-se do movimento do braço de Gaines na sua visão periférica e lançou-se para a frente. O martelo raspou-lhe apenas a nuca e o ombro é que recebeu a força do impacte. Apesar da grossura do tecido do sobretudo, a dor que sentiu no ombro foi enorme, como se uma bola dura e incandescente lhe queimasse o músculo.
Kovac rolou até ficar de costas, enquanto Gaines se lançava de novo sobre si, tentando atingir-lhe a cabeça freneticamente, mas enterrando a cabeça do martelo no chão de terra.
Largue isso, Gaines! gritou Liska. Está preso!
Arma! gritou Kovac ao ver Gaines enfiar a mão dentro do casaco aberto e desatar a correr.
Kovac rolou para o lado e ficou meio metido debaixo do barco. Mas o objectivo de Gaines era agora fugir e começara já a correr com a mochila na mão esquerda e a arma na direita. Virou esta para trás e disparou um tiro. Liska respondeu. Gaines continuou a correr, dirigindo-se para a porta do barracão que dava para o lago.
Liska passou velozmente por Kovac, que se pusera de pé e sacava da sua arma. Gaines escondeu-se atrás do último barco e disparou mais duas vezes. Liska refugiou-se à direita, e a última das balas passou a escassos centímetros da sua cabeça, estilhaçando o casco de fibra de vidro de que se serviu para se proteger. A seguir, Gaines lançou-se porta fora.
Kovac saiu por uma porta lateral e agachou-se atrás de uma série de bidões de gasolina de vinte litros, esforçando-se por escutar e perceber para que lado Gaines fora. Ouviu apenas o vento.
O Elwood ficou de guarda ao carro dele informou Liska, agachando-se ao lado do colega. Neste momento, o Tippen já vem a caminho com carros-patrulha.
Tinham montado a armadilha à pressa. Não houvera tempo para informar Leonard. Nem desejo de tal. Kovac admitira que pouco havia para servir de isco, mas ouvira e raciocinara o suficiente para ter um palpite. Se mantivessem o plano entre eles e não resultasse, nada se perdia. Se o tivessem levado ao conhecimento de Leonard e este não o aprovasse, de nada teria servido.
Kovac despiu uma das luvas e levou a mão à base da nuca, de onde a tirou suja de sangue. Praguejou entre dentes.
Para que lado é que ele foi? Se sai daqui ficamos com mais um Rubel entre mãos e nós dois não teremos outro remédio senão ir para as buscas no terreno.
Disso podes ter a certeza. O Leonard dará cabo de nós.
Kovac foi até ao bidão da ponta e esforçou-se por observar, o melhor que pôde, o pátio. Não havia sinais de Gaines, o que significava que podia ter-se refugiado numa das construções da propriedade e eles acabariam por se ver numa situação de impasse. De repente, o zumbido furioso de um motor pequeno sulcou o ar e deixou de haver tempo para pensar.
A mota de neve irrompeu pela porta do fundo da oficina de Neil Fallen, rugindo em direcção a Kovac. Este firmou-se sobre os pés e fez pontaria. Acertou na parte da frente da mota, a seguir atirou-se para o lado, rolou sobre si, levantou-se e desatou a correr.
Gaines levava o motor acelerado no máximo e dirigiu-se para o lago através da zona aberta a leste das cabanas de pesca. A mota precipitou-se violentamente sobre montes de neve acumulados pelo vento. Kovac correu atrás de Gaines, na esperança de não o perder de vista. Esquivou-se a dois tiros, ainda que estes tivessem pouca possibilidade de acertar em algo.
A mota chocou contra um monte de neve e foi projectada no ar, cuspindo Gaines do assento em pleno voo, mas depois tombou na neve de traseira, levando-o ainda preso aos manípulos.
Kovac correu mais depressa. Reparou que Liska vinha à sua esquerda.
A mota embateu no gelo e mergulhou nele. O som da superfície do lago a rachar fazia lembrar o ribombar de um trovão. Gaines aterrou ao lado da mota e ficou imóvel por um instante.
Atenção ao gelo! Atenção ao gelo! gritou Liska, enquanto Kovac corria até à ponta do velho ancoradouro.
Gaines começara já a recobrar do embate e tentava levantar-se, com a mochila presa aos ombros. A mota de neve já ia a pique, o gelo em torno da zona de impacte a fender e a saltar. Mais um bocado de gelo estalado e desapareceu.
Desista, Gaines! gritou Kovac. Não tem por onde fugir!
Gaines levantou a arma e disparou de novo. Kovac deixou-se cair de barriga sobre a pequena ponte. O grito que ouviu Gaines soltar fê-lo levantar a cabeça.
Ele está na água! gritou Liska.
Gaines soltou um guincho estrangulado, agitando um braço acima da superfície. Kovac desceu do ancoradouro e experimentou o gelo.
Aguente-se, Gaines! Não se mexa!
Gaines, porém, estava dominado pelo pânico, mergulhando na água e voltando depois à tona para tentar sair do buraco, o que só servia para quebrar mais o gelo e submergi-lo de novo.
Kovac pôs-se de gatas, distribuindo o seu peso por uma superfície maior, e começou a mover-se lentamente em direcção à placa de gelo que se fragmentava.
Gaines! Esteja quieto!
Ouvia a respiração entrecortada e sibilante de Gaines. A temperatura da água não tardaria a gelar-lhe o corpo, fazendo parar as funções vitais. O peso da roupa molhada puxá-lo-ia para o fundo como se vestisse uma armadura. A mochila seria como uma bigorna presa aos seus ombros. Os músculos paralisariam e o pânico intensificar-se-ia.
Deixe-me agarrá-lo pelo braço! gritou Kovac, estendendo-lhe o seu.
Conseguia ouvir o gelo a rachar debaixo do seu corpo.
Gaines, em vez de deixar que Kovac o segurasse, tentava desesperadamente chegar-lhe com as mãos, sem, contudo, conseguir segurar-se. Uns centímetros mais de gelo cederam e um som animalesco de medo brotou de dentro dele.
Não se mexa! Raios! Não se mexa! gritou Kovac. Concentrou-se no braço de Gaines e deu um impulso para a frente, agarrando nele. O gelo por baixo do seu peito cedeu e o seu tronco mergulhou dentro de água, de cara para baixo.
O frio era tão intenso que parecia ter chocado contra um muro de tijolo a toda a velocidade. Bateu instintivamente na água com as mãos, como se esta fosse sólida e pudesse servir de ponto de apoio para ele se afastar. Sentia as mãos de Gaines a agarrarem-no, puxando-o, tentando arrastá-lo para dentro de água. Mas havia outra força por trás, presa às suas pernas, agindo em sentido contrário.
Kovac levantou a cabeça abruptamente e começou a tossir e a engasgar-se, agitando as pernas numa tentativa para recuar e atingir gelo mais seguro.
Sam! gritou Liska.
Estava por trás do colega, deitada sobre o gelo, ainda agarrada a uma das suas pernas. Kovac parou de se debater. Já sentia os dedos a ficar entorpecidos de frio. A tossir e engasgado pela água que engolira, olhou para o buraco no gelo. Gaines desaparecera. A água estava parada e negra sob o luar.
Kovac imaginou por um instante como seria morrer por afogamento: aquele breve instante debaixo de água, cego, a tentar vir à tona em busca de ar e sentir apenas gelo por cima da cabeça.
Depois, fechou a porta daquela parte da sua mente e rastejou de volta ao ancoradouro.
Achas tu que eu sou ambiciosa observou Liska. Eu, que nunca matei ninguém para subir na carreira.
Encontravam-se dentro do carro de Kovac, sentados lado a lado. As equipas de emergência já estavam a tratar de tudo no local e Tippen dava-lhes apoio. Um dos subdelegados emprestara-lhe uma camisola seca. Ele desencantara um casaco de caça nojento dentro da oficina de Neil Fallen e vestira-o. As mangas davam-lhe até meio dos braços e cheirava a cão molhado.
Falaste nisso disse Kovac.
Alguém trouxera café. Ele bebeu-o, mais ao uísque com que Tippen aparecera, sem lhes sentir o gosto.
Isso não conta.
Ficaram em silêncio por um instante.
Até que ponto achas que o Wyatt está ao corrente disto? perguntou Liska.
Kovac sacudiu a cabeça.
Não faço ideia. Nesta altura já deve desconfiar. Tudo gira em torno do Thorne. Ele sabe de certeza o que se passou naquela noite.
E que tem sido mantido em segredo ao longo de todos estes anos.
Até o Andy Fallen começar a remexer no passado. Deve ter sido disso que o Mike falava quando disse que não podia perdoar ao Andy o que andava a fazer, que o Andy dera cabo de tudo, que ele lhe dissera para deixar ficar tudo como estava. Pensei que se referia ao facto de o Andy assumir a sua... Caramba, todos estes anos.
Achas que o Wyatt matou o Thorne? perguntou Líska.
Era aí que eu queria chegar. A Evelyn estava apaixonada por ele.
Mas como é que o Gaines terá descoberto?
Não sei. Talvez o Andy tenha estabelecido algumas ligações e comunicado o facto ao Gaines. Se calhar, viu os apontamentos do Andy. Não faço ideia.
Onde é que entra o tipo que foi acusado do homicídio?
Não sei.
A história do que acontecera naquela noite, há tantos anos atrás, tinha muitos meandros obscuros, pensou Kovac. Além de Ace Wyatt, havia uma outra pessoa viva que poderia dá-los a conhecer. Amanda.
Queres falar com o Wyatt sozinho? perguntou Liska. Se precisares, vou contigo...
Não, murmurou Kovac. Preciso de ser eu a fazê-lo. Pelo Mike. Independentemente dos seus defeitos, em tempos foi muito importante para mim.
Liska assentiu.
Então, volto para o gabinete e aproveito para dar um avanço à papelada relacionada com este caso.
Porque não segues antes para casa, Tinks? É tarde.
Os rapazes estão com a minha mãe, por causa do Rubel. Só lá tenho à minha espera um carro-patrulha com um par de parvalhões dentro.
Ainda não há notícias do Rubel?
Há informações que nunca mais acabam. Falsos alarmes em abundância. Espero que acabe por aparecer alguma coisa de jeito, se é que nesta altura ele não se pôs já a andar para a Florida.
Estás com medo? perguntou Kovac, olhando para a colega.
Liska fítou-o nos olhos.
Estou. Por mim. Pelos rapazes. Preciso de estar sempre a convencer-me de que chegaremos a ele primeiro.
Ficaram calados.
Sinto-me mesmo velho, Tinks confessou Kovac por fim. Cansado.
Nem sequer penses nisso, Sam advertiu Liska. Se abrandares o suficiente para começar a matutar nisso, não voltas a erguer-te.
Que animador.
Ei, olha que eu acabei de perder a minha oportunidade de fazer carreira em Hollywood disse ela, fingindo-se muito penalizada. Estás à espera do quê? Que eu me arme em irmãzinha da caridade?
Kovac ainda arranjou forças suficientes para rir; a seguir, tossiu. Os pulmões ainda lhe doíam por causa da água gelada.
Ei! Liska deu-lhe uma palmadinha amigável na face. Estou muito contente por o Gaines não te ter morto, companheiro.
Obrigado. Obrigado por me teres salvo a vida, companheira. Nesta altura podia estar debaixo do gelo, juntamente com ele.
É para isso que os amigos servem disse Liska com simplicidade, saindo em seguida do carro.
Apesar de a noite ir a meio, todos os lugares de estacionamento de rua em volta da Prefeitura estavam ocupados. Liska parou o carro na zona de emergência em frente do edifício e deixou-o ficar aí. Naquela noite, nada a faria entrar num parque de estacionamento em altura.
Sentia-se intimamente satisfeita pela possibilidade de voltar ao gabinete naquela noite. Gostara sempre de ali estar à noite, enquanto a maior parte da cidade dormia. Naquela noite não iria a casa. Se o fizesse, teria demasiado sossego e tempo para reflectir no estado lamentável em que a sua vida pessoal se encontrava, além de também sentir saudades dos filhos.
Os corredores encontravam-se silenciosos. Os agentes federais tinham montado a sede do grupo operacional de perseguição a Rubel no seu próprio edifício da Washington Avenue. Naquela noite, a acção desenrolar-se-ia aí.
Deteve-se em frente da porta dos gabinetes dos Assuntos Internos, pensando nas estranhas voltas que a vida dava. Há uma semana atrás, ela teria cuspido para o chão só de ouvir falar nos Assuntos Internos. No decorrer de poucos dias, já vira polícias corruptos suficientes para a vida inteira.
Ninguém reparou nela quando entrou nos escritórios do Departamento de Investigação Criminal. Talvez se limitasse a passar ali a noite, pensou ao enfiar a bolsa na gaveta. Dormiria no espaço por baixo da secretária, como os sem-abrigo que procuravam um lugar para se esconder no meio dos arranha-céus depois de tudo fechar.
Ligou o computador, virou-se para despir o casaco... e deu de caras com Derek Rubel ao fundo do cubículo, empunhando uma arma.
Conta a história. Desde o princípio.
A sala estava tão silenciosa que Amanda Savard sentia o silêncio a pressionar-lhe os tímpanos.
Wyatt estava sentado à sua secretária, a olhar para ela e para a arma que empunhava. Colocara um pequeno gravador em cima do tampo, à sua frente. Encontravam-se em casa dele. Apenas os dois. Wyatt casara uma vez, alguns anos depois do homicídio de Bill Thorne. Não durara.
Conta a história insistiu ela. Não me desperdices fita.
Wyatt parecia magoado.
Amanda... porque fazes isto?
O Andy Fallen está morto. O Mike Fallen está morto.
Não fui eu quem os matou declarou Wyatt.
Durante todos estes anos sussurrou Amanda. Durante todos estes anos, não fui capaz de contar... por causa da minha mãe. Por causa do que ela fez naquela noite. O homem já estava morto. Não consegui salvá-lo. Pensei que podia arranjar maneira de ultrapassar o facto, de o compensar...
Acreditara, durante muito tempo, que impedir que pessoas fossem prejudicadas por outros polícias corruptos seria penitência suficiente. Guardara o segredo infame da sua família, o segredo infame da família de polícias a que o seu pai pertencera. E fora dedicando a vida a descobrir os segredos de quem fazia parte da polícia de Minneapolis, não permitindo que polícias da sua corporação se safassem, como Bill Thorne, como Ace Wyatt.
Wyatt cumprira a sua própria penitência. Mas isso não importava. O seu pai continuava morto... excepto nos seus pesadelos. Weagle continuava morto... excepto nos seus pesadelos. Agora Andy... E Mike Fallen...
Não consigo viver com todos estes cadáveres na minha cabeça disse com voz trémula. Fez um gesto com a arma. Conta a história. Vá.
Amanda...
A voz dele dava-lhe cabo dos nervos: condescendente, paternalista. Desviou ligeiramente a arma para o lado e disparou um tiro contra a parede por trás da cabeça de Wyatt.
Já te disse para contares a história! gritou Amanda. Wyatt empalideceu mortalmente, depois ficou vermelho.
O suor escorria-lhe pelo rosto. O ar ficou impregnado com o forte cheiro a amoníaco da urina.
Eu... não... aguento... mais... isto disse Amanda por entre dentes. Parte do seu cérebro reconhecia que o seu comportamento estava a ser irracional. Mas isso também fazia parte do problema, não era? Ela fora demasiado racional, demasiado prática durante demasiado tempo, reprimindo o horror, o medo, a noção de que o que acontecera estava errado e ela podia tê-lo impedido.
Começo eu por ti, propôs, anunciando em seguida o seu nome, data e local e iniciando a gravação como faria em qualquer entrevista policial. Enunciou o tema e declarou a data do incidente. Wyatt olhava para ela.
Eu amava a tua mãe disse. O que fiz foi por ela, para a proteger. Tu sabe-lo muito bem, Amanda.
Os olhos de Amanda encheram-se de lágrimas.
Agora, ela protege-se a si própria. Ninguém pode magoá-la. Não consigo ficar a assistir de braços cruzados à morte de mais pessoas. Está errado. Tornei-me polícia para impedir que isso acontecesse. Será que compreendes? Sou o que sou por causa daquela noite. Tornei-me polícia para impedir que o que sucedeu naquela noite ocorra com mais alguém. Mas não foi assim que as coisas se passaram.
Eu não os matei, Amanda. O Andy. O Mike. Eu não...
Sim, mataste. Não percebes? Conta a história.
Eles é que se suicidaram declarou Wyatt, embora sem convicção. Não era capaz de convencer ninguém daquela mentira, nem mesmo a si próprio.
Lágrimas rolaram pelo rosto de Wyatt. Tremia visivelmente. Olhou para o gravador, sem saber se ela quereria gravar a história para depois o matar.
O Bill Thorne era o homem mais cruel que já conheci principiou, com voz trémula. Atormentava a tua mãe, Amanda. Tu bem o sabias. Nada do que ela fazia estava bem para ele. Ele desabafava toda a sua raiva sobre ela. Espancava-a. Mas a ti nunca te magoou, pois não, Amanda?
Não, sussurrou ela, também em voz trémula. Nunca me bateu. Mas eu sabia. Via. Odiava-o. Queria que alguém lhe pusesse um travão, mas nunca ninguém o fez... por ele ser polícia. Tu vias o que ele lhe fazia... os olhos pisados, as nódoas negras. Tu vias. Os outros polícias viam. Viravam todos a cara para o lado. Nunca fui capaz de compreender essa atitude disse Amanda. Nos outros, talvez... mas em ti? Ela amava-te. Como podias permitir que aquilo continuasse?
A tua mãe não queria...
Pára. Nem sequer te dês ao trabalho de dar essa desculpa. A de que ela não queria passar por essa vergonha, de que ela não queria arranjar complicações. Era uma mulher maltratada.
Wyatt desviou o olhar, envergonhado.
Porque ele era polícia continuou Amanda. Deixaste que tudo aquilo acontecesse naquela noite porque não foste capaz de denunciar um filho da puta corrupto como o Bill Thorne.
Wyatt não proferiu palavra. Não havia nada a dizer.
Na noite em questão... prosseguiu Amanda. Ela telefonou-me a dizer que tinha um problema. Estava histérica. O Bill chegara a casa inesperadamente. Estivera a beber. Ele costumava fazer isso... beber em serviço. Não respeitava regras absolutamente nenhumas. Ele... A voz de Wyatt foi-se abaixo, mas recomeçou pouco depois, recordando progressivamente as emoções daquela noite. Violou-a... Espancou-a... A Evelyn já não aguentava mais continuou, olhando para o tampo da secretária enquanto as lágrimas lhe caíam em abundância. Pegou numa arma e disparou duas vezes contra o peito do Bill. Depois, telefonou para mim... Eu não podia permitir que ela fosse punida pelo que o Bill lhe fizera. Não podia ter a certeza de que os tribunais tomariam o seu partido. E se se viesse a saber que nós dois andávamos a encontrar-nos? Qualquer advogado de acusação veria nisso um motivo para o crime. Ela poderia ser presa.
Foi então que encontraste o Weagle...
Ele andava por lá. Na vizinhança. Dei com ele na rua, quando ia a entrar em vossa casa. Não sabia o que poderia ter visto ou ouvido.
Wyatt enfiou a cabeça entre as mãos e começou a soluçar.
Atraí-o até dentro de casa. Depois disparei sobre ele... com a arma do Bill. Oh, meu Deus... Então, o Mike chegou... E viu-me lá, ao pé do cadáver. Entrei em pânico...
Por Cristo! exclamou Kovac, empurrando a porta do escritório. Ficou a olhar para Wyatt, que chorava e se engasgava, mantendo a cabeça baixa. Tu disparaste sobre o Mike Fallen.
Liska ficara paralisada. Numa fracção de segundo, passaram-lhe pela cabeça mil pensamentos. Investir contra ele, atirar-lhe algo, tentar dominá-lo. Ainda bem que já telefonara aos rapazes a dizer-lhes que os adorava.
Pousa a arma, Rubel ordenou num tom ridiculamente coloquial.
Grande cabra.
Usava os óculos espelhados. Ela não podia ver-lhe os olhos. O que não era bom.
Se desistires já, só demonstrarás esperteza prosseguiu Liska. Ninguém te magoará. Estás no meio dos teus.
Não tinhas nada a ver com o assunto.
Mataste um homem lembrou-lhe ela. Isso já é da minha conta.
Liska via Barry Castleton a avançar lentamente atrás dele, de olhos muito abertos e arma na mão.
Pousa a arma insistiu ela. Não sairás deste edifício, Derek.
Quero lá saber retorquiu Rubel. Já o sabia quando entrei. Não tenho nada a perder. Mais vale que morra já, rapidamente. E como bónus... levo-te comigo, grande cabra.
Tu é que colocaste o Mike Fallen naquela cadeira de rodas acusou Kovac, entrando na sala. Deixaste, durante todos estes anos, que pensassem que tu eras o grande herói. Quando tu é que o puseste naquela malfadada cadeira de rodas!
O choro de Wyatt redobrou de intensidade e ele balbuciou por entre as mãos:
Eu não queria! Entrei em pânico! Quando me apercebi... Fiz o que pude para mantê-lo vivo. Pensando sempre que a minha carreira chegara ao fim, que ele contaria tudo. Mas mesmo assim mantive-o vivo...
E foi assim que te tornaste um herói.
O que havia de fazer? Tentei compensá-lo.
Pois, tenho a certeza de que ter uma televisão de ecrã gigante chegava ironizou Kovac. O Mike sabia que foste tu quem disparou sobre ele?
Dizia-me que havia umas partes das quais não se lembrava. E no entanto... havia alturas... comentários que fazia... pensei que talvez...
Mas nunca ninguém foi à balística conferir outro tipo de informação além de as balas serem de calibre trinta e oito indignou-se Kovac. Isso porque vocês eram todos polícias excepto aquele desgraçado com cadastro. Além disso, tu tinhas uma testemunha: a Evelyn. Ou eram duas? perguntou logo a seguir, olhando para Amanda.
Esta não desviou os olhos de Wyatt um segundo sequer.
Tinham-me dito que não saísse do meu quarto, que dissesse que não vira nada. Fi-lo pela minha mãe, porque a culpa recairia sobre ela.
Meu Deus! exclamou Kovac, respirando fundo, agoniado.
O Mike é que era o herói insistiu Wyatt. O Mike é que era o herói.
O Mike está morto. O Gaines matou-o. Por tua causa. E acabou com o Andy disse Kovac. Tu sabias que o Andy andava a fazer perguntas sobre aquela noite. Veio ter contigo. Depois, apareceu morto. Era impossível que não percebesses que...
Não! Sempre pensei que ele se matara! insistiu Wyatt. A sério...
Tu podias ter impedido tudo o que aconteceu declarou Amanda, com as lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto. Eu poderia tê-lo feito. O Andy também veio ter comigo. Depois de descobrir a minha mãe. Devia ter acabado com tudo naquela altura. Eu sou uma agente da autoridade... Eu podia ter impedido o que aconteceu repetiu Amanda, com ar ausente. A arma estava na sua mão, que tremia terrivelmente. Lamento. Lamento muito, Andy...
Quem o matou não foste tu, Amanda disse Kovac em voz branda, passando da raiva ao medo, por ver a maneira como ela olhava para a arma que empunhava. Dá-me a pistola. Ponhamos um ponto final nisto já, esta noite. Eu ajudo-te.
É demasiado tarde murmurou ela, de si para si. Lamento. Lamento muito.
Dá-me a arma, Amanda.
A tenente Savard olhou para a pistola que segurava na mão e ergueu-a, virando o cano contra si própria.
Larga a arma, Rubel! gritou Castleton. Tenho-te na mira.
Rubel apontou a pistola de nove milímetros para o peito de Liska e soltou um grito animalesco. O seu rosto ficou vermelho e as veias salientes como cordas sob a pele retesada do seu pescoço.
Dá-me a arma, Amanda pediu Kovac, avançando um passo em direcção a ela. Por dentro, todo ele tremia. Está tudo terminado, querida.
Eu podia ter impedido tudo repetiu Amanda. Kovac deu mais um passo.
Amanda, por favor... Ela fitou-o nos olhos.
Tu não compreendes.
Amanda.
A culpa é toda minha.
Não sussurrou Kovac, estendendo lentamente a mão para ela, uma mão que tremia como se pertencesse a um alcoólico.
É, sim teimou ela suavemente, abanando a cabeça. O seu dedo afagou o gatilho. Estão todos mortos por minha causa.
Castleton também soltou um grito roufenho, precipitando-se sobre Rubel.
Liska enfiou a mão no bolso do casaco.
Rubel virou a cabeça apenas por um segundo. Um segundo foi tudo quanto ela precisou.
O bastão armou-se instantaneamente e Liska manobrou-o de modo a desferir um golpe com o máximo de força de que foi capaz. Os ossos do braço de Rubel estalaram ao mesmo tempo que a arma disparava e o tiro atingia uma parede. A seguir, Rubel deixou-se cair no chão, a gritar e a contorcer-se.
Liska largou o bastão e saiu do cubículo.
Amanda... sussurrou Kovac.
Mais tarde, recordaria aquele instante único no tempo e perceberia que o que vira nos olhos dela nesse momento fora um reflexo da sua própria esperança moribunda.
Amanda... dá-me essa arma.
Não, disse ela suavemente. Não, Sam. Não compreendes? Eu podia ter impedido tudo há vinte anos. Quem disparou sobre o Bill Thorne não foi a minha mãe. Fui eu.
Kovac nunca mais se recordaria do som que a arma fez ao disparar. Nunca lembraria os gritos... de Ace Wyatt e os seus. A recordação resumir-se-ia apenas a imagens.
O jacto de sangue, osso e tecido cerebral.
A fracção de segundo de surpresa nos olhos de Amanda antes de a luz se apagar neles.
Ele próprio, sentado no chão, agarrado ao corpo dela, como se o seu consciente se tivesse desprendido do seu próprio corpo, afastando-se para tentar fugir ao horror.
Mas não havia como fugir. Nunca haveria.
O Tippen telefonou informou, Liska.
Estava com um aspecto dos diabos. Agora parecia a Sininho, mas viciada em heroína. Pálida, olheiras arroxeadas, cabelo todo espetado. Nem mesmo sabia há quanto tempo não dormia. Kovac mal conseguia recordar-se da última vez em que ele próprio o fizera. E, no entanto, apesar da exaustão, a última coisa que desejava no mundo era voltar para casa. O trabalho era o seu refúgio. O de Liska, também.
De modo que, em vez de voltarem para casa, tinham ficado por ali. O novo dia nascera, límpido e frio. Encontravam-se à entrada da casa de Gavin Gaines, a fim de executar a busca. Procurariam tudo o que pudessem encontrar para o ligar ao homicídio de Andy e Mike Fallen. Tudo o que pudesse sugerir que Ace Wyatt tivera conhecimento daqueles crimes.
Kovac olhou para o Sol, um pálido círculo alaranjado no mais pálido dos céus, com um aro em volta. Um sol muito fraco. O que significava que estava frio.
Frio como o caraças.
Disse que encontraram os ficheiros do Andy informou Liska. No barco dele. Óptimo palpite.
O Neil contou-me que o Andy fora até lá no sábado à tarde disse Kovac. Os ficheiros não apareciam em lado nenhum. O Gaines não os tinha, caso contrário, não teria ido atrás de mim até lá ontem à noite. Embora aposte que agarrou no computador portátil e lhe deu sumiço na noite em que o matou.
Porque achas que o Andy escondeu os ficheiros e depois deixou o Gaines entrar em sua casa?
Não sei. Talvez não quisesse apenas que o Gaines os visse. Tenho a certeza de que nunca imaginou que fosse capaz de matar por eles.
O que irá acontecer ao Wyatt?
Kovac encolheu os ombros.
Os homicídios não prescrevem. Temos a gravação onde ele confessa que matou o Weagler e disparou sobre o Mike.
Já se sabe que o advogado dele dirá que foi feita sob coacção, que ninguém lhe leu os direitos e por aí fora.
Pois é. Eu diria que a justiça não existe observou Kovac, o que não é verdade. Às vezes demora, mas não tarda. E às vezes, quando aparece, não é bem o que esperávamos.
Durante alguns momentos nada disseram, limitando-se a ficar ali a olhar para a rua.
Lamento o que aconteceu à Amanda disse Liska. Kovac não lhe falara nos seus sentimentos pela tenente
Savard. De que valia outros saberem? Já não era nada fácil ter de lidar com o facto. Pior seria sentirem-se solidários com ele. Ou, pior ainda, terem pena. No entanto, contara-lhe o que acontecera em casa de Wyatt. Não lhe escondera o que sabia, o que depreendera, o que Wyatt lhe dissera após os acontecimentos.
Não tinha dificuldade em imaginar Amanda aos dezassete anos, vulnerável e cheia de medo; a precisar de justiça, sem a receber das pessoas com quem devia contar para tal. Fizera a única coisa que acreditava que salvaria a sua mãe: matara o pai. Depois, Evelyn Thorne tomara a única posição que achava que salvaria a filha: assumira a culpa. Fora então que Wyatt aparecera em cena e a tragédia entrara em espiral.
Lembrava-se agora do que Amanda lhe dissera na sexta-feira à noite, quando estavam os dois na cozinha de sua casa: Eu tentei tomar as minhas opções com a ideia de que era o melhor que podia fazer. Às vezes, a pessoa sofre durante o processo, mas eu decidi pela razão certa. Isso devia contar para alguma coisa, não acha?
Eu também lamento murmurou ele por fim, grato pelos óculos de sol que escondiam os seus olhos e as emoções que neles se espelhavam. Está tudo acabado para o Wyatt acrescentou, tirando um cigarro do bolso e colocando-o entre os lábios. Tudo acabado. Não restou nada...
Para mim, pensou, embora não o dissesse.
Tinha o seu trabalho, a única coisa em que alguma vez fora bom.
Sem que soubesse porquê, era algo que naquele momento já não lhe parecia suficiente. Achava que não preencheria o vazio dentro de si. Talvez isso nunca mais voltasse a acontecer.
E tu, como tens passado? perguntou à colega. Liska encolheu os ombros e pôs os óculos de sol.
Bem, por ter olhado a morte de frente. Não gostaria de fazer isso todos os dias. Deu-lhe uma cotovelada e sorriu-lhe de esguelha. Estás a ver? Aquele trabalho em Hollywood é que daria em grande. Muito dinheiro a troco de nada.
Calaram-se por momentos.
Tive medo confessou Liska. Ainda não me recompus. Nem quero pensar naqueles rapazes a crescer sem mim. Espetam-me uma pistola na cara e eu ainda brinco com isso. Mas não tem graça nenhuma.
Não me vais deixar, pois não, Tinks?
Liska não lhe respondeu de imediato, e quando o fez não se tratou de nenhuma resposta.
Vou tirar umas férias. Levo os rapazes para um lado qualquer. Vou bronzear-me.
Elwood apareceu à porta e espetou a cabeça para fora.
Vocês hão-de querer ver isto.
Entraram na casa e seguiram-no por entre a confusão de agentes; subiram as escadas que levavam ao quarto de dormir e entraram no pequeno compartimento do lado, que servia de roupeiro.
Gaines fora um grande apreciador de roupas. O roupeiro estava atravancado de cabides com fatos e camisas. As gavetas, cheias de camisolas e de sapatos. Alguém afastara os cabides pendurados no varão, pondo a descoberto a parede, onde se via uma obra de arte secreta.
Jesus! foi apenas o que Kovac se lembrou de dizer.
Gaines enchera a parede de fotografias e de recortes recentes de Wyatt. Artigos sobre o homem, o programa, o acordo com a rede de televisão da Warner Brothers. Fotografias de Wyatt em cinquenta locais diferentes, a apertar mãos, a posar ao lado de membros do governo e de admiradores. Fotografias dos dois em vários eventos sociais. Ao centro: Wyatt num enorme cartaz brilhante. Um santuário.
Caramba! exclamou Liska, franzindo o nariz. Alguém quer ir tomar um duche?
Encontrei estas num envelope em cima de uma prateleira disse Elwood, entregando um monte de fotografias a Kovac.
Andy Fallen pendurado numa corda presa a uma das vigas do seu quarto. Fotografia de corpo inteiro. Nu. Acabado de morrer. Um grande plano do seu rosto. Mike Fallen na sua cadeira de rodas, morto.
Para o álbum de recordações observou Kovac, repetindo o que ouvira Gaines dizer quando tirara as fotografias no ringue de gelo com os VIPs da Warner Brothers.
Achas que ele as tirou para mais tarde chantagear o Wyatt? perguntou Elwood.
Kovac desviou o olhar das fotografias para a colagem, voltando depois a focá-lo nelas.
Não - respondeu, devolvendo as fotografias. Acho que não.
O funeral de Amanda Savard decorreu na terça-feira. Uma semana depois do de Andy Fallen. Kovac foi sozinho, um das duas dúzias de polícias presentes na pequena capela da casa funerária. Ela levara uma vida reservada e controlada dentro das muralhas das suas defesas. Kovac suspeitava de que ele fora uma das raras pessoas a ter algum vislumbre do interior das mesmas.
Evelyn Thorne estava lá, acompanhada do seu médico. Ninguém saberia dizer se tinha noção, ou não, do que se estava a passar. Esteve calmamente sentada durante toda a cerimónia fúnebre, a olhar para a fotografia que levara consigo: Amanda com cinco anos. Olhos brilhantes e expressão muito séria. O cabelo preso num rabo-de-cavalo com uma fita de veludo azul. Mostrou-a a Kovac três vezes. Este sentiu uma vontade enorme de lha pedir, mas não o fez.
A cerimónia foi simples, o encerramento básico da existência terrena. Porque tu és pó e em pó te hás-de tornar. Que resumo tão inadequado da vida: nasce-se, vive-se, morre-se. Não houve elogios fúnebres. Nem acompanhamento religioso à beira da campa. Amanda foi sepultada ao lado do pai.
Os pormenores relacionados com o envolvimento de Amanda na morte de Bill Thorne tinham sido ocultados à imprensa. O seu funeral não foi considerado notícia. O de Mike Fallen atraiu um milhar de agentes de toda a zona norte do Midwest e saiu na primeira página do Star Tribune. Kovac não compareceu.
Voltou discretamente à capela depois de o serviço terminar e o resto dos acompanhantes do enterro se retirarem. Ficou sentado durante muito tempo, a olhar para o caixão fechado, sem se permitir, verdadeiramente, pensar no que poderia ter acontecido. O director da casa funerária veio lançar-lhe o mesmo olhar esperançado de um empregado de bar à hora de fechar.
Esteja à vontade disse o homem com um sorriso delicado, voltando a afastar-se em direcção às palmeiras envasadas que se estendiam ao longo da parede da sala.
Kovac levantou-se e meteu a mão no bolso.
Posso deixar algo com ela? Ou é demasiado tarde para isso?
Com certeza. O homem voltou a aproximar-se, com expressão bondosa. Posso encarregar-me disso.
Kovac tirou o crachá de identificação que usara como agente de patrulha quando entrara para a polícia, muitos anos antes. Olhou para ele, passou-lhe o polegar por cima e depois entregou-o ao agente funerário.
Gostaria que ela ficasse com isto.
O homem pegou no crachá, acenou com a cabeça e esboçou um sorriso delicado.
Eu trato disso.
Obrigado.
Já só estavam dois carros no parque de estacionamento ao lado. O dele e o de Liska. Esta encontrava-se encostada à porta do lado do condutor, de braços cruzados.
Estás bem? perguntou, de olhos franzidos. Kovac olhou para o edifício que ficara para trás.
Não, nem por isso... Não respeitei uma das minhas regras. Tive demasiadas esperanças.
Liska esboçou um sinal de entendimento.
Também me aconteceu o mesmo... Enfim, sempre podemos ficar os dois a rabujar.
Kovac enfiou as mãos nos bolsos e encurvou os ombros para enfrentar o frio.
Eu não estou rabugento, sinto-me é amargurado. Durante um instante, Liska limitou-se a olhar para o colega, não com olhos de polícia, mas sim de amiga. Depois afastou-se do carro e foi abraçá-lo. Kovac retribuiu o gesto de ternura, cerrando fortemente as pálpebras para reprimir a vontade de chorar. Ficaram assim durante um minuto, talvez dois.
Liska, quando se afastou, deu-lhe uma palmadinha no braço e tentou sorrir.
Ei, sempre nos temos um ao outro, não é? Vem daí, parceiro, que eu pago-te um café.
Kovac sorriu ligeiramente.
Vamos a isso... amiga.
Tami Hoag
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