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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


À SOMBRA DAS CHUTEIRAS IMORTAIS / Nelson Rodrigues
À SOMBRA DAS CHUTEIRAS IMORTAIS / Nelson Rodrigues

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

À SOMBRA DAS CHUTEIRAS IMORTAIS

Crônicas de Futebol

 

Do brasileiro vira-lata ao brasileiro orgu­lhoso de ser brasileiro — esta é a trajetória contada por Nelson Rodrigues nas se­tenta crônicas de À sombra das chuteiras imortais. Elas cobrem o período que vai da Copa do Mundo de 1950, em que a derrota do Brasil para o Uruguai em ple­no Maracanã reforçou a péssima imagem que o brasileiro fazia de si mesmo, à Co­pa de 1970 no México, a do tricampeonato — passando pela emoção de todas as Copas que vieram no meio e que ajudaram o Brasil a se trans­formar como nação.

Mas não é só quando trata da seleção que Nel­son faz do futebol um teatro que envolve todas as paixões humanas. Ao falar de um reles Fla­mengo X Canto do Rio ou do velório de um ve­lho jogador obscuro, ele está apenas usando o fu­tebol como um pretexto para mergulhar em suas obsessões: o heroísmo e o medo, a multidão e o indivíduo, a vida e a morte.

Nelson Rodrigues não enxergava direi­to. De longe, então, era incapaz de distin­guir Fulano de Beltrano. No Maracanã, que deixa o torcedor a léguas do campo, não conseguia ver o jogo sozinho. Tinha que ter alguém soprando no ouvido dele os lances que a vista curta não alcançava. E, no entanto, ninguém jamais retratou um jogo de futebol com a dimensão épica que o leitor vai encontrar neste livro or­ganizado por Ruy Castro com o mesmo ri­gor e o mesmo encantamento com que se debruçou sobre a vida e a obra desse admirável artista que conheci tão de perto.

Releio, em estado de graça, a prosa poé­tica de Nelson Rodrigues, escrita ao longo de vinte anos. São crônicas da época em que o futebol brasileiro foi mais feliz. O li­vro apaixona. O estilo é, ao mesmo tempo, lírico e cortante. Nelson adjetiva a vida e os homens com uma audácia exemplar. À sombra das chuteiras imortais é a obra sem igual de um cronista que nunca deu a mínima bola para a frígida aritmética do jogo. Na ótica privilegiada de Nelson, fute­bol sempre foi e há de ser arrebatamento. Paixão avassaladora. Chuteiras sangran­do pela doce abstração de um gol.

O olhar metafórico de Nelson percorria o campo todo, recriando cada passe, cada drible, cada gol, numa secreta tabelinha com parceiros do imponderável. Era nas entrelinhas desse jogo sempre mágico que ele ia buscar seus personagens. A bola que passasse por Castilho não passaria por uma certa alma do outro mundo que o cronista volta e meia escalava para salvar de uma derrota o time do Fluminense ou a seleção nacional. Por suas sagradas paixões, Nelson Rodrigues encarava Deus e o mundo.

Nelson Rodrigues costumava dizer que, como um menino, via o amor pelo bura­co da fechadura. Poderia dizer, também, que via o futebol com os olhos de um ilu­minado. Todo domingo, ele ia ao estádio, para contemplar os anjos e os demônios da sua devoção. Foi assim, no entardecer de cada jogo, que nasceu À Sombra das Chuteiras Imortais, canto primeiro e úni­co à epopéia do futebol brasileiro.

Das setenta crônicas de À sombra das chuteiras imortais, as primeiras 31 foram publicadas originariamente na revista Man­chete Esportiva, onde Nelson Rodrigues escreveu de 1955 a 1959. Dessas 31, as primeiras onze conservam os títulos originais. As outras vinte, publicadas sob a rubrica “Meu personagem da se­mana”, ganharam títulos novos usando-se escrupulosamente o pensamento e as palavras do autor. As 39 crônicas restantes (a partir de “Um horizonte de chifres”) saíram em O Globo, onde Nelson escreveu a partir de 1962 uma coluna diária que, às segundas-feiras, vinha sob a rubrica “Meu personagem da sema­na” e, nos demais dias, sob “À sombra das chuteiras imortais”. Também essas ganharam títulos novos sob o mesmo critério.

As notas ao pé de página, pelo organizador desta edição, servem para situar o leitor sobre o resultado e outros detalhes da partida a que Nelson se refere — uma preocupação que ele não precisava ter, já que sua coluna vinha na página onde se cobria o tal jogo. A identificação de certos nomes citados por ele só foi feita nos casos extremos. Supôs-se que a maneira com que ele escrevia sobre futebol, quase desligando-o da vida real e jogando-o numa dimensão de eternidade, fosse suficiente pa­ra tornar essas pessoas fascinantes, mesmo que o leitor não te­nha grande informação sobre elas.

Aos que notarem a ausência do “Sobrenatural de Almeida” e de outros personagens de Nelson: eles pertencem mais às suas crônicas dos anos 70 — fora das balizas deste livro, que se en­cerra exatamente no tricampeonato do Brasil. Mas estarão pre­sentes numa segunda e inevitável coletânea futebolística de Nel­son. À sombra das chuteiras imortais é só o começo.

 


FLAMENGO SESSENTÃO

Corria o ano de 1911. Vejam vocês: — 1911! O bigode do kaiser estava, então, em plena vigência; Mata-Hari, com um seio só, ateava paixões e suicídios; e as mulheres, aqui e alhures, usa­vam umas ancas imensas e intransportáveis. Aliás, diga-se de pas­sagem: — é impossível não ter uma funda nostalgia dos quadris anteriores à Primeira Grande Guerra. Uma menina de catorze anos para atravessar uma porta tinha que se pôr de perfil. Con­venhamos: — grande época! grande época!

Pois bem. Foi em 1911, tempo dos cabelos compridos e dos espartilhos, das valsas em primeira audição e do busto uni­lateral de Mata-Hari, que nasceu o Flamengo.[*] Em tempo retifi­co: — nasceu a seção terrestre do Flamengo. De fato, o clube de regatas já existia, já começava a tecer a sua camoniana tradi­ção náutica. Em 1911, aconteceu uma briga no Fluminense. Dis­cute daqui, dali, e é possível que tenha havido tapa, nome feio, o diabo. Conclusão: — cindiu-se o Fluminense e a dissidência, ainda esbravejante, ainda ululante, foi fundar, no Flamengo de regatas, o Flamengo de futebol.

Naquele tempo tudo era diferente. Por exemplo: — a tor­cida tinha uma ênfase, uma grandiloqüência de ópera. E acon­tecia esta coisa sublime: — quando havia um gol, as mulheres rolavam em ataques. Eis o que empobrece liricamente o fute­bol atual: — a inexistência do histerismo feminino. Difícil, muito difícil, achar-se uma torcedora histérica. Por sua vez, os homens torciam como espanhóis de anedota. E os jogadores? Ah, os jogadores! A bola tinha uma importância relativa ou nula. Quantas vezes o craque esquecia a pelota e saía em frente, ceifando, dizimando, assassinando canelas, rins, tórax e baços adversá­rios? Hoje, o homem está muito desvirilizado e já não aceita a ferocidade dos velhos tempos. Mas raciocinemos: — em 1911, ninguém bebia um copo d’água sem paixão.

Passou-se. E o Flamengo joga, hoje, com a mesma alma de 1911. Admite, é claro, as convenções disciplinares que o fute­bol moderno exige. Mas o comportamento interior, a gana, a garra, o élan são perfeitamente inatuais. Essa fixação no tempo explica a tremenda força rubro-negra. Note-se: — não se trata de um fenômeno apenas do jogador. Mas do torcedor também. Aliás, time e torcida completam-se numa integração definitiva. O adepto de qualquer outro clube recebe um gol, uma derrota, com uma tristeza maior ou menor, que não afeta as raízes do ser. O torcedor rubro-negro, não. Se entra um gol adversário, ele se crispa, ele arqueja, ele vidra os olhos, ele agoniza, ele san­gra como um césar apunhalado.

Também é de 911, da mentalidade anterior à Primeira Gran­de Guerra, o amor às cores do clube. Para qualquer um, a cami­sa vale tanto quanto uma gravata. Não para o Flamengo. Para o Flamengo, a camisa é tudo. Já tem acontecido várias vezes o seguinte: — quando o time não dá nada, a camisa é içada, des­fraldada, por invisíveis mãos. Adversários, juizes, bandeirinhas tremem então, intimidados, acovardados, batidos. Há de che­gar talvez o dia em que o Flamengo não precisará de jogadores, nem de técnicos, nem de nada. Bastará a camisa, aberta no ar­co. E, diante do furor impotente do adversário, a camisa rubro-negra será uma bastilha inexpugnável.

 [Manchete Esportiva, 26/11/1955]

 


O CRAQUE SEM IDADE

Quando acabou a etapa inicial do jogo Brasil x Paraguai, o placar acusava um lírico, um platônico 0 x 0. Ora, o empate é o pior resultado do mundo. O torcedor sente-se roubado no dinheiro da entrada e inclinado a chamar os 22 jogadores, o juiz e os bandeirinhas de vigaristas. Acresce o seguinte: — de todos os empates o mais exasperante é o de 0 x 0. Essa virgindade desagradável e irredutível do escore já humilhava o público e, ao mesmo tempo, o enfurecia.

Súbito, o alto-falante do estádio se põe a anunciar as duas substituições brasileiras: — entravam Zizinho e Walter. Foi uma transfiguração. Ninguém ligou para Walter, que é um craque, sim, mas sem a tradição, sem a legenda, sem a pompa de um Ziza. O nome que crepitou, que encheu, que inundou todo o espaço acústico do Maracanã foi o do comandante banguense. Imediatamente, cada torcedor tratou de enxugar, no lábio, a ba­ba da impotência, do despeito e da frustração. O placar perma­necia empacado no 0 x 0. Mas já nos sentíamos atravessados pela certeza profética da vitória. Os nossos tórax arriados encheram-se de um ar heróico, estufaram-se como nos anúncios de fortificante.

Eis a verdade: — a partir do momento em que se anunciou Zizinho[†], a partida estava automática e fatalmente ganha. Por­tanto, público, juiz, bandeirinhas e os dois times podiam ter se retirado, podiam ter ido para casa. Pois bem: — veio o jogo. Ora, o primeiro tempo caracterizara-se por uma esterilidade bonitinha. Nenhum gol, nada. Mas a presença de Zizinho, por si só, dinamizou a etapa complementar, deu-lhe caráter, deu-lhe alma, infundiu-lhe dramatismo. Por outro lado, verificamos ain­da uma vez o seguinte: — a bola tem um instinto clarividente e infalível que a faz encontrar e acompanhar o verdadeiro cra­que. Foi o que aconteceu: — a pelota não largou Zizinho, a pe­lota o farejava e seguia com uma fidelidade de cadelinha ao seu dono. (Sim, amigos: — há na bola uma alma de cachorra.)

No fim de certo tempo, tínhamos a ilusão de que só Zizi­nho jogava. Deixara de ser um espetáculo de 22 homens, mais o juiz e os bandeirinhas. Zizinho triturava os outros ou, ainda, Zizinho afundava os outros numa sombra irremediável. Eis o fato: — a partida foi um show pessoal e intransferível.

E, no entanto, a convocação do formidável jogador susci­tara escrúpulos e debates acadêmicos. Tinha contra si a idade, não sei se 32, 34, 35 anos. Geralmente, o jogador de 34 anos está gagá para o futebol, está babando de velhice esportiva. Mas o caso de Zizinho mostra o seguinte: — o tempo é uma con­venção que não existe nem para o craque, nem para a mulher bonita. Existe para o perna-de-pau e para o bucho. Na intimida­de da alcova, ninguém se lembraria de pedir à rainha de Sabá, a Cleópatra, uma certidão de nascimento. Do mesmo modo, que importa a nós tenha Zizinho dezessete ou trezentos anos, se ele decide as partidas? Se a bola o reconhece e prefere?

No jogo Brasil x Paraguai, ele ganhou a partida antes de aparecer, antes de molhar a camisa, pelo alto-falante, no inter­valo. Em último caso, poderá jogar, de casa, pelo telefone.

 [Manchete Esportiva, 3/12/1955]

 

CONVENIÊNCIA DE SER COVARDE

Há tempos, fui à rua Bariri, ver um jogo do Fluminense. E confesso: — sempre considerei Olaria tão longínqua, remo­ta, utópica como Constantinopla, Istambul ou Vigário Geral. Já na avenida Brasil, comecei a sentir uma nostalgia e um exílio só equiparáveis aos de Gonçalves Dias, de Casimiro de Abreu. Conclusão: — recrudesceu em mim o ressentimento contra qual­quer espécie de viagem. Mas, enfim, cheguei e assisti à partida. Nos primeiros trinta minutos, houve tudo, rigorosamente tu­do, menos futebol. Uma vergonha de jogo, uma pelada alvar, que não valia os cinco cruzeiros do lotação. E, súbito, ocorre o episódio inesperado, o incidente mágico, que veio conferir ao match de quinta classe uma dimensão nova e eletrizante.

Eis o fato: — um jogador qualquer enfiou o pé na cara do adversário. Que fez o juiz? Arremessa-se, precipita-se com um élan de Robin Hood e vem dizer as últimas ao culpado. Então, este não conversa: — esbofeteia o árbitro. Ora, um tapa não é apenas um tapa: — é, na verdade, o mais transcendente, o mais impor­tante de todos os atos humanos. Mais importante que o suicídio, que o homicídio, que tudo o mais. A partir do momento em que alguém dá ou apanha na cara, inclui, implica e arrasta os outros à mesma humilhação. Todos nós ficamos atrelados ao tapa.

Acresce o seguinte: — o som! E, de fato, de rodos os sons terrenos, o único que não admite dúvidas, equívocos ou sofis­mas é o da bofetada. Sim, amigos: — uma bofetada silenciosa, uma bofetada muda, não ofenderia ninguém, e pelo contrário: — vítima e agressor cairiam um nos braços do outro, na mais profunda e inefável cordialidade. É o estalo medonho que a va­loriza, que a dramatiza, que a torna irresgatável.

Pois bem: — na bofetada de Olaria não faltou o detalhe auditivo. Mas o episódio não esgotara ainda o seu horror. Restava o desenlace: — a fuga do homem. Pois o juiz esbofeteado não teve meias medidas: — deu no pé. Convenhamos: — é empol­gante um pânico assim taxativo e triunfal, sem nenhum disfar­ce, nenhum recato. Digo “empolgante” e acrescento: — rarís­simo ou, mesmo, inédito.

Via de regra, só o heroísmo é afirmativo, é descarado. O herói tem sempre uma desfaçatez única: — apresenta-se como se fosse a própria estátua eqüestre. Mas a covardia, não. A co­vardia acusa uma vergonha convulsiva. Tenho um amigo que faz o seguinte: — chega em casa, tranca-se na alcova, tapa o bu­raco da fechadura e só então, na mais rigorosa intimidade — apanha da mulher. Mas cá fora, à luz do dia, ele é um Tartarin, um Flash Gordon, capaz de varrer choques de polícias especiais.

Pois bem. Ao contrário dos outros covardes, que escon­dem, que renegam, que desfiguram a própria covardia — o juiz correu como um cavalinho de carrossel. Note-se: há hoje toda uma monstruosa técnica de divulgação, que torna inexeqüível qualquer espécie de sigilo. E, logo, a imprensa e o rádio envol­veram o árbitro. Essa covardia fotografada, irradiada, televisio­nada projetou-se irresistivelmente. E quando, em seguida, a po­lícia veio dar cobertura ao árbitro, este ainda rilhava os dentes, ainda babava materialmente de terror. Acabado o match a mul­tidão veio passando, com algo de fluvial no seu lerdo escoamen­to. Mas todos nós, que só conseguimos ser covardes às escon­didas, tínhamos inveja, despeito e irritação dessa pusilanimidade que se desfraldara como um cínico estandarte.

[Manchete Esportiva, 17/12/1955]


O JUIZ LADRÃO

De vez em quando, eu esbarro num saudosista. É um sujei­to esplêndido, que vive enfiado no passado. Direi mais: — vive feliz e realizado no passado como um peixinho num aquário de sala de visitas. E convenhamos que isto é bonito, é lindo. Outro dia, um deles atracou-se comigo no meio da rua; arrastou-me para o fundo de um café, e, lá, com o olho rútilo e o lábio trêmulo, pôs-se a falar de Marcos de Mendonça, o “Fitinha Roxa”; da “espanhola”; do assassinato de Pinheiro Machado e do campeo­nato que o Botafogo tirou em 1910. Mas, nos vinte minutos da conversa retrospectiva, já lhe pendia do beiço uma grossa, uma espuma bovina, uma baba elástica. De mim para mim, compreen­di essa nostalgia, louvei essa fidelidade ao passado. Amigos, eis uma verdade eterna: — o passado sempre tem razão.

Por exemplo: — o futebol antigo. Era, a meu ver, um fenô­meno vital muito mais rico, complexo e intrincado. Hoje, os jo­gadores, os juizes e os bandeirinhas se parecem entre si como soldadinhos de chumbo. Não encontramos, em ninguém, uma dessemelhança forte, crespa e taxativa. Não há um craque, um árbitro ou um bandeirinha que se imponha como um símbolo humano definitivo. Outrora havia o “juiz ladrão”. E hoje? Hoje, os juizes são de uma chata, monótona e alvar honestidade. Abra-hão Lincoln não seria mais íntegro do que Mário Vianna. E va­mos e venhamos: — a virtude pode ser muito bonita, mas exala um tédio homicida e, além disso, causa as úlceras imortais. Não acredito em honestidade sem acidez, sem dieta e sem úlcera.

Mas ponha-se um árbitro insubornável diante de um viga­rista. E verificaremos isto: — falta ao virtuoso a feérica, a irisada, a multicolorida variedade do vigarista. O profissionalismo torna inexeqüível o juiz ladrão. E é pena. Porque seu desapare­cimento é um desfalque lírico, um desfalque dramático para os jogos modernos.

Vejam vocês que coisa melancólica e deprimente: — um jogo de futebol tem 22 homens. Com o juiz e os bandeirinhas, 25. Acrescentem-se os gandulas e já teremos um total de 29. Vin­te e nove homens e nem um único e escasso canalha, nem um único e escasso vigarista! Eis a verdade, que levaria um Balzac ao desespero e à úlcera: — as condições do futebol contempo­râneo tornam impraticável a existência do canalha. Ou por ou­tra: — o canalha pode existir, mas contido, frustrado, inédito, sem função e sem destino.

Mas em 1918, 17 ou 16, os gatunos constituíam uma brio­sa fauna, uma luxuriante flora. Evidentemente, havia as exce­ções. Mas os salafrários podiam apitar as partidas e com que glo­rioso, com que genial descaro! Certa vez, foi até interessante: — existia um juiz que era um canalha em estado de pureza, de graça, de autenticidade. Um domingo, ele vai apitar um jogo decisivo. Que fazem os adversários? Tentam suborná-lo. Ora, o canalha é sempre um cordial, um ameno, um amorável. E o homem optou pela solução mais equânime: — levou bola dos dois lados. Justiça se lhe faça: — roubou da maneira mais de­senfreada e imparcial os dois quadros. Ao soar o apito final, os 22 jogadores partiram para cima do ladrão. Mas o gângster já se antecipara, já estava pulando muros e galinheiros. Era uma figurinha elástica, acrobática e alada. Isto foi em 1917. O juiz gatuno está correndo até hoje.

 [Manchete Esportiva, 31/12/1955]

 


BOCAGE NO FUTEBOL

Quando eu tinha meus cinco, meus seis anos, morava, ao lado de minha casa, um garoto que era tido e havido como o anticristo da rua. Sua idade regulava com a minha. E justiça se lhe faça: — não havia palavrão que ele não praticasse. Eu, na minha candura pânica, vivia cercado de conselhos, por todos os lados: — “Não brinca com Fulano, que ele diz nome feio!”. E o Fulano assumia, aos meus olhos, as proporções feéricas de um Drácula, de um Nero de fita de cinema. Mas o tempo pas­sou. E acabei descobrindo que, afinal de contas, o anjo de boca suja estava com a razão. Sim, amigos: — cada nome feio que a vida extrai de nós é um estímulo vital irresistível. Por exem­plo: — os nautas camonianos. Sem uma sólida, potente e jucunda pornografia, um Vasco da Gama, um Colombo, um Pedro Ál­vares Cabral não teriam sido almirantes nem de barca da Cantareira. O que os virilizava era o bom, o cálido, o inefável palavrão.

Mas, se nas relações humanas em geral, o nome feio pro­duz esse impacto criador e libertário, que dizer do futebol? Eis a verdade: — retire-se a pornografia do futebol e nenhum jogo será possível, Como jogar ou como torcer se não podemos xin­gar ninguém? O craque ou o torcedor é um Bocage. Não o Bocage fidedigno, que nunca existiu. Para mim, o verdadeiro Bocage é o falso, isto é, o Bocage de anedota. Pois bem: — está para nascer um jogador ou um torcedor que não seja bocagiano. O craque brasileiro não sabe ganhar partidas sem o incentivo cons­tante dos rijos e imortais palavrões da língua. Nós, de longe, vemos os 22 homens correndo em campo, matando-se, agoni­zando, rilhando os dentes. Parecem dopados e realmente o estão: — o chamado nome feio é o seu excitante eficaz, o seu afrodisíaco insuperável.

Exagero? Nem tanto, nem tanto. A propósito, vou citar aqui o caso de Jaguaré.[‡]No seu tempo, os clubes não tinham Depar­tamento Médico e um jogador podia andar com a boca em peti­ção de miséria, desfraldando cáries gigantescas. Assim era Ja­guaré: — não tinha dentes, só cáries. E seu riso sem obturações, docemente alvar, era largo, permanente e terrível. E acontece o seguinte: — a época de Jaguaré coincidiu com a infância do profissionalismo. Morria-se de fome no futebol. O sujeito que tinha para a média, para o pão com manteiga, podia se conside­rar um Rockefeller, de tanga, mas Rockefeller.

Até que, um dia, apareceu por aqui o emissário de um clu­be estrangeiro. E o homem esfregou na cara de Jaguaré propos­tas dignas de um rajá. A princípio, o nosso patrício opôs uma recusa inexpugnável. Não queria aceitar nem por um decreto. Acabou cedendo. Andou pela Espanha e até por Paris. Mas era outro, como homem e como craque. Como jogar sem a porno­grafia luso-brasileira? Sem as expressões obscenas que dinami­zam, que transfiguram, que iluminam os jogadores? Traduzi-las seria uma traição. E Jaguaré vivia sob a persistente, a dilacerada nostalgia dos nomes feios intransportáveis.

Finalmente, não pôde mais: — voltou correndo para o Bra­sil. Aqui, agonizou e morreu na mais horrenda miséria. Mas fe­liz, porque pôde soltar, no idioma próprio, seus últimos pala­vrões terrenos.

 [Manchete Esportiva, 14/1/1956]

 


RIGOLETTO DE LANÇA-PERFUME

Ontem, assisti a uma cena que me pareceu, salvo engano, uma pequena, incisiva e inefável lição de vida. Eis o episódio: — estava eu na esquina de Carioca com Uruguaiana. Fecha o sinal. Os homens estacam para o surdo escoamento dos veícu­los. E, súbito, uma voz gaiata anuncia: — “Olha o rapa!”. O que houve, a seguir, foi um desses espasmos coletivos, que só o Tolstoi de Guerra e paz ousaria descrever.

Vi a histeria dos outros e a minha própria. Todos se arremessaram: — senhoras honestíssimas, mestres do direito, psiquiatras, intelectuais, viúvas, mata-mosquitos. O medo é um grande e eficaz nivelador. Sob o estímulo da pusilanimidade, tubarões e pé-rapados largam a mesma baba, elástica e bovina. O pior de tudo foi o seguinte: — era rebate falso. Não havia ra­pa nenhum. Imediatamente, as caras começaram a resplande­cer, já lavadas do medo, numa cínica, numa deslavada euforia. O último a recuperar um pouco de harmonia interior foi um psicanalista célebre. Cobra tão caro, o homem, que o cliente tem que ser, no mínimo, um estabelecimento bancário para su­portar-lhe os preços. E tinha náuseas de pavor homérico.

Pois bem. Diante do paroxismo geral e do meu próprio, descobri o seguinte: — o nosso mais agudo, o nosso mais exas­perado problema vital é o rapa. Não importa o sexo, a idade, o nível social e econômico de cada um. Do psicanalista naba­besco ao pobre-diabo dostoievskiano, da senhora mais excelsa ao vigarista mais frenético — cada um de nós vive esperan­do que o rapa o lace, o recolha, na primeira esquina. Pode-se mesmo dizer que a chamada consciência humana é o medo do rapa.

Eu disse que todos reagem assim, com esse pânico munici­pal. Em tempo, retifico. Todos, menos um: — o juiz de fute­bol. E, com efeito, o único ser que está não sei se acima, se abai­xo do rapa, ou imune ao pânico que ele deflagra, é o árbitro de futebol. Ele resiste a tudo. Repito: — é o único ser inamovível, inexpugnável.

Todos os domingos, 100, 150, 200 mil pessoas o chamam de ladrão. Seja ele um Abrahão Lincoln, um Robespierre, um Marat, uma Maria Quitéria. Não importa. Taxam-no de gatuno e de tudo o mais. Ora, até os bichos de desenho animado têm seus arreganhos de pundonor. Vejam as touradas. Há um momento em que, fulo dentro da roupa, o animal estaca. Diante dos urros do público, ele recebe uma brusca consciência ética da humi­lhação. Se lhe fosse permitido, o touro, assim ofendido, largaria o toureiro e sairia dando marradas nos espectadores. Só o juiz de futebol lava as mãos diante do irresponsável furor coletivo. E convenhamos: — o indivíduo que, sozinho, resiste a 200 mil pessoas pode quebrar os chifres de qualquer rapa.

Mas nem sempre foi assim, nem sempre. No passado era diferente: lavrava o suborno. Por exemplo: — em 1915, havia um juiz, de segunda divisão, que se vendia até por um maço de cigarros. Mas um dia o homem empaca: — repeliu a oferta de 20 mil réis que lhe sopraram para amolecer a arbitragem. Es­se esgar de vergonha, de honra, era um sintoma taxativo. Na época, caçava-se louco no meio da rua, a pauladas. Dois ou três dias depois, passou a carrocinha de cachorro e o recolheu. O árbitro deixou-se levar: — ia no carro feliz e jucundo como um Rigoletto de lança-perfume.

 [Manchete Esportiva, 4/2/1956]

 


O CRAQUE NA CAPELINHA

Falei em craque, mas, em tempo, retifico: — era um perna-de-pau. Com uma agravante: — perna-de-pau de longínquo, de antediluviano passado. Floresceu, se não me engano, por volta de 914, 916. Era a época inefável em que as mulheres não ras­pavam nem as pernas, nem debaixo do braço. E essas canelas barbadas, essas axilas luxuriantes definiam um tipo de civiliza­ção. Pois bem: — o perna-de-pau, que já enterrava o time em 1915, não tardaria a abandonar o futebol. Seu último jogo ocor­reu na semana em que assassinaram Pinheiro Machado. De en­tão para cá, ele veio arrastando sua decadência, através das se­manas, meses e anos. Por último, não comia, nem bebia: — era a única fome, a única sede do Brasil. Um dia desses, após uma agonia fétida e terrível, o homem morreu. E, então, moradores do bairro, em conluio com alguns comerciantes, resolveram cus­tear-lhe o enterro.

Fui vê-lo na capelinha, para onde o remeteram. Diante de­le, diante do ser transfigurado, verifiquei o seguinte: — não há morto canastrão. Vestido de noivo, com sapatos engraxados, ele tem a face, o ríctus, o perfil do grande ator. Assim aconte­cera com o perna-de-pau: — no caixão, apresentava uma nobre e taciturna máscara cesariana.

O diabo era o ambiente do velório. Eis a verdade: — ne­nhum morto devia ir para as capelinhas, jamais. Elas traduzem um sintoma terrível da nossa época. Antes de mais nada, signi­ficam um frívolo desamor à morte e aos mortos. Não sabemos morrer, nem enterrar. E pior do que isso: — não sabemos fazer quarto. Essa impotência diante da morte é o melancólico e ine­vitável resultado das capelinhas. Antigamente, o defunto tinha domicílio. Ninguém o vestia às carreiras; ninguém o despachava às escondidas. Permanecia em casa e, pois, dentro de um am­biente em que até os móveis eram cordiais e solidários. Armava-se a câmara-ardente numa doce sala de jantar ou numa cálida sala de visitas, debaixo dos retratos dos outros mortos. Escan­caravam-se todas as portas, todas as janelas; e esta casa ilumina­da podia sugerir, à distância, a idéia de aniversário, de casamento ou de velório mesmo.

Era a época em que as mães, as viúvas tinham furores de Sarah Bernhardt. Lembro-me de uma menina que morreu, de febre amarela, quando eu tinha meus cinco anos. Pois bem. A mãe da morta quase pôs a casa abaixo. Batia com a cabeça nas paredes; derrubava as cadeiras; e queria arrancar os próprios olhos. Teve que ser contida, amordaçada, quase amarrada. To­dos haviam parado de gemer, de chorar, para espiar essa dor maior. Houve um momento em que só ela gemia, só ela chora­va, como uma insuperável solista.

Hoje, isto não é possível. A capelinha esvaziou a morte do seu conteúdo poético dramático e, direi mesmo, histérico. Preliminarmente, o defunto está fora do seu clima residencial. Co­mo os demais, ele é um constrangido, um cerimonioso, um des­locado. Sim, todos, inclusive o cadáver, têm um ar de visita. Essa polidez impede a violência e a espontaneidade da dor que vem de dentro, das profundezas, como um gemido vacum. Bem que a viúva desejaria espernear, esganiçar-se, como uma canastrona do velho teatro. Mas eis a verdade: — a capelinha torna inexeqüíveis as histerias magníficas dos funerais antigos.

Eu sei que o perna-de-pau era apenas um perna-de-pau, contemporâneo, quase dizia colega do assassinato de Pinheiro Machado. Ainda assim. Qualquer morto é um césar.

[Manchete Esportiva, 11/2/1956]


O RISO

Eis a verdade: — o que sustenta, o que nutre, o que dina­miza o futebol é a vaidade. Vejamos o juiz. É um crucificado vitalício. Seja ele o próprio Abrahão Lincoln, o próprio Robespierre, e a massa ignara e ululante o chamará de gatuno. Dirá alguém que ele percebe um bom salário. Nem assim, nem as­sim. Não há dinheiro que o compense e redima, nenhum orde­nado que o lave, que o purifique. E, no entanto, ele não renun­cia às suas funções nem por um decreto. Pergunto: — por que esta obstinação? Amigos, a vaidade o encouraça, a vaidade o tor­na inexpugnável, a vaidade o ensurdece para as 200 mil bocas que urram: — “Ladrão! Ladrão! Ladrão!”.

O mesmo acontece com o craque, com o paredro, com o técnico. O futebol os projeta e pendura nas manchetes, e esta publicidade histérica constitui uma delícia suprema. E ninguém é modesto, ninguém. Qualquer jogador, ou qualquer dirigen­te, ou qualquer técnico tem a torva e a vaidade de uma prima-dona gagá, cheia de pelancas e de varizes. Eu disse que ninguém é modesto no futebol. Em tempo retifico: — há, sim, uma úni­ca e escassa figura, que, no meio do cabotinismo frenético e ge­ral, constitui uma exceção franciscana. Refiro-me ao esqueci­do, ao desprezado, ao doce massagista.

A imprensa e o rádio falam de tudo, numa sádica e minu­ciosa cobertura. Jamais, porém, um locutor, um repórter lem­brou-se de mencionar a atuação de um massagista. Ele não merece, ao menos, uma citação desprimorosa. Um bandeirinha consegue ser vaiado. Não o massagista, que não inspira nada: — nem amor, nem ódio. Dir-se-ia que o gandula é mais importante. E, no entanto, apesar da humildade sufocante de suas funções, o massagista pode ser uma dessas figuras capitais, que resolvem o destino das batalhas.

Para não ir muito longe, citarei o exemplo de Mário Améri­co. Tudo na sua figura de ex-boxeur justifica uma simpatia uni­versal, a começar pela cabeça minuciosamente raspada, até o último vestígio de cabelo. Esse coco lustroso e negro já o dis­tingue dos demais, em violento destaque. Pois bem: — simples e humilde massagista, Mário Américo influi mais nos fatos do campo, na evolução das partidas, que muito jogador, muito paredro, muito técnico. E não é com massagens platônicas, não é fazendo seu métier, que o homem tem decidido vários jogos. Mário Américo age pelo riso, apenas pelo riso.

Sim, amigos: — quando ele se abre, quando se escancara, quando se alarga no seu riso incoercível, não há força que o contenha e que lhe resista. Mário Américo sério é um pobre ser, duma esplendorosa nulidade como todos nós. Mas a gargalha­da o transfigura, dá-lhe uma nova dimensão racial, uma grande­za inesperada e terrível, o equipara a certos negros da ficção e da vida: — Paul Robeson, José do Patrocínio, Otelo, impera­dor Jones etc.

Sobretudo nas pelejas internacionais, tudo, nesse homem de cor, é um riso só: — riem os lábios, as gengivas, os dentes, as ventas e até a careca retinta. Foi o que aconteceu no Brasil x Argentina[§], em Montevidéu. Luizinho deu um corte num ad­versário de forma tão espetacular que Mário Américo não resis­tiu: — nunca o seu riso foi tão largo, nunca o seu riso teve, co­mo naquele momento, uma dilatação de parto. E aquela cara que ria alucinou os nossos adversários. Como vencer uma gar­galhada cósmica? Se pudessem, os argentinos teriam atravessa­do aquele riso com uma lança, como nas gravuras de são Jorge.

 

[Manchete Esportiva, 8/3/1956]

FREUD NO FUTEBOL

Um amigo meu que foi aos Estados Unidos informa que, lá, todo mundo tem o seu psicanalista. O psicanalista tornou-se tão necessário e tão cotidiano como uma namorada. E o sujeito que, por qualquer razão eventual, deixa de vê-lo, de ouvi-lo, de farejá-lo, fica incapacitado para os amores, os negócios e as bandalheiras. Em suma: — antes de um desses atos gravíssimos, como seja o adultério, o desfalque, o homicídio ou o simples e cordial conto-do-vigário, a mulher e o homem praticam a sua psicanálise.

O exemplo dos Estados Unidos leva-me a pensar no Brasil ou, mais exatamente, no futebol brasileiro. De fato, o futebol brasileiro tem tudo, menos o seu psicanalista. Cuida-se da inte­gridade das canelas, mas ninguém se lembra de preservar a saú­de interior, o delicadíssimo equilíbrio emocional do jogador. E, no entanto, vamos e venhamos: — já é tempo de atribuir-se ao craque uma alma, que talvez seja precária, talvez perecível, mas que é incontestável.

A torcida, a imprensa e o rádio dão importância a pequeni­nos e miseráveis acidentes. Por exemplo: — uma reles distensão muscular desencadeia manchetes. Mas nenhum jornal ou locutor jamais se ocuparia de uma dor-de-cotovelo que viesse acome­ter um jogador e incapacitá-lo para tirar um vago arremesso lateral. Vejam vocês: há uma briosa e diligente equipe médica, que abrange desde uma coriza ordinaríssima até uma tubercu­lose bilateral. Só não existe um especialista para resguardar a lancinante fragilidade psíquica dos times. Em conseqüência, o jogador brasileiro é sempre um pobre ser em crise.

Para nós, o futebol não se traduz em termos técnicos e tá­ticos, mas puramente emocionais. Basta lembrar o que foi o jo­go Brasil x Hungria[**], que perdemos no Mundial da Suíça. Eu disse “perdemos” e por quê? Pela superioridade técnica dos ad­versários? Absolutamente. Creio mesmo que, em técnica, bri­lho, agilidade mental, somos imbatíveis. Eis a verdade: — antes do jogo com os húngaros, estávamos derrotados emocionalmente. Repito: — fomos derrotados por uma dessas tremedeiras ob­tusas, irracionais e gratuitas. Por que esse medo de bicho, esse pânico selvagem, por quê? Ninguém saberia dizê-lo.

E não era uma pane individual: — era um afogamento co­letivo. Naufragaram, ali, os jogadores, os torcedores, o chefe da delegação, a delegação, o técnico, o massagista. Nessas oca­siões, falta o principal. Estão a postos os jogadores, o técnico e o massagista. Mas quem ganha e perde as partidas é a alma. Foi a nossa alma que ruiu face à Hungria, foi a nossa alma que ruiu face ao Uruguai.

E aqui pergunto: — que entende de alma um técnico de futebol? Não é um psicólogo, não é um psicanalista, não é nem mesmo um padre. Por exemplo: — no jogo Brasil x Uruguai entendo que um Freud seria muito mais eficaz na boca do tú­nel do que um Flávio Costa, um Zezé Moreira, um Martim Fran­cisco. Nos Estados Unidos, não há uma Bovary, uma Karênina que não passe, antes do adultério, no psicanalista. Pois bem: — teríamos sido campeões do mundo, naquele momento, se o es­crete houvesse freqüentado, previamente, por uns cinco anos, o seu psicanalista.

Sim, amigos: — havia um comissário de polícia, que lia muito X-9, muito Gibi. Para tudo o homem fazia o comentá­rio erudito: — “Freud explicaria isso!”. Se um cachorro era atropelado, se uma gata gemia mais alto no telhado, se uma galinha pulava a cerca do vizinho, ele dizia: — “Freud expli­caria isso!”. Faço minhas as palavras da autoridade: — só um Freud explicaria a derrota do Brasil frente à Hungria, do Brasil frente ao Uruguai e, em suma, qualquer derrota do homem brasileiro no futebol ou fora dele.

 [Manchete Esportiva, 7/4/1956]

 


A DIVINA GOLEADA

Para muitos, a batalha América x Flamengo foi um absur­do monstruoso. De fato, como explicar que perdesse de qua­tro um time que, dias antes, venceu de cinco?[††] Foi o que acon­teceu com o América, foi o que aconteceu com o Flamengo. E, no entanto, o mistério é muito mais aparente do que real. Se examinarmos bem a segunda e a terceira partidas da melhor de três, veremos o seguinte: — há um nítido, um taxativo pa­rentesco entre uma goleada e outra. Os 5 x 1 explicam os 4 x 1 e vice-versa. Com uma ingenuidade suicida, arranjamos uma data falsa para o tricampeonato.

Segundo o rádio, a imprensa e a televisão, o Flamengo tornou-se tricampeão na quarta-feira e só na quarta-feira. Nin­guém quer ver que, quatro dias antes, o América já estava liqui­dado. Sim, amigos: — a partir do momento em que cravou no Flamengo, até o cabo, os 5 x 1, o clube rubro fez o próprio e irremediável abismo. Certos escores são proibitivos, fatais. Por exemplo: — 5 x 1. É uma goleada e vamos e venhamos: — qual­quer goleada promove duas vítimas: — o que perde e o que ga­nha. Basta folhear a história do futebol. E nós temos, à mão, um exemplo crudelíssimo, que ainda hoje nos enfurece: — o do match Brasil x Espanha. Perdemos o campeonato do mun­do porque, dias antes, goleamos os espanhóis de uma maneira quase imoral. Tivéssemos obtido uma vitória mais sóbria e me­nos feérica, trucidaríamos o Uruguai com um pé nas costas.

Direi mais: — admite-se uma goleada num match isolado e contra um perna-de-pau. Nunca, porém, num match deci­sivo e contra um Flamengo. Mas acontece o seguinte: — os escores altos geram, quase sempre, uma insatisfação total. Os times que fazem muitos gols querem ampliar o placar, mais e mais. O América devia ter parado nos dois ou, no máximo, nos 3 x 1. Quis chegar aos cinco e não sossegou enquanto não viu o Flamengo arrasado.

Geralmente não enxergamos um palmo adiante do nariz. Não fosse esta cegueira crassa, e teríamos percebido tudo. Quero dizer: — a depressão rubro-negra, naquele domingo, era um pre­cário disfarce dos seus brios enfurecidos. E, ao sair de campo, sob o impacto de tantos gols, sangrando de humilhação, o Fla­mengo já devia levar o estigma, ainda imponderável, do tricampeonato. A tragédia do América foi ter dado ao rival, no último ou, por outra, no penúltimo momento, o incentivo final e de­cisivo.

Deu-se o inevitável: — houve o desarmamento interior do América frente ao Flamengo. Era óbvio. Não há irritação possí­vel e, muito menos, ódio nas relações do vencedor com o ven­cido. O ganhador está sempre disposto a deixar-se apunhalar pelo adversário. Eu imagino que, antes da dor, da raiva, do de­sespero, o América há de ter experimentado, quarta-feira, um sincero, fidedigno espanto diante daquela rajada de gols. E, no entanto, não cabia o seu assombro: — ele perdera o campeona­to quatro dias antes.

O triunfo do Flamengo encerra uma luminosa e aguda li­ção de vida. Ele foi humilhado e sabemos que a humilhação, a grande e irresgatável humilhação, confere aos homens e aos times uma dimensão nova, uma potencialidade irresistível. O “mais querido” devia ter, à mão, sempre, um adversário que o goleasse de 5 x 1, o maior número possível de vezes. E assim espicaçado, assim transfigurado, acabaria sendo tricampeão to­dos os anos.

[Manchete Esportiva, 11/4/1956]

 


IRRESISTÍVEL FLAMENGO

Quando o serviço de audiodifusão anunciou a equipe do Flamengo, o público ficou sem saber se ria, se chorava. De fato, a formação rubro-negra era, a um só tempo, cômica e pungente. Que espécie de chance poderiam ter os Babás, os Henriques, os Moacir, contra os Puskas do Honved? O Fla­mengo atirava garotos contra o métier, a classe, o virtuosismo dos húngaros. Era uma aventura pânica, uma experiência, se assim posso dizer, suicida. Pois bem: — começa o jogo. E, com surpresa e quase com irritação geral, esfarela-se, à vista de todos, o maciço favoritismo dos visitantes. Sim, amigos: — o Flamengo, com seus aspirantes, é que parecia o Honved, é que parecia o escrete húngaro. Os Babás, os Henriques é que pareciam os Puskas.[‡‡]

Os gols começaram a entrar. Terminou o primeiro tempo com um marcador que não deixava de ser apavorante: — 3 x 1, a favor dos quase juvenis rubro-negros. A multidão já não en­tendia nada. Fora lá com o seguinte objetivo expresso: — ver a surra que o Honved ia dar no Flamengo. Em vez disso, assis­tia ao massacre técnico e tático dos magiares. Vem o segundo tempo e nada muda a fisionomia do jogo. O escore final, 6 x 4, com seu ar de bola de meia, de pelada, não chega a constituir um banho. Nem o banho está no marcador, mas no jogo. Foi uma lavagem de bola de futebol que os meninos da Gávea infli­giram aos visitantes. Resta a pergunta: — por que a partida as­sumiu, contra todos os cálculos, características tão insólitas?

Tratei de ler os jornais de domingo. Verifiquei o seguinte: — cada cronista apresentou uma imagem própria da partida. Segundo uns, o Honved está “gordo”, segundo outros “desambientado”, ou, então, com “saudades da família”. O que ninguém se lembrou foi de atribuir o resultado ao mérito do Flamengo. Sim, o match foi o que foi, e não o que se espera­va, porque demonstramos uma devastadora superioridade. Não foi o Honved que jogou mal: — foi o rubro-negro que jogou muito melhor. Nas vitórias fáceis, o derrotado parece, logica­mente, fora de forma física, técnica e, até, moral. Pois claro! Tudo o que o vencido faz sai mal, torto, falho. Por outro lado, a euforia do ganhador sufoca o élan do antagonista. Racioci­nemos, amigos: — os húngaros pareceram lerdos, pesadões, ineptos, porque os Babás, os Didas, os Paulinhos disparavam-se com uma velocidade, uma penetração de balas.

É fácil explicar, também, a perplexidade quase dolorosa do público. Por ocasião do Mundial da Suíça, os jornalistas patrí­cios mandaram de lá uma versão desfigurada da nossa peleja com a Hungria. Segundo se escreveu, os húngaros venceram, naquela época, porque eram imbatíveis. E, no entanto, a verdade era bem outra. O nosso escrete entrou, para os 4 x 2 de Berna, num es­tado vizinho do histerismo. Imprestável emocionalmente, não estava em condições de vencer nem um time de botão. Mas, sábado, o Flamengo deu uma medida autêntica do nosso futebol.

O que vimos foi, de fato, o cotejo do futebol húngaro e brasileiro, ambos com as suas características fidedignas. Falar em “desambientação” de um time que tem métier internacional, que deu um banho na Inglaterra, em Londres, é um pouco forte. E, além disso, se eles estavam “desambientados”, vamos e venhamos: — o Flamengo pôs em campo quase o time de aspirantes.

O brasileiro gosta muito de ignorar as próprias virtudes e exaltar as próprias deficiências, numa inversão do chamado ufanismo. Sim, amigos: — somos uns Narcisos às avessas, que cospem na própria imagem. Mas certas vitórias merecem um total respeito. Por exemplo: — a de sábado. A garotada rubro-negra deu-nos uma lição maravilhosa, que é a seguinte: — o futebol brasileiro, jogando o que sabe, observando as suas verdadeiras características, é o melhor do mundo.

 [Manchete Esportiva, 26/1/1957]

 


A CUSPARADA METAFÍSICA

Amigos, é óbvio que eu tenho que catar, entre os 22 ele­mentos de Canto do Rio x Flamengo[§§], o meu personagem da semana. Digo “22 elementos” e já retifico: — 23. De fato, seria uma injustiça, e das mais crassas, não incluir o árbitro Alberto da Gama Malcher entre as figuras cogitáveis. Ele marcou dois pênaltis e, não satisfeito, determinou uma expulsão. E um juiz que faz tanto está, indubitavelmente, assumindo uma grave res­ponsabilidade, perante Deus e perante os homens. Sim, ele po­deria ser meu personagem, se eu não tivesse escolhido outro. E o patético é que, desta vez, não se trata de gente. Insisto: o meu personagem da semana não pertence à triste e miserável condição humana. É, e com escrúpulo e vergonha o confesso, uma cusparada.

A vida dos homens e dos times depende, às vezes, de episódios quase imperceptíveis. Por exemplo: — o jogo Can­to do Rio x Flamengo, que foi tão árduo, tão dramático para o rubro-negro. Antes da partida, havia rubro-negros olhando de esguelha, e com o coração pressago, o time da vizinha ca­pital. É certo que o Canto do Rio não esfrega na nossa cara grandes nomes, grandes cartazes. Mas nós sabemos que está lá, por trás, dispondo, o treinador Zezé Moreira. Convém te­mer o clarividente métier, a sábia experiência do vencedor do Pan-Americano.

Começa o match e logo se percebe que o Flamengo teria de molhar a camisa. O Canto do Rio fez o jogo que rende, que interessa: — bola no chão, passe rasteiro, penetração, agressividade. Termina a primeira etapa com um escandaloso 1 x 0 a favor do Canto do Rio. Cá fora, vários rubro-negros se entreolhavam, em pânico. Imaginem se o Flamengo cai da liderança, como de um trapézio. Mas vem o tempo final e o rubro-negro consegue, com um gol notabilíssimo de Henrique, o empate. Mas não bas­tava. Um empate significaria, do mesmo modo, a humilhação de um segundo lugar. Continua a tragédia.

E, de repente, com a bola longe, nos pés de Jairo, se não me engano, há um incidente na área do Canto do Rio. Alguém chuta alguém. Malcher, de uma só cajadada, mata dois coelhos: — expulsa Floriano, que lhe pareceu culpado, e assinala pênalti contra o Canto do Rio. Amigos, eu confesso: — tive pena do Canto do Rio, porque o árbitro o punia duas vezes pela mesma falta. Achei que era justiça demais, castigo demais. Vem Moacir e desempata: — Flamengo 2 x 1. Inferiorizado no placar e com dez elementos, lá parte, outra vez, o Canto do Rio. Jogo duro, viril, disputado com gana e, eu quase diria, com ódio.

Faltando quatro ou cinco minutos para acabar a batalha, ocorre contra o Flamengo o pênalti que, para muitos, foi de compensação. Devia ser empate, ou seja: — o resultado que viria pôr abaixo, da ponta, o Flamengo. Foi então que Dida teve uma lembrança maléfica e mesmo diabólica. Estava a bola na marca fatídica. Dida aproxima-se, ajoelha-se, baixa o rosto e vai fazer o que nem todos, na afobação, percebem. Para muitos, ele es­taria rezando o couro. Mas eis, na verdade, o que acontecia: Di­da estava cuspindo na bola. Apenas isso e nada mais.

Objetará alguém que este é um detalhe anti-higiênico, antiestético, que não devia ser inserido numa crônica. Mas eu vos direi que, antes de Canto do Rio x Flamengo, já dizia aquele personagem shakespeariano que há mais coisas no céu e na terra do que supõe a nossa vã filosofia. Quem sabe se a cusparada não decidiu tudo? Só sei que lá ficou a saliva, pousada na bola. O que aconte­ceu depois todos sabem: — Osmar bate a penalidade de uma ma­neira que envergonharia uma cambaxirra. Atirava o Canto do Rio pela janela a última e desesperada chance de um empate glorioso.

E ninguém desconfiou que o fator decisivo do triunfo fo­ra, talvez, a cusparada metafísica de Dida, que ungiu a bola e a desviou, na hora H.

 [Manchete Esportiva, 9/11/1957]

 


ARTILHEIRO EM ESTADO DE ANJO

Depois da fabulosa goleada botafoguense[***], a escolha do meu personagem da semana deixa de ser problema. É Paulinho, só pode ser Paulinho. E aqui eu pergunto: — quem é Paulinho? Antes do jogo era um e agora outro. Seu nome passou a exigir uma pronúncia mais enfática. E, no entanto, vejam vocês: — até há bem pouco tempo era um sujeito irritante. Quantos gols perdia por jogo, quantos! Parecia, mal comparando, um Valdo talvez piorado. Sabe-se que, nos primeiros tempos, a especiali­dade de Valdo era perder gols que uma cambaxirra faria. Pois bem: — Paulinho não lhe ficava atrás. Sempre que, por circuns­tâncias jornalísticas, eu vi jogos do Botafogo, Paulinho atirava pela janela oportunidades deslumbrantes. Debaixo dos três paus, ele mandava por cima, pelos lados, mas para dentro, nunca. Num espanto profundo, eu perguntava a um e outro: — “Como po­de? Como pode?”. E Paulinho não estava longe de me parecer um caso perdido.

Justiça se lhe faça, porém: — perdendo quinze gols por um que fazia, Paulinho jamais deixou de ser um jogador raçudo. Lutava de fio a pavio, até a última gota de suor. Corria em cam­po como um coelhinho de desenho animado e, além disso, nun­ca fugiu do pau. Ora, o público venera os craques sem medo e que molham, encharcam a camisa, numa honesta e máscula transpiração. E como Paulinho suava mais que os outros, como tinha brancas hemorragias de suor, todo mundo o respeitava, inclusive eu. Sim, Paulinho nunca brincou em serviço. Em ca­da partida, faz um honrado esforço de noventa minutos.

Domingo, finalmente, chegou o grande dia de Paulinho. Senão vejamos: — um jogador que enfia cinco gols na última batalha, na batalha que vai decidir a guerra, esse jogador é um monstro. Depois da peleja, vejo um alvinegro gemendo. A princípio, pareceu-me que seria uma cólica. Engano. Não era cólica: — era espanto. E, com efeito, ele ainda pasmava para a exorbitância numérica de tantos gols conseguidos por um único cidadão. O botafoguense bufava: — “Cinco! Cinco!”.

Outro alvinegro veio cochichar-me, ao ouvido: — “Viste aquele gol de letra que Paulinho fez?”. Tomo um susto: — “De letra?”. E, de fato, na minha dolorosa e ignara perplexidade, eu não me lembrava de nenhum gol de letra. Mas, como Paulinho meteu tantos, comecei a admitir que tivesse enfiado um de le­tra também. Só depois é que dei pelo equívoco. O chamado gol de letra fora o de bicicleta. Conto o episódio para que vocês observem o fenômeno. Já há quem esteja idealizando os tentos de Paulinho. Os cinco gols já nasceram históricos. Retocados por uns e outros, eles invadem o folclore. A lenda e a anedota estão funcionando, desde domingo. Daqui a pouco, quando se contar a história dos cinco gols, não se saberá discernir entre a ficção e a realidade.

O meu personagem da semana é, desde domingo, uma dessas glórias súbitas que, de vez em quando, rompem num domingo de futebol. Antes do jogo, quem era a vedete, a prima-dona, a estrela máxima do ataque alvinegro? Didi. Com o seu magnífico tipo racial de príncipe etíope de rancho, ele se des­tacava furiosamente. Logo depois, vinha Garrincha, que o trei­nador húngaro Giula Mandi considera, e eu também, o maior ponta-direita do mundo. Paulinho valia, sobretudo, pela de­sesperada abnegação do seu esforço. Estava, porém, bem abai­xo de Didi e de Garrincha. Mas, a partir do momento em que Malcher pôs um ponto final na partida de domingo, Paulinho já não está mais abaixo de ninguém. Pode erguer a cabeça e bater no peito: — “Eu sou eu!”.

Imagino que, domingo, ao entrar em campo, ele não era um jogador como qualquer um, como qualquer outro. Era al­guém em estado de graça ou, ainda, em estado de anjo. Sua tre­menda euforia não foi de jogador, nem mesmo de gente. Só mes­mo um anjo faria tantos gols num jogo decisivo. Vejam bem: — minuto a minuto, foi de um fôlego bestial. Não parava. Ele, sozinho, nas suas penetrações alucinantes, bastava para dinami­zar a peleja, para dramatizá-la. Foi com ele que começou a desintegrar-se a defesa tricolor. Ah, o duelo de Paulinho com Pinheiro! Foi algo de trágico. Eu vos digo: — Pinheiro, atrás de meu personagem, parecia uma maciça, uma compacta catedral perseguindo um coelhinho. E como Paulinho cortou, envolveu, ceifou, dizimou e devastou Pinheiro!

Alguém me dizia, depois da batalha: — “Não fosse Pauli­nho, teríamos empatado de 1 x 1 e seríamos campeões!”. Mas houve Paulinho e, diante dos 6 x 2, do histerismo numérico do escore, a vontade que dá a qualquer um é sentar no meio-fio e chorar. Não há raciocínio possível contra a goleada cósmica. E convenhamos: — os cinco gols de meu personagem da sema­na deviam estar, desde domingo, numa vitrine de museu.

 [Manchete Esportiva, 28/12/1957]

 


O DEUS DE CARLITO ROCHA

Chegou, enfim, o momento de fazer de Carlito Rocha o meu personagem da semana. Quer queiram, quer não, ele está atre­lado ao fabuloso triunfo alvinegro sobre o Fluminense.[†††] E aqui pergunto: — qual teria sido a contribuição carlitiana para o tí­tulo? Eu próprio respondo: — Carlito ligou o jogo ao sobrena­tural, pôs Deus ao lado do Botafogo e mais do que isso: — pôs Deus contra o Fluminense.

E, com efeito, três ou quatro dias antes do clássico, um jornalista foi provocar o velho Rocha. Ora, Carlito nunca teve meias medidas, nunca. Bastaram duas ou três perguntas estimulantes para que, dentro dele, rugisse a imortal paixão botafoguense. Em vez de soltar declarações convencionais, o homem abriu a alma de par em par. Contou, entre outras coisas, que vira e ou­vira Deus. É raro, muito raro, que venha alguém a público con­fessar uma visão. Geralmente, temos vergonha e, mais do que isso, medo das nossas visões. E, antes de mais nada, cumpre re­conhecer a coragem de Carlito Rocha. Disse ele que Deus viera anunciar-lhe a vitória do Botafogo.

Um vaticínio divino é algo mais que um palpite de esqui­na. E, no entanto, vejam vocês, nem o jornal que publicou a reportagem, nem o leitor, nem a torcida, ninguém acreditou, nem em Carlito, nem na visão, nem mesmo em Deus. As decla­rações do velho Rocha, tão honestas e incisivas, pareceram a nós, impotentes da fé, uma simples e cruel piada do jornal. E um amigo, pó-de-arroz como eu, veio perguntar-me:

— Viste o Deus de Carlito?

Eu não tinha visto o jornal, ainda. Mas as palavras do meu amigo ficaram ressoantes em mim: — “Deus de Carlito!”. E, subitamente, eu compreendia o seguinte: — não há um Deus geral, não há um Deus de todos, não há um Deus para todos. O que existe, sim, é o Deus de cada um, um Deus para cada um. Por outras palavras: — um Deus de Carlito, um Deus do leitor, um Deus meu e assim por diante. Ao falar, com um es­gar de pouco-caso, no “Deus de Carlito”, o meu amigo anun­ciava uma verdade, sem querer. Eu imagino que, até o dia da batalha, tenham dito o diabo do velho Rocha. Riam dele, de alto a baixo. Pobres de nós, que não sabemos respeitar as gran­des paixões! E ninguém queria perceber o que era óbvio: — graças a Carlito, criava-se uma relação entre o Botafogo e o sobrenatural, e o clássico decisivo passava a adquirir um pou­co de eternidade.

Vem o jogo. Com a nossa obtusidade de ateus, tínhamos da batalha uma visão crassamente realista. Só cuidávamos dos aspectos técnicos, táticos e físicos. Eu próprio vivia perguntan­do, a um e outro, na minha aflição de pó-de-arroz: — “O Leo joga? O Leo não joga?”. Em suma: — pensava em Leo, em Pi­nheiro, em Cacá, ou Valdo, mas não chamava o “meu” Deus. Ao passo que o velho Rocha é sábio quando acrescenta a qual­quer pelada do Botafogo a dimensão de sua fé.

Eu não vi, nem ouvi, durante toda a semana do jogo, um tricolor falar em Deus. E por quê? Pelo seguinte: — achamos que Deus não se interessa por futebol! Portanto, nós o excluí­mos das atribuições da nossa torcida. Domingo, nunca houve um clube tão sem Deus como o Fluminense. Ora, nenhum bra­sileiro consegue ser nada, no futebol ou fora dele, sem a sua medalhinha de pescoço, sem os seus santos, as suas promessas e, numa palavra, sem o seu Deus pessoal e intransferível. É esse místico arsenal que explica as vitórias esmagadoras.

Por tantos motivos, eu acredito, piamente, na contribuição de Carlito para o perfeito, o irretocável triunfo alvinegro. E, de resto, como não gostar do Deus do velho Rocha? Deus tão cor­dial, íntimo, terno, que se incorporou à torcida botafoguense, que viveu com a torcida botafoguense aqueles eternos noventa minutos! Enquanto nós não tivemos nada, não tivemos ninguém. Mais esperto, o Flamengo entretém as suas relações com o so­brenatural, através de são Judas Tadeu. E quanto a Carlito, nin­guém merece tanto como ele, agora, o título de meu persona­gem da semana.

 [Manchete Esportiva, 4/1/1958]

 


VESTIDO DE FOGO

Eis que o meu personagem da semana é, desta feita, um Taylor. “Mas que Taylor?”, há de perguntar o leitor, numa irremediável perplexidade. E, de fato, não há, em todo o fute­bol brasileiro, um único e escasso Taylor. Mas eu vos digo: — o meu atual personagem da semana não é daqui e, se não me falha a memória, jamais atuou em campo brasileiro. Acres­cento: — é inglês e acaba de morrer, à sombra de grandes labaredas. Estava na delegação do Manchester, que voltava pa­ra a pátria. Frustrado no seu vôo, o avião varreu um ou dois telhados, explodindo. Isso em Munique e, logo, em todo o mundo, as manchetes incorreram no mesmo lugar-comum: — “De luto o futebol inglês!”, “Tito telegrafou para a rainha”, “A rainha telegrafou para não sei quem” e entre as vítimas estava o meu personagem: — o Taylor morto.

Eis a verdade: — a morte parece conferir um especialíssimo manto aos seus eleitos. Não há morto sem importância. Dir-se-ia que, ao morrer, qualquer cidadão põe um ar de rei Lear. Eu disse “rei” e insisto: — rei. E o que aconteceu com Taylor, ao cair o avião, foi que adquiriu, imediatamente, uma nova di­mensão. Mas vejam: — ele já é eterno e nós ainda somos mortais.

Taylor! Pergunto a mim mesmo se, por acaso, não teria vin­do, aqui, algum dia, num desses clubes ingleses que nos visita­ram. Consulto um companheiro que me informa: — “Nunca jogou aqui”. E é pena. Agora que morreu gostaríamos de o ter visto, correndo, molhando a camisa, fazendo o metódico, o construído, o despojado futebol inglês. Futebol que se caracte­riza por uma implacável honestidade.

Ele morreu e ninguém o viu. Ou por outra: — só o viram os poucos brasileiros que estiveram em Wembley, naquele fu­nesto Brasil x Inglaterra[‡‡‡]. Taylor jogou pelos britânicos e, por duas vezes, arrombou as redes brasileiras. Em suma: — ele cola­borou para uma das mais duras humilhações do nosso futebol. Não tanto o escore de 4 x 2, mas as características da derrota é que ainda hoje nos envergonham. Realmente, diante dos ingle­ses caímos em inibições convulsivas. O que se viu foi um pobre Brasil, sem um único lampejo. Mas o tempo passa e eis que Tay­lor morre. E nós que não o vimos, que não o aplaudimos, nem o vaiamos, sentimos que Taylor deixou de ser um estranho. Sim, a morte deu-lhe a fisionomia exata, a face fidedigna, o ríctus cer­to. O verdadeiro rosto é o último. O homem da rua, que o igno­rava, cochicha para os conhecidos: — “O Taylor morreu!”. En­tre nós e os mortos cessam os limites de polidez, de cerimônia e de suspeita que separam os vivos uns dos outros.

E há uma circunstância que parece distingui-lo de todos os outros mortos e de todos os outros vivos: — ele marcou, como já referi, dois gols contra nós em Wembley. Naquela ocasião, confesso que estrebuchei, de raiva cívica. Se fosse um, mas dois, logo dois! Ora, nada se compara ao ódio que, de momento, açula o torcedor sempre que o adversário põe um gol como um ovo. A fúria rompe, sobe das nossas profundezas como uma golfada atroz. Assim eu odiei Taylor quando perdemos em Wembley. Digo “eu” e acrescento: — o resto do Brasil. Cerca de dois anos depois, cai um avião, Taylor morre e há, em nós, uma trans­formação.

Os mesmos dois gols, que outrora nos enfureceram, tecem entre nós e Taylor uma relação mais cordial e mais comovida. Dir-se-ia que, ao vazar o arco brasileiro, ele estava, em verda­de, prestando uma homenagem ao Brasil. Sentimos quase grati­dão pela derrota que ele e os companheiros nos infligiram. E ao imaginá-lo, vestido de fogo, no avião que decepou o telha­do, experimentamos um pouco a nostalgia da morte. É como se só existisse entre nós e Taylor esta diferença: — ele já mor­reu e nós somos uns mortos frustrados.

Em Wembley, era um ser em plenitude. Quem se lembra­ria de lhe soprar ao ouvido: — “Você vai morrer, Taylor!”? Os que vão morrer cedo deviam ter uma marca, um distintivo, um estigma material. Mas como não há esse estigma, a morte de Tay­lor cobriu o mundo de espanto.

 [Manchete Esportiva, 15/2/1958]

 


A REALEZA DE PELÉ

Depois do jogo América x Santos[§§§], seria um crime não fa­zer de Pelé o meu personagem da semana. Grande figura, que o meu confrade Albert Laurence chama de “o Domingos da Guia do ataque”. Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: — de­zessete anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa ter dezessete anos, jamais. Pois bem: — ver­dadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: — po­nham-no em qualquer rancho e a sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor.

O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um esta­do de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola, e dribla um adversário, é como quem enxo­ta, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu per­sonagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias. Já lhe perguntaram: — “Quem é o maior meia do mundo?”. Ele respondeu, com a ênfase das certezas eternas: — “Eu”. Insistiram: — “Qual é o maior ponta do mundo?”. E Pe­lé: — “Eu”. Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sor­rir. Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção, que ninguém reage e todos passam a admitir que ele se­ja, realmente, o maior de todas as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé.

Vejam o que ele fez, outro dia, no já referido América x Santos. Enfiou, e quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompéia. Sozinho, liquidou a partida, liquidou o América, monopolizou o placar. Ao meu lado, um americano doente estrebuchava: — “Vá jogar bem assim no diabo que o carregue!”. De certa feita, foi até desmoralizante. Ainda no primeiro tem­po, ele recebe o couro no meio do campo. Outro qualquer te­ria despachado. Pelé, não. Olha para a frente e o caminho até o gol está entupido de adversários. Mas o homem resolve fazer tudo sozinho. Dribla o primeiro e o segundo. Vem-lhe ao en­calço, ferozmente, o terceiro, que Pelé corta sensacionalmen­te. Numa palavra: — sem passar a ninguém e sem ajuda de nin­guém, ele promoveu a destruição minuciosa e sádica da defesa rubra. Até que chegou um momento em que não havia mais nin­guém para driblar. Não existia uma defesa. Ou por outra: — a defesa estava indefesa. E, então, livre na área inimiga, Pelé achou que era demais driblar Pompéia e encaçapou de maneira genial e inapelável.

Ora, para fazer um gol assim não basta apenas o simples e puro futebol. É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de confiança, de certeza, de otimismo, que faz de Pelé o cra­que imbatível. Quero crer que a sua maior virtude é, justa­mente, a imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. E acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida docilidade de cadelinha. Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível na formação de qualquer escrete. Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa atitude viril e mesmo insolente que precisamos. Sim, amigos: — aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas-de-pau.

Por que perdemos, na Suíça, para a Hungria? Examinem a fotografia de um e outro time entrando em campo. Enquanto os húngaros erguem o rosto, olham duro, empinam o peito, nós baixamos a cabeça e quase babamos de humildade. Esse flagran­te, por si só, antecipa e elucida a derrota. Com Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os outros é que tremerão diante de nós.

 [Manchete Esportiva, 8/3/1958]

 


DIDI SEM GUIOMAR

E, súbito, a cbd toma uma providência patética: — baixa uma ordem impedindo que qualquer jogador leve a mulher à Suécia. Ora, a finalidade da medida é de uma cândida transpa­rência. Só um cego de nascença não vê que se trata de separar Didi de Guiomar[****], de obstar que ela o acompanhe ao próximo Mundial. Está claro que Didi pagaria todas as despesas de Guio­mar; está claro, do mesmo modo, que ela ficaria fora da con­centração, apenas como torcedora de Didi e do Brasil. Ainda assim, a entidade máxima faz finca-pé. Didi está diante do dile­ma: ou a Suécia ou Guiomar. Não importa que a cbd volte atrás, que revogue a decisão errada e, sobretudo, inumana. Seja co­mo for, Guiomar já foi transformada num autêntico fato jorna­lístico, e merece que eu a apresente como meu personagem da semana.

Pergunto: — por que a arbitrariedade contra Didi e Guiomar?

Explico: — existe, contra ela, um preconceito militante, agressivo e eu quase diria internacional. Examinem a improcedência de certas antipatias, de certas irritações. Por exemplo: — ela trata, a todos, com uma cordialidade quase doce. E, no entanto, basta que Didi fracasse numa folha-seca, ou desperdice um pênalti, ou faça um passe errado, para que a torcida a res­ponsabilize. Vejam vocês as ironias do futebol: — ela devia ser responsável, por igual, pelos defeitos e pelos méritos de Didi. Mas não. Se Didi falha é Guiomar, se não falha é Didi. Ninguém admite que ela possa representar, no futebol do craque, um po­deroso estímulo, um incentivo total. Pelo contrário: — atribuem-lhe um papel funesto. Segundo a nossa maledicência fácil e ir­responsável, se Didi não faz mais gols é porque, atrás dele, está a influência nefanda de Guiomar.

Mas vamos imaginar, aqui, uma outra hipótese: — Didi sem Guiomar. Nós sabemos o que é um homem sem sua mulher. No­tem: — não é qualquer mulher, não é um flerte, não é um namo­ro, não é uma aventura, mas algo que independe de tempo, um vínculo irredutível e, eu tenho mesmo vontade de dizer, eterno. Tanto é verdade que ninguém consegue imaginar Didi sem Guio­mar e vice-versa. Dir-se-ia que os dois constituem um ser único, indivisível. E o que a cbd quer, justamente, é amputar um do ou­tro, é fazer a cisão intolerável de duas metades. Convenhamos: — já Didi seria menos Didi, ou por outra: — não seria Didi. Seria meio Didi, desfalcado na generosa totalidade do seu ser.

Imaginemos o craque na Suécia. E mais: — imaginemos o craque sem Guiomar. O juiz apita uma penalidade, nas imedia­ções da área, contra o adversário. Didi vai cobrar. É o momen­to justo e patético da folha-seca. Mas como executá-la, se há, entre Didi e Guiomar, terras e águas, se há entre os dois um ir­redutível oceano? E, de resto, como exigir uma folha-seca de um jogador que foi arrancado de seu amor, arrancado de sua paixão? Bem se vê que a cbd não entende nada de psicologia e nunca amou em sua vida. Ela vê o craque como tal, apenas. E nem desconfia que o jogador é, antes de tudo, um homem e que, nessa base, a condição humana está implicada em todos os seus defeitos e virtudes.

Dirá alguém que Didi e Guiomar brigam muito e que os bate-bocas em casa influem na produção em campo. Mas os con­flitos de um casal são inevitáveis e, mais do que isso, estimulantes. E quem nos diz que as brigas domésticas não inspiram Didi, não o transfiguram, não o virilizam nas batalhas da cancha? De vez em quando é preciso que um casal se engalfinhe. É sadio e atrevo-me mesmo a dizer: — é sublime. E porque um não pode viver sem o outro, seja na Suécia, seja em Vigário Geral, hoje o meu personagem da semana são dois: — Didi e Guiomar.

 [Manchete Esportiva, 26/4/1958]

 


O GORDO SALVADOR

Nenhum gordo gosta de ser gordo. Sobe na balança e tem um incoercível pudor, uma vergonha convulsiva do próprio pe­so. E, no entanto, vejam: — pior do que ser gordo é o inverso, quer dizer, pior do que ser gordo é ser magro. Digo isto a pro­pósito de Feola[††††], o meu personagem da semana. Ele está em Araxá e eu aqui. A despeito da distância, porém, é como se eu o esti­vesse vendo com a doce, a generosa cordialidade que é o clima dos gordos de todos os tempos. E aqui pergunto: — um Feola magro teria sido melhor para o escrete?

Não creio e explico. É preciso ver os magros com a pulga atrás da orelha. São perigosos, suscetíveis de paixões, de ran­cores, de fúrias tremendas. E, até hoje, que eu me lembre, to­dos os canalhas que conheci são, fatalmente, magros. Acredito que Feola esteja no profundo e amargo arrependimento de ser gordo. Mas, se assim for, temos de admitir a sua ingenuidade. Pois uma de suas consideráveis vantagens de homem e, atrevo-me a dizê-lo, de técnico está nesta circunstância, que ele deplo­ra e repudia. Numa terra de neurastênicos, deprimidos e irrita­dos, convém ter o macio, o inefável humor dos gordos. A ba­nha lubrifica as reações, amacia os sentimentos, amortece os ódios, predispõe ao amor.

Nós temos, aqui, um preconceito, de todo improcedente, contra a barriga. Erro crasso. Na verdade, há uma relação sutil, mas indiscutível, entre a barriga e o êxito, entre a barriga e a glória. Examinem a figura de Napoleão como imperador. Era ele, na ocasião, algum depauperado? Não, senhor. Pelo contrá­rio: — os quadros mostram a inequívoca e imperial barriga napoleônica. E uma das coisas que me levam a acreditar no Brasil como campeão do mundo é o fato de termos, finalmente, um técnico gordo.

O leitor pode perguntar, com certa irritação: — e que importância tem que o técnico seja magro ou não? Muita. De fato, dirigir um escrete, no Brasil, é um dos mais pesados encargos terrenos. O sujeito está cercado de palpites por todos os lados. Digo “cercado de palpites” e acrescento: — de palpiteiros. O técnico tem, no mínimo, duzentas irritações por dia. E, além do mais, não há função mais polêmica. Tudo o que ele faça sus­cita debates no país inteiro. Há sujeitos que vivem, dia e noite, tramando a sua desgraça. E das duas uma: ou ele tem uma inex­pugnável sanidade mental ou acaba maluco e a família não sa­be. Só um gordo, repito, possui por natureza a euforia necessá­ria para resistir às crises de um escrete.

Por exemplo: — observem o comportamento de Feola na preparação do escrete em Poços de Caldas e Araxá. Nada o per­turba, nada o irrita. Não subiu pelas paredes nenhuma vez, não gritou, não xingou a mãe de ninguém. Sabemos que há técnicos no Brasil e, por coincidência, magros, que acham bonito e efi­caz tratar o craque a pontapés. Feola, nunca. Podem fazer todas as ondas do céu e da terra. Ele permanecerá com sua alegria im­batível — constante, ininterrupta alegria. E esse bom humor que­bra e desmoraliza qualquer resistência. De resto, não desafia, não discute, não ofende. Faz o que quer, e só o que quer, da maneira mais discreta, insidiosa e, direi mesmo, imperceptível.

Não se sente a autoridade de Feola que, entretanto, é mili­tante, irredutível. Sim, amigos: — não esbraveja, não estrebucha, nem todos percebem que ele é o único que manda, o único que decide. E ninguém se iluda: — a sua abundante cordialidade de gordo é o disfarce de um maquiavelismo benéfico e criador. Esse técnico sem histeria, insuscetível de irritações, fazia falta num futebol de emotivos, de irritados, como o nosso.

Eu disse que Feola não perdia nunca o bom humor e já re­tifico: há uma maneira, sim, de enfurecê-lo. É chamá-lo de gor­do. Então, ele pula e esbraveja como um caluniado.

 [Manchete Esportiva, 3/5/1958]

 


O QUADRÚPEDE DE 28 PATAS

Hoje, o meu personagem da semana é uma das potências do futebol brasileiro. Refiro-me ao torcedor. Parece um pobre-diabo, indefeso e desarmado. Ilusão. Na verdade, a torcida po­de salvar ou liquidar um time. É o craque que lida com a bola e a chuta. Mas acreditem: — o torcedor está por trás, dispondo.

Escrevi acima que o torcedor não é um desarmado e pro­vo. De fato, ele possui uma arma irresistível: — o palpite erra­do. Empunhando o palpite, dá cutiladas medonhas. Vejam o pri­meiro jogo com os paraguaios. Vencemos de cinco[‡‡‡‡] e podia ter sido de dez. Fizemos do adversário gato e sapato. Ora, para uma primeira apresentação foi magnífico ou, mesmo, sublime. Mas quando saí do Maracanã, após o jogo, vejo, por toda parte, bra­sileiros amargos e deprimidos. Mais adiante, esbarro num ami­go lúgubre. Faço espanto: — “Mas que cara de enterro é essa?”. O amigo rosna: — “Estou decepcionado com o escrete!”. Caio das nuvens, o que, segundo Machado de Assis, é melhor do que cair de um terceiro andar. Instantaneamente, vi tudo: — o meu amigo era ali, sem o saber, um símbolo pessoal e humano da torcida brasileira. Símbolo exato e definitivo.

Em qualquer outro país, uma vitória assim límpida e líqui­da do escrete nacional teria provocado uma justa euforia. Aqui, não. Aqui, a primeira providência do torcedor foi humilhar, des­moralizar o triunfo, retirar-lhe todo o dramatismo e toda a im­portância. Atribuía-se a vitória não a um mérito nosso, mas a um fracasso paraguaio. Os guaranis passavam a ser pernas-de-pau natos e hereditários. Dir-se-ia que, por uma prodigiosa in­versão de valores, sofremos com a vitória e nos exaltamos com a derrota.

E, no entanto, vejam vocês: — o escrete visitante, que nos parecia de vira-latas, acabara de vencer e desclassificar a “Ce­leste” e bater a enfática Argentina. Mas, para cuspir na vitória brasileira, o nosso torcedor fingiu ignorar a real capacidade, a indiscutível classe do adversário. Veio o segundo jogo, no cam­po careca e esburacadíssimo do Pacaembu. Houve um empate, que teve para o Brasil o gosto de uma semiderrota. Desta vez, porém, nada de choro, nada de vela. Por toda parte, só se viam caras incendiadas de satisfação. Com o olho rútilo e o lábio trê­mulo, o torcedor patrício lavava a alma: — “Eu não disse?”. Os pernas-de-pau não eram mais os paraguaios, eram os brasilei­ros. E está-se vendo esta vergonha: — um escrete, que come­çou vencendo, já é vítima de uma negação frenética. Há gente torcendo para que ele apanhe de banho na Suécia.

Eis a verdade, amigos: — tratam do craque, tratam da equipe e esquecem o torcedor, que está justificando cuidados especiais. Que estímulo poderá ter um escrete que é negado mesmo na vi­tória? A seleção não tem saída. Se vence de cinco, se dá uma lava­gem, o torcedor acha que o adversário não presta. Se empata, quem não presta somos nós. Durma-se com um barulho desses!

Há uma relação nítida e taxativa entre a torcida e a seleção. Um péssimo torcedor corresponde a um péssimo jogador. De resto, convém notar o seguinte: — o escrete brasileiro implica todos nós e cada um de nós. Afinal, ele traduz uma projeção de nossos defeitos e de nossas qualidades. Em 50, houve mais que o revés de onze sujeitos, houve o fracasso do homem brasileiro.

A propósito, eu me lembro de um amigo que vivia, pelas esquinas e pelos cafés, batendo no peito: — “Eu sou uma bes­ta! Eu sou um cavalo!”. Outras vezes, ia mais longe na sua auto-consagração; e bramava: — “Eu sou um quadrúpede de 28 pa­tas!”. Não lhe bastavam as quatro regulamentares; precisava acrescentar-lhe mais 24. Ora, o torcedor que nega o escrete es­tá, como o meu amigo, xingando-se a si mesmo. E por isso, por­que é um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem, eu o promovo a meu personagem da semana.

 [Manchete Esportiva, 17/5/1958]

 


COMPLEXO DE VIRA-LATAS

Hoje vou fazer do escrete o meu numeroso personagem da semana. Os jogadores já partiram[§§§§]e o Brasil vacila entre o pessimismo mais obtuso e a esperança mais frenética. Nas esquinas, nos botecos, por toda parte, há quem esbraveje: — “O Brasil não vai nem se classificar!”. E, aqui, eu pergunto: — não será esta atitude negativa o disfarce de um otimismo inconfesso e envergonhado?

Eis a verdade, amigos: — desde 50 que o nosso futebol tem pudor de acreditar em si mesmo. A derrota frente aos uruguaios, na última batalha, ainda faz sofrer, na cara e na alma, qualquer brasileiro. Foi uma humilhação nacional que nada, absolutamen­te nada, pode curar. Dizem que tudo passa, mas eu vos digo: menos a dor-de-cotovelo que nos ficou dos 2 x 1. E custa crer que um escore tão pequeno possa causar uma dor tão grande. O tempo passou em vão sobre a derrota. Dir-se-ia que foi on­tem, e não há oito anos, que, aos berros, Obdulio arrancou, de nós, o título. Eu disse “arrancou” como poderia dizer: — “ex­traiu” de nós o título como se fosse um dente.

E, hoje, se negamos o escrete de 58, não tenhamos dúvida: — é ainda a frustração de 50 que funciona. Gostaríamos talvez de acreditar na seleção. Mas o que nos trava é o seguinte: — o pânico de uma nova e irremediável desilusão. E guardamos, pa­ra nós mesmos, qualquer esperança. Só imagino uma coisa: — se o Brasil vence na Suécia, se volta campeão do mundo! Ah, a fé que escondemos, a fé que negamos, rebentaria todas as com­portas e 60 milhões de brasileiros iam acabar no hospício.

Mas vejamos: — o escrete brasileiro tem, realmente, possi­bilidades concretas? Eu poderia responder, simplesmente, “não”. Mas eis a verdade: — eu acredito no brasileiro, e pior do que isso: — sou de um patriotismo inatual e agressivo, dig­no de um granadeiro bigodudo. Tenho visto jogadores de ou­tros países, inclusive os ex-fabulosos húngaros, que apanharam, aqui, do aspirante-enxertado do Flamengo. Pois bem: — não vi ninguém que se comparasse aos nossos. Fala-se num Puskas. Eu contra-argumento com um Ademir, um Didi, um Leônidas, um Jair, um Zizinho.

A pura, a santa verdade é a seguinte: — qualquer jogador brasileiro, quando se desamarra de suas inibições e se põe em estado de graça, é algo de único em matéria de fantasia, de im­provisação, de invenção. Em suma: — temos dons em excesso. E só uma coisa nos atrapalha e, por vezes, invalida as nossas qua­lidades. Quero aludir ao que eu poderia chamar de “complexo de vira-latas”. Estou a imaginar o espanto do leitor: — “O que vem a ser isso?”. Eu explico.

Por “complexo de vira-latas” entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos “os maiores” é uma cínica inver­dade. Em Wembley, por que perdemos? Porque, diante do qua­dro inglês, louro e sardento, a equipe brasileira ganiu de humildade. Jamais foi tão evidente e, eu diria mesmo, espetacular o nosso vira-latismo. Na já citada vergonha de 50, éramos supe­riores aos adversários. Além disso, levávamos a vantagem do empate. Pois bem: — e perdemos da maneira mais abjeta. Por um motivo muito simples: — porque Obdulio nos tratou a pon­tapés, como se vira-latas fôssemos.

Eu vos digo: — o problema do escrete não é mais de fute­bol, nem de técnica, nem de tática. Absolutamente. É um pro­blema de fé em si mesmo. O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol para dar e vender, lá na Suécia. Uma vez que ele se convença disso, ponham-no para correr em campo e ele precisará de dez para segurar, co­mo o chinês da anedota. Insisto: — para o escrete, ser ou não ser vira-latas, eis a questão.

 [Manchete Esportiva, 31/5/1958]

 


DESCOBERTA DE GARRINCHA

E eis que, pela primeira vez, um “seu” Manuel é o meu personagem da semana. Com esse nome cordial e alegre de anedo­ta, ele tomou conta da cidade, do Brasil e, mais do que isso, da Europa. Creiam, amigos: o jogo Brasil x Rússia[*****] acabou nos três minutos iniciais. Insisto: nos primeiros três minutos da ba­talha, já o “seu” Manuel, já o Garrincha, tinha derrotado a co­lossal Rússia, com a Sibéria e tudo o mais. E notem: bastava ao Brasil um empate. Mas o meu personagem não acredita em em­pate e se disparou pelo campo adversário, como um tiro. Foi driblando um, driblando outro e consta inclusive que, na sua penetração fantástica, driblou até as barbas de Rasputin.

Amigos: a desintegração da defesa russa começou exatamen­te na primeira vez em que Garrincha tocou na bola. Eu imagino o espanto imenso dos russos diante desse garoto de pernas tor­tas, que vinha subverter todas as concepções do futebol euro­peu. Como marcar o imarcável? Como apalpar o impalpável? Na sua indignação impotente, o adversário olhava Garrincha, as pernas tortas de Garrincha e concluía: — “Isso não existe!”. E eu, como os russos, já me inclino a acreditar que, de fato, do­mingo Garrincha não existiu. Foi para o público internacional uma experiência inédita. Realmente, jamais se viu, num jogo de tamanha responsabilidade, um time, ou melhor, um jogador co­meçar a partida com um baile. Repito: — baile, sim, baile! E o que dramatiza o fato é que foi baile não contra um perna-de-pau, mas contra o time poderosíssimo da Rússia.

Só um Garrincha poderia fazer isso. Porque Garrincha não acredita em ninguém e só acredita em si mesmo. Se tivesse jo­gado contra a Inglaterra, ele não teria dado a menor pelota para a rainha Vitória, o lord Nelson e a tradição naval do adversário. Absolutamente. Para ele, Pau Grande, que é a terra onde nasceu, vale mais do que toda a Comunidade Britânica. Com esse esta­do de alma, plantou-se na sua ponta para enfrentar os russos. Os outros brasileiros poderiam tremer. Ele não e jamais. Peran­te a platéia internacional, era quase um menino. Tinha essa hu­milhante sanidade mental do garoto que caça cambaxirra com espingarda de chumbo e que, em Pau Grande, na sua cordiali­dade indiscriminada, cumprimenta até cachorro. Antes de co­meçar o jogo, o seu marcador havia de olhá-lo e comentar para si mesmo, em russo: “Esse não dá pra saída!”. E, com dois mi­nutos e meio, tínhamos enfiado na Rússia duas bolas na trave e um gol. Aqui, em toda a extensão do território nacional, co­meçávamos a desconfiar que é bom, que é gostoso ser brasileiro.

Está claro que não estou subestimando o peito dos outros jogadores brasileiros. Deus me livre. Por exemplo: cada gol de Vavá era um hino nacional. Na defesa, Bellini chutava até a bola. E quando, no segundo tempo, Garrincha resolveu caprichar no baile, foi um carnaval sublime. A coisa virou show de Grande Otelo. E tem razão um amigo que, ouvindo o rádio, ao meu lado, sopra-me: “Isso que o Garrincha está fazendo é pior do que xin­gar a mãe!”. Calculo que, a essa altura, as cinzas do czar haviam de estar humilhadíssimas. O marcador do “seu” Manuel já não era um: eram três. E, então, começou a se ouvir, aqui no Brasil, na praça da Bandeira, a gargalhada cósmica, tremenda, do pú­blico sueco. Cada vez que Garrincha passava por um, o público vinha abaixo. Mas não creiam que ele fizesse isso por mal. De modo algum. Garrincha estava ali com a mesma boa-fé inefável com que, em Pau Grande, vai chumbando as cambaxirras, os par­dais. Via nos russos a inocência dos passarinhos. Sim: os adver­sários eram outros tantos passarinhos, desterrados de Pau Grande.

Calculo que, lá pelas tantas, os russos, na sua raiva obtusa e inofensiva, haviam de imaginar que o único meio de destruir Garrincha era caçá-lo a pauladas. De fato, domingo, só a paula­das e talvez nem isso, amigos, talvez nem assim.

 [Manchete Esportiva, 21/6/1958]

 


MORRENDO AO PÉ DO RÁDIO

Só os bobos, só os tapados não enxergam que o Brasil conseguiu, ontem, a sua maior vitória. Digo “maior” porque vencemos não de banho, não de goleada, mas por um escore magro, esquálido, quase fúnebre: — 1 x 0. O povo queria que enfiásse­mos uns seis ou sete. Eis a nossa tragédia: — a pura e simples vitória não basta. Desejamos enfeitá-la, pôr-lhe fitinhas e guizos. E o triunfo sem show, sem apoteose, o triunfo enxuto deixa o brasileiro descontente e desconfiado. Mas eu vos digo, aqui, que ninguém nos ouve: — foi a maior vitória brasileira. Imagi­nem se, por um absurdo, tivéssemos batido de quinze. Íamos enfrentar a França como uns anjinhos, isto é, com uma sensa­ção mortal de invencibilidade. Em 50, perdemos a Copa por­que goleamos a Espanha. Amigos, deixemos o banho para a Fran­ça, que meteu quatro na Irlanda do Norte. Ótimo. E batam na madeira.

Vejamos, porém, quem deve ser, entre os 22 homens de ontem, o meu personagem da semana. Ao terminar o jogo, Leônidas[†††††], que vive a negar os méritos do escrete, doutrinava: — “Pelé devia ser barrado!”. Pois é este, justamente este, o perso­nagem da semana. Poderão objetar que Pelé jogou mal. Quem faz, numa quarta-de-final, o gol da vitória não jogou mal coisíssima nenhuma. De resto, que autoridade tem Leônidas? Contra a Rússia, ao final do primeiro tempo, vinha ele para o microfo­ne clamar: — “Os russos estão jogando melhor! Os russos estão mais perigosos!”. Pois bem: — Leônidas foi o único cama­rada, em todo o Velho Mundo, que ignorou o show brasileiro. Enquanto Garrincha bailava, ele se punha a admirar o adversário! E, por isso, eu vos digo: se Leônidas nega Pelé, ótimo para este.

Mas admitamos que Pelé tenha jogado pedrinhas. Fez o gol. Amigos, nada descreve o uivo, o urro que soltamos aqui quan­do o espíquer atirou o seu berro bestial: — “Gol!”. Até aquele momento, o Brasil inteiro, de ponta a ponta, do presidente da República ao apanhador de guimba, o Brasil estava agonizan­do, morrendo, ao pé do rádio. Imaginem se o adversário, antes de Pelé, tivesse enfiado um gol maluco. Eis a verdade: ia haver uma morte nacional. O Brasil teria desabado, teria arriado, e, posteriormente, teria saído num rabecão.

E veio Pelé e fez o milagre. Podia ter enchido o pé. Mas foi genialmente sóbrio. Apenas colocou. E o arqueiro do País de Gales, que estava apanhando tudo, até pensamento, foi mi­seravelmente enganado. E ficou falando sozinho. Só mesmo Leô­nidas é quem podia achar que foi pouco esse gol tão sofrido, tão chorado por milhões de patrícios.

Eu falei em uivo, em urro. Sim, amigos: — foi um som ja­mais ouvido, desde que se inventou o homem. Algo de bestial, de pré-histórico, antediluviano, sei lá. Nunca, em nossa curta passagem terrena, conhecemos uma euforia assim brutal. Foi um desses momentos em que cada um de nós deixa de ter vergo­nha e passa a ter orgulho de sua condição nacional. E pergun­to: como esquecer que foi Pelé, um garoto de cor, dos seus de­zessete anos, quem nos arrancou, ontem, de nossa agonia e de nossa morte? “Garoto de cor”, disse eu. Mas um tipo racialmente nobre como Didi, por exemplo. Pelé em ação, dentro de cam­po, tem na sua corrida a cadência de certos cavalos de charrete, com perdão da imagem. Como Didi, daria também um belo príncipe etíope de rancho.

E o bonito é que esse menino não se abala, nem se entre­ga. Possui a sanidade mental de um Garrincha. Ao contrário do brasileiro em geral, suscetível de se apavorar em face dos títu­los do inimigo, ele não acredita em nada. Ninguém é melhor do que ele. Tivesse jogado contra a Inglaterra e creiam: — ha­via de driblar até a rainha Vitória. E, além do mais, foi preciso muita classe para enfiar o gol único e bendito. Debaixo daquela tensão emocional dantesca, só um garoto de raça teria luci­dez para colocar, simplesmente colocar, no fundo das redes. Vamos deixar que Leônidas chame Pelé de perna-de-pau.

É de pernas-de-pau como o meu personagem da semana que o Brasil está precisando para ser campeão do mundo.

 [Manchete Esportiva, 24/6/1958]

 


O TRIUNFO DO HOMEM

Qualquer jogador do escrete brasileiro podia ser o meu personagem da semana. De Gilmar a Zagalo. De Zagalo diremos apenas o seguinte: — estava em todos os lugares ao mesmo tempo. De certa feita, foi até interessante. Zagalo salva um gol, sai com a bola e, em seguida, aparece lá na frente, na área adversária, desintegrando a defesa inimiga. Amigos, ontem o escrete era imbatível. Cada vez que um craque patrício apanhava a bola, par­tia em todas as direções, como aquele mocinho de fita em série. E, pela primeira vez, numa final de campeonato do mundo, um escrete vence de goleada, vence de banho[‡‡‡‡‡]. Mas, como eu ia di­zendo: — a exibição do Brasil foi tão perfeita, irretocável, que, desta vez, qualquer um podia ser o meu personagem.

Por exemplo: — Pelé, um menor total, irremediável, que nem pode assistir a filme de Brigitte Bardot. Ao receber o orde­nado, o bicho, é o pai que tem de representá-lo. Pois bem: — Pelé assombrou o mundo. Não se limitou a fazer os gols. Trata­va de enfeitá-los, de lustrá-los. Sim, poderia ser Pelé o homem desta página.

E, todavia, eu penso em Didi. Examinem a sua fisionomia, os seus traços. Há, nele, uma dignidade racial de Paul Robeson. “Grande jogador”, dizem todos. Mas não faltam os que duvi­dem do seu caráter, do seu brio, da sua alma. Nos jogos do cer­tame carioca, é comum ouvir-se um torcedor esbravejando: — “Didi não está fazendo força! Didi está amolecendo!”. Quando se tratou de organizar o escrete, quase todo mundo gritou contra Didi. Uns juravam: — “Moacir é melhor!”. Outros diziam:

— “Didi não é jogador para a Copa!”. Nos treinos da seleção, foi vaiado quantas vezes? Acabaram queimando o formidável jogador. Conclusão: — ele amarrou a cara e seu comportamen­to, em todo o Mundial, foi esmagador.

Não se podia desejar mais de um homem, ou por outra: — não se podia desejar mais de um brasileiro. Ninguém que jogas­se com mais gana, mais garra, e, sobretudo, com mais serieda­de. Nem sempre marcava gols. Mas estava, fatalmente, por trás dos tentos alheios. Era ele quem amaciava o caminho, quem des­montava a defesa inimiga com seus lançamentos em profundi­dade. Com uma simples ginga de corpo, liquidava o marcador. E nas horas em que os companheiros pareciam aflitos, ele, com sua calma lúcida, o seu clarividente métier, prendia a bola e tra­tava de evitar um caos possível.

Não foi só o jogador único, que os críticos europeus mais exigentes consideraram o maior da Copa. Foi algo mais: — um homem de bem. O que ele demonstrou de constância, de fidelida­de, de bravura, de entusiasmo, basta para caracterizá-lo como um brasileiro de altíssima qualidade humana. A partir deste Mundial, o brasileiro começa a ter uma nova imagem de Didi. Repito: — passa a ver Didi como um homem de bem. Pois nós sabemos que nenhum escrete levanta um campeonato do mundo sem extraordi­nárias qualidades morais. De nada adiantará o futebol se o homem não presta. O belo, o comovente, o sensacional no triunfo de on­tem está no seguinte: — foi, antes de tudo, o triunfo do homem.

Eu já disse que, no formidável e harmônico esforço do es­crete, todos parecem merecer uma glória igual. É dificílimo des­tacar este ou aquele. Mas há, no caso de Didi, certas circunstân­cias que projetam o craque em alto-relevo. O torcedor estava errado quando o imaginava incapaz de paixão, incapaz de ga­na, incapaz de garra. Molhou a camisa, derramou até a última gota de suor, matou-se em campo. Quando o rei Gustavo da Sué­cia veio apertar-lhe a mão, eu imaginei ao ouvir no rádio a des­crição da cena: — dois reis! Pois Didi, como sempre tenho dito aqui, lembra um rei ou príncipe etíope de rancho.

Com as suas gingas maravilhosas, ele, em pleno jogo, dava a sensação de que lhe pendia do peito não a camisa normal, mas um manto de cetim azul, com barra de arminho.

 [Manchete Esportiva, 5/7/1958]

 


É CHATO SER BRASILEIRO!

Dizem que o Brasil tem analfabetos demais. E, no entanto, vejam vocês: — a vitória final, na Copa da Suécia, operou o mi­lagre. Se analfabetos existiam, sumiram-se na vertigem do triun­fo. A partir do momento em que o rei Gustavo da Suécia veio apertar as mãos dos Pelés, dos Didis, todo mundo aqui sofreu uma alfabetização súbita. Sujeitos que não sabiam se gato se es­creve com “x” iam ler a vitória no jornal. Sucedeu essa coisa sublime: — analfabetos natos e hereditários devoravam vesper­tinos, matutinos, revistas e liam tudo com uma ativa, uma devoradora curiosidade, que ia do “lance a lance” da partida até os anúncios de missa. Amigos, nunca se leu e, digo mais, nunca se releu tanto no Brasil.

E a quem devemos tanto? Ao escrete, amigos, ao escrete que, hoje, é o meu personagem da semana, meu múltiplo per­sonagem. Personagem meu, do Brasil e do mundo. Graças aos 22 jogadores, que formaram a maior equipe de futebol da Ter­ra em todos os tempos, graças a esses jogadores, dizia eu, o Brasil descobriu-se a si mesmo. Os simples, os bobos, os tapados hão de querer sufocar a vitória nos seus limites estritamente espor­tivos. Ilusão! Os 5 x 2, lá fora, contra tudo e contra todos, são um maravilhoso triunfo vital de todos nós e de cada um de nós. Do presidente da República ao apanhador de papel, do minis­tro do Supremo ao pé-rapado, todos aqui percebemos o seguin­te: — é chato ser brasileiro!

Já ninguém tem mais vergonha de sua condição nacional. E as moças na rua, as datilógrafas, as comerciárias, as colegiais, andam pelas calçadas com um charme de Joana d’Arc. O povo já não se julga mais um vira-latas. Sim, amigos: — o brasileiro tem de si mesmo uma nova imagem. Ele já se vê na generosa totalidade de suas imensas virtudes pessoais e humanas.

Vejam como tudo mudou. A vitória passará a influir em to­das as nossas relações com o mundo. Eu pergunto: — que éra­mos nós? Uns humildes. O brasileiro fazia-me lembrar aquele personagem de Dickens que vivia batendo no peito: — “Eu sou humilde! Eu sou o sujeito mais humilde do mundo!”. Vivia des­fraldando essa humildade e a esfregando na cara de todo mun­do. E, se alguém punha em dúvida a sua humildade, eis o Fulano esbravejante e querendo partir caras. Assim era o brasileiro. Servil com a namorada, com a mulher, com os credores. Mal com­parando, um são Francisco de Assis, de camisola e alpercatas.

Mas vem a deslumbrante vitória do escrete e o brasileiro já trata a namorada, a mulher, os credores de outra maneira; rea­ge diante do mundo com um potente, um irresistível élan vi­tal. E vou mais além: — diziam de nós que éramos a flor de três raças tristes. A partir do título mundial, começamos a achar que a nossa tristeza é uma piada fracassada. Afirmava-se também que éramos feios. Mentira! Ou, pelo menos, o triunfo embelezou-nos. Na pior das hipóteses, somos uns ex-buchos.

E a quem devemos tanto? Ao meu personagem da semana. Ninguém aqui admitia que fôssemos os “maiores” em futebol. Rilhando os dentes de humildade, o brasileiro já não se consi­derava o melhor nem de cuspe à distância. E o escrete vem e dá um banho de bola, um show de futebol, um baile imortal na Suécia. Como se isso não bastasse, ainda se permite o luxo de vencer de goleada a última peleja. Foi uma lavagem total.

Outra característica da jornada: — o brasileiro sempre se achou um cafajeste irremediável e invejava o inglês. Hoje, com a nossa impecabilíssima linha disciplinar no Mundial, verifica­mos o seguinte: — o verdadeiro inglês, o único inglês, é o bra­sileiro.

 [Manchete Esportiva, 12/7/1958]

 


GARRINCHA NÃO PENSA

Amigos, estou diante de um problema, que é o seguinte: — Garrincha foi, há pouco tempo, meu personagem da sema­na. Poderei repeti-lo sem irritar os leitores? Eis a verdade, po­rém: — não se trata de escolher, de optar. Ontem, só houve em campo um nome, uma figura, um show: — Garrincha. Os outros três campeões do mundo estavam lá também. Mas Didi, Zagalo e Nílton Santos pertencem à miserável condição hu­mana. São mortais e suscetíveis de todas as contingências da carne e da alma. Jogaram por honra da firma e por um dever contratual. Estavam exaustos e no extremo limite de suas re­sistências emocionais e atléticas. Garrincha, não. Garrincha está acima do bem e do mal.

O problema de forma física e técnica não existe para ele, nunca existiu. Como os três outros campeões mundiais do Bo­tafogo, ele foi massacrado por apoteoses consecutivas. Desde Brasil x Suécia que o “seu” Mané está em vigília permanente. E, no entanto, vejam vocês: — apareceu em campo com uma disposição vital esmagadora. Ninguém mais ágil, mais plástico, mais alado. Em campo, desde o primeiro minuto, foi leve co­mo uma sílfide.

O futebol era, nesta terra, um esporte passional, sombrio, cruel. O torcedor já entrava em campo vociferando: — “Mata! Esfola!”. Ontem, porém, no Botafogo x Fluminense[§§§§§], sentiu-se uma curiosa reação: — Garrincha trazia para o futebol uma alegria inédita. Quando ele apanhava a bola e dava o seu baile, a multidão ria, simplesmente isto: — ria e com uma saúde, uma felicidade sem igual. O jornalista Mário Filho observou, e com razão, que, diante de Garrincha, ninguém era mais torcedor de A ou de B. O público passava a ver e a sentir apenas a jogada mágica. Era, digamos assim, um deleite puramente estético da torcida.

Aconteceu, então, o seguinte: — foi-se assistir a um jogo e viu-se Garrincha. No fim, já as duas torcidas queriam apenas que Garrincha apanhasse a bola e começasse a fazer as suas de­lirantes fantasias. Então, aplaudiam nas arquibancadas, cadeiras e gerais, com uma euforia de macacas-de-auditório. Por exem­plo: — o meu caso. Eu estava lá, como pó-de-arroz nato e here­ditário, para torcer pela vitória do Fluminense e contra a vitó­ria do Botafogo. Súbito começo a exultar também. Diante de cada jogada de Garrincha, eu experimentava a alegria que as obras-primas despertam.

E, no entanto, vejam vocês: — chamavam este homem de retardado! Só agora começamos a fazer-lhe justiça e a perceber a sua superioridade. Comparem o homem normal, tão lerdo, quase bovino nos seus reflexos, com a instantaneidade triunfal de Garrincha. Todos nós dependemos do raciocínio. Não atra­vessamos a rua, ou chupamos um Chica-bon, sem todo um len­to e intrincado processo mental. Ao passo que Garrincha nun­ca precisou pensar. Garrincha não pensa. Tudo nele se resolve pelo instinto, pelo jato puro e irresistível do instinto. E, por is­so mesmo, chega sempre antes, sempre na frente, porque ja­mais o raciocínio do adversário terá a velocidade genial do seu instinto.

No segundo tempo, quase não lhe deram bola. E aconte­ceu o inevitável: — o Botafogo caiu verticalmente. O Fluminense podia ter empatado, até. Mas ficamos num joguinho platônico, um futebol inofensivo, de passes para os lados e para trás. Res­ta saber: — de quem é a culpa? De uma indigência de recursos táticos? Ou faltou-nos um Garrincha, com suas penetrações ful­minantes, as suas geniais invenções? No primeiro tempo, botafoguenses e tricolores punham as mãos na cabeça: — “Isso não existe!”.

Eu falei, mais atrás, que ele foi, na sua agilidade, algo de muito leve, de muito etéreo. De fato, na etapa inicial, Garrin­cha deu uma bicicleta de sílfide. Terminado o jogo, saímos do estádio com a ilusão de que tínhamos visto não um jogo, não dois times, mas uma figura única e fantástica: — Garrincha, o meu personagem da semana.

 [Manchete Esportiva, 19/7/1958]

 


A CRUZ DO BOTAFOGO

Se, na sexta-feira, alguém me perguntasse: — “Quem é Hélio Cruz?”, eu cairia na mais crassa, na mais ignara das perplexida­des. De fato, o nome “Hélio Cruz” não encontraria, em mim, nenhuma acústica. Eu já o vira jogar em outras partidas do São Cristóvão. Mas era um desses conhecidos que a gente desco­nhece, conhecido que a gente ignora. Sábado, porém, soou a grande hora de Hélio Cruz. O São Cristóvão ia enfrentar o Botafogo[******], não um Botafogo qualquer, mas um Botafogo poten­cializado por quatro campeões do mundo. Há quem diga do alvinegro: — “É o escrete brasileiro!”. Nem tanto, amigos, nem tanto. Mas uma coisa é certa: — a presença de Nílton Santos, Garrincha, Didi e Zagalo confere ao quadro de General Severiano um charme esmagador.

Houve o jogo e a renda foi uma vergonha. Apenas duzen­tos e poucos contos. Mas eu explico a arrecadação deprimente: — é que ninguém, na Terra, esperava a derrota do Botafogo. O alvinegro devia vencer e, segundo todas as presunções, de banho. Por isso, ninguém foi lá. Mas como eu ia dizendo: — estava escrito que o momento de Hélio Cruz era o jogo de sá­bado. Tudo conspirou, aliás, para dar-lhe a grande chance. Que­rendo fazer do time uma fábrica de dinheiro, o alvinegro está pondo seus craques para jogar, para suar como se fossem eles uns barqueiros do Volga. Uma equipe tem, como é óbvio, um limite de resistência. E jogadores que atuam aqui e ali, sem uma pausa para recuperação, acabam liquidados. O que vimos con­tra o São Cristóvão foi um Botafogo gasto, que não queria nada com a bola. Perdeu, e pior do que isso: — perdeu para um ad­versário que, em grande parte do jogo, atuou com dez elemen­tos. Convenhamos que foi o que se chama uma derrota feia. Ou será que o Botafogo ainda não percebeu que não importam os tostões que possa arranjar aqui e ali, em excursões caça-níqueis? Não. O que importa é o “bi” e nada mais.

Voltemos, porém, a Hélio Cruz, que eu transformei no meu personagem da semana. Não sei se ele jogou bem ou mal. O que sei é que cravou, no Botafogo, dois gols, o bastante para derru­bar o alvinegro. Quando o São Cristóvão enfiou o primeiro, ocorreu uma coisa curiosa: — os espectadores perguntavam uns aos outros: — “Hélio Cruz? Mas quem é Hélio Cruz?”. E, ao che­gar na redação, sou cercado por colegas ávidos: — “Quem é esse cara?”. Ninguém sabia e eu muito menos. E o que atrapa­lhava, ainda mais, era o sobrenome. E, com efeito, nenhum cra­que usa o nome por extenso. Seria realmente irritante que um arqueiro se chamasse J. B. dos Passos Portela ou J. Pimentel da Fonseca. E eu, na minha perplexidade, perguntava: — por que não apenas Hélio ou não apenas Cruz? Um craque que se cha­masse simplesmente Hélio ou simplesmente Cruz não precisa­ria acrescentar mais uma vírgula ao seu nome. E, no entanto, o artilheiro de sábado é, por completo, Hélio Cruz, como num cartão de visitas.

Vejam vocês as ironias do futebol. Hélio Cruz era, até o jo­go com o Botafogo, solidamente desconhecido, maciçamente obscuro. Já marcara outros gols talvez mais bonitos que os de sábado. Mas ninguém lhe conseguia decorar o nome. Bastou-lhe pôr abaixo o Botafogo para que, imediatamente, todos ve­rificassem que ele era um falso desconhecido, um falso obscu­ro. O que faltava, apenas, era um fato qualquer que permitisse a fixação do seu nome e de sua figura. Sábado, o meu persona­gem agarrou, com unhas e dentes, a sua oportunidade.

Certos desconhecidos esperam apenas um pretexto para se tornarem célebres. O pretexto de Hélio Cruz foram os dois gols implacáveis. Já ninguém pergunta diante do seu nome: — “Quem é esse cara?”. E Manchete Esportiva faz, no presente número, o trocadilho: — “Hélio foi a Cruz do Botafogo”. Até o sobrenome, que parecia supérfluo, favoreceu a piada. Ora, quando alguém passa a inspirar os trocadilhos anônimos, passa a ser figura folclórica, convenhamos: — está famoso até segun­da ordem.

E, além disso, Hélio Cruz teve um mérito espetacular. Der­rotou um Botafogo, apesar da fauna, da flora de campeões do mundo. Sejam justos: — ninguém merece mais ser meu perso­nagem da semana.

 [Manchete Esportiva, 2/8/1958]

 


CEM POR CENTO DIDA

O placar do Flamengo é de assustar[††††††]: — 8 x 0! Essa abundância numérica significa que o rubro-negro submeteu o Ola­ria a um metódico, a um meticuloso, a um hediondo massacre. E o patético é que não foi um time, uma equipe, que construiu o escandaloso placar. Foi um homem, um único e solitário ho­mem que desandou a fabricar gols a torto e a direito. Esse homem chama-se Dida e eu o apresento aqui como o meu per­sonagem da semana.

Na véspera, ou seja, sábado, um outro craque enfiara qua­tro. Refiro-me a Didi que, funcionando na frente, na área, aca­bou com a Portuguesa. Conquistou quatro tentos de antologia. Dida, porém, fez mais: — meia dúzia e, ontem, nenhuma força humana ou divina conseguiria destruí-lo. Muita gente há de pen­sar que Dida abusou, que não devia ter feito tanto, que podia ter-se limitado aos dois, aos três, ou, como Didi, aos quatro. Mas a verdade é que o aparente exagero tem sua íntima lógica irre­dutível. De fato, Dida andou passando mal na Copa do Mundo. Na Suécia, o locutor Leônidas apanhou o microfone para dizer horrores a seu respeito. E vamos e venhamos: — fora da pátria, o sujeito é mais sensível, mais vulnerável. Qualquer restrição que se lhe faça soa como uma bofetada.

E, além disso, nada enfurece tanto como a injustiça. Qual­quer paralelepípedo sabe que Dida é um jogador de alta qualidade. Perguntem a uma zebra do jardim zoológico: — “Dida é um perna-de-pau?”. E a zebra responderá, com uma ênfase tremenda: — “Absolutamente! Absolutamente!”. Pois bem: — só Leônidas achou de arrasar Dida como se este fosse um bon­de. Disse, entre outras barbaridades, que ele não podia nem jo­gar num time de primeira divisão. Falei em injustiça e repito: — deslavada injustiça! Só hoje, passado o impacto da Copa do Mundo, é que se compreende a ferocidade de Leônidas. Cra­que do passado, ele quer ser ainda “o maior”. Sofre com os “dia­mantes negros” ou “brancos”, ou “morenos” da atualidade. A glória alheia, em futebol, o ofende e humilha. E, por isso, me­teu o pau em Dida. Era como se dissesse: — “Ah, meus tempos, meus tempos!”.

E o fato é que Dida jogou apenas uma vez na Suécia e vol­tou de lá amargurado. E, aqui, havia quem perguntasse: — “Se­rá que Dida acabou?”. Muitos julgavam sentir, nas suas últimas atuações, um certo desgaste. Suas velhas características pareciam diluídas. E eis que, ontem, contra o Olaria, o homem voltou a ser ele mesmo. Viu-se na Gávea um Dida em plenitude, comen­do a bola como nos seus instantes mais puros e triunfais. Dirá alguém que o Olaria não é grande adversário. De acordo. Lon­ge de mim considerar o Olaria um escrete. Mas uma goleada impõe-se por si mesma, torrencial e irrefutável. Como racioci­nar, como argumentar contra a histeria numérica dos 8 x 0? E se atentarmos em que foi Dida, unicamente Dida, o autor de seis dos oito gols, então compreenderemos que estamos em fa­ce não de um ex-Dida, mas do próprio. Não há dúvida, amigos. Despontou com a sua furiosa velocidade, e mais: — com a ca­pacidade de invadir, de penetrar, de cortar, de envolver e de fuzilar. Mas creiam: — o que o inspirava não era apenas o sadis­mo de um gol atrás do outro. Ele enfiava um gol, e depois ou­tro, e mais outro, como se quisesse fazer uma afirmação para si mesmo. Queria sentir-se um Dida integral e não tenhamos ilu­sões: — foi cem por cento Dida.

Qualquer jogador de futebol, do virtuose ao perna-de-pau, tem suas panes, suas depressões. Dida estaria numa dessas angústias. Mas quem, depois de meter seis gols, não há de sentir-se um triunfador, com um certo charme cesariano, uma certa aura napoleônica? Sim, depois de ontem, Dida baniu de si mes­mo, até o último vestígio, o drama da Suécia.

Quando soou o apito final, o aspecto do grande jogador era algo patético. Tinha o olho rútilo e o lábio trêmulo. Que os outros times tratem de pôr as barbas de molho! Dida voltou a ser Dida e para sempre Dida.

 [Manchete Esportiva, 30/8/1958]

 


A VOLTA DA LEITERIA

Canário viu que era chegado o momento, o grande momen­to do gol. Então, encheu o pé. Saiu uma bomba, amigos, e que bomba! Quase as traves desabam na cabeça de Castilho. Eu, cá em cima, na tribuna de imprensa, calculei: — “Desta vez não tem castigo!”. O Fluminense estava ganhando de 1 x 0[‡‡‡‡‡‡] e a bala de Canário seria o maldito empate. Pois bem: — quando a torcida tricolor gemia a palavra gol, eis que ocorre o milagre: — bola no travessão! Durante alguns momentos, houve um carna­val na pequena área tricolor. A bola pedia pelo amor de Deus: — “Me chuta! Me chuta!”. E não apareceu um pé americano que a empurrasse para o fundo das redes. Salvara-se o Flumi­nense de um gol certo, infalível, catastrófico. Ao meu lado, um americano abria os braços: — “É a leiteria! Voltou a leiteria!”. Sim, ele via, ali, o dedo salvador da leiteria. Outros americanos, também furiosos e também esbravejantes, descobriam no gol salvo uma coincidência entre o retorno de Zezé Moreira e a rea­bertura da leiteria.

A leiteria! Vale a pena traçar aqui, sinteticamente, o seu resumo biográfico. Abriu as portas, pela primeira vez, em 51. De repente, os adversários começaram a perceber que o Fluminense não jogava somente com classe, somente com técnica. Casti­lho era bom, era ótimo, era formidável. Mas um arqueiro tem os limites da condição humana. Ora, Castilho fazia defesas so­brenaturais. E todo mundo começou, por trás do arqueiro, a ver a influência extraterrena da leiteria. Numa amargura medo­nha, o inimigo rosnava que Castilho era o leiteiro. O fato é que o Fluminense tornou-se gloriosamente o campeão de 51. Mas já nos anos seguintes a leiteria não funcionou tão bem. Estava de portas fechadas ou de portas a meio pau. Mais algum tempo e ela fechou de todo. No corrente ano, sobretudo, já ninguém falava mais da leiteria metafísica que tanto nos valera no passado.

Confesso, amigos: — havia em mim, como em todo trico­lor autêntico, a funda, a inconsolável nostalgia da nossa queri­da protetora. Realmente, o nosso papel no presente campeona­to tem sido o seguinte: — apanhar bem e ganhar mal. As nossas derrotas são medonhas e cada vitória nossa é feia como uma der­rota. E, quando já não havia mais esperança, eis que a leiteria reabre, com estrondo, as suas portas mágicas. Amigos, manda a verdade que se diga: — ela influiu, ontem, no resultado da batalha. Digo isso de peito aberto e fronte erguida, porque não acredito em futebol sem sorte.

Digo mais: sem esse mínimo de sorte, o sujeito não conse­gue nem chupar um Chica-bon, o sujeito acaba engolindo o pau­zinho do Chica-bon. E o Fluminense estava jogando sem uma ínfima gota de sorte. O time já entrava em campo coberto de azar. Sim, amigos: — o time pisava o gramado certo de que es­tava marcado, inexoravelmente, pela derrota. Faltava-nos um pouco, um tostão, um vintém de sorte,

Ou por outra: — era a leiteria que se estiolava a um canto, com as garrafas irremediavelmente vazias. O leite já não jorra­va mais das tetas da sorte. As pessoas estreita e crassamente ob­jetivas colocavam o problema das nossas frustrações em termos técnicos, táticos, físicos e nada mais. Era um engano funesto. Ninguém acreditava que há qualquer coisa de laticínio nos gra­mados, nos espetaculares êxitos terrenos.

E, domingo, graças a Deus, foi belo, foi sublime. De certa feita, Amaro chutou. Diga-se: — chutou de longe. Era tal a dis­tância que, chutada devagar, a bola levaria meia hora para che­gar a seu destino. Então, ocorre o seguinte: — Castilho achou que devia fazer golpe de vista. Não se mexeu; ficou só olhan­do. A bola bateu na quina da trave e só não entrou porque esta­va lá, velando, a leiteria. Um americano fez, a bico de lápis, uma estatística: — o Fluminense sofreu quatro bolas na trave! Ve­jam bem: — nem duas, nem três, mas quatro! O América suava torrencialmente e encontrava tapado o arco tricolor. E é bom, amigo, é gostosíssimo quando a nossa torcida sente, na cara, o sopro da sorte. Repito: — em futebol, não basta jogar bem. Com um timaço, e depois de estar ganhando de 3 x 0, o Vasco ainda foi empatar com o Bonsucesso. Ora, o Fluminense jogou bem domingo e foi superiormente orientado. Mas porque a leiteria esteve presente, e salvou, com a trave, quatro gols, eu a promovo a meu personagem da semana.

 [Manchete Esportiva, 1/11/1958]

 


O PELÉ BRANCO

Amigos, não há de ser difícil catar o meu personagem da semana entre os 22 jogadores de Vasco x Flamengo[§§§§§§] (digo 22 e já amplio: — mais, por causa das substituições). Mas, como eu ia dizendo, o personagem pula do jogo como um elástico polichinelo. Chama-se Almir e os locutores costumam tratá-lo de “Pernambuquinho”. Eu sei que se forma, sobre o craque vascaíno, um caudaloso anedotário. E nós sabemos que a anedota desfigura, que a anedota falsifica. Em tudo que se diz sobre Al­mir, já é difícil discriminar o que é verdade e o que é folclore.

Por exemplo: — contam que Almir xinga os adversários. En­tão pergunto: — será o primeiro? Não me parece. O futebol ja­mais foi mudo, jamais exigiu do craque um silêncio de Sarcófa­go. Direi mais, se me permitem: — o futebol é o mais falado e o mais pornográfico dos esportes. Durante os noventa minutos, tanto os craques em campo como o torcedor nas arquibancadas rugem os palavrões mais resplandecentes do idioma. Dir-se-ia que tanto o público como o craque têm, no berro pornográfico, um estímulo vital, precioso e irresistível. E se o meu personagem xin­ga os adversários, não faz outra coisa senão insistir num hábito que data dos nautas camonianos. Repito: — o futebol se nutre de pornografia como uma planta de luz. E Almir apresenta ou­tras qualidades que convém não desprezar.

Uma delas é a coragem. Todos nós o conhecemos e uma coi­sa é certa: — para usar uma expressão textual da torcida, ele não foge do pau. A verdade é que, apesar de todas as convenções dis­ciplinares do profissionalismo, o futebol vive muito da bravura pes­soal dos craques. O sujeito pusilânime, o sujeito covarde, dá me­nos no couro. Há momentos, num jogo, em que o camarada pre­cisa enfiar a cara no pé do inimigo. Mas Almir, justiça se lhe faça: — ainda quarta-feira, na partida do Pacaembu, contra os paulistas, levou um chute que quase lhe abriu o rosto em dois. Cá, no Rio, vendo pela televisão, eu fiz meus cálculos: — “Morreu”. Ele desa­bou como aquele edifício de Copacabana. Mas não veio nenhum rabecão pescá-lo, nem foi preciso. Era apenas um nocaute provi­sório. Mas o episódio encerrava uma lição de vida e de futebol.

Amigos, a minha teoria é a seguinte: — o jogador que nun­ca levou um pé na cara ainda não amadureceu para os grandes triunfos. Por exemplo: — estamos diante do Campeonato Sul-Americano em Buenos Aires. Qualquer Sul-Americano é durís­simo e, em Buenos Aires, muito mais. Um escrete nosso, para enfrentar os argentinos, lá, terá de ser antes de tudo o escrete da coragem. O sujeito que tiver medo de careta não pode nem sonhar com a seleção patrícia. E Almir é um dos que podem comparecer, de peito aberto e lavado, ao certame continental, disposto a dar e a levar botinada. É pequenininho, mas como diz a sabedoria anônima e plebéia: — tamanho nunca foi documento. Já o vi derrubar sujeitos maciços, compactos, gran­dalhões, como bastilhas supostamente inexpugnáveis.

Por outro lado, tem um futebol de primeira qualidade. O jogo de ontem não me deixa mentir. Poucos jogadores, aqui ou em qualquer lugar, terão como ele a capacidade de varar a de­fesa contrária. Ele passa pelos adversários vertiginosamente. Tem uma penetração e uma velocidade de bala. Contra o Flamengo, por ocasião do pênalti, Almir deflagrou-se e ia entrar talvez com bola e tudo, quando o agarraram pelo braço, pela camisa. E não foi só uma vez. Em inúmeras oportunidades, o meu persona­gem construiu jogadas que podiam ser incorporadas a uma an­tologia, a um museu. O encontro terminou empatado de 2 x 2 e Almir obrigou a defesa do Flamengo a molhar a camisa até a última gota de suor.

No Sul-Americano, ele constitui uma preciosidade para o Brasil. Admitamos a hipótese sinistra de que Pelé não possa, eventualmente, entrar num jogo qualquer. Que melhor substi­tuto do que Almir? Tanto mais que são ambos agarotados. Em­bora mais velho, o craque cruzmaltino parece tão menino quan­to o paulista. E vamos e venhamos: — Almir não deixa de ser um pouco o Pelé branco.

 [Manchete Esportiva, 7/3/1959]

 


BANDEIRINHA -ARTILHEIRO

Amigos, ontem foi o lírico domingo dos velhos. Aqui, Bar­bosa, fechando o gol do Vasco; em São Paulo, Jair, decidindo o jogo para o Santos. Duas eternidades e ambas viçosas, ambas salubérrimas. Tanto Jair como Barbosa podiam ser, hoje, o meu personagem da semana. Mas há melhor, amigos, há melhor! Re­firo-me ao “Caixa Econômica”, a mais recente, inesperada e es­petacular celebridade do futebol brasileiro. Antigamente, em ma­téria de Caixa Econômica, só se conhecia a própria. Mas, graças ao Fla—Flu[*******], fez-se uma descoberta sensacional. Sim, amigos: — existia, aqui, nas nossas barbas, sem que o percebêssemos, o “Caixa Econômica” bandeirinha. Foi a grande e, direi mesmo, foi a contundente surpresa do Fla—Flu!

O bandeirinha! É, na história do futebol, o sujeito mais secundário. A humildade de sua função só tem paralelo com a do gandula. E houve uma época em que o bandeirinha era um franciscano apanhador de bola. Foi preciso que o profissionalismo aparecesse e o arrancasse de sua compacta obscuridade. Então ele subiu social e economicamente. Lembro-me da primeira remuneração do bandeirinha: — 25 mil réis por jogo! Hoje, a fun­ção é mais importante. O homem já marca impedimentos e tornou-se um personagem ativo e militante na comédia do fu­tebol. Todavia, nenhum bandeirinha conseguiu, jamais, o fu­rioso destaque do “Caixa Econômica”. Num Fla—Flu sensacional, ele conseguiu ofuscar o juiz, os jogadores, o outro bandei­rinha. Foi, atrevo-me a dizê-lo, o solista do espetáculo.

Aliás, tudo no “Caixa Econômica” parece predispô-lo pa­ra a celebridade e para a glória. A começar pelo apelido. É “Caixa Econômica”, como poderia ser “Banco de Crédito Real de Mi­nas Gerais”, “Prolar S. A.” etc. etc. E vamos e venhamos: — ninguém consegue chamar-se “Caixa Econômica” impunemen­te. Há entre o nome de um sujeito e o seu destino uma cone­xão inevitável. Napoleão teria que ter um destino napoleônico. E o nosso “Caixa Econômica” não poderia viver eternamente obscuro e eternamente humilde. O Fla—Flu foi a sua grande chance terrena.

Ao começar e até o encerramento da primeira etapa, o “Cai­xa Econômica” ainda permanecia ignorado, ainda permanecia inédito. E, súbito, na etapa final, surgiu a sua oportunidade napoleônica. Imagino que tenha ocorrido com o nosso herói uma crise de saturação. Cansou-se de ser um fósforo apagado den­tro do jogo. Achou talvez abusivo que o campo fosse um espa­ço privativo dos jogadores e do juiz. E fez o que nenhum outro bandeirinha, jamais, teve o desplante de fazer: — entrou no cam­po e pôs-se a passear no gramado com uma soberana naturali­dade. E, de repente, acontece o inconcebível: — uma tabelinha de um jogador rubro-negro com o “Caixa Econômica”!

Dizem que a bola bateu, simplesmente bateu, no fabuloso bandeirinha. Amigos, sejamos mais líricos e menos objetivos. Vamos admitir que o “Caixa Econômica” deu um passe que caiu como uma luva, ou melhor, como uma meia no pé de Henri­que. Jamais Zizinho no apogeu, ou Jair, ou o divino Domingos da Guia conseguiram ser tão precisos, exatos, perfeitos. O es­tupor do Fluminense foi de tal ordem que o time parou, de ponta a ponta, e Henrique, vivíssimo, penetrou com furiosa velocida­de. Dida recebeu a bola para marcar. Vejam vocês a trama dia­bólica: — “Caixa Econômica” — Henrique — Dida! O Fla—Flu continuou, mas a verdade é que o tricolor estava perdido. O que desintegrou meu time não foi bem o gol, mas a interven­ção sobrenatural do “Caixa Econômica”.

A partir do momento em que se tornou o primeiro bandeirinha-artilheiro do universo, o meu personagem da semana conheceu a celebridade. Ontem, a sua simples presença no Vasco x Flamengo valorizou e dramatizou o clássico. O pâ­nico da torcida cruzmaltina era que o “Caixa Econômica” apa­nhasse a bola, saísse driblando e marcasse para o Flamengo o gol da vitória.

 [Manchete Esportiva, 2/5/1959]

 


A VINGANÇA DE JULINHO

Amigos, Julinho começou a ser o meu personagem da se­mana a partir do momento em que o vaiaram. Foi até, se me permitem a expressão, trágico. Insisto: — trágico! Quem esta­va lá viu ou, por outra, ouviu. No instante em que o alto-falante do Maracanã anunciou Julinho em lugar de Garrincha, o está­dio entupido foi uma vaia só. Menos eu. Eis a verdade: — eu não apupei, embora preferisse Garrincha. Parecia-me que o es­crete sem o “seu” Mané era um mutilado. Na pior das hipóte­ses, eu achava que Feola devia ter posto os dois: Julinho na ponta direita e Garrincha na esquerda. Mas um técnico tem razões que a razão desconhece. Puseram só Julinho e esquece­ram Garrincha.

Verificou-se, então, o amargo e ululante desagrado da multidão. Naquele momento, ninguém se lembrou, no Maracanã[†††††††] e fora dele, de quem é Julinho na história do futebol brasileiro. Sim, amigos: — o homem andou pela Itália e quando voltou nós o olhamos, de alto a baixo, como se fosse um gringo qualquer ou, pior do que isso, como se fosse um perna-de-pau. Não há nada mais relapso do que a memória. Atrevo-me mesmo a dizer que a memória é uma vigarista, uma emérita falsificadora de fa­tos e de figuras. Por exemplo: — ninguém se lembrava de que, no Mundial da Suíça, contra os húngaros, Julinho fizera um car­naval medonho. De certa feita, driblara toda a defesa contrária para finalizar com uma bomba, e que bomba! O arqueiro nem viu por onde a bola entrou. Esse gol foi uma obra-prima e devia estar numa vitrine de turismo, para a admiração pateta dos visitantes. Pois bem: — ao ser anunciada a escalação de Julinho, a nossa memória apresentou-nos a imagem não autêntica, não fidedigna do craque, mas de um quase penetra do escrete.

Ao ouvir o apupo, eu fui um pouco oracular para mim mes­mo. Imaginei o seguinte vaticínio: — “Julinho vai comer a bo­la!”. Podia parecer uma piada e, no entanto, era uma grave pro­fecia. Eis a verdade: — para o jogador de caráter uma vaia é um incentivo fabuloso, um afrodisíaco infalível. Imagino que Juli­nho há de ter entrado em campo crispado da cabeça aos sapa­tos ou, retifico, às chuteiras. Nunca um craque foi tão só. Era um único contra 200 mil. Mas, homem de brio indomável, Juli­nho aceitou a luta: — bateu-se contra a multidão que o cercava por todos os lados, disposta a crucificá-lo em outras vaias. Mas, se nós tínhamos esquecido Julinho, Julinho não estava esqueci­do de si mesmo. Foi Julinho em cada um dos 45 minutos, foi sempre Julinho e só Julinho. Em inúmeras ocasiões o que ele fez com o adversário foi pior que xingar a mãe. E o primeiro gol, ah, o primeiro gol! Ele o marcou contra os ingleses, sim, mas também contra os que o vaiaram. Enfiou a bola de uma ma­neira, por assim dizer, sádica. Jamais houve um gol tão amoro­samente sofrido como este. A partir da abertura da contagem, todo mundo passou a reconhecê-lo, todo mundo admitiu para si mesmo: — “Este é o Julinho!”. E era.

Ele não parou mais. Aquela multidão se arremessara con­tra ele como um touro enfurecido. Pois bem: — ele agarra o touro a unha e lhe quebra os chifres. Então, aconteceu o mila­gre. O ex-touro brabo, já manso, tornou-se em outro bicho. Sim, amigos: — do primeiro gol em diante, a multidão transformou-se em “macaca-de-auditório” de Julinho. Se ele apanhava a bo­la, os 200 mil espectadores arreganhavam o riso enorme e já gozavam, por antecipação, o que Julinho iria fazer. Vejam vo­cês as ironias da vida e do futebol: — de um momento para ou­tro, o vaiado, o apupado, o quase cuspido, transformava-se num triunfador. E, de fato, Julinho foi grande. Nos pés de Julinho a jogada se enfeitava como um índio de Carnaval. De certa feita, comeu um, dois, três, quatro e quase entrou com bola e tudo. Imagino que, nesse momento, lord Nelson há de ter perguntado, lá do alto, para o mais próximo companheiro de eternidade: — “Quem é esse cara?”. O “cara” era Julinho, sempre Julinho.

Assim é o brasileiro de brio. Dêem-lhe uma boa vaia e ele sai por aí, fazendo milagres, aos borbotões. Amigos, cada joga­da de Julinho foi exatamente isto: — um milagre de futebol.

 [Manchete Esportiva, 16/5/1959]

 


UM HORIZONTE DE CHIFRES

Amigos, fui ontem à redação de um velho jornal. Entro lá e vejo, por toda parte, caras a meio pau. Deduzi imediatamen­te: — “Pelé”. Era, sim, o luto, era a dor, era o velório da distensão[‡‡‡‡‡‡‡]. Desde sábado que todo o Brasil chora e todo o Brasil vela a contusão de Pelé. Como diria Brás Cubas, até a natureza se associa à melancolia nacional. Os ventos são mais tristes, os ven­tos são mais inconsoláveis.

E, súbito, na redação do jornal amigo, eu vejo o Cláudio Mello e Sousa, o poeta, o crítico, o ex-admirador do Paulo Francis. Com o seu perfil de lord Byron aos dezessete anos, ele me­ditava horrores sobre a distensão. Eu ia dizer, fazer a saudação brutal: — “Olá, Cláudio!”. Mas já o colega se punha de pé. Com o olhar dos profetas — olhar varado de luz —, com a fronte alta e fatal, ele anunciava: — “O Brasil vencerá a Espanha!”. Pausa. Novo arranco de vidente para completar: — “A vitória do Bra­sil será um quadro de Goya!”. Foi só, ou por outra: — não foi só. Em seguida, ele pôs-se a andar na redação, tumultuosamen­te, como um centauro truculento.

Vibrei ao ver o colega e amigo enchendo uma redação com suas rútilas patadas. Mas eu compreendi a sua ira e justifiquei a sua profecia. Hoje o brasileiro autêntico há de ter duas reações obrigatórias: luto porque Pelé saiu, euforia porque Amarildo vai entrar. A mesma fatalidade que roubou Pelé salvou Amarildo. E, aqui, abro um parêntese para uma breve meditação so­bre a Fatalidade, com F maiúsculo.

Outrora, tudo que acontecia era destino, era sina, era o dia­bo. Pérez Escrich reabilitava e promovia suas adúlteras invocan­do a Fatalidade. Hoje já sabemos que há Sexo, há Economia por trás das atitudes sórdidas ou sublimes do ser humano. A Fatali­dade já não explica mais, nem inocenta certas patifarias que os folhetinistas antigos idealizavam.

Todavia eu lhes digo: — no presente Mundial, eis que a Fatalidade passa a funcionar novamente como nos tempos de Edmundo Dantès. Aí está Amarildo, o “Possesso”. Ele não ia entrar em hipótese nenhuma. Com suicida teimosia, Aymoré Mo­reira, Nascimento e Paulo Machado de Carvalho estavam dis­postos a deixar Amarildo eternamente na cerca. Não percebiam que o craque alvinegro é possesso e que o ataque precisava de possessos. E, súbito, a Fatalidade põe o dedo no escrete do Bra­sil. Pelé, o divino, sofre a distensão mágica. Não recebeu nem um leve, imponderável toque. E caiu. Caiu como e por quê? Nin­guém sabe, mas eu sei: a Fatalidade de Pérez Escrich.

O desespero está ventando por todo o país. Mas há uma possibilidade insuspeitada e genial: — a de que Amarildo des­ponte como um novo Pelé, e repito: — um Pelé branco, mas Pelé. Por outro lado, cada brasileiro deve ser como o confrade Cláudio Mello e Sousa, um profeta, um vidente do triunfo. E, de resto, cada um de nós precisa acreditar no Brasil com pesa­do e obtuso fanatismo. Graças a Deus, a Fatalidade interferiu anteontem no jogo México x Espanha. Faltavam trinta segun­dos para acabar o match. Era o empate e a classificação do Brasil.

Pois bem. A mesma Fatalidade que derrubou Pelé, que es­calou Amarildo, a mesma Fatalidade, dizia eu, salvou a Espanha. Seu gol nasceu na última gota da partida e, ao contrário do que se pensa, foi bom. Um bicampeão não pode depender de ne­nhum México. Insisto: — um bicampeão terá que levantar a Jules Rimet a mãos ambas, com o próprio amor e com a própria paixão. De mais a mais, o perigo viriliza, enternece e ilumina o Brasil. Sim, o perigo desperta e açula no Brasil sombrias po­tencialidades. Vamos enfrentar a Espanha. Diante de nós abre-se todo um horizonte de chifres, ensangüentado de chifres.

Vejam vocês o que é a chance histórica. A distensão de Pe­lé foi para Amarildo como a Revolução Francesa para Napoleão. E eu imagino como andará o craque alvinegro no Chile. Antes da distensão de Pelé, que fazia ele? Como o pescador de O ve­lho e o mar, sonhava com leões. Mas o adversário é a Espanha. E, então, Amarildo sonha com chifres e sangue. Ele próprio, co­mo no soneto célebre, é um negro touro “saudoso de feridas”.

 [O Globo, 5/6/1962]

 


O “POSSESSO”

Amigos, não é hora de escrever bem. Fosse eu um Goethe na Itália e, diante do triunfo de ontem, estaria escrevendo horrendamente mal. Ganhamos. E que fazer agora, senão arrancar do nosso peito um gemido solene e fundo, como um mugido cívico? Quando acabou o jogo[§§§§§§§], quando a vitória uivou, vimos o seguinte: — era esta uma cidade espantosamente bêbada. Ca­da um de nós foi arremessado do seu equilíbrio chato, foi ar­rancado do seu juízo medíocre e estéril.

Saímos à rua. Eu disse “cidade bêbada” e já explico: — fo­mos uma nação em pileque unânime. De pileque sem ter bebi­do nem água da bica. E é lindo, e gostoso, e sublime quando não há, entre 75 milhões de sujeitos, não há um único sóbrio. E já um nome me ocorre: Amarildo, o “Possesso”.

Amigos, dizia eu que os profetas andavam por aí aos bor­botões. Repito: — os profetas escorriam como a água das pare­des infiltradas. Não se dava um passo sem tropeçar, sem esbar­rar num profeta. E o que diziam eles? Diziam a vitória do Brasil e mais: — profetizavam o nascimento de um novo Pelé. Eu pró­prio escrevi, na minha crônica de anteontem: — o novo Pelé era moreno, e antecipei minúcias e fui mais longe. Dei o nome do novo Pelé: — Amarildo.

Vejam vocês o que é o Brasil. O sujeito quer um idiota e não acha um idiota. No Brasil de hoje, o imbecil chapado, o im­becil total é uma impossibilidade. Mesmo o menos dotado dos brasileiros contemporâneos há de ter a sua chispa, a sua centelha, por vezes incubada, mas funcionante. Mas, se a pátria pre­cisa de um gênio, logo o encontra. Aí está a Copa do Mundo: — perdemos um Pelé e, no mesmo instante, apareceu outro Pelé. Feliz o povo que, na vaga de um gênio, põe outro gênio.

Dizia o profeta quase profissional Cláudio Mello e Sousa que a vitória brasileira seria um quadro de Goya. Aí está o quadro, aí está o Goya. Mas eu falava de Amarildo. Após o jogo, os cole­gas me cumprimentavam como se fora eu o autor de Amarildo. Eu tinha de retificar: — “O autor do Amarildo é o Dostoievski!”. E, realmente, nunca vi na vida real um sujeito tão possesso e, por carambola, dostoievskiano.

O primeiro gol do Brasil ontem foi obra de um possesso. E repito: — só um possesso em último grau, montado num de­mônio, ou por este montado, só um possesso faria aquilo. Eu não estava lá, claro. Mas, desde ontem, cada brasileiro está pos­suído de uma imensa, de uma implacável vidência. Dir-se-ia que, apesar da estúpida distância física, todo o Brasil era testemunha visual e auditiva de cada lance da partida. E eu “vi”, no momento do gol, “vi” Amarildo, a cara, o peito, a loucura de Amarildo. De seu lábio pendia a baba elástica e bovina dos possessos. Nas páginas de Dostoievski é assim que os possessos babam profis­sionalmente.

Amigos, era ali ou nunca. Setenta e cinco milhões de brasileiros precisavam mais do gol que todo o Nordeste de água e pão. O possesso sentiu que era chegado o instante. Caçaram Amarildo. Entre ele e o gol havia toda uma flora de rapas, de pés na cara, palavrões, chifres. Só faltaram chupar-lhe a carótida como a um aspargo. A palavra “madre” circulava copiosamente. Naquele momento Amarildo não era um só: — era o possesso, era um dostoievskiano e, ao mesmo tempo, era um touro de soneto, “saudoso de feridas”.

Era também, por conta de Dostoievski, um rútilo epilépti­co. Amigos, nunca um só foi tantos. E esse múltiplo, esse nu­meroso Amarildo acabou enterrando o seu gol, até o fundo, no coração da Espanha. Ali se cumpria a grande profecia: — um novo Pelé estava nascendo. E os Andes estupefatos viram erguer-se o astro recentíssimo, com o seu frenético fulgor.

E o segundo gol, amigos, o segundo gol! Vamos ao lance. O Mané apanha a bola. E, entre parênteses, tem razão o poeta e psicanalista Hélio Pellegrino quando afirma que Garrincha é a maior sanidade mental do Brasil. Exato. O próprio Freud, se conhecesse o Mané, havia de reconhecer, com a humildade dos sábios: — “Rapaz, se todo mundo tivesse a tua sanidade, eu ia acabar apanhando papel na esquina!”. Ontem todo mundo es­tava emocionalmente em pandarecos. Menos o Mané. Pegava a bola e era o mesmo, sempre o mesmo, eternamente o mes­mo, assim na terra como no céu.

No segundo gol, Mané deu uns dez salames dionisíacos. Co­meu com aquele apetite imortal toda a defesa inimiga. E comeu o juiz e comeu o bandeirinha. Tudo isso com uma saúde de pas­sarinho, e insisto: — tudo isso com alegria, com bondade, com pureza. No fim, não havia mais ninguém para driblar, ninguém. E Mané, que no fogo mais infernal tudo vê e tudo sabe, passa para Amarildo. Mas não foi um passe qualquer. Nem a cabeça de são João Batista foi tão na bandeja como aquela bola de Gar­rincha. Estava lá Amarildo, o possesso Amarildo, o rútilo epi­léptico. E então ele enfiou a sua cabeçada mortal. Aquilo era o Brasil.

 [O Globo, 7/6/1962]

 


O EICHMANN DO APITO

Amigos, vencemos o Chile[********]. E, neste momento, eu não vou quebrar lanças em prol do estilo, como queria Bilac. E pelo con­trário. Numa hora de farto pileque cívico, eu quero ter o mau gosto de um orador de gafieira. Quero falar em bandeiras “drapejando”. E vamos e venhamos: — foi uma vitória colossal, uma selvagem vitória. Estava tudo contra nós, rigorosamente tudo. Até os Andes tinham enfiado uma máscara até as orelhas.

Na minha crônica anterior, antes do jogo, eu falava na solidão do escrete. Jamais um time de futebol ficara tão só. Mas eu escrevi que o brasileiro é ainda maior quando solitá­rio. Ponham o brasileiro numa ilha deserta. Ele sozinho co­mo um Robinson Crusoe, ou apenas com uma arara no om­bro. E o brasileiro, sem mais ninguém, bebendo água em cuia de queijo Palmira, será um rei shakespeariano, terá um peito de césar proclamado. Então faço a pergunta: — que fizemos nós, ontem, em Santiago? Éramos onze gatos pingados contra milhões enfurecidos.

Mas aí é que está. O Brasil estava só, mas tinha Garrincha. Feliz do povo que pode esfregar um Garrincha na cara do mun­do! E o Mané, com suas pernas tortas e fulgurantes, com o seu olho rútilo e também torto, pôs os Andes de gatinhas, ou de cócoras, sei lá. Quando ele enfiou um gol e depois outro, isso aqui foi, como diria um orador de gafieira, foi uma pátria constelada de garrinchas.

E o patético é que, quinta-feira, o video-tape de Brasil x Inglaterra nos dera um versão deprimente do escrete. O povo não sabia como conciliar as duas coisas: — o delírio dos locu­tores e a exata veracidade da imagem. Após a batalha de ontem, eu vi tudo. A verdade está com a imaginação dos locutores. E repito: — a imaginação está sempre muito mais próxima das es­sências. Ao passo que o video-tape é uma espécie de lambe-lambe do Passeio Público, que retira das pessoas toda a sua gran­deza humana e esvazia os fatos de todo o seu patético.

Disseram os locutores que o Brasil fizera, contra a Inglater­ra, uma exibição deslumbrante. Pura imaginação e, por isso mes­mo, altamente veraz. O video-tape demonstrou o contrário. Azar da imagem. Mais deslumbrante ainda foi a jornada de ontem. Amigos, todo o Chile se levantou contra nós. A imprensa, o rá­dio, a tv, o homem de rua, as crianças — quiseram triturar emocionalmente a “seleção de ouro”. Nunca se fez um massacre psicológico tão feroz contra alguém. O futebol passou para um plano secundário. O objetivo único foi, repito, a liquidação psi­cológica dos craques brasileiros.

Mas o gostoso é que o escrete do Brasil em nenhum mo­mento — antes, durante ou depois — teve medo. Foi um time, foi uma equipe imaculada de medo. E, já em campo, apareceu um outro adversário, o mais atro, o mais torvo adversário: — o juiz. Então, o Brasil teve de lutar contra 75 mil espectadores, contra os jornais, contra o rádio, contra a tv, contra os carabineiros, contra a cordilheira, contra tudo, contra todos e mais: — contra o árbitro. No seu medo abjeto da multidão; no pavor de ser cuspido e malhado como um judas de sábado de Aleluia — ele roubou com um descaro gigantesco. Sim, a pusilanimidade deu-lhe uma força, um poder, uma crueldade, uma dimen­são inexcedíveis. E, no seu lúgubre cinismo, o sujeito só faltou apitar hands nos arremessos laterais brasileiros. Amigos, temos aí um Eichmann do apito. O que ele fez com Garrincha não tem perdão.

Garrincha! Desde o começo da crônica que eu queria falar no Mané. E estou-me perdendo em floreios como faria o já re­ferido orador de gafieira. Garrincha foi a maior figura do jogo, a maior figura da Copa do Mundo e, vamos admitir a verdade última e exasperada: — a maior figura do futebol brasileiro des­de Pedro Álvares Cabral. Quando eu dizia que Garrincha era varado de luz como um santo de vitral, os idiotas da objetividade torciam o nariz. Reconheço que faltava ao Mané, realmente, um toque, ou retoque, de martírio.

Desde ontem, porém, o Mané é mártir oficial, mártir cha­pado, da cabeça aos sapatos. O lívido, o gelado Eichmann do apito o expulsou, com a hedionda conivência do bandeirinha Esteban Marino. É a santidade, amigos. A coisa foi tão indigna como o seria a expulsão de são Francisco de Assis. E ainda por cima apedrejaram o Mané, tiraram o seu tépido, o seu doce, o seu rútilo sangue. É santo, sim, sem efeito de retórica, sem ar­ranjo literário, tão santo como um são Sebastião seminu e flechado.

Amigos, como é mais linda a vitória roubada. O juiz gatu­no deu ao nosso feito uma dimensão mais comovida e mais des­lumbrante. Não faz mal o frango ou, por outra, o peru que Gil­mar engoliu. O nosso goleiro come seus frangos, seus perus, mas não se deprime, não se degrada. Não foi apenas a vitória do escrete. Foi sobretudo a vitória do homem genial do Brasil.

 [O Globo, 14/6/1962]

 


BICAMPEÕES DO MUNDO

Amigos, estamos atolados na mais brutal euforia. Ontem, quando rompia a primeira estrela da tarde, o Brasil era procla­mado bicampeão do mundo[††††††††]. Foi um título que o escrete arran­cou de suas rútilas entranhas. E, a partir da vitória, sumiram os imbecis, e repito: — não há mais idiotas nesta terra. Súbito o brasileiro, do pé-rapado ao grã-fino, do presidente ao contínuo, o brasileiro, dizia eu, assume uma dimensão inesperada e gigan­tesca. O bêbado tombado na sarjeta, com a cara enfiada no ra­lo, também é rei. Somos 75 milhões de reis.

De sábado para domingo houve a feérica vigília do triun­fo. Ninguém tinha dúvidas. Aí é que está, ninguém tinha dúvi­das. E sofríamos porque há também a angústia da certeza. Mas eu falava da grande véspera. Lotes de macumbas nas esquinas, botecos iluminados como velórios. Vinte e quatro horas antes da batalha, já tropeçavam na rua os bêbados da vitória. Amigos, nunca foi tão fácil ser profeta.

Outrora o brasileiro era um inibido até para chupar Chica-bon. Agora não. Cada um de nós foi investido de uma vidência deslumbrante. Nós sentíamos o bi, nós o apalpávamos, nós o farejávamos. E, a partir de ontem, vejam como a simples crioulinha favelada tem todo o élan, todo o ímpeto, toda a luz de uma Joana d’Arc. De repente, todas as esquinas, todos os bote­cos, todas as ruas estão consteladas de Joanas d’Arc. E os ho­mens parecem formidáveis como se cada um fosse um são Jor­ge a pé, um são Jorge infante, maravilhosamente infante.

Mas falemos do escrete. Esse time de negros ornamentais, folclóricos, divinos deslumbrou o mundo. Foi o mais belo fu­tebol que jamais olhos humanos contemplaram. Perdemos um Pelé. Mas o Brasil vive um momento de tão selvagem euforia que imediatamente descobrimos um novo Pelé. E repito: — fe­liz o povo que, na vaga de um gênio, põe outro gênio. Amarildo, o “Possesso”, surgiu contra a Espanha. É o novo Pelé pro­clamado.

Amigos, o Brasil fez no Chile um sofrido futebol, um fute­bol quase feio, um duro futebol de cara amarrada. Jogávamos para vencer. Amarildo, o dostoievskiano, enfiava-se pela área como um rútilo epiléptico. Ao marcar os dois gols contra a Es­panha pendia dos seus lábios uma baba elástica e bovina. E Gar­rincha? Foi o gênio duplo do escrete. E, com efeito, foi genial por ele e por Pelé. Vocês se lembram dos seus dois gols contra o Chile. O Mané estava na meia esquerda. No primeiro gol, ele se tornou leve, elástico e acrobático. Deu uma cabeçada que enterrou o Chile.

O gênio soprava, o gênio ventava por todo o escrete. E on­tem foi uma jornada deslumbrante. Os tchecos abriram o esco­re. 1 x 0. Setenta e cinco milhões de brasileiros perguntavam um ao outro: — “Vamos repetir 50?”. Mas a derrota de 50 li­quidou o Brasil da derrota. O que eu quero dizer é que, em se­guida ao gol da Tcheco-Eslováquia, Amarildo apanhou a bola. Nos dois últimos jogos ele fora bem pouco Amarildo e bem pou­co “Possesso”. Desta vez, porém, partiu para a Copa. Antes que o adversário pudesse esboçar o ferrolho, Amarildo dribla um, dribla dois. O goleiro adversário sai para cortar o centro. Era chegado o grande momento. E então o “Possesso” enfia a sua bomba entre o goleiro e a trave. A bola, também possessa, foi se cravar no fundo das redes. Parecia apenas o empate, mas era já o bi. O trágico é que começara de véspera o carnaval da vitó­ria. Nunca um povo teve uma certeza tão violenta e tão posses­sa. O escrete tinha de vencer porque não era somente o escre­te, era também o Brasil, era também o homem brasileiro.

No segundo gol, ainda Amarildo, ainda o “Possesso”. Nunca o “Possesso” foi tão dostoievskiano como no segundo gol. No­vamente adernou para a esquerda. Nenhuma força humana ou divina poderia quebrar-lhe o ímpeto sagrado. Driblou não sei quantos. Lá estava Zito. E o “Possesso” deu-lhe o gol. Brasil 2 x 1. Batida a Tcheco-Eslováquia. O terceiro gol veio de uma bola alta de Djalma Santos. Vavá, furioso como um cossaco do Don, meteu a cabeça. A Tcheco-Eslováquia estrebuchou e pôs fogo pelas narinas, como o dragão de são Jorge.

Setenta e cinco milhões de brasileiros profetizaram o triun­fo. Amigos, depois da vitória não me falem na Rússia, não me falem nos Estados Unidos. Eis a verdade: — a Rússia e os Esta­dos Unidos começaram a ser o passado. Foi a vitória do escrete e mais: — foi a vitória do homem brasileiro, ele sim, o maior homem do mundo. Hoje o Brasil tem a potencialidade criadora de uma nação de napoleões.

 [O Globo, 18/6/1962]

 


BEIJOS IMACULADOS

Amigos, falemos ainda e sempre do bi. Normalmente, ca­da um de nós é um solitário e um incomunicável. O sujeito vi­ve roendo a própria solidão como uma rapadura. E, súbito, o escrete vem e arremessa o brasileiro do seu silêncio e de sua misantropia. Este povo taciturno, caladão, tornou-se um extro­vertido ululante. Nas esquinas, nas casas, nos botecos, erguía­mos o nosso grito como uma lança agudíssima.

E descobrimos o “próximo”. Aí é que está: — na vida co­mum, o chamado “próximo” é o ser mais distante e mais inescrutável. Essa incomunicabilidade faz um mal danado. Pois bem: — o bi lançou-nos nos braços do próximo. As ruas se enche­ram de desconhecidos íntimos. Todo mundo beijava todo mun­do. O Brasil foi, por um momento, a terra da ternura humana. Os bêbados caíam abraçados à sarjeta e querendo beijar o meio-fio.

E se houve aqui essa orgia de ternura, imaginem vocês lá no Chile, lá em Santiago, no próprio local, e repito: — no pró­prio local. Os brasileiros que assistiram ao jogo estavam cara a cara com o fato, viviam o acontecimento na carne e na alma, tinham uma relação física com a vitória. Pode-se imaginar o de­lírio feroz, nunca visto em terra nenhuma, em época nenhuma.

Ontem eu falei dos espíqueres de rádio, autores do nosso massacre emocional. Ainda agora a nação está com os nervos em pandarecos, graças aos bárbaros do microfone. Mas eu lhes digo: — bendita a angústia que os locutores atearam no Brasil! Continuemos, amigos, continuemos. O que eu queria dizer é que, em Santiago, e sob o deslumbrante choque do bi, o brasi­leiro foi o mais doce ser da Terra.

O brasileiro! Nós sabemos que, normalmente, o brasileiro é um fauno de tapete. Usamos sapatos para disfarçar os pés de cabra. Em Santiago, porém, na noite do triunfo, os nossos pa­trícios foram sufocados por uma golfada de bondade total. Ami­gos, costumo dizer que qualquer um tem o seu momento de são Francisco de Assis, e insisto: — o vigarista, o batedor de car­teiras, o ladrão de galinhas ou o Drácula podem, sob um estí­mulo qualquer, virar um santo feérico.

Ainda está para se escrever um capítulo sobre os beijos do bi, na capital chilena. Ao soar o apito final, cada brasileiro pre­sente sentiu-se fisicamente implicado no triunfo. Aliás, o bi foi um êxito pessoal de 75 milhões de sujeitos. Todos nós “ganha­mos”, todos nós “chutamos”. E, depois do match, cada um de nós tinha as canelas materialmente esfoladas.

E aí começavam os beijos. O sujeito identificava uma pa­trícia desconhecida e se lançava nos seus braços. Às vezes não era patrícia, era chilena ou mesmo tcheca. Mas valia assim mes­mo. Aí é que entrava a pureza da vitória. Naquele momento, o brasileiro beijaria a própria Ava Gardner com uma dessas inocências desesperadoras. Ninguém era desconhecido de ninguém.

Tudo isso debaixo de lágrimas. Graças a Deus, somos o po­vo mais chorão do mundo. O próprio O Globo estampou uma fotografia que é um documento do caráter nacional: — Zagalo chorando. Tal flagrante devia constar de Os sertões, de Euclides da Cunha, na parte referente ao homem. E lamento que não tenha sido gravado o soluço de Zagalo, para ser retransmitido numa cadeia de emissoras. Assim é o brasileiro. Chora em tudo e por tudo, em batizado, em enterro, aniversário.

Mas disse eu que o brasileiro é o fauno de tapete. Não no Chile, após a vitória. Os nossos patrícios beijavam qualquer uma, e com que inefável naturalidade. Na euforia do triunfo, o “amor ao próximo” passou a funcionar em todo o seu esplendor. Nin­guém era pobre, rico, bonito, feio, Cleópatra, Lollobrigida ou Paulina Bonaparte, se por lá aparecesse — seria apenas o “ser humano”. O brasileiro descobria o “ser humano”. No sortilé­gio do bi, até um esquimó seria nosso “próximo” — fisicamen­te próximo.

Mas eu dizia que os cavalheiros beijavam as damas, e já acrescento: — também os cavalheiros se beijavam. Vocês se lembram do caso dos generais franceses. Na hora da condecoração, eles se beijam uns aos outros. O brasileiro não entendia essa ternu­ra oficial entre homens. Mas aí está a lição de vida do bicam­peonato. Na tarde de 17 de junho cada um de nós deixou de ser o fauno de flautinha, ou de gaita, sei lá. A distribuir beijos imaculados, o brasileiro foi, por um momento, um são francisco, um mané, um garrincha, cheio de graça.

 [O Globo, 23/6/1962]

 


O MINEIRO SOLIDÁRIO

Amigos, já contei o episódio. Certa noite, num sarau de grã-finos, o Otto Lara Resende cheira a bombinha de asma e decla­ra o seguinte: — “O mineiro só é solidário no câncer”. As se­nhoras presentes entreolharam-se, deliciadas. Os cavalheiros não souberam, de imediato, se aquilo era piada torpe ou fina socio­logia. Os mais atilados veriam, ali, uma verdade estadual, inapelável e eterna.

A frase do Otto caiu na boca do povo. Todo o Brasil a re­pete. O sujeito entra num velório, ou numa farmácia, e ouve alguém cochichar: — “O mineiro só é solidário no câncer”. Há quem diga que a frase são as obras completas do escritor. Seja como for, continua de pé a dúvida: — piada ou verdade?

Dias atrás, outro mineiro, o Waldomiro Autran Dourado, dizia-me que o Otto é um otimista. Fiz espanto: — “Como as­sim?”. E o Autran, ao meu ouvido: — “O mineiro só é solidário na exumação”. Vejam vocês: — o câncer só não basta. É ainda pouco. Há os que sobrevivem. E, segundo o autor do admirá­vel A barca dos homens, o mineiro só daria sua solidariedade à ossada, à caveira.

Não sei quem está certo, se o Otto, se o Autran. Só sei que há um mineiro, o Zé Luís Magalhães Lins, do Banco Nacional de Minas Gerais, que é um generoso, um compassivo, um ter­no, um úmido. O chamado leite da bondade humana pinga ou, por outra, esguicha do Zé Luís. Falei no câncer. Aí é que está: — a solidariedade do jovem banqueiro começa na brotoeja.

Temos diante de nós o caso nacional de Garrincha. E, de fato, o povo acompanhou o drama como se fosse um fascículo de Miguel Zevaco. O Mané, que era um manso, uma cambaxirra, tivera a sua primeira indignação terrena. E essa fúria inédita assombrava todo mundo. Por sua vez, o Botafogo é um clube passional. Insultou-se e partiu para a briga, desgrenhado como um Tartarin.

Ora, que espécie de relação, ou interesse, ou que diabo se­ja, podia ter o Zé Luís com o fato? Mas aí é que está: — o Zé Luís vive a distribuir, a mãos ambas, a sua solidariedade gratui­ta, ininterrupta, automática. Onde quer que haja um problema, ou um aflito, lá aparece a solidariedade de Zé Luís como uma vela acesa. Ele se interessa por tudo e participa de tudo, com uma juvenil, uma militante efusão. Se na China, se no Alasca, uma galinha pula a cerca do vizinho, ele vive apaixonadamente o problema.

Ei-lo a quebrar lanças por Garrincha e pelo Botafogo. Meteu-se no fogo como uma Joana d’Arc. Varava as noites, numa vigí­lia fanática. Domingo e segunda, quando sumiu a última estrela da noite, estava o Zé Luís, em General Severiano, discutindo, aconselhando, com um élan de herói de Walter Scott. Fisica­mente, é um alto, um pálido. E o cansaço dava-lhe um certo halo de martírio.

O Zé Luís sabia que Garrincha nos pertence e que não poderíamos perder Garrincha. Se o Mané deixasse o futebol, choraríamos a sua ausência com uma dor de viúva siciliana. E o jovem banqueiro, com seu ar de aluno de Pedro II, lutou furiosamente. O dinheiro não o desumanizou, e pelo contrário: — ele é que humaniza o dinheiro. Ganhou, por fim, a batalha. Garrincha não podia perder o Botafogo, nem este podia perder o Mané. O Zé Luís repôs um nos braços do outro.

 [O Globo, 27/3/1963]

 


UM FLUMINENSE TÃO FLAUBERT

Amigos, no tempo de Eça de Queirós, quando o articulista estava sem assunto, tinha uma solução genial, que era a seguin­te: — xingava o bei de Túnis. Em Túnis há sempre um bei, e é doce descompor alguém com a prévia e linda certeza da im­punidade. Era uma delícia para o autor de Os Maias xingar um desconhecido ilustre. Numa das vezes o bei protestou. Ao des­crever fisicamente a vítima, Eça chamou o bei de “sórdido e obeso”.

Possivelmente a importante autoridade não seria uma coi­sa nem outra. Ou talvez fosse magro, lívido e hierático. Mas o que eu queria dizer é que, como todo cronista, eu tenho o meu bei de Túnis. Chama-se Otto Lara Resende e trabalha ali na Pro­curadoria do Estado. Sendo esta uma coluna de futebol, por que a citação freqüente e mesmo obsessiva de um homem que ja­mais deu uma botinada, jamais bateu um córner ou um tiro de meta?

O leitor dirá: — “É uma obsessão”. Ao que eu responde­rei: — “É uma obsessão”. Se eu pudesse, escreveria todo santo dia sobre o Otto. A princípio ele foi, estritamente, o meu bei de Túnis. Hoje é algo mais. Faz-me falta não citá-lo nas minhas crônicas. Sinto-me um frustrado e um vencido quando não uso o seu nome uma única e escassa vez. E o interessante é que tam­bém o leitor está viciado no Otto e tem saudades dos seus fei­tos, da sua figura, das suas piadas.

Hoje, porém, vou falar do Otto a propósito do Fluminen­se. Pode parecer que uma coisa não tem nenhuma relação com a outra. Mas tem. E explico. O Otto é uma coisa que não sei, francamente não sei, se compromete ou se consagra um estilista. Ninguém mais divino torturado. Por vezes uma frase lhe custa arrancos de cachorro atropelado. Outro dia o Hélio Pellegrino soprou-lhe a sugestão: “Não seja tão Flaubert de Salambô!”.

Por exemplo: — nas refeições o personagem do Otto “senta-se à mesa”, sempre e inexoravelmente “à mesa”. E vamos e venhamos: — sempre que, numa obra de ficção, o personagem senta-se com a classe referida, não é mais possível obra-prima, não é mais possível Ana Karênina. Ao passo que, pessoalmente, ele arrebata porque, no bate-papo, não há clas­se, não há Flaubert, não há Salambô, não há nada.

Outro dia o Otto sentou-se com o Armando Nogueira. Três horas da manhã. E o escritor mineiro brilhou como uma Duse aos dezessete anos. Durante 45 minutos ele provou, por A mais B, que no Brasil o golpe é uma impossibilidade total. Conven­ceu o Armando. Em seguida, passou a demonstrar a verdade in­versa, ou seja: — que, no Brasil, o golpe é iminente, inevitável e necessário. Estava sendo ali um Sócrates sem alpercata.

Agora, a relação do Otto com o Fluminense. Domingo pas­sado, durante os primeiros vinte minutos, o Fluminense foi um Otto, foi um estilista. Mas no futebol, como na literatura, con­vém não caprichar demais. Enquanto o Fluminense foi perfei­to, não fez gol nenhum. Tudo certo, exato, irretocável, como a redação do Otto. No meu canto, eu via a hora em que perde­ríamos mais um ponto fatal. E vem a grande verdade: — a obra-prima, no futebol e na arte, tem de ser imperfeita. A partir do momento em que o Fluminense deixou de ser tão estilista, tão Flaubert, os gols começaram a jorrar aos borbotões.

 [O Globo, 9/11/1963]

 


O DIVINO DELINQÜENTE

Amigos, vocês se lembram da vergonha de 50. Foi uma humilhação pior que a de Canudos. O uruguaio Obdulio ganhou de nosso escrete no grito e no dedo na cara. Não me venham dizer que o escrete é apenas um time. Não. Se uma equipe en­tra em campo com o nome do Brasil e tendo por fundo musical o hino pátrio — é como se fosse a pátria em calções e chutei­ras, a dar botinadas e a receber botinadas.

Pois bem. Depois da experiência bíblica de 50, passamos a rosnar, por todas as esquinas e por todos os botecos do con­tinente, o seguinte juízo final sobre nós: — “O brasileiro é bom de bola, mas frouxo como homem”. É o que diziam, sim, de nós, com feroz sarcasmo, os craques da Argentina e os craques do Uruguai. Até que vem aquele famoso Campeonato Sul-Americano de 1959. Há o jogo Brasil x Uruguai. E, de repente, estoura um sururu monstruoso. Brigaram até as cadeiras.

Foi uma página de Walter Scott. O próprio Chinesinho, com o seu tamanho de anão de Velasquez, levou e deu bordoada. Lindo, lindo foi quando Didi tomou distância, correu e saltou. Por um momento ele se tornou leve, elástico, acrobático. E en­fiou duas chuteiras em flor na cara do inimigo. Quando parou a guerra e continuou o jogo, demos um banho de bola. Ora, há uma nítida relação entre a passividade de 50 e a agressivida­de do tal Sul-Americano. As duas coisas estão ligadas e uma jus­tifica a outra.

Certo e brilhante confrade dizia-me ontem que “futebol é bola”. Não há juízo mais inexato, mais utópico, mais irrealístico. O colega esvazia o futebol como um pneu, e repito: — reti­ra do futebol tudo o que ele tem de misterioso e de patético. A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana. Às vezes, num córner mal ou bem batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural. Eu diria ainda ao ilustre confrade o se­guinte: — em futebol, o pior cego é o que só vê a bola.

Faço a meditação acima para justificar a escolha do meu personagem: — Almir[‡‡‡‡‡‡‡‡]. Alguém dirá que Almir é um delinqüente irrecuperável. Amigos, vamos reexaminar o problema. “Ser ou não ser delinqüente”, “ser ou não ser paranóico”, eis a ques­tão. Mas os mesmos que agora exigem a cabeça de Almir, como se ela fosse a de Maria Antonieta, gostam muito de Didi. Eu pró­prio tenho por Didi uma admiração de macaca-de-auditório. Dei-lhe o nome de “Príncipe Etíope de Rancho”. Mas já diziam os acácios e os pachecos da crônica: fato é fato. E Didi, conforme todo mundo sabe, quebrou a perna de Mendonça.

Estava lá o Armando Nogueira. Ora, o Armando é um lúci­do, um sensível e, sobretudo, um justo. O Otto Lara Resende vai mais longe e jura que esse nobre confrade é o único pastor protestante escocês que jamais existiu. Eu pergunto ao pastor es­cocês que há no Armando se ele, Armando, usou a ênfase de um Moisés ou a ira de um Zola para chamar Didi de “paranói­co” ou de “delinqüente”.

Há mais. Ainda o meu amigo Armando Nogueira viu quan­do, há tempos, Amarildo quebrou Jair Marinho, do Fluminen­se. Lá saiu o esplêndido zagueiro de maca, e quase de rabecão. O Armando, que é, repito, um justo, foi testemunha ocular e auditiva do fato. Digo “auditiva” porque ele “ouviu” o som ine­quívoco da fratura. Jogavam Botafogo x Fluminense e um au­têntico alvinegro foge do túmulo para ir torcer.

Não lembro o que escreveu o Armando a respeito. Amigos, ando sofrendo freqüentes lapsos de memória. Mas suponho que o pastor protestante escocês tenha aproveitado a chance para taxar o “Possesso” de “delinqüente” e de “paranóico”. E se poderia citar dezenas, centenas de exemplos. O match Chile x Itália, em 62, foi canibalesco. Os adversários só faltavam chu­par as carótidas uns dos outros. Em 58, no match Suécia x Ale­manha, os 22 jogadores agrediram-se a dentadas.

Nós é que vamos exigir, de um jogo de futebol, a cerimô­nia, a polidez, a correção de uma sessão da Câmara dos Comuns? O meu amigo Armando Nogueira se horroriza com o meu per­sonagem da semana como se este tivesse inaugurado o foul no futebol. Se o jogo fosse só a bola, está certo. Mas há o ser hu­mano por trás da bola, e digo mais: — a bola é um reles, um ínfimo, um ridículo detalhe. O que procuramos no futebol é o drama, é a tragédia, é o horror, é a compaixão. E o lindo, o sublime na vitória do Santos é que, atrás dela, há o homem bra­sileiro com o seu peito largo, lustroso, homérico.

O Santos é uma equipe assassinada, e repito: — assassina­da pela inépcia e desumanidade de seus dirigentes. Nenhuma equipe terrena pode jogar tanto sem se morrer. E, contra o marcadíssimo Milan, o glorioso time ruía aos pedaços, estrebuchava, agonizava. Nunca houve cansaço tamanho. E, apesar disso, ganhou do Milan na mais linda reação que se conhece. Ganhou duas vezes. Por que agredir a vitória não de um time, mas do homem brasileiro? Por que esse ressentimento inconfesso, mas nítido, contra o Santos? Mas voltemos ao meu personagem da semana. Teve uma grande e cálida atuação no feito brasileiro. Será “paranóico” porque chutou Amarildo? E Didi, e o próprio Amarildo, e tantos outros? Por justiça, o meu amigo pessoal Ar­mando Nogueira devia aparecer na boca de cena para declarar: “Meus senhores e minhas senhoras. Só vejo paranóicos na mi­nha frente”.

 [O Globo, 18/11/1963]

 


SEMANA DE FLA—FLU

Amigos, de vez em quando eu esbarro num rubro-negro desvairado. Ainda ontem, encontrei, no posto 6, o Walter Clark. Nunca vi ninguém tão Flamengo! Entre parênteses, Wal­ter Clark é um homem que vive tropeçando em milhões. Tem um ar típico do garoto do Pedro II fazendo gazeta na Quinta da Boa Vista. Conta-se que ele arranca contratos de publicida­de até em velórios, até em cemitérios. Pois bem: — e o Walter Clark só pensa no Fla—Flu[§§§§§§§§].

Assim que me viu, ele me arrastou para um canto. Conversamos na varanda da tv Rio, diante do mar. Um cálido sopro marinho devastou-lhe o chuca-chuca de menino prodígio. Simplesmente, ele queria falar da batalha das batalhas. Em cima dos seus sapatos, pôs-se a exaltar o Flamengo. E eu senti, desde o primeiro momento, que a sua euforia é inteiramente errada, inteiramente imprópria. Falta-lhe o sentimento trágico do Fla—Flu.

Com sua cara de garoto, cara de Mozart aos sete anos, ele faz-me a seguinte inconfidência: — vai comemorar a vitória com busca-pé, desfile, bombinhas, fogos diversos. Comprou um au­tomóvel branco, nupcial, imaculado, forrado de arminho. E es­se carro de noiva vai puxar a passeata. Pensa, também, numa charanga wagneriana para dar o tom alto à comemoração.

Eu ouço o Walter Clark e calo. Mas há qualquer coisa de suicida nessa alegria prévia. Amigos, sempre que vai estourar uma catástrofe, o ser humano cai num otimismo obtuso, pétreo e córneo. Foi assim, em Hiroxima, na manhã dominical da bom­ba. Nenhum presságio, nenhuma tensão, nada que turvasse a ternura da cidade. Pastores, senhoras, crianças e babás tinham a mesma inconsciência de um bodinho de charrete. E, de re­pente, há o clarão hediondo.

Eis o que me pergunto: — com as suas comemorações antecipadas, o Walter Clark não estará arranjando a sua Hiroxima particular? Todavia, esse estado de tensão dionisíaca não é ape­nas do jovem tubarão da publicidade. As reportagens descrevem a mesma euforia em todo o mundo rubro-negro. O treinador Flávio Costa está calmo, e repito: — é a tal calma da catástrofe. Ao passo que todo o Fluminense sente, na carne e na alma, a angústia que anuncia as vitórias deslumbrantes.

Mas vejam a dupla experiência que está reservada ao Wal­ter Clark: — ele hoje canta a vitória rubro-negra, para domingo chorar a vitória tricolor. Foi assim também em 1919. Naquela ocasião, os eternos rivais quebraram lanças numa batalha gigan­tesca. Quarenta e quatro anos já rolaram depois disso. A cidade estava, como agora, cálida de Fla—Flu. Lembro que, no dia do jogo, alguém morreu na minha rua. E, no caixão, o defunto es­tava de cara amarrada, porque não ia ver o clássico eterno. Mas como eu ia dizendo: — com o mesmo otimismo trágico do Wal­ter Clark, o Flamengo preparou a apoteose. Quatro corneteiros, de casaca e esporas, esperavam, com os respectivos cava­los, o final do match.

E venceu o Fluminense. Creio que não existe, na história de um clube, nada que se compare ao nosso triunfo naquele Fla—Flu. Quatro a zero. Pode-se ter uma idéia da ira e frustra­ção dos corneteiros. Os cavalos baixaram as orelhas desoladas, e mais pareciam tristíssimos jumentos. Assim aconteceu há 44 anos. E agora?

O profeta já anunciou: — “Fluminense, campeão de 63!”. Desta coluna, eu já fiz um apelo aos tricolores, vivos ou mortos. Ninguém pode faltar ao Maracanã domingo. Incluí os fantasmas na convocação, e explico: — a morte não exime ninguém de seus deveres clubísticos. Em certos clássicos, cada adversário arrisca o passado, o presente e o futuro. Precisamos pensar nos títulos já possuídos. Ai do clube que não cultiva santas nostalgias. Com os torcedores de hoje e os fantasmas de velhíssimos triunfos: — ganharemos o mais dramático Fla—Flu de todos os tempos.

 [O Globo, 13/12/1963]

 


PIOR PARA OS FATOS

Amigos, ao terminar o grande Fla—Flu[*********], o profeta tratou de catar os trapos e saiu do Maracanã, mas de cabeça erguida. Era um vencido? Jamais. Vencido como, se temos de admitir esta verdade límpida e total: — o Fluminense jogou mais! Não cabe, contra a evidência da nossa superioridade, nenhum argumen­to, sofisma ou dúvida. Alguém dirá que o profeta não previa o empate.

Exato. Mas vamos raciocinar. Houve lances, no Fla—Flu, que escapariam à vidência até de um Maomé, até de um Moisés de Cecil B. de Mille. Lembro-me de um momento em que Mar­cial estava batido irremediavelmente. O arco rubro-negro abria seus sete metros e quebrados. E que fez Escurinho? Enfiou a bola na caçapa? Consumou o gol de cambaxirra?

Simplesmente, Escurinho levantou para Marcial. Deu a bo­la na bandeja como se fosse a cabeça de são João Batista. E eu diria que nem Joana d’Arc, com suas visões lindas, ou Maomé, pendurado no seu camelo, ou o Moisés de Cecil B. de Mille, do alto de suas alpercatas — podia imaginar tamanha ingenuidade. Escurinho teria de chutar rente à grama, ou alto, se quisesse, mas teria de chutar e nunca suspender a bola.

E tem mais. Os profetas de ambos os sexos jamais pode­riam contar com a trave. No segundo tempo, Escurinho man­dou uma bomba. Nenhum gol foi tão merecido. Pois bem: — vem a trave e salva. Além do mais, que Maomé, ou que Moisés podia calcular que o treinador Flávio Costa ia fazer jogo para empate? Dirá o próprio que não foi esta a sua intenção. Mas o fato incontestável é que ele armou o time para o hedion­do 0 x 0.

É óbvio que, desde o primeiro minuto, o Fluminense te­ria de se atirar todo para a frente. Era preciso forçar a decisão, o gol, a vitória, já que o empate seria a catástrofe. O tricolor jogou bem e, no entanto, não deu, nunca, a sensação de fome e sede de gol. Faltavam uns quinze minutos, e os nossos joga­dores ainda tramavam, ainda faziam tico-tico, ainda perdiam tempo com passes curtos, para os lados e para trás. Sim, o Fluminense jogou bem e não cabe preciosismo num último Fla—Flu.

Já no jogo do Flamengo contra o Bangu, aconteceu o se­guinte: — sempre que Oldair avançava, eis que Flávio erguia-se na boca do túnel e fazia um comício. Oldair marcou dois gols por desobediência e, repito, por indisciplina tática. On­tem, ele estava cá atrás, defendendo um empate que seria a vitória do Flamengo. Vejam que tristeza horrenda: — nós, do Fluminense, jogamos bem e errado.

Dizia eu que o profeta estava certo no mérito da questão. O tricolor é o melhor, foi melhor, teve mais time. Mas há, claro, um campeão oficial, que é o Flamengo. E, aqui, abro um capítulo para falar da alegria rubro-negra, santa alegria que anda solta pela cidade. Nada é mais bonito do que a euforia da massa flamenga. À saída do estádio, eu vi um crioulão ar­rancar a camisa diante do meu carro. Seminu como um são Sebastião, ele dava arrancos medonhos. Do seu lábio, pendia a baba elástica e bovina do campeão.

Mesmo que eu fosse um Drácula, teria de ser tocado por essa alegria que ensopa, que encharca, que inunda a cidade. Não sei se o time do Flamengo, como time, mereceu o título. Mas a imensa, a patética, a abnegada torcida rubro-negra me­rece muito mais. Cabe então a pergunta: — quem será o per­sonagem da semana de um abnegado Fla—Flu tão dramático para nós? Um nome me parece obrigatório: — Marcial. E, nes­sa escolha, está dito tudo. Quando o goleiro é a figura mais importante de um time, sabemos que o adversário jogou me­lhor. Castilho teve muito menos trabalho. Claro que eu não incluo, entre os méritos de Marcial, o gol que Escurinho não fez. Tampouco falo na bomba que o mesmo Escurinho enfiou na trave. Assim mesmo, Marcial andou fazendo intervenções de­cisivas, catando bolas quase perdidas.

Amigos, eu sei que os fatos não confirmaram a profecia. Ao que o profeta pode responder: — “Pior para os fatos!”. É só.

 [O Globo, 16/12/1963]

 


A CAVEIRA NO ESPELHO

Amigos, sou um admirador profundo do cinema italiano. Bem me lembro dos meus tempos de menino. Sempre que ha­via uma fita de Francesca Bertini, lá estava eu, com meus seis, sete anos salubérrimos. E a Bertini deslumbrava a minha infân­cia. Santa e, como diria Augusto dos Anjos, abominabilíssima senhora! No momento mais dramático dos filmes, ela saía pelas portas, aos urros e às patadas. E se alguém a beijava, eis a vamp antediluviana querendo subir pelas paredes como uma lagarti­xa profissional.

Assim era no tempo da cena muda. Mas, com a passagem dos anos, o cinema foi mudando. Menos o italiano, que conti­nuou fiel ao próprio povo. A Bertini passou. Mas outras a subs­tituíram, e seguindo uma linha parecida. E o cinema atual da Itália está cada vez mais feroz e cada vez mais esbravejante. Pode-se dizer que ele repôs o urro no centro do drama humano. Suas atrizes, ainda as mais sóbrias, são desgrenhadas viúvas sicilianas. Francesca Bertini está mais viva, mais atual, mais obsessiva do que nunca.

Faço toda esta volta pelo cinema italiano para chegar ao Botafogo. É, com efeito, o clube mais passional, mais siciliano, mais calabrês do futebol brasileiro. Um tricolor pode torcer em sur­dina, pode cochichar, pode suspirar. O botafoguense, porém, é de uma extroversão ululante como nos velórios da Sicília. Lembro-me de uma vizinha que torcia pelo Botafogo. Por uma funesta coincidência, casara-se com um rubro-negro. E o casal discutia muito sobre futebol. Uma vez, houve um Flamengo x Botafogo. E não sei se ganhou o Flamengo, ou se ganhou o Bo­tafogo.

Só sei que, na volta do jogo, os dois vinham brigando. Foi lindo quando desembarcaram do táxi. A doce vizinha berrava: — “Te bebo o sangue!”. Tiveram de chamar a radiopatrulha ou do contrário ela descascaria a carótida do marido para chupá-la como laranja. Nessa implacabilidade está o charme da torcida botafoguense. Esse tom, essa efusão, essa agressividade, essa ira, ou estertor de ópera, de filme italiano, é que dá o tom justo aos homens de General Severiano.

E, além disso, como o italiano da anedota, o alvinegro autêntico paga para sofrer. O alvinegro autêntico, repito, prefere a catástrofe. E, quando o time perde, ele se realiza. Pode cla­mar, espernear, arrancar os cabelos, amaldiçoar e soltar os cães de sua ira. É a vocação da calamidade que torna inconfundível o botafoguense irreversível.

Na Sicília, quando um moribundo escapa de morrer, a quase viúva cai em frustração. Ela se sente espoliada do seu defunto e respectivo velório. É a mesma tristeza do alvinegro que não tem nenhum pretexto para soluçar as suas mágoas clubísticas. Felizmente, este ano o Botafogo perdeu o tricampeonato. E seus fanáticos podem descarregar, em todas as direções, o seu po­tencial de ira.

Cabe então a pergunta: — e por que o Botafogo perdeu o tricampeonato? Ora, eu não sou botafoguense e posso me dar ao luxo de um mínimo de isenção e de objetividade. A meu ver, o Botafogo começou a perder o tricampeonato quando nego­ciou Didi. Há uma verdade eterna, em futebol, que é a seguin­te: — todo clube precisa ter uns tantos bens inegociáveis. E não há preço que pague um bicampeão mundial. Didi teria que en­velhecer em General Severiano até se converter numa múmia gagá.

O Botafogo continuou a perder o tricampeonato quando pensou, simplesmente pensou, em vender Garrincha. Um clu­be que admite, mesmo como hipótese, a venda de um Mané tem mesmo a tal vocação da catástrofe. O Botafogo perdeu de vez o tricampeonato quando vendeu Amarildo. Negocian­do o “Possesso”, que marcou os dois gols contra a Espanha, o alvinegro estava querendo ver, no espelho, a própria caveira. Há também a ausência de Garrincha. Mas o joelho do Mané não é um problema cirúrgico, e repito: — o joelho é apenas um castigo.

Agora a conclusão: — se o Botafogo quis vender o Mané, e se negociou Amarildo, e se entregou Didi — é porque queria se dilacerar no arrependimento e na expiação.

 [O Globo, 28/12/1963]

 


O MAIS CARIOCA DOS TIMES

Amigos, o brasileiro é o homem de sua rua, do seu bairro, de sua cidade. Já escrevi isso umas cinqüenta vezes. Como eu ia dizendo: — para qualquer um de nós a viagem é um sacrifí­cio hediondo. A partir do Méier, baixa no sujeito uma aguda e desesperada saudade. Eu sei que uns poucos gostam de via­jar. São os falsos brasileiros, descaracterizados, cosmopolitas e, numa palavra, bobos irreversíveis.

Daí a tragédia dos times que saem, por aí, nas ignominiosas excursões caça-níqueis. Fora do aquário natal o craque brasileiro afoga. Por exemplo: — Didi. Por que fracassou na Espanha o “Príncipe Etíope de Rancho”? Foi uma vítima da nostalgia. Me­lhor que todos os seus companheiros de Real Madrid, Didi aca­bou apagando. Foi barrado, até. Contam que, nas tardes frias, ele só faltava uivar de saudade.

E, se assim aconteceu com o extraordinário jogador, ima­gino que os demais devam ter a mesmíssima reação. Outro exemplo: — o Santos. É o melhor time do mundo. Houve mo­mentos em que se disse por aqui: — “O verdadeiro escrete bra­sileiro é o Santos!”. E, de fato, quando o Santos joga bem, lem­bra as melhores atuações da seleção de 58.

E, no entanto, o esquadrão de Vila Belmiro virou saco de pancada. Apanhou de cinco do Independientes, de cinco do Peñarol e, sábado, de três do Colo Colo. Como eu dizia ontem, o Santos adquiriu o vício de perder. Apanha do grande e do pe­queno. Qualquer dia desses vamos vê-lo tomar um banho do Arranca-Toco F. C. A coisa toma um ar meio sobrenatural. Não há explicação possível. O Santos é, indubitavelmente, um esquadrão de ouro. Além de tantos valores conhecidos e consa­grados, lá está o maior de todos: — Pelé.

Um quadro que tem Pelé está na obrigação de ganhar de todo mundo. E por que perde? Porque deixou de ser um time brasileiro. Sim, transformou-se numa equipe internacional. Re­parem: — o Santos faz turismo no Brasil. Um dia está na Ar­gentina; em seguida, no Chile; e, depois, na Bolívia, no Peru. Seus jogadores são aplaudidos, vaiados e xingados em todos os idiomas.

A meu ver, baixou no Santos o tédio desesperador de tan­tas viagens. Que espécie de estímulo pode ter um time cujos adversários mudam de sotaque três vezes por semana? A equi­pe voltaria à sua melhor forma, ao seu grande ímpeto, se paras­se. Ponham o Santos para jogar no Maracanã, só no Maracanã. Eu não diria no Pacaembu. Em São Paulo há um ressentimento contra o quadro de Vila Belmiro. Mas aqui, no maior estádio do mundo, o Santos tornaria a encontrar o seu clima.

Vocês querem saber a última verdade sobre o Santos? Ei-la: — é o mais carioca dos times. Só por um equívoco crasso e ignaro nasceu em Vila Belmiro. Mas a verdade é que, por ín­dole, por vocação, por fatalidade — ele encontra, no Maraca­nã, uma dimensão nova e decisiva. É ali, no colosso do Derby, que o Santos mereceu as suas aclamações mais formidáveis. A multidão só falta carregá-lo no colo e passear com Pelé na ban­deja, triunfalmente.

Não me venham com explicações técnicas, táticas para seus fracassos. Esse time, que pára em todas as pátrias, menos na própria, estourou o limite de saturação. Qualquer viagem o aniquila. Tem que deixar de ser um pobre e errante quadro internacional. E o pior é que até Vila Belmiro soa como um exílio porque o Santos nasceu no lugar errado. Sua verdadeira casa é o Maraca­nã. Ah, se ele conseguisse naturalizar-se carioca — seria uma equipe imbatível e eterna.

[O Globo, 3/3/1964]

 


O MARTÍRIO DE NÍLTON SANTOS

Amigos, minha última obsessão é a seguinte: — o tapa que Nílton Santos deu no juiz[†††††††††]. O episódio ainda é assunto, é notí­cia, é manchete. O craque foi arrastado a julgamento. Em vão, bateu às portas da indulgência humana. Ninguém lhe concedeu uma atenuante. A impressão que se teve é que o tapa de Nílton Santos está entre os sete pecados capitais.

Cabe então a pergunta: — a coisa merecia esse estardalha­ço? Merecia essa promoção? Receio que sim e explico. Não há tapa intranscendente. Agressor, vítima e testemunhas estão im­plicados na mesma humilhação. Eu me lembro de uma cena que vi, faz tempo, numa luta de Éder Jofre. Na altura do segundo ou terceiro round, um espectador ergue-se, aos uivos. Vocife­rava para o ringue: — “Parem! Parem!”. Cercado por três ou quatro, o sujeito foi arrastado. Mais desgrenhado e ululante do que um jeremias, ele ia soluçando: — “Não se bate na cara de ninguém! De ninguém!”.

Parece que a Justiça Esportiva, sensível à transcendência do tapa, levou o castigo às últimas conseqüências. E, de repente, Nílton Santos lembrou o martírio de Dreyfus. Como se sabe, diante da tropa formada, arrancaram os bordados de Dreyfus, depenaram as dragonas, arrancaram os botões, derrubaram o boné. Tudo isso ao som de tambor, cometa, o diabo. Nílton Santos quase teve essa degradação total.

E não ocorreu a ninguém que um tapa pode ter a sua ética profunda. Nílton Santos bateu por quê? Sim, por quê? Vamos reconstituir o fato. Segundo todas as testemunhas, o árbitro cor­reu para o jogador e espetou-lhe o dedo na cara. Vamos e ve­nhamos: — é meio triste para um adulto, casado, pai de filhos, sofrer uma desfeita assim pública e assim hedionda.

A gravidade de uma humilhação depende de público. Se os dois estivessem num terreno baldio, apenas assistidos por alguma cabra vadia, a coisa não teria nenhum patético. É a tes­temunha que valoriza e dramatiza as ofensas. Nílton Santos e o juiz brigaram num campo de futebol. Gente por toda parte, e repito: — gente pendurada até no lustre. Dirá alguém que o jogador agrediu. Convém lembrar: — dedo na cara também é agressão.

Eis o problema: — um juiz pode agredir e um jogador não pode revidar? Dirá algum fariseu que o atleta não pode dar ta­pas como um gângster. Ora, mil vezes mais grave, mais solene, mais hierático do que o atleta é o ser humano. Um jogador não pode ser, nunca, a antipessoa. E, afinal de contas, se houvesse justiça real, o jogador que se portou como homem — e por is­so mesmo — teria de ser desagravado, promovido, premiado.

Mas, no caso, há também um aspecto desesperador. Refiro-me à infalibilidade que se confere ao juiz de futebol. Tem um poder que, hoje, negamos ao rei da Arábia Saudita. A tirania mais cruel e obtusa tem seus limites. E só o juiz de futebol paira aci­ma do bem e do mal. Sim, depois do que fizeram com Maria Antonieta, ou com Maria Stuart, ou com Inês de Castro — não se entende que um apito, um reles apito, possa tornar alguém sagrado, intangível.

 [O Globo, 12/3/1964]

 


ENCOURAÇADO DE SOL

Amigos, ao contrário do que se pensa, o Brasil nem sem­pre foi um país tropical. No tempo de Machado de Assis, ou de Epitácio Pessoa, ou de Paulo de Frontin, o sujeito andava de fraque, colete, colarinho duro, polainas, o diabo. As santas e abomináveis senhoras da época se cobriam até o pescoço. Em suma: — o brasileiro vestia-se como se isto aqui fosse a Sibéria, o Alasca, sei lá.

Hoje não. Procura-se um fraque e não se encontra um fra­que. Os mais vestidos andam seminus. No passado, o sujeito que entrasse sem gravata num bonde — era de lá expulso a patadas. E, agora, anda-se de biquíni nos lotações. Um sol hediondo vai derretendo as catedrais e amolecendo os obeliscos. Não há dúvida: — somos finalmente tropicais.

Olhem as nossas praias. A nudez jorra aos borbotões. Em 1905, o turista que visse Machado de Assis havia de anotar no caderninho: — “Este é o povo mais vestido do mundo!”. Em nossos dias, o mesmo turista havia de escrever inversamente: — “Este é o mais despido dos povos!”. Pois bem. E, no entan­to, vejam vocês: — ocorre aqui uma reação curiosíssima.

Sim, diante do calor, o brasileiro esperneia e pragueja. O que fazem com o futebol chega a ser burlesco. Em pleno ve­rão, suspendem os clássicos e as peladas. O Maracanã cerra as suas portas. Todas as botinadas são proibidas. E ninguém per­cebe o absurdo. O justo, o lógico, o adequado é que um cra­que tropical, como o nosso, jogue no verão e descanse no in­verno.

Não me venham com o argumento de higiene. Para um tro­pical, a higiene é um sol homicida. E se reclamamos, se esbravejamos, se uivamos contra o sol, cabe uma dúvida honesta. É possível que sejamos tropicais por engano. E, nesse caso, certo estaria Machado de Assis ao pôr fraque e galochas, assim desa­fiando o hediondo sol do meio-dia.

O futebol antigo era mais inteligente. O jogador entrava em campo e os jogos caniculares tinham mais élan, mais saúde, mais euforia. Por exemplo: — em 1910, ano em que o Botafogo foi campeão. Naquele tempo, o Brasil era tropical sem o saber. Lem­bro que um craque alvinegro, famosíssimo, jogava com uma vas­ta toalha felpuda enrolada no pescoço. Quarenta graus à som­bra e ele varava o campo como um centauro de cobertor.

E nunca houve, no velho futebol, nenhuma insolação. Pe­lo contrário: — o craque tinha uma resistência de hipopótamo. Na célebre gripe espanhola morreu todo mundo. A mortanda­de foi pior do que a da primeira batalha do Marne. Mas como eu ia dizendo: — uns morriam e outros eram enterrados. E, quando o sujeito relutava em morrer, era liquidado a pauladas como uma ratazana. Muito bem: — só os jogadores de futebol sobreviveram.

Não havia Departamento Médico nos clubes. Mas o sol potencializava o jogador e o protegia contra o tifo, a malária e a peste bubônica. Sim, bons tempos em que o Brasil não era ain­da tropical ou por outra: — não sabia que o era! O craque usa­va bigodões imensos, carapuça e mais: — seus calções escor­riam até as canelas. Lindo, lindo. E assim, encouraçado de sol, abarrotado de calor, o craque ou o perna-de-pau eram uma bas­tilha deslumbrante de saúde.

 [O Globo, 13/4/1964]

 


OS QUE NEGAM GARRINCHA

Amigos, qualquer multidão é triste. Juntem 150 mil pessoas no Maracanã e vejam como imediatamente o estádio começa a exalar tristeza e depressão. Assim foi ontem, 1º de maio, Dia do Trabalho, e portões abertos para todo mundo[‡‡‡‡‡‡‡‡‡]. Aquilo foi to­mado de assalto. E, quando soou o apito inicial, tinha gente até no lustre.

Mas o que eu queria dizer é que, como qualquer multidão, aquela massa estava triste, fúnebre, inconsolável. E só mesmo o meu personagem da semana, Mané Garrincha, conseguiu ar­rancar do Maracanã entupido uma gargalhada generosa total. Vo­cês se lembram de Charlie Chaplin, em Luzes da ribalta, fazen­do o número das pulgas amestradas? Pois bem, Mané deu-nos um alto momento chapliniano. E o efeito foi uma bomba.

Na primeira bola que recebeu, já o povo começou a rir. Aí é que está o milagre: — o povo ria antes da jogada, da graça, da pirueta. Ria adivinhando que Garrincha ia fazer a sua grande ária, como na ópera. Como se sabe, só o jogador medíocre faz futebol de primeira. O craque, o virtuose, o estilista, prende a bola. Sim, ele cultiva a bola como uma orquídea de luxo.

Foi uma das jogadas mais histriônicas de toda a vida de Ma­né. Primeiro, pulou por cima da bola. Fez que ia mas não foi. Pula pra lá, pra cá, com a delirante agilidade de 58. Lá estava a bola, imóvel, impassível, submissa ao gênio. E Garrincha só faltou plantar bananeiras. Três ou quatro gaúchos batiam uns nos outros, tropeçavam nas próprias pernas.

O importante, porém, é que a multidão, neurótica como toda multidão, ria, finalmente ria. E o som de 150 mil gargalha­das saiu do Maracanã e rolou por toda a cidade. Era mais uma ressurreição do Mané. Digo “ressurreição” porque o meu per­sonagem da semana já teve vários atestados de óbito. Sabemos que ele está jogando no Coríntians e fazendo gols fantásticos. Não contente de fazer os próprios, tem sido, com seus passes magistralíssimos, o co-autor de não sei quantos gols alheios.

Pois bem. Mas há, na crônica, quem o trate como um de­funto do futebol. Chega a ser patusca a insistência com que vá­rios colegas anunciam a morte do Garrincha de 58 e de 62. E Mané tem que ser exumado. Só o povo é que, na sua imaculada boa-fé, não acredita no fim do ídolo. Sempre que ele recebia a bola, a multidão caía em estado de graça plena.

E vamos e venhamos: — para um defunto, Mané parecia ontem salubérrimo. Cabe então a pergunta: por que certos con­frades teimam em não enxergar o óbvio ululante? Há várias ex­plicações. Em primeiro lugar, os colegas alvinegros ressentidos contra o abominável ex-botafoguense. E há também a falta de bondade. Amigos, eu sempre digo que sem um mínimo de ter­nura não se chupa nem um Chica-bon. Os que negam Garrin­cha têm uma aridez de três desertos.

Mas o que importa, para nós, para o escrete, para o Brasil, é que Mané voltou a ser ele mesmo. Ainda ontem nós verifica­mos, mais uma vez, como é importante, como é decisiva a sua presença. Antes de mais nada, o adversário dá-lhe uma cober­tura histérica de três e até quatro marcadores. Imaginem lá fo­ra, imaginem na Inglaterra. Sempre que ele receber a bola, lord Nelson há de tremer na tumba e a “Divina Dama” há de chorar lágrimas de esguicho.

 

[O Globo, 2/5/1966]

 


MATAR OU MORRER

Amigos, se me perguntarem qual é o maior defeito do fu­tebol brasileiro, eu direi: — a delicadeza, e reforço: — a extre­ma delicadeza. De fato, não há na Terra um craque que tenha a polidez do nosso. O brasileiro é um tímido, um contido, um cerimonioso. Foi assim em 58, foi assim em 62. Nas duas Co­pas, os adversários já entravam de navalha na liga.

Ao passo que, até no foul, o escrete verde-amarelo era de uma suavidade impressionante. Vejamos em 58. O jogo Suécia x Alemanha[§§§§§§§§§] foi uma carnificina. Eu estava vendo a hora em que os adversários iam arrancar a carótida uns dos outros para chupá-la como tangerina. Foram noventa minutos de uma fero de recíproca e homicida. Valeu tudo, rigorosamente tudo.

Pois o Brasil não fez um único e escasso vexame. Era de dar pena a correção dos nossos rapazes. Jogavam na bola e só na bola. Jamais o mundo vira um escrete tão doce e de uma ino­cência quase suicida. Um sociólogo que lá estivesse havia de fazer a constatação apiedada: — “O escrúpulo é próprio do sub­desenvolvimento” .

O escrúpulo e mais: — a humildade, a lealdade, o altruís­mo. No jogo Brasil x França, o árbitro comportou-se como um larápio. Não houve, em toda a história da Copa, um roubo mais cristalino e cínico. Tivemos que fazer três gols para que valesse um. E o escrete brasileiro nem piscou. Deixou-se furtar e só fal­tou beijar a testa do ladrão.

O pior vocês não sabem. Até 58 o Brasil fazia de si mesmo a pior das imagens. Sim, o brasileiro se considerava um facíno­ra. E, no Maracanã, quando um de nós ousa um foul mais vio­lento, o estádio vem abaixo. Por toda parte há quem esbraveje: “Cavalo! Cavalo!”. Mas é uma injustiça. Muito mais brutal do que o nosso é o futebol da Inglaterra, da Alemanha, da França, da Itália, da Bulgária.

O meu amigo Antônio Callado viu, certa vez, um jogo In­glaterra x Escócia. Foi um pau só, do primeiro ao último mi­nuto. E, súbito, explode um sururu. Brigaram os 22 jogadores, o juiz, os bandeirinhas, as torcidas. A polícia montada teve de invadir o campo. No Brasil, o sururu é tão antigo, tão obsoleto como um quepe da Guerra do Paraguai. E, quando um de nós dá um tapa, as manchetes tremem e há uma comoção nacional.

A doçura, a cerimônia, a timidez do nosso futebol são de­feitos gravíssimos. Um jogador brasileiro tem vergonha de pi­sar na cara do adversário caído. O europeu não. O europeu não recua diante de nada. Vocês se lembram do jogo Brasil x Ale­manha aqui no Maracanã. Foi uma partida medíocre, mas que teve um lance de epopéia.

Refiro-me à bola dividida entre Pelé e um alemão. Este não recuou, nem o brasileiro. E o dilema criado para ambos foi o seguinte: — matar ou morrer. O alemão preferiu matar e Pelé não quis morrer. O nosso levou vantagem pelo seguinte: — porque introduziu no choque a molecagem brasileira. Conclu­são: — Pelé sobreviveu e o germânico saiu de maca.

A imprensa teve a reação própria do subdesenvolvido: — condenou Pelé. Se a coisa fosse na Alemanha, e a vítima Pelé, o cronista de lá ia considerar a fratura um fato normal e intranscendente. Amigos, na Europa o foul praticamente não existe. O juiz só costuma apitar quando um adversário estripa o outro.

E não há dúvida de que, por uma tendência natural e por se tratar de um tri, vão caçar os brasileiros a pauladas. Outrora, o brasileiro babava de inveja e deslumbramento só de ouvir fa­lar no inglês. Mas verdade é bem diferente. Hoje sabemos que o único inglês da vida real é o brasileiro. Sim, qualquer favela­do nosso, desdentado e negro, é um monstro de boas maneiras.

 [O Globo, 30/5/1966]


TERRENO BALDIO

Amigos, para entender a Comissão Técnica da seleção, eu inventei as conversas de terreno baldio com o João Havelange. E por que terreno baldio? Vou repetir a minha explica­ção. Tudo o que se diz num capinzal vem repassado de since­ridade. Ao passo que, no gabinete, na sala, no coquetel e na mesa, o ser humano usa 35 máscaras, nunca a sua face verda­deira.

Pois bem. Tenho levado o presidente da cbd para os ma­tagais mais discretos, mais secretos da cidade. E, lá no sigilo, no mistério do terreno baldio, digo ao João as coisas indizíveis, as coisas impublicáveis. E ele responde com a mesma lealdade. Tal é a vantagem das conversas imaginárias.

Acontece que o escrete vive um grande momento. Estamos a um mês da Copa da Inglaterra e rola, por todo o país, a per­gunta apavorante: — “E o time?”. Sim, onde está o time que a Comissão Técnica não fez? Não importa a sua qualidade. Mas 80 milhões de brasileiros querem uma equipe básica, suscetí­vel de retoques, mas conhecida e proclamada.

E ninguém conhece esse time. Que nós não o conhecêsse­mos, vá lá. Afinal, somos pobres e ignaros mortais. Mas a pró­pria Comissão Técnica participa da nossa ignorância e da nossa perplexidade. A equipe, que toda a nação deseja, ela não a tem. E o pior é que o relógio não pára. Nem o relógio, nem a folhi­nha. Começou uma luta corpo a corpo entre o escrete e o tem­po. Cada minuto perdido é irrecuperável.

Com o João num terreno baldio, e na presença apenas de uma cabra pensativa, eu cobraria: — “E o time, Havelange? E o time?”. Aí está a pergunta de todo um povo. Podia não ser o ideal, mas que fosse um time. A própria Comissão só poderá agir e reagir a partir de uma equipe básica.

Sob o olhar indiferente da cabra, eu perguntaria: — “Você acha direito, João?”. Por enquanto, há um só titular obrigató­rio: — Pelé. Garrincha é provável e sabemos que a Comissão tudo fará para impor Servílio. Outra pergunta de terreno bal­dio: — “Como você explica, Havelange, que não se tenha ex­perimentado ninguém ao lado de Pelé?”. O João, que conhece futebol, sabe que Silva não é um perna-de-pau. Pelo contrário: — Silva se impôs, durante todo o campeonato, como um ata­cante decisivo. Servílio, com a bola nos pés, pode ter — quem sabe? — mais virtuosismo.

Mas Silva é o homem das grandes e fatais penetrações. Tem o tal feitio épico que o tricampeonato exige. E não há dúvida: — há muito que merece uma chance ao lado de Pelé. Há tam­bém Alcindo, há também Jairzinho. Dirá alguém que Jairzinho é reserva de Garrincha e Silva reserva de Pelé. Mas craques co­mo Silva, como Jairzinho podem ser testados de várias manei­ras. Em verdade, o que há é um pré-julgamento da Comissão, em favor de Servílio.

No terreno baldio, eu perguntaria ainda ao João: — “Fidélis ou Carlos Alberto? E Brito? E Bellini? Orlando ou Altair, hein, Havelange? Paulo Henrique ou Rildo?”. O nosso João teria de responder: — “Não me pergunte nada. Sei tanto quanto você”. Sabe tanto quanto nós. Pura e santa verdade. O presidente da CBD e chefe da delegação sabe tanto quanto qualquer outro brasileiro, vivo ou morto. Dirá alguém que a Comissão demora para não errar. Pois que erre. A simples demora é, em si mes­ma, um erro maior.

 [O Globo, 2/6/1966]


OS INIMIGOS DO ÓBVIO

Amigos, uma das coisas mais fascinantes da televisão, no momento, é o programa do Otto. E, lá, aparece de tudo. Do rajá ao sociólogo, do profeta ao camelô, do psiquiatra ao macumbeiro, do santo ao ventríloquo. Dessa irisada complexidade, tira o Otto um charme inimaginável. Ainda não perdi as espe­ranças de ver, entre os seus convidados, uma foca amestrada, equilibrando laranjas no focinho.

Ontem, o meu fraterno colega entrevistou uma psicanalis­ta sobre um dos problemas mais agudos do nosso tempo: — a juventude. E aí começa o equívoco. “Do nosso tempo” por quê? O jovem sempre foi problemático e, se não é problemáti­co, estejamos certos: — trata-se de um débil mental que deve ser amarrado num pé de mesa. Vamos dar graças a Deus que a nossa juventude tenha um drama, uma angústia, uma tensão dionisíaca ou demoníaca, sei lá.

Mas a psicanalista começa a falar e logo percebemos o seu raro brilho e o seu vasto saber. Por que o jovem está inquieto, tenso, vibrante, explosivo, perplexo e ameaçador? A culpa é da sociedade e da família. Quanto ao próprio jovem, a entrevista não faz uma tênue insinuação ou uma vaga referência. O que importa é apenas a situação social. Como reles coadjuvante, a situação familiar.

E eu então vi subitamente tudo. Imaginei que, diante de uma prova de natação, a psicanalista havia de concluir: — “Quem nada é a piscina e não o nadador”. Minha vontade foi bater o telefone para a TV Globo e dizer: — “Minha senhora, não se esqueça do nadador”. Se vocês admitirem a compara­ção, eu diria que há, sim, um nadador no problema da juventu­de. Sim, o que está por trás da família, da sociedade, das gera­ções é um velho conhecido nosso, ou seja: — o homem.

Os sociólogos do Otto, os psicólogos do Otto, os educa­dores do Otto, os professores do Otto ainda não chegaram ao ser humano e o ignoram com uma crassa e bovina teimosia. É preciso que alguém lhes escreva uma carta anônima, com o fu­ro sensacional: — “O homem existe! O homem existe!”. E vai ser um susto, um pânico, um horror, quando os citados espe­cialistas perceberem que a besta humana está inserida na nossa paisagem.

Eis a verdade: — todas as segundas-feiras, o programa do Otto apresenta um feroz, um rancoroso inimigo do óbvio. E que dizer do escrete? Passo do Otto para o campeonato do mundo. Amigos, um dos mais graves problemas da seleção era o com­panheiro de Pelé. Oitenta milhões de brasileiros queimavam os miolos, sem achar a solução. Onde encontrar esse misterioso, utópico, alucinante companheiro?

Não tem perdão a obtusidade com que insistimos em Servílio. Só no jogo com o Peru é que desconfiamos do óbvio ulu­lante. Não havia nenhuma afinidade entre alhos e bugalhos, ou seja: — entre Servílio e Pelé. Mas no dia seguinte todo mundo enxergou, de repente, outro óbvio ainda mais estarrecedor: — Alcindo. O tal companheiro de Pelé, mais esperado do que um messias, era o formidável centauro gaúcho.

Notem que estava na cara. Mas ai de nós, ai de nós! Nunca enxergamos o que está na cara. Alcindo treinava com uma saú­de, um élan, uma fome, uma sede, uma fúria sagrada. Se puses­sem um paralelepípedo na arquibancada ele diria, com o dedo apontado para Alcindo: — “Esse é o companheiro de Pelé!”. (Nas minhas crônicas, os paralelepípedos têm dedo.) Mas, como eu ia dizendo: — o que um paralelepípedo veria, ao primeiro olhar, nós não víamos. E, por fim, ninguém acreditava mais no tal companheiro. Foi preciso que jogassem o Brasil e a Polônia*, lá no Mineirão. E o óbvio baixou, de repente, no estádio. Não há mais dúvida, não há mais nada. O jogador que o óbvio esca­la é inarredável, irreversível, assim na terra como no céu.

 [O Globo, 8/6/1966]

 

SOMOS BURROS, BURRÍSSIMOS

Amigos, ontem foi um dia santo. O escrete do Brasil fazia a sua primeira audição na Inglaterra*. Eu vos direi que a rainha devia ter comparecido ontem, e não na véspera. Pois o divino Pelé jogou como se todos ali fossem rainhas. E se o diáfano es­pectro de Maria Stuart viu o crioulo, há de ter sussurrado: — “Vai jogar assim no raio que o parta!”.

Mas eu dizia que toda a cidade parou. As nossas madames Bovary, as nossas Anas Karêninas suspenderam seus amores e seus pecados, das três às seis. Os bandidos do Leblon não assal­taram senhoras nem crianças. E o caro Geraldo Mascarenhas, do Banco Mineiro da Produção, deixou de pensar nos títulos que eu já devia ter pago. Ontem, ninguém era credor, ninguém era devedor.

Éramos apenas brasileiros, da cabeça aos sapatos. No cen­tro da cidade, durante o jogo e depois do jogo, toda a cidade se inundou de papel picado. Chovia tudo das sacadas. Quando Garrincha fez o segundo gol, até papel higiênico foi atirado das janelas altas. Era a vitória, ainda a primeira vitória e apenas a primeira vitória. Mas a nação inteira crispou-se de sonho.

Doce escrete do Brasil! Nós o malhamos, aqui, como se ele fosse um judas de sábado de Aleluia. O Maracanã, o Morumbi, o Pacaembu e o Mineirão vaiaram seus craques. E, assim humi­lhada e assim ofendida, partiu um dia a seleção nacional. Partiu para a gigantesca jornada do Tri. E aconteceu o milagre: a dis­tância aproximou o escrete do povo. Sim, o exílio deu-nos a verdadeira imagem do time brasileiro.

Jogamos com a Bulgária e a vencemos. Ainda bem que não foi uma goleada. Aprendemos em 50 que nada embriaga mais do que o vinho dos escores frenéticos. Os 2 x 0 chegam para a nossa alegria e a nossa fé. Não queremos mais. Basta que con­tinue assim da primeira à última partida. Mas certos lances do escrete fizeram a Inglaterra tremer de beleza.

E onde estão os pessimistas? Dirá alguém que a equipe não esteve perfeita. Mas aí é que está: — não queremos a perfeição, queremos o tricampeonato. Toda obra de arte é imperfeita. E a nossa vitória de ontem foi, justamente, uma obra de arte to­tal. Só espero que cada um de nós faça uma autocrítica exem­plar. Precisamos chegar diante do espelho para confessar: — “Nós somos burros, muito burros, burríssimos!”.

Durante meses repetimos, com a pertinácia da obtusidade, que Altair era, fisicamente, imprestável para o escrete. Colegas meus afirmavam, com a ênfase do erro: — “Orlando é melhor, Orlando é melhor!”. Pois bem. Há o jogo, e Altair, do primeiro ao último segundo, despontou como a maior figura da defesa. Suportou bravamente todas as situações de choque corporal. Vocês imaginam o que seja o búlgaro. Sim, o búlgaro tem a saú­de do zebu premiado. E o nosso frágil, dispnéico, exânime Al­tair era uma bastilha inexpugnável. Levou pau e deu pau. E por ele ninguém passou, ninguém.

Outra figura comovente foi Denílson. Até outro dia, era aspirante do Fluminense e hoje é titular no maior escrete do mun­do. É o momento de se fazer justiça a Carlito Rocha. No momen­to em que Denílson não era ninguém, era zero, o velho Rocha, de olho rútilo e lábio trêmulo, ousou a profecia: — “Vocês vão torcer por esse menino em Londres”. Todo mundo achou graça. Mas o que parecia uma piada era um maravilhoso vaticínio.

Falemos agora de Pelé. Os cronistas ingleses ousaram blasfemar contra o divino. E o crioulo respondeu com uma exibi­ção imortal. Não me venham falar em Di Stefano, em Puskas, em Sivori, em Suárez. Eis a singela e casta verdade: — não che­gam aos pés de Pelé. Quando muito, podem engraxar-lhe os sa­patos, escovar-lhe o manto. Eu dizia e repito: — só um débil mental de babar na gravata terá coragem de duvidar do escrete. Um time que tem Pelé é tricampeão nato e hereditário.

 [O Globo, 13/7/1966]

 


A VERGONHA

Amigos, eis 80 milhões de brasileiros numa humilhação fe­roz. Eu diria que a vergonha de 50 foi mais amena, mais cor­dial. Naquela ocasião, não tínhamos o bicampeonato. Ainda não se instalara em nosso futebol o mito Pelé. Ah, o brasileiro de 50 era um humilde de babar na gravata. Quando passava a carrocinha de cachorro, cada um de nós tinha medo de ser laçado também.

Mas hoje, não. Ou por outra: — até ontem, o brasileiro po­deria avançar até o limite extremo da ribalta e anunciar, de fronte erguida: — “Sou bicampeão”. E de repente, o duplo título co­meça a ficar antigo, obsoleto, espectral, como se não significas­se mais nada. Olhem para as nossas esquinas e os nossos bote­cos. Por toda parte uma sensação de orfandade. Dir-se-ia que Suécia e Chile são duas glórias fenecidas.

Quando acabou o jogo, li em todas as caras a pergunta: — “Por quê? Por quê?”. O melhor futebol da Terra conhecia uma humilhação mundial. Não falo do resultado. Qualquer um per­de, ganha ou empata. Em 54, o escrete húngaro do Armando Nogueira entrou por um cano deslumbrante. Mas não houve o ridículo, eis o importante, não houve o ridículo que desabou sobre o nosso escrete.

E, de fato, a seleção do Brasil não jogou como um time e jamais foi um time. Graças à Comissão Técnica, fomos, do co­meço dos treinos até a estréia na Inglaterra, um bando de ciganos a dar botinadas em todas as direções. Alguém que não co­nhecesse os títulos do Brasil havia de pensar: — “Eis um time de pernas-de-pau, eis um time de cabeças-de-bagre!”.

E seria injusto, monstruosamente injusto. Porque o joga­dor brasileiro continua o melhor do mundo. Nada descreve e nada se compara à graça, ao sortilégio, à flama do nosso cra­que. Cabe então a pergunta: — e por que fez tanta vergonha? Eis o óbvio ululante: — o time do Brasil não foi derrotado nem pela Hungria, nem por Portugal*. Derrotado está pela burrice da Comissão Técnica.

Através de quatro meses, a Comissão teve tudo. Com me­nos dinheiro, a Inglaterra fez o seu império. E a Comissão teve prestígio, e apoio, e promoção, e entusiasmo, e confiança, e au­toridade. Pois bem. Nos quatro meses, ela não revelou um úni­co e escasso momento de lucidez. Quando a gente se lembra do que ela fez, chega-se a pensar em insânia. Mas aí é que está: — a burrice é a pior forma de loucura.

Repito que o Brasil saiu daqui sem um time formado, sem um projeto tático e sem saber como ia jogar e com que cra­ques jogaria. Parecia brincadeira, uma sinistra, hedionda brin­cadeira. Nem isso e pelo contrário. A burrice não tem humor, a burrice é grave. Advertida pelo rádio, pela imprensa, pela tv, a Comissão ia cometendo as inépcias mais inverossímeis. Oitenta milhões de brasileiros pediam um time, pelo menos um time, bom, mau ou péssimo, mas um time, apenas um time, um desgraçado time. E, à medida que ia acumulando os seus erros, a Comissão era cada vez mais enfática, mais in­falível, mais onipotente.

Jogamos três vezes. Depois do jogo da Bulgária, esperou-se que fosse mantida a equipe. Mas ai de 80 milhões de brasilei­ros! A burrice tem sutilezas geniais. Como a Hungria vinha fe­roz em cima do Brasil, entramos em campo com outro time. A Comissão desintegrou a defesa, mexeu no ataque. Contra Por­tugal, outro time. E, se viesse um quarto jogo, um quarto time. Tudo isso nas barbas atônitas de um povo.

E 80 milhões de sujeitos estão aí, pagando pela burrice alheia. Não apareceu ninguém para amarrar a Comissão num pé de mesa, dizendo-lhe: — “Bebe água numa cuia de queijo Palmira!”. Amigos, na catástrofe de ontem comprovamos mais uma vez esta verdade inapelável e eterna: — na batalha entre o gênio e a burrice, ganha esta e o gênio fica rosnando de impotência e frustração. Venceu a burrice imortal da Comis­são Técnica.

 [O Globo, 20/7/1966]

 


A COPA DO APITO

Amigos, eis uma verdade inapelável: — só os subdesenvolvidos ainda se ruborizam. Ao passo que o grande povo é, antes de tudo, um cínico. Para fundar um império, um país precisa de um impudor sem nenhuma folha de parreira. Vejam a pre­sente Jules Rimet. Nas barbas indignadas do mundo, a Inglater­ra se prepara para ganhar no apito o caneco de ouro.

Vocês pensam que há algum disfarce, ou escrúpulo, ou mistério? Absolutamente. Tudo se fez e se faz com uma premeditação deslavada e na cara das vítimas. A serviço da Inglaterra, a fifa escalou oito juizes ingleses para os jogos do Brasil. A arbitragem foi manipulada para liquidar primeiro os bicampeões e, em se­guida, os outros países sul-americanos. O match Inglaterra x Ar­gentina* foi um roubo. Uruguai x Alemanha, outro escândalo.

E nem se pense que a Inglaterra baixou a vista, escarlate de vergonha. Nada disso. Por que rubor, se ela é um grande povo e se tem, ou teve, um grande império? Vejam o sincronismo da coisa: — um juiz alemão deu a vitória à Inglaterra contra a Argentina, um juiz inglês deu a vitória à Alemanha contra o Uru­guai. No match Argentina x Alemanha, foi expulso um jogador argentino. Terminado o jogo, cinco jogadores sul-americanos tiveram que sair quase de maca.

Valeu tudo contra o Brasil e, sobretudo, contra Pelé. O crioulo foi caçado contra a Bulgária. Não pôde jogar contra a Hungria e só voltou contra Portugal. Nova caçada. Sofreu um tiro de meta no joelho. Verdadeira tentativa de homicídio. O juiz inglês nem piou. Silva levou um bico nas costelas. Jairzinho foi outra vítima e assim Paraná. O árbitro a tudo assistia com lívido descaro.

E nós? Que fizemos nós? Nada. No último jogo, o Brasil apanhou sem revidar. Amigos, eu sei que os nossos jogadores tiveram um preparo físico quase homicida. Antes da primeira botinada, já o craque brasileiro estava estourado. Sei também que o Brasil não teve, jamais, um time. A nossa equipe era o caos. Por outro lado, faltou-nos qualquer organização de jogo, qual­quer projeto tático.

Além disso, porém, a seleção brasileira acusou um defeito indesculpável e suicida. Como se sabe, esta Copa é uma selva de pé na cara. E, no entanto, vejam vocês: — o brasileiro lá apa­receu com um jogo leve, afetuoso, reverente, cerimonioso. E havia um abismo entre os dois comportamentos: nós, fazendo um futebol diáfano, incorpóreo, de sílfides; os europeus, co­mo centauros truculentos, escouceando em todas as direções.

Ainda ontem, o sr. Barbosa Lima Sobrinho escrevia um lú­cido artigo sobre a suavidade do nosso escrete. Note-se que se trata de um acadêmico, que deve ter compromissos com as boas maneiras, a polidez, o trato fino etc. etc. Mas ele enxergou o óbvio ululante, ou seja: — o futebol vive de sombrias e facinorosas paixões. Durante os noventa minutos, são onze bárbaros contra onze bárbaros.

Claro que as palavras do sr. Barbosa Lima Sobrinho são outras. Mas o sentido, se bem o entendi, é este. Portanto, não tem sentido que o Brasil vá jogar contra os bárbaros europeus com manto de arminho, sapatos de fivela ou peruca de marquês de Luís xv. Eis a verdade: — o que dá charme, apelo, dramatismo aos clássicos e às peladas é o foul. A poesia do futebol está no foul. E os jogos que fascinam o povo são os mais truculentos.

O Brasil naufragou num mar de contusões por isso mesmo: — porque sabia apanhar e não sabia reagir. O ilustre acadêmico está rigorosamente certo. Hoje, depois do pau que levamos, aprendemos que o craque brasileiro tem de ser reeducado. Di­go “reeducado” no sentido de virilizar o seu jogo. Amigos, o Mário Pedrosa está fazendo um ensaio sobre o futebol. É um pensador político, um crítico de artes plásticas, homem de uma lucidez tremenda. Ora, o intelectual brasileiro que ignora o fu­tebol é um alienado de babar na gravata. E o nosso Mário Pe­drosa sabe disso e foi um dos sujeitos que sofreram na carne e na alma o fracasso da seleção. Pois espero que, no seu ensaio, inclua todo um capítulo assim titulado: — “Da necessidade de baixar o pau”.

Dito isto, vamos escolher o meu personagem da semana. Podia ser Paraná. Eu sei que, tecnicamente, ele deixa muito a desejar. Sei. Mas, contra os portugueses, Paraná deu um pau fir­me e épico. Mas eu prefiro Rildo. Que grande, solitária e inex­pugnável figura. No meio do jogo, era tal o seu brio que dava a sensação, por vezes, de que ia comer e beber a bola. Foi um bárbaro jogando contra bárbaros. Amigos, o argentino que deu no juiz alemão lavou a alma de todo um povo. Pois o nosso Ril­do, com suas rútilas botinadas, promoveu e reabilitou o homem brasileiro.

 [O Globo, 25/7/1966]

 


A INVISIBILIDADE DO ÓBVIO

Eu ia começar esta crônica dizendo o que mesmo? Ia dizer que nada mais antigo do que o passado recente. Perdão. Não é bem isso. Ah, agora me lembro. O que eu queria dizer é que ninguém enxerga o óbvio. Poderão objetar que já escrevi isso umas duzentas vezes. Ai de mim, ai de mim. Não sinto nenhum escrúpulo, nenhum pudor de me repetir. Hoje, porém, tenho uma variação. Direi que o óbvio é não só invisível, mas detes­tável.

A toda hora, e em toda parte, encontramos inimigos fero­zes do óbvio. Um deles é o nosso Armando Marques, o maior juiz do futebol brasileiro. Vocês conhecem o episódio. No últi­mo Fla—Flu*, o ponta tricolor Wílton recebeu um lançamento em profundidade. O garoto corre mais do que um coelhinho de desenho animado. Conseguiu bater o marcador, ultrapassá-lo em sua velocidade fulminante. Por desgraça, o goleiro ad­versário saíra antes e ia agarrar a bola.

Wílton usou a mão e tirou-lhe a bola. Perfeito lance de basquete. A falta foi de um óbvio tão ululante que Armando Marques não viu. E o nosso extreminha pôde, com um subli­me descaro, enfiar a bola no fundo das redes. Ora, o nosso melhor árbitro ganha 12 milhões antigos. É um salário de Walther Moreira Salles. E ninguém entendeu que, tão bem pago, Armando Marques fosse cego, surdo e mudo para a evidência estarrecedora.

Houve quem insinuasse duas hipóteses: — ou má-fé ou incompetência. Nem uma coisa, nem outra. A competência ou a boa-fé de Armando Marques está acima de qualquer dúvida ou sofisma. Portanto, só uma coisa o justifica e absolve: — a invisibilidade do óbvio.

 [O Globo, 26/10/1968]

 

UM GESTO DE AMOR

Amigos, eu considero um pobre-diabo o brasileiro que não esteve, sábado, no Estádio Mário Filho, vendo e vivendo a fes­ta de Garrincha. Eu ia falar em “noite inesquecível”. Mas, bo­las!, há não sei quantas “noites inesquecíveis” que não são ines­quecíveis, e repito: — noites que o sujeito esquece meia hora depois.

O belo, o patético, o pungente na “noite de Garrincha” é que ninguém, de fato, a esquecerá. Somos tão cegos que não enxergamos o óbvio ululante, isto é, que ninguém faltaria, nin­guém. Eu vi, sábado, no Mário Filho, sujeitos que julgava mor­tos e enterrados há trinta anos. Até grã-finos que não sabiam se a bola é redonda ou quadrada, até as grãs-finas compareceram.

E foi quase apavorante. No dia do clássico, toda a cidade achou que tinha de estar presente. Foi o maravilhoso encon­tro, não combinado, com o Mané. Sábado, ninguém era mais importante na cidade. Mas como dizia eu: — somos tão cegos que só parte da massa pôde comprar entrada; era irrisório o nú­mero de bilheterias; milhares e milhares de pessoas tiveram que pular o muro ou arrombar portões. E vi uma grã-fina fazer o que não fazia desde a primeira Chupeta: — chorar!

Vejam vocês como são as coisas. Garrincha vivia por aí, mais abandonado, mais desprezado do que um cachorro atropelado. Lembro-me de um sujeito que veio me soprar ao pé da orelha: — “Vai acabar na sarjeta!”. Outro fez o vaticínio não menos fe­roz, segundo o qual teria o fim do “Ébrio”, de Vicente Celesti­no. Pode-se dizer que, de uma maneira geral, ninguém jamais admitiu a sua ressurreição. Cabe então a pergunta: — se todos estavam assim pressagos, por que ninguém ensaiava um gesto de amor? Sim: — por que ninguém lhe estendia a mão, por quê?

Ai de nós, ai de nós. Temos uma piedade frívola e relapsa. Gostamos de esquecer. Eu falei em “piedade” e gostaria de no­tar: — o brasileiro esquece antes da compaixão. Mas havia, no caso, para todos nós, um problema intolerável de consciência. Mané merecia a nossa alegre e crudelíssima indiferença? Não e nunca. Poucos homens serviram tanto o seu povo.

Em 58 e 62, a nossa felicidade dependeu de suas pernas tortas. Na véspera do jogo com a Rússia, na Suécia, cruzei com um bêbado no meio da rua. Era um crioulão plástico, lustroso, ornamental. Bêbado de morrer, chorava, profético: — “Vamos perder da Rússia! Vamos perder da Rússia!”. Pranteava, na vés­pera, o desgosto do dia seguinte. E, pouco antes do jogo, esta­va eu atracado ao rádio, na redação. Virei-me para um compa­nheiro e perguntei-lhe: — “Quem ganha?”. O outro respondeu, com boquinha de nojo: — “Ganha a Rússia, porque o brasilei­ro não tem caráter”.

Mas foi Mané que ganhou. Estreava na Copa. Quando re­cebeu a bola, no primeiro minuto de jogo, driblou um russo, mais outro, outro mais, como no soneto. Driblou as barbas de Rasputin, driblou as cinzas do czar e, em seguida, enfiou uma bomba na trave. O adversário se liquidou, ali, na sua primeira escapada. E, assim, fomos até a final, com Garrincha liquidan­do o País de Gales, a França, a Suécia.

Em 62, os Andes se prostraram diante do seu gênio. Pelé saiu no segundo jogo e não voltou mais. Garrincha ganhou sozinho o bicampeonato. E, súbito, aquele rapaz da Raiz da Serra compensou-nos de todas as nossas humilhações pessoais e coletivas. Vocês sabem que, do nosso lábio, sempre pendeu a baba elástica e bovina da humildade. Em 58, ou 62, o mais indigente dos brasileiros pôde tecer a sua fantasia de onipo­tência.

E, por tudo isso, as multidões, sem que ninguém pedisse, e sem que ninguém lembrasse, as massas derrubaram os por­tões. E ofereceram a Mané Garrincha uma festa de amor, como não houve igual, nunca, assim na terra como no céu.

 [O Globo, 2/12/1968]

 


“BEAU” YUSTRICH “GESTE”

Amigos, não sei se vocês leram o romance Beau Geste, ou viram o filme Beau Geste. Se não leram, nem viram, vamos lá. Não vou contar a história toda. O que interessa, para efeito desta crônica, é apenas um episódio. Imaginem vocês um deserto to­tal. E lá, debaixo de um sol horrendo, ou varrido por tempesta­des de areia, erguia-se um forte.

E o forte foi cercado por bandidos montados. Ah, nós só conhecemos em matéria de bandido os assaltantes de chauffeurs. São realmente temíveis. Mas não se comparam aos assas­sinos do deserto. Estes não respeitam nem poste. Amam o san­gue alheio. Submetidos a um sítio implacável, os soldados do forte foram morrendo, um a um.

Houve um momento em que só restaram dois sobreviven­tes: — o capitão e o leitor. Com a guarnição exterminada, que fariam um mísero capitão e o simples leitor? O leitor, como se sabe, é um inimigo pessoal do risco. E o capitão teria que su­portar sozinho os azares da guerra. Entregar-se era impossível ou, por outra, inútil. Os árabes o matariam até o último vestígio.

E eis que de repente ocorre ao capitão uma idéia genial. Ele vai apanhando os defuntos um por um, e os distribui pelas seteiras. Em seguida, sai atirando por detrás de cada morto. Ao longe, os sitiantes têm a sensação de que a guarnição continua maravilhosamente intacta. Se todos atiravam, ninguém estava ferido, agonizante ou defunto.

Os bandidos pensavam: — “Não é possível! Não é possí­vel!”. Mas as balas continuavam a chover sobre eles. E, por fim, tomados de um pavor fatal, saíram correndo e, segundo cons­ta, estão correndo até hoje. Eis o que eu queria dizer: — o bom comandante é autor dos mais cínicos e deslavados milagres.

Contei a história acima pensando na vitória de anteontem*, no Estádio Magalhães Pinto. Os mineiros venceram em condi­ções admiráveis. Começaram perdendo por 2 x 0. Quando se temia uma goleada, eis que o Atlético passou a uma reação ma­ravilhosa. Sua equipe parecia morta e enterrada para o triunfo. E súbito, com os brios mais eriçados do que as cerdas bravas do javali, seus homens despertaram da falsa morte. Foi um es­petáculo empolgante de paixão.

Mas eu pergunto: — quem foi, acima de todos e de tudo, o autor do milagre? Eis o seu nome: — Yustrich. Temos a ma­nia de dizer que técnico não ganha jogo. Bem sei que ele não dá uma única e escassa botinada. E nem enfia os gols da vitória. Mas, sem aparecer, ele pode estar por trás de cada botinada, dis­pondo. E o nosso Yustrich é do tipo guerreiro do capitão de Beau Geste.

No romance, o militar punha os defuntos para dar tiros em todas as direções, como um Tom Mix. E Yustrich segue a mes­ma linha. Para ele, uma partida, e sobretudo internacional, é uma guerra. Nenhum dos seus jogadores fica no meio de campo bocejando ou de braços cruzados. Todos lutam e todos defendem: um por um e todos por todos. Aí está o milagre de Yustrich. Os times que dirige adquirem, antes de mais nada, a sede e a fome da vitória. Dirá alguém: — “Mas todos gostam de bicho”. Há porém uma maneira mais ativa, mais viril, mais épica de gos­tar de bicho. Uns preferem o bicho sem esforço, sem sacrifício, sem risco.

Todavia, os comandados de Yustrich pensam na vitória an­tes do bicho e, repito, pensam na vitória pela vitória. Só depois é que vem a idéia do bicho. Vencemos a Iugoslávia graças so­bretudo a Yustrich, o capitão de Beau Geste.

 [O Globo, 21/12/1968]

 


UM ESCRETE DE FERAS

De vez em quando, alguém me pergunta: — “Existe mes­mo a grã-fina das narinas de cadáver?”. E eu, então, tenho que repisar a velha história. Para situá-la no tempo e no espa­ço, explico que foi há quatro ou cinco meses, no Estádio Má­rio Filho. Era um jogo do Botafogo com... Mas não importa o adversário.

Ia eu com o Marcello Soares de Moura. Nada como uma carona para aproximar os homens. E o Marcello sempre me le­va para o futebol no seu Volks, cor de vinho tinto. Súbito, eu a vejo no Estádio Mário Filho. Sem ser o Dedo de Deus, é altís­sima. Anda com o perfil alto das sonâmbulas. Baixo a voz para o Marcello: — “Aquela tem narinas de cadáver”. O amigo olha e confirma. E era grã-fina.

Subimos no mesmo elevador. Os presentes, inclusive eu, não tiravam os olhos da grã-fina. Mas coisa curiosa: — todos olhavam, sem saber por que olhavam. Vocês entendem? Nin­guém sabia explicar a própria curiosidade. Para mim, eram, e só podiam ser, as narinas de cadáver. Saltamos no sexto an­dar do estádio. Foi aí que, sempre ereta como as sonâmbulas, vira-se para o marido: — “Fulano”. Usou um diminutivo qual­quer, que não me lembro, e fez a pergunta: — “Quem é a bola?”.

Nem eu, nem o Marcello rimos porque as narinas de cadá­ver exerciam sobre nós o que os criminologistas chamam de “coação irresistível”. Estávamos fisicamente acuados. Mas ficou no ar a pergunta em flor: — “Quem é a bola?”. Lembrei-me das narinas de cadáver porque, em recentíssima pesquisa, o ibope apurou o seguinte: — 50% dos meus leitores são leitoras. Esse público feminino é, a um só tempo, doce e terrível.

Faço a mim mesmo a pergunta: — por que tenho, entre os meus leitores, tantas leitoras? Será porque trato bem a mulher, qualquer mulher? Realmente, acho a mulher menos comprome­tida. Não, não é isso o que eu queria dizer. Queria dizer “menos corrompida”. Sim, ela se corrompe menos do que o homem. Na mais degradada das mulheres sobrevive algo de intacto, in­tangível, eterno. Esse mínimo de inocência sempre a salva. E a simpatia que aqui confesso, mais que um sentimento secun­dário e superficial, é uma irradiação de profundezas.

Estou dizendo tudo isso porque o meu assunto de hoje é supostamente antifeminino. Simplesmente, vou escrever so­bre futebol. Entre as minhas leitoras, muitas jamais entraram no Estádio Mário Filho; e suspiram: — “Eu não gosto de fute­bol”. Outras poderiam perguntar, como a grã-fina das narinas de cadáver: — “Quem é a bola?”. Todavia, há um momento em que todos entendem de futebol e gostam de futebol. É quando está em causa o destino do escrete. Na hora de sele­ção, até a grã-fina das narinas de cadáver adquire uma súbita clarividência.

Podemos dividir os nossos assuntos em “interessantes” e “vitais”. Um dos assuntos “vitais” do Brasil é a seleção. E, justamente, já se pode falar numa “crise do escrete”. Felizmente, é uma crise gráfica, uma crise impressa, uma crise de colunis­tas, locutores e manchetes. Ah, o futebol dinamiza uma tal massa de interesses, negócios, egoísmos, vaidades. Estranho mundo, em que não se dá um passo sem esbarrar, sem tropeçar, sem pisar nas víboras inumeráveis.

Tudo começou quando João Havelange teve a grande co­ragem de escolher o João Saldanha para treinador da seleção. Pela primeira vez, o escrete passava a ser um problema estrita­mente técnico e nada político. O presidente da cbd não quis agradar a A ou B, mas juntar os melhores. Já sabemos que a com­petência é amargamente antipatizada no futebol brasileiro. Cla­ro, e repito: — a competência tira o pão da boca dos idiotas enfáticos e dos aproveitadores vorazes. Eles ficam sem ter o que fazer e o que dizer. Vagam pelas esquinas e pelos botecos, sem função e sem destino.

O excelente Geraldo Bretas, de São Paulo, passou a pregar uma guerra de secessão entre o futebol carioca e o paulista. Dis­se, perante as câmeras e microfones da tv Globo: — “São Pau­lo deve negar seus jogadores”. Bem se vê que o nosso Bretas não pensava nem no Brasil, nem em São Paulo. Ou por outra: — pensava em São Paulo Machado de Carvalho. Mas o agitado confrade não é um caso único. Há vários Bretas, inclusive ca­riocas. Mas o Bretas tem, na pior das hipóteses, a virtude da ni­tidez. Diz o que tem de dizer, escreve o que tem de escrever. Não guarda bobagens para o dia seguinte.

Todavia, o João Havelange veio a descobrir que o pior Bretas é o falso amigo, de falsa solidariedade. Mas a conspira­ção contra a competência evoluía em silêncio. E os Bretas con­fessos ou inconfessos, introspectivos ou ululantes, estavam ape­nas esperando um pretexto explosivo. Esse pretexto veio de um foul no recente Brasil x Peru*. Gérson levou uma cotove­lada que foi uma nítida agressão. Pouco depois, revidava com um foul. Ora, o foul é nosso velho conhecido. Oitenta mi­lhões de brasileiros são íntimos do foul. Quando Didi que­brou a perna de Mendonça e esperou seis anos para ir à forra com Pavão — não se gastou tanto papel e tinta, nem houve nenhum berro gráfico. Mendonça morreu para o futebol, azar o dele. Os bons rapazes da imprensa não viram no fato nada de épico ou de sublime.

Mas eu explico: — naquela ocasião, não havia interesses criados e frustrados. A fratura de Mendonça só interessou mes­mo à vítima e familiares. A de Pavão, idem. Agora, não. Agora havia uma “crise” latente que o foul de Gérson detonou. Vo­cês sabem o que aconteceu depois. Um outro peruano deu um pontapé no brasileiro. Este revidou. O juiz expulsa os dois. Mi­nutos depois, com o jogo ainda interrompido, um peruano, lá no meio do campo, agride um brasileiro, que nada fez, nem que­ria fazer. Vejamos: — como devia portar-se o nosso patrício?

Como 50% dos meus leitores são leitoras, é possível que a grã-fina das narinas de cadáver esteja me lendo. Ela não sabe ainda quem é a bola. Mesmo assim, faço-lhe a pergunta: — “O brasileiro deve aceitar, em sua própria terra, a bolacha de um peruano?”. Boa parte da crônica acha que sim. Considera um “espetáculo degradante” o uso que fizemos de uma legítima de­fesa. Houve o sururu, e daí? Na Inglaterra é mil vezes pior. Lá, brigam os 22 jogadores, as duas torcidas, o juiz, os bandeirinhas e gandulas. Depois, vai todo mundo para a estação quebrar locomotivas. E é um povo gigantesco, que salvou o mundo. Se, em Dunquerque, a Inglaterra tivesse capitulado, os nazistas fa­riam provas hípicas montando brasileiros.

Mas a bordoada, no caso, é o que há de mais intranscendente. O foul de Gérson não espantaria ninguém. O que se quer derrubar é o João Saldanha, ainda que, para tanto, seja preciso derrubar o escrete. Tudo serve de pretexto. O nosso João, num dos seus arroubos de Tartarin, disse que seu ideal era um “escrete de feras”. Na pior das hipóteses, fez uma me­táfora. Imaginem que os interesses contrariados estão uivando até contra a metáfora.

Eis o que eu queria dizer à Guanabara, a São Paulo, Rio Grande, Alagoas, Pernambuco e a todo o Brasil: — o João está maravilhosamente certo. O “escrete de feras” é uma velha uto­pia de todos os brasileiros, inclusive a grã-fina das narinas de cadáver. A humilhação de 50, jamais cicatrizada, ainda pinga san­gue. Todo escrete tem a sua fera. Naquela ocasião, a fera estava do outro lado e chamava-se Obdulio Varela. O escrete do João terá onze Obdulios.

Imaginem vocês que, ontem, recebo um interurbano de São Paulo. Era um leitor paulista, indignado. Com um horror indescritível, vira locutores bandeirantes torcendo contra o escrete nacional. No fim, berravam: — “Vitória imerecida! Vitória ime­recida!”. Não eram paulistas, não eram brasileiros, não eram na­da: — eram súbitos índios peruanos. E pedia o leitor que eu pro­testasse, em nome de São Paulo, junto aos meus colegas de lá. Amigos, não sei se vocês conhecem a história do português que era credor de um circo. O circo faliu e o dono, como pagamen­to, deu-lhe o mais bonito leão da casa. E sai o português com o leão. Mas achando a juba do bicho muito grande, mandou passar-lhe a máquina zero. Imediatamente, o leão começou a ser olhado como um cachorro amarelo. No dia seguinte, em vez de rugir, latia. Quero concluir dizendo: — no escrete do João, ninguém vai ser cachorro amarelo.

 [O Globo, 14/4/1969]


CHEGA DE HUMILDADE

Amigos, a humildade acaba aqui. Desde ontem o Fluminen­se é o campeão da cidade. No maior Fla—Flu* de todos os tem­pos, o tricolor conquistou a sua mais bela vitória. E foi também o grande dia do Estádio Mário Filho. A massa “pó-de-arroz” te­ve o sentimento do triunfo. Aconteceu, então, o seguinte: — vivos e mortos subiram as rampas. Os vivos saíram de suas ca­sas e os mortos de suas tumbas. E, diante da platéia colossal, Fluminense e Flamengo fizeram uma dessas partidas imortais.

Daqui a duzentos anos a cidade dirá, mordida de nostalgia: — “Aquele Fla—Flu!”. Ah, quem não esteve ontem no Estádio Mário Filho não viveu. E o Fluminense fez uma exibição perfei­ta, irretocável. Lutou com a alma indomável do campeão. Nin­guém conquista o título num único dia, numa única tarde. Não. Um título é todo sangue, todo suor e todo lágrimas de um cam­peonato inteiro.

Acreditem: — o Fluminense começou a ser campeão mui­to antes. Sim, quando saiu do caos para a liderança. “Do caos para a liderança”, repito, foi a nossa viagem maravilhosa. Lembro-me do primeiro domingo em que ficamos sozinhos na ponta. As esquinas e os botecos faziam a piada cruel: — “Líder por uma semana”. Daí para a frente, o Fluminense era sempre o líder por uma semana.

Olhem para trás. Da rodada inaugural até ontem, não hou­ve time mais regular, mais constante, de uma batida mais harmoniosa. Mas foi engraçado: — por muito tempo, ninguém acreditou no Fluminense, ninguém. Um dia, Flávio veio de São Paulo. Era o ponta-de-lança mais esperado que um Moisés. Queríamos um goleador. E nunca mais se interrompeu a as­censão para o título.

O curioso é que, há muito tempo, aqui mesmo desta colu­na, fez-se o vaticínio de que o campeonato teria a sua decisão num Fla—Flu. Foram autores de tal profecia, primeiro, o Celso Bulhões da Fonseca; em seguida, o Carlinhos Niemeyer, um e outro rubro-negros. O que ambos não sabiam é que já estava escrito há 6 mil anos que o campeão seria o Fluminense. E vou citar um outro oráculo: o Haroldo Barbosa. Quando o tricolor parecia uma piada, o bom Haroldo piscou o olho para o Marcello Soares de Moura: — “Este é o ano do Fluminense!”. E do seu olhar vazava luz.

E mais: — na sexta-feira, o presidente do Fluminense, Francisco Lapport, convidou para um almoço, em sua residência, a mim, ao Marcello Soares de Moura e ao Carlinhos Nasser. Ainda na mesa, e antes do cafezinho, baixou-nos o sentimento profé­tico do título. Amigos, o que se viu ontem no Estádio Mário Fi­lho foi espantoso. Primeiro, a tempestade de bandeiras, de pó-de-arroz, os pombos tricolores e rubro-negros.

E que formidável partida! Houve, durante noventa minutos, um suspense mortal. O Fluminense fez o primeiro gol e o Fla­mengo empatou. O Fluminense fez o segundo e o Flamengo mais uma vez empata. Duzentas mil pessoas atônitas morriam nas arquibancadas, gerais e cadeiras. E foi preciso que Flávio, o go­leador do Fluminense, o goleador do campeonato, marcasse aquele que seria o gol da vitória, da doce e santa vitória. E o rubro-negro não empatou mais, nunca mais. Era a vitória, era o título.

Agora a pergunta: — e o personagem da semana? Podia ser Cláudio, que fez uma exibição magistral e, inclusive, um gol. Podia ser Denílson, que volta a ser o “Rei Zulu” e um dos maio­res jogadores brasileiros de defesa. Penso também em Galhar­do, que, a princípio nervosíssimo, teve intervenções sensacio­nais. Podia ser também Telê, que, sóbrio, modesto, trouxe a equipe do caos para o título. Mas entendo que desta vez o per­sonagem deve ser o time. Do goleiro ao ponta-esquerda. To­dos, todos mostraram uma alma, uma paixão, um ímpeto inexcedíveis.

Pelo amor de Deus, não me venham dizer que, no segun­do tempo, o Flamengo jogou com dez. O rubro-negro cresceu com a desvantagem numérica, lançou-se todo para a frente. Eram dez fanáticos dispostos a vencer ou perecer. O Flamengo teve ontem um dos grandes momentos de sua história. Mas, dizia eu no começo que a nossa humildade pára aqui. Passamos toda a jornada com um passarinho em cada ombro e as duras e feias sandálias nos pés. Mas o Fluminense é o campeão. Erguendo-me das cinzas da humildade, anuncio: — “Vamos tratar do bi”.

 [O Globo, 16/6/1969]

 


À SOMBRA DOS CRIOULÕES EM FLOR

Se vocês querem conhecer um povo, examinem o seu comportamento na vitória e na derrota. Há poucos dias, o Brasil derrotou a Inglaterra no Estádio Mário Filho*. Conviria comparar os dois comportamentos: o do Brasil vencedor e o da Inglater­ra vencida.

Comecemos por nós. Quinta-feira, o Estádio Mário Filho estava abarrotado. Com algum exagero, diria eu que havia gen­te pendurada até no lustre. Por conta do jogo, a cidade suspen­deu todos os pecados. Ninguém matou, nem roubou, nem traiu. Que eu saiba, não houve um único e escasso assalto. Todas as classes, profissões, ideologias, raças e idades juntaram-se no ex-Maracanã.

Houve o jogo e vencemos. A Inglaterra é campeã do mun­do e perdeu. Bastaram dois minutos do verdadeiro futebol bra­sileiro. Em 120 segundos, liquidamos o inimigo. Vejam vocês: — a Inglaterra fazia a pose de melhor futebol do mundo. Os nossos jornais ou afirmavam ou, na pior das hipóteses, imagi­navam que o futebol inglês era, sim, o melhor do mundo. Por um funesto lapso, o brasileiro já não se lembrava de que somos os bicampeões.

No vídeo, não havia a menor coincidência entre o que o locutor dizia e o que a imagem mostrava. Por exemplo: — Tos­tão foi, durante a partida, um estilista da cabeça aos sapatos. Seus passes saíam límpidos, exatos, macios. Deu um banho de bola nos ingleses. E a maioria dos espíqueres exigia, aos brados, a sua substituição. O rádio e a tv não faziam outra coisa senão soluçar elogios aos ingleses. Os visitantes tinham todos os mé­ritos e os brasileiros todos os defeitos.

E, então, comecei a perceber que profissionais, torcedo­res e simples curiosos estavam ali por diferentes motivos. Uns queriam ver a caveira de João Saldanha; outros, a caveira do Bra­sil; e ainda outros, as duas caveiras: — do Brasil e do Saldanha. Houve um momento em que me virei para o Marcello Soares de Moura e cochichei-lhe: — “Se o Brasil perder, vão enforcar o Saldanha como um ladrão de cavalos”. O leitor há de pergun­tar: — “O Brasil é tão impopular no Brasil?”. Realmente, o Bra­sil é muito impopular no Brasil.

Dirão vocês que, nas arquibancadas e gerais, o povo quis ajudar o escrete. O diabo é que o povo vaia sem querer, vaia automaticamente. Sim, o povo morreria de tédio e frustração se não pudesse vaiar qualquer coisa, inclusive o minuto de si­lêncio. E portanto o povo, a um só tempo bom e crudelíssimo, ora vaiava, ora aplaudia. Mas eu falo dos que, nas perpétuas, tri­bunas e cativas, torciam, com o mais límpido, translúcido des­pudor, pelo inimigo. Falei com vários e os sujeitos estrebuchavam de devoção: — “Como jogam! Como jogam!”. Meu Deus, é um futebolzinho bem aplicado e laborioso o dos ingleses, de uma disciplina tática feroz e uma base física medonha. Só.

Terminou o primeiro tempo com o marcador de 1 x 0 a favor da Inglaterra. O Brasil dera-se ao luxo de perder um pê­nalti. Na fila do café, um sujeito me agarra e diz: “No segundo tempo a Inglaterra vai melhorar e o Brasil vai abrir o bico”. Entendi o raciocínio do fulano: como há por aqui o Nordeste, o Amazonas, a mortalidade infantil, teríamos mais dez minutos de fôlego, se tanto.

Mas aconteceu exatamente o inverso: a Inglaterra abriu o bico e o Brasil melhorou. Sim, no segundo tempo a Inglaterra não arriscou um mísero ataque. Agarrou-se a uma retranca ain­da mais radical que a do primeiro tempo para salvar o 1 x 0. Dois ou três idiotas da objetividade começaram a achar que até a saú­de de vaca premiada era um mito insustentável. Os nossos bons adversários não tinham pernas. E a maioria dos locutores, prin­cipalmente os paulistas, continuava a exigir a retirada de Tos­tão. E, no momento em que mais se exasperavam contra o ma­ravilhoso jogador, Tostão é derrubado, deita-se na grama e faz o gol!

Foi um assombro. Em pé, Tostão já é pequeno, pequeno e cabeçudo como um anão de Velasquez. Imaginem agora dei­tado. Os ingleses ficaram indignados e explico: — um gol como o de Tostão desafia toda uma complexa e astuta experiência imperial. Um minuto depois, ou dois minutos depois, Tostão dá três ou quatro cortes luminosíssimos e entrega a Jairzinho. Este põe lá dentro. Naquele momento ruía toda a pose inglesa. Era a vitória e pergunto: — como reagimos diante da vitória? Claro que o homem da arquibancada subiu pelas paredes como uma lagartixa profissional.

Mas pergunto: — e os outros? E os outros? A imprensa, o que fez a imprensa? E o rádio? E a tv? Deviam estar virando cambalhotas elásticas, acrobáticas. A Inglaterra pode não ter fu­tebol, mas tem o título. É campeã do mundo. Portanto, vence­mos o título. Os grandes jornais não concederam ao feito brasi­leiro uma manchete de primeira página. O mais dramático é que quase toda a imprensa, rádio e tv trataram de amesquinhar, humilhar, aviltar a vitória. Em São Paulo as Folhas acharam os ingleses “os melhores”. No Rio, a mesma coisa. No subdesen­volvido, a imparcialidade não é uma posição crítica, mas uma sofisticação insuportável. Fingindo-se de justa, quase toda a crô­nica falada e escrita falsificou o jogo, isto é, descreveu um jogo que não houve.

Vejam agora o comportamento dos ingleses. Ninguém faz um império sem um implacável cinismo. E os nossos adversá­rios portaram-se com um admirável descaro. Vocês viram o que houve no Estádio Mário Filho. A Inglaterra foi um Bonsucesso. Dirão que estou fazendo um exagero caricatural. Mas, se o Bon­sucesso tivesse assassinado a pauladas Maria Stuart, se jogasse à sombra de lord Nelson, lady Hamilton e Dunquerque, e se mo­rasse no palácio de Buckingham — o Bonsucesso faria mais que os ingleses. Batidos em dois minutos, submetidos a um olé iné­dito e ignominioso, faltou aos nossos adversários a nobilíssima humildade da autocrítica. O técnico e os jogadores trataram a derrota como se vitória fosse; esvaziaram a humilhação de to­do o dramatismo. Os brasileiros não são de nada. Tostão fez aquele gol espantoso. Deitado, enfiou a bola nas redes. Diante de tamanho feito, os ingleses deviam admitir, de vista baixa: — “Aprendemos mais esta”. Nada disso e pelo contrário: acharam absurdo, indesculpável, que um jogador deitado fizesse um gol. Com o cinismo de grande povo, o inglês inverte magicamente tudo em seu favor. Ao passo que o brasileiro, subdesenvolvi­do, inverte tudo em seu prejuízo.

Felizmente houve o olé. Foi talvez o momento mais alto do futebol brasileiro. A parte da crônica mais subdesenvolvida condenou o olé como antiesportivo e desrespeitoso. E outros pretendem que foi um recurso tático e, portanto, nada ofensi­vo: apenas queríamos ganhar tempo e nunca desfeitear o ad­versário. É inútil mentir. Vamos retirar do olé os bons sentimen­tos, que não existiram. Houve, sim, uma crueldade jucunda. Os ingleses, batidos e lisamente batidos, tratam de aviltar o nosso triunfo. Dizem que Pelé foi feito pela publicidade, como um re­frigerante.

Eis o que eu queria observar: fez bem o escrete brasileiro em tirar sua bela vingança. Os ingleses é que, sem pernas, fisi­camente gastos, teriam de fazer cera. Basta lembrar que, para coroamento do olé, quase saiu o terceiro gol, lindo, lindo, do crioulo. Se Pelé tivesse estourado as redes inglesas, havíamos de guardar seu gol numa caixinha de veludo. Nunca se viu, em tempo nenhum, em idioma nenhum, tão formidável explosão lírica e maligna. A seleção campeã do mundo foi posta na roda. Durante três, ou quatro, ou cinco minutos, o adversário correu em vão atrás da bola. E os craques brasileiros trocavam passes irretocáveis. Ninguém descreverá jamais a alegria popular. O ber­ro colossal inundou a cidade: “Olé! Olé! Olé!”. Saldanha man­dava parar. Não queria que o inimigo crescesse na humilhação. Mas a loucura instalara-se no Estádio Mário Filho. Eram 80, 100 mil pessoas ébrias de olé. E, súbito, depois da crudelíssima exi­bição, Gérson estica uma bola comprida para Pelé. O crioulão dispara e quase, quase entra com bola e tudo. Depois do jogo, a multidão saiu em plena embriaguez. Muitos dias já se passaram. E ainda sentimos a ressaca triunfal do olé.

 [O Globo, 17/6/1969]

 


“JOÃO SEM MEDO”

Amigos, não acreditem, pelo amor de Deus, que as quali­dades influem no amor. Influem pouquíssimo ou nada. Nunca me esqueço de um vizinho que tive na minha infância profun­da. Era um santo da cabeça aos sapatos ou, melhor dizendo, da cabeça às sandálias. Do berço ao túmulo, não praticou uma má ação. Era todo amor, todo bondade. E só me admira que não andasse com um passarinho em cada ombro.

Pois bem: — um dia, casou-se. Para usar uma velha ima­gem minha, direi que entrou por um cano deslumbrante. Já os conhecidos diziam-lhe: — “Cuidado, que um dia tua mulher te dá bola de cachorro”. E, certa vez, na presença de visitas, ela o destratou de alto a baixo: — “Eu queria um marido, não um santo”. E ainda completou: — “Tenho nojo de tua bondade”. Em outra ocasião, a víbora explodiu: — “Arranja um defeito. Ou arranjas um defeito ou me desquite”. Não foi possível. A perfeição do infeliz aumentava de quinze em quinze minutos.

Até que se separaram. E quando um inocente do Leblon perguntou à víbora se ele a maltratava, ela urrou: — “Aquela besta é um santo!”. Por aí se vê, a virtude exagerada, em vez de favorecer o amor, pode liquidá-lo. Estou farto de ver sujei­tos que são amados pelos seus defeitos.

Por exemplo: — o meu caro João Saldanha. Tenho-lhe um afeto de irmão. Quebrei minhas lanças para que a cbd o esco­lhesse. João Havelange e Antônio do Passo tiveram um momento de lucidez ou mesmo de gênio, um momento digno de um Disraeli, e o chamaram. Ao ter a notícia, berrei: — “É o técnico ideal!”. Um amigo meu, bem pensante insuportável, veio me perguntar: — “Você acha que o João tem as qualidades necessárias?”. Respondi: — “Não sei se tem as qualidades. Mas afir­mo que tem os defeitos necessários”. E, realmente, o querido Saldanha possui defeitos luminosíssimos.

Por exemplo: — é um furioso. Não acendam um fósforo perto dele que o João explode. E aí está o primeiro e maravi­lhoso defeito: — uma Copa do Mundo é uma selva de gângsteres. Dirão que é exagero. Exagero, uma ova. Perdão. Exagero, vírgula. Tudo é possível na Jules Rimet, menos uma boa ação. Portanto, se o João é um Tartarin ou, melhor dizendo, se cospe mais fogo do que o dragão de são Jorge, melhor para o Brasil. O técnico não precisa apenas entender de bola. Antes de mais nada, precisa ser um guerreiro.

Outro defeito: — ele fará qualquer negócio para o Brasil ser campeão do mundo e voltar com o caneco de ouro. Dirão vocês: — “Mas é feio!”. Ora, ora. Desde quando o bonito ga­nhou a Copa? De mais a mais, só os subdesenvolvidos têm escrúpulos. O inglês é um grande povo. Na guerra, salvou o mundo com a sua resistência. Mas em 66 a Inglaterra foi de um descaro empolgante. Manipulou juizes, baixou o pau, fez hor­rores e ganhou. Portanto, com as suas qualidades o inglês salvou o mundo; com os seus defeitos, ganhou a taça.

Mais outro defeito do João: — doutrinou o escrete para não levar desaforo para casa. Os lorpas, os pascácios, os bovinos hão de perguntar: — “E a esportividade?”. Respondo que, na Copa, a esportividade é uma piada de necrotério. Dirão que em 58 e 62 fomos bonzinhos. Mas os demais concorrentes fizeram o dia­bo. E nós fomos bonzinhos graças ao nosso bom subdesenvol­vimento.

Mais um defeito do Saldanha: — a dionisíaca e, ao mesmo tempo, santa molecagem carioca. Foi para a Europa estudar os adversários. Mas lá não perdeu tempo. Pôs a boca no mundo: — “O futebol europeu é uma carnificina!”. Disse, ou por ou­tra, berrou isso em todos os idiomas. Hoje, até os esquimós sa­bem que, na Europa, os jogadores bebem o sangue do adversá­rio como se groselha fosse. Ora, o que o Saldanha está fazendo, de país em país, é um terrorismo bárbaro. Está coagindo os eu­ropeus, e todos os concorrentes. Se há um foul modesto ele es­palha aos quatro ventos: — “Assassinato! Assassinato!”. Já os juizes de 70 estão acuados. Não queiram saber o que o João não fará no próximo Mundial.

Ele fez a advertência mundial: — “Meu jogador não dará o primeiro tiro. Mas, se começarem, nós vamos acabar com a guerra”. E os europeus, uns latagões, com uma saúde de vaca premiada, já tremem diante do João e já começam a sentir um prévio e insuportável sentimento de culpa. Creiam que, com os defeitos de “João Sem Medo”, o Brasil ganhará a Copa.

 [O Globo, 6/11/1969]

 


A BARRIGA INSUBMERSÍVEL

Amigos, vocês conhecem, decerto, o maior feito de Mao Tsé-tung, nas suas últimas 25 encarnações. Nunca se viu nada parecido. Mas vamos aos fatos. Um dia, o grande homem man­dou ver a relação de todos os recordes mundiais de natação, passados, presentes e futuros. Viu os tempos e até achou: — “Esses caras são umas barcas da Cantareira”.

E resolveu mostrar que, além do mais, é um gênio natatório. Chamou a imprensa, o rádio e a televisão e caiu n’água. Primeiro, subiu num trampolim. Queria começar com um salto ornamen­tal. Atirou-se lá de cima e caiu sentado como um aqualouco. Oitocentos milhões deram urros de admiração. Ao contrário dos demais recordistas da especialidade, em vez de mergulhar de cabeça, o que seria uma trivialidade, o líder genial mergulhava sentado.

Logo se viu que tudo podia acontecer a Mao Tsé-tung, me­nos morrer afogado. Graças a sua barriga insubmersível (e mais insubmersível que o Titanic e o Bismarck), ele poderia, se o qui­sesse, boiar eternamente. Toda a imprensa local e estrangeira es­tava de cronômetro na mão. Logo se viu que seu tempo seria fan­tástico. Ele não usou os estilos convencionais, como os outros nadadores. Enquanto os estilistas dos outros povos usam nado livre, de costas ou de peito, ele preferiu uma forma que só as crian­ças usam: — cachorrinho. Fez dezesseis longos e dilatados qui­lômetros, nadando cachorrinho. No fim, verificou-se que supe­rara todas as velocidades passadas, presentes e futuras.

Diante de um feito inédito na História e na Lenda, Mao Tsé-tung transcendeu todos os limites humanos. Oitocentos milhões de chineses prostraram-se diante do divino Chefe. Em seguida o governo transformou aquele dia no maior feriado nacional do país. Vocês entendem? O dia em que Mao Tsé-tung realizou tal prova tornou-se uma espécie de 14 de Julho chinês. E como a China comemora, anualmente, a proeza sobrenatural? Da seguin­te maneira: — atirando-se n’água de sapatos, gravata e guarda-chuva. E como muitos não sabem nadar, uns 100 mil chineses morrem, anualmente, afogados. E morrem felizes, por se tratar de um suicídio nacional.

Mas vejam vocês: — um brasileiro realizou algo mais impressionante do que o gorducho deus chinês. Refiro-me a Pelé, o divino crioulo. Embora sem ter a barriga insubmersível de Mao, Pelé está fazendo mil gols*. Esse milheiro é algo de irreal e deslumbrante como As mil e uma noites. Às vezes, eu me per­gunto, no meu assombro: — “Como é que um só sujeito pode fazer mil gols?”. Como diz a minha vizinha, gorda e patusca: — “Mil gols não são dez, nem quinze”.

É claro que esse prodígio não podia passar em branca nu­vem. Por isso mesmo, a seção de esportes de O Globo teve a idéia luminosíssima de celebrar os mil gols. Vai haver uma festa inédita na história do nosso futebol. E, realmente, não há ho­menagem mais merecida. Só imagino o envenenado despeito, a amarga frustração de Mao Tsé-tung quando souber que um sujeito chamado Pelé, de um certo país chamado Brasil, enfiou tantas bolas na caçapa. Não se iludam: — se o Chefe chinês ti­vesse tido a idéia, já teria completado os mil gols, e muito antes de Pelé. Vamos imaginar a cena: — o grande homem concor­rendo com Pelé. Mao, com a barriga maior que a do Chacrinha, com os calções batendo nas canelas, chutando em todas as di­reções.

Como se sabe, no Estado totalitário tudo é possível. E Mao Tsé-tung, num só jogo, faria o milheiro, com um pé nas costas. Toda a imprensa de lá, o rádio e a televisão aceitariam o desla­vado milagre como tal. Graças a Deus, nenhum puxa se lem­brou de sugerir-lhe o assombroso feito. Pelé ficará, para sem­pre, na História e na Lenda, como único autor dos mil gols. Só imagino a comemoração de O Globo. Todas as mulheres boni­tas da cidade estarão presentes, inclusive a grã-fina das narinas de cadáver. Não sei que misteriosa fascinação exerce o doce crioulão sobre as mulheres bonitas do Brasil. Eu acho que, de­pois, Pelé devia fazer a volta olímpica, mas na bandeja, e de maçã na boca, como um leitão assado.

 [O Globo, 13/11/1969]

 


O GOL MIL

Amigos, a cidade tem 5 milhões de habitantes, talvez mais. Pois esses 5 milhões deviam estar presentes, anteontem, no Es­tádio Mário Filho para ver o milésimo gol de Pelé*. Dirão os idio­tas da objetividade que o ex-Maracanã comporta, no máximo, 250 mil pessoas. Mas os que não pudessem entrar ficariam do lado de fora, atracados ao radinho de pilha e chupando laranjas.

O que acho incrível e, sobretudo, indesculpável é que al­guém, vivo ou morto, pudesse ficar indiferente à mais linda festa do futebol brasileiro em todos os tempos. Sim, os vivos deviam sair de suas casas e os mortos de suas tumbas. Viva a mulher bonita, que não faltou. Só as feias não apareceram.

Não sei se sabem que o sublime crioulo fascina a mulher bonita. As mais lindas garotas estavam lá. Mas falei em festa do futebol e, realmente, foi muito mais do que isso. Era uma festa nacional, a festa do povo, a festa do homem.

Na fila dos elevadores, o meu primeiro olhar descobriu a grã-fina das narinas de cadáver. Vocês entendem? Ela continua não sabendo quem é a bola. Mas o que a magnetizava era Pelé como homem, mito e herói. Bem sabemos que futebol é um esforço coletivo. São os times que ganham, perdem ou empa­tam. Mas no caso de Pelé, foi um só. Só ele marcou os mil gols. Nunca se viu nada parecido no mundo. É uma glória maravi­lhosamente individual, maravilhosamente solitária. Some-se a isto os gols que ele deu na bandeja, gols dos quais ele foi o co-autor, ou melhor, foi mais autor do que o autor. Um passe ge­nial vale como um gol.

Muitos lamentam que tenha sido de pênalti. Meu Deus do céu, e daí? Na sua penetração fulminante, tinha batido toda a defesa adversária. Ia entrar com bola e tudo. E sofreu o pênalti. Não foi um companheiro, mas ele próprio quem foi derruba­do. Não queria cobrar. Mas seus companheiros fizeram uma gre­ve linda contra o pênalti. Ninguém tocaria na bola. E, então, 100 mil pessoas, na gigantesca cadência coral, começaram a exigir: — “Pelé, Pelé, Pelé!”. Uma das que mais se esganiçavam era a grã-fina das narinas de cadáver. Uma louríssima suspirou, ar­rebatada: — “Com esse eu me casava!”.

Mas vejam como o grande acontecimento tem a paisagem própria. Como já escrevi, Austerlitz não podia ser disputada num galinheiro. Foi isso que eu disse, quando o Santos jogou no cam­po do Esporte Clube Bahia. É óbvio que, depois do Estádio Má­rio Filho, todos os campos pequenos se tornaram galinheiros irremediáveis. O Pacaembu, por exemplo, é um galinheiro. O campo do Botafogo, do Fluminense, do Parque Antártica, e cen­tenas, milhares de outros campos obsoletos, são outros tantos galinheiros. É aqui e, repito, é no Estado Mário Filho que Pelé teve os seus grandes dias e as suas grandes noites. O próprio crioulo sabe que é muito mais amado aqui do que em São Paulo.

Quando a bola foi colocada na marca do pênalti, criou-se um suspense colossal no estádio. O meu colega e amigo Villas-Bôas Corrêa, que não tem nada de passional, estava comovido da cabeça aos sapatos. A louríssima, por mim citada, sentia-se cada vez mais noiva de Pelé. O marido, ao lado, parecia con­cordar com o noivado e dar-lhe sua aprovação entusiástica. Eu não sei como dizer. Mas estávamos todos crispados de uma emo­ção, um certo tipo de emoção, como não conhecíamos.

Ao que íamos assistir já era História e já era Lenda. Imagi­nem alguém que fosse testemunha de Waterloo, ou da morte de César, ou sei lá. No ex-Maracanã, fez-se um silêncio ensur­decedor que toda a cidade ouviu. No instante do chute, a coxa de Pelé tornou-se plástica, elástica, vital, como a anca de cava­lo. Mas havia alguém contracenando com ele no quinto ato da batalha. Era o formidável goleiro argentino Andrada. Em qual­quer hipótese, ele ia se tornar uma figura histórica: — defen­dendo ou não. E quando Pelé estourou as redes, o Estádio Má­rio Filho voou pelos ares. Desde Pero Vaz de Caminha, nenhum brasileiro recebera apoteose tamanha. De repente, como patrícios do guerreiro, cada um de nós sentiu-se um pouco co-autor do feito. Pelé voou, arremessou-se dentro do gol. Agarrou e bei­jou a bola. E chorava, o divino crioulo. Cem mil pessoas, de pé, aplaudiam como na ópera. Depois, assistimos à volta olím­pica. Pelé com a camisa do Vasco, Naquele momento éramos todos brasileiros como nunca, apaixonadamente brasileiros.

 [O Globo, 21/11/1969]

 


GUERRA SUJA, TÃO SUJA

Quando escrevo sobre as hienas, sobre os abutres, sobre os chacais do futebol brasileiro — todo mundo acha que estou fazendo uma metáfora. E ninguém desconfia que são as hienas, os chacais, os abutres os autores da catástrofe. Já rolou a cabe­ça de João Saldanha. Não se pense, porém, que a tragédia foi improvisada de um dia para outro.

Sabem quando começaram a afiar a guilhotina para Salda­nha? No dia mesmo em que o escolheram para técnico da sele­ção. Não sei se vocês se lembram. Se não se lembram, vamos lá. Uma manhã, João Havelange e Antônio do Passo passaram na casa de João Saldanha. Era um domingo parnasiano, com um luminosíssimo azul de soneto. Feito o convite, o João deu a res­posta fulminante: — “Topo”. Só dois dias depois e, portanto, na terça-feira, explodiu a notícia.

E se juntaram todas as invejas, todas as frustrações, todos os interesses contrariados. Uns disfarçavam menos, outros mais, o ressentimento. O espantoso é que, pela primeira vez, cometia-se esta gafe hedionda: — a escolha de um técnico para uma fun­ção técnica. Não fora um ato político, nem do Havelange, nem do Passo.

Dias depois, encontro-me com o Havelange no Cartum. Ou por outra: — o Cartum ainda não existia. Foi no Nino. Saudei-o assim: — “Foi um lance de estadista”. Diga-se de passagem que a maioria da imprensa era contra; e assim a quase unanimidade do rádio e da tv. Mas o povo estava com o João. Por onde pas­sava, o homem das esquinas e dos botecos fazia-lhe uma festa total. O chauffeur de praça dizia-me, de olho rútilo: — “Agora vai!”. E repetia, com o lábio trêmulo: — “Agora vai!”.

Mas o profissional da imprensa, do rádio, não lhe dizia “bom-dia” sem lhe pingar veneno. Veneno da víbora que ma­tou Cleópatra. Assim em todo o Brasil. Há dois ou três dias, um jornal de Curitiba abriu a manchete terrorista: — “Preso João Saldanha”. Outros vinham me soprar, lúgubres: — “Na primei­ra derrota, o João cai do cavalo”. Como se desejou essa “pri­meira derrota”.

Alguém perguntará: — “Por que essa gana de tantos contra um só?”. Vejamos. Primeiro, porque ele não tem medo. Nada nos humilha mais do que a coragem alheia. Segundo, porque passou a ser o homem mais promovido do Brasil. Ainda agora, vimos a força do seu nome e de sua lenda. Seu incidente, em São Conrado, coincidiu com o seqüestro do cônsul japonês. Mas o caso do João abafou, esvaziou o do japonês. Os jornais fala­vam do João, e de uma forma tão obsessiva, que parecia ele o seqüestrado, ele o raptado.

Terceiro, porque havia o terror de que voltasse, do Méxi­co, com o caneco de ouro, para sempre. Imaginem o João pas­seando na avenida, e de maçã na boca, como um triunfal leitão assado. O que se fez com Saldanha, nas eliminatórias, foi uma das páginas mais negras do futebol brasileiro. Passaram para o povo jogos que só existiam na imaginação dos bons colegas. O escrete estava uma vergonha, ninguém jogava nada. Lembro-me de um locutor vociferando: — “Assim o Brasil não passa da estréia”.

Aqui, atracado ao rádio, o povo ouvia só, em cava depres­são. Mas, quando veio o tape, foi um divertido escândalo. Os nossos jogadores deslizavam na grama como cisnes. Ninguém precisava correr. A seleção andava em campo para cansar o ad­versário. Contra a Venezuela, a irradiação foi uma antologia de horrores. Terminou o primeiro tempo empatado de 0 x 0.

O Brasil não fez gol na primeira fase porque, novamente, quis exaurir o inimigo. Na etapa final, fizemos um. Um dos confrades berrou: — “Agora o João vai recuar Pelé para de­fender o escore”. Meu Deus do céu, a superioridade brasileira chegava a ser humorística. Na sua má-fé cínica, a maioria dos confrades atribuía ao time de Saldanha os defeitos mais horri­pilantes. Todavia, o video-tape, com sua veracidade burra, ser­viu para desmascarar toda a fraude. Sem recuar Pelé, ganha­mos de cinco.

As hienas, os chacais, os abutres voltaram frustradíssimos. Precisavam de uma derrota e não tinham a derrota. Mas continuavam passando o amolador na guilhotina. Falei no jogo com a Inglaterra. Ah, não falei do jogo com a Inglaterra. Pois bem: o escrete do João, sem um treino, com os jogadores entregues na véspera, o escrete, repito, venceu a Inglaterra. E não foi uma vitória como há muitas, como há tantas. Vencemos com um ignominioso olé. Os ingleses andaram na roda como os ursos bê­bados de feira.

Portanto, só uma hiena, ou só um abutre, ou só um chacal pode afirmar que o escrete não fez nada. Em plena fase experi­mental, fez mais do que devia, mais do que podia. O olé em cima dos campeões do mundo foi, segundo a própria imprensa inglesa, um show maravilhoso. Mas, como não vinha a derrota inapelável, começou o massacre. Claro que nem todos os cro­nistas usaram o mesmo processo. Mas cada notícia sobre Salda­nha era, normalmente, uma intriga vil. As manchetes faziam um descarado terrorismo contra o técnico. Isso, em toda a impren­sa, em todo o rádio, em toda a tv do Brasil. E era dia após dia, hora após hora, minuto após minuto.

Perdi a conta das vezes em que João foi malhado como um judas de sábado de Aleluia. E se o grande técnico dava uma bron­ca, o nosso grã-finismo estrebuchava: — “Não tem serenidade! Não tem equilíbrio!”. Claro que podíamos dizer isso, porque cada um de nós estava fora da guerra, e abanando-se com a Re­vista do Rádio. Sim, é fácil ter boas maneiras, é fácil ter equilí­brio, é fácil ter serenidade, quando ninguém nos xinga, quan­do ninguém nos insulta, quando ninguém nos massacra.

Digo “massacre” para repetir: — nunca houve, no Brasil, um massacre pessoal tão desumano. E o espantoso é que nós exigíamos do “João Sem Medo” um comportamento de está­tua de Abrahão Lincoln. E como os seus brios se eriçaram mais do que as cerdas bravas do javali — encontraram, finalmente, o pretexto. Faltara a derrota, que as hienas esperavam. Mas o Saldanha tinha brio. Ótimo, ótimo. Por ser brioso, tinha que sair do escrete.

Houve um truque: — a demissão coletiva da Comissão Téc­nica. Mas o que se queria era a cabeça do João. E, para tanto, a guilhotina vinha sendo afiada há meses. Ah, como é curioso o destino das palavras. Imaginem vocês que, no domingo do segundo Brasil x Argentina, conversei com João Havelange. Es­távamos na tribuna de honra do Estádio Mário Filho. O jogo ain­da não começara. A dois passos de nós, tomando um café for­te, estava o presidente da República. Havelange disse-me o que pareciam ser palavras eternas: — “O João vai até o fim. Não há hipótese de sua saída. E se, por acaso, ele pedir demissão, eu o impedirei, fisicamente, de sair”.

Já ensaiei uma explicação. Mas repito: — “Por que, por quê?”. O Salim Simão explica-me que Saldanha tornara-se po­deroso demais. Ele, sozinho, com a sua figura folclórica, as suas broncas lendárias, os seus brios flamejantes — ele era maior do que a cbd, do que as federações, do que as forças ostensivas ou obscuras que manipulavam o nosso futebol. E as invejas, as vaidades, as frustrações, os rancores — não podiam admitir que ele fosse maior do que uma estrutura laboriosamente criada e mantida. E ainda seria muito maior e muito mais forte se voltas­se com o caneco de ouro. Teria então meios de transformar a nossa realidade esportiva.

Mas vejam: — seu primeiro dever era a classificação; e ele o cumpriu. O segundo dever era a conquista do título. Paren­tes, figuras da imprensa, do rádio e da televisão se uniram para frustrá-lo no seu maravilhoso esforço final. Exigiram que ele se deixasse massacrar sem um gemido. Rolou a cabeça do “João Sem Medo”. E, agora, queremos mais do que nunca o caneco.

Ah, foi uma guerra suja de tantos contra um só. Guerra digna do nosso vômito.

 [O Globo, 19/3/1970]

 


O BELO MILAGRE DAS VAIAS

O escrete parte hoje. Termina o seu exílio e, se não ouvi­ram bem, repito: — o seu exílio era o Brasil. Os nossos jogado­res são tratados como se fossem estrangeiros. Ou pior. Porque os estrangeiros merecem, não raro, uma polidez convencional, sim, um mínimo de cerimônia. Vocês viram, não viram, Brasil x Inglaterra?

“Não somos os melhores”, afirma um cronista machadiano. E, não sendo os melhores, e sendo os ingleses sim, nós os derrotamos. Como se não bastasse a vitória brasileira, ainda in­fligimos aos campeões do mundo um ignominioso olé. Mas eis o que eu queria dizer: — no segundo tempo, um dos visitantes fez uma coisa que, em futebol, é a vergonha inapelável e eter­na: — atrasou do meio de campo. Ao meu lado, na tribuna de imprensa, o botafoguense Serginho explodia em arroubos: — “Como eles atrasam bem! Com que tranqüilidade!”.

Por aí se vê que admiramos mais os defeitos ingleses do que as virtudes brasileiras. Conversei com um dos jogadores do escrete e ele abriu-me a alma, de par em par. Contou-me que, jogando sob uma cúpula de vaias, não era um brasileiro a jogar para brasileiros. Não e nunca. Tinha a sensação de que era um brasileiro a jogar para javanês, tirolês, congolês, tibetano, caucasiano e birmanês.

De brasileiros, a maioria dos assistentes só tinha — o pala­vrão. Era, sim, o palavrão, rugido no idioma de Camões, era o palavrão, repito, que localizava o Morumbi no Brasil, E disse mais o pobre craque. Como se não bastassem as vaias de boca, sofria também as vaias impressas. Os jornais, em sua maioria, não tinham uma palavra solidária, amiga, fraterna. O escrete era negado de alto a baixo, isto é, a partir da manchete.

O mal-amado sente-se hostilizado até pelas paredes, pelos edifícios, pela paisagem. E ele, não raro, começou a sofrer de mania-perseguição. Passou pelo morro da Viúva, achou que o Pão de Açúcar tinha-lhe horror; que o Corcovado, idem. De ou­tra vez, sentiu-se malquerido até pelo poente do Leblon. Disse-me várias vezes, obsessivamente, o jogador: — “Precisamos sair daqui! Precisamos ir embora!”.

Ouvi em silêncio o craque patrício e, sem nada dizer, dei-lhe toda a razão. Perguntará o leitor, em sua espessa ingenuida­de: — “O brasileiro não gosta do brasileiro?”. Exatamente: — o brasileiro não gosta do brasileiro. Ou por outra: — o subde­senvolvido não gosta do subdesenvolvido. Não temos sotaque, eis o mal, não temos sotaque. Ainda agora, no Morumbi, joga­mos com a Bulgária*. Embora entre os búlgaros existissem care­cas, pais de família, que fez a nossa crônica? Na hipótese de uma vitória nacional, passaram a dizer que os adversários eram infanto-juvenis do seu país. E se, porventura, ganhássemos de 17 x 0, diriam as manchetes: — “Brasil ganha do berçário búl­garo!”.

Não sei se vocês se lembram de uma passagem que contei, aqui mesmo, nesta coluna. Era o caso de um patrício meu que assim se apresentava nas esquinas, botecos e retretas: — “Che­gou o quadrúpede!”. Fazia uma volta no local e dava outro ber­ro: — “Sou um quadrúpede de 28 patas!”. Era esse o seu triun­fal cartão de visitas. Ligava para a namorada e começava assim: — “É o quadrúpede!”.

Lembrei-me desse conhecido, que assim se aviltava, ao ou­vir uma mesa-redonda numa das nossas emissoras. O assunto era o escrete. Ora, o escrete é feito à nossa imagem. E os cro­nistas reunidos não fizeram outra coisa senão cuspir, como Narciso às avessas, na própria imagem. Negaram a seleção, ne­garam o jogador, negaram o técnico, negaram o preparador, negaram o médico, negaram tudo. Justo seria que terminassem assim: — “E, agora, com licença, porque vamos urrar no bos­que mais próximo!”.

Os brasileiros empataram com os carecas da Bulgária por um escore que humilha os dois lados: — 0 x 0. Mas o resulta­do em nada influiu. A vaia começou antes do jogo, continuou durante o jogo e depois do jogo. Mas se me perguntarem quem empatou com os húngaros, eu diria: — a antitorcida. Uma mul­tidão que só vaia não pode chamar-se a si mesma de torcida nem tem o direito de exigir vitória.

O que fizeram com Paulo César é indesculpável. Ele não era nem culpado de estar ali e, repito, estava ali porque o esca­laram. Setenta, ou oitenta, ou noventa mil sujeitos contra um só. Não se conhece outro brasileiro tão humilhado. A vaia é um prazo. Dura um minuto, dois, três. Vaia é esforço e não temos, como os ingleses, a saúde e a resistência de uma vaca premia­da. Pois bem. A vaia que trucidou Paulo César durou noventa minutos.

Digo noventa minutos e já retifico: — mais. Mais, porque começou antes do jogo. A aluna de psicologia da puc, que en­tende nossos sentimentos, dizia-me: — “Só o ódio sustenta uma vaia de noventa minutos”. Aí está: — só o ódio. E seria lícito dizer-se que Paulo César foi linchado, fisicamente linchado, por uma vaia.

Há outra observação que eu desejaria fazer. A vaia contra um atinge e ofende os demais, inclusive os adversários. Claro, pois a vaia não tem nome e endereço como os envelopes. Os destinatários eram os 22 jogadores e mais os reservas, de am­bos os lados. Mas volto à mesa-redonda da tv. Houve pouquís­simas exceções; e uma delas, e a mais veemente, a mais otimis­ta, foi o “Marinheiro Sueco”. Vibrante de justiça e de procela, tratou de defender o maravilhoso craque do Brasil.

Graças a Deus o escrete parte. O que nem todos percebem é que o time nacional leva um maravilhoso trunfo. No México, ele se sentirá muito menos estrangeiro do que aqui. E estará pro­tegido pela distância. Acreditem que a distância será a nossa res­surreição. Se me perguntarem o que deverá fazer a seleção para ganhar a Copa, direi, singelamente: — “Não nos ler”. Sei que as nossas crônicas vão aparecer, por lá, como abutres impressos. Não importa. O que interessa é fugir da feia e cava depressão que dos nossos textos emana.

Quando o jato subir, o escrete assumirá a sua verdadeira dimensão. Cada cronista há de ter uma palavra final para o time nacional. Já vimos que um dos colegas escreveu, a título de juí­zo final: — “Não somos os melhores”. Esse tom de catástrofe é de quase toda a imprensa brasileira. Mas não é, repito, o meu tom. Dirão vocês que adoto, diante da Jules Rimet, uma posi­ção romântica. Nego. Justamente porque sou realista é que sin­to, inevitável, fatal, a vitória brasileira.

Os pessimistas são os alienados. Por exemplo: — o ilustre cronista diz que data de 66 o ocaso do nosso futebol. Quem fala assim é, obviamente, um ressentido contra os fatos. Ele não os aceita e parece dizer: — “Se os fatos não confirmam o que escrevo, pior para os fatos”. Quem quer que tenha um mínimo de isenção, de objetividade, de apreço aos fatos, sabe que o fu­tebol brasileiro é o melhor do mundo. Não sou eu que o digo, mas o óbvio, sim, o óbvio ululante.

Seremos campeões de 70, conquistaremos para sempre o caneco, porque somos melhores. Mas isso seria pouco. Além de melhores, levamos para o México as vaias ainda não cicatri­zadas. De vez em quando, eu relembro o que acontecia com o “Tigre da Abolição”. Nos comícios, José do Patrocínio co­meçava gelado de pusilanimidade. Era preciso que os amigos, no meio da multidão, o chamassem de “negro”, “negro”, “ne­gro” e “negro”. E a humilhação racial o potencializava. Dizia então coisas como aquela: — “Sou negro, sim! Deus deu-me sangue de Otelo para ter ciúmes da minha pátria!”.

Com o escrete, já começa o belo milagre das vaias. Foi mi­lagre o segundo tempo de Brasil x Áustria. Aquela bola que Pelé passou de calcanhar ou o gol de Rivelino, cada jogada era um momento de eternidade do futebol. Vou ao aeroporto dizer aos nossos jogadores: — “Vocês já são campeões do mundo”.

 [O Globo, 1/5/1970]

 


MOMENTOS DE ETERNIDADE

Amigos, nenhum outro escrete no mundo podia oferecer o futebol que os nossos jogadores ofereceram ontem. Não es­queçam que, aqui, vários cronistas fizeram verdadeiro terroris­mo com o quadro da Tcheco-Eslováquia*. O nosso adversário era fabulosíssimo, ao passo que o nosso pobre jogo era antigo, obsoleto, como a primeira sombrinha de Sarah Bernhardt. Pro­moveram os tchecos como se fossem os fantasmas da Copa.

E que vimos nós? Um desenho, uma pintura, um tapete bordado. Ganhamos de 4 x 1, e sem sorte nenhuma. Terminamos o primeiro tempo empatados por 1 x 1. E o justo, o certo, o correto é que tivéssemos chegado ao fim dos 45 minutos ini­ciais com dois gols de vantagem e, portanto, 3 x 1. Mas no se­gundo tempo veio a tremenda explosão. Amigos, vocês viram a tv, ouviram o rádio: — o Brasil deu um banho de bola num dos mais formidáveis concorrentes da Copa. Não há nada me­lhor no futebol europeu do que o time que, ontem, dobrou os joelhos diante do gênio dos nossos craques.

Vejam como são as coisas. Os nossos jornais de ontem, em sua maioria, não demonstraram o menor otimismo; limitaram-se a vender depressão aos seus leitores. Apresentaram as foto­grafias de 58 ou de 62? Não. Estavam muito mais interessados em relembrar, pela imagem, 54 e 50. Vários estamparam a nos­sa entrada em campo contra a Hungria, na Suíça. Tomados de horror, vimos o time nacional de cabeça baixa, o time nacional batido antes da luta.

E a resposta foi a maravilhosa exibição do escrete. A exibi­ção brasileira foi trinta vezes melhor do que a finalíssima entre a Inglaterra e a Alemanha, em 66. Naquela ocasião, os 22 ho­mens, segundo o figurino da pelada mais humorística, faziam o jogo de bola pra frente e fé em Deus. E, ontem, que fazíamos nós? Que fez esse escrete que saiu daqui vaiado e repito: — es­se escrete que se fez de vaias? Um jogo prodigiosamente articu­lado, sim, harmonioso, plástico, belo. Era uma música, meu Deus.

E, por isso, entendo que a cidade se levantasse em gigan­tesca apoteose. Aquele corso dos velhos carnavais voltou. As buzinas estavam de uma formidável histeria. Um turista que por aqui passasse e visse 5 milhões de sujeitos urrando havia de ano­tar no seu caderninho: — “Esta cidade enlouqueceu!”. E, real­mente, ficamos loucos. As pessoas se olhavam na rua e diziam umas para as outras: — “Somos brasileiros!”. Ruiu, por terra, a sinistra impostura do futebol europeu. Sempre disse que seus jogadores têm uma saúde de vaca premiada. Já começo a achar que até nisso levamos vantagem; que a saúde de vaca premiada temos nós.

Choviam papel picado das sacadas, e listas telefônicas. Serpentinas, confete, lança-perfume. Ou por outra: — lança-perfume, não. Mas confete e serpentina, sim. Todos os automóveis incen­diados de bandeiras. Mas o que eu achei mais bonito vocês não sabem. Eis o que aconteceu: — já que não lhe faziam a justiça, o escrete fez justiça a si mesmo.

No México, fizemos jogadas que foram, para o futebol mun­dial, momentos de eternidade. E Gérson? Quanta gente o ne­gou? Quanta gente disse e repetiu: — “Não tem sangue! Não tem coragem! Não tem sangue, não tem coragem!”. O vampiro de Dusseldorf, que era especialista em sangue, se provasse o san­gue de Gérson, havia de piscar o olho: — “Sangue do puro, do legítimo, do escocês”. E não foi só a coragem indomável. Impôs-se como a maior figura da jornada. Seus passes saíam límpidos, exatos, macios. Em momento nenhum deixou de ser um virtuose, um estilista. E a bomba santa de Rivelino que abriu o ca­minho da vitória? Quando os tchecos fizeram a falta, 90 milhões de brasileiros rezaram: — “Rivelino, Rivelino, Rivelino!”. E ele cobrou o foul de uma maneira genialíssima. Com a violência do tiro, a bola deixou de ser redonda, assumiu a forma do ovo e o goleiro adversário foi dramaticamente batido.

E o gol de Pelé? Gérson enfiou aquela espantosa bola com­prida. O sublime crioulo a matou no peito e fez uma obra-prima de gol. Quanto ao gol de Jairzinho, abalou o campeonato do mundo. Driblou um, mais outro, outro mais, ainda outro e en­fiou no canto. E a alma da rua voou pelos ares. Eu vi a grã-fina das narinas de cadáver cair de joelhos, no meio da rua, e estrebuchar como uma víbora agonizante.

 [O Globo, 4/6/1970]

 


O GRANDE SOL DO ESCRETE

Disse Rilke que a glória, o que chamamos glória, é a soma de mal-entendidos em torno de um homem e de uma obra. E não só a glória. Também a desonra pode ser outra soma de mal-entendidos. Qualquer um de nós já amou errado, já odiou erra­do. Eu próprio, certa vez, desprezei um homem, tive por esse homem a maior náusea ética. Não podia vê-lo sem que minha úlcera desse pulinhos de rã. Sem fazer segredo do meu horror, chamei-o, de público, de cadáver moral.

Eu teria, na ocasião, dezessete anos. E o adolescente vive de falsos horrores. Tempos depois, verifiquei que estava erra­do, errado de alto a baixo. O homem que eu supunha infame era, na verdade, uma dessas nobilíssimas figuras exemplares, um falso defunto moral. Quase um santo.

Eis o que eu queria dizer: — dedico esta crônica aos equí­vocos que, em certos casos, inauguram a estátua e, em outros, desencadeiam a vaia. Começarei falando de Pelé, o divino crioulo.

Muitíssimas vezes, Pelé foi estátua e, muitíssimas vezes, foi vaia. Eu me lembro de um jogo do escrete em que jogou mal ou, como diz a gíria, jogou pedrinhas. E, no fim de certo tempo, explodia a ira da multidão. No futebol, a apoteose está sempre a um milímetro da vaia. Não sei se todos se lembram de um fato muito curioso. Num jogo Brasil x Inglaterra, aqui, no ex-Maracanã, ao ser anunciado o nome de Julinho, todo o estádio vaiou. Mas começa o jogo. Julinho fez uma série de jogadas perfeitas, irretocáveis. Em dez minutos, o que era humilhação passou a ser apoteose. E assim Julinho teve a ful­minante reabilitação.

Volto a Pelé. Repito que, naquela tarde, ele foi pouquíssi­mo Pelé. E, então, começou a fúria popular. A ninguém ocorria que o supercraque não precisa jogar bem. O perna-de-pau é que tem de se matar em campo. De mais a mais, o gênio pode ter as suas nostalgias da burrice. Em outro plano, Sartre, o grande Sartre, andou por aqui e disse coisas de que se envergonharia Luvizaro. Podia dizê-las, porque era Sartre. Por exemplo, afir­mou o grande homem: — “O marxismo é inultrapassável”. O já citado Luvizaro não diria isso. Ele sabe que, daqui a quinze minutos, o marxismo pode estar ultrapassado por coisa muito melhor. Mas o que sabe Luvizaro Sartre pode ignorar, porque é Sartre.

E, em qualquer clássico ou pelada, Pelé pode fazer tudo, porque é Pelé. Se abrir a Revista do Rádio no meio do campo, estará usando um dos privilégios do gênio. Mas a multidão não perdoa, em Pelé, um passe errado. Se vinha o adversário e frus­trava o seu drible, Pelé era quase apedrejado como uma adúlte­ra bíblica. Éramos, ao todo, umas 150 mil pessoas. E dizíamos, uns aos outros, que Pelé já não era o mesmo. Houve um, mais afoito, que declarou: — “Pelé está morto”.

Ninguém protestou. Ou por outra, houve, sim, um protes­to. Estava lá o Manoel Duque, que reagiu e gritou: — “Pelé con­tinua sendo o maior jogador do mundo”. E, como um outro resmungasse, o Duque repetia: — “O maior jogador do mun­do, em todos os tempos”. Mas, como ia dizendo: — vaiaram Pelé os noventa minutos. Posso dizer que influiu na vaia, além do mais, um certo cansaço, um certo tédio do mito. A multidão precisa destruir os mitos que promove.

A partir de então, não só o homem de arquibancada, tam­bém os entendidos, também os técnicos, também os cronistas — começaram a meter a picareta na estátua de Pelé. Tem sido uma alegre demolição. O crioulo passou a ser o responsável por todos os males que afligiam a seleção. Fui a um sarau de grã-finos e lá ouvi alguém jurar: — “Pelé morreu para o fu­tebol”.

Chegou a correr a notícia de que seria barrado do escrete e do Santos. Ou por outra: — do Santos não, porque seu nome ainda é bilheteria. Cheguei a imaginar que, humilhado, ofendi­do, ele próprio saísse da seleção. Mas diz a minha vizinha gorda e patusca: — “Nada como um dia depois do outro”.

Já nas eliminatórias, Pelé teve momentos de Pelé. Mas insistíamos, obsessivamente: — “Não é o mesmo! Não é o mes­mo!”. E, para todo mundo, menos o Manoel Duque, já deixara de ser o maior jogador do mundo. Duque vivia repetindo: — “Mesmo jogando a metade do que sabe, ainda é o maior”. Até que chegou a primeira partida do Brasil, na Copa, contra os tchecos. Ora, segundo todos os críticos de futebol, a Tcheco-Eslováquia era um dos mais formidáveis concorrentes ao título mundial. Enquanto o Brasil se preparava em quinze dias, ela se cuidou durante quatro anos. Era assim uma potência da Jules Rimet.

Desde os primeiros momentos sentiu-se que o Rei era um falso defunto do futebol ou, mais do que isso, um salubérrimo defunto, a explodir de saúde. Aliás, recuando um pouco, eu po­deria falar do jogo recente, aqui, no Mário Filho, contra a Áus­tria, onde Pelé foi maravilhosamente Pelé. Mas o que importa, de momento, é a nossa estréia de quarta-feira. Foi, em primeiro lugar, um homem isento de idade, isento de tempo, com uma . vitalidade de dezessete anos. Defendeu e atacou, estava em to­das as posições ao mesmo tempo. Inventou jogadas que nenhum outro jogador faria, em qualquer tempo.

Foi no primeiro tempo? Não: — no segundo. Exatamente, no segundo tempo: l x l ainda no marcador. Recomeça a par­tida e Pelé estava ainda no campo brasileiro. Apanha a bola. E, súbito, recebe a visita do próprio gênio. Viu que o goleiro tcheco estava fora de posição, muito adiantado. Fez, então, o que não ocorreria a ninguém. De onde estava, deu um prodigioso ti­ro de cobertura. A tv, que não sabe fantasiar e tem o escrúpulo da mais exata veracidade, descreveu-nos o lance.

A câmera, numa tomada por trás do gol, mostra toda a cur­va implacável da bola. Por um momento, ninguém entendeu. Por que Pelé não passou? Por que atirava de tão espantosa dis­tância? E o goleiro custou a perceber que era ele a vítima. Seu horror teve qualquer coisa de cômico. Pôs-se a correr, em pâ­nico. De vez em quando, parava e olhava. Lá vinha a bola. Pa­recia uma cena dos Três Patetas. E, por um fio, não entra o mais fantástico gol de todas as Copas passadas, presentes e futuras. Os tchecos parados, os brasileiros parados, os mexicanos para­dos — viram a bola tirar o maior fino da trave. Foi um cínico e deslavado milagre não ter se consumado esse gol tão mereci­do. Aquele foi, sim, um momento de eternidade do futebol.

Pelé nunca foi tão alto no seu gênio. Mas por que fez isso? Simplesmente, ali o Rei se vingava das nossas vaias. E não só ele: — também o escrete, todo o escrete. Bem sei que as hienas da crônica ainda uivam contra a defesa. “Há falhas, há falhas”, rosnam as hienas (nas minhas crônicas as hienas rosnam). Len­do certos colegas, eu penso num velho episódio. Estava eu em Teresópolis, num edifício de apartamentos. Desci com a cachorrinha. Fazia uma diáfana manhã parnasiana, de um azul de soneto. No jardim, eu tremia, E, de repente, lá da janela, um vizinho pôs-se a esbravejar. Sabem por quê? Porque a cadelinha acabara de sujar o gramado. E, então, o sujeito achou que a porcaria mínima era mais importante, mais transcendente do que o céu, a floresta, a luz, as fontes, os pássaros. Assim fazem os cronistas que esquecem uma exibição deslumbrante para catar falhinhas que têm, cada uma, o tamanho de uma pulga.

Amanhã jogaremos com a Inglaterra. Eu sei que a Inglater­ra é grande. Mas nós somos maiores, porque somos Brasil, imen­samente Brasil, eternamente Brasil.

[O Globo, 6/6/1970]

 


O GRANDE DIA DE OTACÍLIO E ODETE

Não sei se repararam que os maridos não matam mais. Ou por outra: — só matam na primeira página de O Dia e da Luta Democrática. E, hoje, é cada vez mais raro o homicida por amor ou o suicida por amor. Mas o crime passional já teve a sua vo­ga. (Aí está: — voga. Boa palavra. Tem som. Pretendo usá-la mais vezes.) Quando eu era garoto, na altura aí de 1920. (Já chego ao futebol. Vocês não perdem por esperar.) Mas em 1920 as pes­soas tinham honra. E, então, lavava-se a honra a tiros, lavava-se a honra a bengaladas.

Em 1920 ou 19. Agora me lembro: — houve um crime mui­to falado, que saiu até em jornal de modinha. Como sempre di­go, todo casal exige uma vítima, assim como exige um algoz. Para o bom equilíbrio da casa, é preciso que a vítima aceite o seu papel e que o algoz como tal se comporte. Era assim na ca­sa do famoso senador Fulano de Tal. Era uma cabeça e sua re­tórica tinha um nível de Rui Barbosa, de Pedro Moacir e outros. Mas onde acabava o grande tribuno começava o marido crudelíssimo.

Batia até na mulher. E, uma noite, houve uma cena desagradabilíssima. O senador recebia outros senadores, com suas senhoras. E houve um momento em que a pobre esposa disse uma coisa qualquer, uma dessas trivialidades que não compro­metem ninguém. Foi uma frase assim: — “Eu prefiro a homeopatia”. E, então, diante das visitas, o tribuno vira-se para a mulher: — “Você não sabe o que diz. Você é burra. E cala a boca!”. A santa mulher pergunta: — “Mas eu não tenho direito de falar?”. E o marido: — “Não fala, não diz mais nada!”. A outra exclamou: — “Fulano!”. Deu-lhe o berro final: — “Não diz mais nada ou apanha na boca!”. Os convidados já se queriam enfiar debaixo da mesa.

Aquela vítima era bonita, um pouco fanada, mas bonita. Ao mesmo tempo, sabia que beleza é um prazo. Dizia às amigas: — “Estou ficando velha, estou ficando velha”, Até que, um dia, apareceu-lhe um antigo namorado. Aproveitando um minuto, o ex-namorado disse-lhe, de passagem: — “Eu sou o mesmo”. A mulher quase desfaleceu. Sentiu-se atravessada de luz, sei lá. Mas passou. Até que, uma manhã, por causa de um botão que faltava na camisa, o senador disse, quase doce: — “Vai buscar a vara de marmelo”. Recuou, lívida: — “Não me bata, não me bata”. Ele insiste, ainda mais suave: — “Eu disse: — vai buscar a vara de marmelo”. A mesma cena, por outros motivos e até sem motivo, já acontecera não sei quantas vezes. Aquela mu­lher, trancando os lábios, foi buscar a vara de marmelo. Chora­va. Ele apanha a vara e diz: — “Não chora. Engole o choro”. E, de fato, apanhou sem chorar, apanhou e engoliu o choro.

Não sei se no mesmo dia, ou no dia seguinte, ela apareceu no escritório do antigo namorado. Começa, ofegante: — “Vo­cê ainda me quer?”. Ele, fora de si, disse tudo: — “Não te es­queci um minuto. Hei de te amar sempre, sempre”. E começou a chorar, o pobre-diabo. Ela estava impassível: — “Fulano me deu uma surra, hoje. Eu tenho duas horas. Duas horas livres. Vem comigo”. Não foram duas, foram quatro ou cinco. Quan­do chegou em casa, estava o marido. Ele disse, com um ódio sem exaltação: — “Você foi vista, no Alto da Boa Vista, com um homem”. Pausa. Repete: — “Pode me explicar o que esta­va fazendo com um homem no Alto da Boa Vista?”. Nesse mo­mento, ela teve um leve sorriso, de ironia quase compassiva:

— “Só podia estar traindo você”.

Desta vez não foi vara de marmelo, mas bengala. Bateu durante uma meia hora talvez. Agora queria que a mulher choras­se, que a mulher gritasse. Berrava: — “Grita! Chora!”. Mas não chorou, nem gritou. E, quando ela caiu, ele ficou, por um mo­mento, vendo aquela mulher destruída. Agonizava. O senador acabou de matá-la a pontapés.

Muitos anos depois, ou, para ser mais exato, em 1957, na véspera do seu casamento, um rapaz contou à noiva a mesma história. Ele era Otacílio e ela, Odete (nome, como se sabe, em vias de extinção). A pequena, de uma família de nervosos, bal­buciou: — “E era teu tio?”. Esse parentesco inesperado, à últi­ma hora, parecia insinuar não sei que vaticínio. Há um silêncio. Antes de se despedir, Otacílio disse mais: — “Vamos casar ama­nhã. Anda por aí uma pouca-vergonha como nunca vi. Mas olha: — quero te avisar. Comigo, não. Você é tudo para mim, sou maluco por você. Mas se me traíres, algum dia, eu vou fazer con­tigo o que meu tio fez com a mulher”. Ela começa a chorar: — “Está me ameaçando?”. Quis ir embora, mas ele a segurou: — “Não estou ameaçando, porque você não vai me trair. Ou vai? Se não me traíres, eu serei, disparado, o melhor marido do mundo”. Odete ainda tremia: — “Você me dá medo!”.

Um ano antes, uma senhora tirara cartas para Otacílio. E, entre outras, avisou: — “Você vai ser traído. Por uma mulher. Loura”. Aquilo não saiu da cabeça do rapaz. E, por coincidên­cia, Odete era exatamente loura. Antes de pedir a garota em casamento, uma outra leu sua mão e disse-lhe exatamente o contrário: — “Não vai ser traído por loura nenhuma. Pode se casar”.

Casaram-se e, no fim de sete meses, Otacílio estava con­vencido de que a segunda cigana estava certa e de que a pri­meira era vigarista. Para os amigos, vivia-se gabando: — “Lua-de-mel não acaba”. E, realmente, pareciam feitos um para o ou­tro. Ele brincava: — “Não te disse que era só não me trair? Sou ou não sou o melhor marido do mundo?”. Ela respondia, num beijo: — “Igual a você pode haver. Melhor, duvido”. Ele ria:

— “Aproveita, aproveita”.

Até que chegou 58, com o campeonato do mundo. A prin­cípio, Otacílio era meio pessimista. Mas ganhamos o primeiro jogo, Brasil x Áustria, por 3 x 0. Odete pulava dentro de casa: — “Não te disse? Não te disse? Vamos ser campeões do mun­do, meu filho!”. Exausto, emocionalmente: — “Ainda é cedo, ainda é cedo”. Empate com a Inglaterra. Vitória deslumbrante sobre a Rússia. Desta vez Otacílio agarrou a mulher no colo: — “E Garrincha? Você viu Garrincha?”. Arquejava: — “Agora, sim. Agora estou fazendo fé. Passamos pelo susto do País de Gales. Mas que banho na França”. Otacílio abria os braços: — “Eu não mereço tanto!”. Agora, era a Suécia: — “Será que vai ser como 50? Será que vamos perder a última?”. Odete trançava os de­dos: — “A maior barbada!”.

E, de repente, tudo mudou. Na véspera de Brasil x Suécia, apareceu um tio velhíssimo, delegado de polícia e irmão do se­nador homicida. O sobrinho o recebeu com a pergunta: “Ga­nhamos amanhã?”. O velho de cara amarrada queria saber onde podiam conversar em particular. Trancaram-se no quarto dos fundos: — “Meu sobrinho, não sou de rodeios. Tua mulher te trai. Eu disse que tua mulher te trai”. Otacílio pergunta, quase sem voz: — “O que é que o senhor está dizendo?”. O outro con­tinuou, implacável. Não era um boato, um talvez, um quem sa­be, um pode ser: — “Fatos, fatos”. Tinha, por escrito, endere­ço, nome do outro, horário, os dias de encontro. “Demos uma batida e estavam lá os dois. Ele é um tal de Bulau, que vem aqui. Não vem aqui um Bulau torcer com vocês? E não é teu amigo?’’. Otacílio não dizia nada. O tio levanta e deixa um revólver em cima da mesa: — “Essa arma era do teu tio, o senador. Funcio­na. Mata a tua mulher. E foge, livra o flagrante. Ou matas ou te cuspo na cara”. Saiu, sem se despedir. A dor que atravessava Otacílio era a de ter sabido antes e não depois da finalíssima.

Apanhou o revólver. Aquilo deu-lhe uma náusea. E o ami­go, que não saía de lá. Pôs o revólver na gaveta. Na hora do jantar, tomando sopa, decidiu: — mataria no dia seguinte, de­pois do jogo ou durante. Se a coisa estivesse para a Suécia, ma­taria durante o jogo. Passou a noite em claro, mas curioso: — pensava mais no título do que no adultério.

Chega o dia seguinte. Foguetes antes da partida. Odete fu­riosa, achando que o “já ganhou” dava azar. Ele não consegue pensar na sua vergonha de marido. “Penso depois do jogo.” Começou, começou. Suécia 1 x 0. Vira-se branco para a mu­lher. O sentimento da derrota deu-lhe vontade de matá-la, na­quele momento. Vamos esperar mais um pouco. O senador es­tava certo. E, de repente, Vavá empata. Quando deu conta de si, estava aos beijos e abraços com a mulher. Gemeu: — “Va­mos esperar, vamos esperar”. Terceiro gol, quarto. A cidade ex­plodia. Lançou-se nos braços da mulher. E, súbito, puxou a mu­lher pelo braço. Moravam numa dessas casas antigas do bule­var e com essa coisa lírica, antiga, paisagística que é um gali­nheiro. No quintal, tira o revólver: — “Olha o que eu vou fa­zer”. Abre a porta do galinheiro e atira nas galinhas e mata, uma por uma. Atira o revólver pelo muro da vizinha. Depois agarra a mulher e soluça: — “Eu te amo, eu te amo, eu te amo!”.

 [O Globo, 8/6/1970]


O ENTENDIDO, SALVO PELO RIDÍCULO

Por que o Brasil não gosta do Brasil e por que nos falta um mínimo de auto-estima? É a pergunta que me faço, sem lhe achar a resposta. Dirão vocês que exagero e que não é tanto assim, que diabo. Responderei que é tanto assim ou pior. Vocês se lembram da Passeata dos 100 Mil, a famosíssima Passeata dos 100 Mil?

Os meus leitores, se é que os tenho, já repararam que eu a cito muito. Posso dizer que é uma das minhas referências mais obsessivas. E por quê? Quem quiser entender as nossas elites e o seu fracasso encontrará nos 100 Mil um dado essencial. Não havia, ali, um único e escasso preto. E nem operário, nem fave­lado, e nem torcedor do Flamengo, e nem barnabé, e nem pé-rapado, nem cabeça-de-bagre. Eram os filhos da grande burgue­sia, os pais da grande burguesia, as mães da grande burguesia. Portanto, as elites.

E sabem por que e para que se reunia tanta gente? Para não falar no Brasil, em hipótese nenhuma. O Brasil foi o no­me e foi o assunto riscado. Falou-se em China, falou-se em Rússia, ou em Cuba, ou no Vietnã. Mas não houve uma pala­vra, nem por acaso, nem por distração, sobre o Brasil. Picha­ram o nosso Municipal com um nome único: — Cuba. Do Brasil, nada? Nada.

As elites passavam gritando: — “Vietnã, Vietnã, Vietnã!”. E, quanto ao Brasil, os 100 Mil faziam um silêncio ensurdece­dor. Tanto vociferaram o nome de Vietnã, de Cuba e China, que minha vontade foi replicar-lhes: — “Rua do Ouvidor, rua do Ouvidor, rua do Ouvidor!”. Simplesmente, o Brasil não existe para as nossas elites. Foi essa a única verdade que trouxe, em seu ventre, a Passeata dos 100 Mil.

Estou apresentando um exemplo e poderia citar muitos ou­tros. Vamos ficar por aqui. Há um momento, todavia, em que todos se lembram do Brasil, em que 90 milhões de brasileiros descobrem o Brasil. Aí está o milagre do escrete. Fora as esquer­das, que acham o futebol o ópio do povo, fora as esquerdas, dizia eu, todos os outros brasileiros se juntam em torno da se­leção. É, então, um pretexto, uma razão de auto-estima. E cada vitória compensa o povo de velhas frustrações, jamais cicatri­zadas.

Não sei se contei o caso de certo amigo meu. É o que se chama um boa-vida. Sua mesa tem vinhos raros e translúcidos. Um dia, ocorreu-lhe um capricho voluptuoso e tomou um ba­nho de leite de cabra. Perguntei-lhe: — “Que tal?”. Respondeu: — “Assim, assim”. Duas vezes por ano, dá uma volta pela Europa. Pois bem. É esse amigo que me confessa: — “Só me sinto brasileiro quando o escrete ganha”. Fora disso, passa anos sem se lembrar do Pão de Açúcar ou sem pensar na Vista Chinesa, recanto ideal para matar turista argentino.

Domingo ele bateu o telefone para mim. No seu desvario, berrava: — “Ganhamos da Inglaterra!”*. Chorava: — “Como é bom ser brasileiro!”. E, durante toda a Copa, será um brasileiro de esporas e penacho. Também a grã-fina das narinas de cadá­ver me ligou. Soluçava: — “Brasil! Brasil! Brasil!”. Mais tarde, eu a vi, patética, enrolada na bandeira brasileira. Parecia uma Joana d’Arc da seleção.

O meu assunto de hoje é, justamente, o escrete que está maravilhando o mundo. Tem sua história, tem a sua lenda. An­tes de mais nada, não pensem que se improvisa um escrete da noite para o dia. Não. É todo um secreto, um misterioso, um profundo trabalho de gerações. Até que, um dia, há o milagre: — juntam-se, então, no mesmo time, um Pelé e um Gérson, um Rivelino, um Jairzinho.

Vocês viram o nosso gol contra a Inglaterra. Foi uma obra-prima. Começou em Tostão, que passou a Paulo César. Paulo César novamente a Tostão. Este trabalha a bola. A área inglesa era uma ferocíssima selva de botinadas. Cada milímetro estava ocupado. Tostão dribla um inglês, e mais outro inglês, um terceiro inglês. E vinham outros, e mais outros e outros mais. Tos­tão vira-se e entrega a Pelé. Três adversários envolvem o subli­me crioulo. Este, rápido, empurra para Jairzinho, enganando to­do mundo.

Era um gol que não podia ser feito porque a muralha de cabeças estava lá, inultrapassável. Mas tudo teve a solução fulminante do talento. A bola deslizou para Jairzinho. No seu ban­co, Alf Ramsey, o técnico inglês, parecia certo de que seus jo­gadores iam frustrar o ímpeto e o virtuosismo dos nossos.

Não sei se vocês sabem, mas esse Ramsey é um caso de imodéstia delirante. Declarara à imprensa internacional: — “A Inglaterra vai ganhar, porque o Brasil não tem defesa. Félix, Brito e Piazza são horrorosos”. Vejam a polidez, a cerimônia, a reve­rência desse cavalheiro. Os rapazes da imprensa perguntaram: — “E Pelé?”. Achou graça: — “Ora, Pelé”. E disse que tinha meios e modos de apagar o Rei. O que Ramsey queria dizer, por outras palavras, é que os brasileiros não são de nada.

Volto ao passe de Pelé. A bola está no pé de Jairzinho. Esquecia-me de contar uma outra do mesmo Ramsey. Ele tam­bém declarou que os negros brasileiros rebolam muito. Não disse rebolam, mas ponham aí uma palavra equivalente. Pois bem: — eis o fato: — Jairzinho arranca. A bola sabe quando vai ser gol e se ajeita para o gol. E Jairzinho, que era a maior saúde em campo, ainda ultrapassou um inglês; e encheu o pé. Era o gol de uma das mais belas, mais perfeitas, irretocáveis vitórias bra­sileiras de todos os tempos.

O próprio Ramsey, apesar de sua máscara de ferro, dizia depois do jogo que, na altura do gol brasileiro, a defesa inglesa estava entregue às baratas. O certo, o lógico é que, depois do gol, as coisas acontecessem numa progressão fulminante de ca­tástrofe. Mas diz o Ramsey: — “Os brasileiros recuaram para defender o 1 x 0. O que seria de nós se eles não recuassem?”.

Mas não tem sido fácil a vida do escrete. Por exemplo: — Paulo César sofreu em São Paulo uma experiência inédita: — uma vaia de noventa minutos. Isso corresponde a um lin­chamento. Só não entendo, até hoje, como ele conseguiu so­breviver. Nem se pense que foi ele o único. Mas não vamos amaldiçoar as vaias ao escrete. Elas o fizeram, elas o virilizaram. A jornada brasileira no México é uma vingança contra as vaias.

E o que a seleção e, antes da seleção, o que sofreu o fute­bol brasileiro nas mãos dos “entendidos”. Tenho que abrir, nes­te momento, um tópico especial. O que é o “entendido”? Ve­remos se posso caracterizá-lo. É o cronista que esteve, em 66, na Inglaterra, e voltou com a seguinte descoberta: — o futebol europeu em geral e o inglês em particular eram muito melho­res do que o nosso. Estávamos atrasados de quarenta anos para mais. Quanto à velocidade, era uma invenção européia. Os bra­sileiros andavam de velocípede e os europeus a jato. O “enten­dido” afirmava mais: — os times de lá não deixavam jogar. Es­sa foi genial. Imaginem vocês um time jogando e o adversário assistindo, como numa frisa de teatro. Por outro lado, o prepa­ro físico dos europeus era esmagador. Como se não bastasse tu­do o mais, ainda descobriu o “entendido”: — o futebol mo­derno não é bonito, não quer ser bonito e escorraçou o belo e artístico de suas cogitações. Bonito e artístico é o futebol sub­desenvolvido de Brasil e outros.

O jogo Brasil x Inglaterra desmontou vários mitos. A tal velocidade não existe. Os ingleses tinham períodos enormes em que preferiam o velocípede ao jato. A saúde de vaca premiada é a nossa e não a deles. Não há no time adversário um jogador com a furiosa plenitude de um Jairzinho ou de um Pelé. Uma mentira a história de que os europeus não deixam jogar. E co­mo não deixam, se Tostão comeu três, Pelé enganou mais três e Jairzinho ultrapassou mais um, antes de fazer o gol? O pau-de-arara de ouro, Clodoaldo, corre mais do que todo o escrete inglês junto. E vem o “entendido” e declara, solene, enfático, hierático: — “Nós não somos os melhores”. Pois os lorpas, os pascácios, acreditam. Basta Brasil x Tcheco-Eslováquia, ou Bra­sil x Inglaterra que tudo não passa de uma impostura inédita. Vou concluir: — o “entendido” só não se torna abominável por­que o ridículo o salva.

 [O Globo, 10/6/1970]


DESLIZANDO COMO CISNES

Amigos, bem sei que ninguém se ruboriza mais. O último rubor que se conhece ocorreu num baile da ilha Fiscal. De então para cá, nunca mais ninguém ficou ruborizado. Mas este cam­peonato tem sido uma experiência fabulosa para nós brasileiros. Vocês sabem o que dizem os jornais ingleses do nosso futebol? Dizem apenas e textualmente o seguinte: — “Devia ser proibido jogar tão bonito”.

Eles acham absurdo que o Brasil possa mandar para o Mé­xico um time de virtuoses, de estilistas. E, portanto, podemos baixar a vista, escarlates de modéstia. É a Inglaterra que nos põe nas nuvens. Cabe então a pergunta: — e as vaias? Esse mesmíssimo escrete, que assombra o mundo, recebe as vaias humilhan­tes da própria terra. Era como se fôssemos um time de pernas-de-pau, uma equipe de cabeças-de-bagre.

E os “entendidos”? Estavam diante do óbvio e não enxer­gavam o óbvio. Um deles, escrevendo sobre Brasil x Inglater­ra, deu duas notas dez aos ingleses e nenhuma nota dez aos bra­sileiros. Sempre escrevo que o pior cego é o míope. O citado “entendido” não desconfiou que o Brasil não é nada do que ele dizia, e nada do que ele ainda diz. Todo mundo já sabe que não há na Copa um time que se compare ao Brasil. E o “enten­dido” ainda está atracado ao mito, ao pobre e falecido mito do futebol inglês.

Ontem a Inglaterra disse adeus à Copa. O juiz de 66 não estava lá para inventar o gol que a Inglaterra não marcou. E ela perdeu para a Alemanha. É um futebolzinho, o inglês, que só vinga sob uma cínica, deslavada cobertura da arbitragem. E o futebol brasileiro, que os “entendidos” sempre negaram ou, na pior das hipóteses, sempre subestimaram? O “entendido” es­creveu, outro dia: — “Não somos os melhores”.

E vocês viram o jogo com a Tcheco-Eslováquia? Levou do Brasil um banho de Paulina Bonaparte. Em seguida, a Inglater­ra, a favorita dos nossos “entendidos”. Ganhamos por 1 x 0. Um gol só, mas que valeu por cinco. Vocês se lembram do lance. Tostão apanha a bola, dribla um inglês, outro inglês. E ao ter­ceiro inglês, passou-lhe a bola por entre as pernas. Em seguida, o formidável craque, vendo que os adversários, em hordas, vi­nham caçá-lo, deu uma maravilhosa virada para Pelé. O subli­me crioulo está com a bola nos pés. Três ingleses rugem para ele. E, então, Pelé os engana lindamente. Em vez de chutar, passa para Jairzinho.

Jairzinho recebe a bola e engana mais um inglês. E manda uma bomba no canto. Esse gol, de uma trama genial, foi um momento de eternidade do futebol mundial. Mas os “entendidos”, embora presentes, estavam lá para admirar os ingleses. Contra a Romênia, fizemos 25 minutos iniciais de um futebol nunca so­nhado. Era um jogo fácil. O Brasil merecia ganhar de uma go­leada astronômica. Depois da Romênia[**********], o Peru. Os gols que per­demos são incontáveis. Dois lances geniais de Pelé explodiram na trave. Tostão, que fez dois, perdeu uns três. Antes que eu me esqueça, uma pergunta que gostaria de fazer aos “entendi­dos”: — e a famosa e irracional velocidade, que era uma carac­terística fundamental do futebol europeu? O Brasil, quando quer, corre mais que os europeus, e quando não quer, põe-se a pas­sear em campo, a deslizar como cisnes, sem nenhuma pressa, nenhuma. Afirmava-se também que os europeus não deixavam jogar. Eles não fazem outra coisa senão deixar o Brasil jogar.

Mas falo, falo, e não digo uma palavra sobre o meu perso­nagem da semana. Vamos dar-lhe nome: — Tostão. Foi uma enorme figura. Marcou dois gols e foi um criador de jogadas maravilhosas. Já a sua atuação no gol contra a Inglaterra foi um lance de gênio. Mas o que eu queria chamar a atenção de vocês é para o abnegado e formidável esforço de Tostão. Saído de uma crise vital, aceita todos os riscos para servir ao escrete. De quinze em quinze minutos, seu futebol cresce. Está entre os cinco ou seis maiores jogadores do mundo em todos os tempos. Como influiu para a nossa vitória sobre o Peru! Fez uma série de coisas perfeitas e irretocáveis. Já na semifinal da quarta-feira, espero que ele apareça em estado de graça plena. Imaginem Tostão dando tudo, Pelé dando tudo, Jairzinho dando tudo, Rivelino dan­do tudo, Gérson dando tudo.

 [O Globo, 14/6/1970]

 


O MAIS BELO FUTEBOL DA TERRA

Em 58, na véspera de Brasil x Rússia, entrei na redação. Tiro o paletó, arregaço as mangas e pergunto a um companhei­ro: — “Quem ganha amanhã?”. Vira-se para mim, mascando um pau de fósforo. Responde: — “Ganha a Rússia, porque o brasi­leiro não tem caráter”.

Eis a opinião dos brasileiros sobre os outros brasileiros: — não temos caráter. Se ele fosse mais compassivo, diria: — “O brasileiro é um mau-caráter”. Vocês entenderam? O mau-caráter tem caráter, mau embora, mas tem. Ao passo que, segundo meu colega, o brasileiro não tem nenhum. Pois bem. No dia seguin­te há o jogo e, no seu primeiro lance, Garrincha sai driblando russos e quase entra com bola e tudo.

Vejam: — diante do Brasil, a Rússia perdeu antes da luta. Bastou um momento de Mané para liquidá-la. Mas o que ainda me espanta é a frase do companheiro: — “O brasileiro não tem caráter”. Essa falta de auto-estima tem sido a vergonha, sim, tem sido a desventura de todo um povo. Ganhamos em 58, ganha­mos em 62. Depois da Suécia e do Chile, seria normal que reto­cássemos um pouco a nossa imagem. Mas há os recalcitrantes. Outro dia, um colega puxou-me para um canto. Olha para os lados e cochicha: — “Não somos os melhores”. E repetiu, de olho rútilo e lábio trêmulo: — “Não somos os melhores”. E por todas as esquinas e por todos os botecos há patrícios venden­do impotência e frustração.

Quando o escrete partiu para o México levando vaias ja­mais cicatrizadas, vários jornais fizeram uma sinistra impostura. A seleção ia para a guerra. Uma Copa é uma guerra de foice no escuro. Mas parte da nossa imprensa pôs a boca no mundo: — “Humildade, humildade!”. Eu pergunto: — o que é o brasi­leiro? O que tem sido o brasileiro desde Pero Vaz de Caminha? Vamos confessar a límpida, exata, singela verdade histórica: — o brasileiro é um pau-de-arara. Vamos imaginar esse pau-de-arara na beira da estrada. Que faz ele? Lambe uma rapadura. E além de lamber a rapadura? Raspa, com infinito deleite, a sua sarna bíblica.

E súbito encosta uma Mercedes branca, diáfana, nupcial. O cronista esportivo, que a dirige, incita o pau-de-arara: — “Seja humilde, rapaz, seja humilde!”. Vocês percebem a monstruosi­dade? Não basta ao miserável a sarna, nem a rapadura. Ainda lhe acrescentam a humildade. Certos rapazes da imprensa não perceberam que a humildade é defeito de reis, príncipes, du­ques, rainhas. Há pouco tempo, o papa assim se despediu de uma senhora brasileira: — “Reze por mim”, implorou sua san­tidade. Podia fazê-lo porque era a maior figura da Igreja.

Outro exemplo: — a mulher bonita. Conheci uma que era linda, linda. Quase uma Ava Gardner ou mais do que a Ava Gardner. Quando o marido entrava, ela se lançava não nos seus bra­ços, mas aos seus pés. E fazia apenas isto: — beijava um sapato do marido e, depois, o outro sapato. Também podia fazer isso porque era maravilhosa. Por onde passava ia ateando paixões e suicídios. A humildade era a sua vaidade de mulher bonita.

Passo da mulher fatal ao escrete. Um escrete é feito pelo povo. E como o povo o fez? Com vaias. Nunca houve na Terra uma seleção tão humilhada e tão ofendida. E, além disso, os au­tores das vaias ainda pediam humildade. O justo, o correto, o eficaz é que assim incentivássemos a seleção de paus-de-arara: — “Tudo, menos humildade! Seja arrogante! Erga a cabeça! Suba pelas paredes! Ponha lantejoulas na camisa!”.

Chamo os nossos jogadores de paus-de-arara sem nenhu­ma intenção restritiva. O pau-de-arara é um tipo social, huma­no, econômico, psicológico tão válido como outro qualquer. Tem potencialidades inéditas, valores ainda não realizados.

Estou dizendo tudo isso na véspera, exatamente na véspe­ra, de Brasil x Itália. É a finalíssima. Vejam vocês: — o escrete negado não três vezes, mas mil vezes — foi vencendo os seus adversários, um por um, não deixando pedra sobre pedra. Diziam que os europeus não deixam jogar. Pois bem: — quando se trata do Brasil, todo mundo o deixa jogar.

Foi assim com a Tcheco-Eslováquia, com a Inglaterra, a Romênia, o Peru e o Uruguai[††††††††††]. O espectro de 50 está mais enterrado do que sapo de macumba. Bem que a pobre Inglaterra tentou o diabo para que o Brasil não jogasse. Mas vocês se lembram do nosso gol? Vejam quantos jogaram. Primeiro, Paulo César passou a Tostão. E Tostão resolveu jogar em cima dos ingleses. Em vez de passar de primeira, deu-se ao luxo voluptuoso de dri­blar um inimigo; mas era pouco para a sua fome, e driblou ou­tro inimigo. Podia passar. Mas Tostão preferiu enfiar a bola por entre as pernas do terceiro inimigo. Adiante estava Pelé. E o es­tilista estende a Pelé. Cercado de ingleses por todos os lados, o semidivino crioulo toca para Jairzinho. Este podia ter atirado de primeira. Não: — achou que devia driblar mais outro inglês. E só então sua bomba foi explodir no fundo das redes.

Por que os ingleses não nos impediram do jogar? E, real­mente, foi um gol feito com tão amorosa paciência, com tão fino lavor e inexcedível virtuosismo. O leitor há de perguntar: — “Mas como, se os ‘entendidos’ diziam que o futebol brasilei­ro estava mais obsoleto do que o guarda-chuva do senador Paulo de Frontin?”. Realmente, os “entendidos” tudo fizeram para aca­bar com o nosso craque. Queriam que nós imitássemos os de­feitos europeus. Queriam tirar do nosso futebol toda a magia, toda a beleza, toda a plasticidade, toda a imaginação. Faziam a apologia do futebol feio. Era como se estivessem apresentando o corcunda de Notre Dame como um padrão de graça e eugenia.

Mas a famosa velocidade está a merecer um capítulo espe­cial. Com a maior solenidade, os “entendidos” acusavam o nos­so futebol de lento. E o que se vê na Copa é esta coisa infinita­mente patusca: a morosidade inteligentíssima dos brasileiros der­rubou a velocidade burríssima dos europeus. Finalmente, diante dos resultados concretos, o povo não lê mais os “entendidos”. Desde a Tcheco-Eslováquia, aconteceu o cínico e deslavado milagre: nunca houve um escrete tão amado. Por outro lado, cada vitória faz a cidade explodir. E um dos nossos jornais tem a coragem de chamar a festa gigantesca de relativo carnaval.

Observem agora o que o escrete fez por nós. Há pouco tem­po o brasileiro tinha uma certa vergonha de ser brasileiro. Co­nheço um patrício que andou ensaiando um sotaque para não trair a sua nacionalidade. Agora não. Agora acontece esta coisa espantosa: — todo mundo quer ser brasileiro. O país foi inva­dido por brasileiros, ocupado por brasileiros. Dizia-me o Fran­cisco Pedro do Coutto: — “Nunca vi tantos brasileiros”. E ou­tra coisa: — as mulheres estão mais lindas, e os homens mais fortes, e há uma bondade difusa, volatilizada, atmosférica. Ja­mais se cumprimentou tanto. E como sorrimos uns para os outros.

Apenas 24 horas nos separam da finalíssima. Quem jogará por nós é o melhor escrete da Copa. Enquanto os outros dão botinadas, o brasileiro faz a arte que os “entendidos” negam e renegam. Vocês devem ter visto, ontem, o tape de Inglaterra x Alemanha. O campo era varrido de correrias irracionais. Va­le tudo, do gogó para cima. Vinte e dois homens, e mais o juiz e mais os bandeirinhas, e aquela fauna triste de patadas.

Que falso futebol, que antifutebol. Amanhã, sim, amanhã o mais belo futebol do mundo jogará contra a Itália. E quando acabar o jogo vocês verão subir o nome do Brasil como um for­midável berro em flor.

 [O Globo, 20/6/1970]

 


DRAGÕES DE ESPORA E PENACHO

Amigos, foi a mais bela vitória do futebol mundial em to­dos os tempos. Desta vez, não há desculpa, não há dúvida, não há sofisma. Desde o Paraíso, jamais houve um futebol como o nosso. Vocês se lembram do que os nossos “entendidos” di­ziam dos craques europeus. Ao passo que nós éramos quase uns pernas-de-pau, quase uns cabeças-de-bagre. Se Napoleão tives­se sofrido as vaias que flagelaram o escrete, não ganharia nem batalhas de soldadinhos de chumbo.

Era mais fácil encontrar uma girafa em nossas redações do que um otimista. O otimista era visto, e revisto, como um débil mental. Quando o escrete saiu daqui, as hienas, os abutres, os chacais uivavam: — “Não passa das quartas-de-final!”. Fazia-se uma campanha do pessimismo. E os “entendidos” recomenda­vam: “Humildade, humildade!”. Como se o brasileiro fosse um pobre-diabo de pai e mãe. Eu me lembro do dia em que João Saldanha foi chamado para técnico do escrete. Tivemos uma conversa de terreno baldio. E me dizia o João: — “Vamos ga­nhar de qualquer maneira! O caneco é nosso!”.

Raríssimos acreditavam no Brasil. Um deles era o presiden­te, que me dizia: — “Vamos ganhar, vamos ganhar” — e que, ainda no sábado, dava o seu palpite para a finalíssima: — “Brasil 4 x 1”[‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡]. Mas os “entendidos” juravam que o futebol brasilei­ro estava atrasado trinta anos. E a famosa velocidade européia? Essa velocidade existia entre eles, e para eles. Mas o Brasil ga­nhou de todo mundo andando, simplesmente andando. Com a nossa morosidade genial nós enterramos a velocidade burra dos nossos adversários.

Sempre escrevi (graças a Deus, não “entendo” de futebol), mas escrevi que a finalíssima de 66 foi o antifutebol e, repito, uma pelada da pior espécie. Mas ai de nós, ai de nós. O “enten­dido”, só de falar da Inglaterra e da Alemanha, babava na gravata. Queria acabar com o gênio, a magia, a beleza do nosso futebol. Mas, sem querer, com sua inépcia, com sua incompetência, os “entendidos” acabaram prestando um grande serviço, porque tornaram os brios do escrete mais eriçados do que as cerdas bra­vas do javali.

O curioso é que os não entendidos é que acreditavam na seleção. Por exemplo: — o Walther Moreira Salles. Pôs-se à fren­te de todo o movimento de apoio financeiro ao escrete. Não faltou quem lhe dissesse: — “Não faça isso. Esse escrete é uma droga”. Coisa curiosa: — em momento nenhum o Walther Mo­reira Salles deixou de acreditar na nossa seleção. Muitas vezes me disse: — “Eu sei que vamos ganhar”.

Paro de escrever para atender o telefone. É o Vadinho Dolabela, o último boêmio, o último romântico do Brasil. Chora no telefone: — “Nelson, ganhamos, Nelson! O caneco é nos­so!”. Que ele seria nosso estava escrito há 6 mil anos. Nunca uma seleção fez, na história do futebol, uma jornada tão perfeita como o Brasil em 70. Ganhamos de todos os pseudocobras. Todas as finalíssimas são duríssimas. Alemanha x Itália, em 38, exigiu prorrogação. Quando o jogo acabou, os craques deita­vam-se no chão, muito mais mortos do que vivos. Alemanha x Inglaterra, nova prorrogação, tanto em 66, como em 70. O Brasil não precisou de um minuto a mais.

E nós, ontem, demos um passeio. Quem fez o gol da Itália, o franciscano gol da Itália, não foram os italianos. Foi uma brin­cadeira de Clodoaldo. Esse notabilíssimo craque, sergipano quatrocentão, resolveu dar uma bola de calcanhar. O inimigo rece­beu de presente, recebeu de graça, o passe e o gol. Ao passo que os gols brasileiros foram obras de arte, irretocáveis, eter­nas. A cabeçada de Pelé, na abertura da contagem, foi algo de inconcebível. Ele subiu, leve, quase alado, e enfiou no canto.

Em suma, cada gol dos nossos era uma preciosidade. Já na véspera as maiores autoridades do futebol declararam, unanimemente, que o Brasil tinha que ganhar o jogo, porque era muito melhor. Esse era o óbvio ululante, que o mundo enxergava, menos os “entendidos” daqui. Antes que eu me esqueça, pre­ciso observar o evidentíssimo: — ganhamos dando, no adver­sário, um banho de Paulina Bonaparte. Dizia-se que os italianos eram formidáveis. Perderam de 4 x 1 para nós, e devia ser de 4 x 0. Ou melhor: — e nem de 4 x 0, mas de 5 x 0, e explico: — no último momento, Rivelino, driblando todo mundo, inva­diu a área e ia entrar com bola e tudo, quando sofreu o mais cínico, o mais deslavado dos pênaltis. Era um gol mais do que certo. Ainda tivemos que enfrentar um árbitro altamente perni­cioso..

Amigos, glória eterna aos tricampeões mundiais. Graças a esse escrete, o brasileiro não tem mais vergonha de ser patrio­ta. Somos 90 milhões de brasileiros, de esporas e penacho, co­mo os Dragões de Pedro Américo.

 [O Globo, 22/6/1970]



 

[*] O Flamengo foi fundado em 15/11/1895.

[†] Brasil 3 x 0 Paraguai, 13/11/1955, no Maracanã. Zizinho fez dois gols e deu o passe para Escurinho marcar o seu.

[‡] Jaguaté foi um folclórico goleiro do Vasco no começo dos anos 30. 

[§] Brasil 1 x 0 Argentina, 5/2/1956, no Estádio Centenário.

[**] Hungria 4 x 2 Brasil, 27/6/1954, em Berna. Uruguai 2 x 1 Brasil, 16/7/1950, no Maracanã. 

[††] O campeonato carioca de 1955 prolongou-se até 1956 e foi decidido nu­ma melhor de três entre Flamengo e América. Na primeira partida (28/3/1956), Flamengo 1 x 0. Em 1º de abril, o América impôs 5 x 1 e, na negra, em 4 de abril, o Flamengo fez 4 x 1, sagrando-se tricampeão carioca pela segunda vez.

[‡‡] Flamengo 6 x 4 Honved, 19/1/1957, no Maracanã. O Honved devolveria a goleada, pelo mesmo placar, uma semana depois, no Pacaembu.

[§§] Flamengo 2 x 1 Canto do Rio, 1/11/1957, no Maracanã.

[***] Botafogo 6 x 2 Fluminense, 20/12/1957, no Maracanã. A goleada deu o tí­tulo carioca de 1957 ao alvinegro.

[†††] Nelson refere-se ao jogo Botafogo 6 x 2 Fluminense, tratado na crônica an­terior. Carlito Rocha era ex-presidente e, de certa forma, símbolo do Botafogo.

[‡‡‡] Tommy Taylor era uma das grandes promessas do futebol inglês. O jogo a que Nelson se refere foi Inglaterra 4 x 2 Brasil, em 9/5/1956, em Wembley, no qual Gilmar pegou dois pênaltis. O desastre com o avião que conduzia o Man­chester United, clube de Taylor, foi em 6/2/1958 

[§§§] Santos 5 x 3 América, 25/2/1958, no Maracanã, pelo Torneio Rio—São Paulo. Foi a primeira crônica de Nelson sobre Pelé — e a primeira em que o jogador foi chamado de “rei”.

[****] Guiomar acabou não indo à Suécia e, mesmo assim, Didi foi considerado o maior jogador da Copa. A cbd é a antiga Confederação Brasileira de Despor­tos, atual cbf 

[††††] Vicente Feola foi o treinador da seleção brasileira na Copa de 1958. O grosso da imprensa não o levava a sério, acusando-o de cochilar no banco de reservas durante os treinos.

[‡‡‡‡] Brasil 5 x 1 Paraguai, 4/5/1958, no Maracanã; Brasil 0x0 Paraguai, 7/5/1958, no Pacaembu. Jogos preparatórios para a Copa de 1958.

[§§§§] Última crônica antes da estréia do Brasil na Copa de 1958.

[*****] Brasil 2 x 0 União Soviética, 15/6/1958, em Gotemburgo (Suécia). A urss era apontada como o grande fantasma da Copa por seu “futebol científico”.

[†††††] Brasil 1 x 0 País de Gales, 19/6/1958, em Gotemburgo (Suécia). O Leôni­das a que Nelson se refere é Leônidas da Silva, ex-craque (inventor da “bicicle­ta”) e então comentarista esportivo.

[‡‡‡‡‡] Brasil 5 x 2 Suécia, 29/6/1958, em Estocolmo. Brasil campeão do mundo.

[§§§§§] Botafogo 2 x 1 Fluminense, 10/7/1958, no Maracanã. O campeonato ca­rioca começou dez dias depois da Copa da Suécia, durante os quais os campeões do mundo foram submetidos a um festival de homenagens.

[******] São Cristóvão 2 x 1 Botafogo, 23/7/1958, no Maracanã. Ao fim daquele cam­peonato, Hélio Cruz foi vendido para fora do Rio e eclipsou-se. Viveu seus no­venta minutos de glória naquele jogo — e foi só.

[††††††] Flamengo 8 x 0 Olaria, 22/8/1958, na Gávea. Dida tornou-se o maior go­leador da história do Flamengo antes de Zico, mas não voltou à seleção brasileira.

[‡‡‡‡‡‡] Fluminense 1 x 0 América, 23/10/1958, no Maracanã.

[§§§§§§] Flamengo 2 x 2 Vasco da Gama, 26/2/1959, no Maracanã, pelo Torneio Rio—São Paulo. Almir jogou ao lado de Pelé naquele Sul-Americano, inclusive na dramática partida contra o Uruguai (26/3/1959, Brasil 3 x 1), em que briga­ram os 22 jogadores. Almir substituiria Pelé no Santos, na partida decisiva con­tra o Milan pelo campeonato mundial de clubes em 1963.

[*******] Flamengo 2 x 0 Fluminense, 20/4/1959, no Maracanã, pelo Torneio Rio— São Paulo. O bandeirinha, de apelido “Caixa Econômica”, chamava-se Adélio Maia. O juiz era Amílcar Ferreira e o gol valeu. 

[†††††††] Brasil 2 x 0 Inglaterra, 13/5/1959, no Maracanã.

[‡‡‡‡‡‡‡] Brasil 0 x 0 Tcheco-Eslováquia, 2/6/1962, em Viña del Mar, no Chile, pelas oitavas-de-final da Copa do Mundo. Pelé contundiu-se gravemente no segundo tempo e não jogou as partidas restantes. Nelson já vinha pedindo Amarildo no time havia meses. Foi ele quem batizou o craque botafoguense de “Possesso”.

[§§§§§§§] Brasil 2 x 0 Espanha, 6/6/1962, em Viña del Mar, no Chile, pelas oitavas-de-final.

[********] Brasil 4x2 Chile, 13/6/1962, em Santiago, pelas semifinais da Copa do Mundo.

[††††††††] Brasil 3 x 1 Tcheco-Eslováquia, 17/6/1962, Estádio Nacional de Santiago, Chile. Jogo final da Copa.

[‡‡‡‡‡‡‡‡] Santos 1 x 0 Milan, 16/11/1963, no Maracanã. Almir acertou Amarildo no primeiro minuto de jogo, tirou de campo o goleiro Balzarini e cavou o pênalti, cobrado por Dalmo, que tornaria o Santos bicampeão mundial de clubes.

[§§§§§§§§] O resultado desse jogo está na próxima crônica.

[*********] Flamengo 0 x 0 Fluminense, 15/12/1963, no Maracanã. Flamengo campeão carioca.

[†††††††††] Nílton Santos, 39 anos e bicampeão do mundo, foi suspenso por sessenta dias por agredir Armando Marques.

[‡‡‡‡‡‡‡‡‡] Brasil 2 x 0 Seleção gaúcha, 1/5/1966, no Maracanã. Jogo preparatório pa­ra a Copa do Mundo na Inglaterra.

[§§§§§§§§§] Nelson refere-se a Suécia 3 x 1 Alemanha (24/6/1958) e Brasil 5 x 2 França (25/6/1958), ambos em Gotemburgo. O outro jogo foi Brasil 2 x 0 Alemanha, 6/6/1965, no Maracanã, em que Pelé quebrou a perna do alemão Giezzmann.

* Brasil 4 x 1 Polônia, 5/6/1966, no Mineirão.

* Brasil 2 x 0 Bulgária, 12/7/1966, em Liverpool. Estréia do Brasil na Copa da Inglaterra.

* Hungria 3 x 1 Brasil, 15/7/1966, em Liverpool. Portugal 3 x 1 Brasil, 19/7/1966, em Liverpool. Brasil desclassificado da Copa nas oitavas-de-final.

* Nelson refere-se aos jogos Inglaterra 1 x 0 Argentina e Alemanha 4 x 0 Uru­guai pelas quartas-de-final. Cinco dias depois da publicação dessa crônica, na finalíssima Inglaterra x Alemanha (30/7/1966, em Londres), o jogo normal ter­minou 2 x 2. Na prorrogação, o inglês Hurst chutou, a bola bateu no travessão e quicou em cima da linha do gol alemão, sem entrar. O juiz suíço validou o gol inexistente. A Inglaterra ainda faria outro gol (resultado final 4 x 2) e seria campeã do mundo, como previra Nelson.

* Fluminense 1 x 0 Flamengo, 13/10/1968, Estádio Mário Filho. O gol de Wíl­ton foi talvez o mais ululantemente ilegal da história do estádio.

* Brasil (representado pelo Atlético Mineiro) 3 x 2 Iugoslávia, 19/12/1968, no Mineirão. Yustrich, conhecido como “O Homem Mau”, foi um discutido trei­nador dos anos 50 e 60.

* Brasil 3 x 2 Peru, 9/4/1969, no Estádio Mário Filho.

* Fluminense 3 x 2 Flamengo, 15/5/1969, no Estádio Mário Filho. Domingues, goleiro do Flamengo, foi expulso aos vinte minutos do segundo tempo com o jogo em 2 x 2.

* Brasil 2 x 1 Inglaterra, 12/6/1969, no Estádio Mário Filho.

* Faltando um gol para completar o milésimo de Pelé, a grande pergunta passou a ser: onde e contra quem seria o “gol mil”?

* Santos 2 x 1 Vasco da Gama, 19/11/1969, no Estádio Mário Filho.

* Brasil 0 x 0 Bulgária, 26/4/1970, no Morumbi. Brasil 1 x 0 Áustria, 29/4/1970, no Estádio Mário Filho. Últimos amistosos antes do embarque para a Copa do México.

* Brasil 4 x 1 Tcheco-Eslováquia, 3/6/1970, em Guadalajara. Primeiro jogo das oitavas-de-final.

* Brasil 1 x 0 Inglaterra, 7/6/1970, em Guadalajara. Segundo jogo das oitavas-de-final.

[**********] Brasil 3 x 2 Romênia, 10/6/1970, em Guadalajara. Terceiro jogo pelas oitavas-de-final. Brasil 4 x 2 Peru, 14/6/1970, em Guadalajara. Jogo pelas quartas-de-final.

[††††††††††] Brasil 3 x 1 Uruguai, 17/6/1970, em Guadalajara, pelas semifinais. Alema­nha 3 x 2 Inglaterra, 14/6/1970, pelas quartas-de-final.

[‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡] Brasil 4 x 1 Itália, 21/6/1970, na Cidade do México. Brasil tricampeão mun­dial.

 

 

                                                                                            Nelson Rodrigues

 

 

                      

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