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Mesmo já no convés do Carron Star, que se afastava lentamente do cais, tive de repetir para mim mesma que estava realmente deixando a Inglaterra, que estava rompendo com o passado e, para dizer a verdade, navegando para o desconhecido. Plantava-me ali com minha capa escocesa que, esvoaçando à brisa, deixava entrever a saia do mesmo material, e de chapéu enlaçado com uma longa faixa de chiffon cinzento. Eu tinha dezessete anos e viajava para o outro lado do mundo em companhia de um homem a quem, até um mês atrás, jamais havia visto e de cuja existência nem sequer suspeitava.
No cais as pessoas acenavam lenços, muitas delas enxugando furtivamente os olhos ao tempo em que se esforçavam para sorrir. Não havia ninguém para me dizer adeus.
Um homem de meia-idade, de fartas costeletas e olhar audacioso, aos poucos chegou-se para perto de mim - perto até demais.
- Muitos amigos ali? - observava-me especulativamente.
- Não - repliquei. Sorriu de um jeito familiar.
- Viajando sozinha?
- Minha pupila viaja comigo - atalhou uma voz por trás de mim.
Era Stirling. Os olhos esverdeados cintilaram derrisoriamente; a voz, com um vago sotaque australiano, evidenciou um nítido aborrecimento, por ver que um estranho ousava dirigir-se à sua pupila.
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O homem afastou-se, desajeitado. Stirling não me disse nada. Simplesmente deixou-se ficar a meu lado, debruçado no parapeito, e dei-me conta de uma feliz e confortante sensação de segurança. Naquele momento eu sabia que havia dado um passo para bem longe do sofrimento angustiante no qual vivera durante as últimas semanas. Perdera uma pessoa a quem amava acima de tudo e de todos, mas ali estava Stirling, e a meu lado - "meu tutor", como ele chamava a si próprio. A rigor, não era verdade, mas eu gostava disso.
Creio que foi a partir daquele momento que comecei a sentir que eu e Stirling havíamos nascido um para o outro.
Mas o começo não é bem esse. Eu deveria começar com meu nascimento, como começam todas as histórias, ou mesmo antes. Aliás, sempre me preocupei com os prelúdios de meu nascimento. Sempre tentei imaginar meus pais juntos, o que não era lá muito fácil, porque jamais conheci minha mãe. Não era isso entretanto o que mais me preocupava, porque conheci meu pai, Thomas Tamasin - e possuindo um pai daqueles, por que razão iria eu me atormentar por não ter conhecido mãe?
Ela "Foi-se embora", disse-me ele quando eu tinha um ano de idade. Somente aos seis anos foi que compreendi o que isso significava.
A vida com Thomas Tamasin era uma coisa divertida. Eu achava que nós dois nos bastávamos. Para que haveríamos de querer uma terceira pessoa? Até uma mãe teria sido uma intrusa.
Tivemos uma série de governantas cuja tarefa era cuidar de mim, e foi aos seis anos que ouvi pela primeira vez a palavra "abandonada". Usou-a a governanta em conversa com uma amiga que viera visitá-la em nossa casa, então na zona norte de Londres (vivíamos de mudança, para atender aos negócios de meu pai, que eram vários). Eu estava sentada abaixo da janela da cozinha, completamente aberta, a olhar as formigas que marchavam com muita objetividade de um lado para outro no chão irregular.
- Pobre criaturinha - disse a governanta. - É de mãe que ela precisa.
- E ele?
- Oh... ele - riram-se.
- Ela o largou, não é verdade?
- Assim ouvi dizer. Não era flor que se cheirasse. De teatro ou coisa parecida.
- Ah... uma atriz.
- Fosse o que fosse, não valia nada. A pequena Nora nem bem tinha doze meses quando ela se foi. Há algo de perverso numa mulher que abandona uma filha nessa idade. Ele devia ter casado outra vez.
- Foi o que você lhe disse?
- Ora, não me venha com essa.
Abandonada, refleti. E a criança que havia sido abandonada era eu.
- Que quer dizer abandonada? - perguntei a meu pai quando ele chegou em casa.
- Deixada para trás. Largada de mão.
- Não é coisa boa, é? Concordou que não era.
- A gente só abandona o que não quer - comentei.
Admitiu que talvez fosse assim mesmo, mas não lhe disse que sabia ter sido abandonada porque isso tê-lo-ia magoado. E eu sempre cuidava de não magoá-lo, como ele cuidava de não me magoar. De qualquer forma, que me importava ter sido abandonada, se eu o possuía?
Nunca conversávamos sobre minha mãe. Havia muitas outras coisas para conversar. Havia seus planos de fazer fortuna - aliás, não tanto de fazer fortuna como de gastá-la. Havia sempre algum projeto em cogitação. Num deles ele iria colocar no mercado uma invenção que revolucionaria o cotidiano da vida de milhões de pessoas. Eu gostava da fase das invenções, porque então ele ficava em casa, trabalhando no quarto de cima, e era confortante sabê-lo perto. Sentava-me junto à sua mesa de trabalho e conversávamos horas a fio sobre o que faríamos quando seu génio fosse reconhecido e o mundo inteiro extraísse proveito dele. "Inclusive nós", dizia com uma risada que parecia água escorrendo num cano e que sempre me fazia rir também.
Fez uma fechadura de mola que não funcionou como devia. Inventou brinquedos mecânicos que jamais alcançaram bem seu objetivo, exceto um que era um menino numa cadeirinha que balançava em cima de um trilho. Mas mesmo este às vezes enguiçava. Conseguiu vender alguns deles, e costumávamos dizer: "lembra-se do menino no balanço?" Foi seu grande sucesso, mas não a fortuna almejada.
Tentou negociar com jardinagem e por algum tempo moramos no campo. Mas o que ele queria mesmo era fazer experiências o tempo todo, produzir algo diferente. Um meio de vida comum não era coisa que lhe apetecesse.
"Quando meu navio chegar à pátria"... costumava dizer, e isso era o início do nosso passatempo predileto. Em imaginação navegávamos pelo mundo, procurávamos lugares no mapa e dizíamos: vamos para lá. Estávamos sempre juntos nessas viagens imaginárias; tínhamos aventuras nas quais encontrávamos piratas terríveis e monstros marinhos mais aterrorizantes do que qualquer um dos encontrados por Simbad. Às vezes ele transpunha tais aventuras para o papel e enviava para alguma revista. Nossa fortuna estava feita, declarava. Por que diacho não descobrira há mais tempo que era um literato? Mas isso também não deu certo. Ele queria enriquecer depressa.
Herdara algum dinheiro que reservou para minha educação, o que mostrava bem seu cuidado por mim. Embora imprevidente em tudo o mais, era resoluto quanto à minha segurança. Queria que eu frequentasse as melhores escolas, disse-me. Respondi que só desejava mesmo estar ao lado dele. Eu ficaria, assegurou-me, mas enquanto ele estivesse cavando nossa fortuna, eu teria de ir para a escola. Frequentei várias e aprendi rápido, para deixá-las o mais breve possível.
Foi logo depois de meu décimo-quinto aniversário que ele resolveu partir em busca do ouro. Era a grande oportunidade. Era o milagre. Sua vida tinha sido semeada de grandes chances que não passaram de miragens, mas esta era diferente. Esta faria, de fato, nossa fortuna.
- Ouro! -disse com olhar chamejante. - Seremos milionários, Nora. Gostaria de ser milionária?
Pensei que seria muito bom, mas... onde arranjaríamos esse ouro?
- Está no seio da terra, esperando ser extraído. Tudo o que se tem a fazer é ir buscá-lo.
- Então por que todo mundo não é milionário?
- Lá vem você com seu espírito prático. É uma boa pergunta e a resposta é simples. É porque nem todo mundo é tão sabido como nós iremos ser. Vamos sair em campo para arrancá-lo.
- E onde está?
- Na Austrália. É encontrado lá em toda parte.
- Quando partiremos?
- Bem, Nora, primeiro terei de ir sozinho. Não é lugar para uma menina que precisa ser educada.
Foi um momento de pavor, e a perplexidade em meu rosto deve tê-lo assustado.
- Você tem que aprender os três Rs. Tem que falar e agir como uma dama, se quiser ser milionária.
Lembrei-lhe que já sabia os três Rs, que também sabia me comportar como uma dama e que assim o fazia, exceto quando perdia o controle.
- Ainda é muito jovem, Nora. Vai ficar aqui por algum tempo. Encontrei uma boa escola onde vão cuidar muito bem de você e, quando menos esperar, estarei de volta. Seremos milionários e trataremos de gozar a vida. Que gostaria de fazer? Aonde gostaria de ir? Não há limite algum. Podemos começar a fazer planos desde já. A fortuna está, para todos os efeitos, em nosso bolso.
Convenceu-me, como sempre, e persuadiu-me a ir para Danesworth House.
- Só por alguns meses, Nora. Depois... todo o dinheiro do mundo. Tudo O que você possa sonhar em querer. E então, vamos começar por onde?
- Deve haver muita gente atrás desse ouro - disse eu. - E se você levar muitos anos para encontrá-lo?
- Palavra como tenho o toque de Midas, Nora.
Reading, writing and arithmetic, os três erres da educação primária.
Eu podia ser sua governanta, cozinhar para você, cuidar de você.
O quê? Minha filha milionária! Não. Teremos alguém que cuide de nós para todo o sempre. Chega de parceiros. Chega de intrusos. Há de chegar esse dia. E tudo o que lhe cabe fazer é esperar em Danesworth House enquanto trato eu de buscar o ouro.
Era assim que ele falava. Enfaticamente, persuasivamente. E com tanta energia que, em imaginação, podíamos viver todas as extravagâncias planejadas.
Fui para a escola e ele partiu mundo a fora. Todos os dias eu esperava pela carta que me traria a noticia de que ele havia encontrado a tal fortuna e que estávamos milionários.
A escola era enfadonha. Eu não tinha tanto medo de Miss Emily e Miss Grainger como as outras alunas. Era aplicada nos meus deveres, evitava problemas, as travessuras escolares não me interessavam. Vivia somente para o tão esperado chamado e costumava imaginar como ele haveria de chegar. Numa carta, talvez. "Venha para a Austrália imediatamente". Ou, quem sabe?... ele, que adorava surpresas, viesse à escola apanhar-me. Eu receberia um convite para ir ao locutório e lá, naquela sala fria e árida, ele estaria à minha espera. Tomar-me-ia nos braços perante a desaprovação atónita de Miss Emily ou Miss Grainger - para o que não ligaria a mínima - e gritaria: "Arrume as malas, Nora. Estamos de partida. Somos milionários".
As cartas chegavam regularmente. Eu sabia que, mesmo cansado da labuta diária, ele sempre se lembraria de que eu vivia de olho no correio.
Recebi cartas escritas a bordo e remetidas de vários portos da escala. Descreviam seus companheiros de viagem com muito humor, para me tranquilizar. Eu me apavorava com o pensamento de que o navio pudesse ser colhido por uma tempestade fatal. E só sosseguei no dia em que ele escreveu contando que havia chegado.
Escreveu-me tão detalhadamente que pude formar um quadro vívido daqueles seus primeiros dias. E embora escrevesse com o maior dos otimismos, compreendi o duro que ele haveria de dar. Visualizei-o pondo-se a caminho do trabalho com as ferramentas de que necessitaria: picaretas, a bateiaque seria utilizada no garimpo, o cantil e mantimentos. Visualizei também o campo onde ele trabalhava - um lugar desolado onde haviam decepado as árvores para fincar tendas. Imaginava-os sentados em volta da fogueira durante a noite, as costas doendo de tanto permanecerem curvados sobre as baleias, olhando atentamente a água correr através da lama que poderia revelar o tão desejado filão de ouro. Eu lhes podia ver os rostos duros, e em todos eles a sede de ouro - o desejo, o anseio - porque todos viam naquela poeira amarela a porta para a fortuna.
Ele amava aquela vida, percebi. E sua felicidade seria completa se me tivesse a seu lado. Hoje acredito que se ele tivesse feito fortuna não teria desfrutado nem a metade da vida que desfrutou enquanto se desdobrava por encontrá-la. Eu deveria ter estado ao lado dele. Teria cozinhado enquanto eles cuidavam de cavar. Via-me a mim mesma como a mãezinha do acampamento. Tivesse eu estado lá, tenho certeza de que jamais haveria de ter querido que encontrassem ouro algum, fosse em que quantidade fosse. Teria torcido, isso sim, para que continuassem procurando-o indefinidamente.
com o decorrer dos meses ele se mudou para outro campo. Nada havia encontrado além de uma poeirinha. Pouco importava. Estava certo de que o novo campo era rico, e havia que se ter experiência.
Seu otimismo arrefeceu; estava sempre na iminência de uma grande descoberta. Quanto a mim, devo ter parecido estranha às minhas colegas. Estava sempre distante. Os acontecimentos escolares não me interessavam, mas conseguia satisfazer às
exigências dos professores e por isso me deixavam em paz. Eu era aquela "garota esquisita, Nora Tomasin, cujo pai era garimpeiro na Austrália". Era tudo o que arrancavam de mim.
Então o tom das cartas mudou. Ele conhecera o Lince.
"O Lince é o homem mais original que já vi. Sentimo-nos atraídos desde o início. Decidi juntar-me a ele. Conhece este país como a palma da mão. Está aqui há trinta e quatro anos. Se você pudesse vê-lo, logo saberia por que o chamam de Lince. Tem um par de olhos que vêem tudo. São azuis - não azul-celeste ou como os mares tropicais, qual nada! São como o aço ou o gelo. Jamais soube de um homem que pudesse de tal forma subjugar com um simples olhar. o homão das redondezas. Chama-se Charles Herrick. Deu as caras por aqui como um condenado, mas agora é dono de quase todo o lugar onde estou. E homem de milhões. De agora em diante vai ser diferente. vou entrar em grandes negócios. Chega de trabalho em campos exauridos. A coisa agora é diferente, e tudo por causa do Lince".
Pensei muito nesse Lince, do qual já me sentia enciumada porque as cartas de meu pai vinham cheias dele. Como o admirava! E agora, através daquelas cartas, eu compreendia as agruras pelas quais ele tinha passado. Os casos de alegres noitadas no acampamento, as canções cantadas ao pé do fogo, a camaradagem do garimpo, eram apenas metade da história. Eu agora podia avaliar a apreensão, o meticuloso racionamento da comida, a preservação da água preciosa, o terrível desespero quando, dia após dia, as bateias nada mais revelavam que a poeira inútil.
Lince vai dar um golpe certo no ouro, Nora, e quando o conseguir, estarei junto, É um homem de grande experiência. Além de uma propriedade enorme, é dono do armazém local e de um hotel em Melbourne. Tem centenas de homens trabalhando para ele e sabe tudo o que é preciso saber sobre o ouro. Não pode fracassar, já falei a Lince sobre você. Sua opinião é de que você deveria vir para cá quando terminasse os estudos. Mas antes disso estarei de volta.
Desenhei na imaginação a figura do Lince - um par de olhos inquiridores, um condenado! Há trinta e quatro anos, muita gente culpada de algum delito havia sido deportada para a Austrália. Qual teria sido o crime do Lince? Perguntava-me. Um caso político, talvez. Estava certa de que não se tratava de um ladrão ou de um assassino. Queria saber mais sobre ele.
Lince é uma espécie de rei, magistrado, patrão, ditador... a cabeça de tudo. É justiceiro, mas a seu próprio modo. Jamais senti uma amizade como a que sinto por ele. Foi um dia feliz aquele em que o conheci. Arrisquei nele tudo o que tenho. Ele tem certeza de que encontraremos um rico filão de ouro. Iremos trabalhar da maneira mais secreta possível. Se não mantivermos a coisa em segredo, logo teremos cavadores aqui de tudo que é lugar. Basta o boato se espalhar para que cheguem aos milhares. Lince é astuto, e nisso estou com ele.
As cartas continuaram chegando mais ou menos regularmente. Algumas vezes recebi várias ao mesmo tempo. Meu pai explicava que as enchentes haviam tornado impossível levar cartas a Melbourne, ou que um navio esperado não havia chegado em tempo. Sempre tinha uma explicação para as demoras e jamais deixou de dá-la. A mensagem que me vinha através de todas as cartas era a seguinte: mesmo trabalhando duro, acontecesse o que acontecesse, ele não se esquecia de mim nem do nosso objetivo final que era estarmos juntos.
E então as cartas deixaram de chegar. A princípio, embora desapontada, não me tomei de alarma exagerado. Eram as enchentes ou atraso de navios, e quando estes chegassem trariam várias. Mas não chegaram e as semanas passaram sem qualquer sinal de notícia.
Dois meses transcorreram. Eu estava louca de ansiedade e, um dia, Miss Emily chamou-me a seu gabinete. Era um lugar árido, o chão encerado, um silêncio reverente só quebrado pelo tique-taque do relógio de bronze dourado sobre um aparador ornado com uma toalha de croché. Miss Emily estava sentada à mesa de trabalho e sua expressão era de dor, sugerindo erroneamente que o que iria se seguir feria mais a ela que a mim. Os pais costumavam considerar Miss Emily muito bondosa e, prazerosamente agradecidos, lhe confiavam as filhas. Achavam que ela protegeria suas queridinhas da disciplina mais severa de Miss Grainger. Na realidade, a responsável era a assim chamada meiga Miss Emily, mas ela adorava fazer crer que as normas impopulares eram ditadas por sua irmã.
- Estou certa - disse, os cotovelos descansando sobre a mesa, as pontas dos dedos comprimindo uma às outras, enquanto me olhava com certa severidade. - Tenho absoluta certeza de que você não está esperando caridade. Há dois meses não temos noticia de seu pai e, embora Miss Grainger esteja sempre disposta a ser tolerante, dela não se espera que continue a alimentar e vestir você, ao mesmo tempo em que dá uma educação adequada à filha de um cavalheiro.
- Estou convencida de que uma carta de meu pai deve estar a caminho.
- Está demorando demais - tossiu Miss Emily.
- Ele está na Austrália, Miss Emily. O correio atrasa.
- Foram exatamente estas as palavras de Miss Grainger no começo, Mas agora já são três meses de contas atrasadas. É demais.
- Mas tenho certeza de que tudo dará certo. Alguma coisa atrasou as cartas. Tenho certeza.
- Gostaria de estar a seu favor. Miss Grainger lamenta muito, mas decidiu que não pode esperar mais. Não pode continuar a sustentar você, alimentar você, vestir você e educar você - fazia soar cada menção como um trabalho hercúleo.
- Mas não quer mandá-la embora, no entanto.
- Talvez - respondi com arrogância - seria melhor que eu me fosse.
- O que desconfio ser uma grande tolice. Diga-me só para onde iria? Quando Miss Emily falava nesse tom significava que estava realmente aborrecida,
mas eu estava apreensiva demais para ter cautela. O temor pela segurança de meu pai - porque eu sabia que somente algo de muito grave poderia ter feito atrasar aquelas cartas -fez da zanga de Miss Emily uma coisa relativamente sem importância para mim.
- Acho que posso fazer alguma coisa - disse eu ardorosamente.
- Você não tem conhecimento do que o mundo é. Você, uma menina de quantos anos? Dezesseis?
- Dezesseis no mês que vem, Miss Emily.
- Miss. Grainger vai ser muito generosa. Não vai lhe deixar ao léu. Tem uma proposta a fazer e, é claro, você desejará aceitá-la. Na verdade, você não pode fazer outra coisa quando considerar a alternativa.
O sorriso de Miss Emily era piedoso, as palmas de suas mãos juntaram-se e ela levantou os olhos para o teto.
- Poderá permanecer na escola como uma de nossas alunas monitoras. Isso será um jeitinho para justificar sua manutenção.
Tornei-me, pois, uma aluna monitora e conheci o pão que o diabo amassou. Não por causa de minha posição na escola, mas porque a cada dia que passava, sem chegar carta de espécie alguma, meus temores aumentavam. Jamais havia sido tão infeliz em toda a minha vida. Todos os dias eu dizia a mim mesma que uma carta iria chegar; e todas as noites quando me deitava em minha pequena cama numa "água-furtada" - pois eu havia sido removida do dormitório - perguntava-me se algum dia essa carta chegaria. Estaria eu destinada a passar o resto de minha vida em Danesworth House à espera de notícias? Ficaria velha e bolorenta como Miss Graeme, cujos cabelos pareciam um ninho de passarinho feito de penugem acinzentada; eu me tornaria pálida como Miss Cárter, míope como Mademoiselle e me chatearia muito por não poder controlar as meninas.
Por enquanto eu era menos importante do que elas. Compartilhava da "âguafurtada" com Mary Farrow, um quarto de assoalho desguarnecido e colchões de palha. Mary vivera sob os cuidados da avó desde que ficara órfã e, quando tinha dezesseis anos, morreu-lhe a avó deixando-a na penúria. Miss Grainger mostrara-se então muito magnânima, tal como fora comigo, e Mary tornou-se monitora. Era tão incolor de personalidade quanto de aparência, e resignava-se com seu futuro como jamais consegui fazê-lo.
Sofríamos mais do que os criados. Eles, ao menos, não eram constantemente humilhados com a advertência de que deviam sua posição à caridade de Miss Grainger. E eram também mais úteis do que nós. Nós éramos aprendizes e nosso único pagamento era ter casa e comida. Tínhamos não apenas de dar aulas às meninas mais novas como também de lhes servir de babás. Era nossa obrigação conservar a "água-furtada" muito limpa e estarmos preparadas para qualquer tarefa que Miss Emily ou Miss Grainger houvessem por bem nos impingir - e elas cuidavam de que existissem muitas.
As mestras nos desprezavam, tal como os criados. E até as crianças julgavam que podiam tomar liberdades em nossas aulas, liberdades que nem ousavam tomar nas outras. Miss Emily tinha um jeito todo especial de entrar silenciosamente numa sala de aula - e quase sempre quando a indisciplina era maior - permanecer de pé e escutar com seu sorriso benévolo, antes de lançar uma reprimenda diante das crianças, o que lhes dava maior certeza do que nunca de que poderiam nos desrespeitar. A pobre Mary sofria mais com elas do que eu. Ela era tímida e eu tinha um temperamento feroz, e creio que era por isso que sentiam um pouco de medo de mim.
Às vezes eu me deixava ficar na cama estreita a um canto da "água-furtada", esperando pelo toque fantasma! do castanheiro quando o vento soprava mansamente através de seus galhos. Eu então dizia para mim mesma: "Abandonada! Esta é a segunda vez em sua vida. Por que é que as pessoas a abandonam? Deve haver alguma razão. Duas vezes no período de uma vida".
Mas meu pai nunca iria me abandonar. Ele iria voltar. Sem ele eu não saberia como encarar o mundo. Eu conhecera um enorme contentamento pelo simples fato de estar junto dele e, até recentemente, ganhara o maior presente que a infância pode ter - segurança. Não segurança financeira, mas a única que realmente importa para a criança - a segurança de ser amada.
Eu era aluna-monitora já havia mais ou menos um mês - embora parecesse mais de um ano - quando chegaram notícias.
Estava lendo para minha turma naquela manhã, mas não prestava realmente atenção. Era um dia quente de primavera. Uma abelha ora arrastava-se pelo vidro da janela, ora ensaiava um voo de irritação para logo arremessar-se contra o vidro, num esforço desesperado para libertar-se. Caíra numa armadilha. Não havia saída por ali, mas a janela do outro lado da sala estava aberta e, no entanto, a estúpida criatura não ia para lá. Continuava a zumbir freneticamente para cima e para baixo. Presa! Como estava eu.
A porta abriu-se de repente e Miss Graeme entrou olhando para mim de um modo estranho. Notei que a brisa proveniente da porta impeliu a abelha na direção oposta, fazendo-a encontrar o caminho da janela aberta e voar para fora.
- Chamam-na ao locutório - disse Miss Graeme.
Meu primeiro pensamento foi: são notícias dele. Quem sabe se ele próprio não está me esperando lá? Voltei-me para a porta.
- Você devia deixar algum exercício para a turma - censurou-me Miss Graeme. Disse-lhes que prosseguissem na leitura e passei voando por Miss Graeme, rumo às escadas que levavam ao locutório. Bati à porta e aguardei a resposta. Miss Emily estava sentada à mesa, uma carta à sua frente.
- Pode sentar-se, Nora. Tenho uma carta aqui. Tem havido atraso de correspondência devido às enchentes na Austrália. - Sentei-me, olhos fixos nela. - Terá de ser corajosa, minha querida - continuou gentilmente.
- A apreensão me fez sentir doente. Deviam ser notícias muito ruins, uma vez que ela estava me chamando de "minha querida". Eram. Nada poderia haver de mais terrível.
- O motivo pelo qual não temos recebido notícias de seu pai è que ele está morto.
Cambaleei até minha "àgua-furtada" e joguei-me na cama. As folhas do castanheiro roçavam levemente o vidro da janela; a brisa soprava como um lamento surdo e a luz do sol projetava formas bailantes na parede.
Eu não o veria nunca mais. Adeus fortuna, adeus viagens, adeus esperança de estarmos juntos - agora só uma total desolação. Ele estava enterrado no outro lado do mundo, e durante todo o tempo em que eu permanecera à espera de suas noticias, ele jazia num caixão com terra por cima. Até Miss Emily sentiu pena de mim.
- Vá para o quarto - ela disse. - Você precisa recuperar-se de um choque desses.
Subi às cegas para meu quarto e nem prestei atenção ao que ela me disse. Deitada lá em cima, as palavras me voltaram à mente. "Seu futuro está arranjado". Eu não me importava com o futuro. Preocupava-me apenas com a miséria do presente. Parecia que eu o estava vendo, lembrando seus olhos risonhos, ouvindo sua voz retumbante. "Quando eu retornar de navio..."
E a terrível verdade era que esse navio jamais haveria de voltar. Soçobrara! nos rochedos da morte.
Escrevera-me à beira da morte. Tão próprio dele! A carta havia chegado por intermédio de seus procuradores, junto com a noticia da morte. Miss Emily reteve-a por algumas horas antes de me entregar, para dar tempo, como ela disse, a que me recuperasse do choque inicial.
Não se aflija por mim. Juntos, fomos muito felizes. Não deixe que a tristeza manche suas lembranças de mim, Nora. Eu preferia que você me esquecesse por completo a se entristecer quando pensar em mim. Foi um acidente... e estou acabado, mas você não ficará ao desamparo. Nora. Um grande amigo meu prometeu-me isso. Lince é um homem de palavra e me deu sua palavra de honra de que posso morrer tranquilo, í ele quem vai cuidar de você, Nora, e o fará melhor do que eu fiz. Quando você ler esta carta, já terei partido, mas você não estará sozinha...
A caligrafia era quase ilegível. As últimas palavras, que mal podiam ser decifradas, eram "Seja Feliz". Imaginei a caneta caindo de suas mãos enquanto ele as escrevia. Até o último momento, todo o seu amor e toda sua preocupação haviam sido para comigo.
Li a carta repetidas vezes e sempre haveria de levá-la junto a mim.
Fiquei entorpecida em minha cama, incapaz de pensar no que o futuro me reservara, incapaz de pensar em qualquer outra coisa além do fato de que ele se havia ido.
Miss Emily mandou me chamar. com ela no locutório estava Miss Grainger, e também um homem de preto, gravata branca e uma expressão muito solene. Pensei que fosse meu novo tutor, mas aquele jamais poderia ser o homem que meu pai havia descrito como Lince.
- Esta é Nora Tomasin - disse Miss Emily. - Nora, este é Mr. Marlin, da Marlin Sons Barlow, os procuradores de seu pai.
Sentei-me e escutei, sem entender nada do que diziam, pois ainda me sentia entorpecida pelo sofrimento. Mas deduzi que tudo havia sido legalmente arranjado e que eu seria entregue aos cuidados de Mr. Charles Herrick, o homem que meu pai designara como meu tutor.
- Mr. Herrick, naturalmente, quer levá-la para sua casa e você terá de ir para a companhia dele o mais breve possível. É na Austrália e a última vontade de seu pai foi que você fizesse isso. Mr. Herrick está impossibilitado de vir à Inglaterra, mas um membro de sua família virá para acompanhá-la a seu novo lar. Mr. Herrick está muito preocupado em que você não viaje sozinha.
Concordei enquanto pensava: meu pai assim o quis. Ele deve ter pedido ao Lince - era difícil pensar nele com um nome tão manso como Mr. Herrick que tivesse muito cuidado comigo.
Esperava-se que dentro de poucas semanas o emissário de meu tutor chegasse à Inglaterra. Enquanto isso, eu teria de me preparar para a partida.
Mr. Marlin tratou de retirar-se e Miss Emily disse que agora tudo estava resolvido da melhor maneira possível, pelo que deduzi que ela queria dizer que todas as contas pendentes haviam sido pagas. As próximas semanas eu as utilizaria em preparativos para minha viagem. Poderia haver necessidade de comprar alguma coisa. Eu poderia fazer isso - com motivos de sobra-e Miss Emily permitiria generosamente que uma das professoras me acompanhasse à cidade e me aconselhasse nas compras. Talvez fosse bom para mim ocupar-me com meus livros. Certo, eu poderia sentir que o trabalho era o melhor antídoto para a tristeza e poderia até querer continuar como aluna-monitora, atividade para a qual - embora nunca tivessem mencionado isso antes - eu parecia ter certa aptidão.
- Não, Miss Emily, muito obrigada - disse eu. - vou preparar-me para receber quem quer que venha buscar-me e fazer as compras que considero necessárias.
Miss Emily assentiu com a cabeça.
Permaneci em minha "água-furtada". A pobre Mary estava com inveja. Ela via apenas uma vida nova e excitante descortinar-se à minha frente, sem perceber o pesar que me havia conduzido a isso.
Fiz algumas compras. Comprei a capa e a saia escocesas, e botas resistentes que julguei fossem necessárias para onde eu ia. Tive pouco interesse nessas compras, ou em qualquer outra coisa, pois não podia pensar noutra coisa senão na morte de meu pai.
E finalmente fui chamada outra vez ao locutório.
- Você viajará em companhia de Miss Herrick que é, penso eu, filha de seu tutor. É uma senhora responsável. Você irá encontrar-se com ela em Falcon Inn que fica a umas cinco ou seis milhas da cidade de Canterbury. Por alguma razão Miss Herrick está ali. Há uma alusão a negócios a serem realizados. Parece-me um tanto inconveniente, pois acredito que você tenha de tomar um navio em Cravesend ou Tilbury. Mas as instruções recebidas foram estas. Em Canterbury uma carruagem estará à espera para levá-la a Falcon Inn. Miss Graeme acompanhará você até Londres, e cuidará de que tome o trem para Canterbury sem perigo. Daí em diante irá bem.
- Naturalmente, Miss Emily.
Depois que Miss Graeme deixá-la, a pretexto algum você deve conversar com estranhos - disse Miss Grainger.
- Claro que não, Miss Grainger.
- Então não haverá problema. Quinta-feira, às nove horas da manhã, você deixará Danesworth House. A carruagem irá levá-la até a estação. O trem parte às nove e trinta. A cozinheira embrulhará um sanduíche para você.
- Creio que não há necessidade alguma de Miss Graeme me acompanhar. Sei perfeitamente fazer a baldeação em Londres.
- Isso é completamente desproposital - disse Miss Emily. - Teria que andar em Londres, sozinha. Inadmissível! Por que escolheram Canterbury, é coisa que não consigo entender. Mas o caso è este, e fomos solicitadas por seu tutor, através dos procuradores, que a fizéssemos acompanhar até ser colocada sem perigo no trem de Canterbury. Seria inadmissível, portanto, que agíssemos de outra forma.
Assim, o despotismo de Lince podia afetar até mesmo Miss Emily.
Arrumei minhas malas e aguardei. Alunas e professoras demonstraram interesse respeitoso por mim. Eu era o tipo da pessoa à qual coisas estranhas aconteciam. Se eu tivesse podido esquecer a morte de meu pai, teria desfrutado bastante de minha nova importância.
Finalmente chegou o dia em que saí de Danesworth House em companhia de Miss Graeme. Embarcamos no trem de Londres e sentamo-nos lado a lado, olhando para os campos verdes lá fora e para os trigais que já começavam a dourar-se. Ouro! Pensei com raiva. Se ele nunca tivesse ido em busca de ouro, estaria agora aqui a meu lado.
Os olhos encheram-se de lágrimas raivosas. Por que não se contentara ele em ser uma pessoa comum?! Mas então não teria sido ele mesmo. Miss Graeme tocou de leve em meu braço e vi que havia lágrimas em seus olhos. Ela começou a dizer que a desgraça chegava para todos nós, que tínhamos de "suportá-la" e continuar a viver. Para ela também houve "alguém" que nunca chegou a "se manifestar", mas o teria feito se tivesse retornado da guerra e se não tivesse morrido desnecessária e cruelmente no campo de batalha. Na Criméia, pensei eu, e assim, em vez de uma rechonchuda e feliz matrona, ela era uma encarquilhada, grisalha e tímida professora.
Escutei e tentei demonstrar solidariedade. Então, comemos nossos sanduíches e, no horário certo, chegamos à estação de Londres. Atarantada e cônscia de suas responsabilidades, Miss Graeme fez sinal para uma carruagem e fomos para a estação de Charing Cross onde finalmente fui colocada dentro de um trem.
A última coisa que vi de Miss Graeme, enquanto o trem me levava para longe, foi sua figura mirrada de saia e casaco pardos, chapéu de véu também pardo, parecendo desolada e tristonha.
Agora eu começava a me sentir apreensiva. Nova vida se iniciava e eu estava entregue a mim mesma. Poderia fugir agora, se quisesse. Tinha algum dinheiro
- muito pouco. com minha experiência de professora poderia arranjar um emprego de governanta. Mas meu pai quis que eu ficasse com o Lince, e assim deixou-me sem alternativa. E se eu chegasse à Austrália e a detestasse? E se não me quisessem lá? Pouco, muito pouco eu sabia do que me viria pela frente. Não havia indagado suficientemente. Mergulhara em meu sofrimento e agora, de repente, encontrava-me viajando sozinha para Canterbury, olhando para os pomares de maçãs e pêras que só dali a dois meses estariam boas para colheita, mas já então eu estaria bem longe. Passamos por campos de lúpulo que, mais um mês, estariam animados pelas atividades dos colhedores; as coberturas encapuzadas dos fornos de lúpulo dominavam a paisagem. Tive vontade de gritar para o maquinista: pare, estou correndo para o desconhecido. Preciso de algum tempo para pensar.
Talvez naquele momento minha dor tivesse declinado um pouco, já que me era possível sentir esse receio do futuro, ao passo que antes eu não sentia outra coisa senão a tragédia do presente. Mas o trem corria infatigável. Chegamos à estação. Apeei-me e o carregador cuidou de minhas malas. A carruagem que deveria levar-me a Falcon Inn já estava à minha espera.
Afastamo-nos da estação, ultrapassamos os antigos muros da cidade e penetramos no interior.
- Está muito longe de Falcon Inn? - perguntei ao cocheiro.
- É um pouco distante, senhorita. A maioria das pessoas fica mesmo é na cidade.
Eu gostaria de saber por que Miss Herrick, que viera à Inglaterra só para me buscar, cuidara de que nosso encontro se desse nesse local. Era, como Miss Emily observara, uma coisa bastante "estranha". Talvez o Lince tivesse ordenado assim.
Os campos apresentavam um verde luxuriante. Passamos por diversas aldeias agrupadas em redor da igreja - verdor de aldeias e estalagens vetustas. Por fim, chegamos à aldeia de Widegates com sua velha igreja e fileira de casas em sua maioria de período Tudor, algumas até mais antigas. Vislumbrei à distância torres cinzentas e perguntei o que eram.
- É Whiteladies, senhorita. A maior casa destas bandas.
- Whiteladies. Por que é chamada assim?
- Em tempos idos aquilo foi um convento, e as freiras usavam hábito branco. Daí a origem do nome. Parte dele ainda continua de pé. A família construiu a casa conservando o que restava do convento.
- Que família?
- A família Cardew. Tem vivido ali há mais de trezentos anos.
Paramos em Falcon Inn. Os degraus de pedra que davam para a porta estavam gastos no meio; a tabuleta sobre a qual aparecia a figura de um falcão estava recémpintada e acima da porta lia-se a data de 1418.
O cocheiro trouxe minhas malas para dentro.
- Está tudo arranjado, senhorita.
Dirigi-me então à gerência e disse quem eu era.
- Ah, sim - disse o recepcionista. - Farei com que lhe mostrem seu quarto. Há aqui uma mensagem para a senhorita. Queira descer à sala de visitas, quando estiver pronta.
Fui para o meu quarto que era grande, mas um tanto escuro por causa dos caixilhos de chumbo das janelas; o assoalho inclinava-se ligeiramente e as vigas de madeira proclamavam sua idade. Havia água no jarro e assim tratei logo de lavar e pentear meus cabelos negros e espessos.
Quando fiquei pronta desci para a sala de visitas, que me foi indicada por uma arrumadeira. Não havia ali mulher alguma, mas um homem se levantou à minha chegada. Levou as mãos às costas e me observou. Lembrei-me das recomendações de Miss Emily para não conversar com estranhos. E certamente que eu não
' Whiteladies, damas brancas. (N. do T.)
teria falado com aquele estranho se tivesse podido evitá-lo, pois seu olhar me pareceu bastante insolente.
Dirigiu-se a mim.
Está procurando alguém? - O sotaque era ligeiramente pouco familiar. Era alto e magro, de rosto curtido pelas intempéries, até onde eu podia ver, pois estava de costas para a luz e esta, afinal de contas, não era tão profusa pela mesma razão de serem as janelas iguais às do meu quarto.
Friamente assenti com a cabeça.
- Talvez eu possa ajudá-la.
- Obrigada. Não preciso de ajuda.
- Oh, pelo que vejo é muito auto-suficiente.
Virei-me. O que eu deveria fazer era dirigir-me ao balcão e perguntar por Miss Herrick. Eu sentia que Miss Emily não aprovaria minha permanência naquela sala em companhia de um estranho um tanto atrevido. E embora não pretendesse permitir que as opiniões de Miss Emily governassem minha vida, nesse caso eu estava em perfeito acordo com ela.
- Tenho certeza de que posso ajudá-la - disse ele.
- Não vejo como.
- Então vou esclarecer. Você está à procura de Miss Herrick. Mostrei-me admirada e ele riu. Foi um riso muito irritante. Era truculento e muito presunçoso.
- Acontece que é isso mesmo - disse eu com afetação.
- Então não é aqui que há de encontrar Miss Herrick.
- Que está querendo dizer?
- O que estou dizendo. Sempre quero dizer o que digo.
- Não está me confundindo com outra pessoa?
- Sabe muito bem que não estou. Você é Nora Tamasin. Certo. Aborreceu-me a maneira pela qual ele respondeu a própria pergunta. Mas também senti-me fascinada. Como podia saber tanto a meu respeito?
- E veio aqui para se encontrar com Miss Herrick. Ela não está aqui.
- Como sabe?
- Porque sei onde ela está.
- Onde está?
- Umas quarenta milhas ao norte de Melbourne.
- Está enganado. A Miss Herrick que eu vim encontrar está nesta estalagem. Mandou uma carruagem para me apanhar na estação.
- Fui eu quem mandou a carruagem.
- Você!
- Reconheço que deveria ter-me apresentado há mais tempo. Quis apenas provocá-la um pouco porque você parecia muito altiva. Minha irmã Adelaide não pôde vir. Havia tantos afazeres em casa que meu pai julgou que só eu poderia vir buscá-la. Além disso, queria que eu conhecesse um pouco da Inglaterra. Eis-me pois aqui para levá-la. Stirling Herrick, assim chamado em homenagem ao rio Stirling, tal como Adelaide, minha irmã, recebeu o nome da cidade. Foi homenagem de meu pai ao país de adoção.
- Seu pai é Charles Herrick?
- Bateu em cima da cabeça do prego, como eles dizem lá. Vim buscá-la. Parece que está duvidando. Quer ver minhas credenciais? Ótimo. Aqui está uma carta daquela firma de procuradores, Marlin qualquer coisa... e posso lhe provar quantas vezes quiser que eu sou eu.
- Tudo isso parece muito estranho.
- Nada mais simples. Meu pai prometeu cuidar de você e, assim, terá de ir comigo. Sou uma espécie de irmão, para você. Não parece muito satisfeita com isso.
- Não posso compreender por que o tenha mandado - disse eu.
- Perfeitamente simples. Queria que eu viesse à Inglaterra. Tenho mantido conversações sobre a possibilidade de encontrar mercado aqui para nossa lã.
- Aqui em Canterbury?
Claro que sim. Meus negócios levam-me por todo o país. Tive de lhe pedir para vir até aqui, de modo que pudéssemos dispor de um dia para nos conhecermos um ao outro, antes que você fosse jogada dentro de um navio. Sugiro agora que peçamos um chá, para continuarmos a conversar depois.
Fez soar a campainha e, quando a criada veio, ordenou o chá. Ao ver as fatias de pão com manteiga, bolinhos com creme e geléia de morango, vi que estava com fome. Ele observou enquanto eu me servia, e havia um certo quê de divertido em seus olhos, que eram de u ma tonalidade incomum de verde e que quase desapareciam quando ele se punha a rir. Parecia habituado a apertá-los contra a luz forte
- o que era muito charmoso. Calculei que tivesse uns vinte e poucos anos uns oito anos, mais ou menos, mais velho do que eu - como achei bastante inconvencional que um rapaz tivesse sido enviado para me servir de companheiro de viagem. Muito diferente da Miss Herrick que eu estava esperando. Tinha certeza de que Miss Emily desaprovaria tal coisa, e isso me deleitava. Era a primeira vez em que me sentia melhor, desde que recebera a noticia da morte de meu pai.
- Por que foi então que me disseram que Miss Herrick estaria à minha espera? - indaguei.
- A principio ficou decidido que ela viria, mas Lince logo ponderou que a casa não poderia ficar sem Adelaide. De mim ele poderia dispor.
Lince! O nome mágico. Mencionara-o pela primeira vez e não pude resistir a uma interrogação, desejando saber mais sobre esse homem estranho.
- Lince?
- É meu pai. As pessoas chamam-no assim. Significa que tem olhos penetrantes.
- Imaginei isso.
- Vejo que é muito esperta - seu sorriso foi irónico.
- Será que ele realmente me quer... esse Lince?
- Prometeu a seu pai que olharia por você. É claro que a quer.
- Poderia sentir que estava agindo assim só por senso de lealdade, e porque sua consciência o acusaria se não o fizesse.
- Ele não tem nenhum senso de lealdade, nem muito menos consciência. Só faz o que bem quer, e quer que você viva conosco.
- Por quê?
- Ninguém discute seus motivos. Ele sabe o que quer, e isso é tudo que se tem a dizer.
- Parece ser uma pessoa de trato impossível.
- Lince é possível, embora se possa duvidar disso até conhecê-lo.
- Você fala dele como se fosse uma espécie de deus.
- Reconheço que não é uma descrição de todo falsa.
- Todo mundo precisa ser assim tão reverente como o filho? Isso o fez rir.
- Sua língua é afiada, Nora Tamasin.
- Acha que me convirá proteger-me contra esse Lince?
- Você entendeu mal. Ele é que irá protegê-la.
- Se eu não quiser ficar, voltarei.
Ele balançou a cabeça.
Haverá modos e meios para isso, estou certa - acrescentei.
- E os encontrará, calculo eu.
Eu havia comido um único bolinho, enquanto ele esvaziou o prato. Cruzou os braços e sorriu para mim como se me achasse divertida. Eu não sabia bem o que fazer com ele. Mas de uma coisa eu tinha absoluta certeza. Messrs. Marlin Sons Barlon não podiam estar cientes de que ele viera buscar-me, sozinho, pois tanto eles como Miss Emily, sem dúvida, considerariam tal coisa como bastante imprópria.
- Mas - disse eu, externando meus pensamentos em voz alta - suponho que seja mesmo uma espécie de irmão.
- Assim me considero, irmã Nora - ele riu. - E isso resolve tudo. Você não pensa do mesmo modo.
- Você tem o hábito de tentar ler os pensamentos alheios... mas nem sempre corretamente.
- í, no entanto, está gostando.
- É muito cedo para responder a esta pergunta. Mal o conheço.
- Estamos felizes em ter uma nova irmã. Calei-me por alguns momentos e depois perguntei:
- De que meu pai morreu?
- Não lhe disseram?
- Só me disseram que foi um acidente.
- Acidente? Houvesse renunciado ao ouro, e não teriam atirado nele.
- Atiraram nele? Quem? ?
- Ninguém sabe quem. Ele acabara de sair da mina e voltava para casa em sua carroça, trazendo ouro, quando o assaltaram. Uma emboscada. Isso acontece frequentemente. Esses camaradas têm faro para descobrir ouro e sabem quando está sendo transportado. Assaltaram a carroça cinco milhas além de Cradle Creek. Seu pai não quis abrir mão do ouro e por isso atiraram nele.
Fiquei estarrecida. Havia imaginado uma queda de uma árvore ou do cavalo. Jamais pensei em assassinato.
- Então - disse eu vagarosamente - alguém o assassinou. Stirling aquiesceu com um movimento de cabeça.
- Isso acontece de vez em quando. É uma terra selvagem e a vida lá vale menos do que aqui.
- Mas ele era meu pai! - Senti-me encolerizada em pensar que alguém tenha surgido com uma pistola e dado cabo, deliberadamente, daquela vida preciosa. Era uma nova emoção para suplantar meu luto - ódio contra o assassino de meu pai.
- Se tivesse desistido do ouro, ele não teria morrido.
- Ouro! - exclamei com raiva.
- É o que todos procuram, è o que todos ambicionam.
- E esse tal de... Lince... também procura? Stirling sorriu.
- Também, í está determinado a encontrá-lo um dia. í há de encontrar.
- Como eu gostaria que meu pai jamais tivesse metido essa ideia na cabeça. Se não o tivesse, estaria aqui agora.
Era demais para visualizar. Virei-me para que Stirling não notasse minha emoção intensa.
- É como febre - disse ele. - Toma conta da cabeça. A pessoa pensa em tudo que deseja na vida e se achar ouro... ouro de verdade... milhares de pepitas... terá tudo.
- Tudo? - perguntei.
- Tudo que se pode imaginar.
- Meu pai achou ouro e, ao que parece, perdeu a vida tentando preservá-lo. E eu o perdi.
- Você está nervosa. Espere até chegar lá e então há de compreender. É uma vida intensa. Nunca se sabe quando se fará uma descoberta. É um desafio constante, uma esperança constante.
- E quando se acha, leva-se um tiro.
- A vida lá é assim. Seu pai não teve sorte.
- É... detestável.
- É a vida. Acho que a transtornei. Deveria ter tratado do assunto com maior tato. Enfim, a única coisa que importa é o que aconteceu.
Levantou-se.
- Volte para seu quarto e descanse um pouco. Depois jantaremos juntos e conversaremos mais. É o melhor a fazer.
Subi ao quarto, deixando-o na sala-de-estar. Perguntei a mim mesma se acaso não teriam fim os choques que eu vinha recebendo. Meu pai fora assassinado. Morto a sangue frio. Inconcebível. Imaginei a carroça gemendo pela estrada, a figura mascarada escondida entre as árvores, e então "Pare e renda-se. O ouro ou a vida". Em imaginação eu podia vê-lo nitidamente, o ouro em sacolas presas à cintura. E dizia para si mesmo: "Não, esse ouro é meu... e de Nora". Talvez estivesse planejando levar-me para junto dele, de modo que eu pudesse partilhar da fortuna, se fortuna aquilo era. Por isso, quando a arma lhe foi apontada, recusou-se a entregar o ouro e entregou a vida.
- Odeio ouro - disse em voz alta. - Quisera que nunca houvesse sido descoberto - pensei furiosa nos olhos chamejantes por trás da máscara, no gatilho que foi friamente acionado, e no relato que pôs um fim na minha felicidade. Oh, como eu odiava o assassino de meu pai!
Ele não morreu imediatamente. Houveram por bem levá-lo para a casa de Lince onde escreveu a última carta para mim. Mas já então estava morrendo. E nada disso precisava ter acontecido.
Stirling tinha razão. Era-me necessário ficar só. O choque fora quase tão grande quanto o da própria notícia da morte de meu pai. Não fora um acidente, e sim um assassinato premeditado.
Fui à janela e olhei para fora. Lá embaixo estava a rua com suas casas antigas. Podia avistar a cúspide da igreja e as torres do casarão que chamavam de Whiteladies. Fora outrora um convento, lembrei-me; as freiras usavam hábito branco e esta estalagem já devia existir na época. Provavelmente era lugar de pousada para os peregrinos que iam de Canterbury, última parada antes de atingirem o objetivo final. Olhando para baixo, eu podia imaginá-los extenuados e com os pés doloridos, mas aliviados porque o hospedeiro de Falcon Inn lhes dava as boas-vindas, oferecendo-lhes comida e abrigo antes de prosseguirem caminho para Canterbury.
Enquanto estava à janela, vi Stirling sair da estalagem. Observei-o caminhar resolutamente rua abaixo, a passos largos, como se soubesse exatamente para onde estava indo.
Tão atordoada fiquei com a descoberta de ter ele vindo buscar-me para a Austrália em lugar de Miss Herrick, e depois com suas revelações sobre a morte de meu pai, que nem tive tempo de estudá-lo. Aquele era, pois, o filho do tal de Lince que já estava se tornando um símbolo em meu espírito. O todo-poderoso Lince, de quem se falava com temor e o máximo respeito. Por que Lince não mandara a filha? Talvez nem se incomodasse em que ela viajasse sozinha. Eu a imaginara como uma senhora de meia idade. Afinal, por que mandaram dizer que Miss Herrick viria e acabaram mandando um rapaz em seu lugar? Tudo isso era muito estranho.
Stirling dobrara a rua principal. Gostaria de saber aonde ele havia ido. Seu aparecimento dessa maneira mudou o curso de meus pensamentos. A rua ensolarada parecia convidativa. Lá fora eu pensaria melhor, disse a mim mesma. Coloquei a capa e saí. Havia pouca gente na rua. Uma senhora de sombrinha passeava no outro lado; um cachorro dormia espichado numa soleira de porta. Caminhei rua abaixo, olhando de relance para a vitrina de uma loja que ostentava, por trás de garrafas, lãs, fitas, chapéus e vestidos. Nada daquilo me interessava e, assim, continuei andando na direção que Stirling havia tomado. Dava para uma colina e havia um letreiro que dizia: Para Whiteladies.
Enquanto eu subia a ladeira as paredes cinzentas ficaram à vista e, quando alcancei o topo, olhei para baixo e vi a casa em todo seu esplendor. Sabia que não iria esquecê-la jamais. Eu disse a mim mesma muito depois que, já naquela ocasião, percebi o papel importante que ela desempenharia em minha vida. Eu estava fascinada, enfeitiçada, e naquele momento esqueci-me de tudo diante da magia daquelas torres, do ambiente de reclusão monástica, das janelas com parapeito, das arcadas, dos torreões e da torre, do sol brilhando sobre as paredes de pedra cinzenta. Por pouco não se ouvia o som de sinos chamando as freiras para a oração, vendo-se então figuras vestidas de branco emergindo do claustro.
Senti um desejo irresistível de ver mais. Tratei de descer a ladeira e só parei ao chegar diante do portão de ferro batido. O próprio portão era fascinante. Observei bem o intrincado de seus arabescos e moldagens; trechos de metal branco haviam sido embutidos em ambos os lados da obra de ferro. Olhei mais de perto e vi que a decoração representava freiras. Damas Brancas, pensei, e me perguntei se aquele era o portão original, erguido quando ainda havia um convento por trás, bem antes de ser construída a casa atual. O muro de pedra cinzenta estendia-se em ambos os lados do portão. Estava coberto de musgo e liquens. Como eu teria gostado de abrir aquele portão e penetrar naquele recinto maravilhoso. Era mais do que uma fantasia passageira, era um anseio que tive grande dificuldade em reprimir. Como podia alguém penetrar nos aposentos privados de outrem simplesmente porque pareciam o lugar mais fascinante que já se viu? Olhei à minha volta. Por toda parte uma quietude profunda. Senti-me relativamente só. Lembrei-me de que Stirling havia tomado essa direção e que talvez tivesse passado por essa casa sem notá-la. Eu já havia decidido de que ele era uma pessoa destituída de imaginação, para quem aquilo não passaria de uma construção de pedra cinzenta, sem nada encontrar de interessante no fato de que, séculos atrás, ali viveram freiras de hábito branco. Procurava imaginar qual deveria ser a sensação de se estar isolada do mundo, sentindo-me subitamente interessada e aliviada em verificar que meus pensamentos se haviam afastado por momento de minha tragédia pessoal.
O muro era desanimadoramente alto e enquanto eu caminhava ao longo dele só podia ver mesmo a torre que se projetava para o alto. Do topo da colina a vista era muito mais reveladora, embora desse ponto de observação fosse bem maior a sensação de distância. Aqui se podia estar mais perto, mas o muro como que trancava pelo lado de fora.
Parecia estranho que, no momento em que me encontrava na iminência de partir para outro país, me deixasse ficar tão intrigada com um casarão antigo que eu nunca vira antes e que provavelmente jamais voltaria a ver. Talvez fosse porque eu ficara por tanto tempo indiferente a tudo que me deixei dominar, por isso acreditando estar mais interessada do que realmente estava.
Enquanto caminhava ao longo do muro, ouvi vozes.
- Ellen já trouxe o chá, Lucie - era uma voz alta e clara, muito agradável e tive imensa vontade de conhecer quem falava.
- vou ver se Lady Cardew está pronta - respondeu outra voz, mais profunda e ligeiramente áspera.
Continuaram falando, mas as vozes baixaram de tom e não me foi possível ouvir mais o que estavam dizendo. Que tipo de gente, indagava com meus botões, vivia nessa casa? Eu precisava descobrir. Apoderava-se de mim um ânimo tão estranho que quase me convencera a mim mesma de que, se pudesse ver o que se passava do outro lado do muro, veria duas freiras de hábito branco - fantasmas do passado.
Um enorme carvalho espalhava seus galhos por sobre o muro e decerto que seus frutos caíam em áreas de Whiteladies. Estudei a árvore refletidamente. Eu não trepava numa árvore havia muito tempo, pois não existia estimulo para tais travessuras em Danesworth House. Mas aquela ali tinha uma forquilha ideal para um assento confortável. Não, não me ficava bem trepar numa árvore. Seria indigno demais. Além disso, que grande falta de modos estar a espiar as pessoas. Passei os dedos pela mantilha de seda que meu pai me havia dado antes de ir para a Austrália; era de uma tonalidade suave de verde e eu gostava dela tanto por si mesma como pelo fato de ter sido um de seus últimos presentes. Eu tinha certeza de que ele teria subido na árvore. Miss Emily ficaria horrorizada, e foi exatamente isso que me fez decidir - sobretudo quando tornei a escutar vozes.
- Está se sentindo melhor, mamãe? - era a voz clara e jovem.
- Foi então que trepei até a forquilha da árvore, suficientemente alta para me permitir uma boa visão.
A cena era linda. O gramado era como veludo verde, macio e liso, com um jeito de ter sido bem cuidado através dos séculos. Havia canteiros de rosas e alfazemas; uma fonte espirrava seu jato prateado sobre uma estátua branca; os arbustos eram cortados em forma de pássaros; um pavão desfilava pomposamente pelo gramado exibindo sua esplendorosa cauda, enquanto uma humilde pavoa seguia-lhe de perto a trilha gloriosa. Era um cenário de extraordinária paz. Perto do pequeno lago havia uma mesa pronta para o chá, sobre a qual se colocara um enorme pára-sol azul e branco. Sentada à mesa via-se uma jovem talvez de minha idade. Dava a impressão de ser alta, mas certamente era delgada e delicada como uma figura de Dresden. Os cabelos cor de mel" caiam-lhe em caracóis sobre as costas; o vestido era azul-claro com gola e punhos brancos. Adequava-se perfeitamente ao cenário. Outra mulher estava presente; devia ser Lucie, julguei. Era cerca de dez anos mais velha do que a moça; e numa cadeira de rodas estava uma mulher que eu imaginei ser a "mamãe", de cabelos claros como a jovem, com a mesma frágil e delicada aparência de porcelana de Dresden.
- Está agradável aqui na sombra, mamãe - disse a moça.
- Assim o espero - a voz era um tanto impertinente. - Você sabe quanto o calor me irrita. Lucie, onde estão meus sais aromáticos?
Observei-as conversar. Lucie cuidara de trazer a cadeira para perto da moça, que se levantou para verificar se a almofada por trás da cabeça da mãe estava bem colocada. Lucie atravessou o gramado, presumivelmente para buscar os sais. Imaginei-a como sendo uma dama de companhia, uma serviçal de alto nível, ou mesmo uma parenta pobre. Coitada da Lucie.
Continuaram conversando, mas eu só podia ouvir as vozes quando a brisa as trazia até onde eu estava. A brisa, que soprava forte, era intermitente, e o que aconteceu em seguida deveu-se a ela. A mantilha em volta de meu pescoço afrouxara-se quando subi a árvore, e eu nem havia notado. Ao inclinar-me para ver e ouvir melhor, ela se enganchou num galho e escorregou-se-me do pescoço. Ficou pendurada de leve na árvore e, quando eu estava a ponto de alcançá-la, uma rajada de vento mais forte arrebatou-a de mim, levando-a malevolamente por sobre o muro, como se para me castigar por estar à escuta. Flutuou pelo gramado e foi pousar junto ao pequeno grupo reunido à mesa do chá, que nem sequer pareceu notá-la.
Fiquei desapontada, pensando nas circunstâncias em que meu pai me havia presenteado com aquela mantilha. Das duas uma: ou eu teria de chamá-las para que me devolvessem minha peça, ou perdê-la-ia de vez.
Firmei opinião de que não poderia lhes gritar de cima da árvore. Bateria à porta da casa e engendraria uma história sobre o vento a arrebatar-me a mantilha da cabeça - o que realmente acontecera - sem fazer a menor alusão à curiosidade que me fizera trepar na árvore para espioná-las.
Tratei de descer da árvore e, na pressa de fazê-lo, arranhei a mão, que começou a sangrar um pouco. Enquanto eu me examinava, lamentavelmente Stirling surgiu em direção a mim.
- Os carvalhos têm sua utilidade - disse.
- Que está insinuando?
- Você sabe muito bem. Estava espionando o chá dos outros.
- Como sabe que é chá, se não tivesse espiado também?
- É menos chocante um homem trepar em árvore do que uma mulher, você bem sabe disso.
- Então, estava espiando também.
- Não. Como você, eu estava apenas dando uma olhadela.
- Interessou-se o bastante para trepar numa árvore e espreitar.
- Admitamos que meus motivos, tenham sido semelhantes aos seus. Temos agora de recuperar a mantilha. Vamos. Irei com você. Como seu vice-tutor não posso permitir que entre sozinha numa casa estranha.
- Como podemos entrar lá?
- Muito simples. Peça para falar com Lady Cardew e lhe diga que sua mantilha está pousada naquele lindo gramado.
- Acha que devíamos pedir para falar com ela? Talvez bastasse falar com uma das criadas.
- Você è muito modesta. Não. Vamos entrar audaciosamente e pedir para falar com Lady Cardew.
Chegamos ao portão e Stirling o abriu. Estávamos num pátio calçado de pedras, em cuja extremidade havia uma passagem em arco. Stirling avançou por ela e fui atrás. Estávamos no gramado.
Senti-me pouco à vontade. Aquilo era algo de inconvencionalíssimo, mas Stirling era inconvencional por natureza e nada afeito às nossas maneiras formais. Quando atravessamos o gramado em direção às pessoas que nos olhavam atónitas em volta da mesa de chá, compreendi quão aberrante deveria parecer nossa intrusão.
- Boa tarde - cumprimentou Stirling. - Espero que não estejamos causando incómodo. Entramos aqui para apanhar a mantilha de minha tutelada.
A moça mostrou-se perplexa.
- Mantilha? - interrogou.
- Por estranho que pareça - disse eu, tentando imprimir alguma naturalidade à cena - ela voou de meus ombros para seu muro.
Continuaram perplexos, mas não podiam negar o fato, pois a mantilha lá estava pousada. Stirling apanhou-a do chão, passando-a a mim. E ao fazê-lo, comentou:
- Que aconteceu com sua mão?
- Oh, querida, está sangrando - disse a moça.
- Arranhei-a contra a árvore, quando tentava pegar a mantilha - gaguejei.
Stirling olhava-me como quem estava se divertindo com a situação, e, por momento, pensei que ele fosse revelar aos presentes que eu trepara na árvore só para observá-los.
A moça deu a impressão de estar preocupada, com doçura no semblante.
- Estão hospedados aqui? - perguntou a que se chamava Lucie. - Tenho certeza de que não moram aqui; do contrário, nós os conheceríamos.
- Estamos em Falcon - disse eu.
Nora atalhou Stirling um tanto às pressas - você está ficando pálida. - Virou-se para a moça. - Seria melhor que ela se sentasse por alguns momentos.
Sem dúvida - respondeu a moça - sem dúvida. E também sua mão precisa ser cuidada. Lucie pode fazer um curativo, não pode, Lucie?
- Claro que sim - respondeu Lucie com submissão.
- Leve-a para dentro de casa e lave-lhe a mão. Leve-a ao quarto de Mrs. Glee. Ela deve ter água na chaleira e creio que é preciso lavar o ferimento.
- Venha comigo - disse Lucie.
Tive vontade de protestar, porque estava interessada na jovem e preferia ter ficado a conversar com ela. Stirling sentara-se e foi-lhe oferecida uma xícara de chá.
Fui atrás de Lucie pelo gramado em direção à casa. Passamos por uma pesada porta engastada de ferro que dava para um corredor de paredes de pedra. E eis-nos diante de um lance de escadas. Lucie abriu caminho por essa escadaria que terminava num terraço.
- O quarto da governanta é aqui. Este corredor leva à ala dos criados. Subimos por uma escada em espiral até um patamar onde havia muitas portas.
Lucie bateu numa delas e disseram que entrássemos. Num fogareiro a álcool havia uma chaleira com água quente, enquanto uma mulher de meia-idade, vestida de bombazina preta e com uma touca branca sobre os cabelos grossos e grisalhos, parecia cochilar numa poltrona. Calculei que essa fosse Mrs. Clee, e era realmente. Lucie falou-lhe sobre a mantilha e eu lhe mostrei a mão.
- Não é mais que um leve arranhão - disse Mrs. Clee.
- Miss Minta acha que deveria ser lavado e feito um curativo. Mrs. Clee resmungou.
- Miss Minta e seus curativos. Está sempre arranjando alguma coisa. Na semana passada foi aquele passarinho. Não podia voar, e logo Miss Minta achou que deveria tomar conta dele. Depois foi aquele cachorro que caiu numa armadilha.
Não me incomodou muito em ser comparada a um cachorro e um passarinho, e por isso falei:
- Realmente, não precisa preocupar-se.
Mrs. Clee, no entanto, ignorou-me e derramou água da chaleira numa bacia. Enquanto minha mão era lavada e tratada com habilidade, contei-lhes que estávamos hospedados na Falcon Inn e que em breve estaríamos de partida para a Austrália. Findo o atendimento, agradeci a Mrs. Clee e Lucie levou-me de volta ao gramado. Pedi-lhe desculpas enquanto caminhávamos, desconfiada de que estava causando muito incómodo. Ela me respondeu que não havia incómodo algum, mas de tal maneira que parecia sugerir exatamente o contrário. Talvez fosse mesmo seu jeito.
- Miss Minta è muito gentil - comentei.
- Muito - ela concordou.
Eu gostaria de ter feito muitas perguntas, mas isso teria sido difícil ainda que ela fosse comunicativa, o que positivamente não era.
No gramado Stirling e Miss Minta conversavam, sob o olhar lânguido de Lady Cardew. Senti-me irritada com as maneiras complacentes dele. Era por minha causa que estávamos ali, e era ele quem tirava o melhor partido da aventura. Eu gostaria de saber sobre o que haviam conversado durante a minha ausência.
- Queira aceitar uma xícara de chá antes de sair - disse Minta enchendo uma xícara e trazendo-a até onde eu estava. Sua graça e sua bondade impressionaram-me. Parecia realmente preocupada.
Miss Cardew esteve me falando sobre esta casa - Stirling dirigiu-se a mim.
- É a mais bela que já vi.
- E a mais antiga - riu Minta. - Ele acaba de me dizer que chegou há pouco da Austrália e que está levando você para lá, porque o pai dele foi indicado seu tutor. Açúcar?
A finíssima xícara de porcelana foi-me passada. Notei os dedos longos e delicados da moça e o anel de opala que ela estava usando.
- Como deve ser emocionante estar de viagem para a Austrália - ela comentou.
- Emocionante deve ser morar numa casa como esta - repliquei.
- Tendo morado nela toda a minha vida, creio que me tornei um tanto blasée. Só mesmo se a perdêssemos é que poderíamos avaliar o que significa para nós.
- jamais haverão de perdê-la - interferi. - Quem seria capaz de desfazer-se de um tal lugar?
- Jamais, certamente - respondeu sem muita ênfase.
Lucie atarefava-se à mesa. Os olhos de Lady Cardew estavam fixos em mim, mas parecia que ela não estava me vendo. Quase não falava e dava a impressão de estar meio adormecida. Calculei que talvez estivesse doente. Não devia ser muito idosa, mas sem dúvida que se comportava como uma mulher idosa.
Fiz mais perguntas a Minta sobre a casa, dizendo-lhe que o cocheiro já me havia falado sobre ela. Sim, ela confirmou, era verdade que havia sido construída no local de um antigo convento. De fato, grande parte da construção original ainda permanecia de pé.
- Alguns quartos parecem celas, não é, Lucie? Lucie concordou em que pareciam.
- Pertence à família há muitos anos e sem dúvida que eu a desapontei por ter nascido mulher. Nesta família quase só nascem mulheres. Estamos aqui desde... quando, Lucie? 1550? É isso mesmo. Quando Henrique VIII dissolveu os mosteiros, Whiteladies foi parcialmente destruído. Meu ancestral fez alguma coisa para agradá-lo e recebeu em troca o lugar para nele construir, o que fez na melhor oportunidade. Muitas pedras foram deixadas no lugar e depois aproveitadas, pois, como lhe disse, grande parte da construção ainda permanece.
- Mr. Wakefield está aqui - anunciou Lucie.
Um homem aproximava-se pelo gramado - o homem mais encantador que meus olhos haviam visto. A roupa era de talhe impecável, e logo descobri que suas maneiras eram do mesmo feitio.
Minta levantou-se de um ímpeto e correu a seu encontro. Ele lhe tomou a mão e beijou-a. Fascinante, pensei. Eu sabia que Stirling estava se divertindo. Então o visitante aproximou-se de Lady Cardew e fez a mesma coisa. Lucie, ele a cumprimentou apenas com a cabeça. Oh, sim, Lucie não era propriamente um membro da família.
- Desconfio que ainda não sei do nome de vocês - Minta voltou-se para nós. - Veja só, Franklyn, uma mantilha voou por cima do muro e acontece que pertence a Miss...
- Tamasin - disse eu - Nora Tamasin.
O homem se inclinou num gesto belíssimo e acrescentei:
- Este é Mr. Stirling Herrick.
- Da Austrália -completou Minta.
O semblante de Mr. Franklyn Wakefield demonstrou um interesse polido pela mantilha e por nós, e só por isso passei a gostar dele.
- Você chegou bem a tempo de tomar uma xícara de chá - disse Minta. Logo compreendi que não havia mais razão alguma de permanecermos ali, e, a menos que saíssemos imediatamente, passaríamos por uns intrusos indelicados. Stirling, no entanto, não fez a menor menção de se mexer. Recostara-se na cadeira e passara a observar a cena, e Minta em particular, com tal insistência que só poderia ser descrita como cupidez. Levantei-me.
- Vocês foram muito gentis. Precisamos sair. Só nos resta agradecer tanta bondade para com estranhos.
Percebi o aborrecimento de Stirling comigo. Queria ficar; parecia não ter a menor ideia de que estávamos invadindo a intimidade dos outros, ou então não dava a menor importância a isso. Mas eu estava determinada a sair.
Minta sorriu para Lucie que se levantou de imediato para nos conduzir ao portão.
- Peço que nos perdoem por termos interrompido o chá, desculpei-me.
- Foi realmente uma distração - respondeu Lucie. Havia algo em suas maneiras que considerei desconcertante. Era altiva e de certo modo vulnerável. Parecia extremamente preocupada em manter um ar de dignidade, o que talvez se devesse ao fato de ser uma parenta pobre.
- Miss Minta é encantadora - observei.
- Tenho a mesma opinião - acrescentou Stirling.
- É uma pessoa maravilhosa ?- Lucie concordou.
- E sou-lhe muito grata por ter tratado de minha mão, Miss...
- Maryan - completou. - Lucie Maryan. Uma parenta pobre com certeza, tornei a pensar.
Stirling, a quem eu acabava de descobrir mandando às favas as regras convencionais da polidez social, perguntou com pouca sensibilidade:
- Tem algum parentesco com os Cardew?
Ela hesitou e por instantes pensei que fosse reprová-lo pela curiosidade. Mas respondeu:
- Sou dama de companhia de Lady Cardew. - Tínhamos chegado ao portão, e ela continuou com frieza. - Espero que a mão logo esteja curada. Adeus.
Quando atravessamos o portão de ferro, Lucie trancou-o firmemente às nossas costas. Caminhamos em silêncio por alguns momentos e, então, Stirling riu.
- Uma aventura e tanto - exclamei.
- Não estava querendo saber o que estava se passando por trás do muro?
- E parece que você também.
- É uma linda mantilha. Ambos deveríamos ser-lhe gratos. Bem que poderia ser chamada de nosso bilhete de entrada.
- É uma família esquisita.
- Esquisita? O que você quer dizer com isso?
- A primeira vista elas são mãe, filha e dama de companhia. Uma família bastante comum, mas senti existir ali algo de diferente. A mãe estava imóvel. Creio que dormitava o tempo todo.
- Ora, é inválida.
Ambos silenciamos depois disso. Relanceei um olhar pelo canto dos olhos e vi que ele partilhava da minha disposição de ânimo. Estávamos de certo modo estupidificados.
Sabe de u ma coisa? -disse eu. - Quando passei por aquele portão, senti-me como se estivesse penetrando num mundo novo...algo completamente diferente de tudo que eu conhecera antes. Senti que algo tremendamente dramático estava acontecendo, e mais sinistro ainda por parecer tudo tão tranquilo e comum.
Stirling riu. Não era, positivamente, o tipo fantasioso. E de nada adiantava querer explicar-lhe meus sentimentos. Mesmo assim, senti que passei a conhecê-lo melhor depois daquela aventura em Whiteladies. Esquecera-me de que no dia anterior, naquela mesma hora, eu nem sequer suspeitava de sua existência. E pela primeira vez, desde que meu pai morrera, senti-me excitada - o que era tanto mais intrigante por não saber eu ao certo bem por quê.
Na manhã seguinte deixamos Falcon Inn com destino a Londres, e um dia depois embarcamos no Carron Star em Tilbury.
Minha viagem para o outro lado do mundo havia começado.
II
Cedo percebi que a vida no Carron Star iria ser um pouco espartana, embora viajássemos de primeira classe. Eu dividia um camarote com a filha de um clérigo, que viajava para se casar em Melbourne. Ela se mostrava a um só tempo exultante e apreensiva. O noivo deixara a Inglaterra, havia dois anos, para lhe preparar um lar no Novo Mundo, e agora era dono de uma pequena propriedade lá. Preocupava-se com os baús de roupa e com o enxoval que levava. "A gente precisa estar preparada", ela me disse. Felizmente, falava tanto de si mesma que não se lembrou de me perguntar nada, o que muito me alegrou.
Contou-me que o preço da passagem era cinquenta libras, o que me proporcionou um lampejo de satisfação, por saber que meu tutor estava pagando um preço tão alto para que eu lhe fosse levada.
Tínhamos sorte em viajar de primeira classe, explicou-me, porque nas outras classes os passageiros eram obrigados a levar a própria louça e os utensílios, xícaras, copos e pires, além de uma garrafa de água. O noivo insistira muitíssimo em que ela viajasse de primeira classe. Era realmente uma grande aventura para uma jovem viajar pelo mundo entregue a si mesma. Mas sua tia a recomendara bem a bordo, e o noivo estaria à espera para recebê-la. Ela fazia questão de que eu soubesse que era uma moça muito mimada, com seus baús de roupa e o enxoval de linho.
Perguntou-me afinal se eu estava viajando sozinha, e tive de lhe explicar que estava em companhia de meu tutor. Arregalou enormemente os olhos quando viu Stirling, comentando que ele parecia um tanto jovem para o papel de tutor. Tenho certeza de que, a partir daquele momento, ela começou a conjeturar coisas bastante estranhas a meu respeito.
Sentei-me com Stirling na sala de jantar. A princípio, a maioria das pessoas pensaram que fôssemos irmão e irmã. E quando se tornou conhecido que eu era a tutelada dele, houve um certo levantar de sobrancelhas, mas a admiração logo passou. Para começar, o tempo estava borrascoso, e isso significava que muitas pessoas permaneciam confinadas nos camarotes. E quando elas finalmente se mostraram, a inconvencionalidade de nossa posição já parecia ter sido aceita pela maioria.
Durante a borrasca eu e Stirling sentamo-nos no convés e ele então me falou muita coisa sobre a Austrália. Lince jamais esteve muito ausente da conversa, e eu já me sentia mais impaciente para conhecê-lo do que estava para conhecer o novo país. Parecia que a cada dia que passava eu me aproximava um pouco mais de Stirling. Comecei a compreendê-lo. Suas maneiras podiam ser rudes, mas isso não significava que ele estivesse zangado ou indiferente. Orgulhava-se de sua franqueza e, se fosse indelicado comigo, esperava que eu lhe retribuísse na mesma moeda. Desprezava o artificialismo sob qualquer forma. E foi por suas atitudes para com os demais passageiros que descobri isso. Pensei muitas vezes naquelas pessoas que conhecemos em Whiteladies, e parecia-me que Stirling era a antítese de Franklyn Wakefield, tal como eu o era de Minta. Era estranho que tais pessoas, com as quais eu estivera por tão pouco tempo, permanecessem tão gravadas em meu espirito, a ponto de compará-las com quem quer que eu viesse a conhecer.
Podia ser que a vida no mar fosse monótona para certos passageiros ansiosos por chegarem ao fim da jornada; não para mim. Eu estava interessada em tudo e, especialmente, em Stirling. Sem dúvida que ele se agastava com o tédio, desejoso que estava de chegar em casa. Tomávamos café por volta das nove horas e almoçávamos ao meio-dia. No intervalo, passeávamos pelo convés a título de exercício, enquanto a maioria das pessoas escreviam cartas a serem despachadas no próximo porto de escala. Mas eu não tinha ninguém a quem escrever - a não ser um bilhete para a pobre Mary. Eu pensava frequentemente nela, confinada naquela "água-furtada" em Danesworth House, e lamentava sua sorte.
Lembro-me de ter sentado no convés em companhia de Stirling, quando todas as outras pessoas estavam recolhidas aos camarotes por causa do mau tempo, e de me sentir lisonjeada ante a admiração dele ao constatar que eu era uma boa marinheira. Descobri que ele tinha tendências a se mostrar intolerante com as fraquezas alheias. Eu me perguntava se realmente haveria de corresponder às expectativas dele na Austrália. Cheguei a saber que ele passava boa parte do tempo no lombo de um cavalo. Meu pai me ensinara a montar quando estivemos no campo, mas em minha imaginação galopar nos sertões australianos deveria ser bem diferente de cavalgar nos prados de interior inglês. Comentei isso com Stirling e ele mais que depressa tratou de tranqúilizar-me.
- Não se preocupe. Arranjarei um bom cavalo para você. Um cavalo bem cavalheiro para começar, com as mesmas maneiras refinadas daquele Mr. Wakefield que tanto a encantou. Depois...
- Um cavalo másculo - sugeri - tão másculo quanto Stirling Herrick. Riamo-nos os dois um bocado. Discutíamos também, pois havia muitos pontos sobre os quais não estávamos em acordo. Quase sempre, Stirling entrava em desavença com passageiros, deixando-se atrair a discussões com eles sem cuidar muito de medir as palavras. Por isso não era muito popular no conceito de certos cavalheiros pomposos, mas notei que muitas das mulheres estavam prontas a lhe sorrir.
Compreendi mais tarde quanto essa viagem me fez bem. Afastou-me por completo daqueles angustiosos meses durante os quais eu esperara ansiosamente por notícias de meu pai, para cambalear depois sob o terrível golpe quando elas chegaram.
A rotina de vida a bordo constituía-se de café da manhã no salão, as manhãs intermináveis, almoço ao meio-dia, as tardes arrastadas, e jantar às quatro horas, quando então os passageiros vestiam suas melhores roupas e durante o qual a orquestra tocava música ligeira. Depois, vinha o deambular pelo convés até as sete horas, quando o chá era servido.
Desembarcamos em Gibraltar, onde passamos uma agradável manhã. Foi maravilhoso passear numa carruagem ao lado de Stirling e admirar as vistas do lugar: as lojas, os macacos e o próprio rochedo.
- As vezes sinto realmente desejo de que esta viagem jamais termine - disse eu.
Stirling fez uma careta.
Imagine só se perdêssemos o navio - sugeri. - Imagine se construíssemos um barco próprio e saíssemos a navegar pelo mundo para onde quer que a imaginação nos levasse.
- Que coisas loucas você imagina - ele se mostrou derrisório.
- Meu pai teria gostado da ideia - respondi secamente. Vi então quão diferente Stirling era de meu pai, o qual teria se entusiasmado com a ideia, romântica e impossível, de construirmos nosso próprio navio e de zarparmos para lugares exóticos.
- Lembro-me dele -Stirling respondeu. - Gostava de falar de maneira fantasiosa, fingindo que poderia acontecer aquilo que ele próprio achava impossível.
- Era uma maneira adorável de viver.
- Era loucura. Qual o sentido de se fingir que algo pode acontecer, quando se sabe perfeitamente que não pode?
Eu não iria permitir que crítica alguma fosse feita à memória de meu pai.
- Isso tornava a vida alegre e palpitante - protestei.
- Era falso. Creio que é um desperdício de tempo fingir acreditar-se no impossível.
- Você è muito realista e...
- Estúpido? Calei-me e ele insistiu:
- Vamos, diga a verdade.
- Gosto de pensar que as coisas maravilhosas podem acontecer.
- Mesmo sabendo que não podem?
- Quem pode afirmar que não podem?
- Como desembarcar por algumas horas, construir um navio e sair pelo mundo sem um mestre navegante, sem comandante ou piloto, sem levar em consideração as normas portuárias ou de navegação? Você terá de crescer, Nora, quando estiver na Austrália.
Senti-me aborrecida, vendo nisso um ataque à memória de meu pai.
- Teria sido melhor que eu não tivesse vindo.
- É cedo demais para comentar sobre isso.
- Se vai me considerar infantil...
- Claro que iremos, se você se compraz em fantasias pueris, como...
- Como fez meu pai. Considerava-o infantil?
- Achávamos que ele não era muito prático. O próprio fim foi uma prova disso, não foi? Se tivesse entregado o ouro, estaria vivo hoje. Qual a lógica em iludir a si próprio com o pensamento de que se pode possuir alguma coisa e dar a vida em troca para mostrar que o outro está errado?
Senti-me ofendida e zangada, mas mesmo assim incapaz de raciocinar com lógica sobre meu pai. Calei-me e demonstrei rancor para com Stirling por estragar um dia perfeito. Isso porém era típico de meu relacionamento com ele, que não fazia a menor concessão a uma conversa polida. Era categórico no que acreditava e nada o faria desviar-se disso. Eu sabia que o que ele dizia era certo, mas não podia suportar que meu pai fosse objeto de censura.
Embora sua prepotência quase sempre me desagradasse, quando demonstrava - e frequentemente o fazia - que estava tomando conta de mim, eu sentia uma cálida emoção que me confortava.
A temperatura tornara-se mais quente e adorei as noites tropicais. Depois da refeição das sete horas, sentávamo-nos no convés e conversávamos. Eram essas as ocasiões pelas quais eu esperava com maior sofreguidão, maior até do que pelos dias ensolarados, quando passeávamos pelo convés ou nos debruçávamos no parapeito, com ele me apontando uma toninha brincalhona ou um peixe-voador.
Certa noite, enquanto nos sentávamos no convés a olhar para o cálido negror das águas tropicais, eu disse a Stirling:
- E se Lince não gostar de mim?
- Mesmo assim cuidará de você. Deu sua palavra de honra.
- Parece que ele é uma pessoa difícil da gente agradar.
Stirling aquiesceu com um gesto de cabeça. Era verdade. Podia ser que Lince fosse todo-poderoso, mas nem sempre era benevolente.
- Ele se parece com um deus romano, a quem as pessoas estão sempre querendo aplacar.
Stirling sorriu com a comparação.
- As pessoas realmente procuram agradá-lo com naturalidade - disse ele.
- E se não o conseguem?
- Ele faz com que saibam.
- Às vezes fico pensando que teria feito melhor em ficar em Danesworth House.
- Terá de aprender a ser sincera, se quiser agradar a Lince.
- Não estou bem certa se quero. Eu detestaria me transformar numa escrava submissa.
- Espere só para ver. Há de querer agradá-lo. Todo mundo quer.
- Você foi de uma franqueza brutal a respeito de meu pai. Por que não haveria eu de o ser em relação ao seu?
- É claro que você tem todo o direito de dizer o que lhe vem à cabeça.
- Pois penso que seu Lince me dá a impressão de um megalomaníaco presunçoso e sedento de poder.
- Consideremos esse ponto. Ele tem um alto conceito de si próprio - e nisso está na companhia de quase todo mundo. Gosta de ficar no comando, e não existe ninguém igual a ele. Portanto, com ligeiras modificações, sua descrição não é de todo imprecisa.
- Fale-me sobre ele mais um pouco.
Falou-me bastante sobre seu pai, pelo tempo em que permanecemos sentados ali. Em minha mente fiz muitas imagens desse homem enérgico que impressionara tanto a meu pai, a ponto de me entregar a seus cuidados.
- Foi desterrado da Inglaterra na qualidade de prisioneiro, há trinta e cinco anos -- disse Stirling. - Isso produziu nele seus efeitos. Voltará um dia... quando estiver preparado.
- Quando estiver preparado?
- Disse-me certa vez que saberá quando tiver de chegar a hora.
- Então ele lhe fala às vezes como um ser humano comum? Stirling sorriu.
- Creio que você já se decidiu a não gostar dele. Isso é muito insensato. Sim, ele é humano, muito humano.
- E eu que tenho pensado nele como um deus!
- Também é um pouco assim.
Semideus, semi-homem-zombei, lembrando-me de como Stirling se referira a meu pai, e porque sabia que ele estava comparando os dois. E como ninguém no mundo, na opinião de Stirling, podia brilhar ao lado do pai dele, o meu sofria miseravelmente na comparação.
Sim ele continuou - Lince é humano. É um homem... um homem de verdade, e sob todos os aspectos bem maior que os outros homens.
Você me fala muito sobre seu pai. E sua mãe? Ela concorda com a opinião geral sobre a grandeza de seu pai?
- Minha mãe é morta. Morreu quando nasci. - Passou-lhe pelo semblante uma sombra quase imperceptível de emoção.
- Desculpe-me. Sei que tem uma irmã porque era ela quem vinha buscar-me. Tem outras irmãs ou irmãos?
- Somos apenas dois. Adelaide, minha irmã, é oito anos mais velha do que eu.
Divaguei sobre Adelaide. Fiz perguntas, mas delas resultou apenas um quadro um tanto incolor. Ele só se entusiasmava quando falava de Lince. Pensei em minha mãe que também "havia partido", e fiquei imaginando que tipo de mulher Lince escolhera para esposa.
- E sua mãe? Também foi desterrada como prisioneira?
- Não. Mandaram que meu pai trabalhasse para ela. Imagine o Lince sendo mandado trabalhar para alguém!
- Bem, na época ele era um prisioneiro, e não o grande Lince que é hoje - lembrei-lhe.
- Sempre foi um homem orgulhoso, e suponho que meu avô já sabia disso.
- Seu avô?
- O homem para quem mandaram meu pai trabalhar. Muito cedo meu pai se casou com a filha dele - minha mãe.
- Foi muita esperteza dele - comentei com ironia.
- Aconteceu - respondeu laconicamente, incerto, acreditei, se deveria aplaudir a esperteza do pai ou negar seu calculismo.
- Então, bem que se poderia dizer que ele se casou por escravidão.
- Você tem uma língua muito afiada, Nora.
- Pensei que pudesse dizer o que bem me viesse à cabeça.
- Certamente, mas é uma pena que só pense no pior sobre as pessoas.
- Eu só estava dizendo que ele foi muito esperto. Mandaram-no trabalhar como criado para cumprir pena, e fez do patrão o sogro. Considero isso esperteza e o tipo da atitude que eu esperaria de Lince.
- Como pode esperar alguma coisa dele se nem o conhece?
- Já estou há bastante tempo em sua companhia para saber um bocado sobre ele, pois você não fala de outro assunto.
- Pois bem, não falarei mais nele. Você me faz perguntas e eu as respondo. É só.
- Claro que eu quero saber mais coisas sobre essa criatura divi na e maravilhosa, mas fale-me antes de sua mãe.
- Como posso, se não a conheci?
- Provavelmente lhe contaram coisas sobre ela.
Ele franziu as sobrancelhas e permaneceu em silêncio. Havia coisas, concluí, e coisas que ele não queria me contar. Por que não? Porque, imaginei, talvez não fossem muito lisonjeiras para Lince.
- E ele não se casou novamente? - continuei.
- Não se casou outra vez.
- Todos esses anos sem esposa? Pensei que ele fosse precisar de uma esposa.
- Não queira julgá-lo antes de conhecê-lo - disse Stirling um tanto contrafeito. Mudou rapidamente de assunto e passou a falar sobre o país. Seria o fim do inverno quando chegássemos, pois eu não deveria me esquecer que inverno na Austrália era verão em nossa terra. As acácias estariam florindo e eu iria ver os admiráveis eucaliptos - os de casca avermelhada e fibrosa, e os de casca cinzenta. E teríamos de prosseguir viagem para o norte de Melbourne através de grandes trechos de sertão. Eu não estava escutando com muita atenção. Continuei pensando no casamento de Lince e em sua transformação em genro do patrão. Talvez Raposa fosse um nome mais adequado para ele, pensei. Quanto mais eu ouvia falar das perfeições desse homem, mais firmava opinião contra ele, porque eu imaginava que em cada relato de suas façanhas existia uma critica implícita a meu pai.
Sentamo-nos a contemplar o mar, enquanto Stirling falava de minha nova pátria.
- Está ficando tarde. vou entrar - eu disse por fim.
Stirling levou-me ao camarote e me desejou boa noite. Quando entrei, minha companheira, que já estava em seu beliche, comentou que eu parecia achar a companhia de Mr. Herrick muito enlevante.
- É natural que tenhamos muito que conversar, uma vez que está me levando para sua terra, que será minha nova pátria.
- Mrs. Mullens estava dizendo que era muito estranho que uma menina tão nova tivesse um tutor tão jovem.
- Não existe lei que estabeleça que um tutor deva ser de determinada idade. Um tutor pode ser de qualquer idade. Ninguém pode proibi-lo de ser tutor porque não é de meia-idade, como não se pode proibir também o mexerico. Também não existe lei alguma que proiba alguém de dar ouvidos a mexericos - a não ser as leis da boa educação, é claro.
Foi o bastante para fazê-la silenciar, e eu ri para mim mesma. Stirling tinha razão. Eu tinha uma resposta na ponta da língua, fazendo disso uma arma de defesa. com certeza eu teria oportunidade de experimentá-la com Lince. O pensamento me divertiu.
Assegurei a mim mesma que não iria permitir que ele me comandasse, embora fosse meu tutor e designado como tal por meu pai. Eu jamais haveria de ser dominada por ninguém, da maneira como esse homem parecia dominar as pessoas - nem mesmo por Stirling. Não perguntaria nada mais sobre ele. Iria afastá-lo de vez de minha mente.
Adormeci. Meus sonhos, porém, foram assombrados por um homem alto, com olhos de lince e focinho de raposa.
Estávamos três dias além de Cape Town quando descobrimos Jemmy. Havíamos feito nossa habitual refeição das sete horas quando nos dirigimos para o convés, onde nos sentamos lado a lado, com Stirling a falar sobre seu país. Eu já estava começando a formar um quadro nítido. Visualizava o sertão australiano com suas acácias amarelas e árvores enormes. Stirling não tinha lá grande talento para fazer descrições vívidas; na verdade, sua conversa tendia a ser um tanto sóbria, mas tinha o dom de me fazer adivinhar a beleza dos diversos tipos de eucaliptos em florescência. Eu podia imaginar o vermelho e o amarelo gloriosos das flores conhecidas lá pelo nome de patas-de-cangurus; podia imaginar as margaridas amarelas que vicejam nos pântanos e as orquídeas de colorações diversas. Ele mencionou por acaso as roselas garridas, e ansiei por conhecer os periquitos verdes e os papagaios de asas vermelhas. Cada dia eu aprendia um pouco mais sobre o país que muito cedo seria meu.
De repente, ouvimos o ruído de um violento espirro. Espantamo-nos, pois julgávamos que estávamos sós no convés.
Quem foi? - perguntou Stirling olhando à volta de si mesmo.
Ouviu-se então um acesso de tosse que só podia provir de alguém perto de nós. Era evidente que o sofredor estava tentando desesperadamente abafar sua tosse. Stirling e eu olhamos, atónitos, um para o outro, pois não podíamos enxergar ninguém.
Caminhamos alguns passos pelo convés, no trecho onde botes salva-vidas ficavam suspensos, e quando passamos por ali a tosse recomeçou.
- Quem está aí? - Stirling perguntou em voz alta.
- É um menino.
Vi a cabeça do menino, desgrenhada e suja, e os olhos assustados eram enormes num rosto lívido de pavor.
Stirling pegou-o pelo braço e trouxe-o para o convés. Em pouco éramos três a permanecer de pé ali.
- É um... clandestino - exclamei.
- Não diga nada a ninguém - choramingou o menino.
Percebi que seu estado de saúde era péssimo quando aquela terrível tosse rouca recomeçou.
- Não se apavore - acalmei-o. - Está tudo bem.
Devo ter parecido muito convincente, pois tão logo a tosse diminuiu, ele me olhou com um ar de confiança.
- Você sabe que não tem direito algum de estar no navio, não sabe? - falei com ternura. - É um clandestino.
- Sim, senhorita.
- Há quanto tempo está a bordo?
- Desde Londres. Stirling vociferou:
- Seu vagabundo! Que pensa que está fazendo?
O garoto encolheu-se de medo para o meu lado, e eu estava decidida a protegê-lo tanto quanto possível.
- Ele está doente - disse eu.
- É o que ele merece.
- Acho que você está com fome - falei para o menino - e sofrendo muito com essa tosse. Veja, está tremendo. Já é tempo de sair do esconderijo.
- Não! - berrou em pânico e olhou em volta de si tão alarmantemente que cheguei a pensar que estivesse cogitando de pular a amurada. Enchi-me de uma enorme pena dele.
- Você fugiu de casa? - perguntei.
- Claro que fugiu - interferiu Stirling.
- Não tenho casa.
- Seu pai...
- Nem pai nem mãe - disse ele, e meu coração tomou-se de uma profunda emoção. Afinal, não sabia eu muito bem o que significava não ter mãe, não ter pai e não ter lar? A infelicidade de Danesworth House voltou à minha lembrança
- não tanto pela "água-furtada", nem pelas tiritantes correntes de ar ou pelo calor sufocante, mas pela lembrança do que significava estar abandonada, só e desprotegida.
- Qual é o seu nome? - indaguei.
- Jemmy - respondeu.
- Está bem, Jemmy - assegurei-lhe - não se preocupe. vou cuidar de que tudo lhe saia bem.
Stirling arqueara as sobrancelhas, mas continuei:
- Terá de confessar o que fez, mas explicarei. E a primeira coisa que tem a fazer é conseguir um pouco de comida quente e uma cama. Não dorme numa cama desde que saiu de Londres, não é mesmo?
Sacudiu a cabeça.
- E não tem comido adequadamente, a não ser o que tem conseguido surripiar, não é mesmo?
Assentiu com a cabeça.
- Pois tudo isso vai mudar. Pode confiar em mim, Jemmy.
- Não quero voltar.
- Você não vai voltar. Isso parece que o satisfez.
Um dos oficiais passou pelo convés nesse exato momento e, vendo-nos com o menino, apressou-se ao nosso encontro. Explicamos o que havia acontecido e ele tomou conta de Jemmy. Apavorou-me o olhar que o garoto me lançou enquanto estava sendo levado.
- Não há dúvida de que você bancou a dama generosa - comentou Stirling - arranjando as coisas para clandestinos e até lhes justificando os pecados.
- Acho que você é um tanto duro de coração.
- Ao menos não tenho feito promessas que não possa cumprir.
- Que é que eles fazem com os clandestinos?
- Não sei, mas tenho certeza de que recebem o castigo mais que merecido.
- O pobre garoto estava doente e faminto.
- Naturalmente. Que outra coisa ele esperava? Ser recebido a bordo como um passageiro? Devia ter alguma ideia do que lhe aconteceria quando se alojou como clandestino.
- Não iria pensar nas consequências. VIu no grande navio apenas uma oportunidade de fuga de uma existência intolerável. Sonhou certamente em navegar por mundos ensolarados, começando vida nova.
- Mais um daqueles sonhadores, ao que parece.
Isso me encolerizou, pois eu sabia que ele estava se referindo a meu pai.
- Não quero que aquela criança sofra - retruquei com firmeza. - Como irão castigá-lo? Suponho que serão severos com ele.
- É provável que tenha de trabalhar a bordo e, quando chegarmos à Austrália, será castigado e devolvido à Inglaterra para tornar a ser punido ali.
- Isso é uma crueldade.
- É justiça. Então por que haveria de fugir à justiça?
- Ele é jovem e muita gente consegue escapar do castigo... casando-se com a filha do patrão, por exemplo.
Foi indelicadeza de minha parte, mas ele havia acabado de criticar meu pai e eu não pude resistir ao revide, atacando-o. Ele simplesmente riu.
- Para extrair o melhor da vida é preciso ser esperto.
- Alguns são ajudados - acrescentei. - E se eu puder ajudar aquele menino, eu o farei.
- Terá de ajudá-lo. Você prometeu. Atabalhoadamente, é claro, mas deu sua palavra.
Ele tinha razão. Eu estava decidida a fazer o que fosse possível pelo pobre Jemmy.
O clandestino passou a ser o assunto de todo o mundo a bordo. Internaram-no na enfermaria e por alguns dias teve-se dúvida se ele sobreviveria às agruras que sofrera. Ele havia passado grande parte do tempo no bote salva-vidas, certificando-se com sagacidade dos períodos de exercício, quando então se escondia num dos armários onde se guardavam bóias sobressalentes. À noite, esgueirava-se pelo navio à procura de comida e, de vez em quando, encontrava alguma. Quase morrera de fome e de queimaduras de sol. Assim sendo, pelo menos por algum tempo estava instalado comfortavelmente, bem tratado e tão doente que nem poderia pensar nas complicações que estariam à sua espera, quando estivesse suficientemente bom para ser julgado.
Eu pensava nele constantemente, afligindo-me só em pensar na punição que lhe estava reservada.
- Quero fazer alguma coisa por aquele menino - falei a Stirling enquanto estávamos sentados no convés.
- O que? - perguntou.
- Preciso salvá-lo. É muito jovem. Tudo o que fez foi fugir. Deve ter fugido de alguma coisa terrível. vou ajudá-lo e devo.
- Como? Vai construir um navio e fazer dele seu capitão?
- Deixe de brincadeiras. Você precisa me ajudar.
- Eu? Não tenho nada a ver com isso.
- Eu tenho a ver e sou sua irmã... ou melhor, seu pai é meu tutor. Por acaso isso não nos dá uma espécie de parentesco?
- Não significa que eu tenha de tomar parte em seus esquemas malucos.
- Se a passagem dele fosse paga, se você o empregasse como seu criado, se o tomasse em nossa companhia, tenho certeza de que seu pai todo-poderoso conseguiria um emprego para ele. E com certeza você ajudará.
- Para início de conversa, não posso conceber a razão pela qual você assume esse papel.
- Não acredito que seja tão insensível como gostaria de me fazer crer.
- Desconfio que sou um homem prático.
- Claro que è, e por isso mesmo é que vai ajudá-lo.
- Só porque você fez uma promessa leviana que não pode cumprir?
- Não. Porque o menino lhe será eternamente grato, e nos vários negócios de seu pai não deverá ser fácil descobrir bons empregados. O menino poderá trabalhar na propriedade de seu pai, no hotel ou em qualquer outro lugar no Império do Lince. Como vê, você próprio será beneficiado em salvá-lo do presente dilema.
Ele riu tanto que nem pôde falar. Fiquei encabulada. Ele era de uma dureza de coração que só podia ter sido herdada do pai. Eu me via extremamente preocupada com a sorte de meu pequeno clandestino, pelo qual ninguém mais, senão eu, parecia ter qualquer espécie de simpatia.
- Pois é - minha companheira de camarote puxou conversa, - diz Mr. Mullens que isso é um estimulo para que as pessoas passem a se esconder nos navios. Diz que jamais ouviu falar numa coisa dessas. Teremos metade da ralé embarcando clandestinamente, se vamos recompensá-la por fazer assim.
- Não se pode dizer que o pobre menino tenha sido recompensado - retorqui - simplesmente porque lhe deram uma cama para dormir ou porque cuidaram de sua saúde. Que esperava Mr. Mullens que fizessem? Que o menino fosse convidado a pular da prancha? Ou que fosse agrilhoado? Você bem sabe que já não estamos no tempo das galés.
Ela sacudiu a cabeça. Em sua opinião eu devia ser muito esquisita, e creio que fui seu assunto predileto de conversa com os Mullens.
Dizem que Mr. Herrick resgatou-o - ela sorriu com afetação. - Assim, o menino vai se tornar um criado dele.
- Criado? - levantei a voz.
- Ele ainda não contou a você? Pois eu já ouvi dizer que Mr. Herrick pagou a passagem dele e, assim, fica tudo muito bem arranjado. Seu pequeno patife se transformou num rapaz direito da noite para o dia.
Sorri de felicidade. Fui ao camarote de Stirling e bati à porta. Ele estava só e enlacei meus braços em volta de seu pescoço, beijando-o. Embaraçado, ele pegou minhas mãos e afastou-as, mas eu estava demasiado eufórica para me sentir vexada.
- Ótimo, Stirling - exclamei - ótimo.
- De que está falando? - perguntou, sabendo muito bem de que se tratava. Logo tratou de desculpar-se. - Ele está viajando de terceira. É meio desconfortável, mas ele não merece outra coisa. A passagem só custava dezessete gudar a ninguém, mas pensa que o garoto lhe poderá ser útil. Não é isso mesmo?
- Isso mesmo - ele concordou.
- Está bem. Faça como quiser. O que importa é o resultado. Coitado do jemmy. Esta noite será um garoto feliz.
Depois disso senti-me mais perto de Stirling. Até gostei de sua maneira de fingir que estava agindo mais por motivos práticos que sentimentais.
O resto da viagem transcorreu sem incidentes e chegamos a Melbourne quarenta e cinco dias após termos deixado Tilbury.
Chegamos ao final da tarde e, tão logo desembarcamos, o crepúsculo desceu sobre nós.
Jamais hei de esquecer os momentos em que permanecemos de pé no cais, as malas ao nosso redor e Jemmy ao nosso lado com seus andrajos, que eram a única coisa que ele possuía. Essa era minha nova pátria. Em que estaria pensando Jemmy? Seus olhos negros mostravam-se enormes no rosto jovem, pálido e trágico. Confortei-o e, confortando-o, confortei a mim mesma.
Uma mulher estava caminhando em nossa direção e de imediato vi que era Adelaide - a tal que deveria ter ido à Inglaterra buscar-me. Adelaide estava vestida com simplicidade, de capa e com um chapéu sem enfeites, embora atado sob o queixo com uma fita por causa do vento forte. Fiquei um pouco desapontada. Ela nada tinha da boa aparência de Stirling, e mal se ajustava ao que eu teria esperado que fosse a filha do Lince. A verdade era que ela se parecia com uma camponesa um tanto comum e simples. Percebi sem demora que eu me enganara como desapontamento, pois não foi sem dúvida bondade o que vi em seu semblante.
- Adelaide, aqui está Nora - disse Stirling.
Ela tomou-me as mãos e beijou-me friamente.
- Seja bem-vinda a Melbourne, Nora. Espero que tenha feito boa viagem. - Considerando-se todas as circunstâncias, foi interessante - comentou Stirling.
Vamos pernoitar em casa de Lirce -disse ela. -Amanhã de manhã tomaremos o cabriolé.
- Formidável - aprovou Stirling.
- O Lince? - inquiri.
- É o hotel de nosso pai em Collins Street - explicou Adelaide. - Espero que já estejam querendo ir. A bagagem está toda aqui? - Os olhos dela detiveram-se em Jemmy.
- Ele faz parte da bagagem - disse Stirling. - Franzi-lhe o sobrolho, temendo que Jemmy pudesse se sentir ofendido em se ver descrito dessa maneira. Mas estava desatento à pilhéria. - Nós o pegamos no navio - continuou Stirling. Acredita Nora que ele possa arranjar algum trabalho.
- Escreveu a nosso pai sobre ele?
- Não, deixo aos cuidados de Nora a tarefa de explicar.
Adelaide manifestou algum espanto, mas fingi não demonstrar a menor contrariedade ante a perspectiva de explicar a vinda de Jemmy ao temível pai deles.
- Estou com uma carruagem à espera - disse ela. - Podemos mandar tudo isso para o hotel. - E voltou-se para mim. - Estamos a quarenta milhas de Melbourne, mas os cabriolés são bons. Pode confiar neles. São neles que vimos aqui frequentemente. Os homens gostam de cavalgar, mas prefiro os cabriolés. Espero que você se dê bem aqui.
- Também espero - disse eu.
- Irá se dar, desde que firme opinião - interferiu Stirling. - É uma pessoa muito determinada.
Comecei a andar em companhia de Adelaide e Stirling - Jemmy nos acompanhando à pequena distância. Apenas vagamente eu percebia o alvoroço a meu redor, com carroças puxadas por cavalos ou novilhos, carregadas de lã, peles e carne.
- É uma cidade movimentada - observou Adelaide. - Cresceu rapidamente nos últimos anos. O ouro enriqueceu-a.
- Ouro! - exclamei com um pouco de rancor, e ela deve ter notado que eu estava pensando em meu pai. Havia algo de muito simpático naquela mulher.
- É bom ter a cidade não muito distante - ela disse. - Espero que não ache que estamos isolados demais. Já morou alguma vez numa grande cidade?
- Já morei por algum tempo, mas também tenho vivido no campo. Senti-me muito isolada no lugar onde fui primeiramente aluna e depois professora.
Ela balançou a cabeça.
- Faremos o possível para que você se sinta em casa. Ah, ali está a carruagem. vou falar com John para cuidar da bagagem.
- Jemmy vai ajudar - disse Stirling. - Só assim ele faz jus ao pirão que come. Mais tarde ele virá acompanhando John e a bagagem.
Assim ficou resolvido e sentei-me ao lado de Stirling e Adelaide - meus novos irmãos - rumo à cidade de Melbourne, onde chegamos na hora exata em que os acendedores de lampiões, montados a cavalo, acendiam as luzes da rua com suas longas tochas. Cantavam, enquanto trabalhavam, velhas cantigas que eu tantas vezes escutara em minha terra. Lembro-me particularmente de "Early One Morning" e de "Strawberry Fair", e por isso senti que, embora tivesse viajado milhares de milhas, eu não estava muito longe de casa.
O hotel estava repleto de criadores que haviam chegado dos arredores de Melbourne para negociar suas lãs. Falavam em voz alta a respeito de preços e da situação do mercado, mas eu estava mais interessada em outro tipo - aqueles homens de rosto bronzeado, mãos calejadas e brilho cúpido nos olhos. Eram os mineradores que haviam encontrado um pouco de ouro, imaginava eu, e que tinham vindo gastá-lo.
Jantamos às seis horas no refeitório. Sentei-me entre Adelaide e Stirling, e foi Stirling quem me falou daqueles homens, apontando os que tiveram sorte e os que ainda esperavam por ela.
- Talvez tivesse sido melhor que não tivessem descoberto ouro aqui -externei minha opinião.
- Muitos dos bons cidadãos de Melbourne haveriam de concordar com você - admitiu Stirling. - As pessoas estão largando seus afazeres diários para sair em busca de uma fortuna. Pois saiba que muitos deles voltam desiludidos antes do tempo. Sonham com as pepitas que irão colher e tudo o que conseguem são poucos grãos de ouro em pó.
Arrepiei-me e pensei em meu pai, imaginando se algum dia ele veio a este lugar e se conversou como esses homens estavam conversando agora.
- Eles levam uma vida dura na mineração - disse Adelaide. - Fariam muito melhor se se aplicassem num trabalho útil.
- Mas alguns deles fazem fortuna - lembrou-lhe Stirling.
- O dinheiro é a raiz de todo mal - continuou Adelaide.
- O amor pelo dinheiro - Stirling corrigiu-a. - Mas não o amamos todos nós?
- Não o dinheiro - afirmei - mas as coisas que ele pode comprar.
- Dá no mesmo - replicou Stirling.
- Não necessariamente. Pessoas há que podem desejá-lo por amor a outras. Tanto ele como Adelaide sabiam que eu estava pensando em meu pai, e mais que depressa Adelaide tratou de mudar de assunto. Disse-me novamente que a casa ficava a cerca de quarenta milhas ao norte de Melbourne. O pai a construíra havia dez anos. Ele próprio fizera o projeto, e era realmente uma bela casa segundo os padrões dessa região. Não era exatamente como uma mansão inglesa, claro, pois em tal lugar isso seria um absurdo.
Perguntei o que esperavam que eu fizesse lá e Adelaide respondeu que eu poderia ajudar nos serviços domésticos. Acreditava que certamente eu acharia alguma coisa que me apetecesse nas diversas atividades em curso.
- Lince não gosta de gente preguiçosa - preveniu Stirling.
- Não o chame por esse apelido ridículo - censurou Adelaide. - Voltou-se para mim. - Tenho certeza de que você achará o que fazer.
Ela falou um pouco mais sobre a terra, até que afinal Stirling interferiu:
- Deixe-a descobrir por si mesma.
Adelaide então perguntou-me sobre a Inglaterra e eu lhe falei sobre Danesworth House e de como eu me tornara lá aluna-monitora.
- Deve ter sido muito infeliz lá - falou como se estivesse sentindo satisfação no que dizia. Compreendi. Sentia que eu me adaptaria melhor à minha nova vida, uma vez que a antiga não havia sido lá muito boa.
E assim conversamos até o final do jantar, quando então retornei a meu quarto. Eu já estava lá por algum tempo quando ouvi uma batida na porta. Adelaide entrou e mostrava-se tão angustiada que logo perguntei se estava ocorrendo alguma contrariedade.
Oh, não. Apenas achei que deveríamos ter uma conversinha sobre várias coisas. Gostaria que estivesse preparada. - Vi então que estava angustiada por minha causa, e que estava certa quando a considerei bondosa.
Sentou-se na poltrona e ocupei meu lugar na cama.
Tudo isso deve parecer muito estranho a você.
- Muita coisa estranha tem acontecido desde que meu pai morreu.
- É terrível perder um pai. Sei o que é perder uma mãe. Perdi a minha aos oito anos de idade. Já faz muito tempo, mas é algo que jamais esquecerei.
- Stirling contou-me que sua mãe morreu quando ele nasceu. Ela assentiu com a cabeça.
- Não tenha medo de meu pai.
- Por que haveria de ter?
- Muita gente tem.
- Talvez porque sejam dependentes dele. Não me sentirei assim. Se ele quiser se desembaraçar de mim, irei embora. Creio que seria possível arranjar uma colocação aqui - talvez com uma família que esteja de volta para a Inglaterra e que precise de uma governanta. Talvez... - Eu estava forjando situações que se ajustassem às minhas necessidades, diria Stirling, tal como fazia meu pai.
- Por favor, não fale em nos deixar quando, mal acaba de chegar. Seria um julgamento precipitado, não acha?
- Claro que sim. Eu só estava pensando no que haveria de fazer, caso seu pai resolvesse não me querer aqui.
- Mas ele prometeu cuidar de você e o fará. Seu pai insistiu em que ele o fizesse.
- Parece que meu pai se deixou levar pela magia dele.
- Foram atraídos um para o outro desde o princípio. E, no entanto, eram muito diferentes. Seu pai sonhava no que iria fazer; meu pai fazia. Em pouco tempo tornaram-se grandes amigos. Seu pai ingressou na mineração e encarou-a com um entusiasmo como nunca antes havíamos visto. Meu pai costumava dizer: "Agora que tom Tamasin está aqui, ficaremos ricos. Ele acredita nisso com tanta firmeza que a coisa acontecerá". E morreu trazendo ouro da mina.
- E assim encontraram ouro...
- Não em grande quantidade. Tem havido muito trabalho árduo, ainda é preciso empregar muitos homens, e a produção mal compensa tanto esforço e tantas despesas. É estranho. Em tudo mais meu pai tem prosperado. A propriedade vinda através de minha mãe vale hoje dez vezes mais do que valia quando ele a recebeu. Este hotel, que não passava de uma hospedaria rústica, é hoje florescente. Melbourne cresce e com ela o hotel. Mas acredito que ele perde dinheiro na mina. Mas não desistirá. À sua maneira, ele é tão obcecado pelo desejo de encontrar ouro quanto aqueles homens que você viu lá embaixo esta noite.
- Por que será que os homens sentem essa gana por ouro? Ela encolheu os ombros.
- Como estivemos dizendo esta noite, é o pensamento de ficar rico, fabulosamente rico.
- E seu pai... já não é rico?
- Não como deseja ser. Há anos que ele deu início a busca pelo ouro e não desistirá da busca enquanto não fizer fortuna.
- Não sei por que as pessoas não se contentam com o bastante que já têm para a própria segurança, e não tratam de gozar a vida.
- Você tem uma sábia cabeça sobre esses ombros, mas nunca haverá de encontrar homens que vejam as coisas como você as vê.
- Eu pensava que seu pai fosse um homem sábio. Stirling fala dele como se combinasse Sócrates, Platão, Hércules e Júlio César numa só pessoa.
- Stirling fala demais. Meu pai nada mais é que um ser humano incomum. É autocrático porque é o centro -do nosso mundo - mas este não passa de um pequeno mundo. Fique de pé diante dele, e ele a respeitará por isso. Creio que a compreendo. Há um pouco de seu pai em você. É orgulhosa e não vai se curvar à vontade de ninguém. Acredito que esteja muito bem preparada para enfrentar seu novo país. Espero que se entenda bem com Jessica.
Jessica? Stirling não me falou em Jessica. Quem é?
- Uma prima de minha mãe. Ficou órfã muito cedo e viveu com minha mãe desde a infância. Eram como irmãs e ela quase enlouqueceu quando minha mãe faleceu. Tive de confortá-la e isso me ajudou a superar minha própria dor. Pode ser que ela seja um tanto difícil e na realidade é um pouco estranha. A verdade é que jamais se recuperou do choque com a morte de minha mãe. Costuma ter simpatia e antipatia repentinas pelas pessoas.
- Acha que poderá não gostar de mim?
- Nunca se sabe. Mas seja como for que ela se porte, lembre-se sempre de que a qualquer momento ela poderá agir de modo um pouco estranho.
- Quer dizer então que é louca?
- Oh, não. Um pouco desequilibrada. Dias há em que ela se comporta perfeitamente tranquila, ajuda na casa e ê até muito boa na cozinha. Cozinha muito bem quando lhe dá na veneta. Tínhamos uma cozinheira muito boa, cujo marido era muito prestativo para pequenos serviços - muito útil em casa. Moravam numa pequena cabana em nosso terreno. Um dia eles pegaram também a febre do ouro e foram-se. Só Deus sabe onde andarão agora. Provavelmente lamentando-se do acontecido, em algum barraco da cidade, dormindo mal e pensando na cama confortável que tinham na cabana.
- Talvez tenham encontrado ouro.
- Se tivessem, teríamos sabido. Não. Haverão de voltar rastejando, mas meu pai, não os receberá. Ele ficou zangadíssimo quando eles se foram. Foi essa uma das razões pelas quais não me foi possível ir à Inglaterra, como havia sido planejado desde o principio.
- Todos pensavam lá que fosse Miss Herrick quem iria buscar-me.
- E assim teria sido, mas meu pai não podia ficar entregue à mercê de Jessica... Assim, fiquei e Stirling foi em meu lugar. Não pense que não temos criados. Existem aos magotes, mas nenhum do calibre dos Lamb. Alguns são nativos que não moram na casa, e nem podemos confiar neles. São nómades pornatureza e, quando menos se espera, desaparecem. Uma coisa é certa: você nunca haverá de se sentir só, com tanta gente envolvida nos negócios de meu pai. Existe Jacob Jagger, que administra a propriedade, William Cardner, que é o encarregado da mina, e Jack Bell, que toma conta do hotel. É provável que você o conheça antes de partirmos. Frequentemente eles vão se avistar com meu pai. E existem também muitas pessoas empregadas nesses diversos lugares.
- E é seu pai quem governa a eles todos.
- Ele divide a atenção entre todos, mas é a mina que reclama a maior parte da atenção dele.
E lá estávamos a falar novamente em ouro. Ela pareceu perceber, pois era muito sensível.
- Você está cansada - disse-me. - vou deixá-la agora. Temos de levantar muito cedo pela manhã.
Aproximou-se de mim como se fosse beijar-me, mas deu a impressão de mudar de ideia. Aquela não era, como eu já havia deduzido, uma família efusiva. Meus sentimentos para com ela eram de simpatia, pois estava certa de que ela me seria de grande conforto em minha nova vida.
Bem cedo, na manhã seguinte, tomamos uma carroça para nove passageiros e puxada por quatro cavalos. Dava a impressão de ser resistente embora leve, bem guarnecida com um toldo que proporcionava proteção contra o sol e o mau tempo. Era um dos conhecidos coches da Cobb Coaching Company que tornava a viagem, sobre estradas rústicas e inacabadas do sertão, bem mais suportável.
Sentei-me entre Adelaide e Stirling, e logo-iniciamos nossa jornada. Jack Bell, a quem eu havia sido apresentada antes de partirmos, permaneceu à porta do hotel acenando-nos um adeus. Era um homem alto e magro que fracassara em sua busca de ouro e que nitidamente se mostrava aliviado em encontrar-se na atual posição. Foi ligeiramente obsequioso para com Stirling e Adelaide, manifestando curiosidade a meu respeito. Mas eu já havia visto muitos de seu tipo na noite anterior para me sentir particularmente interessada nele.
De mais a mais, a cidade reclamava toda a minha atenção. Estava encantada, agora que eu podia vê-la à luz do dia. Gostei das ruas compridas e retas, e dos bondezinhos puxados por cavalos. Vi de relance uma densa vegetação quando passamos por um parque e, por algum tempo, viajamos às margens do rio Yarra Yárra. Em pouco deixávamos a cidade para trás. As estradas eram péssimas, mas deslumbrante a paisagem. Acima de nós erguiam-se os grandes eucaliptos em busca dos céus, majestosos e indiferentes aos que passavam lá embaixo. Stirling falou-me entusiasticamente sobre o país e era fácil de ver que o amava muito. Apontou-me as diversas variedades das mirtáceas, as faias cinzentas, e dirigiu minha atenção para os troncos pardacentos de eucaliptos gigantescos. Havia quem acreditasse, ele contou, que as almas dos defuntos habitavam no tronco dessas árvores e que por isso eles se tornavam branco-acinzentados. Muitos dos nativos não passavam jamais por um arvoredo desses depois de anoitecer. Acreditavam que se o fizessem poderiam desaparecer e que, de manhãzinha, se alguém contasse as árvores haveria de descobrir mais uma delas transformada em fantasma. Eu me deixava fascinar por aquelas árvores imensas, que ali se erguiam por cem anos ou mais - talvez muito antes de Sir Joseph Banks descobrir Botany Bay, e antes da chegada do Capitão Cook, Matthew Flinders e da Primeira Frota.
As acácias estavam em florescência, a fragrância penetrante enchendo o ar, enquanto as flores oscilavam de mansinho, como pluma, à brisa suave. Sob os eucaliptos gigantescos as samambaias pareciam anãs, e o sol banhava pés de tabacuinéus, mas naturalmente isso não foi exigido, uma vez que ele dormiu na baleeira o tempo todo e não deu despesa de comida. Paguei sete libras pelas acomodações de terceira classe que ele terá até Melbourne.
- E lá você vai arranjar um emprego para ele?
- Pode ficar como meu criado até encontrarmos qualquer coisa que ele possa fazer.
- Oh, Stirling, isso é maravilhoso. Afinal você tem mesmo coração. Estou exultante.
- Por favor, não me arrange mais coisas dessa natureza. Vai ficar tremendamente desapontada.
- Eu sei. Você tem um coração duro. Não é de seu feitio ajo com uma luz dourada. Pousado num montículo de terra, um bando de galahs ergueuse numa revoada rosa-cinza quando o coche se aproximou. À nossa passagem as roselas prorrompiam em assobios. A beleza do cenário comoveu-me tão profundamente que me senti enlevada. Eu nem cuidava de me sentir apreensiva com o que o futuro me reservava; o importante para mim era desfrutar daquela bela manhã.
Constituía razão de orgulho para a Cobb Coaching Company trocar de cavalos a cada dez milhas, o que assegurava a chegada mais rápida possível. Mas as estradas eram acidentadas e nuvens de poeira nos envolviam. Para mim aquilo era uma jornada temerária, embora ninguém mais partilhasse de minhaopinião e até admitisse como naturais os contratempos. E lá fomos nós por montanhas e vales, por riachos que espadanavam água nos lados do coche, por superfícies rochosas e arenosas, por buracos profundos que mais de uma vez quase fizeram virar o veículo. O cocheiro falava o tempo todo com os cavalos e parecia amá-los ternamente, pelas expressões afetuosíssimas que usava para os incitar: "Mais depressa, Bees querida", "Cuidado, Buttercup, tem mulher viajando". Era alegre e corajoso e riu-se a valer quando, depois de ter sacolejado sobre um buraco numa estreita passagem com um considerável precipício do outro lado, viu que ainda estávamos dentro do coche.
Stirling observava-me atentamente, como que à espera de um sinal de terror que me obstinei em não demonstrar. Tampouco dei mostras de que viajar sobre os caminhos tortuosos da Austrália me parecesse muito diferente de me sentar numa carruagem de primeira classe de Canterbury a Londres.
Houve uma ocasião em que um dos cavalos se empinou fazendo com que o coche se precipitasse sobre um matagal. Tivemos então de descer e os homens fizeram força para recolocá-lo na estrada. Mas até isso pude ver que era aceito como uma ocorrência normal. Atrasamo-nos por esse motivo e tivemos de passar a noite numa estalagem bastante primitiva. Adelaide e eu compartilhamos um quarto com outra passageira e, assim, não houve conversa íntima nessa noite.
Pela manhã surgiu certas dificuldades com os arreios, de modo que só nos pusemos a caminho um tanto tarde. Entretanto, nosso ânimo se elevou quando nos adentramos pelos belos campos e, mais uma vez, aspirei o odor das acácias e observei o revoar de pássaros de plumagem luminosa.
Estávamos nos aproximando cada vez mais do que eu considerava o Território do Lince, e foi nessa altura que vislumbrei pela primeira vez o que era chamado de uma cidade acampada. Para mim havia algo de horrivelmente deprimente naquilo. As belas árvores haviam sido cortadas e em seu lugar via-se uma infinidade de tendas feitas de lona e de chita. Vi as fogueiras fumacentas sobre as quais os habitantes ferviam suas marmitas e cozinhavam seus pirões. Eram homens e mulheres desleixados, de pele suja e curtida pelo sol e pelas intempéries. Vi mulheres, cabelos emaranhados, lidando com bateias e peneiras ou girando manivelas para alçar baldes cheios de terra que poderia conter o ouro precioso. Ao longo da estrada viam-se choupanas de frente aberta oferecendo farinha, carne e os suplementos que seriam necessários aos interessados na busca do ouro.
- Agora você está vendo uma típica cidade de lona - comentou Stirling.
- Existem muitas nestas imediações. E é Lince quem abastece as lojas de mercadorias. É mais um outro ramo de negócio dele.
- Estamos entrando, então, no Império do Lince.
Stirling gostou da observação. Agradava-lhe pensar nisso nesses termos.
Os filhos dos cavadores acorreram à beira da estrada para ver o coche passar.Alguns tentaram correr atrás. Olhei-os, enquanto ficavam para trás, meu coração enchendo-se de piedade pelos filhos dos obcecados.
Senti alívio quando desapareceram de vista. Pude então refestelar meus olhos sobre árvores venerandas e apreciar ursinhos sonolentos a mordiscar folhas, a única coisa a que prestavam atenção. De vez em quando eles ganiam de prazer quando uma rosela de papo vermelho esvoaçava sobre suas cabeças.
Já era crepúsculo quando chegamos.
O cocheiro ultrapassara mais ou menos uma milha de seu itinerário para nos deixar à porta de casa. Afinal de contas, pertencíamos à família do Lince, o que significava que devíamos ter tratamento especial. E parados ali na estrada diante da casa, cujas torres cinzentas lhe davam um aspecto de miniatura de mansão, tive a sensação estranha de que estivera ali antes. Era ridículo. Como poderia ter estado? Mesmo assim, a sensação persistiu.
Dois criados acorreram ao nosso encontro. Estávamos sendo esperados havia muito tempo. Um deles era de pele escura; o outro chamava-se Jim.
- Levem para dentro toda a bagagem - comandou Adelaide. - Mais tarde faremos a separação. Esta è Miss Nora que veio morar conosco.
- Aqui estamos - disse Stirling. - Em casa.
Acompanhei-os em direção ao portão que era de ferro batido. E logo vi um nome escrito em letras brancas. Era Whiteladies.
Whiteladies. O mesmo nome daquela outra casa. Quão estranho, E mais estranho ainda que Stirling não tivesse feito a menor referência a tal coisa. Voltei-me para ele.
- Mas esse é o nome daquela casa perto de Canterbury.
- Oh? -fingiu mostrar-se embaraçado, mas não acreditei que tivesse esquecido.
- Está lembrado, sim - instiguei. - Subimos em árvores para espiar por cima do muro. Não finja que está esquecido.
- Aquela casa? Ah, sim.
- Exatamente o mesmo nome.
- Ora, deve haver muitas outras casas chamadas por esse nome.
- Aquela se chamava assim por causa das freiras. Por aqui não passaram freiras.
- Suponho que meu pai simplesmente gostou do nome. Achei aquilo um tanto misterioso.
- Bem que você podia ter mencionado a coincidência - reclamei.
- Ora, vamos. Estamos em casa. Não perca tempo com detalhes sem importância.
Adelaide juntou-se a nós.
- Por aqui, Nora.
Passamos por uma arcada e por um vestíbulo pavimentado de lajes, que dava para um pátio de pedras irregulares. Sobre uma porta, numa das paredes, pendia uma lanterna. À luz penumbrosa do anoitecer, a casa dava a impressão de ter sido construída séculos atrás. Eu sabia que não, mas quem quer que a tenha construído tratara de fazer que assim parecesse.
Adelaide abriu a porta e passamos de uma sala de espera para um enorme salão retangular com uma mesa de refeições ao centro. Algumas cadeiras de espaldar reto e esculpido ou eram realmente antigas ou constituíam perfeita imitação.
- Tal qual uma daquelas antigas mansões da Inglaterra - externei-me. Adelaide mostrou-se satisfeita.
- Meu pai gosta que todas as coisas pareçam tão inglesas quanto possível - explicou. - Sempre que podemos, cultivamos flores inglesas no jardim. Gosta de jardinagem, Nora? Se gosta, pode ajudar-me. Tenho meu próprio jardinzinho e lá cultivo todas as flores prediletas de meu pai - ou tento cultivar.
Respondi-lhe que nunca havia praticado muita jardinagem, e por isso não tinha certeza se seria uma boa jardineira ou não.
Pode tentar para ver - concluiu Adelaide com jovialidade.
Subimos por uma escada partindo do salão e chegamos a uma galeria na qual Vtinha início uma fileira de quartos com um corredor em cada extremidade. Adelaide caminhava à frente e galgamos uma outra escada em cujo topo existia um patamar. Abriu uma porta e disse:
- Este aqui é seu quarto. Creio que gostaria de banhar-se. A bagagem logo subirá e o jantar será servido em meia hora.
Ela deixou-me e logo encontrei uma lata de água quente que usei para lavar as mãos e o rosto. Eu estava penteando os cabelos quando bateram à porta. Era Adelaide, que denotava estar algo inquieta.
- Meu pai está pedindo para vê-la.
- Agora?
- Agora. Está na biblioteca e não gosta de esperar.
Olhei-me ao espelho. Meus olhos estavam brilhantes. Eu estava prestes a conhecer o homem de quem tanto ouvira falar. E já então assomou-me à cabeça um ímpeto de desafio. Eu incutira a mim mesmo não gostar dele. Se meu pai jamais o tivesse conhecido, eu dizia de mim para mim com bastante falta de lógica, hoje estaria vivo.
Meu coração estava batendo apressado. E se ele não gostasse de mim? E se resolvesse me mandar de volta? Tive medo. Eu não queria voltar. Estava começando a gostar de Stirling. E podia começar a gostar de Adelaide. Eles já me haviam feito sentir que eu pertencia à família, e é melhor pertencer a alguém do que não pertencer a ninguém. Mesmo assim, um profundo ressentimento queimou-me por dentro com relação a esse homem que governava a vida deles e que estava se preparando agora para governar a minha.
- Ele está ficando impaciente - Adelaide me avisou.
Que fique! pensei com rebeldia. Eu não iria permitir que me dominasse. Preferia ser mandada de volta à Inglaterra. Só porque Adelaide se mostrava preocupada foi que me apressei, largando o pente e acompanhando-a.
Logo que dei com os olhos nele, vi que todos tinham razão. Ele era diferente dos outros homens, jamais existira alguém exatamente como ele. Postava-se de pé de costas para a lareira na qual ardiam algumas achas, as mãos enfiadas nos bolsos das calças de flanela. Usava botas de montaria impecavelmente polidas, bem notei, admirando-me de estar atenta a suas roupas num momento em que a personalidade era que dominava todo o ambiente. Todo o seu ser expressava Poder. Era muito alto - quase dois metros - os cabelos louros ligeiramente pintados de branco nas têmporas, a barba dourada lembrando Vandyke. Não pude ver os lábios, pois estavam escondidos pelo bigode, mas imaginei que fossem finos e cruéis. Nariz aquilino e arrogante, era naturalmente nos olhos que estava o traço mais assustador. Eram como os olhos de um animal feroz - predatórios, alertas, orgulhosos, cruéis, como a insinuar que ele não teria a menor complacência com quem o ofendesse. Não obstante, havia neles também uma expressão risonha, como se estivessem a troçar daqueles que não pudessem se igualar a ele. Eram de um azul deslumbrante e estavam fixos em mim agora, apesar de não me ter cumprimentado.
- Então esta é que é a moça - ele falou por cima de minha cabeça.
- Sim, papai - respondeu Adelaide.
- Tem ares do pai, não tem, Adelaide?
- Parece-se um pouco, realmente.
- Nora. É esse o nome dela?
Não me agradou ser objeto de conversa como se eu estivesse ausente. Meu coração começou a bater incomodamente, pois, apesar de minha determinação em não me deixar intimidar, eu estava intimidada. E falei então num tom de voz que tanto podia soar imperioso como petulante:
- Posso responder a todas as perguntas a meu respeito.
Ele ergueu as fartas e alouradas sobrancelhas, fuzilando-me com o temível brilho azul de seus olhos. Mas continuei:
- A moça sou eu mesma e meu nome é Nora.
Durante um segundo o semblante alterou-se-lhe. Calculei que tivesse se zangado com o que talvez considerara uma impertinência de minha parte. Mas fiquei em dúvida.
- Muito bem - disse ele, - está confirmando duplamente e agora podemos ter certeza. Acha que ela vai gostar daqui, Adelaide?
Respondi antes que Adelaide tivesse tempo de falar:
- Ainda è muito cedo para dizer.
- É melhor que ela goste, porque vai ter mesmo de ficar aqui. - Ele semicerrou os olhos e prosseguiu: - Mande Jagger entrar e que o jantar seja servido daqui a dez minutos. Ela deve estar com fome e não queremos que pense que vamos deixá-la morrer de inanição.
Era uma ordem de retirada. Dei as costas, feliz pela oportunidade de safar-me. Enquanto saiamos da sala passou por nós um homem que estava aguardando vez de entrar na biblioteca.
- Esta é Miss Nora Tamasin, Mr. Jagger - Adelaide fez as apresentações.
- Nora, Mr. Jagger é quem administra a propriedade.
Mr. Jagger era baixo e gorducho. Considerei-o sem nada que o distinguisse, mas talvez fosse porque eu acabara de deixar o que sarcasticamente batizara de "a presença". Era de pele muito rubicunda e de olhos negros um tanto atrevidos, e não gostei nada da maneira como ele me olhou. Pouca atenção dei a isso, no entanto, pois ainda ardia de ressentimento contra o Lince. Dei-me conta de que nem sequer fazia ideia de como era a biblioteca, porque desde o momento em que a porta se abriu, meus olhos só cuidaram de vê-lo.
Adelaide levou-me de volta a meu quarto.
- Desconfio que você foi uma surpresa para ele - ela observou.
- E surpresa que não o agradou muito - acrescentei.
- Não sei ao certo. Seja como for, não se atrase para o jantar. Terá de vir tal como está; não há tempo para trocar de roupa. Ele disse para ser servido daqui a dez minutos. Virei buscá-la para que não chegue atrasada. Ele detesta pessoas que se fazem esperar.
Logo que ela me largou de mão, voltei ao espelho. Minhas faces estavam ruborizadas e os olhos faiscavam. Um tal efeito ele exercera sobre mim. Falara a meu respeito como se eu não existisse, e o fizera de propósito só para me desconcertar. Por que então meu pai o admirara tanto? Por que afinal me entregara aos cuidados de um homem desses? Eu estava com dezessete anos e quatro ainda faltavam, portanto, para minha maioridade. E que haveria de fazer depois? Tornar-me uma professorinha? Oh, coitada de Miss Graeme com aqueles cabelos de ninho de passarinho e eternamente a sonhar com o que poderia ter acontecido. Mas antes isso do que me transformar numa fâmula dele. A palavra me divertiu e comecei a rir. Eu estava verdadeiramente nervosa - oh, se estava. Contava os minutos que faltavam para tornar a vê-lo, pois queria lhe mostrar que, embora ele dominasse o resto da família, comigo a coisa seria muito diferente.
Quase imediatamente depois, lá estava Adelaide de volta para me levar a jantar.
Para minha surpresa a mesa estava posta no salão, aquela mesa enorme que eu notara assim que entramos na casa. Havia lugar para umas doze pessoas e era evidente que Adelaide estava aliviada porque seu pai ainda não havia chegado.
- Somos um grande grupo - comentei.
- Nunca sabemos quantos hão de vir - ela respondeu. - As vezes os administradores aparecem. A família, agora que você está conosco, compõe-se de cinco pessoas. Hoje teremos aqui Mr. Jagger, e acredito que William Gardner também. Quase sempre eles vêm. Meu pai gosta de tratar de negócios com eles durante o jantar.
Stirling chegou às pressas, também aliviado em ver que o pai ainda não se dignara aparecer. Aparentemente todos ali tinham medo do homem.
Então já o conheceu - disse-me ele, esperando ouvir de mim ter achado seu pai simplesmente maravilhoso. - Agora, você já falou com ele.
- Sim - admiti, - muito embora ele não tivesse propriamente falado comigo, mas antes sobre mim - enchi-me de brios. - Se você chama a isso falar com alguém...
- Como é que foi, Adelaide? Ele gostou dela?
- Foi como Nora contou, e ainda há muitos dias pela frente.
Percebi sem esforço que ele estava pensando que a entrevista não resultara bem, mostrando-se desapontado e um pouco nervoso. Levei na devida conta sua preocupação para comigo, mas sem deixar de lhe deplorar a subserviência àquele homem.
Afinal ele deu entrada na sala, acompanhado de seus gerentes. Enfureci-me comigo própria por participar do mesmo temor que os outros claramente sentiam. De um lado vinha Jacob Jagger e do outro o homem que descobri ser William Cardner. Olhou em volta da sala e fez um sinal afirmativo com a cabeça, perguntando depois:
- Onde está Jessica? Ainda não está aqui. Não faz mal, começaremos sem ela.
Stirling sentou-se à sua direita, no que acreditei existir alguma significação ritual. Eu, para minha surpresa, fui colocada à sua esquerda. Adelaide sentou-se junto de Stirling e, a meu lado, havia um lugar vazio que presumi ser reservado para a impontual Jessica. Assim que os dois homens ocuparam lugares mais afastados da cabeceira da mesa, os criados entraram e serviram a sopa. Estava quente e saborosa, mas eu me encontrava demasiado agitada para apreciá-la.
O Lince - e não me era possível pensar nele com nenhum outro nome abriu a conversa. Tive a impressão de que só nos era licito falar quando falassem conosco. Ele conversou com Stirling sobre a viagem, perguntando o que achara da Inglaterra e escutando com interesse as respostas do filho. Stirling era o único dos presentes que não parecia temê-lo, apesar de manter um total ar de respeito, além de se comportar como se estivesse diante de uma divindade.
- E que tal a viagem marítima? - perguntou.
- Agitada, por vezes. Passamos por maus momentos ao largo da costa africana. Mas houve passageiros que não se incomodaram nem um pouquinho.
- E Nora? Como passou?
Ele ainda estava olhando para Stirling quando atalhei rapidamente:
- Diga a seu pai, Stirling, que o balanço do navio não me perturbou em nada. Julguei descobrir um lampejo de riso nos olhos dele.
- Então é uma boa maruja, hein?
- Eu diria que sim.
- Bem, sendo assim, provavelmente se adaptará à nossa vida dura aqui. Que é que você acha?
- Oh, creio que sim - Stirling sorriu para mim.
- Ela sabe montar? Precisará disso aqui.
Eu montava em minha terra - respondi - e suponho que posso fazê-lo aqui também.
Então ele voltou seu olhar para mim:
- Por vários motivos é bem mais difícil cavalgar aqui. Há de notar a diferença. - Tinha um jeito peculiar de levantar uma das sobrancelhas, coisa que imaginei destinar-se a intimidar. Mas conquistei uma pequena vitória quando o obriguei a interromper essa maneira obliqua de falar a meu respeito. Ao menos já dirigira uma observação a mim diretamente.
- Terei de me adaptar - conclui.
- Tem razão, há de se adaptar. Stirling, não vá dar a ela uma montaria muito arisca.
- Certamente que não.
- Ela veio para a Austrália para viver e não para encontrar um fim prematuro.
- Preocupa-se indevidamente - interferi. - Sou capaz de cuidar de mim mesma.
- Ótimo, isso então vai fazer as coisas bem mais fáceis para nós. Dizendo isso, voltou sua atenção para os homens com os quais travou uma animada conversa sobre a mina. O principal interessado no assunto era William Gardner. Permaneci atenta às perguntas e respostas, certificando-me do ávido interesse de Lince em tudo que se relacionava com ouro.
Enquanto essa conversa tinha curso, a porta se abriu e uma mulher entrou, dirigindo-se de mansinho para a cadeira a meu lado onde se sentou.
- Estávamos imaginando o que teria acontecido a você, Jessica - disse Adelaide. - Esta é Nora.
- Seja bem-vindaaWhiteladies. - A voz era cal ma, embora rude. Muito magra, ela me deu a impressão de se ter vestido apressadamente. O fichu de renda que trazia ao pescoço estava amarfanhado e notei que um dos botões do vestido estava pendurado por uma linha. Os cabelos grisalhos eram abundantes, mas não muito bem tratados. O que porém mais me impressionou foi aexpressão estranha e perdida dos olhos, que podia perfeitamente passar pelo de um sonâmbulo.
- Não ouviu a campainha? - perguntou Adelaide.
Jessica sacudiu a cabeça negativamente, concentrando o olhar em mim. Sorri-lhe com compreensão, pois logo percebi que era de compreensão que ela necessitava.
- Espero que não encontre dificuldade em se adaptar aqui - disse-me Jessica.
- Creio que não terei.
- Trouxe roupas da Inglaterra? Não há muitas aqui. Respondi-lhe que havia trazido um pouco.
- Suas malas já estão no quarto - informou-me. - Acabaram de levar. Impaciente com essa conversa trivial, Lince passou a falar em voz alta sobre a mina e a propriedade, e a conversa foi dominada pelos homens. Eu havia notado o olhar de benigna indiferença e levemente desdenhoso que Lince dirigira a Jessica. Ela também o notara, e sua reação me desconcertou. Eu jamais saberia traduzi-la - medo, respeito, pasmo, repugnância ou ódio? De uma coisa eu estava certa: ninguém naquela casa era indiferente a Lince. Stirling estava animado como eu nunca o vira antes; sua atitude era um pouco abaixo da idolatria, e existia entre pai e filho um forte sentimento. Pude observar que, se Lince cuidava de alguém além de si mesmo, esse alguém era Stirling. E em minha opinião ele queria fazer do filho uma cópia de si próprio - um digno herdeiro de seu império. Ouvia com interesse os pontos de vista de Stirling, aplaudindo-os de vez em quando com um certo orgulho paterno do qual eu não o teria julgado capaz, ou demolindo-os com um ataque devastador que, não obstante, conservava um sabor de indulgência.
Ah, ele era capaz de amar alguém que não a si próprio. Seus sentimentos para com a filha eram menos intensos. Ela era calma e inteligente - uma boa moça que lhe era bastante útil. Por isso ele demonstrava uma certa tolerância afetuosa para com ela. Mas esses eram seus próprios filhos. Para os outros era o senhor duro e dominador. Quanto a mim, não nutria o menor sentimento; eu representava para ele uma obrigação.
Descobri, entretanto, um vislumbre de interesse em seus olhos quando ele se voltou para mim:
- Sobre a montaria para ela, Stirling, eu tinha pensado em Tansy, mas talvez não seja muito prudente.
- É muita bondade sua preocupar-se com isso - repliquei. Dessa vez os olhos azuis concentraram-se em mim.
- No começo você terá de ir com muito cuidado. Montar aqui não è como montar em Rotten Row, você bem sabe.
- Nunca montei em Rotten Row, portanto não posso saber qual a diferença.
- Não, Tansy não - continuou. - Blundell. Você montará Blundell. Já está de boca enrijecida poramansadores. Ela servirá bem até que você esteja acostumada com os terrenos daqui. Stirling, pode levá-la a passear amanhã. Mostre-lhe a propriedade. Não que ela consiga percorrê-la toda num dia só, hein, Jagger?
Jagger riu-se de modo bajulador:
- Eu diria que é impossível, até mesmo para o senhor.
As distâncias aqui são diferentes das de onde você veio. Você pensa que cinquenta milhas são um bom estirão e eu não duvido. Terá de acostumar-se aos enormes espaços abertos. E nunca saia sozinha, pois poderá perder-se durante dias pelos sertões, o que não seria nada agradável. Não queremos ter de despachar pessoal de busca. Somos muito ocupados para isso.
- Procurarei não incomodá-lo de forma alguma.
Mostrou-se risonho mais uma vez. E alegrei-me por vê-lo largar aquele hábito irritante de falar comigo na terceira pessoa.
- Creio que iremos achar Nora muito auto-suficiente - interferiu Adelaide.
- É exatamente o que temos de ser aqui - ele replicou. - Auto-suficiente. Se a gente è, sempre se sai bem. Senão, é melhor desistir.
- Nora haverá de se dar bem - Stirling reanimou-me com um sorriso.
A conversa voltou a girar sobre a Inglaterra e aguardei em vão que Stirling mencionasse ao pai termos visto uma casa chamada Whiteladies. Não tocou no assunto. Falou sobre Londres, o pai fez-lhe muitas perguntas e a conversa transcorreu fluente. Foi então que ele me perguntou sobre Danesworth House e passei a falar sem qualquer inibição. Uma qualidade ele tinha: parecia interessado em muitas coisas, o que aliás muito me surpreendeu. Eu pensava que ele, vendo-se como o centro de seu mundo, só cuidasse do problema dos outros como coisas triviais. De fato, considerava-nos a todos como inferiores, era o governante de todos nós, o árbitro de nossas vidas e do nosso destino - mas eu começava a ver que se interessava a fundo pelos menores detalhes de nossas vidas. Mesmo durante aquele primeiro jantar dei-me conta das diversas facetas de sua afeição para com Stirling, e do sentimento mais moderado que nutria para com a filha. Dei-me conta também do silêncio de Jessica a meu lado, Jessica que pouco contribuíra-para a conversa, mas que mesmo assim impusera a mim sua presença. Talvez porque eu já tivesse ouvido falar de suas esquisitices. E lá estava William Gardner com aquele brilho fanático nos olhos quando falava da mina onde meu pai também trabalhara. Lá estava Jacob Jagger - e sempre que eu olhava em sua direção deparava-me com o mesmo olhar atrevido de galanteio. Dominando a mesa, é claro, estava o homem de quem tanto eu ouvira falar e cuja fama eu já começava a ver que nada tinha de exagerada.
Na manhã seguinte acordei bem cedo e deixei-me ficar na cama a pensar nos acontecimentos da noite anterior, até que uma criada - cujo nome descobri ser Mary - me trouxesse água quente. Adelaide havia-me prevenido que o café era servido entre sete e trinta e nove horas, e que eu poderia descer em qualquer parte desse horário. Levantei da cama e olhei pela janela. Vi um gramado em cujo centro existia um pequeno lago, e nesse lago uma estátua. Nenúfares flutuavam na superfície. Prendi a respiração, de espanto. Se eu colocasse ali uma mesa e instalasse um pára-sol azul e branco, estaria diante daquela outra Whiteladies que eu admirara numa tarde de verão.
Estou imaginando coisas, disse a mim mesma. Uma infinidade de jardins tem gramados com lagos e nenúfares. De mais a mais, não me dissera Adelaide que seu pai fazia questão de recriar uma atmosfera inglesa? O que me espantava era a coincidência dos nomes, sendo realmente muito estranho que Stirling não a tivesse mencionado quando entramos naquela outra casa.
Olhei meu relógio. Não pretendia chegar atrasada ao café. Pensei no deslizar tranquilo de jessica rumo à sala de jantar, no ar de enfado de Lince, e na indiferença de Jessica - seria mesmo indiferença? Ela nutria algum sentimento forte por Lince. Dava a impressão de odiá-lo e atrasava-se de propósito só para demonstrar afronta. Eu entendia essa afronta. Por acaso eu também não havia sentido um pouco?
Dirigi-me para o salão, mas este não era usado para o café. Não era evidentemente a ocasião cerimoniosa que o jantar costumava ser. Ao jantar, pensei, ele gosta de sentar-se à cabeceira da mesa como um barão de outrora, enquanto os súditos se sentam em ordem de precedência e os servos o atendem. Pelo menos eu me sentava perto da cabeceira. O pensamento me fez sorrir e foi sorrindo que entrei na pequena sala que a criada Mary me indicou.
Adelaide já estava lá. Sorriu-me um bom-dia e perguntou se eu havia dormido bem. Disse-me que Stirling já havia tomado café e que logo viria buscar-me para me mostrar as redondezas.
Respondi-lhe que estava ansiosa para conhecer as vizinhanças e que me interessava profundamente pela casa. Perto de Canterbury eu havia visto uma casa muito parecida com essa.
- Isso não me surpreende - disse Adelaide. - Foi meu pai pessoalmente quem a projetou. Construiu-a há dez anos.
- Ele é arquiteto, então?
- É um artista, o que pode surpreendê-la. Quando digo que ele projetou a casa quero dizer que supervisionou o arquiteto, dizendo-lhe exatamente o que queria.
- Seu pai parece extraordinariamente dotado.
- Extraordinariamente. Viu casas iguais a esta quando viveu na Inglaterra e determinou-se a criar um pedacinho da Inglaterra aqui. Até os portões ele mandou buscar na Inglaterra. São realmente antigos e pertenceram de fato a uma casa do interior inglês.
- Quantas dificuldades ele enfrentou!
- Enfrentará qualquer dificuldade para ter o que deseja.
E lá estávamos nós a falar nele novamente. Mudei de assunto, fazendo perguntas sobre o jardim que ela estava ansiosa para me mostrar. Prometeu-me que talvez o fizesse mais tarde naquele mesmo dia, dizendo que provavelmente eu poderia orientá-la, recém-chegada que estava da Inglaterra.
Stirling surgiu de culotes e polainas bem polidas. Parecia-se um pouco com o pai - não tão alto nem tão autoritário, e os olhos esverdeados ressentiam-se daquele azul hipnótico e ofuscante. Mas não podia haver dúvida de que era bem o filho de seu pai. Senti uma repentina felicidade em estar ao lado dele. Fazia-me sentir segura aqui, como o fizera no navio. E, apesar de ter eu encenado um ato audacioso, determinada a não demonstrar a ninguém que estava com medo do homem que meu pai designara como meu tutor, a verdade era que estava. Achei-o de todo imprevisível e ignorava por completo a impressão que eu lhe havia causado.
- Está pronta? - Stirling quis saber.
Respondi-lhe que ainda teria de vestir meu traje de montar, pois não imaginara que fôssemos sair imediatamente.
Logo que terminei o café subi a meu quarto e vesti o traje que eu havia comprado um pouco antes de deixar a Inglaterra. Lembrei-me do estupor da pobre Miss Graeme quando viu que eu havia escolhido a cor verde e um chapéu com uma fitinha verde em volta, para combinar.
Quando desci aos estábulos Stirling olhou-me com admiração.
- Muito elegante - comentou. - Mas o que importa é sua perícia com o cavalo.
Fiquei encantada quando vi Jemmy nos estábulos, vestido de culotes e casaco bem maiores que seu tamanho. Parecia, no entanto, muito diferente daquele trapo trémulo que havíamos encontrado a bordo. Sorriu-me de uma maneira toda especial, que denotava gratidão.
Não sei o que se passava comigo naquela manhã. Eu sabia que estava enganada, mas qualquer coisa no ar fresco e no sol brilhante me deixava eufórica. Colocaram sela em Blundell, o cavalo que ele julgara ser apropriado para mim.
- Mas este não passa de um pónei - falei com ironia. - Pensei que fossem me dar um cavalo. Há anos que parei de receber aulas de equitação.
Stirling sorriu.
- É melhor então que dê uma espiada em Tansy.
Fui ver Tansy - uma linda égua castanha que resolvi montar, quando não para mostrar a ele que eu não era um de seus lacaios que aceitavam sua palavra como lei.
- É arisca - preveniu Stirling.
- É uma égua e não um pangaré.
- Tem certeza de que pode dominá-la?
- Meu pai me ensinou a montar quando moramos no campo. Sei muito bem como lidar com um cavalo.
- O terreno aqui é áspero. Não seria melhor primeiro reconhecer o caminho?
- Blundell não monto. Prefiro não montar de jeito nenhum.
Diante disso, selaram Tansy e largamos. Ela era realmente arisca e logo percebi que teria de empregar todas as minhas habilidades para controlá-la. Mas, como disse, naquele dia eu estava eufórica. Pela primeira vez desde que meu pai falecera, senti uma grande fortaleza de espírito. Eu não o havia esquecido - jamais o esqueceria - mas era quase como se ele estivesse a meu lado, regozijado porque afinal sua filha fora colocada em boas mãos. Não era porém meu tutor quem me dava ânimo. Era Stirling, cavalgando a meu lado e agora bem mais à vontade do que quando estivera na Inglaterra, quem me fazia sentir em segurança. Dei-me conta então de que amava Stirling. E embora ele não dominasse meus pensamentos como seu pai o fazia, meu relacionamento com ele trouxe-me uma profunda alegria que, com toda certeza, eu era incapaz de sentir com outra pessoa. Percebi, como por instinto, que essa afeição só poderia crescer de dia para dia.
- O sol sempre brilha assim aqui? - perguntei.
- Sempre.
- Sempre mesmo?
- Quase sempre.
- Você se ufana muito de seu país.
Reduza isso a orgulho nacional. Muito breve também o sentirá.
- Acredita que chegarei a aceitar esta terra como minha?
- Chegará, tenho certeza.
- Eu não tenho. Seu pai ainda não aceitou, não é verdade?
- Como assim?
- Por que então teve de construir uma casa igualzinha à que vimos perto de Canterbury? Por que Adelaide teve de fazer um jardim inglês para ele? Ele deve sentir saudade... às vezes. Stirling, por que não me disse que esta casa tinha o mesmo nome daquela outra? Tal coisa deve ter-lhe espantado, forçosamente.
- Espantou-me, sim.
- Então por que não me disse?
- Porque você ainda não conhecia esta. Calculei que lhe causaria uma surpresa agradável.
- Você pensa nas coisas mais absurdas. Seja como for, estou satisfeita. De certo modo termos ido àquela casa teve lá sua importância. Creio que jamais a esquecerei. Aquelas pessoas no gramado, por exemplo. Minta! Não era encantadora? E a mãe...
- Não se esqueça do requintado Mr. Wakefield.
- Quem não o esquece é você.
- Ora, você foi quem o admirou muito. Um perfeito cavalheiro com aquelas mesuras e aquele beijar de mãos.
- Pois bem, aquilo tudo era encantador. E que me diz da pobre Lucie, a dama de companhia?
- Pobre Lucie. Uma pena que não possa se casar com Mr. Wakefield e viver para sempre em estado de graça.
- É óbvio que ele pertence a Minta.
- E parece que você a inveja.
- Que disparate!
- Espero que seja. Se você pretende se adaptar a este lugar, não adianta suspirar por gentis-homens requintados.
- Hei de ser perfeitamente feliz aqui, muito obrigada, a despeito da evidente escassez de cavalheiros bem educados.
Isso o agradou, pois estava realmente interessado em mim.
- Que manhã divina - exclamei.
- Cuidado! - avisou-me quando Tansy enfiou uma pata num buraco e quase me arremessou ao chão. Esticou a mão para segurar minhas rédeas, mas lhe assegurei que estava tudo bem.
Os terrenos da casa eram, a meus olhos britânicos, muito extensos. Onde quer que homens trabalhassem havia jardins e hortas. Por toda parte viam-se pomares de laranjas, limões, figos, goiabas e bananas que davam, cada qual, em devido tempo. Vi que ali se podia viver da terra.
Saímos dos li mites da propriedade e nos embrenhamos milhas adentro do campo agreste. Stirling apontou para um terreno no horizonte que fazia parte da propriedade administrada por Jagger.
- É na verdade um vasto império - comentei. - Seu pai é o monarca de tudo que ele explora, e você é o príncipe herdeiro. Qual a sensação de ser herdeiro de tudo isso e de ser filho do seu pai?
A sensação é boa - respondeu, e eu o entendi muito bem.
Após cavalgarmos calados por algum tempo, Stirling disse:
Acho que você causou nele uma boa impressão.
Alegrei-me, mas encolhi os ombros para fingir indiferença.
A meu ver, ele esperava que eu me curvasse três vezes e caminhasse de costas.
- Nem sempre ele gosta de subserviência. "
- Só às vezes?
- Somente da parte daqueles que ele considera terem obrigação disso.
Ele tem um pouco de tirano e um pouco de bandoleiro, mas compreendo seus sentimentos para com ele, agora que o conheci.
Eu sabia que você iria compreender e que sentiria a mesma coisa. Quero que o compreenda. Nora.
- Tudo depende de como ele me tratará.
Essa resposta fê-lo rir. Enquanto galopávamos pelos campos tornei a experimentar, sentindo o vento bater em meu rosto, aquela sensação de felicidade. Também ele parecia sentir.
- Nora, farei com que ame esta terra. Irei levá-la ao sertão e lá acamparemos. É a única maneira de se ver o que fica além de onde chega um coche. vou lhe mostrar como se ferve uma chaleira e como preparar cozidos na brasa e bolos de milho ao ar livre.
- Pelo jeito, é ótimo. Certamente deverei gostar. Ele exultava de alegria.
- Que disse seu pai sobre Jemmy?
- Disse que se ele estiver disposto a trabalhar, poderá ficar. Do contrário, será mandado de volta.
- Contou-lhe que fui eu quem o persuadiu?
- Não. Deixei que pensasse ter sido ideia minha.
- Por quê? Pensava que seria uma demonstração de fraqueza ter-se deixado persuadir por mim?
- Eu não sabia como ele iria reagir diante de uma tal decisão de sua parte.
- Desconfio que se tivesse sabido que a ideia foi minha, não teria admitido o garoto.
- Não, não o teria mandado embora.
- Bem, então você queria que ele gostasse de mim, e não queria que logo de início me julgasse dominadora.
- Talvez. Mas hei de dizer a verdade. Foi só por enquanto.
- Stirling, você é muito bom para mim.
- Claro que sou. Meu pai é seu tutor e eu sou o vice.
Cavalgamos em silêncio por mais ou menos uma milha. Os eucaliptos eram densos acima de nós; um canguru assustado, com o filhote na bolsa, atravessou o caminho à nossa frente e depois sentou-se sobre os pernis a nos Olhar com curiosidade. Pela primeira vez na vida vi uma bela ave-do-paraíso, a cauda estendida em toda sua glória. Estacamos, pois ela estava empoleirada num pé de samambaia não muito longe. Assim que paramos, ela começou a imitar o canto dos outros pássaros, como a dar um recital especialmente para nós. Enquanto permanecíamos imóveis, notei que os troncos de muitos eucaliptos estavam enegrecidos, e apontei-os a Stirling que me explicou terem ficado assim por causa do fogo. Falou-me então dos terríveis incêndios que devastaram as florestas do país. Eu não faria ideia do que isso era até que presenciasse um, e ele esperava que eu jamais presenciasse, embora tal coisa fosse pouco provável para quem ia permanecer na Austrália.
Todo ser vivo num raio de várias milhas vê-se em perigo constante - disse-me. É o que se pode imaginar de mais terrivelmente trágico. Nesta terra há perigos. Nora, com os quais você nunca sonhou.
- JÁ pensei nesses perigos. Lembre-se de que meu pai morreu aqui.
- Assaltos à mão armada acontecem em qualquer lugar.
- Onde há ambição - acrescentei. - Existe ouro aqui, e ouro significa ambição. Ele chamou minha atenção para uma avestruz que corria em alta velocidade pela estrada. Eu nunca havia visto uma ave tão grande, de mais de metro e meio de altura.
- Precisa conhecer a terra e seus habitantes - disse-me Stirling - Primeiro a família, depois o mundo selvagem. Veja aquelas árvores. Calculo que todas elas medem quase cem metros de altura.
- São magnificentes. Muito mais bonitas do que todo o ouro do mundo.
- Mas nem todas são tão benevolentes assim. Sei de um galho caído que aniquilou um homem. Imagine só quando caem de sessenta ou noventa metros de altura. Acontece de vez em quando. Costumamos chamar esses galhos aqui de "fazedores de viúvas".
Levantei os olhos para as árvores enormes e tremi de medo.
- Para se morrer basta estar vivo - proverbiou Stirling, meio sério, meio jocoso. Eu não queria estragar aquela manhã com o pensamento da morte. Chicoteei Tansy e larguei-me num galope. Stirling ficou atrás, porém, logo me ultrapassou. E foi então que aconteceu. Durante a manhã inteira tive presente que só estava conseguindo controlar Tansy porque ela se dispusera a permitir. Ouvi então uma gargalhada estranha e zombeteira não muito distante, e parece que Tansy ouviu também. Não sei exatamente o que se passou. Só sei que de repente vi-me deslizando por cima da cabeça dela, tendo a lembrança de soltar as rédeas ao sentir que estava caindo. A sorte estava mesmo comigo naquele dia: fui jogada sobre uns arbustos que cresciam a um metro do chão, bastante densos e fortes para me sustentar. Embora arranhada e assustada, eu ainda estava viva. Por alguns momentos permaneci desnorteada a fitar o céu, tentando agarrar-me à samambaia que arranhara minhas mãos e que se quebrava sob meu peso. Tornei a ouvir a risada zombeteira e, naquele estado de semimorbidez, quase cheguei a acreditar que Lince estivesse o tempo todo escondido em algum lugar, a testemunhar e divertir-se com minha situação. Escutei Stirling chamar-me e, de fato, cá estava a puxar-me do matagal, com um ar de grande preocupação.
- Pode levantar-se?
- Posso... mas o tornozelo está doendo.
- Sente-se - ordenou, e sentei-me na relva enquanto ele se ajoelhava a meu lado.
Tirou-me as botas com delicadeza. Meu tornozelo estava inchado.
- Uma torcedura, sem dúvida - afirmou. - Que aconteceu?
- Onde está Tansy?
- Vi-a se desembestando por aí. Há de voltar para casa. Sabe o caminho. Mas afinal o que aconteceu?
- Alguém soltou uma risada e fui parar no matagal.
- Risada? Quem?
- Não sei. Parecia bem pertinho. Creio que Tansy se assustou e me derrubou.
- É melhor voltarmos. Precisamos ver que estrago foi feito. Você vem comigo em Weston. - Assobiou e Weston aproximou-se obedientemente. Enquanto ele me ajudava a montar, mais uma vez escutei a risada - uma explosão depois de outra.
- Ouviu? - perguntei.
São pássaros. Os pica-peixes. Terá de se acostumar com a gargalhada deles, pois irá ouvi-las com bastante frequência.
Assim, fui ignobilmente carregada para casa, onde soube que Tansy já havia regressado. Dava-me por extremamente feliz em ter escapado com apenas um tornozelo torcido e alguns leves arranhões. Mas adoeci de vergonha imaginando o que diria Lince quando soubesse de minha aventura.
Adelaide recebeu-nos aliviada.
Disseram-me que Tansy havia voltado sozinha e que você montou nela pela manhã. - O tom de voz era de sutil reprovação. Seu pai não havia dito que eu teria de montar Blundell?
Adelaide mostrou-se preocupada, mas descobri que aqui os acidentes não eram olhados com a mesma aflição que mereciam na Inglaterra, simplesmente por serem demasiado frequentes. Adelaide aplicou-me compressas de água quente e fria, dizendo-me que estudara primeiros socorros por serem quase sempre necessários aqui, onde um médico poderia levar dois ou três dias para chegar. Fez-me beber uma xícara de chá doce e quente, dizendo-me para me abster de colocar meu peso sobre o tornozelo por um dois dias.
Senti-me estúpida e envergonhada de mim mesma, apesar de aliviada em saber que a égua havia voltado para casa. Deitei-me num divã na sala-de-estar de Adelaide. Eu devia permanecer imóvel por algum tempo, ela disse, e quando me sentisse recuperada do choque poderia ler ou costurar qualquer coisa. Havia sempre muito o que fazer em Whiteladies.
Eu estava deitada perto da janela, e pensando no quanto havia sido tola em ter montado um cavalo que era bom demais para mim. "Antes de uma queda vem sempre o orgulho", Miss Emily dissera tantas vezes e, ao menos por essa vez, eu tinha de reconhecer que ela tinha razão.
Então ouvi a voz dele sob minha janela.
- Quer dizer que ela montou Tansy e levou um tombo. Bem feito. Pelo menos ela tem mais espirito do que juízo.
Imaginei descobrir um ténue sinal de aprovação em suas palavras e exultei com isso.
Deixei-me ficar ali na ociosidade. Que desfecho para meu primeiro dia em Whiteladies - Pequena Whiteladies, como eu a batizara, por só haver uma verdadeira Whiteladies.
Em alguma parte do jardim ouvi a risada dos pica-peixes. Troçando de mim, com certeza.
Adelaide não iria permitir que eu pusesse o pé no chão durante três dias, e por isso passei o tempo todo em sua sala-de-estar. Todas as noites Stirling carregava-me para meu quarto. E tanto Adelaide como Stirling estavam decididos a cuidar de mim e a demonstrar que me recebiam como uma irmã mais nova. Costurei alguma coisa para Adelaide, o que consistiu em fazer roupa para inúmeras pessoas que trabalhavam na casa. Havia nos terrenos diversas pequenas cabanas onde moravam essas pessoas, e eu já descobrira a existência de várias crianças.
- Meu pai quer que todos eles sejam tratados como se fizessem parte da família - explicou-me Adelaide e rapidamente olhou para mim, para ver qual o efeito que essa observação tivera em minha opinião.
Não entendi no momento, mas a pouco e pouco foi amadurecendo em mim a ideia de que muitas daquelas crianças haviam sido geradas por Lince. Posteriormente tornou-se um hábito meu andar à cata de seus traços fisionómicos. E frequentemente os descobria. Era compreensível, Lince era viril sob todos os aspectos e nunca o tipo de homem para levar uma existência de monge. Aproveitava-se daquelas jovens mulheres, de acordo com seus caprichos, e por isso ninguém iria falar mal dele. Mas aqueles admiráveis olhos azuis eu jamais encontrei em parte alguma. Nem mesmo Stirling - o filho legítimo - conseguira herdá-los.
Durante aqueles dias Stirling visitou-me várias vezes. Eu lhe disse que me sentia envergonhada do que acontecera e esperava que Tansy não houvesse sido castigada.
- Não foi nada - tranqúilizou-me. - É melhor ser afoito aqui do que apavorado.
Era-lhes grata por terem aceitado com naturalidade minha aventura. Sentia crescer em mim a amizade por Adelaide, a quem eu já começava a considerar como minha bondosa irmã mais velha. Ela me trazia bandejas com chá e bolinhos, servidos exatamente à moda da Inglaterra, além de compota de pêssego e geléia de maracujá preparadas por ela própria.
Aqueles dias - tão calmos e pacíficos -pareceram estranhos, depois de tudo o-que se tinha passado antes. Senti-me como se tivesse chegado a um pequeno oásis, embora soubesse que minha permanência ali seria apenas temporária. Lince não veio ver-me. Também seria esperar demais. Quanto a Stirling, suas visitas eram quase sempre à noite. Passava na mina a maior parte do dia, recuperando o tempo perdido, segundo me explicou. Ouvi muita coisa sobre a mina e ansiava por conhecêla, embora de certa forma não devesse. Para mim ela evocaria lembranças demasiado vívidas de meu pai.
Todas as manhãs, Mary, a criada, ajudava-me a vestir, trazia-me a bandeja do café e depois água quente. Era tímida e dava a impressão de estar sempre com medo de alguma coisa. Tentei descobrir de quê, mas sem sucesso. Então Stirling insistiria em carregar-me para a sala de Adelaide, o que era desnecessário pois eu podia facilmente manquejar até lá. Por outro lado, devo admitir que me agradava aquela atenção e gostava de sentir aqueles braços fortes me sustentando. Carregava-me quase sem nenhum esforço, e fiz-lhe ver que essa incapacidade momentânea só fazia chamar atenção sobre minha idiotice.
Era o terceiro dia depois do acidente. Eu estava reclinada no sofá da salinha de Adelaide, a alinhavar uma camisa de morim, trabalhando diligentemente e sentindo que essa seria uma maneira de demonstrar penitência por ter sido tão idiota, quando a porta se abriu de leve. Jessica entrou. Senti um súbito calafrio a correr-me pelas costas, devido talvez à aparência tresloucada nos olhos dela e à maneira silenciosa como entrou na sala.
- Como vai? - perguntou e, arrastando uma cadeira, sentou-se perto de meu sofá.
- Estou passando muito bem, obrigada - respondi. - Na verdade, sinto-me como uma impostora. Bem que poderia já estar andando, mas Adelaide não quer ouvir falar nisso.
- Há outros embustes por aí - disse sorrindo - e não muito longe daqui.
- Realmente?
Ela assentiu com um jeito de quem estava conspirando.
- Ele já veio ver você?
Eu sabia de quem ela estava falando, mas fingi ignorar.
- Quem? - perguntei.
- Ele. O patrão.
Não. Nem eu esperava.
Ele não liga nem para Deus nem para os homens - confidenciou-me. - Você podia ter até morrido com a queda do cavalo e ele não daria a menor importância.
Preveniu-me para que não montasse Tansy. A culpa foi, portanto, inteiramente minha.
Ele devia então estar preocupado com o cavalo.
- Por sinal é um ótimo cavalo.
Fitou-me com aqueles olhos estranhos e tresloucados. Eram castanhos e eu bem podia ver que as pupilas redondas se fixavam de cheio em mim. "
- Objetos de valor - ela murmurou, - ele só cuida de mercadorias, propriedades, ouro. Não pensa em outra coisa.
- Tal como a maioria das pessoas.
Chegou-se mais para perto de mim, e me senti ali no sofá como se tivesse caído numa armadilha.
- Mas ele se preocupa mais do que qualquer um. É absolutamente cruel, como todos nós descobrimos quando chegamos a conhecê-lo. Eu descobri. Maybella descobriu. Meu tio descobriu. Chegou aqui como um pobre diabo, sem nada... nada... um condenado, um escravo. Sete anos de degredo e, num ano, estava governando a todos nós.
- É um homem fora do comum.
- Fora do comum? - riu-se e sua risada fez-me lembrar da dos pica-peixes que eu insisti terem assustado meu cavalo. - Nunca existiu um homem como ele e espero que jamais exista outro. Tome cuidado com o Lince. Ele hipnotiza as pessoas. Meu tio, Maybella... e veja o que aconteceu com Maybella. Ele a matou.
- Maybella. Era...?
- Casou-se com ela, não se casou? Por quê? Gostava de Maybella? Cuidava dela tanto assim? - Estalou os dedos. - E o que aconteceu a Maybella, hein? Não sabe?
- Não sei - respondi, - mas gostaria de saber.
A porta abriu-se e Adelaide entrou. Franziu o sobrolho para Jessica e lhe disse com suavidade:
- Ah, você está aqui, Jessie. Bem na hora de tomar uma xícara de café. Acabei de preparar um pouco para mim e Nora.
Trazia uma bandeja coberta com uma toalha de croché. O café exalava um aroma delicioso, mas eu queria ouvir o que Jessica tinha a me dizer, e sabia que ela não iria continuar enquanto Adelaide estivesse presente.
Adelaide pousou a bandeja e animadamente começou a servir o café.
- Bastante leite, Nora - disse ela. - Isso lhe fará bem. Tome aqui, Jessie. Tal como você gosta.
As mãos de Jessie estavam tremendo enquanto ela segurava a xícara.
- Creio que amanhã vocêpoderá andar um pouco, Nora - continuou Adelaide. - Não para muito longe, é claro. Pelo jardim, talvez. Mas não vá se embrenhar no mato outra vez, ouviu?
Jessica havia mergulhado num silêncio total e, depois que saiu, Adelaide me perguntou:
- Ela falou muita bobagem? Fala de vez em quando e desconfio que esteja hoje num daqueles dias. Não adianta nada instigá-la ou prestar muita atenção ao que ela diz.
Mesmo assim eu queria conhecer a versão de Jessica sobre o que aconteceu a Maybella.
Numa semana meu tornozelo ficou completamente sarado e tive a impressão de que passara muito mais tempo do que isso na Pequena Whiteladies. Eu estava tão ansiosa em fazer esquecer o incidente com Tansy que logo tratei de ajudar Adelaide no máximo possível. Comecei a aprender a cozinhar, pratiquei um pouco de jardinagem, coligi algum conhecimento sobre as ervas que ela tanto gostava de cultivar, costurei e tornei-me assim como uma filha da família. Comecei a conhecer os empregados, e foi então que me dei conta do quanto poderia ser útil, pois os nativos eram fujões notórios e constantemente estavam dando no pé. Nem mesmo o medo de Lince os impedia de fugir, ou talvez fosse essa uma das razões de fuga. E sempre que um criado branco sumia, era quase certo que ele ou ela se largara para a mineração.
- Tomara que jamais encontrem ouro em Victoria - ouvi certa vez Adelaide dizer.
Não muito tempo depois, lá estava eu a montar novamente. Naquela terra não se podia viver sem um cavalo. Portanto, não fazia sentido algum deixar que um pequeno infortúnio me dissuadisse. A conselho de Stirling deram-me uma égua ruça, inadequadamente chamada de Queen Anne, que nem tinha o calibre de Tansy nem era o pangaré que Blundell era.
- Quando estiver mais acostumada com os terrenos daqui, cuidaremos de arranjar melhor montaria para você -disse Stirling. - Enquanto isso, seja uma menina prudente e contente-se com a velha e boa Queen.
Assim fiz, vendo que ele tinha razão e sentindo-me perfeitamente à vontade para controlar minha Queen em qualquer circunstância.
Quando vi a mina pela primeira vez, minha reação foi de susto. Havíamos passado por campos deslumbrantes, e eis que de repente a mina se apresentava à vista, substituindo com sua feiúra toda aquela beleza. Um cabeçote de torno sustentava as rodas sobre as quais passavam cabos de aço à medida em que as caçambas eram içadas para a superfície. O barulho era ensurdecedor e até explosão houve enquanto lá permaneci.
- Estamos utilizando essa nova substância que Alfred Nobel inventou - disse-me Stirling. - Chama-se dinamite e poupa um trabalho interminável, porque parte a rocha e nos permite chegar ao ouro. Há ali duzentos homens trabalhando.
- Sentem-se felizes em descobrir ouro para seu pai?
- Sentem-se contentes em trabalhar aqui. Muitos deles estão há anos na mineração, têm enfrentado muita dureza, mas acham bom trabalhar por um salário fixo. Sabem que são poucos, lá um ou outro, os que encontram fortunas nas bateias. As probabilidades são enormes, os azares muitíssimos. Aqui o trabalho é garantido. Têm o que comer todos os dias e a única coisa que lhes cabe fazer é trabalhar para o patrão.
Apontou-me os pilões, um novo tipo de máquina para triturar o minério e, assim, libertar o ouro da rocha de quartzo. Tudo ali era atividade e barulho. Nas proximidades da mina enfileiravam-se as tendas nas quais moravam mineiros com suas famílias. Alguns dispunham de cabanas que consistiam de dois quartos, um de frente e outro de fundo. Eram os mais afortunados.
- E seu pai é dono desta mina? - perguntei.
- Você também tem parte nisso. Seu pai aplicou aqui o dinheiro que possuía. Há outros sócios, porém meu pai possui a maioria das ações e por isso é o único com poder de controle.
- É bom saber que não sou uma indigente total. Quem sabe se não sou rica?
- A mina dá prejuízo.
- Tudo isso então... para ter prejuízo?
Esperança é a resposta. Combina bem com ouro. Nesta terra tem havido mais esperança do que ouro.
E até seu pai está atacado por essa desvairada fome de ouro.
Até ele. Veio da Inglaterra. Conheceu gente, gente rica,que vivia, como ele costumava dizer, "de graça". Eram pessoas que não se preocupavam com dinheiro, porque possuíam tanto que nem cuidavam de pensar nele. Disse-me uma vez que assim queria viver, que era assim que iria viver um dia.
- Mas já tem garantia, é rico e comanda a vocês todos. Que mais quer?
Concretizar um sonho. Primeiro ele quer encontrar ouro. Ouro como jamais foi encontrado. Depois então prosseguirá em seus planos.
- Que planos? - Oh, ele tem lá seus planos. Mas o primeiro passo é amealhar uma fortuna em ouro. Veja como vivemos. Não nos privamos de nada - uma casa enorme, muitos criados, interesses em vários lugares. Custa caro viver assim, e a mina devora dinheiro. Não viu todos aqueles operários? Pois saiba que precisam ser pagos. A maquinaria é dispendiosa. E em operação a mina custa uma fábula. Só depois que fizer uma sólida fortuna em ouro é que meu pai voltará à Inglaterra.
- Já poderia voltar agora mesmo.
- Não como deseja. Gostaria de voltar como um lorde. Ri-me com escárnio.
- Planeja também ter um título?
- Talvez.
- Enquanto isso, edifica uma Pequena Whiteladies, cultiva um jardim ao estilo inglês e joga todo aquele dinheirão numa mina que não compensa.
- Não compensa no momento, mas há de compensar no futuro. Meu pai terá ouro aos montes, sobre isso não tenha a menor dúvida. Sempre consegue o que deseja.
- Há quanto tempo está aqui? Trinta e cinco anos, não? E durante todo esse tempo sonhou em voltar e nunca voltou.
- Só quer voltar em circunstâncias muito especiais.
- A meu ver, ele é uma vítima tão irrecuperável da cobiça de ouro como outro qualquer. Você se refere a ele como a um deus, mas desconfio de que ele é também um adorador. Adora ouro.
Enquanto conversávamos, passou por nós um velho. À primeira impressão, pelo menos, era um velho, embora eu logo me desse conta de que era a doença que o fazia parecer assim. Tomado por um súbito acesso de tosse, permaneceu curvado sobre si mesmo até que as dores passassem.
- Pobre homem - disse eu. - Devia estar numa cama. Devia contar com um médico.
Eu estava prestes a me dirigir a ele quando Stirling segurou-me o braço.
- Há centenas como ele - disse-me. - sofre do mal dos mineiros - tísica. É causada pela poeira e pela fuligem das minas, que atacam os pulmões e acabam matando a vítima. Não se pode fazer nada.
- Nada? Então esses homens se enterram na mina e já se sabe de antemão que podem contrair essa terrível doença?
- É um dos azares - respondeu-me Stirling calmamente. - Eles sabem disso e o aceitam.
- E quando contraem a doença? Que é feito deles?
- Que é feito? Morrem mais cedo ou mais tarde. A doença é fatal. - Enchi-me de ira, pensando naquele homem, pensando no patrão que em sua cobiça de ouro mandava-os todos enterrarem-se na mina para trabalhar para ele.
É perversidade - declarei. - Deviam acabar com essa mina.
Stirling riu-se de mim.
Seu mal, Nora, é que você é muito bondosa. A vida não é. Especialmente aqui. Aquele homem tem um emprego. Precisa alimentar a família... se é que tem família. Veio para cá em busca de ouro e, como milhares de outros, não conseguiu encontrá-lo. Agora trabalha nas minas de ouro. É perigoso, mas perigo existe em toda parte. Na pacata Inglaterra, por exemplo, morre-se de morte súbita. Não leve a vida tão a sério.
- É a morte que eu levo muito a sério. Sobretudo a morte desnecessária. Pensei então em meu pai que havia morrido pelo ouro, tal como esse homem estava morrendo pelo ouro. Odiei o ouro com tal cólera como jamais havia sentido antes. Eu os via a encher carroças que levariam ouro para um banco em Melbourne, e pensei nele que se pusera a caminho para dar a vida para salvar o ouro.
Daquele momento em diante tentei personificar o ouro como uma mulher cruel, gananciosa, voraz, astuta e caprichosa. A Deusa do Ouro - uma espécie de Circe, uma Lorelei que de vez em quando premiava aqueles que a serviam, a fim de aliciar mais vítimas de seus lares, de suas famílias, de tudo o que fosse pacifico e seguro na vida, para melhor poder destruí-los.
- Quero ver o lugar onde meu pai foi baleado.
- Por que não se esquece disso tudo?
- Esquecer que meu pai foi assassinado?
- Não adianta nada relembrar.
- Você se esqueceria se seu pai tivesse sido assassinado?
Retraiu-se. Eu sabia que ele não podia visualizar um mundo que não incluísse o onipotente Lince.
- Eu amava meu pai ardentemente - prossegui. - Não havia ninguém no mundo igual a ele. E aqui nesta terra ele foi premeditadamente assassinado por alguém que nem sequer o conhecia. E você me pede que esqueça.
- Vamo-nos embora daqui, Nora.
Deu uma volta e dirigiu o cavalo no rumo da estrada. Segui-o.
- Leve-me agora ao local onde meu pai foi baleado - pedi. - Prometo que depois de vê-lo não voltarei mais a falar nele, se é isso que você quer.
Umas três milhas à frente ele parou. Era um lugar bonito - tranquilo e pacífico. Enquanto permanecemos contemplando aquela perfeita quietude o silêncio só foi quebrado pelo arrulho de uma araponga.
- A carroça vinha pela estrada, procedente da mina - contou-me Stirling. - Foi mais ou menos por aqui. Como sabe, ele não morreu imediatamente. Foi levado para Whiteladies e lá escreveu aquela carta que lhe foi enviada - a última que escreveu. Já havia falado a meu pai sobre você. Foi assim que tudo aconteceu.
Olhei a meu redor para um renque de eucaliptos onde provavelmente o assassino se escondera. Um pouco além erguia-se uma colina - um pequeno morro talvez, pelo qual corria um filete de água para se juntar ao arroio lá embaixo.
Era um dos recantos mais belos que eu já vira na vida.
- Foi aqui então que ele encontrou a morte - falei com amargor, - ele que amava tando a vida, que fizera tantos planos e que alimentava tantos sonhos. Foi uma coisa que nunca podia ter acontecido. Morreu... por ouro. Odeio ouro.
- Vamos, Nora. Ele morreu e você o perdeu, mas agora tem a nós, tem a mim, Nora.
Dei uma volta e olhei-o nos olhos. Ele trouxe seu cavalo para perto do meu e, tomando-me a mão, pressionou-a ligeiramente.
Eu a farei esquecer, Nora - disse-me num tom de sinceridade.
Há de ver.
- Você!
Durante todo aquele dia e o seguinte pensei em meu pai e naquele pobre homem que estava morrendo de tísica. Encontrando-me no jardim de Adelaide a arrancar ervas daninhas, eis que de repente levantei os olhos e vi Lince de pé a observar-me.
- Há quanto tempo está aí? - perguntei. Uma das sobrancelhas se arqueou.
Não costumo responder a perguntas feitas assim com tanta imperiosidade.
Também não gosto de ser observada sem estar sabendo que estou.
Nem eu gosto de pessoas sem polidez.
Também não - retorqui, levantando-me. A lembrança daquele pobre homem morrendo dos pulmões minados deixou-me indignada, e pouco se me dava se havia ofendido ou não a Lince.
Ele resolveu não se dar por ofendido.
Folgo em ver que está trabalhando. Não me agrada ver ociosidade nesta casa.
Se quer que eu trabalhe, é só dizer. Talvez queira até que eu vá trabalhar na mina de ouro.
Fingiu estudar o assunto.
- Na qualidade de quê?
Achei melhor não dar resposta a isso.
- Segundo sei, possuo algumas ações na companhia.
- Seu pai tinha algumas... pouquíssimas. Não valem grande coisa.
- Como a mina também, possivelmente.
- É especialista em mineração?
- Não entendo nada do assunto e nem quero. Preferia não estar vinculada a tal coisa.
- Creio que já está na hora de termos uma conversinha, eu e você - disse ele. - Há certas coisas que precisamos saber, um sobre o outro.
- Estou ansiosa para saber o que a mim diz respeito.
- Venha à biblioteca depois do jantar.
Depois que ele saiu voltei-me para a horta de Adelaide, no ar um cheiro forte de artemísia. Pensei com meus botões: esta noite serei atrevida e vou dizer a ele o que penso dessa mina na qual rapazes, de pulmões arruinados, se transformam em velhos antes do tempo.
Não apareceu para jantar naquela noite, e duvidei de que estivesse na biblioteca quando para lá me dirigi. Estava. Sentado a uma mesa, bebericava num copo o que presumi ter vinho do Porto. Certamente teria jantado sozinho naquela sala, o que fazia em certas ocasiões, segundo me foi dado a entender.
- Ah, entre Miss Nora - disse. - Sente-se de frente para mim, onde me seja possível vê-la.
Sentei-me. A luz da sala estava fraca. Apenas duas dentre várias lâmpadas de óleo estavam acesas.
- Tome um copo de vinho do Porto.
Declinei, porque ele fez com que isso se parecesse mais com uma ordem do que com um convite.
Ergueu a garrafa e encheu outro copo para si. Notei-lhe as mãos pela primeira vez. Os dedos eram longos e finos, um anel com pedra de jade no dedo mínimo da mão direita. Havia elegância nos menores gestos, e bem que eu podia imaginá-lo perfeitamente adequado para viver numa vetusta mansão do interior da Inglaterra.
Você queria saber de sua posição aqui - começou. - É minha pupila e sou seu tutor. Isso foi determinado por seu pai antes de seu fim precoce. Ele conhecia os perigos desta terra e muitas vezes me falou, nesta sala, de seus temores e preocupações. Dei-lhe minha promessa de que, caso ele morresse antes de você atingir aos vinte e um anos, eu a tomaria sob meus cuidados.
- Deve ter tido algum pressentimento de que iria morrer. Sacudiu a cabeça.
- Seu pai era um homem que sonhava sonhos extravagantes. Entusiasmava-se com eles, mas no intimo sabia que jamais se realizariam. No fundo ele reconhecia que nunca haveria de fazer fortuna, e só traçava planos práticos quando você estava em consideração. Tome isto como medida da afeição dele por você. Por amor a você ele saiu de si mesmo para admitir a verdade, como sabia que ela teria de ser. Foi por isso que fez esse trato comigo, tendo redigido antes de morrer um documento que me designava como seu tutor. Concordei - e aqui estamos nós.
- Por que o escolheu?
Novamente o arquear de uma das sobrancelhas.
- Fala assim como se me julgasse indigno da confiança dele?
- Ele o conhecia de tão pouco tempo.
- Conhecia-me bastante bem. Conhecíamos um ao outro. Por conseguinte, você terá de me aceitar. Não há alternativa.
- Eu saberia muito bem como ganhar a vida.
- Na mina... como sugeriu? Para uma jovem hão é fácil vencer na vida, a menos que se torne empregada doméstica ou coisa semelhante, e nisso, garanto-lhe, você não seria grande coisa.
- Tenho aquelas ações na mina.
- Também não são grande coisa e não sustentariam você por muito tempo.
- Eu preferia que dinheiro nenhum que me pertencesse servisse para manter uma mina de ouro.
- As ações podem ser vendidas. Não darão muito dinheiro. Todo mundo sabe que a mina é um negócio pouco lucrativo.
- E por que insistir nela?
- Esperança. Sempre temos esperança.
- E continua tendo esperança enquanto os outros morrem.
- Está pensando em seu pai. É um destino que muitos têm encontrado nesta terra. Os salteadores estão por toda parte. Qualquer um de nós está sujeito a encontrá-los.
- Estou pensando num pobre-homem que vi outro dia.. Estava sofrendo de uma doença pulmonar.
- Oh... tísica.
- Fala como se fosse tão banal como uma simples dor de cabeça.
- É um dos riscos da mineração.
- Como a morte nas mãos dos salteadores?
- Está sugerindo que eu feche a mina porque um homem está tuberculoso?
- Estou. Ri u-se.
- É uma reformadora e, como todos os reformadores, pouco entende do que espera reformar. Fechada a mina, o que aconteceria a todos os meus operários? Morreriam de fome dentro de uma semana.
- Não quero ter nada a ver com essa mina.
Ele suspirou e olhou para mim por trás de seu vinho do Porto, os olhos faiscantes.
Você não é muito prudente. Há um ditado inglês que diz "o coração governa a cabeça". Você está pensando de acordo com suas emoções, o que pode colocá-la em situações difíceis e sem muita ajuda para sair delas.
Você é diferente. Pensa com a cabeça.
E para isso as cabeças foram feitas.
E o coração?
Para controlar a circulação do sangue.
Ri-me e ele também.
Deseja saber mais de alguma coisa? - perguntou.
Sim. Qual vai ser minha função aqui?
Função? Poderá ajudar Adelaide, como faria uma irmã mais nova. Agora seu lar é este e assim terá de considerá-lo.
Perpassei o olhar pela sala, observando-a pela primeira vez. Livros enfileiravam-se numa das paredes, e havia uma lareira acesa na qual achas de lenha estavam queimando. Das paredes pendiam vários quadros, tudo exatamente igual ao que se esperava fosse uma biblioteca inglesa. Sobre uma mesa de carvalho exageradamente lustrosa via-se um conjunto de xadrez. As peças estavam dispostas como se alguém estivesse prestes a jogar. Não pude conter uma exclamação, porque eu conhecia bem aquele conjunto. Era lindo, com suas peças feitas de marfim branco e pardacento, com brilhantes nas coroas dos reis e das rainhas, os quadrados do tabuleiro em mármore branco e rosa escuro. Eu havia jogado nele muitas vezes com meu pai.
- Isso é de meu pai - acusei.
- Deixou-o aqui comigo.
- Devia pertencer a mim agora.
- Deixou-o comigo.
Eu havia me levantado para ir olhar de perto. Segurei na mão a rainha de marfim branco e a lembrança de meu pai foi tão viva que tive vontade de chorar. Lince permaneceu de pé a meu lado e apontou para um dos quadrados.
- Seu nome está escrito aí.
- Escrevemos nosso nome quando ganhamos pela primeira vez. Esse é o do meu avô. Este conjunto de xadrez pertenceu à família durante anos.
- Três gerações - disse ele. - E um intruso. - Apontou então para o nome dele audaciosamente escrito num dos quadrados centrais.
- Então derrotou meu pai?
- De vez em quando. E você também o fez.
- Era um jogador exímio. Acredito que, quando ganhei, foi porque ele deixou.
- Quando tiver de jogar comigo não hei de permitir que vença. Jogo para valer e você jogará para valer.
- Está sugerindo que joguemos?
- Por que não? Adoro jogar.
- No tabuleiro de meu pai? - prossegui.
- Agora é meu, já esqueceu? E por que não jogar nele? É uma alegria tocar em peças tão bonitas.
- Sempre entendi que ele seria meu.
- Vamos fazer uma barganha. No dia em que me vencer, será seu.
- Pede-me para pôr em jogo uma coisa que deveria ser minha de direito?
- Uma sugestão apenas de que jogue para recuperá-lo.
- Está bem. Quando jogaremos?
- Por que não agora? Incomoda-se?
- Está bem. Jogarei agora tanto por meu tabuleiro como por meus peões.
Não há tempo melhor do que o presente. Esse é outro ditado inglês.
Sentamo-nos frente a frente. Agora era-me possível ver de perto as sobrancelhas alouradas, as mãos brancas e longilíneas, o anel de jade. As mãos de Stirling eram ligeiramente espatuladas - pilhava-me constantemente a comparar os dois. Ele me fazia lembrar de Stirling, apesar do filho não ser mais que um pálido reflexo do pai. Detestei admitir que fosse capaz de pensar tal coisa, uma deslealdade para com Stirling. Stirling é bondoso, refleti, e este homem é cruel. Stirling eu compreendia muito bem, e quem podia ter certeza do que ia por trás dessas rutilantes barreiras azuis? Tendo notado que eu estava a olhar para suas mãos, avançou-as um pouco para que me fosse dado observá-las melhor.
- Sabe o que está esculpido neste anel? É a cabeça de um lince. Eis por que sou chamado assim. Este anel é minha chancela. Foi-me presenteado há vários anos por meu sogro.
- É uma bela peça de jade.
- E uma delicada escultura. Bem apropriada, pois não?
Assenti com a cabeça e estendi a mão para o peão do rei branco. Muito cedo dei-me conta de que não era páreo para ele, mas joguei com tal concentração que vezes seguidas frustrei seus esforços de me dar um xeque-mate. De minha parte a partida transcorreu completamente defensiva, e só depois de três quartos de hora foi que ele conseguiu me encurralar - um clímax, suspeitei, que ele esperava alcançar em dez minutos.
- Xeque-mate - afirmou com tranquila altivez, e vi que não me restava outra saída. - Mas foi uma boa partida, não foi? - continuou. - Precisamos jogar de vez em quando.
- Se é que me considera à altura - respondi. - Estou certa de que pode encontrar um parceiro mais condizente com sua categoria.
- Gostei de ter jogado com você. E não se esqueça de que terá de conquistar este tabuleiro. Também não se esqueça de que não sou como seu pai. Não farei concessão de espécie alguma. Quando calhar de ganhar, pode ter certeza de que a vitória foi legítima.
Vi-me tão agitada depois que saí de sua presença que a muito custo consegui conciliar o sono naquela noite. E quando finalmente o fiz, sonhei que todas as peças do tabuleiro ganhavam vida e que o rei vitorioso tinha os mesmos olhos do Lince.
Outubro chegou e estávamos em plena primavera. O jardim começava a ficar lindo. Descobri que Stirling havia trazido consigo várias plantas, e já tínhamos gerânios vermelhos e lobélias purpurinas a florescerem nos canteiros. Impacientava-me porém não ter uma ocupação definida. No que me era possível ajudar, eu vVivia no rastro de Adelaide, mas sentia-me ser um tanto desajeitada. Eu queria uma tarefa que fosse de minha inteira responsabilidade. Adelaide tranquilizava-me dizendo que a ajuda que eu dava nos afazeres domésticos era inestimável, mas eu não podia deixar de ver que ela só dizia isso por delicadeza.
Um dia, porque me doíam as costas depois de tanto arrancar ervas daninhas, estava eu a descansar por alguns momentos na casinhota do jardim, onde permanecera várias vezes durante o tratamento do tornozelo, quando Jessica surgiu vinda não sei de onde. Se havia hábito desconcertante era aquele das pessoas andarem de mansinho. Quando menos se esperava, lá estavam elas ao nosso lado.
- Ora, Jessica - exclamei.
- Vi você saindo da biblioteca. Esteve com ele durante muito tempo. Aborreceu-me estar sendo espionada.
E isso tem alguma importância? - perguntei com indiferença.
Ele está se afeiçoando a você e sente-se lisonjeada, não é? Afeiçoa-se às pessoas e depois... dá-lhes um chute. Saiba que ele não cuida de outra coisa senão do proveito que elas podem lhe dar.
Por que o odeia?
Para minha surpresa, enrubesceu-se e deu a impressão de que ia prorromper em lágrimas.
Por quê? Odeio, sim... Não... Não sei. Todo mundo tem medo dele.
Eu não tenho - falei sem muita segurança.
Tem certeza? Olhe que ele é diferente das demais pessoas. Precisava tê-lo visto no dia em que chegou a Rosella Creek.
Onde é isso?
- É a propriedade. Hoje chama-se Herricks - o nome dele - mas antigamente era Rosella Creek. Tio Harley era o dono disso aqui. Bons tempos aqueles. O sítio não era tão grande quanto hoje e sempre havia alguma coisa para dar preocupação. Naquele dia em que o fogo nos encurralou em círculo, puxa vida, escapamos por um triz, conforme Tio Harley falou. Havia também as epidemias, as enchentes e a erosão da terra. Mas vencemos tudo isso e Maybella bem que podia ter feito um bom casamento. Havia um rapaz de Melbourne que sempre aparecia por aqui. Era bem de vida e o pai tinha uma loja lá. Podia ter pedido a mão de Maybella.
Tive a sensação de estar bisbilhotando coisas não propriamente destinadas a meu conhecimento, e que a Adelaide agradaria saber que eu apresentara uma desculpa qualquer para me descartar de Jessica. A tentação, porém, era demasiado forte para mim. Eu queria conhecer o estranho passado do pai de Stirling, sobre quem muitas opiniões começavam a dominar minha vida.
- Conte-me como foi - falei então.
- Quer saber, não quer? - sorriu-me com malícia. - Interessa-se por tudo quanto diz respeito a ele. É o que acontece a todo mundo. Aconteceu a Maybella também. Ela caiu numa espécie de deslumbramento desde o instante em que ele chegou. Lembro-me como se fosse hoje do dia em que ele chegou.
Fez uma nova pausa, e uma lânguida expressão de sonho tomou conta de seu olhar. Descontraíram-se-lhe os lábios num sorriso. Dessa vez não a instiguei. Esperei, e ela então recomeçou a falar serenamente mas com convicção, como se ignorasse minha presença e estivesse recordando a cena para o próprio deleite.
- Tio Harley havia ido a Sydney para esperar um navio que estava sendo aguardado. Dirigira-se para lá com à intenção de escolher uns dois homens que pudessem nos ajudar nos serviços do posto. "vou trazer dois latagões", disse. "Temos de nos precaver contra esses degredados, mas arrancaremos trabalho deles. Só nos bastam dois homens fortes". Meteu-se a caminho com seus alforjes e provisões, escolheu uma parelha de animais para os degredados e confiava em que estivessem de volta ao cabo de duas semanas, se não fossem retidos por enchentes e mau tempo. Demorou-se três semanas, por ter chovido muito e alguns rios terem transbordado. Eu e Maybella estávamos na cozinha a cuidar dos preparativos para o regresso, quando ele entrou. Primeiro beijou Maybella, depois a mim. E disse: "Arranjei dois camaradas, Maybel". Era assim que a chamava. "Um deles... bem, você vai ver com os próprios olhos". Vimos. Estávamos à janela da cozinha quando o vimos pela primeira vez. A altura dele nos espantou. "Que rapaz alto", disse Maybella. "Esse também veio no navio?" Tio Harley confirmou com a cabeça. "Sete anos. Imagine só, minha filha. Acusado injustamente, diz ele". "Não é o que todos dizem?", atalhou Maybella fazendo-nos rir. Mas ele era diferente. Aqueles olhos queimavam a gente por dentro. Não se podia tratá-lo como um condenado nem tampouco como um criado. O próprio Tio Harley logo sentiu isso também e parecia agachar-se diante dele. Nem bem se passou uma semana, e já falava com ele como a um igual. Ah, como era esperto. Capaz de fazer o dobro do trabalho de um homem com um, muito cedo estava ensinando a Tio Harley como fazer prosperar a propriedade. Era estranho que Tio Harley lhe desse ouvidos, ele que se julgava saber das coisas melhor do que ninguém.
Fez outra pausa e olhou para mim.
- Você não acreditará no que o homem foi capaz de fazer em tão pouco tempo.
- Acredito, sim.
- Três semanas depois da chegada já estava fazendo refeições conosco. Dizia Tio Harley que eles tinham um assunto importante para discutir. As maneiras dele eram diferentes das dos outros homens - diferentes das de Tio Harley. Sentado à mesa fazia-nos sentir desajeitados, como se ele fosse o anfitrião e nós os criados. Conversava um bocado com Tio Harley. Tomava um pedaço de papel e rascunhava um esboço desse ou daquele trecho da propriedade. Uma vez mostrou como construir um galpão que deveria ficar acima do nível do chão para que a lã se conservasse seca. Dizia que nossa prensa de lã era antiquada e que precisávamos ter uma outra. Tio Harley costumava ouvi-lo fascinado, a repetir baixinho. "É isso mesmo, Herrick", com tanta reverência como se ele fosse o patrão e meu tio o empregado. Chegou a época da tosquia e nunca antes havíamos sido tão bem sucedidos. Ele fez com que todos se juntassem ao trabalho - os jardineiros, os criados, quem quer que tivesse duas mãos estava apto a trabalhar. Nessa altura ele já se havia tornado uma espécie de supervisor e todos o temiam. Tio Harley disse uma vez "A você nada escapa, tem olhos de lince", e foi daí que começaram a chamá-lo de Lince. Os nativos pensavam que ele fosse uma espécie de deus dos brancos. Trabalhavam quando ele se achava presente, mas era só dar as costas para que eles se sentassem de mãos no colo sem nada fazerem. Lembro-me de como nos fez rir quando desenhou um auto-retrato que de tão real parecia estar olhando para a gente de dentro do papel. Coloriu os olhos - o mesmo azul dos olhos dele, e pregou a figura no galpão, dizendo: "Mesmo quando não estou aqui, estou observando vocês". Eles tinham medo; olhavam para o quadro e pensavam que Lince em pessoa estivesse na parede. Esse o tipo de homem que ele era. Assim, não foi de admirar...
Interrompeu-se mais uma vez e sacudiu a cabeça como se quisesse alongar-se nas recordações. Esperei com ansiedade que ela continuasse.
- Maybella ficou enfeitiçada. O filho do lojista nada mais representava para ela. Quando Lince estava por perto os olhos dela se iluminavam e até ficava mais bonita por isso. Na verdade, não era bonita... um tipo bastante comum. Eu era muito mais bonita do que ela - mas acontece que não passava da sobrinha do patrão. Ela herdaria a propriedade porque não havia filho homem. E quanto a mim, não haveria de ter nada, só mesmo onde morar. Nada mais. "Não se preocupe", Maybella vivia repetindo, "sempre haverá aqui um lugar para você, jessie". E sabia o que estava dizendo. Maybella tinha um bom coração, ah, se tinha.
- E então ela se apaixonou por ele.
- A casa já não era a mesma. Trataram de melhorá-la aos poucos. Pensando maravilhas dele, Tio Harley diria ocasionalmente: "Veja, Lince, acha que podemos confiar a jim, ou tom - ou fosse lá quem fosse - a tarefa de levar esses fardos para Melbourne?" Dizia sempre "nós". Por aí você vê como andavam as coisas. Maybella não falava de outro assunto, senão nele. Estava louca por ele. Creio que não havia coisa alguma que ela não fizesse por ele - e isso logo ficou demonstrado. Quando a criança estava para nascer, teve medo de falar ao pai, que era muito religioso. Pensava que ele fosse expulsá-la de casa. Eu sabia que só podia ser um o pai da criança, e horrorizei-me. "Um criminoso, Maybella", disse eu. Levantou a cabeça e gritou. "Que me importa? Ele foi acusado por engano e orgulho-me dele. Nada me interessa, a não ser que vou ter um filho dele". Disse isso ao pai, e o mais espantoso de tudo foi que ele respondeu: "Só há uma coisa a fazer agora; terá de haver um casamento". Assim, menos de um ano depois de ter chegado a Rosella como um réu, ele se casava com Maybella. Depois nasceu Adelaide e, daí por diante, todos sabiam que o patrão era ele.
Fixou em mim os olhos chamejantes de uma emoção que não consegui compreender muito bem.
- Fosse eu a filha de Tio Harley, e eu é que teria sido a escolhida.
- Quem sabe se não amava mesmo a Maybella? Ela riu-se.
- Amar Maybella? Desprezava Maybella, isso sim. E demonstrava para quem quisesse ver. Pobre Maybella, continuou a adorá-lo até o dia em que ele a matou.
- Matou?
- Tão certo como se tivesse lançado mão de uma arma e atirado nela. Ele se desapontara com Adelaide. Queria um filho. Queria um filho que se parecesse exatamente consigo próprio. Por pouco a pobre Maybella não morreu ao ter Adelaide. Na época eu pensei que tudo aquilo não passasse de incómodos prematuros, mas foi a mesma coisa com os outros. Ela não nascera para ter filhos e estava aterrorizada. Sofreu muito com Adelaide. Ele chamou-a de Adelaide por causa de Adelaide, a cidade. Uma homenagem à nova pátria, disse. Pudera, saíra-se nela muito melhor do que esperava. Tio Harley caducava com Adelaide, mimava-a ao extremo. Mas Maybella não dava muita atenção à criança; todos os pensamentos eram para ele que a enfeitiçara direitinho. Ele sabia disso e por isso mesmo parecia desprezá-la.
- Você disse que ele a matou.
" - E matou. Todo ano era um aborto. Coitada, como se apavorava, já quase uma inválida. Mas ele queria um filho. Nessa altura havia assumido a administração da propriedade - ele, um condenado. Tinha sete anos a cumprir, e cumpriu-os todos como patrão. Tio Harley era igual a Maybella: tinha medo dele. jamais faziam coisa alguma sem consultá-lo, e ele desprezava a ambos. Matou Maybella, obrigando-a a constantes gestações. Todos sabíamos que ela não tinha suficiente saúde para suportá-las. Seis anos depois de ter feito aquela viagem a Sydney para trazer empregados, Tio Harley morreu. Lembro-me bem. Em redor do leito de morte estávamos todos nós - Maybella, a pequenina Adelaide, eu e ele. Tio Harley acreditou nele até o fim. "Rosella é sua, Maybella", disse. "Sua e de Lince. Ele cuidará de você e da propriedade. Deixo você em boas mãos, minha filha. E sempre haverá um lugar para você, Jessie". E então morreu, pensando ter deixado tudo na mais perfeita ordem. Mal sabia que dentro de um ano Maybella estaria enterrada a seu lado.
- Mas você disse que ele a matou - insisti.
- Ela morreu quando Stirling nasceu. Odiei-o e cheguei a lhe dizer "Você vai matá-la". Olhou-me com aqueles olhos desdenhosos como se me considerasse uma idiota. Eu gostava de Maybella. Éramos como irmãs. Quando ela morreu, morreu um pedaço de mim. Já ouvi outras pessoas dizerem isso antes. É um cliché, não é? Mas bastante certo. Para mim foi certo. Ele matou Maybella porque a obrigava todos os anos a tentar ter o filho que ele queria, embora ela quase não passasse de uma inválida depois do nascimento de Adelaide. Mas ele era cruel e duro. Teve afinal o filho desejado. Teve Stirling. E foi isso o que acabou matando Maybella. Se não fosse a obstinação dele em ter um filho homem, ela hoje estaria viva.
Permaneci calada por alguns momentos, ao cabo dos quais ela acrescentou:
- Ele sempre consegue o que deseja. Há de ver.
Pensei no sonho dele em fazer uma fortuna em ouro, sonho que ainda não conseguira realizar, e disse:
- Ninguém consegue tudo o que deseja.
Ele passa por cima de todo mundo para ter o que quer. E no final acaba tendo.
- Odeia-o e no entanto...
- Odeio-o pelo que fez a Maybella.
- E no entanto... Encarou-me com ferocidade.
- Por que está dizendo isso?
- Sinto que não o odeia o tempo todo.
Afastou-se de mim como se passasse a temer-me. Depois levantou-se num ímpeto e saiu.
Chegou novembro e também a época da tosquia. Dava-se então o auge do trabalho de todo um ano. Em vista da grande atividade, tanto Stirling como o pai largavam-se diariamente pela fazenda. Eu seguia atrás em companhia de Adelaide, para ajudar no preparo das refeições. Trabalhávamos duramente na enorme cozinha de piso de pedra, cozinhando para os empregados e também para os tarefeiros que nessa época eram chamados a ajudar. À noite era comum aparecerem andarilhos na propriedade pedindo pousada em troca da ajuda que dariam no dia seguinte. Nunca tínhamos certeza de quantos haveríamos de acolher.
Tudo aquilo era para mim de grande interesse e bastante diferente da vida que levávamos na Pequena Whiteladies.
Um dia, enquanto eu me encontrava só na cozinha a misturar massa, Jacob Jagger entrou. Debruçou-se na mesa, a observar-me.
- Compõe um bonito quadro, Miss Nora - disse e os olhos miúdos e acesos pareceram esquadrinhar todas as partes de meu corpo.
- Obrigado. Espero que este pão seja tão apreciado quanto o quadro de que fala.
- Gosto de quem tem uma resposta na ponta da língua.
- E eu gosto de que a cozinha seja só minha quando estou trabalhando.
- Petulante, muito petulante. Também gosto disso.
- Bem, Mr. Jagger - retorqui, - tudo o que posso lhe dizer é que se contenta com muita facilidade.
- Como norma não sou assim tão fácil de contentar no que diz respeito às mulheres.
- O que è muito lamentável, considerando-se a escassez delas nesta parte do mundo. Agora, Mr. Jagger, eu ficaria muito agradecida se me fizesse o favor de se arredar para um lado. Preciso chegar até o forno.
Arredou-se, mas não saiu. Senti-me ruborizada ao abrir o forno e puxar os pães para fora.
- Nossa! Isso parece excelente. Tão saboroso quanto a cozinheira. Eu gostaria de vê-la mais vezes nesta cozinha, Miss Nora. Sempre que desejar dar uma volta pela propriedade, quando não houver tanta gente por aí, é só me pedir.
- É provável que eu peça a Mr. Stirling - respondi de olhar fixo nos pães que saiam do forno. - Até logo, Mr. Jagger - continuei com mordacidade. Desconfio de que Mr. Herrick está à sua espera na tosquia.
Deixei implícito que até poderia mencionar a Mr. Herrick o fato de que ele estivera a bater papo na cozinha, num momento em que nada me agradou que lá estivesse. E a simples menção do nome de Lince seria o bastante para demovê-lo de sua atitude.
Fez uma vénia irónica e saiu.
Quando a tosquia chegou ao fim, de repente todos pareceram se lembrar de que o Natal estava próximo.
Celebramos o Natal aqui da mesma maneira como é celebrado em nossa terra - explicou-me Adelaide. - Meu pai faz questão de que seja assim.
Ela prepararia pudins e pastelões, malgrado não lhe ser possível obter todos os ingredientes existentes na Inglaterra. Matariam aves das mais bem tratadas e, apesar de ser pleno verão no país, tudo deveria parecer o máximo possível como na Inglaterra. Admirava-me de ver que Adelaide, que nunca havia estado nas ilhas britânicas, a elas se referisse como "nossa terra", e que conhecesse tão bem nossos costumes. Mesmo assim, estava constantemente a me perguntar como se fazia isso e aquilo, e eu sabia que era só para agradar ao pai.
Ela e eu tomamos um coche para Melbourne e fomos fazer compras lá. Foi uma aventura e tanto. Permanecemos duas noites no Lince Hotel, e numa delas fomos levadas ao teatro por Jack Bell, certamente obedecendo a instruções de Lince. Deu-nos um prazer imenso visitar as lojas. De minha parte, gastei bom dinheiro do que me havia sido creditado no banco, resultante da venda de minhas ações da mina. Sentindo-me como se fosse rica, comprei presentes - e para mim mesma comprei umas botas resistentes e pano para vestidos novos.
Mais ou menos uma semana depois de nosso regresso, notei que Mary, a criada que me atendia, andava aflita. Certa manhã, ao trazer-me água quente, tropeçou no tapete e se esparramou no chão, derramando a água. Depois que as coisas ficaram em ordem, perguntei-lhe:
- Algo de anormal, Mary?
- Por que, Miss Nora? - respondeu corando de angústia. - A que se refere?
- Está parecendo aflita, deixando constantemente as coisas caírem. Sente-se aqui e me conte o que está acontecendo.
- Fazendo como mandei, irrompeu numa torrente de lágrimas ao sentar-se. E a história veio à tona. Ia ter um filho e não sabia o que fazer.
- Bem, isso não é muito agradável, mas também não é o fim do mundo. Talvez até possa se casar.
Tal observação provocou-lhe novas lágrimas. Não era possível, ao que deu a entender. E murmurou alguma coisa sobre ir-se embora e parir a desonra longe.
- A desonra é também do homem - disse-lhe com frieza. - Também ele participa.
Nada podia ser feito, assegurou-me. Só esperava que não fosse enxotada.
- Isso não há de acontecer - afirmei-lhe categoricamente como se fosse a dona da casa e como se todas as decisões dependessem de mim. Acrescentei que a primeira coisa que devíamos fazer era contar tudo a Adelaide.
Adelaide expressou-se com um suspiro quando lhe contei.
- Frequentemente isso acontece aqui - disse. - Estamos longe da cidade e esses jovens têm o sangue quente. Não pensam nas consequências. Quem é o rapaz?
- Ela não dirá.
Em nada me surpreendi quando Mary, afinal, revelou que o homem era Jacob Jagger.
- Irá desposá-la? - perguntei a Adelaide.
- Não acredito nem por um instante sequer.
Há de casar, se seu pai insistir.
Também não acho que devamos insistir.
- Eu jurava como ele o faria.
- Ainda não o conhece, Nora.
Aparentemente eu não o conhecia mesmo, pois encarou o assunto sem muita seriedade. Mary poderia ter o filho em casa e criá-lo ali mesmo. Quanto a Jagger, era claro que não lhe passaria pela cabeça se casar com uma moça como Mary. Administrava muito bem a propriedade e não era fácil arranjar homens como ele. De mais a mais, precisava divertir-se de vez em quando. Era esse o ponto de vista de Lince.
Depois disso passei a escutar os comentários de alguns criados sobre o assunto.
- O patrão foi muito compreensivo com o caso - disse um deles.
- E nem podia ser de outra forma, considerando que... - foi a resposta. Eu sabia que aquilo significava que a própria conduta dele não era exemplar, e me perguntava por que meu pai me mandara viver numa casa dessas.
O alivio de Mary foi imenso, quase uma sensação de felicidade. Perguntei-lhe se teria gostado de se casar com o pai da criança.
- Deus me livre, Miss Nora - respondeu.
- Mas deve ter gostado dele... ao menos por uma vez.
- Nunca. Dominou-me pelo medo.
- Mas...
- Estranha que eu tenha consentido. Pois bem, ele me encurralou num canto sem me dar muita oportunidade de falar. Pense bem na minha situação.
- Ele não podia tê-la forçado - disse eu.
- Calculo que tenha sido isso mesmo - concluiu. Senti-me bastante intranquila.
Pareceu-me estranho acordar numa ensolarada e quente manhã de Natal. Poucos dias antes, Stirling e eu havíamos feito um passeio a cavalo pelos sertões e, de volta, trouxemos alguns ramos de loranto de um tipo parasitário de eucaliptos. Não era como os lorantos da Inglaterra, mas servia. Penduramos alguns em cima da porta e outros no meio da sala e, findo o trabalho de decoração, Stirling beijou-me sob as guirlandas.
- Que seja este o primeiro de muitos Natais na Austrália - disse-me.
- E se seu pai chegar a descobrir ouro? - inquiri. - Então seremos recambiados todos para a Inglaterra, com armas e bagagens.
Não me deu resposta e eu sabia que nem sequer queria pensar em deixar aquela terra.
Jantamos com dia claro e passei grande parte da manhã em companhia de Adelaide na cozinha. Enquanto cozinhávamos as galinhas, o pudim de ameixa esfriava na caçarola. Fazia um calor enorme. Saí um pouco para aspirar ar fresco, mas lá fora estava tão quente quanto dentro da cozinha. Permaneci por alguns momentos a olhar para os eucaliptos floridos e lembrei-me de que no ano passado, nessa época, eu estava em Danesworth House, afligindo-me de dia para dia com a falta de notícias de meu pai. Muita coisa aconteceu em tão pouco tempo.
As avelãs estão boas para ser colhidas - disse-me Adelaide vindo cá fora. - Devo colhê-las agora? - Ela própria deu a resposta. - Não. Estragaria a ilusão e o Natal ficaria um pouquinho diferente do de nossa terra.
Um grande grupo reuniu-se à mesa. Lince sentou-se à cabeceira e eu me conservei à sua esquerda tendo Stirling de frente, tal como nos sentávamos desde a primeira noite. Lá estavam também muitos homens da propriedade e da mina. Por ter ocupações no hotel, Jack Bell não pôde se juntar a nós. E para Jacob Jagger eu evitava olhar desde o incidente com Mary. Se ao menos ele a tivesse amado, ou ela a ele, eu pensaria de outro modo. Mas não me era possível esquecer a descrição de Mary de que havia sido "encurralada num canto". Eu sabia que ele olhava constantemente em minha direção, que se empenhava em me fazer dirigir-lhe a palavra ou lhe sorrir. Recusava-me porém a fazer tal coisa. O homem me enojava. Um dia eu haveria de falar a Stirling sobre ele. Frente a frente, meus olhos encontravam-se com os de Stirling que sorria para mim com tal alegria que exultei de felicidade.
Foi uma ceia deliciosa. Lince estava de ânimo benevolente e era claro que se sentia satisfeito em presidir aquela mesa que em tudo por tudo podia ser comparada com qualquer outra numa mansão inglesa. Quando Mary trouxe o pudim de Natal, regaram-no de conhaque e o acenderam. Estava ótimo.
Já estávamos um tanto modorrentos sob o efeito do vinho do Porto, quando, de repente, ouviu-se um certo distúrbio na cozinha, seguido de um barulho de vozes altas e alguém a gritar: "Deixe-me falar com ele. Ou então deixe-me falar com Miss Adelaide".
Adelaide empalideceu, levantou-se e saiu para logo voltar.
- Que está acontecendo? - perguntou Lince.
- São os Lamb. Voltaram.
- Para quê? - tornou Lince a inquirir.
- Querem voltar para cá.
- Voltar? Pensei que tivessem ido em busca de ouro.
- E foram. mas estão de volta.
- Sem a fortuna que foram cavar?
- Estão num estado deplorável - disse Adelaide.
- Não os receberei de volta - Lince retorquiu com frieza. Tentei atrair o olhar dele, mas não se dignou olhar para mim.
- Talvez... - começou Adelaide.
- Diga-lhes que se vão. Não recebo em minha casa quem dela fugiu uma vez.
Adelaide deu as costas. Levantei-me também da cadeira.
- É possível que estejam com fome - disse eu. Lince dardejou-me um olhar de aço.
- Saíram daqui para fazer fortuna. Não me interessa que tenham fracassado. Quando deixaram esta casa, deixaram para sempre.
Adelaide retirou-se da sala e, taciturna, voltei a meu lugar. A alegria do Natal havia desaparecido de mim.
No dia seguinte eu ainda pensava nos Lamb quando sai a passear a cavalo em companhia de Stirling.
- Aquilo foi uma crueldade. E logo no dia de Natal. Stirling não tolerava a menor crítica ao pai.
- O dia não faz diferença.
Não faz - concordei. - Teria sido cruel em qualquer dia, mas no dia de Natal foi pior porque esvazia de sentido tudo o que o Natal significa.
- Não podemos permitir que essa gente fuja e volte quando bem entender, esperando que matemos um novilho gordo para recebê-la.
- Não se trata disso. Mas eles podiam ter recebido ao menos alguma comida e ajuda.
- Não duvido que Adelaide o tenha feito.
- Mas acontece que ele não os ajudou. É um homem de coração muito duro.
- Sabe o que está fazendo. Precisa mostrar a essa gente que não pode dar no pé em busca de ouro num dia e voltar no outro, depois de fracassar em descobri-lo.
O palavriado de Stirling era positivamente obstinado. Dei-me conta naquele momento de que tinha ciúmes de seu amor pelo pai. Lince sempre estaria em primeiro lugar.
Discutimos o assunto durante todo o passeio e acabamos por brigar quando o acusei de não ter mentalidade própria, aceitando piamente tudo o que o papai lhe dizia. Replicou taxando-me de professorinha opiniosa que, por ter ensinado uma vez a menininhas de cinco anos, pensava que podia ensinar aos mais velhos... sim, e melhores.
Galopei à frente dele, ferida e zangada, pois já começava a desenhar um quadro de viver para sempre ao lado de Stirling, de me casar com ele e de ter Lince como sogro. Eu não tinha muita certeza de querê-lo para sogro. O ideal seria que não existisse nenhum Lince e que o pai de Stirling fosse um homem comum. Mas logo pensei que isso não me satisfaria. Impossível imaginar aquele lugar sem Lince. Meu crescente relacionamento com ele deixava-me eufórica e eu exultava em ver que tampouco era ele indiferente a mim. Queria-o interessado por mim, que me ouvisse, que me respeitasse e que gostasse cada vez mais de mim. Queria tornar-me importante a seus olhos. Mais importante, porém, eu desejava ser para Stirling, mais do que qualquer outra pessoa no mundo, embora soubesse que enquanto Lince existisse tal coisa jamais poderia se dar.
No dia seguinte Stirling comportou-se como se entre nós não tivesse havido a menor discussão. Tratava-me como a uma irmã. Não era bem isso o que eu queria, mas sentia-me feliz e segura em ver que nosso relacionamento só tendia a se estreitar cada vez mais. No devido tempo, tinha certeza, eu haveria de lhe ser tão necessária como ele era para mim.
Os Lamb nunca mais voltaram a ser mencionados. Agradava-me imaginar que Adelaide os ajudara, e com toda certeza o fizera. Mary estava feliz novamente e aumentando de peso a olhos vistos. Quanto a Jemmy, eu o via frequentemente nos estábulos; desenvolvera uma autoconfiança que, afinal, se revelou não ir muito além da aparência. Escutei-o muitas vezes a assobiar enquanto trabalhava, e o fato de termos podido ajudá-lo deixava-me bastante feliz. Por isso, foi para mim uma enorme surpresa saber um dia, em princípios de fevereiro, que Jemmy havia sumido.
Era sempre aquela velha história. Ele confidenciara a um dos moços da estrebaria que estava se largando em busca de ouro. Lince riu-se quando soube do caso.
- É mais um deles - disse. - Ninguém aqui vai aceitá-lo de volta quando se cansar dos campos de ouro.
Convidou-me naquela noite para uma partida de xadrez depois do jantar. Não iniciamos porém a partida de imediato. Fiquei pensando que apenas quisesse lançar-me em rosto o caso de Jemmy, visto que Stirling lhe falara de minha ansiedade em ajudar o menino quando o encontramos a bordo.
Não adianta querer bancar o anjo da guarda, Nora. Venha tomar comigo pouco de vinho do Porto. - Encheu os copos. - Veja em que deu o seu jemmy.
Deve compreender muito bem a ânsia de querer descobrir ouro.
Compreendo e tenho-a experimentado.
Então por que tanta incompreensão para com os outros?
Nada tenho a ver com os outros. Só cuido de mim mesmo.
E no entanto condena as pessoas que se largam em busca de ouro.
Engana-se. Tudo o que tenho afirmado é que não as receberei de volta se fracassarem.
Os Lamb...
Ah, odiou-me naquela ocasião, não foi?
Considerei-o muito cruel, sobretudo porque era dia de Natal.
- Minha querida e sentimental Nora, o dia nada tem a ver com isso.
- Stirling disse a mesma coisa.
- Então repisou o assunto com ele?
- Abordei o assunto.
- E me atacou furiosamente, pois não?
- Sim, mas ele o defendeu. Sorriu antes de prosseguir.
- Nora, a vida é inclemente, como bem sabe. De nada vale querer ser generoso num mundo inclemente. Você é sentimental e emotiva demais. Há de sofrer muito um dia.
- E você? Acaso é sentimental e emotivo? Não. E mesmo assim sofreu... sofreu tanto que nem consegue esquecer.
Arqueou aquelas sobrancelhas farfalhudas e encarou-me. Depois, suspendeu as mãos de modo que os punhos da camisa deixassem a descoberto as cicatrizes que ele tinha nos pulsos.
- Algemas - explicou. - Grilhões e correntes. As marcas ainda estão aqui.
- Nada significam hoje. já não está algemado. Está no comando. Governa a vida de todos que o rodeiam.
- Mas as cicatrizes permanecem.
- Tanto nos pulsos como no coração.
Calou-se por algum tempo, contraindo os olhos ao prosseguir.
- - Tem razão, Nora. O que me aconteceu é algo que jamais será esquecido. Só quando certas dívidas forem saldadas.
O olhar incandesceu-se-lhe e vi que estava pensando em vingança.
- Há quanto tempo isso aconteceu? - perguntei.
- Faz trinta e cinco anos que aqui cheguei... acorrentado.
- E ainda fala em saldar dividas?
- Continuarei a pensar nisso até que o ajuste seja feito.
- É tempo demais para se abrigar um ressentimento.
- Para uma tal injustiça?
- Os tempos mudaram daqueles dias para cá. Hoje as pessoas são menos cruéis. Teria sentido culpar o tempo?
- Vejo as coisas diferentemente. Se não fosse por um certo homem, eu jamais teria sido compelido a suportar aqueles meses de degradação e de humilhação.
- Mas está agora são e salvo. Tem tudo o que um homem poderia desejar. É um rei num mundo próprio. Tem um filho e uma filha, e as pessoas tremem de medo em sua presença. Não é isso mesmo o que quer?
Fitou-me nos olhos com um sorriso demorado.
É um tanto audaciosa, Nora. Não tem o mínimo cuidado de ver que me ofende com suas críticas.
- Homens como você detestam criticas, sei disso. E essa é mais uma razão para que certas pessoas não tenham medo de fazê-las.
- E escolheu-se a si mesma para tal papel?
- Estou decidida a mostrar-lhe que não tenho medo de você.
- Suponhamos que eu lhe pedisse para abandonar minha casa.
- Só me restaria arrumar as malas e partir.
- Para onde?
- Não sou tão sem habilitações como pensa. Lembre-se de que ensinei em Danesworth House. Poderia ser professora ou governanta na casa de alguma família.
- Triste vida para uma mulher orgulhosa.
- Melhor do que estar onde não se è desejada. Seus olhos azuis fixaram-se continuadamente em mim.
- E acredita que è indesejável aqui?
- Tenho cá minhas dúvidas.
- A verdade, por favor.
- Acredito que tenha feito uma promessa a meu pai, e que é o tipo do homem que gosta de cumprir uma promessa, desde que...
- Prossiga, por favor.
- ...desde que cumpri-la não lhe acarrete demasiados inconvenientes.
- Então deixe-me dizer-lhe, Nora, que tê-la nesta casa não acarreta para mim o menor inconveniente. Se houvesse o menor sinal disso, eu deixaria de me importar com sua existência. Você tem sido franca comigo e vou ser franco com você. Eu diria que não me desagradou totalmente essa nova adição à minha família. Sempre quis que me viessem filhos, mas também não desgosto das filhas. Elas têm lá sua utilidade.
- Então tenho eu alguma utilidade?
- Não estou descontente com minha família. Vamos jogar uma partida. Você bem sabe que precisa ganhar este tabuleiro.
Jogamos. Eu estava atenta a seu crescente interesse por mim. E isso me encantava.
Estávamos no verão ardente. Pela manhã eu trabalhava na cozinha e no jardim, mas à tarde eu tratava de encontrar um lugar sombrio, um pé de acácia, onde pudesse me deitar e ler, embora as moscas - e eu nunca as havia visto em tão grande número - fossem uma peste. Muito mais confortável era sentar na fresca e pequena sala de Adelaide, costurar ou ler em voz alta enquanto ela costurava, coisa que lhe agradava sobremodo. Gostava de Jane Austen e das Brontes, e mostrava-se tão apaixonadamente interessada na paisagem inglesa quanto o pai. Muitas vezes Jessica entrava sorrateira e sentava-se a me ouvir também. Devo confessar que sua presença deixava-me pouco à vontade. Sentava-se muito quieta com as mãos no colo, dando-me a impressão de que queria ficar a sós comigo para falar dos primeiros tempos de Lince na Austrália, quando se instalou na fazenda que então se chamava Rosella Creek.
Foi assim que o verão se passou. E quando o tempo deu os primeiros sinais de que iria tornar-se mais fresco, Adelaide sugeriu que fizéssemos outra viagem a Melbourne. Havia muita coisa de que ela necessitava. Era fácil obtê-las sem sair de casa, porque um dos negócios de seu pai consistia em fornecer mercadorias a pequenas lojas e ambulantes nas minas de ouro. Mas, como ela costumava dizer, escolher para si mesma dentre um sortimento grande era um luxo que não dispensava. Poderíamos nos instalar no Hotel Lince e dessa vez, como eu já estava acostumada ao país e era tida como uma boa equitadora, iríamos a cavalo e acamparíamos em algum lugar, o que era bem mais conveniente do que esperar dentro dos coches Cobb. Stirling nos acompanharia e certamente que a pequena caravana incluiria um outro homem qualquer. Sempre havia quem tivesse negócios a resolver em Melbourne e quisesse se juntar a nós.
Naquelas noites de verão tive oportunidade de jogar várias partidas de xadrez com Lince. Ele exibia invariavelmente um prazer um tanto sarcástico, porque sabia do meu desespero em querer derrotá-lo. A coisa tornara-se para mim quase como uma obsessão, o que era bem típico no nosso relacionamento. Eu sempre quis demonstrar-lhe que não tinha medo dele, e o fato de estar continuamente a repisar tal coisa demonstrava que eu tinha.
Seja como for, aquelas noites na biblioteca, com a lâmpada de quartzo ao nosso lado a banhar o tabuleiro de xadrez com uma claridade rósea, tornaram-se parte da minha vida. Eu sentia um certo contentamento em me sentar ali, a observar aquelas mãos compridas e artísticas com o sinete do anel de jade. Minha tensão crescia a cada momento ao sentir que podia aplicar-lhe um xeque-mate em poucos movimentos. Mas ele sempre estava preparado para um contra-ataque devastador que reduzia minha ofensiva à mera defesa. Eu então ergueria o olhar e dava com aqueles olhos magnéticos em cima de mim, transbordantes de um riso zombeteiro e acesos de satisfação. Pois agradava-lhe demonstrar-me que, por mais que eu tentasse derrotá-lo, no final ele sempre vencia.
- Ainda não foi desta vez, Nora - dizia. -Que pena. São umas peças realmente lindas. Olhe esse castelo. Feito com tanta delicadeza. Mesmo que você ganhe, continuará a jogar comigo, não é? Eu não gostaria que deixássemos de jogar simplesmente porque o tabuleiro passou para outras mãos.
Comecei a conhecê-lo mais e mais. De fato, momentos havia em que ele parecia suspender aquela barreira invencível erigida em torno de si mesmo. Quando ela se fazia sentir, ele era o Lince orgulhoso, invulnerável, onipotente. Mas podia ser removida e, de certa forma, descobri um meio de fazê-lo. Tudo começou quando ele me mostrou as cicatrizes nos pulsos. Depois, chegou mesmo a me mostrar seus quadros.
Cheguei um pouco cedo à biblioteca para nossa partida porque meu relógio estava dez minutos adiantado. Bati à porta e, por não ter obtido resposta, entrei. Ele não estava, mas uma cortina num dos lados da sala havia sido corrida, deixando ver uma porta entreaberta que eu ignorava existisse ali.
Permaneci por alguns momentos na sala. Nunca havia estado ali sem a presença dele e era surpreendente como sua ausência a transformava. Agora era um cómodo comum - mobiliado confortavelmente, era certo, com tapetes felpudos, pesadas cortinas de veludo, fornidas cadeiras de carvalho e os livros enfileirados na parede. Uma biblioteca como se poderia encontrar em qualquer mansão inglesa. Sobre a mesa de carvalho via-se o tabuleiro de xadrez, pronto para nossa partida.
Atravessei a sala e olhei pela porta aberta. Lá estava ele, mas não me viu de imediato. Numa mesa à sua frente havia várias telas e lembrei-me do que dissera Jessica sobre o auto-retrato que ele pintara para meter medo aos nativos.
Relanceou um olhar e deu comigo.
- Já está na hora, Nora?
- Cheguei um pouco cedo. Meu relógio está adiantado.
Hesitou - coisa que raramente eu o havia visto fazer antes. Finalmente disse:
- Entre.
Entrei. Havia uma tela num cavalete e, sobre uma cadeira, um jaleco respingado de tinta.
- Este é meu santuário - disse-me.
- Invadi-o?
Ao contrário. Está aqui a meu convite.
- É um pintor.
- Isso é uma pergunta?
- Não. Sei que è.
- Está surpreendida? Não esperava de mim que tivesse tais talentos, não é isso mesmo? Talvez seja de opinião de que não tenho talento algum. Julgue com isenção de ânimo.
Passou o braço pelo meu, e essa foi a primeira demonstração de afeto até então havida.
- Esses quadros na parede são trabalhos meus.
- Então é um artista.
- Não é um connaisseur. Evidencia-se.
- Mas esses quadros...
- Falta-lhes forma, técnica ou seja lá o que você quiser. Não são lá muito bons.
Fiz uma pausa em frente a um retrato de mulher. Pareceu-me ter visto aquele rosto antes.
- Gosta desse?
- Gosto. É meiga e gentil e a expressão é... boa.
- Que ia dizer antes de boa?
- Não sei. Talvez que ele tivesse um ar frágil, envolvente, inteiramente feminino.
Assentiu com a cabeça e levou-me a ver o quadro seguinte.
- Auto-retrato.
Lá estava ele. A semelhança era grande e julguei-o um modelo fácil. A vasta cabeleira loura, a barba, a altivez da expressão, e um certo jeito de animal - tudo isso era fácil de captar. Um pouco da força arrogante do original estava faltando, mas isso era inevitável.
Levou-me a ver as telas que estavam sobre a mesa. Ei-la. A casa. A verdadeira Whiteladies. A mesma que eu e Stirling havíamos visto do alto de pés de carvalho. Não resisti a uma exclamação.
- É essa.
- Você esteve lá com Stirling - respondeu. -Ele me contou que sua mantilha voou por cima do muro e que vocês tiveram de ir buscá-la.
- Parece que ele lhe conta tudo.
- Conta tudo coisa nenhuma. Mas sei um bocado do que se passa na cabeça de Stirling. Afinal de contas, é meu filho.
- E ama-o como a mais ninguém no mundo.
- Não é inteiramente verdade. Sou capaz de afeição, mas não a esbanjo indiscriminadamente. Isso significa que quando a tenho, tenho muito para dar.
- Como foi capaz de pintar essa casa sem nunca tê-la visto antes?
- Quem disse que nunca a vi? Já vivi nessa casa, Nora. Conheço-a muito bem.
- Viveu lá? Foi sua? Por isso construiu uma outra de aspecto exatamente igual.
- Conclusões precipitadas. Vivi lá, é certo, mas não disse que me pertencia. Trabalhei nela durante um ano na humilde condição de professor de desenho da jovem filha da família.
- E acontece que Stirling descobriu que...
- Engana-se novamente. Stirling foi lá porque sabia que a casa existia. Pedi-lhe para ir.
- Então foi por esse motivo que tive de encontrar-me com ele em Canterbury. A própria Miss Emily Grainger estranhou muito.
- Foi a meu pedido que ele se dirigiu para lá.
- Você queria saber se a casa havia mudado muito desde que ali estivera pela última vez. Casas não mudam muito. São as pessoas que nelas vivem que...
- Acertou em cheio. Eu queria que ele observasse não tanto a casa como as pessoas que vivem nela.
- Porque já as conhecia de longa data. Ele não disse nada a esse respeito. Nem sequer declinou o nome. E creio que também não perguntaram. Tudo se passou de maneira um pouco esquisita e muito informal.
- Ele não iria dizer o nome. Teria sido temeridade.
- Deu-se algum desentendimento com a família? Ele riu mordazmente, amargamente.
- Quem era eu para brigar com eles... Era, como disse, o professor de desenho da filha da família. Eles eram ricos. Presumo que não estejam hoje em situação muito boa. Os tempos mudaram. O velho era um jogador... e não dos mais espertos. Creio que perdeu muito dinheiro depois de minha saída.
- Fato que lhe parece causar certa satisfação, pelo que depreendo.
- Depreende correto. Acaso não detestaria também a alguém que a exilasse da própria terra para uma escravidão de sete anos numa colónia penal?
- Então o caso foi com o dono de Whiteladies.
- Sir Henry Dorian, nada mais nada menos.
- Qual o motivo?
- Roubo.
- E você era inocente.
- Absolutamente inocente.
- Não pôde provar a inocência?
- Se me tivessem feito justiça, sim. Mas ele e seus amigos cuidaram de que não me fizessem justiça. Eu lhe violara o domicílio, alegou. De fato, fui à casa dele, e não a seu convite, mas não com o objetivo de roubar. - Sorriu-me. Você tem mente inquiridora, Nora - acrescentou com benevolência.
- Admito que sim. Quero saber mais. Lembro-me perfeitamente bem do local. Quando lá estive senti que havia ali algo importante para mim, de alguma forma. Na ocasião nem fazia ideia de que aquela casa estivesse ligada à vida de meu tutor.
Encolheu os ombros.
- Mansão maravilhosa. Como eu gostaria de possuir uma casa daquelas. Os olhos brilharam de cobiça. - Construi esta casa aqui - uma reles imitação. Não. Quero aquelas mesmas pedras, usadas há centenas de anos. Só existe uma Whiteladies, e não é esta aqui.
- Você possui uma casa muito confortável com o mesmo nome.
- É uma falsificação, Nora. Detesto falsificações.
- É satisfatória.
- Satisfaz como um sucedâneo até... - Deteve-se e acrescentou rindo: Está sendo lisonjeira, Nora. Está arrancando confidências de mim. E o simples fato de que eu esteja a consentir demonstraque sempre estou pensando em você como minha filha. Não é estranho? Não sou um homem sentimental que se deixa engabelar por uma filha. No entanto, permito que você me tente a falar.
- Falar è sempre bom. Sou sua tutelada. Vi aquela casa e as pessoas que moram lá. Uma jovem chamada Minta e sua mamãe.
Conte-me alguma coisa sobre ela. Stirling não soube descrevê-la. Para este tipo de coisas as mulheres são melhores do que os homens.
já sei. A mãe foi a tal a quem você ensinou desenho.
Assentiu com a cabeça.
- Era idosa... bem, talvez não tão idosa quanto aparentava.
- A seus olhos parecia tão idosa quanto eu?
- Quanto você, não. Em se tratando de você ninguém pensaria em idade. Mas ela parecia mal-humorada e preocupada com a saúde. A jovem era encantadora. E havia também uma pessoa chamada Lucie.
- Mal-humorada - ele ecoou e riu-se de leve, apontando para a tela que já havia me mostrado. - Era assim? Pintei-a de memória.
Percebi então de quem o quadro me fazia lembrar. A moça chamada Minta, sem dúvida alguma.
- Parece-se um pouco com a moça - disse eu. - Mas ela não tem esse ar tão desolado assim. Não, a mulher que estava sentada na cadeira não se parecia com esta. Talvez pudesse ter sido há muitos anos.
- Há trinta e cinco anos, quando ela estava com dezessete. Era linda, mas sem o menor talento para o desenho. Eu ia me casar com ela.
Eu começava a compreender. Ela era a filha da família em cuja casa ele ocupava uma posição subalterna. Lembrei-me de Jessica a contar como ele chegara a Rosella Creek.
- Quer dizer que foi para aquela casa ensinar desenho e resolveu se casar com a moça. Admirava a casa e gostaria de ter sido seu dono.
- Eu realmente admirava a casa e adoraria tê-la possuído, mas naquele tempo eu só tinha dezenove anos e era um sentimental. Romântico mesmo. Talvez você ache difícil de acreditar, mas era isso mesmo. Apaixonei-me por Arabella e ela por mim. Eu era um egoísta. Você está rindo. E pensando ah, sim, nisso eu acredito! Era verdade. Eu me considerava tão bom quanto qualquer outro rapaz e não podia conceber que o pai dela, Sir Henry Dorian, não me quisesse como genro. Certo, eu era o professor de desenho. Nada possuía a não ser meu talento. Mas em compensação era capaz de administrar aquela propriedade como jamais fora administrada antes. Se ele não tivesse sido o imbecil que foi, a família não estaria hoje reduzida à... bem, talvez não à penúria, mas deve ser doloroso ter de levar em conta cada xelim quando se tem uma posição a sustentar e se está acostumado ao luxo.
- Conte-me o que aconteceu.
- Ele sentiu-se ultrajado com minha sugestão. Casar a filha com um professor de desenho? Nunca. Já tinha em mente um janota das vizinhanças para ela. Alguém de família. Muito diferente do professor de desenho. Bella e eu resolvemos fugir. Havia na casa uma criada em quem ela confiava. Ingénua! A criada traiu-nos. Fui despedido da casa, mas voltei certa noite para buscá-la. Haviam-na trancado num quarto e por isso não hesitei em buscar uma escada num dos galpões, encostá-la na parede e entrar no quarto dela. No exato momento em que eu enfiava no bolso as jóias que ela ia me dando, Sir Henry, acompanhado de quatro serviçais, irrompeu no quarto. A história é esta, Nora.
- Mas certamente que ela lhes explicou...
- Tentou explicar. Chorou. Suplicou ao pai que a escutasse. Disseram que ela estava traumatizada, que não sabia o que estava dizendo, que eu a ameaçara e que ela estava com medo. Estavam determinados a livrarem-se de mim. Sabiam que se eu permanecesse na Inglaterra, a qualquer tempo podia persuadi-la a fugir comigo. Assim, a oportunidade era excelente para que eu fosse enxotado do país, e para que as coisas fossem arranjadas de tal maneira que jamais me fosse possível retornar. - Levantou a mão e os olhos de lince do anel brilharam.
- É uma história terrível - falei.
- Mais terrível acharia se pudesse imaginar a prisão imunda, o navio de degredados. Fui acorrentado, Nora. - Exibiu os pulsos novamente. - As correntes fizeram feridas; as feridas inflamaram-se. Fiquei trancafiado nos porões por meses a fio com toda aquela escória da Inglaterra. Ladrões, prostitutas, assassinos... todos a caminho da Austrália. Carga para os colonos; quando muito, mão-de-obra barata. Lembro-me do dia em que chegamos a Sydney e do momento em que fomos levados para o convés. O brilho ofuscante do sol. O mar azul ao nosso redor. Os pássaros. Sim, o que mais me impressionou foram os pássaros, de plumagens reluzentes araras vermelhas, periquitos com as cores do arco-íris, cacatuas de crista amarela e galahs róseos e cinzentos. Esvoaçavam e gralhavam por sobre aquele mar, e a coisa que mais me espantou era que eram livres. Já sentiu alguma vez inveja de um pássaro, Nora? Já senti... e foi aí quedesdenhei a mim mesmo e comecei a pensar em vingança. Um dia eu haveria de me vingar, e foi isso que me deu vontade de continuar a viver.
- Casou-se pouco depois de ter chegado à Austrália.
- É verdade. Casei-me com a mãe de Adelaide e Stirling.
- Era filha do homem em cujas mãos você caiu.
- Ora, você conhece muita coisa de minha história. Eu sabia que era inquiridora.
- Porque isso me interessa. E rapidamente se esqueceu da devoção a Arabella.
- Nunca me esqueci de minha devoção a Arabella. Eis uma coisa de que não posso ser acusado - inconstância.
- Mas casou-se.
- Maybella. Também era uma Bella.
- Não vá me dizer que se casou por causa do nome.
- Não. Podia ter sido Mary, Jane, Grace, Nora... qualquer nome que você imagine. Qual a importância de um nome?
- Ao menos podia chamá-la de Bella.
- O que fiz.
- E ela lhe recordava a outra Bella?
- Nunca -transpareceu desdém.
- Pobre Maybella - exclamei.
- Foi um casamento por conveniência, não nego.
- Conveniência para você e inconveniência para ela, possivelmente.
- Ela ansiava por isso.
- E lamentou-se alguma vez?
- Pelo que vejo, Jessica andou lhe contando coisas. Coitada da Jessie. Tinha ciúmes de Maybella.
- Deu-me a impressão de ter sido muito dedicada a Maybella.
- E era. As pessoas têm motivos contraditórios. Sim, sem dúvida que era dedicada a Maybella. Cuidou dela ao longo de toda a doença.
Abstive-me de aludir que sabia que doença havia sido.
- Ela queria estar no lugar de Maybella - acrescentou.
- Gostaria de ter sido a filha da família de modo a poder ter sido a única a tirá-lo da escravidão.
- Você è muito perspicaz. Já falamos muito e sobre assuntos enterrados.
- Não pelo que lhe diz respeito. Disse que jamais haveria de esquecer.
- Não me esquecerei - repetiu com veemência, o anel cintilando quando ele cruzou as mãos. - Mas tudo isso pertence ao passado. Agora vamos ao nosso jogo.
Levou-me para a biblioteca e sentamo-nos face a face em torno do tabuleiro, como fizéramos em tantas outras ocasiões.
Naquela noite ele se mostrou distraído e quase o derrotei. Mas reorganizou-se a tempo. Não queria que eu ganhasse, fosse porque não queria abrir mão do tabuleiro, fosse porque detestasse ser derrotado por uma mulher. Eu não sabia bem qual das razões. Talvez ambas.
Aquela noite de confidências, porém, teve o mérito de nos aproximar bastante um do outro. Armara-se possivelmente de um pouco de cautela comigo e realmente senti que ele se deixara revelar demais - mas foi por isso mesmo que nos aproximamos.
Foi depois disso que planejamos a visita a Melbourne. Stirling, Adelaide e eu seríamos acompanhados por um dos homens da propriedade. Viajaríamos mais ou menos quarenta milhas até chegarmos à cidade, levando cerca de três dias, o que significava que teríamos de acampar por duas noites.
- Para Nora não há de passar de uma viagenzinha - foi a descrição que Stirling fez do passeio.
Não levaríamos mais que o estritamente necessário, frisou Adelaide, pois tudo teria de ser carregado. Havíamos enviado anteriormente roupas e objetos de que necessitaríamos durante nossa permanência no Hotel Lince, em Melbourne, de modo que já os encontrássemos lá à nossa chegada. Assim, poderíamos nos apresentar vestidos com elegância e na moda, fazer nossas compras e remetê-las para Whiteladies. Depois, trataríamos de empreender a jornada de volta, acampando novamente no meio do caminho.
Também levaríamos alguns cavalos de reserva além de dois burros de carga. Nos alforjes carregaríamos um pouco de cada coisa. Havia uma tenda para mim e Adelaide. Quanto a Stirling e o homem que nos acompanharia, dormiriam sob as estrelas. Tudo aquilo parecia muito excitante e eu estava ansiosa para que chegasse o dia.
Só mais ou menos uma hora antes de iniciarmos a jornada foi que descobri que o homem escalado a nos acompanhar não era outro senão Jacob Jagger.
- Esse homem! - protestei junto a Adelaide.
- Precisa ir a Melbourne a negócio e disse que gostaria de aproveitar a oportunidade.
- Eu pensava que ele não pudesse se ausentar da propriedade.
- Francamente, Nora. Que ideia faz você da propriedade?
- Bem - hesitei, - a função dele é administrá-la e...
- Mesmo assim não é obrigado a permanecer aqui todos os dias.
- Não gosto dele, Adelaide.
- Oh, para mim ele não é pior do que outro qualquer.
- Mas aquele caso com Mary...
- Acontece de vez em quando.
- Ela disse que ele... a violentou.
- Sempre contam essas histórias. Só soubemos dessa violação quando a criança estava para nascer.
- A mim ela deu a impressão de que estava absolutamente aterrorizada.
- Claro que estava quando se descobriu grávida. É sempre a mesma história. E você não deve julgar as pessoas pelos padrões a que está acostumada na Inglaterra. As pessoas aqui estão... isoladas. Essas coisas acontecem. Meu pai compreende isso muito bem e nunca é intransigente em casos assim. Mary está recebendo toda consideração. Portanto, pare de lamentar-se por ela e não seja tão severa com Jacob.
Não me importei com o que ela disse. Eu não gostava daquele homem.
Quando ele chegou, arreganhou os dentes para mim.
Sinto-me feliz em fazer esta viagem - disse ele, enquanto eu baixava a cabeça friamente e olhava em outra direção. Felizmente Stirling estava conosco.
Pusemo-nos a caminho nas primeiras horas da manhã. Deliciando-me com as paisagens do sertão, escutando o canto dos pássaros e, aqui e ali, batendo os olhos num animal selvagem ou numa plumagem colorida, eu me recusava ficar deprimida pela presença de Jacob Jagger e voltava meus pensamentos.para Stirling.
Eram pensamentos agradáveis. Viajando a meu lado, a todo momento voltava-se para mim, a sorrir ou a apontar para algum detalhe da paisagem que ele supunha eu tivesse omitido. Eu refletia na diferença que ele fizera em minha vida e na importância que exercera nela. Às vezes parecia que Lince ocupava mais meus pensamentos que o filho, pois eu pensava muito em Lince. Aceitava-o como a figura dominante do cenário. Em muitos aspectos Stirling fazia-me lembrar dele. Era uma versão mais gentil e mais delicada do pai. Ninguém, no entanto, podia deixar de se impressionar com Lince, de admirá-lo e até sentir por ele uma espécie absurda de devoção que eu chamava de idolatria em Stirling. Mas com relação a Stirling meus sentimentos eram mais cálidos, mais humanos. Não me era possível conceber a casa - minha Pequena Whiteladies - sem Lince. O simples pensamento de imaginá-lo ausente dali afetava-me profundamente. E a sensação dos dias cresceu de intensidade quando o vi à cabeceira da mesa de jantar ou, a melhor delas, quando joguei xadrez com ele na esperança de derrotá-lo, ou quando disse que eu estava a lhe arrancar confidências. Eu pensava mais em Lince do que em Stirling, apesar de não haver dúvida quanto a meus sentimentos pelo último - amava-o. Mas não sabia como descrever meus sentimentos por Lince. Acreditava que um dia Stirling me pediria em casamento e, quando fizesse, eu haveria de responder "sim" sem hesitação. Acreditava que Lince haveria de nos abençoar (pois estava convicta de que era isso o que ele queria) e que seriamos felizes para sempre. Haveríamos de prosperar aqui - embora tivéssemos de desistir da mina. Isso eu exigiria de Stirling. Foi aí que meus pensamentos se anuviaram, pois eu estava a conjeturar como se Lince estivesse morto. Lince... morto. Parecia impossível. Ninguém - nem mesmo Stirling - possuía aquela imensa vitalidade cujos reflexos revitalizam qualquer pessoa. Não, eu persuadiria Lince e Stirling a abandonarem a mina. Não suportaria pensar em homens morrendo de tísica, nem ver o ar que se estampava no rosto de Lince quando falava de ouro.
Sempre viajando no rumo sul, no final do dia encontramos um lugar para armar nossa tenda. Ficava perto de um córrego, de onde teríamos água que Stirling logo tratou de buscar enquanto Jacob Jagger cuidava de fazer fogo. Disse Adelaide que ia me mostrar como fazer bolinhos de milho na brasa para comermos com chá. Nos alforges trazíamos bacon e costeletas de carneiro.
Teria sido uma experiência adorável não fosse a presença de Jacob Jagger. Fui obrigada a reconhecê-lo com muita perícia em fazer fogo. Ele insistiu em explicar como fazer a lenha inflamar e dizer da importância de se escolher um lugar adequado.
- É fácil incendiar uma floresta - acrescentou, - e isso, Miss Nora, é coisa que espero jamais tenha de ver.
- O último incêndio foi terrível - interveio Adelaide. - Cheguei a pensar que fosse o fim da propriedade.
- Todos nós pensamos - concordou Jacob Jagger, o rosto rechonchudo com uma sobriedade que eu nunca vira antes. - Houve horas em que ficamos literalmente cercados pelo fogo. Eu estava à espera que os eucaliptos perto da casa ardessem a qualquer momento, e isso teria sido o fim.
Para mim era difícil imaginar o horror de uma floresta em fogo. E suponho que ninguém faz ideia disso antes de tê-lo presenciado. Agora, esse fogozinho generoso que Jagger havia feito estava a cozinhar nossos bolinhos e a ferver água para o chá.
Era realmente agradável deitar ali sobre mantas que Adelaide e eu estendemos sobre a relva, reforçadas com nossas selas.
- Que está achando do acampamento, Nora? - perguntou-me Stirling.
- Bastante divertido.
Estendeu-se a meu lado, de cotovelo apoiado no chão e escorando a cabeça com o braço.
- Eu sabia que ia gostar. - Os olhos irradiavam satisfação. - Eu sabia que você não seria uma dessas mulheres frágeis que berram de medo diante de uma aranha.
- Por certo não seria preciso que acampássemos para que você descobrisse isso.
- Não. Eu sempre soube. - Sorriu-me de uma forma que me deixou exultante. Estava gostando de mim e entre nós havia um vínculo de tácita compreensão. Eu sabia que ele cuidava de mim como sua protegida. Queria que as pessoas me admirassem, me aplaudissem. Por isso preocupara-se tanto em que eu causasse uma boa impressão a seu pai. Era uma demonstração de amor.
Aquela era de fato minha pátria. Ali haveria de passar o resto de meus dias. E a Pequena Whiteladies seria o cenário de minha felicidade futura. Lince haveria de ser o senhor, sempre, porém benigno, indulgente e fingindo que não o era. Aceitar-me-ia como filha e me amaria como tal. Na verdade, eu acreditava que isso já começara a acontecer. E haveríamos de ter filhos - meu lar não estaria completo sem eles. Lince haveria de amá-los e de se orgulhar deles, amando-me ainda muito mais por lhe dar netos.
Era fácil sonhar ali naqueles sertões. Talvez Stirling estivesse sonhando também, pois existia um certo paralelismo em nossos pensamentos.
Quando anoiteceu sentamo-nos em redor da fogueira a conversar descontraidamente. Até mesmo Jacob Jagger parecia simpático. Adelaide falou-nos de outras viagens que empreendera e de como se perdera, certa ocasião, no mato. Saíra para apanhar água e perdera o caminho de volta ao acampamento.
- É facílimo - disse ela. - Os acidentes do terreno variam com tanta sutileza que nem se percebe que variam. Vai-se pelo caminho que se acredita certo e quase todos se parecem - e então se vê que se está vagueando na direção errada. Perder-se no mato é uma experiência horrível.
- Lembro-me da ocasião - confirmou Stirling. - Saímos todos em rumos diferentes à sua procura. Foi encontrada a apenas meia milha de distância. Estava a andar em círculos.
Adelaide arrepiou-se.
- Nunca hei de me esquecer. Que sirva de aviso para você, Nora.
- Oh, cuidaremos de Miss Nora - disse Jacob Jagger.
- Disso não tenha medo - acrescentou Stirling. - Mesmo assim, acautele-se, Nora. Não vá perambular sozinha por aí.
Prometi que não, e continuamos a conversar. Então, Stirling e Adelaide cantaram cantigas aprendidas na infância. Eram canções da Inglaterra e que, segundo Adelaide, "nosso pai gostava de escutar". Eram elas "Cherry Ripe", "Strawberry Fair" e "On a Friday Morn When We Set Sail" - baladas que as crianças inglesas vêm cantando há anos.
Adelaide e eu recolhemo-nos à tenda. O ar fresco e a longa caminhada deixaram-me tão cansada que logo adormeci.
Despertei com as gargalhadas dos pica-peixes no ar. EU e Adelaide vestimo-nos às pressas e fomos ao córrego para as abluções. Na volta ela trouxe água para ferver o chá que foi servido em canecas. Poucas vezes em minha vida bebi um chá tão saboroso.
Partimos cedinho, logo depois do desjejum que constou de bolinhos de milho e bacon frio. Havia também geléia de frutas, que Adelaide tivera a lembrança de colocar no seu alforge.
Como gostei daquela caminhada matinal pelo sertão. Houve porém um incidente que estragou o prazer da viagem. Ao meio-dia fizemos uma parada e, quando eu estava pondo água a ferver para o chá, no fogo que Jacob Jagger havia feito, dei-me conta de sua presença ali bem pertinho de mim.
- Pelo que vejo, está gostando da vida do mato, Miss Nora.
- Acho-a muito interessante - respondi sem levantar o olhar.
- É uma grande vida - disse e ajoelhou-se a meu lado. Notando-o ali, levantei-me imediatamente e olhei para trás. Nem sinal de Stirling ou de Adelaide.
- Onde estão eles? - perguntei. Riu-se.
- Não muito longe. Não precisa ter medo.
- Medo? - retorqui com frieza e aborrecida, porque medo era exatamente o que eu sentia em me ver a sós com ele. - Medo de quê?
- De mim -sugeriu.
- Não vejo razão para isso.
Ele soltou um exagerado suspiro de alívio.
- Felizmente. Não há de que ter medo. Gosto muito de você, Miss Nora.
- Felizmente também não preciso ter medo, como diz você. De qualquer modo, seus sentimentos para comigo na realidade não me preocupam.
- Bem, isso nós podemos mudar.
- Creio que sou o melhor juiz de meus sentimentos.
Oh, onde estariam Adelaide e Stirling? Por que não apareciam para que esta conversa a que estava eu sendo forçada tivesse um fim? Bem, forçada não era bem a expressão. Eu podia perfeitamente me afastar, mas não queria lhe dar a entender de quanto o abominava, pois isso seria trair de certo modo seu temor.
- Você è uma jovem muito altiva. Também isso eu poderia mudar.
- Desde quando acredita que tem o poder de moldar minha personalidade?
- Desde que a vi pela primeira vez. Na verdade, Miss Nora, nunca deixei de pensar em você desde aquele momento.
- Isso é muito estranho.
- Nada há de estranho. Você é uma jovem admirável. A mais admirável que já vi. Nunca me senti antes tão interessado por uma moça.
- E Mary? - insinuei sentindo o rubor afluir a minhas faces.
- Ora, não vá me dizer que tem ciúmes de uma criada.
- Ciúme? Deve ter enlouquecido - afastei-me, mas ele pôs-se a andar a meu lado, segurando-me pelo braço.
Voltei-me furiosa.
- Mr. Jagger, faça o favor de retirar a mão de cima de mim. Se ousar importunar-me novamente terei de falar com Mr. Herrick... com Lince.
Aquele nome tinha o poder de estarrecer as pessoas. Jagger vacilou e recuou imediatamente e, para meu grande alivio, ouvi a voz de Stirling.
- Nora, esse chá ainda não está pronto?
Chegamos a Melbourne naquela noite. No afã das compras esqueci-me de Jagger. Comprei seda verde para um vestido que planejava. Vi-me a usá-lo à noite quando tivesse de jogar xadrez com Lince. Adelaide haveria de me ajudar; era exímia na agulha e gostava de trabalhar com material bonito. Enquanto a fazenda estava sendo medida ela me disse:
- É uma beleza fazer coisas bonitas. Você vai ficar linda nele, Nora. Pressionou-me o braço e falou em voz baixa: - Estou feliz em tê-la aqui conosco. Já nem consigo imaginar como seriam as coisas aqui sem você.
Ao cabo de quatro dias iniciamos a jornada de volta. Sem incidentes. Agora eu já sabia fazer fogo, fritar bolinhos de milho na brasa e preparar chá em marmitas. Havia experimentado a vida no sertão.
- Você è um dos nossos - disse-me Stirling com aprovação.
Sentei-me ao tabuleiro de xadrez. Os dedos compridos acariciaram a rainha de marfim com a coroa de ouro e brilhantes.
- Gostou da viagem? - ele me perguntou.
- Foi maravilhosa.
- Gostou de dormir ao relento?
- Bem, por poucas noites foi interessante.
- Gosto de conforto. Sou um homem comodista. Sou como um gato. Gosto de dormir em cama quente, tomar banho frequentemente e trocar roupa de baixo todos os dias. Dificilmente é possível fazer essas coisas num acampamento. Mas você gostou.
- Eu também prefiro o conforto, mas foi interessante conhecer o sertão e ter uma ideia de como vivem as pessoas ali.
- Creio que você tem algo de pioneiro, Nora. Foi por isso que gostou da viagem em todos os sentidos.
- í daí?
A visão de Jagger surgiu à minha frente. Não sei por que razão eu tinha medo daquele homem. Talvez fosse devido ao que acontecera a Mary e à expressão em seu olhar quando me disse que havia sido forçada. Podia ser que Adelaide não acreditasse em Mary, mas eu acreditava.
- Oh... alguma contrariedade?
Como ele era insistente. Nada me era possível esconder dele.
- Adelaide e Stirling são ótimos em tudo - falei às pressas. - Ensinaram-me a fazer fogo, fritar bolinhos e a viver no sertão.
- Jagger foi com vocês, não foi? Senti um lento rubor afluir-me às faces.
- Oh, sim, estava lá.
- É o melhor administrador que já tivemos. Não é fácil encontrá-los. A maioria prefere sair em busca de ouro. Não é fácil segurá-los e não admito que voltem depois deterem partido uma vez. Sim, Jagger é um ótimo elemento para administrar a propriedade.
O jogo teve inicio então. Dessa vez fui derrotada sem delongas. Nem tive oportunidade de esboçar um ataque.
- Não está jogando bem esta noite, Nora. Seus pensamentos estão distantes. No sertão, talvez.
No espaço de poucas semanas Adelaide e eu havíamos feito em conjunto o vestido verde, utilizando nele os materiais mais duráveis. Estávamos em pleno outono e já nos preparávamos para o inverno. Achas de lenha já estavam sendo trazidas para o depósito e Adelaide começava a estocar mantimentos. Às vezes ficávamos desprevenidos pelas enchentes, ela explicou, e podia ser que até neve acontecesse. O pai não gostava de se ver privado de coisa alguma e, assim, era tarefa sua cuidar de que a casa estivesse bem abastecida. Ela havia preparado jarras de geléia de frutas, doce de pêssego e de laranja.
Passada a canicula do verão, verifiquei que os dias eram maravilhosos para cavalgar. E quando Adelaide ou Stirling não podiam me acompanhar, eu saia sozinha. Nunca me esqueci da admoestação de Adelaide sobre perder-se no mato - uma das piores fatalidades que podiam ocorrer a alguém - e por isso observava com muita atenção os marcos do caminho. Eu tinha meus passeios já demarcados e raramente me desviava deles. Só sob promessa de que iria para Kerrys Creek, Marthas Mound ou Dog Hill era que me davam permissão de sair. Acredito que sempre ficavam intranqúilos ao me verem sair sozinha, ao mesmo tempo em que não queriam me contrariar. Era muito característico que tivessem concordado em que eu não fosse mimada e, como eu já era uma boa amazona, confiariam em minhas habilidades de dominar um cavalo.
Numa dessas manhãs resolvi afastar-me até Kerrys Creek - meu lugar predileto. Ali um riacho corria por entre um bosque de eucaliptos e, quando as acácias estavam em florescência, era um dos recantos mais encantadores das vizinhanças. Agradava-me amarrar meu cavalo a um dos pés de eucalipto e ficar olhando para a água. Um homem chamado Kerry ali chegara vinte anos atrás e encontrara algum ouro nas margens do riacho; passou dez anos tentando achar mais ouro e, desapontado, sumiu. Daí o nome. Agora porém estava livre dos cavadores de ouro, pois Kerry havia demonstrado sua esterilidade quanto ao cobiçadíssimo metal. Talvez fosse por isso que exercia tanta atração para mim.
Sentei-me ali naquela adorável manhã de fins de abril, olhando a água e pensando em tudo que acontecera nos últimos meses. Como eu era feliz em ter-me livrado de DanesworthHouse. Lá era época dos botões aparecerem nas árvores e no matagal; as aubriécias e as arabídeas estariam florindo; e Mary estaria pensando que as noites frias haviam passado e que, por um rápido encanto antes do calor do verão, ela estaria bem acomodada na cama da "águaf urtada". A pobre Miss Graeme se daria conta de que a primavera voltara, de que mais um ano transcorrera e de que estava um ano mais perto do tempo em que Miss Emily não haveria mais de necessitar de seus préstimos.
Que tristeza. Pobre Miss Graeme. Pobre Mademoiselle, ficando cada vez menos capaz de controlar sua classe. E ali estava eu - uma egressa, tão livre quanto os lindos galahs que voavam acima de minha cabeça. Então pensei em Lince deixando o porão do navio dos degredados e invejando os pássaros.
Querido Stirling! Querido Lince! Eu os amava a ambos e, em menor medida, a Adelaide. Em pouco tempo eles se tornaram minha família e, de certa forma, compensaram a perda de meu adorado pai. Eu podia ser feliz novamente. Eu era feliz.
Ouvi um movimento em algum lugar não muito distante. Como o som se propaga no matagal! Escutei nitidamente o galopar dos cascos de um cavalo. Levantei-me e protegi os olhos com a mão. Não vi ninguém. Sentei-me novamente e retornei às minhas ruminações agradáveis.
Sim, eu era feliz aqui. Acreditava que ia me casar com Stirling. com apenas dezoito anos, eu ainda era muito jovem. Talvez no meu próximo aniversário ele me pedisse a mão. Imaginei-nos na biblioteca a receber os cumprimentos de Lince que me arrastaria a seus braços e me beijaria. "Agora, sim, você é minha filha", ele haveria de dizer, e eu sentiria aquele lampejo de felicidade dentro de mim.
Eu, que fora uma vez abandonada por minha mãe e que perdera meu pai, seria agora jubilosamente reclamada por Lince como sua filha. Eram sonhos - mas há que ser feliz para sonhar belos sonhos. Soaram pisadas atrás de mim.
- bom dia, Miss Nora.
Senti-me repentinamente gelada de pavor, pois era Jacob Jagger quem estava atrás de mim. Estava quase em cima de mim quando me levantei de um pulo e encarei-o. Num relance tomei consciência do silêncio a meu redor - a solidão do mato. Também num relance lembrei-me da outra ocasião em que ele se pusera de pé perto de mim - mas então Stirling e Adelaide não estavam muito longe.
- Você! - escutei-me gaguejar.
- Não parece muito satisfeita em me ver. E pensar que vim aqui especialmente para vê-la.
- Como sabia...
- É minha função saber por onde você anda, Miss Nora. Vi que tomou esta direção e disse para mim mesmo "bom, ela vai hoje para Kerrys Creek".
- Mas por que tem de me seguir?
- Saberá a tempo. Não se precipite.
- Não gosto de suas atitudes, Mr. Jagger.
- Também não tenho apreciado as suas, há muito tempo.
- Então não há lógica em que prossigamos com esta conversa. - Dei-lhe as costas, mas ele segurou-me o braço e uma sensação de terror apoderou-se de mim ao me dar conta imediatamente de sua força.
- Sou obrigado a discordar mais uma vez, Miss Nora - disse, aproximando o rosto gorducho e lúbrico ao meu. - E desta vez quem dá o tom sou eu.
- Esquece-se de que posso fazer um relato disto quando voltar.
- Não há de retornar tão cedo.
- Não estou entendendo.
- Não é tão calma quanto finge ser, e acredito que compreenda perfeitamente.
- Está sendo demasiado insolente, Mr. Jagger. Não gosto de você. E espero que nunca hei de gostar. Afaste-se, por favor. Está na minha hora de regressar. Até logo.
Riu-se de maneira extremamente antipática. Eu não podia esconder o fato de que estava aterrorizada. A figura de Mary passou num vislumbre por minha mente. Teria acontecido assim com ela?
- Não irá agora, Miss Nora. Tenho uma coisa a dizer. Até hoje não arranjei esposa e não me importaria de tê-la... contanto que fosse você.
- Está dizendo tolices.
- Chama de tolice a uma honrosa proposta de casamento?
- Vinda de você, sim. Afaste-se. E se tentar me impedir por mais tempo, há de se arrepender.
Continuava rindo para mim; agora havia em seu rosto um matiz avermelhado, nos lábios uma expressão horrível.
- Então é você quem dá as cartas agora em Whiteladies, não é? Juro por Deus, Miss Nora, já é tempo de alguém lhe dar uma lição.
- Aprendo minhas próprias lições, muito obrigada.
- Bem, vai aprender uma outra agora. Coloquei meu coração em você e nada no mundo me impedirá de seguir neste caminho.
Desvencilhei-me dele e comecei a correr para a árvore onde meu cavalo estava amarrado. De nada adiantou. Correu no meu encalço e postou-se diante de mim, bloqueando a passagem.
Quer me deixar em paz, Mr. jagger? - falei ofegante.
Não, Miss Nora, não quero.
- Então...
Ele aguardou minhas palavras com um sorriso de mofa, estampando no rosto uma paixão aterradora que reconheci como sendo luxúria. Era exatamente isso o que eu temia desde que o vi pela primeira vez. Ele era um homem incapaz de controlar seus instintos; que sem dúvida achara fácil impor sua vontade a algumas das pobres criadas. E Lince lhe facilitara as coisas. Mas ele devia perceber que eu não era como uma daquelas e que se ousasse me tocar, teria de dar uma resposta a Lince... e a Stirling.
Tentei passar-lhe à frente, mas agarrou-me. Os lábios grossos e horrorosos encostaram-se no meu rosto. Puxei-lhe os cabelos, mas eu não era páreo para ele. Lutei desesperadamente, acertei-lhe um pontapé e ele soltou um grito de dor. Vi-me livre por alguns momentos e corri como uma louca em direção a meu cavalo, mas logo ele estava em cima de mim. Caí e ele caiu comigo. Gritei por socorro: "Lince! Stirling! Acudam-me".
Ouvi dois pica-peixes gralharem, como a rirem de minha situação. A respiração vinha-me aos soluços. Ele estava furioso e me odiava, pude notar, mas o ódio não diminuía a volúpia e até fazia aumentá-la.
Resmungou-me o impropério de que eu era um demónio. Tive vontade de lhe retrucar, dizendo que o abominava, que ele teria de me matar antes que eu cedesse. Mas eu precisava de meu fôlego para a luta.
Eu não era nenhum alfenim, mas acontece que ele era um homem forte. Foi então que me vi a rezar: "Oh, meu Deus, ajudai-me. Lince... Lince..."
E ouvi uma voz, a voz dele. Por alguns segundos pensei que estivessse imaginando coisas. Mas não. A voz disse distintamente:
- Jagger! Levante-se, Jagger.
Eu jazia no chão, ofegante, o corpete rasgado, os cabelos desalinhados em volta de meu rosto. Afastei-os para os lados com a mão trémula, e vi-o mais imponente do que nunca, montado num enorme cavalo branco. Os olhos eram como gelo azul.
E ordenou:
- Permaneça aí, Jagger.
Jagger obedeceu como se estivesse em transe. Vi quando Lince levantou a mão, e escutei um estampido ensurdecedor.
jagger estava estendido no chão e havia sangue.
O tempo pareceu parar. Parecia que tudo se passara havia muito tempo. Na verdade, poucos segundos atrás eu estava estendida no chão onde Jagger me jogara, e Lince ainda permanecia montado, a pistola na mão, calmo, todo-poderoso.
- Não olhe, Nora - disse-me. - Levante-se e pegue seu cavalo. Obedeci-lhe tal como Jagger havia feito. Sentia-me fraca e mal podia respirar,
mas caminhei até meu cavalo e montei. Lince estava a meu lado e, tranquilamente, voltamos para Whiteladies.
Adelaide cuidou de mim. Fiquei tão chocada que apenas me deitei na cama, sem nada dizer. Ela me trouxe conhaque e ovos com leite. Recusei e ela insistiu.
- Meu pai disse que você tomasse isto. Tomei e senti-me melhor.
Naquela noite ela me deu alguma coisa para beber e só acordei na manhã seguinte. Senti-me então diferente. Havia dormido sem sonhar, o que pensei que jamais pudesse fazer novamente, pois acreditei que aquela cena, com toda sua carga de terror e sangue, estava para sempre impressa em meu espírito. Mantive-me a repassá-la: o momento em que eu me voltara e dera com a presença de Jagger, sabendo-me sozinha no descampado à sua mercê, o horror avolumando-se, e aquele outro momento em que Lince surgiu como que antecedendo a meu chamado. Jamais poderia esquecer a imagem dele montado no cavalo branco, e a calma fria com que puxou a arma e disparou.
Havia sangue, eu repetia para mim mesma. No matagal... no chão... sangue por toda parte. Lince matara Jagger. Não, procurava tranqúilizar-me, ele apenas o havia ferido. Até ele sentiria escrúpulos de matar um homem. Isso faria dele um assassino.
No fundo do coração, entretanto, eu sabia que Lince havia matado Jagger, e que o fizera pelo que este tentara contra mim.
Pairava sobre a casa uma estranha quietude. Um caixão fora providenciado para Jagger, e levado para o maior dos galpões que havia sido construído para armazenar fardos de lã.
Todos os homens do Império de Lince - da propriedade, da casa grande e da mina - foram convocados ao galpão. Foi um dia esquisito e parado, um dia de luto. E mais ainda do que isso. Foi como se um ritual solene estivesse prestes a acontecer.
Adelaide não me falara nada. Foi Stirling quem me procurou e segurou-me nos braços.
- Você está bem, Nora. Não volte a se preocupar e nem sequer pense nisso. Você agora está a salvo.
Adelaide entrou em meu quarto.
- Nora, meu pai quer que você vá ao galpão. Não tenha medo. Há de se sentir melhor. Eu e Stirling iremos em sua companhia.
- Não estou com medo.
- Diz meu pai que você não precisa mais ter medo. Nós é que devíamos ter tomado maior cuidado de você.
- Vocês estavam sempre me avisando de que eu poderia me perder no matagal.
- Mas bem que eu podia ter pensado nisso.
- Houve o caso de Mary - lembrei-lhe, - mas você não lhe deu crédito.
- Oh, Nora, minha pobre Nora. Agora tudo passou e nunca mais tornará a acontecer. Meu pai está determinado a isso.
Jamais hei de esquecer a cena no galpão. Foi minha primeira apresentação à lei da terra. Jagger fora justiçado. E o veredicto foi esse. Qualquer homem que encontrar sua filha nas condições em que eu me encontrava, tem o direito de matar o possível violentador.
O caixão jazia sobre cavaletes numa das extremidades do galpão, e duas velas ardiam em cada ponta. Lince permaneceu de pé ao lado dele, a luz da vela realçandolhe o brilho azul dos olhos.
Quando ele me viu, estendeu a mão e fiquei a seu lado. Adelaide e Stirling permaneceram junto à porta. O galpão estava repleto de homens - uns que eu já conhecia, outros que jamais eu havia visto.
Tomando minha mão, Lince fixou o olhar no ataúde e falou:
- Neste caixão jaz o que resta de Jacob Jagger. Esta é minha filha. Se qualquer um dos homens aqui presentes colocar a mão em cima dela, receberá o mesmo castigo que Jacob Jagger recebeu. É bom que todos os homens aqui presentes lembrem-se disso. Como vocês sabem, sou um homem que cumpre a palavra.
Depois, ainda segurando minha mão, conduziu-me para fora. Adelaide e Stirling vieram atrás de nós.
Depois disso tudo pareceu diferente. Tornei-me subjugada. Foi como se tivesse me tornado adulta de repente. As pessoas me olhavam um tanto furtivamente - os rapazes da propriedade como se estivessem com medo de mim. Suponho que pensavam em Jacob Jagger todas as vezes que me viam.
Stirling cuidou da propriedade até que um novo administrador fosse encontrado na pessoa de James Madder, que logo soube do destino de seu antecessor e que mal olhava em minha direção. Adelaide tratou de fazer com que tudo parecesse normal, comportando-se como se nada houvesse acontecido. Mas não se pode estar envolvido numa morte súbita e fingir que ela é uma ocorrência de rotina.
Por vários dias não me deu a menor vontade de montar. Permaneci ao lado de Adelaide, pois havia algo de seguro em sua companhia. Ela compreendia meus sentimentos e estava constantemente a me convidar para ajudá-la numa tarefa ou noutra, juntas fizemos novas cortinas para algumas das salas, preparamos material para nosso próprio uso e reformamos velhos vestidos. Sempre havia um projeto em marcha. E existia, naturalmente, o jardim.
Não poucas vezes acordei no meio da noite a chamar por socorro. Nem sempre eu me lembrava dos sonhos, mas sei que se relacionavam com aquele dia de pesadelo.
- Stirling - disse-lhe eu um dia em que saímos juntos a passeio - você nunca falou sobre aquele dia. Não acha que seria melhor falar?
- Não é melhor esquecer?
- Acredita que seja uma coisa que se possa esquecer?
- Precisa tentar. Desaparecerá com o tempo. Você há de ver.
- Foi como um sonho. Demasiado horrível para ser realidade.
- Eu devia ter ido. Devia ter imaginado. Jagger era um porco. Eu devia saber disso. Você sabia de alguma coisa?
- Sempre tive medo dele.
- E nunca disse nada a ninguém.
- Não dei importância, a não ser no momento em que me vi sozinha.
- Não fale nisso.
- Mas estamos falando. E então seu pai chegou. Estava montado no cavalo branco e, de repente, fez-se sangue. Pensei que...
- Bem que eu lhe disse para não falar nisso. Escute, Nora, tudo passou. Meu pai estava lá. Chegou a tempo, e aquele foi o fim de Jagger. Nunca mais ele tentará fazer mal a você.
- Foi morto. Seu pai matou um homem por minha causa.
- Era a coisa certa a fazer. A única coisa a fazer.
- Podia tê-lo despedido. Podia tê-lo mandado embora. Por que não fez isso?
- Meu pai agiu certo. A vida aqui é diferente, Nora. Não há muito tempo, podia-se enforcar um homem na Inglaterra por ter roubado uma ovelha. Aqui qualquer homem tem o direito de matar quem quer que ataque seus familiares.
- Mas foi um crime.
- Foi justiça.
- Mas não há quem conteste?
- Abriu-se um processo. Meu pai não iria permitir que você comparecesse porque acredita que lhe seria demasiado transtornante. Disse que não deixaria que você fosse interrogada. Contou o que aconteceu; matou Jagger; confirmou que faria a mesma coisa a qualquer homem que agisse como Jagger agiu com relação às suas filhas. Jagger era um notório. Sabia-se perfeitamente que espécie de homem ele era. As mulheres da comunidade estariam em perigo se o gesto de meu pai não fosse aceito como um gesto certo. E o veredicto foi que se fizera justiça. A verdade é esta. E agora pare de pensar nisso.
Eles queriam que eu vivesse como vivia antes; que montasse quando me apetecesse; que parasse de pensar naquele dia terrível.
Meu relacionamento com Lince passou porumasutil mudança. Até ele se mostrava pouco à vontade. Continuei a procurá-lo para jogar minhha habitual partida de xadrez, mas não me foi possível tocar no assunto senão várias semanas depois.
- O que o levou a Kerrys Creek naquele dia? - perguntei-lhe de chofre. Franziu o sobrolho em concentração.
- Não posso dizer ao certo. Pareceu-me pressentir que alguma coisa estava errada. Lembra-se de quando falamos sobre aquela sua viagem a Melbourne, em que você acampou no caminho? Referimo-nos a Jagger e alguma coisa em seus modos me disse que estava com medo dele. Imaginei logo o motivo, por conhecer Jagger muito bem. Naquela manhã fiquei preocupado quando o vi tomar o rumo de Kerrys Creek. Fiquei a cismar para onde ele estava indo e, nos estábulos, indaguei sobre a direção que você havia tomado naquela manhã. Ninguém tinha certeza, mas disseram que seria ou Marthas Mound, Dog Hill ou Kerrys Creek. Resolvi sair atrás de Jagger. Foi assim que aconteceu.
- Para mim foi uma sorte. Para Jagger, custou-lhe a vida. Os olhos de Lince fulguraram.
- Não pense que eu o deixaria continuar vivendo.
- Ele violentou Mary - disse eu. - Assim ela me contou. Deu de ombros.
- É indiferente a isso? - perguntei.
- Isto está um pouco fora do assunto. Acha que eu poderia ser indiferente a alguma coisa que acontecesse a você?
Pairou sobre a biblioteca um grande silêncio, só quebrado pelo tique-taque do relógio. Era um lindo relógio francês que ele havia mandado buscar em Londres.
- Vamos à nossa partida de xadrez - retomou de abrupto.
Jogamos então a partida mais estranha de quantas havíamos disputado. Até então ele sempre me derrotara, mas naquela noite os papéis se inverteram. Tomei sua rainha e uma forte sensação de triunfo perpassou por mim quando a ataquei.
- É isso aí - disse ele um tanto jocosamente. -Agora vai me bater... contanto que jogue com cuidado.
Continuamos a jogar por mais de uma hora e cada vez que eu me preparava para fazer o lance de vitória, ele me entravava. Finalmente porém encurralei-o.
- Xeque-mate - gritei.
Encostou-se no espaldar da cadeira, de cotovelos na mesa a observar com consternação o tabuleiro. Percebi sem tardar que ele me permitira vencer, tal como fizera com meu pai.
- Deixou que isso acontecesse - acusei-o.
- Acredita que eu o faria?
Penetrei naqueles olhos extraordinários, sem conhecer a resposta. Sim, nosso relacionamento havia positivamente mudado.
Jessica entrou na sala-de-estar de Adelaide, onde eu estava costurando, e sentou-se a me olhar.
Veio para ouvir a leitura do livro? - perguntei. - Hoje Adelaide está muito ocupada e por isso não lerei.
Então podemos conversar - disse Jessica. - Você tem-no afetado profundamente.
Eu sabia, naturalmente, a quem ela se referia, mas fingi não saber.
Ele se transforma em sua presença. Nunca o vi assim com ninguém... a não ser talvez Stirling.
Stirling é filho dele - lembrei-lhe. - E olha para mim como sua filha.
Mas não quanto a Adelaide - disse com um ar de triunfo. - Ela é filha dele. Mas nunca foi assim com Adelaide. Por você ele matou um homem.
Arrepiei-me.
- Não se fala nisso.
- As coisas existem, mesmo que não se fale nelas.
- As plantas conservam-se verdes se são aguadas constantemente - disse eu. - Assim também as recordações. Se são agradáveis, ótimo; se não o são, é idiotice.
- Você tem uma conversa inteligente. Pode ser por isso. Gostaria de saber se ela era inteligente.
- Quem?
- Aquela mulher da Inglaterra. A pobre da Maybella não era inteligente. Eu era muito mais. Se eu tivesse sido a filha, e não a sobrinha, teria sido a escolhida. E chego a dizer que teria tido filhos, pois não era aquele alfenim que Maybella era. Ele preferia a mim. - Uma expressão astuta refletiu-se-lhe no olhar. - E saiba de uma coisa, ele não era fiel a ela. Havia outras além de mim.
Compreendi então seus sentimentos por Lince. Ele havia sido amante dela. Ela o amara e agora o odiava, deixando que essa emoção ambivalente passasse a lhe governar a vida. Ela amara Maybella e ao mesmo tempo nutrira-lhe profundos ciúmes, tendo alternado sentimentos de amor e ódio pelo marido dela. De súbito a vida se lhe tornara extremamente complicada. O presente tornava-se fortemente obscurecido pelo passado. O que acontecera em Whiteladies, havia tantos anos, assombrava o presente tal como o fez o que acontecera mais tarde em Rosella.
- Tenha cuidado - avisou Jessica. - Não é bom aproximar-se muito dele. Dá azar a mulheres.
- É meu tutor e tem cuidado bem de mim. Por que haveria eu de temer?
- Pobre Maybella. Foi a mulher mais infeliz do mundo. Ele a desprezava, ignorava-a, e para ela teria sido melhor se houvesse havido brigas entre os dois. Mas não. Ela nada significava para ele, nada a não ser um meio de gerar um filho macho. Isso a magoava, e se não tivesse morrido de parto, teria morrido de desilusão. Disso eu não morreria, pois não era tão fraca assim. Apenas dei largas a meu ódio e adorava atormentá-lo. Pois é atormentado por minha presença aqui. Vejo isso nos olhos dele, quando olha para mim. Gostaria de me ver longe daqui, mas não pode me mandar embora, pode? "Jessie sempre terá um lar", disse meu tio e Maybella confirmou. Ele não seria capaz de insultar os mortos, não acha? Mas é um homem capaz de insultar o diabo. Finge não se importar com minha presença aqui, que uma coisa ou outra não lhe faz diferença. A seus olhos não significo nada... nada mesmo. Mas creio que gostaria de me ver pelas costas.
- A melhor coisa é esquecer o que porventura tenha acontecido no passado. Relembrar não adianta nada.
Ela estreitou os olhos e fitou-me atentamente.
- Não matou jagger pela tentativa de estupro. Não deu a menor importância ao caso de Mary, não é verdade? Mas com você foi diferente. Matou um homem por você. É por isso que lhe digo tenha cuidado.
Larguei minha costura.
jessica, è muita delicadeza de sua parte preocupar-se comigo, mas saiba que sei cuidar de mim mesma.
Não sabe. Sabia em Kerrys Creek? Tanto não sabia que ele precisou cuidar de você e por você matar um homem.
Tive vontade de me afastar. Ela estava trazendo à lembrança todo o horror daquele dia, sobre o qual se adicionava o quadro de Lince chegando a Rosella Creek, com feridas inflamadas nos pulsos onde as algemas o haviam cortado, com ódio penetrante no coração e determinado a se vingar um dia Assim, escolheu o caminho mais curto para a liberdade. Casou-se com Maybella e Jessica ficou furiosa porque já havia sentido aquela força magnética e também porque já havia sido sua amante por algum tempo. Tivesse sido a filha do dono da casa, e não a sobrinha, teria sido a esposa de Lince em lugar de Maybella.
Chegou o inverno e os terrenos de pastagem ficaram inundados. Foi um período de preocupação na propriedade, mas James Madder revelou-se um hábil administrador. com a ajuda de Stirling, que passou a dedicar sempre mais tempo à propriedade, ele trabalhou tão arduamente nessas circunstâncias difíceis que os danos resultaram menores do que se esperava. Os ventos eram de um frio cortante e tivemos neve. Era difícil acreditar que por época do Natal o calor tivesse sido quase insuportável.
Houve uma explosão na mina e vários homens saíram feridos. Stirling e o pai rumaram para lá e lá permaneceram por duas semanas. A Lince interessava mais â mina do que a propriedade. Eu imaginava qual seria o próximo desastre.
Entristeci-me bastante certa manhã quando trouxeram o cadáver de um menino que havia sido encontrado por alguns trabalhadores da propriedade. Provavelmente perdera-se na mata e morrera de abandono e inanição. O golpe foi maior quando descobri que o menino não era outro senão Jemmy, o clandestino. Deveria ter tentado encontrar o caminho de volta para casa, embora soubesse que tipo de recepção lhe estaria reservada ao voltar. Talvez acreditasse que eu intercederia em seu favor e que mais uma vez seria bem sucedida como aconteceu no navio.
- Perdeu-se na mata, pobre garoto - disse Adelaide. - Isso acontece com muita facilidade, como já lhe disse. Toma-se o caminho errado sem se perceber e se anda, anda e anda por uma região que tem sempre o mesmo aspecto num raio de cem milhas.
- Pobre Jemmy, se ao menos tivesse permanecido aqui.
- Se todos eles permanecessem aqui... mas a sede de ouro é uma tentação irresistível.
Enterramos o pobrezinho e fiquei imaginando que coisa o fizera fugir de Londres. Deveria ter sido algo terrível. Pobre Jemmy. Veio para a Austrália para ser enterrado na mata.
Lince conversou comigo sobre o garoto, e o antigo sarcasmo veio à tona.
- Todos os seus esforços foram em vão - disse-me.
- Como esse menino sofreu numa vida tão curta.
- Procurou o sofrimento pelas próprias mãos. Bem que podia ter ficado aqui e continuado a viver. Mas preferiu correr em busca de ouro... e morreu.
- Não é o primeiro - acrescentei com amargor.
- Não desperdice seus sentimentos. Aquele garoto era um fujão. Jamais se fixaria em lugar algum, e se um dia encontrasse o ouro esbanjaria a fortuna e logo estaria na rua da amargura.
- Como pode afirmar?
- Conheço os homens e as mulheres. Jemmy era desse tipo. Portanto, não sofra por ele. Você fez o possível, trouxe-o para cá. Ele nos largou de livre e espontânea vontade, tendo escolhido o caminho que seguiu. Ninguém pode ser culpado, a não ser ele próprio.
Certas pessoas são obrigadas a tomar decisões difíceis.
Todos nós. Esqueçamo-nos dele. Vamos jogar uma partida no seu tabuleiro com suas belas peças.
Creio que está arrependido de me ter deixado ganhar.
Sim... profundamente.
E até acredito que nunca foram suas.
Então fiz bem em lhas devolver - riu-se pesarosamente. - Que importa, Nora, se são minhas ou suas? Seja como for, estamos jogando com elas, estão nesta casa e esta casa è sua casa. - Ele havia trazido o tabuleiro e colocado entre nós dois. Permaneceu por alguns momentos a me fitar de frente. - Espero, Nora, que seja sempre assim.
Era verdade. Nosso relacionamento passara por uma transformação. Havia em suas maneiras uma certa bondade.
O inverno passara e setembro havia chegado. Passei a maior parte do tempo ao ar livre, quase sempre no jardim. A mata era linda na primavera quando as flores silvestres estavam desabrochando, e mais uma vez aventurei-me a cavalgar sozinha. Senti-me mais segura do que nunca. Isso, pelo menos, aquele terrível acontecimento conseguira fazer por mim. Num raio de várias milhas todos souberam do caso e sabiam o que aconteceria a quem ousasse molestar-me. Teriam de ajustar contas com Lince.
Era uma bela e radiante manhã quando saí a passeio. Os corvos crocitavam por cima de minha cabeça e os inevitáveis pica-peixes estavam gargalhando no cenário. Lindos pintassilgos e roselas voavam de um lado a outro, enquanto meus olhos se regalavam com tantas flores silvestres -vermelhas, azuis, róseas e amareladas. Dentro de mais ou menos uma semana estariam esplendorosas - uma festa para os olhos depois da paisagem do inverno e até do verão, quando as flores não eram muitas a não ser as de eucalipto.
Alegrei-me em estar aqui e viva, pois aprendera a desfrutar novamente da solidão de meus passeios. Era nessas ocasiões que eu podia pensar nos dois homens que raramente saiam de meus pensamentos. Ainda não compreendia por completo meus sentimentos. Amava Stirling, mas não tinha certeza de estar apaixonada por ele. Quanto a meus sentimentos por Lince, eram difíceis de definir. Admirava-o, mas de certa forma temia-o também. Mais que de qualquer outra coisa no mundo eu gostava de provocá-lo. E adorava ver seus olhos brilharem de satisfação quando eu dizia alguma coisa que o divertia.
- Sou feliz - falei em voz alta.
E era. O que passara não tinha importância. O futuro se estendia brilhante à minha frente. Só me bastava caminhar para ele - e ele encerrava tanto Stirling como Lince.
Naquela manhã senti uma estranha disposição de ânimo. Sempre procurara evitar o lugar onde meu pai fora assassinado, mas de repente deu-me vontade de ir até lá. Eu não pretendia remoer o passado e ignoraria as sombras que ele projetasse. Aceitaria o fato de que aqui a vida era diferente, era mais barata, e que a morte poderia chegar de súbito, mais de súbito do que na Inglaterra. As pessoas se perdiam na mata e morriam, ou então recebiam um tiro por desobedecer ao código moral estabelecido pelo povo. Era esse o estilo das coisas e não adiantava ruminar a respeito.
Meu pai havia morrido. Eu havia perdido a pessoa a quem amara sobre todas as outras... naquela época. Mas agora minha vida mudara e havia outra pessoa, outras seria melhor dizer. Eu tinha um pai para substituir o que eu havia perdido. Era completamente diferente e eu não tinha bem certeza de meus sentimentos por ele, embora não houvesse dúvida de que ele me era importante. E havia também Stirling- meu querido Stirling - com o nome de um dos rios do país, uma homenagem à Austrália da parte de um de seus filhos involuntários, porque aqui ele encontrara um meio de vida tolerável para um homem de seu espirito. Eu não acreditava que ele pudesse viver do mesmo modo na Inglaterra. Lembrei-me de uma ocasião em que lhe mencionei isso, ao que me respondeu:"Há homens que podem, Nora. Depende. Um homem pode governar uma aldeia, se é seu senhor feudal. Mora numa casa grande e controla a vida de todos os que lhe estão em redor. Assim vivia Sir Henry Dorian".
Repliquei-lhe que achava bastante triste a insatisfação de alguém com aquilo que lhe coubera por sorte. Mesmo tendo tudo, ainda se suspiraria por uma quimera que se julgasse ter perdido. Pensaria ele então que numa aldeia inglesa haveria de ter maiores poderes, ou fosse lá o que ambicionasse, do que aqui em seu império?
Riu-se de mim. Ele sabia o que queria, arquitetara um sonho, conforme eu lhe disse, e ainda que o tenha realizado, bem poderá ser que a realidade seja diferente.
Como conversávamos e como eu relutava em deixá-lo.
Eu havia chegado à clareira - o lugar onde meu pai fora baleado. Era de uma beleza comovente e parecia ter mudado um pouco desde que o vi pela última vez. O multicolorido das flores silvestres haviam-no transformado; os eucaliptos erguiam-se majestosos e sobranceiros, como que indiferentes ao que acontecia lá embaixo. Ali estava a trilha por onde deve ter surgido a carroça. Os salteadores certamente ter-se-iam escondido nas moitas de acácias. Eu não devia pensar mais nisso ou, se o fizesse, que me lembrasse que aquilo pertencia ao passado, que não adiantava lamentar, mesmo porque acontecia que eu já tinha um novo pai. E tinha Stirling para me amar e tratar com carinho - talvez para sempre.
Tive sede e pus-me a considerar se a água do riacho podia ser bebida. Apeei-me, amarrei Queen Anne e caminhei até ao riacho. Escorrendo de um platô, a água era prateada à luz do sol. Havia sulcos profundos nos barrancos, e aqui e ali vi rochas de granito, ardósia e algo que parecia quartzo.
Juntei as mãos em concha e recolhi da água que se precipitava do platô. Não servia para beber, cheguei à conclusão. Era lamacenta e deixou um sedimento ao escorrer pelos meus dedos.
Arregalei os olhos. Não podia acreditar. O sedimento era como um pó amarelado.
Comecei a tremer. Olhei para o platô, fixando o filete de água. Estendi as mãos novamente e recolhi mais um pouco. Outra vez o mesmo sedimento amarelo.
Seria possível? Tanto que eu ouvira falar nisso. Seria mesmo possível? Ouro! Poderia mesmo cair ouro nas mãos de quem não estava à sua procura?
Ergui os olhos novamente para o platô. Os barrancos eram íngremes e a água que se precipitava poderia trazer uma mensagem. "Existe ouro aqui em cima". Se assim era, como ninguém ainda o descobrira? Porque alguém tinha de ser o primeiro, era a resposta.
Lembrei-me de histórias sobre pastores que encontraram ouro nos campos enquanto apascentavam suas ovelhas, e sobre um certo pastor humilde que se tornara rico. Isso já havia acontecido mais de uma vez.
A indecisão petrificou-me. Mas logo ouvi o gargalhar dos pica-peixes.
A ser verdade, era irónico que eu, que detestava ouro, fosse a exata pessoa a encontrá-lo.
Espere aí, acautelei-me. Teria mesmo encontrado? Ou estaria tocada pela loucura que o ouro parece trazer? Eu estava tremendo de nervosismo. Talvez aquilo nem fosse ouro. Que sabia eu sobre ouro? Aquilo não passaria de um pó que as rochas lá de cima davam coloração.
Pensei nas canseiras de meu pai em batear por meses a fio, nas agruras que deve ter sofrido antes de compartilhar sua sorte com Lince. Imaginei-o dando busca incessante ao metal precioso. Seria possível que eu, com a intenção de beber de um regato, tivesse sem saber encontrado ouro em vez de água?
Tive certeza então, porque numa das margens do riacho vi um pedaço de metal brilhante do tamanho de uma noz. Curvei-me e apanhei-a. Era ouro.
Não sei por quanto tempo me demorei a olhar para aquela pepita. Deu-me vontade de jogá-la fora, voltar imediatamente e nada dizer sobre minha descoberta. Algo me dizia que se eu a levasse para casa dar-se-ia uma desgraça. Eu podia imaginar a celeuma que se faria. Era lógico. Se eu a descobrira com tanta facilidade, deveria haver ouro aos montes ao alcance das mãos. Ouro que havia matado meu pai e que fascinara Lince. Pensei nos Lamb que se largaram à procura dele, e pensei também em Jemmy. Pensei em homens morrendo de tísica. Tudo por causa do ouro.
Levantei o olhar para os enormes eucaliptos, como a pedir que me ajudassem a resolver. As folhas moviam-se suavemente à brisa, arredias e indiferentes à sorte dos homens. Deviam estar ali, talvez, há centenas de anos. Teriam presenciado a chegada dos condenados, a corrida em busca do ouro, e os dias anteriores a isso tudo quando o país só era habitado pelos nativos.
Lá em cima não me veio resposta alguma.
Será que me seria possível encontrar ouro e ficar calada? Como encarar Lince na biblioteca e manter o segredo?
Coloquei a pepita no bolso e tratei de voltar para a Pequena Whiteladies.
Fui direto à biblioteca. Lince estava sozinho e levantou-se ao me ver.
- Nora, que aconteceu?
Não falei. Simplesmente retirei a pepita do bolso e lha apresentei na palma de minha mão.
Tomou-a com extremo cuidado, examinando-a. Notei-lhe no rosto uma rápida incandescência, os olhos como duas chamas azuis. Estava ardendo de entusiasmo.
- Pelo amor de Deus - exclamou - onde encontrou isso?
- No riacho onde meu pai foi assassinado. Quando levei as mãos para beber um pouco da água do córrego que vem do platô, ela deixou-me nos dedos um pó amarelo. Eu não tinha certeza do que era. Fiquei estatelada e encontrei isso.
- Você encontrou isso? Jogado lá na margem do riacho? - Conservava-se de olhos fixos na pepita que tirara de minha mão. - Pesa mais de doze onças. Encontrou o pó e isso aqui... Então é lá que está, em alguma parte. E em grande quantidade... - riu. - E Nora encontrou isso. Minha menina, Nora! - Puxou-me para si e abraçou-me com tanta força que quase me sufocou. Pensei com meus botões: ele está abraçando o ouro, e não a mim.
Ainda estava a rir quando me largou.
- Não posso me conter - disse. - Todos esses anos, toda aquela trabalheira e tanto suor, toda aquela esperança. E Nora sai a passeio, tem vontade de tomar água e isso lhe cai nas mãos.
- Pode ser que não seja grande coisa.
Não é grande coisa? com aquele pó descendo de água abaixo, de tal modo que não se terá mais que apará-lo? E com a pepita jogada lá na ribanceira? Ainda tem coragem de dizer que não è nada? Você não conhece terreno aurífero. De repente tornou-se sóbrio. - Não me fale uma palavra sobre isso a ninguém... absolutamente ninguém. Vamos lá agora mesmo. Levaremos Stirling. E ninguém deverá saber para onde estamos indo. E que pessoa alguma suspeite do que existe lá até que aquilo seja meu.
Compreendi bem sua ansiedade. Ouro! E eu que encontrei. Eu sabia como os homens se sentem ao serem colhidos por um golpe de sorte. E por isso estava triunfante, exultante, eufórica como jamais havia estado - porque havia encontrado ouro. Mas logo percebi que a sensação não provinha tanto de ter encontrado ouro como tê-lo encontrado para Lince.
As semanas transcorreram numa tensão febricitante, tanto mais intensa porque a noticia precisa ser mantida em segredo. Ninguém tomara conhecimento da descoberta a não ser eu mesma, Stirling e Lince. E a ninguém era dado saber. Vivíamos aterrorizados de que alguém descobrisse o que eu descobrira.
Lince e Stirling examinaram o terreno e estavam absolutamente convictos de que ali estava a jazida mais rica de toda a Austrália. No alto do platô, que era de difícil escalada - e esse devia ser o motivo pelo qual o campo de ouro nunca fora descoberto - escondia-se uma fortuna. Permanecera ali, tão pertinho, durante todos esses anos. Era o que mais os admirava. E olhavam-me como se eu fosse uma espécie de génio por tê-lo descoberto.
Eu mesma me senti alvoroçada. Essa sorte fui eu quem lhes trouxe, eu que tornei tudo possível, eu que iria fazê-los ricos. Senti-me orgulhosa de mim mesma e recusei dar ouvidos a uma voz interior que exigia saber qual o bem que o ouro jamais trouxera.
Fui tomada também pela euforia, tendo esquecido todos os infelizes acontecimentos do passado. Só a necessidade premente de guardar o segredo foi que me fez capaz de ocultar o transbordamento.
Houve reuniões na biblioteca nas noites em que eu deveria estar jogando xadrez com Lince. Stirling juntava-se então a nós. Lince estava adquirindo o terreno, e não era só a área do platô que era objeto de negociação. Isso levantaria suspeitas. Queria aumentar a propriedade, alegava, pois estava pensando em adquirir mais carneiros. Bem antes da terra ser adquirida, ele e Stirling já haviam escalado o platô e constatado o que existia em seu topo. Era ouro, não havia a menor dúvida. Já haviam descoberto ricos depósitos de aluvião, como era de se esperar pelos pós trazidos pela corrente. Lince porém estava certo de que a verdadeira riqueza jazia por baixo da superfície.
- Deve haver filões de ouro em vários níveis - ele explicou. - Cavaremos poços até a profundidade que for necessária.
Stirling estava impaciente por começar o trabalho. Todos nós estávamos. Mas por enquanto, até que o platô pertencesse a Lince, o segredo teria de ser guardado.
Chegou o dia em que ele chamou a mim e a Stirling para irmos à biblioteca. Abriu solenemente uma garrafa de champanha e encheu três taças.
- A terra é minha - anunciou. - Conseguimos nossa fortuna. Seremos ricos como poucas pessoas jamais o foram.
Passou-me uma taça e entregou a outra a Stirling antes de pegar a sua. -- Nora em primeiro lugar, a descobridora de nossa fortuna.
por mera casualidade - insisti. -" Sem você eu não saberia o que fazer.
Fez o certo. Veio direto a mim. - Os olhos brilhavam de amor e solicitude, e eu acreditava jamais ter sido tão feliz em minha vida.
E agora, a nossa saúde - disse. - O Triunvirato vitorioso.
Bebemos.
Tem certeza? - perguntei. - Afinal, até agora os poços não foram cavados.
Lince riu.
Nora, já encontramos uma pepita pesando duas mil onças. Garanto-lhe que vale dez mil libras. E ainda nem sequer começamos. Existe ouro lá em cima, ouro capaz de tornar realidade o sonho de qualquer minerador. Não se atormente. Estamos ricos. Depois de tantos anos, você nos levou ao que sempre estivemos procurando.
Colocamos as taças sobre a mesa. Estendi as mãos. Lince segurou uma e Stirling a outra.
Era isso o que eu queria mais do que qualquer outra coisa - disse eu.
Lince riu-se de mim.
Então, até você foi tomada pela febre do ouro, Nora.
- Não. Febre de ouro, não. Só quero dar a vocês dois o que mais querem. Lince voltou a tomar-me nos braços e numa voz estranhamente meiga disse-me baixinho:
- Nora, minha pequena Nora. - Soltou-me como que me passando às mãos de Stirling. Senti os braços de Stirling à minha volta e me agarrei a ele.
- Acho que estou chorando - fiz ver. - As pessoas que não choram quando se magoam, choram de felicidade.
A atividade tivera início. A descoberta era o assunto de todos. Lince descobrira ouro - ouro mesmo. Sempre se soube que um dia ele acharia. Tinha sorte. O solo revelou seu ouro de aluvião - só aí uma fortuna. Mas Lince estava cavando poços e ia extrair o ouro que ele sabia existir nos filões de quartzo abaixo da superfície. Fechou a velha mina que não dava resultado, todos os operários foram transferidos para a nova, e mais operários foram contratados. O cenário do assassinato de meu pai transformara-se por completo. Os pássaros abandonaram o local, pois o barulho das explosões de pólvora os afujentara. Cavaram-se degraus na terra para que os homens pudessem galgar o platô, e carroças passavam constantemente pela estrada, levando ouro para o banco em Melbourne. O lugar fora rebatizado. Chamava-se agora Noras Hill.
Passei a ver Lince e Stirling cada vez menos. Estavam sempre na mina. Construirá-se ali um abrigo para que eles pudessem dormir com algum conforto quando não voltassem para casa. A fortuna estava sendo acumulada e constantemente eu ouvia falar das descobertas de novas pepitas. Lembro-me do alvoroço quando encontraram uma com mais de meio metro de comprimento. Foi assunto dos jornais de Melbourne e calculada no valor de vinte mil libras.
Havia por toda parte uma espécie de pasmo, mas para mim a sensação havia se acabado. Já não me sentia tão feliz como havia sido no primeiro ímpeto da descoberta.
Um dia, chegou à casa um estranho que manteve com Lince uma demorada conferência a portas fechadas. Disse-me Adelaide que era o advogado de seu pai e que estava de viagem à Inglaterra a serviço de Lince.
Dizia-se que Lince era agora um milionário. Talvez fosse certo, mas ele ainda não se dava por satisfeito. Eu duvidava muito que jamais ele se sentisse.
- Agora você está riquíssimo - disse-lhe eu um dia.
Admitiu.
Você também, minha querida. Não se esqueça de que tem uma parte nessa fortuna. Não lhe disse eu que formaríamos um triunvirato?
- Rica até que ponto?
- Quer cifras?
- Não. Significariam pouco para mim. Acredito que seja uma riqueza suficiente.
- Que quer dizer com isto?
- Que já é tempo de parar com essa atividade febricitante e deixar que os outros trabalhem para você.
- Ninguém trabalha por alguém como se trabalha para si próprio.
- E isso importa? Você já tem mais do que o suficiente.
- vou arrancar todo o ouro daquela mina, Nora.
- Você é mesmo insaciável... por ouro. Os olhos dele chisparam.
- Não. Eu sei quando basta. Tenho de ficar muito rico.
- E depois?
- Depois eu farei o que sempre planejei fazer. Tenho esperado durante muito tempo, mas agora estou vendo uma possibilidade de realização.
Não disse mais nada, porém deixou-me um pouco alarmada com a rigidez de seus lábios, pois eu sabia que era vingança o que ele tinha em mente.
Vingança contra o homem que o havia exilado trinta e cinco anos atrás! Seria possível que as pessoas guardassem sentimentos de vingança durante tanto tempo? Um homem como Lince guardava, eu sabia. Aquilo me preocupou, pois a meu ver não se podia encontrar felicidade na vingança.
Passaram-se os meses e mais uma vez o Natal chegou. Tivemos as celebrações usuais, ao estilo inglês: a refeição quente ao calor escaldante do dia, o pudim de ameixa regado a brandy, as guirlandas de folhas. Lembrei-me do último Natal, quando os Lamb reapareceram e foram enxotados. Agora eu imaginava o que lhes acontecera e, relembrando a crueldade de Lince na ocasião, fiquei apreensiva.
No início de janeiro o advogado veio ter novamente à casa e demorou-se em confabulações com Lince e Stirling. Não fui admitida àquela conferência, mas notei que depois dela havia nos olhos de Lince um ar de triunfo, e que aquilo tinha algo a ver com seus sonhos de vingança.
Certa noite, ele me chamou para jogar uma partida de xadrez e quando fui a seu encontro, estando aberta a porta do gabinete, convidou-me para entrar lá.
- Venha cá, Nora - disse-me. Quando me aproximei dele, colocou as mãos sobre meus olhos e girou-me o corpo até que eu ficasse de frente para a parede. Retirou então as mãos de meus olhos, dizendo: - Veja!
Era um retrato meu em traje de montaria, com o chapéu ligeiramente caído para um lado, olhos bem abertos e faces rubras.
- Trabalho meu - disse.
- Quando fez isso?
- A primeira pergunta é essa? Mostro-lhe um retrato seu e tudo o que tem a dizer é "quando"?
- Mas não posei para você.
- Acha que era necessário? Conheço todos os contornos de seu rosto, as expressões mais fugazes.
- Mas tem andado tão ocupado.
- Sempre tenho tempo de pensar em você. Diga-me, está gostando?
- Não está um tanto melhorado?
Está como eu a vejo.
- Folgo em saber que pareço assim a seus olhos. A mim mesma, não. É assim que você é quando olha para mim.
- Mas por que está pendurado aí? - É um bom lugar, o melhor da sala. - Mas havia aí outro quadro.
Balançou a cabeça e vi então o quadro virado para a parede. Quando você se sentava à mesa, olhava-o de frente.
- Agora olho para este. - É isso que quer?
Minha querida Nora, não está mostrando seu habitual bom senso. Iria eu colocá-lo aí se não quisesse?
Cheguei mais perto e examinei-o. Favorecia-me. Tive algum dia tanta vitalidade? Eram meus olhos tão grandes e brilhantes? Possuíam minhas faces aquele rubor? "Está como eu a vejo", ele dissera.
- Agora então vai olhar para meu retrato, em vez do outro - comentei.
- Isso mesmo.
- E Arabella?
- Está morta.
- Compreendo. É por isso que me pendurou ali. Quando soube que ela morreu?
- Morfell, o advogado que foi à Inglaterra a meu serviço, esteve em Whiteladies. E voltou com essa notícia.
- Compreendo.
- Compreende mesmo, Nora.
Julguei-o a ponto de me fazer uma confidência, mas mudou de ideia e sugeriu que jogássemos nossa partida de xadrez.
O calor era intenso - muito pior do que no verão anterior. As pastagens estavam secas e temia-se pela sorte dos rebanhos ovinos. Alguns trabalhadores morreram de insolação, mas em Noras Hill a produção de ouro continuava a ser espetacular.
Eu me avistara tão pouco com Stirling desde a descoberta que, um dia, quando nos vimos face a face nas escadas, queixei-me disso.
- Estamos ocupados na mina, Nora.
- Sempre estão - retorqui. - Arrependo-me às vezes de ter feito essa descoberta para vocês.
Ele riu.
- Para onde está indo agora?
- espairecer na cabana.
- Irei fazer companhia a você dentro de cinco minutos.
Era um prazer estar ao lado dele, disse-lhe eu quando chegou.
- O prazer é recíproco - respondeu-me.
- Bem que eu gostaria que não houvesse necessidade dessa corrida louca em busca de ouro e mais ouro.
- A mina não pode parar.
- Não poderiam vendê-la, agora que vocês já fizeram fortuna?
- Creio que é isso o que meu pai fará, no devido tempo.
- Acredita mesmo que ele o faça? Quanto mais tem, mais ambiciona. Stirling ergueu-se de imediato em defesa do pai, como eu esperava que fizesse.
Eu não teria sabido dizer de outra maneira.
Ele sabe quando chegará a hora de parar. Está nos enriquecendo a todos, Nora.
E o que é que nos tem trazido essa riqueza? As coisas continuam as mesmas...
com a diferença de que agora eu vejo você muito menos.
- E isso é aflição?
- A maior das aflições.
- Olhou-me com um sorriso feliz. Pensei: ele me ama. Porque não o confessa? A hora é esta. Eles já têm ouro, já podem parar de pensar nele. Vamos nos ocupar de coisas mais importantes.
- É esperar demais - disse eu - que você também compartilhe do mesmo sentimento.
- Eu lhe disse, quando aqui chegou, que receberia franqueza e que o mesmo se esperava de você. Sabe muito bem que não é esperar demais.
- Sinto-me agradecida então. Mas devo dizer que você não se empenha muito.
- Estou constantemente a me empenhar em vão.
- Bem, não desperdicemos o pouco tempo que temos para conversar em discutir causas perdidas. Qual o nível da riqueza de seu pai agora e até que ponto ele quer ficar mais rico?
- Tem lá seus planos e pretende realizá-los. É o ponto de vista dele.
- Faz confidências a você?
- Tem feito.
- E você sabe mais do que ninguém o que lhe vai à mente.
- Acho que sei. Creio que está de viagem marcada para a Inglaterra.
- Para a Inglaterra? - imaginei-o então nos gramados de Whiteladies. - E nós ficamos aqui mesmo?
- Quanto a nós, não sei quais são os planos dele.
- Os planos dele? Acaso não poderemos traçar os nossos?
Fixava um ponto indefinido à sua frente, uma expressão enigmática nos olhos. Pensei: Lince lhe disse alguma coisa. Há algo que desconheço.
Eu queria que ele me dissesse que nosso futuro seria um só. Queria que me pedisse em casamento. Era importante, pois tinha um pressentimento de que a demora envolveria um perigo. Eu amava Stirling e queria que o futuro fosse como o imaginara tantas vezes. Eu sabia exatamente o que queria - e queria já. Agora! Iríamos ao encontro de Lince e lhe falaríamos. Eu diria assim: "Stirling e eu vamos nos casar e pertencerei a esta casa pelo resto de minha vida". E nós três iríamos então ao gabinete e tomaríamos uma taça de champanha, como o fizemos naquela outra ocasião. Eu haveria de fâzê-los ver que este era um motivo muito mais digno de celebração que aquele outro. Minha felicidade seria compartilhada por Lince e por Stirling. A Lince eu diria: "Nós três nos pertencemos" e o faria desistir das ideias de vingança estúpida. Assim, mesmo quando eu estava pensando em me casar com Stirling, era em Lince que eu pensava.
Stirling sorria para mim e eu tinha certeza de que me amava. "Agora", tive vontade de dizer. "A hora é esta".
Ele nada disse, porém. Eu sabia que ele estava querendo me dizer que me amava, mas também que alguma coisa o reprimia.
E aquele momento passou.
Só depois de uma semana foi que me vi a sós com Lince. O calor estava mais forte do que nunca. Até Adelaide o sentia e por isso tratava de repousar à tarde. Ansiávamos pelas noites, mas quando chegavam eram tão quentes que se tornava impossível dormir.
Havíamos jogado uma partida de xadrez e estávamos debruçados sobre o tabuleiro onde meu rei derrotado estava preso por um cavaleiro, um bispo e um peão irritante.
- Há alguma coisa em preparação - falei.
- Que acha de fazer uma viagem à Inglaterra - perguntou-me Lince.
- Sozinha?
- Claro que não. Iríamos todos nós. Você, eu e Stirling. - E Adelaide?
- Ficaria para defender a fortaleza aqui... a menos que quisesse ir, é lógico.
- Ela desfruta de livre arbítrio? Riu-se de mim.
- A aspereza de sua entonação me diz que não está muito entusiasmada com a ideia de visitar seu torrão natal.
- com que finalidade?
- Para fechar um negociozinho.
- Vingança?
- Pode chamá-lo assim.
- Você agora é riquíssimo.
- Rico bastante para fazer tudo o que sonhei... com exceção de uma única coisa.
- í o que coloca isso fora de seu alcance?
- O tempo, í a morte.
- Nem você mesmo é páreo para tais adversários.
- Nem eu - admitiu.
- Está com disposição de fazer confidências?
- Está com disposição de ouvi-las?
- De você... sempre. Riu-se gostosamente.
- Minha querida Nora, minha caríssima Nora, você tem feito muito por mim.
- Sei disso. Descobri ouro para você.
- E talvez mais importante... espero que muito mais importante... minha juventude.
- Isso é um pouco enigmático.
- Um dia você há de compreender.
- Um dia? Por que não hoje?
Calou-se, levantando uma das sobrancelhas no gesto familiar que utilizava para intimidar.
- Veremos. - Recostou-se na cadeira e fixou-me com seriedade. - Como sabe, meu advogado esteve na Inglaterra onde tratou de certos negócios meus. Compra e venda de umas ações. Mas não vou entediá-la com detalhes. Esse fato colocou-me numa posição, com relação a certas pessoas, que me dá uma grande satisfação.
- Tem relação com Whiteladies? - apressei-me em perguntar.
- Você é uma jovem inteligente, Nora. Sabe que a única força que me possibilitou subsistir, durante aquele terribilíssimo período de minha vida, foi sonhar comigo mesmo em Whiteladies, não como um humilde professor de desenho, mas como o dono. Via-me sentado àquela mesa do salão. Você precisa ver aquele salão, Nora. É majestoso. É nobre. O forro é esculpido com o brasão da família. E lá está gravado o lema da família. A serviço da Rainha e do País. Izabel era a rainha a que o dístico se refere, e os ornatos são laços de fita em estilo Tudor, naturalmente em homenagem à casa real que deu à família aquele palácio, depois de enxotadas para o interior as piedosas freiras, condenadas a morrer de fome ou a mendigar. As paredes são almofadadas, a enorme lareira é de pedra, em ambos os lados com lugares para sentar esculpidos nessa pedra. Existem ali armaduras dentro das quais viviam os homens da família, de acordo com seu lema. Numa das extremidades do salão existe um estrado sobre o qual está uma mesa. Reis e rainhas jantaram àquela mesa. Eu tinha uma vontade imensa de jantar àquela mesa. E fiz um voto, Nora. Eu haveria de ser o dono de Whiteladies. E iria me vingar do homem que arruinou minha vida. Eu sabia que existia uma coisa da qual ele gostava acima de tudo, mais do que da mulher ou da filha. Whiteladies! E jurei: um dia hei de tirá-la das mãos dele. Me casarei com sua filha e vou me sentar na mesa onde reis e rainhas se sentaram. Hei de lançar os olhos para aquele imenso salão e dizer: "Whiteladies é minha".
- Mas agora ele está morto. E a filha também. Ela se casou, como você me disse. Casou-se com o janota a quem você menosprezava.
- Eu acreditava poder remover as dificuldades.
- Mas a morte e o tempo derrotaram-no, como disse há pouco. E agora?
- Jurei que Whiteladies haveria de ser minha.
- E está de viagem para a Inglaterra a fim de adquiri-la. Sorriu para mim.
- Está pensando que não posso fazê-lo.
- Não vejo como possa se os proprietários não querem largá-la.
- Você verá, Nora.
- Está enganado. Sei que está enganado. A vingança não traz felicidade para ninguém. Você já tem uma casa aqui. Conta com pessoas que o admiram e que zelam por você. Por que não se dá por satisfeito?
Fuzilou-me um olhar de fogo.
- Inclui-se entre esses, Nora? Respondi-lhe imediatamente.
- Bem sabe que sim.
- Ora, Nora - inclinou-se para a frente, - estou quase concordando com você.
- Se for inteligente, há de fazê-lo. E abandonará essa ideia estúpida de vingança. Foi tudo muito bem quando ela lhe serviu para vencer aquele período de infelicidade. Hoje não tem a menor utilidade e seria tolice continuar insistindo nela.
- Ousa me censurar, Nora?
- Ouso, sim.
- Saiba que ninguém faz isso.
- Então sinta-se grato em existir pelo menos uma pessoa que não tem medo de você.
- Sinto-me agradecido.
- Então por que não se satisfaz com o que tem?
- Esperei todos esses anos, Nora. Construí um lar para mim neste país. Obtive segurança, tive meu filho, trabalhamos juntos. Sou um homem de posses, mas fiz esse voto solene a mim mesmo. Se pensa que renunciarei ao lema de minha vida, não me conhece suficientemente.
- Conheço-o muito bem e acho que está errado. A gente cresce, a gente se transforma. Porque idealizamos metas quando jovens, isso não significa que devamos persegui-las quando já tenhamos adquirido maior experiência.
- Mas Whiteladies é uma casa linda, Nora. Não gostaria de viver numa casa daquelas?
Hesitei.
Gosto desta casa aqui.
- Bem sabe que é uma imitação... uma cópia pobre. Vamos, admita isto.
- Admito realmente que a Whiteladies original é uma casa belíssima. E gostaria de chamá-la de sua casa?
Sim, se fosse minha por direito.
E acaso não seria, depois de comprada e paga?
- Suponho que sim. Mas a família que ali mora por gerações jamais iria vendê-la.
- Podiam ser forçados a isso. Estamos apenas começando, Nora. Meus planos ainda estão na infância. Não poderiam começar antes que eu fizesse uma imensa fortuna. Agora, graças a você, é precisamente o que fiz. já lhe contei a história toda, Nora? Arabella se casou com o homem que seu pai lhe escolheu - um fraco. Seu nome era Hilary Cardew - Sir Hilary Cardew ele seria quando o pai falecesse. Podia reconstituir sua genealogia até chegar ao Conquistador... bem mais além do que os Dorian. Tinha algum dinheiro e a casa dos Cardew ficava a umas dez milhas de Whiteladies. As famílias sempre haviam sido amigas e o jovem Hilary estava destinado a Arabella desde o nascimento.
- E quando você partiu, ela se casou com ele.
- Eu só soube disso anos depois, quando me foi possível mandar alguém investigar.
- Por que não foi pessoalmente?
- Eu havia jurado nunca mais colocar o pé na Inglaterra, a não ser quando fosse um milionário. Além disso, eu me casara com Maybella e tive um filho e uma filha.
- Poderia dar-se por satisfeito com isso.
- Sou um homem sempre em busca da suprema satisfação.
- Mas não se há sempre de transigir na vida?
- Não eu.
- E no entanto é exatamente o que tem feito.
- Apenas a título de espera pela suprema satisfação. Sempre acreditei que se tivesse o dinheiro de que necessitava, eu conseguiria o que queria. Eu queria Whiteladies... e Arabella, naquela época.
- Mas ela tinha um marido e você uma esposa.
- Minha mulher morreu com o nascimento de Stirling. Cogitei em voltar e encontrar Arabella impossibilitada de manter a propriedade. De fato, tivesse tido o dinheiro, era isso o que eu teria arquitetado. Já lhe contei que Sir Henry era um homem que não admitia que as outras pessoas perdessem tempo? Eu dava a Arabella uma aula de desenho por dia, mas era apenas uma questão de duas horas no máximo. Como professor residente a despesa seria grande, e por isso funcionei também como secretário de Sir Henry. com inclinação para negócios, cedo eu estava administrando os investimentos dele e sabia exatamente em que situação ele se encontrava. Era dado a hábitos extravagantes, um connaisseur de vinhos e, além de beber além da conta, jogava. Sua situação financeira estava um tanto abalada quando apareci por lá. Eis por que ele tanto queria o casamento com o Cardew... para incrementar os bens da família. Mas Sir James Cardew era outro do mesmo tipo. Eu costumava ouvi-los discutir seus negócios. Redigi cartas de meu patrão para Sir James e para seus corretores em Londres. Eu sabia um bocado sobre as finanças de ambas as famílias.
- E descobriu que isso tinha lá sua utilidade.
- Sim, recentemente.
- Recentemente?
Meu representante em Londres tem trabalhado para mim. Tenho inVestido bastante dinheiro em Londres. E enquanto tenho me tornado cada vez mais rico certas pessoas têm se tornado cada vez mais pobres.
Prendi a respiração.
- Quer dizer então que preparou tudo isso deliberadamente? Estendeu as mãos.
- Suponhamos que isso tenha acontecido. Para manter um determinado padrão de vida, às vezes certas pessoas vêem-se obrigadas a vender suas propriedades.
- Lince! - exclamei, e agora ele estava realmente com a aparência daquele monstro, os olhos falseando de ódio e deixando transparecer a lembrança de anos e anos de humilhação. - Será que você vem arruinando deliberadamente Aquelas pessoas?
- Você não entende desses assuntos, Nora. Não se preocupe.
- A meu ver, eles jamais venderão a casa, por mais que você tente.
- Se não têm como mantê-la, serão forçados a isso.
- Eu não o faria - declarei - se estivesse no lugar deles. Imaginaria um meio de conservá-la. Receberia hóspedes que pagassem. Eu mesma haveria de trabalhar... especialmente se soubesse que alguém estava propositadamente querendo arrancá-la de mim.
- Você faria isso, Nora. Mas nem todos são como você. Espere e verá.
- Eles jamais hão de vendê-la, tenho certeza. Estive lá e vi aquela moça.
- Existem mais meios de venda que uma simples barganha em dinheiro e a entrega da propriedade.
- Quais, por exemplo?
- Você verá. Uma coisa é certa, Nora. Verei meu filho como senhor de Whiteladies e meus netos brincando naqueles gramados. Eles haverão de ser criados naquele ambiente encantador. Este é meu plano e cuidarei de que nisso eu não venha a me desapontar.
- E Stirling... pensa assim também?
- Meu filho sabe o que tenho em mente. Sempre soube. Mais do que ninguém, sabe o que tenho sofrido. Tenho-o visto chorar de raiva quando olha para as cicatrizes em meus pulsos. Tenho-o visto cerrar os punhos e jurar que essas contas terão de ser ajustadas. E só ficarei satisfeito quando Whiteladies for minha. E poderei dizer a mim mesmo que terá sido válido tudo o que concorreu para isso.
Calei-me por alguns momentos, vendo-o pronunciar meu nome em voz baixa. Olhei-o no rosto e seu olhar encheu-se de ternura.
- Quero que compreenda isso -disse. -Agora você nos pertence e o vínculo será fortalecido. com o passar dos anos, ficará cada vez mais ligada a nós. Aliás, nunca pensei que pudesse receber alguém em meu coração como tenho recebido a você.
- Eu sei - respondi-lhe. - Mas sei também que está errado. Isso é vinganÇa. Está querendo ferir pessoas porque há muito tempo você foi ferido. Não há felicidade na vingança. Tenho certeza de que sua atitude é errada e que só pode trazer infelicidade.
- Espere até ver aqueles jardins... aqueles gramados como veludo verde- bem tratados há centenas de anos. Os repuxos brincam junto à estátua de Hermes e os nenúfares flutuam à flor das águas. O jardim do lago é uma réplica do que existe em Hampton Court. Ali a paz é perfeita em dias de sol, com os pavões desfilando pelos gramados. Nunca vi tanta beleza, Nora.
- Mas terá de subtrair às pessoas o que lhes pertence de direito.
As mesmas pessoas que me subtraíram a liberdade! Pessoas que me reduziram à condição de animal e que só faltaram me matar de brutalidade.
Mas salvou-se. Casou-se com Maybella e salvou-se.
Maybella era uma idiota!
E no entanto serviu-se dela para se salvar.
- Não havia outro jeito.
Você não tem sido um homem feliz - argumentei. - Tem usado as pessoas para conseguir o que quer. E tem passado a vida em busca de vingança. Deveria tê-la passado em busca de felicidade.
- Isto é um sermão, Nora.
- Digo o que sinto.
Desatou a rir, a sobrancelha erguendo-se com aquele velho e estranho cacoete.
- Oh, Nora, que faria eu sem você?
- Não sei e sugiro que não ponha isso à prova. Desista de seus planos. Fique aqui. Esqueça-se de sua fortuna em ouro, de seus planos cruéis. Esqueça-se da vingança e desfrute a felicidade.
- Serei feliz, não tenha medo. Conseguirei o que quero. Gostaria de falar, Nora... sobre o futuro.
- Prometa-me então que o futuro estará aqui. Sacudiu a cabeça.
- Em Whiteladies - afirmou.
- Errado. Sei que isso é errado.
- Terei de convencê-la de que é absolutamente certo.
- Queria me falar sobre o futuro.
- Mas está muito analítica hoje. Amanhã talvez.
Paramos nesse ponto, mas fiquei intranqúila. Pensava nos gramados de Whiteladies, na moça e na velha senhora chamada Lucie. Então a mulher da cadeira fora a Arabella de Lince, e estava morta agora. Gostaria de saber o que fora feito do homem com quem ela se casara e se ainda estaria vivo. Depois pensei naquele terrível momento em Kerrys Creek, quando a voz de Lince trovejou por trás de mim. "Levante-se, Jagger!" E Jagger levantou-se para cair morto.
Lince jamais hesitava e a morte pouco lhe significava. Podia matar um homem e não ser atormentado pelo que havia feito. Pensei em sua vida conjugal com a pobre e atarantada Maybella, insistindo em que ela lhe desse um filho macho. Estaria eu começando a compreender Lince? Dava seu amor a poucos, mas por aqueles a quem dava seria capaz de matar. Ser odiado por Lince seria aterrorizador, e ser amado por ele talvez fosse a mesma coisa.
Ele amava a Stirling. Amava a mim. Estava decidido a tomar um caminho e todos nós teríamos de nos curvar a seus caprichos. Cada um de nós... eu, Stirling e a gente de Whiteladies. Não, todos não.
Eu não serei dominada, prometi a mim mesma, nem mesmo por Lince.
No dia seguinte houve uma consternação geral em todo o distrito. Um incêndio na mata, que já estava ardendo a umas trinta milhas de distância, caminhava em nossa direção. Quando acordei, o cheiro cáustico se alastrava por toda parte e não havia como escapar dele. De minha janela eu podia ver o clarão no céu.
- Chegará até nossas terras -Adelaide mostrava-se preocupada. - Só espero que não tenhamos de perder ninguém. Algumas das cabanas dos pastores estão fora do caminho.
- Certamente conseguirão retirar-se. Devem estar atentos para a aproximação cada vez maior.
Você não tem ideia do que seja um incêndio na floresta, Nora. As árvores explodem por causa do óleo que guardam, e novos incêndios irrompem por todos os lados.
- Não se pode tomar precauções? Ela sorriu um sorriso deplorável.
- Tudo o que tenho a lhe dizer é que não faz ideia do que seja. Espero que nunca faça.
A atmosfera da casa mudou. Todo mundo apresentava um ar solene, os criados trabalhavam em silêncio e, quando falavam, o assunto era o fogo.
- Pode ser visto em Melbourne - disse um deles. - Dizem que esta é uma das piores calamidades em muitos anos.
- Não me admiro... Também com o tempo que tivemos. Ouviu o trovão à noite passada? O raio deve ter atingido um montão de eucaliptos. A coisa pode ter começado por aí.
O vento esteve violento, vindo do norte em rajadas altas e quentes. Ribombos de trovões encolerizados ecoavam pelo céu. Saí para o jardim, pois não podia suportar a atmosfera de dentro de casa, embora lá fora estivesse pior. O clarão do céu aumentara de furor e o vento escaldante trazia aquele cheiro inconfundível.
A casa parecia um deserto e eu me perguntava onde teriam se escondido as pessoas. Lince, calculei, estaria na mina. Eu duvidava muito que, quanto à mina, ele tivesse algum medo. Presumi que o fogo haveria de passar por cima dela, sem atingir as jazidas, embora pudesse arruinar a maquinaria e tudo que estivesse à superfície.
Tornei a entrar, dirigindo-me para a parte mais alta da casa. E olhei. Podia ver nuvens negras de fumaça ao longe. Desci novamente e, quando passei em frente à porta de Jessica, ela me chamou. Estava deitada na cama, com uma compressa fria na testa.
- Esse cheiro horrível me dá dor de cabeça - disse. - Faz-me lembrar de uma vez em Rosella. Fomos encurralados pelo fogo. Isso foi antes dele chegar. Meu tio ficou apavorado, pensando que iríamos perder tudo. Maybella quis correr para fora, mas o Tio não permitiu. E disse, é melhor ficarmos onde estamos. Talvez corramos para o perigo. com esses incêndios é assim. Nunca se sabe onde ele vai rebentar... e numa questão de segundos a gente está dentro de um anel de fogo.
Eu não queria dar-lhe ouvidos e por isso deixei-a de mão. Passei pelo quarto de Lince, sabendo que ele não estava lá. Senti novamente uma vontade imensa de sair para fora, de afastar-me o mais que pudesse daquela nuvem de fumaça no horizonte, de limpar minhas narinas do cheiro de fumaça e de fogo.
Fui ao estábulo e selei Queen Anne.
A égua estava irrequieta, como se consciente do perigo. Falei-lhe com ternura. "Iremos dar um passeio ao ar livre, onde esteja limpo e fresco, para fugirmos deste cheiro horroroso".
Cavalguei cerca de uma milha, mas ainda assim senti cheiro de fumaça. Estaquei e olhei para trás. Até parecia que o cheiro estava mais perto.
Instiguei Queen Anne a um galope e nos largamos. Esquecida do incêndio, pensei no que Lince me havia dito na noite anterior em seu gabinete, querendo saber se aqueles planos se realizariam mesmo algum dia.
Stirling e eu nos casaríamos... na Inglaterra, talvez. Lembrei-me da velha igreja normanda com suas paredes de pedra cinzenta e cemitério com estranhas lápides, algumas das quais escoradas nas paredes, certamente porque ninguém sabia com exatidão a que sepulturas elas pertenciam. Lince me conduziria, vestida de noiva, ao altar, e depois ficaria olhando com orgulho e contentamento quando Stirling e eu descêssemos juntos pela nave. Os portões ornamentados de branco estariam abertos de par em par e por eles passaria nossa carruagem em direção à mansão.
E o que seria feito de Minta? Pobre Minta, agora estaria morando numa das cabanas. Talvez lhe fosse dado servir às pessoas do lugar chá com bolinhos caseiros e sequilhos com mel e geléia. Lucie haveria de ajudá-la.
Meu pensamento divagava pelas paragens do absurdo. Eu era igualzinha a meu pai. Eu não acreditava que Minta e seu pai - se era que ainda estava vivo permitissem jamais que a casa fosse vendida, pouco importava o preço com que os tentasse o mais rico dos magnatas do ouro.
Estaquei e olhei para trás. A fumaça estava agora mais espessa. Não compreendia. Afastava-me e no entanto parecia que estava chegando mais perto.
Percebi que havia sido louca em sair de casa. Mas não estava perdida. Sabia que direção havia tomado. Mesmo assim não podia compreender porque me parecia estar chegando cada vez mais perto da fumaça. A mata era traiçoeira e tinha o mesmo aspecto por toda parte. Mas eu já estivera antes neste trecho e sabia onde me encontrava.
Súbito escutei um eco.
- Oooô, Nora!
Gritei em resposta. Era Stirling.
Juntei as mãos em concha junto à boca e gritei.
- Stirling. aqui.
Avistei-o então. Vinha galopando em direção a mim e estava pálido de raiva.
- Nora... sua maluca! -gritou.
- Como diz? - retorqui de chofre.
- Não tinha nada melhor a fazer do que sair assim? Meu Deus, você podia ter sido apanhada pelo fogo. Não entende o que está acontecendo? Será que ainda não aprendeu coisa alguma?
- Sei que está havendo um incêndio por aí.
- Um incêndio por aí? Não vê que a mata está em chamas? E sai como se não houvesse nada. Vamo-nos embora.
Deu meia volta no cavalo e eu o segui submissa.
- Você agiu como louca - gritou por sobre o ombro.
- Fugi para longe do fogo. Isso é loucura?
- Como sabe o rumo que ele toma? Numa questão de segundo fica-se cercado.
- Devia ter-me lembrado dos avisos. Bem, agora sei.
- Não sabe. Disso você não entende nada. Nem sequer pode imaginar. Terá de arriscar a vida antes de entender. Se não a tivessem visto sair da estrebaria, eu nem seria capaz de saber o rumo que você havia tomado.
- Preciso ser vigiada sempre? - lembrei-me com horror daquela outra ocasião em que me viram sair e logo me seguiram. Dei largas à minha irritação. - Pare com essas ralhações, Stirling. Saí. Ponto final. E aqui estou. Está tudo bem e prometo-lhe não fazer outra.
Os lábios alinharam-se com firmeza, o que o fez extraordinariamente parecido com o pai. Cavalgamos em silêncio por várias milhas, quando então tomei a iniciativa de falar. - Stirling, eu não sabia que você pudesse ser assim tão áspero. Estou aprendendo. Devo-lhe dizer que se há uma coisa que me desagrada...
Parei, porque era evidente que ele não estava escutando. Eu havia começado a tossir e para onde me voltava via nuvens de fumaça.
Ele estacou de repente.
- Qual o caminho? - perguntei.
- Eu gostaria de saber.
Bem, não estamos voltando para casa?
- Não sei. Parece que vamos ser interceptados.
- Interceptados...
- Pelo fogo, sua idiota!
- Como ousa falar comigo assim?
- Oh, meu Deus - resmungou. - Escute, Nora, estamos em perigo. Estamos encurralados, não está vendo? Acontece que não sei que caminho tomar. Qualquer um poderá ser desastroso.
Pensei que ele estivesse exagerando para me ensinar uma lição. Logo porém ouvi uma explosão perto de nós e um renque de eucaliptos de repente começou a pegar fogo.
- Vamos -disse Stirling, e galopamos na direção oposta. Não demorou muito e estacamos novamente, pois estávamos nos aproximando de uma densa coluna de fumaça.
- Fomos encurralados - Stirling foi categórico.
Fiquei estatelada de pavor, a olhar para ele. Sentia fumaça nos olhos e nas narinas. Estava real mente apavorada, embora com o conforto da presença de Stirling. Dominava-me a impressão pueril de que tudo haveria de dar certo com a presença dele ali.
- Eu gostaria de saber se vai dar tempo - ele estava dizendo para si mesmo.
- Vamos. Fique pertinho de mim. Vale a pena tentar.
Galopamos em direção à fumaça e, subitamente, ele abandonou a trilha e nos embrenhamos na mata.
- É uma chance. A única - ouvi-o murmurar. - Vamos tentá-la.
Um riacho de águas rasas passava à frente. Ele desmontou, rasgou o casaco e pediu o meu. Dei-lho.
- Teremos de deixar os cavalos - disse. - Nada podemos fazer por eles. É bem possível que saibam o caminho de volta.
- Oh, não, Stirling...
- Faça como estou dizendo. Só existe uma pequena possibilidade de salvação para nós.
Embebeu nossos casacos no riacho e correu para uma pedra que se salientava à margem e em cuja face havia uma pequena abertura. Entregando-me os casacos molhados, Stirling ajoelhou-se e freneticamente começou a cavar a terra com as mãos. Era mole e logo ele fez um buraco. Acenou-me para que me arrastasse até ali e, nessa altura, eu sabia mesmo que tinha de lhe obedecer sem pestanejar.
Para minha surpresa vi-me dentro de uma caverna do tamanho de um quarto pequeno. E quase imediatamente Stirling chegou-se para junto de mim. Calafetou a abertura com os casacos molhados e ficamos na mais completa escuridão.
- Nora - a voz soou-lhe áspera de tensão.
- Estou aqui, Stirling.
Encontrou-me às apalpadelas e apertou-me junto a si.
- É melhor ficar deitada - disse. - Ali deitados, permanecemos calados por alguns minutos, quando então Stirling falou: - Nora, teremos muita sorte se conseguirmos sair vivos daqui.
Permaneci em silêncio, a pensar. Foi culpa minha. Banquei a estouvada. Quanto ainda tinha de aprender sobre este país onde a morte parece estar constantemente à espera dos incautos e dos imprudentes.
- Oh, Nora, e pensar que você veio para cá... para meu país... e ter de enfrentar isto.
Foi culpa minha, Stirling.
Não - falou com um tom meigo. - Podia acontecer em qualquer lugar.
Quem sabe lá o que está acontecendo agora em casa? O fogo estava chegando muito perto.
Mas Lince há de saber... - então pensei na casa sendo tomada pelo fogo, imaginando-o aproximar-se com tanto furor e tomando conta de tudo que nem mesmo Lince saberia como detê-lo. O pensamento de Lince em perigo fez-me esquecer o perigo que nos ameaçava. Mas dizia a mim mesma que ele saberia como agir. Nenhum mal haveria de lhe acontecer. Percebi então que me acostumara a pensar nele tal como fazia Stirling: como se fosse um deus, um imortal.
Estou me lembrando desta caverna - Stirling pôs-se a murmurar. - Vivia aqui uma família indígena. Veio trabalhar para meu pai, e o menino, que era de minha idade, costumava trazer-me para cá. Foi feita para nos salvar, Nora. É nossa única oportunidade.
Eu sabia que ele estava tentando me confortar. Lá fora o fogo estava nos encurralando e muito cedo o solo acima de nós estaria em brasa. Como poderíamos sobreviver?
Foi como se ele tivesse lido meus pensamentos em meio à escuridão.
- Há uma chance - disse ele. - Muito remota, mas há uma chance.
Pela primeira vez em minha vida estive perto da morte. Senti-me tonta, como se estivesse sonhando. Eu e Stirling permaneceríamos para sempre debaixo da terra e esse seria nosso túmulo, embora ninguém o soubesse jamais. Procurei a mão dele, e foi como se ela estivesse em fogo. Tudo parecia em fogo, pois o calor estava se tornando insuportável.
- Daqui a pouco o fogo estará em cima de nós - seus lábios colaram-se a meus ouvidos.
- Daqui a pouco, Stirling - respondi.
Podíamos escutar o rugido e o crepitar, as explosões súbitas, e pela caverna já começava a penetrar o cheiro acre.
- Se conseguirmos impedir que a fumaça entre - disse Stirling, mas logo fez uma pausa. - Do contrário... - Não prosseguiu. Nem havia necessidade. compreendi. Nossas chances de sobreviver eram mínimas.
- Stirling, não me arrependo de ter vindo para cá.
Não respondeu. Afastamo-nos um do outro porque o calor era intenso, mas continuamos de dedos entrelaçados. Agradava-me ficar assim e sei que ele sentia a mesma coisa.
- Nora - a voz dele parecia vir de muito longe. - nós amávamos você, Nora. Tudo ficou diferente depois que você chegou.
Fui amada, como havia sido quando meu pai estava vivo. Mas que importava isso agora? Ele usou o tempo passado como se já estivéssemos mortos. Não deve demorar muito, pensei. Eu não podia morrer... e logo agora que havia encontrado um lar e pessoas que me amavam. Abominei o destino que me fizera sofrer e que me dizia, na hora em que eu podia voltar a ser feliz: é o fim. Agora sua vida acabou.
- Não - falei em voz tão baixa que ele nem me ouviu.
Nada podíamos fazer senão esperar imobilizados ali. Jamais imaginei que pudesse existir um calor igual àquele. Eu arfava à procura do fôlego.
- Está tudo bem, Nora - escutei uma voz ou, pelo menos, acreditei escutar.
- Nora, meu amor, estaremos salvos. Lince jamais nos perdoará se morrermos.
É verdade, pensei. Temos de viver... para Lince.
Não posso descrever o calor cada vez mais intenso. Creio que devo ter permanecido todo tempo semiconsciente, pois houve ocasiões durante esse período aterrorizador em que eu nem sequer sabia onde me encontrava. Permaneci absolutamente imóvel, sem forças para me mexer. Naquele calor terrível todas as energias me haviam abandonado. Só restava uma coisa a fazer: deitar e esperar ou pela morte iminente ou pela vida para nos libertar.
Durante toda a experiência aterrorizante dei-me conta da presença de Stirling junto a mim, e sabia que ele me amava. Eu tinha certeza de que, se pudesse escapar da morte, o futuro com o qual eu sonhara seria meu.
Creio ter passado por uma espécie de transe, sonhando com um futuro no qual estávamos nós três... porque agora eu sabia, como se já não o soubesse antes, que Lince teria sempre um lugar em minha vida... nos gramados de uma bela mansão. Meus filhos... meus e de Stirling... lá estariam com o avô: um novo Lince, um homem que fizera as pazes com a vida, que trocara um sonho de vingança por um sonho de harmonia.
- Nora, Nora! - o rosto de Stirling estava colado ao meu. Havia um pouco de luz na caverna. A primeira coisa que notei foi a fumaça. Comecei a tossir. Oh, meu Deus, Nora, pensei que estivesse morta.
- Que aconteceu?
- O vento mudou e está caindo uma leve neblina. As fogueiras ficarão umedecidas e deixarão de se espalhar. Vamos ter de sair daqui. - Ajudou-me a levantar mas cambaleei, caindo por cima dele. Ele riu, mas percebi que de alívio porque eu estava viva. Segurou-me contra si por alguns momentos, mas com uma ternura inexplicável.
- Vamos ter de sair daqui - repetiu.
Eu mal podia andar, de pernas tão rígidas. A temperatura na caverna deve ter atingido a uns sessenta graus, embora agora estivesse um pouco menos quente.
- Siga-me - disse-me Stirling, e observei-o rastejar pelo buraco. Logo porém ele me puxou para fora e me vi de pé a seu lado. Era como se estivesse entrando dentro de um forno, mas logo levantei o rosto e deixei que a neblina caísse sobre ele.
Meus olhos depararam-se com uma visão macabra. O que restava das árvores estava enegrecido e fumacento. Pairava por toda parte uma estranha quietude. E ocorreu-me que no subconsciente a gente escuta pássaros e insetos das matas sem se dar conta da presença deles. Muitas árvores ainda ardiam.
Voltei-me para Stirling que estava irreconhecível, o rosto e as roupas enegrecidos. Eu sabia estar oferecendo o mesmo espetáculo.
Ele colocou os braços em volta de mim e apertou-me. Ficamos parados ali, por demais emocionados para falar.
- Estamos vivos, Stirling - disse eu afinal. - Temos um futuro à frente. Soltou-me e segurou minhas mãos, olhando atentamente para meu rosto. Vi a alegria, e não sujeira e tisna, sentindo-me feliz por alguns segundos.
- O que terá acontecido em casa? - perguntou.
Um medo terrível apoderou-se de nós dois. Embora acabássemos de afirmar um ao outro que tínhamos um futuro, nenhum de nós poderia ser feliz se o futuro não incluísse uma outra pessoa.
- Precisamos voltar o mais rápido possível - respondi. -Temos de averiguar.
Os campos foram devastados e tornava-se difícil saber qual dos caminhos cicatrizados e destruídos deveríamos tomar. Sem Stirling eu me teria perdido. Durante toda a vida ele se familiarizara com essas paragens, e mesmo assim, mostrava-se perplexo. Mas ambos nos sentíamos impelidos por uma vontade irresistível de saber o que acontecera à Pequena Whiteladies. Stirling me amava, eu tinha certeza disso. E acreditava que nosso futuro estava selado. Mas se tivéssemos perdido Lince, poderíamos ser felizes novamente?
Não sei como fizemos a jornada de volta. Estávamos estenuados com o choque. Pelo menos seis horas ficáramos na caverna. Nossas pernas estavam retesadas, a garganta ardia. Mas forçamos a caminhada para frente com um único pensamento na cabeça: Lince.
Quando anoiteceu Stirling achou conveniente que descansássemos um pouco. Deitamo-nos no chão, mas nossas mentes não podiam repousar.
Está muito longe? - murmurei.
- Não pode ser mais que seis ou sete milhas.
- Stirling, por que não continuamos?
- Precisamos descansar um pouco.
- Eu preferia caminhar.
- Eu também, mas você cairia antes de chegar lá.
- Oh, Stirling - gritei. - Tome conta de mim.
- Sempre, Nora - respondeu.
- Para sempre - murmurei, mas ainda aí eu estava pensando em Lince.
Adormeci finalmente e tomei como uma medida do amor de Stirling por mim o fato de me ter deixado dormir. Tratei de desculpar-me quando acordei. Parecia um absurdo dormir quando ainda não sabíamos o que acontecera a Lince.
Arrastamo-nos pela estrada. Não falamos de Lince, mas um sabia que o outro pensava exclusivamente nele, e que nossa omissão em mencioná-lo era proposital.
Jamais hei de esquecer as últimas horas daquela caminhada, quando finalmente descobrimos que o terreno não havia sido alcançado pelo fogo. Lá estava a casa, impávida, como a desafiar a destruição que esteve iminente.
Stirling soltou um urro de alegria quando a avistamos. Começou a correr arrastando-me consigo.
- Estamos em casa - gritou. - Em casa.
Adelaide veio correndo ao nosso encontro. Chorava de alívio e nos tomou em seus braços sem nos querer soltar. Notei, como se faz em tais ocasiões, que o vestido dela estava enegrecido de tisna e fuligem.
- O patrão precisa ser avisado - ela gritou. - Jenny! May! Eles chegaram. Estão em casa.
Trôpegos, entramos casa adentro.
- Ele... está são e salvo - disse Stirling.
- Mas quase louco - interferiu Adelaide. - Tem estado à procura de vocês por toda parte e já entrou em contato com meio mundo.
- Cuide de Nora - disse-lhe Stirling.
- Ele está bem? - murmurei. - Realmente bem?
Quando ele chegou já me haviam levado para a cama. Só quando me vi sob os lençóis macios foi que me dei conta de quão exausta estava. Depois de ter tomado o caldo que Adelaide me trouxe, deixei-me ficar preguiçosamente na cama. "Para começar, não muito", ela me dissera. Deitava-me a pensar no calor e no terror daquela caverna escura, e na promessa de Stirling de que cuidaria de mim para sempre. Lince estava salvo. Seríamos três.
Eu sabia que ele estava em casa. Pressentia-se a presença dele. Também sabia que ele haveria de vir primeiro a mim... antes mesmo de ir ver Stirling. Oh, não, certamente que não. Stirling era o filho adorado. Eu era apenas a filha adotiva.
Estava em pé na porta, os olhos cintilando da maior alegria que jamais vi em outros olhos. Por que razão o que ele fazia era muito mais intenso do que os outros?
- Nora, minha Nora.
Aproximou-se da cama e me tomou nos braços, o rosto bem perto do meu. "Nora, minha menina", continuou dizendo.
- Estou de volta, Lince. Meu querido Lince, estamos juntos novamente. Permaneceu calado por alguns momentos. Comprazia-se em me abraçar.
- Pensei que a tivesse perdido e fiquei louco de fúria. Mas você está de volta. Nora, minha menina.
- Eu estava apavorada com o que lhe tivesse acontecido. Riu-se alto e seguro de si. Como se nada lhe pudesse acontecer!
- Pensamos em você o tempo todo - disse-lhe eu, - e falamos também. Riu-se mais uma vez e tudo o que teve a dizer foi "Nora, minha menina!" E saiu para ver Stirling.
Recuperamo-nos rapidamente do choque de nossa experiência. Creio que o fato de chegar em casa e tê-la encontrado intacta, e a família sã e salva, fez-nos tão felizes que com a máxima rapidez possível afugentamos os efeitos negativos de nossa aterrorizadora aventura.
Os danos haviam sido tremendos. A propriedade sofrera e muito. Perderam-se muitos rebanhos de carneiros e dois dos pastores morreram em suas cabanas. A mina fora poupada.
Adelaide insistiu em que eu guardasse o leito por dois dias. Fui mimada e alimentada com comida especial para enfermos, que ela disse ser necessária. Stirling recusou-se a ser tratado como um inválido, mas eu gostei daquilo.
Jessica veio ver-me. Sentou-se na beirada da cama a me olhar com determinação.
- Nunca o vi tão aflito como desta vez - disse-me. - Despachou grupos de homens à sua procura, com risco da vida deles.
Sorri de felicidade. Tudo o que queria era estar deitada e pensar no futuro.
Logo que me levantei, ele me convidou a comparecer à biblioteca depois do jantar.
Uma partida de xadrez, disse a mim mesma, lembrando-me de que durante aquelas horas de semiconsciência na caverna eu me imaginara no gabinete, o tabuleiro entre nós dois.
Ele não jantou conosco e quando subi à biblioteca ele já estava à minha espera. Olhou-me eufórico, mas ainda contraído, e diferente de quando eu o vira pela última vez.
- Está um pouco pálida, Nora. Mas num período de poucos dias estará restabelecida. É jovem e saudável e exuberante.
Encheu duas taças de vinho do Porto e trouxe-as para junto de mim. Notei o brilho dos olhos do lince do anel quando me passou uma das taças.
A nossa saúde, Nora. À sua volta sã e salva para mim. Que teria feito eu se você não voltasse?
Temos de agradecer a Stirling. Stirling é maravilhoso.
Stirling é maravilhoso - repetiu.
Comecei a falar sobre a caverna, embora ele já tivesse sabido de tudo. De repente senti-me nervosa e tive necessidade de continuar falando.
- Minha querida, você está de volta e me fez o mais feliz dos homens numa hora em que me tornei o mais desventurado.
Minhas mãos começaram a tremer. Era por causa do trauma recente, disse a mim mesma. Mas não era. Assaltou-me uma ideia repentina, mas eu não iria aceitá-la.
Tomou-me a taça da mão.
- Não está receosa, Nora. O receio não é próprio de você.
- De que haveria eu de estar receosa?
- É assim que minha pequena Nora fala. Não precisa ter medo de nada, porque estarei aqui para cuidar de você.
- É um pensamento confortante - disse eu com um toque de minha velha presença de espírito.
- Então sinta-se confortada, meu bem. Creio que já sabe o que vai no meu espirito de uns tempos para cá. Já está ciente da transformação que forjou em mim.
- Eu?
- Devolveu-me a juventude. Afinal de contas, não sou um velho. Aparento velho a seus olhos?
- A mim sempre me deu a aparência de imortal. Mesmo antes de conhecê-lo, Stirling me falava de você como se fosse o próprio Zeus.
Sorriu, mas sem querer comentar Stirling.
- É bastante amadurecida para a idade que tem, minha querida. Não é uma criança leviana. Nunca o foi. Teve de arranjar-se às próprias custas e isso me alegra. Nunca pensei que isso acontecesse a mim. Sim, realmente, você me devolveu a juventude, Nora.
- Como?
- Sendo o que é. Vindo para o meio de nós e mostrando-me que a vida está à minha frente e não atrás.
- Sinto-me feliz com isto. Vejo que desistiu daquela estúpida ideia de vingança. Riu-se outra vez. Estava rindo bastante naquela noite.
- Você me intimida, Nora. Sempre intimidou. Espero que continue assim quando nos casarmos. Gosto disso, meu bem.
- Quando eu me casar com... - Nesse segundo eu dissera a mim mesma que não o escutara corretamente. Ele queria dizer quando eu e Stirling estivéssemos casados, mas em meu coração eu sabia que ele não estava pensando em Stirling.
- Comigo - afirmou. - Não pense que vou deixá-la cair nas mãos de ninguém mais. - Estampou-se em seus olhos uma ferocidade que tanto me apavorou como me deleitou. Como sempre acontecia em sua presença, eu tinha dúvidas de meus sentimentos para com ele.
Pegou-me pelos ombros e arrastou-me para si.
- Nunca mais, meu amor, você há de vaguear pela floresta em fogo. Agora está de volta e hei de conservá-la comigo enquanto vivermos ambos.
- Lince! - gaguejei e ele me apertou ainda mais.
- Que nome ridículo! - disse.
Mas sempre pensei em você como um lince -falei com leviandade, como se isso tivesse alguma importância quando havia tanta coisa para se pensar e falar.
Um animal predatório - continuou. - Calha bem. Deus do céu, Nora, eu acho que morreria se você não voltasse. Eu estava disposto a atirar-me naquela fornalha voraz, e só a certeza dentro de mim de que você voltaria foi que me impediu de fazê-lo. Preciso de você, Nora, como jamais precisei de quem quer que seja. Vejo-o agora. Qual o problema, meu bem?
- Casamento. Eu não havia pensado em casamento.
- Que mais?
- Você falou em ser meu pai.
- Isso foi no começo. Mas mudou, não mudou? Serei tudo para você, Nora. Não sentirá falta de nada.
- Estou confusa.
- Não você, Nora. Sabia disso ao certo. Eu percebia. Sabia e se alegrava.
- Mas...
- Não há "mas". Já planejei tudo.
- Sem consultar-me? Riu-se.
- Um toque da velha Nora. Sim, sem consultar a você por meio de palavras, mas estava claro para nós dois, não estava. Quando nos sentávamos para jogar xadrez, quando permiti que você conquistasse o tabuleiro. Não acredita que poderia ter feito tal coisa sem que eu o permitisse, acredita?
- E Jagger? - falei com lentidão na voz.
Os olhos apertaram-se-lhe. Suas emoções apavoravam-me e no entanto me faziam vibrar de certa maneira estranha. O semblante estampou então um ódio feroz.
- Jagger! gritou. - Sim, mas pelo amor de Deus, por que Jagger?
- Você o matou. Matou um homem.
- Meu amor, ele tinha de morrer. Eu jamais poderia olhar para ele novamente sem sentir vontade de assassiná-lo. Eu o mataria com minhas próprias mãos algum dia. Pelo menos deixei-o morrer rapidamente.
- Oh, Lince - falei com fragilidade, - você me apavora.
- Apavoro você? Quando a amo? Jamais amei alguém como amo a você. Arabella: Uma fantasia! Foi meu orgulho que padeceu ali. Eu queria Whiteladies. Queria viver naquela casa com minha mulher e meus filhos. E vou viver, Nora.
- Está indo muito depressa - observei.
- Minha imperiosa Nora - retorquiu com um sorriso. - Acaso queria que fosse devagar? Iremos para Whiteladies, eu e você, e sentar-se-á à mesa no estrado onde reis e rainhas se sentaram. E os aposentos no alto da mansão, onde a pobre Arabella aprendeu o ABC, serão para nossos filhos.
- Eu ainda não disse que concordava.
- Minha querida, não lhe será dado fazer outra coisa.
- E se recusar?
- Não o fará.
- E que diz... Stirling de tudo isso? Já falou com ele?
- Sabe um pouco sobre meus planos.
- Sabe que você me está pedindo em casamento?
- Sabe. Adelaide também. Há muito tempo que já suspeitaram de meus sentimentos por você.
- Stirling... concorda com a ideia?
- Sem dúvida, Compreende bem a força de meus sentimentos por você.
E isso significa que também ele o deseja.
Tem sido um bom filho e sempre se preocupou com minha felicidade.
Compreendo.
Só falta portanto que minha imperiosa Nora diga que me ama, o que sei que è verdade.
- Está adotando aquele hábito irritante de falar sobre mim como se eu não estivesse presente, como quando tentou me desmoralizar à minha chegada aqui.
Riu-se gostosamente.
Como sou cruel. E tolo. Porque na verdade isso nunca surtiu efeito nem por um momento sequer, surtiu? Anunciaremos à família a realização da cerimónia. Você sabe que não sou homem de perder tempo.
- Não me deixarei precipitar a coisa alguma. Gosto de tomar minhas próprias decisões.
- E assim será, pois vejo que está tão sôfrega por esse acontecimento quanto eu-
- Está muito convencido. Asseguro-lhe que não me sentia preparada para isso. Sempre pensei em você como um pai.
- Verá que me sairei melhor marido do que pai. Desvencilhei-me dele e falei com firmeza.
- Preciso de tempo... tempo. Nada direi até que tenha pensado bem sobre isso.
- Esta noite vou anunciar nosso casamento imediato.
- Ainda não - protestei, mas logo me arrependi de ter-me expressado dessa maneira, como se fosse uma coisa que viesse em seu devido tempo. Casar com Lince! Era um projeto incrível e emocionante. Quais haviam sido meus sentimentos por ele? Alguma coisa a mais que uma filha adotiva por um pai. E ainda havia Stirling.
Stirling! Ele sabia de tudo e concordava. Eu viveria sob este teto com Stirling e estaria casada com Lince. Era uma situação incôngrua, mas era a que Lince vinha planejando.
Dei-lhe as costas, mas logo ele chegou à porta barrando-me a passagem. Seus olhos faiscavam de uma paixão que me alarmou, tal como ficara alarmada quando me vi face a face com jagger. Mas ao mesmo tempo eu não tinha a menor vontade de fugir dele.
Tomou-me o queixo nas mãos e ergueu meu rosto.
- Está com medo - disse, - medo de uma coisa que ainda não experimentou. Você tem descobertas a fazer, Nora, e as faremos juntos. Não tem nada a temer, minha querida.
O rosto estava bem junto do meu, os olhos de um lampejo selvagem acesos de uma paixão que eu bem podia adivinhar.
- Não - afastei-o. - Ainda não. Preciso retirar-me. Preciso pensar. Insisto. Se anunciar qualquer coisa, serei obrigada a negar. Não serei forçada.
Deixou cair as mãos.
- Está com medo de mim. Por Deus, Nora, será verdade?
- Por que martela tanto essa questão de medo? Não se trata de medo. Recuso-me a ser informada sobre com quem deva casar e quando se realizará a cerimónia, sem que antes tenha sido consultada. Se esse casamento tiver de se concretizar, deverá ficar bem claro que não sou um joguete a ser manipulado para lá e para cá, como não há de se esperar de mim que viva me curvando e cultuando meu marido.
- Oh, Nora, você me encanta. Então minha querida precisa de tempo para pensar. Quer tomar suas próprias decisões. Meu único desejo é lhe dar tudo o que me pedir neste mundo. Isso não é nada em comparação com os presentes com que a inundarei.
- A primeira coisa que lhe peço é que acabe com esse hábito ridículo. Isto me enfurece.
Estávamos a rir novamente... por alguns momentos de volta ao nosso antigo relacionamento.
- Agora vou deixá-lo - disse-lhe. - Irei para meu quarto e, quando tiver decidido, lhe direi.
Deixou cair as mãos que me aprisionavam. Logo que me voltei para sair, segurou-me e senti seus lábios em meu pescoço. Minha vontade foi tanto de permanecer como sair e, como sempre, eu não compreendia meus sentimentos.
Fui para meu quarto e fechei a porta, na qual me encostei a pressionar as palmas das mãos, frias, nas faces ardentes.
Você sabia de tudo, acusava-me a mim mesma, e se recusava a aceitá-lo. Decidiu que se casaria com Stirling, e tudo parecia muito certo e natural. Mas amo Stirling, protestei.
Sim, você ama Stirling. E Lince.
Não me era possível pensar em ninguém mais senão em Lince. Ele ocupava inteiramente meu espirito, tal como parecia dominar todos os espaços nos quais estivesse presente. Era vibrante, era extraordinário, era mais que humano.
Tratei de acalmar-me. Casar com Lince! Estar ao lado dele noite e dia! Eu era muito inexperiente sobre as coisas da vida e tinha muito o que aprender sobre os homens e sobre o casamento. E Lince seria o instrutor. Senti-me horrorizada com esse pensamento e, não obstante, completamente obcecada por ele. Amo Stirling, continuei repetindo. Tinha sido sempre Stirling, desde que nos recostamos no convés do Carion Star. Sim, mas naquela ocasião eu ainda não conhecia Lince.
Mesmo tendo conhecido Lince, meus sentimentos para com Stirling não mudaram. Lembrei-me daquela noite terrível em que nos deitamos na caverna com a certeza de que jamais sairíamos vivos dali. E quando saímos fora e vimos que, apesar de tudo, tínhamos um futuro, foi como se tivéssemos feito uma tácita declaração de amor.
Mesmo na caverna, porém, Lince estivera constantemente presente em meus pensamentos... no pensamento de nós dois.
Se me casasse com Lince ficaria sendo a madrasta de Stirling. Madrasta do homem com quem pensava me casar! Era absurdo. E se eu falasse com Stirling? E se ele me dissesse que me amava? Teríamos então de partir. Não poderíamos nos casar e viver sob o mesmo teto de Lince, agora que ele declarara sua desesperada necessidade de mim.
Mas quando eu pensava na vida sem Lince invadia-me uma grande consternação. Seria chata e monótona. E com Stirling? Sim, talvez a mesma coisa. Nunca que Lince nos deixaria partir. Esse pensamento me confortava. Lembrei-me com nitidez de vê-lo montado no cavalo branco, a pistola nas mãos. Um assassino! E jurou que faria a mesma coisa a qualquer homem que pusesse as mãos em cima de mim. E Stirling?
Vi-me tomada pelo redemoinho de minhas próprias emoções. Simplesmente não sabia o que fazer.
Preciso falar com Stirling.
Passei a noite sem dormir e levantei-me cedo. Encontrei-me com Stirling à mesa do café e lhe disse que precisava falar-lhe a sós e o mais cedo possível.
Tomamos nossos cavalos e rumamos para a mata.
Antes que tivéssemos percorrido uma milha, tomei a iniciativa de falar.
Stirling, seu pai me pediu em casamento.
Sim - respondeu com a fisionomia impassível.
Isso me surpreendeu.
- Surpreendeu?
Já lhe falou sobre isso?.
É consequência dos planos dele em voltar para a Inglaterra.
Então Stirling já sabia realmente de tudo há algum tempo. Antes mesmo do incêndio. Eu é que me equivocara. Para ele eu não passava de uma simples irmã. Enganara-me em acreditar que nosso relacionamento fosse mais profundo que isso. Eu me equivocara por completo... tanto a respeito de Stirling como a respeito de Lince.
- Compreendo - falei apaticamente.
Sobreveio o silêncio. O rosto dele nada traía. Senti-me desapontada, oca. Como havia sido estúpida!
- Casando-me com seu pai, serei sua madrasta- disse eu com uma risadinha idiota.
- E daí?
- Parece um tanto esquisito.
- Por quê?
- Você é mais velho do que eu.
- Não seria a primeira vez em que alguém tem madrasta mais jovem.
- Stirling, que pensa de tudo isso?
- Meu pai seria mais feliz como nunca o foi em sua vida. E saiba que já gostamos muito de você. Já è um de nós. Ficará...
Esperei de respiração presa que ele continuasse. Sacudiu os ombros.
- Ficará mais perto de nós do que nunca.
Voltei-me a sentir naquele dédalo de atordoamento. Que queria eu? Que Stirling arrancasse os cabelos e me dissesse que não suportaria ver-me casada com outro homem... ainda que esse homem fosse seu próprio pai? Que planejasse a nossa fuga?
Eu não sabia o que queria. Creio que parte de mim se apegava ao velho sonho de me ver ao lado de Stirling pelos anos a fora, de ver nossos filhos trepando nos joelhos do avô, venerando-o, adorando-o, como fazíamos todos nós. Era o velho sonho convencional. Mas como poderia Lince desempenhar um papel secundário em qualquer ocorrência?
Tratei de galopar e imediatamente escutei o trote do cavalo de Stirling atrás de mim. Ele nem se importa, pensei. Está feliz porque essa é a vontade de seu pai. Stirling não tem vontade própria, sua única vontade é a do pai. já estava gostando de mim, era verdade... mas como irmã.
Agora eu já sabia o que deveria fazer. Stirling resolvera por mim. Mas isso era certo? Teria eu coragem de dizer a Lince que não poderia me casar com ele porque amava seu filho?
Eu amava a ambos, refleti em desespero. Como tudo aquilo parecia estranho. com o mais jovem eu visualizava uma vida pacífica e convencional; com o mais velho... velho bastante para ser meu pai... a aventura.
Quando chegamos em casa Lince deve nos ter visto, pois um dos criados veio logo me avisar de que ele queria me ver na biblioteca.
Era um comando, pensei, com uma leve, porém indulgente, exasperação. E embora sua arrogância me desagradasse, eu fazia por onde tê-la.
Demorei-me de propósito, o que o deixou bastante impaciente.
- Quanto tempo você levou - queixou-se.
- Tive de pentear os cabelos e lavar as mãos antes de vir à presença real.
- Não sabia que espero ser obedecido imediatamente?
- Saber, sabia. Mas nem sempre as coisas acontecem como se espera. Riu-se, como agora fazia tão prontamente. De fato, parecia que eu estava constantemente a diverti-lo. Mas talvez fosse o riso do triunfo, pois sabia que eu ia sucumbir a seus desejos. E creio que eu mesmo estava ciente disso desde o começo, apesar de Stirling.
- Está mais presunçosa esta manhã do que ontem à noite.
- Ontem eu fui um pouco tomada de surpresa.
- E agora que já teve oportunidade de considerar...
- Minha felicidade?
- Nossa felicidade - emendou. - Nem precisa continuar. Já sei sua resposta.
- Estava tão certo disso desde o começo que realmente nem julgou necessário me consultar.
- Sei o que é melhor para você.
- E sabe também o que mais lhe convém?
- Você é o melhor para mim como sou o melhor para você. Muito simples. Fez um bom passeio em companhia de Stirling? - Olhou-me comfirmeza. - Ele está exultante. Minha família sabe que meu casamento com você é o que desejo acima de qualquer coisa no mundo. Todos estão felizes com a ideia.
Estendi-lhe as mãos que ele avidamente agarrou.
- Sou um membro dessa família - disse eu -, e suponho que me ajusto nessa linha.
Notei-lhe o olhar triunfante ao me deixar abraçar.
- Irei desapontá-lo - aduzi.
- Impossível.
- Há de me considerar muito jovem e estúpida.
- Hei de considerá-la como sempre considerei... encantadora.
- Vai impacientar-se comigo.
- E você vai se mostrar imperiosa.
- Creio que tudo isso é meio incongruente.
- Tolice. Você me ama.
- É lesa-majestade amar aos deuses do Olimpo como se faz a simples mortal? Não bastaria serem adorados?
- Para começar, isso basta.
Houve um jantar formal naquela noite e todos os lugares à mesa ficaram ocupados. Sentei-me ao lado dele. Estava tranquilo, os olhos mais luminosos que cintilantes. Eu jamais o havia visto com aquela aparência e sentia-me exultante por ser a responsável.
Riu-se à vontade, foi tolerante com todos, e ao final do jantar fez o anúncio. Ele e eu nos casaríamos brevemente... muito brevemente, acrescentou. Era uma ocasião solene e todos teriam de beber à saúde da noiva. Levantaram-se e ergueram as taças. À mesa havia pessoas que estiveram presentes àquela cena no galpão em que Jacob Jagger fora baleado. Lá estava Adelaide ruborizada e eufórica porque, afi nal, seu pai era feliz. Lá estava Jessica, de lábios franzidos, uma Cassandra taciturna. E lá estava Stirling, o semblante sem trair coisa alguma do que eu de certo modo esperava ver.
Pensei neles todos ao me deitar naquela noite... e pensei particularmente em Stirling. Passei em retrospecto tudo o que acontecera entre nós, perguntando a mim mesma como pude ter interpretado tão mal seus sentimentos com relação a mim. Se ele me tivesse dado algum sinal de que me amava... mas que teria feito eu? De certo modo eu sabia que jamais poderia recusar Lince. Nem ele o teria permitido. E a verdade é que eu o desejava também. Ele me amava mil vezes mais do que Stirling, era capaz de emoções muito mais profundas. Eu deveria me sentir honrada de ter conquistado o amor de um homem como Lince. Talvez minha vida se tornasse às vezes aterradora, mas sempre excitante.
Não consegui dormir e enquanto me quedava na penumbra a visualizar o futuro, escutei um movimento do lado de fora de meu quarto. Meu coração começou a palpitar descompassado quando a porta se abriu silenciosamente. Pensei num relance: é o fantasma de May bela que veio me avisar.
Eu bem poderia ter imaginado que se tratava de jessica. E na verdade parecia-se mesmo com um fantasma, com uma touca sobre os cabelos que estavam com encrespadores metálicos, a longa camisola branca esvoaçando, uma vela na mão.
Viera me prevenir, eu sabia.
- Está dormindo? - perguntou.
- Não. Vai pegar um resfriado se ficar andando assim pela casa. Sacudiu a cabeça.
- Eu queria falar com você.
- Sente-se e enrole-se na colcha.
Tornou a sacudir a cabeça. Preferia ficar de pé junto à cama, segurando a vela bem alto. Dava-lhe maior aparência de profetiza lúgubre do que se ficasse sentada.
- Então a coisa chegou a este ponto. Você vai ser a mulher dele. Nada haverá de mais desastroso.
- Por que haverá de ser?
- Só eu sei. Maybella apareceu-me em sonho à noite passada e me disse: impeça isso, Jessie, salve a pobre moça.
- Então Maybella teve conhecimento prévio do anúncio?
- Os mortos sabem dessas coisas. Especialmente quando não repousam em paz.
- E Maybella não repousa?
jessica fez sinal de negativa com a cabeça.
- Ela voltou para atormentá-lo. Afinal de contas, ele a assassinou.
- Acho que não devia dizer isso. Ela morreu ao ter o filho.
- Isso a matou e ele sabia que o faria. Suspirei fundo.
- É a sua maneira de ver as coisas. Eu diria que ela também queria um filho.
- E que acha que vai acontecer a você?
- Farei o possível para ser uma boa esposa e boa dona-de-casa.
- Ele só pensa em si mesmo, em mais ninguém.
- É um defeito humano bastante comum.
- Bonita conversa! Provoca o riso nele. Maybella não tinha nada disso. E havia também aquela mulher da Inglaterra.
- Devia voltar para a cama - disse-lhe com delicadeza. - Vai acabar pegando mesmo um resfriado.
- Maybella quer que eu a previna. Ele é cruel e egoísta. É libidinoso e não será fiel a você. Nunca o foi a mulher alguma, e acredita que será a você?
- Sempre há tempo para se começar.
Está me fazendo de palhaço.
Não estou, Jessica. Mas creio que não está compreendendo. Tudo o que aconteceu é coisa do passado. Ele e eu vamos começar juntos uma vida nova. Farei tudo a meu alcance para lograr êxito, e ele também.
- Há de se aproveitar de você como se aproveita de todo mundo. E Stirling?
- Stirling?
- Bem, houve ocasião em que pensávamos que a coisa fosse entre vocês dois... teria sido natural e era o que ele queria.
- Quem queria o quê?
- Stirling, é claro. Todos nós comentamos o assunto. Um casal de jovens, eis o que todos queríamos e o que esperávamos. E o que acontece? Você caiu nas graças dele e ele se sai com essa: Não, Stirling, afaste-se para um lado e se não se afastar, bem, vou dar-lhe um tiro como atirei em Jagger.
- Como ousa falar dessa maneira a respeito dele?
- É o que Maybella está pensando. Ele disse a Stirling: Tire as mãos daí, a garota é minha. E Stirling responde: Sim, papai, como foi educado para fazer. Tem sido sempre a mesma coisa. Ele dá o toque e o diabo faz o resto.
- Estou cansada, Jessica - declarei-lhe. - Nada do que possa dizer irá alterar meus planos. Prometi casar-me com ele e cumprirei minha promessa. Todos nós mudamos. Ele mudou. Não é o mesmo homem que veio para Rosella.
- É o mesmo homem. Não me esqueço nunca. Plantou-se ali no pátio e as marcas nos pulsos eram visíveis... e desde então tudo mudou. Ele entra na vida de alguém, domina e quando se dá por satisfeito joga essa pessoa para um lado. Não se corrigiu. Foi assim com Maybella e será assim com você.
- Não pretendo ser jogada para um lado.
- Nem ela pretendia. Julgava a princípio que ele fosse maravilhoso. Como você também o fará. Sabe portar-se perfeitamente como um amante, mesmo sendo tudo fingimento como foi com Maybella. Nos primeiros meses parecia que ela flutuava num sonho. Chegava para mim e dizia: Ah, Jessie, se ao menos me fosse dado lhe explicar: E já então... eu sabia de tudo.
- Chega, Jessica. Não adianta relembrar essas coisas.
- Mas quero que saiba. Maybella quer que você saiba. Bem, cumpri minha obrigação. - Aproximou-se da cama; a vela inclinou-se e pensei que ela fosse atear fogo aos lençóis. - Fuja. Fuja enquanto é tempo. Fuja com Stirling.
- Está louca - exclamei encolerizada. Ela abanou a cabeça e falou com tristeza.
- De certa forma, talvez, mas a culpa é dele. Vejo tudo tão claro como a luz do dia. Você devia persuadir Stirling. Tente. Ele irá, tenho certeza. Não deixe que esse homem vença todas as vezes. Vão-se embora, vocês dois. - Soltou uma risada cavernosa. - Como eu gostaria de ver a cara dele quando soubesse que você tinha ido embora!
- A vela está pingando na colcha.
Colocou a vela a prumo, segurando-a bem em frente ao rosto que, na penumbra, parecia uma caveira. Maybella teria essa aparência se de fato tivesse vindo do mundo dos mortos para me avisar.
- Cumpri minha obrigação - ela repetiu. - Se não quer me escutar, você mesma que se cuide.
- Volte para a cama, Jessica. E tenha cuidado com essa vela. Dirigiu-se para a porta e voltou-se para me olhar.
- Você é que precisa ter cuidado.
- Obrigada por ter vindo - respondi-lhe. Eu me sentia penalizada por ela, ela que amara Lince - e a tanto se deixara trair, ela que sem dúvida ansiava por um retorno daquela antiga amizade que acreditava ter outrora partilhado com ele.
- Fiz o que Maybella queria - resmungou. - Nada mais posso fazer.
E largou-me de mão. Continuei deitada a pensar no que ela dissera e a cismar sobre o estranho homem com quem eu me comprometera a passar o resto de minha vida, perguntando a mim mesma qual o futuro que me estava reservado. E no fundo de minha mente estava Stirling, que talvez me amasse, mas que amava muito mais a Lince.
í eu?
A terrível indecisão voltara. Eu amava os dois. Minha vida seria incompleta sem um ou sem outro. Mas eles resolveram por mim. Se Stirling pensou realmente alguma vez em me pedir em casamento, estaria agora cedendo-me para o pai que estava esperando de mãos sôfregas e com aquele brilho predatório no olhar.
Adelaide fez meu vestido de noiva. Era de seda branca, cheio de folhos e babados e enfeitado de renda.
- Vai lhe servir também quando estiver na Inglaterra -disse-me. Inglaterra! Nunca que iremos para a Inglaterra, pensei. vou persuadi-lo a ficar por aqui mesmo, a abandonar aquela ridícula ideia de tomar Whiteladies de seus pacíficos moradores, nos quais eu e Stirling havíamos dado uma rápida espiada.
- Lá você há de viver em grande estilo - continuou Adelaide. - Imagine só que terá de se vestir a rigor todas as noites para o jantar. Terá de usar veludo. Para mim o verde é a cor que melhor lhe convém, Nora. Sentar-se-à numa extremidade da mesa e meu pai, na outra, se orgulhará de você.
- Eu prefiro ficar aqui.
- Mas lá você viverá em estilo digno.
- O estilo daqui me convém.
- Esquece-se de que seu marido será-um dos homens mais ricos da Inglaterra.
- Quem quer se lembrar disso? Se se tem segurança, é o bastante.
- Não para ele, Nora. E a vontade dele será a sua depois que estiverem casados.
- Não concordo com essa visão do casamento. É uma sociedade. Não mudarei minha personalidade porque estou casada.
- É lógico que um marido modela a maneira de pensar da esposa.
- Hei de querer chegar às minhas próprias conclusões. - O sorriso indulgente de Adelaide irritou-me e por isso desabafei. - Não creio que ele espere que eu mude. Interessou-se por mim desde o primeiro instante porque me recusei a tratá-lo como se fosse uma espécie de oráculo, como faziam vocês.
Adelaide não deu resposta, mas vi que se agarrava a seus pontos de vista. Ela e eu fizemos uma viagem a Melbourne. E com quanto respeito fui tratada no hotel de Lince!
Fiz uma careta para Adelaide, dizendo-lhe:
- Sou a eleita. Isso me faz sentir de certo modo como uma coisa sagrada. Fizemos compras generosas, sedas e veludos que Adelaide prepararia para mim.
Comprei um regalo de marta e um casaco de veludo cor de amora, também guarnecido de pele.
- Não compre demais aqui-advertiu-me Adelaide. -Na Inglaterra encontrará tudo isso no rigor da moda.
Procurei não dar ênfase ao fato de que iria me opor firmemente à ideia de voltar para a Inglaterra.
Regressamos à Pequena Whiteladies levando as coisas que compramos.
Estive num tormento de ansiedade - disse Lince. - Não a deixarei ausentar-se outra vez sem mim. - Senti-me feliz e exultante em ver que significava tanto para ele.
Em sua sala de costura Adelaide teve imediatamente de que se ocupar. Passei grande parte do tempo em companhia dela - não porque me interessasse muito por costura, mas às vezes eu queria isolar-me um pouco tanto de Stirling como de Lince, para poder meditar sobre o passo que eu estava tomando. Ali na sala de costura, onde a conversa era sempre vaga e preocupada apenas com a largura de uma manga ou a melhor maneira de se cortar uma saia, eu podia pensar no futuro e tentar chegar a uma decisão antes de dar o passo definitivo.
Era um absurdo, sem dúvida. Como se me fosse possível voltar atrás! E como se eu o quisesse! O que eu desejava mesmo era compreender a mim mesma. Se não fosse Stirling... Mas podia dizer também: se não fosse Lince...
Não, eu dizia a mim mesma cem vezes por dia: é Lince. É de um homem enérgico que preciso. Mesmo assim não conseguia tirar Stirling de meus pensamentos.
O tempo passava rapidamente e muitas vezes senti vontade de sair sozinha pela mata onde, por milagre, eu haveria de encontrar a resposta que apaziguaria meus temores. Lince porém havia dado ordens para que não me deixassem sair sozinha. Descobri isso certa manhã quando me dirigi à estrebaria e pedi ao rapaz que selasse meu cavalo. Disse-me então que todos eles haviam sido avisados para que não me deixassem sair sozinha. Insisti, e o moço ficou alarmado. Pensei comigo mesmo: não, Lince, não me deixarei prender numa gaiola. E você terá de saber disso.
Selei o cavalo eu mesma e sai. Não tinha ido muito longe quando ouvi um galope atrás de mim e vi o cavalo branco no qual ele montara no dia em que atirou em jacob jagger.
Finquei as esporas, mas não consegui distanciar-me dele. Logo estava a meu lado, os olhos brilhando de excitação. Parecia um sátiro, pensei.
- Nora! - rugiu. Emparelhei-me com ele e perguntei:
- Por que tanta excitação?
- Dei ordens para que você não saísse sozinha.
- E se me desse vontade?
- Não deverá fazer, porque sabe que isso contraria os meus desejos.
- E você não deveria dizer a seus empregados para me impedirem de fazê-lo, pois isso contraria também os meus.
- Você sabe porque não quero que saia sozinha.
- Porque me acha incompetente e capaz apenas de montar... como é mesmo o nome daquele cavalo? Blondell?
- Sou atormentado por temores quando você está longe dos meus olhos. Imagino toda sorte de perigos a lhe sobrevir na mata. É por essa razão que não quero que saia sozinha.
- Pretende dizer que, pelo resto de minha vida, terei de ser acompanhada para onde for, como uma menininha e sua babá?
- Será diferente quando nos formos daqui. É uma simples questão de pouco tempo.
- Saiba que não quero sair daqui - falei vagarosamente.
- É porque não faz ideia de como a vida pode ser mais bela.
- Vi a mansão em que está pensando - voltei-me de frente para ele. - Você diz que me ama.
De todo o coração.
- Então fará tudo para me agradar. Será o objetivo de minha vida.
- Ficaremos aqui, portanto, e passarei o restante dos meus dias a passear com a babá escolhida para o momento, sempre que me apeteça passear. com o correr do tempo, talvez, você há de ver que não sou assim tão estúpida, e já não se incomode tanto com os perigos que me possam sobrevir.
- Quanta asneira está falando.
- Asneira de modo algum. Maridos cansam-se de esposas. É um estado de coisas nada incomum.
- Não seremos como os outros maridos e esposas.
Aproximou seu cavalo bem pertinho do meu. Alguns galas estavam imitando o cantar dos outros. A certa distância um canguru pardo dava pulos na relva seca. Eu estava bastante familiarizada com os sons e os odores da mata, desde que emergira daquela caverna para o silêncio enegrecido.
- Aprendi a amar esta terra - declarei.
- Haverá de amar a Inglaterra muito mais.
- Quero ficar aqui.
- A você pouca diferença fará onde estejamos, pois estaremos juntos.
- Se não faz diferença, por que temos de ir?
Precisamos ir. Um dia você há de compreender, e verá as coisas como vejo eu. Como eram inevitáveis. Quando estiver lá, para onde vou levá-la, haverá de me agradecer pelo resto de sua vida. Sim, haverá de me agradecer.
- Sei em que está pensando. Naquela casa. Ela não pode ser sua. Não lhe pertence. O desejo de viver lá é indigno de você.
- Tem uma opinião muito elevada sobre mim, Nora.
- E insiste em que todos tenhamos essa opinião.
- Está querendo fazer de mim um santo, coisa que nunca serei.
- Lince -comecei - meu querido Lince... Ele sorriu.
- Quando me fala assim, tenho vontade de me jogar a seus pés.
- Então, querido Lince, dê-me apenas uma coisa. Dê-me seus planos de vingança e eu os destruirei como se jamais tivessem existido.
- Mas eles existem, Nora.
- Podem ser destruídos.
- Muito tarde. São fortes demais e fazem parte de mim.
- Você disse que me amava.
- E tem alguma dúvida?
- Quem ama dá à pessoa amada o que ele ou ela mais deseja.
- Eis por que você, que me ama, não há de pedir o impossível. Escute, meu amor. Iremos para a Inglaterra... você, eu e Stirling. Oportunamente Adelaide se juntará a nós. Vim para este país contra a minha vontade.
- E tem sido bom para você.
- Sim - admitiu. - Cumpri minha sentença aqui. Agora tenho minha recompensa... ouro e Nora.
- Nessa ordem de precedência?
- Você é mais importante para mim do que todo o ouro da Austrália.
- Alegro-me em ouvir tal confirmação, pois não me sentia muito certa disso. Há entretanto uma coisa que é mais importante para você do que esses dois objetos de sua afeição. Vingança.
Um dia você há de compreender - foi tudo o que disse.
Enquanto regressávamos, ele me fez prometer não voltar a sair sozinha. Lembreilhe de que fizera isso muitas vezes no passado, mas ele argumentou com a ocasião em que eu caíra do cavalo, com o caso de Jacob jagger e com o incêndio na mata.
Eu melhorara de montada, frisei. E não iria utilizar-me de um animal que não pudesse dominar. Agora homem nenhum iria molestar-me, e se houvesse um incêndio nas redondezas eu me mostraria cautelosa e certamente que não me iria aventurar. Que outros perigos existiriam?
- Tenho medo de perdê-la - disse-me. - Seu aparecimento foi para mim um milagre. Tudo o que eu quis na vida é meu, ou está prestes a se tornar meu. Mas não confio na vida. É inevitável o temor de que, assim como estou em vésperas de me apoderar de uma felicidade completa, bem que ela poderá me ser arrebatada.
- Você com esses pensamentos? Surpreende-me.
- Estou falando sério.
- Bem, farei essa concessão. Não sairei sozinha antes do casamento. Depois, terá de começar a me persuadir novamente.
- É uma barganha - disse, e regressamos para casa nos comprazendo nessa brincadeira frívola que parecia diverti-lo muito e que antes ninguém ousara trocar com ele.
O dia do casamento aproximava-se e os preparativos aumentavam de intensidade. O cheiro de tortas e pastelões impregnava a casa. Adelaide preparou um enorme bolo de seis camadas. Mas não me era possível afastar a ideia de que algo tremendo estava para acontecer para impedira realização do enlace. Haveria algum impedimento. Que absurdo! Como se alguma coisa pudesse impedir que um desejo de Lince não se realizasse. Seria uma premonição? Perguntava a mim mesma.
Stirling evitava-me, embora eu tivesse saído de meus hábitos para procurar sua companhia. Se ao menos falasse alguma coisa. O fato de se alegrar com a aproximação do casamento, tanto quanto Adelaide, magoava-me profundamente. Estaria também magoado?
Iríamos nos casar numa igrejinha que ficava a meio quilómetro de casa, e a recepção seria dada na própria casa. Meu vestido de noiva estava pendurado no guarda-roupa de meu quarto, onde Adelaide o pusera no dia anterior, mal acabara de fazê-lo. Era uma obra de arte, declarei-lhe. Eu usaria um véu e botões de laranjeira que havíamos comprado em Melbourne.
Na noite anterior ao casamento meus temores e dúvidas centuplicaram. Muitas noivas sentem-se assim na véspera do casamento, animei a mim mesma. Mas continuei pensando nos sombrios augúrios de Jessica. Mudaria ele com relação a mim, como o fizera com Arabella e Maybella? Comparara o amor que sentia por mim, frente ao que dedicara a Arabella, como um incêndio de floresta em comparação com uma chama de vela. Incêndio de floresta - comparação infeliz! que absurdo ruminar os sombrios augúrios de Jessica. Afinal, era meio demente.
Calculei qual seria seu olhar amanhã quando me visse, e por isso me deu vontade de vestir o vestido só para me certificar de que ficaria bonita. Enfiei-me nele, maravilhada com o trabalho de acabamento. Que filha dedicada era Adelaide! E agora eu iria ser sua madrasta - madrasta de Adelaide e de Stirling!
Coloquei o véu na cabeça e ajeitei os botões de laranjeira. O efeito foi encantador. Todas as noivas são lindas, falei em voz alta. Sim, respondi a mim mesma, mas você é realmente linda, vestida dessa maneira. É por causa do vestido e do véu. O véu esconde o rosto. Será que ele acha você realmente bonita? Acha, sim. Tão bonita quanto Arabella... Maybella... e as outras? Que tolice! Elas estão mortas e você é jovem. Você está aqui e não é simplesmente uma mulher apetecível. Significa mais para ele do que qualquer outra. Devolveu-lhe a juventude. Foi ele quem disse. E ainda lhe deu ouro.
Sobressaltei-me, as faces em fogo. Como eu gostaria que jessica acabasse com esse hábito antipático de se arrastar de mansinho e de repente surgir sem aviso.
jessica, não a ouvi bater à porta - meu tom foi de censura.
É porque estava falando sozinha. Maybella também costumava falar sozinha. com o véu ocultando as feições, você está parecidíssima com ela. É a própria Maybella parada aí, há mais de trinta anos.
Acho que a moda mudou nesse espaço de tempo.
- O véu era diferente. Ela não usou botões de laranjeira. Eram apenas uns rufos de cetim branco. Era um véu lindo e ela ficou muito bonita. Nunca vi pessoa tão feliz quanto Maybella na manhã de seu casamento. Mas não sabia então o que lhe estava à espera.
Tentei ser prática.
- Já que está aqui, Jessica, ajude-me a desabotoar.
Tirei o véu e a grinalda, recolocando-os na caixa. Depois dei-lhe as costas, enquanto ela se atrapalhava com os colchetes.
- Dá azar experimentar o vestido na noite anterior ao casamento.
- Tolice!
- Maybella experimentou, como fez você. E desfilou pelo quarto. "Estou bonita, Jessie?" perguntou-me. "Preciso ficar bonita. É assim que ele quer".
- Essas histórias não me afetam. Agora preciso deitar-me. Amanhã vai ser um dia muito agitado. Boa noite, Jessica.
- Boa noite - abanou a cabeça com resignação.
Tirei o vestido e caí na cama, mas pouco depois ela estava de volta.
- Vim trazer-lhe um pouco de leite quente. É bom para dar sono.
- É muito gentil de sua parte, Jessica.
Colocou o leite na mesinha de cabeceira e permaneceu de pé, à espera.
- Não espere. vou tomá-lo daqui a pouco. Boa noite e muito obrigada. Saiu de mansinho. Tive ímpeto de trancar a porta, mas ri de mim mesma.
Por que ter medo da pobre Jessica? Tomei um gole de leite. Na verdade eu não queria leite, mas ela ficaria magoada se eu não o tomasse.
Pensei em Lince e em todos aqueles anos em que ele mantivera relações de amor com ambas - com Maybella porque era a filha do patrão, e com Jessica porque certamente a desejara. Tudo isso passara. Ele estava mudado. Já não era o mesmo homem que surgira no pátio com marcas de algemas nos pulsos. Mas jamais esquecera nem perdoara isso. Oh, Lince, pensei, você é tão vulnerável quanto qualquer um de nós. Ele precisa de mim para cuidar dele, disse a mim mesma. Também ele tinha lições para aprender da vida, e uma delas era que a vingança não compensava - uma destruidora da paz, e a paz estava no próprio alicerce da felicidade.
Nora sensata, comentei e sorri para mim mesma. E meu querido Lince, a quem farei amanhã meu juramento. Era o que eu queria - estar ao lado dele, tratá-lo com carinho, na alegria e na adversidade, na riqueza e na pobreza, na doença e na saúde até que a morte nos separasse. Afinal, compreendi. Eu era a mais feliz das mulheres. Lince me amava. Ele próprio amado e temido por todos, Lince amava a mim.
Agora eu entendia o ódio de Jessica. Era porque ela o amara e o perdera. Pouca coisa ou nada ela significara para ele, mas ele havia sido tudo para ela que o vira se casar com a prima e que vivera sob o mesmo teto por anos a fio. Não admirava, pois, que tivesse enlouquecido. Mas até que ponto?
Olhei para o leite e uma terrível suspeita me assaltou. Agarrei o copo num ímpeto e, dirigindo-me à janela, entornei-o fora. E voltei a rir de mim mesma.
Dramas de véspera de casamento, exclamei em voz alta. Está imaginando que uma pobre mulherzinha dessas possa tentar envenená-la para vingar-se do homem a quem amou outrora - e que talvez ainda ame - por não suportar vê-lo casado.
Abri a porta do armário e olhei para o vestido. Depois abri a caixa e passei os dedos pelo véu. - Depois de amanhã, refleti, todas as dúvidas terão desaparecido. Estaremos juntos até que a morte nos separe.
Adormeci quase imediatamente.
Devo ter sonhado que o fantasma de Maybella me apareceu e se pôs ao lado de minha cama. Tirou o véu e a grinalda de minha cabeça - eu os usava em sonho - e os substituiu por um véu com rufos de cetim. Ouvi então uma voz. Era a de jessica. "Agora você está pronta, Maybella. Mas lembre-se que è só por pouco tempo".
Acordei banhada em suor. Nos primeiros momentos de consciência cheguei a pensar que Maybella tivesse realmente voltado do túmulo para me alertar. Lá estava à minha frente o véu de noiva com rufos de cetim branco, mas sem tardar me dei conta de que ele estava dobrado sobre a penteadeira.
Levantei-me e fui vê-lo de perto.
Era o véu de que jessica havia falado. com certeza ela o trouxera para cá enquanto eu me achava dormindo. Olhei para a mesinha de cabeceira. Sim, haviam levado o copo que estava com leite.
Peguei o véu e observei-o. Cheirava a naftalina. Certamente Jessica o guardara pelos anos a fora, desde que Maybella fizera o juramento que eu iria fazer amanhã... não, seria hoje.
Que velho morcego era ela!
Ri-me e joguei o véu por cima da penteadeira, voltando para a cama. Dormi profundamente até a hora em que Adelaide entrou para me acordar, trazendo-me uma xícara de chá.
E nesse dia casei-me com Lince.
com exceção de minha vida com Lince, tudo o mais sumiu na insignificância. Eu havia iniciado uma viagem de descobertas, tendo encontrado novas alturas e profundezas de emoção cuja existência eu ignorava. Lince arrebatara-me do cotídiano. Eu estava vivendo numa outra esfera.
- Você me transportou para o Olimpo - disse-lhe. - Sinto-me agora como se fosse uma deusa.
Respondeu-me que me amava e que pessoa alguma jamais fora amada quanto eu.
Eu acreditava. Em minha vida não havia lugar para outra coisa senão para a presença mágica de Lince. Passeamos juntos, fizemos refeições a sós na biblioteca, e até jogamos xadrez uma ou duas vezes, mas ele nunca me permitiu ganhar.
Sentia-me alegre e leve, tal como ele. E ele era um homem diferente do que eu conhecera a princípio nesta casa. Parecia ter uma aura em volta de si - mas talvez fosse porque eu o olhava com os olhos do amor. Certa noite acordei em meio a um sonho mau e por alguns momentos pensei tê-lo perdido. Gritei de pavor. E lá estava ele curvando-se sobre mim, envolvendo-me em seus braços.
- Pensei que você tivesse ido embora, que eu o tivesse perdido.
Ouvi-lhe a risada no escuro, exultante, triunfador. Eu, que relutara em me casar com ele, agora estava suando frio e aterrorizada por ter sonhado que o perdera.
A própria casa parecia diferente. Eu a amava e queria viver nela para sempre, fazê-la meu lar. Adelaide não faria objeções. Eu poderia fazer modificações, ter o que quisesse, contanto que não colidisse com a vontade de Lince.
vou redecorar a sala de visitas - avisei. - Eu gostaria de cortinas amarelas, mas não de um amarelo muito vivo.
Sei concordou Adelaide. - Da cor de ouro.
Ouro não - exclamei. - Da cor da luz do sol.
Eu não iria pensar no futuro. O presente oferecia-me tudo o que eu queria. Hoje é que era o tempo importante - não ontem, nem amanhã.
já que está indo-se embora - continuou Adelaide, - para que redecorar?
- Não quero ir-me embora, Adelaide.
- Ser-lhe-á maravilhoso.
- Stirling não há de querer abandonar tudo aqui.
- Stirling há de querer fazer o que o pai quiser. - Ela me olhou de frente, como que insinuando delicadamente: e você também.
Pensei muito nisso: partir para a Inglaterra em companhia de Lince e de Stirling, deixar este mundo maravilhoso que eu mal descobrira para iniciar uma viagem de descobertas. Whiteladies... aquela moça no gramado... a mulher mais idosa. Meu marido era mesmo um tanto fanático com respeito a seus traçados e planos. Eu haveria de fazê-lo voltar ao bom senso, prometi a mim mesma. Mas não agora. Eu não iria estragar esta lua-de-mel com o atrito de opiniões que inevitavelmente ocorreria.
Nada falei a Lince quanto a sair do país. Ríamo-nos, caçoávamos, ficávamos sérios, fizemos amor de muitas modalidades - alegres, ternos, em abandono e apaixonados. E eu nem podia acreditar que houvesse tantas modalidades.
Sentia-me feliz e dizia: Isto é agora. Nunca houve um tempo tão perfeito. Nada há de estragá-lo. Tenho de me agarrar a ele e fazê-lo durar para sempre.
Mas nada dura para sempre.
Como as pessoas são cansativas! Parecia que Jessica estava tentando de propósito estragar meu prazer de viver. Um dia, ao passar pela porta de seu quarto, ela me convidou a entrar. Não me foi possível recusar, embora tivesse adorado.
Estava sentada diante do espelho, experimentando meu véu de noiva.
- Onde apanhou isto ? - perguntei.
- Ah, nem sentiu falta, não foi? Eu só queria experimentar.
Era uma figura grotesca com aqueles olhos esbugalhados e rosto de palidez esquelética. Pareceu que leu meus pensamentos, pois foi logo dizendo:
- Estou parecendo aquela noiva do bosque. Você conhece a história. Escondeu-se num tronco e lá ficou presa. Foi encontrada anos depois.
- Que história horrenda!
- Eu costumava cantar essa canção. Pois sim, pensei.
- Para a noiva talvez tenha sido indiferente ter ficado presa no tronco.
- Que história mais idiota!
- Sufocação lenta, creio eu. Cedo porém sucumbiria por falta de ar. Não demoraria muito. Melhor do que uma vida inteira de sofrimento. Você não imagina o que Maybella sofreu com os abortos.
Dei-lhe as costas. Não queria pensar no primeiro casamento do meu marido.
Eu sabia que havia sido um casamento por conveniência. Desculpei-lhe - um homem orgulhoso, um cativo, acusado injustamente, o casamento era-lhe a única fuga. Ainda bem que fora um casamento desses. Eu não queria que ninguém mais houvesse participado dessa paixão que me arrebatava como se estivesse colhida por um redemoinho.
Jessica tirou a grinalda e o véu, por baixo do qual estava aquele com rufos de cetim. Estivera usando os dois.
- Foi você quem colocou isto no meu quarto na véspera do casamento - falei em tom de acusação.
- Sim, eu sabia que você gostaria de vê-lo.
Ela perambula por meu quarto a seu bel-prazer. Enfureci-me com essa bisbilhotagem, mas logo sua debilidade pareceu-me digna de compaixão e minha zanga acalmou.
Ela dobrou cuidadosamente os véus.
- Guardarei os dois - disse. - Tenho uma linda mala de sândalo onde há espaço de sobra. - Olhou-me de esguelha. Que estaria insinuando? Que um dia a mala guardaria três véus?
Recusei-me porém a me deixar impressionar por uma mulher maluca, cujos miolos não eram bem equilibrados.
Deixei-a em paz e fui para a biblioteca. Lince estava lá, os olhos acesos de alegria ao me verem.
Eu e Lince fomos a Melbourne em grande estilo. Utilizamos a carruagem especial que ele havia mandado fazer e trocamos de cavalo a cada dez milhas, nas estalagens de descanso. Ele próprio tomou as rédeas em grande parte da jornada, e como corremos!
Hospedamo-nos na suite de luxo de seu hotel, onde fiquei sozinha parte do dia enquanto ele cuidava de negócios. Estranhei que ele não me levasse consigo, mas vi depois que era porque o negócio dizia respeito à sua partida da Austrália, e conhecendo minha opinião sobre o assunto, ele não queria estragar nossas férias.
Jantamos em nossa suite e fiquei feliz em recusar dar ouvidos a uma voz dentro de mim que dizia haver outra razão nessa visita que simples prazer.
Eram férias. De manhã passeávamos pelas redondezas, íamos a Richmond e chegávamos até Yarra Varra, quase para os lados de Dandenong. Fomos a concertos e ao teatro. Lince era, naturalmente, bem relacionado em Melbourne e recebeu muitos convites, cuja maior parte ele declinou. Mas deu uma recepção no hotel, de tal porte que a sala de jantar se transformou num salão de banquete. À ceia seguiu-se um concerto de um pianista já bastante admirado na Europa, mas que estava fazendo sua estreia na Austrália.
Usando um vestido de cetim branco e tendo como único ornamento um broche de brilhantes e um anel com um enorme diamante, permaneci ao lado dele recebendo os convidados. Envaideci-me de ver que o grande respeito que ele inspirava não partia exclusivamente de sua família.
Fomos-cumprimentados. E vi sobrancelhas se arquearem por ser eu muito mais jovem do que ele. Tive vontade de dizer que idade não tinha a menor importância, especialmente no que dizia respeito a Lince. Lince não tinha idade, e já então eu me sentia convencida de que ele haveria de viver para sempre... mesmo depois que eu já estivesse morta.
Sentei-me para ouvir o pianista. As envolventes melodias de Chopin sempre me farão lembrar dessa noite. Havia nelas qualquer coisa de melancólico e pressagioso, como se insinuassem a transitoriedade da alegria e da felicidade, da desilusão inevitável. Que absurdo! Devia de ser por causa de jessica, com seus véus e suas manIas que tais pensamentos me acometiam.
Ele prorrompera então na Polonaise. Era vibrante e vivo, e meu espírito se elevou. Escutei duas mulheres cochicharem.
Sumtoso! Não pouparam despesa.
Despesa? Isto não é nada. Ele é milionário muitas vezes.
Quanta sorte! Fez por onde merecer. E como.
Agora pôs a mão nessa jovem e na fortuna.
Eu não devia ter escutado e como gostaria de não ter ouvidos tão sensíveis. Tinha certeza de que ouvira alguém dizer: acha que isso vai durar? E tremi porque tive a sensação de ver Jessica a meu lado, dobrando os véus cuidadosamente dentro da mala na qual havia lugar bastante para mais.
Eu não estava nem um pouco acanhada diante daquelas pessoas. O casamento me transformara, fazendo de mim uma mulher sociável. Eu era desejada e amada por um homem que não podia entrar numa sala sem que todos os olhares se convergissem para ele. E dizia a mim mesma: ele me escolheu! Era isso que me conservava de cabeça erguida. Sentia-me elegante e perfeitamente à vontade com aquele vestido de cetim. Era possível que aparentasse mais que dezenove anos, mas isso não tinha a menor importância, uma vez que era a esposa de Lince. Eu estava constantemente a captar o olhar dele, e então trocávamos longos olhares de compreensão. Eu queria que ele se envaidecesse de mim.
Misturei-me aos convidados. Falamos de Melbourne e de como progredira desde minha chegada à Austrália. Dei opinião sobre os novos edifícios, as lojas e o teatro.
- Espero que venha a Melbourne mais frequentemente, Mrs. Herrick - disse uma das mulheres. - Até fevereiro haverá tempo bastante.
Não entendi bem o que ela quis dizer.
- Fevereiro?
- Não é quando vai nos deixar? Seu marido estava dizendo que achava melhor chegar à Inglaterra durante o calor.
- Ah, sim. É claro.
- Como deve estar se sentindo animada! Espero que volte um dia. Mas chegou da Inglaterra há tão pouco tempo, não é verdade? Quase não encontrará novidade.
Eu não estava escutando. Então ele marcou a data da partida e não me disse nada. Tomei-me de cólera porque mais uma vez, como antes do casamento, ele me demonstrara que embora consentisse em me falar sobre as coisas insignificantes da vida, os grandes assuntos eram de decisão exclusivamente sua.
- Que grande sucesso você fez! - disse-me. - Envaideci-me de você. Estava muito diferente da professorinha que aqui chegou há dois anos.
Permaneci em silêncio diante do espelho. Ele aproximou-se e passou os braços em volta de mim, olhando sobre minha cabeça para nosso reflexo.
- Ouvi dizer que já tomou providências para nossa partida para a Inglaterra - falei como se fosse uma pedra.
- Oh, é isso então? Alguma daquelas idiotas andou lhe falando? Deve ter sido a mulher de Adams. Realmente, Adams não devia tratar dos negócios de seus clientes com a mulher.
- O fato é que você já tomou providências.
- Gosto de ter tudo na mão.
- Será então dentro de cinco ou seis meses.
- Calculei que você gostasse de chegar com tempo bom.
É extremamente gentil de sua parte - retorqui.
Minha querida sabe que sempre estou cuidando do conforto dela.
Mirei seu reflexo no espelho.
já que estamos caindo no hábito irritante de tratar dela como se não estivesse presente, ela responde que gostaria de ver sua vontade considerada tão zelosamente quanto seu conforto.
- É meu prazer condescender com essa vontade sempre que possível.
- Quando não interferir com seus planos.
- Ridícula essa discussão sobre sair do país. Você me surpreende, Nora. Esta cidade - que reconheço estar crescendo e que sem dúvida será um belo lugar em seu devido tempo - não se pode comparar com a Inglaterra.
- Quero permanecer aqui. - Voltei-me para ele, falando em tom suplicante. - Por favor, sei que a melhor coisa para nós é permanecermos aqui.
- Como pode ter certeza? Fala como se fosse uma profetiza.
- Sei por que está querendo ir para a Inglaterra.
- Estou levando minha família para lá porque é lá que ela pode viver de uma maneira condizente com sua...
- Fortuna - completei. - Fortuna que foi criada por mim.
- Minha astuciosa Nora, nunca hei de me esquecer daquele dia em que veio à minha presença com uma pepita na mão. Estava com um ar espantado como se tivesse feito alguma travessura.
- Como eu gostaria... - dei inicio, mas era óbvio que eu gostaria era de não ter encontrado ouro. Mesmo assim, estava contente, como sempre estive, de ter sido a pessoa que fez a descoberta miraculosa.
Ele se tornara carinhoso de súbito, como se minha descoberta de ouro me desse o privilégio de ser estúpida sobre outros assuntos.
- Nora, deixe tudo a meus cuidados.
- A meu ver, para você seria ótimo ter uma esposa estúpida que dissesse "sim, sim, você é maravilhoso. Está sempre com a razão. Faça como quiser, que continuarei dizendo que é certo e sábio".
Prorrompeu numa gargalhada, mas logo sacudiu a cabeça para mim.
- Não adianta, Nora. Estamos de viagem.
- E quando chegarmos lá você vai adquirir Whiteladies por bem ou por mal.
- Como você se expressa bonito.
- Então está resolvido, não é? Oh, Lince, por que insiste em querer aquela casa? Arranjemos uma outra por perto, já que lhe agrada aquela parte do país. E por que não construirmos a nossa?
As feições endureceram-se-lhe. Era exatamente o homem que eu conhecera quando aqui cheguei. Deixou transparecer certa frieza de maneiras para comigo, coisa que me apavorou e que me feriu mais do que eu calculava.
- É este um assunto que você não compreende - disse-me. - Vamos para a Inglaterra e quando chegarmos lá resolverei o que vamos fazer.
- Quer dizer então que minha opinião não conta?
Dirigi-me à janela. Lutei contra o ímpeto de me desabafar e dizer: farei como quiser. Só quero que continue a me amar. Mas seria uma falsidade a mim mesma. No começo ele me amara pelo que eu era. Eu não o temera então, e não iria temê-lo agora.
- Espero que seja sensata como o é de hábito, e que compreenda que nada sabe desses assuntos. Contente-se em deixá-los para mim.
Voltei-me e corri para seus braços.
- Fale-me então, conte-me tudo.
Havia um sofá na sala. Sentou-se e puxou-me para junto de si. Encostei-me nele que começou a falar daqueles dias passados. Eu já conhecia aquela história, mas creio que nunca havia percebido plenamente o grau de degradação em que ele mergulhara, nem da profundidade do amargor que se lhe incutira na alma. Ele iria ser o dono daquela casa, pois a ferida ainda doía e esse era o único bálsamo que poderia aliviá-lo.
- Há necessidade disso? - perguntei. - As coisas mudaram. Hoje você tem a mim.
- Tenho você - concordou - e quando tiver Whiteladies me darei por plenamente satisfeito.
- Não sou o suficiente?
Você me deu tudo o que eu esperava em matéria de calor humano. É minha jóia preciosa. Mas preciso de um engaste para você e só um me satisfaz.
- Eu estaria perfeitamente feliz num engaste diferente.
- Mas eu não.
- Não creio que esse seja o engaste ideal para mim.
- Como sabe?
Ergui a cabeça e fitei-o com ferocidade.
- Sei de certeza absoluta. A vingança é um mal. Fere os outros. E não se lucra felicidade alguma em ferir os outros. Oh, Lince, você já me deu tanto. Já me transformou. Ensinou-me a crescer e amo-o de todo o coração. Uma única coisa eu lhe peço. Desista desse plano bárbaro.
- É a única coisa que me pede que não posso lhe dar.
- Mas, Lince, estamos juntos. Temos de cuidar de nossas vidas. Uma casa não é mais que tijolo e argamassa.
- Pode ser um símbolo.
- Você é rico e pode comprar uma grande casa, u ma casa senhorial inteiramente sua. Deve haver muitas à venda na Inglaterra.
- Você mesma disse que não quer ir para Inglaterra.
- E devo lá me importar para onde vou, se formos juntos?
- Minha meninazinha querida - falou com ternura. E graças a esse ânimo de carinho, prossegui.
- É de vingança e de ódio que tenho medo. Não trazem felicidade. Se adquirir aquela casa, você jamais será feliz nela.
- Tolice - respondeu secamente.
- Como poderia ser feliz, sabendo que jogara no olho da rua os proprietários legítimos?
- Exatamente por essa razão. E já não seriam os proprietários legítimos. Eu é que seria. Não falemos mais nisso. Você mesma há de ver, quando estiver lá.
- Não acredito em arquivar um assunto e fingir que ele não existe só porque é desagradável.
Ele bocejou. O bom-senso me pedia para encerrar o assunto, para aceitar o que ele planejara. Mais tarde eu faria o possível para curar aquela terrível ferida que ele mantivera aberta por tantos anos. Mas uma certa persistência me impelia a continuar.
- Há em tudo isso uma coisa engraçada - insisti.
- Engraçada? - exclamou. - Que bobagem está falando.
- É como procurar nos filhos o pecado dos pais.
- Deus do céu, Nora, você está igualzinha a uma missionária pedante.
- Só sei que não é apenas erro alimentar um ressentimento. É também loucura.
- E chama de ressentimento a sete anos de cativeiro degradante?
Não importa qual tenha sido o sofrimento...
Certamente que não, para quem não teve de suportá-lo.
- Não foi isto o que eu quis dizer.
- Sabe o que realmente está querendo dizer? Olhe aqui, Nora, estou perdendo a paciência.
- E estou a ponto de perder também a minha.
Ele riu-se, não daquela maneira espontânea com a qual eu já me acostumara, mas forçosamente. A fisionomia endureceu e os olhos cintilaram. Ajeitando os ombros, deu a impressão de invencível.
- Talvez já seja tempo de chegarmos a um acordo, eu e você. Terá de compreender que sou o senhor em minha própria casa.
- Isso significa que não devo falar senão quando me falarem?
- Sempre sentirei prazer que me fale quando tenha algo sensato a dizer. Mas há de compreender desde já que espero obediência de minha esposa.
Não era esse o amante que eu conhecera. Era o homem arrogante contra quem eu estava prevenida e ressentida quando cheguei à Austrália. Não, não serei a esposa submissa que ele quer. Serei eu mesma e se tiver uma opinião não irei negá-la simplesmente porque ele não concorda. Ele que tenha seus propósitos de vingança com os quais não vai me deixar interferir - muito bem, mas eu tenho minha integridade, tenho a determinação de me preservar como indivíduo e, por mais que o ame, por mais que seja chamada a um retorno da antiga ternura, não irei pagar o preço que ele pede.
- Se pensa que receberá de mim um sim resignado a tudo quanto disser, cometeu um engano - disse-lhe. -- De fato, já estou começando a pensar que nosso casamento foi um engano.
- Está de temperamento frívolo esta noite - falou um tanto irrefletido. O sucesso perante as damas e cavalheiros de Melbourne lhe subiu à cabeça.
- Estou falando absolutamente a sério e isso nada tem a ver com as damas e os cavalheiros de Melbourne. É um caso entre nós dois. Não serei obrigada a concordar com todos os seus pontos de vista. Também não vou considerá-lo meu senhor e amo, cuja palavra tenha força de lei e cuja opinião esteja sempre certa, só porque é um homem e eu uma mulher.
- Já lhe pedi alguma vez para ser uma idiota assim tão insípida?
- Ao que parece, está me dizendo que é isso o que espera.
- O que demonstra sua grande falta de lógica. Você sabe que gosto de ouvir suas opiniões, mas não quero que as dite para mim em assuntos de grande importância. Disso já tive o bastante. Vamos dormir.
Permaneci firme em minha posição. Eu sabia que não podíamos largar o assunto assim com tanta facilidade. Haveria de ser um constante ponto de atrito entre nós, que eu já via avolumar-se numa grande barreira.
- Preciso discutir este assunto com você.
- Já lhe disse que nada tenho a discutir.
- Então planeja ir para a Inglaterra, comprar Whiteladies e não conversa nada comigo?
- Se me promete ser sensata.
- É o que estou querendo ser. Sei que isso é um erro.
- Pare de dizer tolices - segurou-me o braço. - Está tão bonita esta noite. O vestido fica-lhe maravilhosamente bem.
Começou a desabotoá-lo, mas afastei-me dele.
- Não, recuso-me a ser tratada dessa maneira.
Corri para o quarto de vestir. Ele surpreendeu-se e eu trancara a porta antes que me alcançasse. Meus olhos encheram-se de lágrimas e ao menos eu evitara que ele as visse. Eu tinha um pressentimento de que ele abominava lágrimas.
As coisas mudaram, refleti. A lua-de-mel acabou. Nosso mútuo relacionamento não era o que eu pensava que fosse.
Sentei-me na cama e pensei em Stirling. Amava-me realmente? Sim, respondi a mim mesma. Lembra-se de quando nos deitamos na caverna? Mas o pai disse-lhe "afaste-se para um lado, ela è minha". E Stirling afastou-se para um lado. Agora era Lince que me dizia "fará como eu disser; você terá sua parte no meu plano de vingança". E embora meu cérebro dissesse "É errado e nenhum bem resulta disso", meu coração gritava "que me importa? Você estará ao lado dele e ele continuará a amá-la. Mas se o desafia..."
E lá estava a figura de Jessica com a maleta de sândalo nas mãos. Espaço bastante...
Oh, sim, a lua-de-mel acabara.
Passei a noite sem dormir. Deitara-me naquela camazinha sem conforto, depois de ter tirado o vestido de cetim, na esperança de que ele batesse à porta e me pedisse para sair. Não o fez. Eu é que destranquei a porta na manhã seguinte.
Ele estava sentado a ler numa poltrona quando entrei. Surgi de anáguas, levando o vestido de cetim na mão.
- Ah, a mulher de princípios. - Estava de ânimo novo. Já não se mostrava zangado e a ternura voltara-lhe a despeito das palavras. - Espero, Madame, que tenha passado uma noite confortável.
- Quase isso - repliquei, acomodando-me a seu bom humor.
- Remorso?
- Um colchão duríssimo.
- E você que prefere um leito de plumas.
- Em certas circunstâncias. Riu-se.
- Minha criancinha! Como sou grosseiro! Eu devia ter insistido em que largasse o colchão duro, mas você estava tão cheia de determinação em defender os direitos da mulher e a liberdade de opinião... que poderia eu fazer?
- Nada. Você sabia que eu estava determinada, custasse o que custasse.
- Agora há de querer banhar-se e vestir-se. Enquanto isso, ordenarei que nos tragam o café aqui em cima. É de seu agrado ou teria alguma sugestão a fazer?
- É de meu pleno agrado.
Eu estava feliz. O fim não havia chegado. Portara-me estouvadamente. Preciso ser menos espalhafatosa. Tenho de persuadi-lo com delicadeza, sutilmente.
Sentamo-nos à mesa que havia sido rodada para o quarto. Servimo-nos de café, de bacon e de picadinho de rins trazido em rescaldeiro. A intimidade aconchegante daquela cena me fez feliz.
- Agora vamos discutir o assunto de uma maneira civilizada - disse-me. Temos uma diferença de opinião. Continuo dizendo que vamos para a Inglaterra e que nossos filhos hão de brincar nos gramados de Whiteladies. Meus netos viverão lá com meu filho e minha filha, pois Stirling há de se casar e Adelaide oportunamente se juntará a nós. Whiteladies ainda não está sob minha posse e a transação poderá ser um tanto difícil, mas sempre gostei de transpor dificuldades. Quanto a você, Nora, pode ficar com suas ideias puritanas. Ajustar velhas contas parece-lhe pagão. Olho por olho, digo eu. Vire a outra face, diz você. Mas essa briga eu vou comprar. Tenho de lutar por Whiteladies e contarei com um adversário no seio de minha própria família - minha esposa. É uma situação que me incita tremendamente.
- Vá para a Inglaterra, então.
Nós vamos para a Inglaterra.
- E adquira a casa também.
por bem ou por mal, não se esqueça. E se está disposta a me impedir... bem, Nora, isso dá um novo incentivo ao caso. Você vai me provar por que não devo comprar Whiteladies. E eu vou lhe provar por que devo.
Fica entendido então que não vai relegar para um segundo plano uma esposa que não concorda docilmente e que nem sempre acha certo tudo o que você faz.
- De que me serviria uma tal criatura? No cômputo geral estou razoavelmente satisfeito com minha Nora. Pode ser que às vezes seja teimosa, arrogante, mas o que mais me aborrece é a pieguice, o espirito missionário...
- E o que mais me aborrece é o hábito irritante de meu marido de falar em minha presença como se eu estivesse ausente.
- Então nos aborrecemos mutuamente, e é assim que deve ser.
- Está resolvido a perdoar de bom grado a uma esposa que não considera o marido onipotente e oniciente?
- Cheguei à conclusão de que amo esta moça, o que significa que terei de tolerar muita coisa. Na verdade estou prevendo algumas batalhas acirradas em que Nora há de me pregar "vire a outra face". E durante todo o tempo estarei lhe demonstrando o quanto será feliz na mansão da Inglaterra.
- Jamais concordarei com você.
- Sei disso. Bem, começaremos hoje nossa viagem de volta.
- Preparativos...
- Para a Inglaterra e para a batalha que travaremos.
Deixamos Melbourne naquele dia. Havia um compromisso entre nós. Eu mergulharia nos preparativos, pois iríamos para a Inglaterra em março do ano seguinte. Assim ficara resolvido. Stirling, Lince e eu, e mais os criados de que necessitássemos. Não me caberia fazer objeções a esses preparativos. Minha tarefa consistia em persuadir Lince, na hora propicia, a abandonar o plano de adquirir Whiteladies.
Ele nunca me disse que planos eram esses. Acredito que tenha contado a Stirling. Senti-me um pouco marginalizada, mas abafei o ressentimento. Minha determinação era para que não tomássemos Whiteladies de seus donos. E eu nem via como pudéssemos. Já não estávamos em épocas medievais em que castelos eram tomados pela força. Eu iria persuadir Lince a comprar a casa que me agradasse, e imaginava-a grande e confortável. Iria satisfazê-lo. Mas sempre que eu a visualizava, era a forma de Whiteladies que me vinha à mente.
Aproximávamo-nos do final do verão e os ventos sopravam frios e violentos. Eu os ouvia assobiarem vergastando a mata, matraqueando as janelas e fustigando a casa como se dispostos a arrancá-la dos alicerces.
Quando eu saía a passeio, geralmente em companhia de Lince e às vezes de Adelaide, nunca com Stirling a quem raramente via, horrorizava-me com os estragos que o incêndio causara. Muitas das árvores não estavam inteiramente mortas e com o tempo haveriam de se recuperar.
Lince e eu voltamos ao antigo entendimento, embora caçoássemos um pouco mais do que o fizéramos logo depois do casamento. Ele gostava de discutir comigo, deliciando-se com meus pontos de vista diferentes. A mim também me deliciava. Deixei de amolá-lo quanto à obsessão de vingança, pois estava certa que poderia demovê-lo da ideia.
De modo algum havíamos arquivado o assunto. Conversávamos frequentemente sobre Whiteladies - mas ele nunca me explicou como pretendia arrancá-la de seus donos.
Como a vida apresentava súbitos lances de violência neste país! A morte nunca estava muito distante.
Naquela manhã ensolarada e luminosa eu saíra com ele para a mina. Não estávamos sós.Stirling ia conosco, além de dois ou três trabalhadores da mina. Lince acabara de vender a maior parte de suas ações, conservando apenas uma pequena parte.
- Está na hora de vender - explicara-me. - Já tiramos quase todo o dourado desse bolo, embora ainda exista boa quantidade naqueles filões de quartzo. Há trabalho para muitos anos ainda.
Estava se desfazendo da maior parte de seus interesses na Austrália porque era sua intenção nunca mais voltar. Adelaide permaneceria aqui por alguns meses, até que vendesse a casa e fosse ao nosso encontro. Estava tudo decidido.
O sol estava quente naquela manhã, mas o vento soprava violentamente frio e quase tempestuoso. Lince cavalgava à frente do nosso pequeno grupo, com os trabalhadores da mina. Eu e Stirling estávamos um pouco atrás. Era a primeira vez em que me via a sós com Stirling desde o casamento - se se podia chamar isso de estar a sós.
- Está contente em ir para a Inglaterra, Stirling? - perguntei.
Disse que estava, e por isso tive raiva dele. Não tinha outra vontade senão a do pai.
- Está contente em largar isso tudo? - persisti.
- E você?
- Pelo menos estou aqui há relativamente pouco tempo. Mas é sua pátria.
- Na Inglaterra também será bom.
Havíamos chegado ao local onde Jacob Jagger perdera a vida. Agora parecia haver ali algo de fantasmagórico. Os ciprestes erguiam-se imperiosamente indiferentes, e muitos deles estavam enegrecidos. Então o fogo causticara também esse lugar. É por isso talvez que certos lugares se tornam mal-assombrados. Um homem morreu ali... súbito sua vida chegou ao fim num momento de paixão. Será que seu espírito ficará eternamente querendo vingança?
Stirling relanceou-me um olhar. Estaria também pensando em Jagger?
- Então o fogo chegou até aqui - disse eu, e minhas palavras foram levadas pelo vento que passava silvando por mim.
Foi aí que aconteceu. Um galho enorme caiu do mais alto dos eucaliptos. Ouviu-se um grito enquanto o galho se precipitava do céu como uma flecha. E então vi Lince. Caíra do cavalo e estava estendido no chão.
- Meu Deus, é um fazedor-de-viúva -ouvi alguém gritar.
Levaram-no para casa numa maca improvisada. Como ele parecia alto - mais alto na morte do que em vida! Morrer como um dos deuses da antiguidade devia ter morrido - de um galho caído que descera com tal força que lhe transpassara o coração, espetando-o ao solo. E acontecera ali, não muito distante do local onde ele deliberadamente atirara em Jacob Jagger.
O fazedor-de-viúva atingira-o, como antes já havia atingido a homens menos importantes.
Eu não podia acreditar. Fui para a biblioteca. Acariciei com os dedos as peças do xadrez, peguei no anel dele com o lince esculpido e fitei-o. Parecia que eram os olhos dele que me olhavam, e não aquelas pedras coruscantes.
Lince... morto! Mas ele era imortal. Eu estava aturdida. Sentia-me como se eu própria estivesse morta.
Stirling veio ver-me e só então me foi possível derramar lágrimas reprimidas. Segurou-me em seus braços e ficamos tão juntos como havíamos estado na caverna, quando o incêndio esbravejava acima de nós.
- Temos de ir para a Inglaterra - disse-me. - Era o que ele desejava. Arrepiei-me e respondi.
- Não era desejo dele que fôssemos, Stirling. Qual a vantagem disso? Ele é que queria ir, mas agora é impossível. Está tudo acabado.
Stirling porém sacudiu a cabeça.
- Ele queria que fôssemos. Partiremos como teríamos de fazer se ele estivesse aqui.
Vi então que, mesmo depois de morto, Lince continuava a governar nossas vidas. No subconsciente eu sempre acreditara que a morte não poderia atingi-lo. E talvez fosse assim mesmo.
MINTA
Sentada em meu quarto a olhar para o gramado, resolvi esta noite que escreveria o que aconteceu. Seria guardar comigo para sempre a lembrança dos dias passados. A gente esquece muito rapidamente e as impressões tornam-se vagas. Além do mais, a mente distorce, colorindo acontecimentos para fazê-los como se desejaria que tivessem sido, destacando o que se quer reter, e apagando o que seria preferível não lembrar. Eu faria, pois, uma espécie de diário, registrando tudo fielmente e sem retoque, tal como ocorreu.
O que me levou a essa ideia foi a aventura daquela tarde, no dia em que Stirling surgiu. Foi realmente ridículo. Ele havia penetrado por rápidos momentos em minha vida e não havia razão para que voltasse a aparecer. Absurdo sentir esse ímpeto de escrever o que acontecera. O incidente fora bastante comum. Eu soube que o nome dele era Stirling, e Nora o da moça, porque ambos se haviam dirigido um ao outro - por uma única vez, possivelmente, mas eu estava então de espírito receptivo. Estava mais alerta do que de costume, e por isso lembro-me de todos os detalhes.
A mantilha da moça havia sido soprada pelo vento por cima do muro,e eles então vieram buscá-la. Tive uma leve suspeição de que o incidente fora forjado. Na verdade, um pensamento idiota. Por que haveria de ter sido?
Achava-me no gramado em companhia de Lucie, e aquele era um dos dias mais intranqúilos de mamãe. Pobre mamãe! eu sabia que ela jamais seria feliz. Vivia revolvendo um passado que não pôde ter sido tão maravilhoso quanto ela sonhou que fosse. Parecia que ela havia deixado escapar uma grande felicidade. Um dia haveria de me contar tudo. Prometera-me fazê-lo.
Lucie e eu estávamos sentadas no gramado. Lucie trabalhava numa tapeçaria, preparando o forro para uma das cadeiras da sala de jantar. Meu pai deixara cair cinza de charuto no assento de uma delas e abrira um buraco a fogo no estofamento que datava de 1701. Lucie resolvera copiar o desenho Jacobino e preparar uma capa que fosse indistinguível do restante. com seu jeito calmo Lucie era inteligente e eu me alegrava bastante de tê-la em nossa companhia. Sem ela a vida teria sido muito monótona. Sabia fazer quase tudo. Ajudava meu pai no trabalho dele, lia romances, revistas, jornais para mamãe, e era uma companhia para mim. Fiquei maravilhada com a semelhança de seu trabalho com o assento original da cadeira.
- E quase tudo perfeito - exclamei.
- Quase? - retorquiu meio decepcionada. - Isso não basta. Precisa ser perfeito em todos os detalhes.
- Pode ficar certa que estaremos satisfeitos com algo ligeiramente menos - animei-a. - Quem vai examinar isso em busca de discrepâncias?
- Alguém poderá fazer, no futuro. - Os olhos de Lucie tornaram-se sonhadores. - Quero que daqui a cem anos as pessoas olhem para essa cadeira e digam "qual delas foi feita em fins do século XIX?"
- Por quê?
Lucie era um pouco impaciente.
Você não merece pertencer a esta casa, Minta - ralhou-me. - Pense bem no que ela significa. Você pode traçar sua genealogia até a época dos Tudors e mais além. Possui essa herança maravilhosa... Whiteladies! E parece que não dá a isso o devido valor.
- É claro que adoro Whiteladies, Lucie, e detestaria viver em outro lugar. Mas, afinal de contas, não passa de uma casa.
- Não passa de uma casa? - Ergueu os olhos para o alto do castanheiro. - Whiteladies! Quinhentos anos atrás, viviam aqui monjas enclausuradas. Às vezes imagino ouvir os sinos chamando-as para as Completas, e à noite como que ouço suas vozes em oração nas celas, e o frufru dos mantos brancos enquanto elas sobem as escadarias de pedra.
Ri-me dela.
- Ora, Lucie, você se interessa mais por esta casa do que qualquer um de nós.
- Você é que pensa assim - protestou veementemente com um trejeito amargo nos lábios.
Eu sabia que ela estava pensando na casinha daquela cidade imunda no Black Country. Já me falara sobre ela, e quando eu pensava nisso compreendia bem seu amor por Whiteladies, alegrando-me por tê-la conosco. Na verdade, ela me fizera admirar a casa que há centenas de anos pertencia à minha família.
Fui eu quem trouxe Lucie para dentro de casa. Ela ensinava Literatura Inglesa e História no colégio para onde eu havia sido mandada, e dedicara cuidados especiais a mim durante meus primeiros meses ali. Ajudara-me a atenuar a inevitável saudade de casa; ensinou-me a me adaptar ao novo ambiente e a ter confiança própria; e tudo isso ela fizera sem sair de suas maneiras discretas. No segundo semestre pediram-nos que escrevêssemos um trabalho sobre qualquer casa antiga que tivéssemos visitado, e naturalmente escolhi Whiteladies. Ela mostrou-se interessada e me perguntou onde eu conhecera essa casa. "Moro nela", respondi, e a partir daí estava sempre a me fazer perguntas. Quando chegaram as férias de verão e estávamos todas alegres em ir para casa, notei a tristeza dela e lhe perguntei onde iria passar as férias. Não tinha família, disse-me. Esperava arranjar um emprego com alguma senhora idosa, com quem talvez tivesse de viajar. Quando eu lhe disse num ímpeto "você devia vir para Whiteladies", seu contentamento foi comovedor.
Veio então e isso foi o começo. Naquele tempo era desagradável se falar em dinheiro. A casa era grande, havia muitos quartos desocupados e tínhamos criados de sobra. Estávamos quase sempre de casa cheia, de modo que Lucie Maryan era apenas mais uma pessoa. Havia porém uma diferença. Ela se mostrou prestativa. Mamãe gostava de seu timbre de voz e não era com facilidade que ela se cansava; escutava com paciência os relatos de mamãe sobre seus achaques, pois conhecia a fundo sobre doenças, e contava casos de pessoas que haviam sofrido piores indisposições. Até meu pai se tornou interessado nela. Nessa época ele estava escrevendo a biografia de um famoso ancestral que se distinguira sob as ordens de Marlborough ou Oudenarde, Blenheim e Malplaquet. Cartas e documentos, que haviam sido encontrados dentro de um baú num dos torreões, espalhavam-se pelo gabinete. Ele costumava dizer, "é um trabalho para a vida inteira e nem sei se viverei o bastante para concluí-lo." Eu tinha uma suspeita de que ele cochilava a maior parte das tardes e das noites, quando se pensava que estivesse trabalhando.
Durante aquela primeira visita lembro-me de Lucie a passear com papai sob as árvores dos jardins, trocando ideias sobre aquelas batalhas e sobre as relações de Marlborough com sua mulher e com a Rainha Ana. Meu pai estava encantado com os conhecimentos dela e, antes que as férias terminassem, aceitara-lhe a colaboração em selecionar cartas e documentos.
Foi o começo. Depois disso foi mais do que lógico que Lucie passasse as férias conosco. Estava tão interessada em Whiteladies que incentivou meu pai a escrever um trabalho sobre a casa. A ideia o atraiu, tendo declarado que tão cedo concluísse o estudo sobre o General Sir Harry Dorian começaria as pesquisas sobre a história de Whiteladies.
Lucie mostrava-se apaixonadamente fascinada pelo trabalho. Era engraçado que papai e Lucie estivessem muito mais interessados na casa do que eu e mamãe, sabendo-se que meu pai nela entrara unicamente pelo casamento e que Lucie não tinha o menor vinculo com ela.
Quando deixei o colégio, minha mãe sugeriu que Lucie passasse a morar conosco. Sabíamos em que condições ela vivia. Sozinha no mundo, era obrigada a ganhar o próprio sustento, e a vida no colégio não era fácil. Em Whiteladies havia muita coisa que ela podia fazer.
E assim Lucie passou a receber um ordenado, tornando-se um membro de nossa família. Todos gostávamos dela e era tão útil que não podíamos imaginar o que faríamos sem ela. Não tinha tarefas especificas: era a secretária de meu pai, a enfermeira de minha mãe e minha companheira; mais do que tudo, era amiga de todos nós. "
Eu estava com dezessete anos quando Stirling e Nora apareceram. Lucie tinha vinte e sete.
Um dos criados trouxera a cadeira de mamãe para o jardim. Largando o trabalho, Lucie acorrera prontamente para o lugar. Havíamos escolhido um lugar aprazível junto àfonte de Hermes, à sombra de uma árvore. Mamãe podia andar perfeitamente, mas gostava da cadeira de rodas e usava-a frequentemente. Sentei-me ociosamente a observar Lucie empurrando mamãe pelo gramado, imaginando se aquele seria um de seus dias de mal-humor. Quase sempre,podia-se prever pela expressão de seu rosto. Tomara que não seja, pensei. Está fazendo um dia lindo.
- Repare se não ficamos ao sol - disse mamãe. - Dá-me dor de cabeça.
- O lugar tem muita sombra, mamãe.
- A luz está muito forte hoje. Sim, era um de seus maus dias.
- Colocarei a cadeira de modo que a luz do sol não bata em seu rosto, Lady Cardew - disse Lucie.
- Obrigado, Lucie.
Quando Lucie afinal parou a cadeira, Jeffs, o mordomo, apareceu em companhia de Jane, a copeira, que trazia uma bandeja com pão e manteiga, biscoitos com geléia, mel e torta de frutas.
Enquanto Lucie se ocupava de instalar mamãe confortavelmente, sentei-me à mesa à espera que um dos criados trouxesse o chá no bule de prata e o fogareiro a álcool. Servi o chá e mamãe achou que estava muito forte. Imediatamente Lucie tratou de enfraquecê-lo com água e mamãe pôs-se a tomá-lo em silêncio. Compreendi. Seus pensamentos estavam no passado.
Relanceei um olhar para a casa. A janela do primeiro andar, que correspondia ao gabinete de meu pai, estava um pouco aberta. Ele estaria lá sentado à mesa, papéis espalhados a seu redor, cochilando sem a menor dúvida. Não admitia ser perturbado durante o trabalho, e eu nutria uma secreta suspeita de que ele temia que alguém o pilhasse dormindo. Querido papai, nunca se amolava com ninguém e era o homem mais bonachão do mundo. Era paciente até mesmo com mamãe, e ser constantemente lembrado de que ela lamentava aquele casamento devia exigir uma grande dose de indulgência.
Lucie, preciso de mais uma almofada para minhas costas.
- Pois não, Lady Cardew. Acho que terei de buscar uma das grandes lá dentro. Sempre receio que estas do jardim estejam um pouco úmidas.
Mamãe aquiesceu com a cabeça e enquanto Lucie se afastava disse baixinho:
- É uma criatura excelente.
Eu não gostava que Lucie fosse tratada como "criatura", pois lhe tinha muito afeto. Observei-a caminhar pelo gramado - um tanto alta, muito empertigada, os cabelos escuros escorrendo pelos lados e formando um coque na nuca. Usava cores neutras - hoje cor de amora - que lhe tornavam a pele um tanto azeitonada. Era dotada de elegância natural, de tal modo que roupas não muito caras caíam-lhe perfeitamente bem.
- É uma ótima amiga de todos nós - falei com um toque sutil de reprovação. Eu era a única pessoa que ocasionalmente censurava mamãe. Meu pai, por detestar qualquer tipo de discussão, era invariavelmente delicado e conciliador. Eu sabia que ele aturava dissabores intermináveis só para evitar a menor contrariedade. E Lucie, por ser afinal de contas uma empregada - um fato que tanto eu como meu pai sempre nos esforçávamos para esquecer - estava sempre pronta a atender aos caprichos de minha mãe, pois estava cônscia e determinada a que seu trabalho não fosse uma mera sinecura. £
- Deus do céu, Lucie - eu costumava lhe dizer. - Você não precisa recear. É uma conselheira, consoladora e amiga de todos nós, e tudo pelo preço de uma governanta!
- Serei sempre grata por me terem permitido vir para cá - era sua resposta.
- Espero que vocês nunca se lamentem de me terem admitido.
Mamãe estava dizendo que o vento estava frio e o sol muito quente, e que a dor de cabeça com a qual ela acordara estava piorando com o correr do dia. Lucie voltou com a almofada, acomodando-a por trás de mamãe que lhe agradeceu de um modo lânguido.
Foi então que eles apareceram pelo gramado. Pareciam um pouco arrogantes, e o eram na verdade, entrando pela casa sem convite e sem serem anunciados. Ele era alto e moreno; ela também era morena - não propriamente bonita, mas muito atraente e com uma vitalidade que era óbvia a quem botasse os olhos nela.
- Boa tarde - disse Stirling, - estamos aqui para apanhar a mantilha de minha tutelada.
Pareceu uma apresentação um tanto esquisita, e a mim soou ainda mais estranho que ele fosse o tutor dela. Calculei que ela fosse mais ou menos de minha idade, e ele possivelmente da de Lucie. Notei então que a mantilha verde estava estendida sobre a grama. A moça disse qualquer coisa sobre a peça lhe ter esvoaçado dos ombros e caído por cima do muro.
- Sem dúvida... - comecei.
Mamãe olhava atónita; Lucie conservou-se perfeitamente tranquila. Vi que a mão da moça estava sangrando e perguntei se ela havia se ferido. Arranhara-se, respondeu. Não era nada. Mas Lucie achou que o ferimento deveria ser tratado e que a levaria ao quarto de Mrs. Clee, onde fariam um curativo.
Houve algum protesto, mas finalmente Lucie levou a jovem à presença de Mrs. Clee, e fiquei sozinha com Stirling e mamãe.
Perguntei se aceitariam chá, ao que ele declarou seu imenso prazer. Estava enormemente interessado na casa. E era diferente de todos os homens que eU já vira, se bem que não os tivesse visto muitos. Acho que andei comparando-o com Franklyn Wakefield. E não podia haver dois homens menos parecidos. Pergunteilhe onde morava e espantou-me que dissesse morar na Austrália.
- Austrália? - repetiu mamãe inclinando-se um pouco para a frente em sua cadeira. - É uma distância enorme.
- Doze mil milhas, aproximadamente.
Havia nele algo de muito vivaz e simpático, e a intrusão arrancara aquela tarde da monotonia habitual.
- Veio para ficar? - perguntei.
- Não, estarei navegando de volta depois de amanhã.
- Tão cedo? - senti uma decepção ridícula.
- Eu e minha tutelada viajaremos pelo Carron Star. Vim buscá-la. O pai morreu e vamos adotá-la.
- Isso é muito... interessante - aduzi meio idiotamente.
- Acha? - seu sorriso irónico fez-me corar. Temi que me estivesse considerando um tanto estúpida. E sem a menor dúvida comparava-me com sua tutelada que aparentava ser tão desembaraçada e inteligente.
Mamãe fez-lhe perguntas sobre a Austrália. Como era? Onde ela morava? Ela conhecia alguém que fora para lá havia muitos anos.
Isso era interessante, disse Stirling. Qual o nome do colono que ela conhecera?
- Ah... não me recordo - respondeu mamãe.
- Bem... é um país muito grande.
- Às vezes eu gostaria de saber se... - Mamãe começou, mas logo se interrompeu.
Ele disse que morava a umas quarenta milhas de Melbourne. O amigo dela teria ido para Melbourne?
- Não sei dizer - disse mamãe. - Nunca mais ouvi falar nele.
- Foi há muito tempo? - ele persistiu. Seus lábios tomaram uma expressão estranha, como se ele estivesse muito interessado no amigo de mamãe e até um pouco surpreso.
- É difícil lembrar - disse mamãe, logo tratando de acrescentar: - Foi há tanto tempo. Trinta anos... ou mais.
- Nunca entrou em contato com seu amigo? ?"
- Desconfio que não.
- Que pena! Eu poderia levar-lhe notícias suas.
- Oh, já faz muito tempo - mamãe estava ruborizada e nervosa. Eu nunca a vira daquele jeito. Nossos visitantes inesperados pareciam ter-nos afetado a ambas de maneira muito estranha.
Apresentei-lhe o chá e notei-lhe os dedos fortes e bronzeados sobre o chapéude-coco. Sorriu-me ao receber a xícara, e havia rugas em redor dos olhos, causadas talvez pelo sol ardente. Também fiz-lhe perguntas sobre a Austrália, interessando-me vivamente pela propriedade que os seus possuíam. Havia um hotel em Melbourne, além de uma mina de ouro. ... ,
- Que vida agitada você deve levar! - comentei. " Concordou comigo e, pela primeira vez, senti-me inconformada. Até então
não me ocorrera pensar na vida tão rotineira que se levava em Whiteladies. Lucie estava constantemente a insinuar que eu deveria me sentir agradecida, mas ele despertou em mim um efeito exatamente contrário. Parecia, entretanto, que também ele estava fascinado com Whiteladies. Fez muitas perguntas e quando estávamos falando do assunto a moça voltou em companhia de Lucie. Haviam-lhe aplicado uma atadura na mão. Servi-lhe chá e continuamos a falar sobre a casa.
Foi aí que Franklyn chegou. Havia algo de muito encantador em Franklyn. Era muito calmo. Eu o conhecia durante a vida inteira e nunca o vi agitado. Nas raras ocasiões em que se lhe tornou necessário corrigir alguém ou defender-se de algum modo, sentia-se que assumia uma atitude sensata com relação ao assunto e que isso resultava mais de um senso de retidão das coisas do que propriamente de raiva. Pessoas havia que achavam Franklyn antipático, mas ele estava muito longe disso.
O contraste entre ele e Stirling era marcante. Se fosse diferente do que era, Stirling poderia parecer um homem desajeitado, mas era completamente alheio a qualquer espécie de inferioridade. Não se deixou impressionar nem um pouco pelo corte imaculado do terno de Franklyn - se é que o notou.
Foidifícil fazer apresentações, e por isso apenas expliquei a Franklyn que a mantilha havia sido soprada pelo vento por cima do muro e que eles tinham vindo buscá-la.
Nora então levantou-se dizendo que precisavam ir e nos agradeceu pela gentileza. Stirling mostrou-se um pouco desconcertado e alegrei-me com isso, pois era óbvio que ele gostaria de ter permanecido um pouco mais. Nada porém me restava fazer para retê-los e assim Lucie acompanhou-os até o portão.
E foi o que aconteceu. De certo modo um incidente trivial e, no entanto, não me foi possível arrancá-lo da mente. E porque eu queria relembrá-lo exatamente como aconteceu foi que comecei este diário.
Ficamos sentados no gramado até as cinco e meia, quando meu pai desceu. Vinha de cabelos desalinhados, com as faces ligeiramente coradas. Dormiu um bom sono, calculei com meus botões.
- Como está indo o trabalho, Sir Hilary? - Lucie perguntou.
Ele sorriu. Quando sorria, o rosto se iluminava e era como se lhe acendessem uma luz por trás dos olhos. Adorava falar de seu trabalho.
- Foi uma trégua árdua a de hoje. Mas sei que estou numa fase difícil. Mamãe mostrou-se impaciente e Franklyn logo tratou de interferir.
- Essas fases difíceis sempre existem, creio eu. Se o trabalho correr muito normalmente há o perigo de se tornar fácil demais.
Tinha de ser Franklyn quem dissesse a coisa certa! Sentava-se numa das cadeiras do jardim, impecável, delicado e tolerante para com todos nós. Eu sabia que mamãe e meu pai haviam resolvido que Franklyn daria um ótimo genro. Seria a junção de Wakefield Park e White ladies. Seria bastante conveniente para as duas casas, cujos terrenos se confinavam e que ficavam razoávelmente perto uma daoutra. A família de Franklyn não era propriamente rica, mas abastada, como se dizia. De qualquer forma, nós também não éramos ricos. Acredito ter acontecido alguma coisa às nossas finanças nos últimos dois anos, pois sempre que falávamos em dinheiro papai assumia uma atitude estudadamente distraída, o que significava que era um assunto que ele não gostava de ouvir porque o aborrecia.
Fosse como fosse, era de muita conveniência que eu e Franklyn nos casássemos. Eu chegara mesmo a considerar tal coisa como uma fatalidade. E desconfio que Franklin também. Sempre me tratava com uma extraordinária cortesia, mas afinal era assim com todo mundo. Eu já havia visto a moça do correio corar de contentamento quando ele lhe dirigiu algumas palavras. Era alto - todos os Wakefield eram altos - e administrava os bens do pai com tato e eficiência, sendo um ótimo locador para todos os inquilinos. Mas por trás do encanto despreocupado de Franklyn existia uma certa altivez. Seus olhos eram mais acinzentados que azuis, ressentindo-se de falta de calor. Assim como ele nunca ficava zangado, podia-se ver que nunca se entusiasmava realmente por coisa alguma. Era estável e, por isso mesmo, dificilmente uma pessoa vibrante, embora de conveniência agradável. Tudo nele era convencional: o vestir impecável, as maneiras polidas, a vida bem organizada.
Esses fatos não me haviam ocorrido antes. Foram aquelas duas pessoas que invadiram minha tarde o que deu origem a tais considerações. Afinal, elas já haviam se ido e eu nunca mais esperaria tornar a vê-las.
- Exatamente - Papai estava dizendo. - Sempre digo a mim mesmo que devo aceitar esse trabalho árduo a bem da posteridade.
- Tenho certeza de que irá concluí-lo - acrescentou Franklyn - para gáudio da presente geração e das que hão de vir.
Meu pai mostrou-se lisonjeado, especialmente quando Lucie aduziu com muita convicção:
- Também tenho certeza de que concluirá, Sir Hilary.
Lucie e Franklyn começaram então a conversar com papai, mas logo mamãe pôs-se a bocejar dizendo que a dor de cabeça lhe voltara. Lucie levou-a para o quarto onde ela se deitaria até a hora do jantar.
- Jantaráconosco, Franklyn -disse meu pai, e Franklyn elegantemente aceitou o convite.
Mamãe não apareceu para jantar. Mandou chamar Lizzie, uma das criadas, para esfregar-lhe eau de Cologne na testa. O Dr. Hunter fora convidado para jantar conosco, mas primeiro passaria coisa de mais de uma hora a debater com mamãe seus sintomas, antes de se juntar a nós.
Dr. Hunter estava conosco havia apenas dois anos, e parecia jovem para a responsabilidade de cuidar de nossas vidas e de nossas mortes. Talvez fosse porque o comparávamos com o idoso Dr. Hedgling, cuja clínica ele assumira. Devia andar pelos trinta e poucos anos, era solteiro e tinha uma governanta que se supunha cuidar de seu conforto material. Vivia superansioso, conforme eu imaginava, à cata de nossa opinião favorável, estando ao mesmo tempo perfeitamente cônscio de que o considerávamos um pobre-diabo sem experiência. Mas era um rapaz expansivo de quem mamãe muito gostava, o que era um ponto importante.
O jantar foi bastante animado. O jovem médico tinha um jeito engraçado de descrever uma situação, e quase sempre Franklyn rematava de um modo habilmente humorístico os casos dele. Até alegrei-me por mamãe ter resolvido que o jantar lhe fosse levado numa bandeja a seus aposentos. Ela era um pouco cansativa com a repetição constante de seus achaques e, estando presente o médico, certamente que se esmeraria em recitá-los.
Creio que meu pai também se sentiu aliviado. Ele sempre se mostrava diferente na ausência dela, como a se regalar de liberdade.
O médico estava falando de uma de suas clientes, a velha Betty Ellery que vivia presa a um catre e que se recusara a receber o que ela chamava "um tiquinho de rapaz".
- Embora admitindo minha juventude - disse o médico, - tive de insistir em que minha personalidade estava intacta e que eu era um todo e não um tiquinho de mim mesmo.
- Coitada da Betty - lamentei. - Está pregada naquela cama desde que me entendo. Lembro-me de ir visitá-la todo Natal, levando cobertores, carne de galinha e pudim de ameixa. Quando a carruagem parava à sua porta e nos apeávamos, ela gritava lá de dentro: "Entre, Madame, é tão bem-vinda quanto os presentes que me traz." Eu me sentava solenemente numa poltrona ao lado da cama, a escutar as histórias que contava do tempo em que vovô era vivo, quando mamãe vinha visitá-la em companhia de vovó.
Os antigos costumes permanecem - interferiu Franklyn.
E não concorda que seja uma coisa boa, Franklyn? - aparteou meu pai.
Franklyn respondeu que em certos casos era bom agarrar-se aos costumes antigos, mas que em outros era melhor descartá-los. E assim a conversa teve curso.
Depois do jantar, Lucie e o médico entretiveram-se num diálogo animado, enquanto eu e Franklin palestrávamos. Indaguei sua opinião sobre as pessoas que haviam surgido em casa naquela tarde.
- Refere-se à moça da mantilha?
- Aos dois. Pareciam um tanto fora do comum.
- Pareciam?
Franklyn não pensava assim, era óbvio, e percebi que ele quase já os havia esquecido. Senti-me vagamente enjoada dele e voltei-me para Lucie e o médico. O médico estava falando de sua governanta, Mrs. Denver, de quem suspeitava beber mais do que recomendava a sobriedade.
- O melhor seria que trancasse as bebidas - aconselhou Lucie.
- Minha cara Miss Maryan, se eu o fizer perderei a dama.
- E seria uma perda assim tão grande?
- Vê-se claramente que não tem ideia dos percalços da existência de um solteiro quando ele está à mercê de uma dupla de empregadas. Ora, eu morreria de fome e sem a supervisão de minha Mrs. Denver a casa viraria um chiqueiro. Tenho de perdoá-la pelo grande amor que tem à bebida em proveito do conforto que ela traz para minha vida.
Sorri para Franklyn. Garanto como estava pensando a mesma coisa que eu estava. Lucie querida! Ela já devia andar perto dos trinta e se iria casar algum dia, que o fizesse logo. E que excelente mulher de médico ela daria! Eu até podia visualizá-la a cuidar dos pacientes dele, ajudando-o. Seria uma situação ideal, embora fôssemos perdê-la, e o que faríamos sem ela? Mas era lógico que não podíamos ser egoístas. Era essa a oportunidade de Lucie e, se viesse a se casar com o médico, moraria perto de mim pelo resto da vida.
Voltei-me para Franklyn. Eu estava a ponto de lhe cochichar que seria maravilhoso que Lucie e Dr. Hunter fizessem um par, mas a Franklyn não se dizia uma coisa dessas. Ele acharia de mau gosto murmurar sobre esses assuntos - ou mesmo falar abertamente - por considerá-los do interesse de apenas duas pessoas. Meu Deus, como se podia ser tão chato! E quanta coisa boa na vida ele estava perdendo!
Fiquei apenas na imaginação e logo passamos a conversar num único grupo. Dr. Hunter contou-nos vários casos engraçados de sua vida no hospital, antes de vir para o distrito, e ele era realmente muito divertido. Pouco depois das dez, ele e Franklyn se retiraram, e nós nos recolhemos para dormir.
Quando fui desejar boa noite à minha mãe, encontrei-a bem desperta e demonstrando algo de diferente.
- Sente-se, Minta, e converse um pouco comigo. Acho que não conseguirei dormir esta noite.
- Por quê? - perguntei.
- Você bem sabe, Minta - o tom era de censura - que não consigo nunca dormir direito.
Calculei que fosse ouvir um relatório de seus padecimentos, mas não foi bem assim, e logo ela tratou de prosseguir.
- Sinto que preciso conversar com você. Existe muita coisa de que nunca lhe falei. E só espero, minha filha, que sua vida seja mais feliz do que a minha.
Quando pensei na vida que ela levava, com um marido complacente, uma casa belíssima, criados para atender a seus menores caprichos, e liberdade para fazer o que bem entendesse - ou quase isso - não pude admitir que ela estivesse necessitando de comiseração. Mas como sempre eu fazia com relação à mamãe, fingi escutar. Desconfio que minha atenção muitas vezes vagueava e eu repetia um "sim" ou "não" ou ainda "que terrível" de solidariedade, sem realmente saber de que se tratava.
Minha atenção foi, no entanto, atraída para o que ela disse logo depois.
- Foram aquelas pessoas que surgiram esta tarde que me fizeram relembrar tudo. O rapaz vinha da Austrália. E foi para lá que ele partiu há muitos anos.
- Quem, mamãe?
- Charles. Eu gostaria que você o tivesse conhecido. Jamais houve alguém igual a ele.
- E quem era?
- Como pode ignorar quem era Charles? Veio para cá como professor de desenho, meu professor de desenho. Mas era muito mais do que isso. Lembro-me do dia em que chegou. Eu estava na sala de estudo e tinha dezesseis anos mais nova do que você é agora. Ele era alguns anos mais velho. Entrou com um ar audacioso e arrogante, nem de longe parecendo um professor de desenho. E foi dizendo: "É Miss Dorian? Estou aqui para lhe ensinar". E me ensinou muita coisa, Minta, muita coisa.
- Mamãe, por que aquelas duas pessoas fizeram-na lembrar-se dele?
- Porque vieram da Austrália e foi para lá que ele foi, que o mandaram. E de certo modo aquele rapaz me fez lembrar dele. Tinha qualquer coisa dele. Entende o que digo? Ele não cuidava do que as pessoas pensassem a seu respeito. Sabia que era tão bom - não, melhor - do que qualquer um. Entende o que quero dizer?
- Entendo, sim.
- Foi crueldade. Depois disso passei a odiar seu avô. Charles era inocente. Como se ele cuidasse de se interessar por minhas jóias! Era a mim que ele queria, e não o que eu pudesse lhe dar. Disso eu tenho certeza, Minta.
Estava realmente mudada. A inválida lamurienta desaparecera. E estava até com uma aparência bonita, como devia ter sido anos atrás. Na visita daquela tarde eu sabia que existia algo de importante, e estava tremendamente interessada.
- Conte-me o que aconteceu - pedi.
- Oh, minha querida Minta, parece que foi ontem. Eu quisera poder descrever Charles para você.
- Estava apaixonada por ele, não é isso?
- Sim, e tenho estado a vida inteira.
Sentindo que isso era uma deslealdade para com meu pai, protestei.
- Não será porque ele desapareceu de sua vida quando ainda era jovem e belo, e por isso você guardou sempre essa lembrança? Se pudesse vê-lo agora, talvez você levasse um choque terrível.
- Se eu pudesse vê-lo agora... - estava de olhar sonhador. - Aquele rapaz fez-me lembrar muito dele... e tudo veio à tona. Aqueles dias em que ficávamos na sala de estudo; depois, quando ele achou que deveríamos trabalhar ao ar livre. Sentávamo-nos então debaixo do castanheiro, onde estávamos de tarde, e ele desenhava flores e pássaros que eu tinha de copiar. Também passeávamos juntos, estudando a vida campestre na tentativa de transportá-la para o papel. Gostava de falar sobre Whiteladies, tal como Lucie. É estranho que as pessoas se impressionem tanto com esta casa. Ele nunca se cansava de falar nela. Estávamos apaixonados e iríamos nos casar, mas era claro que seu avô não iria permitir.
- Você só tinha dezessete anos, mamãe. Talvez estivesse sob arrebatamento.
- Há certas coisas de que se tem certeza, não importa a idade. Daquilo eu tinha certeza. Depois de conhecer Charles fiquei certa de que ninguém jamais significaria para mim o que ele significou. Ele me disse para não contar nada a seu avô, pois este proibiria o casamento e uma desgraça poderia acontecer, por ser seu avô um homem muito poderoso. Mas ele descobriu o que estava acontecendo. Alguém lhe contou, e o certo é que Charles foi despedido. Planejamos fugir. Meu pai tinha medo de Charles, pois sabia que não era um rapaz comum. Fiquei sob vigilância o tempo todo, mas contrabandeávamos bilhetes e assim fizemos nossos planos. Ele galgou a janela de meu quarto na noite em que deveríamos partir. Entreguei-lhe minhas jóias para que ele as colocasse no bolso e guardasse para mim enquanto descêssemos. - Os lábios de minha mãe começaram a tremer. - Fomos traídos. As jóias foram encontradas no bolso dele e ele foi condenado a um exílio de sete anos. Seu avô era um homem cruel e meu coração ficou em pedaços.
- Que história triste, mamãe. Mas teria sido mesmo feliz com ele?
- Você haveria de compreender, se o tivesse conhecido. Eu não poderia ser feliz com ninguém mais. Ele achava que se casássemos, com o tempo meu pai acabaria nos perdoando. Afinal de contas, eu era filha única. Nossos filhos seriam seus netos. Charles costumava dizer: "Nossos filhos hão de brincar nos gramados de Whiteladies, pode ficar tranquila". Mas degredaram-no e nunca mais voltei a vê-lo. Jamais, jamais o esquecerei.
Compreendi então o motivo de todos aqueles anos de lamúrias. Ela achava que a vida fizera-lhe uma trapaça, í eu bem que poderia ter sido mais tolerante com ela. Procurarei ser de agora em diante.
- E, no fundo de minha mente - ela continuou de um modo insolitamente revelador - sempre pensei que me era possível ter feito alguma coisa. Eu era a única filha de meu pai. Podia ter ameaçado fugir, matar-me... qualquer coisa. Hoje acredito que se tivesse agido assim, alguma coisa teria sido feita. Mas eu tinha medo de seu avô e deixei que o levassem sem protesto. Cinco anos depois, casei-me com seu pai porque era isso o que meu pai queria. - Ora, mamãe fiz-lhe recordar - Papai é um homem muito bom. í esse professor de desenho podia não ter sido o que você imaginava que fosse.
- com ele a vida nem sempre teria sido fácil, mas teria sido maravilhosamente digna de ser vivida. Como é agora...
- Você tem muito o que agradecer, mamãe - tornei a lhe relembrar, e ela me sorriu um tanto palidamente.
- Reconciliei-me um pouco quando você nasceu, Minta. Mas isso foi muito depois do nosso casamento. Eu até pensei que jamais tivéssemos um filho. Talvez se você tivesse chegado mais cedo... e é claro que seu nascimento influenciou bastante minha saúde.
E lá voltava ela a ficar pálida, recordando o terrível período da gestação, o medonho transe de minha chegada. Eu já ouvira falar disso antes e não me sentia nada ansiosa em ouvi-lo novamente.
- E com o aparecimento esta tarde daquelas pessoas, você ficou saudosa do passado - atalhei às pressas.
- Eu gostaria de saber o que aconteceu a ele, Minta. Um homem orgulhoso daquele ser expulso do país como um condenado!
- E eu garanto como era bastante inteligente para encontrar um nicho para si mesmo.
Ela sorriu.
- Era esse o pensamento que me consolava.
Bateram na porta e Lizzie entrou. Lizzie era um pouco mais velha que minha mãe, um ano mais ou menos. Fora minha babá e, antes disso, dama de companhia de minha mãe. Continuava a me tratar como se eu fosse uma criança, e dos criados era quem tinha maior familiaridade com minha mãe. Os cabelos espessos e grisalhos formavam-lhe uma verdadeira orgia de cachos em volta da cabeça. Eram seu único sinal de beleza, mas bastante atraentes para fazer com que as pessoas, mesmo hoje, olhassem duas vezes para ela.
- Está impedindo sua mãe de dormir, Miss Minta - disse-me. - Calculo que ela esteja extenuada.
- Estamos conversando - respondi.
- Eu sei - Lizzie deu um muxoxo e voltou-se para minha mãe. - Posso arrumar o quarto para dormir?
Minha mãe aquiesceu com a cabeça. Dando-lhe um beijo de boa noite, retirei-me.
Assim que fechei a porta, ouvi-a falar cheia de ânimo e com um toque de emoção na voz.
- Quando vi aquele rapaz esta tarde, voltei ao passado. Lembra-se de como ele se sentava no gramado com o caderno de desenho na mão?
Fui para meu quarto. com certeza Lizzie já estava aqui naquela época. Teria presenciado tudo.
Coitada da mamãe! Como deve ser terrível viver a vida inteira na insatisfação, sonhando constantemente com o que podia ter acontecido.
Tive dificuldade em dormir. Os visitantes daquela tarde tinham me afetado tanto quanto a minha mãe.
A lembrança daquela visita permaneceu comigo por muitos dias ainda. Eu teria gostado de comentar o assunto com Lucie, mas senti que o que minha mãe me contara fora feito em confidência. Havia um retrato dela que fora pintado dois anos depois da fuga fracassada, e sem dúvida que ela aparentava um aspecto lindo. Agora eu olhava para ele de um modo diferente, vendo nos olhos uma tristeza obcecante. Pensei em vovô Dorian, de quem me recordava vagamente como o todo-poderoso da casa e cujos ríspidos comandos me davam um calafrio de alarma na espinha. Eu podia imaginar quão enérgico ele teria sido com a própria filha. Naturalmente que aprovou papai para marido. Papai era um cidadão de títulos, de algum recurso e perfeitamente conveniente. Havia-se mostrado polido e submisso ao concordar em residir em Whiteladies. Possuíra uma casa nas vizinhanças e uma propriedade em Somerset, que haviam entrado nos bens da família em 1749, quando esta ganhou proeminência pela lealdade à causa hanoveriana. Daí en diante eles começaram a construir fortuna. Costumávamos visitar Somerset duas vezes ao ano, antes que papai vendesse a propriedade há dois anos, como o fizera com a outra casa. Era muito dispendioso mantê-las e precisávamos de dinheiro, disse ele. Eu podia imaginar como se sentiu a pobre da mamãe quando soube que ia se casar. Mas afinal ela já devia saber que perdera Charles para sempre. Eu também me perguntava se ela alguma vez fingira amar papai.
Eu estava no jardim a colher flores para os vasos quando vi Dr. Hunter saindo da casa. Chamei-o e ele parou a sorrir para mim.
- Veio ver mamãe? - confirmou, e continuei. - Eu gostaria de lhe falar sobre ela. Mas cuidado que ela não nos veja. Se aparecer na janela irá pensar imediatamente que estamos tratando de uma nova e terrível doença que ela contraiu.
- Por que não me mostra as roseiras? - ele sugeriu.
Ótima ideia, porém melhor ainda é vir para o lago. Lá estaremos realmente fora de visão.
O lago era cercado por uma graciosa aléia que, no verão, formava uma arcada de verde luxuriante. Eu adorava esse lugar que parecia isolado do resto da casa. Decerto, mamãe e seu bem amado desenhista haviam se sentado ali a fazerem planos à beira da água, distanciados do mundo. As flores tinham cores muito mais vivas quando eu era criança. Naquela época dispúnhamos de muito mais pessoas trabalhando no jardim, pessoas que transformavam da noite para o dia os matizes da primavera nas ricas tonalidades do verão. Lembro-me particularmente do azul fulgurante dos delfinios e do aroma forte dos cravos - e mais tarde do bronze e do púrpura dos crisântemos com o odor inconfundível de final de estação. Mas agora, como era verão, havia fartura de flores. O lago tinha uma estátua branca e na água boiavam lírios de pétalas lustrosas. Esse jardim era uma cópia, disse-me papai, feita há duzentos anos do jardim de Hampton Court onde se dizia que Henrique VIII passeara com Ana Bolena.
- Qual o estado de minha mãe? - perguntei ao médico.
- O mal de sua mãe está dentro dela.
- Coisa imaginária, então?
- Bem, ela tem lá suas dores de cabeça. Sofre de lassidão e de algumas dores indeterminadas.
- Diz então que ela não tem nada de grave?
- Organicamente, nada funcionando mal.
- A doença está portanto na imaginação e, se ela quisesse, estaria completamente boa amanhã.
- Não é tão simples assim. É um autêntico estado de enfermidade.
- Uma coisa aconteceu recentemente. Chegaram aqui umas pessoas e ela então se lembrou do passado. Quase pareceu voltar à juventude.
Ele fez um sinal de compreensão com a cabeça.
- Ela está precisando de se interessar pela vida. Precisa pensar em alguma coisa fora de si mesma, das alegrias passadas e dos aborrecimentos do presente. Nada mais.
- E em que poderia se interessar?
- Talvez quando você casar e lhe der netos, ela se mostre tão encantada com eles que há de encontrar um novo interesse pela vida. Interesse! É o que ela quer.
- Não tenho intenção de me casar tão cedo. Será que ela vai esperar por uma cura até lá?
Ele riu-se.
- Faremos o possível. Ela continuará com pílulas e remédios, e achará nisso algum alívio.
- Mas se não está fisicamente doente, precisa de remédio?
- São meros paliativos. Ajudam-na porque ela acredita neles. Em minha opinião é assim que temos de tratá-la.
- Que tarefa difícil... tentar curar alguém de alguma coisa que não existe!
- Você está enganada. A doença existe. É real. E era isso que eu tentava incutir no meu antecessor. Ele acreditava que uma doença só era doença quando mostrasse um sinal externo e visível. Mas não se preocupe, Miss Minta. Estamos cuidando bem do caso de sua mãe. Miss Maryan é muito prestativa, não é?
- Lucie é maravilhosa.
- Sim - concordou o médico, sorrindo de um modo que traiu perfeitamente seus sentimentos por Lucie.
- Explicou isso a ela... isto é, a condição de minha mãe?
- Ela está a par de tudo. De fato, já suspeitava da situação. Aliás, só ontem falamos no assunto, quando ela foi à minha casa buscar o remédio de sua mãe.
- O paliativo?
- Sim, o paliativo.
E como tem andado Mrs. Devlin ultimamente.
- Como de costume. Ao chegar em casa depois da visita de ontem, encontrei-a um pouco rubicunda, com uma pequena vermelhidão na ponta do nariz.
- Qualquer dia ela vai se exceder.
- Qualquer dia? Acho que isso acontece todas as noites. Bem, devemos dar graças quando nos contam, pois, com exceção dessa pequena fraqueza, ela é um tesouro. Até que possa arranjar as coisas de outro modo, não devo ser muito exigente.
- Ah, está pensando em arranjar as coisas de outro modo? - surpreendi-me.
- Nada em definitivo... por ora.
Revelou-se um pouco embaraçado e percebi que havia sido bastante indiscreta. Mas tinha certeza que ele estava se referindo a Lucie.
Voltamos para casa e continuamos a conversar até que ele tomasse sua sege e se fosse.
Fui ao quarto de Lucie, que estava sempre muito limpo e bem arrumado. Ela cuidava dos móveis como se fossem peças sagradas, o que muito me divertia. Era o quarto que lhe havia sido dado desde a primeira visita a Whiteladies, e ela o adorava. O teto era majestoso, com o brasão da família gravado nele. O lustre era pequeno mas lindamente trabalhado e tilintava de leve como sinetas de igreja, junto ao janelão ficava uma poltrona estofada em veludo cor de amora sobre o tapete da mesma cor. A cama tinha um dossel. Era um quarto realmente encantador, mas como tínhamos vários iguais a ele em Whiteladies, não me ocorreu que tivesse nada de especial senão depois que notei os cuidados extremosos de Lucie.
- Acabei de conversar com o médico, Lucie.
Estava sentada à penteadeira e, de vista baixa, começou a mexer nos objetos de toucador ali existentes. Sentei-me na cadeira de espaldar esculpido e de suporte para se colocar os pés. Passei a estudar Lucie. Nada tinha de resplendentemente atrativa e só a elegância inata destacava-a das pessoas comuns. O rosto era pálido demais e as feições nada significavam em matéria de beleza.
- Parece que ele está um pouco... desassossegado quanto à situação doméstica.
- É aquela governanta dele.
- Devíamos aconselhá-lo a arranjar outra. Nunca se sabe o que ela pode fazer. Pode até abrir o armário das drogas e se servir de uma coisa venenosa.
- Não está interessada em drogas. Ela se preocupa è com a adega.
- Mas em estado de embriaguez excessiva...
- Fica em letargia, creio eu.
- A governanta de um médico deveria ser abstèmia.
- Todos deveriam ser abstêmios - disse Lucie com certa gravidade.
- Gosto muito do Dr. Hunter - comentei. - Me agradaria vê-lo com uma esposa que o ajudasse. Não acha que é disso que ele precisa?
- Qualquer profissional tem necessidade de uma esposa que o ajude - replicou Lucie sem se comprometer.
Não pude deixar de rir.
- Você ainda tem muito de uma professora, Lucie. Às vezes até imagino vê-la em aula. Falando de casamento, será que vai resolver se casar um dia, só espero que não vá muito longe de nós.
Mas Lucie não se deixava atrair.
Fazia uma tarde ensolarada. A casa parecia em perfeita quietude. Minha mãe estava descansando e meu pai também, se bem que eu desconfiava de que ele estivesse no gabinete. Como Lucie tomara o cabriolé e saíra em demanda da casa do médico para buscar o remédio de mamãe, levei meu bordado para o jardim e sentei-me sob o pé de carvalho. Como fazia quase sempre, fiquei a relembrar o dia em que a mantilha fora soprada por cima do muro.
Franklyn apareceu. Atravessou o gramado, como o fizera naquele dia, e instalou-se numa cadeira a meu lado.
- Então está completamente só - disse. Fiz-lhe saber onde todos estavam.
Teceu alguns comentários sobre a propriedade e sobre certos rendeiros, um dos assuntos de sua predileção. Tomava como obrigação conhecer os detalhes de suas famílias, e eu já ouvira falar que os rendeiros nada tinham a temer da parte de seu senhorio. Gostava de conversar comigo sobre esses casos - talvez porque participasse da opinião geral de que um dia eles se tornassem também problemas meus. Pois que a esposa de um proprietário como Franklyn teria obrigações para com a propriedade. Franklyn era um homem excelente, mas muito previsível. Sabia-se de antemão quais os seus pontos de vista sobre qualquer assunto que fosse ventilado.
Por sentir uma vontade turbulenta de chocá-lo, falei do assunto que predominava em minha cabeça - as ligações entre Lucie e Dr. Hunter.
- Lucie foi à casa do Dr. Hunter buscar o remédio de mamãe. Ela gosta de passear. Garanto como não cabe em si de alegria, pensando no dia em que for a dona da casa.
- E já estão noivos? - admirou-se Franklyn.
- Não há nada combinado, mas...
- Como fala então com tanta certeza?
- E não é óbvio?
- Diz que já existe uma afeição? Eu diria que há a possibilidade de um noivado. Mas como se pode ter certeza até que seja um fato?
Querido Franklyn! Ele falava como um presidente discursando numa reunião de conselheiros. Era assim que a inteligência dele funcionava - com precisão e com lógica absoluta. Possuía um conjunto de convenções e a elas se agarrava rigidamente.
- Mas, Franklyn, será perfeitamente ideal.
- Considerando-se superficialmente, sim. Mas não se pode dizer a rigor que um casamento seja ideal a menos que tenha decorrido pelo menos um ano de experiência.
- Mesmo assim, acho que deveríamos ficar exultantes se Dr. Hunter pedisse a mão de Lucie em casamento e ela o aceitasse. Eu gostaria de ver Lucie bem arrumada na vida. Afinal de contas, Dr. Hunter é um bom partido e ninguém mais adequado do que ele neste distrito para ser o marido de Lucie. Portanto, terá de ser Dr. Hunter. Ela exercerá uma influência calmamente sobre pacientes transtornados que procurem a clínica, e provavelmente logo aprenderá a manipular remédios. É muito inteligente.
- Sei que você tem razão e que seria uma combinação admirável. Há muito tempo venho querendo lhe dizer uma coisa, Araminta.
Empregava meu nome inteiro quando estava sendo solene, e assim eu sabia que um assunto importante estava para ser discutido. Será que vai me propor casamento? perguntei a mim mesma. Essa conversa sobre o casamento de Lucie meteu o nosso na cabeça dele. Enganava-me. Franklyn jamais proporia casamento sem premeditação. Se algum dia chegasse a me pedir, viria com o cerimonial de praxe, tendo primeiro pedido a permissão de papai.
Sim, Franklyn, - falei com um vago tom de alarma na voz, pois eu não podia me libertar do pensamento de que ele estava marchando para uma proposta que se esperava de mim que a aceitasse - e eu não queria.
Suas palavras trouxeram-me alivio.
Tenho procurado falar com seu pai, mas ele não parece muito disposto a me escutar. É claro que não posso falar com sua mãe. A meu ver, existem motivos de preocupação com respeito a problemas financeiros de sua família.
- Acha que estamos com falta de dinheiro? Ele hesitou.
- Estou convencido de que os negócios de seu pai passam por uma situação difícil, í um assunto que não pode ser ignorado, creio eu.
- Franklyn, quer me dizer exatamente a que se refere?
- Sou um proprietário rural e não um financista. Mas não é preciso ser financista para entender o que está acontecendo nos mercados. Seu pai e meu pai têm sido amigos há anos. Tiveram o mesmo corretor e fizeram investimentos semelhantes. O forte de meus bens são as terras, mas esse não é o caso de seu pai. Ele possui Whiteladies e, desconfio, pouca coisa mais. Vendeu há alguns anos a propriedade de Somerset, e o dinheiro resultante foi investido - mas não com inteligência, calculo eu. A verdade é que seu pai não é exatamente um homem de negócios.
- Está insinuando que nos tornamos pobres, Franklyn?
- Não chego a tanto. Mas penso que você devia evitar esbanjamentos nos negócios domésticos. Estou avisando a você porque seus pais parecem não compreender a necessidade de não gastar além do que têm por renda. Perdoe-me a franqueza de minhas palavras, mas estou um pouco preocupado. Eu não gostaria de ver Whiteladies cair em abandono.
Senti-me deprimida. Então meu pai andava preocupado com dinheiro ou, pelo menos, deveria estar. Mas é claro que não estava. Ele se esquecia facilmente do que era incómodo. Quanto a mamãe, revelaria um alheamento total se eu lhe ventilasse o assunto. E Franklyn? Qual o motivo por trás de seu aviso? Se chegasse a se casar comigo viria morar em Whiteladies, como papai viera. E se a casa não podia ser transmitida pela linha masculina, teria de ser pela linha feminina. Mamãe a herdara, e eu a herdaria também. Podia ser que o nome de família mudasse, mas permaneceria o vínculo sanguíneo, Franklyn, então, estava pensando em Whiteladies. Sua preocupação era de que a indigência de papai acabasse por impossibilitá-lo de manter a casa, antes que ele, Franklyn, dela se apoderasse.
Lembro-me que quando eu disse a papai que havia cupim nas vigas de um dos compartimentos de torre, ele deu de ombros. E eu sabia que o caso deveria ter merecido atenção. Várias eram as tábuas do assoalho que estavam necessitando de urgentes reparos e que, havia meses, estavam sendo negligenciadas. Meu pai fechava os olhos para essas coisas, e agora eu nos imaginava a viver numa Whiteladies que gradativamente se tornava inabitável. Eu bem que podia ver meupai trancado em seu quarto, recusando-se a dar ouvidos enquanto a casa pouco a pouco desmoronava.
- Que é que me cabe fazer? - perguntei.
- Trate de introduzir um pouco de economia. Se tiver uma chance, converse com seu pai. As coisas já não são como eram há vinte anos. Os impostos aumentaram e o custo de vida fez o mesmo. O mundo está mudando e temos de nos adaptar a ele.
Duvido muito que possa fazer grande coisa. Se papai não dá ouvidos a você, muito menos a mim.
- Se você lhe disser que está um tanto preocupada...
Ele não fará coisa alguma. Tranca-se no gabinete e cochila sobre os manuscritos.
Pronto! Saíra-me sem querer. Eu revelara o segredo do trabalho de papai. Mas talvez nem fosse realmente um segredo, e Franklyn soubesse tão bem quanto eu. O que eu fizera foi mencionar aquilo que a polidez e a convenção decretavam como não mencionável.
- Falarei com Lucie - disse eu. - Aposto como ela saberá implantar economia muito melhor do que eu.
- É uma ideia excelente - concordou Franklyn.
Depois de ter cumprido sua obrigação, o que eu tinha certeza que ele sempre haveria de fazer, mudou de assunto e conversamos sobre os acontecimentos do lugar, quando ouvi que Lucie estava voltando no cabriolé.
A partir daquela noite em que me tomara por confidente, mamãe se tornou mais irritadiça do que nunca. Passava a maior parte do tempo no quarto, para onde subiam as bandejas na hora-das refeições. Eu sabia que ela fazia jús à comida, pois quase sempre Lizzie voltava com as bandejas vazias.
Lizzie era a pessoa de sua confiança. Às vezes, quando eu ia visitá-la antes de dormir, ela se mostrava quase sôfrega em se ver livre de mim, e antes que eu saísse do quarto já começava a conversar com Lizzie. "Lembra-se daquele dia em que eu e Mr. Herrick estávamos no jardim...", ou então, "Houve também aquela ocasião em que papai convidou-o a jantar conosco. Faltava mais um homem à mesa, e como ele se destacou..." Eu calculava que ela devia aborrecer tremendamente a pobre Lizzie com essas reminiscências do passado. Mas talvez Lizzie fosse mais compreensiva do que eu, uma vez que tivera o privilégio de conhecer o fidalgo cavalheiro que fora ignobilmente banido para a Austrália.
Coitado do papai! Ela era tão impaciente com ele e até parecia devotar-lhe total indiferença. Sempre irritada, muito raramente se dava ao trabalho de se dirigir a ele com civilidade. Por isso todos nos alegramos quando ela resolveu fazer as refeições no próprio quarto. Era uma situação que eu considerava não apenas aflitiva como embaraçante. Eu bem que desejaria que aquelas pessoas nunca tivessem aparecido e, mais uma vez, dava graças pela presença de Lucie que parecia saber exatamente o que fazer. Quando mamãe se mostrava muito agressiva para com meu pai, Lucie intervinha com algum comentário sobre o trabalho dele, de modo a fazê-lo esquecer o insulto com o elogio. Era uma pena, pois se existia um homem que sabia ser feliz, esse homem era meu pai com seu grande talento para jogar de lado o que lhe era desagradável. Sempre que possível ele se conservava distante de minha mãe, e como Lucie passou a frequentar mais assiduamente seu gabinete, conclui que o livro estava realmente fazendo progresso.
Lucie era tão dedicada a todos nós que os problemas de nossa família eram problemas seus, e ao mesmo tempo em que prestigiava meu pai também compartilhava dos sentimentos de minha mãe. Creio mesmo que, depois de Lizzie, era ela quem mais ouvia confidências. Mas o ambiente doméstico estava se tornando algo intranqúilo.
Um dia, tendo ido à casa do Dr. Hunter a fim de apanhar o remédio de minha mãe, Lucie voltou de aspecto transtornado e muito avermelhada. Levou o remédio ao quarto de minha mãe e, ao voltar, convidei-a para entrar no meu.
- Entre e vamos conversar um pouco - sugeri. - Hoje mamãe está com um mau humor terrível.
Lucie franziu o sobrolho.
- Sei. O melhor seria que aquelas pessoas nunca tivessem aparecido.
- Que coisa esquisita. Duas pessoas surgem daquela maneira, como estranhos, e transtornam tudo.
- Na verdade tudo começou bem antes - disse Lucie. - Elas apenas fizeram com que sua mãe revivesse o passado.
- Como eu gostaria que ela pudesse ver esse semideus agora. Aposto como está velho e grisalho e já nem se mostra tão bonito. Coitado do papai, estou com pena dele.
- É verdade - concordou Lucie. - É tão fácil fazê-lo feliz, e é uma pena que não seja. - Ela então deixou escapar impulsivamente: - Minta, Dr. Hunter me pediu em casamento.
- Oh, Lucie, parabéns.
- Obrigado, mas ainda não resolvi.
- Mas, Lucie, seria um casamento ideal.
- Como sabe? Ri-me. ?
- Você parece Franklyn falando. Dará uma maravilhosa esposa de médico. Ele se livrará daquela beberrona e você cuidará dele perfeitamente. Só espero que ele perceba a sorte que tem.
- Já lhe disse que ainda não resolvi.
- Há de resolver. "
- Parece até que está querendo se ver livre de mim. "
- Como pode dizer uma coisa dessas, sabendo que um dos motivos de minha alegria é justamente porque você ficará perto de nós?
- Mas não estarei em Whiteladies.
- Acho que você gosta mais da casa do que de nós, Lucie. Deu-se o mesmo com... - Não, eu precisava esquecer aquele incidente insignificante. Mas ele se interessara pela casa de uma maneiraanormal. De certo modo eu podia compreendê-lo, pois vivera na Austrália a vida inteira, e Whiteladies devia ter sido a primeira mansão antiga que seus olhos viram. E Lucie era tão obcecada quanto ele.
- Bem - concluí - você não vai ficar muito longe.
- Ele é muito ambicioso. Duvido que se contente em ser um médico do interior a vida inteira. Planeja ir para Londres a fim de se especializar e afixar uma placa em Harley ou Wimpole Street.
- Eu não havia pensado nisso. De qualquer forma, você dará uma maravilhosa esposa de médico, Lucie, e já que ele é tão ambicioso, você é a esposa certa. Aborrece-me tremendamente o pensamento de que poderá partir, mas Londres não é tão longe assim. Podemos nos encontrar frequentemente.
- Para você tudo parece muito simples.
- E aposto como será. Pode ser até que ele resolva passar o resto da vida aqui mesmo. Em que pretende se especializar?
- Está interessado em casos iguais ao de sua mãe.
- Refere-se a pessoas que não estão realmente doentes e que imaginam que estão.
- Doenças da mente - completou Lucie.
- Ficarei triste com sua ida, mas ao mesmo tempo acho que deve ir.
- Minha querida Minta, deixe-me cuidar de meus próprios problemas. Nada resolvi ainda.
Surpreendi-me ao verificar que ainda existia muita coisa em Lucie que eu não entendia. Eu a imaginara calma e meticulosa, escolhendo sempre o caminho da sensatez. Mas talvez fosse mesmo uma grande romântica. Vá lá que não estivesse desesperadamente apaixonada por Dr. Hunter, mas devia compreender que lhe era uma oportunidade excepcional se casar com ele.
Era um dia nevoento de novembro, sem o menor sopro de vento e com tudo opressivamente sufocante. Inúmeras teias de aranha estendiam-se sobre os arbustos, rebrilhando de goticulas de umidade, e aquele silêncio geral parecia estranho. A bruma entrava pela casa, como uma presença impalpável.
Lucie cuidara da casa a manhãinteira e era admirável como sabia supervisionar tudo. Os criados não se incomodavam, com exceção talvez de Mrs. Clee que vagamente suspeitava estar sendo passada para trás em certas tarefas. Lucie costumava descer à cozinha e determinar qual seria a comida, depois de ter consultado mamãe através de Lizzie. Mamãe nunca dava importância ao assunto, mas Lucie insistia em que ela estivesse a par. Era uma dona de casa prodigiosa e bem que poderia estar cuidando de um lar próprio.
Passei a maior parte da manhã na sala das flores. Não restava muita coisa no jardim além dos crisântemos, astérias, dálias e margaridas. Arranjando-as, eu pensava na monotonia da vida aqui, fazendo as mesmas coisas quase sempre à mesma hora e todo santo dia. Aspirei o leve aroma outonal que essas flores têm e vi-me pelos anos a fora a arranjá-las - primulas, narcisos, flores vistosas da primavera e o visco tradicional de dezembro - sempre aqui nesta sala que fora outrora a cela de uma freira, com seu chão de pedra e uma pequena janela com grade de ferro no alto da parede. E eu ansiava por uma mudança de vida. Lembrei-me depois no ardor do meu anseio e pensei em como foi estranho que naquele dia a vida tivesse mudado tão bruscamente.
Olhando para a corola estrelada das margaridas vi o rosto dele, os olhos verdes, as feições arrogantes. Era absurdo que eu continuasse a me lembrar de um estranho a quem conhecera por acaso e que muito provavelmente jamais voltaria a vê-lo.
Uma das criadas entrou para apanhar as flores e colocá-las nos lugares que eu havia escolhido. Faltava uma hora para o almoço ser servido; normalmente eu teria feito um passeio pelo jardim, mas esta manhã estava muito úmida e melancólica. Preferi permanecer em meu quarto a pensar e pensar no incidente da moça da mantilha. Pensei também em mamãe que amara e fora amada nesta casa e que, em consequência, deveria ter sido bastante diferente da mulher que era hoje. Eu me perguntava se também haveria de envelhecer e de me tornar cavilosa, olhando ressentida para trás porque a vida me deixara passar em brancas nuvens.
Dr. Hunter apareceu em casa e esteve com mamãe por meia hora. Antes de sair pediu para falar comigo, dizendo que também gostaria de ter uma palavra com papai. Subimos então ao gabinete de papai, onde os dois tomaram uma taça de cherry com o médico nos falando do estado de mamãe.
Quero que compreendam que não existe motivo algum para que Lady Cardew não leve uma vida razoavelmente normal - disse Dr. Hunter. - Está angustiada, é verdade, mas por causa de sua má condição, confinada que está no quarto a alimentar um incómodo cardíaco inexistente. Sou de opinião de que temos contemporizado demais com os caprichos dela. Creio que está na hora de experimentarmos uma tática diferente.
Enquanto ele falava, eu o visualizava num consultório mobiliado com bom gosto em Harley Street, tratando de pacientes ricos ou voltando para casa ao encontro de Lucie, já bastante familiarizada com a profissão de seu marido para entreter uma palestra inteligente com médicos brilhantes. Agradava-me pensar nela como a professora que havia sido antes de minha descoberta. E eu só queria saber por que ela ainda não dera resposta ao Dr. Hunter.
Tentaremos uma pequena experiência - disse ele. - Por favor, nada de muita comiseração.
Dr. Hunter continuou expondo suas teorias:Iria iniciar uma nova terapia e mostrava-se muito animado com as experiências que pretendia fazer. Eu estava certa de que muito cedo o perderíamos para Harley Street - e, até certo ponto, Lucie também, se se casasse com ele. Se! Mas era claro que ela iria.
Apenas uma censura delicada - ele continuou. - Não sejam ásperos demais a principio.
Papai convidou-o a ficar para o almoço, mas ele estava muito ocupado conforme alegou. E acabando de tomar o cherry, saiu.
Mamãe desceu para o almoço numa de suas piores disposições de ânimo.
- É este tempo que me causa todas essas dores - resmungou. - A umidade penetra nos meus ossos. Vocês não podem imaginar a dor.
Ávido para pôr em prática as sugestões do médico, Papai respondeu:
- Não precisamos gastar nossa imaginação, minha querida, pois você já descreveu essa dor com riqueza de detalhes em inúmeras vezes.
Mamãe quase caiu para trás. O fato de meu pai, habitualmente tolerante e bonachão, tê-la criticado de maneira tão irreverente foi para ela um choque tremendo.
- Então eu sou uma chata, não sou? - ela perguntou.
- Minha querida, não interprete mal.
- Foi o que você insinuou. Oh, sei que estou doente e isso me torna enfadonha e inútil para vocês que têm a grande graça de ótima saúde. Como vocês são ingratos! Se soubessem como estou sofrendo! Quase chego a desejar que sejam acometidos com um centésimo da dor que sinto - só assim teriam alguma compreensão. Mas não, eu não desejaria isso a ninguém. Minha vida não tem sido outra coisa senão um longo leito de dor. Tenho sofrido desde que você nasceu, Minta.
- Sinto muito, mamãe, que tenha sido eu a responsável.
- Agora está zombando de mim. Nunca pensei que fosse capaz de fazer isso abertamente, embora saiba há muito tempo que tenho sido um fardo e um aborrecimento para você. Oh, se ao menos tivesse sido diferente. Se ao menos eu tivesse tido a felicidade...
Era um velho estribilho. Meu pai começara a se levantar da cadeira, o rosto avermelhado, os olhos habitualmente suaves agora enublados de desgosto. Eu sabia que deveriam ter havido vagas referências, através dos anos, ao que poderia ter sido se ela tivesse tido a felicidade de se casar com o homem de seus sonhos, e não com ele.
Minha solidariedade era total para com meu pai, e por isso retruquei:
- Ora, Mamãe, você tem tido uma vida felicíssima com o melhor marido do mundo.
Ordenou-me silêncio, olhando raivosamente em volta da sala e fitando um ponto além de meu pai, como se tivesse visto uma coisa da qual não nos dávamos conta. Sei que ela estava pensando naquele homem, e era quase como se ele estivesse presente na sala, ele que fora levado à força e embarcado como ladrão, como se ele estivesse atormentando-a com o que poderia ter sido se ela tivesse sido mais atrevida e insistido em se casar com ele.
O melhor marido do mundo? - ela gritou com escárnio. - Que tem feito para merecer esse título? Planta-se no gabinete a trabalhar... trabalhar, diz ele! A dormir a vida inteira! O livro, o famoso livro! É igual a ele. Nada vezes nada! E eu que poderia ter tido uma vida muito diferente.
Lucie interferiu.
- Lady Cardew, Dr. Hunter me recomendou para que a senhora não se exaltasse. Permite-me levá-la ao quarto?
O pensamento de julgar-se uma inválida tranquilizou-a. Voltou-se quase agradecida para Lucie que a retirou da sala.
Papai e eu ficamos olhando para ela. Tive pena dele que se mostrava completamente perplexo.
- Acho que o tratamento do Dr. Hunter não surtiu efeito - disse eu. - Não se preocupe, papai. Fizemos o possível.
Foi um dia intranquilo. Vários dos criados presenciaram o rompante de minha mãe. Meu pai parecia ter encolhido um pouco, algo nele transparecia vergonha. Todos nós suspeitávamos de que ele cochilava à mesa de trabalho e que grande parte da obra fora feita por Lucie. Mas isso nunca lhe fora dito de cara - e agora que o fora, o fato ganhava uma importância que não tivera antes.
Minha mãe passou o resto do dia no quarto, tendo declarado que não queria ver ninguém. Estive com Lizzie que me assegurou que ela dormiu grande parte da tarde, depois de se ter desgastado em lágrimas.
- Amanhã ela estará melhor, Miss Minta - confortou-me Lizzie. Conversei sobre o assunto com Lucie que estava muito aflita.
- Está provado que críticas não ajudam a mamãe - disse eu.
- Seu pai é por natureza muito delicado. Ele devia ter continuado como começou.
- É sensível demais para assumir um novo papel. Seria como mudar de caráter. Era natural que Lucie não admitisse que o diagnóstico de Dr. Hunter estava
errado. Ela repetiu as palavras de Lizzie.
- Amanhã ela estará melhor.
Antes de me recolher naquela noite fui ao quarto de minha mãe, porém hesitei antes de entrar. Enquanto permaneci parada à porta, escutei a voz dela: "Você é perverso! Oh, como eu desejaria voltar àqueles anos. Eu saberia o que fazer, porque você é perverso... perverso...".
Imaginei que o olhar meigo de meu pai estivesse perplexo, e resolvi não entrar no quarto. Dirigi-me para o meu e permaneci acordada por muito tempo, a pensar na tristeza da vida de meus pais e nos anos perdidos em que poderiam ter sido felizes.
Não se podia culpar a nenhum dos dois. Bem que eu podia ter entrado e ter dito isso, implorando-lhes que esquecessem o passado e começassem vida nova.
Como eu desejaria ter entrado naquela noite! Nunca mais voltei a ver minha mãe com vida.
Na manhã seguinte, quando Lizzie foi despertá-la, encontrou-a morta.
Lizzie contou mais tarde que teve uma premonição estranha. Estava à espera que a campainha tocasse pelo chá da manhã, e como não tocou, ela resolveu entrar.
Estava deitada ali - disse Lizzie - e havia nela algodiferente. E quando cheguei perto... Oh, meu Deus!
Lizzie mostrara-se histérica e incoerente, mas procurara Lucie e Lucie a mim. Acordei assustada com ambas ao lado de minha cama.
Minta, prepare-se para levar um choque - disse Lucie.
Pulei da cama e fitei-as.
Sua mãe - continuou Lucie. - Algo terrível...
- Está... morta?
Lucie balançou a cabeça afirmativamente. Nem parecia a mesma - os olhos esbugalhados, as pupilas dilatadas e os lábios tremendo. Vi que estava travando uma luta para se controlar. Lizzie começou a soluçar.
- Depois de tantos anos... Não pode ser verdade. É um engano. Está desmaiada, deve ser isso.
- Mandei chamar Dr. Hunter - disse Lucie.
- E meu pai?
- Nada lhe disse ainda. Acho que devíamos esperar pela chegada do médico. De qualquer forma, ele não pode fazer mais nada.
- Mas deveria saber.
- Entrei no quarto dela - murmurou Lizzie. - porque ela não havia tocado... - cobrindo o rosto com as mãos, recomeçou a soluçar.
- Irei vê-la - dei de garra de um vestido. Lucie sacudiu a cabeça.
- Não convém - disse.
- Não devo. Não acredito que esteja morta. Ainda ontem Dr. Hunter estava me dizendo...
Passando por Lucie dirigi-me à porta, e logo ela estava andando a meu lado em demanda do quarto de minha mãe.
- Não entre, Minta - Lucie murmurou. - Espere... espere até que o médico chegue.
Segurou-me a mão com firmeza, conduzindo-me delicadamente pelo corredor até o quarto.
Quando Dr. Hunter chegou meu pai já estava de pé. Lucie havia falado com ele, como falara comigo, confortando-nos e cuidando de tudo. Tanto meu pai como eu éramos-lhe gratos por isso.
Foi Lucie quem entrou com o médico no quarto de minha mãe.
- Leve seu pai para a biblioteca e fique lá até voltarmos - disse-me- - Tome conta de seu pai. Este é um golpe terrível para ele.
Pareceu transcorrer muito tempo antes que o médico e Lucie reaparecessem. Na verdade não passou de quinze minutos.
Dr. Hunter estava abalado e abandonara-o grande parte daquela airosa autoconfiança. Pudera! Ainda ontem ele havia dito que os achaques de minha mãe não passavam de coisa imaginária, e hoje ela estava morta.
- É verdade então? - perguntou meu pai em total desamparo.
- Morreu de uma síncope cardíaca durante a noite - explicou Dr. Hunter.
Quer dizer então, Doutor, que ela tinha um coração fraco?
Não - falou com um ar insolente. - Isso pode acontecer a qualquer um de nós a qualquer momento. Nada havia de organicamente defeituoso no coração dela. É claro que a vida de semi-invalidez que ela levava não contribuía muito para uma boa saúde. Foi um caso de repentina ineficiência do coração em funcionar.
- Coitada da mamãe! - exclamei.
Tive pena do Dr. Hunter. Parecia completamente desconcertado e ficou de olhos presos no rosto de meu pai, como a esperar compreensão. Compreensão por quê? Por ter errado no diagnóstico? Por suspeitar que sua cliente era uma cavilosa e por tratá-la dessa maneira, quando na verdade estava seriamente doente?
Os olhos de Lucie estavam fixos nele, mas ele evitou olhar para ela. Só uma ou duas vezes foi que ele se dignou me olhar, mas logo se voltava apressadamente para meu pai.
- É um choque muito grande - disse eu. - Ainda ontem ela foi dada como normal...
- Isso acontece de vez em quando - interveio o médico.
- É natural que Minta e seu pai estejam bastante nervosos - disse Lucie.
- Se me permitem, farei todos os arranjos necessários.
Meu pai lançou-lhe um olhar de gratidão.
- Isso seria muito conveniente - concordou o médico.
Lucie fez sinal para ele e ambos saíram juntos, deixando-me com meu pai na biblioteca. Quando meu pai levantou os olhos para mim não pude deixar de constatar que era choque e não sentimento o que eu via neles. Também não pude deixar de notar seu alívio.
Mais tarde fomos ver mamãe. Estava estendida na cama, os olhos fechados, os babados da camisola branca cobriam-lhe o queixo. Parecia mais tranquila na morte do que o fora em vida.
Algo estranho acontecera à casa. Já não era a mesma. Mamãe jazia no cemitério da igreja onde nossa família vinha sendo enterrada nos últimos quinhentos anos. O jazigo da família fora aberto numa cerimónia solene e já nos havíamos desobrigado de todo o serviço fúnebre. As persianas foram então abertas, os toldos foram levantados. Depois do funeral Lizzie adoecera por mais ou menos uma semana, mas já voltara para nosso meio, magra e abatida.
Lucie mudara também; havia nela uma certa sobranceria. Quanto a meu pai, estava tão diferente como se um fardo lhe tivesse sido removido dos ombros e, por mais que tentasse, não podia ocultar o alívio.
Mas talvez tenha sido Dr. Hunter a pessoa que mais mudou. Antes da morte de minha mãe ele era um rapaz sociável e, ambicioso ao extremo, tornara-se amigo e médico das famílias locais. Graças a um zelo excessivo, esforçava-se para que as pessoas esquecessem sua pouca idade, e era evidente que estava ansioso para galgar o ápice de sua profissão. A mudança nele foi sutil e, não obstante, muito acentuada -especialmente com relação a mim.
julguei entender. Minha mãe adoecera e as dores de que ela se queixava eram reais. Ele a tratara, entretanto, como uma mulher irascível e descontente - o que ela era realmente -, deixando que sua avaliação do temperamento dela anuviasse seu julgamento. Para mim era óbvio que ele fizera um diagnóstico erróneo e que isso abalara de tal modo seu orgulho que estava exercendo um efeito marcante sobre ele. Dúvidas foram lançadas sobre as teorias nas quais ele estava firmando sua carreira. Eu estava com pena dele.
Visitava-nos agora raramente. Nenhum de nós precisou de seus serviços até o dia em que mandei chamá-lo para ver Lizzie porque eu me estava tornando apreensiva com ela. Isso foi mais ou menos uma semana depois dos funerais, quando tive uma conversa com ele.
- Não tem andado de bom aspecto, Doutor - disse-lhe. Está querendo dizer "Médico, cura a ti mesmo?"
Creio que anda preocupado com a morte de minha mãe.
Arrependi-me imediatamente de ter abordado o assunto tão de chofre, pois suas faces foram acometidas por uma contração nervosa enquanto a cabeça se mexia nos arrancos como a de um boneco.
- Não, não - apressou-se em dizer. - Não é um caso tão incomum quanto você pensa. Pode acontecer a pessoas absolutamente sadias. Um coágulo de sangue no cérebro ou no coração, e a morte pode ser o resultado. Em certos casos não há aviso algum. E não se podia dizer que sua mãe fosse uma mulher saudável, embora não tivesse nada de organicamente anormal. Tenho lido sobre muitos desses casos e deparei-me com vários quando estava no hospital. Não, não. Não foi um caso raro.
Falava muito rápido e muito persuasivo. Se o que dizia era verdade, por que culpar a si mesmo? Foi irónico que justamente um dia antes de minha mãe morrer ele me tivesse dito que ela imaginara uma doença e que não devíamos nos importar com isso.
- Seja como for - continuei - você parece estar com um sentimento de culpa.
- Absolutamente. Aquilo foi uma coisa que não se podia prever.
- Tomara que eu esteja enganada, pois sabemos que dedicou o máximo desvelo à minha mãe.
Mostrou-se um pouco reconciliado, mas eu tinha certeza de que ele estava nos evitando, já que nunca mais apareceu em Whiteladies como simples visita.
Meu pai passou a trancar-se por longos períodos em seu gabinete. Disse-me Lucie que ele estava bem mais nervoso do que costumava ser, e o fato de pela primeira vez ter falado desdenhosamente com sua esposa enchia-o de remorso.
- Estou tentando fazê-lo trabalhar com seriedade no livro - adiantou-me Lucie. - Creio que é a melhor coisa para ele.
Lucie foi maravilhosa naquela ocasião. Perguntou-me se poderia ter Lizzie como sua criada pessoal. "Não que eu precise de uma", apressou-se em explicar, "nem que em minha posição tenha direito a uma. Mas acho que por algum tempo isso faria bem a Lizzie. Ela passou por um choque terrível."
Respondi-lhe que fizesse como achasse melhor, pois tinha certeza de que ela sabia o que era o melhor.
- Minta querida, você é que é a senhora de Whiteladies agora. Foi um pensamento que ainda não me havia ocorrido antes.
Franklyn esteve constantemente conosco desde o dia em que minha mãe morreu. Ajudava meu pai em tudo aquilo que Lucie não podia. Muitas vezes eu me perguntava o que teríamos feito naquela emergência sem Lucie ou sem Franklyn.
Ele vinha a Whiteladies todos os dias e eu tinha certeza de vê-lo em algum momento. Conversávamos sobre minha mãe e sobre como ela havia sido infeliz. Era uma tristeza que ela tivesse passado pela vida sem desfrutá-la, a não ser quanto a um pequeno episódio quando seu idolatrado professor de desenho surgiu em casa, deixando-a apaixonada. Eu até gostava de conversar esses assuntos com Franklyn, porque seus pontos de vista prosaicos e sua maneira escorreita de se expressar divertiam-me bastante.
Acho que è melhor ter tido uma experiência apaixonante na vida do que viver o tempo todo num nível igual e tranquilo... ainda que se passe o resto da vida a lamentar - disse eu.
- Isto me parece uma dedução bastante sem lógica - refutou Franklyn.
- Só você mesmo diria isso. Estou certa que sua vida há de transcorrer fácil e tranquila sempre e sempre, não sacudida por incidente algum, nem distúrbios nem arrebatamentos.
- Outra dedução sem lógica.
- Se você nunca comete erro, está afastado portanto o fator de agitação.
- Por que considera tão importante cometer erros?
- Quando se sabe que tudo vai funcionar bem...
- Mas ninguém sabe que tudo vai funcionar bem. Você está sendo muito lógica, Minta.
E ri pela primeira vez desde que minha mãe morrera. Procurei explicar-lhe a mudança que se operou na casa.
- É como se o espírito de mamãe não pudesse descansar.
- Isso é pura imaginação de sua parte.
- Garanto que não é. Todo mundo mudou. Ainda não percebeu? Claro que não. Você nunca percebe essas coisas.
- A seus olhos sou uma pessoa completamente desatenta.
- Só psicologicamente. Para tudo quanto seja assunto prático seu poder de observação é muito apurado.
- Quanta gentileza em dizer isso.
- Sarcasmo não fica bem em você, Franklyn. Nem lhe é natural. É muito delicado para isso. Mas a verdade é que está havendo uma mudança na família. Meu pai está aliviado...
- Minta!
- Agora está chocado. Mas a verdade não deveria chocar ninguém.
- Acho melhor que seja mais prudente no que diz.
- Só estou dizendo isso a você, Franklyn, e a ninguém mais no mundo eu seria capaz de dizer isso. E como podemos culpá-lo? Sei que não se deve falar mal dos mortos, e você nunca que iria. Mas mamãe foi brutal com ele, e nada mais natural que se sinta aliviado. Lizzie anda por aí atarantada, e no entanto ela e mamãe viviam discutindo. Lizzie estava sempre na iminência de ser despedida ou de largar a casa voluntariamente.
- Isso não é raro em ligações como a dela, e é muito natural que se sinta "atarantada", como diz você. Afinal, ela perdeu a patroa.
- Mas o pior de todos é o pobre do Dr. Hunter. Tenho certeza de que está com sentimento de culpa. E parece evitar de vir aqui em casa.
- Também é natural que não venha, pois a inválida já não está aqui.
- E Lucie também mudou.
- Lamento ouvir isso. Ao que parece, ela é o membro mais sensato da família.
- Está trancada, sobranceira e já não tão solícita. Desconfio que esteja preocupada com o Dr. Hunter. Espanta-me que não tenha anunciado o noivado quando aconteceu.
- Por quê?
- Ora, o Dr. Hunter anda deprimido e pensando que fez um diagnóstico errado.
- Quem disse?
- Eu acho que ele fez.
- Não devia dizer uma coisa dessas, nem mesmo a mim. É calúnia, em se tratando de um profissional.
- Espero que você não seja um tribunal de justiça, Franklyn.
- Pare de ser frívola, Minta. Pare com esta novela e com esta tentativa de forjar uma situação dramática.
- Estou dizendo essas coisas a você porque é um amigo íntimo. Além do mais, gosto de chocá-lo. E eu queria lhe dizer mais uma coisa. Ontem Lucie procurou-me para sugerir que dispensássemos os serviços de Mrs. Clee. Na verdade ela já não é necessária, disse. Lucie pode fazer tudo o que ela faz e, agora que mamãe está morta, está aliviada de uma porção de tarefas.
- Parece uma sugestão lógica e sensata. Já tentei dizer várias vezes que vocês estão vivendo acima dos recursos que têm. Mrs. Clee é o agregado mais caro da família. Sim, é uma ideia excelente.
- Você só está vendo o lado prático. Mas existe outro ângulo. Se Lucie vai fazer o trabalho de Mrs. Clee e cuidar de Whiteladies, que vai ser de seu casamento com Dr. Hunter?
- Não há nada,combinado.
- Ele já propôs e ela estava pensando. Foi pouco antes da morte de mamãe. Coitado do Dr. Hunter!
- Ainda não lhe ocorreu que a depressão dele deva-se ao fato de que sua proposta ainda não foi aceita?
- Continuo pensando que tem algo a ver com a morte de mamãe.
- Minta, já é hora de crescer. Tomara que você cresça. Seria desejável em todos os sentidos.
Calculei então que ele estivesse pensando em que, quando eu mostrasse maior maturidade, iria me pedir para casar com ele. E dentro de minha cabeça acendeu-se o quadro daquela cena no gramado, com Stirling recostado um tanto desgraciosamente na cadeira, a falar sobre a Austrália e sobre Whiteladies.
E pensei comigo mesma: não, ainda não hei de crescer. Minha imaturidade é uma espécie de defesa.
Poucos dias depois ocorreu pela manhã um incidente bastante desagradável. Eu estava na sala das flores, a cortar o pedúnculo de alguns crisântemos cor de bronze, quando Mrs. Clee irrompeu.
- Gostaria de lhe falar, Miss Minta.
Tinha o rosto avermelhado e os olhos pequeninos pareciam pedaços de grafíta. Não precisou me dizer que estava zangada.
- Pois não, Mrs. Clee. Vamos para a biblioteca.
- Não há necessidade disso. Falarei aqui mesmo e agora. Recebi ordens para ir-me embora e eu gostaria de saber por quê. Essas ordens vieram de uma certa procedência e ainda estou para saber se tenho de acatar ordens dessa direção.
- De Miss Maryan? A verdade, Mrs. Clee, é que nos últimos anos estamos ficando cada vez mais pobres e por isso temos de cortar certas despesas.
- E eu fui escolhida para vítima, não é?
- Vítima não, Mrs. Clee. É uma simples questão de economia.
- Olhe aqui, senhorita - disse ela, - eu nada tenho contra você. E sei que está inocente nisto tudo. Até um cego pode ver. Mas se há pessoas que devem sair desta casa - e sou a primeira a admitir que não seria nada mau que o fizessem
- alguns existem sem os quais você passaria melhor do que sem mim.
É bem triste ter de dispensar alguém, e só uma questão de finanças...
Colocaram essas palavras em sua boca, Miss Minta. Nesta casa estão acontecendo coisas engraçadas. Eu poderia lhe contar...
- Que coisas?
Mrs. Clee apertou os lábios com ar de mártir.
- Coisas que não me compete mencionar. Agora que sua mãe se foi, você é que é a senhora desta casa e não lhe fica bem ser passada para trás e deixar que outros se locupletem naquilo que de direito é seu.
- Não permitirei tal coisa, Mrs. Clee.
- Mas poderá ser forçada a isso. Não estou gostando do modo como as coisas estão acontecendo nesta casa. E não è porque eu esteja arrumando as malas e indo embora. Mas sinto muita pena de você, Miss Minta.
- É muita bondade sua. Sei que não mereço sua compaixão.
Foi esse evidentemente o caminho certo, pois a raiva acalmou-se-lhe a olhos vistos. Num instante ela se transformou de virago numa profetiza de destruição. Avançou um passo para mim e continuou a falar:
- Sua pobre mamãe foi-se daquela maneira. E aquela tal de Lizzie? Que me diz dela? Se alguém tem de ir embora, era ela. A maneira como falava com aquela pobre coitada. Gritaram e berraram na noite anterior. Eu escutei sua pobre mãe dizer que Lizzie tinha de ir embora. Pode-se dizer que foi sua última vontade. E agora é Lizzie quem fica enquanto eu recebo ordens de me ir. Eu, que nunca troquei palavra com a bondosa falecida. Como vê, Miss Minta, é um estado de coisas bastante engraçado, não acha?
- Nada de engraçado - respondi. - Lizzie gostava muito de minha mãe e minha mãe dela. As discussões nada significavam.
- A última significou. Mas Lizzie não tem muita importância. Não é nada. Existe mais gente.
- Que gente?
- Ora, Miss Minta, pensou alguma vez que arranjaria tão cedo uma outra mamãe?
- Não.
- Veja só! - Cruzou os braços sobre o busto exagerado. - Olhe bem o que estou lhe dizendo, Miss Minta. Não é que eu esteja cuidando de mim. Afinal, já trabalhei bastante. vou viver com minha prima que mora para os lados de Dover. Ela vive muito bem e só o reumatismo é que está aleijando-a. Precisa de alguém que cuide dela, que lhe faça companhia, e ainda vai me deixar a casinha e um pequeno pedaço de terra para que eu me mantenha. Portanto, não é comigo que estou me preocupando. Mas falo para mim mesma: coitada daquela moça inocente, com tanta coisa engraçada acontecendo em Whiteladies. É por isso que estou lhe avisando.
- Estou muito contente, Mrs. Clee, em saber de sua prima.
- Você è uma jovem muito bondosa, Miss Minta, e eu sempre disse isso. Mas continuo repetindo: há algo de estranho acontecendo e você precisa saber. Existe alguém que ambiciona tomar conta desta casa. Alguém que já instalou a armadilha para que pessoas inocentes caiam direitinho dentro dela. E eu é que me vou. Por quê? Porque enxergo um palmo à frente do nariz.
Suspirei fundo e, tomando o vaso, levei-o para fora da sala das flores. Olhei para trás e falei:
- Tenho certeza de que sua prima vai ficar muito satisfeita em tê-la, Mrs. Clee.
Ficou parada a balançar a cabeça com um jeito profético, enquanto eu entrava na biblioteca. Pousei o vaso logo que me vi em condições de fazê-lo, pois minhas mãos estavam tremendo.
Vi-me bastante nervosa, e também aliviada, quando Mrs. Clee, poucos dias depois, declarando que não permaneceria um minuto além do necessário onde não era desejada, recebeu o salário de um mês e foi-se embora.
A ausência dela não fez diferença alguma no perfeito funcionamento da casa. Lucie desdobrava-se, o que aliás sempre fizera. Minha mãe nunca se mostrara muito interessada nos negócios domésticos, e a principal ocupação de Mrs. Clee era manter os empregados em ordem e preservar uma certa dignidade nas dependências deles. Lucie fazia tudo isso e mais alguma coisa. As criadas alegraram-se em se ver livres da temível Mrs. Clee e prontamente aceitaram Lucie no lugar dela. Eu via Lucie cada vez menos, enquanto meu pai a via cada vez mais.
Eu vivia à espera que Lucie me confidenciasse alguma coisa sobre Dr. Hunter, mas não fazia. Pela manhã ela ficava uma hora no gabinete de meu pai, e novamente uma hora depois do chá.
- Estou incentivando-o a atacar o livro com seriedade - disse-me. - É o melhor que ele tem a fazer. Afasta o espírito da tragédia.
Lizzie levava-lhe o chá todas as manhãs, como fazia com mamãe, e Lucie mantinha-a ocupada a arrumar o quarto dela e o do papai, e a fazer toda sorte de costuras para a casa, no que Lizzie era ótima.
Assim passaram-se dois meses. O Natal veio e se foi, celebrado com muita tranquilidade. Nesse dia Franklyn e seus pais vieram jantar conosco e ficaram para a ceia. Entretemo-nos numa partida de uiste - Papai com Lady Wakefield, Franklyn comigo; e Lucie ficou sentada perto da lareira a conversar com SirEverard e cuidando de que, nos momentos adequados, os empregados nos servissem as iguarias e se desempenhassem a contento de suas funções. "
Lembrei-me do Natal anterior, quando havíamos jantado no salão enfeitado de guirlandas e quando o Dr. Hunter fora um dos membros mais alegres do pequeno grupo. Mamãe deixara-se ficar à cabeceira da mesa, conversando com o médico sobre seus incómodos. Lembro-me que ela usou um vestido cor de malva e que ficou muito elegante, apesar do vestido ter sido feito por ela mesma. Agora Lizzie era quem fazia as roupas segundo as instruções de Lucie - Lucie desenhando, Lizzie cosendo. Excelente combinação.
Depois que os convidados se retiraram e nos recolhemos todos para dormir, enfiei-me na camisola e fui ao quarto de Lucie.
- Você se incomoda? - perguntei. - Não consigo dormir. Ofereceu-me a cadeira com as almofadas cor de amora e sentou-se na cama.
- Estou pensando no último Natal - disse-lhe.
- Pobre Minta, está sentindo muita falta de sua mãe, não é?
Fiquei séria. Não queria ser hipócrita. Eu amava mamãe, mas de tempos em tempos ela tornava a vida bastante incómoda, e não me era possível esquecer aquela última cena na sala de jantar, nem do ar de angústia total que se estampara no rosto de meu pai.
Tratei logo de perguntar.
- Que há entre você e Dr. Hunter, Lucie? Você estava pensando em se casar com ele.
- Quem disse que eu estava? Está querendo que eu me vá embora?
- Como pode perguntar uma coisa dessas? Sem você estaríamos perdidos.
Mas penso que o pobre Dr. Hunter está precisando de maior conforto, e como você o ama...
- Está concluindo demais, Minta. Gosto do médico como gosto de todos aqui. E com a morte de sua mãe parece que me tornei um tanto necessária.
- Mas não deve fazer esse sacrifício.
- É feito de boa vontade, se é que é sacrifício.
- Sinto muita pena do médico. Creio que é muito infeliz e bem que você podia ajudá-lo. Está pensando que não fez o que devia... por mamãe.
- Como tem certeza disso?
- É óbvio. Ele pensava que ela estava fingindo e aconteceu que não estava. Talvez se tivesse acreditado que ela estava realmente doente, teria tratado o caso de outra maneira. E era disso que ela estava precisando.
- Você está acusando-o de incompetência!
- Não estou. Sei que é competente. Mas as pessoas se enganam.
- Os médicos não se podem dar a esse luxo. Pelo amor de Deus, não fale isso a ninguém.
- Não vou falar a ninguém, com exceção de você... e Franklyn, que não conta.
- A ninguém - ela repetiu com veemência. - Prometa-me.
Pensei com meus botões: será então que ela o ama? Prometi mais que depressa.
- Esqueça-se disso, Minta. Arranque essa ideia da cabeça. É... mórbida. Sua mãe morreu de uma sincope que pode acontecer a qualquer um. Já ouvi falar de pessoas, pessoas sadias, que de repente foram fulminadas por uma síncope. E sua mãe já tinha o organismo debilitado pela inatividade.
- Sei disso, Lucie. Sei perfeitamente.
- Sua mãe está morta e sepultada. Temos de continuar a partir desse ponto. Aquiesci com a cabeça.
- E não se esqueça de que estou aqui para ajudar e confortar - acrescentou de um modo gentil. - Não foi sempre assim, desde nossos tempos de colégio?
- Mas você não deve sacrificar-se, Lucie. Podemos cuidar de nós mesmos. E na casa do médico você nem estaria muito longe.
Lucie sacudiu a cabeça.
- Creio que jamais viverei na casa do médico. Estou convencida de que meu lugar é aqui, em Whiteladies.
- Repito, Lucie, você não deve se sacrificar.
- Os mártires são pessoas enfadonhas - disse com um sorriso. - E não tenho intenção alguma de ser um deles, í aqui que quero estar, Minta. É aqui que quero ficar. ?
Eu devia ter percebido o que estava acontecendo, mas foi um choque quando aconteceu.
Estávamos em maio - seis meses depois da morte de minha mãe. Um dia lindo, quase no verão. Os pássaros cantavam seu coral maravilhoso e os botões de flor rebentavam por toda parte. Os castanheiros estavam em florescência e o pomar era uma imensidão em branco e rosa, no ar aquela inconfundível sensação de que a vida é esplêndida e que a felicidade está bem ali na esquina. É o milagre da primavera inglesa.
Após o almoço eu havia saído a passeio até o sitio dos Wakefield, e voltara com o pensamento de que uma xícara de chá seria algo delicioso. Ainda faltava um quarto para as quatro horas e por isso fui sentar-me debaixo de um castanheiro.
E lá veio Lucie juntar-se a mim. Vi-a caminhar pelo gramado, muito diferente da professora que havia sido quando a conheci. Naquela época havia nela um certo ar de rebeldia. Agora, andava com um passo saltitante e o vestido novo que Lizzie fizera, segundo suas instruções, caía-lhe muito bem. Era o que os franceses chamam uma jolie laide. Observada traço por traço, era positivamente comum, mas havia no conjunto um extraordinário charme que quase tocava às raias da beleza.
- Preciso falar-lhe algo muito especial - disse-me.
- Sente-se aqui, Lucie.
Sentou-se. Olhei para o perfil dela - o nariz muito comprido, o queixo protuberante.
- Tenho algo de muito importante para lhe falar e não sei qual será sua reação.
- Sua aparência é de quem está certa de que vou gostar.
- Quem me dera!
- Qual a razão da expectativa? Diga-me logo. Estou impaciente para ouvir. Ela respirou fundo e falou:
- Minta, vou me casar com seu pai.
- Lucie!
- Pronto: Está chocada.
- Mas... Lucie!
- Parece assim tão absurdo? ?
- Bem, é algo de bastante inesperado.
- Nós nos gostamos há muito tempo.
- Mas ele è muitos anos mais velho que você, Lucie.
- Você está procurando desculpas para se opor.
- Não é isso. Que você tem a metade da idade dele è coisa certa.
- E daí? Sou bastante madura para minha idade, não concorda?
- Mas você e o médico...
- Sobre esse caso sua imaginação funcionou demais.
- Ele propôs casamento a você.
- E não aceitei.
- E agora você e papai...
- Aborrece-lhe tanto que eu seja sua madrasta?
- Claro que não. E como poderia eu não querer que fosse um membro da família? Afinal de contas, você já é. Apenas...
- Algum inconveniente?
- É que isso não me ocorrera. - Pensei então: era a isso que Mrs. Clee estava se referindo. Então era uma coisa óbvia para todo mundo, menos para mim.
Ela prosseguiu:
- Tornamo-nos muito íntimos nos últimos meses quando tratei de confortá-lo. Ele censurava um pouco a si mesmo... desnecessariamente, e tive de animá-lo a toda hora. Creio que seremos muito felizes, Minta. Mas sinto que preciso de sua aprovação. Sem ela eu não poderia ser feliz.
- A minha opinião não tem a menor importância.
- Para mim a máxima importância. Oh, Minta, diga que me receberá como madrasta.
Como resposta levantei-me e coloquei meus braços em torno dela.
- Querida Lucie, é uma coisa maravilhosa para papai e para mim. Eu só estava pensando em você.
Ela acariciou meus cabelos.
- Você é muito romântica. Decidiu que o médico estava reservado para mim e construiu um belo quadro em que eu o impelia para o sucesso. Não vai ser bem assim. Nem sempre as aparências românticas trazem felicidade. Agora sou feliz, Minta. Quero ficar aqui. Você e seu pai são os meus entes queridos. Esta é minha casa. Agora vá ter com seu pai. Diga-lhe que dei a notícia a você e de como está se sentindo feliz.
Lucie e eu fomos ao encontro de papai, eu lhe disse que era uma notícia maravilhosa, e ele estava mais feliz como jamais eu o havia visto antes.
- Teremos de esperar que passe um ano inteiro - disse Lucie. - Do contrário, surgirão comentários.
- Deixe que falem - atalhou meu pai.
Lucie no entanto achava melhor esperar, e já nessa altura ele estava dependendo do julgamento dela.
Ela estava com a razão, sem dúvida. E esperaram.
Foi num dia nevoento de novembro, muito parecido com o dia em que mamãe morreu, que Lucie se tornou Lady Cardew, minha madrasta.
Como a casa ficou diferente agora! Os criados sabiam que tinham de obedecer a Lucie. Ela nunca perdeu a calma e sempre se mostrava afável. Duvido que Whiteladies tenha tido jamais uma castelã mais respeitada.
Ela amava a casa e a casa parecia retribuir o amor. Muitas vezes vi-a parada a olhar um tanto incrédula para o gramado, como se realmente não acreditasse que era a senhora daquilo tudo. Sobre isso eu costumava caçoar com ela.
- Acho que você é a reencarnação de uma freira. Sabia que esta casa seria seu lar desde o momento em que pôs os olhos nela.
- Minta e seus disparates românticos - devolveu a caçoada.
Pouco progredia o livro de papai. Ela agora tinha muito em que se ocupar. E como ele já não recebia em rosto, a todo momento, a pecha de marido insatisfatório, achava que não havia necessidade de se justificar. Passou a se interessar pelos jardins e pela casa na qual Lucie logo descobrira reparos urgentes.
Foi pouco depois disso que a vi realmente abalada e fora de sua calma habitual. Disse-me do que se tratava porque não era fácil discutir tais assuntos com papai.
- As finanças de seu pai estão em estado precário. Os advogados dele não valem nada. Tem perdido ultimamente muito dinheiro na bolsa e tem sido tão mal orientado a ponto de pôr em risco a casa, hipotecando-a.
- Há algum tempo Franklyn deu-me a entender isso.
- Mas você não me falou nada.
- Não pensei que fosse coisa de seu interesse.
- Como não me interessar por Whiteladies!
- Bem, agora é claro que está interessada. Que pode acontecer, Lucie?
- Não sei bem, mas vou averiguar. Whiteladies não pode correr risco.
- Agora que você está no comando, creio que tudo será resolvido. Agradou-lhe a observação, mas ela continuou um pouco impaciente. Éramos descuidados e nem merecíamos Whiteladies, pondo-a assim em perigo. Ela iria sentar-se no escritório de papai e ver-se a braços com uma pilha de contas e documentos.
- Temos de cortar aqui - eu diria. - Podemos economizar ali. Precisamos garantir o presente e o futuro de Whiteladies.
Meu pai admirava-a enormemente e alimentava a crença infantil de que tudo iria correr bem, agora que Lucie era a senhora de Whiteladies. Eu também participava dessa opinião, pois havia em Lucie um certo dom de inspirar confiança. Frequentemente eu lhe dizia de meu contentamento em tê-la em definitivo como um membro de nossa família. E eu só queria que ela se casasse com o médico, frisei certa feita, para que pudesse ficar perto de nós. Isso deixou-a lisonjeada.
- Nesta casa, madrasta não é nenhum palavrão - comentou.
- Querida Lucie, para nós foi um dia de sorte aquele em que você veio para Whiteladies - disse-lhe eu, sabendo que meu pai já lhe dissera o mesmo. Nenhum de nós dois podia dizer isso abertamente, mas a verdade é que Whiteladies se tornou uma casa mais feliz e mais tranquila depois que minha mãe morreu.
E então Lucie voltou a nos surpreender. Fui eu a primeira pessoa com quem ela falou. Notei-a preocupada nas últimas semanas e, um dia, estando eu sentada no meu lugar predileto à beira do lago, ela aproximou-se.
- Tenho uma coisa para lhe contar - disse-me - e quero que seja a primeira a saber. Nem mesmo seu pai sabe ainda.
Fitei-a de frente, sem entender o ar de êxtase em seus olhos embaçados.
- Espero que se alegre com a notícia, mas estou meio incerta.
- Vamos, diga-me... rápido.
Ela riu-se de um modo algo embaraçado.
- vou ter um filho.
- Lucie! Quando?
- Ainda falta muito tempo. Daqui a sete meses, pelos meus cálculos.
- É... maravilhoso.
- Acha mesmo? ?
- E você? Não?
Crispou as mãos.
- É o que sempre desejei. Envolvi-lhe o pescoço com meus braços.
- Oh, Lucie, como me sinto feliz! Imagine só... um nenen nesta casa! Vai ser lindo. Eu gostaria de saber se será um menino ou uma menina. Que é que você prefere?
- Não sei. Um menino, creio eu. Muita gente gosta que o primeiro filho seja um menino.
- Então está prevendo ter uma prole?
- Eu não disse isso. Estou muito inquieta. Mas queria ter certeza absoluta antes de falar a seu pai.
- Vamos falar agora. Não, você mesma é que deve dizer. Não haveria de querer uma intrusa numa ocasião destas.
- Você è a enteada mais carinhosa que alguém já teve.
Deixou-me sentada ali a observar uma libélula adejar sobre o lago e pousar momentaneamente na estátua.
Isso há de compensar Lucie por tudo, - refleti. Pela horrenda casinha do interior, pelas asperezas de sua juventude. Que dia feliz para Lucie!
Meu pai ficou perplexo a principio, depois exultante. Tenho certeza de que jamais pensara na possibilidade de ser pai novamente. Mas parecia que Lucie era capaz de arranjar tudo. Na casa não se falava de outra coisa agora senão na vinda do futuro nenen. Lucie engordou consideravelmente e ganhou uma nova beleza à medida em que perdera a elepcia e seu corpo aumentava de formas. Adorava sentar-se a meu lado e conversar sobre o nenen. Planejou o enxoval que Lizzie haveria de costurar. Aqueles foram meses de calma e encantadora expectativa.
Tentamos animar Lucie, mas ela não iria permitir tal coisa. Seu filho iria ser forte e saudável, disse. E ele não iria ter uma inválida por mãe. Notei que ela se referia ao bebé por "ele", o que denotava que queria um menino, embora eu suspeitasse de que quando a criança nascesse pouco se lhe daria de que sexo fosse.
Agora Dr. Hunter comparecia frequentemente a Whiteladies. Ele assegurou-me que nada, nada mesmo, havia a temer. Lucie estava bem disposta e cheia de saúde, havendo de dar à luz uma criança robusta.
Foi Franklyn quem me fez ver a diferença que o nascimento de uma criança poderia trazer pessoalmente para mim.
- Se a criança for um menino - disse-me - será o herdeiro de seu pai, pois quando sua mãe se casou os bens dela passaram para a posse dele. Já lhe ocorreu pensar nisso?
- Nunca pensei nisso.
- Você não é nada prática! Whiteladies pertencerá ao filho de seu pai. Você não terá direito algum a ela, a menos que lhe seja legada por mera obrigação moral.
- Whiteladies será sempre o meu lar, Franklyn. Que importaria se ela pertencesse a meu irmão ou, vá lá, meio-irmão?
Franklyn respondeu que poderia fazer uma grande diferença para mim, querendo insinuar que eu era extremamente descuidada.
Ri-me dele, embora ele estivesse falando sério.
Que dias felizes foram aqueles. Fosse nas tardes de verão pelos gramados, fosse nas noites de inverno ao pé da lareira, esperávamos ansiosamente pelo nascimento do filho de Lucie. Meu pai até parecia rejuvenescido e orgulhava-se tanto de Lucie que mal suportava tê-la longe de seus olhos.
E em novembro - o mesmo mês em que minha mãe morrera, porém dois anos depois - a criança nasceu.
Era uma menina e recebeu o nome de Druscilla.
Creio que Lucie ficou um pouco desapontada por não ter dado à luz um filho, e meu pai também. Mas a sensação logo se dissipou ante a alegria de se verem pais de uma menininha linda.
Druscilla não tardou em se tornar a pessoa mais importante da casa. Todos rivalizávamos pelas preferências dela; todos nos encantávamos quando ela choramingava por um de nós.
Eu não me cansava de me maravilhar com a mudança que se operou em tudo depois que minha mãe morreu.
Era esse o estado de coisas quando Stirling e Nora voltaram para a Inglaterra.
NORA
Eu estava de partida para a Inglaterra e completamente a contragosto. Havia persistido em discutir com Stirling.
- Que bem haverá nisso? - mantive-me perguntando, ao que ele respondeu com teimosia, contraindo os lábios:
- Eu irei. Era a vontade dele.
- Quando ele estava vivo as coisas eram diferentes - insisti. - Nunca concordei com essa ideia, mas naquela ocasião ela tinha algum sentido.
De nada adiantava chamar Stirling à razão e, de certo modo, gostei da controvérsia porque afastou nosso pensamento do terrível e engolfante pesar que ambos estávamos experimentando. Enquanto discutia com Stirling eu não me lembrava de Lince estendido no chão pardacento, nem de levarem seu corpo para casa numa maca improvisada. E eu precisava deixar de pensar nisso tudo. com Stirling estava acontecendo a mesma coisa. Mas ambos sabíamos que existia uma coisa a mais. Não haveria conforto para nenhum de nósa não ser um com o outro.
Deveríamos ter-nos voltado para Adelaide, cujo bom-senso nos teria sido muito útil. Ela disse que não largaria a casa, que ia ficar e manter as coisas em ordem para quando tivéssemos de voltar.
Eu queria ficar e ao mesmo tempo queria ir. Queria sair imediatamente da casa que eu chamara de Pequena Whiteladies. Havia ali recordações demais, e eu até sentia um prazer mórbido e irresistível de relembrar todos os meus encontros com Lince, todas as partidas de xadrez que havíamos jogado. Mas talvez o que me fez decidir foi que Stirling estava partindo, e eu tinha de estar ao lado de Stirling. Minha amizade com Stirling era algo que eu não compreendia muito bem, vendo-a como se através de um vidro embaçado. Quantas e quantas vezes no passado eu pensara em me casar com Stirling! E no entanto, quando o inevitável aconteceu e Lince se casou comigo, Stirling não esboçou o menor protesto. Acreditei que ele sentia por mim o mesmo que eu sentia por ele. E se não fosse a forte personalidade de Lince, teríamo-nos casado e sido felizes. E agora via-me obrigada a estar ao lado de Stirling. Tanto ele como eu só conseguíamos atravessar aquelas semanas de desolação, que se seguiram à morte de Lince, porque sabíamos que era uma desolação compartilhada e que pertenciamos um ao outro.
- vou para a Inglaterra - disse com firmeza. - Ele queria que eu fosse. E assim eu soube que me cabia ir também.
Certa tarde, vendo-me a braços com os preparativos, Jessica entrou em meu quarto com seu andar leve.
- Então está indo embora. Eu sabia que iria. Manteve-se dizendo que ia ficar, mas eu tinha certeza que iria.
Não dei resposta e ela sentou-se na cama a me observar.
- Afinal ele se foi - continuou. - Morreu, como qualquer mortal. Quem diria que isso lhe pudesse acontecer? Mas será que ele se foi mesmo, Nora?
seria capaz de se livrar da morte como se livrou do cativeiro? Veio preso para cá, como tantos outros, num navio de condenados, e dentro de poucas semanas arrebenta os grilhões. Será que pode quebrar os grilhões da morte?
- Que está querendo dizer, Jessica?
- Será que ele vai voltar? Acha que ele voltará, Nora?
- Está morto.
- Você teve sorte. Perdeu-o antes de conhecê-lo.
- Conheci-o muito bem - retruquei. - Fui mais intima dele do que qualquer outra pessoa.
Ela contraiu os olhos.
- Você não chegou a conhecer o homem mau que ele era. Era perverso, Nora. Perverso! com o tempo você iria descobrir, como os outros descobriram. Todos os maus se vêem como maiores do que os outros. Vêem o resto de nós como fantoches que eles mexem ao bel-prazer. Você era um fantoche, Nora... um fantoche bonitinho, o predileto, por ora. Ele paparicava você, mas nem por isso você deixava de ser um fantoche.
- Olhe aqui, Jessica, tenho muita coisa a fazer. Não pense que pode alterar meus sentimentos para com ele. Eu o conheci como você nunca o conheceu.
- vou deixar você com seus sonhos mirabolantes. Agora ninguém pode provar que sejam falsos, não é? Mas ele há de voltar. Vai achar um jeito de enganar a morte como enganou os outros. Ele não se foi. Você pode sentir a presença dele agora. Está nos vigiando, Nora. E rindo-se de mim porque estou procurando fazê-la ver a verdade.
- Eu gostaria que você estivesse com a razão - repliquei com veemência. - Eu gostaria que ele voltasse.
- Não diga isso! - exclamou com rispidez por cima dos ombros. - Se desejar com muito ardor é bem possível que ele volte.
- Então vou desejar de todo o coração.
- Ele não voltaria como você o conheceu. Já não é feito de carne e sangue. Mas mesmo assim há de voltar.
Afastei-me dela que, sacudindo a cabeça com tristeza, ausentou-se. Enterrei o rosto nas roupas que havia estendido na cama e me deixei mergulhar em recordações: Lince, o senhor que tinha a sua própria lei, um homem diferente dos demais. E erguendo o rosto, falei: "Lince, você está aqui? Volte. Preciso falar com você. Eu quero lhe dizer que detesto seus planos de vingança, como sempre detestei. Volte, Lince".
Mas não se mostrou sinal algum. No quarto, só quietude e silêncio.
Adelaide viajou conosco até Melbourne e pernoitamos no hotel de Lince. No dia seguinte ela foi a bordo se despedir de nós. Tanto Stirling como eu estávamos agradecidos às rigorosas determinações de Adelaide que nos beijou afetuosamente, repetindo que manteria a casa em perfeita ordem até que voltássemos. Tão calma, tão prosaica, eu só queria saber se se parecia com a mãe, pois de Lince não possuía traço algum. Enquanto nosso navio se afastava, ela permaneceu no cais a nos acenar. Não houve lágrimas. Foi como se ela estivesse nos vendo partir para uma viagem a Sydney.
Lembrei-me de minha partida da Inglaterra no Carron Star. Que diferente eu estava daquela mocinha! De então para cá eu conhecera Lince. E a jovem inexperiente transformara-se numa viúva rica - uma mulher estabilizada e vivida.
Stirling estava a meu lado, como fizera naquela outra ocasião, e senti-me confortada.
Olhando-o de frente, sorri-lhe e vi que ele sentia o mesmo.
Primeiro fomos a Falcon Inn. Como parecia estranho sentar naquela mesma saleta, onde eu me encontrara com Stirling pela primeira vez, tomar o chá que nos fora trazido e passar-lhe o prato com biscoitos. Ele também estava atento a isso. Notei pela maneira como me sorriu.
- Parece que isso foi há anos - disse-me, e na verdade foi. Tanta coisa acontecera. Nós próprios estávamos mudados.
Havíamos conversado bastante durante a viagem. Ele ia comprar Whiteladies. porque, segundo disse, os donos estavam querendo vender. De fato, eles não tinham alternativa. Ele iria fazer uma boa proposta - um preço que possivelmente eles não pudessem conseguir em nenhum outro lugar. Que importava? Ele era o magnata do ouro.
- Você não pode ter tanta certeza de que hão de vender - insisti.
- Terão de vender, Nora - foi a resposta. - Estão falidos.
Eu sabia quem contribuíra para fazê-los assim, e envergonhava-me. O triunvirato, como ele nos chamava quando descobri a mina. Quisera não fazer parte disso.
- Há coisas que eles podem fazer - chamei-lhe a atenção. - Admitir hóspedes pagantes, por exemplo. ?
- Não saberiam como! - Stirling soltou uma risada e nesse momento se pareceu espantosamente com Lince.
Meus sentimentos eram um torvelinho. Talvez houvesse algo de verdade no que dissera Jessica. Lince ainda estava conosco. E eu não queria que aquelas pessoas vendessem a casa. Eu estava do lado delas. ? ".
Os olhos de Stirling pareciam vidro verde cintilando por entre suas rugas causadas pelo sol. Era tão parecido com Lince que me senti de moral erguida e quase feliz. Por mais que eu me opusesse, ele estava destinado a adquirir Whiteladies. Seria como Lince desejava. Os filhos da família Herrick haveriam de brincar naqueles gramados e, no devido tempo, seriam os envaidecidos proprietários. E esses filhos seriam os meus e de Stirling. Eu quase podia ouvir a voz de Lince: "Essa é minha menina Nora". Pensei no gramado sobre o qual eu me sentara uma vez um tanto encabulada, e na casa com seus torreões acizentados - antigos e imponentes e compreendi então a ânsia de possuí-la.
- A primeira coisa a fazer é darmos a conhecer que estamos à procura de uma casa - disse-me Stirling. - Simpatizamos com a localidade e vamos nos instalar aqui por algum tempo. Estamos particularmente interessados em coisas antigas e temos grande admiração por casas do tipo de Whiteladies. Aliás, já toquei nesse ponto com o estalajadeiro.
- Você não perde tempo - comentei.
- E esperava que eu perdesse? Já mantive uma longa conversa com o amigo. Lembrou-se inclusive de quando nos hospedamos aqui, pelo menos assim falou. Diz que Lady Cardew faleceu e que Sir Hilary casou-com a dama de companhia ou coisa que o valha.
- Se não me engano, o nome dela era Lucie. Confirmou com um gesto de cabeça, sorrindo.
- Tive a impressão de que ela era bastante humilde - continuei. - Nada indicava que fosse da família. com certeza as coisas mudaram.
- Está muito interessada neles, não está, Nora?
- E por acaso você não está?
- Considerando-se que atravessamos o mundo para comprar a casa deles, é claro que estou.
- Você parece muito seguro. Tem alguma ideia do preço que irão pedir?
Fitou-me em perplexidade. Que importava? Ele era o magnata do ouro. Só que às vezes o preço não é pedido em ouro.
Naquele mesmo dia visitamos um corretor de imóveis e soubemos que poderiamos encontrar um refúgio temporário que parecia um lugar ideal enquanto estivéssemos estudando a situação. Mas por um excelente golpe de sorte os Wakefield estavam alugando a Mercers House - uma casa linda e ideal para nosso objetivo enquanto estivéssemos dando busca. Só que não havia nenhuma casa nas vizinhanças, ele nos avisou, que pudesse ser comparada com Whiteladies, a não ser talvez o próprio Wakefield Park - mas mesmo este não era uma Whiteladies. Dissemos-lhe que estávamos muito interessados em alugar a Mercers House e combinamos vê-la no dia seguinte.
O corretor levou-nos em seu cabriolé ao encontro de Mr. Franklyn Wakefield que já nos esperava. Lembrei-me dele imediatamente e um relance para Stirling revelou que também ele estava lembrado.
Ele fez uma vénia, primeiro para mim e depois para Stirling. As maneiras pareciam-lhe muito formais, mas o sorriso era simpático.
- Espero que gostem da Mercers House -disse-nos - embora possam achá-la um pouco antiquada. Dizem que isso é um inconveniente.
- Para nós não será - assegurei-lhe, divertindo-me secretamente porque a descrição do corretor fora deslumbrante, enquanto o proprietário parecia fazer questão de denegri-la. - Na verdade, estamos encantados... com o exterior, não é, Stirling?
Muito típico de sua parte, Stirling respondeu que na verdade era com o interior da casa que deveríamos nos preocupar, se fôssemos viver nela.
- Assim sendo - falou Mr. Wakefield - estou certo de que gostarão de fazer uma inspeção rigorosa.
- É o que faremos - disse Stirling de semblante carrancudo, e eu me lembrei de que ele tomara antipatia por Franklyn Wakefield desde o primeiro momento em que o conheceu.
Apressei-me em dizer:
- É do seu conhecimento que só ficaríamos com a casa temporariamente, não é?
- Sou conhecedor do fato - Mr. Wakefield sorriu. - Mas entendo que hão de desejar o máximo de conforto, por mais curto que seja o período.
Lancei um olhar para a elegante arquitetura da casa - Rainha Ana, calculei. Sobre as paredes agarravam-se festões de trepadeira da Virgínia, e eu calculava a visão gloriosa que seria no outono. Havia dois gramados defronte da casa - um de cada lado da vereda de entrada - aparados e bem cuidados. Senti a necessidade de ser o mais gentil possível com Mr. Wakefield, para compensar a rudeza de Stirling.
- Se o interior tiver a metade da beleza que tem o exterior estarei encantada. - Como ele se mostrou lisonjeado, continuei. - Estou certa em pensar que seja de estilo Rainha Ana ou georgiano primitivo?
- Foi construída em 1717 por um de meus ancestrais e tem pertencido à família desde então. Tem sido usada como uma espécie de usofruto para os membros da família. No momento não há nenhum que esteja podendo ocupá-la. Eis por que julgamos aconselhável procurar um locatário.
- As casas precisam ser habitadas - interferi. - São um pouco tristes quando vazias.
Stirling explodiu numa gargalhada.
- Ora, Nora! Está dando a tijolos e argamassa um sentimento que eles não possuem.
- Acho que Mrs...
- Herrick - completei.
- Acho que Mrs. Herrick fez uma boa observação - disse Mr. Wakefield. Muito cedo as casas se tornam impróprias para a habitação humana se permanecem por muito tempo desocupadas.
- Bem, è melhor darmos uma olhada - disse Stirling.
A casa era mobiliada com elegância. Exultei de alegria ao ver o forro lavrado do salão.
- Aquele brasão no teto - explicou Mr. Wakefield - é o brasão do comércio de tecidos. É visto em muitas outras salas.
- É claro. Por isso è que ela se chama a Mercers House, não é? Entramos na sala de visitas com suas janelas francesas dando para o gramado.
- Precisaremos de pelo menos dois jardineiros - disse Stirling como se estivesse obstinado em encontrar defeitos na casa. - Seria fácil consegui-los?
- Quanto a isso não há problema - garantiu-lhe Mr. Wakefield. - Os jardins são cuidados por nossos próprios jardineiros do Wakefield Park. O custo está incluído
nos detalhes que o corretor lhes terá dado. "
- Não nos preocupemos com o preço - enfatizou Stirling enquanto eu me sentia ruborizar ante o que parecia ser uma ostentação.
- Nem nós tampouco, devo acrescentar - prosseguiu Mr. Wakefield sorrindo para mim diretamente. - O importante é encontrar o inquilino certo. Creio, Mrs. Herrick, que a senhora e seu marido hão de querer correr a casa a sós.
Fui rápida em atalhar.
- Não somos marido e mulher. Sou viúva e madrasta de Mr. Herrick.
Se ele se surpreendeu, não demonstrou. As maneiras de Mr. Wakefield eram impecáveis. Fora educado certamente sob a crença de que revelar os sentimentos era um gravíssimo erro social. Adicionava tato, naturalmente, a seus muitos requintes sociais, e era verdade que eu queria ficar a sós com Stirling para discutirmos sobre a casa.
- Se nos permite aproveitar a oportunidade...
- Mas sem dúvida! E se quiserem chegar a Wakefield Park quando acabarem... isto é, se estiverem interessados... será um prazer vê-los lá. Poderei mandar uma carruagem ou, se não se incomodam de caminhar um pouco, é bem ali depois do parque... coisa de meia milha.
Eu disse que iríamos a pé, ao que ele nos deixou.
Mal a porta foi fechada às costas dele, Stirling jogou-se num sofá e começou a rir.
- Se não se incomoda de inspecionar este domicilio, Madame, e depois fazer uma pequena peregrinação pelo parque...
- Cale-se, Stirling, ele não é tão afetado assim.
- Nosso senhorio! Deus do céu!
- Não é com o senhorio que temos de nos preocupar, e sim com a casa.
- Suponho que teremos de vê-lo algumas vezes. Há de nos visitar, ou senão a mulher. Já imaginou um homem desses com uma mulher? Eu só queria saber como é o tipo. Haverá de se apear da carruagem e deixará três cartões. É esse o número certo? E seremos convidados a morrer de tédio.
- Como sabe que nos entediaremos? Como sabe que ele tem mulher?
- É claro que nos entediaremos como é claro que ele tem mulher. A vida de Mr. Wakefield obedece a um padrão, e pode ficar certa que esse padrão inclui uma esposa.
- Eu gostaria de saber como é esse Wakefield Park.
Uma antiquíssima mansão de ancestrais.
- Como Whiteladies.
Não há lugar no mundo como Whiteladies.
- Afinal, vamos mesmo alugar esta casa?
- Fiquemos na estalagem. Se formos inquilinos dele estaremos ameaçados ?de nos envolver com obrigações sociais.
- Coisa que você não terá a menor hesitação em ignorar, tenho certeza.
- Ao menos nisso você tem razão, Nora.
- Ao menos nisso? Que está insinuando? vou olhar esta casa todinha e posso lhe dizer uma coisa desde já: estou gostando. Estou bastante curiosa em saber quem era esse negociante de tecidos e que ligações poderia ter um mero comerciante com o elegante Mr. Wakefield.
Depois de inspecionarmos a sala de jantar descemos à enorme cozinha com piso de lajes. Gostei da enorme copa, da adega, da despensa e da lavanderia. Era uma casa fascinante.
- É grande demais - disse Stirling.
- Grande demais para um milionário? - perguntei ironicamente. - Você praticamente declarou-lhe que era.
- Eu bem que percebi que você estava do lado dele.
- Quanta asneira! Como se fosse uma questão de tomar partido. Subamos a escadaria.
Eram três andares com uns doze cómodos. Os quartos eram grandes e arejados e adorei as janelas compridas que chegavam até ao chão.
- Vamos alugá-la, Stirling -falei e ele não me contradisse. Estava realmente tão fascinado pela casa quanto eu, e sermos inquilinos dos Wakefield era quase ter certeza de que iríamos conhecer os donos de Whiteladies. Eu não conhecia em detalhe os planos de Stirling, nem a pressa com,que ele esperava adquirir a casa. Supunha que se tratasse de um negócio demorado, e enquanto esperássemos seria muito mais conveniente fazer da Mercers House nosso lar temporário do que uma estalagem.
- E então? - perguntou-me ao final da vistoria.
- Vamos dizer a Mr. Wakefield que ficamos com a casa.
Caminhamos pelo parque até a casa que era conhecida como Wakefield Park. Era uma casa enorme - em estilo vitoriano primitivo, calculei, com pesada arquitetura ornamental. Dava a impressão de forte e sólida. No gramado fronteiriço ficava um lago no qual uma fonte brincava. Degraus de pedra branca levavam a um terraço onde havia cadeiras. As flores vicejavam bem arranjadas, quase com afetação.
- É o tipo da casa que fica bem a ele - comentei.
- Esteja certa de que tudo está no devido lugar - acrescentou Stirling. Mas logo arremendou:. - É de conveniência que cada coisa e todos os pertences desta casa estejam alojados no lugar que lhes é destinado.
- Creio que não gosta dele.
- E você?
- Gosto da Mercers House. É bastante boa.
Ao longo de uma das paredes da casa havia um vinhedo em estufa e pude ver que ele era dirigido junto ao vidro para captar o sol. Também viam-se ali vasos de flores exóticas.
- Você há de admitir-disse eu-que esta casa tem qualquer coisa de imponente.
Subimos os degraus do terraço até um pórtico de cuja parede pendia uma sineta. Ao tocarmos nela produziu-se um retinido abafado e quase imediatamente surgiu um criado.
- Os senhores devem ser Mr. e Mrs. Herrick - disse ele. - Mr. Wakefield encontra-se na biblioteca em companhia de Sir Everard e a Lady esposa. Fui incumbido de levá-los até lá.
Lancei um olhar para Stirling como se quisesse dizer: "Está vendo como tudo aqui é bem arrumado?" "E que outra coisa você esperava de Mr. Wakefield?" ele pareceu me responder com outro olhar. ? "
O salão era enorme e um tanto opressivo. Duas cabeças de veado adornavam a parede em ambos os lados da de um tigre. E havia vários retratos que não tivemos tempo em admirar detidamente. Uma escadaria com corrimão caprichosamente esculpido encurvava-se para cima. í lá estávamos nós a galgá-la nos rastros do mordomo.
- Mr. e Mrs. Herrick! - ele anunciou depois de ter batido na porta e abri-la. Lá estava Mr. Wakefield em companhia de um rapaz jovem e de um casal idoso.
- Foi ótimo terem vindo - disse Wakefield. - Permitam-me apresentar-lhes meus pais - Sir Everard e Lady Wakefield -,e Dr. Hunter.
Lady Wakefield era uma frágil e velha senhora que me dirigiu um sorriso simpàtico. E então voltei-me para Sir Everard.
- Perdoe-me por não me levantar - disse-me, e notei que estava numa cadeira de rodas com uma manta escocesa nos joelhos.
O médico apertou-nos as mãos.
- Dr. Hunter acaba de nos fazer uma de suas visitas - disse Lady Wakefield. - Se vão morar aqui e tiverem necessidade de um bom médico - e espero que não precisem - encontrarão nele uma pessoa excelente. Franklyn, toque a camppainha pedindo chá fresco.
- Já providenciei para que trouxessem no caso de Mr. e Mrs. Herrick chegarem.
- Muito previdente - disse Lady Wakefield com um olhar de adoração para o filho que, por sua vez, nos falou com suas maneiras dignas:
- Rogo que se sentem.
- Viemos dizer-lhes que estamos encantados com a Mercers House - falei eu - e que queremos alugá-la.
- Esplêndido - exclamou Mr. Wakefield.
- Está na hora dela ser habitada - acrescentou Sir Everard. - A uma casa não faz o menor bem permanecer vazia.
- É uma casa linda - interferiu o médico.
Bateram na porta e um carrinho foi empurrado sala adentro, acompanhado por um criado de libré e uma copeira. Em Wakefield Park a vida era positivamente vivida com muita elegância.
- Pelo que me consta, Mr. e Mrs. Herrick estão à procura de uma casa nas vizinhanças -disse Franklin. - Eis por que vão ficar temporariamente na Mercers House.
- Não será fácil encontrar - preveniu o médico. - Pelo menos se estão querendo uma casa de categoria.
- É o que queremos - repliquei.
- Vimos uma deslumbrante casa antiga - começou Stirling.
- Whiteladies! -sorriu Lady Wakefield. - Uma casa extraordinária. Foi construída no lugar de um antigo convento. De fato, ainda resta alguma coisa do antigo convento.
- Os Cardew são grandes amigos nossos - adiantou Sir Everard. - Se os senhores vierem morar aqui hão de conhecê-los.
- Será muito interessante - Stirling lançou-me um olhar que mais parecia uma careta, ao que logo tratei de falar:
- Estamos bastante curiosos com a Mercers House e gostaríamos de saber porque tomou esse nome.
- Foi meu tataravôquem a construiu - explicou Mr. Wakefield. - Era comerciante em Londres onde fez fortuna suficiente para retirar-se para o interior e construir a própria casa. E assim fez. Mas nunca se esqueceu de sua atividade comercial e por isso denominou a casa de Mercers House.
- A família prosperou - Sir Everard retomou a história, - e meu pai construiu esta casa que se adaptava melhor às suas necessidades. A Mercers House passou então a ser ocupada por tias e primos, ou quaisquer outros membros da família que dela precisassem... até dois anos atrás. Uma de minhas irmãs ocupou-a por último, mas a casa tem permanecido vazia desde que ela morreu. Foi ideia de meu filho que a alugássemos, e os senhores serão os primeiros fora da família a viver nela.
- É um aspecto muito interessante - comentei. - Tenho certeza de que vamos gostar muito.
Stirling então dirigiu-se a mim.
- Se não me engano, foi essa Whiteladies que visitamos rapidamente quando aqui estivemos pela última vez. Estamos recém-chegados da Austrália - explicou para o restante do grupo.
- Tive um irmão que foi para lá - Sir Everard começou a dizer, e logo percebi que era um velhinho muito loquaz, pois sua mulher, sorrindo-lhe com indulgência, rapidamente tratou de interrompê-lo:
- Então os senhores estiveram em Whiteladies... por rápidos momentos? Contei o incidente com a mantilha e Mr. Wakefield mostrou-se maravilhado.
- Recordo-me da ocasião - disse.
- Deve ter uma memória excelente - disse-lhe eu. - Havia uma senhora numa cadeira... .
- Lady Cardew. Faleceu. Agora existe outra Lady Cardew.
- É uma mocinha muito bonita.
- Deve ser Minta - disse Lady Wakefield. - É uma jovem adorável! -Agora o sorriso indulgente voltava-se para o filho. Oh, sim, pensei, vai haver uma reunião entre Minta e Mr. Wakefield. - Agora ela tem uma meia-irmãzinha... Druscilla... filha da segunda Lady Cardew.
- E Minta? Está casada?
E novamente aquele olhar malicioso para Mr. Wakefield.
- Ainda não.
O médico, que falara muito pouco, tirou o relógio do bolso e consultou-o.
- Creio que devo ir-me -disse.
- Há muita gente necessitando de seus serviços - comentou Lady Wakefield.
- Suponho que os senhores vão voltar para a Falcon Inn -disse-nos o médico. - Posso lhes oferecer transporte?
- É uma ideia excelente - atalhou Mr. Wakefield. - Mas se não está indo nessa direção, Doutor, poderei providenciar...
O médico afirmou que de fato estava indo naquela direção, e assim agradecemos aos Wakefield, assegurando-lhes que estaríamos prontos para nos mudar para a Mercers House na próxima semana quando todos os arranjos necessários estivessem concluídos.
Isso seria magnifico, disse Mr. Wakefield, e logo fomos levados em frente no cabriolé do médico.
- É uma gente encantadora - disse o médico dos Wakefield.
- Espero que nossos vizinhos naquela Whiteladies sejam também encantadores - murmurou Stirling.
Notei então que os lábios do médico se contraíram, o que me deixou bastante intrigada. Parecendo perceber que eu estava a analisá-lo, logo ele se explicou:
- Garanto que os senhores estarão aptos a fazer um juízo próprio com o correr do tempo.
Deixou-nos na estalagem e, quando ele já se havia ido, falei para Stirling:
- Foi um pouquinho esquisito para com as pessoas de Whiteladies. Notou a fisionomia dele quando toquei no assunto?
Stirling porém não havia notado coisa alguma.
Desde a morte de Lince que eu não me sentia tão bem. A vida me interessava novamente. Eu desaprovava o esquema estúpido de arrebatar Whiteladies de seus proprietários - e de fato quanto mais eu pensava nisso, mais estúpido achava
- mas ao mesmo tempo deixava-me fascinar por aquelas pessoas. Era quase como se Lince tivesse voltado, como dissera Jessica, e estivesse me empurrando a agir contra minha vontade.
Estava ansiosa para morar na Mercers House. Gostei da família Wakefield. Através do estalajadeiro, que era dado a mexericos, eu soube que Sir Everard e Lady Wakefield já estavam desiludidos de que teriam filhos quando, na meia idade, lhes nasceu um menino. Caducavam com ele e, justiça seja feita a Mr. Franklyn, foi um filho tão bom como jamais existiu outro. Não se passariam muitos meses antes que se soubesse como coisa certa uma união entre Wakefield e Whiteladies.
- com Miss Minta - completei.
- Isso mesmo. Moça muito simpática e de alto conceito nas redondezas.
- Então Mr. Franklyn será feliz.
- Eles formarão um par feliz.
- E Whiteladies? Suponho que será um dia de Miss Minta. Mas então ela já estará em Wakefield Park.
- Não acredite nisso. Ela ficará em Whiteladies. E Whiteladies irá para as mãos dela, a primogénita. E quem haveria de dizer que apareceria outra? Sir Hilary com aquela idade! Mas com uma esposa nova, a senhora sabe como é que é.
Aquiesci de modo circunspecto. Ele era uma ótima fonte de informações e certamente sua conversa me iria fazer falta quando mudássemos para a Mercers House.
A casa fora-nos passada com dois criados - uma copeira e uma governanta.
- Não podemos dizer que não tenham pensado em nosso conforto -comentei com Stirling que relutantemente concordou. Ele não podia pensar em outra coisa senão Whiteladies, estava louco de impaciência para entrar em contato com a família.
- Mas como? - inquiri. - Pelo amor de Deus, tenha tato. Você não pode chegar lá sem mais nem menos e dizer, "gosto da casa de vocês e insisto em que me vendam". É preciso tatear primeiro.
- Pode deixar que sei como fazer. Apenas acho que tudo leva muito tempo.
Dois dias antes de nos mudarmos para a Mercers House, a mulher do estalajadeiro foi a meu quarto para dizer que "uma pessoa" estava lá embaixo querendo falar comigo. Fora "mandada" entrar na sala de visitas. Desci e me deparei com uma mulher de meia-idade à minha espera.
- A senhora deve ser Mrs. Herrick - perguntou-me. Eu disse que era.
Meu nome é Clee, Mrs. Amy Clee. Fui governanta em Whiteladies até o dia em que a Madame resolveu que não precisava mais de meus serviços. Nada podia ter dito de mais propenso a despertar meu interesse.
- Madame?
- A nova Lady Cardew - falou torcendo o nariz.
- Oh, e por que veio me procurar?
- Ouvi dizer que a senhora ia alugar a Mercers House e calculei que precisasse de uma governanta. Sei que vai precisar de uma, porque já-tive experiência com Ellen e Mabel. Ambas trabalharam algum tempo em Whiteladies e só foram para Wakefield Park depois que eles começaram a dispensar os empregados.
- Compreendo.
- Elas só trabalham quando são vigiadas. Conheço bem o tipo e iguais a elas existem muitas. Olhe, Madame, se não quiser passar o seu tempo a vigiar criadas preguiçosas...
- Esteve muito tempo em Whiteladies?
- Quinze anos de bons serviços prestados.
Agora eu a reconheci. Foi a mulher a quem Lucie me levou para me aplicar um curativo na mão.
- Estou certa de que os prestou.
- Quinze anos e depois mandada embora. E note bem, para mim tanto fez. Eu tinha uma prima segunda que morava para os lados de Dover. Faz seis meses que ela morreu, deixando-me a casinha e alguma coisa a mais. Não é por necessidade que estou aqui, e sim porque sou uma mulher que gosta da atividade. Mandaram-me embora, é certo - mas depois de quinze anos. Para mim tudo correu bem, mas podia não ter corrido.
Havia qualquer coisa que despertou minha curiosidade naquele jeito de apertar os lábios, de empinar a cabeça. Resolvi então que precisaríamos de uma governanta na Mercers House.
Adorei instalar-me na casa. Senti que poderia ser placidamente feliz ali, e era isso o que eu queria. Estava saturada de aventuras. Vira um homem ser morto, experimentara emoções estranhas e não muito compreensíveis, e havia sido a esposa de um homem que me dominara e igual a quem eu jamais conhecera outro. Era o bastante. Nunca mais eu haveria de provar aquelas alegrias e aqueles temores violentos, e talvez nem quisesse. Lince não podia voltar, e eu me perguntava se algum dia eu conhecera paz verdadeira em companhia dele. Aqui, nesta elegante casa de campo, construída há quase duzentos anos por um rico negociante de Londres, talvez me fosse possível encontrar uma nova vida. Ele viera para cá em busca de paz - era uma sensação que me dominava. A Mercers House seria meu refúgio como o fora para aquele comerciante. Aqui eu me responsabilizaria por meu próprio destino e moldaria minha vida segundo minhas próprias inclinações.
Devo ter cismado alguma vez de que minha vida com Lince teria mesmo de ser breve. Ele era muito mais velho do que eu. Certo, eu acreditava que ele fosse imortal e ainda hoje não posso acreditar que esteja realmente morto.
Uma coisa era certa: considerava-me feliz por tê-lo conhecido e por ter sido amada por ele. Mas eu tinha de me convencer que tudo estava acabado e, como devia reconstruir minha vida, a Mercers House era o melhor lugar para isso. Cheguei muitas vezes a sentir que Jessica estava com a razão e que ele estava a meu lado, guiando-me, impelindo-me naquela direção que ele queria que eu tomasse. Creio que ele queria que eu me casasse com Stirling e, se não tivesse me desejado para si próprio, antes de morrer teria combinado nosso casamento. Portanto, eu sonhava em me casar com Stirling. Abandonaríamos a ideia estúpida de comprar Whiteladies. Talvez fosse melhor comprar a Mercers House para que nossos filhos aqui nascessem. Minta haveria de se casar com Franklyn e nossos filhos haveriam de brincar com os deles nos gramados de Whiteladies. Assim, o neto de Lince brincaria afinal nos gramados macios e veludosos. Mas será que Lince se daria por satisfeito com esse arranjo?
Eu sonhava.
Ainda não havíamos completado uma semana na Mercers House quando Minta veio nos visitar. Ela mudara pouca coisa. Estava muito bonita e exatamente como eu a guardava na lembrança. Havia nela um ar de inocência que eu achava admirável.
- Franklyn Wakefield me contou que vocês estavam aqui. Isso é formidável. É claro que me lembro do dia em que vocês apareceram. Sua mantilha voou por cima do muro.
Como estávamos no meio da manhã, perguntei-lhe se aceitava café ou talvez um copo de vinho. Disse que gostaria do café e então toquei a campainha.
Ellen apareceu impecavelmente bem arrumada, tendo merecido de Minta um sorriso e o cumprimento: "bom dia, Ellen". Sabia-se que a moça trabalhara em Whiteladies antes de ir para Wakefield Park.
- Espero que você esteja bem servida - disse Minta quando a copeira se ausentou. - Mr. Wakefield estava muito preocupado com isso. Tanto Ellen como Mabel são ótimas moças.
Mrs. Clee tinha opinião diferente, mas Minta achava que todo mundo era bom.
- Nossa governanta trata de mantê-las em boa ordem.
- Ah, sim, você está com Mrs. Clee.
- Pelo que vejo nossos movimentos estão sendo bem observados. Ela riu-se.
- Não se esqueça de que isto aqui é interior. Todos estão sempre interessados em quem chega, querendo saber se participarão ou não dos acontecimentos locais.
- Esperam isso de nós?
- Digamos que possa ser esperado. Vocês não hão de ser incomodados se demonstrarem que desejam permanecer alheios, mas algo me diz que não desejam.
- Lá está meu enteado - disse eu.
- Oh, sim - ela sorriu. - Parece tão estranho. Você é muito jovem para ter um enteado adulto. Também tenho uma madrasta que não é muito mais velha do que eu. Quando nos encontramos anteriormente pensei que vocês fossem irmãos, até que...
- É um parentesco um tanto complicado. Casei-me com o pai de Stirling e, agora que ele está morto, sou uma viúva...
Minha voz ficou trémula. Eu estava vendo-o ser carregado para casa naquela maca. Estava pensando naquela imensa vitalidade, naquela euforia que ele trouxera para minha vida e que se fora para sempre.
- Perdoe-me - disse Minta.
Pude ver que ela era sensível aos sentimentos dos outros. Gostei dela e calculei que daria uma admirável esposa para Franklyn Wakefield. Eu gostava dele também. Havia em ambos algo de muito digno. Pessoas educadas, refleti. Sim, era essa a palavra. Educados! Um pouco sem vibração, porém boa. com eles não haveria muitas surpresas. Eram diferentes de gente como Lince, Stirling ou mesmo eu. Talvez se ressentissem de nosso egoísmo. Pareciam incolores. Mas isso era uma injustiça em se tratando de uma moça tão encantadora como Minta.
- Está tudo acabado - apressei-me em dizer. - A gente precisa aprender a esquecer. - Vendo-a aquiescer com a cabeça, prossegui: - Lembro-me perfeitamente de quando vi Whiteladies pela primeira vez. Causou uma grande impressão em nós dois. O gramado e a gentileza com que você nos recebeu. E também a maneira, é claro, como fizeram um curativo em minha mão.
- Foi Lucie. Agora é minha madrasta. Terá oportunidade de vê-la. Minha mãe morreu... - um ar de tristeza estampou-se-lhe no rosto. Ela era fácil de ser lida e um de seus encantos estava na variedade de expressões fisionómicas.
- Pelo que sei, ela estava doente - disse eu.
- Sim, mas... - Esperei, mas ela não concluiu a frase. - Lucie tem sido maravilhosa. Tem sido ótima para papai. Ajuda no trabalho dele e cuida da casa com perfeição.
- Agrada-me saber.
- E temos um acréscimo na família. Minha meia-irmãzinha Druscilla. É uma gracinha. Já tem quase um ano.
- Aliás, não faz tempo assim que nos encontramos pela primeira vez - comentei. - No entanto, muita coisa aconteceu desde então.
Eu estava pensando: tornei-me esposa de Lince e enviuvei. Devo ter traído meus pensamentos, pois logo ela tratou de mudar de assunto.
- Tenho certeza de que irá gostar daqui. É uma comunidade bem simpática. Ellen trouxe o café, seguida de perto por Mrs. Clee. Ao ver Minta, Mrs. Clee
dirigiu-lhe um triunfante "bom dia, Miss Cardew!", ao que Minta respondeu dizendo de sua alegria em vê-la novamente e logo me afirmando que Mrs. Clee cuidaria admiravelmente da casa. O balançar de cabeça de Mrs. Clee indicava satisfação e probidade, sem deixar de supervisionar a maneira como Ellen servia o café. Depois que ela saiu, Minta fez outro comentário.
- É realmente uma governanta extraordinária. Estou muito contente em saber que está aqui. Nunca que a teríamos despedido se estivéssemos em condições de mantê-la.
Então era quase verdade que eles não iam lá muito bem. Afinal de contas, talvez Stirling obtivesse êxito. Mas havia grande diferença entre vender uma casa e despedir um criado caro.
- Tenho a impressão de que Maud Mathers virá visitá-la brevemente. É a filha do vigário. Aesposa dele morreu, porém Maud é infatigável nas atividades paroquiais. É uma boa moça e sensível e estou certa que irá gostar dela. Peço-lhe, no entanto, que sua primeira visita seja a Whiteladies. Convidarei Mr. Wakefield para jantar conosco também. Sir Everard e Lady Wakefield raramente saem de casa. Já não têm muita disposição. Promete-me?
Dei-lhe promessa de pronto.
Eu estava certa, disse-lhe, de que Stirling ficaria encantado em aceitar o convite, e nesse momento Stirling entrou.
- Stirling, Miss Cardew veio nos visitar. Lembra-se dela?
- Sem dúvida! - exclamou Stirling, e notei uma vibração injetar-se-lhe nos olhos. Ela notou também e por isso ficou lindamente ruborizada. - Isto é uma grand alegria - acrescentou com emoção.
Vi que ele pensava que estava sendo saliente.
- Tome um pouco de café - falei e dirigi-me à mesa para servi-lo. - Fomos convidados a visitar Whiteladies - notifiquei-o.
- Magnífico - respondeu.
Ela estava sorrindo. Mostrou-se mais animada a partir do momento em que Stirlingapareceu. Sem dúvida, pensei eu, ele parece atraente porque ela está acostumada com Franklyn Wakefield.
Era bastante agradável descobrir que estávamos causando um reboliço nas vizinhanças. Devemos ter passado por gente um tanto excêntrica - um rapaz perto dos trinta com uma madrasta que mal entrou na casa dos vinte, morando juntos na Mercers House. Mas o nosso relacionamento era respeitabilissimo, além de termos os criados como chaperones e mais a presença de Mrs. Clee, Os aposentos de Stirling ficavam no primeiro andar e os meus no segundo; os dele de frente e os meus de fundo. Mrs. Clee, com seu uniforme de bombazina preta, dissipava qualquer mexerico, pois era inconcebível que aceitasse trabalhar numa casa onde se praticasse a mais remota incorreção.
Procurava-me todas as manhãs para discutir o cardápio do dia - e comportava-se como se fôssemos uma família - cerimónia que logo percebi ser necessária à sua dignidade. Só quando falava de Whiteladies è que ela se esquecia da compostura. Confesso tê-la provocado a falar sobre essa família que me era do máximo interesse.
- Não gosto disso, Madame - repisou um velho tema certa manhã, depois de termos resolvido o que seria preparado para o almoço. - Durante anos estive a serviço de Lady Cardew - bem entendido, a primeira Lady Cardew - e me aventuro a dizer que ela nunca teve motivos de queixa. E de repente me dizem que meus serviços estão dispensados. Que passariam sem mim. Como se o que eu fizesse, Madame, fosse de tão pequena importância que eu poderia me ir e nenhuma diferença seria notada.
- Pelas palavras de Miss Cardew depreendi que se fazia necessária alguma economia - disse eu.
- Economia? Naquela casa se esbanjava dinheiro. Oh, não, o que a segunda Lady Cardew queria era me ver fora do caminho. Queria dirigir a casa, E não queria que ninguém pudesse ver o que ela tinha em mira. A história é essa sem tirar nem botar, Madame.
- Pelo que sei, tinha mesmo de acontecer. A despesa de manter uma casa como Whiteladies deve ser enorme.
Mrs. Clee fungou.
- Sempre desconfiei que alguma coisa estava acontecendo naquela casa.
- Como assim? - Era lógico que não me ficava bem bisbilhotar sobre meus vizinhos com minha governanta, mas a tentação era irresistível.
- Oh, sim - prosseguiu Mrs. Clee. - Ela decidiu-se ao que tinha em mente e não queria ninguém ali que lhe pudesse atrapalhar. Afinal, o que é que ela era naquela época? Uma espécie de dama de companhia? Nem uma coisa nem outra.
- Miss Cardew parece gostar muito da madrasta.
- Miss Cardew é uma bendita ingénua. Quer saber de uma coisa? Ela não enxerga um palmo à frente do nariz.
- Dá-me a impressão de uma jovem cativante.
- Ela e o pai... duas crianças perdidas no bosque. Pode sorrir, Mrs. Herrick, mas houve tempo em que ela andou atrás do médico. Todos calculávamos que iria haver um casamento ali, mas logo Lady morreu e "Não, muito obrigado", disse a Madame ao médico, "vou calçar os sapatos da defunta". - A linguagem de Mrs. Clee tornava-se mais colorida à medida em que ela se aprofundava no assunto, e senti que devia pôr um ponto final naquelas observações que eu acreditava serem positivamente preconcebidas.
- Bem, Mrs. Clee, espero que não se lamente muito da transformação, mas Miss Cardew esteve me dizendo que tivemos muita sorte em contar com seus serviços.
- Miss Cardew sempre foi uma lady.
- Também estou certa disso. E creio termos arranjado nossa torta de maçã. Mr. Herrick é grande apreciador disso.
Confidências acabadas, voltamos aos afazeres práticos.
Franklyn Wakefield apanhou-nos em sua carruagem. A nossa ainda não havia sido entregue, embora Stirling já contasse com quatro ótimos cavalos na estrebaria.
Gostei da maneira cortez com que fui ajudada a subir na carruagem. Ele me perguntou se gostava de viajar de costas para os cavalos ou de frente. Respondi-lhe que não tinha preferência.
- Calculo que tenha viajado muito na Austrália.
- Por toda parte. Foi necessário. Chegamos até a acampar. Lembra-se, Stirling, daquela ocasião em que viajamos mais de quarenta milhas até Melbourne, e depois de volta?
Eu podia sentir o cheiro dos eucaliptos, ver Adelaide a ferver água na chaleira e Jagger aproximar-se de mim enquanto eu me ajoelhava ao pé do fogo. será que essas lembranças hão de persistir?
- Deve ser uma excelente amazona. Encolhi os ombros, ao que ele prosseguiu:
- Eu gostaria de lhe mostrar, um dia minha propriedade. Talvez pudéssemos passear juntos, quando então eu lhe mostraria o interior.
Stirling começou a falar da vastidão de nossa propriedade na Austrália, e com tal petulância e bazófia que me fizeram franzir o sobrolho. E quanto mais eu franzia, mais bombástico ele se mostrava. Franklyn escutava com polidez e sem fazer esforço algum de suplantar as histórias de Stirling, o que teria feito eu se estivesse no lugar dele. Era uma pena que Stirling não fosse capaz de esconder seu menosprezo por Franklyn que, como era natural, disfarçava por completo suas reações. Uma lição de boas maneiras, eu iria lembrar a Stírling quando estivéssemos a sós.
Chegar a Whiteladies ao anoitecer foi uma experiência. A mansão parecia misteriosamente romântica e - em estranho contraste - quase sinistra. Havia uma lanterna pendurada no pórtico que rangia levemente quando balançava, e apoderou-se de mim uma grande emoção, quando galgamos os íngremes degraus de pedra. Relanceei um olhar para Stirling cujos olhos cintilavam. Eu estava atenta a seu nervosismo.
Franklyn tocou a sineta e escutamos o som estridente ecoar pelo salão. A porta era de ferro batido e parecia hermética; tinha uma janelinha pela qual vimos os olhos de um criado antes de abri-la.
E logo nos vimos no vestíbulo de piso lajeado, caprichosos apainelados e velas pingando nos castiçais. O mesmo aspecto deveria ter tido há quase quarenta anos, quando Lince aqui chegou para dar aulas de desenho a Arabela. Como poderia eu esquecê-lo se por toda parte havia mil coisas para me fazer relembrá-lo!
Minta surgiu na escadaria ao fundo do salão.
- Escutei a sineta - falou enquanto descia. Estava radiante e tão delicada à luz das velas quanto uma princesa de conto de fadas. - Sinto-me tão feliz por terem vindo.
- Nós è que nos sentimos felizes por nos ter convidado - disse Stirling. - Sermos recebidos nesta casa é para nós uma grande honra, posso lhe garantir.
Minta respondeu que tinha lá suas dúvidas sobre se era a casa ou se eram os habitantes que agradavam.
- Ambos! - corrigiu Stirling.
- Se estão interessados em arquitetura - interferiu Franklyn - não pode haver melhor exemplo de estilo Tudor do que este aqui. Alguma coisa-é ligeiramente posterior, mas a casa é fundamentalmente Tudor.
- Vivendo na Austrália, não tive oportunidade de visitar essas mansões antigas - disse Stirling. - Para mim constituem uma grande novidade. Não tanto para Nora. Lá ela era uma novata de apenas uns dois anos, mais ou menos.
- Estou igualmente maravilhada com Whiteladies.
- A casa lhes será mostrada - prometeu Minta. - Depois do jantar, talvez. Antes quero lhes apresentar meu pai e minha madrasta.
Stirling subiu os degraus atrás de Minta, seguidos por mim e Franklyn, este a me apontar a cinzeladura que era obra de um artista do século dezesseis. Sabia disso ao certo porque esse artista sempre deixava sua marca especial - a cabeça de uma freira. Havia exemplos de sua obra em outras casas nesta parte do país. Era possível que sua primeira grande incumbência tivesse sido a cinzeladura de Whiteladies, e daí por diante sempre a usar a cabeça de uma freira como seu símbolo.
- Sempre que se começa a pesquisar o passado faz-se toda sorte de descoberta interessante - disse.
- Costuma pesquisar o passado? - perguntei.
- Por diletantismo. Interesso-me bastante por esta parte do mundo. E temos feito várias descobertas. Descobrimos velhas moedas e jóias pertencentes às idades da pedra e do bronze. Estou interessado porén num passado mais recente. A história de velhas mansões, por exemplo. E esta aqui é uma das mais fascinantes que já vi.
- Considero-a também fascinante-afirmei, e nessa altura já havíamos chegado ao topo da escadaria, quando Minta abriu de par em par a porta de uma sala.
Era deslumbrante com seus janelões alongados e teto majestoso. A cúpula fora projetada de modo a dar a impressão de que o teto era ainda mais alto que na realidade. Imaginei então que à luz do dia a madeira cinzelada deveria ser magnif icente. Das paredes pendiam retratos, e os móveis me pareceram de princípios do século dezoito. Eram móveis extraordinariamente elegantes. De dia eu talvez os descobrisse desbotados, mas tal não se notava àquela hora.
Reconheci Lucie imediatamente, embora ela tivesse mudado. Tinha uma nova dignidade e impressionava de uma maneira discreta. Pareceu-me muito modestamente vestida em veludo cor de pulga, mas o vestido era maravilhosamente bem talhado e muito elegante em sua simplicidade. Mostrou-se reservada, apesar de senhora absoluta da situação. Os cabelos escuros estavam penteados com uma singeleza que lhe ficava muito bem. Adiantou-se e tomou-me a mão.
- É um grande prazer. - Falava com polidez, mas sem calor. - Lembro-me perfeitamente de você. Minta esteve me falando.
Voltou-se então para Stirling.
- Oh, sim, lembro-me sem dúvida. Afinal, não faz tanto tempo assim. Venham conhecer meu marido.
Sir Hilary - o pai de Minta - veio ao nosso encontro e apertou-nos as mãos. Parecia frágil e tinha o mesmo ar inocente que eu já notara em Minta. Inocente, refleti, e um tanto aéreo. Mas logo imaginei-o casado com a mulher a quem Lince amara, e parecia um absurdo que eu estivesse aqui a retomar o fio do passado de Lince. Mas aqui eu o relembraria tão fortemente como o fizera na Austrália.
- Agrada-nos muito ter vizinhos - disse ele. - Franklyn falou-me que iriam ficar com a Mercers House. Considero-os felizes. É uma jóia de casa.
Franklyn estava ao lado.
- Nós é que somos felizes em ter inquilinos assim na Mercers House disse.
- A propósito, Franklyn, como estão seus pais?
Franklyn respondeu que eles estavam bem dispostos, o que levou Sir Hilary a fazer novas perguntas sobre eles. Era óbvio que estava interessado nos achaques deles, para compará-los com os seus.
Dois outros convidados chegaram. Eu já conhecia o médico que agora se mostrava, a meu ver, bem pouco à vontade. E com ele estava Miss Maud Mathers, a filha do vigário, uma moça um tanto alta, de pele afeita ao ar livre e de maneiras extrovertidas. Convenci-me de imediato que ela era de grande utilidade na paróquia do pai.
O jantar foi servido numa sala do mesmo tamanho e em tudo por tudo semelhante - o mesmo tipo de forro, os mesmos apainelados - à sala de visitas. Minta explicou que essa sala era usada na maioria das vezes, embora em ocasiões de muitos convidados, como no Natal, o salão fosse mais usado.
- Era muito mais usado antigamente do que hoje - continuou a explicar.
- Costumávamos ter a casa cheia de convidados. E acho que meus pais não conheciam nem a metade das pessoas que eles recebiam. Hoje temos de ser cautelosos, é claro.
- Talvez algum dia seja diferente - disse Stirling.
Fiquei nervosa. Ele estava demonstrando com muita clareza sua obsessão pela casa. Stirling era franco demais. Eu gostava dele exatamente por isso, mas senti que lhe seria melhor esconder as intenções, por ora. Não era nada sutil. Vejam Franklyn... eu estava constantemente a comparar os dois, e tudo em Stirling me agradava, embora eu não me visse na obrigação de necessariamente aplaudir ou admirar. Agora ele estava sendo quase ingénuo ao devorar a casa com os olhos da cobiça.
Notei que só havia uma copeira e que o mordomo era o mesmo homem que nos abrira a porta. Tinham, evidentemente, poucos empregados. A comida estava bem preparada e bem servida, o que atribuí â supervisão de Lucie que estava atenta a tudo. Logo dei-me conta de que os criados lhe tinham um certo temor.
A conversa à mesa girou em torno de vários assuntos. Sir Hilary e Franklyn falaram sobre Wakefield; Stirling fazia perguntas a Minta sobre a casa; numa das extremidades da mesa, Lucie cuidava dos convidados, aqui e ali juntando-se à conversa; eu me sentei junto ao médico e de frente para Maud Mathers que falava sem parar dos problemas paroquiais.
- Irá adorar a igreja, Mrs. Herrick. É do mesmo período desta casa. A torre é impressionante, não é, Dr. Hunter?
O médico concordou em que era um belo exemplar de igreja antiga.
- Espero que compareça a uma de nossas reuniões sociais - disse-me Miss Mathers.
- Pretende permanecer muito tempo aqui? - quis saber o médico.
- É difícil dizer - respondi. - Meu enteado namora esta parte do mundo e está apaixonado por Whiteladies.
- É o tipo da casa pela qual as pessoas ficam obcecadas - interferiu Maud.
- Creio que mais de uma pessoa já quis comprá-la.
- Ao que me consta, tem pertencido à família há vários séculos.
- Sim, passada de geração em geração. Não como a casa da gente que se vai com a vida.
- Miss Cardew prometeu-nos mostrá-la depois do jantar. .
Lucie juntou-se à nossa conversa.
- A maioria das pessoas querem correr a casa.
- Deve sentir-se cansada de tanto mostrar.
- Não me canso nunca. Sinto-me fascinada pela casa como todo mundo, com exceção dos que aqui nasceram, como Minta. Sempre digo que ela não a aprecia devidamente. Acontecerá o mesmo com Druscilla. - Ela sorriu. - Minha filha, - acrescentou. ?
- E como está Druscilla? - perguntou o médico.
O sorriso de Lucie deu luminosidade a seu rosto. Amor materno somado ao clarão da vela.
- Está muito bem agora. - Voltou-se para mim. - Sou como todas as mães com o primeiro filho. Exagero. Chamo o médico por uma coisinha de nada.
- Chama-se a isso de "nervosismo do primeiro filho" - disse o médico.
- Demonstra a ternura de uma mãe - interpôs-se Maud. - E tenho certeza de que o Dr. Hunter compreende bem isso, sem censurar nenhuma das mães desta paróquia por excesso de preocupação.
- Oh, sou muito tolerante - disse o médico com jovialidade.
- Um predicado necessário -Lucie falou quase com sarcasmo.
Eu estava naquela noite com a sensibilidade aguçada. Teria eu conhecimento de uma certa tensão entre o médico e Lucie Cardew, ou estaria apenas imaginando? Eu tinha uma vaga ideia de que ele se interessara muito por ela, que a admirara, mas ela não retribuiu a estima. E maisuma vez eu estava pensando em Lince. Teria havido jantares iguais a este para o qual o professor de desenho não fora convidado? Eu podia imaginar seus lampejos de raiva e a determinação de sentar-se um dia na cabeceira desta mesa.
Despertei de meus sonhos para ouvir Lucie dizer:
- Oh, Maud, você a mima demais. Ela já está ficando arrogante.
- É uma gracinha - insistiu Maud - e muito inteligente.
- Vejo que estão falando de minha irmãzinha - disse Minta.
Contou então uma história que ilustrava a inteligência da ausente Druscilla. Pouco depois, as damas foram levadas para a sala de visitas, enquanto os homens permaneciam à mesa tomando vinho do Porto. Ali Maud dominou a conversa que pareceu versar, de um modo geral, sobre os preparativos para a próxima quermesse que iria contribuir para os reparos no teto da igreja, já atacado pelo cupim. Seria realizada nos jardins de Wakefield Park, que Sir Everard e Lady Wakefield haviam gentilmente colocado à disposição.
- Costumava ser em Whiteladies - Minta explicou-me - mas Wakefield Park é muito mais adequado.
- É mesmo? - admirei-me. - Pensei que...
- Temos antiguidade, mas os jardins do Park são hoje bem melhores que os nossos. Só dispomos de dois jardineiros. No tempo de meu avô havia seis. Isso significa que bom trecho já se tornou inculto, enquanto as flores do Park são deslumbrantes.
Mais uma revelação de pobreza, a que ela parecia não dar grande importância. Eu imaginava como Stirling estaria se comportando à mesa.
Passado algum tempo os homens se juntaram a nós e, depois do café, Minta falou que Stirling e eu queríamos ver a casa e que agora ela iria nos mostrar.
- Cuidado com o bastião, se tiverem de ir lá - preveniu-nos Lucie.
- Teremos cuidado - prometeu Minta. E enquanto saíamos da sala explicou-me: - Em certas partes da casa a alvenaria está começando a desmoronar.
- Que bastião é esse? - perguntou Stirling.
- É uma espécie de parapeito de mirante no alto da torre. Lucie desconfia que ele está para ruir.
- E não podia ser restaurado?
- Será um dia, quando estivermos em condições.
- Mas se é perigoso...
- Oh, há tanta coisa aqui que precisa de reforma. Você não faz ideia.
- Faço, sim -disse Stirling.
Ela sorriu para ele como se estivesse considerando-o bastante inteligente.
- A maior parte das pessoas não sabe que uma casa destas exige gastos constantes, se se quer mantê-la em ordem. E se isso for negligenciado por anos a fio... - arqueou uma das sobrancelhas.
- Mas isso não é coisa que se negligencie - insistiu Stirling.
- Quando não se tem dinheiro não há outra alternativa.
- Perdão... - desculpou-se Stirling. Ela sacudiu os ombros.
- Durante toda a minha vida sempre ouvi dizer que Whiteladies estava para cair, se reparos indispensáveis não fossem feitos, já me acostumei a isso.
- Mas uma casa destas é uma garantia.
- Sim, uma garantia. Aqui é a entrada para a parte antiga. Estas são as paredes primitivas do convento e logo vocês hão de ver como são largas. Cuidado com esses degraus. São um tanto perigosos.
Galgamos uma escadaria de pedra em espiral, segurando-nos no corrimão de corda. Os degraus eram íngremes e já desgastados no meio.
- Nunca vi nada igual - disse Stirling, e havia em Sua voz uma ponta de emoção.
- Alegra-me que a considere extraordinária - continuou Minta sem notar o brilho de ganância nos olhos de Stirling.
Percorremos toda a parte antiga da casa. Minta havia retirado da parede uma das lanternas que Stirling carregava. Subimos lances de degraus que davam para alcovas que mais pareciam celas. Tudo muito frio.
- Às vezes utilizamos esta parte para armazenar coisas. Quando eu era menina guardavam aqui carne de veado e enormes presuntos, ainda me lembro. Mas isso foi no tempo em que dávamos festas e quando tínhamos muitos criados.
Ela nos levou de volta então para a parte habitada da casa.
- Este trecho foi construído um pouco depois da parte principal. É do tempo de Elizabeth Tudor e por isso foi construído em forma de E. Este é o bloco principal, com duas alas que avançam de ambos os lados com este pequeno trecho no meio.
- Numa casa destas alguém pode até se perder -disse eu.
- Eu me perdi uma vez - contou-nos Minta. - Levaram muito tempo para me encontrar. Eu estava no que chamamos de atelier. Existe lá um armário enorme e, por qualquer razão, ninguém pensou em dar uma espiada nele. O atelier recebeu esse nome na época em que minha mãe tomava aulas de desenho.
- Eu gostaria de vê-lo - falei.
- Irá vê-lo, embora nada tenha de especial a não ser uma ótima claridade. Nada de especial! E o tempo que ele passou ali junto dela, dando-lhe aulas e amando-a simultaneamente?
- Não sei se sabem, mas minha mãe era filha única. Quando meu pai se casou com ela teve de vir morar aqui.
- Então nem sempre houve Cardews em Whiteladies?
- Não. Não nos foi possível conservar o nome de familia. E tem havido vários, estão todos inscritos na parede da biblioteca. Em trezentos anos tivemos seis mudanças de nome. Parece ser uma característica da família que, de tempos em tempos,
uma mulher herde a casa. com o casamento, muda o nome de familia. Foi o que aconteceu à minha mãe.
- E acontecerá a você.
- Bem... - ela riu com uma indiferença que demonstrava estar por completo desinteressada em saber se Whiteladies seria ou não propriedade sua. - Antes de Druscilla nascer acreditávamos que pudesse vir um menino. Nesse caso...
- Mas ela não está na linha direta - insistiu Stirling. - Seu pai casou-se dentro da família, e a atual esposa nada tem a ver com isso.
- Oh, não - disse Minta rapidamente. - Quando as pessoas se casam tornam-se da família. Sempre tem sido assim. Whiteladies agora é de meu pai...
- Você podia ter perdido Whiteladies - exclamou Stirling, - e nem parece se incomodar.
- Eu gostaria de ter um irmãozinho e meu pai adoraria ter um filho. Mas ficou muito envaidecido com o nascimento de Druscilla.
- Se tivesse sido um filho, você teria perdido Whiteladies.
- Não penso muito em Whiteladies como um bem, e sim como o lar da família. Não importa quem a possua, será sempre o lar da família.
- A menos que passe para fora da família - sugeriu Stirling. Dardejei-lhe um olhar de cautela. Ele estava indo longe demais e muito rápido.
- Isso não poderá acontecer - ela retrucou com um ar de surpresa. - Sempre foi a casa da família.
- Mas no caso de se tornar uma carga...
- Uma carga? Oh, vejo o que quer dizer... financeiramente. - Ela quase chegou a dar uma gargalhada. - Um pesado fardo financeiro ela sempre foi.
- E se se tornar pesado demais?
- Sempre foi pesado demais. Bem, é este o caminho para o atelier de que falei. Temos de subir este estreito lance de escadas. Fica no topo da ala, para receber bastante claridade. - Ela abriu uma porta de par em par. - Olhem só a poeira. Não está sendo mais usado e creio que os criados pouco aparecem por aqui. Eles têm em que se ocupar. Minha mãe costumava vir aqui com frequência. Oh, lá está o armário. É enorme... é desses que a gente pode andar dentro. Devo ter vindo aqui à procura dela e, bisbilhotando dentro do armário, tranquei-me.
A sala era mobiliada com simplicidade. Havia uma mesa grande, algumas cadeiras e um cavalete.
- Nunca fui muito boa em desenho - continuou Minta. - Talvez Druscilla seja. Então poderá ser usada novamente.
Abriu a porta do armário que era do tamanho de um quarto pequeno. Na parte de baixo de um dos lados viam-se prateleiras que ainda conservavam uns poucos lápis, crayons e duas pranchetas. Minta apanhou uma delas, a que mostrava vários esboços de um cavalo. Era trabalho de Lince, e eu o reconheceria em qualquer lugar. Oh, Lince, como poderia eu esquecer?
- Aqui não há muito o que ver - disse Minta, e senti-me revoltada com ela, o que não deixava de ser um tanto estúpido. Como iria adivinhar o tumulto que existia em meu coração?
Depois disso ela nos levou à biblioteca para nos mostrar o timbre, o brasão de armas da família e os diversos nomes artisticamente inscritos nos ramos de uma figueira - Merrivale, Charton, Delmer, Berrington, Dorian e Cardew. Stirling pregou os olhos como se estivesse fascinado, e eu sabia que estava acrescentando um novo nome: Herrick.
Mais degraus tivemos de subir.
- Esta é a ala leste do E. Não está sendo usada atualmente, porém minha mãe gostava muito dela. Quando Lucie casou-se com meu pai resolveu que seria mais económico fechar esta parte da casa. Aliás, Lucie é maravilhosa para dirigir as coisas. Nossos negócios estão em melhores condições desde que ela começou a cuidar deles.
E eu acreditava muito bem nisso.
- Este era o quarto de minha mãe. Lucie cuidou em que os móveis fossem cobertos contra a poeira. Mas os criados não gostam de vir aqui.
- Por quê? - indagou Stirling.
- Você sabe como são as coisas quando acontece uma morte recente, ou por acaso não sabe? Os criados são supersticiosos. Minha mãe teve morte quase repentina.
- Eu pensava que ela fosse inválida há bastante tempo - disse eu.
- Bem, uma espécie de inválida. Todos pensávamos que ela se imaginasse doente, e de repente morre de um colapso cardíaco. Verificamos então que havíamos feito mau juízo dela... e Lizzie, que lhe servia de dama de companhia, começou a imaginar coisas.
- Coisas?
- Oh, que minha mãe não descansava em paz e que ainda continuava a vagar pela casa... o espírito, dizia ela. Coitada da Lizzie, desde menina que esteve ao lado de mamãe. Era muito sensata e prática, mas a morte de mamãe parece tê-la enervado. Lucie tem procurado mantê-la em atividade e com isso ela está melhorando.
Perpassei o olhar pelo quarto. O quarto dela! Para cá ela teria vindo, depois das aulas de desenho, para sonhar com ele. Foi neste quarto que o encontraram com os bolsos cheios de jóias. Eu bem que podia calcular o drama que aqui se desenrolara.
Minta conduziu-nos para fora e tomamos o caminho de um corredor.
- Há uma escadaria no final deste pavimento, ela estava dizendo, mas eu continuava a pensar naquele quarto. Tudo se passara há quarenta anos, adverti-me, mas eu podia sentir a frustração e a angústia de Lince ao se ver pilhado e encurralado, sabendo que não podia ter esperança de justiça. E era por isso que eu e Stirling estávamos aqui agora. Pobre Minta, tão inocente! Mal sabia que os visitantes aparentemente tão corteses, aos quais ela mostrava a casa com tanta benevolência, eram dois abutres que planejavam arrancar-lhe Whiteladies das mãos.
Deu-me vontade de ver aquele quarto novamente. Queria permanecer sozinha ali e sentir a atmosfera daquela noite trágica em que o orgulho de Lince fora humilhado. Quando Minta e Stirling dobraram a um canto do corredor, rapidamente e de mansinho, voltei a entrar no quarto. Agora era diferente. Mesmo sem a lâmpada foi-me possível desviar dos móveis sob lençóis, pois a luz da meia-lua coava-se pelas vidraças.
Oh, Lince, eu compreendo sua ignomínia, mas tudo já passou. Está na hora de esquecer. Ficaremos com a Mercers House, eu e Stirling - e Minta e Franklyn serão nossos amigos. Os netos que você queria hão de brincar nos gramados de Whiteladies. Eis como seu sonho se tornará realidade.
Não! Eu quase podia escutar o escárnio dele. Ele queria vingança. E mentalmente eu podia ouvir-lhe a voz a trovejar: Não!
Foi então que meu coração começou a bater apressado, porque havia qualquer coisa naquele quarto. Senti uma presença. Alguém estava a me observar. ." - Lince! -suspirei. - Volte, Lince!
Uma forma materializou-se no portal e caminhou para mim. - Você é Mrs. Herrick? - Uma voz humana. Não a de Lince.
- Assustou-me - respondi.
- Desculpe-me, Madame. Não esperava que houvesse alguém no quarto de Miss Arabella.
- Miss Cardew está nos mostrando a casa. - Compreensivelmente ela olhou em torno à procura de Miss Cardew. - Eles continuaram sem mim e fiquei vagando por aqui.
Ela me examinou de alto a baixo, como se eu lhe fosse de interesse muito especial.
- Então é Mrs. Herrick. Há muito tempo houve aqui uma pessoa... com esse nome.
- Pelo visto, você vive aqui há muito tempo.
- Eu era dois anos mais velha do que Miss Arabella. Já servia de babá aos quatorze anos. Como não havia entre nós grande diferença de idade, vivíamos juntas... um bocado.
- Você é Lizzie? Confirmou com a cabeça.
- Sempre estive o tempo todo ao lado dela. Agora que está morta, há aqui outra Lady Cardew.
Sem qualquer claridade a não ser a da lua, o ambiente estava fantasmagórico e parecia que, a qualquer momento, as formas esquisitas dos móveis iriam ganhar vida. Notei instintivamente que essa mulher também o conhecera e o amara. Era impossível que alguém não se deixasse impressionar por ele. Ela me fez lembrar de Jessica.
- Você vem da Austrália e foi para lá que ele foi... o homem que antigamente andou por aqui. Sei que você foi a esposa dele, mas houve outra antes. Aquele é o filho dele. São parecidos, mas esse não é o homem que o pai foi. Há qualquer coisa no ar. Posso sentir. É como se ele tivesse voltado.
- Está morto - falei com firmeza, - e não vai poder voltar.
- Poderia, se quisesse. Podia fazer qualquer coisa. Quanto a isso, não tenha a menor dúvida. Alguma coisa está para acontecer. Sempre acontece onde ele está, e está aqui. Tenho certeza. Conheci-o muito bem.
Fiquei arrepiada. Ela era igualzinha a Jessica, e vi que havia caído num círculo vicioso que parecia não ter mais fim.
- Os outros devem estar preocupados com o que me tenha acontecido disse eu.
Não fez caso de minhas palavras.
- Lady Cardew morreu de repente, sem que ninguém esperasse. Foi uma coisa muito estranha. Às vezes penso que...
Felizmente ouvi a voz de Minta chamando-me.
- Estou aqui - respondi.
Ela estava parada na soleira da porta, Stirling segurando a lâmpada por trás.
- Oh, Lizzie! - Minta exclamou com certa censura na voz.
- Eu estava conversando com Mrs. Herrick - retrucou Lizzie quase beirando a insolência.
- Bem, agora que a encontramos, é melhor continuarmos com nossa excursão - disse Minta, acrescentando com gentileza: - Eu se fosse você, Lizzie, voltaria para seu quarto. Está muito friorento para se perambular por aqui.
Está bem, Miss Minta - Lizzie aquiesceu com submissão.
Minta deu meia volta e fomos atrás dela. Na sacada mais próxima Lizzie desapareceu de vista, enquanto Minta nos levava a ver os balaústres esculpidos que davam para a galeria dos menestréis.
- Espero que Lizzie não a tenha assustado. Tem-se comportado com muita estranheza desde que minha mãe morreu.
- Como Jessica - aduziu Stirling, logo tratando de explicar a Minta: - É uma prima de minha mãe e se tornou um bocado estranha depois que minha mãe morreu, elas estavam sempre juntas.
- Muito parecida com Jessica - concordei- São duas pessoas muito dedicadas.
- vou ter de falar com ela - continuou Minta - para deixar de vagar por esses quartos trancados. Esta galeria foi acrescentada no século dezesseis, quando esta ala foi construída. Vocês não a notaram do salão porque as cortinas estavam puxadas.
Examinamos a galeria, mas só fingi demonstrar interesse. Meu encontro com Lizzie reacendera tantas lembranças que meus pensamentos não podiam estar senão muito longe dali. Mantive-me imaginando Lince nesta casa, enlevando a senhorinha a quem dava aulas - e a criada ao mesmo tempo.
Quando nos juntamos aos demais, o médico estava de saída. Ainda queria visitar um ou dois clientes, disse, e de permeio deixaria Maud em casa. Sugeri sairmos também, ao que Franklyn de imediato se prontificou a nos levar. Despedimo-nos e em pouco estávamos a cruzar a pequena distância para a Mercers House.
- Que maravilha! - Stirling exultava. - Nunca estive numa casa igual àquela.
- Eu penso que também não - retorqui. - É incomparável.
- Existem outras casas construídas no lugar de antigos mosteiros... e com muitas pedras originais - disse Franklyn. - Fountains Abbey em Yorkshire, por exemplo, ocorre-me à mente.
- É uma pena que eles não estejam em condições de fazer os reparos necessários - disse Stirling.
- Lamentável - concordou Franklyn.
- Para eles talvez fosse melhor vendê-la a alguém que pudesse conservá-la.
- Oh, nunca! - exclamou Franklyn. - É uma instituição. Uma tradição.
- Esse tipo de casa pertence à posteridade - Stirling mostrou-se pomposo.
- Se não podem conservá-la, que resolvam passá-la em frente.
- Se fosse minha, eu jamais o faria - disse eu.
- E pode ter certeza de que os Cardews também jamais o farão - acrescentou Franklyn.
As luzes da Mercers House foram avistadas e viajamos em silêncio o resto do percurso.
Estávamos emocionados demais para podermos conciliar o sono. Fomos para a sala de visita e Stirling jogou-se num sofá. Sentei-me numa poltrona diante dele.
A primeira investida - disse ele.
- Se pensa que fez uma investida, está enganado.
- Estivemos lá e inspecionamos a casa. Deus do céu, aquilo precisa de muito dinheiro, e eles não têm duas patacas para esfregar uma na outra.
- Exagero! Se eles estivessem dispostos a isso poderiam facilmente esfregar duas patacas, tenho certeza.
- Você está se deixando contagiar por Mr. Franklyn Wakefield. É o tipo da resposta que ele teria dado.
" - Então estaria sendo sensato.
- Falando sério, Nora, não foi uma noite proveitosa?
Você acha? Saí com a impressão de que eles jamais cogitariam, nem por um momento sequer, de vender Whiteladies.
- E que vão fazer? Deixar que ela caia na cabeça deles?
- Não está em perigo de colapso iminente.
- Se continuarem deixando-a cair aos pedaços, em breve não valerá coisa nenhuma.
- Será sempre o lar deles. Deixemos que a desfrutem. Quanto a mim, acontece que estou gostando desta Mercers House. Não há a menor dúvida de que é muito mais confortável.
- Servirá, enquanto não nos mudarmos para Whiteladies.
- E quando será isso?
- Num futuro não muito remoto. Sinto-o em meus ossos.
- Eu não confiaria neles.
- Você está determinada a ser pessimista.
- Acho que vejo as coisas mais claramente do que você.
- Sejamos práticos.
- Sim, sejamos. Mas acontece que eles é que não são práticos. Nunca haverão de vender Whiteladies. Isso é ponto pacífico que Franklyn deu a entender. E ele sabe o que diz.
- Sabe lá coisa nenhuma. É um obtuso. Só entende de mesuras e de falar frases que as pessoas gostam de ouvir. Eis a soma total das qualidades dele. E desde quando vocês,se tratam pelo nome de batismo?
- Não nos tratamos. Só o chamo de Franklyn aqui em casa. Acho que você está subestimando-o.
- Olhe aqui, Nora, essa gente não é como nós. Eles foram educados no luxo e não têm nem a nossa resistência nem nossa vitalidade. Somos diferentes. Pense em nossos pais. Eles tinham ambição e capacidade de conseguir o que queriam. Nós herdamos isso. Eles não. Foram criados em mansões, pensam que as herdarão do papai e está acabado. Mas se não há nada para herdar, e daí? Aposto com você, Nora, como no próximo ano estaremos em Whiteladies, por esta época.
- Não creio.
- É uma atitude errada. Convida-se o fracasso quando se tem certeza dele.
- Talvez eu não acredite que seja um fracasso assim.
- Era o que meu pai queria e o que esperava que fizéssemos - disse.
E foi como se Lince me olhasse através dos olhos dele. Senti que estava agindo como uma traidora e por isso ne calei. Stirling sorriu-me com ternura.
- Você há de ver - concluiu.
Fomos convidados não apenas para Whiteladies e Wakefield Park, como também para a casa do vigário e várias outras. Maud Mathers cuidara de que nos tornássemos parte da vida do lugar. Agradava-me ser de utilidade, mesmo porque eu já simpatizara bastante com ela. Parecia ter um bom-senso muito agudo, e era também respeito o que eu lhe devotava. Meus sentimentos por Minta e por Franklyn foram, até um ponto, afetados pela atitude de Stirling, que os menosprezava ostensivamente. Vivia repisando que eles não eram como nós, que haviam sido educados em escola diferente. Sempre que os mencionava, surgia-lhe na voz um cunho de piedade. Eu achava graça, mas aquilo acabou exercendo um efeito sobre mim. Lucie deixava-o um pouco irritado. E eu sabia por quê. Ela era mais como nós. Não havia sido educada para aceitar uma vida de luxo, era prática e obviamente estava fazendo todo o possível para viver dentro dos recursos disponíveis. Stirling estava a par disso. De certo modo fiquei magoada em ver como ele se alegrava com o empobrecimento dos Cardews. Tinha uma obsessão. E eu não podia desaproválo por completo, pois tudo o que ele fazia resultava da devoção à memória do pai.
No sábado que antecedeu ao festival da colheita fui ajudar Maud na decoração da igreja. Trabalhamos com afinco no arranjo de crisântemos, ásteres, dálias e margaridas em volta do altar. Havia também abóboras enormes, tomates e repolhos em exposição. Feixes de milho foram atados com fitas vermelhas e colocados lado a lado de deliciosos pães de centeio que seriam depois distribuídos aos necessitados.
- Foi um ano muito bom para a colheita - disse Maud a olhar para mim, do alto de uma escada, onde ela estava a ornamentar um corrimão de bronze com folhas avermelhadas. ?
- Cuidado para não cair - avisei.
- Este lugar aqui eu venho enfeitando do mesmo jeito há cinco anos. Meus pés são firmes.
Aproximei-me para segurar a escada, mantendo-a firme.
- Jà calculou o que aconteceria se você ficasse fora de ação?
- Meu pai arranjaria um monte de ajudantes que trabalhariam tão bem quanto eu.
- Não creio. E pense só no trabalho que você ia dar ao Dr. Hunter. Olhe que ele está sobrecarregado.
- Está, sim - falou num tom sério.
Quando ela desceu da escada pude notar como eram coradas as maçãs de seu rosto.
- Eu já disse a ele, não sei quantas vezes, que precisa de ajuda - continuou. - As vezes fico até apreensiva - mordeu os lábios, sinal de que estava encabulada.
- Ele anda... preocupado. Deve ser excesso de trabalho.
Fiz-lhe ver que estava com razão. Eu também notara.
- Acha que esses crisântemos cor de bronze combinam bem com as folhas? - perguntei-lhe.
- Perfeito. Eu queria tanto que se fizesse alguma coisa pelo Dr. Hunter. E desatou a falar sobre ele, da abnegada dedicação aos clientes, do bem que havia feito a fulano e sicrano.
Em meio àquela arrumação de flores e folhas pensei cá comigo: está apaixonada por ele.
Passeei bastante a cavalo naquele outono. A vida na Austrália me ensinara todos os segredos da equitação, esse me parecia o método mais simples e conveniente de espairecer. Às vezes Stirling me acompanhava, embora estivesse impaciente a planejar toda sorte de planar. Estava decidido a adquirir terras e até já se via como o proprietário-mor do lugar, o que seria usurpar o posto de Franklyn, conforme lhe falei.
- Não vejo razão para que não possa haver dois - calharia de dizer. Mas a tarefa prioritária era apossar-se de Whiteladies, e disso não estava nem um pouco mais perto do que quando havíamos chegado.
Queria ir ao encontro de Sir Hilary e.fazer-lhe uma oferta, mas procurei dissuadilo porque estava certa de que ele voltaria desapontado. Afinal aceitou meu conselho quando o fiz ver que acabaria colocando os Cardews contra si, se eles viessem a suspeitar dos motivos daquela amizade.
Também passeei muitas vezes em companhia de Franklyn Wakefield. Ele adquirira o hábito de vir à nossa casa e de sugerir mostrar-me algum trecho do lugar que eu ainda não conhecia. Eu adorava esses passeios. Não raro amarrávamos nossos cavalos em frente a uma velha estalagem - e nesses lugares ele parecia ser muito popular - e tratávamos de almoçar pão com queijo e cidra. A comida era sempre saborosíssima e agradava-me conhecer as pessoas a quem ele me apresentava. Fiquei a par do grande respeito que dedicavam a ele e sua família, e isso me era motivo de satisfação. ."
Eu adorava os odores do outono - a neblina permanente, o cheiro de folhas queimadas quando passávamos por algum jardim, o friozinho do ar que parecia fazer minha pele retinir. Eu acompanhava as árvores desnudarem-se gradativamente de suas folhas para formar um desenho rendilhado contra o céu azul-cinza. E muita coisa aprendi sobre as responsabilidades de um proprietário rural, pois Franklyn as levava a sério. Acostumei-me ao estilo pedante com que ele falava, e até cheguei a gostar disso. Na companhia dele eu me esquecia daquela atitude ligeiramente protetora que Stirling adotava com relação a mim. Havia naquele homem uma certa sinceridade que eu muito respeitava. E notei também o grande afeto que ele dedicava aos pais. Era-lhes devotado. E o mesmo acontecia com relação aos rendeiros, cujos problemas ele conhecia a fundo - e procurava resolver - conforme me espantei em verificar.
Num dia particularmente quente de novembro, em que a bruma deixava o sol avermelhado e as teias de aranha se estendiam pelas sebes, saímos a passear juntos. Naquele dia ele se mostrou um tanto Desanimado e lhe perguntei se alguma coisa acontecera para transtorná-lo.
- Não é nada de inesperado - respondeu-me. - Dr. Hunter é de opinião que meu pai só terá seis meses de vida.
- Oh, sinto muito.
- É velho e seu estado está piorando. Estou particularmente mais preocupado é com minha mãe.
- Está doente também?
- Não, mas os dois sempre foram muito unidos. Eram vizinhos e se conheciam desde a infância. Não posso imaginar o que acontecerá a ela se meu pai morrer.
- Ela contará com você.
- Não creio que seja o bastante. Ficará tão sentida que será capaz de morrer.
- Acha que alguém possa morrer de sentimento?
- No caso seria uma vida partida.
Pensei em mim mesma e em Lince. Ele significara tanto para mim e, no entanto, ali estava eu tão viva quanto antes.
Continuamos a passear em silêncio e vi que ele percebeu minha solidariedade.
Foi nesse dia que encontramos os gatinhos. Quando visitamos uma das fazendas da propriedade dele, a mulher do rendeiro surgiu da cozinha a enxugar os braços farinhentos, e Franklyn apresentou-me a ela como a nova inquilina da Mercers House.
- Uma casa ótima - comentou a mulher - e a senhora não poderia ter melhor senhorio.
Ela insistiu em que tomássemos um copo de seu vinho de baga de sabugueiro e comêssemos um dos pãezinhos que acabavam de sair do forno. Sentamo-nos na cozinha e ela falou a Franklyn das intenções do marido em deixar sem cultivo, no próximo ano, três acres de terra, para descansar. Uma gatarrona malhada aproximou-se então e, ronronando, esfregou-se em minhas pernas.
- É a velhota Tibbles à procura de mais um pires de leite - disse a mulher do rendeiro. - Perdeu o interesse na última ninhada.
- Quantos gatos existem aqui agora? - perguntou Franklyn.
- A falar a verdade, Mr. Wakefield, perdi a conta. Não tenho coragem de matar os bichinhos e, quando menos se espera, já não são filhotes e começam a dar cria própria. Enfiam-se nos celeiros e não nos incomodam, além de conservarem os ratos à distância.
Quando o rendeiro chegou, levou-nos a ver o novo celeiro que ele estava levantando, e foi aí que vi os gatinhos. Eram uns dez ou doze - muitos deles ainda na fase de filhote - e um deles particularmente me interessou, porque não era tão bonito quanto os outros e, na verdade, até bastante magro e acovardado. Veio para perto de mim prontamente quando chamei, e lamentei não ter nada para lhe dar de comer.
- Este aqui parece um pouco jogado fora - disse eu.
- De vez em quando aparece um assim, - explicou o rendeiro. - Não são nem fortes como os outros nem sabem-se arranjar por si mesmos.
F alei num impulso.
- Não temos gato. Posso ficar com este?
- Para nós será uma alegria que leve quantos quiser - foi a resposta do rendeiro, e eu tinha certeza que iria gostar de cuidar do bichinho, de alimentá-lo e de lhe fazer mimos, para compensar o mau pedaço que ele estava tendo na fazenda.
Estávamos quase saindo do celeiro quando um outro gatinho veio correndo. Era castanho - quase da mesma cor daquele que eu já havia escolhido, porém muito mais bonito, apesar de ter o mesmo aspecto de subalimentado. Miou piedosamente e eu disse cá comigo: esse também quer vir.
- Levarei os dois. Farão companhia um ao outro.
A mulher do rendeiro descobriu uma cesta e os dois gatinhos foram colocados dentro. Franklyn cuidou de carregá-los e tratamos de voltar. Como era caminho, passamos em Whiteladies, pois Franklyn queria falar com Sir Hilary. Minta veio a nosso encontro e mostrou-se interessadissima nos gatos. Enquanto Franklyn permaneceu com o pai dela, retiramos os gatinhos da cesta e demos um pires de leite a cada um.
- São umas gracinhas - exclamou Minta. - E parecem tão agradecidos, o que não é muito comum nos gatos.
- Creio que passaram por maus momentos. Nunca souberam o que era hora de refeição. Estes serão muito diferentes daqueles gatos que já começam a vida sendo paparicados.
Vi que ela queria ficar com um deles e sugeri que ficasse. Adorou.
- Pode escolher ?- disse eu - e depois vamos dar nomes. Depois que eles lamberam os pires, trataram de lamber a si próprios.
- Este aqui è bem mais bonito - disse Minta.
- Mas o outro tem mais dignidade.
Escolhemos vários nomes, mas afinal sugeri Bella e Donna - Bella pela beleza, Donna pela dignidade.
Minta escolheu Bella, e assim larguei-a em Whiteladies.
Poucas semanas depois disso chegou a nossos ouvidos uma noticia sobre o bosque. Stirling surgiu em estado de grande euforia. Os Cardews estavam pondo à venda o bosque que ficava aos fundos da propriedade.
- É óbvio que estão sendo obrigados a levantar dinheiro - disse.
Eu já sabia da notícia por intermédio de Franklyn. Quando ele falou que iria comprar o bosque, perguntei se planejava derrubá-lo e construir no terreno. Sacudiu a cabeça. "Não. Deixarei tal como está". Calculei que ele estivesse pensando que, quando se casasse com Minta, seria como se o terreno não houvesse mudado de mãos.
Pasmei de admiração, assim que tornei a vê--lo, quando soube que não havia comprado o bosque. Alguém fizera uma oferta muito grande. Comecei a me sentir inquieta quando soube disso. Mal consegui esperar para ver Stirling. Mesmo sem falar coisa alguma, eu soube de tudo. Aquilo era o que ele chamava ddar um passo.
- Então comprou o bosque de Whiteladies.
- Como soube?
- E pagou o dobro do que realmente vale.
- E que importa isso?
- Para nosso magnata do ouro, absolutamente nada. Por que não me falou?
- Tem estado muito estranha ultimamente, Nora. Está ficando mais como Eles e menos como Nós.
? - Se quer dizer que procuro agir com tato...
- Oh, vamos e venhamos. Qual é a falta de tato em se pagar um bom preço por uma coisa para se ajudar-as pessoas?
- Sabendo-se que a pessoa é você, hão de ficar embaraçados.
- Não sentiram embaraço nenhum em receber meu cheque e botar a mão no dobro do que o terreno vale.
- Sir Hilary... ??
- Nada entende de negócios.
- Bem, Minta...
- Entende ainda menos. Naquela casa quem está à frente dos negócios é Lady Cardew.
- Você então se arranjou com ela.
- Arranjei-me com meu corretor.
- Acho que não devia ter feito isso, Stirling.
- Por que não?
- Porque Franklyn ia comprar aquele terreno e, se tivesse comprado, teria permanecido na família.
- Não estou alcançando seu raciocínio.
- Deve estar cego então. Franklyn vai se casar com Minta, e quando se casar estará em condições de se dedicar a Whiteladies.
- Vai ter de gastar mais do que possui para endireitar aquela casa.
- Como sabe?
- Saber é o meu negócio. Aquilo ali exige milhões. Wakefield vive folgado, mas não é nenhum...
- Milionário - acrescentei.
Fez um gesto de cabeça, sorrindo. Era sem dúvida um homem com uma obsessão. Minta falou-me a respeito do bosque.
- Agora sei que foi Mr. Herrick quem comprou. E pagou bem mais do que vale.
- Pode permitir-se - falei um tanto laconicamente. Os olhos dela acenderam-se.
- Foi muita bondade dele.
- Estava empenhadissimo.
- Não podia estar tanto assim. Há terrenos por aí que são muito mais valiosos. Mas não como Whiteladies, pensei. E pelas maneiras de Stirling eu podia ver que ele já se acreditava com um pé na porta.
Engana-se, Stirling. As coisas não vão correr assim como você quer. Ou você se instala na Mercers House ou teremos de voltar para a Austrália. Vi então que para mim isso era indiferente - contanto que estivesse ao lado de Stirling.
O Natal estava quase chegando. Uma semana antes, Stirling, eu, Maud, Minta e Franklyn fizemos parte de um grupo que saiu a cantar pelas ruas para arrecadar dinheiro para a igreja. Terminamos em Wakefield Park, onde nos foi servida uma sopa quente. Compreendi que aquilo era um costume do lugar e que, em outros tempos, Whiteladies é que era o cenário. Franklyn parecia estar assumindo as responsabilidades de Whiteladies, e quando casar, conjeturei, vai viver lá e os antigos costumes reverterão ao que foram outrora.
Vendo o pai dele sentado numa poltrona com uma manta nos joelhos, e a mãe se aninhando por perto, ocorreu-me pensar que ele adiara pedir Minta em casamento só por causa dos pais. Quando casasse, era de se esperar que fosse viveer em Whiteladies, e ele queria permanecer com o pai pelo tempo de vida que lhe restasse.
No dia do Natal pela manhã voltamos todos a nos reunir na igreja; à tarde fomos a Wakefield Park onde deveríamos jantar. A casa tinha um ar festivo com aquela ornamentação de azevinho e vises, o que me fez lembrar das tentativas de Adelaide em dar uma atmosfera inglesa à nossa casa no outro lado do mundo.
Era o Natal tradicional - peru e pudim de ameixa com brandy em labaredas, e presentes para todos numa árvore instalada no meio da sala de jantar. Erguiam-se brindes aos convidados, aos anfitriões e particularmente aos que ali estavam pela primeira vez. Havia, além de nós, vários outros convidados, e mais chegaram depois do jantar. Ao som de dois violinos dançamos num enorme salão as velhas danças típicas - Jenny Pluck Pears e Sir Roger de Coverley - mas depois dançamos valsas e alguns até tentaram o minueto. Tudo aquilo me agradava muito e tratei de não pensar nos natais passados na Austrália. Os pais de Franklyn permaneceram até o final, e notei que o velho esteve o tempo todo a balançar a cabeça e acompanhar o compasso da música, tanto ele como a mulher de olhos pregados em Franklyn.
- Foi um lindo Natal - eu "disse a Franklyn, ao que ele respondeu com seu estilo empolado que estava muito satisfeito por não ter eu me aborrecido com aqueles velhos costumes.
A caminho de casa Stirling também admitiu ter sido um dia agradabilíssimo, dizendo-me que havia convidado a todos eles para passarem o Ano Novo na Mercers House.
- Nós dois temos de juntar nossas cabeças - disse-me - e planejar uma coisa que se iguale à recepção de Mr. Franklyn Wakefield.
Aquela recepção de Ano Novo foi para mim um vexame. Stirling encomendara a uma firma de fornecedores de Londres o preparo e a supervisão de tudo. E espalhou convite para tudo que era lado. Exibiu-se prataria especialíssima, mestres cucas prepararam a comida, e ele até resolveu que contaríamos com lacaios de libré em veludo verde usando perucas empoadas.
Não contive uma gargalhada.
- Ridículo para uma casinha como esta. E de um mau gosto pavoroso.
- Oxalá pudéssemos fazer em Whiteladies - suspirou. - Imagine só aquele salão...
- Isto aqui não è Whiteladies, e que irão pensar as pessoas quando virem seus lacaios de aluguel?
Não me foi possível dissuadi-lo.
E Mrs. Clee por pouco não se mostrou indignada.
- Eu podia ter cuidado de tudo muito bem, Mrs. Herrick, com apenas um ou dois ajudantes que eu saberia onde buscar - desabafou em tom de ralhação. - Espero que Mr. Herrick não esteja insatisfeito com minha comida.
Assegurei-lhe que não se tratava disso e que Mr. Herrick agira sem me consultar. Eu teria planejado uma recepção muito diferente - e com a ajuda de Mrs. Clee, naturalmente.
Com essas palavras ela se deixou enternecer e, quando viu a decoração das salas de jantar e de visita, encheu-se de satisfação. Iríamos ofuscar Whiteladies e isso lhe significava alguma coisa. Mostrou-se bastante agitada, especialmente em saber se lhe caberia um papel de comando naqueles preparativos.
Não sei se posso chamar aquela noite de um sucesso. Pelo menos, foi memorável. Postes com lanternas ornamentais haviam sido colocados diante da casa, e na escadaria para o pórtico estendera-se um tapete vermelho. Stirling contratara uma orquestra que fora instalada numa pequena sala entre as de jantar e de visita, os músicos de calças brancas e blusa vermelha à moda húngara. A ornamentação da mesa era uma obra-prima de arranjo com rosas, por sinal caríssimas naquela época do ano. Tal como previsto, os convidados mostravam-se impressionados e ligeiramente embaraçados em meio,a tanto aparato. Em consequência, não foi uma noite tão alegre como aquela que havíamos passado em Wakefield Park. Stirling tomara providências para que um pianista nos entretivesse e, por fim, dançamos na sala de visita que havia sido adaptada para essa finalidade. Não era um salão de baile como eles tinham em Wakefield Park, mas era, sim, quando os patês começaram a dançar e a animação tomou conta de todos. Dançamos danças populares encabeçadas por Maud, que dirigia um curso sobre elas, e todo mundo se tornou mais descontraído. Quando faltavam quinze minutos para as doze, sentamo-nos todos à espera que soasse a meia-noite; e ao soar, juntamos as mãos e cantamos Old Lang Syne. Eu tinha Franklyn de um lado e Minta do outro, sentindo-me feliz em tê-los conhecido.
Após retirar-se o último dos convidados, eu e Stirling nos sentamos na sala de visitas e conversamos sobre a recepção.
- Você realizou admiravelmente seu propósito - disse-lhe eu. - Amigos e vizinhos já não têm a menor dúvida de que existe um milionário no seio deles.
- É uma coisa agradabilíssima ser.
- Quando dá à pessoa o que a pessoa quer. Mas lembre-se de que dinheiro não compra tudo.
- Diga uma coisa que dinheiro não compra.
- Tudo aquilo que não está à venda.
- Pois saiba de uma coisa. Já me decidi e vou ter uma conversa com Sir Hilary.
- Quando?
- Dentro de poucos dias.
Então está esperando uns poucos dias! Muito diplomático de sua parte, e tanta preguiça até me espanta. Por que não vai logo amanhã e diz: "Sir Hilary, deixei bem claro ao senhor que sou um milionário, um sujeito exibicionista que gosta de acentuar as coisas. Estou pronto para pagar o que pedir."
- Você mudou muito, Nora. Às vezes eu me pergunto se está mesmo do meu lado ou não.
- Estou sempre do seu lado.
Sorriu, entendendo o que eu queria dizer. Existia realmente amor entre nós dois, inabalável, inevitável. Eu podia criticá-lo e ele podia zombar de mim, pouco importava. Fôramos feitos um para o outro, e sempre seria assim. Verdade, eu me casara com Lince, mas então Lince é que decidira que assim fosse. E eu tão apegada a Stirling que até compartilhei da adoração que ele devotava ao estranho homem que era seu pai. Stirling não tivera outra alternativa senão colocar-se de lado para dar vez a Lince, e eu não tinha outra alternativa senão colocar-me de lado para dar vez a Whiteladies, o que, afinal de contas, era dar vez a Lince. Mas éramos um só - eu e Stirling. Ao cabo de um ano de viuvez eu me tornaria sua esposa.
Quando ele me sorriu naquela noite tive certeza disso. Tanta certeza como quando nos refugiamos na caverna, deitados pertinho um do outro, enquanto o fogo devorava a floresta acima de nossas cabeças e pensávamos que jamais sairíamos vivos dali. Entre nós existia agora a-mesma compreensão.
Em fins de janeiro a paciência de Stirling se esgotou e ele foi falar com Sir Hilary. Eu estava na biblioteca quando ele entrou, faces pálidas, lábios contraídos e uma expressão de puro desespero no olhar.
- Que aconteceu? - perguntei assustada.
- Estou chegando de Whiteladies.
- E que houve lá de tão trágico? Abanou a cabeça.
- Fiz uma oferta a Sir Hilary.
- E ele recusou. Ponto final. Eu bem que lhe disse que isso ia acontecer. Sentou-se pesadamente e pôs-se a fitar o bico dos sapatos.
- Diz que não pode vender... jamais. Seja qual for a oferta, não pode. "Estou amarrado a esta casa, e a família também", foi o que ele disse. As palavras dele foram estas. Amarrado! Existe uma cláusula que os impede de vender. Foi estabelecida por um ancestral que tinha um filho viciado em jogo. A casa permanece na família... aconteça o que acontecer.
Senti-me como se tivessem tirado um fardo de meus ombros.
- O caso está resolvido. Você fez o possível, mas existe um obstáculo intransponível.
- É, parece que existe.
- Você tentou. Ninguém, nem mesmo Lince, poderia ter feito mais.
- Eu não esperava por isso.
- Sei. Mas eu lhe disse que existem coisas que não estão à venda. Agora trate de arrancar isso da cabeça e comece a planejar o futuro.
- Agora você está feliz, creio eu.
- Para mim é um erro querer tirar das pessoas aquilo que lhes pertence.
- Ele costumava falar tanto sobre isso. E deixou determinado que fôssemos para lá.
- Mas desconhecia a existência dessa cláusula, não é verdade? E eu nunca concordei com ele. Ele também errava... às vezes. Seu grande propósito era se vingar e a vingança é um erro. Não há felicidade nela.
Manteve-se calado e vi que não estava dando ouvidos ao que eu dizia. Estava pensando nos esforços baldados.
Aproximei-me dele e coloquei uma das mãos em seu ombro.
- Que faremos agora? Vamos voltar para a Austrália?
Não respondeu, mas levantou-se e passou os braços em volta de mim.
- Nora... ,
Repetiu meu nome e beijou-me como nunca havia feito antes. Foi um beijo de" amante - e senti-me feliz.
Calculei que depois disso fôssemos conversar com franqueza, pois havíamos feito uma tácita de sentimentos, mas esse não foi o caso. Stirling mostrou-se mais reticente do que nunca. Vivia calado - quase taciturno - e quando saia a passear a cavalo, fazia-o sozinho. Certa vez, ao vê-lo voltar de um passeio, notei o cavalo banhado em suor.
- Andou sobrecarregando esse pobre animal - censurei-o na esperança de que me contasse o que lhe ia na cabeça.
Eu sabia o que era. Amava-me, porém Lince estava entre nós dois. Lince, o pai dele, havia sido meu marido, e isso criava um estranho relacionamento entre nós.
Há de passar, afirmei a mim mesma. O que-Lince mais desejaria era que eu e Stirling nos casássemos. Éramos as duas pessoas a quem ele mais amara no mundo e haveria de querer que continuássemos juntos. Nosso primeiro filho será chamado Charles, em homenagem a ele. E nunca haveremos de esquecê-lo.
Como se vê, eu estava completamente despreparada para o que aconteceu em seguida. "
Certa tarde Stirling chegou em casa quase ao anoitecer. Ellen já havia acendido as lâmpadas e puxado as cortinas, enquanto eu me via sozinha na sala de visitas. O semblante dele trazia uma expressão estranha, como a de um sonâmbulo.
- É melhor que eu lhe diga logo de uma vez - prorrompeu. - Estou noivo. Não acreditei tê-lo Ouvido corretamente.
- Acabo de pedir Minta em casamento - continuou.
Escutei minha própria voz então, fria, lacónica, quase indiferente.
- Oh... compreendo.
- Compreende mesmo, Nora? - falou quase implorando.
- Lógico. É a única maneira de comprar Whiteladies.
- Era a única maneira... diante do fato de que não pode sair da família.
- Parabéns - desejei-lhe secamente.
Tive de sair da sala. Do contrário seria capaz de me enfurecer e de esbravejar diante dele. í iria pôr a nu meus anseios e esperanças. Não me era possível permanecer naquela sala e querer falar com calma. Portanto, precipitei-me para a porta em demanda de meu quarto e me tranquei.
Jogada na cama, a fitar o teto com o brasão de armas do merceeiro, desejei estar morta.
Não sei como dizer como vivi as semanas que se seguiram. Só sei que tive de presenciar a felicidade de Minta. Como ela o amava! Eu podia compreender.
Não havia dúvida de que ela já se dava por satisfeita com a perspectiva de se casar com Franklyn Wakefield, e de repente lhe chegava esse Stirling atlético e cheio de vida, que quando queria alguma coisa não permitiria que obstáculo algum se lhe interpusesse no caminho. Pobre Minta! Terá atinado nos motivos que o levariam a se casar com ela? Muitas vezes tive vontade de lhe contar tudo, mas guardei rígido controle de minha língua para me impedir de desabafar, o tempo todo nada sentindo por ela senão piedade. Coitada dessa inocente ingenuazinha! Vitima do desejo de vingança de um homem estranho e da tenaz necessidade de outro em cumprir uma obrigação. Pobre e inocente Minta, que se acreditava amada! Não ia se casar pensando salvar Whiteladies, se bem que agora a casa pudesse ser completamente restaurada em sua antiga perfeição. Seria uma casa tratada com carinho. E eu podia imaginar as rigorosas providências de Stirling quanto aos necessários reparos. Não se medem despesas. Quem está falando é o magnata do ouro.
E que felicidade poderia advir de um casamento desses, eu me perguntava com uma ponta de rancor. Eu estava com ciúme, indignada e humilhada. Amava Stirling e acreditava que ele também me amava. E amava mesmo. Mas a fidelidade para com Lince vinha na frente.de seu amor por mim. E uma voz me dizia por dentro: tal como sua paixão por Lince vinha na frente de seu amor por Stirling, lembra-se?
Lince ainda estava conosco, a governar nossas vidas.
Se eu me sentia profundamente infeliz, tratei de não demonstrar. E creio que me comportei muito bem. Stirling cuidou de que raramente ficássemos a sós, mesmo porque passava a maior parte do tempo em Whiteladies. Estava tomando providências, eu supunha, quanto aos necessários reparos e atirou-se na tarefa com todo o fervor com que um homem normal inundaria a noiva.
Minta veio me ver e sentou-se na sala de visitas a acarinhar Donna. Estava felicíssima, disse-me. E iria me contar um segredo. Sentira amor por Stirling desde quando viemos para a Mercers House. Não, muito antes disso. Lembrava-me da ocasião em que nos conhecemos. E quando ele voltou... pareceu coisa do destino.
Do destino não, respondi em pensamento, mas de Lince.
- Stirling adora Whiteladies. Vai gostar muito de morar lá.
É o único motivo para o casamento, tornei a lhe responder mentalmente e com crueldade.
- Ele me faz vê-la de um modo diferente. Mais até do que Lucie. - E LUcie? Lucie está satisfeita?
Franziu as sobrancelhas, o que me despertou um súbito interesse em Lucie que, com seu senso prático, via mais longe do que Minta e o pai.
- Lucie está preocupada comigo. Parece que na opinião dela eu ainda sou uma criança. Foi minha professora há muito tempo no colégio e acho que não me considera outra coisa a não ser uma de suas alunas menos brilhantes.
Sendo assim, Lucie também não aprovava.
- E o que eu queria lhe dizer, Nora, era isso: se quiser vir morar em Whiteladies, sempre haverá lá um lugar para você.
- Eu? Em Whiteladies. Oh, você não há de querer uma sogra-madrasta... escutei-me a rir com um pouco de ironia.
- Esse titulo é um absurdo. Sei que Stirling quer que você venha.
- Disse isso?
- Sim, é claro.
Não, refleti. Nunca! Como poderia eu viver sob o mesmo teto, vendo-os juntos e pensando em tudo aquilo que deveria ter sido meu? De mais a mais, Stirling me amava. Ele sabia disso. Pobre e inocente Minta, tão desavisada das pessoas malévolas que a rodeavam.
- A verdade é que estou me apegando muito à Mercers House.
- O quê? Todo este casarão para você sozinha? Não vá pensar que iremos viver nos bolsos um do outro. Whiteladies é enorme. Você terá uma ala toda própria. Há os apartamentos que costumavam ser de minha mãe.
- Está sendo muito bondosa, Minta, mas prefiro ficar aqui por algum tempo. É possível que eu volte para a Austrália.
- Por favor, não diga isso. Detestaríamos a ideia... eu e Stirling.
E como eu detestava a maneira possessiva com que ela se referia a ele. Meus ?sentimentos estavam tumultuados e eu me sentia desgraçadamente infeliz. Mas, por Minta eu só podia mesmo sentir piedade.
Casaram-se em abril - quando as árvores estavam em florescência e o coral das manhãs chegava a seu ponto mais alegre.
Maud havia enfeitado a igreja com minha ajuda, o que não deixava de ser uma amarga ironia. E como tagarelou! Estava feliz com a felicidade de Minta.
- Se existe uma moça cheia de amor, essa moça é Minta - disse. E vi que Maud estava se imaginando uma noiva, atravessando a nave pelo braço do Dr. Hunter. Eu sentia muita pena de Maud, mas pelo menos ela não tinha de ver o homem a quem amava casar-se com outra.
Até o dia do casamento mantive-me na esperança de que alguma coisa acontecesse para impedi-lo. Mas o dia chegou, Sir Hilary entregou a filha e o Reverendo John Mathers oficiou a cerimónia.
De onde eu estava fiquei observando Stirling a prestar juramento a Minta diante do altar. Eu tinha Lucie de um lado e Franklyn do outro. Lucie mostrava-se um tanto carrancuda, como se temesse pela sorte daquele casamento. E Franklyn? Quais seus sentimentos? Não deu o menor sinal de que estivesse sofrendo em ver a moça que lhe estava reservada casar-se com outro. Mas isso lhe era muito característico.
O responsório terminara e agora eles estavam assinando o livro de registros. Daqui a pouco a Marcha Nupcial ressoaria e eles sairiam juntos pela nave. Era como se fosse um sonho funesto.
E lá vinham eles - Minta, uma noiva radiante, Stirling inescrutável, e o órgão tocando os acordes familiares de Lohengrin. Tudo estava consumado.
Saímos da igreja e, com Franklyn a meu lado, expus-me ao inconstante sol de abril.
MINTA
Não me lembro bem de quando comecei a suspeitar que alguém estaria querendo me matar. A princípio era apenas uma vaga sensação que logo tratei de afastar como ridícula - mas depois tornou-se uma certeza. Eu havia me transformado numa mulher apavorada e infeliz.
Não obstante, no dia em que me casei com Stirling eu fui, tinha certeza, a noiva mais feliz do mundo. Nem podia acreditar que essa coisa maravilhosa me tivesse acontecido. Na verdade, no dia em que ele me propôs casamento fui tomada por completa surpresa. Stirling era diferente de quem quer que eu tivesse conhecido. Havia nele algo de especial. E Nora tinha isso também. Eram o tipo das pessoas cuja vida parecia bem mais excitante que a minha, e isso os fazia estimulados a levá-la. Nora não era lá essas belezas, mas tinha mais encanto do que qualquer pessoa do meu conhecimento. Tinha porte e uma rara dignidade. Bastava alguém botar os olhos nela para se sentir atraído. Levara uma vida bastante diferente. Houve aquele casamento com o pai de Stirling, coisa de que ela falava pouquíssimo, muito embora eu tivesse notado que, toda vez que o nome do marido era mencionado, dava-se uma espécie de pausa sem respiração - tanto em Nora como em Stirling. O fato dela ter sido mulher dele de certo modo a elevava, tornando-a diferente das outras pessoas. Stirling possuía a mesma característica. Não eram fáceis de se conhecer; eram imprevisíveis e diferentes das pessoas que eu conhecera em toda a minha vida - pessoas como Maud Mathers e Franklyn, ou mesmo Lucie a quem eu compreendia e conhecia muito bem.
Jamais esperei que Stirling se interessasse por mim. O que eu pensava era que ele e Nora combinariam muito bem, e que já poderiam estar casados se ela não fosse a madrasta dele. E um belo dia ele chegou e me foi dizendo sem qualquer aviso: "Minta, quero me casar com você". Pestanejei e gaguejei: "O que foi que você disse?" porque estava certa de ter ouvido mal.
Tomou-me as mãos e, beijando-as, disse que queria se casar comigo. Respondilhe que o amava e que sempre o amei desde nosso primeiro encontro, mas nem por sonho calculava que ele sentisse o mesmo por mim.
Falamos com papai imediatamente. Meu pai exultou de alegria, porque sabia que Stirling era rico e, uma vez casada, eu não seria atormentada pela pobreza como ele havia sido. Reuniu a família - inclusive os poucos criados que tínhamos
- e deu a notícia, mandando buscar na adega a última das garrafas de champanha para que todos bebessem à nossa saúde. Os criados cumpriram a ordem prontamente, não sem atentarem para o fato de que doravante seus salários seriam pagos com regularidade.
Havia, entretanto, duas pessoas na casa que não demonstraram contentamento.
A primeira era Lucie. Querida Lucie, sempre se comportava como se eu tivesse acabado de chegar do colégio e precisasse de quem cuidasse por mim. Foi a meu quarto, depois que Stirling saiu, e sentou-se na cama como costumava fazer no tempo em que vinha passar férias em Whiteladies.
- Minta, tem certeza absoluta do que está fazendo?
- Nunca tive tanta certeza de uma coisa. É maravilhoso, porque jamais pensei que ele pudesse pensar em mim.
- Por que não? - ela indagou. - Acontece que você é uma moça bonita e sempre pensei que haveria de fazer um bom casamento.
- Mesmo assim você está se mostrando preocupada.
- E estou... um pouquinho.
- Porquê?
- Não sei. É um pressentimento.
- Oh, Lucie, todo mundo está contente. E ainda que eu não o amasse é bom sob qualquer ponto de vista, não é? Ele vai acabar com todas as nossas preocupações por dinheiro, e você bem sabe como tem se agastado com esta casa caindo aos pedaços.
- Sei disso. Amo esta casa e ela está precisando de reparos urgentes, mas isso não significa que você deva se casar por causa dela.
- Você está bancando uma galinha velha inquieta, Lucie.
- Tenho cuidado de você como minha filha, desde que me casei com seu pai. E antes disso, como sabe, sempre gostei muito de você. Quero vê-la feliz. Minta.
- E estou. Como nunca estive.
- Seria bom que esperasse, e não que se precipitasse em cima das coisas.
Está me parecendo uma profetiza agourenta. Qual o mal de Stirling? Nada, assim espero, mas tudo está sendo muito rápido. Nunca me passou pela ideia que ele gostasse de você.Pelo menos nunca me deu essa impressão.
- Nem a mim tampouco - soltei uma risada .como uma colegial estouvada. - Mas ele é diferente, Lucie. Viveu uma vida diferente da nossa. Você não iria querer que ele se comportasse como gente comum. Não é o tipo que revela os sentimentos.
- O mal é esse. Ele não revela. E a mim seguramente não demonstrou que gostava de você.
- Por que então quer se casar comigo? Não posso lhe acrescentar forma nenhuma.
- Está interessadíssimo na casa. E pode estar à cata de linhagem que uma família como a nossa lhe pode dar. Afinal de contas, quem é ele? Aquela exibição vulgar no Ano Novo mostra uma certa falta de berço.
- Lucie, como ousa dizer uma coisa destas?
- Desculpe-me - assumiu de imediato uma atitude contrita. - vou deixar que minhas preocupações se dissipem. Perdoe-me, Minta.
- Queridíssima Lucie, sou eu quem deve pedir perdão. Sei que está preocupada exclusivamente por minha culpa. Mas na realidade nada existe para causar preocupação. Estou perfeitamente feliz.
- Bem, trate de não se precipitar demais.
- Demais, não - prometi. Eu sabia porém que Stirling queria se casar logo, e tudo agora seria como Stirling quisesse.
A outra discordante era Lizzie. Como ela se tornara dramática- e um tanto cansativa - depois que mamãe morreu. Lizzie esperou que eu me deitasse para poder entrar, deslisar era a palavra, com uma vela na mão como um fantasma. Estava vestida num camisolão de flanela branca, o que contribuía ainda mais para a impressão fantasmagórica. Eu me reconhecia agitada demais para poder dormir, e repassava na mente aqueles instantes maravilhosos em que Stirling me pedira para casar com ele.
Assim que ela empurrou a porta eu perguntei:
- Que está fazendo a perambular pela casa, Lizzie? Vai acabar ateando fogo à camisola com essa vela.
- Eu precisava vir falar com você, Miss Minta.
- A estas horas da noite?
- A hora não tem importância.
- Ora, eu acho que tem, Lizzie, porque estou cansada e você já devia estar na cama.
Não deu ouvidos e sentou-se na beira de minha cama.
- Então vai se casar... com ele.
- vou me casar com Mr. Stirling Herrick, se é a esse que você se refere.
- É esse mesmo. E a parecença é de espantar. Você precisa saber logo quem ele é.
- Por favor, Lizzie, não fale de meu futuro marido com desrespeito.
- Há em tudo isso alguma coisa de antinatural. Para mim é engraçadíssimo. O pai dele querendo se casar com sua mãe, e agora é ele quem chega e se casa com você.
- De que está falando, Lizzie?
- Foi o pai dele que andou por aqui há muitos anos atrás.
- O pai dele! Esse era o marido de Mrs. Herrick.
- Uma verdadeira mixórdia - disse Lizzie. - É por isso que acho tudo muito engraçado. Sua mãe era louca por ele, e não era a única.
- Vá dormir, Lizzie. Você está delirando.
- Não, não estou. É verdade o que estou dizendo. É como se ele tivesse voltado. Aliás, sempre pensei que voltaria.
Os acontecimentos começaram a tomar forma em minha mente.
- Lizzie, você está dizendo que o artista de minha mãe era...
- Exatamente. Mr. Charles Herrick. Você pode ver o nome dele em vários desenhos no armário do atelier. Ele chegou aqui para ensinar desenho a ela, mas logo foi-se embora... foi mandado embora para a Austrália por roubo, e sua mãe nunca mais voltou a vê-lo. Nem voltou a ser o que era antes. Hoje dizem que ele está morto, mas está aí esse outro com quem você planeja se casar. Não parece mesmo coisa do destino?
- Não estou entendendo nada. Acho que você está equivocada.
- Não estou equivocada. Há quem não descanse nem mesmo depois de morto, e ele é um desses.
- Você está fazendo uma situação dramática de uma situação perfeitamente normal.
- Espero que sim, Miss Minta. SinceRamente espero que sim. Mas como veio ele parar aqui assim sem mais nem menos? Ele enfeitiçou a você, como o pai dele enfeitiçou sua mãe e outras.
- Falarei com Mr. Herrick sobre este assunto, da próxima vez que ele vier aqui.
- Pode falar e ouvir com atenção as respostas.
- Agora estou com sono, Lizzie.
- Aceito a ordem, mas já dei meu conselho. Não posso fazer mais do que isso.
Foi então que deu de garra da vela e saiu.
Mas não consegui dormir. Estava demasiadamente transtornada. Seria mesmo verdade que o pai de Stirling era o artista de minha mãe? E que estranha coincidência que a mantilha de Nora tivesse sido soprada exatamente sobre nosso muro. Que significava isso? E tinha alguma importância? O importante era que Stirling me pedira em casamento. Era a casa o que ele queria, conforme Lucie pareceu sugerir? Ou era uma espécie de plano traçado, como Lizzie acreditava que fosse? Afinal, que importava tudo isso? Eu ia me casar com Stirling.
Stirling não via necessidade de demora. Estava ansioso em se tornar meu marido. Mencionei-lhe o que Lizzie me dissera.
- É verdade - admitiu - que meu pai foi professor de desenho em Whiteladies, injustamente acusado de roubo e mandado para a Austrália. Lá rapidamente ele prosperou. Era uma acusação totalmente injusta que se fazia contra um grande homem. Quando vim à Inglaterra para levar Nora, era natural que eu quisesse ver a casa onde meu pai trabalhara. A mantilha de Nora voou por cima do muro e entramos para apanhá-la.
Parecia nada haver de extraordinário nisso tudo. Era tudo muito lógico - a não ser, naturalmente, o fato de Stirling nunca ter mencionado antes as ligações de seu pai com esta casa.
- Sinto muito o que aconteceu com seu pai - disse-lhe.
- Ele não precisava de piedade.
- Mas ser acusado injustamente...
- Acontecia com frequência naquela época.
- Você gostava muito dele, Stirling.
- Era meu pai.
- Demonstra uma certa reverência por ele. com Nora acontece o mesmo.
- Se você o tivesse conhecido, compreenderia.
- Coitada da Nora! Como deve ter sofrido quando ele morreu.
Sem dizer palavra, virou o rosto para um lado. Temi ter sido sem tato. Ele não gostava de falar sobre Nora. Calculei que fosse porque se preocupava com o futuro dela, e assim eu lhe disse que se ela quisesse vir para Whiteladies seria muito bem recebida.
- Afinal, é como se fosse sua irmã. Sei que é, de fato, sua madrasta, mas isso soa ridículo. Ela é tão atraente. Sempre me sinto elevada ao lado dela. Eu gostaria de ser daquele jeito.
Stirling nada respondeu e ficou olhando em frente como se eu não estivesse ali. Está pensando no pai, disse a mim mesma, e alegrei-me de que ele fosse capaz de uma devoção tão profunda.
Houve muitos preparativos para o casamento. Maud Mathers alvoroçou-se com a notícia, dizendo-se invejosa na maneira mais bela possível. Começou imediatamente a planejar como iria ornamentar a igreja. "Oxalá fosse maio e não abril", disse. "Teríamos oportunidades bem melhores no que se refere a flores".
Lucie supervisionou a confecção de meu vestido de noiva. Contamos com Jenny Callow e sua filha Flora para trabalharem nele e noutras roupas para mim. Foi como nos velhos tempos, porque quando eu era menina, antes de nos tornarmos tão pobres, Jenny costumava passar o dia trabalhando em Whiteladies. Naquela época Flora era uma menininha, mas já estava aprendendo o ofício com a mãe. Lembro-me dela sempre de pé a segurar os alfinetes. Depois Jenny teve de sair, mas com tanta gente já acostumada à sua costura, pôde ganhar a vida.
A única pessoa com quem eu podia trocar ideias era Maud. Lucie teria sido ideal, mas eu não podia suportar sua desaprovação silenciosa. Eu gostaria de ter conversado com Nora, mas esta se manteve fora de alcance. Fiquei desapontada, pois imaginava que ela iria ser como uma irmã. Maud quis saber onde iríamos passara lua-de-mel e, quando eu lhe disse que não havíamos tratado desse assunto, caiu das nuvens.
- Veneza! - sugeriu. - Passear de gôndola pelo Grand Canal. Ou Florença. Andar pela ponte onde Dante e Beatrice se conheceram. Roma e o Fórum... pisar no local onde Júlio César foi assassinado. Sempre penso na Itália como um lugar para luas-de-mel.
Surpreendi-me. Não imaginava que Maud fosse tão romântica.
Quando falei a Stirling sobre lua-de-mel, ele disse:
- Porque haveríamos de ir? Que lugar pode ser mais fascinante do que Whiteladies?
- Quer dizer então que vamos ficar em casa?
- Só agora ela se tornou meu lar - respondeu. - Não há nada que eu deseje tanto como explorá-la. Mas é claro que se você quiser viajar...
Eu queria fazer era exatamente o que ele queria.
- Por ora não vai haver lua-de-mel - eu disse a Maud. - Ficará para depois. Os vestidos ficaram prontos, o bolo fora encomendado e papai falou que não
havia necessidade de se olhar para as despesas do casamento. Eu estava arranjando um dote generosíssimo e, graças a meu casamento, Whiteladies seria gradativamente restaurada em sua antiga magnificência.
Uma semana antes do casamento Lucie veio a meu quarto, à noite, para uma conversa.
- Só uma coisa a mais eu quero lhe dizer, Minta. Se quiser mudar de ideia, não hesite.
- Mudar de ideia? A troco de quê?
- Tudo está sendo muito apressado e tem havido bastante murmúrio sobre as vantagens que isso representa para Whiteladies. Se você resolver não se casar, nós nos arranjaremos. Temos conseguido nos arranjar até agora. Não quero que sinta que terá de se casar para salvar a casa.
- Jamais pensei nisso por um momento sequer, Lucie. Adoro esta casa e detesto vê-la desmoronando, mas por isso eu jamais me casaria. É uma questão apenas de excelente sorte o fato de Stirling ser rico e de gostar desta casa. Ele vai endireitá-la todinha. E você ficará contente. Tenho certeza de que há de ficar. Tem se preocupado um bocado com esta casa.
- Ficarei contente, è claro, mas nada justificaria que você fizesse um casamento desastrado.
- Pode descansar o espirito. A razão de meu casamento com Stirling é simplesmente porque o amo.
Estas palavras satisfizeram-na. Começou a falar sobre o casamento e esperava que Maud ficasse bem com o vestido de seda cor de cereja que escolhera. Maud iria ser a dama de honra. Eu tinha esperança de que fosse Nora, mas ela disse que para uma mulher casada seria um absurdo aparecer como dama de honra, e demonstrou tão claramente que não desejava ser que não voltei a insistir. Para Lucie era uma pena que Druscilla não estivesse bastante crescidinha para servir de dama, no que concordei. Havíamos chamado Dr. Hunter para servir de padrinho, e novamente aí Franklyn teria sido a escolha óbvia. Mas de certo modo parecia errado chamá-lo, pois eu sabia que muita gente esperava que ele é que fosse o noivo em meu casamento. Afinal, como já disse, que importância tinha isso tudo? O importante era que eu me casasse com Stirling.
Finalmente chegou o dia do nosso casamento - o dia mais feliz de minha vida. Depois que Mr. Mathers oficiou a cerimónia voltamos para Whiteladies, e a recepção foi dada no grande salão onde, ao longo de séculos, as noivas de nossa família haviam celebrado suas bodas. Naquele dia Stirling parecia estar embevecido. Ele me ama, afirmei-me em pensamento. Não poderia estar com este aspecto se não me amasse.
Permaneceu no salão a meu lado, junto do enorme bolo, e conduziu minha mão enquanto eu o cortava. Ele transparecia uma coisa que só posso descrever como triunfo.
Houve os discursos de praxe - o de papai um tanto desconexo e sentimental, o de Dr. Hunter bastante curto e espirituoso, e convencional o de Franklyn o tipo dos discursos que nos últimos cem anos eram feitos em casamentos. Stirling respondeu. Foi direto. Para ele aquele era um dia feliz. Sentia-se como se tivesse voltado para casa.
Vários convidados ficaram para o jantar e, depois, dançamos no salão que se revelou uma esplêndida sala de baile. Eu e Stirling dançamos a valsa. Ele não dançava muito bem, e amei-o ainda mais por causa disso.
- Você há de ver que me ressinto de maneiras polidas - disse-me.
- Sei que vou amar o que descobrir - respondi.
Os convidados saíram, então, e ficamos sozinhos. Eu estava um pouco temerosa de minha inexperiência, mas Stirlimg foi gentil. Era quase como se ele estivesse com pena de mim, e sua ternura inesperada encantou-me.
Sim, foi o dia mais feliz de minha vida.
Foi uma lua-de-mel estranha. No primeiro dia Stirling quis que eu o levasse num giro pela casa. "Só nós dois", disse.
Senti grande prazer e saímos juntos a percorrê-la. Ele mostrou-se horrorizado com o estado geral das coisas, tendo feito uma porção de anotações. Lembro-me que em vários cómodos ele andou testando as vigas de carvalho.
- Cupim! - notou de passagem. - Elas podem ruir a qualquer momento. Teremos de iniciar obras imediatamente.
- Você mais parece um assessor do que um marido - disse-lhe.
- Esta casa é sua - retrucou. - Será a herança de nossos filhos e temos de mantê-la em ordem.
Até então eu não havia notado a completa negligência em que a casa se encontrava.
- Vai exigir que se gaste nela uma fortuna, Stirling. Não há necessidade de se fazer tudo de uma vez.
Eu tenho essa fortuna -foi explícito. Ri-me, porque aquilo que Lucie chamava de ostentação a mim me divertia muito. Era rico e gabava-se de ser. Fora o pai quem construira aquela fortuna, e tudo o que o pai havia feito era em sua opinião simplesmente portentoso. - E nada será deixado por fazer - continuou. - Cuidarei de que sua casa fique em perfeitas condições.
- Seria bom, Stirling, que você não dissesse sua casa desse jeito. O que eu tenho é seu. Sabe disso.
Sorriu-me de um modo que me deixou profundamente comovida e me beijou com ternura.
- Você è uma garota adorável, Minta. Perdoe-me se sou assim como sou. Ri-me nos olhos dele.
- Mas é por isso que o amo. - Colocou os braços em torno de mim e me apertou. - Vamos ser muito felizes - disse-lhe, como se ele é que precisasse de conforto.
- nossos filhos haverão de brincar nos gramados de Whiteladies - falou em tom solene.
- Uma Whiteladies bela e restaurada, sem cupim no madeirame e com bastiões que resistam a outros mil anos.
com quanta energia Stirling se entregou à restauração da casa! Nem bem se passaram três meses, o caruncho tinha sido debelado e Whiteladies começava a voltar a ser uma bela mansão antiga. Não se dava porém por satisfeito e dizia que ainda restava muita coisa por fazer. Esse período foi o que chamei de Verão de Whiteladies.
No inicio de setembro uma tragédia enlutou Wakefield. Sir Everard teve outro ataque e morreu. Já era de se esperar, pois todos sabíamos que ele não viveria muito. Mas mesmo assim foi um choque. Especialmente para Lady Wakefield. Sem o marido ela se sentia perdida. Franklyn permaneceu a seu lado o tempo todo, mas, tomada de aflições, uma semana depois do funeral ela se recolheu ao leito e por semanas a fio ficou deitada sem demonstrar a menor vontade de largá-lo. Morreu em meados de outubro, o que para todo mundo significou um "descanso feliz".
O pobre do Franklyn ficou desolado, embora não fosse homem para demonstrar. Contou-nos o Dr. Hunter que já o prevenira da inevitabilidade da morte do pai, e o fato de Lady Wakefield ter morrido pouco depois era como se ela mesma o tivesse desejado. Dr. Hunter viera a Whiteladies para ver Druscilla. Lucie estava sempre a chamá-lo, e era até ridícula essa preocupação com a menina. A verdade era que, no que dizia respeito a Druscilla, ela perdia por completo seu costumeiro senso prático.
- Ela não tinha vontade de viver, - disse Dr. Hunter. - Sei que tem havido muitos casos iguais a esse. Duas pessoas vivem juntas a vida inteira e, quando uma parte, a outra vai atrás imediatamente.
Meu pai ficou nervoso com a perda de dois queridos amigos e insistiu em comparecer ao funeral. Lucie era contrária, porque estava soprando do leste um ventozinho penetrante e não ia permitir que ele fosse. Sim, ela era dada a se afobar por nossa causa. Talvez fosse porque nunca tivesse tido família antes, e isso fazia de nós uma coisa muito preciosa a seus olhos. Papai geralmente contemporizava, mas dessa vez se mostrou inflexível. E dizendo que estava decidido a "ver o último de seus velhos amigos", bateu-se para a igreja, acompanhou o féretro até a sepultura onde se postou de chapéu na mão, exposto ao vento.
Entristeci-me com a situação de Franklyn, sabendo-o muitíssimo dedicado aos pais. E, ainda bem que Nora estava por perto, pois eu sentia que a presença dela o confortava. Desde algum tempo eu sabia que ele a admirava. E embora ela demonstrasse uma certa altivez com relação a ele, era-lhe cordial à sua maneira. Fiz ver a Stirling que para Nora seria uma solução magnífica se casar com Franklyn, já que ela falava constantemente de suas intenções de voltar para a Austrália.
- São completamente incompatíveis - disse Stirling friamente. - Franklyn! - acrescentou com acentuado desdém, como se Franklyn não desse um bom marido.
- Você não conhece Franklyn - defendi meu velho amigo. - É uma das pessoas mais bondosas do mundo.
Virou o rosto visivelmente zangado. Nora fora casada com o pai dele e, pelo visto, o pensamento de que alguém o suplantasse era simplesmente repugnante.
Mesmo assim continuei a pensar que seria formidável se Franklyn e Nora viessem a se casar. Eu gostaria de saber se a ideia passara pela cabeça de Franklyn. Pela de Nora eu tinha certeza que não.
Poucos dias depois do funeral de Lady Wakefield, papai contraiu um resfriado. Lucie inquietou-se terrivelmente, como sempre fazia quando ele estava doente, e obrigou-o a permanecer na cama. Nunca que ele deveria ter ido ao enterro, ela resmungava.
Ele mandou chamar Dr. Hunter e com ele permaneceu a sós por muito tempo. Quando o médico saiu do quarto pedi-lhe que viesse à biblioteca e perguntei-lhe se meu pai estava realmente doente ou se era apenas preocupação de Lucie.
- É um resfriado - respondeu - mas com ameaça de bronquite. Espero que tenhamos descoberto a tempo. Alguns dias de cama, nada mais.
Coitado do Dr. Hunter! Ele próprio parecia muito cansado, e logo imaginei-o chegando àquela casinha desarrumada onde a governanta bem que podia se encontrar em estupor de embriaguez. Por que não se casava com Maud? Ela cuidaria muito bem dele. "
Antes que ele se dirigisse para o cabriolé, insisti em que aceitasse um copo de sherry, o que lhe trouxe para as faces um pouco de cor além de tê-lo deixado mais animado. ??
- Passarei aqui à noitinha - prometeu - para certificar-me de que seu pai está reagindo como deve.
Quando ele passou à noitinha, papai já estava com bronquite. E esta em poucos dias virou pneumonia. Nunca antes eu havia visto Lucie tão nervosa, e pensei na sorte de meu pai em contar com uma esposa tão dedicada. Era minha crença que Lucie havia feito um casamento por mera conveniência, que sempre sonhara em ter Whiteladies como seu lar definitivo e, não havia dúvida, sentia um grande prazer em ser Lady Cardew. Mas quando a vi nervosa como estava,compreendi que realmente zelava por meu pai. Não arredou pé do quarto e, tendo permanecido noite e dia ao lado dele, só cochilava um pouquinho quando eu me achava presente.
- Não confio nesses criados - disse. - Pode ser que ele precise de alguma coisa.
- E se não tratar de repousar, é você quem cairá doente - ralhei. Sentei-me ao lado dele e, tão logo começou a tossir, ela se levantou. Esperamos pela crise, e eu sabia que o Dr. Hunter acreditava não existir muita
esperança. Papai era velho e de algum tempo já vinha de saúde alquebrada. Além do mais, pneumonia era uma doença séria mesmo em jovens.
Papai queria que Lucie permanecesse o tempo todo a seu lado, demonstrando impaciência quando ela se ausentava. Era uma beleza ver como os dois se amavam, e diante daquilo eu me lembrava de como minha mãe havia sido ranzinza. Ainda bem que, no fim da vida, meu pai encontrara a felicidade com uma mulher como Lucie.
Estávamos ambas presentes quando ele morreu, mas foi a mão de Lucie que ele segurou. Nunca poderei me esquecer da expressão que ela estampou no rosto ao erguê-lo para mim. Parecia ter perdido tudo o que mais estimava.
- Lucie querida - confortei-a, -você ainda tem Cilla.
Levei-a ao quarto de Druscilla. Eram nove horas e a menina já estava dormindo. Mesmo assim, retirei-a do berço e coloquei-a nos braços de Lucie.
- Mamãe - balbuciou Druscilla entre sonolenta e contrariada.
E Lucie abraçou-se pateticamente à criança, até que tomei Druscilla de suas mãos e tornei a colocá-la no berço. Foi um gesto talvez um tanto dramático e sentimental, mas fez algum bem. Lucie empertigou-se e vi que estava a considerar que ainda tinha Druscilla como uma razão de viver.
Chegou o Natal. No ano passado havíamos ido para Wakefield Park, mas este ano celebraríamos as festividades em Whiteladies. Não seriam tão brilhantes como haveriam de ser no próximo ano, disse Stirling, por causa da morte de meu pai, mas iriam ser dignas da casa. Que ficasse bem subentendido que Whiteladies, e não Wakefield Park, é que era o ponto focal do lugar.
Lucie transformara-se numa espécie de fantasma com aquelas roupas de viúva. Na verdade, até que elas lhe caíam bem. Quanto a Druscilla, já com quase dois anos, tornara-se imperiosa e exigente, os dengos da casa. lucie amava-a extremosamente, mas recusava-se a mimá-la, como eu desconfiava que nós outros fazíamos. Eu a adorava e tinha uma vontade enorme de ter um filho meu. Stirling também queria e vivia falando em nossos filhos brincarem nos gramados de Whiteladies.
Certa vez pensei que estivesse grávida, mas na realidade não estava. Fiquei bastante abalada e prometi que da próxima vez não falaria nada a ninguém, senão depois de ter certeza. Lucie era que me fazia constantes insinuações. "Quando você tiver um filho seu..." costumava dizer. Uma vez saiu-se com esta: "é possível que você esteja querendo ter um filho com muito ardor. já ouvi dizer que, às- vezes, quando se quer demais, não se concebe. É uma espécie de perversidade da natureza".
Quando lhe falei das intenções de Stirling de promover as festas tradicionais do Natal, como costumávamos fazer no passado, ela considerou uma ótima ideia.
- Whiteladies é uma casa ilustre - disse. - Wakefield Park é um simulacro. Acho que seu marido está pensando certo.
Eu me alegrava de ver que ela começava a simpatizar com Stirling e a afastar as suspeitas sobre os motivos que o levaram a se casar comigo.
- Quando tiver filhos, provavelmente você há de querer que eu me retire daqui - disse-me um dia.
- Que absurdo! - protestei. - Seu lugar é aqui. E que iríamos fazer sem você?
- Nem sempre haverá de ser assim. Sou apenas a madrasta... da qual realmente não se precisa muito.
- Quando não precisei de você? - perguntei com insistência.
- Saberei quando me tiver chegado a hora de sair - disse.
- O melhor seria que não me dissesse uma coisa dessas.
- Está bem. Esqueçamos. Mas eu jamais ficaria se me soubesse indesejada. Ótimo, garanti-lhe. Por esse motivo ela jamais haveria de sair.
Stirling exultava com os planos para o Natal. Grande parte das obras essenciais da casa já havia sido feita, e nisso ele revelava um orgulho todo especial, embora ainda restasse fazer muita coisa. O pessoal de serviço aumentara de número. Agora que contávamos com seis jardineiros, os jardins estavam tomando um aspecto lindo. Sempre havia trabalhadores pela casa, e vários cómodos estavam fora de uso, ora porque substituía-se o assoalho ora porque as esquadrias estavam sendo reparadas. Duas semanas antes do Natal tive quase certeza de que estava grávida. Ansiava por contar a alguém, mas resolvi não fazê-lo. Não queria atiçar as esperanças de Stirling. Muito estranhamente, Lizzie desconfiou. Foi quando ela estava espanando o quarto de Druscilla, o que era uma de suas obrigações. Eu havia entrado no quarto para ver a menina e encontrei-a no chão a brincar com módulos de madeira. Ajoelhei-me e, juntas, construímos uma casinha. Eu não conseguia afastar, meus olhos daquele rosto pequenino com um narizinho, delicado e graciosas mechas de cabelo escorrendo pela testa. Eu estava pensando em meu próprio nenen quando Lizzie falou daquele jeito à queima-roupa:
- Então vai ser assim, não é? - Assim como? - surpreendi-me.
Lizzie embalou nos braços um bebé imaginário. Fiquei corada e Druscilla gritou:
- Que é que tem aí, Lizzie?
- A senhorita ia ficar surpresa se eu lhe dissesse que é outro bebé. E esse vai passar para trás o narizinho de Miss Cilla.
Druscilla tocou o narizinho com a mão e perguntou:
- Que é que quer dizer isto?
- Lizzie está brincando - beijei-a.
- A mim você não engana - insistiu Lizzie. - Sempre existe uma maneira de dizer.
O Natal havia chegado e ficara para trás. O Bazar fora organizado no salão recém-restaurado de Whiteladies, e Stirling proporcionara farta e gratuita diversão para todos, coisa que nunca havia acontecido antes. Foi um grande sucesso e todo mundo se mostrou satisfeito com nossa nova prosperidade. Recebemos em Whiteladies os cantores natalinos que se serviram da ceia, de vinho e de passas. Escutei um dos membros mais antigos dizer que foi como nos velhos tempos, e mesmo antigamente não se lhes costumava servir vinho tão bom.
No Dia de Natal fizemos apenas um jantar simples, em atenção a nosso luto - apenas a família, mais Nora e Franklyn. No dia seguinte, fomos todos para Wakefield Park.
Foi já no Ano Novo que experimentei os primeiros dos incidentes alarmantes.
? Naquela manhã, na hora do café, Stirling estava falando - como sempre fazia - sobre as obras que estavam sendo feitas na casa.
- Já começaram o serviço no torreão - disse. - Há muito mais coisa a fazer do que eu pensava.
- Será maravilhoso quando tudo estiver concluído, não será? Só assim viveremos numa casa que não esteja constantemente abarrotada de trabalhadores.
- Tudo o que foi feito até agora era imprescindível - lembrou-me Stirling.
- Se meus ancestrais podem ver o que está acontecendo em Whiteladies, hão de abençoá-lo.
Conservou-se calado por algum tempo, mas logo disse:
- U ma casa grande como esta deveria ser o lar de muitas pessoas. - E voltando-se para Lucie: - Não concorda?
- Plenamente - ela respondeu.
- E você que estava falando em nos deixar - acusei-a. - Não haveremos de permitir, não é isso mesmo, Stirling?
- Minta não poderia passar sem você -disse Stirling, e Lucie aparentou satisfação, o que me deixou feliz.
- E há também o caso de Nora - prossegui. - Como eu queria que ela viesse para cá. É um absurdo uma pessoa morar sozinha na Mercers House.
- Ela está pensando em nos deixar - completou Stirling.
- E certamente que não haveremos de permitir que isso aconteça.
- Como podemos evitar, se ela quer ir? - ele perguntou com bastante indiferença.
- Há muito tempo que ela vem dizendo que vai embora, e continua ficando. Deve haver um motivo para ela ficar.
- Que motivo? - lançou-me um olhar como se me antipatizasse, mas acreditei que fosse a idéía de Nora partir o que ele não via com bons olhos. Dei de ombros e ele continuou: - A qualquer hora destas vá dar uma espiada no que fizeram nos torreões. Não devemos permitir que as coisas antigas sejam destruídas. É preciso que se cuide da restauração com muito carinho.
Ele queria que eu me interessasse na obra que estava sendo feita e por isso respondi que iria à tarde antes do escurecer (naquela época do ano escurecia pouco depois de quatro horas). Pela manhã eu não teria oportunidade de ir, pois já havia prometido" tomar um café com Maud que estava organizando um bazar para doze noites consecutivas e andava preocupada com as bebidas. ISsO me tomaria toda a manhã e Maud ainda me pedira para almoçar com ela. Stirling parecia não me ouvir. Pensativa, olhei para ele. Não era de modo algum um marido que se deixasse revelar. Seu ato de amor me dava a impressão de uma coisa maquinal - como se fosse uma obrigação que ele tivesse de cumprir.
Eu não desconhecia, naturalmente, que ele era um homem fora do comum. Por mais de uma vez frisara o fato de que não possuía maneiras requintadas, pois não fora educado numa mansão inglesa como outras pessoas. Estava se referindo a Franklyn. Positivamente ele não gostava de Franklyn, e eu desconfiava que era porque Franklyn admirava Nora, e nem de longe ele admitia que homem algum pudesse substituir o pai dele.
Ele não precisava se preocupar, disso eu tinha certeza. Se Franklyn estava amando Nora, Nora se mantinha tão friamente distante dele como, em minhaopinião, Stirling de mim. Mas eu amava Stirling profundamente e, pouco importava o que ele sentisse por mim, continuaria amando-o. Ocasiões havia em que eu acordava durante a noite, deprimida, e dizia a mim mesma: ele se casou com você por causa de Whiteladies. E de fato sua obcessão pela casa bem poderia significar que isso era certo. Mas no fundo do coração eu não acreditava. Era que ele não era homem de revelar sentimentos.
Voltei da casa paroquial às três e meia. Era um dia nublado, de tal modo que a semi-obscuridade quase nos abafava. Lembrei-me do bastião e, como Stirling provavelmente iria me perguntar se eu teria ido vê-lo, achei que era melhor fazê-lo imediatamente. Qualquer falta de interesse de minha parte nas obras parecia exasperá-lo.
A torre da qual se salientava o bastião ficava na parte mais antiga da casa. Esse é que era o desenho primitivo. Não era usada como dependência de morada, mas Stirling tinha mil ideias para aproveitá-la. Subia-se por uma escada em caracol com um corrimão de corda. Antigamente era raro irmos lá; tanto assim que, quando levei Stirling a conhecê-la, era-me tão pouco familiar quanto a ele. Agora viam-se pelos degraus salpicos de lavagem branca e sinais de que os trabalhadores haviam estado ali.
Por ser uma subida longa, parei na metade do caminho para respirar. Em minha volta tudo era silêncio. Que parte tétrica da casa era esta! A escada interrompia-se num patamar que dava para um corredor largo com celas em ambos os lados, como alcovas.
Enquanto permaneci nesse patamar lembrei-me de uma antiga lenda que me contavam em criança. Uma freira jogara-se do bastião, diziam. Pecara por quebrar seus votos e sacrificara a vida como uma fuga do mundo. Whiteladies, como toda mansão velha, tinha de ter seus fantasmas, e qual o melhor do que o de uma freira? Vez por outra dizia-se que uma figura branca fora vista na torre ou no bastião. De fato, depois que escurecia nenhum dos criados se atrevia a ir à torre e nem sequer a passar por perto, quando em demanda para a rua. Não dávamos muita atenção a essa história, mas pelo fato de me encontrar sozinha ali, ela me ocorreu à lembrança. Aquela era o tipo da tarde propicia a inspirar tais pensamentos - sombria, nublada e com uma insinuação de neblina no ar. Julguei ouvir passos leves nos degraus abaixo de mim. E como que, pressenti uma presença por perto. Na incerteza, fiquei parada, gelei de repente como se um estranho terror avançasse sobre mim.
Dei as costas ao patamar e recomecei a subida. Iria dar uma rápida espiada e descer sem demora. Não queria que Stirling pensasse que eu estava desinteressada. Como os degraus eram íngremes, fiquei sem fôlego e tratei de me apressar. Por que me apressar? Não havia necessidade, a menos porque quisesse descer logo, e na verdade eu queria me ver longe daquela torre mal-assombrada.
Fiz uma pausa. E então ouvi. Uns passos lentos e furtivos na escada. Apurei os ouvidos. Silêncio. Imaginação, disse a mim mesma. Ou talvez um operário. Ou então Stirling querendo me mostrar o andamento das obras.
- Alguém aí? - perguntei.
Silêncio. Um silêncio aterrador. Pensei comigo mesma; Não estou só nesta torre. Disso tenho certeza. Alguém está perto... não muito atrás de mim. Alguém que não responde quando chamo.
As vezes penso que existe mesmo um anjo de guarda que segue nossos passos e nos avisa do perigo. Senti então que estava sendo premida a ter cautela, que o perigo não estava muito longe de mim.
Corri para o alto da torre. De mãos crispadas na pedra e inclinada sobre o parapeito. Lá permaneci por alguns momentos. Olhei para baixo, lá embaixo, e pensei: alguém está subindo os degraus. E vou ficar sozinha aqui com essa pessoa... sozinha nesta torre.
Sim. Estava vindo. Passadas furtivas. O rangido da porta que dava para o último lance de degraus. Mais três degraus e... continuei agarrada às pedras, meu coração trovejando enquanto eu rezava pedindo um milagre.
E o milagre estava ali, lá embaixo. Avistei Maud Mathers com seu andar rápido e um tanto desajeitado.
- Maud! Maud! - gritei. Ela parou e olhou em volta.
Oh, meu Deus, ajudai-me. Está se aproximando. Maud estava olhando para cima.
- Minta! Que está fazendo aí em cima? - A voz dela era o tipo da voz que se podia ouvir no fundo do salão quando a aldeia encenava um auto de fé.
- Só olhando as obras que estão sendofeitas.
- Vim trazer as luvas que você esqueceu na casa paroquial. Calculei que precisasse delas.
Ri-me de alívio. Voltei-me e olhei por cima dos ombros. Nada. Simplesmente nada. Eu experimentara um momento de pânico que Maud dissipara com seu bom senso.
- vou descer já. Espere por mim, Maud. Já estou indo.
Desci as escadas e não vi sinal de ninguém. Foi uma ilusão, disse a mim mesma. O tipo da coisa que acontece às mulheres grávidas.
Não voltei a pensar nesse incidente senão algum tempo depois.
Em fins de janeiro eu estava certa de que iria ter um filho. Stirling mostrava-se encantado - triunfante talvez fosse a palavra - e isso me fez muito feliz. Notei todavia que ele andava mais arredio do que nunca. Passei a vê-lo muito menos. Além de estar constantemente junto dos trabalhadores, dera de comprar terras nasvizinhanças. A minha impressão era que ele queria de algum modo derrotar Franklyn, o que não deixava de ser muito ridículo, pois os Wakefield possuíam aquele parque havia mais de cem anos e, por mais terras que Stirling adquirisse, rivalidade ali não fazia sentido.
Lucie era que se excedia em atenções a mim, demonstrando nervosismo quanto ao nenen. A toda hora queria conversar comigo sobre esse assunto.
- Druscilla vai ganhar um sobrinho ou uma sobrinha? Que família complicada somos nós!
Uma coisa que me deu muita alegria foi descobrir que BelL, a gatinha que Nora me havia dado, estava para dar cria. Eu já me habituara a gostar de Bella. Era uma gata singularíssima, e Nora dizia a mesma coisa de Donna. Seguiam-nos como se fossem cães, eram afeiçoadas e de nada gostavam tanto como de deitar no nosso colo para serem afagadas e de ronronar atrás de nós. Eu achava muita graça quando, em visita à Mercers House, via que Donna tinha um comportamento igual ao de Bella. Por isso, ao saber que Bella iria ter gatinhos, não resisti ao impulso de dar a notícia a Nora.
Ultimamente eu não me sentia muito à vontade diante de Nora. Tal sensação não existia antes de meu casamento, mas agora parecia haver uma barreira entre nós, barreira erguida por ela e não por mim, tenho certeza.
Encontrei-a na estufa, onde tentava cultivar orquídeas, e Donna estava esparramada num banco a vê-la trabalhar.
- Nora, quer saber de uma coisa? Bella está para dar cria.
Olhou-me de frente e riu, tal como eu gostava de vê-la - alegre e simpática.
- Que coincidência - disse.
- Refere-se a... nós duas? Nora assentiu com a cabeça.
- Coitada da Donna, vai se sentir ofendida quando souber.
À menção de seu nome, Donna miou em sinal de reconhecimento e se esfregou no braço de Nora.
- Então ele lhe passou para trás, hein? - Nora falou com a gata. E para mim:
- Que vai fazer com eles? ?"
- Ficar com um e procurar um lar para os outros. Creio que gostarão de ficar com um na casa paroquial.
Fomos para dentro de casa, quando então Mrs. Clee nos serviu café naquele seu jeito um tanto truculento que agradava a Nora e que era destinado a mostrar que as coisas iam bem melhores na Mercers House do que em Whiteladies.
- vou dar um jantar na próxima .semana - disse Nora. - Você precisa vir, Minta.
Adoraremos vir, sem dúvida.
Vai ser uma ocasião toda especial.
Não explicou por que, nem indaguei eu. Fosse como fosse, eu sabia que não adiantava indagar. Nora era o tipo da pessoa que não podia ser coagida a dizer o que não queria.
Enquanto tomávamos café, ouvimos o barulho dos cascos de um cavalo no piso lajeado da estrebaria.
ÉFranklyn -disse Nora olhando pela janela. - Ele me visita frequentemente. Costumamos jogar uma partida de xadrez. Acho-o muito solitário depois que os pais morreram.
Franklyn entrou de ótima aparência. Quem sabe se não vai haver um anúncio de noivado? Talvez seja este o motivo do jantar, pensei. Por nenhum dos dois se podia dizer nada. Mas as frequentes visitas de Franklyn à Mercers House pareciam significativas. De resto, eu o conhecia muito bem e tinha certeza de que estava amando Nora.
Aguardei aquele jantar com muita ansiedade. Para mim seria uma reviravolta agradabilíssima se Nora viesse a se casar com Franklyn, e todos nós vivêssemos felizes para sempre.
Na noite do jantar, porém, tive um choque. Não se fez a menor menção a noivado. Em vez disso, Nora nos participou que aquele seria um dos últimos jantares que ela daria, pois resolvera em definitivo voltar para a Austrália.
Bella andava desaparecida. Logo calculamos que tivesse se escondido para ter seus filhos, onde era é que não tínhamos a menor ideia. Um hábito comum aos gatos, disse Lucie. Fiquei um pouco preocupada porque sabia que ela iria precisar de comida, mas, como disse Lucie, esse não, era motivo de preocupação, pois ela sabia onde vir buscar quando quisesse.
Reapareceu um dia e uma noite depois, tudo indicando que tivera dado cria.
- Teremos de segui-la - disse Lucie - para ver onde eles estão.
Foi o que fizemos e, para nosso espanto, Bella nos conduziu à torre. As obras haviam sido interrompidas por força da dificuldade em se encontrar um tipo especial de madeira. Dissera Stirling i, de um arremedo não se podia fazer, e por isso aquela parte das restaurações tivera de ser adiada. Por terem deixado aberta a porta que dava para a torre, Bella encaminhara-se para lá. Havia ido direto para o topo e, onde os trabalhadores tinham largado uns sacos de aniagem, aí estavam quatro dos mais lindos gatinhos que já vi. Eram castanhos como Bella, e me comoveu o desvelo que a mãe dedicava àquelas coisinhas cegas. Ronronou enquanto eu os admirava, mas-demonstrou reprovação quando os toquei, tornando-se inquieta se alguém mais se aproximava.
- É melhor deixá-los aí - disse Lucie. - Ela não vai gostar nem um pouco que eles mudem de lugar. E trataria de escondê-los. É conhecido esse comportamento dos gatos.
- vou cuidar deles e eu mesma trarei aqui a comida de Bella.
Fui imediatamente dar a notícia a Nora e dizer onde os gatinhos foram encontrados, ao que me respondeu que viria vê-los dentro de um ou dois dias.
Eu subia a escada em caracol diariamente e quase sempre pensando naquela ocasião em que me vira assaltada de pavor. Agora, a sensação de medo havia desaparecido por completo. O fato de Bella ter escolhido a torre para seus gatinhos tornou-a milagrosamente normal. Eu já me habituara a subir todas as manhãs, por volta das onze horas, levando a comida de Bella e uma tigela de leite. Aguardava-me em expectativa e revelava satisfação quando, todas as manhãs, eu examinava o crescimento dos gatinhos.
Certa manhã eu estava de subida quando Nora chegou.
- Veio ver os gatinhos? - perguntei.
- E a você também - acrescentou. Ela se tornara mais cordial desde o dia em que lhe fui dar noticia dos gatinhos.
- Eu já ia subir para levar a comida deles. Venha comigo.
Eu devia de ter mesmo um anjo de guarda, pois o meu fim teria sido ali se Nora não tivesse vindo comigo. Como sempre fazia, eu colocava o pires na sacada de pedra para despejar o leite, o que me poupava de abaixar. Nora estava um pouco atrás de mim e, nem bem coloquei o pires no lugar e comecei a despejar o leite, ouviu-se de repente um ruído. Nora pegara-me pelas saias e se mantinha agarrada a elas. A sacada sobre a qual eu havia colocado o pires inesperadamente ameaçou desmoronar. Cheguei a ouvir o estrépito da alvenaria se despregando. Não sei o que aconteceu porque Nora puxou-me para trás com tal força que ambas caímos ao chão.
Nora levantou-se primeiro, o rosto cadavérico.
- Minta, você está bem?
Não sabia responder. Estava demasiado aturdida. Não pensava em outra coisa senão naquele súbito colapso e em poder ter sido arrastada para a frente, levando Nora comigo... do ponto mais alto de Whiteladies, como fizera a freira tempos atrás.
- Idiotas! - gritou Nora. - Bem que podiam nos ter avisado. Esta balaustrada estava perigosa. - Ajoelhou-se a meu lado. - Minta..,? - Eu sabia que ela estava pensando no meu nenen. Eu podia sentir os movimentos da criança e enchi-me de alívio ao ver que ainda estava viva. - vou pedir ajuda rapidamente - continuou Nora. - Fique aí. Não se mexa.
Tentei levantar-me quando ela saiu. Bella, a lamber os filhotes, estava alheia à tragédia que por pouco não se consumara. Arrepiei-me e esperei que meu filho me demonstrasse novamente que continuava vivo. Tive medo de ficar de pé para não lhe causar algum mal, e Nora parecia demorar uma eternidade. Quando voltou, trouxe Lucie consigo, de rosto contraído e apreensivo.
- Minta! - ajoelhou-se a meu lado. - Mas isto é terrível. Aqueles homens mereciam levar um tiro.
- Como vamos conseguir levá-la pelas escadas? - perguntou Nora.
- Primeiro teremos de chamar o Dr. Hunter - respondeu Lucie.
- Esta torre tem qualquer coisa que não me agrada - admiti.
- O quê? - quis saber Lucie.
- Qualquer coisa de... maléfico.
- Está com a mesma impressão dos criados - Lucie foi ríspida. Detestava o que chamava de "fantasias estúpidas". E, prática como era, trouxe consigo um travesseiro e cobertores, ela e Nora permanecendo comigo até que o Dr. Hunter chegasse.
Ele me fez ficar de pé.
- Nenhum osso fraturado - disse. Olhou de sobrolho fechado para a balaustrada. - Como se pode permitir uma coisa dessas?
- Eles estiveram trabalhando aqui durante semanas - explicou Lucie. - Devíamos ter pensado que uma coisa dessas bem que podia acontecer. Quando se pensa que uma casa velha como esta de repente passa a sofrer pancadarias por todos os lados... Seja como for, os gatinhos terão de ser levados para baixo. Pode ser que a gata não goste, mas terá de se conformar. vou mandar Evans buscá-los e arranjar um lugar para eles na estrebaria.
- Pode descer para seu quarto - disse-me Dr. Hunter. - Mas é aconselhável que fique de repouso por alguns dias, só para ficarmos tranquilos. De pés para cima, ahn?
- Pode deixar que cuidarei disso - interveio Lucie com firmeza.
Embora não me tivesse acontecido nenhuma lesão grave, Lucie insistiu em que me mantivesse de cama. Quanto a isso, ela nem precisava se preocupar. Eu estava resolvida a cumprir as determinações do médico, pensando no bem-estar de meu bebé. Mas duas noites depois, tive um sonho. Eu estava na torre e, de repente, o terror que me assaltara antes, voltara a ameaçar. Olhei com atenção a meu redor e nada vi. Mesmo assim, alguma coisa ali estava - uma coisa sem rosto que me tentava forçar por sobre o parapeito.
Acordei assustada e por alguns momentos julguei que realmente estava na torre. Logo porém me dei conta de que estava em minha cama quente e confortável. Dormia sozinha, pois agora Stirling ocupava outro quarto a pretexto de que assim seria melhor para o bebé. Permaneci deitada a me lembrar daquela vez em que subi as escadas para a torre e julgara que alguém estava me seguindo. O medo que eu sentira então era igual ao que em sonho experimentara. Maud surgira lá embaixo. E se ela não tivesse surgido? Vi-me mentalmente agarrada àquela balaustrada de pedra, a presença maléfica aproximando-se por trás de mim... e ninguém lá embaixo. Isso era um exemplo da imaginação disparatada de uma mulher grávida, que sente tão fortemente a necessidade de proteger o filho que se imagina alvo de pessoas que querem matá-la. Por quê? com que objetivo?
Já plenamente desperta, ri de mim mesma. O primeiro incidente fora pura imaginação; o segundo poderia ter acontecido a qualquer pessoa. Não havia o menor motivo para que alguém me quisesse fazer maL .
Muito cedo porém eu iria descobrir que existia uma razão.
Stirling andava com vontade de oferecer um jantar - dessa vez uma recepção bastante esmerada. Em sua opinião já não éramos uma casa enlutada e, por não termos podido celebrar o Natal como ele desejava, agora iria fazer qualquer coisa.
Eu notava que ele se sentia agastado com o propósito de Nora em nos deixar e, particularmente nesse caso, fiz questão de agradá-lo. Ele planejava fazer uso da galeria dos menestréis e, como esta se mantinha tal qual como há anos atrás quando artistas ali se apresentavam, fazendo-me acompanhar de duas criadas, fui lá para ver se tudo estava em ordem. Descobri mais tarde que havia perdido uma das pedras de um broche de pérola e granada que pertencera à minha mãe, e ocorreu-me tê-la perdido talvez na galeria. Fui até lá dar uma busca, e foi então que escutei um diálogo entre Nora e Stirling. Sobre o tablado inferior da galeria existiam reposteiros de veludo vermelho e pesadas cortinas do mesmo tecido, que podiam ser corridas quando os músicos tocavam. Eu estava de gatinhas a procurar apedra, completamente oculta de quem quer que estivesse por trás dos reposteiros, quando alguém entrou no salão. Estava prestes a me levantar quando escutei a voz de Stirling num tom que eu jamais ouvira antes.
- Nora!
- Vim ver Minta.
Fiquei de pé, mas eles não me viram e, antes que eu pudesse chamá-los, Stirling falou:
- Preciso falar com você, Nora. Não posso continuar desse jeito.
- Não podia ter pensado nisso antes de se casar com Whiteladies? - ela respondeu zangada.
Eu devia ter-me apresentado a eles, mas sabia que só poderia descobrir algo que talvez fosse da máxima importância para mim se continuassem inadvertidos de minha presença. Não resisti ao ímpeto de bancar a abelhuda sem o menor acanhamento. Ajoelhei-me para melhor me esconder.
Oh, meu Deus - falou numa voz que mal reconheci, tão diferente era do modo com que sempre falava. - Se ao menos me fosse possível voltar.
- í daí? - ela escarneceu dele. - Iria por acaso me escutar? Será que enxergaria a loucura de se casar só para ajustar velhas contas?
Coloquei a mão sobre o peito. Estava fazendo um barulhão. Eu ia saber de muita coisa aterrorizante, a menos que me levantasse imediatamente e me deixasse ver. Não podia. Eu precisava saber.
- Nora, oh, Nora, não posso continuar assim. E você ainda ameaça ir-se embora. Como pode? Seria uma crueldade.
- Crueldade! - e gargalhou com acinte. - Crueldade... como teve você quando se casou. Como achou que me senti com isso?
- Sabia que tinha de ser assim.
- Tinha de ser? - Ela falava com um enorme desdém. - Você fala como se estivesse sob uma certa compulsão.
- E você sabe por que...
- Lince está morto - ela retrucou. - aquilo morreu com ele. vou voltar para a Austrália. É a única alternativa. Você escolheu este casamento. Agora trate de cumprir com suas obrigações.
- Não vá, Nora. Não posso suportar isso aqui sem você.
- E se eu ficar?
- Sempre haverá um jeito, Juro que encontrarei um jeito.
- Não se esqueça de que tem de ver seus filhos brincando nos gramados de Whiteladies. Como resolverá isso? Você pensava que ia ser muito fácil. Tudo o que o magnata do ouro tinha a fazer era provocar a bancarrota da família.
- Isso foi feito antes.
- E desconfiamos como. E não é nenhum motivo de orgulho. Tampouco deu certo como você pensava que desse. Só a família pode herdar esta casa, e por isso você teve de entrar na família. - Tornou a gargalhar sarcasticamente. - E tudo isso por amor a estas pedras, a estas paredes. Se elas pudessem rir, estariam rindo-se de nós. Não. Vou-me embora para a Austrália e até já escrevi a Adelaide. Você preparou sua cama, como dizem. Agora deite-se nela.
- Amo você, Nora. Vai negar que me ama? - Ela ficou calada e ele então falou aos gritos: - Não pode negar. E sempre soube disso. Naquela noite do incêndio...
- E no entanto você deixou que eu me casasse com Lince.
- Mas era... Lince!
- Oh, sim - o tom de voz era quase perverso, - o seu deus.
- O seu também, Nora.
- Se você tivesse tido amor por mim...
- Vocês dois eram as coisas mais importantes do mundo. É claro que eu o amava então, e se você também tivesse tido bastante amor por mim...
- Eu sei - ela disse com impaciência. - Mas era Lince então, e è Lince ainda hoje. Não podemos fugir dele. Está morto e continua vivendo. Você tinha uma opção a fazer. Quando verificou que não podia comprar esta casa, podia ter vohado comigo para a Austrália. Como podíamos ter permanecido aqui. Para mim não teria feito diferença se...
- Se estivéssemos juntos - ele concluiu triunfalmente.
Mas é tarde demais. Está casado. Permanecerá casado. - A voz tornou-se novamente cruel. - E precisa ver esses meninos brincando no gramado. Lembra-se?
Ela falava como se o odiasse, o que me fez deduzir que ele a magoara profundamente. Agora compreendi tudo. Nesses poucos minutos tudo ganhou forma. Dominando a vida de todos nós estava o pai dele, que outrora vivera aqui e que havia sido violentamente injustiçado - um homem forte e poderoso cuja influência permanecia mesmo depois de morto.
- É Tarde demais - ela repetiu. - E a ninguém cabe a culpa senão a você mesmo. Quando me disse... tive vontade de morrer. Eu o odiei, Stirling, porque...
- Porque me ama.
- Agora é tarde. Você fez uma opção e agora terá de viver com essa opção.
- Não pode ser tão tarde assim. Sempre há uma maneira e hei de encontrá-la, Nora. Juro. Tenha paciência.
- Paciência? Que quer dizer com isto? Está casado. Casou-se com Whiteladies. Esta casa maravilhosa, esplêndida, extraordinária e antiga é a sua noiva. Bem sabe que não pode cair fora.
- Nora!
-Continuarei com meus planos. Quanto mais cedo partir, melhor.
- E acredita que vai ser feliz lá... sem ele... e sem mim?
- Não tenho pensado em felicidade. Apenas na necessidade de ir.
- Não permitirei. Há uma saída. Prometo-lhe que encontrarei uma saída. Só lhe peço que não vá, Nora, não vá.
Riu dele novamente. Como Nora sabia ser cruel!
- Pode gritar. E diga a toda esta casa o que você fez.
E então bateram a porta ruidosamente. Espreitei através dos cortinados e vi que Stirling estava sozinho. Cobria o rosto com as mãos como a tapar a visão do salão com o tablado,-tapeçarias e teto abobadado -. tudo o que fazia com que aquela maravilhosa mansão fosse digna dos maiores sacrifícios - inclusive o de se casar comigo só para possuí-la.
Permaneci na galeria depois de Stirling ter saído. Sentia os joelhos doerem e me esquecera por completo da granada perdida. Agora eu compreendia tudo. Eu devia ter visto isso antes - a proposta intempestiva quando ele viu que não havia outro meio de adquirir a casa; a maneira negligente de fazer amor; o mal-humor quando Nora lhe anunciou a partida. Tudo agora fazia sentido.
Eu gostaria de ter a experiência de Nora. Então saberia o que fazer. Mas era de uma confidente que eu precisava. Se Nora não estivesse envolvida, eu a teria escolhido. Havia Lucie. Eu hesitava. Lucie suspeitara do conluio desde o começo. Lucie era Inteligente e gostava de mim.
Fui para meu quarto ainda me sentindo aturdida. Eu não devia ter escutado. É raro os abelhudos ouvirem o que lhes convém. Quantas e quantas vezes me disseram isso?
Bela veio esfregar-se em minhas pernas. O gatinho que eu havia conservado estava brincando com o cordel da cortina. E lembrei-me daquele dia em que o balaustre da torre desmoronara... e pensei também naquela ocasião em que acreditei ter sido seguida até lá em cima, ao mesmo tempo em que uma voz, a voz de Stirling, ressoava a meus ouvidos: "encontrarei um jeito".
Não - admiti - isso é estúpido. Ele não quis dizer isso. Mas como sabia eu o que ele queria dizer? O que era que eu conhecia a respeito dele - ou melhor, o que conhecera eu senão de pouquíssimo tempo para cá? Ao menos eu sabia agora que ele se casara comigo em razão de um juramento para possuir Whiteladies. Sabia que ele fora capaz de uma impostura, de fingir que me amava quando na verdade era a casa o que ele queria. Sabia que ele amava outra mulher e que estava planejando destruir de algum modo nosso casamento para se casar com ela.
Como? Eu me perguntava e como que uma voz horrível respondia dentro de mim: "Por pouco não aconteceu na torre, quando a balaustrada desabou... e naquela outra ocasião". Tratei de não pensar naqueles passos furtivos subindo as escadas, atacando-me por trás e jogando-me do alto da torre. Era imaginação. Imaginação? Então eu não escutara um movimento? Não havia pressentido a maldade? Nora me salvara uma vez. Pelo menos ela não estava na conspiração, se é que havia conspiração. Mas eu não podia dizer o mesmo de Stirling. "
Minha cabeça estava aos latejos e nem pensar com clareza eu podia. Não sei por que fui ao quarto de Lizzie. Só sei que fui.
- Está passando bem, Miss Minta? - perguntou-me.
- Estou com dor de cabeça.
- É comum no seu estado.
- Fale-me sobre aquele artista que veio, ensinar desenho à minha mãe.
- Mr. Charles Herrick - disse vagarosamente. - E agora você é Mrs. Herrick, além de existir outra Mrs. Herrick na Mercers House. E brevemente um pequenino Herrick virá ao mundo. ?
- Como era ele?
- Parecido com o seu Mr. Herrick, embora diferente. Nunca vi ninguém igual a ele. Destacava-se de todo mundo. Parecia que era o dono da casa. Sua mãe Adorava-o.
- E você também Lizzie?
- Sim - admitiu. - E vou lhe dizer uma coisa. Ele não me era nada indiferente.
- Amava minha mãe.
- Amava pelo que ela representava. Por ser pobre e orgulhoso, via-se como o dono da casa. ?
- E então?
- Houve atrito. "Vá-se embora", disseram-lhe, e ele se foi, mas voltou para buscar sua mãe. Os dois iam fugir - Lizzie pôs-se a rir. - Quando ele subiu por uma escada, ela já estava pronta para seguir com ele e até lhe havia dado as jóias para guardar. Ela tinha umas pedras de muito valor. E mal ele as colocou no bolso... irromperam no quarto, ele foi agarrado... e foi essa a última vez que o vi.
- Alguém o denunciou.
- Sim - manifestou astúcia.
- Foi você, não foi Lizzie? As faces enrugaram-se-lhe.
- Como sabe? - exclamou. - Sua mãe soube e fui eu que contei na noite em que ela morreu. O choque matou-a. Nunca me teria perdoado se tivesse vivido. Esbravejou comigo, dizendo que a vida lhe teria sido diferente se não fosse por mim. Teria fugido, e nunca que ele teria ido para a Austrália.
- Mas foi e fez um juramento por causa disso, Lizzie, por causa de você... Saí do quarto, deixando-a de olhos arregalados a fitar o vazio.
Eu continuava perplexa, ainda sem saber como agir.
Não consegui descer para o almoço, pois não me era possível encarar ninguém. Lucie veio a meu quarto.
- Minta, que está havendo?
- Sinto-me adoentada, Lucie.
- Querida, você está tremendo. vou buscar uma garrafa de água quente.
- Não, Lucie. Sente-se e converse um pouco.
Sentou-se e puxei conversa. Em quem eu poderia confiar que fosse mais compreensivo do que Lucie, que por tantos anos me fora mais intima do que minha mãe? Contei-lhe o que havia escutado na galeria dos menestréis.
- Veja, Lucie, ele ama Nora. Casou-se comigo por causa de Whiteladies. Lucie ficou pensativa por alguns momentos.
- Nora vai voltar para a Austrália - disse. - Você e Stirling terão de viver a vida de vocês. Será um compromisso, mas o casamento quase sempre é um compromisso.
- Não - retruquei. - Ele a ama e não será capaz de esquecê-la. Há entre os dois um forte vínculo - metade ódio e metade amor, ou assim me pareceu, pois Nora deu a entender que o odiava e amava ao mesmo tempo. Odiava-o porque ele a ferira casando-se comigo. Tenho permanecido deitada aqui pensando no que posso fazer.
? - Minta, minha filha, a melhor coisa que você pode fazer é nada. Coisas assim já aconteceram antes. Stirling está casado com você, você vai ter um filho dele, e Nora vai para a Austrália. Há de ver com surpresa que em pouco tempo ele terá se esquecido dela, e você também.
- Ele não vai permitir que ela se vá - insisti. - Disse isso.
- Impulso de momento. Ele não tem poder de decisão e Nora é uma mulher inteligente, de muito traquejo. Sabe que nada pode ser feito. Você é que é a mulher dele. Pode ser que ele se aflija quando ela partir, mas o tempo cura tudo. Haverá de se conformar. Você tem muito o que dar a ele, Minta.
- Não e não. Estou tratando de pensar no que deva fazer. Já até pensei em ir-me embora.
- Para onde?
- Nem consigo imaginar.
- Não está sendo prática. Vai permanecer aqui e estarei à disposição para cuidar de você.
- Pensei realmente em ir... para algum lugar. Inclusive já comecei a escrever uma carta para ele.
Ela dirigiu-se à minha escrivaninha e pegou uma folha de papel na qual eu havia escrito:
Querido Stirling, Eu me encontrava na galeria dos menestréis quando você e Nora estavam falando. Vi que você a ama e parece que só me resta uma coisa a fazer. Devo ficar de lado...
Eu não havia prosseguido, tendo feito uma pausa ali para pensar no que podia fazer. Zangada, Lucie jogou o papel no cesto e logo voltou à minha cama.
- Você está extenuada. vou tomar conta de você e prometo que em pouco tempo tudo isso nada significará. Ele não podia ter esses amores todos por Nora ao contrário não teria se casado com você.
- É um grande conforto, Lucie, mas...
- Pode confiar em mim. Agora trate de passar o resto do dia na cama, sem precisar falar com ninguém. Irei ter com o Dr. Hunter para pedir que venha dar uma olhada em você, posso?
- Dr. Hunter nada pode fazer neste caso.
- Pode, sim. Pode lhe dar qualquer coisa para dormir, e é disso que você está precisando realmente. Direi a todos que você hoje está de repouso. Não tem passado bem desde aquele tombo na torre.
Tremi de medo. Nem mesmo a Lucie fui capaz de falar sobre a terrível suspeita que me dominava. Mas o simples fato de conversar com Lucie me fizera sentir melhor. Depois que ela saiu do quarto permaneci deitada, procurando acreditar no que ela dissera, mas fracassando deploravelmente.
Permaneci de cama pelo resto do dia. Lucie trouxe-me o jantar numa bandeja, mas não consegui tocar nem no frango assado, nem no queijo, nem nas frutas. Ela estivera em casa do Dr. Hunter, que estava fora atendendo a um chamado, e parecia que a estúpida daquela Mrs. Denver andara bebendo. Entretanto, deixara um recado para que ele viesse me ver pela manhã. Enquanto isso, eu tomaria uma daquelas pílulas que ele me receitara por ocasião do tombo. Lucie mandaria que me trouxessem um pouco de leite para tomar"com o remédio.
- Não quer tentar comer alguma coisa? - ela me perguntou.
- Não posso, Lucie.
Por volta das nove horas ela mandou que Lizzie me trouxesse leite quente e biscoitos. Lizzie mostrava-se acabrunhada e era evidente que isso tinha alguma coisa a ver com seu rompante mais cedo naquele dia. De mim, já não me sentia a mesma com relação a Lizzie. Seu gesto tivera um impacto tremendo sobre a vida de todos nós. Vendo-me olhar enojada para o leite e virar o rosto, Lizzie colocou-o sobre a mesinha de cabeceira. "
Fechei os olhos e devo ter cochilado. Quando acordei, mieu coração começou a palpitar furiosamente, pois alguém estava de pé junto à cama. Era Stirling. Por não poder encará-lo, fingi continuar dormindo. Plantado ali a olhar para mim, eu imaginava o que lhe ia pela mente. Estaria pensando em colocar um travesseiro em meu rosto e asfixiar-me? Pouco se me dava se o fizesse. Como era possível amar um homem suspeito de querer matar alguém? Nora amava-o e odiava ao mesmo tempo, e eu o amava enquanto suspeitava de querer me matar. Como eram complexas as emoções humanas!
Retirou-se depois de alguns momentos. Permaneci imóvel e os pensamentos giravam e giravam em minha cabeça. Súbito espantei-me com um movimento perto da janela. Sentei-me na cama e, assim fazendo, bati na bandeja. Seguido de Bella, o gatinho veio correndo e me dei conta de que fora sua brincadeira com o cordel da cortina o que me havia acordado. Tendo descoberto o leite, ele começou a lambê-lo ruidosamente, e por isso coloquei a bandeja no chão para que os dois se servissem até o fim. Bella porém, achou de pular para minha cama, ronronando e em busca de afagos. Ao cabo de alguns instantes ela pulou para o chão e tratei de dormir. Não podia, era mais que natural. Continuei deitada a repassar todos os acontecimentos até que finalmente, de tão exausta, adormeci.
Lizzie entrou no quarto. Eram oito e meia. A essa hora normalmente eu me achava acordada.
- A madame mandou-me perguntar como se sente esta manhã.
- Cansada - respondi. - Deixe-me só. E não quero que corra as cortinas.
- Vai ficar na cama então por mais algum tempo? Respondi que sim. Ela saiu e pouco depois Lucie chegou.
- Só para ver como está se sentindo - disse. Vendo-me semi-adormecida, continuou: - Não irei incomodá-la. Um pouco de repouso fará bem.
Eram mais ou menos dez e meia quando ouvi uma leve batida na porta. Mary, uma das criadas, avisou-me:
Mrs. Herrick está aqui. Quer vê-la.
Nora! Meu coração estava palpitando incomodamente. Eu queria ver Nora, queria conversar com ela. E remoía na cabeça se lhe deveria contar o que escutara. Eu sempre sentira um certo ímpeto de confiar em Nora. Mas como poderia neste caso?
Escutei-me dizer indistintamente:
Diga-lhe que suba.
Devo correr as cortinas, Miss Minta?
N... não - hesitei. - Ainda não.
Primeiro eu queria saber se poderia encarar Nora. Meus cabelos estavam em desalinho e eu devia tê-los lavado e penteado antes de vê-la. Agora era tarde. A criada retirou-se e quando voltou trouxe Nora consigo.
Nora estava usando um costume cinzento de montar, parecendo muito elegante e dona de si. Seu rosto possuía uma certa meiguice. Eu sabia que ela lamentava meu casamento com Stirling - e não apenas porque isso significasse que ele estava impedido para ela. Lamentava porque sabia que eu ia ser infeliz.
- Oh, está de repouso - disse. - Soube que você não estava passando bem.
- Não me senti muito bem ontem e desde o tombo o Dr. Hunter me obriga a repousar.
- Creio que ele está certo. - Uma réstea de luz passou pelas ripas da persiana e ela puxou uma cadeira para perto da cama. - Eu tinha mesmo de vir vê-la continuou. - Acho que não terei mais muitas oportunidades.
- Está mesmo resolvida a nos deixar?
- Já me decidi em definitivo.
- Sentirei saudades de você. Quanto a Stirling... - minha voz tremulou.
- Sempre pensei que haveria de voltar um dia - ela atalhou.
- Deve ter sido muito triste. Juntou as sobrancelhas e respondeu:
-Sim. Aposto como você está ansiosa para que nasça o bebé.
- Estou, sim.
- E Stirling também.
Crianças brincando nos gramados de Whiteladies, lembrei-me.
- O período de espera é que deve ser penoso - voltei ao assunto. - Franklyn vai sentir muito sua falta.
- Ao cabo de mais ou menos um ano vocês terão se esquecido de mim, todos vocês.
Sacudi a cabeça. Deu-me uma grande vontade de ver o rosto dela no claro. Verdade, escondia bem os sentimentos, mas pensei cá comigo: deve ser tão infeliz quanto eu. - Está um pouco escuro aqui -fiz-lhe ver.
- Quer que corra as cortinas?
Afastou-se em demanda da janela. Ouvi-a soltar um suspiro ao mesmo tempo em que fixava os olhos no chão. E puxando as cortinas apressadamente, tornou a olhar para baixo.
- Que há? -gritei, sentando-me.
- Bella e o gatinho...
Pulei da cama. Horrorizada, sustive a respiração. Os corpos mostravam-se estranhamente contorcidos. Estavam ambos mortos. Ajoelhei-me ao lado deles e não resisti a tocar naqueles bichinhos até há pouco tão brincalhões e que eu tanto estimava.
- Estão mortos - disse Nora. - Minta, que poderá ter sido?
Eu sabia. Lembrei-me do leite derramado no chão e de Stirling junto à cama.
Colocaram veneno no leite - falei com absoluta calma. - É claro que se destinava a mim. - E então comecei a rir sem poder me controlar. - Minha vida é muito protegida. Primeiro foi Maud... depois você e agora os gatos.
Ela segurou-me pelos ombros e me sacudiu.
- Que quer dizer com isso? - perguntou com insistência. - Diga onde quer chegar? Controle-se, pelo amor de Deus. E não toque nos gatos. Não sabe o que há com eles. Deixe-me ajudá-la a voltar para a cama. Lembre-se da criança.
Arrastou-me para a cama, enquanto eu continuava a falar:
- Tudo muito simples, Nora. Alguém está querendo me matar. Já houve outras tentativas. Mas minha vida é protegida...
Ela estava tremendamente pálida.
- Não acredito nisso - disse. - Não acredito. - E falou como se estivesse procurando convencer a si própria. Eu sabia o que lhe ia pela mente. Ouvira-o dos próprios lábios dele: "encontrarei um jeito". E escutei bem quando ela murmurou para si mesma "não... não... não pode ser verdade".
- Nora - chamei-a à realidade - isso não. pode falhar sempre, será que pode... todas as vezes?
- Você precisa sair... daqi . Temos de pensar nisso. Não posso deixá-la aqui. O melhor seria vir comigo para a Mercers House. Lá podemos falar, podemos planejar...
Refleti: ir com ela. É ela exatamente a razão pela qual ele quer se ver livre de mim. Ele quer Nora e Whiteladies. Como posso ir?com ela? Mas ela me salvou a vida uma vez.
- Que haverão de dizer se eu for para sua casa? Que dirá Stirling?
- Temos de salvar a ele... e a você - ela respondeu.
Era como se ela estivesse falando para si mesma. Uma confissão de que os pensamentos que estavam em minha cabeça, também estavam na dela.
Bateram na porta. Nora olhou para mim em sobressalto. Era novamente a criada.
- O médico está aqui, Miss Minta. Veio comigo.
Dr. Hunter estava imediatamente por trás dela e logo entrou no quarto.
- Lady Cardew sugeriu que eu fosse entrando para dar uma espiada em você. - Pasmado, fixou o olhar em nós duas. - Algo de anormal?
Deixei que Nora explicasse. Ouvi-a dizer:
- Estamos alarmadas, Dr. Hunter. Venha ver esses gatos.
Ela o levou até a janela onde ele se abaixou para ver Bella e o filhote. Ao levantar-se tinha o rosto lívido.
- Que aconteceu?
- Tomaram o leite que foi trazido para Minta -disse Nora. - Estão envenenados?
- Eu diria que sim.
- Que devemos fazer?
- vou levar os gatos comigo.
- Eu estava sugerindo que Minta fosse comigo para a Mercers House.
- É uma ideia excelente - disse o médico. E voltando-se para mim: Vista-se o quanto antes e saia de casa como se nada de extraordinário tivesse acontecido. Vá imediatamente para a Mercers House com Mrs. Herrick e permaneça lá até que eu chegue.
Assim que ele nos deixou, levando os gatos, vesti-me às pressas e, envolvendo-me numa capa, saí de casa em companhia de Nora.
NORA
Nunca hei de me esquecer daquela jornada para a MerceT House, nem dos pensamentos que então tumultuavam em meu espírito. Stirling estava querendo matar a esposa. Foi isso o que ele me deu a entender quando me disse que encontraria um jeito. Por que não partira eu, meses antes, para a Austrália? Eu devia ter ido logo depois que ele se casou. - ?
Metade de meu espírito repelia a ideia. Mas lembrei-me daquele dia terrível, que se me gravara indelevelmente na memória, quando Jagger me atacara e recebera de Lince um tiro de morte. Lince matara um homem porque este ousara tocar no que ele acreditava que era seu, e não por causa de uma tentativa de estupro. Também não me era possível esquecer a pobre criadinha Mary, que sofrera o mesmo nas mãos de Jagger. Mas nesse caso deram de ombros, como sendo coisa sem grande importância. Stirling era mesmo filho de Lince. Eram ambos implacáveis. Para eles a vida era barata - isto é, a vida dos outros. Stirling determinara-se a adquirir Whiteladies e, agora que se arrependia do grande sacrifício, queria recomeçar tudo. E só podia fazê-lo livrando-se de Minta. Não, Stirling, protestei mentalmente. Está vendo, Lince, em que deu sua sede de vingança?
Fiz com que Minta montasse meu cavalo, enquanto eu mesma ia a pé, guiando-o. A pobre moça parecia que ia desfalecer a qualquer momento. Também não era de admirar. Escapara miraculosamente da morte - não apenas por uma vez, pois nessa altura eu já estava convencida de que o desabamento do parapeito fora uma armadilha.
Chamei um dos moços da estrebaria para cuidar do cavalo e levei-a para dentro de casa. Fomos para a sala de visitas, com aqueles móveis de pau-rosa e papel de parede listrado em estilo Regência, e nos sentamos a olhar desconsoladamente uma para a outra.
- Nora, - ela falou primeiro - que acha você de tudo isso?
Como não me ficava bem falar de minhas suspeitas, respondi que os gatos haviam morrido de alguma doença estranha, entre os animais existiam moléstias misteriosas sobre as quais muito pouco conhecíamos.
Ela começou a falar de animais que tivera quando menina e de certas coisas que lhes haviam acontecido. Mas não estávamos pensando no que dizíamos. Sugeri então preparar um chá, ao que se prontificou de imediato em ajudar-me. Isso nos deu motivo de fazermos alguma coisa e, durante todo o tempo, cuidamos de arquitetar um plano. Ela teria de permanecer comigo, disse eu, pois não me era possível admitir que ficasse fora de minhas vistas.
Surpreendia-me a indiferença que ela demonstrava. Deixara-se traumatizar grandemente pelo que acontecera, e talvez fosse por isso que desse aquela impressão de não se importar. Eu sentia uma pena enorme dela. Estava para ter um filho de Stirling e isso me causava inveja, mas fui vencida por uma vontade imensa de protegê-la.
Tomamos o chá. Já passava de meio-dia. Em Whiteladies deveriam estar querendo saber onde ela estava, embora uma das criadas nos tivesse visto sair, ouvindo-me murmurar qualquer coisa sobre a vinda de Mrs. Herrick para a Mercers House.
Era uma hora da tarde quando Lucie chegou. O vento desalinhara-lhe os cabelos, e era evidente que ela saíra às pressas ao verificar que Minta não se encontrava no quarto, logo tratando de saber onde estava.
Ao entrar na sala de visitas e dar de olhos em Minta, sua expressão foi de desafogo.
- Oh, Minta, minha querida, eu estava querendo saber o que aconteceu. -??... Abraçaram-se.
- Por que não disse que ia sair? - continuou Lucie. - Pensei que estivesse no quarto.
- Nora foi ver-me e vim com ela.
- Mas você nem tomou café. Você...
- Estávamos um tanto transtornadas -Expliquei. - Encontramos os gatos mortos.
- Os gatos... que gatos?
- Bella e o filhote - disse Minta. - Estavam estirados no chão perto da janela... os corpos rígidos e com uma aparência horrível. - Os lábios tremeram. - Horrívell!
- Gatos! - repetiu Lucie, confusa.
- Dr. Hunter levou-os - esclareci.
- Por Deus, contem-me o que está acontecendo.
Eu não queria que ela soubesse. Pensei comigo: vão abrir inquérito e haverão de descobrir. Oh, Stirling, em que você se meteu! Como se me fosse possível amá-lo depois disso!
- Acho que o médico não quer que falemos sobre isso - disse Minta singelamente. - Voltou-se para mim: - Mas a Lucie não faz mal dizer. Lucie, o leite que estava em meu quarto... nem toquei nele.
- Que leite?
- Mandaram leite lá para cima. Você mesma disse a Lizzie que levasse, não disse?"
- Ah, lembro-me, sim.
- Nem cheguei a tomá-lo. Entornei-o sem querer e os gatos beberam. Agora estão mortos.
- Mas que tem isso a ver com o leite?
Ela falava num tom tão convincente que meus temores se atenuaram um pouco e até senti alívio. Refleti: estamos imaginando coisas, nós ambas. Era claro que a morte dos gatos nada tinha a ver com o leite!
- Então porque os gatos estão mortos - prosseguiu Lucie,-você está nervosa. Ouvi dizer que alguns rendeiros andaram espalhando veneno por causa de uma raposa que está rondando os galinheiros. Bella vive vagabundeando por lá.
Olhei para Minta e vi alívio também em seu semblante. Lucie continuou a martelar o assunto:
- Em sua opinião, o que é que o leite tinha a ver com isso?
- Pensávamos que existisse alguma coisa de anormal com o leite - disse eu - e isso porque os gatos beberam e...
Lucie mostrou-se embaraçada.
- Pensaram que o leite estivesse envenenado? Mas quem no mundo... Francamente, o que aconteceu a vocês duas?
- Lógico, a resposta é esta -firmei opinião. - Os gatos foram envenenados por qualquer coisa na chácara. É evidente.
- Isso nesse bule é chá? - Lucie perguntou. - Gostaria de me servir de uma xícara.
- Está frio, mas vou mandar buscar outro.
- Obrigado. Depois, acho que devemos voltar, Minta. Você precisa se cuidar muito. Que cavilações está arranjando!
Toquei a campainha para pedir chá. Quando chegou, mal comecei a servi-lo ouvimos o barulho das rodas de uma carruagem e Mabel entrou para anunciar que o Dr. Hunter estava lá fora.
- Dr. Hunter! - exclamou Lucie. - Que vem fazer aqui?
Eu disse a Mabel para mandá-lo entrar. Para meu total espanto, fizera-se acompanhar de Stirling. Lucie levantou-se da cadeira e falou:
- Mas o que é isto?
- Estou aqui para falar com vocês - disse o médico. - E quero que todos ouçam o que tenho a dizer. Quero que sejam testemunhas. Eu já tinha quase certeza antes de tudo isso acontecer.
- É sobre os gatos? - quis dizer Lucie.
Olhei para Stirling, .mas não pude traduzir sua expressão.
- Os gatos foram envenenados - disse o médico.
- Alguma coisa que tenham comido pelas vizinhanças? - perguntei, um pavor terrível apertando-me o coração.
O médico falou:
- Acho que seria melhor começar do começo. E isso já vem de longe. Respirou profundamente. - Por muita coisa sou culpado.
- Não acha que devia considerar com muito cuidado o que está dizendo? - Lucie interrogou-o com delicadeza. -
- Já venho considerando há muito tempo. Agora tornou-se uma necessidade. vou dizer a verdade. vou dizer o que deveria ter dito há muito tempo. Começou com a morte de Lady Cardew.
- Acho que não deve dizer isso, Doutor - interveio Lucie num tom de voz absolutamente tranquilo. - Creio que vai se arrepender.
- Só posso me arrepender de não ter confessado há mais tempo - falou sem olhar para Lucie. - Lady Cardew não estava realmente doente. Sofrera uma grande desilusão na vida e ficou alimentando essa amargura. Mas acomodou-se com a vida acostumando-se a uma espécie de invalidez. Em certas pessoas isso não é raro. De tempos em tempos eu lhe dava paliativos. Tomava algumas doses e acreditava-se aliviada com elas. Na verdade, nada mais eram que água colorida. Um dia então ela morreu. Eu devia ter dito a verdade na ocasião. Ela morreu por ter ingerido uma dose excessiva de soporífero. Essa droga havia desaparecido de minha farmácia e pensei ter dado a ela por engano, em lugar do paliativo. Eu devia ter admitido o fato, mas em vez disso escrevi no atestado de óbito que ela morrera de um ataque cardíaco. Ela sempre pensara que tinha uma lesão no coração. De fato, o coração dela era forte. Foi imperdoável que fiz. Eu era ambicioso e naquela época sonhava em especializar-me. Ter admitido que receitara por engano uma droga perigosa em lugar de um paliativo teria arruinado minha carreira. E jamais voltaria a ser idóneo para exercê-la.
- Você è um idiota - interrompeu Lucie, de aspecto deplorável.
- Tem razão - dirigiu-lhe um olhar pesaroso.
- Eu o aconselharia a parar com essa lengalenga que só lhe pode acarretar desgraça - ela continuou.
- Ao menos me trará paz de espírito. Porque não fui eu quem deu a ela a droga errada. Alguém deu... alguém que foi à minha casa quando eu estava ausente, que levou vinho para minha governanta e com ela bebeu até deixá-la inconsciente, para poder então ir à minha farmácia e dar de garra da droga.
- Acho que o médico perdeu a compostura -disse Lucie.
- Perdi - replicou. - Mas agora estou recuperando.
- Não vê que ele está louco? - ela abordou Stirling.
- A mim não me parece - respondeu Stirling.
- Recuso-me a continuar escutando - declarou Lucie. - Isto é, se pretende prosseguir, Dr. Hunter.
- vou continuar a dizer tudo, até o fim, até o dia de hoje quando descobri que os dois gatos morreram da mesma droga que matou Lady Cardew.
Lucie pôs-se de pé.
- Você bem sabe que está louco.
- E sei como a droga foi obtida. Foi exatamente da mesma maneira anterior. Mrs. Denver confessou que dessa vez você levara uisque. Um presentezinho. Vamos tomar um gole? E ela bebeu até ficar dormente. Foi quando você pegou as chaves e foi à farmácia, exatamente como na outra ocasião.
- Não permanecerei aqui ouvindo tais disparates - disse Lucie. - Chamarei outro médico pedindo que traga para cá imediatamente uma camisa de força.
Ela parou à porta olhando para nós. Minta fitava-a com incredulidade. A expressão do médico era inescrutável, e nela imaginei lobrigar um pouco de ternura. - Lucie. - ele concluiu - tome cuidado. Ela havia saído. Ouvimo-la descer as escadas e bater a porta.
- Não é um relato agradável - continuou o médico - mas eu tinha de contar. É o fim de tudo para nós dois... mas pelo menos um outro crime será evitado. - Estava olhando para Minta. - Graças a Deus, não aconteceu desta vez. Vejam vocês, eu me sentia fortemente atraído por Lucie e cheguei a pedir para que se casasse comigo. Mas estava dominada por uma obsessão. A mansão, o titulo. Conhecera na infância a maior pobreza, tinha horror à pobreza e sonhava com uma situação segura. Foi educada por uma tia enérgica que não lhe demonstrava a menor afeição, e fez-se professora. Era um meio de vida precário em que ela sempre se via ameaçada de perder o emprego e de ser jogada num mercado superconcorrido. Deixou-se fraquejar e impressionar pela grandeza de Whiteladies. Olhei para Stirling e sabia que ele estava pensando em Lince.
- Acho que ela gostava de mim no princípio. E acredito que teria se casado comigo, se não tivesse tratado de ajudar tanto a Sir Hilary, logo dando-se conta do quanto ele dependia de si. Vislumbrou as possibilidades e entusiasmou-se, nascendo assim a obsessão. Lucie é uma mulher de grande determinação, mas a ânsia de possuir Whiteladies desequilibrou-lhe o espírito - e sucumbiu à tentação. Já que tinha dado um passo fatal, dispusera-se a prosseguir nesse caminho. Ao assassinar Lady Cardew tornara-se criminosa, e já não havia limites para o que estivesse maquinando fazer.
- Assassinou minha mãe - interrompeu Minta, - e teria me assassinado. Por quê?
- Era ela Lady Cardew, mas isso não bastava. Minta herdaria a casa. Quando Sir Hilary morresse, ela se tornaria mera dependente sem autoridade alguma. E isso não podia suportar. Se tivesse tido um filho homem, teria sido diferente. Mas Sir Hilary era velho. Eu estava fascinado por Lucie e ignorava que ela tivesse cometido um assassinato. Druscilla é minha filha.
Fez-se um breve silêncio antes que ele prosseguisse:
- Ela ansiava ter um filho homem. E a raiva que demonstrou quando Druscilla nasceu foi grande. Mas não iria desistir. Estava decidida a ter um menino que herdasse Whiteladies para impedir que a casa passasse para as mãos de Minta. Minta porém se casou e Sir Hilary morreu. Não havia mais esperanças a não ser através de Druscilla, tida por todos como filha de Sir Hilary. Se Minta ficasse fora do caminho... Ele ergueu as mãos num gesto de desconsolo. - Agora vocês vêem tudo. Toda a história sórdida. Juro que só compreendi tudo o que aconteceu depois que vi hoje aqueles gatos mortos. Eu sabia que ela queria ter um menino para através dele poder governar a casa. Não sabia que praticara um crime e que estava planejando outro. Só hoje enxerguei o quadro completo. Mrs. Denver confessou que Lucie levara ontem o uísque e que ela, Mrs. Denver, bebera em excesso, tendo dormido a tarde inteira. Quando fui à minha farmácia, dei por falta da droga... tal como acontecera na outra ocasião. Esta éque é a história.
Tive consciência de um alivio imenso. Stirling estava olhando para Minta com temor e horrorizado. E pensei: apesar dos pesares, ele gosta dela. Quem não gostava de Minta?
- Que vamos fazer? - perguntei.
Ninguém respondeu, mas estava tudo decidido. O rosto de Minta crispou-se num súbito espasmo.
- Acho que as dores estão começando - disse.
Parecia que a realidade estava afastando a fantasia para um lado, pois o relato do que acontecera era para todos nós como uma fantasia. É desconcertante descobrir que uma pessoa a quem se tem como amiga, um ser humano normal, não passa de um assassino. E cheguei a pensar tal coisa de Stirling! Tinha uma desculpa. Afinal, eu presenciara o pai dele matar um homem com um tiro.
Não havia mais tempo a perder senão cuidar de Minta, e todos tratamos de ser práticos. Ainda bem que Dr. Hunter estava conosco.
- A meu ver, Minta não deve voltar para Whiteladies - falei. - Permanecerá aqui. Sei cuidar dela.
Dr. Hunter, agora um homem aliviado de um terrível segredo de consciência, voltou a ser o médico eficiente que era. Ordenei às criadas levarem uma panela e garrafas de água quente para o quarto vizinho ao meu, e levamos Minta para lá. Estávamos todos preocupadissimos, pois o bebé só estava sendo esperado para dentro de mais quatro semanas.
A criança nasceu bem mais tarde, naquele mesmo dia - uma criança saudável, embora prematura. Necessitaria, portanto, de cuidados especiais, e Dr. Hunter iria mandar buscar uma enfermeira especialmente para cuidar dela. Ele próprio daria uma assistência constante. Quanto a Minta, estava bastante enfraquecida. Os traumas das últimas semanas, culminando com o recente, eram os responsáveis, disse Dr. Hunter. Teríamos de tomar muito cuidado com Minta.
Prometi que o faria, e estava mesmo determinada a isso. Acreditei que se pudesse contribuir para que Minta recuperasse a saúde, de certo modo estaria me penitenciando de amar seu marido.
Jamais hei de esquecer a fisionomia de Stirling quando soube que lhe nascera um filho. Eu sabia que iria ser chamado Charles, em homenagem ao avô, e que teria de viver para realizar o sonho de Lince - uma criança com seu nome brincando nos gramados de Whiteladies.
Que dia estranho e irreal! Visto em retrospecto, parece um sonho, demasiado fantástico para ser realidade. Mas houve outros dias iguais a esse em minha vida, e talvez outros ainda tenham de vir.
Lucie não foi encontrada em parte alguma. Pensávamos que tivesse fugido. Estava na torre e, pela manhã, seu corpo foi encontrado sobre as lajes abaixo do bastião: O parapeito lá no alto, que havia sido coberto com tábuas desde aquela ocasião em que eu e Minta estivéramos lá, desabara por completo.
Disseram os criados:
- Foi um acidente horrível. A parede cedeu e Lady Cardew precipitou-se ao chão.
Eu me sentia orgulhosa de Stirling. Assumiu o papel de maioral do lugar como se o tivesse sido a vida inteira. Lady Cardew estava morta - vítima de um acidente, foi o veredicto. Explicava-se pelas obras todas que estavam sendo feitas em Whiteladies e que haviam abalado os alicerces da velha mansão. Aquela, disse Stirling, era a melhor explicação.
Pediu-me que falasse com o médico para fazê-lo voltar a si. A ideia de Stirling era que todo o caso fosse esquecido. Não havia necessidade alguma de que mais ninguém - fora os que já estivessem a par - soubesse da verdade. O perigo fora afastado. Lucieestava morta e já não podia causar mal.
Dr. Hunter insistia em se sentir culpado de grave irreflexão, e que em sua profissão era uma tragédia. A seu ver, não podia permitir que as coisas ficassem como estavam. Assim, um dia depois do nascimento do pequenino Charles, eu e Stirling resolvemos falar com ele.
- Você tem competência - comecei. - Trouxe esta criança ao mundo e bem sabe como foi difícil. Se não estivesse aqui, Minta teria morrido, e a criança com ela. Pretende jogar fora toda essa competência?
- Existem outros médicos - respondeu.
- Mas seu lugar é aqui.
- Virá outro médico e não haverá mais necessidade de mim.
- E o que será de Maud? - interpelei-o. - Você gosta dela e ela gosta muito de você.
- É impossível - disse o médico.
- Não é, não! - gritei indignada. - É bom que pare de dramatizar a si próprio e trate de pensar em Maud. Está querendo mesmo fazê-la infeliz?
Ele protestou, mas vi que havia atingido meu objetivo.
Os dias passaram. O bebé já estava com duas semanas de nascido, ainda frágil, ainda sob os cuidados da enfermeira, ainda necessitando da atenção constante do médico. Era eu que cuidava de Minta. A maternidade a transformara, parecendo mais velha e mais bonita, as feições lindamente desenhadas. Mas aninhava nos olhos uma certa tristeza.
Franklyn vinha constantemente à Mercers e conversava com Minta sobre a propriedade e sobre os velhos tempos, sempre querendo saber sobre o bebé. Em minha opinião ele teria sido muito mais adequado do que Stirling para marido de Minta. Eram dois da mesma espécie, como éramos eu e Stirling.
Stirling também vinha ao quarto e sentava-se. Mas parecia existir entre os dois um certo embaraço. E eu me perguntava se acaso ele sabia que ela suspeitara dele da tentativa de matá-la.
Certa vez, ele e Franklyn chegaram à minha casa na mesma hora e, então, deixei Stirling com Minta e fui com Franklyn jogar uma partida de xadrez na sala de visitas. ?
Assim que me sentei, lembrei-me das mãos de Lince movimentando as peças, do anel no dedo. Aquele anel era uma relíquia. Evocava-me um mundo de recordações dolorosas.
Antes que a partida chegasse ao fim, Franklyn disse-me de inopino:
Nora, quer se casar comigo?
Afastei-me da mesa e respondi com firmeza:
- Não, Franklyn.
- Eu bem que gostaria que quisesse - falou com voz tranquila.
Sorri e ele perguntou por quê. "
- Me parece uma maneira estranha de propor casamento. Quase como se me convidasse para tomar um copo de xerez.
- Desculpe-me.
- Eu não devia ter dito isso.
- A mim você sempre deve dizer o que tem em mente. Sei que sou um tanto bisonho para expressar meus sentimentos.
- Gosto disso.
- Isso me alegra. Quero muito bem a você e tíVha esperança de que gostasse de mim... um pouquinho.
- Bem mais do que um pouquinho, mas...
- Não o bastante para se casar comigo?
- Somos um tipo diferente de pessoas, Franklyn.
- E isso impossibilita o casamento?
- Não haveria compatibilidade. Você é bom, metódico e tem uma vida bem organizada...
- Minha querida Nora, você me subestima.
- Creio que jamais você faria algo que não fosse lógico e convencional. Sua vida é bem controlada.
- E não deve ser assim todo mundo?
- Oh, sim. É admirabilíssimo. Mas de convivência difícil. Só sei dizer que somos diferentes e que não posso me casar com você.
Perscrutei o rosto dele, mas na verdade não estava vendo. Vi uma outra face - uma face rija que podia ser cruel e cheia de paixão, a face de um homem que pôde me dominar como Franklyn nunca o faria. Mesmo agora era impossível analisar meus sentimentos por Lince. Casar-me com ele havia sido uma compulsão. E se ainda hoje eu ansiava por Stirling era porque sabia, desde o instante em que nos conhecemos, que havíamos sido feitos um para o outro. E como pude conciliar isso com meu casamento com Lince?
E agora Franklyn e eu! Minta e Stirling! Estávamos mesmo sem sorte. Lince, como um deus traquinas, fizera-nos dançar de acordo com sua música, mas chegamos ao final como pares trocados.
- Não, Franklyn - repeti convicta, - não posso me casar com você.
A criança desenvolvia-se, porém Minta não. De dia para dia mostrava-se mais abatida, um pouco mais frágil.
- Não está se recuperando - disse o médico. - E está apática.
Nenhum dos pratos especialmente preparados por Mrs. Clee lhe apetecia. Mrs. Clee quase chegava às lágrimas quando eles voltavam intactos para a cozinha.
Um dia Maud veio visitar Minta, trazendo um pouco de mel caseiro e geléia de groselha preta. Uma Maud radiante, por sinal. Contou-me que o médico lhe propusera casamento. .
- E é claro que foi atendido - completei. Ela assentiu com a cabeça.
- Contou-me tudo e vamos adotar Druscilla. Não é maravilhoso! Está tudo combinado. Mr. Herrick concorda.
Dei a notícia a Minta.
- Tudo está se resolvendo bem - animei-a. - Agora trate de comer o que lhe trazem e mostre algum interesse pela vida. Pense no filhinho, está bem?
- Fique com ele para você.
- Eu? Quando você ficar boa me muhdarei para a Austrália.
- Ainda está resolvida a ir? .
Afirmei-lhe que estava. Pareceu entristecer-se e eu então lhe disse que voltaria dentro de poucos anos, quando deveria haver um irmãozinho ou uma irmãzinha para o nosso pequenino Charles. Ela sacudiu a cabeça.
Fiquei realmente preocupada com ela e cismei que alguma coisa se passava em sua mente.
Um certo complexo de culpa começou a se desenvolver em mim. Eu pensava constantemente em Minta.Uma noite fiquei tão preocupada com ela que nem consegui dormir. Levantei-me e fui ao quarto dela. A lâmpada ficava acesa a noite inteira e logo, que entrei horrorizei-me de ver como estava frio. Vi então que a janela estava escancarada, deixando entrar o vento frio da noite. Minta jogara para um lado lençóis e cobertores, e estava estirada na cama apenas de camisola.
Corri para a cama e, ao tocar nos lençóis, vi que estavam úmidos. E notei vazia a jarra de água, na mesinha de cabeceira.
A primeira coisa que fiz foi fechar a janela; depois, voltei para junto da cama.
- Quem fez isto? - perguntei.
Levantei-a da cama e, pegando um cobertor, tratei de envolvê-la. Fiz com que ela se sentasse numa cadeira enquanto eu trocava os lençóis. com a água que fervi numa lâmpada de álcool enchi duas garrafas.
Quando tornei a colocá-la na cama, ela ainda estava tremendo, parecendo atordoada e certamente delirante. E eu nunca teria descoberto o que lhe ia na cabeça, se não estivesse delirando.
Sentei-me na cama a escutá-la gaguejar. Era sobre Stirling, ela própria, e eu. Ah, então ela sabia. Falou sobre a criança que haveria de brincar nos gramados de Whiteladies. A frase que sempre me atormentara! Eu haveria de estar lá, pois ela já estaria morta. Era a única maneira de fazer Stirling feliz.
- É tão difícil morrer - disse. - Mas preciso morrer, porque esse é o único jeito.
Pedaço por pedaço, consegui formar um quadro. E durante aquela hora de delírio ela me revelou o que tinha em mente, como jamais o faria em sã consciência. Eu estava estarrecida e confusa ante a grandeza de seu amor por Stirling, já que se sentia disposta a morrer por ele.
Ocorreu-me uma firme determinação. Eu iria tratar de sua saúde e trazê-la de volta à vida. com o tempo Stirling acabaria amando-a... desde que eu me ausentasse. Se conseguíssemos nos desprender dessa obsessão absurda de que fôramos feitos um para o outro (e se fosse verdade, teríamos permitido jamais que alguma coisa interferisse em nosso caminho?), ele aprenderia a ser feliz com Minta. Talvez não fosse bem a paixão asfixiante que por algum tempo eu conhecera com Lince, mas poderia ser uma vida digna, e Stirling teria a satisfação de saber que estava realizando a vontade de seu pai.
Ao cabo de uma semana Minta começou a melhorar. Falei com ela seriamente. Eu sabia o que ela havia feito, disse-lhe, e aquilo não devia ocorrer novamente. Era uma covardia atentar contra a vida.
Pelos outros? - perguntou.
- Seja qual for o motivo - repliquei categoricamente. - A vida é para ser vivida.
Contou-me então como chegara a saber que eu e Stirling nos amávamos, pois estivera escondida na galeria dos menestréis. Tentei me lembrar do que havíamos falado e eu sabia que devia ter sido algo abominável.
- E você ama Stirling - disse. - Foram feitos um para o outro. São parecidos sob muitos aspectos. Ambos são pessoas tenazes, resolutas.
- Quem sabe o que é amor? - inquiri. - Leva-se uma vida inteira para descobrir. Acredito que, na melhor das hipóteses, amor não é paixão de momento. É uma coisa que se constrói durante anos. Você pode construir com Stirling.
- Mas Stirling ama é a você. Escutei-o falar com você como nunca falou comigo.
- Um dia há de falar. E então terá se esquecido até de como sou.
- Não é verdade, Nora.
- É uma coisa que só com o tempo se pode provar.
Quase cheguei a convencê-la. De saúde ela melhorava rapidamente, enquanto o bebé ficava cada vez mais forte. Nunca me esquecerei do primeiro dia em que ela pôde tomá-lo nos braços. Vi então que ela encontrara uma razão para viver.
Vi também que já era tempo de ir-me embora,
Dentro de três semanas eu viajaria. Havia declarado a Stirling que nada me induziria a ficar. Ele tinha um filho, tinha uma esposa, e era sua obrigação aproximar-se de Minta para compensar todas as aflições que lhe havia causado.
Ele compreendeu. Sabia que Minta suspeitara dele de querer matá-la, o que o abalara consideravelmente, mas que o tornou mais terno e protetor com relação a ela. Era um bom começo e eu lhe disse que, com o tempo, se tornaria digno dela.
Franklyn veio jogar uma partida de xadrez.
- Estou resolvido a ir para a Austrália - disse.
- Você! Haveria de detestar.
- Por que haveria?
- Porque não é... a Inglaterra. É um país novo. É vigoroso, áspero talvez, e as coisas lá são feitas diferentemente de como são aqui.
- E, para variar, por que não posso ser diferente?
- Por que está querendo ir? Concentrou o olhar em mim e diss:
- Você sabe por quê.
- Oh, não - protestei. - Por causa de mim... não!
- Está resolvida a ir. Para mim a única coisa que posso fazer é ir também. Não quero perdê-la, bem sabe.
- E a propriedade? E Wakefield Park?
- Posso arranjar um administrador. Isso é simples. De fato, até já resolvi esse pequeno detalhe.
- Mas você ama Wakefield Park.
- Há uma coisa que amo muito mais.
Não tive coragem de fitá-lo nos olhos. Senti-me envergonhada.
- A mim, por acaso?
- Mas é lógico.
Do convés do Brandon Star eu olhava as praias da Inglaterra ficarem para trás. Estava de volta. Uma vez fiquei ao convés de um navio com o mesmo destino, e Stirling estava a meu lado.
Agora Stirling ficava na Inglaterra e eu lhe disse adeus, a Minta, ao bebé, a Whiteladies. Um outro homem estava a meu lado.
Eu e Stirling éramos dois da mesma espécie. Por várias vezes dissemos isso. Mas agora era Franklyn quem estava comigo, e Minta com Stirling. Nós os menosprezamos, zombamos deles porque não eram iguais a nós.
Não. Eles tinham uma capacidade de amar que nos faltava. Minta prontificara-se a morrer por Stirling; Franklyn abandonara suas queridas terras para vir comigo. O que era o amor? Teríamos eu e Stirling compreendido o amor como sendo assim?
- Daqui a pouco você não verá mais a Inglaterra - disse Franklyn. - Isso a entristece?
Olhei-o de frente, vendo-o com outros olhos.
- Não como pensei - admiti. - Estamos indo para um grande país, uma terra de infinitas possibilidades.
Sorrimos um para o outro, e o amor que vi nos olhos dele tinha um brilho que me comoveu. Vi então que eu precisava aprender a amar como ele amava - e como Minta - amor que não procura sensação ou emoção continua,-amor que não é construído sobre a areia movediça da paixão violenta, mas sobre a rocha firme da afeição profunda e duradoura.
E enquanto a terra desaparecia no horizonte, convenci-me de que podia encontrá-lo.
Victoria Holt
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