Biblio VT
SAQUEADORES DE TÚMULOS
O homem desceu a correr a íngreme encosta da montanha tropical. As suas botas deslizavam na amálgama de folhas molhadas e lama escorregadia. Ramos de árvores pegajosos e espinhos cortantes tentavam apanhá-lo, mas ele continuava a correr a toda a velocidade por entre eles.
Não posso parar...
Quando chegou a uma curva acentuada do trilho, esforçou-se por não cair pelo precipício que o bordejava. Estendeu um braço para recuperar o equilíbrio e escorregou na lama. A outra mão apertava contra o peito um pacote embrulhado em papel. Apesar de ter quase caído, o homem acelerou. Olhou por cima do ombro.
Vários fogos ainda grassavam no cume da montanha.
Os nativos chamavam àquele lugar Montaña de Huesos.
A Montanha dos Ossos.
Era um lugar amaldiçoado, evitado por todos. O cume elevava-se das selvas verde-esmeralda da península do Iucatão, onde o México fazia fronteira com o seu vizinho do sul, Belize. Pântanos e precipícios profundos desafiavam todos os que se atrevessem a aproximar-se, enquanto os mosquitos e os moscardos atormentavam qualquer coisa que se mexesse. Florestas densas e trepadeiras cobriam a montanha, formando uma massa impenetrável e escondendo o seu verdadeiro coração de olhos indiscretos. O cume sobrepunha-se ao lago, onde os crocodilos flutuavam como troncos partidos. Da canópia da floresta, macacos cinzentos com focinhos brancos olhavam para baixo, estranhamente silenciosos, como pequenos fantasmas de anciãos. Algures, jaguares furtivos vagueavam em busca da presa nas clareiras mais remotas. Quando chovia, o que era frequente, quedas-d’água e cataratas corriam pelas encostas da montanha abaixo como prata derretida.
Era uma paisagem a contemplar.
Porém, uma paisagem rara.
Poucos tinham contemplado a enorme montanha; ainda menos tinham percorrido as suas encostas. E apenas um homem conhecia o seu segredo.
Ele descobrira a verdade.
A Montanha dos Ossos... não era uma montanha.
Apertando o seu embrulho, o homem apressou-se pelo trilho sombrio da selva. Os macacos fantasmagóricos guinchavam suavemente à sua passagem cambaleante, como se o encorajassem a correr mais depressa. Um pedaço de flecha partida encontrava-se espetado na sua anca. Uma dor lancinante percorria-lhe a perna a cada passo que dava, mas tinha de continuar. Os caçadores apertavam cada vez mais o cerco à sua volta.
O seu nome era Henry Bethel.
Doutor Henry Bethel.
Professor de arqueologia na Universidade de Oxford.
Ele e os seus estimados colegas, Penelope e Richard Ransom, tinham passado os últimos três meses da estação chuvosa a fazer escavações no cume da Montanha dos Ossos. Haviam descoberto um esconderijo incrível de artefactos antigos: uma máscara de jaguar de prata, uma coroa de jade e opala, pequenos entalhes de ónix e malaquite, uma serpente sinuosa de ouro com duas cabeças, e muitos outros objetos de valor inestimável do período clássico da civilização maia.
Tinham encontrado os artefactos num túmulo de pedra no cimo da montanha. Mesmo agora, ao fugir, Henry lembrava-se de Penelope Ransom a descer por uma corda para o túmulo pela primeira vez. A luz da sua lanterna iluminara a cripta subterrânea e o sarcófago gigantesco que se encontrava no seu interior. Em cima da tampa de calcário do sarcófago, encontrava-se o artefacto mais magnífico de todos: uma pirâmide de ouro com sessenta centímetros, rematada por uma peça de jade esculpida na forma de uma serpente enrolada de asas abertas, como um dragão. A escultura representava uma criatura lendária.
Kukulkan.
O deus dragão emplumado dos maias.
O túmulo era a descoberta de uma vida.
E a notícia espalhou-se depressa.
Atraídos pelos rumores da existência de ouro e tesouros, os bandidos tinham atacado há duas horas, quando o Sol baixava no horizonte. Mergulhado no lusco-fusco, o acampamento arqueológico fora rapidamente subjugado por espingardas, machetes e ameaças gritadas. Quando o ataque começou, Henry correu para a tenda dos Ransom e encontrou-a vazia. Não sabia o que acontecera a Penelope e Richard.
E continuava sem saber.
Apenas sabia que devia manter o embrulho em segurança.
Os Ransom tinham deixado instruções específicas.
Arriscou-se a olhar novamente para cima. Já não conseguia ver as labaredas do acampamento em chamas. Os atacantes tinham ateado fogo a todo o local, fazendo explodir até o tanque de combustível que alimentava o gerador.
O estampido de um tiro de espingarda ecoou vindo do cume da montanha.
Aturdido, Henry encolheu-se, e o tacão da sua bota esquerda escorregou. As suas pernas cederam. Embateu violentamente com o rabo no chão e começou a deslizar pelo declive íngreme da montanha.
Fincou os tacões das botas, mas o chão enlameado revelou-se demasiado escorregadio devido à chuva que caíra naquele dia. A folhagem molhada das palmeiras esbofeteava-lhe o rosto e as pedras meio enterradas fustigavam-lhe a coluna. O ramo de um arbusto espinhoso fez-lhe um corte numa das faces.
Ainda assim, Henry apertava o embrulho contra o peito.
O declive da montanha terminou abruptamente e Henry saiu disparado. Voou pelo ar, soltando um ligeiro gemido de surpresa. Caiu de pé dentro de uma pequena poça escura no sopé da montanha. Era pouco profunda, a água dava-lhe pela cintura. As suas botas embateram no fundo arenoso, o que fez os seus dentes baterem ruidosamente. Ainda assim, continuava a segurar no embrulho. Elevou-o acima da cabeça para o manter seco.
Só mais um pouco...
O lago e o barco encontravam-se a pouco mais de oitocentos metros de distância.
Respirou fundo e tentou arrastar-se para fora da poça, mas as suas pernas recusavam-se a obedecer. As botas estavam presas no fundo lamacento, enterradas até aos calcanhares. Henry contorcia-se e puxava, mas o lodo pegajoso prendia-o não lhe dando qualquer possibilidade de escapar. Os seus esforços afundavam-no ainda mais. Sentiu a lama e a areia subirem da barriga das pernas até aos joelhos.
Não...
O nível da água chegou-lhe rapidamente ao peito. O frio da poça entranhou-se nos seus ossos. Ele sabia o perigo em que tinha caído.
Areias movediças.
Segurou o embrulho acima da cabeça. O que fazer? Lágrimas de frustração e medo turvavam-lhe a visão. Naquele momento, a parte racional do seu cérebro desligou, sendo substituída por puro terror.
Henry olhou fixamente para cima, para a montanha amaldiçoada.
Montaña de Huesos.
A Montanha dos Ossos.
E agora os seus ossos iam juntar-se a todos os outros.
Ele dececionara os Ransom.
Com Penelope e Richard desaparecidos, ninguém mais sabia a verdade. Observou a Lua a aparecer por cima dos picos escarpados da montanha. Estremeceu com esta visão e até mesmo esse ligeiro movimento fez com que se afundasse mais um pouco nas areias movediças. A lama subiu até à sua cintura, a água dava-lhe agora pelo pescoço.
O segredo morreria com ele.
Pressentindo o seu destino, esticou o pescoço para contemplar a montanha.
Uma montanha que não era uma montanha.
Da posição letal em que se encontrava, a verdade parecia agora tão óbvia. As linhas precisas, os declives íngremes, o cume rombo. Embora a montanha parecesse ser uma colina natural, ele sabia que o tempo soterrara o seu verdadeiro coração debaixo de séculos de lama, folhas, trepadeiras e raízes serpenteantes.
No seu pensamento, Henry separou e desmontou todas as camadas, chegando assim ao coração escondido. Imaginou os quatro lados, os nove degraus gigantescos e o cume plano que se estendia em direção ao sol nascente.
Uma pirâmide maia.
A estrutura ancestral encontrava-se escondida no interior da falsa montanha.
No entanto, não era esse o seu maior segredo.
Nem de longe.
Henry tocou com os dedos no fio que envolvia o embrulho. Enviou silenciosamente um pedido de desculpas e uma oração a Richard e Penelope Ransom.
Quando a água lhe subiu até aos lábios, Henry sentiu o sabor da água arenosa. Cuspiu e engasgou-se. A sua visão ficou turva. Luzes dançaram à frente dos seus olhos.
Não, luzes não...
A sua visão tornou-se mais apurada, apesar do pânico.
Tochas aproximavam-se pela selva pantanosa. Chamas cintilavam. As sombras negras deram lugar a uma dúzia de guerreiros. Estavam quase nus, usando apenas tangas. Cinza e tinta preta cobriam-lhes o rosto. Alguns aproximaram-se com os arcos tensos, as setas afiadas apontadas na sua direção. Outros tinham espingardas ao ombro.
Os caçadores tinham encontrado a sua presa.
Do meio deles, surgiu uma figura mais importante. O líder dos bandidos. Contudo, Henry sabia que os bandidos eram tão bandidos como a Montaña de Huesos era uma simples montanha.
Os atacantes também escondiam um segredo mais sombrio.
Henry ouviu um vump-vump familiar ecoar à distância. Helicópteros sobrevoavam o acampamento em chamas. Helicópteros militares. Henry conseguira enviar um pedido de socorro pelo rádio antes de fugir.
Se ao menos tivessem chegado mais cedo...
O líder alto dos bandidos aproximou-se e baixou-se sobre um joelho.
Henry lutou para ver o rosto do homem, mas a luz da tocha parecia evitar a sua forma. Com um casaco comprido e um chapéu de abas, era mais sombra do que homem.
Estendeu uma vara de madeira com um gancho de aço afiado na ponta. Henry sabia que o homem não se estava a oferecer para o puxar dali para fora. Queria o embrulho. Henry tentou empurrá-lo para debaixo de água, mas foi demasiado lento. O homem esticou a vara e arrancou o embrulho da ponta dos seus dedos.
Henry tentou recuperá-lo, mas este elevou-se para fora do seu alcance.
O líder dos bandidos levantou-se. Com um sacão hábil, o embrulho voou alto e aterrou na palma aberta da sua mão. Por um momento, Henry conseguiu ver de relance dedos esqueléticos com unhas afiadas.
Como garras.
Em seguida, o homem atirou a vara para o lado e começou a afastar-se.
— Obrigado, doutor Bethel — ouviu-se num sussurro rouco, com uma pronúncia estranha. — Revelou-se extremamente útil.
Henry esticou o pescoço para trás o máximo que conseguiu. Os seus lábios elevaram-se acima da superfície lamacenta. Cuspiu toda a água que tinha na boca.
— Nunca o terás! — As palavras sufocadas de Henry foram seguidas de uma gargalhada amarga de satisfação.
O líder virou-se outra vez para ele. De baixo do chapéu, surgiram os seus olhos, como sombras polidas, mais brilhantes que a escuridão obscura, sinistros, contranaturais.
Enquanto Henry se afundava, aqueles olhos estranhos focaram-se nele e semicerraram-se. As águas tornaram-se mais frias sob aquele olhar inquisitivo.
Quando a água cobriu a cabeça de Henry, ele respondeu silenciosamente à suspeita do líder. Chegaste demasiado tarde.
Ouviu o líder gritar. Henry imaginou o homem a rasgar o embrulho que ele protegera de forma tão corajosa. Ele sabia o que homem ia encontrar: apenas folhas de palmeira secas, dobradas e enroladas.
Através da água que o afogava, Henry ouviu o grito furioso do sombrio líder dos bandidos. O homem finalmente percebera que nada era o que parecia ser aqui, na sombra da Montanha dos Ossos.
Nem os bandidos, nem a montanha... nem mesmo o embrulho atado com um fio.
Era tudo um truque.
O objetivo da fuga de Henry era deixar um rasto falso, a fim de atrair os caçadores para longe do verdadeiro caminho. À medida que a escuridão caía e Henry se afundava no derradeiro e eterno abraço da floresta, um sorriso formou-se nos seus lábios.
O segredo estava a salvo, a caminho de onde pertencia.
Para ser escondido até ser necessário.
Ninguém reparou no rapaz maia que subia os dois degraus do posto dos correios na cidade de Belize. Trazia consigo um embrulho atado com fio. Atrás dele, o oceano brilhava de forma esplendorosa. O rapaz e o seu avô tinham demorado um mês a chegar à costa. Tiveram de ser cuidadosos, prudentes e vigilantes.
O seu avô conhecia todos os caminhos antigos, as passagens secretas dos seus antepassados. Ele ensinara muito ao rapaz durante a longa viagem: como acalmar uma dor de dentes mastigando a seiva de um sapotizeiro, como fazer fogo com uma pedra de sílex e mechas de fibras e como andar pela selva sem ser ouvido.
Contudo, a lição mais importante não fora transmitida por palavras.
Honrar as promessas.
O rapaz ergueu o embrulho para o meter na ranhura da caixa do correio. Queria muito espreitar para dentro do pacote, mas tinha feito uma promessa. Olhou fixamente para a morada escrita no embrulho de papel castanho. Fez o som das letras.
North Hampshire... Connecticut.
Imaginou a longa viagem que a encomenda faria. Desejava poder segui-la. Voar para um destino exótico.
O rapaz percorreu com o dedo a linha de cima:
Menino Jacob Bartholomew Ransom
Tantos nomes para uma pessoa. Enquanto abanava a cabeça, o rapaz enfiou a encomenda pela ranhura. Bateu no fundo, fazendo um ruído satisfatório.
Com a promessa cumprida, o rapaz afastou-se. «Menino Jacob Bartholomew Ransom», murmurou ele enquanto descia os degraus do posto dos correios.
Com tantos nomes, não havia dúvida de que devia ser alguém importante.
Talvez um príncipe distante ou um lorde.
Ainda assim, a pergunta incomodava-o... e iria incomodá-lo durante muitos anos.
Quem era, ao certo, o menino Jacob Bartholomew Ransom?
PARTE UM
TRÊS ANOS DEPOIS
1
A MONOTONIA DAS AULAS
Na sua secretária, Jake Ransom esperava ansiosamente que o ponteiro do relógio de parede percorresse os últimos minutos da aula de geografia do sexto tempo.
Faltavam apenas vinte e quatro minutos para ficar livre.
Livre da Escola Preparatória de Middleton durante uma semana inteira!
Então poderia fazer algum trabalho a sério. Já planeara cada dia da sua semana de férias: explorar o rico filão de fósseis de crustáceos que descobrira na pedreira atrás da sua casa, ir à sessão de autógrafos de um dos seus físicos preferidos, que publicara um novo livro chamado Quarks Desconhecidos e Mistérios Quânticos Profundos, assistir à quarta palestra de um antropólogo de renome sobre as tribos canibais do Bornéu (quem diria que os globos oculares salteados tinham um sabor doce?)... e tinha muito mais atividades planeadas.
Só precisava que soasse a campainha da escola que assinalava o final das aulas para o libertar da prisão que era o oitavo ano.
No entanto, a fuga não seria assim tão fácil.
A professora de história, a senhora Agnes Trout, bateu as palmas e atraiu a sua atenção contrariada. Encontrava-se de pé ao lado da sua secretária. Magra como um pau de giz, e igualmente seca e poeirenta, a professora olhava a turma com atenção.
— Temos tempo para mais um relatório — anunciou ela.
Jake revirou os olhos. Oh, boa...
O resto da turma não parecia mais contente que ele. Ouviram-se gemidos por toda a sala, o que fez com que os lábios da professora se contraíssem ainda mais.
— Pode passar a dois relatórios e a ficarmos aqui depois do toque — avisou ela.
A turma rapidamente sossegou.
A professora Trout acenou com a cabeça e virou-se para a sua secretária. Um dedo percorreu uma lista de nomes e avançou para a vítima seguinte no alinhamento para fazer a apresentação oral do relatório. Jake achou divertido ver os ombros magros da professora a aproximarem-se das orelhas. Ele sabia qual era o nome que se seguia na lista, mas de alguma maneira este apanhara a professora de surpresa.
Ela endireitou-se com os lábios contraídos.
— Parece que vamos ouvir o Jake Ransom a seguir.
Ouviu-se mais uma onda de gemidos. A professora nem se deu ao trabalho de os mandar sossegar. Arrependera-se claramente de ter decidido incluir a apresentação de mais um relatório antes da semana de férias. Contudo, quase um ano depois de frequentar a sua aula, Jake sabia que a professora Trout era picuinhas em relação às regras e à ordem na sala de aula. Ela preocupava-se mais com a memorização de datas e nomes do que com a verdadeira compreensão do fluxo da história. Assim, uma vez traçado o seu curso de ação, não tinha outra escolha senão fazer sinal a Jake a fim de este se dirigir para a frente da turma.
Jake deixou os seus livros e apontamentos na secretária. Tinha a sua apresentação oral memorizada. Sem nada nas mãos, sentia que todos olhavam para ele enquanto se dirigia para o quadro. Apesar de ter avançado um ano, era o segundo rapaz mais alto da turma. Infelizmente, nem sempre era bom destacar-se dos outros, sobretudo na escola preparatória e especialmente depois de ter saltado um ano. Ainda assim, Jake manteve os ombros direitos enquanto atravessava a sala em direção ao quadro. Ignorou os olhares que o seguiam. Sem qualquer preocupação pela moda, Jake vestia de manhã a primeira coisa que encontrava (lavada ou não). Nesse dia acabara com calças de ganga coçadas, um par de ténis bota esfarrapados, um polo verde desbotado e, é claro, o blazer obrigatório com a insígnia da escola bordada a dourado no bolso da frente. Nem mesmo o seu cabelo louro condizia com a moda atual dos cabelos rapados. Em vez disso, caía descontraidamente sobre a testa.
Tal como o do seu pai em tempos.
Pelo menos, era o que mostrava a última fotografia que Jake tinha do pai, desaparecido há três anos numa selva da América Central. Jake ainda guardava consigo essa fotografia, colada com fita-cola na contracapa do seu caderno de apontamentos. Mostrava os seus pais, Richard e Penelope Ransom, a sorrir de forma genuinamente feliz, vestidos com fatos de safári caqui e a segurar um petróglifo maia. Os cantos da fotografia estavam queimados e enrolados devido ao fogo que consumira o acampamento no cimo da montanha.
Colado por baixo da imagem encontrava-se um pedaço de papel com o nome de Jake e a morada da casa da família em North Hampshire, Connecticut, escrito com a letra do seu pai. A encomenda chegara seis semanas depois de os bandidos terem atacado o acampamento dos pais.
Isso acontecera há três anos.
Era o último e o único contacto dos seus pais.
Jake passou os dedos pelo fino cordão que usava à volta do pescoço, enquanto se dirigia para a frente da turma. Através do polo de algodão, sentiu o pequeno objeto pendurado no cordão que assentava sobre o seu peito. Um último presente dos pais. O seu toque reconfortante ajudava-o a concentrar-se.
Ao seu lado, a professora aclarou a garganta:
— Turma, o senhor Jake Ransom vai ensinar-nos... bem... quero dizer, a sua apresentação oral é sobre...
— O meu relatório — disse ele, interrompendo-a — é sobre as técnicas astronómicas da civilização maia relativamente à precessão dos equinócios.
— Sim, sim, claro. Equinócios. Muito interessante, senhor Ransom — disse a professora, ao mesmo tempo que acenava com a cabeça de uma forma talvez demasiado vigorosa.
Jake desconfiava que a professora Agnes Trout não percebia totalmente do que tratava o relatório. Ela recuou para a sua secretária, como se estivesse com medo de que ele lhe fizesse uma pergunta. Tal como toda a gente, a professora devia ter ouvido a história do senhor Rushbein, o professor de geometria, o qual tivera um esgotamento nervoso depois de Jake refutar um dos seus teoremas em frente da turma toda. Agora, todos os professores da Escola Preparatória de Middleton olhavam para Jake com alguma preocupação. Quem seria a seguir?
Jake pegou num pedaço de giz e escreveu alguns cálculos no quadro.
— Hoje vou mostrar-vos como o povo maia conseguia prever eventos como os eclipses solares, tal como o que vai acontecer na próxima terça-feira...
Uma bolinha de papel atingiu o quadro junto à sua mão e fez com que o pedaço de giz se partisse, produzindo um guincho agudo.
— Eles conseguiam prever isso?
Jake conhecia a voz. Craig Brask. Um linebacker da equipa júnior de futebol americano. Enquanto Jake saltara um ano, Craig ficara retido. Desde então, Jake tornara-se alvo daquele troglodita musculado.
— Senhor Brask! — exclamou a professora Trout. — Não vou tolerar mais faltas de comportamento suas na minha aula. O senhor Ransom ouviu a sua apresentação com respeito.
Com respeito? O relatório de Craig era sobre a Batalha de Little Bighorn e ele até conseguira perceber mal o fim: os índios levaram uma grande coça!
Quando o burburinho esmoreceu, Jake respirou fundo duas vezes para se concentrar e preparou-se para continuar a sua apresentação. Ao preparar este relatório, Jake descobrira que os maias eram astrónomos exímios, que compreendiam o grande movimento do cosmo. Essa pesquisa fez com que se sentisse mais próximo dos pais. Era o trabalho a que os pais se tinham dedicado a vida inteira. Contudo, agora, diante do quadro, Jake sentia o aborrecimento da turma atrás dele. Abanando ligeiramente a cabeça, Jake pegou no apagador e passou-o por cima dos cálculos que acabara de escrever. Aquilo não era o que a turma queria ouvir. Virou-se de frente para eles, aclarou a garganta e falou de forma decidida.
— É bem conhecido que os maias praticavam rituais de sacrifícios humanos. Chegavam até a retirar o coração da vítima... e a comê-lo.
A súbita mudança de tópico chocou a turma e dissipou o tédio dos seus rostos.
— Isso é doentio — observou Sally Van Horn da fila da frente, endireitando-se na cadeira.
Jake desenhou o contorno de uma figura humana no quadro e explicou pormenorizadamente o método do ritual: desde os tipos de facas utilizadas na matança até à forma como o sangue era recolhido do altar para taças especiais. Quando a campainha da escola soou, ninguém se mexeu. Um aluno até pôs a mão no ar e perguntou:
— Quantas pessoas é que eles mataram?
Antes que conseguisse responder, a professora Trout acenou-lhe para que parasse.
— Sim, muito interessante, senhor Ransom. Mas penso que é suficiente por hoje.
A professora parecia um pouco esverdeada, talvez devido à descrição de Jake de como os maias usavam ossos e intestinos para prever o tempo.
Jake disfarçou um ligeiro sorriso enquanto sacudia o pó do giz das mãos e regressava à secretária. Alguns alunos aplaudiram no final da sua apresentação, mas, como era habitual, foi ignorado pela maioria. Observou os outros a ir-se embora, em grupos de dois ou três, a rir, a brincar e a sorrir.
Como era novo na turma, Jake ainda não tinha feito amigos. E não se importava com isso. A sua vida já era demasiado preenchida. Determinado a seguir as pisadas dos pais, tinha de se preparar — de mente e corpo — para alcançar esse objetivo.
Quando chegou à sua secretária, pegou na mochila e reparou que o seu caderno continuava aberto. Ficou parado durante alguns instantes a observar a fotografia dos pais colada à contracapa, depois fechou o caderno, pôs a mochila às costas e dirigiu-se para a porta.
Pelo menos, não tinha de ir à escola durante uma semana.
Nada podia correr mal.
Jake desceu apressadamente os degraus de mármore da escola sob a luz radiosa do sol de abril e dirigiu-se para a sua bicicleta de montanha.
Um riso animado atraiu a sua atenção para a esquerda. Por baixo de um dos cornizos em flor no pátio da escola encontrava-se a sua irmã, Kady. Estava encostada ao tronco de uma árvore, vestida de amarelo e dourado, as cores do seu uniforme de chefe de claque. Combinava com as três raparigas à sua volta, embora fosse claro que ela era a líder do grupo. Era também o alvo das atenções de meia dúzia de rapazes de classe alta, todos exibindo casacos com insígnias de equipas desportivas.
Ela riu-se novamente com algo que um dos rapazes disse. Abanou a cabeça de uma forma bastante ensaiada, lançando uma cascata de cabelo louro, apenas alguns tons mais claros que o de Jake. Esticou uma perna, como se estivesse a fazer alongamentos, mas Jake sabia que era apenas para exibir o comprimento da sua perna e a sua nova pulseira de tornozelo prateada. Estava a tentar captar a atenção do capitão da equipa de futebol americano, mas este parecia mais entretido a dar murros no ombro de outro colega de equipa.
Por um breve momento, os olhos de Kady captaram a aproximação de Jake. Ele viu-os semicerrarem-se como em sinal de aviso, demarcando um território proibido.
Jake afastou-se. Acelerou o passo, preparando-se para contornar o grupo de elite da preparatória de Middleton. Estava tão concentrado nessa tarefa que nem reparou em Craig Brask até este se encontrar quase em cima dele.
Um braço comprido estendeu-se e bateu com a palma da mão no peito de Jake. Alguns dedos apertaram-lhe o polo.
— Onde é que achas que vais?
Craig Brask tinha mais um palmo que Jake e o dobro do seu peso. O cabelo ruivo do seu colega de turma estava rapado e o seu rosto tinha tantas sardas que dava a sensação de estar sempre corado. As mangas do blazer da escola estavam arregaçadas, o que expunha os seus braços que em tudo se assemelhavam aos de um macaco.
— Deixa-me em paz, Brask — avisou Jake.
— Senão o quê?
Nessa altura, já outros se tinham juntado à sua volta. Um burburinho elevou-se da multidão.
Quando Craig se virou para sorrir para a sua plateia, Jake aproximou-se e agarrou o polegar de Craig, torcendo-o. Ao longo dos últimos três anos, Jake estudara mais do que civilizações antigas. Preparara o seu corpo, tanto quanto a sua mente, frequentando aulas de taekwondo três vezes por semana.
Craig resfolegou quando Jake o soltou. O corpulento rapaz cambaleou para trás.
Sem querer que o confronto se agravasse, Jake virou-se e dirigiu-se para a sua bicicleta. Contudo, Craig atirou-se a ele e agarrou no colarinho de Jake por trás, não o deixando ir embora.
Jake sentiu o fino cordão de pele à volta do seu pescoço rebentar com a pressão. O peso que se encontrava pendurado no fio escorregou-lhe pela barriga, onde o polo estava entalado nas calças de ganga.
A raiva apoderou-se dele, violenta e cega.
Sem pensar, Jake virou-se e deu um pontapé no peito de Craig.
Craig voou para trás e aterrou de costas. O pé de Jake escorregou na relva e ele caiu com o rabo no chão, sentindo os seus dentes rangerem.
Alguém gritou:
— Kady, aquele não é o teu irmão?
Jake olhou de relance por cima do ombro. A elite da preparatória de Middleton virou-se toda na sua direção, incluindo o capitão da equipa de futebol americano.
Com o sobrolho carregado, Randy White aproximou-se. Todos os outros o seguiram, incluindo a irmã de Jake.
Ao chegar junto deles, Randy apontou para o nariz de Craig e disse:
— Brask, deixa o miúdo em paz.
A autoridade naquela voz não dava azo a debate.
Craig esfregou o peito dorido e franziu o sobrolho.
Randy estendeu a mão a Jake para o ajudar a levantar, mas este conseguiu pôr-se de pé sozinho. Não queria ajuda. Sacudiu a parte de trás das calças. Randy encolheu os ombros e virou-se, não sem antes murmurar:
— Miúdo esquisito.
Enquanto a elite se afastava, Kady permaneceu no mesmo lugar. Agarrou Jake pelo cotovelo e inclinou-se para ele.
— Para de me tentar envergonhar — sussurrou ela entredentes.
Envergonhar-te?
Jake sacudiu o braço para se livrar da irmã e retribuiu-lhe o olhar furioso, olhos nos olhos. Apesar de terem a mesma altura, Katherine Ransom era dois anos mais velha.
O rosto de Jake ficou ainda mais vermelho do que durante a luta. Sem ser capaz de falar, retirou o cordão preso por baixo da fralda da camisa. O objeto que estava pendurado nele caiu sobre a sua mão aberta.
Uma moeda de ouro. Na verdade, era apenas meia moeda, sendo que a moeda inteira fora partida ao meio, com uma imagem maia gravada em cada metade. A luz do sol brilhou e refletiu-se nos olhos de Kady. Ela levou a mão esquerda à sua própria garganta. A sua metade da mesma moeda estava pendurada numa fina corrente de ouro à volta do seu pescoço.
Os dois pedaços da moeda tinham sido enviados na encomenda há três anos, juntamente com o diário de campo do pai e o bloco de desenho da mãe. Nenhum dos dois sabia por que razão a encomenda fora enviada ou quem a enviara. Desde então, os dois símbolos de ouro nunca tinham abandonado o pescoço de Jake e Kady.
Jake olhou fixamente para o pedaço da moeda na sua palma. A luz do Sol refletia-se na sua superfície polida de ouro, fazendo com que o símbolo na sua metade brilhasse intensamente. Os símbolos chamavam-se glifos.
O glifo na sua moeda representava a palavra maia be (que se pronunciava BEI), em português, estrada.
Pela milionésima vez, Jake pensou no que significaria. Tinha de significar algo. Virando as costas à irmã, enfiou a moeda no bolso e dirigiu-se à sua bicicleta de montanha acorrentada.
Afastou-se a pedalar. Como ele desejava nunca mais ter de regressar a esta escola secante.
Contudo, abanou a cabeça.
Não, o seu coração estava demasiado cheio com um único desejo para se preocupar com qualquer outro.
Levou a mão ao bolso enquanto pedalava. Esfregou a palma por cima da moeda através das calças de ganga, como se se tratasse da lâmpada de Aladino.
Só havia lugar para um desejo no coração de Jake: descobrir o que acontecera à sua mãe e ao seu pai.
Era por essa razão que se esforçava tanto.
Se queria descobrir a verdade sobre a morte dos seus pais, descobrir por que razão tinham sido assassinados, tinha, antes de mais, de se tornar como eles. Tal pai, tal filho. Seguir-lhes as pisadas.
Com uma determinação renovada, Jake levantou-se do selim e subiu a custo a longa colina até casa.
Nada mais importava.
2
UM CONVITE INESPERADO
Uma pequena pancada...
Jake encontrava-se deitado de barriga para baixo, enquanto o sol lhe queimava as costas. Estivera na pedreira por trás da sua casa o sábado inteiro. A laje de pedra por baixo dele era quase toda lisa, mas, nesta altura, qualquer alto na superfície parecia uma protuberância afiada.
Tinha os lábios contraídos num esgar, não de dor, mas de concentração absoluta.
Não posso estragar a amostra.
O fóssil da era paleozoica parecia um cruzamento entre um caranguejo espalmado e uma espécie de nave extraterrestre. Conseguia até ver um minúsculo par de antenas.
Era um achado raro naquela zona. Tinha quase oito centímetros de comprimento, um excelente exemplar de Isotelus maximus, mais conhecido por trilobite.
Um achado fantástico!
Jake segurava uma picareta numa mão e um pequeno martelo na outra. Mais uma pancada certeira e conseguiria soltar o fóssil da pedra em volta. Depois poderia levá-lo para o seu quarto e limpá-lo de forma cuidadosa sob condições apropriadas.
Posicionou a picareta, respirou fundo e ergueu o martelo. Queria fechar os olhos, mas duvidava que isso o ajudasse.
Aqui vai...
Ergueu o martelo e...
— A CHAMAR O MENINO JAKE!
... sobressaltado, acertou com força no polegar, mesmo junto ao nó do dedo.
— CONSEGUE OUVIR-ME?
Os gritos estridentes vinham de um walkie-talkie equilibrado em cima de uma rocha, junto ao cotovelo de Jake.
Jake sacudiu a mão magoada e rolou até ficar de lado. Pegou no rádio e pressionou o botão para transmitir.
— O que se passa, tio Edward? — perguntou ele com alguma irritação.
— O JANTAR VAI SER SERVIDO.
Jantar?
— E DESCONFIO QUE PRECISES DE ALGUM TEMPO PARA TE LAVARES.
Jake olhou de relance para o céu e reparou que o Sol se afundara no horizonte e que as sombras se alongavam sobre a paisagem. Profundamente concentrado, não se tinha apercebido de que era tão tarde.
Levou o rádio aos lábios.
— Está bem. Vou já.
Demorou mais uns minutos com a picareta e o martelo para libertar da rocha o fóssil de trilobite, enfiando-o no bolso em seguida. Quando terminou, rolou até ficar deitado de costas, dando de caras com dois maxilares babados e um grande nariz preto húmido. Uma respiração quente atingiu-lhe o rosto. Uma gota de baba aterrou-lhe na testa.
Ugh.
Jake esticou os braços e empurrou o focinho do basset hound para o lado.
— Uf, Watson. Esse hálito era capaz de matar um dragão.
Jake sentou-se direito.
Ignorando o insulto, Watson deslizou uma comprida língua molhada pela face de Jake.
— Sim, está muito melhor. Partilha os teus micróbios.
Ainda assim, Jake sorriu e coçou vigorosamente o velho cão atrás da orelha esquerda descaída, o que fez com que a perna traseira do cão começasse a abanar de felicidade. Watson, com quase catorze anos, já era parte da família há mais tempo que Jake. A mãe de Jake resgatara Watson de um criador inglês de cães de caça à raposa, que ia afogá-lo em cachorrinho por ter nascido com uma pata da frente torta. Watson ainda coxeava ao andar, mas tal como a mãe dizia sempre: «São as imperfeições que nos fazem ser o que somos.»
Ainda assim, com uma perna defeituosa ou não, se Watson visse um esquilo, desatava a correr atrás dele como um relâmpago peludo. Jake tinha um apito sempre à mão para não perder o cão no meio do bosque, sobretudo agora que a visão de Watson estava cada vez mais debilitada por causa da idade.
— Bora, Watson. Vamos comer.
A última palavra fez com que a cauda do cão começasse novamente a abanar. Levantou o focinho, a cheirar. Esse sentido certamente não ficara mais debilitado com a idade. Era provável que já soubesse o que a tia Matilda estava a cozinhar no fogão.
Jake olhou para baixo, para outros dois fósseis que queria recolher. Teria de esperar até amanhã. A luz estava a desaparecer e ele não queria cometer nenhum erro. O pai ensinara-lhe isso. Um arqueólogo tinha de ser paciente. Ouviu a voz do pai dentro da sua cabeça: Não apresses a história... ela não vai a lado nenhum.
Tendo em consideração esse conselho, Jake recolheu as ferramentas e começou a andar acompanhado de Watson. Trepou para fora da pedreira e dirigiu-se para casa.
A mansão Ravensgate estendia-se diante de Jake, vinte e um hectares de colinas salpicadas de florestas de áceres e carvalhos.
Jake desceu um caminho coberto de aparas de madeira. A propriedade pertencia à família há várias gerações, desde o primeiro Ransom que ali se estabelecera pouco antes da assinatura da Declaração da Independência. Fora um egiptólogo de renome, e cada geração depois dele seguira as pisadas do seu antepassado, todos eles exploradores de algum tipo.
Quando Jake fez a curva, avistou a mansão.
No meio do vasto jardim à inglesa, encontrava-se uma pequena mansão com torreões de pedra e paredes em enxaimel, telhados de ardósia e remates de cobre, janelas de vitral e dobradiças de latão. Na parte da frente, um caminho de acesso circular empedrado conduzia ao portão principal, cujos pilares suportavam um par de corvos de pedra, que davam o nome à propriedade.
Com o desaparecimento dos seus pais, a casa fora ficando negligenciada. A hera crescera mais fina e amarelada em certas partes, faltavam algumas telhas e uma secção de painéis de vidro tinha sido remendada com fita adesiva e tábuas. Era como se algo essencial tivesse sido roubado... da propriedade, da casa, mas sobretudo do coração de Jake.
Com Watson ao seu lado, Jake dirigiu-se para uma das portas traseiras. Empurrou a porta e entrou num pequeno vestíbulo com piso de tijoleira, onde sacudiu o pó dos sapatos e da roupa. Pendurou o saco com a amostra e as ferramentas num cabide junto à porta.
Uma cabeça surgiu na porta da divisão anexa. A tia Matilda. O seu rosto enrugado era emoldurado por caracóis brancos, a maior parte dos quais apanhada por baixo de um chapéu de pasteleiro. Ela não entrou na sala. Raramente o fazia. A tia Matilda parecia estar sempre demasiado ocupada para mover todo o seu corpo para dentro de uma divisão.
— Ah, aí estás tu, meu querido. Estava agora mesmo a servir a sopa. É melhor despachares-te e ires lavar-te. — Um ligeiro ar de preocupação fazia com que contraísse os lábios. — E onde é que andará a tua irmã?
A pergunta não era para ser respondida, muito menos por Jake, porque ele e Kady raramente passavam tempo juntos. Era uma mera reclamação ao Universo.
— Vou lavar-me e já desço, tia Matilda.
— Despacha-te. — Ela desapareceu de vista, indo controlar o cozinheiro e as duas empregadas. No entanto, voltou a espreitar pela porta. — Oh, o Edward quer que passes pela biblioteca antes do jantar. Chegou qualquer coisa no correio hoje.
A curiosidade apressou Jake. Bastante menos interessado, Watson afastou-se para procurar restos de comida na cozinha.
A biblioteca era logo a seguir ao salão principal. Para chegar lá, Jake percorreu o corredor central da mansão que se estendia das traseiras da casa até à frente. Numa parede estavam pendurados quadros com retratos a óleo dos seus antepassados, homens e mulheres, remontando ao primeiro Bartholomew, com o seu farto bigode e olhos semicerrados por causa do sol, a posar ao lado de um camelo. Cada retrato tinha um expositor correspondente na parede em frente.
Expositores de Curiosidades, como o seu pai lhes chamava.
Cada um continha artefactos e relíquias das aventuras dos seus antepassados: escaravelhos e borboletas presos em pedaços de cortiça, pedras preciosas e amostras de minerais, pequenos fragmentos de peças de barro e figuras esculpidas, e, claro, fósseis suficientes para encher um museu inteiro, incluindo um ovo de tiranossauro parcialmente eclodido.
Jake virou por baixo do arco seguinte para a biblioteca principal. Estantes carregadas de livros erguiam-se a uma altura de dois andares, acessíveis através de uma escada alta que corria ao longo de duas calhas de ferro forjado. A parede ao fundo tinha uma lareira tão alta que não era preciso curvar-se para entrar lá dentro. Um fogo brando crepitava, espalhando um calor convidativo pela divisão. A enorme secretária de carvalho do pai ocupava um dos cantos. A restante mobília consistia num conjunto de cadeiras e sofás confortáveis, que quase pediam que alguém se afundasse neles e se perdesse nos mundos contidos nas páginas de um dos livros.
O tio Edward encontrava-se de pé ao lado da secretária.
— Ah, aí estás tu, Jake — disse o tio. Virou-se sobre os calcanhares. Tinha as costas direitas e modos severos, mas os seus olhos nunca estavam frios, até mesmo naquele momento em que se sentia ligeiramente preocupado. Um par de óculos pequenos assentava sobre a ponta do seu nariz. Segurava um grande envelope amarelo nas mãos. — Isto chegou hoje. Vem de Inglaterra. Do distrito de Blackfriars, Londres.
— Blackfriars?
Um aceno de cabeça respondeu afirmativamente à sua pergunta.
— Um dos distritos financeiros mais antigos de Londres. Bancos e afins.
O tio Edward devia saber do que falava. Ele crescera em Londres. Na verdade, Edward e Matilda não eram mesmo tios de Jake. O seu nome de família era Batchelder. Eram amigos do avô de Jake e geriam a mansão Ravensgate há três gerações. Corriam rumores de que Edward salvara a vida do avô de Jake durante a Segunda Guerra Mundial, algures em África. Mas nunca ninguém contara a história toda.
Sem quaisquer parentes para tomar conta de Jake e Kady, o tio Edward e a tia Matilda tinham-se tornado tutores das crianças, enquanto continuavam a gerir a propriedade. O casal era muito afetuoso com eles, como quaisquer progenitores, mas também igualmente severos. Contudo, a maior parte dos residentes parecia encontrar-se em espera, desejosos pelo regresso dos verdadeiros donos da casa.
O tio Edward atravessou a sala em direção a Jake e estendeu-lhe o envelope selado.
Jake aceitou-o e olhou fixamente para o nome na parte de cima do envelope.
Menino Jacob Bartholomew Ransom.
Por baixo, encontrava-se o nome completo da irmã.
Jake sentiu um arrepio. Da última vez que vira o seu nome completo escrito fora na encomenda endereçada com a letra do seu pai, uma encomenda que ainda carregava um laivo de desgraça.
Agora, aqui estava novamente o nome, só que nítida e friamente dactilografado.
O tio Edward aclarou a garganta.
— Não sabia se querias esperar que a tua irmã voltasse para...
Jake rasgou o papel e abriu o envelope. Não se sabia quando Kady iria regressar.
Jake ouviu um rosnar baixinho atrás dele. Virou-se e viu Watson a entrar de rompante na sala. Tinha os pelos do cachaço eriçados e o nariz no ar. Era óbvio que tinha sido mandado para fora da cozinha e que viera procurar Jake para o consolar. Contudo, o seu olfato apurado devia ter captado algo no envelope, talvez tivesse cheirado algo que só o sentido apurado de um cão conseguiria. Watson não se aproximou mais. Começou a andar lentamente à volta de Jake, rosnando baixinho como que a avisá-lo.
— Sossega, Watson... está tudo bem.
Jake abanou o envelope para deixar cair o que estava lá dentro. Uma brochura colorida e outros artigos escorregaram-lhe por entre os dedos e caíram no chão de madeira. Watson recuou rente ao chão. Jake agarrou a folha maior de papel de linho. Era amarelada com letras em relevo de tinta preta.
O tio Edward já se agachara para apanhar os papéis soltos, incluindo uma carta de apresentação. Olhou de relance para os documentos, enquanto Jake lia o convite duas vezes.
— Estão aqui bilhetes de avião — acrescentou o tio. — Dois. Para ti e para a tua irmã. Primeira classe. E o que parecem ser reservas de quarto no Savoy. Um hotel muito caro.
Jake franziu o sobrolho e leu a linha mais intrigante.
— «Tesouros Maias do Novo Mundo.»
O tio Edward desdobrou a brochura. Fotografias de objetos de ouro e jade decoravam o que parecia ser o anúncio de uma exposição no museu.
— É do Museu Britânico — disse o tio Edward. — Que estranho. Os bilhetes de avião são para depois de amanhã. Segunda-feira. E, de acordo com a brochura, o primeiro dia da exposição é terça-feira.
— Terça-feira? — indagou Jake, reparando noutro facto estranho. Lembrava-se da sua apresentação sobre o calendário maia no dia anterior, bem como da predição maia para aquele dia. — É o dia do eclipse solar. Em Londres, o eclipse vai ser total.
Jake não conseguiu disfarçar a excitação na sua voz.
— Não estou a gostar nada disto — afirmou o tio Edward, acentuando as rugas da sua testa. — Com tão poucos dias de aviso. Apenas dois bilhetes. Para ti e para a tua irmã.
— A Kady e eu temos idade suficiente para viajar sozinhos. E não é o tio que me está sempre a dizer que devia conhecer o Museu Britânico um dia?
O tio Edward franziu ainda mais o sobrolho.
— Antes sequer de considerarmos aceitar o convite, tenho de fazer uns quantos telefonemas. Há centenas de pormenores a ter em consideração. Vamos ter de...
Jake ficou surdo para as palavras do tio. Em vez de o ouvir, os seus olhos fixaram-se numa das imagens da brochura desdobrada. Aproximou-se e tirou-a dos dedos do tio. No meio da página, encontrava-se a fotografia de uma serpente dourada, decorada com jade e rubis. Estava enrolada, formando um oito, mas em cada ponta estava esculpida uma cabeça, uma com os maxilares abertos, exibindo presas afiadas, e a outra com a boca fechada e uma pequena língua bifurcada de fora.
Jake olhou fixamente para a imagem. Sentiu a sala inclinar-se por baixo dos seus pés, e a sua respiração ficou ofegante e acelerada.
Reconheceu a serpente de duas cabeças.
Vira um desenho dela no caderno da mãe, chegara até a ler uma descrição pormenorizada dela no diário de campo do pai. Ambos os cadernos — duas metades do diário conjunto deles — tinham chegado juntamente com a moeda de ouro partida. Estava tudo na encomenda que lhe fora endereçada na letra do pai. Contudo, a encomenda viera sem qualquer nota ou explicação.
Por fim, Jake levantou a brochura e declarou:
— Este é um dos artefactos encontrados na escavação do pai e da mãe.
Jake deu uma vista de olhos rápida à brochura. Havia outros artigos que lhe pareciam familiares, mas queria compará-los com os do caderno de desenho da mãe.
O tio Edward aproximou-se.
— Pensei que os artefactos estivessem todos trancados num cofre qualquer na Cidade do México.
Jake acenou com a cabeça. Pouco depois de os bandidos terem atacado o acampamento dos seus pais, o exército mexicano voara para lá e isolara o local. Não se sabia quantos objetos tinham sido roubados e o que acontecera aos corpos do pai e da mãe de Jake. Outro colega deles também desaparecera. O doutor Henry Bethel.
Contudo, o exército recuperara a maior parte dos artefactos maias. Devido ao seu valor enquanto património nacional, nunca tinham saído do México.
Até agora.
O museu de Londres tinha-os por empréstimo para esta exposição.
Tesouros Maias do Novo Mundo.
— Não é de admirar que te tenham convidado — disse o tio Edward, que se encontrava ao seu lado a ler a brochura por cima do ombro de Jake. — O filho e a filha da equipa que descobriu os artefactos.
Jake não conseguia desviar o olhar da brochura. Traçou com um dedo os contornos da serpente de duas cabeças. De certeza que os seus pais também lhe tinham tocado, desenterrado com as suas próprias mãos.
— Eu tenho de ir — disse Jake com uma determinação feroz na sua voz.
O tio Edward colocou-lhe a mão sobre o ombro de forma reconfortante.
Quem sabe quando teria outra oportunidade de ver as relíquias antes de estas voltarem a ser trancadas a sete chaves? Jake sentiu lágrimas subirem-lhe aos olhos. Por estar tão mais perto dos seus pais.
Ouviu-se o guinchar de pneus vindo da parte da frente da casa. Risos e gritos de despedida ecoaram até eles. Pouco depois, a porta abriu-se de rompante e Kady entrou. Ela virou-se e acenou para a boleia que a trouxera até casa, usando todo o braço.
— Até amanhã, Randy!
Kady entrou em casa e viu Jake e o tio Edward a olharem fixamente para ela. Ao ver a expressão nos seus rostos, uma única ruga de preocupação formou-se na sua testa.
— O que foi? — perguntou ela.
— Bom, eu não vou — declarou Kady.
Jake observou-a a enumerar as suas razões pelos dedos.
— Tenho a festa na piscina do Jeffrey no domingo. Depois, tenho o treino da claque na segunda... seguido de outra festa. E isso já sem contar com as duas festas na terça-feira.
Kady parou de falar, batendo ligeiramente com o calcanhar no chão.
— E é óbvio que não vou abdicar disso tudo para tomar conta do Jake num museu aborrecido qualquer.
Jake sentiu o seu rosto ficar cada vez mais quente. Ela nem sequer se dignara a ouvi-lo. O coração dele batia aceleradamente. Ele sabia que, se Kady não fosse, ele não poderia ir. O tio Edward nunca o deixaria viajar sozinho.
— Kady! Estamos a falar dos artefactos da mãe e do pai!
Ela engoliu em seco. Olhou de relance para a brochura e novamente para longe dela. Kady era bem melhor a artes e a desenhar do que Jake. Ela estudara aprofundadamente o caderno de desenho da mãe, ou pelo menos era o que tinha feito quando os diários chegaram na encomenda. Nos últimos dois anos, Kady não voltara a olhar para eles.
No entanto, Jake reparara no ligeiro tremor nas mãos de Kady quando ela olhou para a brochura pela primeira vez. Ela também reconhecera a serpente de duas cabeças.
— Não sei — disse ela. — Tenho demasiadas coisas para fazer.
Jake virou-se para o tio Edward com uma expressão de súplica estampada no rosto.
O tio limitou-se a encolher os ombros. Era óbvio que ele ainda estava a considerar se deviam ir ou não. Sobretudo, sem a cooperação de Kady.
— Isto são bilhetes de primeira classe? — perguntou Kady de repente. Passou em revista os papéis que tinha nas mãos. — E a reserva de uma penthouse no Savoy?
Sentindo uma brecha na sua defesa, Jake mudou a sua abordagem. No meio de todo o seu entusiasmo, esquecera-se de com quem estava a lidar.
— É... tenho a certeza de que é um evento e tanto — disse Jake, cuidadosamente, apontando para os bilhetes. — Vê só a despesa. E até se deram ao trabalho de fazer a data coincidir com o eclipse solar. Se calhar é só um golpe de publicidade estúpido. Ainda assim...
Jake reparou no movimento dos ombros de Kady ao ouvir a palavra publicidade.
— Tenho a certeza de que vai haver câmaras por todo o lado — insistiu ele. — Equipas de reportagem, estações de televisão, talvez até celebridades.
Os olhos de Kady ficaram mais brilhantes. Voltou a olhar para o convite.
Quando Kady mordeu o isco, Jake rematou:
— Além disso, pensa em todas as compras que poderás fazer... as últimas modas da Europa que ainda nem sequer chegaram ao centro comercial de North Hampshire. Serias a primeira a usá-las.
Kady olhou de relance para os seus sapatos.
— Beeem, talvez fazer uma curta viagem não seja assim tão mau.
Jake olhou de relance para o tio Edward.
Este abanou a cabeça. O tio Edward sabia bem quando era derrotado. Ele até seria capaz de travar Jake, mas nunca conseguiria meter-se entre Kady e uma câmara.
— Então, parece-me que tenho de começar a tratar dos preparativos para a viagem — admitiu ele.
Kady anuiu e Jake suspirou de alívio.
Restava apenas lidar com um impedimento.
Watson ainda estava sentado junto à secretária do pai de Jake com o pelo todo eriçado. O olhar do basset hound continuava cravado no envelope amarelo descartado. Da garganta do velho cão, ainda saía um ligeiro rosnar.
3
O ESPETÁCULO
DO SENHOR BLEDSWORTH
Jake nunca estivera dentro de uma limusina. Nunca sequer imaginara a dimensão do seu interior. Parecia-lhe que se encontrava na barriga de um jato negro a voar rente ao chão.
A limusina percorria rapidamente as avenidas estreitas e as rotundas confusas da cidade de Londres. As buzinas dos carros soavam de forma estridente e alguns pedestres acenavam para o enorme veículo. Estavam atrasados.
Jake encostou a face ao vidro fumado. Tentou ver o céu.
— Não te preocupes — disse Kady ao seu lado. Com os auscultadores do seu iPod nos ouvidos, elevou um pouco a voz para se fazer ouvir. — Não vais falhar o eclipse.
Kady voltou a focar a sua atenção no pequeno espelho que tinha na mão. Estava a contemplar-se novamente, depois de ter passado a manhã inteira na casa de banho da suíte a fazer mil e uma experiências inimagináveis com brilho para os lábios, cremes hidratantes, gel para o cabelo, sombra para os olhos, enrolador de pestanas e um secador de cabelo... e até mesmo com algo que deixara um pó brilhante no tampo de mármore da casa de banho. Ainda assim, tal como qualquer cientista que se prezasse, Kady nunca parava de retocar o seu trabalho.
Jake ignorou-a e continuou à procura no céu azul. O Sol brilhava como uma nódoa negra amarelada através dos vidros fumados da limusina. A Lua aguardava, pronta para iniciar a sua inevitável passagem pela frente do Sol, transformando o dia em noite.
Jake abanava para cima e para baixo o joelho esquerdo devido a toda a excitação.
E também alguma preocupação.
Havia outra força tão imparável quanto a sua irmã.
Junto à linha do horizonte, nuvens negras surgiam no céu. Relâmpagos faiscavam no coração de uma tempestade que se aproximava. Era uma corrida contra o tempo. Se a tempestade não o deixasse ver o eclipse, Jake ficaria devastado.
A limusina fez uma curva bastante acentuada. Os pneus chiaram. Jake foi atirado para longe da janela. O gelo dentro de um copo de cristal tilintou. Uma mão enorme apanhou Jake e voltou a colocá-lo no seu lugar.
Uma voz trovejante ralhou com um sotaque inglês cerrado.
— Jovem senhor, se deseja ver o céu, talvez eu o possa ajudar antes que parta o pescoço.
Jake quase se esquecera de que partilhavam a limusina com Morgan Drummond, o que era algo surpreendente, tendo em conta o tamanho do homem. O seu corpo enchia toda a parte da frente da cabina de passageiros da limusina. Todo ele era músculo com feições grosseiras. Usava um fato às risquinhas com casaco de trespasse. O fato parecia uma autêntica tenda, mas ainda assim os seus bíceps esticavam o tecido a cada movimento. Parecia mais um instrutor militar do que o chefe de segurança da Bledsworth Sundries and Industries, Inc., o patrocinador exclusivo da exposição maia.
Drummond inclinou-se sobre Jake. Esticou um dedo grosso na direção de uma fila de botões junto ao cotovelo de Jake e pressionou um. O teto de abrir da limusina deslizou e o céu apareceu através do vidro.
Quando a limusina passou por um autocarro de dois andares, os passageiros do piso superior olharam de relance para baixo e para dentro da limusina. Jake deu por si a olhar para cima, para os rostos daquelas pessoas, como se fosse um peixinho dourado no interior de um aquário. Mãos apontaram. Jake acenou-lhes de volta, mas não obteve qualquer resposta.
— Vidros fumados — explicou Morgan Drummond. — Eles não te conseguem ver.
O homem corpulento recuou novamente para as sombras do seu lugar. Para alguém tão descomunal, Drummond tinha a estranha capacidade de se fundir no meio envolvente. Jake reparou num ligeiro brilho no meio da escuridão quando Drummond se inclinou para trás. Vinha do alfinete de gravata do homem. Era um pedaço de aço polido com a forma do símbolo da Bledsworth Sundries and Industries, Inc.
Um grifo.
A criatura mitológica tinha a cabeça, as asas e as garras de uma águia, com o corpo, as patas traseiras e a cauda de um leão. Com uma joia negra no lugar do olho, a figura encontrava-se de pé, como se estivesse prestes a atacar uma presa assustada. Alguns diziam que também representava as práticas de negócio da empresa: atacar os fracos e devorá-los inteiros.
Jake lera bastante sobre a empresa durante o voo do Connecticut para Londres. Ninguém sabia dizer ao certo quando ou onde fora fundada. Dava-se a entender que os seus «artigos diversos e indústrias» remontavam aos tempos medievais. Corriam rumores de que a família Bledsworth fizera a sua fortuna a vender falsas poções contra a Peste Negra. Também eram eles que recolhiam os corpos das vítimas, empilhando-os em carroças e vendendo as suas partes para investigação médica. Verdade ou não, os Bledsworth saíram da Idade das Trevas com mais ouro do que o rei de Inglaterra. Agora, com uma reputação bastante aceitável, eram proprietários de um quarteirão inteiro no centro financeiro de Blackfriars.
Jake sentou-se direito e aclarou a garganta. Fez a pergunta que o incomodava desde que aterrara em Londres.
— Senhor Drummond, porque é que a sua empresa está a patrocinar a exposição do museu?
Um resmungar pesado respondeu-lhe. Parecia pouco contente com a pergunta. Contudo, até Kady baixou o espelho de mão e retirou um dos auscultadores do seu iPod de um dos ouvidos para escutar a resposta.
Morgan Drummond suspirou.
— É muito caro montar este espetáculo. Os seguranças extra, os sistemas eletrónicos de vigilância... até o simples facto de convencer o governo mexicano a deixar estes tesouros nacionais saírem do país custam uma fortuna à empresa.
Pelo seu tom de voz, o homem não estava nada contente que a sua empresa gastasse tanto dinheiro em algo tão fútil.
— Então, porque está a empresa a fazê-lo? — perguntou Jake.
Drummond aproximou-se de Jake.
— O senhor Bledsworth insistiu. E ninguém contraria o senhor Bledsworth.
Jake franziu o sobrolho. Lera tudo sobre o reservado líder da empresa: Sigismund Oliphant Bledsworth IX.
Com noventa e muitos anos, o homem representava a nona geração da família Bledsworth, mas, solteiro e sem filhos, seria também o último. Existiam poucas fotografias de Sigismund Oliphant Bledsworth IX. Jake conseguira encontrar apenas uma na Internet, tirada quando Bledsworth era consideravelmente mais novo: um homem muito magro com um uniforme do exército inglês. Tal como os seus antecessores medievais, o seu passado estava envolto em rumores de falcatruas: histórias de roubos de obras de arte de França e da Alemanha durante a confusão da guerra. Também fora destacado para o Egito, onde permanecera algum tempo.
No entanto, depois da Segunda Guerra Mundial, deixou de se ver o líder da Bledsworth Sundries and Industries. Ele tornou-se mais fantasma do que homem.
Jake franziu o sobrolho.
— Mas qual é o interesse do senhor Bledsworth em montar este espetáculo?
— Não sabes mesmo? — indagou Morgan Drummond.
Jake encolheu os ombros, virou-se para a irmã e de novo para o homem corpulento.
— Não.
— O senhor Bledsworth sentiu-se obrigado a fazê-lo. Uma dívida a saldar.
— Uma dívida?
— Para com os teus pais.
O ar tornou-se subitamente mais pesado no interior da limusina. Jake sentiu dificuldade em respirar.
Drummond voltou a encostar-se para trás e desapareceu nas sombras.
— Quem é que achas que financiou a escavação maia dos teus pais? Quem é que achas que os mandou para lá?
Jake voltou a franzir o sobrolho. O senhor Bledsworth? Seria verdade? Teria o misterioso líder da Bledsworth Sundries and Industries pago aos seus pais para explorar o pico maia conhecido como a Montanha dos Ossos?
Porquê?
O condutor gritou da frente da limusina à medida que esta abrandava:
— Chegámos ao museu, senhor.
Os flashes e as luzes das câmaras cegaram-nos quando Jake e Kady saíram do interior escuro da limusina. Jake deu um passo atrás em choque, mas não tinha para onde recuar. Atrás dele, Morgan Drummond surgiu da limusina em toda a sua enormidade e pôs-se de pé como uma parede.
— Sigam e não parem — murmurou ele.
Drummond conduziu-os por entre uma torrente de jornalistas que se encontravam no passeio em frente do museu. As equipas de reportagem e os espectadores eram contidos atrás de dois cordões negros de veludo, que delimitavam a passadeira vermelha. À frente, o Museu Britânico erguia-se por trás de colunas de mármore, assemelhando-se a um cofre gigantesco. Uma faixa enorme encontrava-se pendurada nas colunas e anunciava a exposição.
Tesouros Maias do Novo Mundo
Jake reparou que muitas pessoas usavam óculos especiais para ver o eclipse.
Olhou para o céu. É claro que sabia que não o devia fazer. A Lua já começara a atravessar-se à frente do Sol. A coroa solar ofuscante fez os olhos de Jake arder. Desviou o olhar antes de provocar danos à visão. A sul, surgiu uma série de relâmpagos, seguidos pelo ribombar de trovões. A tempestade continuava a avançar pelo rio Tamisa e ameaçava ocultar o raro acontecimento.
— Não são uns queridos? — gritou uma mulher corpulenta.
— A cara chapada da mãe e do pai.
— E repara só naquela roupa adorável.
— São mesmo uns exploradores em miniatura — cacarejou outra.
Jake sentiu-se subitamente consciente da sua roupa. Por cortesia da empresa Bledsworth, ele e Kady tinham sido vestidos por uma loja cara de Savile Row, famosa pela sua roupa à medida. Jake vestia calças com bolsos de lado, estilo safári, com uma camisa de manga comprida, ambas em tom caqui, e um colete (com bolsos por todo o lado, uns com fecho, outros com botões, alguns dentro de outros bolsos). Tinha calçadas botas de escalada de Gore-Tex à prova de água e trazia uma mochila a condizer. Também queriam que ele usasse um chapéu de safári, mas Jake recusara.
Kady adorava o chapéu. Assentava-lhe bem. Mais flashes dispararam. Ela inclinou-se sobre uma anca e começou a enrolar timidamente um dos atilhos do chapéu à volta do dedo.
Jake revirou os olhos e continuou a andar em direção ao museu.
Os gritos e as interpelações tornaram-se indistintos. Ele só queria entrar, fugir de toda aquela agitação. A Bledsworth Sundries and Industries, juntamente com o museu, organizara um frenesim mediático: jornais, televisão e até posters nas paragens de autocarro e metropolitano. Tudo para promover a exposição. A história do desaparecimento dos pais de Jake fora uma grande notícia quando acontecera, uma história sobre ouro, bandidos e arqueólogos assassinados. Os jornais trouxeram tudo ao de cima novamente. Por esta altura, já toda a gente sabia da existência dos dois órfãos Ransom. E, agora, ter os miúdos aqui em carne e osso para a abertura da exposição atraíra qualquer um com uma câmara.
Morgan Drummond manteve-se perto dos ombros de Jake e empurrava com a palma da mão as costas de Kady, para que ela continuasse a andar. A sua voz retumbou no meio da multidão.
— Estamos atrasados! Vão ter tempo para tirar fotografias depois do evento.
Murmúrios de deceção seguiam os seus passos.
No entanto, Jake reparou na forma como Drummond olhou de relance para um dos membros da multidão, fixando o olhar nele. Junto aos cordões de veludo, encontrava-se um homem que mais parecia um sapo, atarracado e todo vestido de verde, a comer um dónute. Os seus olhos estavam enterrados por baixo de umas sobrancelhas farfalhudas. Os lábios grossos estavam cobertos de açúcar em pó. Tinha também uma câmara à volta do pescoço, mas estava simplesmente ali pendurada. Não se preocupou em pegar nela quando eles passaram.
O homem acenou ligeiramente com a cabeça para Drummond, que os apressou ainda mais.
Por fim, Jake e Kady passaram por baixo da faixa e entraram no museu. À exceção de alguns guardas de uniforme azul, o átrio estava deliciosamente vazio. Kady olhou de relance lá para fora com um ar melancólico.
— Vai haver uma cerimónia de abertura no Átrio da Rainha Isabel — disse Morgan Drummond, enquanto passavam por uma loja de lembranças e percorriam o chão de mármore polido.
— Vão estar lá mais câmaras? — perguntou Kady, abrindo o espelho compacto com a destreza de um atirador de facas.
— Apenas as equipas de reportagem do noticiário e do Times londrino — respondeu Drummond. — O museu organizou um evento exclusivo para os seus maiores patrocinadores. E até mesmo eles tiveram de pagar uma soma avultada para poderem assistir à cerimónia de abertura.
— A sua empresa recebe uma parte dessa soma extra?
Drummond olhou para Jake com um ar carrancudo, como se ele lhe tivesse feito uma pergunta simplesmente estúpida.
— É claro que sim. Vamos ter de angariar uma pequena fortuna só para não termos prejuízo com esta exposição. — Notava-se uma certa irritação na voz dele. — Porque é que acham que foram convidados? Não são os artefactos poeirentos que atraem uma multidão. As histórias por trás deles é que fazem com que as pessoas venham. Tal como a vossa... bem, a tragédia à volta da...
De repente, o homem corpulento pareceu aperceber-se de quem tinha à sua frente. Começou a falar de forma bastante atrapalhada. Teve a decência de corar do colarinho para cima e esfregou o pescoço.
O próprio rosto de Jake começou a aquecer, mas não de vergonha. Cerrou uma das mãos num punho quando se apercebeu de tudo. O convite para assistirem à exposição não fora feito para divulgar e celebrar as proezas dos pais, mas sim para se aproveitarem da sua tragédia: transformar a perda de Jake e Kady em dinheiro para a Bledsworth Sundries and Industries. Jake sentiu-se subitamente idiota e zangado. Ele e a irmã tinham sido trazidos para Londres para dançar como fantoches para a multidão, com o único fito de vender mais bilhetes.
Kady não pareceu perturbada com a revelação. Continuou a caminhar com vaidade, ansiosa pela próxima onda de flashes e atenção.
— Por aqui — disse Drummond, segurando a porta para eles passarem.
Quando Jake entrou, ficou maravilhado por uma visão tremenda. Um átrio interior gigantesco que se estendia por cerca de noventa metros de chão de mármore.
— O Grande Átrio da Rainha Isabel II — declarou Drummond. Enfiou a mão no bolso e entregou-lhes óculos com lentes pretas. — Óculos para verem o eclipse. É melhor usarem-nos.
Enquanto punha os óculos, Jake continuou a caminhar pelo átrio. As alas do museu rodeavam o vasto átrio por todos os lados. Escadarias circulares conduziam aos andares superiores. No entanto, o que captou mesmo a atenção de Jake foi a cobertura que fechava o átrio. Era composta por secções triangulares de vidro transparente que pareciam flutuar por cima das suas cabeças, sem qualquer peso e brilhantes devido à luz do Sol.
Jake esticou o pescoço e olhou fixamente através do telhado de vidro.
Os óculos com lentes escuras permitiam-lhe olhar diretamente para o eclipse, sem medo de ficar cego. A Lua já cobria metade do Sol. Não faltava muito para o eclipse total.
Os trovões ribombavam. Jake virou-se e olhou para sul. Já era visível a linha da frente da tempestade.
Será que se manteria longe tempo suficiente?
4
O SOL NEGRO
Num canto recôndito do átrio do museu, Jake encontrava-se encostado a uma cabeça de pedra gigantesca da Ilha da Páscoa. A sobrancelha pesada e o nariz aquilino da estátua tinham sido esculpidos em basalto negro. Jake tinha uma expressão igualmente carregada no rosto enquanto observava a multidão.
Usando smokings e vestidos de gala, os convidados seguravam taças de champanhe. Um empregado com uma bandeja de prata passava entre eles com caviar barrado em tostas. Uma mulher exibia uma tiara de diamantes no alto de um monte de cabelo branco. Seria ela um membro da realeza?
Ao lado, Kady deleitava-se sob os holofotes de uma câmara de televisão. Um jornalista segurava um microfone felpudo junto do seu nariz.
— Então, diga aos espectadores da BBC 1 — começou o jornalista —, está entusiasmada com a exposição?
— Oh, claro — respondeu Kady, virando-se ligeiramente.
Jake sabia que ela estava a tentar realçar o seu melhor lado, ou pelo menos o lado que decidira naquela manhã ser o melhor para a televisão.
A irmã continuou a dar a entrevista, acenando muito com as mãos. Kady não se esquecia de balançar sobre os pés de vez em quando para que os seus caracóis perfeitos ondulassem da maneira certa.
Jake cruzou os braços. A revelação de Morgan Drummond sobre a razão de terem sido convidados para a exposição ainda o aborrecia. Apenas para vender mais bilhetes. Descruzou os braços e ajeitou o colete com um puxão. Sentiu-se tentado a arrancá-lo e a sair dali para fora. Mas e depois? E ainda tinha de ter em conta a irmã. Era óbvio que Kady não iria a lado nenhum.
Jake virou-se para o outro lado. Para lá da multidão, avistou uma fita grossa vermelha que se estendia de um lado ao outro no topo da escadaria que conduzia ao andar de cima. Um homem de cartola segurava uma tesoura demasiado grande, que mais parecia uma tesoura de jardinagem.
— O curador do museu — disse Morgan Drummond, sobressaltando-o. O homem corpulento aproximara-se por trás sem ele dar conta. — Já não falta muito. Vai acabar sem dares por isso.
Apesar de as palavras serem sussurradas, pareceram a Jake uma espécie de ameaça. Talvez por terem sido acompanhadas por outro ribombar de trovão.
Jake encolheu os ombros e saiu de baixo da sombra de Drummond. Olhou novamente para o céu. A Lua quase tapava completamente o Sol. Até mesmo com os óculos postos, o halo do Sol em volta da Lua brilhava intensamente e fazia com que os seus olhos doessem.
Jake pestanejou e virou-se quando ouviu uma campainha tocar, assinalando o início do evento oficial. Finalmente! Sentiu o coração bater com mais força. Todos os olhares se voltaram para a frente, enquanto o curador do museu erguia um braço para silenciar o burburinho da multidão.
As luzes das câmaras que brilhavam sobre Kady extinguiram-se subitamente. Ela relaxou, como se fosse uma planta privada de sol.
— Aqui vamos nós — disse Drummond.
O curador ergueu a tesoura.
— Se os jovens Ransom fizessem o favor de se juntar a mim! — chamou ele. — É mais do que apropriado que aqui estejam nesta ocasião auspiciosa. Em homenagem aos seus pais, os doutores Richard e Penelope Ransom.
Morgan Drummond arrancou Jake do seu esconderijo e pô-lo sob a luz da ribalta. Arrebanharam Kady a caminho da escadaria.
Uma salva de palmas incentivou-os a subir os degraus.
O curador continuou:
— Estou certo de que toda a gente conhece a história dos Ransom, de como descobriram a Montanha dos Ossos, um dos locais de escavações arqueológicas maias mais remotos e inóspitos. Ultrapassando todo o tipo de obstáculos, desde jaguares famintos a mosquitos transmissores de malária, eles exploraram um magnífico túmulo, repleto de relíquias de valor inestimável para a história e para o nosso entendimento da civilização maia. O Museu Britânico, com o apoio generoso e filantropo da Bledsworth Sundries and Industries — o curador acenou com a cabeça para Drummond, enquanto este subia as escadas com Jake e Kady —, tem o orgulho de apresentar ao público pela primeira vez os TESOUROS MAIAS DO NOVO MUNDO!
Outra retumbante salva de palmas seguiu as suas palavras.
Quando Jake e Kady chegaram ao cimo das escadas, o curador apontou para o céu e gritou:
— Observem!
As luzes do átrio foram apagadas.
Jake olhou para cima, boquiaberto. Estava a acontecer!
A Lua moveu-se de forma quase impercetível e cobriu completamente o Sol. O eclipse foi total. A coroa do Sol disparou raios deslumbrantes em volta da Lua escura, como se um sol negro ardesse nos céus.
Jake susteve a respiração, maravilhado.
Sob a luminosidade do eclipse, o salão ficou mergulhado num crepúsculo misterioso. As superfícies de mármore do átrio tomaram um brilho prateado, como se o chão e as paredes cintilassem com uma luz interior.
O curador falou na escuridão.
— Os próprios maias previram este eclipse através dos seus estudos e cálculos astronómicos ancestrais. Escolhemos este momento celestial para inaugurar a exposição.
O curador virou-se com a sua enorme tesoura.
— Senhor Ransom, gostaria de me ajudar?
Um holofote surgiu do nada e inundou de luz o topo das escadas.
Jake descolou o olhar do céu e fixou-o na fita vermelha. Ele sabia que o corredor que conduzia aos tesouros dos seus pais ficava para lá daquela fina fita. Acenou com a cabeça, ansioso por se despachar.
— Vamos a isto.
O curador sorriu e ergueu uma mão, fazendo sinal a Jake para aguardar, enquanto os flashes das câmaras disparavam em baixo. Kady encontrava-se de pé, com os braços cruzados firmemente. Jake sabia que mais tarde pagaria por lhe ter roubado a atenção naquele momento.
Como se ele tivesse tido escolha.
Jake agarrou na outra metade da tesoura e, juntamente com o curador, cortou a fita com um golpe rápido.
Quando a tesoura se fechou e a fita caiu, o clarão ofuscante de um relâmpago dilacerou o céu. Ouviu-se logo de seguida o som retumbante de um trovão. O teto por cima deles estremeceu com o impacto próximo. A audiência remeteu-se a um silêncio assustado, ouvindo-se em seguida algumas gargalhadas suaves.
O curador piscou o olho a Jake.
— Bem, não podíamos desejar um timing melhor, pois não, rapaz?
Pegou na tesoura e endireitou-se.
Jake virou-se para olhar para o céu. Nuvens de tempestade encobriram por completo o eclipse. Um crepúsculo ainda mais profundo engoliu o átrio.
O curador ergueu um braço para a multidão.
— Fiquem todos onde estão. Vamos voltar a ligar as luzes no átrio dentro de alguns momentos. Enquanto esperamos, talvez seja melhor deixarmos as crianças Ransom entrarem primeiro na exposição, para terem um momento só deles entre os tesouros que os seus pais descobriram.
Ouviram-se murmúrios de «Ah» e «Que comovente» entre a multidão, juntamente com alguns aplausos discretos.
Uma voz, contudo, sobrepôs-se a todas as outras, carregada de desprezo.
— Os tesouros que os seus pais descobriram? Bah! É mais os tesouros que os seus pais ROUBARAM!
A última palavra ecoou pelo átrio como o tiro de uma caçadeira.
Seguiu-se um silêncio de espanto.
O homem continuou:
— Então, o que dizem dos rumores de que os Ransom ainda estão vivos na América do Sul? Que encenaram o seu próprio desaparecimento para se esconderem, levando o tesouro mais precioso de todos!
O coração de Jake subiu-lhe à garganta. O seu rosto ardia de raiva.
— Ouça — disse o curador. — Não vamos tolerar qualquer difamação maldosa...
O curador foi interrompido por um berro.
— Richard e Penelope Ransom não passam de simples ladrões, digo-vos eu!
As luzes voltaram ao átrio.
Jake tirou os óculos e localizou o homem na multidão. Era o jornalista com ar de sapo com que se tinham cruzado lá fora, o que estava a comer um dónute.
Jake deu um passo em frente, prestes a saltar para baixo e a fazer com que o homem retirasse o que dissera, mas a palma de uma mão enorme travou-o e empurrou-o para o corredor do segundo andar, que levava à exposição.
Morgan Drummond empurrou Kady com delicadeza para junto de Jake.
— Não há necessidade de vocês ouvirem estes disparates. Vão ver a exposição.
Atrás dele, o curador chamou a equipa de segurança. Os guardas passaram a correr por Jake e Kady e desceram as escadas.
Ainda assim, o homem continuou:
— Ladrões! Vigaristas! Há sangue nas mãos dos Ransom!
Cada palavra era uma facada no coração de Jake.
Drummond deu-lhe um empurrão.
— Vai. Já vou ter convosco.
Kady olhou de relance para Jake. Tinha os olhos arregalados e estava aturdida, assustada.
— Jake...
Ele tinha de a afastar dali.
— Vamos indo — disse Jake.
Percorreram o corredor para a exposição com grande rapidez. Jake tropeçava, meio cego de raiva. Já se encontrava na exposição quando o seu cérebro finalmente registou as maravilhas à sua volta.
Jake parou. Kady também.
— É a mãe e o pai — disse Kady.
Ambos tinham parado à frente de um poster enorme. Era a mesma fotografia que Jake tinha no seu caderno. Os pais sorriam para a câmara, vestidos com calças enlameadas e a segurar um bloco de pedra com inscrições maias.
Atrás de Jake, os gritos ainda ecoavam vindos do átrio.
Mais mentiras sobre os seus pais.
Jake olhou para os seus rostos, a imagem ampliada em tamanho real. Era demasiado. Virou a cara. Um grito particularmente estridente chegou-lhe aos ouvidos.
— Assassinos e ladrões!
Naquele momento, Jake lembrou-se de uma coisa: o homem que parecia um sapo acenara com a cabeça para Morgan Drummond quando eles entraram no museu.
Era como se os dois se conhecessem.
O aceno de cabeça.
Como se fosse uma espécie de sinal combinado.
Jake lembrou-se da revelação de Drummond. Seria aquela explosão de insultos apenas outra forma de obter mais publicidade para o espetáculo, de gerar alguma controvérsia em volta da exposição, de vender mais bilhetes?
Ou seria algo ainda mais sinistro?
Por mais alguns minutos, Jake vagueou pela exposição, perdido nos seus pensamentos. Kady também circulava pela sala. Mantinha os braços cruzados, como se tivesse medo de tocar no que quer que fosse. Andaram pela sala, descrevendo órbitas separadas, como dois planetas que não se atrevem a cruzar o caminho um do outro.
Quando Jake entrara na sala, as suas preocupações tinham começado a dissipar-se. O deslumbramento acalmou o batimento arrebatado do seu coração. A toda a volta, via artefactos e relíquias, tal como tinham sido desenhados ou descritos nos blocos de notas dos pais, incluindo a serpente de duas cabeças da brochura. Ao vivo, a estranha serpente era ainda mais encantadora, iluminada por luzes brilhantes de halogéneo. Os olhos da serpente eram rubis. As escamas estavam gravadas no ouro com um pormenor impressionante. As presas eram feitas de marfim ou talvez de osso.
Jake enfiou a mão num dos bolsos do colete e tirou o diário de campo do pai e o caderno de desenho da mãe, encadernado em pele. Fizera questão de trazer consigo ambos os cadernos na visita ao museu. Abriu o diário do pai e leu a entrada sobre a serpente de duas cabeças.
É evidente que, pela espiral intrincada da serpente num oito, a relíquia deve representar a crença maia na natureza eterna do cosmo. Pela perícia do trabalho, a escultura é representativa dos finais do período clássico. Consigo até imaginar...
Jake continuou a ler, ouvindo a voz do pai na sua cabeça enquanto percorria a exposição, parando em frente de cada objeto. Cada peça fazia-o sentir-se mais próximo dos pais. Teria a mãe polido aquele jaguar de prata ali? Teria o pai contado o número de círculos, tal como os anéis de uma árvore, que constituíam a roda do calendário maia?
Jake lembrou-se das aulas que lhe tinham sido dadas quando era pequeno... pela mãe, pelo pai. E não apenas sobre arqueologia. Lembrou-se da mãe a ensiná-lo a atar os atacadores.
O coelho passa pelo buraco do laço e sai pelo outro lado...
Deu por si a abrandar. Apesar de estar a milhares de quilómetros de Ravensgate, Jake sentia uma proximidade, uma familiaridade aqui, como se tivesse descoberto um quarto na sua casa há muito abandonado.
— Quanto tempo achas que temos de ficar aqui? — perguntou Kady, por fim, com o seu habitual tom de impaciência exagerada.
Jake virou-se para a porta. A agitação tinha acalmado no átrio, mas ainda se ouviam vozes a murmurar, demasiado baixas para se perceber o que diziam. Os trovões ainda ribombavam. Ao contrário da irmã, Jake não estava com pressa para sair dali. Uma sensação de posse dominou-o. Não queria ali mais ninguém. Seria como se alguém invadisse o seu coração. Na verdade, quase não conseguia tolerar a presença da irmã ali.
Jake precisava de ver a atração principal da exposição.
Sem qualquer estrutura de vidro à volta, a peça encontrava-se em cima de um pedestal: uma pirâmide de sessenta centímetros feita de ouro puro. Tinha nove degraus e um cume plano, sobre o qual se encontrava um dragão agachado com as asas abertas. O dragão fora esculpido num enorme bloco de jade. Os seus olhos, duas opalas ardentes, pareciam olhar diretamente para o coração de Jake.
— Kukulkan — murmurou ele, proferindo o nome do deus dragão emplumado dos maias.
Jake também reconhecia este objeto. De acordo com o diário de campo do seu pai, a relíquia de valor inestimável fora encontrada em cima da tampa de um sarcófago de calcário. Jake guardou o diário do pai e abriu o bloco de desenho da mãe. Folheando as páginas, procurou um desenho da pirâmide.
Do outro lado da sala, Kady finalmente percebeu o que Jake tinha nas mãos. Dirigiu-se rapidamente para ele.
— Jake! O que estás a fazer com isso aqui?
Ela não sabia que Jake trouxera de Londres os cadernos dos pais.
Ninguém sabia.
Ignorando a irmã, Jake encontrou a página certa. Comparou o desenho da pirâmide ao original. Estudou os desenhos minuciosos da mãe, as marcas da borracha, as correções, as pequenas notas rabiscadas nas margens da folha. Eram fragmentos da sua mãe. E aqui estava a sua inspiração.
A visão de Jake ficou turva por causa das lágrimas e as suas mãos começaram a tremer.
Antes que deixasse cair o caderno por entre os dedos, Kady arrancou-o das suas mãos.
— Porque é que trouxeste isto para aqui? — ralhou ela. — Podias tê-lo perdido ou alguém to podia ter roubado.
— Como se isso te tivesse importado.
Jake aproximou-se ainda mais da pirâmide.
Kady colocou-se ao seu lado e agarrou-lhe no cotovelo.
— O que queres dizer com isso?
Jake libertou o cotovelo com um safanão e olhou para ela, furioso.
— Tu nem sequer querias vir! — Jake deu pela sua voz a falhar e isso ainda o enfureceu mais. — A única razão por que vieste foi para posar para as estúpidas das câmaras!
As faces de Kady ficaram vermelhas de raiva.
— Tu não sabes...
Jake esticou-se e arrancou o caderno de desenhos das mãos dela.
— E se eu tivesse mesmo perdido o caderno da mãe? Tu não olhas para ele há anos.
Kady tentou agarrar Jake, mas este recuou e manteve-se fora do alcance dela.
Jake contornou a pirâmide para ficar do lado oposto da irmã.
— Já não queres saber da mãe e do pai?
Kady permaneceu do seu lado da pirâmide. Os seus ombros tremiam e o seu rosto ficara vermelho.
— É claro que quero! — gritou ela, enquanto agitava o braço, acenando em volta. — Achas que isto tudo, qualquer uma destas coisas, vai trazer a mãe e o pai de volta?
A dor crua da sua voz silenciou Jake. Ele nunca ouvira aquele tom na voz dela. Foi algo que o assustou.
Kady continuou:
— Tudo isto! O caderno de desenho da mãe. Estes tesouros... vê-los, estar perto deles... só me magoa. — Virou-se de costas para a pirâmide. — Então, vou olhar para quê? Que bem é que isso faz?
Os olhos de Jake arregalaram-se.
Kady abanou a cabeça.
— Não consigo suportar isto. Nem a ti!
— O que é que eu fiz? — perguntou Jake, magoado.
Ela virou-se novamente para ele.
— Porque é que não cortas o cabelo como toda a gente?
Jake passou os dedos pelo cabelo, tirando-o da frente dos olhos, confuso.
— Pareces-te tanto com o pai, que eu mal consigo olhar para ti.
Jake lembrou-se do que Kady dissera antes. Só me magoa.
Kady fungou e virou-lhe novamente as costas.
— Às vezes... às vezes queria que tu nunca tivesses...
Um clarão súbito inundou a sala, acompanhado por um estrondo retumbante.
O chão estremeceu por baixo dos seus pés e ouviram-se gritos assustados vindos do átrio. Jake e Kady viraram-se para lá e aproximaram-se um do outro. As luzes do teto piscaram e apagaram-se.
A escuridão engoliu a sala.
— O que aconteceu? — murmurou Kady na escuridão, passado um momento.
Jake deu um palpite:
— Um relâmpago. Deve ter atingido o museu.
À medida que os seus olhos se ajustavam à escuridão repentina, Jake reparou num brilho ténue vindo de trás deles. Virou-se e deixou escapar um gemido de surpresa.
— O que é? — arquejou Kady.
Jake agarrou no cotovelo de Kady e fê-la dar meia-volta.
— Olha!
Um suave fogo azul banhava a pirâmide. As chamas dançavam aos pés do dragão e escorriam pelos seus nove degraus abaixo. Jake contemplava a cena de boca aberta. Demorou ainda algum tempo até se aperceber de que vira algo semelhante num museu de ciência.
— O fogo de Santelmo — balbuciou ele, estupefacto. — Os marinheiros costumavam ver estas chamas fantasmagóricas nos mastros dos navios quando havia trovoada.
— Mas o que é que o está a causar?
Jake aproximou-se.
— Cuidado — avisou Kady, apesar de continuar a segui-lo.
Jake sentiu os pelos da nuca eriçarem-se.
— Não te preocupes. Parece que já está a desaparecer.
Tal como uma maré a vazar, o fogo recuou, serpenteando. Jake deu a volta à pirâmide e reparou em algo estranho.
— Vem ver isto — disse ele, e apontou.
As chamas não estavam a desaparecer, pareciam antes escoar-se por um buraco redondo na face lateral da pirâmide. Curioso, Jake inclinou-se mais sobre o artefacto. Uma parte enrolada da cauda do dragão de pedra circundava o orifício. No entanto, não era propriamente um buraco. Era mais uma indentação com pouca profundidade na superfície de ouro... como se uma joia lá tivesse estado e agora tivesse desaparecido.
As chamas desapareceram ao mesmo tempo que as luzes vermelhas de emergência se ligavam, lançando um brilho carmesim sobre toda a sala.
Jake endireitou-se.
Que estranho...
Curioso, abriu o caderno da mãe e procurou a página com o desenho da pirâmide. Sob a luz ténue, encontrou o mesmo buraco representado no desenho. Também estava vazio.
— Não está nada aqui — murmurou ele, batendo com o dedo no lugar do buraco.
Kady debruçou-se sobre ele.
— Pelo menos, já não está. — Kady esticou-se e sentiu o toque do papel. — Vê como está esborratado. Ainda é possível sentir uma ligeira impressão no papel. Estava algo aqui desenhado.
— Achas que foi apagado?
Kady acenou com a cabeça e respondeu:
— Quem quer que o tenha feito, apagou-o à pressa.
— Terá sido a mãe?
— Não sei.
Jake baixou o caderno de desenho e olhou fixamente para a pirâmide de ouro. Porque iria a mãe desenhar alguma coisa e, em seguida, apagá-la?
Jake inclinou a cabeça para o lado e examinou o buraco.
Era perfeitamente redondo, tinha o tamanho de...
Jake bateu com a mão na própria testa.
— É claro... — murmurou ele.
— O quê?
Jake não respondeu. Fechou o caderno de desenho e voltou a guardá-lo. Lembrou-se de outra das lições do seu pai.
Nunca presumas nada... essa é a maneira errada de fazer ciência... testa sempre e, em seguida, volta a testar.
Jake levou a mão ao pescoço. Passou o fio entrançado por cima da cabeça e soltou a sua metade da moeda maia de ouro.
Ergueu-a em frente da pirâmide. Parecia ser do mesmo tamanho do buraco.
Testa sempre...
Jake aproximou-se e estendeu a mão que segurava a moeda.
— O que estás a fazer? — gemeu Kady, assustada.
Ignorando-a, Jake colocou a sua moeda no buraco. Parecia caber perfeitamente no buraco... mas tinha de ter a certeza.
E, em seguida, volta a testar.
Ainda a segurar a sua metade no ar, disse a Kady:
— Experimenta a tua.
Jake sabia que ela tinha a sua metade da moeda, mas Kady abanou a cabeça.
— Kady! A mãe e o pai devem ter-nos enviado a moeda partida ao meio por alguma razão. Não queres saber porquê? Esta pode bem ser a primeira pista.
Kady hesitou. Jake viu o medo nos olhos dela... e talvez alguma dor.
Ainda assim, Kady levou lentamente as mãos à nuca, por baixo do cabelo. Abriu o fecho da corrente fina de ouro que segurava a sua metade da moeda. Pôs-se ao lado de Jake, ombro com ombro.
Tirou a moeda da corrente e segurou-a.
— Se eu apanhar um choque por causa disto... — avisou Kady, mas a sua voz denotava também um certo entusiasmo.
— Vê só se cabe.
Kady ergueu a moeda, mas, quando aproximou a mão da pirâmide, um grito ecoou pelo corredor de mármore, como um tiro de uma arma de caça grossa. Jake virou-se e viu Drummond a correr na sua direção.
— NÃO TOQUEM...
Jake não sabia explicar porque fez o que fez a seguir. Foi uma espécie de instinto, enterrado bem fundo no seu coração. Ignorando Drummond, Jake virou-se e agarrou na mão de Kady. Ela imobilizara-se com o grito repentino. Jake enfiou a metade dela da moeda maia no buraco da pirâmide. Coube na perfeição no lugar ao lado da dele.
Na perfeição.
De repente, a moeda, agora reconstituída, começou a brilhar intensamente, realçando os glifos maias juntos no centro.
Jake formou com os lábios as palavras representadas pelos dois símbolos: «sak be».
Traduzia-se por «estrada branca».
— NÃO! — gritou Drummond.
O homem gritou outra coisa qualquer. Soou a Jake como um aviso, mas as suas palavras foram abafadas pelo som de outro trovão.
Ofuscante e tonitruante, a explosão rebentou as luzes de emergência.
Antes que Jake conseguisse reagir, o mundo desabou por baixo dos seus pés. O sangue subiu-lhe à cabeça, como se estivesse a cair por um poço abaixo. Estrelas dançavam na sua linha de visão. Um rugido ecoava nos seus ouvidos. Em seguida, até as estrelas desapareceram e a escuridão tornou-se de alguma forma ainda mais profunda.
Ainda assim, Jake continuava a segurar a mão de Kady. Parecia ser a sua única ligação a algo sólido e real. Os seus dedos apertaram ainda mais os dela. O momento prolongou-se.
Embora ainda estivesse encandeado, Jake sentiu que não estavam sozinhos no meio daquelas trevas. Os pelos minúsculos na sua nuca eriçaram-se. Ele sabia que algo o observava naquela escuridão.
Em seguida, começou a mover-se na direção deles.
Jake não via nada, mas sentia-o, como uma pressão a aumentar na sua cabeça, à medida que algo se aproximava. Os dedos de Kady apertaram com mais força os de Jake. Ela também o sentia.
Algumas palavras arranharam a cabeça de Jake, como unhas a raspar na tampa de um caixão de pedra. «Vem a mim...»
Jake imaginou dedos esqueléticos a tentarem tocar-lhe na escuridão. Antes que esses dedos o conseguissem alcançar, algo se lançou entre Jake e a criatura escondida nas sombras, como que a protegê-lo. Ainda cego, Jake apenas sentiu um sopro de vento repentino, como se algo com asas se tivesse lançado entre eles.
Quando a criatura alada passou, Jake caiu, e a escuridão à sua volta estilhaçou-se em mil pedaços. O mundo regressou num caleidoscópio de cor e som. Viu um clarão verde-esmeralda e ouviu o guincho estridente de um pássaro estranho. Em seguida, o mundo voltou ao normal. Com o estômago às voltas, os joelhos de Jake retomaram o equilíbrio, apesar de ele nunca ter chegado mesmo a cair.
Ou talvez tivesse caído.
Jake estava agachado ao lado de Kady. As duas metades da moeda de ouro tilintaram quando caíram aos seus pés. Jake apanhou-as do chão. A outra mão ainda agarrava a mão da irmã com força. Algo que ele não fazia desde os seis anos.
O mundo regressara, não havia dúvida... mas não o mesmo mundo de há alguns momentos.
PARTE DOIS
5
A TERRA DOS PERDIDOS
Jake pôs-se de pé ao lado de Kady. Respirou fundo. Bastou inspirar uma vez para perceber que algo estava terrivelmente errado. O ar era demasiado pesado, demasiado húmido, para ser o ar de Londres. E cheirava a lama e plantas em decomposição.
Guardou as duas metades da moeda de ouro no bolso e olhou em volta. Fetos frondosos do tamanho de chapéus de praia estendiam-se por todo o lado. Árvores enormes erguiam-se de emaranhados colossais de raízes, que mais pareciam joelhos nodosos de gigantes. Por cima das suas cabeças, ramos teciam uma canópia densa em tons esmeralda.
Jake abanou a cabeça, tentando afastar a ilusão.
Mas continuou tudo igual.
Será que alguém os tinha posto inconscientes? Teriam sido gaseados? Raptados e arrastados para uma selva qualquer?
Insetos zumbiam num coro enervante.
— O que é que fizeste? — perguntou Kady.
Jake olhou para ela intensamente.
— O que é que eu fiz? De que estás a falar? Eu não...
Ela interrompeu-o, sem ouvir as suas palavras.
— O que aconteceu? Onde estamos?
Pelo medo na sua voz, Jake sabia que ela estava tão confusa quanto ele.
Jake esticou o pescoço e olhou para cima. A luz do Sol irrompia pelas ocasionais brechas na densa canópia. Uma abertura maior entre as copas das árvores revelou o Sol. A Lua era visível ao seu lado, como se fosse a sua sombra escura. Enquanto Jake observava, a Lua foi-se afastando do Sol. O eclipse estava a terminar. Mas seria o mesmo eclipse que começara em Londres? Tinha de ser. Só haveria outro dali a sete anos.
No entanto, se este era o mesmo eclipse, então o tempo não passara.
Seria isso possível?
Enquanto contemplava o Sol e a Lua, algo atravessou a abertura na copa das árvores. Tinha uma grande envergadura de asas, semelhantes a couro... em seguida desapareceu, antes de Jake conseguir ver o que era.
Apesar do calor, Jake sentiu o sangue gelar.
Algo lhe tocou ao de leve na face. Um escaravelho voador pousou na folhagem de um feto que se encontrava à sua frente. Era do tamanho da sua mão e exibia um par de pinças assustadoras à frente. Abriu-as e fechou-as na sua direção e, em seguida, levantou voo, revelando uma carapaça verde-iridescente.
Jake baixou-se e cambaleou para trás, em choque. O seu pé afundou-se na lama da margem de um pequeno riacho que atravessava o prado. Olhou para baixo quando sentiu algo fugir sob o seu pé. Era achatado como um caranguejo, mas o corpo oval estava dividido em pequenos segmentos em forma de espinha.
Não pode ser...
Jake pôs-se de joelhos na margem do riacho e abriu um dos bolsos da sua mochila. Procurou um objeto que guardava no seu interior.
— O que estás a fazer? — perguntou Kady, bruscamente.
Jake retirou da mochila o fóssil de trilobite que desenterrara na pedreira atrás da sua casa. Segurou-o sobre a criatura no riacho. Condiziam na perfeição... a única diferença é que a que se encontrava na água não era de pedra. A criatura fugiu e desapareceu por baixo de uma rocha.
Jake levantou-se.
— É uma... é uma... — Jake teve de se forçar a pronunciar as palavras, tal era o seu espanto. — É uma trilobite viva!
Kady não parecia impressionada. Respondeu abanando a mão, como se o que Jake dissera cheirasse mal.
— O que é que se passa? — perguntou ela novamente, com mais ênfase desta vez. Chegou até a bater o pé. Ela queria uma resposta. Agora.
E obteve-a.
Um rugido atroador.
Jake e Kady chocaram um com o outro, sobressaltados. Um segundo rugido fez estremecer a folhagem e salpicou Jake com gotas de orvalho. À esquerda, as árvores e os arbustos começaram a partir e a cair. Debaixo dos seus pés, o chão estremeceu. Algo enorme vinha na sua direção.
Jake apertou a mão de Kady.
Antes que conseguissem inspirar novamente, um rapaz e uma rapariga saíram disparados da vegetação rasteira. Corriam velozmente em direção a Jake e Kady. A rapariga, com o cabelo escuro a esvoaçar como um par de asas de corvo, vinha à frente, quase arrastando consigo um rapaz mais alto. Este debatia-se com uma lança comprida que de vez em quando ficava presa nos arbustos e ramos.
— Larga isso! — gritou ela.
— A lança do meu pai? Prefiro morrer!
— Acho é que o teu pai te matava se descobrisse que a perdeste!
Um rugido ainda mais alto ecoou, vindo da selva. O chão estremeceu.
Os dois correram ainda mais velozmente.
Só quando estavam a apenas alguns metros de Jake e Kady é que repararam neles. A rapariga desviou-se para o lado, aturdida, depois passou por eles a saltar como um veado. Vestia uma camisa bordada larga e uma saia comprida, atada à cintura e com uma racha até à coxa. Os seus olhos brilhavam num tom verde-esmeralda, que condizia com o colar de jade que trazia ao pescoço.
— Corram! — gritou ela ao passar por eles.
O rapaz corria atrás dela e olhou para Jake de cima a baixo com o sobrolho carregado. Desengonçado e alto, tinha vestida uma toga branca manchada de relva, com um cinto de couro, e sandálias de couro atadas até meio da perna. Outro pedaço de couro entrançado prendia-lhe o cabelo encaracolado da cor da lama. Segurava a lança por cima da cabeça enquanto corria.
Totalmente imóvel, Jake observou o par invulgar que passava por ele.
Kady empurrou Jake.
— Faz o que eles disseram! Corre!
Jake não discutiu. Juntos, fugiram atrás dos outros dois miúdos.
Um forte estrondo irrompeu atrás deles, acompanhado por um guincho enfurecido. Jake olhou de relance por cima do ombro. Um ramo grosso de uma das árvores gigantescas partiu-se e caiu no chão.
Uma cabeça de um tamanho colossal abriu um buraco na canópia. Era do tamanho de um frigorífico. A sua pele escamosa fumegava, os seus olhos negros de tubarão rolaram e o seu focinho abriu-se num rugido. Dentes extremamente afiados, semelhantes a filas de punhais amarelecidos, rangeram e despedaçaram os ramos mais pequenos.
Jake reconheceu a criatura.
Era um carnívoro que ocupava o topo da cadeia alimentar.
Há milhões de anos.
Impossível...
— Um tiranossauro — gaguejou Jake.
Ao olhar para trás, Jake tropeçou numa raiz de árvore e caiu sobre um joelho.
Kady puxou-o, ajudando-o a pôr-se de pé.
Atrás deles, a criatura sacudiu a cabeça gigantesca e tentou forçar a passagem entre duas árvores colossais. Partiram-se ainda mais ramos. Estava quase livre.
— Despachem-se! — gritou a estranha rapariga.
Como é que eles percebiam o que ela dizia? Não passaria tudo de um sonho?
À frente deles, a clareira terminava num penhasco coberto de vegetação, que lhes bloqueava o caminho. Nunca conseguiriam escalar o penhasco com rapidez suficiente para fugir ao tiranossauro.
A rapariga pareceu ler-lhe os pensamentos.
— Não vamos conseguir! Por aqui!
Guinou para a esquerda e todos a seguiram. No sopé do penhasco, encontrava-se um monte de rochas enormes. A rapariga correu na sua direção.
Outro rugido perseguiu-os, seguido pelo estilhaçar de ramos de árvores. Jake arriscou-se a olhar novamente de relance... talvez não o devesse ter feito.
O tiranossauro alcançou a clareira e sacudiu o corpo musculado. Uma cauda grossa chicoteou o ar, partindo pequenas árvores e decapitando fetos gigantescos. As narinas escamosas contraíram-se enquanto cheirava o ar. Inclinou a cabeça para um lado e para o outro, como um pássaro à procura da sua presa.
Apesar do terror que o invadia, Jake lembrou-se de um artigo que lera sobre os pássaros serem os modernos descendentes dos dinossauros. No entanto, este tiranossauro não era propriamente uma galinha cacarejante. A besta tinha cerca de seis metros.
Aqueles olhos negros encontraram Jake. O tiranossauro ficou imóvel, com a cabeça ainda inclinada para o lado, um dos olhos fixo na sua presa fugidia.
— Corre mais depressa! — gritou Jake.
O tiranossauro saltou atrás deles. Corria de forma pesada, sete toneladas de músculo que faziam estremecer o chão, ganhando velocidade.
A rapariga alcançou o amontoado de rochas primeiro. Procurou um buraco entre elas, alguma forma de se esgueirar para ficar em segurança. Jake e Kady alcançaram-na, seguidos pelo outro rapaz.
— Aqui! — gritou a rapariga. Pôs-se de gatas e esgueirou-se por um espaço entre duas rochas. — Isto alarga! — informou ela com alívio.
Jake empurrou Kady na direção do buraco e disse:
— Vai!
Kady obedeceu-lhe e Jake seguiu-a de perto. O rapaz de toga foi o último, entrando com os pés primeiro e deixando a lança virada para a abertura do buraco.
Jake descobriu que a rapariga tinha razão. Por trás do pedregulho, existia uma gruta formada por blocos de rocha. Apesar de ser um espaço exíguo, cabiam lá os quatro.
Assim que Jake se sentou, o esconderijo temporário estremeceu. O tiranossauro embatera contra o monte de rochas. Poeira e pequenas pedras começaram a cair sobre eles. Jake olhou para cima. Imaginou o monte de pedras sobre as suas cabeças e encolheu-se ainda mais.
O sopro da respiração do tiranossauro envolveu-os. Cheirava a ovos podres. O tiranossauro farejava, à procura da sua presa. Jake inclinou-se para espreitar pelo túnel.
— Mantém-te atrás! — avisou Kady.
Jake apenas conseguia ver um par de pernas do tamanho de troncos de árvore. As garras colossais afundavam-se no chão. O tiranossauro sacudiu uma das pernas e atirou para o lado lama e rocha, deixando um buraco profundo no solo da floresta.
Jake estava sentado ao lado do outro rapaz, ombro com ombro. O seu companheiro continuava a segurar a lança com força, mas a arma não era suficientemente grande para chegar ao fundo do túnel. Os seus olhos cruzaram-se. Tiraram as medidas um ao outro. O rapaz parecia ter a sua idade.
— O meu nome é Jake — apresentou-se ele, sem saber se ele o percebia.
Não sabia o que mais dizer. Qual seria o protocolo de boas maneiras a seguir quando se estava escondido num buraco com um desconhecido, enquanto um tiranossauro lá fora nos tentava comer?
— Pindor — respondeu o rapaz. — Pindor Tiberius, segundo filho do cônsul Marcellus Tiberius. — Jake detetou uma nota de vergonha na sua voz. — E ela é a Mari. — Pindor apontou para trás com o polegar.
— Marika — corrigiu a rapariga.
— Quem quer saber quem vocês são? — explodiu Kady. — Que raio se passa aqui? — A sua exasperação e raiva fizeram com que se movesse demasiado depressa. Bateu com a cabeça no teto rochoso da caverna. — Ai!
Antes que alguém tivesse tempo de responder, o tiranossauro começou a raspar nas rochas novamente. Conseguiu abrir mais fendas, como uma galinha à procura de minhocas. Só que, neste caso, eles os quatro eram as minhocas. O tiranossauro começou a escavar a entrada do túnel.
Se não parasse, a besta iria fazer com que a caverna lhes desabasse em cima. Jake olhou em redor. Não existia outra saída. Estavam encurralados.
Olhou novamente para fora do túnel. Porque estaria o tiranossauro tão determinado em apanhá-los? De certeza que existiam presas mais fáceis.
A explicação veio de Marika.
— Não devias ter tentado roubar-lhe o ovo — disse ela a Pindor, acusando o amigo.
Pindor virou-se.
— Eu teria conseguido trazê-lo sem problemas se tu não tivesses pisado aquela casca partida e feito tanto barulho.
Jake suspirou. Afinal, o tiranossauro era uma fêmea, uma mãe de guarda ao seu ninho. Não era de admirar...
De repente, o tiranossauro voltou a embater com violência nas rochas e fez estremecer o esconderijo. Algures, por cima das suas cabeças, um pedregulho caiu. Todos sustiveram a respiração... mas o esconderijo aguentou o embate.
Mas por quanto tempo mais?
Kady, que se encontrava atrás de Pindor, tocou-lhe na parte da trás da perna e disse:
— Tu tens uma lança. Vai lá para fora e afasta-o daqui.
O rosto do rapaz empalideceu. Virou-se para o lado e murmurou:
— Não ia adiantar muito.
— Ele tem razão — concordou Marika. — Uma lança não é suficiente, pelo menos contra uma criatura destas.
Ainda assim, Jake reparou que os dedos de Pindor apertavam a lança com mais força... para fazer com que as suas mãos parassem de tremer.
— Vamos ter de esperar que ela se vá embora sozinha — disse Marika, com muito pouca convicção.
Kady virou-se, como se virar as costas fosse fazer com que o problema desaparecesse. Era como ela lidava com tudo o que fugia ao seu controlo. Negando a sua existência. Longe da vista, longe do pensamento.
Jake lembrou-se das palavras zangadas que ela lhe dirigira no museu. Sobre a mãe e o pai. Ela parecia achar mais fácil reprimir os sentimentos, negar a sua existência, virar as costas a tudo.
Jake recusava-se a fazê-lo.
O que fariam os seus pais naquela situação?
Respirou fundo com alguma dificuldade e chegou a uma conclusão.
Não fazia a mínima ideia.
O tiranossauro lançou-se novamente contra as rochas. Um enorme pedregulho caiu lá fora e rolou pelo solo da floresta. Aturdido, o tiranossauro rosnou para a pedra que se afastava, depois voltou novamente a sua atenção para as suas presas escondidas.
As suas garras recomeçaram a escavar.
Jake recuou e chocou com Kady. Ela puxou-o para si.
— Isto só pode ser um sonho, certo? — indagou ela.
O mesmo pensamento já lhe passara pela cabeça. Mas, pelo medo espelhado nos olhos de Kady, ela não acreditava nisso. Nem Jake. Isto era tudo real.
— O que vamos fazer? — perguntou ela.
Com os olhos já habituados à escuridão, Jake detetou um movimento nos ombros de Kady. Pendurados do bolso do seu colete, estavam os auscultadores do seu iPod. Os auscultadores abanavam e oscilavam de um lado para o outro, e Jake olhou fixamente para eles, como que hipnotizado. Uma ideia lutava por emergir entre o pânico.
Alguma coisa...
Não lera em algum lado...
Sons agudos...
— Watson! — gritou ele de repente.
Kady deu um pulo e bateu novamente com a cabeça no teto da caverna.
— Ai... Jake, seu idiota...
Jake virou-se para chegar à mochila nova, cor de caqui para combinar com a sua roupa, e abriu-a. Procurou no seu interior. No hotel, limitara-se a despejar para a mochila nova tudo o que trazia na mochila velha. Devia ter dedicado mais tempo a organizá-la.
O tiranossauro rugiu.
Finalmente, os dedos de Jake encontraram aquilo de que estava à procura. Tirou-o cá para fora e agachou-se ao lado de Pindor, junto à entrada da caverna.
— O que estás a planear fazer? — perguntou o rapaz. — Tens uma arma?
Jake ergueu o apito para cães e respondeu:
— Espero que sim.
O tiranossauro era colossal e enchia o mundo exterior à caverna. A criatura ergueu uma garra para atacar a montanha de pedregulhos novamente.
Jake respirou fundo, levou o apito aos lábios e soprou com toda a sua força. Não se ouviu qualquer som, mas Jake sabia o efeito que aquele apito tinha no basset hound lá de casa. Watson conseguia ouvi-lo a muitos quilómetros de distância.
Quando apitou, o tiranossauro baixou a garra e recuou um passo... depois outro. Abanou a cabeça, nitidamente incomodado.
Já sem fôlego, Jake teve de parar e respirar fundo.
O tiranossauro baixou o focinho e rugiu.
O cabelo de Jake foi afastado da sua testa pelo sopro do tiranossauro, que cheirava pior do que o interior do cacifo de um ginásio.
— O que estás a fazer? — perguntou Kady, tentando afastar Jake da entrada da caverna. — Só estás a enfurecê-lo ainda mais.
Jake deu-lhe um safanão e respondeu:
— É esse o objetivo!
Aproximando-se mais da entrada da caverna, Jake apitou novamente. O tiranossauro abanou a cabeça e começou a cambalear.
— O que está a acontecer? — indagou Kady.
— Os crânios dos tiranossauros — explicou Jake, respirando fundo novamente —, pelo menos os seus fósseis, indicam que têm as cavidades do tímpano extremamente grandes.
Kady franziu o sobrolho.
— Em língua de gente, Einstein.
— Eles têm ouvidos enormes! — arquejou ele. — O que quer dizer que os sons agudos são amplificados. Os apitos para cães devem ser horríveis para eles.
Levando novamente o apito de aço aos lábios, Jake soprou com toda a força que tinha. Parecia que a sua cabeça ia explodir a qualquer momento.
Por fim, o gigantesco carnívoro virou-se e varreu o ar com a sua enorme cauda. Afastou-se pesadamente com um último rugido... e voltou a mergulhar na selva.
Todos esperaram para se certificar de que o tiranossauro se fora embora.
Por fim, Marika falou:
— Acho que ela vai voltar para o ninho.
Jake manteve o apito na mão, para o caso de ela estar enganada.
— Será seguro sair daqui? — perguntou Kady a Marika.
A rapariga encolheu os ombros e olhou fixamente para a mão de Jake.
— Uma flauta silenciosa que afasta lagartos-trovão. Trazes contigo alquimias poderosas.
Sem a ameaça do perigo iminente, várias perguntas inundaram a mente de Jake numa amálgama confusa. Que lugar era este? Como é que os humanos e os dinossauros coexistiam? Como é que ele e Kady tinham ido lá parar?
Antes que Jake conseguisse decidir que pergunta fazer primeiro, Marika disse:
— Temos de ir agora. Este barulho todo pode ter atraído outras criaturas.
Pindor pegou na lança e empurrou-os para passar à frente.
— Eu vou primeiro — disse ele com um ar carrancudo. — Para o caso de existirem mais criaturas por aí.
No entanto, o rosto do rapaz traiu-o. Não fitava diretamente Jake. Depois daquela exibição, era óbvio que Pindor queria manter-se à distância daqueles desconhecidos. A desconfiança refletia-se no seu rosto.
A companheira de Pindor não mostrava a mesma cautela. Depois de saírem da caverna, o olhar de Marika prendeu-se no de Jake por alguns momentos. A luz do Sol emanou dos olhos dela, como um fogo cor de esmeralda, revelando um misto de curiosidade e diversão.
Ela apontou para cima, para o penhasco.
— Há um caminho por ali. Temos de passar pelo Portão Quebrado. Depois, estaremos a salvo.
A salvo?
Jake olhou de relance para a floresta escura, onde já se recomeçava a ouvir o coro de brados e zumbidos. Tal como suspeitava, não havia lugar verdadeiramente seguro neste novo mundo. Um rugido sáurio ecoou vindo das profundezas da floresta.
Jake estremeceu, lembrando-se de repente da escuridão que os trouxera ali. E das palavras que tinham emergido da escuridão entre o mundo deles e este.
Vem a mim...
6
O PORTÃO QUEBRADO
Jake subiu o trilho estreito que conduzia ao cume do penhasco, percorrendo a encosta íngreme aos ziguezagues. Marika ia à frente. Pindor seguia na retaguarda, guardando o grupo e obrigando-os a mover-se silenciosamente para não atraírem outros monstros. Escalaram a encosta depressa. O ritmo acelerado deixou muito pouco tempo para fazer perguntas.
Ainda assim, Jake conseguiu ver de perto o colar de jade de Marika. Tinha um símbolo gravado.
Não havia como enganar. Era definitivamente maia. O nome do glifo, balam, significava jaguar. O símbolo até parecia o gato da selva. Marika também usava uma blusa bordada maia, como a que a mãe de Jake trouxera de uma das suas viagens à América do Sul. Até a pele da rapariga era da mesma cor que o chá que a sua mãe bebia de manhã, misturado com uma colherada generosa de natas.
Seria ela realmente maia?
Então e Pindor? Jake conseguiu ver de perto o corte das suas sandálias e o trabalho de bronze na ponta da sua lança. Parecia tudo romano, talvez do século II a.C. Até mesmo o cabelo, comprido e amarrado atrás, tinha franja à frente, cortada a direito, como uma espécie de César deslocado no tempo.
Maias, romanos e tiranossauros?
O que é que se passava ali?
Depois de mais duas curvas no caminho, o cume do penhasco surgiu à sua frente. Uma passagem estreita ligava duas enormes torres de vigia, construídas com pedras escuras, cada uma com uma altura de dez andares. Outrora, um arco ligava as duas torres, mas entretanto desabara, deixando apenas as suas ruínas. As torres pareciam há muito desertas.
— O Portão Quebrado — observou Marika.
Enquanto subiam em direção à passagem, Jake reparou nas indentações e na cor de sangue escuro das pedras que compunham o portão. Rocha vulcânica.
Marika parou à frente dele tão de repente que Jake chocou com ela. Um guincho misterioso interrompeu o zumbido constante dos insetos. Vinha do céu e soava como se um coelho estivesse a ser estrangulado. Marika virou-se, os seus olhos arregalados de puro terror, mais terror do que mostrara com o tiranossauro.
Jake também se virou, e Pindor e Kady pararam. Bem alto no céu pairava uma criatura enorme com asas que pareciam feitas de couro. À primeira vista, Jake pensou que poderia tratar-se de um pterodáctilo, outro caçador sáurio, como o tiranossauro. No entanto, quando semicerrou os olhos, reconheceu que estava enganado. As asas pertenciam a uma criatura magra, que parecia ser apenas osso coberto de couro. Quando pairou por cima deles, Jake viu braços e pernas e uma cabeça calva, com uma crista rígida.
Todo o corpo de Jake estremeceu ao aperceber-se do carácter antinatural desta criatura. No entanto, ao mesmo tempo, lembrava-lhe algo... algo que já vira antes.
— Um grakyl! — exclamou Marika num tom de voz incrédulo e aterrorizado. O olhar dela varreu os céus e fixou-se em Jake. Pela primeira vez, ele detetou uma ponta de desconfiança na sua expressão. Segundos depois, essa mesma expressão desapareceu e transformou-se em preocupação. — Tentem chegar ao portão! É a nossa única hipótese!
Marika desatou a correr, enquanto outro guincho rasgava o céu.
Jake seguiu atrás dela, mas manteve os olhos na criatura. Por cima das suas cabeças, a criatura inclinou-se sobre uma asa. Jake sentiu o seu intenso olhar gelado a pairar sobre eles. Com outro guincho, encolheu as asas junto ao corpo e mergulhou em voo picado. Tinham sido avistados.
Marika subiu o trilho rochoso a correr em direção à passagem. As torres de pedra aguardavam por eles. Jake seguiu atrás dela, com Pindor e Kady no seu encalço.
Quando se aproximaram das torres, Jake começou a sentir picadas na pele, como se mil aranhas dançassem sobre ele. A cada passo, a sensação tornava-se mais e mais intensa. As picadas começaram a arder. Confuso, Jake tropeçou numa pedra solta.
— Mari! — gritou Pindor.
A rapariga maia olhou e viu Jake tropeçar. Voltou atrás e agarrou-o pelo pulso. A sensação de ardor desapareceu com o toque dela, embora Jake ainda sentisse uma estranha eletricidade e pressão no ar.
Jake deixou que Marika o arrastasse até ao Portão Quebrado e para a sombra das torres. Marika puxou-o por mais uns passos e a pressão desapareceu. Virou-se e viu que Pindor agarrava a sua irmã pelo cotovelo, atravessando o portão com ela.
A criatura alada lançou-se em voo picado com um guincho, mergulhando por baixo do arco partido. Jake baixou-se, mas a criatura estacou abruptamente. Esperneou no ar, presa ao arco, como um inseto preso com um alfinete a um cartão. Raios percorriam-lhe o corpo. Parecia que algum tipo de campo de forças a detinha.
Jake caiu para trás, conseguindo ver a criatura com atenção. Os membros que se agitavam terminavam em garras. Esporões afiados ornavam-lhe os joelhos e os cotovelos. Mas o rosto era o pior de tudo... não por ser monstruoso com o seu nariz porcino e uma goela com presas, mas porque era demasiado humano. Jake conseguiu detetar a inteligência por trás dos seus olhos angustiados. Aquele olhar intenso estava focado nele, de propósito, como se o reconhecesse.
Em seguida, com um último guincho estridente, o grakyl conseguiu libertar-se da força que o mantinha preso. Afastou-se do Portão Quebrado batendo as asas desesperadamente. Quando conseguiu afastar-se o suficiente, pareceu apanhar finalmente um pouco de vento a favor e voou para o interior da floresta.
Ao seu lado, Marika deixou escapar um longo suspiro. O olhar dela seguiu a criatura, certificando-se de que se fora realmente embora. Por fim, virou-se de costas.
— Um grakyl! — murmurou ela novamente. O medo ainda estava presente na sua voz, mas era agora pautado por exaltação e algum assombro. — Nunca tinha visto um.... só em desenhos... nas histórias.
— Mas que raio era aquilo? — indagou Kady, passando para a frente.
Marika apercebeu-se de que ainda segurava o pulso de Jake. Largou-o rapidamente.
Pindor respondeu à pergunta de Kady. A sua voz baixou para um sussurro, os olhos presos no céu.
— Grakyls. São as bestas amaldiçoadas do Kalverum Rex. O Rei Caveira. Os seus escravos. Os seus...
Marika interrompeu-o:
— Temos de ir embora. O Sol já se está a pôr.
Jake esfregou o pulso que Marika agarrara. Enquanto caminhava, lembrou-se do ardor que sentira. Jake achava que, se Marika não o tivesse agarrado pelo pulso, ele teria acabado da mesma forma que a criatura. Sem conseguir passar.
Existiria ali uma espécie de parede invisível? Algum tipo de defesa que impedisse qualquer coisa de atravessar o portão? Jake estudou as torres. Embora as pedras parecessem vulcânicas, não havia nada a mantê-las juntas. Em vez disso, pareciam estar encaixadas umas nas outras num padrão complexo, um puzzle feito de pedra. Jake também reparou em inscrições muito ténues ao longo da torre da esquerda.
Jake nunca vira nada igual.
Antes que conseguisse examinar melhor, Marika começou a percorrer o trilho, afastando-se do portão.
Jake não teve escolha senão segui-la.
Para lá das torres, estendia-se um enorme vale. Penhascos íngremes rodeavam-no, formando um círculo contínuo. O vale parecia a cratera de um meteoro, mas Jake reparou em fissuras ao longo de toda a sua orla, que fumegavam gases sulfurosos.
Não, não era a cratera de um meteoro.
O vale era o cone de um enorme vulcão.
E não se encontrava vazio.
— Que lugar é este? — perguntou Kady por fim.
Jake perguntava-se o mesmo, à medida que tentava perceber o que estava a ver. Em baixo, bem no fundo, uma grande parte do solo do vale não tinha árvores e estendia-se por vários quilómetros, assemelhando-se a uma manta de retalhos de campos cultivados e pomares. Estas terras rodeavam uma cidade de edifícios de pedra e casinhas de madeira.
À distância, a disposição daquele lugar não parecia fazer qualquer sentido. De um dos lados erguia-se o que parecia ser um castelo medieval. No entanto, para lá dele, cavadas no penhasco mais afastado, encontravam-se fileiras de casas semelhantes às que Jake visitara nos desertos do Novo México. E seria aquilo um obelisco egípcio a erguer-se da praça central? Parecia o Monumento a Washington em miniatura, mas com um escaravelho no topo, o símbolo do sol nascente dos antigos egípcios.
Não fazia sentido.
— Calypsos — disse Marika, com orgulho. — A nossa casa.
Marika começou a descer um caminho estreito de gravilha numa encosta pouco íngreme.
— Espera — disse Jake, com alguma dificuldade para encontrar palavras que expressassem a enormidade da sua confusão. — Como... Onde...?
Pindor foi atrás de Marika.
— Vais ter as tuas respostas em Calypsos.
As palavras de Pindor mais pareciam uma ameaça.
— Espera — continuou Jake, precisando de alguma coisa, de qualquer coisa... — Tu és romano, não és?
O rapaz ajeitou a sua toga.
— É claro que sou. Estás a questionar a minha herança?
— Não, não... — Jake virou-se rapidamente para a rapariga. — E, Marika, tu és maia, não és?
Ela acenou com a cabeça.
— Há quinze gerações, desde que os primeiros membros da minha tribo chegaram aqui. A família de Pindor chegou há dezasseis gerações. Contudo, existem outras Tribos Perdidas que se estabeleceram aqui há mais tempo. Há muito mais tempo.
Marika continuou a descer o caminho.
Jake seguiu-a.
Tribos Perdidas?
Jake estudou Calypsos novamente. Seria aquela estrutura com telhado de turfa uma casa comunal viquingue? E aquelas casas sobre estacas? Pareciam africanas. Mas não tinha a certeza. De qualquer maneira, parecia que os povos antigos de todas as épocas históricas e terras se tinham juntado ali em baixo.
Mas como... e porquê?
Jake estava ansioso por ver mais de perto.
Ao contrário da irmã.
Kady deixara-se ficar para trás. Tinha os olhos semicerrados de preocupação e desconfiança.
— Talvez não devêssemos ir tão longe. — Kady olhou de relance para trás, para as duas torres de pedra. — Se existe alguma saída deste Parque Jurássico, é melhor não nos afastarmos muito do sítio onde aterrámos.
Jake mal a ouviu. Uma última estrutura atraiu o seu olhar. Erguia-se para lá da estranha cidade, à direita, na zona bravia do vale, rodeada pela floresta. Na verdade, a maior parte permanecia escondida no interior da selva. Por essa razão, Jake não avistara a estrutura de imediato.
— Temos de encontrar uma maneira de voltar para casa — continuou Kady.
Jake ergueu o braço e apontou para a estrutura parcialmente escondida.
— E que tal começarmos à procura naquele sítio?
Kady olhou com atenção para onde ele apontava.
Apenas os dois níveis superiores da pirâmide se erguiam da selva o suficiente para que Jake avistasse a enorme escultura que se encontrava no cimo. Era um dragão de pedra, iluminado pelo fogo dos raios do Sol. O dragão encontrava-se agachado, com o pescoço esticado para o céu e as asas abertas, como se estivesse prestes a levantar voo. A sua forma era igual à do dragão no topo da pirâmide de ouro que se encontrava no museu, o mesmo que estava desenhado no caderno da sua mãe e descrito no diário do seu pai.
A mão de Jake procurou algo no colete caqui. A sua palma pousou sobre os cadernos dentro do bolso. Não havia como enganar no que dizia respeito à estrutura que ali se encontrava.
Era a mesma pirâmide.
Só que em tamanho real!
O espanto fez com que Jake ficasse imóvel.
— Vens ou não? — gritou Marika, ansiosa.
Jake olhou para Kady. Ele precisava que ela compreendesse. Os seus dedos apertaram os cadernos escondidos no bolso. Se a pequena pirâmide no museu, de alguma forma, os transportara para ali, de certeza que a versão maior que se encontrava no vale poderia conter a chave para o seu regresso a casa. Mas, mais do que isso, Jake imaginou a sua mãe e o seu pai a trabalharem dentro do túmulo no México, descobrindo a pirâmide de ouro mais pequena.
Será que eles tinham adivinhado a verdade? Será que tinham morrido para preservar o segredo da pirâmide?
Mais do que o caminho para casa, a pirâmide poderia dar-lhes a resposta para o maior mistério da vida de Jake... da vida de ambos.
O que acontecera realmente aos seus pais?
Um novo barulho interrompeu os seus pensamentos: o chiar de rodas e um chocalhar, juntamente com o ruído de algo grande. Pindor correu à frente para perscrutar o que se passava na curva.
O ruído tornou-se mais alto. Jake conseguia distinguir o som abafado de vozes. Em baixo, Pindor ergueu a lança em sinal de saudação, depois afastou-se para deixar passar o que aí vinha.
Duas criaturas surgiram, atreladas a uma biga de duas rodas. Jake engoliu em seco, incrédulo. As criaturas cinzento-esverdeadas que puxavam a biga eram do tamanho de cavalos... mas não eram cavalos. Cada uma parecia pesar meia tonelada, marchando sobre quatro patas.
— Europasaurus! — exclamou Jake. — Dinossauros pigmeus.
Três homens ocupavam a biga: um segurava as rédeas e os outros dois empunhavam lanças e espadas. Um saltou da biga e dirigiu-se a eles. Estava vestido como Pindor, mas também usava uma armadura de bronze e um elmo.
— Heronidus — disse Marika. A rapariga cruzou os braços e exclamou com azedume: — O irmão mais velho de Pindor.
O recém-chegado falou muito alto:
— O pai está furioso, Pin! O que é que estás a fazer aqui, junto ao Portão Quebrado?
— Nós estávamos... queria mostrar...
Heronidus apontou.
— Por Júpiter, essa é a lança do pai?
Pindor escondeu a arma atrás das costas. Olhou para cima, na direção de Marika, à espera de algum tipo de salvação.
Heronidus imobilizou-se surpreendido ao ver Jake e Kady. A sua mão deslizou para a espada embainhada. Fez sinal ao outro soldado romano para descer da biga.
— Intrusos...
O segundo soldado desembainhou a espada.
— Quem... — perguntou Heronidus de forma arrojada, tendo de aclarar a garganta para atingir o tom firme desejado. — Quem são vocês?
Pindor deu um passo à frente e assentou com firmeza a lança no chão.
— Acho... — A sua voz fraquejou. Olhou de relance para Jake e depois para os seus próprios pés. A sua voz tornou-se mais firme, assemelhando-se mais à do irmão. — Eles são espiões. Espiões enviados por Kalverum Rex, o Rei Caveira.
7
CALYPSOS
À medida que o dia se ia tornando mais quente, o caminho que conduzia ao vale revelou ser mais longo do que parecera inicialmente, quando visto do Portão Quebrado. Os prolongados períodos de silêncio e a troca de olhares desconfiados por parte dos dois rapazes mais velhos na biga faziam com que o caminho parecesse ainda mais longo. O par de dinossauros pigmeus puxava o freio, como que pressentindo a ansiedade. O condutor puxava constantemente as rédeas, para acompanhar os que se deslocavam a pé.
Percorriam rapidamente as terras de cultivo que cobriam o vale. Jake caminhava pesadamente atrás da biga, com Kady de um lado e Marika do outro. Pindor e Heronidus seguiam-nos, um com uma lança e o outro com uma espada.
Ninguém queria arriscar com espiões no meio deles.
Examinando a espada e a lança, Jake pensava em formas de fugir, mas para onde iriam ele e Kady? De volta para a floresta selvagem que os cercava? Não sobreviveriam durante muito tempo sozinhos.
E além disso...
A atenção de Jake voltou-se para a frente.
Marika devia ter notado que a atenção de Jake se virara subitamente para a pirâmide do dragão. Apontando, disse:
— Aquele é o grandioso templo de Kukulkan. Protege este vale e...
Heronidus interrompeu-a com uma ordem:
— Mari! Não fales com os espiões.
— Eu falo com quem eu quiser! E eles não são espiões — disse ela pela décima vez, como se ao declará-lo muitas vezes o fosse tornar realidade. — Eles são recém-chegados.
Heronidus disse num tom de chacota:
— Recém-chegados? Não temos a visita de desconhecidos há uma eternidade. E, se eles realmente são recém-chegados, aposto que foi a alquimia sinistra do Kalverum Rex que os trouxe aqui. Para colocar espiões no meio de nós.
Ao lado de Jake, Kady suspirou ruidosamente com repulsa. Olhou para Heronidus de cima a baixo com desdém. Era um olhar que aperfeiçoara na escola e que era capaz de destruir um caloiro num ápice.
O rapaz mais velho tentou ignorá-la, mas Jake reparou que ele corava um pouco e que começava a mexer nervosamente no cabo da espada.
Um movimento atraiu a atenção de Jake para a esquerda. Uma cabeça serpenteante surgiu do campo. Ergueu-se cada vez mais alto, a seis metros do chão, depois inclinou-se para a frente para examinar o pequeno grupo de viajantes que percorria a estrada.
Jake olhou para cima, sustendo a respiração. A pele da criatura era de um tom púrpura, tinha os olhos enormes e húmidos, por cima de lábios cor de mirtilo. Soltou um balido do seu nariz em forma de trombeta, depois voltou a afundar-se no campo e regressou ao seu pasto.
Kady agarrou no cotovelo de Jake.
— O que era aquilo?
Jake abanou a cabeça, demasiado espantado para falar. Parecia uma espécie de dinossauro ornitópode.
— Nós chamamos-lhes sopra-cornetas — disse Marika. — São ótimos para puxar os arados.
Quando o dinossauro desapareceu, Pindor esfregou a barriga e disse:
— Não devíamos parar para comer?
Heronidus ralhou com o irmão mais novo:
— Não vamos parar. Não quando trazemos prisioneiros connosco. — Olhou fixamente para Jake, depois para Pindor. — E vais ter muita sorte se te derem água e pão seco depois de o pai descobrir que foste ao Portão Quebrado... e que levaste a lança dele.
— O pai não tem de ficar a saber da lança, pois não? — suplicou ele.
Heronidus encolheu os ombros e continuou a caminhar.
— Vamos ver.
Cerca de um quilómetro à frente, estendia-se a cidade de Calypsos. Construída numa pequena colina, erguia-se do fundo do vale. No entanto, por mais que aquele lugar o intrigasse, a atenção de Jake foi atraída para lá das suas fronteiras. Nas profundezas do bosque selvagem, que fazia fronteira com as muralhas à direita da cidade, o enorme dragão de pedra pairava sobre as copas das árvores, as suas asas abertas. Parecia olhar fixamente para Jake. Apenas o dragão era visível daquele ângulo. A pirâmide encontrava-se enterrada na floresta.
Jake trocou um olhar esperançoso com Kady. Mesmo tão perto, o dragão parecia corresponder exatamente ao artefacto que se encontrava no Museu Britânico. A pirâmide tinha de conter alguma pista sobre como voltar para casa.
Marika parecia ter lido o desejo no rosto de Jake. Abanou a cabeça em sinal de aviso e disse:
— É proibido ir até lá. Apenas os três Mestres da Alquimia têm permissão para entrar e contemplar o coração de cristal de Kukulkan.
Jake ouviu o desejo na voz da rapariga, o que inflamou ainda mais a sua própria curiosidade.
O coração de cristal de Kukulkan? O que era isso?
Heronidus resmungou, descontente.
— Chega, Marika. Já te disse. Não podes falar com os espiões.
— Eles não são espiões! — insistiu ela mais uma vez.
Kady aclarou a garganta. Ruidosamente. De imediato, todos os olhares se voltaram para ela. Até mesmo os dois dinossauros pigmeus que puxavam a biga viraram os seus longos pescoços na sua direção.
Jake franziu o sobrolho. Como é que ela fazia aquilo?
Kady apoiou um punho fechado sobre a anca. O seu choque inicial transformara-se em irritação. Abanou o chapéu caqui em frente ao rosto para arrefecer, depois agitou-o perante o grupo.
— Não percebo. Todos vocês são gente estranha. Como é que falam todos inglês?
Heronidus inclinou a cabeça para o lado, estudando-a.
— Ang-lês? É essa a língua da tua terra?
Kady anuiu com a cabeça.
— É claro que sim. É a língua que vocês estão a falar também.
— Não. Nós falamos toda-a-terra. Tal como tu estás a falar agora.
Kady tocou com os dedos nos lábios, parecendo preocupada.
— Toda-a-terra? — indagou Jake.
— É um dom concedido pelos deuses do templo — explicou Heronidus, e apontou para a pirâmide com a espada, violando a sua própria ordem de não falar com eles.
Marika explicou melhor:
— O mesmo escudo que se ergue de Kukulkan e protege o nosso vale, também concede uma língua comum a todas as Tribos Perdidas. Para que todos se percebam. De forma a unir todos em paz e harmonia.
Jake olhou fixamente para o dragão de pedra. Funcionava como uma espécie de tradutor universal.
— Mas não nos esquecemos da língua das nossas próprias tribos — acrescentou Heronidus, tirando a couraça. — Podemos falá-la, mas requer concentração.
Demonstrando isso, Heronidus cuspiu algo em latim, dirigido a Pindor. Soava a um insulto.
Pindor corou e Marika redarguiu:
— O Pindor não é um cobarde! Ele é mil vezes mais corajoso que tu!
O comentário de Marika foi acolhido por um riso de troça de Heronidus.
A rapariga maia voltou a apontar para o lugar de onde tinham vindo.
— Ficas a saber que não estivemos apenas no Portão Quebrado. O Pindor e eu saímos para fora do portão.
Pindor retesou-se.
— Mari!
— Nós fomos às selvas profundas buscar o ovo de um lagarto-trovão!
Os olhos de Heronidus arregalaram-se, enquanto voltava a atenção para o irmão mais novo.
— Foste para além do Portão Quebrado?
— Heron... — gaguejou Pindor, procurando as palavras. — Eu tinha de tentar... porque...
Heronidus interrompeu a explicação de Pindor, brandindo a sua espada.
— Quando o pai ouvir isso, vais ficar trancado no teu quarto até à próxima lua cheia. E com toda a razão!
Pindor abanou tristemente a cabeça para Marika.
Marika estremeceu e proferiu com os lábios Desculpa.
Começaram a caminhar ainda mais depressa e chegaram ao portão da cidade. As muralhas erguiam-se a uma altura de dois andares. O pesado portão de ferro estava aberto.
Heronidus correu à frente e falou com um guarda que se encontrava apoiado numa lança. Jake não conseguiu perceber o que diziam, mas Heronidus apontou para ele e para Kady.
O guarda endireitou-se. Os seus olhos arregalaram-se quando viu os desconhecidos. Acabou por anuir com a cabeça, afastou-se e acenou. Passado um momento, surgiram duas criaturas enormes.
Jake reconheceu a espécie.
Othnielia.
Apoiados sobre as duas patas traseiras, cada um carregava um cavaleiro com uma armadura leve, polida e a brilhar ao sol. Um dos cavaleiros inclinou-se na sua sela e falou com Heronidus, que acenou e voltou a correr para junto do grupo.
— Vamos! — ordenou ele, o seu rosto corado devido ao entusiasmo.
Com a monstruosa escolta, o grupo atravessou o portão e entrou na cidade. Jake não sabia o que esperar, mas Calypsos era tão caótica quanto colorida.
No interior, as ruas eram pavimentadas de pedras arredondadas e as casas amontoavam-se junto umas das outras. Uma mulher de avental inclinou-se para fora de uma janela de um segundo andar e gritou para um homem magro que puxava uma carroça.
— Eu quero dois melões-sangue e um balde dessas bagas. Mas é bom que estejam maduras desta vez, Emmul!
— Maduras e suculentas, como sempre!
Jake esperava que o lugar cheirasse mal, com tantas pessoas e animais juntos, mas a cidade era atravessada por canais, aquedutos elevados e sarjetas. Era uma fantástica obra de engenharia. Até mesmo a rua principal formava uma espiral interminável que conduzia ao cume da colina, onde um castelo de pedra, ladeado por duas torres, aguardava por trás de muralhas altas.
— Kalakryss — disse Heronidus, nomeando o lugar. — É onde se encontra o Conselho dos Anciãos.
Era claramente o seu destino.
Enquanto caminhavam, Jake observava becos e avenidas. Para onde quer que olhasse, Jake reparava em aspetos de outras culturas de todos os continentes e épocas: uma cabana de sudação nativa americana, um templo sumério, um enorme Buda de madeira. No meio de uma praça, encontrava-se um elegante obelisco egípcio com hieróglifos entalhados.
Marika parecia ter reparado no seu olhar espantado.
— Há muitas tribos. Mais de quarenta.
— Como é que todas elas vieram aqui parar? — perguntou ele.
Era uma questão que preocupara Jake ao longo de toda a caminhada. O peso da moeda que trazia à volta do pescoço tornava-se cada vez maior, à medida que refletia no milagre da sua própria chegada. Tinha de existir algum tipo de portal. As moedas deviam ter funcionado como chaves. No entanto, podia não ser essa a única maneira de chegar aqui, não para todas estas pessoas.
Marika abanou a cabeça e respondeu:
— Não sabemos. Há muitos séculos, as Tribos Perdidas foram atraídas para este mundo selvagem, foram arrastadas das suas pátrias. Todos chegámos com poucas gerações de diferença uns dos outros e estabelecemos as nossas casas aqui no vale. Onde Kukulkan nos protege.
Jake olhava de Pindor para Marika. Como podiam tribos de eras da história da humanidade tão diferentes umas das outras chegarem praticamente ao mesmo tempo? Se o que Marika dizia era verdade, isso significava que as tribos tinham sido arrastadas das suas pátrias, bem como das suas linhas temporais.
— Circulam rumores de que há outras cidades como Calypsos — continuou Marika. — Noutros vales bem no coração da selva. Mas aqui vivemos o melhor que podemos, em paz e cooperação uns com os outros e com a terra. Pelo menos, costumávamos...
Jake detetou um laivo de preocupação nas últimas palavras dela. Podia tentar adivinhar a razão.
— O Rei Caveira de que falaste? Quem é...?
— Vocês os dois não deviam estar a conversar! — disse Pindor, metendo-se no meio deles. — Já temos todos problemas que cheguem.
Heronidus olhou furioso para trás e gritou:
— Despachem-se!
Marika suspirou, mas obedeceu.
Com a cabeça a mil, Jake continuou a atravessar a cidade. Tribos Perdidas. Ao longo da história da Terra, Jake ouvira histórias idênticas de vilas que desapareceram de repente, de legiões romanas que se eclipsaram sem rasto, de civilizações inteiras que foram simplesmente engolidas pelo tempo.
Seria este o lugar onde todos tinham vindo parar?
Sentiu que havia muito mais para saber.
— Ai! — exclamou Kady, um passo ao lado de Jake.
Kady raspou vigorosamente a sola da sua bota esquerda numa das pedras arredondadas que pavimentavam o chão.
Jake olhou de relance por cima do ombro e viu a pegada da bota de Kady numa pilha de algo que mais parecia terra escura, junto à beira da estrada. Só que não era terra. O cheiro deixou isso claro. Fezes de dinossauro.
Jake tentou não sorrir... sobretudo porque a irmã voltara para o seu lado com o rosto pálido e esverdeado.
— Nós não pertencemos aqui — disse ela. — Temos de voltar para casa.
— E vamos para casa — sossegou-a Jake com mais segurança do que a que ele mesmo sentia.
Kady respirou fundo e acenou com a cabeça.
— É só capaz de demorar algum tempo até descobrir como fazer isso — acrescentou ele entredentes.
Jake olhou em redor, para aquela miscelânea de culturas, cada vez mais confuso. Uma nova preocupação assaltou-lhe o pensamento. Se estas pessoas, passados tantos séculos, não tinham descoberto como abrir o portal para regressarem a casa, como poderia ele ter esperança de o conseguir fazer sozinho? Guardou este medo para si mesmo e estendeu a mão para agarrar na de Kady.
Ela apertou-lhe a mão com força.
Até lá, pelo menos, tinham-se um ao outro.
Por esta altura, a entrada deles na cidade começava a atrair cada vez mais olhares curiosos. As pessoas apontavam e as crianças corriam para eles, puxavam a mochila de Jake e tocavam com curiosidade na roupa de Kady. Heronidus ou um dos guardas montados afastavam-nos constantemente.
Uma rapariga egípcia, com pouco mais de cinco anos, com a cabeça rapada e os olhos pintados, ignorou Heronidus e aproximou-se a correr de Kady. Segurava uma flor com pétalas carmesim e disse:
— És bonita.
Kady aceitou o presente, bem como o elogio.
— Obrigada.
Jake notou uma ponta de alívio na voz da irmã com este simples ato de boas-vindas. Kady largou a mão de Jake e segurou a flor com ambas as mãos. O esboço de um sorriso pairou-lhe nos lábios. Com este pequeno gesto, talvez Kady tivesse agora algo a que se agarrar, onde ir buscar forças.
Teria sido assim que a comunidade de Calypsos se formara?
Através de um simples ato de boas-vindas de uns para os outros?
Jake observou que a estrada fazia uma curva. Mesmo à frente, erguia-se o castelo de Kalakryss. Reparou que havia guardas a fazer a ronda nas muralhas. Pensou que tipo de boas-vindas poderiam esperar.
Olhou de relance para Marika.
O seu rosto tinha uma expressão preocupada.
Não era um bom sinal.
8
ESTRANHOS NUMA TERRA DESCONHECIDA
Com uma lança apontada às costas, Jake caminhou para o pátio do castelo. Ao centro, por baixo de uma árvore do tamanho de uma sequoia, encontravam-se ainda mais soldados a conversar e a rir. À esquerda, junto à muralha do castelo, erguia-se um conjunto de estábulos de pedra e currais de madeira.
As montadas da sua escolta emitiram um som suave, pressentindo que se aproximavam de casa e de comida. Os Othnielia atiraram as cabeças para trás, mas os soldados nas selas bateram ao de leve nos flancos das criaturas com pequenos paus, semelhantes a bastões, guiando-os e comandando-os com vozes apaziguantes. Na Índia, também era assim que se acalmavam os elefantes.
Ao atravessarem o portão, aproximou-se um grupo de soldados. Vinham dos campos de treino do outro lado do pátio, onde aprendiam a lutar com espadas e lanças. Casernas de dois andares delimitavam os campos. Um homem alto, com um elmo de onde brotava uma pluma carmesim, conduzia os soldados.
— A Guarda Montada — sussurrou Marika ao lado de Jake. — O Heronidus está a treinar para se juntar a eles.
Heronidus avançou e saudou o soldado com o elmo da pluma carmesim, levando o punho direito ao peito.
— Centurião Gaius, temos desconhecidos nas nossas terras para apresentar ao Conselho dos Anciãos.
O centurião olhou de relance para Jake e Kady. A sua reação limitou-se a um ligeiro arregalar de olhos.
— Acreditamos que possam ser espiões enviados pelo Kalverum Rex — acrescentou Heronidus, e endireitou as costas de tal maneira que Jake pensou que as fosse partir.
O centurião estudou atentamente Jake e Kady. A dureza da sua expressão suavizou-se, parecendo divertido. As rugas em volta dos seus olhos acentuaram-se, o que indicava que o homem ria com frequência. Jake deu por si a simpatizar com Gaius, apesar de o homem nem sequer ter dito uma única palavra.
— Se eles são espiões — disse o centurião —, então o Rei Caveira anda a ensiná-los cedo.
Heronidus mudou de posição. O seu rosto ficou vermelho como um tomate ao ouvir a dúvida no tom de voz do centurião. Olhou rapidamente para Pindor, como se estivesse a culpar o irmão mais novo. Para não ficar malvisto, Heronidus virou-se para o centurião e retorquiu:
— Mas não devíamos deixar o Conselho dos Anciãos ponderar esse assunto e decidir...
O centurião Gaius bateu no ombro de Heronidus, silenciando-o.
— Tens razão, jovem Heronidus. Estes dois devem ser levados ao Conselho dos Anciãos. Acontecimentos estranhos marcaram a chegada deles aqui, sobretudo tendo em conta os últimos rumores vindos dos nossos batedores nas profundezas da selva... pelos menos dos poucos que regressaram...
O rosto do centurião tornou-se sombrio e acenou com a cabeça para os dois guardas montados.
— Vou levá-los ao conselho. Vocês os dois regressem aos vossos postos junto aos portões.
Gaius virou-se para Jake e Kady depois de falar com um rapaz vestido com uma toga. O rapaz afastou-se a correr em direção ao castelo. Era provavelmente um mensageiro, enviado à frente para anunciar a sua chegada.
— Eu sou Marcus Gaius, primeiro centurião da Guarda Montada.
— Jake... Jacob Ransom. Esta é a minha irmã, Kady.
— Katherine Ransom — corrigiu a irmã, endireitando-se, embora tenha corado um pouco com a atenção do homem.
Gaius acenou com a cabeça.
— Nomes tão invulgares como as vossas vestes. Se fizerem o favor de me seguir, vamos pedir uma audiência ao conselho. — O centurião voltou o seu olhar para Heronidus, Pindor e Marika. — Vocês vêm todos e vão fazer um relatório completo ao conselho.
À direita de Jake, Pindor resmungou baixinho. Era bastante óbvio que não estava contente por ter de explicar onde estivera com Marika. Por outro lado, Marika acenou vigorosamente com a cabeça, disposta a cooperar para provar que tinha razão em relação aos desconhecidos.
Em grupo, dirigiram-se para a entrada principal do castelo. Ao passar pela sombra debaixo da árvore, Jake ouviu um rumor sobre a sua cabeça e olhou para cima. Entre os ramos mais baixos estavam penduradas pequenas criaturas com asas cobertas de escamas e cabeças pontiagudas.
Pterodáctilos minúsculos.
— Alguma notícia dos caçadores no terreno? — perguntou Gaius a um dos soldados que se encontrava a descontrair e que se pôs imediatamente em sentido.
— Não, centurião Gaius. Nem um único dardo-alado regressou da selva nas últimas duas semanas. Estamos a preparar-nos para enviar outro agora. — O homem apontou para onde se encontrava um soldado sentado num banco. O soldado tinha um dos pterossauros pigmeus preso entre os joelhos e estava a atar um pequeno tubo prateado às suas costas, como se fosse uma pequena sela.
— Temos estado a enviar dois dardos-alados por dia, como foi pedido — acrescentou o soldado que caminhava rigidamente ao lado de Gaius —, mas nenhum deles regressou.
O soldado que se encontrava sentado terminou o seu trabalho, levantou-se e atirou o pequeno pterossauro ao ar. As suas asas abriram-se e apanharam o vento. A criatura pairou pelo pátio fora e, com um suave bater de asas, transpôs a muralha e afastou-se.
Jake observou a criatura a voar, depois olhou para cima, para os ramos cheios de pterossauros. Deviam ser usados como mensageiros. Como os pombos na sua terra.
Distraído, Jake bateu com o joelho numa caixa que se encontrava no chão. Um silvo fê-lo recuar. A caixa era uma jaula de madeira com barras de um dos lados. Uma criatura encontrava-se agachada ao fundo. Jake não conseguia ver o que era, mas dava para perceber que estava zangada por ter sido incomodada. Só viu um par de olhos dourados, que refletiam o brilho do sol poente.
Aproximou-se, curioso... De repente, a criatura atirou-se contra as grades. Aturdido, Jake caiu para trás. A criatura enjaulada não era maior do que o seu cão, Watson. No entanto, este animal estava coberto de pelo todo negro com laivos de laranja-vivo. Tinha o pelo eriçado e uma pequena juba emoldurava um focinho de onde brotavam presas tão compridas como a mão de Jake esticada. A criatura cuspia e sibilava. O seu focinho arreganhado exibia agora o verdadeiro comprimento daquelas presas.
Era parecida com um tigre-dentes-de-sabre, mas mais pequena, pensou Jake. Talvez fosse um antepassado dos tigres-dentes-de-sabre maiores. Algo semelhante a um Rhabdofelix.
— Afasta-te daí, rapaz! — avisou um dos guardas.
A agitação atraiu a atenção do centurião. O soldado que se encontrava ao seu lado explicou:
— Uma patrulha apanhou essa fêmea no Bosque Sagrado. Pensámos que talvez a pudéssemos treinar. Não deve ter mais de um ano. É provável que tenha apenas nove luas.
Gaius agachou-se.
— Nove? Ela vai ficar enorme.
O soldado ao lado de Gaius suspirou e disse:
— Mas é demasiado selvagem e demasiado perigosa. Quase arrancou um pedaço ao chefe de caça Rullus. Por isso, está na jaula para a usarmos como isco numa caçada de treino.
Jake ficou tenso. Durante a conversa, aproximara-se novamente da jaula e espreitara lá para dentro. Planeavam matá-la.
Jake não sabia dizer porque fez o que fez a seguir. Olhando de relance por cima do ombro, estendeu a mão em direção à fechadura que trancava a jaula. Kady reparou no que ele estava a fazer e formou a palavra Não com os lábios.
Jake olhou fixamente para ela com as sobrancelhas levantadas. Kady podia ser uma menina mimada e egoísta de vez em quando, mas tinha pena de qualquer animal em perigo. No ano anterior, ela até conseguira que a sua claque patrocinasse uma caminhada a favor de um abrigo de animais.
Kady revirou os olhos e virou as costas a Jake. Apontou para o outro lado do pátio e lançou um grito estridente, como se estivesse aterrorizada:
— O que é aquilo ali?
Como era habitual com Kady, todos se viraram e olharam.
Aproveitando a distração, Jake abriu a fechadura, depois afastou-se rapidamente. Olhou em volta. Ninguém o vira. Nem mesmo a gata, que permaneceu encolhida ao fundo da jaula.
Jake arriscou um sussurrado «Vai», tentando fazer com que a criatura se mexesse.
A Rhabdofelix acabou por se dirigir para junto das barras e abriu a porta com o nariz. Quando esta se abriu por completo, a criatura esgueirou-se para fora da jaula, rasteira ao chão, a sua longa cauda enrolada em forma de ponto de interrogação, toda a sua postura revelando desconfiança e cautela. Tinha os olhos fixos em Jake. As suas narinas contraíam-se, aspirando o cheiro de Jake. As suas orelhas, espetadas e alerta, giravam como antenas parabólicas.
— Foge — murmurou Jake baixinho, e apontou para o portão aberto do castelo.
De repente, a criatura ganhou coragem e saiu disparada. O único sinal da sua passagem foi um bater frenético de asas quando o bando de dardos-alados se assustou e levantou voo dos ramos das árvores.
Os guinchos roucos e ásperos dos pássaros atraíram a atenção dos soldados para cima — e depois para baixo, para a jaula com a porta aberta. Instalou-se o caos e irromperam gritos, mas já era demasiado tarde.
A gata fugiu pelo portão e desapareceu no meio da confusão da cidade. Alguns soldados tentaram persegui-la a pé, mas Jake desconfiava que não seriam capazes de a apanhar.
Esforçando-se ao máximo, Jake tentou manter um ar inocente. Cruzou o olhar com o de Marika. Ela olhou fixamente para ele durante alguns segundos e depois virou-se. Se ela desconfiou de alguma coisa, não o disse.
O centurião Gaius falou com firmeza e apontou em direção ao castelo.
— Basta! Não podemos deixar os anciãos à espera.
O castelo de Kalakryss ocupava a metade de trás do pátio. Jake estudou a fortificação à medida que se aproximavam da entrada principal. Quando esticou o pescoço, reparou em algo que brilhava no cimo da torre à direita. A luz oblíqua do sol fazia cintilar a cúpula feita de bronze martelado. Parecia um observatório usado para estudar as estrelas.
Antes que conseguisse examinar melhor, passaram por baixo de uma arcada e atravessaram duas portas enormes. Jake esperava que o castelo fosse sombrio e escuro por dentro. Em vez disso, encontrou uma entrada acolhedora com tapeçarias coloridas penduradas nas paredes e tapetes no chão. O ar era agradavelmente fresco, sendo o espaço bem isolado do calor do Sol. Um enorme candelabro de bronze iluminava a divisão... mas não com as chamas tremeluzentes de velas. A luz brilhava de forma constante.
Jake pensou que se tratava de lâmpadas, mas a forma de cada uma era irregular e angular. Pareciam pedaços de cristal em bruto... só que cada uma cintilava com um brilho ofuscante.
Jake olhou em volta com o sobrolho carregado. O que estaria a fornecer energia aos cristais?
Gaius conduziu-os pela ala central de um salão de receções comprido e estreito. Bancos de madeira, como os bancos de uma igreja, estendiam-se de ambos os lados, todos virados para a ponta mais longínqua. As paredes tinham estandartes pendurados, dez de cada lado. Cada um deles continha vários símbolos, como uma coleção de brasões de cavaleiros.
Bandeiras.
Marika reparou no seu interesse e disse:
— Os estandartes representam cada uma das Tribos Perdidas.
Pararam à frente do salão, por baixo de um conjunto de janelas altas e estreitas, flanqueadas por passagens abobadadas. Por baixo das janelas encontravam-se dois conjuntos de bancadas, um mais elevado que o outro, com três cadeiras de costas altas em cada nível.
Três pessoas surgiram da passagem da esquerda, todas elas com a mesma expressão preocupada. No entanto, estas três pessoas não podiam ser mais diferentes umas das outras. Uma usava vestes como as de Heronidus e Pindor, mas com uma coroa de louros na cabeça.
Ao seu lado, encontrava-se um homem com feições asiáticas, calvo, com um longo bigode branco que caía até ao queixo e uma barba fina. Do outro lado, estava uma mulher de meia-idade com o cabelo ruivo entrançado, vestida com uma túnica verde e calças. Usava também um elmo com dois chifres recurvados.
— O Alto Conselho de Calypsos — sussurrou Marika.
Pindor deixou-se ficar para trás com a sua lança, tentando esconder-se atrás de Gaius.
Sob o olhar severo do conselho, Kady aproximou-se de Jake.
Antes que alguém conseguisse falar, uma voz aguda exclamou da passagem abobadada à direita:
— Recém-chegados! De certeza que isso não é possível. Mas a ser verdade... conseguem imaginar?
O dono da voz apareceu. Era baixo, e o seu cabelo grisalho estava um pouco despenteado, como se tivesse acabado de acordar. Pelo quadrado de pano preso à volta dos ombros, chamado pati, adornado com penas nas mangas, era claramente maia.
Outro homem surgiu ao seu lado. Era tão largo, como era alto. Este homem corpulento usava um manto comprido com capuz, embora o capuz estivesse caído, revelando uma cabeça com uma farta cabeleira castanha rapada em cima. Parecia um monge inglês da Idade Média. O monge apontou para o grupo de Jake e o homem maia virou-se. Os seus olhos arregalaram-se e deu um passo na direção deles.
— Mari? — começou ele. — O que estás aqui a fazer, minha querida? Porque não estás na escola?
— Papá, fui eu e o Pindor que...
Papá? Jake olhou para ela de relance.
Marika foi interrompida por uma voz retumbante vinda da bancada superior:
— Pindor?
O homem com a coroa de louros na cabeça levantou-se da cadeira. O seu olhar procurou em baixo. Pindor surgiu das sombras com relutância.
— O que é que se passa? Que traquinice é que tu e a tua amiga arranjaram agora? Se isto é algum tipo de partida... Se estás a desperdiçar o tempo precioso do conselho...
— Não, pai — disse Pindor com os olhos fixos no chão. — Não é nenhuma partida.
Antes que alguém conseguisse explicar, um terceiro homem apareceu, vindo da passagem abobadada por trás do monge. Movia-se silenciosamente, tão magro como a sombra de um relógio de sol. Usava um manto totalmente preto, que roçava no chão. Tinha a cabeça rapada e a sua pele era tão escura como os seus modos. Os seus olhos negros eram frios e inexpressivos. O seu olhar varreu o grupo sem expressar qualquer tipo de emoção. O que tornava a sua aparência ainda mais perturbadora eram as tatuagens na testa, num tom vermelho-sangue. Eram hieróglifos egípcios.
O homem juntou-se aos outros dois e, juntos, dirigiram-se para a bancada inferior e sentaram-se nos seus lugares. Jake reparou que cada um deles usava um pequeno martelo de prata numa corrente à volta do pescoço.
Jake olhou de relance para Marika. Ela sussurrou o mais baixinho que conseguiu:
— Aqueles três são os mestres... os três Mestres da Alquimia.
O pai de Pindor permaneceu de pé na bancada superior.
— Com todo o conselho reunido, vamos então descobrir quem são estes desconhecidos e que perigo representam para Calypsos.
Jake sentiu o peso de seis pares de olhos cair sobre ele e a irmã.
9
O CONSELHO DOS ANCIÃOS
— ... e foi assim que os trouxemos pelo Portão Quebrado — terminou Marika.
O silêncio abateu-se sobre o conselho. Marika e Pindor já tinham sido interrogados de forma exaustiva e até Heronidus fizera alguns comentários. Até àquele momento, Jake e Kady tinham sido ignorados.
Por fim, o pai de Marika falou:
— Gostaria de ver uma demonstração dessa estranha alquimia que espantou o lagarto-trovão.
O monge ao seu lado anuiu e disse:
— Concordo com o mestre Balam. Também gostaria de o testemunhar com os meus próprios olhos.
O terceiro mestre limitava-se a fitar Jake.
O pai de Pindor acenou da bancada superior para eles obedecerem.
Jake enfiou a mão no bolso e tirou o assobio para cães, acrescentando:
— Não sei se serão capazes de ouvir alguma coisa.
Jake levou o apito aos lábios e soprou. Não ouviu nada mais que um som estridente muito ténue. Os anciãos na bancada pareciam ter ouvido ainda menos. Abanaram a cabeça e encolheram os ombros.
— E foi isso que afastou o lagarto-trovão? — perguntou o pai de Pindor, a dúvida evidente na sua voz.
— Foi, sim, ancião Tiberius — declarou Marika. — É uma alquimia estranhamente silenciosa.
Jake dirigiu-se à bancada e ergueu o apito de aço.
— Isto não vem da alquimia. Vem do que nós chamamos alquimia.
Jake franziu o sobrolho. Estava a pensar em ciência, mas a palavra alquimia saíra-lhe dos lábios.
A confusão espalhou-se pelas bancadas... à exceção do egípcio, que permaneceu impassível.
Jake tocou com os dedos na garganta e lembrou-se do que Marika lhe explicara. Alguma força misteriosa ajudava a traduzir as suas palavras para a língua toda-a-terra. Será que o tradutor universal pensava que alquimia e ciência eram a mesma coisa? E talvez, de alguma maneira, até fossem. Os antigos alquimistas dedicavam-se também à química e à física. Até Isaac Newton se considerava um alquimista.
Jake tentou novamente, concentrando-se nas palavras:
— O apito não é um produto da alquimia... mas da ciência.
Desta vez, a palavra saiu-lhe da maneira que ele queria, mas com algum esforço. A sua língua lutara para formar a palavra, como quando tentamos falar depois de o dentista nos anestesiar a boca toda.
— Ciii... enzia? — repetiu o pai de Marika.
Jake procurou desesperadamente alguma forma de o demonstrar. Virou-se para Kady e apontou para o bolso do seu colete.
— Mostra-lhes o teu iPod.
— O meu iPod?
— Deixa-os ouvir.
Kady franziu o sobrolho, mas obedeceu.
Enquanto procurava o iPod dentro do bolso, Jake explicou:
— De onde nós vimos, usamos uma alquimia diferente, chamada ciência.
Kady colocou um dos auscultadores no ouvido e ligou o iPod. As suas sobrancelhas arquearam de imediato.
— Esta é a «Straightjacket Love»! — exclamou ela, alto. Quando todos os olhares se fixaram nela, a sua voz tornou-se praticamente um sussurro. — É... uma das minhas preferidas.
Jake acenou-lhe para que se aproximasse dele.
— Deixa-os ouvir.
Kady dirigiu-se para a bancada inferior. Os anciãos e os mestres juntaram-se e ouviram à vez pelo auscultador. Os seus olhos arregalaram-se, surpreendidos, mas não ficaram agitados como Jake previra. A seguir, os três mestres reuniram-se e discutiram entre si.
Jake ouviu algumas palavras do pai de Marika:
— ... algum tipo de fala-longe... talvez uma amálgama de cristais verdes...
Jake perdeu as restantes palavras quando o pai de Pindor bateu com o punho do seu lado da bancada e gritou:
— Basta! Eu quero saber mais sobre o grakyl que vos tentou atacar no portão. Têm a certeza de que era um dos lacaios do Rei Caveira?
— Tenho a certeza, pai — respondeu Pindor.
A mulher com o elmo com chifres, que devia ser descendente de viquingues, pronunciou-se:
— O Kalverum Rex está a ficar cada vez mais audacioso. Se o que as crianças contam é verdade, ele está mesmo às nossas portas.
— É verdadeiramente preocupante, Astrid. Quais são as últimas notícias das caçadoras?
Ela abanou a cabeça.
— Ainda não tivemos notícias daquelas que foram enviadas para as profundezas da selva. Rezamos a Odin todas as manhãs para que regressem sãs e salvas.
— Vamos juntar-nos às vossas preces — assegurou-lhe o homem asiático. Virou-se para Jake e Kady. — Antes de julgarmos estes recém-chegados, gostaria de saber mais sobre a terra de onde vêm. Como chegaram aqui?
Jake sentiu o peso da metade da moeda que tinha pendurada ao pescoço. Aclarou a garganta primeiro, com receio de que Kady lhes falasse sobre as moedas. Não queria que isso acontecesse. As moedas poderiam ser a única maneira de voltarem para casa. Se lhes fossem tiradas, podiam ficar ali presos para sempre. E, a um nível mais profundo, Jake recusava-se a ser separado delas. Era o último presente que tinham recebido dos pais.
— Não sabemos como viemos aqui parar — disse Jake com cautela, hesitante. — Num minuto estávamos num grande átrio. Durante uma grande trovoada.
Jake virou-se para Kady, que anuiu.
— E, no minuto seguinte, um relâmpago atingiu-nos e... bum... o mundo ficou escuro. Parecia que estávamos a cair, depois... zás... estávamos no meio da selva.
As suas palavras foram recebidas com acenos de cabeça. Jake ouviu a palavra relâmpago a ser repetida na fila de cima da bancada. Parecia que estas histórias se assemelhavam à chegada dos seus compatriotas a este lugar.
— Viemos de uma cidade chamada North Hampshire — continuou Jake —, numa terra chamada América.
— Ah Merika? — repetiu o pai de Pindor com o sobrolho carregado. — Desconhecemos essa tribo.
Jake elevou um pouco a voz para a tornar mais forte e continuou:
— Não sabemos como ou porque viemos aqui parar. Mas desconhecemos esse Rei Caveira, e é certo que não somos espiões de ninguém. Juro.
Jake levantou a mão direita como um escuteiro, embora nunca tivesse pertencido aos escuteiros.
O ancião Tiberius olhou para Jake e respirou fundo. Jake manteve a mão direita no ar e olhou-o nos olhos, com a mesma intensidade. Por fim, o romano acenou para o centurião.
— Levem esses dois para um lugar privado, enquanto nós falamos sobre o que ouvimos aqui.
Gaius bateu no peito com o punho e fez sinal a Jake e a Kady para o seguirem.
Tiberius gritou mais uma vez:
— O rapaz que deixe a sua mala e a rapariga, a sua estranha ferramenta musical. Vão ser analisadas pelos mestres para ver se contêm algum vestígio da alquimia do Rei Caveira.
A sua cela improvisada não tinha janelas e era pouco maior que um closet. O chão estava coberto de feno seco. Várias prateleiras enchiam a parede do fundo de cima a baixo e estavam repletas de frascos de vidro verde, selados com uma camada espessa de cera, que escondia os seus conteúdos obscuros. Barris de madeira e potes de barro alinhavam-se noutra parede. O lugar tinha um cheiro almiscarado e apimentado.
Uma espécie de despensa, pensou Jake, o que lhe valeu um roncar de protesto do seu estômago. Quando comi pela última vez? Londres parecia-lhe estar a milhões de quilómetros e a milhões de anos de distância. E talvez estivesse mesmo.
Kady andava de um lado para o outro no pequeno espaço, com os braços cruzados sobre o peito.
Jake atravessou o espaço até à parede oposta e estudou a única luz existente na cela. Uma tocha de ferro encontrava-se presa na pedra e tinha em cima um daqueles cristais que brilhavam intensamente. Estava muito alta, fora de alcance, mas Jake procurou fios ou cabos, alguma ligação a uma fonte de energia. Não encontrou nada, mas queria ver mais de perto.
Se eu arrastar um destes barris para aqui, talvez consiga...
Kady deu um pontapé num pote de barro, olhou para Jake e perguntou:
— Como é que nós realmente chegámos a este lugar maluco?
O seu olhar estava um pouco desvairado. Jake encolheu os ombros, ficando com a clara impressão de que ela precisava de uma resposta, qualquer resposta.
— Talvez tenhamos ativado algum tipo de... Não sei, talvez um buraco de minhoca quântico...
— Um quê quântico?
— Uma espécie de brecha no espaço e no tempo. Uma anomalia espacial.
Kady revirou os olhos.
— Por outras palavras... não fazes a mínima ideia.
Jake franziu o sobrolho... mas a verdade é que ela tinha razão. Lembrou-se do artefacto brilhante.
— Bem, o que eu sei é que deve ter que ver com a moeda partida que o pai e a mãe nos deram.
Kady levou a mão à garganta.
— Então, porque é que nos enviaram estas coisas estúpidas?
Jake recuou e sentou-se num dos barris.
— Acho que... apenas para as manter escondidas e em segurança. Mas não sei...
A sua voz fraquejou no final. Tudo o que sabia era que se sentia cada vez mais preocupado. E se o conselho os banisse de volta para a selva? Nunca conseguiriam sobreviver.
Kady atravessou a sala e sentou-se no barril ao lado de Jake.
— Talvez tenhas razão, Jake — disse ela, suavemente. — A mãe e o pai nunca pensaram que nós fôssemos enfiar as nossas moedas naquela pirâmide.
Kady cruzou os braços à frente do peito e pareceu preocupada.
Jake lembrou-se do artefacto incandescente no Museu Britânico. Também se lembrou de Morgan Drummond a correr na sua direção, a avisá-los que se afastassem. Será que o homem sabia de alguma coisa? Ou será que estava apenas com receio que eles estragassem algum tesouro antigo à sua guarda? Jake abanou a cabeça e tentou ordenar as questões que saltitavam de um lado para o outro no interior da sua cabeça.
— Do que temos a certeza é que não fomos os únicos a aterrar aqui — disse Jake, por fim, concentrando-se no que sabia ser verdade. — Alguém ou alguma coisa tem estado a colecionar parcelas de civilizações da Terra, de diferentes tempos e lugares, e a prendê-las neste mundo.
— É uma sorte essas tribos não se terem aniquilado umas às outras quando aqui chegaram — respondeu Kady.
— Devem ter-se unido para sobreviver. Neste lugar perigoso, o inimigo do teu inimigo é teu amigo. — Jake tocou na garganta. — Além disso, existe o tradutor universal. Serem capazes de falar uns com os outros deve ser essencial para manter a paz por aqui. Onde quer que aqui seja.
— Mas onde estamos?
Jake abanou a cabeça.
— Talvez noutro mundo? Noutra dimensão? Se conseguirmos perceber isso, talvez consigamos perceber como viemos aqui parar.
Kady suspirou ruidosamente, como se tudo isso fosse dar demasiado trabalho.
— Esquece o como chegámos aqui. Como é que voltamos para casa?
Jake reparou mais uma vez que a irmã estava novamente a roçar a histeria. Antes que isso o contagiasse, falou alto, mantendo a cabeça ocupada contra o medo que lhe enchia o coração.
— Estes dois mistérios estão relacionados. Como viemos aqui parar, como voltamos para casa. Não seremos capazes de solucionar um, se não solucionarmos o outro.
Kady aproximou-se e apertou os dedos de Jake.
— Tu estudaste todas aquelas coisas de arqueologia e história antiga. Se alguém consegue perceber este lugar, és tu.
Jake abanou a cabeça, mas, ao mesmo tempo, imaginou o dragão de pedra a flutuar por cima da floresta vizinha. A pirâmide tinha de conter algumas respostas. Tinha de descobrir uma maneira de entrar nela. No entanto, lembrou-se do aviso de Marika.
É proibido ir até lá. Apenas os três Mestres da Alquimia têm permissão para entrar e contemplar o coração de cristal de Kukulkan.
Jake olhou para cima, para a gema luminosa do tamanho de um punho que se encontrava no topo da tocha de ferro, e começou a engendrar um plano.
— O que precisamos de fazer primeiro é... — murmurou ele.
Kady aproximou-se dele, a ouvir.
Jake disse com a voz mais firme:
— O que precisamos de fazer primeiro é reunir informação.
— Informação?
— Descobrir tudo o que conseguirmos. Mas, para o fazermos, vamos ter de cooperar e chamar o mínimo de atenção possível enquanto investigamos este lugar.
Kady franziu o sobrolho.
— Então, vamos ter de fazer aquilo de que nos acusam. Vamos ter de espiar estas pessoas.
Jake anuiu, consciente do perigo.
— Desde que nos mantenhamos juntos, vai correr tudo bem. Devemos conseguir...
Uma pancada forte na porta fez com que os dois saltassem. Com um chiar, a porta da despensa abriu-se e o centurião Gaius entrou. A sua voz era dura e implacável.
— Venham comigo — ordenou ele. — O Conselho dos Anciãos já decidiu o vosso destino.
Todos os olhares se focaram neles quando os dois irmãos se aproximaram. Ninguém falou. O silêncio tornava o ar ainda mais pesado, à medida que Tiberius se dirigia a eles. Tinha uma expressão severa, pouco calorosa.
Oh-oh.
As primeiras palavras do romano não ofereceram qualquer conforto.
— Chegaram a Calypsos numa altura conturbada. Criaturas sinistras assombram as nossas fronteiras. Correm rumores de que existem monstruosidades ainda maiores nas profundezas da selva, da existência de forças que se estão a juntar como uma tempestade prestes a desabar sobre nós. Assim, a vossa chegada levanta alguma desconfiança da nossa parte.
Jake sentiu um nó no estômago.
— No entanto, desde a sua fundação, Calypsos sempre foi um lugar de paz e harmonia. E, mesmo quando confrontados com a escuridão, nunca poremos de lado os nossos princípios. Além disso, com as vossas estranhas alquimias, salvaram não só uma das nossas crianças — Tiberius levantou um braço e apontou para Marika —, mas também salvaram o meu filho.
Os ombros de Pindor, já caídos, curvaram-se ainda mais.
Tiberius continuou:
— A filha do mestre Balam também é testemunha do terror nos vossos rostos quando viram o grakyl, um dos lacaios do Rei Caveira. Ela acredita que esse medo era real.
Jake lembrou-se da criatura presa entre as torres, a esbracejar no meio do ar e a tentar escapar. O seu medo fora real, disso não restava qualquer dúvida. Jake olhou de relance para Marika, agradecendo-lhe silenciosamente por apoiar a sua história. Ela olhou timidamente para baixo, para os pés.
Tiberius continuou, atraindo novamente a atenção de Jake:
— Embora a decisão não tenho sido unânime no conselho, a maioria votou a favor da vossa permanência em Calypsos por agora.
Jake deixou escapar o suspiro que estivera a reter até então. Não eram propriamente as mais calorosas boas-vindas a esta estranha terra, mas ele aceitava a decisão de bom grado.
Tiberius apontou para o pai de Marika e disse:
— O mestre Balam foi extremamente generoso ao abrir as portas de sua casa, jovem Jacob, tendo até expressado grande interesse em aprender mais sobre essa tua ci-enzia.
Jake voltou a encontrar a sua voz:
— Ob... obrigado. Não daremos qualquer trabalho. Prometemos.
Tiberius levantou a mão.
— Confundiste-te com as minhas palavras. A tua irmã não vai contigo.
— O quê? — gaguejou Jake. — Esperem. Eu não acho...
Tiberius silenciou-o com uma expressão severa.
— A anciã Astrid Ulfsdottir pediu para Katherine Ransom ficar com ela em Bornholm Hall.
A mulher alta anuiu, acrescentando:
— Ela está em forma e tem braços e pernas fortes. Vejo nela as características de uma guerreira.
Jake virou-se para a irmã. O rosto de Kady tinha empalidecido.
Tiberius continuou:
— Uma última condição para permanecerem aqui, em Calypsos, é que os meus filhos serão designados vossos... acompanhantes. Não deverão vaguear pelas nossas ruas sem ser acompanhados por eles.
Jake compreendeu o significado por trás das suas palavras. Estavam a atribuir-lhes guardas
— Pindor ficará contigo — disse Tiberius a Jake — e Heronidus acompanhará a tua irmã, pelo menos, por algum tempo.
Até confiarem em nós, pensou Jake.
— Agora, já se faz tarde — concluiu Tiberius. — O melhor é deixar-vos ir para as vossas novas casas para se acomodarem.
A mulher viquingue aproximou-se de Kady e colocou-lhe a mão sobre o ombro. Marika correu para junto de Jake. A expressão no rosto da rapariga era um misto de pedido de desculpa e entusiasmo.
No entanto, Jake olhava fixamente para Kady. Os seus olhares cruzaram-se. Ele sabia o que ela estava a pensar. Ela depositara a sua confiança nele para que encontrasse o caminho para casa. As palavras que dissera antes a Kady ecoavam-lhe agora na cabeça.
Desde que nos mantenhamos juntos, vai correr tudo bem.
No momento em que estavam prestes a ser separados, Jake percebeu que o seu plano, com apenas alguns minutos de existência, já estava a desmoronar-se.
Como é que iam regressar a casa agora?
10
A ESTRADA BRANCA
Jake abraçou a irmã antes de serem separados. Era estranho. Não se conseguia lembrar de uma vez em que a tivesse abraçado. E estavam todos a olhar para eles, o que tornava tudo duplamente desconfortável. Ele sussurrou ao ouvido dela, forçando a sua língua a falar inglês e não toda-a-terra. Não queria que os outros o percebessem.
— Observa tudo. Aprende o que conseguires.
— O que é que devo...?
— Entra no jogo. Faz amigos.
Era um talento que Kady dominara ao longo dos anos e uma aptidão inexistente em Jake. No entanto, em termos de espionagem, era uma qualidade muito útil.
Tiberius aclarou a voz atrás deles.
— Já chega. A noite está a cair e ainda temos todos muito que fazer antes de ir dormir.
Jake recuou. Kady, que já não abraçava Jake, parecia não saber o que fazer com os braços. Acabou por cruzá-los à frente do peito, claramente nervosa.
A mulher viquingue aproximou-se de Kady e tocou com a mão no cotovelo da irmã.
— Não é uma longa caminhada até Bornholm, mas devemos partir quanto antes, senão vamos encontrar um jantar frio à nossa espera.
Kady lançou a Jake um último olhar desamparado, depois acompanhou Astrid Ulfsdottir pelo salão. Jake observou-as enquanto se afastavam.
— Não te apoquentes, amigo — disse o pai de Marika a Jake, usando algumas entoações da língua maia. — Verás a tua irmã pelo menos uma vez por dia... senão dia sim, dia não. Para já, deixa-nos mostrar-te onde vais ficar.
Marika agarrou na ponta do colete de safári de Jake e puxou-o para a passagem à direita da bancada superior.
— O papá e eu vivemos na Torre do Esclarecimento, como todos os mestres de Calypsos. — Uma ponta de timidez brilhou nos olhos cor de jade de Marika. — Anda, deixa-me mostrar-te...
— Mari, deixa o teu amigo respirar — avisou o pai. — Vais ter muito tempo para lhe mostrar tudo por aqui, mas agora talvez lhe interesse mais encher a barriga.
A barriga de Jake roncou a sua concordância.
Jake foi conduzido pela passagem abobadada, onde encontrou uma estreita escada de caracol. No patamar, parou, sem saber se devia subir ou descer. Marika disse:
— Em baixo é o domínio do mestre Zahur. Ele cuida das raízes da torre, onde tem pequenas criaturas da selva dentro de jaulas e cestos para fazer os seus estudos sobre a alquimia da vida.
Jake lembrou-se do egípcio tatuado. Também reparou que Marika contraíra os lábios, expressando desagrado, claramente descontente com a linha de estudo do homem.
Marika fez sinal a Jake para subir as escadas.
— Estes primeiros andares pertencem ao mestre Oswin. — Marika baixou o tom de voz enquanto atravessavam os andares do seu território e disfarçou um ligeiro sorriso. — Ele não gosta de subir mais escadas do que as estritamente necessárias... a não ser que no final tenha uma boa refeição à espera.
Subindo vários andares mais, chegaram a um patamar, e Marika percorreu um pequeno corredor que terminava numa porta de madeira. Tirou do bolso uma chave de latão comprida e meteu-a na fechadura. Com uma volta, puxou a maçaneta e abriu a porta.
— A nossa casa — disse ela, e fez sinal a Jake para entrar à sua frente.
Ele entrou para uma sala comum, ampla e circular. Outras portas davam para quartos vizinhos e uma escadaria estreita levava ao andar de cima. Embora não tivesse janelas, a sala era iluminada por pedaços irregulares de cristais de âmbar luminosos, pendurados em correntes de ferro presas às vigas.
Uma mesa redonda no centro já se encontrava posta, com tigelas de barro brancas que fumegavam sob as suas tampas e cheiravam a especiarias e estufado. Num dos lados havia pão ázimo. Do outro, uma pilha de fruta descascada do tamanho de meloas enchia uma taça grande.
Quando Jake se aproximou da mesa, um movimento à esquerda captou-lhe a atenção. Virou-se a tempo de ver uma porta estreita, pouco mais larga que uma tábua de engomar, fechar-se sem fazer qualquer ruído.
— Quem...? — perguntou Jake quando Marika e o seu pai surgiram atrás dele. Ele olhou fixamente para a porta. — Vive mais alguém aqui convosco?
— Só nós os dois... agora — disse o mestre Balam com uma certa tristeza. — Anda. Vamos comer enquanto está quente.
Jake esticou o pescoço para estudar a porta estreita enquanto o apressavam para se sentar à mesa. Talvez tivesse imaginado o movimento. Virando-se para a mesa, Jake atacou a refeição, seguindo o exemplo de Marika, que usava o pão ázimo como uma tortilha para tirar a carne estufada de dentro das tigelas de barro.
O pão era estaladiço e quente, e a carne desfazia-se na língua. Comeu depressa, sem se aperceber da fome que tinha. Depois de algumas dentadas, o seu rosto ficou quente e Jake começou a agitar uma mão à frente da boca. O ardor ficou ainda pior.
Marika sorriu com a aflição de Jake.
— Pimentas-de-fogo.
O ardor acalmou o suficiente para Jake conseguir falar.
— É... é bom.
O pai de Marika deu-lhe uma pancadinha nas costas, enquanto mastigava uma série delas. Os olhos do velhote lacrimejavam.
— Podia estar mais picante — exclamou ele.
O sorriso de Marika tornou-se maior, o que encorajou Jake a experimentar tudo o que estava em cima da mesa. Ela serviu uma mistura semilíquida escura de um pequeno bule de cerâmica para uma caneca. Jake fez uma careta ao ver o líquido lamacento e quente, mas pegou na caneca e cheirou. Os seus olhos arregalaram-se, surpreendido com o cheiro distinto e familiar, como um pedaço de casa.
— Chocolate!
No entanto, Jake não devia ter ficado surpreendido. Os maias tinham inventado as bebidas de chocolate. Deu um gole na sua. Era mais amargo e espesso que o chocolate quente a que estava habituado. Talvez juntando uns quantos marshmallows para o adoçar um pouco...
— Chamamos-lhe cacau — disse Marika.
Jake anuiu e continuou a beber, mas sentiu que o pai de Marika o estudava. Jake esforçou-se ao máximo por parecer descontraído. Não queria que alguém desconfiasse de que ele conhecia os costumes do povo maia. Eles já desconfiavam dele o suficiente.
Quando terminaram a refeição, Jake estava de tal maneira cheio que teve de se recostar na cadeira. À sua direita, o pai de Marika fez o mesmo, soltando um arroto que fez estremecer os pratos.
Marika pareceu horrorizada com o comportamento do pai.
Aparentemente indiferente à sua própria falta de educação, o pai de Marika piscou o olho a Jake e levantou-se.
— Tenho algumas leituras a fazer antes de me ir deitar. Mari, podes mostrar ao jovem Jacob o quarto onde vai ficar?
— Papá, antes disso, posso mostrar-lhe o Astromicon? Ele é capaz de apreciar a vista de lá.
Quando o pai concordou, Marika levantou-se de um pulo e praticamente arrastou Jake da sua cadeira.
— Mas, não toquem em nada, Mari.
— Não, papá.
— E não fiquem lá muito tempo! — gritou-lhe o pai, ao mesmo tempo que se dirigia a uma das portas e a abria.
Por cima do ombro de Balam, Jake viu de relance uma secretária com pilhas de manuscritos e pergaminhos, e estantes repletas de livros e papéis.
Jake olhou com ansiedade na direção do escritório. Talvez algures no meio daquelas pilhas de livros estivessem as respostas a várias perguntas... Onde estava? Como chegara ali? E como poderia regressar a casa?
Marika arrastou-o para a porta que levava às escadas de caracol. Sem que desse por isso, encontrou-se a subir os degraus atrás dela.
— Onde vamos? — perguntou ele, contendo um enorme bocejo. Com a barriga cheia, o seu corpo parecia pesar o dobro.
— Já vais ver.
Enquanto subiam, uma pergunta incomodava Jake. Ainda a sentir o sabor do chocolate nos lábios, Jake perguntou:
— Mari, como é que vocês fazem o cacau aqui, em Calypsos? Não precisam das vossas árvores de cacau?
Marika anuiu com a cabeça.
— Embora tenhamos aprendido a cultivar o que cresce neste mundo, não abandonámos totalmente os nossos costumes. Algumas pessoas do meu povo trouxeram sementes que nós plantámos. É um costume antigo, desde a fundação de Calypsos. Apesar de trabalharmos todos juntos, em harmonia, cada tribo honra o lugar de onde veio. Na esperança de que um dia possamos regressar a casa.
Jake lembrou-se da cidade, começando a compreender um pouco melhor aquele lugar. A cidade não era tanto um caldeirão de raças e culturas, era mais um estufado feito com pedaços de culturas diferentes, cada uma preservando a sua identidade e costumes.
Até lhes ser permitido regressar a casa.
Jake compreendia esse desejo demasiado bem.
— Cá estamos nós — disse Marika, e subiu a correr os últimos degraus.
Tinham chegado ao fim das escadas de caracol. Quando Marika empurrou a porta no cimo da torre, uma brisa fresca envolveu-os. O calor abrasador do dia dera lugar a uma noite amena. O vento ajudara a limpar as teias de aranha da cabeça de Jake depois daquela refeição farta.
Jake saiu das escadas para o cimo da torre e os seus olhos arregalaram-se. O céu sobre as suas cabeças era uma explosão de estrelas... mais estrelas do que Jake alguma vez vira. Tentou avistar alguma constelação que conhecesse, mas nada parecia bater certo. Mas também os seus conhecimentos de astronomia eram bastante limitados. Em casa, Jake passava a maior parte do tempo a olhar para baixo à procura de fósseis, a estudar livros, sempre à procura de pistas no meio do pó e da terra.
Contudo, um dos pontos no céu noturno era inconfundível. Uma faixa de estrelas com uma luz cintilante percorria o céu, formando um arco brilhante.
— A Via Láctea — sussurrou para si mesmo. Sentiu uma onda de calor percorrer-lhe o corpo, uma sensação maravilhosa de familiaridade, de casa.
Marika encontrava-se de pé ao seu lado e olhou para o céu também. Ergueu um braço e traçou a faixa cintilante.
— Sak be — disse ela na língua maia.
O coração de Jake bateu acelerado quando começou a perceber o que se passava. As mesmas palavras estavam escritas em símbolos nas duas metades da sua moeda de ouro: sak be, que significava «estrada branca».
Jake olhou fixamente para o céu.
A Via Látea... era essa a Estrada Branca dos maias.
Marika continuou:
— Existe uma crença entre o meu povo de que a Estrada Branca é o caminho para este mundo. Foi por ele que viemos para aqui.
Jake estudou o borrifo cintilante no céu. O que lhe parecera reconfortante e familiar há um momento, assumia agora uma faceta fria e misteriosa. Os seus dedos ainda apertavam o cordão que tinha à volta do pescoço. Pelo menos, no que dizia respeito a Jake e Kady, a Estrada Branca conduzira-os ali.
No entanto, será que os conduziria de volta a casa?
— Todas as noites, o papá observa os céus à procura de respostas sobre o mundo e sobre a passagem do tempo.
— E também procura um caminho para casa?
Marika acenou com a cabeça. A sua voz foi ficando cada vez mais baixa.
— Ele passa muito tempo aqui. Sobretudo, nos últimos anos.
Marika desviou a sua atenção das estrelas para o cimo da torre. Este era delimitado por um muro de pedra à altura dos seus ombros, mas no centro aberto encontrava-se uma cúpula de bronze gigantesca. Jake avistara-a do chão. Era do tamanho de uma garagem para dois carros.
O bronze fora martelado até ficar um espelho polido. A luz das estrelas refletia-se na sua superfície, interrompida apenas por pequenas fissuras no seu topo, como as marcas das horas num relógio.
— O Astromicon — disse Marika. — É aqui que o meu pai trabalha, mapeando o movimento do Sol, da Lua e das estrelas. Ele previu o grande eclipse que ocorreu ontem.
A curiosidade e o desejo atraíram o olhar de Jake para uma escotilha na cúpula. Ele tinha de ver aquilo lá dentro.
Quando se aproximou, algo escuro passou sobre o reflexo das estrelas. Marika também viu e arquejou de medo.
A mente de Jake vagueou para o monstruoso grakyl alado. Será que o tinha encontrado?
Jake puxou Marika para a porta das escadas. Ambos olharam fixamente para cima, enquanto a enorme figura sobrevoava em círculo o cimo da torre e se inclinava sobre uma asa. Iluminado pela luz das estrelas, tornou-se evidente que não era um grakyl. Era demasiado grande e tinha penas negras. As suas asas recolheram e a criatura mergulhou em voo picado, aterrando pesadamente com o ruído áspero das asas a fazerem resistência contra o vento a fim de parar. Pousou sobre o parapeito elevado do muro que delimitava a torre.
Marika parou de recuar e exclamou:
— É um dos batedores de Calypsos.
A criatura baixou a cabeça e revelou um homem sentado nas suas costas, preso a uma sela. Com uma aptidão nascida de muitos anos de experiência, o batedor desprendeu-se e içou um passageiro da parte de trás. Em seguida, deslizou da sela e aterrou no cimo da torre.
O batedor deu dois passos cambaleantes na direção deles, mas a exaustão fez com que caísse de joelhos, deixando cair o seu passageiro no chão de pedra.
— Vão buscar ajuda... — gemeu o batedor com a voz rouca.
Marika virou-se para a porta das escadas. Gritos ecoaram na sua direção. Alguém avistara a chegada da criatura e a ajuda já vinha a caminho. Marika virou-se para Jake e disse:
— Fica aqui.
Desapareceu pelas escadas abaixo, como um coelho assustado.
Jake ficou, caso pudesse ajudar de alguma maneira.
A criatura alada continuava empoleirada no muro, o seu bico entreaberto e a arfar, visivelmente tão exausta como o seu cavaleiro. O enorme pássaro parecia suficientemente poderoso para arrebatar uma vaca de um pasto.
O batedor aproximou-se do vulto caído nas pedras. Jake fez o mesmo e viu que o passageiro era uma mulher. Estava vestida como a anciã viquingue que levara Kady, com calças e uma túnica verde, e botas até ao joelho. A julgar pelo cabelo louro, devia pertencer ao povo de Astrid Ulfsdottir. Jake lembrou-se da conversa sobre as caçadoras desaparecidas. Parecia que uma tinha sido encontrada.
— Vem cá, rapaz — ordenou o batedor com uma voz firme e perentória. — Fica com ela.
Jake correu para a mulher e ajoelhou-se junto dela. O batedor levantou-se e dirigiu-se para a sua montada. Estendeu a mão para acalmar a criatura e foi buscar um balde que se encontrava por baixo de uma bomba de água. A sua cabeça tinha uma coroa de penas da mesma cor da sua montada. Pelas linhas duras do seu rosto moreno, parecia ser nativo americano.
O homem ofereceu o balde cheio de água ao enorme pássaro, depois estendeu o braço para o acalmar.
Jake voltou a sua atenção para a mulher. Os seus olhos estavam abertos, mas Jake desconfiava que ela não estivesse a ver nada. O seu peito subia e descia, mas nada mais se movia no seu corpo. Não pestanejava, nenhum músculo estremecia. Nem mesmo quando Jake estendeu a mão para tocar na dela, com a intenção de lhe transmitir que alguém estava ao seu lado, ela se mexeu.
Uma haste com penas saía do ombro dela. A túnica à sua volta escurecera com o sangue. Jake estendeu a mão na direção da haste e...
— NÃO TOQUES NISSO! — gritou alguém, o que fez com que Jake se imobilizasse.
O grito viera das escadas. Jake virou-se no momento em que o mestre Zahur deslizou na sua direção como um corvo negro, com a sua capa a esvoaçar atrás dele. À luz das estrelas, as suas tatuagens vermelhas na testa pareciam estar em chamas.
Zahur ajoelhou-se no chão de pedra e enxotou Jake com a mão, como se ele fosse um mosquito irritante. Nessa altura, Marika regressou com o pai. O mestre Balam juntou-se ao seu par, ajoelhando-se do outro lado da mulher. Zahur já começara a examiná-la. Tocou na garganta e nos lábios da mulher, depois inclinou-se sobre ela e olhou-a atentamente nos olhos.
O batedor juntou-se a eles e disse:
— Encontrei-a e a duas das suas irmãs um pouco para lá de Pináculo dos Ossos. Estavam a transportá-la numa maca. As outras duas mal se aguentavam em pé. O meu chefe levou as duas para Bornholm, mas ordenou-me que trouxesse a caçadora para aqui. Para ver se ainda havia alguma esperança.
— É a caçadora Livia — disse o mestre Balam num tom solene.
Marika foi para junto de Jake. A preocupação estava gravada no seu rosto.
— É a irmã de sangue da anciã Ulfsdottir. Em tempos, ela e a minha mãe foram muito próximas. Ela costumava ler-me histórias.
— Temos de a levar para os meus aposentos lá em baixo — disse Zahur, as suas palavras erguendo-se como vapor, vindas de uma fúria profunda. — Todos os meus unguentos curativos estão lá em baixo. Mas a ponta da flecha continua enterrada na sua carne. Temos de a tirar. Agora.
Balam virou-se para Jake e Marika e disse:
— Ajudem-nos.
Os mestres viraram a mulher de lado. Jake segurou-lhe a cabeça, enquanto Marika lhe prendia as ancas para a manter imóvel.
Zahur pegou na flecha com penas e disse:
— Tenho de empurrar a seta até sair do outro lado do ombro dela, depois posso partir a ponta. — Zahur olhou para Jake e voltou a avisar: — Ninguém toque nela!
Balam segurou a mulher do outro lado, enquanto Zahur segurava a flecha com força.
— Agora! — gritou ele, e empurrou a seta.
A ponta da flecha saiu do outro lado, nas costas da mulher. Por um momento, Jake pensou que parecia a cabeça de uma serpente com as presas de fora, pronta para atacar, mas pestanejou e viu que era apenas a ponta da seta, um pedaço afiado de obsidiana, tão negro como a sombra mais escura.
— Despachem-se! — avisou Zahur.
Balam tirou do bolso uma vara curta. Parecia que a ponta estava incandescente, mas Jake reparou que esta era, na verdade, um fragmento afiado de cristal.
Estendendo a mão, Balam tocou com o cristal na ponta da flecha. Um grito rasgou a noite e percorreu o céu. O corpo da mulher contorceu-se nas suas mãos, mas o grito não viera da sua garganta. Jake tinha a certeza, porque ainda se encontrava a segurar na cabeça da mulher. O grito viera da ponta da flecha.
Quando Balam se afastou, Jake viu que a ponta já não estava negra, era agora um cristal puro e translúcido. Balam avançou rapidamente com um pedaço de couro e partiu com ele a ponta da flecha.
Zahur fez-lhes sinal para deitarem a mulher de costas. A caçadora voltara a ficar inerte. Tinha agora os olhos fechados, mas a sua respiração tornara-se mais regular.
— Ela vai sobreviver? — indagou o batedor.
— É muito cedo para dizer — respondeu Balam. — A pedra-de-sangue envenenou-a. E há a possibilidade de ainda existirem pequenos estilhaços dentro da carne, lascas que se separaram da ponta da flecha.
Foram interrompidos pela chegada ruidosa do mestre inglês, que arrastou todo o seu peso pelas portas.
— Eu ouvi... o que posso fazer?
— Acalma-te, Oswin — disse Balam, mostrando ao mestre gordo a ponta da flecha embrulhada em couro. — Já a tirámos.
O rosto de Oswin empalideceu, mas ainda assim estendeu a mão para a ponta da flecha e comentou:
— Temos de a examinar antes que a sua alquimia desapareça por completo.
Zahur acercou-se deles como uma tempestade e ribombou:
— Estás louco? Tem de ser destruída.
— Mas pode conter respostas sobre o que a pedra-de-sangue...
As restantes palavras tornaram-se um sussurro entre os mestres. Jake não conseguia perceber o que eles estavam a dizer. Todavia, enquanto segurava a cabeça da mulher, reparou que os seus lábios se moviam. Muito levemente. Inclinou-se sobre ela, aproximando o ouvido dos seus lábios. Com cada respiração sussurrante, Jake ouviu duas palavras serem repetidas vezes sem conta.
— Ele vem aí... ele vem aí... ele vem aí...
De repente, os olhos dela abriram-se. O seu olhar cruzou-se com o de Jake. Uma mão agarrou-lhe com força no pulso.
— Ajuda-me...
Antes que Jake conseguisse responder, a caçadora voltou a desmaiar, os seus olhos fecharam-se e os seus lábios caíram no silêncio, perdida novamente para o mundo.
Sem reparar no que acontecera, Zahur afastou-se dos outros mestres e voltou para junto da mulher.
— Basta! — gritou, e apontou para o batedor. — Ajuda-me a levá-la para baixo! Tenho de fazer o meu melhor com os meus unguentos para lhe salvar a vida!
Jake levantou-se e balbuciou:
— Mas ela...
Zahur afastou-o para o lado com uma cotovelada. O batedor e os três mestres usaram o manto da mulher como uma maca improvisada para a transportar.
O pai de Marika gritou:
— Mari, leva o Jacob e mostra-lhe onde fica a sua cama. Penso que já tivemos todos excitação suficiente para uma noite.
Marika anuiu. Afastando-se para o lado, Jake esperou que o grupo começasse a descer. Atravessou a torre até ao parapeito e olhou para Calypsos. Conseguia identificar a espiral da estrada principal, que se afastava do castelo em direção ao portão principal. Tudo tão pacífico e sossegado.
Contudo, Jake só precisava de se virar e ver o sangue fresco espalhado sobre as pedras para perceber que aquela tranquilidade não passava de uma ilusão.
Ele vem aí... ele vem aí... ele vem aí...
Jake lembrou-se também do azul profundo dos olhos da caçadora. Naquele breve momento, os olhos dela lembraram-lhe os olhos da sua mãe... sempre sorridentes e repletos de vida e amor. Olhos que nunca mais veria.
Ajuda-me...
Jake estremeceu. Ele não conseguira salvar a sua mãe, mas naquele momento fez um voto silencioso de fazer o que fosse possível por aquela mulher. Mas como? Não sabia nada sobre este mundo. Enquanto desesperava, o seu olhar prendeu-se numa última visão, uma derradeira esperança.
Iluminado pela luz prateada do luar, um dragão de pedra pairava sobre o bosque sombrio. Fitava as cristas do vale, como um cão de guarda vigilante à procura de intrusos.
Jake sentia que as respostas se escondiam ali.
Mas será que as conseguiria desvendar a tempo?
11
O APRENDIZ DE ALQUIMIA
Jake acordou com os cobertores enrolados à volta do corpo. Demorou algum tempo até se lembrar de onde estava. Tinha sonhado com os pais. Sentou-se na cama e esfregou os olhos. O seu coração ainda batia acelerado como um cavalo de corrida após um sprint pela pista. O sonho continuava vívido... e ainda o aterrorizava.
Encontrava-se na pedreira ao pé de casa, à procura de fósseis, quando a mãe e o pai começaram a chamar por ele. O pânico nas suas vozes fizera com que tentasse desesperadamente trepar para fora do fosso de pedra, mas as suas paredes tinham duplicado de altura e não havia qualquer saída. Durante todo o tempo, os seus pais gritavam para se despachar, mas ele não os conseguia ver. Enquanto procurava uma saída da pedreira, uma mancha pequena no céu chamou-lhe a atenção. Jake sabia que era essa a causa do medo dos seus pais. Ao olhar para cima, a mancha tornou-se cada vez maior, revelando uma criatura alada tão negra como o buraco mais fundo, com um pescoço de serpente e uma cabeça em forma de lança. Mergulhou em voo picado sobre ele, a envergadura das suas asas encobrindo por completo o sol. A sua sombra pairou sobre Jake e engoliu a pedreira. A temperatura desceu de imediato, ficando um frio gelado.
Em seguida, uma voz gritou-lhe, como se a criatura alada tivesse um cavaleiro às costas, fora do seu campo de visão.
— Vem a mim...
As palavras, as mesmas que ouvira quando caíra pela escuridão e aterrara naquela terra estranha, acordaram-no do pesadelo.
Jake permaneceu sentado mais algum tempo, à espera de que o seu coração acalmasse. Tinha o corpo húmido de suor, como se tivesse tido febre alta. Ainda conseguia ouvir aquela voz a arranhar, como algo que tentava escapar de uma sepultura escavando com as garras. Por fim, destapou-se e dirigiu-se para a janela apenas de boxers.
Abriu as persianas e a luz da manhã iluminou o quarto. Um dos pequenos pássaros sáurios, o que as pessoas aqui chamavam dardos-alados, passou pela sua janela. Grasnou num tom agudo e desapareceu.
Jake respirou fundo várias vezes, tentando acalmar-se.
Ao longe, a cidade de Calypsos já estava em movimento. As carroças passavam, as pessoas enchiam as ruas e criaturas colossais percorriam as avenidas maiores. Jake sentiu uma vontade incontrolável de ir lá para fora e explorar este novo mundo.
Virou-se de costas para a janela e atravessou o quarto até onde deixara cair a roupa no chão na noite passada. Depois do longo dia, da estranha apresentação a Calypsos e da excitação no cimo da torre, Jake quase não conseguira chegar à cama.
O seu quarto era pouco maior que um closet, mas era acolhedor. Tinha uma cama e uma mesinha de cabeceira com um candeeiro, uma cadeira e um guarda-fatos de madeira com glifos maias talhados.
Ao atravessar o quarto, Jake reparou de imediato em duas coisas. A sua roupa, que deixara no chão, estava agora dobrada em cima da cadeira. Parecia acabada de lavar. Pegou no seu colete de safári. Ainda estava quente, como se tivesse acabado de sair de uma máquina de secar roupa.
Mas isso era uma loucura, certo?
Em segundo lugar, reparou que a porta do guarda-fatos estava entreaberta. Abriu-a um pouco mais e viu que lhe tinham devolvido a mochila. Correu o fecho e espreitou para o seu interior. Pareciam estar lá todos os seus pertences, mas revistou a mochila para ter a certeza. No fundo, o seu dedo tocou em algo estranho.
O que é isto?
O seu dedo tocara num bolso interior. Na agitação do dia anterior, devia tê-lo rasgado. No interior do bolso, descobriu um botão de metal prateado, do tamanho de uma moeda de um cêntimo. Jake virou-o. Com a unha, conseguiu puxar uma antena minúscula.
— Uma espécie de escuta... — disse ele em voz alta, chocado.
Jake franziu o sobrolho. A Bledsworth oferecera-lhe a mochila, juntamente com a roupa. Aparentemente, também lhe tinham oferecido algo extra.
A raiva ferveu dentro dele perante a violação da sua privacidade. Atravessou o quarto e atirou o aparelho pela janela fora. Ao vê-lo brilhar no céu, um dardo-alado mergulhou em voo picado, apanhou-o no ar, como se de um inseto se tratasse, e desapareceu.
Jake abanou a cabeça.
Porque haveria a empresa, a mesma que financiara a escavação dos seus pais, de o espiar com uma escuta?
Jake franziu o sobrolho enquanto se vestia rapidamente. Não tinha resposta e qualquer investigação sobre o assunto teria de esperar. Neste momento, tinha uma preocupação mais urgente.
Jake revistou o quarto. A porta do quarto estava fechada, mas era evidente que alguém lá estivera enquanto dormia.
De repente, cerrou os punhos, preocupado. Na noite anterior, tomara uma precaução extra. Jake atravessou o quarto e pôs-se rapidamente de joelhos na ponta da cama. Colocou a mão na estrutura da cama e encontrou os diários dos pais. Escondera-os ali por precaução.
Juntou os cadernos, sentindo de repente que alguém o observava, que alguém o ouvia. Voltou a colocar os diários nos bolsos do colete, sentindo-se novamente mais seguro. Colocou a mochila ao ombro.
Quando estava pronto para sair, atravessou o quarto e abriu a porta. O seu quarto ficava no segundo andar da casa de Balam. As escadas para a sala comum ficavam ao fundo de um pequeno corredor. Ouviu vozes a murmurar, demasiado baixo para perceber o que diziam. Dirigia-se ao topo das escadas quando ouviu uma voz dizer um pouco mais alto:
— Vai acordá-lo, Mari.
— Não, o pai disse para o deixar dormir.
Jake espreitou para baixo e viu Marika sentada à mesa com um livro aberto à sua frente. Um dedo encontrava-se pousado sobre uma página. Um rapaz vestido com uma toga romana e de sandálias andava à volta da mesa. Era Pindor. Jake lembrou-se de que o rapaz fora designado pelo ancião Tiberius como seu guarda pessoal. Ao que parecia, Pindor já se apresentara ao serviço.
Marika pressentiu a presença de Jake. Olhou para cima, para ele. Jake endireitou-se, corando um pouco, envergonhado por ter sido apanhado a ouvir a conversa. Levantou a mão, cumprimentando-a, e desceu as escadas.
Marika levantou-se e anunciou:
— Há papas de aveia — disse ela, apontando para uma tigela tapada. — Ainda está quente.
Pindor revirou os olhos, acrescentando:
— Não temos tempo para...
Marika silenciou-o com um olhar furioso.
— Só porque tu já comeste três tigelas seguidas...
— Eu tinha fome! — Pindor esfregou a barriga e acrescentou: — Fui mandado para a cama sem jantar ontem.
Este último comentário foi acompanhado de mais um olhar zangado para Jake, como se ele tivesse sido o culpado.
Marika suspirou e virou-se para Jake. Tinha o olhar cansado. Parecia que tinha dormido pouco.
— O papá pediu para falarmos com ele antes de sairmos — informou ela.
Jake olhou de relance para a porta fechada do escritório.
— Não — disse Marika. — Ele está no Astromicon com o mestre Oswin. Estiveram lá os dois a noite toda.
— A estudar a ponta daquela flecha? — perguntou Jake.
— Acho que sim.
Pindor aproximou-se e indagou:
— Chegaste mesmo a ver a pedra-de-sangue?
Jake franziu o sobrolho.
— A quê?
— A ponta da flecha que atingiu a caçadora Livia e a envenenou.
Jake lembrou-se do pedaço afiado e letal de cristal, de como a sua escuridão parecia uma lasca sólida de sombra. Um arrepio de frio percorreu-o de cima a baixo ao lembrar-se.
— Ambos vimos a ponta da flecha — disse Marika. O seu olhar cruzou-se com o de Jake. — O pai tratou logo disso e retirou-lhe o poder.
— Quem me dera tê-la visto — suspirou Pindor.
— Não — disseram Marika e Jake ao mesmo tempo, fazendo Pindor recuar.
— Nunca desejes isso — concluiu Marika. Acenou novamente para a mesa, mudando de assunto. — Jacob, queres comer alguma coisa? As papas de aveia têm bagas hoje. É muito bom.
Jake abanou a cabeça. Lembrar-se do banho de sangue da noite anterior tirara-lhe o apetite.
— Não, obrigado... e podes chamar-me só Jake — acrescentou.
Esta concessão provocou um ligeiro sorriso em Marika, antes de se virar e de se dirigir para as escadas.
— Então, vamos despedir-nos do meu pai e pôr-nos a caminho.
— Para onde? — indagou Jake.
— O papá achou que ias gostar de visitar a tua irmã, para veres que está segura e bem instalada. Como tu.
Jake acenou lentamente com a cabeça. Apesar de estar longe de se sentir instalado, Jake não disse nada. Também sentia alguma culpa. Mal pensara em como Kady se estaria a aguentar. Provavelmente estaria escondida debaixo da cama.
De volta ao cimo da torre, a luz do Sol resplandecia na cúpula de bronze do Astromicon. Jake semicerrou os olhos face ao brilho intenso e acelerou o passo atrás de Marika, em direção à escotilha.
Marika bateu e, passado um momento, a portinhola abriu-se com o ranger ruidoso das suas dobradiças. O mestre Balam pôs a cabeça de fora. O seu cabelo grisalho encontrava-se ainda mais desgrenhado do que na noite anterior e os seus olhos pareciam preocupados. No entanto, conseguiu esboçar um sorriso quando viu quem estava à porta.
— Ah, bom! Queria dar uma palavrinha ao jovem Jacob antes de saírem. — Afastou-se para o lado e fez sinal a Jake para que entrasse. — Entrem. O mestre Oswin saiu agora mesmo para ir para a cama... e para comer papas de aveia, desconfio. E até foi em boa hora, senão não havia espaço para todos aqui.
Jake entrou pela escotilha. Marika e Pindor tencionavam segui-lo, mas Jake imobilizara-se a meio, a olhar para cima, para a cúpula de bronze.
Todo o espaço por cima das suas cabeças estava repleto de um labirinto de tubos de cobre e espirais de vidro da cor do âmbar. Fluidos fervilhavam dentro de tubos e, de vez em quando, nuvens de vapor assobiavam das válvulas de cobre. Ainda mais desconcertante que isso, tudo girava em volta de um eixo central. Era como se estivesse a olhar para o coração aberto de um relógio gigantesco. Só que este mecanismo continuava a assobiar, a borbulhar e a ranger, como se de algo vivo se tratasse.
Para juntar a esta maravilha, toda a maquineta estava decorada com pedaços de cristal de todas as cores do arco-íris. Encontravam-se suspensos como ornamentos de Natal numa árvore de metal. Será que os cristais proporcionavam uma espécie de equilíbrio ao aparelho ou estariam mesmo a fornecer-lhe energia para funcionar?
Provavelmente ambos, decidiu Jake.
Qualquer que fosse o seu propósito, isto era bem mais do que um mero observatório.
O pai de Marika insistiu para que Jake entrasse. O olhar de Jake desceu para uma parte mais baixa da cúpula. Estava vazia, à exceção de uma bancada de trabalho em bronze que percorria toda a parede. A mesa curva estava atulhada de todo o tipo de ferramentas e aparelhos bizarros: emaranhados de tubagens, montes de restos de metal, prateleiras de madeira com fragmentos afiados de cristal. Espalhados por todo o lado, livros encadernados a couro, documentos com um aspeto frágil e folhas soltas de pergaminho. Numa parte da bancada de trabalho, encontrava-se uma laje de pedra da altura de Jake. Cada centímetro da sua superfície continha algo escrito. Parecia a mesma escrita estranha que vira no Portão Quebrado.
O mestre Balam conduziu Jake para algo que ele reconheceu. O iPod de Kady fora meticulosamente desmontado. Kady ficaria doida se visse isso.
— Nós, os mestres, falámos ontem — começou Balam, e acenou com o braço na direção do aparelho eletrónico desmontado. — Achamos esta ci-enzia vossa muito intrigante. Não conseguimos encontrar nenhum cristal no interior da vossa caixa, nenhuma explicação para esta alquimia de falar ao longe. Parece que vocês têm muito para nos ensinar, para partilhar... da mesma forma que nós faremos o mesmo convosco.
Balam virou-se com os braços cruzados e continuou:
— Assim, foi decidido que ficarás à minha tutela, como meu aprendiz. Juntamente com a minha filha.
Marika deu um gritinho atrás de Jake, parecendo entusiasmada e feliz.
— Aprendiz? — indagou Jake.
— Para começares o teu treino em alquimia.
Jake não sabia o que dizer, mas lembrou-se do aviso de Marika relativamente à pirâmide do dragão, de como era proibido lá entrar a não ser que se fosse um mestre, um verdadeiro mestre de alquimia. Talvez esta fosse a forma de alcançar isso mesmo! A sua esperança foi rapidamente esmagada.
— Se começarmos agora contigo, quem sabe? — continuou Balam. — Talvez sejas um mestre quando chegares aos trinta anos.
Trinta anos?
— Não seria maravilhoso? Serias o mestre mais novo da história de Calypsos — argumentou Balam, com um enorme sorriso.
Jake engoliu em seco. Mas não podia recusar.
— Como... por onde começamos?
Balam endireitou-se e respondeu:
— Amanhã será o dia. Sei que queres ver como tem passado a tua irmã. Mas queria dar-te isto antes. Um símbolo da tua aprendizagem.
Balam enfiou a mão no bolso e retirou um quadrado prateado liso, do tamanho do polegar de Jake. O ancião aproximou-se e prendeu-o no casaco de Jake como um emblema. Jake olhou para baixo. Quatro pequenos pedaços de cristal estavam cravados na prata. No centro, encontrava-se um cristal branco, tão brilhante como um diamante. Só que este diamante cintilava com luz própria. Jake reconheceu a pedra, era a mesma que brilhava nas lâmpadas e tochas de Kalakryss. À volta do diamante, três outras pedras formavam um triângulo: um rubi, uma esmeralda e uma safira azul-gelo.
— Os quatro cristais principais da alquimia — explicou Balam, reparando na atenção de Jake. — As quatro pedras fundamentais que suportam o nosso mundo.
O pai de Marika virou-se para a bancada e ergueu um pedaço de cristal cor de rubi do tamanho de um ovo. Esfregou-o entre as mãos e este começou a brilhar com um fogo interior. Segurou-o na direção de Jake.
Curioso, Jake pegou nele e começou a passá-lo rapidamente de uma mão para a outra. Estava quente... e cada vez mais.
Balam tirou-o das mãos de Jake com um sorriso. Bateu no cristal com um martelo de prata, semelhante ao que usava pendurado ao pescoço enquanto mestre. O cristal repicou como um sino e o fogo no seu interior extinguiu-se.
— Cristais como este dão-nos calor, ao passo que as pedras azuis...
Balam ergueu outro pedaço de cristal, uma safira pálida. Soprou sobre a superfície da pedra. Surgiu um brilho gelado no interior do coração da pedra.
Jake conseguia adivinhar o seu propósito. Colocou a mão por cima do cristal e disse:
— Está frio.
Balam anuiu e bateu na pedra, colocando-a de lado. A seguir, pegou num cristal verde-esmeralda.
— Usamos estas pedras para falar ao longe. Se partirmos o cristal verde em duas partes, cada metade vibra simultaneamente, ainda que esteja longe da outra. Tal como...
Balam foi interrompido por uma voz desconhecida, que vinha da outra secção da bancada. Parecia pertencer a alguém pequeno.
— Mestre Balam, preciso de falar contigo. É urgente.
— Com licença — desculpou-se Balam, ao mesmo tempo que atravessava a divisão e pegava no que parecia ser uma raquete de pingue-pongue de madeira, mas oca no centro, com um pedaço de cristal verde pendurado no meio por uma pequena rede, como uma aranha numa teia.
Jake viu a teia vibrar levemente quando se ouviu uma voz vinda do centro.
— Mestre Balam...
Balam tocou na pedra com um dedo, silenciando-a, depois falou com os lábios quase a tocar na pedra, como se estivesse a usar um walkie-talkie.
— Estou aqui, Zahur. O que se passa?
Jake notou a tensão na voz de Balam. A calma e a descontração do seu tom tinham sido substituídas por preocupação.
— É a Livia — disse Balam. Em seguida, fez-se um silêncio sepulcral. — Continua a piorar. Os meus unguentos já deviam estar a fazer efeito. Receio que vá precisar da tua ajuda para procurar os estilhaços envenenados que ainda se encontram cravados na pele dela.
Jake imaginou a caçadora. Uma pontada de preocupação perpassou-o. Lembrou-se do voto que fizera na noite passada de a ajudar de todas as maneiras possíveis.
Balam suspirou e fechou os olhos. Havia uma certa desesperança na sua postura, como se o prognóstico fosse mau. Inclinou-se sobre o cristal e disse:
— Vou ter contigo às caves.
Com o toque de um dedo, terminou a conversa e virou-se para Jake e para os outros. Balam esforçou-se por arvorar uma expressão de entusiasmo, mas pareceu demasiado forçado.
— Vamos ter de continuar a nossa conversa mais tarde. Vai ver a tua irmã, Jacob.
O pai de Marika dirigiu-lhes um aceno cansado para saírem. No entanto, Jake não se mexeu. Talvez houvesse algo muito simples que pudesse fazer para ajudar a caçadora.
— Mestre Balam — disse Jake —, ontem à noite, depois de removerem a flecha da caçadora Livia, ouvi-a balbuciar. Não sei se é importante, mas se acabarem por ser as suas últimas palavras...
A voz de Jake ficou-lhe presa na garganta. Engoliu com dificuldade, mas era o mínimo que podia fazer pela mulher: partilhar as suas últimas palavras.
Balam franziu as suas espessas sobrancelhas e perguntou:
— Ouviste-a falar?
— Sim. Mas parecia estar a delirar... sem se aperceber do que se estava a passar...
— O que é que ela disse?
— Ela pediu ajuda, mas também proferiu três palavras. Não parava de as murmurar. Ele vem aí. Depois ficou em silêncio.
— Ele vem aí — repetiu Balam. Os seus olhos cinzentos ficaram turvos de preocupação. — Obrigado, Jacob. Mas não contes isso a mais ninguém. Por agora, vai ver a tua irmã. Falamos mais amanhã.
Foram todos rapidamente conduzidos à porta.
Assim que saíram para a luz do Sol, Marika e Pindor olharam fixamente para Jake. Pindor tinha os olhos arregalados e os de Marika estavam semicerrados de preocupação. Jake não precisava de nenhum cristal mágico para lhes ler o pensamento. Ele sabia o que eles estavam a pensar.
Ele vem aí.
Apenas uma pessoa despertava tanto medo.
O Rei Caveira.
12
A MANSÃO BORNHOLM
— Mas quem diabo é esse Rei Caveira? — perguntou Jake, enquanto atravessava o pátio do castelo.
Há muito que queria fazer essa pergunta, mas foi apenas à luz resplandecente do Sol que se sentiu à vontade para a fazer.
Pindor fez uma careta e mordeu o polegar. Olhou de relance para Marika.
Marika baixou a voz para um sussurro e aproximou-se mais de Jake. Pindor também se chegou para mais perto.
— O seu nome é Kalverum Rex. Ele era um mestre em Calypsos há mais de meio século. O meu pai era um dos seus aprendizes. — Marika apontou para o emblema de prata de Jake. — Naquela altura, Kalverum era o melhor alquimista de Calypsos, ofuscando os outros dois mestres. No entanto, tal como o mestre Zahur, ficou com as caves e proibiu toda a gente de lá entrar. Ele também mantinha lá criaturas da selva.
Marika estremeceu.
Pindor continuou:
— Diz-se que ele cometeu todo o tipo de horrores lá em baixo, que fazia experiências com um novo tipo de cristal, a pedra-de-sangue, um cristal negro capaz de envenenar e corromper a carne.
— E talvez esse mesmo veneno o tenha corrompido também — continuou Marika. — Começou a isolar-se cada vez mais, às vezes não via a luz do Sol durante meses a fio. Depois começaram a desaparecer crianças...
Jake sentiu o estômago às voltas.
— O meu pai nunca disse o que foi encontrado nessas caves. Um mestre foi morto. Um incêndio esteve prestes a consumir toda a torre. No entanto, Kalverum escapou. Fugiu para lá do Portão Quebrado, para as profundezas da selva. Uma mão-cheia de pessoas seguiu-o. Foi um período difícil para o nosso povo. Ficámos só com um mestre, e até ele era velho e frágil... e com os três aprendizes da altura.
— O teu pai — disse Jake — juntamente com Zahur e Oswin?
Marika anuiu e continuou:
— Perdemos muito conhecimento, mas pelo menos livrámo-nos do monstro.
— Ou assim pensávamos — acrescentou Pindor.
Marika continuou:
— Vinte anos mais tarde, começaram a surgir rumores da selva profunda sobre bestas corrompidas, como o grakyl que tu viste. Um deles foi apanhado e trazido para aqui. Os mestres examinaram-no e reconheceram a alquimia do mal do Kalverum Rex. Eles acreditam que o Kalverum construiu uma fortaleza no meio das escarpas da Espinha, as montanhas que ficam para lá do pântano de Erva-de-Fogo. Ao longo dos anos, caçadores e batedores desapareceram, enquanto outros regressaram dos limites do pântano a contar histórias de enormes colunas de fumo fétido que se erguiam das escarpas cobertas de neve da Espinha.
— Então, ele ainda anda por aí — observou Jake.
— E cada vez mais forte — concluiu Marika. — Nos últimos anos, as suas criaturas hediondas têm vindo a ganhar terreno. Já chegaram às nossas fronteiras.
Jake lembrou-se do grakyl preso no portão, impedido de avançar pela força misteriosa que protegia o vale.
— E essa pedra-de-sangue? — perguntou ele, pensando na ponta de flecha. — O que é exatamente?
— Ninguém sabe ao certo. Depois do incêndio na torre, foi proibido estudar essa alquimia obscura. É melhor perguntares ao meu pai.
Um grito interrompeu Marika.
— Olha, olha, se não é o irmão mais novo de Heron.
Jake virou-se e avistou um grupo de rapazes mais velhos do outro lado do pátio. Encontravam-se sentados na vedação de um curral. Atrás deles estavam a selar alguns Othnielia.
— Ainda tens medo de lagartos, Pin? — gritou um deles.
Outro inclinou-se sobre o seu companheiro.
— É difícil acreditar que é irmão de Heron. Tem demasiado medo até para colocar uma sandália num estribo.
O rosto de Pindor ficou vermelho. Marika tocou ao de leve no cotovelo do amigo, mas este afastou-se dela. Pindor acelerou o passo em direção aos portões do castelo, deixando Jake e Marika para trás.
— O que foi aquilo? — perguntou Jake, suavemente.
— Pindor queria juntar-se à Guarda Montada que patrulha a cidade, como o irmão e o pai. — Marika abanou a cabeça com tristeza. — Mas, não correu bem. Ele entrou em pânico quando tentou montar. Estava toda a gente lá. Até mesmo o seu pai. Agora vai ter de esperar até ao próximo ano.
— O que aconteceu?
— O Pin... bem, ele fica um pouco nervoso ao pé dos animais maiores. Vês como coxeia da perna esquerda? A antiga montada do pai, uma criatura com um temperamento muito mau, partiu-lhe o osso da canela quando ele tinha apenas cinco anos. Pindor entrou no seu estábulo para lhe dar de comer. Ninguém estava a prestar atenção.
Jake olhou para as costas de Pindor. Ele continuava a caminhar muito direito, mas parecia que queria desatar a correr para fora dos portões do castelo, a fim de sair da linha de visão dos jovens cavaleiros que se encontravam no campo de treino.
— A história da sua humilhação espalhou-se... e foi sendo exagerada à medida que era recontada — continuou Marika. — Se Pindor não fosse filho do ancião Tiberius, talvez a história não tivesse sido tão empolada. As pessoas conseguem ser tão cruéis. Essa foi uma das razões que o levou a atravessar o Portão Quebrado... quando te encontrou a ti e à tua irmã.
— Como assim?
— Se tivéssemos conseguido regressar com um pedaço da casca de um ovo de um lagarto-trovão ou, ainda melhor, com um ovo, a bravura de Pindor ficaria provada e acabaria com todas as histórias de uma vez por todas. Talvez até tivesse outra oportunidade de se tornar membro da Guarda Montada.
Chegaram aos portões e seguiram Pindor para fora do castelo em direção à rua principal. Por fim, Pindor abrandou e Jake e Marika conseguiram alcançá-lo. Ele olhava para os pés enquanto continuava a andar pelas ruas.
Jake caminhou ao lado dele. Não sabia o que dizer, mas não havia qualquer dúvida de que sabia o que Pindor sentia.
O romano fungou e falou num tom baixo:
— Ontem, tu afugentaste aquele lagarto-trovão com aquela flauta que trazias.
— Na verdade, é um apito.
Jake enfiou a mão no bolso e tirou o tubo de aço. Entregou-o a Pindor para ele o examinar. O rapaz pegou no apito com um ar sonhador.
— O apito faz um som que nós não conseguimos ouvir — explicou Jake —, mas alguns animais conseguem. Porque não o guardas durante uns tempos?
Pindor não desviou os olhos do apito.
— A sério?
— Claro.
Jake encolheu os ombros, sabendo que Pindor bem precisava de algo para o animar.
Os dedos de Pindor fecharam-se sobre o presente.
— E isto pode ser usado para controlar as bestas dos campos?
— Isso já não sei, mas de certeza que lhes deve chamar a atenção e, com alguma prática, pode vir a ser uma boa ferramenta de treino.
Pindor anuiu com a cabeça. A dor nos seus olhos suavizara-se e transformara-se em encanto.
— Obrigado — murmurou Pindor, continuando a percorrer a estrada com um passo mais ligeiro.
Marika aproximou-se de Jake e sorriu-lhe.
— O que foi? — perguntou Jake.
Ela virou a cara, depois olhou para ele de relance, pelo canto do olho. Nos seus lábios dançava um sorriso.
— O que foi? — perguntou ele novamente.
— Nada — retorquiu ela. — Nada mesmo.
A mansão viquingue de Bornholm erguia-se à sua frente como um navio de guerra forjado sobre os telhados de Calypsos. A metade de cima do edifício pertencera claramente a um navio antigo. Uma proa de madeira proeminente, esculpida na forma de um monstro marítimo com as presas de fora, projetava-se sobre a rua. Por baixo dela, encontravam-se portas de madeira pesada, talvez até recuperadas do próprio navio.
Pindor agarrou na aldraba de ferro em forma de cabeça de lobo e bateu com força.
Uma minúscula grade abriu-se na porta.
— Quem deseja entrar em Bornholm?
— Eu... — Pindor aclarou a garganta, pois a sua voz soara como um guincho assustado. Tentou novamente, fazendo a voz mais grave: — Venho a mando do mestre Balam. Com o recém-chegado Jacob Ransom. Para visitar a sua irmã.
Passado um momento, uma metade das portas duplas abriu-se. Uma mulher alta e loura surgiu à sua frente e estudou os novos convidados de Bornholm. A avaliar pela ruga acentuada entre as sobrancelhas, a mulher não parecia ter gostado do que tinha à frente.
— Entrem! — disse ela com brusquidão.
Para lá das portas, estendia-se um corredor com traves de madeira até ao fundo do edifício, onde outro conjunto de portas duplas conduzia a um pátio soalheiro. Quando Jake entrou, ficou surpreendido com o espaço cavernoso. Candelabros de ferro em forma de hastes de veado brilhavam com pedaços de cristal branco. Estes iluminavam o mural pintado na parede, do lado oposto à lareira. Um navio sulcava as ondas coroadas de espuma branca de um mar tempestuoso, com as suas velas quadradas içadas e remos a sair de ambos os lados.
A sua guia reparou no interesse de Jake.
— O Valkyrie — disse ela, beijando as pontas dos dedos e tocando no navio pintado ao passar.
Ficou claro que era esse o nome do navio. No entanto, Jake também reconhecia o nome da mitologia nórdica.
— As valquírias? Não eram guerreiras? As escudeiras de Odin?
A guia virou-se para Jake, com uma mão na cintura.
— Conheces as nossas histórias.
Jake olhou para cima, para aqueles olhos azul-gelo, e retorquiu:
— Algumas delas.
A guia acenou com a cabeça, satisfeita.
— Eu sou Brunhildr, a anfitriã de Bornholm. Sejam bem-vindos — disse ela, um pouco mais calorosa. — A tua irmã está lá fora. Sigam-me.
No entanto, assim que ela se virou, o som de botas a bater ruidosamente no chão ecoou vindo da escadaria em frente. Surgiram duas raparigas a correr, ambas de cabelo negro e pele escura. Gémeas. Deviam ser da mesma idade que Kady.
Brunhildr parou à frente delas e perguntou:
— Como está a anciã?
Uma das raparigas abanou a cabeça.
— A anciã Ulfsdottir passou toda a noite em Kalakryss, à cabeceira da irmã. Até agora, ignorou a sua própria cama e passou a manhã inteira a rezar a Odin.
— E recusou todas as refeições — acrescentou a outra rapariga. — Mas nós vimos quem estava à porta e viemos saber se há notícias de Livia.
Todos os olhares se voltam para Jake e para os seus companheiros.
— Esta é a Hrist e a sua irmã, Mist — apresentou Brunhildr. — Foram elas que trouxeram a caçadora Livia das margens do pântano de Erva-de-Fogo.
Marika deu um passo em frente e disse suavemente:
— Receio que não tenhamos boas novas. O meu pai e o mestre Zahur continuam a cuidar de Livia, utilizando todo o seu saber, mas receiam que ainda se encontrem lascas de pedra-de-sangue enterradas na sua carne, mantendo-a encurralada entre este mundo e o próximo.
Hrist e Mist trocaram olhares apreensivos. Mist parecia estar prestes a chorar. Hrist disse para a irmã:
— Fizemos tudo o que podíamos. — Virou-se para Jake e para os seus companheiros. — A caçadora Livia atravessou sozinha o pântano numa pequena jangada, deixando-nos na margem, para espiar mais de perto o covil do Rei Caveira. Esteve ausente cinco noites e voltou quase morta, com uma flecha espetada no ombro, caindo por terra assim que pôs os pés na margem. Não disse uma única palavra.
Marika olhou de relance para Jake e abanou a cabeça de forma quase impercetível. O pai de Marika avisara-os para não repetirem o que Jake ouvira no telhado.
Mist esfregou as mãos e balbuciou:
— Ela tem de sobreviver.
— Os mestres estão a fazer os possíveis — prometeu Marika.
Hrist suspirou e disse:
— Iremos relatar isto à anciã Ulfsdottir.
Agarrou no cotovelo da irmã e subiram novamente as escadas a correr.
Brunhildr continuou a percorrer o corredor em direção ao pátio cheio de sol.
— São tempos difíceis — disse ela entredentes. — Lamento que a tua irmã tenha vindo para Bornholm numa altura tão sombria.
Jake sentia-se cada vez mais preocupado. Como estaria a irmã a aguentar-se no meio destas mulheres duras? Quando saiu do corredor para a luz do Sol, viu a irmã no meio do pátio... com um par de espadas nas mãos!
— Não, é assim — disse Kady, falando para um grande grupo de mulheres à sua volta.
Estava vestida com uma túnica verde e tinha calçadas umas botas até ao joelho.
Kady dançava para trás e para a frente no meio das mulheres e brandia as espadas curtas à volta do corpo numa dança letal.
O que estava ela a fazer?
Jake arquejou quando ela atirou uma das espadas ao ar. A espada rodou, refletindo a luz do Sol, brilhando intensamente... depois caiu. Kady apanhou-a ainda no ar pelo cabo e brandiu-a com destreza e graciosidade.
De repente, Jake lembrou-se de que já vira aquela coreografia antes. Fora num ensaio com bastões da claque de Kady. A irmã praticara a coreografia tantas vezes que era provável que já a conseguisse fazer a dormir... e, ao que parecia, com espadas.
Aplausos seguiram-se à sua demonstração.
Uma bancada que se estendia ao longo da parede ao fundo do pátio estava cheia de homens com capacetes e mantos viquingues. Riam e sussurravam uns com os outros. Numa das pontas da bancada, Jake viu um rosto familiar, um rapaz mais velho de túnica. Parecia que Heronidus estava a gostar dos seus deveres enquanto guarda. Encontrava-se sentado, completamente fascinado por Kady, seguindo cada um dos seus movimentos. Não havia dúvida de que a estava a vigiar de perto.
— Kady! — gritou Jake, chamando-lhe a atenção de imediato.
Ela viu-o e esboçou um enorme sorriso.
— Jake, aí estás tu! Disseram-me que vinhas.
Kady entregou as espadas a outra mulher, depois atravessou o pátio para ir ter com ele. Jake também reparou que ela entrançara o cabelo, como era costume entre as caçadoras, mas embelezara a sua um pouco mais.
Kady reparou na sua atenção e passou a mão pelo cabelo.
— Como é que me fica? Não queria fazer aquela coisa tipo rabo de cavalo. É demasiado parecido com a Heidi para meu gosto.
Mas não se ficara por ali. Jake também reparou que duas das mulheres viquingues também tinham feito uma trança igual à de Kady. Semicerrou os olhos para ver melhor. E será que uma delas estava a usar sombra nos olhos?
Oh, meu Deus.
E ele que pensava que ela estaria em posição fetal a chorar desalmadamente.
— Como é que tu... o que é que... — balbuciou Jake.
— Eu estou bem, se é isso que estás a perguntar. Têm cuidado bem de mim. E tu, estás bem?
Jake não sabia por onde começar. A sua noite incluíra dor, um banho de sangue e rumores de um exército abominável a formar-se na selva profunda. E o que é que Kady tinha andado a fazer? A entrançar o cabelo das amigas e a partilhar segredos de cosmética. Será que havia coisas que nunca mudavam mesmo?
Kady riu-se.
— O que foi? Disseste-me para fazer amigos.
Lá isso era verdade.
Kady baixou a voz e disse:
— E tu? Descobriste alguma coisa?
Jake olhou em redor. Estavam todos a olhar para eles. Baixou a voz até não ser mais do que um sussurro:
— Conto-te mais logo. Mas, por agora, ainda estou a tentar arranjar uma maneira de chegar à pirâmide. Tem de haver alguma fonte de energia lá.
Jake tocou no emblema de prata que tinha preso ao colete de safári e disse:
— Tem algo que ver com os cristais.
Kady inclinou-se sobre ele, olhou fixamente para o emblema e comentou:
— É bonito.
As faces de Jake ficaram quentes.
— Não é bonito... é... é importante.
Kady endireitou-se e encolheu os ombros.
— Então, se a pirâmide é assim tão importante, o que é que estás a fazer aqui?
Pelo tom de voz que usou, era óbvio que ela estava mais a perguntar porque é que estás aqui a incomodar-me?
— Queria saber como estavas.
Kady franziu o sobrolho face à sua preocupação, como se estivesse a ler nas entrelinhas.
— Sabes que eu até me consigo safar, Jake.
— Eu não disse o contrário.
Está bem, talvez o tivesse pensado...
Ainda assim, a conversa não estava a correr como Jake esperara. Numa derradeira tentativa, apontou para a parte da frente de Bornholm.
— Pensei que talvez quisesses ir conhecer a cidade connosco.
— Convosco? — Uma atitude desdenhosa e familiar permeou-lhe a voz. — O Heron ia levar-me aos campos de jogos.
Heron? Desde quando é que Kady e Heronidus eram tão amiguinhos?
Kady continuou:
— Ao que parece, vai haver uma espécie de competição nos próximos dois dias. Um campeonato entre os romanos e outros... — Kady franziu o nariz. — Acho que são lutadores de sumo ou algo parecido.
Lutadores de sumo? Jake deu voltas à cabeça a pensar nas outras culturas que vira naquele mundo.
— Não queres dizer sumérios?
— Talvez seja isso. Quero lá saber. O Heron tentou falar-me do jogo. É parecido com polo. De qualquer forma, ele vai levar-me a um dos treinos.
Kady acenou para o seu guarda, o qual também lhe acenou e a brindou com um sorriso palerma.
Jake acabou por se afastar, desistindo.
— Então, se ficas bem, eu vou com a Marika e o Pindor.
Kady encolheu os ombros, mas a sua voz tornou-se cortante. Olhou fixamente para ele.
— Certifica-te de que sabes o que estás a fazer. Não te distraias demasiado.
Jake percebeu o que ela estava a insinuar. Por outras palavras, não andes a brincar... encontra um caminho para casa. E, enquanto ele trabalhava para isso, Kady poderia continuar a fingir ser a Barbie valquíria-guerreira.
Quando a irmã se afastou para voltar para junto dos outros, Jake franziu o sobrolho. Ela estava a pôr tudo nas costas dele: descobrir o que se estava a passar e arranjar uma maneira de voltar para casa.
Mas será que ele conseguiria fazer isso tudo?
Palavras obscuras ecoaram na sua cabeça, relembrando-lhe que estava a ficar sem tempo.
Ele vem aí... ele vem aí...
13
A PRIMEIRA TRIBO
De volta à rua, Jake encontrava-se por baixo da proa do navio de guerra viquingue. Estava de frente para Marika e Pindor.
— E agora?
Jake pensara que ia precisar do dia todo para tirar Kady de baixo da cama. Mas não fora esse o caso. Como de costume, ela era o centro das atenções. Este facto irritava-o, ao mesmo tempo que o tranquilizava. Encontrava-se parado à beira da estrada, sem saber o que fazer, por onde começar a sua investigação.
— Podemos mostrar-te mais de Calypsos — sugeriu Marika.
— Acho que devíamos ir ao mercado — disse Pindor. Olhou para cima, para o sol, e colocou a palma da mão sobre o estômago. — Estou a morrer de fome.
— Acabaste de comer — repreendeu Marika.
— Isso foi há milénios.
Marika revirou os olhos.
— Primeiro, vamos mostrar o máximo da cidade.
Com Marika a guiá-los, voltaram para as ruas. Por todo o lado, havia entusiasmo no ar, uma eletricidade gerada pela azáfama das pessoas e pelo crepitar dos seus gritos e risos. Do lado de fora de um pagode chinês, crianças muito pequenas praticavam com címbalos e cornetas.
— O equinócio da primavera aproxima-se velozmente — explicou Marika. — É já daqui a dois dias. A cidade inteira celebra-o com um enorme banquete e uma festa.
— E é o dia da Olimpíada! — acrescentou Pindor com um entusiasmo pouco habitual. — A batalha final que irá decidir qual das tribos vai ganhar a Tocha Eterna este ano. Vê aqui!
Pindor estugou o passo. Algumas famílias estavam a fazer piqueniques num pequeno parque do lado de fora das muralhas da cidade. Pindor passou por elas rapidamente em direção a um miradouro, de onde tinham uma vista desafogada. Apontou para o lado norte da cidade.
Um enorme estádio de pedra, semelhante a um coliseu romano, estendia-se até à orla vulcânica do vale, um dos lados esculpido na encosta íngreme.
— Também é ali que fazemos espetáculos de teatro e música — acrescentou Marika. — Não há só músculos e brutamontes por aqui.
Uma movimentação à direita do coliseu chamou a atenção de Jake. Casas que desafiavam o penhasco tinham sido cavadas na escarpa da montanha adjacente ao estádio. Do nível mais alto das casas, um bando de pássaros gigantescos levantou voo e pairou sobre a cidade numa formação em V perfeita.
— O Povo do Vento — disse Marika, contemplando o voo ao lado de Jake. A sua voz estava repleta de admiração. — São os únicos que sabem como domar os enormes Raz alados. Criam-nos desde que eclodem, criam laços entre eles e os seus filhos mais pequenos. Diz-se que crescem mais próximos que irmãos e irmãs.
Enquanto o bando passava por cima deles, Jake imaginou o batedor que aterrara no telhado da torre, todo vestido de couro, com uma coroa de penas. É claro que a sua tribo nunca chamaria aos seus próprios membros índios ou mesmo nativos americanos. Esses nomes tinham-lhes sido dados por terceiros.
Jake olhou fixamente para cima quando os pássaros passaram, subindo cada vez mais alto devido ao ar quente de uma das fendas vulcânicas. Povo do Vento. O nome era, sem dúvida alguma, apropriado.
Os três seguiram com o olhar os pássaros, enquanto estes atravessavam o céu e passavam por cima do castelo. Quando, por fim, desapareceram, Marika disse:
— Está a ficar tarde. Devíamos voltar para casa.
Jake olhou de relance para trás, para os penhascos, mas uma sombra a deslizar pelos arbustos chamou-lhe a atenção. Uma forma escura atravessou lentamente o miradouro de pedra, agarrou um osso deixado para trás por umas das pessoas que ali tinham feito um piquenique e voltou a mergulhar em direção aos arbustos. De repente, estacou à beira destes e olhou para trás, diretamente para Jake.
Enormes olhos felinos brilharam com tons de ouro sob a luz oblíqua do Sol.
A Rhabdofelix! A mesma que Jake libertara. Então, ela conseguira escapar e encontrara um lugar para caçar e apanhar restos de comida.
— Ei, vejam só... — Jake virou-se para mostrar o animal a Marika, mas o felino já desaparecera.
— O quê? — perguntou Pindor.
Jake abanou a cabeça e fez-lhes sinal com a mão para continuarem.
— Não é nada...
Contornaram a muralha do castelo até ao portão principal. Pindor despediu-se, e Marika e Jake atravessaram o pátio e entraram no castelo.
Marika não dizia nada há muito tempo, estava embrenhada nos seus pensamentos, por isso Jake permaneceu calado enquanto subiam a torre. Quando chegaram ao patamar da sua casa, Marika abriu a porta com a chave e, por fim, falou:
— Como será que a caçadora Livia está?
Jake suspirou ruidosamente, silenciando Marika. Assim que entrou, Jake viu que a sala não se encontrava vazia. Um rapaz, talvez um ano mais novo que Jake, estava a colocar uma taça com fruta em cima da mesa. Jake olhou fixamente para o desconhecido. O outro também fitou Jake, mas depois retirou-se rapidamente por uma porta lateral estreita. Desapareceu de vista, fechando a porta atrás dele. Jake conseguiu ver umas escadas pequenas para lá da porta antes de esta se fechar, como se fosse uma escada de serviço secreta.
Marika fez uma careta ao ver o espanto de Jake.
— Aquele era o Bach’uuk. Ele ajuda a cuidar da casa.
Jake ainda conseguia ver o rosto do desconhecido. O rapaz tinha as maçãs do rosto salientes e uma testa proeminente, parcialmente escondida por baixo de um cabelo negro e fino. Os seus olhos azuis tinham-se cruzado com os de Jake, como se o reconhecesse, antes de se retirar à pressa.
No entanto, não havia dúvida de que Jake o reconhecera... ou, pelo menos, sabia a que tribo pertencia o rapaz. Jake tinha a certeza.
Bach’uuk era um neandertal.
— Eles chamam-se a si mesmos Ur — explicou Marika depois de conduzir Jake até à mesa.
Pediu a Jake que se sentasse e mostrou-lhe como descascar um dos frutos que estavam em cima da mesa. Parecia uma banana, mas tinha a forma de um saca-rolhas. Foi preciso algum cuidado para o descascar. Marika chamava-lhe um feijão-kwarma, mas não sabia a banana, nem a feijão, mas sim a um pêssego demasiado maduro.
Marika ainda tinha o sobrolho franzido em relação à reação de surpresa de Jake e interpretou-a de forma errada, dizendo:
— Não tenhas medo, os Ur têm uma aparência estranha, mas são inofensivos e pacíficos.
Jake anuiu com a cabeça, confuso. Então, não tinham sido apenas tribos de humanos — Homo sapiens — a ser arrastadas para este mundo. Tribos anteriores às humanas tinham sido levadas dos seus territórios e ficado encurraladas aqui também.
— São um povo simples — continuou Marika. — Mesmo ajudados pela alquimia que nos permite partilhar uma língua comum, os Ur raramente falam e, quando o fazem, é de forma muito lenta e básica. O papá acredita que os pensamentos deles são mais lentos, mas são um povo forte e obedecem a ordens simples.
Tentando disfarçar a sua reação, Jake descascou mais um feijão-kwarma. Não contradisse Marika, mas lembrou-se de que os arqueólogos, como os seus pais, agora consideravam os neandertais tão inteligentes como os humanos modernos.
Marika continuou, ponderando as suas próprias palavras.
— Contudo, um grupo de escribas sumérios foi às cavernas dos Ur no verão passado e voltaram com descrições de pinturas elaboradas feitas nas paredes.
— Feitas pelos Ur?
Marika anuiu com a cabeça.
— Um dia gostaria de ver essas cavernas. Os escribas relataram pinturas de animais nunca vistos antes. Mas também os Ur foram os primeiros a chegar a este vale e devem ter visto coisas magníficas.
Jake focou a sua atenção em algo que ela dissera.
— Eles foram os primeiros?
Marika esfregou o lábio inferior, pensativa.
— Diz-se que eles já cá estavam muito antes de qualquer uma das Tribos Perdidas. As histórias mais antigas de Calypsos contam que os Ur foram encontrados a viver na sombra do grandioso Templo de Kukulkan e que foram os primeiros a acolher desconhecidos nestas terras inóspitas, lançando as bases da futura cidade de Calypsos. Além disso, eles ajudam-nos, servem em Kalakryss e trabalham nas minas dos penhascos para encontrar os cristais que são usadas na nossa alquimia.
Jake não tirava os olhos da porta estreita, lembrando-se de como a mesa já estava posta na noite passada e de como a sua roupa aparecera limpa e arrumada. Será que os neandertais se tinham tornado meros criados aqui... ou, pior ainda, seriam eles escravos? Este último pensamento fez com que Jake reconsiderasse a imagem que tinha dos habitantes de Calypsos enquanto pessoas pacíficas e harmoniosas.
Marika suspirou.
— Mas, na maior parte do tempo, os Ur estão nas suas cavernas. São muito reservados e tímidos. As suas casas ficam do outro lado das muralhas, de frente para a selva sombria. Não tens nada a temer em relação a Bach’uuk. Ele e o pai dele servem a nossa família há muitos anos. Quando a minha mãe ficou doente... quando ela...
A voz de Marika, de repente, quebrou. Abanou a cabeça e focou-se intensamente no seu feijão-kwarma. Um arranhar na porta da frente fez com fosse salva de continuar a falar.
Uma chave rodou e a porta abriu-se. Ouviram-se vozes, embora as pessoas que estivessem a falar permanecessem do lado de fora da porta.
— Não há mais nada que possamos fazer, Oswin.
Era o pai de Marika e parecia estar exausto e extremamente preocupado.
— Mas nós sabemos que deve haver estilhaços de pedra-de-sangue dentro da ferida que ela tem no ombro ou já teria acordado. Se recolhêssemos algumas lascas e as estudássemos, poderíamos vir a compreender melhor a ameaça que temos em mãos.
— O risco é demasiado elevado. Para Livia e para Calypsos. As pedras-de-sangue corrompem tudo... e todos à sua volta.
— Mas não podemos viver eternamente sem saber, muito menos quando uma escuridão imensa ameaça abater-se sobre o nosso vale. Zahur age com demasiada cautela. Talvez até de forma deliberada.
Fez-se um longo silêncio, depois Balam falou com firmeza:
— Tu não acreditas mesmo nisso, pois não, Oswin?
Seguiu-se um suspiro ruidoso. Marika e Jake trocaram um olhar furtivo. Não deviam estar a ouvir a conversa, mas nenhum deles se mexeu.
— Acho que não. Mas não consigo deixar de pensar que em tempos Zahur foi aprendiz de Kalverum.
— Sim, mas todos nós, a dada altura, estudámos sob as suas ordens.
Jake olhou de relance para Marika.
— Então e as experiências de Zahur? — insistiu o monge inglês, baixando a voz. — Ele usa as caves de Kalverum. Ele trabalha com bestas enjauladas e segue um caminho bastante semelhante ao daquele monstro.
— Isso é porque ele estuda a arte da cura. Uma disciplina importante que requer aquele tipo de trabalho. Tu sabes o quanto foi perdido na área das artes da cura depois de Kalverum ter sido expulso.
— Sim, sim, sim, eu sei que tens razão — admitiu Oswin. — Acho que a privação de sono me está a pregar partidas. Só queria que o mestre Zahur agisse de forma mais rápida. Sinto que o tempo está contra nós. Aquelas palavras que o rapaz ouviu. Ele vem aí. Não podemos ficar aqui sentados eternamente à espera.
— Eu compreendo, Oswin. E honro os teus métodos de estudo. As tuas experiências arrojadas descobriram muitas alquimias práticas que melhoraram as nossas vidas. Mas, neste caso, concordo com Zahur. Ainda que implique a morte da caçadora Livia, devemos agir com cautela no que diz respeito às pedras-de-sangue, até mesmo a meros estilhaços.
— Espero que tenhas razão, meu velho amigo — concluiu Oswin. — Prevejo um futuro sombrio à nossa frente.
— E no meio da escuridão — disse Balam de forma solene — temos de confiar na luz.
Uma ligeira gargalhada cansada quebrou a tensão.
— Isso não foi justo. Citar o meu próprio pai.
— Ele era um homem sábio.
Outro suspiro.
— Mais sábio que o filho, aparentemente.
Seguiram-se despedidas murmuradas, depois a porta abriu-se ainda mais. Marika virou-se na sua cadeira e fingiu estar muito concentrada a escolher um feijão-kwarma da taça.
Balam entrou na sala. As suas sobrancelhas arquearam-se, surpreendido por os ver ali.
— Ah, já voltaram. — Balam olhou para a porta e novamente para a mesa. Passou os dedos pelo cabelo, mas tudo o que conseguiu foi deixá-lo ainda mais despenteado. — Então ouviram tudo.
— Desculpa, papá — disse Marika, e olhou para cima, para o rosto do pai. — Mas é verdade? A caçadora Livia vai mesmo morrer?
Balam acariciou com ternura a face da filha, depois dirigiu-se para a mesa. Jake viu a sua expressão entristecer quando passou atrás dela, sem saber se lhe devia dizer a verdade ou não. Por fim, virou-se e olhou diretamente nos olhos da filha.
— Sim — acabou por dizer. — É apenas uma questão de tempo. Não podemos fazer mais nada por ela.
O rosto de Marika empalideceu, mas anuiu com a cabeça e levantou-se. Abraçou o pai. Ele pôs os braços à volta dela também.
Jake sentiu uma pontada de dor no peito e, de repente, teve saudades da sua mãe e do seu pai, de tal maneira que mal conseguia respirar.
Pai e filha desfizeram o abraço. Marika manteve-se agarrada à manga do pai.
— Papá, não dormiste nada. Precisas de tomar um banho e de descansar.
Balam olhou de relance para a porta do seu escritório.
— Mas eu tenho mais trabalho...
— O trabalho vai continuar lá depois de fazeres uma sesta. — Marika deu-lhe um pequeno encontrão, como uma mãe a um filho indisciplinado. — Deixa-me preparar-te um banho. Acordo-te a horas do jantar.
Balam deixou que a filha o arrastasse em direção às escadas.
Enquanto os dois se afastavam, Jake permaneceu sentado à mesa... mas a sua atenção desviou-se para a porta do escritório. Lembrava-se das pilhas de papéis, pergaminhos e livros no seu interior. O que poderia aprender ali?
Antes que desse por isso, já estava de pé. Não tinha muito tempo. Apressando-se até à porta, tentou a fechadura. Estava destrancada e a porta abriu-se com um chiar que o fez estremecer. Convencendo-se de que não tinha feito muito barulho, esgueirou-se pela abertura e entrou na biblioteca.
O quarto tinha a forma de uma tarte, estendendo-se em direção a um par de janelas com vista sobre a cidade. Por baixo das janelas encontrava-se uma secretária. De ambos os lados, erguiam-se estantes até às vigas de madeira do teto, a abarrotar de tomos e pergaminhos. Uma secção estava repleta de quinquilharia estranha: o esqueleto de uma criatura qualquer presa por fio de cobre, uma fila direitinha de pedras polidas, uma coleção de blocos de madeira gravados com glifos maias. Entrar nesta biblioteca era como entrar num dos Expositores de Curiosidades que havia na sua casa de família no North Hampshire.
No entanto, Jake não tinha tempo para ver tudo aquilo.
Atravessou a sala até à secretária e procurou sem tocar em nada. Havia livros empilhados até à altura dos ombros de Jake, e ele tinha medo de os derrubar. A sua atenção foi captada por um livro aberto no meio da secretária. Tinha uma capa de madeira e as suas páginas eram grossas e ásperas.
O livro era um códex maia raro, um dos grandes livros de conhecimento antigo. Os invasores espanhóis, os conquistadores, tinham queimado a maior parte deles há muitos séculos. Existiam apenas alguns no mundo.
Jake inclinou-se sobre o códex aberto. A página mostrava o mapa do vale. Um círculo irregular demarcava o cone vulcânico e no seu centro fora desenhada uma representação rudimentar da pirâmide. Desde a ponta do templo, uma espiral estilizada ia aumentando e tocava em quatro pontos da orla do vale.
Norte, sul, este e oeste.
Jake aproximou-se mais do mapa.
O ponto oeste tinha um arco desenhado por cima. Apesar de ser um desenho rudimentar, Jake reconheceu o Portão Quebrado, ou melhor, o que seria o seu aspeto se não estivesse quebrado. A imagem no ponto leste parecia-lhe familiar. Era uma serpente de duas cabeças que formava a figura do oito.
Jake ficou tenso ao reconhecê-la, apesar de estar mal desenhada. Enfiou rapidamente a mão no bolso e retirou o diário de campo do pai. Folheou-o e abriu a página que lera no Museu Britânico.
É evidente que, pela ondulação intrincada da serpente numa figura de oito, a relíquia deve representar a crença maia na natureza eterna do cosmo.
Jake ouviu a voz do pai enquanto lia, ao mesmo tempo que conseguia imaginar o artefacto do museu, uma serpente dourada com olhos de rubi, um tesouro maia recuperado da escavação dos seus pais.
Jake engoliu em seco e olhou fixamente para o mapa. Aqui estava um desenho desse mesmo artefacto, demarcando a entrada leste do vale. Como seria isso possível? A mente de Jake andava à roda. Só conseguia arranjar uma única explicação: alguém devia ter visto aquela entrada e voltado ao seu próprio tempo para o contar.
Jake sentiu uma onda de esperança. Olhou fixamente para a pirâmide no centro do mapa rudimentar. Presumiu que a linha em espiral representasse o campo de força que protegia o vale.
Tinha de descobrir mais.
O som de algo a arranhar atrás dele fê-lo saltar. Estava tão concentrado no que descobrira que se esquecera por completo de que estava ali há demasiado tempo. Se Marika o apanhasse ali...
Jake virou-se e viu uma figura de pé junto à porta. Mas não era Marika. O rapaz neandertal, Bach’uuk, encontrava-se à entrada da biblioteca. O seu rosto não exibia qualquer reação de choque ou emoção ao ver Jake ali. Limitava-se a olhar para Jake. Em seguida, o rapaz virou-se e voltou para junto da mesa lá fora. Estava a trazer os pratos para o jantar.
Jake seguiu-o para fora do escritório e fechou a porta.
— Estava só a ver — murmurou ele.
Bach’uuk ignorou-o.
Alguns segundos depois, um grito ecoou vindo lá de cima.
— Papá, eu chamo-te quando o jantar estiver pronto. — Marika vinha a descer. — Ah, Bach’uuk, deixa-me ajudar-te com isso.
Marika levou os últimos pratos para a mesa.
O neandertal fez uma vénia e retirou-se pela porta de serviço. Quando Marika se virou de costas para ele, Bach’uuk olhou para Jake e levou um dedo aos lábios, indicando-lhe num gesto universal que ficasse calado. Em seguida, desapareceu, fechando a porta atrás dele.
14
UM INTRUSO À MEIA-NOITE
Era difícil dizer o que o acordara.
Num minuto, Jake dormia ferrado, no minuto seguinte estava acordado no seu pequeno quarto. Os seus aposentos estavam escuros como breu. A janela encontrava-se fechada, com a persiana corrida, e a porta do quarto estava fechada. Não ouvia qualquer barulho.
No entanto, algo o acordara.
Enrolado nos lençóis, Jake tentava perceber porque ficara de repente tão tenso. Cada fibra, cada nervo no seu corpo parecia esticado ao máximo. Examinou o quarto, sustendo a respiração. Para lá dos pés da sua cama, conseguia distinguir o vulto do guarda-fatos. Mas mais nada. Nenhuma sombra se mexia, nada fazia barulho.
Ainda assim, Jake sabia que não estava sozinho. Não sabia dizer porque tinha esta certeza, mas tinha. Os pelos dos seus braços estavam eriçados. Alguém — ou alguma coisa — estava no quarto com ele. Sentia olhos na escuridão a observá-lo.
Depois ouviu-o... um zumbido baixinho, como mil abelhas. O ruído começou, mas parou de imediato. Jake não conseguia perceber de onde vinha, mas gelou-lhe o sangue. Era um som desconhecido. E estava no seu quarto.
Doíam-lhe os olhos de tentar ver na escuridão. O seu coração batia acelerado. Depois ouviu um ruído surdo, furtivo...
... scritch, scritch, scritch...
Pareciam unhas a raspar na madeira. Ele não sabia o que estava a fazer aquele barulho, mas sabia que se estava a aproximar. Os seus dedos apertaram o cobertor com mais força e puxaram-no para a altura do seu queixo. Deslizou as pernas para longe dos pés da cama, encolhendo-se.
Havia um candeeiro numa mesinha ao lado da cama. Marika mostrara-lhe como ligar e desligar o cristal. No entanto, Jake estava com medo de tirar a mão de baixo dos lençóis.
... scritch, scritch, scritch...
Não havia dúvida de que o ruído estava cada vez mais perto. Em seguida, o zumbido estranho surgiu novamente.
O que seria?
Os olhos de Jake esforçaram-se por ver. Sombras obscuras moviam-se e erguiam-se aos pés da sua cama. Não aguentava mais. Tirou um braço de baixo do cobertor e tocou com a unha na lâmpada de cristal. A luz acendeu, brilhando de forma intensa. Fechou os olhos por um segundo por causa do brilho intenso, depois olhou para o que estava agachado aos pés da cama.
Era um enorme inseto negro, do tamanho de um cão pequeno, com tenazes parecidas com as de um caranguejo à frente. Asas semelhantes às de uma libelinha estendiam-se de ambos os lados. Quando Jake recuou, assustado, as asas abriram-se e começaram a produzir um zumbido ensurdecedor. O inseto elevou-se no ar, como um helicóptero a descolar.
De repente, de trás do inseto, surgiu uma cauda curva de escorpião, com um perigoso ferrão na ponta do tamanho do dedo indicador de Jake. À luz do candeeiro de mesa, o ferrão parecia molhado de veneno e tenazes gigantescas abriam e fechavam no ar.
Jake queria gritar, mas o seu peito estava demasiado apertado de terror.
O gigantesco escorpião inclinou-se para a frente e, de súbito, mergulhou direito a Jake. Este reagiu por instinto, pondo em prática a lição que a mãe lhe ensinara sobre o modo como os canibais de Papua-Nova Guiné apanhavam as suas vítimas em armadilhas.
Quando a besta monstruosa mergulhou em voo picado sobre Jake, este encolheu as pernas e os braços, depois empurrou o cobertor atirando-o ao ar, como se fosse uma rede. O cobertor caiu sobre o escorpião e enrolou-se à sua volta, derrubando-o. Jake saiu da cama, descalço e apenas de boxers. Não tinha qualquer arma para se defender.
A criatura caiu no chão entre ele e a porta. O inseto contorceu-se e retorceu-se debaixo do cobertor. Jake teria de saltar por cima dele. Em seguida, uma tenaz negra atravessou o cobertor e agitou-se desenfreadamente no ar. Estava quase a soltar-se. Jake recuou um passo e bateu na mesinha de cabeceira, o que fez com que o candeeiro abanasse.
O candeeiro!
Jake estendeu a mão para trás e agarrou-o.
O escorpião esgueirou-se através do buraco no cobertor. Jake saltou para a frente com o candeeiro na mão, ergueu-o acima da cabeça e deixou-o cair com força. Algo estalou, de algum lado saiu um líquido disparado, salpicando-lhe o pé descalço.
O nojo que sentiu fez com que se imobilizasse uma fração de segundo a mais.
O cobertor rasgou-se e a cauda com o espigão lançou-se sobre ele, acertando-lhe na barriga da perna. Jake agitou o candeeiro no ar e derrubou o inseto. O espigão apenas lhe tocou de raspão na perna direita e acertou no chão de pedra. Uma grande quantidade de veneno salpicou da sua ponta.
Ainda assim, sentiu uma dor aguda e um ardor intenso onde o ferrão o arranhara.
A cauda ergueu-se novamente.
Jake não hesitou e bateu com o candeeiro no cobertor uma e outra vez, como se estivesse a tentar pregar as estacas de uma tenda num chão gelado. Líquido negro escorria de debaixo do cobertor. Continuou a bater até nada se mexer lá em baixo.
Em seguida, deixou cair o candeeiro e cambaleou para trás.
A sua perna direita ardia como se estivesse em chamas, mas conseguiu chegar à porta a coxear, abriu-a e gritou:
— Socorro!
A sua voz saiu abafada. Mas de certeza que o barulho que fizera a bater com o candeeiro no inseto deveria ter acordado Marika e o seu pai.
As portas dos dois abriram-se. Marika vestia uma camisa de dormir comprida. O seu pai saiu para fora do quarto com um roupão até aos calcanhares. Balam fez sinal a Marika para não se aproximar e correu até Jake.
Jake tentou explicar, mas ainda estava em choque. Apontou para o seu quarto, para o rasto de destruição que se encontrava no chão.
Balam espreitou por baixo do cobertor.
— Um cauda-ferrão! — Balam voltou para junto de Jake e agarrou-o pelos ombros. Examinou-lhe o corpo de cima a baixo. — Mordeu-te?
— Picou-me!
Jake apontou para a sua perna direita.
Apenas um pequeno fio de sangue escorria da ferida, mas a pele à volta já tinha um tom vermelho-vivo. Jake sentia-se tonto. Se Balam não o estivesse a segurar, era provável que tivesse caído.
Balam gritou para Marika:
— Traz um cobertor! Depois ajuda-me a levá-lo lá para baixo.
Jake fez-lhes sinal para que não se incomodassem. Ele conseguia andar sozinho. Em seguida, o mundo começou a rodar e a girar e Jake caiu na escuridão.
— Ele está a acordar — sussurrou uma voz que soava muito ténue e distante, como uma voz vinda de uma estação de rádio mal sintonizada.
Jake gemeu quando a escuridão se atenuou e a luminosidade rodopiou à sua volta. Respirou fundo duas vezes, tentando controlar o enjoo que sentia. Em seguida, a sua visão estabilizou.
— Ajuda-me a levantá-lo — disse uma voz junto ao seu ouvido. Era o pai de Marika, que tinha um braço por baixo do seu ombro.
Enquanto Jake tentava equilibrar-se, Marika e o pai ajudaram-no a sentar-se. Viu que se encontrava na sala comum, em cima da mesa, envolto num cobertor. Marika estava de pé, um pouco afastada. Tinha uma mão sobre a boca, com um ar preocupado. Os mestres Oswin e Zahur também lá estavam. O mestre gordo vestia uma camisa de noite às riscas que lhe dava pelos pés e tinha um chapéu pontiagudo. Parecia uma versão ampliada de um dos anões da Branca de Neve. Era óbvio que viera diretamente da cama para aqui.
Zahur exibia olheiras profundas. Estava inclinado na ponta da mesa e segurava o calcanhar de Jake.
Balam continuava a segurá-lo.
— Como te sentes?
A boca de Jake estava seca. Mal conseguia acenar com a cabeça.
Alguns dedos apertaram o ombro de Jake de forma reconfortante.
— És um rapaz de sorte, Jacob Ransom. Poucos sobrevivem à picada de um cauda-ferrão. Se o corte tivesse sido um pouco mais profundo...
Jake sabia que o homem tentava reconfortá-lo, mas não se estava a sair lá muito bem.
Zahur continuava a segurar-lhe o calcanhar. À volta da sua barriga da perna estava enrolada uma ligadura castanha grossa que parecia húmida. Talvez uma espécie de cataplasma para retirar o veneno do arranhão.
Foi então que a ligadura se mexeu. Jake sentiu-a a apertar um pouco mais a sua barriga da perna e depois a soltar novamente.
— A sanguessuga-da-lama está a ficar inquieta — disse Zahur. — É um sinal claro de que o sangue está livre de veneno.
Zahur estendeu a mão e desenrolou o corpo carnudo da barriga da perna de Jake. Foi preciso puxar com mais força a ventosa grande que se encontrava numa das pontas. Descolou-se da carne de Jake com um sonoro pop. Jake estremeceu quando viu a sanguessuga a contorcer-se nas mãos de Zahur. O mestre deixou-a cair dentro de um frasco de água lamacenta. A sanguessuga continuou a contorcer-se.
O estômago de Jake fez o mesmo.
No entanto, a perna de Jake estava com bom aspeto, à exceção da enorme marca da ventosa da sanguessuga junto ao arranhão. A vermelhidão desaparecera e Jake já não sentia qualquer ardor.
— Ele vai ficar bem — disse Zahur. — Deixem-no descansar toda a manhã e tudo ficará bem.
O mestre Oswin mudou a posição dos seus pés, que mais pareciam troncos de árvore, e indagou:
— O que deixa apenas uma pergunta por responder: como é que o cauda-ferrão acabou no quarto do rapaz?
Balam ajudou Jake a descer da mesa e a sentar-se numa cadeira. Marika aproximou-se e entregou-lhe uma caneca de chocolate quente. Os dedos de Jake envolveram a caneca, desfrutando do seu calor. Deu um gole... e nunca provara algo tão bom na sua vida.
Oswin cruzou os braços e disse:
— Eu verifiquei o quarto dele lá em cima. As persianas estavam perfeitamente fechadas.
— Mas o inseto pode ter entrado durante o dia, antes de as fechar — argumentou Balam. — Talvez tenha vindo refugiar-se do calor do dia na sombra fresca do quarto... e, quando a noite caiu, saiu do esconderijo. Debaixo da cama, atrás do guarda-fatos.
Jake apertou com mais força a caneca. De futuro, iria verificar cada canto do quarto antes de ir dormir.
Balam virou-se para Jake e perguntou:
— Deixaste as janelas abertas durante o dia?
Jake pensou por um momento. Lembrava-se de as ter aberto de manhã, depois de ter acordado do seu pesadelo. Acenou lentamente com a cabeça e respondeu:
— Acho que sim.
Balam anuiu com a cabeça, como se isso resolvesse a questão.
Oswin semicerrou os olhos, pouco convencido.
— Mesmo assim, é muito estranho encontrar um cauda-ferrão tão longe da selva.
— De vez em quando, eles voam e entram na cidade — disse Balam.
Zahur falou quando se levantou.
— Receio que a culpa seja minha. Quando soube o que atacou o rapaz, verifiquei as minhas jaulas. Tenho seis caudas-ferrão ali para estudar os seus venenos. Encontrei uma das jaulas vazia, com a porta aberta. Não sei há quanto tempo terá fugido. Tenho andado muito ocupado a cuidar da caçadora Livia.
A expressão no rosto do egípcio tornou-se ainda mais sombria e continuou:
— Tenho de voltar para junto dela. A cada hora que passa, ela fica mais frágil.
Zahur recolheu o seu frasco com a sanguessuga e dirigiu-se para a porta.
— Obrigado pelos teus cuidados — disse-lhe Balam.
— Sim... obrigado — acrescentou Jake.
Zahur não disse uma única palavra e desapareceu pela porta fora.
Oswin fez um som depreciativo e acrescentou:
— Não quero saber o que vocês acham. Algo ainda cheira muito mal nesta história toda. Talvez o cauda-ferrão tenha voado até aqui... ou talvez alguém o tenha colocado aqui.
— Colocado? — gozou Balam.
— Para matar o rapaz.
Balam franziu o sobrolho e abanou ligeiramente a cabeça, como que a dizer-lhe Em frente dos miúdos, não.
Jake sentou-se ainda mais direito e perguntou:
— Mas quem quereria matar-me?
Oswin encolheu os ombros e disse:
— Talvez um dos espiões do Rei Caveira. Talvez tenha receio da tua ci-enzia. De qualquer das maneiras, tu és uma peça desconhecida no jogo que o Kalverum está a jogar. Talvez te queira eliminar do tabuleiro.
— Oswin, já chega! — exclamou Balam. — Vais fazer com que o rapaz comece a saltar de susto cada vez que vir uma sombra.
Oswin suspirou e acrescentou:
— Talvez até fosse uma coisa boa, se andássemos todos a saltar de susto cada vez que víssemos uma sombra. — Abanou a cabeça e arrastou-se pesadamente para a porta. — Ou talvez eu esteja apenas demasiado cansado. Tudo parece ainda mais sombrio na escuridão da noite.
Depois de Oswin sair, Balam tocou no ombro de Jake e disse:
— Não ligues ao que ele diz. Foi apenas um conjunto de circunstâncias infelizes. Um acidente.
Contudo, as palavras do mestre gordo ficaram presas na cabeça de Jake. O seu pai dissera um dia: As palavras são como balas; uma vez disparadas, não podem ser retiradas. E aquelas palavras tinham atingido Jake profundamente.
Se não tivesse sido um acidente, quem teria colocado o escorpião na sua cama? Jake imaginou o mestre egípcio, que admitira com as suas próprias palavras que o cauda-ferrão viera dos laboratórios da sua cave. No entanto, Jake também fitava a porta estreita na parede do fundo da sala comum. Lembrou-se de como encontrara a sua roupa lavada e dobrada. Bach’uuk já entrara e saíra do seu quarto durante a noite sem ele dar por isso. E quem mais sabia da existência das escadas de serviço que percorriam secretamente a torre? O assassino podia ser qualquer um.
Jake colocou a sua caneca em cima da mesa, perdendo todo o interesse no chocolate quente à medida que um novo receio se abatia sobre ele. Se não tivesse sido um acidente... se alguém queria mesmo matá-lo...
Balam devia ter visto a aflição estampada no rosto de Jake. Perguntou:
— O que se passa?
— Kady... a minha irmã...
Jake não teve de dizer mais nada. Os olhos de Balam arregalaram-se. Soube de imediato o que preocupava Jake e isso assustou-o ainda mais. Apesar da tentativa de Balam de classificar o ataque como um acidente, o mestre devia ter alguma suspeita secreta.
— Vou ao Astromicon comunicar com Bornholm. Para ter a certeza de que ela está a salvo — disse Balam. — Dirigiu-se para a porta de roupão. Jake levantou-se para o seguir, mas os seus pés vacilaram e cambaleou. Balam apontou para ele. — Fica aqui. Mari, certifica-te de que ele descansa. Aquece-lhe o cacau.
— Sim, papá.
Depois de ele sair, Marika puxou uma cadeira para junto de Jake e sentou-se ao seu lado. Seguiu-se um momento de silêncio desconfortável, talvez porque ele estivesse praticamente nu debaixo do cobertor. Mas, em seguida, ela virou-se para ele e disse com firmeza:
— Eu vi o que tu fizeste àquele cauda-ferrão. Bach’uuk ajudou-me a limpar aquilo tudo enquanto te estavam a tirar o veneno com a sanguessuga.
Marika enfiou a mão no bolso e colocou algo em cima da mesa. Era o ferrão do escorpião.
— Os Ur creem que o que é morto deve ser honrado e que um pedaço deve ser guardado pelo caçador.
Jake recusou-se a tocar-lhe.
— Eu fervi-o para retirar completamente o veneno — disse ela ao ver a expressão dele. — É seguro.
Jake deslizou cuidadosamente um braço para fora do cobertor e tocou no ferrão. Quase o matara. Pegou no ferrão e examinou-o. Conseguia ver-se um dia a colocá-lo nos seus próprios Expositores de Curiosidades. Essa ideia ajudou-o a afastar o terror que sentia. Até fez com que ficasse um pouco menos preocupado com Kady. Ela devia estar bem.
— Obrigado, Mari.
Ela desviou o olhar dele, talvez até demasiado rapidamente, corando um pouco.
— O Bach’uuk sugeriu que eu to desse. Foi ideia dele. Ele parece estar fascinado contigo.
Jake lembrou-se do rapaz neandertal a levar o dedo aos lábios.
De repente, Marika levantou-se.
— Queres que aqueça o teu cacau?
Antes que ele conseguisse responder, Marika pegou na sua caneca e atravessou a sala até um aparador encostado à parede. Um jarro de pedra encontrava-se sobre um trempe apoiado em quatro cristais cor de rubi que brilhavam. Um vapor suave saía do jarro. Marika ergueu-o e verteu cuidadosamente o seu conteúdo para a caneca de Jake.
Ela voltou para junto dele. Já não tinha as faces coradas, agora parecia preocupada. Olhou de relance para a porta de casa e depois de volta para Jake. Enquanto Jake aquecia as mãos na caneca, Marika sentou-se novamente ao lado dele, pensativa. Tinha o sobrolho franzido.
— O que foi? — perguntou Jake.
Marika abanou a cabeça.
— Não, diz-me lá.
Ela pensou por mais um momento, depois falou:
— Eu não contei isto ao meu pai e talvez o tenha imaginado. Não sei. Mas lembro-me de ter acordado à noite. Pareceu-me ter ouvido alguém no corredor, mas, quando escutei com mais atenção, estava tudo em silêncio. Naquela altura, pensei que não era nada de importante e voltei a dormir. E talvez não tenha mesmo sido nada.
Ou talvez tenha sido algo.
Antes que conseguissem aprofundar a conversa, a porta abriu-se e o pai de Marika entrou de rompante na sala, ofegante. Devia ter ido para ali a correr.
Jake levantou-se, o medo que sentia pela irmã fizera-o pôr-se de pé.
Balam fez sinal a Jake com a mão para que voltasse a sentar-se.
— Ela... ela está bem — arquejou ele. — Pu-los todos a correr que nem baratas tontas em Bornholm, mas não aconteceu nada por lá. — Balam aproximou-se da mesa e apoiou uma mão no tampo. — Vês? Provavelmente foi apenas um acidente, tal como eu disse.
Jake sentiu uma onda de alívio por Kady estar sã e salva, mas continuava desconfiado. As palavras do mestre Oswin não lhe saíam da cabeça.
E as palavras são como balas...
Jake fechou a mão sobre o ferrão do escorpião. Olhou fixamente para Marika e viu a mesma desconfiança nos olhos dela. Independentemente do que dissessem, Jake sabia que o ataque não fora um mero acidente.
Mas quem o queria morto?
15
O CORAÇÃO DE CRISTAL DE KUKULKAN
Na manhã seguinte, Jake encontrava-se sentado no Astromicon, pronto para começar a sua aprendizagem. Sentia-se mil vezes melhor.
Balam entregou-lhe um tabuleiro de madeira dividido em pequenos compartimentos. Cada um deles continha pedaços de cristais num arco-íris de cores. Deviam estar ali mais de cem tonalidades diferentes.
— Cada cristal colorido serve um único propósito — explicou Balam, ao lado de Jake. — Alguns, nós sabemos o que fazem, como este.
Balam escolheu um cristal do tabuleiro e segurou-o diretamente sob um feixe de luz que passava por uma das doze ranhuras da cúpula. O cristal era vermelho-escuro, cor de vinho.
Balam virou-se para Marika, que estava sentada ao lado de Jake, e perguntou-lhe:
— Qual é o nome deste cristal?
Marika franziu o sobrolho, pensativa.
— Brilho-de-ferro?
— Muito bem — retorquiu ele com um sorriso orgulhoso. — Esta pedra, quando molhada, atrai ferro para o seu coração.
Balam lambeu o cristal e colocou-o junto a um prego de ferro. O prego saltou da mesa e colou-se ao cristal.
Jake aproximou-se, fascinado. De alguma forma, o cristal ficara magnetizado.
Balam sorriu face à reação de Jake, satisfeito com a sua demonstração, depois bateu no cristal com um martelo de prata. O prego de ferro soltou-se da pedra e caiu no tampo da mesa.
— Outros cristais continuam a ser um mistério e é esse mistério que eu passo os meus dias a estudar. — Balam pousou uma mão no ombro de Jake. — Na maior parte das vezes, a alquimia é uma parte sabedoria e nove partes acaso. E, quase sempre, perigosa. — Balam tocou no emblema de prata no casaco de Jake. — Estes são os quatro fundamentos da alquimia. Deves conhecê-los bem.
Jake observou os cristais embutidos no seu emblema. O rubi, a esmeralda e a safira formavam um triângulo à volta do diamante. Balam tocou em cada um deles.
— Destas quatro pedras surgem todas as outras. — Balam passou a mão por cima da caixa. — Das quatro flui todo o poder de Kukulkan.
Enquanto Jake estudava o emblema, algo começou a aflorar no seu cérebro, algo que ele aprendera há muito tempo. Mas o que seria? Era algo que tinha que ver com as três pedras coloridas que formavam o triângulo: vermelho, verde, azul...
De repente, lembrou-se. Era como uma explosão dentro da sua cabeça. Algo que o pai lhe mostrara numa das vezes que foram acampar. Jake torceu-se na cadeira e baixou-se para apanhar a mochila que estava no chão. Vasculhou o seu interior e encontrou o que procurava enterrado no fundo da mochila.
A sua atitude frenética atraíra a atenção de Balam.
Jake retirou da mochila um pedaço de quartzo, cortado na forma de um prisma triangular.
— Vermelho, verde e azul — disse ele. — São as três cores primárias da luz!
O seu pai explicara-lhe como as televisões e os computadores usam fósforo vermelho, azul e verde para produzir milhares de cores no ecrã. O pai de Jake também lhe mostrara outra coisa.
Antes que qualquer um deles conseguisse falar, Jake expôs o prisma diretamente à luz solar. À medida que os raios de sol o atravessavam, a luz formava um pequeno arco-íris que brilhava na parede.
— Isto é alquimia avançada — explicou Balam. — Poucos compreendem como todas as cores do mundo estão escondidas no coração da luz do Sol. Na verdade, toda a alquimia começa com o Sol. — Balam apontou para as brechas na cúpula do telhado que deixavam passar a luz, depois voltou-se novamente para Jake. — Onde aprendeste isso?
— Com os meus pais — respondeu Jake. — Ensinaram-me que, se misturarmos luzes coloridas diferentes, podemos obter uma cor nova. — Jake apontou para o arco-íris na parede, para onde as bandas de luz vermelha e verde se misturavam e davam origem à faixa amarela. — A luz vermelha e a luz verde fazem amarelo, enquanto a vermelha e a azul ao misturar-se formam o roxo. E, quanto mais cores misturarmos, mais cores conseguimos fazer.
Jake baixou o seu prisma e o arco-íris desapareceu.
Balam continuava a olhar fixamente para a parede, como se o arco-íris ainda brilhasse nela. Abanou lentamente a cabeça e disse:
— Esse tipo de conhecimento está reservado a pessoas que já vão no terceiro nível desta jornada — disse ele. — Não para aprendizes de primeiro ano. Este conhecimento encontra-se no coração de como forjamos novos cristais, de como fazemos as pedras de novas cores.
Balam acenou com a cabeça para a caixa de cristais multicoloridos.
— Espere — disse Jake. — Está a dizer que fez todos estes cristais? Como?
Balam aproximou-se de Jake.
— Deixa-me mostrar-te.
Balam retirou da caixa um fragmento de cristal verde-esmeralda e um rubi. Atravessou a sala e colocou as duas pedras dentro de um pequeno cesto de bronze, que se encontrava pendurado por uma corrente de um mecanismo semelhante a um relógio que enchia a cúpula acima das suas cabeças. Balam puxou outra corrente que enviou o cesto de bronze para cima, para dentro do mecanismo.
Jake deixou rapidamente de conseguir seguir o cesto com o olhar, à medida que este girava e rodopiava através do complicado labirinto do mecanismo. Fluidos corriam por dentro de tubos de vidro e a luz do Sol refratava por todo o aparelho das doze ranhuras no telhado.
Jake lembrou-se das palavras de Balam: Toda a alquimia começa com o Sol.
Será que a energia solar alimentava tudo isto?
Enquanto tentava perceber tudo aquilo, ficou tonto a olhar para o coração da maquinaria rodopiante.
Por fim, a máquina completou o ciclo. Balam estendeu a mão e mostrou a Jake que restava apenas um cristal dentro do cesto. Brilhava intensamente num tom amarelo, como um pedaço de Sol.
— Vermelho e verde fazem amarelo — murmurou Jake.
Jake olhou para cima, fascinado, para o mecanismo que zunia, estalava e borbulhava. De alguma forma, as duas pedras tinham-se tornado uma.
Como é que isso acontecera?
Balam declarou:
— Ao longo dos séculos, os alquimistas forjaram cristais de todos os tons e de todas as cores a partir de cada fragmento de luz solar.
Uma pergunta ainda incomodava Jake. Já o incomodava desde que tinha visto pela primeira vez o candelabro de cristal no corredor principal do castelo.
— Mas o que faz com que os cristais brilhem? — perguntou ele. — O que lhes dá energia?
Balam sorriu de forma mais calorosa:
— Que mente curiosa tu tens, Jacob. Não é de admirar que tenhas crescido tão rapidamente em termos de conhecimento. — Balam virou-se para a sua filha. — Mas talvez a Mari te possa responder a essa pergunta.
Jake olhou de relance para a rapariga.
Marika fitou os seus pés, timidamente.
— Todo o poder tem origem no coração de cristal de Kukulkan.
Balam anuiu com a cabeça, acrescentando:
— Jacob, já alguma vez atiraste uma pedra para o centro de um lago e observaste a pequena ondulação que surge em todas as direções até à margem?
Jake acenou com a cabeça. É claro que já vira.
— Passa-se o mesmo com o coração de cristal no centro do grande templo. O seu batimento é como uma pedra atirada para um lago tranquilo. Lança pequenas ondas para o vale, que inflamam as nossas lareiras e acendem todas as nossas pedras. Permite que as tribos falem uma só língua e estende-se até às escarpas que rodeiam o vale, protegendo-nos.
Jake imaginou a energia a fluir do templo, fornecendo energia aos cristais e protegendo o vale.
Marika continuou:
— Contudo, para lá do vale, as ondas de energia esmorecem rapidamente. Para lá do vale, uma tribo não compreende a outra e os cristais verdes perdem a capacidade de comunicar à distância. É por isso que precisamos de dardos-alados para enviar mensagens para as profundezas da selva, e é também por isso que os caçadores e os batedores viajam com membros das suas próprias tribos.
Jake compreendeu. O campo de proteção só fazia efeito até uma certa distância. Não era de admirar que as Tribos Perdidas tivessem permanecido neste vale.
Com um suspiro preocupado, Balam olhou fixamente para o Sol através de uma das ranhuras do telhado.
— Tenho de ir ter com o mestre Zahur e ver como está a caçadora Livia.
Jake virou-se no seu assento. Estava curioso em relação a um cristal que o pai de Marika não mencionara.
A pedra que envenenara a caçadora Livia. A pedra-de-sangue...
Uma nuvem escura abateu-se sobre o rosto de Balam, que respondeu:
— Nós não falamos de tamanha maldade. É proibido forjar essas pedras.
Jake olhou para cima, para o mecanismo giratório.
Balam devia ter conseguido ler-lhe os pensamentos.
— Essa maldição não nasceu aqui, no Astromicon. A pureza da luz do Sol não deu origem a essa pedra. Foi criada por uma chama bem mais sombria.
Com essas palavras duras, Balam dirigiu-se para a porta. Ficou parado alguns momentos com a mão no trinco e olhou para trás de relance.
— Mari, talvez seja melhor limitar o estudo de hoje aos nomes das pedras. Não queremos cansar demasiado o Jake depois da noite de ontem.
Balam abriu a porta e saiu para a luz intensa do Sol.
Marika respirou fundo quando a porta se fechou. Tinha um ar apologético no rosto.
— O papá não gosta sequer que se pronuncie o nome pedra-de-sangue.
— Mas eu não percebo. Está no coração do poder do Rei Caveira. Não deviam saber mais sobre ela?
Marika mudou de posição na cadeira e colocou a caixa de fragmentos de cristal no meio deles.
— Talvez devêssemos saber mais sobre estes primeiro.
Apesar da sua hesitação, Jake viu uma faísca de curiosidade nos olhos de Marika. Era igual à sua. Olhou fixamente para o cristal branco, que brilhava intensamente dentro da caixa. A luz branca continha todas as cores do espectro, enquanto o preto era a ausência de toda e qualquer luz. Jake estremeceu, lembrando-se de como a pedra-de-sangue parecia ter sugado por completo a luz da Lua.
O aviso de Balam ecoava na cabeça de Jake. A pedra-de-sangue não era forjada na pureza da luz do Sol, mas era criada por uma chama muito mais sombria.
Jake encolheu os ombros. O que é que importavam as pedras-de-sangue? Não era problema dele. Jake só queria voltar para casa. E a única maneira de o fazer era descobrindo o máximo que pudesse sobre a pirâmide... o que, por sua vez, implicava que aprendesse mais sobre estes estranhos cristais.
E havia apenas uma única maneira de o fazer.
Jake acenou com a cabeça para o seu tabuleiro de madeira e disse:
— Então, talvez seja melhor começar.
Passadas algumas hora, Jake descansava lá fora. Estava sentado com as pernas cruzadas no topo da torre em cima de um cobertor. A luz do Sol queimava. Embora estivesse calor, a claridade ajudava a dissipar a tensão que se acumulara dentro dele.
A alguns passos de distância, Pindor encontrava-se sentado na beira do parapeito. Para alguém que tinha medo de sáurios, parecia destemido em relação à possibilidade de cair para trás. Baloiçava-se para trás e para a frente no parapeito, enquanto mordiscava o que parecia ser uma asa de galinha. Tinha molho espalhado pela boca toda.
— Muito poucos sobrevivem à picada de um cauda-ferrão — disse Pindor, apontado a asa de frango para Jake. — O deus Apolo deve estar a tomar conta de ti.
— Acho que não foi o deus Apolo — interrompeu Marika. Ajoelhou-se no tapete com Jake e vasculhou o cesto de junco que Pindor fizera chegar lá acima. Procurou no meio dos pãezinhos e da carne seca. Encontrou um feijão-kwarma e sentou-se com ele. — O mestre Zahur ajudou mais Jake a sobreviver do que qualquer deus do monte Olimpo.
Pindor encolheu os ombros e desencostou-se da parede.
— E achas que alguém colocou o cauda-ferrão no teu quarto?
Marika olhou para Jake. Ele acenou com a cabeça.
— Quem faria isso? — perguntou Pindor. — Ouvi o meu pai falar com o mestre Oswin. Toda a gente diz que foi um acidente. Que uma das criaturas de Zahur fugiu da jaula e acabou no quarto de Jake.
Marika abanou a cabeça.
— Tenho a certeza de que ouvi alguém no corredor no início da manhã. Mas não o posso provar.
— Porque haviam de o querer matar? — indagou Pindor.
Marika descascou lentamente o seu feijão-kwarma.
— Talvez alguém tenha medo dele. Ou do que ele sabe. Da sua ci-enzia.
Pindor não parecia convencido, mas mudou de assunto.
— Então, que mais faz essa ci-enzia? — Pindor recostou-se e olhou fixamente para Jake. — Mostra-nos mais.
— Pindor, ele não é um macaco amestrado que faz o que tu queres.
Ainda assim, Jake viu como Marika tentava esconder o seu próprio interesse. Também reparou que os seus olhos verdes refletiam a luz como esmeraldas.
— Posso mostrar-te uma ou duas coisas — ofereceu Jake.
— Não tens de o fazer — disse Marika, mas a sua expressão iluminou-se.
Sentindo-se estranhamente quente por dentro, Jake levantou-se. Deixara a sua mochila no Astromicon.
— Bora! — disse ele.
Jake conduziu os outros pela escotilha e para o interior da cúpula. A sua mochila encontrava-se debaixo da mesa, junto ao banco onde estivera sentado. Puxou-a e vasculhou dentro dela. Os seus dedos encontraram uma lanterna em forma de caneta. Era do tamanho de uma pequena chave de fendas.
— Nós chamamos a isto lanterna.
Carregou no botão, apontou-a à parede e dançou com o feixe de luz na superfície curva de bronze da cúpula.
Olhou de relance para os outros dois.
Pindor permaneceu de pé, com os braços cruzados, e disse:
— Nós também temos luzes. Estão por todo o lado a iluminar Calypsos.
Contudo, Marika semicerrou os olhos, intrigada.
— Posso ver? — pediu ela.
— Claro — respondeu Jake, entregando-lhe a lanterna.
Marika girou-a nos seus dedos, depois tocou na lente da lanterna.
— Isto é alguma espécie de cristal plano? É isto que lança tanta luz?
— Não, funciona a... — Jake teve de se concentrar para que a palavra lhe saísse dos lábios em inglês — ... baterias.
— Bat-trias — repetiu Pindor. — O que é isso?
Jake tirou a lanterna das mãos de Marika e rodou-a para abrir. Deixou deslizar para a palma da sua mão duas baterias AAA.
— Estas produzem energia e fazem com que a lâmpada dentro da lanterna brilhe. Usando eletricidade — explicou Jake, mais uma vez forçando a sua língua a pronunciar a última palavra.
Entregou uma bateria a Marika e outra a Pindor. Marika examinou a sua com a intensidade de um cientista a estudar uma nova espécie de escaravelho. Pindor cheirou a sua, como se se estivesse a perguntar qual seria o seu sabor. Acabou por apontar a bateria a Jake.
— Faz mais alguma coisa com ela.
— Pindor... — repreendeu Marika.
— Só quero ver o que mais faz. Por exemplo, o que é que estas bat-trias fazem aos nossos cristais.
Antes que alguém o conseguisse impedir, Pindor virou-se para a caixa de cristais e atirou a bateria com toda a força para cima deles. Jake ficou tenso. Marika afastou o braço de Pindor. Mas não aconteceu nada.
No entanto, deu uma ideia a Jake. Talvez a ideia de Pindor não fosse assim tão disparatada. Será que a sua ciência e a alquimia deles podia, de alguma maneira, ser usada em conjunto?
— Vermelho e verde fazem amarelo — murmurou, lembrando-se da demonstração do pai de Marika.
Jake pegou na bateria de Pindor e inclinou-se para apanhar um pedacinho de cristal azul que caíra ao chão.
Recuando um passo, pôs-se em bicos de pés e colocou a bateria e o cristal azul no cesto de bronze.
— Jake — disse Marika. — Não podemos mexer nisso.
Jake olhou de relance para ela. As suas palavras de aviso dela tinham-lhe soado um tanto ou quanto inseguras.
Pindor mostrou-se menos relutante e disse:
— Não vai acontecer nada.
Jake manteve o seu olhar fixo em Marika. Se ela dissesse não, ele obedecer-lhe-ia. No entanto, a curiosidade dela parecia ter aumentado. Ela era como o pai nesse aspeto.
— A alquimia é... nove partes acaso — disse Jake, citando Balam.
Marika respirou fundo e dirigiu-se para a porta. Jake receou que ela se fosse embora, mas Marika limitou-se a fechar a porta que tinham deixado aberta. Virou-se para Jake e acenou com a cabeça.
Com um sorriso, Jake esticou-se e puxou a corrente. O cesto elevou-se no ar.
Jake deu um passo atrás. A luz do Sol brilhou e faiscou à medida que refratava entre centenas de cristais embutidos nas engrenagens da máquina. À primeira vista, não pareceu acontecer nada... depois, o mecanismo começou a girar um pouco mais rapidamente. Salpicou as paredes de pequenos arco-íris.
— Jake... — avisou Marika.
Foi então que começou a rodar ainda mais depressa. Pequenas válvulas, aqui e ali, deixaram escapar vapor e a máquina assobiou. As engrenagens giravam num frenesim.
— Temos de a parar — gritou Marika.
— Como? — indagou Jake.
Todos se baixaram enquanto o mecanismo trabalhava ruidosamente, uma massa rodopiante de vidro e bronze. A máquina arfava e gemia e murmurava e suspirava. Não havia como pará-la.
À medida que o mecanismo trabalhava cada vez mais depressa, a sala inteira começou a estremecer. Ferramentas e cristais tilintavam em cima da mesa. Uma pilha de livros tombou. E, ainda assim, rodava cada vez mais furiosamente.
Jake recuou até à mesa. O que é que eu fui fazer?
— Jake! — gritou Marika, aflita.
Marika ergueu a segunda bateria, que ainda se encontrava na sua mão. Saíram faíscas de um dos lados da bateria, que se elevaram no ar e foram, em seguida, sugadas para dentro da máquina rodopiante.
Jake correu para junto de Marika e agarrou na bateria. Levou um choque, que ardeu como quando um elástico se parte nas mãos. Atirou a bateria para cima da mesa, onde rolou e foi embater num pedaço de cristal do tamanho de um ovo de ganso. Saíram faíscas da bateria e acertaram na pedra.
Incendiou-se de imediato, ardendo como um Sol carmesim.
Antes que Jake se conseguisse mexer, o cristal vermelho derreteu e atravessou o tampo da mesa. Não era apenas tão brilhante como o Sol... era também tão quente como o Sol!
O cristal caiu da mesa e bateu no chão de pedra. Jake suspirou de alívio... até ver o granito a borbulhar junto das faces do cristal. Estava a derreter o chão de pedra!
Jake imaginou o cristal a derreter e a passar de um andar para o outro. Quando pararia? Será que pararia?
Marika permaneceu imóvel, em choque.
Jake correu e agarrou num dos martelos de prata. Se conseguisse bater no cristal, desligá-lo como o pai de Marika fizera anteriormente...
Virou-se para Marika. Ela acenou com a cabeça, compreendendo de imediato o seu plano.
Juntos, correram para junto do cristal e ajoelharam-se, Jake protegeu o rosto contra a luminosidade intensa e contra o calor. Através dos olhos semicerrados, Jake viu a pedra. Encolhera e ficara do tamanho de um ovo de pisco. Flutuava agora numa poça de pedra derretida.
Enquanto Jake se aproximava com o martelo, o cristal encolhia cada vez mais depressa, como se estivesse a ser consumido pelo seu próprio fogo interior, tal como uma estrela moribunda a colapsar sobre si mesma. Jake parou por um momento. Num período de dois segundos, o cristal ardera até ficar do tamanho de uma cabeça de alfinete extremamente brilhante. Em seguida, eclipsou-se.
— Desapareceu... — disse Marika, e encostou-se para trás. A expressão do seu rosto era um misto de horror e curiosidade.
A poça de granito derretido endureceu rapidamente, como se soubesse que a sua própria natureza estava errada e procurasse de alguma forma reverter o seu estado. Num curto período de tempo, tudo o que restava era uma mancha escura no chão.
O mesmo não se podia dizer da mesa.
Jake olhou fixamente para a parte de baixo de um buraco perfeitamente redondo no tampo da mesa de bronze. Conseguia ver através dele. O metal já não estava quente, mas o estrago tinha sido feito.
— Olhem! — disse Pindor.
Durante toda a agitação, não repararam que o mecanismo sobre as suas cabeças desacelerara. Já não trabalhava a grande velocidade nem chiava. Limitava-se a girar. Jake olhou para cima, para o delicado mecanismo. Estaria a ranger um pouco mais do que antes? Estaria mais ruidoso? Teria ele estragado a máquina?
Do seu interior mais profundo, saiu lentamente o cesto de bronze. Todos tinham os olhos fixos nele.
Pindor apontou para Jake e disse:
— A ci-enzia é tua, espreita tu!
Ele tinha razão.
Jake esticou-se e inclinou o cesto, apanhando a bateria. Não parecia ter mudado... mas não havia mais nada! Vasculhou o cesto. O fragmento de cristal azul desaparecera.
Jake olhou de relance para a mancha fumegante no granito. Teria o cristal desaparecido da mesma maneira? Teria sido reduzido a cinzas pelo mecanismo, talvez até alimentado o seu rodopiar frenético?
Marika perguntou:
— O que aconteceu?
Jake limitou-se a abanar a cabeça. Não conseguia perceber.
Marika franziu o sobrolho. Pegou na outra bateria que se encontrava em cima da mesa e entregou-a a Jake. Tinha uma expressão extremamente preocupada no rosto. Já não queria saber da ciência dele. A culpa tirou-lhe o brilho do olhar e fez com que começasse a mordiscar o lábio inferior, ao mesmo tempo que olhava para a mesa.
Jake sentiu uma pontada de dor ao vê-la naquele estado de aflição. Fez com que se sentisse ainda mais culpado. Lembrou-se das palavras que lhe dissera, citando o seu pai: a alquimia é nove partes acaso. No entanto, falhara ao não levar a sério o que o pai dela dissera depois. E, quase sempre, perigosa.
Jake olhou fixamente para as duas baterias na palma da sua mão. Podia ter reduzido a cinzas a torre toda. Voltou a montar a lanterna, colocou de volta as baterias e atarraxou a parte de cima. Como era hábito, premiu o botão e ligou-a. A sua luz brilhou. Voltou a desligá-la. A lanterna ainda funcionava. Enfiou-a dentro de um dos bolsos das calças de safári.
— O que vamos fazer? — perguntou Pindor. Olhou fixamente para o buraco derretido. — Os mestres vão pendurar-nos pelas orelhas.
— Desculpem — disse Jake.
— Bem que devias pedir desculpa! — ripostou Pindor com alguma agressividade.
Marika franziu o sobrolho para os dois, colocando as mãos nas ancas.
— Tu disseste-lhe para avançar, Pin. Nenhum de nós lhe disse para parar. Somos todos culpados.
Pindor não discutiu. A expressão do seu rosto ficou ainda mais abatida com a verdade das palavras dela.
— E amanhã é o equinócio. E a Olimpíada! Vai estar toda a gente lá! Assim que o meu pai souber de tudo isto, terei sorte se voltar a ver o Sol antes do próximo equinócio!
— Não há como arranjar isto — disse Marika com um suspiro profundo. — Mas talvez consigamos fazer com que ninguém descubra o que aconteceu.
O rosto de Pindor iluminou-se.
— O que queres dizer com isso? O teu pai passa a vida aqui. Vai ver...
Marika dirigiu-se para uma pilha de livros que caíra na confusão. Pegou em dois livros, aproximou-se da parte danificada da mesa e cobriu o buraco com livros. Empilhou um em cima do outro.
— Vão buscar o resto! — ordenou ela.
Jake e Pindor recolheram rapidamente os livros. A pilha subiu de novo, formando uma torre vacilante. Jake sorriu para Pindor. O buraco estava agora escondido e a marca da queimadura debaixo da mesa passava facilmente despercebida.
Marika inspecionou o trabalho deles.
— O papá costuma deixar pilhas como esta por todo o lado e esquece-se delas.
— Então é capaz de não encontrar o buraco durante várias luas — disse Pindor.
— Não, vai descobrir mais cedo que isso — retorquiu Marika com um franzir severo da sua testa.
— Como? — perguntou Pindor.
— Porque eu vou contar tudo ao meu pai. Mas vou esperar até à manhã depois do equinócio.
— Mari!
— Não, Pin. Ele tem de saber. Mas não há razão para estragar as celebrações. Era o dia preferido do meu pai e da minha mãe. E agora somos só nós os dois... — As suas palavras morreram, mas ela olhou para Pindor. — Não vou estragar a festa do equinócio! Mas depois das celebrações tenho de dizer ao papá!
O rapaz resmungou entredentes. Aparentemente, estava longe de concordar com ela. Neste caso, Jake estava ao lado do seu amigo romano. Se alguém descobrisse o que eles tinham feito, era provável que a sua carreira como aprendiz de alquimista chegasse ao fim.
— Bem, pelo menos não vou faltar ao jogo — disse Pindor.
O Sol já se dirigia para o horizonte quando saíram do Astromicon.
Pin olhou uma vez mais pela porta antes de Marika a fechar.
— Não admira que alguém tenha tentado ver-se livre de ti — disse ele a Jake. — A tua ci-enzia só dá problemas.
— Eu não sabia. — Jake olhou para Marika. — Quem me dera poder fazer tudo de novo.
— O meu pai diz sempre olha duas vezes e pisa uma, porque em algumas estradas não há como voltar atrás.
Marika pôs o trinco na porta e selou o Astromicon. Eles juntaram os restos do piquenique em silêncio, perdidos nas suas preocupações e arrependimentos.
Olha duas vezes e pisa uma...
Jake lembrou-se de ter empurrado a metade da moeda de Kady na reentrância da pirâmide de ouro no Museu Britânico. Mesmo nessa altura, ele tinha-se lançado sem olhar e arrastara Kady com ele.
Em algumas estradas não há como voltar atrás.
Seria isso verdade também aqui?
Jake endireitou-se com a manta do piquenique dobrada nos seus braços. Para lá das muralhas do castelo, olhou para o dragão de pedra parado no bosque, a guardar o grande templo. Jake recusava-se a acreditar que não houvesse um caminho de volta para casa. Porém, sentia a pressão do tempo como faixas de aço a apertar-lhe o peito. Logo que o acidente ali fosse descoberto, perderia qualquer esperança de explorar a pirâmide. Na melhor das hipóteses, tinha mais um dia.
Mas isso poderia ser suficiente.
Jake lembrou-se da tristeza de Pindor por perder a Olimpíada. Toda a gente vai lá estar! Os olhos de Jake semicerraram-se ao olhar para a pirâmide. Com toda a cidade a olhar para o estádio, quem estaria a ver o outro lado da cidade?
Isso poderia ser a sua única oportunidade. Ele tinha de se esgueirar para lá e descobrir que segredo encerrava o coração de cristal de Kukulkan.
Porém, as palavras de Marika ecoavam na sua cabeça.
Olha duas vezes e pisa uma...
Se ele tentasse e falhasse, não haveria como voltar atrás. Seria certamente preso ou banido. E Kady? Provavelmente, partilharia o mesmo destino.
— Estás pronto? — perguntou Marika.
Jake anuiu.
Era melhor que estivesse pronto.
PARTE TRÊS
16
DIA DE JOGO
Quando Jake desceu na manhã seguinte, encontrou Marika e o pai já na sala comum. Eles moviam-se como uma máquina bem oleada, pondo as tigelas sobre a mesa, provando o chocolate quente com o dedo, cortando um melão cor-de-rosa em fatias. Balam murmurou qualquer coisa junto do ouvido de Marika, fazendo uma careta apatetada. Ela riu-se quando o pai, ao provar o chocolate demasiado quente, se queimou no dedo e o levou à boca. Os dois moviam-se com a facilidade que vinha de anos de amor. Era uma dança da manhã feliz e fácil, partilhada por pai e filha.
Jake parou a meio das escadas, lembrando-se de manhãs semelhantes em Ravensgate: a sua mãe a ajudar a tia Matilda a estrelar ovos e a fritar bacon, o seu pai sentado à mesa de meias e roupão, absorto num dos seus jornais. Lembrou-se de risos, abraços e sorrisos calorosos.
— Parece que alguém se juntou finalmente a nós!
Jake sacudiu-se e relutantemente pôs de lado os fantasmas dos seus pais. Levantou um braço cumprimentando o pai de Marika e continuou a descer as escadas.
Durante a noite, Jake arquitetara um plano, delineando-o na escuridão. Armou-se para a parte de representação necessária para pôr a primeira fase do seu plano em movimento.
Jake coxeou no último degrau e fingiu um grito de dor. Sentiu realmente uma pontada de remorsos por estar a enganar Marika e o seu pai, mas não tinha escolha. Mancou em direção à mesa.
— Que se passa? — indagou Marika.
Jake inclinou-se e esfregou a perna direita.
— Acordei com cãibras na perna. E... e... — Jake pôs a palma da mão na testa. — E acho que não me estou a sentir lá muito bem.
Balam dirigiu-se rapidamente para o seu lado, pôs a mão na sua testa e instou Jake a sentar-se.
— Deixa-me ver a tua perna. O veneno do cauda-ferrão deve ser levado a sério.
Jake arregaçou a perna das calças. Balam examinou a cicatriz na barriga da perna.
— Não há vermelhidão. Não está inchado — constatou o ancião com alívio. — Está com bom aspeto. Os músculos devem ter sido afetados pelo veneno e contraíram-se.
Jake acenou com a cabeça. Soava-lhe bem — e ia de encontro ao seu plano. Precisava de ficar para trás quando toda a gente se dirigisse ao estádio para o grande jogo. Uma vez sozinho, tinha uma boa oportunidade de se esgueirar para o templo.
— Talvez seja melhor ficares mais um dia aqui na torre — disse Balam. — É uma pena perderes a Olimpíada.
Jake forçou o seu rosto a uma máscara de desapontamento.
— Vou-me deitar. Talvez à noite me sinta suficientemente bem para ir à festa do equinócio.
Marika tocou no braço do pai.
— Papá, eu posso ficar com o Jake. Não podemos deixá-lo sozinho. E se ele precisar de alguma coisa... ou ficar mais doente?
Jake endireitou-se na cadeira.
— Não, eu fico bem. A sério. Se perdesses a Olimpíada por minha causa, não me perdoaria. Ia ficar a sentir-me horrivelmente culpado.
Mas as sobrancelhas do pai de Marika franziram-se de preocupação. Antes que ele pudesse responder, a estreita porta de serviço abriu-se. Uma pequena forma entrou na sala. Era Bach’uuk, balançando uma grande taça nos seus braços.
— Ah, as papas de aveia... — exclamou Balam. — Põe em cima da mesa, Bach’uuk. Obrigado.
O pai de Marika continuava a olhar para Jake com preocupação.
Quando Bach’uuk pousou a taça sobre a mesa, Marika animou-se de repente.
— E se Bach’uuk ficasse contigo, Jake? Ele de qualquer modo não ia ao jogo. Assim, não ficas a sentir-te culpado.
Antes que Jake pudesse responder, Marika disse:
— Bach’uuk, o Jake está a sentir-se um pouco fraco. Não te importas de ficar com ele até nós regressarmos da Olimpíada?
— Posso fazer isso — respondeu Bach’uuk, fitando Jake fixamente.
Jake levantou-se. Com toda a certeza que não precisava que alguém olhasse por ele, muito menos o rapaz das sobrancelhas espessas. Jake lembrou-se das suas suspeitas anteriores sobre quem poderia ter deixado o cauda-ferrão no seu quarto. Bach’uuk podia tê-lo feito facilmente.
O pai de Marika falou.
— E se houver algum problema, Bach’uuk pode ir a correr às caves do mestre Zahur pedir ajuda. O mestre vai ficar na torre para tratar a caçadora Livia.
O estômago de Jake ficou frio. Sentia o seu plano desmoronar diante de si. Não só seria vigiado pelo estranho rapaz, mas também a outra única pessoa na torre seria aquela que tinha deixado o cauda-ferrão escapar. E se houvesse outro atentado à sua vida?
Jake recalculou rapidamente. Talvez tivesse uma oportunidade melhor se fosse com eles ao estádio. Com toda a gente e o caos, podia despistar os outros e esgueirar-se sozinho para o templo de Kukulkan. Afinal de contas, talvez pudesse salvar os seus planos.
Jake esticou a perna direita e deu alguns passos pela sala.
— Talvez nada disso seja necessário. A minha perna está muito melhor. — Contornou a mesa para o provar. — Se calhar não é uma boa ideia ficar deitado. Talvez fique melhor se me mantiver em movimento. Exercitar a perna. E... e odiaria perder o jogo.
— Tens a certeza? — perguntou o pai de Marika na dúvida.
— Realmente, sinto-a muito melhor. Estava só com cãibras.
Balam animou-se.
— Vamos sair cedo então. Vamos devagar. Mas se te sentires cansado ou se as cãibras voltarem...
Jake acenou com a cabeça vigorosamente.
— Eu aviso, prometo.
— Então vamos acabar as nossas papas de aveia, agarrar nas nossas bandeiras e pormo-nos a caminho do jogo!
Marika aquiesceu com satisfação e começou a servir tigelas cheias de papas de aveia quentes com pedaços de frutos secos, canela e mel.
Esquecido pelos outros, mas com plena consciência de que a sua presença já não era necessária, Bach’uuk retirou-se pela porta de serviço.
Pelo canto do olho, Jake observou-o. Leu a expressão do rapaz. Desapontamento... e uma ponta de raiva.
Jake ficou contente quando ele se foi embora.
— Comam! — disse Balam com animação. — Temos um dia excitante à nossa frente!
Para lá dos portões na muralha do castelo, uma multidão enchia as ruas. Estandartes agitavam-se, as pessoas cantavam e ainda outras dançavam em pequenas paradas.
Marika puxou-o para o lado quando um bando de crianças passou por eles a correr, batendo címbalos e tocando cornetas, perseguidas por um dragão chinês feito de seda carregado por adultos sorridentes. Jake reconheceu os mais novos; tinha-os visto a praticar em frente do seu pagode há dois dias.
Quanto mais avançavam, mais pessoas se comprimiam à sua volta. A necessidade de Jake de chegar à pirâmide pesava-lhe. Tinha de encontrar o momento certo para se escapar. Mas a multidão era compacta.
E outra coisa.
Marika dera-lhe a mão assim que passaram os portões do castelo. Pura e simplesmente, ela receava que ele se perdesse ou que pudesse sentir-se mal de repente. Vigiava-o o tempo todo. O seu rosto estava corado de excitação e o sol dançava nos seus olhos. Na mão livre, agitava uma bandeira carmesim com um glifo maia.
Marika viu-o olhar para ela.
— É a bandeira da equipa maia. Perdemos durante uma das primeiras eliminatórias, mas temos de mostrar o nosso orgulho na equipa.
O mestre Oswin soprava e arquejava atrás deles, forçando-os a andar mais devagar.
— Devia ter ficado com o Zahur — queixou-se o monge inglês a Balam. — Se a caçadora morre, gostava de tentar tirar do corpo dela um dos fragmentos da pedra-de-sangue.
— Nós removemos tudo o que conseguimos ver na primeira noite — disse Balam suavemente. Jake teve de abrandar e deslizar para mais perto para ouvir à socapa. — Mas ela continuou a enfraquecer. Todos os fragmentos que possam ter ficado são demasiado pequenos para serem tirados e só arriscarias envenenares-te se tocasses numa lasca com os dedos sem querer.
Balam bateu numa bolsa pesada que trazia pendurada no cinto.
— Tenho o cristal fala-longe de Zahur. Se houver qualquer problema, ele dir-nos-á. Até lá, não vamos lançar sombras sobre este dia claro.
— É justo. — Oswin pôs a mão aberta sobre a sua ampla barriga. — E já saltei as papas de aveia para deixar espaço para o jantar no palácio de Tiberius. Os romanos sabem realmente como organizar um grande banquete!
— Primeiro têm de ganhar — retorquiu Balam com pouca esperança na voz. — Os sumérios derrotaram a nossa equipa sem perder um único ponto. São fortes e estão determinados a ganhar a Tocha Eterna para a sua tribo.
Agora, o seu grupo tinha chegado à saída da cidade, e o rio de pessoas era ainda mais compacto. Ainda de mão dada com Marika, Jake foi puxado pela maré da multidão que fluía pelo portão norte da cidade.
Visto dali, o enorme estádio parecia definitivamente um coliseu romano. Rebocado a branco e pintado em tons de ouro, brilhava com uma claridade ofuscante ao sol do meio-dia.
Arcadas maciças rodeavam o estádio e abrigavam enormes gigantes de pedra. Seguindo a multidão, Jake encontrou-se perante a estátua de Zeus, apoiada sobre um raio. Os seus ombros pareciam carregar o peso de toda a secção superior do estádio. Jake avistou outra estátua — Odin, o principal deus nórdico. Calculou que cada uma das tribos teria aqui algum símbolo seu esculpido na pedra.
À medida que continuavam a andar em direção ao estádio, alguém chamou por eles.
— Ei! Aí estão vocês!
Pindor acenou e dirigiu-se a eles. Quando chegou ao pé deles, Marika largou finalmente a mão de Jake. Ele esfregou a mão no seu casaco, ambos aliviados por estarem livres... mas também um pouco desapontados. O olhar de Marika dizia que talvez ela não estivesse a segurar-lhe a mão só para não o perder entre a multidão.
A este pensamento, Jake sentiu-se de súbito mais leve, porém os cadernos dos seus pais no casaco lembraram-lhe o seu dever. Não podia distrair-se. Tinha de chegar ao templo hoje.
— É melhor apressarmo-nos — disse Pindor com o rosto a brilhar com a excitação de tudo aquilo.
Jake olhou para trás, para a cidade, depois olhou para a multidão à sua volta. Talvez pudesse escapar quando entrassem no estádio. O amontoado de gente oferecer-lhe-ia uma boa oportunidade para se esgueirar.
— A tua irmã Katherine já está lá dentro — disse Pindor a Jake, atraindo a sua atenção.
Jake acenou com a cabeça. Talvez fosse melhor esperar até falar com Kady antes de tentar fugir. Ela devia saber o que ele planeava fazer. Talvez até pudesse ajudar.
Jake revirou os olhos com este último pensamento — sim, ele estava assim tão desesperado.
17
PRIMEIRA ESCARAMUÇA
Jake saiu de um curto túnel escuro para a luz do estádio. Este já pulsava com as vozes excitadas da multidão ali concentrada. Ao longo dos três níveis de assentos, estandartes e bandeiras agitavam-se, formando uma manta de retalhos de cores em volta do campo à medida que as tribos se instalavam nas suas áreas. Mesmo o rebordo do estádio estava à cunha com os Raz alados e o Povo do Vento.
— Por aqui! — urgiu Pindor, quase arrastando Jake atrás dele. Marika apressou-se a segui-los.
Pindor conduziu-os para a frente da secção romana, onde alguns lugares vazios os aguardavam. Jake e Marika apressaram-se para a primeira fila. Os dois mestres instalaram-se na fila atrás deles, suspirando com satisfação.
Pindor recusou-se a sentar-se e ficou de pé junto à vedação ao fundo das bancadas. Jake e Marika juntaram-se a ele.
Em cada lado do campo estavam duas equipas de Othnielia. Cada animal estava selado. Homens e mulheres afadigavam-se à volta deles, ajustando correias e verificando cada montada. A equipa romana usava faixas brancas com o raio de Zeus a vermelho. Na outra ponta do campo estavam os sumérios. Usavam lenços pretos que cobriam a parte inferior dos seus rostos. Já estavam a subir para as selas.
— Não demora muito agora — disse Pindor.
Marika olhou para o Sol no céu e concordou.
— Estamos quase a meio do dia do equinócio.
O centurião Gaius apareceu de repente no degrau ao lado deles. Chamou Jake.
— Recebi ordens para te vir buscar e levar-te a ver a tua irmã antes que a Olimpíada comece.
Jake viu que os apoiantes dos viquingues se tinham sentado numa secção vizinha. Eles acenavam com bandeiras azul-mar com um olho prateado no centro.
Jake seguiu o homem corpulento por um conjunto de degraus estreitos. A areia rangia por baixo dos seus pés ao contornarem o campo. Na ponta mais remota da secção viquingue, avistou um grupo de raparigas mais velhas que usavam elmos com chifres, túnicas verdes e calções.
À aproximação de Gaius, algumas raparigas endireitaram as túnicas ou inclinaram-se para sussurrar e apontar para o guarda alto e de ombros largos. Jake procurou Kady.
Então o grupo de raparigas abriu caminho diante do centurião, e Jake viu-a. Kady estava inclinada contra um muro ao lado de um portão. Um dos cavaleiros romanos encontrava-se ao lado dela, com um braço na parede. O romano inclinava-se para ela como se estivesse prestes a beijá-la.
— Heronidus — gritou Gaius.
O irmão de Pindor virou-se e pôs-se em sentido.
Gaius apontou para o portão.
— Não devias estar a verificar a tua montada em vez de estar a fazer olhinhos a uma rapariga?
— Não... Quero dizer, sim, centurião Gaius.
— Então, sugiro que o faças.
Heronidus bateu com o punho no seu peito, depois virou-se e escapuliu-se dali. Kady endireitou-se. Ela tinha uma bandeira enrolada na sua mão, provavelmente um presente de Heronidus. Pelo menos teve a decência de corar ao dirigir-se a eles.
Jake abanou a cabeça. Nada muda. Mesmo nesta terra estranha, Kady já andava a namorar com o capitão da equipa.
— Jake — exclamou ela, aproximando-se. — Ouvi que foste picado por alguma coisa. Estás...?
Ele interrompeu-a.
— Não há tempo para explicar, mas penso que alguém tentou matar-me. Deixaram um escorpião enorme na minha cama.
Os olhos dela abriram-se mais e ficaram mais brilhantes.
— O quê? — Ela puxou a manga da camisa dele. — O que aconteceu?
Ele mudou para a sua língua.
— É uma longa história... com montes de buracos nela. Mas preciso da tua ajuda.
— Como? A fazer o quê?
— Com toda a gente aqui no estádio, agora é a melhor e provavelmente a única oportunidade para me esgueirar para aquela pirâmide e verificá-la. Preciso de uma manobra de diversão. Uma barafunda ou coisa do género. Qualquer coisa de modo que eu possa escapar-me sem que ninguém veja.
— Está bem.
— Está bem o quê?
Ela anuiu.
— A minha claque e eu havemos de nos lembrar de alguma coisa.
— A tua claque?
Jake ficou a olhar para o grupo de raparigas viquingues. Só agora é que ele reparava que todas elas tinham o cabelo apanhado numa trança francesa, exatamente como Kady.
— O que é que vais...?
Ela fez um gesto para ele se ir embora.
— Ainda não sei exatamente. Mas fica atento a um sinal meu e põe-te a andar.
Antes que ele pudesse pedir mais esclarecimentos, soou um gongo, seguido por um tambor.
O centurião Gaius dirigiu-se a eles.
— É melhor voltares para o teu lugar. A Olimpíada está a começar.
Uma vez de volta para junto de Pindor e Marika, Jake ficou a ver as duas equipas tomarem as suas posições em lados opostos do campo. Havia sete jogadores em cada equipa. Os sáurios bufaram e sacudiram os seus pescoços compridos. Os cavaleiros gritaram uns aos outros as instruções de última hora. A multidão ficou silenciosa em antecipação. O troar de quatro grandes tambores — um em cada lado do estádio — podia ser sentido no peito de Jake.
Pindor inclinou-se por cima da vedação. Marika mordeu o nó dos dedos.
Os seus amigos tinham tentado explicar as regras do jogo a Jake, mas ele mal lhes prestara atenção. Tudo o que sabia é que a primeira parte da Olimpíada era chamada escaramuça.
Um corno tocou uma única e longa nota, e de cima um dos poderosos Raz levantou voo do local mais alto da coroa do estádio. Uma bola carmesim, do tamanho de uma abóbora, foi lançada para o solo de areia.
O que se seguiu parecia caos puro, uma briga de animal e cavaleiro pela bola, mas devia haver algum tipo de estratégia.
— Oh, não — gemeu Pindor. — Eles vão fazer a manobra de arrastar... será que o Heron não vê!
Um forte aplauso subiu do campo dos sumérios e dos seus apoiantes. Os estandartes subiram mais alto ali e as bandeiras foram freneticamente agitadas. Os romanos gritaram e resmungaram.
Pindor não perdeu o entusiasmo.
— É só a escaramuça! Que interessa os sumérios terem ganhado a primeira bola? Não é o fim do jogo... apenas o princípio.
Porém, os romanos não se saíram melhor na jogada seguinte.
— Atenção ao homem à esquerda! — gritou Pindor. — Ele está a cortar para o passe.
De novo, Pindor provou que sabia do que falava. Heronidus atirou a bola, mas esta acabou na mão do adversário. O sumério ziguezagueou entre mais dois romanos e, usando os braços como se fossem pistões, atirou a bola para a baliza dos romanos. Gemidos espalharam-se pelo campo romano.
Pindor deixou-se cair no seu lugar enquanto as equipas se reagrupavam.
— Porque é que ninguém me ouve?
Marika aproximou-se dele.
— Porque não te podem ouvir.
Pindor cruzou os braços. Ele podia ficar nervoso junto dos grandes sáurios por causa do seu acidente, mas claramente compreendia o decorrer e a estratégia do jogo. Provavelmente melhor do que o seu irmão. Mas isso não o punha em cima da sela.
No silêncio da sua cabeça, Jake ouviu uma voz abafada.
— Mestre Balam, consegue ouvir-me?
Jake deu meia-volta. O pai de Marika tateou desajeitadamente a bolsa pendurada do seu cinto. Abriu os cordões e tirou dela a pequena estrutura que segurava o pedaço de cristal verde numa teia de seda.
— Mestre Balam... — retiniu o cristal um pouco mais urgentemente.
Balam debruçou-se sobre o cristal com Oswin. A sua posição agachada deixou o fala-longe mais perto de Jake.
Jake endireitou-se no seu assento e fingiu não estar a ouvir, mas Marika tinha-se aproximado e agarrou na mão de Jake. A chamada era do mestre Zahur. Os dois ficaram imóveis, tentando não perder uma palavra.
— Estou a ouvir-te, Zahur. Qual é o problema?
— É a caçadora Livia. Nestes últimos minutos, parece ter ficado louca, está a destruir tudo e a gemer. Debate-se desvairadamente. Entre os gemidos, palavras ininteligíveis saem da sua boca como bolhas numa tigela de papas de aveia demasiado aquecida. Murmura e agarra-se a mim, como se estivesse a tentar comunicar, mas não consegue fugir das sombras que a possuem.
Oswin resmungou no seu lugar.
— Eu disse-vos que devíamos ter feito mais para tirar as últimas lascas.
Não o ouvindo, Zahur continuou.
— É como se ela soubesse que a morte está a chegar, mas luta até ao último fôlego para dizer o que sabe.
Jake sentiu um aperto nas entranhas ao ouvir estas palavras. Lembrou-se da cabeça de Livia no seu colo, dos seus olhos azuis, tão parecidos com os da sua mãe. Jake não conseguia evitar sentir-se ligado a ela, compelido tanto pelo derramamento de sangue como pelo juramento que fizera.
Balam tocou no cristal.
— Zahur, não há mais nada que possas fazer por ela?
— Não. Acabou. A sua morte agora vem em asas rápidas.
Oswin levantou-se, dando um encontrão nas costas de Jake.
— Não aguento mais. Vou regressar a Kalakryss.
Balam anuiu e falou para o cristal.
— Oswin e eu vamos ter contigo, Zahur. Não sei que mais possamos fazer além de oferecer o nosso apoio e estar com ela até ao fim. Ela morrerá se os bocados partidos da pedra-de-sangue não desaparecerem miraculosamente da sua carne.
— Eu compreendo.
Balam terminou a chamada e voltou a guardar o dispositivo na sua bolsa. Inclinou-se e pôs uma mão nos ombros de Jake e Marika.
— Tenho de regressar a Kalakryss — disse ele.
— Mas papá...
O pai levantou-se.
— Fica e diverte-te com a Olimpíada. Vou fazer o possível para ir ter contigo ao palácio de Tiberius para a festa. — Acenou a Gaius. — Centurião, pode ter a amabilidade de tomar conta da minha filha e do jovem Jake? E escoltá-los depois do jogo?
— Certamente, mestre. É uma honra.
— Papá... — tentou Marika mais uma vez, mas o pai já se afastara com Oswin.
O centurião Gaius sentou-se num dos lugares atrás de Jake e Marika.
Soou um corno no campo e os cavaleiros voltaram a subir para as selas para o segundo tempo.
Pindor pôs-se de pé novamente. Era o único romano que mostrava tanto entusiasmo. Mesmo o seu pai permaneceu sentado, resignado com a derrota. Jake tentou juntar-se a Pindor, mas Marika agarrou no seu braço e puxou-o para trás.
Ela inclinou-se para ele.
— Ouviste o que o meu pai disse?
Jake franziu as sobrancelhas, mas anuiu.
— Não parece estar a correr bem.
— Não, não essa parte. No fim. Quando o meu pai disse que a única esperança de Livia residia num milagre. Que, se os bocados da pedra-de-sangue desaparecessem de repente, ela poderia viver.
Ela cravou o olhar em Jake, mas ele continuava a não perceber. Ela leu a falta de compreensão no seu rosto e suspirou.
— As tuas bat-trias e os seus poderes de eletra-cidade, que consumiram o cristal rubi no Astromicon.
Jake pestanejou, lutando para acompanhar a rapidez do seu pensamento. Lembrou-se do cristal rubi do tamanho de um ovo de ganso a encolher e a desaparecer. Mas também se lembrou da destruição que provocara antes de isso acontecer: o buraco no meio da mesa, a pedra queimada.
Marika aproximou-se ainda mais de Jake.
— Podes lançar o teu poder sobre a carne dela e fazer desaparecer aqueles bocados da mesma maneira?
— Talvez. — Ele pensou rapidamente. O que aconteceria se desse um choque na ferida da caçadora? Se a abalasse com eletricidade? Ainda se lembrava do buraco no bronze.
— Também a podia matar.
— Ela vai morrer de qualquer maneira.
Isso podia ser verdade, mas Jake não queria ser ele a causa da morte dela. E se alguma coisa corresse mal?
— Pelo menos, podíamos falar com o meu pai — insistiu ela. — Deixa que ele decida.
Jake hesitou. Quando o mestre Balam soubesse da quase catástrofe no Astromicon, Jake podia dizer adeus a qualquer possibilidade de visitar a pirâmide. Mas podia deixar alguém morrer para manter aquele segredo? E ele tinha feito uma promessa. Se havia a mínima hipótese de salvar a caçadora...
Marika leu a determinação no seu rosto.
— Então vamos dizer ao meu pai.
Jake anuiu. Os dois levantaram-se ao mesmo tempo e começaram a andar para a ponta da bancada, mas alguma coisa apertou o ombro de Jake. Ele virou-se e deu de caras com o centurião Gaius a olhar para eles. Tinha uma mão no ombro de Marika também.
— Ninguém vai a lado nenhum — disse Gaius, e empurrou Jake e Marika de volta aos seus lugares.
Marika virou-se para Jake, uma pergunta patente no seu rosto.
O que vamos fazer?
18
CORRIDA ATRAVÉS DA CIDADE
Jake sentia os olhos do centurião na sua nuca ao mesmo tempo que tentava pensar numa forma de se escapar. Gaius não seria facilmente enganado. Para piorar as coisas, o jogo ia a caminho de uma derrota.
De súbito, um coro de vozes gritou:
— Muito bem! Toda a gente de pé! Agora não é altura de aceitar uma derrota!
Jake obedeceu, não por submissão, mas por uma férrea sensação de horror. Juntou-se a Pindor junto à linha lateral e olhou para a ponta do campo.
Oh, não...
Uma formação de raparigas viquingues encontrava-se aí. Como Jake receava, Kady estava à frente. Apoiava-se numa perna com os braços erguidos em V. As raparigas atrás dela imitavam-na.
Kady baixou os braços à altura dos ombros e apontou para a assistência.
— Vamos, romanos! Vamos! — Ela acenou para a fila das jovens da claque para que continuassem o cântico, enquanto ela se aproximava mais das bancadas e entoava: — Mostrem o vosso espírito. — Ela moveu os braços para cima e para baixo, em sincronia com o cântico, incitando a multidão a segui-la. — Vamos, romanos! Vamos!
Os olhos de Kady encontraram Jake e fixaram-se intensamente nele. Ele percebeu. Alguém tinha de começar aquilo. Jake aclarou a garganta e no refrão juntou-se a elas.
— Vamos, romanos! Vamos!
Deu uma cotovelada a Pindor, que desajeitadamente começou a cantar. Marika juntou-se a eles uns segundos depois. Lentamente, o cântico alastrou-se ao seu grupo e para lá dele.
— Batam os pés! — gritou Kady. — Ao ritmo! Vamos, romanos! Vamos! — Ela e a claque deram o exemplo batendo os pés no fim de cada refrão.
Jake não precisou de ser o primeiro desta vez. Em segundos, as bancadas tremiam com o bater das botas. As pessoas puseram-se de pé, gritando com ela.
Kady encorajava-os batendo as mãos sobre a sua cabeça.
O seu esforço não foi em vão. No campo, a equipa romana captou o entusiasmo e lutou com mais determinação pela bola. Heronidus saltou com a cabeça para baixo para fora da sela e apanhou um passe perdido. Voltou a aterrar na sela com a bola sob o braço. A sua equipa fechou numa formação cerrada à sua volta e juntos lançaram através de um ponto fraco na linha dos sumérios. Heronidus fez voar a sua bola. Ela elevou-se bem alto, escapou dos dedos de um defesa e navegou a direito através dos anéis da baliza.
As bancadas ficaram em delírio à volta de Jake. Já inflamados pela claque, a multidão aproximou-se mais da linha do campo.
Em baixo, Kady apontou para Jake, depois para o céu. Prepara-te para ir, indicou ela silenciosamente.
Ela acenou com o outro braço para a claque. A equipa espalhou-se mais e formou uma linha que se estendia até meio do seu lado do campo.
— Mesmo em cheio! — gritou Kady. — Vamos, romanos! Vamos mostrar-lhes o que valemos!
A um sinal seu, as raparigas caíram sobre um joelho uma a uma ao longo da linha, depois voltaram a erguer-se. Fizeram isto repetidamente para a frente e para trás. Jake reconheceu que estavam a fazer a onda. Fora do campo, à direita, a secção viquingue retomou a onda, levantando-se dos seus lugares com um grito, depois sentando-se de novo.
Kady animou a secção de Jake para fazer o mesmo.
— Vamos, romanos! Mostrem o vosso espírito! — Ela fez a dança em baixo, agachando-se e levantando-se com a claque. — De pé... ou enfrentem a derrota!
Com a onda seguinte, os romanos entusiasmados apanharam o ritmo e estenderam a onda. O cântico continuou e a onda fluiu para trás e para a frente com gritos de apoio.
Jake olhou por cima do ombro. Gaius estava bloqueado pelos seus compatriotas romanos, forçado a erguer-se e a descer com a onda. Jake virou-se para Marika.
— Prepara-te! Na próxima onda!
— O quê?
Jake agarrou Marika pelo cotovelo e arrastou-a para baixo, deslocando-se a coberto da onda que se erguia à volta deles. Ela agarrou numa ponta da toga de Pindor e forçou-o a segui-los.
Ele protestou.
— Fica calado! E corre! — urgiu Marika.
Juntos, correram para o túnel da saída, esgueirando-se por entre as pessoas que continuavam a empurrar para chegar à parte da frente das bancadas.
Rapidamente, chegaram ao túnel. Pindor mantinha-se a par deles, mas continuava a olhar para trás.
— Para onde é que vamos? — gritou ele para Jake e Marika.
— Vamos voltar a Kalakryss! — respondeu Marika.
— O quê? Porquê?
Eles saíram disparados do estádio e meteram-se pela rua empedrada que os levaria de volta à cidade. Pindor abrandou ao ouvir uma grande aclamação à equipa romana.
— Marika Balam! Jacob Ransom! Pindor Tiberius! Apareçam já! — chamou Gaius.
Jake correu ainda mais depressa ao lado de Marika, mas Pindor ultrapassou-os com as suas pernas compridas. Viraram uma curva para uma área onde estavam paradas carroças e bigas.
— Por aqui! — chamou Pindor mais à frente, junto de uma biga de duas rodas atrelada a um dinossauro pigmeu. Saltando para a biga, indicou a Marika o poste onde os animais estavam presos.
— Hum... podes soltar as rédeas?
Marika fê-lo rapidamente e juntou-se a Jake e a Pindor na biga.
Pindor deu uma palmada nos quartos traseiros do dinossauro para ele começar a andar.
— Aié! Mexe-te, coxas grossas!
Estalou o chicote no ar e a besta andou mais rapidamente, com o pescoço esticado junto ao chão. À medida que ganhavam velocidade e o sacolejar da biga piorava, Jake achou uma maneira fácil de se equilibrar com os joelhos ligeiramente fletidos e as pernas afastadas.
— Aié!
A biga andou ainda mais depressa, voando agora através dos portões da cidade. Pindor podia ficar nervoso quando tinha sáurios por perto, mas claramente sabia como conduzir uma biga.
Pindor continuou a um ritmo imprudente pela estrada principal. Com a cidade quase deserta, não precisava de abrandar. Os edifícios passavam por eles à velocidade de relâmpagos.
— Mas porque é que estamos a fugir do centurião Gaius?
— Para ajudar a caçadora Livia.
— O quê?
Marika explicou-lhe resumidamente o que queriam fazer.
— Levar emprestada esta biga foi bem pensado, Pin — rematou ela. — Assim até talvez consigamos apanhar o meu pai e o mestre Oswin.
Mesmo com o cumprimento, Pindor ficou pálido. As suas mãos firmes nas rédeas falharam. Bateram de lado numa tenda de venda de fruta e mandaram uma fonte de melões de casca grossa pelo ar. Pindor fez um gesto com a mão na direção do coliseu que ficara para trás.
— Eu pensava que estávamos em apuros ali! A fugir para salvar as nossas vidas! Mas não! Tudo isto não passava de uma ideia idiota de usar a ci-enzia para curar a caçadora Livia. Pelos joelhos de Júpiter, isso é pura loucura!
Marika bufou.
— Vamos deixar que seja o meu pai a decidir, Pin! Limita-te a conduzir! — Ela apontou para o castelo.
Uma estranha tensão instalou-se na biga. Jake sabia que aquilo se devia a estarem todos assustados — tanto pelo que tinham deixado para trás como pelo que os esperava. Iriam meter-se em sérios sarilhos se Pindor tivesse razão e toda a ideia fosse um disparate.
Se falhassem, Jake perderia qualquer hipótese de entrar na pirâmide. Mas ele não podia deixar a caçadora Livia morrer por não ter tentado. Sabia que o seu pai e a sua mãe fariam o mesmo. Kady, por outro lado, tinha-se dado a muito trabalho para o ajudar a fugir. Ela ficaria zangada se descobrisse que ele nunca tinha chegado à pirâmide.
Ele não tinha escolha.
— Depressa! — gritou Marika enquanto corriam para salvar a caçadora. — Toda a gente já deve estar lá em baixo nas caves.
Ela precipitou-se pelas escadas abaixo, algumas vezes saltando dois degraus de uma só vez. Jake sabia o que a preocupava. E se já fosse demasiado tarde? Marika tinha uma expressão arrasada, culpada... como se devesse ter tido aquela ideia mais cedo.
As caves ficavam mais fundo do que Jake esperava. Marika passou dois patamares com portas, mas continuou a descer. A pedra acinzentada tornou-se preta à volta das escadas de caracol, possivelmente chamuscadas pelos antigos incêndios que tinham feito desaparecer a cela do Rei Caveira.
— É já ali à frente — disse Marika, sem fôlego. Apontou para onde as escadas finalmente acabavam junto de uma porta ligeiramente aberta.
Ela chegou lá primeiro, bateu com força e chamou:
— Mestre Zahur! Pai!
Jake e Pindor juntaram-se a ela no patamar. A única luz vinha de um par de tochas de ferro de cada lado da porta. As pancadas de Marika tinham aberto mais a porta.
Jake espreitou lá para dentro e viu que havia mais escadas que desciam ainda mais. A claridade das tochas do patamar estendia-se o suficiente para revelar a sala comum em baixo. Conseguia ver a forma escura de uma mesa e uma cadeira.
— Mestre Zahur? — chamou Marika de novo, parecendo menos segura.
Apenas o silêncio lhe respondeu.
— Talvez eles tenham voltado para as caves ainda mais em baixo — disse Pindor. — Ouvi que aquilo é um autêntico labirinto.
Ao ouvi-lo, Marika moveu-se devagarinho, mas a sua preocupação por Livia fê-la avançar.
Jake seguiu-a muito de perto.
— Talvez eles a tenham levado para outro lado. Talvez lá para cima, para tua casa, ou para o Astromicon.
Ou talvez Livia já estivesse morta.
Quando entraram na sala comum, ouviram um gemido espectral. Alguém estava ali em baixo.
— Acendam as luzes — disse Marika.
Pindor procurou ao longo da parede perto das escadas. Jake fez o mesmo na outra.
— Encontrei uma — disse Pindor.
Jake ouviu um zunido quando o seu amigo acendeu a lâmpada com a unha. Tudo continuou às escuras. A mão de Jake encontrou outra tocha na parede do seu lado. Ele tateou, encontrou o pedaço de cristal e bateu ao de leve na lâmpada.
Nada.
— Não funciona — disse Pindor.
O raspar de uma bota chamou a atenção de Jake. A porta no cimo das escadas fechou-se com um estrondo. A luz na entrada apagou-se, e uma escuridão negra caiu sobre eles.
— Ei! — gritou Pindor, chocando com Jake. — Estamos aqui em baixo!
Jake agarrou Pindor pelo braço.
— Fica calado! — Uns passos afastada, Marika gritou de medo.
Pindor tentou libertar-se de Jake.
— O que estás...?
Jake apertou com mais força, silenciando-o.
Depois, ouviu outra vez. Um zumbido ténue... como o de mil abelhas. Jake reconheceu aquele som. Tinha-o ouvido a meio da noite. Um cauda-ferrão. Um dos escorpiões voadores. Então, sobre a sua cabeça, Jake ouviu um igualmente familiar scritch-scritch de garras, como se alguma coisa rastejasse ao longo do teto. Outro cauda-ferrão.
— Marika — murmurou Jake. — Chega aqui.
Ele empurrou Pindor para as escadas.
— Tenta a porta.
Ao mesmo tempo que Marika rastejava para junto dele, mais zumbidos elevaram-se da escuridão. Jake lembrou-se do comentário de Zahur sobre o cauda-ferrão desaparecido que acabara no quarto de Jake — de que ele era um de seis.
O zumbido tornou-se mais alto e foi respondido por outros na escuridão, tornando-se um coro letal.
Jake saltou quando Marika chocou com ele.
— Caudas-ferrão — murmurou ela ao seu ouvido.
No topo das escadas, Pindor soltou um murmúrio frenético.
— Está fechada.
Jake e Marika recuaram para longe do arranhar de garras e do zumbido de asas. Não tinham armas... nem maneira de sair dali.
19
ARMADILHA MORTAL
Marika e Jake bateram em retirada da sala comum e subiram três degraus das escadas da cave. Pindor quase caiu ao descer para se juntar a eles vindo da porta trancada. Não havia saída por ali. Jake permaneceu imóvel no degrau. Não queria ser apanhado nas escadas quando meia dúzia de escorpiões voadores saíssem da escuridão.
Precisavam de armas... e de luz.
Então Jake lembrou-se. Ele tinha guardado a lanterna no bolso das calças depois do desastre no Astromicon. Lutou para desabotoar o bolso e, frustrado, acabou por o rasgar. O botão saltou e voou pela sala.
Jake agarrou na lanterna e carregou no interruptor. Um feixe de luz brilhante rasgou a escuridão. Pindor arquejou de surpresa e quase caiu de costas.
Marika agarrou no braço de Jake.
Com a explosão de luz, todos os zumbidos e arranhadelas pararam.
— Temos de descobrir um lugar para nos escondermos — disse Jake. — Um lugar onde esses caudas-ferrão não consigam chegar.
— Pindor tinha razão quando disse que isto aqui em baixo era um labirinto. — Marika apontou. — Há mais salas para lá desta. Se conseguirmos chegar ali...
Mas para isso era necessário atravessar a sala comum.
Jake engoliu em seco. A lanterna só lançava um fio de luz. A escuridão que os rodeava parecia ainda mais escura agora. À medida que apontava a lanterna para um e outro lado, as sombras saltavam e tremiam. A luz parecia criar mais esconderijos, não menos.
Porém, a luz acabou por revelar uma porta fechada à sua frente. Tinham de correr para ela. Era a sua única oportunidade. No entanto — e se estivesse trancada? E se para lá dela houvesse coisas mais horríveis que os caudas-ferrão? Quem sabia que mais Zahur tinha escondido nas suas jaulas ali em baixo?
Um gemido baixo respondeu-lhe. Jake tinha-se esquecido de ter ouvido aquele mesmo gemido antes. O ruído parecia vir de trás daquela porta.
— Está alguém aqui — murmurou Marika.
Mas isso era bom ou mau?
Jake arriscou-se a sair das escadas para o chão. Moveu a lanterna para todos os lados. Procurou no chão, em cima da mesa e no teto com as suas vigas sombrias. Um indício de movimento atraiu o seu olhar para as luzes penduradas no teto. Uma das correntes oscilou e revelou uma massa preta presa nela.
Jake iluminou o cauda-ferrão com a lanterna. Quando a luz o atingiu, as asas do monstro abriram-se e puseram-se em movimento com um furioso zumbido. A sua cauda com espigões de ferro empinou-se. Irritado com a luz, o cauda-ferrão voou do seu poleiro e mergulhou na direção de Jake.
Este saltou para trás, esbarrando em Marika e Pindor. O escorpião atingiu o sítio onde Jake estivera — e despedaçou-se em mil pedaços como um copo partido.
A sua cauda venenosa saltou e deslizou para o fundo das escadas.
Depois de um momento de espanto, Pindor perguntou:
— O que aconteceu?
Jake aproximou-se e tocou na cauda com um dedo. Era sólida como uma pedra e fria ao tato. Tocou de novo. A coisa estava congelada, como se tivesse sido mergulhada em hidrogénio líquido. O que poderia ter feito aquilo?
— A tua vara de luz — respondeu Marika à sua pergunta muda. A luz da lanterna de Jake brilhava sobre uma jarra de vidro para flores em cima da mesa. As flores, antes frescas e verdejantes, agora estavam escuras e cobertas de geada. De súbito, a jarra explodiu e gelo tilintou em cima da mesa.
— A tua vara de luz — insistiu Marika. — A bat-tria que puseste dentro dela! Veio do dispositivo do Astromicon.
Jake lembrou-se de ter posto a bateria no cesto de bronze e tê-lo metido na máquina — juntamente com um pedaço de cristal azul, o mesmo cristal conhecido pela sua capacidade de arrefecimento. Ele pensara que o cristal tinha sido consumido pela máquina, mas agora percebia.
Vermelho e verde fazem amarelo.
— A bateria e o cristal fundiram-se! — As propriedades do cristal e a carga da bateria tinham-se de alguma forma ligado e criado um feixe de luz que congelava.
Jake começou a levantar a mão para o feixe de luz a fim de o testar, mas Marika agarrou-lhe o pulso.
— Não! Não faças isso!
Jake baixou a mão. A escuridão escondeu o seu rubor de embaraço. Que coisa estúpida de fazer! Podia ter ficado com os dedos congelados. Manteve o feixe de luz apontado para a sua frente. Agora eles tinham uma arma — pelo menos enquanto a bateria tivesse carga. Mas quem sabia quanto tempo duraria ela?
— Fiquem atrás de mim — disse Jake a Marika e Pindor. — Temos de chegar àquela porta mais afastada.
Jake entrou na sala apontando a lanterna para a direita e para a esquerda. Ao aproximar-se da mesa, um scritch-scritch alertou-o. Ele saltou para trás quando outro cauda-ferrão surgiu de baixo de uma cadeira, com a cauda erguida a pingar veneno.
Jake apontou a luz para ele. As suas pernas gelaram imediatamente, mas o ímpeto com que avançava manteve o seu corpo a deslizar pela pedra. O veneno na ponta da sua cauda tinha-se transformado em pingentes de gelo. Jake deu um pontapé rotativo de taekwondo, enviando o escorpião pelo ar.
Rodando, Jake procurou à sua volta com a lanterna.
Se todos os cinco escorpiões de Zahur tinham sido libertados, havia ainda três a correr por ali — ou a voar. O ataque seguinte veio das traves do teto e de cima do guarda-fato. Com um agitar de asas, os monstros mergulharam de duas direções diferentes.
Jake não podia parar os dois.
Apontou a sua luz a um deles e tentou manter o feixe de luz nele tempo suficiente para o congelar. O ruído de asas parou a meio, e o escorpião caiu como uma pedra em cima da mesa. Apesar das pernas quebradas debaixo dele, o seu corpo permaneceu intacto como um incongruente centro de mesa.
Jake tentou dirigir a luz para o outro atacante a tempo de o congelar, mas, quando se virou, Pindor estava a dar um murro ao escorpião. Este aterrou de costas, com as pernas a agitarem-se e as garras a estalarem. Pindor cambaleou para trás. Jake lançou-se para a frente e usou um pontapé circular para atingir a barriga do escorpião com o calcanhar.
— A porta! — disse Jake, e fez um gesto aos outros para avançarem. Havia ainda um cauda-ferrão por ali.
Marika abriu a porta. A sala seguinte parecia uma pequena enfermaria, com uma cama estreita, prateleiras com frascos de vidro e uma mesa com ligaduras, tesouras e recipientes com pomadas. O cheiro da sala era acre, possivelmente dos remédios que eram usados ali.
Marika gritou.
Jake viu logo porquê. A caçadora Livia estava deitada na cama debaixo de um cobertor fino. Estava tão pálida como um fantasma. A sua pele tinha um brilho prateado, quase translúcido sob a ténue luz de um candeeiro minúsculo à cabeceira da cama.
Em cima do seu peito, agachava-se o último escorpião. A sua cauda venenosa arqueava-se bem alto, pronta a atacar. Jake receava apontar a luz da lanterna para a criatura. A dispersão do feixe de luz podia também congelar Livia.
— Recuem — murmurou Jake ao mesmo tempo que desligava a lanterna. Deslizou entre os seus dois amigos e agachou-se, dando três passos cuidadosos na direção da cama. Tinha de se aproximar.
À sua chegada, o cauda-ferrão ficara tão imóvel quanto uma estátua, cauteloso, avaliando a ameaça. A única coisa que se mexia eram os seus olhos negros assentes em minúsculas hastes, que giravam em todas as direções.
Jake só precisava de dar mais um passo — mas era demasiado tarde.
A cauda lançou-se para a frente como uma cascavel a atacar. Mergulhou para a delicada garganta de Livia. Jake estendeu o braço para a frente e carregou no interruptor da lanterna. A ponta desta estava a menos de três centímetros do espigão quando este mergulhou para a garganta da mulher.
Marika arquejou e Jake ficou imóvel. O escorpião retirou a cauda a pingar sangue da garganta de Livia e recuou, tentando escapar ao contacto gelado da luz. Mas Jake torceu o pulso e fez incidir o feixe de luz nos seus olhos. As pernas do escorpião agitaram-se de súbito em espasmos e convulsões. Garras rasgaram buracos no cobertor. Então, com um estremecimento final, ele colapsou como uma marioneta a que tivessem cortado os fios.
Jake tinha transformado o seu cérebro em gelo.
Com um arrepio, Jake tirou a criatura de cima da caçadora. Marika correu para ele. Pindor também se juntou a ele, mas não sem antes pisar o cauda-ferrão, para se assegurar de que estava morto.
— Picou-a! — gemeu Marika.
Jake desligou a lanterna e inclinou-se sobre a mulher na cama. Sangue pingava da sua garganta. Jake examinou a ferida. O ferrão não tinha atingido nenhum órgão vital. Com um curativo, sararia.
— O veneno vai matá-la numa questão de segundos — disse Marika.
Jake viu o peito de Livia subir e descer sob o cobertor.
— Talvez não, Mari. Fiz a única coisa que podia fazer. Congelei primeiro a ponta da cauda. Com sorte, o veneno congelou e ficou preso no ferrão.
Uma esperança ténue brilhou nos olhos de Marika.
— Vamos ficar a saber em breve.
Ficaram ali numa vigília silenciosa. Jake aproveitou o tempo para pôr gentilmente uma compressa no ferimento da garganta dela, mas o sangue já quase não pingava. Ao fim de três minutos, Marika olhou para Jake com os olhos brilhantes.
O peito de Livia continuava a subir e a descer, fraco, mas não mais fraco que anteriormente.
— Acho que ela vai ficar bem — disse Marika.
Sempre prático, Pindor toldou a sua esperança.
— Pode ser que não tenha sido envenenada pelo cauda-ferrão, mas aquelas lascas da pedra-de-sangue ainda estão dentro dela.
Confirmando isto, a caçadora gemeu. Levantou uma mão e bateu no candeeiro da mesa de cabeceira. De repente, ficou muito agitada, frenética. As suas pálpebras abriram-se, mas não via. Só o branco dos seus olhos aparecia.
— Temos de a ajudar! Mas o que é que fazemos? — Marika procurou pelo quarto, parecendo perdida. — Onde está o mestre Zahur? Ou o meu pai e o mestre Oswin?
Jake abanou a cabeça. Não tinham visto qualquer sinal de um mestre.
— Talvez ainda não tenham chegado aqui?
Uma ponta de histeria perpassou na voz de Marika.
— Mesmo que tivessem vindo a andar, devíamos tê-los visto da biga.
— Não, penso que eles já chegaram — disse Pindor. Ele estava de joelhos, a apanhar o candeeiro que Livia tinha feito cair. Tirou a mão de debaixo da cama. Nos seus dedos segurava um bastão fininho de madeira que parecia uma vara. A sua ponta de cristal refletia a luz do candeeiro. Jake reconheceu a vara. O pai de Marika usara-a para tocar na ponta da seta de pedra-de-sangue e banir o seu demónio.
— A vara do meu pai! — exclamou Marika.
Portanto, o seu pai tinha estado ali.
Marika tirou a vara da mão de Pindor e apertou-a contra o seu peito. Deu uma volta completa, como se de repente esperasse encontrar o pai ali. Ela parecia a um passo do pânico total.
Jake tentou acalmá-la.
— Só porque a vara dele está aqui, isso não nos diz o que é que aconteceu. Podem ter ido para qualquer lado. — Impediu-se de acrescentar: «não vimos nenhum corpo».
— Então quem é que armou esta armadilha? Quem é que nos trancou aqui? — perguntou Marika.
— Talvez Zahur — disse Pindor. — Aquelas eram as suas bestas de cauda bem afiada. E ele chamou o teu pai. Talvez fosse para o atrair para aqui, enquanto toda a gente estava na Olimpíada.
Marika abanou a cabeça, tentando não acreditar, porém não abanou a cabeça com muito vigor ou repreendeu Pindor pelas suas suspeitas. Como Jake, provavelmente ela estava cheia de dúvidas. Os seus dedos ainda apertavam a vara.
Da outra sala, ouviu-se um forte rangido de dobradiças, como osso a raspar sobre osso. Toda a gente gelou. Vinha aí alguém.
— Fica aqui — sibilou Jake.
Dirigiu-se à porta e espreitou para a sala às escuras. À luz fraca, Jake avistou uma pequena porta lateral a abrir-se lentamente. Era um movimento furtivo, possivelmente de alguém a verificar se eles estavam mortos.
Jake esgueirou-se para a sala comum.
Uma forma indistinta empurrou uma porta estreita, como a da sala comum de Balam. E se fosse um dos mestres? Mesmo assim, Jake não saberia o que fazer. Em quem podia confiar?
A porta abriu-se mais quando o intruso entrou na sala. A sua pequena altura revelou a sua identidade.
— Bach’uuk — murmurou Jake.
O rapaz dos Ur ficou imóvel. Parecia prestes a fugir dali. Jake só podia imaginar o medo do rapaz ao ouvir o seu nome murmurado na escuridão. Ligou a lanterna tendo o cuidado de a apontar para o chão.
Bach’uuk endireitou-se, mas manteve-se em guarda.
Marika apareceu atrás de Jake.
— Bach’uuk!
Pindor surgiu atrás dela.
— Apolo seja louvado! Uma maneira de sair desta armadilha!
Jake mantinha a sua lanterna a postos. Quem podia dizer que Bach’uuk era de confiança?
Marika não tinha quaisquer dúvidas. Correu para Bach’uuk e esmagou-o com um abraço.
— O que estás a fazer aqui?
Livre do seu abraço, ele arrastou os pés.
— Vi alguém... um estranho a voar para fora das caves. Vim ver se o mestre Zahur tinha algum problema.
— Teve problemas, sem dúvida — murmurou Pindor.
Marika começou a explicar, mas Jake foi direito ao ponto.
— Como é que era esse estranho?
— Era feito de sombras.
— Que quer isso dizer? — perguntou Marika.
Bach’uuk estremeceu dos pés à cabeça.
— O estranho não tinha forma. As sombras envolviam os seus ombros e fluíam por trás dele como um manto. Por onde ele passava, a luz morria, engolida pelas suas sombras.
Jake olhou para trás, para a sala às escuras. Não admirava que os cristais se recusassem a brilhar.
— Vi apenas um brilho débil. — Bach’uuk tocou na sua garganta, como que indicando um fecho num casaco. — Só brilhava porque era mais escuro do que a sombra que o cobria.
Jake reconheceu a descrição.
— Pedra-de-sangue.
— Ele correu para o castelo onde as sombras o engoliram.
Bach’uuk abanou a cabeça, indicando que não sabia para onde o estranho tinha ido depois disso.
— Viste o meu pai? Ou o mestre Oswin? — perguntou Marika. A preocupação soava na sua voz como um sino.
Bach’uuk franziu o sobrolho.
— Não depois desta manhã.
Marika parecia aflita.
— O que vamos fazer? — perguntou Pindor. — Com quem podemos falar? Todos os mestres desapareceram. E todas as outras pessoas estão na Olimpíada.
Um leve gemido saiu da garganta de Livia. Soava como se ela tivesse vindo de muito longe, como se ela já estivesse a desaparecer à distância, indo para onde eles não a podiam seguir.
— Não podemos deixar a Livia — disse Marika. — Temos de tentar salvá-la. Talvez ela tenha visto alguma coisa.
Jake sabia que isso era pouco provável, mas também leu o medo pelo seu pai nas linhas à volta dos olhos dela. Jake observou Livia. Ela não ia durar mais uma hora. Se tanto. Tinham de fazer alguma coisa.
Ele acenou com a cabeça, mais para si mesmo que para os outros.
— Vamos tentar destruir a pedra-de-sangue que está dentro dela.
Esperou que alguém reclamasse, mas Pindor surpreendeu-o.
— Que queres que nós façamos?
Jake pensou rapidamente. Pindor tinha pernas mais compridas e podia correr mais depressa que Jake.
— Bach’uuk, podes levar o Pin contigo pelas escadas das traseiras? Até ao Astromicon. Não quero que ninguém vos veja.
Bach’uuk anuiu.
— Pin, quero que juntes a confusão que os mestres fizeram do iPod da Kady.
— Queres dizer o fala-longe?
— Exatamente. Traz tudo para aqui.
Pindor anuiu, deu meia-volta e saiu com Bach’uuk.
Jake virou-se e juntou-se a Marika. Sentaram-se à beira da cama. Iria ser uma espera difícil. Ele olhou para baixo e viu a mão de Marika na sua.
— Ele vai ficar bem — disse Jake baixinho.
Jake não se referia a Pindor.
Ela ficou a olhar em frente sem ver, perdida no medo e na dor.
— Ele é tudo o que eu tenho.
Jake apertou os dedos dela, conhecendo demasiado bem a dor que ela estava a sentir. Perder uma mãe ou pai — era uma mágoa que nunca desaparecia.
20
CONSIGO VER-TE
Porque é que estavam a demorar tanto?
Jake andava para a frente e para trás na enfermaria. Depois de cerca de quinze minutos sentados na cama, Marika levantara-se de repente e pedira para levar o candeeiro da mesa de cabeceira. Jake também se sentira aliviado por se levantar. A tensão tinha estado a aumentar como um dique cheio dentro dele. Assim, andava na escuridão, apenas com a respiração difícil da caçadora por companhia. Ouviu Marika de um lado para o outro na sala vizinha e pareceu-lhe ouvi-la falar sozinha.
Depois de cinco longos minutos, ela regressou com o candeeiro. O seu rosto estava pálido. Trazia alguma coisa na mão — um dos fala-longe. O cristal verde repousava na sua moldura, suspenso por uma teia de fibras minúsculas. Jake percebeu pela primeira vez que parecia uma espécie de espanta-espíritos dos índios. Os espanta-espíritos eram feitos com um aro de um ramo de salgueiro e uma teia de tendões, tudo decorado com pedras e penas. Por tradição, eram pendurados sobre a cama das crianças para apanhar os pesadelos.
Marika levantou o aro.
— Encontrei a coleção de fala-longe do mestre Zahur. Este liga ao meu pai. Não tive resposta. Zahur também tinha outros. Experimentei todos. — Ela abanou a cabeça. — Toda a gente está na Olimpíada.
Jake percebeu. Toda a gente tinha deixado os seus walkie-talkies em casa. Mas ocorreu-lhe um pensamento mais preocupante.
— Ou eles podem não estar a funcionar — disse ele. — Como as luzes. Bach’uuk disse que o manto de sombras do homem sugava a alquimia das luzes. Talvez faça o mesmo aos cristais fala-longe.
Marika olhou para o aro na sua mão. Afundou-se de novo na cama. Tocou com um dedo o cristal esmeralda no coração do espanta-espíritos, talvez procurando alguma ligação com o seu pai.
— Ninguém compreende verdadeiramente os cristais — murmurou ela. — Pelo menos, não inteiramente.
Jake juntou-se a ela, sabendo que Marika precisava de falar.
Ela olhou para ele e dirigiu-lhe um sorriso triste. Os seus olhos refletiam preocupação.
— Há muitos mistérios à volta destas pedras.
— Como por exemplo?
Ela voltou a olhar para o cristal verde entrelaçado.
— Em ocasiões raras, vozes estranhas ecoam das pedras fala-longe, sussurradas e fantasmagóricas. Uma palavra aqui, meia frase ali. Os mestres aprendem que são apenas ondas que ressaltam das paredes do vale. Mas o meu pai pensa que podem ser mensagens que viajam de outros vales como Calypsos... cidades que se situam muito, muito longe.
Como fios de telefone que se cruzam, pensou Jake.
As palavras dela despoletaram a sua curiosidade.
— Não era maravilhoso se esses lugares existissem? — disse Marika, embora sem muito entusiasmo. — Um dia, gostaria de os ver.
Uma porta abriu-se com um estrondo na outra sala, interrompendo a conversa.
Pindor entrou a correr na enfermaria, transportando um cobertor amarrado como uma mochila sobre o ombro.
Bach’uuk seguia-o, trazendo candeeiros acesos lá de cima.
Pindor respirava com dificuldade ao juntar-se a eles.
— Desculpem por termos demorado tanto tempo. Bach’uuk quis avisar o seu povo acerca do intruso. Para o caso de ele voltar. Devemos estar seguros.
— Bem pensado. — Jake estendeu os braços para o cobertor carregado.
— O que queres que faça agora? — perguntou Pindor, ainda ofegante.
Jake apontou para Livia.
— Ajuda a Mari a tirar a ligadura do ombro dela. Arranja água e limpa a pele dela e a ferida.
Ao mesmo tempo que Pindor e Marika metiam mãos à obra, Jake desatou o cobertor e abriu-o no chão. O iPod de Kady estava todo desmontado. Jake procurou entre os destroços e pegou na bateria interna recarregável. Esperava que ainda tivesse carga, voltagem suficiente. Um par de fios — preto e vermelho — pendia de um dos cantos da bateria. Ele tirou o plástico de cada fio com os dentes. Não sabia que tipo de choque poderia apanhar na bateria interna, mas uma vez tinha lambido a ponta de uma bateria de nove volts e apanhara um belo esticão.
Jake juntou as duas pontas dos fios e um par de faíscas saltou delas. Satisfeito, agarrou na bateria e dirigiu-se à cama onde estava Livia.
Marika tinha uma mão na garganta da caçadora e a outra no seu ombro. Pindor recuou para sair do caminho.
O ferimento da seta era sangrento e profundo, a pele à sua volta estava franzida e inchada. Linhas vermelhas em forma de teia saíam do ferimento e estendiam-se pela pele pálida de Livia, pelo seu braço abaixo e pelo pescoço. Só o aspeto daquilo gritava veneno.
Jake engoliu em seco e tentou arranjar coragem.
— Mari, afasta-te. Bach’uuk, aproxima mais essa luz.
Respirando fundo, Jake pôs a bateria entre as palmas das suas mãos e dirigiu as pontas dos fios descarnadas para a água ensanguentada retida na ferida.
— Afastem-se — avisou, não sabendo o que ia acontecer.
Estremecendo, Jake mergulhou os fios na água e juntou-os. Uma centelha de eletricidade saltou.
Jake reteve a respiração, mas não aconteceu mais nada.
Retirou os fios do ferimento. Ao levantá-los, os fios continuaram a faiscar e a crepitar. Mesmo depois de os separar.
— Jake? — chamou Marika, claramente preocupada.
De repente os fios agitaram-se loucamente nos seus dedos. Finas correntes de fogo azul fluíram das pontas descarnadas e bombardearam a carne ferida. Jake recuou, levando a reboque a bateria. Mas as correntes de fogo elétrico continuaram a sair dos fios para o ferimento. Ele continuou a andar para trás até as suas costas tocarem na parede. Os outros três afastaram-se para os lados, receando os raios gémeos que fluíam da bateria para a mulher.
Livia começou a tremer sob o cobertor. A sua cabeça arqueou-se para trás num grito silencioso. Estava a ter uma convulsão.
— O cobertor! — gritou Jake. — Tirem-no de cima dos ombros dela! Cortem a ligação!
Marika e Pindor correram para cada um dos lados da cama e agarraram os cantos opostos do cobertor. Puxaram-no para cima e sobre a cabeça de Livia, atravessando o fogo elétrico.
Jake sentiu a interrupção como um pontapé nas entranhas. O coice atirou-o contra a parede. A bateria emitiu um grande estrondo e começou a deitar fumo negro. Receando que este pudesse ser tóxico, Jake atirou tudo para a outra sala.
Jake voltou a correr para junto da cama. Livia ainda estava tapada com o cobertor, como alguém que tivesse morrido recentemente. E talvez tivesse. O seu corpo jazia imóvel sob o cobertor.
Jake puxou para baixo um canto. O rosto dela estava inerte, os olhos abertos.
Marika e Pindor afastaram-se, chocados. Os olhos dela estavam inteiramente negros, como bocados polidos de obsidiana. Tinham-na matado?
Uma mão ergueu-se de repente de debaixo do lençol e agarrou no pulso de Jake. Os seus dedos apertaram, suficientemente fortes para esmagar ossos. O corpo de Livia ergueu-se como um boneco-surpresa, o seu nariz a centímetros do de Jake. Os olhos negros dela fitaram-no, brilhando de maldade.
— Consigo ver-te...
As palavras não eram de Livia. Jake reconheceu a voz de quando tinha sido transportado para ali. Era a voz de uma cripta aberta, muito, muito antiga, erguendo-se de um lugar onde gritos e sangue fluíam igualmente.
Antes mesmo de Jake poder lutar para se libertar, a mão ficou inerte e soltou o seu pulso. Livia afundou-se na cama.
Recuando um passo, Jake esfregou o pulso. Que tinha acontecido? Lembrou-se do cristal cor de rubi a queimar através da mesa. Teria a eletricidade libertado a maldade dos fragmentos da pedra-de-sangue de repente? Se sim, e agora? Tinham desaparecido, consumidos e queimados? Ou estavam mais poderosos?
Da cama, uma forte tosse gorgolejante fez Livia estremecer — seguida de um impossivelmente longo arquejo em busca de ar, como se a caçadora viesse à superfície depois de descer ao fundo do mar mais profundo. Os seus olhos moviam-se de um lado para o outro até finalmente se focarem. Já não eram negros, mas de um azul-gelo.
— On... onde estou? — perguntou ela numa voz rouca.
Marika colocou-se no seu campo de visão.
— Caçadora Livia, estás em Calypsos.
— Eu conheço-te... — Ela tossiu com força, como que tentando limpar alguma coisa suja. — Tu és a pequena Mari. A filha de Balam.
— Sou — disse Marika, suspirando de alívio.
— Que aconteceu?
— Foste envenenada com uma seta de pedra-de-sangue.
Os olhos dela abriram-se mais, como se de repente se lembrasse de um pesadelo. Com esforço, tirou o cobertor dos seus ombros. O ferimento estava lá, mas as linhas vermelhas do veneno tinham desaparecido.
— Acho que a salvaste — disse Pindor ao lado de Jake.
Jake sentiu uma onda de alívio e orgulho, mas aqueles olhos negros ainda o atormentavam.
Livia não parecia especialmente feliz por ter sobrevivido. Pelo contrário, a sua expressão tornara-se mais ansiosa. Por trás dos seus olhos, Jake podia ver os espaços em branco da sua memória a serem preenchidos, como água a ser deitada num copo, mais e mais depressa.
Livia estendeu a mão para Marika e puxou-lhe uma ponta da manga.
— Há quanto tempo é que eu... que dia é hoje?
Marika tentou acalmá-la.
— É o equinócio da primavera.
Livia reagiu como se alguém a tivesse esfaqueado na barriga.
— Não! — Tentou levantar-se, mas estava demasiado fraca.
Marika ajoelhou-se junto dela.
Livia agarrou-a outra vez, com mais força.
— Ele vem aí...
Jake estremeceu ao ouvir aquelas palavras familiares.
— O Rei Caveira — insistiu Livia. — Capturei um grakyl no pântano de Erva-de-Fogo. Antes de lhe cortar a garganta, ele disse-me. Que ia haver um grande ataque. Que chegaria na noite do equinócio.
As palavras da caçadora estavam carregadas de medo e certeza.
— O Rei Caveira vem esta noite!
21
RUMOR DE GUERRA
Alguns minutos depois, Jake encontrava-se na sala comum com Marika.
— Provavelmente, é só um pesadelo — disse ele —, mas mesmo assim devemos avisar os anciãos.
Marika olhou para cima da mesa onde o cauda-ferrão ainda estava como um centro de mesa macabro. Era um lembrete mortal do perigo que os rodeava.
— Mas ainda não percebo — disse ela. — O grande templo protege o nosso vale. Tanto de ameaças vindas do céu como da terra. Escuda-nos há centenas e centenas de anos. Os exércitos do Rei Caveira não podem passar.
Jake recordou o monstruoso grakyl a contorcer-se contra o escudo. Encolheu os ombros.
— Como eu disse, a caçadora pode estar enganada. Tudo pode não ter passado de uma alucinação. Já para não falar no tipo de pesadelos desencadeados pelo veneno.
Marika suspirou, cada vez mais perturbada. Ela estava mortalmente aterrorizada por causa do seu pai, mas sabia quais eram os seus deveres para com Calypsos. Ela não ia dececionar o pai desatando a chorar.
A estreita porta de lado abriu-se. Bach’uuk estava de volta com dois Ur mais altos, um homem e uma mulher. Estavam vestidos com peles cosidas grosseiramente, que no entanto pareciam limpas e cuidadas.
Bach’uuk levantou um braço.
— Eles vão cuidar da caçadora Livia quando nos formos embora. Vão mantê-la em segurança.
Pindor surgiu vindo da enfermaria.
— Estamos prontos? A caçadora Livia não está muito feliz por ser deixada para trás. Continua a tentar sair da cama. Prometi-lhe que ia falar com o meu pai.
Bach’uuk falou com os outros dois Ur na sua língua, uma mistura de sons guturais e estalidos com a língua. O par acenou afirmativamente e dirigiu-se para a enfermaria.
Pindor disse:
— Por esta altura, a Olimpíada já deve ter acabado. Todos os anciãos estão a caminho da casa do meu pai para a celebração tradicional da noite do equinócio.
— Então é lá que nos devemos encontrar com eles — sugeriu Marika.
Jake e Pindor puseram-se a caminho com Bach’uuk a reboque. Precisavam que ele lhes contasse a sua parte da história sobre o estranho homem de sombras.
Uma vez lá fora no pátio, Jake ficou chocado por já ser tão tarde. O pátio estava mergulhado em sombras profundas. Só o cimo da gigantesca árvore ainda estava ao sol. Os dardos-alados que nidificavam estavam todos amontoados ali em cima, apanhando os últimos raios quentes do dia.
Para oeste, o Sol já estava meio afundado no horizonte montanhoso. No lado oposto do vale, uma pesada Lua cheia começava a despontar, pronta a saudar a noite que chegava.
— Será mais rápido ir a pé! — gritou Pindor fazendo um gesto para o portão do pátio. — Podemos cortar pelo parque.
Jake lembrava-se do parque da viagem que tinha feito há dois dias para Bornholm. Ficava fora das muralhas do castelo, sobrepondo-se à cidade em baixo. Correram enquanto o Sol continuava a afundar-se.
Ao saírem dos portões, sons de festejos ecoaram vindos da cidade: gritos, gargalhadas, badaladas dos sinos, explosões de trompetas, urros de sáurios. Carroças e carruagens, enfeitadas com luzes, moviam-se à frente de uma parada improvisada. Jake imaginou que depois do pôr do sol toda a cidade estaria a brilhar.
Ou pelo menos Jake desejava que estivesse.
Os quatro esquivaram-se pelo parque e deixaram Pindor conduzi-los através do labirinto de caminhos de gravilha. Sob o emaranhado cerrado dos ramos, a noite já tinha chegado a Calypsos.
Ao correrem pela floresta, assustaram um par de jovens namorados que se beijavam. O par afastou-se rapidamente, fingindo estar fascinado pela torção das raízes das árvores junto do seu banco.
Jake e os outros continuaram em frente. Passaram como relâmpagos por um prado de flores silvestres que lhes davam pelos joelhos e pelo ponto de observação onde tinham parado no dia anterior. O coliseu lá longe já estava totalmente mergulhado na escuridão.
Jake perguntou-se onde estaria Kady. Teria regressado a Bornholm? Se Calypsos fosse atacada, pelo menos ela estaria rodeada por alguns dos melhores guerreiros da cidade. Mesmo assim, Jake desejou que ela estivesse aqui com ele. A preocupação fê-lo tropeçar.
Pindor interpretou mal o seu passo em falso, pensando que ele estava exausto.
— Já não falta muito — assegurou, apontando vagamente para a frente.
Depois de mais duas voltas do caminho, as árvores deram lugar a um relvado bem tratado. Arbustos tinham sido esculpidos em elegantes espirais ou esferas perfeitas. No cimo de uma pequena colina ficava uma casa branca com um telhado inclinado e uma linha dupla de pilares à sua frente. Lembrava a Jake um mausoléu.
— É ali que eu moro — disse Pindor começando a correr.
Para a celebração, tinham sido erguidas pequenas tendas no jardim, e mesas compridas encontravam-se repletas de montanhas de comida e pirâmides de garrafas de vinho.
Já havia algumas pessoas ali. Deambulavam em pequenos grupos ou aos pares. Pindor procurou entre eles ao atravessar o pátio. Perto de uma grande estátua do deus Apolo, surgiu alguém que o agarrou.
— Pinny! Dá para acreditar?
Pindor soltou-se e deu um passo atrás. O atacante, um rapaz mais velho, não pareceu notar. O seu rosto estava corado do vinho e da excitação.
Jake reconheceu o rapaz como um dos que atormentavam Pindor anteriormente.
— Acreditar no quê, Regulas? — perguntou Pindor, deixando transparecer a sua irritação.
— Ganhámos a Tocha! Por um ponto! — Deu uma palmada no ombro de Pindor. — Devias ter visto o teu irmão. Atirou uma bola rasteira que passou pelos sumérios e através do anel. Whoosh! — O rapaz fez o gesto de atirar uma bola.
Pindor virou-se para Jake e exclamou:
— Ganhámos!
— Pindor! — gritou Marika, trazendo a atenção deste de volta ao que interessava.
O entusiasmo do rapaz mais velho recusou-se a diminuir.
— Heron saiu do estádio aos ombros da equipa romana. E aquelas caçadoras bem-feitas acompanharam-nos com música...
O rapaz devia estar a falar da claque de Kady. Jake aproximou-se.
— Sabes para onde foram as caçadoras?
Foi a vez de Jake ser agarrado pelo ombro.
— Ah! Essa tua irmã... se Heron não se estivesse a fazer a ela...
Jake empurrou Regulas.
— Sabes onde é que ela está?
— Na floresta! Para a fogueira! Da última vez que a vi, ela e Heron estavam de mão dada. — Acabou a sua frase com um piscar de olho.
Marika afastou Jake.
— Outra tradição. A equipa vencedora faz uma grande fogueira, que representa a Tocha Eterna, no Bosque Sagrado. — Ela revirou os olhos. — Mas na realidade é um pretexto para fazer uma grande festa.
Jake olhou na direção da floresta que rodeava o templo-pirâmide. Os seus receios por Kady cresceram até lhe encherem o peito. Perdeu a sua capacidade de falar, de fazer perguntas.
Pindor aproveitou o seu silêncio.
— Regulas, viste o meu pai?
Ele franziu o sobrolho.
— Lá fora no átrio. Ou talvez lá em baixo na cave. Está a receber os seus amigos mais íntimos. A partilhar o seu melhor vinho com eles! — Esta falta de democracia parecia ferir o rapaz.
Pindor passou por ele e conduziu os outros na direção dos degraus do alpendre.
— Temos de apanhar o meu pai sozinho... e os outros dois anciãos.
No cimo das escadas, uma figura alta bloqueou-lhes o caminho.
— Então estão todos aí! — exclamou o centurião Gaius, com o rosto tão vermelho como a pena do seu elmo. — Passei a tarde à vossa procura. Perdi a nossa vitória na Olimpíada por vossa causa!
Pindor começou a gaguejar, intimidado.
Marika avançou.
— Centurião Gaius, peço desculpa pelo nosso subterfúgio — disse ela formalmente. — Mas houve uma boa razão. Precisamos de falar com o ancião Tiberius.
— Se pensam que vão encontrar alguma indulgência por parte do ancião...
— Não! — Marika interrompeu o homem alto. — Nada disso importa. Deves afastar-te.
O rosto de Gaius ficou ainda mais vermelho. Jake suspeitava que era mais de embaraço por ter sido repreendido por uma rapariga que mal lhe chegava à cintura. Gaius falou entredentes.
— Marika Balam...
— Diz respeito à caçadora Livia! — interrompeu-o ela de novo, quase gritando agora. — Ela está acordada e tem uma mensagem para o conselho que deve ser ouvida imediatamente.
Gaius observou Marika como se estivesse a tentar avaliar a verdade da sua declaração. Outra voz intrometeu-se, vinda de trás do centurião.
— Que notícias são essas da minha irmã?
O centurião Gaius afastou-se para o lado deixando ver a anciã Ulfsdottir. Ela estava lá dentro e ouvira a explosão de Marika.
— Que notícias tens de Livia? — perguntou a anciã. Os seus olhos faiscavam de preocupação. — Vim de Bornholm para saber da minha irmã. Tentei falar com os mestres pelos fala-longe, mas não tive resposta.
Marika inclinou a cabeça numa saudação.
— Ela está viva e acordou com uma história de um grande perigo para Calypsos.
Os olhos da mulher fecharam-se por um momento de alívio e numa oração silenciosa, depois abriu-os, revelando uma determinação férrea.
— De que perigo é que ela falou?
— Talvez os anciãos Tiberius e Wu devessem ouvir também esta história — interveio Gaius, ainda a olhar para eles com alguma desconfiança.
— Sim, claro. — A líder dos viquingues conduziu-os ao jardim. Baixou a voz ao dirigir-se a Marika. — Pensei que a minha irmã estava condenada, envenenada pelos fragmentos de alquimia negra.
— É uma longa história — respondeu Marika, acenando para Jake. — Mas foi a ci-enzia do recém-chegado que a salvou.
A anciã virou o seu olhar azul para Jake com um calor que o fez ficar uns centímetros mais alto.
— Tenho para contigo uma grande dívida de sangue, Jacob Ransom. E, pela quilha do Valkyrie, ela será honrada.
Chegaram ao centro do jardim e encontraram o pai de Pindor a falar com o ancião asiático. O homem calvo tinha encerado o seu fino bigode branco, por isso ele brilhava sob a luz.
O sorriso no rosto de Tiberius desapareceu quando viu o filho.
— Pindor! Onde estavas? Sabes os problemas que deste ao centurião Gaius?
Gaius avançou.
— Talvez devesse ouvir o rapaz.
Pindor olhou para trás na direção de Marika em busca de ajuda. Ela limitou-se a acenar com a cabeça numa instrução simples. Diz ao teu pai.
Pindor engoliu em seco e endireitou as costas. Começou lentamente, gaguejando aqui e ali, mas, à medida que contava a história, a sua voz encontrou firmeza. Ao acabar, o nervosismo tinha desaparecido.
A expressão do seu pai também se transformou: de irritação e dúvida a preocupação e apreensão. Fez perguntas aos outros, até a Bach’uuk, que respondeu a muitas delas com uma única palavra.
— Isso deve ser uma loucura qualquer provocada pelo veneno — disse Tiberius. — O escudo do templo protege-nos.
— Talvez o Rei Caveira planeie cercar-nos — sugeriu o ancião Wu. — Pensando que pode matar-nos à fome.
— Mas nós temos muita comida — disse a anciã Ulfsdottir abanando a cabeça. — E água fresca de nascentes sai da rocha.
Enquanto eles continuavam a discutir a probabilidade de um ataque, o céu passou de azul-escuro a índigo. O Sol pôs-se. Algumas estrelas começaram a brilhar a leste. Os receios de Jake pela irmã — algures no bosque — cresceram, fazendo-o sentir um forte aperto no coração. Não podia continuar em silêncio.
— Peço desculpa por me intrometer — disse Jake.
Olhos viraram-se para ele, mas Jake não recuou.
— Pelo que Bach’uuk viu, pelo menos um dos homens do Rei Caveira está entre vocês. Quem sabe se há mais? E agora três mestres desapareceram. Acho que não devem levar os avisos de Livia como sendo loucura. E quanto mais tempo esperarem, menos tempo têm para preparar a defesa.
Tiberius anuiu.
— O rapaz tem razão. Há uma estratégia perversa em atacar esta noite, quando a maior parte dos habitantes da cidade está a celebrar e muitos terão bebido demasiado vinho.
— Então, o que devemos fazer? — perguntou o ancião Wu.
— Eu vou alertar o Povo do Vento. Teremos todos os seus no ar, para vigiar os céus a noite toda. Em terra, vamos mobilizar as forças da Guarda Montada para patrulhar a cidade.
— E os habitantes da cidade? — perguntou Wu.
A anciã Ulfsdottir respondeu:
— Vou levantar toda a Bornholm. Podemos começar a evacuar as pessoas para o castelo. Foi para isso que Kalakryss foi inicialmente construído. Como uma última linha de defesa se tudo o mais falhasse.
Tiberius virou-se e olhou para Jake e os seus amigos.
— Centurião Gaius, acho que é melhor levar estes quatro de volta a Kalakryss. Uma vez aí, avise toda a gente e ponha os seus homens nas muralhas.
Gaius bateu com o punho no peito em reconhecimento. Virou-se e estendeu um braço para a sua carga, pronto para os arrebanhar.
Jake esquivou-se.
— Ancião Tiberius, a minha irmã... ela foi para a floresta. Creio que foi com o seu filho e a equipa romana.
O ancião franziu o sobrolho, sem compreender.
— A fogueira — lembrou Pindor. — No Bosque Sagrado.
Tiberius acenou lentamente, e linhas sulcaram a sua testa.
Foi a anciã Ulfsdottir que respondeu.
— Vou mandar um mensageiro. Tu salvaste a minha irmã. Não posso deixar que alguma coisa aconteça à tua.
Jake deixou escapar um suspiro de alívio. A garantia desta mulher fleumática ajudou a acalmar a preocupação dentro dele.
Mas só ligeiramente.
Com o assunto resolvido, Gaius juntou Jake, Pindor, Marika e Bach’uuk e dirigiu-se à saída. O centurião resmungou:
— E desta vez ninguém resolva ir embora sozinho.
Ninguém discutiu.
22
PRIMEIRO SANGUE
Quando chegaram aos terrenos do parque outra vez, o Sol já se pusera. As estrelas enchiam o céu e a estrada branca da Via Láctea cintilava lá em cima. A lua cheia estava suspensa sobre Calypsos, brilhando intensamente sobre os festejos lá em baixo. A música subia da parte mais baixa da cidade, com canções num coro de muitas línguas.
Mas quanto duraria aquilo?
Um Raz gigantesco voou baixo sobre eles, vindo da propriedade de Tiberius. Jake sentiu o ímpeto das suas asas quando ele passou. Era provavelmente um batedor enviado para lançar o alarme entre o Povo do Vento.
— Continuem a andar — urgiu Gaius quando Jake abrandou para ver o voo do pássaro.
O caminho de gravilha rangia sob os seus pés como se corressem sobre ossos esmagados.
A cada passo que davam para dentro da floresta, Jake não podia escapar à sensação de que alguma coisa estava a observá-los — ou antes a observá-lo a ele. Jake perscrutou os dois lados do caminho. Aqui na escuridão, lembrou-se dos olhos pretos de Livia e das palavras que tinham saído da sua garganta.
— Consigo ver-te...
Os pelos na nuca de Jake levantaram-se na certeza de que alguma coisa assustadora partilhava aquela floresta escura. Uma sombra moveu-se à sua esquerda, um ramo estalou.
Alguma coisa estava ali!
Sobressaltado, Jake virou-se e chocou com Bach’uuk. Este foi suficientemente ágil para apoiar Jake e manter os dois em pé. Fugiram para a frente. Finalmente, Jake notou uma quebra na escuridão. Correu e tomou a dianteira. O caminho saía da floresta e desembocava num dos muitos prados, aquele sobranceiro à cidade.
Ao sair, a convidativa Lua brilhou sobre ele. A sua luz prateada banhava o campo e revelava alguma coisa empoleirada na ponta do miradouro. Era preto como se um coágulo de sombras recusasse fugir do luar.
O primeiro pensamento de Jake foi que era o sinistro assassino que Bach’uuk tinha visto, o homem com um manto de sombras vivas. Essa ilusão aumentou quando a forma se contorceu à sua aproximação, lançando asas de escuridão do seu corpo encoberto. Recortado contra as estrelas, tornou-se claro que as asas não eram feitas de tecido ou sombras — mas de couro e ossos.
— Um grakyl — gritou Gaius atrás deles.
Jake fugiu a correr do miradouro, arrastando os outros com ele. Só o centurião ficou para trás. Gaius empunhou a sua espada e baixou-se. A besta surgiu no ar de asas estendidas. Com um único bater de asas mergulhou na direção de Gaius.
— Corram! — gritou o centurião. — Fujam para o castelo!
Eles obedeceram, mas Jake manteve meio olhar para trás. O grakyl caiu sobre Gaius com um grande estardalhaço. Atingiu-o com as suas asas. Mas Gaius esquivou-se e virou-se e golpeou com a sua espada. A besta guinchou como um garfo ferrugento arrastado sobre um quadro negro. Sangue jorrou dos seus ferimentos. Mas não fugiu. Com um grande estremecimento, preparou-se para atacar outra vez.
Pior ainda, o seu grito foi respondido por outro grito. De trás do miradouro, um segundo grakyl ergueu-se no ar. O par caiu sobre Gaius como uma tempestade de garras e dentes.
Então Jake entrou noutra parte da floresta e deixou de ver o centurião. Os quatro fugiram, demasiado assustados para falar, limitaram-se a correr. Mais uma vez, Jake experimentou aquela sensação esmagadora de que alguma coisa o observava, possivelmente o perseguia. De novo, ouviu os murmúrios da perseguição: um restolhar de folhas, um estalido de ramos.
Chegaram ao banco onde os jovens namorados se tinham beijado. O par há muito fugira, mas alguma coisa ocupara o seu lugar. Saltou do banco e encheu o caminho. Asas estenderam-se e bloquearam inteiramente o caminho. Todos gelaram.
Um grakyl. O seu nariz porcino cheirou-os. As suas orelhas giraram, apanhando cada ténue ruído. Respirou pesadamente na direção deles, revelando uma boca cheia de dentes afiados.
Porém, não era um grakyl vulgar.
Este empunhava uma espada numa garra e dois chifres curvos cresciam na sua cabeça como uma coroa horrível. Sibilou-lhes e baixou a espada, como se estivesse a avaliar qual deles ia matar primeiro. Jake tateou no bolso em busca da lanterna, mas tinha-a num dos outros bolsos das calças.
Atrás de Jake, um partir de ramos avisou-o de que uma segunda besta se aproximava por trás. Estavam cercados. Não tinha tempo de agarrar na lanterna. Pegou na mão de Marika e mergulhou para o lado.
Mas a besta atrás de Jake passou simplesmente por eles, correndo junto ao chão, uma mancha de sombras. Saltou para o ar e atingiu o grakyl na garganta. A velocidade a que se deslocava e o seu peso atiraram a criatura de costas. Um feroz grito felino seguiu-se quando as presas em forma de sabre rasgaram profundamente a garganta tenra do monstro.
Era a Rhabdofelix! Aquela que Jake libertara. Ferrada à garganta do monstro, ela abanou, sacudiu e mordeu até as asas do grakyl pararem de bater.
Jake incitou os outros a contornar o caminho.
— Vão! Vão à volta! — Ele apontou e foi atrás deles.
Quando passou junto do lugar do massacre, a gata rugiu na direção de Jake. Os seus olhos captavam cada centelha de luz sob a densa copa das árvores enquanto ela o fitava. A gigantesca gata devia estar a segui-lo todo o tempo. Ele leu os seus olhos quando ela o fitou, sentindo o elo entre eles. Não como animal de estimação e dono, mas como iguais. Tu proteges-me; e eu protejo-te.
Depois, ela deu um salto e desapareceu na floresta. Mas Jake sabia que ela ainda estava ali.
Jake correu atrás dos seus amigos. Ainda sentia olhos em cima de si, mas agora ofereciam-lhe conforto. Sentiu-se um pouco menos só.
— Por todos os fogos de Hades, o que é aquilo? — gaguejou Pindor. — Tinha chifres! Empunhava uma espada!
— Um senhor dos grakyls! — respondeu Marika, ofegante. — Li... mas ninguém acreditava que eram reais.
— Aquilo pareceu-me real! — exclamou Pindor.
Jake fê-los parar na orla da floresta, mantendo-os debaixo das sombras dos ramos. À frente, a lua iluminava o caminho. Porém, enquanto recuperava o fôlego, o mundo ficou um pouco mais escuro.
Preocupado, Jake viu que uma sombra baixa e negra passava à frente da Lua e voava para o castelo.
Em baixo, toda a música parou. O silêncio caiu sobre a cidade.
Algures, muito acima, soou um grito penetrante. A este sinal, grakyl após grakyl mergulhou das nuvens.
Gritos ergueram-se das ruas.
Jake empurrou todos para a proteção da floresta.
— Eles estão aqui! — gemeu Marika. — Atravessaram a barreira. Como?
— Não sei, mas atravessaram.
— O que vamos fazer? — perguntou Pindor.
— Descobrir um sítio onde nos escondermos. É o que temos de fazer primeiro.
— E Gaius? — perguntou Marika.
Jake abanou a cabeça. Não podiam contar com a ajuda do centurião.
— Ele disse-nos para irmos para o castelo — lembrou Pindor.
Todos se viraram para Kalakryss. Bandos de grakyls trepavam as suas muralhas. Alguns soldados ainda lutavam, mas estavam a ser derrotados. Mais grakyls invadiram o pátio. Para lá das muralhas, sáurios berravam e homens gritavam.
O toque límpido de uma trompeta soou no estádio.
Jake olhou para cima de novo quando uma nova força se elevou no céu. O Povo do Vento! Uma onda dos poderosos Raz lançou-se no ar em dezenas de grupos numa formação em V, partindo das suas casas nos penhascos. Subiam alto, depois mergulhavam rapidamente. Como uma salva de flechas negras, os pássaros picavam sobre a nuvem negra. Com uma única passagem, dezenas de grakyls caíram por terra, arrastando asas despedaçadas. Os afiados esporões dos Raz rasgavam couro e osso com facilidade.
Porém, os cavaleiros alados estavam em inferioridade numérica.
Pindor também percebeu isso.
— Não vão aguentar — disse ele. — Precisamos de reforços.
— Quem? — indagou Marika. — A Guarda Montada está espalhada por toda a Calypsos. O Povo do Vento é só uma tribo.
Pindor abanou a cabeça.
— Não sei. Mas por agora Jake tem razão. Precisamos de um sítio seguro para reagrupar, talvez algum lugar onde possamos juntar mais forças.
Jake estudou Pindor. Aparentemente, o seu talento para a estratégia não se limitava a jogos de bola. Mais alguém tinha um plano? Jake deu por si a estudar o mais silencioso do grupo.
— Bach’uuk — disse Jake. — As vossas grutas ficam na ponta mais afastada da muralha.
Ele anuiu.
— Os nossos anciãos desejam olhar para a frente da floresta para não se esquecerem. Esse é o nosso caminho.
Jake virou-se para Pindor e Marika.
— A cidade não é segura e o castelo também não. O melhor para nós pode ser escondermo-nos aí.
Pindor dirigiu-se a Bach’uuk.
— O teu povo viria para defender Calypsos?
Jake sabia o que Pindor queria, que talvez a tribo do neandertal pudesse ser a força extra de que ele falara. Mas Bach’uuk recusou-se a olhar para o rapaz romano e fitou os seus pés. O seu sobrolho carregado escondia as suas feições.
— Esse não é o caminho do nosso povo — murmurou Bach’uuk. — Mas esses assuntos devem ser julgados pelos nossos anciãos.
— Então, vamos falar com eles — disse Pindor. — Para os convencer.
Os olhos do rapaz dos Ur cintilaram momentaneamente de raiva, mas o fogo desapareceu rapidamente e a sua expressão apaziguou-se.
Pindor não notou.
— Como é que podemos ir ter com eles?
— Há um caminho. Eu posso levar-vos. — Bach’uuk apontou para lá do castelo para o Bosque Sagrado. — Um túnel.
Jake olhou para lá. De momento, a luta centrava-se na cidade e no castelo. A floresta permanecia escura e não perturbada. Kady também estava nesse bosque.
Marika franziu o sobrolho.
— Não me lembro de ouvir falar de um túnel na floresta.
Bach’uuk apontou com a mão. Jake seguiu a direção dela. Parecia estar a apontar para o dragão de pedra que pairava sobre a copa das árvores, iluminado pelo luar.
— Estás a falar do grande templo? — perguntou Marika.
Bach’uuk anuiu.
— Túnel aí.
— Dentro do templo? — insistiu ela.
Um aceno de cabeça de novo, desta vez seguido de um grunhido de impaciência.
— Mas só os mestres estão autorizados a entrar no Templo de Kukulkan — insistiu ela.
De novo, um fogo brilhou nos olhos do rapaz dos Ur.
— Mestres... e aqueles que os servem.
Marika fitou Bach’uuk por um momento, atónita, depois dirigiu-se a Jake.
— Não sabia.
— Ninguém nos vê — disse Bach’uuk, deixando alguma da sua irritação transparecer mais abertamente. — Ninguém conta connosco. Nós somos apenas Ur.
Jake lembrou-se de como o pai de Marika parecia mal reconhecer Bach’uuk. Marika apreciava a sua ajuda, sem dúvida, mas Jake recordou a sua anterior descrição da inteligência dos Ur. O pai acredita que há uma indolência nos seus pensamentos, mas eles são fortes e obedecem a instruções simples.
Jake não pensava assim. E aparentemente Bach’uuk também não.
— Podes levar-nos lá? — perguntou Jake.
Bach’uuk anuiu e virou-se, mas Marika não se mexeu.
— Mesmo que os Ur sejam autorizados a entrar no templo, nós não somos — disse ela. — É proibido a todos, com exceção dos mestres, pôr os pés no interior da pirâmide.
Jake esforçou-se por não revirar os olhos. Tinha muita consideração por Marika, mas ela era tão teimosa como ele. Ele precisava de vencer a sua rigidez. Agarrou na sua mão.
— Mari, já não há mestres em Calypsos. Pelo menos nenhum por perto neste momento.
Ele viu o quanto as suas palavras a magoaram, recordando-lhe o desaparecimento do pai. Mas elas tinham de ser ditas.
Jake tocou no alfinete que ainda tinha preso no seu casaco.
— Como aprendizes, neste momento nós somos os únicos mestres que Calypsos tem.
As sobrancelhas dela uniram-se, digerindo o ponto de vista dele sobre o assunto. Ela olhou para o combate que se travava no céu, depois anuiu.
— Podes ter razão. — A sua voz tornou-se mais firme. — Temos de tentar.
Jake apertou a sua mão, depois fez sinal a Bach’uuk para os conduzir.
Pindor seguiu-os, murmurando o seu mantra agourento do costume.
— Vocês são os únicos mestres de Calypsos? Então estamos condenados com toda a certeza.
PARTE QUATRO
23
UM ASSOBIO NO BOSQUE
O Bosque Sagrado estendia-se como um mar negro para lá da periferia da cidade sitiada de Calypsos. Lançava-se contra as suas muralhas num emaranhado tortuoso de árvores. Todas elas eram gigantes com troncos retorcidos, como a árvore que adornava o pátio do castelo.
Um trilho atravessava o bosque, iluminado por candeeiros solitários de cristais luminosos, mas estes encontravam-se muito afastados uns dos outros, deixando longas faixas de profunda escuridão entre eles. O grupo fugiu ao longo do trilho.
O templo ficava no coração do bosque, a cerca de um quilómetro de distância. À medida que corriam, ouviam os sons da luta. A guerra continuava a espalhar-se. Outros habitantes da cidade procuravam refúgio na floresta. Vozes chamavam-nos de esconderijos quando eles passavam. Porém, eles continuaram em frente, guiados por um determinado Bach’uuk.
Jake perscrutou o bosque em busca da luz vacilante de uma chama. Kady tinha vindo para a floresta com os seus amigos para fazerem uma grande fogueira depois do jogo. Porém, Jake não viu qualquer sinal de uma. Ou ela ardia num lugar muito mais remoto no denso bosque ou tinham-na apagado quando o combate começara.
A preocupação mantinha tensos os músculos do seu maxilar.
— Nunca vamos conseguir entrar no templo — sussurrou Marika que corria ao seu lado. — Da mesma maneira que o coração de cristal de Kukulkan protege o nosso vale, pelo menos até esta noite, ele também lança um escudo sobre a abertura para o templo. Só os mestres são autorizados a passar.
Jake visualizou o grakyl no Portão Quebrado, contorcendo-se contra o escudo de forças.
— Estás a dizer que há uma barreira à entrada?
O rosto de Marika estava na sombra, mas Jake sabia que ela franzia o sobrolho.
— O que pensas que eu estava a dizer no parque há momentos? Só os mestres podem entrar... e, aparentemente, os Ur.
Jake tinha pensado que o templo estava guardado por homens ou por mera superstição.
— E se nós não conseguirmos entrar?
— Como disseste, Jake, talvez nós sejamos os mestres agora e sejamos autorizados a passar. Ou talvez Bach’uuk saiba de alguma passagem secreta para lá entrar, conhecida apenas pelos Ur. Ele mencionou um túnel.
Jake acenou com a cabeça e apressou o passo. Ultrapassaria aquela barreira invisível quando lá chegasse.
Continuaram a caminhar pela floresta em silêncio. À medida que se embrenhavam no bosque, os sussurros e os chamamentos iam-se silenciando à sua volta. Nenhum dos habitantes da cidade que se escondiam no Bosque Sagrado chegara tão longe. E porque o fariam? Se Marika tinha razão, o templo não lhes oferecia qualquer refúgio.
Jake pressentiu a pirâmide antes de a ver. O ar tinha-se tornado mais pesado e de alguma forma carregado, como antes de uma trovoada, quando os céus estavam baixos e escuros e os relâmpagos crepitavam à distância. Os seus sentidos tornaram-se mais apurados. Os seus ouvidos captaram o sussurro das folhas na copa das árvores. Cheirou a doçura do musgo que desabrochava à noite e crescia com uma luminescência fantasmagórica nos troncos retorcidos das árvores. A sua pele formigou com a leve brisa.
E ali estava ela.
A floresta acabava a poucos metros do primeiro degrau da pirâmide.
Jake avançou para a clareira. Não era uma coisa muito avisada de fazer, pois a refrega continuava a desenrolar-se em cima. Porém, ele nunca se tinha deparado com uma visão tão espantosa. Não havia dúvida. Era exatamente igual ao artefacto de ouro do museu, aquele que fora recuperado na escavação dos seus pais.
Só que este era em tamanho gigante.
Cada um dos níveis da pirâmide ficava acima da cabeça de Jake, subindo cada vez mais até ultrapassar as árvores mais altas. E ali, empoleirado mesmo no topo, aninhava-se o dragão de pedra. O luar tornara-o prateado, delineando nitidamente cada detalhe.
As asas abertas tinham penas gravadas nelas. Jake ficou a olhar para cima. A estátua, na realidade, era uma serpente emplumada. Não admirava que o povo de Marika lhe tivesse chamado Kukulkan quando ali chegara. Ou, talvez, os mitos de Kukulkan entre os maias tivessem vindo daquele lugar. Jake lembrou-se do que tinha visto na biblioteca de Balam. Aquilo fê-lo refletir mais uma vez. Teria o povo antigo, em tempos, descoberto naquele lugar uma maneira de regressar a casa? Teriam eles levado mitos de monstros e serpentes emplumadas deste lugar para as suas terras nativas?
Jake estudou a estátua. O dragão olhava para o horizonte. O seu focinho não era propriamente sáurio, nem tão-pouco parecia reptiliano, mas de alguma maneira uma coisa inteiramente nova, mesmo vagamente humana. Esta última impressão vinha dos olhos de pedra semicerrados, que olhavam em frente com tanta esperança, parecendo cheios da uma antiga sabedoria.
Por último, Jake reparou na sua cauda. Esta enrolava-se inteiramente à volta do nível mais elevado, como se estivesse a proteger o ninho com os ovos. A ponta da cauda formava um círculo perfeito, destacando uma porta redonda no topo da pirâmide. Parecia ser a única entrada. Situava-se no ponto onde Jake tinha inserido as duas metades da moeda maia no artefacto de ouro do Museu Britânico.
— Por aqui — disse Marika, apontando para a frente.
Em baixo, no centro da face lateral da pirâmide, os degraus gigantescos eram cortados por uma escadaria mais estreita com degraus de tamanho normal. A escadaria dirigia-se exatamente para a entrada redonda. Ela avançou para lá.
— É melhor despacharmo-nos — sugeriu Pindor, olhando por cima do ombro ao passar por Jake.
Jake ergueu a cabeça e viu que a tempestade serpenteante de grakyls e Raz com garras afiadas os tinham alcançado. Não tinham mais tempo. Jake correu atrás de Pindor com Bach’uuk nos seus calcanhares.
Jake chegou aos degraus e começou a subir. Procurou desajeitadamente a sua lanterna em forma de caneta. Queria tê-la nos seus dedos se fossem atacados. Manteve o polegar no interruptor, mas sem ligar a luz. Queria poupar a bateria. Não sabia quanto tempo ela duraria. Também receava que o feixe de luz pudesse atrair olhares indesejados.
Porém, no fundo, não fazia diferença.
Os grakyls tinham uma visão apurada. Alguns deles avistaram os quatro vultos que corriam pela pirâmide iluminada pelo luar. Um guincho rompeu a noite. Jake olhou para cima e viu uma dezena de grakyls mergulharem na sua direção. O que estava no comando era o maior, com chifres recurvados na cabeça, e a sua espada negra refletia a luz em toda a sua perigosa extensão.
Um dos senhores dos grakyls.
— Todos juntos — gritou Jake.
Encontravam-se a apenas um quarto da subida da face lateral da pirâmide. Nunca iam conseguir. A toda a volta, os grakyls precipitavam-se para as paredes de pedra da pirâmide. O senhor das abomináveis bestas aterrou alguns degraus abaixo de Jake. Preparou-se para saltar, com as asas abertas, a sua espada apontada diretamente ao coração de Jake.
Jake ergueu a sua única arma. Apontou a lanterna para o rosto do grakyl e ligou a luz. O brilho intenso começou por incomodar a besta, que estendeu uma asa protegendo os olhos como com uma capa. Então, de repente, gritou de dor quando o toque glacial da luz transformou os seus olhos em gelo. Caiu para trás, arranhando o próprio rosto, rasgando-o, ao mesmo tempo que rolava pelos degraus.
A sua espada bateu no degrau de baixo e tilintou. Jake investiu e agarrou-a antes que ela ressaltasse para longe. Precisavam de cada arma. Ao passá-la a Pindor, Jake vislumbrou um símbolo fundido no seu punho, que lhe pareceu familiar. Porém, não tinha tempo para o examinar melhor.
Os gritos do senhor dos grakyls tinham provocado uma sede de sangue nos seus irmãos. Dirigiram-se ao pequeno grupo vindos de todos os lados. Jake atingiu mais dois na face, cegando-os e mandando-os a rebolar atrás do seu senhor. Pindor fez o seu melhor para afastar os outros com a espada. Mas mais bestas se aproximavam de todas as direções, guinchando de dor e fúria.
Tinham de sair dali.
Jake virou e apontou o feixe de luz para o grakyl que se encontrava no degrau acima dele. Ele sibilou e escondeu a face. As criaturas estavam a aprender. Pensando rapidamente, Jake apontou a luz para os joelhos do grakyl, fazendo-a incindir entre as duas articulações ósseas.
— Corre — gritou Jake. — Segue-me.
Correu direito ao monstro que se encontrava à sua frente e gritou um desafio. A besta tentou avançar para um confronto direto — mas os seus joelhos estavam congelados e não dobravam. Tombou para a frente, para cima de Jake, pronto a rasgar-lhe a garganta. Mas Jake agachou-se e usou um movimento de taekwondo com o ombro para atirar a besta pelas escadas abaixo. Esta caiu aos trambolhões. Os outros esquivaram-se dela e continuaram a subir.
Jake subia dois degraus de cada vez. Atrás dele, outro grakyl perseguia-o, trepando pelas escadas, saltando de degrau em degrau, tentando intercetá-los. Não iam conseguir chegar à entrada. Os seus perseguidores aproximavam-se.
— JAKE! — gritou Marika.
Ele voltou-se. Um dos grakyls agarrara Marika pela cintura. Batia as asas e tentava arrastá-la. Então, Jake ouviu um assobio e alguma coisa atingiu a cabeça do monstro. O grakyl caiu como uma pedra e libertou Marika.
De repente, uma grande barragem de pedras foi disparada da orla da floresta. Um grupo de homens jovens de toga saiu das árvores para a clareira em baixo. Tinham fundas e manuseavam-nas com grande perícia.
Jake reconheceu uma face familiar.
— Heronidus! — gritou Pindor, avistando também o irmão.
A chuva de pedras abateu-se sobre os demoníacos grakyls. Ossos partiram-se e crânios racharam-se. As bestas tentaram escapar, mas em seguida veio uma carga de setas. A vibração dos arcos fez-se ouvir uma e outra vez. Atrás dos romanos, surgiu uma linha de mulheres viquingues, empunhando pequenos arcos.
Os grakyls em fuga ficaram crivados de setas e caíram por terra.
Porém, a batalha na pirâmide não passou despercebida. Mais guinchos irromperam do combate feroz que se desenrolava em cima. Uma ala negra da horda dos grakyls desceu em direção ao banho de sangue. Cerca de trinta vezes mais forte. Alguns dirigiram-se para a pirâmide, outros para a orla da floresta.
Um grito irrompeu de baixo:
— JAKE!
Ele desviou os olhos do céu. Uma mulher vestida à maneira viquingue acenou-lhe, indicando-lhe que se dirigisse para a abertura da pirâmide.
— CORRE, JAKE!
Era Kady!
Ele mal a reconheceu. O seu vestuário estava rasgado, o seu rosto coberto de sangue, mas de alguma forma ela parecia mais alta. Na sua mão, erguia uma espada que apontava para o topo da pirâmide.
— VAI! AGORA!
Ele viu Kady e os outros voltarem para a floresta. Jake correu para a abertura na pirâmide. Em cima, o dragão de pedra continuava a olhar para os céus, com uma expressão imutável, alheio ao derramamento de sangue e aos gritos.
Jake correu mais depressa. Tinham de chegar à entrada. Já não era muito longe. Estavam quase no cimo da pirâmide.
Então, um punhado sombrio de grakyls aterrou no degrau à sua frente — oito ao todo, chefiados por outro senhor dos grakyls. Bloquearam-lhes o caminho. Pindor ia à frente. Confrontou o monstro com a espada roubada.
Jake avançou, pronto a defendê-lo.
Porém, Pindor sentiu que aquela era uma guerra que não podiam vencer. Estavam em desvantagem numérica. Baixou a espada, desistindo. O senhor dos grakyls sorriu como um tubarão, revelando uma fileira de dentes afiados.
Mas Pindor não tinha desistido. Levou a outra mão aos lábios... e soprou. Jake ouviu um débil gemido agudo que desapareceu no nada. Pindor tinha o apito do cão de Jake entre os lábios e soprava-o com toda a alma.
A horda de grakyls gritou e retorceu as orelhas pontiagudas, como se estivessem a metê-las nos seus canais auditivos para bloquear o barulho. O seu ignóbil senhor sibilou em agonia e lançou-se pelo ar. Torceu-se e contorceu-se com se tivesse perdido o equilíbrio. Os outros dispersaram, fugindo do penetrante assobio ultrassónico.
Com o caminho livre de novo, Jake apontou.
— VAI!
Pindor correu com ele para cima.
— Eles têm umas grandes orelhas — arquejou ele. — Pensei que talvez...
— Pensaste bem! — retorquiu Jake, sabendo que Pindor lhes tinha salvado a vida.
Correram pelos últimos degraus e saltaram por cima do anel da cauda que rodeava a entrada. Jake sentiu um ligeiro formigueiro, como quando tinha passado pelo Portão Quebrado, mas ninguém os parou.
Jake fez uma pausa e olhou para trás. Os grakyls tinham voltado, mas pairavam à entrada. Um tentou atingi-los com uma garra. Um pequeno crepitar de faíscas percorreu a pele do grakyl. Mas foi tudo. Não foi repelido, o que queria dizer que a barreira da pirâmide, como a que rodeava todo o vale, estava em baixo.
No entanto, a criatura recuou. Recusou-se a segui-los para dentro da pirâmide. Outros juntaram-se lá fora, mas nenhum deles entrou.
— Parece que eles têm medo de entrar — sussurrou Marika.
Medo de quê?, perguntou-se Jake com um arrepio de terror.
— Com medo ou não, o certo é que não se vão embora — disse Pindor.
Era verdade. Mais e mais grakyls juntavam-se lá fora. Jake imaginou toda a pirâmide coberta com aqueles monstros. Talvez eles estivessem a arranjar coragem para irromper por ali adentro. Jake queria estar longe quando isso acontecesse.
— Para onde vamos agora? — perguntou Jake.
Bach’uuk acenou e conduziu-os em frente. O túnel da entrada inclinava-se fortemente para baixo, em direção ao centro da pirâmide. O caminho estava às escuras, mas uma luz brilhava no final do corredor.
Não tinham escolha senão enfrentar o que estava à sua frente.
24
SOMBRA NA MÁQUINA
Ao percorrer o túnel, Jake deslizou um dedo ao longo da parede. As pedras ajustavam-se perfeitamente, porém, em vez de estarem empilhadas, cada uma delas tinha uma forma irregular que se encaixava perfeitamente nas outras como as peças de um puzzle. No entanto, a linha de junção das pedras era tão lisa que ele duvidava de que pudesse caber uma lâmina de barbear entre cada um dos blocos.
A luz tornou-se mais brilhante à sua frente. Jake sentiu um pulsar no ar, como se alguma coisa lhe estivesse a comprimir o peito, libertando-o em seguida, voltando a comprimi-lo. A cada passo que dava, aquela sensação aumentava.
Pindor esfregou o estômago, sentindo a mesma coisa ali. Apesar do perigo, Marika franziu o sobrolho de curiosidade. Apenas Bach’uuk parecia imperturbado. Mas ele já tinha estado ali.
A passagem continuava a descer, mas o seu fim parecia estar mesmo à frente. O pulsar tornou-se mais intenso e a luz mais clara quando o corredor desembocou numa câmara cavernosa, com uma cúpula semelhante à do Astromicon.
Jake parou, assombrado pelo que via à sua frente.
Uma esfera perfeita de cristal estava no centro da câmara. Rodava lentamente sobre si própria, suspensa no ar sob a cúpula. Irradiava um brilho constante, mas Jake sentia aquele pulsar a cada volta completa que ela dava.
O coração de cristal de Kukulkan!
O pulsar era o batimento do seu coração.
À medida que os seus olhos se habituavam ao brilho, Jake viu mais uma coisa que o surpreendeu. A esfera era na realidade constituída por três esferas, cada uma dentro da outra, como matrioscas. Duas delas rodavam em direções opostas: uma da esquerda para a direita, a outra da direita para a esquerda. A terceira girava de cima para baixo. Letras estranhas estavam esculpidas na superfície das três esferas e giravam de forma a fazer toda a espécie de combinações, como se fosse um computador de cristal.
Marika avançou e passou entre Pindor e Bach’uuk. Os seus olhos estavam arregalados. O chão afundava-se formando uma taça sob o coração de cristal. Sob a esfera que rodava estavam três versões em miniatura da maior. Uma esmeralda, uma rubi, uma azul-safira.
De novo, as três cores primárias.
Jake olhou de relance para o seu anel de prata de aprendiz. As mesmas três pedras formavam um triângulo em volta do diamante. Apercebeu-se de que o padrão devia ser uma versão miniaturizada daquele que estava à sua frente. O diamante representava o coração de cristal. As gemas coloridas correspondiam às três esferas mais pequenas.
Fascinado, contemplou o centro da sala.
Sob o gigantesco coração de cristal, as pequenas esferas giravam sobre si próprias, como pequenas luas apanhadas na órbita de um planeta maior — ou, mais exatamente, duas delas giravam.
O cristal esmeralda parecia oscilar e, enquanto as outras esferas brilhavam com a sua própria luz interior, a esfera verde mantinha-se escura e sombria. Alguma coisa estava definitivamente errada com ela.
A causa para isso tornou-se evidente quando, de um corredor escuro no ponto mais distante da cúpula, irromperam sombras. Flutuavam em volta de uma forma humana, mas era impossível ver os pormenores. As sombras ocultavam inteiramente a figura e agitavam-se à sua volta como chamas negras.
Tinha de ser o assassino que Bach’uuk vira a fugir de Kalakryss.
Jake refugiou-se no corredor e arrastou Marika consigo. O homem das sombras — se é que era um homem — ajoelhou-se junto ao cristal verde e levantou as duas mãos sobre a sua superfície. Dos seus dedos, a escuridão fluiu e afundou-se na pedra esmeralda. A oscilação tornou-se mais errática.
O assassino estava a fazer alguma coisa para controlar ou possivelmente destruir aquela esfera. Mas porquê? Com que fim? Jake lembrou-se de Marika ter falado sobre as dádivas de Kukulkan, da sua descrição do campo projetado pela pirâmide, que concedia uma língua comum a todos, protegia o vale dos perigos e mantinha os cristais carregados de energia.
Três dádivas... três esferas coloridas.
Duas das dádivas ainda funcionavam — a língua e o poder dos cristais —, mas não a terceira. A barreira não funcionava. Jake sabia agora como é que as forças do Rei Caveira tinham penetrado as defesas do vale. Estava a olhar para isso. A criatura tinha enfraquecido a barreira na sua origem — envenenando a esfera esmeralda.
Ela tinha de ser parada ou todo o vale seria destruído.
Jake saiu do corredor. Caminhou em bicos de pés e ligou a lanterna. Se se movesse em silêncio, poderia apanhar o assassino de surpresa. E com o alcance do feixe de luz da lanterna, nem precisaria de se aproximar muito. Valia a pena correr o risco.
Jake levantou uma mão a fim de avisar os outros para se deixarem ficar para trás. Deu mais alguns passos — quando um grito estridente se elevou da horda de grakyls lá fora. Jake encolheu-se face ao tom triunfante dos gritos. Receou o que aquilo poderia querer dizer para todos no vale. Mas naquele momento queria dizer desastre para Jake.
A figura sombria, talvez curiosa com o barulho, olhou na direção da entrada. A sua face retorcida virou-se diretamente para Jake. Este imobilizou-se como que atingido pelo feixe de luz da sua própria lanterna. A criatura investiu, levada pelas sombras atrás dela. Correu para Jake.
Finalmente, Jake reagiu e levantou a lanterna. Fê-la incindir diretamente na poça de sombras que ocultava a face da figura. A luz glacial queimou através das trevas. A escuridão fluiu para longe da luz como água.
A criatura atirou-se para o lado. Jake quase conseguiu ver a face atrás da máscara — e então o feixe de luz da lanterna piscou e morreu.
Em pânico, Jake abanou-a. Conseguiu que ela brilhasse mais um segundo, depois apagou-se outra vez. As sombras precipitaram-se de novo sobre a face da criatura e engoliram as suas feições.
A figura levantou os dois braços e as sombras irromperam da sua forma e lançaram-se sobre a parte inferior do corpo de Jake. As pernas deste ficaram imediatamente frias. As sombras adensaram-se até à consistência do alcatrão. Jake não conseguia mexer-se.
— Jake! — chamou Marika.
— Não saias daí! — gritou ele. Ou seremos todos apanhados.
A criatura parecia não ter qualquer problema em atravessar as sombras na direção de Jake. Embora a figura não tivesse um rosto, Jake imaginou um sorriso maldoso.
Palavras fluíram, abafadas pelas sombras.
— Tu sobreviveste à minha armadilha. O meu mestre ficará satisfeito. Ele tem grandes planos para ti.
Jake não sabia do que a criatura estava a falar. Sacudiu freneticamente a lanterna, mas as baterias estavam completamente gastas. Nesse momento, ouviu pés correrem atrás dele. Olhou por cima do ombro e viu Marika, Pindor e Bach’uuk a virem em sua ajuda, dirigindo-se diretamente para a poça das sombras. Não lhe tinham dado ouvidos. Várias emoções debateram-se dentro dele. Estava ao mesmo tempo aliviado por si próprio, mas também aterrado pelo que podia acontecer aos seus novos amigos.
Pindor alcançou a poça de sombras primeiro e as suas pernas cederam debaixo dele. Caiu de cara na poça negra. Bach’uuk e Marika usaram o corpo do rapaz como uma ponte. Bach’uuk ia à frente e, quando atingiu os ombros de Pindor, virou-se, agarrou Marika pela cintura e lançou-a para Jake. Ela voou por cima da poça e aterrou dois passos atrás dele — e então afundou-se até à cintura como Jake.
Marika tentou dar um passo, içando a parte de cima do corpo, mas não conseguia mexer-se. Todos os seus esforços pareciam divertir a sombria criatura. Um risinho abafado fluiu, mas não transmitia calor, apenas gelo.
— A filha do mestre e o filho do ancião. E um jovem Ur. Vocês sozinhos pensam ser capazes de derrotar o Rei Caveira?
De novo, aquele riso sinistro.
— Jake... — disse Marika atrás dele.
Ele olhou para ela. Marika tinha uma mão na sua garganta e batia com um dedo por baixo do queixo, como se lhe estivesse a fazer um sinal. Ele não compreendia o que ela lhe queria dizer. A outra mão dela ergueu-se por detrás das suas costas. Nos seus dedos, ela segurava uma haste fina, encimada por um cristal rubro. Era a vara do seu pai.
Ela segurou-a na direção de Jake, fora das vistas da sombria criatura. Marika voltou a bater na garganta.
Então, Jake lembrou-se. Bach’uuk descrevera uma característica que o seu olhar perspicaz captara da forma de sombras quando o assassino fugira de Kalakryss. Um fecho na garganta, decorado com uma pedra-de-sangue.
Jake virou-se e enfrentou a escultura de sombras. Marika fez deslizar a vara para a mão que Jake mantinha atrás das costas. Ele levantou o queixo e ficou a olhar em frente à medida que a figura reduzia a distância entre eles.
— Mesmo que o mestre te queira — sibilou —, isso não quer dizer que não possa fazer-te sofrer pelos problemas que causaste. E que melhor maneira de te fazer sofrer do que ver um dos teus amigos morrer?
A criatura apontou com um braço. Jake arriscou um olhar e viu Pindor debater-se para sair do meio da poça negra. Tinha a cabeça de fora e lutava por respirar. Então as sombras subiram pelo corpo do seu amigo, fluindo para cima e enchendo a sua boca e o nariz, deixando apenas os olhos acima da escuridão. Pindor debateu-se, assustado. A sua boca abriu-se num grito silencioso quando ele tentou respirar.
Jake virou-se, irritado, e enfrentou o monstro envolto em sombras.
— Solta-o! — gritou, voltando a atrair a atenção da criatura. Quando ela virou a cabeça, Jake avistou um ténue brilho enterrado nas sombras. Um pedaço de escuridão mais escuro que qualquer sombra. O fecho da pedra-de-sangue.
Jake pegou na vara de Balam e desferiu um golpe. O cristal carmesim rompeu as trevas e atingiu a pedra negra. A pedra-de-sangue pareceu saltar. Um débil grito fluiu dela ao mesmo tempo que uma luz rubra irrompia da ponta da vara. Jake piscou os olhos face ao brilho ofuscante e viu a pedra-de-sangue ficar totalmente branca, drenada do seu poder.
— Não! — gemeu a criatura, ecoando o grito da pedra.
As sombras colapsaram como uma enxurrada de neve derretida depois de um súbito degelo. Jake tropeçou, livre, à medida que a poça de sombras à sua volta passava de alcatrão a ar puro. Esbarrou em Marika, mas ficaram de pé. Pindor tossiu e arquejou, mas ainda estava vivo. Bach’uuk ajudou-o a pôr-se de pé. Pindor agarrou na sua espada e avançou meio atordoado. Pressionou a ponta da sua espada sobre o coração do assassino.
Com o fecho da pedra-de-sangue aberto, as sombras desapareceram para longe da figura. A escuridão fluiu para baixo e revelou uma face pálida e uma barriga excessivamente grande.
— Mestre Oswin — gaguejou Marika.
Ele não mostrou remorsos, apenas desdém e desagrado.
— Porquê? — perguntou ela.
— Porque não? — zombou ele, fazendo uma careta.
— Mas serviste sempre Calypsos.
Ele deu uma gargalhada dura.
— Não, eu servi sempre o Kalverum Rex, o meu verdadeiro senhor. Sirvo-o desde que sou aprendiz, reconheci o seu brilhantismo. Alguém que não tem medo de aprofundar a alquimia de que outros fogem. Ele encontrou um trilho sombrio para a divindade, e foi-me permitido seguir atrás dele.
— Então porque não partiste com o rei quando ele foi banido? — perguntou Marika, com o rosto pálido e enojado.
De novo, aquele sorriso sinistro.
— Enquanto ele permitiu que outros fossem com ele, a mim foi-me ordenado que ficasse. Para ser os seus olhos e os seus ouvidos. Para aguardar até ao momento em que ele pudesse voltar!
— Então, tu és um espião! — disse Pindor, puxando a sua espada o suficiente para fazer o prisioneiro estremecer.
— E um sabotador — acrescentou Jake com um aceno para a esfera verde-escura.
— Todos estes anos... — exclamou Marika.
— Que suínos crédulos. — Ele cuspiu no chão. — Vocês não sabem nada sobre esta terra! Não sabem nada sobre as forças que neste momento se fecham à vossa volta. Com apenas uma palavra... — De repente, ele encolheu-se e ofegou. Olhou fixamente para os seus pés.
As sombras tinham-se acumulado ali como uma capa caída. Mas não ficaram paradas. À volta dos pés do mestre, as sombras começaram a rodopiar como um remoinho.
— Não, mestre — gemeu ele.
As pernas de Oswin começaram a afundar-se no remoinho cerrado. Os seus olhos arregalaram-se em pânico. De súbito, o seu rosto contorceu-se de dor. Um grito irrompeu da sua garganta. Não de súplica desta vez, mas de pura agonia. Oswin tentou afastar-se da poça que girava, mas foi apanhado tão firmemente quanto Jake fora anteriormente. Ele estatelou-se no chão.
Todos se afastaram.
A maré negra puxou o seu corpo para mais fundo, sugando-o. Os seus dedos cravaram-se no chão liso de pedra, mas não conseguiu agarrar-se. O seu rosto contorceu-se numa máscara de dor e terror.
— Não! Assim não!
Marika deu um passo na sua direção. Jake segurou-a. O demónio podia arrastá-la com ele.
— O meu pai — rogou ela. — O que é que lhe aconteceu?
Oswin parecia não a ouvir, ou simplesmente não queria saber. Os seus dedos deixaram um rasto sangrento à medida que era sugado para aquela goela negra. Desapareceu com um último grito de terror.
Marika virou-se e encostou o seu rosto ao ombro de Jake. Ele pôs um braço à volta dela. O remoinho continuou a rodar, mas, como a água que se escoa pelo ralo da banheira, depressa desapareceu, deixando apenas o chão de pedra liso.
Todos demoraram um momento para se acalmarem. Pindor bateu com a sua espada no chão, como que a testar a sua solidez. Jake manteve o braço à volta de Marika. Caminharam trémulos em frente e passaram por baixo do coração de cristal do templo. Jake ajoelhou-se junto à esfera esmeralda. Já nem mesmo oscilava. Nas profundezas da pedra, onde as outras esferas brilhavam, o cristal estava escuro — não, não apenas escuro, estava preto.
Um pedaço sólido de sombra repousava no coração da pedra.
Jake pousou cuidadosamente a palma da sua mão na superfície. Estava fria, e nada mais. Colocou a outra palma sobre ela. Não conseguia descobrir nenhuma maneira de fazer desaparecer a escuridão venenosa de dentro dela. Não havia maneira de a alcançar com a vara de Balam, não através de cristal sólido. E a lanterna de Jake não tinha mais energia. Nem sequer podiam tentar dar-lhe um choque.
Jake olhou de relance para Marika. Esta abanou a cabeça. Eles precisavam de um mestre a sério, não de dois aprendizes.
Pindor olhou para trás, para onde Oswin fora sugado para o vazio.
— Ele traiu-nos a todos. Mas suponho que isso faça um certo sentido em termos estratégicos.
Marika explodiu:
— Sentido? Como é que tudo isto faz sentido?
Pindor fez um gesto com a mão apontando para a câmara.
— O Rei Caveira precisava de um mestre. Só um mestre podia passar através da barreira que protegia o templo e desativar o escudo que guardava o vale. Não é de admirar que o Rei Caveira tenha aceitado tão facilmente ser banido. Ele sabia que podia voltar ao vale quando estivesse preparado para o fazer.
Jake levantou-se.
— Mas isso não quer dizer que tenhamos de o deixar. — Fez um aceno para Bach’uuk. — Nós viemos para aqui com um plano... o teu plano, Pin... para encontrar um lugar onde nos pudéssemos reagrupar e encontrar mais aliados.
Marika juntou-se a eles.
— Não podemos deixá-lo vencer.
— Não deixaremos — prometeu Jake, desejando que fosse uma promessa que pudesse cumprir.
Ao saírem da sala, um grito explodiu fora do templo. Foi tão alto que fez os ouvidos de Jake doerem mesmo dentro do templo. Juraria que fez abanar o chão por baixo deles.
Jake recordou os gritos de triunfo que tinham entusiasmado a horda de grakyls há alguns momentos. Suspeitou que a causa desse entusiasmo tivesse acabado de chegar.
— É ele? — perguntou Marika, dando voz ao que Jake temia. Ela não precisava de um nome. Todos sabiam a quem ela se referia.
— Vamos — disse Jake.
25
MUNDO SUFICIENTE E TEMPO
Bach’uuk conduziu-os para o túnel situado do outro lado do coração de cristal. Dava para um conjunto de estreitas escadas de caracol que desciam para os níveis inferiores da pirâmide. Seguiram em fila indiana. Jake percebeu que tinham de estar por baixo da pirâmide, a não ser que a pirâmide fosse maior do que parecia vista de cima. Talvez o que estivesse à superfície fosse apenas a ponta de uma estrutura muito maior.
Às voltas e às voltas, continuaram a descer.
Por fim, as escadas desembocaram numa outra sala, de teto plano mas de forma circular. Estalactites gigantescas de cristal estavam suspensas do teto alto como as presas de um colossal animal fossilizado. Brilhavam e iluminavam todo o espaço.
Jake seguiu Bach’uuk, que se dirigiu para outro túnel na ponta mais distante da sala. Parecia que havia mais escadas — que também continuavam para baixo.
Quanto mais para baixo vai este lugar?, pensou Jake. Porém, toda a sua atenção se concentrou na sala. Os seus pés abrandaram. Marika e Pindor mantinham-se perto dele.
No chão, encontrava-se um gigantesco dispositivo. Era uma roda circular feita de ouro puro. Estava pousada no chão na horizontal e estendia-se por cerca de nove metros. A sua borda interior era dentada como uma engrenagem. Uma segunda roda encaixava-se na primeira.
Sob o olhar de Jake, a engrenagem maior rodou alguns graus com um forte estalido, fazendo girar a engrenagem menor no seu interior. Depois parou, como que a marcar o tempo. E talvez estivesse. Jake andou à volta da sua circunferência exterior. Embora não houvesse marcas nela, Jake reconheceu a sua forma.
Seguindo atrás de Jake, Marika também a reconheceu.
— É como a roda do calendário da nossa tribo.
Jake anuiu. Os maias tinham desenvolvido um calendário muito completo usando rodas que se encaixavam umas nas outras como engrenagens. De novo, perguntou-se o que tinha acontecido primeiro. Teriam os maias construído isto? Ou teria algum antepassado dos maias estado onde eles estavam agora e regressado a casa com o conhecimento? Jake continuou a andar à volta. De acordo com Marika, a pirâmide estava ali muito antes de qualquer das tribos ter chegado, mesmo antes de os neandertais terem feito daquele vale a sua casa. Jake começava a suspeitar que estava a olhar para a possível origem de todo o antigo conhecimento, conhecimento encontrado aqui e levado para as terras natais.
Bach’uuk, que já tinha visto tudo aquilo antes, esperava à entrada do túnel mais afastado.
Jake começou a dirigir-se a ele quando reparou nas paredes curvas da sala. Linha após linha de escrita antiga cobria as paredes do chão ao teto, tão nitidamente gravadas que podiam ter sido cortadas a laser. Jake examinou cuidadosamente a escrita antiga.
Que língua seria aquela? Quem tinha escrito aquilo? Jake passou os dedos sobre as letras. Tinham de ser os construtores da pirâmide. Possivelmente, os mesmos que haviam atraído as Tribos Perdidas da Terra para estas paragens remotas.
Continuou a andar junto à parede e dirigiu-se a Bach’uuk, cujas sobrancelhas se franziam cada vez mais de impaciência. Tinham de se apressar. Porém, ao avançar pela sala, Jake viu um desenho à sua frente. Tinha sido gravado num espaço em branco na parede. Mostrava três círculos com formas salientes, criando um baixo-relevo.
Jake afastou-se para ver o desenho no seu conjunto, mas parou de súbito de boca aberta à frente do primeiro círculo, incapaz de falar. Voltou a aproximar-se. Embora os pormenores não fossem grande coisa, as formas pareciam as de um mapa grosseiro da Terra. Jake percorreu com um dedo as formas esculpidas dentro do primeiro círculo, murmurando os nomes dos continentes.
— África, América, Austrália...
O círculo seguinte mostrava esses mesmos continentes muito mais próximos, encaixando-se uns nos outros como num puzzle. A protuberância na América do Sul encaixava na curva de África. E assim por diante.
O último círculo mostrava todos os continentes fundidos num só.
Jake arquejou e voltou a afastar-se para abarcar a vista de conjunto. Começou a compreender o que estava a ver. No passado, na era dos dinossauros, o mundo era um único e grande continente. Porém, um grande cataclismo e as forças do magma a fluir dividiram finalmente a enorme massa de terra e formaram os atuais sete continentes mais pequenos.
Jake engoliu em seco e sussurrou o nome científico do supercontinente desenhado no último círculo.
— Pangaea.
Pindor estava ao seu lado. Lançou a Jake um olhar intrigado.
— Não sabia que falavas grego.
Jake franziu a testa.
— O quê?
— Pangaea. É grego. Estudei-o na escola.
Jake sentiu um formigueiro ao compreender. Pindor tinha razão A palavra Pangaea era efetivamente formada por duas palavras gregas. Visualizou-as na sua cabeça.
Pan = toda
Gaea (Gaia) = Terra.
Logo, a tradução de Pangaea é toda a Terra.
Jake franziu o sobrolho. Toda-a-terra era também o nome para a língua universal usada por toda a gente ali. Não podia ser uma coincidência, pois não? Olhou para Pindor e para o mapa. Então virou-se lentamente quando uma ideia o gelou. Os seus amigos não falavam toda-a-terra, falavam pangeiano.
Um arrepio percorreu Jake quando ele se virou para o mapa novamente. A Pangeia era um mundo pré-histórico cheio de dinossauros e plantas primitivas. Como aqui. Levantou o braço e colocou a palma da mão sobre o supercontinente.
Pode isto ser onde estou agora?
Se estivesse certo, neste momento olhava para a forma deste mundo. Tinha estado a fazer a pergunta errada desde que ele e Kady haviam aterrado aqui. A pergunta não era onde é que estavam, mas quando. Jake ainda estava na Terra — mas duzentos milhões de anos no passado.
— Isto é a Pangeia — exclamou ele em voz alta.
Marika parecia perplexa com a reação de Jake ao desenho.
— Jake, qual é o problema?
Ele abanou a cabeça. Não tinha tempo para explicar e de qualquer maneira duvidava que eles acreditassem nele. Pelo menos, para já.
Pindor apontou a sua espada para Bach’uuk.
— Devíamos ir andando.
Jake deixou-se conduzir. Sentia as pernas bambas do choque. Um forte estalido atraiu o seu olhar para o mecanismo no chão. Tinha passado mais um entalhe. A roda interior mais pequena rodava. Jake olhou para o mapa na parede atrás deles, o mapa da Pangeia.
Tem tudo que ver com o tempo.
Jake sabia que isso era fulcral para aquele mistério. Quando começou a afastar-se, um pedaço de ouro a rodar no chão chamou-lhe a atenção. O anel interior tinha colidido com alguma coisa dentro dele. Parecia uma moeda grossa de ouro. Rolou até parar dentro do anel, tornando-o mais lento.
Jake deu um passo na direção das duas engrenagens.
Isto é...?
— Temos de ir — insistiu Pindor. Passou a espada de uma mão para a outra, claramente preocupado com o seu povo e a sua cidade.
Porém, Jake inclinou-se sobre o anel exterior e esquadrinhou o que se encontrava dentro do anel mais pequeno. Não era uma moeda. Jake reconheceu a forma. Passou por cima do anel exterior, tendo cuidado com as engrenagens dentadas, e avançou lentamente para o anel interior. Inclinou-se e apanhou-o.
Tinha razão. Era um relógio de bolso antigo. Jake examinou-o, virando-o entre os dedos. O seu pai tinha um igual...
Jake descobriu uma inscrição na parte de trás. O seu olhar ensombrou-se ao ler o que estava escrito ali.
Para o meu amado Richard,
Um pedaço de ouro para assinalar a nossa décima revolução
em volta do Sol juntos.
Com todo o amor sob as estrelas,
Penelope
De repente, Jake sentiu a sala inclinar-se como se, de súbito, uma vida que ele julgava morta há muito voltasse momentaneamente. Cambaleou para o lado, tropeçou no rebordo do anel e caiu com força, mas nem sequer o sentiu. O seu mundo resumia-se ao relógio... e às palavras escritas nele.
— Jake? — Marika correu para ele. Estendeu-lhe a mão para o ajudar a levantar-se.
Ele ignorou-a e continuou a olhar para o relógio na palma da sua mão. Os seus dedos fecharam-se sobre a caixa de ouro. Estava fria e era sólida — e muito real. Ele sussurrou o milagre, receoso de levantar a voz e fazer com que tudo desaparecesse.
— Este relógio é do meu pai.
Jake não tinha qualquer recordação de como acabara num túnel estreito e comprido, escavado grosseiramente na rocha vulcânica. Lembrava-se de ter sido levantado e conduzido com gestos cuidadosos e palavras de aviso. Lembrava-se de mais escadas e de uma laje de pedra que Bach’uuk e Pindor tiveram de afastar. A passagem ficava para lá daquela pedra, um túnel secreto. Bach’uuk indicava o caminho com um pedaço de cristal branco e luminoso erguido na sua mão.
Continuaram em silêncio. Os seus amigos sentiram que Jake se tornara uma poça coberta por um frágil lençol de gelo. Caminhavam com cuidado. Marika mantinha-se ao seu lado, esperando que ele fosse o primeiro a falar.
Jake carregava o relógio de bolso com as duas mãos. Era um peso que ele não conseguia levar apenas com uma mão. Era preciso todo o seu corpo para o carregar.
— O que é que isto quer dizer? — murmurou ele, finalmente, mais para si próprio do que para Marika.
A pergunta era um pequeno grão de areia que, posto em movimento, se tornaria uma avalanche. Porque estava o relógio ali? Como teria ido ali parar? E quando? Teriam o seu pai e a sua mãe estado naquela terra? Ou teria o relógio sido sugado para ali, como Jake e Kady, unicamente por acidente ou acaso? Se os seus pais tinham ali estado, porque é que ninguém lho tinha dito, os tinha mencionado?
As perguntas rodopiavam entre mistérios e o desconhecido.
Jake estremeceu e finalmente deixou uma última questão levantar-se. Debateu-se com ela pois havia demasiada dor e medo à sua volta.
Poderiam os seus pais ainda estar vivos?
Era um assunto perigoso. Se Jake se permitisse acreditar nisso e estivesse errado, seria como perder a mãe e o pai de novo. Jake não sabia se poderia sobreviver a isso.
No entanto...
Olhou para baixo, para o relógio de bolso. Sentiu o seu peso, esfregou o polegar sobre ele. Isto não era a fantasia de uma criança, uma esperança sem substância. Este era o relógio do seu pai... na sua mão.
Jake apertou-o e chegou a uma conclusão. Por agora, aquilo bastava. Não podia saber mais nada. O pai tinha-o avisado para não deixar a sua imaginação tomar as rédeas. Costumava dizer que um verdadeiro cientista pesava as hipóteses contra a realidade testada.
Jake respirou fundo. Podia fazer isso depois.
Tinha encontrado o relógio do seu pai.
Era real.
O que isso queria dizer permanecia desconhecido.
Por agora.
Mais calmo, permitiu que as palavras na parte de trás do relógio o aquecessem como o sorriso terno da sua mãe. Um pedaço de ouro para assinalar a nossa décima revolução em volta do Sol juntos.
A atenção de Jake alargou-se. Começou a notar a água a escorrer pelas paredes. Sentiu o ligeiro cheiro a ovos podres no ar. Enxofre das fendas vulcânicas. A passagem tornou-se mais quente, mesmo fumegante.
Ouviu Pindor dizer a Bach’uuk:
— Devemos estar uma légua dentro da floresta.
Bach’uuk abanou a cabeça.
— Não falta muito agora.
— Estás sempre a dizer isso — queixou-se Pindor.
Jake engoliu em seco e olhou para o relógio de bolso. Usou a unha para o abrir. Sentia-se suficientemente forte agora para o fazer. A caixa do relógio estava abaulada, as dobradiças presas, mas Jake conseguiu abri-lo. O vidro do mostrador não estava em melhores condições que a caixa de ouro. Uma racha irregular atravessava a sua superfície. Os estragos fizeram crescer o medo no seu coração. Como é que o relógio tinha ficado tão danificado?
Porém, o medo depressa diminuiu ao ver o fino ponteiro dos segundos mover-se no mostrador do relógio. Não devia estar a mover-se. O relógio era dos antigos, daqueles a que se tinha de dar corda. Porém, não foi isso o que realmente intrigou Jake e o forçou a voltar à realidade.
O ponteiro dos segundos movia-se lenta e firmemente.
Mas na direção errada.
No sentido oposto.
O ponteiro estava a andar ao contrário!
Antes que ele pudesse refletir no que aquilo significava, Pindor gritou:
— A saída!
Jake tornou-se consciente de um rugido. Bach’uuk levantou mais o cristal e viram uma cascata de água à frente da boca do túnel. Não admirava que o trilho se tivesse mantido secreto. O seu final estava escondido atrás de uma queda-d’água.
Correram juntos para a frente.
Marika olhou para Jake.
Ele fechou o relógio, guardou-o no bolso e abotoou-o cuidadosamente. Manteve a mão sobre o relógio, não querendo separar-se dele. Mas encontrou o olhar de Marika e anuiu. Compreendia o que estava em jogo. Enquanto a guerra estivesse a ser travada em cima, o mistério do relógio teria de esperar.
Ainda assim, lembrou-se do ponteiro dos segundos a rodar e rodar ao contrário. Na sua cabeça, ouviu o clique do mecanismo do calendário de ouro a rodar. Visualizou o baixo-relevo que mostrava a separação da Pangeia.
A chave para todos estes mistérios era uma palavra.
Tempo.
E Jake tinha a certeza de uma coisa.
Estavam a ficar sem ele.
26
A CONTAGEM LONGA
Jake ficou molhado até aos ossos.
Bach’uuk conduzira-os por trás da queda-d’água ao longo de um estreito parapeito da rocha, segurando Jake pelo pulso, que por seu lado agarrava o de Marika, que fazia o mesmo a Pindor. Qualquer passo em falso e todos se precipitariam nas rochas afiadas em baixo.
Porém, não era esse o único perigo.
Embora a queda-d’água enchesse o mundo com o seu rugido, para lá deles a selva crocitava, rugia, urrava, sibilava, zumbia e guinchava.
Por fim, atingiram a orla da queda-d’água e o parapeito alargou-se sob os seus pés. Pindor sacudiu o cabelo como um cão molhado. Todos pararam por um momento para recuperar o fôlego.
A lua cheia ia alta à medida que a meia-noite se aproximava. Aromas de flores noturnas e de terra escura e fértil misturavam-se com o cheiro doce de decomposição da antiga floresta. Este era um mundo primevo em que a natureza ensaiava pela primeira vez com sementes e folhas, dentes e garras, raízes e trepadeiras. Era uma profusão de vida nova.
Jake ficou a olhar, ainda atordoado com o que o templo lhe tinha ensinado. Agora tinha um nome para aquele mundo.
Pangeia.
Neste momento, Jake compreendeu por que razão a tribo neandertal escolhera viver deste lado do cume. Havia ali uma beleza bravia, porém maravilhosa.
Bach’uuk pô-los de novo em movimento em direção a uma enseada de paredes íngremes, crivadas de grutas no cimo, como janelas num arranha-céus. Algumas das grutas estavam às escuras, enquanto outras brilhavam com fogueiras... fogueiras verdadeiras, não cristais luminosos, com chamas tremeluzentes, cintilantes, vacilantes.
Jake contou mentalmente. Havia bem para cima de cem grutas, talvez mesmo o dobro disso. Esta não era uma pequena aldeia Ur, mas uma próspera metrópole.
— Nunca pensei... — disse Marika.
— É tão grande — ecoou Pindor.
Jake ouviu a esperança na voz de Pindor. Se a tribo pudesse ser convencida a ir em defesa da cidade, havia alguma hipótese de afugentar as forças do Rei Caveira.
Bach’uuk fingiu não ter ouvido as palavras deles ou o temor por trás delas. Mas aquilo fê-lo andar mais direito.
Escadas grosseiras ligavam os vários níveis das habitações, com lianas penduradas entre elas, segurando cestos, baldes e ganchos. Era como uma cidade virada de lado, em que o tráfico não fluía para leste e oeste, mas para cima e para baixo. Ainda assim, era claro que os neandertais mostravam respeito pelos perigos da selva. As grutas mais baixas situavam-se muito acima do chão e filas de troncos afiados estavam virados para cima como espinhos.
Uma figura alta e hirsuta com vestuário de couro saiu da primeira gruta e falou a Bach’uuk na língua de Ur. A sua expressão não era amistosa. Bach’uuk apontou para o seu grupo e respondeu. Seguiu-se uma curta discussão, mas por fim o homem alto fez uma careta e voltou para dentro.
Bach’uuk virou-se
— Kopat vai reunir os nossos anciãos. Eles sabem do ataque, mas os Ur não tomam decisões precipitadas.
— O que há para decidir? — perguntou Pindor. — O Rei Caveira trará esta guerra para as vossas grutas assim que acabar com Calypsos.
Bach’uuk encolheu os ombros.
Não tendo alternativa senão esperar, Jake pôs de lado os enigmas do dia e dedicou-se a uma preocupação mais imediata. Kady. Não fazia ideia de onde a irmã se encontrava e como é que estava. Começou a imaginar cenários terríveis e a sua respiração tornou-se mais pesada com o medo que sentia por ela.
Antes de Jake soçobrar no pânico total, o homem corpulento regressou. Desta vez falou em toda-a-terra.
— Vem. Os anciãos vão ouvir.
A sua expressão continuava a não ser amistosa. Deu meia-volta e conduziu-os para o interior.
Bach’uuk levantou um braço e barrou a entrada a Pindor.
— Como forasteiro, não podes estar armado na presença dos anciãos — disse, estendendo uma mão para a espada do grakyl.
Os ombros de Pindor afundaram-se, mas ele entregou a espada.
Com a espada na mão, Bach’uuk indicou-lhes o caminho para o interior. Jake perdeu-se logo no labirinto. Pelo caminho, avistou mais homens de Ur. Muitos esquivavam-se, mas a curiosidade mantinha-os por perto.
De súbito, o túnel desembocou numa caverna natural. Uma lagoa encontrava-se no meio, refletindo as chamas de uma pequena fogueira. A luz das chamas também brilhava sobre as paredes. Uma vasta paisagem fora pintada, mostrando a selva onde sáurios gigantescos se deslocavam pesadamente e todo o tipo de animais vagueava, voava, deslizava e arrastava-se. Sob a luz vacilante das chamas, os animais pareciam saltitar e dançar.
Marika deslocou-se ao longo da parede com o pescoço esticado. Os seus olhos brilhavam de admiração.
De um túnel para lá da fogueira, três formas emergiram da sombra para a luz. As suas costas estavam curvadas da artrite e o cabelo tornara-se branco com a idade. Coxeavam apoiados em bordões grossos, decorados com cristais luminosos e argolas de bronze polido. As argolas refletiam o fogo e faziam com que os animais na parede parecessem mover-se ainda mais.
Os seus olhos pareciam quase cegos, apenas capazes de distinguir a luz da escuridão. Eles afundaram-se pesadamente no chão de pedra junto das chamas Estes homens não eram apenas idosos, era mais como se fossem antigos.
O que estava no meio falou na língua nativa de Ur a Bach’uuk, que inclinou a cabeça e respondeu. Três pares de olhos cravaram-se em Jake. Os seus olhares pesaram fortemente sobre ele. Jake nunca tinha sentido uma tal intensidade, quase como se eles estivessem a tentar entrar na sua mente.
— Porque nos procuraste? — perguntou o ancião do meio.
Jake engoliu em seco.
— Viemos pedir-vos para se juntarem a nós na luta contra o Rei Caveira.
Os olhos dele continuaram a fitá-lo.
— Calypsos cairá se não tiver ajuda — pressionou Jake.
— Todas as coisas têm um fim — murmurou com uma voz rouca o ancião à esquerda.
— Toda a vida existe apenas por um breve período de tempo — acrescentou o ancião à direita. — Marcado pelo bater do coração.
O ancião do centro rematou com o que pareceu ser um antigo provérbio.
— Apenas um coração marca o tempo na contagem longa. — Levantou a mão muito velha e formou um triângulo com os dedos esqueléticos. Devia estar a referir-se à pirâmide e ao coração de cristal que pulsava no seu centro.
O ancião baixou as mãos.
— E apenas o templo ficará aqui quando todos nós tivermos desaparecido. Assim é dito desde o tempo em que os Ur chegaram a esta terra e caminharam na sua grande sombra. Nada mais importa.
Jake recordou-se da história de Marika de como a primeira das Tribos Perdidas já encontrara estas pessoas aqui. Os neandertais deviam ter sido também arrancados da sua terra natal — e da sua linha temporal — e trazidos para aqui. Mas há quanto tempo se teriam os Ur estabelecido aqui antes de as outras tribos chegarem?
— Então não nos vão ajudar? — disparou Pindor, zangado.
Não houve hesitação. Nem desculpas. Nem mesmo pesar. Apenas um categórico «Não».
— Mas deviam — suplicou Marika.
— Não é o nosso caminho — entoou o ancião do meio, ecoando as palavras que Bach’uuk usara antes. — Nós não somos Calypsos. Essa luta no tempo curto não diz respeito aos Ur. Nós servimos apenas o templo enquanto ele marca a contagem longa.
Jake compreendeu. O templo protegera os Ur quando eles ali chegaram e a reverência por ele fora profundamente incutida neles.
— O que acontecer, acontecerá — finalizou o ancião com um tom perentório. — Mas o templo existirá sempre.
Manifestamente, a cidade de Calypsos não podia esperar ajuda da aldeia. Os Ur tinham o seu próprio caminho.
Mas talvez nem todos os Ur.
Bach’uuk interveio.
— Isso é errado.
Os anciãos viraram-se para ele lentamente, claramente surpreendidos.
Bach’uuk continuou:
— Tenho visto muito nestes últimos dias. Carne transformada em gelo. Homens que andam nas sombras. Monstros que empunham espadas. — Bach’uuk ergueu a arma que tinham tirado ao grakyl. — E vi o coração do templo escurecer com veneno.
Ao ouvir estas últimas palavras, o ancião no centro fez sinal a Bach’uuk para se aproximar com a espada.
Os outros pareciam menos impressionados.
— A pirâmide existirá sempre — entoou um deles e o outro acenou com a cabeça.
O ancião do meio examinou a espada que Bach’uuk lhe levou. Pela reação dos anciãos, Jake suspeitou que Bach’uuk pudesse estar a usar os argumentos certos, avisando-os de uma ameaça ao templo.
Os seus olhos foram atraídos de novo pela espada. Quando Bach’uuk a rodara à luz da fogueira, revelara um símbolo fundido no seu punho. Anteriormente, Jake vira de relance uma marca na espada quando a entregara a Pindor, mas esquecera-se completamente disso na confusão do que se seguiu. O símbolo brilhou à luz das chamas. Atónito, Jake reconheceu-o. Já tinha visto aquele símbolo antes, na sua outra vida, gravado no fundo do convite para a exposição no Museu Britânico e esculpido no alfinete de gravata de aço usado por Morgan Drummond, o guarda-costas deles em Londres.
Jake tentou compreender o que estava a ver.
Era simplesmente um grifo — o animal mitológico com asas e cabeça de águia, e corpo, cauda e patas de leão. Mas era também o logótipo da Bledsworth Sundries and Industries, Inc.
O que estava a fazer aqui?
Jake aproximou-se mais do fogo para examinar a marca. Bach’uuk notou o seu interesse, e Jake apontou para o punho da espada.
O ancião semicerrou os olhos.
— Uma marca de corrupção. É um monstro feito de partes de vários animais.
— É também a marca do Rei Caveira — disse Bach’uuk.
Jake lembrou-se da história de Marika de como o Kalverum Rex usara a pedra-de-sangue para corromper e perverter animais em criações abomináveis. Bastava olhar para um grakyl para ver o resultado desta alquimia maligna. Mesmo o símbolo do grifo se parecia um pouco com um grakyl.
A mente de Jake agitava-se enquanto Bach’uuk continuava a falar baixinho com os anciãos. Qual era a ligação? A cada nova descoberta, o mistério adensava-se. A mão de Jake deslizou para o bolso e apertou o relógio do pai. Ligações entre o mundo moderno e a Pangeia iam-se tecendo a cada nova descoberta.
Mas o que é que tudo aquilo significava?
Jake olhou para o grifo. Embora não o pudesse provar, sabia que alguma coisa mais estava em marcha ali, alguma coisa ligada à Bledsworth.
Para lá do fogo, Bach’uuk estava cada vez mais animado, defendendo a sua causa na língua nativa de Ur. Jake não o compreendia, mas ouviu a palavra ciência ser mencionada. Bach’uuk fingia por meio de gestos usar uma lanterna, relatando a história do seu raio que congelava.
Os três anciãos franziam as espessas sobrancelhas cinzentas.
De repente, Bach’uuk argumentou em toda-a-terra.
— Nós, os da tribo de Ur, partilhámos o nosso vale, oferecemos a sua proteção às outras tribos, como uma mãe faz com um filho. Porém, agora, vamos sentar-nos nas nossas casas e deixá-los morrer. Isso não está certo. Uma mãe não abandona o seu filho.
O ancião abanou a cabeça. Pela primeira vez, havia verdadeiro pesar na sua voz.
— As vidas são curtas. Não temam. O medo só existe no tempo curto.
Jake deu um passo em frente, sentindo que Bach’uuk precisava de apoio. Procurando descobrir um meio de provar que o amigo tinha razão, Jake mostrou-lhes a sua lanterna e declarou com firmeza aquilo em que acreditava.
— Este objeto vem de um lado para lá de um tempo curto — avisou Jake. — Vem de um tempo longo.
Um tempo muito, muito longo, acrescentou Jake para si mesmo. Duzentos milhões de anos no futuro, para ser exato.
— E acredito que a nova ameaça ao templo possa vir desse mesmo tempo longo.
Os anciãos olharam para a lanterna, não tanto com receio, mas com curiosidade. Jake precisava de os convencer de que o perigo era real. Desenroscou o topo da lanterna e agitou as baterias na sua mão.
— Isto tem a alquimia do vosso tempo... e a ciência do meu tempo. E nas mãos erradas essa combinação ameaça-nos a todos. Até mesmo o grande templo.
Jake atirou as baterias para o fogo. Ele precisava que os anciãos compreendessem a ameaça em toda a sua extensão. Se ele tivesse razão — se houvesse alguma conexão entre o seu mundo e a Pangeia —, então alguma coisa tinha de ser feita antes que fosse tarde demais.
As baterias aqueceram, e Jake fez sinal a toda a gente para que recuassem. Apesar de as baterias AAA não terem carga, continuavam a ser perigosas. Expostas ao fogo, podiam...
As duas baterias explodiram ao mesmo tempo, estourando com menos força do que Jake esperara. Todavia, o efeito secundário excedeu em muito as expectativas de Jake. Aparentemente, alguma da alquimia de congelamento do cristal azul ficara armazenada nas baterias da lanterna. As chamas apagaram-se. As brasas incandescentes ficaram negras e frias de imediato. Mas, ainda mais dramaticamente, a lagoa junto ao fogo cobriu-se com um sólido lençol de gelo.
Ninguém se mexeu, todos espantados com o aparato.
Antes que alguém pudesse falar, uma confusão à entrada da câmara chamou as atenções. Um homem da tribo de Ur trazia uma jovem com o uniforme de um batedor romano coberto de sangue. Outros dois Ur carregavam um segundo soldado — um homem mais velho semiconsciente com a armadura de um centurião. A sua perna estava partida e a sua cabeça pendia.
A jovem viu Jake e os outros. A sua única reação foi um espasmo de surpresa, que reprimiu rapidamente. Dirigiu-se aos anciãos:
— O vale caiu. Kalakryss está nas mãos da horda de grakyls. O Povo do Vento foi expulso do vale e os cavaleiros da Guarda Montada mal conseguiram escapar pelo Desfiladeiro da Serpente. Calypsos está agora nas mãos do Rei Caveira.
Depois de alguns minutos de perguntas frenéticas e confusão, Pindor finalmente perguntou:
— E o meu pai?
— Não sei dizer — respondeu a jovem. — A cidade está ocupada pela horda. Muitos habitantes esconderam-se nas suas casas e sótãos. Pouco se sabe. Mas chegaram notícias de uma exigência. Do Rei Caveira.
— Que exigência? — perguntou Marika.
A rapariga olhou de relance para Jake, depois desviou o olhar.
— Para entregarem os recém-chegados. Têm até ao pôr do sol para obedecer. Eles já estão a preparar-se para incendiar o Bosque Sagrado a fim de obrigar a rapariga a sair. Mas, se não lhes entregarmos os dois até ao nascer do dia, a horda começará a chacinar as pessoas da cidade.
Todos os olhos se viraram para Jake. Ele leu a pergunta nos seus rostos. O que é que o Kalverum Rex quer de Jake e da irmã?
Ele não sabia mais que eles e abanou a cabeça, admitindo a sua confusão.
A jovem batedora falou:
— O ancião Tiberius mandou-nos para falarmos com os Ur. Para pedir a sua ajuda.
— Foi por isso que viemos também — disse Pindor.
— Mas eles não nos vão ajudar — acrescentou Marika. — É contra o seu caminho.
A jovem batedora observou Jake com um olhar duro.
— Então, talvez a minha vinda aqui não tenha sido em vão. Se os Ur não podem ajudar, a única esperança para Calypsos é satisfazer a exigência do Rei Caveira. Pelo menos por agora.
Marika arquejou.
— O quê? Não podes estar a pensar em entregar o Jake e a irmã ao...
Jake tocou no braço dela, silenciando-a. Se havia alguma esperança de evitar um massacre em Calypsos, Jake entregar-se-ia ao Rei Caveira.
Porém, uma voz rouca interrompeu-os, feroz e intransigente.
— Não. — Jake virou-se e viu o ancião apontar para ele. A voz antiga baixou para um aviso profundo. — Uma grande tempestade está a formar-se através do tempo, soprando do passado e dos anos ainda por vir. Gira à volta deste rapaz. Foi disto que suspeitámos pela nossa leitura das estrelas. Foi por isso que enviámos Bach’uuk para tomar conta dele.
Jake ficou hirto de surpresa.
— O recém-chegado não deve ser atirado para a escuridão — rematou o ancião.
— Mas Calypsos... — disse Jake.
O ancião apontou com o seu bordão para a lagoa gelada.
— Com isto, provaste quem tu és. És efetivamente do tempo longo. Como o templo. — Ele bateu com o bordão uma vez no chão. — Para salvaguardar os dois, os Ur erguer-se-ão contra a sombra que caiu sobre o vale.
— Então, vocês vão lutar? — perguntou Pindor.
Os olhos de Marika iluminaram-se de esperança.
— Para seguir o caminho, não temos escolha. — Jake sentiu-se nu sob o olhar do ancião. — A grande tempestade desceu sobre todos nós.
27
O DESFILADEIRO DA SERPENTE
A lua cheia recortava o portão oriental. Ao contrário do Portão Quebrado no lado ocidental do vale, este não caíra. Uma escultura de pedra encimava a passagem, negra e agourenta. Formava as curvas sinuosas de uma serpente com duas cabeças, uma a apontar para sul, a outra para norte. Jake tinha visto a mesma forma desenhada no mapa da biblioteca de Balam e também esculpida em ouro no Museu Britânico.
Jake apressou-se pelo trilho, seguindo a jovem batedora romana e um enorme guerreiro Ur chamado Kopat. Marika seguia Jake, assim como Pindor e Bach’uuk. Atrás deles, estendia-se uma longa fila de homens da tribo de Ur, todos armados: arpões, machados de pedra, bolas feitas de pedras revestidas com tiras de couro.
Jake contornou uma rocha que bloqueava o trilho. Numa ravina à frente, uma dúzia de animais de sela aguardava, claramente inquietos. Os cavaleiros acotovelavam-se junto aos animais. A Guarda Montada era constituída por rapazes e raparigas pouco mais velhos que Jake. E o medo fazia-os parecer ainda mais novos.
Kopat desviou-se para o lado e agrupou os homens da tribo de Ur. A jovem batedora romana conduziu Jake e os outros para o seu grupo de cavaleiros.
— Onde está o centurião Portius? — perguntou um dos cavaleiros.
A jovem respondeu concisamente.
— Tem a perna partida. Não está capaz de montar. Os Ur vão tomar conta dele.
— Então quem é que nos vai chefiar? — perguntou outro. Parecia não ter muita esperança nas forças de Kopat com as suas armas grosseiras. Como muitos dos habitantes de Calypsos, não devia ter muita confiança nas capacidades dos Ur, para lá das tarefas domésticas.
A rapariga romana virou-se para Pindor.
— Sem o centurião Portius, temos uma sela vazia.
Ouviram-se murmúrios entre os cavaleiros.
— É o filho de Tiberius...
— Não, Heron não... o outro...
— Estamos amaldiçoados...
Pindor fingiu não os ouvir.
A rapariga dirigiu-se a uma montada de aspeto assustador, com uma cicatriz irregular que lhe cegava um olho. Estava afastada das outras e escoiceou um torrão de lama e pedra.
Jake recuou. Se esta era a montada do centurião, não admirava que tivesse partido a perna. A expressão nauseada de Pindor era fácil de ler, mesmo às escuras.
Antes que se pudesse mexer — ou na direção da montada abandonada ou para longe dela — soou um corno atrás deles. O gemido baixo do seu chamamento pôs Jake à beira de um ataque de nervos.
Virando-se, Jake viu que todos os Ur se tinham reunido no trilho mais em baixo. Eram cerca de cinquenta homens. Era um grande número, mas apenas uma fração da aldeia Ur.
Onde estavam os outros?
Kopat estava de pé sobre um grande bloco de pedra com as pernas abertas e algum tipo de concha em caracol junto aos lábios. Soprou outra vez, e a nota longa e sustentada ergueu-se para a lua como um grito queixoso.
E foi ouvido.
Na selva, ouviu-se outro corno. Da sombria copa, uma grande cabeça serpenteante ergueu-se das árvores em direção ao luar. Subiu pelo menos a uma altura de dez andares. Jake reconheceu aquele longo pescoço e a cabeça achatada. Era um brontossauro, um dos gigantes numa terra de gigantes, que começou a deslocar-se pesadamente na sua direção.
Atrás dele, na floresta, outra cabeça ergueu-se... e outra... e ainda outra. Como um relvado cheio de dentes-de-leão, uma manada de brontossauros apareceu diante dos seus olhos. Sete. E todos eles começaram a deslocar-se para diante. O primeiro e mais próximo saiu da floresta e começou a andar pelo trilho acima em direção ao desfiladeiro.
Guerreiros Ur iam montados no seu longo corpo e pendurados nos seus flancos com arneses de corda. Como pulgas num cão. Um bravo guerreiro sentava-se numa sela alta atrás da cabeça do animal, balançando ao ritmo dos passos do brontossauro. Os outros brontossauros seguiam-no, igualmente cobertos de guerreiros.
A rapariga romana gritou para os cavaleiros:
— Montem!
Alguns reagiram à intensidade da sua voz, mas outros pareciam inseguros — receosos de se aventurarem de novo no vale.
Marika puxou Pindor e Jake para o lado.
— Acreditam no que estamos a ver? — balbuciou Pindor, ainda pasmado a olhar para os imensos brontossauros.
Marika puxou-os mais um passo.
— A surpresa do ataque abalará certamente a horda dos grakyls, mas por quanto tempo? O Rei Caveira tem mais demónios assustadores à sua disposição. Piores que os grakyls.
— Mas que mais podemos fazer? — perguntou Pindor.
Marika fitou Jake.
— A nossa única hipótese para uma verdadeira vitória é restaurar o escudo do templo. Sem isso, estamos condenados.
Jake visualizou a pedra esmeralda escurecida, envenenada pelas sombras no seu núcleo.
— Mas como?
— A tua ci-enzia pode ajudar-nos a curar a pedra? Expulsar as sombras do seu coração? Não podes invocar o poder da tua eletra-cidade?
Jake abanou a cabeça.
— Já não tenho baterias. Não tenho como gerar eletricidade. E, mesmo que tivesse, não sei se isso curaria a esmeralda.
Porém, Jake recusava-se a desistir. Passou em revista todas as maneiras possíveis de produzir eletricidade: vento, vapor, carvão, energia geotérmica, solar. Todas estavam para lá das suas possibilidades e certamente para lá do nível de tecnologia existente ali.
Tinha de haver uma resposta. A sua mão deslizou para o bolso e tocou no relógio. Se o seu pai estivesse ali, saberia o que fazer. Mas não estava.
Os dedos de Jake fecharam-se com força à volta do relógio. Poderiam os seus pais ainda estar vivos? Jake não tinha como saber, mas estava consciente de que teria de sobreviver para poder encontrar uma resposta.
— Deve haver uma maneira de expulsar as sombras da pedra — repetiu Marika.
Jake mal a ouviu. Porém, um recanto da sua mente reteve as suas palavras. Elas ficaram alinhavadas à superfície do seu cérebro — expulsar as sombras — ao mesmo tempo que continuava a refletir em todas as maneiras de gerar eletricidade.
Carvão, vento, vapor, nuclear...
De súbito, soube. Ficou tenso — de tal modo que Marika reparou.
— Jake, que se passa?
Ele tinha medo de falar e perder o fio ao seu raciocínio. Reviu-o mentalmente uma segunda vez. Visualizou as aargolas de bronze nos bordões dos anciãos de Ur e os reflexos dançantes nas paredes pintadas. Tinha de fechar os olhos.
— Jake? — insistiu Marika.
Ele calculou o que seria preciso... a inclinação, o ângulo, a distância.
— Seríamos necessários os três — comentou Jake em voz alta.
— Para quê? — perguntou Pindor.
Jake virou-se para os amigos.
— Temos de voltar à pirâmide.
Entretanto, Bach’uuk juntou-se a eles. Tinha estado a ver o seu povo aproximar-se com um brilho de orgulho no olhar.
— Bach’uuk, podes levar-nos de volta ao templo?
Ele anuiu.
— Se quiserem.
— Antes de irmos — acrescentou Jake —, precisamos de algum tipo de armadura.
Marika agarrou-lhe o braço.
— Jake, o que estás a planear? Tens alguma ideia para curar o cristal esmeralda?
— Talvez.
Era uma hipótese remota, mas, se Jake estivesse certo, também explicava a razão por que o Kalverum Rex tinha esperado pela noite para orquestrar o seu ataque. O Rei Caveira não corria riscos desnecessários.
— Como é que o vais curar? — perguntou Pindor. — Com o quê?
— Com a bateria mais antiga e maior da Terra — respondeu Jake.
À medida que ele explicava o seu plano, os olhos de Pindor ensombraram-se.
— Pensas que vai resultar? — perguntou Marika.
Jake não viu nenhuma razão para mentir.
— Não sei.
— E se falhar? E se estiveres errado?
— Então, estaremos condenados. — Jake encolheu os ombros. — Mas, como tu mesma disseste, Mari, de qualquer modo estamos condenados.
— Podem os dois parar de dizer condenados tantas vezes? — resmungou Pindor. Não parecia estar a sentir-se bem.
Jake perguntou:
— Alguém tem um plano melhor?
Ninguém falou.
Jake começou a entrar em detalhes, mas Pindor interrompeu-o.
— O que estás a planear fazer... requer um timing perfeito.
Jake anuiu.
— ... e uma manobra de diversão poderia ajudar — acrescentou Pindor.
Antes que Jake pudesse concordar, ele observou os cavaleiros que subiam relutantes para as selas. Tinham expressões que iam da esperança face à aproximação da tribo de Ur ao desespero face ao que tinham pela frente em Calypsos.
Pindor falou com a cabeça ainda virada.
— Jake, disseste que precisavas de três de nós. Será que Bach’uuk pode tomar o meu lugar?
Marika tocou no cotovelo de Pindor.
— Pin, nós precisamos de ti.
Ele afastou-se um passo.
— Vocês precisam de três pessoas. Não de mim. Não é verdade, Jake?
Jake percebeu o tom tenso na voz do amigo. Sabia que não tinha origem no medo, mas na determinação. Pindor não estava a tentar evitar aquela perigosa missão. Ele tinha a intenção de se lançar para um perigo maior.
— Três devem chegar — respondeu Jake.
Pindor acenou com a cabeça. Agarrou no assobio que Jake lhe dera como se fosse um amuleto para dar sorte e dirigiu-se à Guarda Montada.
— Pin! — chamou Marika.
Jake pôs uma mão no cotovelo de Marika.
— Ele sabe o que está a fazer.
Jake lembrou-se do talento de Pindor para a estratégia. Pindor tinha detetado o ponto fraco do plano de Jake e pensara numa maneira de o colmatar. Para que fossem bem-sucedidos, era necessário um timing preciso. E uma manobra de diversão na altura certa podia ser a diferença entre o sucesso e o falhanço.
— Prestem atenção ao som dos cornos! — recomendou Pindor.
A rapariga romana ainda tentou controlar o gigantesco dinossauro cheio de cicatrizes ao mesmo tempo que os outros cavaleiros se agrupavam. Quando Pindor se aproximou do obstinado animal, ouviu alguns murmúrios trocistas atrás de si.
O dinossauro fincou uma pata e esteve perto de esmagar o pé de Pindor. Mas este nem pestanejou. Levantou a palma da mão e pousou-a no pescoço semelhante a couro da montada. A sua outra mão tirou o apito do bolso.
— Fazes isso mais uma vez, Scar-Eye — disse Pindor —, e eu faço o meu próximo par de sandálias com o teu couro escamoso.
O dinossauro balançou a sua cabeça achatada e cravou o olho bom em Pindor. Os dois olharam-se de cima a baixo. O sáurio foi o primeiro a pestanejar.
Pindor deslocou-se rapidamente, pôs um pé nos estribos e içou-se para a sela. Moveu-se como se já tivesse feito aquilo milhares de vezes — e Jake pensou que o amigo fizera precisamente isso, mais que não fosse na sua cabeça.
Virando-se na sela, Pindor dirigiu-se aos seus companheiros da Guarda Montada.
— De que é que estão à espera? Temos de salvar Calypsos.
A batedora romana olhou para ele mais uns segundos, depois correu para a sua própria montada e saltou para a sela.
Com um aceno e gritos de encorajamento, os cavaleiros começaram a subir o trilho, ao mesmo tempo que as forças de Ur nos seus brontossauros. O cortejo subiu devagar em direção ao gigantesco arco esculpido na forma de uma serpente com duas cabeças.
Jake virou-se para Marika e Bach’uuk. Agora, eram só os três. As suas dúvidas agudizaram-se. Como podiam esperar derrotar o Rei Caveira sozinhos?
Contudo, os olhos de Marika brilhavam de esperança e Bach’uuk refletia o seu olhar com uma determinação estoica. Jake foi buscar força aos seus amigos. Levantou um braço e apontou para o trilho ao longo da ravina.
— É melhor despacharmo-nos.
28
ÚLTIMA INVESTIDA
Protegidos com armaduras de bronze que Bach’uuk arranjara na loja do ferreiro na aldeia de Ur, iniciaram o caminho de regresso à pirâmide. Pareceu demorar três vezes mais do que anteriormente. A pressão do tempo tornou-se de tal forma aguda que Jake jurou que quase podia sentir o Sol a abrir caminho à volta da Terra e a subir para um novo dia.
Só o peso da couraça lembrava a Jake o fardo da sua responsabilidade. A sua preocupação aumentava a cada pesado passo que dava.
E se eu falhar?
E se eu estiver errado?
Por fim, Bach’uuk conduziu Marika e Jake de volta aos níveis mais baixos da pirâmide, e eles deram início a uma rápida ascensão para a câmara do coração de cristal. Ao passar pela sala com o calendário maia de ouro, os olhos de Jake passaram em revista a estranha língua nas paredes, o mapa da Pangeia e as duas rodas dentadas no chão. A sua mão tocou no relógio no seu bolso. Ele queria parar — os seus pés chegaram a abrandar —, mas o enigma teria de esperar. Forçou-se a subir os degraus de pedra para a sala em cima.
A câmara principal não tinha mudado. A estranha pressão continuava a pulsar a cada volta do coração de cristal com três camadas. Os estranhos glifos giravam e rodavam em milhares de combinações enquanto a esfera pairava no centro do espaço abobadado. Sob a esfera maciça, duas mais pequenas brilhavam — uma com um rico carmesim, a outra com um vibrante azul-prateado. A esfera esmeralda ficara tão escura que quase parecia preta.
Jake ajoelhou-se para a ver mais de perto, enquanto Marika espreitava sobre o seu ombro.
— Achas que chegámos demasiado tarde? — perguntou ela.
Jake estudou a pedra.
— Não sei.
Sombras escuras rodopiavam no núcleo da esfera esmeralda, num turbilhão pastoso que gritava corrupção e morte. Não tinham muito tempo.
Jake levantou-se e olhou para a entrada principal da pirâmide. O túnel inclinava-se para cima, negro como breu. A qualquer momento, esperava ver o demoníaco grakyl surgir por ele.
— Vamos — disse ele, dirigindo-se para a boca do túnel, virando-se depois para Marika. — Tu ficas aqui na câmara. Eu vou com Bach’uuk para o interior do túnel. Sabes o que tens de fazer?
Os olhos de Marika estavam arregalados de medo — algum dele por Jake.
— Tem cuidado.
Jake acenou com a cabeça, mas o seu plano estava longe de ser cuidadoso. Quando ele começou a afastar-se, Marika correu para ele e abraçou-o com força. Depois, deixou-o ir.
Jake corou. Abriu a boca, mas não encontrou as palavras.
— Vai! — disse ela, e empurrou-o. — De que é que estás à espera?
Jake pestanejou. Ainda estava sem palavras. Virou-se e apressou-se pelo túnel inclinado. O coração martelava no seu peito, mas de uma maneira boa.
Quando já ia a meio e quase fora da vista de Marika, parou de novo e disse a Bach’uuk:
— Tens de ficar a postos aqui. Tenho de continuar sozinho.
Bach’uuk aproximou-se dele e agarrou no antebraço dele num típico aperto de mão da tribo de Ur. Jake retribuiu o cumprimento. Todos eles estavam a correr um grande risco, um risco que lhes poderia custar a vida.
Jake percorreu o último troço do túnel sozinho. A passagem escura ia clareando à medida que se aproximava da abertura mais à frente. Um céu coberto de estrelas enchia a abertura redonda da pirâmide.
Abrandou o passo — e por uma boa razão.
Formas sombrias obscureciam as estrelas. Jake ouviu silvos e guinchos, além do bater de asas e raspar de garras na pedra. A horda de grakyls concentrava-se mesmo junto da abertura.
Jake continuou a avançar até um estranho formigueiro percorrer o seu corpo. Os pelos dos seus braços levantaram-se. Sentira o mesmo quando entrara no túnel pela primeira vez, da mesma maneira que o sentira quando passara pelo Portão Quebrado, no que agora lhe parecia uma eternidade atrás. Só que agora o formigueiro era apenas um murmúrio da sua força anterior. Era tudo o que restava do escudo, mas ainda parecia suficientemente forte para manter a horda de grakyls fora do templo. Pelo menos, Jake esperava que assim fosse.
Limitou-se a ficar à espera, mergulhado naquele formigueiro.
Jake olhou para o vale. Daquele ponto elevado, podia ver tudo até à muralha ocidental. O céu já começara a clarear. Não havia tempo a perder.
Jake pôs as mãos em concha à volta da boca.
— Olá! — gritou.
Em resposta, alguma coisa muito grande caiu de cima da entrada e aterrou no degrau abaixo da abertura. A forma escura balançou-se e brandiu uma longa lâmina negra que parecia um pedaço de obsidiana vítrea. Asas abriram-se e cortaram o céu.
Um senhor dos grakyls.
Jake deixou-se cair sobre os joelhos, assegurando-se que se mantinha dentro do formigueiro do escudo. Olhos negros e estreitos fitaram-no.
— Eu sou Jake Ransom — gritou ele, esperando que a monstruosidade com cara de morcego o compreendesse. — Um dos recém-chegados.
O senhor dos grakyls subiu o degrau para ficar no limiar da entrada. Jake estava suficientemente próximo para ver as unhas rachadas e amarelas das suas garras e o focinho achatado. O grakyl ergueu a espada e apontou-a ao peito de Jake.
Jake estremeceu na sua armadura, mas tinha de ganhar tempo. Então levou a mão ao seu flanco e desapertou a couraça de bronze. Deixou-a cair com estrondo sobre a pedra num claro sinal de rendição.
Esta última ideia fora de Marika. Ao olhar para o gume da espada do grakyl, Jake começou a duvidar da sabedoria da sua estratégia. Mas agora estava comprometido. Não havia como voltar atrás.
Jake levantou os braços.
— Rendo-me — gritou ele à figura monstruosa. — Mas só ao teu mestre! Só ao Kalverum Rex!
O grakyl aproximou-se dele. As suas narinas fendidas abriam-se e fechavam-se. Para lá das suas asas, o céu a oriente continuava a clarear à medida que o nascer do sol se aproximava. A madrugada era o prazo limite fixado pelo Rei Caveira para a rendição de Jake e Kady.
Não tinham mais tempo.
— Desisto! — gritou Jake. Tossiu para aclarar a garganta. O seu peito estava tomado de medo. Porém, repetiu o seu ultimato. — Mas só me rendo ao Rei Caveira!
O senhor dos grakyls estudou Jake mais um momento — depois deu meia-volta. Um grito ensurdecedor irrompeu da sua execrável boca e ecoou pelo vale.
O seu chamamento foi repetido pelos outros grakyls. Em breve, todo o vale ecoava com aqueles gritos horríveis. A mensagem estava a ser espalhada.
Mas seria respondida?
Sim ou não.
Ambas as respostas aterravam Jake.
A espera estendeu-se por um período agonizante. O coração de Jake subiu-lhe à garganta e ficou a bater ali. Para piorar tudo, sentiu o formigueiro esmorecer na sua pele ao ajoelhar-se na abertura da pirâmide. O escudo quase desaparecera.
O grakyl mantinha a distância nos degraus exteriores, mas por quanto tempo mais?
Quanto tempo me resta?
Jake estudou o céu. A leste, um clarão róseo filtrava-se para cima do horizonte. O nascer do sol aproximava-se rapidamente. O prazo limite dado pelo Rei Caveira estava quase a passar. O medo de Jake aumentou. A sua preocupação por Kady pesava como uma pedra fria na sua barriga.
Tudo o que podia fazer era esperar.
Dentro de momentos, os primeiros raios de sol brilhariam sobre a entrada da pirâmide. Apesar do coração a martelar, Jake lembrava-se do significado de tal orientação, uma coisa que tinha aprendido com o seu pai. Todos os templos maias estavam construídos para saudar a primeira luz do novo dia. E por isso as grandes catedrais de pedra da Europa também orientavam as suas portas da frente para leste.
Ao ajoelhar-se, Jake pensou se essa tradição teria a sua origem aqui, nesta precisa estrutura. Antes de poder refletir mais sobre esse mistério, os gritos da horda dos grakyls pararam. O silêncio súbito foi sentido como se um cobertor tivesse sido lançado sobre todo o vale.
Preocupado, Jake levantou-se. Lá fora, nos degraus, os grakyls curvaram-se e baixaram a cabeça. As suas asas estavam fechadas nas costas. Jake avistou alguma coisa que cruzava o céu. A amplitude das suas asas estendia-se incrivelmente longe — e aumentava a cada batimento do coração de Jake.
Como um avião jumbo sáurio.
Como podia uma coisa tão imensa manter-se no ar? Parecia impossível. E o que fazia a sua aproximação especialmente arrepiante era o silêncio absoluto. Planou em direção ao templo sem um som, como se fosse mais sombra que substância.
A criatura desceu cada vez mais baixo até se tornar uma silhueta escura deslizando sobre o cimo das árvores do Bosque Sagrado. Parecia o maior de todos os dinossauros alados, o Pteranodon. Ao voar para a pirâmide, a copa da floresta rumorejou na sua esteira como se as próprias árvores se arrepiassem.
Então, de súbito, virou-se e disparou para cima, tão alto e tão velozmente que Jake deixou de o ver. Os músculos das suas pernas crisparam-se. Esteve perto de sair da sombra da entrada para o continuar a ver. Em vez disso, retesou todo o corpo e manteve a sua posição.
E ainda bem que o fez...
Um momento depois, o pterossauro aterrou ao lado da pirâmide, cobrindo metade dos degraus. Os grakyls dispersaram para os lados. Um ficou esmagado debaixo de uma pesada pata. Contorcendo-se e gritando, morreu.
Jake forçou-se a ficar à entrada. Tudo dependia de ele se manter no seu lugar.
O pterossauro baixou o pescoço e esticou as asas como se estivesse a abraçar o templo. Embora a criatura fosse maciça, Jake teve dificuldade em vê-la claramente. As sombras agarravam-se à sua forma, fluindo sobre o seu corpo.
A sua cabeça estreita e comprida acabou pousada a apenas alguns metros à esquerda da entrada. Revestida de sombras que pareciam a juba de um leão, a cabeça acabava num focinho crocodiliano com dentes curvos e aguçados. Jake tinha visto fósseis de Pteranodon suficientes para saber que aquele não era um pterossauro vulgar. Para já, os pterossauros não tinham dentes.
Porém, foram os olhos que realmente levaram Jake a cerrar os maxilares. Duas orbes pretas olhavam para Jake, como diamantes negros polidos. Eram túneis vazios e sem fim para lugares onde gritos ecoavam para sempre e o sangue fluía como rios.
Mas mesmo isso não era o pior.
Da parte de trás do pescoço sáurio, um coágulo de sombras pingou sobre as escadas do templo. Os outros grakyls caíram, lutando uns com os outros para se afastarem do seu caminho. Nos degraus, a forma endireitou-se e tomou a figura de um homem.
Era enorme, tinha pelo menos dois metros de altura. Usava uma armadura negra que o cobria da cabeça aos pés. Na cabeça tinha um elmo com um par de chifres, mas, ao contrário dos elmos viquingues, estes chifres eram torcidos e retorcidos, como se tivessem brotado no crânio de uma besta que toda a sua vida tivesse sido torturada. A figura subiu os degraus, deslocando-se com uma determinação deliberada na direção de Jake.
Jake tentou distinguir-lhe as feições, mas sob o elmo só havia sombras. Todavia, Jake sabia quem era.
Kalverum Rex.
O Rei Caveira.
À medida que a forma negra se aproximava da entrada, Jake apercebeu-se de um erro. O Kalverum Rex não usava armadura. O que cobria o seu corpo eram sombras densas. Elas fluíam sobre a sua forma, brilhando como um óleo negro sobre a pele. Porém, em vez de ondearem e flutuarem, as sombras aderiam fortemente ao seu corpo, como se a escuridão tivesse medo do que estava oculto no seu coração e tentasse esconder o horror do mundo.
Para o Rei Caveira, as sombras eram a sua armadura.
Embora não tivesse olhos, Jake sabia que o demónio olhava diretamente para ele. A sua pele arrepiou-se com uma comichão insuportável que não tinha nada que ver com o escudo do templo. Queria correr — e continuar a correr. Porém, Jake não se mexeu. Mais do que a coragem, o terror manteve-o imóvel.
O Rei Caveira subiu para o degrau de cima e elevou-se no limiar da entrada. Jake inclinou-se quando um braço se esticou para ele. Ele sabia que morreria com um único toque.
A mão aproximou-se à sua procura, cautelosa, como se estivesse a testar águas desconhecidas. Ao atravessar o escudo enfraquecido, um fogo esmeralda dançou sobre as pontas dos dedos negras e removeu as sombras. Saindo da escuridão, surgiram dedos cobertos de escamas cinzento-esverdeadas com garras compridas e amarelas.
Nenhum homem tinha mãos como aquelas — pelo menos nada que ainda fosse humano.
Uma onda de satisfação percorreu as sombras que cobriam o Kalverum Rex. Ele sabia que o escudo já não tinha força para o parar. Tudo o que se encontrava entre o Rei Caveira e o coração do poder do templo era um rapaz de treze anos do North Hampshire, Connecticut.
Sabendo isso também, Jake deu um primeiro passo assustado para trás.
A satisfação de Kalverum deu lugar a um divertimento sinistro. Com o escudo em baixo, nada o podia parar. Jake não tinha para onde fugir.
Fluíram palavras que gelaram Jake até aos ossos.
— Vem a mim...
29
FOGO E SOMBRAS
Qualquer pessoa no seu juízo perfeito fugiria quando confrontada com uma torre de sombras. Mas Jake não se mexeu. O Rei Caveira deu outro passo para a entrada. Mais sombras recuaram do seu braço, revelando escamas e uma crista de espinhos.
Jake receava o que mais seria revelado, o que mais as sombras escondiam. Mas não podia voltar as costas, preso entre o horror e o fascínio. Porém, havia limites para o que a curiosidade podia aguentar. Finalmente, Jake desviou os olhos das sombras.
O que veio a revelar-se um erro.
O seu olhar caiu sobre a couraça da armadura de bronze que tinha abandonado na entrada. Ao mesmo tempo, o pé esquerdo de Kalverum esbarrou nela. A armadura ribombou com um som vibrante, atraindo a atenção do monstro para o chão.
O Kalverum parou. Olhou para baixo, depois para Jake e de novo para baixo. A sua atitude era de cautela e desconfiança. Jake reteve a respiração. Depois o Rei Caveira fez o que Jake temia. Virou-se para o lado e olhou sobre o ombro para leste, onde o Sol começava a surgir no horizonte. Os primeiros raios do novo dia cintilaram e apontaram para a pirâmide.
Todo o corpo do Rei Caveira se retesou.
— Miúdo esperto...
O demónio baixou-se e agarrou na couraça.
— Não! — gritou Jake e tentou agarrá-la também.
Mas o Kalverum moveu-se com a velocidade nascida das sombras, um tremular da escuridão contra o novo dia. Chegou primeiro à couraça e agarrou-a.
Jake viu toda a esperança ser-lhe arrebatada. O seu coração afundou-se com o falhanço — mas ele esqueceu uma coisa, uma coisa vital e importante.
Ele não estava sozinho.
Ao longo do vale, uma explosão de sons saudou o nascer do sol. Soaram alto e claramente, ecoando pelo vale. As cornetas romanas retiniram e os cornos de Ur retumbaram. A cacofonia soava como uma legião de milhares.
Pindor!
O seu amigo tinha vindo com o que restava da Guarda Montada e o exército dos Ur — e, como prometido, Pindor fê-lo saber.
A toda a volta da pirâmide, os grakyls levantaram voo como um bando de corvos espantados de um milheiral. Até o Rei Caveira se virou para norte a fim de avaliar aquela nova ameaça.
Era toda a distração de que Jake precisava.
Saltou para a frente e agarrou a peça de bronze da armadura do punho de sombras do Rei Caveira. Caindo sobre um joelho, Jake virou a superfície polida da couraça, brilhante como um espelho, na direção dos primeiros raios de sol. Captou a luz, virou-se de lado e dirigiu o reflexo para a boca do túnel atrás dele.
— Agora! — gritou Jake.
Muito abaixo na passagem inclinada, a luz do Sol refletida iluminou Bach’uuk. Este levantou o escudo da armadura para a luz. O escudo faiscou tão intensamente como um pedaço de sol, o que de facto era. Ele inclinou-o, refletindo o brilho para mais longe no túnel — para Marika.
Resultaria?
Marika tinha dado a Jake a ideia, a maneira de livrar a pedra esmeralda das sombras venenosas e possivelmente reativar as barreiras protetoras do vale. O plano tivera origem na sua afirmação: deve haver uma maneira de expulsar as sombras da pedra. A solução era óbvia. Qual era a melhor maneira de expulsar uma sombra?
Projetando luz sobre ela.
Também nessa altura, Jake andava a pensar numa maneira de usar a eletricidade para recuperar a pedra, uma maneira de fundir a ciência moderna com a alquimia da Pangeia. Com as baterias da lanterna gastas, ele precisava de uma nova fonte de energia. E qual era a maior fonte de energia do mundo? A resposta levantava-se no céu todos os dias, aquecendo a Terra.
O Sol.
Até o pai de Marika realçara a conexão entre os cristais e a luz do Sol. No Astromicon, ao observar a dança dos cristais através das fendas na cúpula iluminadas pelo Sol. As suas palavras ficaram com Jake.
Toda a alquimia começa com o Sol.
Por isso, Jake depositava a sua esperança no novo dia, no nascer do sol. Ele queria descobrir uma maneira de refletir o seu brilho no coração do templo, para expulsar as sombras da pedra e usar a energia solar para reativar o cristal. O problema era levar essa energia para ali.
As argolas de bronze nos bordões dos anciãos fizeram Jake pensar.
Os espelhos refletem a luz.
Tudo o que ele tinha de fazer era transferir a luz da manhã de um espelho para o próximo, de Jake para Bach’uuk para Marika. Ela poderia então refletir a luz do Sol para o coração da pirâmide e banhar o cristal escurecido no brilho do Sol.
Mas funcionaria?
Todos estes pensamentos passaram pela mente de Jake quando soou o primeiro corno. Ele agarrou firmemente a couraça quando a horda dos grakyls se levantou perante o desafio do exército de Pindor. No túnel, Bach’uuk estava banhado pela luz do Sol e refletia o seu brilho para o coração da pirâmide.
Mas também, pelo canto do olho, Jake viu o Rei Caveira. Kalverum lançou-se contra ele.
Então, o tempo parou. Jake viu o pai sentado debaixo de uma árvore a falar-lhe de Isaac Newton, a explicar-lhe como o cientista descobriu a gravidade na queda de uma maçã. Nessa época, o pai dissera a Jake que a maior dádiva da mente humana era a capacidade para fazer uma pergunta, uma palavra. Toda a história humana podia ser resumida a essa única pergunta.
Porquê?
As palavras do pai ecoavam em Jake agora.
A descoberta da verdade é o que todos nós procuramos. E é o homem bom que fica firme por trás da verdade e a defende com a sua vida.
Assim, quando o Rei Caveira atacou, Jake não vacilou. Banhado pela luz do Sol, agarrou na couraça firmemente. Ele devia acreditar que estava certo. Mesmo que isso lhe custasse a vida.
Garras procuraram a sua garganta. Unhas tocaram o seu pescoço e queimaram a sua pele, fazendo bolhas ao tocá-la.
Então, o formigueiro no seu corpo explodiu de súbito numa explosão esmeralda com uma força ofuscante. A explosão projetou Jake para trás, para o túnel, como se o tivessem empurrado. Kalverum foi lançado para o outro lado, pelos degraus da pirâmide abaixo.
Jake aterrou com força de costas. A couraça foi arrancada das suas mãos e rolou com estrépito pela passagem inclinada. Jake arquejou por ar e lutou para se pôr em pé e voltar para a entrada.
Sentiu a pressão do escudo ao aproximar-se dela. Mesmo a um metro de distância, os pelos nos braços de Jake levantaram-se com a sua energia. Ele empurrou-se o suficiente para ver os degraus de baixo da pirâmide. O Rei Caveira olhava para cima, para Jake, com os punhos fechados. O ódio pulsava da sua forma demoníaca.
Jake sentiu uma tempestade crescer dentro daquela concha de escuridão, disposta a magoar-se contra o escudo reativado. Mas um trovão rugiu sobre a sua cabeça. Tanto Jake como Kalverum viraram-se para o céu.
Quando o estrondo do trovão se repetiu, surgiu um arco de energia, um fogo esmeralda sobre o vale. A energia parecia incendiar as cristas vulcânicas. Espalhou-se pelo céu como uma aurora boreal.
O escudo! O escudo estava a formar-se de novo sobre o vale!
Contra este pano de fundo ardente, a horda de grakyls fugia em formações irregulares.
Então a tempestade de relâmpagos começou verdadeiramente, crepitando com explosões ainda mais fortes. Um raio bifurcado caiu do céu e gelou um dos grakyls no meio do ar. Então um relâmpago verde disparou para o céu, levando o grakyl com ele. A besta foi arrancada do vale e arremessada pelo ar.
Outros raios caíram, atingindo alguns dos grakyls com tanta força que eles caíram mortos no chão. Mas a maioria foi agarrada e lançada para fora do vale com tanta violência que rapidamente desapareceram.
Nos degraus em baixo, o Rei Caveira reconheceu que a maré tinha mudado. Voltou a olhar para Jake. Pela primeira vez, Jake viu os seus olhos. Eram feitos de chama negra. Jake imaginou o fogo a subir de um núcleo de pedra-de-sangue pura.
Era como olhar para os olhos de alguma coisa antiga e maligna, alguma coisa muito mais velha que qualquer mestre corrompido de Calypsos. Atrás daquele olhar negro, escondia-se a besta sem nome que desde sempre atormentava pesadelos e sombras errantes e lugares escuros, alguma coisa que estava à espreita nas franjas da humanidade desde o início do tempo.
Jake sentiu um grito preso na garganta.
Depois, aquele olhar terrível afastou-se. O Rei Caveira desceu os degraus para a sua sombria montada e saltou para a sela alta. Asas elevaram-se como grandes lençóis de noite. A besta estendeu o seu corpo maciço e subiu para o céu.
Jake ficou a olhar enquanto a montada voava em círculos no céu com o poderoso batimento das suas asas. Os relâmpagos crepitavam à volta do cavaleiro e da montada, apunhalando as sombras. Ao contrário dos grakyls, o Rei Caveira possuía alguma alquimia que impedia que fosse imediatamente expulso do vale. Mas pela rapidez da subida, Jake supôs que essa proteção não duraria muito. A forma escura da besta lutou por céus mais claros e subiu mais.
Com um último impulso, o Rei Caveira ultrapassou o escudo com uma explosão de fogo verde e desapareceu.
Tinha acabado.
Porém, Jake pouco alívio sentiu. Continuava frio e trémulo — e sabia porquê.
Mesmo antes de o Rei Caveira se ir embora, Jake sentira uma promessa feita sem palavras: aquilo não tinha acabado entre eles. Nesta cúspide de um novo dia, em que a luz e a escuridão se equilibram, Jake escolhera ficar na luz. E deste momento em diante, a escuridão estaria a observá-lo, esperando que ele escorregasse.
Jake podia ter vacilado e perdido toda a coragem, mesmo com a vitória tão próxima. Porém, ele lembrara-se de uma coisa vital e importante.
Ele não estava sozinho.
Bach’uuk veio a correr do coração da pirâmide. Marika vinha com ele. Ela agarrou na mão de Jake, calorosa e radiante. Jake pôs um braço à volta de Bach’uuk. Ele precisava da solidez deles para se lembrar de que o mundo era muito mais que sombras.
Juntos, ouviram as aclamações de alegria vindas da cidade.
— Conseguiste — exclamou Marika.
— Nós conseguimos — acrescentou Jake, mas os seus lábios recusaram-se a acrescentar o que ele bem sabia ser verdade.
Por agora.
Não demorou muito para que os céus ficassem livres do inimigo. Numa questão de minutos, restavam apenas reflexos do fogo verde. Depois, mesmo esses desapareceram e ficou apenas um amplo céu azul.
— Devíamos voltar para a cidade — disse Marika finalmente. Levantou um braço e testou o escudo à frente deles. Sussurros de energia esmeralda dançaram na ponta dos seus dedos.
— Podemos sair por aqui? — perguntou Jake.
— Penso que sim. Devemos poder passar para fora.
Marika deu um passo em frente e arrastou Jake com ela. Jake sentiu o formigueiro percorrer o seu corpo — depois passaram e saíram da sombra para a plenitude da manhã.
Bach’uuk seguiu-os.
Curioso, Jake recuou para a entrada. O escudo empurrou-o, crepitando com um fogo feroz. Tinha-os deixado sair, mas não ia deixá-los regressar.
Felizes por o coração da pirâmide estar em segurança, o trio apressou-se pelos degraus de pedra e alcançou o trilho que atravessava o Bosque Sagrado. Não tinham dado mais que uma dúzia de passos pelo trilho, quando foram cercados.
Ele reconheceu a mistura de equipamento nórdico e vestuário romano — estavam maltratados, ensanguentados e esfarrapados.
— Jake!
Virou-se e viu Kady correr para a frente. Claro, ela não tinha ido para longe. Ela devia ter pensado que Jake estava preso dentro da pirâmide todo aquele tempo.
Jake largou a mão de Marika e correu para a irmã. Ela fez o mesmo. Chocaram um com o outro. Kady abraçou-o com força. Ficaram em silêncio pelo tempo de uma respiração, permitindo a si próprios serem apenas irmão e irmã, deixando que o calor da família fizesse desaparecer o resto dos seus medos.
— Pensei... não sabia... — disse Kady, apertando-o com tanta força que ele não conseguia respirar.
— Eu sei — arquejou ele. — Eu também.
Ela afastou-se e olhou para ele com ar severo.
— Nunca mais faças isso!
— Faço o quê?
Ela pareceu perdida, sem saber o que responder. O seu medo era inominável. Conseguiu articular um exasperado «Pregar-me um susto desses».
Mas Jake sabia que as palavras não conseguiam exprimir o que ela sentia. Ele sentia-se da mesma maneira, num turbilhão de emoções que não podiam ser contidas em palavras. Era alívio e terror, caos e segurança, felicidade e lágrimas. Era tanto a coisa mais penosa quanto a mais maravilhosa.
Era simplesmente família.
Com um último abraço, separaram-se. Toda a gente estava a ver. Porém, Jake manteve-se junto dela. Meteu a mão no bolso e tirou o relógio de ouro.
— Encontrei isto — disse ele, voltando a falar na sua língua, embora fosse precisa concentração.
O rosto de Kady franziu-se, ligeiramente curioso — depois descontraiu e refletiu uma série de emoções, usando cada músculo da face. Choque, descrença, assombro.
— Isso é...? — Ela interrompeu-se, sufocando, incapaz de dar voz aos seus pensamentos.
— Sim. — Ele virou o relógio e mostrou-lhe a inscrição.
Ela inclinou-se para mais perto e leu cada palavra. Quando levantou o rosto, tinha lágrimas nos olhos.
— Quando... onde encontraste isto?
Jake não pensava que fosse a altura ideal para lhe falar do mapa da Pangeia e de tudo o que tinha descoberto e aprendido no interior do grande templo, mas apontou para a pirâmide.
— Ali.
Ela virou o olhar para os degraus que levavam à abertura redonda. As suas sobrancelhas arquearam-se.
— Mas como? O que é que isso quer dizer?
— Não sei.
Pelo menos para já, acrescentou ele em silêncio.
Kady fitou o vazio, tentando perceber as implicações da descoberta do relógio naquele lugar. Jake calculou que a sua própria expressão não fosse muito diferente.
Jake manteve-se em silêncio. Não tinha palavras que pudessem aliviar o seu coração. Era preciso tempo para absorver o choque.
Talvez sentindo a angústia de Kady, Heronidus afastou-se da fileira dos romanos. Coxeava da perna direita e o lado esquerdo do rosto tinha um terrível golpe que quase atingira o olho. Porém, antes que Heronidus pudesse falar, um novo som de cornos e cornetas soou do outro lado da cidade. Era um som triunfante.
— Quem é? — perguntou Heronidus, inclinando a cabeça a ouvir.
— Pindor — respondeu Marika com um sorriso de orgulho. — A comandar as forças de Ur.
Heronidus olhou para ela, incrédulo.
— Se não sabes, diz que não sabes.
Afastou-se, pondo gentilmente um braço por cima dos ombros de Kady e levando-a consigo. Ela encostou a face ao seu ombro, precisando do consolo que Jake não lhe podia dar. Parou um momento para olhar para trás, para o irmão, e dirigiu-lhe um sorriso triste e raro.
Pela primeira vez em muito tempo, Jake reconheceu quão bonita a irmã era. Viu algo para lá do lip gloss, da sombra dos olhos e do cabelo perfeito (que neste momento estava em ruínas e com bocados de folhas presos nele). Por um breve momento, ele viu quem ela podia tornar-se. E uma calorosa sensação de orgulho percorreu-o. Com um vestígio de mágoa. Nessa mesma e breve expressão de afeto, ele reconheceu mais uma coisa: um fantasma do sorriso da sua mãe, brilhando de geração em geração.
Juntos, voltaram para a entrada de Calypsos. Já se desenrolavam tímidas celebrações. Embora ninguém soubesse quem os tinha salvado no último minuto, os céus vazios e os relâmpagos brilhantes deram-lhes a conhecer a coisa mais importante: estavam em segurança.
Os habitantes da cidade saíram das caves e dos sótãos bafientos, onde se tinham escondido durante o ataque. Sinos tocaram, indicando que o perigo tinha passado. Ao andar pelas ruas, Jake ouviu chamamentos e gritos. Mas também lágrimas e soluços. Jake só tinha passado por um corpo — e era o de um grakyl, que jazia destroçado na rua. Mas havia certamente outras baixas mais perto de casa e do coração. Quantos tinham morrido? Podiam demorar dias a descobrir essa resposta.
Também iluminou o seu coração ver os cavaleiros da Guarda Montada percorrerem a cidade, levando mensagens, espalhando a boa nova, reagrupando as suas forças dispersas. O céu também era atravessado por Raz alados. O Povo do Vento estava de novo no ar, vigilante para qualquer sinal de um ataque secundário.
Mas Jake sabia que este não viria. Pelo menos não tão cedo.
À sua frente, apareceu o castelo de Kalakryss. O pátio estava mergulhado no caos. Pessoas e animais enchiam o lugar. Já estavam a ser levantadas tendas para alojar e cuidar dos feridos.
Jake quase foi derrubado por um enorme dinossauro cheio de cicatrizes que atravessou a rua e os portões atrás dele. Foi preciso um segundo olhar para reconhecer o olho cego da montada — e o espantalho que a montava.
Era Pindor em cima do dinossauro de aspeto feroz chamado Scar-Eye.
— Jake! Mari! Bach’uuk! — Pindor fez parar a sua montada abruptamente e escorregou da sela com quem desce de uma cadeira de repouso. Todo e qualquer medo que ele pudesse ter sentido antes dissipara-se com o entusiasmo do momento. Pindor correu para eles e abraçou-os, deu palmadinhas nas costas e apertou mãos — por vezes, tudo ao mesmo tempo.
— Tu expulsaste-os! — exclamou Pindor. — Conseguiste reativar o escudo!
O seu grito atraiu muitos olhares para eles.
Heronidus coxeou para a frente.
— Pin, és tu?
Ele olhou para o irmão de cima a baixo. Sorriu, tentando arvorar uma expressão de orgulho, que lhe saiu um pouco estranha. Era raro para Pindor ofuscar o seu irmão mais velho.
Mas as palavras gritadas atraíram duas outras atenções.
O centurião Gaius abriu caminho pela crescente multidão à volta deles. Jake sentiu uma onda de alívio. O centurião tinha sobrevivido ao ataque dos grakyls ao parque. Embora ensanguentado e com um braço ao peito, abriu caminho para o homem que se encontrava atrás dele.
O ancião Tiberius apoiava-se num bordão. A sua perna estava enfaixada do tornozelo até meio da coxa. Claramente, cada passo que dava fazia-o sofrer. Mas a sua voz era tão dura e firme como sempre.
— O que é que se passa com o escudo? — perguntou ele.
Pindor fez um movimento para correr e abraçar o pai, mas conteve-se. Já não era um rapazinho. Bateu com o punho no peito na saudação romana.
— Pai, senhor, foi Jake Ransom que conseguiu reativar o escudo em volta do vale.
Tiberius virou o seu olhar severo para Jake.
— Isso é verdade?
Jake anuiu, mas acrescentou:
— Não o fiz sozinho. — Fez um gesto em volta para incluir Pindor, Marika e Bach’uuk. — Fomos todos nós.
Tiberius olhou para eles, avaliando-os. Em seguida, virou-se e dirigiu-se para o castelo. Sem uma palavra ou gesto, ficou claro que o deviam seguir.
— Quero saber mais do que se passou em privado — disse ele. — Os mestres também quererão saber o que foi feito.
Marika pôs-se ao lado de Jake.
— Abram caminho! — gritou Gaius.
Na confusão, Marika deu por si junto do pai de Pindor e puxou-lhe a manga.
— Ancião Tiberius, o que quer dizer com mestres? — O medo fazia a sua voz tremer. — Foi o mestre Oswin quem nos traiu.
Jake aproximou-se com uma preocupação crescente. Depois de tudo o que acontecera, teria o traidor sobrevivido?
Tiberius acenou.
— Todos nós estamos bem cientes disso. O teu pai e o mestre Zahur já informaram o conselho da sua traição.
— O meu pai... — Marika agarrou-se ao braço de Jake para não cair. — Ele está vivo?
Reparando na sua aflição, Tiberius abrandou o passo e sossegou-a.
— Claro que está vivo. Oswin lançou um feitiço de sombras sobre os outros dois mestres, fez cair o seu espírito na insensatez e fechou-os numa das caves lá em baixo. Uma vez acordados, eles conseguiram escapar.
Por esta altura, tinham chegado às portas de madeira do salão principal. Lá dentro, Marika teve a prova da história do ancião.
— Mari! Graças a todas as estrelas...
Balam tinha-se mantido de lado com Zahur. Virando-se para a confusão que se instalou à entrada, tinha avistado de imediato a sua filha e correra para ela. O alívio que se ouvia na sua voz era igual ao da filha um momento antes. Ele também mudara. O seu habitual autodomínio fora-se. Círculos escuros rodeavam os seus olhos. Porém, o seu rosto iluminou-se e abriu-se como um sol entre nuvens negras. Ele abraçou Marika com força.
— Pensei que tinhas morrido — murmurou ela junto ao seu peito.
Jake via o seu encontro com emoções contraditórias. Em grande parte, alegrava-se, mas não podia ignorar uma ponta amarga de inveja. Ele faria qualquer coisa para ter o seu próprio pai de volta da morte.
— Não penso que Oswin nos fosse matar — consolou-a Balam. — Quando o pôde fazer, não o fez. Penso que talvez uma parte dele ainda fosse leal à sua própria maneira retorcida.
Zahur juntou-se a eles. O egípcio tinha uma opinião diferente sobre o assunto.
— Ou talvez nos tivesse mantido vivos para poder regozijar-se.
Balam franziu o sobrolho a esta afirmação, claramente preferindo a sua explicação. Porém, era fácil ver que o pai de Marika fora profundamente ferido e abalado pela traição de um amigo chegado.
Jake afastou-se para permitir que pai e filha tivessem um momento a sós. Mesmo o taciturno Tiberius levantou um braço acolhedor e abraçou o seu filho mais novo.
Jake virou-se. Embora estivesse feliz pelos seus amigos, era muito doloroso de ver. Meteu a mão no bolso e apertou o relógio de ouro.
Por agora, isto tinha de bastar como recompensa.
Mas só por agora.
30
UMA E OUTRA VEZ
O novo Conselho dos Anciãos encheu as duas filas da bancada superior. Uma vez mais, Jake e Kady eram o centro da atenção de seis pares de olhos. No topo, os mesmos três anciãos que anteriormente — Tiberius, Ulfsdottir e Wu —, todos eles magoados, ensanguentados e mais velhos.
Haviam passado três dias desde que Jake reativara o escudo do vale. Os habitantes da cidade tinham de enfrentar uma verdade difícil. Embora o seu vale estivesse seguro por agora, essa segurança não era permanente. Eles teriam de estar mais vigilantes dali em diante.
Balam começou solenemente:
— O nosso novo mestre pediu que fosse feita uma pequena cerimónia privada para honrar os cinco que protegeram o nosso vale e o grande templo.
Balam afastou-se para o seu lado esquerdo.
O novo membro do Conselho dos Anciãos levantou-se apoiando-se no seu bordão. As argolas de bronze penduradas no bordão de madeira dançaram sob a luz e tilintaram como espanta-espíritos. O ancião dos Ur acenou com a cabeça aos cinco que se tinham reunido aos pés da bancada.
Atrás de Jake e Kady, estavam Marika, Pindor e Bach’uuk. Envergavam todos a sua melhor roupa e mantinham-se muito direitos. Jake e Kady usavam os seus fatos de safári, recentemente lavados e engomados. Era tão formal quanto podiam. Nenhum deles sabia o que esperar.
O ancião Ur — chamado Mer’uuk — saiu pesadamente de trás da bancada e dirigiu-se lentamente aos cinco. O idoso homem era o primeiro da tribo de Ur a ser nomeado mestre para o Conselho dos Anciãos. Essa elevada posição era uma recompensa pela participação dos Ur na salvação de Calypsos e um há muito merecido reconhecimento. Os Ur e os habitantes da cidade já não podiam dar-se ao luxo de se ignorarem mutuamente. Não, se queriam sobreviver. O Rei Caveira voltaria a atacar e, quando isso acontecesse, todo o vale precisava de estar unido.
Mer’uuk fez um gesto para os cinco se alinharem numa fila. Depois de alguma confusão, o ancião começou na ponta mais afastada de Jake. Aproximou-se de Pindor, pegou no seu braço esquerdo e pôs a descoberto o seu pulso. Depois Mer’uuk levantou ao alto uma única argola de metal prateado para que todos pudessem ver.
— Do céu noturno, este metal caiu num clarão de fogo — entoou o velho neandertal. — Contém uma alquimia rara e potente... uma alquimia de ligação. Para unir todos vós como um só.
Dando um passo em frente, Mer’uuk pôs a pulseira no pulso de Pindor, depois dirigiu-se a Bach’uuk. Outra pulseira foi posta no pulso do rapaz de Neandertal.
Marika estava ao lado de Jake. Ela viu quando Mer’uuk pôs uma terceira argola no pulso de Kady. Todas as pulseiras pareciam iguais. Um momento depois, Marika brincava com a argola à volta do seu pulso.
— Deve ser feita de pedra-íman — murmurou ela.
Jake calculou que as pulseiras fossem feitas de magnetite, um mineral que tinha propriedades naturais de magnetismo. Estendeu o braço e arregaçou a manga. Mer’uuk agarrou numa quinta pulseira. Estava aberta e era articulada. O ancião pô-la no pulso de Jake e fechou-a.
— Assim se completa a ligação — finalizou Mer’uuk. — Vocês agora são um.
Jake examinou a sua pulseira. Rodou-a à volta do pulso e franziu o sobrolho. Não conseguia descobrir o fecho, nem mesmo uma linha de junção onde as duas metades se uniam. Era perfeitamente lisa, como se tivesse sido forjada à volta do seu pulso. Jake levantou o braço e semicerrou os olhos. Não conseguiu encontrar quebras na superfície perfeita da pulseira, mas descobriu outra coisa. Letras estranhas tinham sido gravadas muito ao de leve ao longo da face externa da pulseira. Jake reconheceu a escrita. Era a mesma que aparecia em toda a pirâmide.
Perplexo, Jake baixou o braço e olhou para cima. Mer’uuk ainda estava à sua frente e tinha no rosto o vestígio de um sorriso.
O encarquilhado ancião aproximou-se mais de Jake e falou baixinho junto do seu ouvido.
— Para conheceres a verdade, tens de deixar de viver no tempo curto.
Com estas palavras crípticas, ele endireitou-se e martelou o seu caminho de volta para o seu lugar na bancada.
Enquanto esperavam, Jake olhou para os outros. Os cinco usavam pulseiras semelhantes. Vocês agora são um, tinha dito Mer’uuk. O que queria isso dizer... ou aquele último comentário sussurrado? Para conheceres a verdade, tens de deixar de viver no tempo curto.
Por fim, Tiberius falou.
— Há algum último pedido antes de nos retirarmos?
A pergunta era dirigida aos outros anciãos, mas Jake deu um passo em frente e levantou a mão. As palavras do ancião de Ur continuavam a ecoar na sua cabeça. Especialmente a palavra tempo. Lembrava a Jake o peso do relógio de ouro do pai dentro do seu bolso. E o lugar onde o encontrara: dentro das engrenagens do gigantesco calendário maia quando ele marcava lentamente os dias.
Tudo — todos os mistérios deste lugar — parecia resumir-se a um conceito.
Tempo.
Tiberius acenou com a cabeça para Jake.
— Queres dizer alguma coisa, Jacob Ransom?
— Queria pedir um favor, se me for permitido.
Tiberius fez um gesto para ele continuar.
— Queria visitar a pirâmide mais uma vez — disse Jake. — Para regressar ao lugar onde encontrei o relógio do meu pai.
Kady juntou-se a ele.
— Eu também quero.
Os dois irmãos já tinham falado sobre o assunto. Kady queria ver a câmara com os seus próprios olhos, e Jake sentia que havia alguma pista que lhe escapara na sua anterior incursão à pirâmide.
Tiberius franziu o sobrolho.
— Embora eu aprecie tudo o que fizeram por Calypsos, entrar no templo continua a ser proibido. Especialmente agora. Mas deixo a decisão nas mãos dos mestres.
Balam levantou uma mão.
— Por princípio, só aos mestres é permitido entrar no grande templo. Isso é claro e deve continuar assim.
Jake sentiu a esperança fugir-lhe.
— No entanto — continuou ele —, não há nada que diga que os mestres só possam ser três. Levo a votação do conselho que concedamos a estes dois, pelo período de um dia, o título de mestres juniores. Votação de mão levantada?
Seis braços ergueram-se no ar.
Balam bateu com o punho na mesa e dirigiu a Jake um dissimulado piscar de olho.
— Sendo assim, foi aprovado.
Duas horas depois, Jake e Kady estavam no topo da pirâmide. Sobre as suas cabeças, o dragão de pedra mantinha a sua vigília silenciosa. Um passo à frente deles, Balam tinha as palmas das mãos erguidas contra o escudo invisível que selava a abertura redonda.
— Mantém-se forte — disse Balam com um suspiro de alívio.
Mesmo onde Jake estava, podia senti-lo. Uma força, como um vento, tentava empurrá-lo. Ele deslocou a mochila mais para cima no seu ombro, ansioso por entrar na pirâmide de novo.
— Primeiro, temos todos de dar as mãos — disse Balam —, para poder conduzir os dois lá para dentro.
Kady deu a mão ao ancião, depois estendeu a outra mão para Jake a agarrar. Mas em vez disso Jake deu meia-volta.
Marika, Pindor e Bach’uuk esperavam no degrau em baixo. Eles não iam ser autorizados a entrar, mas tinham vindo na mesma. Sabiam como aquilo era importante para Jake.
Este saltou para o degrau abaixo e agarrou na mão de Pindor à maneira romana.
— Obrigado por teres vindo — disse ele. — Se não fosses tu... se não fossem todos vocês... não sei onde eu estaria.
Pindor ficou vermelho. Estava pouco habituado a que lhe agradecessem, mas Jake suspeitava que isso iria mudar.
Jake cumprimentou Bach’uuk da mesma maneira, mas, quando tentou apertar a mão de Marika, ela esquivou-se e abraçou-o.
— Vamos ficar aqui fora à tua espera — disse ela ao seu ouvido.
A respiração dela fez-lhe cócegas no pescoço. O rosto de Jake ficou quente e provavelmente tão vermelho como o de Pindor.
— Somos capazes de demorar um bocado — murmurou ele dando um passo atrás.
— Nós esperamos — disse Pindor. Olhou para os outros dois e ambos acenaram com a cabeça.
Jake sorriu, sentindo-se desajeitado e pateta, mas era sincero. Nunca tinha tido amigos como aqueles. Só neste momento, via o que tinha faltado na sua vida. Nos últimos três anos, estivera tão focado em seguir as pisadas dos pais que se esquecera de que um tal caminho se fazia melhor com amigos ao seu lado. Porém, da mesma maneira que Pindor com os agradecimentos, Jake suspeitava que era melhor habituar-se a isso.
— Vens? — perguntou Kady com um suspiro exasperado.
Jake saltou para junto dela, fez um aceno aos amigos e deu a mão à irmã. Com Balam à frente, cruzaram a entrada. De novo, sentiu um formigueiro percorrê-lo e os pelos do seu corpo eriçaram-se. Uma vez lá dentro, desceram para o interior da pirâmide.
Balam falava com Kady à medida que caminhavam, mas Jake mal os ouvia. A sua cabeça estava já na câmara do calendário mais. Ele sentira a falta de alguma coisa lá em baixo. Tinha a certeza... mas de quê?
Logo que chegaram ao coração da pirâmide, Kady observou a imensa esfera de cristal. Ela girava e rodava, formando combinação atrás de combinação de estranhas letras.
— Posso sentir a sua pulsação — disse Kady espantada.
Jake também a sentia. Aquele vibrante pulsar de poder emanava da imensa esfera. Em baixo, os outros três cristais giravam alegremente. A esfera esmeralda estava tão brilhante como a rubi e a safira.
Balam reparou na atenção de Jake.
— A mancha de sombras não causou nenhum estrago permanente. Foi brilhante da tua parte refletir a luz do Sol sobre a esfera. Brilhante.
— Fui buscar a ideia a Mari. E ao que o mestre me ensinou — retorquiu Jake, não querendo ficar com os louros.
Balam arqueou uma sobrancelha.
Jake explicou, citando as palavras do mestre.
— Toda a alquimia começa com o Sol.
Balam riu-se.
— Então há alguém que me ouve de vez em quando. Mas de qualquer modo foi brilhante da tua parte conceber tal plano.
O ancião despenteou o cabelo de Jake. Era um gesto paternal que fez uma onda de calor percorrer o corpo de Jake.
— E calculo — continuou Balam — que estejas ansioso por continuar para a câmara mais abaixo.
— Sim, senhor. E seria possível eu e Kady irmos sozinhos?
Jake queria privacidade para explorar a sala. Se tivesse alguma dúvida, poderia sempre ir ter com os mestres para lhes perguntar.
Balam não tinha nenhuma objeção a este plano e dispensou-os.
— Tenho muito que fazer aqui. Quando estiverem despachados, voltem para aqui.
Jake forçou-se a não correr. Conduziu Kady para a abertura mais distante e pela escada de caracol. A câmara redonda com o calendário maia parecia estar exatamente na mesma. No chão, as duas rodas dentadas brilharam sob a luz.
Kady arquejou — mas pelas razões erradas.
— Tanto ouro! Deve valer uma fortuna.
— Não foi por isso que viemos — disse Jake.
Kady revirou os olhos.
— Eu sei, mas isso não me impede de olhar.
— Mas não toques em nada.
Jake atravessou a câmara. Queria observar tudo outra vez, devagar e meticulosamente. O pai tinha-o avisado. A atenção está nos detalhes. Era responsabilidade de todos os cientistas trabalharem com toda a minúcia quando confrontados com os mistérios da vida.
Jake tirou o relógio do bolso.
E aqui estava um mistério que ele não queria perceber mal.
— Onde é que encontraste o relógio do pai? — perguntou Kady.
Jake apontou para a roda de dentro.
— Estava no chão ali.
— Estava só no chão?
— Sim, o que é que eu disse?
Kady estendeu a mão.
— Deixa-me ver.
Jake hesitou. Ele tinha mantido o relógio com ele, junto dele. Não o queria longe da sua vista. Por isso, Kady nunca tivera a oportunidade de o examinar.
Com alguma relutância, Jake pôs o relógio na mão dela.
— Tem cuidado com ele.
Ela revirou os olhos outra vez e afastou-se com o relógio para o examinar por conta própria.
Jake focou de novo a sua atenção na sala. As paredes estavam cobertas de escritos. Seguramente que havia muitas respostas encerradas naquela língua desconhecida. Tinha perguntado a Balam, mas ninguém em Calypsos sabia traduzi-la.
O olhar de Jake percorreu as letras e parou nos três mapas esculpidos como um baixo-relevo numa secção da parede. As suas pernas levaram-no para mais perto sem que ele desse conta. Alguma coisa acerca dos mapas...
Ele voltou a ficar imóvel à frente dos três mapas, estudando a maneira como os continentes modernos se fundiam como um puzzle numa gigantesca massa terrena chamada Pangeia. O que é que havia naqueles mapas que o incomodava?
Só então é que Jake reparou nas letras debaixo do mapa. Antes, estava tão chocado com a sua descoberta de que estava na Pangeia que não reparara no que estava escrito em baixo. De qualquer modo, eram só letras daquela língua estranha.
Não significavam nada para ele. Voltou a sua atenção para os mapas redondos. O seu olhar dançou para a frente e para trás. Sete continentes formavam um supercontinente. Mas não conseguia deixar de pensar nas letras em baixo. Pairavam no canto dos seus olhos. Oito letras ao todo. Oito peças do puzzle. Jake via a Pangeia juntar-se mais uma vez, fundindo-se num continente. Depois as letras de novo.
E se...?
Jake juntou as letras na sua mente.
Alguma coisa tentava ganhar forma. Alguma coisa que parecia familiar. O seu cérebro parecia à beira de alguma coisa.
Jake meteu a mão no bolso e tirou o livrinho de esboços da mãe. Rasgou uma folha em branco e tirou o lápis de carvão da encadernação. Com a folha encostada à parede, Jake raspou com o lápis a sua superfície para fazer um decalque das letras.
Feito isto, ficou com uma cópia das letras gravada no papel. Ajoelhou-se e vincou o papel entre cada letra, para que ficassem todas unidas numa só peça. Exatamente como os continentes tinham formado a Pangeia.
Com muito cuidado, uniu todas as letras até formarem uma única palavra. Jake ficou a olhar para o que tinha criado.
O choque fez Jake levantar-se. O papel começou a tremer nas suas mãos. Agora percebia o que é que o tinha levado a voltar ali. Na sua cabeça, ele decompusera as letras em formas que lhe eram mais familiares.
Leu-a alto.
— Atlantis.
Jake afastou-se da parede. Poderia ser verdade? Poderia a pirâmide e o conhecimento aqui exposto remontar à Atlântida, a mitológica ilha onde uma raça avançada reinara em tempos? Lutou para se lembrar de tudo o que sabia sobre a Atlântida. As primeiras histórias tinham sido escritas por Platão, um dos mais famosos filósofos gregos. Ele reivindicara ter visitado a Atlântida e visto as suas maravilhas. E, de acordo com as suas histórias, a ilha tinha sido destruída violentamente e afundara-se no mar.
Jake voltou a aproximar-se do mapa. Tocou a superfície da Pangeia. O supercontinente parecia-se com uma ilha. Era isto que Platão tinha visto? Tinha o filósofo grego sido trazido aqui... da mesma maneira que Jake e Kady? E estaria Platão a ser poético quando disse que a Atlântida desaparecera na vastidão dos mares? Talvez ele quisesse dizer que a civilização tinha desaparecido nos mares do tempo.
Era demasiado para apreender. Jake afastou-se. Virou-se, atordoado, olhando para as paredes, visualizando o coração de cristal em cima. Tinha tudo isto sido construído pela civilização perdida da Atlântida? Tinha sido a sua tecnologia que atraíra as outras Tribos Perdidas para trás no tempo até à Pangeia? Ou eram os atlantes a primeira das Tribos Perdidas? Tinham eles começado tudo isto? Se sim, para onde tinham ido?
Perguntas atrás de perguntas encheram a sua cabeça.
Jake pressionou as palmas das mãos contra os ouvidos. Tinha resolvido um enigma apenas para ele se despedaçar em mil outros mistérios.
— Jake!
O grito penetrou a confusão na sua cabeça. Virou-se para Kady. Ela estava de pé no centro da roda interior com o relógio de bolso nas suas mãos. Ela tinha-o aberto, como para ver as horas, mas olhava com os olhos semicerrados para alguma coisa lá dentro que a perturbava.
Jake agradeceu a distração. Atravessou a sala e juntou-se a ela na roda interior.
— O que é? — perguntou.
Ela inclinou o relógio num determinado ângulo e apontou para a parte inferior da tampa. Jake aproximou-se mais e moveu o relógio para a luz. Uma forma fora nitidamente gravada na superfície de ouro.
Jake reconheceu a forma. Era o ankh, o símbolo egípcio para vida. Era um dos símbolos mais importantes do antigo Egito, usado pelos faraós nas cerimónias importantes.
— E olha para isto — disse Kady, aproximando o relógio. — O ponteiro dos segundos está a andar ao contrário!
Jake já tinha reparado nisso, mas esquecera-se de o dizer a Kady. Era um mistério menor quando comparado com a descoberta do relógio.
Jack tentou recuperar o relógio. Queria ver melhor o ankh.
Kady impediu-o.
— Não percebo. Qual é o problema do relógio do pai? Talvez se o acertarmos.
Jake, ainda a lutar para conseguir ver melhor o símbolo egípcio, sentiu o coração falhar um batimento ao ouvir as palavras de Kady. Especialmente uma palavra.
Acertar.
Foi demasiado lento. Kady já tinha os dedos na corda do relógio. Era usada para acertar o relógio — mas também para ajustar o tempo.
— Não! — avisou Jake.
Por um breve momento, lembrou-se do ditado que Balam ensinara a Marika: Olha duas vezes e pisa uma. Era um pouco de sabedoria que recomendava contenção e cautela.
Kady não o aprendera. Ela puxou o mecanismo para fora.
De imediato, soou um grande rangido de engrenagens. Não vinha do relógio, mas das rodas de ouro à volta deles. As rodas do calendário maia começaram a rodar. O movimento, lento de início, foi acelerando mais e mais. As engrenagens dentadas giravam tão depressa que qualquer passo em falso de Jake ou Kady podia custar-lhes um pé. E a rotação aumentou ainda mais, transformando as rodas numa mancha dourada.
Jake ainda agarrava nas mãos de Kady, apertando o relógio entre elas. À medida que as engrenagens giravam para a destruição total, Jake sentiu uma força crescer sob os seus pés.
Um grito de aviso formou-se nos seus lábios.
— Aguenta...
Luz branca explodiu para cima e consumiu-os. A claridade cegou Jake de imediato. Embora não conseguisse ver, ele sentiu que era disparado para cima, como se estivesse num elevador amarrado a um foguetão. Tudo aquilo durou menos de um instante.
Depois, estava tudo acabado.
Ele pestanejou face ao clarão residual ao mesmo tempo que o trovão ribombava à sua volta.
Trovão?
A luz ofuscante extinguiu-se num relâmpago vulgar.
À medida que recuperava a visão, Jake olhou estupefacto à sua volta. Kady estava agachada ao seu lado, igualmente petrificada do choque. Por todos os lados havia expositores de vidro e pedestais com artefactos antigos. Um passo à sua frente, estava a pirâmide de ouro com o dragão de jade em exposição.
Estavam de volta ao Museu Britânico!
De volta a casa...
Tinha sido tudo um sonho?
Jake ainda agarrava as mãos de Kady. O relógio de bolso do pai repousava na palma da sua mão. As pulseiras de metal rodeavam os seus pulsos esquerdos.
Antes que conseguisse dar um sentido àquilo, um grito fez os dois saltar.
— Não!
Jake olhou a toda a volta. Um homem corpulento corria para eles. Era Morgan Drummond, o guarda-costas da empresa destacado para os proteger. Segundos antes de eles desaparecerem, Drummond estava a correr para eles e a gritar.
Precisamente como agora.
— Saiam daí! — repreendeu Drummond. Porém, o homem parou de repente, coçou a cabeça, depois ficou a olhar em volta como se sentisse que qualquer coisa não estava bem. Mas, recuperando o fôlego, voltou a olhar para eles. A sua expressão era vagamente desconfiada.
— O que é que vocês os dois andaram a fazer?
Jake tirou o relógio de ouro das mãos de Kady e mostrou-o a Morgan. Antes que o homem o pudesse ver bem, Jake guardou-o no bolso.
— Estava só a ver as horas — disse Jake, acotovelando Kady dissimuladamente.
Ela saltou, depois acenou vigorosamente, ainda incapaz de falar.
— Se estás a ver as horas — disse Drummond, recuperando a autoridade —, então sabes que os dois já aqui estão sozinhos há muito tempo. Com o fim do eclipse, os mecenas do museu vão querer vir para aqui.
Jake olhou para uma janela. O eclipse? Se só agora estava a acabar, então não tinha passado tempo nenhum em Londres. Eles tinham estado dez dias na Pangeia... e voltado para o mesmo ponto onde tinham começado.
Tanto no espaço como no tempo.
Drummond observou a sala, como se estivesse à procura de alguma coisa. Os seus olhos ainda estavam semicerrados quando focou Jake e Kady.
— Tocaram em alguma coisa?
— É claro que não — respondeu Jake, fingindo estar ofendido.
Kady também abanou a cabeça.
— E não aconteceu nada estranho?
Jake franziu o sobrolho.
— Houve relâmpagos. E trovões. As luzes foram abaixo. — Encolheu os ombros. — Mas nós não temos medo do escuro nem de nada.
Jake manteve a sua expressão inocente, mas fitou muito mais intensamente o homem. Lembrou-se das suas anteriores suspeitas em relação a Morgan Drummond. O guarda-costas afirmara que Jake e Kady tinham sido trazidos para Londres como manobra publicitária para atrair a atenção dos meios de comunicação para a exibição. Mas e se houvesse um propósito mais tenebroso? Alguma coisa mais sinistra? Estaria o chefe de Drummond à espera de que eles abrissem um portal para a Pangeia? Seria essa a verdadeira razão para eles terem sido trazidos para aqui e deixados sozinhos no museu?
Os olhos de Drummond brilhavam com uma suspeita crescente, mas a agitação junto à porta atraiu a sua atenção. Soaram vozes excitadas. Homens e mulheres bem vestidos entraram na sala.
Drummond franziu o sobrolho aos recém-chegados. A sua voz refletia a sua deceção.
— Suponho que sejam horas de vos levar de volta ao hotel. Têm um voo cedo para casa de manhã.
Jake olhou para Kady. Puxou a manga para baixo para esconder a pulseira de metal. Seguindo o seu exemplo, ela fez o mesmo. Jake já lhe tinha falado do símbolo que vira na espada do grakyl e nas suas suspeitas sobre a Bledsworth.
Mesmo agora, quando Drummond se virou para enfrentar a multidão que se aproximava, um brilho prateado atraiu os olhos de Jake para o alfinete de gravata do homem. O pequeno grifo com as suas garras era o símbolo da Bledsworth Sundries and Industries, Inc. E do Kalverum Rex, o Rei Caveira.
Drummond virou-se para eles. Outro minúsculo reflexo atraiu a atenção de Jake para o alfinete. Jake poderia não o ter visto se não estivesse já a olhar. O olho do grifo cintilou com uma ponta de fogo escuro. Jake tinha reparado no olho durante a travessia de Londres na limusina. Na altura, pensara que era um minúsculo diamante negro.
Mas agora sabia a verdade.
Jake reconheceu a gema de que era feito aquele olho negro. Era um bocado minúsculo de pedra-de-sangue, o cristal forjado pela sinistra alquimia do Kalverum Rex.
Jake lutou contra um arrepio de repulsa. Aqui estava a prova viva de que existia alguma conexão entre o passado e o presente. Mas qual era essa ligação? Jake forçou-se a afastar o olhar, mantendo escondido o que sabia.
— Então, já acabaram aqui? — perguntou Drummond.
Jake trocou um olhar com Kady. À medida que o choque desaparecia, um fogo invadiu os olhos dela. Ele leu a resposta à pergunta de Drummond no rosto dela. Correspondia à sua.
Tinham acabado ali?
Por uma vez, Jake e Kady estavam de acordo na resposta.
Não... só agora estavam a começar.
James Rollins
O melhor da literatura para todos os gostos e idades