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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A SOMBRA DO SÚCUBO / Richelle Mead
A SOMBRA DO SÚCUBO / Richelle Mead

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Eu estava bêbada.
Não me lembro muito bem de quando acontecera, mas suspeito que tenha sido quando meu amigo Doug apostou que eu não virava três Gimlets tão rápido quanto ele. Se eu ganhasse, ele prometera pegar meu turno do trabalho no fim de semana. Se eu perdesse, teria que fazer seu serviço no estoque.
Quando terminamos as bebidas, tudo indicava que eu não trabalharia no próximo fim de semana.
– Como é que você conseguiu beber mais do que ele? – Hugh, meu amigo, perguntou. – Ele tem o dobro do seu tamanho.
Por entre a multidão que se apertava dentro do meu apartamento, eu dei uma olhada para a porta fechada do banheiro, atrás da qual Doug tinha se escondido.
– Ele teve dor de barriga essa semana. Acho que isso não combina muito com gim – expliquei.
Hugh levantou a sobrancelha.
– Por que diabos alguém faria uma aposta dessa depois de ter uma caganeira?
– Porque esse alguém é o Doug – respondi, dando de ombros.
Torcendo para que Doug estivesse bem, examinei o resto da festa, com aquele ar satisfeito de rainha inspecionando seu reino. Eu tinha me mudado para essa casa em julho, e já estava mais do que na hora de uma festa de inauguração. Com a chegada do Halloween, juntar as duas coisas foi uma decisão bem sensata. Por isso, meus convidados esta noite estão todos paramentados com as mais diversas fantasias, desde um traje digno da Feira da Renascença até um reles chapéu de bruxa nos mais preguiçosos.

 


 


Eu estou fantasiada de pastorinha – quer dizer, eu estou vestida como uma pastorinha que também pode ser stripper e/ou uma prostituta sem-vergonha. Minha saia azul de babadinhos termina mais ou menos no meio da coxa, e minha blusa de manguinhas bufantes tem um decote tão profundo que eu tenho de tomar cuidado na hora de abaixar. A cereja do bolo é meu cabelo longo, loiro e cacheado preso em duas trancinhas amarradas por laços azuis. Perfeito, totalmente indistinguível do real, pois, afinal, é real.

Mudar de forma sempre é um truque útil para um súcubo, mas no Halloween é tudo de bom. Sempre tenho as melhores fantasias porque realmente consigo me transformar em qualquer coisa que quiser. Claro, tem que ter bom-senso. Mudanças drásticas levantariam suspeitas dos humanos ao meu redor. Mas transformar o cabelo? Com certeza não! Mudar de forma é bem conveniente.

Alguém tocou em meu cotovelo. Virei-me e meu convencimento diminuiu um pouquinho quando vi quem era: Roman, meu caso sociopata.

– Acho que alguém tá passando mal no banheiro – Roman falou. Roman é um nefilim, meio-anjo, meio-humano, com cabelos negros e sedosos e olhos verde-água. Se não fosse pelo fato de que de vez em quando ele surta e sai matando imortais – e se eu não estivesse em sua lista negra –, ele seria um partidão.

– Pois é. O Doug perdeu uma aposta de gim – expliquei.

Roman deu um sorrisinho. Ele vestia chifrinhos e uma capa vermelha. Percebi a ironia.

– Espero que ele tenha boa pontaria. Não vou limpar a sujeira.

– Como é? Você não limpa a casa também? – perguntou Hugh. Ele ficara sabendo que Roman não me paga aluguel porque está “procurando emprego”. – Tá parecendo que você precisa fazer sua parte por aqui.

Roman lançou-lhe um olhar de advertência.

– Não se intromete, Spiro Agnew.1

– Eu tô de Calvin Coolidge!2 – exclamou Hugh, muito ofendido. – É o mesmo terno que ele usou na posse.

– Hugh, ninguém se lembra – suspirei. Uma das desvantagens de ser imortal é que nossas memórias se tornam obsoletas. Hugh, um demônio que comprava almas para o Inferno, era muito mais jovem que Roman e eu, mas já tinha muito mais anos que qualquer humano.

Fugindo da discussão entre os dois, fui me misturar com os convidados. Alguns dos colegas da livraria onde Doug e eu trabalhamos estavam agrupados em volta da jarra de ponche, e eu parei por ali para bater um papo. No mesmo instante, fui bombardeada por elogios.

– Seu cabelo tá incrível!

– Você pintou?

– Nem parece peruca!

Eu expliquei que era uma peruca de alta qualidade e devolvi os elogios. Uma pessoa, no entanto, mereceu uma crítica.

– Você é mais criativo que nós todos juntos e aparece assim? – perguntei.

Seth Mortensen, autor de best-sellers, virou para me olhar com um de seus meio-sorrisos, sua marca registrada. Mesmo tonta de gim, aquele sorriso conseguia acelerar meu coração. Nós namoramos por um tempo, quando eu mergulhei nas profundezas do amor de um jeito que nem sabia ser possível. Parte das atividades de um súcubo é seduzir homens e roubar a energia de suas almas – um relacionamento de verdade parecia impossível. Mas, no fim, foi o que aconteceu. Seth e eu terminamos – duas vezes –, mas, apesar de eu ter aceitado que ele tinha superado, eu sabia que o amaria para sempre. E, para mim, “para sempre” é algo bem sério.

– Não posso gastar minha criatividade em uma fantasia – ele disse. Seus olhos cor de âmbar escuro me olharam com carinho. Eu não sabia se ele ainda me amava, mas tinha certeza de que me considerava uma amiga. Eu tentava fingir que sentia o mesmo. – Tenho que guardar para o próximo livro.

– Que desculpinha fraca – retruquei. Sua camiseta tinha uma estampa do Freddy Krueger. Até aí tudo bem, exceto pelo fato de eu suspeitar que ele já a usava bem antes do Halloween.

Seth balançou a cabeça.

– Ninguém se importa com o que os homens usam no Halloween. É a noite das mulheres. Dá uma olhada.

Observei, e ele tinha razão. Todas as fantasias elaboradas e sensuais eram das mulheres. Com poucas exceções, os homens estavam bem sem graça.

– O Peter tá arrumado – apontei. Seth deu uma olhada em um dos meus amigos imortais. Peter é um vampiro. Do tipo melindroso e obsessivo-compulsivo. Ele trajava uma indumentária da França pré-revolucionária, inclusive com casaco de brocado e peruca branca sobre seu cabelo castanho fininho.

– O Peter não vale – argumentou Seth.

Lembrando-me de como Peter tinha pintado cuidadosamente cisnes nos rodapés de seu banheiro na semana passada, tive que concordar:

– Justo.

– Quem é o Hugh? Jimmy Carter?3

– Calvin Coolidge.

– Como você sabe?

Livrei-me da resposta quando a noiva de Seth – uma das minhas melhores amigas –, Maddie Sato, apareceu. Ela estava de fada, com asas e vestido de tule e tudo. Nem de longe parecia tão piranha quanto eu. Flores artificiais cobriam seu cabelo negro, que estava puxado em um coque. Seu relacionamento com Seth era outra coisa com que eu tinha aprendido a conviver, mais ou menos. Sabia que sempre sentiria uma pontada de dor. Maddie não sabia que Seth e eu tínhamos namorado e também não fazia a mínima ideia sobre a minha frustração com seu noivado.

Eu achava que ela iria abraçar Seth, mas foi a mim que ela tomou pelos braços e levou embora de lá. Dei um tropeção. Salto de treze centímetros não é um problema, o gim sim.

– Georgina – ela exclamou –, preciso de sua ajuda – e tirou da bolsa duas páginas rasgadas de uma revista.

– Com o... ah – meu estômago embrulhou. Não queria me juntar a Doug no banheiro, mas as páginas mostravam fotos de casamento.

– Estou quase decidida – explicou. – O que você acha?

Aceitar relutantemente que o homem que amo vai se casar com uma das minhas melhores amigas é uma coisa. Ajudá-los a planejar o casamento é outra bem diferente. Engoli em seco.

– Puxa, Maddie, eu não sou muito boa com essas coisas.

Seus olhos escuros arregalaram-se.

– Tá brincando? Você que me ensinou a me vestir bem – ela disse, apesar de não ter aprendido as lições. Os vestidos da revista, lindos nas modelos anoréxicas, não cairiam bem nela.

– Não sei – disse vagamente, olhando para o outro lado. Os vestidos me faziam imaginar os dois subindo o altar juntos.

– Qual é? – ela implorou. – Eu sei que você tem uma opinião.

Eu tenho. Uma péssima, por sinal. E, sinceramente, se eu fosse uma boa funcionária do Inferno, eu teria dito que os dois eram maravilhosos. Ou, ainda, teria sugerido o mais feio. O que ela usaria não era problema meu, e talvez, se ela aparecesse sem graça no casamento, Seth perceberia o que perdeu quando terminamos.

E ainda assim... não consegui. Mesmo depois de tudo que aconteceu, eu não conseguia deixar Maddie fazer aquilo. Ela tem sido uma boa amiga e nunca suspeitou o que aconteceu entre Seth e mim antes e durante o relacionamento deles. Embora meu lado mesquinho e egoísta quisesse, eu não podia deixar que ela escolhesse um vestido feio.

– Nenhum dos dois – disse, enfim. – A saia rodada deste vai te deixar baixinha. As flores deste outro vão te deixar gorda.

Ela ficou surpresa.

– Sério? Eu nem... – examinou as fotos de queixo caído. – Droga. Achei que já tivesse aprendido.

Minhas palavras seguintes só podem ter vindo da bebida.

– Se você quiser, vou com você a algumas lojas esta semana. Você experimenta alguns e te falo o que fica bom.

Maddie iluminou-se. Ela não era maravilhosa, no sentido popular do termo, “como uma modelo”, mas quando sorria ficava linda.

– Sério? Puxa, obrigada. E você pode procurar o seu vestido também.

– Meu o quê?

– Ora... – seu sorriso ficou tímido. – Você vai ser uma das madrinhas, não vai?

Naquele instante, reconsiderei minha ideia de que nada poderia ser mais doloroso do que a ajudar a planejar o casamento. Ser sua madrinha abalou minhas estruturas. Aqueles que acreditam que criamos nosso próprio inferno na Terra devem ter algo do tipo em mente.

– Puxa, não sei...

– Você tem que ser! Não consigo imaginar ninguém no seu lugar.

– Eu não faço o tipo madrinha.

– Claro que faz – de repente, os olhos de Maddie me atravessaram. – Ah, olha, Doug voltou. Vou dar uma olhada nele. Vamos conversar mais tarde. Você vai ceder. – Maddie saiu correndo atrás do irmão, me deixando anestesiada e sem fala. Achei, então, que valeria a pena passar mal em troca de mais um drinque. A festa definitivamente tinha mudado de direção.

No entanto, quando me virei, não fui para o bar. Fui para a minha varanda. Uma das melhores coisas da casa era a sacada, com vista para Puget Sound e o céu de Seattle de fundo. Chegando lá, porém, não foi a vista que me chamou a atenção. Era... algo diferente. Algo que eu não conseguia explicar. Mas era quente e maravilhoso e se conectava com todos os meus sentidos. Era como se eu visse uma luz colorida na sacada, como as ondas da aurora. Também podia ouvir um tipo de música que desafiava todas as palavras humanas e não tinha nada a ver com o Pink Floyd estourando minhas caixas de som.

A festa foi ficando em segundo plano enquanto eu me encaminhava para a varanda. A porta estava aberta para liberar o ar da sala quente, e minhas duas gatas, Aubrey e Godiva, estavam deitadas por ali, para olhar lá fora. Passei reto por elas, atraída por aquilo que não tinha explicação nem descrição. O ar morno de outono me envolvia conforme eu tateava, procurando aquilo que me chamava. Estava em toda a minha volta, no entanto, fora de alcance. Estava me convocando, me atraindo para algo bem na beirada da varanda. Quase subi na bancada, de salto e tudo, para vê-lo. Eu tinha que alcançar aquela beleza.

– Ei, Georgina.

A voz de Peter me sacudiu do transe. Observei ao redor, abismada. Não havia música, nem cor, nem abraço convidativo. Apenas a noite e a vista e os móveis da varanda. Virei-me, olhando-o.

– Temos um problema – ele disse.

– Nós temos muitos problemas – retruquei, pensando no vestido de casamento de Maddie e o fato de que eu quase tinha pulado da minha varanda. Estremeci. Definitivamente não vou mais tomar aquele outro drinque. Passar mal é uma coisa. Ter alucinações é outra. – O que está acontecendo?

Peter me conduziu para dentro e apontou:

– Cody está apaixonado.

Olhei para o nosso amigo Cody, outro vampiro, aprendiz de Peter. Cody era um jovem imortal, otimista e cativante. Estava fantasiado de alien, com antenas verdes saindo de seu cabelo loiro e bagunçado. A perfeição de sua roupa espacial prateada tinha o toque de Peter. No momento, Cody estava do outro lado da sala com o olhar fixado e de boca aberta ao observar alguém. Ele parecia estar sentindo o mesmo que eu momentos atrás.

Seu nome é Gabrielle e ela estava começando a trabalhar na livraria. Era pequena, como uma fadinha, e usava meia arrastão preta e um vestido também preto rasgado. Seu cabelo espetado é preto, bem como seu batom. Combinação fácil. Cody a encarava como se ela fosse a criatura mais bonita da face da Terra.

– Hum – eu disse. Hugh sempre namorou, mas eu nunca tinha pensado nos vampiros – especialmente Peter – tendo relacionamentos românticos.

– Acho que ele tá gostando porque ela se vestiu de vampira – sugeriu Peter.

Neguei com a cabeça:

– Ela sempre se veste assim.

Fomos até Cody, que levou alguns instantes até perceber nossa presença. Ele parecia empolgado em me ver.

– Qual é o nome dela? – ele suspirou.

Tentei esconder meu sorriso. Cody apaixonado era uma das coisas mais fofas que já tinha visto e uma bem-vinda distração para o outro drama da noite.

– Gabrielle. Ela trabalha na livraria.

– Ela tá solteira?

Olhei para ela, que ria de algo que Maddie dizia.

– Não sei. Quer que eu descubra?

Cody enrubesceu – o tanto possível para um pálido vampiro.

– Não! Quer dizer... a menos que não fique muito na cara. Não quero te incomodar.

– Sem problema – respondi, enquanto Doug passava. – Ei! – puxei sua manga. – Me faz um favor que eu pego meu turno de volta.

Doug, cuja pele de descendente de japonês geralmente era bronzeada, poderia se passar por alien também de tão verde. – Preferia ter meu estômago de volta, Kincaid.

– Vai lá investigar o estado civil da Gabrielle. O Cody tá interessado.

– Georgina! – exclamou Cody, indignado.

Doente ou não, Doug não resistia a uma intriguinha.

– Pode deixar!

Ele caminhou até o outro lado da sala e puxou Gabrielle de lado, abaixando para que ela ouvisse. Em certo momento, ele deu uma olhada para nós, e ela também. Cody quase morreu.

– Meu Deus.

Doug voltou cinco minutos mais tarde e balançou a cabeça:

– Desculpe, rapaz. Ela tá solteira, mas acha que você não é o tipo dela. Ela curte coisas góticas, vampiros. Você é muito normalzão pra ela.

Eu estava bebendo água e quase engasguei.

– Isso – disse Peter assim que Doug saiu de cena – é o que chamamos de ironia.

– Como é possível? – indignou-se Doug. – Eu sou um vampiro. Eu deveria ser exatamente o que ela quer.

– Pois é, mas você não parece vampiro – eu disse. Se Gabrielle fosse fã de Star Trek, ele teria uma chance.

– Eu pareço um vampiro porque eu sou um! Como eu deveria me vestir? De Conde Drácula?

A festa continuou bombando por mais algumas horas até que, finalmente, as pessoas começaram a ir embora. Roman e eu, posando de bons anfitriões, sorrimos e cumprimentamos todo mundo. Quando todos tinham ido, eu me sentia cansada e mais do que feliz por tudo já ter terminado. Tinha me recusado a beber depois do incidente na varanda e agora ganhara de presente uma dor de cabeça como lembrança dos deleites anteriores. Roman parecia tão exausto quanto eu ao examinar o apartamento bagunçado.

– Engraçado, a gente faz uma festa pra mostrar a casa nova e o pessoal detona tudo.

– Eu limpo rapidinho – disse, estudando todas as garrafas e pratos de papel com restos de comida. Aubrey estava lambendo a cobertura de um cupcake pela metade, então tirei logo o doce dela. – Mas não hoje. Me ajude com os restos de comida e o resto a gente vê amanhã.

– Não existe “nós” em “limpeza” – Roman falou.

– Isso não faz sentido – respondi, tampando um pote de molho. – E o Peter tem razão, sabe. Você deveria fazer mais por aqui.

– Eu ofereço boa companhia. Além do mais, como você se livraria de mim?

– Eu chamo o Jerome – avisei, me referindo ao seu pai, um demônio que, por acaso, também era meu chefe.

– Claro. Vai correndo me dedurar. – Roman conteve um bocejo, mostrando o quanto se preocupava com a fúria de seu pai. O pior é que ele tinha razão. Eu não conseguia me livrar dele sozinha e tinha minhas dúvidas de que Jerome ajudaria. Mesmo assim, mal pude acreditar quando Roman foi para a cama, me deixando sozinha com a limpeza. Não imaginei que ele teria tanta cara de pau.

– Idiota! – gritei. Recebi apenas uma batida de porta como resposta. Ele não era o pior dos colegas de casa, mas nosso passado conturbado fazia com que me provocasse de propósito. E conseguia.

Enfurecida, terminei a limpeza básica e cai na cama meia hora depois. Aubrey e Godiva vieram atrás, deitando lado a lado na ponta da cama. Elas contrastavam, como uma obra de arte moderna. Aubrey era branca com manchinhas pretas na cabeça; Godiva era uma confusão de partes laranja, marrons e pretas. Nós três pegamos no sono imediatamente.

Pouco tempo depois, acordei com o som de um canto... ou, bem, canto é apenas a melhor palavra para descrever. Era a mesma coisa que sentira antes: um chamado sedutor e assustador que fala com todo o meu ser. Quente e brilhante e maravilhoso. Estava por toda a parte e em tudo. E eu queria descobrir mais, andar em direção à luz que brilhava com cores indescritíveis. Era tão, tão bom – como algo que poderia me fazer derreter e se misturar comigo, se ao menos eu pudesse alcançar. Tive a impressão de ver uma entrada, uma porta que eu poderia simplesmente empurrar e entrar e...

Mãos violentas seguraram meus ombros e me sacudiram.

– Acorda!

Como antes, a sobrecarga sensorial desaparecera. Eu estava só, em um mundo quieto e vazio. Sem canto de sereia. Roman ficou de pé em minha frente, suas mãos me sacudiam enquanto seu rosto me encarava com preocupação. Olhei em volta. Estávamos na cozinha. Não me lembrava como eu chegara lá.

– Como... como isso aconteceu? – gaguejei.

A face que me perturbara antes agora estava repleta de preocupação, algo que mexia um pouco comigo. Por que alguém que quisera me matar se preocupava comigo?

– Você que me diga – ele disse, soltando-me.

Esfreguei meus olhos, tentando me lembrar.

– Eu... eu não sei. Deve ter sido um ataque de sonambulismo.

Seu rosto ainda estava tenso e ansioso.

– Não... havia algo aqui.

Neguei com a cabeça.

– Não, foi um sonho. Ou uma alucinação. Já aconteceu antes... Eu bebi demais.

– Você não me ouviu? – lá estava, o medo encoberto pela raiva. – Havia algo aqui, alguma... força. Eu senti. Me acordou. Você não se lembra de nada?

Olhei para o vazio, tentando convocar novamente a luz e a melodia perturbadora. Mas não consegui.

– Era... era incrível. Eu queria... eu queria entrar... ser parte dela... – falei em um tom de desejo, sonhador.

A expressão de Roman ficou sombria. Como um súcubo, eu era um imortal menos poderoso, pois já tinha sido humana. Imortais superiores, como anjos e demônios, foram criados com o universo. Entre eles, nasceram e se classificavam os nefilins. Desse modo, seus poderes eram maiores e seus sentidos, mais aguçados que os meus. Roman podia detectar coisas que eu não podia.

– Não faça isso – ele disse. – Se sentir novamente, fuja. Não se deixe atrair. Em nenhuma circunstância você deve ir com ele.

Olhei-o com uma careta.

– Por quê? Você sabe o que é?

– Não – ele respondeu, soturno. – Esse é o problema.

1 Vice-presidente dos EUA entre 1969 e 1973.

2 Presidente dos EUA entre 1923 e 1929.

3 Presidente dos EUA entre 1977 e 1981.


Capítulo 2

Eu me revirei na cama a noite toda. Resultado da bizarra visita sobrenatural. Também tenho trauma da vez em que uma entidade caótica superpoderosa amalgamou-se comigo em meu sono e sugou toda a minha energia. O nome dela era Nyx e hoje está aprisionada, pelo menos é o que dizem. Mesmo assim, o que ela fez comigo – e o que ela me mostrou – deixou uma sensação duradoura. O fato de Roman não conseguir identificar o que acontecera esta noite também é preocupante.

Logo, acordei sonolenta e, de quebra, com uma dor de cabeça medonha – culpa em parte da falta de sono, em parte da ressaca. Súcubos têm uma recuperação física rápida, algo que todos os imortais possuem. Esses sintomas só mostram que eu realmente me detonei dessa vez. Sabia que a dor de cabeça iria embora rapidamente, mas tomei um anti-inflamatório para garantir.

O apartamento estava quieto. Quando fui para a cozinha, percebi que, apesar de meus esforços para limpar os restos de comida na noite anterior, eu ainda estava cercada pela sensação de sujeira e bagunça que festas costumam deixar. Godiva, enrolada no sofá, levantou a cabeça quando passei, mas Aubrey continuou dormindo tranquilamente no seu lugarzinho na poltrona. Liguei a cafeteira e depois fui para o terraço, observando o dia ensolarado e o horizonte de Seattle do outro lado do pedaço de água cinza-azulado que se alongava a minha frente.

Uma sensação familiar de repente me tomou, como de enxofre e agulhas quentes. Suspirei.

– Meio cedo para você, não é? – perguntei, sem precisar me virar para saber que Jerome, arquidemônio da Grande Seattle e meu chefe infernal, estava atrás de mim.

– É meio-dia, Georgie – ele respondeu, seco. – O resto do mundo já está de pé.

– É sábado. As leis do tempo e espaço são diferentes hoje. Meio-dia é cedo.

Finalmente me virei, mas porque ouvi o barulho do café pronto. Jerome estava encostado na parede da cozinha, vestido impecavelmente com um terno preto de marca, como sempre. O demônio parecendo uma versão de John Cusack dos anos 1990. Ele poderia se transformar em qualquer coisa ou em qualquer pessoa que quisesse, mas, por razões vagas, senhor Cusack era seu formato preferido. Fiquei tão acostumada com essa aparência que, toda vez que Digam o que quiserem ou O último contrato passam na TV, eu sempre acabo pensando por alguns momentos: “O que o Jerome tá fazendo nesse filme?”.

Servi uma xícara e levantei-a, como convite. Jerome negou com a cabeça.

– Eu suponho – ele começou – que seu colega de quarto também seja um preguiçoso e não deve estar por aí cuidando de seus afazeres.

– Desconfio que sim – respondi, enchendo meu café de chantili. – Antes eu torcia para que, quando Roman não estivesse por aqui, pudesse estar procurando emprego. Mas acontece que eu sempre me decepcionava com essa esperança.

Para falar a verdade, eu estava feliz que Jerome estivesse aqui para ver Roman. Quando ele me procurava, nunca não era boa coisa. Sempre resultava em um evento traumático e perigoso no submundo imortal.

Eu me arrastei de volta para a sala, percebendo que as gatas sumiram após a chegada de Jerome. Com o café na mão, segui para o quarto de Roman, batendo na porta uma vez antes de abrir. Como dona da casa, eu tenho o direito. Também já tinha percebido a habilidade de Roman em ignorar batidas por um longo período.

Ele estava jogado na cama, vestindo apenas uma cueca azul-marinho. Parei um segundo. Ele era incrivelmente bonito, apesar de sua atitude. Vê-lo seminu trouxe à minha mente um flashback de uma vez que dormimos juntos. Mas preciso me lembrar de que à época ele já devia estar planejando como me matar. Leva um tempo para reprimir o desejo que sobrou.

O braço de Roman cobria seus olhos, protegendo-os dos raios de sol que entravam pela janela. Ele se mexeu, movendo o braço levemente e encarando-me com apenas um olho.

– Tá cedo – ele disse.

– Não de acordo com seu exaltado senhor.

Alguns segundos passaram até ele perceber a presença imortal de Jerome. Com uma careta e um suspiro, Roman sentou-se e esfregou os olhos. Ele parecia tão exausto quanto eu me sentia, mas se havia uma força no mundo que o arrastaria para fora da cama depois de uma noitada era meu chefe – não importava o que Roman dissera noite passada. Ele tropeçou e se moveu em direção à porta.

– Você não vai se vestir? – perguntei.

Sua única resposta foi um abanar desinteressado da mão enquanto caminhava pelo corredor. Segui-o e flagrei Jerome se servindo em uma caneca de resto de vodca da noite passada. Bom, em algum lugar do mundo já é happy hour. Ele levantou uma sobrancelha quando viu a pouca roupa de Roman.

– Que bom que se arrumou.

Roman seguiu em linha reta para o café.

– Apenas o melhor para você, papai. Além disso, a Georgina gosta.

Um silêncio pesado se instaurou enquanto os olhos escuros de Jerome analisavam Roman. Eu não sei nada sobre a mãe de Roman. Sobre Jerome, sei que era um anjo, à época do nascimento de Roman, há milênios, mas foi despedido do Céu por se engraçar com uma humana e mandado para trabalhar lá embaixo. Sem indenização.

Às vezes, Roman faz comentários sarcásticos sobre sua família, mas Jerome nunca ficou sabendo disso. Na verdade, de acordo com as leis tanto do Céu quanto do Inferno, Jerome deveria ter exterminado Roman há muitas eras. Anjos e demônios consideram nefilins algo não natural, errado, e estão sempre tentando extingui-los. É meio duro, até para as tendências sociopatas dos nefilins. Recentemente, Roman foi essencial quando Jerome estava em apuros, então os dois fecharam um acordo que permite a Roman viver tranquilamente em Seattle – por enquanto. Se algum dos colegas de Jerome soubesse do arranjo ilícito, haveria um Inferno sobre a Terra, literalmente. Um bom súcubo teria dedurado seu chefe desobediente.

– O que te traz para estas paradas? – perguntou Roman, puxando uma cadeira. – Quer brincar de bola?

A face de Jerome permaneceu impassível.

– Tenho um serviço para você.

– Um do tipo que paga o aluguel? – perguntei, esperançosa.

– Um do tipo que garanta minha permissão para que ele mantenha o estilo de vida ao qual já está tão acostumado – retrucou Jerome.

Roman estava com um sorriso divertido, despreocupado, em seu rosto, mas ele não me engana. Sabe que Jerome representa uma ameaça e também que parte do acordo envolve prestar serviços para o pai. Mesmo assim, em seu teatro, parecia fazer um favor a Jerome. O nefilim deu de ombros, distraído.

– Claro. Não tenho planos para hoje. O que vai rolar?

– Nós temos um novo visitante imortal na cidade – explicou Jerome. Se a atitude de Roman o perturbava, ele também sabia disfarçar. – Um súcubo.

Minha análise imparcial da dinâmica pai e filho foi interrompida de supetão.

– O quê? – perguntei, quase derrubando meu café. – Achei que já estivesse tudo resolvido depois da Tawny.

Eu trabalhava sozinha na cena súcubo há anos. Até Jerome convocar outra, meses atrás. Seu nome era Tawny. Apesar de chata e inepta para o cargo, havia algo de amável nela. Felizmente, Jerome a mandou para Bellingham, uma hora e meia de distância de mim.

– Não é da sua conta, Georgie, mas essa não está aqui a trabalho. Ela veio... como visitante. De férias. – Os lábios de Jerome curvaram-se com um divertimento amargo.

Roman e eu trocamos olhares. Imortais podiam tirar férias, mas era óbvio que havia algo mais.

– E? – perguntou Roman. – Ele está aqui porque...

– Porque eu tenho certeza de que meus superiores querem me vigiar depois do último... incidente.

Suas palavras eram delicadas, dizendo sutilmente para não nos prolongarmos no assunto “incidente”. Trata-se da vez em que Roman e eu o resgatamos de um... feitiço que havia aprisionado Jerome como parte de uma demonstração de força demoníaca. Deixar-se ser enfeitiçado era uma vergonha para um demônio e poderia levantar suspeitas sobre sua capacidade de domínio territorial. O Inferno mandar alguém para conferir a situação não era anormal.

– Você acha que ela foi mandada para espionar se você ainda consegue administrar as coisas? – Roman perguntou.

– Tenho certeza. Quero que a siga e veja para quem ela se reporta. Eu mesmo o faria, mas é melhor que eu não pareça desconfiado. Então, preciso ficar sempre visível.

– Maravilha – a voz de Roman estava tão seca quanto a de seu pai. – Não há nada no mundo mais interessante do que seguir a trilha de um súcubo.

– Ouvi dizer que você é bem bom nisso – eu me intrometi. Mas era verdade. Roman tinha me seguido de modo invisível inúmeras vezes. Imortais inferiores como eu não conseguiam esconder o rastro dedo-duro que circundava a todos nós, mas Roman tinha herdado a característica do pai, o que fazia dele o perfeito espião.

Roman atirou-me um olhar amargo e virou-se para Jerome.

– Quando começo?

– Imediatamente. O nome dela é Simone, e está hospedada no Four Seasons. Vá lá e observe o que ela faz. Você vai prestar contas para Mei – Mei era o demônio braço direito de Jerome.

– No Four Seasons? – perguntei. – O Inferno tá pagando? A gente tá em recessão.

Jerome suspirou.

– O Inferno nunca está em recessão. E eu não sabia que você conseguia fazer seus comentários espirituosos antes de terminar o café.

Mostrei-lhe minha caneca. Estava vazia.

Jerome suspirou novamente e em seguida desapareceu, sem sobreaviso. Ele parecia ter certeza de que Roman o obedeceria.

Roman e eu ficamos ali parados, em silêncio, por vários segundos, durante os quais os gatos reapareceram. Aubrey esfregou-se na perna nua de Roman e ele coçou a cabeça dela.

– Acho que devo tomar banho e me vestir – ele disse, enfim levantando.

– Pra que se preocupar? – perguntei. – Você não vai ficar invisível mesmo?

Ele virou as costas e foi para o corredor.

– Estou pensando em enviar uns currículos quando a Mei me der uma folga.

– Mentiroso – xinguei. Mas acho que ele não ouviu.

Só quando ouvi o chuveiro ligar, me dei conta de que deveria ter perguntando a Jerome sobre a curiosa sensação de ontem à noite. Era tão estranho. Nem sabia como descrevê-la. Quanto mais eu refletia, mais achava que tinha sido uma experiência induzida pelo álcool. Verdade que Roman também dissera ter percebido algo, mas ele também bebera tanto quanto eu.

E falando sobre empregos... meu relógio da cozinha dizia que eu deveria ir para o meu. A vista do horizonte tinha vindo em troca da conveniência. Meu antigo apartamento ficava em Queen Anne, mesmo bairro da Emerald City Books & Café. Eu ia a pé para o trabalho, algo impossível agora, morando em West Seattle. Ou seja, precisava de tempo para o transporte.

Ao contrário de Roman, eu não precisava realmente tomar banho e me trocar – não que eu gostasse, achava as rotinas humanas reconfortantes. Mas uma rápida explosão de mudança corporal súcuba me limpou, me colocou um vestido pêssego apropriado para o trabalho e ajeitou meu cabelo castanho-claro em um coque soltinho. Roman não reapareceu antes de eu ir, então peguei mais um café e deixei um recado perguntando se seria muito difícil ele tirar o lixo antes de partir na missão de agente secreto.

Minha dor de cabeça e os outros sintomas da ressaca já tinham desaparecido quando entrei na loja. Estava repleta de consumidores vespertinos, pessoas cuidando de seus afazeres e turistas vindo da torre Space Needle ou do parque Seattle Center. Deixei a bolsa no meu escritório e dei uma conferida administrativa na loja, feliz por encontrar tudo tranquilo – até perceber oito pessoas na fila e apenas um caixa funcionando.

– Cadê os outros? – perguntei à Beth, uma ótima funcionária das antigas. Ela me respondeu sem parar de trabalhar: – Gabrielle tá no intervalo e Doug não tá... se sentindo bem.

Memórias da competição de gim vieram à tona. Sorri, sentindo-me ao mesmo tempo culpada e orgulhosa.

– Onde ele tá?

– Na seção dos eróticos.

Senti minhas sobrancelhas arquearem, mas não disse nada. Virei e atravessei a loja. Nossa pequena seção de eróticos estava bizarramente localizada entre “automotivos” e “animais” (anfíbios, para ser exata). E enfiado entre as duas prateleiras de eróticos estava Doug, sentado no chão com a cabeça entre os joelhos. Ajoelhei a seu lado.

– Marvada pinga? – perguntei.

Ele levantou a cabeça e tirou o cabelo preto do rosto. Sua expressão era miserável.

– Você roubou. Você tem metade do meu tamanho, como não tá em coma?

– Mais velha e mais sábia – respondi. Se ele soubesse quão velha... Peguei seu braço e puxei. – Vamos. Vem pegar uma água no café.

Por um instante, parecia que ele iria desistir, mas, em um esforço corajoso, seguiu em frente. Até que nem tropeçou tanto enquanto eu o levava para o segundo andar da loja, metade livros, metade café.

Peguei uma garrafa de água, avisei a barista que pagaria mais tarde e arrastei Doug até uma cadeira. Enquanto observava em volta, me detive, quase fazendo Doug tropeçar. Seth estava sentado em uma mesa, com o laptop aberto a sua frente. Aqui é o lugar preferido dele para escrever, o que era legal quando namorávamos, mas agora... é estranho. Maddie estava com ele, bolsa na mão e sem tirar o casaquinho. Lembrei que hoje começaríamos no mesmo horário, ela devia ter acabado de chegar.

Os dois abanaram as mãos, e ela lançou ao irmão um olhar repreendedor.

– Benfeito.

Doug tomou um longo gole de água.

– O que aconteceu com o amor fraternal?

– Ainda não te perdoei por ter raspado meu dachshund.

– Isso foi há vinte anos. E aquele danado merecia.

Sorri por hábito. As briguinhas entre Doug e Maddie costumam ser imperdíveis. Só que hoje Seth prendia minha atenção. Foi fácil ignorar ele ontem, com a ajuda do álcool; fácil fingir que eu relutantemente aceitava ele seguir em frente com Maddie. Mas agora, na luz fria da sobriedade, eu sentia aquela velha dor se revirar no peito. Eu podia jurar que sentia o cheiro de sua pele, seu suor misturado ao sabonete de maçã que ele usava. A luz do sol que entrava pelas grandes janelas do café dava um toque cobre ao castanho do seu cabelo bagunçado. Eu me lembrava perfeitamente de como era alisar seu rosto, a pele macia de sua bochecha e a barba por fazer de seu queixo.

Quando olhei em seus olhos, me surpreendi por ver sua atenção em mim, enquanto os irmãos continuavam a briga fajuta. Ontem à noite, quase me convenci de que ele me considerava apenas uma amiga, mas agora... agora já não tinha tanta certeza. Havia algo afetuoso, levando alguma coisa em consideração. Algo que não deveria estar lá. De repente, tive a furtiva suspeita de que ele poderia estar se lembrando das inúmeras vezes em que transamos. Eu estava pensando nisso também. Meus poderes tinham sido desligados enquanto Jerome esteve desaparecido, e Seth e eu pudemos fazer sexo “seguro” – quer dizer, sem os efeitos colaterais do súcubo.

Exceto por um. Ele namorava Maddie e traí-la manchava sua alma com pecado, o que era pior do que ter sua energia sugada. A partir daquele momento, a alma de Seth estava atada ao Inferno. Ele não sabia, mas o arrependimento pela traição foi o que o levou a um noivado apressado. Achava que devia isso a ela.

A culpa me forçou a virar o rosto, e percebi que os dois irmãos tinham parado de discutir. Maddie olhava para o balcão do café, mas os olhos de Doug estavam pousados em mim. Estavam vermelhos e cansados, contornados por olheiras, mas em meio àquele olhar detonado pela ressaca... havia um lampejo de surpresa e dúvida.

– Hora de trabalhar – disse Maddie, feliz, ao levantar. Ela cutucou o ombro do irmão. Ele se contraiu e desviou sua atenção de mim. Fiquei contente por isso. – Vai sobreviver ao resto do turno?

– Vou – ele resmungou, bebendo mais água.

– Vai trabalhar no inventário – eu disse, levantando também. – Não quero que os clientes pensem que nossos funcionários não sabem beber. Eles correriam tão rápido para as outras lojas que não seria nem um pouco engraçado.

Maddie deu um pequeno sorriso enquanto o irmão se forçava a ficar de pé.

– Ei, Georgina. Você se importa se Doug e eu trocarmos os turnos na terça? Eu tenho que resolver umas coisas em horário comercial, para o casamento.

Doug a cortou com o olhar.

– Você tava pensando em me perguntar se eu podia?

– Claro – respondi, tentando não me encolher ao ouvir a palavra “casamento”. – Você pode fazer o turno da noite comigo.

– Você quer vir junto? – ela perguntou. – Você disse que viria.

– Eu disse?

– Ontem à noite.

Fiz uma careta. Só Deus sabia quantas promessas eu fizera, graças ao gim e às forças mágicas bizarras. Lembrei-me vagamente de Maddie mostrando fotos de casamentos. – Acho que preciso resolver uns problemas pessoais também.

– Um dos lugares é bem no quarteirão da sua casa – ela insistiu.

– Maddie – disse Seth, rápido, obviamente tão desconfortável com o assunto quanto eu –, se ela está ocupada...

– Você não vai estar ocupada o dia inteiro – implorou Maddie. – Por favor?

Eu sabia que significava desastre e problema, que era machucar meu coração já partido. Mas Maddie era minha amiga, e seu olhar suplicante mexeu comigo. Era culpa, percebi. Culpa de como Seth e eu traímos sua confiança. Sua expressão possuía tanta esperança e confiança em mim... Eu, sua melhor amiga em Seattle e a única em quem confiava para ajudar a planejar o casamento.

Por isso, concordei. Como na noite anterior. No entanto, dessa vez, sem o álcool para responsabilizar.

– Ok.

A culpa provavelmente era a maior responsável por comportamentos idiotas.


Capítulo 3

Trabalhei até o fechamento da loja, só cheguei em casa por volta das dez. Para minha surpresa, encontrei Roman no sofá, comendo cereal com leite, e os gatos em seu colo disputando quem ganhava mais atenção. Para falar a verdade, eles pareciam gostar mais dele do que de mim. Era uma traição digna de César.

– O que você tá fazendo aqui? – perguntei ao sentar na poltrona a sua frente. Percebi que o resto da bagunça da festa tinha sido arrumado. Tive a sensação de que, se mencionasse o fato, ele nunca mais limparia nada de novo. – Achei que você estaria por aí caçando o súcubo do Jerome.

Roman bocejou e colocou a tigela vazia na mesinha. Imediatamente, as duas gatas pularam de seu colo para lamber o restinho de leite. – Estou no intervalo. Eu a segui o dia inteiro.

– E aí? – não era só minha curiosidade natural, eu estava preocupada com o questionamento sobre a autoridade de Jerome. O arquidemônio me enche às vezes, mas eu não tinha a mínima vontade de ter um novo chefe. Quase tivemos uma mudança de líder quando ele fora enfeitiçado, e os candidatos ao cargo não me agradaram nem um pouco.

– Foi muito chato. É muito mais divertido espionar você. Ela ficou fazendo compras quase o dia inteiro. Nem sabia que as lojas deixavam você levar tanta porcaria pra dentro do provador. Depois arrumou um cara num bar, e, bem, o resto você já sabe.

Gostei da ideia de Roman não ter apreciado ver Simone em ação.

– Achei que suas tendências voyeurísticas admirassem esse tipo de exposição pornográfica.

Ele fez uma careta.

– Não era pornô do bom. Era tipo aquele pornô nojento e depravado que eles escondem no fundo da locadora. Do tipo que só os pervertidos curtem.

– Então, nada de reuniões clandestinas para reportar ao Jerome?

– Necas.

– Faz sentido, acho. – Espreguicei-me e coloquei os pés na mesinha. Com Doug fora do time, passei um dia incomum nos caixas, mais tempo de pé do que o normal. Posso estar enganada, mas acho que os olhos de Roman pararam um tempo em minhas pernas antes de chegar a meu rosto. – Se ela não tivesse visto nenhuma ação imortal hoje, não teria nada que contar.

– Não até hoje à noite, pelo menos.

– Hoje à noite?

– Quão por fora você tá? Peter e Cody vão fazer um daqueles troços hoje.

– Puts, esqueci – Peter adorava marcar jantares e reuniões e parecia não se importar com a minha recente festa. Como uma criatura noturna, suas soirées aconteciam de madrugada. – E a Simone vai?

– Vai. Mei está com ela agora. E eu vou recomeçar meu turno na casa do Peter.

– Então, você estará lá em espírito apenas?

– Algo do tipo – ele sorriu com a minha piada. Pela primeira vez desde que ele voltara para a cidade, vi um lampejo de diversão genuína naqueles seus olhos verde-azulados. Lembrou-me um pouco do cara inteligente e galante que um dia eu namorei. Também me ocorreu que foi uma das raras conversas em que não discordamos. Era quase... normal. Interpretando erroneamente meu silêncio, ele me olhou cauteloso. – Você não tá pensando em dar pra trás, né? Duvido que seu dia tenha sido tão difícil.

Na verdade, eu estava pensando em dar para trás. Depois do drama de ontem e agora meu arrependimento de ter cedido ao apelo de Maddie, não sabia se estava disposta a encarar as bobeiras de meus amigos imortais.

– Qual é – disse Roman. – A Simone é tão chata. E nem tô falando de suas atividades. Ela é sem graça. Se você não estiver lá pra me entreter, não sei o que vou fazer.

– Tá dizendo que meus amigos não são divertidos?

– São fracos perto de você.

Enfim, concordei. Mas não ficaria surpresa se o convencimento dele fosse apenas para conseguir uma carona. Mesmo assim, eu estava de bom humor no caminho para Capitol Hill. Era meio estranho estar com Roman, mas sem ele era mais ainda. Para continuar a espionagem, ele ficara invisível e sem sua assinatura. Era como ter um fantasma no carro.

Como sempre, fui uma das últimas a chegar. Los tres amigos – Peter, Cody e Hugh – estavam lá, vestidos com suas roupas de sempre, nada de aparatos historicamente determinados. Ou seja, um colete combinando perfeitamente com as calças para Peter, jeans e camiseta para Cody, traje esporte para Hugh. Deixei a porta aberta por um instante para ajudar Roman a entrar logo atrás. A partir disso, não podia ter certeza de que ele estava por ali. Assim que nos deixou entrar, Peter voltou para sua cozinha sem dizer uma palavra.

Simone estava lá também, sentada na namoradeira. Longas pernas perfeitamente cruzadas, mãos sobre os joelhos. Seu corpo era magro, com seios respeitáveis, e estava vestida com uma saia preta e uma blusa de seda prateada. Seu cabelo era – nada surpreendente – longo e loiro. A maioria dos súcubos acreditava que ser loira era uma forma eficiente de arrastar os homens para a cama. Eu achava que era um sinal de inexperiência. Sou morena – com alguns reflexos dourados, está certo – há algum tempo e nunca tive problemas.

Hugh estava ao lado dela, com sua expressão paqueradora, a mesma que sempre usava quando tentava convencer mulheres a ir para a cama com ele. Ela o olhava com um sorriso educado, o mesmo que me direcionou quando entrei. Ela se levantou e estendeu a mão. Sua assinatura imortal cheirava a violetas e colocou minha vibração em “luar e violoncelo”.

– Você deve ser a Georgina – ela disse. – Prazer em conhecê-la.

Ela manteve a expressão educada e eu percebi que não era falsa. Também não era maliciosa ou excessivamente charmosa. Ela não apresentava aquela hostilidade que súcubos têm perto um dos outros, nem a disfarçada atitude passivo-agressiva tão comum entre nós. Ela era medianamente simpática. Ela era... sem graça.

– Eu também – respondi. Virei-me para Cody enquanto tentava identificar os cheiros que emanavam da cozinha. – O que tem para o jantar?

– Torta campestre.

Esperei uma piada, mas não veio.

– Não é o estilo de Peter. – Ele era um ótimo cozinheiro, mas costumava ficar no filé-mignon ou nas vieiras.

Cody assentiu.

– Ele assistiu a um documentário sobre as Ilhas Britânicas e ficou inspirado.

– Nada contra – eu disse, sentando no braço do sofá. – Acho que devemos ficar felizes por ele não ter feito o maldito pudim – acrescentei com sotaque britânico.

– Na Austrália, há uma variante da torta campestre, com batatas no lugar da massa – disse Simone, do nada. – Eles chamam de torta de batata.

Houve alguns instantes de silêncio. Seu comentário não estava fora do assunto, mas era estranho – mesmo por que ela não o tinha feito com uma voz convencida, de sabe-tudo, de quem sempre ganha nas charadas. Era apenas uma constatação. E uma nem muito interessante.

– Hum – eu disse, por fim, impassível. – Bom saber que o nome tá correto. Vai evitar qualquer confusão embaraçosa durante o jantar. Só Deus sabe quantos contratempos malucos as pessoas já tiveram pedindo arroz-doce – continuei, com cara de pau.

Cody engasgou com a cerveja, mas Hugh deu um sorriso radiante para Simone.

– Que demais. Você cozinha?

– Não – ela respondeu. E nada mais.

Peter reapareceu com um drinque de vodca para mim. Depois do confronto da noite passada com Doug, jurei que ia maneirar – tipo, por uns dias. Só que eu já estava precisando de uma bebida.

Peter olhou ao redor com a testa franzida.

– Só vocês? Estava torcendo para o Jerome vir.

Nosso chefe costumava andar bastante com a gente, mas, depois do feitiço, ele ficou meio recluso.

– Acho que ele tem uns assuntos a resolver – eu disse. Não tinha ideia se funcionaria, mas torci para que meu comentário desencadeasse uma reação em Simone. Não funcionou.

Peter serviu bem, como sempre. Sua mesa da cozinha perfeitamente arrumada. Ofereceu um vinho cabernet sauvignon para acompanhar a torta. Acho que a cerveja Guinness seria uma opção melhor, mas fiquei bem quieta.

– De onde você é? – perguntei a Simone. – Você está aqui de férias, né?

Ela assentiu, levantando o garfo delicadamente. Ela cortava a torta em cubinhos simétricos. Rivaliza com o estilo obsessivo-compulsivo de Peter.

– Sou de Charleston – ela respondeu. – Provavelmente, ficarei uma semana. Talvez duas, se meu arquidemônio deixar. Seattle é simpática.

– Ouvi dizer que Charleston é simpática também – disse Hugh. Ele não desistira de transar aquela noite.

– Foi fundada em 1670 – ela disse, como resposta.

Novamente o silêncio constrangedor.

– Você estava lá na época? – perguntei.

– Não.

Comemos sem mais conversas. Pelo menos até a sobremesa, quando Cody se virou para mim.

– Então, você vai me ajudar ou não?

Eu estava imaginando como Simone conseguia arrumar uns caras e se ela conhecia outro adjetivo além de “simpático”. A pergunta de Cody me pegara de surpresa.

– Quê?

– Com a Gabrielle. Lembra? Ontem à noite – certo. Gabrielle da livraria, a que só curtia góticos e vampiros.

– Eu prometi isso? – perguntei, desconfortável. A amnésia alcoólica me deixou com alguns buracos na memória.

– Não, mas, se você fosse minha amiga, ajudaria. Além do mais, você não é especialista no amor?

– Só para mim.

– Lembre-se de que nem nisso ela é boa – disse Hugh.

Fulminei-o com o olhar.

– Você tem que me dar uma ajudinha – continuou Cody. – Eu preciso encontrá-la de novo... ter algum assunto pra puxar...

Eu achara que sua paixonite por Gabrielle tinha sido induzida pelo álcool – sério, existe alguma coisa pela qual o álcool não pode ser o culpado? –, mas ele ainda estava com aquele olhar babão. Eu o conheço há alguns anos e nunca tinha visto uma reação assim. Nem do Peter, mas meus amigos e eu tínhamos decidido há alguns anos que ele era assexual. Se vampiros fossem capazes de se reproduzir, ele o faria do mesmo jeito que as amebas.

Quebrei minha cabeça.

– Eu a vi lendo The Seattle Sinner outro dia.

– O que é isso? – perguntou Cody.

– É a nossa revista underground sobre música pop, góticos, fetiche, horror e sadomasoquismo – explicou Peter.

Todos viramos para o encarar.

– Ouvi dizer – ele acrescentou rapidamente.

Voltei para Cody com um encolher dos ombros.

– É um começo. Tem lá na livraria.

– Já acabaram o assunto romântico? – uma voz perguntou, de repente. – É hora de começar a ação.

A nova voz me deu um susto. Só então senti a conhecida aura cristalina que indica a presença de um anjo. Carter se materializou na única cadeira vazia da mesa – Peter esperava Jerome. O anjo mais malvestido de Seattle se recostou na cadeira, braços cruzados sobre o peito e sua típica expressão sarcástica. Seus jeans e sua camisa de flanela pareciam ter passado por um rolo compressor, mas a touca de tricô de caxemira, sobre seus cabelos loiros até os ombros, estava imaculada. Eu o havia presenteado com o chapéu, por isso sorri. Os olhos cinza de Carter cintilaram de alegria quando me viram.

Andar com um anjo pode ser meio estranho em alguns círculos demoníacos, mas era bem comum no nosso. Já estávamos acostumados com as idas e vindas de Carter, assim como com seus comentários misteriosos – e muitas vezes enfurecedores. Ele era o mais próximo que Jerome tinha do que se pode chamar de amigo e se interessava muito por minha vida amorosa. Mas tinha deixado isso meio de lado depois do recente fiasco com Seth.

Carter era normal para a gente – mas não para Simone. Seus olhos azuis arregalaram-se quando ele apareceu, sua face ficou completamente transformada. Ela se curvou sobre a mesa (posso estar errada, mas acho que seu decote aumentou desde o começo do jantar) e apertou a mão de Carter.

– Não fomos apresentados – ela disse –, sou a Simone.

– Carter – ele respondeu, divertindo-se.

– Simone tá de visita. Ela é de Charleston, que foi fundada em 1670.

O sorriso de Carter se contraiu.

– É o que dizem.

– Você deveria conhecer – continuou Simone. – Adoraria recebê-lo. É uma cidade muito simpática.

Troquei um olhar assombrado com Cody, Peter e Hugh. O jeitão sem graça de Simone não tinha sumido, mas já estava uns dois por cento mais interessante. Ela não estava apaixonada por Carter, como Cody por Gabrielle. Estava apenas tentando transar com um anjo. Boa sorte, pensei. Era muita cara de pau, até para um súcubo. Claro que alguns anjos caíam na tentação – Jerome era a prova viva –, eu até testemunhei uma vez. Mas Carter? Se havia uma criatura resistente, era ele. Exceto para cigarro e bebida, claro. Com certeza a tal da Simone tinha ficado mais interessante.

– Claro – respondeu Carter. – Aposto que você me mostraria umas coisas do arco da velha.

– Sim! – ela exclamou. – Lá tem uma pousada onde George Washington já jantou.

Revirei os olhos. Duvido que haja algum pedaço de Charleston que Carter não conheça. Carter viu cidades como Troia e Babilônia nascer e morrer. Até onde eu saiba, ele ajudou a destruir Sodoma e Gomorra.

– O que você tem em mente pra hoje? – perguntei a Carter. – Por mais divertido que o patético flerte estivesse, eu não estava a fim de história norte-americana hoje. – Não vou brincar de “eu nunca” de novo.

– Melhor – do nada, Carter produziu um “Imagem e Ação”. E quando digo “do nada”, eu quero dizer do nada mesmo.

– Não – disse Hugh. – Passei anos para acertar minha assinatura ilegível de médico. Perdi todas as minhas habilidades artísticas.

– Eu amo “Imagem e Ação” – disse Simone.

– Acho que tenho mais o que fazer – acrescentei. Senti um empurrão no ombro, mas não vi o culpado. Então, lembrei. Roman queria continuar na festa. Suspirei. – Mas vou ficar mais um pouquinho.

– Ótimo. Então tá tudo certo – disse Carter. Virando-se para Peter: – Você tem uma lousa?

Claro que Peter tem. Por quê? Não faço ideia. Mas depois que ele comprara um robô aspirador e um Betamax,4 aprendi a ficar na minha. Dividimos os times: eu, Cody e Hugh contra o resto.

Comecei. Peguei “caso Watergate”.

– Qual é – eu disse –, isso é ridículo.

– Não reclama – disse Carter, com um sorriso irritantemente convencido. – É aleatório pra todo mundo.

Soltaram o cronômetro. Desenhei umas ondas capengas que levaram Cody a gritar “Água” na hora. Estávamos indo bem. Então desenhei uma coisa que seria uma parede com uma porta. Fiz um bom trabalho, pois Hugh disse:

– Parede.

Cody adicionou:

– Porta.

Acrescentei umas linhas verticais na porta, para enfatizar a ideia de portão, o “gate”. Depois de um tempo pensando, desenhei um sinal de mais para mostrar a conexão entre “água” e o “portão”.

– Aqueduto – disse Cody.

– A música “Bridge over troubled water” – chutou Hugh.

– Ai meu Deus – resmunguei.

Obviamente, meu tempo acabou antes que meus colegas de time adivinhassem, mas não antes que eles pudessem arriscar Barragem Hoover.

Com um resmungo, me joguei no sofá. Era a vez de o outro time tentar.

– Watergate – disse Carter, de cara.

Hugh olhou para mim, incrédulo.

– Por que você não desenhou um portão de uma vez?

Simone foi a próxima, e eu torci para que ela pegasse “Crise dos Mísseis de Cuba” ou “Lei de Bohr”. O cronômetro começou, e ela desenhou um círculo com raios saindo de dentro.

– Sol – disse Peter, de imediato.

– Correto! – ela exclamou.

Fuzilei Carter com os olhos.

– Você. Está. Roubando.

– E você é uma má perdedora – ele retrucou.

Jogamos por mais uma hora, mas depois que meu time pegou “oncologia”, “Daniel Webster e o Diabo” e “Guerra de 1812”, e o deles, “Coração”, “Flor” e “Sorriso”, decidi que era hora de ir para casa. Na porta, ouvi um suspiro suplicante em minha orelha.

– Cada um por si – rosnei baixinho para Roman.

Saí sob acusações de ser uma chata e me considerei sortuda quando ouvi Carter dizendo que agora eles brincariam de Jenga.

A volta para West Seattle naquela hora da noite foi tranquila. Depois de estacionar em frente ao meu prédio, fiquei feliz por constatar que o calor fora de época ainda estava no ar. Estar tão perto da água dava uma leve esfriada, resultando em uma temperatura noturna perfeita. Impulsivamente, atravessei a rua até a praia, que parece um parque, com mais grama do que areia. Em Seattle, havia poucos locais com mais areia do que isso.

Mesmo assim, adoro a água e o som macio das ondas contra a costa. Uma brisa suave balançou meus cabelos. As luzinhas brilhantes do litoral cintilavam a distância. Eu havia me mudado para cá em parte para me afastar de Queen Anne e sua proximidade de Seth, mas também porque o oceano traz de volta memórias de minha juventude mortal. Puget Sound era muito diferente das águas mediterrâneas perto das quais cresci, entretanto acalmava algo dentro de mim. Era um conforto agridoce, claro, mas gravitar em torno de algo doloroso é uma tendência não só dos mortais.

A água estava encantadora, brilhando sob o luar e as luzes dos postes. Eu observei um ferry iluminado movendo-se até a cidade de Bainbridge Island, depois retornei meu olhar para as ondas revoltas a minha frente. Parecia uma dança coreografada, um padrão sedutor que me atraía. Eu posso não saber desenhar, mas dançar é uma arte que aprendi em meus dias mortais. A água acenava, e eu quase podia ouvir a música que a embalava. Era envolvente, repleta de calor e amor, prometendo aliviar a constante e insistente dor em meu peito. A dor que eu carregava desde que perdera Seth...

Apenas quando já estava com água até as canelas, percebi o que fizera. Meus saltos estavam enfiados na areia e, apesar do dia quente, a água estava fria, gelando minha pele. O mundo, que há pouco parecia um sonho nebuloso, agora desabou com dureza, não mais uma dança convidativa, com promessas de conforto e prazer.

O medo acelerou meu coração. Rapidamente me virei, com dificuldade, pois meus saltos estavam presos na areia. Consegui tirar os sapatos e abaixei para tirá-los da água. Voltei descalça para a praia. Ouvi, paralisada, o som, perplexa pelo quanto ele me assustava agora. Quanto mais eu teria andado? Não sabia e não queria pensar sobre isso.

Corri para o prédio, ignorando o asfalto áspero sob meus pés. Apenas quando cheguei na minha sala – com a porta da frente trancada –, é que me senti minimamente segura. Aubrey veio até mim, cheirando meus calcanhares e lambendo a água salgada que ainda estava neles.

Eu tomara um drinque duas horas atrás, já fora metabolizado há muito pelo meu organismo. Não foi uma ilusão de embriaguez – como também não o fora o sonambulismo da noite passada ou o quase pulo da sacada. Sentei no sofá, abraçando-me. Tudo em minha volta era ameaçador.

– Roman? – gritei. – Você tá aqui?

O silêncio foi a única resposta. Ele ainda estava atrás de Simone e provavelmente ficaria a noite toda fora. Fiquei impressionada como de repente e desesperadamente desejei sua presença. Meu apartamento parecia solitário e nefasto.

A água molhara meu vestido, então o troquei pelo conforto macio dos pijamas. Decidi que não dormiria. Esperaria por Roman na sala. Eu precisava contar a ele o que acontecera. Precisava que ele vigiasse meu sono.

Por volta das quatro, minha fadiga tomou conta de mim. Alonguei-me no sofá, com as gatas enroladas contra mim, e parei de acompanhar o comercial na TV. Quando acordei, já era alta manhã e a luz do sol aquecia minha pele. Roman não tinha chegado. Não consegui esperar por ele, mas eu ainda estava no sofá. Por enquanto, não podia desejar mais nada.

4 Formato de gravação de cassete caseiro lançado pela Sony no mercado norte-americano nos anos 1970, posteriormente superado pelo conhecido formato VHS.


Capítulo 4

Passei a manhã toda inquieta, esperando Roman. Ele tinha que voltar para casa algum momento para dormir, certo? Sendo em parte um imortal superior, ele tem vários traços de seu parentesco angelical – e anjos e demônios nunca precisam dormir. Roman precisa de pouco descanso, mas dorme pelo prazer.

Deixei uma mensagem no celular do Jerome, o que, em geral, é inútil. Eu também me arrependi de ter me afastado de Carter tão cedo. No rolo daquele “Imagem & Ação” absurdo, eu tinha esquecido totalmente dos meus encontros com o canto da sereia. De fato, eu quase os esquecera por completo, até o repeteco de ontem à noite. Mas se encontrar o Jerome era difícil, o Carter era impossível. Ele não tem celular e parece se orgulhar de suas aparições-surpresa.

Sem mais opções, liguei para Erik, um amigo humano, dono de uma loja especializada em produtos esotéricos e pagãos. Sempre corro para ele em situações de bizarrice sobrenatural. E muitas vezes ele sabe mais do que meus amigos imortais. Enquanto discava o número de sua loja, pensei sobre como minha vida gira em torno do mesmo eixo. Eu sempre repito os padrões. Algo estranho acontece, eu tento contatar meus superiores sem sucesso e acabo procurando a ajuda de Erik.

– Por que essas porras vivem acontecendo comigo? – resmunguei enquanto o telefone chamava. Cody nunca é perseguido por forças paranormais. Nem os outros. É como se eu estivesse sempre na mira. Ou fosse amaldiçoada. Ou simplesmente azarada. Minha vida é uma espiral sem fim, condenada a repetir os mesmo padrões de ameaças imortais irritantes – e relacionamentos amorosos ridículos.

– Alô?

– Erik? É a Georgina.

– Senhorita Kincaid – ele cumprimentou com sua voz cavalheiresca. – Um prazer falar com você.

– Preciso de sua ajuda. De novo. Você vai ficar por aí? Queria dar uma passada antes do trabalho.

Houve uma pausa, e depois ouvi pesar em sua voz.

– Infelizmente, tenho uns assuntos para resolver hoje. Volto à noite. Quando você sai do trabalho?

– Provavelmente às dez – outro expediente noturno.

– Te encontro às dez.

Senti-me mal. Sua loja geralmente fechava às cinco.

– Não, não... é muito tarde. A gente tenta amanhã.

– Senhoria Kincaid – ele disse, carinhoso. – Adoro te receber. Não há problema algum.

Continuei me sentindo culpada quando desligamos. Erik estava ficando velho. Ele não dorme às dez? Nove? Agora já não dava para voltar atrás. Ele disse que faria e conheço sua obstinação. Eu não podia fazer nada a não ser esperar que Roman aparecesse antes de eu ir trabalhar. Se não, eu simplesmente deixaria um recado para ele, dizendo que precisávamos conversar urgentemente. Era o melhor a ser feito.

Na livraria, ninguém faltou e, melhor ainda, ninguém estava de ressaca. Meu trabalho burocrático estava em dia, então fiquei com um bom tempo livre. Se isso é bom ou ruim, não sei dizer. Por um lado, não fazia nada de errado com a papelada devido a minha distração, mas também ficava com muito tempo para pensar besteira.

Estava quase na hora de encerrar o expediente quando vi Seth em seu lugar de sempre no café. Maddie tinha trabalhado de dia, então eu não precisava encarar o teatrinho do casal fofo. Ele me pegou o olhando enquanto eu ia em sua direção e, contra meu bom-senso, sentava em sua frente.

– Como anda o livro? – perguntei. Minha típica fixação romântica nele foi posta de lado quando vi que estava agitado.

Ele tamborilou na tela, irritado.

– Mal. Fiquei olhando duas horas para essa tela e não saiu nada – ele parou. – Não, não é verdade. Comprei uma camiseta dos Supergêmeos e assisti vídeos no YouTube.

Sorri e apoiei meu queixo na mão.

– Não parece um mal dia de trabalho.

– Mas é se todo o resto da semana for assim também. Minha musa é uma prostituta ingrata que me abandonou com minhas próprias ideias de roteiro.

– É um recorde pra você – observei. Quando namorávamos, ele tivera alguns bloqueios criativos, mas nada que durasse mais do que uns poucos dias. – Qual é o prazo?

– Não tá perto, mas mesmo assim... – ele suspirou. – Não gosto de ficar em ponto morto. Não sei como ocupar meus dias sem ser escrevendo.

Comecei a falar que ele devia ter alguns detalhes do casamento para acertar, mas depois pensei melhor. Optei por temas mais leves.

– Talvez seja hora de começar um hobby. Esgrima? Origami?

O sorriso levemente feliz, tão típico dele, cruzou seus lábios.

– Eu tentei tapeçaria manual uma vez.

– Mentira.

– Sério. Você não faz ideia de como é difícil.

– É fácil – disse, tentando conter a risada. – Até as crianças conseguem, sabia? Suas sobrinhas devem fazer.

– Elas fazem. E você não tá me animando.

Mas aqueles lindos olhos castanhos estavam sorrindo. Estudei-os por uns instantes, amando o modo como às vezes eles se tornavam âmbar. Um instante depois, despertei do feitiço amoroso.

– Você também pode sair para dançar – sugeri, travessa.

Ele riu.

– Acho que já sabemos que isso não leva a nada.

Eu tinha tentado ensiná-lo – swing e salsa –, mas os resultados foram desastrosos. Os talentos de Seth estão em sua mente, não em seu corpo. Pensando bem, isso não é verdade.

– É que você não encontrou o estilo adequado – expliquei. Desisti de esconder meu riso.

– Qual sobrou? Sapateado? Quadrilha? E não pense em sugerir jazz. Depois que assisti Extra! Extra!, fiquei traumatizado por uns cinco anos.

– Que maldade – disse. – Você pelo menos poderia usar suas camisetas dançando jazz. Tenho certeza de que você deve ter uma escrito “Dancing Queen” guardada – sua camiseta do dia era estampada com o Chuck Norris. – A não ser, claro, que você queira um pouco de variedade. O pessoal da quadrilha usa umas roupas maneiras.

Ele balançou a cabeça, irritado.

– Vou deixar essas histórias de roupa de dança pra você. E não, eu não tenho uma camiseta “Dancing Queen”, mas admito que tenho uma do Abba. Acho que uma camiseta “Dancing Queen” seria ideal pra você, não pra mim – ele olhou para o pedaço do meu corpo não escondido pela mesa. – E você já tá pronta pra ir dançar.

Senti um rubor sob seu olhar e imediatamente usei meus poderes para coibi-lo. O calor fora de época pedia vestidos leves, e eu estava com um hoje. Era trapézio, cor de creme, sem manga, com um decote apropriado, ou não, para o trabalho. Ele não estava me devorando com os olhos, nem nada do tipo, mas eu sabia que Seth conseguia disfarçar suas emoções. Imaginei o que se passou em sua mente. Apenas admiração estética? Reprovação do meu decote não adequado?

– Essa velharia? – perguntei, indiferente, mas desconfortável por razões inexplicáveis.

– Você estava com uma roupa dessa cor quando nos conhecemos – ele disse. Em seguida, envergonhado, acrescentou: – Não sei por que me lembro.

– Você não lembra. Eu estava de roxo – retruquei e foi a minha vez de ficar envergonhada por lembrar esse tipo de coisa.

Ele fez uma careta fofa.

– É mesmo? Ah, é. Verdade. A blusa violeta e a saia florida.

Todos os detalhes. Se ele lembrasse que eu estava com uma jaqueta de couro de cobra, eu desmaiaria. Parecia que ele estava se recordando de tudo. Dos meus sapatos e como penteei meu cabelo. Um silêncio constrangedor tomou conta da situação. Eu posso conseguir impedir meu rosto de ficar vermelho, mas não o calor correndo por meu corpo. E apenas metade dele era efeito do desejo. O resto era algo diferente... algo mais doce e mais profundo.

Tossi de leve.

– Sobre o que é o livro? Cady e O’Neill, né?

Ele assentiu, feliz pela mudança de assunto.

– O de sempre. Mistério e intriga, tensão sexual e situações letais – ele hesitou. – É o último.

– É... o quê? – meu queixo caiu. Na hora, os sentimentos românticos ficaram de escanteio. – Você quer dizer... o fim da série? – Seth tinha escrito muitos mistérios ao longo da carreira, mas Cady e O’Neill – a intrépida dupla de arqueólogos – eram o carro-chefe de sua obra. – Por quê?

Ele deu de ombros e voltou os olhos para o laptop.

– Já está na hora.

– Como... como você vai ganhar dinheiro?

Seu sorriso ficou amargo ao voltar os olhos para mim.

– Eu escrevi outros livros sem eles, Georgina. Você acha que meus fãs não vão ser fiéis o suficiente para ler uma nova série?

– Vamos – afirmei, carinhosa. – A gente vai te seguir. – Queria ter dito “eles”, mas era tarde demais.

– Espero que sim – ele disse, desviando o olhar. Quando voltou os olhos em minha direção, vi uma faísca de excitação. – Mas, na verdade, quero fazer algo novo. Tenho uma ideia... ótima. Quero me jogar de cabeça nela, sabe?

Eu sabia. Eu testemunhei ele esquecer completamente alguns aspectos de sua vida enquanto se dedicava a um livro. Imaginei se esse novo processo intensificaria o fervor.

– Então, você já sabe o fim de Cady e O’Neill? – perguntei.

– Não – ele respondeu com um suspiro, seu brilho esvaecendo. – Esse é o problema. Não sei como vai acabar.

Será que ele ainda estava falando sobre os livros? Nossos olhares se cruzaram, e o que poderia ter acontecido em seguida foi interrompido por Beth.

– Georgina, um amigo seu tá aí.

Meu coração saltou. Roman. Roman leu meu recado. Seu conselho sobre aquele misterioso canto de sereia era a única coisa que poderia me afastar de Seth naquele momento. Dei um pulo da cadeira e olhei pesarosa para Seth.

– Tenho que ir.

Ele assentiu, com alguma emoção perturbadora em seus olhos, a qual não pude identificar. Também fiquei perturbada. Ele sabe esconder suas emoções, mas eu também sei percebê-las.

– Sem problema – ele disse. Melancolia? Que emoção era aquela?

Eu não poderia pensar a respeito naquela hora. Roman era mais importante. Desci as escadas de dois em dois degraus, ansiosa para vê-lo. Mas quando cheguei aos caixas, onde Beth dissera que meu amigo estaria esperando, não era Roman quem estava lá. Era Cody.

Ou, pelo menos, parecia Cody.

Levei um momento para entender. Ele estava vestido inteiramente de preto – mas não apenas de jeans e camiseta pretos. Estamos falando do traje completo: jaqueta de couro com tachinhas, coturnos e, credo, camiseta-arrastão. Seu cabelo loiro tinha faixas pretas. O olho carregado de lápis e batom nos lábios, tudo preto, sobre base branca, completavam o look. Eu não sabia o que dizer, então simplesmente o arrastei pelo braço até o escritório antes que alguém mais o visse.

– Que porra é essa? – o sol tinha acabado de se pôr, então ele devia ter pisado no acelerador para chegar aqui tão rápido.

– Eu vim ver a Gabrielle – ele explicou, jogando um olhar ansioso para a porta. – Onde ela tá? Queria chegar aqui antes de a livraria fechar.

– Ela não tá trabalhando hoje.

Seu rosto ficou completamente desanimado. Mas eu tive que acrescentar:

– E, honestamente, acho que ainda bem.

– Por quê? O Peter tinha um exemplar de The Seattle Sinner. Depois que a gente leu, achamos que me vestir assim seria uma boa. Ele me ajudou.

– Calma aí. O Peter tinha um exemplar de...? Deixa pra lá. Melhor nem saber. Pode ter certeza que você chamaria a atenção, mas não ia ser muito bom.

Cody apontou para suas roupas.

– Mas ela curte a cena gótica. Você mesma disse que ela se veste inteira de preto.

– É – admiti. – Mas a sua parece... não sei. Exagerado. Pessoas como ela estão sempre de olho nos “aspirantes”. Se você exagerar, ficar falso, vai afastá-la.

Ele suspirou e se jogou na cadeira, derrotado.

– O que eu devo fazer? A revista era minha única dica.

– Bom, pra começar, não deixe o Peter te vestir. Nunca mais. Quanto ao resto... não sei. Vou dar uma perguntada e ver se descubro mais alguma coisa. Mas, por favor, não use essas roupas de novo.

– Ok – ele concordou.

Na mesma hora, Doug enfiou a cabeça na sala. Não era seu turno, então levei um susto, mas não tanto quanto ele.

– Oi, Kincaid, tô com uma dúvida sobre o cronogra... Puta que o pariu! O que é isso?

– É o Cody – esclareci.

Doug entrou cautelosamente no escritório e observou o rosto de Cody.

– Olha só, que doidera. É ele. Tava achando que fosse o fantasma do Gene Simmons.

– O Gene Simmons não morreu – retrucou Cody.

– O Cody tá tentando impressionar a Gabrielle – expliquei. Doug abriu a boca para comentar o fato de que assim não ia dar muito certo, mas levantei a mão para impedi-lo. – É, eu sei. O que você quer?

Doug precisava mudar alguns horários de trabalho, e sem sua amada na área, Cody foi embora. Deixei ele sair pela porta dos fundos, pois não queria o pânico instaurado na loja. Depois que ajustamos o cronograma, Doug e eu ficamos conversando sobre Cody e Gabrielle. Perdi a noção do tempo, e logo o fechamento estavam sendo anunciado nos alto-falantes. Doug se despediu, um pouco por medo de que eu o pusesse para trabalhar, e eu fui finalizar minhas tarefas. Estava chegando a hora de meu encontro com Erik, e eu sentia um misto de excitação e apreensão.

Uma hora depois de fechar as portas, os funcionários começaram a ir embora. Dei uma última olhada geral pela loja e encontrei Seth ainda sentado no café. Não foi surpresa. Meus colegas de trabalho nunca tinham coragem de expulsá-lo. Um dia, ele fora trancado para dentro e acidentalmente disparou o alarme. Fui até sua mesa, percebendo a expressão extasiada ao digitar freneticamente.

– Ei, Mortensen – chamei. – Você não precisa ir pra casa, mas não pode ficar aqui.

Levou quase trinta segundos para ele olhar e, mesmo assim, pareceu surpreso com a minha presença.

– Ah, oi.

Senti um sorriso nascendo em meus lábios. Era o clássico Seth.

– Oi, estamos fechando. Hora de ir.

Ele olhou em volta, notando as janelas escuras e a falta de pessoas circulando.

– Puxa, cara. Desculpa. Nem percebi.

– Parece que a musa voltou.

– Voltou.

– Então já sabe como vai acabar?

– Não. Ainda não.

Fui com Seth até a porta dos fundos e acionei o alarme antes de sair. Ele disse adeus. Se tivera alguma afeição sonhadora por mim antes, esta já tinha ido embora. Seus personagens consumiam seu coração no momento. Era algo que aprendi a aceitar quando estávamos juntos. Observando-o descer a rua, percebi que era assim que deveria ser. Sua escrita era uma parte gigante de seu ser.

Deixei minha própria afeição sonhadora ir embora e dirigi em direção ao norte, para a loja de Erik. Ainda me sentia meio mal por fazer ele se encontrar comigo tão tarde, mas as luzes de sua janela brilhavam na noite. E, dentro, a música e o incenso de sempre estavam bombando, como se fosse horário comercial. Olhando de relance, não o vi de cara. Até percebê-lo ajoelhado em frente a alguns livros de quiromancia.

– Ei, Erik.

– Senhorita Kincaid.

Ele se levantou, mas seus movimentos eram vagos e instáveis. Quando finalmente virou para mim, havia um abatimento incomum em seu rosto moreno. Meu instinto era correr para ajudá-lo a ficar de pé, mas achei que ele poderia não gostar. Mesmo assim, perguntei o óbvio.

– Você tá bem? Tá doente?

Ele me ofereceu um sorriso gentil e começou a se mover, lentamente, em direção ao balcão.

– Um resfriado passageiro. Estão a cada dia menos passageiros, mas estou bem.

Eu não tinha tanta certeza. Conhecia Erik há tempos... Nem sabia há quantos anos. Não era algo incomum aos mortais, algo que sempre me pegava de surpresa: um dia eles estavam jovens e saudáveis, no outro... velhos e morrendo. E nunca é menos dolorido. Um dos motivos que fez Seth terminar comigo era me poupar da dor de sua morte, já que eu começara a ficar cada vez mais paranoica com sua saúde.

Agora, observando Erik, me senti ainda pior por fazê-lo ficar acordado até tão tarde. Também me senti mal por perceber que eu só o visitava para pedir favores. Quando fora a última vez que o vira? Meses atrás, quando Jerome fora enfeitiçado. Procurei sua ajuda e nunca mais voltei.

– Chá? – ele ofereceu, como sempre.

– Não, não. Não quero incomodar mais – respondi. Encostei-me no balcão e fiquei aliviada quando ele se sentou num banquinho. – Só queria perguntar umas coisas. Algo esquisito aconteceu – quase ri das palavras que saíram da minha boca. Eu dizia tanto essa frase. O pensamento voltou: minha vida é um grande círculo, repetindo e repetindo.

Eu resumi meus estranhos encontros com a desconhecida e, principalmente, indescritível força. Ele ouviu atento, com as sobrancelhas cinzas e espessas unidas em uma carranca.

– Sinto dizer, mas há um grande número de coisas que se encaixam na sua descrição.

– Que surpresa – murmurei, irônica. Foi um comentário sobre minha vida e não sobre as habilidades dele.

– O fato de seu... hum, amigo não ter sido capaz de identificar é intrigante – Erik era um dos poucos que sabiam que Roman estava em Seattle. Ele não ligava para as regras do Céu e do Inferno e não ia dedurar. – Claro, ele não tem todas as habilidades dos seus parentes. Você não falou com nenhum imortal superior?

Neguei com a cabeça.

– Não. Como sempre, estão sumidos. Acho que vou encontrar Jerome logo – ele provavelmente virá procurar Roman. – Então, veremos.

– Desculpe não ter respostas prontas. Eu nunca tenho.

– Não no começo – disse. – Mas você sempre dá um jeito no final. Mais padrões.

– Ãhn?

– Nada – disse com um leve suspiro. – Às vezes eu sinto que sempre as mesmas coisas acontecem comigo. Tipo, esse negócio de sereia. Por que eu? No ano passado, fui vítima seguidas vezes. Quais são as chances? Por que isso acontece?

Erik me estudou por vários segundos.

– Há algumas pessoas em volta das quais os seres e poderes sobrenaturais vão sempre circundar. Você parece ser uma delas.

– Mas por quê? – perguntei, surpresa pelo tom infantil da minha voz. – Sou apenas um súcubo. Há milhares como eu. E por que recentemente? Por que começou apenas agora? – parecia uma piada cruel que todos esses problemas paranormais começassem com os problemas amorosos. Aparentemente, uma única fonte de dor não era o suficiente.

– Eu não sei – Erik admitiu –, as coisas mudam. Forças mudam coisas que não podemos ver. – Ele pausou e tossiu. Eu me contraí. Quão doente ele está? – Mais uma vez, me sinto inútil.

Apertei levemente seu ombro.

– Não, não. Você é inestimável. Não sei como eu me viraria todos esses anos sem você – com isso, ganhei um sorriso.

Querendo que ele fosse dormir, peguei minha bolsa para ir embora. Estava quase na porta quando ele disse de repente:

– Senhorita Kincaid?

Olhei para trás.

– Sim?

– Você ainda fala com o senhor Mortensen?

A pergunta me pegou de surpresa. Erik ficou intrigado com nosso romance, admirando-se com o relacionamento entre um súcubo e um humano, mas sem a louca obsessão de Carter.

– Sim, às vezes – minha conversa prévia com Seth veio à mente: o conforto e o calor que nos rodeou.

– As coisas estão amigáveis?

– Mais ou menos – exceto pelo casamento iminente, claro.

– Que bom. Nem sempre é assim.

– É, eu sei. Embora... – segurei minha língua.

Erik inclinou a cabeça, estudando-me com curiosidade.

– Embora o quê?

– É amigável, mas às vezes... às vezes toda essa situação com ele... é como ter minha alma partida em duas.

– Compreendo – ele disse. Seus olhos me queimavam com compaixão, e senti lágrimas brotando dos meus. – Desculpe ter trazido o assunto à tona. Só estava curioso.

Garanti que estava tudo bem e disse adeus novamente. A menção a Seth e minha lembrança da nossa última conversa me deixaram melancólica. Dirigi de volta para West Seattle, triste por ter que ajudar com seu casamento amanhã e preocupada com a saúde de Erik. Por mais pesados que fossem esses pensamentos, eles desapareceram assim que entrei na sala de casa.

– Roman!

Ele estava sentado no sofá, como na última vez, comendo uma torta de frango de micro-ondas. A TV estava ligada, mas ele parecia não estar assistindo. Quando ele olhou para mim, não trazia sua expressão brincalhona. Seu rosto estava sombrio. Perturbado, até.

– Estava esperando você voltar pra casa! – exclamei, jogando bolsa e chaves no chão. – Você não vai acreditar no que aconteceu.

Roman suspirou.

– Não, você não vai acreditar no que aconteceu.

– É, mas isso...

Ele levantou a mão para me interromper.

– Deixa eu desabafar, estou ficando louco.

Contive minha impaciência.

– Ok, eu aguento. Tem alguma coisa a ver com a Simone?

Ele assentiu.

– Sim. Eu segui ela hoje à noite a um café vinte e quatro horas chamado Bird of Paradise – ele me olhou com cuidado. – Você conhece?

Agora estava sentindo o meu rosto se tornar sombrio.

– Claro, é na Queen Anne. Na esquina da livraria. O que ela tava fazendo lá? Digo, além de tomar café.

A expressão de Roman ficou ainda mais lúgubre e – posso estar errada – empática.

– Ela estava lá com um cara... Com o Seth.


Capítulo 5

Eu o encarei, e o mundo pareceu parar por um instante.

– Peraí... o Seth foi encontrar a Simone lá?

Roman negou com a cabeça.

– Eu não diria isso. Parecia que ela o tinha seguido até lá. Acho que ele estava trabalhando lá quando ela apareceu.

– E então? – minha voz estava presa na garganta.

– Então, ela foi até ele e se apresentou timidamente como uma fã, dizendo que o reconhecera pela foto do site. A perfeita piriguete recatada.

– E aí?

– Ela disse que gostaria de estar com um livro pra ele autografar e pediu que ele assinasse um pedaço de papel. Ele disse que tudo bem, e então ela se sentou, pedindo mil desculpas por perturbá-lo. Ela disse que tinha umas perguntas e quis saber se ele se incomodaria com sua presença.

Percebi que cerrava meus punhos. Com uma inspiração profunda, relaxei-os.

– Seth não conversaria com uma estranha assim. Pelo menos ficaria extremamente desconfortável.

– É – concordou Roman –, ele estava bem desajeitado.

Havia um tom amargo na voz de Roman que me incomodou. Os dois haviam me disputado no passado, e, aparentemente, Roman ainda guardava um pouco de ressentimento – e também um pouco mais de dignidade. Roman sabia ser bem carismático quando queria. – Mas ela interpretou bem seu papel de tímida e nervosa. Acho que o fez se sentir melhor.

– Então, ela se sentou mesmo com ele?

– Sim... e ficou por lá uma meia hora.

– Quê? – exclamei. A altura de minha voz fez Godiva acordar e levantar a cabeça. – Ela tentou seduzi-lo?

O rosto de Roman ficou pensativo.

– Não do jeito normal. Digo, ela não estava tão chata. Mas ela o deixou à vontade o suficiente pra relaxar e aproveitar a conversa. Ela não estava sensual demais, e ele não parecia querer partir pro ataque. Era só... sei lá. Uma conversa legalzinha. Apesar de que ela contou alguns de seus “fatos” – ele pausou. – Ah, ela virou morena.

Aquilo me incomodou mais do que devia.

– Mas ele se livrou dela, né?

– Não. A Maddie apareceu, e ele foi embora com ela. Depois de dizer que foi legal conhecê-la.

Que ironia. Nunca, nunca pude imaginar que ficaria tão aliviada com a Maddie aparecendo e levando o Seth para casa. Também nunca pensei que ficaria feliz pela devoção dele por ela ter impedido que caísse nas garras do charme de outra.

Aproximei-me de Roman. Meus punhos cerrados novamente. Não queria matar o mensageiro; estava apenas guiada pela fúria.

– Que droga é essa? – indaguei. – Que porra de joguinho ela tá fazendo?

Ele suspirou.

– Não sei. Talvez nenhum. Ela gosta de café. Já a vi comprando antes. Ela pode ter ido lá por coincidência e achou que ele era uma boa presa. Só Deus sabe o porquê.

Ignorei a brincadeira.

– Ah, qual é, Roman. Você não pode ser tão idiota. Você acha mesmo que, em uma cidade do tamanho de Seattle, é coincidência que ela dê em cima do meu ex? A gente sabe bem que coincidência é uma coisa bem rara.

– Verdade – ele admitiu, colocando os restos do jantar na mesinha. As gatas atacaram.

– Quer parar de fazer isso? – esbravejei. – Elas não podem comer esse tipo de coisa.

– Não fica putinha comigo – reclamou Roman, mas levantou e levou o prato para a cozinha. Quando voltou, cruzou os braços no peito e parou na minha frente. – Olha, você até que tá certa sobre as coincidências. É estranho ela paquerar o Seth. Mas pense nisso: você não acha que tem coisas um pouco mais importantes do que o seu ex-namorado? As teorias do Jerome fazem sentido, sabe. O Inferno deixou que ele ficasse com o emprego dele, mas isso não significa que eles esqueceram o que aconteceu. Eles são os campeões em guardar rancor. Eles querem avaliar a situação. É por isso que ela tá aqui.

– É, só que ela não tá avaliando nada. A não ser que você considere importante as habilidades de “Imagem & Ação” dos meus amigos.

– Você devia ter visto quando eles jogaram Jenga.

– Não tô de brincadeira. Quero saber qual é a estratégia dela. Você tem que me levar pra espioná-la.

Ele levantou uma sobrancelha.

– Péssima ideia.

– Eu posso ficar invisível.

– Ela vai perceber.

– Você pode esconder minha assinatura. Você me disse uma vez que consegue. Mentiu?

Roman fez uma careta. Pouco antes de nosso relacionamento acabar, ele me pedira para fugir com ele, prometendo que me esconderia dos imortais superiores.

– Eu consigo – admitiu. – Mas acho que isso é procurar sarna pra se coçar.

– Quais são os riscos?

– Muitos. Seja com Seth ou Jerome, obviamente tem algo rolando. Se meter nesse rolo pode ser mortal. Não posso permitir isso.

– Desde quando você se importa comigo?

– Desde que deixei de precisar pagar aluguel.

Em seguida, tornou-se invisível, sem deixar rastros.

– Covarde – gritei. Minha única resposta foi uma batida da porta. Ele desapareceu de vez. Percebi que mais uma vez eu perdera a chance de conversar sobre meus encontros bizarros.

Revirei-me novamente na cama aquela noite, mas dessa vez não teve nada a ver com meu medo de pular da sacada ou dentro do mar. Eu estava com raiva. Por Simone ter dado em cima de Seth. Por Roman ter me abandonado. De manhã, ao acordar, me acalmei ao perceber que eu não precisava de Roman para confrontar Simone. Poderia fazer isso sozinha.

Claro que não era tão simples. Primeiro, eu não sabia onde ela estava. O hotel era o lugar mais lógico, apesar de que os súcubos – mesmo os mais sem graça – não ficam muito tempo por lá. Bom, a não ser que ela estivesse acompanhada – e eu não queria flagrar nada do tipo. De qualquer modo, eu tinha um pequeno compromisso antes de começar a caça à vadia.

Maddie.

Eu me arrependi de aceitar fazer compras com ela assim que as palavras saíram de minha boca. De algum modo, conseguira bloquear esse sentimento ontem, quando conversara com Seth. Uma leve lembrança sobre o casamento passeara pela minha mente... e logo fora embora. Passara o resto do tempo rindo e conversando, como se não houvesse Maddie alguma. Mas enquanto ia para a livraria, onde tínhamos combinado de nos encontrar, devia aceitar a realidade novamente. Seth não é mais meu.

Também não é da Simone. Bem, resolveria isso mais tarde.

Maddie estava esperando por mim no térreo da loja, mas usei a desculpa de que precisava tomar café para subir. Queria checar se Simone estava espreitando. Em qualquer forma que ela estivesse, eu conseguiria perceber. Mas, enquanto esperava na fila por meu café com chocolate branco, não percebi nada imortal. Seth estava lá, tão absorto em seu trabalho que nem meu viu. Aparentemente, sua musa ainda estava com tudo.

Deixei Seth em paz e voltei para o térreo. Maddie estava com uma lista de endereços de oito lojas. A maioria butiques de vestidos, e eu duvidava de que passaríamos por todas antes de nosso turno. Ela estava mais otimista. Típico.

– Não adianta se preocupar agora – ela disse. – Vamos a uma por uma e veremos o que rola. Além disso, as últimas são docerias, e não vamos nos encher de doces antes de experimentar os vestidos.

– Isso é com você – eu avisei, sentando no banco de passageiro. – Eu não vou experimentar nada.

Ela sorriu chateada.

– Você não vai? Você é minha madrinha, lembra? Conversamos sobre isso na festa.

– Não – retruquei rapidamente. – Eu fiz e falei coisas muito loucas naquela noite, mas não concordei com essa ideia. Disso eu me lembro bem.

A expressão de Maddie ainda era leve, mas tive a impressão de sentir uma mágoa em sua voz quando ela continuou:

– Qual é o problema? Por que você não quer? Você sabe que eu não vou obrigar você a usar um vestido horrível.

Por quê? Pensei em uma resposta enquanto ela dava a partida. Porque estou apaixonada por seu futuro marido. Óbvio que não diria isso. No entanto, percebi que meu silêncio a deixava desconfortável. Ela o interpretava como um desprezo a nossa amizade.

– Eu... eu não gosto do, hum, cerimonial dos casamentos. Tanto planejamento e estresse por causa de detalhes mínimos. Prefiro relaxar na plateia e observar você entrar na igreja. – Na verdade, essa era uma das últimas coisas que eu queria.

– É mesmo? – Maddie fez uma careta, por sorte, mais de surpresa do que decepção. – Você é tão boa para planejamento e detalhezinhos. Achei que curtia.

Era verdade. Por isso eu era tão boa gerente.

– É, tipo isso... mas, sabe, nas festas, os caras bêbados sempre paqueram as madrinhas. Eles acham que a gente está desesperada por não ser a noiva – de certo modo, seria verdade, no meu caso.

O sorriso de Maddie voltou.

– Cada desculpinha esfarrapada.

Era mesmo, mas ela não disse mais nada enquanto dirigia.

Depois do fracasso total na escolha de vestidos bonitos, ela jogou todas as esperanças de sucesso fashion em mim. Não era a primeira vez. Eu encarnava o papel de conselheira de moda com bastante facilidade. Na verdade, se eu conseguisse me preocupar com as questões objetivas do processo – o melhor caimento, cor etc. –, era mais fácil bloquear a ideia do casal.

As vendedoras logo entendiam quem estava no comando e paravam de dar recomendações, se atendo a pegar os vestidos conforme eu indicava. Estudava cada um que Maddie experimentava, mantendo um alto padrão de qualidade. Com tantas lojas para percorrer, podíamos ser exigentes.

– Esse é bom – disse, na terceira loja. Possuía um corpete, que diminuía sua cintura, e uma saia que não rodava. Daquele tipo estufado que sempre fazem os quadris parecerem maiores, mas ninguém se toca. Para usar esse tipo, é necessário ser alta e magra, não atarracada e peituda como a Maddie.

Ela admirou-se no espelho, com uma expressão positiva de surpresa. Ainda estava atraída por uns que eu não aconselhava, e este fora o primeiro das minhas escolhas que ela realmente gostou. A ávida vendedora anotou o número do modelo, e Maddie foi experimentar os outros que a esperavam no provador. Enquanto isso, um vestido em uma manequim chamou sua atenção.

– Ai, Georgina, eu sei que você falou aquilo, mas você tem que experimentar aquele – implorou Maddie.

Segui seu olhar. O vestido era um frente única longo, colante e sensual, em cetim violeta. Você estava com uma roupa dessa cor quando nos conhecemos.

Desviei os olhos.

– Não é feio o suficiente para uma madrinha.

– Ficaria lindo em você. Tudo fica lindo em você – ela acrescentou, balançando a cabeça. – Além do mais, dá pra você usá-lo em outras situações. Festas e tal.

Era verdade. Não tinha cara de madrinha. Não era de tafetá, nem laranja “cheguei”. Antes que eu pudesse protestar mais, a vendedora já tinha pegado um, adivinhando meu tamanho com aquela impressionante habilidade que sua profissão desenvolve.

Então, relutantemente, experimentei o vestido, enquanto Maddie ia para sua próxima opção. O tamanho não estava perfeito, mas um pouco de mudança corporal ajustou-o. Maddie tinha razão. Ficara bonito em mim. Quando saí do provador, ela tinha absoluta certeza de que eu o compraria – não, ela ofereceu para comprar – e usaria em seu casamento. A vendedora, percebendo uma oportunidade, e possivelmente querendo se vingar de minha tirania, tinha sido muito “prestativa” e pegou mais dois modelos para eu experimentar enquanto aguardava Maddie. Ela tinha dito que não estava aguentando me ver parada esperando por ela, então, novamente relutante, levei-os ao provador. Também eram bonitos, mas não tanto quanto o violeta.

Devolvia-os para a vendedora quando meu olhar flagrou algo. Um vestido de noiva. Era feito de cetim marfim. O tecido envolvia a cintura e o bustiê. A saia era drapeada, em pequenas tiras. Olhei fixamente. Ficaria um desastre em Maddie, mas em mim...

– Quer prová-lo? – perguntou a vendedora, astuta. Algo me dizia que madrinhas provando vestidos de noivas escondidas não era algo raro ali. A atitude desesperada e enlutada por não estar casando entrava em ação.

Antes que eu percebesse, estava de volta ao provador, com o vestido marfim. Você estava com uma roupa dessa cor quando nos conhecemos. Seth tinha se enganado, mas, por alguma razão, as palavras voltavam à minha mente. E o vestido estava maravilhoso. Realmente maravilhoso. Eu não sou muito alta, mas estou em forma o suficiente para compensar. E preenchi o bustiê lindamente. Observei-me de uma maneira diferente, tentando me imaginar como noiva. Há algo sobre casamentos que inspira muitas mulheres, e eu tenho o mesmo impulso, mesmo sendo um súcubo experiente. As estatísticas deprimentes não importam. Nem as taxas de divórcio e a infidelidade que eu tanto presenciara...

É, há algo mágico em noivas, algo impresso em nosso subconsciente coletivo. Eu me via com flores nas mãos e véu na cabeça. Haveria cumprimentos e felicidade, fé empolgante e esperança de uma linda vida juntos. Eu fora uma noiva, uma vez. Há tanto tempo. Tivera todos esses sonhos, e eles foram destruídos.

Suspirei e tirei o vestido, com medo de começar a chorar. Não haveria casamento nenhum para mim. Nada de esperanças nupciais. Nem com Seth, nem com ninguém. Nunca poderei ter nada disso. Há apenas a eternidade solitária. Nada de amantes por toda a vida, apenas por uma noite...

Não à toa, fiquei deprimida o resto do dia.

Maddie comprou o vestido violeta para mim, e eu estava muito desanimada para protestar – o que ela interpretou como aceitação de meu papel de madrinha. Visitamos as outras lojas de vestidos, mas não fomos até as docerias. No fim das contas, tínhamos quatro candidatos a vestido de noiva, o que achei um bom progresso.

Meu humor não melhorou no trabalho. Fiquei o máximo possível enclausurada no escritório, procurando a solidão e meus pensamentos soturnos. Quando finalmente cheguei em casa, após aquele dia interminável, o apartamento estava vazio e me assustei com o quanto aquilo me magoou. Queria de todo o coração que Roman estivesse lá, e nem era para conversar sobre Simone ou outros mistérios imortais. Queria apenas sua companhia. Conversar e não ficar só. Ele me irritava muito, mas estava se tornando uma irritação permanente. Com a melancólica eternidade à frente, era algo significativo.

Eu sabia que não devia ficar esperando por ele acordada... mas fiquei mesmo assim. Deitei no sofá com uma vodca e as gatas, apreciando a doçura daquelas criaturas afetuosas e peludas que me amavam. Brilho eterno de uma mente sem lembranças estava passando, o que não ajudou a me alegrar. Como uma boa masoquista, assisti mesmo assim.

Pelo menos achei que assistia, pois, de repente, o guincho alto de uma buzina de carro atravessou meus ouvidos. Pisquei e movi minha cabeça. Não estava no sofá. Não estava com as gatas, nem com a vodca. Eu estava sentada no parapeito da minha varanda, perigosamente posicionada. A buzina viera de baixo, da rua. Um carro quase batera no outro e a quase vítima buzinou raivosamente.

Não me lembrava muito bem de como fora parar ali. Lembrava-me, porém, da força que me atraíra – principalmente porque ainda estava presente. A luz e a música – aquela sensação de conforto e certeza, que era tão difícil de articular, flutuava sobre mim, pairando no ar. Como um túnel. Não, como um abraço. Braços me esperando para me dar boas-vindas ao lar.

Venha, venha. Tudo vai ficar bem. Você está segura. Você é amada.

Por conta própria, minhas pernas se mexeram no parapeito. Quão fácil seria seguir em frente, caminhar para dentro daquele doce conforto? Eu cairia? Simplesmente atingiria a dura calçada abaixo. Eu não morreria. Mas talvez eu não caísse. Talvez eu entrasse naquela luz, naquela felicidade que poderia bloquear toda a dor que parecia me seguir ultimamente...

– Você tá louco?

O motorista que quase tinha sido atingido saíra do carro e gritava com o outro. Este descera e devolvia os insultos. Uma briga barulhenta começou. Um dos meus vizinhos de cima saiu na varanda e mandou os dois calarem a boca.

A briga e aquela barulheira irritante trouxeram-me de volta à realidade. Mais uma vez, a canção de sereia esvaiu-se, e, pela primeira vez, senti... arrependimento. Cuidadosamente, escalei para dentro da solidez da varanda. Uma queda pode não me matar, mas, por Deus, iria doer.

Entrei de volta no apartamento e encontrei tudo conforme deixara. Nem as gatas haviam se mexido, apenas olharam quando voltei. Sentei entre elas, acariciando Aubrey no modo automático. Eu estava com medo de novo. Com medo, mas estranhamente atraída por aquilo que acabara de acontecer – e isso me assustava ainda mais.

Apesar da vodca dessa vez, meu último encontro provara que a bebida não era a culpada. Não havia conexão entre os dois. Porém... me ocorreu que havia um detalhe em comum nos três casos. Meu humor. Todas as vezes, eu estava deprimida... infeliz por minha sorte na vida, procurando conforto inutilmente. E era nessas horas que o fenômeno ocorria, oferecendo a solução e o conforto que eu considerava impossíveis.

Isso era má notícia. Pois, se essa coisa era atraída por desgosto e tristeza, eu tinha tudo isso de sobra.


Capítulo 6

Acordei com o cheiro de ovos e bacon. Por um instante, tive uma sensação estranha de déjà-vu. Quando Seth e eu estávamos nos conhecendo, eu dormia na casa dele depois de beber demais. Ao acordar, encontrava um café da manhã completo na cozinha.

Alguns momentos depois, a realidade bateu. Não havia escrivaninha nem um quadro com anotações para os livros, nem um ursinho com a camiseta da Universidade de Chicago. Era minha penteadeira que olhava de volta para mim, meus próprios lençóis azuis-claros enrolados nos meus pés.

Com um suspiro, pulei para fora da cama e fui até a cozinha, imaginando o que estava acontecendo. Para minha surpresa, Roman estava brincando de chef no meu fogão, com ambas as gatas sentadas a seus pés – com certeza esperando um pedaço de bacon cair.

– Você cozinha? – perguntei, servindo-me uma xícara de café.

– Cozinho toda a hora. Você que não vê.

– Vejo você esquentando comida congelada. Pra que tudo isso?

Ele deu de ombros.

– Tô morto de fome. A gente não tem tanto tempo pra comer no serviço de espionagem.

Olhei os ovos, o bacon e as panquecas.

– Bom, acho que você vai ficar bem o resto do dia. Talvez pelos próximos dois. Você fez bastante – acrescentei, esperançosa.

– Não disfarça – ele disse, tentando esconder um sorriso. – Pode se servir.

Era a melhor notícia do dia. Claro, o dia tinha começado há cinco minutos. Então, os eventos da noite anterior me abateram.

– Puta merda.

Roman tirou os olhos da panqueca que lançava ao alto.

– Hum?

– Uma coisa engraçada aconteceu ontem... – fiz uma careta. – Bom, nem tão engraçada.

Expliquei a reaparição da força misteriosa, bem como meu mergulho inesperado do outro dia. Roman ouviu silencioso, a leveza de há pouco sumia de seu rosto.

Quando terminei, ele jogou sua frigideira com tanta força em uma vasilha que a rachou. Dei um passo desconfortável para trás.

– Filho da puta – ele xingou.

– Opa, calma aí – eu disse. Eu não queria um nefilim nervoso por perto. – Essa vasilha é de um conjunto.

Ele me encarou, mas eu sabia que a raiva não era direcionada a mim. – Três vezes, Georgina. Aconteceu três vezes e eu não estava por perto.

– Como assim? – perguntei, surpresa. De surpresa passei para estranhamente nervosa. – Você não é meu guardião.

– Não, mas uma entidade está invadindo a minha casa – decidi não ressaltar que era a minha casa. – Eu devia estar resolvendo esse problema, e não seguindo um súcubo chato para o Jerome.

– Peça e receberás – uma voz familiar de repente disse. A aura de Jerome caiu sobre nós conforme ele se materializava na mesa da cozinha.

– Já tava na hora – surtou Roman. Seu olhar ainda sombrio. – Faz tempo que tô te esperando.

Jerome levantou a sobrancelha e acendeu um cigarro.

– Faz tempo, é? Não faz nem uma semana.

– Parece que faz mais – disse Roman. Ele me entregou um prato de comida e eu sentei, quieta, esperando o relatório terminar antes de dividir meus problemas com Jerome. – Vocês deviam incluir “seguir Simone” na lista de punições para os eternamente amaldiçoados.

Jerome sorriu e bateu suas cinzas em um vaso de flores sobre minha mesa. Não fiquei muito feliz com isso, mas pelo menos não foi no chão.

– Você não viu nenhuma atividade digna de nota? A Mei também não.

Roman sentou ao meu lado com seu prato, colocando-o na mesa com mais força do que necessário. Recuei, mas não quebrou.

– Ela só fez compras e vítimas. Ah, e deu em cima do Mortensen.

Dessa vez, ambas as sobrancelhas de Jerome se ergueram.

– Seth Mortensen?

Ia perguntar quantos Mortensen ele conhecia, mas as palavras de Roman me cortaram.

– É, ela apareceu algumas vezes, com uns truques patéticos de sedução.

Minha raiva começou a reacender e então...

– Peraí? Algumas vezes? – exclamei. – Outras além daquela no café?

Roman me olhou, um pequeno lampejo de desculpas aparecendo em sua expressão raivosa.

– É, não tive tempo de te contar. Ela apareceu na livraria quando você saiu com a Maddie ontem. Muito bem cronometrada.

Bati o garfo com violência no prato. Sério, como eu ainda tenho louça?

– Porra, por que você não me contou?

– Porque não deu tempo, já que a gente tem uns problemas maiores.

Jerome ficou tenso quando Roman mencionou que Simone estava tentando seduzir Seth. Era uma reação estranha, como se fora pego de surpresa. Coisa rara para um demônio, mais raro ainda deixar transparecer. Vários segundos depois, ele recuperou a compostura, voltando a atenção para o comentário de Roman.

– Problemas maiores?

– A Georgina tem sido perseguida – declarou Roman.

– A Georgina sempre está sendo perseguida – suspirou Jerome. – O que é dessa vez?

Ele manteve sua expressão neutra, mas, conforme explicávamos a situação, vi algo relampejar em seus olhos... um tipo de interesse. No mínimo, uma especulação.

O silêncio pesou quando Roman e eu terminamos a história. Observei-o, ambos esperando que meu soberano pudesse nos dar uma explicação.

– Seu serviço com a Simone acabou – disse Jerome, enfim.

– Graças a Deus – falou Roman.

– Você vai seguir a Georgie.

– O quê? – perguntamos Roman e eu em uníssono.

– Mesmo esquema – continuou Jerome. – Invisível, sem assinatura. Exceto aqui, claro. A maioria sabe que vocês são colegas de casa. Seria estranho se você sumisse de vez.

Nas últimas vezes em que a canção de sereia surgira, eu desejei desesperadamente a presença de Roman. Eu deveria estar feliz por tê-lo agora, por isso o ultraje que se seguiu foi completamente irracional.

– Mas ele precisa seguir a Simone!

– É? – perguntou Jerome. – Pode me fazer o favor de dizer o porquê? Ela não fez nenhum contato com ninguém do Inferno. Ou ela está aqui por razões inocentes, ou é muito discreta.

– Mas... mas... ela tá seguindo o Seth. Temos que descobrir por quê!

– Não precisa ser um gênio para deduzir.

– Mas temos que impedir, de qualquer maneira.

O demônio riu com desdenho. – Georgina, você tem noção de que eu não dou a mínima pro seu ex-namorado? Há mais coisas no universo do que sua absurda vida amorosa... ou a falta dela – recuei. – Ainda mais que ele está dormindo com outra pessoa agora. Se ele está assim tão apaixonado por ela, a Simone não vai ser um problema. E não me olha desse jeito – ele acrescentou. – Você já fodeu com a alma dele quando treparam ano passado. A Simone não vai fazer diferença.

Cerrei os dentes.

– Mesmo assim não acho que...

– Não – a voz de Jerome estava dura e com um tom que encerrava discussões. Voltou-se para Roman. – A missão Simone acabou. Agora é com a Georgie. Entendeu?

Roman assentiu, sem ultraje.

– Entendi. Você sabe o que tá acontecendo com a Georgina?

– Tenho um palpite – rosnou Jerome. Em seguida, desapareceu.

– Filho da puta – eu disse.

Roman engoliu um pedação de ovo e parecia incrivelmente relaxado, comparado a seu estado anterior.

– Foi uma simples declaração de frustração ou direcionada a Jerome?

– Os dois. Por que você tá com essa cara de contente? Você estava pronto pra fazer um barraco agora pouco.

– Porque meu serviço com a Simone acabou. E tenho presa melhor agora.

– E porque você não gosta nem um pouquinho do Seth.

– Também.

Olhei para minha comida, mas não enxergava. Perdera meu apetite.

– Preciso encontrar com ele. Preciso encontrar com ela e descobrir por que ela está perseguindo Seth.

– Não vai dar certo – avisou Roman.

Não respondi. Meu humor estava detonado. Estava feliz com a proteção de Roman, mas, de certo modo... Bem, queria cuidar mais de Seth do que de mim. Queria defendê-lo... de quê? De ter sua vida encurtada por um súcubo? De ter sua alma mais obscurecida ainda? Ou meus motivos eram mais egoístas? Apenas não queria que ele dormisse com outra mulher? Aceitar ele com Maddie já era difícil... e agora, se Simone o seduzisse, o casamento seria cancelado? Não, decidi, Seth continuaria fiel a Maddie. Não a trairia. Não?, uma voz desagradável em minha mente perguntou. Ele a traiu com você.

– Puts, não quero ver você assim.

Olhei para Roman.

– Ãhn?

– Esse olhar patético na sua cara tá me matando – olhou para baixo, remexendo os ovos no prato. Suspirando, voltou seu olhar para mim. – Sei onde Seth estará hoje. Mas não sei se Simone estará lá também.

Arregalei os olhos.

– Onde?

Roman hesitou por um momento e depois respondeu:

– No museu de arte. Ele comentou com a Maddie ontem... Uma exposição que ele quer ver, mas ela não. Ia dar uma passada lá hoje. A Simone pode ter ouvido também. Se sim, vai ser a situação perfeita.

Levantei-me e minha aparência se transformou na hora. Fiquei pronta para sair. Cabelo comprido e ondulado. Jeans e camiseta. Maquiagem perfeita.

– Bom, vamos lá. Precisamos vigiar o local.

– Calma aí, ligeirinha. Algumas pessoas não conseguem ficar prontas tão rápido. E alguns de nós ainda não terminaram de comer.

Sentei-me novamente, demonstrando minha impaciência. Ele continuou comendo, claramente me ignorando e mastigando cada pedaço com cuidado. Um pensamento surgiu.

– Você pode esconder minha assinatura? Vou ficar invisível. Enganá-la.

Roman balançou a cabeça desesperado.

– Estava com esperanças de que você não teria essa ideia.

Eu já esperava que ele fosse recusar, mas, para minha surpresa, acabou escondendo minha assinatura imortal quando, finalmente, nos encaminhamos ao museu. Após ficar invisível, estava tão incógnita quanto ele.

Era um dia bonito, bom para estar no centro de Seattle. As nuvens da manhã tinham ido embora e o sol estava em sua plenitude. Era enganador, no entanto. O céu estava de brigadeiro, mas o friozinho de outono começava a engrenar. Portanto, enquanto o tempo estava lindo de olhar pela janela, era necessário usar um casaco lá fora.

O Museu de Arte de Seattle – carinhosamente chamado pelos locais de MAS – é gigante, e sua coleção regular possui peças de todos os lugares e épocas imagináveis. Roman explicou que a exposição que Seth pretendia ver era especial, na cidade por poucas semanas. Joias da Antiguidade. Eu apostaria alto que ele estaria pesquisando para Cady e O’Neill.

Quando chegamos, porém, não havia sinal dele. Muitos turistas – mesmo sendo dia de semana – enchiam o lugar, andando sem rumo ou parando e lendo sobre as peças. Essa época era querida por mim e eu não pude deixar de me sentir um pouco desconfortável. Fora quando eu nascera e vivera meus dias mortais. Olhar para aqueles objetos – anéis, braceletes e colares – era surreal. Muitos vinham da região mediterrânea do Império Romano. Algumas vezes, quando pensava sobre meu passado, meu coração doía. Em outras, parecia que eu assistia a um filme sobre a vida de outra pessoa.

Estudava cada peça em detalhe, intrigada por como algumas brilhavam e outras foram corroídas pelo tempo. Um leve toque em meu ombro me fez olhar para cima. Não vi ninguém e percebi que fora Roman. Virando-me, observei a galeria e descobri o que, ou melhor, quem, ele vira. Seth estava do lado oposto da sala, seu rosto pensativo e curioso, enquanto estudava as telas. Um caderno e uma caneta nas mãos. Ele viera pesquisar, como eu suspeitara.

Estudei-o com igual fascinação. Para mim, ele era tão raro e precioso quanto as joias que nos circundavam. Merda. Sou uma idiota se acho que já o esqueci. Só de estarmos no mesmo aposento, me sentia mais atraída do que nunca.

Recuei para uma parede próxima, fora do caminho dos visitantes e simplesmente mantendo Seth na mira do meu olhar, imaginando se Simone viria com sua cara de pau traidora. Depois de meia hora, fiquei impaciente. Estupidez, eu sei. Seth provavelmente ficaria aqui a tarde toda e ela apareceria depois. Mas... de repente, falar com ele parecia mais importante. Sabia que era tolice, sabia que era errado... Bem, já fiz coisas mais idiotas no passado.

Saí da galeria para uma escada que estava momentaneamente vazia. Levei apenas um segundo para ficar visível novamente. No meu ouvido, escutei Roman sibilar:

– Você tá louca?

– Mantenha minha assinatura escondida – retruquei. – Se ela aparecer, vamos perceber antes que ela me veja.

Um casal de idosos desceu a escada no instante em que parei de falar. Sorri vitoriosa e segurei a porta para eles, que passaram apressados.

Seth estava diante de uma caixa com diademas bizantinos quando toquei em seu braço. Ele levou um susto e se virou, mas o choque se transformou em prazer quando me viu. Merda, pensei de novo. Seria melhor se ele parecesse desanimado.

– Deixa eu adivinhar – falei. – Você está planejando o roubo perfeito para Cady e O’Neill.

Ele sorriu.

– Eles são os bonzinhos.

– Eles já violaram a lei – acrescentei.

– Prefiro pensar que foi um leve desvio. O que você tá fazendo aqui?

Apontei ao meu redor.

– Revisitando minha juventude... ou o que restou dela. As areias do tempo enterram quase tudo, mas um pouco permanece.

– Nunca tinha pensado nisso – disse Seth, intrigado. – Essa é a sua era. Devia ter te procurado para a pesquisa.

A imagem de nós dois tendo encontros a sós para estudar surgiu em minha mente. Imediatamente a esmaguei.

– Aqui você tem mais recursos. Algo chamou sua atenção?

Ele apontou para a caixa de diademas.

– Gostei desses. É uma pena ninguém mais usar esse tipo de coisa.

Segui seu olhar.

– Pouco bling-bling5 no cabelo hoje em dia?

Ele deu um de seus meio sorrisos.

– Não. Só não... Sei lá. Há uma beleza e uma técnica que não usamos. Olha isso – ele acenou para um dos diademas, parecido com uma coroa de moedas de ouro. Pequenos cordões de círculos de ouro pendiam, envolvendo o cabelo. – Olhe as imperfeições. Foi feito a mão, cada um deles.

– Alguns diriam que é defeituoso – adorava quando Seth começava suas divagações filosóficas.

– É isso que o torna fantástico. E, de qualquer modo, eu gosto da ideia de adornar as mulheres com coroas e joias. Parece machista, mas acho que o sexo frágil deve ser adorado – ele se deteve. – E com os mesmos direitos e oportunidades que os homens.

Ri e me afastei para que outros pudessem observar a tela.

– Acho que você é romântico, não machista. Um pensamento inoportuno me ocorreu: lembrei-me de quanto Maddie tinha admirado tiaras e coroinhas de pérolas nas lojas de noivas. Diademas modernos. Será que Seth gostaria?

– Digam o que quiserem – ele continuou –, mas achou que a civilização deu um passo para trás quando elásticos se tornaram o ornamento mais importante para os cabelos.

Passeamos pelo museu, comentando e analisando as peças. Tentei não pensar demais sobre a situação. Não me iludia sobre a possibilidade de sermos amigos. Não me amargurava com a culpa de uma paixão secreta. Só queria aproveitar o momento. Simone não apareceu. Como os sentidos de Roman são mais fortes, assumi que ele perceberia com mais facilidade. Também suspeitei que ele estivesse virando os olhos para o meu tempinho com Seth.

Finalmente chegamos à parte final da exposição: anéis bizantinos de noivado. Quando os vi, o sentimento confortável e afetuoso que me envolvia virou gelo. Senti a mudança em Seth também. A maioria era semelhante: um círculo achatado sobre o anel, a face gravada com alguma imagem. Meu sentimento ruim não tinha nada a ver com casamentos ou com Maddie.

No Natal passado, Seth tinha mandado fazer para mim um anel nesse estilo. Ele não queria que fosse uma aliança de noivado. Era apenas um presente, pois sabia do meu passado. É lindo, e eu ainda a tenho, trancada em um cofre que guardo há séculos – itens muito preciosos para serem jogados fora e muito arriscados para serem mantidos à vista.

Nenhum de nós disse nada, e eu imaginei se ele pensava sobre isso. Era apenas o desconforto estranho causado por memórias de uma ex? Estava estimulando sentimentos conflitantes semelhantes aos que se revolviam em mim? Quando ele e Maddie começaram a sair, eu tive a certeza de que ele havia me esquecido. Depois de nosso breve caso na primavera, reconsiderei. Muitas vezes ele me olhava de um modo estranho, muitas vezes que me lembravam de quando eu era sua namorada e ele dizia que me amava. Mas o casamento dele estava se aproximando. Sem sinal de dúvidas de sua parte. Não sabia o que pensar.

Não sei dizer quanto tempo ficamos em silêncio, mas Seth o quebrou.

– Bom... acho que acabou, né?

Olhei em volta, fingindo conferir se tínhamos passado por tudo. Eu sabia que sim.

– É, acho que sim.

Ele não me olhava nos olhos. Seu corpo todo irradiava nervosismo.

– Obrigado pela ajuda na pesquisa. Preciso voltar para a livraria e pôr em prática.

– Boa sorte.

Seus olhos levantaram, e eu ofereci um sorriso em troca.

– Obrigado.

Nos separamos e eu deixei o museu, sem saber aonde ir – só sabia que precisava ir para algum lugar onde ele não estaria. Por mais ou menos uma hora, brinquei de faz de conta com ele, mantendo de fora a familiar depressão e me permitindo uma pequena alegria. Agora, a escuridão descia sobre mim... e, inquieta, lembrei-me de como aquela força estranha aparecia sempre que eu estava perturbada. Isso a atraía: desespero e solidão.

Roman era uma ofensa, portanto decidi partir para uma boa defesa. Precisava de distração.

– Você não vai gostar disso – murmurei, sabendo que Roman estava próximo o suficiente para ouvir.

Distração não era a única coisa de que precisava. Precisava de uma boa dose de energia. Estava dormindo regularmente com homens o suficiente para manter um bom nível de energia. Mas estar com a carga completa, por assim dizer, melhoraria minha resistência – o que, eu esperava, melhoraria minha lucidez.

Nem sempre é divertido dormir com homens aleatórios. Não estava a fim de caçar presas em bares. Precisava de algo mais fácil, porém menos sórdido. Geralmente, esses fatores são mutuamente excludentes, mas tive uma ideia, enquanto dirigia para a casa que poderia abranger os dois.

Há um cara, o Gavin, de uns vinte e poucos anos, que mora num apartamento no mesmo andar que eu. Ele é bom o suficiente e está completamente gamado por mim. Ele nunca disse ou fez algo escandaloso, mas é óbvio. Quando eu estou por perto, ele alterna entre nervosismo e piadas ruins. E sempre parece chateado por ir embora quando nos encontramos na garagem, ou no hall, ou em qualquer lugar. Seus olhos também param mais tempo em meu decote do que em meu rosto.

O mais lindo é que ele tem uma namorada. Eu não sabia se ele já a traía ou apenas fantasiava. Isso não importava no momento. O que importava é que, quando apareci na sua porta, depois de voltar do museu, ela não estava.

– Georgina – ele disse, surpreso. – Tudo... tudo bem?

– Não muito – respondi, forçando angústia em minha voz. – Fiquei presa pra fora de casa. Preciso esperar meu amigo voltar com as chaves. Posso esperar aqui? Tô com medo de ficar lá fora e chover.

Só então Gavin percebeu meu estado encharcado, principalmente meu agora transparente vestido branco, no qual me transformei, sem sutiã.

Seus olhos arregalaram-se. Ele olhou rapidamente para trás antes de voltar para o tecido molhado, que moldava meus seios e grudava nos mamilos enrijecidos.

– Cho... choveu? Mas tá tão bonito lá fora – o revigorante sol de outono entrava pelas janelas.

– Eu sei – disse, desinibida. – Me pegou de surpresa também. Foi uma coisa doida, do nada. Passou rápido.

Parecia tão impossível que Gavin deu um jeito de parar de olhar para mim e observou o céu brilhante e azul lá fora. Finalmente, desistindo de contestar, fez um gesto para que eu entrasse.

– Você tem uma camiseta ou algo do tipo para eu usar? – perguntei, docemente. – Estou congelando.

Seu exame passou dos meus seios para o evidente fio-dental preto que aparecia por baixo do vestido. Achou que trocar de roupa seria algo muito decepcionante, mas ele não é tão socialmente inepto a ponto de recusar o favor.

– Claro, pode vir.

Segui-o até seu quarto, onde pegou uma camiseta gigante de um time de baseball e shorts de flanela verde.

– Vê se esses servem – ele disse, saindo do quarto para me dar privacidade.

– Brigada – respondi, dando-lhe um sorriso vitorioso.

Ele conseguiu sorrir nervosamente logo antes de fechar a porta. Cruzei meus braços e esperei um minuto, durante o qual um Roman invisível disse:

– Isso é ridículo. Você deveria simplesmente ter aparecido como uma entregadora de pizza.

– Ei, a técnica do vestido molhado é infalível. Sempre funciona.

Roman suspirou.

– Espere lá fora então – eu disse. – Não vai demorar.

Abri a porta e gritei:

– Ei, Gavin. Você pode vir aqui me ajudar?

Ele reapareceu e eu percebi que seu cabelo castanho-escuro estava bem mais arrumado do que antes. Ele provavelmente fora ao banheiro dar uma ajeitada rápida no visual para me impressionar.

– O que foi? – ele perguntou.

Virei-me, levantando o cabelo, para mostrar onde eu não conseguia desamarrar as faixas da minha frente única.

– Tem um nó impossível de desamarrar. Será que você consegue?

Ele hesitou por um breve momento antes de seguir em frente e me ajudar. Eu havia criado um nó bem forte. Levou um tempo para ele conseguir, durante o qual eu me encostei contra ele o máximo possível. Finalmente ele conseguiu soltar as faixas de um modo que eu pudesse pegá-las. Eu não consegui, claro, e elas caíram, juntamente com boa parte do vestido. O modo como o tecido molhado caiu contrariou as leis da física.

Eu apanhei o vestido, num teatrinho de timidez, mas não antes de ele quase cair por completo. Por perto, ouvi outro suspiro desesperado de Roman.

Virei-me para Gavin, segurando o vestido de uma maneira que quase mostrava completamente meu peito. Seus olhos, obviamente, prenderam-se a ele, e eu olhei para baixo também, fingindo tentar entender o que ele observava.

– Puxa vida, estou toda molhada. Você tem uma toalha? Não quero molhar sua camiseta.

– Ãhn? Quê? Ah...

Em tempo recorde, ele correu para o banheiro e voltou com uma pequena toalha de rosto. Decidi, então, não me preocupar mais com desculpas convenientes e dei um passo à frente, com a esperança de que ele seria esperto o suficiente para aceitar o convite.

Ele foi. Hesitante, no começo, lentamente esfregou a toalha sobre meus seios, continuando mesmo quando já estavam secos. Desceu para minha barriga – que secou bem rapidinho – e depois para meus quadris e minhas coxas. Já tinha deixado meu vestido ensopado cair no chão há tempo e, prestativa, tirei minha calcinha para que ele pudesse alcançar tudo. Ele teve que se ajoelhar para alcançar a parte interna das minhas coxas e ouvi-o murmurar “meu Deus”. Não entendi se era por causa da situação ou se porque sua namorada ainda não fazia a depilação cavada.

– Você tem mãos ótimas – ronronei.

– Bri-brigado – ele agradeceu. Terminou de enxugar minhas pernas e se levantou. Peguei a toalha e joguei na cama. Segurando, levemente, sua mão, levei-a para entre minhas coxas.

– Muito mesmo – disse em uma voz ainda mais sussurrante. – Dedos longos...

Guiei dois dedos para dentro de mim e, juro, ele arfou mais alto do que eu. Depois de um pouco mais de incentivo, ele não precisava mais de minha assistência e começou a enfiar seus dedos por conta própria. Eu já estava mais molhada por dentro do que por fora. A única resistência que ele encontrava era o quanto eu tinha me deixado apertada.

Desviando de seu braço, desabotoei sua calça e a arranquei-a com um único movimento. Sua ereção apontou para mim: longa, dura e pronta. Devia já estar assim desde quando eu apareci em sua porta. Puxando-o pela camisa, levei-o para a cama.

– O resto – arfei, me abrindo diante dele. – Deixa eu sentir o resto.

Os dedos que estavam dentro de mim saíram quando ele deitou sobre meu corpo. Ele abriu minhas coxas e penetrou com uma força contraditória à timidez de antes. Na verdade, nem seu rosto mostrava mais nenhum sinal de nervosismo. Ele era pura vontade e desejo, emitindo pequenos grunhidos a cada vez que metia em mim.

– Mais forte – eu disse, oferecendo-lhe olhos enormes e apaixonados. – Quero mais forte.

Ele obedeceu, aumentando a velocidade e a força. Depois de um minuto assim, ficou de joelhos. Segurando minhas coxas, bem abaixo dos joelhos, ele abriu ainda mais minhas pernas e inclinou-se. A nova posição permitia que ele fosse mais fundo e eu gritei em aprovação, incentivando-o a ir cada vez mais forte.

Gradualmente, senti sua energia escoando para mim. Uma quantidade boa. Era maravilhoso, espalhando-se pelo meu ser e me revigorando. Com isso, vieram também seus pensamentos e seus sentimentos. Descobri que nunca tinha traído a namorada antes – mas, puxa, como quisera. Ela quase não apareceu em sua mente. Ele estava muito absorto em mim para sentir culpa. A única preocupação passageira que tivera fora que deveria ter usado camisinha. Estava arrependido, mas não o suficiente para parar, já que eu era tão boa.

Deixei meus gemidos aumentarem para pequenos gritos. Senti-o cada vez mais perto de gozar. Minha cabeça estava quase batendo na cabeceira, mas a brutalidade o excitava. Ele nunca tivera a oportunidade de ser tão selvagem. Ia cada vez mais forte, até o fundo. A energia aumentava rapidamente. Pouco antes do grande momento, decidi dar um golpe final para aumentar a culpa. Isso me fazia sentir culpada, mas, no fim das contas, culpa marca a alma, e é para isso que o Inferno me contratou.

– Ela faz isso? – resfoleguei. Ele estava a meio segundo de gozar. – Sua namorada aguenta assim?

O orgasmo explodiu – e ele também. Tirou um segundo antes, não por causa do que eu dissera, mas como uma solução para o problema da falta de camisinha. A retirada é um método contraceptivo horrível, mas dane-se. Seu corpo convulsionou e ele gozou na minha barriga. Senti o calor na minha carne. Ele observou com fascinação perversa.

Porém, pouco antes, eu sentira meu golpe o atingir. Ele estava tão consumido pelo desejo que tinha conseguido bloquear a namorada de sua mente. Meu comentário trouxe-a para o primeiro plano, mas ele não conseguiria parar o que estava fazendo, de jeito nenhum. Senti a ferroada de culpa, assim que a última explosão de energia entrou em mim.

Ele deitou sobre as cobertas, ofegante e exausto. Perder um pouco de sua vida tem esse efeito colateral. Qualquer pensamento de satisfação ou culpa que pudesse ter era somente dele. A toalha ainda estava, convenientemente, sobre a cama, e a usei para me limpar. Levantei-me e andei até a janela, enquanto ele ainda tentava recuperar o fôlego. Ele provavelmente dormiria em poucos minutos.

– Ah, olha – disse, alegremente. – Meu amigo tá lá com as chaves. – Peguei o vestido molhado e fui para a porta. – Valeu por me deixar esperar aqui.

5 Estilo caracterizado pelo uso de muitas joias e brilhos. Atualmente, é fácil reconhecer o estilo nos rappers que usam inúmeras correntes e anéi


Capítulo 7

– ocê tinha razão – disse Roman na manhã seguinte, ainda ruminando sobre meu encontro com Gavin. – Eu não gostei de ver aquilo.

De pé no banheiro, eu arrumava meu cabelo com uma chapinha. É muito mais difícil que mudar de forma, mas eu gosto do desafio. Além do mais, eu sempre posso dar um jeito no frizz mais tarde.

– Não foi sua primeira vez – ressaltei, olhando para o espelho, e não pare ele, encostado na porta. – Você não costumava ligar.

– Não? – perguntou, seco.

– Bom, ficar com ele me impediu de remoer minhas mágoas. Não que eu tenha me sentido ótima depois – admiti. – Mas, enfim, me ajudou. E, olha, não deve ter sido tão nojento quanto o que você viu a Simone fazer.

– Verdade. Mas agora aquele cara vai ficar perturbando o tempo todo. Ele vai aparecer pedindo uma xícara de açúcar, querendo, na verdade, é se dar bem.

– Eu dou um jeito nisso. Tenho prática em me livrar desses caras.

– E eu não sei?

Parei para lhe lançar um olhar feio.

– Dá pra ficar calminho? Tá parecendo que você está com ciúme.

Roman riu com desdém.

– Até parece. Por qual motivo eu teria ciúme da mulher que provocou a morte da minha irmã e libertou forças do Céu e do Inferno para me destruir?

Justo.

– É um pouquinho mais complicado do que isso.

– Ah, claro, com certeza – ele cruzou os braços e olhou para o chão. – Mas, da próxima vez que você precisar se distrair, a gente pode alugar um filme e estourar pipoca de micro-ondas, em vez de transar com os vizinhos.

– Seu gosto pra filmes é horrível – murmurei. A conversa foi encerrada, e Roman saiu do banheiro. Um pouco depois, ouvi o barulho da TV.

Eu tinha que trabalhar, mas só no período da tarde. Estava de pé e pronta para sair mais cedo, pois queria me encontrar com Erik. Eu deveria estar me sentindo segura com a habilidade de Jerome em descobrir o que estava acontecendo e com a proteção de Roman. Porém, já tinha enfrentado muita merda no passado para confiar totalmente em alguém. Erik sempre se mostrou um apoio seguro.

Roman foi comigo, incógnito, mas demorou um pouco até que eu pudesse falar direito com Erik. Ele estava com clientes – o que é ótimo para ele, mas eu não posso falar de assuntos imortais com essas pessoas por perto. Quando finalmente foram embora, Erik voltou sua atenção para mim, de prontidão, com seu típico sorriso amigável. Sua aparência tinha melhorado, e seus movimentos não estavam mais tão instáveis. Ainda estava fraco, mas não tanto quanto antes.

– Seu resfriado melhorou – eu disse.

Seu sorriso cresceu.

– Sim, te disse que não era nada. Um resfriado bobo não vai me matar.

Sua voz tinha leveza, mas achei algo estranho. Havia alguma coisa em suas palavras – não sei bem o quê –, parecia que ele sabia o que o mataria. Um calafrio percorreu minha espinha. Não queria pensar nesse tipo de coisa.

Sentei em sua mesinha com ele, mas não quis chá.

– Só queria checar se você ficou sabendo de algo – era impulsivo da minha parte. Sabia que ele teria me procurado caso tivesse descoberto algo.

– Não, mas, como eu disse, a informação que temos é tão vaga que pode significar inúmeras coisas.

– Foi o que Jerome disse.

Erik pareceu satisfeito.

– Fico feliz que ele esteja a par. Sempre disse que seu pessoal deve saber mais do que eu.

Não pude evitar de rir.

– Discutível. Agora tenho algo que pode tornar um pouco menos vago – rapidamente, contei meu novo encontro e como percebi que a força só me visitava quando eu estava perturbada e triste. – É como se ela... espreitasse minha fraqueza. Tentando me atrair com promessas de conforto.

– Então, você precisa tomar cuidado para não ceder.

Se Roman tivesse dito aquilo, teria lhe dado uma bronca por afirmar o óbvio.

– É fácil falar isso agora, sob a luz da razão, mas quando acontece... Eu não sei. Me afasto da realidade do mundo. A razão foge. Droga, na maior parte do tempo eu só percebo que algo está acontecendo quando ela já foi embora. É como... dormir. Sonambulismo. Sei lá.

– E sempre aparece como um portal?

Pensei por muitos segundos.

– Não sei... tipo isso. Não sei como descrever. Sei que estou repetitiva. Como é inútil dizer isso. Não sei se é exatamente uma porta, mas com certeza está tentando me puxar para algo.

Erik fez chá e ficou quase um minuto dando goles, com a sobrancelha cerrada.

– Vou pensar a respeito. Enquanto isso, só aconselho... – ele hesitou. – Bem, digamos assim. Você é maravilhosa, senhorita Kincaid. Sempre desfruto de sua companhia. No entanto, você também é... como posso dizer... propensa a humores soturnos.

– É seu jeito educado de dizer que eu tô sempre deprê? – brinquei.

– Não... não exatamente. Mas se essa coisa está procurando pessoas em estados emocionais deprimidos, então eu diria que você é particularmente suscetível. Se for possível, você deveria tentar ficar longe desses ânimos.

Pensei a respeito. Uma das minhas melhores amigas vai se casar com meu ex – um ex pelo qual estou voltando a me apaixonar. Um ex cuja alma eu condenara ao Inferno, sem querer, e o qual está agora sendo perseguido por outro súcubo. Minha própria alma está há muito associada ao Inferno; e eu, comprometida a uma eternidade dormindo com homens de quem, em geral, não gosto. Ah, sim. Não vamos esquecer que meu colega de quarto tem tendências sociopatas e estou em sua lista negra.

– Acho fácil falar – disse ao Erik.

– Imagino – ele falou, pesarosamente. – Mas pode ser a única maneira de se proteger. Isso e sua própria força de vontade; força na qual eu acredito piamente.

A fé de Erik em mim aqueceu meu coração, apesar de o resto do insight do dia não ter sido muito inspirador. Agradeci e fui para o trabalho, grata por Roman não ter feito nenhum comentário “espertinho” durante o trajeto.

Na livraria, Seth trabalhava sozinho no café. Simone não estava na área, um bônus. Ser o dia de folga de Maddie também me animou. Talvez, ficar longe do meu comportamento tristonho de sempre não será tão difícil.

– E aí, Kincaid?

Doug me encontrou enquanto eu colocava adesivos na prateleira de promoção. A maioria era livros capa dura esgotados, como Arcos de pedra da Toscana e O livro completo de ponto-cruz para enxoval. Não sei bem do que se trata o último, mas acho que pode ser um bom presente de casamento para Seth e Maddie. Com certeza, uma pechincha. Já estava na terceira remarcação e mesmo assim ninguém queria comprá-lo.

– E aí? – perguntei.

– Tenho novidades que vão te tirar o chão. E você vai me achar ainda mais incrível do que já acha.

– Essa é uma declaração audaciosa.

Ele parou, tentando decidir se tinha sido elogiado ou insultado.

– Descobri que a Gabrielle é fã de Blue Satin Bra.

– Não achei que fizesse o estilo dela. Sempre achei que ela usava lingerie preta.

Doug me fulminou com o olhar.

– Não, Kincaid. Quis dizer que ela gosta da banda. Você nunca ouviu falar?

– Tem uma banda com esse nome? – balancei a cabeça. – Foi mal, não consigo acompanhar essas bandas de garagem de Seattle.

– Eles não são de garagem! É a banda mais quente do metal. Vão estourar.

Tentei esconder minha desconfiança. O próprio Doug tem uma banda chamada Nocturnal Admission e sempre que ele falava de bandas locais parecia que todo mundo estava prestes a estourar.

– O que isso tem a ver com a Gabrielle mesmo?

Doug estava ficando frustrado comigo.

– Ela é superfã, e eles vão se apresentar amanhã. Infelizmente, tá esgotado. Ela ficou bem chateada.

Apesar de seu aborrecimento comigo, percebi sua presunção.

– Lá vem...

O orgulho iluminou sua face.

– Sou amigo do baixista e consegui uns ingressos. Se seu amigo Cody falasse com ela...

Parei de adesivar.

– Verdade. Você tá realmente mais incrível.

– Você tem que ir também.

– Quê? – ir de vela não parecia nada romântico, para dizer o mínimo.

Doug deu de ombros.

– Ele não pode chamar ela pra sair. Ainda não. Vai assustar.

– Então ele vai chamar ela pra quê?

– Eu faço o convite. Vou mandar: “Ei, Gabby, tenho uns ingressos a mais pro show. Você quer vir comigo e meus amigos?”. Aí ela não resiste e vem junto. Cody estará lá e a mágica acontece...

– Uau – eu disse –, você já planejou tudo. Mas acho que ela não gosta de ser chamada de Gabby.

– É um bom plano – ele estava bem satisfeito consigo mesmo. – Eu sou rodado, Kincaid. Quando você tiver meus esquemas românticos, vai entender.

Virei os olhos.

– Espero que sim. Então, com quantos amigos você vai?

– Consegui quatro ingressos. Então: eu, você, Cody e Gabrielle.

– Tá parecendo muito um encontro de casais. Você tá tentando seus esquemas românticos comigo? – não seria a primeira vez.

– Claro que não! Tenho cara de suicida? Você já tem dono – por um instante, Seth veio à minha mente, mas Doug acrescentou: – Não vou encarar aquele cara com quem você juntou as escovas de dente. Tipo, eu luto bem, mas parece que ele detona mesmo.

– Você nem imagina – eu murmurei. Sem dúvida, Roman, pairando invisível por perto, estaria amando tudo isso. – Mas não estamos juntos. Ele é só meu colega de casa.

– Por enquanto – disse Doug, como um mau presságio. Voltou ao assunto: – Vou convidar a Gabs. Explica pro Cody o esquema e que você vai ser a copiloto.

Balancei minha cabeça depois que Doug saiu, imaginando no que tinha me metido. Os comentários absurdos sobre “esquemas românticos” e “copiloto”. Pode ser que a ideia de turma casual aproxime Gabrielle de Cody. Só esperava que a história da fantasia de gótico não tivesse vazado. Também pensei que tipo de experiência seria a Blue Satin Bra. A música alternativa do Doug vinha me conquistando, mas acho que esse show vai ser algo bem diferente.

Uma hora depois, estava em meu escritório quando umas visitas inesperadas colocaram a cabeça no vão da porta. Bom, uma delas não era totalmente inesperada. Descobriria que, mesmo quando Maddie estava de folga, eu não estava totalmente segura. Não dava pra contar com sua ausência, já que seu irmão e seu namorado estavam na loja. Eu sentia certa segurança quando não tínhamos o mesmo turno, mas já tinha aceitado que Maddie poderia aparecer a qualquer momento.

Não, a verdadeira surpresa foi que Maddie entrou no meu escritório com Brandy Mortensen. A sobrinha de Seth. Ele tem cinco, e essa é a mais velha. Quando namorávamos, eu fiquei bem apegada com a prole. Meu desejo por filhos e a fofura total das meninas facilitaram meu encanto. Elas também ficaram próximas de mim.

Claro que, aos catorze anos, Brandy não deve gostar muito de ser chamada de “fofa”. Ela ficou ao lado de Maddie, que segurava um vestido dentro de uma capa de plástico. Estranhamente, Brandy estava com uma cara tristonha. Parecia mais alta desde a última vez em que eu a vira. O tempo estava passando rapidamente para esses humanos, como percebera com Erik.

– E aí, meninas? – eu disse, colocando minha papelada de lado. – O que vocês estão aprontando?

– Mais assuntos de casamento – respondeu Maddie, alegre. – Vim pegar o Seth. Voltamos àquela loja para comprar um vestido para Brandy. Ela será madrinha também.

Maddie levantou um pedaço da capa, mostrando o mesmo vestido que comprara para mim.

– Que mico – disse à Brandy –, vamos com roupas iguais.

Ela ofereceu um sorriso amarelo e ficou em silêncio.

– Também fomos falar com uns floristas, mas não decidimos nada. Você acha que se for algo violeta vai ficar muito monocromático? E se for diferente, vai ficar esquisito?

– Perguntas difíceis – eu disse, solenemente. Na verdade, não queria responder.

– Será que você pode ir lá comigo e dar uma olhada nas amostras? – Maddie me dava aquele sorriso esperançoso e feliz que era tão bom em me fazer sentir culpada.

– Não sei – respondi, vagamente. – Preciso ver minha agenda.

– Bom, me avise. Vou pegar o Seth. Talvez ele tenha alguma ideia.

Boa sorte, pensei. Seth era péssimo em opinar e não parecia muito comprometido com essa história de casamento – sem trocadilhos. Maddie deixou Brandy comigo, e eu sorri para ela, genuinamente.

– Então, como é que tá? – perguntei. – Foi divertido fazer compras?

Brandy cruzou os braços e jogou o cabelo para o lado. Ela vestia uma baby-look do Rocky Horror Picture Show. Sério, ela está a um passo de se transformar no tio.

– Não – respondeu, seca.

Levantei uma sobrancelha, surpresa. Pelo que eu saiba, fazer compras e ganhar roupas era muito legal para uma adolescente. Talvez eu esteja por fora.

– Por que não?

– Porque – ela respondeu, dramaticamente – esse casamento é uma piada.

Olhei desconfortável para a porta aberta.

– Não deixe eles te ouvirem.

Brandy parecia indiferente. Ela estava quase carrancuda.

– O tio Seth não devia casar com ela.

– Por que não? Eles estão namorando há... bem, muito tempo – era praticamente verdade, fosse o noivado provocado pela culpa ou não. – Ele pediu. Ela aceitou. Simples assim.

– Ela não é a pessoa certa – disse Brandy, com força. – Ele devia casar com você.

É, eu realmente gostaria que a porta estivesse fechada.

– Brandy – comecei, baixando minha voz o máximo possível –, seu tio e eu terminamos. É assim que funciona. As pessoas seguem em frente.

– Não era pra ter acontecido isso. Vocês estavam apaixonados.

– Ele ama ela agora.

– Não é a mesma coisa.

Não era uma conversa que eu esperava ter. Sabia que as sobrinhas do Seth ainda gostavam de mim, mas não tinha a mínima ideia que deixara essa impressão.

– Você não gosta da Maddie ou algo do tipo?

Brandy deu de ombros, hesitante, e desviou o olhar.

– Ela é legal. Mas não é igual você.

Não disse nada por uns instantes. Imaginei se o ressentimento de Brandy com relação ao casamento seria por sua devoção a mim ou sua fantasia adolescente de almas gêmeas.

– Fico triste com isso – eu disse. – O amor na vida real geralmente não funciona como as histórias fazem a gente acreditar que deveria ser. Nem sempre somos felizes para sempre. As pessoas terminam e seguem em frente. Só porque já amou alguém não significa que não pode amar outra pessoa – estremeci. Era uma conversa muito parecida com a que eu tive com Carter logo depois do (primeiro) término com Seth.

– Mas não tá certo, mesmo assim – disse Brandy, obstinadamente.

Seth e Maddie foram buscá-la pouco depois. Fiquei aliviada. Não queria ser a advogada do Diabo e defender um casamento pelo qual eu também não estava nem um pouco empolgada. Senti aquela dor que me abatia quando pensava nos dois... mas então me lembrei dos comentários de Erik. “Não ceda. Fique longe disso – é o que está te causando problemas.”

Fácil falar, como já havia lhe dito. Distração parecia ser a chave do sucesso, mas eu não estava a fim de mais um encontro. Nem precisava de mais energia.

– Me distraia – murmurei ao sentar no carro. – Me perturbe com sua “esperteza” ou me deixe muito brava de uma vez.

Nenhuma evidência física de Roman surgiu – nenhuma assinatura ou aparição –, mas sua voz respondeu com suavidade:

– Vá encontrar seus amigos. Eles não vão naquele bar hoje? Você precisa avisar o Cody que ele tem um encontro de casais.

– Não é um encontro de casais – rosnei.

Mas Roman tinha razão. Eu deveria avisar o jovem vampiro do que o aguardava no dia seguinte. Também estava meio curiosa como Roman sabia do bar. Eu recebera uma mensagem de voz mais cedo, mas nunca imaginei que Roman pudesse tê-la escutado. Ou ele estava muito perto, ou nefilins têm audição super-humana. Bom, como eles são super-humanos, não seria impossível.

Outra ideia sobre o social de hoje veio à mente, uma que com certeza providenciaria a distração necessária – e provavelmente daria um jeito na chateação.

– Bora pro bar – declarei.

Dirigi até Pioneer Square, bairro histórico de Seattle, e procurei o Cellar, um antro localizado em um porão. Era um dos lugares preferidos dos imortais – bem, dos imortais infernais. Como a maioria dos anjos não bebe – Carter é exceção –, você não costuma encontrá-los em bares. Eles costumam ir a cafés chiques. Por razões desconhecidas, muitos gostam de frequentar o restaurante na Space Needle. Talvez achem que estão mais próximos do Céu.

E, de fato, ao descer as escadas do Cellar, senti a assinatura de Carter, junto às outras da minha turminha. O melhor de tudo, havia uma assinatura a mais, pela qual eu estava torcendo.

– Caramba – eu disse, me juntando à mesa onde Simone estava sentada com meus amigos. Ela estava ardendo com o brilho da energia que os súcubos roubam das vítimas. Odeio admitir, mas a dela estava mais forte que a minha. Assegurei-me de que provavelmente ela devia ter transado com alguém há pouco tempo, e não apenas ontem à noite.

Hugh apertou-se para eu caber, e eu puxei uma cadeira da mesa ao lado.

– Achei que não viria.

Chamei o garçom e pedi uma dose de vodca.

– Sabem que não consigo ficar longe de vocês.

– Chegou na hora certa – disse Carter. Seu rosto estava neutro, mas peguei um brilho travesso em seus olhos quando deu um gole no seu uísque. – Simone estava nos divertindo com histórias da Underground Tour. Já ouviu dizer que Seattle foi inteiramente queimada e reconstruída há um século?

– Somente todas as vezes que vou lá na Tour – retruquei. Eu já fora uma dúzia de vezes. Era uma atração turística típica, e eu já levara amigos e vítimas de outras cidades para lá. Olhei Simone curiosamente. – Você foi lá hoje?

Ela assentiu.

– Acho que preciso aproveitar a cidade ao máximo na minha estadia – ela ainda falava com aquela voz de bibliotecária, mas admito que estava com mais cara de súcubo que da última vez. Seu decote era tão profundo que era de se perguntar como seus mamilos não estavam aparecendo. Seus lábios pintados de “vermelho-vamos-transar” e, aparentemente, seu cabelo longo e volumoso. Não era possível decidir se ela parecia mais um anjo ou uma Coelhinha da Playboy.

E falando sobre anjos... Simone tinha aproximado bastante sua cadeira à de Carter, roçando seu braço no dele toda vez que pegava seu drinque. Suspeitei que sua perna estivesse encostada à dele também.

Ele a olhou, de uma maneira que não era bem romântica, mas repleta de um interesse que eu sabia ser dissimulado.

– Eu acho a história de Seattle fascinante. Não faz tanto tempo que estou por aqui, então é ótimo aprender coisas novas.

Simone deu um sorriso reluzente. Do outro lado da mesa, Hugh engasgou com sua bebida. Carter estava em Seattle havia uns duzentos anos. Claro que isso não é tanto para um imortal como ele, mas com certeza ele presenciou o incêndio. Caramba, levando-se em conta o fato de que uma vez ele tacou fogo na minha árvore de Natal sem querer, ele bem que poderia ter sido o culpado pela cidade em chamas.

Minha dose chegou, e eu tomei um gole de coragem líquida.

– Ouvi dizer que você tem encontrado algumas das celebridades locais – eu disse docemente.

Simone arrastou seu olhar adorador de Carter para mim, com a testa franzida.

– Acho que não encontrei muitas celebridades, não.

– Bem – eu continuei, sorrindo como uma boba. – Acho que depende do que você considera “celebridade”. Eu considero autores de best-sellers celebridades. Você tem flertado bastante com um.

Imediatamente, Cody, Hugh e Peter voltaram sua atenção avidamente. Eles sentiam conflito feminino de longe e estavam, sem sombra de dúvida, aguardando as duas mulheres se atracarem.

– Ah, ele – ela respondeu, desdenhosa. – Achei que você estivesse falando de algum ator. É, ele é só mais um no meu radar. Bem bonitinho. Agradável.

– E meu amigo – eu avisei. – Minha voz ainda estava alegre, mas notei em seus olhos que ela percebia a tensão crescente.

– Mesmo assim, nada de errado – ela retrucou, dando de ombros. – E por que você se importa? A alma dele já está corrompida. Ele nem é uma presa tão boa. Não sou capaz de piorar muito mais sua situação.

Não era verdade. Seth poderia estar, atualmente, destinado ao Inferno, mas sua situação não era incorrigível – apesar de não ser das melhores. Se Simone conseguisse fazer com que ele traísse Maddie novamente, sua alma ficaria mais sombria, o que acabaria com qualquer chance de salvação. Além do pecado, Simone encurtaria sua vida, algo ao qual eu me oponho totalmente.

– Então, ele é apenas um cara que você encontrou ao acaso? – perguntei. A educação estava indo embora. A dela também. Ora, ora. A Simone sem graça não era tão bobinha quanto fazia questão de parecer. – O fato de ele ser meu amigo e ex-namorado não faz diferença?

– Do jeito que você fala, parece que eu tô querendo me vingar de você. Eu nem te conheço. Só estou por aqui de férias. Arranjar uns caras faz parte da nossa vida – e você não tem nenhum controle territorial – ela acenou para os vampiros, que têm áreas de caça muito bem definidas. – A não ser – ela acrescentou, com presunção –, que você tenha algum tipo de acordo com Jerome.

Definitivamente, não tenho. Na verdade, meu chefe fez questão de mostrar o quanto ele não se importa com Seth.

– Não, mas acho que o melhor a fazer quando se visita a cidade de alguém é respeitar – meu sorriso voltou, frio. – E garantir que sua visita continue agradável. – Talvez, usando seu vocabulário, ela entenderia.

Simone retesou-se e voltou sua atenção totalmente para mim.

– O que é isso? Algum tipo de ameaça? Vai me perseguir se eu não me afastar?

Dei de ombros e terminei meu drinque.

– Quem avisa amigo é – ela levantou e pendurou a bolsa no ombro com tanta força que quase atingiu Carter na cabeça. Aparentemente, este não estava mais no seu radar. Pelo menos por enquanto. – Não vou ficar aqui ouvindo essas ameaças baixas. Muito menos por causa de homens sem importância. Se eu o quiser, vou tê-lo.

– Vamos sentir sua falta – murmurei enquanto ela ia embora.

– Ai – disse Hugh, alegre –, não tem nada melhor do que briga entre súcubos. Deixa qualquer seriado no chinelo. Você conseguiu destruir a Tawny, mas a Simone vai ser um combate daqueles.

– Fica achando – retruquei. – E ela vai ter tanta sorte com Seth quanto com Carter.

Carter levantou uma sobrancelha. Aparentemente, não concordava com minha afirmação.

– Ela tá realmente dando em cima do Seth? – perguntou Cody.

– Sim. Estilo fã embasbacada.

– Não foi assim que você conquistou ele da primeira vez? – perguntou Peter.

Fulminei-o.

– Não importa. Não vai dar certo.

– Então, por que se preocupar? – perguntou Hugh, astuto.

– Porque o seguro morreu de... ah, esquece – resmunguei. – Preciso de outra dose.

Hugh e os vampiros estavam se divertindo muito com tudo isso, nem um pouco preocupados. Acho que eles também acreditam que Seth seria um alvo impossível. Mas se divertiam com a situação: eu atormentando outro súcubo. O pior é que eu provavelmente apenas incentivei Simone a continuar.

Duas doses depois, achei melhor ir para casa. Já estava brava o suficiente para não temer o enlevo da canção de sereia. Antes de sair, avisei Cody sobre o encontro em vista. Obviamente, ele surtou.

– Quê? Eu... eu não consigo. O que eu vou falar? O que eu vou fazer?

– Francamente, querida... – começou Hugh, insinuando.

– Vai dar tudo certo – eu disse. – Para de se estressar e seja você mesmo.

– Parece um encontro de casais – intrometeu-se Peter. – Vou arrumar mais tinta preta.

– Não! – exclamei. – Nem pense nisso. – Ainda dava para ver fios pretos na cabeleira loira do Cody. – Vista a mesma roupa de hoje. Te encontro no bar.

Virei-me para ir, mas um pensamento me veio.

– Carter, posso falar com você?

Seus lábios franziram. Parecia surpreso, mas não dava para afirmar.

– Seu desejo é uma ordem, Filha de Lilith.

Fomos para fora do bar, no meio dos baladeiros do Pioneer Square. Assim que saímos da área de proibição, ele acendeu um cigarro.

– Se você tá com ciúme da Simone – ele disse –, pode ficar tranquila que somos só amigos.

– Ah, cala a boca. Você sabe que não. Olha, ela estava mentindo, né? Sobre Seth ser uma coincidência.

Carter deu uma longa tragada antes de responder. Anjos detectam mentiras.

– Sim. Mas parecia bem sincera quando disse que iria atrás dele de qualquer jeito.

Fiz uma careta.

– Por quê? Por que ela quer o Seth? É um jeito de mostrar poder sobre o súcubo local?

– Não sei. Súcubos, e todas as mulheres, são um mistério para mim.

– Jerome achou que ela veio espionar. Ele colocou o Roman para segui-la, mas não deu em nada. Ela não se reportou a ninguém nem nada. Ele tirou Roman da jogada... – pausei. De repente, podia ver os acontecimentos por outro ângulo. – Mas apenas quando avisei que Simone estava paquerando o Seth. Bem nessa hora ele decidiu tirar Roman. E ele antes parecia bem determinado em não deixar Simone sozinha.

– É mesmo? – Carter deu outra tragada, mas eu podia ver pensamentos movimentando-se por trás de seu olhar.

– Quê? – perguntei.

– Só pensando aqui – ele respondeu. Meia verdade, típico de anjos. – Jerome fez mais alguma coisa depois?

– Sim, colocou o Roman atrás de mim.

Isso o pegou de surpresa.

– Por quê?

Aparentemente, Jerome e Carter não tinham se encontrado recentemente. Expliquei minha situação bizarra em resumo.

– É esquisito – ele admitiu.

– Você tem ideia do que pode ser?

– Muitas coisas – ele falava de forma petulante, mas percebi que eu provocara curiosidade e até mesmo preocupação.

Suspirei.

– Queria que as pessoas parassem de dizer isso. Ninguém consegue me ajudar.

– Eu te ajudo – ele disse, jogando o cigarro e pisando na bituca. – Vou seguir a Simone.

Por essa eu não esperava.

– Por que você quer fazer isso? Vai impedi-la de dar em cima de Seth?

Ele achou engraçado.

– Você sabe que eu não posso interferir nisso. Mas tenho curiosidade sobre as atividades de Simone.

Um sentimento ruim surgiu, um que me perturbava desde que conhecera Seth, e desde que Carter tornara-se mais presente em minha vida.

– Por quê? Por que você se importa tanto com Seth? Você sempre teve curiosidade sobre seu trabalho... e nosso relacionamento.

– Me interesso pelo processo de criação de um grande artista. É divertido observar.

– Outra meia verdade – como sempre, ele respondia sem dizer nada. Fiquei assustada com o desespero em minha voz quando continuei: – É sério. Por quê, Carter? Por que você se importa com o Seth e meu relacionamento com ele?

Ele segurou meu queixo.

– Você tem mais o que fazer do que se preocupar com a curiosidade de um anjo. Além do mais, não vai ficar mais tranquila se alguém te der um relatório sobre a Simone?

– Bom, sim, mas... – admiti.

– Então, tá combinado. De nada.

Ele se virou rapidamente e desapareceu na multidão de baladeiros. Sabia que não adiantava o seguir, pois desapareceria assim que pudesse. Suspirei, uma vez mais.

Malditos anjos.


Capítulo 8


O fato de Carter ficar de olho na Simone me fez sentir um pouco melhor, mas havia algo sobre Seth e ele que sempre me deixava nervosa – bem, na verdade, sobre ele e minha vida amorosa. Ele é interessado demais. Já estava acostumada com um anjo sair com meus amigos, mas, às vezes, imaginava se eu estava sendo enganada. O Céu tinha sua própria pauta, como nós, e seus motivos eram difíceis de entender.

Eu tinha um turno matutino no dia seguinte. Fora tranquilo, até Doug me dar más notícias dez minutos antes de eu ir embora.

– Não posso ir hoje à noite, Kincaid.

Tirei os olhos da minha planilha, desacreditada.

– O quê?

Ele deu de ombros, rondando a porta do meu escritório. Ele trabalhara no mesmo horário que eu, desconfiei que só me contou no final para evitar horas de raiva. Como as pessoas que são despedidas no fim do expediente de sexta.

– Conheci uma garota... não posso perder a chance de sair com ela. Puts, cara. Ela é gostosa. Tem um corpo...

– Não quero detalhes – interrompi. – Não pode levar ela no meu lugar? Cody tá ficando empolgado... vai ficar mal se for cancelado.

– Não precisa cancelar. Vai sem mim. Não posso levar ela. Cody precisa de você.

Resmunguei.

– É, mas a segurança do grupo acabou. Eu fico de vela.

– Vai com outra pessoa, então.

Nesse instante, Maddie apareceu atrás do irmão. Ela o substituiria no próximo turno.

– Ir aonde?

Minhas próximas palavras me encolheram, mas eu não queria ir sozinha com Cody e Gabrielle. – Você quer ir num, hum, show de metal hoje? – pelo menos, ir com outra mulher cortaria as insinuações de encontro de casais.

Ela não esperava pelo convite.

– Bom... eu iria, mas tenho que fechar a loja, e depois encontrar uma amiga – duvidei muito do “iria” e da tal amiga. Metal não era o forte da Maddie. De repente, ela se iluminou. – Quer saber? Você deveria ir com o Seth.

– Eu... quê? – perguntei.

– Mortensen? – perguntou Doug, tão chocado quanto eu.

– Acho que não é a praia dele – eu disse, desconfortável. Eu tinha certeza que não era.

– É – concordou Doug –, não é uma boa ideia.

Escondi minha careta ao ouvir as palavras de Doug. Pelo tanto que ele queria encontrar a mulher gostosa, achei que empurraria qualquer um para ir comigo.

Maddie estava na inocência.

– Não, sério. Ele tá confinado há semanas por conta do livro. Seria bom ele sair. Acho que as coisas do casamento o estão deixando estressado.

É, não só ele.

– Ah, mas eu não quero, hum, tirar ele da sua zona de conforto – eu disse, como desculpa esfarrapada.

Ela riu.

– Como eu disse, vai ser bom pra ele. Vou perguntar agora.

Ela saiu antes que Doug e eu pudéssemos protestar. Vários segundos de silêncio pairaram entre nós.

– Bom – ele disse, enfim –, ela consegue convencê-lo de quase tudo. Acho que tá fechado.

– Acho que sim. – Doug foi embora em seguida, e achei intrigante que nenhum de nós dois estivéssemos empolgados com o prospecto. Potencializou a história de encontro de casais e me fez sentir culpada pela confiança cega de Maddie. Pelo lado bom – mais ou menos –, Simone teria que ser muito corajosa para aparecer no show e tentar “seduzir” Seth.

Como Doug previra, Maddie convencera Seth. O show era bem tarde, e nós quatro combinamos de chegar ao bar por volta das dez e meia, para que eu pudesse entregar os ingressos antes. Quando todos chegaram, olhei para os três rostos à minha volta e tentei decidir se era cômico ou patético. Seth tentava evitar me olhar nos olhos, abertamente desconfortável por Maddie o ter convencido. Cody estava mais pálido que o normal, mesmo para um vampiro, e parecia que iria desmaiar a qualquer momento. Não ficaria surpresa se os dois homens se unissem para elaborar um plano de fuga. Gabrielle era a única que parecia animada, seus olhos brilhantes e ávidos.

Ela também era a única vestida para o evento, toda de preto, com o cabelo espetado e a maquiagem dramática. Cody e Seth estavam com as roupas de sempre. Eu, no meio termo: jeans e corpete preto, adornada com joias pesadas de prata. Porém, muito chique para o lugar.

– Brigadão por terem me convidado, pessoal – agradeceu Gabrielle. – Não sabia que vocês gostavam da Blue Satin Bra.

– Como não? – perguntou Seth, fazendo cara de inocente.

Eu mantinha meus olhos afastados dele, pois tinha impressão de que começaria a rir. Entreguei os ingressos, e entramos, rodeados por uma galera que eu gostaria de ter no meu time caso entrasse numa briga de rua.

Conseguimos descolar uma mesa alta nos fundos. Precisaríamos ficar de pé o tempo todo, mas pelo menos teríamos onde apoiar os copos.

– Ofereça uma bebida – sussurrei para Cody. O bom de dar uma de cupido para um vampiro é que sua superaudição permitia que eu falasse tão baixo que Gabrielle não ouviria. O barulho do local – mesmo antes de a banda começar – disfarçava ainda mais.

Cody obedeceu e, quando Gabrielle tirou dinheiro da bolsa, assegurou que a primeira rodada era por conta dele. O sorriso dela pareceu dar um empurrão em sua confiança.

Seth inclinou-se para meu ouvido. Estava oposto a Gabrielle, que, em transe, nem nos via.

– Isso é tão maluco que pode dar certo – ele murmurou.

– Não se empolgue – respondi, tentando não pensar na nossa proximidade. – A noite é uma criança. Tudo pode acontecer.

Ele sorriu.

– É sua especialidade, não é?

– Infelizmente, sim.

Cody voltou com as bebidas, ganhando a aprovação de Gabrielle. Porém, ela não mostrava nenhuma atração romântica. Pelo menos agora sabia que ele existia. Eu ainda tinha certeza de que ele não deveria exagerar na história de vampiro/gótico, mas percebi que precisaríamos trabalhar na aparência “comum” que ela enxergava.

– Converse com ela – eu lhe disse. Ele tinha voltado para seu lugar entre Gabrielle e mim. – Depois que o show começar, vai ser impossível.

– O que eu falo?

Seth, ouvindo, curvando-se sobre mim, fez com que eu desejasse estar coberta por mais roupas. Seu braço roçando contra mim me arrepiou.

– Pergunte se ela já viu um show deles – sugeriu Seth. – Se ela disser que não, conte sobre uma vez que você viu numa... sei lá, festa. Se ela disser que sim, pergunte o que achou.

Cody assentiu, desconfortável. Inclinou-se em direção a Gabrielle. Só ouvi trechinhos da conversa, mas ela se animava cada vez mais. Voltei para Seth:

– Desde quando virou especialista em encontros? – perguntei, incrédula.

– É o que O’Neill faria.

Eu zombei:

– Tá usando personagens para ajudar a vida amorosa de Cody?

– A vida imita a arte e vice-versa.

– Essa frase é ridícula. E, sabe, eu nunca vi você usar esses truques..

– Bom, é um truque do O’Neill. Tenho vários personagens para me inspirar.

– Engraçado, não me lembro de nenhum escritor introvertido e gago nos seus livros.

– Eu não gaguejo – ele disse, na defensiva, porém sorrindo. – Além disso, talvez tenha alguém assim na nova série.

– Oh – eu disse, tirando sarro do seu melodrama –, por que o “talvez”? Eu achei que você já tivesse tudo certo para essa nova coisa incrível.

– Eu tenho. Mas sempre dá pra melhorar.

– Autores introvertidos melhoram tudo.

– Pode crer.

Rindo, lembrei que deveria estar ajudando Cody, mas ele estava conversando com Gabrielle por conta própria. Um sinal positivo, achei. Voltei-me para Seth.

– Então, quer dizer que já sabe o fim para Cady e O’Neill?

– Não – ele ainda mantinha o bom humor, apesar de um leve franzir de testa –, logo terei que...

Suas palavras foram cortadas quando um chiado de guitarra atravessou a sala. Blue Satin Bra subiu ao palco, enquanto eu conversava (flertava) com Seth. Odeio estereótipos, mas, sério, eles são tudo que você imagina de uma banda de metaleiros. Roupas pretas, piercings e cabelos de extremos: raspado ou superlongo. A única coisa que os diferencia é, bem, que eles vestem sutiãs azuis sobre as roupas.

Sobre a música ensurdecedora que seguiu, conseguia ouvir os gritos de Gabrielle:

– Meu Deus! – Seu rosto estava em êxtase. Quando Cody disse algo, sua expressou ficou ainda mais iluminada e concordou avidamente, olhando a banda. Meu chute: verdade ou não, ele estava afirmando como eles eram o máximo.

A música forçava Seth e eu a nos aproximarmos mais para poder conversar.

– Sabe – ele disse –, tenho certeza de que o baixista tá usando sutiã de enchimento.

– Nem – brinquei também –, é sutiã push-up, então só parece com enchimento. Faz milagre para o decote.

Apesar de tudo, a Blue Satin Bra não era de todo má. Metal não é meu estilo preferido, mas tenho a cabeça aberta. O cenário e as loucuras que rolaram pela noite deram material para várias piadas entre Seth e mim. Estávamos de bom humor quando o show acabou e fomos até Gabrielle e Cody.

– Foi incrível – ela exclamou. – Muito obrigada pelo ingresso.

– Sem problema – eu disse. – Meus ouvidos estavam zunindo, e eu não sabia dizer se ainda estava gritando.

– Acho que foi o melhor show que já vi – disse Cody, nobremente.

Gabrielle agarrou a manga de sua camisa, e os olhos de Cody se arregalaram.

– Não é? Qual foi sua música preferida?

Silêncio.

– A minha foi aquela que fala “A magnitude do meu Armagedom vai queimar sua agência dos correios” – respondeu Seth, cara de pau.

– É. É uma das melhores – ela disse. – Chama “Plywood Fuck”.

– É a minha preferida também – acrescentou Cody. Duvidava que ele tinha ouvido qualquer música. Todos os seus sentidos estavam voltados para Gabrielle.

Em perfeita sincronia, Seth e eu nos entreolhamos e trocamos sorrisos secretos, nos divertindo com o amor de Cody. Eu não estava tão nas nuvens quanto ele, mas quando nosso grupo se separou, eu flutuava também.

– Noite interessante – falou Roman quando chegamos em casa. Ele tinha ido em modo espião. – Acho que Cody até tem chance.

– Talvez – respondi. – Obviamente ele tá apaixonado, e ela parece um pouco interessada. Como amiga, porém.

Roman fuçou na cozinha e se serviu uma vasilha de Sucrilhos.

– Ele não é o único apaixonado.

Suspirei e me joguei no sofá.

– Deixa quieto, ok? Todo mundo sabe que eu tô longe de esquecer o Seth.

Roman olhou-me astuto.

– Não tô falando de você.

Observei-o por um instante. Meu cérebro encharcado de vodca tentava entender suas palavras.

– Peraí... tá falando do Seth? Ele já me esqueceu.

– Ai meu Deus, Georgina. Para de se enganar.

– Ele vai se casar.

– Isso não significa nada. Se significasse, não teria gente pegando clamídia em despedidas de solteiro.

– Mas ele ama a Maddie. E não importa o que você pense sobre os sentimentos dele, ele estará fora de alcance assim que casarem.

– Ele já devia estar fora de alcance simplesmente por estar namorando, mas todos sabemos que não foi assim no começo.

Ri com desdém enquanto arrancava os sapatos.

– Não entra nesse assunto. Já me sinto mal o suficiente; e ele também. Se só vai ficar me provocando, então vou dormir.

Para minha surpresa, Roman não estava com aquela cara de deboche, tão típica desde que mudara para Seattle. Seus olhos estavam sérios, sua expressão – quase – preocupada.

– Não tô tentando te provocar. Tô só mostrando os fatos. Não importa o que aconteça, vocês não conseguem se afastar um do outro. Você devia pedir transferência.

– De Seattle? – perguntei, incrédula. – Eu amo esse lugar.

– Vai aprender a amar outro também. Honestamente, é a única maneira de você conseguir seguir em frente – de os dois conseguirem seguir em frente. Você o vê todos os dias. Quer maior exemplo do que hoje? Ele terminou com você. Depois, você terminou com ele, em nome de um “bem maior”. Mas, se vocês continuarem se vendo, nada importa. Você nunca vai cicatrizar. Vai ter seu coração destroçado todos os dias.

Eu estava tão chocada que não consegui responder por longos segundos. A velha zombaria dançava em minha mente: círculos e círculos.

– Eu... por que você tá falando isso? Por que você se importa?

– Porque eu já tô vendo acontecer. Seu coração está sendo destroçado todos os dias, e me mata ficar só observando.

Novamente, fiquei sem fala por um momento.

– Eu achava... eu achava que você me odiava. Achava que queria me destruir.

Ele terminou de comer o cereal e colocou a vasilha na mesa. Não tive forças para espantar as gatas.

– Não te odeio, Georgina – ele disse, cansado. – Claro que ainda estou chateado com o que aconteceu com a Helena. Ainda estou chateado por ter mentido que me amava. Acho que ainda quero me vingar. Pra falar a verdade, meus sentimentos mudam diariamente. Tem dia que quero fazer algo horrível. Tem dia... bem, eu sei que você fez o que fez por causa de um senso ilusório de... Não sei. Você achou que estava fazendo a coisa certa.

Queria lhe falar que o amava, de certo modo. Mas isso provavelmente não seria útil no momento.

– Bom, observar todo esse drama com o Seth deve estar te dando muitas ideias sobre coisas horríveis para mim.

– Não – respondeu, com um negar de cabeça cansado –, não gosto disso. Como disse, prefiro que você vá embora e recomece. Todas as vezes que te vejo agora é como se... como se te visse morrer. De novo e de novo.

Levantei-me, de repente querendo dormir.

– É – eu disse, docemente –, é tipo como eu me sinto – hesitei. – Obrigada por me ouvir. E me entender.

– Não tem de quê.

Isso também me pegou de surpresa. Em algum momento desses últimos loucos meses, percebi que Roman e eu tínhamos virado amigos.

– Odeio te pedir isso, mas não tô conseguindo manter um bom humor hoje. Você pode...

Ele levantou-se também.

– Claro, ficarei de guarda. Se você não achar esquisito demais.

– Vale a pena – respondi, sorrindo. – Obrigada.

Talvez fosse a vodca, mas dei um passo adiante e o abracei. Ele ficou tenso por um instante, surpreso, mas depois relaxou e enlaçou os abraços em volta de mim. Deitei a cabeça em seu peito, confortando-me em alguém vivo e afetuoso que não fosse um desconhecido. Ele cheirava como eu me lembrava: o aroma limpo e forte de seu perfume cercava-me de uma maneira muito diferente da fragrância amadeirada de Seth.

Estava pensando em me afastar quando uma voz perguntou:

– Atrapalho?

Empurrei Roman e vi Carter de pé na sala, braços cruzados e uma sobrancelha arqueada. Roman parecia igualmente perturbado e se afastou também, ficando tão longe quanto podia.

– Você nunca toca a campainha? – perguntei.

– Achei que você não abriria – respondeu Carter, honestamente. – Ainda mais com as notícias que eu trago.

Gemi.

– Já? Tem a ver com a Simone?

Assentiu.

– Temo que sim. Ela encontrou o Seth de novo.


Capítulo 9


Não acredito! – exclamei. – Ele passou a noite comigo.

– Não depois que o show acabou – ressaltou Roman. – Sabe, acho que aquela banda tem futuro – qualquer traço de bom sentimento com relação a mim desapareceu com a presença de Carter.

– A Simone estava lá naquele café vinte e quatro horas – disse Carter. – Seth foi lá para trabalhar depois do... como é mesmo? Um show?

– É – respondi –, Blue Satin Bra.

O anjo assentiu para Roman.

– Esses caras são demais.

– Ei, não vamos fugir do assunto – fulminei ambos com o olhar. – O que aconteceu entre o Seth e a Simone?

Carter deu de ombros.

– O de sempre. Ele entrou e a viu. Ela estava enfiada em um livro. Nem olhou até ele se aproximar.

– Boa jogada – comentei. – Força ele a sair da passividade, ser agressivo.

– Acho que ele não tá bancando o agressivo – brincou Carter. – Só o forçou a dar o primeiro passo, se ele quisesse ser educado.

Durante nosso breve romance, Seth e eu fizemos amor de um modo tão carinhoso e doce que poetas teriam chorado frente àquela beleza. Outras vezes, a coisa foi bem suja. Carter reconsideraria seu comentário sobre agressividade se soubesse.

– E depois? – questionei.

– Já disse, o de sempre. Conversaram sobre assuntos diversos; vários de interesse do Seth. Ela deve ter pesquisado.

– Que bela merda – joguei-me no sofá e em seguida pulei de pé novamente. – Vou pra lá é já.

– Já era – interrompeu Carter. – Eles foram embora separadamente e depois ela traçou um cara. Então, achei que era hora de sair voando.

– Sortudo – resmungou Roman. – Você não tem ideia do que fui obrigado a ver.

Um leve sorriso passou pela face de Carter antes de voltar para mim. Suspirei e sentei-me novamente.

– Confrontá-la não adianta mesmo. Você tentou, e não deu certo. Seria apenas um repeteco.

Provavelmente, Carter estava certo. Estar em conflito com um súcubo é um porre. Poderia socar Hugh ou os vampiros, e até com a cicatrização imortal eles ainda ficariam com um olho roxo por horas – ou mais, se eu caprichasse. Mas com um súcubo? Poderia arrebentá-lo e ele simplesmente faria uma modificação corporal. E discutir? Pelo fato de eu não ter nenhuma vantagem, provavelmente só jogaria lenha na fogueira e provocaria briga de mulher para divertir meus amigos.

– Bem – disse a Roman –, acho que estou brava o suficiente para você não precisar dormir comigo.

A sobrancelha de Carter levantou novamente.

– Quer dizer, ele não precisa guardar meu sono – expliquei. – Tava meio desanimada antes, e ficamos com medo de aquela coisa... misteriosa... aparecer para mim de novo.

– Por que desanimada? – perguntou Carter. Ele fingiu inocência, mas não me engana. Mesmo sem ter ido ao show, ele conseguia facilmente desvendar o que estava me deixando mal.

– É uma longa história.

Aqueles olhos prateados me perfuraram. Eu desviei para o lado. Odeio quando ele faz isso. Parece que consegue olhar minha alma. Um local que nem eu gostaria de ver – muito menos que outros vissem. Tentei mudar de assunto.

– Sabe, tava pensando sobre essa coisa que tá acontecendo... a força ou canção de sereia ou sei lá. Não foi como o que aconteceu com a Nyx. Mas parece coisa de sonho, sabe? Quer dizer, parece que eu tô sonâmbula. Você acha que Nyx pode voltar?

– Não – respondeu Carter –, ela tá presa pra valer. Eu mesmo chequei.

– Sério?

– Sério.

Não fiz a próxima pergunta: “Fez isso por mim?”. Digo, dar uma checada na Nyx não devia ser algo difícil para ele. Ele provavelmente pediu pra um amigo anjo que pediu para outro etc. Mas, mesmo assim, me fez pensar qual era a jogada de Carter. Para que se dar ao trabalho por mim? Por que ficar atrás disso? Para que seguir a Simone?

Sua expressão me fez imaginar que ele adivinhou meus pensamentos, algo que odeio.

– Brigada – agradeci –, agora vou dormir.

– E eu – disse Carter – vou beber.

– Acabou a história da Simone? – perguntou Roman.

Carter fez um gesto desdenhoso.

– Por hoje chega. Vou procurá-la de manhã.

– Você é um espião meio preguiçoso – ressaltei, mas entendia suas razões para evitar os encontros do outro súcubo.

Sua única resposta foi um sorriso antes de desaparecer.

– E agora? – pensei em voz alta.

– Agora – disse Roman –, você tira sua soneca da beleza para que amanhã eu consiga passar outro ótimo dia te ouvindo dar recomendações para pessoas que amaram O código Da Vinci.

– Você ama tudo isso – eu disse, indo para o quarto.

– Certeza que não quer companhia?

Olhei-o novamente, estudando seu rosto, seus belos traços e olhos verde-azulados como o mediterrâneo da minha juventude. Sua expressão era interrogativa, havia ironia em seus lábios. Não sabia dizer ao certo se ele estava brincando. Ou o que queria dizer.

– Certeza.

Minha fala fora mais corajosa do que meu sentimento, mas a noite passou sem incidentes, reforçando a ideia de que meus sentimentos tristes eram o alvo. Por consequência, estava de bom humor ao ir trabalhar no dia seguinte. Até usei amarelo, numa tentativa de promover a alegria. Cumprimentei meus colegas com tanto entusiasmo que Doug quis saber que drogas eu estava usando – e se poderia lhe dar um pouco.

Tudo mudou quando, enquanto ia para a seção de ficção científica, senti algo totalmente indesejado: uma assinatura imortal. Uma assinatura imortal de súcubo. E sabia exatamente de qual. Dei uma volta de cento e oitenta graus, desci alguns degraus e tentei localizá-lo. Ficção. Segui até lá e, óbvio, Simone estava lá – com Seth. Ela estava com o disfarce que eu ouvira falar: uma morena nerd, porém sexy. Estavam perto da seção de Seth, e ela segurava uma de suas obras, Idiosyncraso. Sabia que podia sentir minha assinatura conforme eu me aproximava, mas seus olhos se mantiveram em Seth, sem perder o ritmo da conversa.

– Você escreveu isso na faculdade?!

– Sim – ele respondeu –, mas não foi o primeiro que publiquei. Larguei na gaveta por anos antes de recuperar e revisar.

– Legal – ela disse, folheando. – Mal posso esperar para ler. Vai me distrair até seu próximo.

– Bom, não se anim... ah, oi.

Seth vira para mim. Parei ao seu lado, e Simone virou-se educadamente.

– Como vai? – perguntei, com mais dureza do que queria.

Seth, sempre sensível, pareceu surpreso com meu tom, mas não comentou nada.

– Bem. Georgina, essa é Kelly. Kelly, Georgina. Georgina é a gerente.

– Oi, Kelly.

Estendi-lhe a mão com dureza, que ela devolveu, e continuamos sorrindo uma para a outra, como no filme Mulheres perfeitas.

– Conheci a Kelly no café – disse Seth, tranquilo, sem saber que estava no fogo cruzado de dois súcubos.

– Foi ótimo – disse Simone, com inocência fofa. – Sou uma leitora voraz. Amo tudo sobre livros. E conhecer um dos meus autores prediletos me deu uma grande inspiração.

– Bem – disse Seth, um pouco envergonhado. – Não sei que tipo de inspiração eu estou dando.

Simone riu.

– Está ótimo. Parece que sempre que o vejo descubro algo novo.

– Vocês têm se visto muito? – perguntei.

– Kelly se mudou para Queen Anne – explicou Seth. – Então, estamos sempre nos trombando.

– É um lugar ótimo – disse. – Onde você mora?

Simone titubeou:

– Ãhn, em Queen Anne.

– Rua, avenida ou alameda?

Seth parecia surpreso com meu interrogatório. Simone ficou nervosa.

– É... avenida.

Droga. Que chute. A rua Queen Anne não existe.

– Ótimo lugar – dando-lhe as costas, olho para Seth. – Vim aqui porque ouvi alguém dizendo que Maddie tá te procurando – não era nem um pouco verdade. Maddie só chegaria dali uma hora. Olhei casualmente para Simone. – Maddie é a noiva dele.

– Acho que ela não chegou – disse Seth.

Por que, de repente, sua memória estava tão boa?

– Acho que entendi errado – eu disse, dando de ombros. – Mas achei que você poderia querer ver do que se trata.

– Eu vou – ele disse, intrigado –, mas preciso mostrar mais um livro para a Kelly.

Ela me atirou um olhar triunfante, mas eu sabia que não tinha conseguido nada com Seth. Ele estava com aquela expressão de tão concentrado numa coisa – no caso, os livros – que não enxerga mais nada. “Kelly” foi uma coincidência agradável. Simone estava excessivamente confiante para perceber.

Seth virou-se para as prateleiras. Achei estranho ficar por lá. Sem ele perceber, dei um olhar ameaçador para Simone.

– Bom, vejo você por aí.

– Oh – ela disse, com um sorriso sereno –, você verá.

Quando cheguei em casa mais tarde, estava querendo quebrar tudo.

– Você viu...

– Sim, sim, eu vi – disse Roman, materializando-se ao meu lado. – Se acalma.

Soltei um gritinho de frustração, algo primário, sem forma. – Não acredito naquela vagabunda! Não acredito que ela fez isso na minha frente! Fez de propósito. Fez de propósito pra me provocar.

Roman estava perfeitamente tranquilo, encostado na parede, muito diferente do meu estado inquieto e exausto.

– Claro que sim. Igual a mafiosos que acuam suas vítimas em público: não vão revidar com tantas testemunhas ao redor.

– Linda analogia – murmurei. – Talvez eu encontre uma cabeça de cavalo na minha cama da próxima vez.

– Posso deixar uma na dela, se te ajudar – ele ofereceu.

Quase sorri. Quase. Não tinha certeza se era brincadeira.

– A parte realmente cômica da história é que Seth provocou isso, sabe? Ele tentou se afastar de mim e olha onde foi parar.

– O Inferno está cheio de boas intenções.

Não me dei o trabalho de responder.

– Olha – disse ele, todo sério, aproximando-se de mim –, é uma droga tudo isso, e sabemos, com certeza, que não é coincidência. Mas se Seth ficar ao lado de Maddie enquanto ela estiver lá, sabemos que nada vai acontecer. E Carter vai nos avisar. Não adianta se estressar.

– Fácil falar. Nada vai me desviar disso.

Ele se aproximou e segurou meus braços.

– Ah, quando foi a última vez que você saiu pra dançar?

Pisquei de surpresa. A última vez em que fora dançar? Numa aula de salsa na livraria no começo do ano, depois que Seth e eu tínhamos arrancado nossas roupas em meu escritório.

– Faz um tempinho – respondi, evasiva. Aturdida tanto pela pergunta quanto por seus dedos em minha pele. – Por quê?

– Vamos sair – ele sugeriu. – Tem milhares de lugares para ir. Qualquer tipo de dança que quiser. Se sua memória tá funcionando, você é uma dançarina mediana.

Estreitei meus olhos.

– Sou ótima dançarina, e você sabe.

Ele aproximou seu rosto.

– Então, prove.

– Não importa. Não tô a fim de sair.

Roman suspirou e se afastou. Fiquei um pouco desapontada por deixar ele escapar.

– Cara – ele começou –, me lembro de quando você era divertida. Ainda bem que mudei de cidade na hora certa – ele foi até meu rack e se ajoelhou. – Bem, se Maomé não vai à montanha...

– Puxa vida. Você tá cheio dos provérbios religiosos hoje, hein?

– Ei, tô só tentando... Jesus Cristo. CDs? Você sabe que a Idade Medieval acabou faz tempo, né? – apontou para minha coleção com desdém. – Todo mundo só ouve música digital agora. Sabe aqueles aparelhinhos mágicos que armazenam música? Ou você acha que é bruxaria?

– A tecnologia muda todo ano. Cai de cabeça numa modinha e fica obsoleto no instante seguinte.

– Sério, não sei como você não cozinha numa fogueira no meio da sala.

– Você vive esquecendo: eu não cozinho.

– Eu moro aqui: eu não esqueço.

Então, colocou um dos meus “arcaicos” CDs no rádio. Eu ri.

– Olha quem fala de história antiga. Isso é velharia.

– Nem – levantou e me ofereceu as mãos. – É clássico. Nunca sai de moda.

– É – eu disse, quando a música começou a tocar. – Todos os jovens estão dançando o foxtrote hoje em dia. Gente, ainda é do estilo lento – mesmo assim, deixei ele pegar minhas mãos.

– Ei, esse CD é seu.

Demos os primeiros passos muito facilmente, deslizando pela sala e dando um jeito de desviar dos móveis com graça. Roman tem uma extensa lista de defeitos, mas uma de suas melhores qualidades é ser um dançarino quase tão bom quanto eu.

– Por que você dança tão bem? – perguntei, pulando a Aubrey. Ela nem se preocupou com a possibilidade de ser esmagada e não parecia que sairia do lugar.

– Que tipo de pergunta é essa? Por que você dança tão bem?

– Instinto, acho. Estava pensando sobre isso. Será que nascemos assim? Ou é algo que vamos aperfeiçoando ao longo dos anos? Tipo, você tá por aí faz um tempo. Suponho que se quiser dominar algo, é possível.

Ele riu.

– Pra falar a verdade, não sei. Talvez esteja no sangue.

– Ah, qual é. Eu não consigo imaginar o Jerome numa pista de dança.

– Ele não. Minha mãe. Ela era dançarina. Escrava de um rei, há muito, muito tempo... – o olhar de Roman se internalizou. Ele não parecia bravo, e sim nostálgico. – Claro, ele ficou bem puto quando ela engravidou. Esse tipo de situação acaba com a coreografia.

– O que aconteceu com ela? – não estava por aí há tanto tempo, mas algumas coisas nunca mudam. Escravos que irritam seus donos eram punidos ou vendidos para outro. Ou pior.

– Não sei. Jerome a levou embora, para uma vila, onde pudesse ser livre.

Franzi a testa. Não entendia bem a história de meu chefe se apaixonar por uma mortal a ponto de perder a divindade.

– Ele ficou com ela? Já era um demônio então...

– Ele nunca voltou. Conheci Jerome ano passado. No entanto, minha mãe não guardava mágoas. Falava sobre ele o tempo todo... dizia que era bonito. Não sei se enquanto anjo ou demônio. Provavelmente, ele devia ter a mesma aparência, sendo que são os mesmos seres, na verdade.

– Acho que ele não parecia o John Cusack.

– Não – Roman riu novamente –, provavelmente não. Minha mãe fazia pequenos serviços em cada vila que moramos: lavadeira, lavradora. Mas pelo menos era livre. E ainda dançava, às vezes. Eu vi uma vez, quando eu era bem novo... pouco antes de ela ser morta. Era um festival, e me lembro dela dançando em frente a uma fogueira, usando um vestido vermelho – toda a alegria sumira de Roman. – Essa imagem ficou gravada em minha mente. Entendo como um anjo pôde se apaixonar por ela.

Não fiz perguntas sobre como ela fora assassinada. Naquela época, podia ter sido algo como um ataque ou uma invasão. Eram comuns. Ou, mais provável, fora morta em um atentado contra Roman e sua irmã. Uma vez, ele mencionara que sempre estava fugindo de anjos ou demônios.

– Então, talvez tenha aprendido a dançar como um tributo inconsciente a ela – disse, tentando mudar o clima da conversa.

O semissorriso retornou.

– Ou só herdei a atração de meu pai por mulheres graciosas e sensuais.

A música terminou e ficamos ali, paralisados no tempo, ainda de mãos dadas. Foxtrote passa longe do esfrega-esfrega até o chão das boates de hoje, mas nossos corpos estavam próximos, eu parecia sentir o calor do dele. Se era real ou imaginário, não sabia dizer. Mas sei que há algo muito sedutor em dançar, em imitar o corpo do outro, então, de algum modo, não me surpreendi quando ele se inclinou para me beijar.

Eu fiquei um pouco surpresa quando correspondi ao beijo. Mas não por muito tempo. Quando nossos lábios se encontraram, percebi o quanto eu considerava Roman um apoio meigo em minha vida. De adversários, tornamo-nos amigos e depois... o quê? Não sabia dizer. Sabia que gostava de sua presença e nunca deixei de me sentir atraída por ele. Também sabia que ansiava pelo toque de alguém que gostava e tinha uma resposta instintiva automática para esse tipo de coisa.

Sua boca pressionou com força a minha, tão quente e desejosa quanto eu me lembrava. Suas mãos mudaram rapidamente da posição formal do foxtrote, deslizando-as para meus quadris e de algum jeito conseguindo me empurrar para a parede ao mesmo tempo em que puxava minha blusa para cima. Minhas mãos estavam em volta de seu pescoço, a parte debaixo do meu corpo pressionando contra o dele. Sentia meus nervos queimando e minha luxúria me atravessando.

Ele deu um jeito de se afastar apenas o suficiente para tirar minha blusa, então suas mãos moveram-se para meus seios, que estavam cobertos por um sutiã de renda branca. Ele olhou para baixo e fez uma careta quando soltou um pouco nosso beijo.

– Não dá pra você transformar naqueles que abrem na frente?

Uma leve mudança corporal e fiz o sutiã inteiro desaparecer.

– Nem precisa se dar ao trabalho – eu disse.

Ele sorriu e moveu os lábios para meu pescoço enquanto suas mãos acariciavam as curvas de meus seios. Era impossível arrancar sua camisa, mas escorreguei as mãos por baixo, amando o toque quente de sua pele e a firmeza dos músculos. Joguei minha cabeça para trás, deixando que ele sentisse meu gosto e aumentasse a intensidade dos beijos.

E, por sobre tudo aquilo, não havia vozes em minha mente. Não escutava o que falavam, não sentia seus sentimentos. Estava só – apenas com minhas reações, simplesmente aproveitando o modo como meu corpo sentia, sem interrupções. Era glorioso.

Consegui uma breve pausa para tirar sua camisa, depois minhas mãos seguiram para as calças, encaixando-nos conforme ele tentava alcançar com seus lábios meus mamilos. Ganhei e observei sua calça cair no chão. Com essa concessão, ele conseguiu me dominar também e continuou seus esforços para beijar meus seios, quase se ajoelhando em minha frente. Passei as mãos em seus cabelos, segurando sua cabeça enquanto ele chupava e lambia. Seus olhos subiram e encontraram os meus. Vi desejo e algo mais.

Algo que não esperava ver. Havia... o quê? Amor? Adoração? Afeto? Não conseguia definir, mas reconheci o padrão. Era um tapa na minha cara. Não esperava por isso. Desejo, esperava. Um instinto primitivo de me jogar no chão e transar para aliviar uma necessidade física. Achava que ele gostava um pouco de mim, mas ao mesmo tempo queria me odiar. Mas percebi que os momentos agradáveis que vínhamos tendo não tinham sido coincidência. Sua atitude azeda era só um disfarce para esconder seus sentimentos.

Roman ainda me amava.

Reconheci. Não fazia aquilo porque queria meu corpo. Ele me queria. Era mais do que um instinto físico para ele e, de repente... de repente não sabia o que fazer. Porque percebi que eu não sabia o que fazia. Estava com muito desejo e tinha ficado muito próxima dele desde que voltara para Seattle. Mas e o resto...? Não tinha certeza. Tinha tanta coisa acontecendo: Maddie, Simone, Seth... Sempre Seth. Seth, que fazia meu coração sofrer mesmo estando nos braços de outro homem. Minhas emoções eram uma mistura de confusão e dor e desespero. Estava com Roman como uma forma de reação, uma forma de preencher o vazio do meu coração e procurar falso conforto. Meus sentimentos não estavam à altura dos dele. Não podia fazer isso com ele.

Empurrei e fiquei de pé, me afastando para o corredor.

– Não – eu disse –, não posso... não posso. Desculpe.

Ele me encarou, compreensivelmente confuso e um pouco machucado, depois do ardor que eu exibira segundos antes.

– Do que você tá falando? Qual é o problema?

Não sabia nem como explicar, nem como poderia começar a articular o que sentia. Só balancei a cabeça e continuei me afastando.

– Desculpe... desculpe... Não estou pronta.

Roman levantou-se em um movimento gracioso. Deu um passo em minha direção.

– Georgina...

Mas eu já estava indo embora, entrando na segurança do meu quarto. Bati a porta atrás de mim – não por raiva, mas por uma necessidade desesperada de ficar longe dele. Ouvi-o chamar pelo meu nome, no corredor, e temi que entrasse, ignorando minha recusa em responder. Não tenho chave, e mesmo se tivesse isso não o impediria. Repetiu meu nome mais algumas vezes, e depois veio o silêncio. Achei que ele voltara para a sala, afastando-se e me dando espaço.

Voei para a cama, segurando os lençóis com força, tentando não chorar. O terrível desespero que vinha me assombrando agora me preenchia. Era um velho amigo, um que nunca me abandonaria. Todos os meus relacionamentos – amigos e amantes – são uma bagunça. Ou eu os machuco, ou eles me machucam. Não há paz para mim. Nunca haverá, não para uma serva do Inferno.

E, então, sobre aquela horrível e dominadora dor dentro de mim, senti o mais leve dos toques. Um sussurro. Um suspiro musical, colorido, iluminado. Desenterrei minha cabeça do travesseiro e olhei em volta. Não havia nada tangível, mas sentia em minha volta: o calor, o conforto da canção de sereia. Não tinha palavras, mas, no meu desespero, ouvia-a perfeitamente. Dizia que eu estava errada, que eu poderia ter paz. E não só: poderia ter conforto, amor e muito mais. Era como braços acenando, uma mãe recebendo o filho desaparecido.

Levantei-me vagarosamente da cama, seguindo na direção daquilo que não possuía forma. Venha, venha.

Do outro lado da porta, ouvi Roman gritar meu nome, mas em um tom diferente. Não era confusão ou súplica. Era desespero e preocupação. O som rangia em meus ouvidos conforme me aproximava daquele calor belo. Era o lar. Um convite. Tudo que tinha a fazer era aceitar.

– Georgina! – a porta arrebentou, e Roman entrou, flamejante de poder. – Georgina, pare...

Mas era tarde demais. Eu aceitara.

Toda a felicidade e proteção me envolveram, recebendo-me em seus braços.

O mundo se dissolveu.


Capítulo 10

Acordei na escuridão. Escuridão e sufoco.

Estava em um local pequeno, mais parecido com uma caixa, tão apertado que meus braços me abraçavam e meus joelhos estavam contra meu peito. Estranhamente, meus membros pareciam muito longos. Meu corpo todo, na verdade. Meu corpo muda a todo momento com a mudança corporal de súcubo, mas eu não estava com o mesmo aspecto de antes. Era diferente. Por um momento, aquele lugar terrível parecia muito fechado. Eu não conseguia respirar. Com grande esforço, tentei me acalmar. Havia ar suficiente. Eu conseguia respirar. E, mesmo se não conseguisse, não importava. O medo de sufocamento é um instinto humano.

Onde eu estava? Não me lembrava de nada depois do quarto. Recordava a luz e a música, e Roman entrando tarde demais. Senti seu poder crescer, ia começar a agir, mas não vi a conclusão. Agora, estava ali.

Ante meus olhos, dois seres luminescentes idênticos apareceram de repente, como tochas acesas na escuridão. Eram altos e magros, com traços esguios e andróginos. Um pano negro em volta de seus corpos parecia brilhar com uma luz própria. Longos cabelos pretos flutuavam em volta de suas cabeças, misturando-se ao tecido. Seus olhos eram de um azul radioativo impressionante, muito azuis para qualquer humano, e pareciam saltar daquelas faces longas e pálidas, nem de macho, nem de fêmea.

Outra coisa estranha é que pareciam estar de pé, à minha frente, em uma sala grande, como se estivessem a alguns metros de distância. No entanto, eu ainda estava confinada à caixa e às suas paredes invisíveis, mal podia me mexer. Exceto eles, tudo era escuridão pura e insondável. Não podia ver nem meu próprio corpo ou o resto da sala. Meu cérebro não dava conta daquele vazio espacial. Era muito surreal.

– Quem são vocês? – questionei. – O que estou fazendo aqui? – não queria perder tempo.

A dupla não respondeu imediatamente. Seus olhos eram frios e indecifráveis, mas vi presunção em seus lábios.

– Nosso súcubo – um deles disse. A voz dele (meu cérebro decidiu lhes atribuir um sexo) era grave e rouca, com um sibilo, como de uma cobra. – Nosso súcubo, enfim.

– Foi mais difícil te pegar do que imaginávamos – adicionou outra voz, idêntica. – Achamos que sucumbiria mais rapidamente.

– Quem são vocês? – repeti, a raiva me queimava. Revolvi-me, em uma tentativa fútil de escape. Meus limites eram tão apertados que quase não havia espaço para esmurrar as paredes inexistentes.

– Mãe vai ficar contente – disse o primeiro.

– Muito contente – confirmou o outro.

O modo como alternavam as frases me lembrou de como Grace – a ex-demônio-tenente de Jerome – e Mei interagiam. Tinham aquele estilo charmoso, moderadamente assustador de O iluminado. Isso... isso era algo diferente. Algo terrível, frio, irritando meus sentidos como unhas numa lousa.

– Mãe vai nos recompensar – disse Um. Decidi nomeá-los Um e Dois para facilitar o processamento mental. – Vai nos recompensar quando se libertar, quando escapar dos anjos.

– Quem é a mãe de vocês? – perguntei. Uma suspeita perturbadora se formava.

– Vamos vingá-la até que o possa fazer por conta própria – disse Dois. – Você vai sofrer pela traição.

– Nyx – murmurei. – Nyx é a mãe de vocês. E vocês são... vocês são oneroi.

Não responderam, o que interpretei como concordância. Minha cabeça girava. Oneroi? Como isso acontecera? Oneroi são um tipo de demônio do sonho – mas não como os demônios com quem eu interajo. Céu e Inferno são forças do universo, mas oneroi são outra coisa, que existem paralelamente ao sistema em que eu habitava. Nyx é uma dessas forças, uma entidade do caos, dos primórdios dos tempos, quando o mundo fora criado da desordem.

E os oneroi são seus filhos.

Sabia alguma coisa sobre eles, mas nunca os vira – nem esperava vê-los. Visitam sonhos, se alimentando deles. Nyx fizera isso também, mas de um modo um pouco diferente. Manipulou as pessoas para que vissem o futuro em sonhos – uma versão de futuro distorcida, que não se desdobrava como o sonhador esperava. Isso levava a ações loucas, que geravam o caos no mundo, permitindo que ela ficasse mais forte. Também se alimentara diretamente de minha energia, sugando-a em sua forma mais pura e me distraindo com meus sonhos.

Mas os oneroi se alimentam dos sonhos em si, derivando seu poder das emoções e das realidades abastecidas pelo sonhador. Pelo que sei, eles têm o poder de manipular os sonhos, mas raramente tinham motivos para isso. Humanos fornecem sonhos, esperanças e medos o suficiente. Não precisam de ajuda externa.

Isso é tudo que sei sobre oneroi, mas é o suficiente. Estar ciente da situação me dava poder.

– Então, do que isso se trata? Me pegaram por causa da Nyx? Não fui eu quem a prendeu. Foram os anjos.

– Você os ajudou – disse Um. – Levou-os até ela.

– E depois se recusou a salvá-la – acrescentou Dois.

Com um espasmo, lembrei-me daquela horrível noite, quando Carter e seus capangas recapturaram Nyx depois de uma devastação em larga escala em Seattle. Um anjo morrera naquela noite. Outro caíra. E Nyx havia me prometido que mostraria meu futuro e uma família com um homem que amaria se eu lhe desse o resto de sua energia e a libertasse.

– Ela estava mentindo – eu expliquei. – Ela estava me prometendo algo que não poderia cumprir.

– Mãe sempre mostrou a verdade – disse Um. – Sonhos podem ser mentiras, mas a verdade é a verdade.

Achei que mostrar a redundância da frase era inútil.

– Bem, tenho certeza de que ela vai gostar do presente de Dia das Mães, mas estão perdendo seu tempo. Jerome vai vir me buscar. Meu arquidemônio. Ele não vai me deixar ficar aqui.

– Ele não vai te achar – disse Dois. Dessa vez, definitivamente percebi presunção. – Ele não consegue te achar. Você desapareceu.

– Você está enganado – repliquei, com um pouco da minha própria presunção. – Não há lugar no mundo onde ele não possa me achar – isso, claro, assumindo que eles não tivessem escondido minha aura imortal. Pelo que sei, apenas imortais superiores têm essa capacidade. Não sei se oneroi entravam nessa categoria.

Um chegou a sorrir. Nada atraente.

– Você não está mais no mundo. Não no mundo mortal. Você está no mundo dos sonhos.

– Você é um de muitos sonhos – explicou Dois. – Um sonho entre todos os sonhos da humanidade. Sua essência está aqui. Sua alma. Perdida num mar de incontáveis almas.

Meu medo impediu de fazer uma observação sobre sua mudança brusca para a metáfora. Não compreendia a metafísica do universo e suas camadas. Mesmo se alguém tivesse me explicado, era algo além da compreensão de um mortal, imortal inferior ou outro ser feito-não-nascido. Havia um mundo de sonhos, um mundo sem forma com quase tanto poder quanto o mundo físico em que vivia. Era possível prender minha essência nele e a escondê-la de Jerome? Tinha tantas dúvidas que não é possível descrever.

– E daí? – perguntei, tentando mostrar arrogância, mas soando tão desconfortável quanto me sentia. – Vão me manter nessa caixa de mímico e se sentir orgulhosos?

– Não – disse Um. – Você está no mundo dos sonhos. Vai sonhar.

O mundo se dissolveu novamente.

***

Era o dia do meu casamento.

Eu tinha quinze anos de idade, chave de cadeia no século XXI, mas idade suficiente para se casar na Chipre do século IV. E alta o suficiente também. Os oneroi me enviaram para uma memória ou sonho de memória ou algo do tipo. Não era como os sonhos em que Nyx me colocava. Assistia a mim mesma, como a um filme... porém, ao mesmo tempo, eu estava em mim, vivendo uma experiência muito normal.

Era um sentimento desorientador, agravado pelo fato de que eu não queria nunca mais me ver como humana. Vender a alma tem algumas desvantagens, mas havia benefícios também: a habilidade de mudar de forma e nunca mais precisar usar o corpo que cometera tantos pecados dolorosos na minha vida mortal.

No entanto, lá estava eu, e não conseguia não olhar. Era como estar no Laranja mecânica. Minha versão mais jovem tinha quase um metro e oitenta, alta para os padrões atuais, e gigante para uma mulher em uma época em que todos eram mais baixos. Quando dançava, conseguia fazer bom proveito daquele corpo longo e todos aqueles membros, movendo-me com graça e facilidade. No dia a dia, preocupava-me muito com minha altura, sentindo-me inadequada e anormal.

Observar minha antiga eu andar, pelo lado de fora, impressionou-me por ver que não era tão desajeitada quando achara. Mas não deixei de sentir nojo daquele cabelo longo, preto até a cintura, e o rosto sofrível. Mesmo assim, era surpreendente ver realidade (se é que era) e memória misturadas.

Amanhecia, e eu carregava uma ânfora de óleo para um depósito atrás da casa de minha família. Meus passos eram leves, com cuidado para não derrubar nada, e mais uma vez maravilhei-me com o modo como eu andava. Deixei o vaso ao lado de outros dentro do barracão e me direcionei para a casa. Mal tinha dado dois passos quando Kyriakos, meu noivo, aparecera. Havia uma expressão secreta em sua face, que instantaneamente me contou que ele tinha ido furtivamente até lá para me achar, e eu sabia muito bem que ele não deveria ter feito isso. Era uma atitude corajosa pouco característica dele, e eu reclamei da indiscrição.

– O que você está fazendo? Você vai me ver hoje à tarde... e todos os dias em diante!

– Eu tinha que lhe entregar isto antes do casamento – ele levantou um colar de miçangas de madeira, pequenas e perfeitas, com pequenas ankhs gravadas em cada uma. – Era da minha mãe. Queria que você o usasse hoje.

Ele inclinou-se, colocando o colar em meu pescoço. Quando seus dedos roçaram minha pele, senti algo quente e arrepiante pelo meu corpo. Na tenra idade de quinze anos, não entendia aquelas sensações, mas queria muito explorá-las. Meu eu mais sábio de hoje as reconhece como os primeiros estímulos do desejo e... bem, havia algo a mais também. Algo que não compreendia. Uma conexão elétrica, uma sensação de que estávamos predestinados a algo maior do que nós mesmos. De que estarmos juntos era inevitável.

– Pronto – ele disse, quando o colar estava no lugar e meu cabelo arrumado. – Perfeito.

Não disse nada depois disso. Não precisava. Seus olhos me contaram tudo que precisava saber, e estremeci. Antes de Kyriakos, nenhum homem ao menos tinha me olhado. Afinal de contas, eu era a filha alta demais de Marthanes, a que tinha a língua afiada, que falava sem pensar. Mas Kyriakos sempre me escutara e me observara como se eu tivesse algo mais, algo tentador e desejável, como a bela sacerdotisa Afrodite, que ainda praticava seus rituais longe dos sacerdotes cristãos.

Queria que ele me tocasse, sem perceber o quanto até que peguei sua mão, coloquei-a na minha cintura e puxei-o contra mim. Seus olhos se arregalaram de surpresa, mas ele não se afastou. Éramos quase da mesma altura, facilitando o caminho de sua boca até a minha, culminando em um beijo devastador. Encostei-me contra a parede de pedra morna atrás de mim, pressionada entre os dois. Sentia cada parte de seu corpo contra o meu, mas ainda não estávamos próximos o suficiente. Nem um pouco próximos.

Nossos beijos ficavam mais ardentes, como se nossos lábios conseguissem diminuir qualquer distância dolorosa ente nós. Movi sua mão novamente, dessa vez colocando-a embaixo de minha saia, em cima de uma das pernas. Sua mão acariciou a carne macia e, sem precisar pedir, deslizou-se para o lado interno da minha coxa. Arqueei a parte de baixo do meu corpo contra a dele, quase me contorcendo contra ele, necessitando seu toque por toda a parte.

– Letha? Onde você está?

A voz de minha irmã foi trazida pelo vento; ela não estava por perto, mas poderia aparecer se me procurasse. Kyriakos e eu nos afastamos, arfando, pulsos acelerados. Olhava-me como se fosse a primeira vez. Calor queimava em seu olhar.

– Você já esteve com alguém antes? – perguntou, espantado.

Neguei balançando minha cabeça.

– Como você... Nunca a imaginara fazendo isso...

– Aprendo rápido.

Ficamos lá, congelados no tempo por um instante. Depois, puxou-me de volta, seus lábios chocando-se contra os meus uma vez mais. Suas mãos voltaram para meu vestido, levantando-o até a cintura. Segurou meus quadris nus com firmeza e pressionou seu corpo contra o meu. Senti sua dureza contra mim, senti meu corpo responder a algo que parecia novo e natural ao mesmo tempo. Dedos deslizaram, sentindo a umidade entre minhas coxas. Seu toque era como fogo, gemi, querendo que ele me estimulasse mais e mais.

Em vez disso, virou-me, deixando-me de frente para a parede. Com uma mão, mantinha a saia levantada e, com a outra, tive a vaga impressão de estar mexendo em suas próprias roupas. Pouco depois, penetrou em mim. Foi um choque, algo completamente inédito. Eu dissera a verdade: nunca tinha estado com outro homem. E mesmo molhada de desejo, tê-lo pela primeira vez dentro de mim doía. Ele parecia muito grande, e eu, muito pequena.

Gritei de dor, um tipo estranho de dor, pois não diminuía o fogo crescente em mim. Suas investidas eram fortes e urgentes, sem dúvida abastecidas pelos sentimentos que há tempo contive. Depois de um tempo, a dor inicial se tornou irrelevante. O prazer começou a crescer conforme ele entrava e saía. Curvei-me em uma posição que ele pudesse ir mais fundo. Colocou com mais força e novamente gritei de surpresa e dor gostosa. Ouvi um gemido abafado, e então seu corpo encolheu conforme terminava, seus movimentos enfim desacelerando.

Quando terminou, retirou-se de mim, e eu me virei. Era a primeira vez que o via nu. Havia sangue e sêmen em nós, os quais tentei limpar de minhas coxas antes de deixar o vestido voltar ao lugar. Tomaria um banho antes do casamento mesmo.

Kyriakos terminava de se vestir quando ouvimos meu nome novamente. Dessa vez, era minha mãe. Olhamo-nos maravilhados, mal acreditando no que acabáramos de fazer. Eu estava radiante de amor, alegria sexual e um conjunto de novos sentimentos que queria explorar até o mínimo detalhe. O medo de minha mãe nos afastou.

Dando um passo para trás, ele sorriu e pressionou minha mão contra seus lábios.

– Hoje – ele suspirou –, hoje nós...

– Hoje – concordei –, faremos de novo. Eu te amo.

Ele sorriu, seus olhos ardentes, depois correu para não sermos pegos. Observei-o ir, meu coração repleto de alegria.

O resto do dia passou em uma névoa de sonho, em parte devido à enorme quantidade de atividades para o casamento, parte devido ao que acontecera com Kyriakos. Tinha uma vaga ideia do que ocorreria na noite de núpcias, mas meus devaneios nunca tinham se aproximado da realidade. Deslizei pelo resto do dia, impaciente para me tornar a esposa de Kyriakos e fazer amor repetidamente.

O casamento seria na minha casa, então havia trabalho suficiente (sem contar minha preparação) para quase me manter distraída. Conforme a cerimônia se aproximava, fui lavada e vestida em minha roupa nupcial: uma túnica marfim, de tecido precioso, e um véu vermelho-fogo. Precisava ajoelhar para que minha mãe pudesse ajustar o véu e ouvi muitas piadas de minha irmã sobre meu tamanho.

Não importava. Nada importava, exceto Kyriakos e eu juntos para sempre. Logo, convidados começaram a chegar, e meu coração acelerava. Antecipação e o calor do dia me faziam suar, e me preocupei se estragaria o vestido.

Alguém avisou que Kyriakos e sua família chegavam. A excitação no ar ficou palpável, dividida por todos. Entretanto, quando Kyriakos chegou, invadiu a casa, ignorando a procissão tradicional e a cerimônia imponente. Por meio segundo, um pensamento ingênuo de que Kyriakos – com seu amor incandescente por mim – não poderia esperar todo o processo. Logo entendi.

Com o rosto desfigurado de fúria, ele marchou até meu pai.

– Marthanes – urrou Kyriakos com dedo em riste –, você me insulta se acha que vou dar continuidade a esse casamento.

Meu pai ficou surpreso – algo pouco comum. As pessoas me reprimiam por minha língua afiada, mas só por ser mulher. Não era páreo para meu pai, que intimidava homens com o dobro de seu tamanho. (Era uma triste ironia eu ser uma mulher alta, meu pai, um homem baixo.) Poucos momentos depois, meu pai recuperou sua bravata característica.

– Claro que vai! – ele exclamou. – Fizemos o noivado. Pagamos o dote.

O pai de Kyriakos estava lá também, e, julgando suas roupas elegantes e sua expressão surpresa, isso tudo era uma novidade para ele. Ele colocou a mão no ombro do filho.

– Kyriakos, qual é o problema?

– Ela – respondeu Kyriakos, apontando o dedo para mim. Seu olhar balançou para meu rosto. Eu recuei com sua força, como se tivesse sido estapeada. – Não vou casar com a filha prostituta de Marthanes.

Houve suspiros e murmúrios de todos a nossa volta. A face de meu pai enrubesceu.

– Você está me insultando! Todas as minhas filhas são castas. São todas virgens.

– São? – Kyriakos virou-se para mim. – Você é?

Todos os olhos se viraram para mim. Empalideci. Minha língua ficou seca. Não conseguia reunir nenhuma palavra.

Meu pai jogou as mãos para cima, exasperado pelo absurdo da situação.

– Diga-lhes, Letha. Responda para que terminemos com isso e peguemos nosso dote de volta.

Kyriakos tinha um lampejo perigoso nos olhos.

– Sim, responda para que terminemos com isso. Você é virgem?

– Não, mas...

O caos irrompeu. Homens gritavam. Minha mãe chorava. Os convidados se dividiam em chocados e divertidos com o novo escândalo. Desesperadamente, tentei encontrar minha voz e gritar sobre a algazarra.

– Foi apenas com o Kyriakos! – gritei. – Hoje foi a primeira vez!

Kyriakos se virou de onde estivera falando para meu pai que o dote não seria devolvido. Olhou para mim.

– É verdade – ele disse. – Fizemos hoje. Ela se abriu para mim tão facilmente e com tanto conhecimento quanto uma prostituta, implorando que a possuísse. Não há como dizer para quantos ela já se ofereceu – ou se oferecia durante nosso casamento.

– Não! – exclamei. – Não é verdade!

Mas ninguém me ouviu. Havia muita discussão. A família de Kyriakos estava furiosa com o insulto. Minha família estava eriçada com os xingamentos. Meu pai tentava fazer o possível para conter os danos, apesar de saber que minha confissão tinha nos amaldiçoado. Sexo pré-matrimonial não era incomum nas classes mais baixas, mas, como éramos a família de um negociante, modelávamos nossos costumes aos da nobreza – ou pelo menos fingíamos. A virtude de uma moça era sagrada, refletia seu pai e sua família como um todo. Isso desgraçara a todos – e teria sérias repercussões para mim. Como Kyriakos bem sabia.

Ele aproximou-se de mim, para que pudesse ouvi-lo.

– Agora todos sabem – falou, em voz baixa. – Todos sabem o que você é.

– Não é verdade – eu disse, chorando. – Você sabe que não é.

– Ninguém vai te querer agora – ele continuou. – Ninguém decente, pelo menos. Você vai passar o resto da vida de costas, abrindo suas pernas para quem quer que seja. E, no final, vai ficar sozinha. Ninguém vai ter querer.

Apertei meus olhos para tentar interromper as lágrimas, mas, quando os reabri, estava rodeada por escuridão.

À minha frente, os oneroi brilhavam mais do que antes, acendidos por dentro, com aquela luz sinistra.

– Um sonho interessante – disse Dois, com o que acho que pode ser chamado de sorriso. – Nos deu muito alimento.

– Não é verdade – eu disse. Havia lágrimas em minhas bochechas, como também havia quando eu estava dormindo. – Aquilo não foi real. Foi uma mentira. Não foi assim que aconteceu.

O sonho embaralhava minha mente, quase me fazendo questionar, mas minhas memórias ganharam. Lembrava-me daquele dia. Lembrava-me de ter beijado Kyriakos no galpão, e como fomos embora, mais fortes por saber que logo seríamos marido e mulher, tornando nossa noite de núpcias ainda mais doce. E fora doce. Não fora apressada, contra a parede. Aproveitamos o tempo para explorar o corpo um do outro. Ele ficara sobre mim, olhando em meus olhos – não para as minhas costas. Dissera-me que eu era sua vida. Que eu era seu mundo.

– É mentira – repeti com firmeza, observando os oneroi com raiva. – Não foi assim que aconteceu – eu sabia que estava certa, mas sentia necessidade de repetir, para garantir a veracidade das palavras.

Um deu de ombros, despreocupado.

– Não importa. Eu te avisei: a Mãe mostra a verdade. Mas sonhos? Sonhos são sonhos. Podem ser verdade ou mentira, e todos nos proporcionam alimentos. E você? – ele sorriu um sorriso idêntico ao do irmão. – Você vai sonhar... e sonhar... e sonhar...


Capítulo 11

Estava em Seattle. A Seattle atual, felizmente. Não queria nem passar perto do século IV, mas temia a visão que os oneroi me mostrariam dessa vez.

Não só estava em Seattle como estava com Roman. Ele tinha acabado de estacionar na rua Cherry e avançava a passos largos em direção ao coração do Pioneer Square, repleta de turistas e outros transeuntes aproveitando a noite límpida de outono. Dessa vez, eu não estava no sonho. Era apenas uma observadora, seguindo-o como um fantasma, ou talvez uma câmera de reality show. Queria falar com ele, me comunicar de alguma forma, mas eu não tinha boca com a qual falar. Não tinha forma, nem nada, somente minha consciência observava.

Seu ritmo era rápido. Empurrava a multidão sem se preocupar com os olhares feios e ocasionais comentários. Estava concentrado em seu destino, que reconheci de imediato: o Cellar. O local preferido dos imortais estava repleto de mortais. Mas, sabe-se lá a razão, não importa quão cheio esteja, Jerome sempre consegue a mesma mesa, no canto, nos fundos. Estava sentado com Carter, mas não parecia o despreocupado bebedor de sempre. A face do demônio estava agitada, Carter e ele discutiam.

A assinatura de Roman estava disfarçada, então nem anjo nem demônio perceberam sua aproximação. Jerome lançou-lhe um olhar fulminante, sem dúvida imaginando o que aquele humano queria. Sua expressão mudou assim que viu quem era, e ele abriu a boca para dizer algo. Não conseguiu, Roman falou primeiro:

– Onde ela tá? – exigiu saber. Sentou-se em uma cadeira e empurrou-a na direção de Jerome. De modo que pai e filho olhavam-se nos olhos. – Onde tá a porra da Georgina?

A música e a conversa encobriam a maior parte da sua gritaria, mas alguns fregueses por perto olharam assustados. Roman nem percebia. Sua total atenção em Jerome. Raiva estalava em volta do nefilim, como uma aura.

Jerome estava angustiado com algo quando Roman chegara, mas agora, na presença de um ser inferior, o demônio vestira a típica expressão fria e soberba.

– Engraçado – começou Jerome –, ia te perguntar a mesma coisa.

Roman ficou furioso.

– Porra, como eu posso saber? Ela desapareceu bem na minha frente! Você que devia ter uma conexão divina com ela.

A face de Jerome não se moveu, mas suas palavras eram como um soco no estômago para Roman e mim.

– Não posso mais senti-la. Ela desapareceu para mim também.

Poderia não ter uma forma física, mas um medo gelado correu por mim mesmo assim. Um arquidemônio é conectado com seus subordinados. Sempre sabe onde estão e se sofrem. Quando Jerome fora enfeitiçado, a conexão fora quebrada, extinguindo nossos “dons” infernais. Agora, era o oposto. Eu fora enfeitiçada, por assim dizer, e separada de Jerome. As palavras dos oneroi voltaram: Ele não vai te achar. Não consegue te achar. Você desapareceu.

– É impossível – rosnou Roman. – A não ser... – um olhar perturbado surgiu em sua face. – Alguém pode estar escondendo sua assinatura? – seria muito irônico se o plano que ele traçara fosse executado por outro.

Jerome balançou a cabeça e fez o gesto de mais uma rodada para o garçom.

– Eu não conseguiria encontrá-la, mas a ligação existiria. Eu saberia que ela ainda existe.

Você desapareceu.

– Ela... ela tá morta? – a fúria de Roman diminuíra um pouco.

Não era uma questão insensata, na verdade. Eu me sentia como morta.

– Não. A alma dela teria aparecido no Inferno – Jerome deu um gole de sua nova bebida e estreitou os olhos para Roman. – Mas você não tem que ficar fazendo perguntas. O que você sabe? Você disse que ela desapareceu. Literalmente?

O rosto de Roman estava absolutamente sombrio. Ele olhou entre Jerome e um soturno, porém silencioso, Carter.

– Sim. Literalmente. Ela vinha tendo esses... Não sei explicar. Nem ela sabia.

– Eu sei – lembrou-lhe Jerome –, ela me falou. A música. As cores – o desdém em sua voz deixou claro que ele encarava aquelas coisas como chateações.

– Era como uma força estranha que a atraía, encantava. Queria seduzi-la – Roman repetia informação velha, possivelmente para forçar Jerome a levar o assunto mais a sério. – Ela chamava de canção de sereia e agia como sonâmbula, tentando alcançar a música. E então... e então, hoje, ela conseguiu.

– Você viu? – perguntou Carter. Era estranho vê-lo tão sério e... confuso. Eu vira seriedade nele um punhado de vezes; confusão, nunca.

– Vi quando ela desapareceu. Tipo, sumir sem deixar rastro. Mas não vi exatamente. Senti. Sentia sempre que a coisa estava por perto.

– Como você sente? – perguntou Jerome.

Roman deu de ombros.

– Não sei. Só... uma força. Um poder. Não é bem uma entidade. E não é algo que possa identificar. Não é um imortal superior nem nada.

– Isso – declarou Jerome – é absolutamente inútil.

A raiva de Roman voltou.

– É tudo que temos. Você deixou isso acontecer. Não levou a sério, e agora ela se foi.

Gritar com o Jerome. Nada bom.

– Tome cuidado, posso revogar seu convite – sibilou o demônio com os olhos cravados no filho. – Eu ouvi, sim. Mandei você cuidar dela. Você, aparentemente, foi quem “deixou” isso acontecer.

Roman enrubesceu.

– Eu estava no quarto quando a coisa apareceu de novo. Fui o mais rápido que pude, mas já era tarde demais. Georgina já tinha se deixado levar, e, honestamente, não sei se eu teria conseguido impedir, de qualquer jeito.

Roman tem um grande privilégio. Nefilins podem não herdar nada ou até mesmo todos os poderes de seu genitor imortal. Roman tem quase todo o poder de Jerome, mas ainda fica um pouco atrás. Além disso, os tipos de poderes manejados por imortais superiores e inferiores diferem. Como um tipo de híbrido, Roman pode não ser capaz de lutar contra algo que Jerome, por sua vez, teria capacidade.

Jerome não insistiu no assunto:

– Então, ainda não sabemos nada.

– Sabemos que, seja lá o que for, não é dos nossos – falou, enfim, Carter, em voz baixa.

– Sim – retrucou Jerome –, o que faz restar um bilhão de possibilidades. A não ser...

Olhou para uma das cadeiras da mesa. Estava vazia. No momento seguinte, Simone sentava a ela. Carter não pareceu surpreso, mas Roman e eu, sim. E ela estava muito surpresa, como mostraram seu grito de medo e expressão confusa. Ser teletransportada por um imortal superior não é uma experiência agradável.

Estava loira, vestida com uma blusa simples e jeans. Um sinal de sua agitação foi não ter aumentado o decote quando viu Carter.

– O que... o que está acontecendo? – ela balbuciou.

– O que você fez com a Georgina? – perguntou Jerome.

Seus olhos ficaram enormes. Ele ainda estava à guisa de John Cusack, mas, ao encará-la, era fácil perceber que, na verdade, era um demônio do Inferno.

– Nada! – gritou Simone. Ela encolheu-se na cadeira. – Não sei do que você está falando!

Jerome levantou da cadeira tão rapidamente que pareceu ter se autoteletransportado. Também forçou Simone a se levantar e a empurrou contra a parede mais próxima, segurando-a pela garganta. Já estive na mesma situação e senti pena do outro súcubo. Ninguém mais no bar percebia o que estava acontecendo. Ou Jerome estava os encantando ou fazendo com que Simone e ele ficassem invisíveis.

– Não minta para mim! – ele exclamou. – O que você fez? Quem você arranjou para fazer isso?

Entendi sua lógica. O que Roman percebera poderia não ser um anjo ou um demônio, mas não era impossível que alguém do nosso lado tivesse trabalhado em conjunto com uma entidade desconhecida. Não seria a primeira vez. Roman também entendera e levantou para ficar ao lado do pai.

– Eu juro: se você a machucou, vou acabar contigo!

O medo de Simone arrefeceu por alguns segundos enquanto ela encarava Roman, confusa. Com sua assinatura escondida, ele parecia um humano. Para ela, ele não tinha nenhum envolvimento com isso – e nenhuma habilidade para ajudar na ameaça. Mal sabia...

Ela se virou para Jerome, contraindo-se a ver seu rosto novamente.

– Nada – ela respondeu, sua voz difícil de entender enquanto Jerome a enforcava. – Não fiz nada para ela, eu juro!

– Você tava tentando dormir com o Seth – disse Roman.

– Só isso! Eu não fiz nada para ela. Nada – a expressão de Simone se tornou suplicante ao falar com Jerome: – Você deve saber por que estou aqui. Não é para prejudicá-la.

O rosto de Jerome ainda estava repleto de fúria terrível, mas havia também um esgar de consideração em seus olhos. Ele não disse nada, e foi a voz de Carter que quebrou o tenso silêncio.

– Ela tá falando a verdade – ele disse.

Jerome não largou Simone, mas ainda fazia cálculos por trás de seu olhar.

– Sabe de algo sobre seu desaparecimento? Qualquer coisa?

– Não! Não!

Jerome olhou de volta para Carter, que assentiu rapidamente. Com um suspiro de desapontamento, Jerome soltou-a e recuou. Roman parecia indeciso, mas ele sabia que, se Carter havia dado o voto de confiança, era a palavra de Deus, por assim dizer. Jerome voltou para sua cadeira e virou sua bebida em uma golada. Roman retornou logo em seguida, mas Simone continuou de pé, observando o grupo, desconfiada enquanto esfregava a garganta dolorida.

– Não sei o que está acontecendo, mas se houver algo que...

– Cai fora – disse Jerome, áspero. Balançou a mão, dispensando-a, e Simone desapareceu tão rapidamente quanto aparecera.

– Que maldade – comentou Carter, mexendo seu bourbon de modo indolente.

– Mandei-a de volta ao hotel – disse Jerome. – Não para uma ilha deserta.

A raiva de Roman esfriara um pouco, sua expressão estava calma, pensativa, incrivelmente parecida com a de seu pai.

– O que ela quis dizer quando falou que você sabia por que ela estava aqui? Por que eu a segui?

– Não posso reportar isso – disse Jerome. Falava com Carter como se Roman não estivesse lá. – Não ainda... a não ser que eu seja obrigado. Não podemos deixar nenhuma autoridade superior saber.

– E eu não posso fazer nada mesmo – meditou Carter. – Tecnicamente, é um problema de vocês – deu um longo gole, como se isso fosse consertar tudo.

– Mas você vai fazer – disse Roman, audacioso. – Você vai tentar achá-la?

– Claro – respondeu Carter. Um de seus sorrisos cínicos, sua marca registrada, substituiu a expressão soturna de antes. Suspeitei ser um disfarce para como ele realmente estava se sentindo. – Esse lugar ficaria chato sem ela.

Por um segundo, gostei dessa história de observador invisível. Carter não tinha a mínima ideia de que eu estava lá, e, pela primeira vez, pude realmente estudá-lo sem ele perceber. Ele poderia estar com aquele ar irritante de leveza agora, mas já tinha mostrado preocupação com a minha segurança. E eu não acreditava realmente que seria apenas por me achar divertida. Qual é o jogo dele? Aqueles olhos cinza não revelam nada.

– Sim – disse Jerome secamente. – Como vamos nos virar sem suas aventuras piegas?

Carter começou a protestar, mas, novamente, Roman o interrompeu.

– Ah, tem outra coisa: falamos com o Erik. – Então, resumiu as observações de Erik e como eu era visitada apenas quando estava deprimida. Roman também descreveu cada incidente o mais detalhadamente possível.

Jerome e Carter trocaram olhares.

– Como ela está sempre pra baixo, não temos uma dica muito boa – afirmou o demônio. – Mas pode valer a pena visitar o velho.

– Jerome – disse Carter, com uma voz alarmada.

Os dois se olharam novamente e realizaram algum tipo de comunicação silenciosa. Quando Jerome finalmente olhou para o lado, foi apenas para pegar sua bebida recém-servida.

– Não se preocupe. Não vou assustá-lo. Muito.

Imaginei se ele procuraria o Erik de imediato, mas não tive tempo de descobrir. O mundo se dissolveu mais uma vez, e me encontrei de volta em minha prisão. Além de muito desconfortável, estava exausta. Estudando os oneroi sorridentes e brilhantes, pude imaginar o que acontecera: alimentando-se com meu sonho, sugaram minha energia também.

– Sonho... – eu murmurei, de repente confusa. Preparara-me para um final terrível, mas não acontecera. – Não foi um sonho. Foi real. Vocês me mostraram o que realmente estava acontecendo. O que meus amigos estavam fazendo.

– Alguns sonhos são reais, outros são mentiras – disse Dois. Queria bater na cara dele. – Este fora verdade.

Uma história veio à mente, uma memória fraca de minha infância. Sacerdotes cristãos estavam estabelecidos em Chipre há anos quando eu nasci, mas velhas histórias e rituais permaneciam. Coisas consideradas mitos hoje em dia eram vistas como fatos na época. Uma dessas histórias dizia que sonhos eram mandados aos humanos por dois portais: um de marfim e outro de chifre. Os do portal de marfim eram falsos; os do portal de chifre, verdadeiros. Eu não sabia se era apenas uma metáfora, mas parecia ter algo de verdade.

– Mas por quê? – perguntei. – Por que me mostrar sonhos reais? Me afligiriam muito mais com outro pesadelo idiota – aquele pesadelo não tinha sido idiota. Tinha sido torturador, mas não queria que eles soubessem. Idiota é dar sugestão de como me atormentar.

– Porque você não sabe – disse Um. – Logo você não vai saber distinguir a verdade da mentira. Você acha que tudo que causa dor é mentira. Mas não saberá mais. Logo, não vai confiar em mais nada.

– Eu saberei – disse, determinada. – Eu sei diferenciar.

– Você acha que o que viu foi verdade? – perguntou Dois.

– Sim. Com certeza.

– Ótimo – disse Um –, então você aprendeu outra verdade: é impossível eles te acharem. Ficará aqui para sempre.


Capítulo 12

Em certo momento, desejei que os oneroi só me enviassem sonhos falsos. Eles doem, sem dúvida, mas há um pequenino conforto em saber, depois, que aquilo não acontecera. Porém, os sonhos seguintes foram reais e fui forçada a reviver o passado.

Uma memória me levou de volta à Florença do século XV. Primeiramente, senti uma pequena alegria desabrochando ao repetir aquilo. A Renascença italiana tinha sido uma época bela, e fiquei maravilhada ao ver a inventividade humana acordar depois dos deprimentes séculos anteriores. As coisas estavam ainda mais interessantes por que a Igreja se postava contra aquele florescimento artístico. O tipo de conflito que me deliciava.

Outro súcubo e eu dividíamos uma casa, vivendo luxuosamente graças a um negócio de tecidos que gerenciávamos de modo ostensivo quando nosso tio mercador (um íncubo ausente) viajava. Era um bom arranjo, e eu – usando o nome Bianca – era a filha favorita da demônia local, Tavia, graças às minhas inúmeras conquistas.

As coisas começaram a degringolar quando contratei um excêntrico e extremamente bonito pintor chamado Niccolò para pintar um afresco em nossa casa. Ele era exibido, engraçado, inteligente – e se sentira atraído por mim desde o primeiro dia. No entanto, um senso de decoro e profissionalismo fizeram com que ele mantivesse distância. Era algo que eu queria mudar e frequentemente lhe fazia companhia enquanto trabalhava na parede, sabendo que seria questão de tempo para ele ceder aos meus encantos.

– Ovídio não sabia nada sobre amor – disse-lhe, um dia. Estava estirada no sofá, entretida nas discussões literárias que tínhamos com frequência. Sua habilidade em se ocupar com essas conversas aumentavam seu magnetismo. Olhou-me com incredulidade fajuta, interrompendo a pintura.

– Nada sobre amor? Mulher, você vai morder a língua! Ele é a autoridade! Escreveu livros sobre isso. Livros que ainda são lidos e usados hoje em dia.

Levantei-me do repouso deselegante.

– Não são relevantes. Foram escritos para outros tempos. Ele devota páginas contando a homens onde encontrar mulheres. Mas esses lugares não existem mais. Mulheres não vão mais a corridas ou lutas. Nem podemos relaxar em áreas públicas mais – a fala saíra com mais ressentimento do que eu queria. A cultura artística da época era maravilhosa, mas veio com uma restrição aos papéis femininos, que diferiam daqueles com os quais me acostumei em outros lugares e épocas.

– Talvez – concordou Niccolò –, mas os princípios são os mesmos. E as técnicas também.

– Técnicas? – reprimi uma bufada. Honestamente, o que um mero mortal pode saber sobre técnicas de sedução? – Não são nada mais do que gestos superficiais. Elogiar sua amante. Falar sobre coisas que tenham em comum, como o tempo. Ajudá-la a arrumar um vestido amassado. O que isso tem a ver com o amor?

– Há alguma coisa a ver com o amor atualmente? No mínimo, os comentários são ainda mais aplicáveis hoje em dia. Casamento é um negócio – virou sua cabeça em minha direção, de maneira especulativa, como sempre fazia. – Você fez alguma coisa com o cabelo hoje que ficou lindo, por falar nisso.

Parei, distraída pelo elogio.

– Obrigada. De qualquer modo, você está certo: casamento é um negócio. Mas alguns são combinações amorosas. Ou o amor pode nascer. E muitos casos clandestinos, não importa quão “pecaminosos”, são baseados em amor.

– Então, seu problema é que Ovídio está arruinando o que sobrou do amor? – seus olhos vaguearam até a janela e se cerraram. – Será que vai chover?

O fervor do assunto me agarrara, tornando suas interrupções abruptas ainda mais irritantes.

– Sim... quê? Quer dizer, não, não vai chover, e, sim, é o que ele faz. O amor já é tão raro. Considerá-lo um jogo barateira o pouco que sobrou.

Niccolò largou os pincéis e tintas e sentou-se ao meu lado no sofá.

– Você não acha que o amor é um jogo?

– Às vezes – tudo bem, a maior parte do tempo –, sim, mas isso não significa que não devemos... – parei. Seus dedos tinham deslizado para a borda do meu decote. – O que você está fazendo?

– Está amassado. Estou arrumando.

Olhei e comecei a rir quando a calúnia se revelou.

– Você está fazendo! Está seguindo o conselho.

– Está funcionando?

Estendi a mão para ele.

– Sim.

Ele se afastou. Não era o que esperava. Só queria me perturbar, me convencer com um jogo. Evitando me olhar, começou a se levantar.

– Tenho que voltar ao trabalho... – raramente ele era pego de surpresa, eu havia conseguido desarmá-lo.

Segurando-o com força surpreendente, puxei-o para mim e pressionei meus lábios contra os seus. Eram macios e doces, e depois de alguns momentos perplexos, respondeu com a língua se movendo ardentemente para dentro de minha boca. Percebendo o que estava fazendo, afastou-se novamente.

– Desculpe. Eu não devia...

Eu via o desejo em seus olhos, o desejo que ele continha desde que começara a trabalhar para mim. Ele me queria, mas mesmo um tipão artístico malandro como ele achava errado fazer aquilo com uma mulher solteira, de uma classe superior – ainda mais uma que o havia contratado.

– Você começou – avisei com uma voz grave. – Estava tentando me convencer sobre Ovídio. Parece que deu certo.

Coloquei minha mão atrás de seu pescoço, puxando sua boca para a minha novamente. Inicialmente, resistiu, mas não durou muito. E quando sua mão começou a vagarosamente afastar as camadas de tecido da minha saia, eu sabia que tinha vencido e era hora de nos retirarmos para o quarto.

Lá, ele abandonou todo o decoro. Empurrou-me para a cama. Os dedos que pintavam paredes com tanta destreza agora se atrapalhavam para me livrar do vestido complicado e suas camadas de tecidos suntuosos.

Quando me desnudou até a camisola de baixo, tomei as rédeas, retirando suas roupas com eficiência e me deleitando com sua pele sob meus dedos conforme minhas mãos exploravam seu corpo. Montada sobre ele, abaixei meu rosto e deixei minha língua dançar em círculos ao redor de seus mamilos. Endureceram ao toque de minha boca, e tive a satisfação de ouvi-lo gritar baixinho quando meus dentes roçaram a superfície macia.

Descendo, trilhei beijos em sua barriga até embaixo – embaixo, onde estava duro e grande. Delicadamente, corri minha língua sobre sua ereção, da base até o topo. Ele gritou novamente, o grito se transformou em gemido quando o coloquei dentro de minha boca. Senti crescer entre meus lábios, ficando maior e mais duro conforme eu movia para cima e para baixo, vagarosamente.

Sem perceber, acredito, ele revolveu meus cabelos, prendendo os dedos entre meu penteado elaborado, com cachos cuidadosamente arrumados. Sugando com mais força, aumentei o ritmo, exaltada com a sensação de preenchimento em minha boca. As primeiras pontadas de energia começaram a se infiltrar em mim, como riachos brilhantes de cor e fogo. Não era fisicamente prazeroso, por si só, mas me inflamava de maneira similar, acordando minha fome de súcubo e acendendo minha carne, querendo tocá-lo e ser tocada.

– Ah... Bianca, você não devia...

Soltei-o de minha boca por um instante, continuando o trabalho de levá-lo ao clímax com as mãos.

– Quer que eu pare?

– Eu... bem, ah! Não, mas mulheres como você não... você não deveria..

Ri, um som grave e perigoso.

– Você não tem ideia de que tipo de mulher eu sou. Eu quero fazer isso. Sentir seu gosto em minha boca... te provar.

– Oh, Deus – ele gemeu, olhos fechados e lábios separados.

Seus músculos ficaram tensos, o corpo arqueando levemente, e eu consegui voltar minha boca a tempo. Ele gozou, e eu recebi tudo conforme seu corpo continuava a convulsionar. A energia vital percorrendo para dentro de mim culminou em intensidade, e quase tive meu próprio clímax. Tínhamos apenas começado, e eu já estava recebendo mais vida dele do que esperava. Seria uma noite boa. Quando seu corpo finalmente parou de tremer, mudei de posição, de modo que meus quadris envolviam os dele. Lambi seus lábios.

– Oh, Deus – ele repetiu, respirando com dificuldade e olhos bem abertos. Suas mãos passearam sobre minha cintura e deitaram abaixo de meus seios, sob minha aprovação. – Eu achava... eu achava que apenas prostitutas faziam isso...

Levantei uma sobrancelha.

– Está decepcionado?

– Oh, não. Não.

Inclinando-me, rocei meus lábios contra os dele.

– Então, retribua o favor.

Ele estava mais do que disposto, apesar do cansaço. Depois de tirar minha camisola, assolou meu corpo com sua boca, suas mãos afagando meus seios enquanto seus lábios chupavam e seus dentes roçavam meus mamilos, como eu fizera a ele. Meu desejo cresceu, meus instintos me instigavam a pegar mais e mais de sua vida e atiçavam a necessidade ardente de meu corpo. Quando moveu sua boca para o meio de minhas pernas, afastando minhas coxas, puxei sua cabeça para cima.

– Você me disse, um dia, que eu penso como homem – sibilei suavemente. – Então, me trate como um. Fique de joelhos.

Ele piscou surpreso, confuso, mas percebi que a força da ordem o excitara. Um lampejo animal brilhou em seus olhos conforme se afundou de joelhos no chão, e eu em sua frente, meu traseiro encostado na cama.

Com as mãos segurando meus quadris, ele pressionou o rosto contra o pedaço macio de pelos entre minhas coxas, a língua deslizando entre os lábios e acariciando o ponto quente e inchado no meio. Ao primeiro toque, meu corpo inteiro estremeceu, e arqueei minhas costas para trás. Atiçado por essa reação, ele lambeu com vontade, deixando sua língua dançar em um ritmo constante. Enroscando minhas mãos em seus cabelos, puxei-o para mais perto, forçando a experimentar mais, a aumentar a pressão da língua contra mim.

Quando a sensação quente e deliciosa na parte debaixo do meu corpo não aguentava mais, ela estourou, como uma explosão solar. Como fogo e luz estelar correndo dentro de mim, deixando cada parte do meu corpo agitada e gritando. Imitando o que eu fizera antes, não retirou sua boca até meu clímax diminuir, meu corpo ainda se contorcia todas as vezes que sua língua zombeteira tocava aquela área tãão sensível.

Quando finalmente se afastou, olhou para cima com um olhar perplexo.

– Não sei o que você é. Subserviente... dominadora... não sei como te tratar.

Sorri, minhas mãos acariciando seu rosto.

– Sou o que você quiser. Como quer me tratar?

Ele pensou, depois respondeu, hesitante:

– Eu quero... quero pensar em você como uma deusa... e te ter como uma puta...

Meu sorriso aumentou. Isso resumiu minha vida, pensei.

– Sou o que você quiser – repeti.

Levantando-se, empurrou-me com força na cama, segurando-me deitada. Estava pronto novamente, mas percebi o esforço que foi necessário. A maioria dos homens desaba depois de tanta perda da energia vital, mas ele estava lutando contra a exaustão para me ter novamente. Senti a pressão dura dele sobre mim, depois ele penetrou – quase enfiou – dentro de mim, quase sem esforço, já que eu estava tão molhada.

Gemendo, movi-me para cima, a fim de me posicionar melhor e ser penetrada mais profundamente. Suas mãos agarraram meu quadril enquanto ele se movia com uma agressão quase primitiva, e o som dos nossos corpos se batendo enchia o quarto. Meu corpo respondia, amando o modo como ele me preenchia e entrava em mim. Meus gritos aumentaram; suas estocadas ficaram mais fortes.

Ah, e a vida jorrando para dentro de mim. Era como um rio agora, dourado e abrasador, renovando minha própria vida e existência. Junto com sua energia, ele me entregou algumas de suas emoções e pensamentos, e eu podia literalmente sentir sua luxúria e sua afeição por mim.

A força vital guerreou com meu próprio prazer físico, ambos me consumindo e me enlouquecendo, a ponto de eu mal conseguir pensar ou distinguir um do outro. O sentimento cresceu e cresceu dentro de mim, queimando minhas entranhas, acumulando tamanha intensidade que eu mal podia contê-la. Pressionei meu rosto contra o dele, sufocando seus gemidos.

O fogo dentro de mim inflamou-se, e tentei não mais atrasar o clímax. Explodiu em mim, envelopando meu corpo inteiro em um êxtase terrível e maravilhoso. Niccolò não teve piedade, sem diminuir o ritmo conforme aquele prazer destruía meu corpo. Eu rebolava contra ele, gritando por mais.

A Igreja poderia considerar Niccolò imoral por ter feito isso, mas no fundo, no que importava, ele era um homem decente. Era bom para os outros e tinha um caráter forte, cujos princípios não eram facilmente abalados. Como resultado, ele tinha muita bondade e muito para oferecer, vida que absorvi sem remorso. Espalhou-se por mim conforme nossos corpos moviam-se em conjunto, mais doce do que néctar. Queimava minhas veias, me fazia sentir viva, transformando-me na deusa que ele murmurava que eu era.

Infelizmente, a perda de energia provocou estragos. Ele ficou imóvel na cama, ofegante e pálido. Nua, sentei-me e observei, passando a mão em sua testa encharcada de suor. Ele sorriu.

– Eu ia escrever um soneto sobre você... Mas acho que não consigo capturar esse momento em palavras – ele teve dificuldades para se sentar, o movimento lhe provocava dor. O fato de conseguir fazer tudo isso era impressionante. – Preciso ir... o toque de recolher...

– Não se preocupe. Você pode ficar aqui esta noite.

– Mas os servos...

–... são bem pagos pela discrição – rocei os lábios sobre sua pele. – Além do mais, você não quer... discutir filosofia?

Ele fechou os olhos, mas o sorriso permaneceu.

– Sim, claro. Mas eu... me desculpe. Não sei o que há de errado comigo. Preciso descansar primeiro...

Deitei ao seu lado.

– Então, descanse.

Desenvolvemos um padrão depois disso. Ele trabalhava no afresco durante o dia – o ritmo diminuindo significativamente – e passava as noites comigo. A pontada de culpa não o deixava em paz, tornando a experiência duplamente excitante para mim. Minha essência bebia de sua alma, enquanto meu corpo aproveitava suas habilidades.

Um dia, saiu para resolver uns problemas pessoais – e não voltou. Dois dias se passaram sem notícias, minha preocupação aumentou. Quando apareceu na terceira noite, estava com um semblante ansioso, atormentado. Mais preocupada do que nunca, levei-o para dentro, percebendo um embrulho embaixo de seu braço.

– Por onde você andou? O que é isso?

Desembrulhando seu manto, revelou uma pilha de livros. Observei-os com a fascinação que esse tipo de coisa sempre provocava em mim. O Decamerão, de Boccaccio. Amores, de Ovídio. Inúmeros outros. Alguns eu já tinha lido. Outros desejava ler. Meu coração palpitou, e meus dedos coçavam para folheá-los.

– Peguei-os com alguns amigos – ele explicou. – Acham que os capangas do Savonarola vão confiscá-los.

Fechei o semblante à menção do padre mais poderoso da cidade.

– Savonarola?

– Ele está recolhendo “objetos pecaminosos” para destruí-los. Você pode esconder esses aqui? Ninguém vai obrigar alguém como você a entregá-los.

Os livros pareciam brilhar, mais valiosos do que as joias que eu colecionava. Queria parar tudo e começar a ler.

– Claro – folheei algumas páginas do Boccaccio. – Não posso acreditar que alguém iria querer destruí-los.

– Estes são dias sombrios – ele disse, seu rosto endurecido. – Se não formos cuidadosos, todo o conhecimento será perdido. Os ignorantes destruirão os sábios.

Sabia que ele estava certo. Já vira acontecer, repetidamente. Conhecimento destruído, esmagado por aqueles estúpidos demais para perceberem o que faziam. Às vezes, acontecia por meio de invasões sanguinolentas e poderosas; outras, por modos menos violentos, mas igualmente insidiosos, como aqueles de Fra Savonarola. Estava tão acostumada a isso que nem percebia mais. Por alguma razão, dessa vez me atingiu com mais força. Talvez fosse porque eu via com os olhos imediatistas de Niccolò, não observava a distância.

– Bianca? – Niccolò deu uma risadinha. – Você está me ouvindo? Queria passar a noite com você, mas talvez você prefira o Boccaccio...

Arrastei meus olhos da página, sentindo meus lábios formarem um meio sorriso.

– Não posso ter os dois?

Nos dias seguintes, Niccolò continuou a contrabandear mais e mais objetos para mim. Não apenas livros. Pinturas se acumulavam em minha casa. Pequenas esculturas. Até coisas mais superficiais como roupas extravagantes e joias, todas consideradas pecaminosas.

Sentia-me como se tivessem me dado permissão para atravessar os portões do céu. Horas se passavam quando eu estudava as pinturas e as esculturas, admirando a inventividade humana, invejando uma criatividade que eu nunca possuí, nem como mortal, nem como imortal. A arte me preenchia de uma felicidade indescritível, deliciosa e doce, quase me relembrando de quando minha alma ainda me pertencia.

E os livros... ah, os livros. Meus funcionários e associados logo se encontraram cheios de serviço extra, pois eu os negligenciava. Quem se importa com contas e entregas quando se tem tanto conhecimento ao alcance dos dedos? Eu me embebia, degustando as palavras – palavras que a Igreja condenava como heresia. Uma soberba secreta me preenchia graças ao meu papel: protetora daqueles tesouros. Eu passaria o conhecimento da humanidade adiante e estragaria os planos do Céu. A luz da genialidade e da criatividade não se apagaria, e o melhor de tudo, eu ia aproveitá-la nessa jornada.

Tudo mudou quando Tavia veio checar as coisas. A demônia ficou satisfeita com meu relatório de conquistas e intrigada com a pequena escultura de Baco sobre a mesa. Ainda não havia escondido a estátua com o resto de minha horda.

Tavia exigiu uma explicação, e eu lhe contei sobre meu papel protegendo o contrabando. Como sempre, ela demorou a dar uma resposta, e quando o fez meu coração quase parou.

– Você tem que interromper isso imediatamente.

– Eu... o quê?

– E você precisa entregá-las ao padre Betto.

Estudei-a, incrédula, esperando a piada se revelar. Padre Betto era meu sacerdote local.

– Você não pode... não pode estar falando sério. Essas coisas não podem ser destruídas. Estaremos apoiando a Igreja. Devemos ir contra eles.

Tavia levantou sua sobrancelha escura e arqueada.

– Nós devemos espalhar o mal sobre o mundo, querida, o que pode ou não estar de acordo com os planos da Igreja. Neste caso, está.

– Como? – gritei.

– Porque não há mal maior do que a ignorância e a destruição da genialidade. A ignorância é responsável por mais morte, intolerância e pecado do que qualquer outra força. É a destruidora da humanidade.

– Mas Eva pecou ao procurar o conhecimento...

A demônia sorriu de modo afetado.

– Tem certeza? Você realmente sabe o que é o bem e o que é o mal?

– Eu... eu não sei – sussurrei. – Parecem indistinguíveis – era a primeira vez, desde que eu me tornara súcubo, que aquelas fronteiras tinham se tornado tão embaçadas para mim. Depois que a perda do meu eu mortal me obscurecera, me dediquei ao papel de súcubo sem questionar o papel do Inferno ou a corrupção de homens como Niccolò.

– Sim – ela concordou –, às vezes elas são – seu sorriso sumira. – Não estamos conjecturando. Você vai se livrar de seu esconderijo imediatamente. E talvez aproveitar para seduzir padre Betto. Seria um lucro.

– Mas eu... – as palavras “não posso” estavam nos meus lábios, mas as impedi de sair. Sob o escrutínio de seu olhar e poder, sentia-me muito pequena e fraca. Você não irrita demônios. Engoli em seco. – Sim, Tavia.

Na vez seguinte em que Niccolò e eu fizemos amor, ele conseguiu conversar mesmo com sua exaustão pós-sexo.

– Lenzo vai me trazer uma de suas pinturas amanhã. Espere para ver. Mostra Vênus e Adônis...

– Não.

Ele levantou a cabeça.

– Humm?

– Não. Não traga mais nada – era difícil, por Deus, era tão difícil falar com ele em um tom tão frio. Precisava ficar me relembrando de quem eu era e o que fazia.

Uma careta surgiu em sua bela face.

– Do que você está falando? Você já reuniu tanto...

– Não tenho mais nada. Entreguei tudo a Savonarola.

– Você... você está brincando.

Neguei com a cabeça.

– Não. Contatei sua Congregação da Esperança esta manhã. Vieram e levaram tudo.

Niccolò se esforçou para sentar.

– Pare com isso. Não é engraçado.

– Não é brincadeira. Não há mais nada. Vão para o fogo. São objetos pecaminosos. Precisam ser destruídos.

– Está mentindo. Pare, Bianca. Você não...

Minha voz ficou mais cortante.

– São errados e heréticos. Não há mais nada.

Olhávamos um para o outro, e, enquanto ele estudava minha face, percebi que começava a entender que talvez, quem sabe, eu dizia a verdade. E era verdade. Ou algo do tipo. Eu sou ótima em fazer as pessoas – especialmente os homens – acreditarem em mim.

Nós nos vestimos, e o levei ao depósito onde tinha escondido os objetos. Ele observou o espaço vazio, rosto pálido e desacreditado. Fiquei por perto, braços cruzados, mantendo a postura tesa e desaprovadora.

De olhos arregalados, ele se virou para mim.

– Como pode? Como pode fazer isso comigo?

– Eu falei...

– Eu confiei em você! Você disse que os manteria seguros.

– Eu estava errada. Satã confundiu meu julgamento.

Ele segurou meu braço com força e se aproximou de mim.

– O que eles fizeram com você? Te ameaçaram? Você não faria isso. Com o que estão te chantageando? É aquele padre que você sempre visita?

– Ninguém me obrigou – repeti, sombria. – É o certo.

Ele se afastou, não suportava meu toque, e meu coração palpitou dolorosamente sob seu olhar.

– Você sabe o que fez? Alguns objetos nunca mais poderão ser substituídos.

– Eu sei. É o melhor.

Niccolò me encarou por vários segundos e depois cambaleou até a porta, sem se importar com o toque de recolher ou seu estado debilitado. Observei-o partir, sentindo-me morta por dentro. Ele é só mais um homem, pensei. Deixe-o ir. Já tinha tido tantos em minha vida; teria tantos outros. O que ele importava?

Engolindo lágrimas, desci mais um andar, com cuidado para não acordar os empregados. Tinha feito a mesma rota na noite passada, carregando com dificuldade parte do tesouro – a parte que eu não havia entregado aos subordinados da Igreja.

Escolher as peças de arte e os livros fora como escolher quais de meus filhos sobreviveriam. Sobre as sedas e veludos, nem precisei pensar: foram todos para Fra Savonarola. Mas o resto... fora difícil. Deixei quase todo o Ovídio ir. Seu trabalho já estava tão distribuído que eu tinha de acreditar que algumas cópias sobreviveriam – se não em Florença, talvez em outro lugar, não atingido pelo fanatismo. Outros autores – os quais eu temia terem menor tiragem – ficaram comigo.

As pinturas e esculturas foram o mais difícil. Todas eram únicas. Não podia esperar que houvessem cópias. Mas também sabia que não poderia manter todas, não com Tavia supervisionando. E, então, escolhi as quais achava que valia mais a pena serem salvas, protegidas da Igreja. Niccolò não poderia saber.

Não o vi por quase três semanas, até nos encontramos na grande fogueira de Savonarola. A história a nomearia de “Fogueira das Vaidades”. Era uma pirâmide enorme, recheada de combustível e pecado. Os fervorosos jogavam mais e mais itens conforme ela queimava, parecendo ter um estoque infindável. Vi o próprio Botticelli jogar um de seus quadros.

O cumprimento de Niccolò foi rude.

– Bianca.

– Olá, Niccolò. – Mantive minha voz fria e seca. Indiferente.

Ele ficou à minha frente, olhos cinza escurecidos pela luz bruxuleante. Seu rosto parecia ter envelhecido desde nosso último encontro. Ambos viramos e, em silêncio, observamos o fogo novamente, vendo como cada vez mais e mais coisas das mais preciosas eram sacrificadas.

– Você matou o progresso – disse Niccolò, enfim. – Você me traiu.

– Eu atrasei o progresso. E não tenho nenhuma obrigação com você. Apenas isso – das dobras de meu vestido, tirei uma pesada bolsa cheia de florins. Era a última parte do meu plano. Ele a pegou, assustado com o peso.

– É mais do que me deve. E não vou terminar o afresco.

– Eu sei. Tudo bem. Pegue. Vá para outro lugar, longe daqui. Pinta. Escreve. Cria algo maravilhoso. O que for necessário para que seja feliz. Não me importo.

Ele me encarou, e temi que devolvesse o dinheiro.

– Ainda não entendo. Como pode não se importar? Como pode ser tão cruel? Por que fez isso?

Olhei o fogo novamente. Humanos, percebi, com atraso, gostam de queimar coisas. Objetos. Uns aos outros.

– Porque os homens não superaram os deuses. Não ainda.

– Prometeu não planejou que seu presente fosse usado desse modo.

Sorri, sem alegria, lembrando de um de nossos debates sobre mitologia grega, nos nossos remotos dias felizes.

– Não. Suponho que não.

Não dissemos mais nada. Pouco depois, ele foi embora, desaparecendo na escuridão. Por um instante, considerei contar a verdade, que boa parte do tesouro ainda estava segura. Paguei bem para ser contrabandeado para fora de Florença, longe dessa destruição insana.

Na verdade, mandei os artefatos para um anjo. Não gostava de anjos, em geral, mas esse era um acadêmico, havíamos nos conhecido na Inglaterra, e eu o tolerava. Heresia ou não, os livros e a arte iriam lhe agradar tanto quanto a mim. Ele os manteria seguros. Que irônico, pensei, que acabei pedindo ajuda ao inimigo. Tavia estava certa. Às vezes é impossível distinguir o bem do mal. Se ela soubesse o que eu fizera, minha existência provavelmente iria acabar.

Então, não podia contar a ninguém. O segredo deveria ficar comigo e o anjo, não importava o quanto eu gostaria de contar a Niccolò e confortá-lo. Tinha que viver com o fato de que eu havia tirado-lhe a vida, a alma e a esperança. Ele me odiaria para sempre. E também era algo que eu carregaria comigo para sempre – algo que aos poucos tornaria minha existência cada vez mais miserável.

***

Meu mundo se dissolveu na escuridão. Estava de volta na caixa, ainda apertada e desconfortável. Como sempre, não podia ver nada, mas minhas bochechas estavam molhadas de lágrimas novamente. Sentia-me exausta, um pouco desorientada, e meu coração doía de forma indescritível. Não via os oneroi, mas algo me dizia que eles estavam por perto.

– Isso foi verdade – sussurrei. – Isso realmente aconteceu.

Como suspeitava, uma voz respondeu na escuridão. E realmente percebi o porquê de me mostrarem sonhos verdadeiros.

– Suas verdades são piores do que suas mentiras.


Capítulo 13

Acordei ao lado de Seth e, pelo espaço de um instante, achei que estivesse realmente acordando – acordando daquele sonho horrível com os oneroi e tudo mais que tinha acontecido desde que Seth e eu terminamos. Ele dormia em sua cama, com os lençóis bagunçados a sua volta, seu cabelo castanho-claro cheio de luzes vermelhas sob o sol da manhã. Ele dormia apenas de cueca, e seu peito parecia quente e macio, perfeito para abraçar.

Sua respiração estava regular, sua postura, quieta e relaxada. Aproveitei tudo, todos os pequenos detalhes de Seth que me faziam falta há meses. Podia jurar que até sentia seu cheiro. Sonhos têm cheiro? Esse sim, estou certa. Aquele cheiro amadeirado me envolvia como um abraço.

Em seguida, ele começou a se mexer e a abrir os olhos, sonolento. Ele semicerrou os olhos sob a luz, virou de costas e bocejou. Queria rolar para ele e me aninhar em seu calor, contar sobre os meus pesadelos.

Então, percebi que eu não podia ir até ele. Não podia me mexer. Bem, não era só isso. Eu não tinha um corpo. Era apenas uma observadora, como a câmera invisível que fora para Roman e Jerome. Parecia não ser um sonho em que eu estaria ativamente, e essa percepção potencializou a terrível verdade: ainda era um sonho de oneroi. Não os imaginara. O término entre Seth e eu não fora imaginação.

Ele sentou-se, esfregando os olhos. Era uma visão tão familiar e nostálgica. Acordar é sempre complicado para ele, devido a suas estranhas horas de trabalho. Ele olhou o relógio, próximo ao local de onde eu “observava”. Seus olhos passaram reto por onde eu estaria. Sim. Eu era apenas um fantasma nisso. Mas o que era “isso” exatamente? Verdade ou mentira?

As horas no relógio – nove da manhã – devem ter sido uma motivação suficiente para ele se arrastar para fora da cama. Ainda de cueca, cambaleou até o banheiro, miraculosamente sem trombar com nada naquele estado sonolento. Enquanto escovava os dentes, percebeu algo na pia. Imediatamente reconheci a letra, pois a via toda a hora na livraria.

Fui mais cedo hoje resolver umas coisas e devo voltar às seis. Traga a Brandy, se puder, para experimentar aqueles sapatos.

Te amo,

Maddie

Ler o nome de Maddie me expulsou da Terra da Fantasia de Seth em sua rotina matinal. Expandindo minha visão, percebi mudanças em seu banheiro: coisas que não estavam lá quando namorávamos. Outra escova de dentes, por exemplo. Maquiagem num canto. Um robe rosa no gancho. Em teoria, Maddie ainda dividia uma casa com Doug, mas todos sabíamos a verdade. A dor, que não havia ido embora desde meu último sonho, ficou mais forte dentro do meu peito. Maddie estava por toda parte. Deixou sua marca em tudo, em tudo nesse local que ele e eu um dia dividimos. Eu fui substituída.

Seth seguiu o resto da rotina, incluindo um banho incrivelmente rápido. Era notório que ele ficava lá um tempão, enquanto desenvolvia uma linha narrativa. Tentei com força não me concentrar na visão dele nu e molhado. Em vez disso, conjecturei para onde ele iria hoje. Se fosse apenas escrever na loja, não estaria com tanta pressa.

Pegou cuecas limpas e jeans rapidamente, mas a parte mais difícil do dia estava a seguir: que camiseta usar? Quando estávamos juntos, eu adorava observar esse momento. Eu deitava na cama – pois, afinal, eu nunca tinha pressa em me aprontar –, rindo enquanto ele pensava e pensava diante de sua gigante coleção de camisetas. Cada uma em seu respectivo cabide, com um toque retrô ou pop. Vanilla Ice. ALF. Sucrilhos. Ele olhava todas, estudando cada uma cuidadosamente, segurando-as pela manga.

Então, seus dedos tocaram em uma manga mais comprida do que as outras. Seu armário não tinha só camisetas. Havia suéteres e pulôveres enfiados nos cantos. Havia também uma camisa de flanela; foi nela que parou. Empurrando as outras camisetas, tirou a camisa de flanela do cabide e a levantou, seus movimentos quase em reverência.

Mesmo sem forma física, tive a sensação que meu coração havia parado. Eu conhecia essa camisa. Ele havia me vestido com ela, há muito tempo, numa noite em que eu desmaiara de tanto beber em seu apartamento. Eu conheci sua família no dia seguinte, totalmente ridícula de camisa de flanela sobre um vestido de festa. Durante nosso namoro, acabei me esquecendo dela.

Segurou-a entre as mãos e seu semblante... havia tanta coisa nele, nem saberia por onde começar. Seth era bom em manter uma expressão neutra e sabia ser extremamente taciturno quando queria. Mas aqui, sozinho, ele estava com a guarda abaixada. Havia dor em sua face. Dor e arrependimento. E, quando levantou a camisa e encostou o rosto nela, havia desejo também. Todo o clima poderia ser resumido em uma espécie de resignação impotente. Ele inspirou profundamente, depois pendurou a camisa de volta. Quando fez isso, pude sentir um leve cheiro de flor – o que sobrara do meu perfume. De um estalo, percebi que Seth nunca a havia lavado ou usado de novo. Guardou como um tesouro.

Depois, pegou a primeira camiseta na sua frente, sem nem olhar. Era uma de suas favoritas, com o Taz, dos Looney Tunes. O humor de Seth havia mudado consideravelmente, para algo mais solene e pensativo do que quando tinha saído do banho. Mas eu não podia ler sua mente. Apenas julgar pelos sinais que emitia.

A razão para levantar era uma ida até a casa de seu irmão. Como sempre, a casa do Mortensen mais velho estava um caos, com adoráveis meninas loiras correndo, muitas gritando ao ver o tio favorito. Mal tinha entrado quando Andrea, sua cunhada, apareceu para recebê-lo. Usava uma jaqueta de veludo com jeans e camiseta, o cabelo loiro puxado para trás em um rabo de cavalo arrumado. Ela olhou para Seth, surpresa.

– Não trouxe o laptop? – Andrea estava alegre, mas, como sempre, parecia cansada.

Ele apontou paras as sobrinhas gêmeas, McKenna e Morgan, brincando de cabo de guerra com as luzinhas de Natal. Era estranho, pois o Natal já tinha sido há um mês e as luzes estavam acesas, o que achei um risco elétrico. Aparentemente, Seth pensou a mesma coisa e interceptou-as correndo, retirando todo o fio, embaixo de muito protesto.

– Acho que não vou conseguir trabalhar muito esses dias – ele disse, seco.

– É – ela admitiu –, entendo – olhou para o relógio. – Bem, tenho que ir. Não sei quanto tempo vou demorar.

– Sem problema – ele disse. – Resolva suas coisas.

Ela correu para a porta. Queria perguntar aonde ela ia, mas não havia como. Novamente, lembrei-me de que estava fora do círculo Mortensen agora. Um dia, eu já soubera de cada detalhe.

Kendall, uma menina precoce, de nove anos, caminhou solenemente até Seth.

– Tio Seth – ela disse –, brinca de Empréstimo comigo?

Seth arqueou a sobrancelha.

– Empréstimo? O que é isso?

– Eu sou uma corretora hipotecária, e você vem pegar um empréstimo pra uma casa, mas não tem o dinheiro pra entrada – ela pausou. – Teremos que fazer uma declaração de posto de mentirinha pra você.

– Imposto – ele corrigiu. – Que tal irmos na livraria, em vez disso?

Ela fez careta.

– Eu quero brincar de impostos.

– Eles têm livros sobre assessoria imobiliária lá – ele disse. – Não acho que dá pra brincar de Empréstimo sem saber um pouco do assunto.

– Ok – ela aceitou –, vamos.

Brandy surgiu na sala com sua irmã de quatro anos no colo. Kayla parecia ter acabado de tirar uma soneca e encostava a cabeça no ombro de Brandy, sonolenta. Amava todas as meninas, mas algo na Kayla sempre me afetava com mais força.

– Vamos aonde? – perguntou Brandy, mudando Kayla de posição. Embora ela segurasse a irmã carinhosamente, havia uma nuvem escura ao redor de Brandy.

– Para Emerald City.

Brandy suspirou.

– A gente vai demorar lá?

– Maddie arrumou uns sapatos para o vestido e você precisa experimentar.

Brandy lançou um olhar que expressava delicadamente todos os seus sentimentos sobre o assunto.

– Não começa – ele avisou, com um tom de reprimenda que eu nunca o ouvira usar. Bem-vindo à adolescência, Seth.

– A Georgina vai estar lá? – ela perguntou.

Kendall olhou de onde ela estava pintando. Com o giz laranja, em um papel branco escrevia: IMPOST...

– É, vamos ver a Georgina? – intrometeu-se Kendall.

Eu não sabia também. Não sabia se era um sonho real ou falso. Parecia real até o momento, mas eu não confiava nos oneroi. Como estava de observadora, imaginei que não estaria lá. Certamente, não, se fosse verdade. Imaginei o que aconteceria na loja se eu de repente parasse de ir.

– Eu posso ficar aqui sozinha – disse Brandy. – A mãe não liga.

– Mas aí você não vai conseguir experimentar os sapatos. O que acaba com todo o plano.

Após uma “discussão” com palavras escolhidas a dedo, na qual Brandy sugeriu que ele trouxesse os sapatos para ela, finalmente ela cedeu. Com toda a gangue, eles precisavam ir com a van Mortensen, fato que não deixou Seth muito entusiasmado. Mas não havia outro método de transportar cinco meninas, uma das quais precisava ir sentada na cadeirinha.

A tropa chegou a Emerald City. Seth deixou as quatro mais novas na seção infantil: um paraíso de livros ilustrados, quebra-cabeças e bichos de pelúcia. Janice estava trabalhando naquela área e avisou que ficaria de olho nas meninas. Seth também deixou Kendall responsável pelas irmãs, subornando-a com a promessa de comprar uns livros de finanças.

Então, Brandy e ele foram procurar Maddie, que estava escondida num escritório. Sua face acendeu quando os viu, e ela praticamente voou da cadeira para dar uma bitoca em Seth. Brandy fez uma careta, e uma sensação ruim queimou em mim. O amor no semblante de Maddie era tão óbvio, tão forte... qualquer um podia ver. Ela não tentava esconder, nem no trabalho. Eu odiava o relacionamento deles, mas como podia me ressentir dos sentimentos dela? Como podia condená-la por amar o homem que era meu mundo?

– Como tá o trabalho? – ele perguntou, sorrindo carinhosamente. Seria o jeito dele de mostrar seu amor? Como ele se comportara perto de mim? Por alguma razão, eu tinha certeza de que fora diferente... não fora? Não conseguia lembrar.

Maddie apontou para a mesa que dividia com Doug.

– Um pouco doido. Mas bem chato. Vou mexer em papelada o dia todo. Revisão de rendimentos.

– Ei, eu mexo com papelada todos os dias.

Ela virou os olhos.

– Que piada ruim. E não tem nada a ver.

– Coloque um pouco de sexo e violência nas revisões, talvez vá mais rápido.

Estava muito perturbada pela conversinha mole para prestar atenção no fato de que Maddie estava fazendo o meu serviço. Brandy também parecia igualmente incomodada com o papo. Enquanto Maddie e Seth conversavam, eu o analisava, tentando interpretar seus sentimentos. Sim, havia afeição... porém, lembrava um pouco a indulgência carinhosa que ele tinha pelas sobrinhas.

Enfim, Maddie pegou uma sacola de compras cheia de sapatos. O vestido de Brandy estava pendurado, e Maddie mandou Seth sair para que a sobrinha se trocasse.

Logo antes de o expulsar, Maddie comentou com Brandy:

– Fico feliz por essa cor cair bem em você. Decidi fazer tudo roxo, já que ficou tão bem na Georgina. Achei umas flores maravilhosas para combinar também.

Que droga! Influenciei na paleta de cores do casamento deles.

Seth saiu, e fui atrás dele. Ele passeou pela loja, olhando alguns livros – atividade da qual ele nunca se cansava. Vários funcionários disseram oi conforme passavam por ele.

Inclusive eu.

Como os oneroi já tinham me colocado em vários sonhos, não devia ter me surpreendido. Exceto pelo fato de que, sempre quando estivera como personagem nesses teatros, eu tinha consciência disso. Eu me via e me sentia. Agora, eu me via aproximar de Seth da mesma forma que vira Maddie e Branday se aproximarem dele. Eu ainda observava com objetividade. Sem nenhuma conexão interna. De novo, como assistir a um filme. Não entendia completamente, mas nada que os oneroi fizessem deveria ainda me chocar.

– E aí? – eu (ela) disse, colocando alguns livros na prateleira. Eram exemplares de A letra escarlate, e eu os colocava em “Lançamentos”.

– E aí? – respondeu Seth, de um modo estranho, mistura de timidez com familiaridade. – Tudo bem?

– Nada mal – respondi. – Dia tranquilo. Só guardando livros.

– Você colocou a Maddie pra fazer as revisões.

– É, bom, achei que ela daria conta. Além do mais, esse vestido é novo. Seria um desperdício deixá-lo escondido.

Meu eu observador já tinha reparado no vestido, é automático para mim. Era um vestido maravilhoso, mas não para usar no trabalho. Era de seda, bem curto, frente única e com um corte que deixava aparecer uma quantidade considerável de decote. Nem sinal de sutiã. Eu estava com cara de quem devia ir para a boate e não ficar guardando livros. Percebendo que nada dessa visão fazia parte de minhas memórias, o vestido só confirmava que isso era uma mentira. Eu não tenho medo de apimentar as coisas, mas tenho alguns limites no trabalho.

Seth parecia surpreso com o vestido, mas não desgostoso.

– Você devia estar nas vendas – ele disse. – Vai lá fora com um livro, aposto que consegue empurrar pra qualquer um.

– O vestido não vai funcionar com todo mundo – ressaltei.

Deu-me um de seus sorrisinhos, e imaginei se a outra Georgina se derreteu como eu.

– O vestido é só metade. Você é charmosa o suficiente para convencer qualquer um de qualquer coisa.

Sorri de volta, um sorriso duplamente divertido e astuto.

– Qualquer coisa?

As indiretas não prosseguiram, pois Kayla surgiu de repente e abraçou as pernas de Seth. Ele a levantou e olhou em volta.

– Cadê a Kendall? Nada de livros de finanças pra babás ruins.

Meu alter ego olhou na direção das revistas.

– É ela ali? – eu soava incerta, o que era estranho, pois quando Seth se virou para ver, obviamente era Kendall. Ela lia a revista Forbes.

Seth suspirou e a chamou. Ela iluminou-se quando me viu.

– Oi, Georgina! Você tá tão bonita hoje.

– Obrigada – respondi, radiante.

– Você é a responsável – disse Seth. – Vá pegar as gêmeas. Espero que elas não tenham ido para a rua.

Kendall negou com a cabeça.

– Elas estão montando quebra-cabeças – mas correu para lá, mesmo assim.

Kayla observava a loja, daquele jeito distraído das crianças de sua idade, olhando as pessoas e o ambiente. Seth lhe deu uma leve chacoalhada.

– E você? Não vai falar oi para a Georgina?

Kayla relanceou na direção que ele indicava, olhou-me, depois continuou seu mapeamento da loja. Ela não me ignorou nem se mostrou repelida por mim; era mais um desinteresse. Não parecia mais atraente para ela do que um dos clientes ou mesmo uma das prateleiras.

– Está de mau humor – disse Seth, justificando.

Brandy surgiu, ainda emburrada com os sapatos, mas imensamente feliz em me ver. O restante das meninas foi reunido, e, após um bate-papo, Seth e as sobrinhas me deixaram com minha arrumação desleixada de prateleiras. Ele continuava segurando Kayla nos braços quando ela se virou para ele, séria.

– Quando você vai procurar a Georgina? – ela perguntou. Sua voz era fina e doce. Ela raramente falava, então eu sempre amava como ela soava ao dizer algo.

Ele contraiu o semblante tentando abrir a porta da van com uma mão. Brandy o ajudou. – Acabamos de ver a Georgina – ele disse. – Lá dentro.

– Não vimos, não – retrucou Kayla.

– Vimos sim. Você esnobou ela – ele brincou. – Eu mandei você falar oi.

– Aquela não era a Georgina. Você tem que ir atrás dela.

– O que você andou fumando? – perguntou Brandy, enquanto assumia a responsabilidade de colocar o cinto em Kayla sentada na cadeirinha. – Era a Georgina.

Seth suspirou.

– Cuidado com as palavras.

O assunto foi encerrado, mas enquanto voltavam para a casa de Terry e Andrea, um calafrio me percorreu. Kayla sabia. Kayla sabia que eu tinha desaparecido. Devia ser um sonho verdadeiro, no fim das contas. A gente descobrira há pouco que ela tinha certo poder psíquico e certa habilidade para perceber algumas coisas sobrenaturais. Ela possuía uma vaga percepção da minha aura, então vira que não era eu na loja. Por isso estava tão desinteressada. Também é por isso que eu não estava dentro daquela Georgina. Não era a Georgina.

Então, quem era?

Com uma sensação vertiginosa, imediatamente respondi minha própria dúvida. Quem mais teria interesse em se parecer comigo e flertar com o Seth?

Simone. Simone estava me personificando durante minha ausência, tinha certeza. Filha da puta. Não sentia sua aura no sonho, e nenhum mortal sentia, ponto-final. Exceto por Kayla. Merda. Eu não merecia.

O resto do dia de Seth transcorreu sem novidades, mas felizmente ele não se encontrou “comigo” novamente. Andrea voltou, então descobri que ela tinha ido ao médico. Agradeceu Seth pela ajuda, mas demorou bastante para ele conseguir sair, graças aos “tchaus” das meninas mais novas.

Seth voltou para seu apartamento e passou o dia escrevendo, o que era chato de assistir. Não entendia por que os oneroi não tinham me retirado de lá ainda. Claro, era triste ver que nenhum mortal sabia de meu desaparecimento ainda, mas o sonho não tivera o mesmo efeito devastador dos outros.

Veio a noite, e Maddie voltou para casa. Seth, concentrado no trabalho, ficou na escrivaninha até ela se aproximar e girar sua cadeira. Ela sentou-se em seu colo, envelopando-o de um modo muito similar ao que eu costumava fazer.

Ele sorriu para ela, abraçando-a de volta e devolvendo o beijo de oi.

– Como foi com a papelada? – ele perguntou.

Maddie alisou o rosto dele. Ela irradiava amor.

– Não parei um segundo. Georgina deixou tudo para mim hoje. Não sei qual é a dela.

– Ela disse que achava que você daria conta.

Maddie fez uma careta.

– Parecia mais que ela queria um dia de folga para ficar desfilando. Você viu o vestido dela? Tipo, claro, ela pode, mas não era muito apropriado.

Ele riu e puxou-a mais para perto.

– Acho que a Georgina pensa que sua graça e seu charme permitem tudo.

– É, bom, ela não é tão cheia de graça quanto pensa – resmungou Maddie. – E tudo que ela conseguiu hoje foi parecer que queria pegar alguém na loja.

– Não seria a primeira vez – disse Seth, dando de ombros.

– Quê?

– Você não sabe? Ela dorme com o Warren direto. Geralmente no escritório dele.

Não podia acreditar no que ouvia. Não só estavam tirando sarro de mim como Seth contara a Maddie sobre meus encontros casuais com o dono da loja, Warren. Doug sempre suspeitara, mas, além do Seth, ninguém mais sabia. Não esperava que ele trairia o segredo.

– Nem imaginava – disse Maddie. – Bom, mas... não sei. Talvez, sim. Tipo, tudo que ela usa é meio piriguete.

– Ela é muito saidinha. Transa com todo mundo – ele pausou. – Até tentou comigo uma vez.

– Sério? – Maddie arregalou os olhos. – O que você fez?

– Nada. Não tenho interesse naquilo. Não ia dar conta de ficar com alguém tão fácil. Ela provavelmente dormiria com todos os meus amigos durante nosso namoro – ele segurou o rosto de Maddie. – Mas isso não importa. Não tenho motivo nem para pensar nisso, tenho a melhor aqui.

Ele aproximou-a, e se beijaram novamente. Não foi o beijinho de oi como antes. Foi profundo e ardente, ambos tentavam reter o máximo um do outro. As mãos de Seth pegaram a barra da blusa dela e puxaram-na para cima, revelando o sutiã de seda preta, que provavelmente eu a ajudara a escolher. Sem interromper o beijo, suas mãos desceram para a cintura quando a carregava, quase caindo, do escritório para o quarto. Jogaram-se sobre as cobertas, mãos por toda a parte, e beijos se espalhando para além dos lábios.

Não, pensei, incerta se os oneroi podiam me ouvir. Não quero ver isso. Me tragam de volta. De volta para a caixa. Me mandem outro sonho.

No entanto, se estavam lá, não me ouviam. Eu não tinha olhos para fechar. Não podia desviar o olhar. Era impossível não enxergar o que via. Tinha passado por muitos momentos dolorosos em minha relação com Seth, tão ruins que queria morrer. Mas nada, nada podia ter me preparado para vê-lo fazer sexo com outra mulher. E não era apenas o ato em si, a forma como seus corpos nus se entrelaçavam e os gritos de prazer soltos no auge do orgasmo.

Era a expressão dele. Lá estava. O amor que procurei antes. Achava que ele a olhava apenas com forte afeição, similar ao amor que nutria pelas sobrinhas. Não. Era paixão o que via em seu rosto, o tipo de amor que queima profundamente, que conecta duas almas.

Ele a olhava como um dia me olhou.

Nunca pensei que fosse possível. De alguma forma, havia me convencido de que ele a amava de um jeito diferente. Talvez seu amor fosse forte, mas estava certa de que nunca seria páreo para o que sentira por mim. O nosso era diferente. No entanto, observando-os, vi que não era verdade. E então, no fim, quando ele disse que ela era seu mundo – como um dia dissera para mim –, eu sabia que eu não era especial. Que o amor que ele nutrira por mim acabara.

E na terrível, excruciante dor do momento, eu não queria mais morrer. Não havia sentido, pois tinha certeza de que já estava morta – o Inferno, certamente, não seria pior do que aquilo.


Capítulo 14

Nunca pude ter certeza de quanto daquele sonho fora verdade e quanto fora mentira. Que fora uma mistura das duas coisas, eu tive certeza. Não podia pensar numa razão para os oneroi mostrarem Kayla como a única a perceber minha ausência. Isso tinha que ser verdade. No entanto, não conseguia imaginar Seth e Maddie acabando comigo daquele jeito. Especialmente, não conseguia imaginá-lo quebrando uma promessa. Obviamente aquilo fora uma mentira... certo? E quanto ao resto do sonho... bom, não importava.

Os oneroi não davam resposta. E mais e mais sonhos vieram. O destino que eles previram tornava-se verdade: não conseguia mais distinguir o que era real e o que não era. Com frequência, dizia a mim mesma que tudo era mentira. Era mais fácil conviver com a negação do que com a dúvida. Por mais que eu tentasse, porém, não conseguia me livrar da sensação real que alguns passavam. Então, eu sempre questionava tudo, e isso foi ficando enlouquecedor. Tudo piorava com os oneroi se alimentando desses sonhos, o que, consequentemente, diminuía minha energia. Um súcubo precisa dessa energia para funcionar. Isso me dá a habilidade de me locomover pelo mundo, de pensar com clareza, de me transformar. Tirá-la de mim não me mata – sou imortal, afinal –, mas me inutiliza. Não que isso importasse em minha prisão. Ainda tinha a sensação de estar encurralada em uma caixa no escuro, e a pouca percepção corporal que ainda restava era simplesmente de dor e fraqueza. Se eu fosse libertada, teria dificuldades para andar. Provavelmente também estaria na minha forma real.

Como eu era, no momento, praticamente apenas uma consciência em suspensão, os aspectos físicos acabaram irrelevantes. Minha mente se tornara minha única segurança, já que tanto a falta de energia quanto a tortura dos sonhos começavam a me arrasar. Eu era mais coerente e analítica durante os sonhos, mas, quando acabavam, as emoções me acertavam, meu pensamento racional começava a fraturar. Minhas discussões com os oneroi se tornaram insultos instintivos e berros. A maior parte do tempo eu não conseguia nem pensar. Era apenas dor e desespero. E ódio. No entanto, abaixo da agonia que me sufocava, uma pequena centelha de raiva, quase extinta, se renovava a cada vez que eu via os oneroi. Acho que me agarrar àquela fúria foi a única coisa que impediu minha mente estilhaçada de ceder à loucura.

Perdi todo o meu senso de tempo, mas isso tinha mais a ver com a estranha natureza dos sonhos do que com meu cérebro. Na verdade, acho que pouco tempo se passou no mundo real, pois, todas as vezes que os oneroi me mostravam um relance dele, não parecia que tinham feito progresso na minha busca – algo, eu achava, que os oneroi acreditavam que me destruiria ainda mais.

– Por que você continua a nos perguntar?

A questão veio de Cody. Eu o observava, junto a Peter e Hugh, sendo interrogado por Jerome. Carter sentava num canto distante, fumando, apesar da regra de Peter: “proibido fumar no apartamento”. Roman estava lá também, invisível de corpo e aura. Isso significaria que eu não poderia vê-lo, embora algo – talvez por ele ser meu alvo no sonho – permitia-me saber que ele estava lá, apesar do que meus sentidos diziam. Meus amigos sabiam sobre ele. Não havia necessidade para ele esconder sua aparência física, a não ser que Jerome temesse que olhos demoníacos observassem Seattle – o que não era incoerente. Meu desaparecimento deve tê-lo deixado ainda mais desconfiado.

A pergunta de Cody foi direcionada diretamente para Jerome, e eu nunca vira tanta fúria na expressão do jovem vampiro. Ele era o mais calmo de todos nós, o mais novo no círculo imortal de Seattle. Ele ainda pulava quando Jerome dizia “pule” e passava a maior parte do tempo observando e aprendendo em vez de assumir um papel ativo. Vê-lo assim foi um choque.

– Não sabemos de nada! – continuou Cody. – Nossos poderes são limitados. Você que é o todo-poderoso. O Inferno não controla metade do universo?

– Há mais coisas entre o Céu e a Terra, Horácio, do que sonha nossa vã filosofia – Carter citou solenemente.

– Calem a boca, os dois – argumentou Jerome. Ele encarou o anjo. – Você já usou essa antes.

Carter deu de ombros.

– Você já meu ouviu usar todas. Muitas e muitas vezes.

Jerome se voltou para meus três amigos:

– Nada? Vocês têm certeza absoluta de que não perceberam nada nela antes de isso acontecer?

– Ela andava triste – respondeu Peter.

– Ela sempre andava triste – acrescentou Hugh.

– Ela não contou pra nenhum de nós sobre isso que ela sentia – rosnou Cody. – Ela só contou ao Roman. Por que não tá questionando ele?

– Já questionei – respondeu Jerome. Deu um passo se aproximando do jovem vampiro e inclinou sua cabeça. – E olha como fala. Tem sorte que estou me sentindo bonzinho agora.

– O que a Mei está fazendo? – perguntou Peter. Seu tom de voz era apropriado e educado, enquanto olhava com desconforto para Cody. Metade da intenção de Peter naquela pergunta devia ser um plano para salvar seu protegido das punições.

Jerome suspirou e deu um passo para trás.

– Interrogando outros. Procurando qualquer pista – qualquer uma – com os outros imortais, que podem ter sentido algo.

Hugh, que estava sentado no sofá, mantendo distância do nosso chefe raivoso, limpou a garganta, nervoso.

– Não quero falar sobre isso... mas você meio que já estava em condicional depois do, hum, feitiço.

O olhar em combustão de Jerome caiu sobre o demônio, que se encolheu.

– Você acha que eu não sei? Por que todo mundo aqui fica me dando informação inútil?

– Só tô dizendo – continuou Hugh – que se alguém quisesse tirar vantagem da situação, fazer você perder um de seu imortais seria uma boa maneira. Alguém que, talvez, quisesse uma promoção no cargo.

– Mei não faria isso – disse Jerome, entendendo. Ele já fora traído por uma demônia-tenente, então a hipótese de Hugh não era de todo ruim. – Ela não conseguiria esconder a Georgina assim... mesmo se estivesse em conluio com alguém que consegue, ela teria maneiras melhores de me atingir. – Havia quase um tom de orgulho em sua voz.

– E a Simone? – perguntou Cody. – Ela está por aí personificando a Georgina, sabia?

Peter e Hugh olharam assombrados. – Ela tá o quê? – perguntou o demônio.

A atenção dos amigos pareceu perturbar Cody mais do que a ira de Jerome. – Sim, eu fui, hum, visitar a Gabrielle na livraria, e vi Simone. Ela estava com a forma de Georgina, mas pude sentir que era ela.

– Você viu a Gabrielle? – perguntou Carter, interessado, como se meu desaparecimento do universo fosse menos importante do que o romance de Cody.

Cody enrubesceu. – A gente... tinha marcado um encontro. Mas eu cancelei quando soube de Georgina. Não tem problema.

Não tem problema? Agora meu sequestro estava arruinando as chances de Cody com a mulher dos seus sonhos.

– Essa é mais uma informação útil – rosnou Jerome. – E, sim, sei sobre a Simone.

– Talvez devesse falar com ela – disse Cody.

– Não foi ela – retrucou Jerome. – A forma como falou mostrou que era um caso encerrado.

Peter ainda estava cauteloso.

– Se você diz que não foi ela... então não foi. Mas, se ela é inocente, por que está personificando Georgina?

– Ela tem suas razões – disse Jerome, vagamente.

Cody sentiu-se ultrajado.

– E você vai simplesmente permitir? Como pode?

– Eu não tô nem aí – rugiu Jerome. Uma onda de poder explodiu dele, como um choque. Todos, menos Carter, foram sacolejados. A louça no armário de Peter balançou. – Eu não tô nem aí para o que aquele súcubo faz. Não tô nem aí para os amigos humanos da Georgina ou o que eles pensam. No mínimo, você deveria ficar agradecido. O ato da Simone impede que eles percebam.

Nenhum dos meus amigos disse mais nada. Com um rosnado frustrado, Jerome se virou para a porta.

– Já tô de saco cheio. Preciso de respostas de verdade.

Ele saiu do apartamento, irrompendo no corredor e deixando a porta aberta. Aparentemente, parecia que a tinha deixado assim como uma provocação enraivecida, mas eu sabia que era para Roman poder sair. Normalmente, o demônio teria simplesmente se teletransportado, porém, por alguma razão, pai e filho investigavam juntos. Na escadaria, a sós, murmurou:

– Espere aí.

Roman deve ter obedecido, pois Jerome desaparecera. Ele reaparecera – e eu com ele – em novo cenário: a loja do Erik. Era começo de noite, e Erik já tinha fechado. As fontes foram desligadas. A música, silenciada. Embora, nos fundos, um cantarolar pudesse ser ouvido. Foi interrompido quase de imediato e ouviam-se passos de alguém se aproximando.

Jerome ficou onde estava, sem se dignar a se mover. Sabia que sua presença seria sentida de imediato. Sabia que Erik viria até ele.

E, obviamente, com o passo ainda instável da doença recente, Erik foi para a entrada da loja. Ele irradiava precaução conforme se movia. Para mim, era sempre sorrisos e xícaras de chá. Até Carter, o imortal mais poderoso de Seattle, ganhava um sorriso respeitoso. Mas Erik levantara a guarda – o que não era estranho, considerando quem estava na loja.

Erik parou a poucos metros de Jerome e endireitou-se o máximo que pode. Deu a Jerome um mínimo menear de cabeça como forma de cumprimento.

– Senhor Hanan’el – disse Erik. – Que visita inesperada.

Jerome tinha acabado de tirar um cigarro do casaco e o deixou cair das mãos. O olhar que lançou a Erik era cem vezes mais assustador do que qualquer coisa que eu já tinha visto. Esperei outra explosão de poder, uma que destruiria o prédio.

– Nunca mais – disse Jerome –, deixe esse nome escapar dos seus lábios de novo. Senão vou arrancá-los – sua voz estava baixa e constante, raiva e poder borbulhantes em contenção.

Se eu estivesse lá, teria engasgado. O verdadeiro nome de Jerome. Erik sabia o verdadeiro nome de Jerome. Eu uso nomes falsos para me misturar e esquecer minha identidade. Mas para anjos e demônios, nomes são sinônimo de poder. Nas mãos certas, um nome poderia ser usado para enfeitiçar ou controlar um mortal superior. Na verdade, para Dante ter conseguido enfeitiçar Jerome na primavera, Grace deve ter revelado seu nome.

Erik nem se mexeu frente ao modo ameaçador de Jerome.

– Imagino – disse Erik – que esteja procurando algo.

– Sim – respondeu Jerome, imitando levemente o tom de Erik –, estou “procurando” meu súcubo.

Erik arqueou levemente a sobrancelha.

– A senhorita Kincaid?

– Claro! Quem mais? – tecnicamente, Jerome tinha outro súcubo, Tawny. Mas talvez ele não fosse à sua caça caso Tawny desaparecesse. Pegou outro cigarro e acendeu-o sem isqueiro. – Sabe onde ela está? E não minta para mim. Se estiver a escondendo de mim, vou te rasgar ao meio, deixando sua língua por último.

– Arrancar partes do corpo parece ser o tema da noite – retrucou Erik, segurando as mãos atrás das costas. – Mas não, não sei onde a senhorita Kincaid está. Nem sabia que está desaparecida.

Jerome deu um passo a frente, semicerrando os olhos.

– Eu disse: não minta para mim.

– Não tenho por que mentir. Eu gosto da senhorita Kincaid. Nunca desejaria mal a ela. Se puder ajudá-la, irei – a escolha de palavras era cuidadosa. Era a mim que oferecia ajuda, não a Jerome.

– Ela lhe contou sobre um tipo de força, uma “canção de sereia” que a perseguia – disse Jerome. Ele fez um pequeno relatório sobre o que Roman observara quando eu desaparecera. – O que você sabe sobre essa coisa? Que tipo de criatura era? Estava se alimentando da depressão dela.

Desde que o sonho começara, Jerome mostrara apenas raiva e terror. Porém... enquanto atirava perguntas, estava quase incoerente. Havia desespero por baixo de toda aquela raiva. Desespero e frustração, pois ele estava numa situação sem resposta e se sentia impotente. Demônios, como regra geral, não gostam de se sentir impotentes. Recorrer à ajuda humana – mesmo um humano que sabia seu nome – deve ter sido terrivelmente doloroso para meu chefe.

Erik, elegante como sempre, permaneceu calmo e formal.

– Há criaturas que fazem isso, sim, mas eu não acho que foi uma delas. Acredito que tenha usado esses momentos de fraqueza. É um encanto, e provavelmente não a própria criatura ou o culpado.

– Então que criatura é?

Erik abriu as mãos.

– Pode ser um número infinito de criaturas.

– Puta que pariu, que merda! – exclamou Jerome, jogando o cigarro no chão de Erik e pisoteando-o.

– Não está mais ligado a ela?

– Correto.

– Não tem percepção dela; um dos seus não está a escondendo?

– Correto.

– E sabe que ela não está morta?

– Correto.

Os olhos castanhos de Erik estavam pensativos.

– Então a criatura é provavelmente de fora do nosso âmbito.

– Por que – perguntou Jerome, cansado – todo mundo fica me falando coisas que já sei? – a pergunta pode ter sido direcionada a Erik, Roman ou ao vento. O demônio pegou outro cigarro.

– Você precisa descobrir quem a levaria e por quê. Ela tem inimigos. Nyx não ficou muito feliz com o resultado da última visita dela.

– Nyx está presa – Jerome falou como se já tivesse dito a mesma coisa cem vezes. Eu tinha quase certeza de que ele tinha sido questionado cem vezes.

– Seu enfeitiçador, senhor Moriarty, não estava muito contente com ela também – apesar de Erik se manter profissional, seus lábios curvaram levemente, como se tivesse provado algo amargo. Apesar dos sentimentos dele pelo demônio, Erik e Jerome tinham em comum o ódio por Dante.

Isso fez Jerome pausar.

– Duvido que tenha sido mágica humana; apesar de supor que ela possa ter ajudado – jogou novamente o cigarro e repisou-o também. – No entanto, não consigo acreditar que não teria nenhuma percepção dela no mundo.

– Talvez ela não esteja nesse mundo.

As palavras de Erik pairaram entre eles por vários segundos.

– Não – disse Jerome, por fim. – Muitos têm interesse nela, mas nenhum que faria algo assim.

Vi no semblante de Erik que as palavras “muitos têm interesse nela” tinham chamado sua atenção. No entanto, ficou em silêncio à espera da próxima declaração profunda de Jerome. Que não foi nada profunda.

– Hora de ir – disse o demônio, de modo que Roman o pudesse alcançar.

Jerome se teletransportou para onde quer que precisasse ir.

E eu? Eu voltei para minha prisão.


Capítulo 15

Era 1942, e eu estava na França.

Não queria estar na França. Não queria estar lá nos últimos cinquenta anos, porém, de algum modo, Bastien continuamente me convencia a ficar. Havia também o pequeno detalhe de que nosso arquidemônio supervisor não queria que fôssemos embora. Gostava de como trabalhávamos juntos. Times íncubos-súcubos às vezes funcionam, às vezes, não, mas nós éramos excepcionais, e nossos superiores tinham percebido. Era bom para nossas carreiras infernais, mas não para nosso moral.

Bastien não entendia qual era o meu problema.

– O Inferno nem precisa da gente aqui – ele me disse, um dia, depois de eu reclamar pela milésima vez. – Encare como umas férias. Hordas de almas estão sendo condenadas aqui todos os dias.

Fui até a janela de nossa oficina e observei a rua movimentada, pressionando minhas mãos contra o vidro. Ciclistas e pedestres passavam, todos precisando chegar a algum lugar, e rapidamente. Poderia ser um fim de semana comum em Paris, mas não era. Nada estava normal desde que os alemães haviam ocupado a França, e soldados espalhados pela rua chamavam minha atenção como velas na noite.

Comparação ruim, pensei. Velas implicam algum tipo de esperança ou luz. E enquanto Paris, sob o domínio nazista, se virava melhor do que a maioria das pessoas imagina, algo na cidade havia mudado. A energia, o espírito... como queira, tinha uma nódoa a meu ver. Bastien dizia que eu estava louca. A maioria das pessoas vivia seu dia a dia. A escassez de alimento não era tão ruim quanto em outros lugares. E após nos modificar para uma aparência de modelos arianos, com cabelo loiro e olhos azuis, éramos deixados mais ou menos em paz.

Bastien ainda falava sobre meu mau humor enquanto se movimentava e arrumava os chapéus nas prateleiras ao meu redor. Ele escolhera chapeleiro como profissão, pois funcionava bem para conhecer madames parisienses. Eu encarnava o papel de sua irmã – como comumente fazia em outras ocasiões –, ajudando com a loja e mantendo o lar. Era melhor do que os antros de prostituição e casas de dança: minhas prévias moradas na França.

– E o seu amigo? – perguntou Bastien, astuto. – O jovem monsieur Luc?

Com a menção de Luc, parei minha análise distante do mundo fora da oficina de chapéus. Se fosse para falar de velas à noite, Luc seria a minha. Uma de verdade. Era um humano que conhecera recentemente, trabalhando para o pai – um luthier. Seu negócio sofria ainda mais do que o nosso, pois o mercado para itens de luxo encolhia nesses tempos magros.

Porém, Luc não parecia deixar os infortúnios econômicos o afetarem. Sempre que o via, estava alegre, cheio de esperança. O peso de tantos séculos de pecado e escuridão estavam me afetando, e estar em Paris apenas piorava. No entanto, Luc era uma maravilha para mim. Ser capaz de ver o mundo com tanto otimismo, com tanta convicção de que o bem prevaleceria... era um conceito estranho para mim. Um que me intrigava. Não conseguia me afastar.

– Luc é diferente – admiti, enfim voltando da janela. – Ele não pertence a isto.

Bastien riu com desdém e encostou-se contra a parede.

– Todos pertencem a isto, Fleur – fleur, flor em francês, era o apelido que me dera há muitos anos, não importava qual identidade eu assumisse. – Suponho que ainda não dormiu com ele?

Minha resposta foi virar-me novamente e ficar em silêncio. Não, não tinha dormido com Luc. Eu queria, no entanto. Queria com o instinto de uma mulher apaixonada, e também com o desejo de um súcubo por energia e saborear a alma de alguém tão bom. Nunca havia hesitado antes. Era o tipo de coisa que eu sempre perseguira. É o meu trabalho, afinal. Mas algo dentro de mim mudava. Talvez fossem os tempos sombrios, mas sempre que eu olhava Luc e via a pureza irradiando dele – e seu amor e sua confiança crescentes por mim – eu simplesmente não conseguia.

– Ele virá hoje à noite – disse, enfim, desviando da pergunta. – Vamos passear.

– Oh – disse Bastien –, entendo. Um passeio. Theodosia vai ficar impressionada – Theodosia era nossa arquidemônia.

Virei-me bruscamente e encarei Bastien.

– O que eu faço não é da sua conta! – exclamei. – Além do mais, se isso são minhas “férias”, como diz, não preciso abocanhar uma alma boa.

– Almas estão condenadas a torto e a direito aqui – ele concordou. – Mas, vez ou outra, você precisa pegar uma. Não pode passar o resto da sua existência atrás das más.

Não conversei com ele pelo resto do dia, e, felizmente, a loja ficou cheia o suficiente durante a tarde. Ocupou-nos, apesar de eu ter contado os minutos para a chegada de Luc. Ele cumprimentou meu “irmão” educadamente, depois nos apressamos para fora, a fim de não ter que encarar os olhos sabichões de Bastien.

Com seu cabelo dourado, Luc poderia passar por meu irmão também. Sempre sorria quando me olhava, formando ruguinhas ao redor de seus olhos azuis, que eu comparava a safiras. Segurou meu braço enquanto atravessávamos a multidão noturna, repleta daqueles que iam para a casa após o serviço ou procuravam entretenimento noturno. Ele falou que eu estava linda, e conversamos sobre assuntos amenos: o tempo, fofocas do bairro, acontecimentos cotidianos...

Fomos parar em um pequeno parque, lugar popular para um passeio antes do toque de recolher. Encontramos uma área relativamente isolada, entre algumas árvores, e sentamos na grama. Luc carregara uma pequena cesta durante todo o passeio e então revelou seu conteúdo: doces, salgados e uma garrafa de vinho. Ele não tinha dinheiro para gastar com aquilo, mas eu sabia que não devia protestar. Já estava feito. A seu ver, o que ele tivera que sacrificar valera a pena.

Ele tinha outra surpresa para mim: um livro. Nós sempre trocávamos romances, e enquanto eu estava deitada na grama, folheando as páginas, uma estranha paz florescia em mim.

– Na próxima, traga seu violino – eu disse, abaixando o livro. – Quero ouvi-lo tocar novamente.

Ele se esticou ao meu lado, sua mão encontrando a minha. Entrelaçamos nossos dedos e observamos o céu se tornar violeta.

– Não aqui – ele disse. – Não quero um concerto público.

– Encantaria a todos – eu disse. – A cidade toda iria se enfileirar e dançar sob seu comando, como o Flautista de Hamelin.

Ele riu, o som tão dourado quanto seu cabelo, ou o próprio sol.

– E então o que eu faria com eles?

– Mandaria todos embora para que ficássemos a sós.

– Estamos a sós – ele disse, ainda rindo. – Ou quase.

Rolei para o lado e me inclinei para ele. As sombras das árvores nos rodeavam.

– Sós o suficiente.

Abaixei os lábios e o beijei, surpreendendo a ambos. Não era minha intenção. Ainda não tínhamos nos beijado. Mantivera-me afastada dele, ganhando em troca todo aquele falatório de Bastien. Não poderia tomar a energia de Luc e diminuir sua vida. Porém, algo me dominou. Poderia ser meu humor cinza de antes, ou os sentimentos que pareciam assombrosamente com amor. O que quer que fosse, ser um súcubo não importava naquele instante.

Bem, não importava até o momento em que sua energia começou a correr para mim. Nosso beijo se intensificou, nossos lábios suplicantes. Sua alma brilhava com tanta força que um simples beijo era o suficiente para sentir sua energia. Era glorioso. Meu corpo todo se excitava com ela e com seu toque.

Ele abraçou minha cintura, e, sem pensar, comecei a desabotoar sua camisa. Ele me virou, de modo que deitei de costas, e ele abaixou sua boca para o meu pescoço. A saia até o joelho da época proporcionava acesso fácil a minha perna, e eu me aproximei mais, puxando suas roupas conforme seus lábios famintos se moviam cada vez mais para baixo. O tempo todo aquela vida linda me preenchendo. Eu me afogava nela.

Quando seus lábios alcançaram a pele entre meus seios, algo pareceu trazê-lo de volta à realidade. Ele se afastou de mim, passando a mão pelos cabelos, enquanto me olhava nos olhos.

– Oh, Deus – ele disse –, não podemos fazer isso. Não agora – o mantra dos homens moralistas de todas as partes do mundo.

– Podemos – eu disse, surpresa pela súplica em minha voz. Era a afeição que sentia por ele falando, não um propósito infernal. Eu queria – precisava – que ele ficasse perto de mim.

Ele suspirou.

– Suzette, Suzette. Eu quero. Mas precisamos nos casar. Não posso fazer isso... não posso fazer isso com você... a não ser que seja minha esposa. Senão, é errado.

Encarei-o, incerteza interferindo em meu desejo.

– Você está... está me pedindo em casamento?

Luc pensou por um momento, depois sorriu novamente, um daqueles sorrisos radiantes que sempre aceleravam meu coração.

– Sim. Acho que estou. Mas temos que esperar um pouco... até eu conseguir juntar dinheiro. Mas quando a guerra acabar, as coisas vão melhorar.

A guerra nunca vai acabar, um pedaço soturno de mim pensou. Mas, naquele momento, não era o problema real. Ele quer se casar comigo. Era impossível, claro. Eu poderia, em teoria, me modificar, para que envelhecesse com ele, o tempo todo fazendo sexo súcubo com outros. Alguns súcubos fazem isso e têm incontáveis maridos ao longo dos séculos. A maioria nem permanece até o fim. Apenas desaparecem. Os votos nupciais não significam nada.

Olhar para ele, com aquele amor ardente em seus olhos, dividiu meu coração. Se eu dissesse sim, ele me abraçaria e faríamos amor. Se dissesse não, ele não o faria – não por despeito, mas pela honra. Poderia ser tão fácil. Dizer sim. Prometer que casaria e o amar naquele instante. Poderia satisfazer o desejo de meu coração e de meu corpo, e manter meu status no Inferno. Poderia abandoná-lo após o casamento. Ou melhor, terminar o noivado.

Tudo que precisava fazer era lhe dizer um desonesto “sim”. Para ele, sexo sem isso não era honesto. Na verdade, era de se espantar que ele não insistisse em esperar até o casamento. O compromisso parecia ser suficiente. Ele acreditava em mim. Acreditava que eu fosse uma pessoa boa e honesta. Se eu dissesse que o amava, seria uma verdade eterna para ele, então ele aceitaria. Diga sim.

Mas as palavras travaram em minha garganta. Não poderia mentir para ele. Ele não podia descobrir que eu era tão baixa. E enquanto sua energia ainda queimava dentro de mim, percebi que não a podia roubar mais dele. A culpa do que fizera já estava me machucando. Fora apenas a degustação mais sutil, mas cortara uma parte de sua vida. E se eu desistisse do casamento após termos feito sexo, ele acharia que tínhamos feito algo errado. Um pecado. Uma nódoa negra surgiria em sua alma.

Escorreguei de debaixo dele e me sentei.

– Não – eu disse –, não posso me casar com você.

Seu rosto feliz não se alterou.

– Não precisa ser agora. E não precisa ser... por causa disso – ele apontou para a grama onde tínhamos deitado. – Como eu disse, não poderíamos nos casar por enquanto mesmo.

– Não – repeti, com o coração triste –, não posso... não posso casar com você. Nunca – eu não posso te machucar. Gosto muito de você. Não posso apagar sua luz.

Ele deve ter visto algo em meu rosto, algo que potencializou a verdade em minhas palavras. Seu sorriso esvaneceu. O sol sumiu por trás das nuvens. Meu coração se esfacelou. Levantei-me rapidamente, sem conseguir olhar para ele. O que eu tinha de errado? Não sabia. Só sabia que não conseguia ficar lá. Ficar lá e vê-lo sofrer. Se ficasse, começaria a chorar. Já sentia as lágrimas arderem em meus olhos.

– Suzette, espere!

Corri, mas logo o ouvi se aproximando. Mesmo após minha rejeição, ele não parecia bravo. Estava preocupado comigo. Odiei isso ainda mais. Queria tê-lo enfurecido. Mas, não, até algo assim... iria machucá-lo, mas ele respeitaria a mim e a minha escolha.

Por isso, precisava me manter afastada. Não apenas naquele momento, mas para sempre. Via, então, que não poderia me aproximar de alguém que eu gostasse. Não suportava machucar alguém que amasse. Não suportava condenar uma alma boa. De algum jeito, de algum modo, após séculos prejudicando despreocupadamente outros, algo dera muito errado na minha função de súcubo. Como? Quando? Com Niccolò? Era apenas a somatória de vidas e almas que eu tinha prejudicado me condenando?

Voltei para a loja. Bastien e eu morávamos acima dela. Ainda podia ouvir Luc me seguindo, gritando que estava tudo bem. Sabia que, se eu entrasse, ele não se atreveria a me seguir. Provavelmente, bateria educadamente na porta, mas iria embora se Bastien mandasse.

Peguei um atalho, atrás de alguns prédios, longe da rua principal. Conhecia o caminho muito bem, mas estava escuro, limitando minha visão, o suficiente para não enxergar o soldado com quem trombei. Ele estava tão imóvel, tão sólido, que foi quase como colidir em uma das paredes dos prédios. Pulei para trás, e ele me pegou pelos ombros.

– Calma aí – ele disse, com sotaque pesado, mas bem articulado. – Vai se machucar.

Era um homem gigante, jovem e nada atraente. Eu não podia ter certeza no crepúsculo, mas seu uniforme parecia de alguma patente maior. Sorria para mim, sem largar meus ombros.

– Obrigada – disse, acanhada. Tentei me afastar graciosamente, mas sua captura era forte.

– Você não devia estar aqui – ele acrescentou. – É perigoso. Ainda mais tão perto do toque de recolher – o toque de recolher não estava nem um pouco próximo, apesar do céu escurecido. Ele me olhou de cima abaixo enquanto falava. Minha saia tinha abaixado quando corri, mas vários botões de minha blusa tinham sido desabotoados e eu não os tinha arrumado. Ofereciam uma boa visão do meu decote e do sutiã.

– Minha casa é logo ali – eu disse. – Eu vou... eu vou agora.

A mão em meu ombro permaneceu grudada onde estava, mas a outra mão desceu para dentro da minha blusa, acariciando meu seio. Ótimo. Depois de todas as revelações profundas e traumáticas sobre minha vida amaldiçoada de súcubo, a última coisa que eu precisava era um nazi pegando nos meus peitos.

Esquece. Havia algo pior.

– Solte-a.

A voz de Luc soou atrás de mim, e eu encolhi. Esperava que ele tivesse se perdido na caça, mas ele deveria ter me visto vindo nessa direção e adivinhado qual caminho eu faria para a casa.

– Sai fora – disse o oficial. – Você não tem nada a ver com isso.

Os punhos de Luc estavam cerrados.

– Solte-a – ele repetiu. – Não vou falar novamente.

O oficial riu, mas era um som duro e terrível.

– Você não vai me falar mais nada mesmo.

Tentei ao máximo olhar para Luc sob aquela mão pesada.

– Vá – eu lhe disse. – Vai ficar tudo bem. Vou ficar bem.

– Garota esperta – disse o alemão.

Luc investiu contra ele, e eu fui empurrada para fora do caminho quando os dois homens se atracaram. Eu observei horrorizada. Tudo aconteceu tão rapidamente que meu cérebro quase não teve tempo para registrar o que via. Luc era forte e rápido, mas o outro cara era enorme – e tinha uma faca. Vi-a brilhar de relance sob a pouca luz, e o corpo de Luc enrijeceu. O oficial deu um passo para trás, arrancando a lâmina do estômago de Luc.

Gritei e tentei correr para ele, mas o braço do nazista me deteve, segurando-me mais uma vez. As mãos de Luc fecharam, enquanto sangue jorrava de seu estômago. Olhou para baixo, desacreditado, esperando a piada terminar, e depois caiu no chão. Tentei me livrar do meu captor, mas não consegui. Os olhos de Luc me relancearam, mas seus lábios não conseguiam formar nenhuma palavra enquanto jazia lá, em terrível agonia, a vida esvaecendo de seu corpo.

– Pronto – disse o oficial alemão, puxando-me para perto de seu peito. Sua faca desaparecera para o mesmo lugar de onde viera, e a mão que a segurara – a que esfaqueara Luc – estava embaixo de minha blusa novamente. – Agora não há mais distrações.

Ouvi Luc fazer um barulho estrangulado enquanto o oficial arrancava o último dos meus botões. O suficiente de meu choque entorpecido diminuiu para que eu me lembrasse de que poderia lutar. Eu poderia me modificar para o dobro de tamanho desse cara e...

Thump. A cabeça do nazi foi para frente conforme algo o atingiu por trás. Ele me soltou e caiu no chão, inconsciente. Bastien estava atrás dele, segurando um molde de chapéu: um objeto pesado e redondo de madeira, usado para confeccionar os acessórios.

– Reconheço seu grito de longe – ele disse.

Não tinha tempo para piadas ou para agradecer. Caí de joelhos ao lado de Luc e arranquei meu casaco, tentando freneticamente utilizá-lo para estancar o sangue. Ele ainda estava consciente; e seus olhos, cravados em meu rosto, ainda cheios de esperança e amor, tão característicos dele. Bastien ajoelhou-se ao lado, semblante solene.

– Nenhum tratamento humano pode salvá-lo, Fleur – ele afirmou, baixinho.

– Eu sei – soubera desde quando o vira cair. Por isso não enviara Bastien para pedir ajuda. – Oh, Deus. Não pode ser verdade.

– Está... tudo bem – as palavras de Luc eram quase inaudíveis, e eu tive a impressão de que ele engasgava no sangue. – Você está segura... é tudo que importa... – ele tossiu novamente, dessa vez, vi sangue em seus lábios.

– Não, não – eu disse. – Não valeu a pena. Não valeu a pena. Nada disso era para ter acontecido.

Era minha culpa. Tudo minha culpa. Luc viera me salvar do alemão. Esbarrei nele, pois fugira de Luc. Fugira de Luc, pois, de repente, eu me agarrara a uma moral e me recusara a fazer sexo com ele. Se tivesse cedido... se tivesse dito sim e o tomado como um súcubo faria, isso nunca teria acontecido. Estaríamos deitados na grama agora, nus, nos braços um do outro. Em vez disso, ele morreria em um beco, por minha culpa, minha fraqueza. Eu era um súcubo que tentara agir como humana – e fui uma merda nos dois casos.

Luc estava sem fala. Tudo era dito através de seu olhar, como se eu fosse um anjo enviado a fim de o levar para casa. Bastien me cutucou.

– Fleur, ele vai ficar ainda um tempo vivo. Você sabe como feridas estomacais demoram. É uma agonia.

– Eu sei – rosnei, segurando um soluço. – Não precisa me falar.

A voz de Bastien estava séria.

– Você pode cessar esse sofrimento. Acabar com ele.

Encarei Bastien com incredulidade.

– O que você quer que eu faça? Pegue a faca e termine o serviço?

Ele balançou a cabeça.

– Ele só tem um restinho de vida, Fleur. Só um pouco. Não vai precisar fazer muito.

Demorei a entender. Quando finalmente compreendi, arregalei os olhos.

– Não... não consigo.

– Ele morrerá de todo jeito – disse Bastien. – Você pode acelerar o processo... deixá-lo mais suave.

Ainda balançava a cabeça, mas as palavras de Bastien me atingiram. Ele tinha razão. Ele tinha razão, e eu o odiava por isso. Virando-me, olhei de volta para Luc, cuja testa eu acariciava. Seu olhar ainda estava voltado para mim. Uma gota caiu em suas bochechas: uma de minhas lágrimas.

– Adeus, Luc – eu disse, suavemente. Parecia que eu deveria falar um milhão de outras coisas para ele, mas não dava conta. Então, em vez disso, abaixei-me e juntei nossos lábios. Pressionei-os, em contato total, mas sem a paixão animal de antes. Era mais gentil. O sopro de um beijo.

Mas, como Bastien dissera, não precisou de muito. A bela e prateada doçura de sua energia vital fluiu para mim. Era tão pura e perfeita quanto antes – e acabou rapidamente. Absorvi-a e sentei-me, no justo momento em que Luc deu seu último suspiro. Os olhos que tinham me observado com tanta adoração não viam mais nada. Encostei-me contra Bastien.

– Matei-o – eu disse, sem tentar segurar as lágrimas.

– Você trouxe-lhe paz. Você foi seu anjo – um eco assustador dos meus sentimentos.

– Não, isso... Quer dizer, antes. Ele não devia estar aqui. Ele estava aqui por causa... por causa de mim. Se tivesse dormido com ele, isso não teria acontecido. Mas não consegui. Não queria machucá-lo... não queria maculá-lo... e então isso aconteceu...

Bastien me abraçou.

– Não sei se te consola, mas a alma dele não vai para os nossos.

Enterrei o rosto em seu ombro.

– Foi minha culpa. Minha culpa... eu devia ter feito minha obrigação. Eu estava pronta – aí ele me pediu em casamento e... maldição. Devia ter aceitado. Devia ter mentido. Teria sido melhor para todo mundo. Não sei como isso foi acontecer...

– Aconteceu porque você se aproxima demais deles – disse Bastien. Ele estava inflexível, mas tentando soar gentil. – Homens assim... qualquer pessoa assim... eles te encantam, Fleur. Você se afeiçoa e depois se machuca.

– Ou os machuco – murmurei.

– Você precisa permanecer indiferente.

– Está piorando – eu disse. – Cada vez fica mais difícil. Eu não entendo. O que está acontecendo comigo? O que há de errado comigo?

– Imortalidade – respondeu ele, sabiamente. – Anos demais.

– O que você sabe? É mais novo do que eu.

Bastien me ajudou a levantar, apesar da minha relutância em abandonar Luc.

– Sei que não pode continuar fazendo isso. Escute o que eu digo: não se afeiçoe aos bons. Não importa o que faça, não vai acabar bem.

– Nem vou chegar perto dos bons – disse com a voz fraca. – Nunca mais. Vou me afastar de todos esses.

O semblante amável de Bastien sumiu.

– Isso é ridículo – ele zombou. – Não estava me ouvindo? Não pode ir atrás de homens imorais para sempre. Eles não têm energia. Você teria que fazer quase todo dia.

Olhei para Luc. Luc que me amara e morrera por mim. Minha culpa. Tudo minha culpa.

– Nunca mais – eu disse. – Nunca mais vou machucar alguém assim.

***

Quando voltei para a caixa no escuro, não precisei da explicação dos oneroi. O sonho todo fora verdade – exceto pela última parte. Fora mentira. Eu continuei magoando as pessoas, de novo e de novo.


Capítulo 16


Sério, quando se para pensar, eu estava passando por algo não muito diferente da morte em si. Dizem que você vê sua vida passar por seus olhos, e era o que estava acontecendo. Sonho após sonho. Revivia os momentos mais dolorosos da minha vida, sonhos reais nos quais eu fazia coisas terríveis e via coisas terríveis sendo feitas a quem eu amava. Também via “realidades” nunca concretizadas. Em uma delas, a recente demonstração de afeição de Roman mostrava-se uma armação. Era uma fachada para me punir por meu papel na morte de sua irmã. E por trás do disfarce ele perseguiu meus amigos, mortais e imortais. Observei-o matar um por um, enquanto ignorava minhas súplicas para que acabasse com a minha existência de uma vez.

Os oneroi se aproveitavam do modo como eu me incomodava mais com o sofrimento daqueles que eu amo do que o meu próprio. Eles caçoavam de mim, afirmando que a visão do ataque de Roman vinha do futuro, pelo portal de chifre. Não acreditei... pelo menos, acho que não. Nyx pode ver o futuro. E eles? Podem, talvez, estar em contato com ela, apesar de seu encarceramento. Minha razão estava dando lugar à paranoia, conforme arrancavam pouco a pouco minha essência. Comecei a temer pelos sonhos reais, vindos do mundo mortal, que mostravam meus amigos. Não eram mais um conforto; apenas me jogavam ainda mais fundo na escuridão. Pois, como os oneroi haviam previsto, não havia esperança de resgate à vista.

Porém, eu continuava sonhando...

* * *

Roman, Hugh e os vampiros estavam na van. Peter dirigia, e o relógio do painel mostrava duas da manhã. Ninguém falava naquele espaço diminuto, não oferecendo nenhuma pista sobre o que estava acontecendo. Os faróis iluminaram uma placa na rodovia que indicava saída para a Rota 41 do estado de Idaho. Idaho?

– Pode mudar de rádio? – pediu Hugh. – Odeio programas de entrevista.

– Tem medo de acabar aprendendo alguma coisa? – perguntou Peter.

– Tô é tentando ficar acordado.

– Regra da estrada: os motoristas mandam no rádio.

– Onde você leu isso?

– Chega – disse Roman. Sua voz estava cansada, seu rosto ainda mais. Ele parecia não ter dormido muito recentemente, mas considerando a hora da noite, isso não foi uma surpresa. Ele abriu um mapa e depois checou um papel com algumas coordenadas rabiscadas. – Deve ser a próxima saída.

– Como o Carter conseguiu achar esse cara? – perguntou Cody.

– O Carter tem seus mistérios – respondeu Hugh. – Envolvem bebidas pesadas e fumar que nem uma chaminé.

– É, mas, se ele sabia, por que não falou pro Jerome?

– Porque o Jerome ia entrar no modo destruição se soubesse. Acho que o Carter tava mantendo a discrição por compaixão. Ele é um anjo e tal.

– Ah, é. – Cody parecia ter esquecido esse detalhe. Era fácil se esquecer disso.

– Jerome vai destruir a gente se descobrir o que estamos fazendo – avisou Peter.

– Ele tá muito distraído. Acha que estamos seguindo uma pista vampírica.

– Esse é o problema – disse Peter. – Se descobrir que estamos mentindo pra ele...

– Não vai descobrir – interrompeu Roman, impaciente. – Não se a gente só pegar do cara o que precisa e cair fora. É aqui, pega a próxima saída.

Hugh entrou em algo que mal parecia uma estrada. Não havia comércio e apenas um poste iluminava um cruzamento, logo antes de a escuridão engolir tudo. Roman continuou dando as coordenadas, levando-os cada vez mais adentro da área rural.

– Não pode fazer nada com ele – disse Hugh, virando a cabeça a fim de olhar para Roman no banco de trás. – Qualquer demonstração de poder em território de outro demônio e você morre... e nós também, provavelmente.

– Você acha que eu sou idiota? – indagou Roman.

– Não exatamente. Mas você tem o pavio curto, não sabe se controlar e faria de tudo por Georgina.

Esperei pela negação de Roman – pelo menos de parte das afirmações –, mas ele não disse nada. Silêncio novamente até Roman apontar para uma estradinha de cascalho. Era tão pequena que Peter passou reto, freou e voltou de ré. Pararam no começo da estradinha e seguiram a pé. Vi, então, que os vidros de trás da van tinham filme, e eu podia apostar que os caixões dos vampiros estavam ali atrás, em caso de precisarem viajar durante o dia. Ali, no meio do nada, as estrelas enchiam o céu, e os insetos tocavam uma sinfonia. A sombra de uma casa apareceu. Não havia luzes acesas.

– Podemos fazer um esquema SWAT? – perguntou Cody, animado. – Cercar a casa e invadir?

– Acho desnecessário – disse Roman. Deu um chute na porta. Ela tremeu, mas não chegou perto de abrir como nos filmes de ação. Domar os poderes de nefilim deixava-o com habilidades humanas.

Peter suspirou.

– Com licença – ele tomou o lugar de Roman, repetiu o chute, e dessa vez a porta foi arrebentada. Com aquele jeito de bobo, era fácil esquecer que Peter e também Cody tinham reflexos super-rápidos e força acentuada. Peter deu um passo para trás, retirando lascas de sua calça.

O quarteto entrou, e uma luz foi acesa no fundo da casa.

– Que porra é essa? – uma voz perguntou.

Que porra, de fato. Dante entrou na sala.

Deu uma única olhada para meus amigos e disse:

– Que merda.

Ele deu meia-volta para a sala de onde veio, sem dúvida dirigindo-se à janela. Mas foi lento demais. Num piscar de olhos, Cody segurou Dante pelo colarinho e o arrastou de volta para a sala de estar, jogando meu ex-namorado em uma cadeira. Dante começou a se levantar, mas, percebendo como meus amigos se postavam a sua volta, decidiu ficar sentado.

Dante suspirou.

– Bem, eu sabia que isso ia acontecer um dia. Por que o chefe não veio sozinho? – ele olhou para Roman. – Te conheço? – Dante tinha visto Roman em uma praia quando salvara Jerome do feitiço. Foi um caos, então não me surpreendi que a memória de Dante daquele dia não fosse das melhores; especialmente depois de ter apanhado de um demônio.

– Não estamos aqui por causa do Jerome – retrucou Hugh. Depois, voltou atrás. – Bem, estamos, mas não pelas razões que supõe.

– Responda nossas perguntas e talvez veja a luz do dia novamente – ameaçou Peter. Aparentemente, o tema filme de ação continuava firme e forte.

– Cadê a Georgina? – indagou Roman. Era interessante ver como minha trupe imortal questionava os outros. Eles perguntavam primeiro na lata, em vez de “Você sabe onde a Georgina está?”. Quando você trabalha para o Inferno, todo mundo é culpado até que se prove o contrário.

Dante deixou o medo um pouco de lado e adotou seu jeito cínico de sempre. Ele tirou o cabelo preto e bagunçado da frente da cara.

– Em Seattle, transando com aquele escritor de merda.

– Não – disse Roman. – Não está.

– Não está o quê? Em Seattle ou dormindo com o escritor? – Dante arqueou a sobrancelha. – E você é quem mesmo?

– Nosso capanga – disse Hugh, secamente. – Georgina sumiu. Desapareceu. E se tem alguém com motivos pra sumir com ela... – ele pausou e olhou desconfortavelmente para Roman – é você.

– Não sou mágico pra tirar coelho da cartola. Nem sumir com eles – Dante ficava cada vez mais confiante, agora que sabia que Jerome não o enviaria para as câmaras de tortura do Inferno. – Se não conseguem achá-la, perguntem a seu arquidemônio. A não ser que tenha sido enfeitiçado novamente, ele vai saber.

– Ele não sabe – disse Cody. – Mas talvez você já saiba disso.

Dante revirou os olhos.

– Você acha que eu vou chegar perto de Seattle, se estão pagando recompensa pra quem me pegar? Vocês acham que estou escondido nessa porra de rancho porque eu quero? O máximo que eu posso fazer é vender amuletos e falsificar previsões de destino para os turistas em Coeur d’Alene.

– O Carter devia ter vindo com a gente – disse Hugh, desesperado. – Capaz que ele já soubesse disso tudo quando mandou a gente vir aqui.

Dante contraiu-se, sua arrogância oscilando.

– Aquele anjo sabe que eu tô aqui. Então o Jerome sabe também.

– Ele está segurando a informação. Por enquanto – Peter ainda falava com a voz melodramática. – Isso pode mudar, se não nos ajudar.

– Não sei onde ela tá, porra, beleza? Já falei: não consigo fazer um súcubo desaparecer.

A mão de Roman segurou o pescoço de Dante, no mesmo estilo de Jerome. Mesmo sem suas habilidades supernaturais, Roman ainda é forte.

– Você trabalhou com imortais antes. Pode fazer de novo e deixar o trabalho sujo com eles.

– Se eu aparecer na frente de qualquer imortal de novo, sou um cara morto – disse Dante, asfixiado. Roman o encarou com um olhar sombrio, que me lembrou da vez em que Roman tentou me matar. E quando ele me matou em um sonho recente dos oneroi. Enfim, Roman o soltou. Esfregando o pescoço, um Dante perplexo perguntou novamente:

– Quem é você?

Cody olhou os outros.

– Vocês acham que ele tá mentindo?

– Não ficaria surpreso – respondeu Hugh. Ele cruzou os braços sobre seu largo peitoral. – Mas talvez você possa ser útil. O que consegue fazer um súcubo desaparecer?

– O que eu ganho em troca? – perguntou Dante, astuto. Sim, esse é o meu ex. Sempre querendo levar vantagem.

– Não vamos chamar o Jerome – rosnou Peter. Dessa vez, a raiva em sua voz não era cópia de filme. Era real, mais uma vez um lembrete de que, no fim das contas, ele era mesmo um vampiro que quebra pescoços facilmente.

Isso fez Dante cair na real.

– Beleza. Não que me importe com porra nenhuma que acontece com ela. Como ela desapareceu?

Mais uma vez, a história foi recontada, algo que começava a me deprimir – principalmente porque todo mundo enfatizava o quanto triste e miserável minha vida estava.

– É um encanto – disse Dante, com certeza.

– Isso nós sabemos – disse Roman. – Erik nos contou.

Dante riu com desdém à menção de seu inimigo.

– Claro que contou. É estranho vocês precisarem de mim com o sábio todo-poderoso à sua disposição.

– O que a encantaria? – perguntou Peter, impedindo Dante de perguntar novamente quem Roman era.

– Tudo quanto é tipo de coisa – respondeu Dante. – Qualquer coisa pode criar um encanto, mas visões desse tipo geralmente estão ligadas a sonhos. Vocês deixaram a Nyx escapar de novo?

– Não – respondeu Hugh.

Dante deu de ombros.

– Então procurem outra coisa que consegue controlar sonhos, tentem...

Eu estava na vila onde cresci.

A transição foi tão abrupta que fiquei meio zonza. Na verdade, não houvera transição, nada de fragmentação da imagem ou uma tela negra. Fora um corte brusco de filme. Uma má edição.

Observei à minha volta, vendo novamente o local que me causara tanto tormento. Imaginei o que mais os oneroi tinham para me mostrar aqui e por que viera tão repentinamente. Já revivi as falsas acusações no casamento. Eles até já tinham me mostrado a verdadeira história de como minha infidelidade tinha me levado a vender minha alma. Provavelmente, mais horror forçado estava à minha espera. O mundo girava em torno de mim, construções e pessoas movendo-se ao redor, vestidas em algodão cru, me entonteciam.

– Você está bem? – uma voz perguntou.

Virando-me, o cenário parou e me vi olhando a face de um homem idoso. Sobrancelhas grossas e revoltas, atravessando uma testa enrugada, quase sombreando os olhos castanho-escuros.

– Sim... Estou bem – franzi testa e pisquei os olhos. – Gaius?

Aquelas sobrancelhas levantaram.

– Já nos conhecemos?

Encarei-o, incapaz de falar por um momento. Conhecia Gaius desde que eu começara a andar. Ele era um ferreiro, a musculatura de seu braço provava isso. Mas ele era jovem a última vez que o vira, um homem no auge da vida. Sem controle, palavras escapavam de meus lábios. Palavras que eu falara quando isso ocorrera pela primeira vez. Era uma memória real. Até agora.

– Nos conhecemos há muito tempo – eu disse.

Ele riu.

– Menina, eu me lembraria de você. E “muito tempo atrás” só pode ter sido há apenas alguns anos para você.

Tive consciência de meu corpo sem precisar me olhar no espelho. Eu tinha me modificado, logo antes de entrar no vilarejo, tomando uma forma que jurei nunca mais usar novamente. E, de fato, até então, nunca o tinha feito. Eu estava em meu corpo original: Letha, de quinze anos, alta demais, com cabelos negros grossos e embaraçados. Tinha ido até ali descobrir algo. Algo que eu precisava saber.

Meneei com a cabeça fracamente. Minha antiga “eu” estava chocada, bem como minha “eu” atual, com o que o tempo tinha feito com ele. Quanto tempo se passara desde que eu tinha virado súcubo e abandonado o vilarejo. Trinta anos?

– Você sabe me dizer... se tem um homem aqui, um pescador, chamado Marthanes? Sua família ainda vive aqui?

– Sim – ele disse. – Mesma casa de sempre, logo adiante...

– Eu sei onde é – eu disse, rapidamente.

Ele deu de ombros, sem se importar com minha interrupção.

– Ele deve estar na baía agora, de qualquer modo. Ele está muito velho para trabalhar ainda, mas jura que seus genros não dão conta sem ele.

Genros. Claro. Minhas irmãs devem ter se casado há muito tempo.

– Obrigada – eu agradeci. Comecei a me encaminhar. – Foi bom ver você novamente – ele me olhou intrigado, mas eu não disse mais nada.

Segui em direção à baía, onde a água brilhava com um verde-azulado tão vívido que se assemelhava a uma visão em Technicolor. A natureza não parece capaz de produzir algo assim. Saudade e nostalgia encheram a minha “eu” observadora.

A cidade estava cheia ao meio-dia, e eu reconheci mais rostos do que esperava. Crianças que agora eram adultos, adultos já idosos. A orla estava tão cheia quanto a cidade, com navios carregando e descarregando produtos, no auge do comércio no Mediterrâneo. Demorei um pouco para encontrar meu pai, e ali recebi mais olhares do que no vilarejo. Era pouco comum ver mulheres na região, que evitam os marinheiros e estivadores durões. Localizei meu pai graças à sua voz, gritando ordens como fazia desde quando eu era jovem.

– Você quer me custar uma fortuna? O que você faz lá o dia todo? Minha neta conseguiria a mesma quantidade de peixe apenas vadeando pela praia!

Ele gritava com um homem que eu não conhecia, seu semblante acovardado e encabulado mostrava o que deveria ser uma pesca do dia muito parca. Imaginei se ele seria o marido de uma das minhas irmãs. O homem prometeu melhorar e fugiu de lá.

– Pa... Marthanes?

Meu pai se virou, e eu tentei não engasgar. Como Gaius, os anos tinham sulcado o rosto de Marthanes, o pescador, com vincos também. Quantos anos ele teria? Sessenta? Setenta? A passagem do tempo ficou confusa desde que eu me tornara imortal.

– O que você quer? – ele soltou. – Não quero saber de prostitutas. Vá falar com o Claudius se você quer fazer negócio. Ele não dorme com a própria mulher há dez anos. Não que eu o culpe. Aquela mulher é uma bruxa.

A idade pode ter afinado e acinzentado seus cabelos, seu rosto podia estar enrugado... mas a língua do meu pai continuava a mesma.

– Nã-não. Não é por isso que estou aqui. Eu te conheci... há alguns anos.

Ele franziu a testa, olhando-me de cima a baixo.

– Nunca te vi na vida. Tenho certeza de que me lembraria de alguém tão alta.

Como súcubo, eu posso me transformar na fantasia de qualquer homem, tomando a forma de uma mulher que transcende palavras. No entanto, mesmo com essa habilidade, os velhos comentários sobre minha altura ainda doem.

– Bem, eu me lembro de você – vendo seus olhos se moverem impacientes para seus trabalhadores, perguntei: – Você conhece um músico chamado Kyriakos? Ele é da minha idade, é... uns trinta anos mais velho do que eu. Ele vivia ao sul da cidade.

Meu pai riu com desdém.

– Aquele Kyriakos? Ele não é músico. Ele assumiu os negócios do pai quando este morreu. Se dá razoavelmente bem com isso, embora os valores que ofereça pelos meus peixes sejam ridículos.

– Ele ainda mora na mesma casa?

– Você quer dizer a casa do pai dele? Sim. Como você disse, ao sul – a inquietude de meu pai era palpável. Ele não sabia quem eu era. Não sabia o que fazer comigo.

– Obrigada – agradeci. Queria dizer que era bom revê-lo, como dissera a Gaius, mas ele foi embora antes que eu pudesse.

Com o coração pesado, voltei para a cidade, mas, em vez de ir ao sul, peguei um desvio para a minha antiga casa, imaginando o que veria. O que encontrei foi minha mãe, pendurando roupas no quintal, cantarolando enquanto o fazia. Ao lado da casa, uma mulher de meia-idade colhia ervas do chão. Demorei alguns momentos para reconhecer a minha irmã mais nova.

O rosto de minha mãe estava diferente, mas seus olhos gentis ainda eram os mesmos, como reparei enquanto ela me dava a direção de um lugar que eu já conhecia. Minha irmã levantou a cabeça e observou por um momento, depois retornou ao trabalho. Nenhuma delas me reconheceu. Como a meu pai, eu fora apenas uma breve interrupção em seu dia.

Sabia que isso aconteceria. Foi para isso que vendi minha alma. Meu contrato com o Inferno apagou todas as memórias sobre mim de todas as pessoas que eu conhecera. Os oneroi me mostraram uma mentira sobre o dia do meu casamento. Eu era virgem, fiel a Kyriakos. Mas alguns anos mais tarde, sucumbi. Eu o trai, e isso o devastou mais do que qualquer um poderia imaginar. Ele quis se matar, apenas minha oferta o pôde salvar. Essa era a verdade.

No entanto... uma parte de mim pensou que talvez, talvez, ele pudesse me reconhecer. Um lampejo ínfimo de lembrança.

Kyriakos poderia ter estado perto de meu pai, vigiando sua frota, mas algo me dizia que ele estaria fazendo trabalhos administrativos, e não manuais. Meu palpite estava correto. Antes de eu me tornar um súcubo, Kyriakos e eu tivemos nossa própria casa. Ele deve ter mudado de volta para a casa de sua família depois de o Inferno apagar sua memória.

Preparei-me para conhecer a senhora da casa, a mulher com quem Kyriakos indubitavelmente estava casado. Mas quando ele aparecera para ver quem o visitava, encontrei-o só. Vê-lo fez meu coração parar. Ele também tinha sido tocado pela idade, mas ainda era jovial e tinha poucas rugas. Apenas um leve toque de cinza gracejava seu cabelo, e, como a minha mãe, seus olhos ainda eram os mesmos. Escuros e maravilhosos, cheios de bondade.

– Precisa de ajuda? – ele perguntou, sua voz amistosa e curiosa.

Por um instante, não consegui falar. Estava inebriada por vê-lo, repleta de uma mistura de dor e amor. Queria tanto ter ficado com ele, que eu não tivesse cometido tais pecados. Queria não estar com aquele rosto tão jovem. Devia ter envelhecido com ele. Minha habilidade em gerar filhos parecia duvidosa à época, mas talvez, um dia, pudéssemos ter tido uma família.

Como a todos os outros, eu disse precisar de direções, gaguejando o nome do primeiro lugar aleatório que me veio à cabeça. Ele descreveu o caminho detalhadamente, apesar de eu já o conhecer.

– Quer que eu te acompanhe até lá? É uma área segura... mas nunca se sabe.

Sorri, mas sem alegria. O mesmo Kyriakos. Infinitamente bom com os outros, mesmo com uma estranha.

– Ficarei bem. Não quero te atrapalhar – hesitei antes de continuar. – Nós nos conhecemos... há alguns anos.

– Sim?

Ele me estudou, aparentemente procurando em sua memória. Mas seus olhos continuaram inexpressivos. Nenhum traço de reconhecimento. Eu era uma forasteira. Nunca existi para ele. Imaginei se ele se lembraria de mim depois que eu fosse embora.

Ele balançou a cabeça, parecendo sinceramente se desculpar.

– Desculpe. Não me lembro... – ele esperou meu nome. – Letha – a palavra queimou meus lábios. Bem como essa forma, o nome também estava morto para mim. Apenas o Inferno algum dia o usou.

– Desculpe – ele disse novamente.

– Tudo bem. Talvez eu tenha me enganado. Achei... achei que você fosse um músico – quando fomos casados, ele trabalhava com o pai, mas tinha esperanças de largar tudo e se tornar músico profissional.

Kyriakos deu uma risadinha.

– Apenas como passatempo. Na maior parte do meu tempo, fico debruçado sobre números.

A perda da sua ambição me deixou quase tão triste quanto a de sua memória.

– Bem... sua esposa deve estar feliz de ter você em casa.

– Não sou casado – ele ainda sorria. – Minha irmã cuida da casa para mim.

– Não é casado? – perguntei, incrédula. – Mas por quê? Na sua idade... – enrubesci, percebendo como soava rude. – Desculpe.

Ele não se ofendeu.

– Na sua idade, casamento não sai da cabeça, certo? Você deve ter uma dúzia de pretendentes, do jeito que é bonita – típico. Poucos me acharam bonita quando eu era mortal; ele sempre me achara linda. – Apenas nunca achei a mulher certa. Prefiro ficar só do que passar o resto da vida com a pessoa errada – um semblante sonhador e triste tomou seu rosto, e então ele balançou a cabeça e riu. Um riso desconfortável. – De qualquer modo, você não quer ficar ouvindo um velho balbuciando besteiras românticas. Está certa de que não quer que eu lhe mostre o caminho?

– Não, não... Acho que sei onde é. Obrigada – virei-me para ir embora, mas me detive. – Kyriakos... você é... você é feliz?

A pergunta, vinda de alguém com menos da metade de sua idade, pegou-o de surpresa. E eu me surpreendi por ele ter respondido.

– Feliz? Bem... satisfeito, eu acho. Eu tenho uma boa vida. Melhor do que a da maioria. Uma ótima vida, na verdade. Às vezes, imagino...

Prendi a respiração.

– Imagina o quê?

– Nada – ele disse, dando outro sorriso amigável. – Mais besteiras. Sim, Letha, sou feliz. Por que você quer saber?

– Besteira minha – murmurei. – E você tem certeza de que não se lembra de mim?

Tive minha resposta antes de ele a dizer. Não. Aqueles olhos nunca tinham me visto. Eu era apenas uma forasteira esquisita. Eu era ninguém.

– Desculpe. Não – ele piscou com um dos olhos. – Mas agora me lembrarei.

De algum modo, eu duvidava disso. Deixando-o para trás, senti meu coração despedaçar. Na verdade, meu coração espatifa a todo instante. Você imagina que só pode quebrar uma vez. Isso foi o que eu mesma quis. Em troca da eternidade. Kyriakos estava feliz. Eu o salvei e deveria estar feliz por ele. No entanto, nunca me senti tão infeliz desde que me tornara um súcubo. Decidi, naquele instante, nunca mais usar o nome ou a forma de Letha novamente. Eu queria apagá-la de minha mente também.

***

– É tão fácil com você – sibilou um oneroi. Era o Dois, pensei. Eu estava de volta à caixa. – Nem precisamos do portal de marfim.

Fiquei tão traumatizada com aquela memória de Kyriakos, com a verdade do que significa ser apagada da vida de alguém, que estava propensa a concordar com Dois. Então, um lampejo mínimo brilhou dentro de mim. Estudei os oneroi cuidadosamente.

– O que foi o outro sonho? – perguntei. – Antes desse com meu marido? O que não terminou?

– Terminou, sim – respondeu Um. Os olhos azuis deles permaneciam imutáveis, não revelavam nada.

– Não terminou – discordei. – Vocês o cortaram. Não foi como planejado, né? Meus amigos conseguiram algo de Dante, algo que vocês não queriam que eles descobrissem.

– Não descobriram nada – retrucou Dois. – Foi uma mentira. Deu esperança falsa. Esperança que vai virar cinza quando você perceber que passará o resto da eternidade aqui.

– Vocês são a mentira – eu disse. A faísca dentro do meu corpo cansado e acabado se inflamou um pouco mais. – Aquele sonho era real.

O Um continuou a negar.

– A única realidade é que você não sabe diferenciar a mentira da verdade. E que não há esperança.

– Você está mentindo – eu disse, mas, conforme aqueles pares de olhos frios me examinavam, meu lampejo fraquejou. Incerteza me dominou. Eu passei por tanta coisa, uma espécie de estupro mental, que duvidei de mim mais uma vez. Minhas palavras eram corajosas, mas eu não sabia mais dizer se acreditava nelas.

O Dois sorriu, capaz de ler minha mente.

– Sonhe – ele disse.


Capítulo 17

Meu período inicial com os oneroi foi uma mistura de sonhos reais e falsos. Conforme o tempo passava – e eu não tinha capacidade de dizer quanto já tinha passado –, a maioria dos sonhos parecia ser verdade. Eram visitações de memórias horríveis ou espiadas na minha vida atual, voltadas para minha desmoralização ou para me deixar com saudades, respectivamente.

Eu ainda estava despedaçada, ainda me sentia mais animal do que humana, ou súcubo, ou qualquer outra coisa. No entanto, os restos de racionalidade dentro de mim imaginavam o porquê da súbita falta de sonhos feitos sob medida. Era possível dizer que os oneroi estavam preguiçosos. Apenas me ofereciam material reciclado, e, quando eu tinha a chance de ver meus amigos, tinha a impressão de não ser um sonho, e sim um canal de televisão que os oneroi deixaram sintonizado para que eu me distraísse enquanto lhes fornecia alimento. Parecia até que eles estavam tentando me manter ocupada porque... bem, porque eles estavam ocupados. Mas por quê? O que acontecera? O que Dante estava prestes a contar para Roman e os outros? Era o suficiente para os oneroi desviarem a minha atenção? Ou eram apenas mais jogos mentais para me deixar perturbada?

Eu esperava ver a continuação do que acontecera com Dante, mas os oneroi tinham outras partes da minha vida deixada para trás para me mostrar. Ou melhor, que eu não deixara para trás. Simone ainda estava me personificando. E os oneroi queriam que eu soubesse.

Para piorar, ela estava ajudando Maddie e Seth no casamento. Os três tinham saído para comprar bolo, e, honestamente, eu fiquei mais surpresa em ver Seth lá do que Simone com seu disfarce. Ele se mantivera o mais distante possível do planejamento do casamento, usando a desculpa de que não era bom para tomar decisões e estava feliz em deixar Maddie decidir tudo como quisesse.

Não duvidava da primeira parte, mas refletia sobre a segunda. No fundo do meu coração, onde eu ainda acreditava que ele me amava, eu esperava secretamente que ele estivesse deixando Maddie mandar por ser indiferente àquilo. Eu queria acreditar que ele não se importava com o planejamento, pois não se importava com o casamento.

Estava claro, porém, que eu me importava. Ou melhor, Simone se importava. Considerando minha relutância na compra do vestido, seria de se esperar que Maddie notasse o aumento de interesse. Nada. Maddie estava tão presa em sua bolha de felicidade que recebeu bem “minha” assistência.

Então, os três partiram na aventura do bolo, visitando todas as confeitarias que Maddie tinha reunido e ranqueado em uma lista após horas de pesquisa na internet.

– Tem que ser cremoso – disse Simone, lambendo cobertura dos dedos em uma confeitaria do bairro de Belltown. Na verdade, ela chupava mesmo. – Esse é muito doce – o trio se sentou em uma mesa coberta de amostras.

– Esse é ponto – disse Maddie. Estava mordendo um bocado de bolo de chocolate de um jeito bem menos pornográfico. – Overdose de açúcar.

– É, mas se tiver muito açúcar, fica parecendo areia. Tem que dissolver nos lábios – ela se virou para Seth. – Você não acha?

Seth pegou um pedaço do bolo marmorizado.

– Parece mesmo areia.

Simone deu um sorriso sabichão, que parecia dizer: Tá vendo? Eu te conheço melhor do que qualquer um.

Seth se fixou nela por um instante, mas sua expressão era indecifrável. Ele se virou para Maddie.

– Mas nós podemos fazer o que você quiser.

– Não, não – ela disse, soando não muito desapontada. – É para nós dois. Quero que seja um de que você goste também.

Seth deu um sorriso maroto.

– Isso importa? Acaba virando guerra de comida mesmo.

Maddie arregalou os olhos.

– Não vira, não! Nem pense em fazer isso.

– Acho que vai ser uma surpresa, então, hein? – seu sorriso cresceu.

Vê-lo brincar com ela fez meu corpo se contrair (de modo figurado), mas me confortei em intuir um lampejo de irritação nos olhos de Simone. Maddie estava tendo sucesso no que Simone fracassava. Era assim que deveria ser... Será? O triunfo de Maddie sobre Simone significava que ela tinha... bem, triunfado sobre mim. Ou não? Simone parecia comigo, mas não era eu. Maldição. É tudo tão confuso.

– Seth não faria isso – disse Simone, colocando a mão em seu ombro, de modo supostamente amigável. Maddie não via de onde estava, mas os dedos de Simone relavam de leve no pescoço de Seth. – Não se ele quiser uma lua de mel das boas.

Ela falava com leveza, mas havia um tom astuto por trás. Comentários em público sobre sua vida sexual fazia Maddie enrubescer. Seth se ajeitou, desconfortável, mas a razão não ficou clara. Os dedos de Simone? A menção a sexo? Talvez os dois. Simone retirou a mão, inocente para todo o mundo, menos para Seth e para mim.

Maddie parecia disposta a mudar de assunto e parar de falar dos momentos românticos de sua lua de mel.

– Acho que você deve pelo menos escolher um sabor – ela disse. – Eu tô escolhendo tanta coisa.

– Eu não sei – disse Seth. Ele ainda parecia desconfortável. – Não me importo que você escolha tudo.

– Sim, mas ela quer que você escolha – disse Simone. – Qual é, faça ao menos uma decisão firme. Não vai dar errado. Maddie comerá qualquer um que você escolher.

Afirmação pesada. Nem Seth, nem Maddie agiram como se tivessem entendido algo mais nela, mas eu tinha a sensação de que Simone tencionara fazer uma referência ao porte bojudo de Maddie.

– Exatamente – disse Maddie. – Qual é seu sabor preferido?

– Aposto que consigo adivinhar – disse Simone –: chocolate.

– Morango – tentou Maddie.

Perdedoras. É baunilha.

– Baunilha – respondeu Seth.

Maddie bufou.

– Claro. Bem, aí está uma decisão – ela levantou da mesa. – Vamos testar outros lugares e resolver o resto. Não há muito mais o que decidir agora – eles chegaram até a porta, e Maddie parou para falar com Simone. – Ah, ei. Você pode me fazer um favor? Pode levar o Seth pra comprar o smoking?

– Quê? – perguntou Seth. Nada de neutralidade. Ele estava chocado.

Maddie sorriu.

– Se você não tiver um, aparecerá na igreja com uma camiseta do Billy Idol. E dá azar eu ir comprar com você.

– Achei que isso valia só pro vestido de noiva – disse Seth.

– Quero que seja surpresa – disse Maddie, em contrapartida.

– Claro que vou – confirmou Simone, passando seu braço em volta de Seth, amigavelmente, outra vez.

O rosto de Maddie resplandeceu, e a confeitaria desbotou...

... transformando-se na loja do Erik.

Erik estava sentado numa pequena mesa com Jerome e Roman e – Deus nos acuda – bebiam chá. Até mesmo o Jerome. Roman estava visível, o que me fez pensar que Jerome decidiu que não precisavam mais temer os olhos dos poderes superiores, imaginando por que meu amigo “humano” ficava atrás do arquidemônio de Seattle o tempo todo.

Erik tamborilava sua xícara, pensativo.

– Se sua teoria estiver correta, explicará muita coisa – as palavras estavam direcionadas a Roman. – O aspecto de sonho das visões. A completa inabilidade de o senhor Jerome encontrá-la.

Um leve arquear de sobrancelha foi a única indicação do desprazer de Jerome ao ouvir a palavra “inabilidade”.

Erik continuou, sempre com os olhos na xícara:

– E você está certo... de todas as criaturas que sugeriu, oneroi ou demônios morfeanos são os chutes mais sensatos.

Oh!, pensei, em triunfo. Toma essa, biscates. Meus amigos já sacaram vocês. Ninguém respondeu ao meu pensamento. Não saí do sonho, como esperava.

– Mas por que ela? – perguntou Roman, irritado. Tive a impressão de que ele tomava crédito pela ideia do sonho, protegendo Dante da ira de Jerome. – Por que um súcubo? Eles não se importam só com sonhos humanos?

– Eles estão ligados a Nyx – apontou Erik. Ah, sim. Meus amigos eram espertos. Mais espertos que Sherlock e Watson juntos. Mais até do que o MacGyver.

– O “porquê” é irrelevante – disse Jerome, falando enfim. – Seja oneroi ou morfeano, também é irrelevante. Se algo a levou ao mundo dos sonhos, ela está completamente inacessível.

Roman fez uma careta.

– Por quê? Por que não pode entrar lá e pegá-la, já que sabe onde ela tá?

Jerome deu um sorriso para o filho que quase, quase, parecia genuinamente se divertir.

– Você é meio-humano, dá pra ver. Imortais superiores não podem ir lá. Nós não sonhamos. Apenas humanos sonham. O caminho é barrado para nós.

– Pois vocês não têm esperanças ou imaginações sobre nada – disse Erik. Seu tom indicava claramente que ele considerava isso um defeito dos anjos e dos demônios.

– Bom, se eu sou meio-humano, então eu vou lá – disse Roman, obstinado, impedindo qualquer réplica da parte de Jerome. – Eu sonho. Então posso entrar, certo? E eu consigo encarar qualquer coisa que estiver por lá. – Havia tanta determinação em sua voz que eu quase acreditei que ele realmente conseguiria enfrentar um batalhão de oneroi.

– Você não sabe do que está falando – disse Jerome. – Obviamente. Você tem ideia de como o mundo dos sonhos é?

– Você sabe? – perguntou Roman, seco. – Achei que eu tinha ouvido você dizer que não consegue ir lá.

– Sonhos abastecem a existência humana. Sonhos de poder, amor, vingança, redenção... os sonhos da humanidade são vastos, incontáveis. Humanos sonham tanto acordados quanto dormindo. Essas esperanças e medos os fazem se arriscar; eles apostam suas vidas e suas almas por esses sonhos. Se você vai ao mundo dos sonhos, é como entrar em uma avalanche. Cada floco de neve é a imaginação de um humano passando tão rápido que você nem consegue ver. É um emaranhado confuso de desejos e caos. Se Georgina está lá, ela é um desses flocos. Nunca encontraria sua alma.

Um silêncio pesado dominou.

Finalmente, Roman disse:

– Parece poesia, papai.

– Mas ele está certo – disse Erik a Roman.

Mais silêncio.

Roman olhou de um para o outro, incrédulo.

– Então é isso? Sem chances? Vão desistir até de tentar encontrá-la.

– Tentar é infundado – disse Jerome. Demônios podem não sonhar como os humanos, mas eu suspeitava que até ele podia imaginar o que seus superiores fariam se soubessem que perdera um súcubo. – A magia humana pode acessar o mundo dos sonhos, mas não adiantaria – ele olhou para Erik, que confirmou com um aceno.

– Alguém perdido em meio a isso tudo não poderia ser chamado de volta. Nem o ritual mais poderoso seria capaz. Sua alma nunca poderia nos ouvir.

A face de Roman era uma mistura de emoções. Raiva. Incredulidade. E... resignação. Isso não me surpreendeu. A face de Jerome, por outro lado, sim. Ele tinha se retesado ao ouvir as palavras de Erik, uma ideia pulsando por trás de seus olhos escuros e frios.

– Mas você consegue fazer o ritual, certo? – ele perguntou a Erik. – Você é humano. Poderoso o suficiente para abrir o caminho.

Erik o olhou, precavido.

– Sim... mas como você mesmo disse, não conseguiríamos nada. Em teoria, a conexão que você tinha com ela seria o suficiente para convocá-la, mas você não pode entrar. Teríamos apenas uma porta inútil.

De repente, Jerome se levantou. Ele olhou para Roman.

– Se vira pra voltar pra casa – o demônio desapareceu sob uma fumaça exibicionista.

* * *

E eu desapareci de volta para a prisão dos oneroi. Eles estavam parados no escuro, brilhando com o que tinham tirado de mim. Nos sonhos, embora eu sofresse, nunca sentia os efeitos terríveis até retornar. Então a agonia, a perda de energia e confusão se abatiam sobre mim. Porém, dessa vez, não estava completamente perdida em desespero.

– Vocês estavam errados – eu disse. Tentei parecer ousada, mas minha voz saiu exausta. Deus do Céu. Estava tão, tão cansada. Acho que sonhar não implica dormir. – Meus amigos descobriram. Sabem onde estou.

Como sempre, não era possível decifrar Um e Dois.

– Quem disse que foi um sonho real?

Ótima pergunta.

– Instinto – eu respondi.

– Você acha que pode confiar nisso – perguntou Um. – Depois de todo esse tempo? Todos esses sonhos? Como pode distinguir o real do irreal?

Não podia. Sabia quando as memórias eram verdadeiras – por enquanto –, mas as cenas do “mundo real” eram mais complicadas. Talvez não fosse meu instinto, apenas meu otimismo cego.

O Dois adivinhou meus pensamentos.

– Você tem esperança. E a alimentamos fazendo você acreditar que tem uma chance. Então vai esperar. E esperar. E esperar.

– Foi real – eu disse, com firmeza, como se assim eu transformasse a afirmação em verdade.

– Mesmo se fosse – disse Um –, não significaria nada. Você mesma viu. Não há como levar você de volta.

– Talvez essa seja a mentira – eu disse. – Talvez o resto tenha sido verdade. Vocês misturaram as duas coisas. Eles descobriram onde estou, mas não me mostraram o momento em que aprenderam como me salvar. Eles vão fazer esse ritual.

– Vão falhar. Não há nada que possa tirar sua alma daqui.

– Vocês estão errados – eu nem sabia direito o que estava falando. Minha essência parecia desmoronar, e, na verdade, a única coisa que eu podia fazer era contradizê-los.

– E você é ingênua. Sempre foi. Imortais inferiores carregam fraquezas dos dias humanos, e você é uma das piores. Nossa mãe quase utilizou essa fraqueza para libertá-la dos anjos. Agora, ela será sua ruína.

– Como assim Nyx quase a usou?

Os oneroi trocaram olhares, muitíssimo satisfeitos.

– Seu sonho. Sua fantasia – explicou dois. – Aquele que ela prometeu mostrar se você a libertasse. Você queria tanto acreditar ser algo real que quase cedeu.

Por um momento, não vi nem eles, nem a escuridão eterna. Estava em um sonho próprio, não uma criação dos oneroi. O sonho que Nyx me enviara inúmeras vezes. Sobre meu futuro, com um lar e um filho – e um marido. Um homem que eu amava, e cuja identidade permanecia um mistério. Nyx nunca me mostrou o fim. Nunca me mostrou o homem do sonho.

– Vocês só mentem – eu disse. – Afirmam que Nyx só mostra a verdade, o futuro. Mas como essa visão pode ser verdade se eu vou ficar aqui pela eternidade? As duas coisas não podem ser verdade.

– O futuro está sempre mudando – disse Um. – Foi verdade quando ela te mostrou. Seu caminho mudou.

– Ah, qual é! Por que ver o futuro se ele pode mudar a qualquer momento? Não é verdade nem mentira. É uma suposição. E eu nunca acreditei nela mesmo. O que ela me mostrou era impossível – mesmo que eu não estivesse aqui com os dois babacas.

– Nunca saberá se era verdade – disse Dois. Depois, voltou atrás. – Na verdade, era possível, mas você vai ter que conviver com o fato de que foi um futuro tirado de você.

– Você não pode tirar o que eu nunca tive – urrei. – Súcubos não podem ter filhos. Eu nunca poderei ter aquele tipo de vida.

O que eu não falei é que algo surpreendente acontecera após o sonho. Nele, eu tinha dois gatos. À época, eu tinha apenas um, a Aubrey. Pouco depois, achei Godiva, que era o outro gato no sonho. Coincidência? Ou eu estivera mesmo no caminho para aquele futuro, apenas para tê-lo arrancado de mim? Como sempre, os oneroi conseguiam ler meu coração e sabiam o que eu estava pensando.

– Você quer ver? – perguntou Um.

– Ver o quê?

– O homem – respondeu Dois. – O homem do sonho.


Capítulo 18

Começou antes que eu pudesse impedir.

Estava em uma cozinha, em um desses sonhos em que eu tanto observava como atuava. A cozinha era clara e moderna, bem maior do que uma pessoa não cozinheira como eu poderia precisar. Minha “eu” do sonho estava na pia, com água até o cotovelo. A água cheirava à laranja. Estava lavando louça, bem porcamente, mas muito feliz para ligar. No chão, partes não acopladas de uma lava-louças explicavam a necessidade de trabalho manual.

De outro cômodo, eu ouvia “Sweet Home Alabama”. Cantarolava junto. Estava contente, repleta de uma alegria tão perfeita que mal podia compreender, após tudo que acontecera na minha vida – especialmente após a prisão dos oneroi. Depois de mais alguns versos, coloquei um copo molhado no balcão e espiei a sala atrás de mim.

Uma garotinha de uns dois anos de idade estava sentada lá, sobre uma colcha, cercada por bichinhos de pelúcia e outros brinquedos. Ela segurava uma girafa nos braços. Dessas que chacoalham quando balançadas. Como se sentindo minha admiração, olhou para cima.

Tinha bochechas fofas, ainda gordinha como um nenê. Cachos finos e castanho-claros cobriam sua cabeça, e seus olhos castanhos eram grandes e emoldurados por cílios escuros. Era linda. Atrás dela, no sofá, Aubrey dormia enrolada como uma bola. Godiva ao seu lado.

Uma alegria se espalhou sobre o rosto da menininha, criando furinhos nas bochechas. Uma poderosa onda de amor e alegria se espalhou por mim, emoções que minha crua e dolorida eu real mal conseguia se permitir sentir. Como da primeira vez em que eu sonhara este sonho, sabia com certeza – absoluta certeza – que aquela garota era minha filha.

Instantes depois, voltei às louças, embora quisesse mesmo era ir para a sala. Maldito trabalho manual. Nem a “eu” do sonho, nem a “eu” real enjoavam da menina. Queria sorvê-la. Poderia observá-la para sempre, me transbordando com seus longos cílios e cachinhos.

Incapaz de resistir – e entediada com as louças –, eu finalmente cedi e olhei para trás novamente. A menina não estava mais lá. Tirei minhas mãos da água, a tempo de ouvir uma topada. Som de choro em seguida.

Corri para fora da cozinha. Aubrey e Godiva levantaram a cabeça, surpresas com o tumulto súbito. Do outro lado da sala, minha filha sentava no chão ao lado da mesa pontiaguda, a mãozinha pressionando a testa. Lágrimas escorriam sobre as bochechas enquanto ela abria o berreiro.

Num piscar de olhos, eu estava de joelhos, abraçando-a com força. Assistir e sentir esse sonho me dava vontade de chorar também, ainda mais com a sensação daquele corpo quente e macio em meus braços. Embalei-a, murmurando palavras de conforto sem sentido, enquanto beijava seu cabelo sedoso. Logo, seus soluços cessaram, e ela ficou com a cabeça encostada em meu peito, satisfeita apenas com o embalo e o amor. Sentamos assim por mais um minuto feliz, quando, a distância, ouvi o som de um motor de carro. Levantei a cabeça.

– Está ouvindo? – perguntei. – O papaizinho chegou.

O rosto excitado da menina emulou minha alegria conforme eu levantava, com ela ainda no colo, equilibrando-a nos quadris. Era preciso coordenação, já que sou muito pequena.

Fomos até a porta da frente e ficamos na varanda. Era noite, tudo escuro e quieto, exceto pela pequena lâmpada sobre nossas cabeças. Brilhava sob um longo caminho de neve sobre a grama e a entrada. Em torno, mais neve caía de forma constante. Tanta neve teria deixado a cidade em pânico, clima de Armagedom. Minha filha e eu estávamos à vontade, nem ligando para a neve. Onde quer que estivéssemos, nevar era normal.

Na entrada, o carro que ouvira já havia estacionado. Meu coração se encheu de alegria. Um homem estava atrás dele, uma figura escura sob a luz fraca. Tirou uma mala do porta-malas e o fechou em seguida. A menininha bateu palmas de entusiasmo, e eu acenei como cumprimento. O homem acenou de volta, conforme andava para a casa. Estava muito escuro, não podia vê-lo ainda.

Seu rosto. Eu tinha que ver seu rosto. Estávamos tão perto. Era nesse ponto que o sonho tinha sido interrompido antes, negando-me a conclusão. Uma parte de mim estava certa de que isso era um truque também, que os oneroi fariam o mesmo que a Nyx e finalizariam o sonho ali.

Mas não.

O homem continuava a andar em nossa direção, e, por fim, a luz da varanda iluminou seus traços.

Era Seth.

Flocos de neve rendados pousavam em seu cabelo bagunçado, e eu via uma camiseta maluca debaixo do pesado sobretudo de lã. Ele deixou a mala na escada e saltou para chegar a nós o mais rapidamente possível.

Seus braços nos envolveram, e minha filha e eu nos aconchegamos contra ele. Podia estar congelando lá fora, mas nosso pequeno círculo continha todo o calor do mundo.

– Minhas meninas – ele murmurou. Tirou uma de suas luvas e passou a mão sobre o cabelo de seda de sua filha. Beijou sua testa levemente e depois se inclinou para mim. Nossos lábios se encontram em um beijo suave, e quando nos soltamos dava para ver a névoa no ar que o calor de sua boca formou. Abraçou-nos com mais força.

Suspirei feliz.

– Não vá mais embora – eu disse. – Chega de viajar.

Ele riu sem emitir som e me beijou novamente, dessa vez em minha bochecha. – Vou ver o que posso fazer. Se fosse por mim, nunca iria.

Mas o sonho foi embora, despedaçando como cacos de vidro sendo varridos. Antes eu contava os segundos para esse sonho acabar, dessa vez eu queria continuar sonhando. As mãos que eu não tinha nessa minha forma sem substância queriam agarrar aqueles cacos, sangrar minha carne, em troca de mais alguns instantes naquele contentamento alegre e perfeito da “eu” do sonho.

Mas o sonho fora embora. Eu estava vazia.

Por um bom tempo, eu não consegui me recuperar da perda do sonho. Era um emaranhado de emoções: dor e raiva e desejo e incompletude. Era só sentimento, sem pensamento. Quando a coerência começou a retornar, ela também era uma bagunça. Seth. Seth era o homem do sonho? Claro que era. Eu não tinha sentido isso desde a primeira vez em que nos conhecemos? Não parecia que algo estava faltando quando terminamos?

Então, toda a dúvida que os oneroi são mestres em plantar começou a germinar. Não podia ser o Seth. Eu não podia ficar com um mortal, pelo menos não de verdade. Eu definitivamente não podia ter um filho com um, e, de qualquer maneira, Seth casaria com outra. Era um truque. Outra mentira. Tudo era mentira, criada para continuar o tormento que os oneroi achavam que eu merecia.

– Aquilo é impossível – eu disse. As palavras eram duras. E eu já não as dissera antes? Círculos, círculos. Minha vida estava se repetindo novamente. – Nada daquilo pode acontecer algum dia.

– Não – concordou Dois. – Não mais. Seu futuro mudou.

– Aquilo nunca foi meu futuro. Vocês mentem. Nyx mentiu. Não há verdade alguma em nada.

– Isto é verdade – disse Um.

Outro sonho. Um sonho verdadeiro? Não, não. A parte de mim que estava enlouquecendo jurou a quatro ventos que não podia ser verdade. Não há verdade alguma em nada.

Eu estava no plano terrestre novamente, com Seth e Simone-como-Georgina. Estavam em uma loja de smokings, olhando alguns ternos, e eu tentei futilmente entender a situação. Maddie pedira-lhes que fossem fazer compras juntos... no entanto, não era o mesmo dia. Ou não? Já era outro dia? Quanto tempo havia passado? Eu não sabia dizer se os sonhos duravam um segundo ou uma vida. O céu lá fora estava se afundando no crepúsculo, então talvez fosse o mesmo dia.

– Você não precisa usar gravata-borboleta – disse Simone, estudando um manequim bem-vestido. Ela mesmo estava vestida de forma magnífica, em um vestido justo, laranja queimado. Era curto, obviamente, e enfatizava os seios o máximo possível dentro dos padrões de decência; ou pelo menos quase. Salto alto cor de bronze completava o look. Chique demais para ir comprar smoking, mas estava lindo nela. Em mim. Em nós. Deixa pra lá.

Seth foi até ela, analisando o terno. Se não houvesse um vendedor arrumando uma vitrine próximo à porta, ele teria saído correndo.

– É mais tradicional – disse Seth. – Acho que é assim que Maddie quer.

Simone desdenhou:

– E daí? O que você quer? – Ela deu um passo em sua direção. – Não pode ficar parado e deixar os outros mandarem e desmandarem em você! Você tem suas próprias necessidades. Seus próprios desejos. Não pode ficar passivo.

Havia paixão em suas palavras, uma convicção que até eu estava admirando. Era o tipo de discurso que conquistava pessoas para uma causa, mas, como em tudo que ela dizia ultimamente, havia um subtexto sexual alinhavado nele. Ele a encarou por alguns segundos, tão impressionado como eu, mas depois desviou o olhar. Também deu um passo para trás.

– Talvez. Mas acho que minha vida não depende de eu escolher entre gravata-borboleta ou normal. Acho que devo guardar meus momentos heroicos para coisas mais importantes – ele saiu para olhar outro terno e não viu a zombaria no rosto dela.

Logo, ela trazia de volta o sorriso doce e plantava-se de novo ao seu lado – bem próxima – enquanto examinavam cortes, cores e toda a miríade de detalhes que envolvem planejar um compromisso para toda a vida. O vendedor não podia ficar de fora, claro, e finalmente apareceu para oferecer assistência.

– Essa jaqueta cai muito bem em alguém do seu porte – ele disse a Seth. – Vem em preto, cinza e outras cores, então com certeza complementaria seu vestido – a última parte foi direcionada para Simone. Ela riu, feliz. Para mim, parecia alguém arranhando lousa com a unha.

– Ah, não vamos nos casar – ela deu um tapinha no ombro de Seth. – Somos bons amigos. Estou ajudando.

Seth se afastou, escapando do braço dela, e subitamente ficou muito interessado em provar o paletó. O vendedor achou o tamanho do Seth, encheu-o de elogios, depois os deixou a sós para que comentassem.

– Ficou ótimo – disse Simone, parada bem na frente dele. Um fio de cabelo não passaria entre os dois. Ela ajeitou a lapela, casualmente e sem necessidade. – Caiu como uma luva.

Seth agarrou as mãos dela, as empurrou e se afastou.

– Você precisa parar com isso – ele disse, abaixando a voz para que ninguém o ouvisse.

– Parar o quê? – perguntou Simone.

– Você sabe o quê! As indiretas. Os toques. Tudo. Não pode continuar fazendo isso.

Simone deu um passo à frente, pondo suas mãos na cintura. Sua voz também estava baixa, quase um ronronado. O que deixava tudo especialmente irritante era que, na verdade, se tratava da minha voz.

– Por quê? Você não gosta? Qual é, Seth? Por quanto tempo vai ficar se enganando? Você sabe que ainda me quer. Esse casamento fajuto não vai mudar isso. O que tivemos... o que temos é muito forte. Eu vejo como me olha... e você não olha pra ela desse modo. Você diz que eu devo parar? Não. Você é quem precisa dar um basta nesse casamento. Terminar com ela. Se não tem coragem, então vamos ficar juntos de novo. Pelo menos mais uma noite. Quero sentir você de novo, sentir você dentro de mim. E sei que você quer também.

Estava chocada com sua ousadia. Eu não acreditei no que aquela vadia estava tentando fazer. Me personificar já era ruim o suficiente, mas convencer Seth a ir com ela pra cama? Imperdoável. Esperei que Seth ficasse inconformado também, mas seu rosto era o modelo da tranquilidade.

Tirou o paletó e o colocou sobre um balcão.

– Não sei quem você é, mas fique longe de mim. Nunca mais fale comigo ou com a Maddie – sua voz estava dura, um tom ameaçador em suas palavras, uma raiva que quase nunca ouvira nele.

Pela primeira vez, Simone titubeou.

– Do que você tá falando?

– Você não é a Georgina – ele disse. – Devia ter dado ouvidos à minha sobrinha na primeira vez. A Georgina nunca faria isso, não importa como ela estivesse se sentindo. Ela nunca tentaria acabar com o casamento da amiga na cara dura. Ela nunca trairia a Maddie.

Os olhos de Simone faiscaram de ódio.

– É mesmo? Então como você classificaria o casinho da primavera? – não me surpreendi que ela soubesse. Todo mundo do meu círculo infernal tinha sacado por que a alma de Seth obscurecera.

O sorriso dele era duplamente triste e frio.

– Georgina fez aquilo... sem querer. Ela sabia o que estava fazendo, mas as motivações... bem, eram diferentes.

– Pare de tentar justificar uma infidelidade. E pare de falar sobre mim na terceira pessoa.

– Você não é ela – repetiu Seth. – Eu a conheço. Eu a reconheceria em quase qualquer forma. Embora você se pareça com ela, obviamente não é.

Ele se virou para ir embora e topou com Jerome.

Seth não vira Jerome entrar na loja nem se teletransportar. Nem eu. No entanto, mesmo se o demônio tivesse entrado com alarde, acho que Seth teria a mesma reação assombrada e ficaria profundamente perturbado. A atitude indiferente perante Simone desaparecera.

– Desculpe – disse Seth, dando um passo para trás. Ele olhou desconfortável para Simone, que estava tão surpresa quanto. – Vou... vou deixar vocês a sós.

– Não estou aqui atrás dela – rosnou Jerome.

– Quê? – ela exclamou, soando profundamente ofendida.

Os olhos pretos de Jerome cravaram em Seth.

– Estou aqui por sua causa. Precisa vir comigo. Agora.

Quando um demônio ordena algo, é bem difícil recusar. Meus amigos e eu podíamos tirar sarro do disfarce de John Cusack, mas, sob ele, Jerome era fodidamente assustador. E quando ele mostrava sua ira demoníaca a um humano, era completamente aterrorizante.

No entanto, em uma notável demonstração de coragem, Seth perguntou:

– Por quê?

Jerome parecia descontente por Seth não obedecer na hora.

– Para pegar a Georgie de volta.

– De volta? – repetiu Simone. – Mas se ela voltar...

Jerome tirou os olhos de Seth e a encarou.

– Sim, sim, eu sei. Mas você pode desistir também. Já falhou.

– Mas eu posso...

– Obviamente não pode – Jerome andou até lá, chegando bem próximo a seu rosto. Ele abaixou a voz, mas eu podia ouvi-lo, do ponto de vista de observadora. – Não é assim que funciona. Sei por que está aqui agora, mas diga ao Niphon que, toda a vez que ele tenta consertar as coisas, acaba fodendo tudo ainda mais. É muito tarde. Eu resolvo isso com ele depois. Não é da sua conta.

– Mas...

– Basta – a palavra retumbou pela loja. O vendedor olhou, assustado, mas manteve distância. – Eu não questionei sua presença antes, mas agora pode ir embora.

Aparentemente, soava como uma permissão para sair. Mas tanto eu quanto ela entendemos o significado oculto: se ela não fosse por contra própria, ele a “ajudaria”. Ela não protestou.

Jerome se voltou para Seth.

– Georgina foi levada. Vamos trazê-la de volta. E você tem um papel nisso.

Seth ficou sem fala por um momento, quando se recuperou pronunciou o mais óbvio:

– Como?

– Pra começar, pode parar de perder tempo fazendo perguntas idiotas. Venha e descobrirá – Jerome então fez uma jogada de mestre. – Cada segundo que você atrasa, ela fica mais em perigo.

Nada mais poderia ter colocado Seth em ação. Ele se contraiu ao ouvir aquelas palavras, e seu rosto mostrava um caleidoscópio de emoções.

– Ok – respondeu –, vamos.


Capítulo 19

– Real – arfei. – Isso foi... real. Seth não cedeu à tentação. Seth ficou com Maddie.

– Talvez – disse Um.

O instinto de arrancar fora os olhos dele cresceu em mim, forte e repentino. Era animal e precipitado – e impossível, já que eu não possuía forma. Era uma vontade que eu tivera em mais de uma ocasião com os oneroi.

– Verdade. Era verdade – era como uma brincadeira de criança com eles, o jogo da verdade, repetidamente. Ou as perguntas de verdadeiro ou falso do vestibular. Círculos. Círculos. Minha vida é um círculo. – E Jerome... – lembrei-me do final do sonho, com meu chefe levando Seth embora. – Ele está vindo me buscar. Pegou o Seth. Vão fazer o ritual. Erik vai preparar.

– Sim. E vai falhar.

– Não, não vai – gritei. Cada gota do meu ser tinha se transformado em desespero: voz, mente, alma. – Jerome vai vir me buscar. Ele vai me salvar.

– Ninguém vai te buscar – disse Dois. – Eles vão tentar, mas vão falhar.

Novamente, mandaram-me de volta ao meu mundo, e, por mais que eu desejasse rostos familiares, a dúvida e a incerteza que os oneroi conseguiam plantar em mim acabavam me deixando desesperadamente confusa.

Estava no Erik. Aparentemente, todo mundo também estava lá.

Sua loja tinha um espaço nos fundos, usado como depósito, que eu apenas via de relance. Parecia uma garagem, com chão de cimento e parede de gesso. Uma pequena mesa segurava uma tigela com incenso queimando, o que deixava o ar enevoado. Os cantos do cômodo estavam cheios de caixas que pareciam ter sido empurradas para o lado a fim de abrir espaço. Em volta desse espaço, estava o clube imortal de Seattle: Hugh, Cody, Peter, Carter e até Mei. Roman devia estar lá também, escondido de Mei. No centro da sala, Erik estava desenhando com giz no chão. Jerome ao seu lado, e Seth pairava desconfortável entre ele e meus amigos. Acho que ele estava tendo dificuldade em decidir quem era mais seguro. Se não fosse pela Mei, ele teria escolhido meus amigos.

Mei observava Erik e Jerome com desaprovação, seus olhos quase negros semicerrados e lábios vermelhos fazendo bico. Enfim, ela descruzou os braços e foi até o centro, fazendo barulho com seus saltos agulhas. Seth saiu rapidamente do caminho, retornando à segurança de meus amigos.

– Isso é ridículo – disse Mei. – Está fazendo todos perderem tempo. Mesmo com todos eles – ela apontou para a gangue da parede –, não é possível trazê-la de volta. Você precisa fazer um relatório e arranjar outro súcubo.

– Se eu relatar, haverá outro arquidemônio também – Jerome a encarou. – Estou surpreso que você não tenha feito esse relatório ainda.

Bem pensado. Como sua subalterna, Mei obedecia-lhe, mas ela era ambiciosa. Se Jerome tivesse problemas por ter me perdido, poderia ser bom para ela.

– Não preciso disso – ela disse, dura. – Você mesmo vai falar e logo. Por que eu preciso ficar aqui? Não tenho nenhuma conexão com ela.

– Porque eu tô mandando! Pare de discutir – Jerome fixou seu olhar nela, e os dois demônios ficaram se encarando. Enfim, Mei meneou duramente a cabeça, mas ela não parecia ter obedecido devido a sua autoridade. Ele parecia ter comunicado algo, e ela concordava. Ela foi para o canto oposto aos meus amigos dessa vez.

Erik precisava abaixar e ficar de joelhos para desenhar, algo que devia agonizar suas costas. Com um suspiro, ele levantou e examinou sua criação. Eram dois largos círculos concêntricos, preenchidos e rodeados por muitos símbolos arcanos. Alguns eu conhecia; outros, não. Jerome os estudou e, pela primeira vez na vida, meu chefe parecia... ansioso.

– Está pronto? – questionou.

Erik assentiu, uma mão massageando suas costas.

– Exceto pelo feitiço em si, sim.

Os olhos de Jerome caíram sobre Seth, que recuou.

– Você – disse o demônio. – Venha cá.

Seth olhou o desenho quase tão desconfortavelmente quanto Jerome.

– O que vai acontecer comigo?

– Não vai te matar, se é isso que te preocupa. E você pode abandonar o círculo quando quiser. Agora pare de perder tempo.

Eu não gostava de ouvir Jerome mandando em Seth. Atiçava aquelas brasas de raiva que vinham me queimando ultimamente. Eu fiquei com raiva até de ver Seth obedecer; eu meio que queria que ele desafiasse Jerome. Pouco depois, tentei espantar aqueles pensamentos. Devia guardar minha fúria para os oneroi, não para esse grupo. Certamente Jerome não estava mentindo. Carter, que ficou quieto durante todo o tempo, teria chamado a atenção de Jerome. Eu esperava.

Seth foi até o lado de Jerome, com cuidado para não pisar nas linhas de giz – como as pessoas supersticiosas que evitam as rachaduras da calçada. Erik sorriu para Seth.

– Ele tem razão, senhor Mortensen. Não vai se machucar. Mas vai ser... estranho.

De súbito, Mei ficou tensa.

– Ele? É só o que vai usar? Jerome, uma pessoa não consegue...

– Basta! – rugiu Jerome. – Estou cansado de ouvir a mesma ladainha. Podemos ir em frente?

Erik assentiu e foi até a mesa com incenso. Havia também uma pequena tigela de água e uma comprida pedra rudemente talhada. Quartzo enfumaçado, pensei. Erik a levantou cuidadosamente, em reverência. Empurrou a ponta dessa varinha de condão no incenso fumegante e depois a levantou, de forma que a fumaça pudesse envolvê-la. Segundos depois, mergulhou a outra ponta da varinha na água. Quando terminou, levou-a até o círculo.

– Espere – disse Carter, de repente. Ele levantou de onde estava, encostado em umas caixas. – Vou também.

– Vocês são todos loucos – murmurou Mei.

– Ela tem razão – disse Jerome. – Se você está aqui...

– Eu sei, eu sei – disse Carter, ultrapassando as linhas para se juntar a Jerome. – E também sei o que pode sair daí. – Ambos se olharam, mais mensagens silenciosas sendo trocadas, e nenhum dos dois falou mais nada.

Erik retornou ao centro do círculo, segurando a varinha no alto. Carter e Jerome tinham se afastado o máximo possível dos humanos, sem cruzar o círculo interno. Conforme os braços de Erik atingiram o alto, ele não parecia mais um velho fraco. Sim, seu corpo está frágil e mais abatido a cada dia, mas enquanto ele se postava ali, e começava a cantar, tornou-se muito mais do que humano. Dante era melhor mágico, mas Erik tinha seu próprio poder, que raramente usava. Se eu estivesse lá fisicamente, teria sentido a mágica que ele convocava. Saber que ela estava lá quase me fez acreditar que podia vê-la.

Ele terminou o cântico, disse palavras que pouco entendi e andou em volta do círculo. Tocou-o com a varinha em quatro cantos equidistantes. No instante em que a varinha tocou o quarto ponto, todos os imortais do cômodo se contraíram e pareceram desconfortáveis – até os superiores. Seth aparentava estar confuso.

Como uma observadora desconectada, minha visão era como a de Seth. Não vi nada acontecer também. Mas me dei conta de que, se estivesse lá, teria sentido o mesmo que os outros imortais. Erik fechara o círculo, trancando portas invisíveis. Cada círculo mágico é diferente, mas ele contou a Seth que conseguiria cruzá-lo, ou seja, seria um círculo para manter apenas imortais dentro dele. Não era como uma convocação, como o feitiço que prendera Jerome. Convocações necessitam de quantidades massivas de energia, pois escravizam um imortal a sua revelia. Esse círculo era uma prisão também, mas necessitava de menos magia, pois os imortais entram nele por vontade própria. Jerome e Carter tinham permitido que fossem presos.

Era por isso que Mei precisava estar por perto. Para um mágico inescrupuloso – digamos, como Dante –, era uma oportunidade de ouro. Dois imortais superiores aprisionados? Era algo de infinitas possibilidades. O que quer que seja que Erik estivesse fazendo, não acreditava que ele se aproveitaria da situação. Mas Jerome, como o demônio que é, não confiava em ninguém. Queria Mei por perto para dar uns golpes caso Erik não os quisesse libertar. Claro, ela estaria incapacitada de fazer qualquer coisa até Erik sair do círculo – mas ele teria que sair, uma hora ou outra.

Porém, se estavam todos querendo me resgatar, Erik não podia ter criado esse círculo com a intenção de prender Jerome e Carter. As palavras do anjo reapareceram: E também sei o que pode sair daí.

Erik parou em frente a Seth, que ficava mais nervoso a cada segundo. A força no rosto de Erik mostrava o poder que controlava. Ele não podia se mostrar o velhinho bondoso agora, mas fazia o que podia.

– Você gosta da senhorita Kincaid – ele perguntou a Seth. – Você quer salvá-la?

– Sim – respondeu Seth, rapidamente.

– Então deve pensar nela. Concentre cada grama do seu ser nela. Imagine-a. Grite por ela. Não deve haver outro pensamento em sua mente, a não ser ela.

Seth parecia confuso, mas assentiu. Erik se virou para Jerome e Carter.

– E vocês devem impedi-lo de entrar completamente. Vocês não podem entrar, mas podem mantê-lo aqui. Precisam fazer isso, ou vão perder os dois.

Erik não esperou confirmação do anjo e do demônio. Levantou a varinha e tocou Seth na testa, bochechas e queixo. Seth tremeu.

– Lembre-se – disse Erik. – Quando o portal abrir, pense nela. Somente nela. Procure-a. E quando a encontrar, não a deixe escapar.

– Portal? – perguntou Seth. – Que...

No entanto, Erik voltou a cantar, e um ventou surgiu do nada, balançando o cabelo daqueles dentro dos círculos. Sua voz ficou mais e mais poderosa, e então...

Eu estava de volta aos oneroi.

– O que aconteceu? – exclamei. Pela milésima vez, quis ser capaz de esmurrar as paredes de minha prisão. Queria enforcá-los. – Mostrem-me o que está acontecendo!

– Fracasso – disse Um.

– Eles não vão conseguir – acrescentou Dois. – A demônia tinha razão. Uma dúzia de humanos que te amam não seria capaz de te encontrar, que dirá um...

Ele parou de falar. Seus olhos encontraram os de Um, e ambos olharam em volta, procurando algo. Tentei ver o que eles enxergavam e ouviam, mas não havia nada para mim. Apenas escuridão e silêncio.

Então, senti o turbilhão de outro sonho me arrebatando. O mundo escuro começou a embaçar, e ambos os oneroi viraram a cabeça para mim.

– Não! – exclamou Dois, estendendo a mão.

Tudo ficou límpido novamente. Eu não sonhei. Fiquei onde estava.

Georgina.

Meu nome. Pela primeira vez em... – bem, não tinha ideia de quantos dias –, ouvi algo que não era um oneroi. Era tão fraco, um cochicho perdido na ventania. Meu nome. Um deles, pelo menos.

Não sabia dizer de onde vinha, mas cada pedaço de mim tentava se concentrar nele para descobrir sua origem.

Georgina.

– Sim? – disse em voz alta. – Estou aqui!

O mundo embaçou novamente. Não ouvia meu nome, mas era como a canção de sereia novamente. Música sem som, cores sem discrição.

– Pare com isso! – gritou Um. Era a primeira vez que ouvia os oneroi levantarem a voz. Sempre falavam em tons baixos, ardilosos. Mas eles estavam muito incomodados agora.

– Lute! – o Dois falou para o Um. – Junte-se a mim! Não deixe...

Eu deixei os dois para ir a outro sonho. Ou, bem, a outro lugar, na verdade. Não, nem mesmo um lugar. Era como flutuar no espaço, numa nébula. Talvez um furacão seja uma maneira mais precisa de descrever, pois coisas giravam à minha volta e iam embora. Anéis de fumaça. Partículas de cores. Estrelas brilhantes. Algumas me tocavam. Algumas me atravessavam. E, toda vez que fazia contato, eu sentia uma emoção – uma emoção que não era minha. Felicidade. Terror. Com a emoção, vinha um pequeno flash de imagem. Um campo verde. Um avião. Um monstro. Era uma tempestade de neve de estímulos.

Estava perdida, à deriva, quase mais aterrorizada do que em minha prisão oneroi. Pelo menos aquilo tinha alguma substância, mesmo que insignificante. Mas isso... o que era? Às vezes, começava a dissolver na escuridão, como se eu estivesse retornando à caixa... Então, a escuridão ia sumindo, novamente me deixando desamparada naquele caos louco de sensações.

Georgina.

Meu nome novamente. E com isso, um empuxo. Aquele empuxo familiar. Embora tecnicamente eu ainda não tivesse um corpo, procurava aquela voz e aquele empuxo, olhando por entre as cores revoltosas.

Georgina.

Ficava mais forte. Eu sentia a evocação. A necessidade de ir me queimava. Era parte de mim. Era meu lar. E então, em todo aquele caos, uma luz brilhou com mais força do que as outras. Era branca, pura e antiga em meio àquele caleidoscópio chovendo sobre mim. O mundo começou a fraturar, a cair no preto novamente, mas essa seria a última vez. Não voltaria à caixa. Não com essa luz à minha frente. Era difícil dizer se ela ficava cada vez mais brilhante ou se apenas se aproximava, mas, de repente, ela surgiu na minha frente. À minha volta. Eu era ela.

Da mesma forma que eu entrava nos outros sonhos, tive uma visão que me tirou do rodamoinho por um instante. Eu estava nos braços de Seth. Ou não? Enquanto ele me segurava, seu rosto parecia mudar para diferentes formas. Não, era ele. Reconheceria sua face em qualquer lugar. Era tão familiar, e agora tão próximo, não podia deixá-lo escapar. Ele era o lar.

Georgina. A voz ressoou, e era a dele. Georgina, não solte.

Não. Não soltaria. Jamais soltaria novamente...

Aquele rápido momento de contato humano cedeu lugar ao campo estrelado dos sonhos, mas, dessa vez, eu tinha uma âncora. Eu estava com a luz. Eu era a luz. Eu a sentia me puxando, mas não precisava de incentivo. Eu iria aonde ela me levasse. Deixei que ela me controlasse. Tive a sensação de flutuar, de me alongar e seguir em frente. Atrás de mim, algo me rebocava, mas não era forte o suficiente. Eu seguia em frente. Sempre em frente e...

O som de um grito preencheu o cômodo. Meu grito. Grito de dor por ser destruída e depois remontada. Dor por ter toda minha energia retirada. Eu estava fraca. Crua. Nada.

Que lugar era esse? Eu via rostos. Próximos, ao longo da parede. Olhavam-me como se me conhecessem. Conheciam? Eu os conhecia? Minhas pernas cediam abaixo de mim, fracas como as de um potro. Um dos homens estendeu a mão, mas eu recuei rapidamente, querendo escapar. Não podia deixar que me tocassem. Disso tinha certeza. Minha mente tinha sido destroçada e esmiuçada. Não queria ser tocada de nenhuma forma novamente. O chão era frio e liso, mas fui detida por uma parede. Pelo menos parecia uma. Não via nada lá, apenas uma linha azul no chão. A parede invisível era familiar e disparou o medo. Lembrei-me da caixa. Trouxe meus joelhos para perto, tentando me diminuir enquanto tremia.

Os homens que ali estavam – quatro deles – conversavam em uma língua que eu não conhecia. Estavam discutindo. Um tentava se aproximar de mim, mas o outro o impedia. Este era assustador. Suas feições eram comuns – alto, olhos e cabelos castanho-escuros –, mas havia algo sobre ele que me gelava. Havia um poder nele, em volta dele. Podia sentir e ver. Lembrava enxofre. Seus olhos caíram sobre mim enquanto falava com brutalidade para os outros, e eu me encolhi ainda mais. Tinha certeza de que o conhecia, mas ainda assim ele me assustava.

De repente, um dos outros homens exclamou algo e tocou o braço do homem moreno. Este era loiro. Senti um poder à sua volta também, mas era diferente. Era limpo e cristalino. Os quatro homens se viraram, dando as costas a mim enquanto encaravam algo. Não havia nada no começo, mas depois comecei a ver e a sentir. Uma esfera roxa brilhante surgiu na frente deles, cada vez maior. Conforme ela crescia, eu via que, na verdade, era uma espiral, cujos braços giravam. Os dois homens que não emanavam poder deram um passo para trás. Se a parede invisível deixasse, eu também teria ido embora.

Fora da luz roxa, duas figuras negras se materializaram e deram um passo à frente. Duas figuras negras que eram, de algum modo, luminescentes e tinham olhos azuis brilhantes. Meus próprios olhos se arregalaram. Eu posso não reconhecer mais nada e ninguém à minha volta, mas os conhecia. Eu os conhecia e os mataria.

Não sei como fui capaz, já que não parecia haver uma centelha de vida em mim, porém reuni força suficiente para levantar e correr na direção deles. Gritei palavras incoerentes, mas eu não ligava. Somente a destruição deles importava. Eu os destruiria. Faria com que sofressem como...

Braços fortes me seguraram, impedindo-me como a parede o fizera. Era o homem loiro, e seu controle era como aço.

– Me deixem! – gritei. – Me deixem! Vou matá-los! Vou matar os dois!

O homem moreno olhou para nós.

– Não a deixe escapar – ele disse, suavemente, dessa vez em uma língua que eu entendia. Lutei em vão contra os braços.

O homem moreno virou-se para os oneroi.

– Este não é o seu mundo – ele disse.

– Viemos pegar o que é nosso – retrucou um dos oneroi. – Vocês a pegaram.

– Eu peguei de volta o que é meu – o moreno replicou. – Vocês a roubaram.

– Nós a conquistamos. Ela veio para nós por livre-arbítrio.

O homem moreno riu com desdém. Jerome, lembrei-me subitamente. Seu nome era Jerome.

– Temos definições diferentes de livre-arbítrio – ele disse.

– Queremos ela de volta – protestaram os oneroi.

– Não vão pegar nada de volta – retrucou Jerome, com a voz dura. – Vão antes que eu mude de ideia.

Fiquei tonta enquanto eles falavam, mas agora renovara minha fúria. Eu me esforcei novamente.

– Me deixa matá-los! – gritei. – Jerome, eu tenho esse direito! Me deixa destruir os dois!

Jerome se virou, talvez surpreso por eu ter dito seu nome.

– Acho que você não tem condições de matar ninguém.

– Eu tenho esse direito – eu disse. – Depois do que fizeram... Vão sofrer como eu. Vou acabar com eles. Arrancar suas almas!

– Eles não têm almas – ele disse, secamente. – Mas gostei do seu entusiasmo – voltou-se para os oneroi. – Então, vocês raptaram meu súcubo e o torturaram – sua voz tinha a frieza de um réptil. Congelou meu sangue. Fez o ar estalar com a tensão. Os oneroi se ajeitaram desconfortavelmente. Eles não estavam indiferentes.

– Por causa dela, nossa mãe foi recapturada – um deles disse. Mas ele não parecia tão confiante ou corajoso quanto antes. – Temos direito à vingança.

– Você acha que uma afronta justifica uma vingança? – perguntou Jerome. Ah, aquela voz. A voz que fazia o ar ficar imóvel.

– Sim – disse os oneroi em uníssono.

– Eu também – replicou Jerome.

Ele nem se mexera, mas senti o poder emanar dele, como uma tocha jogada em lenha seca. Explodiu – como explodiram os oneroi. Bem, na verdade, implodiram. O poder os atingiu, e, então, não existiam mais. Simples assim.

– Caramba, Jerome – disse o homem me segurando. – Você tem noção do que fez?

Jerome olhou para trás e deu de ombros.

– Não gosto que peguem o que é meu.

O portal roxo não desapareceu e agora começava a ficar mais brilhante e a girar mais rapidamente.

– Merda – disse Jerome. – Achei que ninguém fosse perceber.

O homem que me segurava suspirou. Olhou para mim, e seus olhos cinza prateados perfuraram minha alma.

– Me escuta. Não se mova. Tá entendendo? Fique aqui – ao ver que eu não respondia, ele suspirou novamente. – Você sabe quem sou?

Eu sabia? Sim. Os olhos. Eu conhecia os olhos.

– Carter – o nome saiu de minha boca como uma palavra estrangeira.

– Isso – ele disse. – Você me conhece. Confie em mim. Não se mova.

Ele me soltou, esperou para ver o que eu faria e, então, ao notar que permaneci no lugar, foi se juntar a Jerome. Nada me faria sair do lugar, não depois do que vi sair do portal.

Era monstruoso. Literalmente. Olhos amarelos e escamosos, com pintas roxas e cinza. Tinha um focinho de porco e sete chifres que pareciam formar uma coroa. Era muito maior do que Jerome e Carter, mas os dois não saíram do lugar, observando-o com insolência.

– Vocês destruíram meus subordinados – rosnou a criatura. Sua voz vinha do fundo de sua garganta e fez o chão vibrar. – Vocês quebraram as regras.

– Seus subordinados estavam em nosso território – disse Jerome. Ele estava perfeitamente calmo. – Eles capturaram uma dos nossos e abusaram dela. Eles quebraram as regras.

– Isso não te dá o direito de fazer o que fez – foi a resposta.

– Eles a teriam destruído se pudessem. Da próxima vez, mantenha seus empregados sob observação, para que eles não provoquem problemas desnecessários.

As narinas do monstro se inflaram.

– Eu poderia destruir vocês por isso.

– Tente – disse Jerome. – Tente dar conta de nós dois.

Aqueles olhos amarelos se direcionaram para Carter. Alguns dentes apareciam pela boca da criatura. Acho que estava sorrindo.

– Um anjo e um demônio lutando juntos. Quase vale a pena ver.

Um silêncio pesado tomou conta do ambiente conforme todos se mediam dos pés à cabeça. Eu não tinha ideia da força do monstro. Tamanho físico não é proporcional a poder. Jerome e Carter, no entanto, estavam queimando como pequenos sóis, prontos para explodir.

Enfim, o monstro deu de ombros. Ou algo do tipo.

– Mas foi o suficiente ver vocês defendendo a honra um do outro. Não vou destrui-los... hoje. E que não haja mais golpes contra os meus. Se houver, não terei tanta piedade.

– E se o seu pessoal não deixar o meu em paz – disse Jerome, suavemente –, não serei tão piedoso também.

A criatura rosnou, e, por um momento, achei que ele tinha mudado de ideia. Mas não. Em vez disso, deu um passo para trás, em direção à luz roxa. Fundiu-se a ela, desaparecendo sob nossos olhos, e depois o próprio portal sumiu.

– Ele é um bosta mentiroso – disse Jerome. – “Piedoso”, sei. Ele sabia que explodiríamos sua bunda escamosa.

– É, bem, espero nunca descobrir se isso é verdade – disse Carter. – Lutar com um demônio morfeano iria me causar uns problemas burocráticos.

Os lábios de Jerome se retorceram em um sorriso.

– Isso valeria a pena ver.

Eu olhei entre os dois, meu medo do quase confronto desaparecendo. Investi o resto da minha energia contra Jerome, batendo meus punhos em seu peito. Ele pegou minhas mãos e me segurou com tanta facilidade quanto Carter.

– Você devia ter deixado! Devia ter deixado que eu o destruísse! É meu direito.

– É por isso que está brava? Georgie, nem sei como você está se mantendo de pé.

– É meu direito! – repeti. – Você não sabe o que eles fizeram.

– Posso imaginar.

Parei de lutar, e, por fim, toda a intensidade do que acontecera caiu sobre mim. O esgotamento total do meu ser me atingiu. Cai em seus braços, e ele me segurou. As visões e as pessoas ao meu redor ainda estavam confusas, mas várias coisas começavam a voltar.

– Você deveria ter me protegido – eu disse, com a voz fraca. Senti meus olhos umedecerem. – Não deveria ter deixado isso acontecer, deixado eles me levarem. Deveria ter me protegido – Jerome parecia genuinamente surpreso, e não respondeu de imediato. Temi que ficasse bravo, mas, em vez disso, disse em voz baixa:

– Sim, eu deveria. No fim, acabei conseguindo, mas... estava atrasado.

– Lindas desculpas – disse Carter.

Então, a raiva de Jerome voltou.

– Eu não preciso me desculpar de nada – voltou-se para mim, e, novamente, sua voz estava calma e paciente. Quase gentil. Sabia que isso não era normal para ele. – Trouxe você de volta. Está segura agora. Nunca mais vão te perturbar novamente. Tá entendendo?

Assenti.

– Ótimo. Agora tá na hora de terminar isso aqui.

Jerome se virou para os humanos. Um deles era velho, muito velho – com pele morena e cabelo acinzentado. Seus olhos eram afetuosos. O outro homem era mais jovem, com cabelo bagunçado e olhos castanhos que mudavam para mel quando a luz batia. Estava me encarando como se me conhecesse, o que não era estranho, pois eu o conhecia também. Não sabia como, mas conhecia. Na verdade, começava a perceber que conhecia todos os que estavam lá. Alguns nomes voltavam. Mas o nome deste homem em particular me escapava, enquanto muitos outros surgiam em minha mente. Ele me examinava, atento, como se tentasse entender algo, e senti me perder naqueles olhos castanhos dourados.

Jerome disse algo para o homem de cabelo grisalho, naquela outra língua. Ainda não podia entendê-la, mas havia algo de familiar nele. O velho não respondeu nem se mexeu, e uma tensão palpável preencheu o local. Enfim, o homem pegou a varinha mágica e começou a tocar o círculo no chão, murmurando baixinho. Quando tocou o círculo pela quarta vez, foi como se uma grande pressão – uma que eu não percebera até o momento – fosse liberada.

Jerome trocou palavras corteses com o homem, depois falou para mim:

– Como eu estava dizendo, não entendo como ainda está consciente, mas, considerando as outras coisas absurdas que você faz, eu não devia me surpreender.

Ele se aproximou de mim e colocou os dedos sobre minha testa. Arfei quando a pancada de... algo... me atravessou. Primeiramente, dava choque e coçava. Depois, se transformou em algo suave e gostoso. A coisa mais gostosa do mundo. Me preencheu, me energizou, me completou. Até esse momento, como eu poderia ter me considerado viva?

O mundo entrou em foco, as visões ficaram mais familiares. Cambaleei, não de fraqueza dessa vez, mas de pura felicidade pela vida com que Jerome me presenteara. Ele disse algo naquela língua que eu não entendia.

Falou de novo, no meu idioma:

– Transforme-se, Georgina. Hora de ir embora.

– Me transformar em quê?

– No que você quiser. Sua favorita atual, imagino. Não esta – ele apontou para meu corpo.

Observei-me pela primeira vez. Era quase tão alta quanto ele. Minhas pernas e meus braços eram longos e magros; minha pele, queimada de sol. Usava um vestido simples, cor de marfim, e vi pontas de cabelos negros caindo sobre meu peito. Fiz uma careta. Era eu... mas não era.

– Transforme-se, Georgina – ele repetiu.

– Este não é meu nome – eu disse.

– Livre-se do que fizeram com você – ele disse, obviamente impaciente. – Acabou. Embaçaram sua mente, mas você pode limpá-la. Transforme-se, Georgina. Volte para o agora – suas palavras seguintes foram naquela língua, e eu balancei a cabeça com raiva.

– Eu não entendo. Eu não devia estar aqui. Este é meu corpo, mas não é a minha época.

Deu outro comando que ainda não compreendia, e eu repeti minha resposta. Reproduzimos a cena três vezes, e, na quarta, suas palavras me atingiram, perfeitamente compreensíveis. Eu entendi o que ele falava. A língua inglesa explodiu em minha mente, e, com isso, muito mais coisas.

Estendi minhas mãos, fixando-as, como se as visse pela primeira vez.

– Esta é a minha época – murmurei, em inglês. Olhei para minhas pernas. Uma estranha sensação de nojo me atacou. – Este não é meu corpo – no entanto... era. Era e não era. Sem energia, tinha sido revertida para ele.

– Qual é seu nome? – ele questionou.

Letha. Meu nome é Letha.

– Georgina – eu disse. E, com isso, reuni o poder para transformar meu corpo. Magra e baixa, cabelo castanho-claro e olhos verdes dourados. O vestido quase branco feito em casa se transformou num azul de algodão. Pouco depois, mudei para jeans e camiseta azul.

Jerome olhou para Carter.

– Tá vendo? Sem consequências.

Carter não concordou. Em vez disso, perguntou:

– E agora?

– Agora? – o olhar de Jerome pousou sobre mim novamente. – A Georgina vai dormir.

– Quê? – gritei. – Não! Não depois... não. Nunca mais vou dormir de novo.

Jerome quase sorriu antes de tocar minha testa de novo.

Eu dormi.


Capítulo 20

Acordei em minha própria cama e vi Mei sentada a meu lado. Nem a Enfermeira Ratched, de Um estranho no ninho, teria me dado tamanho susto.

Mei estava folheando uma revista e me olhou, com cara de tédio.

– Ah. Você acordou. Finalmente – ela se levantou.

– O que... o que aconteceu? – perguntei, piscando sob a luz que jorrava pela janela. Fiquei surpresa por ela não ter fechado as cortinas. Ela não me parece uma pessoa muito diurna.

– Você não se lembra? – sua expressão de desinteresse endureceu. – Jerome disse que você se lembraria. Se não lembra...

Sentei-me, aproximando os joelhos do corpo.

– Não, não. Eu me lembro... eu me lembro do que aconteceu no Erik. Me lembro... dos oneroi – dizer aquele nome me fez estremecer. – Mas o que aconteceu depois daquilo? Faz quanto tempo que eu tô dormindo?

– Três dias – ela respondeu, seca.

– Quê? – encarei-a, de boca aberta. Se Mei fosse humorista, eu já estaria esperando a conclusão da piada. – Eu não... Quer dizer, passou tão rápido. E eu não sonhei.

Ela deu um sorriso torto.

– Acho que era o que você queria. E sono profundo cura mais rápido – o sorriso virou uma careta. – Não que ficar ao seu lado por três dias tenha passado rápido. Jerome mandou não deixar nenhum de seus amigos chegar perto. Isso foi legal.

– Por acaso você tá sendo sarcástica?

– Estou indo – ela disse, de volta ao seu estilo normal. – Já fiz o que Jerome ordenou.

– Espera! O que aconteceu com o Seth e o Erik? Estão bem?

– Sim – ela respondeu. Esperei ela desaparecer, mas ela não o fez. Em vez disso, olhou-me com curiosidade. – Não era pra ter dado certo, sabia?

– O quê?

– O ritual. De jeito nenhum um humano conseguiria ter te achado. Não no meio de todas aquelas almas.

Os oneroi haviam dito o mesmo, e, relembrando a tempestade de cor e caos, eu entendia a lógica.

– Nós... nós nos amamos – eu não sabia se era verdade, mas falei mesmo assim.

Mei revirou os olhos.

– Isso não significa nada. Amor humano, não importa o que as músicas ou as comédias românticas digam, não é o suficiente. Não era pra ter dado certo.

Não sabia o que dizer.

– Bem... mas deu.

– Jerome sabia disso – ela considerou, uma ruguinha surgindo entre suas sobrancelhas. Seu olhar endureceu. – Você sabia? Sabe como aconteceu?

– Quê? – chiei. – Não! Não tô entendendo nada – achei que ela iria me contradizer e me interrogar mais. Em vez disso, sua ruga ficou mais profunda, e percebi que ela decidira que eu era inútil para resolver o mistério. Desapareceu.

No instante em que ela sumiu, Roman entrou correndo no quarto.

– Ela vazou? – ele perguntou. Se ele estivera por perto, teria sentido a assinatura dela desaparecer.

– Você tava por aqui o tempo todo? – perguntei.

Sentou-se na mesma cadeira de Mei.

– Jerome mandou ela não deixar ninguém chegar perto.

– Você dava conta dela – eu disse, tentando brincar.

– Não sem causar um problemão – ele franziu a testa, seus olhos repletos de incômodo. – Mas eu teria me revelado, se necessário... se aquela coisa que saiu do portal tivesse atacado Carter e Jerome.

Arrepiei ao lembrar.

– Eu nem sabia que monstros assim existiam e... peraí. Como você os teria ajudado? Você... você tava no círculo? – eu achava que ele tinha assistido de fora.

– Claro – ele não disse mais nada. O modo como respondeu implicava que minha pergunta era ridícula, pra começar.

– Você tá louco? – exclamei. – Você não tava só se deixando ser capturado. Se Mei, ou uma das criaturas dos sonhos, descobrisse: você tava fodido. Iam te delatar.

– Não tinha escolha – disse Roman. – Tinha que estar lá caso você precisasse.

– Era perigoso demais – retruquei, minha voz falhava. – Se houvesse um combate, Jerome e Carter não iriam te defender. E aquela criatura morfeana pode ter medo de machucá-los, mas com você seria vale-tudo.

– Já disse, dane-se. Tinha que estar lá por você.

Seus olhos, aqueles olhos que eram como o mar de onde eu cresci, continham tanta honestidade e afeição que precisei desviar os meus. Não podia acreditar que ele arriscara tudo por mim. Por quê? Depois do que eu fizera para ele, não tinha motivo para se preocupar comigo, no entanto, estava claro que ainda me desejava. A noite em que fui capturada parecia ter sido há séculos, mas me lembrei de tudo em detalhes: os olhos dele, suas mãos...

– Seria melhor se você quisesse me matar de novo – murmurei. – Seria mais fácil.

Ele pousou a mão sobre a minha, seu calor espalhando por mim.

– A vida nunca é fácil.

Olhei-o novamente.

– Com certeza. Mas não sei... não sei se posso fazer isso. Quero dizer, bem, você sabe.

– Você não precisa fazer nada – ele disse. – Vamos continuar como antes. Colegas de casa. Vamos ver aonde vai dar. Se mudar, mudou. Se não... – ele deu de ombros –, continua igual.

– Já disse que era mais fácil quando você queria me matar? Não sei como me sentir quando você dá uma de sensato.

– Sim, bem, talvez eu esteja apenas com pena de você depois de tudo o que aconteceu. Talvez eu mude de ideia logo – ele apertou minha mão. – Foi... foi muito horrível?

Desviei o olhar novamente.

– Sim. Mais do que horrível. É difícil explicar. Me mostraram todos os pesadelos possíveis, todos os medos se tornando realidade. Algumas coisas já tinham acontecido... e eram quase tão ruins quanto os pesadelos. Eu não sabia mais dizer o que era real. Mostravam vocês... mas nem sempre era real. Eu duvidava de tudo: quem eu era, o que sentia... – engoli as lágrimas, feliz por ter desviado os olhos.

– Ei – ele disse, suavemente, e segurando meu queixo para que eu o olhasse. – Acabou. Você tá segura. Vamos te ajudar a ficar bem... eu vou ajudar. Não vou deixar mais nada te acontecer.

Novamente, os sentimentos dele por mim me deixaram desconfortável e confusa. Era ainda um efeito dos oneroi? Não, decidi, em seguida. Era o tipo de situação que confundiria qualquer um. Meu coração ainda estava com Seth, uma pessoa que eu devia esquecer, mas que me encontrara apesar de tudo. E havia Roman, alguém com quem eu poderia ficar com certa facilidade – ou quase – e que arriscara sua vida por mim. Eu poderia seguir em frente com ele? Não sabia. Mas poderia tentar.

Procurei sua mão novamente e apertei.

– Obrigada.

Ele se inclinou para mim, e acho que poderíamos ter nos beijado, mas o toque do meu celular nos arrancou do feitiço romântico. Tirei minha mão da sua e peguei o telefone de cima do criado-mudo.

– Alô?

– Senhoria Kincaid – disse a voz carinhosa e familiar –, é um prazer falar com você novamente.

– Erik! Oh, que bom que é você. Queria lhe agradecer...

– Não precisa me agradecer. Faria novamente com alegria.

– Bem, mas agradeço mesmo assim – Roman, percebendo que não tinha nada a ver com o assunto, levantou e saiu do quarto, não sem antes me olhar com carinho outra vez.

– Como queira – disse Erik. – Está se sentindo melhor?

– Mais ou menos. Certamente meu corpo está melhor. Acho que o resto vem aos poucos – queria que, com a recuperação de meu corpo, eu também pudesse esquecer todas as coisas terríveis que vivenciara. Embora isso não fosse acontecer, não precisava encher Erik com meus problemas.

– Fico feliz – ele disse. – Muito feliz.

Veio o silêncio, e um sentimento desconfiado se infiltrou em meu cérebro. Eu tinha pensado que ele me ligara apenas para checar, mas algo me disse que havia mais.

– Senhorita Kincaid – ele disse, enfim –, estou certo de que não quer falar sobre o que aconteceu...

– Eu... bem – hesitei. Eu conhecia Erik. Sabia que ele não falaria sobre o assunto a não ser por uma boa razão. – Há algo que devemos conversar?

Agora foi a vez dele de hesitar.

– Você me agradece... mas, para ser honesto, o que fizemos não era para ter funcionado. Eu não achei que daria certo.

Lembrei-me dos comentários de Mei e das conversas que testemunhei em sonhos.

– Ninguém achou.

– O senhor Jerome achou.

– Aonde você quer chegar?

– Não sei como funcionou. Não era para o senhor Mortensen ter conseguido achar sua alma.

Eu amava Erik, e odiei a irritação em minha voz.

– Todo mundo só fala nisso, mas deu certo. Pode até ser que fosse impossível, mas depois do que eu passei? Não me importa.

– Imagino que não, mas mesmo assim... não consigo parar de pensar nisso. Você se importa em me contar como foi que ele te achou?

Essa era uma parte do suplício que eu não me importava de recontar, mesmo porque o final foi feliz. Claro, explicar racionalmente não era fácil. Esforcei-me ao máximo para descrever como é ficar à deriva no mundo dos sonhos e como Seth parecia me chamar. Erik escutava pacientemente e depois me pediu para lhe contar como era meu contrato com o Inferno e como eu tinha vendido minha alma.

Isso era um pouco mais difícil, além de ser uma pergunta bizarra. Os oneroi tinham me mostrado tantas versões do que havia acontecido entre mim e Kyriakos... Algumas reais, outras falsas; todas horríveis. No entanto, percebendo que havia algo de importante nessa história, recontei de modo hesitante a experiência completa: como tinha traído Kyriakos com seu melhor amigo, como a infidelidade fora descoberta. A dor levara Kyriakos a ter pensamentos suicidas, o que, por sua vez, me levou a assinar o contrato com o Inferno. Vendi minha alma e me tornei um súcubo, em troca, todas as pessoas que conhecia, incluindo Kyriakos, me esqueceriam com todas as coisas horríveis que eu fizera.

– Me diga as condições novamente – pediu Erik.

– Todos os que eu conhecia me esqueceriam e esqueceriam o que aconteceu... família, amigos e, especialmente, meu marido – minha voz engasgou um pouco. – Deu certo. Voltei tempos depois, e ninguém se lembrou de mim. Nem um lampejo de lembrança.

– Não havia mais nada no contrato?

– Não. Uma demoniazinha revisou recentemente e verificou tudo.

– Ãhn? – isso chamara a atenção de Erik. – Por que ela fez isso?

– De favor. O demônio que cuidou da minha transação era o tal que trabalhou com a Nyx e ficava perturbando o Seth. Hugh disse que, quando um demônio fica tão interessado, tem algo errado com o contrato. Então, Kristin, a demônia, revisou – ela não ficou muito feliz em fazer isso. Se fosse pega fuçando nos arquivos do Inferno, haveria consequências muito, muito ruins. Sua gratidão por eu a ter indicado para seu patrão superou o medo. – Disse que estava perfeito. Tudo certo. Sem erros.

Mais silêncio. A conversa começava a me deixar desconfortável.

– Esse demônio, Niphon?, acabou fazendo algo ao senhor Mortensen?

– Não... Quer dizer, foi em parte por isso que terminamos... – pausei para me recompor. – Mas houve vários outros fatores envolvidos.

– Niphon voltou?

– Não, mas tem um súcubo – com todo o resto, esqueci a Simone. – Ela estava me personificando. Tentando seduzir o Seth... mas não deu certo. Eu acho que Jerome a mandou fazer as malas, mas não tenho certeza.

Novamente, Erik demorou para responder. Enfim, suspirou.

– Obrigada, senhora Kincaid. Me deu informações valiosas. Me desculpe se isso trouxe lembranças doloridas. Fico feliz por estar se sentindo melhor.

– Obrigada – eu disse. – E obrigada novamente pela ajuda.

Desligamos, e fui até a sala. Roman estava na cozinha, colocando uns sanduíches de queijo em um prato.

– Tá com fome? – ele perguntou.

– Morrendo – respondi. Ele me ofereceu o prato com uma xícara de café, e eu sorri. – Brigada. Não sei o que fiz pra merecer isso.

– Não precisa fazer nada. Além do mais, eu fiz de sobra. Queria uma boa refeição antes de ir trabalhar.

– Antes do quê?

O sorriso indicava que ele ia contar uma novidade.

– Arranjei um emprego.

– Não creio.

– Pode crer. Voltei à escola onde eu dava aula. Tinha umas vagas, então darei umas aulas – fiquei pasma. Depois de toda minha encheção, Roman foi atrás de um emprego remunerado, e ainda na sua especialidade: linguística.

– Então quer dizer que você vai pagar aluguel agora?

– Não se empolgue, querida.

Ele pegou um prato para ele, e comemos na sala enquanto as gatas procuravam ansiosas por migalhas. Ao ver Godiva, uma sensação ruim. O sonho. O homem no sonho. Os oneroi disseram que era Seth... mas isso era impossível. Olhei para Roman, imaginando se conseguiria reavivar o amor que sentira. Se havia mesmo um homem de um sonho, ele seria um candidato melhor.

– Você conversou com o Erik um tempinho – disse Roman, notando meu exame minucioso.

– Ele tá achando o resgate meio esquisito. Ele diz que não era pra ter dado certo.

– É, ouvi falar nisso.

Entre mordidas, contei minha conversa, incluindo o interesse de Erik por Seth e por meu contrato.

– Não sei qual é o problema – concluí. – Seth e eu ainda temos sentimentos um pelo outro, sentimentos que estamos tentando ignorar – apesar de que, no momento em que nossas almas se encontraram, ignorá-lo era a última coisa que eu queria. – Talvez isso já fosse o suficiente. Talvez as pessoas não tenham fé no poder do amor.

– Talvez – disse Roman. Mas agora ele estava pensativo também.

Uma batida na porta interrompeu a conversa. Não senti assinatura de imortal e torci para que não fosse o vizinho querendo mais sexo. Ele tinha sido legal o suficiente para não ter vindo mais atrás de mim.

Mas não, não era Gavin. Era Maddie.

E ela estava chorando.

Não fiz perguntas. Quando amigos estão com problemas, temos que cuidar deles. Puxei-a para dentro e a levei até o sofá, abraçando-a imediatamente.

– O que foi? – perguntei, enfim. – O que aconteceu?

Ela não conseguiu responder na hora. Seus soluços eram muito fortes, e ela engasgava nas próprias lágrimas. Algo me tocou no braço. Era Roman trazendo uma caixa de lenços. Olhei-o com gratidão e dei alguns para Maddie.

Depois de muito tempo, ela soltou:

– É o Seth.

Meu coração parou. Por um instante, pensei em possibilidades horríveis. Seth atropelado. Seth seriamente doente. Apertei seu braço com tanta força que minhas unhas a furaram. Soltei o máximo que fui capaz.

– O que aconteceu? – perguntei. – Ele tá bem?

– Ele terminou – o choro voltou. – Ele terminou o noivado e me disse que estava tudo acabado – ela enfiou a cara no meu ombro, e eu a acariciei desatenta, enquanto meu cérebro se esforçava para compreender as palavras dela. Eu provavelmente ouvi errado.

– Ele não pode ter feito isso – eu disse, minha voz falhando como a dela. – Ele... ele te ama.

Ela levantou a cabeça e me encarou com olhos molhados e pesarosos.

– Ele disse que não me ama como devia, que não me ama como eu mereço. Ele disse que seria errado me forçar a casar com ele, que não nascemos um para o outro – ela pegou outro lenço e assoprou o nariz, seus olhos enormes de desespero. – O que isso significa, Georgina? Por que ele diria que está me forçando a casar com ele? Eu quero casar. Não entendo.

Olhei por cima dela, para Roman. Não podíamos nos comunicar como os imortais superiores, mas trocamos mensagens suficientes. Seth não a havia forçado a ficar noiva, não, mas o fez por culpa, culpa por tê-la traído e por permanecer próximo a mim, quando achava que deveríamos nos manter afastados.

– Ele disse que me amava – continuou Maddie –, mas que eu precisava de alguém que me amasse mais, alguém me considerasse seu mundo. Disse que apenas me machucaria mais se fôssemos em frente. Como ele me machucaria mais? – as lágrimas aumentaram. Ela se soltou de mim e enfiou a cara nas próprias mãos. – Não tem como machucar mais. Eu quero morrer.

– Não! – eu disse, puxando-a para mim novamente. – Não diga isso. Nunca diga isso!

– Georgina – Roman chamou minha atenção suavemente. Percebi que eu estava balançando a Maddie e parei imediatamente.

– Me escuta – eu disse, virando o rosto dela para mim. – Você é uma pessoa incrível. Uma das melhores pessoas que eu conheço. Você vai superar isso... eu juro. Não vou te abandonar, ok? Você merece o melhor. Se não é ele, acharemos alguém melhor – as palavras seguintes foram difíceis para mim. Devia estar feliz com a notícia. Não precisaria mais vê-los juntos. Também tinha a sensação de estar envolvida nisso. O que ela disse? Que Seth falou que ela mereceria ser o mundo de alguém? Ele me dissera que eu era o dele. Em um dos sonhos, ele disse isso para ela, mas agora eu sabia que tinha sido mentira. Mesmo assim, não pude evitar de dizer:

– E talvez... talvez se vocês conversarem mais, ele vai entender...

Os soluços diminuíram – um pouco – quando ela me olhou, confusa:

– Aí tá o problema. Não dá.

– Pode parecer que não, mas ele não está totalmente louco – por que eu estava bancando a advogada do Diabo? Porque Maddie é minha amiga, e não suportei vê-la sofrer e porque eu também já tivera meu coração partido muitas vezes. – Espere alguns dias, depois o encontre e veja se poderão ter um, sei lá, diálogo produtivo. Talvez possam consertar as coisas – argh. – Talvez ao menos entenda... entenda a decisão dele.

Ela balançou a cabeça.

– Mas eu não consigo encontrá-lo. Ninguém consegue. Georgina, ele desapareceu.


Capítulo 21

Maddie afirmou que nem a família de Seth sabia dizer onde ele estava. De acordo com ela, ele simplesmente... desaparecera.

Ele não atendia o telefone. Ele não frequentava mais a livraria. Quando as pessoas desaparecem, imediatamente penso em coisas sobrenaturais, mas Maddie depois acrescentou – debaixo de lágrimas – que ela usou a chave dela para pegar suas coisas na casa do Seth e viu que algumas roupas e uma mala tinham sumido. Culpada por ainda ter a chave, ela a enfiou na minha mão e me mandou devolvê-la. Ou jogar fora.

Fiz o melhor que pude para confortá-la e depois ofereci uma carona até o Doug. Roman me olhou de sobreaviso enquanto estávamos de saída.

– Não vá fazer nada idiota – ele disse, sem que Maddie pudesse ouvir.

– Sabia que seu jeitinho de enfermeiro cuidadoso não ia durar – eu retruquei.

Apesar do estilo de vida roqueiro preguiçoso de Doug, eu sabia que Maddie ficaria em boas mãos. Quando a deixei lá, Doug parecia ter múltiplas personalidades. Com Maddie, era incrivelmente gentil e bondoso – o irmão cuidadoso em vez de pentelho. Depois que ela se deitara, ele fez questão de me contar o que achava de Seth em detalhes. Não havia muito que eu podia dizer, exceto que deveriam me ligar caso precisassem de algo. Fui embora.

Apesar do que Maddie falara, dirigi até Terry e Andrea mesmo assim. O Seth terminar com a Maddie foi maluco, quase tão maluco quanto tê-la pedido em casamento. Mas desaparecer sem contar à família? Não. Ele não faria isso. Ele tinha senso de responsabilidade. O mais provável era ele ter pedido que não contassem onde estava para Maddie.

Kendall abriu a porta quando cheguei, sua expressão feliz como se fosse manhã de Natal.

– A Georgina! A Georgina tá aqui! – Morgan e McKenna, que estavam assistindo a desenho animado, vieram correndo e cada uma se agarrou a uma de minhas pernas.

– Que bom ver vocês também – eu disse, rindo.

Terry estava sentado no sofá perto das gêmeas e veio até mim com menos empolgação.

– Ei, Georgina – ele disse, amável, como sempre. Ele era mais baixo do que Seth e alguns anos mais velho, mas, no geral, tinham uma semelhança notável. – Desculpe pelo ataque!

– Sem problema – desenrolei Morgan de mim, mas McKenna se mostrou um pouco mais resistente. Olhando para Terry novamente, eu disse, hesitante: – Queria conversar com você, hum, sobre uma coisa.

– Terry não é bobo. Nenhum dos Mortensen é.

– Claro – ele disse. – Meninas, larguem da Georgina e voltem pro desenho. Nós vamos pra cozinha.

– Mas a gente quer ver desenho com ela.

– Podemos ir junto?

Terry fez o pai firme, porém amigo, e com grande relutância as meninas voltaram para o sofá. Eu estava impressionada. Não sei dizer se teria coragem de recusar alguma coisa para aquela turma. Ele me levou até a cozinha, mas, antes que pudéssemos dizer qualquer coisa, Andrea entrou, sorrindo surpresa quando me viu. Sorri surpresa também, mas era mais devido à sua aparência do que qualquer outra coisa. No meio do dia, ela ainda estava de robe e pijamas. O cabelo amassado e as olheiras entregaram que ela estava dormindo.

Terry estava encostado no balcão, mas deu um pulo quando a viu.

– Querida, você devia voltar para a cama.

Ela deu um empurrãozinho nele.

– Queria ver quem estava aqui. Tudo bem?

– Tudo – respondi. Depois, não resisti: – Tá tudo bem com você?

– Tô me sentindo meio mal. Ainda bem que o Terry tá de chefe da casa hoje. Ele é quase tão bom quanto eu.

Eu ri da piada por educação. Fiquei um pouco sem graça por um momento, todo mundo já sabia por que eu estava lá. Finalmente, tomei fôlego.

– Vim perguntar onde está o Seth.

– Engraçado – disse Andrea. – Íamos te perguntar a mesma coisa.

Fiquei perplexa.

– Como é que eu vou saber?

Os dois me encararam.

– Eu não sei!

– Quando aconteceu esse negócio, uns dias atrás... esse negócio da Maddie... – Terry olhou desconfortavelmente para Andrea antes de continuar: – Bom, pensamos que tinha sido por sua causa.

– Por que seria por minha causa? Fui descobrir isso hoje.

– Sempre foi você – disse Andrea, gentilmente. – Nunca houve outra pessoa. Gostamos da Maddie. Ele gosta dela. Mas esse é o problema. Apesar de tudo, sempre soubemos que você era a principal. Agora, seja lá o que aconteceu com vocês que levou a isso, não é da nossa conta. Não ficamos surpresos.

– Porém, queremos saber onde ele está – disse Terry, pragmático.

– Eu não sei – respondi, impotentemente, ainda um pouco chocada pelas palavras de Andrea. – Maddie disse que ele fez as malas, então imaginei que vocês estivessem guardando segredo do local – olhei-os com desconfiança. – Tanto dela quanto... de mim?

– Não – disse Terry. – Realmente não sabemos – eu não tinha a habilidade de um anjo, mas acreditei que estivessem dizendo a verdade.

Andrea assentiu.

– Ele ligou há uns dois dias e disse que tinha terminado tudo. Não deu explicações, mas, bem, você sabe como ele é. Ele nunca explica nada. Mas, quando Maddie disse que ninguém mais o tinha visto, começamos a ficar preocupados.

Há uns dois dias. Seth tinha terminado tudo com ela há uns dois dias – quando todo o lance de recuperação da alma tinha rolado.

– Nós até tentamos te ligar – acrescentou Terry. – Mas ninguém atendeu.

– Ah, é. Eu também fiquei doente essa semana – olhando Andrea, que parecia exausta, eu me senti mal por estar perturbando. – Bem, preciso ir. Obrigada pelas informações. Vocês podem... podem me avisar se tiverem notícias dele?

Andrea sorriu novamente.

– Algo me diz que você vai falar com ele antes da gente.

Eu não tinha tanta certeza.

Sair da casa foi um pouco mais complexo, já que as meninas não me deixavam ir embora, mas dei um jeito de escapar de suas mãozinhas adoráveis e fugir. Andava em direção ao carro quando ouvi uma voz: – Ela tá doente, sabia?

Virei, assustada, e vi Brandy encostada ao portão. Ela estava com o mesmo semblante triste dos últimos tempos.

– Ei – cumprimentei. – De onde você surgiu?

– Eu tava por aí. Ouvi você falando com meus pais.

Relembrei as primeiras palavras de Brandy.

– Sua mãe... é ela que tá doente, né? Percebi.

– Não, tipo, ela tá doente de verdade. Muito doente. E eles não falam sobre o assunto – ela apontou com a cabeça para a porta da casa. – Ninguém mais sabe. Nem o tio Seth.

Uma brisa gelada revolveu as folhas secas no chão, mas não era nada comparada com o frio que me tomou de assalto.

– Do que você tá falando, Brandy?

Brandy raspou o pé no chão da entrada, olhando para o lado.

– Ela tá com câncer de ovário. É grave... mas ainda não sabem direito.

– Ela ia ao médico no dia em que estive aqui – lembrei em voz alta. Andrea estava tão feliz, achei que fosse uma consulta de rotina. Em seguida percebi que, tecnicamente, eu não estivera aqui. Eu tinha sonhado. Felizmente, Brandy estava muito distraída para perceber meu fora.

– Ela vai ao médico toda hora. O pai tá faltando pra caramba no trabalho. O tio Seth às vezes ajuda, e eu fico de babá.

De repente, me senti extremamente egoísta. Achava que o mau humor de Brandy era por conta do fim da minha relação com Seth. Mas era apenas o sintoma de um problema maior. A mãe dela estava seriamente doente, e o mundo inteiro da garota se desestabilizava. Sua própria vida estava sendo deixada de lado, enquanto tomava conta das irmãs, e algo simples como os relacionamentos de seu tio podiam estragar a normalidade. Todas as constantes do mundo dela estavam desaparecendo.

– Brandy, eu...

– Tenho que ir – ela me interrompeu, voltando para o portão, semblante de pedra. – Kayla vai acordar da soneca logo. Eu preciso cuidar dela hoje.

Brandy desaparecera antes que eu pudesse dizer qualquer coisa. Fiquei ali parada, me sentindo perdida. Não sabia de quem tinha mais pena: Brandy e Terry por saberem o que estava acontecendo ou as menininhas, que permaneciam na ignorância. Não havia nada que eu pudesse fazer. Eu tenho poderes que vão além da imaginação humana, mas não há nada que possa de fato ajudar os humanos.

Dirigi para o centro da cidade com o coração pesado, tentando não – e falhando nisso – me descontrolar. A própria Brandy havia dito que as coisas estavam ruins, mas ainda não sabiam a extensão dos problemas. Com certeza fariam mais testes, que trariam esperança. E com certeza haveria um tratamento. Humanos podem fazer no mínimo isso por conta própria.

Jerome estava onde eu imaginara. Na verdade, o Cellar era como um escritório para ele. Carter estava ao seu lado na mesa dos fundos, ambos bebendo doses de uma garrafa de Jägermeister. Aqueles dois não têm preconceito para bebidas. Imaginei se estavam bebendo para esquecer os problemas do outro dia ou se para comemorar o sucesso.

Devia ser a última opção, já que Jerome quase sorriu quando me viu.

– Georgie, entre os vivos e de volta a sua figura mignon. No entanto... tão tristonha. Como sempre.

Sim, eles tinham bebido. Anjos e demônios conseguem ficar sóbrios num piscar de olhos, mas eles pareciam estar se deleitando com os efeitos do álcool.

– Tenho más notícias – eu disse, sentando-me oposta a eles.

– O quê? É sobre o Mortensen ter desaparecido? – perguntou Jerome.

– Como você sabe?

– Conversei com Roman. Ele me contou sobre seu dia: o velho ligando, sua rival romântica precisando de conforto... foi muito comovente.

Fiz uma careta.

– Ótimo. Você mandou o Roman me espionar.

– Não é espionar. Só fiz umas perguntinhas. Se você quer saber, ele nunca fica feliz de me responder.

– Quantas vezes você já fez isso? – perguntei, incrédula.

– Não muitas – um garçom colocou outra garrafa na mesma. – Só queria saber como estava se recuperando.

– Bem. Tô bem – olhei para Carter. – Sem comentários hoje?

– Me deixe fora dessa – ele retrucou. – Só tô bebendo – foi o que ele disse, mas estava ouvindo e observando atenciosamente. Não estava deixando o álcool afetá-lo.

Voltei-me para Jerome.

– Vim pedir um favor.

O humor negro em seus olhos se transformaram em suspeita.

– Que favor?

– O que você ficou devendo depois que te salvei da Grace, lembra?

Nenhum humor agora.

– Acabei de te resgatar de outro plano existencial, de criaturas que torturavam sua mente.

Estremeci, mas forcei minhas palavras.

– Você ainda me deve um favor. E eu não pedi pra ser salva. Além do mais, você teria que me salvar de qualquer jeito, para não ter problemas.

– Te prometi um favor no calor do momento – ele retrucou. – Provavelmente disse um monte de besteiras.

– Você prometeu – repeti.

– Eu tô te entendendo, não precisa pôr itálicos na voz, Georgie – ele rebateu.

– Mas foi o que você fez – ressaltou Carter. – Demônios podem mentir, e mentem, mas alguns acordos eles têm que cumprir. Na praia, Jerome dissera que me garantia um favor, e foi uma promessa sincera.

– Tá bem – ele disse, irritado, pedindo outra dose com a mão. – O que você quer? E eu não preciso cumprir se for uma coisa totalmente absurda.

– Eu quero saber...

– Cuidado – interrompeu Carter.

Parei, e Jerome fulminou o anjo com o olhar. Carter não disse mais nada, mas aqueles olhos cinza ainda estavam atentos – e cautelosos. Que era como eu precisava estar também. Jerome prometera um favor, e, como todos os demônios, tentaria achar a maior quantidade possível de brechas para escapar. Eu estava prestes a perguntar onde Seth estava, mas isso não me ajudaria em nada. Eu não poderia chegar até ele.

– Eu quero que você me envie até Seth para que eu passe uns dias com ele.

Jerome me estudou com um semblante ranzinza.

– Há uns probleminhas. Um é que você me pediu duas coisas. O outro é que não sou onisciente. Não sei onde ele está.

– Você pode descobrir – eu disse. – Pelo menos, se ele viajou pra algum lugar, você consegue descobrir.

A mala de Seth indicava que ele teria viajado para longe. Maddie dissera que o carro dele ainda estava na garagem, portanto ele não foi dirigindo. Se tivesse ido, seria mais difícil seguir suas pistas. Mas aeroportos têm dados arquivados, e o Inferno tem acesso a esse tipo de coisa. Jerome pode pedir para qualquer demoniozinho de meia-tigela acessar esses dados e descobrir para onde Seth tinha ido. Eu poderia ter pedido ao Hugh também, mas isso não me daria a chance de ir até Seth, vide minhas palavras do pedido.

– E ambos sabemos que seria idiota você me enviar e em seguida trazer de volta. Pedir uns dias faz valer a pena, senão é uma merda de favor.

– Discutível – retrucou Jerome.

– Podia ser pior – disse Carter. – Ela não pediu a paz mundial nem nada.

– Fique fora disso – reclamou o demônio. – Eu sei o que você quer.

Carter deu de ombros e pediu mais um drinque.

– Tudo bem – disse Roman, enfim. – Vou pedir para o Hugh checar os arquivos. Sabe que pode não ter nenhum registro.

– Eu sei. Mas e se achar?

– Então poderá ir até ele. Por enquanto, vá pra casa. Tá acabando com meu bom humor. Te procuro se houver novidades.

Ele não precisava pedir duas vezes.

– Logo – eu disse. – Você tem que procurar logo.

Os lábios de Jerome se levantaram.

– Você não tinha usado essas palavras.

Carter lhe deu uma cotovelada, e tive que ter fé na atuação de Jerome. Minhas palavras implicavam que eu queria estar onde Seth estivesse naquele momento. Era possível que no meio-tempo Seth mudasse de lugar e eu não teria meu desejo atendido. Também precisava acreditar que Carter tinha razão em dizer que esse era um favor relativamente fácil. Eu poderia ter pedido mais.

Fácil ou não, era difícil aguardar. Roman tinha saído quando eu voltei para o apartamento, e eu não tinha nada a fazer a não ser pensar. Arranjara uma licença no trabalho e não me arrependera. No entanto, ficar sozinha com meus pensamentos nunca é uma boa ideia, e eu tinha vários para me perturbar: os oneroi, Seth, Andrea...

– Ok, Georgie.

Quatro horas depois, Jerome apareceu na minha sala com um estalo.

Desmoronei de alívio.

– Você o encontrou?

– Sim.

– E vai me enviar para ele... por um tempo razoável?

– Três dias – respondeu o demônio – ele parecia irritado e impaciente. Imaginei se bebera por todo aquele tempo e estava bravo por ser interrompido. – Quero você de volta em setenta e duas horas, e vai se virar para fazer isso. Entendeu?

– Sim – concordei, ansiosa –, me manda logo. – Eu precisava falar com ele. Tinha que descobrir exatamente o que tinha acontecido. Tinha que ter certeza de que ele estava bem.

– E esse é o favor. Combinado?

– Combinado – eu disse. Havia poder naquela palavra, bem como houvera na promessa inicial de Jerome. Não precisava de mais nada.

– Então vá – ele disse.

Desapareci da minha sala...

... e reapareci em uma calçada lotada. Uma multidão em minha volta, mas ninguém parecia me notar. Eu tinha surgido do nada! O sol estava quase se pondo, mas o céu estava claro e límpido – e quente. Muito quente. As pessoas à minha volta vestiam roupas de praia e tinham cara de turistas. Saí do caminho delas e me encontrei diante de um hotel enorme, tipo resort.

A mudança abrupta de local – e o desconforto do teletransporte – me deixou desorientada, e eu precisava me aprumar. Observando melhor o entorno, pude ouvir pessoas falando tanto em espanhol quanto em inglês. Virei-me para a pessoa mais próxima de mim, um homem baixinho e extremamente bronzeado, trajando o uniforme do hotel. Ele dava as direções para um táxi parado na entrada do prédio.

Fui perguntar onde eu estava, mas soou um pouco idiota demais. Apontei para o hotel e perguntei o nome. Domino um monte de línguas fluentemente, e o espanhol saiu com facilidade.

– El Grande Mazatlán, señorita – ele respondeu.

Mazatlán? Em seguida, fiz uma pergunta idiota:

– ¿Estoy en México?

Ele assentiu, me olhando com a pergunta “você é doida?” estampada na cara. Talvez eu tenha piorado as coisas ao ficar de queixo caído com a resposta.

Bem, suponho que, se você vai fugir, é melhor ir para um lugar quente.


Capítulo 22

Comecei a andar em direção ao hotel, ainda um pouco chocada com a situação. Seth estava... no México! Se é que o Jerome estava cumprindo a promessa, claro. Tinha que acreditar que sim, mas a questão era se ele tinha me mandado para perto de Seth. Minhas palavras podem ter sido um pouco confusas. Olhando para o hotel, torci para que os subalternos de Jerome tivessem se dado ao trabalho de verificar os registros de hospedagens, não só de voos. Com um sorriso para o homem que me ajudara, entrei no saguão.

Em um lugar que recebe tantos turistas, boa parte da equipe fala inglês, não que isso me preocupe. Fui até a recepção, perguntando por um hóspede chamado Seth Mortensen. A mulher procurou no computador, e, quando o achou, fiquei sem fôlego. Ele estava lá. Eu o tinha realmente encontrado.

Bom, quase. Quando perguntei pelo número de seu quarto, a funcionária disse que o hotel não podia divulgar essa informação. Ela poderia, no entanto, ligar para seu quarto. Hesitei antes de aceitar. Se Seth realmente não quisesse ser encontrado, ele mudaria de hotel ou de cidade se soubesse que alguém o tinha localizado. Porém, eu não tinha outra maneira de falar com ele, então deixei a mulher ligar. Não adiantou. Ninguém atendeu.

Agradecendo-a, segui para a parte de trás do resort, concluindo que uma boa caminhada ia eliminar minha frustração e clarear minhas ideias sobre o que fazer em seguida. A piscina e a praia em frente ao prédio eram reservadas para hóspedes, mas era fácil burlar a segurança. Até aproveitei a oportunidade, quando fiquei por um segundo a sós no saguão, de transformar minhas roupas para algo mais adequado: biquíni vermelho e canga.

Lá fora, o calor me abateu, e eu parei, deixando o sol me penetrar. O fuso horário não é muito diferente, mas logo pela manhã a temperatura aqui já é alta – algo que eu amo. Atrás da piscina e do bar, eu via a faixa de areia dourada e fofa, curvando-se em volta da água muito azul. Não tão vívido quanto onde eu crescera, mas também lindo. Cadeiras e tendas estavam montadas ao longo da areia. Adoradores do sol tentavam aproveitar os raios do fim do dia.

Segui até a praia, procurando uma cadeira vazia e, quem sabe, um drinque. Se eu não fosse dar de cara com Seth, eu pelo menos poderia...

Mas lá estava ele.

Parei bruscamente, quase trombando com um casal jovem e risonho com copos na mão. Não podia acreditar. Deus pode trabalhar de formas misteriosas, mas o Inferno trabalha de forma eficiente.

Pedi desculpas ao casal e segui em direção a Seth, parando novamente após alguns passos. O que eu faria? O que eu diria? Seth tinha terminado um noivado e fugido de todos que conhecia. Agora, lá estava eu, invadindo seu refúgio. Pensei em inúmeras possibilidades, mas não tomei nenhuma decisão concreta. Respirando fundo, forcei-me a continuar e enfrentar a situação.

Aproximei-me por trás de sua cadeira, minha sombra o encobrindo conforme eu chegava mais perto. Ele estava deitado de shorts e com uma camiseta com a estampa de um pirulito. Com um drinque, com certeza alcoólico, a seu lado, ele lia um livro cuja capa eu não pude ver. Mais uma vez parei, confusa sobre como eu me sentia.

– Esse perfume – ele disse, do nada. – Até aqui eu sinto. Conheço de longe. Flores e incenso.

Dei a volta, parando ao seu lado. Coloquei minhas mãos na cintura.

– Você não parece surpreso em me ver.

Ele tirou os óculos e me olhou, com um daqueles sorrisinhos divertidos. – Tô... e não tô. Achei que eu tinha desaparecido direitinho. Mas sabia que, se alguém me acharia, seria você.

– Por causa dos meus contatos?

– Porque você é você.

Procurando um lugar na areia para sentar, comecei a me abaixar, mas Seth chegou mais para lá em sua cadeira e apontou o espaço ao seu lado. Após hesitar por um segundo, sentei ao seu lado, olhando para nossas pernas se tocando. Ele pegou o drinque – um monstro cor de pêssego com uma salada de frutas inteira dentro – e deu um gole.

– O que é isso? – perguntei.

– El Chupacabra.

– Mentira.

– Sério. Deve ter uns cinquenta tipos de vodca aqui dentro. Você vai gostar.

– Tô surpresa que você gostou.

– Se for para ser o vilão, tenho que fazer a transformação completa – ele retrucou, pedindo por gestos mais um para o garçom.

– Você não é o vilão – eu disse, suavemente.

– Ah é? É isso que tão falando lá em casa?

Olhei para o lado e observei pequenas ondas quebrando na praia.

– Não conversei com muitas pessoas. Mas sua família está preocupada.

– Conseguiu fugir da pergunta.

– Quer conversar? – voltei-me para ele.

Ele deu de ombros.

– E falar o quê? Eu a machuquei. Machuquei você. Acho que eu não nasci pra relacionamentos.

– Isso é ridículo. Não é você que devora a alma das pessoas.

– Isso depende de quão literalmente você interpreta a metáfora.

– Seth, para. Para de fazer piadas. Por que você fez o que fez?

– E precisa perguntar? – o novo coquetel chegou incrivelmente rápido, e ele me entregou. Ele tinha razão. Parecia mesmo que tinha uns cinquenta tipos de vodca. – Eu não tinha vontade. Não da maneira necessária, pelo menos. Você sabe.

Eu sabia. E me surpreendi com nossa conversa franca. Nunca tivemos algo do tipo desde... bem, desde que namorávamos. Depois foi apenas embaraço e sentimentos abafados.

– Mas por que agora?

Foi a vez dele de virar o rosto, olhando uma paisagem de cartão-postal sem realmente vê-la. A luz do sol ainda não estava alaranjada, mas já ressaltava o cobre em seus cabelos e o mel em seus olhos. Olhei para ele, aproveitando ao máximo, mal percebendo o quanto ele demorou para responder.

– Georgina – ele disse, por fim, com os olhos ainda longe –, quando eu terminei com você no Natal, foi pra não te machucar um dia. E, também, pra você não me machucar. Fui atrás da Maddie pelas razões erradas, mas não parecia tão mal, já que eu gosto dela – bem, exceto pelo fato de você ter que ver aquilo todos os dias. Não queria que fosse assim.

– Tudo bem – eu disse automaticamente, odiando a tristeza na voz dele. – Eu não...

– Shhhiii – ele disse, levantando a mão. – Eu que vou falar dessa vez, então me deixa antes que eu perca a coragem.

Sorri – apesar de não ter graça nenhuma – e assenti.

– Enfim, queria ter escolhido alguém de que eu não gostasse ou respeitasse. Teria sido tão mais simples. Mas, conforme o tempo foi passando, fui me aproximando dela, mas sem me afastar de você. Meu plano não estava funcionando. Estava apenas nos magoando, cada vez mais. Devia ter fugido faz tempo.

Mordi a língua para não fazer comentários.

– A única que não se magoava era Maddie; porque ela não sabia de nada. E depois que você e eu... bom, você sabe. Depois que ficamos juntos, me senti tão mal... tão culpado... Me odiei pelo que fiz com ela. Queria tanto que pelo menos uma pessoa saísse feliz desse rolo. Queria que ela ficasse na felicidade dos ignorantes. Queria compensar.

Eu já tinha deduzido tudo isso. Também sabia sobre a culpa... a culpa pelo pecado, que maculou sua alma. Seth não sabia disso e nunca deveria ficar sabendo.

– Mas a felicidade que eu podia oferecer não era real – ele continuou. – E eu percebi naquele dia em que estávamos no Erik, e eu... Droga, Georgina. Nem sei o que aconteceu ou o que eu vi. Só tenho certeza de duas coisas. Uma: quando Jerome pediu para ir com ele e ajudar, eu fui. Se ele dissesse que me levaria ao Inferno, eu iria.

Fechei meus olhos.

– Seth...

– E quando eu estava lá, e o Erik me mandou para aquele lugar, eu senti... bem, nunca tinha passado por algo do tipo. No começo, eu tava confuso e desorientado. Não entendia o que diziam sobre te encontrar. Era surreal. Depois, foi a coisa mais fácil do mundo. Apenas te procurei, e lá estava você. No meio daquele espaço e todo aquele caos, te encontrar foi como olhar para dentro de mim. Estávamos tão próximos... desafiava as leis da física e qualquer lei da natureza que eu conheço. Não parecia ser possível eu ficar com alguém daquela forma.

“E quando acabou, foi como eu disse: não tinha certeza do que tinha acontecido. Mas tinha certeza de que eu nunca havia tido uma ligação dessas com outra mulher. Talvez você seja a única, não haja outra... Enfim, não tinha isso com a Maddie. Ela é o máximo. Eu a amo. Mas numa situação como aquela? Eu nunca a encontraria. Eu entendi que não seria justo para ela, uma vida sem essa conexão. Você e eu... Eu não entendo o que existe entre nós, mas prefiro passar o resto da vida sozinho do que com alguém que não seja você.”

Ele ficou em silêncio, e foi um daqueles momentos constrangedores em que eu não tinha uma resposta rápida. Em vez disso, segurei sua mão e me aconcheguei a seu lado, colocando a cabeça em seu peito. Ele colocou a outra mão sobre meu ombro, seus dedos pressionando minha pele, para que eu não escapasse. Eu ouvia seu coração.

– Que fim isso vai levar? – perguntei, simplesmente.

– Eu... não sei, como não sei que fim vão ter Cady e O’Neill – ele suspirou. – Tenho a sensação de que vou ficar só. Apesar de tudo que mudou entre nós, nada mudou de fato.

– Eu... eu não sei.

Novamente, as palavras sensatas me fugiam, mas ele tinha razão. Parecia que tínhamos terminado há décadas, mas os mesmos problemas permaneciam. Eu poderia passar um verniz poético sobre a conexão universal de nossas almas, mas isso era algo que nunca poderia ser equiparado fisicamente, não se eu continuasse a fugir para não o prejudicar. E a mortalidade... sempre havia a mortalidade nos perseguindo. Seth não viveria para sempre, e isso me matava, no sentido figurado.

O que me lembrou de algo. Levantei minha cabeça e me inclinei para ele, meu cabelo nos encobrindo.

– Quando você vai voltar pra casa?

Ele se livrou do cabelo, colocando-o atrás da minha orelha. Caiu de novo. – Quem disse que eu vou voltar?

– Sem brincadeira. Você tem que voltar.

– Não tô brincando. Você acha que eu vou voltar pra lá? Não posso ver a Maddie... Não vou suportar ver o que fiz com ela.

– Você não precisa vê-la – eu disse. – Não vá na livraria. As pessoas terminam a toda hora e não precisam se mudar.

Seth balançou a cabeça.

– É, mas com a minha sorte, ainda assim nos trombaríamos. No cinema. Num restaurante. Algum lugar. Sou covarde, Georgina. Eu não quero vê-la... não depois... bem, você não viu a cara dela quando conversamos.

– Eu vi depois – eu disse. – Deve ter sido parecida. Eu não acredito que você tá falando sério em nunca mais voltar para Seattle só para evitar encontrar com ela.

– Ela não é a única que eu quero evitar – novamente, ele tentou arrumar meu cabelo rebelde. Quando caiu de novo, ele simplesmente deslizou a mão por meu braço, traçando a curva com a ponta dos dedos. – Eu acho que não dou conta nem de te ver. Mesmo ficar com você agora... é a melhor e a pior coisa do mundo ao mesmo tempo. Ver você a toda hora iria potencializar o fato de que não podemos ficar juntos; e com certeza nos veríamos a toda hora. O destino não nos deixa afastados por muito tempo.

As palavras de Seth eram tão estranhamente contraditórias. De um lado, eram amorosas e românticas sobre como a vida era agonizante sem minha presença. De outro, uma atitude derrotista, um lado que ele nunca tinha mostrado. Em meio a isso tudo, Seth estava amargurado, e tive a sensação de poder ver sua alma, como Hugh o faz, e a mancha do pecado parecia mais escura. Tentei mais uma vez.

– Não pense em mim. Você tem que voltar para sua família. Eles precisam de você. A Andrea tá doente.

– Todo mundo fica doente. Esse argumento não é muito convincente.

– Não... você não tá entendendo. Eles não te contaram. Ela não tá com gripe... ela tem câncer.

Isso provocou uma reação. Sua expressão endureceu.

– Não tem, não.

– Tem, sim. A Brandy me contou.

– Ela deve ter se confundido – ele disse, com determinação. – Eles teriam me falado.

– Acho que ela não confundiria “gripe” com “câncer de ovário”. E você acha que ela inventaria uma coisa do tipo?

Ele pensou um pouco.

– Não, isso não. Mas por que eles não falaram nada?

– Eu acho que não contaram pra ninguém antes de saber mais detalhes. Não tá percebendo? – aproximei-me, tentando maximizar minha súplica. – Eles precisam de você. Você precisa voltar pra casa por causa deles.

Por um instante, achei que o tinha convencido. Então, ele balançou a cabeça lentamente.

– Eles vão ficar bem. E você mesmo disse que eles estão esperando mais detalhes. Pode não ser tão grave.

– Seth! É câncer. Vai ser no mínimo grave. Como você pode abandoná-los assim?

– Droga! – ele disse, tão bravo como nunca, o que mesmo assim é bem tranquilo. – Não preciso de um anjo no meu ombro agora. Me deixa... me deixa ser egoísta uma vez na vida. Só quero ficar longe de tudo. Só quero me esconder dos meus problemas, por uma vez na vida não ter que ser o responsável. Se você só vai atormentar sobre o que eu devo ou não devo fazer, então vai... vai embora. Me deixa escondido aqui. Livre. Me deixa escrever a nova série e esquecer todo o resto.

Era como um espelho do que eu tinha feito há tanto tempo. Porém, em vez de esquecer meus problemas, fiz todos me esquecerem. Às vezes penso que devia ter pedido para esquecer também. Portanto, entendia seu comportamento. Eu me identificava com o desejo de fazer todas as coisas ruins sumirem. Eu já quis isso também. Fiz isso acontecer. Sentindo minha hesitação, ele segurou meu rosto com as duas mãos e me puxou para um beijinho. Pulei para trás, num susto.

– O que foi isso? – perguntei.

– Eu posso estar querendo te evitar, mas, já que estou aqui com você, melhor aproveitar o momento – havia um brilho safado em seus olhos, mas eu não pude deixar de sorrir, apesar de toda minha apreensão.

– Você é um hipócrita – eu disse.

– Um oportunista – ele retrucou. – O que você tá fazendo aqui, Georgina? O que você quer?

Abaixei meus olhos. Eu não sabia. Eu não sabia por que estava lá. Eu fui para checar se ele estava bem... e depois? Eu ia e voltava. Eu o amava. Eu precisava esquecê-lo. Idas e vindas.

– Não sei – admiti. – Essa é a minha melhor resposta.

E, sem mais deliberações, beijei-o novamente, por mais tempo, surpresa de como era fácil retornar aos nossos antigos beijos – aqueles que chegavam ao limite de não sugar sua energia. Ele parecia estar pronto para ir além, então eu tive que o deter e me recostar nele novamente. Assistimos ao sol se por, pintando o céu de cores vivas. Ele não protestou, parecia satisfeito só de me ter por perto.

Jantamos em um dos restaurantes do resort. Não ter malas não é um problema para quem pode fazer mudança corporal. Coloquei um vestido sexy de noite, decote em V, em um tom de violeta que me lembrava nosso primeiro encontro. Conforme conversávamos e bebíamos, voltamos à nossa antiga maneira de falar, confortável e divertida. Sem a Maddie, era exatamente como ele dissera: tanto mudara, mas nada mudou. A ligação, a conexão ardia entre nós, bem como a tensão sexual. Nós nos estudávamos com afinco entre a conversação casual. Ele estava mais vivo do que nunca, mas, se isso era devido à bebida ou à liberdade, eu não soube dizer.

Apesar de meu coração se encontrar em paz por estar com ele novamente, eu ainda era arrasada por um milhão de dúvidas. Ele disse para eu deixá-las de lado, mas era difícil. Maddie. O pessimismo de Seth. Seu desejo de fugir. Sua família. Meu próprio egoísmo.

Porém, quando terminamos de jantar, todas as dúvidas tinham sumido. Estávamos rapidamente em seu quarto – uma suíte grande e espaçosa com uma vista para a, agora escura, água –, devorando-nos. O desejo acumulado explodiu. Suas mãos abriram o zíper do meu vestido, arrancando-o do meu corpo. Caímos na cama, e eu abaixei seus shorts, sem razão ou responsabilidade. Suas mãos percorreram meu corpo até minhas coxas, enquanto sua boca movia-se do meu pescoço para entre os seios e depois para eles, enrijecendo meus mamilos.

Eu estava terminando de tirar sua roupa quando senti a energia entrando em mim. Por alguns instantes, ignorei suas implicações. Eu apenas o desejava. Queria sentir o que sentira há tantos meses, quando seu corpo estivera no meu e eu tive a sensação de perfeita união. A energia vital é um afrodisíaco, aumentando o desejo do meu corpo físico.

Talvez fosse uma reação instintiva oriunda dos tempos de namoro, mas, mais uma vez, eu que interrompi tudo. Distanciamo-nos, apesar de ainda enroscados.

– Ok – eu disse, o coração batendo rápido no peito. – Estamos quase passando dos limites.

Havia luxúria nos olhos de Seth. Luxúria e amor e aquele mesmo desejo incandescente para irmos até o fim.

– Passamos um pouco já, né? – ele disse, sem fôlego. – Eu senti.

– Sim – admiti. – Não muito – não muito é muito.

Ele franziu a testa, a mão ainda acariciando minha perna. Tão, tão perigoso. Um pouco mais e teríamos tropeçado no penhasco novamente.

– Eu já tinha sentido antes – ele disse. – Quando você começou a me pegar um pouco. Uma sensação vaga, mas havia algo. De algum modo... de algum modo não foi tão ruim dessa vez.

Ele tinha razão. Isso acontecia devido àquele leve obscurecimento de sua alma. Claro, ele não era tão mal quanto algumas pessoas predestinadas ao Inferno, mas a mínima nódoa faz diferença. Eu sentia também. Antes, ele era antigo e puro, todo prata brilhante e pura vida. A maior parte ainda estava lá... exceto por aquela sombra, uma sombra que eu suspeitava estar crescendo desde que ele decidira abandonar as pessoas em sua vida. E quanto mais escura uma alma, menos eu conseguia tomar dela.

– Tem razão – eu não quis entrar em detalhes. – Mas ainda assim seria ruim.

– Tão ruim que não valeria a pena uma única vez?

O velho argumento.

– Você não queria desistir de mim?

– Desistirei se precisar. Eu estava pronto pra isso. Mas isso foi antes de você vir aqui... Você ainda não me disse o porquê, o que você quer. Eu faria de novo. Ficaríamos juntos novamente, sem limites físicos – ele cortou meu protesto. – Eu sei, eu conheço os riscos. E eu sei – como você deve saber – que o que há entre nós é mais do que sexual. Mas isso ainda foi um problema, não importa o quanto soubéssemos que não deveria ser. Não quero nada daquilo de novo. Eu vou me arriscar. A escolha é minha.

– Eu... eu não sei. Eu não...

– Bom, já é melhor que “não posso” – ele riu. Aproximou-se, seus lábios quase roçando os meus. – E se você não quiser, assim será. Mas talvez... talvez apenas dessa vez... apenas dessa vez você possa ceder.

Fechei os olhos conforme os lábios deles pressionavam os meus mais uma vez, com mais força dessa vez, e nossos corpos se juntaram novamente. Ele tinha razão. Eu quase conseguia ceder. Tinha passado por tanta coisa recentemente, tantas reviravoltas espirituais e emocionais. Naquele instante, estar com ele parecia a coisa mais natural do mundo... mas meus alarmes ainda estavam disparados. Se eu diminuísse sua vida com uma alma escura, ele estaria um pouco mais próximo do Inferno.

– Não – eu disse, por fim. Estava cada vez mais difícil parar. – Ainda não posso. Ainda não. Não estou dizendo que vai ser assim pra sempre... Eu tô só... tô tão confusa. Me desculpe.

Ele parecia desapontado, mas, para meu alívio, não insistiu no assunto. Eu poderia não ser capaz de resistir se ele insistisse.

– Mas você vai ficar? Vai passar a noite comigo pelo menos?

Assenti.

– Posso ficar por três dias.

– Três dias. Tá ótimo. Eu consigo lidar com três dias. Mais três dias para pensar. Se pudermos ficar juntos... então ficaremos. Se não pudermos, então eu ficarei só até outra Georgina aparecer – ele disse num tom amargo, que indicava dúvidas. – Por enquanto, isso é o suficiente.

Deitamos nos braços um do outro, nus, conseguindo milagrosamente evitar que a temperatura aumentasse. Claro, tínhamos ficado bons nisso quando namorávamos, então voltamos a agir assim naturalmente, apesar de relutantes. Ficamos acordados por um bom tempo, como se não nos víssemos há anos, com uma vida inteira para contar. O que não estava muito distante da verdade.

Enfim, ele dormiu, mas eu estava inquieta. Observei sua respiração tranquila no escuro, seu sono pesado graças à bebida. Sua pele estava quente contra a minha, e me senti segura como há muito não sentia.

Três dias. Teríamos esses três dias, e, por esse pouco tempo, eu poderia fingir que ele era meu, como antes. Eu tinha a escolha de tornar essa situação permanente. Disse-lhe que pensaria a respeito. O único problema é que as coisas não eram como antes. O sonho repassou em minha mente, o sonho que pode ter sido mentira. Seth era o homem do sonho, o que poderia ter sido meu futuro se os oneroi estivessem falando a verdade. Mas era esse Seth, que dormia em meus braços, o homem do sonho? O que no sonho era infinitamente bondoso e gentil – pelo qual eu me apaixonara. O verdadeiro Seth tinha mudado – um pouco... mas a mudança ocorrera.

Eu não podia julgá-lo, já que eu era em parte responsável por essa mudança. Porém, uma vez mais, meu lado egoísta pensou que ele deveria ter resistido. Eu me apaixonei por Seth devido a seu caráter, algo que sempre me atraíra nos homens. Irônico e provavelmente hipócrita vindo de uma serva do Inferno. Eu ainda amava Seth, ainda sentia a conexão, mas as coisas estavam estranhas. Essa amargura, essa necessidade de fugir das dificuldades para um refúgio egoísta e confortável não era o que eu esperava dele. Eu esperava mais.

Eu não queria perdê-lo. Queria esses dias com ele. Queria o para sempre com ele, mas, se eu ficasse, promoveria essa atitude que eu estava odiando. Eu encorajaria a escuridão nele. Não queria isso. Por mais que eu o amasse e quisesse ficar mais tempo com ele, percebi que ficar com esse Seth que me decepcionara tanto era uma ideia ruim. Seth dissera que preferiria ficar só do que com a mulher errada. Eu preferiria ficar afastada dele do que o ver assim. Queria que minhas memórias dele permanecessem puras.

E assim, com o coração partido, eu me desvencilhei dele. Em seu sono profundo, ele nem se mexera. Mais uma vez, não deixei de perceber a minha hipocrisia. Eu tinha tentado tantas vezes convencê-lo a beber, e agora eu o menosprezava por ter usado a bebida para amortecer a dor. Que ridículo, pensei, sua alma obscurecida facilitava nosso reencontro... porém, meu coração não permitia.

Troquei minha roupa para um jeans e uma camiseta comum e procurei os papéis de carta do hotel. Em um, rabisquei:

Seth,

Desculpe, mas preciso ir embora. Eu disse que levaria tudo em consideração, mas eu estava enganada. Eu te amo demais para ficar.

Pouco misteriosa, né? Uma forma mesquinha de expressar todos aqueles sentimentos, mas, de alguma forma, eu suspeitei que ele entenderia. Ele me conhece. Deixei o bilhete sobre o criado-mudo e observei Seth por alguns instantes, admirando o homem que eu amava e sempre amaria. Finalmente, com os olhos úmidos, virei para ir embora e pegar um táxi para o aeroporto.


Capítulo 23


– Por onde você andou? – perguntou Roman.

Eu só consegui pousar em Seattle no dia seguinte. Aparentemente, pegar voos do México para o norte dos Estados Unidos demora um pouco mais do que teletransporte imortal, principalmente sem reservas antecipadas.

– Para o fim do mundo e de volta pra cá – eu disse, me jogando no sofá. As gatas vieram me ver, coisa que me enche de orgulho, já que geralmente elas só dão bola para o Roman.

– Então você foi pra Dakota do Sul?

Fiz uma careta e cobri os olhos com um braço. Minha viagem para localizar Seth tinha durado, no total, apenas vinte e quatro horas, mas, na verdade, tive que enfrentar coisas demais em muito pouco tempo.

– Encontrei o Seth.

– Ah – o entusiasmo de Roman diminuiu consideravelmente. – Acho que então não valia mesmo a pena contatar as autoridades federais por causa do sumiço dele, como a Maddie queria.

– Bom, eu precisei – literalmente – pedir um favor demoníaco para isso.

– E? Correram para o pôr do sol juntos agora que ele tá livre?

A menção ao pôr do sol me fez recuar, lembrando como Seth e eu nos abraçamos na praia.

– Não tanto. Eu... o abandonei.

– E isso quer dizer o quê?

Tentei explicar tudo o que tinha rolado com o Seth, mas não era fácil. Era demais para o meu próprio cérebro digerir, imagina o de outra pessoa. Quando terminei, estava mais exausta do que antes.

– Então é isso? Vocês nunca mais vão se ver? – a voz de Roman era cética.

– Ele disse que não vai voltar, e eu não fiquei. Então, é isso.

– Tô custando a acreditar. E ele vai viver no hotel pra sempre? Nem ele tem tanto dinheiro.

– Não, ele mencionou durante o jantar que iria se mudar para outro lugar. Mas não tinha decidido para onde.

O silêncio reinou por um minuto. Os únicos sons eram do trânsito lá fora e de Aubrey ronronando no meu ouvido. Por fim, Roman perguntou:

– Você tá bem?

Olhei-o, surpresa.

– Como assim?

– Exatamente o que eu disse. Não deve tá sendo fácil pra você. Tipo, você nem teve tempo pra se esquecer dos oneroi.

Não sei por que suas palavras me pegaram de surpresa. Acho que porque, mesmo entre todos os infortúnios que aconteciam em minha vida, quase ninguém parava para perguntar se eu estava bem. Talvez tivessem desistido de perguntar, já que coisas deprimentes aconteciam em minha vida a toda hora. Que estranho, pensei, Roman mudou de sociopata para caridoso, enquanto Seth tomava um caminho sombrio. Claro, eu não tinha provas de que Roman não era um sociopata caridoso. Mesmo assim, sorri em gratidão.

– Estou bem... ou vou ficar uma hora ou outra. Obrigada.

Algo em meu sorriso deve ter lhe dado esperança ou apenas o inspirou, pois seu próprio sorriso ficou radiante. Eu me esquecera de como seu sorriso era bonito, como iluminava seu rosto. Deixamos os assuntos perigosos de lado, mas fizemos companhia um ao outro a noite toda. Eu não estava nada bem, mas era bom ser comum por um tempo, livre de drama. Imaginei se minha vida seria comum a partir de agora – e que papel Roman teria nela.

* * *

No entanto, nos dias seguintes, ajustar-me a um mundo sem Seth não foi fácil. Mesmo quando ele estava com Maddie, mesmo quando a visão dele me causava dor, ele ainda estava lá. E eu sabia disso. Agora, saber que ele tinha ido embora e não voltaria mais deixou meu coração estranhamente vazio, mesmo quando o resto da minha vida se estabilizava.

Voltei ao trabalho, o que foi bom para a loja, já que a Maddie tinha tirado uma muito necessária folga. Eu recebia informações dela pelo Doug e me oferecia para visitá-la, se necessário, apesar de saber que não gostaria de ouvi-la enlutada por Seth. Claro, como eu estava fazendo a mesma coisa, talvez eu não devesse ter sido tão rápida em rejeitar comiseração.

– Ela só quer ficar sozinha por enquanto – disse Doug, encostado no batente da porta. Ele não fez piadas, nem nenhuma de suas maluquices costumeiras. – Ainda tá triste, mas ela é uma guerreira. Te aviso quando ela estiver pronta pra ver alguém.

– Ok – mandei boas vibrações. – Me mantenha informada.

Era quase hora do fechamento, e eu fui até a seção principal da loja ajudar com umas tarefas da noite. Alguns dos membros da equipe já estavam indo embora. Um deles era Gabrielle. E ela estava indo embora acompanhada por Cody.

– O que tá rolando? – cochichei para ele enquanto ela pegava a bolsa. Ele nem estava de preto.

– Saímos algumas vezes desde... bem, você tava ocupada – ele soava culpado pela felicidade.

– Que maravilha – eu disse. O amor ainda sobrevivia neste mundo. – O que a fez mudar de ideia? O show?

– Um pouco. Acho que ele foi o primeiro passo. Ela adora que eu só saio de noite. E que eu posso mostrar vampiros de verdade.

– Quê? Você conseguiu convencê-la de que Peter é um vampiro? – para um humano normal, isso seria mais impossível do que Cody ser um vampiro.

– Não, na verdade não – sua expressão apaixonada endureceu um pouco. – Mas o Milton... sabe, aquele vampiro de Eugene?... ele tá na cidade essa semana. Disse que veio visitar uns amigos – vampiros são muito territorialistas com suas fronteiras de caça, mesmo os do tipo de Peter e Cody, que raramente caçam e que, quando o fazem, não matam suas vítimas. – Ele não aprontou nada, mas não acredito nessa história de férias. É tão ridícula quanto a desculpa de Simone.

– Ela vazou, né? – esse era o rumor, e como não houve confusão por aí com duas Georginas, tinham que acreditar. Ela foi embora sem eu descobrir sua motivação.

– Vazou, até onde eu sei. Enfim. O Milton. Ele parece mesmo um vampiro. Você já o viu? Um Nosferatu moderno. Levei a Gabrielle junto quando fui espionar em uma boate, e ela ficou toda animada. Ela acha que eu tenho um dom pra achar vampiros; pelo menos os de mentirinha.

– Hum – eu disse –, isso é bizarro, engraçado e fofo ao mesmo tempo. Talvez um pouco assustador também. – Ele riu, mostrando as presas. – O que ela acha dos dentes? Não dá pra esconder quando se está bem íntimo.

– Disse que tinha implantado – ele parecia satisfeito. – Ela acha sexy – o novo romance de Cody me deixou de bom humor.

Finalmente fui embora. Saí na noite fria, surpresa por nem me importar. Algo a respeito daquele ar limpo e gelado me renovou, e, pela primeira vez em muito tempo, me arrependi de ter mudado de Queen Anne. Seria bom andar para casa nesse tempo de começo de inverno, em vez de entrar no metal e no plástico do carro.

Contudo, não havia nada a ser feito. Dei a partida e chequei meu celular antes de sair do estacionamento. Em geral, deixo no silencioso durante o expediente, e havia três chamadas perdidas. Havia uma mensagem de voz para cada. A primeira era de Erik, algumas horas atrás. Ele falou com seu jeito cavalheiresco de sempre, mas senti certa urgência por trás disso. Ele disse que tinha pensado em algumas hipóteses sobre meu contrato e queria falar comigo logo.

A mensagem seguinte era de Roman, de uma hora atrás. Ele conhece perfeitamente meu cronograma de trabalho, então estava ligando para saber que tipo de comida ele deveria pedir. Ele disse que, se eu ligasse quando saísse, provavelmente a comida já teria chegado quando eu entrasse em casa. Senti meus lábios virarem em um sorriso, que desabou assim que ouvi a última mensagem. Era de cinco minutos atrás. Erik novamente.

– Georgina...

Só isso. Apenas meu nome, tenso e estrangulado. Depois disso, ruído, como se o telefone tivesse sido derrubado, e a mensagem foi cortada. Olhei para meu celular, como se fosse um objeto desconhecido.

Nunca, nunca tinha ouvido Erik me chamar pelo primeiro nome.

Meu carro já estava direcionado para a loja de Erik quando liguei para ele. Já era muito tarde para a loja estar aberta, mas era o número de lá que ficara armazenado no celular. Sem resposta. Tentei o número de sua casa, para garantir, e não obtive resposta também. Meu medo aumentou, juntamente com minha velocidade. O trânsito livre ajudava, mas eu tinha a sensação de que sua loja estava a centenas de quilômetros.

Cheguei em quinze minutos, um recorde. As luzes da loja estavam acesas, apesar de todo o resto do centro comercial e o estacionamento estarem no escuro. Parei bem em frente, numa vaga para deficientes, e saí correndo do carro, estacando ao ver o que me esperava.

O vidro da porta e da vitrine estavam quebrados; cacos brilhantes cobriam a calçada. Mesmo se a porta estivesse trancada, teria conseguido enfiar minha mão e abri-la por dentro. Empurrei-a, entrando apenas para encontrar mais destruição. Fontes ainda funcionavam, a música ainda tocava, mas o resto estava em ruínas. Prateleiras de livros no chão. Estátuas quebradas. Caixas de joias trincadas – e vazias.

– Erik? – chamei, correndo pela loja. Não houve resposta. Passei pela caixa registradora com a gaveta aberta, suspeitei que estaria vazia.

Eu seguia para o fundo da loja quando ouvi um barulho baixo. Virando-me, revistei o lugar com os olhos e enxerguei uma mão, aparecendo atrás do balcão do caixa. Lá, encontrei Erik jogado no chão, pálido apesar de sua pele parda. A outra mão pousava sobre sua barriga, que era uma piscina de sangue escuro. Seus olhos estavam vidrados, e, por um instante, achei que estivesse morto. Então, suas pálpebras piscaram, e os olhos se focalizaram em mim.

– Senhorita Kincaid...

Liguei para o socorro enquanto tentava simultaneamente arrancar meu casaco. Gritei para que mandassem uma ambulância e pressionei o casaco sobre seu estômago. Foi inútil. Uma mancha vermelha se espalhou rapidamente pelo tecido.

– Não diga nada – implorei quando vi seus lábios moverem. Estavam azuis. – Estão vindo. Vai ficar tudo bem.

Queria fazer centenas de perguntas: o que acontecera?, quem fizera aquilo? Nada importava. Só importava salvá-lo, e, além disso, estava claro: um assalto, ele devia ter reagido. Dois buracos de bala na parede revelaram o que acontecera. O terceiro tiro o atingira.

– Senhorita Kincaid... – sua voz estava fraca, apenas um gemido.

– Shhii. Conversaremos mais tarde, depois que a ambulância chegar. Guarde suas forças.

– Não haverá mais tarde – ele suspirou. Juro, ele tentou sorrir. – Não... para... mim...

– Eles vão chegar em, tipo, cinco minutos – eu rebati.

– Não importa. Muito fraco. Muito sangue.

– Não – eu disse, desesperada. – Não. Mesmo com minhas súplicas e minha histeria crescente, eu sabia que ele estava certo. Ele tinha perdido muito sangue. Ele só estava vivo pois esse é um ferimento que mata lentamente. Mesmo se os socorristas chegassem naquele instante, não o levariam a tempo de salvá-lo. Na sua idade e com a enfermidade recente, ele não tinha chance. No entanto, neguei.

– Você vai ficar bem. Escute...

– Escute você – não havia força no comando, mas eu calei a boca. Uma de suas mãos me apertou. – Não é... o seu contrato.

Eu estava confusa, minha mente ainda presa na condição em que ele estava e na loja. Depois, entendi o contexto.

– Esquece o contrato. A gente pensa nisso depois.

Ele me apertou com mais força.

– Deve haver outro. Dois contratos.

– Deve... o quê? Não. Não funciona assim. Disso eu tenho certeza. Um contrato por alma. Eu assinei um. Agora, por favor. Não fale mais nada.

– Encontre-o – ele tossiu. Havia sangue em seus lábios. – Encontre-o...

– Tá bom, tá bom – eu teria concordado com qualquer coisa, embora o que ele dizia não fizesse sentido. Minhas palavras devem tê-lo acalmado, pois ele relaxou um pouco. Porém, não havia dúvida de que ele experimentava uma dor agonizante. Olhei para a frente da loja, me forçando a ouvir sirenes. – Eles estão chegando – eu disse.

– Tarde... demais. Você... pode fazer a dor cessar.

Era tão difícil escutá-lo que tive de me aproximar. Mesmo assim, não compreendi totalmente o que ele queria dizer.

– Tô tentando. Mudei o meu casaco de lugar, o que se mostrou totalmente inútil.

– Um beijo... um beijo apenas...

– Eu... – meus olhos se arregalaram. – Não. Não. Isso vai matar você... – ao dizer as palavras, me dei conta de como eram idiotas. O tiro iria matá-lo. Ele iria morrer. Um beijo. Ele queria um beijo para acelerar o processo, como eu fizera com Luc. Nunca mais tinha feito aquilo, nem quis. Pode até ter sido piedade, mas me fez sentir como uma assassina. E, no entanto, como eu soubera da primeira vez, iria aliviar o sofrimento.

Balancei a cabeça.

– Não.

– Nyx... me mostrou. Me mostrou minha morte: você.

Ele tossiu novamente e eu não consegui falar mais nada. Ele ainda se agarrava ao fio da vida, com dor em seu rosto e olhos suplicantes.

Nyx? Nyx tinha lhe mostrado a morte dele...

Nas profundezas de minha mente, lembrei-me de tê-lo encontrado logo depois de uma visita em que Nyx lhe mostra uma visão. Inicialmente, ele se afastara de mim e depois se esqueceu, rindo, como se fossem resquícios de um pesadelo. Mas eu entendia agora. Ele tinha visto a própria morte – me viu como a causa dela. Ele tivera medo de mim. Meu homem no sonho fora mentira, mas todas as outras visões que ela mostrava eram verdade. Meu papel na morte de Erik era destino... mas não de forma maligna. Era assim que os sonhos dela funcionavam. Nem sempre como esperávamos.

E então, pela segunda vez, tornei-me o anjo da piedade... o anjo da morte... tanto faz. Abaixei-me e beijei-o, ignorando o sangue em sua boca. Igual a Luc, havia apenas um sopro de vida. Mais cinco minutos e Erik teria ido sem minha ajuda. Aquele tiquinho de vida era tão puro e bom quanto eu imaginara. Erik seria recompensado na vida após a morte.

Quando levantei minha cabeça e observei a paz se instalar em seu semblante, sentimentos passearam por mim, como às vezes acontece quando eu recebo energia. Havia afeição por mim. Não era amor romântico. Era mais um amor paterno. Amizade. Carinho. E, debaixo de tudo, um aviso, um aviso para mim, o qual ele nunca pôde expressar. Estava tão distraída nessas últimas explosões vitais que percebi apenas vagamente as luzes e as sirenes chegando.

Alguém me levantou, e vi pessoas se movimentando em volta dele – tarde demais. Observei a comoção que se seguiu: socorristas, policiais. Vi tudo, porém sem realmente ver, respondi interrogatórios sem saber o que estava falando. Um policial de olhos gentis anotava tudo e falava com cuidado, com frequência repetindo lentamente. Não sei quanto tempo levou. Talvez uma hora, talvez mais. Só me lembro de reafirmar inúmeras vezes que eu estava bem, que iria para casa, que responderia qualquer questão que surgisse.

Mas quando peguei o carro, ainda em choque, mas entendendo o que acontecera, não fui para o meu bairro. Fui para o Pioneer Square. Estacionei, por sorte, em uma vaga na rua e atravessei a multidão em festa. Algumas pessoas me olharam com curiosidade quando entrei no Cellar, olhares para os quais não dei bola conforme me dirigia para a mesa de Jerome. Ele bebia sozinho dessa vez, seus olhos escuros me observavam com atenção enquanto eu me aproximava.

– Georgie – ele disse, quando parei em sua frente –, qual a vantagem de ter modificação corporal se vai andar por aí com sangue na roupa?

Olhei para baixo, só então percebendo as manchas na minha camiseta. Olhei novamente para ele, ignorando a sugestão.

– Erik morreu – eu disse, seca.

A face de Jerome não demonstrou reação.

– Como?

– Um assalto. Alguém atirou nele.

Jerome deu um gole no vinho bourbon e permaneceu em silêncio.

– E aí? Não vai falar nada.

Ele riu com desdém.

– O que você quer que eu fale? É pra eu chorar? Me impor o cilício e as cinzas? Humanos morrem a toda a hora, Georgie. Você é que fica de luto; eu não. Não ligo para nenhum deles. Você sabe disso. Muito menos para ele.

Eu sabia. Quando Duane – um dos antigos serviçais de Jerome – fora morto, a única reação do demônio foi aborrecimento.

– O que é estranho... – pausei, tentando colocar em palavras o que estava fervilhando em minha mente todo esse tempo. – O que é estranho é que alguém tentou assaltar uma loja hippie. Não é um bom lugar para roubar.

– Se tem dinheiro, é um bom lugar para roubar. Se é num centro comercial deserto, com apenas um velho por lá, é ainda melhor. As coisas de valor sumiram?

– Sim – admiti.

– Então por que você tá me fazendo perder tempo?

– O vidro.

– O vidro?

– O vidro foi quebrado por dentro – eu disse. – Os cacos estavam na calçada. Quem fez isso, não quebrou o vidro para entrar. Só fingiu que fez isso.

Jerome suspirou irritado.

– Depois de tudo que já presenciou, ainda questiona as ações humanas?

– Só é meio estranho que alguém como o Erik... alguém que lida com o mundo sobrenatural e que... – eu hesitei, quase falei que ele estava questionando meu contrato. Em vez disso, falei: Que acabou de se envolver com o maior rolo imortal seria vítima assim, por coincidência.

– Coincidências existem.

– Eu não acredito mais em coincidências.

– Então, reveja suas palavras. Seu “maior rolo imortal” é a resposta. Eles podem não viver no nosso mundo, mas não acha que criaturas dos sonhos tenham conexões aqui?

Franzi o semblante.

– O que você tá querendo dizer?

– Que eu pensei ter sido muito conveniente para o chefão dos oneroi simplesmente vazar. Ele sabia que não podia fazer nada contra mim ou outro imortal. Mas contra um humano? Um que estivesse ativamente envolvido nos planos contra ele? – Jerome deu de ombros. – É vingança. Ele conseguiria arranjar isso. Não podemos provar; e não podemos fazer nada. Entenda. Não vou vingar seu amigo, se é o que está querendo.

Não achei que ele o faria. Na verdade, nem sei o que esperava dele. Por que eu fora até lá? Porque eu estava em choque. Porque o que aconteceu com o Erik não fazia sentido. Porque o Jerome sempre tem respostas para mim.

Dessa vez, ele teve respostas novamente... mas não sei se eu acreditava nelas. Sempre o velho ditado: Como você sabe que um demônio está mentindo? Seus lábios estão se movendo.

– Ok – eu disse, com um leve aceno da cabeça. Seus olhos se estreitaram. Acho que se surpreendeu de eu ter desistido tão rapidamente. Olhando para baixo, modifiquei-me para eliminar o sangue. – Vou para casa e... não sei. Não sei o que vou fazer.

Minha confusão não era falsa, e eu esperava que seria o suficiente para eliminar qualquer suspeita. E, sério, do que ele podia suspeitar? Nem eu sabia. Dois contratos.

Jerome não tentou me impedir. Dirigi para casa sem nem perceber até que cheguei ao estacionamento subterrâneo do meu prédio. Assim que abri a porta do apartamento, senti um leve aroma de comida chinesa. Era delicioso e, ao mesmo tempo, tinha aquele cheirinho de comida velha. Roman estava esparramado no sofá, parecia olhar para o nada. A TV estava desligada. Ninguém fazia carinho nos gatos.

– Desculpe não ter ligado – eu disse. – Você não vai acreditar no que...

– Tenho uma coisa pra você – ele disse. – Duas coisas, na verdade.

A modulação esquisita em sua voz era a única coisa que podia me impedir de extravasar tudo o que tinha acontecido com Erik. Até hoje, acho que os eventos na loja foram tão surreais que nem parecem ter acontecido comigo. Com certeza foi algo que vi em um filme. Sentei na poltrona perto de Roman, uma sensação desconfortável no estômago aumentava enquanto eu imaginava o que mais poderia ter acontecido.

– O que foi?

Ele me entregou um pedaço de papel.

– Estava embaixo da porta quando desci pra pegar a comida. Não era minha intenção ler, mas... bem, não tinha envelope nem nada.

Peguei sem dizer nada, reconhecendo imediatamente a letra. Do Seth. Para muitas pessoas seria indecifrável, mas eu tinha prática em decodificar sua caligrafia desleixada.


Georgina,

Quando acordei sem você em Mazatlán, fiquei com muita raiva. Me senti traído e abandonado e imaginei se você esteve jogando todo esse tempo. Então, quanto mais pensava sobre suas palavras, mais a vida entrava em foco. Ainda não quero lidar com a bagunça em Seattle. Não quero enfrentar a Maddie. Não quero me enfrentar. Mas, percebi, quero que você sinta orgulho de mim.

Talvez “orgulho” não seja a palavra correta. Respeitar? Gostar? Amar? Não tenho certeza, mas os eventos no Erik me deixaram uma marca. Na verdade, deitar em seus braços me deixou uma marca. Eu estava dizendo a verdade: prefiro ficar só do que sem você. Mesmo distantes, não suporto a ideia de você desapontada comigo. Para recuperar sua estima, eu arriscaria qualquer coisa. Até voltaria para enfrentar meus demônios.

E eu voltei, apesar do quanto queria fugir. Contudo, desaparecer não vai apagar as coisas ruins ao meu redor. Talvez você seja uma mensageira de alguma forma, uma agente do destino. Se não fosse você, eu provavelmente não teria voltado, mas, no final, eu precisava. Terry e Andrea receberam os resultados ontem. Ela tem apenas mais alguns meses de vida, algo que eu poderia jurar ser piada do médico. Há poucas semanas, ela parecia perfeitamente bem. Não quero enfrentar isso, não mais do que quero enfrentar todo o resto. Mas eles precisam de mim mais do que nunca, e eu os amo. Amo tanto que minha vida e meus desejos não importam. Assim que terminar esse livro, vou colocar tudo mais – até a nova série – em espera. Nada disso importa. Só eles importam. Eles precisarão de mim nos próximos meses. Eles precisarão ainda mais nos meses posteriores.

Não sei quando nos veremos novamente – mas perceba que eu digo “quando” e não “se”. Como mencionei no México, já estou esperto para saber que o universo não vai nos deixar separados. Apesar disso, quero que seja feliz aonde quer que a vida te leve – e espero que um dia eu possa ser digno de seu respeito.

Também quero que saiba que, na minha volta, não cobrarei nada de você. Só queria que entendesse o que fiz... e como você me afetou.

Seth


Olhei para Roman, que ficara me observando enquanto eu lia. Não sei o que me assombrou mais: o retorno de Seth – por minha causa – ou as terríveis notícias de Andrea. Ambas eram monumentais a seu modo. E uma era uma tragédia de proporções épicas.

Engoli em seco, com medo de que, se processasse tudo, começasse a chorar.

– Não sei o quanto mais consigo enfrentar hoje – eu disse, numa voz fraca.

A face de Roman era uma mistura de simpatia e cinismo.

– Bom, tem mais uma coisa.

Ele me entregou uma revista. Era uma dessas toscas de fofocas sobre celebridades, uma que rendia muitas piadas na livraria. Não podia imaginar por que ele estava me entregando uma coisa tão besta, em face de todos os eventos ocorridos. Uma página estava marcada com um Post-it, e fui direto a ela.

Era uma página dupla repleta de imagens de celebridades, dessas tiradas por paparazzi: atores passeando com os filhos, cantores em clubes noturnos de Las Vegas. Olhei rapidamente as duas páginas, tentando imaginar por que picas eu me interessaria por aquilo naquele momento.

Então, eu achei. Era uma fotografia pequena, enfiada entre duas muito maiores e mais interessantes de atores malvestidos. A legenda dizia: Autor best-seller Seth Mortensen aproveita a beleza natural de Mazatlán.

E mostrava Seth e eu nos beijando na praia.


Capítulo 24


– Isso... não é possível – eu disse.

– Sei lá – disse Roman, seco. – Parece bem possível pra mim.

– Mas Seth é um escritor. Esse tipo de revista não se importa com esse tipo de gente.

– Você já se acostumou tanto com ele que nem percebe quanto ele é famoso. E, olha, se for uma semana fraca, eles aceitam qualquer coisa. Sexo vende, e isso aí tá bem quente.

Olhei para a foto de novo. Era bem quente. Fomos fotografados quando eu estava deitada por cima de Seth, e a canga tinha escorregado o suficiente para mostrar bastante pele. Fiquei nauseada.

– Talvez ninguém veja. – assim que as palavras saíram da minha boca, eu percebi que estava sendo ingênua. Como já disse, a revista era uma das favoritas da loja, graças às suas reportagens ridiculamente absurdas. Alguém, em algum lugar, veria essa foto. E, apesar de as matérias serem inventadas, uma foto como essa – mostrando nossos rostos com clareza – não mente.

Deixei a revista cair no chão.

– Eu não consigo... não consigo lidar com isso. Não depois de tudo.

Roman fechou o semblante, preenchido com uma preocupação genuína. Eu não acho que ele ficara feliz com a fotografia ou com a nova decisão de Seth, mas devia estar claro que algo além daquelas pequenas tragédias estavam me perturbando.

– Georgina, o que mais...

Levantei a mão.

– Agora não. Amanhã. A gente conversa amanhã. Muita coisa... muita coisa aconteceu hoje – os olhos sem vida de Erik pipocaram em minha mente. – O que faz isso perder a importância.

Ele hesitou, depois assentiu.

– Ok. Quer marcar um horário amanhã? Não é um encontro. Só, sei lá. Jantar, conversar, pra isso não te enlouquecer. Eu realmente estou preocupado com você.

Comecei a dizer que ele não devia se preocupar, que eu ficaria bem, mas desisti. Eu não sabia se ficaria mesmo bem.

– Seria bom – eu disse, honestamente. – Se minha contenção de estragos não for no mesmo horário, claro. Eu te aviso. – levantei, cansada. – Mas agora: cama.

Com o coração na mão, ele deixou que eu me recolhesse para o quarto. Senti-me pior, principalmente porque percebi como os sentimentos dele estavam no fim da minha lista de prioridades. Obviamente eram importantes para ele, e eu apreciava sua dedicação. E seus sentimentos significavam, sim, algo para mim. Havia algo de muito doce e reconfortante em sua oferta de parar a fim de respirar e conversar. Mas à luz de tudo o que estava acontecendo? Eu não podia me permitir processar algo tão profundo a respeito de nosso relacionamento.

Principalmente quando tive que enfrentar o desafio da livraria no dia seguinte. Não foi a primeira vez que entrei na Emerald City sob olhares curiosos e disfarçados. Na maioria das vezes, era por causa de alguma bobagem e eu nem me tocava. Dessa vez, eu sabia exatamente o que estava acontecendo. Não havia dúvida de que a maldita revista tinha circulado.

E dessa vez os olhares não eram curiosos ou sarcásticos. Eram acusatórios. Desdenhosos. Eu não conseguia enfrentá-los. Não ainda. Atravessei a loja correndo o mais rápido que consegui, até meu escritório, de onde não pretendia sair até o fim do meu expediente. Era bem hipócrita, considerando o que eu pensava sobre Seth fugir dos problemas. Exceto que eu não tive tanta sorte em escapar do meu.

Maddie estava sentada na minha mesa.

Não a via há uma semana, desde que ela viera até meu apartamento. Eu dissera que ela poderia tirar folga indefinida e não esperava vê-la de volta tão cedo. Ela me pegara de surpresa.

Seu rosto estava bem mais calmo do que o esperado. Não, estava mais do que calmo. Estava imóvel. Perfeita e assombrosamente parado. Como uma escultura. E quando ela olhou para mim, era como olhar para os olhos de um cadáver. Frios. Sem emoção. No entanto, fechei a porta, temendo o que estava por vir.

– Eu tinha um milhão de teorias, sabe? – sua voz estava tão neutra quanto sua expressão. – Mas essa nunca passou pela minha cabeça. Pensei que poderia haver outra mulher. Mas nunca desconfiei de você.

Meus lábios demoraram um século para se mover.

– Não... não foi isso. Não foi nada disso. Não foi por isso que ele fez o que fez... – eu não conseguia terminar e subitamente questionei minhas próprias palavras. Não foi por isso, quer dizer, por mim, a razão exata pela qual ele a abandonou? Talvez nosso encontro na praia não tenha sido a causa direta, mas eu com certeza fui o catalisador.

A revista estava sobre minha mesa, aberta na página denunciante. Ela a pegou, estudando-a com um olhar calculista.

– Então foi o quê? Só o estava confortando?

– Na verdade... bom, na verdade, sim. A foto foi tirada depois.

Ainda era uma desculpinha, e ambas sabíamos. Ela jogou a revista e, enfim, a emoção retornou à sua cara.

– Quê? E isso é desculpa? – ela gritou. – Você, uma das minhas melhores amigas, fugindo com meu noivo no dia em que ele me dá um pé na bunda?

– Não foi assim – eu repeti. – Eu fui procurá-lo... pra ver se ele tava bem.

– E depois você o fez ficar bem? – ela disparou. Suas palavras eram sarcásticas, mas lágrimas brilhavam em seus olhos.

– Não... eu não achei que nada disso aconteceria. E, sério, não aconteceu nada de demais. O negócio é que... – respirei fundo –, a gente já namorou. Antes de vocês namorarem. Nunca contamos pra ninguém. As coisas terminaram... bom, pouco antes de vocês saírem. – Tipo, no dia anterior.

Peguei-a com a guarda baixa. Seus olhos se arregalaram.

– Quê? Vocês têm uma história... Você namorou o meu namorado e nunca me contou? Ele nunca me contou?

– A gente achou que assim seria mais fácil.

– Mais fácil? Mais fácil? – ela apontou para a revista de novo. – Você acha que ver vocês juntos em impressão colorida foi mais fácil?

– Não estamos juntos – eu adicionei, rapidamente. – Ele não terminou com você por estar te traindo... – novamente, tive que admitir a verdade para mim mesma. Ele não a estava traindo quando terminou o noivado, mas dormimos juntos no começo da relação deles. – Eu fiquei tão surpresa quanto você. E eu me preocupei. Já te falei, fui procurá-lo, mas não dormimos. Então fui embora. É isso.

As lágrimas já escorriam por suas bochechas.

– Vocês terem dormido não importa. Vocês esconderam o passado de mim. Mentir é pior. Eu confiei em você! Em confiei nos dois! Como pôde fazer isso? Que tipo de pessoa faz isso?

Uma alma condenada, pensei. Mas não falei em voz alta. Não falei mais nada.

Maddie levantou em um pulo, tentando, sem sucesso, secar as lágrimas que continuavam brotando.

– Doug já tinha me avisado, sabia? Disse que vocês sempre se olhavam de um jeito estranho. Eu falei que ele tava maluco, imaginando coisas. Falei que era impossível, que vocês nunca fariam isso comigo.

– Maddie, eu sinto muito...

Ela correu para a porta, me empurrando.

– Não tanto quanto eu sinto por ter acreditado em você. Por ter confiado em você. Vou pedir demissão. Agora. Você nunca mais vai me ver – ela abriu a porta. – Não sei como você não morre de culpa. Vocês dois se merecem.

Ela bateu a porta com força, aturdindo meus ouvidos. Fiquei onde estava, olhando para a mesa, sem conseguir me mexer. Sem conseguir pensar, reagir ou fazer qualquer coisa útil. Não sei como você não morre de culpa. Nem eu.

– Caramba, as coisas tão foda pra você.

Carter se materializou em minha frente, preenchendo o ambiente com sua assinatura angélica. Malvestido como sempre – exceto pelo chapéu –, ele andou casualmente até a mesa e pegou a revista. – Mas tá bonita na foto.

– Cala a boca – eu disse. A agonia que tentei deixar trancada até o momento começou a escapar. – Cala essa boca! Não dou conta desses comentários agora, beleza? Não dou conta de tudo. Muito menos disso... – escorreguei para o chão, encostada na porta e passando a mão pelos cabelos. Quando olhei para Carter, esperei ver um dos seus sorrisos lacônicos, mas ele era todo seriedade.

– Não estava sendo sarcástico – ele disse. – As coisas estão fodidas.

Subitamente eu quis um cigarro.

– É. Estão. O Erik morreu, sabia?

– Sei.

Fechei os olhos por um momento, permitindo-me sentir a dor completa. Com tanta coisa acontecendo, eu não parecia estar suficientemente de luto. Me dei conta de que alguém precisaria dar um funeral adequado ao Erik. Será que ele tem família em algum lugar? O pior é que o Dante deve saber. Senão, eu cuido do funeral, não importa quão caro ou trabalhoso seja. Eu devo isso ao Erik. Eu devia muito mais.

– Não foi coincidência – eu disse, devagar. – Não é possível. O Jerome disse que foi uma vingança do chefe dos oneroi... mas eu não acredito nisso. O Erik tava tentando entender meu contrato. Antes de morrer... antes de... – minha voz falhou ao relembrar de como eu tinha lhe tirado o último suspiro. – Ele disse que havia dois contratos. O meu não era o problema. Eu não sei o que ele quis dizer.

Carter não disse nada, mas seus olhos estavam tão fixos em mim que pareciam estar me pregando na parede.

– Você sabe, não sabe? – perguntei-lhe. – Sempre soube. E Simone... – franzi a testa. – Antes de o Jerome mandá-la embora, ele disse algo sobre ela conhecer o Niphon e “foder mais com as coisas” ou algo do tipo. É uma parte desse quebra-cabeça, não é?

Carter continuou em silêncio. Eu dei uma risada dura.

– Claro, você não pode falar nada. Não pode fazer nada. O Inferno sempre mete o bedelho nos negócios dos mortais... e até dos imortais inferiores... mas vocês? Nada. Como podem ser uma força do bem nesse mundo? Vocês não ajudam em nada. Vocês só esperam e torcem para que tudo dê certo.

– A maior parte do bem nesse mundo acontece sem nossa ajuda – ele disse, evasivo.

– Ai, Senhor. Que resposta fofa. E quer saber mais? Eu não acredito que exista o bem nesse mundo. Todo esse tempo... desde que vendi a alma, fiquei apegada à ideia de que existe algo puro e decente em algum lugar por aí. Algo que me dava esperança de que, mesmo que eu fosse uma causa perdida, ainda haveria algo luminoso e bom no mundo. Mas não há. Se houvesse, Seth não teria sucumbido. Erik não teria morrido. Andrea Mortensen não estaria morrendo.

– O bem ainda pode existir quando coisas ruins acontecem, assim como o mal persiste quando coisas boas acontecem.

– Que bem pode vir da morte de Andrea? Que bem pode vir em cinco menininhas ficarem sozinhas e órfãs no mundo? – eu engasgava nos meus soluços. – E se você... qualquer um de vocês... realmente pudesse afetar esse mundo, não deixaria isso acontecer.

– Eu não posso mudar o destino. Não sou Deus – o puto ainda estava tão calmo que eu quis socá-lo. Porém, o que eu podia esperar? O Jerome não tem nenhuma ligação com os humanos, e, no fim das contas, anjos e demônios não são tão diferentes.

Enfiei a cara nas mãos.

– Você não pode mudar nada. Nenhum de nós pode. Estamos resignados a nosso destino, como a Nyx mostrou.

– Os humanos mudam seu destino toda a hora. Até imortais inferiores mudam. É pouco, mas acontece.

De repente, estava muito cansada. Muito, muito cansada. Eu não devia ter ido até lá. Não devia ter saído da cama. Não tinha mais energia para discutir com ele ou repreender sua atitude inútil.

– O Seth pode mudar? – perguntei, por fim. – Boas intenções são o suficiente para redimir uma alma?

– Tudo é possível – ele respondeu. – E isso não é um clichê – ele acrescentou, percebendo a cara de desdém que fiz. – É verdade. Mortais e mortais transformados em imortais nem sempre acreditam nisso; e é por isso que o Inferno leva tanta vantagem. Não estou dizendo que, se você acreditar, vai acontecer. Nem sempre as coisas são as melhores possíveis, mas milagres acontecem, Georgina. Você só precisa sacudir a poeira para fazer acontecer. Tem que arriscar.

Sim, definitivamente eu ia precisar de um cigarro. Carter devia ter um. Consegui reunir forças para sorrir.

– É fácil falar. Você faz milagres?

– Eu tento – ele respondeu. – Eu tento. Você vai tentar?

E com isso, desapareceu antes que eu pudesse filar um cigarro.

Anjos malditos.

Mas as palavras dele ressoavam em minha mente quando fui para casa à noite. Talvez porque por mais deprimentes que parecessem, ainda eram mais animadoras do que enfrentar aquele expediente. Meus empregados ainda me obedeciam, mas eu via a desaprovação e condenação fervilhantes em seus olhos. Foi incrivelmente semelhante à reação da minha vila quando todos descobriram que eu tinha traído Kyriakos. Só que, dessa vez, eu não tinha a opção de extirpar a memória da mente das pessoas. Não tinha mais o que barganhar com o Inferno.

No apartamento, encontrei um bilhete de Roman, dizendo que ele precisaria ficar na escola até mais tarde para terminar algo. Se eu quisesse, ele ficaria feliz em me levar para jantar conforme prometera. Isso me deu um tempo para me esticar no sofá, já que eu ainda estava exausta daquele miasma emocional pelo qual eu vagava. Não dormi, fiquei apenas com um mal-estar sombrio enquanto olhava o teto. Melhor assim. Vai saber com que eu poderia sonhar.

Sonhar.

Suspirei. O homem no sonho. Estava atazanando meu subconsciente, e, mesmo sem mencioná-lo, Carter o trouxe ao primeiro plano da minha mente. Os oneroi diziam ser Seth. Eu reafirmei a mim mesma pela centésima vez que isso era uma fantasia ridícula. Eu não podia ter uma relação de verdade com um mortal. Seth tinha pegado o mau caminho e eu o rejeitara. Agora era mesmo impossível.

Tudo é possível.

Erik e Mei tinham dito que era impossível para Seth achar minha alma em meio à vastidão do mundo dos sonhos, no entanto ele conseguira.

Kristin me dissera que o contrato estava perfeito, mas Erik jurou que havia uma falha. Eu tinha certeza de que ele morrera por isso.

Todo mundo que trabalha para o Inferno diz que almas enegrecidas quase nunca se redimem, contudo Seth se esforçava para recuperar minha estima. Ele também estava sacrificando algo que amava – escrever – para ajudar sua família. Isso seria o suficiente? Ele conseguiria ser salvo?

Tudo é possível.

Sentei-me, meu olhar pousando sobre Aubrey e Godiva dormindo juntas. Godiva tinha aparecido depois que eu sonhara com ela. O sonho que eu ainda dizia ser impossível.

Milagres acontecem, Georgina. Você só precisa sacudir a poeira para fazer acontecer. Tem que arriscar.

Eu era capaz? Arriscaria? Haveria um milagre em algum lugar da poeira do desespero, dos corações partidos, da morte e da traição? Eu não conseguia enxergar. Não sabia por onde começar. Carter dissera que as mudanças ocorrem por meio de pequenos atos. Eu só tinha que escolher algo. Qualquer coisa. Arriscar.

Novamente, concentrei-me em Godiva. O homem do sonho. Talvez fosse Seth. Talvez não. Talvez eu pudesse fazer acontecer. Seu amor tinha sido grande o suficiente para me salvar e depois para tentar se salvar. Percebi então o que estava me incomodando. Ele estava fazendo tudo isso – como eu podia fazer menos? A minha vida toda, eu me escondera de decisões difíceis. Eu sempre negociava para evitar as coisas ruins, o que nunca acabava tão bem. Na verdade, geralmente piorava a situação. Meu amor por Seth não era menor que o dele por mim, mas eu não me dispus a fazer as coisas que poderiam doer.

Seth me dissera que o universo não nos deixaria afastados. Ele tinha razão, e, dessa vez, eu seria a responsável por nos reunir. Eu não o abandonaria.

Eu seguia em direção à porta, casaco e bolsa na mão, quando Roman chegou em casa, trazendo flores. Ele me olhou e riu amargamente. A risada carregava todo o desgosto e resignação do mundo. O buquê pendeu de sua mão.

– Você tá indo pro Seth.

– Como você sabe?

– Porque... porque você tá iluminada. Porque parece que descobriu todas as respostas do universo.

– Não sei – eu disse –, mas eu encontrei um tipo de resposta. Ele arriscou tanto por mim... Nós nos encontramos entre todas as almas do mundo... – meu discurso esmoreceu. Eu me sentia péssima. Minha decisão sobre Seth me iluminava, mas a face de Roman... Parece que não há nada no mundo que não acabe provocando dor em alguém. – Eu errei em abandoná-lo. Especialmente agora.

– Acho que você deve ir atrás dele – disse Roman, por fim.

– Roman...

Ele balançou a cabeça.

– Vai.

Eu fui.

Eu não ia ao apartamento de Seth há tanto tempo, pelo menos não em carne e osso. Andando até a porta, uma cachoeira de memórias me inundou, particularmente lembranças daquela primeira vez em que passei a noite e ele cuidara de mim.

Não era tão tarde, mas, quando ele abriu a porta, estava com um visual largado, bagunçado, parecia estar dormindo. Ou talvez estivesse tão concentrado na escrita que nem se preocupasse com a aparência. Acontecia, às vezes, quando ficava preso nas palavras em sua mente.

Pelo seu olhar, ficou claro que ele estava mesmo nesse mundo. Ele deve ter pensado que demoraria a me ver. Imaginei se eu ainda estava radiante como Roman afirmara, pois os olhos de Seth me olharam com bem mais do que apenas surpresa. Havia fascinação e reverência. Eu apenas atravessei a cidade, em uma reação impulsiva, mas parecia que nos encontrávamos no tempo e espaço novamente.

– Georgina – ele suspirou –, o que você...

Não o deixei terminar. Joguei-me em seus braços e o beijei.

Dessa vez, não recuei.


Capítulo 25


– Iem quando eu senti sua energia vital entrar em mim. Continuei.

Ele me puxou para dentro do apartamento. Fechou a porta, chutando-a com habilidade. Seus braços me puxaram para mais perto. Não paramos de nos beijar ao tropeçar pela sala até o quarto. Caímos na cama, arrancando as roupas um do outro com certa prática, como se o México fosse apenas o aquecimento. Minhas mãos correram pelos músculos atléticos de seu peito; o cheiro de sua pele me entorpecia. Abandonar todas as restrições me fez sentir ainda mais inebriada, como também me inebriou o sabor doce e glorioso de sua alma.

Era minha imaginação ou estava um pouco mais pura do que no México? Será que uma única decisão – de voltar e enfrentar seus medos – clareou minimamente a escuridão? Eu não sabia ao certo, e, mesmo se não estivesse perfeita, a energia ainda era magnífica.

– Por quê? – ele perguntou, enfim. Seus pensamentos e sentimentos vinham com a energia, e eu imaginei se ele faria a pergunta que guerreava com seu desejo. Suas mãos continuaram a me tocar o tempo todo. Uma deslizou entre minhas coxas. – Por que agora?

Arqueei minha cintura contra a dele, gritando baixinho quando seus dedos escorregaram para dentro de mim. Sua boca cobriu a minha, adiando minha resposta.

– Porque estou cansada de lutar. Você tem razão. Nós vamos voltar um para o outro de novo e de novo... – meu discurso eloquente foi pausado quando sua boca desceu para meu seio, e sua língua brincou com meu mamilo. – Você disse antes que arriscaria a diminuição de sua vida... Vou arriscar sua mortalidade. Vou arriscar tudo para ficar com você... para te ajudar. Se você ainda quiser...

– Sim – ele respirou contra minha carne –, sim.

– Não vou te abandonar – murmurei. – E também não quero ficar só.

Essas foram minhas últimas palavras coerentes. Ele deslizou gentilmente para dentro de mim e levantou meus braços, segurando meus pulsos. Abri as pernas, recebendo seu corpo conforme ele se forçava contra o meu. Como da primeira vez em que fizemos sexo, houve um momento perfeito – um momento de assombro, total completude. Como se tivéssemos achado algo que perdêramos e estivéssemos com medo de perder outra vez.

Então, o sentimento metafísico sumiu, substituído pelo desejo de nossos corpos. Ele entrava e saía, gentilmente no começo, depois aumentando continuamente a força. Olhei para ele de olhos bem abertos, aproveitando cada traço de seu rosto, me recusando a perder um instante sequer dessa experiência. E, acredite em mim, eu estava tendo a experiência. Além do êxtase de nossos corpos movendo-se em união, eu tinha a energia e os sentimentos dele. Saber o que ele pensava enquanto fazíamos amor adicionava uma nova dimensão a tudo. Às vezes os homens têm pensamentos coerentes. Com ele, era apenas emoção. Amor e confiança e desejo... sentimentos tão fortes que ele estava disposto a arriscar tudo por eles, tudo para ficar comigo. Até sua vida.

Meu corpo queimava contra o seu, cada vez mais excitado pela euforia e pelo amor em seu rosto, justapostos ao jeito feroz com que ele me segurava e continuava entrando em mim. Tudo ficava cada vez mais intenso – física e espiritualmente – até que meu corpo finalmente atingiu um ponto crítico. Gozei com um grito alto e me arrastei contra ele, querendo livrar meus braços para poder abraçá-lo. Ele continuou me prendendo até gozar, o que não demorou muito. Com seu orgasmo, a completude de sua energia vital me preencheu, e me escutei gemendo outra vez, aproveitando sua energia. Ele ainda me penetrou mais algumas vezes cada vez mais demorada e lentamente enquanto seu corpo se liberava. Suas mãos soltaram meus pulsos, e ele se virou de lado, me levando junto. Pressionei-me contra seu peito, sentindo seu coração acelerado e o suor de sua pele.

Meu próprio coração batia com força também, enquanto meu corpo se deleitava com a saciedade. Cada pedaço do meu corpo estava arrepiado, e, apesar de não haver como se aproximar mais, eu tentei. Queria tocar na maior extensão de pele possível. Queria me misturar com ele o tanto quanto possível. Ele tirou o cabelo de meu rosto e beijos choveram em minha testa.

– Então esse é o efeito total de súcubo, hein?

– Isso aí.

– Vale a pena – ele murmurou. No entanto, eu já percebia os efeitos da perda de energia. – Custe o que custar, vale a pena.

Recusei-me a pensar no custo. Fazer amor com toda a força súcubo adiciona um componente poderoso ao ato, mas sem dúvida elimina alguns anos de sua vida. Porém, não sou eu quem deve decidir se vale a pena. Ele tinha feito a escolha.

A tal escolha o tinha deixado exausta, e eu sabia que ele dormiria por muito tempo enquanto seu corpo e sua alma se recuperavam da perda. Invertemos de posição, de modo que ele se deitou sobre meus seios.

– Descanse – eu disse, abraçando-o.

Ele levantou a cabeça, me olhando com seus olhos sonolentos e afetuosos.

– Não quero dormir ainda... Quero ficar com você. Você estará aqui de manhã dessa vez?

– Sim – respondi, beijando sua cabeça. – Prometo. Não vou te abandonar de novo.

Um leve sorriso tomou seus lábios, e ele permitiu que suas pálpebras fechassem. Ele se aninhou contra mim, e seu corpo foi relaxando.

– Meu mundo... – ele disse suavemente, conforme o sonho o tomava. – Você é meu mundo, Letha...

Eu me retesei.

– O que você disse?

Minha voz estava muito alta, estridente o suficiente para ele acordar do sono que seu corpo tanto desejava.

– Hum? Eu disse que você é o meu mundo, Georgina – ele bocejou de leve.

– Não foi esse nome que você falou – eu disse, tentando manter minha voz calma.

– Do que eu te chamei? Thetis? – poxa, antes fosse. Se fosse pelo meu apelido que ele tivesse me chamado.

– Você me chamou de... Letha.

Ele lutou para manter os olhos abertos e bocejou outra vez.

– Por que eu teria dito isso?

– Eu... não sei. Onde você ouviu isso?

Sim, pois é. Onde é que ele ouviu meu nome? Quase ninguém sabe. Praticamente só os imortais superiores. Os únicos imortais inferiores que conhecem são Niphon e Kristin, que tinham acesso aos meus arquivos. Eu tinha quase certeza de que elas não haviam contado aos meus outros amigos imortais. Eu tinha certeza absoluta que não teriam contado ao Seth.

O semblante de Seth se fechou, depois relaxou quando ele cerrou os olhos novamente.

– Não sei. Mitos gregos, acho. O rio Lethe, onde os mortos vão lavar as memórias de suas almas... para esquecer o passado. Não é isso?

– Sim – concordei, quase sem respirar. De onde é que ele tirou esse nome?

– Letha, Lethe... – eu quase não o ouvia mais. – Praticamente a mesma coisa.

– Praticamente – concordei de novo. – Minha voz estava quase inaudível quanto a dele. Meu nome. Não era para ele saber. Um pânico inexplicável começou a me tomar.

Algo sobre meu humor deve ter mexido com ele, pois ele se moveu de leve, enquanto seus olhos permaneciam fechados. Havia preocupação em suas palavras sonolentas.

– O que foi?

– Nada. Descanse.

Onde ele tinha ouvido meu nome? Minutos atrás eu estava pegando fogo. Agora estava fria.

– Certeza? – ele murmurou. – Tudo certo? – ele inspirou profundamente, e senti que ele sucumbia ao sono depois daquelas palavras.

– Tudo – eu disse, fixando meu olhar na noite. – Está tudo bem.

 

 

                                                   Richelle Mead         

 

 

 

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